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Aos dezasseis anos eu era uma autêntica beleza. Tinha o rosto de um oval perfeito, estreitandose levemente nas fontes, dois grandes olhos amendoados e meigos, um nariz direito, que prolongava harmoniosamente a nobre linha da fronte, uma bela boca de lábios vermelhos e carnudos e uma dentadura perfeita, muito regular e de extraordinária brancura. Minha mãe dizia que eu me parecia com uma santa. Pela minha parte, descobria que me parecia com uma artista de cinema muito em voga nesse tempo, e comecei a pentearme como ela. Minha mãe passava a vida a dizerme que, se tinha um rosto bonito, o meu corpo era cem vezes mais belo ainda, e que em toda Roma não se encontraria um corpo mais perfeito do que o meu. Nesse tempo o meu corpo não era coisa que me interessasse muito. Eu pensava que só a beleza do rosto é que tem importância, mas agora sei que minha mãe tinha toda a razão no que dizia. As minhas pernas eram direitas e fortes, as ancas suavemente arredondadas, as costas longas, largas nos ombros e estreitas na cintura. Tinha o ventre ligeiramente proeminente sempre tive um bocadinho de barriga e o meu umbigo enterravase tão profundamente na carne que quase se não via. Eu pensava que isso era um defeito, mas minha mãe teimava que, pelo contrário, era um novo encanto, porque o ventre de uma mulher deve ser arredondado sem exagero, e não completamente chato como se usa agora. O meu seio era grande, mas firme e alto, e nunca necessitei de qualquer auxílio ou artifício para o manter numa posição perfeita. Também a este respeito, quando às vezes me lamentava do seu tamanho, que me parecia excessivo, minha mãe respondia que só um seio grande poderia ser belo e que o seio pequeno não tinha qualquer espécie de encanto feminino. Nua, como haviam tantas vezes de dizermo mais tarde, eu era grande e opulenta como uma bela estátua. Vestida dava a impressão de uma rapariguita um tanto magra, nunca compreendi bem porquê, até que um pintor de quem fui modelo me disse que isso se devia à extrema harmonia das minhas proporções.
Foi, é claro, minha mãe quem me conseguiu esse emprego. Ela própria tinha posado antes de se casar e de se tornar costureira de camisas. E foi precisamente o facto de um pintor a encarregar de alguns trabalhos de costura que lhe inspirou a ideia de o convencer a contratarme para seu modelo. A primeira vez que fomos ao seu atelier eu ia profundamente envergonhada. Não por ir despirme completamente pela primeira vez diante de um homem, mas por pensar nos elogios que minha mãe não deixaria de fazer para convencer o pintor a aceder às suas propostas. E, na verdade, como eu calculara, mal acabou de me ajudar a despir e me apanhou completamente nua no meio da sala, minha mãe começou, entusiasmadíssima, a fazer o meu elogio:
Veja este seio e estas ancas! Repare nas pernas que ela tem! Onde encontraria o senhor umas pernas, uns seios e umas ancas como estes?
Ao mesmo tempo que falava apalpavame, como se faz nas feiras de gado para encorajar o comprador a fechar o negócio. O pintor riase, divertido. Eu sentiame morrer de vergonha.
Como estávamos no Inverno, sentia bastante frio. E, embora as palavras que saíam da boca de minha mãe não me vexassem profundamente, eu compreendia que ela falava sem malícia e que o orgulho que a minha beleza lhe causava vinha do facto de ter sido ela quem me gerara e ser, portanto, a ela que eu devia essa beleza. O pintor também parecia compreender esses sentimentos da minha mãe, porque se ria sem maldade, cordialmente. Foi isso que me devolveu a coragem perdida e me deu forças para ir aquecerme junto da salamandra acesa. O pintor tinha quarenta anos. Era um homem gordo, de aspecto sossegado e bem disposto. Eu sentia que ele olhava para mim como quem olha para um simples objecto, sem nenhuma espécie de sensualidade, e isso davame confiança. Mesmo mais tarde, quando a intimidade se estabeleceu entre nós, continuou sempre a tratarme gentilmente, com respeito, não como se eu fosse uma simples coisa, mas já como uma pessoa. Senti mediatamente uma grande simpatia por ele, e talvez fosse possível que me tivesse apaixonado simplesmente devido à sua amabilidade e à amizade com que me tratava. Mas ele nunca teve para comigo a mais pequena familiaridade: para mim foi sempre não um homem mas apenas um pintor, e durante todo o tempo em que posei para ele as nossas relações mantiveramse tão distantes e tão correctas como no primeiro dia.
Quando minha mãe se cansou de me tecer louvores, o pintor, sem uma palavra, dirigiu-se para um monte de cartões empilhados numa cadeira, folheouos e voltou com uma gravura colorida, que mostrou a minha mãe dizendolhe naturalmente :
Aqui tens a tua filha.
Afasteime do calor da salamandra para vir ver a gravura.
Representava uma mulher nua, estendida numa cama coberta de ricos tecidos. Para além da cama viase um reposteiro de veludo, e nas pregas desse reposteiro, suspensos no ar, dois meninos alados que me pareceram ser dois pequenos anjos.
Efectivamente, aquela mulher pareciase comigo. No entanto, e apesar de estar nua, por causa dos tecidos e dos anéis que tinha nos dedos, depreendiase que devia ter sido uma rainha ou uma grande dama, enquanto que eu não passava de uma pobre rapariga do povo. A princípio minha mãe não compreendeu e ficou a olhar para a gravura com ar aparvalhado. Depois, de repente, pareceu ter descoberto a semelhança e gritou, quase sufocada:
Não há dúvida alguma! É ela! Vê como eu tinha razão? De quem se trata?
De Dánae respondeu o pintor a sorrir.
E quem é Dánae?
Dánae é uma divindade pagã...
Minha mãe, que esperava o nome de uma pessoa que tivesse realmente existido, ficou desorientada. Para esconder a sua confusão começou a explicarme com grandes gestos que eu tinha de me pôr na posição que o pintor indicasse, deitada como a mulher da gravura, por exemplo, ou então de pé, ou sentada, e conservarme imóvel, sempre na mesma posição, durante todo o tempo do trabalho dele. Rindo, o pintor declarou que minha mãe conhecia o ofício muito melhor do que ele próprio. E logo minha mãe, cheia de vaidade, desatou a falar dos tempos em que era modelo e todos os artistas de Roma a disputavam e lhe elogiavam as formas, lamentando amargamente o facto de ter abandonado esse trabalho. Entretanto, o pintor tinhame feito estender num sofá ao fundo do atelier, indicarame a posição, dobrandome ele próprio as pernas e os braços para lhes dar a atitude requerida. Tudo isto foi feito com uma delicadeza meditativa e distraída. Como se na realidade já me estivesse a ver tal qual pretendia pintarme. Depois, enquanto minha mãe continuava infatigavelmente a sua conversa. Começou a desenhar numa tela branca que pusera num cavalete. Minha mãe, percebendo que ele já nem sequer a ouvia. Absorvido pelo seu trabalho, perguntoulhe:
Quanto tenciona pagar à minha filha por cada hora de pose?
O pintor disse um preço qualquer sem levantar os olhos da tela. Minha mãe nem se dignou responderlhe ou discutir com ele. Pegou na minha roupa, que estava nas costas de uma cadeira, e atiroume violentamente com ela, ordenando:
Vestete! O melhor que temos a fazer é irmonos embora...
Que mosca te mordeu? interrogou o pintor, estupefacto, parando de desenhar.
Nada. Nada! disse minha mãe, que parecia estar cheia de pressa. Vamos, Adriana. Temos imenso que fazer e não podemos perder tempo!
Que diabo! exclamou o pintor. Se tens uma proposta para me fazer, diz do que se trata e deixate de histórias...
Então minha mãe lançouse numa discussão interminável, gritando que ele era completamente idiota se pensava que podia pagarme uma ridicularia daquelas, que se não tratava de um destes modelos velhos que a ninguém interessam, mas sim de uma bela rapariga de dezasseis anos, que posava pela primeira vez.
Quando minha mãe quer impor a outras pessoas o seu ponto de vista usa sempre a táctica da gritaria, como se realmente estivesse possuída de uma violenta cólera; eu, que a conheço como às minhas mãos, sei perfeitamente que aquilo não passa de um processo; grita como as regateiras do mercado quando o comprador lhes faz uma oferta que elas consideram baixa. E este processo dá sempre resultado, especialmente com as pessoas que, pela sua formação, não podem responder aos seus gritos com gritos semelhantes. É com essas, aliás, que ela emprega mais vezes o sistema.
Com o pintor também não falhou. Enquanto minha mãe se esganiçava cada vez mais, ele sorria, e apenas fazia de vez em quando um vago gesto para a interromper. Por fim, aproveitando uma oportunidade em que minha mãe se calara durante alguns momentos para respirar, perguntoulhe calmamente quanto pretendia que ele me pagasse. Mas minha mãe não lhe respondeu imediatamente. Atirou este argumento que ninguém podia esperar:
O que eu gostava de saber era quanto esse que pintou o quadro que acaba de nos mostrar pagou ao seu modelo!
O pintor desatou a rir:
Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? Os tempos mudaram muito de então para cá. Ele deve terlhe dado em troca uma boa garrafa de vinho, talvez um par de luvas, não sei...
De novo minha mãe ficou tão desorientada como quando ele lhe tinha dito que a gravura representava Dánae. Eu compreendia que o pintor estava a divertirse à sua custa. Mas era sem maldade, e minha mãe não se apercebeu disso. Desatou novamente a gritar, chamandolhe miserável avarento e exaltando a minha beleza sem par. Depois, de repente, pareceu acalmarse e disselhe a quantia que entendia que devia pagarme, ou melhor, que ela queria que me pagasse. O pintor não concordou, discutiram ainda um bom bocado, mas por fim acabaram por assentar numa importância um pouco inferior à que minha mãe tinha indicado. O pintor dirigiuse para uma mesita, abriu uma gaveta e pagoulhe. Ela guardou alegremente o dinheiro, fezme algumas recomendações e retirouse. O pintor foi fechar a porta, voltou a sentarse diante do seu cavalete e perguntoume:
A tua mãe fala sempre assim aos gritos?
Minha mãe gosta muito de mim respondi.
Pois olha disse ele tranquilamente, continuando a desenhar. Cá, para mim, do que ela gosta muito é de dinheiro...
Oh! Não, isso não é assim! respondi vivamente.
De quem ela gosta acima de tudo é de mim. Mas tem pena que eu tenha nascido pobre e gostava de me ver ganhar a vida largamente.
Quis relatar pormenorizadamente esta história do pintor porque esse foi o meu primeiro dia de trabalho, se bem que eu tivesse acabado por escolher um ofício inteiramente diferente, e também para mostrar como o seu procedimento indicava o seu carácter e os seus sentimentos para comigo.
Terminada a minha hora de pose fui ter com minha mãe a uma leitaria onde tínhamos marcado encontro. Perguntoume como se tinha passado a sessão e obrigoume a relatar-lhe minuciosamente todas as palavras do pintor, que era, aliás, pouco falador. Finalmente disseme que eu precisava de ter os olhos bem abertos. Que talvez esse pintor não tivesse más intenções a meu respeito, mas que a maioria dos artistas tentava sempre tornarse amante dos seus modelos, quando valia a pena, é claro. Ora era preciso que eu repudiasse energicamente qualquer proposta desse género.
Nenhum deles tem onde cair morto explicoume e nada há de bom a esperar deles. E tu, com a beleza que Deus te deu, podes aspirar a coisa muito melhor...
Era a primeira vez que minha mãe se me dirigia nestes termos. Mas ela falava com a segurança de uma pessoa que se refere a coisas longamente meditadas.
Que queres dizer com isso? perguntei, surpreendida.
Vagamente, respondeume:
Falam todos muito bem, mas não têm um chavo. Uma linda rapariga como tu não deve frequentar senão homens decentes..
Como homens decentes? Eu ninguém conheço...
Ela olhoume durante uns momentos e concluiu, com os seus modos distraídos:
Por agora podes perfeitamente ser modelo. Mais tarde veremos... Cada coisa a seu tempo.
Havia nos seus olhos uma expressão ávida e concentrada que quase me fez medo. E nesse dia a conversa ficou por aí.
As recomendações e os conselhos de minha mãe eram desnecessários, porque eu era nesse tempo extremamente séria, talvez como consequência da minha juventude. Depois deste pintor trabalhei para outros e torneime muito conhecida entre eles. Devo dizer que, de um modo geral, os pintores se mostravam correctamente reservados e respeitosos para comigo, se bem que alguns deles nada fizessem para me esconder os seus sentimentos a meu respeito. Mas eu afastavaos imediatamente com tal violência que rapidamente adquiri a fama de que comigo nada havia a fazer. Mas creio que a verdadeira razão do modo reservado como os pintores se portavam comigo era que na realidade o que lhes interessava não era fazerme a corte, mas pintar. Ora, enquanto desenhavam ou pintavam, os olhos com que me viam eram olhos de artista, e não de homem. Quero dizer que, na minha opinião, olhavam para mim com a mesma insensibilidade com que teriam olhado para uma cadeira ou para outro objecto qualquer. Estavam habituados a trabalhar com modelos, e o meu corpo nu, apesar de jovem e provocante, não lhes causava qualquer impressão, como sucede com os médicos. O que me complicava às vezes a existência eram os amigos dos pintores. Chegavam e punhamse a conversar. Mas não tiravam os olhos de mim, apesar da indiferença que afectavam. Outros nem sequer tentavam disfarçar o que sentiam e andavam constantemente de um lado para o outro de modo a poderem mirarme de todos os ângulos. Foram estes olhares e as obscuras alusões de minha mãe que acordaram o meu amor-próprio feminino, tornandome consciente, ao mesmo tempo, da minha beleza e das vantagens que podia tirar dela. E acabei, não só por me habituar a essas assiduidades, mas até por sentir um certo prazer quando os visitantes se perturbavam por minha causa e uma estranha desilusão quando isso não acontecia.
Terminei por convencerme, como o desejava minha mãe, de que eu possuía na minha beleza um bom capital, que um dia poderia render lucros pingues e seguros.
Nessa época da minha vida eu pensava, no entanto, em me casar. Os meus sentidos ainda não tinham acordado e, pondo de lado a vaidade, os homens que olhavam para mim enquanto posava não me provocavam qualquer sentimento. Entregava pontualmente a minha mãe todo o dinheiro que me pagavam, e quando não tinha trabalho ficava com ela em casa, ajudandoa a cortar e a coser as camisas. Este era o nosso meio de existência desde a morte de meu pai, que tinha sido ferroviário. Vivíamos num pequeno apartamento situado no segundo andar de uma pobre casa, construída havia cinquenta anos para o pessoal dos caminhos de ferro, numa rua da periferia da cidade. De um lado havia uma fileira de construções do mesmo tipo, com dois andares, uma fachada de tijolos sem reboco, doze janelas seis em cada andar e em baixo uma porta central. Do outro lado estendiamse as antigas muralhas da cidade, que neste local se mantinham de pé, cobertas de heras e trepadeiras. Uma porta rasgavase nessas muralhas, próximo da nossa casa. Perto dessa porta havia uma espécie de LunaParque, sempre iluminado e com música durante o tempo seco. Da minha janela eu podia ver grinaldas de lâmpadas multicores, tectos dos quais se erguiam pequenas bandeiras e pendões e a multidão que se comprimia à entrada, debaixo dos enormes plátanos que davam sombra a esse lado da rua. A música ouviase distintamente em nossa casa.
Muitas vezes, durante a noite, eu deixavame ficar acordada para a escutar, sonhando com os olhos abertos. Pareciame que ela chegava até mim vinda de um mundo inacessível, circunstância que a pequenez do meu quarto reforçava. Tinha a impressão de que toda a população da cidade vinha divertirse para o LunaParque e que eu era a única que não tinha posses para o fazer. E a música, que soava em toda a noite, evocava no meu espírito a ideia de um castigo que eu sofria por causa de crimes que devia ter cometido, mas que ignorava quais tivessem sido. Por vezes, ao ouvila, chegava a chorar, de tal modo a minha exclusão me humilhava e tornava infeliz, porque nesse tempo eu era terrivelmente sentimental: um gesto ou uma palavra mais brusca de uma amiga, uma censura de minha mãe, uma cena emocionante vista no cinema, qualquer coisa era suficiente para que as lágrimas me viessem aos olhos. Possível que eu não tivesse com tanta nitidez a percepção de um mundo de felicidades que me estavam vedadas se durante a minha infância minha mãe não impedisse tão exclusivamente a minha entrada no LunaParque. Mas a sua viuvez precoce, a sua falta de recursos e principalmente a sua hostilidade para com todos os divertimentos de que ela própria estava privada fizeram com que ela nunca me permitisse a entrada no LunaParque ou em qualquer outro lugar de distracção senão muito mais tarde, quando eu já era uma mulherzinha e o meu carácter já se encontrava formado. Provavelmente a isso que devo ter guardado em toda a minha vida esta convicção da existência de um mundo de alegria e de felicidade vedado para mim por um destino ao qual já pertencia ainda antes de ter nascido. E esta sensação radicouse tão profundamente dentro de mim que não consigo libertarme dela nem quando tenho a certeza de que sou feliz.
Já disse que nesse tempo a minha grande aspiração era o casamento. Agora posso ver qual era o verdadeiro aspecto que essa ideia tomava dentro de mim. A rua em que morávamos atravessava, quase no seu termo, um bairro menos pobre do que o nosso. Em lugar das nossas casas baixas e iguais, semelhantes a carruagens de caminho de ferro, empoeiradas e velhas, podiam verse aí pequenos pavilhões rodeados de jardins. Não eram luxuosos. Os que lá viviam não passavam de modestos empregados ou remediados comerciantes, mas, em comparação com a miséria da nossa casa, esses pavilhões eram infinitamente confortáveis e alegres. Além disso eram todos diferentes uns dos outros e não mostravam o aspecto de decadência que dão as paredes sem cal e cheias de gretas, característica dominante da nossa casa e das dos nossos vizinhos. Também os jardins que os rodeavam, apesar de pequenos, estavam cheios de plantas e davamme uma doce sensação de intimidade, em contraste com a desagradável promiscuidade da rua. Na minha casa era isso o que se encontrava a todos os momentos e em toda a parte, a rua: no vasto vestíbulo, que tinha o ar de um armazém abandonado, na larga escada nua e suja, e até nas salas, cujos móveis desirmanados e a cair aos pedaços me faziam pensar nos ferrosvelhos que os compravam e vendiam ao longo dos passeios.
Uma noite de Verão em que passeava na rua com minha mãe, pela janela de um desses pavilhões vi uma cena familiar que se gravou para sempre no meu espírito e me pareceu corresponder ponto por ponto à ideia que tinha do que deve ser uma vida normal e decente. Uma sala pequena, mas arrumada e limpa, com as paredes forradas de um papel pintado às florinhas, uma credência e um candeeiro de tecto suspenso ao centro da sala por cima da mesa posta. A roda desta mesa sentavamse cinco ou seis pessoas, entre as quais três crianças dos oito aos doze anos. No meio da mesa havia uma terrina, e a mãe, de pé, servia a sopa. Por muito estranho que isto possa parecer, de todas estas coisas a que mais profundamente se gravou na minha memória foi a luz da suspensão, ou, melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e normal que todas as coisas tomavam vistas sob esta luz. Mais tarde, sempre que voltei a pensar nesta cena, tive a convicção absoluta de que o meu fito na vida devia ter sido viver numa casa idêntica, ter uma família como esta e passar os meus dias ao clarão de uma luz assim, que parecia revelar a presença de tantas afeições seguras e tranquilas. Muita gente háde sorrir da modéstia das minhas aspirações. Mas é preciso não esquecer o que eu era nesse tempo. Para mim, nascida num autêntico tugúrio, aquele pavilhão modestíssimo surgia aos meus olhos como surgiria aos olhos dos seus habitantes, que eu tanto invejava, um dos maiores e mais sumptuosos palácios dos bairros aristocráticos, tão certo é ser o paraíso de uns o que para outros não passa do inferno.
Minha mãe, ao contrário, acalentava grandes projectos para o meu futuro, e eu depressa compreendi que esses projectos excluíam por completo qualquer tipo de vida parecido com o que eu própria desejava. O que ela pensava, em resumo, era que a minha beleza me permitia aspirar a todos os géneros de êxitos, mas de nenhum modo a tornarme, como as outras raparigas, uma mulher casada, vivendo para o marido e para os filhos. Sendo nós extremamente pobres, a minha beleza parecialhe o único património de que dispúnhamos, e pertencia, portanto, tanto a mim como a ela, visto ter sido dela que eu a recebera ao deitarme ao mundo. E esta riqueza devia servirme para melhoria da nossa situação, sem ligar importância ao que podiam ser as convenções sociais. No fundo isto não passava de uma completa falta de imaginação. Numa situação como a nossa, a ideia de pôr a minha beleza a render era perfeitamente intuitiva. Minha mãe adoptoua, agarrouse a ela e nunca mais a abandonou.
A verdade é que eu só muito vagamente compreendia os projectos da minha mãe. Mas mesmo mais tarde, quando adquiri experiência da vida, nunca tive coragem para lhe perguntar como, incompreensivelmente, tendo ela essas ideias, tinha acedido a casar com um pobrediabo e cair na miséria. Muitas das suas alusões tinhamme feito compreender que a verdadeira culpada deste estado de coisas era eu, visto que o meu nascimento não tinha sido previsto nem desejado. Por outras palavras, o meu nascimento fora ocasional, e minha mãe, sem coragem de me impedir de nascer (como deveria ter feito, segundo dizia muitas vezes), não tinha tido outro remédio senão casarse com meu pai e aceitar todas as consequéncias desastrosas de um casamento semelhante. Por isso, com frequéncia, referindose ao meu nascimento, afirmava: “Tu foste a minha ruína!”
Estas palavras, apesar da tristeza que me causavam, foram durante muito tempo perfeitamente obscuras para mim. Só muito mais tarde lhes consegui apreender o sentido exacto. O que elas realmente significavam era: “Sem ti nunca me teria casado e a esta hora tinha automóvel!” Era perfeitamente compreensível que, nutrindo ideias destas acerca da sua própria vida, minha mãe não concebesse para mim, muito mais bonita do que ela fora, o caminho dos mesmos erros, e portanto um destino semelhante.
Hoje, que me é possível ver as coisas em perspectiva, não tenho coragem de a condenar. Para minha mãe a palavra família significava miséria, escravidão e algumas pequenas alegrias rapidamente terminadas com a morte do meu pai. Era natural, senão justo, que considerasse a vida honesta e familiar como um caminho seguro para a desgraça e estivesse alerta a não me deixar tentar pelas miragens que a tinham atraído.
A sua maneira, minha mãe gostava muito de mim. Por exemplo: logo que eu comecei a frequentar os ateliers, fezme dois vestidos: um fato inteiro e outro de saia e casaco. Para falar verdade, eu teria preferido roupa interior, porque tinha vergonha, sempre que era forçada a despirme, da minha roupa grosseira, usada, e até muitas vezes pouco limpa. Mas minha mãe declarava que o importante era o que estava à vista. Para os fatos escolheu dois tecidos baratos, de cor e padrão vistosos, e cortouos e coseuos ela própria. Mas, porque era camiseira e não modista, apesar da sua boa vontade, os resultados foram desastrosos. Lembrome de que o fato inteiro fazia pregas no peito, deixandome de tal maneira os seios a descoberto que fui obrigada a usar constantemente um alfinete para fechar um pouco mais o decote, e que o fato de saia e casaco estava demasiadamente apertado e fazia rugas e pregas por todos os lados. Apesar disso, estas roupas pareceramme verdadeiras maravilhas, em comparação com as coisas que até ali usara. Minha mãe comproume também dois pares de meias de seda. Tudo isso me encheu de alegria e de orgulho. Pensava constantemente, com encanto, nas minhas novas coisas e nem por um momento abandonava a preocupação de as não sujar ou estragar, como se aqueles míseros trapos tivessem saído das mãos de um grande costureiro.
Minha mãe pensava muito no meu futuro e não tardou a mostrarse descontente com a minha actividade de modelo. Segundo ela, o que eu ganhava era uma verdadeira miséria. Além disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretões, e não seria com certeza nos seus ate1iers que eu conseguiria algumas relações úteis. De repente meteuselhe na cabeça fazerme bailarina. A sua cabeça estava sempre cheia de ideias ambiciosas, ao passo que eu, como já tive ocasião de dizer, sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A ideia da dança veio à minha mãe num dia em que recebera uma encomenda de camisas para o director de uma companhia de variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto não quer dizer que minha mãe pensasse que a profissão de bailarina fosse por si própria muito lucrativa; mas, conforme afirmava constantemente, umas coisas levam às outras e quem se exibe num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um homem decente.
Um dia declaroume que falara com o director e que este me queria conhecer. Fomos, assim, uma manhã ao hotel em que ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel recordome perfeitamente ficava num prédio muito grande e muito velho perto da estação. Era quase meiodia quando lá chegámos, mas os corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro humano que saía de todos aqueles quartos era tão forte e tão denso que chegava a dificultar a respiração. Percorremos vários desses corredores e acabámos por entrar numa espécie de antecâmara sombria, onde três bailarinas se exercitavam ao som de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num ângulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no canto em frente havia um enorme montão de lençóis sujos. O pianista, um velho pálido, tocava de cor; deume a impressão de pensar noutra coisa e talvez até de estar a dormir. As três bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando as saias de baixo, e dançavam com o peito e os braços nus. Seguravamse umas às outras pela cintura, e quando o pianista atacava uma ária caminhavam na direcção do montão de roupa suja, levantando as pernas e passeandoas num movimento de conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar sombrio e lúgubre, imprimiam às nádegas uma oscilação vigorosa. Quando olhei para elas e as vi bater com os pés no chão com um barulho rítmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem. Não ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas, eu não possuía a menor queda para a dança. Tinha recebido lições, juntamente com duas amigas, numa escola do bairro. As minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem treinadas; eu, pelo contrário, parecia feita de chumbo. Isto davame a impressão de não ser feita como as outras raparigas e julgava existir em mim qualquer coisa de maciço e de pesado que a música não conseguia atingir. Além disso, nas raras vezes em que tinha dançado, o facto de sentir um braço apertarme a cintura davame uma tal sensação de moleza e de abandono que eu arrastava as pernas em lugar de as mover. O pintor bem mo dissera: “Tu, Adriana, devias ter nascido três ou quatro séculos mais cedo... Estava na moda as mulheres como tu. Hoje, que a moda é a magreza, tu és como um peixe fora de água. Dentro de quatro ou cinco anos estarás bela e forte como Juno.” Nesta última parte não acertou porque os cinco anos passaram e eu não estou nem mais gorda nem mais forte que nesse tempo. Mas quando me dizia que estava deslocada nesta época de mulheres magras tinha razão, e eu sofria com a minha incapacidade. Bem gostaria de emagrecer e de dançar como as outras raparigas. Mas por menos que comesse e por mais esforços que fizesse continuava maciça e imponente como uma estátua, e quando dançava erame impossível obedecer ao ritmo rápido e saltitante da música moderna.
Disse tudo isto a minha mãe, porque tinha a certeza de que a nossa ida ao hotel seria um fiasco e queria evitar essa humilhação. Mas minha mãe desatou a gritar que eu era infinitamente mais bela do que todas as desgraçadas que se mostravam nos palcos, que o director daria graças a Deus pela sorte de poder incluirme no seu grupo de artistas e outras coisas semelhantes. Minha mãe nada compreendia da beleza moderna; acreditava com inteira boa fé que quanto mais opulentos forem os seios e as ancas de uma mulher mais bela essa mulher será.
O director esperavanos numa sala que dava para a antecâmara de que já falei; suponho que do sítio onde estava podia vigiar, pela porta aberta, o trabalho das bailarinas. Estava sentado numa poltrona ao lado da cama por fazer, e em cima desta tinha ainda a bandeja do pequenoalmoço, que acabara de tomar. Era velho e gordo, mas vestiase com exagerado requinte e com uma elegância vistosa, que naquele quarto pobre e desleixado, mal iluminado e com a cama desfeita, assumia um aspecto singular e anacrónico. O seu rosto era corado, mas desconfiei que o pintava, porque debaixo do tom rosado das faces podiam verse como que placas irregulares de um moreno doentio. Usava monóculo, movia constantemente os lábios assoprando e descobrindo os dentes de uma brancura tão excessiva que se via imediatamente serem postiços. Estava sentado com o enorme ventre caindolhe para o meio das pernas; quando acabou de comer disseme numa voz contrariada e quase gemebunda:
Vamos, mostrame as pernas!
Mostra as pernas ao senhor director repetiu a minha mãe com ansiedade.
Desde que trabalhava nos ateliers já não tinha vergonha... Mostrei as pernas conservandome imóvel, arregaçando a saia com as duas mãos. As minhas pernas são verdadeiramente belas: longas, cheias e lisas, mas, um pouco acima dos joelhos, as coxas tomam um desenvolvimento insólito: são redondas e fortes e não cessam de alargar até ao ponto mais saliente das ancas.
O director abanou a cabeça e perguntou:
Que idade tens tu?
Completou dezoito anos em Agosto respondeu prontamente minha mãe.
O director não respondeu. Levantouse e dirigiuse para um fonógrafo que se encontrava em cima da mesa, no meio de papéis e peças de roupa. Deu volta à manivela, escolheu um disco com cuidado e colocouo no prato. Depois disseme :
Agora tenta dançar ao som desta música, mas mantendo a saia levantada.
Ela só teve duas ou três lições de dança explicou minha mãe.
Sabia perfeitamente que essa prova era decisiva, e conhecendo a minha falta de habilidade temia o resultado do exame.
Mas o director, depois de ter feito um gesto pedindo silêncio, fez rodar o disco e, também por gestos, convidoume a dançar.
Comecei mantendo a saia levantada, como me tinha dito para fazer. Na realidade, a única coisa que fiz foi atirar as pernas para a direita e para a esquerda de um modo pesado e sem graça, dandome perfeitamente conta de que nem sequer o fazia acompanhando o ritmo da música. O director tinhase deixado ficar de pé junto do fonógrafo com os cotovelos apoiados na mesa, olhando para mim. De repente parou o aparelho e fechouo. Voltou a sentarse na sua poltrona e com um gesto expressivo indicounos a porta.
Que foi? Não serve? interrogou minha mãe, entre ansiosa e agressiva.
Ele respondeu sem sequer olhar para ela, ao mesmo tempo que remexia nos bolsos em busca da cigarreira.
Não. Não serve.
Eu bem sabia que quando minha mãe falava com aquele tom de voz tentava provocar uma discussão. Para evitar isso puxeia por um braço. Mas ela afastoume com um safanão e, fixando no director um olhar chamejante, repetiu, já em voz mais forte:
Não serve? Não? E poderá saberse porquê? Entretanto o director tinha encontrado os cigarros e procurava os fósforos.
Devido à sua gordura cada um dos seus gestos parecia custarlhe um enorme esforço. Apesar de ofegante, foi com grande tranquilidade que respondeu:
A tua filha nem tem físico de bailarina nem tem a menor queda para a dança. Por isso que não serve.
Como eu calculava, minha mãe desatou nas suas habituais considerações. Que eu era uma autêntica beleza, que tinha um rosto de Madona, que não havia pernas, nem ancas, nem seios mais belos do que os meus. Calmamente, continuando a fumar o seu cigarro, o director observavaa e esperava que ela se calasse. Depois disse na sua voz contrariada e um pouco chorona:
Dentro de dois anos a tua filha poderá talvez dar uma boa ama de leite. Uma bailarina nunca!
O pobre homem não sabia de que extremos de violência minha mãe era capaz. O seu pasmo foi tão grande que deixou cair o cigarro e ficou de boca aberta. Minha mãe era magra e de aspecto frágil, de modo que ninguém compreendia onde ela ia buscar tanta cólera e uma voz tão forte. Atiroulhe à cara, dirigidas a ele e às bailarinas que tínhamos visto no corredor, quantas injúrias sabia. Depois, agarrando nos cortes de seda que ele lhe confiara para ela fazer camisas, arremessouos ao chão gritando:
As suas bailarinas que lhe façam as camisas! Eu não lhes tocarei nem que mas pagasse a peso de ouro.
Isto era tão inesperado para o director que ele nada respondeu e ficou a olhar para minha mãe, estupefacto e congestionado.
Eu, entretanto, tentava arrastála dali para fora e quase chorava de vergonha e de humilhação. Conseguio finalmente, e saímos do quarto sem que o director pronunciasse uma única palavra.
No dia seguinte contei esta aventura ao pintor, que se tinha tornado um pouco meu confidente. Ele riu com vontade do que o director dissera quanto às minhas aptidões para ama de leite e disseme:
Minha pobre Adriana. Já to disse várias vezes: o teu grande erro foi teres nascido no tempo presente; devias ter vindo ao mundo há quatro séculos. O que hoje é considerado defeito era então considerado qualidade e viceversa. Do seu ponto de vista, o director tem razão. O público actualmente exige mulheres magras, louras, de seio pequeno, ancas estreitas e um rosto malicioso e provocante; tu, pelo contrário, és forte, morena, com um seio e umas ancas opulentas e um rosto doce e tranquilo. Não está na tua mão modificares a situação. Para mim tens precisamente o que necessito. Continua a ser modelo. Depois, um belo dia, casarás e terás muitos filhos parecidos contigo, morenos e gorduchos, com caras meigas e tranquilas.
São essas precisamente as minhas ambições respondi com energia.
Muito bem disse ele. Agora inclinate um bocadinho para o lado. Isso! Óptimo.
Este pintor queriame bem à sua maneira, e se tivesse continuado a viver em Roma e a servirme de confidente tenho a certeza de que me daria bons conselhos e muitas coisas que me aconteceram poderiam ter sido evitadas. Mas ele queixavase constantemente de que não vendia os seus quadros e acabou por aproveitar a oportunidade de ter feito uma exposição em Milão para fixar residência naquela cidade.
Continuei a ser modelo como ele me aconselhara. Mas os outros pintores não tinham por mim a mesma amizade e eu não me sentia disposta a falarlhes dos meus problemas nem da minha vida.
Nessa altura, aliás, muito mais imaginária do que real, feita de sonhos, de aspirações e de esperanças, visto que nada de extraordinário me acontecia.
Foi assim que continuei a ser modelo, apesar de minha mãe resmungar constantemente que por esse processo eu nunca chegaria a ganhar coisa que se visse. No decurso deste período da minha vida minha mãe esteve constantemente de mau humor, e, apesar de ela o não dizer claramente, eu bem compreendia que a causa da sua má disposição era eu. Não é esta a primeira vez que o digo: minha mãe contava com a minha beleza como se conta com um capital seguro. Para ela o ofício de modelo não passava de um ponto de partida; depois disto, segundo a sua expressão habitual, “uma coisa traria outra”. A continuação deste trabalho humilde e mal remunerado, ao mesmo tempo que a enchia de amargura, tornavaa rancorosa contra mim, como se o facto de eu não ser ambiciosa a privasse de lucros seguros.
Evidentemente que não me dizia isto. Mas dava-mo constantemente a perceber pelos seus modos desagradáveis, as suas alusões, os seus suspiros, os seus olhares melancólicos e outros meios de expressão igualmente significativos. Era uma espécie de chantagem constante, a razão pela qual muitas raparigas, fundamentalmente honestas, martirizadas sem piedade nem tréguas por mães ambiciosas e desiludidas, acabam por fugir de casa e entregarse ao primeiro homem que encontaram, unicamente para se libertarem desse tormento. Eu bem sei que minha mãe fazia isto por amor de mim. Mas esse amor era como os dos aldeões para com as galinhas: no dia em que elas deixam de pôr ovos começam imediatamente a perguntar a si próprios se não terá chegado o momento de lhes torcer o pescoço e as meter na panela.
Como se é paciente e crédulo quando se é jovem! A minha vida nesse tempo era horrível e eu nem sequer tinha consciência disso. O dinheiro que me rendiam as minhas longas, enfadonhas e fatigantes sessões de pose nos ateliers era por mim integralmente entregue em casa, e o tempo que não passava nua, entorpecida e dolorida pela imobilidade, para que me pintassem e desenhassem, passavao em casa a coser à máquina, de costas dobradas e com os olhos fitos na agulha ajudando minha mãe no seu trabalho. À noite continuava a costurar até tarde, para me levantar mal começava a amanhecer, pois os ateliers ficavam longe e as sessões começavam cedo. Mas antes de partir para o trabalho fazia a minha cama e ajudava minha mãe a arrumar a casa. Eu era realmente infatigável, submissa, paciente e ao mesmo tempo sempre calma, alegre e tranquila, a alma isenta de inveja, de rancor ou de ciúme, cheia dessa doçura e dessa gratidão sem motivo que são a florescência espontánea da juventude. Não me apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mãe numa cama de casal; mesmo por cima da minha cabeça, quando estava deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando estava mau tempo chovianos em cima. Tínhamos uma pequena cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mãe por desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Não me apercebia da vida de sacrifício que levava, sem divertimentos, sem amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na minha inocência e na minha bondade, sinto uma grande compaixão por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma que se sente quando, ao lerse um romance, desejamos evitar a uma personagem simpática as desgraças que lhe vão acontecer, sabendo ao mesmo tempo que as não poderemos impedir. A vida é assim: a bondade, a inocência, nada valem para os homens. E não será talvez um dos seus menos dolorosos mistérios que as melhores qualidades que a natureza nos deu e todos entusiasticamente louvam não sirvam senão para nos tornar mais desgraçados ainda.
Nesta altura acreditava que a minha aspiração de casar e ter uma família podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as manhãs tomava o eléctrico numa grande praça muito perto da minha casa, para a qual dava, entre outros prédios, uma construção baixa encostada às muralhas e que servia de garagem. A essa hora estava todos os dias à porta da oficina um rapaz que lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistência. Era moreno, com um ar finíssimo: nariz pequeno e direito, olhos negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes muito brancos. Pareciase muito com um actor americano de cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a atenção. Primeiro tomeio por uma pessoa de condição, porque estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos tais “cavalheiros respeitáveis” de que minha mãe tanto me falava. Por um lado ele atraiume, mas pensava nele apenas quando o via; depois ia para o atelier e a sua lembrança saíame do espírito. Mas não é menos verdade que sem dar por isso e apenas por causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma manhã em que eu, no passeio, esperava o eléctrico, ouvi que me chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para chamar os gatos; volteime e vi que ele me fazia sinais de dentro do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava, não hesitei um instante em aproximarme. Ele abriu a porta. Ao entrar reparei que a mão que pousava sobre o vidro aberto era grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como têm os homens que exercem profissões manuais. Nada disse e mesmo assim subi.
Onde quer que a deixe? perguntoume fechando a porta.
Notei que tinha a voz doce e tive a impressão de que ela me agradava, sem no entanto deixar de notar nela qualquer coisa de falso e de afectado. Acrescentou:
Bem... para fazer horas vamos dar uma volta... Ainda é cedo! Depois leválaei aonde você quiser.
E o carro partiu.
Saímos do meu bairro e contornámos as muralhas ao longo da avenida exterior; em seguida entrámos numa estrada larga e comprida, ladeada de casebres e de armazéns; por fim chegámos ao campo. Então desatou a correr como doido por uma estrada recta, entre áleas de plátanos. De vez em quando diziame sem me olhar, mostrando o contaquilómetros:
Agora vamos a oitenta... noventa... cem... cento e vinte... cento e trinta.
Queria impressionarme com estas velocidades, mas eu estava sobretudo inquieta porque tinha de ir posar e receava que um incidente qualquer nos obrigasse a parar o carro em algum descampado. De repente travou. Bruscamente desligou o motor, voltouse para mim e perguntou:
Quantos anos tem?
Dezoito anos respondi.
Dezoito anos... julguei que tivesse mais!
Tinha realmente uma maneira de falar afectada, e por vezes, para sublinhar uma palavra, baixava o tom como se falasse consigo próprio ou dissesse um segredo.
Como se chama?
Adriana. E você?
Gino.
O que faz? pergunteilhe.
Sou comerciante! respondeu sem hesitar.
E o carro ê seu?
Olhou o carro com uma espécie de desdém e declarou:
É meu, sim.
Não acredito! disselhe eu com toda a franqueza.
Não acredita? Estão não é meu! repetiu sem perder a linha. Não está má! E porquê?
Você é o chauffeur?
Ele fingiu um espanto irónico cada vez maior.
Mas, na verdade, você dizme coisas fantásticas! Vejam bem: chauffeur! Mas que a fez pensar isso?
As suas mãos.
Olhou as mãos sem corar nem se desconcertar e confessou:
Bom! Nada se pode esconder a esta menina. Mas que argúcia! É verdade, sou chauffeur. E agora, está contente?
Nada mesmo! respondi duramente. Quero apenas pedirlhe que me leve para a cidade o mais depressa possível.
Mas porquê? Está zangada comigo por eu ter dito que era comerciante?
Estava realmente irritada com ele. Nem eu sabia bem porquê:
Não falemos mais nisso. Leveme!
Mas era uma brincadeira! Então já não se pode brincar?
Não gosto destas brincadeiras!
Que mau génio! Eu pensei: é possível que esta rapariga seja alguma princesa... se ela descobre que sou apenas um pobre chauffeur, nem se digna olharme... vou dizerlhe que sou comerciante.
As suas palavras foram astuciosas, porque, lisonjeandome, faziamme compreender os seus sentimentos a meu respeito. Por outro lado ele pronunciavaas com uma mistura de graça e de enfatuamento que acabaram de me conquistar.
Não sou qualquer princesa respondi. Ganho a minha vida como modelo, como você ganha a sua como chauffeur.
Que quer dizer isso de modelo?
Vou aos ateliês dos pintores. Ponhome nua e eles pintamme ou desenhamme.
Mas você não tem mãe? perguntoume com ênfase.
Com certeza, porquê?
E a sua mãe consente que se ponha toda nua diante dos homens?
Eu nem sequer tinha sonhado alguma vez que pudesse haver algum mal neste trabalho. Efectivamente, não havia mal algum nisso, mas agradoume ver tais sentimentos, que denotavam que ele era sério e tinha senso moral. Como já disse, eu tinha sede de normalidade; e ele na sua falsidade tinha compreendido logo (mesmo agora eu não sei como conseguiu adivinhar) as coisas que me devia dizer e as que não devia. Outro qualquer não pude deixar de pensar - ou teria troçado de mim ou teria demonstrado qualquer indiscreta excitação à ideia da minha nudez. E foi por isso que a primeira impressão que me ficara da sua mentira se modificou sem que eu desse por isso. Pensei que apesar de tudo devia ser um bom rapaz, honesto e sério, muito parecido com o homem que eu sonhava para marido.
Respondilhe portanto com simplicidade:
Foi minha mãe quem me arranjou este trabalho.
Então é sinal de que ela não gosta de si.
Não protestei , a minha mãe gosta até muito de mim; mas ela também no seu tempo de rapariga foi modelo. E depois assegurolhe que nada tem de mal. Há muitas raparigas como eu que fazem este trabalho e são raparigas sérias.
Ele abanou a cabeça em ar de desaprovação e depois pousou a sua mão na minha.
Sabe que estou bem contente por têla conhecido... muito contente!
Também eu respondi ingenuamente. Neste momento sentia uma atracção tão grande por ele que quase esperava que me beijasse. Com certeza que se me tivesse beijado eu não teria protestado, mas em vez disso disseme com voz grave e ar protector:
Se isso dependesse de mim, você não seria modelo com certeza!
Sentime imediatamente vítima e experimentei um sentimento de gratidão pela sua consideração.
Uma rapariga como você continuou ele deve ficar na sua casa... precisando... pode trabalhar... Mas é preciso que seja um trabalho digno... um trabalho em que não seja necessário sacrificarse a pôr em perigo a sua honra. Você é uma rapariga para casa, fundar um lar, ter filhos, fazer companhia ao seu marido.
Era exactamente o que eu pensava e não sabia dizer até que ponto me tornava feliz saber que ele pensava como eu, ou fingia pensar.
Tem razão disselhe. Mas não quero que faça uma ideia errada de minha mãe. Foi justamente por ela gostar muito de mim que quis que eu fosse modelo.
Ninguém o diria! retorquiu com um ar seriamente comovido e indignado.
Sim! Ela gosta de mim! Somente, há certas coisas que ela não compreende.
Continuámos a falar de tudo ou pouco, sentados, atrás do párabrisas, dentro do carro parado. Lembrome de que estávamos em Maio, que o ar era doce e que as sombras dos plátanos pareciam brincar sobre a estrada até perder de vista.
Ninguém passava, salvo raros automóveis a toda a velocidade. O campo em redor, cheio de sol e muito verde, estava tão deserto como a estrada. Por fim olhou o relógio e disseme que íamos voltar para a cidade. Durante todo este tempo ele só me tinha pegado na mão, e mesmo isso apenas uma vez. E eu, que esperava que ele tentasse pelo menos beijarme, estava ao mesmo tempo decepcionada e contente de tanta reserva. Decepcionada porque ele me agradava e não podia deixar de sentir uma grande atracção pela sua boca fina e vermelha quando a olhava. Contente porque a sua atitude confirmava a ideia que tinha a seu respeito, de que era um rapaz sério como eu desejava que ele fosse.
Conduziume até ao atelier e disseme que, a partir desse dia, se eu estivesse na paragem do eléctrico a uma certa hora, ele me traria no seu carro; a essa hora nada tinha que fazer.
Aceitei de boa vontade, e as minhas longas horas de pose pareceramme mais curtas naquele dia. Parecia que a minha vida tinha tomado um rumo e sentiame contente de poder pensar nele sem remorsos e sem ressentimentos, como se pensa num homem que não só nos agrada fisicamente, mas também pelas qualidades de carácter que eu considerava essencial que ele fosse possuidor.
Nada disse a minha mãe, porque pensava, muito acertadamente, que ela nunca aceitaria que eu me ligasse a um homem pobre e de futuro modesto. Na manhã seguinte veio buscarme como me prometera, e nesse dia limitouse a levarme directamente ao atelier. Nos dias seguintes, logo que o tempo começou a ficar bom, levoume por vezes para qualquer estrada dos arrabaldes, ou para qualquer rua pouco frequentada da periferia, a fim de conversarmos à vontade, mas sempre de maneira respeitosa e conversas honestas e sérias que muito me agradavam. Eu era nesse tempo muito sentimental: tudo o que traduzisse bondade, virtude, moral e afeição de família tocavame singularmente e comoviame até às lágrimas, lágrimas que me corriam livremente dandome uma sensação embriagadora e ardente de alívio, de simpatia e de confiança. Foi assim que pouco a pouco me convenci de que Gino era absolutamente perfeito.
“Realmente pensava eu às vezes ... que defeitos tem ele? É novo, é belo, é inteligente, é honesto, é sério, não se lhe pode apontar o mais pequeno defeito.” Isso admiravame porque não é fácil encontrar a perfeição, e o conhecêla quase me afligia. “Que homem é este que, depois de perscrutado, não revela a menor mácula, nem a menor falta?”
Na verdade, eu apaixonarame sem dar por isso. E agora sei que o amor tem uns óculos através dos quais um monstro nos parece maravilhoso.
Estava de tal maneira apaixonada que a primeira vez que ele me beijou, na estrada onde tivera lugar a nossa primeira conversa, experimentei uma tal sensação que se poderia traduzir como a satisfação natural de um velho anseio, há muito desejado. Contudo, a irresistível espontaneidade com que as nossas bocas se uniram assustoume um pouco, porque eu pensava que de futuro os meus actos já não dependiam de mim, mas da força irresistível que me atraía com tão doce violência para os seus braços. No entanto, fiquei plenamente descansada, porque logo que nos separámos ele disseme que nos podíamos considerar daí em diante como noivos.
Ainda desta vez não pude impedirme de pensar que ele encontrara sem dificuldades as palavras que correspondiam aos meus anseios mais íntimos. Assim, o receio que este beijo me despertara desvaneceuse e todo o tempo em que estivemos parados na estrada fui eu quem o beijou, sem reserva, com um sentimento de inteiro, violento e legítimo abandono. Dei e recebi na minha vida muitos beijos. Sabe Deus quantos dei e recebi sem a menor reacção, não só afectiva mas também física, como se dá ou se recebe uma moeda usada por mil mãos. Mas nunca mais esquecerei aquele primeiro beijo, pela intensidade quase dolorosa com a qual satisfiz plenamente, não apenas o meu amor por Gino, mas uma espera de toda a minha vida. Lembrome de ter tido a sensação de que à nossa volta o mundo girava, que eu tinha o céu em baixo e a Terra em cima de mim.
Na realidade tinhame apenas debruçado um pouco sobre a sua boca para prolongar o beijo. Qualquer coisa de fresco e de vivo tocava e forçava os meus dentes, e quando os descerrei senti que a sua língua, que tanta vez me acariciara os ouvidos com as suas palavras, se me revelava agora mudamente, fazendo penetrar na minha boca uma outra doçura desconhecida. Não sabia que se podia beijar assim e por tanto tempo; bem depressa perdi a respiração e sentime tão vazia que quando nos separámos encosteime às costas do banco com os olhos fechados e o espírito abstracto, como se fosse desmaiar. Nesse dia descobri que havia outras alegrias no mundo além de uma vida tranquila no seio da família. Mas não pensava que essas alegrias pudessem impedir aquelas a que eu até então aspirara.
Depois da promessa de noivado de Gino sentime segura de poder sem pecado nem remorsos daqui para o futuro saborear ao mesmo tempo umas e outras. Estava tão convencida da honestidade e da dignidade da minha conduta que nessa mesma noite, com um pouco de excitação e satisfação ao mesmo tempo, contei o caso a minha mãe. Encontreia a coser à máquina junto da janela à luz crua de uma lâmpada sem abatjour, e disselhe com a cara a arder:
Mamã, estou noiva!
Vi a sua face enrugarse com uma contracção como se tivesse sentido um fio de água gelada correrlhe pelas costas abaixo.
E de quem? perguntou.
De um rapaz que conheci há uns dias.
Que faz ele?
É chauffeur.
Gostaria de ter acrescentado mais alguma coisa, mas ela não me deu tempo. Afastouse da máquina e. saltando da cadeira, agarroume pelos cabelos:
Ficaste noiva sem nada me dizeres! E com um chauffeur? Coitada de mim! Tu vais ser a minha morte.
Gritando, ela tentava esbofetearme. Eu protegia a cara com as mãos e acabei por me escapar, mas ela seguiu atrás de mim. Corri à volta da mesa que ocupava o centro da sala, enquanto ela me perseguia com lamentações de desespero. Eu estava completamente apavorada ao ver o seu rosto magro virado para mim com uma espécie de fúria dolorosa.
Eu matote! gritava. Desta vez matote! Cada vez que ela dizia “matote” dirseia que a sua raiva aumentava e que ela ia pôr em prática as suas ameaças. Eu estava no topo da mesa e vigiava os seus gestos porque naquele momento ela era capaz senão de me matar, pelo menos de me ferir com a primeira coisa que apanhasse à mão. Com efeito a certa altura brandiu a grande tesoura de costura; só tive tempo de me virar e logo a tesoura voou pelo ar e foi bater na parede. O seu próprio gesto assustoua. Bruscamente sentouse junto da mesa, com o rosto entre as mãos, e teve uma crise de lágrimas nervosas entrecortada por ataques de tosse, onde havia mais raiva que dor. Ouviaa dizer por entre lágrimas:
E eu que tinha tantos planos para ti!... Eu que te via rica... com a tua beleza... E logo te foste comprometer com um esfomeado!
Mas ele não é um esfomeado interrompi timidamente.
Um chauffeur! Um chauffeur! repetia ela levantando os ombros. Tu não passas de uma desgraçada e acabas por me desgraçar a mim também!
Pronunciou lentamente estas palavras como para saborear a sua amargura.
Vai casar contigo e tu serás a sua criada primeiro e depois a criada dos teus filhos... assim que tudo acabará!
Casaremos logo que ele tenha dinheiro suficiente para comprar um carro! declarei, anunciando um dos vários planos de Gino.
Veremos!... Mas não o quero cá metido! gritou bruscamente, voltando para mim a cara coberta de lágrimas. Não o quero ver! Faz o que quiseres... encontrate com ele lá fora, as não o metas aqui!
Nessa noite fuime deitar sem jantar, muito triste e muito desencorajada. Mas percebi que se minha mãe se portava comigo desta maneira era por gostar de mim e por ter feito para o meu futuro não sei que planos que o meu noivado com Gino deitava por terra. Mais tarde, quando compreendi quais eram esses planos, não senti coragem para a condenar. Ela não tinha recebido da sua vida honesta e laboriosa outras recompensas que não fossem amarguras, tormentos e miséria. Que admira que sonhasse para a sua filha uma sorte completamente diferente?
Devo acrescentar que se tratava talvez não tanto de planos, mas mais propriamente de sonhos vagos e cintilantes que podia acalentar sem muitos remorsos precisamente por serem vagos e cintilantes. Mas isto é uma suposição. Pode muito bem ser que, pelo contrário, a minha mãe, por um desvio inveterado de consciência, tenha realmente decidido encaminharme um dia para o caminho que fatalmente eu iria tomar sozinha. Se digo estas coisas não é por rancor contra minha mãe, mas porque ainda hoje não sei bem o que pensava ela então e porque a experiência me ensinou que se pode pensar e sentir ao mesmo tempo as coisas mais diferentes sem lhes notar a contradição.
Minha mãe jurara que em caso nenhum se encontraria com Gino e durante algum tempo respeitei o seu juramento. Mas depois dos primeiros beijos, Gino parecia extremamente desejoso de apôr tudo em ordem, como ele dizia, e todos os dias insistia comigo para ser apresentado a minha mãe. Não tinha coragem para lhe dizer que ela não o queria conhecer porque achava a sua profissão demasiado humilde e vime por isso forçada a encontrar constantemente pretextos para retardar essa ocasião. Por fim Gino compreendeu que eu lhe escondia qualquer coisa e insistiu tanto que me vi forçada a revelarlhe a verdade.
Minha mãe não te quer conhecer. Acha que eu devia casarme com um homem rico e não com um chauffeur.
Esta conversa passavase dentro do carro na ruazinha costumada do arrabalde. Gino olhoume com tristeza, suspirando. Eu estava a tal ponto apaixonada por ele que nem me dei conta do que havia de fingido na sua maneira de falar.
Eis o resultado de ser pobre! exclamou.
Depois disso mantevese num silêncio longo e teimoso.
Humilhame respondeu ele baixando a cabeça. Outro qualquer no meu lugar nem teria falado em noivado, nem teria pedido para ser apresentado à tua mãe. É para que serve querer a gente portarse bem!
Que importância tem isso se tens a certeza do meu amor?
O que eu devia ter feito continuou ele era apresentarme com a carteira bem recheada e sem falar de casamento. Se fizesse isso, tua mãe abrirmeia os braços...
Não ousava contradizêlo porque bem sabia que tudo quanto ele dizia era verdade.
Sabes o que vamos fazer? propus daí a momentos. Um destes dias levote lá a casa sem dizer nada. Desse modo minha mãe não terá outro remédio senão conhecerte. Que demónio! Não pode chegar ao exagero de fechar os olhos!
Na noite combinada para isso conduzi Gino a nossa casa. Minha mãe tinha acabado a tarefa desse dia e estava a preparar uma ponta da mesa para jantarmos. Entrei à frente e disse simplesmente.
Mamã! Este é o Gino!
Esperava que houvesse uma cena desagradável. Até tinha prevenido Gino. Com grande surpresa minha ela disse secamente :
Muito prazer...
E depois saiu da sala.
Vais ver que tudo corre bem disse Gino.
Aproximeime dele, estendilhe a boca e acrescentei:
Dáme um beijo...
Não, não murmurou ele em voz baixa afastandome. Se eu fizesse isso, tua mãe teria muita razão em pensar mal de mim.
Gino sabia encontrar sempre as palavras exactas e perfeitas para cada momento. Tive de concordar para comigo que tinha razão. Minha mãe entrou pouco depois e, evitando olhar para Gino, disse:
O jantar não chega porque eu não sabia... Mas vou sair e...
Não teve tempo de acabar porque Gino se aproximou imediatamente dela interrompendoa:
Por amor de Deus ! Eu não vim cá para que me dessem de jantar. Pelo contrário! Peço licença para as convidar a ambas...
Falava cerimoniosamente, como a pessoas da alta. Minha mãe, que não estava habituada a que lhe falassem assim, nem a receber convites, hesitou uns momentos olhando para mim.
Depois respondeu:
Cá por mim, se a Adriana quiser..
Podíamos comer na casa de pasto aqui ao lado... - propus eu.
Onde quiserem respondeu Gino.
Minha mãe declarou que ia tirar o avental e deixounos sós! Enchiame uma enorme e ingénua alegria, tinha a impressão de que acabava de conseguir uma grande vitória quando na realidade isto tudo não passava de uma comédia, na qual eu era a única pessoa que permanecia completamente sincera. Aproximeime de Gino, e antes que ele conseguisse impedirme beijeio com paixão. O meu beijo marcava o termo da ansiedade que me tinha atormentado tantos dias, a segurança de que mais nenhum obstáculo agora se ergueria contra o meu casamento, a minha gratidão por Gino pela sua atitude amável para com a minha mãe, a minha afeição por ele, uma afeição sincera, confiante e desarmada como só é possível sentirse aos dezoito anos quando ainda nenhuma desilusão nos tocou e feriu a alma. Só mais tarde é que vim a compreender como esta candura tem pouca importância para os outros. A maior parte das pessoas consideramna ridícula e gostam de a macular.
Dirigimonos os três para um modesto restaurante que ficava perto da nossa casa, do outro lado das fortificações. À mesa.
Gino, deixando de me dar qualquer importáncia, consagrouse por completo a minha mãe, no claro desejo de a conquistar, o que aliás me pareceu louvável e legítimo; foi por isso que não prestei grande atenção às suas exageradas amabilidades para com ela. Gino tratavaa por “madame”, tratamento absolutamente novo para ela, e tinha o cuidado de usar esta palavra o mais possível no começo e no fim das suas frases. Ao mesmo tempo, com o ar mais natural deste mundo. Dizialhe: “A senhora, que é uma pessoa inteligente, deve compreender.” Chegou ao extremo de lhe declarar que quando tinha a minha idade ela devia ter sido muito mais bonita do que eu.
Que provas tens disso? perguntei, um tanto amuada.
Ora! Estas coisas adivinhamse, não precisam de provas! respondeu com ar superior e entendido.
Quanto a minha mãe, coitada, não sabia que fazer. Cheguei a notar que às vezes repetia a si própria, murmurando, os madrigais afectados e manifestamente interesseiros de Gino.
Esta era, com certeza absoluta, a primeira vez na sua vida em que lhe diziam coisas destas, e o seu coração esfomeado não conseguia saciarse. A mim, como já disse, todas essas falsidades me pareciam uma prova de respeito de Gino pela minha mãe e da sua delicada ternura para comigo. E tudo isto era como o toque final do pincel no belo retrato de Gino, já tão cheio de perfeições e qualidades.
Entretanto, um grupo de gente jovem viera sentarse na mesa próxima da nossa. Um dos rapazes, que me pareceu estar embriagado. Pôsse a olhar insistentemente para mim e disse em voz alta qualquer frase obscena a meu respeito. Gino ouviua, levantouse imediatamente e dirigiuselhe:
Repete o que acabas de dizer! ordenou.
O caso interessate? perguntou o outro, numa voz, um pouco pastosa, de bêbado.
Esta senhora e esta menina estão acompanhadas por mim! declarou Gino elevando a voz e enquanto estiverem comigo tudo o que lhes diz respeito me interessa. Entendido?
Entendido. Não te irrites respondeu o rapaz, assustado.
Os outros, apesar da sua atitude hostil, nada se atreveram a fazer. E o rapaz, fingindose ainda mais embriagado do que na realidade estava, encheu um copo com vinho e ofereceuo a Gino. Este recusou com um gesto.
Não queres beber? gritou o bêbado. Não gostas de vinho? Fazes mal. O vinho é bom e faz bem. Está bem, pronto, bebo eu!
Esvaziou o copo de uma golada. Gino encarouo severamente durante momentos e depois voltou para junto de nós.
Gente mal educada! disse sentandose.
Não valia a pena incomodarse disse minha mãe, envaidecida com o que se passava. Não passam de garotos.
Mas Gino não queria perder a oportunidade de marcar o seu espírito de galanteria cavalheiresca.
Como não valia a pena? Ainda se fosse com uma dessas mulheres... bem, compreendamonos, não é verdade “madame”? Se fosse isso vá lá, mas eu estou com uma senhora e com uma menina honestas e respeitáveis. Aliás, o pateta compreendeu logo que era melhor fazer marcha a trás...
Este incidente completou a conquista de minha mãe, sem contar que Gino a forçava a beber, e que o vinho a embriagava tanto como as suas adulações. Apesar disso, para além da simpatia que ela sentia por Gino, mantinhase o mau humor que lhe causava o nosso noivado. Por isso não deixou escapar a primeira ocasião que se lhe apresentou para lhe fazer compreender que nada estava esquecido.
Essa oportunidade foilhe oferecida por uma conversa acerca da minha profissão de modelo. Não me recordo a que propósito, falei de um novo pintor para quem tinha posado essa manhã.
Gino declarou imediatamente:
Talvez isto seja idiota e pouco moderno, mas custame aceitar que a Adriana se ponha nua diante de todos esses homens...
E porquê? perguntou minha mãe com uma voz alterada que me fez temer a aproximação da tempestade.
Porque me não parece moral.
Não me atrevo a dizer integralmente a resposta que lhe foi dada. Essa resposta estava cheia dos palavrões e das obscenidades que lhe vinham à boca sempre que bebia ou se deixava dominar pela cólera. Mas, mesmo expurgada, a sua diatribe revelava claramente quais eram as suas ideias sobre o assunto.
Ah, não é moral?! gritou de tal modo que todos os presentes pararam de comer e se voltaram para nós. Ah, não é moral? Então o que é moral? Passar todo o santo dia a lavar pratos, cozinhar, passar a ferro, esfregar o chão, e depois, à noite, ver chegar um marido tão estafado como nós, que se deita mal acaba de jantar, se volta para o outro lado e se põe a ressonar como um porco? Isso é que é moral, não lhe parece? Sacrificarse uma pessoa toda a vida, tornarse velha e feia e por fim estourar, isso é que é moral? Pois muito bem! Sabe o que lhe digo? Que não se vive mais do que uma vez, e quando se morre, boasnoites! Vá para o diabo com a sua moral! A Adriana faz muito bem em se mostrar nua a quem lhe paga para isso, e ainda faria melhor se... Aqui uma série de obscenidades, que me fizeram corar, proclamadas aos gritos para toda a gente. Pela minha parte continuou se ela fizesse isto que digo, não só não tentaria impedila, como ainda a ajudaria com todas as minhas forças! Desde que lhe pagassem, é claro! concluiu, depois de um momento de reflexão.
Tenho a certeza de que não seria capaz disso respondeu Gino, sem perder a calma.
Quem?! Eu?! Isso é o que o senhor pensa! Mas de que diabo se convenceu o senhor? De que me causou algum prazer que a Adriana se tivesse comprometido com um pobretanas como o senhor, um simples chauffeur? Que não preferiria mil vezes que ela levasse uma vida de paródia? Julga que eu posso concordar que minha filha, bela como é, capaz de fazer pagar a sua beleza por fortunas, vá condenarse a ser uma criada sua para toda a vida? Pois, meu amigo, se pensa isso, enganase! Garantolhe que se engana!
Gritava de tal maneira que toda a gente tinha os olhos cravados nela. Eu estava meia morta de vergonha. Porém, Gino, como já disse, mantinhase perfeitamente calmo e senhor de si.
Aproveitandose de um momento em que minha mãe se calou para respirar, encheulhe o copo e propôs gentilmente, com um sorriso:
Mais uma gota de vinho?
Ela não soube fazer outra coisa senão dizer: - Obrigado! - e aceitou o copo que Gino lhe oferecia. A nossa volta as pessoas, vendo que apesar de todos aqueles gritos nós continuávamos a beber como se nada se tivesse passado, retomaram as suas conversas. Gino declarou:
A Adriana, bela como é, merecia levar a vida que leva a minha patroa...
E que vida leva ela? apresseime a perguntar, ansiosa por deixar de ser o assunto da conversa.
Pela manhã respondeu ele com vaidade, como se a riqueza dos seus patrões se reflectisse nele próprio levantase aí pelas onze ou meiodia. Levamlhe o pequenoalmoço à cama numa bandeja de prata e num serviço de que as peças são também de prata maciça. Depois toma o seu banho, mas antes disso a criada de quarto deita sais na água para a perfumar. A seguir levoa a dar uma passeio de carro. Toma um vermute em qualquer parte, ou corre as lojas à procura de coisas que lhe agradem. Volta então para casa, almoça, dorme a sesta e passa horas a vestirse. Também tem armários e armários cheios de coisas! Quando está pronta, sai para fazer visitas ou jantar fora. A noite vai ao teatro ou dançar, e também recebe com freqüência lá em casa. Nessas ocasiões jogam, bebem, ou ouvem música. Uma gente rica, extraordinariamente rica. Só em jóias estou convencido de que a minha patroa possui milhões.
Como as crianças a quem é fácil distrair ou fazer mudar de disposição, minha mãe já se tinha esquecido de mim e do meu injusto destino e esbugalhava os olhos perante a descrição de todo esse esplendor.
Milhões? repetiu com avidez. E é bonita? Gino, que estava a fumar, cuspiu com destreza um fio de tabaco.
Bonita? Ela?! Credo! É horrorosa. Tão magra que parece uma bruxa!
Continuaram os dois a conversar acerca da fortuna da patroa do Gino, ou, para ser mais exacta, Gino continuou a exaltar a sua riqueza como se a ele próprio pertencesse. Mas, passado o primeiro impulso de curiosidade, minha mãe tinhase tornado novamente sombria e distraída. E nunca mais abriu boca em toda a noite. Talvez tivesse vergonha de se ter abandonado àquele acesso de cólera; talvez toda aquela riqueza lhe inspirasse inveja e talvez pensasse com despeito na pobreza do homem que eu tinha escolhido para noivo.
No dia seguinte perguntei timidamente a Gino se ela lhe tinha desagradado muito; mas ele respondeume que, muito embora não concordando, compreendia o seu ponto de vista cuja origem era uma vida infeliz e cheia de privações. Era digna de pena, concluiu. Além disso viase bem que se falava daquela maneira é porque gostava muito de mim. Era esta também a minha opinião, e fiqueilhe agradecida por se mostrar tão compreensivo. Na verdade eu tinha tido muito medo de que a cena que a minha mãe fizera viesse esfriar as nossas relações.
A moderação de Gino, além de me encher de gratidão, reforçou em mim a ideia de que ele era perfeito. Se eu fosse menos cega e menos inexperiente teria compreendido que só a falsidade premeditada pode dar uma impressão de perfeição e que a verdadeira sinceridade apresenta sempre, ao mesmo tempo, qualidades e defeitos.
Em resumo, daí para o futuro a minha posição perante ele seria sempre de inferioridade, porque eu ficaria para sempre convencida de nada lhe ter dado em troca da sua generosidade e da sua compreensão. Talvez se deva atribuir ao estado de alma de uma pessoa que se via cumulada de favores e que deseja instintivamente pagar a sua dívida o facto de, a partir desse momento, eu ter deixado por completo de resistir, como fizera até aí, aos seus gestos amorosos cada vez mais audaciosos. Mas também é verdade já o disse a propósito do nosso primeiro beijo que eu me sentia pronta à entrega total, levada ao mesmo tempo por uma força suave e invencível, como acontece com o sono que, para vencer a nossa vontade consciente de não adormecer, nos obriga a dormir fazendonos sonhar que estamos acordados tão bem que, abandonandonos a ele, estamos convencidos de que lhe resistimos.
Recordome com impressionante clareza de todas as fases da minha sedução, porque cada uma das conquistas de Gino foi ao mesmo tempo desejada e repelida por mim e porque cada uma delas me deu, ao mesmo tempo, prazer e remorsos. E também porque essas conquistas foram conseguidas com uma lentidão sabiamente premeditada, sem pressas nem impaciências. Gino procedia como um general que ocupa metodicamente um pais e não como um amante ardendo de desejos, e assim foi apossandose do meu corpo passivo, da boca até ao ventre. Tudo isto, porém, não impediu que mais tarde Gino se apaixonasse violentamente por mim e que a premeditação calculada desaparecesse para dar lugar, senão a um amor profundo, pelo menos a um poderoso desejo que nada saciava.
Durante os nossos passeios de carro até ali ele tinhase limitado a beijarme a boca e o pescoço, mas uma certa manhã enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botões da minha blusa. Depois uma sensação de frescura no peito fez com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o espelho do párabrisas. Reparei então que um dos meus seios estava nu. Enchime de vergonha, mas não tive coragem para me tapar. Foi o próprio Gino, num gesto rápido, que parecia secundar a minha atrapalhação, quem abotoou novamente a minha blusa. Esta delicadeza da sua parte comoveume profundamente, deixandome ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de então habitueime àquela manifestação do seu desejo e pareceme que se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar de mim.
Conversávamos com frequência do que seria a nossa vida depois de nos casarmos. Gino falavame também muito da sua família, que vivia na província, a qual não podia com justiça considerarse pobre, pois possuía algumas feiras de terra.
Tenho a impressão de que o que aliás é vulgar nos autênticos mentirosos em dado momento ele começou a acreditar nas suas próprias mentiras. Certo que mostrava por mim uma forte atracção, e, visto que a nossa intimidade se tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo tempo tornarse mais sincero. Pela minha parte as suas palavras adormeciam os meus remorsos e davamme uma impressão de felicidade ingénua e completa que nunca mais depois disso voltei a conhecer. Eu amava, era amada, pensava que me casaria muito breve e nada mais se poderia desejar neste mundo.
Minha mãe compreendia perfeitamente que os nossos passeios matinais não eram completamente inocentes e deumo a perceber muitas vezes por meio de frases como esta:
“Não sei o que vocês fazem quando passeiam de automóvel, mas a verdade é que também o não quero saber...” Ou então: “Tu e o Gino andam a preparar uma grande tolice! Tanto pior para ti!”
Diziame com frequência coisas no género. Mas por vezes as suas recriminações pareceramme estranhamente desinteressadas.
Dirseia que não só encarava com antecipada resignação a ideia de que eu ia tornarme amante do Gino como até no fundo desejava que isso acontecesse. Agora sei que ela esperava sempre o momento próprio para impedir que o meu casamento se realizasse.
Uma manhã, Gino disseme que os patrões tinham partido para o campo, que as criadas estavam de férias nas suas aldeias e que lhe tinham entregue a casa a ele e ao jardineiro. Não gostaria eu de a visitar? Tinhame falado dela tantas vezes e em termos tão admirativos que eu estava cheia de curiosidade: aceitei de boa vontade. Mas no preciso momento em que disse que sim, uma perturbação profunda feita de desejo fezme compreender que a minha curiosidade de ver a casa não tinha passado de um pretexto, e que o verdadeiro motivo desta visita era bem outro. Entretanto, como sempre acontece quando se aspira a uma coisa que não se quer desejar, fingi não acreditar no pretexto, enganandome a mim própria e a ele.
Sei que não devia ir disselhe, subindo para o carro.
Mas não nos vamos demorar muito tempo, pois não? Ouviame a mim própria pronunciar estas palavras numa voz ao mesmo tempo amedrontada e provocante. Gino respondeume muito sério:
Só o tempo de ver a casa. Depois vamos ao cinema.
A moradia elevavase numa ruazinha que descia do novo bairro rico, no meio de outras lindas casas. Estava um dia calmo e todas essas casas estendendose pela colina debaixo de um céu muito azul, com as suas fachadas de tijolos vermelhos ou de pedra branca, os seus alpendres ornados de estátuas, as suas pérgulas envidraçadas, os terraços e as varandas repletos de gerânios, os jardins onde cresciam as suas árvores copadas entre uma moradia e outra tudo isso me dava uma deliciosa sensação de descoberta e de novidade. Era como se entrasse num mundo mais livre e mais belo, onde seria mais agradável viver. Não pude deixar de me lembrar do meu bairro, da grande estrada que corre junto das muralhas, das construções pobres, e declarei a Gino :
Já estou arrependida de ter vindo.
Porquê? perguntoume com ar desenvolto. Não nos demoraremos, está descansada!
Tu não percebes! respondi. Estou arrependida porque agora vou corar com vergonha da minha casa e do meu bairro.
Ah! Isso sim! disse com um ar aliviado. Mas que queres fazer? Era preciso terse nascido milionário... Neste bairro só moram milionários.
Abriu o portão e levoume por uma álea coberta de saibro, entre duas filas de arbustos tratados com inexcedível esmero.
Entrámos na moradia por uma porta de vidro espesso e encontrámonos no vestíbulo da entrada, vazio, pavimentado de placas de mármore brancas e negras, desenhando enormes quadrados encerados, brilhantes como espelhos. Do vestíbulo passámos ao hall, espaçoso e cheio de luz, para o qual davam as salas do résdochão. Ao fundo do hall viase uma escadaria toda branca, que conduzia aos andares superiores.
Vendo este hall sentime tão intimidada que comecei a andar nos bicos dos pés. Gino reparou e disseme a rir que podia fazer todo o barulho que quisesse porque ninguém estava em casa.
Mostroume o salão: uma grande sala cheia de poltronas e divãs; a sala de jantar, mais pequena, com uma mesa oval, cadeiras e credências de uma bela madeira castanha, brilhante; a rouparia cheia de armários pintados de esmalte branco.
Num quarto pequenino havia um bar engastado numa reentrância da parede, um verdadeiro bar com prateleiras para as garrafas, a máquina de café niquelada e o balcão forrado de zinco: dirseia uma capelinha, tanto mais que uma grade baixa fechava a entrada.
Perguntei a Gino onde era a cozinha: disseme que a cozinha e os quartos do pessoal eram na cave. Era a primeira vez na minha vida que eu entrava numa casa destas; instintivamente tocava cada coisa com a ponta dos dedos, como se não acreditasse no que viam os meus olhos. Tudo me parecia novo e precioso: o vidro, a madeira, o mármore, o metal, os tecidos. Não me saia da cabeça a comparação entre estas paredes, estes pavimentos, estes móveis com os ladrilhos sujos, as paredes enegrecidas e os móveis desconjuntados da nossa casa, e pensei que minha mãe tinha razão quando dizia que nesta vida só o dinheiro conta. Pensava também que as pessoas que viviam sempre no meio destas bonitas coisas deviam por força ser belas e boas, não poderiam gritar, ter questões, praticar enfim a maior parte dos actos que eu tinha visto fazer na minha casa e nas outras iguais à minha.
Entretanto, Gino explicavame pela centésima vez a vida que se fazia lá dentro, como se qualquer coisa de todo aquele luxo e de toda aquela riqueza se reflectisse nele.
Têm pratos de porcelana... as travessas são todas de prata... comem cinco pratos diferentes, bebem três qualidades de vinho. À noite a senhora veste um vestido decotado e ele um smoking... Depois do jantar, a criada de quarto levalhes uma bandeja de prata com sete qualidades de cigarros, só cigarros estrangeiros, bem entendido!... Depois saem da sala de jantar e levamlhes o café e os licores nesta mesinha rolante... têm sempre convidados... umas vezes dois... outras vezes quatro... A senhora tem brilhantes deste tamanho!... e um colar de pérolas que é uma maravilha. Só em jóias deve ter uns bons milhões...
Já me disseste isso! interrompi, um pouco aborrecida. Mas ele, entusiasmado com o assunto, nem deu pela minha contrariedade.
A senhora nunca vai à cave... continuou. Dá as suas ordens pelo telefone... Aliás na cozinha só se trabalha a electricidade... A nossa cozinha é mais limpa e bonita do que os quartos de dormir de muita gente... Até mesmo os dois cães da senhora andam mais asseados e comem melhor do que muitas pessoas...
Falava dos patrões com admiração e dos pobres com desprezo. Eu, um pouco pela sua conversa, um pouco pela comparação que continuamente estabelecia entre esta casa e a minha, sentiame horrivelmente miserável.
Do primeiro andar, subindo a escada, chegámos ao segundo. Na escada Gino passoume o braço em volta da cintura e apertoume com força. Eu então não sei porquê tive a impressão de ser a dona da casa e de subir a escada pelo braço do meu marido, depois de algum jantar ou de alguma recepção, para me ir deitar, na mesma cama que ele, no segundo andar.
Gino parecia adivinhar os meus pensamento tinha constantemente intuições deste género e disseme:
Agora vamos deitarnos... E amanhã trazemnos o café à cama.
Pusme a rir, mas com a impressão de que isso era verdade.
Nesse dia, para sair com Gino, eu tinha vestido o meu fato mais bonito (e também a minha blusa e o meu melhor par de sapatos). Lembrome de que era um vestido de duas peças: casaco preto e uma saia aos quadrados pretos e brancos. O tecido não era feio, mas a costureira do bairro que o cortara tinha pouco mais prática do que minha mãe. Tinhame feito a saia muito curta, mas mais atrás do que à frente, de maneira que me cobria os joelhos à frente, mas deixava as curvas à vista pelo lado de trás. O casaco tinha ficado muito apertado, com enormes virados, e as mangas tão estreitas que me repuxavam debaixo dos braços. Abafava dentro deste casaco, que fazia sobressair o peito de tal maneira que parecia ter perdido um botão. A blusa era corderosa, muito simples, de tecido ordinário, sem bordados, e deixava ver à transparência a minha melhor e mais bonita combinação: de algodão branco.
Calçava sapatos pretos muito bem engraxados: a forma era antiga, mas o cabedal era bom. Não trazia chapéu e o cabelo caíame sobre os ombros; tenho o cabelo castanho e ondulado.
Era a primeira vez que vestia esta toilette e sentiame orgulhosa. Mas quando entrei no quarto da patroa de Gino e vi a grande cama, baixa e fofa, com a cobertura de seda acolchoada, os lençóis de linho bordados e todos aqueles cortinados muito leves que caíam da alto sobre a cabeceira e depois descobri a minha imagem triplamente reflectida no espelho de três faces do toucador ao fundo do quarto deime conta de que estava vestida como uma infeliz, que o orgulho que os meus trapos me inspiravam era ridículo e digno de piedade e também que me seria impossível considerar feliz enquanto não pudesse andar elegantemente vestida e viver numa casa como aquela.
Estava quase a chorar e senteime sem dizer palavra na beira da cama, tomada de uma vertigem.
Que tens? perguntou Gino sentandose ao meu lado e pegandome na mão.
Nada respondi. Estava a olhar uma pobretana que eu conheço.
Quem? perguntoume, admirado.
Aquela respondi mostrandolhe o espelho onde me via sentada ao lado de Gino.
Realmente nós tínhamos o ar mais eu do que ele - de um par de selvagens hirsutos que o acaso tivesse feito cair numa casa civilizada. Desta vez ele compreendeu o sentimento de fraqueza, inveja e ciúme que me apertava o coração, e beijoume dizendo:
Mas tu não precisas de olhar para o espelho!
Ele temia pelos seus planos. Deveria ter compreendido que nada era mais propício para os executar do que o meu estado de humilhação. Beijámonos, e o seu beijo fezme voltar a coragem porque senti que afinal eu era amada e amava.
Contudo, um pouco depois, quando me mostrou a casa de banho, tão grande como as outras salas, com uma banheira metida na parede e torneiras niqueladas, e sobretudo quando abriu um dos armários, deixando ver no interior, apertados uns contra os outros, os vestidos da patroa dele, a inveja voltou com o sentimento de miséria e tornei a desesperar. Um grande desejo de não pensar naquelas coisas tomoume de repente e, conscientemente, pela primeira vez, desejei tornarme amante de Gino: um pouco para esquecer a minha condição, um pouco para me dar a ilusão, como reacção à impressão de miséria que me escravizava, de ser também livre e capaz de agir. Não me podia vestir elegantemente, nem possuir uma casa como aquela, mas podia amar como os ricos ou talvez melhor que eles.
Porque me mostras todos esses vestidos? perguntei a Gino.
Que me interessa isso?
Julguei que te interessasse respondeu, desconcertado.
Absolutamente nada me interessa. São muito bonitos, mas não vim cá para ver vestidos.
Com estas palavras os seus olhos iluminaramse. Acrescentei com negligência:
Mostrame antes o teu quarto.
É na cave disse, vivamente. Queres que vamos lá?
Olheioo um momento em silêncio, e depois pergunteilhe com uma segurança, nova em mim, que me desagradou:
Porque finges de imbecil comigo?
Mas eu... começou ele, surpreendido e atrapalhado...
Tu sabes melhor do que eu que não viemos aqui para visitar a casa, nem para admirar os vestidos da tua patroa, mas para irmos para o teu quarto e sermos um do outro... Mais vale ir já e não falarmos mais nisso.
Foi assim que só por ter dado uma olhadela a esta casa eu passei a ser diferente da rapariga ingénua e tímida que aí tinha entrado. Estava admirada comigo mesmo, não me reconhecia.
Saímos do quarto e descemos a escada. Gino tinha passado o braço em torno da minha cintura e beijávamonos em cada degrau. Creio bem que nunca uma escada foi descida tão devagar. No résdochão, Gino abriu uma porta disfarçada na parede, e estreitandome e beijandome sempre conduziume à cave. Já era noite: estava tudo às escuras. Sem acender a luz, ao longo do corredor, muito abraçados e de bocas unidas, chegámos ao quarto de Gino. Ele abriu, entrámos, e ouvio fechar a porta atrás de nós. Durante muito tempo ficámos de pé, beijandonos no escuro. Eram beijos que nunca mais acabavam: se eu queria interromper ele recomeçava, e quando ele parava era eu quem continuava. Depois Gino empurroume para a cama e eu deixeime cair de costas. Gino não cessava de me murmurar ao ouvido, um pouco ofegante, palavras doces e frases convincentes, com a intenção clara de me aturdir, para não me aperceber de que ao mesmo tempo as suas mãos me iam despindo. Mas não era preciso; primeiro porque eu decidira entregarme, e depois porque eu odiava estes trapos que tanto me tinham agradado antes, e que desprezava agora profundamente.
“Uma vez nua pensava eu serei tão bela, senão mais, do que a patroa de Gino e que todas as mulheres ricas do mundo.” Aliás, havia meses que o meu corpo esperava este momento; sentiao, mau grado meu, fremir de impaciéncia e de desejo reprimido, como uma fera esfomeada e presa, à qual, depois de um longo jejum, se cortam as prisões e se oferece com que matar a fome. Foi por isso que o acto de amor me pareceu natural, e a sensação de fazer um gesto desusado de modo nenhum se misturava ao prazer físico. Pelo contrário, como acontece por vezes diante de uma certa paisagem que se tem a impressão de já ter visto, quando na realidade é a primeira vez que se oferece ao nosso olhar, eu tinha a sensação de fazer coisas que já tinha feito, não sabia onde nem quando, talvez numa outra vida. Isto não me impedia de amar Gino com paixão, para não dizer com fúria, de o beijar, de o morder, de o apertar nos meus braços até o sufocar. Ele parecia possuído da mesma raiva. Assim, durante um tempo que me pareceu muito longo, neste quartinho escuro, enterrado debaixo de dois andares de uma casa vazia e silenciosa, nós beijámonos e possuímonos como dois inimigos lutando pela própria vida e procurando ferirse o mais possível.
Mas quando os nossos desejos se saciaram, enquanto estávamos estendidos lado a lado, enlanguescidos e extenuados, tive medo de que Gino, depois de me ter possuído, já não quisesse casar. Comecei então a falar da casa para onde iríamos morar quando nos casássemos. A casa da patroa de Gino tinhame impressionado profundamente.
Agora pareciame que só se poderia ser feliz no meio de coisas bonitas e asseadas. Reconheci que nós nunca estaríamos em estado de possuir não somente uma casa como esta, mas até uma sala como as desta casa. No entanto, para vencer esta dificuldade, expliqueilhe que uma casa mesmo pobre podia parecer rica se brilhasse como um espelho. Porque além do luxo, e talvez ainda mais do que o luxo, o deslumbrante asseio desta moradia provocava no meu espírito um formigueiro de reflexões. Procurei convencer Gino de que o asseio podia fazer parecer bonitos mesmo os objectos feios. Na realidade, desesperada pela idéia que eu tinha agora da minha pobreza e consciente de que o meu casamento com Gino seria o único meio de poder livrarme dela, queria sobretudo convencerme a mim própria.
Mesmo dois quartos, se estiverem verdadeiramente limpos, com o chão passado todos os dias, os móveis limpos do pó, a louça lavada e tudo arrumado: os pratos, os esfregões e os fatos e os sapatos no seu lugar, também podem ser bem bonitos! O que é preciso é limpar e lavar tudo muito bem todos os dias... Não me deves julgar pela casa onde moramos, eu e minha mãe; minha mãe é desordenada e depois não tem tempo de a arrumar, coitada, mas a nossa cozinha será um espelho, prometote!
Isso! Isso! disse Gino. O asseio acima de tudo! Sabes o que faz a senhora quando descobre um grão de poeira num canto? Chama a criada de quarto, obrigaa a ajoelharse e a tirar a poeira com as mãos como se faz aos cães quando fazem porcarias... E tem razão!
Pois eu declarei tenho a certeza de que a minha casa háde estar ainda mais limpa e mais arrumada que esta... verás!
Mas tu continuarás a ser modelo disseme num tom travesso. Não poderás tomar conta da casa!
Modelo? respondi vivamente. Já não serei mais modelo... Ficarei todo o dia em casa... Terei sempre a casa arrumada e muito limpa e cozinharei para ti... a minha mãe diz que isso é ser tua criada, mas, quando se ama alguém, mesmo ser criada dá prazer!
Durante muito tempo fizemos projectos de futuro. E eu pouco a pouco sentia o medo desvanecerse para dar lugar à minha habitual confiança amorosa e ingénua. Como poderia duvidar?
Gino não só aprovava os meus projectos, mas discutiaos pormenorizadamente, amparandoos e aperfeiçoandoos. Como já devo ter dito, ele agora era relativamente sincero: o mentiroso acabava por acreditar nas suas próprias mentiras.
Depois de tagarelarmos pelo menos duas horas, dormitei docemente, e creio bem que Gino também adormeceu. Fomos acordados por um raio de luar que entrava pelo respiradouro térreo iluminando os nossos corpos estendidos sobre a cama.
Gino disse que devia ser muito tarde; com efeito o despertador pousado sobre a mesa de cabeceira marcava meianoite e alguns minutos.
Meu Deus! Como me irá receber minha mãe! disse eu saltando da cama e começando a vestirme à luz da Lua.
Porquê?
É a primeira vez que entro em casa tão tarde. A noite nunca saio sozinha.
Dizlhe que fomos dar uma volta de automóvel, que tivemos uma avaria e que fomos forçados a parar no campo.
Ela não acredita.
Saímos apressadamente da moradia, e Gino levoume a casa. Eu sabia que minha mãe não acreditaria na história da panne, mas nunca supus que a sua intuição fosse ao ponto de adivinhar com exactidão o que se passara entre mim e Gino. Tinha as chaves da porta da rua e de casa. Entrei; subi os dois andares no escuro, galgando a dois e dois os degraus, e abri a porta.
Esperava que minha mãe estivesse deitada, e ver a casa toda às escuras confirmou a minha esperança. Sem acender a luz, nos bicos dos pés, dirigiame para o quarto quando me senti agarrada pelos cabelos com uma violência terrível. Sempre às escuras, minha mãe, porque era ela, atiroume para cima do divã, e começou, sempre em silêncio, a esbofetearme.
Procurava defenderme com os braços, mas parecia que ela me via, porque arranjava maneira de me passar por baixo dos braços e de apanharme em cheio a cara. Acabou por se cansar e sentouse ao meu lado, no divã, arfando com força. Depois levantouse, acendeu a luz do centro e veio pôrse na minha frente com as mãos nas ancas, olhandome fixamente. O seu olhar enchiame de vergonha e embaraçavame; procurei ajeitar a saia e recompor a desordem em que esta espécie de luta me tinha deixado. Ela disseme num tom normal:
Está a parecerme que tu e o Gino passaram a noite juntos!
Desejei dizerlhe que sim, que era verdade; mas temi que me tornasse a bater, e o que mais me assustava era que agora, com a luz acesa, acertarmeia em cheio. Não queria aparecer com um olho negro, principalmente a Gino.
Não respondi. Não dormimos juntos; tivemos uma avaria na estrada que nos atrasou.
Mas eu digote que estiveste na cama com ele!
Não... não é verdade!
Sim... é verdade! Olha para o espelho ; estás verde.
É possível que esteja fatigada... mas nada houve entre nós!
Houve, sim!
Não, não, não houve!
O que me espantava e ao mesmo tempo me inquietava vagamente era a calma que ela mostrava neste momento: nada mais que uma forte curiosidade, o que me fazia pensar que ela não estava totalmente desinteressada do caso. Por outras palavras, o que ela queria saber era se eu me tinha entregue a Gino, não para me castigar ou me repreender, mas porque o desejava conhecer com precisão por uma razão que só ela sabia.
Somente era tarde de mais, e embora eu soubesse que já não me bateria mais, continuei sempre a negar. Então, bruscamente, fez menção de me agarrar o braço, e eu levantei a mão para me proteger, mas ela disse :
Não te toco, não tenhas medo! Vem comigo! Não percebia bem aonde ela me queria levar; mas obedeci amedrontada. Sem me largar, obrigoume a sair do apartamento, a descer a escada e a ir com ela para a rua. Estavam desertas as ruas a esta hora.
Logo em seguida percebi que minha mãe corria para a luz vermelha da farmácia de serviço ou do posto de socorros. A entrada da porta experimentei pela última vez resistir, fincando os pés, mas ela empurroume e eu entrei, ou, por outra, fui projectada para o interior; por um pouco não. Caí de joelhos!
Na farmácia estava só o farmacéutico e um médico ainda novo.
Minha mãe disse ao médico:
É minha filha! Quero que a examine!
O médico mandoume entrar para uma divisão das traseiras onde estava a marquesa dos serviços de urgência e perguntou a minha mãe:
Digame o que ela tem... Devo examinála porquê?
Acaba de ser desonrada pelo noivo e diz que não, esta porca! Quero que a examine gritava a minha mãe e que me diga a verdade!
O médico estava divertido e mordiscava o bigode, sorrindo:
Mas não é um diagnóstico que me pede, é uma informação.
Chamelhe como quiser respondeu minha mãe, berrando sempre , mas quero que a examine! É ou não médico? Tem ou não a obrigação de examinar as pessoas quando elas lhe pedem?
Calma! Calma! Como te chamas? perguntou o médico.
Adriana respondi.
Estava envergonhada, mas não muito. As cenas da minha mãe e a minha docilidade eram bem conhecidas em todo o bairro.
Mas mesmo que isso tenha acontecido insistia o médico, que parecia perceber o meu embaraço e tentava evitar o exame, que mal pode haver? Eles casamse e pronto... tudo acabará bem.
Metase na sua vida!
Calma! Calma! repetia, divertido, o médico. Depois, dirigindose a mim, disseme:
Vamos! Visto que tua mãe acha que isto é indispensável... despete, não demora muito tempo, depois deixote em paz.
Enchime de coragem e disse:
Muito bem! É verdade! Fui desonrada! Mas vamos para casa, mãe!
Não, minha filha, não! disse ela com ar autoritário. Tens de te deixar examinar!
Resignada, despi a saia e deiteime na marquesa. O médico examinoume e disse a minha mãe:
Tinha razão... Já não está virgem... E agora, está contente?
Quanto lhe devo? perguntou minha mãe, puxando do portamoedas.
Entretanto, eu tinha descido da marquesa e vestirame. O médico recusou o dinheiro e perguntoume:
Gostas do teu noivo?
Com certeza respondi.
Quando se casam?
Ele nunca se casará com ela! gritou minha mãe. Mas eu cortei tranquilamente:
Logo que tenhamos os papéis arranjados.
Devia ser possível lerse nos meus olhos uma grande confiança, tão ingénua e tão pura, que o médico, com um riso amigável e dandome uma palmadinha na cara, empurrounos para fora.
Eu esperava que, quando tornássemos a entrar em casa, minha mãe me cobrisse de insultos e mesmo me tornasse a bater. Bem longe disso, vi, pelo contrário, àquela hora avançada, acender o gás e começar a cozinhar para mim, sem dizer palavra. Pôs a frigideira ao lume, voltou à sala, desembaraçou um canto da mesa dos trapos que lá estavam e pôs a toalha. Eu tinhame sentado no divã, para onde ela me arrastara pelos cabelos, e olhavaa em silêncio. Estava aparvalhada. Não só não me repreendia como a sua cara deixava transparecer uma estranha satisfação, que ela tentava esconder. Quando acabou de pôr a toalha, foi à cozinha, depois tornou a voltar trazendo um prato na mão e disseme:
Agora vais comer!
Para dizer a verdade, eu tinha bastante fome. Levanteime e fui sentarme, um pouco atrapalhada, na cadeira que minha mãe me indicou a seguir. No prato estavam dois ovos e um bocado de carne assada.
Mas isto é muito! disselhe.
Come... vai fazerte bem respondeume. Precisas de comer!
Era uma coisa extraordinária este seu bom humor, um pouco malicioso talvez, mas nada hostil. Quase com bom modo, acrescentou, passado um momento:
O Gino nem sequer pensou em darte de comer?
Nós adormecemos respondi. E depois já era muito tarde.
Ela nada disse, e ficou de pé a verme comer. Era sempre assim que ela fazia: serviame e ficava a verme comer, depois, por sua vez, ia comer para a cozinha.
Durante muito tempo não comeu comigo à mesa. Comia sempre menos do que eu: ou eram as minhas sobras, ou qualquer coisa diferente e pior. Eu era para ela uma espécie de objecto precioso e delicado que era preciso tratar com todo o cuidado, o único objecto precioso que possuía.
Já há muito tempo que esta servidão admirativa e lisonjeadora não me perturbava. Mas desta vez a sua serenidade, o seu ar contente, inspiravamme uma penosa inquietação. Ao fim de uns instantes comecei a falar:
Tu zangastete disselhe por eu ter feito isto, mas ele prometeu casar comigo... não tardará a fazêlo.
Não me zanguei... naquele momento enfurecime porque esperei toda a noite e estava em cuidado... Mas agora come, e não penses mais nisso.
O seu tom de evasiva e falsa calma, que fazia lembrar a maneira como se fala às crianças quando não se quer responder às suas perguntas, inquietoume ainda mais:
Porquê? Não acreditas que ele case comigo?
Com certeza que acredito! Mas agora come!
Não, tu não acreditas!
Acredito, não tenhas medo! Vá, come!
Não como mais se não me dizes o que se passa contigo! declarei, exasperada. Porque estás com um ar tão contente?
Não, não estou com um ar contente.
Agarrou no prato vazio e levouo para a cozinha. Esperei que ela voltasse, e disse outra vez:
Então, porque estás contente?
Olhoume longamente em silêncio e depois respondeu com uma gravidade ameaçadora:
É verdade, sim. Estou contente.
E porquê?
Porque agora tenho a certeza de que Gino já não casará contigo e te vai deixar!
Porque não háde casar? Era preciso que tivesse uma razão!
Não casará e abandonarteá! Vai divertirse à tua custa e não te dará nem uma cabeça de alfinete, um esfomeado como ele é. E depois largate!
E é por isso que estás tão contente?
Com certeza. Agora estou certa de que não casará contigo!
Mas em que pode isso satisfazerte? gritei indignada e ao mesmo tempo aborrecida.
Se quisesse casar contigo não te teria desonrado - disse ela bruscamente. Eu estive noiva dois anos do teu pai, e até ao dia do casamento ele apenas me deu um ou outro beijo. Ele vai divertirse e depois abandonarte... Podes ter a certeza... E estou contente por ele te abandonar, porque se casasse contigo estavas perdida!
Não podia deixar de reconhecer que certas coisas que ela me dizia eram verdadeiras. Os olhos encheramseme de lágrimas.
Eu bem sei que não queres que eu constitua família. Tu queres que eu venha a ter a mesma sorte que a Angela.
Angela era uma rapariga do bairro que, depois de ter estado noiva duas ou três vezes, acabou por se entregar abertamente à prostituição.
Que tenhas uma boa situação é o que eu quero - respondeu com um ar obstinado. E, levantando os pratos, levouos para a cozinha para os lavar.
Ficando só, reflecti muito tempo sobre a conversa de minha mãe. Estabeleci uma comparação entre as suas palavras e as promessas e a conduta de Gino e pareceume impossível que fosse ela a ter razão. Mas a sua segurança, a sua calma, o seu tom de previsão desconcertaramme. Entretanto, minha mãe lavava a louça na cozinha. Ouvia guardar os pratos no aparador e ir para o quarto. Depois de uns instantes, vencida e humilhada, fui deitarme também.
No dia seguinte perguntava a mim mesma se devia ou não contar a Gino as suspeitas da minha mãe. Depois de muita hesitação resolvi nada dizer.
Na realidade, eu tinha tanto medo que Gino me abandonasse, como minha mãe insinuara, que temia que, comunicandolhe a opinião dela, lhe pudesse sugerir a ideia. Percebi pela primeira vez que a mulher que se entrega a um homem fica de tal maneira na sua dependéncia que já não tem meio de seguir a vontade própria. Mas não estava menos convencida de que Gino cumpriria a sua promessa. Logo que o tornei a ver, a sua atitude confirmou a minha convicção.
Eu esperava, decerto, que ele me iria cumular de atenções e carícias, mas temia que guardasse siléncio sobre o casamento, ou pelo menos não falasse nisso senão de uma maneira esporádica. Pelo contrário, assim que parou o carro na avenida do costume, Gino disseme que já fixara a data do casamento: seria dali a cinco meses, o mais tardar!
A minha alegria foi tal que me atribui as ideias de minha mãe e não pude deixar de dizer:
Sabes o que eu pensava, pelo contrário? Que depois do que se passou ontem irias abandonarme.
Como? disse, tomando um ar vexado. Tu tomasme por um vigarista?
Não, mas sei que há muitos homens que procedem assim.
Não sabes que podia ficar magoado com a tua suposição? Que ideia fazes de mim? É assim que dizes amarme?
Eu amote respondi ingenuamente. Mas receava que tu não gostasses de mim.
Até agora já te dei alguma razão que te fizesse supor que não gosto de ti?
Não, mas nunca se sabe...
Olha! disseme bruscamente. Tu indispusesteme de tal maneira que vou já levarte ao atelier.
E fez menção de pôr o carro em andamento. Assustada, deiteilhe as mãos ao pescoço e supliquei:
Não, não! Que tens? Falei por falar... faz de conta que nada disse.
Há coisas que não se dizem quando não se pensam... e quando se pensam é porque não se ama!
Mas eu amote!
Eu não! disseme em tom sarcástico. Como tu disseste, tive sempre a ideia de me divertir à tua custa e depois deixarte. É estranho que só agora tenhas dado por isso!
Mas, Gino, porque me falas dessa maneira? gritava eu, desfazendome em lágrimas.
Nada respondeu, pondo o carro em andamento Vou levarte ao atelier.
O carro pôsse em marcha e Gino ao volante tinha um ar carrancudo e duro. Eu quando vi, pelo vidro, as árvores e os marcos quilométricos deslizarem, e as primeiras casas da cidade, sucedendose ao campo, aparecerem no horizonte, desatei a chorar.
Pensava que minha mãe iria rejubilar quando soubesse da nossa zanga e que Gino, como ela tinha previsto, me deixaria. Num gesto desesperado abri a portinhola do carro, inclineime para a frente e gritei:
Ou páras ou atirome para a estrada.
Olhoume, o carro abrandou, voltou por um caminho lateral e parou atrás de uma elevação coroada por uma ruína. Gino desligou o motor, travou e, voltandose para mim, disse com impaciência:
Então, coragem! Vá! Fala!
Eu julgava realmente que ele me queria abandonar e pusme a falar com um fogo e uma paixão que me pareceram ao mesmo tempo ridículos e comoventes quando os recordo hoje. Explicavalhe até que ponto o amava: cheguei a dizerlhe que se ele não casasse comigo seria o mesmo, porque me contentaria com ser sua amante. Escutavame com um rosto sombrio, abanando a cabeça e repetindo de vez em quando:
Não, não, por hoje acabou. Amanhã talvez me passe! Quando lhe disse que para mim era suficiente ser sua amante, respondeu com fervor:
Não, não! Casados ou nada!
Discutimos durante muito tempo, e várias vezes a exibição da sua lógica, tão perversa como indiscutível, levoume ao desespero e às lágrimas. Depois, gradualmente, a sua atitude inflexível pareceu modificarse; por fim, depois de o ter beijado longamente e ameigado sem qualquer resultado, tive a impressão de ter conseguido uma grande vitória quando o convenci a descer comigo e vir possuirme no assento traseiro do carro num abraço inconfortável, que o meu angustioso desejo de lhe agradar achou demasiado curto e cheio de uma amarga ansiedade. Eu devia ter compreendido ser esse, no meu próprio interesse, o último dos procedimentos a adoptar. Era entregarme completamente nas suas mãos, mostrarlhe a minha disposição de me entregar a ele, não apenas por puro ímpeto amoroso, mas também para o prender e convencer a concordar comigo quando as palavras não chegassem para isso: precisamente a conduta das mulheres que amam sem a certeza de serem amadas: Mas eu estava completamente cega pela atitude perfeita que a sua falsidade lhe permitia tomar. Ele dizia e fazia sempre as coisas que devia dizer e fazer. E eu, na minha inexperiéncia, não me apercebia de que esta perfeição pertencia mais à imagem convencional do amante que eu própria tinha criado do que ao homem que estava na minha frente. Mas a data do casamento tinha sido fixada e comecei logo a ocuparme dos preparativos. Combinei com Gino que, pelo menos nos primeiros tempos, faríamos vida em comum com minha mãe.
Além da grande sala, da cozinha e do quarto, havia uma outra divisão que minha mãe, por falta de dinheiro, nunca tinha chegado a mobilar. Guardávamos aí os objectos partidos e inutilizados; e pode imaginarse o que seriam os objectos partidos e inutilizados de uma casa como a nossa, onde tudo parecia inutilizado!
Depois de muitas discussões assentámos num programa mínimo: mobilaríamos esse quarto e eu faria um pequeno enxoval. Nós éramos muito pobres, mas eu sabia que minha mãe tinha algumas economias, e que esse dinheiro tinha sido posto de parte para mim a fim de poder fazer face dizia ela a qualquer eventualidade.
Quais poderiam ser essas eventualidades? Não era muito claro; seguramente que não a possibilidade de eu casar com um homem pobre e de futuro incerto. Fui ter com minha mãe e disselhe.
Esse dinheiro que puseste de parte foi para mim, não foi?
Foi.
Pois bem! Se me queres fazer feliz, dámo agora para arranjar o quarto, para onde iremos, eu e o Gino. Se é verdade que o guardaste para mim, chegou o momento de mo dares!
Esperava reprimendas, discussões, e por fim uma recusa. Pelo contrário, minha mãe acolheu o meu pedido com a maior calma e mostrou de novo aquela serenidade sardônica que tanto me tinha aborrecido na noite em que visitara a moradia.
E ele não vai contribuir com qualquer coisa? perguntoume, voltandose.
Háde dar, com certeza respondi, mentindo. Ele já disse. Mas também eu tenho de contribuir com a minha parte.
Ela estava a coser ao pé da janela. Para falar interrompera o seu trabalho.
Vai ao quarto, abre a primeira gaveta do armário... encontrarás uma caixa de cartão... está lá a caderneta da Caixa Económica e o ouro. Levaa e o ouro também... Ofereçote.
O ouro era pouca coisa: um anel, um par de brincos e um pequeno fio. Mas desde a minha infância, magro tesouro escondido debaixo dos trapos e só entrevisto em circunstáncias extraordinárias, tinha incendiado a minha imaginação. Impetuosamente beijei minha mãe: afastoume sem brutalidade, mas com frieza, declarando:
Cuidado com a agulha... podes picarte!
Mas eu não estava satisfeita. Não me bastava ter obtido aquilo que queria; pretendia mais: que minha mãe estivesse como eu.
Mãe! gritei. Se fizeste isto só para me dar prazer, então prefiro não aceitar!
Decerto que não foi para lhe dar prazer a ele! respondeu, recomeçando a coser.
Realmente não acreditas no meu casamento com Gino? perguntei com uma voz acariciadora.
Nunca acreditei. E hoje menos que nunca.
Mas então porque me deste o dinheiro para arranjar o quarto?
Não é dinheiro mal gasto. Os móveis e as roupas sempre ficam... Mobília ou dinheiro é a mesma coisa.
Então não me acompanharás aos armazéns para me ajudares a escolher?
Por amor de Deus! gritou. Nem quero mesmo ouvir falar nisso! Arranjemse, vão vocês, escolham... eu não quero saber de coisa alguma!
Acerca do meu casamento ela era intratável; eu acreditava que a sua atitude não era ditada só pela conduta, pelo carácter e pela situação de Gino, mas principalmente pela maneira como ela encarava a vida. Não havia espírito de contradição nesta sua atitude, mas somente completa inversão das ideias correntes. As outras mulheres desejam com obstinação que as filhas se casem; minha mãe há muito tempo que com a mesma tenacidade esperava que eu não me casasse.
Existia uma espécie de aposta entre mim e minha mãe. Ela queria que eu não me casasse e me desse conta do bom fundamento das suas ideias. Eu desejava que este casamento se efectuasse e que minha mãe se convencesse de que a minha maneira de pensar é que estava certa. Agarravame à esperança de me casar com a sensação de jogar desesperadamente toda a minha vida numa só cartada. Mas sentia ao mesmo tempo, não sem amargura, que minha mãe vigiava os meus esforços e tentava fazerme soçobrar. Devo mencionar aqui mais uma vez que a maldita perfeição de Gino não se desmentia nem mesmo por ocasião dos preparativos para o casamento. Tinha dito à minha mãe que Gino ajudaria às despesas. Menti, porque até então Gino nem sequer tinha aludido a essa possibilidade. Fiquei, pois, ao mesmo tempo surpreendida e contente no dia em que Gino, sem que eu nada lhe tivesse pedido, me ofereceu uma pequena soma de dinheiro, para me ajudar. Desculpouse da mesquinhez da quantia, explicandome que não me podia dar mais, porque tinha urgência em mandar dinheiro aos seus. Quando hoje penso nesta dádiva não posso explicála senão pela extraordinária fidelidade ao papel que decidira representar: fidelidade proveniente talvez do remorso de me enganar e do pesar de não poder casar comigo, como agora realmente desejava.
Triunfante, tratei de pôr minha mãe ao corrente da oferta de Gino. Limitouse a observar que era uma soma bem miserável; apenas o necessário para me deitar poeira nos olhos sem se arruinar!
Este foi na minha vida um período muito feliz. Encontrava-me todas as noites com Gino, e amávamonos onde era possível: sobre o assento de trás do carro, de pé, no canto escuro de uma rua solitária, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa, amámonos no patamar, em frente da porta do apartamento, estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuímonos no cinema, encolhidos nas últimas cadeiras, mesmo debaixo da cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele no meio da multidão, dos eléctricos e dos lugares públicos, porque as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a necessidade de lhe apertar a mão, de lhe passar os dedos pelos cabelos e de lhe fazer qualquer outra carícia, no sitio em que estivéssemos, mesmo na presença de terceiros, com a ilusão de que ninguém se apercebia. como sempre que se cede a uma paixão irresistível. Gostava infinitamente de amar: talvez eu gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentiame levada a praticálo não somente pelo sentimento que experimentava por ele, mas também pelo prazer que sentia. Não pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro homem. Mas apercebiame de uma maneira obscura de que o nosso amor não podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e a paixão que punha nas minhas carícias. Isso tinha um carácter autónomo; era uma espécie de vocação que, de toda a maneira, mesmo sem as ocasiões que Gino me proporcionava, acabaria por manifestarse.
Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para mim que qualquer outra. Ajudava minha mãe o mais que podia, a fim de ganhar dinheiro, e deitavame sempre muito tarde. Nos dias em que não posava no atelier corria os armazéns com Gino, para escolher os móveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que sabia bem que não podia comprar, examinavaos longamente, discutindo o preço com o vendedor; depois, mostrando pouco entusiasmo e prometendo voltar, saía sem nada comprar. Não notava que estas incursões cobiçosas pelas lojas. Este exame angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a reconhecer, mau grado meu, como minha mãe tinha razão no que dizia: sem dinheiro não se tem direito à mais pequena felicidade. Depois da minha visita à moradia, foi a segunda vez que eu deitei os olhos sobre o paraíso da riqueza: vendome excluída sem que tivesse culpa não me podia impedir de experimentar alguma amargura e me sentir perturbada. Mas como já o tinha feito na moradia, esforceime no amor por esquecer a injustiça, este amor que era o meu único luxo e permitia que me sentisse igual a todas as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois de muitas discussões e muitas procuras, decidime por fim a fazer as minhas compras: aquisições verdadeiramente modestas.
Como o dinheiro não chegasse, comprei pagando em prestações mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer dizer, uma cama de casal, uma cómoda com espelho fazendo de toucador, duas mesasdecabeceira, duas cadeiras e um armário.
Eram coisas extremamente vulgares, feitas em série e de fabricação grosseira, mas a paixão que me inspiraram imediatamente estes pobres móveis era incrível. Tinha mandado caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e raspar o chão tão bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os móveis foi sem dúvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava uma sensação de incredulidade à ideia de que possuía um quarto como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e esta incredulidade manifestavase num contentamento que me parecia inesgotável. Por vezes, quando tinha a certeza de que minha mãe não me observava, ia para o quarto, sentavame nos colchões da cama e ficava horas inteiras a olhar à minha volta. Não me mexia mais que uma estátua, e contemplava os móveis como se não acreditasse na sua existência, como se receasse que se evaporassem de um momento para o outro e só ficassem as paredes; levantavame às vezes para tirar o pó da madeira e puxava o lustro ternamente.
Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus sentimentos beijaria a mobília. A janela, sem cortinas, dava sobre um vasto pátio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e baixas, como a minha. Tinhase a impressão de se olhar para um pátio de lazareto ou de prisão; mas naquela altura eu vivia em êxtase e já não via o pátio: sentiame tão feliz como se o quarto desse para um lindo jardim cheio de árvores.
Imaginava a nossa vida lá dentro, Gino e eu: como dormiríamos e nos amaríamos. E saboreava de antemão a aquisição de outros objectos que compraria assim que pudesse; aqui um vaso para flores, ali um candeeiro, além um cinzeiro ou qualquer outro bibelot. O meu único desgosto era não poder ter uma banheira, se não parecida com a que tinha visto, pelo menos nova e limpa. Más tinha decidido que traria sempre o meu quarto limpo e arrumado. A minha visita à moradia convencerame de que o luxo começava por duas coisas: a ordem e o asseio.
Nesse tempo, como continuasse a posar nos ateliers, criei amizade com um modelo chamado Gisela. Era uma rapariga bem feita, com a pele muito branca, cabelos pretos encrespados, os olhos pequeninos e azuisescuros e uma boca vermelha. O seu feitio era muito diferente do meu: violento, apaixonado e vibrante, mas ao mesmo tempo prático e interesseiro; foi exactamente esta diversidade que nos uniu. Não lhe conhecia outro emprego que o de modelo; mas ela andava muito mais bem vestida do que eu e não escondia os presentes de um homem que apresentava como noivo. Lembrome de que naquele Inverno ela usou algumas vezes um casaco preto com gola e punhos de astracã que eu muito lhe invejava. O noivo chamavase Ricardo, era um rapaz alto e gordo, pacífico e bem nutrido, com uma cara lisa como um ovo, que me pareceu então bela. Estava sempre reluzindo, cheio de cosméticos e com fatos novos: o pai era dono de uma loja de gravatas e roupa interior para homem.
Possuía a simplicidade Que se aproxima da imbecilidade: era alegre, bonacheirão e mesmo bom, creio eu; Gisela e ele eram amantes sem que entre eles, suponho, houvesse qualquer promessa de casamento, como existia entre mim e Gino. Gisela, aliás sem grandes esperanças, pensava em se casar. Quanto a Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma união com Gisela nunca lhe tinha aflorado o espírito; a esta, bem mais experiente que eu, tinhaselhe metido em cabeça protegerme e educarme. Ela tinha para resumir as coisas sobre a vida e sobre a felicidade as mesmas ideias de minha mãe, salvo que na minha mãe estas ideias encontravam uma expressão amarga e violenta porque eram o fruto de decepções e privações, ao passo que em Gisela esta maneira de ver vinha da sua prática e faziase acompanhar de uma grande suficiência e de uma grande profundidade. Minha mãe, num certo sentido, contentavase em enunciar essas ideias como se para ela a afirmação dos princípios contasse de antemão para a sua aplicação. Gisela, pelo contrário, tendo pensado sempre dessa maneira e não compreendendo que alguém pensasse diferentemente, admiravase de que eu não me comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar dos meus esforços em contrário, deixei transparecer a minha desaprovação, que o seu espanto se transformou em cólera e ciúme. Gisela compreendeu de súbito que eu não me limitava a recusar as suas lições e a sua protecção, mas ia mais longe, e a condenava do alto das minhas aspirações afectuosas e desinteressadas. Foi então que nasceu no seu espírito, talvez inconscientemente, o desejo de anular essa condenação, tornandome igual a ela. Enquanto isso não acontecia, não cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar esta vida de sacrifícios só para me manter honesta; que era uma dor de alma verme tão mal vestida; que, se eu quisesse, com a minha beleza poderia mudar por completo de existência. Acabei por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relações com Gino, informandoa ao mesmo tempo de que estávamos noivos e nos casaríamos brevemente. Ela perguntoume imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me pedir que lho apresentasse.
Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje estou à altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino, já disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez notasse os seus defeitos, mas em compensação julgava que ela tinha um grande coração e uma grande afeição por mim, porque atribuía a sua solicitude pela minha sorte não ao despeito por me achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e fora de propósito. Tanto assim que os apresentei, não sem apreensão; na minha ingenuidade, eu tinha querido que eles se fizessem amigos. A apresentação foi numa leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude claramente hostil.
Pelo lado de Gino, acreditei de princípio que ele quisesse seduzir Gisela, porque, seguindo o seu hábito, encaminhou a conversa para o assunto da moradia e alongouse a exaltar a riqueza dos patrões, como se esperasse dissimular assim a classe medíocre da sua condição. Mas Gisela não desarmou: persistia na sua atitude hostil. Não me lembro já a que propósito, ela encontrou maneira de o fazer notar:
Teve muita sorte em ter encontrado Adriana!
Porquê? perguntou Gino, muito admirado.
Porque habitualmente os chauffeurs arranjamse com as criadas!
Vi Gino corar; mas ele não era homem para se deixar apanhar desprevenido.
É verdade! É verdade! repetia lentamente, baixando o tom como se considerasse pela primeira vez um facto evidente que até então lhe tivesse escapado. Com efeito o chauffeur que lá esteve antes de mim casou justamente com uma cozinheira; compreendese, é muito natural! Eu devia ter feito o mesmo: os chauffeurs casam com criadas e as criadas com chauffeurs... Pergunto a mim mesmo como não pensei nisso mais cedo!... Aliás acrescentou negligentemente , tinha preferido que Adriana deixasse deliberadamente de ser honesta do que ser modelo... não tanto continuou levantando a mão, como a prevenir uma objecção de Gisela por causa propriamente do ofício, se bem que, para dizer a verdade, não consigo engolir essa história de se pôr toda nua diante dos homens... mas sobretudo porque este trabalho proporciona certas ligações de amizade que...
Levantou a cabeça e fez uma careta. Depois, oferecendo a Gisela o seu maço de cigarros:
Fuma? perguntou.
De momento Gisela não soube que responder; limitouse a recusar o cigarro. Depois olhou o relógio de pulso e disse:
Adriana, temos de nos ir embora, é tarde.
Era efectivamente tarde.
Despedimonos de Gino e saímos da pastelaria. Uma vez na rua, Gisela disseme:
Mas tu cometeste um erro enorme!... Eu nunca casaria com um homem assim!
Não gostaste dele? pergunteilhe ansiosamente.
Absolutamente nada. Primeiro tinhas dito que ele era alto, e ele é quase pouco mais pequeno do que tu! Tem uns olhos falsos e que não nos olham de frente... é sempre artificial... Fala de uma maneira tão afectada que se conhece a um quilómetro de distância que não diz o que pensa... E é de uma vaidade para um chauffeur!
Mas eu amoo objectei.
Ela respondeume com calma:
Sim, só tu, porque ele não te ama; vais ver que um dia abandonate.
Fiquei magoada com esta profecia tão segura e tão parecida com a da minha mãe. Hoje posso dizer que numa hora, à parte a maldade, Gisela compreendera melhor o carácter de Gino que eu durante tantos meses. Por seu lado, o julgamento que Gino fazia de Gisela era igualmente maldoso, mas tinha que reconhecer em seguida que, parcialmente pelo menos, era e acto. Na realidade, estava cega não só pela minha inexperiência mas também pela afeição que dedicava aos dois..
Quando se pensa mal das pessoas, estáse quase sempre perto da verdade!
A tua Gisela disseme ele é o que na minha terra se chama uma boa tipa!
Olheio com um ar espantado. Ele explicou:
Uma rapariga das ruas. Está toda orgulhosa de andar bem vestida, mas... como ganha o dinheiro?
É o seu noivo quem lho dá.
Um noivo diferente todas as noites... entretanto ouve: é preciso escolher entre ela e eu!
Que queres dizer?
Quero dizer que és livre de fazer o que quiseres... mas se continuas a dareste com ela deves renunciar a verme... Ou ela ou eu!
Procurei fazêlo mudar de ideias, mas sem resultado. A atitude desdenhosa de Gisela tinhao com certeza ferido; mas ele devia, na sua antipatia indignada, a mesma fidelidade ao seu papel de noivo que lhe tinha sugerido contribuir para os gastos dos nossos preparativos de casamento.
A minha noiva não deve andar com mulheres de má vida! repetia com ar inflexível.
Tomada do mesmo receio inicial de ver ir por água abaixo o meu casamento, acabei por lhe prometer não tornar a ver Gisela, mas sabia no meu coração que não poderia cumprir a promessa, até mesmo pela impossibilidade de o fazer: Gisela e eu posávamos à mesma hora no mesmo atelier!
Desde esse dia continuei a falarlhe às escondidas de Gino.
Quando estávamos juntas, ela nunca perdia oportunidade de fazer alusões irónicas e desdenhosas ao meu noivado. Eu tinha a ingenuidade de lhe fazer confidências a respeito das minhas relações com Gino; era justamente destas confidências que ela se servia para me ferir e me representar a minha vida presente e futura sob as cores mais negras. Como o seu amigo Ricardo parecia não notar a mínima diferença entre ela e eu, considerandonos as duas como raparigas fáceis, que não mereciam qualquer respeito, ele prestavase de boa vontade às brincadeiras de Gisela e reforçava as piadas, mas de maneira estúpida e sem malícia, porque, como já disse, não era inteligente nem mau. Para ele o meu noivado não era outra coisa que um assunto para boas graçolas, para matar o tempo.
Mas Gisela, a quem a minha virtude fazia o efeito de uma censura viva, e que queria tornarme igual a ela, para me tirar o direito de a desaprovar, punha nas suas graçolas encarniçamento e azedume, procurando por todas as formas mortificarme e humilharme. Atacava sobretudo o meu ponto fraco: a maneira de vestir.
Hoje dizia tenho francamente vergonha de andar contigo!
Ou então:
O Ricardo não permitiria que eu saísse com esses trapos em cima de mim. Não é verdade, Ricardo?
Isso é que é um índice de amor, minha querida! Ingenuamente eu caía nesta grosseira armadilha. Exaltavame, defendia Gino, defendia mesmo os meus vestidos, por vezes com pouca convicção, mas acabava sempre por perder, corar e ficar com lágrimas nos olhos. Um dia Ricardo teve pena de mim e declarou:
Hoje vou dar um presente a Adriana. Vou oferecerlhe uma mala!
Mas Gisela opôsse violentamente a este oferecimento, declarando:
Não, não! Nada de ofertas. Ela tem o seu Gino. Que faça com que ele lhe dê presentes!
Ricardo, que se propusera oferecerme a mala por pura bondade de alma, sem imaginar nem por sombras o prazer que me teria dado a sua oferta, renunciou logo à sua ideia; e eu, por ponto de honra, fui nessa mesma tarde comprar uma mala com o meu dinheiro. No dia seguinte apareci aos amantes com a minha mala no braço e disselhes que tinha sido um presente de Gino. Foi a única vitória que consegui no decurso destas deploráveis escaramuças. Custoume muito, porque era uma boa mala, e a paguei muito cara.
Quando Gisela julgou terme mortificado e humilhado suficientemente, à força de ironias, de vexames e de sermões, chamoume e disse que tinha uma coisa importante a comunicarme :
Mas vais deixarme falar até ao fim! explicou. Não vais mostrarte intransigente, como é teu hábito, antes de teres compreendido?
Conta disselhe.
Sabes que sou muito tua amiga começou. Considerote como uma irmã. A tua beleza permitirteia teres tudo o que quisesses... Faz realmente pena verte sempre vestida como uma pedinte.
Aqui parou e olhoume com ar solene.
Há um senhor extremamente distinto, muito sério... que te viu e se interessa imenso por ti. Ele é casado, mas a família está na província. É um grande da polícia acrescentou baixando a voz. Se tu quiseres, eu posso apresentarto. Como te digo, é um senhor muito sério e muito fino; com ele podes estar certa de que mais ninguém saberá... De resto, ele está muito ocupado e só te encontrarias com ele duas ou três vezes por mês. Não há inconveniente em que continues essa história com o Gino, se isso te agrada... nem mesmo que te cases... mas ele procurará proporcionarte uma vida melhor do que a que tens agora. Que dizes?
Agradeçote muito mas não posso aceitar! respondi peremptoriamente.
Mas porquê? gritou ela, sinceramente estupefacta.
Porque não. Amo o Gino, e se aceitasse nunca mais poderia olhálo de frente.
É ideia tua, porque Gino nada saberá!
É justamente por isso!
Pensar pronunciou então como se falasse consigo própria que se aqui há uns tempos me tivessem feito uma oferta semelhante! Então, que devo dizerlhe? Não queres reflectir?
Não, não! Não aceito!
És uma idiota! disseme Gisela, desapontada. A isto chamase recusar a fortuna!
Acrescentou muitas coisas do mesmo género, às quais respondi sempre da mesma maneira, e foise embora muito descontente.
Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo, sem lhe discutir o valor. Só uma vez experimentei como que um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que Gisela tivesse razão, podia ser esta a única maneira de obter tudo de que tão desesperadamente precisava. Mas afastei este pensamento e agarreime de preferência à ideia do casamento e da existência pobre, mas honesta, que tinha traçado para mim.
O sacrifício que me tinha imposto punhame entretanto na obrigação de me casar a todo o custo; era ainda mais forçoso que anteriormente.
Não consegui resistir a um sentimento de vaidade e informei minha mãe da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe agradaria duplamente: sabia até que ponto ela estava orgulhosa da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas convicções. Mas fiquei estupefacta com a agitação que lhe provocou a minha notícia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de contentamento:
Mas quem é? perguntou por fim.
Um senhor rico disselhe. Tinha vergonha de confessar que era um polícia.
Ela disse que ele era muito rico?
Sim... parece que ganha muitíssimo bem!
Não ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha feito mal em recusar a oferta.
Ele viute repetiu e disselhe que se interessava por ti... Porque não to apresentou?
A que propósito, se eu não posso?
Que pena ele já ser casado!
Mesmo que fosse solteiro não o queria conhecer.
Há tanta maneira de fazer as coisas! disse minha mãe. alguém que é rico... gosta de ti... uma coisa leva à outra... podia ajudarte... sem te pedir nada!
Não, não! respondi. Essa gente nada dá sem receber em troca.
Nunca se sabe.
Não, não repetia eu.
Nada quer dizer disse minha mãe abanando a cabeça... Isso não impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha verdadeira afeição por ti. Outra qualquer teria tido inveja, não te teria falado. Ela, ao contrário, mostrou ser uma verdadeira amiga!
Depois da minha recusa, Gisela não me tornou a falar do tal senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a propósito do meu noivado. Continuava a vêla às escondidas, assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com o desejo de uma reconciliação, porque estes subterfúgios me desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as suas expressões de raiva e jurava que se soubesse que eu a tornara a ver tudo acabaria entre nós. Falava seriamente e eu tinha quase a impressão de que teria de boa vontade aproveitado este pretexto para desfazer o casamento! Falei à minha mãe desta antipatia de Gino por Gisela e minha mãe declarou, sem parecer pôr maldade nesta observação:
Ele não quer que andes com Gisela porque tem medo que tu faças a comparação dos trapos com que sais e as toálettes que o noivo dela lhe dá.
Não! Somente diz que Gisela não lhe agrada.
Ele é que não agrada... Se Gino pudesse saber que tu falas com Gisela e rompesse contigo!
Mãe! gritei, apavorada. Que nem sequer te passe pela cabeça dizerlho!
Não, não! respondeu muito depressa, como que arrependida. Isso são assuntos vossos, não são da minha conta!
Se lhe fores dizer gritei, pondo toda a minha paixão neste grito. Nunca mais me verás!
Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e límpidos. Gisela disseme um dia que anuíra a fazer uma pequena viagem de automóvel: ela, Ricardo e um seu amigo.
Precisavase de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse tornála menos insípida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir.
Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzentoescuro, calças de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos.
Era extremamente cortês, mesmo cerimonioso. Gisela apresentoumo dandolhe o nome de Estevão Astárito e tive logo a convicção de que se tratava do senhor distinto cujas galantes propostas ela me tinha transmitido. Mas não fiquei contrariada por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavamme mesmo, num certo sentido. Estendilhe a mão; levoua aos lábios com uma devoção estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois subi, ele sentouse ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o automóvel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma estrada nua e inundada de sol, não falámos quase nada. Eu estava feliz por andar de automóvel, feliz por dar um passeio, feliz pelo ar que passava atrás da janela e me batia em cheio no rosto.
Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu dava um passeio longo de automóvel e tinha receio de não o desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o maior número possível de coisas: molhos de palha, quintas, árvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses, talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha que gravar todos os pormenores na memória de maneira a possuir uma recordação precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas Astárito, afastado, muito direito, não parecia ter olhares senão para mim. Os seus olhos melancólicos e cheios de desejo não largavam por um instante a minha cara e o meu corpo; realmente o seu olhar davame a sensação de um dedo que ele passasse lentamente sobre toda a minha pessoa. Não direi que esta atenção me desgostasse, mas embaraçavame.
Pouco a pouco sentime no dever de me ocupar dele e de lhe falar. Estava sentado com as mãos sobre os joelhos; num dos dedos brilhava, com uma aliança, um anel ornado com um brilhante.
Que anel tão bonito! disselhe estouvadamente. Ele baixou os olhos para o anel sem mexer a mão e respondeu:
Era o anel do meu pai. Tireilhe do dedo quando morreu.
Oh! disse para me desculpar. Depois acrescentei, indicando a aliança: É casado?
Com certeza que sim! respondeu com uma espécie de ar complacente. Tenho mulher e filhos.
É bonita a sua mulher? perguntei timidamente.
Menos que você disseme sem sorrir, em voz baixa e enfática, como se anunciasse uma verdade importante. E a mão em que brilhava o anel tentou agarrar a minha. Desembaraceime rapidamente dela e perguntei, para dizer qualquer coisa:
Vive com ela?
Não respondeume. Ela mora em... e disse o nome de uma longínqua cidade de província e eu aqui. Vivo só... Espero que venha visitarme.
Fingi não me aperceber desta entrada, insinuada de uma maneira trágica e convulsa, e perguntei:
Porque... não gostaria de viver com a sua mulher?
Estamos legalmente separados explicoume, amuando. Quando me casei era um garoto... foi minha mãe quem arranjou o casamento... Sabe bem como estas coisas se passam... uma rapariga de boa família, com um belo dote... são os pais que combinam o casamento, mas são os garotos que se devem casar! Viver com uma mulher... você seria capaz de viver com uma mulher como esta?
Tirou a carteira do bolso do peito, abriua e estendeume uma fotografia. Vi duas garotinhas com ar de gémeas, morenas, pálidas, todas vestidas de branco. Atrás delas, com as mãos pousadas nos seus ombros, uma mulherzinha morena e pálida, com os olhos unidos como os de um mocho e expressão maldosa.
Devolvilhe a fotografia. Ele tornou a guardála na carteira e depois disseme num sopro:
Não... queria viver consigo.
O senhor não me conhece de lado algum! respondi, desconcertada com a sua obsessão.
Conheçoa muito bem. Há um mês que a sigo. Sei tudo a seu respeito.
Falava e continuava a ficar respeitosamente distante. Mas incessantemente a sua paixão dilatavalhe os olhos.
Estou noiva! declareilhe.
Gisela disseme pronunciou com voz estrangulada.
Mas não falemos do seu noivo, que importa? e fez um pequeno gesto com a mão, de afectada indiferença.
Mas a mim importame, e muito continuei. Olhoume e repetiu:
Gosto imensamente de si.
Já dei por isso.
Agradame enormemente prosseguiu. Talvez nem se aperceba de que maneira me agrada.
Falava realmente como um louco. Mas o que me tranqüilizava era ele estar sentado longe de mim e não tentar mais pegarme na mão.
Nada há de mau em que eu lhe agrade disselhe.
E eu, agradolhe?
Não.
Tenho dinheiro disse ele com a cara crispada. Tenho muito dinheiro para a fazer feliz. Se vier ter comigo, verá que não terá de se arrepender!
Não preciso do seu dinheiro respondi com calma, quase com indiferença.
Pareceu não ouvir e disse, olhandome:
Você é muito bela!
Obrigada.
Tem uns lindíssimos olhos.
Acha?
Acho... e a sua boca é também muito bonita... quereria beijála.
Porque me diz essas coisas?
O seu corpo também o gostaria de cobrir de beijos... todo o seu corpo.
Porque me fala dessa maneira? Estou noiva e casaremos dentro de dois meses.
Desculpe, mas dáme prazer falar destas coisas. Faça de conta que não é consigo. Ainda estamos muito longe de Viterbo?
Estamos quase a chegar... Almoçaremos lá. Prometame que se sentará ao meu lado à mesa.
Desatei a rir, porque no fim de contas uma paixão tão violenta lisonjeavame:
Está bem disse eu.
Vai sentarse ao meu lado como agora prosseguiu ele. Contentome em respirar o seu perfume.
Mas eu não uso perfume! exclamei.
Heide oferecerlhe um frasco, deixe estar! respondeu.
Tínhamos chegado a Viterbo e o carro abrandou a velocidade para entrar na cidade. Durante todo o trajecto, Gisela e Ricardo, sentados à nossa frente, tinhamse conservado em silêncio. Mas quando começámos a percorrer lentamente as ruas repletas de gente, Gisela voltouse para trás e disseme:
Como vai isso aí, com os dois? Tu julgas, se calhar, que nós nada vimos?
Astárito ficou calado, mas eu protestei:
Tu não podias ter visto coisa alguma... temos vindo somente a conversar!
Está bem! Está bem! respondeu.
Fiquei profundamente admirada e um pouco irritada tanto com a atitude de Gisela como com o silêncio de Astárito.
Mas se eu te digo... confirmei.
Está bem! Está bem! repetiu ela. Não estejas com medo! Nós nada diremos ao Gino!
Entretanto tínhamos chegado à praça e descido do automóvel.
Começámos a passear ao longo das ruas pelo meio do povo endomingado sob o sol de Outubro, doce e brilhante. Astárito não me largava um instante, sempre grave, até mesmo sombrio, com a cabeça hirta, emergindo do seu alto colarinho, uma mão no bolso e a outra a balouçar. Tinha o ar não tanto de me seguir, mas de me vigiar. Gisela, pelo contrário, ria alto com Ricardo; muitas pessoas voltavamse para nos observar.
Entrámos numa pastelaria e tomámos vermute ao balcão. Reparei, de repente, que Astárito murmurava por entre dentes não sei que ameaças e pergunteilhe o que se passava.
É aquele imbecil que está ali à porta a olhar para si com uma insistência descarada! respondeume, furioso.
Volteime e vi com efeito um rapazola louro, que olhava para mim encostado à porta do café.
Que mal tem isso? disse eu alegremente. Olhame!... E depois?
Mas eu sou muito capaz de lhe partir a cara!
Se o fizer nunca mais lhe falarei e nunca mais o conhecerei! disselhe, aborrecida. Não tem esse direito! O senhor não representa coisa alguma na minha vida!
Ele não respondeu e foi à caixa pagar o vermute. Saímos da pastelaria e recomeçámos o nosso passeio. O sol, o burburinho, o movimento das ruas, todas essas caras coradas e sadias de provincianos punhamme de bom humor. Quando chegámos a uma praçazinha fora do centro, ao fundo de uma rua perpendicular, eu exclamei de repente:
Olhem! Se eu tivesse uma casinha como aquela e mostrava uma bonita casinha de dois andares junto de uma igreja , seria bem feliz de viver aqui!
Meu Deus! Meus Deus! gritou Gisela. Viver na província! Então em Viterbo. Eu não anuía a isso nem que me pagassem em ouro!
Depressa te aborrecerias, Adriana disse Ricardo.
Quem se habitua a viver na cidade já não pode viver na província.
Vocês estão enganados! disse eu. Gostaria bem de viver aqui... com alguém que gostasse de mim... Quatro quartos, uma trepadeira, quatro anelas... De nada mais precisava.
Eu falava sinceramente, porque me via já com Gino nesta simples casita de Viterbo.
Que diz? perguntei dirigindome a Astárito.
Consigo também lá viveria! disseme a meia voz para que os outros não o ouvissem.
O teu defeito, Adriana, é seres demasiadamente modesta... Na vida, quando não se deseja muito, nada se consegue!
Mas eu nada quero... respondi.
Nada, então? Nem casar com o Gino? perguntou Ricardo.
Isso sim!
Começava a fazerse tarde; as ruas iam ficando desertas; entrámos num restaurante. A sala do résdochão estava cheia, principalmente com aldeões de fatos domingueiros, que a circunstância de ser dia de feira tinha trazido a Viterbo.
Gisela ficou de mau humor e disse que o cheiro que havia ali lhe fazia faltar o ar e perguntou ao patrão se não podíamos comer no andar superior. O patrão disse que sim, que era possível e, precedendonos, feznos subir uma escadinha de madeira e entrar numa sala estreita e comprida com uma só janela, que dava para um beco. Abriu as persianas e fechou a janela. Depois estendeu a toalha numa mesa rústica que ocupava a maior parte da sala. Lembrome de que as paredes eram cobertas por um velho papel fora de moda, rasgado em vários sítios, com flores e pássaros, e que do outro lado da mesa havia um pequeno armário envidraçado cheio de pratos.
Enquanto isto se passava, Gisela girava pela sala examinando tudo, espreitando até o beco pela janela. Acabou por abrir uma porta que parecia dar acesso a outra sala. Depois de lhe deitar uma olhadela, dirigindose ao dono da casa, perguntou com um ar natural o que vinha a ser aquela outra sala.
É um quarto respondeu o proprietário. Se alguém quiser descansar depois do almoço..
Nós havemos de ir, hem, Gisela?! disse Ricardo com o seu risinho parvo.
Gisela fingiu não percebeu. Olhou mais uma vez o quarto e puxou a porta com cuidado sem no entanto a tornar a fechar. Ver uma sala de jantar tão pequenina e tão íntima agradoume e também fingi não reparar pára a porta aberta nem tãopouco para o olhar de cumplicidade que julguei surpreender entre Gisela e Astárito. Tomámos os nossos lugares à mesa; senteime ao lado de Astárito, como lhe tinha prometido, mas ele nem sequer deu por isso: parecia tão preocupado que nem podia falar. Passado um momento, o hoteleiro trouxe os acepipes e o vinho. Eu tinha muita fome, atireime ao almoço com tal sofreguidão que todos começaram a rir. Gisela aproveitou a ocasião para me arreliar; como de costume, a propósito do meu casamento.
Come! Come! recomendavame ela. Não é com o Gino que tu comerás tanto nem tão bem!
Porquê? disse eu. Gino ganha muito bem a sua vida!
Sim... mas vocês comerão todos os dias feijão.
Os feijões são tão bons como qualquer outra coisa! disse Ricardo rindo. Vou mandar vir um prato deles para nós!
És uma idiota, Adriana! continuou Gisela. Tu precisas de um homem de meios, sério, arrumado, que pense em ti e nada te negue que te permita realçar a tua beleza. E afinal enrolastete com o Gino!
Não respondi. De cabeça baixa, continuava a comer. Ricardo observava, rindo:
Eu, no lugar de Adriana, a nada renunciaria... nem ao Gino, visto que é dele que gosta tanto, nem ao homem sério. Ficaria com os dois... E talvez até que o Gino não achasse mal!
Ah! Isso não! Se ele soubesse que eu tinha dado hoje este passeio com vocês era o bastante para romper o noivado!
E porquê? perguntou Gisela, irritada.
Porque ele não gosta que eu ande contigo!
Porco, nojento, ordinário! Reles pobretão! gritou Gisela com raiva. Gostaria realmente de experimentar procurálo e dizerlhe: a Adriana continua a darse comigo. Hoje passámos todo o dia juntas. Anda, vai romper o noivado!
Não! Não! replicava eu, apavorada. Não farás isso!
Era uma sorte para ti!
Seria... mas não o faças! pedi de novo. Se és um pouco minha amiga, não o laças!
Durante toda esta conversa, Astárito não disse palavra, nem sequer comeu. Tinha os olhos constantemente fixos em mim e o seu olhar, carregado de intenções, grave e desesperado, incomodavame mais do que eu queria. Desejaria pedirlhe que não me olhasse daquela maneira, mas temia a troça de Gisela e de Ricardo. Foi pelo mesmo motivo que não tive coragem de protestar quando Astárito, aproveitando o momento em que pousei a minha mão esquerda sobre o banco, a apertou na sua com força, obrigandome a comer só com a direita. Fiz mal, porque de repente Gisela gritou, rindo:
Em palavras és muito fiel ao Gino, mas em acções. Julgas que não vos vejo, a ti e ao Astárito, de mãos dadas debaixo da mesa?
Corei, atrapalhada, e tentei libertar a minha mão. Mas Astárito retevea fortemente e Ricardo interveio:
Deixaos sossegados! Que mal é que isso tem? Eles estão de mãos dadas, pronto! O que temos a fazer é imitálos!
Disse isto por brincadeira! Pelo contrário declarou Gisela , estou até bem contente!
Quando acabámos de comer o primeiro prato, fizeramnos esperar muito tempo pelo segundo. Gisela e Ricardo não paravam de rir e de brincar, bebendo e fazendome beber. O vinho era tinto; era bom mas muito forte e subia depressa à cabeça. Eu gostava deste gosto do vinho, quente e picante; estava embriagada, mas tinha a impressão de não o estar e de poder beber indefinidamente. Astárito apertavame a mão, grave e sombrio, e eu já não me revoltava. Dizia a mim mesma que afinal de contas não havia mal em lhe dar um aperto de mão! Por cima da porta havia uma estampa com uma varanda florida de rosas e um homem e uma mulher vestidos com fatos de há cinquenta anos que se beijavam de uma maneira complicada. Gisela reparou na estampa e confessou que não compreendia como aqueles dois conseguiam beijarse naquela posição.
Vamos a ver se os conseguimos imitar? propôs a Ricardo. Tentemos!
Ricardo levantouse rindo e pôsse a imitar o homem do cromo, enquanto Gisela, também a rir, se debruçava sobre a mesa como a mulher da litografia sobre a florida varanda. Conseguiram unir as bocas ao fim de grandes esforços, mas pouco faltou para perderem o equilíbrio e tombarem os dois em cima da mesa. Gisela, excitada com a brincadeira, gritava:
Agora é a vossa vez!
Porquê? perguntei, alarmada. A que propósito?
Sim, sim. Experimentem!
Senti que Astárito me passava o braço em torno da cintura e tentei desembaraçarme declarando:
Mas eu não quero!
Oh! Como tu és aborrecida! gritavame Gisela. É uma brincadeira! Uma simples brincadeira!
Mas eu não quero repeti.
Ricardo ria e ajudavaa excitando Astárito.
Astárito, se não a beijas, não és homem!
Mas Astárito estava sério. Quase me fazia medo. Era bem claro que para ele isto não era apenas uma brincadeira.
Vocês vão deixarme em paz disse eu, voltandome para ele.
Astárito olhava para mim e depois para Gisela com ar interrogativo, como se esperasse um encorajamento.
Coragem, Astárito gritoulhe Gisela.
Ela parecia mais encarniçada do que ele de uma maneira que eu sentia obscuramente cruel e impiedosa.
Astárito apertoume com mais força pela cintura e puxoume para ele; agora já não era a brincadeira que o excitava: queria beijarme a todo o custo. Sem dizer nada, eu procurava livrarme, mas ele era mais forte; por mais força que eu fizesse com os cotovelos de encontro ao seu peito, sentia pouco a pouco o seu rosto aproximarse do meu. No entanto, não teria conseguido beijarme se Gisela não o tivesse ajudado.
Bruscamente, com um grito de alegria, ela levantouse, veio por detrás de mim, seguroume os braços e puxouos para trás. Eu não a via, mas sentia a sua fúria nas unhas que me enterrava na carne e na sua voz, que repetia, entrecortada de riso e com um tom de excitada crueldade:
Depressa! Depressa! Astárito, agora!
Astárito estava sobre mim. Eu procurava o mais possível virar a cara, porque era a única coisa que podia fazer, mas ele seguroume o queixo com a mão e voltoume para ele, beijandome depois demoradamente na boca.
Até que enfim! disse Gisela, triunfante. E voltou alegremente para o seu lugar.
Astárito deixoume, e eu, irritada e dorida, declarei:
Nunca mais venho com vocês!
Ora, ora, Adriana gritava Ricardo com ar de troça. Só por causa de um beijo!
Astárito está todo cheio de bâton! gritava Gisela, exultante. Se o Gino entrasse agora, sempre queria saber o que diria!
Era verdade. O meu bâton tinha pintado completamente a boca de Astárito, o traço vermelho sobre a sua cara amarelenta e triste também me dava vontade de rir.
Vá lá! disse Gisela. Façam as pazes... Limpalhe o bâton com o teu lenço, senão quando o criado entrar vai pensar sabe Deus o quê!
Eu, contra vontade, tinha de concordar e, com uma ponta do meu lenço molhada de saliva, limpei pouco a pouco o meu bâton da cara imóvel de Astárito. Fiquei arrependida mais uma vez de me mostrar amável, porque logo que guardei o lenço na mala ele tornou a passarme o braço em torno da cintura:
Deixeme disselhe.
Ora, ora, Adriana!
Que mal é que isto pode fazer? disse Gisela. A ele dálhe prazer e a ti não te prejudica... E depois já o deixaste beijarte... deixao lá continuar.
Foi assim que eu cedi pela primeira vez, e que ficámos um ao lado do outro, ele com o braço em torno da minha cintura e eu hirta e digna! O criado entrou trazendo o segundo prato.
Apesar de Astárito continuar a apertarme com força, comer fezme passar o mau humor. O segundo prato era excelente, e eu bebia sem dar por isso todo o vinho que Gisela me servia sem parar. Em seguida serviramnos fruta e um bolo. Eu não estava habituada a comer bolos, mas este era óptimo, e quando Astárito me ofereceu a sua parte não tive coragem de a recusar. Gisela, que também bebera muito, pôsse a fazer macaquices com Ricardo, enfiandolhe na boca gomos de tangerina e acompanhando cada gomo com um beijo. Eu sentiame embriagada, mas não de uma maneira repugnante: deliciosamente embriagada! O braço de Astárito tinha finalmente deixado de me incomodar.
Gisela, cada vez mais excitada e vibrante, levantouse para se sentar nos joelhos de Ricardo, e eu não pude deixar de rir ao ouvir o grito de dor que ele soltou como se Gisela o esborrachasse com o seu peso! De repente, Astárito, que até então estivera imóvel e se tinha limitado a conservar o braço em torno da minha cintura, começou a cobrirme de beijos o pescoço, o peito e as faces. Desta vez já não protestei; primeiro porque estava demasiadamente embriagada para lutar e depois porque me parecia que era outra pessoa que ele beijava; tãopouco eu tomava parte nessas expansões, conservandome hirta e imóvel como uma estátua. Na minha embriaguez tinha a sensação de ser espectadora de mim própria, observando com fria curiosidade a furiosa paixão de Astárito por mim. Mas os outros tomaram a minha indiferença por amor, e Gisela gritou:
Bravo, Adriana! Assim mesmo é que é!
Ia responder, mas não sei porquê mudei de ideias, agarrei no meu copo cheio e levanteio, declarando: “Estou embriagada!”, e bebio de um trago. Julguei que o meu gesto seria aplaudido.
Mas Astárito parou de me beijar, olhoume fixamente e disse em voz baixa:
Vamos para ali!
Segui a direcção dos seus olhos e vi que indicavam a porta entreaberta do quarto de cama contíguo. Pensei que também ele estivesse embriagado, e disse que não com a cabeça, mas sem violéncia, até com um pouco de coquetterie. Ele repetiu como um sonâmbulo:
Vamos para ali!
Reparei que Gisela e Ricardo já não riam e nos olhavam em silêncio. Gisela disse:
Coragem! Para a frente! Porque esperas?
De súbito, tive a impressão de que a minha embriaguez passara. Na verdade eu estava embriagada, mas não ao ponto de não me aperceber do perigo que me ameaçava.
Mas eu não quero! disse.
E levanteime.
Astárito levantouse também e puxoume o braço, tentando levarme para junto da porta. De novo os outros o encorajaram:
Coragem, Astárito!
Astárito arrastoume quase até à porta, apesar de me debater. Mas com uma sacudidela desembaraceime dele e corri para a outra porta, que dava para a escada. Mas Gisela tinha sido mais rápida do que eu:
Não! Minha filha, não! gritavame.
Deixando os joelhos de Ricardo, tinha alcançado a porta antes de mim e fecharaa à chave com duas voltas.
Mas eu não quero! repeti num tom assustado, parando em frente da mesa.
Que importância tem isso para ti? gritou Ricardo.
Idiota! disseme Gisela num tom duro empurrandome para Astárito. Vai... Vai... deixate de fitas!
Compreendi então que Gisela, levada pelo seu encarniçamento e pela sua crueldade, não se dava bem conta do que fazia; esta espécie de emboscada que me tinha preparado devia parecerlhe uma coisa alegre, espirituosa e divertida. Outro pormenor que também me chamou a atenção foi a indiferença de Ricardo, que eu sabia ser bom e incapaz da menor crueldade.
Mas eu não quero! disse novamente.
Que mal é que isso tem? perguntou Ricardo. Gisela, excitadíssima, continuava a empurrarme, dizendo:
Não te julgava tão parva! Anda, porque esperas? Até ali, Astárito não tinha pronunciado uma única palavra; ficara imóvel junto da porta, com os olhos fixos em mim. Agora, tranquilamente, confusamente, como se as palavras tivessem uma consistência pastosa e lhe custasse deslocálas dos lábios, disse:
Vem. Se não vieres, digo ao Gino que passaste a tarde deitada comigo.
Compreendi imediatamente que cumpriria a ameaça. Podemos enganarnos quanto ao sentido de uma frase, mas não quanto ao tom de uma voz. Astárito falaria com Gino e tudo acabaria para mim ainda antes de ter começado. Hoje penso que podia terme revoltado. Talvez que se tivesse gritado, se me debatesse violentamente, o tivesse persuadido da inutilidade da sua vingança. Mas isto podia também para nada servir, porque o seu desejo era mais forte do que a minha repugnância. O certo é que de repente me senti definitiva e absolutamente subjugada; e, muito mais do que o desejo de me defender, o que actuava em mim era a necessidade de evitar o escândalo que me ameaçava.
Na realidade, fora atraída à falsa fé, com o espírito completamente ocupado por doces projectos de futuro, aos quais de maneira nenhuma queria renunciar. O que me aconteceu depois foi tão brutal que hoje creio que, de uma maneira ou de outra, acontecem coisas a todos os que tem ambições, por mais modestas, mais inocentes ou mais legítimas que sejam, como era o meu caso. É pelas nossas ambições que a vida nos domina e castiga. Só os abandonados e os que renunciaram a tudo podem considerarse livres e serenos.
Mas no próprio momento em que me submetia ao destino senti uma dor lúcida e aguda. Uma brusca iluminação dirseia que o caminho da vida, geralmente tão obscuro e tão tortuoso, aparecia de repente diante dos meus olhos perfeitamente plano e direito reveloume tudo o que eu ia perder em troca do siléncio de Astárito. Os meus olhos encheramse de lágrimas; cobri a cara com as mãos e pusme a chorar. Compreendi que chorava por excesso de resignação e não por um sentimento de revolta, porque, ao mesmo tempo que chorava, aproximavame de Astárito. Gisela empurravame, repetindo:
Mas por que demónio estás tu a chorar? Como se fosse a primeira vez!
Ouvi Ricardo rir e senti, embora não os visse, os olhos de Astárito fixos em mim, que me aproximava lentamente, lavada em lágrimas. Depois o seu braço rodeou a minha cintura e a porta do quarto fechouse nas minhas costas.
Nada queria ver. Pareciame que ter de sentir o que ia passarse já era um martírio suficiente. Por isso, apesar dos esforços de Astárito, conservei obstinadamente o meu braço pousado sobre os olhos. Suponho que ele teria querido proceder como qualquer amante, isto é, levarme lentamente, insensivelmente, gradualmente, a satisfazer os seus desejos.
Mas a minha teimosia obrigouo a ser mais brutal e mais rápido do que ele desejaria. Por isso, depois de me ter feito sentar na beira da cama e tentado inutilmente convencerme com carícias, empurroume para trás e deitouse por cima de mim. O meu corpo, da cintura aos pés, estava inerte e pesado como chumbo: nunca mulher alguma foi possuída com mais abstinência e menos colaboração. Mas, entretanto, as minhas lágrimas secavam. E quando ele se deixou cair, ofegante, sobre o meu peito, tirei o braço da cara e abri os olhos.
Tenho a certeza de que nesse momento eu era tão amada por Astárito quanto uma mulher pode ser amada por um homem, seguramente muito mais do que por Gino. Lembrome de que ele não se cansava de me acariciar a testa e o rosto, com gestos convulsivos e apaixonados, tremendo da cabeça aos pés e murmurandome palavras de amor. Mas enquanto me acariciava eu seguia o fio dos meus pensamentos secretos. Revia o meu quarto com os seus móveis novos, ainda não completamente pagos, e sentia uma espécie de amargo alívio. Agora já nada me impedia de casarme e de viver a vida a que aspirava. Mas ao mesmo tempo sentia que a minha alma tinha mudado irremediavelmente: onde antigamente só havia esperança, ingenuidade e frescura existia agora segurança e resolução. Em resumo, sentiame mais rica de uma força triste e privada de amor.
Acabei por pronunciar as primeiras palavras desde que tínhamos entrado no quarto.
São horas de sairmos.
E ele respondeu imediatamente em voz baixa:
Estás zangada comigo?
Não.
Odeiasme?
Não.
Gosto tanto de ti! murmurou ele.
Voltou a cobrirme o rosto de beijos furiosos. Passados momentos, disselhe:
Está bem, mas temos de voltar para a sala.
Tens razão concordou ele.
E levantouse de cima do meu corpo, começou, pareceume, a vestirse no escuro. Tornei a vestir a minha roupa, levanteime e acendi o candeeiro da mesinhadecabeceira. A sua luz amarelada, o quarto apareceume tal como o seu cheiro a fechado e a alfazema mo tinham feito imaginar: um tecto baixo caiado, papel pintado nas paredes e móveis maciços. Num canto havia um lavatório com tampo de mármore, duas bacias e dois jarros de água com flores corderosa e verdes, debaixo de um espelho com moldura dourada. Fui ao lavatório, deitei um pouco de água na bacia, molhei uma ponta da toalha e lavei os lábios de onde Astárito tinha tirado todo o bâton com os seus beijos, depois os olhos, ainda vermelhos de chorar. De um fundo manchado cor de ferrugem o espelho devolviame uma imagem dolorosa de mim própria que me aturdiu por momentos a alma entorpecida e cheia de compaixão. Depois voltei a mim, ajeitei o melhor que me foi possível o cabelo e volteime para Astárito. Ele esperavame ao pé da porta; assim que me viu pronta, abriu o batente, evitando olharme e voltandome as costas. Apaguei a luz e seguio.
Fomos alegremente recebidos por Gisela e por Ricardo, sempre com o mesmo humor amalucado e indiferente. Como antes, eles não tinham compreendido a minha dor, nem entendiam a minha serenidade de agora. Gisela gritou:
Tu és uma boa sonsa! Não querias, não querias, mas parece que aceitaste bem depressa e de muito bom grado!... Fizeste bem se isso te deu prazer, mas não valia a pena tereste feito tão rogada.
Olheia. Pareciame estranhamente injusto que ela, que me obrigara a ceder a ponto de me segurar os braços para que Astárito me beijasse mais a seu jeito, censurasse agora a minha complacência. Ricardo, com o seu bom senso, fezlhe notar:
Estás a ser pouco lógica, Gisela... Tu, que de começo insististe tanto, agora quase a censuras por ela o ter feito.
Pois decerto! insistiu duramente Gisela. Se ela não queria, fez mal... Eu, por exemplo, se não quisesse, não me deixaria convencer nem pela força. Mas ela... ela queria acrescentou, considerandome com um ar descontente. Ela queria e muito! Eu bem a vi no carro antes de chegarmos a Viterbo. É por isso que ela não precisava de se fazer tão rogada.
Caleime, quase admirando a perfeição de uma crueza ao mesmo tempo impiedosa e inconsciente. Astárito aproximouse de mim e tentou agarrarme a mão. Repelio e fui sentarme ao fundo da mesa.
Mas olhem para Astárito! gritou Ricardo desatando a rir. Parece que vem de um enterro!
Verdadeiramente, à sua maneira, com uma gravidade lúgubre e o seu ar mortificado, Astárito parecia compreenderme melhor do que os outros.
Vocês estão sempre a brincar! disse ele.
Talvez quisesses que começássemos a chorar, não? gritou Gisela. Agora vocês vão ter paciência e esperar por nós como nós esperámos por vocês... Cada um por sua vez! Anda, querido, vamos!
Tenham cuidado, hem! recomendou Ricardo levantandose depois dela.
Estava visivelmente embriagado e nem ele sabia bem porque dissera para termos cuidado.
Vamos! Vamos!
Saíram por sua vez da sala de jantar, deixandonos sós, a mim e a Astárito. Eu estava sentada a uma ponta da mesa e Astárito na outra. Um raio de sol entrava pela janela, iluminando violentamente os pratos em desordem, os copos ainda meio cheios e os guardanapos sujos e batia em cheio na cara de Astárito, que conservava a sua expressão triste e sombria.
Satisfizera o seu desejo, mas o olhar que me deitava conservava a mesma intensidade dolorosa dos primeiros momentos do nosso encontro. Apesar do mal que me fizera, sentime cheia de piedade por ele. Compreendia como ele tinha sido infeliz antes de me possuir, e como, apesar de ter conseguido o seu fim, não tinha deixado de o ser. Primeiro sofrera porque me desejava; agora sofria porque eu não retribuía o seu amor. Mas é precisamente na piedade que o amor tem a sua inimiga; se o odiasse, talvez um dia viesse a amálo. Mas não o odiava.
Nutrindo por ele, como já disse, apenas compaixão, a única coisa que eu poderia sentir por ele era antipatia, frieza e repulsa.
Ficámos longamente silenciosos na sala cheia de sol, esperando o regresso de Gisela e de Ricardo. Astárito fumava sem descanso, acendendo uns cigarros nos outros. E, através das nuvens de fumo de que se rodeava raivosamente, lançavame os olhares eloquentes de um homem que tem muito que dizer, mas a quem falta a coragem de falar. Eu estava sentada junto da mesa, com as pernas cruzadas, e todos os meus sentidos se condensavam num único desejo: irme embora. Não sentia fadiga, nem vergonha; mas gostaria de estar só para poder reflectir à minha vontade no que me tinha acontecido. Absorvido por este grande desejo de partir, o meu espírito vazio divagava continuamente e observava futilidades: a pérola que Astárito usava na gravata, o desenho do tapete, uma pequena nódoa de molho de tomate na minha blusa, uma mosca que passeava tranquilamente na borda de um copo; irritavame comigo própria por não ser capaz de pensar em coisas mais sérias. Mas esta futilidade veio em meu auxílio quando Astárito, vencendo a sua timidez, me perguntou, a custo:
Que estás a pensar?
Reflecti durante um momento, e depois respondi, com tranquilidade:
Parti uma unha e não sei como foi.
Isto era verdade. Mas o seu rosto tomou uma expressão de incrédula amargura e renunciou definitivamente a conversar comigo.
Pouco depois, felizmente, Gisela e Ricardo saíram do quarto, um pouco ofegantes, mas tão alegres e despreocupados como antes. Ficaram admirados do nosso silêncio e da nossa gravidade, mas faziase tarde e o amor tinha tido neles um efeito oposto ao que tivera sobre Astárito: tinhaos tranquilizado e acalmado. Gisela voltava até a mostrarse afectuosa para comigo, pondo por completo de parte a excitação e a crueldade de que dera provas antes e durante a chantagem de Astárito. Pensei que essa chantagem tinha sido para ela uma espécie de novo tempero sensual para a insipidez da sua ligação com Ricardo. Na escada passou o braço em volta da minha cintura e murmurou:
Porque estás com essa cara? Se estás preocupada por causa do Gino, podes ficar descansada. Nem eu nem o Ricardo falaremos nisto a alguém.
Estou fatigada menti.
O meu temperamento impedeme de guardar rancor seja a quem for; bastava aquele gesto de amizade de Gisela para dissipar por completo o meu ressentimento.
Eu também me sinto cansada disse ela. Deve ser do vento que apanhei na cara.
Daí a momentos, parada à porta do restaurante, enquanto os dois homens caminhavam na direcção do carro, acrescentou:
Não ficaste zangada comigo pelo que se passou?
Que ideia! respondi. Que culpa tiveste disso? Assim, depois de ter tirado todas as satisfações que a sua intriga podia proporcionarlhe, queria ainda ter a certeza de que não lhe guardava rancor. Tive a impressão de ter lido com clareza no seu espírito, e foi precisamente porque não queria que ela compreendesse isso, o que decerto a humilharia, que tentei por todos os meios ao meu alcance dissipar os seus temores e mostrarme afectuosa. Deilhe um beijo e disselhe:
Porque havia de me zangar agora contigo? Tu sempre pensaste que devia deixar o Gino e juntarme com o Astárito.
Isso é verdade! afirmou ela com ênfase. E continuo a pensálo!? Mas tu, pelo contrário... Tenho medo de que nunca me perdoes.
Mostravase ansiosa, e eu, por um curioso contágio, estava ainda mais ansiosa do que ela, porque temia que adivinhasse os meus verdadeiros sentimentos.
Isso só prova que não me conheces bem respondi com simplicidade. Bem sei que é só por amizade para comigo que queres que eu deixe o Gino, porque estar com ele é contra os meus interesses. E é muito possível que tenhas razão! terminei, mentindo novamente.
Tranquilizada, agarroume por um braço e disseme, num tom de serena confidência:
Queria que me compreendesses... Astárito ou outro qualquer, tanto faz, contanto que não seja o Gino. Se soubesses a pena que me faz ver uma rapariga bonita como tu prejudicarse dessa maneira... Pergunta ao Ricardo: passo o dia a falarlhe de ti...
Exprimiase, como era seu hábito, sem meias palavras: e eu tinha o cuidado de aprovar tudo o que ela dizia, quer concordasse quer não. Chegados ao carro, ocupámos os mesmos lugares da vinda e partimos.
Durante a viagem de regresso conservámonos os quatro em siléncio. A expressão de Astárito ao olhar para mim exprimia mais um sentimento de mortificação do que de desejo; mas agora os seus olhares não me incomodavam, nem eu sentia, como à vinda, a necessidade de lhe falar e de ser amável com ele.
Absorvia com prazer o vento que me batia na cara e entretinhame a verificar, por meio dos marcos quilométricos, a progressiva diminuição da distáncia que nos separava de Roma. A certa altura senti a mão de Astárito tocar na minha e percebi que tentava obrigarme a pegar em qualquer coisa como um bocado de papel. Admirada, pensei que, não ousando falarme, recorrera ao expediente de escrever para comunicar comigo. Mas, baixando os olhos, vi que se tratava de uma nota de banco dobrada em quatro.
Ele olhava fixamente para mim, ao mesmo tempo que tentava fazer com que os meus dedos se fechassem sobre a nota. Por momentos apeteceume atirarlhe com ela à cara, mas ao mesmo tempo compreendi que isso não passaria de um gesto puramente exterior, ditado mais por um preconceito do que por um profundo impulso da alma. O sentimento que nesse momento tomou conta de mim causoume extraordinário espanto: depois disso, nas numerosas vezes que recebi dinheiro de homens, nunca mais o tive tão claro e tão intenso; era um sentimento de cumplicidade e de acordo sensual, que nenhuma das suas carícias, no quarto do restaurante, tinha podido inspirarme. Este sentimento de inevitável sujeição reveloume de repente um aspecto do meu carácter até aí completamente desconhecido para mim. Eu sabia, com absoluta certeza, que devia recusar esse dinheiro, mas ao mesmo tempo sentia que o desejava aceitar. E isto não tanto por avidez como pelo raro e novo prazer que o facto dava à minha alma.
Apesar de firmemente resolvida a aceitar a nota, fingi recusála, num gesto de puro instinto. Astárito insistiu, sem deixar de me fitar nos olhos. Então passei a nota da mão esquerda para a direita. Sentiame tomada por uma estranha excitação que me fazia corar e me dificultava a respiração.
Se nesse momento Astárito tivesse podido adivinhar o que se passava em mim, talvez tivesse pensado que o amava. Ora nada era menos verdadeiro; era somente o dinheiro, o modo como me tinha sido dado e o motivo dessa dádiva que actuavam sobre o meu espírito. Senti Astárito pegarme na mão e levála aos lábios. Deixeio beijála e depois retireia. Não voltámos a olhar um para o outro até à nossa chegada a Roma.
Logo que chegámos à cidade separámonos rapidamente uns dos outros, como se cada um de nós tivesse a consciência de ter cometido um crime e quisesse esconderse. A verdade é que nesse dia todos nós tínhamos cometido qualquer coisa que podia considerarse um crime: Ricardo, por estupidez, Gisela, por inveja, Astárito, por luxúria, e eu, por inexperiência.
Ricardo desejoume boasnoites. Astárito, grave e comovido, não teve coragem senão para me apertar silenciosamente a mão.
Tinhamme levado a casa, e, apesar da minha fadiga e dos meus remorsos, lembrome de que não me foi possível evitar um sentimento de vaidosa satisfação ao descer deste belo carro diante da porta, perante os olhares da família do ferroviário que ocupava a casa do lado e que nos espreitava por uma janela.
Corri para o meu quarto e a primeira coisa que fiz foi olhar para o dinheiro. Descobri que não era apenas uma, mas sim três notas de mil, e durante momentos, sentada na borda da minha cama, sentime feliz. Este dinheiro, além de chegar para pagar o que eu ainda devia dos móveis, permitiame comprar outras coisas de que precisava. Como nunca tinha tido em meu poder uma tal importância, não me fartava de olhar para o dinheiro.
A minha pobreza fazia com que a sua existência fosse não só agradável mas inacreditável. Tive de olhar longamente para as notas, como já sucedera com os móveis, para conseguir acreditar que me pertenciam.
O meu longo e profundo sono dessa noite pareceume ter desvanecido a recordação da minha aventura de Viterbo. No dia seguinte, acordei tranquila, decidida a prosseguir com a mesma perseverança nas minhas aspirações de possuir uma vida e uma família normais. Gisela, que vi nessa mesma manhã, quer fosse por remorsos quer, como era mais provável, por discrição, bem compreensível, não me fez a menor alusão ao nosso passeio e eu fiqueilhe reconhecida por isso. A ideia de tornar a encontrarme com Gino angustiavame e enchiame de ansiedade.
Embora estivesse convencida da minha total inocência, pensava que seria necessário mentirlhe, o que receava, e não estava certa de o poder fazer, porque seria a primeira vez, visto que eu até agora tinha sido inteiramente sincera para ele. verdade que lhe escondera os meus encontros com Gisela, mas esta dissimulação tinha um motivo tão inocente que nunca a tinha considerado como uma mentira; era apenas um expediente, com o qual condenava a sua injusta antipatia por Gisela.
A minha angústia era tal quando o encontrei nesse dia que por pouco não rompi a chorar e não lhe contei tudo, pedindolhe que me perdoasse. Este passeio a Viterbo pesavame na consciência e sentia um violento desejo de aliviar a minha alma confessandolho. Se Gino fosse diferente e se eu não soubesse que era tão ciumento, tenho a certeza de que lho teria dito; depois de o fazer, pareciame, nós amarnosíamos mais ainda que anteriormente, e eu sentirmeia protegida e ligada a ele por um laço mais forte que o nosso próprio amor. Era de manhã, estávamos no carro. como de costume, parados na nossa avenida dos arrabaldes. Ele notou o meu embaraço e perguntoume:
Que tens?
“Vou contarlhe tudo mesmo com o risco de ele me pôr fora do carro e de eu ter de voltar para Roma a pé.” Mas não tive coragem e pergunteilhe, por minha vez:
Amasme?
É um interrogatório? respondeume.
Vais amarme sempre? repeti. com os olhos cheios de lágrimas.
Sempre.
E vamos casarnos depressa?
Ele mostrouse contrariado com a minha insistência.
Palavra de honra! protestou. Tu acabarás por me convencer de que não tens confiança em mim! Não decidimos casar na Páscoa?
Sim, é verdade!
Não te dei dinheiro para começarmos a montar casa?
Deste.
Então? Sou ou não homem de palavra? Quando digo que faço alguma coisa, faço mesmo. Está a parecerme que é a tua mãe que te excita contra mim.
Não, não. A minha mãe nada tem a ver com isto respondi, alarmada. Dizme... Então viveremos juntos?
Bem entendido!
E seremos felizes?
- Isso dependerá de nós.
Viveremos juntos? perguntei pela segunda vez, incapaz de sair do círculo da minha ansiedade.
Uf! Já me perguntaste e eu já te respondi.
Desculpa disselhe , mas às vezes isso pareceme impossível. E, não podendo conterme por mais tempo, desatei a chorar.
Nessa mesma tarde, depois de o deixar, entrei numa igreja para me confessar. Havia quase um ano que não o fazia; durante todo esse tempo pensava que podia fazêlo e isso bastavame.
Deixara de me confessar logo que dei o primeiro beijo a Gino.
Deime conta de que as minhas relações com Gino eram um pecado segundo a religião, mas, como eu sabia que nos casaríamos, não sentia remorsos e contava ser absolvida de tudo. antes do casamento.
Entrei numa pequena igreja do centro cuja porta fica entre a entrada de um cinema e a montra de uma loja de meias. Estava quase mergulhada na escuridão, à parte o altarmor e uma capela lateral consagrada à Virgem. Era uma igreja muito suja e muito velha: as cadeiras de palha, todas desarrumadas, tinham ficado na mesma confusão em que os fiéis as tinham deixado ao sair. Fazia lembrar que tivessem abandonado com alívio, bem mais do que uma missa, uma macadora reunião.
Uma fraca luz bruxuleante que tombava da lanterna da cúpula revelava a poeira das pedras e as esfoladelas brancas do reboco amarelo das colunas a fingir de mármore. Numerosas promessas de prata em forma de coração chamejavam suspensas nas paredes umas contra as outras, provocando uma impressão melancólica. No entanto, o ar estava impregnado de um velho cheiro a incenso que me encorajou. Rapariguinha, tinha a sorvido muitas vezes este cheiro, e as recordações que ele me suscitava eram agradáveis e inocentes. Tive, por isso, a impressão de me encontrar num sítio familiar, e, se bem que entrasse pela primeira vez naquela igreja, pareceume que sempre a frequentara.
Mas antes de me confessar quis ir à capelinha lateral onde tinha entrevisto uma imagem da Virgem. Eu tinha sido desde o meu nascimento votada à Virgem Santa; minha mãe dizia que eu era parecida com Ela, com os meus olhos negros e doces. Sempre amei a Nossa Senhora porque Ela tinha o Seu filho nos braços e porque este filho feito homem Ih'O tinham morto; e Ela, que O pôs no mundo e O amou como se ama um filho, muito deve ter sofrido vendo pregaremlh'O na cruz. Muitas vezes pensava que a Virgem, que tinha sofrido tanto, era a única capaz de compreender os meus pesares; e, quando era pequena, só a Ela queria rezar, porque só Ela estava à altura de me ouvir.
Depois, a Virgem agradavame porque me parecia extremamente diferente de minha mãe, serena, tranquila como era, ricamente vestida, com olhos que se fixavam em mim afectuosamente.
Pareciame que era Ela a minha verdadeira mãe, e não a minha, sempre ríspida e mal vestida.
Ajoelheime, pois, tomei a cara entre as mãos, e de cabeça baixa fiz uma longa oração à Virgem, pessoalmente para lhe pedir perdão pelo que tinha feito e para invocar a sua protecção para mim, para minha mãe e para Gino. Em seguida lembreime de que a ninguém devia guardar rancor e pedi a Sua protecção também para Gisela, que me traíra, para Ricardo, que por estupidez tinha ajudado Gisela, e mesmo até para Astárito.
Rezei por Astárito mais tempo que pelos outros, porque experimentava um ressentimento à sua recordação e queria anular esse mau sentimento, gostando dele como gostava dos outros, perdoandolhe e esquecendo todo o mal que me havia feito. Acabei por me sentir tão comovida que as lágrimas me vieram aos olhos. Levantei os olhos para a imagem da Virgem sobre o altar; as lágrimas faziam como um pequeno véu e a imagem pareciame vacilante e bruxuleante como se a visse debaixo de água; os círios que brilhavam à sua volta faziam uma poeira dourada, doce à vista mas amarga também, como por vezes as estrelas que se deseja tocar e se sabe que estão muito longe. Fiquei muito tempo olhando a Virgem quase sem A ver; em seguida, as lágrimas rolaram pela minha cara com um formigueiro amarbo; então vi a Virgem com o Seu Menino nos braços, que me olhava, o rosto iluminado pela chamazinha dos círios. Tive a impressão de que era com simpatia e compaixão que Ela me olhava; agradeciLhe com todo o meu coração, e depois. levantandome e já serena, fuime confessar.
O confessionário estava vazio; mas enquanto tomava alento procurando com os olhos um padre, vi alguém sair por uma pequena porta à esquerda do altarmor, passar em frente do altar fazendo uma genuflexão e, persignandose, dirigirse para o outro lado. Era um frade, não percebi bem de que ordem. Enchime de coragem e chameio em voz baixa. Ele voltouse e veio logo ao meu encontro. Quando se aproximou vi que era um homem ainda novo, alto e forte, com um rosto fresco, rosado e viril, enquadrado por uma ligeira barba loura, olhos azuis e uma testa alta e branca. Pensei quase involuntariamente que era um homem magnífico, como é raro encontrarse, não só numa igreja mas até cá fora, e sentime feliz por me ir confessar a ele. Disselhe o que desejava em voz baixa; ele, com um ligeiro sinal de assentimento, acompanhoume até ao confessionário.
Entrou e eu ajoelheime em frente da grade. Uma placazinha pregada sobre o confessionário indicava o nome do padre: Élie; este nome ainda me inspirou mais confiança; entrou, ajoelhouse, fez uma breve oração e perguntou:
Há muito tempo que não se confessa?
Há quase um ano respondi.
É muito tempo... muito tempo... Porquê?
Notei que falava mal o italiano, carregando muito os erres como fazem os franceses. Dois ou três erros que cometeu pronunciando à italiana palavras estrangeiras fizeramme compreender que era efectivamente francés. O facto de ser estrangeiro agradoume também, sem eu saber verdadeiramente porquê. Talvez porque quando se faz qualquer coisa a que se dá importância tudo o que nos parece insólito apresentasenos como um bom agoiro.
Disselhe que a longa história que lhe iria contar lhe explicaria o motivo das interrupções das minhas confissões.
Após um curto silêncio, perguntoume o que tinha para lhe dizer. Então, com muito entusiasmo e confiança, conteilhe as minhas relações com Gino, a minha amizade com Gisela, o passeio a Viterbo e a chantagem de Astárito. Enquanto falava não me podia impedir de pensar no efeito que lhe fariam as minhas confidências. Este não era um padre como os outros; o seu aspecto altivo, com ar de homem do mundo, levavame a perguntar quais as razões que o teriam levado a tornarse frade. Pode parecer estranho que depois da extraordinária emoção que a minha prece à Virgem me provocara, eu me pudesse distrair ao ponto de me interessar pelo meu confessor; mas não vejo contradição entre esta curiosidade e esta emoção. Elas vinham do fundo da minha alma, onde a devoção e a coquetterie, a aflição e a sensualidade, faziam uma indissolúvel mistura.
Embora pensasse nele como acabo de dizer, experimentava uma doce consolação e uma avidez reconfortante por contar tudo. Tinha a impressão de me afastar cada vez mais da pesada angústia que me tomara, como uma flor ressequida que recebe enfim as primeiras gotas de chuva. Comecei por me exprimir penosamente, com hesitações, depois falei correntemente, e por fim a minha sinceridade era veemente e cheia de esperança.
Nada omiti, nem mesmo o dinheiro que recebera de Astárito, os sentimentos que essa oferta me tinham inspirado e o uso que tencionava fazer ele. Ouviume sem fazer nenhum comentário. Quando acabei declarou :
Para evitar uma coisa que lhe parecia um prejuízo, quer dizer, o rompimento do seu noivado, acedeu a praticar uma acção mil vezes mais grave para si própria...
É verdade disselhe, palpitante e contente por os seus dedos delicados me abrirem a alma.
Na realidade continuou ele, como se falasse consigo próprio , o vosso noivado nada tem a ver com isto... Entregandose a esse homem cedeu apenas a um impulso de avidez.
É verdade! É verdade!
Pois bem! Era preferível que o vosso noivado se desmanchasse a ter feito o que fez.
Também eu penso assim!
Não basta pensálo. Agora vai casar, é verdade, mas por que preço? Nunca poderá ser uma esposa honesta.
Estas palavras duras e inflexíveis atingiramme. Explodi num grito de angústia:
Ah! Por isto não! disselhe. Para mim é como se absolutamente nada se tivesse passado. Estou certa de que serei uma esposa honesta!
A sinceridade da minha resposta deve terlhe agradado. Fez uma grande pausa e depois repetiu com uma voz mais doce:
Sente um arrependimento sincero?
Ah! Sim! respondi impetuosamente.
De repente, tive a ideia de que ele me iria impor a devolução do dinheiro a Astárito. Se bem que já sentisse a pena que me fazia devolverlho, nem sequer me passou pela cabeça desobedecerlhe, sobretudo porque a ideia viria dele, o que me agradava e me subjugava de uma maneira singular. Mas, sem fazer a menor alusão ao dinheiro, ele continuou, na sua voz fria e distante, à qual a sua pronúncia estrangeira dava apesar de tudo um acento afectuoso:
Agora vai casar o mais depressa possível... Regularizar a sua situação. Deve dizer ao seu noivo que não podem continuar a encontrarse assim.
Já lhe disse.
E que respondeu ele?
Não pude deixar de sorrir ao pensar no belo rapaz louro que me fazia esta pergunta do fundo do confessionário escuro.
Respondi, não sem esforço:
Disseme que nos casaríamos na Páscoa.
Era melhor que casassem já... disseme, depois de um momento de reflexão.
E desta vez tive verdadeiramente a impressão de que não era um padre quem me falava, mas um homem do mundo, cortés, um pouco aborrecido por ter de se ocupar dos meus assuntos.
- Vem longe a Páscoa !
Não podemos antes... Tenho de fazer o enxoval e ele tem de ir à terra para falar aos pais.
Seja como for continuou ele , tem de casar o mais depressa possível, e até ao dia do casamento deve interromper completamente todas as relações carnais com o seu noivo... É um grande pecado! Percebeu?
Está bem prometi.
Promete? perguntou como se duvidasse. De qualquer maneira, fortifiquese contra as tentações pela oração. Procure rezar.
Sim... Rezarei.
Quanto a esse outro homem prosseguiu , nunca mais o deve tornar a ver, seja a que pretexto for... Isso não lhe deve ser difícil, visto não gostar dele... Se ele insistir e se a procurar, não o receba.
Respondilhe que o faria. Então, depois de algumas recomendações pronunciadas com voz fria e reticente e ao mesmo tempo tão agradável de escutar devido ao seu acento estrangeiro e à cortesia que dele emanava, ordenoume como penitência que recitasse todos os dias um certo número de orações e deume a absolvição. Mas antes de ma conceder quis que eu rezasse um padrenosso com ele. Aceitei com alegria porque era de má vontade que me ia embora e porque ainda não me tinha saciado da sua voz.
Pai Nosso que estais nos Céus disse ele.
E eu repeti.
Pai Nosso que estais nos Céus...
Venha a nós o Vosso Reino...
Venha a nós o Vosso Reino...
Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu...
Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu...
O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
Perdoainos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores...
Perdoainos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores...
Não nos deixeis cair em tentação e livrainos de todo o mal...
Não nos deixeis cair em tentação e livrainos de todo o mal...
Amen.
Amen.
Transcrevo inteiramente oração para reviver o sentimento que experimentei ao recitála com ele: a impressão de ser muito pequenina e de que ele me conduzia pela mão de uma frase à outra. Mas, entretanto, eu pensava no dinheiro que me tinha dado Astárito e sentiame quase decepcionada porque ele não me tinha imposto que o devolvesse. Com efeito, eu teria desejado que ele mo tivesse ordenado para lhe dar uma prova concreta da minha boa vontade, da minha obediéncia e do meu arrependimento, e poder fazer por ele uma coisa que era para mim um real sacrifício. Acabada a oração, levanteime. Ele também saiu do confessionário e fez menção de se ir embora sem me olhar. Era justo, visto que me tinha feito um ligeiro cumprimento com a cabeça. Então, quase sem querer e sem reflectir, puxeilhe a manga do hábito. Parou e fixoume com os seus olhos azuisclaros, frios e serenos. Pareceume ainda mais belo, mil ideias loucas me atravessaram o espírito.
Sonhei que poderia amálo; pensei na maneira de lhe mostrar que ele me agradava. Mas ao mesmo tempo a voz da minha consciéncia advertiume de que estava na igreja, que este homem era um padre e o meu confessor. Todas estas ideias e estas lutas me atacaram ao mesmo tempo, produzindo no meu espírito uma grande confusão: sentime por momentos incapaz de falar. Então, depois de uma espera razoável, ele perguntoume:
Queria dizerme mais alguma coisa?
Queria saber disse eu se devo restituir o dinheiro àquele homem.
Lançoume um rápido olhar, mas directo e que me atingiu até ao fundo da alma; depois, disse com brevidade:
Fazlhe muita falta?
Faz, sim.
Então pode guardálo. Mas proceda segundo a sua consciéncia.
Disse estas palavras num tom seco, como para me indicar que nada mais havia a dizer, e eu balbuciei um “obrigada” sem sorrir, olhandoo fixamente nos olhos. Realmente, naquele momento tinha perdido a cabeça; esperava talvez que, de uma maneira ou de outra, por um sinal ou por ama palavra, ele me fizesse compreender que eu não lhe era indiferente. Ele sentiu com certeza a intenção do meu olhar: ligeiro clarão de espanto passou no seu rosto. Esboçou um cumprimento, voltoume as costas e partiu, deixandome junto do confessionário confusa e cheia de perturbação.
Nada disse a minha mãe da minha confissão, como nada lhe tinha dito sobre o passeio a Viterbo. Eu sabia que ela tinha a respeito dos padres e da religião ideias bem determinadas.
“Eram dizia ela coisas muito belas; mas, entretanto, os ricos continuavam ricos e os pobres pobres ficavam.” “Por aí se vê concluía que os ricos sabem rezar melhor do que nós”.
As ideias da minha mãe sobre religião eram as mesmas que sobre a família e o casamento; fora piedosa e praticante e tudo lhe tinha corrido mal; por isso já não acreditava. Quando uma vez lhe disse que a nossa recompensa estava no outro mundo, ela enfureceuse e declaroume que a recompensa a queria já e neste mundo e que se não a tinha era porque “tudo isso não passava de mentiras”! Contudo, tendo começado por ser piedosa, ela tinhame dado, como já disse, uma educação religiosa. Só no decorrer dos últimos anos é que mudara de ideias.
No dia seguinte de manhã, quando entrei para o carro de Gino ele disseme que os patrões tinham ido para fora por alguns dias e nós podíamos encontrarnos na moradia. O meu primeiro movimento foi de alegria, porque julgo já o ter dito amar agradavame e gostava de fazer amor com Gino. Mas logo a seguir lembreime da promessa feita ao meu confessor e declarei:
Não, não posso.
Porquê?
Porque não é possível!
Está bem! disse com um suspiro de condescendência. Então será amanhã...
Não... amanhã também não... nunca mais!
Ah! Nunca mais! repetia ele afectando assombro. Nunca! Então penso que ao menos me irás dar uma explicação...
Tinha uma expressão desconfiada e ciumenta.
Gino disselhe muito depressa... Amote... muito... Nunca te amei tanto como neste momento... Mas é justamente por te amar... que acho melhor que até ao dia do nosso casamento nada haja entre nós, e nada... quero dizer... que não tenhamos relações.
Ah! Agora está tudo explicado! declarou maldosamente. Tens medo que eu já não queira casar contigo, hem?
Não, estou certa de que casarás. Se eu tivesse essa desconfiança não fazia todos estes preparativos... Não teria gasto o dinheiro que a minha mãe levou toda a sua vida a pôr de lado.
Oh! Como tu pões nos píncaros esse dinheiro da tua mãe! disseme.
Depois, tornandose tão desagradável que nem o reconhecia:
Então, porquê?
Fuime confessar e o meu confessor proibiume de ter relações contigo até que estejamos casados.
Ele fez um gesto de desapontamento e soltou uma exclamação de teve em mim o efeito de uma praga.
Mas com que direito é que esse padre vem meter o nariz nas nossas coisas?
Preferi não lhe responder. Ele insistiu:
Então, porque não respondes?
Nada mais tenho para dizer.
Sem dúvida que eu lhe devia ter parecido inflexível, porque de repente, mudando de ideias, declarou:
Está bem, está! Então queres que te leve outra vez para a cidade?
Como quiseres.
Devo dizer que foi esta a única vez que ele foi pouco gentil e desagradável para mim. No dia seguinte parecia resignado e mostrouse como sempre tinha sido: afectuoso, cortês e amável.
Continuámos a vernos todos os dias, como de costume; somente não nos possuíamos e limitávamonos a conversar. De tempo a tempo, davalhe um beijo, coisa que ele tinha resolvido nunca mais me pedir. Pareciame que beijálo não era pecado, porque, no fim de contas, éramos noivos e casaríamos em breve.
Quando me recordo desses dias imagino que se Gino se resignou tão depressa a esse papel de noivo respeitador foi com a esperança de que as nossas relações arrefecessem gradualmente e lhe fosse possível levar as coisas a um rompimento definitivo. Depois de longos e extenuantes dias de noivado, acontece a muitas raparigas encontraremse livres sem outra perda que a da sua juventude evaporada. Com esta ordem do meu confessor, oferecilhe sem o saber o pretexto que ele procurava para relaxar as nossas relações. Como ele tinha um carácter egoísta e fraco, e como o prazer que lhe davam as nossas intimidades era mais forte do que a vontade de me abandonar, por ele nunca teria tido coragem para o fazer. Mas a intervenção do confessor permitiulhe adoptar uma solução hipócrita e aparentemente desinteressada.
Ao fim de algum tempo, começou a encontrarse comigo menos frequentemente; não todos os dias, mas dia sim dia não. Percebi que o trajecto dos nossos passeios de automóvel encurtava gradualmente e que ele cada vez dava menos atenção às minhas conversas sobre o casamento. Mas, mesmo dandome conta, embora obscuramente, de todas estas mudanças de atitude, de nada suspeitava, não só porque estas mudanças se iam processando quase insensivelmente, mas também porque ele continuava a portarse comigo da forma habitual: afectuoso e gentil. Um dia, por fim, tomou um ar contrito e anuncioume que, por razões de família, a data do nosso casamento tinha de ser adiada.
Isso contrariate muito? acrescentou, ao verificar que eu não comentara a novidade e me limitava a olhar em frente, com um ar amargo e sonhador.
Não, não! disse contendome. Não tem importáncia... paciência... assim terei tempo de acabar o meu enxoval.
É absolutamente falso! Contrariate e muito! Ele tinha curiosidade em saber até que ponto o atraso do casamento me desgostava.
Já te disse que não.
Então se isso não te contraria, quer dizer que não me amas sinceramente e que no fundo talvez até não te contrariasse se não nos casássemos?
Não digas isso! proferi com pavor. Para mim seria uma coisa terrível! Nem quero pensar!
Nesse mesmo momento não compreendi a expressão que o seu rosto tomou. Com efeito, ele quis ver até que ponto eu ainda estava interessada nele e percebeu com grande desapontamento que o meu sentimento por ele era ainda muito forte.
Se o adiamento do meu casamento não levantou suspeitas no meu espírito confirmou a impressão de minha mãe e de Gisela. Minha mãe não fez comentários imediatos; isso acontecialhe às vezes, e esta atitude era estranha, atendendo ao seu carácter impulsivo e violento. Mas uma noite, depois de me servir o jantar, como habitualmente, de pé, em silêncio, eu fiz já não sei bem que alusão ao meu casamento. Então ela declarou:
Tu sabes como chamavam no meu tempo às raparigas, como tu, que estão sempre à espera de se casar e nunca o conseguem?
Empalideci e o meu coração deixou de bater.
Como? pergunteilhe.
A rapariga da despensa! disse calmamente minha mãe. Ele guardate na despensa como um resto de carne assada... Em determinada altura, à força de estar guardada na despensa, a carne estragase. Então, deitase fora!
Tive um acesso de raiva e gritei:
Não é verdade! Apesar de tudo, é a primeira vez que nós adiamos... e apenas por alguns meses... A verdade é que tu detestas o Gino por ele não ter dinheiro e ser chauffeur.
Eu não detesto ninguém.
Sim, tu detestao... e também te arrependeste de teres dado o teu dinheiro para o nosso quarto. Mas não tenhas medo...
Minha filha, o amor tornate idiota!
Não tenhas medo disse eu. Todas as coisas que faltam ele as pagará... e serás reembolsada das que comprámos com o teu dinheiro. Olha!
E, levada pela minha exaltação, abri a mala e mostrei as notas que Astárito me tinha dado.
É dinheiro dele! continuei.
Estava tão doida por ele que ao dizer estas mentiras quase tinha a impressão de que era verdade.
Foi ele quem me deu estas notas, e ainda tem mais! O seu olhar caiu sobre o dinheiro; o seu rosto tomou uma expressão tão arrependida e vexada que me encheu de remorsos. Havia já muito tempo que não a tratava tão mal e ao mesmo tempo apercebiame de que acabara de dizer uma mentira e que no fim de contas este dinheiro não tinha sido o Gino quem mo havia dado. Sem dizer uma palavra, levantou a mesa, levou os pratos e saiu. Via de costas, de pé, em frente do lavalouça, passando os pratos por água e pondoos um a um sobre o mármore, para que secassem. Com a cabeça baixa e os ombros ligeiramente curvados, inspiroume uma violenta piedade.
Impetuosamente, deiteilhe os braços à roda do pescoço e desculpeime :
Perdoa terme excedido nas coisas que te disse. Não as pensei... Mas quando começas a falar de Gino fazesme perder a cabeça.
Então! Então! Deixame! dizia fingindo esforçarse por se desembaraçar de mim.
É preciso que compreendas acrescentei com paixão. Se Gino não casa comigo.. matome ou “vou fazer a vida”!
Gisela acolheu a noticia do adiamento do meu casamento pouco mais ou menos como minha mãe. Estávamos no seu quarto mobilado: eu, toda vestida, sentada na borda da cama, ela, em camisa, sentada diante do toucador, a pentearse. Deixoume falar até ao fim, sem fazer comentários, depois disseme, triunfante e calma:
Verás que eu tinha razão!
Porquê?
Ele não quer casar contigo, nem casará... Por agora não é na Páscoa, é no Dia de TodososSantos. Do Dia de TodososSantos passará para o Natal... Um belo dia, acabarás tu própria por compreender, e serás tu a deixálo.
Estas palavras faziamme pena e tornavamme furiosa. Mas, num certo sentido, eu já me tinha vingado na minha mãe. E depois, se eu tivesse dito o que pensava, teria que cortar relações com Gisela, e eu não o queria fazer, porque apesar de tudo era a minha única amiga. Terlheia respondido que ela não queria que eu me casasse porque sabia que Ricardo nunca casaria com ela. Esta era a verdade, mas uma verdade muito dura de ouvir, e não me parecia justo ferir Gisela unicamente porque, logo que ela me falava de Gino, se deixava levar talvez com sentido de defesa - por um vil sentimento de inveja e ciúme. Limiteime pois a retorquirlhe :
Queres que nunca mais falemos disto? A ti, no fundo, que te importa que eu me case ou não? E a mim não me dá prazer voltar ao assunto.
Gisela levantouse bruscamente do toucador e veio sentarse na cama, ao meu lado:
Que me importa a mim, dizes tu? protestou com vivacidade.
Depois, passandome o braço em volta da cintura:
A mim, pelo contrário, fazme raiva que te pretendam prejudicar!
Mas isso não é verdade! disse eu em voz baixa.
Queria verte feliz prosseguiu.
Calouse um momento, depois perguntou, como que por acaso:
A propósito... Astárito atormentame constantemente para te tornar a ver... Diz que não pode viver sem ti... Está realmente preso... Queres marcarlhe um encontro?
Não me fales de Astárito! respondilhe.
Reconheceu que se portou mal contigo, naquele dia, em Viterbo continuou mas no fundo amate e está pronto e reparar a sua falta de correcção.
A única maneira que ele tem de a reparar é nunca mais me aparecer!
Vamos! Vamos! Além disso, é um homem sério e que te ama muito... Ele quer absolutamente verte, falarte... Porque não se encontram vocês num café, por exemplo, na minha presença?
Não! disse eu com decisão. Não o quero tornar a ver.
Vais arrependerte.
Vai tu com ele... com o Astárito!
Eu? Ia já, minha filha! É um homem generoso, que não olha ao dinheiro... Mas é a ti que ele quer... realmente uma ideia fixa.
Está bem! Mas eu nada quero dele.
Insistiu ainda muito a favor de Astárito, mas não me deixei convencer. No cúmulo do meu desejo desesperado de me casar e de ter família, estava firmemente decidida a não me deixar seduzir, nem pela razão, nem pelo dinheiro. Tinha esquecido até o frémito de prazer que Astárito me tinha provocado quando me introduzira à força aquele dinheiro na mão quando regressávamos de Viterbo. Como aconteceu frequentemente, era justamente porque receava que Gisela e minha mãe tivessem razão e que, por um motivo ou por outro, o meu casamento não se realizasse, que eu me agarrava à ideia desse casamento com uma esperança ainda mais forte e encarniçada.
Enquanto esperava, tinha pago todas as prestações dos meus móveis e puserame a trabalhar mais que nunca para ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manhã posava no atelier e à tarde fechavame no grande quarto com minha mãe para trabalhar até à noite. Ela cosia à máquina junto da janela, e eu, sentada à mesa, ao pé dela, cosia à mão. Minha mãe tinhame ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu desde o princípio me mostrara muito jeitosa e rápida. Havia sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e tão em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para homem era a nossa especialidade, mas às vezes acontecia ter de confeccionar qualquer camisa ou combinação ou cuecas de mulher, sempre coisas vulgares, não só porque minha mãe não seria capaz de fazer coisas delicadas, mas também porque não conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o meu espírito perdiase em divagações sobre Gino, o casamento, o meu passeio a Viterbo, minha mãe a minha vida, em suma , e o tempo passava depressa. O que pensava minha mãe nunca o soube, mas era bem certo que o seu cérebro estava ocupado, porque, enquanto trabalhava à máquina, tinha de tempo a tempo uma expressão furiosa, e se eu lhe falava nessa altura respondiame mal. Para a noite, quando começava a escurecer, eu limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim própria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque desejava ardentemente qualquer coisa que considerava próxima e possível. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem quando, já não há esperança; tornase então inútil passar bem ou mal e de nada se precisa.
Mais de uma vez, no decurso deste período, apercebime de que Astárito me seguia na rua. Ia para o atelier de manhã muito cedo. Habitualmente Astárito, imóvel, num vão de escada, no outro lado da rua, esperava que eu saísse. Nunca atravessava e enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praça. junto das casas, ele limitavase a seguirme do outro lado, mais devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso bastavalhe: era bem a imagem de um homem perdidamente apaixonado. Quando eu chegava à praça, ele ia postarse na paragem do eléctrico fronteira àquela em que eu estava.
Continuava a observarme, mas se eu deitava uma olhadela para o seu lado isso bastava para que disfarçasse e olhasse para a frente, fingindo interessarse pela chegada do meu eléctrico.
Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor como aquele; embora firmemente decidida a não lhe tornar a falar, experimentava por vezes uma espécie de compaixão lisonjeada. Depois Gino chegava no carro, ou às vezes no eléctrico. E quando eu subia, fosse para o automóvel, fosse para o eléctrico, Astárito ficava no seu refúgio a ver afastarme.
Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala grande e encontrei Astárito, de pé, o chapéu na mão, apoiado à mesa e conversando com minha mãe. Quando o vi em minha casa, à ideia de tudo o que ele poderia ter dito à minha mãe para a persuadir a intervir a seu favor, esqueci toda a compaixão e fui tomada de raiva.
Que faz o senhor aqui? perguntei.
Olhoume e vi na sua cara a mesma expressão convulsa e trémula que tivera no carro quando íamos a caminho de Viterbo e me dissera que eu lhe agradava. Mas desta vez ele nem conseguia falar.
Este senhor diz que te conheceu e que queria cumprimentarte começou minha mãe em ar confidencial.
Pelo seu tom compreendi que Astárito lhe falara exactamente no sentido que eu pensava e que talvez até mesmo lhe tivesse dado dinheiro.
Tu declarei a minha mãe vais fazer o favor de te retirares!
A minha voz, quase selvagem, assustoua: saiu, sem dizer palavra, para o lado da cozinha.
Que faz o senhor aqui? disse de novo a Astárito. Váse embora!
Olhoume, pareceu mover os lábios, mas nada disse. Tinha os olhos revirados sobre as pálpebras, vendose quase o branco; cheguei a pensar que fosse desmaiar.
Váse embora! repeti, batendo com o pé no chão. Ou então chamo gente... Chamo um dos meus amigos que mora cá em baixo.
Muitas vezes depois perguntei a mim mesmo porque não fizera Astárito chantagem pela segunda vez: porque não me teria ele ameaçado, se eu não cedesse, de contar a Gino o que se tinha passado em Viterbo. Esta chantagem seria doravante muito mais bem sucedida, pois que me tinha de facto possuído, e havia testemunhas que não me permitiriam negar. Concluí que da primeira vez me tinha apenas desejado, mas que da segunda era realmente impelido pelo amor. O amor quer ser retribuído, e se Astárito me amava devia sentir quanto era insuficiente para ele possuirme como naquele dia em Viterbo, muda, inerte, como morta. Por outro lado, daquela vez eu estava bem decidida a declarar a verdade; depois de tudo, se Gino me amava, devia compreender e perdoarme. A minha atitude resoluta convenceu certamente Astárito da inutilidade de segunda chantagem.
A minha ameaça de chamar gente nada respondeu, mas pegou no chapéu e dirigiuse para a porta. Quando chegou perto, baixou a cabeça e pareceu recolherse um momento, para falar. Levantou os olhos para mim remexendo os lábios, mas toda a coragem pareceu abandonálo; olhoume fixamente e ficou mudo.
Este segundo olhar pareceume muito longo. Acabou por esboçar com a cabeça um cumprimento e saiu fechando a porta.
Fui depois, furiosa, à cozinha e perguntei a minha mãe:
Que disseste a esse homem?
Eu? Nada! respondeu ela, assustada. perguntoume a que género de trabalho nos entregávamos e disseme que queria mandar fazer umas camisas.
Se vais a casa dele, matote griteilhe.
Olhoume com olhar apavorado e respondeu:
Não é preciso lá ir! Pode muito bem mandar fazer as suas camisas a outra pessoa!
Não te falou de mim?
Perguntoume quando te casavas.
E tu, que lhe respondeste?
Que te casavas em Outubro.
Não te deu dinheiro?
Não. Porquê? perguntou fingindo admiração. Devia darmo?
Pelo tom da sua voz adquiri a convicção de que Astárito lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segureilhe violentamente o braço.
Diz a verdade! Ele deute dinheiro! griteilhe.
Não. Não me deu.
Ela conservava a mão no bolso do avental. Aperteilhe o pulso com uma violência terrível e vi saltar do bolso ao mesmo tempo que a mão uma nota de banco dobrada em duas. Assim que a deixei, ela curvouse para a apanhar com uma tal avidez, uma tal cobiça, que a minha fúria cessou. Lembreime da emoção e da felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de Astárito em Viterbo. Senti que não tinha o direito de condenar minha mãe por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e ceder às mesmas tentações. Naquela altura teria preferido nada ter perguntado, nem ter visto aquela nota.
Limiteime a observar com voz normal:
Afinal, sempre to tinha dado!
E sem esperar mais explicações saí da cozinha. Ao jantar, algumas suas alusões fizeramme compreender que desejava tornar a falar de Astárito e do dinheiro. Mas eu desviei a conversa e ela não insistiu.
No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo à pastelaria onde habitualmente nos encontrávamos. Ainda não se tinha sentado e já me dizia sem mais preâmbulos:
Hoje tenho de falarte de uma coisa muito importante.
Uma espécie de pressentimento obrigou-me a olhála exangue.
Se é uma má notícia supliqueilhe com voz branda peçote que não ma dês.
Não é boa, nem é má respondeu vivamente. É uma notícia... eis tudo. Já te disse que Astárito...
Não quero ouvir falar mais de Astárito.
Mas ouve... não sejas criança. Pois, como te disse, o Astárito é um homem importante.. um graúdo da polícia e da política.
Sentime um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de política.
Declarei sem esforço:
Mesmo que esse Astárito fosse ministro, para mim era a mesma coisa!
Uff! Como tu és... Ouve em vez de me interromperes! declarou Gisela. Astárito disseme que era absolutamente necessário que fosses ter com ele ao ministério... precisa de falarte... mas não de amor acrescentou rapidamente. Precisa de falarte de uma coisa muito importante... De uma coisa que te diz respeito.
Que me diz respeito?
Sim... é para teu bem... pelo menos foi o que ele me disse.
Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite de Astárito, apesar de todas as minha resoluções contrárias? Nem eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:
Está bem. Irei.
Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha passividade.
Foi então que se apercebeu da minha palidez e do meu ar assustado:
Que tens? disseme. Porque é da polícia? Mas nada tem contra ti! Nenhuma intenção tem de te prender.
Levanteime, embora me sentisse vacilante.
Está bem repeti. Irei; qual é o ministério?
O Ministério do Interior. Mesmo em frente do Supercinema. Mas ouve...
A que horas?
Por toda a manhã... Mas ouve...
Até logo.
Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixão, não atingia o que Astárito me podia querer, mas um pressentimento que me parecia infalível diziame que nada podia ser de bom. O lugar onde me tinha chamado fezme supor que o assunto devia ter alguma ligação com a polícia. Por outro lado, eu sabia, como sabem todos os pobres, que logo que a polícia se mete nalguma coisa nunca é por bem. Depois de examinar minuciosamente a minha conduta, acabei por concluir que Astárito queria exercer sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informação que obtivera sobre a vida de Gino. Eu não conhecia a vida de Gino; era possível que ele se tivesse comprometido politicamente.
Nunca me ocupara de política, mas não era parva a ponto de ignorar que havia muita gente que não suportava o regime fascista e que homens da profissão de Astárito eram precisamente encarregados de dar caça a esses inimigos do governo. A minha imaginação pintava de cores negras o dilema diante do qual Astárito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A minha angústia baseavase no facto de eu não querer de modo algum ceder a Astárito, mas tãopouco permitir que metessem Gino na prisão. Quando fazia estas reflexões não experimentava qualquer compaixão por Astárito; odiavao, simplesmente. Pareciame um homem desprezível e baixo, indigno de viver, que era preciso punir impiedosamente! Entre outras soluções, a ideia de matar Astárito vinhame com facilidade ao espírito. Mas, mais do que uma solução, era uma divagação mórbida da insónia; e de facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em decisões objectivas e firmes, acompanhoume até ao romper do dia. Viame a pôr na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda com que minha mãe descascava as batatas; procurar Astárito; ouviao dizerme o que eu imaginara e com toda a força do meu braço forte cravavalhe a minha faca no pescoço, entre a orelha e o seu alto colarinho de goma. Imaginavame a sair da sala, fingindo a maior calma e correr a refugiarme em casa de Gisela, ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo ardendo nestas visões sanguinárias, sabia que nunca seria capaz de fazer uma coisa semelhante; tenho horror ao sangue; tive sempre horror em fazer mal aos outros, e o meu carácter levame mais a submeterme à violência que a cometêla.
De madrugada dormitei um pouco. O dia nasceu; levanteime e dirigime ao meu encontro habitual com Gino. Logo que nos encontrámos na nossa avenida dos arredores, depois de algumas palavras de conversa, esforceime por dar à minha voz uma entoação banal e perguntei:
É verdade... nunca te interessaste por política?
Por política? Que queres dizer?
No sentido de ter feito qualquer coisa contra o governo?
Olhoume com um ar de entendimento e perguntou por sua vez:
Mas dizme lá, achas que eu tenho ar de cobarde?
Não, mas...
Responde primeiro. Tenho ar de cobarde?
Não respondilhe , nada disso me pareces. Somente. . .
Então por que diabo queres tu que me ocupe de política?
Não sei. É que muitas vezes...
Não comigo. A esses que te insinuaram isso podes dizerlhes que Gino Molinari não é um cobarde.
Próximo das onze horas, depois de ter rondado mais de uma hora em volta do Ministério sem me decidir a entrar. apresenteime ao contínuo e perguntei por Astárito. Primeiro subi uma comprida escada de mármore, depois outra escada mais pequena, mas também comprida, depois, por largos corredores, acompanhoume a uma antecâmara para onde davam três portas.
Estava habituada a ligar à palavra polícia a visão de locais minúsculos e repugnantes de comissariados de bairros; fiquei estupefacta com o luxo das repartições onde trabalhava Astárito. A antecâmara era um verdadeiro salão, com o chão de mosaico e velhos quadros nas paredes, como eu estava habituada a ver nas igrejas; grandes sofás estavam dispostos ao longo da parede e o centro era ocupado por uma mesa maciça.
Intimidada por tanto luxo, não pude deixar de pensar que Gisela tinha razão: Astárito devia ser realmente uma pessoa importante. E esta importância de Astárito foime bruscamente confirmada por um facto inesperado. Tinha acabado de me sentar quando uma das três portas se abriu e vi sair uma senhora muito alta e de uma grande beleza, mas muito nova, elegantemente vestida de preto, com um véu sobre a cara.
Astárito seguiaa. Julgando que chegara a minha vez, levanteime. Astárito, fazendome um gesto com a mão, para me indicar que já me vira mas que ainda não era a minha altura, continuou a conversar com a senhora no limiar da porta. Em seguida, depois de a ter acompanhado até ao meio da sala e de se ter despedido dela inclinandose e beijandolhe a mão, fez um sinal para chamar outra pessoa que estava sentada ao meu lado na antecámara; um velhote de lunetas e barbicha branca, todo vestido de preto, que tinha aspecto de professor. Ao sinal de Astárito levantouse logo, servil e submisso, e precipitouse para ele. Os dois homens desapareceram no gabinete e fiquei de novo só.
O que mais me impressionou no decurso desta breve aparição de Astárito foi a diferença entre os seus modos de agora e os que tivera durante o nosso passeio a Viterbo. Tinhao visto nessa altura embaraçado, convulso, mudo, trémulo; agora aparecerame extremamente senhor de si mesmo, cheio de presença, com um ar de superioridade ao mesmo tempo autoritária e discreta. Até mesmo a voz mudara. Durante o passeio falarame em voz baixa, quente e estrangulada, e a sua voz enquanto falava à senhora do véu tinha um timbre claro, frio, amável e tranquilo. Estava vestido de cinzentoescuro, como de costume, com um alto colarinho de goma que dava à sua cabeça qualquer coisa de fixo; mas agora o fato e os colarinhos que eu notara no decurso do passeio sem me impressionar pareciamme inteiramente de harmonia com o lugar: os móveis, maciços e severos, as vastas proporções da sala, o silêncio e a ordem que reinavam ali era como se tudo fosse um uniforme. “Gisela tinha razão pensava eu de novo , este deve ser realmente uma personagem de marca; só o amor pode explicar os seus modos embaraçados e o sentimento constante de inferioridade nas suas conversas comigo.” Estas observações fizeramme esquecer a minha primeira atrapalhação, e quando, ao fim de alguns minutos, a porta se abriu para deixar sair o velho, sentiame suficientemente segura de mim. Desta vez, porém, Astárito não apareceu à porta para me convidar a entrar. Uma campainha retiniu, um contínuo entrou no gabinete de Astárito, fechando a porta atrás dele, reapareceu, aproximouse de mim e, informandose do meu nome em voz baixa, disseme que podia entrar. Levanteime e avancei sem pressa.
O gabinete de Astárito era uma sala quase tão grande como a antecâmara. Esta sala estava vazia, à parte um divã e dois fauteuils de couro num canto, e noutro canto uma mesa atrás da qual Astárito estava sentado. Por duas janelas veladas por cortinas brancas entrava na sala um dia frio, sem sol, silencioso e triste, que me fez pensar na voz de Astárito a falar com a senhora do véu. Havia um grande tapete no chão e dois ou três quadros nas paredes. Lembrome de que um deles representava um prado verde que se estendia até à linha do horizonte limitado por montanhas rochosas. Astárito, como já disse, estava sentado à mesa; quando entrei, levantou os olhos de uns autos que estava a ler ou fingindo que lia. Eu disse “fingindo” porque tive logo a seguir a certeza de que era uma comédia com o fim de me intimidar e de me fazer sentir a sua autoridade e a sua importância. Com efeito, quando me aproximei da mesa vi que a folha que examinava com tanta atenção não continha mais que três ou quatro linhas rabiscadas à pressa. De mais a mais, a mão em que apoiava a testa e que segurava o cigarro aceso com dois dedos revelava a sua perturbação por uma tremura bem visível. Esta tremura tinha feito mesmo cair um pouco de cinza sobre a folha que ele lia com uma atenção muito marcada e cheia de artifício.
Pousei a mão na borda da mesa e disselhe:
Cá estou!
Como se estas palavras fossem um sinal, deixou de ler, levantouse muito devagar e veio darme os bonsdias, pegandome nas mãos. Mas tudo isto num silêncio que muito contrastava com a atitude autoritária que se esforçava por conservar. Na realidade, como depressa compreendi, só a minha voz foi suficiente para lhe fazer esquecer o papel que se preparara para representar, e a sua perturbação habitual tomouo de novo irresistivelmente. Beijoume as mãos, primeiro uma, depois outra, olhandome com os olhos ávidos e melancólicos e fez mençâo de falar; mas os seus lábios tremeram e durante um momento guardou siléncio.
Tu vieste! disse por fim com a voz que eu conhecia, baixa e estrangulada.
Agora talvez por contraste à sua atitude sentiame completamente descansada.
Sim disselhe , vim. Na realidade não devia... Que tem para me dizer?
Vem. Sentate ali murmurou.
Não me tinha largado a mão, que apertava com força. Levandome pela mão, conduziume até junto do divã. Senteime, mas ele de repente ajoelhouse diante de mim, abraçoume as pernas e apoiou a cabeça nos meus joelhos. Tudo isto em silêncio e tremendo de desejo. Apoiava a fronte com tal força contra mim que me fazia doer; depois de um momento de imobilidade, levantou a sua cabeça calva como se a quisesse entalar entre os meus joelhos. Então fiz menção de me levantar e disselhe:
Tinha uma coisa importante para me dizer. Digame, senão voume embora.
A estas palavras levantouse com grande esforço, sentouse a meu lado, tomoume a mão e murmurou:
Não era nada... Queria tornar a verte.
Fiz novamente menção de me levantar; reteveme e continuou:
Sim... E depois queria dizerte que é preciso que nos entendamos de vez.
De que maneira?
Amote! disse vivamente. Amote tanto! Vem viver para minha casa; serás a dona da casa... como se fosses a minha mulher. Comprarteei vestidos, jóias, tudo o que quiseres...
Parecia ter perdido a cabeça; os lábios ficavam imóveis e como estendidos, as palavras saíamlhe desordenadamente.
Ah! Foi para isto que me fez vir aqui? pergunteilhe friamente.
Não queres?
Isso agora não está em causa!
Coisa estranha, depois desta resposta nada mais disse, mas largou a mão e, fascinandome quase com o seu olhar desvairado e fixo, acaricioume a cara como se quisesse reconhecer um desenho. Os seus dedos eram leves e eu sentia a sua tremura enquanto eles me contornavam a cara, da testa à face e da face à testa. Era um gesto de homem verdadeiramente apaixonado e tal é a força persuasiva do amor, mesmo quando não se lhe quer corresponder, que durante um momento sentime quase impulsionada a dizerlhe, por piedade, algumas palavras menos duras e menos definitivas. Mas ele não me deu tempo. A carícia acabou e ele levantouse protestando, num curioso tom empolado e pedante, onde se notava ao mesmo tempo a perturbação do desejo e não sei que zelo inesperado:
Espera... é verdade... tenho uma coisa importante para dizerte.
Dito isto, foi à mesa e pegou num caderno encarnado. Foi a minha vez de me perturbar quando o vi avançar para mim com o fascículo na mão.
Que é isso? perguntei com um fio de voz.
... é... que coisa curiosa o tom da sua voz autoritária e oficial misturado com a excitação! ... é uma informação que diz respeito ao teu noivo.
Ah ! fiz eu.
E durante um instante, mortalmente assustada, fechei os olhos.
Astárito não deu por isso; folheou o caderno, cujas folhas rangiam com a sua agitação.
Gino Molinari, não é?
Sim.
E vais casar com ele em Outubro, não é?
Sim.
Mas eu verifico que Gino Molinari é casado continuou ele , e, para ser mais preciso, com Antonieta Partini, filha de Emílio Partini e de Diomira Lavagne, há quatro anos, e que têm uma pequenita chamada Maria. Presentemente a mulher vive em Orvieto, em casa da mãe.
Eu não pronunciei palavra; levanteime do divã e dirigime para a porta, Astárito ficou de pé, no meio da sala, com o caderno nas mãos. Abri a porta e saí.
Lembrome de que logo que me encontrei na rua, naquele dia doce e enevoado de um Inverno ameno, tive a amarga mas certa impressão de que a minha existência após uma interrupção às minhas aspirações de vida conjugal e aos meus preparativos recomeçava a seguir o seu curso, como um rio, que, desviado por qualquer acidente, volta ao seu velho leito e recomeça a correr como dantes, sem novidade nem mudanças. Podia ser que esta impressão proviesse do facto de, no meu desvairamento, olhar à minha volta com olhos, de ora em diante, incertos e que a multidão, as lojas, os veículos, me aparecessem pela primeira vez depois de tantos meses com o seu aspecto impiedosamente normal; nem bonitos, nem feios, nem interessantes, nem insignificantes, exactamente como eles eram, tal qual deviam aparecer aos bêbados depois de lhes ter passado a embriaguez. Mas podia ser também, e era o mais provável, que a sensação proviesse da verificação de que a vida normal não eram os meus projectos de felicidade, mas sim o contrário, quer dizer, todas as coisas contrárias aos planos e aos programas, todas as coisas que se revelavam defeituosas e imprevisíveis, que provocam decepção e dor. Se assim era e pareciame bem que seria , qualquer dúvida que, após uma bebedeira de alguns meses, eu ainda tivesse nessa manhã tinha revivido.
Tal foi a única ideia que me inspirou a falsidade de Gino. Não sonhei sequer condenálo e tive a impressão de nenhum verdadeiro rancor alimentar por ele. Eu não fora lançada numa armadilha sem cumplicidade da minha parte; a recordação do prazer que sentira nos braços de Gino era demasiado recente para que não encontrasse, senão justificação, pelo menos desculpas para a sua mentira. Pensava que, cego pelo desejo, ele fora mais fraco que mau; que a falta, se a havia, estava na minha beleza, que fazia andar à roda a cabeça dos homens e os fazia esquecer todos os escrúpulos e o dever. Gino no fim de contas não era mais culpado que Astárito, salvo que ele recorrera à mentira, ao passo que Astárito preferira a chantagem. Os dois amavamme tanto quanto era possível; certamente que, se tivessem podido, eles teriam usado, para me possuir, de meios lícitos e termeiam assegurado a modesta felicidade que eu punha acima de tudo. Mas a fatalidade quisera que com a minha beleza eu tentasse os homens que não me podiam dar essa felicidade. Infelizmente, se era verdade que ele tinha sido realmente culpado, era bem certo que havia uma vítima, e que essa vítima era eu.
Pode ser que esta maneira de sentir pareça fraca depois de uma traição como a de Gino. Mas cada vez que eu era ofendida e lembrome de o ser muitas vezes pela minha pobreza, a minha inocência e o meu isolamento experimentava sempre o desejo de desculpar o ofensor e esquecer o agravo o mais depressa possível. Se a ofensa determina em mim qualquer mudança, essa mudança não se manifesta nem na minha atitude nem no meu aspecto exterior: actua mais profundamente na minha alma, que se fecha mais, tal como uma carne sã com uma boa circulação sanguínea consegue por si, depois do ferimento, cicatrizar mais depressa. Mas as cicatrizes ficam: e as mudanças, embora inconscientes, da alma são sempre definitivas.
Foi o que me aconteceu com Gino. Não senti nem sequer um momento de rancor contra ele, mas compreendi que em mim própria muitas coisas se tinham subvertido e quebrado para sempre: a minha estima por ele, a minha esperança de arranjar uma família, a minha vontade de não ceder nem a Gisela nem a minha mãe, a minha fé religiosa, ou pelo menos o género de fé que tivera até ali: compareime a uma das minhas bonecas do tempo em que eu era rapariguinha: depois de as ter amachucado e martirizado durante todo o dia, a sua cara risonha e rosada ficava intacta e eis que um ruído de molas partidas vinha de dentro do seu corpo, com um chocalhar de mau agouro. Viravaas de cabeça para baixo, e então, pelo pescoço, via cair fragmentos de porcelana, as molas e as peçazinhas do mecanismo que as faziam falar, mexer os olhos, e também misteriosos bocadinhos de madeira e de fazenda dos quais nunca consegui descobrir a utilidade.
Aturdida mas tranquila, entrei em casa e fiz de tarde as mesmas coisas que habitualmente executava, sem dizer a minha mãe o que se tinha passado, não lhe confiando as conseqüências que esse facto me traria. Apercebime de que era impossível levar a dissimulação ao ponto de trabalhar no meu enxoval como nos outros dias; pegando nas peças prontas e nas que ainda tinha por acabar fui fechálas à chave no armário do meu quarto. Minha mãe notou a minha tristeza, coisa rara em mim, que sou por hábito estouvada e alegre; mas disselhe que estava fatigada e era verdade. Ao entardecer, enquanto minha mãe cosia à máquina, larguei a minha costura, fui para o meu quarto e estendime em cima da cama. Reparei que olhava os meus móveis já pagos, e por mim, graças ao dinheiro de Astárito, com olhos bem diferentes dos de outrora, sem alegria e sem esperança. Não sentia dor, mas simplesmente a lassidão e a indiferença que se experimentam depois de um grande esforço completamente inútil. De resto estava fisicamente cansada; tinha os membros partidos. Invadiume um grande desejo de repousar.
Pensando vagamente nos meus móveis e na impossibilidade de agora em diante os usar como esperava, adormeci quase a seguir, deitada vestida sobre a minha cama. Dormi talvez umas quatro horas, com avidez, com um sono que me pareceu triste e sombrio; acordei muito tarde; chamei minha mãe com voz forte, do fundo da obscuridade que me rodeava. Ela acorreu logo e disseme que não me tinha acordado porque eu estava a dormir um sono tranquilo e reparador.
Há mais de uma hora que o jantar está pronto - continuou, permanecendo de pé, olhandome. Que queres fazer? Vens comer ou não?
Não me apetece levantar! respondi cobrindo os olhos com o braço porque a luz me feria a vista. Porque não me trazes o jantar aqui?
Ela saiu e voltou logo a seguir trazendo o habitual jantar num tabuleiro. Pousouo na borda da cama; levanteime e comecei a comer molemente, apoiada no cotovelo. Minha mãe ficou de pé a olharme. Mas às primeiras garfadas deixei de comer e caí outra vez sobre a almofada.
Então não comes mais? perguntoume minha mãe.
Não tenho fome.
Não te sentes bem?
Estou bem.
Então vou levar tudo outra vez resmungou. Levantou o tabuleiro da cama e pousouo sobre a mesa, ao pé da janela.
Não me acordes amanhã de manhã disselhe. passado um momento.
Porquê?
Porque resolvi não ser mais modelo; a gente cansase muito e ganha pouco.
Mas então que vais fazer? perguntoume, inquieta.Eu não te posso sustentar!... Já não és criança e custas caro! Além disso, há muitas despesas... O enxoval...
Começava já a choramingar e a lamentarse; então, sem tirar o braço da cara, articulei lenta e penosamente:
Não me aborreças agora. Está sossegada, que dinheiro não vai faltar!
Seguiuse um grande silêncio.
De nada precisas? acabou por perguntar, mortificada e zelosa, como uma criada de quarto a quem tivessem repreendido por excesso de familiaridade e quisesse fazerse perdoar.
Sim, fazme um favor... Ajudame a despir... estou ainda tão cansada e com tanto sono!
Ela obedeceu. Sentandose na cama começou por me tirar os sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama. Depois despiume o vestido e a combinação e ajudoume a vestir a camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados.
Depois de estar debaixo da roupa, enroleime, puxei o lençol e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe darme as boasnoites do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora avançada do dia.
Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino; mas ao acordar apercebime de que não desejava vêlo enquanto a minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento, como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento, e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava de Gino; mas não queria odiálo, porque pensava que juntaria ao prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim.
Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha preguiça, quase voluptuosa, e sentiame menos triste que na noite anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria antes do meiodia. Deixeime ficar debaixo da roupa: foi o primeiro prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo privarame dele; mas agora estava bem decidida a fazêlo sempre que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter. Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário, pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom. Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradavame muito, e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos. Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu desejasse.
Nessa manhã, pela primeira vez, considerava o meu corpo um meio cómodo de conseguir os objectivos que o trabalho sério nunca me permitiria alcançar.
Estes pensamentos ou, melhor, estes sonhos fizeram passar a manhã num relâmpago e admireime de ouvir os sinos da igreja vizinha anunciarem o meiodia e vi um grande raio de sol que se infiltrava pela janela e pousava na minha cama. Tudo, como a minha preguiçosa manhã, os sinos e o raio de sol, me parecia um luxo inesperado e precioso. Nesse momento as belas senhoras ricas que habitavam nas casas iguais à dos patrões de Gino deviam mandriar assim e sonhar nas suas camas escutando os mesmos sinos e olhando com o mesmo espanto o mesmo raio de sol. Foi com a sensação de já não ser a Adriana necessitada e esfomeada do bairro, mas uma Adriana diferente, que por fim me levantei da cama para tirar a camisa de dormir diante do espelho do guardafato. Olheime toda nua e compreendi o orgulho da minha mãe quando dizia ao pintor: “Olhe este peito! Estas pernas! Estas ancas!” Pensei em Astárito, que o desejo destes seios, destas pernas e destas ancas fazia mudar de carácter, de maneiras e até de voz, e disse a mim própria que com certeza encontraria outros homens que para gozar o meu corpo me dariam muito dinheiro, até talvez mais do que ele.
Indolentemente, como me impunha a minha nova disposição, vestime, tomei um café e saí. Entrei um bar próximo de casa e telefonei para casa dos patrões de Gino. Ele tinhame dado o número com a recomendação, tipicamente servil, de não o usar senão quando fosse estritamente necessário, porque os patrões não gostavam de ter o telefone impedido pelo pessoal. Primeiro falei a uma mulher que devia ser criada de quarto. A seguir veio Gino. Ele perguntou se eu não estava doente, e não pude deixar de sorrir ao reconhecer nesta solicitude a perfeição, inteiramente falsa, que contribuíra para me induzir em erro.
Estou bem disselhe. Nunca me senti tão bem.
Quando nos veremos?
Quando quiseres, mas desejava que o nosso encontro fosse como dantes... quero dizer aí na moradia, se os teus patrões vão para fora.
Ele compreendeu logo as minhas intenções e respondeu vivamente:
Eles só devem partir daqui a dez dias, pelas festas do Natal; não antes.
Então disselhe num tom indiferente vernosemos daqui a dez dias.
Mas como? perguntoume, admirado. Porque não antes?
Antes tenho que fazer.
Mas que tens tu? perguntoume num tom desconfiado. Tens alguma coisa contra mim?
Não respondi. Não tenho nada contra ti; se tivesse alguma coisa contra ti, não te diria que nos veríamos na moradia.
Lembreime de repente de que ele podia ter ciúmes e aborrecerme ; por isso acrescentei:
Não tenhas medo... amote como sempre... somente, tenho que ajudar minha mãe a acabar uma encomenda extraordinária, por causa das festas... como não poderei sair de casa senão muito tarde, e tu tarde nunca estás livre, preferi esperar que os teus patrões se vão embora.
Mas de manhã?
De manhã dormirei! respondi. A propósito, sabes que já não sou modelo?
Porquê?
Cansavame... Estás contente, não estás? Então encontramonos daqui a dez dias... Eu telefonote.
Está bem!
Ele disse “Está bem!” com um ar pouco convencido, mas eu conheciao suficientemente para ter a certeza de que, apesar das suas suspeitas, ele não daria sinal de vida antes dos dez dias que eu combinara. Ou melhor, era precisamente por ter ciúmes que não daria sinal de vida. Não era corajoso, e a ideia de que eu pudesse ter descoberto a sua falsidade enchiao de susto e punhao nervoso. Depois de ter reposto o auscultador reparei que falara a Gino com uma voz tranquila, amável e afectuosa; e podia tornar a vêlo sem o receio de me mergulhar e de mergulhar os nossos encontros numa atmosfera de ódio falso e desagradável.
Nessa mesma tarde fui ter com Gisela ao seu quarto mobilado.
Como fazia habitualmente àquela hora, ela acabava justamente de se levantar e começava a vestirse, para ir ao seu encontro com Ricardo. Senteime na sua cama desfeita, e enquanto ela ia e vinha no quarto em penumbra, cheio de objectos e de roupas em desordem, conteilhe tranquilamente como tinha ido ter com Astárito e como ele me revelara que Gino era casado e tinha uma filha. Ao ouvir a notícia, Gisela soltou uma exclamação que ignoro se era de alegria ou de surpresa, veio sentarse na cama na minha frente e pousoume as suas mãos nos ombros, abrindo os olhos:
Não... não posso acreditar... uma mulher e uma filha... Mas é realmente verdade?
A filha chamase Maria.
Era claro que ela desejava aprofundar e comentar a notícia o mais possível e que a minha atitude serena a desconcertava.
Uma mulher e uma filha... e a filha chamase Maria... e tu dizes isso dessa maneira?
Como querias que dissesse?
Mas não te faz pena?
Sim, fazme pena.
Mas como te disse ele? “Gino Molinari tem mulher e uma filha”? Assim?
Sim.
Mas tu, o que lhe respondeste?
Nada... Que querias que lhe respondesse?
Mas o que sentiste? Não ficaste quase a chorar? Apesar de tudo, para ti foi um desastre!
Não. Não tive vontade de chorar.
Agora é impossível casares com Gino gritou com ar medidativo e contente. Mas que história!... Que história! Que falta de consciéncia! Uma pobre rapariga como tu, que só vivia para ele, pode dizerse... Os homens são todos uns safados!
Gino disse eu ainda não sabe que estou ao facto de tudo.
No teu lugar, minha filha declarou, toda excitada , davalhe o que merecia! Um bom par de bofetadas ninguém lhas tirava.
Marquei encontro com ele para daqui a dez dias continuei.
Creio que vamos continuar a ter relações um com o outro.
Recuou e olhoume com os olhos esbugalhados:
Mas porquê? Ainda gostas dele? Depois de tudo o que te fez?
Não respondi, e, emocionada como estava, instintivamente baixei a voz... Já não gosto dele... mas... hesitei e fiz um esforço para mentir os gritos e as bofetadas não são a melhor maneira de nos vingarmos!
Olhoume um instante semicerrando os olhos e afastandose como fazem os pintores quando olham os seus quadros. Depois disseme :
Tens razão... não tinha pensado nisso... Mas sabes o que faria no teu lugar? Deixava correr, tranquilamente, sem que ele desse por isso e um belo dia, zás! Deixavao.
Não respondi. Ao fim de um momento, repetiu, com a voz menos exaltada, mas animada e cantante:
Ainda me parece mentira! Uma mulher e uma filha! E contigo fazia tantas fitas! E fezte comprar móveis, um enxoval... Que história! Que história!
Eu continuava calada.
Mas eu já tinha percebido! gritou com ar vitorioso. Tens de reconhecer! Que te tinha eu dito? “Este homem não é sincero...” Pobre Adriana!
Deitoume o braço à roda do pescoço e beijoume. Deixeime beijar e acrescentei:
Sim, o pior é que me fez gastar o dinheiro de minha mãe!
E tua mãe, sabe?
Ainda não.
Pelo dinheiro não te aflijas ! acudiu. Astárito está de tal maneira apaixonado por ti!... Basta que queiras e ele te dará todo o dinheiro de que precisares.
Não quero tornar a ver Astárito respondi. Outro não me importo, mas não Astárito!
Devo esclarecer que Gisela não era parva. Percebeu imediatamente que de momento mais valia não falar de Astárito.
Compreendeu também o que eu queria dizer com a frase: “Não me importa outro qualquer.” Fingiu reflectir um momento, depois declarou:
No fundo tens razão, compreendote. Eu também, depois do que aconteceu, sentiria uma certa impressão se tivesse que andar com o Astárito... Ele quer as coisas pela força... foi para se vingar que te contou a história de Gino.
Calouse de novo, depois disseme com voz solene:
Deixame agir... queres que te apresente alguém disposto a ajudarte?
Quero.
Deixame agir.
Somente, a ninguém me quero prender; quero ficar livre.
Deixame agir repetiu pela terceira vez.
Por agora continuei quero devolver o dinheiro à minha mãe... e comprar diversas coisas que me fazem falta. Depois quero que minha mãe deixe de trabalhar disse como conclusão.
Entretanto, Gisela levantarase para se ir sentar em frente do toucador:
Tu, Adriana disseme pintandose a toda a pressa , tens sido sempre muito boa. Vês agora o que acontece quando se é boa demais?
Sabes que esta manhã não fui posar? disselhe. Decidi não voltar a ser modelo.
Fizeste bem respondeu. Eu também, de resto, já não posso mais, a não ser para X..., unicamente para lhe fazer um favor, mas quando ele terminar não posarei mais.
Experimentei nesse momento uma grande amizade por Gisela e sentime reconfortada. Os seus “deixame agir” tinham soado aos meus ouvidos com o acento de segurança das promessas maternais e amigas de acudir o mais de pressa possível às minhas necessidades. Apercebime com toda a clareza de que o que levava Gisela a ajudarme, mais do que uma verdadeira amizade, era, como na história de Astárito, o desejo, talvez inconsciente, de me ver nas mesmas condições que ela. Mas ninguém faz nada por nada, e como, por coincidência, a inveja de Gisela vinha ao encontro dos meus interesses, nenhum motivo tinha para recusar a sua ajuda, unicamente porque a sabia interessada.
Estava apressada porque já era tarde para o encontro com o seu “noivo”. Saímos do quarto e descemos às escuras a escada estreita e íngreme da sua velha casa. Na escada, possuída pela sua excitação e talvez também pelo desejo de diminuir a amargura da minha desilusão, mostrandome que não estava só na minha infelicidade, confioume:
E depois, sabes... começo a crer que Ricardo me quer fazer o mesmo que Gino te fez a ti.
Ele também é casado? perguntei ingenuamente.
Não, isso não; somente, fazme cenas... tenho a impressão de que se quer pôr a fugir... Mas eu já me expliquei: “Meu caro, não preciso de ti para coisa alguma; se queres ficar fica, mas se não queres podes irte embora!”
Nada disse, mas pensei que havia uma grande diferença entre nós, mesmo até nos encontros dela e Ricardo e nos meus com Gino. Ela, no fundo, nunca tivera uma desilusão sobre a seriedade de Ricardo nem tinha escrúpulo em enganálo de tempos a tempos; enquanto que eu esperava com toda a força da minha alma inexperiente vir a ser mulher de Gino e serlhe sempre fiel; não podia chamarse traição ao que se havia passado em Viterbo com Astárito, ameaçada com a sua chantagem.
Mas pensava que ela se ofenderia se eu lhe dissesse isto; não abri a boca. Na soleira da porta marcoume encontro para o dia seguinte numa pastelaria, recomendandome que fosse pontual, porque ela provavelmente não estaria sozinha. E foise embora.
Sentia que devia contar o que se passava a minha mãe, mas não tinha coragem. Minha mãe gostava realmente de mim. Ao contrário de Gisela, que não via na traição de Gino senão o triunfo das suas ideias e nem sequer tentava disfarçar a sua cruel satisfação, ela experimentaria mais dor que alegria ao verificar que no fim de contas tivera razão. No fundo não desejava senão a minha felicidade; pouco lhe importava o meio pela qual a alcançasse: somente estava convencida de que Gino não ma daria. Depois de muitas hesitações, acabei por decidir nada lhe dizer. Sabia que no dia seguinte, à tarde, os meus actos lhe abririam melhor os olhos que quaisquer palavras. Reconheci que era uma maneira brutal de lhe revelar a grande mudança que se operara na minha vida; mas o que me agradava era que desta maneira evitaria uma quantidade de explicações, de reflexões e de comentários: pelo menos todo o género de explicações, de reflexões e de comentários em que Gisela se mostrara pródiga quando lhe contara a traição de Gino. Na realidade eu experimentava uma espécie de repugnância em falar no casamento; desejava falar nele o menos possível e preparar as coisas de maneira que os outros não me tocassem no assunto.
No dia seguinte, para que minha mãe não me aborrecesse se suspeitasse de alguma coisa, fingi ter um encontro com Gino e passei toda a tarde fora. Para o meu casamento mandara fazer um fato de saia e casaco cinzento, que contava vestir depois da cerimónia. Era o meu vestido mais bonito: hesitei em pôlo, mas pensei que acabaria por estreálo um dia, que não seria nem mais puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas aparências e que era preciso apresentarme o melhor possível para obter mais proventos: afastei todos os escrúpulos. Vestio pois, mas não sem remorsos o meu lindo vestido, que, recordandoo agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos de então , penteeime com cuidado e pinteime, mas não mais do que o costume. A propósito deste último pormenor, observo que nunca percebi a razão por que as mulheres da minha profissão pintam a cara como se fossem máscaras de Carnaval. Porque a vida que levam as torna muito pálidas? Talvez porque julguem que se não se pintarem desta maneira violenta não chamam a atenção dos homens e não mostram que são fáceis de abordar? Eu, por mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena e sã, e posso dizer, sem falsa modéstia, que a minha beleza bastou sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo na rua. Não é pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a atenção dos homens, mas muitos mo têm dito pela serenidade e pela doçura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam não reparam que os homens dãose conta no primeiro momento de como elas são e experimentam uma espécie de antecipada desilusão. Eu, tão natural e simples, deixeilhes sempre uma dúvida sobre a minha verdadeira personalidade, dandolhes desta maneira a ilusão de uma aventura que eles procurassem mais do que a pura satisfação dos sentidos.
Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas vezes a mesma fita. Quando saí do cinema era já noite; fui directamente à pastelaria onde tinha marcado encontro com Gisela.
A casa não era uma daquelas leitarias modestas onde habitualmente nos encontrávamos com Ricardo, mas uma pastelaria elegante, onde eu punha os pés pela primeira vez. Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intenção de elevar o preço dos meus favores. Estes ardis e ainda outros de que falarei a seguir podem, com efeito, levar as mulheres da minha espécie, quando jovens e bonitas, e que os usem inteligentemente, ao bemestar estável que é o alvo de todas. Mas poucas se servem deles e eu nunca pertenci a esse número. A minha origem popular fezme sempre desconfiar dos locais luxuosos; nos cafés burgueses sentime sempre pouco à vontade; envergonhavame de sorrir aos homens ou de os olhar disfarçadamente; tinha a impressão de que a luz demasiada me expunha num pelourinho. Pelo contrário, senti sempre uma profunda e afectuosa atracção pelas ruas da minha cidade, com as suas nobres construções, as suas igrejas, os seus monumentos, as suas lojas e os seus portais, que as tornam mais belas e acolhedoras que qualquer sala de restaurante ou pastelaria. Sempre gostei de descer à rua à hora do passeio, ao pôr do Sol, caminhar lentamente olhando as montras iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o céu e os telhados. Sempre apreciei seguir por entre a multidão, ouvir, sem me voltar, as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa súbita exaltação dos sentidos, se atreviam a murmurarme às vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua até à saciedade, ficar sem forças mas continuar com espírito ainda ávido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se esgotam. O meu salão, o meu restaurante, o meu café, foram sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter tido influência nestas minhas predilecções; sabese que os pobres se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das belas casas, onde nunca morarão. Deve ser pelo mesmo motivo que amei sempre as igrejas, tão numerosas em Roma, abertas para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre mármores, ouros e decorações preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza é, por vezes, mais forte do que o do incenso.
Naturalmente os ricos não passeiam pelas ruas, não vão à igreja: quando muito atravessam a cidade de automóvel, recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos sítios que Gisela me marcaria em troca dos meus gostos mais predilectos. Este sacrifício nunca o quis fazer; todo o tempo que durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de discussões encarniçadas. Gisela não gostava da rua; as igrejas nada lhe diziam; a multidão só lhe inspirava repugnância e desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo, onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos seus clientes, os dancings modernos, com músicos de uniforme e dançarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os seus gestos, as suas atitudes, até a sua voz mudavam. Fingia ser uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais tarde até certo ponto, como se poderá ver. O aspecto curioso do seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas ambições não a encontrou nos locais de luxo, mas graças a mim e precisamente na rua, que ela odiava tanto.
Na pastelaria encontrei Gisela acompanhada por um homem de meiaidade, um caixeiroviajante, que me apresentou com o nome de Jacinto. Sentado, parecia ter uma altura normal, porque tinha os ombros largos, mas de pé parecia quase anão, e a largura de ombros ainda o tornava mais baixo. Tinha o cabelo espesso e branco como prata, que usava em escova sobre a testa, talvez para parecer mais grave, um rosto encarnado, cheio de saúde, com traços nobres e regulares de estátua, uma bela testa serena, grandes olhos pretos, nariz direito e a boca bem desenhada. Mas uma expressão antipática de vaidade, de suficiência e de falsa benevolência tornava esta cara, agradável e majestosa à primeira vista, bastante repulsiva.
Sentiame um pouco nervosa, e depois de acabadas as apresentações senteime sem dizer palavra. Jacinto, como se a minha chegada fosse sem importância, apesar de ser na realidade o motivo da reunião, continuou a conversa que sustentava com Gisela:
Não podes queixarte de mim, Gisela declaroulhe, pousandolhe a mão no joelho e conservandoa ali todo o tempo em que falou. Quanto tempo durou a nossa... a nossa aliança, por assim dizer? Seis meses? Bem! Não podes dizer com verdade que no decurso desses seis meses te deixei uma única vez descontente.
Tinha a voz clara, lenta, acentuada, articulada; mas percebiase que falava desta maneira, não para se fazer entender, mas para se ouvir ele próprio e julgar cada uma das palavras que pronunciava.
Não, não! disse Gisela baixando a cabeça com ar aborrecido.
A Gisela que te diga, Adriana! continuou Jacinto com a mesma voz clara e martelada. Não só nunca a lesei em dinheiro pelo... digamos pelos seus préstimos profissionais, mas todas as vezes que voltava de Milão trazialhe sempre um presente. Lembraste, por exemplo, daquele perfume francês que te trouxe uma vez? E doutra oferecite uma combinação de seda natural e rendas. As mulheres julgam que os homens não percebem de roupas interiores de senhora. Mas eu sou uma excepção. Hé! Hé!
Ria discretamente mostrando uma dentadura perfeita, mas de uma brancura estranha que lhe dava um ar de dentadura postiça.
Dáme um cigarro! pediu Gisela com secura.
É para já! respondeu com uma solicitude irónica. Ofereceume também um, tirou outro para si e, depois de o acender, continuou: Lembraste também daquela mala que te trouxe uma vez? Uma grande mala de cabedal leve.. uma verdadeira obraprima! Já não a usas?
Mas é uma mala para usar de manhã! disse Gisela.
Gosto muito de fazer presentes! proclamou, dirigindose a mim. Não por razões sentimentais, entendamonos acrescentou deitando o fumo pelo nariz , mas por três motivos bem claros: o primeiro, porque me agrada que me agradeçam; o segundo, porque não há como um presente para se ser bem servido; com efeito quem recebe um presente espera sempre outro: a terceira, porque as mulheres gostam de ilusões e um presente dá a impressão de sentimento, mesmo quando ele não existe.
És um bom maroto! disse com ar indiferente Gisela, sem mesmo o olhar.
Ele abanou a cabeça com o seu belo sorriso cheio de dentes.
Não disse não sou maroto. Sou um homem que viveu e que soube tirar boas lições das suas experiências. Com as mulheres sei que é preciso fazer certas coisas, com os clientes outras, com os subordinados outras ainda, e assim por diante. O meu espírito é como um ficheiro bem arrumado. Por exemplo, tenho uma mulher debaixo de olho... tiro a ficha, observoa, e vejo que certas medidas obtém o efeito desejado e outras não; torno a pôr a ficha no seu lugar e vou agir segundo as circunstáncias, e é tudo!
Calouse e sorriu de novo.
Gisela fumava com ar aborrecido; eu estava calada.
E as mulheres continuou ficamme reconhecidas porque compreendem logo que comigo não terão desilusões, que eu conheço as suas exigências, as suas fraquezas e os seus caprichos... como eu fico agradecido ao cliente que escolhe depressa... que não perde tempo a tagarelar... que sabe o que quer e o que eu quero... Em Milão, na minha secretária, tenho um cinzeiro com a seguinte inscrição: “O Senhor abençoa quem não me faz perder tempo.” Deitou fora o cigarro, estendeu o pulso e olhou o relógio dizendo :
Pareceme que vão sendo horas de irmos jantar.
Que horas são?
Oito horas... com licença... venho já.
Levantouse e afastouse para o fundo da sala. Era realmente muito pequeno, com os seus largos ombros e a sua escovinha branca em cima da cabeça. Gisela esmagou o cigarro no cinzeiro e declarou:
É aflitivo! Só fala dele!
Já dei por isso.
O melhor é deixálo falar e dizer sempre sim. Verás as confidências que ele vai fazerte... Sabe Deus por quem se toma! Mas é generoso. E dá presentes realmente.
Sim, mas a seguir atiraos em cara.
Ela não disse palavra. Abanou a cabeça como a dizer
“Que havemos de fazer?” Ficámos um momento silenciosas; depois Jacinto voltou. Pagou e saímos da pastelaria.
Gisela disse Jacinto logo que chegámos à rua , a noite está consagrada a Adriana. Mas se nos quiseres dar o prazer de jantar connosco.
Não, não, obrigada! disse muito depressa. Tenho um encontro!
Despediuse de nós e foise embora. Logo que ela se afastou eu disse a Jacinto:
A Gisela é muito simpática!
Ele fez um trejeito e respondeu:
Sim, muito... tem um lindo corpo.
Não a acha simpática?
Eu disseme caminhando ao meu lado e apertandome com força o braço, muito em cima, quase no sovaco - nunca peço a alguém que seja simpático, mas que faça o que lhe cumpre. A uma dactilógrafa, por exemplo, não peço que seja simpática, mas que escreva rapidamente e sem erros. A uma mulher como Gisela não peço simpatia, mas que saiba do seu ofício, quer dizer que me torne agradáveis as duas ou três horas que lhe consagro. Ora, a Gisela não percebe do seu ofício.
Porquê?
Porque só pensa no dinheiro... Tem sempre medo que não lhe paguem ou que não lhe dêem bastante. Não exijo com certeza que ela me ame, mas faz parte da sua profissão portarse como tal; se realmente não me ama tem de me dar essa ilusão, para isso que lhe pago. Gisela deixa sentir demasiadamente que o fez por interesse... Nem nos dá tempo a respirar de tal modo se chora... Que diabo!
Tínhamos chegado ao restaurante, um sítio barulhento, cheio de gente; os homens pareciamme do género de Jacinto: caixeirosviajantes, negociantes, industriais de passagem. Jacinto entrou primeiro, entregou o chapéu e o sobretudo ao homem do bengaleiro e perguntou:
A minha mesa está livre?
Sim, senhor Jacinto.
Era uma mesa colocada no vão de uma janela. Jacinto esfregou as mãos e perguntou:
Você é bom garfo?
Julgo que sim respondilhe, embaraçada.
Bem! Isso agradame. Gosto que se coma à mesa.. A Gisela, por exemplo, nunca quer comer... diz que tem medo de engordar. Asneiras! Cada coisa a seu tempo! Quando se está à mesa é para comer!
Tinha um verdadeiro rancor contra Gisela.
Mas é verdade disse eu timidamente. Quando se come demasiadamente engordase... e há mulheres que não gostam de engordar.
Você é dessas?
Eu não. Mas justamente as pessoas dizem que eu sou muito forte.
Não faças caso, é inveja. Digote eu, que percebo disso.
Acaricioume paternalmente a mão para me convencer. O criado aproximouse e Jacinto disselhe:
Para começar vais levar daqui estas flores... incomodamme... Depois trazes o habitual. Percebido? E isso depressa!
Depois, dirigindose a mim, explicou:
Já me conhece e sabe do que eu gosto... deixao fazer: vais ver que não terás razão de queixa!
Com efeito não tive razão para me lamentar. Os pratos que se sucederam na mesa eram, senão requintados, pelo menos suculentos e agradáveis. Jacinto mostravase com grande apetite. Comia com uma espécie de ênfase, a cabeça baixa, brandindo solidamente o garfo e a faca, sem me olhar nem me falar uma única vez. A sua avidez privavao até mesmo da sua bela calma, obrigandoo a fazer várias coisas ao mesmo tempo, como se temesse ficar em jejum. Metia um bocado de carne na boca ao mesmo tempo que partia o pão com a mão esquerda. Mordia este pão, deitava vinho no copo com a outra mão e bebiao sem ter acabado de mastigar. Tudo isto estalando os lábios, rolando os olhos, sacudindo a cabeça de vez em quando como um gato às voltas com um pedaço demasiado grande. Mas para contrabalançar, ao contrário do que era habitual, eu não tinha fome. Era a primeira vez que me preparava para me deitar com um homem que não amava, que até mesmo não conhecia; e olhavao com atenção, estudando os meus sentimentos e procurando imaginar como me sairia. Mais tarde deixei de dar atenção aos homens com quem ia, porque, levada pele necessidade, aprendi depressa a encontrar ao primeiro olhar o lado bom ou atraente do homem, suficiente para tornar a sua intimidade suportável. Mas nessa noite, este expediente da minha profissão, que consiste em descobrir num só olhar o que torna menos desagradável um amor venal, não o tinha ainda aprendido; procuravao instintivamente, sem dar por isso. Já disse que Jacinto não era feio; até mesmo quando se calava e não mostrava os seus pontos antipáticos, até poderia parecer belo. Já era muito, porque, apesar de tudo, todo o amor é em grande parte comunhão física. Mas isso não me bastava. Nunca pude, já não digo amar, mas simplesmente suportar um homem só pelas suas qualidades físicas. Ora, quando a refeição acabou e Jacinto, acalmada a sua extraordinária voracidade, arrotou uma ou duas vezes e recomeçou a falar, apercebime de que nada havia nele, ou pelo menos não era capaz de descobrir, absolutamente nada, por pouco que fosse, que mo tornasse simpático. Não só, como Gisela me avisara, só dele falava, mas faziao de uma maneira desagradável, vaidosa e aborrecida, contando a maior parte do tempo coisas que nada o honravam e confirmavam plenamente a minha primeira impressão de repugnância. Nada havia nele, absolutamente nada, que me agradasse; e todos os traços que apresentava como qualidades, de que se envaidecia e punha a nu, pareciamme horríveis defeitos. Só muito raramente encontrei, daí em diante, homens no mesmo género, que não têm valor algum e nada oferecem de bom a quem se aproximar para neles encontrar qualquer simpatia; sempre me admirou que eles existissem e muitas vezes perguntei a mim própria se não seria minha a culpa, incapaz de descobrir as qualidades que eles sem dúvida haviam de ter. Seja como for, com o tempo habitueime a estes desagradáveis companheiros e fingi rir e chalacear com eles, em suma, ser aquilo que queriam que eu fosse e julgavam que era. Mas nessa noite esta primeira descoberta inspiroume reflexões bem melancólicas. Enquanto Jacinto tagarelava esgaravatando os dentes com um palito, eu pensava que era um duro ofício aquele que eu escolhera, de fingir transportes amorosos com certos homens que na realidade era o caso de Jacinto me inspiravam sentimentos bem diferentes; que não havia dinheiro que pagasse esses favores; que era impossível pelo menos em casos semelhantes portarme como Gisela, que não pensava senão no dinheiro e não o ocultava. Acudiume ainda ao espírito a ideia de que iria levar este antipático Jacinto para o meu pobre quarto, destinado a um uso tão diferente; que não tinha sorte; que o azar me fizera sair logo um Jacinto, que podia ter encontrado algum rapaz agradável e delicado em busca de uma aventura, ou qualquer bom homem, sem pretensões, como havia tantos; que, em suma, a presença de Jacinto entre os meus móveis acelerava a minha renúncia aos velhos sonhos de fazer uma vida decente e normal.
Ele falava sempre, mas não era tão boçal que não se apercebesse de que apenas o escutava e que não estava alegre.
Então, menina, estamos tristes? perguntoume.
Não, não! respondi depressa, quase até tentada, por esta ilusória entoação afectuosa, a confiarlhe o que sentia e a falarlhe de mim, depois de o ter deixado falar tanto tempo dele.
Gosto mais assim recomeçou. Não gosto de gente triste. E depois não te convidei para que estivesses triste. Podes ter razão para isso, não discuto, mas logo que estejas comigo tens de deixar a tristeza em casa. Não me interessam os teus problemas, nem quem és, nem o que te aconteceu, nem o resto... Certas coisas não me interessam. Fizemos um contrato um com o outro, mesmo que não tenha sido escrito... Eu comprometome a pagarte uma certa soma e tu, em compensação, comprometeste a fazerme passar uma noite agradável... O resto não conta.
Proferiu estas palavras em tom sério. Talvez estivesse um pouco contrariado por eu não o ter escutado com suficiente atenção.
Mas eu não estou triste... respondi sem lhe desvendar o mundo de sentimentos que me agitava a alma. Somente aqui há tanto fumo! E um barulho! Sintome um pouco atordoada.
Então, saímos? perguntou com vivacidade. Disselhe que sim. Chamou em seguida o criado e pagou. Saímos. Quando chegámos à rua, perguntoume:
Vamos para o hotel?
Não, não disse eu apressadamente.
A perspectiva de ter de mostrar os meus documentos assustavame, e de resto já decidira outra coisa.
Vamos para minha casa! disse.
Subimos para um táxi e dei a minha direcção. Assim que o táxi arrancou, atirouse para cima de mim e apalpoume o corpo todo beijandome no pescoço. Senti pelo seu hálito que bebera muito e devia estar embriagado. Repetia constantemente a palavra “filhinha”, que se diz às crianças e que na sua boca me irritava como um termo ridículo e ligeiramente profano. Deixeio agir durante uns momentos, depois observei, apontando as costas do chauffeur: Era melhor esperar que chegássemos... não? - Não respondeu e caiu pesadamente sobre as almofadas, encarnado e congestionado como se sentisse fulminado por um súbito mal. Depois tratamudeou com ar furioso:
Pagolhe para que me conduza ao meu destino e não para que dê conta do que se passa dentro do seu táxi.
O dinheiro era a sua ideia fixa, e sobretudo o seu dinheiro, que podia fechar todas as bocas. Nada respondi e durante o resto do percurso ficámos calados um ao lado do outro, sem nos tocarmos. As luzes da cidade entravam pelas portinholas, iluminando por instantes os nossos rostos e as nossas mãos, e desapareciam; pareciame estranho encontrarme ao lado deste homem, do qual algumas horas antes nem conhecia a existência, e rolar num carro na sua companhia para minha casa, para me entregar a ele como a um amante querido. Senti uma espécie de atordoamento ao ver o táxi parar diante da minha porta na avenida tão conhecida.
Na escada escura pedi a Jacinto:
- Não faça barulho ao entrar, peçolhe, porque minha mãe mora comigo.
Está descansada, filhinha respondeume.
Chegados ao patamar, abri a porta com a minha chave. Jacinto seguiame; pegueilhe na mão; sem acender a luz, filo atravessar a antecâmara e conduzio até à porta do meu quarto, que era a primeira à esquerda, entrando. Precedida por ele, acendi o candeeiro da mesadecabeçeira e da soleira da porta deitei um olhar aos meus móveis como se fosse uma despedida. Muito contente por encontrar um quarto novo e limpo, quando julgava que o conduzisse a um quarto sujo e com móveis velhos, Jacinto soltou um suspiro de satisfação e tirou o seu sobretudo, que atirou para cima de uma cadeira. Disselhe que me esperasse e saí do quarto.
Dirigime directamente à sala grande e encontrei minha mãe sentada à mesa central preparada para coser. Quando me viu afastou logo o trabalho e levantouse sem dúvida com a ideia de me servir o jantar como nas outras noites. Mas eu disselhe:
Não... não te incomodes... Já jantei... Pelo contrário... Tenho alguém no meu quarto e não vás lá, seja a que pretexto for!
Alguém? perguntoume com cara de pasmo.
Sim, alguém! disselhe apressadamente. Mas não é Gino. É um “senhor de posição”!
E saí da sala sem esperar qualquer pergunta. Tornei a entrar no quarto e fechei a porta à chave. Impaciente e corado, Jacinto veio ao meu encontro ao meio do quarto e tomoume nos braços. Era muito mais pequeno do que eu e para pousar os lábios na minha cara, tive que inclinarme sobre a cama. Procurava evitar que ele me beijasse a boca, dobrandome para trás como por voluptuosidade. Consegui. Jacinto possuía da mesma maneira que comia; com avidez, sem discernimento nem delicadeza, começando e largando sem propósito, como se tivesse medo de deixar escapar alguma coisa, cego pelo meu corpo, como o estivera pela comida no restaurante.
Depois de me ter beijado, fez menção de me despir, como estávamos, de pé. Pós a mão num dos meus braços e depois, como se esta carne lhe queimasse as ideias, começou a cobrirme de beijos. Julguei que com os seus gestos bruscos me rasgasse o fato e acabei por lhe dizer sem o repelir:
Vamos, despete.
Largoume logo e, sentandose na cama, começou a despirse. Eu do outro lado fazia o mesmo.
Mas a tua mãe sabe? perguntoume.
Sim.
E que diz ela?
Nada.
Desaprova?
É claro que estas informações não tinham outro valor que o de dar um pouco de picante à aventura. É um traço comum a todos os homens; são bem poucos os que resistem à tentação de misturar ao prazer interesse de género diferente, indo por vezes até à compaixão.
Não aprova nem desaprova disse secamente levantandome e fazendo passar a saia pela cabeça. Sou livre de fazer o que me apetece!
Quando fiquei nua arrumei a minha roupa toda sobre uma cadeira e estendime de costas em cima da cama, um braço dobrado sobre a nuca e o outro sobre o ventre cobrindoo com a mão. Não sei porquê, recordeime que estava na mesma posição daquela deusa pagã parecida comigo que o gordo pintor mostrara a minha mãe numa gravura colorida, e bruscamente senti desgosto e raiva ao pensar na grande mudança que depois disso se operara na minha vida. Jacinto devia estar admirado com a beleza opulenta e sólida do meu corpo, que não se nota, assim como já disse, quando estou vestida, porque parou de se despir e olhoume com ar deslumbrado, a boca aberta e os olhos espantados.
Aviate disselhe. Tenho frio.
Acabou de se despir e atirouse para cima de mim. Já falei da sua maneira de amar, que não sei o que me parecia; quanto a ele, suponho já têlo descrito suficientemente. Devo acrescentar que era um destes homens para os quais o dinheiro que pagaram ou que irão pagar inspira uma exigência meticulosa, como se temessem ficar roubados se renunciassem a qualquer das coisas que julgam serlhes devidas. Era ávido, já o disse, mas não ao ponto de não ter sempre presente o seu dinheiro e de não querer tirar todo o benefício possível. O seu desejo depressa compreendera prolongar o mais possível os nossos encontros e tirar de mim todo o prazer a que se considerava com direito. Com este principio, esfalfavase sobre o meu corpo, como sobre um instrumento, exigindo uma longa preparação antes de tocálo, e incitavame a todo o tempo a fazer o mesmo com o dele. Mas, embora lhe obedecesse, comecei logo a aborrecerme e a observálo friamente, como se os seus cálculos tão transparentes o afastassem de mim e como se estivesse a ver de muito longe, através de uma lente de antipatia e de desagrado não somente a ele, mas também a mim. Era exactamente o contrário do sentimento de simpatia que me esforçara por experimentar por ele no princípio da noite. De repente senti não sei que vergonhosa impressão de remorso e fechei os olhos. Ele acabou por se cansar e ficámos estendidos lado a lado. Sublinhou num tom de satisfação:
Tens de reconhecer que, apesar de não ser já muito novo, sou um amante excepcional!
É verdade respondi com indiferença.
Todas as mulheres mo dizem continuou. Sabes o que penso? Que é nos pequenos barris que se encontra o melhor vinho: há homens grandes, com o dobro do meu tamanho, que nada valem!
Comecei a sentir frio. Senteime na cama e puxei a colcha sobre nós. Ele interpretou o meu gesto como uma atenção afectuosa.
Muito bem! disseme. Agora vou dormir um bocadinho.
Enrolouse de encontro a mim e adormeceu.
Continuei imóvel, deitada de costas, com a sua cabeça branca sobre o meu peito. A colcha não nos tapava senão até à cintura; olhandoo, vendo o seu dorso peludo, marcado por pregas moles indicando a idade madura, tive uma vez mais a impressão de me encontrar com alguém que me era perfeitamente estranho. Mas ele dormia, e como dormia, já não falava, não olhava, não gesticulava. Neste sono, dado o seu carácter pouco atraente, não ficava, por assim dizer, mais do que a sua melhor parte, que era a de ser um homem como tantos sem profissão, nem nome, nem qualidades, nem defeitos, nada mais que um corpo humano a quem um sopro fazia levantar o peito. Talvez pareça estranho, mas, olhandoo e observando o seu sono confiante, experimentava por ele como que um impulso de afeição e notei as precauções que tomava para evitar qualquer movimento que o pudesse acordar. Era o sentimento de simpatia que eu tinha baldadamente tentado experimentar até agora; a vista da sua cabeça encanecida molemente apoiada sobre o meu peito jovem suscitarao por fim na minha alma. Esta impressão consoloume e pareceume até sentir menos frio. Experimentei mesmo, por um instante, uma espécie de terna exaltação que humedeceu os meus olhos. Na realidade, eu tinha então como ainda tenho um excesso de ternura no coração. Uma ternura, que, por falta dos objectivos legítimos aos quais se devia consagrar, não temia desviarse sobre pessoas e coisas, quase sempre indignas dela, para não ficar inactiva e vazia. Ao fim de vinte minutos, acordou e perguntoume:
Dormi muito tempo?
Não.
Sintome bem! disse saindo da cama e esfregando as mãos. Ah! Como me sinto bem!... Rejuvenesci pelo menos vinte anos!
Depois começou a vestirse, continuando as suas exclamações de bemestar e de alegria. Vestime também em silêncio. Quando estava pronto, declaroume:
Queria tornar a verte, filhinha... Como heide fazer?
Telefona a Gisela respondi. Vejoa todos os dias.
Mas tu estás sempre livre?
Sempre.
Viva a liberdade! e acrescentou, metendo a mão no bolso: Quanto queres que te dê?
Paga o que te apetecer disselhe. E acrescentei com sinceridade: Se me deres bastante, farás uma boa acção porque não sou rica.
Mas ele respondeu taco a taco:
Se te dou muito não será para fazer uma boa acção... Nunca faço boas acções... será por seres uma bonita rapariga e por me teres feito passar uma noite agradável.
Como quiseres! disselhe encolhendo os ombros.
Tudo tem o seu valor, e tudo deve ser pago segundo o seu valor continuou tirando o dinheiro da carteira. As boas acções não existem. Tu desteme certas coisas, de uma qualidade superior às que me tinham dado antes... por exemplo, Gisela... As boas acções nestes casos não contam... Outro conselho! Nunca digas: dáme o que te apetecer! Deixa fazer isso aos vendedores ambulantes. A mim quando me dizem “faça você o preço” sintome sempre tentado a dar menos do que devo pagar.
Fez uma careta significativa e estendeume o dinheiro. Como Gisela me dissera, era generoso; a soma ultrapassava as minhas previsões. Senti de novo, pegandolhe, o sentimento de cumplicidade e sensualidade que me inspirara o dinheiro de Astárito no decurso do passeio a Viterbo. E pensei que isso denotava em mim urna vocação, que eu devia ter de facto jeito para esta espécie de ofício, mesmo se o meu coração aspirava a coisas diferentes.
Obrigada disselhe.
E, sem quase dar por isso, por gratidão, beijeio de boa vontade.
Obrigado eu! respondeu dispondose a retirar. Deilhe a mão e conduzio, no escuro, através do vestíbulo, na direcção da porta. Durante um momento, logo que fechei a porta do meu quarto e antes de abrir a da casa, caminhámos numa obscuridade completa. E então, não sei que intuição quase física me revelou que minha mãe se encontrava em qualquer canto do vestíbulo enquanto eu vagueava com Jacinto. Ela tinhase escondido sem dúvida atrás da porta, ou num canto, entre o armário e a parede e esperava que Jacinto saísse. Lembreime daquela vez que ela fizera a mesma coisa, na noite em que chegara atrasada depois de ter estado com Gino em casa dos patrões dele e assaltoume um grande nervosismo à ideia de que, como daquela vez, depois de Jacinto sair ela me saltasse em cima, me agarrasse os cabelos, me atirasse para cima do canapé da sala grande e me enchesse de bofetadas. Sentiaa no escuro; pareciame quase vêla; sentia uma impressão nas costas como se tivesse as suas garras atrás da minha cabeça prontas a arrepelarme os cabelos. Segurava Jacinto pela mão e na outra mão guardava o dinheiro. Lembreime de o meter entre os dedos da minha mãe logo que ela me quisesse saltar em cima. Seria uma maneira silenciosa de lhe lembrar que nunca cessara de me instigar a ganhar dinheiro e também uma tentativa de a captar pela avidez a sua paixão dominante e assim fecharlhe a boca. Entretanto tinha aberto a porta.
Então até qualquer dia... Telefonarei a Gisela disseme Jacinto.
Vio descer a escada, com os seus largos ombros e os seus cabelos brancos cortados à escovinha, agitando a mão sem olhar para trás, em sinal de cumprimento e fechei a porta. Imediatamente, como previra, minha mãe surgiu do escuro junto de mim. Mas não me agarrou pelos cabelos, como julguei: pelo contrário de uma maneira desajeitada, que de princípio não compreendi, fez uma tentativa para me beijar. Fiel ao meu plano, procurei a sua mão e introduzilhe o dinheiro. Mas ela recusouo; o dinheiro caiu no chão; ai, o encontrei no dia seguinte de manhã quando saí do meu quarto. Tudo isto com um pouco de angústia de parte a parte, mas sem que qualquer de nós abrisse a boca.
Entrámos na sala grande e senteime ao cantinho da mesa. Minha mãe sentouse na minha frente e olhoume. Parecia ansiosa e eu estava embaraçada. Disseme de repente:
Sabes que enquanto estiveste no quarto houve um certo momento em que tive medo?
Medo de quê? pergunteilhe.
Não sei respondeume. Primeiro sentime só... tive frio... E depois já não me sentia eu, tudo girava à minha volta como quando se bebe, sabes! Tudo me parecia estranho! Pensava: isto é uma mesa, isto é uma máquina de costura... Mas não me chegava a convencer de que era realmente uma mesa, a cadeira, a máquina de costura.. Também tive a sensação de que já não era eu... dizia: sou uma velha costureira... Tenho uma filha que se chama Adriana... mas não me convencia... Para me assegurar de que assim era pusme a pensar no que tinha sido quando era pequenina, depois quando tinha a tua idade, quando me casei, quando tu nasceste... Então tive medo, porque tudo passou como se tivesse sido ontem; de nova, que era, cheguei bruscamente a velha sem dar por isso... E quando eu morrer concluiu com esforço olhandome será como se nunca tivesse existido.
Porque pensas nessas coisas? pronunciei lentamente. Ainda és nova... Que necessidade tens de pensar na morte?
Pareceu não me ter ouvido e continuou com a mesma énfase, que me fazia pena e me parecia falsa:
Digote que tive medo! Pusme a pensar: se uma pessoa não tem mais vontade de viver, deve continuar a estar neste mundo à força? Não digo que se mate; para se matar é preciso coragem; não, mas apenas deixar de querer viver como se deixa de querer comer, ou de querer andar... Pois bem! Jurote por alma do teu pai... Já não queria viver mais!
Tinha os olhos cheios de lágrimas e os lábios trémulos. Eu estava quase a chorar também, sem saber porque, e levanteime, beijeia e fui sentarme com ela no canapé, ao fundo do quarto. Ficámos uns momentos a chorar nos braços uma da outra. Sentiame desnorteada, estava muito cansada, e as palavras incoerentes da minha mãe, com á sua ilógica, aumentavam o meu desnorteamento. Mas fui a primeira a recomporme, porque no fim de contas eu não chorava senão por simpatia. Há muito tempo que deixara de chorar por mim!
Então! Então! comecei a dizerlhe, dandolhe palmadas nas costas.
Digote, Adriana, já não tenho vontade de viver! - repetiame chorando.
Afagueilhe o ombro sem dizer nada, deixandoa chorar à vontade. Mas pensava, por minha vez, que as suas palavras eram a clara expressão do seu remorso. É certo que sempre me tinha mostrado o exemplo de Gisela e recomendara que me vendesse o mais caro possível. Mas entre dizer e fazer há uma boa diferença. Ter trazido um homem a casa, sentir que lhe punha o dinheiro na mão, era certamente para ela um duro golpe. Agora, que tinha diante dos olhos o resultado da sua educação, não podia deixar de sentirse horrorizada. Mas ao mesmo tempo havia nela uma espécie de incapacidade para reconhecer que se tinha enganado; talvez também uma amarga satisfação ao verificar que se enganara. Tanto assim que, em vez de me dizer francamente “Procedeste mal... não recomeces”, preferiu falar de coisas que nada tinham a ver comigo, da sua vida, do seu desejo de deixar de existir. Tive muita vez ocasião de observar pessoas que no mesmo momento em que se abandonam a uma acção que sabem ser repreensável, procuram defenderse e resgatarse discorrendo acerca de coisas mais elevadas, susceptíveis de as rodear, a seus próprios olhos e aos dos outros, de uma aura de desinteresse e de nobreza bem longe da acção que praticam ou ainda, para voltar ao caso da minha mãe , daquilo que deixam os outros praticar. Somente, a maior parte actua com inteira consciência; minha mãe, pelo contrário, coitada, fálo sem dar por isso, como o seu coração e as circunstâncias a inspiram.
Portanto, a sua frase sobre a vontade de não viver pareciame justa. Pensava que também eu, logo que descobri a traição de Gino, desejei deixar de viver. Mas o meu corpo continuava a viver por sua conta, indiferente à minha vontade. Este peito, estas pernas, estas ancas, que tanto agradavam aos homens, continuavam vivas; a minha natureza continuava a desejar o amor, mesmo sem que eu o quisesse. Estendida na minha cama, tinha decidido deixar de viver, não acordar no dia seguinte de manhã; enquanto dormia. o meu corpo continuava vivo, o sangue corriame nas veias. o estômago e os intestinos digeriam, os pêlos despontavamme nas axilas, onde os tinha rapado, as unhas cresciam, a pele molhavase de suor e as forças restauravamse. E de manhã cedo, sem que o quisesse, as pálpebras abriamse e os meus olhos viam, por mal deles, esta realidade que detestavam. Em suma, percebia que, a despeito do meu desejo de morrer, estava ainda viva e devia continuar a viver. E portanto concluía eu , é preciso sujeitarmonos a viver e não pensar mais nisso. Nada disto disse a minha mãe, porque sabia que estas ideias não eram menos tristes que as suas e não a consolariam. Mas quando me pareceu que deixara de chorar aproximeime dela e disselhe:
Tenho fome!
Era verdade; no restaurante, com o nervosismo, quase não tinha comido.
O teu jantar está pronto respondeume, contente por eu lhe oferecer um meio de se tornar útil e de fazer uma coisa que fazia todas as noites. Vou prepararto.
Saiu e fiquei só.
Senteime em frente da mesa, no meu lugar habitual, e esperei que ela voltasse. Sentia a cabeça oca; de tudo o que se passara ficarame apenas o cheiro acre e doce do amor entre os dedos e o traço seco e salgado das lágrimas no rosto. Olhei, imóvel, as sombras que o candeeiro suspenso projectava nas grandes paredes nuas da sala. Minha mãe voltou. Trazia um prato com carne e legumes.
A sopa não ta aqueci disseme , porque não ficava boa. E depois, já não há muita.
Não faz mal. Isto chega!
Deitoume vinho tinto no copo e ficou de pé na minha frente, como sempre que eu comia... imóvel, atenta às minhas ordens.
O bife está bom? perguntoume ansiosamente.
Está bom, está.
Pedi tanto ao homem do talho para me dar um bocado tenro!
Parecia ter acalmado; tudo parecia igual às outras noites. Acabei lentamente de comer, bocejei, abri os braços e espreguiceime. De repente sentime bem; este gesto bastava para dar ao meu corpo uma sensação de juventude, força e contentamento.
Tenho sono! declarei.
Espera... vou fazerte a cama! disse minha mãe, atenciosa, fazendo menção de sair.
Não, não; eu faço!
Levanteime; minha mãe levou o prato vazio.
Amanhã de manhã deixame dormir! recomendeilhe. - Não me acordes.
Respondeume que me deixaria dormir, e, depois de lhe dar as boasnoites é de a beijar, retireime para o meu quarto. A cama estava na desordem em que eu e Jacinto a tínhamos deixado. Limiteime a ajeitar a almofada e a colcha, despime e enfieime nos lençóis. Fiquei durante uns instantes com os olhos abertos no escuro, sem pensar em nada.
Sou uma prostituta! disse por fim em voz alta, para ver o efeito que isso me produzia.
Tive a impressão de que não me fazia qualquer efeito: fechei os olhos e adormeci logo a seguir.
No decurso dessa semana tornei a ver Jacinto todas as noites. Ele tinha telefonado a Gisela no dia seguinte de manhã e Gisela tinhame dado o recado. Jacinto devia voltar a Milão na véspera da noite do dia que eu tinha marcado para me encontrar com Gino; fora esta a razão pela qual consentira em encontrarme com ele todas as noites. Doutra maneira, teria recusado, porque jurara a mim mesma que não teria encontros seguidos com qualquer homem. Pensava que era preferível, já que tinha que ter esta vida, fazélo francamente, mudando de amante de cada vez, em lugar de me enganar a mim própria e de me dar a ilusão de não o fazer deixandome sustentar por um homem só, com o risco de me afeiçoar a ele ou de o deixar afeiçoarse a mim, e perder assim não só a liberdade física mas também a dos sentimentos. De resto, guardara intactas as minhas ideias sobre a vida conjugal e regular; pensava então que se tivesse de me casar não seria com um amante que me sustentasse e que por fim decidisse tornar legais, mas não morais, relações de interesse; isso aconteceria com um rapaz que eu amasse e por quem fosse amada, que fosse da minha condição, com os mesmos gostos e as mesmas ideias que eu. Queria, em resumo, que a vida que escolhera ficasse bem distinta das minhas velhas aspirações, sem contágios nem compromissos. Porque me sentia, num certo sentido, levada a ser uma boa esposa e uma boa cortesã, mas incapaz de escolher, como entendia que devia fazer Gisela, o meio termo hipócrita e prudente entre as duas soluções. Sem contar que, feitas as contas, se podia obter mais do escrúpulo de muitos que da generosidade de um só.
Durante todas aquelas noites, Jacinto levoume a jantar ao seu restaurante habitual e acompanhoume a minha casa onde se demorava. Minha mãe renunciou a falar destas noites; limitavase a perguntarme se dormira bem quando de manhã entrava no meu quarto, a uma hora avançada, para me levar o café num tabuleiro. Este café, já o disse, costumava engolilo na cozinha, muito cedo, de pé, junto da chaminé, ainda com o frio da água nas mãos e na cara. Mas agora minha mãe traziamo ao quarto e eu bebiao na cama, enquanto ela abria as persianas e tratava de dar alguma arrumação ao quarto. Não lhe dizia nunca mais do que já lhe dissera, mas ela percebera por si própria que tudo tinha mudado na nossa vida e mostrava pelo seu comportamento que compreendia que espécie de mudança se operara. Agia como se entre nós houvesse um acordo tácito e parecia, pelas suas atenções, pedirme humildemente que lhe permitisse, na nossa vida nova, servirme e tornarse útil como outrora. Devo dizer que este hábito de me trazer o café à cama devia tranquilizála num certo sentido, por que muita gente e minha mãe era dessas atribui aos hábitos um valor positivo, mesmo que não tenham, como este, essa característica. Manifestou o mesmo zelo introduzindo todos os dias pequenas mudanças da mesma ordem na nossa vida quotidiana: tanto assim que me preparou uma grande panela de água quente para me lavar ao levantar, pôs flores numa jarra no quarto e assim por diante.
Jacinto davame sempre a mesmo soma de dinheiro e eu, sem dizer nada a minha mãe, iaa depositando no fundo de uma gaveta, numa caixa onde até agora ela guardara as suas economias. Ficava com pouco dinheiro para mim. Imaginava que ela já se tinha apercebido destas adições diárias ao nosso património, mas nunca trocámos uma única palavra a tal respeito. Durante a minha vida pude observar que mesmo aqueles cujo dinheiro tem uma origem lícita não gostam de falar nisso, não só com estranhos, mas até mesmo com os íntimos. Sem dúvida ligase ao dinheiro um sentimento de vergonha ou talvez de pudor que o risca das conversas normais e se relega para o plano das coisas secretas inconfessáveis, nas quais não se deve falar. Como se, qualquer que seja a sua origem, ele fosse sempre mal adquirido. Talvez também ninguém goste de mostrar o sentimento que o dinheiro suscita na sua alma: um sentimento muito forte, quase sempre inseparável de uma sombra de culpa.
Numa dessas noites, Jacinto exprimiu o desejo de dormir comigo no meu quarto, mas eu, com o pretexto de que os vizinhos notariam a sua presença de manhã, quando ele saísse, não consenti. Na realidade, depois da primeira noite, a nossa intimidade não avançara; mas não por minha culpa. Até ao dia da nossa separação continuou a portarse exactamente como na primeira noite. Era na verdade um homem de valor nulo ou quase nulo na intimidade, e tudo o que eu podia sentir por ele já o sentira na primeira noite, enquanto dormia. A ideia de dormir com um homem assim repugnavame; depois receava que me aborrecesse, porque tinha a certeza de que me obrigaria a estar acordada uma parte da noite para me fazer confidências e falarme dele. No entanto, ele não se apercebeu nem do meu aborrecimento nem da minha antipatia e partiu convencido de ter sido, durante aqueles dias, extraordinariamente simpático.
Chegou o momento do meu encontro com Gino. Aconteceram tantas coisas no decurso destes dez dias que eu tinha a impressão de que se tinham passado cem anos depois do tempo em que o via antes de ir para o atelier a fim de ganhar dinheiro e montar a minha casa e me considerava como uma noiva prestes a casarse. Ele foi pontual e chegou à hora que lhe tinha marcado; quando subi para o carro, tive a impressão de que ele estava extremamente pálido e parecia atrapalhado. Ninguém gosta de sentir que se lhe atira à cara uma traição, mesmo o traidor mais corajoso; ao longo destes dez dias de interrupção das relações habituais ele deve ter reflectido muito e feito muitas suposições. Todavia, eu não mostrava qualquer ressentimento, e verdadeiramente não necessitava de fingir, porque o meu espírito estava tranquilo; passada a primeira dor da desilusão, a minha alma inclinavase para uma espécie de indulgente e céptica afeição. Em resumo, ainda gostava de Gino e foi o que percebi logo que lhe deitei o primeiro olhar. Já era muito.
Enquanto o carro se dirigia para a moradia, perguntoume, passados uns instantes:
Então, o teu confessor mudou de ideias?
Tinha um tom brincalhão, mas ao mesmo tempo pouco seguro. Respondilhe simplesmente:
Não... eu é que mudei de ideias...
E esse trabalho para a tua mãe acabou?
Por agora.
É estranho.
Não sabia o que dizia; mas era claro que procurava picarme para ver se as suas suposições eram verdadeiras.
É estranho porquê?
Falei por falar.
Não acreditas que o tenha feito?
Não acredito nem deixo de acreditar.
Decidi atrapalhálo, mas à minha maneira, fazendo o jogo do gato e do rato, sem as violências aconselhadas por Gisela e que não eram para o meu feitio. Pergunteilhe com coquetterie:
Estarás com ciúmes?
Eu, com ciúmes? Pelo amor de Deus!
Estás com ciúmes, estás! Se fores sincero, tens de o confessar!
Mordeu o anzol que lhe preparara e declarou:
No meu lugar qualquer pessoa estaria com ciúmes!
Porquê?
Ora! Como queres que te acredite! Um trabalho tão importante que não te permite dispensar cinco minutos para me falar... Vamos!
E no entanto é a verdade: trabalhei muitíssimo - disselhe tranquilamente.
Era verdade. Que outra coisa era senão trabalho o que eu tinha com Jacinto todas as noites?
E ganhei com que pagar as nossas prestações e o meu enxoval acrescentei, troçando de mim própria. Assim, pelo menos, podemonos casar sem dívidas!
Ele nada disse. Estava quase convencido a acreditar na verdade das minhas afirmações e a abandonar as suas primeiras desconfianças. Tive então um gesto que me era habitual dantes: passeilhe um braço em torno do pescoço enquanto conduzia e beijeio por baixo da orelha, murmurandolhe:
Porque tens ciúmes? Sabes bem que só tu existes na minha vida!
Chegámos à moradia. Gino entrou com o carro no jardim e, fechando o portão, dirigiuse comigo para a porta de serviço. Era ao entardecer; brilhavam já as primeiras luzes nas janelas das casas vizinhas; pareciam vermelhas na bruma azulada desta tarde de Inverno. O corredor da cave estava muito escuro e sentiase um cheiro a bafio. Parei e disselhe:
Esta tarde não quero ir para o teu quarto!
Porquê?
Quero que vamos para o quarto da tua patroa.
Tu estás doida! gritou, escandalizado.
Tínhamos ido muita vez aos quartos lá de cima, mas as nossas relações tínhamolas tido sempre na cave.
É um capricho... Que mal há nisso? disselhe.
Há muito... pode partirse alguma coisa... que sei eu? Se eles descobrem, que vou eu fazer?
Olha a grande coisa! gritei com ar trocista. Despedemte e pronto!
Vês como dizes isso?
Como querias que dissesse? Se me quisesses de verdade, não pensarias um minuto.
Amote, mas não me peças isso; nem é bom pensar nisso; não quero sarilhos!
Mas nós tínhamos cuidado... eles não dariam por isso!
Não! Não!
Eu estava perfeitamente calma. Continuei a fingir uma atitude que não sentia e gritei:
Então eu, que sou a tua noiva, peçote para me fazeres um gosto, e tu, com medo que eu ponha o meu corpo onde a tua patroa põe o seu e que apóie a minha cabeça onde ela apóia a sua, recusasmo? Mas que imaginas tu? Que ela vale mais do que eu?
Não, mas...
Valho dez mulheres como ela continuei. Pior para ti! Não tens mais que ir para a cama com os lençóis e a almofada da tua patroa... Eu voume embora!
Já o fiz notar: o respeito e a timidez que lhe inspiravam os patrões eram grandes; orgulhavase ingenuamente deles, como se de qualquer maneira a sua riqueza fosse a dele; no entanto, quando me ouviu falar desta maneira e me viu disposta a irme embora com uma decisão nova a que ele não estava habituado, perdeu a cabeça e correu atrás de mim, gritando:
Mas espera... aonde vais? Falei por falar... vamos para cima se isso te dá prazer!
Fizme ainda um pouco rogada, tomando ares ofendidos, depois aceitei. Foi assim que, enlaçados e parando de tempos a tempos sobre os degraus para nos beijarmos, exactamente como da primeira vez, mas com um estado de espírito bem diferente, pelo menos no que me dizia respeito, subimos ao andar superior. Uma vez no quarto da sua patroa, ele objectou:
Queres mesmo meterte na cama?
E porque não? respondi tranquilamente. Não estou disposta a apanhar frio!
Calouse, desnorteado. Eu, depois de ter preparado a cama, passei para a casa de banho, acendi o esquentador e abri a torneira da água quente muito pouco, de maneira que a tina não se enchesse muito depressa. Gino seguiume inquieto e descontente. Protestou de novo:
Vais tomar banho também?
Eles também não tomam banho antes de irem para a cama fazer o que nós vamos fazer?
Eu é que sei o que eles fazem? respondeume encolhendo os ombros.
Eu via que lá no fundo estas audácias não o desgostavam; somente, custavalhe a aceitálas. Era um homem pouco corajoso que não gostava de desobedecer. Mas as infracções às regras atraíamno, até porque raramente se permitia praticálas.
Afinal tens razão disse, passados uns momentos, com um sorriso ao mesmo tempo mortificado e desejoso, apalpando os colchões. Estáse melhor aqui que no meu quarto!
Sentámonos na beira da cama.
Gino disse, deitandolhe os braços à roda do pescoço. Como vai ser bom, quando tivermos uma casa para nós os dois... Não será como esta, mas será a nossa.
Não sei bem porque falava assim. Provavelmente porque sabia de antemão que todas estas coisas eram impossíveis e gostava de me ferir onde mais me doesse.
Sim, sim disse abraçandome.
Eu sei o que quero da vida continuei com o sentimento cruel de falar numa coisa para sempre perdida. Não preciso de uma bela casa como esta. Bastamme dois quartos e uma cozinha, mas com tudo o que é necessário e asseada como um espelho. Viver tranquila lá dentro, sairmos juntos ao domingo, comer juntos, dormir juntos... Pensa bem como vai ser bom, Gino!
Ele nada disse. Para dizer a verdade, falando assim, eu já não sentia a menor emoção. Tinha a impressão de representar um papel; estava no palco. Mas já não me parecia agora tão amargo. Esta personagem, tão fria e exterior, que não suscitava da minha parte a menor participação, tinha sido eu própria dez dias antes. Entretanto, enquanto eu falava, Gino despiame impaciente e apercebime uma vez mais, como no momento em que subi para o carro, de que continuava a gostar dele, o que me fez pensar com tristeza e despeito que era talvez mais o meu corpo, sempre pronto a aceitar o prazer, do que o meu espírito, agora distante, que me tornava tão indulgente e disposta a perdoar. Ele acariciavame e beijavame e as suas carícias e os seus beijos faziamme arder o cérebro: o prazer dos sentidos era mais forte do que a revolta do coração.
Matasme murmurei cheia de desejo, caindo sobre a cama.
Mais tarde enfiei as pernas debaixo dos lençóis; ele fez o mesmo e ficámos deitados com a colcha bordada deste leito luxuoso puxada até ao queixo. Uma espécie de dossel, suspenso sobre as nossas cabeças, deixava cair em torno do travesseiro várias camadas de tule branco e vaporoso. Todo o quarto era branco, com cortinados leves nas janelas, lindos móveis baixos encostados às paredes e objectos brilhantes de vidro, de mármore e de metal. Os lençóis finos e sedosos pareciam acariciarme o corpo, o colchão cedia docemente a cada movimento, acordando nos membros um profundo desejo de dormir e de repousar. Da casa de banho, pela porta aberta, o ruído da água caindo na tina chegavame aos ouvidos como um gorjeio tranquilo. Sentia o maior bemestar e nenhum rancor contra Gino. O momento pareceume propício para lhe dizer que sabia tudo, porque estava certa de lho dizer gentilmente, sem sombra de ressentimento.
Então, Gino disselhe com voz acariciadora, depois de um longo silêncio , a tua mulher chamase Antonieta Partini?
Com certeza que dormitava, porque teve um violento sobressalto, como se o sacudissem bruscamente pelos ombros.
Mas, que estás a dizer? perguntou.
E a tua filha chamase Maria, não é?
Quis protestar de novo, mas olhoume nos olhos e compreendeu que seria inútil. Tínhamos a cabeça na mesma almofada, os rostos lado a lado e eu falavalhe quase sobre a sua boca.
Pobre Gino! continuei. Porque me disseste tantas mentiras?
Porque te amava! respondeume com violência.
Se me amasses realmente, devias ter pensado que logo que descobrisse a verdade iria sofrer muito... Mas não pensaste nisso, não foi, Gino?
Amavate, perdi a cabeça...
Isso basta interrompi , de momento magooume muito... Não pensava que fosses capaz... Mas agora acabouse... não falemos mais nisso... Para já, vou tomar banho.
Desembaraceime das roupas, levanteime e fui para a casa de banho. Gino deixouse ficar onde estava.
A tina estava cheia de água quente e azulada, que contrastava de forma agradável com as cerâmicas brancas e as torneiras cintilantes. Entrei na tina e pouco a pouco mergulhei no líquido escaldante.
Uma vez estendida no fundo da tina, fechei os olhos. Não vinha qualquer ruído do quarto ao lado. Gino ruminava com certeza a minha declaração e procurava elaborar um plano para não me perder. Sorri ao pensar nele, perdido na grande cama de casal com a notícia dada em pleno rosto, como uma bofetada. Mas sorria sem maldade, como se ri de uma coisa cómica e que em nada nos afecta, porque não sentia o menor rancor contra ele. Conhecendoo agora como ele era na realidade, tinha quase a impressão de nutrir por ele uma espécie de afeição. Em seguida, ouvio andar no quarto; devia estar a vestirse. Passado um momento, apareceu à porta da casa de banho e olhoume com olhos de cão batido, como se não ousasse entrar.
Então não nos tornamos a ver?... disseme em voz baixa depois de um longo silêncio.
Compreendi que realmente gostava de mim, embora à sua maneira, sem que lhe repugnasse mentirme e atrairme a uma armadilha.
Lembreime de Astárito e pensei que Astárito também me amava mas também à sua maneira. Respondilhe, enquanto ensaboava um braço.
Porque não nos havemos de ver mais? Se não te quisesse tornar a ver, não teria vindo hoje. Continuaremos a vernos... mas menos vezes.
Estas palavras pareceram darlhe coragem.
Queres que te ensaboe? perguntoume entrando na casa de banho.
Não pude deixar de pensar em minha mãe, também ela cheia de atenções e cuidados comigo.
E respondi secamente:
Se quiseres... As costas, que eu não chego lá.
Gino agarrou o sabonete e a esponja; pusme de pé e ele ensabooume as costas todas. Olhavame no espelho que estava em frente da tina, a toda a altura, e pareciame ser a dona de todas aquelas belas coisas. Ela também se poria de pé como eu estava agora e uma criada de quarto, uma pobre rapariga como eu, a ensaboaria e a lavaria respeitosamente e com mil cuidados para não a arranhar. Pensava em como devia ser agradável, em lugar de se usar as próprias mãos, serse servida por outra pessoa, ficar tranquila e inerte enquanto outra, cheia de respeito e solicitude, se incomodaria para nos servir.
A ideia que me assaltou quando entrara pela primeira vez nesta casa de que toda nua, desembaraçada dos meus trapos, eu valia tanto como a patroa de Gino, voltou a assaltarme. No entanto, o meu destino era diferente do dela; era uma injustiça. Irritada, disse a Gino :
Já chega!
Ele foi buscar um roupão de banho e enquanto eu saía da tina pousoumo nos ombros para que me pudesse enrolar nele. Tentou beijarme, talvez para ver se eu lho permitiria. Eu, de pé, envolta no tecido branco, deixeio beijarme o pescoço. Em seguida começou a friccionarme em silêncio, o corpo todo, começando pelos tornozelos e subindo até ao seio com um zelo e uma habilidade como se não tivesse feito outra coisa durante toda a vida; fechei os olhos imaginando de novo que eu era a patroa e ele a criada de quarto. Gino tomou a minha atitude passiva por uma entrega e bruscamente senti que deixara de me friccionar e me acariciava. Então repelio, deixei cair a toalha, e com o corpo já bem seco tornei a entrar no quarto, nas pontas dos pés. Gino ficou na casa de banho a despejar a tina. Vestime à pressa e olhei em torno examinando o mobiliário. Parei em frente do toucador, semeado de objectos de madrepérola e ouro. Reparei, num canto, no meio de escovas e de frascos de perfume, numa pequena caixa de pó de arroz toda de ouro. Peguei nela e olheia. Era muito pesada e parecia maciça. Era quadrada, inteiramente cinzelada e um grande rubi servia de fecho. Tive uma impressão, não tanto de tentação como de descoberta; de futuro podia fazer tudo, até mesmo roubar. Abri a mala e meti nela a caixa, que caiu com todo o seu peso entre as moedas miúdas e as chaves de casa. Experimentei ao tirála uma alegria sensual muito parecida com a que me inspirava o dinheiro recebido dos amantes. Para dizer a verdade, não sabia o que iria fazer com uma coisa tão preciosa, que não dizia nem com as minhas toilettes nem com a vida que levava. Tinha a certeza de que nunca me serviria dela. Mas roubando obedeci à lógica que determinava daí em diante as vicissitudes da minha vida. Pensava que uma vez a casa construída era preciso pôrlhe um tecto.
Gino entrou no quarto. Com um cuidado servil, arranjou a cama e todos os objectos que lhe pareceram ter sido desarrumados.
Ora! Ora! disselhe com desdém, quando o vi, depois deste trabalho, olhar em volta com ansiedade, para se certificar se tudo estava no seu lugar habitual. Ora! A tua patroa não dá por coisa alguma. Ainda não é desta vez que vais para a rua!
Notei que ao ouvir as minhas palavras o seu rosto se crispou dolorosamente e senti remorsos por télas dito, porque eram maldosas e nem sequer eram sinceras.
Não abrimos a boca, nem enquanto descíamos a escada interior nem depois no jardim, quando subimos para o carro. Tinha anoitecido havia muito. Assim que o carro começou a percorrer as ruas do bairro elegante, como se eu esperasse apenas por esse momento, comecei a chorar docemente. Não sabia porque chorava, mas a minha amargura era enorme.
Não sou feita para representar papéis de mulher desiludida ou desesperada, e durante toda a tarde em que me tinha esforçado por parecer serena, muitos dos meus gestos e muitas das minhas palavras traziam a marca da desilusão e da raiva. Pela primeira vez, através das lágrimas, experimentava um verdadeiro rancor contra Gino, cuja traição me levava a sentimentos que não gostava de sentir e que não estavam de acordo com o meu carácter. Pensava que sempre fora doce e boa e que talvez doravante já não o fosse, e esta ideia enchiame de desespero. Teria querido perguntar a Gino: “Porque fizeste tudo isto? Como poderei esquecer?” Mas caleime, deixando correr as lágrimas e sacudindo de vez em quando a cabeça para as fazer tombar dos olhos, como se sacode um ramo para fazer cair os frutos mais maduros. Atravessámos a cidade toda quase sem que eu desse por isso. O carro parou, desci e estendi a mão a Gino dizendo :
Telefonarteei.
Olhoume esperançado, mas a sua expressão mostrouse espantada quando me viu a cara banhada de lágrimas. Mas não teve tempo de falar; fizlhe um gesto de despedida acompanhado de um sorriso contrafeito e afasteime.
Foi assim que a minha vida começou a girar sempre para o mesmo lado e com as mesmas personagens, como o carrocel do Luna Parque que eu via, rapariguinha, da janela da minha casa e do qual o brilhante girar me enchia de alegria o coração.
Também no carrocel há poucas personagens e sempre as mesmas. Ao som de uma música estridente e desafinada, vêemse desfilar o cisne, o gato, o automóvel, o cavalo, o trono, o dragão e o ovo e assim por diante, durante toda a noite. Eu também via girar as silhuetas dos meus amantes, quer fossem homens que eu já conhecesse quer fossem desconhecidos, em tudo parecidos com os primeiros. Jacinto vinha de Milão, donde me trazia meias de seda, e durante algum tempo viao todas as noites. Depois Jacinto tornava a partir e recomeçava a ver Gino, uma ou duas vezes por semana. Noutras noites ia com outros homens que encontrava na rua ou que Gisela me apresentava. Havia os jovens, os menos jovens e os velhos; alguns simpáticos, que me tratavam com gentileza, outros desagradáveis, que me consideravam como um objecto comprado e vendido; mas no fundo, como decidira não me prender a alguém, era sempre a mesma música. Encontrávamonos na rua, ou no café, íamos por vezes jantar juntos, depois corríamos para minha casa. Aí fechávamonos no quarto, eu entregavame, falávamos um pouco, depois o homem pagava e iase embora e eu passava para a sala grande, onde minha mãe me esperava. Se tinha fome comia e em seguida deitavame. Algumas vezes, mas muito raramente, se ainda era cedo, tornava a sair e voltava à cidade a procurar outro homem. Mas havia também os longos dias em que ficava em casa sem fazer nada e sem querer ver ninguém. Tornarame muito preguiçosa, de uma indoléncia triste e voluptuosa, e assaltavame uma sede de repouso e de tranquilidade que não era somente a minha, mas a da minha mãe e de toda a raça de seres sempre fatigados e sempre pobres, a que eu pertencia. Frequentemente, ao ver a gaveta das economias vazia, isso bastava para me fazer sair de casa e me levar a calcorrear as ruas em busca de um companheiro; mas também com frequência a minha preguiça me vencia, e preferia pedir dinheiro emprestado a Gisela ou mandar minha mãe comprar a crédito nas lojas.
E, no entanto, não poderia dizer que realmente esta vida me desagradava. Depressa percebi que a minha inclinação por Gino nada tinha de especial ou de única e que no fundo quase todos os homens, por uma razão ou por outra, me agradavam. Não sei se isto acontece a todas as mulheres que levam a mesma vida que eu, ou se indica a presença de uma particular vocação; o que sei é que sentia todas as vezes um frémito de curiosidade e de expectativa que raramente resultava em decepção.
Dos jovens, gostava dos corpos compridos, magros, ainda adolescentes, os gestos desajeitados, a timidez, os olhos acariciadores, os lábios e os cabelos cheios de frescura. Dos homens maduros, gostava dos braços musculosos, largos peitos, um não sei quê de maciço e de possante que a virilidade empresta aos ombros, ao ventre e às pernas; por fim até mesmo os velhos me agradavam, pois o homem não é, como a mulher, escravo da idade; até na velhice eles conservam um encanto particular. O facto de mudar todos os dias de amante permitiame distinguir à primeira vista qualidades e defeitos com a precisão e a penetração de observação que só a experiência permite adquirir. Além disso, o corpo humano era para mim uma fonte inesgotável de um prazer misterioso e nunca saciado; mais de uma vez me surpreendi a acariciar com os olhos ou a tocar com as pontas dos dedos os membros dos meus companheiros de uma noite, com se quisesse, para além das superficiais relações que nos uniam, penetrar o sentido do seu interesse por mim e explicar a mim própria por que motivo me atraíam tanto. Mas procurava esconder esta atracção o mais que podia, porque estes homens, na sua vaidade sempre desperta, podiam tomála por amor e imaginar que me apaixonara por eles, quando na realidade o amor pelo menos como eles o entendiam nada tinha a ver com o meu sentimento, o qual se parecia mais com o respeito e a vibração que experimentava antigamente quando frequentava a igreja assistindo a certos actos religiosos.
O dinheiro que ganhava desta maneira não era tanto como poderia imaginarse. Primeiro, nunca chegava a ser tão ávida e venal como Gisela. Decerto que esperava que me pagassem porque se eu “ia” com os homens não era para me divertir; mas a minha natureza levavame a entregarme mais por uma espécie de exuberância física do que por espírito de lucro, e não pensava no dinheiro senão no momento em que me pagavam, o que era tarde. Sempre tive a convicção de que a mercadoria que eu fornecia aos homens nada me custava e não se pagava; recebia esse dinheiro mais como um presente do que como um salário: pareciame que o amor não devia pagarse e nunca estava bem pago; presa a esta modéstia e a esta presunção, sentiame incapaz de fixar um preço que não me parecesse arbitrário; também quando me davam muito, agradecia com uma excessiva gratidão, e quando me davam pouco nunca me sentia roubada nem protestava. Só mais tarde, levada por algumas decepções amargas, é que me decidi a imitar Gisela, que discutia as suas condições antes de chegar a acordo. Mas ao princípio corava, murmurava os preços entre dentes; muitos não me percebiam; tinha sempre que repetir.
Havia ainda outro motivo que tornava insuficiente o dinheiro que ganhava. Olhando às despesas muito menos que dantes, permitindome a compra de muitos mais vestidos, perfumes, artigos de toilette e outros objectos semelhantes necessários à minha profissão, o dinheiro que recebia dos meus amantes não era mais do que aquele que outrora ganhava sendo modelo e ajudando minha mãe a trabalhar. Como dantes, e ainda com mais frequência agora, havia dias em que não tínhamos um centavo em casa. E como antigamente, e até mesmo pior, a despeito do sacrifício da minha honra, sentiame pobre e pensava com angústia na insegurança do dia de amanhã. Sou de natureza alegre e calma; esta inquietação nunca tomou em mim um carácter de obsessão, como noutras pessoas menos equilibradas e menos indiferentes. Mas estava na minha consciência obscura como um verme de um velho móvel; advertiame constantemente de que eu estava desprovida de tudo, que não podia esquecer esta precária condição e descansar, nem melhorar definitivamente com a profissão que escolhera.
Aquela que nada sentia, ou pelo menos parecia não sentir qualquer inquietação, era minha mãe. Disseralhe logo que não era necessário que desperdiçasse a sua vida cosendo o dia inteiro. Como se toda a vida ela não esperasse outra coisa que esta advertência, abandonou imediatamente a maior parte do trabalho e limitouse à execução desinteressada de uma ou outra encomenda, mais para passar o tempo que pelo desejo de ganhar alguma coisa. Era como se o esforço de todos estes anos, a começar no tempo em que eu era rapariga e servia uma família como criadinha, se afundasse bruscamente sem deixar resíduos e sem remédio, à maneira das velhas casas que logo que se desmoronam desaparecem, entram em si próprias, se bem que não tenham uma única parede de pé; nada fica senão um montão de poeira. Para uma pessoa como minha mãe, o dinheiro queria dizer comer e descansar até à saciedade. Comia mais que nunca e permitiase pequenos luxos que na sua ideia distinguiam os ricos dos pobres: levantarse tarde, dormir depois do almoço, passear de vez em quando. Devo dizer que o efeito que produziu nela esta mudança de hábitos foi talvez o lado mais desagradável da minha nova vida. Sem dúvida, os que estão habituados a trabalhar nunca deviam parar: o descanso, o bemestar, mesmo de uma origem boa e lícita não era porém o caso , corrompemnos. Ao mesmo tempo que a nossa situação melhorava, minha mãe engordava, ou, para ser mais exacta, dada a rapidez com que desapareceu a sua magreza ofegante e angulosa, ela inchava de uma forma doentia e de uma maneira que me pareceu significativa, embora isso não me surgisse com clareza. As suas ancas agudas arredondaramse, os ombros secos cobriramse, as faces, que sempre foram cavadas, encheramse e refloriram como se tivessem sido assopradas. Mas o pormenor mais triste da sua transformação física foram os olhos. Outrora grandes e dilatados, com uma expressão excitada e inquieta, reflectiam agora uma luz equívoca e ambígua. Tinha engordado, mas sem beleza nem rejuvenescimento. Pareciame que era ela quem trazia no corpo e na cara a marca visível da nossa mudança de vida; nunca a podia olhar sem experimentar um sentimento penoso misturado de remorso, compaixão e repugnância. Ela aumentava o meu malestar assumindo atitudes de gulosa e feliz satisfação. Na realidade, rejubilava por não ser forçada a trabalhar e estas atitudes eram as de uma mulher que durante toda a sua vida nunca comera nem descansara o suficiente.
Naturalmente eu não deixava transparecer os meus sentimentos para não a magoar, sem contar que havia certas coisas que deveria dizer primeiro a mim antes de as dizer a ela. Mas de tempos a tempos escapavamme gestos de contrariedade. Tinha a impressão de gostar menos dela, agora que estava grande e gorda e caminhava rolando as ancas, do que quando berrava, corria e se chorava todo o dia, desgrenhada e ávida. Chegava por vezes a perguntar a mim própria: “Se tivesse conseguido o bemestar por meio de um bom casamento, a minha mãe teria engordado desta maneira?” Hoje penso que sim; não sei que sintoma ignóbil eu julgava notar na sua gordura; atribuoo agora ao olhar que lhe lançava, carregado, mesmo sem querer, de clarividência e remorso.
Não escondi durante muito tempo a Gino a minha nova condição. Tive mesmo a ocasião de lha revelar bem depressa, a primeira vez em que o vi, quinze dias depois de nos termos encontrado em casa dos seus patrões. Uma manhã minha mãe veio acordarme e, com voz embargada e cúmplice, disseme:
Sabes quem está ali à porta e te quer falar? O Gino!
Dizlhe que entre respondi simplesmente.
Um pouco decepcionada com a resposta, abriu a janela e saiu. Passado um momento, Gino entrou e percebi logo que estava perturbado e furioso. Nem me deu os bonsdias. Girou em torno da cama e olhoume, estendida e ensonada como estava. Depois perguntou:
Ouve lá... No outro dia não trouxeste por engano um objecto que estava em cima do toucador da senhora?
“Ele aqui está”, pensei eu. Não experimentava qualquer sentimento de culpa, enquanto que, mais uma vez, a assustada servidão de Gino me fazia pena.
Porquê? disselhe.
Desapareceu uma caixa de grande valor... de ouro... com um rubi... A senhora fez uma fita dos diabos, e como de qualquer maneira foi a mim que a casa ficou confiada, não me dizem, mas compreendo muito bem que me supõem... Felizmente que só deu por isso ontem, uma semana depois de ter voltado: assim é possível que tenha sido uma das criadas de quarto que a tenha roubado... Se não fosse isso, já me teriam acusado, despedido, preso... sei lá?
Tive medo de culpar algum inocente e perguntei:
Mas já fizeram alguma coisa às criadas de quarto?
Não respondeu, muito nervoso. Mas pediram ao comissário para nos interrogar; há dois dias que não se respira naquela casa.
Hesitei um momento, depois declarei:
Fui eu quem a tirou.
Semicerrou os olhos, com uma careta maldosa de todo o rosto.
Foste tu quem a tirou... e é assim que o dizes?
Como deveria dizer?
Mas isso chamase roubar!
Pois chama.
Olhoume e de repente encolerizouse; talvez tivesse medo das consequências do meu acto, ou pressentia, de uma maneira confusa, que a primeira responsabilidade deste roubo era dele.
Dizme lá gritou. Que te passou pela cabeça? Ah! Foi para isso que quiseste ir para o quarto da senhora... agora percebo! Mas eu, minha querida, não quero estar misturado nisto. Se tu queres roubar, rouba onde muito bem te parecer, mas não na casa onde trabalho. Uma ladra! Estava fresco se tivesse casado contigo... teria casado com uma ladra!
Deixeio dar livre curso à sua raiva, observandoo atentamente. Admiravame de o ter achado durante tanto tempo perfeito. Não havia dúvida, bem perfeito! Quando me pareceu que acabara as reprimendas, disselhe por fim:
Mas porque te zangaste tanto, Gino? Não te acusam de teres roubado... Vão falar ainda nisso durante algum tempo e depois passará à história. Meu Deus, com tantas caixas que tem a tua patroa, vale bem a pena!
Mas porque a roubaste? perguntoume.
Era claro que queria ouvir dizer aquilo que vagamente adivinhava.
Porque sim! disselhe.
Porque sim não é resposta.
Então, se tu queres realmente saber disselhe tranquilamente , roubeia, não por inveja nem porque precisasse, mas porque de futuro até já posso roubar.
Que queres dizer? disseme. Mas eu não o deixei continuar.
A noite expliqueilhe vou pelas ruas, procuro um homem, tragoo para aqui e ele pagame. Se faço isto, posso também roubar, não é verdade?
Compreendeu e teve uma reacção característica.
Também fazes isso?... Mas é perfeito!... Estava fresco se tivesse casado contigo!
Não o faria respondilhe. Comecei a fazêlo no momento em que soube que tinhas mulher e filha.
Ele esperava já esta frase.
Não, minha rica respondeume. Não deites agora as responsabilidades para cima das minhas costas. Só se torna prostituta ou ladra quem o quer ser.
Então é porque eu já o era sem o saber disselhe. - E tu não fizeste outra coisa senão oferecerme a ocasião de o chegar a ser de facto.
A minha calma mostroulhe que era inútil discutir. Mudou então de táctica.
Bem... O que és ou o que fazes não é da minha conta... Mas essa caixa, é preciso que ma devolvas... Senão, mais tarde ou mais cedo, perderei o meu lugar... Preciso que ma dês e fingirei que a encontrei... no jardim, por exemplo.
Porque me dizes tudo isso? respondilhe. Se é para não perderes o lugar... podes levála... está aí na primeira gaveta do armário.
Com ar aliviado, precipitouse para o armário, abriu a gaveta, agarrou na caixa e meteua no bolso. Depois olhoume de uma maneira onde havia desejo de reconciliação. Mas não tive coragem de enfrentar a cena embaraçosa que este olhar me fazia prever.
Tens lá em baixo o carro? pergunteilhe.
Tenho.
Está bem! É tarde, é melhor que não demores; tornaremos a falar nisto na próxima vez que nos virmos.
Estás zangada comigo?
Não.
Sim, estás!
Já te disse que não.
Suspirou, curvouse sobre a cama e deixei que me beijasse.
Mas telefonasme? insistiu, da porta.
Está descansado.
Foi desta maneira que Gino aceitou o meu novo género de vida. Mas no dia em que nos tornámos a ver não falámos nem da caixa, nem do meu trabalho, como se de futuro essas coisas não tivessem importância e cujo único interesse tivesse sido apenas a novidade. Portouse um pouco como minha mãe, salvo que não pareceu experimentar, nem por um instante, o pavor manifestado por ela a primeira vez em que eu trouxe Jacinto para casa, e que me parecia por vezes sentir ainda perpassar por entre a sua satisfação, ver por debaixo da sua gordura balofa. O importante do carácter de Gino era, pelo contrário, uma espécie de finura tola e desentendida. Imagino que logo que conheceu a mudança que a sua traição operara na minha vida encolheu os ombros dizendo: “Matei dois coelhos de uma cajadada. Assim não me pode acusar de coisa alguma e continuarei a ser seu amante.” Há homens que consideram uma sorte conservar o que possuem, seja o dinheiro, a mulher e até a própria vida, nem que seja pelo preço da dignidade. Gino era desses.
Continuei a encontrarme com ele, porque, como já disse, me agradava ainda, apesar de tudo, e porque não tinha alguém que me agradasse mais do que ele, e também porque, se bem que pensasse que de futuro tudo estava terminado entre nós, não queria que este fim fosse brusco e desagradável. Nunca gostei dos cortes decisivos nem de interrupções bruscas. Acho que as coisas da vida devem morrer por si, assim como nascem, por indiferença ou por hábito, uma vez que o hábito é uma variedade de fiel aborrecimento; gosto de as sentir morrer assim, naturalmente, sem que seja por minha culpa nem por culpa de outrem, e vêlas pouco a pouco ceder o lugar a outras. Além de tudo, estas mudanças claras e precisas não existem; quando se quer mudar precipitadamente, correse o risco de ver desabrochar com viva tenacidade, quando menos se espera, os velhos hábitos que se tinha a ilusão de ter arrancado de um só golpe e de uma maneira definitiva. Queria que as carícias de Gino acabassem por me ser tão indiferentes como as suas palavras; temia, se não deixasse o tempo agir, vêlo ressuscitar a cada instante na minha vida, obrigandome contra vontade a retomar as nossas antigas relações.
Uma outra pessoa que tornou a entrar na minha vida naquele momento foi Astárito. Com ele foi tudo ainda mais simples do que com Gino. Gisela viao às escondidas e eu supus que ele tinha relações com ela só para ter ocasião de saber notícias minhas. Fosse como fosse, Gisela espiava o momento favorável para me falar dele; quando lhe pareceu que já tinha passado bastante tempo e que eu já estaria mais calma, chamoume de parte para me dizer que ele lhe pedira notícias minhas.
Nada me disse de preciso acrescentou , mas senti que ainda estava apaixonado por ti... Até me fez pena... parecia muito infeliz... Nada me disse, repitote, mas percebi que tinha grande desejo de te tornar a ver... Agora, depois de tudo...
Interrompia para lhe dizer:
Ouve, é inútil continuar a falar dessa maneira.
De que maneira?
Com tantas precauções! Diz antes francamente que te mandou, que me quer ver e que te comprometeste a levarlhe a minha resposta.
Admitindo que seja assim concordou, desconcertada. Então?
Então? respondi, tranquila. Dizlhe que nada me impede de o ver... mas como também tenho outros, bem entendido que é de tempos a tempos, sem compromisso.
Ela ficou estupefacta com a minha calma; estava convencida de que eu odiava Astárito e nunca consentiria em tornar a vêlo. Não compreendia que o ódio e o amor tinham morrido para mim. Como sempre, pensou que escondia qualquer intenção.
Tens razão disse, passados uns instantes, com ar reflectido , eu no teu lugar faria o mesmo... Há casos nos quais tem que se passar por cima das antipatias. Astárito amate de verdade. Era capaz de anular o seu casamento para casar contigo... Não és parva, tu! E eu que te julgava uma ingênua!
Gisela nunca me tinha compreendido; sabia por experiência que seria tempo perdido tentar abrirlhe os olhos; por isso fiteia com ar desenvolto e respondilhe:
É assim mesmo deixandoa num estado de alma onde a inveja se misturava com a mais injuriosa admiração.
Comunicou a minha resposta a Astárito e tornei a vêlo na mesma pastelaria onde encontrei pela primeira vez Jacinto. Gisela tinha razão; ele continuava a amarme freneticamente; logo que me viu ficou pálido como um morto, perdeu toda a segurança e não abriu a boca. Esta paixão era mais forte do que ele. Penso que certas mulheres do povo, simples, como minha mãe, por exemplo, tem razão quando, contando histórias de amor, declaram que certos homens foram enfeitiçados pela amante. Sem querer e sem dar por isso, eu exercia sobre Astárito uma espécie de sortilégio; ele tinha consciência disso, e se bem que tentasse livrarse com todas as forças não o conseguia. Tinha, de uma vez para sempre, feito dele um subordinado; de uma vez para sempre tinhao desarmado, paralisado e reduzido a nada. Explicoume mais tarde que por vezes, quando estava sozinho, tentava estudar o papel da personagem fria e desdenhosa que queria representar comigo, indo até ao ponto de decorar frases, mas que quando me via o sangue fugialhe do rosto e uma espécie de angústia oprimialhe o peito, o espírito turvavaselhe, a língua recusavase a falar. Tinha a impressão de não poder suportar o meu olhar, perdia a cabeça, experimentava o desejo irresistível de se lançar de joelhos diante de mim e de me beijar os pés.
Realmente, ele não era como os outros homens; quero dizer que dava a impressão de estar obcecado. Na noite em que nos tornámos a encontrar, depois de termos ido jantar juntos ao restaurante, sempre num silêncio terno e crispado, apenas chegados a minha casa, obrigoume a contar em pormenor, sem nada omitir, toda a minha vida depois do dia do passeio a Viterbo até ao meu rompimento com Gino.
Mas porque te interessa isso tanto? perguntei, muito admirada.
Por nada respondeu. Mas para ti que mal tem isso? Não te preocupes comigo, conta!
Pela minha parte não me importo! respondi, encolhendo os ombros. Se isso te dá prazer!
E minuciosamente, como me recomendara que o fizesse, conteilhe tudo o que se passara depois do passeio: como fora a explicação com Gino, como seguira os conselhos de Gisela, como encontrara Jacinto. Só não contei a história da caixa de pódearroz, nem sei bem porquê, talvez para não o colocar numa situação falsa, sendo ele, como era, polícia. Fezme imensas perguntas, particularmente sobre o meu encontro com Jacinto. Parecia que nunca tinha os pormenores suficientes: dirseia que não queria só saber as coisas, mas vêlas, tocálas e participar nelas, em suma. Não sei quantas vezes me interrompeu para me dizer:
E tu, que fizeste?
Ou ainda:
Mas ele, que te fez?
Quando eu acabava beijavame, gaguejando:
Tudo isto foi por minha culpa!
Não respondi, um pouco contrariada. Não foi culpa de ninguém.
Sim! Foi por minha culpa! Fui eu quem te destruiu! Se não me tivesse portado daquela maneira em Viterbo, tudo se teria passado de uma maneira diferente!
Enganaste! disselhe vivamente. Se alguém está em falta é Gino: tu nada tens que ver com isto! Em Viterbo, meu caro, quiseste possuirme à força. As coisas que se obtêm dessa maneira não contam! Se Gino não me tivesse enganado, eu teria casado com ele; depois contarlheia o que se havia passado e seria como se nunca te tivesse conhecido!
Não, foi por minha causa! Aparentemente a culpa pode ser de Gino... mas no fundo só eu fui o culpado, só eu!
Parecia ter grande empenho em considerarse culpado: mas julguei compreender que, longe de sentir remorsos, tinha prazer em pensar que me tinha corrompido e desnudado. Sentia prazer... é dizer muito! Excitavao. Talvez fosse esse o motivo principal da sua paixão por mim. Compreendi isso logo que me apercebi de que muitas vezes, durante os nossos encontros, insistia para que lhe contasse com pormenores o que se passava entre os meus amantes ocasionais e eu. No decorrer destas descrições ficava com uma cara alterada, tensa, atenta, que me desagradava e me fazia corar. Logo a seguir atiravase para cima de mim, e enquanto me possuía repetiame com uma intensa paixão palavras injuriosas, brutais, obscenas, que eu não posso repetir e que me pareciam ofensivas até para a mulher mais depravada. Como esta estranha atitude podia estar ligada à sua adoração por mim nunca o compreendi; do meu ponto de vista, é impossível amar uma mulher sem a respeitar; mas no seu caso, o amor e a crueldade pareciam misturarse, emprestando um ao outro a sua cor e a sua força. Algumas vezes pensava que esta singular volúpia que sentia em me julgar degradada por sua culpa eralhe sugerida pelo seu trabalho de polícia, o qual consistia precisamente, como o percebi, em procurar o ponto fraco dos acusados, corrompê-los e aviltálos de maneira que se tornassem inofensivos. Chegou mesmo a dizerme, já não sei a que propósito, que todas as vezes que conseguia fazer confessar ou domar um acusado, de uma maneira ou de outra, sentia uma satisfação particular, quase física, parecida com a da posse amorosa. “O acusado é como uma mulher explicavame. Enquanto resiste tem a cabeça alta. Mas quando cedeu, uma vez só que seja, não é mais que um farrapo que se pode retalhar como e onde se quiser.” Portanto, pareciame mais provável que o seu carácter cruel e voluptuoso fosse nele uma coisa inata, e se escolhera esta profissão era porque tinha feitio para ela e não o caso contrário.
Astárito não era feliz; ainda mais: a sua infelicidade sempre me pareceu a mais completa e a mais irremediável que vi, porque não provinha de qualquer motivo exterior, mas de uma incapacidade, de uma insegurança que nunca consegui apreender. Quando me fazia contar as minhas experiências profissionais tinha o costume de se ajoelhar na minha frente, de pousar a cabeça nos meus joelhos e ficar imóvel nesta posição às vezes durante uma hora. Não tinha mais que passarlhe a mão de vez em quando sobre a cabeça, levemente, como as mães fazem aos filhos. De vez em quando gemia, talvez mesmo chorasse. Nunca amei Astárito, mas nesses momentos inspiravame uma grande compaixão, porque compreendia que sofria e que não havia qualquer meio de lhe aliviar o sofrimento.
Era com a maior amargura que falava da família; da mulher, que odiava, dos filhos, que não amava, dos parentes, que lhe tinham dado uma infância difícil, e depois, quando ele era ainda inexperiente, o tinham obrigado a fazer um casamento desastroso. Ao seu trabalho nem aludia. Chegou até a dizerme uma vez com uma estranha expressão:
Nas casas há muitos objectos que não são limpos, mas que são úteis... Eu sou um desses objectos: o caixote do lixo...
Mas, de uma maneira geral, tenho a impressão de que considerava a sua profissão perfeitamente honrosa. Tinha um grande sentimento do dever, e compreendi, na visita que lhe fiz no Ministério, que era um funcionário modelo: zeloso, perspicaz, incorruptível, rígido. Se bem que pertencesse à polícia política, fazia questão de dar a entender que nada percebia de política.
Sou uma roda de uma engrenagem que gira com as outras rodas do rodado disseme um dia. Não sou eu quem manda: eu executo!
Astárito queria verme todas as noites, mas, além do facto de não querer, como já disse, ligarme a qualquer homem, aborreciame e deixavame mal disposta com a sua gravidade convulsa e as suas bizarrias, tanto que, apesar da piedade que me inspirava, não podia reprimir um suspiro de alívio quando ele se retirava. Tentei portanto vêlo só raramente, não mais que uma vez por semana. Esta redução dos nossos encontros ao mínimo contribuiu certamente para manter o ardor e a avidez da sua paixão por mim; talvez que, se eu tivesse aceitado as propostas, que constantemente me fazia para ir viver com ele o fosse habituando à minha presença e acabasse por me ver como eu realmente era: uma pobre rapariga como havia tantas. Deume o número do telefone que tinha na mesa de trabalho, no Ministério. Era um número secreto. As únicas pessoas que o conheciam eram o prefeito da polícia, o chefe do Governo, o ministro e mais um grupo de pessoas importantes. Quando lhe telefonava respondia logo, mas, assim que compreendia que era eu, a sua voz, que antes era tranquila e límpida, tremia e começava a balbuciar. Estava verdadeiramente submisso, subjugado como um escravo. Lembrome de que uma vez, distraída, acaricieilhe a cara sem que mo tivesse pedido. Agarroume logo a mão para a beijar com fervor. Chegou a pedir depois que lhe tornasse a fazer espontaneamente esta carícia, mas as carícias não se fazem de encomenda.
Muitas vezes, já o disse, não tinha vontade de ir procurar os homens na rua e não saía de casa. Já não me apetecia ficar junto de minha mãe, porque, embora houvesse entre nós um entendimento tácito para se não falar do meu “ofício”, a conversa acabava sempre por girar à volta disso, aborrecida e cheia de alusões; quase preferia que as coisas se dissessem claramente. Fechavame pois no meu quarto, recomendando a minha mãe que não me incomodasse, e estendiame em cima da cama. O meu quarto dava para o pátio através de uma janela sempre fechada; nenhum barulho chegava do exterior. Dormitava durante algum tempo, depois levantavame e girava no quarto, absorvida em qualquer trabalho, como arrumar alguns objectos ou limpar o pó aos móveis. Estas ocupações serviamme de estimulante para pôr em marcha o maquinismo do meu cérebro e para criar à minha volta uma atmosfera de intimidade concentrada e bem entrincheirada. Começava por pensar com profunda crueza e depois acabava por em nada pensar.
Durante estas horas de solidão havia sempre um momento em que era tomada por um imenso espanto: pareciame de repente ver, com uma clarividência gelada, toda a minha vida e eu própria, por todos os lados e de todas as maneiras. As coisas que eu fazia tomavam a clareza de uma síntese. Diziame a mim própria: “Trago aqui muitas vezes homens que encontro na rua sem me conhecerem... Lutamos enlaçados na cama, como dois inimigos... Depois dãome uma folha colorida de papel impresso. No dia seguinte troco este papel por alimentos, vestidos e outras coisas necessárias.” Mas este enunciado não era mais que um primeiro passo no caminho de um espanto mais profundo. Servia para me desembaraçar o espírito da apreciação que não cessava de me chocar em relação ao meu ofício; mostravamme este ofício como um conjunto de gestos privados de senso, equivalentes a outros gestos de ofícios diferentes. Pouco depois, um ruído longínquo vindo da cidade, ou o estalar da mobília no quarto, davamme um sentimento obscuro e quase delirante da minha presença ali. Dizia a mim própria: “Estou aqui e poderia estar noutro lado. Poderia estar há mil anos ou daqui a mil anos... Poderia ser uma negra ou uma velha ou mesmo loura, pequenina...” Pensava que tinha saído de uma obscuridade sem limites, que tornaria a entrar numa outra obscuridade igualmente ilimitada e que a minha breve passagem não seria notada senão por gestos absurdos e fortuitos. Então compreendi que a minha angústia não era devida às coisas que eu fazia, mas, profundamente, ao único facto de viver; não era nem bom, nem mau, mas simplesmente doloroso e sem razão de ser.
Durante aqueles instantes este estado de alucinação provocoume um arrepio que me percorreu o corpo todo e me pôs os cabelos em pé, com formigueiro na raiz. Tive de repente a impressão de que as paredes da casa, a cidade, e até o mundo, se desvaneciam, que me encontrava suspensa num espaço vazio, negro e sem limites, e, para cúmulo, suspensa com os meus trapos, os meus sonhos, o meu nome, a minha profissão. Uma rapariga chamada Adriana suspensa no nada. Pareciame que esse nada era uma coisa solene, terrível e incompreensível e que o aspecto mais triste de toda a questão era apresentarme precisamente nesse nada com os modos e a aparência que tinha à noite para me apresentar na pastelaria onde Gisela me esperava. Não me consolava a ideia de que os outros se moviam e agitavam de uma maneira também frívola e inadequada dentro deste vazio. Admiravame só de que não tivessem disso a consciência, e, como acontece quando muita gente descobre ao mesmo tempo o mesmo facto, não comunicassem as suas observações e não falassem nelas mais frequentemente.
Aconteciame nesses momentos ajoelharme e rezar, mais talvez por hábito de infância do que por vontade clara e consciente. Mas não rezava empregando as expressões habituais das orações; pareciamme muito longas para o meu súbito estado de alma. Ajoelhavame com tal violência que às vezes as pernas me doíam durante muitos dias, e rezava assim, com força, com uma voz desesperada: “Cristo, tem piedade de mim”! Não era uma verdadeira oração, mas uma espécie de fórmula mágica, pela qual esperava dissipar os meus terrores e reencontrar a realidade habitual. Depois de gritar desta maneira, impetuosamente, com todas as forças do meu corpo, ficava muito tempo absorta, com a cara entre as mãos. Por fim, já em nada pensava, aborreciame e ficava a Adriana de sempre que se encontrava no meu quarto. Apalpava o corpo, admirandome de o encontrar intacto e presente, levantavame e ia deitarme. Sentiame cansada, dolorida, como se tivesse rolado muito tempo por um talude pedregoso. Adormecia logo em seguida.
Estes estados de alma, todavia, não exerciam qualquer influência na minha vida habitual. Continuava a ser a Adriana habitual, com o seu carácter de sempre, que encontrava os homens na rua e os trazia para casa por dinheiro, que se dava com a Gisela, que falava de coisas sem importância com sua mãe e com os outros. Por vezes pareciame estranho ser assim tão diferente, na solidão e em sociedade, nas minhas relações comigo própria e nas que tinha com os outros. Mas não imaginava que era só eu a experimentar sentimentos tão violentos, tão desesperados. Pensava que isso aconteceria a todas as pessoas. pelo menos uma vez por dia; sentir a vida reduzirse a um único estado de angústia inefável e absurdo. E com os outros também, esta consciência não produzia efeitos visíveis. Logo que saiam de si próprios, partiam para a sua vida habitual, representando com sinceridade um papel hipócrita. Esta ideia confirmava a minha convicção de que todos os homens, sem excepção, são dignos de compaixão, quanto mais não seja só pelo facto de estarem vivos.
Agora, eu e Gisela já não éramos apenas amigas, mas sim uma espécie de sócias. Nunca estávamos de acordo quanto aos lugares que devíamos frequentar, porque Gisela preferia os restaurantes de luxo, ao passo que eu gostava mais dos cafés de terceira ordem ou simplesmente da rua. Mas, devido precisamente a esta diferença de gostos, tinhase concluído entre nós uma espécie de pacto: cada uma de nós acompanharia a outra, dia sim, dia não, aos seus lugares predilectos. Uma noite, depois de um jantar infrutífero num restaurante, regressávamos juntas a casa quando observei que éramos seguidas por um carro. Preveni Gisela e arrisqueime a dizerlhe que talvez não fosse tolice deixar que eles chegassem à fala connosco. Gisela, que estava de mau humor, porque tinha tido de pagar o jantar e estava quase sem dinheiro, disse com mau modo:
Vai tu, se quiseres! Cá por mim vou para a cama.
Entretanto, o carro tinhase abeirado do passeio e seguianos passo a passo. Gisela caminhava do lado da parede e eu do lado de fora. Olhei disfarçadamente para o automóvel e vi que dentro dele vinham dois homens. Interroguei Gisela a meia voz:
Que vamos fazer? Se tu não vens, eu também não vou.
Gisela deitou também um olhar de lado para o carro, que continuava a seguirnos devagarinho, e, parecendo resignarse de repente, respondeume:
Está bem! Mas este sistema não me agrada... Andamos ainda umas dezenas de metros, sempre seguidas pelo carro, depois Gisela virou a esquina e metemos por uma travessa acanhada e sombria, com um passeio muito estreito que se estendia ao longo de uma parede coberta de cartazes. Ouvimos o carro voltar também e logo a seguir a luz branca e crua dos faróis iluminounos. Tive a sensação de que esta luz me despia e me pregava nua na parede molhada, sobre os cartazes rotos e desbotados. Paramos. Gisela, irritada, disseme a meia voz:
Se isto são maneiras! Vamos para casa!
Não, não... supliquei eu.
Não sei porquê, apoderarase de mim um desejo fortíssimo de conhecer os homens do carro.
Que importância tem isso? continuei. Todos eles procedem assim.
Gisela encolheu os ombros e no mesmo momento os faróis apagaramse; depois o carro veio parar junto de nós. O condutor deitou de fora a cabeça loura e disse, numa voz sonora:
Boas noites!
Boas noites respondeu Gisela com ar digno.
Onde vão as duas, assim tão sós? continuou o homem. Podemos acompanhálas?
Apesar da sua entoação irônica, como de alguém que se julga terrivelmente espirituoso, estas frases eram rituais. Ouvias depois centenas de vezes. Sempre muito séria, Gisela respondeu:
Depende...
Esta era, também, a sua resposta de sempre.
Ora, ora! insistiu o homem. Depende de quê?
Quanto é que tencionam pagarnos? perguntou Gisela encostandose à porta do carro.
Quanto pedem vocês?
Gisela disse uma importância.
Vocês são caras respondeu o rapaz. Muito caras! Mas parecia decidido a aceitar. O seu companheiro debruçou-se para ele e disselhe qualquer coisa ao ouvido. O louro encolheu os ombros e. dirigindose a nós, continuou:
Está bem. Subam...
O seu companheiro desceu e foi sentarse no assento de trás convidandome a entrar com um gesto. Gisela sentouse ao lado do condutor, que lhe perguntou:
Para onde vamos?
Para casa de Adriana respondeu Gisela. E deulhe a minha morada.
Bem. Vamos lá então para casa da Adriana...
Geralmente, quando me encontrava com homens que não conhecia, num carro ou em qualquer outra parte, ficava imóvel e silenciosa, esperando as suas palavras ou os seus gestos. Sabia perfeitamente que em geral não era preciso encorajálos a tomar a iniciativa. Por isso limiteime a aguardar os acontecimentos enquanto o carro percorria rapidamente as ruas. Do homem que o acaso me destinava para companheiro dessa noite não via senão duas mãos longas e brancas, pousadas nos joelhos. Ele também não falava e conservavase imóvel, encostado para trás, com a cabeça no escuro. Pensei que era tímido e simpatizei imediatamente com ele. Eu também já assim fora, e o espectáculo da timidez emocionavame sempre, porque me recordava a minha paixão por Gino. Gisela não havia meio de se calar. Um dos seus grandes prazeres era conversar com os clientes com um ar superior e bem educado, como se fosse uma senhora em companhia de homens que a respeitassem. A certa altura, perguntou :
Este carro é seu?
É. Agradate?
É cômodo respondeu Gisela com ar superior. Mas gosto mais dos Lancia. Andam mais e tém uma suspensão melhor. O meu noivo tem um.
Realmente Ricardo tinha um Lancia. Simplesmente, o que ele nunca fora era noivo de Gisela. O rapaz desatou a rir e respondeu:
O que ele deve ter é um Lancia de duas rodas...
Gisela era fácil de irritar. Respondeu com ar ofendido:
Por quem me toma você?
Não sei. Digame por quem a devo tomar, não vá eu enganarme...
Outra das ideias fixas de Gisela era fazerse passar aos olhos dos seus amantes de acaso por aquilo que não era, nem nunca tinha sido: bailarina, dactilógrafa, senhora respeitável, sem reparar que essas pretensões não condiziam com a facilidade com que ela se deixava abordar e discutir logo de entrada o aspecto material da questão.
Somos dançarinas da troupe Caccini declarou ela com um ar muito sério. Não temos o hábito de aceitar convites de desconhecidos. Aliás, eu não queria aceitar. A minha colega é que insistiu tanto... Se o meu noivo suspeitasse disto, havia de ser bonito!
O rapaz que ia ao volante riu de novo:
Bem. Eu e o meu amigo somos realmente duas pessoas decentes. Quanto a vocês, são duas prostitutas de rua. Mas que importância tem isso?
Foi então que o meu companheiro falou pela primeira vez.
Pára, João Carlos disse com uma voz tranquila.
Eu não disse palavra. Não me agradava aquela classificação, principalmente com a manifesta intenção de ofender que se notava no tom de voz com que João Carlos falava. Mas, ao fim e ao cabo, o que ele dissera era verdade.
Isso é mentira e você não passa de um ordinarão!
O rapaz não respondeu, mas parou o carro junto do passeio. Estávamos numa rua pouco frequentada e mal iluminada. O condutor voltouse para Gisela.
E se eu te pusesse fora do carro?
Experimenta! respondeu Gisela, agressiva.
Gisela era extremamente desordeira e de ninguém tinha medo.
Então o meu companheiro inclinouse para a frente e eu vi pela primeira vez o seu rosto. Era moreno, com os cabelos em desordem, a testa alta, grandes olhos sombrios e brilhantes, um nariz bem desenhado, a boca sinuosa e um horrendo queixo fugidio. Era extremamente magro. Interrogou o amigo:
Vais acabar com essa discussão idiota?
A pergunta foi feita com energia, mas sem irritação, como se ele interviesse num assunto em que, na verdade, não estivesse directamente interessado nem lhe desse importância. A sua voz não era muito forte, nem muito masculina e até, com frequência, soava a falsete.
Que tens tu com isso? respondeu o outro, bruscamente.
Mas isto foi dito num tom de voz de quem já está arrependido da sua brutalidade e que no fundo ficasse bastante satisfeito com a intervenção do amigo.
Que maneiras são essas? tornou o outro. Que diabo! Convidámolas, elas confiam em nós, e em paga dizemoslhes insolências e insultamolas. Achas bem? Dirigindose agora a Gisela, disselhe, ao mesmo tempo com gentileza e com autoridade:
Não faça caso, menina. Ele bebeu talvez um pouco mais do que devia. Garantolhe que não tinha a intenção de a ofender.
O louro fez um gesto de protesto, mas o meu companheiro forçouo a calarse pondolhe a mão num braço e dizendolhe em tom peremptório:
Já te disse que bebeste demais e que não tinhas intenção de a ofender. E agora, vamos embora!
Eu não aceitei a vossa companhia para ser insultada começou Gisela, numa voz pouco firme.
O moreno deulhe imediatamente razão.
Com certeza! Ninguém gosta de ser insultado. É tudo quanto há de mais natural...
O louro olhavanos com ar aparvalhado. Tinha o rosto encarnado, coberto de marcas irregulares, como pisaduras, uns olhos azuis perfeitamente redondos e uma grande boca sensual e glutona. Olhou primeiro para o amigo, depois para Gisela, e finalmente desatou a rir:
Palavra de honra que não percebo nada! exclamou. Porque estamos nós a discutir? Não há maneira de me lembrar como isto começou. Em lugar de nos divertirmos, zangamonos! Somos completamente idiotas, não há dúvida!
Ria com evidente satisfação. E, sem deixar de rir, voltouse para Gisela e disselhe:
Vá! Façamos as pazes! Sinto que fomos feitos um para o outro!
Gisela tentou sorrir e declarou:
Realmente, eu também tinha essa impressão...
O louro continuou, sempre a rir a bandeiras despregadas:
Eu tenho um rico feitio, não é verdade, Jaime? É questão de saber lidar comigo, e mais nada... Vamos! Venha de lá uma beijoca...
Debruçouse para Gisela e passoulhe um braço pela cintura. Ela desviou levemente a cabeça e disselhe:
Espera!
Tirou um lenço de dentro da bolsa, limpou a boca com ele e depois beijouo secamente, com um ar muito digno. Enquanto esse beijo durou, o louro agitava as mãos como se estivesse a afogarse e tentasse nadar. Separaramse e então ele pôs o motor a trabalhar com gestos pretensiosos e solenes.
Ora pois! Juro que daqui para o futuro não lhes darei uma única razão de queixa. Vou ser muito sério, muito bem educado, muito distinto... Autorizo a esbofetearemme, se não me portar bem...
O carro pôsse de novo em movimento.
Durante o resto do trajecto ele não cessou de falar e de rir animadamente; por vezes mesmo chegou a tirar as duas mãos do volante para gesticular. O meu companheiro, pelo contrário, depois da sua breve intervenção, tinha voltado à sombra e ao silêncio. Eu começava a simpatizar fortemente com ele, sentindome, ao mesmo tempo, curiosa e atraída; agora, que volto a pensar nisso, passado tanto tempo, compreendo ter sido nesse momento que me apaixonei por ele, ou, pelo menos, que comecei a consubstanciar na sua pessoa todas as coisas que amava e de que até então estivera privada. Afinal de contas, o amor tem de ser um sentimento completo e não apenas uma pura satisfação dos sentidos; e eu continuava, teimosamente, em busca dessa perfeição que pensara existir em Gino. Talvez esta fosse a primeira vez em toda a minha vida, e não apenas desde que exercia este ofício, que se me deparava uma pessoa como este homem, com tais maneiras e uma tal voz. O primeiro pintor de quem eu tinha sido modelo assemelhavase a ele até certo ponto, mas era mais frio e mais seguro de si; aliás, mesmo que ele o não tivesse querido, eu termeia apaixonado por ele do mesmo modo, se bem que, por motivos diferentes, a voz e as atitudes deste rapaz suscitassem na minha alma os sentimentos que se tinham apossado de mim a primeira vez que tinha estado na casa dos patrões de Gino. Assim como, ao ver a ordem, o luxo e a limpeza dessa casa, eu tinha pensado que, sem um ambiente como esse, a vida não valia a pena ser vivida, assim agora a voz e os gestos deste rapaz, tão gentis e tão calmos, inspiravamme não sei que atracção profunda e comovida. Ao mesmo tempo ele acordou em mim um violento desejo físico; sentiame ansiosa por ser acariciada pelas suas mãos, beijada pela sua boca; compreendi que acabava de se produzir em mim essa mistura imponderável, mas veemente das aspirações antigas e do prazer actual que é a própria essência do amor e marca infalivelmente o seu nascimento. Ao mesmo tempo temia que ele se apercebesse dos meus sentimentos e me desprezasse. Dominada por este medo, estendi a mão e apertei a dele. Mas ele não teve qualquer reacção. Então uma grande perplexidade tomou conta de mim; sentia que a sua imobilidade me impunha uma atitude de desinteresse, mas essa atitude era superior às minhas forças. O carro, dobrando bruscamente uma esquina, atirounos um contra o outro; fingi ter perdido o equilíbrio e deixei cair a cabeça nos seus joelhos. Ele estremeceu, mas não disse uma palavra nem fez um gesto. Sentindo com alegria que o carro corria velozmente, fiz como fazem os cães: meti a minha cara no meio das suas mãos, beijeias e passeias no meu rosto numa carícia que eu quisera ardentemente fosse afectuosa e espontânea. Compreendendo que estava de cabeça perdida, admireime de como meia dúzia de palavras amáveis haviam bastado para isso. Mas ele não me concedeu a carícia desejada e tão humildemente pedida, e retirou as mãos da minha cara. Precisamente neste momento o carro parou.
O louro apeouse, e com uma galantaria trocista ajudou Gisela a descer. Descemos também, abri a porta da escada e entrámos. Gisela e o louro tomaram a dianteira. O rapaz ficou para trás e a meio da escada deitou as mãos à saia de Gisela, levantoua e descobriulhe as coxas brancas e uma parte das nádegas, que ela tinha pequenas e magras.
Subiu o pano! exclamou com uma gargalhada. Gisela limitouse a compor o fato com um gesto seco. Pela minha parte, pensando que essa atitude ordinária tinha desagradado ao meu companheiro, tentei fazêlo compreender que partilhava da sua opinião.
É divertido, o seu amigo! disse.
É respondeu este secamente.
Vêse que a vida lhe corre bem...
Entrámos em casa em bicos de pés e eu conduzios directamente para o meu quarto. Quando a porta se fechou, o louro sentouse na beira da cama e começou tranquilamente a despirse, sem nos ligar a mínima importância. Não se calava nem deixava de rir, falando de quartos de hotel e de quartos particulares e tentando interessarnos por uma aventura que tivera recentemente.
Ela disseme: “Sou uma mulher honesta; não quero ir consigo para um hotel.” Então eu respondi: “Os hotéis estão cheios de mulheres honestas!” “Mas eu disse ela - não quero dizer o meu verdadeiro nome!” E eu disselhe: “Passarás por minha mulher! Para a importância que isso tem...” Finalmente seguimos para o hotel, mas quando chegou o momento decisivo complicou toda a nossa vida. Começou a dizer que tinha remorsos, que não queria, que era, na verdade, uma mulher honesta, o demônio! Acabei por perder a cabeça e tentar empregar a força. Pois sim! Abriu a janela e berrou que se atirava para a rua se eu insistisse.. “Bem disse eu. Compreendo. A culpa foi minha. Nunca te devia ter trazido para aqui!” Então a criaturinha sentouse na beira da cama e desatou a choramingar, enquanto me contava uma história capaz de fazer chorar um morto.. Não sou capaz de a repetir, porque me esqueci. Mas lembrome de que, no fim, estava comovidíssimo e pouco faltou para me pôr de joelhos na sua frente e pedirlhe perdão de ter pensado mal dela... “Está bem concordei , nada se passará entre nós. Vamos só deitarnos e dormir com muito juízo até amanhã.” E foi o que fizemos; adormeci imediatamente; mas, a meio da noite, acordo, e ela tinha desaparecido. Ela e a minha carteira. Honesta, hem?
Desatou à gargalhada, com uma alegria tão irresistível e tão contagiosa que eu tive de me rir também e a própria Gisela não conseguiu impedirse de sorrir. Ele tinha tirado o fato, a camisa, os sapatos e as peúgas. Ficara em ceroulas de malha de lã, justas e compridas, de um tom rosado de peito de rola, que o cobriam desde os tornozelos até ao pescoço, dandolhe o aspecto de um equilibrista ou de um bailarino. Esta peça de roupa, geralmente só usada por homens muito idosos, aumentava ainda a comicidade do seu aspecto. Nesse momento esquecime da sua brutalidade e quase cheguei a sentir simpatia por ele. Gostei sempre das pessoas alegres, e eu própria tenho mais tendência para a alegria do que para a tristeza. O rapaz pôsse a passear pelo quarto, brincando como um miúdo, pequenino, gorducho, orgulhoso das suas belas ceroulas como de um uniforme. Depois, do canto da cómoda, num salto inesperado, veio cair na cama, em cima de Gisela, que soltou um grito de susto e se deixou cair de costas para fugir ao choque. Mas, de repente, numa atitude irresistivelmente cômica, ele pareceu tomado por uma ideia súbita, deixouse ficar de gatas por cima de Gisela, voltou para nós o seu rosto vermelho e libidinoso e perguntou:
E vocês, porque esperam?
Olhei para o meu companheiro e pergunteilhe:
Queres que me dispa?
Ele nem sequer baixara ainda a gola do sobretudo. Estremeceu e respondeume:
Não. Depois deles.
Queres ir para outra sala?
Quero.
Dêem uma volta de carro! gritou o louro, sempre de gatas em cima de Gisela. As chaves estão no tablier!
Mas o meu companheiro saiu do quarto sem dar mostras de ter ouvido estas palavras.
Passamos para o vestíbulo: fizlhe sinal para me esperar e entrei na sala. Minha mãe estava sentada à mesa do meio, entretida a fazer uma paciência. Quando me viu, sem esperar qualquer palavra minha, levantouse e foi para a cozinha. Eu vim então à porta do vestíbulo e disse ao rapaz que podia entrar.
Voltei a fechar a porta e fui sentarme no canapé, junto da janela. Desejava ardentemente que ele viesse sentarse ao meu lado e que me acariciasse, como sempre acontecia com os outros homens. Mas ele nem sequer reparou na existência do canapé e pôsse a passear para trás e para diante pela sala, andando à roda da mesa, com as mãos nos bolsos. Pensei que estava contrariado por ter de esperar e disselhe:
Desculpa, mas não disponho senão de um quarto...
Ele parou, olhou para mim com uma expressão levemente ofendida mas gentil:
Eu já te disse, porventura, que precisava de um quarto?
Não. Mas pensei...
Voltou ao seu passeio, até que eu, não podendo conter por mais tempo a minha impaciência, indiqueilhe um lugar ao meu lado, no canapé:
Porque não vens sentarte ao pé de mim? perguntei.
Ele obedeceu e interrogoume:
Como te chamas?
Adriana.
Eu chamome Jaime disse ele, pegandome na mão. Este modo de proceder, invulgar para uma mulher como eu, admiroume profundamente, convencendome, de novo, de que a timidez o dominava. Deixei ficar a minha mão na sua e sorrilhe para o encorajar. Jaime voltou a interrogarme:
Então, daqui a pouco temos de ser um do outro?
Claro.
E se não me apetecer?
Isso é contigo respondi, na ideia de que ele estava a brincar.
Pois, não me apetece disse ele com ar solene. Não me apetece absolutamente nada.
De acordo! respondi eu.
Na realidade, a sua recusa pareciame demasiadamente estranha para que me fosse possível tomálo a sério.
E isso não te ofende? Em geral, as mulheres detestam que a gente as recuse.
Acabei por compreender. Sem coragem para falar, limiteime a dizer que não com a cabeça. Ele não me desejava! Bruscamente sentime desesperada e os olhos encheramseme de lágrimas.
Não. Isso não me ofende balbuciei. Mas visto que não me desejas, vamos esperar que o teu amigo acabe e depois vaiste embora.
Será justo? hesitou ele. Perdeste a noite por minha causa. Podias ter ganho dinheiro com outro qualquer...
Pensando que o seu problema não era falta de interesse, mas impossibilidade de me pagar, propuslhe, cheia de esperança:
Se não tens dinheiro não faz mal. Pagasme quando voltares a encontrarme...
Tu és boa rapariga respondeu. Mas o problema não é esse. O dinheiro não me falta. Vamos fazer um contrato. Eu pagote como se me tivesse servido de ti. Dessa maneira, pelo menos, não perderás a noite.
Tirou do bolso do casaco um rolo de notas, que me deu a impressão de ter sido preparado previamente, e foi pousálo em cima da mesa, longe de mim, num gesto ao mesmo tempo desajeitado e curiosamente elegante e desdenhoso.
Não, não protestei. Nem penses nisso!
Disse isto sem grande convicção, porque, no fundo, agradavame receber aquele dinheiro; era um laço como outro qualquer entre nós; e, visto que contraia uma dívida para com ele, podia tentar pagála. Interpretando a minha vaga recusa como um gesto de aceitação, Jaime deixou ficar o dinheiro em cima da mesa, e veio outra vez sentarse ao meu lado no canapé. Eu, embora compreendesse perfeitamente a ingenuidade e o ridículo do meu gesto, estendi a mão e peguei na dele. Olhámonos longamente, bem de frente. Depois, sem mais nem menos, ele pegou num dos meus dedos e torceuo com força.
Ai! gritei eu. E continuei com mau modo. Que ideia tão estúpida foi essa?
Desculpa! respondeu ele. E o seu ar de confusão era tão forte e tão sincero que me fez arrepender logo da secura com que lhe falara.
Fizesteme doer, compreendes? expliquei.
Desculpa repetiu ele.
Tomado de uma súbita agitação, levantouse e pôsse a passear na sala.
E se saíssemos? propôs. É aborrecidíssimo esperar desta maneira.
Aonde queres ir?
Não sei. Apetecete dar uma volta de carro? Lembrandome de todos os passeios que dava com o Gino, respondi vivamente:
Não, de automóvel não.
Podíamos ir tomar qualquer coisa. Há algum café aqui perto?
Pareceme que sim...
Então vamos.
Levantámonos e saímos da sala. Na escada disselhe, em ar de brincadeira:
Não te esqueças de que o dinheiro que me deste te dá o direito de vires ter comigo quando quiseres. Combinado?
Combinado.
Era uma noite de Inverno doce, húmida e escura. Tinha chovido durante todo o dia e a rua estava semeada de grandes poças de água em que se reflectia a luz serena dos raros bicos de gás. Por cima das muralhas o céu aparecia sereno, mas sem Lua, e uma bruma densa velava as raras estrelas que se viam. De vez em quando os eléctricos invisíveis passavam por detrás das fortificações fazendo saltar dos fios clarões rápidos e violentos, que iluminavam o céu por momentos. Quando chegamos à rua lembreime de que há meses não ia para os lados do Luna Parque. Habitualmente tomava pela esquerda, na direcção da praça em que Gino esperava por mim. Nunca mais voltara para o lado do Luna Parque desde os tempos em que, ainda pequena, passeava com minha mãe, e ora subíamos a grande avenida sobranceira às muralhas, ora fomos gozar a música e as iluminações sem ousar entrar no recinto para não gastar dinheiro. Era deste lado da grande avenida que se encontrava o pequeno pavilhão em que eu vira uma vez, pela janela aberta, uma família sentada à mesa e que me provocara o sonho de me casar, ter um lar, viver uma vida normal. Fui, então, tomada de um desejo violento de falar ao meu companheiro desse tempo, dessa idade, dessas aspirações; e isto, devo confessálo, não somente por impulsão sentimental, mas também por cálculo. Queria que ele não me avaliasse apenas pelas aparências, mas sim de um modo diferente, melhor, e que eu considerava mais verdadeiro. Há quem, para receber personalidades importantes, vista um fato de cerimônia e abra as melhores salas da sua casa; quanto a mim, pareciame que a simples sinceridade dos meus pensamentos e dos meus sentimentos chegaria para me defender, para o levar a mudar de ideias e para o fazer aproximarse de mim.
Nunca ninguém passa nesta parte da avenida disse, enquanto caminhávamos ao lado um do outro. Mas no Verão é o passeio preferido das pessoas do bairro... Eu também aqui vinha. Mas há tanto tempo! Só tu serias capaz de fazer com que eu aqui voltasse...
Ele tinha enfiado o seu braço no meu, para me ajudar a caminhar na rua encharcada.
Com quem passeavas? perguntou.
Com minha mãe.
Começou a rir, com um riso depreciativo que me espantou.
Com minha mãe! repetiu marcando as sílabas. Há sempre uma mãe! Que irá dizer minha mãe? Que irá fazer minha mãe? A mamã!
Imaginei que, por qualquer motivo pessoal, ele sentisse rancor pela sua própria mãe e pergunteilhe:
A tua mãe fezte alguma coisa?
Nada me fez! respondeume. As mães nunca fazem nada. Quem não tem uma mamã? E tu gostas da tua mãe?
Com certeza. Porquê?
Por nada disse depressa. Não te preocupes comigo... Continua... Então tu passeavas com tua mãe...
O seu tom não era muito tranquilizador. E, no entanto, um pouco por cálculo, um pouco por simpatia, sentiame levada a continuar as minhas confidências:
Sim disselhe. Nós passeávamos juntas, sobretudo no Verão, porque em nossa casa de Verão sufocase... Justamente... olha... vez aquela vivendazinha?
Parou e olhou. Mas as janelas da casa não estavam abertas; parecia mesmo desabitada. Metida entre duas longas construções baixas do caminho de ferro, pareceume ainda mais pequena do que a recordava e até feia e tosca.
E depois? perguntoume. O que acontecia nessa casa?
Eu agora corava do que ia dizer. Continuei com esforço:
Todas as tardes passava por esta casinha; como era Verão, as janelas estavam abertas... a esta hora via sempre uma família sentarse à mesa... Caleime, envergonhada.
E então?
Estas coisas não te podem interessar disse. E tive a impressão de que o meu pudor era, ao mesmo tempo falso e sincero.
Porquê? Tudo me interessa.
Bem... acabei à pressa. Tinhaseme metido na cabeça que um dia também eu teria uma casinha como esta e que faria todas as coisas que via esta família fazer.
Ah! Compreendo disse. Uma casinha como esta... Contentavaste com pouco!
Comparada com a casa onde moramos disse eu que é tão feia. E depois, sabes, naquela idade pensase tanta coisa!
Puxoume pelo braço para junto da vivendazinha. dizendome:
Vamos ver se essa família ainda lá está!
Mas que fazes? protestei, resistindo. Está lá com certeza.
Bem, vamos ver!
Estávamos diante da porta. O jardim estava às escuras, assim como as janelas e o miradouro. Ele aproximouse do portão e disse:
Até tem uma caixa de correio! Vamos tocar para ver se está cá alguém. Mas a tua casa parece desabitada.
Não! disselhe rindo. Está quieto! Mas que fazes?
Experimentemos respondeu. Levantou o braço e tocou a campainha. Tive vontade de fugir, tal era o medo que alguém viesse atender.
Vamos! Vamos! suspirava eu. Se alguém aparece, que figura fazemos nós?
Que dirá a mamã? Que dirá a mamã? repetia cantarolando, deixandose arrastar.
Tu detestas as mamãs! observei afastandome rapidamente.
Chegamos ao Luna Parque. Lembravame, da última vez em que lá tinha estado, da multidão que se comprimia, dos festões de lâmpadas eléctricas coloridas, dos balcões com lâmpadas de acetileno, da decoração das barracas, da música, do burburinho das vozes. Fiquei um pouco decepcionada por nada disso encontrar. A paliçada não parecia cercar um parque de diversões, mas um depósito de material, escuro e abandonado. Os oito balouços suspensos do carrossel pareciam insectos ventrudos parados em pleno vôo por uma brusca paralisia. Sem iluminação, os tectos pontiagudos dos pavilhões pareciam dormir. Tudo era negro, o que era normal porque estávamos no Inverno. A esplanada estava deserta e semeada de charcos: iluminavaa fracamente um único bico de gás.
Aqui, no Verão, é o Luna Parque, tem sempre muita gente... mas de Inverno não funciona... Aonde queres ir?
Ao tal café.
Não é bem um café, é uma tasca.
Vamos, vamos à tasca.
Passamos sob a abóbada da porta; mesmo em frente havia uma fila de casas, e num résdochão viase a luz por detrás de uma porta envidraçada. Assim que entrei vi logo que era a mesma casa de pasto onde há muito tempo tinha ido jantar com Gino e com minha mãe e onde Gino tinha dado o correctivo ao bêbado insolente. Não tinha mais de três ou quatro pessoas, que comiam coisas que haviam trazido embrulhadas em papel de jornal, bebendo vinho da casa. Estava lá mais frio do que na rua, o ar parecia impregnado de um cheiro a vinho, a chuva e a serradura; pensavase logo que os fogões estavam apagados. Sentámonos a um canto e ele pediu um litro de vinho.
Quem vai beber esse vinho todo? perguntei.
Porquê, tu não bebes?
Muito pouco.
Encheu o copo e bebeuo de um trago, mas com esforço e sem prazer. Este gesto confirmou o que eu já notara: ele fazia as coisas sem participação, só para o exterior, como se representasse um papel. Ficamos algum tempo em silêncio. Olhavame com os seus olhos intensos e brilhantes e eu examinava o que estava à minha volta. A recordação daquela longínqua noite em que eu ali fora com Gino e minha mãe assaltoume outra vez; não sei se sentia pena ou contrariedade ao recordála. Eu era então muito feliz; é verdade, mas tinha ainda tantas ilusões! Sentia no meu íntimo que era exactamente como se se abrisse uma gaveta fechada há muito tempo e que em vez das belas coisas que se esperava lá estivessem apenas se vissem alguns farrapos poeirentos e traçados. Tudo tinha acabado. Não só o meu amor por Gino, mas a minha adolescência e os meus sonhos desfeitos. O facto de me ter podido servir por cálculo e por manha das minhas recordações com o fim de comover o meu companheiro bastava para o demonstrar. Disse por acaso:
O teu amigo ao princípio pareceume antipático... Mas agora quase que simpatizo com ele... é tão alegre!
Ele respondeume com modo brusco:
Primeiro, aquele não é meu amigo. E depois é o menos simpático do mundo!
A violência da resposta deixoume estupefacta.
Achas? disselhe.
Ele bebeu e continuou:
Das pessoas que fazem espírito devia fugirse como da peste! Vulgarmente, debaixo daquele espírito todo nada existe... Se tu o visses no escritório... Assegurote que aí não diz graças!
Em que escritório está?
Não sei ao certo, um negócio de patentes.
Ganha muito dinheiro?
Muitíssimo.
Tem sorte!
Serviume vinho e eu perguntei:
Mas se o achas tão antipático, porque sais com ele?
É um amigo de infância respondeume de mau humor. Estudamos juntos... Os amigos de infância são todos assim.
Bebeu ainda e acrescentou:
No entanto, de certa maneira vale mais do que eu.
Porque?
Porque quando ele faz uma coisa, fála seriamente; ao passo que eu começo por querer fazêla e depois (aqui falou com uma voz tão falsa que me fez estremecer)... uma vez chegado o momento não a faço... Esta noite, por exemplo, quando me telefonou para me pedir para ir com ele engatar umas raparigas, como costuma dizerse, eu aceitei. Quando nos encontramos, desejei realmente ir para a cama contigo... Mas depois, logo que cheguei a tua casa, já nada me apetecia...
Já nada te apetece? repeti olhandoo.
Não... para mim não eras uma mulher, mas um objecto, não sei... uma coisa... Reparaste quando te torci o dedo até te magoar?
Sim.
Pois bem, fiz isso para me certificar de que existias de facto... mais nada... até com risco de te fazer sofrer.
Sim, eu existia e tu magoasteme muito disse sorridente.
Começava agora a compreender com alívio que não fora por antipatia que ele nada tinha querido de mim. Aliás nunca há coisa alguma de estranho nas pessoas. Desde que se procure compreendêlas, sabese que a sua conduta por mais insólita que pareça é sempre devida a um motivo perfeitamente plausível...
Então eu não te agradei? pergunteilhe.
Negou com um gesto de cabeça.
Tanto faz... tu ou outra... é a mesma coisa!
Pergunteilhe, passado um minuto de hesitação:
Dizme lá... tu não serás impotente, por acaso.
Nem por sombras.
Agora eu sentia um grande desejo de ter intimidades com ele, de transpor a distância que nos separava, de o amar e de ser amada por ele. Tinhalhe dito que não estava vexada pela sua recusa; na verdade, sentiame pelo menos mortificada e ferida no meu amorpróprio. Tinha a certeza de ser bela e sedutora: nenhuma razão verdadeira via para que ele não me desejasse.
Ouve propuslhe com simplicidade. Acabamos de beber e vamos depois para casa.
Não, é impossível.
Então isso quer dizer que não te agradei logo da primeira vez, quando me viste na rua.
Sim, procura compreender...
Sabia que não há homens que resistam a certos argumentos. “Vêse que não te agrado!” e, repetia eu com calma e com uma infinita amargura. E ao mesmo tempo estendi a mão e passeilha pela cara. Tenho a mão comprida, grande e quente; se é verdade que o carácter se pode ler nas mãos, o meu não deve ser vulgar em comparação com o de Gisela, que tem a mão vermelha, rude e disforme. Comecei a acariciarlhe com doçura as faces, a testa, a raiz dos cabelos, olhandoo com uma ternura insistente e cheia de desejo. Lembreime de que Astárito, no Ministério, tivera o mesmo gesto comigo e compreendi mais uma vez que estava realmente apaixonada por este rapaz, porque não havia dúvida de que Astárito me amava e tivera este mesmo gesto de amor. Ao sentir esta carícia, primeiro ficou impassível, depois o queixo começou a tremerlhe, o que nele era sintoma de perturbação, como pude observar mais tarde, e todo o seu rosto tomou uma expressão atrapalhada, extraordinariamente juvenil e quase infantil. Fezme pena e sentime contente por este sentimento, que me aproximava dele.
Mas que fazes? perguntoume como um garoto envergonhado. Estamos num sítio público!
Que me importa? disse eu tranquilamente. Sentia as faces a arder, apesar do frio que estava na casa, e fiquei admirada ao ver, a cada inspiração nossa, formarse uma nuvenzinha de vapor:
Dáme a tua mão! disselhe.
Deuma de má vontade e eu leveia à minha cara dizendo :
Não sentes como as minhas faces estão a arder?
Não disse palavra. Limitouse a olharme e o seu queixo tremia. Alguém bateu com a porta ao entrar e eu tirei a mão. Deu um suspiro de alívio e bebeu outro copo de um trago. Mas eu, assim que o cliente passou, estendi outra vez a mão e introduzia no casaco, desabotoando a camisa e pousandoa sobre o seu peito nu, junto do coração.
- Quero aquecer as mãos disselhe. E quero sentir como bate o teu coração.
Voltei a mão de costas e depois do lado da palma.
Tens a mão fria! disse olhandome.
Aqui vai aquecer disse sorrindo.
Conservei o braço estendido e devagarinho acariciava o seu peito e as suas costelas magras. Sentia uma grande alegria porque o sabia junto de mim e porque estava tão cheia de amor por ele que podia dispensar o seu. Olheio e disselhe com ar de fingida ameaça:
Sinto que daqui a pouco chegará o momento em que te irei beijar.
Não, não respondeu esforçandose por brincar também, mas no fundo assustado. Dominate.
Vamos embora daqui!
Vamos, se queres!
Pagou o vinho, que não acabou de beber, e saiu comigo Agora também ele parecia excitado à sua maneira; não como eu, por amor, mas por qualquer agitação do seu espírito que os acontecimentos da noite lhe tivessem provocado. Mais tarde, quando o conheci melhor, percebi que ficava sempre assim excitado quando qualquer coisa lhe permitia descobrir um aspecto ignorado do seu carácter, ou confirmar esse mesmo aspecto. Ele era muito egoísta, ou, por outra, preocupavase muito consigo próprio.
Aconteceme isto constantemente... começou a dizer como se falasse sozinho, enquanto eu o levava para a minha casa quase a correr penso fazer uma coisa, com grande entusiasmo, tudo me parece próprio, tenho a certeza de que agirei como tenciono, depois, no momento preciso, tudo se desmorona... deixo de existir, por assim dizer... ou talvez não exista de mim mais do que a pior parte da minha alma: fico frio, vazio, cruel... como quando te torci o dedo.
Monologava com ar concentrado e talvez até com uma amarga satisfação. Eu nem o ouvia, porque estava cheia de alegria: os meus pés voavam por entre os charcos. Respondilhe alegremente:
Já disseste essas coisas... mas eu, por minha vez, ainda não te contei o que sinto. Tenho um grande desejo de te apertar com força, muita força, de te dar o meu calor e de te obrigar a fazer o que não queres... não ficarei contente enquanto não o fizeres!
Nada respondeu. O que lhe dizia parecia que nem sequer lhe chegava aos ouvidos, tão ocupado estava a ruminar o que me dissera. De súbito passeilhe o braço à roda da cintura e pedilhe:
- Passa o teu braço à roda da minha cintura... Sim?
Pareceu não me ouvir. Então passeilho eu, como se faz quando se enfia um casaco. Recomeçamos a andar mal agarrados, porque estávamos cheios de roupa grossa de Inverno e quase não nos podíamos abraçar.
Quando passamos ao pé da vivenda do torreão, parei e disselhe:
Dáme um beijo!
Mais logo.
Dáme um beijo!
Voltouse e eu beijeio violentamente, passandolhe os braços à roda do pescoço. Ele ficou com a boca fechada, mas eu introduzi a língua por entre os seus lábios, depois entre os dentes, que acabaram por se descerrar. Não tive a certeza de o meu beijo ter sido retribuído; mas como já disse, pouco me importava. Separámonos e vilhe à volta da boca uma grande mancha de bâton, enviesada, que tornava cômica e esquisita a sua cara séria. Desatei a rir, toda contente.
Porque te ris? murmurou.
Hesitei, depois preferi nada lhe dizer, porque me divertia vêlo correr atrás de mim com um ar muito grave e a cara toda pintada sem que soubesse.
Por nada! disselhe. Porque estou contente... não faças caso.
Depois, para culminar a minha felicidade, deilhe outro beijo rápido nos lábios.
Quando chegamos à minha casa, já lá não estava o automóvel.
O João Carlos foise embora! disse com ar aborrecido. Sabe Deus o que vou ter que andar para voltar para casa.
Não me magoou este tom pouco gentil, porque de futuro nada me devia magoar. Os seus defeitos, como acontece quando se está apaixonado, apresentavamseme com um aspecto singular que os tornava agradáveis. Disselhe, encolhendo os ombros:
Há muitos eléctricos de noite! Aliás, se quiseres podes dormir comigo.
Não, isso não! respondeu logo.
Subimos a escada. Quando chegamos ao vestíbulo, leveio para o meu quarto e fui espreitar à sala grande. Estava às escuras, salvo junto da janela, iluminada por um bico de gás da rua que incidia sobre a máquina de costura e a cadeira. Minha mãe devia ter ido deitarse. Quem sabe se teria visto o João Carlos e a Gisela e se teria falado com eles? Fechei a porta e entrei no quarto. Jaime rondava nervosamente de um lado para o outro, entre a cómoda e a cama:
Ouve começou a dizer , é melhor irme embora!
Fingindo não ter ouvido, tirei o casaco e fui pendurálo no bengaleiro. Sentiame tão contente que não resisti a perguntarlhe com vaidade de proprietária:
Que tal achas o meu quarto? Não é confortável?
Olhou à volta e fez uma careta que não compreendi. Segureilhe a mão, obrigueio a sentarse na cama e disselhe:
Agora deixame fazer.
Despilhe o sobretudo, depois o casaco e pendureios no bengaleiro. Sem pressa, desfiz o nó da gravata e tireilha, assim como a camisa, que pus em cima de uma cadeira. Em seguida ajoelheime e, pondo o seu pé no meu regaço, como fazem os sapateiros, tireilhe os sapatos e as meias e beijeilhe os pés. Começara a agir com método e sem pressa, mas à medida que lhe tirava a roupa não sei que delírio de humildade e de adoração se apoderou de mim. Talvez o mesmo sentimento que por vezes me assaltava ao prostrarme na igreja. Era a primeira vez que o sentia por um homem, e isso tornavame feliz, porque sabia que era esse o verdadeiro amor, livre de toda a sensualidade e de todo o vício. Quando ficou nu, aperteio de encontro às minhas faces e aos meus cabelos, com força, fechando os olhos. Ele deixavame fazêlo com uma expressão admirada, que me agradava. Depois levanteime e comecei a despirme à pressa, deixando cair a roupa no chão. Ficou friorentamente sentado na beira da cama e não levantava os olhos. Aproximeime por trás dele e, animada por uma violência alegre e cruel, puxeio e deiteio de costas com a cabeça sobre a almofada. Tinha um corpo longo, magro e branco; os corpos têm a sua expressão como os rostos: o seu tinha uma expressão casta e juvenil. Estendime ao seu lado, o meu corpo contra o dele e ao pé da sua magreza, da sua graciosidade, da sua frieza e da sua brancura tive a impressão de ser muito ardente, muito morena, muito carnuda e muito forte. Aperteime com violência contra ele, comprimi o meu ventre contra os ossos das suas ancas, estendi os braços ao longo do seu peito, o meu rosto contra o seu e esmaguei os meus lábios contra a sua orelha. Pareciame que desejava não tanto amálo como envolvêlo no meu corpo como se fosse um quente cobertor e comunicarlhe o meu ardor. Estava deitado de costas, mas conservava a cabeça um pouco levantada e os olhos abertos, como se quisesse observar tudo o que eu fazia. O seu olhar atento rasava as minhas costas e inspiravame não sei que malestar e que tormento. No entanto, no primeiro impulso continuei durante algum tempo sem fazer caso disso. De repente sussurreilhe:
Não te sentes melhor agora?
Sim respondeume num tom neutro e distante.
Espera! disselhe eu.
Mas na altura em que o ia estreitar outra vez com um novo ardor, tive novamente a sensação do seu olhar fixo e frio estendendose ao longo das minhas costas, como um fio de aço molhado, e de repente sentime perdida e envergonhada. O meu ardor apagarase; lentamente afasteime e deiteime de costas, longe dele. Tinha feito um grande esforço de amor; tinha posto neste esforço todo o entusiasmo de um inocente, de um velho desespero; o brusco sentido da inutilidade deste esforço encheume os olhos de lágrimas e escondi a cara com um braço para que não visse que eu chorava. Pareciame que me tinha enganado, que nem o podia amar, nem ser amada por ele. E pensava ainda mais, que ele me via e me julgava sem ilusões, tal como eu era na realidade. Agora eu sabia que vivia numa espécie de bruma que eu própria criara para não me poder reflectir na minha consciência. Ele, com os seus olhares, dissipara essa bruma e pusera novamente o espelho diante dos meus olhos. E eu viame tal como era, na verdade, ou, melhor, tal como devia ser para ele, porque de mim eu nada pensava, nada sabia, como já o expliquei: quase não acreditava na minha existência. Acabei por lhe dizer:
Vaite embora.
Porquê? disseme apoiandose no cotovelo e olhandome com ar embaraçado. Que aconteceu?
É melhor que te vás embora! disselhe com calma sem tirar o braço da cara. Não julgues que me ofendeste... Mas sei que nada sentes por mim, e então...
Não acabei, mas abanei a cabeça. Não respondeu; sentio mexerse e sair da cama; vestiase. Uma dor aguda trespassoume a alma como se me tivessem ferido profundamente com uma lâmina fina e cortante. Sofria por ouvilo vestirse; sofria com a ideia de que daí a um momento ele se iria embora para sempre e eu nunca mais o voltaria a ver; sofria por estar a sofrer.
Vestiuse devagar, esperando talvez que eu o chamasse. Lembrome de que um instante julguei poder prendêlo excitando o seu desejo. Quando me estendera ao seu lado, tinha puxado a roupa da cama para cima. Com uma coquetterie da qual sentia o desespero e a tristeza, mexi a perna, de maneira que a roupa escorregasse ao longo do corpo. Nunca me oferecera desta maneira. Durante uns instantes, deitada de costas, as pernas afastadas e o braço sobre os olhos, tive como que a ilusão física das suas mãos sobre os meus ombros e do seu hálito na minha boca. Mas quase imediatamente ouvi a porta fecharse.
Fiquei como estava, estendida, imóvel. Creio que passei, sem dar por isso, da dor para uma espécie de semisonolência, depois ao sono. Acordei ainda de noite e reparei que estava só. Durante este primeiro sono, apesar da amargura da separação, o sentido da sua presença ficarame. Não sei como, voltei a adormecer.
No dia seguinte surpreendime por me sentir lânguida, melancólica, como se tivesse saído de uma longa doença. Sou de carácter alegre, e como em mim a alegria vem da saúde e da robustez do corpo, ela foi sempre mais forte do que todas as adversidades, se bem que me tenha acontecido por vezes sentirme alegre sem que o queira em circunstâncias em que me deveria sentir bem triste. Assim raro era o dia em que logo que me levantava não sentia desejo de cantar ou de contar alguma graça à minha mãe. Mas, nessa manhã, mesmo esta involuntária alegria me faltava; sentiame apagada e dolente, sem desejo de viver as doze horas de vida que o dia me oferecia. Como minha mãe reparasse logo nesta mudança de humor, disselhe que tinha dormido mal.
Era verdade, e esse fora um dos numerosos efeitos da profunda mortificação que me trouxera a recusa de Jaime. Já o disse; há muito tempo que não me importava de ser o que era: não achava em mim própria qualquer razão para não o ser. Mas esperava amar e ser amada; ora, a recusa de Jaime, apesar das razões complicadas que ele me dera, parecia não poder ser atribuída senão ao meu ofício, o qual por este motivo se me tornara bruscamente odioso, intolerável.
O amorpróprio é um curioso animal que pode não acordar aos mais cruéis golpes e despertar ferido de morte por uma simples arranhadura. Havia uma recordação entre todas que me afligia e me enchia de amargura e de vergonha: - Que tal achas este quarto? perguntaralhe. Não é confortável?
Lembrarame de que não respondera, mas olhara tudo à sua volta com uma careta que eu de momento não compreendi. Agora sabia que tinha sido uma careta de desagrado. Tinha com certeza pensado: “O quarto de uma prostituta!” Quando recordava isto, o que mais me afligia era o ter pronunciado esta frase com uma ingênua satisfação. Deveria ter pensado que a uma pessoa como ele, tão fina, tão sensível, o meu quarto devia parecerlhe um antro sórdido, duplamente feio, pelos seus móveis tão modestos e pelo uso que eu lhe dava. Bem desejei nunca ter pronunciado esta frase infeliz, mas agora era tarde. Nada havia a fazer! Davame a sensação de uma prisão da qual eu não podia fugir de maneira alguma. Esta frase era eu própria, inalterável, de futuro, como no que eu me tornara por vontade. Esquecêla ou ter a ilusão de não a ter dito era o mesmo que esquecerme de mim própria ou querer ter a ilusão de que não existia.
Estas reflexões intoxicavamme como um veneno lento que lentamente seguira o seu caminho nefasto por entre o sangue das minhas veias. Habitualmente, de manhã, costumava saltar da cama, obedecendo a uma espécie de vontade independente. Mas nesse dia foi exactamente o contrário que aconteceu: a manhã passou, chegou a hora do almoço e eu nem sequer ainda me tinha mexido. Sentiame inerte, impotente, entorpecida e ao mesmo tempo dorida como se esta imobilidade me causasse uma fadiga desesperada. Tinha a impressão de ser um desses barcos apodrecidos que ficam amarrados em qualquer baía pantanosa, com o ventre cheio de água fétida e negra: se alguém sobe para eles, as pranchas apodrecidas cedem logo e a barca, que talvez ali estivesse há anos, afundase num instante. Não sei quanto tempo fiquei neste estado enrolada na roupa da cama, os olhos dilatados, o lençol puxado até ao nariz. Ouvi tocar o meiodia nos sinos, depois a uma, as duas, as três, as quatro horas. Tinha fechado a porta à chave e de vez em quando minha mãe, inquieta, vinha baterme à porta. Respondialhe que já me levantava e que me deixasse em paz. Quando começou a anoitecer, procurei ser corajosa, fiz um esforço, que me pareceu sobrehumano, atirei com a roupa e levanteime da cama. Sentia os membros inchados de inércia. Laveime, vestime, arrastandome de um lado para o outro no quarto. Em nada pensava; sabia somente, não no meu espírito, mas em todo o meu corpo, que pelo menos nesse dia não desejava ir à caça dos meus amantes costumados. Depois de vestida, fui ter com minha mãe e disselhe que passaríamos a noite juntas. Passearíamos pelo centro da cidade e à noite iríamos tomar um aperitivo a um café.
A alegria de minha mãe, que não estava habituada a este género de convites, irritoume não sei porquê: mais uma vez tive ocasião de observar como as suas faces estavam flácidas e gordas e como os olhos empapuçados tinham um luzir equívoco e falso. Mas refreei a tentação de lhe dizer alguma indelicadeza que teria destruído a sua alegria e fui sentarme à mesa da sala grande, à espera que ela se vestisse. A luz branca dos anúncios entrava pela janela sem cortinas, iluminava a máquina de costura e estendiase pela parede. Baixei os olhos sobre a mesa e vi as figuras coloridas do jogo de paciência com que minha mãe enganava o aborrecimento das suas longas noites. Então, bruscamente, tive uma sensação extraordinária: pareciame que era eu minha mãe em carne e osso, esperando que sua filha Adriana, no quarto ao lado, acabasse o encontro com o seu amante de passagem. Esta impressão provinha sem dúvida de eu me ter sentado no seu lugar à mesa, em frente das suas cartas. Os lugares às vezes dãonos destas sugestões: mais de uma pessoa, ao visitar uma prisão, experimenta o frio, o desespero, o sentimento de isolamento do prisioneiro que há muito tempo ali definha. Mas a sala não era uma prisão e minha mãe não sofria de dores tão concretas e fáceis de imaginar. Ela limitavase a viver como sempre vivera. Todavia, talvez por há pouco ter sentido contra a sua pessoa um movimento de hostilidade, esta percepção da sua vida operara em mim uma espécie de reencarnação. As pessoas boas, para desculparem alguma má acção, dizem por vezes: “Põete no seu lugar”. Pois bem! Acabava de me pôr no lugar de minha mãe a ponto de ter a sensação de ser ela própria.
Erao... mas com a consciência de o ser, coisa que não lhe acontecia, de contrário já se teria revoltado de uma maneira ou de outra. Sentiase flácida, envelhecida, enrugada; compreendi o que é a velhice, que não só muda o aspecto do corpo, mas tornao inepto e inerte. Como era minha mãe? Por vezes tinhaa visto quando se despia, e reparava, sem pensar, nos seus seios negros e murchos, no ventre amarelo e encolhido. Agora esses seios, que me tinham amamentado, esse ventre, de onde eu saíra, sentiaos tanto em mim que quase julgava poder tocarlhes, causavamme o desgosto, a pena impotente que ela devia ter sentido ao ver a mudança do seu corpo. A juventude e a beleza tornam a vida suportável e por vezes alegre. Mas quando já não existem? Senti um calafrio acordarme deste pesadelo e feliciteime por ser na realidade a bela e jovem Adriana e não a sua mãe, que não era nova nem bela, nem nunca mais o seria.
Mas ao mesmo tempo, como um mecanismo parado que começa lentamente a moverse, começaram a formigar no meu espírito todas as ideias que lhe deviam passar pela cabeça enquanto esperava que eu aparecesse na sala. Não é difícil imaginar o que pode pensar uma pessoa como minha mãe em semelhantes circunstâncias; somente, na maior parte das pessoas, o facto de imaginar nasce da reprovação e do desprezo e em vez de imaginar elas constroem um fantoche sobre o qual vertem a sua hostilidade. Mas eu, que gostava de minha mãe e que só me punha no seu lugar por amor, sabia que naqueles momentos os seus pensamentos não eram nem interessantes, nem assustadores, nem vergonhosos, nem sequer relacionados de qualquer maneira com o que eu fazia e com quem o fazia. Sabia, pelo contrário, que as suas ideias eram insignificantes e ocasionais como era natural de uma pessoa como ela, pobre, velha, ignorante, e que durante toda a vida não tinha pensado dois dias a seguir da mesma maneira sem receber da necessidade o mais peremptório desmentido. As grandes ideias e os grandes sentimentos sejam tristes e negativos precisam de protecção; são plantas delicadas que levam tempo a criar raízes e a fortificar. Minha mãe nunca tinha podido cultivar nem no seu espírito, nem no seu coração, outra coisa que as maldosas e efêmeras ervas das reflexões e das preocupações e dos ressentimentos quotidianos, enquanto eu, no quarto ao lado, me dava aos homens por dinheiro. Assim, diante da sua “paciência”, podiam continuar a rolar na sua cabeça sempre as mesmas imbecilidades (se é justo chamar assim às coisas que nela tinham vivido durante tantos anos): o preço dos alimentos, a costura que havia para fazer e outras coisas parecidas. Talvez agora, ao ouvir o som dos sinos da igreja vizinha, ela por vezes pensasse sem ligar grande importância ao facto: “Desta vez a Adriana leva mais tempo que de costume.” Ou quando ouvia abrir a porta e falar no vestíbulo: “A Adriana acabou.” Que mais? Com estas ideias na cabeça eu era a minha mãe completa: corpo e alma. E justamente porque conseguira ser como ela de uma maneira tão completa tinha a impressão de a amar outra vez , e mais do que dantes.
Acordei deste sonho com o ruído da porta que se abria. Minha mãe acendeu a luz e perguntoume:
Que fazes aí às escuras?
Deslumbrada pela luz, levanteime e olheia. Tinha mudado de facto; reparei logo. Não tinha chapéu, porque nunca o usara, mas vestira um vestido preto de feitio complicado. Sobraçava uma grande mala de couro preto com fechos de metal amarelo e trazia ao pescoço uma pele de gato bravo. Molhara os seus cabelos cinzentos e pentearaos com cuidado, prendendoos num rolo na nuca com numerosos ganchos. Até tinha passado um pouco de pó de arroz rosado sobre as faces, dantes áridas e magras e agora cheias e coradas. Sem querer, sorri por vêla tão aperaltada e tão solene. E foi no meu tom afectuoso de sempre que lhe disse:
Vamos!
Sabia que ela gostava de passear à hora de maior movimento pelas ruas principais, que tinham as lojas mais bonitas da cidade. Assim, tomamos um eléctrico e descemos a Rua Nacional. Minha mãe costumava levarme a passear nessas ruas quando eu era garota. Começava na Praça do Hexaedro pelo passeio da direita. Lentamente, examinando as montras uma por uma com atenção, chegava à Praça de Veneza. Ali, sempre observando tudo com minúcia e puxandome pela mão, passava para o outro passeio e voltava para a Praça do Hexaedro. Então, sem ter comprado um alfinete nem se ter atrevido a pôr pé num dos numerosos cafés da rua, traziame para casa, sonolenta e cansada. Lembravame de que esses passeios não me agradavam, porque, ao contrário de minha mãe, eu teria desejado entrar, comprar e trazer para casa todas as belas coisas expostas atrás dos vidros brilhantemente iluminados. Mas depressa aprendera que éramos pobres e não manifestava de forma alguma os meus sentimentos. Uma vez só, não me lembro porquê, tive, como costuma dizerse, uma birra. E percorremos a rua do princípio ao fim, minha mãe puxandome por um braço e eu resistindo com todas as forças, chorando e gritando... Por fim, em vez do objecto desejado, minha mãe deume um par de tabefes e a dor da bofetada fez esquecer a da renúncia.
Encontreime de novo pelo braço da minha mãe, no mesmo passeio da mesma Praça do Hexaedro, como se os anos não tivessem passado. Via as pedras dos passeios, onde formigavam pés calçados com botas, grossos sapatos, sandálias, saltos altos, saltos baixos; via os transeuntes que subiam e desciam a rua, a dois e dois, em grupos de homens, de mulheres e de crianças ou ainda pessoas sós, umas lentas outras apressadas, todas iguais, justamente porque queriam parecer diferentes, com os mesmos fatos, os mesmos chapéus, as mesmas caras, os mesmos olhos, as mesmas bocas. Via as sapatarias, as joalharias, as relojoarias, as livrarias, as floristas, as lojas de fazendas, os luveiros, os cafés e os cinemas, os bancos. Revia as janelas iluminadas das belas casas, com pessoas lá dentro a andar de um lado para o outro ou sentadas à mesa a trabalhar, os anúncios luminosos, sempre os mesmos. Num canto da rua, o vendedor de jornais, os vendedores de castanhas, os mendigos: o cego com a cabeça encostada à parede, a bengala branca estendida e os óculos pretos; mais abaixo a mulher quase velha com uma chaga no seio, ainda mais abaixo o idiota com aquele coto amarelo luzidio como um joelho e que estendia à caridade. Ao encontrarme nesta rua, no meio de todas as coisas que me eram familiares, experimentava uma fúnebre impressão de imobilidade, que me arrepiou da cabeça aos pés, e durante um momento tive a sensação de estar nua, como se um sopro de terror se tivesse infiltrado por entre a minha roupa e a minha pele. O aparelho de T. S. F. de um café transmitia a voz ruidosa e apaixonada de uma mulher que cantava. Era no ano da guerra da Etiópia e ela cantava Linda Caránha Preta.
Como era natural, minha mãe não se apercebia dos meus sentimentos; de resto eu não os deixava transparecer. Como já disse, tenho um aspecto tão doce e tão fleumático que é raro as pessoas adivinharem o que passa pela minha cabeça. Num certo momento, no entanto, sentime comovida (a mulher acabava de cantar uma cançoneta sentimental), os lábios começaramme a tremer e disse a minha mãe:
Lembraste de quando me fazias subir e descer esta rua para ver as montras?
Lembrome respondeu ela , mas nesse tempo estava tudo mais barato... Esta mala, por exemplo, compreia por metade do preço de agora!
Passamos da montra de uma loja de malas para a de uma joalharia. Minha mãe parou a contemplar as jóias e disse com ar extasiado:
Olha aquele anel... Sabe Deus o que custa!... E esta pulseira... toda de ouro maciço! Eu nunca tive a paixão das pulseiras ou dos anéis... mas colares, sim! Tinha um colar do coral... mas tive de o vender.
Quando?
Oh! Há muitos anos!
Não sei porquê, lembreime de que com o dinheiro ganho com a minha profissão não tinha ainda podido comprar o mais miserável anelzito. E declarei a minha mãe:
Sabes... Decidi que daqui em diante mais ninguém traria para casa. Acabou.
Era a primeira vez que eu aludia ao meu ofício de uma forma tão explícita. A cara dela teve uma expressão que eu de momento não consegui interpretar, e respondeu:
Já to disse muitas vezes... Farás aquilo que entenderes. Se estiveres contente, eu também estou.
No entanto, não parecia satisfeita.
Recomeçaremos a vida que levávamos dantes continuei, serás obrigada a voltar a cortar e a coser as tuas camisas.
Já o diz durante tantos anos! disse.
Não teremos tanto dinheiro como agora insisti um pouco cruelmente. Temos levado uma rica vida. Por mim ainda não sei o que farei.
Que vais fazer? perguntoume minha mãe com uma expressão de esperança.
Não sei respondi. Recomeçarei a ser modelo... ou talvez te ajude às camisas...
Oh! Mas como me poderás ajudar?... disse ela, desencorajada.
Ou então arranjo um lugar de criada continuei. - Que queres que faça?
Agora minha mãe tinha uma cara amarga e triste como se sentisse bruscamente toda a gordura dos últimos anos abandonála, como as folhas mortas que se desprendem das árvores aos primeiros frios do Outono. Disse com a mesma convicção:
Farás o que quiseres repito. Contanto que estejas contente!
Compreendia que dois sentimentos opostos se debatiam dentro dela: o seu amor por mim e o seu desejo de uma vida confortável. Fezme pena. Teria preferido que tivesse tido a coragem de sacrificar deliberadamente um dos dois sentimentos e fosse toda amor ou toda interesse. Mas é raro que isso aconteça: passamos toda a vida a anular com a acção dos nossos vícios o efeito das nossas virtudes.
Eu dantes não estava satisfeita e agora também não irei estar. Somente não tenho coragem para continuar esta vida.
Depois destas palavras nada mais dissemos. Minha mãe estava com uma cara abatida; a sua magreza de outrora, a sua pele esticada, pareciam desenharse já de novo debaixo do seu ar de prosperidade. Examinava as montras com o mesmo ar minucioso, as mesmas longas contemplações, mas sem alegria, sem curiosidade, maquinalmente, como se pensasse noutra coisa. Talvez nada visse do que olhava, ou, melhor, não visse os objectos expostos, mas uma máquina de costura, com um pedal infatigável e uma agulha que subia e descia como louca, pedaços de tecido meio confeccionados sobre a mesa da costura, bocados de papel preto nos quais embrulhava o trabalho acabado para entregar na cidade aos clientes. Pela minha parte, estes fantasmas não se interpunham entre os meus olhos e a montra. Via tudo muito bem e pensava de uma maneira clara. Inspeccionava os objectos um por um, vendo a etiqueta com o preço, e dizia a mim própria que podia muito bem não querer continuar o meu ofício (como de facto não queria), mas que na realidade não podia ter outro. Alguns objectos que via nas montras poderia vir a têlos se economizasse um pouco; no dia em que voltasse aos meus anteriores trabalhos seria preciso renunciar a estas coisas para sempre; recomeçaria para mim e para minha mãe a nossa vida de outrora, restrita, sem conforto, cheia de renúncias e de recalcamentos, de sacrifícios inúteis e de economias sem resultado. Actualmente podia aspirar a uma jóia se encontrasse alguém que ma pudesse oferecer. Mas se voltasse à minha vida miserável, as jóias tornarseiam para mim tão inacessíveis como as estrelas do céu. Assaltoume um violento desagrado por essa vida passada, que me pareceu estupidamente desesperante, e senti como eram absurdos os motivos que me tinham levado a pensar em mudar de vida. Porque um estudante por quem eu tinha ficado embeiçada não me tinha querido! Porque se me tinha metido na cabeça que ele me desprezava? Em suma, só porque eu não tinha querido ser o que era. Compreendi que era unicamente orgulho, e não podia por simples orgulho voltar, e sobretudo obrigar minha mãe a voltar, à nossa miserável situação de antigamente. Vi de súbito a vida de Jaime, que se aproximara da minha e nela se fundira, divergir numa direcção diferente e a minha continuar pela estrada que eu tinha escolhido. Se encontrasse alguém que gostasse de mim e me desposasse, então sim, nem que fosse pobre! Mas por capricho extravagante não valia a pena! A esta ideia, uma grande calma, feita de alívio e doçura, invadiume a alma. Era uma sensação que frequentemente experimentava de cada vez que não só aceitava o destino que a vida me impusera, mas também quando ia ao meu encontro. Era o que era: devia ser isto e não outra coisa. Podia ser uma boa esposa, por muito estranho que pareça, ou uma mulher que se dá por dinheiro, mas nunca uma desgraçada que se condenou a uma vida de miséria apenas para satisfação do seu orgulho. Por fim sorri, reconciliada comigo própria.
Estávamos em frente de uma loja de novidades para senhora. Minha mãe disseme:
Olha que lindo lenço. De um lenço assim é que eu precisava.
Tranquila e serena, levantei os olhos para ver o lenço que minha mãe indicava. Era realmente bonito, preto e branco, com ramos e pássaros. Da porta da loja podia verse sobre o balcão uma caixa com divisões cheia de lenços iguais e desdobrados. Pergunteilhe:
Gostas do lenço?
Sim. Porquê?
Vais têlo, mas, para começar, dáme a tua mala e toma lá a minha.
Ela nada percebia e olhavame de boca aberta. Sem falar trocamos as malas, abri o fecho, segurandoo com dois dedos, e, devagar, com o passo de quem quer comprar, entrei na loja. Minha mãe seguiume. Continuava a não compreender, mas não ousava perguntar.
Queríamos ver lenços disse eu à empregada aproximandome da caixa das divisões.
Estes são de seda, estes de caxemira, estes de lã... estes são de algodão... dizia a empregada estendendoos à minha frente.
Aproximeime o mais possível do balcão, com a mala ao nível da barriga, e comecei a examinar, só com uma das mãos, os lenços, abrindoos e voltandoos para a luz para ver melhor o desenho. Havia pelo menos uma dúzia deles, todos parecidos. Consegui que um ficasse caído de maneira que uma grande ponta pendesse para o lado de fora do balcão. Depois disse à empregada:
Gostaria de ver alguns de tons mais vivos.
Temos um artigo melhor, mas mais caro! disse ela.
Mostreme.
A empregada voltouse para puxar uma caixa de riscas. Era tempo; afasteime um pouco do balcão e abri a mala; puxar a ponta do lenço e tornar a encostarme ao balcão foi obra de um instante.
Entretanto, a empregada trouxera a caixa. Pousoua sobre o balcão e mostroume outros lenços maiores e mais bonitos. Eu examinavaos fazendo observações sobre as cores e os desenhos e mostrandoos a minha mãe, que tinha visto tudo e me respondia com acenos de cabeça, mais morta do que viva.
Quanto custam? perguntei.
A empregada disse o preço e eu respondi num tom desgostoso:
Tinha razão; são muito caros... pelo menos para mim. Obrigada.
Saímos da loja e dirigimonos rapidamente para uma igreja próxima, porque eu receava que a empregada desse pelo roubo e nos perseguisse por entre a multidão. Minha mãe, que me dava o braço, olhava em volta com ar assustado, como um bêbado que pergunta a si mesmo se não serão os objectos que estão bêbados porque os vê vacilar e baralharemse. Não pude deixar de sorrir da sua atrapalhação. Não sabia porque tinha roubado o lenço: a coisa, de resto, não tinha importância, porque eu já tinha roubado a caixa de pó de arroz de Gino e porque nas coisas deste gênero o primeiro passo é que custa. Mas experimentava o mesmo prazer sensual e começava a compreender porque havia tanta gente que roubava. Perto da igreja disse a minha mãe:
Queres entrar por um instante?
Como quiseres! respondeume em voz baixa.
Entrámos: era uma igrejinha branca, redonda, à qual uma colunata disposta em volta do pavimento dava a impressão de uma sala de baile. Levantei os olhos e vi que a cúpula estava cheia de frescos representando anjos de asas abertas. Tive a convicção de que estes belos anjos me protegeriam e que a empregada só se aperceberia do roubo à noite. O silêncio, o cheiro do incenso, a sombra, o recolhimento da igreja, davamme segurança, depois do tumulto e da luz violenta da rua. Entrara depressa, arrastando um pouco minha mãe, mas acalmeime logo e o medo desapareceu. Minha mãe fez menção de abrir a minha mala que ainda conservava e eu troqueia pela sua, dizendolhe:
Põe o lenço!
Ela abriu a mala e pôs na cabeça o lenço roubado. Molhamos os dedos em água benta e fomonos sentar na primeira fila de bancos em frente do altarmor. Ajoelheime, enquanto minha mãe ficava sentada com as mãos sobre os joelhos, a cara escondida pelo lenço demasiadamente grande. Percebi que ela estava perturbada e não pude deixar de comparar a sua perturbação com a minha calma. Estava com uma disposição de espírito doce e conciliadora; não sentia remorsos e estava muito mais próxima da religião do que quando não praticava acções condenáveis e trabalhava cerrando os dentes para ganhar a vida. Lembreime do frêmito de desalento que momentos antes sentira ao olhar as ruas cheias de gente e sentime reconfortada à ideia de que havia um Deus que via claro no meu íntimo: verificava que em mim nenhum mal havia, que pelo único facto de viver estava inocente, como todos os homens de resto. Sabia que este Deus não estava lá para me condenar ou julgar, mas para justificar a minha existência, que só podia ser boa, visto que só dependia dele. Rezando maquinalmente e pronunciando as palavras da oração, olhava o altar sobre o qual, atrás da chamazinha trêmula dos círios, entrevia um quarto com uma imagem que me parecia ser a da Virgem e sentia que entre mim e a Virgem a questão não era saber se eu devia viver desta ou daquela maneira, mas, mais radicalmente, se me devia considerar encorajada a viver ou não. E bruscamente tive a impressão de que este encorajamento partia da silhueta escura que estava atrás dos círios do altar sob a forma de um brusco calor que me envolveu o corpo todo.
Minha mãe ficara toda trêmula e assustada, com o seu lenço novo que lhe fazia um bico por cima do nariz. Quando a olhei, não pude deixar de sorrir com amizade.
Reza um bocadinho murmureilhe. Verás que te faz bem.
Ela estremeceu, hesitou, depois ajoelhouse e pôs as mãos como que de má vontade. Sabia que ela não queria acreditar na religião, que lhe parecia um falsa consolação destinada a acalmála e a fazerlhe esquecer as durezas da vida. Nem ao menos a vi mover maquinalmente os lábios, e a sua cara cheia de desconfiança e de mau humor fezme sorrir de novo. Teria desejado sossegála, dizerlhe que mudara de ideias, que não devia ter receio, que não seria obrigada a coser à máquina outra vez. Havia qualquer coisa de infantil na sua má disposição: era como uma criança a quem se recusa um bolo que se tinha prometido, e esta aparência pareciame o aspecto fundamental da sua conduta para comigo. Se assim não fosse, eu teria de pensar que ela desejaria que eu continuasse com o meu ofício para usufruir daí o seu conforto; e eu sabia, no fundo, que não era verdade.
Quando acabou de rezar, persignouse com ar seco e despeitado para marcar bem que o fazia só para me ser agradável. Saímos. À porta tirou o lenço, dobrouo cuidadosamente e meteuo na mala. Voltamos à Rua Nacional e encaminheime para uma pastelaria.
Vamos tomar um vermute! disselhe.
Não, não, não vale a pena! respondeu com uma voz em que a apreensão e o prazer se misturavam.
Fazia sempre a mesma coisa; por um velho hábito, receava sempre que eu fizesse gastos excessivos.
Ora! disselhe. Por um vermute!
Calouse e seguiume.
Era uma velha pastelaria com um balcão com embutidos de caju luzidio e muitas vitrinas cheias de lindas caixas com bombons. Sentámonos num canto e pedi dois vermutes. O criado intimidou minha mãe, que baixou os olhos, imóvel e envergonhada, enquanto eu dava as competentes ordens. Quando trouxeram os vermutes, ela bebeu um pequeno gole, tornou a pôr o copinho em cima da mesa, olhoume e pronunciou com gravidade:
É bom.
É vermute disse eu.
O criado trouxe uma grande caixa de vidro e metal com bolos. Abria e disselhe:
Come um bolinho!
Não, não, por favor...
Pelo menos um...
Tiravame o apetite.
Um bolo só!...
Escolhi um folhado com creme e oferecilho dizendo:
Come este, que é leve.
Ela mordicouo com precaução, olhando para o sítio que tinha mordido.
É realmente muito bom! disse por fim.
Come outro disselhe.
Desta vez não se fez rogada e comeu o segundo bolo. Acabado o vermute, ficámos silenciosas, contentandonos em olhar o vaivém de clientes na pastelaria. Compreendia que minha mãe se sentia contente por estar sentada neste canto com um vermute e dois bolos no estômago, que as idas e vindas desta gente lhe despertavam a curiosidade e a divertiam e que nada tinha para me dizer. Era provavelmente a primeira vez que ela ia a um lugar destes.
Uma rapariga entrou. Trazia pela mão uma garotinha com uma gola de pele branca, um vestido curto, meias e luvas brancas. A mãe escolheu um bolo e deuo à garota. Eu disse a minha mãe:
Quando eu era pequena, nunca me trazias às pastelarias!
Como podia eu? respondeu.
Agora disse tranquilamente , quem te leva às pastelarias sou eu.
Calouse, depois disseme com ar penalizado:
Estás a censurarme por ter vindo... mas eu não queria!
Pousei a minha mão sobre a sua e disselhe:
Não te censuro... Pelo contrário, estou bem contente por te ter trazido... A avó nunca te levava às pastelarias?
Ela abanou a cabeça:
Até aos dezoito anos nunca saí do meu bairro.
Então já vês disselhe. Numa família é preciso que haja alguém que faça certas coisas, um dia ou outro. Tu nunca o fizeste, tua mãe também não, nem provavelmente a mãe da tua mãe... então façoas eu... Não pode continuar tudo eternamente da mesma maneira.
Nada disse e passamos ainda um quarto de hora a observar as pessoas. Depois abri a mala, tirei a cigarreira e acendi um cigarro. É frequente as mulheres como eu fumarem nos lugares públicos para chamarem a atenção dos homens. Mas eu naquela altura não pensava em procurar amantes; tinha até decidido deixar de o fazer. Apeteciame fumar, mais nada. Introduzi o cigarro nos lábios e deitei uma baforada pelo nariz, conservando o cigarro entre os dedos e olhando em volta. Mas devia haver nos meus gestos, sem que eu desse por isso, qualquer coisa de provocante, porque vi logo alguém que se encontrava junto do balcão e segurava uma chávena de café que se preparava para beber suspender o movimento e olharme fixamente. Era um homem de quarenta anos, baixo, de cabelo encaracolado, olhos salientes e maxilares duros. Tinha o pescoço tão curto que quase não existia. Como um touro que vê o vermelho e pára a olhar de cabeça baixa, assim ele me olhava com a chávena na mão. Estava vestido elegantemente, com um sobretudo que valorizava os seus largos ombros. Sabia que com aquele aspecto bastava que eu o olhasse para que as veias do pescoço lhe inchassem e a cara ficasse vermelha. Mas não tinha a certeza de que ele me agradasse. Depois senti como que uma seiva secreta saindo de uma casca rugosa, sob a forma de mil germezinhos ternos; o desejo de o excitar espicaçavame o corpo todo e obrigavame a deixar a minha atitude reservada. Justamente uma hora antes eu tinha decidido deixar esta vida. Pensava que realmente nada havia a fazer... era mais forte do que eu! Mas pensavao alegremente. Depois de sair da igreja, tinhame reconciliado com a minha sorte, fosse ela qual fosse, e sentia que esta aceitação valia mais para mim que qualquer nobre recusa. E assim, passados uns momentos de reflexão, levantei os olhos para o homem. Ainda me olhava, apalermado, com a chávena na sua mão peluda e os olhos bovinos fixos em mim. Então, tomei, por assim dizer, o meu impulso, e com toda a malícia de que era capaz dispareilhe um longo olhar cálido e sorridente. Recebeuo em cheio e, como já tinha previsto, congestionouse. Bebeu o café, pôs a chávena no balcão e, muito direito no seu sobretudo apertado, foise embora, para pagar na caixa. A porta olhou para trás e fezme claramente e com ar imperioso um sinal de inteligência. Saiu e eu disse a minha mãe :
Deixote... fica tu! De qualquer maneira não te poderia acompanhar.
Ela estremeceu:
Porquê? Aonde vais?
Esperamme lá fora disselhe, levantandome. Toma o dinheiro: paga e volta para casa... Aliás chegarei primeiro... mas não vou só.
Olhoume com ar assustado e julguei ver uma sombra de remorso no seu olhar. Mas ficou calada. Disselhe adeus e saí. O homem esperavame na rua. Apenas saíra já ele se inclinava para mim e me agarrava violentamente o braço dizendo:
Para onde vamos?
Para minha casa.
Foi assim que depois de algumas horas de angústia renunciei à luta contra o que parecia ser o meu destino, e o abracei até com mais amor, como se estreita um inimigo que não se pode vencer. E sentime liberta. Alguns vão pensar que é fácil aceitar uma sorte ignóbil mas rendosa em vez de a recusar. Eu tenho perguntado muita vez a mim própria porque a tristeza e a raiva enchem as almas daqueles que vivem segundo certos preceitos e certos ideais, enquanto que aqueles que aceitam a sua vida, que é acima de tudo nulidade, obscuridade e fraqueza, são tão freqüente mente despreocupados e alegres. Neste caso, de resto, cada qual obedece não a preceitos, mas ao seu temperamento, que toma o aspecto de destino. O meu, como já o disse, era ser a todo o custo alegre, doce e tranquila e eu aceiteio.
Renunciei completamente a Jaime e não pensei mais nele. Sentia que o amava, que se ele tivesse voltado eu teria ficado feliz e amáloia mais do que nunca, mas sentia também que não me deixaria mais humilhar por ele. Se ele tivesse voltado, teria ficado na sua frente, fechada na minha vida como numa fortaleza que seria verdadeiramente inexpugnável enquanto a não abandonasse. Dirlheia: “Sou uma rapariga da rua e nada mais. Se me queres, é preciso que me aceites tal como sou.” Tinha compreendido que a minha força não era desejar ser aquilo que não sou, mas aceitar aquilo que era. A minha força era a minha fortaleza, o meu trabalho, a minha mãe, a minha casa, as minhas roupas modestas, a minha origem humilde, as minhas infelicidades e, mais intimamente, o sentimento que me fazia aceitar todas estas coisas profundamente enterradas na minha alma como uma pedra preciosa na terra. Contudo, estava certa de que não o tornaria a ver; e esta certeza fazia com que o amasse de uma maneira nova para mim, impotente e melancólica, mas não privada de doçura, como se amam os que morreram e nunca mais voltarão. No decurso desses dias rompi com Gino. Como já o disse, não gosto dos rompimentos bruscos; quero que as coisas vivam e morram naturalmente. As minhas relações com Gino são um bom exemplo desta vontade. Elas acabaram porque a vida que as animava se apagou e não por qualquer falta da minha parte e nem sequer, num certo sentido, por culpa de Gino. Acabaram de maneira a não me deixarem nem desgosto nem remorso.
Continuara a vêlo de tempos a tempos, duas ou três vezes por mês. Agradavame, como já disse, se bem que já tivesse perdido toda a estima que tivera por ele. Num desses dias marcoume, pelo telefone, encontro numa pastelaria onde eu lhe disse que iria.
Era uma pastelaria do meu bairro. Gino esperavame na salinha do fundo, numa espécie de gabinete sem janelas, com as paredes completamente revestidas de azulejos. Quando entrei, reparei que não estava só. Alguém estava sentado com ele, de costas viradas para mim. Só via que trazia um impermeável verde e que tinha cabelos louros, cortados muito curtos. Aproximeime e Gino disse:
Deixame apresentarte o meu amigo Sonzogne.
Então ele levantouse; olheio e estendilhe a mão. Mas quando ele ma apertou, tive a impressão de ter sido agarrada por tenazes e dei um pequeno grito de dor. Ele largoume logo a mão; senteime sorrindo e disselhe:
Sabe que me magoou? Você aperta sempre assim a mão?
Não me respondeu nem sequer sorriu. Tinha a cara branca como o papel, a testa saliente, olhos pequeninos azuisclaros, o nariz adunco e a boca cerrada como um corte. Os seus cabelos louros, lisos e deslavados, estavam cortados curtos sobre as têmporas achatadas, mas a base da cara era larga, com maxilares largos e desgraciosos. Parecia estar sempre a cerrar os dentes, como se triturasse qualquer coisa, e constantemente, debaixo da pele das faces, viase fremir e deslizar uma espécie de nervo. Gino, que parecia ter por ele uma amizade afectuosa e admirativa, disseme rindo:
Mas isto nada é... Se tu soubesses como é forte! Tem o soco proibido!
Tive a impressão de que Sonzogne o olhava com hostilidade. Acabou por dizer com voz surda:
Não é verdade que tenha o soco proibido... Mas podia ter!
Perguntei:
Que é isso do soco proibido?
Sonzogne respondeume secamente:
Quando se pode matar um homem com um soco, não se tem o direito de empregar o punho. É como fazer uso do revólver.
Mas sente como ele é forte! insistiu Gino, excitado e desejoso, parecia, de se reconciliar com Sonzogne. Vamos pedialhe , deixaa apalpar os teus braços!
Hesitei, mas dirseia que Gino o desejava e que o seu amigo também esperava esse gesto. Estendi a mão molemente para lhe apalpar o braço. Ele dobrou o antebraço para retesar os músculos, mas seriamente, quase que com um ar sombrio. Então, com grande surpresa minha, porque ao vêlo dava o aspecto de um homem franzino, os meus dedos sentiram, através das mangas, como um rolo de cabo de aço. Retirei a mão com uma exclamação, não sei se de admiração, se de repugnância. Sonzogne olhoume com ar satisfeito, um leve sorriso nos lábios. Gino declarou:
É um velho amigo... Não é verdade, primo, que nos conhecemos há muito tempo? Somos como dois irmãos!
E deu uma palmada nas costas de Sonzogne, acrescentando:
O meu velho primo!
Mas o outro levantou os ombros para afastar a mão de Gino e respondeu:
Nem amigos, nem irmãos... Trabalhamos na mesma garagem, é o que é!
Gino não se desconcertou:
Eh! Sei que de ninguém queres ser amigo! Sempre só... sempre por tua conta... nem homens nem mulheres!
Sonzogne olhouo. Tinha um olhar frio, de uma imobilidade e de uma insistência incríveis, e Gino desviou dele os seus olhos.
Quem te contou essas histórias? disselhe Sonzogne. Ando com quem me agrada, homens e mulheres!
Falei por falar desculpouse Gino, que parecia perder toda a segurança. Pelo que me diz respeito, é certo que nunca te vi com ninguém.
Tu nada sabes da minha vida.
Ora! Eu que te via todos os dias de manhã à noite!
Viasme todos os dias, e então?
Bem! insistiu Gino desconcertado. Como te via sempre sozinho, pensei que não te desses com ninguém. Quando um homem tem uma mulher ou um amigo, acaba sempre por se saber!
O outro disselhe brutalmente:
Não te faças cretino!
Agora chamasme cretino! disse Gino corado, afectando julgar a frase de humor inofensivo.
Mas sentiase que tinha medo. Sonzogne repetiu:
Não te faças cretino, senão partote a cara!
Bruscamente, compreendi que não só ele era capaz de o fazer, mas que era mesmo essa a sua intenção. Pouseilhe a mão no braço e disselhe:
Se vocês se querem bater, façamno quando eu não estiver presente... detesto violências.
Apresentote uma rapariga minha amiga disse Gino, penalizado e tu assustala desta maneira... Ela vai pensar que somos dois inimigos.
Sonzogne voltouse para mim e pela primeira vez sorriu. Quando sorria, piscava os olhos, franzia a testa de uma maneira irregular e mostrava não só os dentes, que eram pequenos e frios, mas também as gengivas.
A menina não está assustada, pois não?
Respondilhe secamente :
Não estou nada assustada, mas, como acabei de dizer, não gosto de violências.
Houve um longo silêncio. Sonzogne ficou imóvel com as mãos nos bolsos do impermeável; fazia tremer os nervos dos maxilares e olhava para o vago. Gino fumava, com a cabeça baixa, e o fumo que saía da sua boca subialhe ao longo da cara e das orelhas, ainda escarlates. Por fim, Sonzogne disse:
Voume embora.
Gino quase deu um pulo e estendeulhe a mão com ar atencioso, dizendo :
Então, amigos como dantes, hem, primo?
Amigos como dantes! respondeu o outro com os dentes cerrados.
Apertoume a mão, desta vez sem me magoar, e foise embora. Era magro e baixo: não se compreendia donde vinha a sua força.
Logo que saiu, disse, divertida, a Gino:
Vocês podem ser amigos e até mesmo irmãos... mas ele dissete cada coisa!
Gino retomara a sua segurança. Abanou a cabeça e explicoume:
É feito assim... mas não é mau... E depois, a mim interessame estar de boas relações com ele... já me foi útil.
De que maneira?
Apercebime de que Gino estava excitado e ardia de desejo por me revelar não sei o quê. Assumiu de repente um aspecto risonho, a cara como que inchada de impaciência :
Lembraste perguntoume da caixa da minha patroa?
Lembro... e então?
Os olhos de Gino brilhavam de alegria. Baixou a voz e disseme:
Pois bem! Depois pensei melhor e não a devolvi.
Não a devolveste?
Não. Reflecti que para a minha patroa, que era rica, uma caixa a mais ou a menos não tinha importância. Já agora o golpe estava dado acrescentou com uma reserva característica e no fundo não tinha sido eu o gatuno.
Era eu a ladra disselhe tranquilamente.
Fingiu não ouvir e continuou:
Mas para a vender, era um problema... Era um objecto de fácil reconhecimento... Não tinha confiança... Guardeia, pois, durante muito tempo no bolso... depois encontrei Sonzogne e conteilhe a história.
Falastelhe de mim? perguntei.
Não... de ti não... disse que tinha sido uma amiga que ma tinha dado, sem citar ninguém. E ele... imagina que em três dias, não sei como, vendeua e trouxeme o dinheiro, ficando com a parte dele, como se tinha combinado, bem entendido.
Tremia de alegria. Olhou um momento à sua volta, depois tirou do bolso um rolo de notas.
Não sei porquê, naquele momento senti por ele uma violenta antipatia. Não julgo que o desaprovasse; não tinha sequer esse direito. Mas o seu tom exultante aborreciame. Além disso tinha a impressão de que ele não me tinha dito tudo; e o que escondera era decerto o pior. Disselhe secamente :
Fizeste bem!
Toma! continuou desenrolando as notas. Isto é para ti. Contei contigo.
Não, não! disselhe. Nada quero, absolutamente nada.
Mas porquê?
Nada quero.
Queres por força vexarme! disseme.
Uma sombra de tristeza e de desconfiança passou na sua cara e julguei têlo verdadeiramente magoado. Fiz um esforço e disse pousandolhe a mão sobre a sua:
Se não mo tivesses oferecido, eu teria ficado, não digo ofendida, mas admirada. Agora assim está bem. Não quero esse dinheiro, porque para mim é um caso arrumado. É só isso... mas estou contente porque tu o tenhas.
Olhavame sem compreender, com uma expressão desconfiada, como se quisesse descobrir o motivo secreto que se escondia nas minhas palavras. Frequentemente, depois, pensando no caso, percebi que ele não me podia ter compreendido, porque vivia num mundo diferente formado por ideias e por sentimentos diferentes dos meus.
Não sei se este mundo era pior ou melhor do que o meu; só sei que certas palavras não tinham para ele o sentido que eu lhes ligava e que uma grande parte das suas acções, que me pareciam repreensíveis, ele as considerava como lícitas e mesmo legais. Parecia, em particular, ligar a maior importância à inteligência, que para ele se reduzia à astúcia. Dividia os homens em astuciosos e parvos, esforçandose sempre, e a todo o preço, por pertencer à primeira categoria. Ora, eu não sou astuciosa, talvez mesmo não seja inteligente, e nunca compreendi como um acto indigno, só pelo facto de ser praticado com esperteza, pode chegar a ser, já não digo admissível, mas simplesmente desculpável.
Bruscamente a sua desconfiança pareceu dissiparse e gritou:
Compreendo! Não queres o dinheiro porque tens medo... tens medo que descubram o roubo... A esse respeito nada há a recear... Está tudo em ordem!
Não tinha medo, mas não me importei que ele o pensasse, porque a segunda parte da frase pareceume obscura.
Está tudo em ordem? pergunteilhe. Que queres dizer?
Sim, está tudo em ordem respondeume. Lembraste de eu te ter dito que lá em casa desconfiavam de uma criada de quarto?
Sim.
Bem! Não gostava dessa criada de quarto porque ela dizia mal de mim nas minhas costas... Alguns dias depois do roubo percebi que as coisas tomavam um mau rumo para mim. O comissário já tinha ido lá a casa duas vezes e eu senti que desconfiavam de mim. Nota bem que ainda não tinham começado as indagações. Então tive uma ideia: desviar as suspeitas para outro roubo e fazer com que as culpas caíssem sobre a criada.
Eu não dizia palavra. Olhoume um momento com os olhos brilhantes e dilatados para ver se eu admirava a sua astúcia e continuou:
A minha patroa tinha alguns dólares numa caixinha; tirei os dólares e fui pôlos no quarto da criada, dentro de uma mala velha. Desta vez, como era natural, fizeram pesquisas, descobriram os dólares e prenderamna. Agora ela jura que está inocente, bem entendido, mas quem a vai acreditar depois de terem encontrado os dólares no seu quarto?
Onde está essa mulher?
Está na prisão e não quer confessar! Mas sabes o que disse o comissário à minha patroa? “Esteja sossegada, minha senhora, ela acabará por confessar! A bem ou a mal!” Percebes, hem? A pancada!
Olheio gelada de espanto por vêlo tão orgulhoso e tão excitado.
Como se chama essa mulher? perguntei como por acaso.
Luísa Feligny... É uma mulher que já não é nova. Muito orgulhosa. Não se compreende porque é criada de quarto; não há alguém mais honesta do que ela.
E ria divertido com a coincidência.
Fiz um grande esforço como se me custasse respirar e pergunteilhe:
Já reparaste que és um cobarde?
Como? Porquê? perguntoume, surpreendido. Agora, que o tratara por cobarde, sentiame mais livre e mais desprendida. Sentia as narinas palpitarem de raiva. Continuei logo:
E querias que ficasse com esse dinheiro? Mas eu sentia que era dinheiro que me queimaria os dedos!
Qual história! disse, esforçandose por não se desconcertar. Ela não confessa e deixamna.
Mas dissesteme que está na prisão e lhe batem.
Disse isso por dizer.
Pouco importa... deixaste prender uma inocente e tens ainda o descaramento de mo vir contar. És um vil cobarde!
Bruscamente encolerizouse, empalideceu e apertoume a mão:
Vais deixar de me chamar cobarde!
Porquê? Penso que és um cobarde e digote.
Ele perdeu o sanguefrio e teve um estranho gesto de violência. Torceume a mão como se ma quisesse arranjar, depois, de repente, baixou a cabeça e mordeuma com força. Com uma sacudidela, tirei a mão e levanteime:
Mas tu estás completamente idiota! disselhe. O que te aconteceu? Agora mordes? É inútil. Cobarde és e cobarde serás sempre!
Não respondeu, mas agarrou a cabeça com as mãos como se quisesse arrancar os cabelos.
Chamei o criado e paguei as contas todas: a minha, a dele e a do Sonzogne. Depois disse a Gino:
Voume embora, mas devo dizerte que entre nós está tudo acabado... Não me apareças mais, não me procures! Não venhas, eu não te conheço!
Não respondeu nem levantou a cabeça e eu saí. A leitaria era à entrada da rua, a pouca distância da minha casa. Comecei a andar devagar, do lado oposto às fortificações. Era noite, o céu estava nublado, caía uma chuva miudinha como uma poeira de água no ar imóvel e tépido. Como de costume, as fortificações estavam às escuras, à parte alguns candeeiros, muito espaçados. Mas assim que saí da leitaria vi um homem desencostarse de um desses candeeiros e seguir ao longo das fortificações na mesma direcção que eu, na intenção provável de me tolher o passo. Pelo seu impermeável apertado na cintura e pela sua cabeça loura e quase rapada reconheci Sonzogne. Debaixo das muralhas parecia pequeno: de vez em quando desaparecia na sombra, depois reaparecia à luz de um candeeiro. Pela primeira vez, talvez, todos os homens me repugnaram, todos os homens pendurados às minhas saias como cães correndo atrás de uma cadela. Vibrava ainda de cólera, e, quando pensava naquela mulher que Gino com o seu procedimento metera na cadeia, não podia deixar de sentir remorsos porque, no fim de contas, a caixa fora eu quem a roubara! Mas, mais do que remorso, era um sentimento de irritação e de revolta. Insurgindome contra a injustiça, e odiando Gino, detestava repelilo e saber que fora cometida uma injustiça. Realmente, não sou feita para estas coisas. Experimentava um malestar violento; tinha a impressão de não ser mais eu mesma. Caminhava apressada, desejosa de chegar a casa antes que Sonzogne me abordasse, como parecia ter intenção de fazer. Mas ouvi o meu nome pronunciado por Gino, que me chamava, esbaforido:
Adriana! Adriana!
Fingi não ouvir e apressei o passo. Ele agarroume por um braço:
Adriana... estivemos sempre de acordo... não nos podemos separar assim!
Com uma sacudidela, libertei o braço e continuei o meu caminho. Do outro lado, sob as muralhas, a pequena silhueta clara de Sonzogne tinha saído da obscuridade para entrar no círculo luminoso do candeeiro.
Mas eu amote, Adriana! repetia Gino correndo ao meu lado.
Inspiravame uma mistura de piedade e de ódio, e essa mistura erame tão desagradável que não a podia traduzir. Esforceime por pensar noutra coisa. De repente, não sei como, uma ideia passou pelo meu espírito como um relâmpago. Lembreime de Astárito, da maneira como ele sempre me oferecera a sua ajuda, e pensei que talvez ele tivesse um meio de conseguir libertar da prisão aquela pobre mulher. Esta ideia produziu em mim um efeito benfazejo; a minha alma libertouse do peso que a oprimia e tive mesmo a impressão de já não odiar Gino e de sentir por ele apenas compaixão. Parei e disselhe tranquilamente:
Porque não desapareces, Gino?
Mas eu amote.
Eu também; já te amei, mas agora acabou; vai, desanda, é melhor para ti e para mim.
Estávamos num sítio escuro da avenida e não havia candeeiros nem lojas. Agarroume pela cintura e tentou beijarme. Teria podido muito bem livrarme sozinha, porque sou forte e porque ninguém pode beijar uma mulher contra a sua vontade. Em vez disso, não sei porque diabólica inspiração, lembreime de chamar Sonzogne, que parara do outro lado da avenida, debaixo das fortificações, e nos olhava, imóvel, com as mãos nos bolsos do impermeável. Penso que se o chamei foi porque julguei ter encontrado o meio de impedir a má acção de Gino, deixando a coquetterie e a curiosidade aflorar de novo ao meu espírito. Gritei duas vezes:
Sonzogne! Sonzogne!
Imediatamente ele atravessou a avenida e Gino, desconcertado, largoume.
Digalhe proferi com calma enquanto Sonzogne se aproximava que me deixe tranquila, porque já nada quero com ele... Não me quer ouvir, mas talvez a si ouça, visto que são amigos.
Estás a ouvir o que diz esta menina? disse Sonzogne.
Mas eu... começou Gino.
Pensava que iriam continuar a discutir por uns momentos e que por fim Gino, resignado, acabaria por se retirar. Mas de repente vi Sonzogne fazerme um gesto que não percebi, Gino olhálo por um instante, aparvalhado, depois, sem uma palavra, cair e rolar do passeio para a valeta.
Levantei a cabeça e olhei melhor: Sonzogne estava na minha frente, as pernas afastadas, olhando o punho ainda fechado. Gino, no chão, as costas viradas para nós, voltava a si e com o cotovelo na valeta levantava lentamente a cabeça. Mas não parecia querer pôrse de pé; dava a impressão de olhar fixamente um papel velho cuja brancura se distinguia na lama da valeta. Depois Sonzogne disse:
Vamos.
Com a cabeça um pouco atordoada encaminheime com ele para a minha casa.
Andava sem dizer palavra e apertandome o braço. Era mais baixo do que eu, e a sua mão rodeavame o braço como uma prisão metálica. Passado um momento, disselhe:
Não devia ter dado o soco a Gino... ele iase embora na mesma sem violência.
Assim já não a aborrecerá mais respondeume.
Mas como foi? perguntei. Eu nada vi... só dei por Gino cair no chão.
É uma questão de hábito respondeu.
Falava como se mastigasse as palavras antes de as pronunciar, ou, melhor, como se experimentasse a sua consistência por entre os dentes, que conservava cerrados e que eu imaginava encaixados uns nos outros como os das feras. Agora experimentava um grande desejo de lhe apalpar os braços e de sentir de novo sob a minha mão os seus músculos duros e fortes. Inspiravame mais curiosidade do que atracção. E, sobretudo, faziame medo. Mas o medo, tanto quanto eu o posso designar com clareza, pode ser um sentimento agradável e por vezes excitante.
Que tem nos braços? perguntei. Ainda não posso acreditar no que vi.
Mas já lhe disse para apalpar disseme com uma entoação tão vaidosa que parecia sinistra.
Não muito bem... estava o Gino presente... Deixeme apalpar agora.
Parou e dobrou o braço, olhandome de lado, grave e ingenuamente ao mesmo tempo, mas de uma ingenuidade que nada tinha de infantil. Estendi a mão e desci do seu ombro ao longo dos braços para apalpar os músculos. Era para mim uma estranha sensação sentilos tão vivos e duros. Articulei com voz apagada:
És realmente forte.
Sou forte, sim confirmou com uma sombria convicção.
E recomeçamos a andar.
Agora estava arrependida de o ter chamado. Não me agradava; para mais, esta gravidade, esta maneira de falar, faziamme medo. Foi assim que, em silêncio, chegamos em frente da minha porta. Tirei as chaves da mala.
Aproximouse de mim e disseme:
Eu subo.
Desejei dizerlhe que não. Mas a maneira como ele me olhava, com fixidez e insistência incríveis, subjugoume e fezme perder a coragem.
Se quiseres disselhe.
Só depois de ter dito isto reparei que o tratara por tu.
Não tenhas medo disseme interpretando erradamente o meu ar assustado. Tenho dinheiro... Darteei o dobro do que te costumam dar os outros.
Isso nada tem que ver... Não é pelo dinheiro. - Mas ele fez uma cara cômica como se qualquer assustadora suposição lhe atravessasse o espírito... É só porque me sinto um pouco cansada acrescentei.
Seguiume até ao vestíbulo. Quando chegámos ao quarto, despiuse com gestos metódicos de homem ordenado. Tinha um lenço em volta do pescoço; dobrouo com cuidado e meteuo no bolso do impermeável. Colocou o fato nas costas da cadeira e pendurou as calças de maneira a não desmanchar os vincos. Juntou os sapatos um ao lado do outro debaixo da cadeira e as meias dentro dos sapatos. Reparei que estava vestido de novo da cabeça aos pés; os tecidos que usava não eram finos, mas resistentes e de boa qualidade. Fazia estas coisas em silêncio, nem depressa nem devagar, com uma regularidade sistemática e ponderada, sem se ocupar de mim, que, entretanto, me tinha despido e deitado nua sobre a cama. Se ele me desejava, não o mostrava, a menos que aquele constante agitar dos músculos do maxilar denotasse perturbação; mas isso não devia ser, porque já o tinha antes, quando nem sequer parecia pensar em mim. Já disse que a ordem e o asseio me agradavam e me pareciam denotar qualidades de alma correspondentes. Mas nessa noite a ordem e o asseio de Sonzogne suscitavam em mim sentimentos bem diferentes, misturados de medo e de horror. “Desta maneira pensava eu é que os cirurgiões se preparam nos hospitais quando se dispõem a fazer qualquer operação sangrenta. Ou, pior ainda, os magarefes, mesmo sob os olhos dos carneiros que vão esfolar.” Estendida sobre a cama, sentiame sem defesa, impotente, como um corpo inanimado que vai ser submetido a qualquer experiência. E o seu silêncio e a sua indiferença deixavamme na dúvida sobre o que ele iria fazer quando tivesse acabado de se despir. Quando ficou nu e se aproximou da cabeceira da cama e estranhamente me prendeu os ombros com as duas mãos, como se me quisesse conservar imóvel, não pude evitar um frêmito de medo. Ele reparou e perguntoume por entre dentes:
Que tens?
Nada respondi. Tens as mãos geladas.
Não te agrado, hem? disseme segurandome sempre os ombros, de pé, junto do travesseiro. Preferes os que são iguais a ti, hem?
Enquanto falava, olhavame de uma maneira intolerável.
Porquê? disselhe. Tu és um homem como os outros. E tu próprio me disseste já que me queres pagar o dobro.
Sei muito bem o que quero dizer respondeu. Tu e as outras como tu gostam dos ricos, das pessoas distintas... Eu sou como tu e vocês, as prostitutas, só gostam dos “grandes”.
Reconheci no seu tom funesto a mesma tendência inflexível para procurar questões que há pouco tinha feito com que insultasse Gino sob o mais fútil pretexto. Julguei nessa altura que tivesse qualquer rancor contra Gino. Agora compreendia que a sua sombria susceptibilidade o levava sempre a encolerizarse quando esta espécie de demônio o dominava: fosse qual fosse a maneira como nos portássemos com ele, enganávamonos sempre.
Porque procuras agora também motivos para me ofender? respondi, ligeiramente vexada. Já te disse que para mim os homens são todos iguais.
Se isso fosse verdade, não fazias essa cara... Não te agrado, hem?
Mas se já te disse...
Não te agrado, hem? continuou. Tenho pena, mas é preciso que te agrade!
Oh! Deixame em paz gritei, bruscamente irritada.
Quando te fui útil para te livrares do teu melro, quisesteme ao pé de ti... mas depois terias gostado de não me tornar a ver... somente eu subi. E não te agrado, hem?
Agora eu tinha realmente medo. As suas palavras sibiladas, a voz dura, impiedosa e calma, o seu olhar fixo, os seus olhos que de azuis pareciam tornarse vermelhos, tudo parecia levarme a não sei que horrível fim. Então compreendi, mas já tarde, que fazêlo parar no rumo que as coisas levavam era o mesmo que tentar deter um bloco de pedra que rolasse por uma ribanceira. Limiteime a encolher violentamente os ombros.
Não te agrado, hem? continuou. Fazes uma cara desgostosa quando te toco... Mas agora, meu amor, vou fazerte mudar de ideias!
E levantou a mão para me esbofetear. Começava a esperar um gesto do gênero e procurava protegerme com o braço. Mas mal acabara de o fazer quando me bateu com uma ultrajante dureza, primeiro numa face, depois, logo que eu voltava a cara, na outra. Era a primeira vez na minha vida que isto me acontecia. Apesar da violência das bofetadas, sentime por momentos mais surpreendida que penalizada. Afastei o meu braço da cara e disselhe:
Sabes o que és? És um desgraçado!
Esta frase pareceu ferilo. Sentouse na beira da cama e, agarrando o colchão com as duas mãos, bamboleouse uns instantes. Depois disse sem me olhar:
Somos os dois desgraçados!
É preciso ter coragem para bater assim numa mulher! disselhe ainda.
De repente, não pude dominarme e os olhos encheramseme de lágrimas. Mas não era tanto pelas bofetadas como pelo enervamento dessa noite, cheia de acontecimentos desagradáveis e tristes... Julguei ver Gino projectado na rua, lembreime de que não lhe ligara qualquer importância e me tinha ido embora alegremente com Sonzogne unicamente interessada em apalpar os seus músculos extraordinários; senti remorsos, piedade por Gino e desgosto por mim própria; compreendi que fora castigada pela minha insensibilidade e pela minha patetice pela mesma mão que batera em Gino. Tinha sido cúmplice da violência e essa mesma violência voltarase contra mim. Através das minhas lágrimas olhava Sonzogne. Ficara sentado na beira da cama, nu, sem pêlos, as costas um pouco curvas, deixando cair os seus braços extraordinários que não traíam a sua força. Senti um repentino desejo de suprimir a distância que nos separava e disselhe, não sem esforço:
Mas pode ao menos saberse porque me bateste?
Fazias uma destas caras!
Parecia mergulhado em pensamentos; a pele do seu maxilar estremecia.
Compreendi que se o queria aproximar de mim devia primeiro que tudo dizerlhe o que pensava dele e nada lhe esconder.
Tu pensavas que eu não gostava de ti? Pois bem! Enganaste!
É possível.
Enganaste. Na realidade, não sei porquê, mas fazesme medo. Era por isso que eu fazia aquela cara. A estas palavras voltouse bruscamente para mim e perscrutoume com um olhar desconfiado. Mas tranquilizouse logo e perguntoume, não sem vaidade:
Façote medo?
Sim.
E agora ainda te faço medo?
Não; agora podes até matarme... éme indiferente. Eu dizia a verdade, e até naquele momento quase desejava que ele me matasse, porque de repente perdera o desejo de viver. Mas ele irritouse e disseme:
Quem fala em te matar? E porque te fazia medo?
Não sei... faziasme medo... são coisas que não se podem explicar.
Gino faziate medo?
Porque me havia de fazer medo?
E então porque te faço eu medo, eu?
Agora já não mostrava vaidade, mas eu sentia que começava a ficar furioso.
Ora! disselhe para o apaziguar. Tu faziasme medo porque te acho capaz de fazer sei lá o quê!
Não respondeu logo e reflectiu durante uns instantes. Depois voltouse e perguntoume em tom ameaçador:
Tudo isso quer dizer que devo vestirme e irme embora?
Olhavao e compreendi que estava de novo a ponto de encolerizarse e que uma recusa da minha parte faria cair sobre mim qualquer outra violência, talvez pior ainda. Era preciso aceitar. Mas pensava naqueles olhos claros e sentia repugnância à ideia de os ver olharemme fixamente durante o amor. Disselhe molemente.
Não... fica se quiseres... mas apaga a luz. Levantouse, pequeno e branco, extraordinariamente bem proporcionado, à parte o pescoço, que tinha um pouco curto, e foi nas pontas dos pés dar a volta ao interruptor ao pé da porta. Mas compreendi logo que não tivera uma boa ideia em ter pedido para apagar a luz, porque assim que o quarto ficou às escuras o medo, que julgava já afastado, tomou de novo posse de mim. Era como se tivesse dentro do quarto não um homem, mas um leopardo ou qualquer outra fera, capaz de se encolher num canto para me apanhar desprevenida, de saltar sobre mim e despedaçarme. Talvez se tenha demorado no meio do quarto às escuras tenteando caminho por entre as cadeiras e os outros móveis; talvez fosse também o meu temor que me fizesse parecer a demora longa. Julguei que tinha passado um tempo infinito até ele chegar à cama, e quando pôs as suas mãos sobre mim não pude reprimir um novo sobressalto, mais forte ainda do que o primeiro. Esperava que ele não se apercebesse, mas tinha o instinto aguçado exactamente como os animais e ouvi logo, muito perto de mim, a sua voz perguntarme :
Ainda tens medo?
Por certo, no escuro, o meu anjodaguarda devia estar presente. O tom da sua voz fezme adivinhar que ele tinha levantado o braço e que esperava a minha resposta para decidir se me devia bater ou não. Percebi que ele sabia que fazia medo e desejava que não o temessem e o amassem como aos outros homens. Mas para chegar a esse resultado não conhecia outro meio que o de inspirar um medo ainda mais forte. Estendi a mão, fingi acariciarlhe o pescoço e o ombro direito, e tive a certeza do que imaginara; ele tinha o braço levantado, pronto a esbofetearme. Disse com voz forte, esforçandome para dar à minha voz a entoação habitual, doce e tranquila:
Não... desta vez é só frio... Vamos enfiarnos na cama.
Está bem! disse ele.
Este “Está bem!”, onde subsistia ainda um resto de ameaça, confirmou a minha desconfiança. Então, enquanto que, debaixo dos lençóis, ele me apertava e me estreitava, passei um momento de angústia indescritível, um dos piores da minha vida. O medo inteiriçavame os membros, que, sem eu o querer, se arrepiavam ao contacto do seu corpo, singularmente liso, escorregando e serpenteando. Ao mesmo tempo dizia a mim própria ser absurdo ter medo num momento daqueles e procurava com todas as forças da minha alma dominar o meu temor e abandonarme a ele sem receio, como a um amante bem amado. Sentia este medo, não tanto nos meus membros, que me obedeciam, às vezes com grande repugnância, mas no fundo das minhas entranhas, que pareciam fecharse e recusarse ao abraço com horror. Acabou por me possuir e senti um prazer que o terror tornava negro e atroz. Não pude evitar de emitir um grito longo e lamentoso, na escuridão, como se a posse final não fosse a do amor, mas a da morte, como se esse grito fosse o da minha vida que partia, não deixando atrás dela mais do que um corpo inanimado e martirizado.
Depois ficamos um bom bocado às escuras sem falar. Mas eu estava estafada e adormeci quase em seguida. Senti logo a impressão de um enorme peso sobre o meu peito, como se Sonzogne se tivesse acocorado, dobrado sobre si próprio, nu como estava, os joelhos entre os braços e a cara sobre os joelhos. Estava sentado sobre o meu peito, as nádegas duras e nuas fazendo pressão sobre o meu pescoço, os pés sobre o meu estômago. A medida que adormecia, o seu peso aumentava, e, a dormir, mexiame de um lado para o outro para experimentar desembaraçarme, ou pelo menos deslocálo. Por fim tive a impressão de sufocar e quis gritar. Faziao sem voz, que estacionava no meu peito muito tempo, um tempo que me pareceu infinito; por fim consegui emitila e acordei num choro alto.
A lâmpada da mesadecabeceira estava acesa e Sonzogne olhavame apoiado no cotovelo.
Dormi muito tempo? pergunteilhe.
Uma meia hora disse por entre dentes.
Deiteilhe uma olhadela onde devia persistir o terror do meu pesadelo, porque me perguntou com um curioso acento, como para entabular conversa:
E agora, ainda tens medo?
Não sei.
Se soubesses quem eu sou, ainda terias mais medo do que anteriormente.
Todos os homens depois do amor se inclinam para as conversas sobre eles próprios e para as confidências. Sonzogne parecia não fazer excepção à regra.
O tom da sua voz, ao contrário do que lhe era habitual, era leve, calmo e quase afectuoso, fútil, com uma ponta de vaidade. Mas assustavame outra vez terrivelmente, e o meu coração começou a bater com toda a força como se fosse rebentar.
Porquê? perguntei. Quem és tu?
Olhoume não porque hesitasse, mas porque queria saborear o efeito das suas palavras sobre mim. Acabou por dizer lentamente.
Sou o da Rua Palestro; sou esse.
Ele pensava que nem seria preciso explicar o que se passara na Rua Palestro, e desta vez a sua vaidade não se enganou. Alguns dias antes um crime horrível fora cometido numa casa dessa rua; todos os jornais haviam falado nele, e as pessoas apaixonadas por esses assuntos tinhamno comentado muito. Minha mãe, que passava uma grande parte do dia a coleccionar notícias diversas, tinha sido a primeira a falarme no caso. Um jovem ourives fora assassinado no apartamento onde vivia. Ao que parecia, a arma de que se servira Sonzogne porque agora já sabia quem era o assassino tinha sido um pesado pisapapéis de bronze. A polícia não tinha encontrado qualquer indício que a conduzisse à descoberta do assassino. Havia suspeitas de o ourives ter sido receptador; supunhase pois com razão, como se verá que tinha sido morto no decorrer de uma transacção ilícita.
Tenho muitas vezes notado que assim que uma notícia nos enche de horror ou de espanto, a nossa cabeça esvaziase e a nossa atenção fixase sobre um objecto qualquer, o primeiro que nos cai sob os olhos, mas de uma maneira singular, como se ela quisesse trespassar a superfície para chegar a não sei que segredo que se escondesse aí. Foi o que me aconteceu nessa noite com Sonzogne, depois de me ter feito aquela revelação. Fiquei com os olhos escancarados e o espírito esvaziouse de repente, como um recipiente que contenha um líquido ou um pó muito fino, assim que é furado; somente, sentia o meu espírito, embora vazio, pronto a encherse de outra matéria, e esta sensação era dolorosa porque eu teria querido preencher esse vazio e não o conseguia. Enquanto o ouvia, fixava os olhos sobre o pulso de Sonzogne, estendido a meu lado, com o cotovelo apoiado na cama. Tinha o braço branco, liso, redondo, sem pêlos, onde nada indicava os seus músculos extraordinários. O pulso também era redondo e branco; nesse pulso estava o único objecto que Sonzogne conservava na sua nudez: uma pulseira de couro, parecida com as pulseiras dos relógios, mas sem relógio. A cor desta pulseira, de um preto engordurado, parecia dar um significado não só ao braço, mas a todo o corpo branco e nu, e esse significado distraíame sem que o pudesse explicar. Era uma nota de cor sombria; sugeria o elo de uma cadeia de forçado. Mas havia também qualquer coisa de gracioso e de cruel nessa simples pulseira negra, uma espécie de ornamento que confirmava o carácter brusco e felino da ferocidade de Sonzogne. A minha distracção durou só um instante. De repente o meu espírito encheuse de pensamentos tumultuosos, que se agitavam como pássaros numa gaiola estreita. Lembrome de que tive medo dele desde o primeiro momento. Pensando que tinha estado com ele na cama, compreendi que, cedendo ao seu abraço no escuro, o meu corpo horrorizado descobrira antes do meu espírito ignorante o que ele me escondia e fora por isso que gritara daquela maneira.
Acabei por lhe dizer a primeira coisa que me veio ao espírito:
Porque fizeste isso?
Tinha um objecto de valor para vender respondeume (e os seus lábios mal se mexiam enquanto falava). Sabia que aquele comerciante era um bandido, mas não conhecia outro... ofereceume um preço ridículo... Eu detestavao porque já me tinha roubado uma vez... disselhe que ficava com o objecto e que ele não passava de um malandro... Então ele respondeume uma coisa que me fez perder a cabeça.
Que foi? pergunteilhe.
Percebia agora com espanto que à medida que Sonzogne me contava essas coisas o meu medo começava a desvanecerse; sem querer, uma impressão de participação me animava. No momento em que perguntei o que lhe tinha dito o ourives senti que esperava quase uma coisa atroz que pudesse desculpar o crime, ou pelo menos justificálo. Respondeume com secura:
Disseme que, se não me fosse embora, me denunciaria. Em suma, pensei : “Pois é quanto basta!” E quando ele se voltou...
Calouse e olhoume.
E como era ele? perguntei.
Calvo, baixinho, com cara de fuinha... parecia um coelho.
Disse isto com uma entoação tranquila e antipática, que me fez ver, e mesmo odiar, esse aldrabão com cara de coelho enquanto avaliava, com ar desconfiado e falso, o objecto que lhe oferecia Sonzogne. Agora já não tinha medo algum; sentia que Sonzogne me transmitira o seu rancor contra o assassinado; e não estava até convencida de que o condenaria. Na verdade tinha a impressão de estar tão bem dentro do que passara que me parecia que eu também teria sido capaz de cometer este crime. Como compreendia esta frase: “Respondeume uma coisa que me fez perder a cabeça!” Ele tinha perdido a cabeça uma vez com Gino e uma segunda comigo; só por sorte não nos tinha morto também a mim e a Gino. Compreendiao tão bem, penetravao tão bem, que não só já não tinha medo, mas experimentava uma espécie de simpatia horrorizada, essa simpatia que não me conseguira inspirar antes de saber o seu crime e quando ele era apenas um amante como os outros.
Mas tu não tens pena? pergunteilhe. Não tens remorsos?
Agora está feito disse.
Olhavao intensamente. A esta resposta. surpreendime, sem dar por isso, a aprovar com a cabeça. E então lembreime de Gino, que também era, segundo o termo de Sonzogne, um bandido, mas que não deixava de ser um homem que eu amara e que me amava. Pensava que amanhã poderia aprovar da mesma maneira a morte de Gino. Admitia que o ourives não era nem melhor nem pior do que Gino, que não havia diferença entre os dois, a não ser que eu não conhecia o ourives, e se me parecera justo que o tivessem assassinado era unicamente porque tinha ouvido dizer de uma certa maneira que ele tinha cara de coelho e senti remorsos e horror... Não há horror por Sonzogne, que era feito assim e que era preciso compreender para o julgar, mas de mim, que não era feita como Sonzogne e portanto me deixava tomar pelo contágio do ódio e do sangue. Fui tomada por uma espécie de agitação, e de um salto senteime na cama: Oh! Meus Deus! repetia eu. Oh! Meu Deus! Porque fizeste isso? E porque mo contaste?
Tinhas tanto medo de mim respondeu com simplicidade e no entanto nada sabias; pareceume estranho e conteite... Felizmente acrescentou, divertido com o próprio raciocínio nem todos são como tu; já estaria descoberto!
É melhor que te vás embora e me deixes sozinha - disselhe. Vai, anda.
Que tens tu agora? respondeume.
Reconheci o tom que tinha quando estava furioso. Mas pareceume descobrir neste tom não sei que pesar de se encontrar só, condenado também por mim, que pouco antes lhe tinha pertencido. Acrescentei rapidamente:
Não julgues que tenho medo de ti. Já não é por medo... Mas tenho de me habituar à ideia... Preciso de pensar... quando voltares já será diferente.
Mas em que queres pensar? disse. Não tens a intenção de me denunciar?
Estas palavras produziramme a mesma impressão que me dera a confissão de Gino da maneira como traíra a criada de quarto: era gente que vivia num mundo diferente do meu. Fiz um grande esforço e respondi:
Mas se te digo que podes voltar! Sabes o que outra mulher te diria? Não quero mais ouvir falar de ti, não te quero ver mais. . . era o que diria!
Mas agora queres que me vá embora!
Julgava que te querias ir embora... então um momento de mais ou de menos... Mas, se queres ficar, fica! Queres dormir cá? Se queres, podes passar a noite comigo e ireste embora só amanhã de manhã... Queres?
Para falar verdade, fazialhe este oferecimento numa voz baça e triste, mas fazialho e estava contente por isso. Deitoume um olhar onde julguei descobrir um vislumbre de gratidão (talvez me tivesse enganado), depois abanou a cabeça:
Falei por falar disse. Realmente tenho de me ir embora.
Levantouse e aproximouse da cadeira onde tinha deixado a roupa.
Como quiseres disselhe. Mas, se queres ficar, podes ficar. E se qualquer dia tiveres necessidade de dormir aqui acrescentei com esforço podes vir.
Não disse palavra; começou a vestirse. Levanteime por minha vez e vesti um penteador. Enquanto o enfiava senti uma impressão de loucura, como se o quarto estivesse cheio de vozes murmurandome ao ouvido palavras intensas e contraditórias. E talvez fosse esta impressão de loucura que me levou a fazer um gesto sem saber porquê. Enquanto girava pelo quarto, fazendo movimentos lentos com um sentimento de frenesim, vio abaixarse para atacar os sapatos. Então ajoelheime na sua frente e disselhe:
Deixa estar que eu faço isso!
Pareceu ficar admirado mas não protestou. Agarreilhe no pé direito, coloqueio no meu colo, fiz um nó duplo no atacador do sapato direito e a mesma coisa no do esquerdo. Nem me agradeceu, nem nada me disse; provavelmente éramos dois no quarto a não compreender porque tinha eu feito aquilo. Enfiou o casaco, tirou a carteira do bolso e fez menção de me dar dinheiro.
Não, não! disse com involuntário nervosismo na voz. Não, não... não me dês coisa alguma... não é preciso...
Porque? O meu dinheiro não é igual ao dos outros? - perguntoume com uma voz onde se notava já ira.
Pareceume bizarro que não compreendesse a minha repugnância por esse dinheiro, tirado talvez do bolso ainda quente do morto. Mas talvez o compreendesse e quisesse comprometerme por uma espécie de cumplicidade, ao mesmo tempo que punha à prova os meus verdadeiros sentimentos por ele.
Não é isso... objectei , eu... eu... mas eu não pensava em dinheiro quando te chamei... Deixa estar...
Pareceu acalmarse.
Está bem! disse. Mais vais aceitar uma recordação. Tirou do bolso um objecto que colocou sobre o mármore da mesadecabeceira.
Olhei o objecto sem lhe pegar e reconheci a caixa de pó de arroz de ouro, roubada por mim alguns meses antes na casa da patroa de Gino.
Que é isto? balbuciei.
Foi o Gino quem ma deu... era o objecto que eu devia vender... aquele indivíduo queriao de graça... mas eu creio que tem um certo valor: é de ouro.
Domineime e disse:
Obrigada.
De nada respondeu.
Tinha vestido o impermeável e apertava o cinto.
Então até qualquer dia! disseme da porta.
Passado um momento, ouvi ao fundo da antecâmara a porta fecharse.
Só, aproximeime da mesadecabeceira e peguei na caixinha. Sentiame embaraçada e tomoume um sombrio espanto. A caixa brilhava na minha mão, e o rubi redondo e vermelho encaixado no fecho pareceu alargarse na minha mão e cobrir o ouro. Tinha na mão uma mancha de sangue redonda e brilhante que pesava tanto como o objecto. Sacudi a cabeça; a mancha desapareceu; tornei a ver a caixa de ouro com um fecho de rubi. Então pouseia sobre a mesadecabeceira, estendime na cama, com o corpo enrolado no penteador, apaguei a luz e reflecti.
Pensava que se me tivessem contado a história da caixa eu teria rido como se ri de um caso extraordinário e quase inacreditável. Era uma daquelas histórias que obrigam a exclamar: “Ora vejam lá a coincidência!” e em seguida as boas mulheres do tipo da minha mãe tiram daí indicações para o número da lotaria: a morte é um número, o ouro outro; o gatuno, outro. Mas desta vez fora comigo que a história acontecera; e reparava com grande admiração na diferença que havia em estar fora ou dentro das coisas. Com efeito, acontecerame aquilo que acontece a alguém que, tendo enterrado um grão, o encontra muito tempo depois transformado em planta vigorosa, cheia de folhas e coberta de botões prestes a abrir. Mas que semente, que planta e que botões! Ia de uma coisa para a outra sem chegar ao começo. Tinhame entregue a Gino porque esperava que casasse comigo, mas tinhame enganado e eu por raiva furtara a caixa. Depois revelaralhe o roubo, ele assustarase e, para evitar que fosse acusado, tinhalhe devolvido o objecto para que ele o entregasse à patroa. Mas em vez de o restituir, guardarao e, julgando que o acusavam de roubo, tinha feito com que prendessem a criada de quarto, a qual estava inocente, e na prisão batiamlhe! Entretanto Gino dera a caixa a Sonzogne para que a vendesse e Sonzogne fora a casa do ourives para o efeito, e este tinha irritado Sonzogne e Sonzogne, enfurecido, tinhao morto, e logo que o ourives morreu Sonzogne tornouse um assassino! Compreendia que não podia inculparme, mas ao mesmo tempo pensava que a causa principal de todas estas desgraças tinha sido o meu desejo de me casar e de constituir família, mas ao mesmo tempo não conseguia eximirme a um sentimento de remorso e de consternação. Enfim, à força de reflectir cheguei à conclusão de que no fim de contas a culpa de tudo recaía inteira sobre as minhas pernas, o meu seio, as minhas ancas, em resumo, na minha beleza, de que minha mãe tanto se orgulhava, e que no fundo nada tinha de me acusar porque todas as coisas vinham da natureza. Mas se nisso pensava, era por irritação e desespero, como se pensa numa coisa absurda para desculpar outras cem vezes mais absurdas. Sabia em consciência que ninguém era culpado, que tudo era como tinha de ser, embora tudo fosse insuportável, e que se realmente se pretendia que houvesse alguma culpa ou alguma inocência, então todo o mundo era ao mesmo tempo inocente e culpado.
Entretanto, lentamente a escuridão entrava em mim como a água de uma inundação subindo do résdochão aos andares superiores de uma casa. A primeira coisa a ser submersa foi seguramente a minha faculdade de julgamento. Até ao fim a minha imaginação fascinada saciouse do crime de Sonzogne, mas isenta de toda a reprovação e de todo o horror, como de um acto incompreensível, e por conseguinte, no seu gênero, estranhamente atraente. Julguei ver Sonzogne caminhar pela Rua Palestro, as mãos nos bolsos do impermeável, depois entrar na casa e esperar de pé na pequena sala do ourives. Julguei ver o ourives entrar e apertar a mão a Sonzogne. Estava atrás da secretária. Sonzogne estendeulhe a caixa, que ele examinou com abanadelas de cabeça destinadas a indicar o seu desprezo. Depois levantava a sua cara de coelho e oferecia uma cifra irrisória. Sonzogne olhavao fixamente, com olhos já cheios de ira, e arrancavalhe violentamente o objecto das mãos. Depois acusavao de ladrão e usurário. O outro ameaçavao de o denunciar e intimavao a irse embora. Depois voltavase ou baixavase como quem não quer discutir mais. Sonzogne agarrava o pisapapéis de bronze e batialhe com ele na cabeça uma primeira vez. O outro tentava fugir e então Sonzogne saltava de novo sobre ele é atingiao com novas pancadas até sentir que o tinha morto. Depois Sonzogne atiravao ao chão, abria as gavetas, apoderavase do dinheiro e fugia. Mas antes de sair, tinha eu lido no jornal, num novo acesso de fúria, dera um pontapé na cara do morto estendido no chão.
Demoravame apaixonadamente sobre todos os pormenores do crime. Seguia Sonzogne como se acariciasse os seus gestos; era a sua mão que estendia a caixa, que empunhava o pisapapéis, que feria o ourives; era o seu pé furioso que acabava por bater na cara do morto. Nenhum horror entrava nesta representação, o menor, como já disse, mas também qualquer aprovação. Experimentava o mesmo deleite singular que me provocavam, quando era pequena, os contos de minha mãe: estáse no quente, encolhida contra sua mãe e a imaginação segue com embriaguez maravilhada as aventuras das personagens do conto. Somente, o meu conto era sombrio e sangrento, o herói era Sonzogne e o meu encantamento misturavase a uma impotente e melancólica tristeza. Como se quisesse tirar o sentido do conto, recomeçava, revia ainda as fases do crime, sentindo de novo um obscuro prazer e encontravame de novo em face do mistério. Como um homem que salta de um lado para o outro de um precipício mede mal o salto e cai no vácuo, no decurso de uma destas lucubrações adormeci.
Dormi talvez duas horas e acordei; ou, melhor, o meu corpo começou a acordar enquanto o meu espírito, mergulhado numa espécie de torpor, continuava adormecido. Foi com as mãos que comecei a acordar; estendiaas nas trevas como as de um cego, sem conseguir reconhecer o sítio onde estava. Adormecera estendida sobre a cama e agora estava de pé, num lugar estreito, entre muralhas verticais, herméticas e lisas. Veiome imediatamente à ideia uma cela de prisão; e ao mesmo tempo a recordação da criada de quarto que Gino havia feito prender injustamente. Eu era a criada de quarto e a minha alma padecia toda a dor física da injustiça sofrida. Esta dor davame a sensação física de não ser já eu, mas a criada de quarto; sentia que esta dor me transformava, me fechava no corpo desta mulher, me impunha a sua cara, me obrigava aos seus gestos. Levei as mãos à cara, chorava, pensava que me tinham fechado injustamente numa cela e que me era impossível sair de lá. Mas ao mesmo tempo sentia que era ainda a Adriana a quem não tinham feito qualquer injustiça e que não tinha sido aprisionada. E compreendi que me bastaria um gesto para me libertar e deixar de ser a criada de quarto. No entanto, não conseguia adivinhar qual seria esse gesto, sofrendo e desejando desesperadamente sair da minha prisão de angústia e de piedade. Depois, de repente, rodeada desta mesma luz, feita de espasmos e de trevas, que nos deslumbra quando recebemos uma pancada violenta, o nome de Astárito resplandeceu no meu espírito. “Irei ter com Astárito e pedirei que a liberte!”, pensava eu. Estendi de novo as mãos e descobri ao mesmo tempo que as paredes da minha cela se tinham separado, deixando uma estreita abertura vertical por onde eu podia escaparme. Dei alguns passos às escuras, os meus dedos encontraram o interruptor. Acendi a luz com uma febre histérica. O quarto iluminouse. Estava ao pé da porta, nua, anelante, o corpo e a cara molhados de suor frio e abundante. A cela na qual me parecera estar encerrada não era senão o espaço compreendido entre o armário, o canto do quarto e a cómoda: espaço restrito que efectivamente as paredes e os dois móveis quase fechavam. Durante o sono levantarame, e tinhame encurralado ali.
Apaguei de novo a luz e voltei para a cama, medindo os passos. Antes de tornar a adormecer pensei que não podia ressuscitar o ourives, mas que podia salvar, ou pelo menos tentar salvar, a criada de quarto: era a única coisa que contava. Deviao fazer, ainda mais porque acabava de descobrir que não era tão boa como pensava. Pelo menos a minha bondade não excluía o gosto pelo sangue, a admiração pela violência e a simpatia pelo crime.
Na manhã seguinte vestime com cuidado, meti a caixa na mala e saí para telefonar a Astárito. Sentiame estranhamente alegre. A angústia que a revelação de Sonzogne me inspirara na noite anterior desaparecera completamente. Além disso observei mais vezes no decorrer da minha vida que a vaidade é a pior inimiga da caridade e da reprovação moral. Mais do que horror ou medo, eu sentia agora um sentimento de vaidade ao pensar que em toda a cidade eu era a única a saber como fora praticado o crime e quem era o autor. “Eu sei quem matou o ourives”, dizia a mim própria, e tinha a sensação de olhar os homens e as coisas com olhos diferentes. Pareciame que qualquer coisa mudara, mesmo na minha fisionomia, e receava quase que se decifrasse claramente o segredo de Sonzogne na expressão da minha cara. Ao mesmo tempo experimentava um desejo doce, agradável, irresistível, de contar a alguém o que sabia. Como se fosse demasiada a água num vaso muito pequeno para a conter, o segredo transbordava da minha alma e eu sentia a tentação de o lançar para outra. Suponho que é o principal motivo pelo qual tantos criminosos confiam às suas amantes ou às suas mulheres os crimes que cometeram e estas os contam a algum amigo mais íntimo e aquele a outro, até que a informação chega aos ouvidos da polícia, provocando assim a perdição de todos. Mas penso também que, quando confiam os seus actos infames, os criminosos procuram descarregar uma parte de um peso que lhes pareceu intolerável e fazem com que os outros também o carreguem. Como se o crime fosse um fardo que eles pudessem partilhar e repartir por vários ombros até o tornar sem importância. Como se, pelo contrário, ele não fosse uma carga inalienável, cujo peso não diminuiu por estar distribuído por outras pessoas, mas que se multiplica por todos aqueles que aceitam a sua carga!
Percorrendo as ruas para encontrar um telefone público, comprei dois jornais e procurei, nas notícias da cidade. informações sobre o crime da Rua Palestro. Mas muitos dias se tinham passado: não vi senão algumas linhas que exprimiam a decepção no seguinte título: “Nenhuma luz sobre o assassínio do ourives.” Compreendi que, a menos que praticasse qualquer erro grosseiro, Sonzogne podia estar certo de que nunca mais o descobririam. O carácter ilícito das actividades da vítima tornava, por si mesmo, muito difíceis as investigações policiais. O ourives, como diziam os jornais, estava com frequência em contacto, secretamente e por motivos inconfessáveis, com pessoas de todas as classes sociais e de todas as condições; o assassino podia muito bem ser alguém que nunca o tivesse visto antes e que o matasse sem premeditação. Esta hipótese estava muito próxima da verdade. Mas, precisamente porque era justa, deixava ver que a polícia renunciara a descobrir o culpado.
Encontrei um telefone público num restaurante e marquei o número de Astárito. Havia bem umas seis semanas que não lhe telefonava; devo têlo apanhado desprevenido, porque não reconheceu logo a minha voz e respondeume primeiro com o tom expedito que empregava quando estava no seu gabinete. Durante um instante tive a nítida impressão de que ele não queria mais ouvir falar de mim e senti um baque no coração ao pensar na criada de quarto na sua prisão, e na fatalidade que fizera com que Astárito deixasse de amarme no próprio momento em que a sua intervenção era necessária para salvar esta desgraçada. No entanto, o meu próprio susto agradoume porque me deu de novo o sentimento perdido da minha bondade e me fez compreender que a libertação desta mulher era verdadeiramente importante para mim, e que, não obstante as minhas relações com Sonzogne, o assassino, continuava a doce e compassiva Adriana que sempre fora.
Assustada, disse o meu nome a Astárito e ouvi com alívio a sua voz mudar imediatamente de tom e tartamudear enquanto o ritmo das suas palavras se acelerava.
Devo confessar que me senti invadir por uma onda de afeição por ele, porque um amor assim (aliás sempre lisonjeiro para uma mulher) davame segurança e enchiame de gratidão. Marqueilhe encontro com uma voz acariciadora; prometeu vir sem falta e saí do restaurante.
Durante toda aquela noite que passara com pesadelos tinha chovido muito; várias vezes ouvira durante o sono o ruído da chuva misturado com os assobios do vento, formando como uma parede de mau tempo à roda da casa, aumentando a solidão e as trevas nas quais eu me debatia. Mas de madrugada a chuva cessara e os últimos sopros de vento tinham varrido as nuvens, deixando o céu límpido e o ar imóvel e lavado. Depois de ter telefonado a Astárito, comecei a andar ao longo de uma avenida de plátanos, sob os primeiros raios de sol dessa manhã. Do meu penoso e frequentemente interrompido sono não ficara mais que um leve atordoamento que o ar frio me fez em breve passar. A beleza do dia davame uma grande alegria, e todos os objectos sobre os quais os meus olhos pousavam pareciamme dotados de uma sedução que encantava os meus olhos e me alegrava. Gostava das gotas de orvalho em torno das pedras, agora secas. Gostava dos troncos dos plátanos com as escamas sobrepostas da sua casca; brancas, verdes, amarelas, castanhas, e aqui e ali douradas; gostava das fachadas das casas onde as grandes manchas molhadas conservavam ainda o traço da lavagem nocturna; gostava dos transeuntes da manhã; homens que vão apressados para o trabalho, criadas com o cesto no braço, raparigas e rapazes acompanhados dos pais ou dos irmãos, levando pastas e livros. Parei para dar esmola a um velho mendigo, e quando procurava o dinheiro no meu portamoedas, os meus olhos pousaram ternamente sobre o seu velho capote militar e começaram a sentir simpatia pelos bocados com que ele estava remendado nos cotovelos e junto da gola. Eram bocados cinzentos, castanhos, amarelos ou de um verde menos destacado do conjunto; reparei no prazer que sentia ao observar a sua cor e a maneira como eles estavam solidamente cosidos com linha preta, com grandes pontos visíveis, e surpreendime a pensar no trabalho que ele teria tido uma manhã para cortar com a tesoura a parte usada, procurar um bocado em qualquer velho farrapo, ajustálo sobre o buraco e cosêlo com amor. Gostava desses remeados como o esfomeado gosta de ver o pão saindo do forno; afastandome, não pude impedirme de olhar para trás várias vezes para os olhar. Então, de repente, pensei que devia ser bom ter uma vida semelhante àquela tão límpida, tão agradável, tão limpa. Uma vida que tivesse sido lavada de todos os seus aspectos embaciados e permitir olhar tudo com amor, mesmo as coisas mais humildes. Nesse momento senti de novo o desejo, há muito adormecido e mudo, de uma vida normal, com um homem só, numa casa nova, arrumada, clara e limpa. Apercebime de que o meu trabalho não me agradava, se bem que, por uma singular contradição, a minha natureza me levasse para ele. Pensava que este não era um trabalho limpo, que nele havia sempre à minha volta, sobre o meu corpo, sobre os meus dedos, na minha cama, como que uma impressão de suor, de espuma, de calor impuro, de humidade pegajosa que parecia persistir mesmo depois de me ter lavado e de ter arrumado o quarto. Pensava também que esta história de me despir e de me vestir durante quase todo o dia debaixo dos olhares de homens sempre diferentes impediame de considerar o meu corpo com o sentimento de prazer e de intimidade que teria gostado e que me lembro de ter experimentado, ainda rapariguinha, quando me via ao espelho ou quando tomava banho. É uma bela coisa poder observar o nosso próprio corpo como uma coisa nova e desconhecida que floresce, toma vigor e se embeleza sozinha; ora eu para dar de cada vez esta impressão de novidade aos meus amantes roubaraa a mim própria para sempre.
A luz destas reflexões, o crime de Sonzogne, a perversidade de Gino, a infelicidade da criada de quarto e todas as outras intrigas nas quais me debatia apareciamme como consequências da irregularidade da minha vida. Consequências aliás privadas de sentido e que não me davam qualquer impressão de falta nem podiam ser suprimidas, a não ser que eu conseguisse satisfazer as minhas velhas aspirações a uma vida normal. Tomoume um grande desejo de estar em regra em todos os sentidos. Em regra com a moral, que não permitia um ofício como o meu, em regra com a natureza, que impunha que na minha idade uma mulher tivesse filhos, em regra com o gosto, que mandava que se vivesse no meio de belos objectos, que se usasse lindos vestidos frequentemente renovados, que se morasse em casas iluminadas, limpas e cômodas. Somente estas coisas excluíamse umas às outras; se eu estivesse em regra com a moral, não podia estar em regra com a natureza; e o gosto contradizia ao mesmo tempo a moral e a natureza. A esta ideia experimentava o despeito que me era habitual, tão velho como a minha vida, de me saber sempre em dívida com a necessidade e na incapacidade de me satisfazer somente pelo sacrifício das minhas melhores aspirações. Mas apercebiame também mais uma vez de que não tinha aceite inteiramente a minha sorte; e isso davame confiança porque pensava que logo que se proporcionasse ocasião de mudar de vida, eu não seria apanhada desprevenida, mas aproveitaria a ocasião com clarividência e decisão.
Marcara encontro com Astárito ao meiodia, à saída da repartição; tinha ainda algumas horas à minha frente: sem saber o que fazer, decidi ir a casa de Gisela. Havia já algum tempo que não a via; supus que qualquer outro ocupava na sua vida o antigo lugar de Ricardo: meio noivo, meio amante. Gisela, também como eu, esperava regularizar a sua situação; suponho que é uma esperança que têm todas as mulheres da minha espécie. Mas eu era levada a isso por uma inclinação nata, enquanto Gisela, que dava uma grande importância à consideração, era sobretudo por questão de decoro. Ela corava quando se pensava no que ela era, eis tudo, se bem que ela tivesse sido levada a sêlo por uma vocação muito mais profunda que a minha. Eu, ao contrário, não sentia o menor sentimento de vergonha, mas, em certos momentos, uma impressão de servidão e de vida contra a natureza.
Chegada a casa de Gisela, dispunhame a subir a escada quando a voz da porteira me obrigou a parar:
Vai a casa da menina Gisela? Ela já cá não mora.
Para onde foi ela?
Rua Casablanca, 7.
A Rua Casablanca era uma rua nova situada num bairro recente.
Um senhor louro veio buscála de automóvel; levaram as coisas e partiram.
Reparei imediatamente que se viera era justamente para ouvir aquilo, que ela tinha partido com alguém. Não sei porquê experimentei uma brusca impressão de cansaço; as pernas vergaramseme e tive de me apoiar à ombreira da porta para não cair. Mas reagi, e depois de reflectir decidi ir à nova casa de Gisela. Tomei um táxi e disse ao motorista que me levasse à Rua Casablanca.
Quanto mais o táxi avançava, tanto mais nos afastávamos da cidade e das suas velhas casas, alinhadas nas ruas estreitas e encostadas umas às outras. As ruas alargavam, bifurcavam, confluíam para formar praças e tornavamse mais e mais largas; as casas eram novas, e entre duas construções entreviase de vez em quando uma faixa verde que era o campo. Percebi que a minha viagem tinha um sentido oculto, extremamente penoso, e tornavame cada vez mais triste. Lembravame de todos os esforços feitos por Gisela para me roubar a inocência e me tornar igual a ela; e sem o querer, da mesma maneira natural como uma ferida sangra, assim também comecei a chorar.
Quando desci do táxi, tinha os olhos brilhantes e as faces cheias de lágrimas.
Não vale a pena chorar, menina disseme o chauffeur.
Limiteime a abanar a cabeça e encaminheime para a porta da casa de Gisela.
Esta casa era inteiramente branca, de estilo moderno, de construção absolutamente recente como o demonstravam os materiais ainda acumulados no pequeno jardim e as manchas de cal que maculavam as grades. Entrei num hall branco completamente nu; a escada era também branca, com janelas de vidro fosco, deixando passar uma luz suave. O porteiro, um forte rapaz ruivo, de fatomacaco, muito diferente dos velhos porteiros sujos que estava habituada a ver, indicoume o ascensor; premi o botão e o elevador começou a subir. Exalava um agradável cheiro a madeira nova e verniz. No ruído que fazia também se tinha a impressão de se notar qualquer coisa de novo como o trabalhar de um motor em rodagem. O elevador subiu até ao último andar: à medida que subia, a luz aumentava como se não existisse tecto e como se subisse direito para o céu.
Por fim parou, eu saí e encontreime rodeada de uma claridade luminosa, num patamar de um branco ardente. em frente de uma porta de madeira clara com puxadores de cobre lavrados. Toquei: uma criadinha morena e magra veio abrir: tinha uma figura gentil, uma touca de renda e um avental bordado.
A menina Santis? perguntei. Digalhe que está aqui a Adriana.
Deixoume para ir ao fundo do corredor junto de uma porta envidraçada com vidros baços como os da escada. O corredor era também branco e nu como o resto da casa; julguei que o apartamento devia ser pequeno, quatro casas, não mais. Estava aquecido; o calor do irradiador reavivava o cheiro penetrante da cal fresca e da pintura nova. A porta envidraçada abriuse ao fundo do corredor; a criadinha reapareceu e disseme que podia entrar.
Entrando, primeiro nada vi, porque através de um grande vitral o sol de Inverno entrava em jorros deslumbrantes. Era o último andar: através desse vitral só se via o céu azul, resplandecente de sol. Por momentos esqueci a minha visita. Fechando os olhos perante esse sol quente e dourado como um velho vinho, senti uma impressão de bemestar. Mas a voz de Gisela fezme estremecer. Estava sentada em frente do vitral e por cima de uma mesinha semeada de frascos estendia os dedos a uma mulher baixinha e grisalha: a manicura.
Oh! Adriana! Sentate um momento disseme Gisela com falsa atenção, como lhe era habitual.
Senteime ao lado da porta e olhei à minha volta. A sala, vista do lado da janela, era comprida e estreita. A bem dizer quase não tinha móveis: uma mesa, um bufete, algumas cadeiras de madeira clara; mas era tudo novo e sobretudo havia o sol. Este sol tinha qualquer coisa de luxuoso. Há casas ricas pensei eu que não possuem um sol como este. Fechei os olhos gulosamente com doçura e por um momento em nada pensei. Depois senti qualquer coisa pesada e fofa cair sobre os meus joelhos; abri os olhos e vi que era um gato enorme, de uma raça que eu nunca tinha visto, com um pêlo extremamente comprido, fino como seda, de um cinzentoazulado, com um focinho grande, mau e majestoso, que não me agradou. O gato começou a ronronar, roçouse por mim, levantou a sua cauda emplumada e emitiu uns roncos miados. Depois enroscouse sobre os meus joelhos.
Que lindo gato! disse eu. De que raça é?
É um gato persa respondeu com orgulho Gisela. É uma raça muito apreciada. Estes gatos chegam a ser pagos por muito dinheiro.
Nunca tinha visto disse eu acariciando o gato.
Sabe quem tem um gato igual a este? disse a manicura. A senhora Radaelli. Se visse como o amima! Mais que a um cristão! No outro dia perfumouo com o pulverizador... Então. ponho mais uma camada de verniz nas unhas dos pés?
Não, Marta, não vale a pena, por hoje chega disse Gisela.
A manicura arrumou os seus instrumentos e os frasquinhos numa maleta, cumprimentoume e saiu da sala.
Uma vez sós, olhámonos. Gisela também me pareceu toda de novo como a casa. Vestia um bonito tricot de angorá vermelho com uma saia castanha que eu nunca lhe tinha visto. Tinha engordado: debaixo da malha o seio sobressaía mais e as ancas estavam mais amplas. Notei também que tinha as pálpebras um pouco inchadas como as pessoas que comem bem, dormem muito e não têm aborrecimentos.
As pálpebras assim davamlhe um ar ligeiramente sonso. Olhou um instante para as suas unhas e perguntoume, para dizer qualquer coisa:
Que dizes? Gostas da minha casa?
Eu não sou invejosa. Mas nesse momento, talvez pela primeira vez na minha existência, senti a mordedura da inveja e admiravame que houvesse pessoas capazes de manter em toda a sua vida um tal sentimento, por me parecer desagradável e doloroso no mais alto grau. Sentia na cara uma espécie de esticão como se tivesse emagrecido subitamente e esse esgar impossibilitavame de sorrir e de dizer algumas palavras gentis a Gisela, como teria desejado. Experimentava por ela uma aversão encarniçada. Teria querido dizerlhe alguma frase desagradável: ferila, ofendêla, humilhála, qualquer coisa que envenenasse a sua alegria. “Que tenho eu? pensava, confusa, sem deixar de acariciar o gato. Já não sou eu?” Felizmente que estes sentimentos não duraram muito. Logo a bondade existente no fundo da minha alma se revoltou e lutou contra esta súbita inveja. Pensava que Gisela era minha amiga, que a sua sorte me devia ser grata e que devia estar contente por ela.
Imaginei Gisela entrando pela primeira vez na sua casa nova batendo as mãos de alegria: no mesmo instante o frio da inveja desapareceu da minha cara e sentime de novo aquecida pelo belo sol da sala, mas de uma maneira mais íntima, como se o sol tivesse entrado também na minha alma.
Ainda o perguntas? disselhe. Uma casa tão bonita, tão alegre? Como a arranjaste?
Tive a impressão de ter pronunciado estas palavras com sinceridade e sorri; mais para mim própria, como por uma recompensa, do que para Gisela. Respondeume em ar de confidência e familiaridade:
Lembraste de João Carlos, daquele louro com o qual me zanguei logo naquela noite? Pois bem! Algum tempo depois voltou a procurarme... era bem melhor do que me pareceu à primeira vista... Depois tornámonos a encontrar várias vezes... E há alguns dias disseme: “Vem comigo, que quero fazerte uma surpresa...” Eu pensei que me quisesse dar um presente: uma mala, um perfume... Em vez disso meteume no carro, trouxeme aqui, mandoume entrar... A casa estava completamente vazia... Pensei que fosse para ele. Perguntoume se eu gostava, disselhe que sim mas sem imaginar, claro... Então ele disseme: “Aluguei esta casa para ti!” Podes calcular a minha surpresa!
Sorria com ar digno e satisfeito, deitando um olhar à sua volta. Impulsivamente levanteime e fui beijála, dizendo:
Fico bem contente! Bem contente! Podes crer que sinto verdadeiro prazer com isso!
Este gesto acabou por dissipar no meu espírito todo o sentimento hostil que ainda conservava. Encostei a cara à janela e olhei para fora. A casa elevavase sobre uma espécie de promontório debaixo do qual se estendia uma paisagem imensa. Era uma terra cultivada, percorrida por um riachozinho sinuoso, semeada aqui e ali de matas, de quintas, de acidentes de terreno pedregoso. Da cidade só se via, num canto do panorama, um pequeno número de casas brancas, último prolongamento dos arrabaldes. Uma fila de montanhas desenhavase no horizonte sobre o céu azul e luminoso. Volteime para Gisela e disselhe:
Sabes que tens uma vista magnífica?
Não é? respondeume.
Foi ao bufete e tirou dois copinhos e uma garrafa de ventre bojudo :
Tomas um cálice de licor? perguntoume com ar negligente.
Notavase com clareza que todos os gestos de dona de casa a enchiam de satisfação.
Sentámonos à mesa e bebemos o licor em silêncio. Sentia que Gisela estava embaraçada. Fui ao encontro das suas ideias e disselhe com doçura:
Tu não te portaste bem comigo! Podias ao menos terme dito!
Não tive tempo respondeume vivamente. Com a mudança, sabes... E depois tive que comprar tanta coisa: móveis, roupa branca, louças... Nem tinha tempo para respirar... É que é preciso tanta coisa para montar uma casa!
Falava beliscando os lábios como certas senhoras distintas costumam fazer quando falam nestas coisas.
Compreendo disse eu sem sombra de maldade nem de amargura, absolutamente como se se tratasse de uma coisa que não me dissesse respeito. Agora, que estás instalada e que as tuas coisas caminham melhor, não te agrada verme... tens vergonha de mim.
Não tenho vergonha de ti retorquiu com uma leve irritação, mais motivada, pareceume, pelo meu tom razoável que pelas minhas palavras. Se pensas isso, és estúpida. Somente, doravante não nos podemos ver como dantes... quero dizer, não podemos sair juntas e fazer tudo o resto... Se ele viesse a saber, estava arranjada!
Está sossegada disselhe com doçura. Não me tornarás a ver. Hoje vim unicamente para saber o que te tinha acontecido.
Fingiu não ouvir, confirmando assim as minhas suposições. Houve um momento de silêncio. Depois perguntoume com ar de falsa solicitude:
E tu?
Em seguida, com uma espontaneidade que me assustou, pensei em Jaime. Respondilhe com voz embargada:
Eu? Está tudo como de costume.
E Astárito?
Vejoo às vezes.
E Gino?
Acabei com tudo.
A recordação de Gino apertoume o coração. Mas Gisela interpretou à sua maneira a expressão mortificada que o meu rosto deixava transparecer; pensava talvez que eu estava amargurada pela sua sorte e pela sua atitude desdenhosa. Disse com uma delicadeza afectada:
Ninguém me tira da cabeça que bastava tu quereres para Astárito te pôr casa também.
Mas eu não quero Astárito nem outro qualquer respondilhe tranquilamente.
Vi a sua cara desconcertada.
Porquê? perguntoume. Não gostavas de ter uma casa como esta?
A casa é bonita respondi , mas eu gosto mais da minha liberdade.
Eu sou livre disseme, irritada. Mais livre do que tu... tenho o dia todo para mim.
Não é dessa liberdade que eu falo.
Então de qual?
Compreendi que a magoara, mas porque não tinha mostrado admiração suficiente pela casa, de que ela estava tão orgulhosa. Expliqueilhe, no entanto, que de maneira nenhuma desprezava a situação dela, mas que não me queria ligar sem amor a qualquer homem. e feria de novo, mais ainda desta vez. Preferi mudar de conversa e disselhe :
Mostrame a casa... Quantos quartos tens?
Que te importa a casa disseme com desapontamento ingênuo , se acabas de dizer que não gostarias de ter uma casa como esta?
Não foi isso que eu disse respondi com calma. A tua casa é muito bonita. Gostaria até muito de ter uma assim!
Ela não respondeu. Baixou os olhos com ar mortificado:
Então disse eu molemente ao fim de uns instantes , não ma queres mostrar?
Levantou os olhos e vi com espanto que estavam cheios de lágrimas.
Não és a amiga que eu julgava ! gritoume. Tu... tu... estás cheia de inveja... Desprezas de propósito a minha casa para me magoares.
Falava sem me olhar, com a cara cheia de lágrimas. Eram lágrimas de despeito; a invejosa desta vez era ela; sofria de uma inveja sem objectivo e corava sem o saber pelo meu amor desesperado por Jaime e pelo desprendimento amargo que este amor me dava. Mas, compreendendoa tão bem, e porque a compreendia, senti pena dela. Levanteime, aproximeime e pouseilhe a mão no ombro.
Porque dizes isso? Não sou invejosa... Não são estas coisas que eu invejo. Mas estou contente por te saber feliz. Então, vá, mostrame os outros quartos disselhe beijandoa.
Assoouse e pareceume desejar fazêlo:
São só quatro disseme , e estão quase vazios.
Mostramos.
Levantouse, precedeume no corredor, abriu várias portas e mostroume o quarto, onde havia só uma cama, um sofá aos pés da cama, um quarto vazio onde ela tinha a intenção de pôr mais uma outra cama para os convidados e o quarto da criada, que não era mais que um cubículo. Mostroume estas três casas com uma espécie de despeito, explicandome com brevidade o seu respectivo uso e sem tirar qualquer prazer disso. Mas a sua vaidade era mais forte do que o seu mau humor quando me mostrou a casa de banho e a cozinha, ambas revestidas de azulejos, com engenhos eléctricos novos e torneiras cintilantes... Explicoume a maneira como funcionavam esses aparelhos, a sua superioridade sobre a aparelhagem de gás, o seu asseio e o seu rendimento; e se bem que o meu espírito andasse longe, fingi desta vez interessarme pelas suas explicações com exclamações de admiração e de surpresa. Ficou tão contente com a minha atitude que me disse, uma vez acabada a visita:
Vamos lá dentro tomar outro cálice de licor.
Não, não respondilhe. Tenho de me retirar.
Porquê esta pressa? Espera um momento.
Não posso.
Estávamos no corredor. Hesitou um momento, depois declaroume :
Gostava que voltasses. Sabes o que podemos fazer? Ele vai com frequência a Roma... Um destes dias mando dizerte, arranjamos dois dos teus amigos e passamos um bom bocado.
Mas se ele sabe?
E porque háde saber?
Está bem disse eu. Fica combinado.
Hesitei por minha vez, depois pergunteilhe corajosamente :
A propósito, dizme uma coisa... e ele nunca te falou do amigo que o acompanhava naquela noite?
O estudante? Porque? Interessate?
Não, é só para saber...
Ainda ontem à noite o vimos.
Não consegui dissimular mais a minha perturbação.
Ouve disselhe com a voz mal segura , se o vires dizlhe que venha ter comigo.. mas dizlhe sem parecer ligar grande importância ao assunto.
Está bem respondeume. Eu digolhe.
Mas ela perscrutavame com ar desconfiado e eu, sob o seu olhar, perdi a segurança, porque me parecia que o meu amor por Jaime estava escrito na minha cara em letras bem visíveis. Pelo tom da sua resposta compreendi que não faria o que lhe pedira. Desesperada, abri a porta, pedi licença e desci a escada com rapidez sem olhar para trás. No segundo andar parei e apoieime à parede olhando para cima. “Porque lhe disse isto? pensava. Que se passou em mim?” Continuei a descer, de cabeça baixa.
Tinha marcado encontro com Astárito em minha casa. Quando cheguei estava esgotada; já não estava habituada a sair de manhã; todo este sol e todas estas idas e vindas me tinham fatigado. Sentiame triste; a minha visita a Gisela já a tinha expiado quando chorara no táxi que me transportara à sua casa nova. Foi minha mãe quem me abriu a porta, dizendome que alguém me esperava há mais de uma hora no meu quarto. Fui directamente para lá e senteime na beira da cama, sem me importar com Astárito, que, de pé, em frente da janela, parecia olhar para o pátio. Fiquei um momento imóvel, com a mão sobre o coração, ofegante, tanto correra pelas escadas acima. Estava de costas voltadas para Astárito e olhava com ar abstracto para a porta do quarto: ele tinhame dado os bonsdias, mas nem sequer lhe respondera. Veio sentarse ao pé de mim e, passandome a mão pela cintura, olhoume fixamente.
No meio de todas as minhas preocupações esquecera a sua louca sensualidade, sempre viva e aguçada. Acheia intolerável.
Então tu tens sempre desejo? disselhe lentamente, num tom desagradável e recuando.
Não respondeu, tomoume a mão e levoua aos lábios com um olhar submisso.
Tens sempre desejo? repeti. Mesmo a esta hora? Depois de teres trabalhado toda a manhã? Em jejum? Antes do almoço? Sabes que és extraordinário?
Mas eu amote disseme. Vi os lábios tremeremlhe e os olhos franziremselhe.
Mesmo assim... disselhe. Há uma hora para o amor e uma hora para o resto. Marqueite encontro justamente a esta hora para que compreendesses que não era de amor que se tratava... e tu, ao contrário... Não tens vergonha?
Olhavame fixamente sem responder. Bruscamente tive a impressão de o compreender demasiado bem. Ele amavame e este encontro esperavao há não sei quantos meses. Enquanto eu me debatia no meio de mil dificuldades, ele não tinha feito outra coisa senão pensar nas minhas pernas, no meu seio, nas minhas ancas, na minha boca!
Então disselhe mais branda , se eu me despir...
Ele disse que sim com a cabeça. Deume vontade de rir, sem maldade, mas não sem despeito.
E a ideia de que me possa sentir triste ou simplesmente longe de todas estas coisas nunca te passa pela cabeça? Que posso ter fome, estar cansada... ou ainda ter outras preocupações... Isso nunca te ocorre, não?
Olhavame. De repente atirouse sobre mim, abraçoume com força e aconchegou a cabeça na cavidade do meu ombro. Não me beijava, contentavase em apoiar a cara contra a minha carne para sentir o seu calor. Respirava com força e de vez em quando suspirava. Agora já não estava irritada com ele; os seus gestos suscitavamme pelo menos a compaixão e a consternação que me eram habituais: já não estava triste. Quando achei que ele já tinha suspirado bastante, repelio e disselhe:
Preciso de falar contigo de uma coisa muito séria.
Olhoume, segurou a minha mão e começou a acariciála. Era persistente. Realmente para ele nada mais existia que o seu desejo.
Tu és da polícia, não és? pergunteilhe.
Sou.
Pois bem! Então mandame prender e meteme na prisão!
Disselhe isto em tom resoluto. Naquele momento desejava realmente que ele o fizesse.
Mas porquê? Que te aconteceu?
Aconteceu que sou uma ladra! disselhe com força. Acontece que roubei e que prenderam uma inocente por minha causa... portanto é preciso que me prendam; irei para a prisão de boa vontade. É isso que eu quero.
Não me pareceu admirado, mas apenas contrariado. Fez uma careta e disse:
Explicate!
Já acabei de te dizer... sou uma ladra!
Em poucas palavras conteilhe o roubo e expliqueilhe como tinha sido presa a criada de quarto. Falei do estratagema de Gino, mas sem o nomear; disse somente: “um criado”. Mas desejava imenso falarlhe de Sonzogne e do seu crime; fiz um esforço enorme para me conter. Concluí:
Agora escolhe: ou libertas esta mulher da prisão... ou vou hoje mesmo entregarme ao comissariado.
Devagarinho!... repetia levantando a mão. Não há urgência alguma. Essa mulher está na prisão, mas não foi condenada. Esperemos.
Não... não posso esperar. Ela está presa e parece que lhe batem... não posso esperar... Agora és tu quem tem de decidir...
O meu tom fezlhe compreender que estava a falar sério. Levantouse com uma expressão descontente e deu alguns passos pelo quarto. Depois disse como se falasse consigo próprio :
Ainda há a história dos dólares.
Mas ela negou sempre... depois de lhos terem encontrado... podemos dizer que era uma vingança de alguém que a detesta.
E a caixa, temna?
Está aqui! disselhe tirando o objecto da mala e dandolho.
Ele recusouse a aceitálo.
Não, não disseme , não é a mim que o tens de dar.
Hesitou um momento, depois acrescentou:
Posso conseguir libertar essa pobre mulher, mas é preciso que ao mesmo tempo a policia tenha a prova da sua inocência... esta caixa precisamente.
Pronto! Vai restituí-la à sua proprietária.
Teve um riso desagradável.
Como se vê que nada percebes destas coisas! disseme. Se és tu quem me dá a caixa, sou moralmente obrigado a mandarte prender... Senão dirão: como é que Astárito tem o objecto roubado, quem lho deu e como? Não, tens de arranjar maneira de fazer chegar a caixa às mãos do comissário, mas sem te descobrir.
Posso mandála pelo correio?
Não, pelo correio, não.
Deu ainda alguns passos pelo quarto e depois veio sentarse ao meu lado e disseme:
Vais fazer o seguinte... Conheces algum padre? Lembreime do monge francês ao qual me confessara depois do passeio a Viterbo.
Sim respondilhe , o meu confessor.
Confessaste ainda?
Confessavame.
Bem... vai procurar o teu confessor e contalhe o que fizeste como acabas de mo fazer a mim... rogalhe que devolva a caixa ao comissariado... nenhum confessor pode recusar uma coisa destas... ele não é obrigado a fornecer qualquer indicação porque está ligado ao segredo da confissão. Um ou dois dias depois, telefonarei e agirei... por fim a tua criada de quarto será posta em liberdade.
Senti uma alegria tão grande que não me contive e deiteilhe os braços à roda do pescoço e beijeio. Continuou já com a voz trêmula de volúpia:
Mas não deves tornar a fazer destas coisas. Quando precisares de dinheiro, não tens mais que me pedir...
Posso ir hoje mesmo procurar o confessor?
Com certeza!
Tinha ficado com a caixa na mão. Fiquei muito tempo imóvel com o olhar perdido. Sentia um grande alivio, como se fosse eu a criada de quarto. Tinha realmente a impressão de ser ela ao pensar no alivio que ela experimentaria, bem maior que o meu quando a libertassem! Já não me sentia triste, nem cansada, nem desgostosa. Entretanto, Astárito, introduzindo os dedos em volta do meu pulso, procurava subir ao longo do braço por debaixo da manga. Volteime e disselhe com doçura e com voz acariciadora :
Ainda continuas a desejarme?
Incapaz de falar, disse que sim com a cabeça.
Não te sentes cansado? continuei com voz terna e cruel. Não achas que é tarde, que seria melhor deixar para outro dia?
Vio fazer um gesto negativo com a cabeça.
Amasme assim tanto? pergunteilhe.
Sabes bem que te amo respondeu em voz baixa. Fez menção de me beijar. Liberteime e disse:
Espera!
Acalmouse logo porque compreendeu que eu tinha acedido. Levanteime, dirigime lentamente para a porta e dei volta à chave na fechadura. Depois fui à janela, abria, corri as persianas e fechei as portas. Ele seguiame com os olhos enquanto eu girava pelo quarto, com uma atitude cheia de complacência, de preguiça, de majestade. Sentia o seu olhar sobre mim e compreendia até que ponto a minha aceitação inesperada lhe era agradável. Logo que puxei as persianas comecei a cantarolar em surdina com voz íntima e alegre. Sempre cantarolando, abri o armário, tirei o casaco e pendureio. Depois, sem cessar de cantar em voz baixa. olheime no espelho. Tive a impressão de nunca ter estado tão bonita, com os olhos brilhantes, doces e profundos, as narinas frementes, a boca entreaberta sobre os meus dentes regulares e brancos. Compreendi que era bela porque estava contente comigo própria e porque me sentia boa. Cantei um pouco mais alto e comecei a desabotoar o vestido de baixo para cima. Cantava uma canção completamente idiota que estava muito em voga nessa altura e dizia:
- Canto esta canção de que gosto tanto, que faz dlin dlon, dlin dlon, dlin dlon!
Esta cançoneta pateta pareciame a própria vida, absurda sem dúvida, mas por vezes também doce e sedutora. Bruscamente, quando já estava com o peito nu, alguém bateu à porta.
Mais logo disse eu. Agora não posso.
É uma coisa urgente respondeu a voz de minha mãe.
Desconfiei de qualquer coisa, abri a porta e espreitei.
Minha mãe fezme sinal para sair e fechar a porta. Depois sussurroume :
Está uma pessoa na sala que quer falarte por força.
Quem é?
Não sei. É um rapaz moreno.
Abri devagarinho a porta da sala e olhei. Vi um homem virado de costas para mim, encostado à mesa. Depois recomendei a minha mãe:
Dizlhe que venho já... Não o deixes sair da sala.
Ela disseme que ficasse descansada que o faria e tornei a entrar no quarto.
Astárito estava ainda sentado na cama como eu o tinha deixado :
Depressa, depressa! Tenho pena, mas preciso de que te vás embora!
Perturbouse e começou a balbuciar quaisquer protestos. Não o deixei acabar e continuei:
A minha tia adoeceu de repente no meio da rua e eu e minha mãe temos de ir já ao hospital... Depressa, depressa!
Era uma mentira bastante grosseira, mas naquele momento foi a única que me ocorreu. Olhavame aparvalhado, como se não acreditasse na sua pouca sorte. Reparei que tinha tirado os sapatos e que tinha umas meias listadas.
Então! Porque me olhas assim? Tens de te retirar! insistia eu, desesperada.
Está bem, voume embora.
Baixouse para calçar os sapatos. De pé, na sua frente, estendialhe já o casaco. Compreendi que teria de lhe fazer alguma promessa se quisesse que interviesse a favor da criada de quarto.
Ouve acrescentei, ajudandoo a vestir o sobretudo , estou realmente vexada... mas volta amanhã à noite... depois do jantar... podemos estar juntos com tranquilidade... agora teria que te deixar logo em seguida... assim é melhor.
Ele não respondeu e eu acompanheio até à porta, conduzindoo pela mão, como se fosse a primeira vez que ele tivesse vindo a minha casa, tal era o medo de que ele entrasse na sala onde Jaime me esperava.
Ouve disselhe. Olha que vou hoje mesmo falar ao confessor.
Respondeu que sim com a cabeça para dizer que era conveniente. Tinha uma expressão ofendida e gelada. Na minha Impaciência, nem esperei que ele se despedisse e fecheilhe a porta.
Enquanto me aproximava da porta da sala grande e punha a mão no puxador, compreendi de repente que, a menos que sucedesse um milagre, eu arriscavame a criar entre mim e Jaime as lamentáveis relações que existiam entre mim e Astárito. E apercebime de que o sentimento de timidez, de receio e de cego desejo que eu inspirava a Astárito era o mesmo que eu sentia por Jaime.
Compreendendo perfeitamente que se quisesse ser amada me devia portar de uma maneira diferente, sentiame invencivelmente impulsionada pelo desejo de me colocar perante a sua pessoa numa posição de dependência, de ansiedade, de sujeição. Quais poderiam ser os motivos da minha posição de inferioridade não saberia dizer: se os tivesse conhecido, esta posição deixaria de existir. O meu instinto advertiame apenas de que éramos feitos de maneira diferente e que eu era mais resistente do que Astárito, mas mais frágil que Jaime: que da mesma maneira que qualquer coisa me impedia de amar Astárito, alguma coisa também havia que impedia Jaime de me amar; que da mesma forma como o amor de Astárito por mim, o meu amor por Jaime nascera sob mau signo e acabaria ainda pior. O coração saltavame do peito e tinha a respiração entrecortada antes de o ver e de lhe falar. Estava cheia de medo de dar um passo em falso, de lhe fazer notar a minha ansiedade e o desejo que tinha de lhe agradar e ao mesmo tempo o receio de o perder para sempre. esta seguramente a pior maldição do amor; nunca é suficientemente retribuído: quando se ama não se é amado e quando nos amam não correspondemos. Nunca acontece dois amantes terem a mesma força de desejo e de sentimento, se bem que este seja o ideal para o qual todos os homens tendem, cada um por sua conta. Sabia com certeza que desde o momento em que me apaixonasse por Jaime ele não estaria apaixonado por mim. E sabia também, sem querer confessálo a mim própria, que, por mais que fizesse, nunca conseguiria que ele me tivesse amor. Tudo isto me passou pelo espírito enquanto esperava. mortalmente perturbada, atrás da porta da sala grande. Sentiame completamente aturdida, pronta a cometer as maiores tolices, e isso irritavame o mais possível. Acabei por me encher de coragem e entrei.
Estava ainda na posição em que o vira quando espreitara pela porta entreaberta, apoiado à mesa, de costas para a porta. Ouvindome entrar, voltouse, olhoume com ar hesitante, atento e crítico e disseme:
Passei por tua casa e lembreime de te fazer uma visita... achas que fiz mal?
Reparei que falava devagar, como se quisesse observarme antes de pronunciar as palavras, e eu tremia à ideia de que talvez lhe parecesse menos sedutora que a recordação que o levara a procurarme depois de tanto tempo. Encorajoume a lembrança de que pouco antes, quando me olhara ao espelho, me achara bela. Respondilhe ansiosa:
De maneira nenhuma. Fizeste muito bem... ia sair para almoçar... Vamos almoçar juntos!
Mas tu reconhecesme? perguntoume, talvez com ironia. Sabes quem eu sou?
Se te reconheço! disse eu, brincalhona.
E antes que a minha vontade dominasse os meus gestos, já lhe tinha pegado na mão e levado aos lábios, olhandoo com amor. Ele perdeu um pouco a serenidade e isso deume prazer.
Porque nunca mais deste sinal de vida, grande maroto! disselhe com voz terna.
Abanou a cabeça e respondeu:
Tenho tido muito que fazer.
Eu perdera completamente a cabeça. Dos lábios levei a mão ao coração, abaixo do seio, e disselhe:
Sente como o meu coração bate!
Mas ao mesmo tempo chamavame idiota, porque pensei que não deveria fazer nem dizer aquilo.
Fez uma careta um pouco aborrecida; então, assustada. acrescentei depressa:
Vou vestir o casaco. Volto já. Espera.
Sentiame tão transtornada e tinha tanto medo de o perder que, uma vez no vestíbulo, fechei rapidamente à chave a porta da escada e tireia da fechadura. Se ele quisesse aproveitar o momento em que eu me vestia para se safar não lhe seria possível. Em seguida entrei no quarto e, diante do espelho, tirei o resto da pintura da boca e dos olhos com um canto do lenço. Depois tornei a pôr bâton, mas muito levemente. Fui ao bengaleiro buscar o casaco, não o encontrei e sentime completamente perdida; depois lembreime de que o tinha pendurado no armário, tireio e vestio. Olheime no espelho e pareceume que o penteado que tinha chamava demasiado a atenção. Rapidamente, com algumas penteadelas, arranjei o cabelo como o usava na época em que era a noiva de Gino. Mas enquanto me penteava jurei solenemente que de futuro dominaria a minha paixão e não teria nem gestos nem palavras irreflectidos. Por fim estava pronta. Passei pelo vestíbulo e cheguei à porta da sala grande para chamar Jaime.
Mas quando saímos, a porta da escada que eu tinha esquecido que fechara à chave revelou o meu subterfúgio.
Tinhas medo que eu saísse! murmurou enquanto eu, confusa, procurava a chave na mala.
Ele agarrou a chave e foi ele próprio quem abriu a porta, olhandome com um abanar de cabeça que parecia reprimir uma afectuosa severidade. O meu coração encheuse de alegria e corri atrás dele na escada, segureilhe o braço e pergunteilhe esbaforida:
Não ficaste contrariado, pois não?
Não respondeu.
Na rua começamos a caminhar ao sol, de braço dado, ao longo das portas e das lojas. Estava tão feliz de andar ao seu lado que esqueci completamente os meus juramentos, e quando passamos em frente do pequeno pavilhão do torreão foi como se alguém pegasse na minha mão e a forçasse a apertar a sua. Apercebime de que me inclinava para a frente para o olhar melhor e lhe dizia:
Sabes que estou bem contente de te ver?
Fez a sua careta habitual de embaraço e respondeume:
Também estou contente mas num tom que não condizia com as suas palavras.
Mordi os lábios até fazer sangue e desentrelacei os meus dedos dos seus. Não pareceu dar por isso; olhava à sua volta com ar distraído. A porta das muralhas parou e pronunciou numa voz reticente:
Ouve, devo dizerte uma coisa.
Diz!
Foi realmente por acaso que vim verte... e também por acaso não tenho nem um soldo no bolso. Por isso é melhor que nos separemos.
E dizendo isto estendiame a mão. Comecei por experimentar um grande pavor: “Ele deixame”, pensava e, no meu desespero, não via outra solução senão agarrarme ao seu pescoço chorando e suplicando. Mas o meu segundo movimento fezme encontrar, no próprio pretexto que ele encontrara antes para me abandonar, uma solução fácil e mudei de sentimento. Pensei que podia pagar a refeição, e a ideia de lhe pagar da mesma maneira que toda a gente me pagava a mim seduziume. Já tenho falado no prazer sensual que sentia de cada vez que recebia dinheiro dos homens. Descobrira agora que havia em pagarlhe um prazer também forte, e que a mistura do amor e do dinheiro seja o dinheiro dado ou recebido não era somente uma questão de proveito. Impetuosamente griteilhe:
Mas não penses nisso! Serei eu quem pagará! Olha: tenho dinheiro.
Abri a mala e mostreilhe algumas notas que metera lá na véspera à noite.
Ele disse com uma espécie de decepção:
Mas isso não se faz!
Que importância tem isso? Tu voltaste: é justo que festeje o teu regresso!
Não, não, não quero!
De novo fez menção de estender a mão e de se ir embora. Mas desta vez agarreio pelo braço declarandolhe:
Vá! Depressa! Não falemos mais nisso!
E dirigime para o restaurante. Sentámonos à mesma mesa que da primeira vez. Tudo estava como então, à parte um raio de sol invernal que penetrava pelos vidros da porta, iluminando as mesas e a parede. O dono da casa trouxenos a lista e eu dei as ordens num tom seguro e protector, parecido com aquele que empregavam comigo os meus amantes. Enquanto encomendava o almoço, ele conservouse em silêncio, de olhos baixos. Esquecerame de pedir vinho porque não bebia; mas lembreime de que na primeira vez ele bebera; tornei a chamar o homem e encomendeilhe um litro.
Logo que ele se afastou, abri a mala, tirei uma nota, dobreia em quatro, olhei à minha volta e estendia por debaixo da mesa ao meu companheiro.
Olhoume com ar interrogativo.
É o dinheiro disselhe em voz baixa. Assim, quando quiseres, podes pagar.
Ah! O dinheiro disse lentamente.
Apanhou a nota, desdobroua em cima da mesa, olhoua, depois tornou a dobrála, abriu a minha mala e tornou a metêla lá com uma seriedade ligeiramente irônica.
Queres que seja eu a pagar? perguntei, desconcertada.
Não respondeu tranquilamente. Eu pagarei.
Mas então porque me disseste que não tinhas dinheiro?
Hesitou, depois respondeu com uma sinceridade cheia de amargura:
Não foi por acaso que te procurei. Para te dizer a verdade. há um mês que penso em vir. Mas quando me encontrei diante de ti desejei tornar a irme embora. Então lembreime de te dizer que não tinha dinheiro: esperava que tu me mandasses para o diabo. Sorriu e passou a mão pelo queixo:
Enganeime, ao que parece acrescentou.
Fora então uma espécie de experiência que ele fizera comigo. Mas não me desejava. Ou, para ser mais exacta, a atracção que sentia por mim era combatida por uma aversão igualmente forte. De futuro reconheceria nesta faculdade de mentir e de representar um papel para fazer uma experiência uma das suas características principais. Naquele momento sentiame deveras perturbada e perguntava a mim própria se me devia lamentar ou felicitar pela sua astúcia e pela sua desfeita.
Porque te querias ir embora? pergunteilhe maquinalmente.
Porque compreendi que não experimentava qualquer sentimento por ti... ou, mais exactamente, um desejo como aquele que o meu amigo sente pela tua camarada.
Sabes que eles vivem juntos? disselhe.
Sim respondeume com ar de desprezo. São feitos um para o outro.
Nada sentes por mim repeti , e vieste? No meu amor decepcionado (decepção que eu, de resto, previra) tinha prazer em lhe fazer notar a sua inconsequência.
Pareceme respondeu que eu sou o que vulgarmente se chama um carácter fraco.
Vieste e isso bastame - disselhe cruelmente.
Alonguei a mão por debaixo da mesa e pouseilha sobre os joelhos, olhandoo. A este contacto vio perturbarse e notei que o queixo lhe tremia. Senti prazer em vêlo tremer; compreendi que, apesar de me desejar tanto como acabara de me dizer quando me confessara ter pensado durante um mês em me vir ver, havia uma parte dele próprio que me era hostil e que era contra essa parte que eu deveria dirigir os meus esforços a fim de a humilhar e destruir. Lembreime do seu olhar passando como um fio sobre as minhas costas nuas na primeira vez em que estivemos juntos; fizera mal em me deixar gelar por aquele olhar, que se eu tivesse persistido nos meus esforços para o seduzir, esse olhar se teria extinto da mesma maneira que neste momento a dignidade convulsa da sua cara caíra e se evaporara. Inclinada sobre a mesa como se lhe quisesse falar em voz baixa, acariciavao e espiava com o olhar um olhar que eu sentia alegre e satisfeito o efeito da minha carícia sobre o seu rosto. Olhavame com o ar interrogativo e magoado dos seus grandes olhos brilhantes com longos cílios de mulher. Acabou por me dizer:
Se te chega agradaresme desta maneira, podes continuar.
Endireiteime imediatamente. Quase no mesmo instante o patrão trouxe a comida. Começamos os dois a comer, sem apetite.
No teu lugar procuraria obrigarme a beber disseme.
Porque?
Porque quando estou embriagado faço com mais facilidade aquilo que os outros querem.
A frase que tinha já pronunciado: “Se te chega agradaresme desta maneira, podes continuar!” tinhame magoado. O que ele dizia a respeito do vinho convenceume da inutilidade dos meus esforços. Desesperada, respondilhe:
Quero que faças só aquilo que te apetecer. Se te queres ir embora, não tens mais que ir... a porta está ali.
Para me ir embora disse ele num tom brincalhão - era preciso que tivesse a certeza de o desejar!
Queres que seja eu a irme embora?
Olhamonos. A minha dor davame a segurança da minha resolução. Esta atitude pareceu perturbálo tanto como as carícias que lhe fizera primeiro:
Não disseme com esforço. Fica.
Recomeçamos a comer em silêncio. Depois vio encher um grande copo de vinho e esvaziálo de um trago.
Vês? Estou a beber disseme.
Vejo.
Daqui a pouco estou bêbado. Então já serei bem capaz de te fazer uma declaração!
Estas palavras trespassaramme o coração. Tive a impressão de que já não podia continuar a sofrer desta maneira.
Ouve disselhe humildemente. Não me atormentes mais!
Atormentote?
Sim, metesme a ridículo. Mas eu não te peço outra coisa senão que não te preocupes mais comigo. Apaixoneime por ti... acabará por passar... Mas por enquanto deixame tranquila.
Não respondeu e bebeu o segundo copo de vinho. Temi têlo ferido e pergunteilhe:
Que queres? Estás zangado comigo?
Eu? Pelo contrário.
Se te agradar troçar de mim, podes fazêlo; dizia aquilo só por dizer.
Mas eu não faço troça de ti.
E se te dá prazer dizeresme maldades insistia eu, tomada de não sei que desejo de me mostrar submissa com ele, sem manobras nem cálculos , podes dizêlas... não te amarei menos por isso; amarteei ainda mais! Se me batesses, beijaria a mão com a qual me tivesses batido.
Olhavame com atenção e parecia extraordinariamente embaraçado. Era evidente que a minha paixão o desconcertava. Acabou por dizer:
Vamos embora?
Para onde?
Para tua casa.
Estava tão desesperada que tinha quase esquecido o motivo do meu desespero. A um convite tão inesperado, quando ainda nem sequer tínhamos comido o primeiro prato e metade do vinho ainda estava no jarro, senti mais estupefacção que prazer. Pensava que não era o amor mas o embaraço que o levava a interromper o almoço e disselhe:
Estás sobre brasas para me deixar, não é?
Como percebeste? perguntoume.
Esta resposta, demasiado cruel para ser verdade, encorajoume, respondilhe baixando os olhos:
Sabes... há coisas que se compreendem logo! Não, vamos acabar de comer; depois vamonos embora!
Como quiseres... mas vou embebedarme.
Embebedate... Nada tenho com isso!
Mas vou embebedarme até me fazer mal... e então em vez de um amante para amar, tens um doente para tratar.
Tive a ingenuidade de lhe mostrar o meu receio. Estendi a mão para o jarro e disselhe:
Não bebas mais.
Desatou a rir e disse:
Caíste no laço!
Qual laço?
Não te aflijas, que eu não adoeço assim com essa facilidade!
Só o fazia por ti disselhe, humilhada.
Por mim? Oh! Oh!
Continuou a arreliarme. Mas conservava nas suas alfinetadas a gentileza que lhe era natural, se bem que isso não me contrariasse muito.
Mas tu, também, porque não bebes? perguntou.
Não gosto. Além disso, a mim bastame um copo para me embriagar.
Que mal pode fazerte? Ficaremos os dois alegres.
É feio uma mulher embriagada; não quero que me vejas assim!
Porquê? Que tem isso de feio?
Não sei. É feio ver uma mulher cambalear, dizer disparates, fazer gestos inconvenientes... É triste. Eu sei que sou uma desgraçada e sei que tu também pensas o mesmo de mim, que sou uma desgraçada. Mas se bebesse e tu me visses embriagada, nunca mais me poderias ver.
E se te ordenasse que bebesses?
Queres por força aviltarme! disse, reflectindo. A única coisa boa que tenho é não ser ignóbil... Queres realmente que eu perca até mesmo esta qualidade?
Quero! disseme com ênfase.
Não percebo em que te pode isso dar prazer! Mas se o desejas muito, está bem, serveme vinho! disselhe.
E estendi o copo.
Olhou o copo e, depois de me olhar também, desatou a rir outra vez:
Estava a brincar disse.
Nunca deixas de brincar!
Então tu não és ignóbil repetiu passado um momento em que me olhara em silêncio.
É o que dizem, pelo menos.
Julgas que eu também o penso?
Como heide eu saber o que pensas?!
Vejamos... que julgas tu que penso de ti e sinto por ti?
Não sei disse eu lentamente cheia de pavor. Certamente que não me amas como eu te amo. Talvez eu te agrade como uma mulher pode agradar a um homem quando não é de todo feia.
Ah! Então achas que não és de todo feia?
Disso tenho a certeza disse com orgulho. Sei mesmo que sou muito bonita. Mas de que me serve a beleza?
A beleza para nada serve.
Entretanto, tínhamos acabado de comer e esvaziáramos quase dois jarros de vinho.
Como vês disseme , bebi e não estou bêbado. Mas os seus olhos brilhantes e a agitação das mãos contradiziam as suas palavras. Olhavao talvez com um ar esperançado.
Queres voltar para casa? disseme. É Vênus toda inteira agarrada à sua presa.
Que estás a dizer?
Nada. São uns versos franceses. Hep! Chefe! Era sempre um pouco enfático, mas de uma maneira cômica. E foi de uma maneira cômica que interpelou o patrão e lhe meteu o dinheiro debaixo do nariz, juntandolhe uma gorjeta excessiva e declarando:
Este dinheiro é para si!
Em seguida bebeu o resto do vinho e veio ter comigo. Já na rua, sentia uma grande pressa de chegar a casa.
Sabia que era de má vontade que ele voltava comigo; sabia que me desprezava e detestava o sentimento que o impelia para mim sem que o pudesse impedir. Mas eu tinha a maior confiança na minha beleza e no meu amor por ele e estava impaciente por afrontar a sua hostilidade com essas armas; sentia de novo uma vontade agressiva e alegre, e que o meu amor seria mais forte do que a sua aversão, que ao calor da minha chama o seu metal duro acabaria por se fundir e ele amarmeia por sua vez.
Caminhando a seu lado na grande avenida deserta às primeiras horas da tarde, disselhe:
Vais prometerme que, uma vez em minha casa, não procurarás irte embora.
Prometo.
Vais prometerme ainda outra coisa.
Qual?
Hesitei, depois disse:
Da outra vez tudo se teria passado bem se não te tivesses posto, a certa altura, a olhar para mim de uma maneira que me envergonhou. Tens de me prometer que não tornas a olharme daquela maneira.
De que maneira?
Não sei... de uma maneira maldosa.
Não se comanda o olhar disseme. Se quiseres, nem te olharei, fecharei os olhos. Está bem?
Não, não está! insisti com obstinação.
Mas de que maneira queres que olhe para ti?
Como eu te olho respondilhe.
Sem parar, segureilhe o queixo e mostreilhe a maneira como me devia olhar.
Assim, com doçura.
Ah! Ah! Com doçura!
Quando chegamos à minha escada suja e lúgubre, não pude impedirme de me lembrar da casa de Gisela, branca, asseada e límpida. E disse como se falasse comigo:
Se eu não morasse numa casa suja, se não fosse a desgraçada que sou, com certeza te agradaria mais!
Parou de repente, seguroume pela cintura com as duas mãos e disseme num tom sincero:
Se pensas isso, podes estar certa de que te enganas. Pareceume ver nos seus olhos qualquer coisa muito parecida com afecto. Ao mesmo,tempo curvouse sobre mim e procuroume a boca. O seu hálito cheirava muito a vinho. Nunca pude suportar o cheiro do vinho, mas neste momento, na sua boca, pareciame agradável e puro, quase comovente, como o seria na boca de uma criança inexperiente. Compreendi que as minhas palavras tinham, sem que o tivesse procurado, tocado o seu ponto sensível. Pareceume, como já disse, ter feito nascer nesse momento na sua alma a centelha da afeição. Em seguida percebi que ele agia mais por ponto de honra e que, ao beijarme, não obedecia tanto a um gesto de amor, que não sentia, como, à sua maneira, a uma espécie de chantagem moral. Mais tarde estimuleio da mesma maneira mais vezes, acusandoo de me desprezar pela minha pobreza e pela minha profissão. Obtive sempre o mesmo resultado favorável aos meus desejos, ao mesmo tempo que completava o meu conhecimento da sua pessoa um conhecimento singularmente humilhante e falaz. Mas nesse dia não o conhecia ainda como depois. E esse beijo deume uma grande alegria, como se fosse uma vitória definitiva. Satisfeita com o gesto, contenteime em aflorar os seus lábios, pegarlhe na mão e dizerlhe:
Vamos. Vamos para cima! Corre! e puxavao, fazendoo galgar alegremente até ao último andar. Ele deixavase levar sem pronunciar palavra.
Cheguei ao meu quarto quase a correr, arremessandoo como a um boneco contra a parede do vestíbulo. Entrei violentamente, e assim que cheguei junto da cama atireio para lá. Só então percebi que ele não estava apenas bêbado, mas, como me prevenira, parecia sentirse mal. Estava extremamente pálido, passava a mão pela testa como se estivesse tonto e tinha nos olhos um brilho vacilante e perturbado. Vi tudo isso apenas com um olhar e fiquei logo com medo de que desmaiasse, e que do nosso segundo encontro nada resultasse outra vez. Por um instante, ao andar de um lado para o outro para me despir, senti um vivo remorso, como que um desespero, por não o ter impedido de beber. Mas notese que nem sequer me passou pela ideia renunciar a este amor tão desejado. Só tinha uma esperança: que não se sentisse mal a ponto de não me poder amar, ou que, se a indisposição fosse verdadeiramente forte, os seus efeitos se fizessem sentir depois, e não antes, de ter satisfeito o meu desejo. Estava realmente apaixonada por ele; mas tinha tanto medo de o perder que o meu amor não ultrapassava os limites do meu egoísmo.
Portanto, fingi não notar a sua embriaguez, e depois de despida senteime na cama a seu lado. Tinha ainda o sobretudo vestido como quando tinha entrado. Ajudei a despilo. Enquanto o fazia, ialhe falando para o distrair e impedir de pensar em se ir embora.
Ainda não me disseste quantos anos tens disselhe tirandolhe o sobretudo pelas mangas, enquanto ele levantava docilmente o braço para me auxiliar nos meus esforços.
Respondeu passado um momento:
Tenho dezanove anos.
Tens menos dois do que eu.
Tu tens vinte e um?
Quase vinte e dois.
Os meus dedos procuravam desmancharlhe o nó da gravata. Lentamente ele afastoume e desfez o nó. Depois deixou cair os braços e tireilhe a gravata.
Está velha a tua gravata disselhe. Heide comprarte uma. De que cor queres?
Ele riu. Gostava de o ver rir, porque tinha um riso amável e gentil.
Tu queres por força sustentarme! disse. Primeiro querias pagarme o almoço e agora queres comprarme uma gravata?
Que disparate! disselhe com ternura. Que mal te pode isso fazer? Eu tenho gosto em oferecerte uma gravata: isso não pode contrariarte!
Enquanto me ouvia, tirara o casaco e o colete e estava sentado na beira da cama em mangas de camisa.
Notase que tenho dezanove anos? perguntoume.
Agradavalhe sempre falar dele; depressa o descobri.
Sim e não disse hesitando, vendo que isso o lisonjeava. Vêse sobretudo pelos cabelos acrescentei acariciandolhe a cabeça. Um homem tem o cabelo menos forte. Na cara não.
Que idade me darias?
Vinte e cinco.
Calouse e fechou os olhos como se fosse vencido pela embriaguez. De novo tive medo que se sentisse mal e apresseime a ajudálo a tirar a camisa, acrescentando:
Falame mais de ti. És estudante?
Sou.
Em que curso estás?
Direito.
Vives com a tua família?
Não, a minha família mora na província, em S...
Estás numa pensão?
Não, tenho um quarto mobilado respondeume mecanicamente de olhos fechados. Na Rua Cola di Rienzo, 20, apartamento 8, em casa da viúva Medolaghi, Amélia Medolaghi.
Tinha o tronco nu. Não resisti à tentação de lhe passar gulosamente as mãos sobre o peito e o pescoço dizendo:
Porque ficas assim? Não tens frio?
Levantou a cabeça e olhoume. Depois riuse e disseme com uma voz um pouco áspera:
Julgas que eu não percebo?
O quê?
Que me despes disfarçadamente? Estou embriagado, mas não a esse ponto.
E então! respondi, desconcertada. Mesmo que assim fosse, que mal há nisso? Devias ser tu a fazêlo, mas como não fazes, auxiliote.
Parecia não me ouvir Estou bêbado continuou, abanando a cabeça , mas sei muito bem o que faço e porque estou aqui. Não preciso de ajuda... Olha!
Bruscamente, com gestos violentos que a magreza fazia parecer serem de louco, tirou o cinto, fez voar para longe as calças e tudo o que tinha ainda vestido:
E sei também o que esperas de mim! acrescentou apoiando as mãos nas minhas ancas.
As suas mãos, fortes e nervosas, apertavamme e nos seus olhos a bebedeira parecia ter cedido o lugar a uma espécie de enérgica malícia. Esta malícia tornei a encontrála mesmo nos momentos em que parecia abandonarse completamente. Era um claro indício da sua lucidez de consciência, que conservava sempre, fosse o que fosse que fizesse, e que acabei por descobrir mais tarde com mágoa o impedia de se entregar e amar realmente.
É isto que queres, não é? acrescentou sem me largar, enterrandome as unhas na carne. - E depois isto, isto?
De cada vez que dizia isto tinha um gesto de amor, beijandome, mordendome e beliscandome traiçoeiramente com as duas mãos nos sítios onde eu menos esperava. Eu ria, defendiame, debatiame, estava demasiadamente feliz por ver acordar o seu desejo para notar o que havia de forçado e de insincero na sua atitude. Magoavame como se o meu corpo fosse para ele um objecto de ódio e não de amor. Julguei ver brilhar nos seus olhos, em vez de desejo, uma espécie de cólera. Depois o seu frenesi terminou de repente, como tinha começado. De uma maneira curiosa, inexplicável, talvez por estar dominado pela embriaguez, deixouse cair de costas na cama a todo o comprimento e encontreio ao meu lado com a bizarra impressão de que ele não se mexera, nem me falara, que nunca me tinha tocado, nem beijado, como se tudo estivesse ainda por começar.
Fiquei muito tempo imóvel, ajoelhada na sua frente sobre a cama, os cabelos nos olhos, olhandoo e aflorando de vez em quando timidamente com a ponta dos dedos o seu belo corpo alongado, magro e puro. Tinha a pele branca debaixo da qual sobressaíam os ossos, os ombros largos e magros, as ancas estreitas e as pernas longas; não tinha pêlos, salvo alguns no peito; a posição em que estava, deitado de costas, esticavalhe o ventre de maneira que o púbis parecia estendido como uma oferta. Em amor eu não gosto de violência; por isso me parecia que nada se tinha passado entre nós, que tudo estava ainda no princípio. Deixei, pois restabelecerse a calma e o silêncio depois deste tumulto irônico e fictício, e quando me senti de novo no estado de alma apaixonado e sereno que me é habitual, lentamente, do mesmo modo que durante o tempo quente se entra lentamente na água deliciosa de um mar calmo, estendime ao seu lado, entrelacei as minhas pernas nas suas, rodeeilhe o pescoço com os braços e aperteime contra ele. Desta vez não se mexeu nem falou até ao fim. Eu chamavalhe os nomes mais doces, respirava sobre o rosto, envolviao na rede apertada e quente das minhas carícias, e ele, como se estivesse morto, jazia deitado de costas, imóvel. Mais tarde soube que esta passividade sem participação era a maior prova de amor que ele podia dar.
Muito mais tarde, durante a noite, levantavame apoiada no cotovelo e contemplavao com uma intensidade da qual guardo, passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer conservar a todo o custo abandonarao. Nos seus traços, que o sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembravame de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro profundo que para mim ficava longínquo e secreto. Não desejava que ele me explicasse estas atitudes, desmontandoas e analisandoas por palavras, como se desmontam as peças de uma máquina. Desejaria conhecêlas nas suas raízes mais fundas por um simples acto de amor, e ainda o não tinha conseguido. O pouco que me escapava da sua pessoa era todo ele e o muito que não me escapava não tinha qualquer importância; não sabia que fazer. Gino, Astárito e mesmo Sonzogne estavam mais próximos de mim, conheciaos melhor. Olhavao e sentia a parte mais profunda de mim própria sofrer por não ter podido unirse ao que ele tinha de mais profundo, como acabavam de unirse os nossos corpos. Ela estava viúva e chorava amargamente esta ocasião perdida. Talvez, enquanto nos amávamos, tivesse havido um momento no qual ele se libertou e em que bastaria um gesto ou uma palavra para que eu pudesse entrar na sua alma e lá ficar para sempre. Mas não tinha sabido encontrar esse momento e agora era tarde: dormia e de novo se afastara de mim.
Quando assim o contemplava, abriu os olhos sem se mexer, com a cara enterrada de perfil na almofada e perguntoume:
Também dormiste?
A sua voz pareceume mudada, mais confiante e mais próxima. Eu esperava de repente que misteriosamente, durante o sono, a nossa intimidade tivesse aumentado.
Não... estive a olhar para ti.
Guardou silêncio por um instante, depois disse:
Tenho um favor a pedirte... mas posso contar contigo?
Que pergunta!
Será preciso que me faças o favor de guardar por alguns dias na tua casa um pacote que te entregarei. Virei buscálo e talvez te traga outro.
Noutra ocasião, esta história dos pacotes teria excitado a minha curiosidade. Mas neste momento o que me interessava era ele e as nossas relações. Pensava que era mais uma ocasião para nos tornarmos a ver, que lhe devia agradar o mais que pudesse e que, se lhe fizesse perguntas, poderia arrependerse e faltar ao prometido.
Respondilhe com ar despreocupado:
Se é só isso o que queres...
Calouse ainda durante muito tempo. Parecia reflectir. Depois insistiu:
Então aceitas?
Já te disse que sim.
E não te interessa conhecer o conteúdo dos pacotes?
Se não queres dizer respondi esforçandome por parecer desinteressada , é porque tens razões para isso! Não to pergunto.
Mas poderia ser alguma coisa perigosa; não sabes?
Está bem! Tanto pior!
Podia ser uma coisa roubada continuou estendendose de costas, enquanto os olhos lhe brilhavam com uma expressão divertida e ingênua ao mesmo tempo. Eu podia ser um ladrão.
Recordeime de Sonzogne, que não só era ladrão como também assassino, e lembreime dos meus próprios roubos: a caixa de pó de arroz e o lenço de seda. Pareceume uma curiosa coincidência que ele quisesse passar por ladrão aos olhos de uma pessoa como eu, autêntica ladra, vivendo no meio de ladrões. Fizlhe uma carícia e disselhe com doçura:
Não, tu não és um ladrão com certeza.
Irritouse. O seu amorpróprio, sempre desperto, tomava a mal as coisas mais estranhas e imprevistas.
Porquê? disseme. Podia muita bem sêlo.
Não tens cara disso. Tudo é possível... mas realmente tu não pareces.
Porquê? Que cara tenho eu?
Tens cara daquilo que és... um rapaz de boa família, um estudante...
Fui eu quem te disse que era estudante... Podia muito bem ser outra coisa qualquer... e é a verdade...
Já não o ouvia. Pensava que também eu não tinha cara de ladra e no entanto era uma ladra e desejava imenso dizerlho. A sua curiosa atitude aumentava a minha tentação. Sempre pensara que roubar era um acto censurável. E eis que alguém não só não parecia censurar um tal acto, mas parecia encontrar nisso um aspecto positivo que para mim continuava misterioso. Hesitei um momento, depois disselhe:
Tens razão. Penso que não és um ladrão porque estou convencida de que não o és; mas, quanto à cara, bem podias sêlo. Nunca se tem a cara daquilo que se é. Eu, por exemplo... Tenho cara de ladra?
Não respondeu sem me olhar.
E no entanto souo acrescentei tranquilamente.
Tu és?
Sou.
E que roubaste?
Tinha deixado a mala sobre a mesadecabeceira. Peguei nela, tirei a caixa e mostreilha.
Isto, numa casa aonde ia aqui há uns tempos, e, no outro dia, numa loja, um lenço que dei a minha mãe.
Não acreditou que fizesse estas revelações por vaidade. Na realidade, o que me levara a fazêlas fora um desejo de intimidade, de cumplicidade sentimental: à falta de melhor, a confissão de um delito pode aproximar e fazer amar. Vio tornarse grave e olharme com ar concentrado, e de repente receei que ele me julgasse mal e tomasse a resolução de não me tornar a ver. Acrescentei depressa:
Mas não julgues que estou contente por ter roubado. Pelo contrário, já decidi devolver a caixa... hoje mesmo. O lenço não o posso restituir... mas tenho tido remorsos e resolvi nunca mais o fazer.
Ao ouvir estas palavras, vi brilhar nos seus olhos a malícia que lhe era habitual. Olhoume e desatou bruscamente a rir. Depois agarroume pelos ombros, atiroume para cima da cama e começou outra vez a beliscarme e a fazerme cócegas traiçoeiramente, repetindo:
Ladra, tu não passas de uma ladra, uma ladrazinha, uma grande ladra, uma enorme ladra, uma suja ladra... - com uma espécie de ternura sarcástica da qual eu não sabia se me deveria sentir vexada ou lisonjeada. Num certo sentido, a sua impetuosidade excitavame e agradavame. Era melhor do que a habitual, a mortal passividade.
Ria pois e o meu corpo mais se contorcia quanto mais cócegas ele me fazia, maldosamente, debaixo dos braços. Mas, torcendome e rindo até às lágrimas, via a sua cara, inclinada para mim, com uma espécie de crueldade, conservando uma expressão fechada e concentrada. Sem rir, parou bruscamente, como tinha começado. Deixouse cair de costas sobre a cama e disse:
Eu, pelo contrário, não sou um ladrão... não, na verdade. Estes pacotes que te pedi para guardares não são o produto de um roubo.
Percebi que ele desejava muito dizerme o que eles continham. E compreendia que, ao contrário do que se passara comigo, nele era sobretudo por vaidade. Uma vaidade muito parecida, no fundo, com a que levara Sonzogne a revelarme o seu crime. Apesar de todas as suas diferenças, os homens têm muitas coisas comuns; em presença de uma mulher que eles amam, ou pelo menos com quem têm ligações amorosas, eles tendem sempre para ostentar a sua virilidade sob a forma de actos enérgicos e perigosos que fizeram ou que farão. Fiz notar a Jaime, com doçura:
No fundo, morres por me contar o que há nesses pacotes.
És uma idiota disseme, irritado. Não me interessa fazêlo. Somente devo pôrte ao corrente do seu conteúdo para que possas decidir se me prestas este serviço ou não... Pois bem! Contêm material de propaganda.
Que quer isso dizer?
Faço parte de um grupo de pessoas que não gostam muito, digamos assim, do governo actual, ou, melhor, que lhe têm ódio e desejariam que ele caísse o mais depressa possível. Esses pacotes contêm justamente prospectos impressos, nos quais explicamos às pessoas porque este governo não presta e indicamos a maneira de agir para se desembaraçarem dele.
Nunca me ocupei de política. Para mim, como para muita gente, pareciame, a questão do governo nem sequer se punha. De repente lembreime de Astárito e das alusões que ele de tempos a tempos fazia à política. Gritei então, aflita:
Mas é proibido! É perigoso!
Olhoume com satisfação. Disseralhe enfim uma coisa que lhe agradava e lisonjeava o seu amorpróprio. Confirmou com excessiva gravidade e ligeiramente enfático:
De facto, é perigoso... Agora é a ti que compete decidir se queres ou não prestarme esse serviço.
Não é por mim que digo isto repliquei vivamente - É por ti. Por mim, aceito.
Toma cuidado, porque é de facto perigoso preveniume ainda. Se te descobrem, vais parar à prisão.
Olhavao, e bruscamente senti por ele um excesso de afeição impossível de conter. Os olhos encheramseme de lágrimas e balbuciei:
Não compreendes então que isso para mim não tem importância alguma? Serei presa... e depois?
Abanei a cabeça e as lágrimas rolaramme pelas faces. Admirado, perguntoume:
Porque choras tu agora?
Perdoame disselhe. Sou uma imbecil... Eu própria não sei porquê... talvez porque quisesse que te desses conta de que te amo e que por ti estou pronta a fazer seja o que for.
Ainda não tinha compreendido que não lhe devia falar do meu amor. Ao ouvir as minhas palavras, o seu rosto mostrouse embaraçado e tomou uma expressão vaga e distante, alteração que de futuro, em casos idênticos, eu havia de notar! Desviou os olhos e disseme apressadamente:
Então, está bem! Dentro de dois dias tragote os pacotes, fica combinado. Agora é tarde; preciso de me ir embora.
Dizendo isto, saltou da cama e começou a vestirse a toda a pressa. Fiquei onde estava, sobre a cama, com a minha emoção e as minhas lágrimas, nua e um pouco envergonhada, sem saber se seria de estar nua se de estar a chorar. Apanhou as roupas que atirara para o chão e vestiuas. Foi ao bengaleiro, tirou o sobretudo, enfiouo e aproximouse de mim.
Toca aqui! disseme com um sorriso gracioso e ingênuo que tanto gostava de lhe ver.
Olhei e vi que me indicava um dos bolsos do sobretudo. Aproximarase da cama para que eu pudesse estender a mão sem esforço. Senti um objecto duro.
Que é? pergunteilhe sem compreender.
Sorriu satisfeito, introduziu a mão na algibeira, olhoume nos olhos e tirou devagarinho, mas só metade, um revólver preto.
Um revólver? gritei. Para que o queres?
Nunca se sabe respondeume. Pode vir a ser preciso...
Fiquei inquieta, tentando pensar, porém ele não me deu tempo para isso. Tornou a meter a arma no bolso, curvouse, aflorou os meus lábios com os seus e disseme:
Então está combinado, não está? Volto daqui a dois dias.
Antes que me refizesse da surpresa ele tinha saído. Muitas vezes, daí em diante, pensando neste primeiro encontro de amor, repreendime cruelmente por não ter sabido prever os perigos aos quais o expunha a sua paixão política. A verdade é que não tinha, nem nunca vim a ter, qualquer influência sobre ele. Mas, pelo menos, se eu soubesse então o que soube depois, teria podido aconselhálo: e mesmo que os conselhos para nada servissem, estaria ao seu lado em plena consciência da causa e firmemente decidida.
Esta foi certamente a minha culpa, ou, melhor, a culpa da minha ignorância, da qual não era culpada, mas sim a minha condição. Como já disse, nunca me ocupei de assuntos de política, nada deles percebia, e sentiaos estranhos ao meu destino; era como se eles se desenrolassem não à minha volta, mas num outro planeta. Quando lia o jornal, saltava a primeira página porque as notícias sobre política não me interessavam e tomava conhecimento dos assuntos comezinhos, em que certos acontecimentos ou alguns crimes forneciam ao meu espírito matéria de reflexão. Na realidade a minha condição era muito parecida com a de certos animaizinhos transparentes que vivem, segundo dizem, no fundo do mar, quase às escuras, e nada sabem do que se passa à superfície, à luz do sol. A política, como de resto numerosas coisas às quais os homens pareciam ligar tanta importância, chegava até mim como de um mundo desconhecido, superior mais obscuras, mais incompreensíveis que a luz do dia é para esses simples animálculos no fundo dos seus esconderijos submarinos.
Mas não foi só culpa minha e da minha ignorância; foi também culpa dele, da sua imprudência e da sua vaidade. Se eu me tivesse apercebido dos perigos que a sua vaidade poderia fazer surgir e esses perigos existiam , eu poderia talvez ter agido de maneira diferente; não sei qual seria o resultado, mas termeia esforçado por compreender e conhecer tudo o que ignorava. Aqui quero notar outro elemento que de certo modo contribuiu para o meu procedimento despreocupado: o facto de Jaime dar a impressão de, em vez de agir com seriedade, representar um papel e de uma maneira quase cômica. Dirseia que ele compunha peça por peça uma personagem ideal na qual não acreditava senão até certo ponto, e que se esforçava sempre, quase maquinalmente, por harmonizar os seus actos com os desta personagem. Essa contínua comédia dava a impressão de um jogo no qual ele era, num certo sentido, um perfeito mestre; mas, como acontece aos jogadores, uma impressão semelhante roubava uma grande parte da seriedade a tudo o que ele fazia e sugeria também a falsa certeza de que para ele nada era irreparável e que no último momento o seu adversário lhe devolveria o dinheiro perdido e lhe estenderia a mão. Talvez até, como acontece com as crianças, para quem tudo é jogo, se divertisse realmente; mas o seu adversário era de respeito, isso viuse pela continuação. Foi assim que, acabada a partida, se encontrou desprevenido e desarmado, excluída toda a possibilidade de continuar o jogo e preso numa armadilha mortal.
Estas coisas e muitas outras ainda mais tristes ai de mim! e não menos razoáveis só as pensei mais tarde, reflectindo sobre os factos. Mas então, assim como ele parecia terme feito compreender, a suspeita de que este assunto dos pacotes poderia influenciar as nossas relações nem sequer me aflorou o espírito. Estava satisfeita por ele ter voltado, estava contente por lhe poder prestar um serviço e não ia mais além dessa dupla satisfação. Lembrome de que, ao surpreenderme a pensar vagamente e como em sonhos neste singular serviço que ele me pedira, abanava a cabeça como se dissesse “Que infantilidade!” e pensava noutra coisa. De resto encontravame num estado de alma feliz a tal ponto que mesmo que o quisesse não teria podido aplicar a minha atenção a qualquer facto que me preocupasse.
Tudo me parecia correr pelo melhor. Jaime tinha voltado e encontrara um meio de fazer sair da prisão a criada de quarto acusada injustamente sem ser obrigada a tomar o seu lugar. Naquele dia, depois de Jaime ter saído, passei duas horas a saborear a minha felicidade, como se saboreia por vezes a posse recente de uma jóia, de um objecto precioso, com um misto de admiração, incompreensão e ingenuidade que não exclui de forma alguma uma profunda alegria. O tocar das vésperas acordoume desta voluptuosa contemplação. Lembreime do conselho de Astárito e da urgência que havia em socorrer esta pobre mulher aprisionada. Vestime e saí à pressa.
É uma doce coisa, no Inverno, quando ficamos toda a manhã e uma parte da tarde em casa, só com os nossos pensamentos, sair e percorrer as ruas do centro da cidade, onde o movimento é maior, mais numerosa a multidão e as lojas mais bem iluminadas. No ar puro e frio, no meio do barulho, do movimento e da cintilação da vida citadina o pensamento aclarase, o espírito libertase e experimentase uma excitação estranha, uma embriagadora alegria, como se todas as dificuldades se aplanassem e como se não houvesse realmente outra coisa a fazer que vaguear por entre a multidão, leve e sem cuidados, feliz por seguir agora uma, agora outra, as impressões fugazes que o espectáculo das ruas oferece à ociosidade. Realmente dirseia então por alguns instantes que as nossas dívidas, como diz a oração cristã, nos são perdoadas sem que para isso tenhamos algum mérito, sem que as pagássemos, mas unicamente por uma benevolência geral e misteriosa. Bem entendido que é preciso sentirse feliz ou pelo menos contente, porque, no caso contrário, a vida da cidade pode dar a angustiosa impressão de uma agitação absurda e vã. Mas nesse dia, como já disse, sentiame feliz e apercebime particularmente de que o estava uma vez chegada ao centro e logo que comecei a caminhar nos passeios, pelo meio das pessoas.
Sabia que devia ir à igreja confessarme, como decidira fazer. Mas talvez justamente por me ter proposto esta ideia, nenhuma pressa tinha de o fazer e nem mesmo pensava nisso. Caminhei pois, lentamente, de uma rua para a outra, parando de vez em quando para examinar os objectos expostos nas montras. Se os que me conheciam me tivessem visto, teriam com certeza pensado que eu procurava interessar os passeantes. Mas na verdade nada estava mais longe do meu espírito. Poderia talvez terme deixado deter por algum homem que me tivesse agradado, mas não por dinheiro, mas por simples transporte de alegria, por exuberância de vida. Os poucos homens que me viram parada em frente das montras e me abordaram com as suas frases habituais e as suas propostas para me acompanharem não me agradavam. Nem lhes respondi, nem sequer os olhei e continuei a passear como se eles não existissem, com o meu passo habitual, indolente e majestoso.
A vista da igreja na qual me confessara a última vez, depois do passeio a Viterbo, apanhoume desprevenida, neste estado de alma feliz e distraído. Entre os cartazes do cinema e a montra da loja das meias, rutilante de luz, a sua fachada barroca mergulhava no escuro, disposta à maneira de guardavento num recanto da rua, com a sua alta frontaria encimada por dois anjos tocando trombetas, e as manchas violetas que projectava sobre elas o anúncio luminoso de uma casa contígua davame a impressão da cara escura e enrugada de uma velha, abrigada com um xaile fora de moda, que me tivesse feito um sinal de chamada familiar no meio das caras iluminadas das pessoas. Lembreime do belo confessor francês, o padre Élie, e tive a impressão de que ninguém se sairia melhor do que ele, homem do mundo e homem novo, desta maçada de restituir a caixa. Além disso, ao padre Élie, conhecendome num certo sentido, eu teria menos dificuldade em confessarlhe as coisas terríveis e vergonhosas que pesavam sobre a minha alma.
Galguei os degraus, afastei a cortina que obstruía a porta e entrei depois de ter colocado na cabeça um lenço de bolso. Enquanto molhava os dedos na água benta, reparei numa figura esculpida em volta da pia: uma mulher nua, com os cabelos ao vento, os braços levantados, que fugia perseguida por um repugnante dragão, com bico de papagaio, levantado sobre as patas de trás, como um homem. Julguei reconhecer esta mulher; pensava que fugia também de um dragão parecido, mas a minha fuga, como a desta mulher, era uma fuga circular. Aconteciame por vezes andar à roda, não para fugir, mas para seguir com ardor e alegremente este vil dragão. Afasteime da pia de água benta e, persignandome, volteime para o interior da igreja. Pareceume que conservava a mesma desordem, a mesma obscuridade, a mesma desolação que da última vez que a tinha visto. Como então, estava mergulhada na escuridão, salvo o altarmor, onde os círios iluminavam o crucifixo, fazendo brilhar confusamente os candelabros de cobre e as alfaias de prata. A capela dedicada à Virgem, na qual eu rezara com uma tão profunda e vã convicção, estava também iluminada; empoleirados em escadotes, dois sacristães pregavam à arquitrave cortinados vermelhos franjados de ouro. Vi que o confessionário do padre Élie estava ocupado e fui ajoelharme, em frente do altarmor, sobre uma das cadeiras de palha em desordem. Não sentia qualquer emoção, mas só impaciência por despachar o assunto da caixa. Uma impaciência impetuosa, feliz e não isenta de vaidade, precisamente a que se sente quando nos preparamos para fazer uma boa acção com a qual sonhávamos há muito tempo. Reparei logo que esta impaciência, que vem do coração e parece querer ignorar todas as sugestões da inteligência, acaba por comprometer a boa acção e fazer por vezes mais mal que uma conduta mais reflectida.
Assim que vi a pessoa que se confessava levantarse e afastarse, fui direita ao confessionário, ajoelheime e, sem esperar que o confessor me falasse, disselhe depressa:
Padre Élie, não me venho confessar como habitualmente o fazemos... venho dizervos uma coisa extremamente grave e pedirvos um favor que não me recusareis, estou certa.
Do outro lado da grade a voz do confessor, muito baixa, disseme que falasse. Estava tão convencida de que era o padre Élie quem se encontrava do outro lado que quase me parecia ver o seu belo rosto, não escondido, mas à frente da placa escura e perfurada. Então, pela primeira vez depois de ter entrado, experimentei uma grande emoção confiante e religiosa. Foi como um impulso do meu espírito que o impelia a libertarme do corpo e a ajoelharse todo nu, com as suas máculas bem em evidência, sobre os degraus, diante desta grade. Verdadeiramente tive durante um momento a impressão de ser uma alma sem carne, livre, feita de ar e de luz, como dizem que acontece depois da morte. E julguei sentir o padre Élie também, com a sua alma muito mais luminosa do que a minha, libertarse da sua prisão corporal, fazer desaparecer a grade, as paredes, o escuro do confessionário e aparecer diante de mim em pessoa, absolvendo e consolando. Talvez seja esse o sentimento que se deve experimentar quando nos ajoelhamos para nos confessarmos. Mas nunca o sentira de uma maneira tão profunda.
Pusme então a falar, com os olhos fechados, apoiando a testa na grade, e disse tudo. O meu ofício, falei de Gino, de Astárito e de Sonzogne, do roubo e do crime. Disse o meu nome, o de Gino, o de Astárito e o de Sonzogne. Contei onde praticara o roubo, onde fora o crime, onde eu morava. Descrevi mesmo o aspecto físico das pessoas. Não sei a que impulso obedeci. Talvez ao da dona de casa que acaba por decidirse a limpar a sua casa depois de uma longa negligência e que não tem sossego enquanto não tiver varrido o último grão de poeira, a última partícula de cotão alojada debaixo dos móveis ou nos cantos. Realmente, à medida que contava e citava todos os detalhes da minha confissão sentiame mais livre e mais pura.
Falava sempre com a mesma voz razoável e tranquila. O meu confessor ouviume até ao fim, sem dizer uma palavra, sem nunca me interromper. Depois ouvi uma horrível voz lenta, arrastada, pronunciar estas palavras:
As coisas que acaba de me dizer, minha filha, são terríveis, assustadoras; o espírito recusase a crer numa coisa destas, mas fez bem em ter vindo confessarse e farei por si tudo o que puder.
Muito tempo se passara depois da minha última confissão nesta igreja, e no agradável tumulto da minha vaidosa bondade tinha quase esquecido um detalhe bem característico e bem agradável: a pronúncia francesa do padre Élie. Ora aquele que me falara não tinha qualquer acento particular na voz, mas a sua pronúncia era sem dúvida italiana, com os seus toques de futilidade que se notam na voz de alguns padres. Compreendi bruscamente o meu erro e senti, no mesmo instante, uma impressão de gelo, parecida com a que deve experimentar alguém que, ao estender a mão para colher uma bela flor, sente na ponta dos dedos a pele fria e vibrátil de uma serpente. Quanto à desagradável surpresa de me encontrar em frente de um confessor diferente do que tinha imaginado, era igual ao horror que me causou esta voz insinuante e sombria. Encontrei, no entanto, forças para balbuciar:
Mas vós sois realmente o padre Élie?
Em pessoa respondeu o padre desconhecido. Já cá tinha vindo alguma vez?
Só uma vez.
Ficou calado durante um momento, depois disse:
Tudo o que me contou merecia ser examinado de novo ponto por ponto... Não se trata só de uma coisa, mas de várias, das quais algumas lhe dizem respeito, outras a certas pessoas... Naquilo que vos diz respeito já compreendeu que cometeu pecados muito graves?
Sim murmurei. Já sei.
E sentese arrependida?
Julgo que sim.
Se o vosso arrependimento é sincero continuou no seu tom confidencial e paternal , pode com certeza esperar a absolvição... Infelizmente não sois só vós... há também os outros e os crimes dos outros... tendes conhecimento de um crime pavoroso... a vossa consciência não a leva a revelar o nome do culpado, a fim de que seja punido como merece?
Sugeriame que denunciasse Sonzogne. Não digo que, sendo padre, ele fizesse isso por mal. Mas insinuada desta maneira e com esta voz neste momento, a sua proposta aumentou a minha desconfiança e o meu medo:
Se digo o nome do autor do crime balbuciei , prendemme também.
Os homens e Deus disse ele logo a seguir apreciariam o vosso sacrifício e o vosso arrependimento. A lei não conhece só o castigo; conhece também o perdão. Em troca de alguns sofrimentos leves em relação à agonia da vítima teria contribuído para restabelecer a justiça, horrivelmente ofendida... Oh! Não ouve a voz do homem assassinado invocar em vão a piedade do seu assassino?
Continuou as suas exortações, escolhendo cuidadosamente as palavras e não sem se comprazer com esta escolha, para compor as frases convencionais e próprias do seu ofício. Mas eu agora não tinha outro desejo que não fosse o de me ir embora, um desejo histérico.
Disselhe rapidamente:
Quanto à denúncia, prefiro pensar... Voltarei amanhã e dirlheei o que decidi. Encontráloei aqui amanhã?
Com certeza, a qualquer hora!
Então disse eu, atônita , por agora só lhe peço que devolva este objecto.
Caleime, e ele, depois de uma breve oração, tornoume a perguntar se me sentia arrependida sinceramente, e ao ouvir a minha resposta afirmativa deume a absolvição. Persigneime e saí do confessionário; nesse momento ele abriu a porta e vio na minha frente. Todos os receios que a sua voz me tinham inspirado foram confirmados em seguida pela sua pessoa. Era baixo, mas com uma cabeça grande, que uma espécie de torcicolo crônico mantinha de lado. Não tive tempo de o observar bem, tão grande era a pressa de me ir embora e tão grande era o horror que ele me inspirava. Mas entrevi uma cara entre o moreno e o amarelo, uma grande testa pálida, uns olhos vazios perdidos nas órbitas, um nariz adunco com largas narinas e uma boca grossa e informe com lábios criminosos e violáceos. Não devia ser velho... Não tinha idade. Disseme com ar aflito, pondo as mãos sobre o peito e acenando com a cabeça:
Mas porque não veio mais cedo, minha querida filha? Porquê? Que coisas horríveis se teriam evitado!
Desejaria responderlhe o que pensava, que Deus não quisera que eu viesse! Mas contiveme, tirei da mala a caixa e metilha na mão, dizendo com sinceridade:
Peçolhe para agir depressa... Não lhe posso dizer como estou atormentada pela ideia de que esta pobre mulher está na prisão por minha causa.
Hoje mesmo respondeume apertando a caixa contra o peito e abanando a cabeça com ar dolorido e suplicante.
Agradeci em voz baixa e, cumprimentandoo com um movimento de cabeça, sai rapidamente da igreja. Ficou onde o deixei, junto do confessionário, com as mãos no peito e abanando a cabeça.
Quando cheguei à rua, procurei reflectir calmamente sobre o que me acabara de acontecer. Por agora, deixando de parte as minhas primeiras confusas apreensões, compreendi que do que tinha medo, em suma, era de que o padre não respeitasse o segredo da confissão; esforçavame por aclarar por mim própria os fundamentos do meu receio. Sabia, como toda a gente, que a confissão é um sacramento e como tal inviolável. Sabia também que era quase impossível que um padre, por mais corrupto que fosse, se não sentisse culpado de uma tal violação. Mas, por outro lado, o seu conselho para denunciar Sonzogne faziame recear que ele tomasse a iniciativa, se eu não me adiantasse, de denunciar à polícia o autor do crime da Rua Palestro. Era sobretudo a sua voz que me fazia recear o pior. Sou mais emotiva do que reflectida e possuo, como certos animais, uma presciência instintiva do perigo. Todas as razões que me apresentava a minha inteligência para me dar segurança ficavam reduzidas a nada em presença deste pressentimento sem razão. “É bem verdade pensava eu que o segredo da confissão é inviolável.” Mas só um milagre pode impedir este padre de denunciar Sonzogne e os outros!
Um outro facto contribuiu para me dar a impressão de uma ameaça de desgraça iminente e misteriosa: a substituição do segundo confessor. Evidentemente que o monge francês não era o padre Élie, se bem que ele me tivesse ouvido no confessionário que tinha esse nome. Então quem era? Arrependime de não ter pedido noticias ao verdadeiro padre Élie. Mas ao mesmo tempo dizia que este embirrante padre me teria dito que nada sabia, reforçando assim o carácter de aparição que a silhueta do jovem religioso deixara no meu espírito. Realmente ele tinha muito de fantasma, tanto pela sua figura, tão diferente da dos outros padres, como pela maneira como apareceu na minha vida e como desapareceu. Cheguei a duvidar de que o tivesse visto alguma vez, ou, melhor, de que o tivesse visto em carne e osso, e pensei por momentos numa alucinação, quanto mais não fosse porque eu começava a encontrarlhe uma indefinida semelhança com Cristo tal como o representam habitualmente nas imagens santas. Mas se assim era, se Cristo me tinha realmente aparecido num momento doloroso e tinha aceite a minha confissão, o facto de um padre repugnante e sórdido o ter substituído era claramente de mau agouro. Isso indicava pelo menos que num momento da maior angústia a religião me tinha abandonado. Era como se num momento de necessidade urgente eu tivesse aberto um cofre que supunha recheado de peças de ouro e aí encontrasse, em lugar delas, poeira, teias de aranha e cotão.
Entrei em casa com o pressentimento de uma desgraça que a minha confissão iria provocar e fui logo deitarme sem jantar, convencida de que iria ser presa e esta seria a última noite que passaria em casa. Devo dizer, no entanto, que não experimentava o menor medo nem o menor desejo de fugir ao meu destino. Uma vez passado o primeiro pavor, devido a uma fraqueza nervosa comum a quase todas as mulheres, foi substituído na minha alma, não propriamente por um sentimento de resignação, mas por uma verdadeira vontade de aceitar a sorte que me ameaçava. Experimentava mesmo uma espécie de volúpia em deixarme arrastar até bem ao fundo do que eu imaginava ser o último desespero. Tinha a impressão de me sentir de qualquer maneira protegida pelo excesso da desgraça e pensava com um certo prazer que, à parte a morte, que já não me assustava agora, coisa alguma me podia acontecer de pior.
Mas no dia seguinte foi em vão que esperei a visita, que eu previra, da polícia. Todo esse dia e o dia seguinte decorreram sem que nada acontecesse que justificasse as minhas apreensões. Durante todo este tempo não saí de casa, nem mesmo do quarto, e depressa me cansei de pensar nas consequências da minha imprudência. Voltei a pensar em Jaime e desejei tornar a vêlo, nem que fosse só mais uma vez antes que a denúncia do padre continuava a considerála inevitável fizesse o seu efeito. No terceiro dia, à tardinha, quase sem reflectir, saltei da cama, vestime com cuidado e saí de casa.
Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei lá. Mas no momento de entrar pensei que não o tinha avisado e fui tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal, que até mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra pensando se não seria melhor voltar pelo mesmo caminho e esperar que fosse ele a decidirse verme. Compreendia que era preciso mostrar muita cautela e muita perspicácia, particularmente neste primeiro período das nossas relações, e nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossível viver sem ele. Por outro lado pareciame duro voltar para trás, agora que a minha confissão me deixara inquieta e que tinha necessidade de o ver, até mesmo só para me distrair das minhas preocupações. Os meus olhos caíram sobre a montra da loja em frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas; lembreime de repente de que lhe tinha prometido uma gravata nova para substituir a outra esfiada. Quando se está apaixonado não se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dádiva confirmava precisamente o carácter inferior e ansioso do meu sentimento por ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo, preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas a mais bonita e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado perguntoume se a pessoa a quem se destinava a gravata era loura ou morena. “É moreno”, respondi lentamente; reparei que disse a palavra “moreno” com um acento terno e sentime corar à ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento.
A viúva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre. Subi os oito lanços de escada e toquei sem tomar fôlego à porta, mergulhada na sombra. A porta abriuse quase em seguida e Jaime apareceu no limiar.
Ah! És tu? disse, surpreendido. Era evidente que esperava alguém.
Posso entrar?
Sim, sim! Por aqui!
Atravessamos um vestíbulo quase às escuras e ele fezme entrar numa sala, que estava igualmente na penumbra porque as janelas tinham os vidros esguios como as das igrejas. Entrevi uma quantidade de móveis escuros com nácar incrustado. Ao meio havia uma mesa redonda com um licoreiro azul, de feitio fora de moda. Havia muitos tapetes e uma pele de urso branca um pouco gasta. Tudo era velho ali dentro, mas asseado, arrumado, como se estivesse conservado pelo profundo silêncio que parecia reinar na casa desde tempos imemoráveis. Senteime num canapé ao fundo da sala e perguntei a Jaime:
Esperas alguém?
Não, mas porque vieste cá?
Eram na realidade palavras pouco acolhedoras. Não parecia no entanto zangado, apenas surpreendido.
Vim dizerte adeus respondilhe, sorrindo , porque creio bem que é a última vez que nos vemos.
Porquê?
Estou convencida de que amanhã, o mais tardar, me vêm buscar para me meterem na prisão.
Na prisão? Que diabo fizeste tu?
Percebi na sua voz e na sua cara uma alteração e compreendi que estava com medo por ele próprio. Talvez pensasse que o tinha denunciado ou comprometido de uma maneira ou de outra, revelando a alguém a sua actividade política. Sorri ainda e continuei:
Não tenhas medo... nada disto te diz respeito... nem mesmo de longe.
Não, não apressouse a dizer. Mas não compreendo é tudo. Na prisão? Porquê?
Fecha a porta e sentate aqui disselhe indicando um lugar ao meu lado, no canapê.
Ele foi fechar a porta e sentouse ao pé de mim. Então, com muita calma, conteilhe a verdadeira história da caixa de pó de arroz e a minha confissão. Ouviame de cabeça baixa, sem me olhar, roendo as unhas, o que nele era sintoma de estar interessado. Acabei por concluir:
Estou certa de que este padre me fará passar um mau bocado... Que dizes?
Abanou a cabeça e respondeume, não olhando na minha direcção mas na dos vidros da janela:
Ele não o deve fazer... estou mesmo certo de que o não fará... Não basta que um padre seja feio...
Mas se tu o tivesses visto! interrompi.
- ... que seja monstruoso, se quiseres, para que faça uma coisa semelhante. Não é menos verdade que tudo pode acontecer acrescentou vivamente com um sorriso.
Então achas que não devo ter medo?
Acho... até mesmo porque nada podes fazer... isso não depende de ti!
É bom de dizer! Temse medo porque se tem medo... é mais forte do que nós!
Teve de repente um gesto afectuoso, um dos seus gestos. Pôsme uma mão no pescoço, sacudiume rindo e dizendo:
Tu não tens medo, pois não?
Mas se te disse que tenho!
Tu não tens medo!És uma mulher corajosa.
Assegurote que tenho um medo horrível; é tão verdade que me deitei e só me levantei dois dias depois.
Sim... mas em seguida vieste ter comigo e contasteme a coisa com a maior tranquilidade... Tu não sabes o que é ter medo!
E que posso eu fazer? perguntei, sorrindo sem querer. Não posso começar a gritar de medo!
Tu não tens medo!
Houve um momento de silêncio. Depois perguntoume com uma entoação particular que me surpreendeu:
E o teu amigo... chamemoslhe assim, esse Sonzogne, que tipo tem?
É um tipo como há tantos disse vagamente. Nesse momento nada encontrava para dizer de Sonzogne.
Mas como é? Descrevemo!
Porquê? Queres mandálo prender? disselhe rindo. Lembrate de que me engavetavam também a mim. Depois acrescentei: É alourado... baixo... largo de ombros... com uma cara pálida, olhos azuis... nada de especial, em suma. A única coisa que ele tem de diferente é ser muito forte.
Muito forte?
Quando se vê não se acredita. Mas se se lhe toca num braço, parece de ferro.
Como via que me escutava com interesse, conteilhe o incidente passado com Gino e Sonzogne. Não fez comentários, mas quando acabei perguntoume:
E julgas que Sonzogne tenha premeditado o crime, quero dizer, que o tenha preparado e executado a frio?
De maneira nenhuma! disselhe. Ele nunca premedita coisa alguma. Um momento antes de atirar Gino ao chão provavelmente nem pensava em fazêlo. Deve ter acontecido o mesmo com o ourives.
Então porque o fez?
Sei lá... porque é mais forte do que ele. Como um tigre... está muito tranquilo e de repente atiranos um pontapé.
Conteilhe toda a história das minhas relações com Sonzogne, a maneira como me batera e como tinha tido com certeza a ideia de me matar quando estávamos às escuras. E concluí:
Nunca pensa nisso... mas num certo momento é dominado por qualquer coisa mais forte do que a sua vontade e então é melhor não estar ao pé dele. Tenho a certeza de que foi procurar o ourives para lhe vender a caixa... O outro insultouo e ele matouo.
Em suma, é uma espécie de animal.
Chamalhe como quiseres. Isso deve ser disse eu, procurando pôr a claro para mim própria o sentimento que me inspirava o furor homicida de Sonzogne um impulso semelhante ao que me leva a amarte. Porque gosto eu de ti? Só Deus o sabe... Porque sente Sonzogne em certos momentos o impulso de matar? pela mesma razão. Só Deus o sabe. Pareceme que neste caso não há qualquer explicação.
Depois de reflectir, levantou a cabeça e perguntoume:
E eu, que impulso julgas que me leva para ti? Julgas que sinto um impulso amoroso?
Tive um medo horrível de o ouvir dizer que não me amava. Tapeilhe a boca com a minha mão e supliqueilhe:
Por piedade... não me digas o que sentes por mim!
Mas porquê?
Porque não me interessa saber. Não sei o que sentes por mim e não o quero saber. Chegame saber o que eu sinto por ti.
Abanou a cabeça e disse:
Fazes mal em gostar de mim... devias amar um homem como Sonzogne.
Olheio sinceramente admirada.
Mas que dizes tu? Um criminoso?!
Pode ser que seja um criminoso... mas sente os impulsos que tu dizes... assim como tem impulsos para matar, tenho a certeza de que terá um impulso para amar, assim, com simplicidade, sem complicações... eu, pelo contrário...
Não o deixei acabar e protestei:
Mas tu não te podes comparar com Sonzogne. Tu és aquilo que és... o outro é um criminoso, um monstro. E depois não deve ser verdade que ele possa sentir impulsos amorosos. Para ele é simplesmente uma satisfação dos sentidos: eu ou outra, é a mesma coisa.
Não parecia convencido, mas nada disse. Aproveitei este silêncio, e, estendendo a mão, enfiei os dedos na manga do seu casaco e procurei fazêlos subir ao longo do seu braço.
Jaiminho disselhe.
Porque me chamas Jaiminho?
É o diminutivo de Jaime. Não tenho o direito?
Sim... sim... tens o direito... Somente é o diminutivo que usam em família... mais nada.
É a tua mãe quem te chama assim? perguntei largandolhe o pulso e introduzindo os dedos entre a gravata e a camisa e passandoos sobre o peito nu.
Sim, minha mãe chamame Jaiminho confirmou com certa impaciência.
E passado um momento, com um acento meio sarcástico meio furioso :
De resto, não é o único caso em que tu e minha mãe usam as mesmas expressões. No fundo vocês têm a mesma opinião sobre quase todas as coisas.
Por exemplo? perguntei.
Estava perturbada; tinha desabotoado a camisa e esforçavame por alcançar o seu ombro magro e grácil de rapazinho.
Por exemplo, quando te contei que me ocupava de política tu gritaste logo com voz apavorada: Mas é proibido! É perigoso! Pois bem! Minha mãe teria dito exactamente a mesma coisa, com a mesma voz.
A ideia de que me parecia com a mãe dele envaideciame, primeiro por ser sua mãe e depois porque era uma senhora.
Que pateta! disselhe com ternura. É porque ela gosta tanto de ti como eu. É bem verdade que é perigoso ocuparse de política; um rapaz que eu conheço foi preso e há dois anos que está detido. E para que? Eles são mais fortes, e mal vocês se mexem metemnos na prisão. Pareceme que se podia muito bem viver sem política.
A minha mãe! A minha mãe! gritou, rejubilante e sarcástico. Exactamente o que diz minha mãe !
Não sei o que diz a tua mãe respondi , mas é bem certo que tudo o que ela te diz é para teu bem. Devias deixar a política. Tu não és um político profissional... és um estudante... os estudantes só tem que estudar.
Estudar, doutorarse e arranjar uma posição murmurou como se falasse consigo.
Não lhe respondi, mas aproximei a minha cara da sua e oferecilhe os lábios. Beijamonos, depois separamonos; parecia zangado por me ter beijado e olhavame com ar hostil e mortificado. Julguei têlo magoado por interromper com o meu beijo a sua conversa sobre política e acrescentei depressa:
De resto, faz o que quiseres, nada tenho com a tua vida... Se quiseres, visto que estou aqui, podes darme o pacote... escondêloei como combinamos.
Não, não respondeu. Este não é o momento para favores destes! Dada a tua amizade com Astárito... se ele os encontra...
Porquê? Astárito é assim tão perigoso?
É dos piores respondeume com gravidade.
Senti não sei que tentação maliciosa de o arreliar e de lhe espicaçar o amorpróprio, mas afectuosamente, sem maldade.
No fundo observei com doçura , nunca tiveste a intenção de me confiar esses pacotes!
Então porque te falei neles?
Ouve, não te zangues, mas penso que me falaste neles por falar, para te tornares interessante, para me mostrares que fazias realmente coisas perigosas e proibidas.
Zangouse e vi que tinha tocado na sua corda sensível.
Que disparate! gritou. És uma parva!
Depois, subitamente calmo, perguntoume com ar desconfiado :
Porquê? Que te leva a pensar isso?
Não sei respondi sorrindo. Toda a tua maneira de agir... Tu talvez não dês por isso, mas não dás a impressão de fazer essas coisas a sério.
Teve um gesto cômico que parecia dirigido contra ele:
São, pelo contrário, coisas muito sérias! disseme. Levantouse, estendeu os braços magros, recitou com voz de falsete, num tom enfático: “Armas! Sim, armas! E só eu cairei!” E continuou a agitar os braços e as pernas como um fantoche. Estava cômico.
Que queres dizer? perguntei.
Nada respondeu. É um verso.
De uma maneira bizarra pareceu passar da excitação a um brusco abatimento; tornouse sombrio e meditativo, tornou a sentarse e disseme num tom sincero:
Pelo contrário, olha, faço as coisas tão a sério que espero com toda a certeza ser preso... Então toda a gente verá bem se fiz as coisas a sério!
Não respondi; acaricieilhe o rosto, tomeilho entre as mãos e disselhe:
Que lindos olhos tens!
Era verdade; os seus olhos eram realmente belos, grandes e doces, com uma expressão intensa e ingênua. De novo se perturbou e o queixo tremeulhe.
Porque não vamos para o teu quarto? murmurei.
Nem pensar nisso. É contíguo ao quarto da viúva, que fica lá todo o dia de porta aberta para vigiar o corredor.
Então vamos a minha casa.
É muito tarde... moras longe... Espero uns amigos de um momento para o outro.
Então aqui.
Tu és doida!
Confessa antes que tens medo insisti. Não tens medo de fazer propaganda política, mas tens medo de ser surpreendido nesta sala com a mulher que te ama. Que pode acontecerte no fim de contas? Que a viúva te despeça? Que sejas obrigado a procurar outro quarto?
Sabia que excitando o seu amorpróprio podia obterse tudo dele. Com efeito, pareceu convencido. Devia sentir um desejo pelo menos tão forte como o meu.
Não passas de uma louca! repetiu. Talvez seja mais aborrecido ser despedido daqui do que ser preso... Aliás onde nos vamos encaixar?
No chão disselhe docemente com uma intensa ternura. Vem... eu mostrote como se faz.
Parecia tão perturbado que não tinha já forças para falar. Levanteime do canapé e, sem pressa, estendime no chão. O mosaico estava coberto por muitos tapetes; ao meio do quarto havia a mesa com o licoreiro. Estendime sobre o tapete, a cabeça e o busto debaixo da mesa, depois puxei Jaime pelo braço e obrigueio, contra a sua vontade, a estenderse sobre mim.
Deitei a cabeça para trás e fechei os olhos: o cheiro do pó e do velho pêlo do tapete pareceume embriagador e bom como se estivesse deitada num prado na Primavera e como se este cheiro fosse das flores, das ervas, e não o da lã suja. Jaime estava em cima da mim, e o seu peso faziame sentir a deliciosa dureza do chão; estava contente por não ser ele a sentila e que o meu corpo lhe servisse de leito.
Depois beijoume no pescoço, nas faces, e senti uma grande alegria com isso porque ele nunca o fazia. Abri os olhos, tinha a cara virada de lado, a face contra a lã áspera do tapete; vi para lá do tapete uma vasta extensão de mosaico encerado, depois, lá ao fundo, a parte inferior dos batentes da porta. Suspirei profundamente e tornei a fechar os olhos. O primeiro a levantarse foi Jaime; eu fiquei um grande bocado como ele me deixara, deitada de costas, um braço em cima da cara, as saias levantadas, uma perna para a direita, outra para a esquerda. Sentiame feliz e como que aniquilada pela minha felicidade; sentia que poderia ficar muito tempo assim, com esta agradável dureza do chão debaixo das costas, este cheiro a tapete e a pó nas narinas. Talvez mesmo tivesse dormido um bocadinho, um sono extasiado e leve; julguei sonhar que estava realmente num prado florido, estendida na erva, e que não era a mesa, mas um céu inundado de sol, que tinha sobre a minha cabeça. Jaime julgou com certeza que me sentia mal, porque de repente percebi que me sacudia e me dizia em voz baixa:
Mas que tens? Que fazes? Depressa! Levantate! Tirei o braço da cara, saí lentamente de debaixo da mesa e pusme de pé! Estava feliz e sorri. Jaime, encostado à parede, curvado, ainda ofegante, olhavame em silêncio com uma expressão longínqua e hostil.
Nunca mais te quero ver! acabou por dizer. Ao mesmo tempo o seu corpo curvado deu um esticão, como um fantoche a quem tivessem partido as molas.
Respondi sorrindo :
Porquê? Amamonos... vernosemos!
Aproximeime e fizlhe uma festa na cara. Mas virou o rosto, pálido e perturbado, repetindo:
Nunca mais te quero ver!
Sabia que esta hostilidade era sobretudo devida ao desgosto de ter cedido. Nunca se resignava a amarme sem muita resistência e muito remorso, como um homem que se resolve a fazer uma coisa que não quer e sabe que não deve fazer. Mas estava certa de que o seu mau humor não duraria muito tempo e que o desejo que sentia por mim, por muito que o combatesse e o detestasse, seria mais forte, por fim, do que a sua estranha aspiração à castidade. Não liguei importância às suas palavras. Lembrandome da gravata que acabara de lhe comprar, aproximeime do móvel onde deixara a mala e as luvas e disselhe:
Vá, não estejas zangado comigo... não voltarei aqui... Estás contente?
Continuou calado. Ao mesmo tempo a porta abriuse e, uma velha criada de quarto mandou entrar dois homens. O primeiro disse em voz baixa mas grossa:
Viva, Jaime.
Compreendi que estes deviam ser os camaradas do partido e olheios com curiosidade. O que falara era um autêntico colosso; mais alto que Jaime, de ombros largos e com aspecto de boxeur profissional. Era louro, de olhos azulesverdeados, nariz adunco, boca vermelha e informe. Mas a sua cara tinha uma expressão franca que me agradou, com uma simpática mistura de timidez e de simplicidade. Se bem que estivéssemos no Inverno, não trazia sobretudo e apenas usava debaixo do casaco uma grossa camisola branca de gola alta, de acordo com o seu aspecto desportivo. Admiraramme as suas mãos vermelhas e os fortes pulsos que saíam das mangas. Devia ser extremamente novo, talvez tivesse a mesma idade de Jaime. O segundo parecia, pelo contrário, um quarentão, e em vez de ter ar de trabalhador ou de camponês parecia um homem da burguesia. Não era alto e parecia minúsculo ao lado do seu camarada. Era um homenzinho escuro, com a cara sumida debaixo de uns grossos óculos. Tinha um nariz largo, e debaixo desse nariz uma boca que ia de orelha a orelha. As faces magras, escurecidas pela barba, o colarinho esfiado, o fato deformado e com nódoas, dentro do qual o seu pequeno corpo nadava, tudo nele tinha um ar de negligência agressiva e de miséria. Para dizer a verdade o aspecto destes dois homens espantavame, porque Jaime andava sempre vestido com uma certa elegância, sem requinte, aliás, e traía, por muitos indícios, uma classe diferente da deles. Se não tivesse ouvido esta gente dar os bonsdias a Jaime e ele corresponder ao cumprimento, nunca teria imaginado que pudessem ser amigos. Instintivamente senti logo simpatia pelo grande e antipatia pelo pequeno. O grande perguntou com um sorriso aborrecido:
Viemos talvez muito cedo?
Não, não! respondeu Jaime.
Parecia aturdido e não se recompunha facilmente.
Vocês foram pontuais.
A pontualidade é a virtude dos reis disselhe o baixo, esfregando as mãos.
E bruscamente, de uma maneira imprevista, como se esta frase fosse extremamente cômica, desatou a rir. Depois, com a mesma rapidez desagradável, tornouse sério outra vez e eu perguntava a mim própria se ele de facto rira ou não.
Adriana disse Jaime com esforço , apresentote dois amigos meus: Túlio e Tomás.
Reparei que não pronunciou os apelidos e supus não serem os seus verdadeiros nomes. Estendilhes a mão, sorrindo. O grande deume um aperto de mão que me adormeceu os dedos, o pequeno humedeceumos de suor com a sua gorda manápula. O mais baixo disseme: “Encantado!”, com uma ênfase que me pareceu cômica. O alto disse: “Muito prazer!” com simplicidade e, pareceume também, com simpatia. Notei que a sua voz tinha um ligeiro sotaque.
Olhamonos um momento em silêncio.
Se queres, Jaime, se tens que fazer disse o grande , podemonos ir embora, voltaremos amanhã.
Vi Jaime estremecer e olhálo; compreendi que lhes ia dizer que ficassem e convidarme a sair. Agora conheciao o suficiente para saber que a sua conduta não podia ser outra. Lembreime de que me tinha entregue a ele havia poucos minutos; tinha ainda no pescoço a sensação dos seus lábios ao beijaremme; na carne, a das suas mãos, que me tinham abraçado. O que se revoltou em mim não foi a alma, sempre pronta a ceder e a resignarse; foi o meu corpo, indignado por ver tratar assim a sua beleza e a sua dádiva. Dei um passo em frente e disse com violência:
Sim, é melhor que se vão embora e que voltem amanhã... Tenho ainda muitas coisas a dizer a Jaime.
O meu amante observoume com ar desagradavelmente surpreendido:
Mas eu preciso de lhes falar.
Falarlhesás amanhã.
Bem! disse Tomás com ar bonacheirão. Decidamse. Se querem que fiquemos, digamno; se querem que nos vamos embora...
Por nós é o que nos apetece fazer! acrescentou Túlio com o mesmo riso desagradável.
Jaime ainda hesitou. De novo o meu corpo, mesmo contra vontade, teve um impulso desagradável.
Ouçam disse levantando a voz. Apenas há alguns minutos Jaime e eu possuímonos aqui, no chão, sobre este tapete... Vocês em seu lugar, que fariam? Mandavamme embora?
Tive a impressão de que Jaime corava. De qualquer maneira perdera a segurança, voltounos as costas e aproximouse da janela. Tomás olhoume de soslaio, depois disse a sorrir :
Compreendo. Nós retiramonos. Até à vista, Jaime; amanhã à mesma hora.
A Túlio, pelo contrário, as minhas palavras pareceram têlo perturbado. Fixoume de boca aberta e os olhos franzidos. Com certeza nunca ouvira uma mulher falar com esta franqueza, e mil pensamentos sujos devem terlhe agitado o espírito. Mas o alto chamouo da porta:
Túlio... Vamos !
Então, sem tirar da minha pessoa os olhos espantados, recuou até à porta e saiu.
Esperei que desaparecessem para me aproximar de Jaime, que ficara junto da janela, de costas voltadas, e passarlhe um braço à roda do pescoço:
Aposto que neste momento não me podes ver! Voltouse lentamente e olhoume. Havia cólera no seu rosto; mas ao olhar o meu, que devia ter uma expressão doce, cheia de amor até mesmo inocente, à sua maneira , o seu olhar mudou; perguntoume num tom resignado, quase triste :
Agora estás contente? Tens o que querias.
Sim, estou contente! disselhe, beijandoo com força.
Deixouse beijar, depois respondeu:
Quais são as coisas que tens para me dizer?
Nada respondi. Tenho desejos de ficar contigo esta tarde.
Mas eu disse , daqui a pouco vou jantar. Janto cá com a viúva Medolaghi.
Bem! Convidame para jantar.
Olhoume e o meu àvontade fêlo sorrir, mas involuntariamente.
Está bem disse com condescendência. Vou avisála... mas como queres que te apresente?
Como quiseres... como uma parente.
Não... vou apresentarte como minha noiva.. está bem?
Não ousei mostrarlhe até que ponto a sua proposta me dava prazer. Afectei um ar indiferente e respondi:
Pelo que me diz respeito... noiva ou outra coisa, tanto faz... contanto que fiquemos juntos.
Espera, volto já.
Saiu. Fui a um canto da sala, arranjeime, ajustei rapidamente a combinação, toda torcida pelo amor e pela chegada inopinada dos amigos de Jaime. Num espelho colocado na minha frente vi a minha perna longa e perfeita calçada de seda e fezme um curioso efeito no meio de todos estes velhos móveis, com ar silencioso e fechado. Lembreime do dia em que estivera com Gino na casa da patroa dele e de onde trouxera a caixa de pó de arroz, e não pude deixar de comparar esse momento da minha vida, agora tão longínquo, com o instante presente. Naquela altura experimentara uma impressão de vazio e de amargura e o desejo de me vingar, senão de Gino, pelo menos do mundo que por intermédio de Gino tão cruelmente me ofendera. Agora, pelo contrário, sentiame contente, livre, leve. Compreendi mais uma vez que amava verdadeiramente Jaime e que pouco me importava não ser amada por ele.
Sacudi o vestido, aproximeime do espelho e arranjei o cabelo. A porta abriuse nas minhas costas e Jaime entrou.
Esperava que me abraçasse enquanto me olhava ao espelho. Mas foi sentarse no canapé, no fundo da sala, acendeu um cigarro e disse:
Pronto, já está. Vão pôr mais um talher. Daqui a pouco vamos para a mesa.
Afasteime do espelho e vim sentarme ao seu lado, enfiei o meu braço no dele e aperteio contra mim.
Estes dois homens disse são amigos políticos, não são?
São.
Não devem ser muito ricos.
Porquê?
A julgar pela maneira como estão enfarpelados.
Tomás é filho de um dos nossos caseiros disseme. O outro é um professor.
Não simpatizo com ele.
Com quem?
Com o professor. É porco. Olhoume de uma tal maneira quando eu disse que acabara de ter estado contigo...
Quer dizer que lhe agradaste.
Calamonos durante algum tempo. Depois eu disse:
Tens vergonha de me apresentar como tua noiva. Se queres voume embora.
Sabia que era a única maneira de lhe arrancar um gesto afectuoso: picar o seu amorpróprio, acusandoo de se envergonhar de mim. Com efeito, passoume logo o braço em torno da cintura e disseme:
Fui eu quem teve a ideia: porque havia de me envergonhar de ti?
Não sei... Vejo que estás mal disposto.
Não estou mal disposto; estou aturdido respondeume num tom sério. Foi por nos termos amado. Deixa recomporme.
Reparei que ainda estava muito pálido e parecia fumar com aborrecimento.
Tens razão disselhe. Desculpa. Mas tu és sempre tão frio, tão distante, que me fazes perder a cabeça.. Se não fosses assim, há pouco não tinha insistido para ficar.
Apagou o cigarro e disseme:
Não é verdade que eu seja frio e distante.
E no entanto...
Agradasme muito continuou, olhandome com atenção. E, com efeito, há um instante não te resisti como teria desejado.
Esta frase agradoume e baixei os olhos sem pronunciar palavra. Ele acrescentou:
Contudo, suponho que no fundo tens razão... não se pode chamar amor a isto.
Apertouseme o coração e não pude deixar de murmurar:
Que é para ti o amor?
Se eu te amasse respondeume , há pouco não teria desejado que te fosses embora... e depois não me teria zangado quando tu decidiste ficar.
Zangastete?
Sim... e agora conversaria contigo, estaria alegre, desenvolto e brincalhão. Estaria a acariciarte, a dizerte madrigais, a fazer projectos para o futuro... beijarteia. Não é isto o amor?
Sim disse eu em voz baixa. Em todo o caso, são esses os efeitos do amor.
Não falou durante algum tempo, depois disse sem nenhuma vaidade, com uma seca humildade:
Eu faço tudo da mesma maneira, sem nada sentir no coração... sem amar coisa nenhuma, sabendo somente pelo espírito como se fazem as coisas. Por vezes mesmo façoas a frio, exteriormente. Sou assim e creio que não posso mudar.
Fiz um grande esforço sobre mim e respondilhe:
Amote como és; não te atormentes!
Depois beijeio com grande amor. Quase no mesmo instante, a porta abriuse. Uma velha criada veio dizer que o jantar estava servido.
Saímos da sala e passamos por um corredor para ir para a casa de jantar. Lembrome bem de todos os pormenores desta casa e das pessoas, porque naquele momento estava sensível como uma chapa fotográfica. Não tinha tanto a impressão de agir como a de me ver agir com os olhos tristes e bem abertos. Tal é talvez o efeito da revolta que nos inspira uma realidade na qual sofremos e que desejaríamos diferente.
A viúva Medolaghi pareceume parecida, não sei porquê, com o seu salão de ébano com incrustações de nácar. Era uma mulher gorda, de estatura imponente, com peito volumoso e ancas maciças. Toda vestida de seda preta, com um largo rosto desfeito, de uma palidez nacarada, precisamente enquadrada por cabelos pretos que pareciam pintados, com fundas olheiras em torno dos olhos. Ficou de pé em frente de uma terrina decorada com flores e servia a sopa com uma espécie de aborrecimento. O candeeiro de suspensão descia sobre a mesa, iluminavalhe o peito como um grosso embrulho preto e luzidio e deixavalhe a cara na sombra. Nesta sombra os seus olhos rodeados de rugas pretas pareciam esburacar a cara branca como uma mascarilha de Carnaval. A mesa não era grande e tinha quatro pratos; um par de cada lado. A filha da senhora estava já sentada no seu lugar e não se levantou quando nos viu entrar.
A menina sentase ali disse a viúva Medolaghi. - Como se chama a menina?
Adriana.
Tem graça, como a minha filha! disse negligentemente. Temos duas Adrianas!
Falava com ar distante sem nos olhar; era claro que a minha presença nenhum prazer lhe dava. Como já disse, pintavame pouco e não oxigenava os cabelos, em suma, não traía o meu “trabalho” por qualquer sinal exterior. Mas que eu era rapariga do povo, simples e sem educação, isso viase com certeza e eu nenhum interesse tinha em o dissimular.
“Que estranha gente traz para a minha casa!”, devia pensar a Sr.a Medolaghi. “Uma rapariga do povo!” Senteime e observei a rapariga que tinha o meu nome. Era por metade do meu tamanho, como da minha cabeça, como do meu peito... por metade em tudo. Magra, pouco cabelo, uma cara oval e fina com grandes olhos mortiços, uma expressão estupefacta. Olheia e via baixar os olhos. Pensei que fosse tímida e disse para quebrar o gelo:
Sabe que acho curioso que outra pessoa tão diferente de mim tenha o meu nome?
Tinha dito qualquer coisa, só para meter conversa e a minha frase era parva. Mas, com grande surpresa, não recebi resposta. A rapariga fixou em mim os seus olhos esbugalhados e depois, sem dizer nada, curvou a cabeça sobre o prato e começou a comer. Então bruscamente fezse luz no meu espírito: ela não era tímida, mas estava aterrada. E a causa do seu terror era eu. Estava aterrada com a minha beleza, que brilhava no ar parado e poeirento da sua casa como uma rosa numa teia de aranha, pela minha exuberância impossível de passar despercebida mesmo quando eu estava calada e quieta, e sobretudo pela minha origem popular. Os ricos não gostam dos pobres, mas não os temem; sabem mantêlos a distância com orgulho e suficiência. Mas o pobre ao qual a sua origem ou a sua educação dão uma alma de rico fica literalmente aterrado por ver o pobre em carne e osso, como um homem predisposto a uma doença em frente de alguém que está atacado desse mesmo mal. Ricas, as duas Medolaghi não eram com certeza, porque senão não alugariam quartos. Como se sentiam pobres sem o admitirem, a minha presença de pobre desprovida de qualquer artifício parecialhes um insulto e um perigo. Deus sabe as ideias que passaram pela cabeça da rapariga quando lhe falei: “Olha aquela a dirigirme a palavra; quer tornarse minha amiga e nunca mais me verei livre dela!” Com um simples olhar compreendi o que se passou e decidi não abrir mais a boca até ao fim do jantar.
Mas a mãe, que tinha mais àvontade e talvez mais curiosidade, não quis renunciar à conversa:
Não sabia que estava noivo disse ela a Jaime. Há quanto tempo?
Tinha uma voz afectada e parecia falar por detrás do seu enorme peito como se estivesse ao abrigo de uma trincheira.
Há um mês disse Jaime.
Era verdade; não remontava a mais de um mês o nosso conhecimento.
A menina é romana?
Ultraromana. Sete gerações.
E quando se casam?
Depressa. Logo que a casa para onde vamos morar esteja livre.
Ah! Já têm casa?
Sim... uma casinha com jardim... um pátio... muito bonita.
O que ele descrevia com aquele tom sardônico era a moradia que eu lhe havia mostrado, ao pé da minha casa, na avenida.
Se esperarmos por aquela casa disse eu com esforço , receio nunca mais casarmos!
Ora, histórias! disse Jaime, que parecia recomposto, até mesmo com o rosto mais corado. Sabes bem que estará livre no dia marcado.
Não gosto de intrujices. Por isso nada mais disse. A criada mudou os pratos.
As moradias têm muitas comodidades, Sr. Diodatti disse a Sr.a Medolaghi , mas não são práticas; exigem muito criados.
Porquê? perguntou Jaime. Não será necessário; a Adriana será a cozinheira, a criada de quarto, a governanta... Não é, Adriana?
A Sr.a Medolaghi mediume com o olhar e declarou:
Para dizer a verdade uma senhora tem outras coisas para fazer que não seja ocuparse da cozinha, limpar os quartos e fazer as camas... mas se a menina Adriana está habituada a fazêlo... então nesse caso...
Não acabou a frase e voltou os olhos para o prato que a criada lhe apresentava.
Não sabíamos que vinha; senão teríamos acrescentado dois outros ovos.
Estava ofendida com Jaime e com a Sr.a Medolaghi. Quase desejava responderlhe: “Não, o que eu estou habituada é a ser prostituta.” Jaime, radiante, serviase e serviame generosamente de vinho. (Os olhos da Sr.a Medolaghi seguiam a garrafa com inquietação.) Depois continuou:
Mas a Adriana não é uma senhora. Ela nunca será uma senhora. A Adriana fez sempre as camas e arrumou os quartos. A Adriana é uma rapariga do povo.
A Sr.a Medolaghi olhoume como se me visse pela primeira vez, depois confirmou com uma delicadeza injuriosa:
Foi justamente o que eu disse... se ela está habituada...
A filha inclinou a cabeça sobre o prato.
Sim continuou Jaime. Ela está habituada e não serei eu com certeza que lhe farei perder hábitos tão aproveitáveis. Adriana é filha de uma camiseira; e ela também é camiseira... não é, Adriana?
Estendeu o braço sobre a mesa, agarroume a mão e virouma de costas para cima:
Ela pinta as unhas, é verdade, mas a sua mão é a de uma operária; grande, forte e simples. Como os cabelos... ela ondulaos, mas de facto são rebeldes e duros.
Largoume a mão e puxoume os cabelos, como se faz à crina dos animais.
Em suma, Adriana é em tudo e por tudo uma digna representante do nosso bom povo vigoroso e são.
Sentiase na sua voz um desafio sarcástico de que ninguém desconfiou. A filha olhava através da minha pessoa como se eu fosse transparente e ela quisesse ver um objecto que estivesse atrás de mim. A mãe ordenou à criada que mudasse os pratos e voltouse para Jaime perguntandolhe de uma maneira completamente inesperada:
Então, Sr. Diodatti, chegou a ver a tal comédia? Esta maneira tão desastrada de mudar de conversa quase me deu vontade de rir. Jaime não pareceu desconcertado e declarou:
Nem me fale nisso, uma verdadeira idiotice!
Nós vamos amanhã. Dizse que os actores são excelentes.
Jaime respondeu que, depois de tudo bem considerado, os actores não eram tão bons como os jornais diziam. A senhora admirouse de que os jornais mentissem. O meu amante respondeu, com calma, que os jornais eram uma pura e simples mentira da primeira à última linha. A partir desse momento a conversa decorreu sempre sobre esses assuntos. Logo que um destes temas convencionais era abordado, a Sr.a Medolaghi encetava outro com uma precipitação mal dissimulada. Jaime, que parecia divertirse, entrava no jogo e dava a réplica sem se fazer rogado. Falavam de actores, depois da vida nocturna de Roma, de cafés, de cinemas, de teatros, de hotéis e de outras coisas parecidas. Pareciam dois jogadores de pinguepongue atirando constantemente a mesma bola e fazendo por não a deixar cair. Mas enquanto Jaime o fazia pelo amor à comédia, tão desenvolvida nele, o que levava a Sr.a Medolaghi a fazêlo era o medo e o aborrecimento que eu lhe inspirava, eu e tudo o que se me pudesse ligar. Esta conversa de pura formalidade, só convencional, parecia significar: “É a minha maneira de lhe dizer que é indecente casar com uma rapariga do povo e também indecente trazêla a casa da Sr.a Medolaghi, viúva de um alto funcionário.” A filha não piava. Percebiase que estava aterrada e desejava claramente que a refeição terminasse e que eu me fosse embora o mais depressa possível. Durante algum tempo divertime a seguir a conversa. Depois fatigueime desse jogo e deixei a tristeza que me enchia o coração tomar inteiramente conta de mim. Compreendia com amarga clareza que Jaime não me tinha amor, e apesar de tudo sofria com isso. Depois reparei que ele se servira das minhas confidências para inventar a comédia do nosso noivado; não chegava a compreender se o fizera na intenção de troçar de mim ou delas. Talvez de mim e delas ao mesmo tempo, mas seguramente dele próprio, como se no fundo do seu coração acalentasse, como eu, o vivo desejo de uma vida normal e decente que, por motivos muito diferentes dos meus, pensava nunca poder vir a ter. Eu compreendia perfeitamente que os elogios que me fizera como filha do povo nada tinham de envaidecedor, quer para mim, quer para o povo; que a sua intenção fora tornarse desagradável às duas mulheres e nada mais. Estas observações faziamme reconhecer a verdade do que ele dissera pouco antes: que o seu coração não era susceptível de amar. Nunca como então me foi dado compreender que qualquer coisa com amor é tudo e nada sem amor é qualquer coisa. O amor ou existe ou não. Se existe, amase não somente alguém, mas toda a gente; era o que me acontecia. Se não existe, nada se ama, nem ninguém; era o seu caso. E a ausência de amor conduz fatalmente à incapacidade e à impotência.
A mesa fora entretanto levantada. Em cima da toalha cheia de migalhas, no clarão arredondado da luz que caía do candeeiro, havia quatro pequenas chávenas de café, um cinzeiro de barro em forma de tulipa e uma grande mão branca, cheia de manchas escuras, com os dedos carregados de grossos anéis fora de moda, segurando um cigarro aceso: a mão da Sr.a Medolaghi. De repente senti uma grande intolerância tomar conta de mim e levanteime:
Tenho muita pena, Jaime disse, exagerando propositadamente a minha pronúncia popular , mas tenho que fazer... Preciso de me retirar...
Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e levantouse também. Eu larguei umas “boasnoites” sonoras, fiz uma leve reverência, à qual a Sr.a Medolaghi respondeu com altivez distante e que a filha ignorou por completo, e saí. Na antecâmara disse a Jaime:
Palpitame que logo à noite a Sr.a Medolaghi vai pedirte que procures quarto noutro sitio...
Ele encolheu os ombros:
Não me parece respondeu. Eu sou dos que pagam bem e com pontualidade.
Voume embora disse eu. Este jantar pôsme triste.
Porquê?
Porque me convenci, por fim, de que tu és realmente incapaz de amar.
Disse isto com tristeza, sem olhar para ele. Depois ergui os olhos e tive a impressão de que ele próprio estava mortificado. Talvez fosse apenas efeito da pouca luz do vestíbulo sombrio, mas sentime possuída por um grande remorso.
Ficaste aborrecido? perguntei.
Não respondeu ele. No fundo o que tu disseste é verdade.
A minha alma inundouse de afeição. Beijeio impetuosamente e disselhe:
Não é verdade... disseto para te arreliar... e depois isso não impede que te ame... Olha... Trouxete esta gravata.
Abri a mala, tirei a gravata e estendilha. Olhoua e perguntoume:
Roubastea?
Esta brincadeira nele valia talvez mais do que um caloroso agradecimento: mas só o compreendi mais tarde. Naquele momento senti o coração apertado. Os olhos encheramseme de lágrimas e balbuciei:
Não, compreia... na loja lá em baixo.
Reparou na minha humilhação e beijoume dizendo:
Pateta! Estava a brincar. De resto darmeia o mesmo prazer se a tivesses roubado. Talvez até ainda mais...
Espera, que eu ponhota! disselhe, um pouco mais consolada.
Levantou o queixo, tireilhe a gravata velha, puslhe a nova e deilhe o nó.
Esta gravata velha e toda esfiada vou levála! disselhe. Não a deves pôr mais.
Na realidade o que eu queria era uma recordação sua, qualquer coisa que ele tivesse usado.
Então voltaremos a vernos em breve? disse.
Quando?
Amanhã depois de jantar.
Está bem!
Agarreilhe na mão e fiz menção de lha beijar. Ele baixou o braço, mas não pôde impedir os meus lábios de aflorarem os seus dedos. Rapidamente, sem me voltar, desci a escada.
Depois desse dia continuei a minha vida habitual. Amava realmente Jaime e mais de uma vez senti desejo de abandonar uma vida tão oposta ao verdadeiro amor.
Mas o amor não mudara a minha situação. Estava sempre na mesma, quer dizer, sem dinheiro e na impossibilidade de o ganhar de outra maneira. Nada queria pedir a Jaime, que de resto estava limitado à pequena pensão que a família lhe enviava. Devo mesmo dizer que eu sentia continuamente o desejo de pagar sempre em todos os lugares a que íamos juntos, cafés ou restaurantes. Ele recusava sistematicamente as minhas ofertas, o que me dava sempre desilusão e amargura.
Quando já não tinha dinheiro levavame para os jardins públicos, onde conversávamos e olhávamos os transeuntes, sentados num banco, como fazem os pobres. Um dia disselhe:
Mesmo que não tenhas dinheiro podemos ir na mesma ao café; pagarei eu; que mal é que tem isso?
Não é possível.
Mas porquê? Queria ir beber alguma coisa a um café.
Então vai sozinha.
Na verdade não era tanto ir ao café o que me interessava, como pagarlhe a ele. Desejava fazêlo de uma maneira tenaz e lamentável. Mais ainda do que pagarlhe desejaria darlhe directamente dinheiro, todo o dinheiro que ganhasse à medida que o fosse recebendo dos meus amantes de passagem.
Pareciame que para uma pessoa como eu seria a única maneira de lhe provar o meu amor. Pensava que sustentandono ligava a mim por um laço mais forte que o da afeição. De uma outra vez disselhe:
Davame imenso prazer darte dinheiro... E tenho a certeza de que também a ti te daria prazer recebêlo.
Desatou a rir e respondeume:
As nossas relações, pelo menos no que me diz respeito, não são fundamentadas no prazer.
Então em quê?
Hesitou, depois retorquiu:
Na tua vontade de me amar e na minha fraqueza perante essa vontade... mas não julgues que a minha fraqueza não tem limites.
Que queres dizer?
É muito simples respondeume tranquilamente. Já lhe expliquei muitas vezes. Estamos juntos porque tu o quiseste. Eu, pelo contrário, não o quis, e agora ainda, em teoria pelo menos, não o quero.
Está bem, está bem interrompio. Não falemos mais do nosso amor. Não tenho razão para te sustentar!
Muitas vezes, pensando no seu carácter, acabei por chegar à conclusão dolorosa de que ele não me tinha amor algum, e que eu era para ele objecto de não sei qual experiência. Realmente só se preocupava consigo próprio, mas nestes limites o seu carácter revelavase extraordinariamente complicado.
Era, como me parecia ter compreendido, filho de uma família provinciana abastada; um rapaz delicado, inteligente, culto, bem educado, sério. A sua família, depois do pouco que pude depreender, porque ele não gostava de falar nela, era exactamente a família na qual os meus vãos sonhos de regularidade me tinham feito sonhar para mim.
A família tradicional; um pai médico, uma mãe ainda nova, que vivia muito para a casa, para o seu marido e para os seus filhos, três irmãs mais novas e um irmão mais velho. É verdade que o pai, uma autoridade local, era um faztudo, a mãe uma provinciana, as irmãs raparigas talvez frívolas e o irmão mais velho um licencioso do gênero de João Carlos. Mas estes defeitos, todos somados, eram suportáveis, e para mim, que nascera num meio e numa situação tão diferentes, nem mesmo eram defeitos. De resto esta família era muito unida, e todos, irmãs, irmão e pais, gostavam muito de Jaime.
Eu achava que ele era muito afortunado por ter nascido numa família assim. Ele, pelo contrário, nutria por ela uma aversão, uma antipatia e um aborrecimento que eram realmente incompreensíveis para mim. Parecia sentir a mesma antipatia, a mesma aversão e o mesmo aborrecimento por si próprio, pelo que fazia, pelo que era. Mas este ódio por ele não era mais do que um reflexo do ódio que sentia pela família.
Por outras palavras, parecia odiar na sua pessoa tudo o que conservava da sua família ou, de uma maneira ou de outra, recebera a influência da família. Acabei de dizer que era bem educado, culto, inteligente, delicado e sério. Desprezava a sua boa educação, a sua inteligência, a sua cultura, a sua delicadeza, a sua seriedade unicamente porque supunha que as devia ao seu meio ou à família na qual nascera e fora criado.
Mas, em suma disselhe uma vez , que querias tu ser? Tudo isso são boas qualidade... devias agradecer ao Céu possuílas.
Ora! respondeu, depreciativo. Para o que me serve! Por mim teria preferido ser como Sonzogne.
A história de Sonzogne tinhao tocado muito, não sei porque.
Que horror! gritei. É um monstro! Tu querias ser um monstro?
Naturalmente que não queria ser em tudo como Sonzogne explicou com calma. Se falo em Sonzogne é só para tornar mais clara a minha maneira de pensar. Seja ele como for, Sonzogne é feito para viver neste mundo e eu não.
Queres saber disselhe eu então o que gostaria eu de ser?
Vejamos.
Quereria ser disselhe lentamente saboreando cada uma das minhas palavras como se elas fossem um sonho há muito acariciado exactamente o que tu és e o que tanto te desgosta ser... Gostaria de ter nascido de uma família rica como a tua, que me tivesse dado uma boa educação... gostaria de viver numa casa asseada e bonita como a tua... Gostaria de ter tido, como tu, bons professores, preceptores estrangeiros... Gostaria de, como tu, passar o Verão na praia ou na montanha.. ter bonitas roupas, ser convidada, receber... E depois gostaria de me casar com alguém que me amasse, um bom rapaz que trabalhasse e tivesse tido também ele uma vida abastada... Gostaria de viver com ele e darlhe filhos.
Falávamos estendidos na cama. De repente saltou para cima de mim e começou a apertarme e a beliscarme, dizendo muitas vezes :
Hip! Hip! Hurra! Em suma, tu querias ser como a Sr.a Lobianco?
Quem é a Sr.a Lobianco? pergunteilhe, um pouco magoada e desconcertada.
Uma pavorosa ave de rapina que me convida com frequência para as suas recepções com a esperança de que eu me apaixone por uma das suas horríveis filhas e case com ela, porque eu sou aquilo a que vulgarmente se chama um bom partido.
Mas eu não quereria ser de modo algum como a Sr.a Lobianco.
Tu serias forçosamente como ela se tivesses tido todas as coisas que disseste! Ela também, a Sr.a Lobianco, nasceu de uma família rica, que lhe deu uma excelente educação, com bons professores e preceptores estrangeiros, que a mandaram para o liceu e até mesmo, creio eu, para a Universidade. Ela também cresceu numa casa bonita e asseada... Ia para a praia ou para a montanha quando chegava o Verão... Teve bonitos vestidos, foi convidada e fez convites... muitos convites e muitas recepções... Também ela se casou com um bom homem, o engenheiro Lobianco, que é um trabalhador e que “cavou” bastante dinheiro para a casa... Enfim, ela teve desse marido, ao qual vou até ao ponto de acreditar que foi fiel, um bom número de filhos, três raparigas e um rapaz precisamente... E é nem mais nem menos como acabo de te dizer, uma pavorosa ave de rapina!
Mas talvez seja uma ave de rapina... independentemente do seu meio.
Não, ela é assim como o são as suas amigas e as amigas das suas amigas.
É possível disselhe eu experimentando desembaraçarme do seu sarcástico abraço , cada um tem o seu carácter. É possível que a Sr.a Lobianco seja como dizes... mas eu tenho a certeza de que na sua situação teria sido muito, muito superior ao que sou.
Não serias menos horrível do que a Sr.a Lobianco.
Porquê?
Porque sim!
Vejamos!... A tua família também te parece horrível?
Sem dúvida nenhuma! Absolutamente horrível!
Então tu também és horrível?
Souo dentro de todos os elementos que me ficaram dá minha família.
Mas porquê? Dizme porquê.
Porque sim!
Isso não é uma resposta.
É a resposta que te daria a Sr.a Lobianco se lhe fizesses certas perguntas.
Que perguntas?
É inútil que tas diga respondeu em tom leve. Para as perguntas que nos podem embaraçar um bom “porque sim” pronunciado com convicção fecha a boca ao mais curioso. “Porque sim...” Sem razão nenhuma... “Porque sim!”
Não compreendo.
Que importa que nós nos não compreendamos se nos amamos mesmo assim, não é? concluiu beijandome com a sua habitual ironia, isenta de amor.
E foi assim que acabou a discussão. Da mesma maneira que ele nunca se abandonava por completo a um sentimento, parecendo guardar sempre uma parte para ele, talvez a mais importante, de modo a tirar todo o valor aos seus raros gestos de afecto, igualmente ele nunca abria inteiramente o seu espírito e de cada vez que eu julgava chegar ao centro da sua inteligência, de uma brincadeira, de um gesto cômico, repudiavame e furtavase à minha atenção. Era fugidio em todo o sentido da palavra. Tratavame como a um ser inferior, uma espécie de objecto de estudo e de experiência. Mas talvez mesmo por isso eu o amava de uma maneira tão submissa e indefesa. Aliás, pareciame por vezes que não odiava somente a família e o seu meio, mas realmente todos os homens. Disseme um dia, não sei já a que propósito:
Os ricos são horríveis... mas, se bem que por motivos diferentes, os pobres não valem por certo muito mais!
Seria mais fácil disselhe eu dizeres francamente que detestas todos os homens.
Pôsse a rir e respondeu:
Quando não estou no meio deles não os detesto... detestoos tão pouco que acredito na possibilidade de eles melhorarem. Se não acreditasse não me ocuparia de política. Mas quando me encontro com eles, fazemme horror... Realmente os homens nada valem acrescentou de repente com tristeza.
Nós também somos homens disselhe , por conseguinte nada valemos. Não temos, portanto, o direito de julgar.
Riuse de novo e acrescentou:
Não os julgo, sintoos, ou, melhor, farejoos como um cão o rasto de uma perdiz ou de uma lebre... O cão julga? Não... Eu farejoos como maus, estúpidos, egoístas, mesquinhos, vulgares, falsos, ignóbeis, cheios de ideias sujas... um sentimento... Não se pode abolir um sentimento, pois não?
Não sabia que responder. Limiteime a observar:
Eu não tenho esse sentimento.
De uma outra vez declaroume:
De resto, não sei se os homens são bons ou maus, mas são com certeza inúteis, supérfluos!
Que queres dizer?
Quero dizer que podia muito bem passarse sem a humanidade inteira... Ela não é mais que uma ruim excrescência sobre a face do mundo... uma verruga. O mundo seria muito mais belo sem os homens, as suas cidades, as suas ruas, os seus portos, os seus arranjinhos. Pensa em como o mundo seria belo se só existisse o céu, o mar, as árvores, a terra, os animais.
Não pude deixar de rir e gritei:
Que ideias esquisitas tu tens!
A humanidade continuou ele é uma coisa sem pés nem cabeça e portanto negativa... A história da humanidade não é mais que um longo bocejo de aborrecimento... Que falta faz? Por mim passaria bem sem ela.
Mas também tu fazes parte desta humanidade. Então gostarias de não existir?
Eu sobretudo!
Uma outra das suas ideias fixas, ainda mais singular porque não tentava pôla em prática e não servia senão para estragarlhe o prazer, era o da castidade. Elogiavaa sempre, mas principalmente como se fosse para me arreliar, logo a seguir a termonos amado. Dizia que o amor era a forma mais fácil e idiota de nos livrarmos de todos os problemas, resolvendoos às escondidas, sem que ninguém desse por isso, como se manda sair um hóspede embaraçoso pela porta de serviço.
Em seguida declarava , feita a operação, vaise passear com a cúmplice, mulher ou amante, maravilhosamente dispostos a aceitar o mundo tal qual é... nem que fosse o pior mundo possível.
Não te compreendo disselhe.
No entanto respondeume isto pelo menos devias compreender; não é a tua especialidade?
Sentime ferida e repliqueilhe:
A minha especialidade, como tu dizes, é amarte. Mas se tu queres, nunca mais teremos relações e eu amarteei da mesma maneira.
Riuse e perguntoume:
Tens a certeza?
Nesse dia a discussão ficou por aqui, mas repetiuse noutras ocasiões. Acabei por não ligar importância: aceitei a coisa como de resto os outros traços do seu carácter tão cheio de contradições.
Pelo que dizia respeito à política, pelo contrário, era assunto em que não tocava. Ainda agora ignorava qual o seu fim, quais as suas ideias, a que partido pertencia. Esta ignorância tinha origem no segredo em que ele envolvia este aspecto da sua vida, no facto de eu nada perceber de política e de, quer por timidez quer por ignorância, não lhe pedir explicações que me poderiam esclarecer. Fazia mal; Deus sabe como me arrependi mais tarde! Mas pareciame naquela altura extremamente cômodo não me misturar em coisas que supunha não me dizerem respeito e não pensar senão no amor. Em suma, portavame como muitas outras mulheres, esposas ou amantes, que ignoram como o homem que lhes pertence arranja o dinheiro que lhes dá. Aconteciame muitas vezes encontrar os seus dois camaradas, que ele via quase todos os dias. Mas eles não falavam de política na minha presença; gracejavam ou conversavam sobre coisas sem importância.
No entanto não conseguia banir da minha alma uma apreensão constante, porque compreendia que tramar conspirações contra o governo era perigoso. Receava, sobretudo, que Jaime se entregasse a qualquer acto de violência; na minha ignorância, não conseguia separar o tema da conspiração da ideia de armas e de sangue. A propósito disto, lembrome bem de um facto que demonstra que, mesmo obscuramente, eu sentia o dever de intervir para desviar os perigos que o ameaçavam. Sabia que é proibido usar armas e que a transgressão era o suficiente para o meter na cadeia. Por outro lado depressa se perde a cabeça em certos momentos; o emprego de armas tem muitas vezes comprometido pessoas que se teriam salvo sem elas. Por todos estes motivos pensava que o revólver de que Jaime se sentia tão orgulhoso, longe de lhe ser necessário, como ele pretendia, seria extremamente perigoso no caso de ele ser obrigado a fazer uso dele, ou até se, mais simplesmente, lho encontrassem. Mas não ousei falarlhe nisso; de resto sabia que seria inútil. Resolvi por isso agir às escondidas. Ele uma vez tinhame explicado como a arma funcionava. Um dia, enquanto dormia, tireilhe o revólver do bolso das calças, abrio e tireilhe as balas; depois tornei a pôlo no bolso. Escondi as balas numa gaveta, debaixo da roupa. Fiz tudo isto num abrir e fechar de olhos e voltei a deitarme a seu lado. Dois dias mais tarde meti as balas na mala e fui atirálas ao Tibre.
No decurso de um destes dias Astárito procuroume. Quase o esquecera; quanto ao caso da criada de quarto achava que tinha cumprido o meu dever e não queria mais pensar nisso. Astárito informoume de que o padre tinha devolvido a caixa, que, a conselho do próprio comissário, a patroa de Gino tinha retirado a queixa e que a criada de quarto, reconhecida inocente, fora libertada. Devo reconhecer que esta boa noticia me agradou sobretudo porque me dissipou a impressão de mau agouro que me tinha deixado a minha última confissão. Agora já não pensava na criada, já em liberdade, mas em Jaime, e dizia a mim própria que, visto a denúncia que eu receava não ter sido feita, nada mais tinha a temer, nem por ele nem por mim. Na minha alegria não pude deixar de beijar Astárito.
Tinhas assim tanto interesse em que esta mulher saísse da prisão? observou ele com uma careta de desconfiança.
Para ti disselhe hipocritamente , que mandas todos os dias inocentes para a cadeia, pode parecerte estranho! Mas para mim era um verdadeiro tormento.
Ninguém mando para a cadeia tartamudeou ele. Cumpro apenas o meu dever.
Mas tu viste o padre? pergunteilhe.
Não, não o vi... telefonei... disseramme que efectivamente a caixa de pó de arroz tinha sido devolvida por um padre, que a recebera sob o segredo da confissão... Então ordenei que libertassem a mulher.
Fiquei pensativa sem bem saber porquê. Depois disselhe:
Amasme realmente?
A minha pergunta perturbouo logo. Beijoume com força e respondeume balbuciante:
Porque mo perguntas? Já o deves ter percebido.
Queria beijarme. Defendime e respondilhe:
Perguntote porque queria saber se me amarás sempre... e se me ajudarás mais vezes, se te pedir.
Sempre disseme tremendo dos pés à cabeça. Depois aproximou a cara da minha: Tu serás gentil comigo?
Agora que Jaime voltara, eu estava firmemente decidida a nunca mais ter relações com Astárito. Era diferente dos meus amantes passageiros; se bem que não o amasse, e por vezes mesmo sentisse por ele uma real aversão, justamente por isso talvez pareciame que entregarme a ele seria enganar Jaime. Estive tentada a revelarlhe a verdade e a declararlhe: “Não, nunca mais serei gentil para contigo!”, mas bruscamente retiveme e mudei de ideias. Pensava que ele era um trunfo importante, que a todo o momento Jaime podia ser preso e que se quisesse a intervenção de Astárito para o conseguir libertar não o devia melindrar. Resigneime e disse num sopro:
Sim, serei amável contigo.
Dizme perguntou já mais alegre. Gostas de mim um bocadinho?
Não, amarte não te amo! disselhe com decisão. Isso já tu sabes; já to disse muitas vezes.
Nunca me amarás?
Creio bem que não.
Mas porquê?
Não há porquê.
Tu gostas de outro.
Isso a ti não te pode interessar.
Mas eu preciso do teu amor! disseme desesperado, olhandome com os seus olhos biliosos. Porquê... porque não queres gostar de mim um bocadinho?
Nesse dia permiti que ficasse comigo até mais tarde. Não podia conformarse com a minha impossibilidade de o amar e não parecia convencido de que lhe dizia a verdade.
Mas eu não sou pior do que os outros repetia. Porque não me podes amar tanto como a outro?
Faziame pena; como me interrogava com insistência e se esforçava por encontrar nas minhas palavras um pretexto para qualquer esperança, sentia quase a tentação de lhe mentir para lhe deixar esta ilusão que ele tanto ambicionava. Reparei que nessa noite estava mais melancólico e mais desencorajado do que habitualmente. Parecia querer suscitar em mim, por gestos e por atitudes, o amor que o meu coração lhe recusava. Lembrome de que a certa altura mandoume sentar, toda nua, num sofá. Ajoelhouse na minha frente, meteu a cabeça entre os meus joelhos e apertou a cara contra a minha barriga, ficando muito tempo imóvel, enquanto eu lhe devia repassar a mão pela cabeça numa carícia incessante e leve. Não era a primeira vez que me obrigava a esta espécie de pantomima de amor; mas nesse dia pareceume mais desesperado que de costume; apoiava com força a cara no meu colo como se quisesse lá entrar e gemia. Nestes momentos não me fazia o efeito de um amante, mas de uma criança procurando a escuridão e o calor das entranhas maternais. Pensava que muitos homens desejariam não ter nascido, e que esse gesto, talvez inconsciente, exprimia o obscuro desejo de voltar ao ventre do qual tão dolorosamente tinham brotado para a luz.
Nessa noite essa sua atitude levou tanto tempo que adormeci, com a cabeça descaída para trás e a mão pousada na sua cabeça. Dormitei não sei quanto tempo. A certa altura julguei acordar e vi Astárito sentado na minha frente todo vestido e olhandome com os seus olhos biliosos e melancólicos. Mas talvez tivesse sido um sonho, porque depois acordei completamente e vi que Astárito já lá não estava. Tinha deixado no sítio onde pousara a cabeça a sua soma habitual de dinheiro.
Em seguida passaram os quinze dias que eu considero os mais felizes da minha vida.
Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas relações não tivessem mudado, contentavame com esta espécie de hábito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo. Tacitamente estava bem claro entre nós que ele não me tinha amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a castidade ao amor. Também estava tacitamente estabelecido que eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferença e que de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante como aquele que ausência de amor. Mas eu não era feita como Astárito; não me resignando a não ser amada, não encontrava menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coração não perdera a esperança de ser amada por Jaime à força de submissão, de paciência e de afeição. Mas não acalentava esta aspiração; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas.
Entretanto, como quem não quer a coisa, procurei penetrar na sua vida. Já que não podia entrar pela porta principal procurei esgueirarme pela de serviço. A despeito deste ódio pelos homens que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por uma curiosa contradição, um impulso indomável para pregar e esforçarse por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de aborrecimento não era menos sincero quando o fazia.
Foi nesta altura que ele pareceu apaixonarse pelo que ele chamava, não sem ironia, a minha educação. Como já disse, eu procurava prendêlo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo. Esta experiência, no entanto, acabou quase de repente de uma maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a seguir, traziame livros seus e depois de me explicar abreviadamente o assunto de que tratavam liame um trecho ou outro. Lia bem, com grande variedade de inflexões, segundo o assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas que, a despeito dos meus esforços, não chegava a compreender. Bem depressa deixei de o ouvir, contentandome em observar, com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressões que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras libertavase, sem ironia, nem receio, como alguém que está no seu elemento e já não teme mostrarse sincero. Aquilo magoavame porque até então julgava que era o amor, e não a leitura, a situação mais favorável à expansão da alma humana. Para Jaime, parecia bem ser o contrário. Nunca lhe vi no rosto uma expressão de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava a voz com curiosas entoações cavernosas ou a baixava num tom reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via então desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e cômico que nunca o abandonava até mesmo nos momentos mais sérios e que dava a impressão de que ele estava sempre a representar um papel. Muitas vezes chegava a comoverse até às lágrimas.
Fechava o livro e perguntavame num tom brusco:
Gostas disto?
Geralmente dizia que gostava sem especificar porquê; não o poderia fazer, porque desde o princípio abandonei toda a tentativa de compreender. Mas um dia insistiu e perguntoume:
Dizme porque gostas... explicame!
Para dizer a verdade respondi depois de uma hesitação nada te posso explicar, porque nada percebi.
Porque não me disseste?
Nada compreendo... ou quase nada do que me lês.
E deixasme ler sem mo dizer?
Saltava, batia com os pés no chão, furioso:
Diabo! Mas tu és uma idiota, uma estúpida!... E eu a esforçarme. És uma cretina!
Fez menção de me atirar com o livro à cabeça, mas contevese a tempo e continuou a injuriarme durante um bom bocado. Deixei passar a fúria e observeilhe:
Dizes que me queres educar... mas a primeira coisa a fazer era agir de maneira a que eu não precisasse de ganhar a vida da maneira que sabes. Para engatar homens não é verdadeiramente necessário ler poesias ou reflexões sobre a moral. Podia muito bem não saber ler nem escrever; davammo o mesmo dinheiro.
Respondeu num tom sarcástico:
Querias uma bonita casa, um marido, filhos, vestidos, um automóvel, não é? A desgraça é que as Sr.as Lobianco não lêem. Os motivos são diferentes dos teus, mas não menos justificáveis, ao que parece.
Não sei o que quereria respondi irritada , mas esses livros convêm a uma condição diferente da minha. É como se oferecesses um chapéu de grande categoria a uma pedinte e quisesses que ela o usasse com os seus andrajos habituais!
É possível disseme. Mas para mim é a última vez que te leio uma linha!
Narro esta escaramuça porque me pareceu característica da sua maneira de pensar e de agir. Duvido de que tivesse continuado a sua obra educativa mesmo se eu não lhe tivesse mostrado a minha incompreensão. Não que fosse inconstante, mas tinha uma singular incapacidade que se poderia chamar física para manter qualquer esforço que exigisse um entusiasmo contínuo e sincero. Nunca mo disse claramente, mas compreendi depressa que esta atmosfera de comédia que criavam as suas palavras correspondia a um contíguo estado de espírito. Em suma, acontecia entusiasmarse por um motivo qualquer, e enquanto durava o fogo do seu entusiasmo, ver a coisa como possível e concreta. Depois, de repente, o fogo extinguiase e não lhe deixava mais que aborrecimento, desagrado, e sobretudo um sentimento total de absurdo. Neste caso ou se deixava cair numa gélida indiferença ou se agitava de uma maneira exterior e convencional como se este fogo não se tivesse apagado e então fingia. Para mim é difícil explicar o que lhe acontecia nessas ocasiões: provavelmente uma paragem brusca da vitalidade, como se de repente o calor do seu sangue tivesse abandonado o seu espírito, não deixando mais do que aridez e vazio. Era uma interrupção súbita, imprevisível, total, comparada à brusca interrupção de uma corrente eléctrica que mergulhasse no escuro uma casa faustosamente iluminada um minuto antes. Estas intermitências da mais profunda vitalidade, descobrias depois das várias alternativas de entusiasmo e ardor para estados de apatia e inércia; mas acabei por ter a verdadeira revelação por ocasião de um incidente curioso, mas que mais tarde me pareceu significativo. Perguntoume um dia, de uma maneira inesperada:
Gostavas de fazer alguma coisa por nós?
“Nós”, quem?
Pelo nosso grupo. Por exemplo, ajudarnos a fazer propaganda.
Estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse aproximar dele e reforçar a nossa ligação. Respondilhe sinceramente:
Com certeza! Dizme o que devo fazer que eu o farei.
Não tens medo?
Medo de quê? Desde que tu o fazes também...
Sim disse , mas primeiro é preciso que te explique de que se trata. Precisas de conhecer as ideias pelas quais te expões e te arriscas.
Está bem! Explicame!
Mas não te interessam.
Porquê? Primeiro interessamme com certeza; além disso, tudo o que fazes me interessa, quanto mais não seja por tu o fazeres.
Olhoume. Bruscamente, de uma maneira inesperada, os olhos iluminaramselhe e a cara animouselhe.
Está bem disse. Hoje é muito tarde... mas amanhã explicote tudo... de viva voz porque os livros aborrecemte. Mas já sabes que precisarás de me escutar, mesmo que te pareça não estares a compreenderme.
Farei o possível por compreender disselhe.
Tens de compreender disse como se falasse consigo próprio.
Foise embora.
No dia seguinte espereio mas não veio. Voltou dois dias depois. Uma vez no quarto, sentouse, sem dizer palavra, aos pés da cama:
Então disse eu alegremente , estou pronta. Sou toda ouvidos!
Notara a sua cara abatida, os olhos mortiços; toda a sua atitude era de abatimento: mas fingi não perceber. Acabou por me responder:
É inútil ouvires, porque nada tenho para te dizer.
Porquê?
Porque não!
Dizme a verdade protestei. Julgasme muito estúpida ou muito ignorante para compreender certas coisas? Agradeçote.
Não respondeu gravemente. Enganaste.
Então porquê?
Continuamos durante algum tempo, eu a insistir para saber e ele a defenderse. Acabou por me dizer:
Queres saber porquê? Porque eu próprio, hoje, já não te poderia expor estas ideias.
Mas como, se pensas nisso continuamente?
É verdade; mas depois daquela noite, e sabe Deus por quanto tempo ainda, estas ideias já não estão claras no meu espírito; já nada percebo disso.
Então!
Procura compreenderme disse. Há dois dias, quando te propus trabalhar para nós, se te tivesse exposto logo estas ideias estou certo de que não só o teria feito com vigor, clareza e convicção, mas tu as terias compreendido. Hoje, pelo contrário, poderia mexer os lábios e a língua para pronunciar palavras, mas fáloia mecanicamente, sem qualquer participação. Hoje concluiu já nada compreendo.
Nada compreendes?
Não, nada mais compreendo; ideias, conceitos, factos, recordações, convicções, tudo se transformou para mim numa espécie de burburinho... este burburinho encheme a cabeça, a cabeça toda (batia com os nós dos dedos na testa...) e desagradame como se fossem excrementos!
Eu olhavao sem compreender. Um frêmito de desespero parecia percorrerlhe o corpo.
Tenta compreenderme repetia. Hoje não são as ideias, mas todas as coisas escritas, ditas ou pensadas são incompreensíveis para mim... absurdo. Por exemplo, sabes o Pai Nosso?
Sei.
Pois bem, dilo.
Pai Nosso que estais no céu. comecei.
Chega! interrompeume. Agora reflecte sobre a quantidade de maneiras como se escreveu esta oração no decurso dos séculos e na variedade de sentimentos que levou a dizêla. Pois bem! Eu de nenhuma maneira a compreendo... Poderias recitála de trás para diante que para mim seria a mesma coisa.
Calouse, depois continuou:
Não são só as palavras que me fazem este efeito, mas também as coisas e as pessoas. Tu estás ao meu lado, sentada no braço do sofá; julgas talvez que eu te vejo? Não te vejo porque não te compreendo. Posso tocarte, não te compreenderia melhor. Vês, eu tocote sacudiu o meu penteador e descobriume o peito , apalpote o seio, sintolhe a forma, a tepidez, o contorno; vejolhe a cor, o relevo... mas não compreendo o que é. Digo a mim próprio: é um objecto redondo, quente e mole... que serve para amamentar... que se sente prazer quando se acaricia... mas não compreendo o que é... Digo a mim mesmo que é belo, que me deveria inspirar desejo, mas isso não me impede de nada compreender. Entendes agora? repetiu, furioso, apertandome o seio de tal maneira que não pude impedir um grito de dor.
Largoume logo e fez notar passado um instante, tendo o ar de reflectir:
É provável que seja este género de incompreensão que arrasta tanta gente à crueldade. Eles procuram encontrar o contacto com a realidade através da dor alheia.
Houve um momento de silêncio, depois eu disse:
Se isso é verdade, então como te arranjas quando tens de fazer certas coisas?
Por exemplo?
Não sei. Tu dizes que distribuis os panfletos, que tu mesmo os rediges. Se não acreditas, como os rediges e distribuis?
Deu uma gargalhada sarcástica:
Façoo como se acreditasse disse.
Mas é impossível!
Como é impossível? Quase toda a gente faz assim. Salvo comer, beber, dormir ou amar, quase todos fazem as coisas como se acreditassem nelas... Ainda não tinhas dado por isso?
Ria nervosamente.
Eu não respondi.
Tu não respondeume de uma maneira quase ofensiva , precisamente porque te limitas a comer, beber, dormir e amar de cada vez que te apetece. Para todas essas coisas não parece que seja necessário simular. É muito, mas também é pouco!
Ria. Deume bruscamente uma grande palmada na nádega, depois tomoume nos braços, como fazia muitas vezes, pelo prazer de me apertar e de me sacudir, repetindo sem parar :
Tu não sabes que o nosso mundo é o mundo do “Porque sim”? Tu não sabes que neste mundo, desde o rei ao mendigo, toda a gente se comporta “Porque sim”? O mundo do “Porque sim”, do “Porque sim”, do “Porque sim”!
Deixeio fazer porque sabia que nesses momentos mais valia não protestar, mas esperar que isto lhe passasse. Acabei por lhe dizer com certa firmeza:
Amote. É a única coisa que sei e isso bastame.
Acalmouse de repente e respondeume simplesmente:
Tens razão.
A noite chegou sem que tornássemos a falar nem em política nem na sua capacidade.
Uma vez só, depois de muito reflectir, concluí ser possível que as coisas fossem como ele dizia; mas que era mais que certo que não me tornaria a falar em política por pensar que não a compreenderia e por recear que o comprometesse com qualquer indiscrição. Não que eu imaginasse que ele mentia; sabia, por experiência própria, que pode acontecer a toda a gente ter dias em que o mundo inteiro parece voar em estilhas, em que, como ele dizia, nada se compreende, nem mesmo o Pai Nosso. Eu também, quando tinha algum dissabor, chegava a sentir a mesma impressão de aborrecimento, de desagrado e de prostração. Mas, evidentemente, devia haver outro motivo para que me recusasse a participar na sua vida mais secreta: a falta de confiança, como já disse, tanto na minha inteligência como na minha discrição. Com o tempo compreendi, demasiadamente tarde, que me enganava e que ou fosse por inexperiência da idade ou por fraqueza de carácter, estes estados mórbidos tomavam uma importância particular para ele.
Nesse momento pensava que não o devia importunar com a minha curiosidade. E foi o que fiz.
Não sei porquê, lembrome muito bem do tempo que estava naqueles dias. Fevereiro, que tinha sido frio e chuvoso, acabara; com Março haviam chegado os primeiros dias calmos. Uma rede cerrada de finas nuvens brancas velava inteiramente o céu, ferindo os olhos quando se saía de casa para a rua. O ar era doce mas ainda dorido dos friores do Inverno. Eu caminhava com prazer e alheamento neste ar seco, magoado e sonolento. De vez em quando chegava a retardar o passo e fechar os olhos ou parar a contemplar as coisas mais insignificantes: um gato branco e preto que alisava o pêlo no vão de uma porta, um ramo de loureiro caído, cortado pelo vento, um tufo de erva entre as pedras do passeio. O musgo que a chuva dos meses anteriores deixara nos rebordos das casas inspiravame uma grande tranquilidade e confiança. Pensava que se este belo veludo cor de esmeralda podia viver numa tão fina camada de terra, a minha vida que não tinha raízes mais profundas e se contentava em vegetar e se sustentar com tão pouco alimento, verdadeiro bolor, ela também ao pé de uma ruína - tinha alguma probabilidade de continuar a florir.
Estava convencida de que todas as desagradáveis aventuras dos últimos tempos tinham acabado definitivamente, que não tornaria a ver Sonzogne nem ouviria mais falar dos seus crimes, e que de futuro poderia gozar em paz a minha ligação com Jaime. Esta ideia davame a impressão de sentir pela primeira vez o verdadeiro sabor da vida, feito de um doce tédio, de esperança e de disponibilidade.
Começava mesmo a entrever a possibilidade de mudar de existência. No fundo, o meu amor por Jaime desinteressavame dos outros homens, de maneira que os meus encontros ocasionais tinham perdido até o aguilhão da curiosidade e da sensualidade. Mas eu pensava ser inútil tentar modificarnos e que eu não mudaria senão quando, sem choques nem violências, pela própria ordem natural das coisas, criasse hábitos, sentimentos e interesses novos.
Não via outra maneira de mudar de existência, não sentia de momento qualquer desejo de aumentar nem de melhorar materialmente a minha condição e não tinha a impressão de que, transformando a minha vida, eu própria melhorasse qualquer coisa.
Um dia contei a Jaime estas minhas reflexões. Ouviume atentamente, depois observoume:
Pareces contradizerte. Não dizes sempre que querias ser rica, ter uma bela casa, um marido e filhos? São coisas legítimas: ainda é possível que as obtenhas, mas nunca as conseguirás se raciocinares dessa maneira.
Não digo que queria, digo que teria querido. respondilhe. Quer dizer que se tivesse podido optar antes de ter nascido, não teria escolhido isto que sou. Mas nasci naquela casa, de uma mãe como aquela, nesta situação, e apesar de tudo, sou a que sou.
O quê?
Pareceme absurdo querer ser outra. Desejaria ser outra unicamente se, tornandome outra, pudesse continuar a ser eu própria... quer dizer, se pudesse realmente desfrutar da mudança. Mas ser outra só para não ser eu, não vale a pena.
Vale sempre a pena murmurou. Senão por ti, pelos outros.
E depois continuei sem responder à sua interrupção o que conta são os factos. Imaginas que eu não poderia ter encontrado um amante rico como a Gisela? Ou até mesmo casar? Se não o fiz, quer dizer que no fundo, apesar de todas as minhas tagarelices, não o desejei verdadeiramente.
Casarei eu contigo disse a brincar beijandome. Sou rico. A morte da minha avó, que não pode demorar muito, tornarmeá herdeiro de muitos hectares de terra, de uma casa no campo e de outra na cidade. Montaremos casa com todo o rigor, convidarás senhoras da vizinhança em dias certos, teremos uma cozinheira, uma criada de quarto, um automóvel, até mesmo havemos de descobrir que somos nobres e farnosemos chamar marqueses ou condes.
Contigo nunca se pode falar a sério; estás sempre a brincar! disselhe repelindoo.
Numa destas tardes fui ao cinema com Jaime. A volta subimos para um eléctrico muito cheio. Jaime vinha para casa comigo e íamos jantar ao restaurantezinho das fortificações. Tirou os bilhetes e furou por entre as pessoas que enchiam a coxia do eléctrico. Quis seguilo, mas perdio de vista. Enquanto agarrada a um assento, o procurava com os olhos, senti tocaremme na mão. Olhei e vi Sonzogne sentado ao pé de mim.
Fiquei sufocada. Sentime empalidecer e mudar de expressão. Olhavame com a sua intolerável fixidez. Levantouse e disseme por entre os dentes:
Queres sentarte?
Obrigada, desço já balbuciei.
Sentate, mesmo assim!
Obrigada repeti, sentandome.
Se não me tivesse sentado, julgo que teria desmaiado. Ficou de pé à minha frente como que a espiarme, segurandose com uma mão ao meu banco e com a outra ao que estava à minha frente. Nada tinha mudado; trazia a mesma gabardina de sempre, atada na cintura, e os seus maxilares tinham o mesmo estremecimento maquinal. Fechei os olhos e durante um momento procurei ordenar os meus pensamentos. Lembreime da minha confissão e pensei se, como desconfiara, o padre tinha falado, a minha vida não estava muito segura.
Esta ideia não me assustou. Mas ele, de pé ao meu lado, assustavame, ou, mais exactamente, fascinavame, subjugavame. Sentia que nada lhe podia recusar; que entre mim e ele havia um laço, não de amor seguramente, mas talvez mais forte do que aquele que me unia a Jaime. Ele também o sabia por instinto: portavase como um dono.
Vamos para tua casa! disseme passado um instante.
Como quiseres! respondi docilmente, sem hesitar.
Jaime aproximouse depois de se ter desembaraçado com esforço das pessoas que o comprimiam. Sem dizer uma palavra veio colocarse exactamente ao lado de Sonzogne, agarrandose ao mesmo banco que ele; os seus dedos magros e longos quase afloravam os dedos curtos e grossos de Sonzogne. Uma sacudidela do eléctrico atirouos um contra o outro e Jaime desculpouse delicadamente. Comecei a sofrer por os ver assim lado a lado, tão perto e tão ignorantes um do outro; de repente disse a Jaime, voltandome ostensivamente para ele, de maneira a que Sonzogne não pudesse duvidar de que era com ele que eu falava:
Olha! Lembrome agora de que marquei encontro esta noite com uma pessoa; é melhor que nos separemos.
Se quiseres acompanhote a casa.
Não, esperamme na paragem do eléctrico.
Não era uma invenção. Continuava, como já disse, a trazer homens para casa e Jaime sabiao.
Como quiseres disse tranquilamente. Então vernosemos amanhã.
Disselhe que sim com os olhos e perdio de vista por entre os passageiros do eléctrico.
Por um momento, ao vêlo afastarse, fui tomada de um grande desespero. Pensava sem saber porquê que era a última vez que o via.
“Adeus”, murmurei para mim mesma. “Adeus, meu amor.” Desejaria gritarlhe que parasse, que voltasse, mas nenhum som saiu da minha boca. O carro parou e pareceume vêlo descer. Nem Sonzogne nem eu abrimos a boca durante todo o trajecto. Acalmeime e pensei que não era possível que o padre tivesse falado. Por outro lado, reflectindo nisso, não lamentava muito ter encontrado Sonzogne. Este encontro permitia livrarme de uma vez para sempre das suspeitas a respeito da minha confissão.
Quando descemos andei uns passos sem olhar para trás. Sonzogne vinha ao meu lado:
Que me queres? Porque voltaste? acabei por dizer.
Foste tu quem me disse para voltar disseme com admiração.
Era verdade; com o medo esquecerao. Aproximouse, pegoume no braço e apertoumo com força. Contra vontade minha, comecei a tremer dos pés à cabeça.
Quem é este homem? perguntoume.
Um dos meus amigos.
E o Gino? Tornaste a vêlo?
Nunca mais.
Olhou à sua volta, desconfiado.
Não sei porquê disseme , há uns dias que tenho a impressão de ser seguido. Só há duas pessoas que me podem ter vendido: Gino e tu.
Porquê o Gino? murmurei.
O meu coração batia desordenado.
Ele sabia que eu devia levar o objecto àquele ourives... disselhe até mesmo o nome... Ele não sabe ao certo que fui eu quem o matou, mas pode muito bem ter deduzido.
Gino não tem interesse em te denunciar; ficava também ele envolvido no caso.
É o que eu penso disseme por entre dentes.
Quanto a mim continuei com a voz mais tranquila podes ter a certeza de que nada disse... não sou parva... prendiamme a mim também.
Espero por ti que não o faças! disseme num tom ameaçador. Depois acrescentou: Tornei a ver Gino... ele disseme, brincando, que sabia muitas coisas. Não me sinto tranquilo... É um crápula.
Naquela noite tratasteo muito mal; com certeza que te odeia agora disselhe.
E sentia, enquanto falava, uma vaga esperança de que Gino realmente o tivesse denunciado.
Aquele foi um bom soco! declarou com vaidade. - Doeume a mão durante dois dias!
Gino não te denunciará disse eu como conclusão. - Não lhe interessa, e além disso tem muito medo de ti.
Falávamos em surdina, caminhando ao lado um do outro sem nos olharmos. Era ao entardecer; uma bruma azulada envolvia as muralhas enegrecidas, as ramadas brancas dos plátanos, as casas amareladas, a longa perspectiva das avenidas. Quando chegamos à minha porta senti pela primeira vez a impressão de atraiçoar Jaime. Desejaria darme a ilusão de que Sonzogne era um homem qualquer entre muitos; mas sabia não ser verdade. Entrei no vestíbulo, empurrei a porta e no escuro parei, volteime para Sonzogne e declareilhe :
Olha... é melhor que te vás embora.
Porquê?
Apesar do medo que me inspirava, desejava dizerlhe a verdade toda:
Porque amo outro e não o quero enganar.
Quem? O que estava contigo no “eléctrico”?
Não... outro... tu não o conheces. Mas agora fazme o favor de me deixares e de te ires embora.
E se eu não quiser?
Tu não compreendes que há coisas que não se podem obter pela força? comecei a dizer. Mas não pude acabar. Não sei como, sem que a escuridão me deixasse vêlo e ao seu gesto, recebi na cara uma tremenda bofetada.
Anda! disse-me.
De cabeça baixa dirigime rapidamente para a escada. Seguravame outra vez pelo braço; parecia que me sustinha e me fazia voar. A cara ardiame, mas sobretudo eu tinha um horrível pressentimento. Esta bofetada cortava o ritmo feliz deste último período da minha vida; as dificuldades e os terrores recomeçavam.
Tomoume um tal desespero que decidi escaparme de qualquer maneira. Sairia de casa nesse mesmo dia; iria refugiarme em qualquer parte. Em casa de Gisela ou num quarto alugado.
Pensava nisto com tanta intensidade que nem reparei que entrava no meu quarto. Encontreime quase diria acordei sentada na beira da cama, enquanto Sonzogne, com os seus gestos meticulosos, tirava as peças de roupa uma por uma e as punha em cima da cadeira com método. A cólera passaralhe.
Quis vir mais cedo disseme tranquilamente , mas não pude. No entanto pensei sempre em ti.
E que pensaste? pergunteilhe maquinalmente.
Que somos feitos um para o outro disseme num tom estranho, parando de se despir e ficando com o colete na mão. Vim mesmo para te fazer uma proposta.
Qual?
Tenho dinheiro. Vamos os dois para Milão, onde tenho muitos amigos. Vou lá montar uma garagem. E em Milão podemonos casar.
Fui tomada de uma tal fraqueza que fechei os olhos. Era a primeira vez, depois de Gino, que me propunham casamento; e quem me fazia esta proposta era Sonzogne! Desejara tanto uma vida normal, com um marido e filhos, e eis que ma ofereciam. Mas era uma normalidade reduzida a uma espécie de concha no interior da qual tudo era anormal e aterrador. Disselhe molemente:
Porquê? Mal nos conhecemos; só me viste uma vez...
Respondeume sentandose ao meu lado e segurandome pela cintura:
Ninguém me conhece melhor do que tu... sabes tudo a meu respeito.
Atravessoume o espírito a ideia de que ele estivesse comovido e quisesse mostrar que me amava e que eu devia amálo. Mas em nada me baseava, porque nada na sua atitude me revelava semelhante sentimento.
Pouco sei de ti disselhe em voz baixa. Só sei que mataste aquele homem!
E depois continuou como se falasse consigo estou cansado de estar só... Quando se vive só acabase sempre por fazer alguma asneira.
Disselhe passado um momento:
Assim de repente não te posso responder nem sim nem não... Dáme algum tempo para reflectir.
Com grande admiração minha, respondeume, de dentes cerrados:
Reflecte, reflecte, não há pressa.
Depois continuou a despirse.
O que me ferira fora sobretudo a frase: “Somos feitos um para o outro.” Agora perguntava a mim mesma se ele não teria razão apesar de tudo. A quem poderia eu aspirar de futuro senão a um homem como ele? Por outro lado, não era verdade que um laço obscuro que eu reconhecia e temia me ligava a ele? Surpreendime repetindo em voz baixa: “Acabou! Acabou!” e sacudindo desesperadamente a cabeça disselhe em voz clara:
Para Milão? Mas tu não tens medo que te procurem?
Disse isso por dizer... Na realidade eles nem sabem que eu existo!
De repente a lassidão que me tomara os membros desapareceu: sentime muito forte e muito decidida. Levanteime, tirei o casaco e fui pendurálo no bengaleiro. Como habitualmente, fechei a porta à chave, depois fui à janela e puxei as cortinas. De pé em frente do espelho, comecei a desabotoar o vestido. Mas interrompime e volteime para Sonzogne. Estava sentado na beira da cama a tirar os sapatos.
Espera um momento... disselhe afectando um tom despreocupado estou à espera de uma pessoa, é melhor eu prevenir minha mãe para que a mande embora.
Não respondeu nem eu lhe dei tempo. Saí do quarto fechando a porta atrás de mim. Fui à sala grande.
Minha mãe estava a coser à máquina ao pé da janela; havia já algum tempo que, para se distrair, tinha recomeçado a trabalhar um pouco. Disselhe depressa em voz baixa: Telefoname amanhã de manhã para casa da Gisela ou da Zelinda.
Zelinda era dona de uma hospedaria para onde eu levara algumas vezes os meus amantes: minha mãe conheciaa.
Mas porquê?
Voume embora para lá disselhe. Quando aquele homem perguntar onde estou, dizlhe que nada sabes.
Minha mãe olhavame de boca aberta, enquanto eu tirava do bengaleiro o casaco curto de peles, meio pelado, que lhe pertencia depois de ter sido meu.
Sobretudo acrescentei não lhe digas onde estou, era capaz de me matar!
Mas...
O dinheiro está no sítio do costume... suplicote que nada digas e telefoname amanhã de manhã.
Saí à pressa, na ponta dos pés, e desci a escada. Uma vez na rua comecei a correr. Sabia que Jaime a esta hora estava em casa e queria chegar antes que ele saísse com os amigos, como fazia sempre depois do jantar. Tomei um táxi e dei a direcção de Jaime. Compreendi bruscamente que não fugia tanto de Sonzogne como de mim própria, obscuramente atraída por esta violência e por este furor. Lembreime do grito dilacerante, misto de horror e de volúpia, que soltara na primeira vez em que Sonzogne me tinha possuído; disse a mim mesma que nesse dia ele me havia subjugado como nunca nenhum homem o fizera até então, nem mesmo Jaime. “Sim, não pude deixar de concluir, nós somos verdadeiramente feitos um para o outro, mas como o corpo é feito para o precipício que faz virar a cabeça, turvar a vista e finalmente o atrai para um fundo vertiginoso.” Subi a escada a quatro e quatro, cheguei ofegante e perguntei por Jaime à velha criada que me veio abrir a porta.
Olhoume com ar assustado, não disse palavra e foise embora, deixandome só.
Pensando que teria ido prevenir Jaime, entrei no vestíbulo e fechei a porta. Ouvi então um cochichar atrás do reposteiro que separava o vestíbulo do corredor. Depois o reposteiro levantouse e vi aparecer a viúva Medolaghi. Esqueceraa depois da primeira e única vez em que a vira. A sua maciça silhueta negra, a face branca, os seus olhos circundados de negro surgindo bruscamente diante de mim inspiraramme nesse momento, não sei porquê, um arrepio, como se tivesse visto uma aparição aterradora. Disseme rapidamente, falandome de longe:
Procura o Sr. Diodatti?
Sim.
Prenderamno.
Não percebi bem. Não sei porquê liguei esta prisão ao crime de Sonzogne. Balbuciei:
Preso? Mas ele nada tem com isso...
Não sei nada disseme. Só sei que fizeram uma busca e prenderamno.
Pela sua cara zangada compreendi que não me diria nem mais uma palavra e no entanto ainda perguntei:
Mas porquê?
Já lhe disse, menina, que nada sei.
Mas para onde o levaram?
Não sei.
Mas digame ao menos se deixou algum recado?
Desta vez nem me respondeu; voltouse e chamou com um ar ofensivo e majestoso:
Diomira!
A criada de idade reapareceu com a sua cara assustada. A patroa indicoulhe a porta e disse:
Acompanhe essa menina. O reposteiro tornou a cair.
Só depois de me encontrar outra vez na rua é que compreendi que a prisão de Jaime e o crime de Sonzogne eram dois factos distintos e independentes um do outro. O único traço a ligálos era o meu pavor. Discernia sobre o conjunto destes acontecimentos imprevistos e desgraçados as amplitudes de um destino que me cumulava de um só golpe de todos os dons funestos, como a Primavera faz amadurecer ao mesmo tempo os frutos mais diversos. É bem verdade que, segundo o provérbio, uma desgraça nunca vem só. Sentiao mais do que o pensava enquanto caminhava, de rua em rua, de cabeça baixa e curvando as costas sob um peso imaginário.
Naturalmente a primeira pessoa à qual me lembrei de recorrer foi a Astárito. Sabia de cór o número do telefone da repartição; entrei no primeiro café. O telefone estava livre mas ninguém me respondeu. Liguei várias vezes e acabei por me convencer de que Astárito não estava lá. Devia ter ido jantar: voltaria mais tarde. Estas coisas são assim; mas, como acontece sempre, esperava que justamente desta vez, por excepção, o encontraria na repartição.
Olhei para o relógio. Eram oito horas da noite; Astárito não voltaria antes das dez. Fiquei de pé, à um canto da rua; à minha frente estava uma ponte, percorrida por transeuntes que surgiam em silêncio, escuros e rápidos, como folhas mortas agitadas por uma incessante tempestade. Mas para lá da ponte as casas alinhadas davam uma impressão de tranqüilidade, com as janelas todas iluminadas e as pessoas que iam e vinham por entre as mesas e os outros móveis. Lembreime de que não estava muito longe do Comissariado Central, para onde supunha terem levado Jaime. E, se bem que compreendesse ser essa uma tentativa desesperada, decidi ir lá directamente para pedir informações. Sabia de antemão que não mas dariam; mas pouco importava, queria sobretudo fazer alguma coisa por Jaime. Segui por uma rua transversal, caminhei rapidamente rente às paredes, cheguei ao Comissariado, subi alguns degraus e entrei. Diante da porta do porteiro, um polícia que lia o jornal, refastelado numa cadeira, com os pés noutra e o boné em cima da mesa, perguntouse aonde é que eu ia. “A Secção dos Estrangeiros”, disselhe. Era uma das numerosas secções do Comissariado; ouvira falar nela uma vez a Astárito, já não sei a que propósito.
Não sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente empregados e polícias com as mãos cheias de papéis e colavame à parede o mais possível, baixando a cabeça. Em todos os andares encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha, depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam não pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela primeira vez, era fétido, escuro e bem amargo. No terceiro andar, desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguém olhava para mim, ninguém me ligava importância. A direita e à esquerda do corredor alinhavamse portas quase todas abertas; à entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo espectáculo: rimas e rimas de papéis, um agente sentado a uma mesa, com a caneta na mão. O corredor não era direito: era oblíquo e daí a pouco já não sabia onde estava. De vez em quando enfiavame por uma passagem mais baixa e então era preciso subir ou descer três ou quatro degraus; cruzava outros corredores parecidos, com outros agentes, portas abertas e mal iluminadas. A certa altura pareceume andar num corredor que já tinha percorrido. Como passasse um guarda pergunteilhe ao acaso: “Onde é o vicecomissário?” Indicoume com um gesto uma passagem entre duas portas. Desci quatro degraus e enfiei por um corredorzinho direito. Nesse momento, ao fundo, onde esta espécie de lombriga fazia um ângulo recto, abriuse uma porta e apareceram dois homens; estavam de costas e caminhavam na direcção do canto. Um deles segurava o outro pelo pulso e por um instante tive a impressão de que era Jaime.
Jaime! gritei, correndo para os alcançar. Mas alguém me segurou pelo braço. Era um policia muito novo, de cara afilada, moreno, com o quépi enfiado numa massa de cabelos pretos encaracolados.
Que quer? Quem procura? perguntoume. Ao meu grito, os outros dois tinhamse voltado para mim e verifiquei ter cometido erro.
Expliquei com voz ofegante:
Prenderam um dos meus amigos e queria saber se o tinham trazido para aqui.
Como se chama ele? perguntou o agente, sem me largar, com um ar peremptório.
Jaime Diodatti.
Que faz ele?
É estudante.
Quando o prenderam?
Compreendi que me fazia estas perguntas todas para se dar importância e que nada sabia. Disselhe com irritação:
Em vez de me fazer tantas perguntas era melhor que me dissesse onde é que ele está.
Estávamos sós no corredor. Olhou à volta, depois apertoume e disseme num tom claramente cúmplice:
Pensaremos no estudante mais tarde. Por agora vais darme um beijo.
- Não! Não me faça perder tempo! Deixeme ir embora! - gritei cheia de raiva.
Deilhe um encontrão, desatei a correr, penetrei noutro corredor, vi uma porta aberta e para lá dessa porta uma sala maior do que as outras com uma secretária ao fundo, atrás da qual estava sentado um homem de meia idade.
Entrei e pergunteilhe de um fôlego:
Queria saber para onde levaram o estudante Diodatti... o que prenderam esta tarde.
O homem levantou os olhos da secretária, onde estava um jornal desdobrado, e perguntoume, estupefacto:
Queria saber...
Sim... para onde levaram o estudante Diodatti, preso esta tarde.
Mas quem é a menina? Como se atreveu a entrar aqui?
Isso agora não interessa... digame só onde é que ele está.
Mas quem é a menina? repetiu berrando e dando socos na mesa. Como se atreveu? Sabe onde está?
Compreendi que não conseguiria saber coisa alguma e que em compensação corria o risco de ficar presa também. E então não poderia já falar a Astárito e Jaime ficaria na prisão.
Não tem importância. Enganeime. Desculpe disse retirandome.
As minhas desculpas ainda o enfureceram mais que as minhas perguntas anteriores. Mas agora eu já estava ao pé da porta.
Entrase e saise fazendo a saudação fascista! gritou mostrandome um cartaz suspenso sobre a sua cabeça.
Disse que sim com a cabeça, para confirmar que ele tinha razão, que era verdade, que se devia entrar e sair fazendo a saudação fascista e saí da sala recuando. Percorri o corredor todo, acabei por encontrar a escada depois de vaguear um pouco ao acaso e desci à pressa. Tornei a passar em frente do porteiro e saí para o ar livre.
O único resultado desta ida à polícia fora o terme feito passar um pouco de tempo. Calculei que se fosse devagarinho até ao Ministério de Astárito demoraria talvez três quartos de hora, até mesmo uma hora. Uma vez lá próximo sentarmeia num café e telefonaria a Astárito daí a vinte minutos.
Enquanto andava veiome à ideia a possibilidade de esta prisão de Jaime ser uma vingança de Astárito. Astárito tinha uma posição importante, justamente na polícia política; com certeza que havia muito tempo que eles vigiavam Jaime e que sabiam da nossa ligação; nada havia de improvável que o seu cadastro tivesse passado pelas mãos de Astárito e que fosse ele, levado pelos ciúmes, que tivesse dado a ordem para prenderem o estudante. A esta ideia senti uma espécie de furor contra Astárito. Sabia que ele continuava sempre apaixonado por mim; sentiame capaz, se as minhas suspeitas tivessem fundamento, de o fazer expiar amargamente a sua má acção, não sem pensar também com pavor que as coisas talvez não se tivessem passado dessa maneira e que com as minhas frágeis armas me preparava para combater um adversário obscuro e sem rosto, mais parecido com uma máquina bem afinada do que com um homem sensível e acessível a paixões.
Quando cheguei em frente do Ministério renunciei à ideia de me sentar num café e fui directamente telefonar.
Ao primeiro toque, desta vez, alguém levantou o auscultador e a voz de Astárito respondeume.
Sou eu... a Adriana disse eu impetuosamente. - Quero verte. Já. Imediatamente... é uma coisa urgente... Estou aqui ao lado do Ministério.
Pareceume que reflectia um momento e depois disseme que podia ir. Era a segunda vez que subia a escada do Ministério de Astárito, mas com uma disposição de espírito bem diferente. Da primeira vez tinha medo da uma chantagem de Astárito, temia que ele desmanchasse o meu casamento com Gino, receava a vaga ameaça que todos os pobres sentem suspensa sobre as suas cabeças nos meios policiais. Chegara com o coração alanceado e a alma trêmula. Agora vinha de espírito agressivo decidida a servirme de qualquer meio para socorrer Jaime e a fazer por minha vez chantagem com Astárito. Mas o meu amor por Jaime não chegava para explicar a minha agressividade. Neste estado de espírito entrava também o desprezo por Astárito, pelo seu Ministério e, na medida em que Jaime se ocupava da política, mesmo por ele. Nada percebia de política, mas talvez por causa da minha ignorância, ao lado do meu amor a Jaime, a política pareciame coisa ridícula e sem importância. Lembreime de como Astárito gaguejava quando me via ou simplesmente me ouvia e pensava com satisfação que ele não gaguejava com certeza daquela maneira quando falava com os seus chefes - fosse ele Mussolini. Enquanto pensava nestas coisas caminhava com pressa pelos vastos corredores do Ministério e apercebiame de que olhava com desprezo os empregados que encontrava. Apeteciame arrancarlhes os processos verdes ou encarnados que levavam debaixo dos braços e atirálos pelos ares, espalhando todas aquelas maldosas folhas de interdições e de iniquidades. Disse em tom imperativo ao contínuo que veio ao meu encontro na antecâmara:
Preciso de falar com o Sr. Astárito... depressa... tenho audiência marcada e não posso esperar...
Olhoume com admiração, mas não ousou protestar e foime anunciar.
Logo que Astárito me viu veio ao meu encontro, beijoume a mão e conduziume para um divã no fundo da sala. Já da primeira vez ele me tinha acolhido da mesma maneira e eu pensava que se portava assim com todas as mulheres que iam ao seu gabinete. Reprimi o mais possível a fúria que me dilatava o peito e disselhe:
Toma cuidado, que se tu fizeste com que prendessem Jaime precisas de libertálo o mais depressa possível... senão podes ter a certeza de que nunca mais me verás!
Vi a sua cara tomar uma expressão de profunda admiração e pena. Compreendi que ele de nada sabia.
Um momento! Que diabo! Qual Jaime? perguntoume, balbuciante.
Julgava que sabias disselhe.
E o mais rapidamente possível conteilhe a história do meu amor por Jaime e a maneira como tinha sido preso, de tarde. Vio mudar de cor quando lhe disse que amava Jaime, mas preferi dizer a verdade porque não só receava prejudicar o meu amante mentindo, mas porque experimentava um desejo violento de gritar o meu amor a toda a gente. Agora, que descobrira que Astárito nada tinha a ver com a prisão, a cólera que me impulsionara até ali caíra; sentiame de novo fraca e desarmada. Por isso, depois de ter começado a conversa com voz firme e animada, acabaraa num tom lamentoso. Os meus olhos encheramse de lágrimas quando lhe disse com voz angustiada:
E depois eu não sei o que lhe farão... Dizse que lhes batem!
Astárito interrompeume:
Está tranquila. Ainda se fosse um operário!... Mas um estudante...
Mas eu não quero... não quero que esteja preso! gritei com lágrimas na voz.
Em seguida calámonos. Tentava dominar a comoção e Astárito olhava. Pela primeira vez não me parecia disposto a aceder ao meu pedido. O desapontamento de me saber apaixonada por outro homem devia tornarlhe repugnante a ideia de me ajudar. Acrescentei, pousando a minha mão na sua:
Se conseguires que ele saia prometote que farei tudo o que tu quiseres.
Fixoume com ar irresoluto. Se bem que não tivesse vontade alguma de o fazer, inclineime para ele e oferecilhe os lábios ao mesmo tempo que dizia:
Então, fazesme este favor?
Olhoume hesitando entre o desejo de me beijar e a consciência do significado humilhante de um beijo semelhante, oferecido por pura tentativa de corrupção, com o rosto cheio de lágrimas. Depois afastoume, levantouse, disse que esperasse e desapareceu.
Agora já tinha a certeza de que Astárito tinha ido tratar de libertar Jaime. Na minha inexperiência dessas coisas imaginavao a telefonar, num tom mal humorado, a algum comissário servil, ordenandolhe que libertasse, imediatamente o estudante Jaime Diodatti. Contava os minutos com impaciência, e quando Astárito reapareceu levanteime pensando em agradecerlhe e irme logo embora ao encontro de Jaime.
Mas Astárito vinha com uma expressão estranha, desagradável, feita de desilusão, de raiva e de malícia.
Porque dizes tu que o prenderam? articulou secamente. Disparou sobre os polícias e safouse... um dos agentes está, moribundo, no hospital. Agora se o apanham, e apanhamno com certeza, já nada posso fazer.
O espanto cortoume a respiração. Não tinha eu tirado as balas do revólver? É verdade que podia ter posto outras sem que eu soubesse. Em seguida senti uma grande alegria, mas era também a alegria de saber que ele matara um polícia, uma acção de que eu o julgava incapaz e que modificava totalmente a ideia que até então eu fazia dele. Admireime que a minha alma, habitualmente inimiga de toda a violência, aplaudia o acto desesperado de Jaime: no fundo era a mesma irresistível satisfação que experimentara outrora ao reconstruir na imaginação o crime de Sonzogne; mas desta vez acompanhada de uma espécie de satisfação moral. Em seguida pensava que o encontraria depressa e que fugiríamos juntos para nos escondermos; se fosse preciso iríamos para o estrangeiro, onde eu sabia que os refugiados políticos eram bem acolhidos: e o meu coração dilatavase de esperança. Pensava ainda que uma nova vida iria realmente começar para mim; dizia para comigo que esta renovação da minha vida a devia a Jaime, à sua coragem, e sentia por ele gratidão e amor. Entretanto Astárito passeava de um lado para o outro no gabinete, com ar furioso e parando de vez em quando para mexer em qualquer coisa em cima da secretária. Eu disse tranquilamente:
Isto significa que, depois de preso, ele teve coragem: disparou e pôsse a salvo.
Astárito parou e olhoume com uma expressão má que lhe crispou o rosto.
Estás contente, não estás? perguntoume.
É bem feito que tenha morto o polícia disse eu com sinceridade. O agente queria metêlo na prisão... Tu terias feito a mesma coisa!
Respondeume com voz desagradável:
Mas eu não me ocupo de política e esse guarda cumpria o seu dever... Esse homem tinha mulher e filhos.
Se ele se ocupa de política deve ter as suas razões disselhe. E o agente já devia supor que, antes de se deixar engaiolar, um homem tenta seja o que for... Pior para ele!
Sentiame tranquila porque me parecia ver Jaime a caminhar livremente pelas ruas da cidade e alegravame já ao pensar no momento em que ele me chamasse às escondidas e eu o tornasse a ver. A minha calma parecia desesperar Astárito:
Mas havemos de o apanhar! gritou bruscamente. Então imaginas que não o apanhamos?
Eu nada imagino... Estou contente por ele se ter escapado... Só isso.
Havemos de o apanhar e podes ter a certeza de que isto não ficará assim.
Passado um momento disselhe:
Sabes porque estás tão furioso?
Não estou furioso!
Porque esperavas que o tivessem apanhado e querias fazer valer a tua generosidade comigo e com ele... e em vez disso ele escapoute. É isto que te enfurece.
Vio levantar os ombros com fúria. Depois o telefone tocou e Astárito atendeu com ar aliviado. Era um bom pretexto para interromper uma conversa embaraçosa. Logo às primeiras palavras vi o seu rosto desanuviarse e tomar uma expressão mais serena. E isso, mesmo sem saber porquê, pareceume de mau agouro. O telefonema demorou bastante tempo, mas Astárito não respondeu senão “Sim” e “Não”, se bem que eu não percebesse a que perguntas.
Lamentoo por ti disse pousando o auscultador , mas a primeira comunicação referente à prisão desse estudante era errada. Para maior segurança a polícia tinha mandado agentes não só à casa dele mas também à tua... assim estavam mais certos de o apanharem. Com efeito prenderamno em casa da viúva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrário, os guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronúncia do Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papéis, como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram que era ele. Tratavase evidentemente de alguém que tinha contas a ajustar com a polícia.
Sentime desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da minha saída, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na prisão e Sonzogne procuravame para se vingar! Fiquei tão aturdida com este golpe que só pude murmurar: “Pobre de mim”, dando uns passos para a porta.
Devia ter ficado muito pálida porque Astárito perdeu o ar triunfante e satisfeito e aproximouse de mim dizendome com ansiedade:
Sentate um instante. Conversemos! Nada há irreparável!
Abanei a cabeça e agarrei o puxador da porta. Astárito deteveme e balbuciou:
Ouve, prometote que farei o impossível; eu mesmo o interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o libertarem o mais depressa possível; está bem assim?
Sim, está bem respondi com voz apagada. E acrescentei com esforço: Por tudo o que fizeres já sabes que te ficarei reconhecida.
Agora sabia que Astárito faria, como tinha dito, tudo o que lhe fosse possível para libertar Jaime e eu não desejava outra coisa que irme embora, sair o mais depressa possível daquele horrível Ministério. Mas Astárito perguntoume com um escrúpulo policial:
A propósito... se tens alguma razão para recear o homem que encontraram na tua casa dizme o seu nome e isso facilitará a prisão.
Não sei como se chama respondi. E comecei a andar.
Seja como for insistiu seria melhor que te apresentasses espontaneamente no comissariado para dizeres o que sabes. Eles vão pedirte para ficares à sua disposição e depois deixamte ir embora. Mas se não fores lá... Pior para ti!
Respondilhe que o faria e disselhe adeus. Ele não fechou logo a porta e ficou a verme afastar ao longo do corredor.
Uma vez na rua comecei a andar depressa, como se fugisse, até uma praça que havia próxima. Quando cheguei ao meio da praça fiquei sem saber para onde ir e pensei onde me iria refugiar. De momento tinha pensado em Gisela; mas a casa dela era longe e sentiame tão fraca que as pernas se me vergavam. Por outro lado não estava certa de que Gisela me recebesse de boa vontade. Restava Zelinda, a dona da hospedaria de quem falara a minha mãe quando saí de casa. Zelinda era uma amiga; pára mais a sua casa era ali perto: decidime por ela.
Zelinda morava num prédio amarelo igual a outros que dominavam a Praça da Gare. Esta casa de Zelinda distinguiase das outras pela escada mergulhada numa quase total escuridão, mesmo às primeiras horas da manhã. Não havia elevadores nem janelas: subiase às escuras, acotovelando de vez em quando as pessoas que desciam e se agarravam ao mesmo corrimão. Um cheiro a cozinha empestava eternamente o ar; mas era o de uma cozinha apagada há muitos anos e onde os aromas tinham tido tempo para se decomporem neste ar gelado e tenebroso. Subia, com as pernas moles e o coração partido, esta escada que tantas vezes trepara, abraçada a algum amante impaciente. Zelinda abriume a porta e eu disselhe:
Preciso de um quarto para esta noite.
Era uma mulher corpulenta, que a gordura envelhecera precocemente, dandolhe aparência de mais idade. Trôpega, com manchas vermelhas nas faces doentias, olhos azuis lacrimejantes e um cabelo ralo e alourado, sempre despenteado e esfarripado, subsistia nela, no entanto, não sei que graciosidade afectuosa, que lhe iluminava o rosto como um reflexo de luz em água estagnada ao pôr do Sol.
Tenho um quarto disseme. Estás só?
Estou.
Entrei. Ela fechou a porta e acompanhoume tropeçando, baixa e larga, com um velho penteador, o carrapito meio despenteado caído pelas costas e cheio de ganchos mal espetados. O apartamento era tão gelado como a escada. Mas o cheiro a cozinha era autêntico: era o de guisado saboroso. Zelinda, que alugava quartos à hora, gostava muito de mim, não sei porquê. Frequentemente depois das minhas habituais visitas ela retinhame para conversar e davame bolos e licor. Era uma rapariga envelhecida e ninguém a deve ter amado nunca porque desde muito nova a gordura a deformara. Adivinhavase a sua virgindade pela timidez, a curiosidade e a maneira desajeitada como me perguntava pelos meus amores. Creio que ela, embora sem malícia nem inveja, lamentava secretamente nunca ter feito o que se fazia nos seus quartos e que adoptava o ofício de alugar quartos para pouca permanência menos pela sofreguidão do lucro do que para assim satisfazer um desejo, talvez inconsciente, de não ser inteiramente excluída do paraíso, perdido para ela, das relações amorosas.
Ao fundo do corredor havia duas portas que eu conhecia bem. Zelinda abriu a da esquerda. Acendeu o lustre de três braços terminado por tulipas de vidro branco e foi fechar a janela. O quarto era grande e asseado. Mas a limpeza acusava impiedosamente o uso e a pobreza dos móveis, os rasgões do tapete, os remendos da colcha de algodão, os “gatos” do espelho, as falhas do lavatório. Ela olhoume e perguntoume:
Não te sentes bem?
Sintome bastante bem.
Mas porque não dormes na tua casa?
Não me apetece.
Vamos a ver se adivinho disseme ela com ar amigo e malicioso: Tens um desgosto. Esperavas alguém que não veio.
É possível.
Vamos a ver ainda se tenho razão ou não. Este alguém é o oficial moreno com quem cá vieste a última vez.
Não era a primeira pergunta deste gênero que Zelinda me fazia. Com a garganta apertada pela angústia, respondilhe ao acaso:
Tens razão... E então?
Então nada, mas, como vês, compreendi depressa... Assim que te vi, adivinhei logo o que te tinha acontecido. Não te rales. Se não veio deve ter as suas razões. Os militares, já sabes, nem sempre estão livres.
Eu não respondi. Ela olhoume durante um momento, depois, com ar hesitante e afectuoso, disseme:
Queres fazerme companhia e jantar comigo? Tenho um bom jantar.
Não, obrigada respondi. Já jantei.
Olhoume e fezme uma festa na cara. Depois, com a expressão prometedora e misteriosa de certas tias velhas falando com um sobrinho miúdo, disseme:
Vou darte uma coisa que com certeza não recusarás. Tirou da algibeira um molho de chaves, foi à cômoda e abriu a gaveta, voltandome as costas.
Eu entreabrira o casaco, e com a mão na anca, apoiandome à mesa, olhava Zelinda, encafuada na sua gaveta. Lembreime de que Gisela vinha frequentemente a este quarto com os seus amantes e também de que Zelinda não gostava dela. Gostava de mim por ser eu; mas não gostava de toda a gente. Sentime reconfortada. “Apesar de tudo”, pensava, “não há só neste mundo polícias e ministérios, prisões e outras coisas parecidas inanimadas e cruéis.” Entretanto Zelinda fechara a gaveta com cuidado e vinha para junto de mim dizendo:
Toma. Isto não recusas com certeza.
Pousou qualquer coisa em cima da mesa. Olhei e vi cinco cigarros cigarros bons com filtro , um punhado de bombons embrulhados em papel de cor e quatro bolinhos de amêndoa em forma de frutas.
Está bem? perguntoume com uma palmadinha na cara.
Embaraçada, balbuciei:
Está bem, obrigada!
De nada, de nada. E se precisares de alguma coisa não tens mais do que chamar, sem cerimônia.
Uma vez só, sentime gelada. Não tinha sono e não me queria ir deitar. Por outro lado, neste quarto glacial, onde o frio do Inverno parecia conservarse durante anos, como nas igrejas e nas caves, não havia outra coisa a fazer. Das outras vezes estes problemas nem se punham: o homem que me acompanhava e eu não desejávamos outra coisa que enfiarmonos nos lençóis e aquecermonos mutuamente; se bem que não experimentasse qualquer sentimento por estes amantes de acaso. O acto do amor em si absorviame e mergulhavame na sua magia. Agora pareciame incrível ter podido amar e ser amada no meio de um mobiliário tão lúgubre, de aspecto tão sórdido. Por certo que o ardor dos sentimentos nos enganara, aos meus companheiros e a mim, tornando estes objectos, tão paradoxalmente estranhos, agradáveis, familiares. Veiome à ideia que se não pudesse tornar a ver Jaime a minha vida seria como este quarto. Ao olhála de uma forma objectiva, sem ilusões, a minha vida nada tinha de belo nem de íntimo; mais até: como o quarto de Zelinda, ela compunhase de coisas estragadas, desagradáveis e frias. Arrepieime e comecei lentamente a despirme.
Os lençóis estavam gelados e pareciam húmidos. A tal ponto que quando me deitei tive a impressão de deixar o meu corpo marcado em argila molhada. Fiquei muito tempo absorta a reflectir, enquanto que, lentamente, a cama aquecia. O caso de Sonzogne veio desviar os meus pensamentos e tentei analisar os motivos e as consequências desta tenebrosa história. Agora Sonzogne estava persuadido de que eu o denunciara; não havia dúvida de que as aparências estavam todas contra mim. Mas seriam só as aparências? Lembreime da sua frase: “Tenho a impressão de que me seguem” e perguntei a mim própria se no fim de contas o padre não teria falado. Não me parecia; mas até agora não podia provar o contrário.
Continuando a pensar em Sonzogne pusme a imaginar o que se teria passado na minha casa depois da minha saída: Sonzogne, que esperava, impacientavase, vestiase aquando da entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de Sonzogne, esta reconstituição davame um prazer insaciável e obscuro. A minha imaginação apresentoume os vários aspectos da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem dúvida, na luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o polícia ferido cair, suspirei de alívio vendo Sonzogne fugir; seguiao com ansiedade ao descer as escadas e não me sentia tranquila enquanto o não via desaparecer na distância escura da avenida. Acabei por me cansar desta espécie de filme que imaginei e apaguei a luz. Já das outras vezes reparara que a cama estava encostada a uma porta de comunicação que dava para um quarto contíguo. Logo que apaguei a luz vi filtrarse um raio luminoso por entre os batentes mal fechados. Apoieime nos cotovelos sobre a almofada, passei a cabeça por entre as grades de ferro da cama e espreitei pela fresta. Não o fazia por curiosidade, pois já sabia de antemão o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para fugir aos meus pensamentos e à solidão, que procurava, mesmo só espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante um bom bocado ninguém vi, em frente da fresta da porta havia uma mesa redonda: a luz do lustre caía sobre esta mesa atrás da qual entrevi o reflexo de um espelho de guardafato. No entanto ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tão bem conhecia, as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da mulher era tranquila e reticente; a do homem rápida e trêmula. As vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem já deitados. À força de olhar sem ver nada, pôsseme uma dor na nuca e estava a ponto de abandonar aquela posição quando a mulher apareceu e se foi pôr do outro lado da mesa em frente do espelho, que estava na sombra. Estava de pé, nua, de costas para mim, mas a mesa só me permitia vêla da cintura para cima. Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graça, de uma brancura anêmica, encimadas por uma cabeleira crespa. Pensei que ela não devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio caído e talvez até já tivesse sido mãe. Devia ser urna das esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das praças municipais, ao longo da estação, sem chapéu e frequentemente sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia mostrar as gengivas. Vieramme estas ideias todas sem que eu reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia reconfortada e tive a impressão de que gostava desta rapariga e compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olharse ao espelho do guardafato. Mas o homem disse com uma voz brutal:
Pode saberse o que estás aí a fazer?
Ela afastouse. Via um momento de perfil, as costas curvas, o peito chato, exactamente como eu a imaginara. Depois desapareceu e passado um momento a luz apagouse.
Senti extinguirse na minha alma o vago sentimento que a rapariga me suscitara e tornei a encontrarme só na grande cama ainda gelada, no quarto escuro e cheio de objectos vulgares e feios. Pensei naqueles dois, do outro lado da parede, que adormeceriam juntos daí a momentos e ela debaixo do seu companheiro, o queixo sobre o seu ombro, as pernas entrelaçadas nas suas, o braço à volta da cintura, a mão na virilha, os dedos anichados nas pregas do ventre, como raízes procurando a vida nas profundezas da terra. Sentime de repente como uma planta desenraizada e atirada para um pavimento de pedra lisa onde irá estiolar e morrer. Jaime faziame falta. Estendia a mão e parecia sentir um grande espaço gelado, inabitado, que me rodeava por todos os lados e no meio do qual me encolhia, só e abandonada. Sentia um violento e doloroso desejo de me agarrar a ele, mas ele não estava presente e tinha a impressão de estar viúva. Comecei a chorar estendendo os braços debaixo dos lençóis e imaginando abraçálo. Acabei por adormecer não sei como.
Tive sempre o sono pesado; por isso na manhã seguinte, quase me admirei ao acordar na cama de Zelinda com um raio de sol sobre a almofada. Ainda estava meia atordoada quando ouvi tocar o telefone no corredor. Zelinda atendeu. Chamoume e depois bateu à porta. Saltei da cama, e, em camisa e com os pés nus, corri para o corredor. Zelinda voltara para a cozinha. Peguei no auscultador e ouvi a voz da minha mãe a perguntar:
És tu, Adriana?
Sim.
Mas porque te foste embora? Aqui aconteceram coisas!... Podias ao menos terme avisado! Tive tanto medo!
Já sei tudo disse rapidamente. É inútil falar agora nisso.
Estava em cuidados contigo! prosseguiu. Está cá o Sr. Diodatti?
O Sr. Diodatti?
Sim. Veio esta manhã muito cedo e quer verte por força. Diz que te espera.
Dizlhe que vou já. Dentro de um minuto estou lá. Repus o auscultador, corri para o quarto e vestime à pressa. Não esperava que Jaime fosse posto em liberdade tão depressa e sentime menos feliz do que se estivesse esperando alguns dias ou uma semana pela sua libertação. Uma libertação tão rápida inspiravame desconfiança; não podia deixar de sentir uma vaga apreensão. Mas acalmei a minha inquietação pensando que, além de tudo, podia ser que Astárito tivesse conseguido soltálo imediatamente, como mo tinha prometido. De resto estava impaciente por vêlo e esta impaciência era feita de um sentimento de felicidade ligeiramente angustiante.
Acabei de me vestir, meti na mala os cigarros, os bombons e os bolinhos, para não magoar Zelinda, depois entrei na cozinha para me despedir da dona de casa.
Estás mais bem disposta agora? disseme. Passoute o mau humor?
Estava cansada... Até qualquer dia.
Julgas que não ouvi o que dizias ao telefone? O Sr. Diodatti... mas espera... toma uma chávena de café.
Já estava fora de casa e ela ainda falava atrás de mim. No táxi, toda curvada no banco com as mãos em cima da mala, estava preparada para descer logo que o carro parasse, porque temia encontrar um ajuntamento em frente da minha porta, depois dos tiros de Sonzogne. Perguntava a mim própria se seria prudente entrar em casa; Sonzogne podia vir de um momento para o outro para se vingar... Senti que isso não me importaria. Se Sonzogne se queria vingar, que o fizesse; eu queria ver Jaime e estava disposta a não me esconder mais por actos que não tinha praticado.
Ninguém encontrei em frente da casa, nem ninguém na escada. Impetuosamente irrompi pela sala e vi minha mãe, que cosia à máquina, sentada ao pé da janela. O sol entrava a jorros pelos vidros da janela; o gato da casa, sentado em cima da mesa, alisava as patas. Minha mãe parou logo de coser e disseme:
Até que enfim... Não podias ao menos terme dito que ias à polícia?
Que polícia? Mas que estás a dizer?
Eu teria ido contigo. Não teria passado por este susto!
Mas eu não saí para ir chamar a polícia! disselhe, irritada. Saí por sair. Os agentes procuravam outro. Quer dizer que este também tinha alguma coisa na consciência.
Não queres dizerme, nem mesmo a mim? respondeume com um olhar de reprovação maternal.
Mas o que?
Não serei eu quem irá contar. Mas tu não quererás que eu acredite que saíste só por sair. Aliás, os polícias vieram justamente alguns minutos depois de teres saído.
Mas não é verdade. Eu...
De resto, fizeste bem. Há por aí muitos espiões. Sabes o que um dos guardas me disse?
“Esta cara não me é estranha”.
Compreendi que não havia maneira de a persuadir de que eu não saíra para denunciar Sonzogne. Nada havia a fazer.
Está bem. Está bem interrompia bruscamente. E o ferido... como é que o levaram?
Qual ferido?
Disseramme que havia um moribundo.
Informaramte mal... Um dos polícias teve um raspão num braço com um tiro... fui eu quem lhe ligou a ferida... foise embora pelo seu pé. Mas se tu tivesses ouvido aqueles tiros! Foi na escada que eles dispararam. Toda a casa estremeceu de alto a baixo. Depois interrogaramme. Mas eu disse que nada sabia.
Onde está Diodatti?
No teu quarto.
Se eu tive esta pequena conversa com minha mãe fora porque agora experimentava uma espécie de repugnância em ir ter com Jaime, como se pressentisse uma má notícia. Saí da sala e dirigime para o quarto. Estava mergulhado numa escuridão completa; mas mesmo antes de eu ter posto a mão no interruptor, ouvi a voz de Jaime que me dizia:
Por favor, não acendas a luz.
Feriume o tom da sua voz, muito pouco alegre de verdade! Fechei a porta, aproximeime da cama às apalpadelas e senteime aos seus pés:
Senteste bem? perguntei.
Sintome muito bem.
Não estás cansado?
Não, não estou.
Previra um encontro diferente. Mas a verdade é que a alegria não se pode separar da luz. Nesta escuridão pareciame que os meus olhos não podiam brilhar, a minha voz não podia soltar exclamações alegres, as minhas mãos não se podiam estender para reconhecer as formas queridas. Esperei um momento; depois inclinandome sobre ele, murmureilhe:
Que queres fazer? Queres dormir?
Não.
Queres que me vá embora?
Não.
Que fique ao pé de ti?
Sim.
Queres que me deite em cima da cama?
Sim.
Queres que nos amemos? perguntei por perguntar.
Sim.
Esta resposta surpreendeume porque, como já disse, ele nunca estava realmente disposto a fazer amor. Sentime de repente perturbada e acrescentei com voz acariciadora:
Gostas de fazer amor comigo?
Sim.
Vais amarme sempre daqui em diante?
Sim.
E ficaremos juntos para sempre?
Sim.
Mas não queres mesmo que eu acenda a luz?
Não.
Não tem importância... Dispome às escuras.
Comecei a despirme com o embriagador sentimento da vitória completa. Pensava que a noite passada na prisão lhe revelara bruscamente que me amava e que precisava de mim. Enganavame, como se verá em seguida; se bem que pensasse que houvera uma ligação entre esta brusca condescendência e a prisão, não compreendia que esta mudança de atitude nada tinha que me pudesse envaidecer, ou simplesmente alegrar. O meu corpo, como um cavalo há muito tempo refreado, impeliame impetuosamente para ele; estava impaciente por lhe fazer o alegre, o ardente acolhimento que um momento antes a obscuridade e a sua atitude me não tinham permitido.
Mas quando me aproximei e me inclinei sobre a cama para me estender ao seu lado, sentio de repente tomarme os joelhos com os braços e morderme a anca esquerda até fazer sangue. Senti ao mesmo tempo uma dor aguda e uma sensação de desespero que se exprimia por esta dentada, como se não fôssemos dois amantes preparandose para se amarem, mas dois danados que o ódio, o furor e a tristeza impelissem, no fundo de um inferno de um novo gênero, a morderse um ao outro. A dentada foi tão grande que quase se podia dizer que ele me queria arrancar um bocado de carne. Enfim, se bem que eu quase gostasse que ele me mordesse e, a despeito do pouco amor que eu sentia nesta mordedura, me desse prazer, não pude suportar a dor e empurreio dizendo em voz baixa e magoada:
Mas não... que fazes? Magoasme.
Foi assim que acabou o meu ilusório sentimento de vitória. Em seguida, durante todo o tempo em que nos amamos, não dissemos uma palavra; mas a sua atitude não deixava por isso de me revelar obscuramente o verdadeiro porque do seu abandono, que ele me explicaria mais tarde pormenorizadamente. Compreendi que até então o que ele não aceitava não era tanto a minha pessoa como uma parte dele próprio levada a desejarme; agora, pelo contrário, por um motivo que só ele sabia, deixava esta parte dele próprio, refreada até então, saciarse livremente. Eu em nada contribuíra. Da mesma maneira que ele não me amava antes, também não me amava agora. Eu ou outra era a mesma coisa para ele. Agora como dantes eu não era mais do que um meio do qual ele fazia uso para se punir ou para se recompensar. Todas estas coisas, enquanto estivemos deitados no escuro, não as pensara; sentiaas na, minha carne e no meu sangue, da mesma maneira que algum tempo antes sentira que Sonzogne era um monstro, sem saber ainda nada do seu crime. Mas amava Jaime, e o meu amor era mais forte do que este sentimento. Admiroume a violência e insaciabilidade do seu desejo, anteriormente tão avaro. Sempre pensara que ele se moderava um pouco por razões de saúde, porque era de compleição fraca. Por isso, depois de me ter possuído duas vezes, ao vêlo recomeçar pela terceira vez, não pude deixar de lhe sussurrar ao ouvido:
Por mim, podes... mas vê lá não te faça mal.
Tive a impressão de que se riu e ouvi a sua voz murmurarme:
De futuro nada me pode fazer mal.
Este de “futuro” deume uma impressão fúnebre, se bem que até mesmo o prazer que eu encontrava nestes beijos foi quase suprimido e eu esperava com impaciência o momento em que lhe pudesse falar e saber enfim o que lhe acontecera. Depois do amor pareceu dormitar: mas talvez não dormisse. Esperei um tempo razoável e, fazendo um esforço tal que o coração quase me saltava do peito, pergunteilhe em voz alta:
Agora vais dizerme o que te aconteceu.
Nada me aconteceu.
No entanto deve ter sucedido qualquer coisa.
Calouse um momento, depois disseme como se falasse consigo próprio:
Depois disto tudo, suponho que tu também o deves saber. Pois bem! Aconteceu que depois das onze horas da noite eu torneime um traidor.
Estas palavras gelaramme horrivelmente, não tanto por elas, como pela maneira como foram ditas.
Um traidor? balbuciei. Porquê?
Respondeume no seu tom frio e lúgubre:
Entre os seus companheiros de ideal político, o Sr. Diodatti era conhecido pela sua intransigência de opiniões e pela violência dos seus ódios. Consideravam muito simplesmente o Sr. Diodatti como um futuro chefe e ele estava de tal maneira certo de que faria boa figura em qualquer circunstância que quase desejava ser preso e posto à prova. Sim, porque o Sr. Diodatti pensava que a captura, a prisão e os outros sofrimentos são necessários na vida de um homem político como são necessários os longos cruzeiros, as tempestades e os naufrágios na vida de um homem do mar!... Mas à primeira onda, o marinheiro sentiuse mal como qualquer criaturinha sem importância... Assim que se viu em frente de um polícia, sem mesmo esperar que o ameaçassem ou o espancassem, o Sr. Diodatti abandonou a carreira política e entrou na que podia chamarse da denúncia.
Tiveste medo! gritei.
Respondeume com calma:
Não. Nem sequer tive medo. Somente sucedeume aquilo que me aconteceu naquela famosa noite, contigo, quando querias que te explicasse as minhas ideias... bruscamente aquilo deixou de me interessar por completo. O que me interrogou pareceume quase simpático. Tinha interesse em saber certas coisas... e eu, nesse momento, não tinha interesse em esconderlhas... então disselhas... simplesmente. Ou talvez acrescentou depois de uns minutos de reflexão não tão simplesmente como isso, mas logo, apressadamente, poderia dizer que quase com zelo. Mais um pouco e seria ele quem moderaria o meu entusiasmo!
Pensei em Astárito e pareceume estranho que Jaime o tivesse achado simpático.
Mas quem te interrogou? perguntei.
Não o conheço. Um homem novo, com uma cara amarelada, olhos pretos, muito bem vestido. Devia ser um alto funcionário.
E achasteo simpático! não me pude impedir de gritar, reconhecendo nesta descrição o próprio Astárito.
No escuro, disseme ao ouvido:
Devagarinho... não ele pessoalmente, mas a sua função. Mas sim, quando se renuncia a si mesmo, ou quando não somos aquilo que devíamos ser, o que conta é o que se é. Não sou eu o filho de um rico proprietário? E este homem, dentro das suas funções, não defende os meus interesses? Reconhecemos que éramos da mesma raça... solidários da mesma causa... Que imaginas? Que simpatizei com ele pessoalmente? Não, não... senti simpatia pela sua função... Senti que era eu quem lhe pagava, que era a mim que ele defendia; comparecendo perante a sua pessoa como acusado estava por detrás como patrão.
Ria, ou, melhor, dava umas risadinhas que arranhavam os meus ouvidos. Eu nada percebia, senão que acontecera qualquer coisa muito triste e que a minha vida estava de novo em risco.
Acrescentou passado um momento:
Talvez eu me calunie... talvez eu tenha falado assim, porque nenhuma importância dava ao facto de não falar... Porque bruscamente tudo me pareceu absurdo e sem importância e porque não compreendia coisas nas quais deveria ter acreditado.
Nada mais compreendias? perguntei maquinalmente.
Não... Quando muito compreendia as palavras como as compreendo agora, mas não os factos que essas palavras traduziam... E então... não se pode sofrer pelas palavras. As palavras não são mais que sons... E ninguém vai para a cadeia porque um burro zurrou ou a roda de um carro guincha. As palavras já não tinham valor para mim, pareciamme todas iguais e absurdas. Ele queria palavras, eu deilhe tantas quantas ele queria.
Mas então objectei eu se eram só palavras, que mal é que isso te pode fazer?
Sim, mas, infelizmente, logo que foram pronunciadas essas palavras cessaram de ser simples palavras e passaram a ser factos.
Porquê?
Porque eu comecei a sofrer. Porque devo ter tido remorsos de as ter dito. Porque, compreendi, senti que dizendo essas palavras me tornara naquilo que se chama um traidor.
Mas então porque as disseste?
Respondeume lentamente:
Porque se fala quando se sonha? Dormia talvez... mas agora acordei.
Virávamos o assunto por todos os lados e voltávamos sempre ao mesmo ponto. Senti um desalento atroz e disselhe com esforço:
Talvez te tenhas enganado; julgas ter dito sabe Deus o que é possível que não te tenhas comprometido.
Não, não me engano respondeu.
Caleime um momento. Depois disse:
E os teus amigos?
Quais amigos?
Túlio e Tomás.
Nada sei a respeito deles disse afectando indiferença. Vão prendêlos.
Não gritei. Não os prenderão.
Pensava que Astárito não se tinha com certeza aproveitado deste momento de fraqueza de Jaime. Pela primeira vez, no entanto, a ideia da prisão dos dois amigos fezme entrever a gravidade de toda esta história.
Porque não os prenderão? disse ele. Dei os seus nomes. Nenhuma razão há para que não os prendam.
Oh! Jaime! gritei com angústia. Porque fizeste isso?
É o que pergunto a mim próprio.
Mas se os prendem disse eu, passado um momento, agarrandome assim à única esperança que me restava - nada há de irreparável. Eles nunca saberão que foste tu...
Não interrompeume. Mas eu saberei... saberei sempre... saberei que não mais serei como era, que sou outra personagem, à qual no momento em que falava dera a vida como a mãe dá ao filho deitandoo ao mundo. E, infelizmente, esta personagem não me agrada... aí é que está a desgraça... Há maridos que matam as mulheres porque lhes é intolerável continuarem a viver juntos. Imagina o que é ter dois seres no mesmo corpo quando há um que odeia o outro até à morte. Quanto aos meus amigos, vão com certeza prendêlos.
Não pude conterme por mais tempo e disselhe:
Mesmo que não tivesses falado, terias sido posto em liberdade. E os teus amigos não correm qualquer perigo.
Contei por alto e rapidamente a história das minhas relações com Astárito, a minha intervenção a seu favor e a promessa que Astárito me havia feito. Ouviume sem dizer palavra, depois declarou:
Sim, senhor! Com que então devo a minha liberdade não só à minha actividade de espião, mas ainda às tuas relações amorosas com um polícia.
Jaime! Não fales assim!
De resto continuou, passado um momento , estou contente que os meus amigos se consigam livrar; pelo menos não terei esses remorsos na consciência.
Vês? disselhe vivamente. Que diferença há entre ti e os teus amigos? Eles também devem a sua liberdade, assim como tu, a mim e ao facto de Astárito estar apaixonado.
Perdão, aí há uma diferença! Eles não falaram.
Quem to disse?
Espero bem que não o tenham feito, fossem eles o que fossem: de resto isso não seria uma consolação para mim.
Mas tu não tens mais que passar a comportarte como se nada se tivesse passado! insisti de novo. Volta para o pé deles sem fazer nenhuma alusão ao assunto... Que pode acontecer? Acontece a toda a gente ter um momento de fraqueza.
Sim respondeume , mas não acontece a toda a gente morrer e continuar vivo. Sabes o que me aconteceu no momento em que falei? Morri... estou morto... simplesmente morto... para sempre.
Incapaz de suportar por mais tempo a angústia que me apertava o coração desfizme em lágrimas.
Mas porque estás a chorar? perguntoume.
Por causa das coisas que dizes respondi soluçando -, que estás morto. Isso assustame tanto!
Desagradate estar ao lado de um morto? perguntoume brincando. No entanto não é tão horrível como parece... Não é mesmo nada horrível... Estou morto mas de uma maneira particular... no que diz respeito ao corpo, estou bem vivo... apalpa aqui e vê lá se não estou vivo.
Agarroume a mão e fezme tocarlhe no corpo.
Estou bem vivo como tu sentes...
Puxavame a mão para obrigarme a apalpálo.
Estou portanto vivo... por aquilo que te diz respeito, como acabas de verificar, estou mais vivo do que nunca.. não tenhas medo; se nós, enquanto eu estava vivo, não nos amamos muitas vezes, em compensação vamos fazêlo agora, que estou morto, com muito mais frequência.
Com uma espécie de desprezo raivoso tirou de cima dele a minha mão inerte. Levei as duas ao rosto e dei largo curso à minha miserável dor. Desejaria ter chorado sempre, não parar de chorar, porque temia o momento em que o pranto cessa e se fica vazio e como que apatetado diante das coisas que o faziam sofrer. No entanto, esse momento chegou; limpei ao lençol a minha cara inundada e fixei os olhos dilatados no vácuo. Então ouvi que ele me perguntava numa voz afectuosa e doce:
Vejamos, na tua opinião que devia eu fazer?
Volteime para ele com violência, aperteime contra o seu peito e disselhe:
Não pensar mais nisso... o que aconteceu, aconteceu... não te preocupes... é o que deves fazer!
E depois?
Depois, retoma o trabalho... faz o teu doutoramento... depois volta para a tua terra... pouco me importa se não te tornar a ver desde que te saiba feliz... arranja um emprego! Quando chegar o momento, casa com uma rapariga da tua região, da tua situação social, que te ame sinceramente... A política para que te serve? Tu não foste feito para a política... fizeste mal em te meter nela... foi um erro; acontece a toda a gente cometer erros... Um dia háde parecerte estranho como chegaste a interessarte por essas coisas. Eu amote sem egoísmo. Jaime. Outra mulher não quereria separarse de ti... Pois bem!... se for preciso parte amanhã... não nos veremos mais, contanto que sejas feliz!
Mas eu disse ele em voz baixa e clara , nunca mais serei feliz; sou um delator.
Não é verdade! respondi, exasperada. Não és um delator! E mesmo que o tivesses sido podias ainda ser feliz. Há pessoas que cometeram verdadeiros crimes, e no entanto são felizes. Eu, por exemplo. Quando se diz uma mulher da rua, sabe Deus o que se imagina: ora eu sou uma rapariga como as outras. Muitas vezes sou até feliz. Nestes últimos dias acrescentei com amargura era tão feliz!
Eras feliz?
Sim, completamente! Mas sabia bem que não podia durar muito, e naturalmente...
Ao dizer isto tive outra vez vontade de chorar, mas contiveme.
Tu julgavas ser muito diferente do que és... E o que aconteceu, aconteceu. Agora aceita ser como és realmente.. e verás como tudo se arranjará depressa. No fundo sofres pelo sucedido porque tens vergonha e receias o julgamento dos outros, dos teus amigos... Pronto! Deixa de andar com eles, procura outras pessoas, o mundo é tão grande.. Se eles não te querem o suficiente para compreenderem que isto não foi mais que um momento de fraqueza, fica comigo, eu amote, compreendote e não te julgo... Assegurote gritei com força -, quanto pior fosse a acção que tivesses cometido mais serias para sempre o meu Jaime!
Nada replicou e eu continuei:
Não sou mais que uma pobre rapariga ignorante, eu sei, mas há coisas que compreendo melhor do que tu. Eu também já passei pelo que tu sentes neste momento. A primeira vez que nos vimos, e em que tu nem sequer me tocaste, meteuseme na cabeça que era porque me desprezavas e de repente perdi até mesmo o gosto de viver. Sentiame tão desgraçada! Gostaria de ser outra e ao mesmo tempo compreendia ser impossível e que continuaria sempre a ser o que era; tinha uma vergonha que me queimava, um aborrecimento, um desespero... sentiame gelada. paralisada... por instantes desejei morrer. Depois, um dia, saí com minha mãe e entrei por acaso numa igreja, e ali, rezando. compreendi que no fundo nada havia de que corar... que se eu era feita desta maneira era porque Deus o tinha querido, que não me devia revoltar contra a minha sorte, mas, pelo contrário, aceitála com docilidade e confiança, e que se me desprezavas era por defeito teu e não meu... Em suma, pensei muitas coisas, e por fim passoume toda a mortificação e sentime de novo alegre.
Começou a rir, com aquele riso que me gelava, e disse:
Em resumo, devia aceitar o que fiz e não me revoltar. Devia aceitar aquilo em que me tornei e não me julgar. Talvez que na igreja se possam passar essas coisas, mas fora da igreja...
Pois bem! Vai à igreja! propuslhe, agarrandome a esta nova esperança.
Não, não irei. Não sou crente e a igreja aborreceme. E depois...
Recomeçou a rir, depois, de repente, pôsse sério, agarroume pelos ombros e começou a sacudirme com violência, gritando:
Mas tu não compreendes a minha acção? Não compreendes? Não compreendes?
Abanavame com tal força que me cortava a respiração. Com uma última sacudidela atiroume para trás e sentio saltar da cama e começar a vestirse às escuras.
Não acendas a luz! disseme com ar ameaçador. - É preciso que eu me habitue a que me olhem outra vez de frente... por agora é ainda cedo. Ai de ti se a acendes!
Nem ousava respirar, mas acabei por perguntar:
- Vaiste embora?
Sim, mas voltarei disseme.
Pareceume que ria de novo:
Não tenhas medo, que voltarei... Devo mesmo darte uma boa notícia: tenciono viver contigo definitivamente.
Aqui, em minha casa?
Sim, mas não te incomodarei... terás a liberdade necessária para continuares com a tua vida habitual. De resto acrescentou poderemos viver os dois com o que me manda a minha família... dava para pagar a pensão... mas aqui em casa chega bem para os dois.
Esta ideia de ele viver em minha casa pareciame mais estranha do que agradável. No entanto nada me atrevi a dizer. Acabou de vestirse em silêncio, às escuras.
Voltarei esta noite disseme.
Ouvio abrir a porta, sair e tornar a fechála. Fiquei com os olhos abertos fixos na escuridão.
10
Nessa mesma tarde, como Astárito me aconselhara, fui ao comissariado do bairro fazer um depoimento sobre a história de Sonzogne. Não entrava ali sem repugnância, porque depois do que acontecera a Jaime, tudo o que era polícia ou policial inspiravame um malestar de morte. Mas agora já estava quase resignada. Compreendia que durante algum tempo a vida não teria o menor atractivo para mim.
Esperamola de manhã disseme o comissário quando lhe disse o motivo da minha visita.
Era um excelente homem e há muito tempo que o conhecia: se bem que fosse pai de família e tivesse passado os cinquenta, já há muito tempo que eu compreendia que tinha por mim mais do que uma simples simpatia. Lembrome, sobretudo do seu nariz: grosso, esponjoso e com um ar melancólico. Tinha sempre o cabelo despenteado e os olhos sonolentos, como se tivesse acabado de levantarse. Esses olhos, de um azul intenso, olhavam como do interior de uma máscara num rosto espesso, rosado e gretado, lembrando a casca de certas laranjas enormes, mas ocas.
Disselhe que me fora impossível vir mais cedo. Os seus olhos olharamme um momento, depois perguntoume com um ar cúmplice:
Então como se chama ele?
Como quer que saiba?
Então, sabe muito bem!
Palavra de honra! disselhe pondo a mão no peito. Abeirouse de mim no Corso. Tive, de facto, a impressão de qualquer coisa estranha na sua atitude, mas não lhe prestei grande atenção.
Como se compreende que não estivesse em casa e ele tivesse lá ficado só?
Tinhao deixado porque tinha um encontro urgente.
Mas ele julgou que tivesse saído para ir procurar a policia. Sabia? Julgou que o tinha vendido.
Já sei.
E que lhe faria pagar isso.
Tanto pior.
Mas não percebe acrescentou olhandome de lado - que é um homem perigoso e que amanhã, para se vingar da sua suposta denúncia, pode muito bem atirarlhe, como disparou sobre os polícias?
Com certeza que já percebi!
Então porque não diz o seu nome? Seria preso e deixaria de a preocupar.
Pois se eu lhe digo que não sei! Não é por mal! Só me faltava saber o nome de todos os homens que levo para casa!
Está bem! Nós, pelo contrário afirmou de repente com voz forte e teatral, curvandose para a frente , nós sabemos o nome dele!
Percebi que era uma cilada e respondi tranquilamente:
Se o sabe, porque me atormenta tanto? Prendamno e não se fala mais nisso.
Olhoume um momento em silêncio; notei que os seus olhos, incertos e perturbados, fixavam mais o meu corpo do que a minha cara e compreendi subitamente que, contra a sua vontade, o seu velho desejo substituíra o fervor profissional.
Sabemos ainda outra coisa continuou é que se ele disparou e se safou é porque tinha boas razões para o fazer!
Ah! Quanto a isso não tenho dúvidas!
Mas conhece essas razões?
Não sei coisa alguma. Pois se eu nem lhe conheço o nome, com quer que saiba o resto?
Nós sabemos muito bem o resto.
Falava mecanicamente, como se pensasse noutra coisa: tinha a certeza de que não tardaria a levantarse e a vir ao pé de mim.
Nós sabemos muito bem e havemos de o apanhar... é uma questão de dias, talvez de horas.
Ainda bem para vocês.
Levantouse, como eu tinha previsto, chegouse a mim e agarroume o queixo com a mão:
Vamos! Vamos! disseme. Sabe tudo e não quer dizer. De que tem medo?
De nada tenho medo e nada sei respondi. Mas trate de tirar as mãos...
Vamos! Vamos! repetiu.
Mas voltou a sentarse à secretária.
Tem sorte em eu simpatizar consigo e saber que é boa rapariga disseme. Sabe o que qualquer outro faria para a obrigar a falar? Têlaia engaiolado durante um bom bocado. Ou então mandavaa para S. Galicano.
Levanteime declarando:
Bem! Tenho que fazer! Se nada mais tem para me dizer...
Pode retirarse concordou mas tenha cuidado com a frequência... políticos e outros!
Fingi não perceber as últimas palavras, pronunciadas num tom cheio de alusões, e saí rapidamente das salas sórdidas do comissariado.
Enquanto andava pensava em Sonzogne. O comissário não tinha feito mais que confirmar o que eu já tinha pensado: Sonzogne estava convencido de que eu o denunciara e queria vingarse. Fui tomada de pavor, não por mim, mas por Jaime. Sonzogne estava furioso; se ele encontrasse Jaime comigo não hesitaria em matálo também. Devo dizer que a ideia de morrer com Jaime me sorria estranhamente. Pareciame ver a cena: Sonzogne disparava; eu punhame à frente de Jaime para o proteger e recebia a bala em seu lugar. Mas não me desagradava imaginar Jaime também ferido e a nossa morte comum, com os nossos sangues misturados. No entanto reflectia que ser morto ao mesmo tempo pelo mesmo assassino não era tão belo como um suicídio duplo, o qual me parecia um fim digno de um grande amor. Era como matar uma flor antes de ela começar a fenecer, fecharse no silêncio depois de ter ouvido uma música sublime. Tinha algumas vezes pensado nesta forma de suicídio que pára o tempo antes que ele corrompa e avilte o amor e que se leva a efeito mais por excesso de alegria que pela intolerância da dor. Momentos havia em que me parecia amar Jaime com demasiada intensidade ao ponto de recear a impossibilidade de, no futuro, o amar tanto; tive a ideia deste suicídio duplo com a mesma naturalidade e a mesma espontaneidade como o beijava e o acariciava. Mas nunca lhe falara nisso porque sabia que para nos matarmos juntos era condição essencial que o nosso amor tivesse a mesma intensidade. E Jaime não me tinha amor ou se o tinha não me queria o suficiente para desejar deixar de viver.
Continuando a andar de cabeça baixa na direcção de casa, reflectia intensamente em tudo isto. De repente senti uma espécie de vertigem acompanhada de náuseas e de um malestar horrível. Nem sei como consegui entrar numa leitaria. Estava a poucos passos da minha casa, mas não tinha forças para fazer aquele curto trajecto; teria caído no chão se o tentasse.
Senteime a uma mesa atrás da porta envidraçada e fechei os olhos. Continuava a sentir uma violenta sensação de náusea e de vertigem e esta sensação era agravada pelo arquejar da máquina do café, embora bastante afastada, que me produzia uma sensação de angústia. Sentia na cara e nas mãos a tepidez da sala fechada e aquecida e, no entanto tinha muito frio. O empregado conheciame e gritoume por detrás do balcão:
Um café, menina Adriana?
Disse que sim com a cabeça, sem abrir os olhos. Por fim reanimeime e tomei o café que o empregado colocara em cima da mesa. A bem dizer não era a primeira vez que era tomada por esta má disposição; nos últimos tempos sentiraa já, mas não tinha ligado importância, devido aos acontecimentos insólitos e angustiantes. Mas agora, pensando nisso e estabelecendo uma relação entre a indisposição e uma irregularidade significativa verificada na minha vida física no decurso do mês, convencime de que certas suspeitas que ultimamente haviam atravessado o meu espírito e a que eu não dera consistência correspondiam à verdade.
“Não há dúvida alguma”, pensei bruscamente. “Espero com certeza um filho.” Paguei o café e saí. O que nesse momento sentia era muito complicado: hoje ainda, passado tanto tempo, não me é fácil traduzilo. Por experiência própria sabia que as desgraças nunca vêm sós; a presente certeza que tempo atrás e noutras circunstâncias seria acolhida com alegria, neste momento não podia deixar de considerála uma desgraça. Mas, por outro lado, um movimento irresistível e misterioso da minha alma levame sempre a descobrir o lado agradável das coisas mais desconcertantes. Desta vez o lado agradável não era difícil de descobrir; era o mesmo que enchia de esperança e de satisfação o coração de todas as mulheres logo que sentem que foram tomadas pela prenhez. Era um facto que o meu filho nasceria nas mais desfavoráveis condições; no entanto, não seria menos meu filho: seria eu quem o amamentaria, o criaria e o educaria. “Um filho é um filho”, pensava eu; “não há pobreza, nem circunstâncias adversas, nem futuro sombrio que possam impedir uma mulher, por mais miserável e abandonada que seja, de se alegrar à ideia de ir ser mãe.” Estas reflexões acalmaramme; depois de um minuto de apreensão e de desencorajamento sentime tão tranquila e confiante como sempre. O jovem médico que me vira há tanto tempo já, quando minha mãe me levara à farmácia de serviço para saber se eu tinha ou não pertencido a Gino. tinha o consultório próximo da pastelaria. Resolvi ir lá e consultálo. Era cedo: ninguém havia na sala de espera; o doutor, que me conhecia muito bem, acolheume com simpatia. Logo que fechei a porta, anuncieilhe tranquilamente:
Doutor, tenho quase a certeza de estar grávida.
Ele começou a rir porque sabia qual era o meu ofício e perguntoume:
Estás contrariada por isso?
De maneira nenhuma. Estou contente.
Vejamos.
Depois de me ter feito algumas perguntas sobre a minha indisposição, mandoume estender na marquesa, examinoume e disse alegremente:
Desta vez é certo!
Sentime feliz por ver as minhas suspeitas confirmadas. Disselhe com o espírito tranquilo e sem sombra de desapontamento:
Já o sabia; vim só para ter a certeza.
Agora podes estar certa.
Esfregava as mãos alegremente como se fosse ele o pai da criança, alegre, cheio de simpatia por mim. Mas uma dúvida atravessoume o espírito:
Há quanto tempo? perguntei.
Bom! Talvez dois meses... um pouco mais, um pouco menos... Porquê, queres saber de quem é?
Já sei.
Dirigime para a porta.
Se precisares seja do que for, podes procurarme - disse, abrindome a porta. Quando chegar a altura, procuraremos fazer com que nasça nas melhores condições possíveis.
Tinha por mim, como o comissário, uma inclinação muito acentuada. Mas a diferença é que este agradavame.
Vinha frequentemente consultálo. Pelo menos uma vez de quinze em quinze dias. E duas ou três vezes, por gratidão, tinha consentido que ele me amasse, ali mesmo sobre a marquesa coberta de oleado onde acabara de me examinar. Mas ele era discreto e contentavase com pequeninos gracejos afectuosos, sem nunca me impor os seus desejos. Davame conselhos e imagino que, à sua maneira, estava também um pouco apaixonado por mim.
Tinha dito ao médico que conhecia o pai do meu filho. Na realidade no momento em que pronunciei estas palavras não tinha mais do que uma suspeita e mais por instinto que por cálculo. Mas caminhando, quando contei os dias e reavivei as minhas recordações, esta suspeita tornouse certeza. Lembreime do desejo e do terror que me tinham arrancado, precisamente quase há dois meses, um longo grito lamentoso de agonia e de prazer, e fiquei quase certa que o pai não podia ser outro senão Sonzogne. Era horrível pensar que iria ter um filho de um assassino insensível e monstruoso como Sonzogne; podia recear que a criança se parecesse com o pai e viesse marcada com o seu carácter. Por outro lado não podia deixar de encontrar alguma justiça nesta paternidade. Entre tantos homens que me tinham amado Sonzogne era o único que realmente me possuíra fora de qualquer sentimento amoroso, no fundo mais obscuro e mais secreto da minha carne. O facto de eu experimentar por ele apenas medo e horror e de me ter entregue contra vontade não desmentia, antes confirmava, a profundidade desta posse. Nem Gino, nem Astárito, nem mesmo Jaime, por quem eu tinha uma paixão de um gênero completamente diferente, tinham suscitado em mim o sentimento de uma posse tão legítima quão detestada. Tudo isto me parecia ao mesmo tempo estranho e assustador, mas era assim: os sentimentos são a única coisa que não se pode recusar, nem desmentir, nem mesmo analisar, num certo sentido. Acabei por concluir que o amor exige uns certos homens e a procriação outros, e que se era justo que eu tivesse um filho de Sonzogne não era menos justo da minha parte detestálo, fugirlhe e amar Jaime como o amava.
Subi lentamente a minha escada pensando no fardo vivo que de futuro traria no ventre. Quando entrei no vestíbulo ouvi falar na sala grande. Espreitei e vi com surpresa Jaime, sentado à mesa, conversando calmamente com minha mãe, sentada a coser ao pé dele. Só o candeeiro central estava iluminado: um candeeiro de suspensão. Uma grande parte da sala estava às escuras.
Boasnoites disse, molemente, aproximandome.
Boasnoites, boasnoites disseme Jaime com voz hesitante e desagradável.
Olheio de frente, vilhe os olhos brilhantes e tive a certeza de que estava embriagado. Num canto da mesa havia dois guardanapos e dois pratos. Como minha mãe comia sempre na cozinha, percebi que o outro era para Jaime.
Boasnoites repetiu. Trouxe as minhas malas. Estão no teu quarto. Já conversei amigavelmente com tua mãe... Não é verdade, minha senhora, que nos entendemos às mil maravilhas?
Senti no coração um enorme desalento ao ouvir esta voz sarcástica e lugubremente chocarreira. Caí sobre uma cadeira e fechei os olhos. Ouvi minha mãe responderlhe:
Disse que nos entendíamos... se diz mal de Adriana nunca nos entenderemos.
Mas que disse eu? gritou Jaime, falsamente admirado. Que Adriana é feita para a vida que leva. Que Adriana se sente bem nesta vida... Que mal há nisso?
Não é verdade retorquiu a minha mãe. Pelo contrário, a Adriana não é feita para a vida que leva. Com a sua beleza ela merecia melhor, muito melhor. Não sabe que a Adriana é uma das mais bonitas raparigas do bairro, para não dizer de Roma? Vejo outras raparigas muito mais feias do que ela fazerem fortuna, enquanto a Adriana, que é bela como uma rainha, nada possui. Mas eu sei porque é.
Porque é?
Porque ela é boa de mais, aí está! É tão bonita como boa. Se ela fosse bonita e má, veria como as coisas seriam diferentes.
Então! Então! disse eu aborrecida com a discussão, e sobretudo com o tom de Jaime, que parecia troçar de minha mãe. Tenho uma destas fomes! O jantar ainda não está pronto?
Está quase pronto disse minha mãe pousando a costura sobre a mesa e saindo rapidamente.
Levanteime e seguia até à cozinha.
Então isto agora é uma pensão? resmungou ela quando me aproximei. Veio armado em patrão... meteu as malas no teu quarto, deume dinheiro para as despesas...
Então não estás contente?
Preferia como dantes.
Bem. Faz de conta que estamos noivos. E depois é provisório; é uma questão de dias; ele não vai ficar sempre aqui.
Disselhe outras coisas do mesmo gênero para a apaziguar, beijeia e voltei para a sala grande.
Recordarei por muito tempo este primeiro jantar com Jaime lá em casa, comigo e com minha mãe. Ele esteve sempre a brincar enquanto comia com apetite. Mas a mim as suas brincadeiras pareciamme mais frias do que gelo e amargas como o fel. Viase bem que não tinha senão uma ideia, que esta ideia estava enterrada na consciência como um espinho na carne e que estas brincadeiras não faziam senão mergulhar mais profundamente este espinho e reavivarlhe a dor. Era a ideia do que dissera a Astárito. Nunca na minha vida vi alguém arrependerse tão sinceramente de uma falta cometida. Somente, ao contrário do que os padres me tinham ensinado quando eu era garota, que o arrependimento lava a falta este arrependimento parecia não ter fim, nem consequência, nem o mínimo resultado benéfico. Compreendi que Jaime sofria horrivelmente e eu tanto como ele ou talvez ainda mais, porque não sofria somente a sua dor, mas a minha impotência para lha tirar, ou pelo menos aliviar.
Comemos em silêncio o primeiro prato. Depois minha mãe, de pé, disse não sei o quê sobre o preço da carne e então Jaime levantou a cabeça e respondeulhe:
Não tenha medo, minha senhora. De ora em diante serei eu quem pensará em tudo; vou ter um bom emprego.
A esta notícia senti um pouco de esperança.
Que lugar? perguntou a minha mãe.
Um lugar na polícia respondeulhe Jaime, com uma gravidade contrita , foi um amigo da Adriana quem mo propôs... o Sr. Astárito.
Pousei o garfo e a faca e olheio intensamente.
Descobriuse continuou que eu possuía excelentes qualidades para fazer parte da organização.
É possível respondeu minha mãe , mas eu nunca gostei de polícias... O filho da lavadeira que mora cá em cima também se fez policia. Sabe o que disseram os rapazes que trabalham no depósito de cimento, aqui ao lado? “Podes pôrte ao largo porque já não te conhecemos!” Além disso, eles ganham mal.
Fez uma careta, mudoulhe o prato e apresentoulhe a carne.
Mas não se trata disso replicou Jaime servindose. Tratase de um lugar importante, delicado, secreto... Que diabo! Eu para alguma coisa andei a estudar! Estou quase doutorado, falo várias línguas. Só os pobresdiabos se tornam agentes, não pessoas como eu.
É possível repetiu minha mãe. Toma! acrescentou pondo no meu prato o bocado maior da carne.
Não é possível disse Jaime é certo!
Calouse por um instante, depois repetiu:
O governo sabe que há malintencionados por toda a parte... Não só nas classes pobres, mas também nas ricas... Para vigiar os ricos são precisas pessoas bem educadas, que falem como eles, se vistam como eles, tenham os mesmos modos... que lhes inspirem confiança, em suma... É o que farei... frequentarei os hotéis de primeira categoria, viajarei no wagonlit, comerei nos melhores restaurantes, vestirei dos melhores alfaiates, frequentarei as praias de luxo, os desportos de Inverno mais famosos... Que diabo! Por quem me tomam vocês?
Minha mãe agora olhavao pasmada. Todos estes esplendores a maravilharam.
Nesse caso declarou já nada mais tenho a dizer.
E eu, tendo acabado de comer, de repente tornaraseme impossível continuar a assistir a esta lúgubre troca de palavras.
Estou cansada disse bruscamente. Vou para o meu quarto.
Levanteime e saí da sala. Uma vez no quarto, senteime na cama, e toda enrolada comecei a chorar em silêncio com o rosto entre as mãos. Pensava no desgosto de Jaime e na criança que ia nascer e tinha a impressão de que as duas coisas, a mágoa e a criança, aumentavam por uma força estranha que não dependia de mim e que eu não podia dominar; elas estavam vivas, nada havia a fazer. Passado um momento ele entrou; levanteime e errei um pouco pelo quarto para que ele não visse os meus olhos com lágrimas e dar tempo a secálos. Acendeu um cigarro, atirouse para cima da cama e ficou deitado de costas. Senteime ao seu lado e pedilhe:
Suplicote, Jaime... não fales assim à minha mãe.
Porque?
Porque ela não compreende; eu, pelo contrário, compreendo e cada uma das tuas palavras é como uma agulha que me enterrassem no coração.
Não respondeu e continuou a fumar em silêncio. Tirei da gaveta uma das minhas camisas, agulha e linha, senteime na cama ao lado da lâmpada e, calada, comecei a coser. Não queria falar porque tinha medo de que ele voltasse ao mesmo assunto; esperava, pelo contrário, que se guardássemos silêncio ele acabaria por desanuviar o espírito e pensar noutra coisa. A costura requer muita atenção visual, mas deixa o espírito livre; as mulheres batidas nesse trabalho sabemno bem. Enquanto cosia, os pensamentos fervilhavam e giravamme na cabeça, ou, melhor, assim como o fio passava e repassava através do tecido, assim eles pareciam coser no meu espírito não sei que bainha ou rasgão. Também eu tinha agora a mesma obsessão e não conseguia deixar de pensar no que ele dissera a Astárito e nas consequências que se seguiriam. Mas queria libertar o espírito destes pensamentos, até porque receava que alguma misteriosa influência o poderia obrigar a pensar a ele também, levandoo a aumentar a sua dor. Queria, pois, pensar nalguma coisa clara, alegre e leve, e com todas as forças da minha alma concentrava toda a minha imaginação sobre o filho que iria nascer; era, com efeito, o único aspecto alegre da minha vida entre tantas coisas terrivelmente tristes. Imaginavao tal como seria quando tivesse dois ou três anos, a melhor idade, em que as crianças são sempre mais bonitas e mais engraçadas; e, cogitando em tudo o que ele faria e diria e na maneira como o criaria, senti voltarme a alegria, como esperava; esqueci por momentos Jaime e a sua mágoa. Acabara de coser a camisa; peguei noutra peça de roupa para passajar, e lembreime de que poderia aliviar a tensão das longas horas que passaria com Jaime fazendo o enxovalinho do meu filho. Somente, seria preciso fazêlo às escondidas ou arranjar um pretexto. Diria a Jaime que o destinava a uma das nossas vizinhas que também, por acaso, com efeito esperava um bebé; a ideia pareceume óptima, até porque já falara nesta mulher a Jaime e aludira à sua pobreza. Estes pensamentos distraíramme de tal maneira que comecei, quase sem dar por isso, a cantar em voz baixa. Tenho a voz fraca, mas afinada, com uma grande doçura de timbre, que se nota mesmo quando falo. Comecei uma canção muito em voga naquele tempo que se chamava Cidade Triste. Como levantasse os olhos para partir a linha com os dentes, vi que Jaime me olhava. Então, pensando que me poderia censurar por cantar num momento tão grave, caleime:
Olhoume e disse:
Continua a cantar.
Gostas que eu cante?
Sim.
Mas não canto bem.
Não faz mal.
Recomecei a coser e a cantar para ele. Como todas as raparigas, eu sabia um grande número de canções; tinha boa memória e lembravame do que aprendera em criança. Canteilhe um pouco de tudo. A uma canção seguiase outra. Comecei por cantar em surdina, mas depois tomeilhe o gosto e cantei em voz alta com o maior sentimento que podia. As cantigas sucediamse; enquanto cantava uma pensava já noutra. Ele ouviume com uma certa seriedade no rosto e eu sentiame feliz por poder distrair o seu espírito. Mas ao mesmo tempo pensava que quando era pequena tinha perdido não sei que brinquedo de que gostava muito; como não deixasse de chorar a sua perda, minha mãe, para me consolar, sentarase na minha cama e começara a cantar as três únicas canções que sabia. Cantava mal, tinha voz de falsete, mas apesar de tudo acabara por me distrair: ouviaa exactamente como Jaime me ouvia agora. Passado um momento. a ideia do brinquedo perdido começou a infiltrarse como gotas de amargura no breve esquecimento que minha mãe me oferecera e acabou por apagálo totalmente e tornálo, por contraste, insuportável, tanto assim que eu tinha recomeçado a chorar e que minha mãe, impaciente, me tinha apagado a luz deixandome a chorar às escuras. Tinha a certeza de que apenas tivesse passado a apaziguadora doçura do meu canto, era impossível que ele não voltasse a sentir a sua mágoa, mais forte e mais aguda ainda, pelo contraste do superficial sentimentalismo das minhas canções. Não me enganava. Havia quase uma hora que eu cantava quando de repente me interrompeu:
Agora chega! Aborrecesme com as tuas canções!
Enroscouse como para dormir e voltoume as costas. Esperava esta indelicadeza, por isso não me afligiu. De resto agora só esperava coisas desagradáveis e só o contrário me faria admirar. Levanteime e fui guardar a minha roupa já passajada. Depois despime sem dizer palavra e enfieime na cama no lado que Jaime deixara livre. Ficamos assim muito tempo, em silêncio, de costas um para o outro. Sabia que ele não dormia e que continuava possuído da sua ideia dominante; esta certeza, aliada ao agudo sentido da minha impotência, provocava no meu espírito um turbilhão de pensamentos confusos e desesperados. Estava deitada de lado e, reflectindo, fixava os olhos num canto do quarto. Via uma das duas malas que Jaime trouxera de casa da viúva Medolaghi; uma velha mala de couro amarelo, recamada de etiquetas de hotéis. Havia uma, com um rectângulo de mar azul, uma grande rocha vermelha e a inscrição: “Capri”. Na sombra, pelo meio do mobiliário pálido e pobre do meu quarto, esta mancha azul pareciame luminosa; dirseia, mais que uma mancha, um buraco através do qual eu podia ver um bocado deste mar longínquo. Assaltoume uma grande nostalgia do mar, tão alegre, tão vivo, onde todos os objectos, mesmo os mais corruptos e os mais disformes, se purificam, se alisam, se arredondam, até se tornarem puros e belos. Sempre gostei do mar, até do mar entulhado de óstia. Ao ver o mar sinto sempre uma impressão de liberdade que embriaga os meus ouvidos mais do que os meus olhos, como se as notas de uma música mágica eterna andassem sobre as vagas. Pusme a pensar no mar com um desejo agudo da sua espuma transparente, que parece lavar ao mesmo tempo os corpos e as almas, tornandoas leves pelo seu líquido contacto. Disse a mim mesma que se pudesse levar Jaime para o mar talvez que esta imensidade, este marulhar perpétuo obtivessem o efeito que o meu amor só por si não podia provocar. Pergunteilhe de repente:
Estiveste em Capri?
Sim respondeu sem se voltar.
É bonito?
Sim... muito bonito.
Ouve disselhe voltandome e passandolhe o braço pelo pescoço porque não vamos a Capri ou a qualquer outro sítio junto do mar? Ficando aqui, em Roma, nada mais farás do que pensar nessas coisas desagradáveis... Se mudares de ares e de meio, tenho a convicção de que verás tudo por outro prisma. Há tantas coisas que agora não vês... Estou certa de que te faria bem!
Não respondeu imediatamente e parecia reflectir. Depois disseme:
Não preciso de ir para o mar. Também aqui podia, como tu dizes, ver as coisas de outra maneira... Seria suficiente aceitar o que fiz, como me aconselhas; gozaria logo a existência do céu, da terra, de ti, de tudo... Julgas que não sei que o mundo é belo?
Então aceita disse eu com voz ansiosa... Que te pode isso fazer?
Começou a rir.
Seria preciso pensar nisso antes respondeume. - Aceitar desde o início. Mesmo os mendigos que se aquecem ao sol aceitaramno desde o princípio. Para mim é demasiado tarde.
Mas porque?
Há os que aceitam e os que não aceitam. É evidente que eu pertenço à segunda categoria.
Caleime sem saber que dizer. Acrescentou, passado um momento:
Agora apaga a luz; dispome às escuras... Creio que são horas de dormir.
Obedeci. Despiuse às escuras e deitouse ao meu lado. Volteime para ele e tentei beijálo. Repeliume sem uma palavra, enrolouse e voltoume as costas. Este gesto encheume de amargura e aconchegueime, por minha vez, a alma viúva, esperando o sono. Tornei a pensar no mar: desejei ardentemente morrer afogada. Pensava que não sofreria mais do que um momento. Depois o meu corpo inanimado flutuaria muito tempo sob o céu, de vaga em vaga. Os pássaros marinhos debicariam os meus olhos, o sol queimarmeia o peito e o ventre; os peixes mordermeiam as costas. Por fim mergulharia puxada por alguma corrente azul e fria que me faria viajar no fundo do mar durante meses e anos, pelo meio de recifes submarinos, peixes e algas; e muita, muita água límpida e salgada, passaria sobre a minha testa, o meu peito, o meu ventre, as minhas pernas, levando lentamente a minha carne, polindome, gastandome cada vez mais. Por fim qualquer vaga, num dia qualquer, me atiraria com fragor para uma praia distante, reduzida a alguns ossos frágeis e brancos. Gostava da ideia de ser arrastada pelos cabelos para o fundo do mar; gostava da ideia de um dia ou outro ser reduzida a uma ossada sem identificação, no meio dos brancos calhaus de uma praia. Talvez alguém, sem que o sentisse, caminhasse sobre os meus ossos e os reduzisse a poeira branca. Acabei por adormecer com estes pensamentos voluptuosos e tristes.
No dia seguinte verifiquei que o sono e o repouso não haviam modificado de forma alguma os sentimentos de Jaime. Pelo contrário, julguei notar que se tinham agravado. Como na véspera, passava muito tempo em longos silêncios obstinados e lúgubres ou falava com sarcasmo sobre coisas indiferentes, mas nas quais, no entanto, transparecia sempre o mesmo pensamento dominante. O agravamento que julguei observar consistia numa inércia, numa apatia e numa negligência quase voluntárias que nele, sempre tão activo e enérgico, era qualquer coisa nova e parecia indicar um desprendimento progressivo de tudo o que fizera até então. Abrilhe as malas e arrumeilhe as roupas e os fatos. Mas quando se tratou dos livros dos seus estudos, e que eu sugeri os alinhasse provisoriamente sobre o mármore da cômoda, em frente do espelho, respondeume:
Podes deixálos na mala... já não servirão mais.
Porquê? pergunteilhe. Tu não tens que fazer o teu doutoramento?
Não farei o doutoramento.
Não queres continuar a estudar?
Não.
Não insisti, receosa que voltasse a falar da sua habitual angústia e deixei os livros na mala. Também não se lavava nem pensava em fazer a barba, ele que fora sempre asseado e muito cuidadoso com a sua pessoa. Este segundo dia passouo no quarto fumando, estendido na cama, ou passeando para trás e para diante, com ar pensativo e as mãos nos bolsos. Mas ao almoço, como me prometera, não falou com minha mãe. Veio a noite, declaroume que jantaria fora e saiu sozinho; não ousei proporlhe a minha companhia. Não sei onde foi; estava já para ir deitarme quando entrou; era patente que tinha bebido. Beijoume com grandes e cômicos gestos e quis possuirme. Anui, embora notasse que amar era para ele, de fato, como beber, um acto desagradável, cumprido por força, com o único fim de se fatigar e aturdir.
Disselho e acrescentei:
Tanto te fazia ir comigo como com qualquer outra.
Riuse e respondeu:
Com efeito, tanto fazia... mas como és tu quem está aqui, é mais fácil!...
Magoaramme estas palavras e, mais ainda, afligiume a pouca afeição, ou melhor, a falta absoluta de afeição que as suas palavras demonstravam.
Mas bruscamente, como se alguma coisa me iluminasse, volteime para ele e disselhe:
Olha.. eu sei que não sou mais do que uma rapariga qualquer... mas procura amarme. É por ti que o peço. Se chegares a amarme, estou certa de que acabarás por te amar a ti mesmo.
Olhou e repetiu com voz forte e trocista: “Amor! O amor!” e apagou a luz. Fiquei às escuras com os olhos dilatados, aflita, perplexa, não sabendo o que pensar.
Os dias que se seguiram não lhe trouxeram qualquer modificação: tudo continuou na mesma. Parecia ter substituído os seus velhos hábitos por outros novos, e era tudo. Primeiro trabalhava, ia à Universidade, conversava com os amigos no café e lia. Agora fumava, estendido na cama, passeava no quarto, tinha as suas conversas habituais alusivas e estranhas, embebedavase e possuíame. Ao quarto dia comecei a sentirme desesperada. Sabia que a sua mágoa não diminuíra e pareciame impossível continuar a viver assim. O meu quarto, constantemente cheio de fumo dos cigarros, pareciame uma oficina de dor, trabalhando noite e dia sem descanso; o próprio ar tornarase carregado de tristes e obcecantes pensamentos. Nesses momentos amaldiçoava muitas vezes a minha insignificância, a minha ignorância e o facto de ter uma mãe ainda mais insignificante e ignorante do que eu. Quando se têm graves problemas o nosso primeiro movimento é pedir conselhos a uma pessoa mais velha e mais experiente. Ora eu ninguém conhecia que estivesse nessas condições: pedir conselhos a minha mãe era a mesma coisa que os pedir a uma das muitas crianças que brincavam no pátio da casa. Por outro lado não chegava a penetrar bem fundo na dor de Jaime: havia muitas coisas fora do alcance da minha inteligência, e acabei por me persuadir de que o seu principal tormento era saber que as declarações que fizera perante Astárito constavam dos papéis da polícia, que ficariam no arquivo como o eterno testemunho da sua fraqueza. Certas frases dele confirmaramme esta ideia. Uma tarde disselhe:
Se te tortura que se tenha escrito tudo o que disseste a Astárito... ele fará por mim seja o que for. Tenho a certeza de que se lho pedir ele fará desaparecer o interrogatório.
Olhoume e perguntoume em tom singular:
Que te faz pensar isso?
Tu mesmo o declaraste no outro dia... Quando te disse que devias tentar esquecer tu respondesteme: “Mesmo que eu o esquecesse, a polícia lembrarseá”.
E como lhe pedirás?
É muito simples. Telefonolhe e vou ao Ministério.
Não disse nem sim nem não. Insisti:
Então queres que lhe vá pedir?
Por mim, faz como entenderes.
Saímos juntos para irmos telefonar à leitaria. Encontrei logo Astárito e disselhe que precisava de falar com ele. Pergunteilhe se podia ir ao Ministério. Mas ele, gaguejando, respondeume de uma maneira estranha:
Ou em tua casa, ou então não.
Compreendi que queria pagarse do favor que eu lhe podia e procurei disfarçar:
Num café? perguntei.
Ou em tua casa, ou então não.
Está bem! disse. Então vem a minha casa!
E acrescentei que o esperava nesse mesmo dia ao fim da tarde.
Sei o que ele quer disse a Jaime quando voltávamos. Mas ninguém pode obrigar uma mulher a fazer isso contra vontade. Chantagens... fezmas enquanto eu era ainda uma inexperiente, mas agora não mas fará mais!
Mas porque não queres? perguntoume Jaime negligentemente.
Porque é a ti a quem amo.
É muito possível disse no mesmo tom indiferente que se tu não quiseres aceder aos seus desejos ele se recuse a destruir o interrogatório... E então?
Háde destruílo, não tenhas receio.
Mas se não o fizer senão com essa condição?
Estávamos já na escada. Parei e declareilhe:
Farei o que tu quiseres.
Seguroume pela cintura e disseme lentamente:
Pois bem! Ouve o que quero. Que faças com que Astárito venho cá e que o leves para o teu quarto com o pretexto de ires para a cama com ele... Eu estarei à espreita atrás da porta e quando ele entrar matáloei com um tiro de revólver. A seguir empurramolo para debaixo da cama e nós é que nos amaremos toda a noite!
Livres pela primeira vez da névoa que os embaciara durante os dias antecedentes, os seus olhos brilhavam agora. Assusteime, sobretudo porque sentia que havia uma lógica nesta proposta e também porque daqui em diante só esperava desgraças cada vez maiores e definitivas e este crime tinha todo o ar de se poder executar.
Tem pena de mim, Jaime! gritei. Não digas isso nem a brincar!
Nem a brincar! repetiu. Com efeito estava a brincar!
Eu admitia que talvez até mesmo não brincasse. Mas o que me tranquilizou um pouco era a ideia de que o revólver de que se serviria estava vazio, porque eu às escondidas lhe tirara as balas.
Está descansado disselhe. Astárito fará tudo o que eu quiser. Mas não fales mais dessa maneira, que me assustas!
- Então agora já não tenho o direito de brincar? - disse num tom ligeiro penetrando em casa.
Desde que chegamos à sala grande notei que fora tomado de uma brusca excitação. Começou a passear de um lado para o outro, com as mãos nos bolsos, segundo o seu hábito, mas com uma atitude diferente, mais enérgica, com uma expressão que parecia denotar uma profunda e lúcida reflexão e não a sua costumada apatia. Atribui esta mudança ao alívio que sentia ao saber que esses documentos bem depressa seriam destruídos; mais uma vez abri o coração à esperança e disselhe:
Verás que tudo se arranjará!
Olhoume como se não me conhecesse e repetiu num tom mecânico:
Sim, com certeza... tudo se háde arranjar!
Tinha mandado minha mãe fazer compras para o jantar. Tive de repente uma onda de optimismo. Pensava que de facto tudo se arranjaria talvez até melhor do que se esperava. Astárito anuiria ao meu pedido, se não o tinha feito já; e em cada dia que passasse Jaime veria diminuir o seu remorso, retomaria o gosto pela vida, tornaria a olhar o futuro com confiança. Os homens têm este traço comum; na infelicidade contentamse em sobreviver; mas logo que a sorte parece querer mudar, acalentam os planos mais vastos e mais ambiciosos. Dois dias antes sentiame capaz de renunciar a Jaime se isso fosse necessário para que ele fosse feliz; agora, que confiava na possibilidade de lhe poder oferecer rapidamente esta felicidade, não só já não pensava em deixálo, mas estudava até a maneira de o prender. O que me levava a fazer estes planos não eram cálculos inteligentes, mas um impulso obscuro da minha alma, que espera sempre e não suporta por muito tempo a mortificação e a dor. Tive a impressão de que no ponto em que estavam as coisas não havia para nós mais do que duas soluções: ou nos separaríamos ou nos uníamos para toda a vida. Como não queria nem a sonhar a primeira solução, perguntava a mim própria se não haveria um meio de conseguir a segunda.
Não gosto da mentira; posso contar no número das minhas raras qualidades uma franqueza quase excessiva. Se naquele momento eu mentia a Jaime era porque não tinha a impressão de mentir, mas de dizer a verdade. Uma verdade mais verdadeira do que a própria verdade; uma verdade segundo a alma e não baseada em factos materiais. De resto em nada pensei; foi como que uma inspiração.
Continuava a andar de um lado para o outro; estava sentada ao pé da mesa. Chameio subitamente!
Ouve, pára um momento... tenho uma coisa para te dizer.
O quê?
Havia já um tempo que não me sentia bem; um destes dias fui ao médico... Estou grávida.
Parou, olhoume e repetiu:
Estás grávida?
Estou. E tenho a certeza de que é de ti.
Ele era inteligente. Não podia adivinhar que eu mentia, como compreendeu de repente e perfeitamente a verdadeira razão desta notícia. Pegou numa cadeira, sentouse ao pé de mim, fezme uma festa afectuosa na cara e disseme:
Suponho que esta devia ser mais uma razão... ou, melhor, a razão principal... para me fazer esquecer tudo o que se passou... não é?
Que queres dizer? pergunteilhe fingindo não perceber.
Vou tornarme “pai de família”. continuou. O que não queria fazer por ti vou ter de o fazer por amor desse pequenino, como vocês dizem, as mulheres.
Farás o que quiseres disselhe, encolhendo os ombros, fingindo indiferença. Digote isto porque é verdade, mais nada.
Um filho continuou no seu tom meditativo, como se pensasse em voz alta , pode ser uma razão para viver... Um filho é um bom pretexto. Pode até chegarse a roubar e a matar pelo próprio filho!
Mas quem te pede que roubes ou assassines? interrompi, indignada. Peçote apenas que estejas contente... se não podes, paciência!
Olhoume e acaricioume de novo a face com afeição:
Se estás contente, eu também estou. Estás contente?
Eu estou! respondi com segurança e orgulho. Em primeiro lugar porque gosto muito de crianças e depois porque é teu.
Riu e disseme:
Que finória me saíste!
Porquê finória? Por estar grávida?
Não, mas tens de reconhecer que neste momento e nestas circunstâncias foi um golpe de mestre! Estou grávida... por conseguinte...
Por conseguinte?
Por conseguinte é preciso que aceites o que fizeste! - gritou bruscamente muito alto, saltando e agitando os braços. Por conseguinte é preciso que vivas! Que vivas! Que vivas!
Não saberei descrever o tom da sua voz. Senti um aperto no coração e os olhos encheramseme de lágrimas.
Faz o que quiseres! balbuciei. Se me queres deixar, deixame...
Pareceu arrependerse do seu movimento, aproximouse de mim e acaricioume, dizendo:
Desculpa... não faças caso do que eu disse... pensa no teu filho e não te preocupes comigo.
Segureilhe a mão e passeia pela minha cara molhandoa com as minhas lágrimas e soluçando:
Oh! Jaime... como posso não me preocupar contigo? Ficamos muito tempo assim em silêncio: ele de pé, junto de mim, passando a mão pela minha cara, eu beijandolha e chorando.
Depois ouvimos bater à porta.
Ele afastoume de mim; tive a impressão de que empalideceu; mas de momento não percebi porque e não tive a ideia de lho perguntar. Levanteime e disselhe:
Foge! Deve ser o Astárito! Sai! Depressa!
Foi para a cozinha deixando a porta entreaberta. Limpei rapidamente os olhos, arrumei as cadeiras e passei para o vestíbulo. Sentime de novo tranquila e perfeitamente segura; enquanto caminhava às escuras no vestíbulo, lembreime de que poderia dizer a Astárito que estava grávida; com isso ele deixarmeia sossegada, e se não me quisesse fazer por amor o que lhe iria pedir, com certeza o faria por piedade.
Abri a porta e dei um passo atrás: em vez de Astárito era Sonzogne que estava na soleira da porta. Tinha as mãos nos bolsos como era seu hábito; ao gesto maquinal que fiz de fechar a porta, ele, com uma leve pressão dos seus ombros, abriuma inteiramente e entrou. Seguio até à sala grande. Foi pôrse junto da mesa ao pé da janela. Não trazia chapéu, e ainda não tinha entrado já eu sentia sobre mim os seus olhos fixos. Fechei a porta de comunicação e pergunteilhe afectando indiferença:
Porque vieste?
Denunciasteme, hem?
Encolhi os ombros e senteime na beira da mesa:
Não te denunciei.
Deixasteme, desceste a escada e foste chamar a polícia.
Estava tranquila. Se sentia algum sentimento era mais cólera que medo. Já não me inspirava qualquer receio, mas sentiame possuída de um grande furor contra ele e contra todos os que como ele impedem os outros de serem felizes.
Deixeite disselhe e fuime embora porque amo outro e não quero ter mais relações contigo. Mas não foi para chamar a polícia. Eu não sou delatora! Os polícias vieram por sua conta. Procuravam outro.
Aproximouse de mim, agarroume a cara entre dois dedos e apertouma com uma força terrível levantandoma à altura da sua e forçandome a descerrar os dentes.
Agradece ao teu Deus o seres uma mulher! disseme. Continuava a apertarme a cara, obrigandome a fazer uma careta de dor que eu sentia que era feia e ridícula. Enfurecida, pusme de pé, repelio e gritei:
Vaite embora, imbecil!
Ele tornou a meter as mãos nos bolsos, aproximandose ainda mais de mim e olhandome, como sempre, fixamente nos olhos. Tornei a gritar:
Não passas de um imbecil... com os teus músculos... os teus terríveis olhinhos azuis... a tua cabeçorra! Vaite embora! Desaparece, cretino!
“É realmente um imbecil”, pensava eu quando vi que nada dizia, mas que, com um ligeiro sorriso nos seus lábios finos e tortuosos, avançava para mim, olhandome. Corri para o outro lado da mesa, empunhei um ferro de engomar um ferro de alfaiate muito pesado e griteilhe:
Desaparece, cretino, ou atirote com isto ao focinho!
Hesitou um momento e parou. Nesse instante a porta da sala abriuse atrás de mim e Astárito apareceu. Evidentemente que encontrara a porta aberta e entrara. Volteime para ele e disselhe:
Dizlhe que se vá embora... Não sei o que me quer... Dizlhe que se vá embora!
Não sei porquê, mas senti um grande prazer ao notar a elegância de Astárito. Vestia um sobretudo cinzento, que parecia novo, e uma camisa com riscas encarnadas sobre fundo branco que parecia de seda. Uma bonita gravata cinzentoprata e um fato azul. Olhoume, enquanto eu brandia o ferro, fixou Sonzogne e disse com voz tranquila:
Esta menina dissete que te fosses embora... porque esperas?
Esta menina e eu respondeu Sonzogne, em voz baixa , temos várias coisas a dizer e é melhor que o senhor desapareça.
Astárito, ao entrar, tirara o chapéu, um feltro preto debruado de seda. Sem pressa colocouo sobre a mesa e avançou até à frente de Sonzogne. A sua atitude deixavame estupefacta. Um brilho combativo parecia cintilar nos seus olhos negros e melancólicos. A sua boca, que era grande, alargouse ainda mais num sorriso de satisfação e desafio. Mostrava os dentes. Disse martelando as sílabas:
Ah! Não queres ir? Pois bem! Eu, pelo contrário, digote que vás, e o mais depressa possível!
O outro abanou a cabeça em sinal negativo, mas, com grande admiração minha, recuou. Astárito deu um passo em frente. Estavam agora um em frente do outro, os dois quase da mesma altura.
Vamos lá a saber! Quem és tu? disselhe Astárito sempre com o mesmo ricto. O teu nome! E depressa!
O outro não respondeu.
Não queres dizer, hem? insistiu Astárito num tom quase voluptuoso, como se o silêncio de Sonzogne lhe desse prazer. Não queres dizer e não te queres ir embora... É isto?
Esperou um momento, depois levantou a mão e esbofeteou Sonzogne, primeiro numa face, depois na outra. Eu mordi o pulso. “Sonzogne matao!”, pensava fechando os olhos. Mas ouvi a voz de Astárito, que dizia:
E agora desaparece! Quanto mais depressa melhor!
Abri os olhos e vi Astárito empurrar Sonzogne para a porta, segurandoo pela gola. Sonzogne tinha ainda as faces encarnadas e inchadas, mas parecia não resistir. Deixavase levar como se pensasse noutra coisa. Astárito arrastouo para a porta da sala, depois ouvi fechar a porta com violência e Astárito reapareceu na sala.
Mas quem é? perguntoume tirando maquinalmente um grão de poeira da banda do sobretudo e olhandose como se receasse ter comprometido a sua elegância pelo esforço violento que acabara de fazer.
Nunca soube o seu nome todo. Só sei que se chama Carlos.
Carlos! repetiu abanando a cabeça.
Depois aproximouse de mim. Eu estava no vão da janela e olhava através dos vidros. Astárito passoume o braço à volta da cintura e perguntoume num tom de voz já mudado E tu como vais?
Bem, obrigada respondi sem o olhar.
Foi ele quem me olhou fixamente, depois apertoume com força contra ele, sem dizer nada. Repelio docemente e disselhe:
Foste bem gentil comigo. Telefoneite para te pedir outro favor.
Diz.
Continuava a olharme e parecia nem sequer ouvirme.
Aquele rapaz que tu interrogaste... comecei eu.
Ah! Sim! interrompeu fazendo uma careta. Ainda esse! Não se revelou um herói.
Tive curiosidade de saber a verdade sobre o interrogatório de Jaime.
Porquê? Ele teve medo?
Astárito abanou a cabeça.
Não sei se teve medo respondeume , o que é certo é que à primeira pergunta disse logo tudo. Se ele tivesse negado, eu nada teria podido fazer... Nenhuma prova havia.
“Então”, pensava eu, “passouse tudo como Jaime me contou. Uma espécie de brusca ausência, como se se tivesse afundado, sem razão, sem que o provocassem”.
Bem! continuei. Suponho que escreveram aquilo que ele disse. Queria que tu fizesses desaparecer aquilo que ficou escrito.
Foi ele quem te pediu, hem? troçou.
Não, sou eu quem pede! respondi.
E jureilho solenemente:
Eu morra agora mesmo se não é verdade!
Todos querem ver os processos desaparecer declarou ele. Os arquivos da polícia e o seu peso da consciência. Desaparecido o processo, não há mais remorsos!
Lembreime de Jaime e respondilhe:
Isso poderá ser verdade! Mas desta vez receio bem que te enganes!
Puxoume outra vez, apertando o meu ventre contra o seu; e perguntoume, todo trêmulo e balbuciante:
E tu em troca que me dás?
- Nada respondi-lhe simplesmente. Desta vez, absolutamente nada.
E se eu recusasse?
Davasme um grande desgosto porque amo esse homem, e tudo o que lhe acontece é como se acontecesse a mim.
Mas não me tinhas dito que serias gentil comigo?
Tinha... mas mudei de ideias.
Porquê?
Porque sim.
Estreitoume de novo, e falandome ao ouvido e gaguejando, suplicoume que cedesse ao seu desejo desesperado, nem que fosse pela última vez. Não saberei repetir as coisas que ele me disse, porque, misturadas com as suas súplicas, proferia enormidades que eu não desejaria escrever, das que se dizem às mulheres como eu e que as mulheres como eu dizem aos seus amantes. Ele diziaas com uma precisão meticulosa, mas sem a alegria maliciosa que acompanha habitualmente estas efusões; antes com uma sombra de prazer obcecado. Vi uma vez, num asilo, um doido descrever ao enfermeiro as torturas que lhe infligiria se lhe caísse nas mãos no mesmo tom fanfarrão, mas grave e escrupuloso que tinha Astárito para me sussurrar estas obscenidades. Na realidade o que ele me descrevia desta maneira era o seu amor, ao mesmo tempo sombrio e luminoso, que poderia parecer simples deboche, mas que eu sabia profundo, completo, e à sua maneira tão puro como qualquer outro. Como sempre, inspiravame sobretudo pena, por causa da solidão que eu sentia no fundo de todas estas enormidades. Deixeio acabar as suas efusões; depois declareilhe:
Não te queria dizer, mas tu obrigasme a isso... Faz como quiseres, mas eu não quero voltar a ser o que era dantes... Estou grávida.
Não ficou admirado e não abandonou a ideia fixa:
Bem? disse. E depois?
Revelaralhe o meu estado primeiro que tudo para o consolar da minha recusa. Mas enquanto lho dizia apercebime de que dissera realmente o que pensava e que as minhas palavras vinham do coração. Acrescentei com um suspiro:
Já, antes de te conhecer, eu queria casar... não foi por culpa minha que o não fiz.
Ele conservara o braço à roda da minha cintura, mas já não me apertava. Afastouse de mim e gritou:
Maldito seja o dia em que te encontrei!
Porquê, se me amaste?
Cuspiu de lado e disse ainda:
Maldito o dia em que te encontrei e maldito o dia em que nasci!
Não gritava agora, nem parecia traduzir um sentimento violento; falava com calma e com convicção.
O teu amigo nada tem a recear acrescentou. Nenhum interrogatório foi escrito. Não anotaram qualquer das suas informações... Continua a figurar como um político perigoso. Adeus, Adriana.
Tinha ficado ao pé da janela: disselhe adeus vendoo afastarse. Pegou no chapéu e afastouse sem olhar para trás.
Logo a porta de comunicação do meu quarto com a cozinha se abriu e Jaime entrou com o revólver na mão. Olhavao espantada, vazia, sem forças, muda.
Tinha decidido matar Astárito disseme com um sorriso. Julgas que realmente me interessava que o meu processo desaparecesse?
E porque não o fizeste? perguntei como num sonho.
Ele abanou a cabeça.
Ele amaldiçoou tanto o dia em que nasceu! Deixemolo amaldiçoálo ainda durante mais alguns anos.
Sentia qualquer coisa que me angustiava, mas não conseguia compreender o que era.
Em todo o caso, consegui aquilo que queria. Não há nenhum processo.
Ouvi, ouvi interrompeume. Ouvi tudo; estava atrás da porta e a porta estava aberta... Também vi que é corajoso o teu Astárito acrescentou negligentemente. - Pan! Pan! Que duas estaladas magistrais aplicou no Sonzogne! Mesmo para dar bofetadas é preciso categoria. Estas eram verdadeiramente de um superior para um inferior, de um patrão; de alguém que se julga patrão, a um servidor. E como Sonzogne as recebeu! Nem piou!
Jaime ria enquanto guardava o revólver na algibeira.
Fiquei um pouco desconcertada com o elogio que ele fazia a Astárito. Pergunteilhe com uma certa hesitação:
Que julgas que Sonzogne vai fazer?
Como queres que saiba?
Era quase noite, a sala estava mergulhada na penumbra. Jaime inclinouse sobre a mesa, acendeu o candeeiro de suspensão e tudo ficou escuro à volta da luz. Em cima da mesa estavam os óculos de minha mãe e as cartas com as quais ela fazia paciências. Jaime sentouse, agarrouas e baralhouas. Depois disseme:
Queres jogar uma partida enquanto esperamos pelo jantar?
Que ideia! gritei. Uma partida?
Sim... uma partida de bisca... vá, anda!
Obedeci, senteime ao seu lado e segurei maquinalmente nas cartas que ele me estendia. Tinha a cabeça atordoada e as mãos tremiamme, não sei porquê. Comecei a jogar. As figuras pareciamme ter um carácter maldoso, pouco seguro: o valete de paus sombrio e sinistro com o olho negro e a flor negra na mão; a rainha de copas luxuriante; o rei de ouros frio, impassível, inumano. Jogando, tinha a impressão de que jogávamos qualquer coisa importante, mas não sabia o quê. Sentiame mortalmente triste. De quando em quando soltava um ligeiro suspiro, para ver se aliviava o peso que sentia no peito e que mo oprimia.
Ele ganhou o primeiro jogo, depois o segundo.
Mas que tens? perguntoume baralhando as cartas. Tu jogas francamente mal.
Larguei as cartas e disselhe:
Não me atormentes assim, Jaime! Não tenho disposição para jogar.
Porquê?
Não sei.
Levanteime e dei alguns passos pela sala, torcendo as mãos. Depois pergunteilhe:
Vamos para o quarto? Queres?
Vamos.
Passamos para o vestíbulo e ali no escuro agarroume pela cintura e beijoume no pescoço. Então, talvez pela primeira vez na vida, considerei o amor como ele o considerava: um meio de se aturdir e de não pensar, nem mais agradável nem mais importante que qualquer outro meio. Segureilhe a cabeça entre as mãos e beijeio furiosamente. Foi assim que entrámos no quarto. Estava mergulhado na escuridão, mas eu nem dei por isso. Uma sombra vermelha empalideciame os olhos; cada um dos nossos gestos tinha o brilho de uma língua de fogo, brusca e rápida, do incêndio que nos devorava.
De repente encontrei-me estendida na cama, com a luz da lâmpada reflectindose sobre o meu ventre nu. Fechei as coxas, talvez por causa do frio, talvez por vergonha, e tapeime com as duas mãos. Jaime olhou e disseme:
Bem depressa a tua barriga inchará... inchará cada dia mais... um dia a dor obrigarteá a abrir essas pernas que tu fechas tão ciosamente e a cabeça da criança, já coberta de cabelos, sairá, tu a empurrarás para a luz, agarrálaão e depois irão pôla nos teus braços... ficarás contente e haverá mais um novo ser neste mundo... Esperemos que ele não venha a falar vomo Astárito!
Como?
“Maldito seja o dia em que nasci!”
Astárito é um desgraçado respondi , mas eu tenho a convicção plena de que o meu filho terá sorte e será feliz.
Depois enroleime na roupa e julgo que dormi. Mas o nome de Astárito tinha reavivado o sentimento de angústia que eu já sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu não conhecia gritarme com força aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como quando se quer imitar dois tiros de revólver; e sem sair da cama dei um salto com um movimento de susto e de angústia. A lâmpada estava ainda acesa; desci da cama e fui à porta para me certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava, de pé, ao pé da porta. Confusa, voltei para a cama, senteime dentro da roupa e perguntei:
Que diz que irá fazer o Sonzogne?
Olhoume e respondeu:
Como poderei saber?
Eu conheçoo disse eu exprimindo por fim, por palavras, a angústia que me oprimia. Não quer dizer o ter consentido que o pusessem fora da sala sem protestar. É capaz de o matar. Que julgas tu?
É muito possível.
Pensas que o vai matar?
Se o fizesse não me admiraria.
E preciso avisálo! gritei levantandome e vestindome. Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque não pensei nisto mais cedo?
Vestiame a pressa falando sempre do meu receio, do meu pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disselhe:
Vou a casa de Astárito... A esta hora está em casa... Esperame aqui.
Vou contigo.
Não insisti. No fundo agradavame que me acompanhasse, porque estava tão agitada que receava sentirme mal. Enfiei o casaco e declarei:
É preciso apanhar um táxi.
Jaime vestiu o sobretudo e saímos.
Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr, enquanto Jaime, sem me largar o braço, me seguia. Encontramos logo um táxi; gritei a direcção de Astárito. Era uma rua no bairro Prati; nunca lá tinha ido, mas sabia que não era longe do Palácio da Justiça. O táxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso curvandome, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur. A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo, pronunciar:
E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.
Não lhe prestei atenção. Quando chegávamos em frente do Palácio da Justiça mandei parar e Jaime pagou. Atravessámos as ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as árvores. A rua de Astárito surgiu na minha frente como uma espada: longa e direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edifícios regulares e maciços, sem lojas, e que parecia deserta. Astárito morava no fim da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:
É possível que eu não tenha feito outra coisa que imaginar tudo isto... Fosse como fosse era meu dever vir.
Passamos três ou quatro prédios e várias ruas transversais. Então Jaime disseme com uma voz tranquila:
Deve ter acontecido alguma coisa... olha.
Levantei os olhos e a pouca distância vi um ajuntamento em frente de uma porta. Um cordão de gente alinhavase no passeio fronteiro; olhavam para cima, na direcção do céu sombrio. Senti logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astárito. Comecei a correr; tive a impressão de que Jaime corria também.
Que há aqui? O que aconteceu? perguntei, sem fôlego. aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da porta de Astárito.
Não se percebe bem respondeu aquele a quem me dirigi, um homem louro, sem casaco, sem chapéu, que segurava a bicicleta pelo guiador , foi alguém que se atirou para a caixa da escada... ou atiraramno. A polícia subiu ao telhado para investigar o caso.
Abri caminho por entre a multidão, e à força de cotoveladas penetrei no hall da casa, que era espaçoso, bem iluminado e estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimão de ferro forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas cabeças. Quando consegui chegar à frente, vi por entre todos aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um pilar redondo de mármore branco suportava uma estátua de bronze dourado, alada e nua, com um braço levantado segurando um facho que continha uma lâmpada. Mesmo debaixo do pilar estava um corpo humano coberto com um lençol. Toda a gente olhava para o mesmo lado; olhei também e vi um pé calçado de preto que saía do lençol. No mesmo instante uma voz começou a gritar imperiosamente.
Para trás! Vãose embora!
Sentime projectada com violência para a rua, juntamente com os outros. Os altos batentes da porta fecharamse logo em seguida. Disse com voz apagada a quem estava atrás de mim:
Jaime, vamos!
Vi então uma pessoa desconhecida que, admirada, me olhava. Depois de terem em vão protestado em voz alta e batido com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaramse pelas ruas fazendo comentários: Outras chegavam de todos os lados correndo. Dois automóveis e um bom número de bicicletas pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta multidão com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciamme os de Jaime; enfiavame impetuosamente pelo meio de grupos e via um grande número de pessoas que me olhava com surpresa. Havia muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um cadáver e tinham esperança de o poder ver. Lá estavam, apertados, com uma expressão paciente e grave, como as bichas à porta dos teatros.
Continuava a errar ainda quando me apercebi que já tinha examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas pessoas. Pareceume ouvir, num destes grupos, o nome de Astárito e notei que não me preocupava com ele, mas que toda a minha angústia se concentrava em Jaime. Acabei por me convencer de que já lá não estava. Devia terse afastado no momento em que penetrei no hall. Pareceume, não sei porquê, que deveria ter esperado esta fuga; admiravame de não ter pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forças, arrasteime até praça, subi para um táxi e dei a direcção da minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera.
Não estava em casa e não voltou nem nessa noite nem no dia seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um malestar tão angustiante que não podia deixar de tremer da cabeça aos pés. Mas não tinha febre. Pareciame apenas que vivia fora de mim própria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectáculo, todo o ruído, todo o contacto me feriam e me produziam desfalecimentos de coração. Nada me podia impedir de pensar em Jaime, nem mesmo a descrição em pormenor do novo crime de Sonzogne, que os jornais que minha mãe tinha comprado traziam em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne; parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o patamar em frente da porta de Astárito, depois Sonzogne tinhao empurrado contra o corrimão, levantarao e atirarao pela caixa da escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais ninguém a não ser Sonzogne poderia matar um homem desta maneira. Mas, como já disse, tinha uma única ideia e nem mesmo cheguei a interessarme pelos artigos que contavam como mais tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia pelos telhados como um gato. Experimentava uma espécie de náusea por tudo o que não dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo tempo pensar nele enchiame de uma angústia insuportável. Por duas ou três vezes recordei Astárito; lembravame do seu amor por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tão forte como impotente; se não sentisse esta angústia por causa de Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma forma tão prematura e tão desumana. Foi assim que passei este primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na cama ou sentada numa cadeira, apertava com força entre as mãos um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e beijavao de vez em quando com paixão, ou mordiao para refrear a minha grande inquietação. Mesmo quando minha mãe me obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das mãos e com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite minha mãe quis deitarme; deixeime despir sem oferecer resistência. Mas quando tentou tirarme o casaco, dei um grito de tal maneira aflitivo que minha mãe se assustou. Ela nada sabia, mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausência de Jaime.
Ao terceiro dia tive uma ideia e toda a manhã me agarrei a ela com obstinação, se bem que compreendesse que não tinha muito fundamento. Pensava que Jaime se assustara ao saber que eu estava grávida, que quisera fugir às obrigações que lhe impunham o meu estado e que se refugiara em sua casa, na província. Era uma vil suposição: mas preferia imaginar uma cobardia sua a admitir outra hipóteses tão tristes, sugeridas pelas circunstâncias que tinham acompanhado a sua desaparição.
Nesse mesmo dia, à tarde, minha mãe entrou no meu quarto e atiroume para cima da cama uma carta. Reconheci a letra de Jaime e senti uma grande alegria. Esperei primeiro que minha mãe saísse, depois que me passasse a perturbação que me assaltara. Em seguida abri a carta. Eila completa :
“Querida Adriana:
No momento em que receberes esta carta estarei já morto. Quando abri o meu revólver e não encontrei as balas compreendi logo que tinhas sido tu quem o esvaziara e pensei em ti com grande amizade. Pobre Adriana, tu não conheces as armas, não sabias que há uma bala no cano! O facto de não te terás apercebido disso reforçou a minha resolução. Aliás há tantas maneiras de se matar! Como te disse não posso aceitar o que fiz. Senti nestes últimos dias que te amava; mas, se eu fosse lógico, deveria odiarte, porque tudo o que odeio em mim, e que o meu interrogatório me revelou, existe em ti no mais alto grau.
Na realidade, naquele momento, foi a personagem que eu deveria ter sido quem baqueou; fui unicamente o homem que sou. Não houve da minha parte nem cobardia, nem traição, mas somente uma misteriosa interrupção da vontade. Não talvez completamente misteriosa, mas o bastante para vir a conduzirme longe de mais. Bastame dizer que matandome, reponho as coisas no seu devido lugar. Não tenhas medo, não te odeio; pelo contrário, amote a tal ponto que o simples facto de pensar em ti chega para me reconciliar com a vida. Se isso fosse possível, com certeza que viveria, casaria contigo e seríamos felizes, como tu o dizias tantas vezes. Mas realmente não era possível. Pensei na criança que vai nascer e escrevi nesse sentido duas cartas: uma à minha família e outra a um advogado meu amigo. Apesar de tudo, os meus são boa gente e, se bem que não se possa ter ilusões sobre os sentimentos deles a teu respeito, estou convencido de que cumprirão o seu dever. No caso improvável de se recusarem a fazêlo, não deves hesitar em servirte da lei. Este amigo advogado irá procurarte e podes confiar nele. Pensa algumas vezes em mim.
Beijate Teu Jaime
Quando acabei de ler esta carta enfieime debaixo da roupa, enrolei a cabeça nos lençóis e chorei lágrimas ardentes. Não saberei dizer por quanto tempo chorei. De cada vez que julgava ter acabado, uma espécie de amarga e violenta derrocada se produzia no meu peito e rompia de novo em soluços. Não gritava, como sentia desejos de o fazer, para não chamar a atenção da minha mãe. Chorava em silêncio, sentindo que era a última vez na minha vida que chorava. Chorava por Jaime, por mim própria, pelo meu passado e pelo meu futuro.
Em seguida, sem deixar de chorar, levanteime e, atordoada. com a vista nublada de lágrimas, vestime à pressa. Lavei os olhos com água fria e pintei ao acaso a cara vermelha e inchada e sai sem que a minha mãe me visse.
Corri ao comissariado do bairro e pedi para ser recebida pelo comissário. Ouviu a minha história e disseme com ar céptico :
Para dizer a verdade de nada temos conhecimento. Vai ver que ele deve terse arrependido.
Desejava que ele tivesse razão. Mas ao mesmo tempo, sem saber porquê, senti uma grande irritação:
Se fala assim é porque não o conhecia disselhe com dureza. Julga que toda a gente é como o senhor!
Mas em suma perguntoume pensa que ele está vivo ou morto?
Eu quero que ele viva! Quero que ele viva! Mas receio bem que esteja morto!
Reflectiu por um momento e depois disseme:
Acalmese. No momento em que escreveu essa carta tinha toda a intenção de se matar... Depois é possível que se tenha arrependido... É humano... pode acontecer a toda a gente.
Sim, é humano balbuciei.
Não sabia o que dizia.
Seja como for, volto esta noite concluiu. Esta noite já lhe poderei dizer qualquer coisa.
Do comissariado fui direita à igreja. Era a igreja onde eu fora baptizada, onde tinha feito a primeira comunhão e onde fora crismada. Uma velha igreja, comprida e nua, com duas alas de colunas de pedra bruta e o chão de mosaicos poeirentos. Ao fundo abriamse três capelas muito ricas e muito douradas, como grutas profundas cheias de tesouros. Uma dessas capelas era consagrada à Virgem. Ajoelheime na penumbra, sobre o mosaico, em frente da grade de bronze que fechava a capela. A Virgem estava num grande altar, em frente do qual havia muitos vasos cheios de flores. Ela segurava o Menino nos braços; a seus pés um santo com hábito de monge adoravaO de joelhos, com as mãos postas. Prostreime e bati com força com a testa no solo de pedra. Cobrindo o chão de beijos em forma de cruz, invoquei a Virgem e pronunciei mentalmente um voto. Prometi que nunca mais na minha vida se aproximaria de mim nenhum homem, nem mesmo Jaime; o amor era a única coisa no mundo que me fazia falta e de que eu gostava: pareciame que não poderia fazer pela salvação de Jaime um sacrifício maior. Depois, sempre prostrada, a fronte contra a laje, rezei sem palavras, durante muito tempo, apenas com a grande força do meu coração dolorido. Mas quando me levantei tive como que um deslumbramento; pareceume que uma brusca claridade envolvia a capela e afastava a espessa sombra em que estava mergulhada; e, nessa claridade, indistintamente a Virgem olharme com doçura e bondade, mas ao mesmo tempo fazerme com a cabeça sinal que não, como para me indicar que não aceitava a minha promessa. Foi coisa de um instante; em seguida encontreime de pé junto da grade, em frente do altar. Mais morta que viva, fiz o sinal da cruz e voltei para casa.
Esperei o dia todo, contando os minutos e os segundos. À tardinha voltei ao comissariado. O comissário olhoume de uma maneira estranha; meio desfalecida pergunteilhe com um fio de voz:
Então? É verdade? Matouse?
Ele agarrou uma fotografia que estava em cima da mesa, estendeuma e disse:
Um individuo não identificado matouse de facto, num hotel, próximo da gare. Veja se é ele.
Peguei na fotografia e reconhecio logo. Tinhamno fotografado da cintura para cima, estendido sobre a cama. segundo me pareceu. Da têmpora, que a bala furara, numerosos fios de sangue negro ralavamlhe a cara. Mas apesar disso o seu rosto tinha uma expressão de tão completa serenidade como nunca tivera em vida.
Disse com voz apagada que era ele e levanteime. O comissário quis ainda falar, talvez para me consolar. Nem o ouvi e saí sem olhar para trás.
Fui para casa e desta vez atireime para os braços de minha mãe, mas sem chorar. Sabia que ela era estúpida e nada compreendia; ela era a única pessoa a quem eu podia confiar o meu desgosto. Conteilhe tudo: o suicídio de Jaime, o nosso amor e que eu estava grávida. Mas não lhe disse que o pai de meu filho era Sonzogne. Faleilhe também da minha promessa e disselhe que tinha decidido mudar de vida, que voltaria a fazer camisas, com ela, ou que me empregaria como criada. Depois de tentar consolarme por meio de uma quantidade de frases parvas mas sinceras, minha mãe disse que não valia a pena precipitarme: por agora era necessário ver o que faria a família de Jaime.
Isso respondilhe é uma coisa que diz respeito ao meu filho e não a mim.
No dia seguinte de manhã os dois amigos de Jaime, Túlio e Tomás, apareceramme de maneira inesperada. Também eles tinham recebido uma carta, na qual, depois de lhes anunciar que se matava, Jaime advertiaos daquilo a que chamava “a sua traição” e punhaos em guarda contra as consequências do seu acto.
Não tenham medo disselhes eu duramente , se estão com medo podem ficar descansados. Nada vos acontecerá.
E conteilhes a história de Astárito, dizendolhes que Astárito, o único que tomara conhecimento das declarações de Jaime, estava morto, que o interrogatório não fora transcrito e que não tinham sido denunciados. Pareceume que Tomás estava sinceramente desgostoso com a morte de Jaime, mas que o outro ainda não estava refeito do susto que apanhara. Passado um momento, Túlio declaroume:
De qualquer maneira ele meteunos num sarilho... quem pode confiar na polícia? Nunca se sabe! É na verdade uma traição!
E esfregava as mãos emitindo uma das suas enormes gargalhadas habituais, como se a coisa fosse realmente cômica.
Levanteime indignada :
Como uma traição? Como? Ele matouse; que mais querem? Nenhum de vocês teria coragem para fazer o mesmo! E depois é preciso que vos diga uma coisa: a vossa traição não vos traria mérito algum, porque vocês não passam de dois pobresdiabos, dois miseráveis, que nunca tiveram um tostão, filhos de desgraçados, pobres camponeses, e se as coisas tivessem corrido bem acabariam por ter aquilo que nunca tiveram e conheceriam uma vida regalada, vocês e as vossas famílias. Mas ele tinha dinheiro; era de boa família; era um senhor; se andava metido nisso era porque acreditava e esperava qualquer coisa de melhor para todos. Ele sim, que tinha tudo a perder, ao passo que vocês tinham tudo a ganhar!... Era isto que eu tinha para lhes dizer... E vocês deviam ter vergonha de me vir falar em traição!
- E tu... - abriu a sua enorme boca para me responder; mas o outro, que me compreendera, fezlhe um gesto para que se calasse e disseme:
- Tem razão, mas esteja descansada. Por mim, nunca pensarei senão bem de Jaime.
Parecia comovido e simpatizei com ele porque se via que era de facto amigo de Jaime. Cumprimentaramme e retiraramse.
Quando fiquei só senti um grande alívio pelas palavras que dissera a estes dois homens. Pensei em Jaime, depois no meu filho. Sabia que iria nascer de um assassino e de uma prostituta. Mas pode acontecer a qualquer homem ter de matar, a qualquer mulher darse por dinheiro; o importante era que viesse ao mundo em bom estado e fosse vigoroso e saudável. Decidi, se fosse um rapaz, que se chamaria Jaime, em memória do meu amado. Mas se fosse uma rapariga, chamarseia Letícia, porque queria que a sua vida fosse, ao contrário da minha, alegre e feliz; e tinha a certeza de que com a ajuda da família de Jaime ela teria essa vida.
Aos dezasseis anos eu era uma autêntica beleza. Tinha o rosto de um oval perfeito, estreitandose levemente nas fontes, dois grandes olhos amendoados e meigos, um nariz direito, que prolongava harmoniosamente a nobre linha da fronte, uma bela boca de lábios vermelhos e carnudos e uma dentadura perfeita, muito regular e de extraordinária brancura. Minha mãe dizia que eu me parecia com uma santa. Pela minha parte, descobria que me parecia com uma artista de cinema muito em voga nesse tempo, e comecei a pentearme como ela. Minha mãe passava a vida a dizerme que, se tinha um rosto bonito, o meu corpo era cem vezes mais belo ainda, e que em toda Roma não se encontraria um corpo mais perfeito do que o meu. Nesse tempo o meu corpo não era coisa que me interessasse muito. Eu pensava que só a beleza do rosto é que tem importância, mas agora sei que minha mãe tinha toda a razão no que dizia. As minhas pernas eram direitas e fortes, as ancas suavemente arredondadas, as costas longas, largas nos ombros e estreitas na cintura. Tinha o ventre ligeiramente proeminente sempre tive um bocadinho de barriga e o meu umbigo enterravase tão profundamente na carne que quase se não via. Eu pensava que isso era um defeito, mas minha mãe teimava que, pelo contrário, era um novo encanto, porque o ventre de uma mulher deve ser arredondado sem exagero, e não completamente chato como se usa agora. O meu seio era grande, mas firme e alto, e nunca necessitei de qualquer auxílio ou artifício para o manter numa posição perfeita. Também a este respeito, quando às vezes me lamentava do seu tamanho, que me parecia excessivo, minha mãe respondia que só um seio grande poderia ser belo e que o seio pequeno não tinha qualquer espécie de encanto feminino. Nua, como haviam tantas vezes de dizermo mais tarde, eu era grande e opulenta como uma bela estátua. Vestida dava a impressão de uma rapariguita um tanto magra, nunca compreendi bem porquê, até que um pintor de quem fui modelo me disse que isso se devia à extrema harmonia das minhas proporções.
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Foi, é claro, minha mãe quem me conseguiu esse emprego. Ela própria tinha posado antes de se casar e de se tornar costureira de camisas. E foi precisamente o facto de um pintor a encarregar de alguns trabalhos de costura que lhe inspirou a ideia de o convencer a contratarme para seu modelo. A primeira vez que fomos ao seu atelier eu ia profundamente envergonhada. Não por ir despirme completamente pela primeira vez diante de um homem, mas por pensar nos elogios que minha mãe não deixaria de fazer para convencer o pintor a aceder às suas propostas. E, na verdade, como eu calculara, mal acabou de me ajudar a despir e me apanhou completamente nua no meio da sala, minha mãe começou, entusiasmadíssima, a fazer o meu elogio:
Veja este seio e estas ancas! Repare nas pernas que ela tem! Onde encontraria o senhor umas pernas, uns seios e umas ancas como estes?
Ao mesmo tempo que falava apalpavame, como se faz nas feiras de gado para encorajar o comprador a fechar o negócio. O pintor riase, divertido. Eu sentiame morrer de vergonha.
Como estávamos no Inverno, sentia bastante frio. E, embora as palavras que saíam da boca de minha mãe não me vexassem profundamente, eu compreendia que ela falava sem malícia e que o orgulho que a minha beleza lhe causava vinha do facto de ter sido ela quem me gerara e ser, portanto, a ela que eu devia essa beleza. O pintor também parecia compreender esses sentimentos da minha mãe, porque se ria sem maldade, cordialmente. Foi isso que me devolveu a coragem perdida e me deu forças para ir aquecerme junto da salamandra acesa. O pintor tinha quarenta anos. Era um homem gordo, de aspecto sossegado e bem disposto. Eu sentia que ele olhava para mim como quem olha para um simples objecto, sem nenhuma espécie de sensualidade, e isso davame confiança. Mesmo mais tarde, quando a intimidade se estabeleceu entre nós, continuou sempre a tratarme gentilmente, com respeito, não como se eu fosse uma simples coisa, mas já como uma pessoa. Senti mediatamente uma grande simpatia por ele, e talvez fosse possível que me tivesse apaixonado simplesmente devido à sua amabilidade e à amizade com que me tratava. Mas ele nunca teve para comigo a mais pequena familiaridade: para mim foi sempre não um homem mas apenas um pintor, e durante todo o tempo em que posei para ele as nossas relações mantiveramse tão distantes e tão correctas como no primeiro dia.
Quando minha mãe se cansou de me tecer louvores, o pintor, sem uma palavra, dirigiu-se para um monte de cartões empilhados numa cadeira, folheouos e voltou com uma gravura colorida, que mostrou a minha mãe dizendolhe naturalmente :
Aqui tens a tua filha.
Afasteime do calor da salamandra para vir ver a gravura.
Representava uma mulher nua, estendida numa cama coberta de ricos tecidos. Para além da cama viase um reposteiro de veludo, e nas pregas desse reposteiro, suspensos no ar, dois meninos alados que me pareceram ser dois pequenos anjos.
Efectivamente, aquela mulher pareciase comigo. No entanto, e apesar de estar nua, por causa dos tecidos e dos anéis que tinha nos dedos, depreendiase que devia ter sido uma rainha ou uma grande dama, enquanto que eu não passava de uma pobre rapariga do povo. A princípio minha mãe não compreendeu e ficou a olhar para a gravura com ar aparvalhado. Depois, de repente, pareceu ter descoberto a semelhança e gritou, quase sufocada:
Não há dúvida alguma! É ela! Vê como eu tinha razão? De quem se trata?
De Dánae respondeu o pintor a sorrir.
E quem é Dánae?
Dánae é uma divindade pagã...
Minha mãe, que esperava o nome de uma pessoa que tivesse realmente existido, ficou desorientada. Para esconder a sua confusão começou a explicarme com grandes gestos que eu tinha de me pôr na posição que o pintor indicasse, deitada como a mulher da gravura, por exemplo, ou então de pé, ou sentada, e conservarme imóvel, sempre na mesma posição, durante todo o tempo do trabalho dele. Rindo, o pintor declarou que minha mãe conhecia o ofício muito melhor do que ele próprio. E logo minha mãe, cheia de vaidade, desatou a falar dos tempos em que era modelo e todos os artistas de Roma a disputavam e lhe elogiavam as formas, lamentando amargamente o facto de ter abandonado esse trabalho. Entretanto, o pintor tinhame feito estender num sofá ao fundo do atelier, indicarame a posição, dobrandome ele próprio as pernas e os braços para lhes dar a atitude requerida. Tudo isto foi feito com uma delicadeza meditativa e distraída. Como se na realidade já me estivesse a ver tal qual pretendia pintarme. Depois, enquanto minha mãe continuava infatigavelmente a sua conversa. Começou a desenhar numa tela branca que pusera num cavalete. Minha mãe, percebendo que ele já nem sequer a ouvia. Absorvido pelo seu trabalho, perguntoulhe:
Quanto tenciona pagar à minha filha por cada hora de pose?
O pintor disse um preço qualquer sem levantar os olhos da tela. Minha mãe nem se dignou responderlhe ou discutir com ele. Pegou na minha roupa, que estava nas costas de uma cadeira, e atiroume violentamente com ela, ordenando:
Vestete! O melhor que temos a fazer é irmonos embora...
Que mosca te mordeu? interrogou o pintor, estupefacto, parando de desenhar.
Nada. Nada! disse minha mãe, que parecia estar cheia de pressa. Vamos, Adriana. Temos imenso que fazer e não podemos perder tempo!
Que diabo! exclamou o pintor. Se tens uma proposta para me fazer, diz do que se trata e deixate de histórias...
Então minha mãe lançouse numa discussão interminável, gritando que ele era completamente idiota se pensava que podia pagarme uma ridicularia daquelas, que se não tratava de um destes modelos velhos que a ninguém interessam, mas sim de uma bela rapariga de dezasseis anos, que posava pela primeira vez.
Quando minha mãe quer impor a outras pessoas o seu ponto de vista usa sempre a táctica da gritaria, como se realmente estivesse possuída de uma violenta cólera; eu, que a conheço como às minhas mãos, sei perfeitamente que aquilo não passa de um processo; grita como as regateiras do mercado quando o comprador lhes faz uma oferta que elas consideram baixa. E este processo dá sempre resultado, especialmente com as pessoas que, pela sua formação, não podem responder aos seus gritos com gritos semelhantes. É com essas, aliás, que ela emprega mais vezes o sistema.
Com o pintor também não falhou. Enquanto minha mãe se esganiçava cada vez mais, ele sorria, e apenas fazia de vez em quando um vago gesto para a interromper. Por fim, aproveitando uma oportunidade em que minha mãe se calara durante alguns momentos para respirar, perguntoulhe calmamente quanto pretendia que ele me pagasse. Mas minha mãe não lhe respondeu imediatamente. Atirou este argumento que ninguém podia esperar:
O que eu gostava de saber era quanto esse que pintou o quadro que acaba de nos mostrar pagou ao seu modelo!
O pintor desatou a rir:
Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? Os tempos mudaram muito de então para cá. Ele deve terlhe dado em troca uma boa garrafa de vinho, talvez um par de luvas, não sei...
De novo minha mãe ficou tão desorientada como quando ele lhe tinha dito que a gravura representava Dánae. Eu compreendia que o pintor estava a divertirse à sua custa. Mas era sem maldade, e minha mãe não se apercebeu disso. Desatou novamente a gritar, chamandolhe miserável avarento e exaltando a minha beleza sem par. Depois, de repente, pareceu acalmarse e disselhe a quantia que entendia que devia pagarme, ou melhor, que ela queria que me pagasse. O pintor não concordou, discutiram ainda um bom bocado, mas por fim acabaram por assentar numa importância um pouco inferior à que minha mãe tinha indicado. O pintor dirigiuse para uma mesita, abriu uma gaveta e pagoulhe. Ela guardou alegremente o dinheiro, fezme algumas recomendações e retirouse. O pintor foi fechar a porta, voltou a sentarse diante do seu cavalete e perguntoume:
A tua mãe fala sempre assim aos gritos?
Minha mãe gosta muito de mim respondi.
Pois olha disse ele tranquilamente, continuando a desenhar. Cá, para mim, do que ela gosta muito é de dinheiro...
Oh! Não, isso não é assim! respondi vivamente.
De quem ela gosta acima de tudo é de mim. Mas tem pena que eu tenha nascido pobre e gostava de me ver ganhar a vida largamente.
Quis relatar pormenorizadamente esta história do pintor porque esse foi o meu primeiro dia de trabalho, se bem que eu tivesse acabado por escolher um ofício inteiramente diferente, e também para mostrar como o seu procedimento indicava o seu carácter e os seus sentimentos para comigo.
Terminada a minha hora de pose fui ter com minha mãe a uma leitaria onde tínhamos marcado encontro. Perguntoume como se tinha passado a sessão e obrigoume a relatar-lhe minuciosamente todas as palavras do pintor, que era, aliás, pouco falador. Finalmente disseme que eu precisava de ter os olhos bem abertos. Que talvez esse pintor não tivesse más intenções a meu respeito, mas que a maioria dos artistas tentava sempre tornarse amante dos seus modelos, quando valia a pena, é claro. Ora era preciso que eu repudiasse energicamente qualquer proposta desse género.
Nenhum deles tem onde cair morto explicoume e nada há de bom a esperar deles. E tu, com a beleza que Deus te deu, podes aspirar a coisa muito melhor...
Era a primeira vez que minha mãe se me dirigia nestes termos. Mas ela falava com a segurança de uma pessoa que se refere a coisas longamente meditadas.
Que queres dizer com isso? perguntei, surpreendida.
Vagamente, respondeume:
Falam todos muito bem, mas não têm um chavo. Uma linda rapariga como tu não deve frequentar senão homens decentes..
Como homens decentes? Eu ninguém conheço...
Ela olhoume durante uns momentos e concluiu, com os seus modos distraídos:
Por agora podes perfeitamente ser modelo. Mais tarde veremos... Cada coisa a seu tempo.
Havia nos seus olhos uma expressão ávida e concentrada que quase me fez medo. E nesse dia a conversa ficou por aí.
As recomendações e os conselhos de minha mãe eram desnecessários, porque eu era nesse tempo extremamente séria, talvez como consequência da minha juventude. Depois deste pintor trabalhei para outros e torneime muito conhecida entre eles. Devo dizer que, de um modo geral, os pintores se mostravam correctamente reservados e respeitosos para comigo, se bem que alguns deles nada fizessem para me esconder os seus sentimentos a meu respeito. Mas eu afastavaos imediatamente com tal violência que rapidamente adquiri a fama de que comigo nada havia a fazer. Mas creio que a verdadeira razão do modo reservado como os pintores se portavam comigo era que na realidade o que lhes interessava não era fazerme a corte, mas pintar. Ora, enquanto desenhavam ou pintavam, os olhos com que me viam eram olhos de artista, e não de homem. Quero dizer que, na minha opinião, olhavam para mim com a mesma insensibilidade com que teriam olhado para uma cadeira ou para outro objecto qualquer. Estavam habituados a trabalhar com modelos, e o meu corpo nu, apesar de jovem e provocante, não lhes causava qualquer impressão, como sucede com os médicos. O que me complicava às vezes a existência eram os amigos dos pintores. Chegavam e punhamse a conversar. Mas não tiravam os olhos de mim, apesar da indiferença que afectavam. Outros nem sequer tentavam disfarçar o que sentiam e andavam constantemente de um lado para o outro de modo a poderem mirarme de todos os ângulos. Foram estes olhares e as obscuras alusões de minha mãe que acordaram o meu amor-próprio feminino, tornandome consciente, ao mesmo tempo, da minha beleza e das vantagens que podia tirar dela. E acabei, não só por me habituar a essas assiduidades, mas até por sentir um certo prazer quando os visitantes se perturbavam por minha causa e uma estranha desilusão quando isso não acontecia.
Terminei por convencerme, como o desejava minha mãe, de que eu possuía na minha beleza um bom capital, que um dia poderia render lucros pingues e seguros.
Nessa época da minha vida eu pensava, no entanto, em me casar. Os meus sentidos ainda não tinham acordado e, pondo de lado a vaidade, os homens que olhavam para mim enquanto posava não me provocavam qualquer sentimento. Entregava pontualmente a minha mãe todo o dinheiro que me pagavam, e quando não tinha trabalho ficava com ela em casa, ajudandoa a cortar e a coser as camisas. Este era o nosso meio de existência desde a morte de meu pai, que tinha sido ferroviário. Vivíamos num pequeno apartamento situado no segundo andar de uma pobre casa, construída havia cinquenta anos para o pessoal dos caminhos de ferro, numa rua da periferia da cidade. De um lado havia uma fileira de construções do mesmo tipo, com dois andares, uma fachada de tijolos sem reboco, doze janelas seis em cada andar e em baixo uma porta central. Do outro lado estendiamse as antigas muralhas da cidade, que neste local se mantinham de pé, cobertas de heras e trepadeiras. Uma porta rasgavase nessas muralhas, próximo da nossa casa. Perto dessa porta havia uma espécie de LunaParque, sempre iluminado e com música durante o tempo seco. Da minha janela eu podia ver grinaldas de lâmpadas multicores, tectos dos quais se erguiam pequenas bandeiras e pendões e a multidão que se comprimia à entrada, debaixo dos enormes plátanos que davam sombra a esse lado da rua. A música ouviase distintamente em nossa casa.
Muitas vezes, durante a noite, eu deixavame ficar acordada para a escutar, sonhando com os olhos abertos. Pareciame que ela chegava até mim vinda de um mundo inacessível, circunstância que a pequenez do meu quarto reforçava. Tinha a impressão de que toda a população da cidade vinha divertirse para o LunaParque e que eu era a única que não tinha posses para o fazer. E a música, que soava em toda a noite, evocava no meu espírito a ideia de um castigo que eu sofria por causa de crimes que devia ter cometido, mas que ignorava quais tivessem sido. Por vezes, ao ouvila, chegava a chorar, de tal modo a minha exclusão me humilhava e tornava infeliz, porque nesse tempo eu era terrivelmente sentimental: um gesto ou uma palavra mais brusca de uma amiga, uma censura de minha mãe, uma cena emocionante vista no cinema, qualquer coisa era suficiente para que as lágrimas me viessem aos olhos. Possível que eu não tivesse com tanta nitidez a percepção de um mundo de felicidades que me estavam vedadas se durante a minha infância minha mãe não impedisse tão exclusivamente a minha entrada no LunaParque. Mas a sua viuvez precoce, a sua falta de recursos e principalmente a sua hostilidade para com todos os divertimentos de que ela própria estava privada fizeram com que ela nunca me permitisse a entrada no LunaParque ou em qualquer outro lugar de distracção senão muito mais tarde, quando eu já era uma mulherzinha e o meu carácter já se encontrava formado. Provavelmente a isso que devo ter guardado em toda a minha vida esta convicção da existência de um mundo de alegria e de felicidade vedado para mim por um destino ao qual já pertencia ainda antes de ter nascido. E esta sensação radicouse tão profundamente dentro de mim que não consigo libertarme dela nem quando tenho a certeza de que sou feliz.
Já disse que nesse tempo a minha grande aspiração era o casamento. Agora posso ver qual era o verdadeiro aspecto que essa ideia tomava dentro de mim. A rua em que morávamos atravessava, quase no seu termo, um bairro menos pobre do que o nosso. Em lugar das nossas casas baixas e iguais, semelhantes a carruagens de caminho de ferro, empoeiradas e velhas, podiam verse aí pequenos pavilhões rodeados de jardins. Não eram luxuosos. Os que lá viviam não passavam de modestos empregados ou remediados comerciantes, mas, em comparação com a miséria da nossa casa, esses pavilhões eram infinitamente confortáveis e alegres. Além disso eram todos diferentes uns dos outros e não mostravam o aspecto de decadência que dão as paredes sem cal e cheias de gretas, característica dominante da nossa casa e das dos nossos vizinhos. Também os jardins que os rodeavam, apesar de pequenos, estavam cheios de plantas e davamme uma doce sensação de intimidade, em contraste com a desagradável promiscuidade da rua. Na minha casa era isso o que se encontrava a todos os momentos e em toda a parte, a rua: no vasto vestíbulo, que tinha o ar de um armazém abandonado, na larga escada nua e suja, e até nas salas, cujos móveis desirmanados e a cair aos pedaços me faziam pensar nos ferrosvelhos que os compravam e vendiam ao longo dos passeios.
Uma noite de Verão em que passeava na rua com minha mãe, pela janela de um desses pavilhões vi uma cena familiar que se gravou para sempre no meu espírito e me pareceu corresponder ponto por ponto à ideia que tinha do que deve ser uma vida normal e decente. Uma sala pequena, mas arrumada e limpa, com as paredes forradas de um papel pintado às florinhas, uma credência e um candeeiro de tecto suspenso ao centro da sala por cima da mesa posta. A roda desta mesa sentavamse cinco ou seis pessoas, entre as quais três crianças dos oito aos doze anos. No meio da mesa havia uma terrina, e a mãe, de pé, servia a sopa. Por muito estranho que isto possa parecer, de todas estas coisas a que mais profundamente se gravou na minha memória foi a luz da suspensão, ou, melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e normal que todas as coisas tomavam vistas sob esta luz. Mais tarde, sempre que voltei a pensar nesta cena, tive a convicção absoluta de que o meu fito na vida devia ter sido viver numa casa idêntica, ter uma família como esta e passar os meus dias ao clarão de uma luz assim, que parecia revelar a presença de tantas afeições seguras e tranquilas. Muita gente háde sorrir da modéstia das minhas aspirações. Mas é preciso não esquecer o que eu era nesse tempo. Para mim, nascida num autêntico tugúrio, aquele pavilhão modestíssimo surgia aos meus olhos como surgiria aos olhos dos seus habitantes, que eu tanto invejava, um dos maiores e mais sumptuosos palácios dos bairros aristocráticos, tão certo é ser o paraíso de uns o que para outros não passa do inferno.
Minha mãe, ao contrário, acalentava grandes projectos para o meu futuro, e eu depressa compreendi que esses projectos excluíam por completo qualquer tipo de vida parecido com o que eu própria desejava. O que ela pensava, em resumo, era que a minha beleza me permitia aspirar a todos os géneros de êxitos, mas de nenhum modo a tornarme, como as outras raparigas, uma mulher casada, vivendo para o marido e para os filhos. Sendo nós extremamente pobres, a minha beleza parecialhe o único património de que dispúnhamos, e pertencia, portanto, tanto a mim como a ela, visto ter sido dela que eu a recebera ao deitarme ao mundo. E esta riqueza devia servirme para melhoria da nossa situação, sem ligar importância ao que podiam ser as convenções sociais. No fundo isto não passava de uma completa falta de imaginação. Numa situação como a nossa, a ideia de pôr a minha beleza a render era perfeitamente intuitiva. Minha mãe adoptoua, agarrouse a ela e nunca mais a abandonou.
A verdade é que eu só muito vagamente compreendia os projectos da minha mãe. Mas mesmo mais tarde, quando adquiri experiência da vida, nunca tive coragem para lhe perguntar como, incompreensivelmente, tendo ela essas ideias, tinha acedido a casar com um pobrediabo e cair na miséria. Muitas das suas alusões tinhamme feito compreender que a verdadeira culpada deste estado de coisas era eu, visto que o meu nascimento não tinha sido previsto nem desejado. Por outras palavras, o meu nascimento fora ocasional, e minha mãe, sem coragem de me impedir de nascer (como deveria ter feito, segundo dizia muitas vezes), não tinha tido outro remédio senão casarse com meu pai e aceitar todas as consequéncias desastrosas de um casamento semelhante. Por isso, com frequéncia, referindose ao meu nascimento, afirmava: “Tu foste a minha ruína!”
Estas palavras, apesar da tristeza que me causavam, foram durante muito tempo perfeitamente obscuras para mim. Só muito mais tarde lhes consegui apreender o sentido exacto. O que elas realmente significavam era: “Sem ti nunca me teria casado e a esta hora tinha automóvel!” Era perfeitamente compreensível que, nutrindo ideias destas acerca da sua própria vida, minha mãe não concebesse para mim, muito mais bonita do que ela fora, o caminho dos mesmos erros, e portanto um destino semelhante.
Hoje, que me é possível ver as coisas em perspectiva, não tenho coragem de a condenar. Para minha mãe a palavra família significava miséria, escravidão e algumas pequenas alegrias rapidamente terminadas com a morte do meu pai. Era natural, senão justo, que considerasse a vida honesta e familiar como um caminho seguro para a desgraça e estivesse alerta a não me deixar tentar pelas miragens que a tinham atraído.
A sua maneira, minha mãe gostava muito de mim. Por exemplo: logo que eu comecei a frequentar os ateliers, fezme dois vestidos: um fato inteiro e outro de saia e casaco. Para falar verdade, eu teria preferido roupa interior, porque tinha vergonha, sempre que era forçada a despirme, da minha roupa grosseira, usada, e até muitas vezes pouco limpa. Mas minha mãe declarava que o importante era o que estava à vista. Para os fatos escolheu dois tecidos baratos, de cor e padrão vistosos, e cortouos e coseuos ela própria. Mas, porque era camiseira e não modista, apesar da sua boa vontade, os resultados foram desastrosos. Lembrome de que o fato inteiro fazia pregas no peito, deixandome de tal maneira os seios a descoberto que fui obrigada a usar constantemente um alfinete para fechar um pouco mais o decote, e que o fato de saia e casaco estava demasiadamente apertado e fazia rugas e pregas por todos os lados. Apesar disso, estas roupas pareceramme verdadeiras maravilhas, em comparação com as coisas que até ali usara. Minha mãe comproume também dois pares de meias de seda. Tudo isso me encheu de alegria e de orgulho. Pensava constantemente, com encanto, nas minhas novas coisas e nem por um momento abandonava a preocupação de as não sujar ou estragar, como se aqueles míseros trapos tivessem saído das mãos de um grande costureiro.
Minha mãe pensava muito no meu futuro e não tardou a mostrarse descontente com a minha actividade de modelo. Segundo ela, o que eu ganhava era uma verdadeira miséria. Além disso, tanto os pintores como os seus amigos eram uns pobretões, e não seria com certeza nos seus ate1iers que eu conseguiria algumas relações úteis. De repente meteuselhe na cabeça fazerme bailarina. A sua cabeça estava sempre cheia de ideias ambiciosas, ao passo que eu, como já tive ocasião de dizer, sonhava com um marido, filhos e uma vida simples e tranquila. A ideia da dança veio à minha mãe num dia em que recebera uma encomenda de camisas para o director de uma companhia de variedades que se exibia num cinema entre dois filmes. Isto não quer dizer que minha mãe pensasse que a profissão de bailarina fosse por si própria muito lucrativa; mas, conforme afirmava constantemente, umas coisas levam às outras e quem se exibe num palco mais tarde ou mais cedo acaba por encontrar um homem decente.
Um dia declaroume que falara com o director e que este me queria conhecer. Fomos, assim, uma manhã ao hotel em que ele e os seus artistas estavam hospedados. O hotel recordome perfeitamente ficava num prédio muito grande e muito velho perto da estação. Era quase meiodia quando lá chegámos, mas os corredores ainda estavam em profunda obscuridade. O cheiro humano que saía de todos aqueles quartos era tão forte e tão denso que chegava a dificultar a respiração. Percorremos vários desses corredores e acabámos por entrar numa espécie de antecâmara sombria, onde três bailarinas se exercitavam ao som de um velho piano desafinado. Este piano estava arrumado num ângulo da parede junto da porta de vidro fosco das retretes; no canto em frente havia um enorme montão de lençóis sujos. O pianista, um velho pálido, tocava de cor; deume a impressão de pensar noutra coisa e talvez até de estar a dormir. As três bailarinas eram jovens; tinham despido os corpetes, conservando as saias de baixo, e dançavam com o peito e os braços nus. Seguravamse umas às outras pela cintura, e quando o pianista atacava uma ária caminhavam na direcção do montão de roupa suja, levantando as pernas e passeandoas num movimento de conjunto, primeiro para a direita e depois para a esquerda; depois com uma atitude provocante, extremamente bizarra neste lugar sombrio e lúgubre, imprimiam às nádegas uma oscilação vigorosa. Quando olhei para elas e as vi bater com os pés no chão com um barulho rítmico, forte e surdo, senti que me faltava a coragem. Não ignorava que, apesar das minhas pernas longas e robustas, eu não possuía a menor queda para a dança. Tinha recebido lições, juntamente com duas amigas, numa escola do bairro. As minhas camaradas haviam conseguido em poucos dias apreender o ritmo e mexer as pernas e as ancas como duas bailarinas bem treinadas; eu, pelo contrário, parecia feita de chumbo. Isto davame a impressão de não ser feita como as outras raparigas e julgava existir em mim qualquer coisa de maciço e de pesado que a música não conseguia atingir. Além disso, nas raras vezes em que tinha dançado, o facto de sentir um braço apertarme a cintura davame uma tal sensação de moleza e de abandono que eu arrastava as pernas em lugar de as mover. O pintor bem mo dissera: “Tu, Adriana, devias ter nascido três ou quatro séculos mais cedo... Estava na moda as mulheres como tu. Hoje, que a moda é a magreza, tu és como um peixe fora de água. Dentro de quatro ou cinco anos estarás bela e forte como Juno.” Nesta última parte não acertou porque os cinco anos passaram e eu não estou nem mais gorda nem mais forte que nesse tempo. Mas quando me dizia que estava deslocada nesta época de mulheres magras tinha razão, e eu sofria com a minha incapacidade. Bem gostaria de emagrecer e de dançar como as outras raparigas. Mas por menos que comesse e por mais esforços que fizesse continuava maciça e imponente como uma estátua, e quando dançava erame impossível obedecer ao ritmo rápido e saltitante da música moderna.
Disse tudo isto a minha mãe, porque tinha a certeza de que a nossa ida ao hotel seria um fiasco e queria evitar essa humilhação. Mas minha mãe desatou a gritar que eu era infinitamente mais bela do que todas as desgraçadas que se mostravam nos palcos, que o director daria graças a Deus pela sorte de poder incluirme no seu grupo de artistas e outras coisas semelhantes. Minha mãe nada compreendia da beleza moderna; acreditava com inteira boa fé que quanto mais opulentos forem os seios e as ancas de uma mulher mais bela essa mulher será.
O director esperavanos numa sala que dava para a antecâmara de que já falei; suponho que do sítio onde estava podia vigiar, pela porta aberta, o trabalho das bailarinas. Estava sentado numa poltrona ao lado da cama por fazer, e em cima desta tinha ainda a bandeja do pequenoalmoço, que acabara de tomar. Era velho e gordo, mas vestiase com exagerado requinte e com uma elegância vistosa, que naquele quarto pobre e desleixado, mal iluminado e com a cama desfeita, assumia um aspecto singular e anacrónico. O seu rosto era corado, mas desconfiei que o pintava, porque debaixo do tom rosado das faces podiam verse como que placas irregulares de um moreno doentio. Usava monóculo, movia constantemente os lábios assoprando e descobrindo os dentes de uma brancura tão excessiva que se via imediatamente serem postiços. Estava sentado com o enorme ventre caindolhe para o meio das pernas; quando acabou de comer disseme numa voz contrariada e quase gemebunda:
Vamos, mostrame as pernas!
Mostra as pernas ao senhor director repetiu a minha mãe com ansiedade.
Desde que trabalhava nos ateliers já não tinha vergonha... Mostrei as pernas conservandome imóvel, arregaçando a saia com as duas mãos. As minhas pernas são verdadeiramente belas: longas, cheias e lisas, mas, um pouco acima dos joelhos, as coxas tomam um desenvolvimento insólito: são redondas e fortes e não cessam de alargar até ao ponto mais saliente das ancas.
O director abanou a cabeça e perguntou:
Que idade tens tu?
Completou dezoito anos em Agosto respondeu prontamente minha mãe.
O director não respondeu. Levantouse e dirigiuse para um fonógrafo que se encontrava em cima da mesa, no meio de papéis e peças de roupa. Deu volta à manivela, escolheu um disco com cuidado e colocouo no prato. Depois disseme :
Agora tenta dançar ao som desta música, mas mantendo a saia levantada.
Ela só teve duas ou três lições de dança explicou minha mãe.
Sabia perfeitamente que essa prova era decisiva, e conhecendo a minha falta de habilidade temia o resultado do exame.
Mas o director, depois de ter feito um gesto pedindo silêncio, fez rodar o disco e, também por gestos, convidoume a dançar.
Comecei mantendo a saia levantada, como me tinha dito para fazer. Na realidade, a única coisa que fiz foi atirar as pernas para a direita e para a esquerda de um modo pesado e sem graça, dandome perfeitamente conta de que nem sequer o fazia acompanhando o ritmo da música. O director tinhase deixado ficar de pé junto do fonógrafo com os cotovelos apoiados na mesa, olhando para mim. De repente parou o aparelho e fechouo. Voltou a sentarse na sua poltrona e com um gesto expressivo indicounos a porta.
Que foi? Não serve? interrogou minha mãe, entre ansiosa e agressiva.
Ele respondeu sem sequer olhar para ela, ao mesmo tempo que remexia nos bolsos em busca da cigarreira.
Não. Não serve.
Eu bem sabia que quando minha mãe falava com aquele tom de voz tentava provocar uma discussão. Para evitar isso puxeia por um braço. Mas ela afastoume com um safanão e, fixando no director um olhar chamejante, repetiu, já em voz mais forte:
Não serve? Não? E poderá saberse porquê? Entretanto o director tinha encontrado os cigarros e procurava os fósforos.
Devido à sua gordura cada um dos seus gestos parecia custarlhe um enorme esforço. Apesar de ofegante, foi com grande tranquilidade que respondeu:
A tua filha nem tem físico de bailarina nem tem a menor queda para a dança. Por isso que não serve.
Como eu calculava, minha mãe desatou nas suas habituais considerações. Que eu era uma autêntica beleza, que tinha um rosto de Madona, que não havia pernas, nem ancas, nem seios mais belos do que os meus. Calmamente, continuando a fumar o seu cigarro, o director observavaa e esperava que ela se calasse. Depois disse na sua voz contrariada e um pouco chorona:
Dentro de dois anos a tua filha poderá talvez dar uma boa ama de leite. Uma bailarina nunca!
O pobre homem não sabia de que extremos de violência minha mãe era capaz. O seu pasmo foi tão grande que deixou cair o cigarro e ficou de boca aberta. Minha mãe era magra e de aspecto frágil, de modo que ninguém compreendia onde ela ia buscar tanta cólera e uma voz tão forte. Atiroulhe à cara, dirigidas a ele e às bailarinas que tínhamos visto no corredor, quantas injúrias sabia. Depois, agarrando nos cortes de seda que ele lhe confiara para ela fazer camisas, arremessouos ao chão gritando:
As suas bailarinas que lhe façam as camisas! Eu não lhes tocarei nem que mas pagasse a peso de ouro.
Isto era tão inesperado para o director que ele nada respondeu e ficou a olhar para minha mãe, estupefacto e congestionado.
Eu, entretanto, tentava arrastála dali para fora e quase chorava de vergonha e de humilhação. Conseguio finalmente, e saímos do quarto sem que o director pronunciasse uma única palavra.
No dia seguinte contei esta aventura ao pintor, que se tinha tornado um pouco meu confidente. Ele riu com vontade do que o director dissera quanto às minhas aptidões para ama de leite e disseme:
Minha pobre Adriana. Já to disse várias vezes: o teu grande erro foi teres nascido no tempo presente; devias ter vindo ao mundo há quatro séculos. O que hoje é considerado defeito era então considerado qualidade e viceversa. Do seu ponto de vista, o director tem razão. O público actualmente exige mulheres magras, louras, de seio pequeno, ancas estreitas e um rosto malicioso e provocante; tu, pelo contrário, és forte, morena, com um seio e umas ancas opulentas e um rosto doce e tranquilo. Não está na tua mão modificares a situação. Para mim tens precisamente o que necessito. Continua a ser modelo. Depois, um belo dia, casarás e terás muitos filhos parecidos contigo, morenos e gorduchos, com caras meigas e tranquilas.
São essas precisamente as minhas ambições respondi com energia.
Muito bem disse ele. Agora inclinate um bocadinho para o lado. Isso! Óptimo.
Este pintor queriame bem à sua maneira, e se tivesse continuado a viver em Roma e a servirme de confidente tenho a certeza de que me daria bons conselhos e muitas coisas que me aconteceram poderiam ter sido evitadas. Mas ele queixavase constantemente de que não vendia os seus quadros e acabou por aproveitar a oportunidade de ter feito uma exposição em Milão para fixar residência naquela cidade.
Continuei a ser modelo como ele me aconselhara. Mas os outros pintores não tinham por mim a mesma amizade e eu não me sentia disposta a falarlhes dos meus problemas nem da minha vida.
Nessa altura, aliás, muito mais imaginária do que real, feita de sonhos, de aspirações e de esperanças, visto que nada de extraordinário me acontecia.
Foi assim que continuei a ser modelo, apesar de minha mãe resmungar constantemente que por esse processo eu nunca chegaria a ganhar coisa que se visse. No decurso deste período da minha vida minha mãe esteve constantemente de mau humor, e, apesar de ela o não dizer claramente, eu bem compreendia que a causa da sua má disposição era eu. Não é esta a primeira vez que o digo: minha mãe contava com a minha beleza como se conta com um capital seguro. Para ela o ofício de modelo não passava de um ponto de partida; depois disto, segundo a sua expressão habitual, “uma coisa traria outra”. A continuação deste trabalho humilde e mal remunerado, ao mesmo tempo que a enchia de amargura, tornavaa rancorosa contra mim, como se o facto de eu não ser ambiciosa a privasse de lucros seguros.
Evidentemente que não me dizia isto. Mas dava-mo constantemente a perceber pelos seus modos desagradáveis, as suas alusões, os seus suspiros, os seus olhares melancólicos e outros meios de expressão igualmente significativos. Era uma espécie de chantagem constante, a razão pela qual muitas raparigas, fundamentalmente honestas, martirizadas sem piedade nem tréguas por mães ambiciosas e desiludidas, acabam por fugir de casa e entregarse ao primeiro homem que encontaram, unicamente para se libertarem desse tormento. Eu bem sei que minha mãe fazia isto por amor de mim. Mas esse amor era como os dos aldeões para com as galinhas: no dia em que elas deixam de pôr ovos começam imediatamente a perguntar a si próprios se não terá chegado o momento de lhes torcer o pescoço e as meter na panela.
Como se é paciente e crédulo quando se é jovem! A minha vida nesse tempo era horrível e eu nem sequer tinha consciência disso. O dinheiro que me rendiam as minhas longas, enfadonhas e fatigantes sessões de pose nos ateliers era por mim integralmente entregue em casa, e o tempo que não passava nua, entorpecida e dolorida pela imobilidade, para que me pintassem e desenhassem, passavao em casa a coser à máquina, de costas dobradas e com os olhos fitos na agulha ajudando minha mãe no seu trabalho. À noite continuava a costurar até tarde, para me levantar mal começava a amanhecer, pois os ateliers ficavam longe e as sessões começavam cedo. Mas antes de partir para o trabalho fazia a minha cama e ajudava minha mãe a arrumar a casa. Eu era realmente infatigável, submissa, paciente e ao mesmo tempo sempre calma, alegre e tranquila, a alma isenta de inveja, de rancor ou de ciúme, cheia dessa doçura e dessa gratidão sem motivo que são a florescência espontánea da juventude. Não me apercebia da desoladora fealdade da minha casa. Uma enorme sala servia de atelier, com uma grande mesa ao centro, coberta de trapos. Havia mais trapos pendurados nos pregos colocados nas paredes sombrias e desbotadas e algumas cadeiras desmanteladas. Um quarto onde eu dormia com minha mãe numa cama de casal; mesmo por cima da minha cabeça, quando estava deitada, o tecto tinha uma grande mancha de humidade; quando estava mau tempo chovianos em cima. Tínhamos uma pequena cozinha escura recheada de pratos e panelas, que minha mãe por desmazelo nunca chegava a lavar completamente. Não me apercebia da vida de sacrifício que levava, sem divertimentos, sem amor, sem amizade. Quando penso na rapariga que eu era, na minha inocência e na minha bondade, sinto uma grande compaixão por mim mesma, impotente e entristecida, a mesma que se sente quando, ao lerse um romance, desejamos evitar a uma personagem simpática as desgraças que lhe vão acontecer, sabendo ao mesmo tempo que as não poderemos impedir. A vida é assim: a bondade, a inocência, nada valem para os homens. E não será talvez um dos seus menos dolorosos mistérios que as melhores qualidades que a natureza nos deu e todos entusiasticamente louvam não sirvam senão para nos tornar mais desgraçados ainda.
Nesta altura acreditava que a minha aspiração de casar e ter uma família podia vir a ser satisfeita um dia. Todas as manhãs tomava o eléctrico numa grande praça muito perto da minha casa, para a qual dava, entre outros prédios, uma construção baixa encostada às muralhas e que servia de garagem. A essa hora estava todos os dias à porta da oficina um rapaz que lavava e limpava o seu carro e me olhava com insistência. Era moreno, com um ar finíssimo: nariz pequeno e direito, olhos negros, uma boca maravilhosamente bem desenhada e os dentes muito brancos. Pareciase muito com um actor americano de cinema muito em voga naquele tempo; foi isso que me chamou a atenção. Primeiro tomeio por uma pessoa de condição, porque estava bem vestido e tinha maneiras educadas e finas. Imaginei que o carro lhe pertencesse e ele fosse uma pessoa rica, um dos tais “cavalheiros respeitáveis” de que minha mãe tanto me falava. Por um lado ele atraiume, mas pensava nele apenas quando o via; depois ia para o atelier e a sua lembrança saíame do espírito. Mas não é menos verdade que sem dar por isso e apenas por causa das suas olhadelas ele me tivesse seduzido, porque uma manhã em que eu, no passeio, esperava o eléctrico, ouvi que me chamavam de uma maneira parecida com a que se usa para chamar os gatos; volteime e vi que ele me fazia sinais de dentro do carro. Com uma docilidade irreflectida da qual me admirava, não hesitei um instante em aproximarme. Ele abriu a porta. Ao entrar reparei que a mão que pousava sobre o vidro aberto era grossa e rude; as unhas estavam sujas e partidas e o indicador estava amarelecido pelo fumo do tabaco, como têm os homens que exercem profissões manuais. Nada disse e mesmo assim subi.
Onde quer que a deixe? perguntoume fechando a porta.
Notei que tinha a voz doce e tive a impressão de que ela me agradava, sem no entanto deixar de notar nela qualquer coisa de falso e de afectado. Acrescentou:
Bem... para fazer horas vamos dar uma volta... Ainda é cedo! Depois leválaei aonde você quiser.
E o carro partiu.
Saímos do meu bairro e contornámos as muralhas ao longo da avenida exterior; em seguida entrámos numa estrada larga e comprida, ladeada de casebres e de armazéns; por fim chegámos ao campo. Então desatou a correr como doido por uma estrada recta, entre áleas de plátanos. De vez em quando diziame sem me olhar, mostrando o contaquilómetros:
Agora vamos a oitenta... noventa... cem... cento e vinte... cento e trinta.
Queria impressionarme com estas velocidades, mas eu estava sobretudo inquieta porque tinha de ir posar e receava que um incidente qualquer nos obrigasse a parar o carro em algum descampado. De repente travou. Bruscamente desligou o motor, voltouse para mim e perguntou:
Quantos anos tem?
Dezoito anos respondi.
Dezoito anos... julguei que tivesse mais!
Tinha realmente uma maneira de falar afectada, e por vezes, para sublinhar uma palavra, baixava o tom como se falasse consigo próprio ou dissesse um segredo.
Como se chama?
Adriana. E você?
Gino.
O que faz? pergunteilhe.
Sou comerciante! respondeu sem hesitar.
E o carro ê seu?
Olhou o carro com uma espécie de desdém e declarou:
É meu, sim.
Não acredito! disselhe eu com toda a franqueza.
Não acredita? Estão não é meu! repetiu sem perder a linha. Não está má! E porquê?
Você é o chauffeur?
Ele fingiu um espanto irónico cada vez maior.
Mas, na verdade, você dizme coisas fantásticas! Vejam bem: chauffeur! Mas que a fez pensar isso?
As suas mãos.
Olhou as mãos sem corar nem se desconcertar e confessou:
Bom! Nada se pode esconder a esta menina. Mas que argúcia! É verdade, sou chauffeur. E agora, está contente?
Nada mesmo! respondi duramente. Quero apenas pedirlhe que me leve para a cidade o mais depressa possível.
Mas porquê? Está zangada comigo por eu ter dito que era comerciante?
Estava realmente irritada com ele. Nem eu sabia bem porquê:
Não falemos mais nisso. Leveme!
Mas era uma brincadeira! Então já não se pode brincar?
Não gosto destas brincadeiras!
Que mau génio! Eu pensei: é possível que esta rapariga seja alguma princesa... se ela descobre que sou apenas um pobre chauffeur, nem se digna olharme... vou dizerlhe que sou comerciante.
As suas palavras foram astuciosas, porque, lisonjeandome, faziamme compreender os seus sentimentos a meu respeito. Por outro lado ele pronunciavaas com uma mistura de graça e de enfatuamento que acabaram de me conquistar.
Não sou qualquer princesa respondi. Ganho a minha vida como modelo, como você ganha a sua como chauffeur.
Que quer dizer isso de modelo?
Vou aos ateliês dos pintores. Ponhome nua e eles pintamme ou desenhamme.
Mas você não tem mãe? perguntoume com ênfase.
Com certeza, porquê?
E a sua mãe consente que se ponha toda nua diante dos homens?
Eu nem sequer tinha sonhado alguma vez que pudesse haver algum mal neste trabalho. Efectivamente, não havia mal algum nisso, mas agradoume ver tais sentimentos, que denotavam que ele era sério e tinha senso moral. Como já disse, eu tinha sede de normalidade; e ele na sua falsidade tinha compreendido logo (mesmo agora eu não sei como conseguiu adivinhar) as coisas que me devia dizer e as que não devia. Outro qualquer não pude deixar de pensar - ou teria troçado de mim ou teria demonstrado qualquer indiscreta excitação à ideia da minha nudez. E foi por isso que a primeira impressão que me ficara da sua mentira se modificou sem que eu desse por isso. Pensei que apesar de tudo devia ser um bom rapaz, honesto e sério, muito parecido com o homem que eu sonhava para marido.
Respondilhe portanto com simplicidade:
Foi minha mãe quem me arranjou este trabalho.
Então é sinal de que ela não gosta de si.
Não protestei , a minha mãe gosta até muito de mim; mas ela também no seu tempo de rapariga foi modelo. E depois assegurolhe que nada tem de mal. Há muitas raparigas como eu que fazem este trabalho e são raparigas sérias.
Ele abanou a cabeça em ar de desaprovação e depois pousou a sua mão na minha.
Sabe que estou bem contente por têla conhecido... muito contente!
Também eu respondi ingenuamente. Neste momento sentia uma atracção tão grande por ele que quase esperava que me beijasse. Com certeza que se me tivesse beijado eu não teria protestado, mas em vez disso disseme com voz grave e ar protector:
Se isso dependesse de mim, você não seria modelo com certeza!
Sentime imediatamente vítima e experimentei um sentimento de gratidão pela sua consideração.
Uma rapariga como você continuou ele deve ficar na sua casa... precisando... pode trabalhar... Mas é preciso que seja um trabalho digno... um trabalho em que não seja necessário sacrificarse a pôr em perigo a sua honra. Você é uma rapariga para casa, fundar um lar, ter filhos, fazer companhia ao seu marido.
Era exactamente o que eu pensava e não sabia dizer até que ponto me tornava feliz saber que ele pensava como eu, ou fingia pensar.
Tem razão disselhe. Mas não quero que faça uma ideia errada de minha mãe. Foi justamente por ela gostar muito de mim que quis que eu fosse modelo.
Ninguém o diria! retorquiu com um ar seriamente comovido e indignado.
Sim! Ela gosta de mim! Somente, há certas coisas que ela não compreende.
Continuámos a falar de tudo ou pouco, sentados, atrás do párabrisas, dentro do carro parado. Lembrome de que estávamos em Maio, que o ar era doce e que as sombras dos plátanos pareciam brincar sobre a estrada até perder de vista.
Ninguém passava, salvo raros automóveis a toda a velocidade. O campo em redor, cheio de sol e muito verde, estava tão deserto como a estrada. Por fim olhou o relógio e disseme que íamos voltar para a cidade. Durante todo este tempo ele só me tinha pegado na mão, e mesmo isso apenas uma vez. E eu, que esperava que ele tentasse pelo menos beijarme, estava ao mesmo tempo decepcionada e contente de tanta reserva. Decepcionada porque ele me agradava e não podia deixar de sentir uma grande atracção pela sua boca fina e vermelha quando a olhava. Contente porque a sua atitude confirmava a ideia que tinha a seu respeito, de que era um rapaz sério como eu desejava que ele fosse.
Conduziume até ao atelier e disseme que, a partir desse dia, se eu estivesse na paragem do eléctrico a uma certa hora, ele me traria no seu carro; a essa hora nada tinha que fazer.
Aceitei de boa vontade, e as minhas longas horas de pose pareceramme mais curtas naquele dia. Parecia que a minha vida tinha tomado um rumo e sentiame contente de poder pensar nele sem remorsos e sem ressentimentos, como se pensa num homem que não só nos agrada fisicamente, mas também pelas qualidades de carácter que eu considerava essencial que ele fosse possuidor.
Nada disse a minha mãe, porque pensava, muito acertadamente, que ela nunca aceitaria que eu me ligasse a um homem pobre e de futuro modesto. Na manhã seguinte veio buscarme como me prometera, e nesse dia limitouse a levarme directamente ao atelier. Nos dias seguintes, logo que o tempo começou a ficar bom, levoume por vezes para qualquer estrada dos arrabaldes, ou para qualquer rua pouco frequentada da periferia, a fim de conversarmos à vontade, mas sempre de maneira respeitosa e conversas honestas e sérias que muito me agradavam. Eu era nesse tempo muito sentimental: tudo o que traduzisse bondade, virtude, moral e afeição de família tocavame singularmente e comoviame até às lágrimas, lágrimas que me corriam livremente dandome uma sensação embriagadora e ardente de alívio, de simpatia e de confiança. Foi assim que pouco a pouco me convenci de que Gino era absolutamente perfeito.
“Realmente pensava eu às vezes ... que defeitos tem ele? É novo, é belo, é inteligente, é honesto, é sério, não se lhe pode apontar o mais pequeno defeito.” Isso admiravame porque não é fácil encontrar a perfeição, e o conhecêla quase me afligia. “Que homem é este que, depois de perscrutado, não revela a menor mácula, nem a menor falta?”
Na verdade, eu apaixonarame sem dar por isso. E agora sei que o amor tem uns óculos através dos quais um monstro nos parece maravilhoso.
Estava de tal maneira apaixonada que a primeira vez que ele me beijou, na estrada onde tivera lugar a nossa primeira conversa, experimentei uma tal sensação que se poderia traduzir como a satisfação natural de um velho anseio, há muito desejado. Contudo, a irresistível espontaneidade com que as nossas bocas se uniram assustoume um pouco, porque eu pensava que de futuro os meus actos já não dependiam de mim, mas da força irresistível que me atraía com tão doce violência para os seus braços. No entanto, fiquei plenamente descansada, porque logo que nos separámos ele disseme que nos podíamos considerar daí em diante como noivos.
Ainda desta vez não pude impedirme de pensar que ele encontrara sem dificuldades as palavras que correspondiam aos meus anseios mais íntimos. Assim, o receio que este beijo me despertara desvaneceuse e todo o tempo em que estivemos parados na estrada fui eu quem o beijou, sem reserva, com um sentimento de inteiro, violento e legítimo abandono. Dei e recebi na minha vida muitos beijos. Sabe Deus quantos dei e recebi sem a menor reacção, não só afectiva mas também física, como se dá ou se recebe uma moeda usada por mil mãos. Mas nunca mais esquecerei aquele primeiro beijo, pela intensidade quase dolorosa com a qual satisfiz plenamente, não apenas o meu amor por Gino, mas uma espera de toda a minha vida. Lembrome de ter tido a sensação de que à nossa volta o mundo girava, que eu tinha o céu em baixo e a Terra em cima de mim.
Na realidade tinhame apenas debruçado um pouco sobre a sua boca para prolongar o beijo. Qualquer coisa de fresco e de vivo tocava e forçava os meus dentes, e quando os descerrei senti que a sua língua, que tanta vez me acariciara os ouvidos com as suas palavras, se me revelava agora mudamente, fazendo penetrar na minha boca uma outra doçura desconhecida. Não sabia que se podia beijar assim e por tanto tempo; bem depressa perdi a respiração e sentime tão vazia que quando nos separámos encosteime às costas do banco com os olhos fechados e o espírito abstracto, como se fosse desmaiar. Nesse dia descobri que havia outras alegrias no mundo além de uma vida tranquila no seio da família. Mas não pensava que essas alegrias pudessem impedir aquelas a que eu até então aspirara.
Depois da promessa de noivado de Gino sentime segura de poder sem pecado nem remorsos daqui para o futuro saborear ao mesmo tempo umas e outras. Estava tão convencida da honestidade e da dignidade da minha conduta que nessa mesma noite, com um pouco de excitação e satisfação ao mesmo tempo, contei o caso a minha mãe. Encontreia a coser à máquina junto da janela à luz crua de uma lâmpada sem abatjour, e disselhe com a cara a arder:
Mamã, estou noiva!
Vi a sua face enrugarse com uma contracção como se tivesse sentido um fio de água gelada correrlhe pelas costas abaixo.
E de quem? perguntou.
De um rapaz que conheci há uns dias.
Que faz ele?
É chauffeur.
Gostaria de ter acrescentado mais alguma coisa, mas ela não me deu tempo. Afastouse da máquina e. saltando da cadeira, agarroume pelos cabelos:
Ficaste noiva sem nada me dizeres! E com um chauffeur? Coitada de mim! Tu vais ser a minha morte.
Gritando, ela tentava esbofetearme. Eu protegia a cara com as mãos e acabei por me escapar, mas ela seguiu atrás de mim. Corri à volta da mesa que ocupava o centro da sala, enquanto ela me perseguia com lamentações de desespero. Eu estava completamente apavorada ao ver o seu rosto magro virado para mim com uma espécie de fúria dolorosa.
Eu matote! gritava. Desta vez matote! Cada vez que ela dizia “matote” dirseia que a sua raiva aumentava e que ela ia pôr em prática as suas ameaças. Eu estava no topo da mesa e vigiava os seus gestos porque naquele momento ela era capaz senão de me matar, pelo menos de me ferir com a primeira coisa que apanhasse à mão. Com efeito a certa altura brandiu a grande tesoura de costura; só tive tempo de me virar e logo a tesoura voou pelo ar e foi bater na parede. O seu próprio gesto assustoua. Bruscamente sentouse junto da mesa, com o rosto entre as mãos, e teve uma crise de lágrimas nervosas entrecortada por ataques de tosse, onde havia mais raiva que dor. Ouviaa dizer por entre lágrimas:
E eu que tinha tantos planos para ti!... Eu que te via rica... com a tua beleza... E logo te foste comprometer com um esfomeado!
Mas ele não é um esfomeado interrompi timidamente.
Um chauffeur! Um chauffeur! repetia ela levantando os ombros. Tu não passas de uma desgraçada e acabas por me desgraçar a mim também!
Pronunciou lentamente estas palavras como para saborear a sua amargura.
Vai casar contigo e tu serás a sua criada primeiro e depois a criada dos teus filhos... assim que tudo acabará!
Casaremos logo que ele tenha dinheiro suficiente para comprar um carro! declarei, anunciando um dos vários planos de Gino.
Veremos!... Mas não o quero cá metido! gritou bruscamente, voltando para mim a cara coberta de lágrimas. Não o quero ver! Faz o que quiseres... encontrate com ele lá fora, as não o metas aqui!
Nessa noite fuime deitar sem jantar, muito triste e muito desencorajada. Mas percebi que se minha mãe se portava comigo desta maneira era por gostar de mim e por ter feito para o meu futuro não sei que planos que o meu noivado com Gino deitava por terra. Mais tarde, quando compreendi quais eram esses planos, não senti coragem para a condenar. Ela não tinha recebido da sua vida honesta e laboriosa outras recompensas que não fossem amarguras, tormentos e miséria. Que admira que sonhasse para a sua filha uma sorte completamente diferente?
Devo acrescentar que se tratava talvez não tanto de planos, mas mais propriamente de sonhos vagos e cintilantes que podia acalentar sem muitos remorsos precisamente por serem vagos e cintilantes. Mas isto é uma suposição. Pode muito bem ser que, pelo contrário, a minha mãe, por um desvio inveterado de consciência, tenha realmente decidido encaminharme um dia para o caminho que fatalmente eu iria tomar sozinha. Se digo estas coisas não é por rancor contra minha mãe, mas porque ainda hoje não sei bem o que pensava ela então e porque a experiência me ensinou que se pode pensar e sentir ao mesmo tempo as coisas mais diferentes sem lhes notar a contradição.
Minha mãe jurara que em caso nenhum se encontraria com Gino e durante algum tempo respeitei o seu juramento. Mas depois dos primeiros beijos, Gino parecia extremamente desejoso de apôr tudo em ordem, como ele dizia, e todos os dias insistia comigo para ser apresentado a minha mãe. Não tinha coragem para lhe dizer que ela não o queria conhecer porque achava a sua profissão demasiado humilde e vime por isso forçada a encontrar constantemente pretextos para retardar essa ocasião. Por fim Gino compreendeu que eu lhe escondia qualquer coisa e insistiu tanto que me vi forçada a revelarlhe a verdade.
Minha mãe não te quer conhecer. Acha que eu devia casarme com um homem rico e não com um chauffeur.
Esta conversa passavase dentro do carro na ruazinha costumada do arrabalde. Gino olhoume com tristeza, suspirando. Eu estava a tal ponto apaixonada por ele que nem me dei conta do que havia de fingido na sua maneira de falar.
Eis o resultado de ser pobre! exclamou.
Depois disso mantevese num silêncio longo e teimoso.
Humilhame respondeu ele baixando a cabeça. Outro qualquer no meu lugar nem teria falado em noivado, nem teria pedido para ser apresentado à tua mãe. É para que serve querer a gente portarse bem!
Que importância tem isso se tens a certeza do meu amor?
O que eu devia ter feito continuou ele era apresentarme com a carteira bem recheada e sem falar de casamento. Se fizesse isso, tua mãe abrirmeia os braços...
Não ousava contradizêlo porque bem sabia que tudo quanto ele dizia era verdade.
Sabes o que vamos fazer? propus daí a momentos. Um destes dias levote lá a casa sem dizer nada. Desse modo minha mãe não terá outro remédio senão conhecerte. Que demónio! Não pode chegar ao exagero de fechar os olhos!
Na noite combinada para isso conduzi Gino a nossa casa. Minha mãe tinha acabado a tarefa desse dia e estava a preparar uma ponta da mesa para jantarmos. Entrei à frente e disse simplesmente.
Mamã! Este é o Gino!
Esperava que houvesse uma cena desagradável. Até tinha prevenido Gino. Com grande surpresa minha ela disse secamente :
Muito prazer...
E depois saiu da sala.
Vais ver que tudo corre bem disse Gino.
Aproximeime dele, estendilhe a boca e acrescentei:
Dáme um beijo...
Não, não murmurou ele em voz baixa afastandome. Se eu fizesse isso, tua mãe teria muita razão em pensar mal de mim.
Gino sabia encontrar sempre as palavras exactas e perfeitas para cada momento. Tive de concordar para comigo que tinha razão. Minha mãe entrou pouco depois e, evitando olhar para Gino, disse:
O jantar não chega porque eu não sabia... Mas vou sair e...
Não teve tempo de acabar porque Gino se aproximou imediatamente dela interrompendoa:
Por amor de Deus ! Eu não vim cá para que me dessem de jantar. Pelo contrário! Peço licença para as convidar a ambas...
Falava cerimoniosamente, como a pessoas da alta. Minha mãe, que não estava habituada a que lhe falassem assim, nem a receber convites, hesitou uns momentos olhando para mim.
Depois respondeu:
Cá por mim, se a Adriana quiser..
Podíamos comer na casa de pasto aqui ao lado... - propus eu.
Onde quiserem respondeu Gino.
Minha mãe declarou que ia tirar o avental e deixounos sós! Enchiame uma enorme e ingénua alegria, tinha a impressão de que acabava de conseguir uma grande vitória quando na realidade isto tudo não passava de uma comédia, na qual eu era a única pessoa que permanecia completamente sincera. Aproximeime de Gino, e antes que ele conseguisse impedirme beijeio com paixão. O meu beijo marcava o termo da ansiedade que me tinha atormentado tantos dias, a segurança de que mais nenhum obstáculo agora se ergueria contra o meu casamento, a minha gratidão por Gino pela sua atitude amável para com a minha mãe, a minha afeição por ele, uma afeição sincera, confiante e desarmada como só é possível sentirse aos dezoito anos quando ainda nenhuma desilusão nos tocou e feriu a alma. Só mais tarde é que vim a compreender como esta candura tem pouca importância para os outros. A maior parte das pessoas consideramna ridícula e gostam de a macular.
Dirigimonos os três para um modesto restaurante que ficava perto da nossa casa, do outro lado das fortificações. À mesa.
Gino, deixando de me dar qualquer importáncia, consagrouse por completo a minha mãe, no claro desejo de a conquistar, o que aliás me pareceu louvável e legítimo; foi por isso que não prestei grande atenção às suas exageradas amabilidades para com ela. Gino tratavaa por “madame”, tratamento absolutamente novo para ela, e tinha o cuidado de usar esta palavra o mais possível no começo e no fim das suas frases. Ao mesmo tempo, com o ar mais natural deste mundo. Dizialhe: “A senhora, que é uma pessoa inteligente, deve compreender.” Chegou ao extremo de lhe declarar que quando tinha a minha idade ela devia ter sido muito mais bonita do que eu.
Que provas tens disso? perguntei, um tanto amuada.
Ora! Estas coisas adivinhamse, não precisam de provas! respondeu com ar superior e entendido.
Quanto a minha mãe, coitada, não sabia que fazer. Cheguei a notar que às vezes repetia a si própria, murmurando, os madrigais afectados e manifestamente interesseiros de Gino.
Esta era, com certeza absoluta, a primeira vez na sua vida em que lhe diziam coisas destas, e o seu coração esfomeado não conseguia saciarse. A mim, como já disse, todas essas falsidades me pareciam uma prova de respeito de Gino pela minha mãe e da sua delicada ternura para comigo. E tudo isto era como o toque final do pincel no belo retrato de Gino, já tão cheio de perfeições e qualidades.
Entretanto, um grupo de gente jovem viera sentarse na mesa próxima da nossa. Um dos rapazes, que me pareceu estar embriagado. Pôsse a olhar insistentemente para mim e disse em voz alta qualquer frase obscena a meu respeito. Gino ouviua, levantouse imediatamente e dirigiuselhe:
Repete o que acabas de dizer! ordenou.
O caso interessate? perguntou o outro, numa voz, um pouco pastosa, de bêbado.
Esta senhora e esta menina estão acompanhadas por mim! declarou Gino elevando a voz e enquanto estiverem comigo tudo o que lhes diz respeito me interessa. Entendido?
Entendido. Não te irrites respondeu o rapaz, assustado.
Os outros, apesar da sua atitude hostil, nada se atreveram a fazer. E o rapaz, fingindose ainda mais embriagado do que na realidade estava, encheu um copo com vinho e ofereceuo a Gino. Este recusou com um gesto.
Não queres beber? gritou o bêbado. Não gostas de vinho? Fazes mal. O vinho é bom e faz bem. Está bem, pronto, bebo eu!
Esvaziou o copo de uma golada. Gino encarouo severamente durante momentos e depois voltou para junto de nós.
Gente mal educada! disse sentandose.
Não valia a pena incomodarse disse minha mãe, envaidecida com o que se passava. Não passam de garotos.
Mas Gino não queria perder a oportunidade de marcar o seu espírito de galanteria cavalheiresca.
Como não valia a pena? Ainda se fosse com uma dessas mulheres... bem, compreendamonos, não é verdade “madame”? Se fosse isso vá lá, mas eu estou com uma senhora e com uma menina honestas e respeitáveis. Aliás, o pateta compreendeu logo que era melhor fazer marcha a trás...
Este incidente completou a conquista de minha mãe, sem contar que Gino a forçava a beber, e que o vinho a embriagava tanto como as suas adulações. Apesar disso, para além da simpatia que ela sentia por Gino, mantinhase o mau humor que lhe causava o nosso noivado. Por isso não deixou escapar a primeira ocasião que se lhe apresentou para lhe fazer compreender que nada estava esquecido.
Essa oportunidade foilhe oferecida por uma conversa acerca da minha profissão de modelo. Não me recordo a que propósito, falei de um novo pintor para quem tinha posado essa manhã.
Gino declarou imediatamente:
Talvez isto seja idiota e pouco moderno, mas custame aceitar que a Adriana se ponha nua diante de todos esses homens...
E porquê? perguntou minha mãe com uma voz alterada que me fez temer a aproximação da tempestade.
Porque me não parece moral.
Não me atrevo a dizer integralmente a resposta que lhe foi dada. Essa resposta estava cheia dos palavrões e das obscenidades que lhe vinham à boca sempre que bebia ou se deixava dominar pela cólera. Mas, mesmo expurgada, a sua diatribe revelava claramente quais eram as suas ideias sobre o assunto.
Ah, não é moral?! gritou de tal modo que todos os presentes pararam de comer e se voltaram para nós. Ah, não é moral? Então o que é moral? Passar todo o santo dia a lavar pratos, cozinhar, passar a ferro, esfregar o chão, e depois, à noite, ver chegar um marido tão estafado como nós, que se deita mal acaba de jantar, se volta para o outro lado e se põe a ressonar como um porco? Isso é que é moral, não lhe parece? Sacrificarse uma pessoa toda a vida, tornarse velha e feia e por fim estourar, isso é que é moral? Pois muito bem! Sabe o que lhe digo? Que não se vive mais do que uma vez, e quando se morre, boasnoites! Vá para o diabo com a sua moral! A Adriana faz muito bem em se mostrar nua a quem lhe paga para isso, e ainda faria melhor se... Aqui uma série de obscenidades, que me fizeram corar, proclamadas aos gritos para toda a gente. Pela minha parte continuou se ela fizesse isto que digo, não só não tentaria impedila, como ainda a ajudaria com todas as minhas forças! Desde que lhe pagassem, é claro! concluiu, depois de um momento de reflexão.
Tenho a certeza de que não seria capaz disso respondeu Gino, sem perder a calma.
Quem?! Eu?! Isso é o que o senhor pensa! Mas de que diabo se convenceu o senhor? De que me causou algum prazer que a Adriana se tivesse comprometido com um pobretanas como o senhor, um simples chauffeur? Que não preferiria mil vezes que ela levasse uma vida de paródia? Julga que eu posso concordar que minha filha, bela como é, capaz de fazer pagar a sua beleza por fortunas, vá condenarse a ser uma criada sua para toda a vida? Pois, meu amigo, se pensa isso, enganase! Garantolhe que se engana!
Gritava de tal maneira que toda a gente tinha os olhos cravados nela. Eu estava meia morta de vergonha. Porém, Gino, como já disse, mantinhase perfeitamente calmo e senhor de si.
Aproveitandose de um momento em que minha mãe se calou para respirar, encheulhe o copo e propôs gentilmente, com um sorriso:
Mais uma gota de vinho?
Ela não soube fazer outra coisa senão dizer: - Obrigado! - e aceitou o copo que Gino lhe oferecia. A nossa volta as pessoas, vendo que apesar de todos aqueles gritos nós continuávamos a beber como se nada se tivesse passado, retomaram as suas conversas. Gino declarou:
A Adriana, bela como é, merecia levar a vida que leva a minha patroa...
E que vida leva ela? apresseime a perguntar, ansiosa por deixar de ser o assunto da conversa.
Pela manhã respondeu ele com vaidade, como se a riqueza dos seus patrões se reflectisse nele próprio levantase aí pelas onze ou meiodia. Levamlhe o pequenoalmoço à cama numa bandeja de prata e num serviço de que as peças são também de prata maciça. Depois toma o seu banho, mas antes disso a criada de quarto deita sais na água para a perfumar. A seguir levoa a dar uma passeio de carro. Toma um vermute em qualquer parte, ou corre as lojas à procura de coisas que lhe agradem. Volta então para casa, almoça, dorme a sesta e passa horas a vestirse. Também tem armários e armários cheios de coisas! Quando está pronta, sai para fazer visitas ou jantar fora. A noite vai ao teatro ou dançar, e também recebe com freqüência lá em casa. Nessas ocasiões jogam, bebem, ou ouvem música. Uma gente rica, extraordinariamente rica. Só em jóias estou convencido de que a minha patroa possui milhões.
Como as crianças a quem é fácil distrair ou fazer mudar de disposição, minha mãe já se tinha esquecido de mim e do meu injusto destino e esbugalhava os olhos perante a descrição de todo esse esplendor.
Milhões? repetiu com avidez. E é bonita? Gino, que estava a fumar, cuspiu com destreza um fio de tabaco.
Bonita? Ela?! Credo! É horrorosa. Tão magra que parece uma bruxa!
Continuaram os dois a conversar acerca da fortuna da patroa do Gino, ou, para ser mais exacta, Gino continuou a exaltar a sua riqueza como se a ele próprio pertencesse. Mas, passado o primeiro impulso de curiosidade, minha mãe tinhase tornado novamente sombria e distraída. E nunca mais abriu boca em toda a noite. Talvez tivesse vergonha de se ter abandonado àquele acesso de cólera; talvez toda aquela riqueza lhe inspirasse inveja e talvez pensasse com despeito na pobreza do homem que eu tinha escolhido para noivo.
No dia seguinte perguntei timidamente a Gino se ela lhe tinha desagradado muito; mas ele respondeume que, muito embora não concordando, compreendia o seu ponto de vista cuja origem era uma vida infeliz e cheia de privações. Era digna de pena, concluiu. Além disso viase bem que se falava daquela maneira é porque gostava muito de mim. Era esta também a minha opinião, e fiqueilhe agradecida por se mostrar tão compreensivo. Na verdade eu tinha tido muito medo de que a cena que a minha mãe fizera viesse esfriar as nossas relações.
A moderação de Gino, além de me encher de gratidão, reforçou em mim a ideia de que ele era perfeito. Se eu fosse menos cega e menos inexperiente teria compreendido que só a falsidade premeditada pode dar uma impressão de perfeição e que a verdadeira sinceridade apresenta sempre, ao mesmo tempo, qualidades e defeitos.
Em resumo, daí para o futuro a minha posição perante ele seria sempre de inferioridade, porque eu ficaria para sempre convencida de nada lhe ter dado em troca da sua generosidade e da sua compreensão. Talvez se deva atribuir ao estado de alma de uma pessoa que se via cumulada de favores e que deseja instintivamente pagar a sua dívida o facto de, a partir desse momento, eu ter deixado por completo de resistir, como fizera até aí, aos seus gestos amorosos cada vez mais audaciosos. Mas também é verdade já o disse a propósito do nosso primeiro beijo que eu me sentia pronta à entrega total, levada ao mesmo tempo por uma força suave e invencível, como acontece com o sono que, para vencer a nossa vontade consciente de não adormecer, nos obriga a dormir fazendonos sonhar que estamos acordados tão bem que, abandonandonos a ele, estamos convencidos de que lhe resistimos.
Recordome com impressionante clareza de todas as fases da minha sedução, porque cada uma das conquistas de Gino foi ao mesmo tempo desejada e repelida por mim e porque cada uma delas me deu, ao mesmo tempo, prazer e remorsos. E também porque essas conquistas foram conseguidas com uma lentidão sabiamente premeditada, sem pressas nem impaciências. Gino procedia como um general que ocupa metodicamente um pais e não como um amante ardendo de desejos, e assim foi apossandose do meu corpo passivo, da boca até ao ventre. Tudo isto, porém, não impediu que mais tarde Gino se apaixonasse violentamente por mim e que a premeditação calculada desaparecesse para dar lugar, senão a um amor profundo, pelo menos a um poderoso desejo que nada saciava.
Durante os nossos passeios de carro até ali ele tinhase limitado a beijarme a boca e o pescoço, mas uma certa manhã enquanto me beijava, senti os seus dedos agarrarem nos botões da minha blusa. Depois uma sensação de frescura no peito fez com que eu erguesse os olhos por cima do seu ombro para o espelho do párabrisas. Reparei então que um dos meus seios estava nu. Enchime de vergonha, mas não tive coragem para me tapar. Foi o próprio Gino, num gesto rápido, que parecia secundar a minha atrapalhação, quem abotoou novamente a minha blusa. Esta delicadeza da sua parte comoveume profundamente, deixandome ao mesmo tempo encantada e perturbada. No dia seguinte Gino repetiu o seu gesto. Desta vez o meu prazer aumentou e a minha vergonha diminuiu. A partir de então habitueime àquela manifestação do seu desejo e pareceme que se ele deixasse de a repetir pensaria que tinha deixado de gostar de mim.
Conversávamos com frequência do que seria a nossa vida depois de nos casarmos. Gino falavame também muito da sua família, que vivia na província, a qual não podia com justiça considerarse pobre, pois possuía algumas feiras de terra.
Tenho a impressão de que o que aliás é vulgar nos autênticos mentirosos em dado momento ele começou a acreditar nas suas próprias mentiras. Certo que mostrava por mim uma forte atracção, e, visto que a nossa intimidade se tornava dia a dia cada vez maior, esse sentimento devia ao mesmo tempo tornarse mais sincero. Pela minha parte as suas palavras adormeciam os meus remorsos e davamme uma impressão de felicidade ingénua e completa que nunca mais depois disso voltei a conhecer. Eu amava, era amada, pensava que me casaria muito breve e nada mais se poderia desejar neste mundo.
Minha mãe compreendia perfeitamente que os nossos passeios matinais não eram completamente inocentes e deumo a perceber muitas vezes por meio de frases como esta:
“Não sei o que vocês fazem quando passeiam de automóvel, mas a verdade é que também o não quero saber...” Ou então: “Tu e o Gino andam a preparar uma grande tolice! Tanto pior para ti!”
Diziame com frequência coisas no género. Mas por vezes as suas recriminações pareceramme estranhamente desinteressadas.
Dirseia que não só encarava com antecipada resignação a ideia de que eu ia tornarme amante do Gino como até no fundo desejava que isso acontecesse. Agora sei que ela esperava sempre o momento próprio para impedir que o meu casamento se realizasse.
Uma manhã, Gino disseme que os patrões tinham partido para o campo, que as criadas estavam de férias nas suas aldeias e que lhe tinham entregue a casa a ele e ao jardineiro. Não gostaria eu de a visitar? Tinhame falado dela tantas vezes e em termos tão admirativos que eu estava cheia de curiosidade: aceitei de boa vontade. Mas no preciso momento em que disse que sim, uma perturbação profunda feita de desejo fezme compreender que a minha curiosidade de ver a casa não tinha passado de um pretexto, e que o verdadeiro motivo desta visita era bem outro. Entretanto, como sempre acontece quando se aspira a uma coisa que não se quer desejar, fingi não acreditar no pretexto, enganandome a mim própria e a ele.
Sei que não devia ir disselhe, subindo para o carro.
Mas não nos vamos demorar muito tempo, pois não? Ouviame a mim própria pronunciar estas palavras numa voz ao mesmo tempo amedrontada e provocante. Gino respondeume muito sério:
Só o tempo de ver a casa. Depois vamos ao cinema.
A moradia elevavase numa ruazinha que descia do novo bairro rico, no meio de outras lindas casas. Estava um dia calmo e todas essas casas estendendose pela colina debaixo de um céu muito azul, com as suas fachadas de tijolos vermelhos ou de pedra branca, os seus alpendres ornados de estátuas, as suas pérgulas envidraçadas, os terraços e as varandas repletos de gerânios, os jardins onde cresciam as suas árvores copadas entre uma moradia e outra tudo isso me dava uma deliciosa sensação de descoberta e de novidade. Era como se entrasse num mundo mais livre e mais belo, onde seria mais agradável viver. Não pude deixar de me lembrar do meu bairro, da grande estrada que corre junto das muralhas, das construções pobres, e declarei a Gino :
Já estou arrependida de ter vindo.
Porquê? perguntoume com ar desenvolto. Não nos demoraremos, está descansada!
Tu não percebes! respondi. Estou arrependida porque agora vou corar com vergonha da minha casa e do meu bairro.
Ah! Isso sim! disse com um ar aliviado. Mas que queres fazer? Era preciso terse nascido milionário... Neste bairro só moram milionários.
Abriu o portão e levoume por uma álea coberta de saibro, entre duas filas de arbustos tratados com inexcedível esmero.
Entrámos na moradia por uma porta de vidro espesso e encontrámonos no vestíbulo da entrada, vazio, pavimentado de placas de mármore brancas e negras, desenhando enormes quadrados encerados, brilhantes como espelhos. Do vestíbulo passámos ao hall, espaçoso e cheio de luz, para o qual davam as salas do résdochão. Ao fundo do hall viase uma escadaria toda branca, que conduzia aos andares superiores.
Vendo este hall sentime tão intimidada que comecei a andar nos bicos dos pés. Gino reparou e disseme a rir que podia fazer todo o barulho que quisesse porque ninguém estava em casa.
Mostroume o salão: uma grande sala cheia de poltronas e divãs; a sala de jantar, mais pequena, com uma mesa oval, cadeiras e credências de uma bela madeira castanha, brilhante; a rouparia cheia de armários pintados de esmalte branco.
Num quarto pequenino havia um bar engastado numa reentrância da parede, um verdadeiro bar com prateleiras para as garrafas, a máquina de café niquelada e o balcão forrado de zinco: dirseia uma capelinha, tanto mais que uma grade baixa fechava a entrada.
Perguntei a Gino onde era a cozinha: disseme que a cozinha e os quartos do pessoal eram na cave. Era a primeira vez na minha vida que eu entrava numa casa destas; instintivamente tocava cada coisa com a ponta dos dedos, como se não acreditasse no que viam os meus olhos. Tudo me parecia novo e precioso: o vidro, a madeira, o mármore, o metal, os tecidos. Não me saia da cabeça a comparação entre estas paredes, estes pavimentos, estes móveis com os ladrilhos sujos, as paredes enegrecidas e os móveis desconjuntados da nossa casa, e pensei que minha mãe tinha razão quando dizia que nesta vida só o dinheiro conta. Pensava também que as pessoas que viviam sempre no meio destas bonitas coisas deviam por força ser belas e boas, não poderiam gritar, ter questões, praticar enfim a maior parte dos actos que eu tinha visto fazer na minha casa e nas outras iguais à minha.
Entretanto, Gino explicavame pela centésima vez a vida que se fazia lá dentro, como se qualquer coisa de todo aquele luxo e de toda aquela riqueza se reflectisse nele.
Têm pratos de porcelana... as travessas são todas de prata... comem cinco pratos diferentes, bebem três qualidades de vinho. À noite a senhora veste um vestido decotado e ele um smoking... Depois do jantar, a criada de quarto levalhes uma bandeja de prata com sete qualidades de cigarros, só cigarros estrangeiros, bem entendido!... Depois saem da sala de jantar e levamlhes o café e os licores nesta mesinha rolante... têm sempre convidados... umas vezes dois... outras vezes quatro... A senhora tem brilhantes deste tamanho!... e um colar de pérolas que é uma maravilha. Só em jóias deve ter uns bons milhões...
Já me disseste isso! interrompi, um pouco aborrecida. Mas ele, entusiasmado com o assunto, nem deu pela minha contrariedade.
A senhora nunca vai à cave... continuou. Dá as suas ordens pelo telefone... Aliás na cozinha só se trabalha a electricidade... A nossa cozinha é mais limpa e bonita do que os quartos de dormir de muita gente... Até mesmo os dois cães da senhora andam mais asseados e comem melhor do que muitas pessoas...
Falava dos patrões com admiração e dos pobres com desprezo. Eu, um pouco pela sua conversa, um pouco pela comparação que continuamente estabelecia entre esta casa e a minha, sentiame horrivelmente miserável.
Do primeiro andar, subindo a escada, chegámos ao segundo. Na escada Gino passoume o braço em volta da cintura e apertoume com força. Eu então não sei porquê tive a impressão de ser a dona da casa e de subir a escada pelo braço do meu marido, depois de algum jantar ou de alguma recepção, para me ir deitar, na mesma cama que ele, no segundo andar.
Gino parecia adivinhar os meus pensamento tinha constantemente intuições deste género e disseme:
Agora vamos deitarnos... E amanhã trazemnos o café à cama.
Pusme a rir, mas com a impressão de que isso era verdade.
Nesse dia, para sair com Gino, eu tinha vestido o meu fato mais bonito (e também a minha blusa e o meu melhor par de sapatos). Lembrome de que era um vestido de duas peças: casaco preto e uma saia aos quadrados pretos e brancos. O tecido não era feio, mas a costureira do bairro que o cortara tinha pouco mais prática do que minha mãe. Tinhame feito a saia muito curta, mas mais atrás do que à frente, de maneira que me cobria os joelhos à frente, mas deixava as curvas à vista pelo lado de trás. O casaco tinha ficado muito apertado, com enormes virados, e as mangas tão estreitas que me repuxavam debaixo dos braços. Abafava dentro deste casaco, que fazia sobressair o peito de tal maneira que parecia ter perdido um botão. A blusa era corderosa, muito simples, de tecido ordinário, sem bordados, e deixava ver à transparência a minha melhor e mais bonita combinação: de algodão branco.
Calçava sapatos pretos muito bem engraxados: a forma era antiga, mas o cabedal era bom. Não trazia chapéu e o cabelo caíame sobre os ombros; tenho o cabelo castanho e ondulado.
Era a primeira vez que vestia esta toilette e sentiame orgulhosa. Mas quando entrei no quarto da patroa de Gino e vi a grande cama, baixa e fofa, com a cobertura de seda acolchoada, os lençóis de linho bordados e todos aqueles cortinados muito leves que caíam da alto sobre a cabeceira e depois descobri a minha imagem triplamente reflectida no espelho de três faces do toucador ao fundo do quarto deime conta de que estava vestida como uma infeliz, que o orgulho que os meus trapos me inspiravam era ridículo e digno de piedade e também que me seria impossível considerar feliz enquanto não pudesse andar elegantemente vestida e viver numa casa como aquela.
Estava quase a chorar e senteime sem dizer palavra na beira da cama, tomada de uma vertigem.
Que tens? perguntou Gino sentandose ao meu lado e pegandome na mão.
Nada respondi. Estava a olhar uma pobretana que eu conheço.
Quem? perguntoume, admirado.
Aquela respondi mostrandolhe o espelho onde me via sentada ao lado de Gino.
Realmente nós tínhamos o ar mais eu do que ele - de um par de selvagens hirsutos que o acaso tivesse feito cair numa casa civilizada. Desta vez ele compreendeu o sentimento de fraqueza, inveja e ciúme que me apertava o coração, e beijoume dizendo:
Mas tu não precisas de olhar para o espelho!
Ele temia pelos seus planos. Deveria ter compreendido que nada era mais propício para os executar do que o meu estado de humilhação. Beijámonos, e o seu beijo fezme voltar a coragem porque senti que afinal eu era amada e amava.
Contudo, um pouco depois, quando me mostrou a casa de banho, tão grande como as outras salas, com uma banheira metida na parede e torneiras niqueladas, e sobretudo quando abriu um dos armários, deixando ver no interior, apertados uns contra os outros, os vestidos da patroa dele, a inveja voltou com o sentimento de miséria e tornei a desesperar. Um grande desejo de não pensar naquelas coisas tomoume de repente e, conscientemente, pela primeira vez, desejei tornarme amante de Gino: um pouco para esquecer a minha condição, um pouco para me dar a ilusão, como reacção à impressão de miséria que me escravizava, de ser também livre e capaz de agir. Não me podia vestir elegantemente, nem possuir uma casa como aquela, mas podia amar como os ricos ou talvez melhor que eles.
Porque me mostras todos esses vestidos? perguntei a Gino.
Que me interessa isso?
Julguei que te interessasse respondeu, desconcertado.
Absolutamente nada me interessa. São muito bonitos, mas não vim cá para ver vestidos.
Com estas palavras os seus olhos iluminaramse. Acrescentei com negligência:
Mostrame antes o teu quarto.
É na cave disse, vivamente. Queres que vamos lá?
Olheioo um momento em silêncio, e depois pergunteilhe com uma segurança, nova em mim, que me desagradou:
Porque finges de imbecil comigo?
Mas eu... começou ele, surpreendido e atrapalhado...
Tu sabes melhor do que eu que não viemos aqui para visitar a casa, nem para admirar os vestidos da tua patroa, mas para irmos para o teu quarto e sermos um do outro... Mais vale ir já e não falarmos mais nisso.
Foi assim que só por ter dado uma olhadela a esta casa eu passei a ser diferente da rapariga ingénua e tímida que aí tinha entrado. Estava admirada comigo mesmo, não me reconhecia.
Saímos do quarto e descemos a escada. Gino tinha passado o braço em torno da minha cintura e beijávamonos em cada degrau. Creio bem que nunca uma escada foi descida tão devagar. No résdochão, Gino abriu uma porta disfarçada na parede, e estreitandome e beijandome sempre conduziume à cave. Já era noite: estava tudo às escuras. Sem acender a luz, ao longo do corredor, muito abraçados e de bocas unidas, chegámos ao quarto de Gino. Ele abriu, entrámos, e ouvio fechar a porta atrás de nós. Durante muito tempo ficámos de pé, beijandonos no escuro. Eram beijos que nunca mais acabavam: se eu queria interromper ele recomeçava, e quando ele parava era eu quem continuava. Depois Gino empurroume para a cama e eu deixeime cair de costas. Gino não cessava de me murmurar ao ouvido, um pouco ofegante, palavras doces e frases convincentes, com a intenção clara de me aturdir, para não me aperceber de que ao mesmo tempo as suas mãos me iam despindo. Mas não era preciso; primeiro porque eu decidira entregarme, e depois porque eu odiava estes trapos que tanto me tinham agradado antes, e que desprezava agora profundamente.
“Uma vez nua pensava eu serei tão bela, senão mais, do que a patroa de Gino e que todas as mulheres ricas do mundo.” Aliás, havia meses que o meu corpo esperava este momento; sentiao, mau grado meu, fremir de impaciéncia e de desejo reprimido, como uma fera esfomeada e presa, à qual, depois de um longo jejum, se cortam as prisões e se oferece com que matar a fome. Foi por isso que o acto de amor me pareceu natural, e a sensação de fazer um gesto desusado de modo nenhum se misturava ao prazer físico. Pelo contrário, como acontece por vezes diante de uma certa paisagem que se tem a impressão de já ter visto, quando na realidade é a primeira vez que se oferece ao nosso olhar, eu tinha a sensação de fazer coisas que já tinha feito, não sabia onde nem quando, talvez numa outra vida. Isto não me impedia de amar Gino com paixão, para não dizer com fúria, de o beijar, de o morder, de o apertar nos meus braços até o sufocar. Ele parecia possuído da mesma raiva. Assim, durante um tempo que me pareceu muito longo, neste quartinho escuro, enterrado debaixo de dois andares de uma casa vazia e silenciosa, nós beijámonos e possuímonos como dois inimigos lutando pela própria vida e procurando ferirse o mais possível.
Mas quando os nossos desejos se saciaram, enquanto estávamos estendidos lado a lado, enlanguescidos e extenuados, tive medo de que Gino, depois de me ter possuído, já não quisesse casar. Comecei então a falar da casa para onde iríamos morar quando nos casássemos. A casa da patroa de Gino tinhame impressionado profundamente.
Agora pareciame que só se poderia ser feliz no meio de coisas bonitas e asseadas. Reconheci que nós nunca estaríamos em estado de possuir não somente uma casa como esta, mas até uma sala como as desta casa. No entanto, para vencer esta dificuldade, expliqueilhe que uma casa mesmo pobre podia parecer rica se brilhasse como um espelho. Porque além do luxo, e talvez ainda mais do que o luxo, o deslumbrante asseio desta moradia provocava no meu espírito um formigueiro de reflexões. Procurei convencer Gino de que o asseio podia fazer parecer bonitos mesmo os objectos feios. Na realidade, desesperada pela idéia que eu tinha agora da minha pobreza e consciente de que o meu casamento com Gino seria o único meio de poder livrarme dela, queria sobretudo convencerme a mim própria.
Mesmo dois quartos, se estiverem verdadeiramente limpos, com o chão passado todos os dias, os móveis limpos do pó, a louça lavada e tudo arrumado: os pratos, os esfregões e os fatos e os sapatos no seu lugar, também podem ser bem bonitos! O que é preciso é limpar e lavar tudo muito bem todos os dias... Não me deves julgar pela casa onde moramos, eu e minha mãe; minha mãe é desordenada e depois não tem tempo de a arrumar, coitada, mas a nossa cozinha será um espelho, prometote!
Isso! Isso! disse Gino. O asseio acima de tudo! Sabes o que faz a senhora quando descobre um grão de poeira num canto? Chama a criada de quarto, obrigaa a ajoelharse e a tirar a poeira com as mãos como se faz aos cães quando fazem porcarias... E tem razão!
Pois eu declarei tenho a certeza de que a minha casa háde estar ainda mais limpa e mais arrumada que esta... verás!
Mas tu continuarás a ser modelo disseme num tom travesso. Não poderás tomar conta da casa!
Modelo? respondi vivamente. Já não serei mais modelo... Ficarei todo o dia em casa... Terei sempre a casa arrumada e muito limpa e cozinharei para ti... a minha mãe diz que isso é ser tua criada, mas, quando se ama alguém, mesmo ser criada dá prazer!
Durante muito tempo fizemos projectos de futuro. E eu pouco a pouco sentia o medo desvanecerse para dar lugar à minha habitual confiança amorosa e ingénua. Como poderia duvidar?
Gino não só aprovava os meus projectos, mas discutiaos pormenorizadamente, amparandoos e aperfeiçoandoos. Como já devo ter dito, ele agora era relativamente sincero: o mentiroso acabava por acreditar nas suas próprias mentiras.
Depois de tagarelarmos pelo menos duas horas, dormitei docemente, e creio bem que Gino também adormeceu. Fomos acordados por um raio de luar que entrava pelo respiradouro térreo iluminando os nossos corpos estendidos sobre a cama.
Gino disse que devia ser muito tarde; com efeito o despertador pousado sobre a mesa de cabeceira marcava meianoite e alguns minutos.
Meu Deus! Como me irá receber minha mãe! disse eu saltando da cama e começando a vestirme à luz da Lua.
Porquê?
É a primeira vez que entro em casa tão tarde. A noite nunca saio sozinha.
Dizlhe que fomos dar uma volta de automóvel, que tivemos uma avaria e que fomos forçados a parar no campo.
Ela não acredita.
Saímos apressadamente da moradia, e Gino levoume a casa. Eu sabia que minha mãe não acreditaria na história da panne, mas nunca supus que a sua intuição fosse ao ponto de adivinhar com exactidão o que se passara entre mim e Gino. Tinha as chaves da porta da rua e de casa. Entrei; subi os dois andares no escuro, galgando a dois e dois os degraus, e abri a porta.
Esperava que minha mãe estivesse deitada, e ver a casa toda às escuras confirmou a minha esperança. Sem acender a luz, nos bicos dos pés, dirigiame para o quarto quando me senti agarrada pelos cabelos com uma violência terrível. Sempre às escuras, minha mãe, porque era ela, atiroume para cima do divã, e começou, sempre em silêncio, a esbofetearme.
Procurava defenderme com os braços, mas parecia que ela me via, porque arranjava maneira de me passar por baixo dos braços e de apanharme em cheio a cara. Acabou por se cansar e sentouse ao meu lado, no divã, arfando com força. Depois levantouse, acendeu a luz do centro e veio pôrse na minha frente com as mãos nas ancas, olhandome fixamente. O seu olhar enchiame de vergonha e embaraçavame; procurei ajeitar a saia e recompor a desordem em que esta espécie de luta me tinha deixado. Ela disseme num tom normal:
Está a parecerme que tu e o Gino passaram a noite juntos!
Desejei dizerlhe que sim, que era verdade; mas temi que me tornasse a bater, e o que mais me assustava era que agora, com a luz acesa, acertarmeia em cheio. Não queria aparecer com um olho negro, principalmente a Gino.
Não respondi. Não dormimos juntos; tivemos uma avaria na estrada que nos atrasou.
Mas eu digote que estiveste na cama com ele!
Não... não é verdade!
Sim... é verdade! Olha para o espelho ; estás verde.
É possível que esteja fatigada... mas nada houve entre nós!
Houve, sim!
Não, não, não houve!
O que me espantava e ao mesmo tempo me inquietava vagamente era a calma que ela mostrava neste momento: nada mais que uma forte curiosidade, o que me fazia pensar que ela não estava totalmente desinteressada do caso. Por outras palavras, o que ela queria saber era se eu me tinha entregue a Gino, não para me castigar ou me repreender, mas porque o desejava conhecer com precisão por uma razão que só ela sabia.
Somente era tarde de mais, e embora eu soubesse que já não me bateria mais, continuei sempre a negar. Então, bruscamente, fez menção de me agarrar o braço, e eu levantei a mão para me proteger, mas ela disse :
Não te toco, não tenhas medo! Vem comigo! Não percebia bem aonde ela me queria levar; mas obedeci amedrontada. Sem me largar, obrigoume a sair do apartamento, a descer a escada e a ir com ela para a rua. Estavam desertas as ruas a esta hora.
Logo em seguida percebi que minha mãe corria para a luz vermelha da farmácia de serviço ou do posto de socorros. A entrada da porta experimentei pela última vez resistir, fincando os pés, mas ela empurroume e eu entrei, ou, por outra, fui projectada para o interior; por um pouco não. Caí de joelhos!
Na farmácia estava só o farmacéutico e um médico ainda novo.
Minha mãe disse ao médico:
É minha filha! Quero que a examine!
O médico mandoume entrar para uma divisão das traseiras onde estava a marquesa dos serviços de urgência e perguntou a minha mãe:
Digame o que ela tem... Devo examinála porquê?
Acaba de ser desonrada pelo noivo e diz que não, esta porca! Quero que a examine gritava a minha mãe e que me diga a verdade!
O médico estava divertido e mordiscava o bigode, sorrindo:
Mas não é um diagnóstico que me pede, é uma informação.
Chamelhe como quiser respondeu minha mãe, berrando sempre , mas quero que a examine! É ou não médico? Tem ou não a obrigação de examinar as pessoas quando elas lhe pedem?
Calma! Calma! Como te chamas? perguntou o médico.
Adriana respondi.
Estava envergonhada, mas não muito. As cenas da minha mãe e a minha docilidade eram bem conhecidas em todo o bairro.
Mas mesmo que isso tenha acontecido insistia o médico, que parecia perceber o meu embaraço e tentava evitar o exame, que mal pode haver? Eles casamse e pronto... tudo acabará bem.
Metase na sua vida!
Calma! Calma! repetia, divertido, o médico. Depois, dirigindose a mim, disseme:
Vamos! Visto que tua mãe acha que isto é indispensável... despete, não demora muito tempo, depois deixote em paz.
Enchime de coragem e disse:
Muito bem! É verdade! Fui desonrada! Mas vamos para casa, mãe!
Não, minha filha, não! disse ela com ar autoritário. Tens de te deixar examinar!
Resignada, despi a saia e deiteime na marquesa. O médico examinoume e disse a minha mãe:
Tinha razão... Já não está virgem... E agora, está contente?
Quanto lhe devo? perguntou minha mãe, puxando do portamoedas.
Entretanto, eu tinha descido da marquesa e vestirame. O médico recusou o dinheiro e perguntoume:
Gostas do teu noivo?
Com certeza respondi.
Quando se casam?
Ele nunca se casará com ela! gritou minha mãe. Mas eu cortei tranquilamente:
Logo que tenhamos os papéis arranjados.
Devia ser possível lerse nos meus olhos uma grande confiança, tão ingénua e tão pura, que o médico, com um riso amigável e dandome uma palmadinha na cara, empurrounos para fora.
Eu esperava que, quando tornássemos a entrar em casa, minha mãe me cobrisse de insultos e mesmo me tornasse a bater. Bem longe disso, vi, pelo contrário, àquela hora avançada, acender o gás e começar a cozinhar para mim, sem dizer palavra. Pôs a frigideira ao lume, voltou à sala, desembaraçou um canto da mesa dos trapos que lá estavam e pôs a toalha. Eu tinhame sentado no divã, para onde ela me arrastara pelos cabelos, e olhavaa em silêncio. Estava aparvalhada. Não só não me repreendia como a sua cara deixava transparecer uma estranha satisfação, que ela tentava esconder. Quando acabou de pôr a toalha, foi à cozinha, depois tornou a voltar trazendo um prato na mão e disseme:
Agora vais comer!
Para dizer a verdade, eu tinha bastante fome. Levanteime e fui sentarme, um pouco atrapalhada, na cadeira que minha mãe me indicou a seguir. No prato estavam dois ovos e um bocado de carne assada.
Mas isto é muito! disselhe.
Come... vai fazerte bem respondeume. Precisas de comer!
Era uma coisa extraordinária este seu bom humor, um pouco malicioso talvez, mas nada hostil. Quase com bom modo, acrescentou, passado um momento:
O Gino nem sequer pensou em darte de comer?
Nós adormecemos respondi. E depois já era muito tarde.
Ela nada disse, e ficou de pé a verme comer. Era sempre assim que ela fazia: serviame e ficava a verme comer, depois, por sua vez, ia comer para a cozinha.
Durante muito tempo não comeu comigo à mesa. Comia sempre menos do que eu: ou eram as minhas sobras, ou qualquer coisa diferente e pior. Eu era para ela uma espécie de objecto precioso e delicado que era preciso tratar com todo o cuidado, o único objecto precioso que possuía.
Já há muito tempo que esta servidão admirativa e lisonjeadora não me perturbava. Mas desta vez a sua serenidade, o seu ar contente, inspiravamme uma penosa inquietação. Ao fim de uns instantes comecei a falar:
Tu zangastete disselhe por eu ter feito isto, mas ele prometeu casar comigo... não tardará a fazêlo.
Não me zanguei... naquele momento enfurecime porque esperei toda a noite e estava em cuidado... Mas agora come, e não penses mais nisso.
O seu tom de evasiva e falsa calma, que fazia lembrar a maneira como se fala às crianças quando não se quer responder às suas perguntas, inquietoume ainda mais:
Porquê? Não acreditas que ele case comigo?
Com certeza que acredito! Mas agora come!
Não, tu não acreditas!
Acredito, não tenhas medo! Vá, come!
Não como mais se não me dizes o que se passa contigo! declarei, exasperada. Porque estás com um ar tão contente?
Não, não estou com um ar contente.
Agarrou no prato vazio e levouo para a cozinha. Esperei que ela voltasse, e disse outra vez:
Então, porque estás contente?
Olhoume longamente em silêncio e depois respondeu com uma gravidade ameaçadora:
É verdade, sim. Estou contente.
E porquê?
Porque agora tenho a certeza de que Gino já não casará contigo e te vai deixar!
Porque não háde casar? Era preciso que tivesse uma razão!
Não casará e abandonarteá! Vai divertirse à tua custa e não te dará nem uma cabeça de alfinete, um esfomeado como ele é. E depois largate!
E é por isso que estás tão contente?
Com certeza. Agora estou certa de que não casará contigo!
Mas em que pode isso satisfazerte? gritei indignada e ao mesmo tempo aborrecida.
Se quisesse casar contigo não te teria desonrado - disse ela bruscamente. Eu estive noiva dois anos do teu pai, e até ao dia do casamento ele apenas me deu um ou outro beijo. Ele vai divertirse e depois abandonarte... Podes ter a certeza... E estou contente por ele te abandonar, porque se casasse contigo estavas perdida!
Não podia deixar de reconhecer que certas coisas que ela me dizia eram verdadeiras. Os olhos encheramseme de lágrimas.
Eu bem sei que não queres que eu constitua família. Tu queres que eu venha a ter a mesma sorte que a Angela.
Angela era uma rapariga do bairro que, depois de ter estado noiva duas ou três vezes, acabou por se entregar abertamente à prostituição.
Que tenhas uma boa situação é o que eu quero - respondeu com um ar obstinado. E, levantando os pratos, levouos para a cozinha para os lavar.
Ficando só, reflecti muito tempo sobre a conversa de minha mãe. Estabeleci uma comparação entre as suas palavras e as promessas e a conduta de Gino e pareceume impossível que fosse ela a ter razão. Mas a sua segurança, a sua calma, o seu tom de previsão desconcertaramme. Entretanto, minha mãe lavava a louça na cozinha. Ouvia guardar os pratos no aparador e ir para o quarto. Depois de uns instantes, vencida e humilhada, fui deitarme também.
No dia seguinte perguntava a mim mesma se devia ou não contar a Gino as suspeitas da minha mãe. Depois de muita hesitação resolvi nada dizer.
Na realidade, eu tinha tanto medo que Gino me abandonasse, como minha mãe insinuara, que temia que, comunicandolhe a opinião dela, lhe pudesse sugerir a ideia. Percebi pela primeira vez que a mulher que se entrega a um homem fica de tal maneira na sua dependéncia que já não tem meio de seguir a vontade própria. Mas não estava menos convencida de que Gino cumpriria a sua promessa. Logo que o tornei a ver, a sua atitude confirmou a minha convicção.
Eu esperava, decerto, que ele me iria cumular de atenções e carícias, mas temia que guardasse siléncio sobre o casamento, ou pelo menos não falasse nisso senão de uma maneira esporádica. Pelo contrário, assim que parou o carro na avenida do costume, Gino disseme que já fixara a data do casamento: seria dali a cinco meses, o mais tardar!
A minha alegria foi tal que me atribui as ideias de minha mãe e não pude deixar de dizer:
Sabes o que eu pensava, pelo contrário? Que depois do que se passou ontem irias abandonarme.
Como? disse, tomando um ar vexado. Tu tomasme por um vigarista?
Não, mas sei que há muitos homens que procedem assim.
Não sabes que podia ficar magoado com a tua suposição? Que ideia fazes de mim? É assim que dizes amarme?
Eu amote respondi ingenuamente. Mas receava que tu não gostasses de mim.
Até agora já te dei alguma razão que te fizesse supor que não gosto de ti?
Não, mas nunca se sabe...
Olha! disseme bruscamente. Tu indispusesteme de tal maneira que vou já levarte ao atelier.
E fez menção de pôr o carro em andamento. Assustada, deiteilhe as mãos ao pescoço e supliquei:
Não, não! Que tens? Falei por falar... faz de conta que nada disse.
Há coisas que não se dizem quando não se pensam... e quando se pensam é porque não se ama!
Mas eu amote!
Eu não! disseme em tom sarcástico. Como tu disseste, tive sempre a ideia de me divertir à tua custa e depois deixarte. É estranho que só agora tenhas dado por isso!
Mas, Gino, porque me falas dessa maneira? gritava eu, desfazendome em lágrimas.
Nada respondeu, pondo o carro em andamento Vou levarte ao atelier.
O carro pôsse em marcha e Gino ao volante tinha um ar carrancudo e duro. Eu quando vi, pelo vidro, as árvores e os marcos quilométricos deslizarem, e as primeiras casas da cidade, sucedendose ao campo, aparecerem no horizonte, desatei a chorar.
Pensava que minha mãe iria rejubilar quando soubesse da nossa zanga e que Gino, como ela tinha previsto, me deixaria. Num gesto desesperado abri a portinhola do carro, inclineime para a frente e gritei:
Ou páras ou atirome para a estrada.
Olhoume, o carro abrandou, voltou por um caminho lateral e parou atrás de uma elevação coroada por uma ruína. Gino desligou o motor, travou e, voltandose para mim, disse com impaciência:
Então, coragem! Vá! Fala!
Eu julgava realmente que ele me queria abandonar e pusme a falar com um fogo e uma paixão que me pareceram ao mesmo tempo ridículos e comoventes quando os recordo hoje. Explicavalhe até que ponto o amava: cheguei a dizerlhe que se ele não casasse comigo seria o mesmo, porque me contentaria com ser sua amante. Escutavame com um rosto sombrio, abanando a cabeça e repetindo de vez em quando:
Não, não, por hoje acabou. Amanhã talvez me passe! Quando lhe disse que para mim era suficiente ser sua amante, respondeu com fervor:
Não, não! Casados ou nada!
Discutimos durante muito tempo, e várias vezes a exibição da sua lógica, tão perversa como indiscutível, levoume ao desespero e às lágrimas. Depois, gradualmente, a sua atitude inflexível pareceu modificarse; por fim, depois de o ter beijado longamente e ameigado sem qualquer resultado, tive a impressão de ter conseguido uma grande vitória quando o convenci a descer comigo e vir possuirme no assento traseiro do carro num abraço inconfortável, que o meu angustioso desejo de lhe agradar achou demasiado curto e cheio de uma amarga ansiedade. Eu devia ter compreendido ser esse, no meu próprio interesse, o último dos procedimentos a adoptar. Era entregarme completamente nas suas mãos, mostrarlhe a minha disposição de me entregar a ele, não apenas por puro ímpeto amoroso, mas também para o prender e convencer a concordar comigo quando as palavras não chegassem para isso: precisamente a conduta das mulheres que amam sem a certeza de serem amadas: Mas eu estava completamente cega pela atitude perfeita que a sua falsidade lhe permitia tomar. Ele dizia e fazia sempre as coisas que devia dizer e fazer. E eu, na minha inexperiéncia, não me apercebia de que esta perfeição pertencia mais à imagem convencional do amante que eu própria tinha criado do que ao homem que estava na minha frente. Mas a data do casamento tinha sido fixada e comecei logo a ocuparme dos preparativos. Combinei com Gino que, pelo menos nos primeiros tempos, faríamos vida em comum com minha mãe.
Além da grande sala, da cozinha e do quarto, havia uma outra divisão que minha mãe, por falta de dinheiro, nunca tinha chegado a mobilar. Guardávamos aí os objectos partidos e inutilizados; e pode imaginarse o que seriam os objectos partidos e inutilizados de uma casa como a nossa, onde tudo parecia inutilizado!
Depois de muitas discussões assentámos num programa mínimo: mobilaríamos esse quarto e eu faria um pequeno enxoval. Nós éramos muito pobres, mas eu sabia que minha mãe tinha algumas economias, e que esse dinheiro tinha sido posto de parte para mim a fim de poder fazer face dizia ela a qualquer eventualidade.
Quais poderiam ser essas eventualidades? Não era muito claro; seguramente que não a possibilidade de eu casar com um homem pobre e de futuro incerto. Fui ter com minha mãe e disselhe.
Esse dinheiro que puseste de parte foi para mim, não foi?
Foi.
Pois bem! Se me queres fazer feliz, dámo agora para arranjar o quarto, para onde iremos, eu e o Gino. Se é verdade que o guardaste para mim, chegou o momento de mo dares!
Esperava reprimendas, discussões, e por fim uma recusa. Pelo contrário, minha mãe acolheu o meu pedido com a maior calma e mostrou de novo aquela serenidade sardônica que tanto me tinha aborrecido na noite em que visitara a moradia.
E ele não vai contribuir com qualquer coisa? perguntoume, voltandose.
Háde dar, com certeza respondi, mentindo. Ele já disse. Mas também eu tenho de contribuir com a minha parte.
Ela estava a coser ao pé da janela. Para falar interrompera o seu trabalho.
Vai ao quarto, abre a primeira gaveta do armário... encontrarás uma caixa de cartão... está lá a caderneta da Caixa Económica e o ouro. Levaa e o ouro também... Ofereçote.
O ouro era pouca coisa: um anel, um par de brincos e um pequeno fio. Mas desde a minha infância, magro tesouro escondido debaixo dos trapos e só entrevisto em circunstáncias extraordinárias, tinha incendiado a minha imaginação. Impetuosamente beijei minha mãe: afastoume sem brutalidade, mas com frieza, declarando:
Cuidado com a agulha... podes picarte!
Mas eu não estava satisfeita. Não me bastava ter obtido aquilo que queria; pretendia mais: que minha mãe estivesse como eu.
Mãe! gritei. Se fizeste isto só para me dar prazer, então prefiro não aceitar!
Decerto que não foi para lhe dar prazer a ele! respondeu, recomeçando a coser.
Realmente não acreditas no meu casamento com Gino? perguntei com uma voz acariciadora.
Nunca acreditei. E hoje menos que nunca.
Mas então porque me deste o dinheiro para arranjar o quarto?
Não é dinheiro mal gasto. Os móveis e as roupas sempre ficam... Mobília ou dinheiro é a mesma coisa.
Então não me acompanharás aos armazéns para me ajudares a escolher?
Por amor de Deus! gritou. Nem quero mesmo ouvir falar nisso! Arranjemse, vão vocês, escolham... eu não quero saber de coisa alguma!
Acerca do meu casamento ela era intratável; eu acreditava que a sua atitude não era ditada só pela conduta, pelo carácter e pela situação de Gino, mas principalmente pela maneira como ela encarava a vida. Não havia espírito de contradição nesta sua atitude, mas somente completa inversão das ideias correntes. As outras mulheres desejam com obstinação que as filhas se casem; minha mãe há muito tempo que com a mesma tenacidade esperava que eu não me casasse.
Existia uma espécie de aposta entre mim e minha mãe. Ela queria que eu não me casasse e me desse conta do bom fundamento das suas ideias. Eu desejava que este casamento se efectuasse e que minha mãe se convencesse de que a minha maneira de pensar é que estava certa. Agarravame à esperança de me casar com a sensação de jogar desesperadamente toda a minha vida numa só cartada. Mas sentia ao mesmo tempo, não sem amargura, que minha mãe vigiava os meus esforços e tentava fazerme soçobrar. Devo mencionar aqui mais uma vez que a maldita perfeição de Gino não se desmentia nem mesmo por ocasião dos preparativos para o casamento. Tinha dito à minha mãe que Gino ajudaria às despesas. Menti, porque até então Gino nem sequer tinha aludido a essa possibilidade. Fiquei, pois, ao mesmo tempo surpreendida e contente no dia em que Gino, sem que eu nada lhe tivesse pedido, me ofereceu uma pequena soma de dinheiro, para me ajudar. Desculpouse da mesquinhez da quantia, explicandome que não me podia dar mais, porque tinha urgência em mandar dinheiro aos seus. Quando hoje penso nesta dádiva não posso explicála senão pela extraordinária fidelidade ao papel que decidira representar: fidelidade proveniente talvez do remorso de me enganar e do pesar de não poder casar comigo, como agora realmente desejava.
Triunfante, tratei de pôr minha mãe ao corrente da oferta de Gino. Limitouse a observar que era uma soma bem miserável; apenas o necessário para me deitar poeira nos olhos sem se arruinar!
Este foi na minha vida um período muito feliz. Encontrava-me todas as noites com Gino, e amávamonos onde era possível: sobre o assento de trás do carro, de pé, no canto escuro de uma rua solitária, no campo, num prado, ou ainda na moradia, no quarto de Gino. Uma noite em que ele me levou a casa, amámonos no patamar, em frente da porta do apartamento, estendidos sobre os ladrilhos, no escuro. Outra vez possuímonos no cinema, encolhidos nas últimas cadeiras, mesmo debaixo da cabina do operador. Gostava de me encontrar misturada com ele no meio da multidão, dos eléctricos e dos lugares públicos, porque as pessoas me comprimiam contra ele; aproveitava para colar todo o meu corpo ao seu. Experimentava constantemente a necessidade de lhe apertar a mão, de lhe passar os dedos pelos cabelos e de lhe fazer qualquer outra carícia, no sitio em que estivéssemos, mesmo na presença de terceiros, com a ilusão de que ninguém se apercebia. como sempre que se cede a uma paixão irresistível. Gostava infinitamente de amar: talvez eu gostasse mais do amor do que propriamente de Gino, e sentiame levada a praticálo não somente pelo sentimento que experimentava por ele, mas também pelo prazer que sentia. Não pensava com certeza que poderia sentir o mesmo prazer com outro homem. Mas apercebiame de uma maneira obscura de que o nosso amor não podia explicar inteiramente o zelo, a habilidade e a paixão que punha nas minhas carícias. Isso tinha um carácter autónomo; era uma espécie de vocação que, de toda a maneira, mesmo sem as ocasiões que Gino me proporcionava, acabaria por manifestarse.
Entretanto, a ideia do casamento era mais importante para mim que qualquer outra. Ajudava minha mãe o mais que podia, a fim de ganhar dinheiro, e deitavame sempre muito tarde. Nos dias em que não posava no atelier corria os armazéns com Gino, para escolher os móveis e as coisas para o enxoval. Tinha pouco dinheiro para gastar, o que tornava as minhas pesquisas mais atentas ainda e mais meticulosas. Pedia para ver objectos que sabia bem que não podia comprar, examinavaos longamente, discutindo o preço com o vendedor; depois, mostrando pouco entusiasmo e prometendo voltar, saía sem nada comprar. Não notava que estas incursões cobiçosas pelas lojas. Este exame angustioso dos objectos que me estavam interditos me levavam a reconhecer, mau grado meu, como minha mãe tinha razão no que dizia: sem dinheiro não se tem direito à mais pequena felicidade. Depois da minha visita à moradia, foi a segunda vez que eu deitei os olhos sobre o paraíso da riqueza: vendome excluída sem que tivesse culpa não me podia impedir de experimentar alguma amargura e me sentir perturbada. Mas como já o tinha feito na moradia, esforceime no amor por esquecer a injustiça, este amor que era o meu único luxo e permitia que me sentisse igual a todas as outras mulheres mais ricas e com mais sorte do que eu. Depois de muitas discussões e muitas procuras, decidime por fim a fazer as minhas compras: aquisições verdadeiramente modestas.
Como o dinheiro não chegasse, comprei pagando em prestações mensais, um quarto completo, estilo moderno, quer dizer, uma cama de casal, uma cómoda com espelho fazendo de toucador, duas mesasdecabeceira, duas cadeiras e um armário.
Eram coisas extremamente vulgares, feitas em série e de fabricação grosseira, mas a paixão que me inspiraram imediatamente estes pobres móveis era incrível. Tinha mandado caiar as paredes do quarto, pintar de novo as portas e as janelas e raspar o chão tão bem que o nosso quarto era uma ilha de asseio no oceano infecto da casa. O dia em que me levaram os móveis foi sem dúvida um dos mais belos da minha vida. Experimentava uma sensação de incredulidade à ideia de que possuía um quarto como aquele: limpo, claro, arrumado, cheirando a cal e a tinta; e esta incredulidade manifestavase num contentamento que me parecia inesgotável. Por vezes, quando tinha a certeza de que minha mãe não me observava, ia para o quarto, sentavame nos colchões da cama e ficava horas inteiras a olhar à minha volta. Não me mexia mais que uma estátua, e contemplava os móveis como se não acreditasse na sua existência, como se receasse que se evaporassem de um momento para o outro e só ficassem as paredes; levantavame às vezes para tirar o pó da madeira e puxava o lustro ternamente.
Creio que se me tivesse deixado levar pelos meus sentimentos beijaria a mobília. A janela, sem cortinas, dava sobre um vasto pátio, muito sujo, rodeado de outras casas longas e baixas, como a minha. Tinhase a impressão de se olhar para um pátio de lazareto ou de prisão; mas naquela altura eu vivia em êxtase e já não via o pátio: sentiame tão feliz como se o quarto desse para um lindo jardim cheio de árvores.
Imaginava a nossa vida lá dentro, Gino e eu: como dormiríamos e nos amaríamos. E saboreava de antemão a aquisição de outros objectos que compraria assim que pudesse; aqui um vaso para flores, ali um candeeiro, além um cinzeiro ou qualquer outro bibelot. O meu único desgosto era não poder ter uma banheira, se não parecida com a que tinha visto, pelo menos nova e limpa. Más tinha decidido que traria sempre o meu quarto limpo e arrumado. A minha visita à moradia convencerame de que o luxo começava por duas coisas: a ordem e o asseio.
Nesse tempo, como continuasse a posar nos ateliers, criei amizade com um modelo chamado Gisela. Era uma rapariga bem feita, com a pele muito branca, cabelos pretos encrespados, os olhos pequeninos e azuisescuros e uma boca vermelha. O seu feitio era muito diferente do meu: violento, apaixonado e vibrante, mas ao mesmo tempo prático e interesseiro; foi exactamente esta diversidade que nos uniu. Não lhe conhecia outro emprego que o de modelo; mas ela andava muito mais bem vestida do que eu e não escondia os presentes de um homem que apresentava como noivo. Lembrome de que naquele Inverno ela usou algumas vezes um casaco preto com gola e punhos de astracã que eu muito lhe invejava. O noivo chamavase Ricardo, era um rapaz alto e gordo, pacífico e bem nutrido, com uma cara lisa como um ovo, que me pareceu então bela. Estava sempre reluzindo, cheio de cosméticos e com fatos novos: o pai era dono de uma loja de gravatas e roupa interior para homem.
Possuía a simplicidade Que se aproxima da imbecilidade: era alegre, bonacheirão e mesmo bom, creio eu; Gisela e ele eram amantes sem que entre eles, suponho, houvesse qualquer promessa de casamento, como existia entre mim e Gino. Gisela, aliás sem grandes esperanças, pensava em se casar. Quanto a Ricardo, estou convencida de que a ideia de uma união com Gisela nunca lhe tinha aflorado o espírito; a esta, bem mais experiente que eu, tinhaselhe metido em cabeça protegerme e educarme. Ela tinha para resumir as coisas sobre a vida e sobre a felicidade as mesmas ideias de minha mãe, salvo que na minha mãe estas ideias encontravam uma expressão amarga e violenta porque eram o fruto de decepções e privações, ao passo que em Gisela esta maneira de ver vinha da sua prática e faziase acompanhar de uma grande suficiência e de uma grande profundidade. Minha mãe, num certo sentido, contentavase em enunciar essas ideias como se para ela a afirmação dos princípios contasse de antemão para a sua aplicação. Gisela, pelo contrário, tendo pensado sempre dessa maneira e não compreendendo que alguém pensasse diferentemente, admiravase de que eu não me comportasse exactamente como ela. E foi apenas quando, apesar dos meus esforços em contrário, deixei transparecer a minha desaprovação, que o seu espanto se transformou em cólera e ciúme. Gisela compreendeu de súbito que eu não me limitava a recusar as suas lições e a sua protecção, mas ia mais longe, e a condenava do alto das minhas aspirações afectuosas e desinteressadas. Foi então que nasceu no seu espírito, talvez inconscientemente, o desejo de anular essa condenação, tornandome igual a ela. Enquanto isso não acontecia, não cessava de me repetir que eu era completamente parva em levar esta vida de sacrifícios só para me manter honesta; que era uma dor de alma verme tão mal vestida; que, se eu quisesse, com a minha beleza poderia mudar por completo de existência. Acabei por me envergonhar de a deixar convencida de que nunca tinha conhecido qualquer homem e por lhe contar as minhas relações com Gino, informandoa ao mesmo tempo de que estávamos noivos e nos casaríamos brevemente. Ela perguntoume imediatamente o que ele fazia, e quando soube que era chauffeur franziu depreciativamente o nariz. Mas nem por isso deixou de me pedir que lho apresentasse.
Gisela era a minha melhor amiga e Gino o meu noivo. Hoje estou à altura de os julgar friamente, mas naquele tempo a minha cegueira perante os seus caracteres era completa. Quanto a Gino, já disse que o achava perfeito. No que diz respeito a Gisela, talvez notasse os seus defeitos, mas em compensação julgava que ela tinha um grande coração e uma grande afeição por mim, porque atribuía a sua solicitude pela minha sorte não ao despeito por me achar inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e fora de propósito. Tanto assim que os apresentei, não sem apreensão; na minha ingenuidade, eu tinha querido que eles se fizessem amigos. A apresentação foi numa leitaria. Gisela durante todo o tempo mostrou uma atitude claramente hostil.
Pelo lado de Gino, acreditei de princípio que ele quisesse seduzir Gisela, porque, seguindo o seu hábito, encaminhou a conversa para o assunto da moradia e alongouse a exaltar a riqueza dos patrões, como se esperasse dissimular assim a classe medíocre da sua condição. Mas Gisela não desarmou: persistia na sua atitude hostil. Não me lembro já a que propósito, ela encontrou maneira de o fazer notar:
Teve muita sorte em ter encontrado Adriana!
Porquê? perguntou Gino, muito admirado.
Porque habitualmente os chauffeurs arranjamse com as criadas!
Vi Gino corar; mas ele não era homem para se deixar apanhar desprevenido.
É verdade! É verdade! repetia lentamente, baixando o tom como se considerasse pela primeira vez um facto evidente que até então lhe tivesse escapado. Com efeito o chauffeur que lá esteve antes de mim casou justamente com uma cozinheira; compreendese, é muito natural! Eu devia ter feito o mesmo: os chauffeurs casam com criadas e as criadas com chauffeurs... Pergunto a mim mesmo como não pensei nisso mais cedo!... Aliás acrescentou negligentemente , tinha preferido que Adriana deixasse deliberadamente de ser honesta do que ser modelo... não tanto continuou levantando a mão, como a prevenir uma objecção de Gisela por causa propriamente do ofício, se bem que, para dizer a verdade, não consigo engolir essa história de se pôr toda nua diante dos homens... mas sobretudo porque este trabalho proporciona certas ligações de amizade que...
Levantou a cabeça e fez uma careta. Depois, oferecendo a Gisela o seu maço de cigarros:
Fuma? perguntou.
De momento Gisela não soube que responder; limitouse a recusar o cigarro. Depois olhou o relógio de pulso e disse:
Adriana, temos de nos ir embora, é tarde.
Era efectivamente tarde.
Despedimonos de Gino e saímos da pastelaria. Uma vez na rua, Gisela disseme:
Mas tu cometeste um erro enorme!... Eu nunca casaria com um homem assim!
Não gostaste dele? pergunteilhe ansiosamente.
Absolutamente nada. Primeiro tinhas dito que ele era alto, e ele é quase pouco mais pequeno do que tu! Tem uns olhos falsos e que não nos olham de frente... é sempre artificial... Fala de uma maneira tão afectada que se conhece a um quilómetro de distância que não diz o que pensa... E é de uma vaidade para um chauffeur!
Mas eu amoo objectei.
Ela respondeume com calma:
Sim, só tu, porque ele não te ama; vais ver que um dia abandonate.
Fiquei magoada com esta profecia tão segura e tão parecida com a da minha mãe. Hoje posso dizer que numa hora, à parte a maldade, Gisela compreendera melhor o carácter de Gino que eu durante tantos meses. Por seu lado, o julgamento que Gino fazia de Gisela era igualmente maldoso, mas tinha que reconhecer em seguida que, parcialmente pelo menos, era e acto. Na realidade, estava cega não só pela minha inexperiência mas também pela afeição que dedicava aos dois..
Quando se pensa mal das pessoas, estáse quase sempre perto da verdade!
A tua Gisela disseme ele é o que na minha terra se chama uma boa tipa!
Olheio com um ar espantado. Ele explicou:
Uma rapariga das ruas. Está toda orgulhosa de andar bem vestida, mas... como ganha o dinheiro?
É o seu noivo quem lho dá.
Um noivo diferente todas as noites... entretanto ouve: é preciso escolher entre ela e eu!
Que queres dizer?
Quero dizer que és livre de fazer o que quiseres... mas se continuas a dareste com ela deves renunciar a verme... Ou ela ou eu!
Procurei fazêlo mudar de ideias, mas sem resultado. A atitude desdenhosa de Gisela tinhao com certeza ferido; mas ele devia, na sua antipatia indignada, a mesma fidelidade ao seu papel de noivo que lhe tinha sugerido contribuir para os gastos dos nossos preparativos de casamento.
A minha noiva não deve andar com mulheres de má vida! repetia com ar inflexível.
Tomada do mesmo receio inicial de ver ir por água abaixo o meu casamento, acabei por lhe prometer não tornar a ver Gisela, mas sabia no meu coração que não poderia cumprir a promessa, até mesmo pela impossibilidade de o fazer: Gisela e eu posávamos à mesma hora no mesmo atelier!
Desde esse dia continuei a falarlhe às escondidas de Gino.
Quando estávamos juntas, ela nunca perdia oportunidade de fazer alusões irónicas e desdenhosas ao meu noivado. Eu tinha a ingenuidade de lhe fazer confidências a respeito das minhas relações com Gino; era justamente destas confidências que ela se servia para me ferir e me representar a minha vida presente e futura sob as cores mais negras. Como o seu amigo Ricardo parecia não notar a mínima diferença entre ela e eu, considerandonos as duas como raparigas fáceis, que não mereciam qualquer respeito, ele prestavase de boa vontade às brincadeiras de Gisela e reforçava as piadas, mas de maneira estúpida e sem malícia, porque, como já disse, não era inteligente nem mau. Para ele o meu noivado não era outra coisa que um assunto para boas graçolas, para matar o tempo.
Mas Gisela, a quem a minha virtude fazia o efeito de uma censura viva, e que queria tornarme igual a ela, para me tirar o direito de a desaprovar, punha nas suas graçolas encarniçamento e azedume, procurando por todas as formas mortificarme e humilharme. Atacava sobretudo o meu ponto fraco: a maneira de vestir.
Hoje dizia tenho francamente vergonha de andar contigo!
Ou então:
O Ricardo não permitiria que eu saísse com esses trapos em cima de mim. Não é verdade, Ricardo?
Isso é que é um índice de amor, minha querida! Ingenuamente eu caía nesta grosseira armadilha. Exaltavame, defendia Gino, defendia mesmo os meus vestidos, por vezes com pouca convicção, mas acabava sempre por perder, corar e ficar com lágrimas nos olhos. Um dia Ricardo teve pena de mim e declarou:
Hoje vou dar um presente a Adriana. Vou oferecerlhe uma mala!
Mas Gisela opôsse violentamente a este oferecimento, declarando:
Não, não! Nada de ofertas. Ela tem o seu Gino. Que faça com que ele lhe dê presentes!
Ricardo, que se propusera oferecerme a mala por pura bondade de alma, sem imaginar nem por sombras o prazer que me teria dado a sua oferta, renunciou logo à sua ideia; e eu, por ponto de honra, fui nessa mesma tarde comprar uma mala com o meu dinheiro. No dia seguinte apareci aos amantes com a minha mala no braço e disselhes que tinha sido um presente de Gino. Foi a única vitória que consegui no decurso destas deploráveis escaramuças. Custoume muito, porque era uma boa mala, e a paguei muito cara.
Quando Gisela julgou terme mortificado e humilhado suficientemente, à força de ironias, de vexames e de sermões, chamoume e disse que tinha uma coisa importante a comunicarme :
Mas vais deixarme falar até ao fim! explicou. Não vais mostrarte intransigente, como é teu hábito, antes de teres compreendido?
Conta disselhe.
Sabes que sou muito tua amiga começou. Considerote como uma irmã. A tua beleza permitirteia teres tudo o que quisesses... Faz realmente pena verte sempre vestida como uma pedinte.
Aqui parou e olhoume com ar solene.
Há um senhor extremamente distinto, muito sério... que te viu e se interessa imenso por ti. Ele é casado, mas a família está na província. É um grande da polícia acrescentou baixando a voz. Se tu quiseres, eu posso apresentarto. Como te digo, é um senhor muito sério e muito fino; com ele podes estar certa de que mais ninguém saberá... De resto, ele está muito ocupado e só te encontrarias com ele duas ou três vezes por mês. Não há inconveniente em que continues essa história com o Gino, se isso te agrada... nem mesmo que te cases... mas ele procurará proporcionarte uma vida melhor do que a que tens agora. Que dizes?
Agradeçote muito mas não posso aceitar! respondi peremptoriamente.
Mas porquê? gritou ela, sinceramente estupefacta.
Porque não. Amo o Gino, e se aceitasse nunca mais poderia olhálo de frente.
É ideia tua, porque Gino nada saberá!
É justamente por isso!
Pensar pronunciou então como se falasse consigo própria que se aqui há uns tempos me tivessem feito uma oferta semelhante! Então, que devo dizerlhe? Não queres reflectir?
Não, não! Não aceito!
És uma idiota! disseme Gisela, desapontada. A isto chamase recusar a fortuna!
Acrescentou muitas coisas do mesmo género, às quais respondi sempre da mesma maneira, e foise embora muito descontente.
Eu tinha recusado esta oferta com um grande entusiasmo, sem lhe discutir o valor. Só uma vez experimentei como que um sentimento de arrependimento; podia ser, apesar de tudo, que Gisela tivesse razão, podia ser esta a única maneira de obter tudo de que tão desesperadamente precisava. Mas afastei este pensamento e agarreime de preferência à ideia do casamento e da existência pobre, mas honesta, que tinha traçado para mim.
O sacrifício que me tinha imposto punhame entretanto na obrigação de me casar a todo o custo; era ainda mais forçoso que anteriormente.
Não consegui resistir a um sentimento de vaidade e informei minha mãe da oferta de Gisela. Pensei que isso lhe agradaria duplamente: sabia até que ponto ela estava orgulhosa da minha beleza e quais as suas ideias; esta oferta inflamava o seu orgulho e confirmava o bom fundamento das suas convicções. Mas fiquei estupefacta com a agitação que lhe provocou a minha notícia. Os olhos brilharam de avidez; todo o seu rosto corou de contentamento:
Mas quem é? perguntou por fim.
Um senhor rico disselhe. Tinha vergonha de confessar que era um polícia.
Ela disse que ele era muito rico?
Sim... parece que ganha muitíssimo bem!
Não ousava exprimir o que visivelmente pensava: que tinha feito mal em recusar a oferta.
Ele viute repetiu e disselhe que se interessava por ti... Porque não to apresentou?
A que propósito, se eu não posso?
Que pena ele já ser casado!
Mesmo que fosse solteiro não o queria conhecer.
Há tanta maneira de fazer as coisas! disse minha mãe. alguém que é rico... gosta de ti... uma coisa leva à outra... podia ajudarte... sem te pedir nada!
Não, não! respondi. Essa gente nada dá sem receber em troca.
Nunca se sabe.
Não, não repetia eu.
Nada quer dizer disse minha mãe abanando a cabeça... Isso não impede que Gisela seja uma boa rapariga e que tenha verdadeira afeição por ti. Outra qualquer teria tido inveja, não te teria falado. Ela, ao contrário, mostrou ser uma verdadeira amiga!
Depois da minha recusa, Gisela não me tornou a falar do tal senhor distinto e, com grande espanto meu, deixou de me picar a propósito do meu noivado. Continuava a vêla às escondidas, assim como a Ricardo, mas mais de uma vez falei nela a Gino com o desejo de uma reconciliação, porque estes subterfúgios me desgostavam. Ele nem me deixava acabar de falar; renovava as suas expressões de raiva e jurava que se soubesse que eu a tornara a ver tudo acabaria entre nós. Falava seriamente e eu tinha quase a impressão de que teria de boa vontade aproveitado este pretexto para desfazer o casamento! Falei à minha mãe desta antipatia de Gino por Gisela e minha mãe declarou, sem parecer pôr maldade nesta observação:
Ele não quer que andes com Gisela porque tem medo que tu faças a comparação dos trapos com que sais e as toálettes que o noivo dela lhe dá.
Não! Somente diz que Gisela não lhe agrada.
Ele é que não agrada... Se Gino pudesse saber que tu falas com Gisela e rompesse contigo!
Mãe! gritei, apavorada. Que nem sequer te passe pela cabeça dizerlho!
Não, não! respondeu muito depressa, como que arrependida. Isso são assuntos vossos, não são da minha conta!
Se lhe fores dizer gritei, pondo toda a minha paixão neste grito. Nunca mais me verás!
Estávamos no Verão de S. Martinho e os dias eram tépidos e límpidos. Gisela disseme um dia que anuíra a fazer uma pequena viagem de automóvel: ela, Ricardo e um seu amigo.
Precisavase de outra senhora para fazer companhia ao amigo e tinham pensado em mim. Aceitei com alegria, porque na mesquinhez da minha vida estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse tornála menos insípida. Disse a Gino que era obrigada a fazer um trabalho extraordinário, e de manhã, pontualmente, eu estava no local marcado, que era do outro lado da ponte Milvio. O carro já me esperava, e quando me aproximei nem Gisela nem Ricardo, sentados no banco da frente, se mexeram, mas o amigo de Ricardo saltou em terra e veio ao meu encontro. Era um homem novo, de meia estatura, calvo, a cara amarelenta, com grandes olhos pretos, um nariz aquilino e uma boca larga, com as comissuras dos lábios parecendo sorrir.
Estava vestido com elegáncia, mas num estilo diferente do de Ricardo, um estilo clássico: casaco cinzentoescuro, calças de um cinzento mais claro, colarinho engomado e gravata preta com uma pérola. Tinha uma voz doce. Os olhos também me pareceram doces, mas igualmente melancólicos e como que entristecidos.
Era extremamente cortês, mesmo cerimonioso. Gisela apresentoumo dandolhe o nome de Estevão Astárito e tive logo a convicção de que se tratava do senhor distinto cujas galantes propostas ela me tinha transmitido. Mas não fiquei contrariada por travar este conhecimento, porque no fundo achava que as suas propostas nada tinham de ofensivo: lisonjeavamme mesmo, num certo sentido. Estendilhe a mão; levoua aos lábios com uma devoção estranha, de uma intensidade quase dolorosa. Depois subi, ele sentouse ao meu lado e o carro arrancou. Enquanto o automóvel rolava por entre campos amarelecidos, sobre uma estrada nua e inundada de sol, não falámos quase nada. Eu estava feliz por andar de automóvel, feliz por dar um passeio, feliz pelo ar que passava atrás da janela e me batia em cheio no rosto.
Era talvez a segunda ou terceira vez na minha vida que eu dava um passeio longo de automóvel e tinha receio de não o desfrutar bastante; escancarava os olhos procurando observar o maior número possível de coisas: molhos de palha, quintas, árvores, campos, colinas, bosques. Pensava que passariam meses, talvez anos, antes que eu pudesse dar um passeio igual, que tinha que gravar todos os pormenores na memória de maneira a possuir uma recordação precisa que lembraria sempre que quisesse. Mas Astárito, afastado, muito direito, não parecia ter olhares senão para mim. Os seus olhos melancólicos e cheios de desejo não largavam por um instante a minha cara e o meu corpo; realmente o seu olhar davame a sensação de um dedo que ele passasse lentamente sobre toda a minha pessoa. Não direi que esta atenção me desgostasse, mas embaraçavame.
Pouco a pouco sentime no dever de me ocupar dele e de lhe falar. Estava sentado com as mãos sobre os joelhos; num dos dedos brilhava, com uma aliança, um anel ornado com um brilhante.
Que anel tão bonito! disselhe estouvadamente. Ele baixou os olhos para o anel sem mexer a mão e respondeu:
Era o anel do meu pai. Tireilhe do dedo quando morreu.
Oh! disse para me desculpar. Depois acrescentei, indicando a aliança: É casado?
Com certeza que sim! respondeu com uma espécie de ar complacente. Tenho mulher e filhos.
É bonita a sua mulher? perguntei timidamente.
Menos que você disseme sem sorrir, em voz baixa e enfática, como se anunciasse uma verdade importante. E a mão em que brilhava o anel tentou agarrar a minha. Desembaraceime rapidamente dela e perguntei, para dizer qualquer coisa:
Vive com ela?
Não respondeume. Ela mora em... e disse o nome de uma longínqua cidade de província e eu aqui. Vivo só... Espero que venha visitarme.
Fingi não me aperceber desta entrada, insinuada de uma maneira trágica e convulsa, e perguntei:
Porque... não gostaria de viver com a sua mulher?
Estamos legalmente separados explicoume, amuando. Quando me casei era um garoto... foi minha mãe quem arranjou o casamento... Sabe bem como estas coisas se passam... uma rapariga de boa família, com um belo dote... são os pais que combinam o casamento, mas são os garotos que se devem casar! Viver com uma mulher... você seria capaz de viver com uma mulher como esta?
Tirou a carteira do bolso do peito, abriua e estendeume uma fotografia. Vi duas garotinhas com ar de gémeas, morenas, pálidas, todas vestidas de branco. Atrás delas, com as mãos pousadas nos seus ombros, uma mulherzinha morena e pálida, com os olhos unidos como os de um mocho e expressão maldosa.
Devolvilhe a fotografia. Ele tornou a guardála na carteira e depois disseme num sopro:
Não... queria viver consigo.
O senhor não me conhece de lado algum! respondi, desconcertada com a sua obsessão.
Conheçoa muito bem. Há um mês que a sigo. Sei tudo a seu respeito.
Falava e continuava a ficar respeitosamente distante. Mas incessantemente a sua paixão dilatavalhe os olhos.
Estou noiva! declareilhe.
Gisela disseme pronunciou com voz estrangulada.
Mas não falemos do seu noivo, que importa? e fez um pequeno gesto com a mão, de afectada indiferença.
Mas a mim importame, e muito continuei. Olhoume e repetiu:
Gosto imensamente de si.
Já dei por isso.
Agradame enormemente prosseguiu. Talvez nem se aperceba de que maneira me agrada.
Falava realmente como um louco. Mas o que me tranqüilizava era ele estar sentado longe de mim e não tentar mais pegarme na mão.
Nada há de mau em que eu lhe agrade disselhe.
E eu, agradolhe?
Não.
Tenho dinheiro disse ele com a cara crispada. Tenho muito dinheiro para a fazer feliz. Se vier ter comigo, verá que não terá de se arrepender!
Não preciso do seu dinheiro respondi com calma, quase com indiferença.
Pareceu não ouvir e disse, olhandome:
Você é muito bela!
Obrigada.
Tem uns lindíssimos olhos.
Acha?
Acho... e a sua boca é também muito bonita... quereria beijála.
Porque me diz essas coisas?
O seu corpo também o gostaria de cobrir de beijos... todo o seu corpo.
Porque me fala dessa maneira? Estou noiva e casaremos dentro de dois meses.
Desculpe, mas dáme prazer falar destas coisas. Faça de conta que não é consigo. Ainda estamos muito longe de Viterbo?
Estamos quase a chegar... Almoçaremos lá. Prometame que se sentará ao meu lado à mesa.
Desatei a rir, porque no fim de contas uma paixão tão violenta lisonjeavame:
Está bem disse eu.
Vai sentarse ao meu lado como agora prosseguiu ele. Contentome em respirar o seu perfume.
Mas eu não uso perfume! exclamei.
Heide oferecerlhe um frasco, deixe estar! respondeu.
Tínhamos chegado a Viterbo e o carro abrandou a velocidade para entrar na cidade. Durante todo o trajecto, Gisela e Ricardo, sentados à nossa frente, tinhamse conservado em silêncio. Mas quando começámos a percorrer lentamente as ruas repletas de gente, Gisela voltouse para trás e disseme:
Como vai isso aí, com os dois? Tu julgas, se calhar, que nós nada vimos?
Astárito ficou calado, mas eu protestei:
Tu não podias ter visto coisa alguma... temos vindo somente a conversar!
Está bem! Está bem! respondeu.
Fiquei profundamente admirada e um pouco irritada tanto com a atitude de Gisela como com o silêncio de Astárito.
Mas se eu te digo... confirmei.
Está bem! Está bem! repetiu ela. Não estejas com medo! Nós nada diremos ao Gino!
Entretanto tínhamos chegado à praça e descido do automóvel.
Começámos a passear ao longo das ruas pelo meio do povo endomingado sob o sol de Outubro, doce e brilhante. Astárito não me largava um instante, sempre grave, até mesmo sombrio, com a cabeça hirta, emergindo do seu alto colarinho, uma mão no bolso e a outra a balouçar. Tinha o ar não tanto de me seguir, mas de me vigiar. Gisela, pelo contrário, ria alto com Ricardo; muitas pessoas voltavamse para nos observar.
Entrámos numa pastelaria e tomámos vermute ao balcão. Reparei, de repente, que Astárito murmurava por entre dentes não sei que ameaças e pergunteilhe o que se passava.
É aquele imbecil que está ali à porta a olhar para si com uma insistência descarada! respondeume, furioso.
Volteime e vi com efeito um rapazola louro, que olhava para mim encostado à porta do café.
Que mal tem isso? disse eu alegremente. Olhame!... E depois?
Mas eu sou muito capaz de lhe partir a cara!
Se o fizer nunca mais lhe falarei e nunca mais o conhecerei! disselhe, aborrecida. Não tem esse direito! O senhor não representa coisa alguma na minha vida!
Ele não respondeu e foi à caixa pagar o vermute. Saímos da pastelaria e recomeçámos o nosso passeio. O sol, o burburinho, o movimento das ruas, todas essas caras coradas e sadias de provincianos punhamme de bom humor. Quando chegámos a uma praçazinha fora do centro, ao fundo de uma rua perpendicular, eu exclamei de repente:
Olhem! Se eu tivesse uma casinha como aquela e mostrava uma bonita casinha de dois andares junto de uma igreja , seria bem feliz de viver aqui!
Meu Deus! Meus Deus! gritou Gisela. Viver na província! Então em Viterbo. Eu não anuía a isso nem que me pagassem em ouro!
Depressa te aborrecerias, Adriana disse Ricardo.
Quem se habitua a viver na cidade já não pode viver na província.
Vocês estão enganados! disse eu. Gostaria bem de viver aqui... com alguém que gostasse de mim... Quatro quartos, uma trepadeira, quatro anelas... De nada mais precisava.
Eu falava sinceramente, porque me via já com Gino nesta simples casita de Viterbo.
Que diz? perguntei dirigindome a Astárito.
Consigo também lá viveria! disseme a meia voz para que os outros não o ouvissem.
O teu defeito, Adriana, é seres demasiadamente modesta... Na vida, quando não se deseja muito, nada se consegue!
Mas eu nada quero... respondi.
Nada, então? Nem casar com o Gino? perguntou Ricardo.
Isso sim!
Começava a fazerse tarde; as ruas iam ficando desertas; entrámos num restaurante. A sala do résdochão estava cheia, principalmente com aldeões de fatos domingueiros, que a circunstância de ser dia de feira tinha trazido a Viterbo.
Gisela ficou de mau humor e disse que o cheiro que havia ali lhe fazia faltar o ar e perguntou ao patrão se não podíamos comer no andar superior. O patrão disse que sim, que era possível e, precedendonos, feznos subir uma escadinha de madeira e entrar numa sala estreita e comprida com uma só janela, que dava para um beco. Abriu as persianas e fechou a janela. Depois estendeu a toalha numa mesa rústica que ocupava a maior parte da sala. Lembrome de que as paredes eram cobertas por um velho papel fora de moda, rasgado em vários sítios, com flores e pássaros, e que do outro lado da mesa havia um pequeno armário envidraçado cheio de pratos.
Enquanto isto se passava, Gisela girava pela sala examinando tudo, espreitando até o beco pela janela. Acabou por abrir uma porta que parecia dar acesso a outra sala. Depois de lhe deitar uma olhadela, dirigindose ao dono da casa, perguntou com um ar natural o que vinha a ser aquela outra sala.
É um quarto respondeu o proprietário. Se alguém quiser descansar depois do almoço..
Nós havemos de ir, hem, Gisela?! disse Ricardo com o seu risinho parvo.
Gisela fingiu não percebeu. Olhou mais uma vez o quarto e puxou a porta com cuidado sem no entanto a tornar a fechar. Ver uma sala de jantar tão pequenina e tão íntima agradoume e também fingi não reparar pára a porta aberta nem tãopouco para o olhar de cumplicidade que julguei surpreender entre Gisela e Astárito. Tomámos os nossos lugares à mesa; senteime ao lado de Astárito, como lhe tinha prometido, mas ele nem sequer deu por isso: parecia tão preocupado que nem podia falar. Passado um momento, o hoteleiro trouxe os acepipes e o vinho. Eu tinha muita fome, atireime ao almoço com tal sofreguidão que todos começaram a rir. Gisela aproveitou a ocasião para me arreliar; como de costume, a propósito do meu casamento.
Come! Come! recomendavame ela. Não é com o Gino que tu comerás tanto nem tão bem!
Porquê? disse eu. Gino ganha muito bem a sua vida!
Sim... mas vocês comerão todos os dias feijão.
Os feijões são tão bons como qualquer outra coisa! disse Ricardo rindo. Vou mandar vir um prato deles para nós!
És uma idiota, Adriana! continuou Gisela. Tu precisas de um homem de meios, sério, arrumado, que pense em ti e nada te negue que te permita realçar a tua beleza. E afinal enrolastete com o Gino!
Não respondi. De cabeça baixa, continuava a comer. Ricardo observava, rindo:
Eu, no lugar de Adriana, a nada renunciaria... nem ao Gino, visto que é dele que gosta tanto, nem ao homem sério. Ficaria com os dois... E talvez até que o Gino não achasse mal!
Ah! Isso não! Se ele soubesse que eu tinha dado hoje este passeio com vocês era o bastante para romper o noivado!
E porquê? perguntou Gisela, irritada.
Porque ele não gosta que eu ande contigo!
Porco, nojento, ordinário! Reles pobretão! gritou Gisela com raiva. Gostaria realmente de experimentar procurálo e dizerlhe: a Adriana continua a darse comigo. Hoje passámos todo o dia juntas. Anda, vai romper o noivado!
Não! Não! replicava eu, apavorada. Não farás isso!
Era uma sorte para ti!
Seria... mas não o faças! pedi de novo. Se és um pouco minha amiga, não o laças!
Durante toda esta conversa, Astárito não disse palavra, nem sequer comeu. Tinha os olhos constantemente fixos em mim e o seu olhar, carregado de intenções, grave e desesperado, incomodavame mais do que eu queria. Desejaria pedirlhe que não me olhasse daquela maneira, mas temia a troça de Gisela e de Ricardo. Foi pelo mesmo motivo que não tive coragem de protestar quando Astárito, aproveitando o momento em que pousei a minha mão esquerda sobre o banco, a apertou na sua com força, obrigandome a comer só com a direita. Fiz mal, porque de repente Gisela gritou, rindo:
Em palavras és muito fiel ao Gino, mas em acções. Julgas que não vos vejo, a ti e ao Astárito, de mãos dadas debaixo da mesa?
Corei, atrapalhada, e tentei libertar a minha mão. Mas Astárito retevea fortemente e Ricardo interveio:
Deixaos sossegados! Que mal é que isso tem? Eles estão de mãos dadas, pronto! O que temos a fazer é imitálos!
Disse isto por brincadeira! Pelo contrário declarou Gisela , estou até bem contente!
Quando acabámos de comer o primeiro prato, fizeramnos esperar muito tempo pelo segundo. Gisela e Ricardo não paravam de rir e de brincar, bebendo e fazendome beber. O vinho era tinto; era bom mas muito forte e subia depressa à cabeça. Eu gostava deste gosto do vinho, quente e picante; estava embriagada, mas tinha a impressão de não o estar e de poder beber indefinidamente. Astárito apertavame a mão, grave e sombrio, e eu já não me revoltava. Dizia a mim mesma que afinal de contas não havia mal em lhe dar um aperto de mão! Por cima da porta havia uma estampa com uma varanda florida de rosas e um homem e uma mulher vestidos com fatos de há cinquenta anos que se beijavam de uma maneira complicada. Gisela reparou na estampa e confessou que não compreendia como aqueles dois conseguiam beijarse naquela posição.
Vamos a ver se os conseguimos imitar? propôs a Ricardo. Tentemos!
Ricardo levantouse rindo e pôsse a imitar o homem do cromo, enquanto Gisela, também a rir, se debruçava sobre a mesa como a mulher da litografia sobre a florida varanda. Conseguiram unir as bocas ao fim de grandes esforços, mas pouco faltou para perderem o equilíbrio e tombarem os dois em cima da mesa. Gisela, excitada com a brincadeira, gritava:
Agora é a vossa vez!
Porquê? perguntei, alarmada. A que propósito?
Sim, sim. Experimentem!
Senti que Astárito me passava o braço em torno da cintura e tentei desembaraçarme declarando:
Mas eu não quero!
Oh! Como tu és aborrecida! gritavame Gisela. É uma brincadeira! Uma simples brincadeira!
Mas eu não quero repeti.
Ricardo ria e ajudavaa excitando Astárito.
Astárito, se não a beijas, não és homem!
Mas Astárito estava sério. Quase me fazia medo. Era bem claro que para ele isto não era apenas uma brincadeira.
Vocês vão deixarme em paz disse eu, voltandome para ele.
Astárito olhava para mim e depois para Gisela com ar interrogativo, como se esperasse um encorajamento.
Coragem, Astárito gritoulhe Gisela.
Ela parecia mais encarniçada do que ele de uma maneira que eu sentia obscuramente cruel e impiedosa.
Astárito apertoume com mais força pela cintura e puxoume para ele; agora já não era a brincadeira que o excitava: queria beijarme a todo o custo. Sem dizer nada, eu procurava livrarme, mas ele era mais forte; por mais força que eu fizesse com os cotovelos de encontro ao seu peito, sentia pouco a pouco o seu rosto aproximarse do meu. No entanto, não teria conseguido beijarme se Gisela não o tivesse ajudado.
Bruscamente, com um grito de alegria, ela levantouse, veio por detrás de mim, seguroume os braços e puxouos para trás. Eu não a via, mas sentia a sua fúria nas unhas que me enterrava na carne e na sua voz, que repetia, entrecortada de riso e com um tom de excitada crueldade:
Depressa! Depressa! Astárito, agora!
Astárito estava sobre mim. Eu procurava o mais possível virar a cara, porque era a única coisa que podia fazer, mas ele seguroume o queixo com a mão e voltoume para ele, beijandome depois demoradamente na boca.
Até que enfim! disse Gisela, triunfante. E voltou alegremente para o seu lugar.
Astárito deixoume, e eu, irritada e dorida, declarei:
Nunca mais venho com vocês!
Ora, ora, Adriana gritava Ricardo com ar de troça. Só por causa de um beijo!
Astárito está todo cheio de bâton! gritava Gisela, exultante. Se o Gino entrasse agora, sempre queria saber o que diria!
Era verdade. O meu bâton tinha pintado completamente a boca de Astárito, o traço vermelho sobre a sua cara amarelenta e triste também me dava vontade de rir.
Vá lá! disse Gisela. Façam as pazes... Limpalhe o bâton com o teu lenço, senão quando o criado entrar vai pensar sabe Deus o quê!
Eu, contra vontade, tinha de concordar e, com uma ponta do meu lenço molhada de saliva, limpei pouco a pouco o meu bâton da cara imóvel de Astárito. Fiquei arrependida mais uma vez de me mostrar amável, porque logo que guardei o lenço na mala ele tornou a passarme o braço em torno da cintura:
Deixeme disselhe.
Ora, ora, Adriana!
Que mal é que isto pode fazer? disse Gisela. A ele dálhe prazer e a ti não te prejudica... E depois já o deixaste beijarte... deixao lá continuar.
Foi assim que eu cedi pela primeira vez, e que ficámos um ao lado do outro, ele com o braço em torno da minha cintura e eu hirta e digna! O criado entrou trazendo o segundo prato.
Apesar de Astárito continuar a apertarme com força, comer fezme passar o mau humor. O segundo prato era excelente, e eu bebia sem dar por isso todo o vinho que Gisela me servia sem parar. Em seguida serviramnos fruta e um bolo. Eu não estava habituada a comer bolos, mas este era óptimo, e quando Astárito me ofereceu a sua parte não tive coragem de a recusar. Gisela, que também bebera muito, pôsse a fazer macaquices com Ricardo, enfiandolhe na boca gomos de tangerina e acompanhando cada gomo com um beijo. Eu sentiame embriagada, mas não de uma maneira repugnante: deliciosamente embriagada! O braço de Astárito tinha finalmente deixado de me incomodar.
Gisela, cada vez mais excitada e vibrante, levantouse para se sentar nos joelhos de Ricardo, e eu não pude deixar de rir ao ouvir o grito de dor que ele soltou como se Gisela o esborrachasse com o seu peso! De repente, Astárito, que até então estivera imóvel e se tinha limitado a conservar o braço em torno da minha cintura, começou a cobrirme de beijos o pescoço, o peito e as faces. Desta vez já não protestei; primeiro porque estava demasiadamente embriagada para lutar e depois porque me parecia que era outra pessoa que ele beijava; tãopouco eu tomava parte nessas expansões, conservandome hirta e imóvel como uma estátua. Na minha embriaguez tinha a sensação de ser espectadora de mim própria, observando com fria curiosidade a furiosa paixão de Astárito por mim. Mas os outros tomaram a minha indiferença por amor, e Gisela gritou:
Bravo, Adriana! Assim mesmo é que é!
Ia responder, mas não sei porquê mudei de ideias, agarrei no meu copo cheio e levanteio, declarando: “Estou embriagada!”, e bebio de um trago. Julguei que o meu gesto seria aplaudido.
Mas Astárito parou de me beijar, olhoume fixamente e disse em voz baixa:
Vamos para ali!
Segui a direcção dos seus olhos e vi que indicavam a porta entreaberta do quarto de cama contíguo. Pensei que também ele estivesse embriagado, e disse que não com a cabeça, mas sem violéncia, até com um pouco de coquetterie. Ele repetiu como um sonâmbulo:
Vamos para ali!
Reparei que Gisela e Ricardo já não riam e nos olhavam em silêncio. Gisela disse:
Coragem! Para a frente! Porque esperas?
De súbito, tive a impressão de que a minha embriaguez passara. Na verdade eu estava embriagada, mas não ao ponto de não me aperceber do perigo que me ameaçava.
Mas eu não quero! disse.
E levanteime.
Astárito levantouse também e puxoume o braço, tentando levarme para junto da porta. De novo os outros o encorajaram:
Coragem, Astárito!
Astárito arrastoume quase até à porta, apesar de me debater. Mas com uma sacudidela desembaraceime dele e corri para a outra porta, que dava para a escada. Mas Gisela tinha sido mais rápida do que eu:
Não! Minha filha, não! gritavame.
Deixando os joelhos de Ricardo, tinha alcançado a porta antes de mim e fecharaa à chave com duas voltas.
Mas eu não quero! repeti num tom assustado, parando em frente da mesa.
Que importância tem isso para ti? gritou Ricardo.
Idiota! disseme Gisela num tom duro empurrandome para Astárito. Vai... Vai... deixate de fitas!
Compreendi então que Gisela, levada pelo seu encarniçamento e pela sua crueldade, não se dava bem conta do que fazia; esta espécie de emboscada que me tinha preparado devia parecerlhe uma coisa alegre, espirituosa e divertida. Outro pormenor que também me chamou a atenção foi a indiferença de Ricardo, que eu sabia ser bom e incapaz da menor crueldade.
Mas eu não quero! disse novamente.
Que mal é que isso tem? perguntou Ricardo. Gisela, excitadíssima, continuava a empurrarme, dizendo:
Não te julgava tão parva! Anda, porque esperas? Até ali, Astárito não tinha pronunciado uma única palavra; ficara imóvel junto da porta, com os olhos fixos em mim. Agora, tranquilamente, confusamente, como se as palavras tivessem uma consistência pastosa e lhe custasse deslocálas dos lábios, disse:
Vem. Se não vieres, digo ao Gino que passaste a tarde deitada comigo.
Compreendi imediatamente que cumpriria a ameaça. Podemos enganarnos quanto ao sentido de uma frase, mas não quanto ao tom de uma voz. Astárito falaria com Gino e tudo acabaria para mim ainda antes de ter começado. Hoje penso que podia terme revoltado. Talvez que se tivesse gritado, se me debatesse violentamente, o tivesse persuadido da inutilidade da sua vingança. Mas isto podia também para nada servir, porque o seu desejo era mais forte do que a minha repugnância. O certo é que de repente me senti definitiva e absolutamente subjugada; e, muito mais do que o desejo de me defender, o que actuava em mim era a necessidade de evitar o escândalo que me ameaçava.
Na realidade, fora atraída à falsa fé, com o espírito completamente ocupado por doces projectos de futuro, aos quais de maneira nenhuma queria renunciar. O que me aconteceu depois foi tão brutal que hoje creio que, de uma maneira ou de outra, acontecem coisas a todos os que tem ambições, por mais modestas, mais inocentes ou mais legítimas que sejam, como era o meu caso. É pelas nossas ambições que a vida nos domina e castiga. Só os abandonados e os que renunciaram a tudo podem considerarse livres e serenos.
Mas no próprio momento em que me submetia ao destino senti uma dor lúcida e aguda. Uma brusca iluminação dirseia que o caminho da vida, geralmente tão obscuro e tão tortuoso, aparecia de repente diante dos meus olhos perfeitamente plano e direito reveloume tudo o que eu ia perder em troca do siléncio de Astárito. Os meus olhos encheramse de lágrimas; cobri a cara com as mãos e pusme a chorar. Compreendi que chorava por excesso de resignação e não por um sentimento de revolta, porque, ao mesmo tempo que chorava, aproximavame de Astárito. Gisela empurravame, repetindo:
Mas por que demónio estás tu a chorar? Como se fosse a primeira vez!
Ouvi Ricardo rir e senti, embora não os visse, os olhos de Astárito fixos em mim, que me aproximava lentamente, lavada em lágrimas. Depois o seu braço rodeou a minha cintura e a porta do quarto fechouse nas minhas costas.
Nada queria ver. Pareciame que ter de sentir o que ia passarse já era um martírio suficiente. Por isso, apesar dos esforços de Astárito, conservei obstinadamente o meu braço pousado sobre os olhos. Suponho que ele teria querido proceder como qualquer amante, isto é, levarme lentamente, insensivelmente, gradualmente, a satisfazer os seus desejos.
Mas a minha teimosia obrigouo a ser mais brutal e mais rápido do que ele desejaria. Por isso, depois de me ter feito sentar na beira da cama e tentado inutilmente convencerme com carícias, empurroume para trás e deitouse por cima de mim. O meu corpo, da cintura aos pés, estava inerte e pesado como chumbo: nunca mulher alguma foi possuída com mais abstinência e menos colaboração. Mas, entretanto, as minhas lágrimas secavam. E quando ele se deixou cair, ofegante, sobre o meu peito, tirei o braço da cara e abri os olhos.
Tenho a certeza de que nesse momento eu era tão amada por Astárito quanto uma mulher pode ser amada por um homem, seguramente muito mais do que por Gino. Lembrome de que ele não se cansava de me acariciar a testa e o rosto, com gestos convulsivos e apaixonados, tremendo da cabeça aos pés e murmurandome palavras de amor. Mas enquanto me acariciava eu seguia o fio dos meus pensamentos secretos. Revia o meu quarto com os seus móveis novos, ainda não completamente pagos, e sentia uma espécie de amargo alívio. Agora já nada me impedia de casarme e de viver a vida a que aspirava. Mas ao mesmo tempo sentia que a minha alma tinha mudado irremediavelmente: onde antigamente só havia esperança, ingenuidade e frescura existia agora segurança e resolução. Em resumo, sentiame mais rica de uma força triste e privada de amor.
Acabei por pronunciar as primeiras palavras desde que tínhamos entrado no quarto.
São horas de sairmos.
E ele respondeu imediatamente em voz baixa:
Estás zangada comigo?
Não.
Odeiasme?
Não.
Gosto tanto de ti! murmurou ele.
Voltou a cobrirme o rosto de beijos furiosos. Passados momentos, disselhe:
Está bem, mas temos de voltar para a sala.
Tens razão concordou ele.
E levantouse de cima do meu corpo, começou, pareceume, a vestirse no escuro. Tornei a vestir a minha roupa, levanteime e acendi o candeeiro da mesinhadecabeceira. A sua luz amarelada, o quarto apareceume tal como o seu cheiro a fechado e a alfazema mo tinham feito imaginar: um tecto baixo caiado, papel pintado nas paredes e móveis maciços. Num canto havia um lavatório com tampo de mármore, duas bacias e dois jarros de água com flores corderosa e verdes, debaixo de um espelho com moldura dourada. Fui ao lavatório, deitei um pouco de água na bacia, molhei uma ponta da toalha e lavei os lábios de onde Astárito tinha tirado todo o bâton com os seus beijos, depois os olhos, ainda vermelhos de chorar. De um fundo manchado cor de ferrugem o espelho devolviame uma imagem dolorosa de mim própria que me aturdiu por momentos a alma entorpecida e cheia de compaixão. Depois voltei a mim, ajeitei o melhor que me foi possível o cabelo e volteime para Astárito. Ele esperavame ao pé da porta; assim que me viu pronta, abriu o batente, evitando olharme e voltandome as costas. Apaguei a luz e seguio.
Fomos alegremente recebidos por Gisela e por Ricardo, sempre com o mesmo humor amalucado e indiferente. Como antes, eles não tinham compreendido a minha dor, nem entendiam a minha serenidade de agora. Gisela gritou:
Tu és uma boa sonsa! Não querias, não querias, mas parece que aceitaste bem depressa e de muito bom grado!... Fizeste bem se isso te deu prazer, mas não valia a pena tereste feito tão rogada.
Olheia. Pareciame estranhamente injusto que ela, que me obrigara a ceder a ponto de me segurar os braços para que Astárito me beijasse mais a seu jeito, censurasse agora a minha complacência. Ricardo, com o seu bom senso, fezlhe notar:
Estás a ser pouco lógica, Gisela... Tu, que de começo insististe tanto, agora quase a censuras por ela o ter feito.
Pois decerto! insistiu duramente Gisela. Se ela não queria, fez mal... Eu, por exemplo, se não quisesse, não me deixaria convencer nem pela força. Mas ela... ela queria acrescentou, considerandome com um ar descontente. Ela queria e muito! Eu bem a vi no carro antes de chegarmos a Viterbo. É por isso que ela não precisava de se fazer tão rogada.
Caleime, quase admirando a perfeição de uma crueza ao mesmo tempo impiedosa e inconsciente. Astárito aproximouse de mim e tentou agarrarme a mão. Repelio e fui sentarme ao fundo da mesa.
Mas olhem para Astárito! gritou Ricardo desatando a rir. Parece que vem de um enterro!
Verdadeiramente, à sua maneira, com uma gravidade lúgubre e o seu ar mortificado, Astárito parecia compreenderme melhor do que os outros.
Vocês estão sempre a brincar! disse ele.
Talvez quisesses que começássemos a chorar, não? gritou Gisela. Agora vocês vão ter paciência e esperar por nós como nós esperámos por vocês... Cada um por sua vez! Anda, querido, vamos!
Tenham cuidado, hem! recomendou Ricardo levantandose depois dela.
Estava visivelmente embriagado e nem ele sabia bem porque dissera para termos cuidado.
Vamos! Vamos!
Saíram por sua vez da sala de jantar, deixandonos sós, a mim e a Astárito. Eu estava sentada a uma ponta da mesa e Astárito na outra. Um raio de sol entrava pela janela, iluminando violentamente os pratos em desordem, os copos ainda meio cheios e os guardanapos sujos e batia em cheio na cara de Astárito, que conservava a sua expressão triste e sombria.
Satisfizera o seu desejo, mas o olhar que me deitava conservava a mesma intensidade dolorosa dos primeiros momentos do nosso encontro. Apesar do mal que me fizera, sentime cheia de piedade por ele. Compreendia como ele tinha sido infeliz antes de me possuir, e como, apesar de ter conseguido o seu fim, não tinha deixado de o ser. Primeiro sofrera porque me desejava; agora sofria porque eu não retribuía o seu amor. Mas é precisamente na piedade que o amor tem a sua inimiga; se o odiasse, talvez um dia viesse a amálo. Mas não o odiava.
Nutrindo por ele, como já disse, apenas compaixão, a única coisa que eu poderia sentir por ele era antipatia, frieza e repulsa.
Ficámos longamente silenciosos na sala cheia de sol, esperando o regresso de Gisela e de Ricardo. Astárito fumava sem descanso, acendendo uns cigarros nos outros. E, através das nuvens de fumo de que se rodeava raivosamente, lançavame os olhares eloquentes de um homem que tem muito que dizer, mas a quem falta a coragem de falar. Eu estava sentada junto da mesa, com as pernas cruzadas, e todos os meus sentidos se condensavam num único desejo: irme embora. Não sentia fadiga, nem vergonha; mas gostaria de estar só para poder reflectir à minha vontade no que me tinha acontecido. Absorvido por este grande desejo de partir, o meu espírito vazio divagava continuamente e observava futilidades: a pérola que Astárito usava na gravata, o desenho do tapete, uma pequena nódoa de molho de tomate na minha blusa, uma mosca que passeava tranquilamente na borda de um copo; irritavame comigo própria por não ser capaz de pensar em coisas mais sérias. Mas esta futilidade veio em meu auxílio quando Astárito, vencendo a sua timidez, me perguntou, a custo:
Que estás a pensar?
Reflecti durante um momento, e depois respondi, com tranquilidade:
Parti uma unha e não sei como foi.
Isto era verdade. Mas o seu rosto tomou uma expressão de incrédula amargura e renunciou definitivamente a conversar comigo.
Pouco depois, felizmente, Gisela e Ricardo saíram do quarto, um pouco ofegantes, mas tão alegres e despreocupados como antes. Ficaram admirados do nosso silêncio e da nossa gravidade, mas faziase tarde e o amor tinha tido neles um efeito oposto ao que tivera sobre Astárito: tinhaos tranquilizado e acalmado. Gisela voltava até a mostrarse afectuosa para comigo, pondo por completo de parte a excitação e a crueldade de que dera provas antes e durante a chantagem de Astárito. Pensei que essa chantagem tinha sido para ela uma espécie de novo tempero sensual para a insipidez da sua ligação com Ricardo. Na escada passou o braço em volta da minha cintura e murmurou:
Porque estás com essa cara? Se estás preocupada por causa do Gino, podes ficar descansada. Nem eu nem o Ricardo falaremos nisto a alguém.
Estou fatigada menti.
O meu temperamento impedeme de guardar rancor seja a quem for; bastava aquele gesto de amizade de Gisela para dissipar por completo o meu ressentimento.
Eu também me sinto cansada disse ela. Deve ser do vento que apanhei na cara.
Daí a momentos, parada à porta do restaurante, enquanto os dois homens caminhavam na direcção do carro, acrescentou:
Não ficaste zangada comigo pelo que se passou?
Que ideia! respondi. Que culpa tiveste disso? Assim, depois de ter tirado todas as satisfações que a sua intriga podia proporcionarlhe, queria ainda ter a certeza de que não lhe guardava rancor. Tive a impressão de ter lido com clareza no seu espírito, e foi precisamente porque não queria que ela compreendesse isso, o que decerto a humilharia, que tentei por todos os meios ao meu alcance dissipar os seus temores e mostrarme afectuosa. Deilhe um beijo e disselhe:
Porque havia de me zangar agora contigo? Tu sempre pensaste que devia deixar o Gino e juntarme com o Astárito.
Isso é verdade! afirmou ela com ênfase. E continuo a pensálo!? Mas tu, pelo contrário... Tenho medo de que nunca me perdoes.
Mostravase ansiosa, e eu, por um curioso contágio, estava ainda mais ansiosa do que ela, porque temia que adivinhasse os meus verdadeiros sentimentos.
Isso só prova que não me conheces bem respondi com simplicidade. Bem sei que é só por amizade para comigo que queres que eu deixe o Gino, porque estar com ele é contra os meus interesses. E é muito possível que tenhas razão! terminei, mentindo novamente.
Tranquilizada, agarroume por um braço e disseme, num tom de serena confidência:
Queria que me compreendesses... Astárito ou outro qualquer, tanto faz, contanto que não seja o Gino. Se soubesses a pena que me faz ver uma rapariga bonita como tu prejudicarse dessa maneira... Pergunta ao Ricardo: passo o dia a falarlhe de ti...
Exprimiase, como era seu hábito, sem meias palavras: e eu tinha o cuidado de aprovar tudo o que ela dizia, quer concordasse quer não. Chegados ao carro, ocupámos os mesmos lugares da vinda e partimos.
Durante a viagem de regresso conservámonos os quatro em siléncio. A expressão de Astárito ao olhar para mim exprimia mais um sentimento de mortificação do que de desejo; mas agora os seus olhares não me incomodavam, nem eu sentia, como à vinda, a necessidade de lhe falar e de ser amável com ele.
Absorvia com prazer o vento que me batia na cara e entretinhame a verificar, por meio dos marcos quilométricos, a progressiva diminuição da distáncia que nos separava de Roma. A certa altura senti a mão de Astárito tocar na minha e percebi que tentava obrigarme a pegar em qualquer coisa como um bocado de papel. Admirada, pensei que, não ousando falarme, recorrera ao expediente de escrever para comunicar comigo. Mas, baixando os olhos, vi que se tratava de uma nota de banco dobrada em quatro.
Ele olhava fixamente para mim, ao mesmo tempo que tentava fazer com que os meus dedos se fechassem sobre a nota. Por momentos apeteceume atirarlhe com ela à cara, mas ao mesmo tempo compreendi que isso não passaria de um gesto puramente exterior, ditado mais por um preconceito do que por um profundo impulso da alma. O sentimento que nesse momento tomou conta de mim causoume extraordinário espanto: depois disso, nas numerosas vezes que recebi dinheiro de homens, nunca mais o tive tão claro e tão intenso; era um sentimento de cumplicidade e de acordo sensual, que nenhuma das suas carícias, no quarto do restaurante, tinha podido inspirarme. Este sentimento de inevitável sujeição reveloume de repente um aspecto do meu carácter até aí completamente desconhecido para mim. Eu sabia, com absoluta certeza, que devia recusar esse dinheiro, mas ao mesmo tempo sentia que o desejava aceitar. E isto não tanto por avidez como pelo raro e novo prazer que o facto dava à minha alma.
Apesar de firmemente resolvida a aceitar a nota, fingi recusála, num gesto de puro instinto. Astárito insistiu, sem deixar de me fitar nos olhos. Então passei a nota da mão esquerda para a direita. Sentiame tomada por uma estranha excitação que me fazia corar e me dificultava a respiração.
Se nesse momento Astárito tivesse podido adivinhar o que se passava em mim, talvez tivesse pensado que o amava. Ora nada era menos verdadeiro; era somente o dinheiro, o modo como me tinha sido dado e o motivo dessa dádiva que actuavam sobre o meu espírito. Senti Astárito pegarme na mão e levála aos lábios. Deixeio beijála e depois retireia. Não voltámos a olhar um para o outro até à nossa chegada a Roma.
Logo que chegámos à cidade separámonos rapidamente uns dos outros, como se cada um de nós tivesse a consciência de ter cometido um crime e quisesse esconderse. A verdade é que nesse dia todos nós tínhamos cometido qualquer coisa que podia considerarse um crime: Ricardo, por estupidez, Gisela, por inveja, Astárito, por luxúria, e eu, por inexperiência.
Ricardo desejoume boasnoites. Astárito, grave e comovido, não teve coragem senão para me apertar silenciosamente a mão.
Tinhamme levado a casa, e, apesar da minha fadiga e dos meus remorsos, lembrome de que não me foi possível evitar um sentimento de vaidosa satisfação ao descer deste belo carro diante da porta, perante os olhares da família do ferroviário que ocupava a casa do lado e que nos espreitava por uma janela.
Corri para o meu quarto e a primeira coisa que fiz foi olhar para o dinheiro. Descobri que não era apenas uma, mas sim três notas de mil, e durante momentos, sentada na borda da minha cama, sentime feliz. Este dinheiro, além de chegar para pagar o que eu ainda devia dos móveis, permitiame comprar outras coisas de que precisava. Como nunca tinha tido em meu poder uma tal importância, não me fartava de olhar para o dinheiro.
A minha pobreza fazia com que a sua existência fosse não só agradável mas inacreditável. Tive de olhar longamente para as notas, como já sucedera com os móveis, para conseguir acreditar que me pertenciam.
O meu longo e profundo sono dessa noite pareceume ter desvanecido a recordação da minha aventura de Viterbo. No dia seguinte, acordei tranquila, decidida a prosseguir com a mesma perseverança nas minhas aspirações de possuir uma vida e uma família normais. Gisela, que vi nessa mesma manhã, quer fosse por remorsos quer, como era mais provável, por discrição, bem compreensível, não me fez a menor alusão ao nosso passeio e eu fiqueilhe reconhecida por isso. A ideia de tornar a encontrarme com Gino angustiavame e enchiame de ansiedade.
Embora estivesse convencida da minha total inocência, pensava que seria necessário mentirlhe, o que receava, e não estava certa de o poder fazer, porque seria a primeira vez, visto que eu até agora tinha sido inteiramente sincera para ele. verdade que lhe escondera os meus encontros com Gisela, mas esta dissimulação tinha um motivo tão inocente que nunca a tinha considerado como uma mentira; era apenas um expediente, com o qual condenava a sua injusta antipatia por Gisela.
A minha angústia era tal quando o encontrei nesse dia que por pouco não rompi a chorar e não lhe contei tudo, pedindolhe que me perdoasse. Este passeio a Viterbo pesavame na consciência e sentia um violento desejo de aliviar a minha alma confessandolho. Se Gino fosse diferente e se eu não soubesse que era tão ciumento, tenho a certeza de que lho teria dito; depois de o fazer, pareciame, nós amarnosíamos mais ainda que anteriormente, e eu sentirmeia protegida e ligada a ele por um laço mais forte que o nosso próprio amor. Era de manhã, estávamos no carro. como de costume, parados na nossa avenida dos arrabaldes. Ele notou o meu embaraço e perguntoume:
Que tens?
“Vou contarlhe tudo mesmo com o risco de ele me pôr fora do carro e de eu ter de voltar para Roma a pé.” Mas não tive coragem e pergunteilhe, por minha vez:
Amasme?
É um interrogatório? respondeume.
Vais amarme sempre? repeti. com os olhos cheios de lágrimas.
Sempre.
E vamos casarnos depressa?
Ele mostrouse contrariado com a minha insistência.
Palavra de honra! protestou. Tu acabarás por me convencer de que não tens confiança em mim! Não decidimos casar na Páscoa?
Sim, é verdade!
Não te dei dinheiro para começarmos a montar casa?
Deste.
Então? Sou ou não homem de palavra? Quando digo que faço alguma coisa, faço mesmo. Está a parecerme que é a tua mãe que te excita contra mim.
Não, não. A minha mãe nada tem a ver com isto respondi, alarmada. Dizme... Então viveremos juntos?
Bem entendido!
E seremos felizes?
- Isso dependerá de nós.
Viveremos juntos? perguntei pela segunda vez, incapaz de sair do círculo da minha ansiedade.
Uf! Já me perguntaste e eu já te respondi.
Desculpa disselhe , mas às vezes isso pareceme impossível. E, não podendo conterme por mais tempo, desatei a chorar.
Nessa mesma tarde, depois de o deixar, entrei numa igreja para me confessar. Havia quase um ano que não o fazia; durante todo esse tempo pensava que podia fazêlo e isso bastavame.
Deixara de me confessar logo que dei o primeiro beijo a Gino.
Deime conta de que as minhas relações com Gino eram um pecado segundo a religião, mas, como eu sabia que nos casaríamos, não sentia remorsos e contava ser absolvida de tudo. antes do casamento.
Entrei numa pequena igreja do centro cuja porta fica entre a entrada de um cinema e a montra de uma loja de meias. Estava quase mergulhada na escuridão, à parte o altarmor e uma capela lateral consagrada à Virgem. Era uma igreja muito suja e muito velha: as cadeiras de palha, todas desarrumadas, tinham ficado na mesma confusão em que os fiéis as tinham deixado ao sair. Fazia lembrar que tivessem abandonado com alívio, bem mais do que uma missa, uma macadora reunião.
Uma fraca luz bruxuleante que tombava da lanterna da cúpula revelava a poeira das pedras e as esfoladelas brancas do reboco amarelo das colunas a fingir de mármore. Numerosas promessas de prata em forma de coração chamejavam suspensas nas paredes umas contra as outras, provocando uma impressão melancólica. No entanto, o ar estava impregnado de um velho cheiro a incenso que me encorajou. Rapariguinha, tinha a sorvido muitas vezes este cheiro, e as recordações que ele me suscitava eram agradáveis e inocentes. Tive, por isso, a impressão de me encontrar num sítio familiar, e, se bem que entrasse pela primeira vez naquela igreja, pareceume que sempre a frequentara.
Mas antes de me confessar quis ir à capelinha lateral onde tinha entrevisto uma imagem da Virgem. Eu tinha sido desde o meu nascimento votada à Virgem Santa; minha mãe dizia que eu era parecida com Ela, com os meus olhos negros e doces. Sempre amei a Nossa Senhora porque Ela tinha o Seu filho nos braços e porque este filho feito homem Ih'O tinham morto; e Ela, que O pôs no mundo e O amou como se ama um filho, muito deve ter sofrido vendo pregaremlh'O na cruz. Muitas vezes pensava que a Virgem, que tinha sofrido tanto, era a única capaz de compreender os meus pesares; e, quando era pequena, só a Ela queria rezar, porque só Ela estava à altura de me ouvir.
Depois, a Virgem agradavame porque me parecia extremamente diferente de minha mãe, serena, tranquila como era, ricamente vestida, com olhos que se fixavam em mim afectuosamente.
Pareciame que era Ela a minha verdadeira mãe, e não a minha, sempre ríspida e mal vestida.
Ajoelheime, pois, tomei a cara entre as mãos, e de cabeça baixa fiz uma longa oração à Virgem, pessoalmente para lhe pedir perdão pelo que tinha feito e para invocar a sua protecção para mim, para minha mãe e para Gino. Em seguida lembreime de que a ninguém devia guardar rancor e pedi a Sua protecção também para Gisela, que me traíra, para Ricardo, que por estupidez tinha ajudado Gisela, e mesmo até para Astárito.
Rezei por Astárito mais tempo que pelos outros, porque experimentava um ressentimento à sua recordação e queria anular esse mau sentimento, gostando dele como gostava dos outros, perdoandolhe e esquecendo todo o mal que me havia feito. Acabei por me sentir tão comovida que as lágrimas me vieram aos olhos. Levantei os olhos para a imagem da Virgem sobre o altar; as lágrimas faziam como um pequeno véu e a imagem pareciame vacilante e bruxuleante como se a visse debaixo de água; os círios que brilhavam à sua volta faziam uma poeira dourada, doce à vista mas amarga também, como por vezes as estrelas que se deseja tocar e se sabe que estão muito longe. Fiquei muito tempo olhando a Virgem quase sem A ver; em seguida, as lágrimas rolaram pela minha cara com um formigueiro amarbo; então vi a Virgem com o Seu Menino nos braços, que me olhava, o rosto iluminado pela chamazinha dos círios. Tive a impressão de que era com simpatia e compaixão que Ela me olhava; agradeciLhe com todo o meu coração, e depois. levantandome e já serena, fuime confessar.
O confessionário estava vazio; mas enquanto tomava alento procurando com os olhos um padre, vi alguém sair por uma pequena porta à esquerda do altarmor, passar em frente do altar fazendo uma genuflexão e, persignandose, dirigirse para o outro lado. Era um frade, não percebi bem de que ordem. Enchime de coragem e chameio em voz baixa. Ele voltouse e veio logo ao meu encontro. Quando se aproximou vi que era um homem ainda novo, alto e forte, com um rosto fresco, rosado e viril, enquadrado por uma ligeira barba loura, olhos azuis e uma testa alta e branca. Pensei quase involuntariamente que era um homem magnífico, como é raro encontrarse, não só numa igreja mas até cá fora, e sentime feliz por me ir confessar a ele. Disselhe o que desejava em voz baixa; ele, com um ligeiro sinal de assentimento, acompanhoume até ao confessionário.
Entrou e eu ajoelheime em frente da grade. Uma placazinha pregada sobre o confessionário indicava o nome do padre: Élie; este nome ainda me inspirou mais confiança; entrou, ajoelhouse, fez uma breve oração e perguntou:
Há muito tempo que não se confessa?
Há quase um ano respondi.
É muito tempo... muito tempo... Porquê?
Notei que falava mal o italiano, carregando muito os erres como fazem os franceses. Dois ou três erros que cometeu pronunciando à italiana palavras estrangeiras fizeramme compreender que era efectivamente francés. O facto de ser estrangeiro agradoume também, sem eu saber verdadeiramente porquê. Talvez porque quando se faz qualquer coisa a que se dá importância tudo o que nos parece insólito apresentasenos como um bom agoiro.
Disselhe que a longa história que lhe iria contar lhe explicaria o motivo das interrupções das minhas confissões.
Após um curto silêncio, perguntoume o que tinha para lhe dizer. Então, com muito entusiasmo e confiança, conteilhe as minhas relações com Gino, a minha amizade com Gisela, o passeio a Viterbo e a chantagem de Astárito. Enquanto falava não me podia impedir de pensar no efeito que lhe fariam as minhas confidências. Este não era um padre como os outros; o seu aspecto altivo, com ar de homem do mundo, levavame a perguntar quais as razões que o teriam levado a tornarse frade. Pode parecer estranho que depois da extraordinária emoção que a minha prece à Virgem me provocara, eu me pudesse distrair ao ponto de me interessar pelo meu confessor; mas não vejo contradição entre esta curiosidade e esta emoção. Elas vinham do fundo da minha alma, onde a devoção e a coquetterie, a aflição e a sensualidade, faziam uma indissolúvel mistura.
Embora pensasse nele como acabo de dizer, experimentava uma doce consolação e uma avidez reconfortante por contar tudo. Tinha a impressão de me afastar cada vez mais da pesada angústia que me tomara, como uma flor ressequida que recebe enfim as primeiras gotas de chuva. Comecei por me exprimir penosamente, com hesitações, depois falei correntemente, e por fim a minha sinceridade era veemente e cheia de esperança.
Nada omiti, nem mesmo o dinheiro que recebera de Astárito, os sentimentos que essa oferta me tinham inspirado e o uso que tencionava fazer ele. Ouviume sem fazer nenhum comentário. Quando acabei declarou :
Para evitar uma coisa que lhe parecia um prejuízo, quer dizer, o rompimento do seu noivado, acedeu a praticar uma acção mil vezes mais grave para si própria...
É verdade disselhe, palpitante e contente por os seus dedos delicados me abrirem a alma.
Na realidade continuou ele, como se falasse consigo próprio , o vosso noivado nada tem a ver com isto... Entregandose a esse homem cedeu apenas a um impulso de avidez.
É verdade! É verdade!
Pois bem! Era preferível que o vosso noivado se desmanchasse a ter feito o que fez.
Também eu penso assim!
Não basta pensálo. Agora vai casar, é verdade, mas por que preço? Nunca poderá ser uma esposa honesta.
Estas palavras duras e inflexíveis atingiramme. Explodi num grito de angústia:
Ah! Por isto não! disselhe. Para mim é como se absolutamente nada se tivesse passado. Estou certa de que serei uma esposa honesta!
A sinceridade da minha resposta deve terlhe agradado. Fez uma grande pausa e depois repetiu com uma voz mais doce:
Sente um arrependimento sincero?
Ah! Sim! respondi impetuosamente.
De repente, tive a ideia de que ele me iria impor a devolução do dinheiro a Astárito. Se bem que já sentisse a pena que me fazia devolverlho, nem sequer me passou pela cabeça desobedecerlhe, sobretudo porque a ideia viria dele, o que me agradava e me subjugava de uma maneira singular. Mas, sem fazer a menor alusão ao dinheiro, ele continuou, na sua voz fria e distante, à qual a sua pronúncia estrangeira dava apesar de tudo um acento afectuoso:
Agora vai casar o mais depressa possível... Regularizar a sua situação. Deve dizer ao seu noivo que não podem continuar a encontrarse assim.
Já lhe disse.
E que respondeu ele?
Não pude deixar de sorrir ao pensar no belo rapaz louro que me fazia esta pergunta do fundo do confessionário escuro.
Respondi, não sem esforço:
Disseme que nos casaríamos na Páscoa.
Era melhor que casassem já... disseme, depois de um momento de reflexão.
E desta vez tive verdadeiramente a impressão de que não era um padre quem me falava, mas um homem do mundo, cortés, um pouco aborrecido por ter de se ocupar dos meus assuntos.
- Vem longe a Páscoa !
Não podemos antes... Tenho de fazer o enxoval e ele tem de ir à terra para falar aos pais.
Seja como for continuou ele , tem de casar o mais depressa possível, e até ao dia do casamento deve interromper completamente todas as relações carnais com o seu noivo... É um grande pecado! Percebeu?
Está bem prometi.
Promete? perguntou como se duvidasse. De qualquer maneira, fortifiquese contra as tentações pela oração. Procure rezar.
Sim... Rezarei.
Quanto a esse outro homem prosseguiu , nunca mais o deve tornar a ver, seja a que pretexto for... Isso não lhe deve ser difícil, visto não gostar dele... Se ele insistir e se a procurar, não o receba.
Respondilhe que o faria. Então, depois de algumas recomendações pronunciadas com voz fria e reticente e ao mesmo tempo tão agradável de escutar devido ao seu acento estrangeiro e à cortesia que dele emanava, ordenoume como penitência que recitasse todos os dias um certo número de orações e deume a absolvição. Mas antes de ma conceder quis que eu rezasse um padrenosso com ele. Aceitei com alegria porque era de má vontade que me ia embora e porque ainda não me tinha saciado da sua voz.
Pai Nosso que estais nos Céus disse ele.
E eu repeti.
Pai Nosso que estais nos Céus...
Venha a nós o Vosso Reino...
Venha a nós o Vosso Reino...
Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu...
Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu...
O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
Perdoainos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores...
Perdoainos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores...
Não nos deixeis cair em tentação e livrainos de todo o mal...
Não nos deixeis cair em tentação e livrainos de todo o mal...
Amen.
Amen.
Transcrevo inteiramente oração para reviver o sentimento que experimentei ao recitála com ele: a impressão de ser muito pequenina e de que ele me conduzia pela mão de uma frase à outra. Mas, entretanto, eu pensava no dinheiro que me tinha dado Astárito e sentiame quase decepcionada porque ele não me tinha imposto que o devolvesse. Com efeito, eu teria desejado que ele mo tivesse ordenado para lhe dar uma prova concreta da minha boa vontade, da minha obediéncia e do meu arrependimento, e poder fazer por ele uma coisa que era para mim um real sacrifício. Acabada a oração, levanteime. Ele também saiu do confessionário e fez menção de se ir embora sem me olhar. Era justo, visto que me tinha feito um ligeiro cumprimento com a cabeça. Então, quase sem querer e sem reflectir, puxeilhe a manga do hábito. Parou e fixoume com os seus olhos azuisclaros, frios e serenos. Pareceume ainda mais belo, mil ideias loucas me atravessaram o espírito.
Sonhei que poderia amálo; pensei na maneira de lhe mostrar que ele me agradava. Mas ao mesmo tempo a voz da minha consciéncia advertiume de que estava na igreja, que este homem era um padre e o meu confessor. Todas estas ideias e estas lutas me atacaram ao mesmo tempo, produzindo no meu espírito uma grande confusão: sentime por momentos incapaz de falar. Então, depois de uma espera razoável, ele perguntoume:
Queria dizerme mais alguma coisa?
Queria saber disse eu se devo restituir o dinheiro àquele homem.
Lançoume um rápido olhar, mas directo e que me atingiu até ao fundo da alma; depois, disse com brevidade:
Fazlhe muita falta?
Faz, sim.
Então pode guardálo. Mas proceda segundo a sua consciéncia.
Disse estas palavras num tom seco, como para me indicar que nada mais havia a dizer, e eu balbuciei um “obrigada” sem sorrir, olhandoo fixamente nos olhos. Realmente, naquele momento tinha perdido a cabeça; esperava talvez que, de uma maneira ou de outra, por um sinal ou por ama palavra, ele me fizesse compreender que eu não lhe era indiferente. Ele sentiu com certeza a intenção do meu olhar: ligeiro clarão de espanto passou no seu rosto. Esboçou um cumprimento, voltoume as costas e partiu, deixandome junto do confessionário confusa e cheia de perturbação.
Nada disse a minha mãe da minha confissão, como nada lhe tinha dito sobre o passeio a Viterbo. Eu sabia que ela tinha a respeito dos padres e da religião ideias bem determinadas.
“Eram dizia ela coisas muito belas; mas, entretanto, os ricos continuavam ricos e os pobres pobres ficavam.” “Por aí se vê concluía que os ricos sabem rezar melhor do que nós”.
As ideias da minha mãe sobre religião eram as mesmas que sobre a família e o casamento; fora piedosa e praticante e tudo lhe tinha corrido mal; por isso já não acreditava. Quando uma vez lhe disse que a nossa recompensa estava no outro mundo, ela enfureceuse e declaroume que a recompensa a queria já e neste mundo e que se não a tinha era porque “tudo isso não passava de mentiras”! Contudo, tendo começado por ser piedosa, ela tinhame dado, como já disse, uma educação religiosa. Só no decorrer dos últimos anos é que mudara de ideias.
No dia seguinte de manhã, quando entrei para o carro de Gino ele disseme que os patrões tinham ido para fora por alguns dias e nós podíamos encontrarnos na moradia. O meu primeiro movimento foi de alegria, porque julgo já o ter dito amar agradavame e gostava de fazer amor com Gino. Mas logo a seguir lembreime da promessa feita ao meu confessor e declarei:
Não, não posso.
Porquê?
Porque não é possível!
Está bem! disse com um suspiro de condescendência. Então será amanhã...
Não... amanhã também não... nunca mais!
Ah! Nunca mais! repetia ele afectando assombro. Nunca! Então penso que ao menos me irás dar uma explicação...
Tinha uma expressão desconfiada e ciumenta.
Gino disselhe muito depressa... Amote... muito... Nunca te amei tanto como neste momento... Mas é justamente por te amar... que acho melhor que até ao dia do nosso casamento nada haja entre nós, e nada... quero dizer... que não tenhamos relações.
Ah! Agora está tudo explicado! declarou maldosamente. Tens medo que eu já não queira casar contigo, hem?
Não, estou certa de que casarás. Se eu tivesse essa desconfiança não fazia todos estes preparativos... Não teria gasto o dinheiro que a minha mãe levou toda a sua vida a pôr de lado.
Oh! Como tu pões nos píncaros esse dinheiro da tua mãe! disseme.
Depois, tornandose tão desagradável que nem o reconhecia:
Então, porquê?
Fuime confessar e o meu confessor proibiume de ter relações contigo até que estejamos casados.
Ele fez um gesto de desapontamento e soltou uma exclamação de teve em mim o efeito de uma praga.
Mas com que direito é que esse padre vem meter o nariz nas nossas coisas?
Preferi não lhe responder. Ele insistiu:
Então, porque não respondes?
Nada mais tenho para dizer.
Sem dúvida que eu lhe devia ter parecido inflexível, porque de repente, mudando de ideias, declarou:
Está bem, está! Então queres que te leve outra vez para a cidade?
Como quiseres.
Devo dizer que foi esta a única vez que ele foi pouco gentil e desagradável para mim. No dia seguinte parecia resignado e mostrouse como sempre tinha sido: afectuoso, cortês e amável.
Continuámos a vernos todos os dias, como de costume; somente não nos possuíamos e limitávamonos a conversar. De tempo a tempo, davalhe um beijo, coisa que ele tinha resolvido nunca mais me pedir. Pareciame que beijálo não era pecado, porque, no fim de contas, éramos noivos e casaríamos em breve.
Quando me recordo desses dias imagino que se Gino se resignou tão depressa a esse papel de noivo respeitador foi com a esperança de que as nossas relações arrefecessem gradualmente e lhe fosse possível levar as coisas a um rompimento definitivo. Depois de longos e extenuantes dias de noivado, acontece a muitas raparigas encontraremse livres sem outra perda que a da sua juventude evaporada. Com esta ordem do meu confessor, oferecilhe sem o saber o pretexto que ele procurava para relaxar as nossas relações. Como ele tinha um carácter egoísta e fraco, e como o prazer que lhe davam as nossas intimidades era mais forte do que a vontade de me abandonar, por ele nunca teria tido coragem para o fazer. Mas a intervenção do confessor permitiulhe adoptar uma solução hipócrita e aparentemente desinteressada.
Ao fim de algum tempo, começou a encontrarse comigo menos frequentemente; não todos os dias, mas dia sim dia não. Percebi que o trajecto dos nossos passeios de automóvel encurtava gradualmente e que ele cada vez dava menos atenção às minhas conversas sobre o casamento. Mas, mesmo dandome conta, embora obscuramente, de todas estas mudanças de atitude, de nada suspeitava, não só porque estas mudanças se iam processando quase insensivelmente, mas também porque ele continuava a portarse comigo da forma habitual: afectuoso e gentil. Um dia, por fim, tomou um ar contrito e anuncioume que, por razões de família, a data do nosso casamento tinha de ser adiada.
Isso contrariate muito? acrescentou, ao verificar que eu não comentara a novidade e me limitava a olhar em frente, com um ar amargo e sonhador.
Não, não! disse contendome. Não tem importáncia... paciência... assim terei tempo de acabar o meu enxoval.
É absolutamente falso! Contrariate e muito! Ele tinha curiosidade em saber até que ponto o atraso do casamento me desgostava.
Já te disse que não.
Então se isso não te contraria, quer dizer que não me amas sinceramente e que no fundo talvez até não te contrariasse se não nos casássemos?
Não digas isso! proferi com pavor. Para mim seria uma coisa terrível! Nem quero pensar!
Nesse mesmo momento não compreendi a expressão que o seu rosto tomou. Com efeito, ele quis ver até que ponto eu ainda estava interessada nele e percebeu com grande desapontamento que o meu sentimento por ele era ainda muito forte.
Se o adiamento do meu casamento não levantou suspeitas no meu espírito confirmou a impressão de minha mãe e de Gisela. Minha mãe não fez comentários imediatos; isso acontecialhe às vezes, e esta atitude era estranha, atendendo ao seu carácter impulsivo e violento. Mas uma noite, depois de me servir o jantar, como habitualmente, de pé, em silêncio, eu fiz já não sei bem que alusão ao meu casamento. Então ela declarou:
Tu sabes como chamavam no meu tempo às raparigas, como tu, que estão sempre à espera de se casar e nunca o conseguem?
Empalideci e o meu coração deixou de bater.
Como? pergunteilhe.
A rapariga da despensa! disse calmamente minha mãe. Ele guardate na despensa como um resto de carne assada... Em determinada altura, à força de estar guardada na despensa, a carne estragase. Então, deitase fora!
Tive um acesso de raiva e gritei:
Não é verdade! Apesar de tudo, é a primeira vez que nós adiamos... e apenas por alguns meses... A verdade é que tu detestas o Gino por ele não ter dinheiro e ser chauffeur.
Eu não detesto ninguém.
Sim, tu detestao... e também te arrependeste de teres dado o teu dinheiro para o nosso quarto. Mas não tenhas medo...
Minha filha, o amor tornate idiota!
Não tenhas medo disse eu. Todas as coisas que faltam ele as pagará... e serás reembolsada das que comprámos com o teu dinheiro. Olha!
E, levada pela minha exaltação, abri a mala e mostrei as notas que Astárito me tinha dado.
É dinheiro dele! continuei.
Estava tão doida por ele que ao dizer estas mentiras quase tinha a impressão de que era verdade.
Foi ele quem me deu estas notas, e ainda tem mais! O seu olhar caiu sobre o dinheiro; o seu rosto tomou uma expressão tão arrependida e vexada que me encheu de remorsos. Havia já muito tempo que não a tratava tão mal e ao mesmo tempo apercebiame de que acabara de dizer uma mentira e que no fim de contas este dinheiro não tinha sido o Gino quem mo havia dado. Sem dizer uma palavra, levantou a mesa, levou os pratos e saiu. Via de costas, de pé, em frente do lavalouça, passando os pratos por água e pondoos um a um sobre o mármore, para que secassem. Com a cabeça baixa e os ombros ligeiramente curvados, inspiroume uma violenta piedade.
Impetuosamente, deiteilhe os braços à roda do pescoço e desculpeime :
Perdoa terme excedido nas coisas que te disse. Não as pensei... Mas quando começas a falar de Gino fazesme perder a cabeça.
Então! Então! Deixame! dizia fingindo esforçarse por se desembaraçar de mim.
É preciso que compreendas acrescentei com paixão. Se Gino não casa comigo.. matome ou “vou fazer a vida”!
Gisela acolheu a noticia do adiamento do meu casamento pouco mais ou menos como minha mãe. Estávamos no seu quarto mobilado: eu, toda vestida, sentada na borda da cama, ela, em camisa, sentada diante do toucador, a pentearse. Deixoume falar até ao fim, sem fazer comentários, depois disseme, triunfante e calma:
Verás que eu tinha razão!
Porquê?
Ele não quer casar contigo, nem casará... Por agora não é na Páscoa, é no Dia de TodososSantos. Do Dia de TodososSantos passará para o Natal... Um belo dia, acabarás tu própria por compreender, e serás tu a deixálo.
Estas palavras faziamme pena e tornavamme furiosa. Mas, num certo sentido, eu já me tinha vingado na minha mãe. E depois, se eu tivesse dito o que pensava, teria que cortar relações com Gisela, e eu não o queria fazer, porque apesar de tudo era a minha única amiga. Terlheia respondido que ela não queria que eu me casasse porque sabia que Ricardo nunca casaria com ela. Esta era a verdade, mas uma verdade muito dura de ouvir, e não me parecia justo ferir Gisela unicamente porque, logo que ela me falava de Gino, se deixava levar talvez com sentido de defesa - por um vil sentimento de inveja e ciúme. Limiteime pois a retorquirlhe :
Queres que nunca mais falemos disto? A ti, no fundo, que te importa que eu me case ou não? E a mim não me dá prazer voltar ao assunto.
Gisela levantouse bruscamente do toucador e veio sentarse na cama, ao meu lado:
Que me importa a mim, dizes tu? protestou com vivacidade.
Depois, passandome o braço em volta da cintura:
A mim, pelo contrário, fazme raiva que te pretendam prejudicar!
Mas isso não é verdade! disse eu em voz baixa.
Queria verte feliz prosseguiu.
Calouse um momento, depois perguntou, como que por acaso:
A propósito... Astárito atormentame constantemente para te tornar a ver... Diz que não pode viver sem ti... Está realmente preso... Queres marcarlhe um encontro?
Não me fales de Astárito! respondilhe.
Reconheceu que se portou mal contigo, naquele dia, em Viterbo continuou mas no fundo amate e está pronto e reparar a sua falta de correcção.
A única maneira que ele tem de a reparar é nunca mais me aparecer!
Vamos! Vamos! Além disso, é um homem sério e que te ama muito... Ele quer absolutamente verte, falarte... Porque não se encontram vocês num café, por exemplo, na minha presença?
Não! disse eu com decisão. Não o quero tornar a ver.
Vais arrependerte.
Vai tu com ele... com o Astárito!
Eu? Ia já, minha filha! É um homem generoso, que não olha ao dinheiro... Mas é a ti que ele quer... realmente uma ideia fixa.
Está bem! Mas eu nada quero dele.
Insistiu ainda muito a favor de Astárito, mas não me deixei convencer. No cúmulo do meu desejo desesperado de me casar e de ter família, estava firmemente decidida a não me deixar seduzir, nem pela razão, nem pelo dinheiro. Tinha esquecido até o frémito de prazer que Astárito me tinha provocado quando me introduzira à força aquele dinheiro na mão quando regressávamos de Viterbo. Como aconteceu frequentemente, era justamente porque receava que Gisela e minha mãe tivessem razão e que, por um motivo ou por outro, o meu casamento não se realizasse, que eu me agarrava à ideia desse casamento com uma esperança ainda mais forte e encarniçada.
Enquanto esperava, tinha pago todas as prestações dos meus móveis e puserame a trabalhar mais que nunca para ganhar mais dinheiro para pagar o meu enxoval. De manhã posava no atelier e à tarde fechavame no grande quarto com minha mãe para trabalhar até à noite. Ela cosia à máquina junto da janela, e eu, sentada à mesa, ao pé dela, cosia à mão. Minha mãe tinhame ensinado a trabalhar em roupa interior, no que eu desde o princípio me mostrara muito jeitosa e rápida. Havia sempre uma quantidade de casas para fazer e uma letra a bordar em cada camisa; eu fazia as letras particularmente bem, duras e tão em relevo que pareciam sair do tecido. A roupa interior para homem era a nossa especialidade, mas às vezes acontecia ter de confeccionar qualquer camisa ou combinação ou cuecas de mulher, sempre coisas vulgares, não só porque minha mãe não seria capaz de fazer coisas delicadas, mas também porque não conhecia senhoras que lhe fizessem encomendas. Quando cosia, o meu espírito perdiase em divagações sobre Gino, o casamento, o meu passeio a Viterbo, minha mãe a minha vida, em suma , e o tempo passava depressa. O que pensava minha mãe nunca o soube, mas era bem certo que o seu cérebro estava ocupado, porque, enquanto trabalhava à máquina, tinha de tempo a tempo uma expressão furiosa, e se eu lhe falava nessa altura respondiame mal. Para a noite, quando começava a escurecer, eu limpava o vestido de linhas e, pondo o meu fato mais bonito, ia ter com Gisela ou Gino, quando estava livre. Hoje pergunto a mim própria se seria feliz nesse tempo. Num certo sentido era, porque desejava ardentemente qualquer coisa que considerava próxima e possível. Aprendi depois que a verdadeira infelicidade vem quando, já não há esperança; tornase então inútil passar bem ou mal e de nada se precisa.
Mais de uma vez, no decurso deste período, apercebime de que Astárito me seguia na rua. Ia para o atelier de manhã muito cedo. Habitualmente Astárito, imóvel, num vão de escada, no outro lado da rua, esperava que eu saísse. Nunca atravessava e enquanto eu me encaminhava rapidamente para a praça. junto das casas, ele limitavase a seguirme do outro lado, mais devagar, junto das muralhas. Julgo que me observava e isso bastavalhe: era bem a imagem de um homem perdidamente apaixonado. Quando eu chegava à praça, ele ia postarse na paragem do eléctrico fronteira àquela em que eu estava.
Continuava a observarme, mas se eu deitava uma olhadela para o seu lado isso bastava para que disfarçasse e olhasse para a frente, fingindo interessarse pela chegada do meu eléctrico.
Nenhuma mulher teria ficado indiferente perante um amor como aquele; embora firmemente decidida a não lhe tornar a falar, experimentava por vezes uma espécie de compaixão lisonjeada. Depois Gino chegava no carro, ou às vezes no eléctrico. E quando eu subia, fosse para o automóvel, fosse para o eléctrico, Astárito ficava no seu refúgio a ver afastarme.
Uma dessas tardes, quando vinha jantar, entrei na sala grande e encontrei Astárito, de pé, o chapéu na mão, apoiado à mesa e conversando com minha mãe. Quando o vi em minha casa, à ideia de tudo o que ele poderia ter dito à minha mãe para a persuadir a intervir a seu favor, esqueci toda a compaixão e fui tomada de raiva.
Que faz o senhor aqui? perguntei.
Olhoume e vi na sua cara a mesma expressão convulsa e trémula que tivera no carro quando íamos a caminho de Viterbo e me dissera que eu lhe agradava. Mas desta vez ele nem conseguia falar.
Este senhor diz que te conheceu e que queria cumprimentarte começou minha mãe em ar confidencial.
Pelo seu tom compreendi que Astárito lhe falara exactamente no sentido que eu pensava e que talvez até mesmo lhe tivesse dado dinheiro.
Tu declarei a minha mãe vais fazer o favor de te retirares!
A minha voz, quase selvagem, assustoua: saiu, sem dizer palavra, para o lado da cozinha.
Que faz o senhor aqui? disse de novo a Astárito. Váse embora!
Olhoume, pareceu mover os lábios, mas nada disse. Tinha os olhos revirados sobre as pálpebras, vendose quase o branco; cheguei a pensar que fosse desmaiar.
Váse embora! repeti, batendo com o pé no chão. Ou então chamo gente... Chamo um dos meus amigos que mora cá em baixo.
Muitas vezes depois perguntei a mim mesmo porque não fizera Astárito chantagem pela segunda vez: porque não me teria ele ameaçado, se eu não cedesse, de contar a Gino o que se tinha passado em Viterbo. Esta chantagem seria doravante muito mais bem sucedida, pois que me tinha de facto possuído, e havia testemunhas que não me permitiriam negar. Concluí que da primeira vez me tinha apenas desejado, mas que da segunda era realmente impelido pelo amor. O amor quer ser retribuído, e se Astárito me amava devia sentir quanto era insuficiente para ele possuirme como naquele dia em Viterbo, muda, inerte, como morta. Por outro lado, daquela vez eu estava bem decidida a declarar a verdade; depois de tudo, se Gino me amava, devia compreender e perdoarme. A minha atitude resoluta convenceu certamente Astárito da inutilidade de segunda chantagem.
A minha ameaça de chamar gente nada respondeu, mas pegou no chapéu e dirigiuse para a porta. Quando chegou perto, baixou a cabeça e pareceu recolherse um momento, para falar. Levantou os olhos para mim remexendo os lábios, mas toda a coragem pareceu abandonálo; olhoume fixamente e ficou mudo.
Este segundo olhar pareceume muito longo. Acabou por esboçar com a cabeça um cumprimento e saiu fechando a porta.
Fui depois, furiosa, à cozinha e perguntei a minha mãe:
Que disseste a esse homem?
Eu? Nada! respondeu ela, assustada. perguntoume a que género de trabalho nos entregávamos e disseme que queria mandar fazer umas camisas.
Se vais a casa dele, matote griteilhe.
Olhoume com olhar apavorado e respondeu:
Não é preciso lá ir! Pode muito bem mandar fazer as suas camisas a outra pessoa!
Não te falou de mim?
Perguntoume quando te casavas.
E tu, que lhe respondeste?
Que te casavas em Outubro.
Não te deu dinheiro?
Não. Porquê? perguntou fingindo admiração. Devia darmo?
Pelo tom da sua voz adquiri a convicção de que Astárito lhe dera dinheiro. Cai sobre ela e segureilhe violentamente o braço.
Diz a verdade! Ele deute dinheiro! griteilhe.
Não. Não me deu.
Ela conservava a mão no bolso do avental. Aperteilhe o pulso com uma violência terrível e vi saltar do bolso ao mesmo tempo que a mão uma nota de banco dobrada em duas. Assim que a deixei, ela curvouse para a apanhar com uma tal avidez, uma tal cobiça, que a minha fúria cessou. Lembreime da emoção e da felicidade que me invadira a alma quando recebera as notas de Astárito em Viterbo. Senti que não tinha o direito de condenar minha mãe por ela experimentar os mesmos sentimentos que eu e ceder às mesmas tentações. Naquela altura teria preferido nada ter perguntado, nem ter visto aquela nota.
Limiteime a observar com voz normal:
Afinal, sempre to tinha dado!
E sem esperar mais explicações saí da cozinha. Ao jantar, algumas suas alusões fizeramme compreender que desejava tornar a falar de Astárito e do dinheiro. Mas eu desviei a conversa e ela não insistiu.
No dia seguinte, Gisela veio sem Ricardo à pastelaria onde habitualmente nos encontrávamos. Ainda não se tinha sentado e já me dizia sem mais preâmbulos:
Hoje tenho de falarte de uma coisa muito importante.
Uma espécie de pressentimento obrigou-me a olhála exangue.
Se é uma má notícia supliqueilhe com voz branda peçote que não ma dês.
Não é boa, nem é má respondeu vivamente. É uma notícia... eis tudo. Já te disse que Astárito...
Não quero ouvir falar mais de Astárito.
Mas ouve... não sejas criança. Pois, como te disse, o Astárito é um homem importante.. um graúdo da polícia e da política.
Sentime um pouco reconfortada. Nunca me ocupara de política.
Declarei sem esforço:
Mesmo que esse Astárito fosse ministro, para mim era a mesma coisa!
Uff! Como tu és... Ouve em vez de me interromperes! declarou Gisela. Astárito disseme que era absolutamente necessário que fosses ter com ele ao ministério... precisa de falarte... mas não de amor acrescentou rapidamente. Precisa de falarte de uma coisa muito importante... De uma coisa que te diz respeito.
Que me diz respeito?
Sim... é para teu bem... pelo menos foi o que ele me disse.
Porque teria eu decidido naquele momento aceitar o convite de Astárito, apesar de todas as minha resoluções contrárias? Nem eu mesma sei. Respondi, mais morta que viva:
Está bem. Irei.
Gisela ficou um pouco desconcertada com a minha passividade.
Foi então que se apercebeu da minha palidez e do meu ar assustado:
Que tens? disseme. Porque é da polícia? Mas nada tem contra ti! Nenhuma intenção tem de te prender.
Levanteime, embora me sentisse vacilante.
Está bem repeti. Irei; qual é o ministério?
O Ministério do Interior. Mesmo em frente do Supercinema. Mas ouve...
A que horas?
Por toda a manhã... Mas ouve...
Até logo.
Nessa noite dormi muito pouco. Fora a sua paixão, não atingia o que Astárito me podia querer, mas um pressentimento que me parecia infalível diziame que nada podia ser de bom. O lugar onde me tinha chamado fezme supor que o assunto devia ter alguma ligação com a polícia. Por outro lado, eu sabia, como sabem todos os pobres, que logo que a polícia se mete nalguma coisa nunca é por bem. Depois de examinar minuciosamente a minha conduta, acabei por concluir que Astárito queria exercer sobre mim outra chantagem utilizando qualquer informação que obtivera sobre a vida de Gino. Eu não conhecia a vida de Gino; era possível que ele se tivesse comprometido politicamente.
Nunca me ocupara de política, mas não era parva a ponto de ignorar que havia muita gente que não suportava o regime fascista e que homens da profissão de Astárito eram precisamente encarregados de dar caça a esses inimigos do governo. A minha imaginação pintava de cores negras o dilema diante do qual Astárito me iria colocar: ou cedia de novo ou prendia Gino. A minha angústia baseavase no facto de eu não querer de modo algum ceder a Astárito, mas tãopouco permitir que metessem Gino na prisão. Quando fazia estas reflexões não experimentava qualquer compaixão por Astárito; odiavao, simplesmente. Pareciame um homem desprezível e baixo, indigno de viver, que era preciso punir impiedosamente! Entre outras soluções, a ideia de matar Astárito vinhame com facilidade ao espírito. Mas, mais do que uma solução, era uma divagação mórbida da insónia; e de facto, como estas ideias loucas que nunca se traduzem em decisões objectivas e firmes, acompanhoume até ao romper do dia. Viame a pôr na minha mala a faca bem afiada e pontiaguda com que minha mãe descascava as batatas; procurar Astárito; ouviao dizerme o que eu imaginara e com toda a força do meu braço forte cravavalhe a minha faca no pescoço, entre a orelha e o seu alto colarinho de goma. Imaginavame a sair da sala, fingindo a maior calma e correr a refugiarme em casa de Gisela, ou de qualquer outra pessoa amiga. Mas, mesmo ardendo nestas visões sanguinárias, sabia que nunca seria capaz de fazer uma coisa semelhante; tenho horror ao sangue; tive sempre horror em fazer mal aos outros, e o meu carácter levame mais a submeterme à violência que a cometêla.
De madrugada dormitei um pouco. O dia nasceu; levanteime e dirigime ao meu encontro habitual com Gino. Logo que nos encontrámos na nossa avenida dos arredores, depois de algumas palavras de conversa, esforceime por dar à minha voz uma entoação banal e perguntei:
É verdade... nunca te interessaste por política?
Por política? Que queres dizer?
No sentido de ter feito qualquer coisa contra o governo?
Olhoume com um ar de entendimento e perguntou por sua vez:
Mas dizme lá, achas que eu tenho ar de cobarde?
Não, mas...
Responde primeiro. Tenho ar de cobarde?
Não respondilhe , nada disso me pareces. Somente. . .
Então por que diabo queres tu que me ocupe de política?
Não sei. É que muitas vezes...
Não comigo. A esses que te insinuaram isso podes dizerlhes que Gino Molinari não é um cobarde.
Próximo das onze horas, depois de ter rondado mais de uma hora em volta do Ministério sem me decidir a entrar. apresenteime ao contínuo e perguntei por Astárito. Primeiro subi uma comprida escada de mármore, depois outra escada mais pequena, mas também comprida, depois, por largos corredores, acompanhoume a uma antecâmara para onde davam três portas.
Estava habituada a ligar à palavra polícia a visão de locais minúsculos e repugnantes de comissariados de bairros; fiquei estupefacta com o luxo das repartições onde trabalhava Astárito. A antecâmara era um verdadeiro salão, com o chão de mosaico e velhos quadros nas paredes, como eu estava habituada a ver nas igrejas; grandes sofás estavam dispostos ao longo da parede e o centro era ocupado por uma mesa maciça.
Intimidada por tanto luxo, não pude deixar de pensar que Gisela tinha razão: Astárito devia ser realmente uma pessoa importante. E esta importância de Astárito foime bruscamente confirmada por um facto inesperado. Tinha acabado de me sentar quando uma das três portas se abriu e vi sair uma senhora muito alta e de uma grande beleza, mas muito nova, elegantemente vestida de preto, com um véu sobre a cara.
Astárito seguiaa. Julgando que chegara a minha vez, levanteime. Astárito, fazendome um gesto com a mão, para me indicar que já me vira mas que ainda não era a minha altura, continuou a conversar com a senhora no limiar da porta. Em seguida, depois de a ter acompanhado até ao meio da sala e de se ter despedido dela inclinandose e beijandolhe a mão, fez um sinal para chamar outra pessoa que estava sentada ao meu lado na antecámara; um velhote de lunetas e barbicha branca, todo vestido de preto, que tinha aspecto de professor. Ao sinal de Astárito levantouse logo, servil e submisso, e precipitouse para ele. Os dois homens desapareceram no gabinete e fiquei de novo só.
O que mais me impressionou no decurso desta breve aparição de Astárito foi a diferença entre os seus modos de agora e os que tivera durante o nosso passeio a Viterbo. Tinhao visto nessa altura embaraçado, convulso, mudo, trémulo; agora aparecerame extremamente senhor de si mesmo, cheio de presença, com um ar de superioridade ao mesmo tempo autoritária e discreta. Até mesmo a voz mudara. Durante o passeio falarame em voz baixa, quente e estrangulada, e a sua voz enquanto falava à senhora do véu tinha um timbre claro, frio, amável e tranquilo. Estava vestido de cinzentoescuro, como de costume, com um alto colarinho de goma que dava à sua cabeça qualquer coisa de fixo; mas agora o fato e os colarinhos que eu notara no decurso do passeio sem me impressionar pareciamme inteiramente de harmonia com o lugar: os móveis, maciços e severos, as vastas proporções da sala, o silêncio e a ordem que reinavam ali era como se tudo fosse um uniforme. “Gisela tinha razão pensava eu de novo , este deve ser realmente uma personagem de marca; só o amor pode explicar os seus modos embaraçados e o sentimento constante de inferioridade nas suas conversas comigo.” Estas observações fizeramme esquecer a minha primeira atrapalhação, e quando, ao fim de alguns minutos, a porta se abriu para deixar sair o velho, sentiame suficientemente segura de mim. Desta vez, porém, Astárito não apareceu à porta para me convidar a entrar. Uma campainha retiniu, um contínuo entrou no gabinete de Astárito, fechando a porta atrás dele, reapareceu, aproximouse de mim e, informandose do meu nome em voz baixa, disseme que podia entrar. Levanteime e avancei sem pressa.
O gabinete de Astárito era uma sala quase tão grande como a antecâmara. Esta sala estava vazia, à parte um divã e dois fauteuils de couro num canto, e noutro canto uma mesa atrás da qual Astárito estava sentado. Por duas janelas veladas por cortinas brancas entrava na sala um dia frio, sem sol, silencioso e triste, que me fez pensar na voz de Astárito a falar com a senhora do véu. Havia um grande tapete no chão e dois ou três quadros nas paredes. Lembrome de que um deles representava um prado verde que se estendia até à linha do horizonte limitado por montanhas rochosas. Astárito, como já disse, estava sentado à mesa; quando entrei, levantou os olhos de uns autos que estava a ler ou fingindo que lia. Eu disse “fingindo” porque tive logo a seguir a certeza de que era uma comédia com o fim de me intimidar e de me fazer sentir a sua autoridade e a sua importância. Com efeito, quando me aproximei da mesa vi que a folha que examinava com tanta atenção não continha mais que três ou quatro linhas rabiscadas à pressa. De mais a mais, a mão em que apoiava a testa e que segurava o cigarro aceso com dois dedos revelava a sua perturbação por uma tremura bem visível. Esta tremura tinha feito mesmo cair um pouco de cinza sobre a folha que ele lia com uma atenção muito marcada e cheia de artifício.
Pousei a mão na borda da mesa e disselhe:
Cá estou!
Como se estas palavras fossem um sinal, deixou de ler, levantouse muito devagar e veio darme os bonsdias, pegandome nas mãos. Mas tudo isto num silêncio que muito contrastava com a atitude autoritária que se esforçava por conservar. Na realidade, como depressa compreendi, só a minha voz foi suficiente para lhe fazer esquecer o papel que se preparara para representar, e a sua perturbação habitual tomouo de novo irresistivelmente. Beijoume as mãos, primeiro uma, depois outra, olhandome com os olhos ávidos e melancólicos e fez mençâo de falar; mas os seus lábios tremeram e durante um momento guardou siléncio.
Tu vieste! disse por fim com a voz que eu conhecia, baixa e estrangulada.
Agora talvez por contraste à sua atitude sentiame completamente descansada.
Sim disselhe , vim. Na realidade não devia... Que tem para me dizer?
Vem. Sentate ali murmurou.
Não me tinha largado a mão, que apertava com força. Levandome pela mão, conduziume até junto do divã. Senteime, mas ele de repente ajoelhouse diante de mim, abraçoume as pernas e apoiou a cabeça nos meus joelhos. Tudo isto em silêncio e tremendo de desejo. Apoiava a fronte com tal força contra mim que me fazia doer; depois de um momento de imobilidade, levantou a sua cabeça calva como se a quisesse entalar entre os meus joelhos. Então fiz menção de me levantar e disselhe:
Tinha uma coisa importante para me dizer. Digame, senão voume embora.
A estas palavras levantouse com grande esforço, sentouse a meu lado, tomoume a mão e murmurou:
Não era nada... Queria tornar a verte.
Fiz novamente menção de me levantar; reteveme e continuou:
Sim... E depois queria dizerte que é preciso que nos entendamos de vez.
De que maneira?
Amote! disse vivamente. Amote tanto! Vem viver para minha casa; serás a dona da casa... como se fosses a minha mulher. Comprarteei vestidos, jóias, tudo o que quiseres...
Parecia ter perdido a cabeça; os lábios ficavam imóveis e como estendidos, as palavras saíamlhe desordenadamente.
Ah! Foi para isto que me fez vir aqui? pergunteilhe friamente.
Não queres?
Isso agora não está em causa!
Coisa estranha, depois desta resposta nada mais disse, mas largou a mão e, fascinandome quase com o seu olhar desvairado e fixo, acaricioume a cara como se quisesse reconhecer um desenho. Os seus dedos eram leves e eu sentia a sua tremura enquanto eles me contornavam a cara, da testa à face e da face à testa. Era um gesto de homem verdadeiramente apaixonado e tal é a força persuasiva do amor, mesmo quando não se lhe quer corresponder, que durante um momento sentime quase impulsionada a dizerlhe, por piedade, algumas palavras menos duras e menos definitivas. Mas ele não me deu tempo. A carícia acabou e ele levantouse protestando, num curioso tom empolado e pedante, onde se notava ao mesmo tempo a perturbação do desejo e não sei que zelo inesperado:
Espera... é verdade... tenho uma coisa importante para dizerte.
Dito isto, foi à mesa e pegou num caderno encarnado. Foi a minha vez de me perturbar quando o vi avançar para mim com o fascículo na mão.
Que é isso? perguntei com um fio de voz.
... é... que coisa curiosa o tom da sua voz autoritária e oficial misturado com a excitação! ... é uma informação que diz respeito ao teu noivo.
Ah ! fiz eu.
E durante um instante, mortalmente assustada, fechei os olhos.
Astárito não deu por isso; folheou o caderno, cujas folhas rangiam com a sua agitação.
Gino Molinari, não é?
Sim.
E vais casar com ele em Outubro, não é?
Sim.
Mas eu verifico que Gino Molinari é casado continuou ele , e, para ser mais preciso, com Antonieta Partini, filha de Emílio Partini e de Diomira Lavagne, há quatro anos, e que têm uma pequenita chamada Maria. Presentemente a mulher vive em Orvieto, em casa da mãe.
Eu não pronunciei palavra; levanteime do divã e dirigime para a porta, Astárito ficou de pé, no meio da sala, com o caderno nas mãos. Abri a porta e saí.
Lembrome de que logo que me encontrei na rua, naquele dia doce e enevoado de um Inverno ameno, tive a amarga mas certa impressão de que a minha existência após uma interrupção às minhas aspirações de vida conjugal e aos meus preparativos recomeçava a seguir o seu curso, como um rio, que, desviado por qualquer acidente, volta ao seu velho leito e recomeça a correr como dantes, sem novidade nem mudanças. Podia ser que esta impressão proviesse do facto de, no meu desvairamento, olhar à minha volta com olhos, de ora em diante, incertos e que a multidão, as lojas, os veículos, me aparecessem pela primeira vez depois de tantos meses com o seu aspecto impiedosamente normal; nem bonitos, nem feios, nem interessantes, nem insignificantes, exactamente como eles eram, tal qual deviam aparecer aos bêbados depois de lhes ter passado a embriaguez. Mas podia ser também, e era o mais provável, que a sensação proviesse da verificação de que a vida normal não eram os meus projectos de felicidade, mas sim o contrário, quer dizer, todas as coisas contrárias aos planos e aos programas, todas as coisas que se revelavam defeituosas e imprevisíveis, que provocam decepção e dor. Se assim era e pareciame bem que seria , qualquer dúvida que, após uma bebedeira de alguns meses, eu ainda tivesse nessa manhã tinha revivido.
Tal foi a única ideia que me inspirou a falsidade de Gino. Não sonhei sequer condenálo e tive a impressão de nenhum verdadeiro rancor alimentar por ele. Eu não fora lançada numa armadilha sem cumplicidade da minha parte; a recordação do prazer que sentira nos braços de Gino era demasiado recente para que não encontrasse, senão justificação, pelo menos desculpas para a sua mentira. Pensava que, cego pelo desejo, ele fora mais fraco que mau; que a falta, se a havia, estava na minha beleza, que fazia andar à roda a cabeça dos homens e os fazia esquecer todos os escrúpulos e o dever. Gino no fim de contas não era mais culpado que Astárito, salvo que ele recorrera à mentira, ao passo que Astárito preferira a chantagem. Os dois amavamme tanto quanto era possível; certamente que, se tivessem podido, eles teriam usado, para me possuir, de meios lícitos e termeiam assegurado a modesta felicidade que eu punha acima de tudo. Mas a fatalidade quisera que com a minha beleza eu tentasse os homens que não me podiam dar essa felicidade. Infelizmente, se era verdade que ele tinha sido realmente culpado, era bem certo que havia uma vítima, e que essa vítima era eu.
Pode ser que esta maneira de sentir pareça fraca depois de uma traição como a de Gino. Mas cada vez que eu era ofendida e lembrome de o ser muitas vezes pela minha pobreza, a minha inocência e o meu isolamento experimentava sempre o desejo de desculpar o ofensor e esquecer o agravo o mais depressa possível. Se a ofensa determina em mim qualquer mudança, essa mudança não se manifesta nem na minha atitude nem no meu aspecto exterior: actua mais profundamente na minha alma, que se fecha mais, tal como uma carne sã com uma boa circulação sanguínea consegue por si, depois do ferimento, cicatrizar mais depressa. Mas as cicatrizes ficam: e as mudanças, embora inconscientes, da alma são sempre definitivas.
Foi o que me aconteceu com Gino. Não senti nem sequer um momento de rancor contra ele, mas compreendi que em mim própria muitas coisas se tinham subvertido e quebrado para sempre: a minha estima por ele, a minha esperança de arranjar uma família, a minha vontade de não ceder nem a Gisela nem a minha mãe, a minha fé religiosa, ou pelo menos o género de fé que tivera até ali: compareime a uma das minhas bonecas do tempo em que eu era rapariguinha: depois de as ter amachucado e martirizado durante todo o dia, a sua cara risonha e rosada ficava intacta e eis que um ruído de molas partidas vinha de dentro do seu corpo, com um chocalhar de mau agouro. Viravaas de cabeça para baixo, e então, pelo pescoço, via cair fragmentos de porcelana, as molas e as peçazinhas do mecanismo que as faziam falar, mexer os olhos, e também misteriosos bocadinhos de madeira e de fazenda dos quais nunca consegui descobrir a utilidade.
Aturdida mas tranquila, entrei em casa e fiz de tarde as mesmas coisas que habitualmente executava, sem dizer a minha mãe o que se tinha passado, não lhe confiando as conseqüências que esse facto me traria. Apercebime de que era impossível levar a dissimulação ao ponto de trabalhar no meu enxoval como nos outros dias; pegando nas peças prontas e nas que ainda tinha por acabar fui fechálas à chave no armário do meu quarto. Minha mãe notou a minha tristeza, coisa rara em mim, que sou por hábito estouvada e alegre; mas disselhe que estava fatigada e era verdade. Ao entardecer, enquanto minha mãe cosia à máquina, larguei a minha costura, fui para o meu quarto e estendime em cima da cama. Reparei que olhava os meus móveis já pagos, e por mim, graças ao dinheiro de Astárito, com olhos bem diferentes dos de outrora, sem alegria e sem esperança. Não sentia dor, mas simplesmente a lassidão e a indiferença que se experimentam depois de um grande esforço completamente inútil. De resto estava fisicamente cansada; tinha os membros partidos. Invadiume um grande desejo de repousar.
Pensando vagamente nos meus móveis e na impossibilidade de agora em diante os usar como esperava, adormeci quase a seguir, deitada vestida sobre a minha cama. Dormi talvez umas quatro horas, com avidez, com um sono que me pareceu triste e sombrio; acordei muito tarde; chamei minha mãe com voz forte, do fundo da obscuridade que me rodeava. Ela acorreu logo e disseme que não me tinha acordado porque eu estava a dormir um sono tranquilo e reparador.
Há mais de uma hora que o jantar está pronto - continuou, permanecendo de pé, olhandome. Que queres fazer? Vens comer ou não?
Não me apetece levantar! respondi cobrindo os olhos com o braço porque a luz me feria a vista. Porque não me trazes o jantar aqui?
Ela saiu e voltou logo a seguir trazendo o habitual jantar num tabuleiro. Pousouo na borda da cama; levanteime e comecei a comer molemente, apoiada no cotovelo. Minha mãe ficou de pé a olharme. Mas às primeiras garfadas deixei de comer e caí outra vez sobre a almofada.
Então não comes mais? perguntoume minha mãe.
Não tenho fome.
Não te sentes bem?
Estou bem.
Então vou levar tudo outra vez resmungou. Levantou o tabuleiro da cama e pousouo sobre a mesa, ao pé da janela.
Não me acordes amanhã de manhã disselhe. passado um momento.
Porquê?
Porque resolvi não ser mais modelo; a gente cansase muito e ganha pouco.
Mas então que vais fazer? perguntoume, inquieta.Eu não te posso sustentar!... Já não és criança e custas caro! Além disso, há muitas despesas... O enxoval...
Começava já a choramingar e a lamentarse; então, sem tirar o braço da cara, articulei lenta e penosamente:
Não me aborreças agora. Está sossegada, que dinheiro não vai faltar!
Seguiuse um grande silêncio.
De nada precisas? acabou por perguntar, mortificada e zelosa, como uma criada de quarto a quem tivessem repreendido por excesso de familiaridade e quisesse fazerse perdoar.
Sim, fazme um favor... Ajudame a despir... estou ainda tão cansada e com tanto sono!
Ela obedeceu. Sentandose na cama começou por me tirar os sapatos e as meias, que atirou para uma cadeira aos pés da cama. Depois despiume o vestido e a combinação e ajudoume a vestir a camisa de dormir. Eu conservava os olhos fechados.
Depois de estar debaixo da roupa, enroleime, puxei o lençol e tapei a cabeça com ele. Ouvi minha mãe darme as boasnoites do limiar da porta depois de ter apagado a luz, mas não lhe respondi. Adormeci de novo e dormi toda a noite e até a uma hora avançada do dia.
Nessa manhã devia ir ao meu encontro habitual com Gino; mas ao acordar apercebime de que não desejava vêlo enquanto a minha dor não tivesse passado, enquanto não estivesse em estado de considerar a sua traição com objectividade e desprendimento, como se fosse um facto sucedido, não a mim, mas a qualquer outra pessoa. Desconfiava, e continuei sempre a desconfiar, das coisas que se fazem e se dizem sob um impulso de um sentimento, e em particular (era o meu caso) quando esse sentimento não era de simpatia e de amizade. Com toda a certeza que já não gostava de Gino; mas não queria odiálo, porque pensava que juntaria ao prejuízo que ele me causara com a sua traição um sentimento desagradável que me mancharia a alma e seria indigno de mim.
Nessa manhã, de resto, experimentava uma estranha preguiça, quase voluptuosa, e sentiame menos triste que na noite anterior. Minha mãe saíra muito cedo e eu sabia que não voltaria antes do meiodia. Deixeime ficar debaixo da roupa: foi o primeiro prazer ao iniciar esta nova fase da minha vida, que eu queria unicamente agradável. Para mim, que me tinha levantado muito cedo durante toda a minha vida, mandriar na cama deixando o tempo correr era um verdadeiro luxo. Durante muito tempo privarame dele; mas agora estava bem decidida a fazêlo sempre que me apetecesse. E pensava que assim seria com todas as coisas às quais a minha pobreza e os meus sonhos de vida regular e familiar me tinham até então obrigado a renunciar. Imaginava que amava o amor, que amava o dinheiro, que amava as coisas que se podem obter com ele; e de ora em diante todas as vezes que se me proporcionasse ocasião não me privaria nem do amor, nem do dinheiro, nem das coisas que com o dinheiro pudesse obter. Não se julgue, porém, que pensava nestas coisas enraivecida, por ressentimento ou por espírito de vingança. Muito pelo contrário, pensava nelas com doçura; acalentava a ideia com alegria. Todas as situações, mesmo as mais desagradáveis, tem o seu lado bom. Perdera, de momento pelo menos, o casamento e as modestas vantagens que prometera a mim própria, mas em compensação readquirira a liberdade. É verdade que as minhas aspirações mais íntimas não tinham mudado; mas a vida fácil agradavame muito, e a imagem desta perspectiva escondia o que representava de tristeza e de resignação nas minhas novas decisões. Os sermões da minha mãe e de Gisela começavam a produzir os seus frutos. Sempre, mesmo levando uma vida virtuosa, eu sabia que bastava querer para que a minha beleza me proporcionasse tudo o que eu desejasse.
Nessa manhã, pela primeira vez, considerava o meu corpo um meio cómodo de conseguir os objectivos que o trabalho sério nunca me permitiria alcançar.
Estes pensamentos ou, melhor, estes sonhos fizeram passar a manhã num relâmpago e admireime de ouvir os sinos da igreja vizinha anunciarem o meiodia e vi um grande raio de sol que se infiltrava pela janela e pousava na minha cama. Tudo, como a minha preguiçosa manhã, os sinos e o raio de sol, me parecia um luxo inesperado e precioso. Nesse momento as belas senhoras ricas que habitavam nas casas iguais à dos patrões de Gino deviam mandriar assim e sonhar nas suas camas escutando os mesmos sinos e olhando com o mesmo espanto o mesmo raio de sol. Foi com a sensação de já não ser a Adriana necessitada e esfomeada do bairro, mas uma Adriana diferente, que por fim me levantei da cama para tirar a camisa de dormir diante do espelho do guardafato. Olheime toda nua e compreendi o orgulho da minha mãe quando dizia ao pintor: “Olhe este peito! Estas pernas! Estas ancas!” Pensei em Astárito, que o desejo destes seios, destas pernas e destas ancas fazia mudar de carácter, de maneiras e até de voz, e disse a mim própria que com certeza encontraria outros homens que para gozar o meu corpo me dariam muito dinheiro, até talvez mais do que ele.
Indolentemente, como me impunha a minha nova disposição, vestime, tomei um café e saí. Entrei um bar próximo de casa e telefonei para casa dos patrões de Gino. Ele tinhame dado o número com a recomendação, tipicamente servil, de não o usar senão quando fosse estritamente necessário, porque os patrões não gostavam de ter o telefone impedido pelo pessoal. Primeiro falei a uma mulher que devia ser criada de quarto. A seguir veio Gino. Ele perguntou se eu não estava doente, e não pude deixar de sorrir ao reconhecer nesta solicitude a perfeição, inteiramente falsa, que contribuíra para me induzir em erro.
Estou bem disselhe. Nunca me senti tão bem.
Quando nos veremos?
Quando quiseres, mas desejava que o nosso encontro fosse como dantes... quero dizer aí na moradia, se os teus patrões vão para fora.
Ele compreendeu logo as minhas intenções e respondeu vivamente:
Eles só devem partir daqui a dez dias, pelas festas do Natal; não antes.
Então disselhe num tom indiferente vernosemos daqui a dez dias.
Mas como? perguntoume, admirado. Porque não antes?
Antes tenho que fazer.
Mas que tens tu? perguntoume num tom desconfiado. Tens alguma coisa contra mim?
Não respondi. Não tenho nada contra ti; se tivesse alguma coisa contra ti, não te diria que nos veríamos na moradia.
Lembreime de repente de que ele podia ter ciúmes e aborrecerme ; por isso acrescentei:
Não tenhas medo... amote como sempre... somente, tenho que ajudar minha mãe a acabar uma encomenda extraordinária, por causa das festas... como não poderei sair de casa senão muito tarde, e tu tarde nunca estás livre, preferi esperar que os teus patrões se vão embora.
Mas de manhã?
De manhã dormirei! respondi. A propósito, sabes que já não sou modelo?
Porquê?
Cansavame... Estás contente, não estás? Então encontramonos daqui a dez dias... Eu telefonote.
Está bem!
Ele disse “Está bem!” com um ar pouco convencido, mas eu conheciao suficientemente para ter a certeza de que, apesar das suas suspeitas, ele não daria sinal de vida antes dos dez dias que eu combinara. Ou melhor, era precisamente por ter ciúmes que não daria sinal de vida. Não era corajoso, e a ideia de que eu pudesse ter descoberto a sua falsidade enchiao de susto e punhao nervoso. Depois de ter reposto o auscultador reparei que falara a Gino com uma voz tranquila, amável e afectuosa; e podia tornar a vêlo sem o receio de me mergulhar e de mergulhar os nossos encontros numa atmosfera de ódio falso e desagradável.
Nessa mesma tarde fui ter com Gisela ao seu quarto mobilado.
Como fazia habitualmente àquela hora, ela acabava justamente de se levantar e começava a vestirse, para ir ao seu encontro com Ricardo. Senteime na sua cama desfeita, e enquanto ela ia e vinha no quarto em penumbra, cheio de objectos e de roupas em desordem, conteilhe tranquilamente como tinha ido ter com Astárito e como ele me revelara que Gino era casado e tinha uma filha. Ao ouvir a notícia, Gisela soltou uma exclamação que ignoro se era de alegria ou de surpresa, veio sentarse na cama na minha frente e pousoume as suas mãos nos ombros, abrindo os olhos:
Não... não posso acreditar... uma mulher e uma filha... Mas é realmente verdade?
A filha chamase Maria.
Era claro que ela desejava aprofundar e comentar a notícia o mais possível e que a minha atitude serena a desconcertava.
Uma mulher e uma filha... e a filha chamase Maria... e tu dizes isso dessa maneira?
Como querias que dissesse?
Mas não te faz pena?
Sim, fazme pena.
Mas como te disse ele? “Gino Molinari tem mulher e uma filha”? Assim?
Sim.
Mas tu, o que lhe respondeste?
Nada... Que querias que lhe respondesse?
Mas o que sentiste? Não ficaste quase a chorar? Apesar de tudo, para ti foi um desastre!
Não. Não tive vontade de chorar.
Agora é impossível casares com Gino gritou com ar medidativo e contente. Mas que história!... Que história! Que falta de consciéncia! Uma pobre rapariga como tu, que só vivia para ele, pode dizerse... Os homens são todos uns safados!
Gino disse eu ainda não sabe que estou ao facto de tudo.
No teu lugar, minha filha declarou, toda excitada , davalhe o que merecia! Um bom par de bofetadas ninguém lhas tirava.
Marquei encontro com ele para daqui a dez dias continuei.
Creio que vamos continuar a ter relações um com o outro.
Recuou e olhoume com os olhos esbugalhados:
Mas porquê? Ainda gostas dele? Depois de tudo o que te fez?
Não respondi, e, emocionada como estava, instintivamente baixei a voz... Já não gosto dele... mas... hesitei e fiz um esforço para mentir os gritos e as bofetadas não são a melhor maneira de nos vingarmos!
Olhoume um instante semicerrando os olhos e afastandose como fazem os pintores quando olham os seus quadros. Depois disseme :
Tens razão... não tinha pensado nisso... Mas sabes o que faria no teu lugar? Deixava correr, tranquilamente, sem que ele desse por isso e um belo dia, zás! Deixavao.
Não respondi. Ao fim de um momento, repetiu, com a voz menos exaltada, mas animada e cantante:
Ainda me parece mentira! Uma mulher e uma filha! E contigo fazia tantas fitas! E fezte comprar móveis, um enxoval... Que história! Que história!
Eu continuava calada.
Mas eu já tinha percebido! gritou com ar vitorioso. Tens de reconhecer! Que te tinha eu dito? “Este homem não é sincero...” Pobre Adriana!
Deitoume o braço à roda do pescoço e beijoume. Deixeime beijar e acrescentei:
Sim, o pior é que me fez gastar o dinheiro de minha mãe!
E tua mãe, sabe?
Ainda não.
Pelo dinheiro não te aflijas ! acudiu. Astárito está de tal maneira apaixonado por ti!... Basta que queiras e ele te dará todo o dinheiro de que precisares.
Não quero tornar a ver Astárito respondi. Outro não me importo, mas não Astárito!
Devo esclarecer que Gisela não era parva. Percebeu imediatamente que de momento mais valia não falar de Astárito.
Compreendeu também o que eu queria dizer com a frase: “Não me importa outro qualquer.” Fingiu reflectir um momento, depois declarou:
No fundo tens razão, compreendote. Eu também, depois do que aconteceu, sentiria uma certa impressão se tivesse que andar com o Astárito... Ele quer as coisas pela força... foi para se vingar que te contou a história de Gino.
Calouse de novo, depois disseme com voz solene:
Deixame agir... queres que te apresente alguém disposto a ajudarte?
Quero.
Deixame agir.
Somente, a ninguém me quero prender; quero ficar livre.
Deixame agir repetiu pela terceira vez.
Por agora continuei quero devolver o dinheiro à minha mãe... e comprar diversas coisas que me fazem falta. Depois quero que minha mãe deixe de trabalhar disse como conclusão.
Entretanto, Gisela levantarase para se ir sentar em frente do toucador:
Tu, Adriana disseme pintandose a toda a pressa , tens sido sempre muito boa. Vês agora o que acontece quando se é boa demais?
Sabes que esta manhã não fui posar? disselhe. Decidi não voltar a ser modelo.
Fizeste bem respondeu. Eu também, de resto, já não posso mais, a não ser para X..., unicamente para lhe fazer um favor, mas quando ele terminar não posarei mais.
Experimentei nesse momento uma grande amizade por Gisela e sentime reconfortada. Os seus “deixame agir” tinham soado aos meus ouvidos com o acento de segurança das promessas maternais e amigas de acudir o mais de pressa possível às minhas necessidades. Apercebime com toda a clareza de que o que levava Gisela a ajudarme, mais do que uma verdadeira amizade, era, como na história de Astárito, o desejo, talvez inconsciente, de me ver nas mesmas condições que ela. Mas ninguém faz nada por nada, e como, por coincidência, a inveja de Gisela vinha ao encontro dos meus interesses, nenhum motivo tinha para recusar a sua ajuda, unicamente porque a sabia interessada.
Estava apressada porque já era tarde para o encontro com o seu “noivo”. Saímos do quarto e descemos às escuras a escada estreita e íngreme da sua velha casa. Na escada, possuída pela sua excitação e talvez também pelo desejo de diminuir a amargura da minha desilusão, mostrandome que não estava só na minha infelicidade, confioume:
E depois, sabes... começo a crer que Ricardo me quer fazer o mesmo que Gino te fez a ti.
Ele também é casado? perguntei ingenuamente.
Não, isso não; somente, fazme cenas... tenho a impressão de que se quer pôr a fugir... Mas eu já me expliquei: “Meu caro, não preciso de ti para coisa alguma; se queres ficar fica, mas se não queres podes irte embora!”
Nada disse, mas pensei que havia uma grande diferença entre nós, mesmo até nos encontros dela e Ricardo e nos meus com Gino. Ela, no fundo, nunca tivera uma desilusão sobre a seriedade de Ricardo nem tinha escrúpulo em enganálo de tempos a tempos; enquanto que eu esperava com toda a força da minha alma inexperiente vir a ser mulher de Gino e serlhe sempre fiel; não podia chamarse traição ao que se havia passado em Viterbo com Astárito, ameaçada com a sua chantagem.
Mas pensava que ela se ofenderia se eu lhe dissesse isto; não abri a boca. Na soleira da porta marcoume encontro para o dia seguinte numa pastelaria, recomendandome que fosse pontual, porque ela provavelmente não estaria sozinha. E foise embora.
Sentia que devia contar o que se passava a minha mãe, mas não tinha coragem. Minha mãe gostava realmente de mim. Ao contrário de Gisela, que não via na traição de Gino senão o triunfo das suas ideias e nem sequer tentava disfarçar a sua cruel satisfação, ela experimentaria mais dor que alegria ao verificar que no fim de contas tivera razão. No fundo não desejava senão a minha felicidade; pouco lhe importava o meio pela qual a alcançasse: somente estava convencida de que Gino não ma daria. Depois de muitas hesitações, acabei por decidir nada lhe dizer. Sabia que no dia seguinte, à tarde, os meus actos lhe abririam melhor os olhos que quaisquer palavras. Reconheci que era uma maneira brutal de lhe revelar a grande mudança que se operara na minha vida; mas o que me agradava era que desta maneira evitaria uma quantidade de explicações, de reflexões e de comentários: pelo menos todo o género de explicações, de reflexões e de comentários em que Gisela se mostrara pródiga quando lhe contara a traição de Gino. Na realidade eu experimentava uma espécie de repugnância em falar no casamento; desejava falar nele o menos possível e preparar as coisas de maneira que os outros não me tocassem no assunto.
No dia seguinte, para que minha mãe não me aborrecesse se suspeitasse de alguma coisa, fingi ter um encontro com Gino e passei toda a tarde fora. Para o meu casamento mandara fazer um fato de saia e casaco cinzento, que contava vestir depois da cerimónia. Era o meu vestido mais bonito: hesitei em pôlo, mas pensei que acabaria por estreálo um dia, que não seria nem mais puro nem mais feliz; que, por outro lado, os homens julgam pelas aparências e que era preciso apresentarme o melhor possível para obter mais proventos: afastei todos os escrúpulos. Vestio pois, mas não sem remorsos o meu lindo vestido, que, recordandoo agora, era bem modesto e bastante feio, como todos os meus fatos de então , penteeime com cuidado e pinteime, mas não mais do que o costume. A propósito deste último pormenor, observo que nunca percebi a razão por que as mulheres da minha profissão pintam a cara como se fossem máscaras de Carnaval. Porque a vida que levam as torna muito pálidas? Talvez porque julguem que se não se pintarem desta maneira violenta não chamam a atenção dos homens e não mostram que são fáceis de abordar? Eu, por mais que me fatigue e me deite tarde, tenho sempre a pele morena e sã, e posso dizer, sem falsa modéstia, que a minha beleza bastou sempre, sem pintura, para fazer voltar os homens quando passo na rua. Não é pelo rouge nem pelo louro do trigo que eu chamo a atenção dos homens, mas muitos mo têm dito pela serenidade e pela doçura do meu rosto, pelo sorriso que mostra os meus dentes perfeitos e pelo sedoso dos meus cabelos castanhos e ondulados. As mulheres que descoloram o cabelo e se pintam não reparam que os homens dãose conta no primeiro momento de como elas são e experimentam uma espécie de antecipada desilusão. Eu, tão natural e simples, deixeilhes sempre uma dúvida sobre a minha verdadeira personalidade, dandolhes desta maneira a ilusão de uma aventura que eles procurassem mais do que a pura satisfação dos sentidos.
Uma vez vestida e arranjada, fui ao cinema e vi passar duas vezes a mesma fita. Quando saí do cinema era já noite; fui directamente à pastelaria onde tinha marcado encontro com Gisela.
A casa não era uma daquelas leitarias modestas onde habitualmente nos encontrávamos com Ricardo, mas uma pastelaria elegante, onde eu punha os pés pela primeira vez. Compreendi que a escolha deste local fora feita com a intenção de elevar o preço dos meus favores. Estes ardis e ainda outros de que falarei a seguir podem, com efeito, levar as mulheres da minha espécie, quando jovens e bonitas, e que os usem inteligentemente, ao bemestar estável que é o alvo de todas. Mas poucas se servem deles e eu nunca pertenci a esse número. A minha origem popular fezme sempre desconfiar dos locais luxuosos; nos cafés burgueses sentime sempre pouco à vontade; envergonhavame de sorrir aos homens ou de os olhar disfarçadamente; tinha a impressão de que a luz demasiada me expunha num pelourinho. Pelo contrário, senti sempre uma profunda e afectuosa atracção pelas ruas da minha cidade, com as suas nobres construções, as suas igrejas, os seus monumentos, as suas lojas e os seus portais, que as tornam mais belas e acolhedoras que qualquer sala de restaurante ou pastelaria. Sempre gostei de descer à rua à hora do passeio, ao pôr do Sol, caminhar lentamente olhando as montras iluminadas e ver a noite escurecer lentamente o céu e os telhados. Sempre apreciei seguir por entre a multidão, ouvir, sem me voltar, as ofertas de amor que os transeuntes, os mais imprevistos. numa súbita exaltação dos sentidos, se atreviam a murmurarme às vezes; sempre gostei de subir e descer a mesma rua até à saciedade, ficar sem forças mas continuar com espírito ainda ávido e fresco como numa feira, onde as surpresas nunca se esgotam. O meu salão, o meu restaurante, o meu café, foram sempre a rua. Suponho que o facto de ter nascido pobre deve ter tido influência nestas minhas predilecções; sabese que os pobres se divertem com pouco dinheiro, repassando os olhos pelas montras das lojas, onde nada podem comprar, e as fachadas das belas casas, onde nunca morarão. Deve ser pelo mesmo motivo que amei sempre as igrejas, tão numerosas em Roma, abertas para o povo e luxuosas para todos e onde, por entre mármores, ouros e decorações preciosas, o cheiro acre e humilde da pobreza é, por vezes, mais forte do que o do incenso.
Naturalmente os ricos não passeiam pelas ruas, não vão à igreja: quando muito atravessam a cidade de automóvel, recostados sobre almofadas e lendo o jornal. Preferindo a rua a qualquer outro lugar, interditei a mim mesma os encontros nos sítios que Gisela me marcaria em troca dos meus gostos mais predilectos. Este sacrifício nunca o quis fazer; todo o tempo que durou a minha camaradagem com Gisela o assunto foi objecto de discussões encarniçadas. Gisela não gostava da rua; as igrejas nada lhe diziam; a multidão só lhe inspirava repugnância e desprezo. O que ela mais apreciava eram os restaurantes de luxo, onde os criados espiam com ansiedade os mais simples gestos dos seus clientes, os dancings modernos, com músicos de uniforme e dançarinos de fato de noite. Nestes lugares, ela ficava outra; os seus gestos, as suas atitudes, até a sua voz mudavam. Fingia ser uma mulher bem; era o fim que almejava e que conseguiu mais tarde até certo ponto, como se poderá ver. O aspecto curioso do seu sucesso final foi que a pessoa destinada a satisfazer as suas ambições não a encontrou nos locais de luxo, mas graças a mim e precisamente na rua, que ela odiava tanto.
Na pastelaria encontrei Gisela acompanhada por um homem de meiaidade, um caixeiroviajante, que me apresentou com o nome de Jacinto. Sentado, parecia ter uma altura normal, porque tinha os ombros largos, mas de pé parecia quase anão, e a largura de ombros ainda o tornava mais baixo. Tinha o cabelo espesso e branco como prata, que usava em escova sobre a testa, talvez para parecer mais grave, um rosto encarnado, cheio de saúde, com traços nobres e regulares de estátua, uma bela testa serena, grandes olhos pretos, nariz direito e a boca bem desenhada. Mas uma expressão antipática de vaidade, de suficiência e de falsa benevolência tornava esta cara, agradável e majestosa à primeira vista, bastante repulsiva.
Sentiame um pouco nervosa, e depois de acabadas as apresentações senteime sem dizer palavra. Jacinto, como se a minha chegada fosse sem importância, apesar de ser na realidade o motivo da reunião, continuou a conversa que sustentava com Gisela:
Não podes queixarte de mim, Gisela declaroulhe, pousandolhe a mão no joelho e conservandoa ali todo o tempo em que falou. Quanto tempo durou a nossa... a nossa aliança, por assim dizer? Seis meses? Bem! Não podes dizer com verdade que no decurso desses seis meses te deixei uma única vez descontente.
Tinha a voz clara, lenta, acentuada, articulada; mas percebiase que falava desta maneira, não para se fazer entender, mas para se ouvir ele próprio e julgar cada uma das palavras que pronunciava.
Não, não! disse Gisela baixando a cabeça com ar aborrecido.
A Gisela que te diga, Adriana! continuou Jacinto com a mesma voz clara e martelada. Não só nunca a lesei em dinheiro pelo... digamos pelos seus préstimos profissionais, mas todas as vezes que voltava de Milão trazialhe sempre um presente. Lembraste, por exemplo, daquele perfume francês que te trouxe uma vez? E doutra oferecite uma combinação de seda natural e rendas. As mulheres julgam que os homens não percebem de roupas interiores de senhora. Mas eu sou uma excepção. Hé! Hé!
Ria discretamente mostrando uma dentadura perfeita, mas de uma brancura estranha que lhe dava um ar de dentadura postiça.
Dáme um cigarro! pediu Gisela com secura.
É para já! respondeu com uma solicitude irónica. Ofereceume também um, tirou outro para si e, depois de o acender, continuou: Lembraste também daquela mala que te trouxe uma vez? Uma grande mala de cabedal leve.. uma verdadeira obraprima! Já não a usas?
Mas é uma mala para usar de manhã! disse Gisela.
Gosto muito de fazer presentes! proclamou, dirigindose a mim. Não por razões sentimentais, entendamonos acrescentou deitando o fumo pelo nariz , mas por três motivos bem claros: o primeiro, porque me agrada que me agradeçam; o segundo, porque não há como um presente para se ser bem servido; com efeito quem recebe um presente espera sempre outro: a terceira, porque as mulheres gostam de ilusões e um presente dá a impressão de sentimento, mesmo quando ele não existe.
És um bom maroto! disse com ar indiferente Gisela, sem mesmo o olhar.
Ele abanou a cabeça com o seu belo sorriso cheio de dentes.
Não disse não sou maroto. Sou um homem que viveu e que soube tirar boas lições das suas experiências. Com as mulheres sei que é preciso fazer certas coisas, com os clientes outras, com os subordinados outras ainda, e assim por diante. O meu espírito é como um ficheiro bem arrumado. Por exemplo, tenho uma mulher debaixo de olho... tiro a ficha, observoa, e vejo que certas medidas obtém o efeito desejado e outras não; torno a pôr a ficha no seu lugar e vou agir segundo as circunstáncias, e é tudo!
Calouse e sorriu de novo.
Gisela fumava com ar aborrecido; eu estava calada.
E as mulheres continuou ficamme reconhecidas porque compreendem logo que comigo não terão desilusões, que eu conheço as suas exigências, as suas fraquezas e os seus caprichos... como eu fico agradecido ao cliente que escolhe depressa... que não perde tempo a tagarelar... que sabe o que quer e o que eu quero... Em Milão, na minha secretária, tenho um cinzeiro com a seguinte inscrição: “O Senhor abençoa quem não me faz perder tempo.” Deitou fora o cigarro, estendeu o pulso e olhou o relógio dizendo :
Pareceme que vão sendo horas de irmos jantar.
Que horas são?
Oito horas... com licença... venho já.
Levantouse e afastouse para o fundo da sala. Era realmente muito pequeno, com os seus largos ombros e a sua escovinha branca em cima da cabeça. Gisela esmagou o cigarro no cinzeiro e declarou:
É aflitivo! Só fala dele!
Já dei por isso.
O melhor é deixálo falar e dizer sempre sim. Verás as confidências que ele vai fazerte... Sabe Deus por quem se toma! Mas é generoso. E dá presentes realmente.
Sim, mas a seguir atiraos em cara.
Ela não disse palavra. Abanou a cabeça como a dizer
“Que havemos de fazer?” Ficámos um momento silenciosas; depois Jacinto voltou. Pagou e saímos da pastelaria.
Gisela disse Jacinto logo que chegámos à rua , a noite está consagrada a Adriana. Mas se nos quiseres dar o prazer de jantar connosco.
Não, não, obrigada! disse muito depressa. Tenho um encontro!
Despediuse de nós e foise embora. Logo que ela se afastou eu disse a Jacinto:
A Gisela é muito simpática!
Ele fez um trejeito e respondeu:
Sim, muito... tem um lindo corpo.
Não a acha simpática?
Eu disseme caminhando ao meu lado e apertandome com força o braço, muito em cima, quase no sovaco - nunca peço a alguém que seja simpático, mas que faça o que lhe cumpre. A uma dactilógrafa, por exemplo, não peço que seja simpática, mas que escreva rapidamente e sem erros. A uma mulher como Gisela não peço simpatia, mas que saiba do seu ofício, quer dizer que me torne agradáveis as duas ou três horas que lhe consagro. Ora, a Gisela não percebe do seu ofício.
Porquê?
Porque só pensa no dinheiro... Tem sempre medo que não lhe paguem ou que não lhe dêem bastante. Não exijo com certeza que ela me ame, mas faz parte da sua profissão portarse como tal; se realmente não me ama tem de me dar essa ilusão, para isso que lhe pago. Gisela deixa sentir demasiadamente que o fez por interesse... Nem nos dá tempo a respirar de tal modo se chora... Que diabo!
Tínhamos chegado ao restaurante, um sítio barulhento, cheio de gente; os homens pareciamme do género de Jacinto: caixeirosviajantes, negociantes, industriais de passagem. Jacinto entrou primeiro, entregou o chapéu e o sobretudo ao homem do bengaleiro e perguntou:
A minha mesa está livre?
Sim, senhor Jacinto.
Era uma mesa colocada no vão de uma janela. Jacinto esfregou as mãos e perguntou:
Você é bom garfo?
Julgo que sim respondilhe, embaraçada.
Bem! Isso agradame. Gosto que se coma à mesa.. A Gisela, por exemplo, nunca quer comer... diz que tem medo de engordar. Asneiras! Cada coisa a seu tempo! Quando se está à mesa é para comer!
Tinha um verdadeiro rancor contra Gisela.
Mas é verdade disse eu timidamente. Quando se come demasiadamente engordase... e há mulheres que não gostam de engordar.
Você é dessas?
Eu não. Mas justamente as pessoas dizem que eu sou muito forte.
Não faças caso, é inveja. Digote eu, que percebo disso.
Acaricioume paternalmente a mão para me convencer. O criado aproximouse e Jacinto disselhe:
Para começar vais levar daqui estas flores... incomodamme... Depois trazes o habitual. Percebido? E isso depressa!
Depois, dirigindose a mim, explicou:
Já me conhece e sabe do que eu gosto... deixao fazer: vais ver que não terás razão de queixa!
Com efeito não tive razão para me lamentar. Os pratos que se sucederam na mesa eram, senão requintados, pelo menos suculentos e agradáveis. Jacinto mostravase com grande apetite. Comia com uma espécie de ênfase, a cabeça baixa, brandindo solidamente o garfo e a faca, sem me olhar nem me falar uma única vez. A sua avidez privavao até mesmo da sua bela calma, obrigandoo a fazer várias coisas ao mesmo tempo, como se temesse ficar em jejum. Metia um bocado de carne na boca ao mesmo tempo que partia o pão com a mão esquerda. Mordia este pão, deitava vinho no copo com a outra mão e bebiao sem ter acabado de mastigar. Tudo isto estalando os lábios, rolando os olhos, sacudindo a cabeça de vez em quando como um gato às voltas com um pedaço demasiado grande. Mas para contrabalançar, ao contrário do que era habitual, eu não tinha fome. Era a primeira vez que me preparava para me deitar com um homem que não amava, que até mesmo não conhecia; e olhavao com atenção, estudando os meus sentimentos e procurando imaginar como me sairia. Mais tarde deixei de dar atenção aos homens com quem ia, porque, levada pele necessidade, aprendi depressa a encontrar ao primeiro olhar o lado bom ou atraente do homem, suficiente para tornar a sua intimidade suportável. Mas nessa noite, este expediente da minha profissão, que consiste em descobrir num só olhar o que torna menos desagradável um amor venal, não o tinha ainda aprendido; procuravao instintivamente, sem dar por isso. Já disse que Jacinto não era feio; até mesmo quando se calava e não mostrava os seus pontos antipáticos, até poderia parecer belo. Já era muito, porque, apesar de tudo, todo o amor é em grande parte comunhão física. Mas isso não me bastava. Nunca pude, já não digo amar, mas simplesmente suportar um homem só pelas suas qualidades físicas. Ora, quando a refeição acabou e Jacinto, acalmada a sua extraordinária voracidade, arrotou uma ou duas vezes e recomeçou a falar, apercebime de que nada havia nele, ou pelo menos não era capaz de descobrir, absolutamente nada, por pouco que fosse, que mo tornasse simpático. Não só, como Gisela me avisara, só dele falava, mas faziao de uma maneira desagradável, vaidosa e aborrecida, contando a maior parte do tempo coisas que nada o honravam e confirmavam plenamente a minha primeira impressão de repugnância. Nada havia nele, absolutamente nada, que me agradasse; e todos os traços que apresentava como qualidades, de que se envaidecia e punha a nu, pareciamme horríveis defeitos. Só muito raramente encontrei, daí em diante, homens no mesmo género, que não têm valor algum e nada oferecem de bom a quem se aproximar para neles encontrar qualquer simpatia; sempre me admirou que eles existissem e muitas vezes perguntei a mim própria se não seria minha a culpa, incapaz de descobrir as qualidades que eles sem dúvida haviam de ter. Seja como for, com o tempo habitueime a estes desagradáveis companheiros e fingi rir e chalacear com eles, em suma, ser aquilo que queriam que eu fosse e julgavam que era. Mas nessa noite esta primeira descoberta inspiroume reflexões bem melancólicas. Enquanto Jacinto tagarelava esgaravatando os dentes com um palito, eu pensava que era um duro ofício aquele que eu escolhera, de fingir transportes amorosos com certos homens que na realidade era o caso de Jacinto me inspiravam sentimentos bem diferentes; que não havia dinheiro que pagasse esses favores; que era impossível pelo menos em casos semelhantes portarme como Gisela, que não pensava senão no dinheiro e não o ocultava. Acudiume ainda ao espírito a ideia de que iria levar este antipático Jacinto para o meu pobre quarto, destinado a um uso tão diferente; que não tinha sorte; que o azar me fizera sair logo um Jacinto, que podia ter encontrado algum rapaz agradável e delicado em busca de uma aventura, ou qualquer bom homem, sem pretensões, como havia tantos; que, em suma, a presença de Jacinto entre os meus móveis acelerava a minha renúncia aos velhos sonhos de fazer uma vida decente e normal.
Ele falava sempre, mas não era tão boçal que não se apercebesse de que apenas o escutava e que não estava alegre.
Então, menina, estamos tristes? perguntoume.
Não, não! respondi depressa, quase até tentada, por esta ilusória entoação afectuosa, a confiarlhe o que sentia e a falarlhe de mim, depois de o ter deixado falar tanto tempo dele.
Gosto mais assim recomeçou. Não gosto de gente triste. E depois não te convidei para que estivesses triste. Podes ter razão para isso, não discuto, mas logo que estejas comigo tens de deixar a tristeza em casa. Não me interessam os teus problemas, nem quem és, nem o que te aconteceu, nem o resto... Certas coisas não me interessam. Fizemos um contrato um com o outro, mesmo que não tenha sido escrito... Eu comprometome a pagarte uma certa soma e tu, em compensação, comprometeste a fazerme passar uma noite agradável... O resto não conta.
Proferiu estas palavras em tom sério. Talvez estivesse um pouco contrariado por eu não o ter escutado com suficiente atenção.
Mas eu não estou triste... respondi sem lhe desvendar o mundo de sentimentos que me agitava a alma. Somente aqui há tanto fumo! E um barulho! Sintome um pouco atordoada.
Então, saímos? perguntou com vivacidade. Disselhe que sim. Chamou em seguida o criado e pagou. Saímos. Quando chegámos à rua, perguntoume:
Vamos para o hotel?
Não, não disse eu apressadamente.
A perspectiva de ter de mostrar os meus documentos assustavame, e de resto já decidira outra coisa.
Vamos para minha casa! disse.
Subimos para um táxi e dei a minha direcção. Assim que o táxi arrancou, atirouse para cima de mim e apalpoume o corpo todo beijandome no pescoço. Senti pelo seu hálito que bebera muito e devia estar embriagado. Repetia constantemente a palavra “filhinha”, que se diz às crianças e que na sua boca me irritava como um termo ridículo e ligeiramente profano. Deixeio agir durante uns momentos, depois observei, apontando as costas do chauffeur: Era melhor esperar que chegássemos... não? - Não respondeu e caiu pesadamente sobre as almofadas, encarnado e congestionado como se sentisse fulminado por um súbito mal. Depois tratamudeou com ar furioso:
Pagolhe para que me conduza ao meu destino e não para que dê conta do que se passa dentro do seu táxi.
O dinheiro era a sua ideia fixa, e sobretudo o seu dinheiro, que podia fechar todas as bocas. Nada respondi e durante o resto do percurso ficámos calados um ao lado do outro, sem nos tocarmos. As luzes da cidade entravam pelas portinholas, iluminando por instantes os nossos rostos e as nossas mãos, e desapareciam; pareciame estranho encontrarme ao lado deste homem, do qual algumas horas antes nem conhecia a existência, e rolar num carro na sua companhia para minha casa, para me entregar a ele como a um amante querido. Senti uma espécie de atordoamento ao ver o táxi parar diante da minha porta na avenida tão conhecida.
Na escada escura pedi a Jacinto:
- Não faça barulho ao entrar, peçolhe, porque minha mãe mora comigo.
Está descansada, filhinha respondeume.
Chegados ao patamar, abri a porta com a minha chave. Jacinto seguiame; pegueilhe na mão; sem acender a luz, filo atravessar a antecâmara e conduzio até à porta do meu quarto, que era a primeira à esquerda, entrando. Precedida por ele, acendi o candeeiro da mesadecabeçeira e da soleira da porta deitei um olhar aos meus móveis como se fosse uma despedida. Muito contente por encontrar um quarto novo e limpo, quando julgava que o conduzisse a um quarto sujo e com móveis velhos, Jacinto soltou um suspiro de satisfação e tirou o seu sobretudo, que atirou para cima de uma cadeira. Disselhe que me esperasse e saí do quarto.
Dirigime directamente à sala grande e encontrei minha mãe sentada à mesa central preparada para coser. Quando me viu afastou logo o trabalho e levantouse sem dúvida com a ideia de me servir o jantar como nas outras noites. Mas eu disselhe:
Não... não te incomodes... Já jantei... Pelo contrário... Tenho alguém no meu quarto e não vás lá, seja a que pretexto for!
Alguém? perguntoume com cara de pasmo.
Sim, alguém! disselhe apressadamente. Mas não é Gino. É um “senhor de posição”!
E saí da sala sem esperar qualquer pergunta. Tornei a entrar no quarto e fechei a porta à chave. Impaciente e corado, Jacinto veio ao meu encontro ao meio do quarto e tomoume nos braços. Era muito mais pequeno do que eu e para pousar os lábios na minha cara, tive que inclinarme sobre a cama. Procurava evitar que ele me beijasse a boca, dobrandome para trás como por voluptuosidade. Consegui. Jacinto possuía da mesma maneira que comia; com avidez, sem discernimento nem delicadeza, começando e largando sem propósito, como se tivesse medo de deixar escapar alguma coisa, cego pelo meu corpo, como o estivera pela comida no restaurante.
Depois de me ter beijado, fez menção de me despir, como estávamos, de pé. Pós a mão num dos meus braços e depois, como se esta carne lhe queimasse as ideias, começou a cobrirme de beijos. Julguei que com os seus gestos bruscos me rasgasse o fato e acabei por lhe dizer sem o repelir:
Vamos, despete.
Largoume logo e, sentandose na cama, começou a despirse. Eu do outro lado fazia o mesmo.
Mas a tua mãe sabe? perguntoume.
Sim.
E que diz ela?
Nada.
Desaprova?
É claro que estas informações não tinham outro valor que o de dar um pouco de picante à aventura. É um traço comum a todos os homens; são bem poucos os que resistem à tentação de misturar ao prazer interesse de género diferente, indo por vezes até à compaixão.
Não aprova nem desaprova disse secamente levantandome e fazendo passar a saia pela cabeça. Sou livre de fazer o que me apetece!
Quando fiquei nua arrumei a minha roupa toda sobre uma cadeira e estendime de costas em cima da cama, um braço dobrado sobre a nuca e o outro sobre o ventre cobrindoo com a mão. Não sei porquê, recordeime que estava na mesma posição daquela deusa pagã parecida comigo que o gordo pintor mostrara a minha mãe numa gravura colorida, e bruscamente senti desgosto e raiva ao pensar na grande mudança que depois disso se operara na minha vida. Jacinto devia estar admirado com a beleza opulenta e sólida do meu corpo, que não se nota, assim como já disse, quando estou vestida, porque parou de se despir e olhoume com ar deslumbrado, a boca aberta e os olhos espantados.
Aviate disselhe. Tenho frio.
Acabou de se despir e atirouse para cima de mim. Já falei da sua maneira de amar, que não sei o que me parecia; quanto a ele, suponho já têlo descrito suficientemente. Devo acrescentar que era um destes homens para os quais o dinheiro que pagaram ou que irão pagar inspira uma exigência meticulosa, como se temessem ficar roubados se renunciassem a qualquer das coisas que julgam serlhes devidas. Era ávido, já o disse, mas não ao ponto de não ter sempre presente o seu dinheiro e de não querer tirar todo o benefício possível. O seu desejo depressa compreendera prolongar o mais possível os nossos encontros e tirar de mim todo o prazer a que se considerava com direito. Com este principio, esfalfavase sobre o meu corpo, como sobre um instrumento, exigindo uma longa preparação antes de tocálo, e incitavame a todo o tempo a fazer o mesmo com o dele. Mas, embora lhe obedecesse, comecei logo a aborrecerme e a observálo friamente, como se os seus cálculos tão transparentes o afastassem de mim e como se estivesse a ver de muito longe, através de uma lente de antipatia e de desagrado não somente a ele, mas também a mim. Era exactamente o contrário do sentimento de simpatia que me esforçara por experimentar por ele no princípio da noite. De repente senti não sei que vergonhosa impressão de remorso e fechei os olhos. Ele acabou por se cansar e ficámos estendidos lado a lado. Sublinhou num tom de satisfação:
Tens de reconhecer que, apesar de não ser já muito novo, sou um amante excepcional!
É verdade respondi com indiferença.
Todas as mulheres mo dizem continuou. Sabes o que penso? Que é nos pequenos barris que se encontra o melhor vinho: há homens grandes, com o dobro do meu tamanho, que nada valem!
Comecei a sentir frio. Senteime na cama e puxei a colcha sobre nós. Ele interpretou o meu gesto como uma atenção afectuosa.
Muito bem! disseme. Agora vou dormir um bocadinho.
Enrolouse de encontro a mim e adormeceu.
Continuei imóvel, deitada de costas, com a sua cabeça branca sobre o meu peito. A colcha não nos tapava senão até à cintura; olhandoo, vendo o seu dorso peludo, marcado por pregas moles indicando a idade madura, tive uma vez mais a impressão de me encontrar com alguém que me era perfeitamente estranho. Mas ele dormia, e como dormia, já não falava, não olhava, não gesticulava. Neste sono, dado o seu carácter pouco atraente, não ficava, por assim dizer, mais do que a sua melhor parte, que era a de ser um homem como tantos sem profissão, nem nome, nem qualidades, nem defeitos, nada mais que um corpo humano a quem um sopro fazia levantar o peito. Talvez pareça estranho, mas, olhandoo e observando o seu sono confiante, experimentava por ele como que um impulso de afeição e notei as precauções que tomava para evitar qualquer movimento que o pudesse acordar. Era o sentimento de simpatia que eu tinha baldadamente tentado experimentar até agora; a vista da sua cabeça encanecida molemente apoiada sobre o meu peito jovem suscitarao por fim na minha alma. Esta impressão consoloume e pareceume até sentir menos frio. Experimentei mesmo, por um instante, uma espécie de terna exaltação que humedeceu os meus olhos. Na realidade, eu tinha então como ainda tenho um excesso de ternura no coração. Uma ternura, que, por falta dos objectivos legítimos aos quais se devia consagrar, não temia desviarse sobre pessoas e coisas, quase sempre indignas dela, para não ficar inactiva e vazia. Ao fim de vinte minutos, acordou e perguntoume:
Dormi muito tempo?
Não.
Sintome bem! disse saindo da cama e esfregando as mãos. Ah! Como me sinto bem!... Rejuvenesci pelo menos vinte anos!
Depois começou a vestirse, continuando as suas exclamações de bemestar e de alegria. Vestime também em silêncio. Quando estava pronto, declaroume:
Queria tornar a verte, filhinha... Como heide fazer?
Telefona a Gisela respondi. Vejoa todos os dias.
Mas tu estás sempre livre?
Sempre.
Viva a liberdade! e acrescentou, metendo a mão no bolso: Quanto queres que te dê?
Paga o que te apetecer disselhe. E acrescentei com sinceridade: Se me deres bastante, farás uma boa acção porque não sou rica.
Mas ele respondeu taco a taco:
Se te dou muito não será para fazer uma boa acção... Nunca faço boas acções... será por seres uma bonita rapariga e por me teres feito passar uma noite agradável.
Como quiseres! disselhe encolhendo os ombros.
Tudo tem o seu valor, e tudo deve ser pago segundo o seu valor continuou tirando o dinheiro da carteira. As boas acções não existem. Tu desteme certas coisas, de uma qualidade superior às que me tinham dado antes... por exemplo, Gisela... As boas acções nestes casos não contam... Outro conselho! Nunca digas: dáme o que te apetecer! Deixa fazer isso aos vendedores ambulantes. A mim quando me dizem “faça você o preço” sintome sempre tentado a dar menos do que devo pagar.
Fez uma careta significativa e estendeume o dinheiro. Como Gisela me dissera, era generoso; a soma ultrapassava as minhas previsões. Senti de novo, pegandolhe, o sentimento de cumplicidade e sensualidade que me inspirara o dinheiro de Astárito no decurso do passeio a Viterbo. E pensei que isso denotava em mim urna vocação, que eu devia ter de facto jeito para esta espécie de ofício, mesmo se o meu coração aspirava a coisas diferentes.
Obrigada disselhe.
E, sem quase dar por isso, por gratidão, beijeio de boa vontade.
Obrigado eu! respondeu dispondose a retirar. Deilhe a mão e conduzio, no escuro, através do vestíbulo, na direcção da porta. Durante um momento, logo que fechei a porta do meu quarto e antes de abrir a da casa, caminhámos numa obscuridade completa. E então, não sei que intuição quase física me revelou que minha mãe se encontrava em qualquer canto do vestíbulo enquanto eu vagueava com Jacinto. Ela tinhase escondido sem dúvida atrás da porta, ou num canto, entre o armário e a parede e esperava que Jacinto saísse. Lembreime daquela vez que ela fizera a mesma coisa, na noite em que chegara atrasada depois de ter estado com Gino em casa dos patrões dele e assaltoume um grande nervosismo à ideia de que, como daquela vez, depois de Jacinto sair ela me saltasse em cima, me agarrasse os cabelos, me atirasse para cima do canapé da sala grande e me enchesse de bofetadas. Sentiaa no escuro; pareciame quase vêla; sentia uma impressão nas costas como se tivesse as suas garras atrás da minha cabeça prontas a arrepelarme os cabelos. Segurava Jacinto pela mão e na outra mão guardava o dinheiro. Lembreime de o meter entre os dedos da minha mãe logo que ela me quisesse saltar em cima. Seria uma maneira silenciosa de lhe lembrar que nunca cessara de me instigar a ganhar dinheiro e também uma tentativa de a captar pela avidez a sua paixão dominante e assim fecharlhe a boca. Entretanto tinha aberto a porta.
Então até qualquer dia... Telefonarei a Gisela disseme Jacinto.
Vio descer a escada, com os seus largos ombros e os seus cabelos brancos cortados à escovinha, agitando a mão sem olhar para trás, em sinal de cumprimento e fechei a porta. Imediatamente, como previra, minha mãe surgiu do escuro junto de mim. Mas não me agarrou pelos cabelos, como julguei: pelo contrário de uma maneira desajeitada, que de princípio não compreendi, fez uma tentativa para me beijar. Fiel ao meu plano, procurei a sua mão e introduzilhe o dinheiro. Mas ela recusouo; o dinheiro caiu no chão; ai, o encontrei no dia seguinte de manhã quando saí do meu quarto. Tudo isto com um pouco de angústia de parte a parte, mas sem que qualquer de nós abrisse a boca.
Entrámos na sala grande e senteime ao cantinho da mesa. Minha mãe sentouse na minha frente e olhoume. Parecia ansiosa e eu estava embaraçada. Disseme de repente:
Sabes que enquanto estiveste no quarto houve um certo momento em que tive medo?
Medo de quê? pergunteilhe.
Não sei respondeume. Primeiro sentime só... tive frio... E depois já não me sentia eu, tudo girava à minha volta como quando se bebe, sabes! Tudo me parecia estranho! Pensava: isto é uma mesa, isto é uma máquina de costura... Mas não me chegava a convencer de que era realmente uma mesa, a cadeira, a máquina de costura.. Também tive a sensação de que já não era eu... dizia: sou uma velha costureira... Tenho uma filha que se chama Adriana... mas não me convencia... Para me assegurar de que assim era pusme a pensar no que tinha sido quando era pequenina, depois quando tinha a tua idade, quando me casei, quando tu nasceste... Então tive medo, porque tudo passou como se tivesse sido ontem; de nova, que era, cheguei bruscamente a velha sem dar por isso... E quando eu morrer concluiu com esforço olhandome será como se nunca tivesse existido.
Porque pensas nessas coisas? pronunciei lentamente. Ainda és nova... Que necessidade tens de pensar na morte?
Pareceu não me ter ouvido e continuou com a mesma énfase, que me fazia pena e me parecia falsa:
Digote que tive medo! Pusme a pensar: se uma pessoa não tem mais vontade de viver, deve continuar a estar neste mundo à força? Não digo que se mate; para se matar é preciso coragem; não, mas apenas deixar de querer viver como se deixa de querer comer, ou de querer andar... Pois bem! Jurote por alma do teu pai... Já não queria viver mais!
Tinha os olhos cheios de lágrimas e os lábios trémulos. Eu estava quase a chorar também, sem saber porque, e levanteime, beijeia e fui sentarme com ela no canapé, ao fundo do quarto. Ficámos uns momentos a chorar nos braços uma da outra. Sentiame desnorteada, estava muito cansada, e as palavras incoerentes da minha mãe, com á sua ilógica, aumentavam o meu desnorteamento. Mas fui a primeira a recomporme, porque no fim de contas eu não chorava senão por simpatia. Há muito tempo que deixara de chorar por mim!
Então! Então! comecei a dizerlhe, dandolhe palmadas nas costas.
Digote, Adriana, já não tenho vontade de viver! - repetiame chorando.
Afagueilhe o ombro sem dizer nada, deixandoa chorar à vontade. Mas pensava, por minha vez, que as suas palavras eram a clara expressão do seu remorso. É certo que sempre me tinha mostrado o exemplo de Gisela e recomendara que me vendesse o mais caro possível. Mas entre dizer e fazer há uma boa diferença. Ter trazido um homem a casa, sentir que lhe punha o dinheiro na mão, era certamente para ela um duro golpe. Agora, que tinha diante dos olhos o resultado da sua educação, não podia deixar de sentirse horrorizada. Mas ao mesmo tempo havia nela uma espécie de incapacidade para reconhecer que se tinha enganado; talvez também uma amarga satisfação ao verificar que se enganara. Tanto assim que, em vez de me dizer francamente “Procedeste mal... não recomeces”, preferiu falar de coisas que nada tinham a ver comigo, da sua vida, do seu desejo de deixar de existir. Tive muita vez ocasião de observar pessoas que no mesmo momento em que se abandonam a uma acção que sabem ser repreensável, procuram defenderse e resgatarse discorrendo acerca de coisas mais elevadas, susceptíveis de as rodear, a seus próprios olhos e aos dos outros, de uma aura de desinteresse e de nobreza bem longe da acção que praticam ou ainda, para voltar ao caso da minha mãe , daquilo que deixam os outros praticar. Somente, a maior parte actua com inteira consciência; minha mãe, pelo contrário, coitada, fálo sem dar por isso, como o seu coração e as circunstâncias a inspiram.
Portanto, a sua frase sobre a vontade de não viver pareciame justa. Pensava que também eu, logo que descobri a traição de Gino, desejei deixar de viver. Mas o meu corpo continuava a viver por sua conta, indiferente à minha vontade. Este peito, estas pernas, estas ancas, que tanto agradavam aos homens, continuavam vivas; a minha natureza continuava a desejar o amor, mesmo sem que eu o quisesse. Estendida na minha cama, tinha decidido deixar de viver, não acordar no dia seguinte de manhã; enquanto dormia. o meu corpo continuava vivo, o sangue corriame nas veias. o estômago e os intestinos digeriam, os pêlos despontavamme nas axilas, onde os tinha rapado, as unhas cresciam, a pele molhavase de suor e as forças restauravamse. E de manhã cedo, sem que o quisesse, as pálpebras abriamse e os meus olhos viam, por mal deles, esta realidade que detestavam. Em suma, percebia que, a despeito do meu desejo de morrer, estava ainda viva e devia continuar a viver. E portanto concluía eu , é preciso sujeitarmonos a viver e não pensar mais nisso. Nada disto disse a minha mãe, porque sabia que estas ideias não eram menos tristes que as suas e não a consolariam. Mas quando me pareceu que deixara de chorar aproximeime dela e disselhe:
Tenho fome!
Era verdade; no restaurante, com o nervosismo, quase não tinha comido.
O teu jantar está pronto respondeume, contente por eu lhe oferecer um meio de se tornar útil e de fazer uma coisa que fazia todas as noites. Vou prepararto.
Saiu e fiquei só.
Senteime em frente da mesa, no meu lugar habitual, e esperei que ela voltasse. Sentia a cabeça oca; de tudo o que se passara ficarame apenas o cheiro acre e doce do amor entre os dedos e o traço seco e salgado das lágrimas no rosto. Olhei, imóvel, as sombras que o candeeiro suspenso projectava nas grandes paredes nuas da sala. Minha mãe voltou. Trazia um prato com carne e legumes.
A sopa não ta aqueci disseme , porque não ficava boa. E depois, já não há muita.
Não faz mal. Isto chega!
Deitoume vinho tinto no copo e ficou de pé na minha frente, como sempre que eu comia... imóvel, atenta às minhas ordens.
O bife está bom? perguntoume ansiosamente.
Está bom, está.
Pedi tanto ao homem do talho para me dar um bocado tenro!
Parecia ter acalmado; tudo parecia igual às outras noites. Acabei lentamente de comer, bocejei, abri os braços e espreguiceime. De repente sentime bem; este gesto bastava para dar ao meu corpo uma sensação de juventude, força e contentamento.
Tenho sono! declarei.
Espera... vou fazerte a cama! disse minha mãe, atenciosa, fazendo menção de sair.
Não, não; eu faço!
Levanteime; minha mãe levou o prato vazio.
Amanhã de manhã deixame dormir! recomendeilhe. - Não me acordes.
Respondeume que me deixaria dormir, e, depois de lhe dar as boasnoites é de a beijar, retireime para o meu quarto. A cama estava na desordem em que eu e Jacinto a tínhamos deixado. Limiteime a ajeitar a almofada e a colcha, despime e enfieime nos lençóis. Fiquei durante uns instantes com os olhos abertos no escuro, sem pensar em nada.
Sou uma prostituta! disse por fim em voz alta, para ver o efeito que isso me produzia.
Tive a impressão de que não me fazia qualquer efeito: fechei os olhos e adormeci logo a seguir.
No decurso dessa semana tornei a ver Jacinto todas as noites. Ele tinha telefonado a Gisela no dia seguinte de manhã e Gisela tinhame dado o recado. Jacinto devia voltar a Milão na véspera da noite do dia que eu tinha marcado para me encontrar com Gino; fora esta a razão pela qual consentira em encontrarme com ele todas as noites. Doutra maneira, teria recusado, porque jurara a mim mesma que não teria encontros seguidos com qualquer homem. Pensava que era preferível, já que tinha que ter esta vida, fazélo francamente, mudando de amante de cada vez, em lugar de me enganar a mim própria e de me dar a ilusão de não o fazer deixandome sustentar por um homem só, com o risco de me afeiçoar a ele ou de o deixar afeiçoarse a mim, e perder assim não só a liberdade física mas também a dos sentimentos. De resto, guardara intactas as minhas ideias sobre a vida conjugal e regular; pensava então que se tivesse de me casar não seria com um amante que me sustentasse e que por fim decidisse tornar legais, mas não morais, relações de interesse; isso aconteceria com um rapaz que eu amasse e por quem fosse amada, que fosse da minha condição, com os mesmos gostos e as mesmas ideias que eu. Queria, em resumo, que a vida que escolhera ficasse bem distinta das minhas velhas aspirações, sem contágios nem compromissos. Porque me sentia, num certo sentido, levada a ser uma boa esposa e uma boa cortesã, mas incapaz de escolher, como entendia que devia fazer Gisela, o meio termo hipócrita e prudente entre as duas soluções. Sem contar que, feitas as contas, se podia obter mais do escrúpulo de muitos que da generosidade de um só.
Durante todas aquelas noites, Jacinto levoume a jantar ao seu restaurante habitual e acompanhoume a minha casa onde se demorava. Minha mãe renunciou a falar destas noites; limitavase a perguntarme se dormira bem quando de manhã entrava no meu quarto, a uma hora avançada, para me levar o café num tabuleiro. Este café, já o disse, costumava engolilo na cozinha, muito cedo, de pé, junto da chaminé, ainda com o frio da água nas mãos e na cara. Mas agora minha mãe traziamo ao quarto e eu bebiao na cama, enquanto ela abria as persianas e tratava de dar alguma arrumação ao quarto. Não lhe dizia nunca mais do que já lhe dissera, mas ela percebera por si própria que tudo tinha mudado na nossa vida e mostrava pelo seu comportamento que compreendia que espécie de mudança se operara. Agia como se entre nós houvesse um acordo tácito e parecia, pelas suas atenções, pedirme humildemente que lhe permitisse, na nossa vida nova, servirme e tornarse útil como outrora. Devo dizer que este hábito de me trazer o café à cama devia tranquilizála num certo sentido, por que muita gente e minha mãe era dessas atribui aos hábitos um valor positivo, mesmo que não tenham, como este, essa característica. Manifestou o mesmo zelo introduzindo todos os dias pequenas mudanças da mesma ordem na nossa vida quotidiana: tanto assim que me preparou uma grande panela de água quente para me lavar ao levantar, pôs flores numa jarra no quarto e assim por diante.
Jacinto davame sempre a mesmo soma de dinheiro e eu, sem dizer nada a minha mãe, iaa depositando no fundo de uma gaveta, numa caixa onde até agora ela guardara as suas economias. Ficava com pouco dinheiro para mim. Imaginava que ela já se tinha apercebido destas adições diárias ao nosso património, mas nunca trocámos uma única palavra a tal respeito. Durante a minha vida pude observar que mesmo aqueles cujo dinheiro tem uma origem lícita não gostam de falar nisso, não só com estranhos, mas até mesmo com os íntimos. Sem dúvida ligase ao dinheiro um sentimento de vergonha ou talvez de pudor que o risca das conversas normais e se relega para o plano das coisas secretas inconfessáveis, nas quais não se deve falar. Como se, qualquer que seja a sua origem, ele fosse sempre mal adquirido. Talvez também ninguém goste de mostrar o sentimento que o dinheiro suscita na sua alma: um sentimento muito forte, quase sempre inseparável de uma sombra de culpa.
Numa dessas noites, Jacinto exprimiu o desejo de dormir comigo no meu quarto, mas eu, com o pretexto de que os vizinhos notariam a sua presença de manhã, quando ele saísse, não consenti. Na realidade, depois da primeira noite, a nossa intimidade não avançara; mas não por minha culpa. Até ao dia da nossa separação continuou a portarse exactamente como na primeira noite. Era na verdade um homem de valor nulo ou quase nulo na intimidade, e tudo o que eu podia sentir por ele já o sentira na primeira noite, enquanto dormia. A ideia de dormir com um homem assim repugnavame; depois receava que me aborrecesse, porque tinha a certeza de que me obrigaria a estar acordada uma parte da noite para me fazer confidências e falarme dele. No entanto, ele não se apercebeu nem do meu aborrecimento nem da minha antipatia e partiu convencido de ter sido, durante aqueles dias, extraordinariamente simpático.
Chegou o momento do meu encontro com Gino. Aconteceram tantas coisas no decurso destes dez dias que eu tinha a impressão de que se tinham passado cem anos depois do tempo em que o via antes de ir para o atelier a fim de ganhar dinheiro e montar a minha casa e me considerava como uma noiva prestes a casarse. Ele foi pontual e chegou à hora que lhe tinha marcado; quando subi para o carro, tive a impressão de que ele estava extremamente pálido e parecia atrapalhado. Ninguém gosta de sentir que se lhe atira à cara uma traição, mesmo o traidor mais corajoso; ao longo destes dez dias de interrupção das relações habituais ele deve ter reflectido muito e feito muitas suposições. Todavia, eu não mostrava qualquer ressentimento, e verdadeiramente não necessitava de fingir, porque o meu espírito estava tranquilo; passada a primeira dor da desilusão, a minha alma inclinavase para uma espécie de indulgente e céptica afeição. Em resumo, ainda gostava de Gino e foi o que percebi logo que lhe deitei o primeiro olhar. Já era muito.
Enquanto o carro se dirigia para a moradia, perguntoume, passados uns instantes:
Então, o teu confessor mudou de ideias?
Tinha um tom brincalhão, mas ao mesmo tempo pouco seguro. Respondilhe simplesmente:
Não... eu é que mudei de ideias...
E esse trabalho para a tua mãe acabou?
Por agora.
É estranho.
Não sabia o que dizia; mas era claro que procurava picarme para ver se as suas suposições eram verdadeiras.
É estranho porquê?
Falei por falar.
Não acreditas que o tenha feito?
Não acredito nem deixo de acreditar.
Decidi atrapalhálo, mas à minha maneira, fazendo o jogo do gato e do rato, sem as violências aconselhadas por Gisela e que não eram para o meu feitio. Pergunteilhe com coquetterie:
Estarás com ciúmes?
Eu, com ciúmes? Pelo amor de Deus!
Estás com ciúmes, estás! Se fores sincero, tens de o confessar!
Mordeu o anzol que lhe preparara e declarou:
No meu lugar qualquer pessoa estaria com ciúmes!
Porquê?
Ora! Como queres que te acredite! Um trabalho tão importante que não te permite dispensar cinco minutos para me falar... Vamos!
E no entanto é a verdade: trabalhei muitíssimo - disselhe tranquilamente.
Era verdade. Que outra coisa era senão trabalho o que eu tinha com Jacinto todas as noites?
E ganhei com que pagar as nossas prestações e o meu enxoval acrescentei, troçando de mim própria. Assim, pelo menos, podemonos casar sem dívidas!
Ele nada disse. Estava quase convencido a acreditar na verdade das minhas afirmações e a abandonar as suas primeiras desconfianças. Tive então um gesto que me era habitual dantes: passeilhe um braço em torno do pescoço enquanto conduzia e beijeio por baixo da orelha, murmurandolhe:
Porque tens ciúmes? Sabes bem que só tu existes na minha vida!
Chegámos à moradia. Gino entrou com o carro no jardim e, fechando o portão, dirigiuse comigo para a porta de serviço. Era ao entardecer; brilhavam já as primeiras luzes nas janelas das casas vizinhas; pareciam vermelhas na bruma azulada desta tarde de Inverno. O corredor da cave estava muito escuro e sentiase um cheiro a bafio. Parei e disselhe:
Esta tarde não quero ir para o teu quarto!
Porquê?
Quero que vamos para o quarto da tua patroa.
Tu estás doida! gritou, escandalizado.
Tínhamos ido muita vez aos quartos lá de cima, mas as nossas relações tínhamolas tido sempre na cave.
É um capricho... Que mal há nisso? disselhe.
Há muito... pode partirse alguma coisa... que sei eu? Se eles descobrem, que vou eu fazer?
Olha a grande coisa! gritei com ar trocista. Despedemte e pronto!
Vês como dizes isso?
Como querias que dissesse? Se me quisesses de verdade, não pensarias um minuto.
Amote, mas não me peças isso; nem é bom pensar nisso; não quero sarilhos!
Mas nós tínhamos cuidado... eles não dariam por isso!
Não! Não!
Eu estava perfeitamente calma. Continuei a fingir uma atitude que não sentia e gritei:
Então eu, que sou a tua noiva, peçote para me fazeres um gosto, e tu, com medo que eu ponha o meu corpo onde a tua patroa põe o seu e que apóie a minha cabeça onde ela apóia a sua, recusasmo? Mas que imaginas tu? Que ela vale mais do que eu?
Não, mas...
Valho dez mulheres como ela continuei. Pior para ti! Não tens mais que ir para a cama com os lençóis e a almofada da tua patroa... Eu voume embora!
Já o fiz notar: o respeito e a timidez que lhe inspiravam os patrões eram grandes; orgulhavase ingenuamente deles, como se de qualquer maneira a sua riqueza fosse a dele; no entanto, quando me ouviu falar desta maneira e me viu disposta a irme embora com uma decisão nova a que ele não estava habituado, perdeu a cabeça e correu atrás de mim, gritando:
Mas espera... aonde vais? Falei por falar... vamos para cima se isso te dá prazer!
Fizme ainda um pouco rogada, tomando ares ofendidos, depois aceitei. Foi assim que, enlaçados e parando de tempos a tempos sobre os degraus para nos beijarmos, exactamente como da primeira vez, mas com um estado de espírito bem diferente, pelo menos no que me dizia respeito, subimos ao andar superior. Uma vez no quarto da sua patroa, ele objectou:
Queres mesmo meterte na cama?
E porque não? respondi tranquilamente. Não estou disposta a apanhar frio!
Calouse, desnorteado. Eu, depois de ter preparado a cama, passei para a casa de banho, acendi o esquentador e abri a torneira da água quente muito pouco, de maneira que a tina não se enchesse muito depressa. Gino seguiume inquieto e descontente. Protestou de novo:
Vais tomar banho também?
Eles também não tomam banho antes de irem para a cama fazer o que nós vamos fazer?
Eu é que sei o que eles fazem? respondeume encolhendo os ombros.
Eu via que lá no fundo estas audácias não o desgostavam; somente, custavalhe a aceitálas. Era um homem pouco corajoso que não gostava de desobedecer. Mas as infracções às regras atraíamno, até porque raramente se permitia praticálas.
Afinal tens razão disse, passados uns momentos, com um sorriso ao mesmo tempo mortificado e desejoso, apalpando os colchões. Estáse melhor aqui que no meu quarto!
Sentámonos na beira da cama.
Gino disse, deitandolhe os braços à roda do pescoço. Como vai ser bom, quando tivermos uma casa para nós os dois... Não será como esta, mas será a nossa.
Não sei bem porque falava assim. Provavelmente porque sabia de antemão que todas estas coisas eram impossíveis e gostava de me ferir onde mais me doesse.
Sim, sim disse abraçandome.
Eu sei o que quero da vida continuei com o sentimento cruel de falar numa coisa para sempre perdida. Não preciso de uma bela casa como esta. Bastamme dois quartos e uma cozinha, mas com tudo o que é necessário e asseada como um espelho. Viver tranquila lá dentro, sairmos juntos ao domingo, comer juntos, dormir juntos... Pensa bem como vai ser bom, Gino!
Ele nada disse. Para dizer a verdade, falando assim, eu já não sentia a menor emoção. Tinha a impressão de representar um papel; estava no palco. Mas já não me parecia agora tão amargo. Esta personagem, tão fria e exterior, que não suscitava da minha parte a menor participação, tinha sido eu própria dez dias antes. Entretanto, enquanto eu falava, Gino despiame impaciente e apercebime uma vez mais, como no momento em que subi para o carro, de que continuava a gostar dele, o que me fez pensar com tristeza e despeito que era talvez mais o meu corpo, sempre pronto a aceitar o prazer, do que o meu espírito, agora distante, que me tornava tão indulgente e disposta a perdoar. Ele acariciavame e beijavame e as suas carícias e os seus beijos faziamme arder o cérebro: o prazer dos sentidos era mais forte do que a revolta do coração.
Matasme murmurei cheia de desejo, caindo sobre a cama.
Mais tarde enfiei as pernas debaixo dos lençóis; ele fez o mesmo e ficámos deitados com a colcha bordada deste leito luxuoso puxada até ao queixo. Uma espécie de dossel, suspenso sobre as nossas cabeças, deixava cair em torno do travesseiro várias camadas de tule branco e vaporoso. Todo o quarto era branco, com cortinados leves nas janelas, lindos móveis baixos encostados às paredes e objectos brilhantes de vidro, de mármore e de metal. Os lençóis finos e sedosos pareciam acariciarme o corpo, o colchão cedia docemente a cada movimento, acordando nos membros um profundo desejo de dormir e de repousar. Da casa de banho, pela porta aberta, o ruído da água caindo na tina chegavame aos ouvidos como um gorjeio tranquilo. Sentia o maior bemestar e nenhum rancor contra Gino. O momento pareceume propício para lhe dizer que sabia tudo, porque estava certa de lho dizer gentilmente, sem sombra de ressentimento.
Então, Gino disselhe com voz acariciadora, depois de um longo silêncio , a tua mulher chamase Antonieta Partini?
Com certeza que dormitava, porque teve um violento sobressalto, como se o sacudissem bruscamente pelos ombros.
Mas, que estás a dizer? perguntou.
E a tua filha chamase Maria, não é?
Quis protestar de novo, mas olhoume nos olhos e compreendeu que seria inútil. Tínhamos a cabeça na mesma almofada, os rostos lado a lado e eu falavalhe quase sobre a sua boca.
Pobre Gino! continuei. Porque me disseste tantas mentiras?
Porque te amava! respondeume com violência.
Se me amasses realmente, devias ter pensado que logo que descobrisse a verdade iria sofrer muito... Mas não pensaste nisso, não foi, Gino?
Amavate, perdi a cabeça...
Isso basta interrompi , de momento magooume muito... Não pensava que fosses capaz... Mas agora acabouse... não falemos mais nisso... Para já, vou tomar banho.
Desembaraceime das roupas, levanteime e fui para a casa de banho. Gino deixouse ficar onde estava.
A tina estava cheia de água quente e azulada, que contrastava de forma agradável com as cerâmicas brancas e as torneiras cintilantes. Entrei na tina e pouco a pouco mergulhei no líquido escaldante.
Uma vez estendida no fundo da tina, fechei os olhos. Não vinha qualquer ruído do quarto ao lado. Gino ruminava com certeza a minha declaração e procurava elaborar um plano para não me perder. Sorri ao pensar nele, perdido na grande cama de casal com a notícia dada em pleno rosto, como uma bofetada. Mas sorria sem maldade, como se ri de uma coisa cómica e que em nada nos afecta, porque não sentia o menor rancor contra ele. Conhecendoo agora como ele era na realidade, tinha quase a impressão de nutrir por ele uma espécie de afeição. Em seguida, ouvio andar no quarto; devia estar a vestirse. Passado um momento, apareceu à porta da casa de banho e olhoume com olhos de cão batido, como se não ousasse entrar.
Então não nos tornamos a ver?... disseme em voz baixa depois de um longo silêncio.
Compreendi que realmente gostava de mim, embora à sua maneira, sem que lhe repugnasse mentirme e atrairme a uma armadilha.
Lembreime de Astárito e pensei que Astárito também me amava mas também à sua maneira. Respondilhe, enquanto ensaboava um braço.
Porque não nos havemos de ver mais? Se não te quisesse tornar a ver, não teria vindo hoje. Continuaremos a vernos... mas menos vezes.
Estas palavras pareceram darlhe coragem.
Queres que te ensaboe? perguntoume entrando na casa de banho.
Não pude deixar de pensar em minha mãe, também ela cheia de atenções e cuidados comigo.
E respondi secamente:
Se quiseres... As costas, que eu não chego lá.
Gino agarrou o sabonete e a esponja; pusme de pé e ele ensabooume as costas todas. Olhavame no espelho que estava em frente da tina, a toda a altura, e pareciame ser a dona de todas aquelas belas coisas. Ela também se poria de pé como eu estava agora e uma criada de quarto, uma pobre rapariga como eu, a ensaboaria e a lavaria respeitosamente e com mil cuidados para não a arranhar. Pensava em como devia ser agradável, em lugar de se usar as próprias mãos, serse servida por outra pessoa, ficar tranquila e inerte enquanto outra, cheia de respeito e solicitude, se incomodaria para nos servir.
A ideia que me assaltou quando entrara pela primeira vez nesta casa de que toda nua, desembaraçada dos meus trapos, eu valia tanto como a patroa de Gino, voltou a assaltarme. No entanto, o meu destino era diferente do dela; era uma injustiça. Irritada, disse a Gino :
Já chega!
Ele foi buscar um roupão de banho e enquanto eu saía da tina pousoumo nos ombros para que me pudesse enrolar nele. Tentou beijarme, talvez para ver se eu lho permitiria. Eu, de pé, envolta no tecido branco, deixeio beijarme o pescoço. Em seguida começou a friccionarme em silêncio, o corpo todo, começando pelos tornozelos e subindo até ao seio com um zelo e uma habilidade como se não tivesse feito outra coisa durante toda a vida; fechei os olhos imaginando de novo que eu era a patroa e ele a criada de quarto. Gino tomou a minha atitude passiva por uma entrega e bruscamente senti que deixara de me friccionar e me acariciava. Então repelio, deixei cair a toalha, e com o corpo já bem seco tornei a entrar no quarto, nas pontas dos pés. Gino ficou na casa de banho a despejar a tina. Vestime à pressa e olhei em torno examinando o mobiliário. Parei em frente do toucador, semeado de objectos de madrepérola e ouro. Reparei, num canto, no meio de escovas e de frascos de perfume, numa pequena caixa de pó de arroz toda de ouro. Peguei nela e olheia. Era muito pesada e parecia maciça. Era quadrada, inteiramente cinzelada e um grande rubi servia de fecho. Tive uma impressão, não tanto de tentação como de descoberta; de futuro podia fazer tudo, até mesmo roubar. Abri a mala e meti nela a caixa, que caiu com todo o seu peso entre as moedas miúdas e as chaves de casa. Experimentei ao tirála uma alegria sensual muito parecida com a que me inspirava o dinheiro recebido dos amantes. Para dizer a verdade, não sabia o que iria fazer com uma coisa tão preciosa, que não dizia nem com as minhas toilettes nem com a vida que levava. Tinha a certeza de que nunca me serviria dela. Mas roubando obedeci à lógica que determinava daí em diante as vicissitudes da minha vida. Pensava que uma vez a casa construída era preciso pôrlhe um tecto.
Gino entrou no quarto. Com um cuidado servil, arranjou a cama e todos os objectos que lhe pareceram ter sido desarrumados.
Ora! Ora! disselhe com desdém, quando o vi, depois deste trabalho, olhar em volta com ansiedade, para se certificar se tudo estava no seu lugar habitual. Ora! A tua patroa não dá por coisa alguma. Ainda não é desta vez que vais para a rua!
Notei que ao ouvir as minhas palavras o seu rosto se crispou dolorosamente e senti remorsos por télas dito, porque eram maldosas e nem sequer eram sinceras.
Não abrimos a boca, nem enquanto descíamos a escada interior nem depois no jardim, quando subimos para o carro. Tinha anoitecido havia muito. Assim que o carro começou a percorrer as ruas do bairro elegante, como se eu esperasse apenas por esse momento, comecei a chorar docemente. Não sabia porque chorava, mas a minha amargura era enorme.
Não sou feita para representar papéis de mulher desiludida ou desesperada, e durante toda a tarde em que me tinha esforçado por parecer serena, muitos dos meus gestos e muitas das minhas palavras traziam a marca da desilusão e da raiva. Pela primeira vez, através das lágrimas, experimentava um verdadeiro rancor contra Gino, cuja traição me levava a sentimentos que não gostava de sentir e que não estavam de acordo com o meu carácter. Pensava que sempre fora doce e boa e que talvez doravante já não o fosse, e esta ideia enchiame de desespero. Teria querido perguntar a Gino: “Porque fizeste tudo isto? Como poderei esquecer?” Mas caleime, deixando correr as lágrimas e sacudindo de vez em quando a cabeça para as fazer tombar dos olhos, como se sacode um ramo para fazer cair os frutos mais maduros. Atravessámos a cidade toda quase sem que eu desse por isso. O carro parou, desci e estendi a mão a Gino dizendo :
Telefonarteei.
Olhoume esperançado, mas a sua expressão mostrouse espantada quando me viu a cara banhada de lágrimas. Mas não teve tempo de falar; fizlhe um gesto de despedida acompanhado de um sorriso contrafeito e afasteime.
Foi assim que a minha vida começou a girar sempre para o mesmo lado e com as mesmas personagens, como o carrocel do Luna Parque que eu via, rapariguinha, da janela da minha casa e do qual o brilhante girar me enchia de alegria o coração.
Também no carrocel há poucas personagens e sempre as mesmas. Ao som de uma música estridente e desafinada, vêemse desfilar o cisne, o gato, o automóvel, o cavalo, o trono, o dragão e o ovo e assim por diante, durante toda a noite. Eu também via girar as silhuetas dos meus amantes, quer fossem homens que eu já conhecesse quer fossem desconhecidos, em tudo parecidos com os primeiros. Jacinto vinha de Milão, donde me trazia meias de seda, e durante algum tempo viao todas as noites. Depois Jacinto tornava a partir e recomeçava a ver Gino, uma ou duas vezes por semana. Noutras noites ia com outros homens que encontrava na rua ou que Gisela me apresentava. Havia os jovens, os menos jovens e os velhos; alguns simpáticos, que me tratavam com gentileza, outros desagradáveis, que me consideravam como um objecto comprado e vendido; mas no fundo, como decidira não me prender a alguém, era sempre a mesma música. Encontrávamonos na rua, ou no café, íamos por vezes jantar juntos, depois corríamos para minha casa. Aí fechávamonos no quarto, eu entregavame, falávamos um pouco, depois o homem pagava e iase embora e eu passava para a sala grande, onde minha mãe me esperava. Se tinha fome comia e em seguida deitavame. Algumas vezes, mas muito raramente, se ainda era cedo, tornava a sair e voltava à cidade a procurar outro homem. Mas havia também os longos dias em que ficava em casa sem fazer nada e sem querer ver ninguém. Tornarame muito preguiçosa, de uma indoléncia triste e voluptuosa, e assaltavame uma sede de repouso e de tranquilidade que não era somente a minha, mas a da minha mãe e de toda a raça de seres sempre fatigados e sempre pobres, a que eu pertencia. Frequentemente, ao ver a gaveta das economias vazia, isso bastava para me fazer sair de casa e me levar a calcorrear as ruas em busca de um companheiro; mas também com frequência a minha preguiça me vencia, e preferia pedir dinheiro emprestado a Gisela ou mandar minha mãe comprar a crédito nas lojas.
E, no entanto, não poderia dizer que realmente esta vida me desagradava. Depressa percebi que a minha inclinação por Gino nada tinha de especial ou de única e que no fundo quase todos os homens, por uma razão ou por outra, me agradavam. Não sei se isto acontece a todas as mulheres que levam a mesma vida que eu, ou se indica a presença de uma particular vocação; o que sei é que sentia todas as vezes um frémito de curiosidade e de expectativa que raramente resultava em decepção.
Dos jovens, gostava dos corpos compridos, magros, ainda adolescentes, os gestos desajeitados, a timidez, os olhos acariciadores, os lábios e os cabelos cheios de frescura. Dos homens maduros, gostava dos braços musculosos, largos peitos, um não sei quê de maciço e de possante que a virilidade empresta aos ombros, ao ventre e às pernas; por fim até mesmo os velhos me agradavam, pois o homem não é, como a mulher, escravo da idade; até na velhice eles conservam um encanto particular. O facto de mudar todos os dias de amante permitiame distinguir à primeira vista qualidades e defeitos com a precisão e a penetração de observação que só a experiência permite adquirir. Além disso, o corpo humano era para mim uma fonte inesgotável de um prazer misterioso e nunca saciado; mais de uma vez me surpreendi a acariciar com os olhos ou a tocar com as pontas dos dedos os membros dos meus companheiros de uma noite, com se quisesse, para além das superficiais relações que nos uniam, penetrar o sentido do seu interesse por mim e explicar a mim própria por que motivo me atraíam tanto. Mas procurava esconder esta atracção o mais que podia, porque estes homens, na sua vaidade sempre desperta, podiam tomála por amor e imaginar que me apaixonara por eles, quando na realidade o amor pelo menos como eles o entendiam nada tinha a ver com o meu sentimento, o qual se parecia mais com o respeito e a vibração que experimentava antigamente quando frequentava a igreja assistindo a certos actos religiosos.
O dinheiro que ganhava desta maneira não era tanto como poderia imaginarse. Primeiro, nunca chegava a ser tão ávida e venal como Gisela. Decerto que esperava que me pagassem porque se eu “ia” com os homens não era para me divertir; mas a minha natureza levavame a entregarme mais por uma espécie de exuberância física do que por espírito de lucro, e não pensava no dinheiro senão no momento em que me pagavam, o que era tarde. Sempre tive a convicção de que a mercadoria que eu fornecia aos homens nada me custava e não se pagava; recebia esse dinheiro mais como um presente do que como um salário: pareciame que o amor não devia pagarse e nunca estava bem pago; presa a esta modéstia e a esta presunção, sentiame incapaz de fixar um preço que não me parecesse arbitrário; também quando me davam muito, agradecia com uma excessiva gratidão, e quando me davam pouco nunca me sentia roubada nem protestava. Só mais tarde, levada por algumas decepções amargas, é que me decidi a imitar Gisela, que discutia as suas condições antes de chegar a acordo. Mas ao princípio corava, murmurava os preços entre dentes; muitos não me percebiam; tinha sempre que repetir.
Havia ainda outro motivo que tornava insuficiente o dinheiro que ganhava. Olhando às despesas muito menos que dantes, permitindome a compra de muitos mais vestidos, perfumes, artigos de toilette e outros objectos semelhantes necessários à minha profissão, o dinheiro que recebia dos meus amantes não era mais do que aquele que outrora ganhava sendo modelo e ajudando minha mãe a trabalhar. Como dantes, e ainda com mais frequência agora, havia dias em que não tínhamos um centavo em casa. E como antigamente, e até mesmo pior, a despeito do sacrifício da minha honra, sentiame pobre e pensava com angústia na insegurança do dia de amanhã. Sou de natureza alegre e calma; esta inquietação nunca tomou em mim um carácter de obsessão, como noutras pessoas menos equilibradas e menos indiferentes. Mas estava na minha consciência obscura como um verme de um velho móvel; advertiame constantemente de que eu estava desprovida de tudo, que não podia esquecer esta precária condição e descansar, nem melhorar definitivamente com a profissão que escolhera.
Aquela que nada sentia, ou pelo menos parecia não sentir qualquer inquietação, era minha mãe. Disseralhe logo que não era necessário que desperdiçasse a sua vida cosendo o dia inteiro. Como se toda a vida ela não esperasse outra coisa que esta advertência, abandonou imediatamente a maior parte do trabalho e limitouse à execução desinteressada de uma ou outra encomenda, mais para passar o tempo que pelo desejo de ganhar alguma coisa. Era como se o esforço de todos estes anos, a começar no tempo em que eu era rapariga e servia uma família como criadinha, se afundasse bruscamente sem deixar resíduos e sem remédio, à maneira das velhas casas que logo que se desmoronam desaparecem, entram em si próprias, se bem que não tenham uma única parede de pé; nada fica senão um montão de poeira. Para uma pessoa como minha mãe, o dinheiro queria dizer comer e descansar até à saciedade. Comia mais que nunca e permitiase pequenos luxos que na sua ideia distinguiam os ricos dos pobres: levantarse tarde, dormir depois do almoço, passear de vez em quando. Devo dizer que o efeito que produziu nela esta mudança de hábitos foi talvez o lado mais desagradável da minha nova vida. Sem dúvida, os que estão habituados a trabalhar nunca deviam parar: o descanso, o bemestar, mesmo de uma origem boa e lícita não era porém o caso , corrompemnos. Ao mesmo tempo que a nossa situação melhorava, minha mãe engordava, ou, para ser mais exacta, dada a rapidez com que desapareceu a sua magreza ofegante e angulosa, ela inchava de uma forma doentia e de uma maneira que me pareceu significativa, embora isso não me surgisse com clareza. As suas ancas agudas arredondaramse, os ombros secos cobriramse, as faces, que sempre foram cavadas, encheramse e refloriram como se tivessem sido assopradas. Mas o pormenor mais triste da sua transformação física foram os olhos. Outrora grandes e dilatados, com uma expressão excitada e inquieta, reflectiam agora uma luz equívoca e ambígua. Tinha engordado, mas sem beleza nem rejuvenescimento. Pareciame que era ela quem trazia no corpo e na cara a marca visível da nossa mudança de vida; nunca a podia olhar sem experimentar um sentimento penoso misturado de remorso, compaixão e repugnância. Ela aumentava o meu malestar assumindo atitudes de gulosa e feliz satisfação. Na realidade, rejubilava por não ser forçada a trabalhar e estas atitudes eram as de uma mulher que durante toda a sua vida nunca comera nem descansara o suficiente.
Naturalmente eu não deixava transparecer os meus sentimentos para não a magoar, sem contar que havia certas coisas que deveria dizer primeiro a mim antes de as dizer a ela. Mas de tempos a tempos escapavamme gestos de contrariedade. Tinha a impressão de gostar menos dela, agora que estava grande e gorda e caminhava rolando as ancas, do que quando berrava, corria e se chorava todo o dia, desgrenhada e ávida. Chegava por vezes a perguntar a mim própria: “Se tivesse conseguido o bemestar por meio de um bom casamento, a minha mãe teria engordado desta maneira?” Hoje penso que sim; não sei que sintoma ignóbil eu julgava notar na sua gordura; atribuoo agora ao olhar que lhe lançava, carregado, mesmo sem querer, de clarividência e remorso.
Não escondi durante muito tempo a Gino a minha nova condição. Tive mesmo a ocasião de lha revelar bem depressa, a primeira vez em que o vi, quinze dias depois de nos termos encontrado em casa dos seus patrões. Uma manhã minha mãe veio acordarme e, com voz embargada e cúmplice, disseme:
Sabes quem está ali à porta e te quer falar? O Gino!
Dizlhe que entre respondi simplesmente.
Um pouco decepcionada com a resposta, abriu a janela e saiu. Passado um momento, Gino entrou e percebi logo que estava perturbado e furioso. Nem me deu os bonsdias. Girou em torno da cama e olhoume, estendida e ensonada como estava. Depois perguntou:
Ouve lá... No outro dia não trouxeste por engano um objecto que estava em cima do toucador da senhora?
“Ele aqui está”, pensei eu. Não experimentava qualquer sentimento de culpa, enquanto que, mais uma vez, a assustada servidão de Gino me fazia pena.
Porquê? disselhe.
Desapareceu uma caixa de grande valor... de ouro... com um rubi... A senhora fez uma fita dos diabos, e como de qualquer maneira foi a mim que a casa ficou confiada, não me dizem, mas compreendo muito bem que me supõem... Felizmente que só deu por isso ontem, uma semana depois de ter voltado: assim é possível que tenha sido uma das criadas de quarto que a tenha roubado... Se não fosse isso, já me teriam acusado, despedido, preso... sei lá?
Tive medo de culpar algum inocente e perguntei:
Mas já fizeram alguma coisa às criadas de quarto?
Não respondeu, muito nervoso. Mas pediram ao comissário para nos interrogar; há dois dias que não se respira naquela casa.
Hesitei um momento, depois declarei:
Fui eu quem a tirou.
Semicerrou os olhos, com uma careta maldosa de todo o rosto.
Foste tu quem a tirou... e é assim que o dizes?
Como deveria dizer?
Mas isso chamase roubar!
Pois chama.
Olhoume e de repente encolerizouse; talvez tivesse medo das consequências do meu acto, ou pressentia, de uma maneira confusa, que a primeira responsabilidade deste roubo era dele.
Dizme lá gritou. Que te passou pela cabeça? Ah! Foi para isso que quiseste ir para o quarto da senhora... agora percebo! Mas eu, minha querida, não quero estar misturado nisto. Se tu queres roubar, rouba onde muito bem te parecer, mas não na casa onde trabalho. Uma ladra! Estava fresco se tivesse casado contigo... teria casado com uma ladra!
Deixeio dar livre curso à sua raiva, observandoo atentamente. Admiravame de o ter achado durante tanto tempo perfeito. Não havia dúvida, bem perfeito! Quando me pareceu que acabara as reprimendas, disselhe por fim:
Mas porque te zangaste tanto, Gino? Não te acusam de teres roubado... Vão falar ainda nisso durante algum tempo e depois passará à história. Meu Deus, com tantas caixas que tem a tua patroa, vale bem a pena!
Mas porque a roubaste? perguntoume.
Era claro que queria ouvir dizer aquilo que vagamente adivinhava.
Porque sim! disselhe.
Porque sim não é resposta.
Então, se tu queres realmente saber disselhe tranquilamente , roubeia, não por inveja nem porque precisasse, mas porque de futuro até já posso roubar.
Que queres dizer? disseme. Mas eu não o deixei continuar.
A noite expliqueilhe vou pelas ruas, procuro um homem, tragoo para aqui e ele pagame. Se faço isto, posso também roubar, não é verdade?
Compreendeu e teve uma reacção característica.
Também fazes isso?... Mas é perfeito!... Estava fresco se tivesse casado contigo!
Não o faria respondilhe. Comecei a fazêlo no momento em que soube que tinhas mulher e filha.
Ele esperava já esta frase.
Não, minha rica respondeume. Não deites agora as responsabilidades para cima das minhas costas. Só se torna prostituta ou ladra quem o quer ser.
Então é porque eu já o era sem o saber disselhe. - E tu não fizeste outra coisa senão oferecerme a ocasião de o chegar a ser de facto.
A minha calma mostroulhe que era inútil discutir. Mudou então de táctica.
Bem... O que és ou o que fazes não é da minha conta... Mas essa caixa, é preciso que ma devolvas... Senão, mais tarde ou mais cedo, perderei o meu lugar... Preciso que ma dês e fingirei que a encontrei... no jardim, por exemplo.
Porque me dizes tudo isso? respondilhe. Se é para não perderes o lugar... podes levála... está aí na primeira gaveta do armário.
Com ar aliviado, precipitouse para o armário, abriu a gaveta, agarrou na caixa e meteua no bolso. Depois olhoume de uma maneira onde havia desejo de reconciliação. Mas não tive coragem de enfrentar a cena embaraçosa que este olhar me fazia prever.
Tens lá em baixo o carro? pergunteilhe.
Tenho.
Está bem! É tarde, é melhor que não demores; tornaremos a falar nisto na próxima vez que nos virmos.
Estás zangada comigo?
Não.
Sim, estás!
Já te disse que não.
Suspirou, curvouse sobre a cama e deixei que me beijasse.
Mas telefonasme? insistiu, da porta.
Está descansado.
Foi desta maneira que Gino aceitou o meu novo género de vida. Mas no dia em que nos tornámos a ver não falámos nem da caixa, nem do meu trabalho, como se de futuro essas coisas não tivessem importância e cujo único interesse tivesse sido apenas a novidade. Portouse um pouco como minha mãe, salvo que não pareceu experimentar, nem por um instante, o pavor manifestado por ela a primeira vez em que eu trouxe Jacinto para casa, e que me parecia por vezes sentir ainda perpassar por entre a sua satisfação, ver por debaixo da sua gordura balofa. O importante do carácter de Gino era, pelo contrário, uma espécie de finura tola e desentendida. Imagino que logo que conheceu a mudança que a sua traição operara na minha vida encolheu os ombros dizendo: “Matei dois coelhos de uma cajadada. Assim não me pode acusar de coisa alguma e continuarei a ser seu amante.” Há homens que consideram uma sorte conservar o que possuem, seja o dinheiro, a mulher e até a própria vida, nem que seja pelo preço da dignidade. Gino era desses.
Continuei a encontrarme com ele, porque, como já disse, me agradava ainda, apesar de tudo, e porque não tinha alguém que me agradasse mais do que ele, e também porque, se bem que pensasse que de futuro tudo estava terminado entre nós, não queria que este fim fosse brusco e desagradável. Nunca gostei dos cortes decisivos nem de interrupções bruscas. Acho que as coisas da vida devem morrer por si, assim como nascem, por indiferença ou por hábito, uma vez que o hábito é uma variedade de fiel aborrecimento; gosto de as sentir morrer assim, naturalmente, sem que seja por minha culpa nem por culpa de outrem, e vêlas pouco a pouco ceder o lugar a outras. Além de tudo, estas mudanças claras e precisas não existem; quando se quer mudar precipitadamente, correse o risco de ver desabrochar com viva tenacidade, quando menos se espera, os velhos hábitos que se tinha a ilusão de ter arrancado de um só golpe e de uma maneira definitiva. Queria que as carícias de Gino acabassem por me ser tão indiferentes como as suas palavras; temia, se não deixasse o tempo agir, vêlo ressuscitar a cada instante na minha vida, obrigandome contra vontade a retomar as nossas antigas relações.
Uma outra pessoa que tornou a entrar na minha vida naquele momento foi Astárito. Com ele foi tudo ainda mais simples do que com Gino. Gisela viao às escondidas e eu supus que ele tinha relações com ela só para ter ocasião de saber notícias minhas. Fosse como fosse, Gisela espiava o momento favorável para me falar dele; quando lhe pareceu que já tinha passado bastante tempo e que eu já estaria mais calma, chamoume de parte para me dizer que ele lhe pedira notícias minhas.
Nada me disse de preciso acrescentou , mas senti que ainda estava apaixonado por ti... Até me fez pena... parecia muito infeliz... Nada me disse, repitote, mas percebi que tinha grande desejo de te tornar a ver... Agora, depois de tudo...
Interrompia para lhe dizer:
Ouve, é inútil continuar a falar dessa maneira.
De que maneira?
Com tantas precauções! Diz antes francamente que te mandou, que me quer ver e que te comprometeste a levarlhe a minha resposta.
Admitindo que seja assim concordou, desconcertada. Então?
Então? respondi, tranquila. Dizlhe que nada me impede de o ver... mas como também tenho outros, bem entendido que é de tempos a tempos, sem compromisso.
Ela ficou estupefacta com a minha calma; estava convencida de que eu odiava Astárito e nunca consentiria em tornar a vêlo. Não compreendia que o ódio e o amor tinham morrido para mim. Como sempre, pensou que escondia qualquer intenção.
Tens razão disse, passados uns instantes, com ar reflectido , eu no teu lugar faria o mesmo... Há casos nos quais tem que se passar por cima das antipatias. Astárito amate de verdade. Era capaz de anular o seu casamento para casar contigo... Não és parva, tu! E eu que te julgava uma ingênua!
Gisela nunca me tinha compreendido; sabia por experiência que seria tempo perdido tentar abrirlhe os olhos; por isso fiteia com ar desenvolto e respondilhe:
É assim mesmo deixandoa num estado de alma onde a inveja se misturava com a mais injuriosa admiração.
Comunicou a minha resposta a Astárito e tornei a vêlo na mesma pastelaria onde encontrei pela primeira vez Jacinto. Gisela tinha razão; ele continuava a amarme freneticamente; logo que me viu ficou pálido como um morto, perdeu toda a segurança e não abriu a boca. Esta paixão era mais forte do que ele. Penso que certas mulheres do povo, simples, como minha mãe, por exemplo, tem razão quando, contando histórias de amor, declaram que certos homens foram enfeitiçados pela amante. Sem querer e sem dar por isso, eu exercia sobre Astárito uma espécie de sortilégio; ele tinha consciência disso, e se bem que tentasse livrarse com todas as forças não o conseguia. Tinha, de uma vez para sempre, feito dele um subordinado; de uma vez para sempre tinhao desarmado, paralisado e reduzido a nada. Explicoume mais tarde que por vezes, quando estava sozinho, tentava estudar o papel da personagem fria e desdenhosa que queria representar comigo, indo até ao ponto de decorar frases, mas que quando me via o sangue fugialhe do rosto e uma espécie de angústia oprimialhe o peito, o espírito turvavaselhe, a língua recusavase a falar. Tinha a impressão de não poder suportar o meu olhar, perdia a cabeça, experimentava o desejo irresistível de se lançar de joelhos diante de mim e de me beijar os pés.
Realmente, ele não era como os outros homens; quero dizer que dava a impressão de estar obcecado. Na noite em que nos tornámos a encontrar, depois de termos ido jantar juntos ao restaurante, sempre num silêncio terno e crispado, apenas chegados a minha casa, obrigoume a contar em pormenor, sem nada omitir, toda a minha vida depois do dia do passeio a Viterbo até ao meu rompimento com Gino.
Mas porque te interessa isso tanto? perguntei, muito admirada.
Por nada respondeu. Mas para ti que mal tem isso? Não te preocupes comigo, conta!
Pela minha parte não me importo! respondi, encolhendo os ombros. Se isso te dá prazer!
E minuciosamente, como me recomendara que o fizesse, conteilhe tudo o que se passara depois do passeio: como fora a explicação com Gino, como seguira os conselhos de Gisela, como encontrara Jacinto. Só não contei a história da caixa de pódearroz, nem sei bem porquê, talvez para não o colocar numa situação falsa, sendo ele, como era, polícia. Fezme imensas perguntas, particularmente sobre o meu encontro com Jacinto. Parecia que nunca tinha os pormenores suficientes: dirseia que não queria só saber as coisas, mas vêlas, tocálas e participar nelas, em suma. Não sei quantas vezes me interrompeu para me dizer:
E tu, que fizeste?
Ou ainda:
Mas ele, que te fez?
Quando eu acabava beijavame, gaguejando:
Tudo isto foi por minha culpa!
Não respondi, um pouco contrariada. Não foi culpa de ninguém.
Sim! Foi por minha culpa! Fui eu quem te destruiu! Se não me tivesse portado daquela maneira em Viterbo, tudo se teria passado de uma maneira diferente!
Enganaste! disselhe vivamente. Se alguém está em falta é Gino: tu nada tens que ver com isto! Em Viterbo, meu caro, quiseste possuirme à força. As coisas que se obtêm dessa maneira não contam! Se Gino não me tivesse enganado, eu teria casado com ele; depois contarlheia o que se havia passado e seria como se nunca te tivesse conhecido!
Não, foi por minha causa! Aparentemente a culpa pode ser de Gino... mas no fundo só eu fui o culpado, só eu!
Parecia ter grande empenho em considerarse culpado: mas julguei compreender que, longe de sentir remorsos, tinha prazer em pensar que me tinha corrompido e desnudado. Sentia prazer... é dizer muito! Excitavao. Talvez fosse esse o motivo principal da sua paixão por mim. Compreendi isso logo que me apercebi de que muitas vezes, durante os nossos encontros, insistia para que lhe contasse com pormenores o que se passava entre os meus amantes ocasionais e eu. No decorrer destas descrições ficava com uma cara alterada, tensa, atenta, que me desagradava e me fazia corar. Logo a seguir atiravase para cima de mim, e enquanto me possuía repetiame com uma intensa paixão palavras injuriosas, brutais, obscenas, que eu não posso repetir e que me pareciam ofensivas até para a mulher mais depravada. Como esta estranha atitude podia estar ligada à sua adoração por mim nunca o compreendi; do meu ponto de vista, é impossível amar uma mulher sem a respeitar; mas no seu caso, o amor e a crueldade pareciam misturarse, emprestando um ao outro a sua cor e a sua força. Algumas vezes pensava que esta singular volúpia que sentia em me julgar degradada por sua culpa eralhe sugerida pelo seu trabalho de polícia, o qual consistia precisamente, como o percebi, em procurar o ponto fraco dos acusados, corrompê-los e aviltálos de maneira que se tornassem inofensivos. Chegou mesmo a dizerme, já não sei a que propósito, que todas as vezes que conseguia fazer confessar ou domar um acusado, de uma maneira ou de outra, sentia uma satisfação particular, quase física, parecida com a da posse amorosa. “O acusado é como uma mulher explicavame. Enquanto resiste tem a cabeça alta. Mas quando cedeu, uma vez só que seja, não é mais que um farrapo que se pode retalhar como e onde se quiser.” Portanto, pareciame mais provável que o seu carácter cruel e voluptuoso fosse nele uma coisa inata, e se escolhera esta profissão era porque tinha feitio para ela e não o caso contrário.
Astárito não era feliz; ainda mais: a sua infelicidade sempre me pareceu a mais completa e a mais irremediável que vi, porque não provinha de qualquer motivo exterior, mas de uma incapacidade, de uma insegurança que nunca consegui apreender. Quando me fazia contar as minhas experiências profissionais tinha o costume de se ajoelhar na minha frente, de pousar a cabeça nos meus joelhos e ficar imóvel nesta posição às vezes durante uma hora. Não tinha mais que passarlhe a mão de vez em quando sobre a cabeça, levemente, como as mães fazem aos filhos. De vez em quando gemia, talvez mesmo chorasse. Nunca amei Astárito, mas nesses momentos inspiravame uma grande compaixão, porque compreendia que sofria e que não havia qualquer meio de lhe aliviar o sofrimento.
Era com a maior amargura que falava da família; da mulher, que odiava, dos filhos, que não amava, dos parentes, que lhe tinham dado uma infância difícil, e depois, quando ele era ainda inexperiente, o tinham obrigado a fazer um casamento desastroso. Ao seu trabalho nem aludia. Chegou até a dizerme uma vez com uma estranha expressão:
Nas casas há muitos objectos que não são limpos, mas que são úteis... Eu sou um desses objectos: o caixote do lixo...
Mas, de uma maneira geral, tenho a impressão de que considerava a sua profissão perfeitamente honrosa. Tinha um grande sentimento do dever, e compreendi, na visita que lhe fiz no Ministério, que era um funcionário modelo: zeloso, perspicaz, incorruptível, rígido. Se bem que pertencesse à polícia política, fazia questão de dar a entender que nada percebia de política.
Sou uma roda de uma engrenagem que gira com as outras rodas do rodado disseme um dia. Não sou eu quem manda: eu executo!
Astárito queria verme todas as noites, mas, além do facto de não querer, como já disse, ligarme a qualquer homem, aborreciame e deixavame mal disposta com a sua gravidade convulsa e as suas bizarrias, tanto que, apesar da piedade que me inspirava, não podia reprimir um suspiro de alívio quando ele se retirava. Tentei portanto vêlo só raramente, não mais que uma vez por semana. Esta redução dos nossos encontros ao mínimo contribuiu certamente para manter o ardor e a avidez da sua paixão por mim; talvez que, se eu tivesse aceitado as propostas, que constantemente me fazia para ir viver com ele o fosse habituando à minha presença e acabasse por me ver como eu realmente era: uma pobre rapariga como havia tantas. Deume o número do telefone que tinha na mesa de trabalho, no Ministério. Era um número secreto. As únicas pessoas que o conheciam eram o prefeito da polícia, o chefe do Governo, o ministro e mais um grupo de pessoas importantes. Quando lhe telefonava respondia logo, mas, assim que compreendia que era eu, a sua voz, que antes era tranquila e límpida, tremia e começava a balbuciar. Estava verdadeiramente submisso, subjugado como um escravo. Lembrome de que uma vez, distraída, acaricieilhe a cara sem que mo tivesse pedido. Agarroume logo a mão para a beijar com fervor. Chegou a pedir depois que lhe tornasse a fazer espontaneamente esta carícia, mas as carícias não se fazem de encomenda.
Muitas vezes, já o disse, não tinha vontade de ir procurar os homens na rua e não saía de casa. Já não me apetecia ficar junto de minha mãe, porque, embora houvesse entre nós um entendimento tácito para se não falar do meu “ofício”, a conversa acabava sempre por girar à volta disso, aborrecida e cheia de alusões; quase preferia que as coisas se dissessem claramente. Fechavame pois no meu quarto, recomendando a minha mãe que não me incomodasse, e estendiame em cima da cama. O meu quarto dava para o pátio através de uma janela sempre fechada; nenhum barulho chegava do exterior. Dormitava durante algum tempo, depois levantavame e girava no quarto, absorvida em qualquer trabalho, como arrumar alguns objectos ou limpar o pó aos móveis. Estas ocupações serviamme de estimulante para pôr em marcha o maquinismo do meu cérebro e para criar à minha volta uma atmosfera de intimidade concentrada e bem entrincheirada. Começava por pensar com profunda crueza e depois acabava por em nada pensar.
Durante estas horas de solidão havia sempre um momento em que era tomada por um imenso espanto: pareciame de repente ver, com uma clarividência gelada, toda a minha vida e eu própria, por todos os lados e de todas as maneiras. As coisas que eu fazia tomavam a clareza de uma síntese. Diziame a mim própria: “Trago aqui muitas vezes homens que encontro na rua sem me conhecerem... Lutamos enlaçados na cama, como dois inimigos... Depois dãome uma folha colorida de papel impresso. No dia seguinte troco este papel por alimentos, vestidos e outras coisas necessárias.” Mas este enunciado não era mais que um primeiro passo no caminho de um espanto mais profundo. Servia para me desembaraçar o espírito da apreciação que não cessava de me chocar em relação ao meu ofício; mostravamme este ofício como um conjunto de gestos privados de senso, equivalentes a outros gestos de ofícios diferentes. Pouco depois, um ruído longínquo vindo da cidade, ou o estalar da mobília no quarto, davamme um sentimento obscuro e quase delirante da minha presença ali. Dizia a mim própria: “Estou aqui e poderia estar noutro lado. Poderia estar há mil anos ou daqui a mil anos... Poderia ser uma negra ou uma velha ou mesmo loura, pequenina...” Pensava que tinha saído de uma obscuridade sem limites, que tornaria a entrar numa outra obscuridade igualmente ilimitada e que a minha breve passagem não seria notada senão por gestos absurdos e fortuitos. Então compreendi que a minha angústia não era devida às coisas que eu fazia, mas, profundamente, ao único facto de viver; não era nem bom, nem mau, mas simplesmente doloroso e sem razão de ser.
Durante aqueles instantes este estado de alucinação provocoume um arrepio que me percorreu o corpo todo e me pôs os cabelos em pé, com formigueiro na raiz. Tive de repente a impressão de que as paredes da casa, a cidade, e até o mundo, se desvaneciam, que me encontrava suspensa num espaço vazio, negro e sem limites, e, para cúmulo, suspensa com os meus trapos, os meus sonhos, o meu nome, a minha profissão. Uma rapariga chamada Adriana suspensa no nada. Pareciame que esse nada era uma coisa solene, terrível e incompreensível e que o aspecto mais triste de toda a questão era apresentarme precisamente nesse nada com os modos e a aparência que tinha à noite para me apresentar na pastelaria onde Gisela me esperava. Não me consolava a ideia de que os outros se moviam e agitavam de uma maneira também frívola e inadequada dentro deste vazio. Admiravame só de que não tivessem disso a consciência, e, como acontece quando muita gente descobre ao mesmo tempo o mesmo facto, não comunicassem as suas observações e não falassem nelas mais frequentemente.
Aconteciame nesses momentos ajoelharme e rezar, mais talvez por hábito de infância do que por vontade clara e consciente. Mas não rezava empregando as expressões habituais das orações; pareciamme muito longas para o meu súbito estado de alma. Ajoelhavame com tal violência que às vezes as pernas me doíam durante muitos dias, e rezava assim, com força, com uma voz desesperada: “Cristo, tem piedade de mim”! Não era uma verdadeira oração, mas uma espécie de fórmula mágica, pela qual esperava dissipar os meus terrores e reencontrar a realidade habitual. Depois de gritar desta maneira, impetuosamente, com todas as forças do meu corpo, ficava muito tempo absorta, com a cara entre as mãos. Por fim, já em nada pensava, aborreciame e ficava a Adriana de sempre que se encontrava no meu quarto. Apalpava o corpo, admirandome de o encontrar intacto e presente, levantavame e ia deitarme. Sentiame cansada, dolorida, como se tivesse rolado muito tempo por um talude pedregoso. Adormecia logo em seguida.
Estes estados de alma, todavia, não exerciam qualquer influência na minha vida habitual. Continuava a ser a Adriana habitual, com o seu carácter de sempre, que encontrava os homens na rua e os trazia para casa por dinheiro, que se dava com a Gisela, que falava de coisas sem importância com sua mãe e com os outros. Por vezes pareciame estranho ser assim tão diferente, na solidão e em sociedade, nas minhas relações comigo própria e nas que tinha com os outros. Mas não imaginava que era só eu a experimentar sentimentos tão violentos, tão desesperados. Pensava que isso aconteceria a todas as pessoas. pelo menos uma vez por dia; sentir a vida reduzirse a um único estado de angústia inefável e absurdo. E com os outros também, esta consciência não produzia efeitos visíveis. Logo que saiam de si próprios, partiam para a sua vida habitual, representando com sinceridade um papel hipócrita. Esta ideia confirmava a minha convicção de que todos os homens, sem excepção, são dignos de compaixão, quanto mais não seja só pelo facto de estarem vivos.
Agora, eu e Gisela já não éramos apenas amigas, mas sim uma espécie de sócias. Nunca estávamos de acordo quanto aos lugares que devíamos frequentar, porque Gisela preferia os restaurantes de luxo, ao passo que eu gostava mais dos cafés de terceira ordem ou simplesmente da rua. Mas, devido precisamente a esta diferença de gostos, tinhase concluído entre nós uma espécie de pacto: cada uma de nós acompanharia a outra, dia sim, dia não, aos seus lugares predilectos. Uma noite, depois de um jantar infrutífero num restaurante, regressávamos juntas a casa quando observei que éramos seguidas por um carro. Preveni Gisela e arrisqueime a dizerlhe que talvez não fosse tolice deixar que eles chegassem à fala connosco. Gisela, que estava de mau humor, porque tinha tido de pagar o jantar e estava quase sem dinheiro, disse com mau modo:
Vai tu, se quiseres! Cá por mim vou para a cama.
Entretanto, o carro tinhase abeirado do passeio e seguianos passo a passo. Gisela caminhava do lado da parede e eu do lado de fora. Olhei disfarçadamente para o automóvel e vi que dentro dele vinham dois homens. Interroguei Gisela a meia voz:
Que vamos fazer? Se tu não vens, eu também não vou.
Gisela deitou também um olhar de lado para o carro, que continuava a seguirnos devagarinho, e, parecendo resignarse de repente, respondeume:
Está bem! Mas este sistema não me agrada... Andamos ainda umas dezenas de metros, sempre seguidas pelo carro, depois Gisela virou a esquina e metemos por uma travessa acanhada e sombria, com um passeio muito estreito que se estendia ao longo de uma parede coberta de cartazes. Ouvimos o carro voltar também e logo a seguir a luz branca e crua dos faróis iluminounos. Tive a sensação de que esta luz me despia e me pregava nua na parede molhada, sobre os cartazes rotos e desbotados. Paramos. Gisela, irritada, disseme a meia voz:
Se isto são maneiras! Vamos para casa!
Não, não... supliquei eu.
Não sei porquê, apoderarase de mim um desejo fortíssimo de conhecer os homens do carro.
Que importância tem isso? continuei. Todos eles procedem assim.
Gisela encolheu os ombros e no mesmo momento os faróis apagaramse; depois o carro veio parar junto de nós. O condutor deitou de fora a cabeça loura e disse, numa voz sonora:
Boas noites!
Boas noites respondeu Gisela com ar digno.
Onde vão as duas, assim tão sós? continuou o homem. Podemos acompanhálas?
Apesar da sua entoação irônica, como de alguém que se julga terrivelmente espirituoso, estas frases eram rituais. Ouvias depois centenas de vezes. Sempre muito séria, Gisela respondeu:
Depende...
Esta era, também, a sua resposta de sempre.
Ora, ora! insistiu o homem. Depende de quê?
Quanto é que tencionam pagarnos? perguntou Gisela encostandose à porta do carro.
Quanto pedem vocês?
Gisela disse uma importância.
Vocês são caras respondeu o rapaz. Muito caras! Mas parecia decidido a aceitar. O seu companheiro debruçou-se para ele e disselhe qualquer coisa ao ouvido. O louro encolheu os ombros e. dirigindose a nós, continuou:
Está bem. Subam...
O seu companheiro desceu e foi sentarse no assento de trás convidandome a entrar com um gesto. Gisela sentouse ao lado do condutor, que lhe perguntou:
Para onde vamos?
Para casa de Adriana respondeu Gisela. E deulhe a minha morada.
Bem. Vamos lá então para casa da Adriana...
Geralmente, quando me encontrava com homens que não conhecia, num carro ou em qualquer outra parte, ficava imóvel e silenciosa, esperando as suas palavras ou os seus gestos. Sabia perfeitamente que em geral não era preciso encorajálos a tomar a iniciativa. Por isso limiteime a aguardar os acontecimentos enquanto o carro percorria rapidamente as ruas. Do homem que o acaso me destinava para companheiro dessa noite não via senão duas mãos longas e brancas, pousadas nos joelhos. Ele também não falava e conservavase imóvel, encostado para trás, com a cabeça no escuro. Pensei que era tímido e simpatizei imediatamente com ele. Eu também já assim fora, e o espectáculo da timidez emocionavame sempre, porque me recordava a minha paixão por Gino. Gisela não havia meio de se calar. Um dos seus grandes prazeres era conversar com os clientes com um ar superior e bem educado, como se fosse uma senhora em companhia de homens que a respeitassem. A certa altura, perguntou :
Este carro é seu?
É. Agradate?
É cômodo respondeu Gisela com ar superior. Mas gosto mais dos Lancia. Andam mais e tém uma suspensão melhor. O meu noivo tem um.
Realmente Ricardo tinha um Lancia. Simplesmente, o que ele nunca fora era noivo de Gisela. O rapaz desatou a rir e respondeu:
O que ele deve ter é um Lancia de duas rodas...
Gisela era fácil de irritar. Respondeu com ar ofendido:
Por quem me toma você?
Não sei. Digame por quem a devo tomar, não vá eu enganarme...
Outra das ideias fixas de Gisela era fazerse passar aos olhos dos seus amantes de acaso por aquilo que não era, nem nunca tinha sido: bailarina, dactilógrafa, senhora respeitável, sem reparar que essas pretensões não condiziam com a facilidade com que ela se deixava abordar e discutir logo de entrada o aspecto material da questão.
Somos dançarinas da troupe Caccini declarou ela com um ar muito sério. Não temos o hábito de aceitar convites de desconhecidos. Aliás, eu não queria aceitar. A minha colega é que insistiu tanto... Se o meu noivo suspeitasse disto, havia de ser bonito!
O rapaz que ia ao volante riu de novo:
Bem. Eu e o meu amigo somos realmente duas pessoas decentes. Quanto a vocês, são duas prostitutas de rua. Mas que importância tem isso?
Foi então que o meu companheiro falou pela primeira vez.
Pára, João Carlos disse com uma voz tranquila.
Eu não disse palavra. Não me agradava aquela classificação, principalmente com a manifesta intenção de ofender que se notava no tom de voz com que João Carlos falava. Mas, ao fim e ao cabo, o que ele dissera era verdade.
Isso é mentira e você não passa de um ordinarão!
O rapaz não respondeu, mas parou o carro junto do passeio. Estávamos numa rua pouco frequentada e mal iluminada. O condutor voltouse para Gisela.
E se eu te pusesse fora do carro?
Experimenta! respondeu Gisela, agressiva.
Gisela era extremamente desordeira e de ninguém tinha medo.
Então o meu companheiro inclinouse para a frente e eu vi pela primeira vez o seu rosto. Era moreno, com os cabelos em desordem, a testa alta, grandes olhos sombrios e brilhantes, um nariz bem desenhado, a boca sinuosa e um horrendo queixo fugidio. Era extremamente magro. Interrogou o amigo:
Vais acabar com essa discussão idiota?
A pergunta foi feita com energia, mas sem irritação, como se ele interviesse num assunto em que, na verdade, não estivesse directamente interessado nem lhe desse importância. A sua voz não era muito forte, nem muito masculina e até, com frequência, soava a falsete.
Que tens tu com isso? respondeu o outro, bruscamente.
Mas isto foi dito num tom de voz de quem já está arrependido da sua brutalidade e que no fundo ficasse bastante satisfeito com a intervenção do amigo.
Que maneiras são essas? tornou o outro. Que diabo! Convidámolas, elas confiam em nós, e em paga dizemoslhes insolências e insultamolas. Achas bem? Dirigindose agora a Gisela, disselhe, ao mesmo tempo com gentileza e com autoridade:
Não faça caso, menina. Ele bebeu talvez um pouco mais do que devia. Garantolhe que não tinha a intenção de a ofender.
O louro fez um gesto de protesto, mas o meu companheiro forçouo a calarse pondolhe a mão num braço e dizendolhe em tom peremptório:
Já te disse que bebeste demais e que não tinhas intenção de a ofender. E agora, vamos embora!
Eu não aceitei a vossa companhia para ser insultada começou Gisela, numa voz pouco firme.
O moreno deulhe imediatamente razão.
Com certeza! Ninguém gosta de ser insultado. É tudo quanto há de mais natural...
O louro olhavanos com ar aparvalhado. Tinha o rosto encarnado, coberto de marcas irregulares, como pisaduras, uns olhos azuis perfeitamente redondos e uma grande boca sensual e glutona. Olhou primeiro para o amigo, depois para Gisela, e finalmente desatou a rir:
Palavra de honra que não percebo nada! exclamou. Porque estamos nós a discutir? Não há maneira de me lembrar como isto começou. Em lugar de nos divertirmos, zangamonos! Somos completamente idiotas, não há dúvida!
Ria com evidente satisfação. E, sem deixar de rir, voltouse para Gisela e disselhe:
Vá! Façamos as pazes! Sinto que fomos feitos um para o outro!
Gisela tentou sorrir e declarou:
Realmente, eu também tinha essa impressão...
O louro continuou, sempre a rir a bandeiras despregadas:
Eu tenho um rico feitio, não é verdade, Jaime? É questão de saber lidar comigo, e mais nada... Vamos! Venha de lá uma beijoca...
Debruçouse para Gisela e passoulhe um braço pela cintura. Ela desviou levemente a cabeça e disselhe:
Espera!
Tirou um lenço de dentro da bolsa, limpou a boca com ele e depois beijouo secamente, com um ar muito digno. Enquanto esse beijo durou, o louro agitava as mãos como se estivesse a afogarse e tentasse nadar. Separaramse e então ele pôs o motor a trabalhar com gestos pretensiosos e solenes.
Ora pois! Juro que daqui para o futuro não lhes darei uma única razão de queixa. Vou ser muito sério, muito bem educado, muito distinto... Autorizo a esbofetearemme, se não me portar bem...
O carro pôsse de novo em movimento.
Durante o resto do trajecto ele não cessou de falar e de rir animadamente; por vezes mesmo chegou a tirar as duas mãos do volante para gesticular. O meu companheiro, pelo contrário, depois da sua breve intervenção, tinha voltado à sombra e ao silêncio. Eu começava a simpatizar fortemente com ele, sentindome, ao mesmo tempo, curiosa e atraída; agora, que volto a pensar nisso, passado tanto tempo, compreendo ter sido nesse momento que me apaixonei por ele, ou, pelo menos, que comecei a consubstanciar na sua pessoa todas as coisas que amava e de que até então estivera privada. Afinal de contas, o amor tem de ser um sentimento completo e não apenas uma pura satisfação dos sentidos; e eu continuava, teimosamente, em busca dessa perfeição que pensara existir em Gino. Talvez esta fosse a primeira vez em toda a minha vida, e não apenas desde que exercia este ofício, que se me deparava uma pessoa como este homem, com tais maneiras e uma tal voz. O primeiro pintor de quem eu tinha sido modelo assemelhavase a ele até certo ponto, mas era mais frio e mais seguro de si; aliás, mesmo que ele o não tivesse querido, eu termeia apaixonado por ele do mesmo modo, se bem que, por motivos diferentes, a voz e as atitudes deste rapaz suscitassem na minha alma os sentimentos que se tinham apossado de mim a primeira vez que tinha estado na casa dos patrões de Gino. Assim como, ao ver a ordem, o luxo e a limpeza dessa casa, eu tinha pensado que, sem um ambiente como esse, a vida não valia a pena ser vivida, assim agora a voz e os gestos deste rapaz, tão gentis e tão calmos, inspiravamme não sei que atracção profunda e comovida. Ao mesmo tempo ele acordou em mim um violento desejo físico; sentiame ansiosa por ser acariciada pelas suas mãos, beijada pela sua boca; compreendi que acabava de se produzir em mim essa mistura imponderável, mas veemente das aspirações antigas e do prazer actual que é a própria essência do amor e marca infalivelmente o seu nascimento. Ao mesmo tempo temia que ele se apercebesse dos meus sentimentos e me desprezasse. Dominada por este medo, estendi a mão e apertei a dele. Mas ele não teve qualquer reacção. Então uma grande perplexidade tomou conta de mim; sentia que a sua imobilidade me impunha uma atitude de desinteresse, mas essa atitude era superior às minhas forças. O carro, dobrando bruscamente uma esquina, atirounos um contra o outro; fingi ter perdido o equilíbrio e deixei cair a cabeça nos seus joelhos. Ele estremeceu, mas não disse uma palavra nem fez um gesto. Sentindo com alegria que o carro corria velozmente, fiz como fazem os cães: meti a minha cara no meio das suas mãos, beijeias e passeias no meu rosto numa carícia que eu quisera ardentemente fosse afectuosa e espontânea. Compreendendo que estava de cabeça perdida, admireime de como meia dúzia de palavras amáveis haviam bastado para isso. Mas ele não me concedeu a carícia desejada e tão humildemente pedida, e retirou as mãos da minha cara. Precisamente neste momento o carro parou.
O louro apeouse, e com uma galantaria trocista ajudou Gisela a descer. Descemos também, abri a porta da escada e entrámos. Gisela e o louro tomaram a dianteira. O rapaz ficou para trás e a meio da escada deitou as mãos à saia de Gisela, levantoua e descobriulhe as coxas brancas e uma parte das nádegas, que ela tinha pequenas e magras.
Subiu o pano! exclamou com uma gargalhada. Gisela limitouse a compor o fato com um gesto seco. Pela minha parte, pensando que essa atitude ordinária tinha desagradado ao meu companheiro, tentei fazêlo compreender que partilhava da sua opinião.
É divertido, o seu amigo! disse.
É respondeu este secamente.
Vêse que a vida lhe corre bem...
Entrámos em casa em bicos de pés e eu conduzios directamente para o meu quarto. Quando a porta se fechou, o louro sentouse na beira da cama e começou tranquilamente a despirse, sem nos ligar a mínima importância. Não se calava nem deixava de rir, falando de quartos de hotel e de quartos particulares e tentando interessarnos por uma aventura que tivera recentemente.
Ela disseme: “Sou uma mulher honesta; não quero ir consigo para um hotel.” Então eu respondi: “Os hotéis estão cheios de mulheres honestas!” “Mas eu disse ela - não quero dizer o meu verdadeiro nome!” E eu disselhe: “Passarás por minha mulher! Para a importância que isso tem...” Finalmente seguimos para o hotel, mas quando chegou o momento decisivo complicou toda a nossa vida. Começou a dizer que tinha remorsos, que não queria, que era, na verdade, uma mulher honesta, o demônio! Acabei por perder a cabeça e tentar empregar a força. Pois sim! Abriu a janela e berrou que se atirava para a rua se eu insistisse.. “Bem disse eu. Compreendo. A culpa foi minha. Nunca te devia ter trazido para aqui!” Então a criaturinha sentouse na beira da cama e desatou a choramingar, enquanto me contava uma história capaz de fazer chorar um morto.. Não sou capaz de a repetir, porque me esqueci. Mas lembrome de que, no fim, estava comovidíssimo e pouco faltou para me pôr de joelhos na sua frente e pedirlhe perdão de ter pensado mal dela... “Está bem concordei , nada se passará entre nós. Vamos só deitarnos e dormir com muito juízo até amanhã.” E foi o que fizemos; adormeci imediatamente; mas, a meio da noite, acordo, e ela tinha desaparecido. Ela e a minha carteira. Honesta, hem?
Desatou à gargalhada, com uma alegria tão irresistível e tão contagiosa que eu tive de me rir também e a própria Gisela não conseguiu impedirse de sorrir. Ele tinha tirado o fato, a camisa, os sapatos e as peúgas. Ficara em ceroulas de malha de lã, justas e compridas, de um tom rosado de peito de rola, que o cobriam desde os tornozelos até ao pescoço, dandolhe o aspecto de um equilibrista ou de um bailarino. Esta peça de roupa, geralmente só usada por homens muito idosos, aumentava ainda a comicidade do seu aspecto. Nesse momento esquecime da sua brutalidade e quase cheguei a sentir simpatia por ele. Gostei sempre das pessoas alegres, e eu própria tenho mais tendência para a alegria do que para a tristeza. O rapaz pôsse a passear pelo quarto, brincando como um miúdo, pequenino, gorducho, orgulhoso das suas belas ceroulas como de um uniforme. Depois, do canto da cómoda, num salto inesperado, veio cair na cama, em cima de Gisela, que soltou um grito de susto e se deixou cair de costas para fugir ao choque. Mas, de repente, numa atitude irresistivelmente cômica, ele pareceu tomado por uma ideia súbita, deixouse ficar de gatas por cima de Gisela, voltou para nós o seu rosto vermelho e libidinoso e perguntou:
E vocês, porque esperam?
Olhei para o meu companheiro e pergunteilhe:
Queres que me dispa?
Ele nem sequer baixara ainda a gola do sobretudo. Estremeceu e respondeume:
Não. Depois deles.
Queres ir para outra sala?
Quero.
Dêem uma volta de carro! gritou o louro, sempre de gatas em cima de Gisela. As chaves estão no tablier!
Mas o meu companheiro saiu do quarto sem dar mostras de ter ouvido estas palavras.
Passamos para o vestíbulo: fizlhe sinal para me esperar e entrei na sala. Minha mãe estava sentada à mesa do meio, entretida a fazer uma paciência. Quando me viu, sem esperar qualquer palavra minha, levantouse e foi para a cozinha. Eu vim então à porta do vestíbulo e disse ao rapaz que podia entrar.
Voltei a fechar a porta e fui sentarme no canapé, junto da janela. Desejava ardentemente que ele viesse sentarse ao meu lado e que me acariciasse, como sempre acontecia com os outros homens. Mas ele nem sequer reparou na existência do canapé e pôsse a passear para trás e para diante pela sala, andando à roda da mesa, com as mãos nos bolsos. Pensei que estava contrariado por ter de esperar e disselhe:
Desculpa, mas não disponho senão de um quarto...
Ele parou, olhou para mim com uma expressão levemente ofendida mas gentil:
Eu já te disse, porventura, que precisava de um quarto?
Não. Mas pensei...
Voltou ao seu passeio, até que eu, não podendo conter por mais tempo a minha impaciência, indiqueilhe um lugar ao meu lado, no canapé:
Porque não vens sentarte ao pé de mim? perguntei.
Ele obedeceu e interrogoume:
Como te chamas?
Adriana.
Eu chamome Jaime disse ele, pegandome na mão. Este modo de proceder, invulgar para uma mulher como eu, admiroume profundamente, convencendome, de novo, de que a timidez o dominava. Deixei ficar a minha mão na sua e sorrilhe para o encorajar. Jaime voltou a interrogarme:
Então, daqui a pouco temos de ser um do outro?
Claro.
E se não me apetecer?
Isso é contigo respondi, na ideia de que ele estava a brincar.
Pois, não me apetece disse ele com ar solene. Não me apetece absolutamente nada.
De acordo! respondi eu.
Na realidade, a sua recusa pareciame demasiadamente estranha para que me fosse possível tomálo a sério.
E isso não te ofende? Em geral, as mulheres detestam que a gente as recuse.
Acabei por compreender. Sem coragem para falar, limiteime a dizer que não com a cabeça. Ele não me desejava! Bruscamente sentime desesperada e os olhos encheramseme de lágrimas.
Não. Isso não me ofende balbuciei. Mas visto que não me desejas, vamos esperar que o teu amigo acabe e depois vaiste embora.
Será justo? hesitou ele. Perdeste a noite por minha causa. Podias ter ganho dinheiro com outro qualquer...
Pensando que o seu problema não era falta de interesse, mas impossibilidade de me pagar, propuslhe, cheia de esperança:
Se não tens dinheiro não faz mal. Pagasme quando voltares a encontrarme...
Tu és boa rapariga respondeu. Mas o problema não é esse. O dinheiro não me falta. Vamos fazer um contrato. Eu pagote como se me tivesse servido de ti. Dessa maneira, pelo menos, não perderás a noite.
Tirou do bolso do casaco um rolo de notas, que me deu a impressão de ter sido preparado previamente, e foi pousálo em cima da mesa, longe de mim, num gesto ao mesmo tempo desajeitado e curiosamente elegante e desdenhoso.
Não, não protestei. Nem penses nisso!
Disse isto sem grande convicção, porque, no fundo, agradavame receber aquele dinheiro; era um laço como outro qualquer entre nós; e, visto que contraia uma dívida para com ele, podia tentar pagála. Interpretando a minha vaga recusa como um gesto de aceitação, Jaime deixou ficar o dinheiro em cima da mesa, e veio outra vez sentarse ao meu lado no canapé. Eu, embora compreendesse perfeitamente a ingenuidade e o ridículo do meu gesto, estendi a mão e peguei na dele. Olhámonos longamente, bem de frente. Depois, sem mais nem menos, ele pegou num dos meus dedos e torceuo com força.
Ai! gritei eu. E continuei com mau modo. Que ideia tão estúpida foi essa?
Desculpa! respondeu ele. E o seu ar de confusão era tão forte e tão sincero que me fez arrepender logo da secura com que lhe falara.
Fizesteme doer, compreendes? expliquei.
Desculpa repetiu ele.
Tomado de uma súbita agitação, levantouse e pôsse a passear na sala.
E se saíssemos? propôs. É aborrecidíssimo esperar desta maneira.
Aonde queres ir?
Não sei. Apetecete dar uma volta de carro? Lembrandome de todos os passeios que dava com o Gino, respondi vivamente:
Não, de automóvel não.
Podíamos ir tomar qualquer coisa. Há algum café aqui perto?
Pareceme que sim...
Então vamos.
Levantámonos e saímos da sala. Na escada disselhe, em ar de brincadeira:
Não te esqueças de que o dinheiro que me deste te dá o direito de vires ter comigo quando quiseres. Combinado?
Combinado.
Era uma noite de Inverno doce, húmida e escura. Tinha chovido durante todo o dia e a rua estava semeada de grandes poças de água em que se reflectia a luz serena dos raros bicos de gás. Por cima das muralhas o céu aparecia sereno, mas sem Lua, e uma bruma densa velava as raras estrelas que se viam. De vez em quando os eléctricos invisíveis passavam por detrás das fortificações fazendo saltar dos fios clarões rápidos e violentos, que iluminavam o céu por momentos. Quando chegamos à rua lembreime de que há meses não ia para os lados do Luna Parque. Habitualmente tomava pela esquerda, na direcção da praça em que Gino esperava por mim. Nunca mais voltara para o lado do Luna Parque desde os tempos em que, ainda pequena, passeava com minha mãe, e ora subíamos a grande avenida sobranceira às muralhas, ora fomos gozar a música e as iluminações sem ousar entrar no recinto para não gastar dinheiro. Era deste lado da grande avenida que se encontrava o pequeno pavilhão em que eu vira uma vez, pela janela aberta, uma família sentada à mesa e que me provocara o sonho de me casar, ter um lar, viver uma vida normal. Fui, então, tomada de um desejo violento de falar ao meu companheiro desse tempo, dessa idade, dessas aspirações; e isto, devo confessálo, não somente por impulsão sentimental, mas também por cálculo. Queria que ele não me avaliasse apenas pelas aparências, mas sim de um modo diferente, melhor, e que eu considerava mais verdadeiro. Há quem, para receber personalidades importantes, vista um fato de cerimônia e abra as melhores salas da sua casa; quanto a mim, pareciame que a simples sinceridade dos meus pensamentos e dos meus sentimentos chegaria para me defender, para o levar a mudar de ideias e para o fazer aproximarse de mim.
Nunca ninguém passa nesta parte da avenida disse, enquanto caminhávamos ao lado um do outro. Mas no Verão é o passeio preferido das pessoas do bairro... Eu também aqui vinha. Mas há tanto tempo! Só tu serias capaz de fazer com que eu aqui voltasse...
Ele tinha enfiado o seu braço no meu, para me ajudar a caminhar na rua encharcada.
Com quem passeavas? perguntou.
Com minha mãe.
Começou a rir, com um riso depreciativo que me espantou.
Com minha mãe! repetiu marcando as sílabas. Há sempre uma mãe! Que irá dizer minha mãe? Que irá fazer minha mãe? A mamã!
Imaginei que, por qualquer motivo pessoal, ele sentisse rancor pela sua própria mãe e pergunteilhe:
A tua mãe fezte alguma coisa?
Nada me fez! respondeume. As mães nunca fazem nada. Quem não tem uma mamã? E tu gostas da tua mãe?
Com certeza. Porquê?
Por nada disse depressa. Não te preocupes comigo... Continua... Então tu passeavas com tua mãe...
O seu tom não era muito tranquilizador. E, no entanto, um pouco por cálculo, um pouco por simpatia, sentiame levada a continuar as minhas confidências:
Sim disselhe. Nós passeávamos juntas, sobretudo no Verão, porque em nossa casa de Verão sufocase... Justamente... olha... vez aquela vivendazinha?
Parou e olhou. Mas as janelas da casa não estavam abertas; parecia mesmo desabitada. Metida entre duas longas construções baixas do caminho de ferro, pareceume ainda mais pequena do que a recordava e até feia e tosca.
E depois? perguntoume. O que acontecia nessa casa?
Eu agora corava do que ia dizer. Continuei com esforço:
Todas as tardes passava por esta casinha; como era Verão, as janelas estavam abertas... a esta hora via sempre uma família sentarse à mesa... Caleime, envergonhada.
E então?
Estas coisas não te podem interessar disse. E tive a impressão de que o meu pudor era, ao mesmo tempo falso e sincero.
Porquê? Tudo me interessa.
Bem... acabei à pressa. Tinhaseme metido na cabeça que um dia também eu teria uma casinha como esta e que faria todas as coisas que via esta família fazer.
Ah! Compreendo disse. Uma casinha como esta... Contentavaste com pouco!
Comparada com a casa onde moramos disse eu que é tão feia. E depois, sabes, naquela idade pensase tanta coisa!
Puxoume pelo braço para junto da vivendazinha. dizendome:
Vamos ver se essa família ainda lá está!
Mas que fazes? protestei, resistindo. Está lá com certeza.
Bem, vamos ver!
Estávamos diante da porta. O jardim estava às escuras, assim como as janelas e o miradouro. Ele aproximouse do portão e disse:
Até tem uma caixa de correio! Vamos tocar para ver se está cá alguém. Mas a tua casa parece desabitada.
Não! disselhe rindo. Está quieto! Mas que fazes?
Experimentemos respondeu. Levantou o braço e tocou a campainha. Tive vontade de fugir, tal era o medo que alguém viesse atender.
Vamos! Vamos! suspirava eu. Se alguém aparece, que figura fazemos nós?
Que dirá a mamã? Que dirá a mamã? repetia cantarolando, deixandose arrastar.
Tu detestas as mamãs! observei afastandome rapidamente.
Chegamos ao Luna Parque. Lembravame, da última vez em que lá tinha estado, da multidão que se comprimia, dos festões de lâmpadas eléctricas coloridas, dos balcões com lâmpadas de acetileno, da decoração das barracas, da música, do burburinho das vozes. Fiquei um pouco decepcionada por nada disso encontrar. A paliçada não parecia cercar um parque de diversões, mas um depósito de material, escuro e abandonado. Os oito balouços suspensos do carrossel pareciam insectos ventrudos parados em pleno vôo por uma brusca paralisia. Sem iluminação, os tectos pontiagudos dos pavilhões pareciam dormir. Tudo era negro, o que era normal porque estávamos no Inverno. A esplanada estava deserta e semeada de charcos: iluminavaa fracamente um único bico de gás.
Aqui, no Verão, é o Luna Parque, tem sempre muita gente... mas de Inverno não funciona... Aonde queres ir?
Ao tal café.
Não é bem um café, é uma tasca.
Vamos, vamos à tasca.
Passamos sob a abóbada da porta; mesmo em frente havia uma fila de casas, e num résdochão viase a luz por detrás de uma porta envidraçada. Assim que entrei vi logo que era a mesma casa de pasto onde há muito tempo tinha ido jantar com Gino e com minha mãe e onde Gino tinha dado o correctivo ao bêbado insolente. Não tinha mais de três ou quatro pessoas, que comiam coisas que haviam trazido embrulhadas em papel de jornal, bebendo vinho da casa. Estava lá mais frio do que na rua, o ar parecia impregnado de um cheiro a vinho, a chuva e a serradura; pensavase logo que os fogões estavam apagados. Sentámonos a um canto e ele pediu um litro de vinho.
Quem vai beber esse vinho todo? perguntei.
Porquê, tu não bebes?
Muito pouco.
Encheu o copo e bebeuo de um trago, mas com esforço e sem prazer. Este gesto confirmou o que eu já notara: ele fazia as coisas sem participação, só para o exterior, como se representasse um papel. Ficamos algum tempo em silêncio. Olhavame com os seus olhos intensos e brilhantes e eu examinava o que estava à minha volta. A recordação daquela longínqua noite em que eu ali fora com Gino e minha mãe assaltoume outra vez; não sei se sentia pena ou contrariedade ao recordála. Eu era então muito feliz; é verdade, mas tinha ainda tantas ilusões! Sentia no meu íntimo que era exactamente como se se abrisse uma gaveta fechada há muito tempo e que em vez das belas coisas que se esperava lá estivessem apenas se vissem alguns farrapos poeirentos e traçados. Tudo tinha acabado. Não só o meu amor por Gino, mas a minha adolescência e os meus sonhos desfeitos. O facto de me ter podido servir por cálculo e por manha das minhas recordações com o fim de comover o meu companheiro bastava para o demonstrar. Disse por acaso:
O teu amigo ao princípio pareceume antipático... Mas agora quase que simpatizo com ele... é tão alegre!
Ele respondeume com modo brusco:
Primeiro, aquele não é meu amigo. E depois é o menos simpático do mundo!
A violência da resposta deixoume estupefacta.
Achas? disselhe.
Ele bebeu e continuou:
Das pessoas que fazem espírito devia fugirse como da peste! Vulgarmente, debaixo daquele espírito todo nada existe... Se tu o visses no escritório... Assegurote que aí não diz graças!
Em que escritório está?
Não sei ao certo, um negócio de patentes.
Ganha muito dinheiro?
Muitíssimo.
Tem sorte!
Serviume vinho e eu perguntei:
Mas se o achas tão antipático, porque sais com ele?
É um amigo de infância respondeume de mau humor. Estudamos juntos... Os amigos de infância são todos assim.
Bebeu ainda e acrescentou:
No entanto, de certa maneira vale mais do que eu.
Porque?
Porque quando ele faz uma coisa, fála seriamente; ao passo que eu começo por querer fazêla e depois (aqui falou com uma voz tão falsa que me fez estremecer)... uma vez chegado o momento não a faço... Esta noite, por exemplo, quando me telefonou para me pedir para ir com ele engatar umas raparigas, como costuma dizerse, eu aceitei. Quando nos encontramos, desejei realmente ir para a cama contigo... Mas depois, logo que cheguei a tua casa, já nada me apetecia...
Já nada te apetece? repeti olhandoo.
Não... para mim não eras uma mulher, mas um objecto, não sei... uma coisa... Reparaste quando te torci o dedo até te magoar?
Sim.
Pois bem, fiz isso para me certificar de que existias de facto... mais nada... até com risco de te fazer sofrer.
Sim, eu existia e tu magoasteme muito disse sorridente.
Começava agora a compreender com alívio que não fora por antipatia que ele nada tinha querido de mim. Aliás nunca há coisa alguma de estranho nas pessoas. Desde que se procure compreendêlas, sabese que a sua conduta por mais insólita que pareça é sempre devida a um motivo perfeitamente plausível...
Então eu não te agradei? pergunteilhe.
Negou com um gesto de cabeça.
Tanto faz... tu ou outra... é a mesma coisa!
Pergunteilhe, passado um minuto de hesitação:
Dizme lá... tu não serás impotente, por acaso.
Nem por sombras.
Agora eu sentia um grande desejo de ter intimidades com ele, de transpor a distância que nos separava, de o amar e de ser amada por ele. Tinhalhe dito que não estava vexada pela sua recusa; na verdade, sentiame pelo menos mortificada e ferida no meu amorpróprio. Tinha a certeza de ser bela e sedutora: nenhuma razão verdadeira via para que ele não me desejasse.
Ouve propuslhe com simplicidade. Acabamos de beber e vamos depois para casa.
Não, é impossível.
Então isso quer dizer que não te agradei logo da primeira vez, quando me viste na rua.
Sim, procura compreender...
Sabia que não há homens que resistam a certos argumentos. “Vêse que não te agrado!” e, repetia eu com calma e com uma infinita amargura. E ao mesmo tempo estendi a mão e passeilha pela cara. Tenho a mão comprida, grande e quente; se é verdade que o carácter se pode ler nas mãos, o meu não deve ser vulgar em comparação com o de Gisela, que tem a mão vermelha, rude e disforme. Comecei a acariciarlhe com doçura as faces, a testa, a raiz dos cabelos, olhandoo com uma ternura insistente e cheia de desejo. Lembreime de que Astárito, no Ministério, tivera o mesmo gesto comigo e compreendi mais uma vez que estava realmente apaixonada por este rapaz, porque não havia dúvida de que Astárito me amava e tivera este mesmo gesto de amor. Ao sentir esta carícia, primeiro ficou impassível, depois o queixo começou a tremerlhe, o que nele era sintoma de perturbação, como pude observar mais tarde, e todo o seu rosto tomou uma expressão atrapalhada, extraordinariamente juvenil e quase infantil. Fezme pena e sentime contente por este sentimento, que me aproximava dele.
Mas que fazes? perguntoume como um garoto envergonhado. Estamos num sítio público!
Que me importa? disse eu tranquilamente. Sentia as faces a arder, apesar do frio que estava na casa, e fiquei admirada ao ver, a cada inspiração nossa, formarse uma nuvenzinha de vapor:
Dáme a tua mão! disselhe.
Deuma de má vontade e eu leveia à minha cara dizendo :
Não sentes como as minhas faces estão a arder?
Não disse palavra. Limitouse a olharme e o seu queixo tremia. Alguém bateu com a porta ao entrar e eu tirei a mão. Deu um suspiro de alívio e bebeu outro copo de um trago. Mas eu, assim que o cliente passou, estendi outra vez a mão e introduzia no casaco, desabotoando a camisa e pousandoa sobre o seu peito nu, junto do coração.
- Quero aquecer as mãos disselhe. E quero sentir como bate o teu coração.
Voltei a mão de costas e depois do lado da palma.
Tens a mão fria! disse olhandome.
Aqui vai aquecer disse sorrindo.
Conservei o braço estendido e devagarinho acariciava o seu peito e as suas costelas magras. Sentia uma grande alegria porque o sabia junto de mim e porque estava tão cheia de amor por ele que podia dispensar o seu. Olheio e disselhe com ar de fingida ameaça:
Sinto que daqui a pouco chegará o momento em que te irei beijar.
Não, não respondeu esforçandose por brincar também, mas no fundo assustado. Dominate.
Vamos embora daqui!
Vamos, se queres!
Pagou o vinho, que não acabou de beber, e saiu comigo Agora também ele parecia excitado à sua maneira; não como eu, por amor, mas por qualquer agitação do seu espírito que os acontecimentos da noite lhe tivessem provocado. Mais tarde, quando o conheci melhor, percebi que ficava sempre assim excitado quando qualquer coisa lhe permitia descobrir um aspecto ignorado do seu carácter, ou confirmar esse mesmo aspecto. Ele era muito egoísta, ou, por outra, preocupavase muito consigo próprio.
Aconteceme isto constantemente... começou a dizer como se falasse sozinho, enquanto eu o levava para a minha casa quase a correr penso fazer uma coisa, com grande entusiasmo, tudo me parece próprio, tenho a certeza de que agirei como tenciono, depois, no momento preciso, tudo se desmorona... deixo de existir, por assim dizer... ou talvez não exista de mim mais do que a pior parte da minha alma: fico frio, vazio, cruel... como quando te torci o dedo.
Monologava com ar concentrado e talvez até com uma amarga satisfação. Eu nem o ouvia, porque estava cheia de alegria: os meus pés voavam por entre os charcos. Respondilhe alegremente:
Já disseste essas coisas... mas eu, por minha vez, ainda não te contei o que sinto. Tenho um grande desejo de te apertar com força, muita força, de te dar o meu calor e de te obrigar a fazer o que não queres... não ficarei contente enquanto não o fizeres!
Nada respondeu. O que lhe dizia parecia que nem sequer lhe chegava aos ouvidos, tão ocupado estava a ruminar o que me dissera. De súbito passeilhe o braço à roda da cintura e pedilhe:
- Passa o teu braço à roda da minha cintura... Sim?
Pareceu não me ouvir. Então passeilho eu, como se faz quando se enfia um casaco. Recomeçamos a andar mal agarrados, porque estávamos cheios de roupa grossa de Inverno e quase não nos podíamos abraçar.
Quando passamos ao pé da vivenda do torreão, parei e disselhe:
Dáme um beijo!
Mais logo.
Dáme um beijo!
Voltouse e eu beijeio violentamente, passandolhe os braços à roda do pescoço. Ele ficou com a boca fechada, mas eu introduzi a língua por entre os seus lábios, depois entre os dentes, que acabaram por se descerrar. Não tive a certeza de o meu beijo ter sido retribuído; mas como já disse, pouco me importava. Separámonos e vilhe à volta da boca uma grande mancha de bâton, enviesada, que tornava cômica e esquisita a sua cara séria. Desatei a rir, toda contente.
Porque te ris? murmurou.
Hesitei, depois preferi nada lhe dizer, porque me divertia vêlo correr atrás de mim com um ar muito grave e a cara toda pintada sem que soubesse.
Por nada! disselhe. Porque estou contente... não faças caso.
Depois, para culminar a minha felicidade, deilhe outro beijo rápido nos lábios.
Quando chegamos à minha casa, já lá não estava o automóvel.
O João Carlos foise embora! disse com ar aborrecido. Sabe Deus o que vou ter que andar para voltar para casa.
Não me magoou este tom pouco gentil, porque de futuro nada me devia magoar. Os seus defeitos, como acontece quando se está apaixonado, apresentavamseme com um aspecto singular que os tornava agradáveis. Disselhe, encolhendo os ombros:
Há muitos eléctricos de noite! Aliás, se quiseres podes dormir comigo.
Não, isso não! respondeu logo.
Subimos a escada. Quando chegamos ao vestíbulo, leveio para o meu quarto e fui espreitar à sala grande. Estava às escuras, salvo junto da janela, iluminada por um bico de gás da rua que incidia sobre a máquina de costura e a cadeira. Minha mãe devia ter ido deitarse. Quem sabe se teria visto o João Carlos e a Gisela e se teria falado com eles? Fechei a porta e entrei no quarto. Jaime rondava nervosamente de um lado para o outro, entre a cómoda e a cama:
Ouve começou a dizer , é melhor irme embora!
Fingindo não ter ouvido, tirei o casaco e fui pendurálo no bengaleiro. Sentiame tão contente que não resisti a perguntarlhe com vaidade de proprietária:
Que tal achas o meu quarto? Não é confortável?
Olhou à volta e fez uma careta que não compreendi. Segureilhe a mão, obrigueio a sentarse na cama e disselhe:
Agora deixame fazer.
Despilhe o sobretudo, depois o casaco e pendureios no bengaleiro. Sem pressa, desfiz o nó da gravata e tireilha, assim como a camisa, que pus em cima de uma cadeira. Em seguida ajoelheime e, pondo o seu pé no meu regaço, como fazem os sapateiros, tireilhe os sapatos e as meias e beijeilhe os pés. Começara a agir com método e sem pressa, mas à medida que lhe tirava a roupa não sei que delírio de humildade e de adoração se apoderou de mim. Talvez o mesmo sentimento que por vezes me assaltava ao prostrarme na igreja. Era a primeira vez que o sentia por um homem, e isso tornavame feliz, porque sabia que era esse o verdadeiro amor, livre de toda a sensualidade e de todo o vício. Quando ficou nu, aperteio de encontro às minhas faces e aos meus cabelos, com força, fechando os olhos. Ele deixavame fazêlo com uma expressão admirada, que me agradava. Depois levanteime e comecei a despirme à pressa, deixando cair a roupa no chão. Ficou friorentamente sentado na beira da cama e não levantava os olhos. Aproximeime por trás dele e, animada por uma violência alegre e cruel, puxeio e deiteio de costas com a cabeça sobre a almofada. Tinha um corpo longo, magro e branco; os corpos têm a sua expressão como os rostos: o seu tinha uma expressão casta e juvenil. Estendime ao seu lado, o meu corpo contra o dele e ao pé da sua magreza, da sua graciosidade, da sua frieza e da sua brancura tive a impressão de ser muito ardente, muito morena, muito carnuda e muito forte. Aperteime com violência contra ele, comprimi o meu ventre contra os ossos das suas ancas, estendi os braços ao longo do seu peito, o meu rosto contra o seu e esmaguei os meus lábios contra a sua orelha. Pareciame que desejava não tanto amálo como envolvêlo no meu corpo como se fosse um quente cobertor e comunicarlhe o meu ardor. Estava deitado de costas, mas conservava a cabeça um pouco levantada e os olhos abertos, como se quisesse observar tudo o que eu fazia. O seu olhar atento rasava as minhas costas e inspiravame não sei que malestar e que tormento. No entanto, no primeiro impulso continuei durante algum tempo sem fazer caso disso. De repente sussurreilhe:
Não te sentes melhor agora?
Sim respondeume num tom neutro e distante.
Espera! disselhe eu.
Mas na altura em que o ia estreitar outra vez com um novo ardor, tive novamente a sensação do seu olhar fixo e frio estendendose ao longo das minhas costas, como um fio de aço molhado, e de repente sentime perdida e envergonhada. O meu ardor apagarase; lentamente afasteime e deiteime de costas, longe dele. Tinha feito um grande esforço de amor; tinha posto neste esforço todo o entusiasmo de um inocente, de um velho desespero; o brusco sentido da inutilidade deste esforço encheume os olhos de lágrimas e escondi a cara com um braço para que não visse que eu chorava. Pareciame que me tinha enganado, que nem o podia amar, nem ser amada por ele. E pensava ainda mais, que ele me via e me julgava sem ilusões, tal como eu era na realidade. Agora eu sabia que vivia numa espécie de bruma que eu própria criara para não me poder reflectir na minha consciência. Ele, com os seus olhares, dissipara essa bruma e pusera novamente o espelho diante dos meus olhos. E eu viame tal como era, na verdade, ou, melhor, tal como devia ser para ele, porque de mim eu nada pensava, nada sabia, como já o expliquei: quase não acreditava na minha existência. Acabei por lhe dizer:
Vaite embora.
Porquê? disseme apoiandose no cotovelo e olhandome com ar embaraçado. Que aconteceu?
É melhor que te vás embora! disselhe com calma sem tirar o braço da cara. Não julgues que me ofendeste... Mas sei que nada sentes por mim, e então...
Não acabei, mas abanei a cabeça. Não respondeu; sentio mexerse e sair da cama; vestiase. Uma dor aguda trespassoume a alma como se me tivessem ferido profundamente com uma lâmina fina e cortante. Sofria por ouvilo vestirse; sofria com a ideia de que daí a um momento ele se iria embora para sempre e eu nunca mais o voltaria a ver; sofria por estar a sofrer.
Vestiuse devagar, esperando talvez que eu o chamasse. Lembrome de que um instante julguei poder prendêlo excitando o seu desejo. Quando me estendera ao seu lado, tinha puxado a roupa da cama para cima. Com uma coquetterie da qual sentia o desespero e a tristeza, mexi a perna, de maneira que a roupa escorregasse ao longo do corpo. Nunca me oferecera desta maneira. Durante uns instantes, deitada de costas, as pernas afastadas e o braço sobre os olhos, tive como que a ilusão física das suas mãos sobre os meus ombros e do seu hálito na minha boca. Mas quase imediatamente ouvi a porta fecharse.
Fiquei como estava, estendida, imóvel. Creio que passei, sem dar por isso, da dor para uma espécie de semisonolência, depois ao sono. Acordei ainda de noite e reparei que estava só. Durante este primeiro sono, apesar da amargura da separação, o sentido da sua presença ficarame. Não sei como, voltei a adormecer.
No dia seguinte surpreendime por me sentir lânguida, melancólica, como se tivesse saído de uma longa doença. Sou de carácter alegre, e como em mim a alegria vem da saúde e da robustez do corpo, ela foi sempre mais forte do que todas as adversidades, se bem que me tenha acontecido por vezes sentirme alegre sem que o queira em circunstâncias em que me deveria sentir bem triste. Assim raro era o dia em que logo que me levantava não sentia desejo de cantar ou de contar alguma graça à minha mãe. Mas, nessa manhã, mesmo esta involuntária alegria me faltava; sentiame apagada e dolente, sem desejo de viver as doze horas de vida que o dia me oferecia. Como minha mãe reparasse logo nesta mudança de humor, disselhe que tinha dormido mal.
Era verdade, e esse fora um dos numerosos efeitos da profunda mortificação que me trouxera a recusa de Jaime. Já o disse; há muito tempo que não me importava de ser o que era: não achava em mim própria qualquer razão para não o ser. Mas esperava amar e ser amada; ora, a recusa de Jaime, apesar das razões complicadas que ele me dera, parecia não poder ser atribuída senão ao meu ofício, o qual por este motivo se me tornara bruscamente odioso, intolerável.
O amorpróprio é um curioso animal que pode não acordar aos mais cruéis golpes e despertar ferido de morte por uma simples arranhadura. Havia uma recordação entre todas que me afligia e me enchia de amargura e de vergonha: - Que tal achas este quarto? perguntaralhe. Não é confortável?
Lembrarame de que não respondera, mas olhara tudo à sua volta com uma careta que eu de momento não compreendi. Agora sabia que tinha sido uma careta de desagrado. Tinha com certeza pensado: “O quarto de uma prostituta!” Quando recordava isto, o que mais me afligia era o ter pronunciado esta frase com uma ingênua satisfação. Deveria ter pensado que a uma pessoa como ele, tão fina, tão sensível, o meu quarto devia parecerlhe um antro sórdido, duplamente feio, pelos seus móveis tão modestos e pelo uso que eu lhe dava. Bem desejei nunca ter pronunciado esta frase infeliz, mas agora era tarde. Nada havia a fazer! Davame a sensação de uma prisão da qual eu não podia fugir de maneira alguma. Esta frase era eu própria, inalterável, de futuro, como no que eu me tornara por vontade. Esquecêla ou ter a ilusão de não a ter dito era o mesmo que esquecerme de mim própria ou querer ter a ilusão de que não existia.
Estas reflexões intoxicavamme como um veneno lento que lentamente seguira o seu caminho nefasto por entre o sangue das minhas veias. Habitualmente, de manhã, costumava saltar da cama, obedecendo a uma espécie de vontade independente. Mas nesse dia foi exactamente o contrário que aconteceu: a manhã passou, chegou a hora do almoço e eu nem sequer ainda me tinha mexido. Sentiame inerte, impotente, entorpecida e ao mesmo tempo dorida como se esta imobilidade me causasse uma fadiga desesperada. Tinha a impressão de ser um desses barcos apodrecidos que ficam amarrados em qualquer baía pantanosa, com o ventre cheio de água fétida e negra: se alguém sobe para eles, as pranchas apodrecidas cedem logo e a barca, que talvez ali estivesse há anos, afundase num instante. Não sei quanto tempo fiquei neste estado enrolada na roupa da cama, os olhos dilatados, o lençol puxado até ao nariz. Ouvi tocar o meiodia nos sinos, depois a uma, as duas, as três, as quatro horas. Tinha fechado a porta à chave e de vez em quando minha mãe, inquieta, vinha baterme à porta. Respondialhe que já me levantava e que me deixasse em paz. Quando começou a anoitecer, procurei ser corajosa, fiz um esforço, que me pareceu sobrehumano, atirei com a roupa e levanteime da cama. Sentia os membros inchados de inércia. Laveime, vestime, arrastandome de um lado para o outro no quarto. Em nada pensava; sabia somente, não no meu espírito, mas em todo o meu corpo, que pelo menos nesse dia não desejava ir à caça dos meus amantes costumados. Depois de vestida, fui ter com minha mãe e disselhe que passaríamos a noite juntas. Passearíamos pelo centro da cidade e à noite iríamos tomar um aperitivo a um café.
A alegria de minha mãe, que não estava habituada a este género de convites, irritoume não sei porquê: mais uma vez tive ocasião de observar como as suas faces estavam flácidas e gordas e como os olhos empapuçados tinham um luzir equívoco e falso. Mas refreei a tentação de lhe dizer alguma indelicadeza que teria destruído a sua alegria e fui sentarme à mesa da sala grande, à espera que ela se vestisse. A luz branca dos anúncios entrava pela janela sem cortinas, iluminava a máquina de costura e estendiase pela parede. Baixei os olhos sobre a mesa e vi as figuras coloridas do jogo de paciência com que minha mãe enganava o aborrecimento das suas longas noites. Então, bruscamente, tive uma sensação extraordinária: pareciame que era eu minha mãe em carne e osso, esperando que sua filha Adriana, no quarto ao lado, acabasse o encontro com o seu amante de passagem. Esta impressão provinha sem dúvida de eu me ter sentado no seu lugar à mesa, em frente das suas cartas. Os lugares às vezes dãonos destas sugestões: mais de uma pessoa, ao visitar uma prisão, experimenta o frio, o desespero, o sentimento de isolamento do prisioneiro que há muito tempo ali definha. Mas a sala não era uma prisão e minha mãe não sofria de dores tão concretas e fáceis de imaginar. Ela limitavase a viver como sempre vivera. Todavia, talvez por há pouco ter sentido contra a sua pessoa um movimento de hostilidade, esta percepção da sua vida operara em mim uma espécie de reencarnação. As pessoas boas, para desculparem alguma má acção, dizem por vezes: “Põete no seu lugar”. Pois bem! Acabava de me pôr no lugar de minha mãe a ponto de ter a sensação de ser ela própria.
Erao... mas com a consciência de o ser, coisa que não lhe acontecia, de contrário já se teria revoltado de uma maneira ou de outra. Sentiase flácida, envelhecida, enrugada; compreendi o que é a velhice, que não só muda o aspecto do corpo, mas tornao inepto e inerte. Como era minha mãe? Por vezes tinhaa visto quando se despia, e reparava, sem pensar, nos seus seios negros e murchos, no ventre amarelo e encolhido. Agora esses seios, que me tinham amamentado, esse ventre, de onde eu saíra, sentiaos tanto em mim que quase julgava poder tocarlhes, causavamme o desgosto, a pena impotente que ela devia ter sentido ao ver a mudança do seu corpo. A juventude e a beleza tornam a vida suportável e por vezes alegre. Mas quando já não existem? Senti um calafrio acordarme deste pesadelo e feliciteime por ser na realidade a bela e jovem Adriana e não a sua mãe, que não era nova nem bela, nem nunca mais o seria.
Mas ao mesmo tempo, como um mecanismo parado que começa lentamente a moverse, começaram a formigar no meu espírito todas as ideias que lhe deviam passar pela cabeça enquanto esperava que eu aparecesse na sala. Não é difícil imaginar o que pode pensar uma pessoa como minha mãe em semelhantes circunstâncias; somente, na maior parte das pessoas, o facto de imaginar nasce da reprovação e do desprezo e em vez de imaginar elas constroem um fantoche sobre o qual vertem a sua hostilidade. Mas eu, que gostava de minha mãe e que só me punha no seu lugar por amor, sabia que naqueles momentos os seus pensamentos não eram nem interessantes, nem assustadores, nem vergonhosos, nem sequer relacionados de qualquer maneira com o que eu fazia e com quem o fazia. Sabia, pelo contrário, que as suas ideias eram insignificantes e ocasionais como era natural de uma pessoa como ela, pobre, velha, ignorante, e que durante toda a vida não tinha pensado dois dias a seguir da mesma maneira sem receber da necessidade o mais peremptório desmentido. As grandes ideias e os grandes sentimentos sejam tristes e negativos precisam de protecção; são plantas delicadas que levam tempo a criar raízes e a fortificar. Minha mãe nunca tinha podido cultivar nem no seu espírito, nem no seu coração, outra coisa que as maldosas e efêmeras ervas das reflexões e das preocupações e dos ressentimentos quotidianos, enquanto eu, no quarto ao lado, me dava aos homens por dinheiro. Assim, diante da sua “paciência”, podiam continuar a rolar na sua cabeça sempre as mesmas imbecilidades (se é justo chamar assim às coisas que nela tinham vivido durante tantos anos): o preço dos alimentos, a costura que havia para fazer e outras coisas parecidas. Talvez agora, ao ouvir o som dos sinos da igreja vizinha, ela por vezes pensasse sem ligar grande importância ao facto: “Desta vez a Adriana leva mais tempo que de costume.” Ou quando ouvia abrir a porta e falar no vestíbulo: “A Adriana acabou.” Que mais? Com estas ideias na cabeça eu era a minha mãe completa: corpo e alma. E justamente porque conseguira ser como ela de uma maneira tão completa tinha a impressão de a amar outra vez , e mais do que dantes.
Acordei deste sonho com o ruído da porta que se abria. Minha mãe acendeu a luz e perguntoume:
Que fazes aí às escuras?
Deslumbrada pela luz, levanteime e olheia. Tinha mudado de facto; reparei logo. Não tinha chapéu, porque nunca o usara, mas vestira um vestido preto de feitio complicado. Sobraçava uma grande mala de couro preto com fechos de metal amarelo e trazia ao pescoço uma pele de gato bravo. Molhara os seus cabelos cinzentos e pentearaos com cuidado, prendendoos num rolo na nuca com numerosos ganchos. Até tinha passado um pouco de pó de arroz rosado sobre as faces, dantes áridas e magras e agora cheias e coradas. Sem querer, sorri por vêla tão aperaltada e tão solene. E foi no meu tom afectuoso de sempre que lhe disse:
Vamos!
Sabia que ela gostava de passear à hora de maior movimento pelas ruas principais, que tinham as lojas mais bonitas da cidade. Assim, tomamos um eléctrico e descemos a Rua Nacional. Minha mãe costumava levarme a passear nessas ruas quando eu era garota. Começava na Praça do Hexaedro pelo passeio da direita. Lentamente, examinando as montras uma por uma com atenção, chegava à Praça de Veneza. Ali, sempre observando tudo com minúcia e puxandome pela mão, passava para o outro passeio e voltava para a Praça do Hexaedro. Então, sem ter comprado um alfinete nem se ter atrevido a pôr pé num dos numerosos cafés da rua, traziame para casa, sonolenta e cansada. Lembravame de que esses passeios não me agradavam, porque, ao contrário de minha mãe, eu teria desejado entrar, comprar e trazer para casa todas as belas coisas expostas atrás dos vidros brilhantemente iluminados. Mas depressa aprendera que éramos pobres e não manifestava de forma alguma os meus sentimentos. Uma vez só, não me lembro porquê, tive, como costuma dizerse, uma birra. E percorremos a rua do princípio ao fim, minha mãe puxandome por um braço e eu resistindo com todas as forças, chorando e gritando... Por fim, em vez do objecto desejado, minha mãe deume um par de tabefes e a dor da bofetada fez esquecer a da renúncia.
Encontreime de novo pelo braço da minha mãe, no mesmo passeio da mesma Praça do Hexaedro, como se os anos não tivessem passado. Via as pedras dos passeios, onde formigavam pés calçados com botas, grossos sapatos, sandálias, saltos altos, saltos baixos; via os transeuntes que subiam e desciam a rua, a dois e dois, em grupos de homens, de mulheres e de crianças ou ainda pessoas sós, umas lentas outras apressadas, todas iguais, justamente porque queriam parecer diferentes, com os mesmos fatos, os mesmos chapéus, as mesmas caras, os mesmos olhos, as mesmas bocas. Via as sapatarias, as joalharias, as relojoarias, as livrarias, as floristas, as lojas de fazendas, os luveiros, os cafés e os cinemas, os bancos. Revia as janelas iluminadas das belas casas, com pessoas lá dentro a andar de um lado para o outro ou sentadas à mesa a trabalhar, os anúncios luminosos, sempre os mesmos. Num canto da rua, o vendedor de jornais, os vendedores de castanhas, os mendigos: o cego com a cabeça encostada à parede, a bengala branca estendida e os óculos pretos; mais abaixo a mulher quase velha com uma chaga no seio, ainda mais abaixo o idiota com aquele coto amarelo luzidio como um joelho e que estendia à caridade. Ao encontrarme nesta rua, no meio de todas as coisas que me eram familiares, experimentava uma fúnebre impressão de imobilidade, que me arrepiou da cabeça aos pés, e durante um momento tive a sensação de estar nua, como se um sopro de terror se tivesse infiltrado por entre a minha roupa e a minha pele. O aparelho de T. S. F. de um café transmitia a voz ruidosa e apaixonada de uma mulher que cantava. Era no ano da guerra da Etiópia e ela cantava Linda Caránha Preta.
Como era natural, minha mãe não se apercebia dos meus sentimentos; de resto eu não os deixava transparecer. Como já disse, tenho um aspecto tão doce e tão fleumático que é raro as pessoas adivinharem o que passa pela minha cabeça. Num certo momento, no entanto, sentime comovida (a mulher acabava de cantar uma cançoneta sentimental), os lábios começaramme a tremer e disse a minha mãe:
Lembraste de quando me fazias subir e descer esta rua para ver as montras?
Lembrome respondeu ela , mas nesse tempo estava tudo mais barato... Esta mala, por exemplo, compreia por metade do preço de agora!
Passamos da montra de uma loja de malas para a de uma joalharia. Minha mãe parou a contemplar as jóias e disse com ar extasiado:
Olha aquele anel... Sabe Deus o que custa!... E esta pulseira... toda de ouro maciço! Eu nunca tive a paixão das pulseiras ou dos anéis... mas colares, sim! Tinha um colar do coral... mas tive de o vender.
Quando?
Oh! Há muitos anos!
Não sei porquê, lembreime de que com o dinheiro ganho com a minha profissão não tinha ainda podido comprar o mais miserável anelzito. E declarei a minha mãe:
Sabes... Decidi que daqui em diante mais ninguém traria para casa. Acabou.
Era a primeira vez que eu aludia ao meu ofício de uma forma tão explícita. A cara dela teve uma expressão que eu de momento não consegui interpretar, e respondeu:
Já to disse muitas vezes... Farás aquilo que entenderes. Se estiveres contente, eu também estou.
No entanto, não parecia satisfeita.
Recomeçaremos a vida que levávamos dantes continuei, serás obrigada a voltar a cortar e a coser as tuas camisas.
Já o diz durante tantos anos! disse.
Não teremos tanto dinheiro como agora insisti um pouco cruelmente. Temos levado uma rica vida. Por mim ainda não sei o que farei.
Que vais fazer? perguntoume minha mãe com uma expressão de esperança.
Não sei respondi. Recomeçarei a ser modelo... ou talvez te ajude às camisas...
Oh! Mas como me poderás ajudar?... disse ela, desencorajada.
Ou então arranjo um lugar de criada continuei. - Que queres que faça?
Agora minha mãe tinha uma cara amarga e triste como se sentisse bruscamente toda a gordura dos últimos anos abandonála, como as folhas mortas que se desprendem das árvores aos primeiros frios do Outono. Disse com a mesma convicção:
Farás o que quiseres repito. Contanto que estejas contente!
Compreendia que dois sentimentos opostos se debatiam dentro dela: o seu amor por mim e o seu desejo de uma vida confortável. Fezme pena. Teria preferido que tivesse tido a coragem de sacrificar deliberadamente um dos dois sentimentos e fosse toda amor ou toda interesse. Mas é raro que isso aconteça: passamos toda a vida a anular com a acção dos nossos vícios o efeito das nossas virtudes.
Eu dantes não estava satisfeita e agora também não irei estar. Somente não tenho coragem para continuar esta vida.
Depois destas palavras nada mais dissemos. Minha mãe estava com uma cara abatida; a sua magreza de outrora, a sua pele esticada, pareciam desenharse já de novo debaixo do seu ar de prosperidade. Examinava as montras com o mesmo ar minucioso, as mesmas longas contemplações, mas sem alegria, sem curiosidade, maquinalmente, como se pensasse noutra coisa. Talvez nada visse do que olhava, ou, melhor, não visse os objectos expostos, mas uma máquina de costura, com um pedal infatigável e uma agulha que subia e descia como louca, pedaços de tecido meio confeccionados sobre a mesa da costura, bocados de papel preto nos quais embrulhava o trabalho acabado para entregar na cidade aos clientes. Pela minha parte, estes fantasmas não se interpunham entre os meus olhos e a montra. Via tudo muito bem e pensava de uma maneira clara. Inspeccionava os objectos um por um, vendo a etiqueta com o preço, e dizia a mim própria que podia muito bem não querer continuar o meu ofício (como de facto não queria), mas que na realidade não podia ter outro. Alguns objectos que via nas montras poderia vir a têlos se economizasse um pouco; no dia em que voltasse aos meus anteriores trabalhos seria preciso renunciar a estas coisas para sempre; recomeçaria para mim e para minha mãe a nossa vida de outrora, restrita, sem conforto, cheia de renúncias e de recalcamentos, de sacrifícios inúteis e de economias sem resultado. Actualmente podia aspirar a uma jóia se encontrasse alguém que ma pudesse oferecer. Mas se voltasse à minha vida miserável, as jóias tornarseiam para mim tão inacessíveis como as estrelas do céu. Assaltoume um violento desagrado por essa vida passada, que me pareceu estupidamente desesperante, e senti como eram absurdos os motivos que me tinham levado a pensar em mudar de vida. Porque um estudante por quem eu tinha ficado embeiçada não me tinha querido! Porque se me tinha metido na cabeça que ele me desprezava? Em suma, só porque eu não tinha querido ser o que era. Compreendi que era unicamente orgulho, e não podia por simples orgulho voltar, e sobretudo obrigar minha mãe a voltar, à nossa miserável situação de antigamente. Vi de súbito a vida de Jaime, que se aproximara da minha e nela se fundira, divergir numa direcção diferente e a minha continuar pela estrada que eu tinha escolhido. Se encontrasse alguém que gostasse de mim e me desposasse, então sim, nem que fosse pobre! Mas por capricho extravagante não valia a pena! A esta ideia, uma grande calma, feita de alívio e doçura, invadiume a alma. Era uma sensação que frequentemente experimentava de cada vez que não só aceitava o destino que a vida me impusera, mas também quando ia ao meu encontro. Era o que era: devia ser isto e não outra coisa. Podia ser uma boa esposa, por muito estranho que pareça, ou uma mulher que se dá por dinheiro, mas nunca uma desgraçada que se condenou a uma vida de miséria apenas para satisfação do seu orgulho. Por fim sorri, reconciliada comigo própria.
Estávamos em frente de uma loja de novidades para senhora. Minha mãe disseme:
Olha que lindo lenço. De um lenço assim é que eu precisava.
Tranquila e serena, levantei os olhos para ver o lenço que minha mãe indicava. Era realmente bonito, preto e branco, com ramos e pássaros. Da porta da loja podia verse sobre o balcão uma caixa com divisões cheia de lenços iguais e desdobrados. Pergunteilhe:
Gostas do lenço?
Sim. Porquê?
Vais têlo, mas, para começar, dáme a tua mala e toma lá a minha.
Ela nada percebia e olhavame de boca aberta. Sem falar trocamos as malas, abri o fecho, segurandoo com dois dedos, e, devagar, com o passo de quem quer comprar, entrei na loja. Minha mãe seguiume. Continuava a não compreender, mas não ousava perguntar.
Queríamos ver lenços disse eu à empregada aproximandome da caixa das divisões.
Estes são de seda, estes de caxemira, estes de lã... estes são de algodão... dizia a empregada estendendoos à minha frente.
Aproximeime o mais possível do balcão, com a mala ao nível da barriga, e comecei a examinar, só com uma das mãos, os lenços, abrindoos e voltandoos para a luz para ver melhor o desenho. Havia pelo menos uma dúzia deles, todos parecidos. Consegui que um ficasse caído de maneira que uma grande ponta pendesse para o lado de fora do balcão. Depois disse à empregada:
Gostaria de ver alguns de tons mais vivos.
Temos um artigo melhor, mas mais caro! disse ela.
Mostreme.
A empregada voltouse para puxar uma caixa de riscas. Era tempo; afasteime um pouco do balcão e abri a mala; puxar a ponta do lenço e tornar a encostarme ao balcão foi obra de um instante.
Entretanto, a empregada trouxera a caixa. Pousoua sobre o balcão e mostroume outros lenços maiores e mais bonitos. Eu examinavaos fazendo observações sobre as cores e os desenhos e mostrandoos a minha mãe, que tinha visto tudo e me respondia com acenos de cabeça, mais morta do que viva.
Quanto custam? perguntei.
A empregada disse o preço e eu respondi num tom desgostoso:
Tinha razão; são muito caros... pelo menos para mim. Obrigada.
Saímos da loja e dirigimonos rapidamente para uma igreja próxima, porque eu receava que a empregada desse pelo roubo e nos perseguisse por entre a multidão. Minha mãe, que me dava o braço, olhava em volta com ar assustado, como um bêbado que pergunta a si mesmo se não serão os objectos que estão bêbados porque os vê vacilar e baralharemse. Não pude deixar de sorrir da sua atrapalhação. Não sabia porque tinha roubado o lenço: a coisa, de resto, não tinha importância, porque eu já tinha roubado a caixa de pó de arroz de Gino e porque nas coisas deste gênero o primeiro passo é que custa. Mas experimentava o mesmo prazer sensual e começava a compreender porque havia tanta gente que roubava. Perto da igreja disse a minha mãe:
Queres entrar por um instante?
Como quiseres! respondeume em voz baixa.
Entrámos: era uma igrejinha branca, redonda, à qual uma colunata disposta em volta do pavimento dava a impressão de uma sala de baile. Levantei os olhos e vi que a cúpula estava cheia de frescos representando anjos de asas abertas. Tive a convicção de que estes belos anjos me protegeriam e que a empregada só se aperceberia do roubo à noite. O silêncio, o cheiro do incenso, a sombra, o recolhimento da igreja, davamme segurança, depois do tumulto e da luz violenta da rua. Entrara depressa, arrastando um pouco minha mãe, mas acalmeime logo e o medo desapareceu. Minha mãe fez menção de abrir a minha mala que ainda conservava e eu troqueia pela sua, dizendolhe:
Põe o lenço!
Ela abriu a mala e pôs na cabeça o lenço roubado. Molhamos os dedos em água benta e fomonos sentar na primeira fila de bancos em frente do altarmor. Ajoelheime, enquanto minha mãe ficava sentada com as mãos sobre os joelhos, a cara escondida pelo lenço demasiadamente grande. Percebi que ela estava perturbada e não pude deixar de comparar a sua perturbação com a minha calma. Estava com uma disposição de espírito doce e conciliadora; não sentia remorsos e estava muito mais próxima da religião do que quando não praticava acções condenáveis e trabalhava cerrando os dentes para ganhar a vida. Lembreime do frêmito de desalento que momentos antes sentira ao olhar as ruas cheias de gente e sentime reconfortada à ideia de que havia um Deus que via claro no meu íntimo: verificava que em mim nenhum mal havia, que pelo único facto de viver estava inocente, como todos os homens de resto. Sabia que este Deus não estava lá para me condenar ou julgar, mas para justificar a minha existência, que só podia ser boa, visto que só dependia dele. Rezando maquinalmente e pronunciando as palavras da oração, olhava o altar sobre o qual, atrás da chamazinha trêmula dos círios, entrevia um quarto com uma imagem que me parecia ser a da Virgem e sentia que entre mim e a Virgem a questão não era saber se eu devia viver desta ou daquela maneira, mas, mais radicalmente, se me devia considerar encorajada a viver ou não. E bruscamente tive a impressão de que este encorajamento partia da silhueta escura que estava atrás dos círios do altar sob a forma de um brusco calor que me envolveu o corpo todo.
Minha mãe ficara toda trêmula e assustada, com o seu lenço novo que lhe fazia um bico por cima do nariz. Quando a olhei, não pude deixar de sorrir com amizade.
Reza um bocadinho murmureilhe. Verás que te faz bem.
Ela estremeceu, hesitou, depois ajoelhouse e pôs as mãos como que de má vontade. Sabia que ela não queria acreditar na religião, que lhe parecia um falsa consolação destinada a acalmála e a fazerlhe esquecer as durezas da vida. Nem ao menos a vi mover maquinalmente os lábios, e a sua cara cheia de desconfiança e de mau humor fezme sorrir de novo. Teria desejado sossegála, dizerlhe que mudara de ideias, que não devia ter receio, que não seria obrigada a coser à máquina outra vez. Havia qualquer coisa de infantil na sua má disposição: era como uma criança a quem se recusa um bolo que se tinha prometido, e esta aparência pareciame o aspecto fundamental da sua conduta para comigo. Se assim não fosse, eu teria de pensar que ela desejaria que eu continuasse com o meu ofício para usufruir daí o seu conforto; e eu sabia, no fundo, que não era verdade.
Quando acabou de rezar, persignouse com ar seco e despeitado para marcar bem que o fazia só para me ser agradável. Saímos. À porta tirou o lenço, dobrouo cuidadosamente e meteuo na mala. Voltamos à Rua Nacional e encaminheime para uma pastelaria.
Vamos tomar um vermute! disselhe.
Não, não, não vale a pena! respondeu com uma voz em que a apreensão e o prazer se misturavam.
Fazia sempre a mesma coisa; por um velho hábito, receava sempre que eu fizesse gastos excessivos.
Ora! disselhe. Por um vermute!
Calouse e seguiume.
Era uma velha pastelaria com um balcão com embutidos de caju luzidio e muitas vitrinas cheias de lindas caixas com bombons. Sentámonos num canto e pedi dois vermutes. O criado intimidou minha mãe, que baixou os olhos, imóvel e envergonhada, enquanto eu dava as competentes ordens. Quando trouxeram os vermutes, ela bebeu um pequeno gole, tornou a pôr o copinho em cima da mesa, olhoume e pronunciou com gravidade:
É bom.
É vermute disse eu.
O criado trouxe uma grande caixa de vidro e metal com bolos. Abria e disselhe:
Come um bolinho!
Não, não, por favor...
Pelo menos um...
Tiravame o apetite.
Um bolo só!...
Escolhi um folhado com creme e oferecilho dizendo:
Come este, que é leve.
Ela mordicouo com precaução, olhando para o sítio que tinha mordido.
É realmente muito bom! disse por fim.
Come outro disselhe.
Desta vez não se fez rogada e comeu o segundo bolo. Acabado o vermute, ficámos silenciosas, contentandonos em olhar o vaivém de clientes na pastelaria. Compreendia que minha mãe se sentia contente por estar sentada neste canto com um vermute e dois bolos no estômago, que as idas e vindas desta gente lhe despertavam a curiosidade e a divertiam e que nada tinha para me dizer. Era provavelmente a primeira vez que ela ia a um lugar destes.
Uma rapariga entrou. Trazia pela mão uma garotinha com uma gola de pele branca, um vestido curto, meias e luvas brancas. A mãe escolheu um bolo e deuo à garota. Eu disse a minha mãe:
Quando eu era pequena, nunca me trazias às pastelarias!
Como podia eu? respondeu.
Agora disse tranquilamente , quem te leva às pastelarias sou eu.
Calouse, depois disseme com ar penalizado:
Estás a censurarme por ter vindo... mas eu não queria!
Pousei a minha mão sobre a sua e disselhe:
Não te censuro... Pelo contrário, estou bem contente por te ter trazido... A avó nunca te levava às pastelarias?
Ela abanou a cabeça:
Até aos dezoito anos nunca saí do meu bairro.
Então já vês disselhe. Numa família é preciso que haja alguém que faça certas coisas, um dia ou outro. Tu nunca o fizeste, tua mãe também não, nem provavelmente a mãe da tua mãe... então façoas eu... Não pode continuar tudo eternamente da mesma maneira.
Nada disse e passamos ainda um quarto de hora a observar as pessoas. Depois abri a mala, tirei a cigarreira e acendi um cigarro. É frequente as mulheres como eu fumarem nos lugares públicos para chamarem a atenção dos homens. Mas eu naquela altura não pensava em procurar amantes; tinha até decidido deixar de o fazer. Apeteciame fumar, mais nada. Introduzi o cigarro nos lábios e deitei uma baforada pelo nariz, conservando o cigarro entre os dedos e olhando em volta. Mas devia haver nos meus gestos, sem que eu desse por isso, qualquer coisa de provocante, porque vi logo alguém que se encontrava junto do balcão e segurava uma chávena de café que se preparava para beber suspender o movimento e olharme fixamente. Era um homem de quarenta anos, baixo, de cabelo encaracolado, olhos salientes e maxilares duros. Tinha o pescoço tão curto que quase não existia. Como um touro que vê o vermelho e pára a olhar de cabeça baixa, assim ele me olhava com a chávena na mão. Estava vestido elegantemente, com um sobretudo que valorizava os seus largos ombros. Sabia que com aquele aspecto bastava que eu o olhasse para que as veias do pescoço lhe inchassem e a cara ficasse vermelha. Mas não tinha a certeza de que ele me agradasse. Depois senti como que uma seiva secreta saindo de uma casca rugosa, sob a forma de mil germezinhos ternos; o desejo de o excitar espicaçavame o corpo todo e obrigavame a deixar a minha atitude reservada. Justamente uma hora antes eu tinha decidido deixar esta vida. Pensava que realmente nada havia a fazer... era mais forte do que eu! Mas pensavao alegremente. Depois de sair da igreja, tinhame reconciliado com a minha sorte, fosse ela qual fosse, e sentia que esta aceitação valia mais para mim que qualquer nobre recusa. E assim, passados uns momentos de reflexão, levantei os olhos para o homem. Ainda me olhava, apalermado, com a chávena na sua mão peluda e os olhos bovinos fixos em mim. Então, tomei, por assim dizer, o meu impulso, e com toda a malícia de que era capaz dispareilhe um longo olhar cálido e sorridente. Recebeuo em cheio e, como já tinha previsto, congestionouse. Bebeu o café, pôs a chávena no balcão e, muito direito no seu sobretudo apertado, foise embora, para pagar na caixa. A porta olhou para trás e fezme claramente e com ar imperioso um sinal de inteligência. Saiu e eu disse a minha mãe :
Deixote... fica tu! De qualquer maneira não te poderia acompanhar.
Ela estremeceu:
Porquê? Aonde vais?
Esperamme lá fora disselhe, levantandome. Toma o dinheiro: paga e volta para casa... Aliás chegarei primeiro... mas não vou só.
Olhoume com ar assustado e julguei ver uma sombra de remorso no seu olhar. Mas ficou calada. Disselhe adeus e saí. O homem esperavame na rua. Apenas saíra já ele se inclinava para mim e me agarrava violentamente o braço dizendo:
Para onde vamos?
Para minha casa.
Foi assim que depois de algumas horas de angústia renunciei à luta contra o que parecia ser o meu destino, e o abracei até com mais amor, como se estreita um inimigo que não se pode vencer. E sentime liberta. Alguns vão pensar que é fácil aceitar uma sorte ignóbil mas rendosa em vez de a recusar. Eu tenho perguntado muita vez a mim própria porque a tristeza e a raiva enchem as almas daqueles que vivem segundo certos preceitos e certos ideais, enquanto que aqueles que aceitam a sua vida, que é acima de tudo nulidade, obscuridade e fraqueza, são tão freqüente mente despreocupados e alegres. Neste caso, de resto, cada qual obedece não a preceitos, mas ao seu temperamento, que toma o aspecto de destino. O meu, como já o disse, era ser a todo o custo alegre, doce e tranquila e eu aceiteio.
Renunciei completamente a Jaime e não pensei mais nele. Sentia que o amava, que se ele tivesse voltado eu teria ficado feliz e amáloia mais do que nunca, mas sentia também que não me deixaria mais humilhar por ele. Se ele tivesse voltado, teria ficado na sua frente, fechada na minha vida como numa fortaleza que seria verdadeiramente inexpugnável enquanto a não abandonasse. Dirlheia: “Sou uma rapariga da rua e nada mais. Se me queres, é preciso que me aceites tal como sou.” Tinha compreendido que a minha força não era desejar ser aquilo que não sou, mas aceitar aquilo que era. A minha força era a minha fortaleza, o meu trabalho, a minha mãe, a minha casa, as minhas roupas modestas, a minha origem humilde, as minhas infelicidades e, mais intimamente, o sentimento que me fazia aceitar todas estas coisas profundamente enterradas na minha alma como uma pedra preciosa na terra. Contudo, estava certa de que não o tornaria a ver; e esta certeza fazia com que o amasse de uma maneira nova para mim, impotente e melancólica, mas não privada de doçura, como se amam os que morreram e nunca mais voltarão. No decurso desses dias rompi com Gino. Como já o disse, não gosto dos rompimentos bruscos; quero que as coisas vivam e morram naturalmente. As minhas relações com Gino são um bom exemplo desta vontade. Elas acabaram porque a vida que as animava se apagou e não por qualquer falta da minha parte e nem sequer, num certo sentido, por culpa de Gino. Acabaram de maneira a não me deixarem nem desgosto nem remorso.
Continuara a vêlo de tempos a tempos, duas ou três vezes por mês. Agradavame, como já disse, se bem que já tivesse perdido toda a estima que tivera por ele. Num desses dias marcoume, pelo telefone, encontro numa pastelaria onde eu lhe disse que iria.
Era uma pastelaria do meu bairro. Gino esperavame na salinha do fundo, numa espécie de gabinete sem janelas, com as paredes completamente revestidas de azulejos. Quando entrei, reparei que não estava só. Alguém estava sentado com ele, de costas viradas para mim. Só via que trazia um impermeável verde e que tinha cabelos louros, cortados muito curtos. Aproximeime e Gino disse:
Deixame apresentarte o meu amigo Sonzogne.
Então ele levantouse; olheio e estendilhe a mão. Mas quando ele ma apertou, tive a impressão de ter sido agarrada por tenazes e dei um pequeno grito de dor. Ele largoume logo a mão; senteime sorrindo e disselhe:
Sabe que me magoou? Você aperta sempre assim a mão?
Não me respondeu nem sequer sorriu. Tinha a cara branca como o papel, a testa saliente, olhos pequeninos azuisclaros, o nariz adunco e a boca cerrada como um corte. Os seus cabelos louros, lisos e deslavados, estavam cortados curtos sobre as têmporas achatadas, mas a base da cara era larga, com maxilares largos e desgraciosos. Parecia estar sempre a cerrar os dentes, como se triturasse qualquer coisa, e constantemente, debaixo da pele das faces, viase fremir e deslizar uma espécie de nervo. Gino, que parecia ter por ele uma amizade afectuosa e admirativa, disseme rindo:
Mas isto nada é... Se tu soubesses como é forte! Tem o soco proibido!
Tive a impressão de que Sonzogne o olhava com hostilidade. Acabou por dizer com voz surda:
Não é verdade que tenha o soco proibido... Mas podia ter!
Perguntei:
Que é isso do soco proibido?
Sonzogne respondeume secamente:
Quando se pode matar um homem com um soco, não se tem o direito de empregar o punho. É como fazer uso do revólver.
Mas sente como ele é forte! insistiu Gino, excitado e desejoso, parecia, de se reconciliar com Sonzogne. Vamos pedialhe , deixaa apalpar os teus braços!
Hesitei, mas dirseia que Gino o desejava e que o seu amigo também esperava esse gesto. Estendi a mão molemente para lhe apalpar o braço. Ele dobrou o antebraço para retesar os músculos, mas seriamente, quase que com um ar sombrio. Então, com grande surpresa minha, porque ao vêlo dava o aspecto de um homem franzino, os meus dedos sentiram, através das mangas, como um rolo de cabo de aço. Retirei a mão com uma exclamação, não sei se de admiração, se de repugnância. Sonzogne olhoume com ar satisfeito, um leve sorriso nos lábios. Gino declarou:
É um velho amigo... Não é verdade, primo, que nos conhecemos há muito tempo? Somos como dois irmãos!
E deu uma palmada nas costas de Sonzogne, acrescentando:
O meu velho primo!
Mas o outro levantou os ombros para afastar a mão de Gino e respondeu:
Nem amigos, nem irmãos... Trabalhamos na mesma garagem, é o que é!
Gino não se desconcertou:
Eh! Sei que de ninguém queres ser amigo! Sempre só... sempre por tua conta... nem homens nem mulheres!
Sonzogne olhouo. Tinha um olhar frio, de uma imobilidade e de uma insistência incríveis, e Gino desviou dele os seus olhos.
Quem te contou essas histórias? disselhe Sonzogne. Ando com quem me agrada, homens e mulheres!
Falei por falar desculpouse Gino, que parecia perder toda a segurança. Pelo que me diz respeito, é certo que nunca te vi com ninguém.
Tu nada sabes da minha vida.
Ora! Eu que te via todos os dias de manhã à noite!
Viasme todos os dias, e então?
Bem! insistiu Gino desconcertado. Como te via sempre sozinho, pensei que não te desses com ninguém. Quando um homem tem uma mulher ou um amigo, acaba sempre por se saber!
O outro disselhe brutalmente:
Não te faças cretino!
Agora chamasme cretino! disse Gino corado, afectando julgar a frase de humor inofensivo.
Mas sentiase que tinha medo. Sonzogne repetiu:
Não te faças cretino, senão partote a cara!
Bruscamente, compreendi que não só ele era capaz de o fazer, mas que era mesmo essa a sua intenção. Pouseilhe a mão no braço e disselhe:
Se vocês se querem bater, façamno quando eu não estiver presente... detesto violências.
Apresentote uma rapariga minha amiga disse Gino, penalizado e tu assustala desta maneira... Ela vai pensar que somos dois inimigos.
Sonzogne voltouse para mim e pela primeira vez sorriu. Quando sorria, piscava os olhos, franzia a testa de uma maneira irregular e mostrava não só os dentes, que eram pequenos e frios, mas também as gengivas.
A menina não está assustada, pois não?
Respondilhe secamente :
Não estou nada assustada, mas, como acabei de dizer, não gosto de violências.
Houve um longo silêncio. Sonzogne ficou imóvel com as mãos nos bolsos do impermeável; fazia tremer os nervos dos maxilares e olhava para o vago. Gino fumava, com a cabeça baixa, e o fumo que saía da sua boca subialhe ao longo da cara e das orelhas, ainda escarlates. Por fim, Sonzogne disse:
Voume embora.
Gino quase deu um pulo e estendeulhe a mão com ar atencioso, dizendo :
Então, amigos como dantes, hem, primo?
Amigos como dantes! respondeu o outro com os dentes cerrados.
Apertoume a mão, desta vez sem me magoar, e foise embora. Era magro e baixo: não se compreendia donde vinha a sua força.
Logo que saiu, disse, divertida, a Gino:
Vocês podem ser amigos e até mesmo irmãos... mas ele dissete cada coisa!
Gino retomara a sua segurança. Abanou a cabeça e explicoume:
É feito assim... mas não é mau... E depois, a mim interessame estar de boas relações com ele... já me foi útil.
De que maneira?
Apercebime de que Gino estava excitado e ardia de desejo por me revelar não sei o quê. Assumiu de repente um aspecto risonho, a cara como que inchada de impaciência :
Lembraste perguntoume da caixa da minha patroa?
Lembro... e então?
Os olhos de Gino brilhavam de alegria. Baixou a voz e disseme:
Pois bem! Depois pensei melhor e não a devolvi.
Não a devolveste?
Não. Reflecti que para a minha patroa, que era rica, uma caixa a mais ou a menos não tinha importância. Já agora o golpe estava dado acrescentou com uma reserva característica e no fundo não tinha sido eu o gatuno.
Era eu a ladra disselhe tranquilamente.
Fingiu não ouvir e continuou:
Mas para a vender, era um problema... Era um objecto de fácil reconhecimento... Não tinha confiança... Guardeia, pois, durante muito tempo no bolso... depois encontrei Sonzogne e conteilhe a história.
Falastelhe de mim? perguntei.
Não... de ti não... disse que tinha sido uma amiga que ma tinha dado, sem citar ninguém. E ele... imagina que em três dias, não sei como, vendeua e trouxeme o dinheiro, ficando com a parte dele, como se tinha combinado, bem entendido.
Tremia de alegria. Olhou um momento à sua volta, depois tirou do bolso um rolo de notas.
Não sei porquê, naquele momento senti por ele uma violenta antipatia. Não julgo que o desaprovasse; não tinha sequer esse direito. Mas o seu tom exultante aborreciame. Além disso tinha a impressão de que ele não me tinha dito tudo; e o que escondera era decerto o pior. Disselhe secamente :
Fizeste bem!
Toma! continuou desenrolando as notas. Isto é para ti. Contei contigo.
Não, não! disselhe. Nada quero, absolutamente nada.
Mas porquê?
Nada quero.
Queres por força vexarme! disseme.
Uma sombra de tristeza e de desconfiança passou na sua cara e julguei têlo verdadeiramente magoado. Fiz um esforço e disse pousandolhe a mão sobre a sua:
Se não mo tivesses oferecido, eu teria ficado, não digo ofendida, mas admirada. Agora assim está bem. Não quero esse dinheiro, porque para mim é um caso arrumado. É só isso... mas estou contente porque tu o tenhas.
Olhavame sem compreender, com uma expressão desconfiada, como se quisesse descobrir o motivo secreto que se escondia nas minhas palavras. Frequentemente, depois, pensando no caso, percebi que ele não me podia ter compreendido, porque vivia num mundo diferente formado por ideias e por sentimentos diferentes dos meus.
Não sei se este mundo era pior ou melhor do que o meu; só sei que certas palavras não tinham para ele o sentido que eu lhes ligava e que uma grande parte das suas acções, que me pareciam repreensíveis, ele as considerava como lícitas e mesmo legais. Parecia, em particular, ligar a maior importância à inteligência, que para ele se reduzia à astúcia. Dividia os homens em astuciosos e parvos, esforçandose sempre, e a todo o preço, por pertencer à primeira categoria. Ora, eu não sou astuciosa, talvez mesmo não seja inteligente, e nunca compreendi como um acto indigno, só pelo facto de ser praticado com esperteza, pode chegar a ser, já não digo admissível, mas simplesmente desculpável.
Bruscamente a sua desconfiança pareceu dissiparse e gritou:
Compreendo! Não queres o dinheiro porque tens medo... tens medo que descubram o roubo... A esse respeito nada há a recear... Está tudo em ordem!
Não tinha medo, mas não me importei que ele o pensasse, porque a segunda parte da frase pareceume obscura.
Está tudo em ordem? pergunteilhe. Que queres dizer?
Sim, está tudo em ordem respondeume. Lembraste de eu te ter dito que lá em casa desconfiavam de uma criada de quarto?
Sim.
Bem! Não gostava dessa criada de quarto porque ela dizia mal de mim nas minhas costas... Alguns dias depois do roubo percebi que as coisas tomavam um mau rumo para mim. O comissário já tinha ido lá a casa duas vezes e eu senti que desconfiavam de mim. Nota bem que ainda não tinham começado as indagações. Então tive uma ideia: desviar as suspeitas para outro roubo e fazer com que as culpas caíssem sobre a criada.
Eu não dizia palavra. Olhoume um momento com os olhos brilhantes e dilatados para ver se eu admirava a sua astúcia e continuou:
A minha patroa tinha alguns dólares numa caixinha; tirei os dólares e fui pôlos no quarto da criada, dentro de uma mala velha. Desta vez, como era natural, fizeram pesquisas, descobriram os dólares e prenderamna. Agora ela jura que está inocente, bem entendido, mas quem a vai acreditar depois de terem encontrado os dólares no seu quarto?
Onde está essa mulher?
Está na prisão e não quer confessar! Mas sabes o que disse o comissário à minha patroa? “Esteja sossegada, minha senhora, ela acabará por confessar! A bem ou a mal!” Percebes, hem? A pancada!
Olheio gelada de espanto por vêlo tão orgulhoso e tão excitado.
Como se chama essa mulher? perguntei como por acaso.
Luísa Feligny... É uma mulher que já não é nova. Muito orgulhosa. Não se compreende porque é criada de quarto; não há alguém mais honesta do que ela.
E ria divertido com a coincidência.
Fiz um grande esforço como se me custasse respirar e pergunteilhe:
Já reparaste que és um cobarde?
Como? Porquê? perguntoume, surpreendido. Agora, que o tratara por cobarde, sentiame mais livre e mais desprendida. Sentia as narinas palpitarem de raiva. Continuei logo:
E querias que ficasse com esse dinheiro? Mas eu sentia que era dinheiro que me queimaria os dedos!
Qual história! disse, esforçandose por não se desconcertar. Ela não confessa e deixamna.
Mas dissesteme que está na prisão e lhe batem.
Disse isso por dizer.
Pouco importa... deixaste prender uma inocente e tens ainda o descaramento de mo vir contar. És um vil cobarde!
Bruscamente encolerizouse, empalideceu e apertoume a mão:
Vais deixar de me chamar cobarde!
Porquê? Penso que és um cobarde e digote.
Ele perdeu o sanguefrio e teve um estranho gesto de violência. Torceume a mão como se ma quisesse arranjar, depois, de repente, baixou a cabeça e mordeuma com força. Com uma sacudidela, tirei a mão e levanteime:
Mas tu estás completamente idiota! disselhe. O que te aconteceu? Agora mordes? É inútil. Cobarde és e cobarde serás sempre!
Não respondeu, mas agarrou a cabeça com as mãos como se quisesse arrancar os cabelos.
Chamei o criado e paguei as contas todas: a minha, a dele e a do Sonzogne. Depois disse a Gino:
Voume embora, mas devo dizerte que entre nós está tudo acabado... Não me apareças mais, não me procures! Não venhas, eu não te conheço!
Não respondeu nem levantou a cabeça e eu saí. A leitaria era à entrada da rua, a pouca distância da minha casa. Comecei a andar devagar, do lado oposto às fortificações. Era noite, o céu estava nublado, caía uma chuva miudinha como uma poeira de água no ar imóvel e tépido. Como de costume, as fortificações estavam às escuras, à parte alguns candeeiros, muito espaçados. Mas assim que saí da leitaria vi um homem desencostarse de um desses candeeiros e seguir ao longo das fortificações na mesma direcção que eu, na intenção provável de me tolher o passo. Pelo seu impermeável apertado na cintura e pela sua cabeça loura e quase rapada reconheci Sonzogne. Debaixo das muralhas parecia pequeno: de vez em quando desaparecia na sombra, depois reaparecia à luz de um candeeiro. Pela primeira vez, talvez, todos os homens me repugnaram, todos os homens pendurados às minhas saias como cães correndo atrás de uma cadela. Vibrava ainda de cólera, e, quando pensava naquela mulher que Gino com o seu procedimento metera na cadeia, não podia deixar de sentir remorsos porque, no fim de contas, a caixa fora eu quem a roubara! Mas, mais do que remorso, era um sentimento de irritação e de revolta. Insurgindome contra a injustiça, e odiando Gino, detestava repelilo e saber que fora cometida uma injustiça. Realmente, não sou feita para estas coisas. Experimentava um malestar violento; tinha a impressão de não ser mais eu mesma. Caminhava apressada, desejosa de chegar a casa antes que Sonzogne me abordasse, como parecia ter intenção de fazer. Mas ouvi o meu nome pronunciado por Gino, que me chamava, esbaforido:
Adriana! Adriana!
Fingi não ouvir e apressei o passo. Ele agarroume por um braço:
Adriana... estivemos sempre de acordo... não nos podemos separar assim!
Com uma sacudidela, libertei o braço e continuei o meu caminho. Do outro lado, sob as muralhas, a pequena silhueta clara de Sonzogne tinha saído da obscuridade para entrar no círculo luminoso do candeeiro.
Mas eu amote, Adriana! repetia Gino correndo ao meu lado.
Inspiravame uma mistura de piedade e de ódio, e essa mistura erame tão desagradável que não a podia traduzir. Esforceime por pensar noutra coisa. De repente, não sei como, uma ideia passou pelo meu espírito como um relâmpago. Lembreime de Astárito, da maneira como ele sempre me oferecera a sua ajuda, e pensei que talvez ele tivesse um meio de conseguir libertar da prisão aquela pobre mulher. Esta ideia produziu em mim um efeito benfazejo; a minha alma libertouse do peso que a oprimia e tive mesmo a impressão de já não odiar Gino e de sentir por ele apenas compaixão. Parei e disselhe tranquilamente:
Porque não desapareces, Gino?
Mas eu amote.
Eu também; já te amei, mas agora acabou; vai, desanda, é melhor para ti e para mim.
Estávamos num sítio escuro da avenida e não havia candeeiros nem lojas. Agarroume pela cintura e tentou beijarme. Teria podido muito bem livrarme sozinha, porque sou forte e porque ninguém pode beijar uma mulher contra a sua vontade. Em vez disso, não sei porque diabólica inspiração, lembreime de chamar Sonzogne, que parara do outro lado da avenida, debaixo das fortificações, e nos olhava, imóvel, com as mãos nos bolsos do impermeável. Penso que se o chamei foi porque julguei ter encontrado o meio de impedir a má acção de Gino, deixando a coquetterie e a curiosidade aflorar de novo ao meu espírito. Gritei duas vezes:
Sonzogne! Sonzogne!
Imediatamente ele atravessou a avenida e Gino, desconcertado, largoume.
Digalhe proferi com calma enquanto Sonzogne se aproximava que me deixe tranquila, porque já nada quero com ele... Não me quer ouvir, mas talvez a si ouça, visto que são amigos.
Estás a ouvir o que diz esta menina? disse Sonzogne.
Mas eu... começou Gino.
Pensava que iriam continuar a discutir por uns momentos e que por fim Gino, resignado, acabaria por se retirar. Mas de repente vi Sonzogne fazerme um gesto que não percebi, Gino olhálo por um instante, aparvalhado, depois, sem uma palavra, cair e rolar do passeio para a valeta.
Levantei a cabeça e olhei melhor: Sonzogne estava na minha frente, as pernas afastadas, olhando o punho ainda fechado. Gino, no chão, as costas viradas para nós, voltava a si e com o cotovelo na valeta levantava lentamente a cabeça. Mas não parecia querer pôrse de pé; dava a impressão de olhar fixamente um papel velho cuja brancura se distinguia na lama da valeta. Depois Sonzogne disse:
Vamos.
Com a cabeça um pouco atordoada encaminheime com ele para a minha casa.
Andava sem dizer palavra e apertandome o braço. Era mais baixo do que eu, e a sua mão rodeavame o braço como uma prisão metálica. Passado um momento, disselhe:
Não devia ter dado o soco a Gino... ele iase embora na mesma sem violência.
Assim já não a aborrecerá mais respondeume.
Mas como foi? perguntei. Eu nada vi... só dei por Gino cair no chão.
É uma questão de hábito respondeu.
Falava como se mastigasse as palavras antes de as pronunciar, ou, melhor, como se experimentasse a sua consistência por entre os dentes, que conservava cerrados e que eu imaginava encaixados uns nos outros como os das feras. Agora experimentava um grande desejo de lhe apalpar os braços e de sentir de novo sob a minha mão os seus músculos duros e fortes. Inspiravame mais curiosidade do que atracção. E, sobretudo, faziame medo. Mas o medo, tanto quanto eu o posso designar com clareza, pode ser um sentimento agradável e por vezes excitante.
Que tem nos braços? perguntei. Ainda não posso acreditar no que vi.
Mas já lhe disse para apalpar disseme com uma entoação tão vaidosa que parecia sinistra.
Não muito bem... estava o Gino presente... Deixeme apalpar agora.
Parou e dobrou o braço, olhandome de lado, grave e ingenuamente ao mesmo tempo, mas de uma ingenuidade que nada tinha de infantil. Estendi a mão e desci do seu ombro ao longo dos braços para apalpar os músculos. Era para mim uma estranha sensação sentilos tão vivos e duros. Articulei com voz apagada:
És realmente forte.
Sou forte, sim confirmou com uma sombria convicção.
E recomeçamos a andar.
Agora estava arrependida de o ter chamado. Não me agradava; para mais, esta gravidade, esta maneira de falar, faziamme medo. Foi assim que, em silêncio, chegamos em frente da minha porta. Tirei as chaves da mala.
Aproximouse de mim e disseme:
Eu subo.
Desejei dizerlhe que não. Mas a maneira como ele me olhava, com fixidez e insistência incríveis, subjugoume e fezme perder a coragem.
Se quiseres disselhe.
Só depois de ter dito isto reparei que o tratara por tu.
Não tenhas medo disseme interpretando erradamente o meu ar assustado. Tenho dinheiro... Darteei o dobro do que te costumam dar os outros.
Isso nada tem que ver... Não é pelo dinheiro. - Mas ele fez uma cara cômica como se qualquer assustadora suposição lhe atravessasse o espírito... É só porque me sinto um pouco cansada acrescentei.
Seguiume até ao vestíbulo. Quando chegámos ao quarto, despiuse com gestos metódicos de homem ordenado. Tinha um lenço em volta do pescoço; dobrouo com cuidado e meteuo no bolso do impermeável. Colocou o fato nas costas da cadeira e pendurou as calças de maneira a não desmanchar os vincos. Juntou os sapatos um ao lado do outro debaixo da cadeira e as meias dentro dos sapatos. Reparei que estava vestido de novo da cabeça aos pés; os tecidos que usava não eram finos, mas resistentes e de boa qualidade. Fazia estas coisas em silêncio, nem depressa nem devagar, com uma regularidade sistemática e ponderada, sem se ocupar de mim, que, entretanto, me tinha despido e deitado nua sobre a cama. Se ele me desejava, não o mostrava, a menos que aquele constante agitar dos músculos do maxilar denotasse perturbação; mas isso não devia ser, porque já o tinha antes, quando nem sequer parecia pensar em mim. Já disse que a ordem e o asseio me agradavam e me pareciam denotar qualidades de alma correspondentes. Mas nessa noite a ordem e o asseio de Sonzogne suscitavam em mim sentimentos bem diferentes, misturados de medo e de horror. “Desta maneira pensava eu é que os cirurgiões se preparam nos hospitais quando se dispõem a fazer qualquer operação sangrenta. Ou, pior ainda, os magarefes, mesmo sob os olhos dos carneiros que vão esfolar.” Estendida sobre a cama, sentiame sem defesa, impotente, como um corpo inanimado que vai ser submetido a qualquer experiência. E o seu silêncio e a sua indiferença deixavamme na dúvida sobre o que ele iria fazer quando tivesse acabado de se despir. Quando ficou nu e se aproximou da cabeceira da cama e estranhamente me prendeu os ombros com as duas mãos, como se me quisesse conservar imóvel, não pude evitar um frêmito de medo. Ele reparou e perguntoume por entre dentes:
Que tens?
Nada respondi. Tens as mãos geladas.
Não te agrado, hem? disseme segurandome sempre os ombros, de pé, junto do travesseiro. Preferes os que são iguais a ti, hem?
Enquanto falava, olhavame de uma maneira intolerável.
Porquê? disselhe. Tu és um homem como os outros. E tu próprio me disseste já que me queres pagar o dobro.
Sei muito bem o que quero dizer respondeu. Tu e as outras como tu gostam dos ricos, das pessoas distintas... Eu sou como tu e vocês, as prostitutas, só gostam dos “grandes”.
Reconheci no seu tom funesto a mesma tendência inflexível para procurar questões que há pouco tinha feito com que insultasse Gino sob o mais fútil pretexto. Julguei nessa altura que tivesse qualquer rancor contra Gino. Agora compreendia que a sua sombria susceptibilidade o levava sempre a encolerizarse quando esta espécie de demônio o dominava: fosse qual fosse a maneira como nos portássemos com ele, enganávamonos sempre.
Porque procuras agora também motivos para me ofender? respondi, ligeiramente vexada. Já te disse que para mim os homens são todos iguais.
Se isso fosse verdade, não fazias essa cara... Não te agrado, hem?
Mas se já te disse...
Não te agrado, hem? continuou. Tenho pena, mas é preciso que te agrade!
Oh! Deixame em paz gritei, bruscamente irritada.
Quando te fui útil para te livrares do teu melro, quisesteme ao pé de ti... mas depois terias gostado de não me tornar a ver... somente eu subi. E não te agrado, hem?
Agora eu tinha realmente medo. As suas palavras sibiladas, a voz dura, impiedosa e calma, o seu olhar fixo, os seus olhos que de azuis pareciam tornarse vermelhos, tudo parecia levarme a não sei que horrível fim. Então compreendi, mas já tarde, que fazêlo parar no rumo que as coisas levavam era o mesmo que tentar deter um bloco de pedra que rolasse por uma ribanceira. Limiteime a encolher violentamente os ombros.
Não te agrado, hem? continuou. Fazes uma cara desgostosa quando te toco... Mas agora, meu amor, vou fazerte mudar de ideias!
E levantou a mão para me esbofetear. Começava a esperar um gesto do gênero e procurava protegerme com o braço. Mas mal acabara de o fazer quando me bateu com uma ultrajante dureza, primeiro numa face, depois, logo que eu voltava a cara, na outra. Era a primeira vez na minha vida que isto me acontecia. Apesar da violência das bofetadas, sentime por momentos mais surpreendida que penalizada. Afastei o meu braço da cara e disselhe:
Sabes o que és? És um desgraçado!
Esta frase pareceu ferilo. Sentouse na beira da cama e, agarrando o colchão com as duas mãos, bamboleouse uns instantes. Depois disse sem me olhar:
Somos os dois desgraçados!
É preciso ter coragem para bater assim numa mulher! disselhe ainda.
De repente, não pude dominarme e os olhos encheramseme de lágrimas. Mas não era tanto pelas bofetadas como pelo enervamento dessa noite, cheia de acontecimentos desagradáveis e tristes... Julguei ver Gino projectado na rua, lembreime de que não lhe ligara qualquer importância e me tinha ido embora alegremente com Sonzogne unicamente interessada em apalpar os seus músculos extraordinários; senti remorsos, piedade por Gino e desgosto por mim própria; compreendi que fora castigada pela minha insensibilidade e pela minha patetice pela mesma mão que batera em Gino. Tinha sido cúmplice da violência e essa mesma violência voltarase contra mim. Através das minhas lágrimas olhava Sonzogne. Ficara sentado na beira da cama, nu, sem pêlos, as costas um pouco curvas, deixando cair os seus braços extraordinários que não traíam a sua força. Senti um repentino desejo de suprimir a distância que nos separava e disselhe, não sem esforço:
Mas pode ao menos saberse porque me bateste?
Fazias uma destas caras!
Parecia mergulhado em pensamentos; a pele do seu maxilar estremecia.
Compreendi que se o queria aproximar de mim devia primeiro que tudo dizerlhe o que pensava dele e nada lhe esconder.
Tu pensavas que eu não gostava de ti? Pois bem! Enganaste!
É possível.
Enganaste. Na realidade, não sei porquê, mas fazesme medo. Era por isso que eu fazia aquela cara. A estas palavras voltouse bruscamente para mim e perscrutoume com um olhar desconfiado. Mas tranquilizouse logo e perguntoume, não sem vaidade:
Façote medo?
Sim.
E agora ainda te faço medo?
Não; agora podes até matarme... éme indiferente. Eu dizia a verdade, e até naquele momento quase desejava que ele me matasse, porque de repente perdera o desejo de viver. Mas ele irritouse e disseme:
Quem fala em te matar? E porque te fazia medo?
Não sei... faziasme medo... são coisas que não se podem explicar.
Gino faziate medo?
Porque me havia de fazer medo?
E então porque te faço eu medo, eu?
Agora já não mostrava vaidade, mas eu sentia que começava a ficar furioso.
Ora! disselhe para o apaziguar. Tu faziasme medo porque te acho capaz de fazer sei lá o quê!
Não respondeu logo e reflectiu durante uns instantes. Depois voltouse e perguntoume em tom ameaçador:
Tudo isso quer dizer que devo vestirme e irme embora?
Olhavao e compreendi que estava de novo a ponto de encolerizarse e que uma recusa da minha parte faria cair sobre mim qualquer outra violência, talvez pior ainda. Era preciso aceitar. Mas pensava naqueles olhos claros e sentia repugnância à ideia de os ver olharemme fixamente durante o amor. Disselhe molemente.
Não... fica se quiseres... mas apaga a luz. Levantouse, pequeno e branco, extraordinariamente bem proporcionado, à parte o pescoço, que tinha um pouco curto, e foi nas pontas dos pés dar a volta ao interruptor ao pé da porta. Mas compreendi logo que não tivera uma boa ideia em ter pedido para apagar a luz, porque assim que o quarto ficou às escuras o medo, que julgava já afastado, tomou de novo posse de mim. Era como se tivesse dentro do quarto não um homem, mas um leopardo ou qualquer outra fera, capaz de se encolher num canto para me apanhar desprevenida, de saltar sobre mim e despedaçarme. Talvez se tenha demorado no meio do quarto às escuras tenteando caminho por entre as cadeiras e os outros móveis; talvez fosse também o meu temor que me fizesse parecer a demora longa. Julguei que tinha passado um tempo infinito até ele chegar à cama, e quando pôs as suas mãos sobre mim não pude reprimir um novo sobressalto, mais forte ainda do que o primeiro. Esperava que ele não se apercebesse, mas tinha o instinto aguçado exactamente como os animais e ouvi logo, muito perto de mim, a sua voz perguntarme :
Ainda tens medo?
Por certo, no escuro, o meu anjodaguarda devia estar presente. O tom da sua voz fezme adivinhar que ele tinha levantado o braço e que esperava a minha resposta para decidir se me devia bater ou não. Percebi que ele sabia que fazia medo e desejava que não o temessem e o amassem como aos outros homens. Mas para chegar a esse resultado não conhecia outro meio que o de inspirar um medo ainda mais forte. Estendi a mão, fingi acariciarlhe o pescoço e o ombro direito, e tive a certeza do que imaginara; ele tinha o braço levantado, pronto a esbofetearme. Disse com voz forte, esforçandome para dar à minha voz a entoação habitual, doce e tranquila:
Não... desta vez é só frio... Vamos enfiarnos na cama.
Está bem! disse ele.
Este “Está bem!”, onde subsistia ainda um resto de ameaça, confirmou a minha desconfiança. Então, enquanto que, debaixo dos lençóis, ele me apertava e me estreitava, passei um momento de angústia indescritível, um dos piores da minha vida. O medo inteiriçavame os membros, que, sem eu o querer, se arrepiavam ao contacto do seu corpo, singularmente liso, escorregando e serpenteando. Ao mesmo tempo dizia a mim própria ser absurdo ter medo num momento daqueles e procurava com todas as forças da minha alma dominar o meu temor e abandonarme a ele sem receio, como a um amante bem amado. Sentia este medo, não tanto nos meus membros, que me obedeciam, às vezes com grande repugnância, mas no fundo das minhas entranhas, que pareciam fecharse e recusarse ao abraço com horror. Acabou por me possuir e senti um prazer que o terror tornava negro e atroz. Não pude evitar de emitir um grito longo e lamentoso, na escuridão, como se a posse final não fosse a do amor, mas a da morte, como se esse grito fosse o da minha vida que partia, não deixando atrás dela mais do que um corpo inanimado e martirizado.
Depois ficamos um bom bocado às escuras sem falar. Mas eu estava estafada e adormeci quase em seguida. Senti logo a impressão de um enorme peso sobre o meu peito, como se Sonzogne se tivesse acocorado, dobrado sobre si próprio, nu como estava, os joelhos entre os braços e a cara sobre os joelhos. Estava sentado sobre o meu peito, as nádegas duras e nuas fazendo pressão sobre o meu pescoço, os pés sobre o meu estômago. A medida que adormecia, o seu peso aumentava, e, a dormir, mexiame de um lado para o outro para experimentar desembaraçarme, ou pelo menos deslocálo. Por fim tive a impressão de sufocar e quis gritar. Faziao sem voz, que estacionava no meu peito muito tempo, um tempo que me pareceu infinito; por fim consegui emitila e acordei num choro alto.
A lâmpada da mesadecabeceira estava acesa e Sonzogne olhavame apoiado no cotovelo.
Dormi muito tempo? pergunteilhe.
Uma meia hora disse por entre dentes.
Deiteilhe uma olhadela onde devia persistir o terror do meu pesadelo, porque me perguntou com um curioso acento, como para entabular conversa:
E agora, ainda tens medo?
Não sei.
Se soubesses quem eu sou, ainda terias mais medo do que anteriormente.
Todos os homens depois do amor se inclinam para as conversas sobre eles próprios e para as confidências. Sonzogne parecia não fazer excepção à regra.
O tom da sua voz, ao contrário do que lhe era habitual, era leve, calmo e quase afectuoso, fútil, com uma ponta de vaidade. Mas assustavame outra vez terrivelmente, e o meu coração começou a bater com toda a força como se fosse rebentar.
Porquê? perguntei. Quem és tu?
Olhoume não porque hesitasse, mas porque queria saborear o efeito das suas palavras sobre mim. Acabou por dizer lentamente.
Sou o da Rua Palestro; sou esse.
Ele pensava que nem seria preciso explicar o que se passara na Rua Palestro, e desta vez a sua vaidade não se enganou. Alguns dias antes um crime horrível fora cometido numa casa dessa rua; todos os jornais haviam falado nele, e as pessoas apaixonadas por esses assuntos tinhamno comentado muito. Minha mãe, que passava uma grande parte do dia a coleccionar notícias diversas, tinha sido a primeira a falarme no caso. Um jovem ourives fora assassinado no apartamento onde vivia. Ao que parecia, a arma de que se servira Sonzogne porque agora já sabia quem era o assassino tinha sido um pesado pisapapéis de bronze. A polícia não tinha encontrado qualquer indício que a conduzisse à descoberta do assassino. Havia suspeitas de o ourives ter sido receptador; supunhase pois com razão, como se verá que tinha sido morto no decorrer de uma transacção ilícita.
Tenho muitas vezes notado que assim que uma notícia nos enche de horror ou de espanto, a nossa cabeça esvaziase e a nossa atenção fixase sobre um objecto qualquer, o primeiro que nos cai sob os olhos, mas de uma maneira singular, como se ela quisesse trespassar a superfície para chegar a não sei que segredo que se escondesse aí. Foi o que me aconteceu nessa noite com Sonzogne, depois de me ter feito aquela revelação. Fiquei com os olhos escancarados e o espírito esvaziouse de repente, como um recipiente que contenha um líquido ou um pó muito fino, assim que é furado; somente, sentia o meu espírito, embora vazio, pronto a encherse de outra matéria, e esta sensação era dolorosa porque eu teria querido preencher esse vazio e não o conseguia. Enquanto o ouvia, fixava os olhos sobre o pulso de Sonzogne, estendido a meu lado, com o cotovelo apoiado na cama. Tinha o braço branco, liso, redondo, sem pêlos, onde nada indicava os seus músculos extraordinários. O pulso também era redondo e branco; nesse pulso estava o único objecto que Sonzogne conservava na sua nudez: uma pulseira de couro, parecida com as pulseiras dos relógios, mas sem relógio. A cor desta pulseira, de um preto engordurado, parecia dar um significado não só ao braço, mas a todo o corpo branco e nu, e esse significado distraíame sem que o pudesse explicar. Era uma nota de cor sombria; sugeria o elo de uma cadeia de forçado. Mas havia também qualquer coisa de gracioso e de cruel nessa simples pulseira negra, uma espécie de ornamento que confirmava o carácter brusco e felino da ferocidade de Sonzogne. A minha distracção durou só um instante. De repente o meu espírito encheuse de pensamentos tumultuosos, que se agitavam como pássaros numa gaiola estreita. Lembrome de que tive medo dele desde o primeiro momento. Pensando que tinha estado com ele na cama, compreendi que, cedendo ao seu abraço no escuro, o meu corpo horrorizado descobrira antes do meu espírito ignorante o que ele me escondia e fora por isso que gritara daquela maneira.
Acabei por lhe dizer a primeira coisa que me veio ao espírito:
Porque fizeste isso?
Tinha um objecto de valor para vender respondeume (e os seus lábios mal se mexiam enquanto falava). Sabia que aquele comerciante era um bandido, mas não conhecia outro... ofereceume um preço ridículo... Eu detestavao porque já me tinha roubado uma vez... disselhe que ficava com o objecto e que ele não passava de um malandro... Então ele respondeume uma coisa que me fez perder a cabeça.
Que foi? pergunteilhe.
Percebia agora com espanto que à medida que Sonzogne me contava essas coisas o meu medo começava a desvanecerse; sem querer, uma impressão de participação me animava. No momento em que perguntei o que lhe tinha dito o ourives senti que esperava quase uma coisa atroz que pudesse desculpar o crime, ou pelo menos justificálo. Respondeume com secura:
Disseme que, se não me fosse embora, me denunciaria. Em suma, pensei : “Pois é quanto basta!” E quando ele se voltou...
Calouse e olhoume.
E como era ele? perguntei.
Calvo, baixinho, com cara de fuinha... parecia um coelho.
Disse isto com uma entoação tranquila e antipática, que me fez ver, e mesmo odiar, esse aldrabão com cara de coelho enquanto avaliava, com ar desconfiado e falso, o objecto que lhe oferecia Sonzogne. Agora já não tinha medo algum; sentia que Sonzogne me transmitira o seu rancor contra o assassinado; e não estava até convencida de que o condenaria. Na verdade tinha a impressão de estar tão bem dentro do que passara que me parecia que eu também teria sido capaz de cometer este crime. Como compreendia esta frase: “Respondeume uma coisa que me fez perder a cabeça!” Ele tinha perdido a cabeça uma vez com Gino e uma segunda comigo; só por sorte não nos tinha morto também a mim e a Gino. Compreendiao tão bem, penetravao tão bem, que não só já não tinha medo, mas experimentava uma espécie de simpatia horrorizada, essa simpatia que não me conseguira inspirar antes de saber o seu crime e quando ele era apenas um amante como os outros.
Mas tu não tens pena? pergunteilhe. Não tens remorsos?
Agora está feito disse.
Olhavao intensamente. A esta resposta. surpreendime, sem dar por isso, a aprovar com a cabeça. E então lembreime de Gino, que também era, segundo o termo de Sonzogne, um bandido, mas que não deixava de ser um homem que eu amara e que me amava. Pensava que amanhã poderia aprovar da mesma maneira a morte de Gino. Admitia que o ourives não era nem melhor nem pior do que Gino, que não havia diferença entre os dois, a não ser que eu não conhecia o ourives, e se me parecera justo que o tivessem assassinado era unicamente porque tinha ouvido dizer de uma certa maneira que ele tinha cara de coelho e senti remorsos e horror... Não há horror por Sonzogne, que era feito assim e que era preciso compreender para o julgar, mas de mim, que não era feita como Sonzogne e portanto me deixava tomar pelo contágio do ódio e do sangue. Fui tomada por uma espécie de agitação, e de um salto senteime na cama: Oh! Meus Deus! repetia eu. Oh! Meu Deus! Porque fizeste isso? E porque mo contaste?
Tinhas tanto medo de mim respondeu com simplicidade e no entanto nada sabias; pareceume estranho e conteite... Felizmente acrescentou, divertido com o próprio raciocínio nem todos são como tu; já estaria descoberto!
É melhor que te vás embora e me deixes sozinha - disselhe. Vai, anda.
Que tens tu agora? respondeume.
Reconheci o tom que tinha quando estava furioso. Mas pareceume descobrir neste tom não sei que pesar de se encontrar só, condenado também por mim, que pouco antes lhe tinha pertencido. Acrescentei rapidamente:
Não julgues que tenho medo de ti. Já não é por medo... Mas tenho de me habituar à ideia... Preciso de pensar... quando voltares já será diferente.
Mas em que queres pensar? disse. Não tens a intenção de me denunciar?
Estas palavras produziramme a mesma impressão que me dera a confissão de Gino da maneira como traíra a criada de quarto: era gente que vivia num mundo diferente do meu. Fiz um grande esforço e respondi:
Mas se te digo que podes voltar! Sabes o que outra mulher te diria? Não quero mais ouvir falar de ti, não te quero ver mais. . . era o que diria!
Mas agora queres que me vá embora!
Julgava que te querias ir embora... então um momento de mais ou de menos... Mas, se queres ficar, fica! Queres dormir cá? Se queres, podes passar a noite comigo e ireste embora só amanhã de manhã... Queres?
Para falar verdade, fazialhe este oferecimento numa voz baça e triste, mas fazialho e estava contente por isso. Deitoume um olhar onde julguei descobrir um vislumbre de gratidão (talvez me tivesse enganado), depois abanou a cabeça:
Falei por falar disse. Realmente tenho de me ir embora.
Levantouse e aproximouse da cadeira onde tinha deixado a roupa.
Como quiseres disselhe. Mas, se queres ficar, podes ficar. E se qualquer dia tiveres necessidade de dormir aqui acrescentei com esforço podes vir.
Não disse palavra; começou a vestirse. Levanteime por minha vez e vesti um penteador. Enquanto o enfiava senti uma impressão de loucura, como se o quarto estivesse cheio de vozes murmurandome ao ouvido palavras intensas e contraditórias. E talvez fosse esta impressão de loucura que me levou a fazer um gesto sem saber porquê. Enquanto girava pelo quarto, fazendo movimentos lentos com um sentimento de frenesim, vio abaixarse para atacar os sapatos. Então ajoelheime na sua frente e disselhe:
Deixa estar que eu faço isso!
Pareceu ficar admirado mas não protestou. Agarreilhe no pé direito, coloqueio no meu colo, fiz um nó duplo no atacador do sapato direito e a mesma coisa no do esquerdo. Nem me agradeceu, nem nada me disse; provavelmente éramos dois no quarto a não compreender porque tinha eu feito aquilo. Enfiou o casaco, tirou a carteira do bolso e fez menção de me dar dinheiro.
Não, não! disse com involuntário nervosismo na voz. Não, não... não me dês coisa alguma... não é preciso...
Porque? O meu dinheiro não é igual ao dos outros? - perguntoume com uma voz onde se notava já ira.
Pareceume bizarro que não compreendesse a minha repugnância por esse dinheiro, tirado talvez do bolso ainda quente do morto. Mas talvez o compreendesse e quisesse comprometerme por uma espécie de cumplicidade, ao mesmo tempo que punha à prova os meus verdadeiros sentimentos por ele.
Não é isso... objectei , eu... eu... mas eu não pensava em dinheiro quando te chamei... Deixa estar...
Pareceu acalmarse.
Está bem! disse. Mais vais aceitar uma recordação. Tirou do bolso um objecto que colocou sobre o mármore da mesadecabeceira.
Olhei o objecto sem lhe pegar e reconheci a caixa de pó de arroz de ouro, roubada por mim alguns meses antes na casa da patroa de Gino.
Que é isto? balbuciei.
Foi o Gino quem ma deu... era o objecto que eu devia vender... aquele indivíduo queriao de graça... mas eu creio que tem um certo valor: é de ouro.
Domineime e disse:
Obrigada.
De nada respondeu.
Tinha vestido o impermeável e apertava o cinto.
Então até qualquer dia! disseme da porta.
Passado um momento, ouvi ao fundo da antecâmara a porta fecharse.
Só, aproximeime da mesadecabeceira e peguei na caixinha. Sentiame embaraçada e tomoume um sombrio espanto. A caixa brilhava na minha mão, e o rubi redondo e vermelho encaixado no fecho pareceu alargarse na minha mão e cobrir o ouro. Tinha na mão uma mancha de sangue redonda e brilhante que pesava tanto como o objecto. Sacudi a cabeça; a mancha desapareceu; tornei a ver a caixa de ouro com um fecho de rubi. Então pouseia sobre a mesadecabeceira, estendime na cama, com o corpo enrolado no penteador, apaguei a luz e reflecti.
Pensava que se me tivessem contado a história da caixa eu teria rido como se ri de um caso extraordinário e quase inacreditável. Era uma daquelas histórias que obrigam a exclamar: “Ora vejam lá a coincidência!” e em seguida as boas mulheres do tipo da minha mãe tiram daí indicações para o número da lotaria: a morte é um número, o ouro outro; o gatuno, outro. Mas desta vez fora comigo que a história acontecera; e reparava com grande admiração na diferença que havia em estar fora ou dentro das coisas. Com efeito, acontecerame aquilo que acontece a alguém que, tendo enterrado um grão, o encontra muito tempo depois transformado em planta vigorosa, cheia de folhas e coberta de botões prestes a abrir. Mas que semente, que planta e que botões! Ia de uma coisa para a outra sem chegar ao começo. Tinhame entregue a Gino porque esperava que casasse comigo, mas tinhame enganado e eu por raiva furtara a caixa. Depois revelaralhe o roubo, ele assustarase e, para evitar que fosse acusado, tinhalhe devolvido o objecto para que ele o entregasse à patroa. Mas em vez de o restituir, guardarao e, julgando que o acusavam de roubo, tinha feito com que prendessem a criada de quarto, a qual estava inocente, e na prisão batiamlhe! Entretanto Gino dera a caixa a Sonzogne para que a vendesse e Sonzogne fora a casa do ourives para o efeito, e este tinha irritado Sonzogne e Sonzogne, enfurecido, tinhao morto, e logo que o ourives morreu Sonzogne tornouse um assassino! Compreendia que não podia inculparme, mas ao mesmo tempo pensava que a causa principal de todas estas desgraças tinha sido o meu desejo de me casar e de constituir família, mas ao mesmo tempo não conseguia eximirme a um sentimento de remorso e de consternação. Enfim, à força de reflectir cheguei à conclusão de que no fim de contas a culpa de tudo recaía inteira sobre as minhas pernas, o meu seio, as minhas ancas, em resumo, na minha beleza, de que minha mãe tanto se orgulhava, e que no fundo nada tinha de me acusar porque todas as coisas vinham da natureza. Mas se nisso pensava, era por irritação e desespero, como se pensa numa coisa absurda para desculpar outras cem vezes mais absurdas. Sabia em consciência que ninguém era culpado, que tudo era como tinha de ser, embora tudo fosse insuportável, e que se realmente se pretendia que houvesse alguma culpa ou alguma inocência, então todo o mundo era ao mesmo tempo inocente e culpado.
Entretanto, lentamente a escuridão entrava em mim como a água de uma inundação subindo do résdochão aos andares superiores de uma casa. A primeira coisa a ser submersa foi seguramente a minha faculdade de julgamento. Até ao fim a minha imaginação fascinada saciouse do crime de Sonzogne, mas isenta de toda a reprovação e de todo o horror, como de um acto incompreensível, e por conseguinte, no seu gênero, estranhamente atraente. Julguei ver Sonzogne caminhar pela Rua Palestro, as mãos nos bolsos do impermeável, depois entrar na casa e esperar de pé na pequena sala do ourives. Julguei ver o ourives entrar e apertar a mão a Sonzogne. Estava atrás da secretária. Sonzogne estendeulhe a caixa, que ele examinou com abanadelas de cabeça destinadas a indicar o seu desprezo. Depois levantava a sua cara de coelho e oferecia uma cifra irrisória. Sonzogne olhavao fixamente, com olhos já cheios de ira, e arrancavalhe violentamente o objecto das mãos. Depois acusavao de ladrão e usurário. O outro ameaçavao de o denunciar e intimavao a irse embora. Depois voltavase ou baixavase como quem não quer discutir mais. Sonzogne agarrava o pisapapéis de bronze e batialhe com ele na cabeça uma primeira vez. O outro tentava fugir e então Sonzogne saltava de novo sobre ele é atingiao com novas pancadas até sentir que o tinha morto. Depois Sonzogne atiravao ao chão, abria as gavetas, apoderavase do dinheiro e fugia. Mas antes de sair, tinha eu lido no jornal, num novo acesso de fúria, dera um pontapé na cara do morto estendido no chão.
Demoravame apaixonadamente sobre todos os pormenores do crime. Seguia Sonzogne como se acariciasse os seus gestos; era a sua mão que estendia a caixa, que empunhava o pisapapéis, que feria o ourives; era o seu pé furioso que acabava por bater na cara do morto. Nenhum horror entrava nesta representação, o menor, como já disse, mas também qualquer aprovação. Experimentava o mesmo deleite singular que me provocavam, quando era pequena, os contos de minha mãe: estáse no quente, encolhida contra sua mãe e a imaginação segue com embriaguez maravilhada as aventuras das personagens do conto. Somente, o meu conto era sombrio e sangrento, o herói era Sonzogne e o meu encantamento misturavase a uma impotente e melancólica tristeza. Como se quisesse tirar o sentido do conto, recomeçava, revia ainda as fases do crime, sentindo de novo um obscuro prazer e encontravame de novo em face do mistério. Como um homem que salta de um lado para o outro de um precipício mede mal o salto e cai no vácuo, no decurso de uma destas lucubrações adormeci.
Dormi talvez duas horas e acordei; ou, melhor, o meu corpo começou a acordar enquanto o meu espírito, mergulhado numa espécie de torpor, continuava adormecido. Foi com as mãos que comecei a acordar; estendiaas nas trevas como as de um cego, sem conseguir reconhecer o sítio onde estava. Adormecera estendida sobre a cama e agora estava de pé, num lugar estreito, entre muralhas verticais, herméticas e lisas. Veiome imediatamente à ideia uma cela de prisão; e ao mesmo tempo a recordação da criada de quarto que Gino havia feito prender injustamente. Eu era a criada de quarto e a minha alma padecia toda a dor física da injustiça sofrida. Esta dor davame a sensação física de não ser já eu, mas a criada de quarto; sentia que esta dor me transformava, me fechava no corpo desta mulher, me impunha a sua cara, me obrigava aos seus gestos. Levei as mãos à cara, chorava, pensava que me tinham fechado injustamente numa cela e que me era impossível sair de lá. Mas ao mesmo tempo sentia que era ainda a Adriana a quem não tinham feito qualquer injustiça e que não tinha sido aprisionada. E compreendi que me bastaria um gesto para me libertar e deixar de ser a criada de quarto. No entanto, não conseguia adivinhar qual seria esse gesto, sofrendo e desejando desesperadamente sair da minha prisão de angústia e de piedade. Depois, de repente, rodeada desta mesma luz, feita de espasmos e de trevas, que nos deslumbra quando recebemos uma pancada violenta, o nome de Astárito resplandeceu no meu espírito. “Irei ter com Astárito e pedirei que a liberte!”, pensava eu. Estendi de novo as mãos e descobri ao mesmo tempo que as paredes da minha cela se tinham separado, deixando uma estreita abertura vertical por onde eu podia escaparme. Dei alguns passos às escuras, os meus dedos encontraram o interruptor. Acendi a luz com uma febre histérica. O quarto iluminouse. Estava ao pé da porta, nua, anelante, o corpo e a cara molhados de suor frio e abundante. A cela na qual me parecera estar encerrada não era senão o espaço compreendido entre o armário, o canto do quarto e a cómoda: espaço restrito que efectivamente as paredes e os dois móveis quase fechavam. Durante o sono levantarame, e tinhame encurralado ali.
Apaguei de novo a luz e voltei para a cama, medindo os passos. Antes de tornar a adormecer pensei que não podia ressuscitar o ourives, mas que podia salvar, ou pelo menos tentar salvar, a criada de quarto: era a única coisa que contava. Deviao fazer, ainda mais porque acabava de descobrir que não era tão boa como pensava. Pelo menos a minha bondade não excluía o gosto pelo sangue, a admiração pela violência e a simpatia pelo crime.
Na manhã seguinte vestime com cuidado, meti a caixa na mala e saí para telefonar a Astárito. Sentiame estranhamente alegre. A angústia que a revelação de Sonzogne me inspirara na noite anterior desaparecera completamente. Além disso observei mais vezes no decorrer da minha vida que a vaidade é a pior inimiga da caridade e da reprovação moral. Mais do que horror ou medo, eu sentia agora um sentimento de vaidade ao pensar que em toda a cidade eu era a única a saber como fora praticado o crime e quem era o autor. “Eu sei quem matou o ourives”, dizia a mim própria, e tinha a sensação de olhar os homens e as coisas com olhos diferentes. Pareciame que qualquer coisa mudara, mesmo na minha fisionomia, e receava quase que se decifrasse claramente o segredo de Sonzogne na expressão da minha cara. Ao mesmo tempo experimentava um desejo doce, agradável, irresistível, de contar a alguém o que sabia. Como se fosse demasiada a água num vaso muito pequeno para a conter, o segredo transbordava da minha alma e eu sentia a tentação de o lançar para outra. Suponho que é o principal motivo pelo qual tantos criminosos confiam às suas amantes ou às suas mulheres os crimes que cometeram e estas os contam a algum amigo mais íntimo e aquele a outro, até que a informação chega aos ouvidos da polícia, provocando assim a perdição de todos. Mas penso também que, quando confiam os seus actos infames, os criminosos procuram descarregar uma parte de um peso que lhes pareceu intolerável e fazem com que os outros também o carreguem. Como se o crime fosse um fardo que eles pudessem partilhar e repartir por vários ombros até o tornar sem importância. Como se, pelo contrário, ele não fosse uma carga inalienável, cujo peso não diminuiu por estar distribuído por outras pessoas, mas que se multiplica por todos aqueles que aceitam a sua carga!
Percorrendo as ruas para encontrar um telefone público, comprei dois jornais e procurei, nas notícias da cidade. informações sobre o crime da Rua Palestro. Mas muitos dias se tinham passado: não vi senão algumas linhas que exprimiam a decepção no seguinte título: “Nenhuma luz sobre o assassínio do ourives.” Compreendi que, a menos que praticasse qualquer erro grosseiro, Sonzogne podia estar certo de que nunca mais o descobririam. O carácter ilícito das actividades da vítima tornava, por si mesmo, muito difíceis as investigações policiais. O ourives, como diziam os jornais, estava com frequência em contacto, secretamente e por motivos inconfessáveis, com pessoas de todas as classes sociais e de todas as condições; o assassino podia muito bem ser alguém que nunca o tivesse visto antes e que o matasse sem premeditação. Esta hipótese estava muito próxima da verdade. Mas, precisamente porque era justa, deixava ver que a polícia renunciara a descobrir o culpado.
Encontrei um telefone público num restaurante e marquei o número de Astárito. Havia bem umas seis semanas que não lhe telefonava; devo têlo apanhado desprevenido, porque não reconheceu logo a minha voz e respondeume primeiro com o tom expedito que empregava quando estava no seu gabinete. Durante um instante tive a nítida impressão de que ele não queria mais ouvir falar de mim e senti um baque no coração ao pensar na criada de quarto na sua prisão, e na fatalidade que fizera com que Astárito deixasse de amarme no próprio momento em que a sua intervenção era necessária para salvar esta desgraçada. No entanto, o meu próprio susto agradoume porque me deu de novo o sentimento perdido da minha bondade e me fez compreender que a libertação desta mulher era verdadeiramente importante para mim, e que, não obstante as minhas relações com Sonzogne, o assassino, continuava a doce e compassiva Adriana que sempre fora.
Assustada, disse o meu nome a Astárito e ouvi com alívio a sua voz mudar imediatamente de tom e tartamudear enquanto o ritmo das suas palavras se acelerava.
Devo confessar que me senti invadir por uma onda de afeição por ele, porque um amor assim (aliás sempre lisonjeiro para uma mulher) davame segurança e enchiame de gratidão. Marqueilhe encontro com uma voz acariciadora; prometeu vir sem falta e saí do restaurante.
Durante toda aquela noite que passara com pesadelos tinha chovido muito; várias vezes ouvira durante o sono o ruído da chuva misturado com os assobios do vento, formando como uma parede de mau tempo à roda da casa, aumentando a solidão e as trevas nas quais eu me debatia. Mas de madrugada a chuva cessara e os últimos sopros de vento tinham varrido as nuvens, deixando o céu límpido e o ar imóvel e lavado. Depois de ter telefonado a Astárito, comecei a andar ao longo de uma avenida de plátanos, sob os primeiros raios de sol dessa manhã. Do meu penoso e frequentemente interrompido sono não ficara mais que um leve atordoamento que o ar frio me fez em breve passar. A beleza do dia davame uma grande alegria, e todos os objectos sobre os quais os meus olhos pousavam pareciamme dotados de uma sedução que encantava os meus olhos e me alegrava. Gostava das gotas de orvalho em torno das pedras, agora secas. Gostava dos troncos dos plátanos com as escamas sobrepostas da sua casca; brancas, verdes, amarelas, castanhas, e aqui e ali douradas; gostava das fachadas das casas onde as grandes manchas molhadas conservavam ainda o traço da lavagem nocturna; gostava dos transeuntes da manhã; homens que vão apressados para o trabalho, criadas com o cesto no braço, raparigas e rapazes acompanhados dos pais ou dos irmãos, levando pastas e livros. Parei para dar esmola a um velho mendigo, e quando procurava o dinheiro no meu portamoedas, os meus olhos pousaram ternamente sobre o seu velho capote militar e começaram a sentir simpatia pelos bocados com que ele estava remendado nos cotovelos e junto da gola. Eram bocados cinzentos, castanhos, amarelos ou de um verde menos destacado do conjunto; reparei no prazer que sentia ao observar a sua cor e a maneira como eles estavam solidamente cosidos com linha preta, com grandes pontos visíveis, e surpreendime a pensar no trabalho que ele teria tido uma manhã para cortar com a tesoura a parte usada, procurar um bocado em qualquer velho farrapo, ajustálo sobre o buraco e cosêlo com amor. Gostava desses remeados como o esfomeado gosta de ver o pão saindo do forno; afastandome, não pude impedirme de olhar para trás várias vezes para os olhar. Então, de repente, pensei que devia ser bom ter uma vida semelhante àquela tão límpida, tão agradável, tão limpa. Uma vida que tivesse sido lavada de todos os seus aspectos embaciados e permitir olhar tudo com amor, mesmo as coisas mais humildes. Nesse momento senti de novo o desejo, há muito adormecido e mudo, de uma vida normal, com um homem só, numa casa nova, arrumada, clara e limpa. Apercebime de que o meu trabalho não me agradava, se bem que, por uma singular contradição, a minha natureza me levasse para ele. Pensava que este não era um trabalho limpo, que nele havia sempre à minha volta, sobre o meu corpo, sobre os meus dedos, na minha cama, como que uma impressão de suor, de espuma, de calor impuro, de humidade pegajosa que parecia persistir mesmo depois de me ter lavado e de ter arrumado o quarto. Pensava também que esta história de me despir e de me vestir durante quase todo o dia debaixo dos olhares de homens sempre diferentes impediame de considerar o meu corpo com o sentimento de prazer e de intimidade que teria gostado e que me lembro de ter experimentado, ainda rapariguinha, quando me via ao espelho ou quando tomava banho. É uma bela coisa poder observar o nosso próprio corpo como uma coisa nova e desconhecida que floresce, toma vigor e se embeleza sozinha; ora eu para dar de cada vez esta impressão de novidade aos meus amantes roubaraa a mim própria para sempre.
A luz destas reflexões, o crime de Sonzogne, a perversidade de Gino, a infelicidade da criada de quarto e todas as outras intrigas nas quais me debatia apareciamme como consequências da irregularidade da minha vida. Consequências aliás privadas de sentido e que não me davam qualquer impressão de falta nem podiam ser suprimidas, a não ser que eu conseguisse satisfazer as minhas velhas aspirações a uma vida normal. Tomoume um grande desejo de estar em regra em todos os sentidos. Em regra com a moral, que não permitia um ofício como o meu, em regra com a natureza, que impunha que na minha idade uma mulher tivesse filhos, em regra com o gosto, que mandava que se vivesse no meio de belos objectos, que se usasse lindos vestidos frequentemente renovados, que se morasse em casas iluminadas, limpas e cômodas. Somente estas coisas excluíamse umas às outras; se eu estivesse em regra com a moral, não podia estar em regra com a natureza; e o gosto contradizia ao mesmo tempo a moral e a natureza. A esta ideia experimentava o despeito que me era habitual, tão velho como a minha vida, de me saber sempre em dívida com a necessidade e na incapacidade de me satisfazer somente pelo sacrifício das minhas melhores aspirações. Mas apercebiame também mais uma vez de que não tinha aceite inteiramente a minha sorte; e isso davame confiança porque pensava que logo que se proporcionasse ocasião de mudar de vida, eu não seria apanhada desprevenida, mas aproveitaria a ocasião com clarividência e decisão.
Marcara encontro com Astárito ao meiodia, à saída da repartição; tinha ainda algumas horas à minha frente: sem saber o que fazer, decidi ir a casa de Gisela. Havia já algum tempo que não a via; supus que qualquer outro ocupava na sua vida o antigo lugar de Ricardo: meio noivo, meio amante. Gisela, também como eu, esperava regularizar a sua situação; suponho que é uma esperança que têm todas as mulheres da minha espécie. Mas eu era levada a isso por uma inclinação nata, enquanto Gisela, que dava uma grande importância à consideração, era sobretudo por questão de decoro. Ela corava quando se pensava no que ela era, eis tudo, se bem que ela tivesse sido levada a sêlo por uma vocação muito mais profunda que a minha. Eu, ao contrário, não sentia o menor sentimento de vergonha, mas, em certos momentos, uma impressão de servidão e de vida contra a natureza.
Chegada a casa de Gisela, dispunhame a subir a escada quando a voz da porteira me obrigou a parar:
Vai a casa da menina Gisela? Ela já cá não mora.
Para onde foi ela?
Rua Casablanca, 7.
A Rua Casablanca era uma rua nova situada num bairro recente.
Um senhor louro veio buscála de automóvel; levaram as coisas e partiram.
Reparei imediatamente que se viera era justamente para ouvir aquilo, que ela tinha partido com alguém. Não sei porquê experimentei uma brusca impressão de cansaço; as pernas vergaramseme e tive de me apoiar à ombreira da porta para não cair. Mas reagi, e depois de reflectir decidi ir à nova casa de Gisela. Tomei um táxi e disse ao motorista que me levasse à Rua Casablanca.
Quanto mais o táxi avançava, tanto mais nos afastávamos da cidade e das suas velhas casas, alinhadas nas ruas estreitas e encostadas umas às outras. As ruas alargavam, bifurcavam, confluíam para formar praças e tornavamse mais e mais largas; as casas eram novas, e entre duas construções entreviase de vez em quando uma faixa verde que era o campo. Percebi que a minha viagem tinha um sentido oculto, extremamente penoso, e tornavame cada vez mais triste. Lembravame de todos os esforços feitos por Gisela para me roubar a inocência e me tornar igual a ela; e sem o querer, da mesma maneira natural como uma ferida sangra, assim também comecei a chorar.
Quando desci do táxi, tinha os olhos brilhantes e as faces cheias de lágrimas.
Não vale a pena chorar, menina disseme o chauffeur.
Limiteime a abanar a cabeça e encaminheime para a porta da casa de Gisela.
Esta casa era inteiramente branca, de estilo moderno, de construção absolutamente recente como o demonstravam os materiais ainda acumulados no pequeno jardim e as manchas de cal que maculavam as grades. Entrei num hall branco completamente nu; a escada era também branca, com janelas de vidro fosco, deixando passar uma luz suave. O porteiro, um forte rapaz ruivo, de fatomacaco, muito diferente dos velhos porteiros sujos que estava habituada a ver, indicoume o ascensor; premi o botão e o elevador começou a subir. Exalava um agradável cheiro a madeira nova e verniz. No ruído que fazia também se tinha a impressão de se notar qualquer coisa de novo como o trabalhar de um motor em rodagem. O elevador subiu até ao último andar: à medida que subia, a luz aumentava como se não existisse tecto e como se subisse direito para o céu.
Por fim parou, eu saí e encontreime rodeada de uma claridade luminosa, num patamar de um branco ardente. em frente de uma porta de madeira clara com puxadores de cobre lavrados. Toquei: uma criadinha morena e magra veio abrir: tinha uma figura gentil, uma touca de renda e um avental bordado.
A menina Santis? perguntei. Digalhe que está aqui a Adriana.
Deixoume para ir ao fundo do corredor junto de uma porta envidraçada com vidros baços como os da escada. O corredor era também branco e nu como o resto da casa; julguei que o apartamento devia ser pequeno, quatro casas, não mais. Estava aquecido; o calor do irradiador reavivava o cheiro penetrante da cal fresca e da pintura nova. A porta envidraçada abriuse ao fundo do corredor; a criadinha reapareceu e disseme que podia entrar.
Entrando, primeiro nada vi, porque através de um grande vitral o sol de Inverno entrava em jorros deslumbrantes. Era o último andar: através desse vitral só se via o céu azul, resplandecente de sol. Por momentos esqueci a minha visita. Fechando os olhos perante esse sol quente e dourado como um velho vinho, senti uma impressão de bemestar. Mas a voz de Gisela fezme estremecer. Estava sentada em frente do vitral e por cima de uma mesinha semeada de frascos estendia os dedos a uma mulher baixinha e grisalha: a manicura.
Oh! Adriana! Sentate um momento disseme Gisela com falsa atenção, como lhe era habitual.
Senteime ao lado da porta e olhei à minha volta. A sala, vista do lado da janela, era comprida e estreita. A bem dizer quase não tinha móveis: uma mesa, um bufete, algumas cadeiras de madeira clara; mas era tudo novo e sobretudo havia o sol. Este sol tinha qualquer coisa de luxuoso. Há casas ricas pensei eu que não possuem um sol como este. Fechei os olhos gulosamente com doçura e por um momento em nada pensei. Depois senti qualquer coisa pesada e fofa cair sobre os meus joelhos; abri os olhos e vi que era um gato enorme, de uma raça que eu nunca tinha visto, com um pêlo extremamente comprido, fino como seda, de um cinzentoazulado, com um focinho grande, mau e majestoso, que não me agradou. O gato começou a ronronar, roçouse por mim, levantou a sua cauda emplumada e emitiu uns roncos miados. Depois enroscouse sobre os meus joelhos.
Que lindo gato! disse eu. De que raça é?
É um gato persa respondeu com orgulho Gisela. É uma raça muito apreciada. Estes gatos chegam a ser pagos por muito dinheiro.
Nunca tinha visto disse eu acariciando o gato.
Sabe quem tem um gato igual a este? disse a manicura. A senhora Radaelli. Se visse como o amima! Mais que a um cristão! No outro dia perfumouo com o pulverizador... Então. ponho mais uma camada de verniz nas unhas dos pés?
Não, Marta, não vale a pena, por hoje chega disse Gisela.
A manicura arrumou os seus instrumentos e os frasquinhos numa maleta, cumprimentoume e saiu da sala.
Uma vez sós, olhámonos. Gisela também me pareceu toda de novo como a casa. Vestia um bonito tricot de angorá vermelho com uma saia castanha que eu nunca lhe tinha visto. Tinha engordado: debaixo da malha o seio sobressaía mais e as ancas estavam mais amplas. Notei também que tinha as pálpebras um pouco inchadas como as pessoas que comem bem, dormem muito e não têm aborrecimentos.
As pálpebras assim davamlhe um ar ligeiramente sonso. Olhou um instante para as suas unhas e perguntoume, para dizer qualquer coisa:
Que dizes? Gostas da minha casa?
Eu não sou invejosa. Mas nesse momento, talvez pela primeira vez na minha existência, senti a mordedura da inveja e admiravame que houvesse pessoas capazes de manter em toda a sua vida um tal sentimento, por me parecer desagradável e doloroso no mais alto grau. Sentia na cara uma espécie de esticão como se tivesse emagrecido subitamente e esse esgar impossibilitavame de sorrir e de dizer algumas palavras gentis a Gisela, como teria desejado. Experimentava por ela uma aversão encarniçada. Teria querido dizerlhe alguma frase desagradável: ferila, ofendêla, humilhála, qualquer coisa que envenenasse a sua alegria. “Que tenho eu? pensava, confusa, sem deixar de acariciar o gato. Já não sou eu?” Felizmente que estes sentimentos não duraram muito. Logo a bondade existente no fundo da minha alma se revoltou e lutou contra esta súbita inveja. Pensava que Gisela era minha amiga, que a sua sorte me devia ser grata e que devia estar contente por ela.
Imaginei Gisela entrando pela primeira vez na sua casa nova batendo as mãos de alegria: no mesmo instante o frio da inveja desapareceu da minha cara e sentime de novo aquecida pelo belo sol da sala, mas de uma maneira mais íntima, como se o sol tivesse entrado também na minha alma.
Ainda o perguntas? disselhe. Uma casa tão bonita, tão alegre? Como a arranjaste?
Tive a impressão de ter pronunciado estas palavras com sinceridade e sorri; mais para mim própria, como por uma recompensa, do que para Gisela. Respondeume em ar de confidência e familiaridade:
Lembraste de João Carlos, daquele louro com o qual me zanguei logo naquela noite? Pois bem! Algum tempo depois voltou a procurarme... era bem melhor do que me pareceu à primeira vista... Depois tornámonos a encontrar várias vezes... E há alguns dias disseme: “Vem comigo, que quero fazerte uma surpresa...” Eu pensei que me quisesse dar um presente: uma mala, um perfume... Em vez disso meteume no carro, trouxeme aqui, mandoume entrar... A casa estava completamente vazia... Pensei que fosse para ele. Perguntoume se eu gostava, disselhe que sim mas sem imaginar, claro... Então ele disseme: “Aluguei esta casa para ti!” Podes calcular a minha surpresa!
Sorria com ar digno e satisfeito, deitando um olhar à sua volta. Impulsivamente levanteime e fui beijála, dizendo:
Fico bem contente! Bem contente! Podes crer que sinto verdadeiro prazer com isso!
Este gesto acabou por dissipar no meu espírito todo o sentimento hostil que ainda conservava. Encostei a cara à janela e olhei para fora. A casa elevavase sobre uma espécie de promontório debaixo do qual se estendia uma paisagem imensa. Era uma terra cultivada, percorrida por um riachozinho sinuoso, semeada aqui e ali de matas, de quintas, de acidentes de terreno pedregoso. Da cidade só se via, num canto do panorama, um pequeno número de casas brancas, último prolongamento dos arrabaldes. Uma fila de montanhas desenhavase no horizonte sobre o céu azul e luminoso. Volteime para Gisela e disselhe:
Sabes que tens uma vista magnífica?
Não é? respondeume.
Foi ao bufete e tirou dois copinhos e uma garrafa de ventre bojudo :
Tomas um cálice de licor? perguntoume com ar negligente.
Notavase com clareza que todos os gestos de dona de casa a enchiam de satisfação.
Sentámonos à mesa e bebemos o licor em silêncio. Sentia que Gisela estava embaraçada. Fui ao encontro das suas ideias e disselhe com doçura:
Tu não te portaste bem comigo! Podias ao menos terme dito!
Não tive tempo respondeume vivamente. Com a mudança, sabes... E depois tive que comprar tanta coisa: móveis, roupa branca, louças... Nem tinha tempo para respirar... É que é preciso tanta coisa para montar uma casa!
Falava beliscando os lábios como certas senhoras distintas costumam fazer quando falam nestas coisas.
Compreendo disse eu sem sombra de maldade nem de amargura, absolutamente como se se tratasse de uma coisa que não me dissesse respeito. Agora, que estás instalada e que as tuas coisas caminham melhor, não te agrada verme... tens vergonha de mim.
Não tenho vergonha de ti retorquiu com uma leve irritação, mais motivada, pareceume, pelo meu tom razoável que pelas minhas palavras. Se pensas isso, és estúpida. Somente, doravante não nos podemos ver como dantes... quero dizer, não podemos sair juntas e fazer tudo o resto... Se ele viesse a saber, estava arranjada!
Está sossegada disselhe com doçura. Não me tornarás a ver. Hoje vim unicamente para saber o que te tinha acontecido.
Fingiu não ouvir, confirmando assim as minhas suposições. Houve um momento de silêncio. Depois perguntoume com ar de falsa solicitude:
E tu?
Em seguida, com uma espontaneidade que me assustou, pensei em Jaime. Respondilhe com voz embargada:
Eu? Está tudo como de costume.
E Astárito?
Vejoo às vezes.
E Gino?
Acabei com tudo.
A recordação de Gino apertoume o coração. Mas Gisela interpretou à sua maneira a expressão mortificada que o meu rosto deixava transparecer; pensava talvez que eu estava amargurada pela sua sorte e pela sua atitude desdenhosa. Disse com uma delicadeza afectada:
Ninguém me tira da cabeça que bastava tu quereres para Astárito te pôr casa também.
Mas eu não quero Astárito nem outro qualquer respondilhe tranquilamente.
Vi a sua cara desconcertada.
Porquê? perguntoume. Não gostavas de ter uma casa como esta?
A casa é bonita respondi , mas eu gosto mais da minha liberdade.
Eu sou livre disseme, irritada. Mais livre do que tu... tenho o dia todo para mim.
Não é dessa liberdade que eu falo.
Então de qual?
Compreendi que a magoara, mas porque não tinha mostrado admiração suficiente pela casa, de que ela estava tão orgulhosa. Expliqueilhe, no entanto, que de maneira nenhuma desprezava a situação dela, mas que não me queria ligar sem amor a qualquer homem. e feria de novo, mais ainda desta vez. Preferi mudar de conversa e disselhe :
Mostrame a casa... Quantos quartos tens?
Que te importa a casa disseme com desapontamento ingênuo , se acabas de dizer que não gostarias de ter uma casa como esta?
Não foi isso que eu disse respondi com calma. A tua casa é muito bonita. Gostaria até muito de ter uma assim!
Ela não respondeu. Baixou os olhos com ar mortificado:
Então disse eu molemente ao fim de uns instantes , não ma queres mostrar?
Levantou os olhos e vi com espanto que estavam cheios de lágrimas.
Não és a amiga que eu julgava ! gritoume. Tu... tu... estás cheia de inveja... Desprezas de propósito a minha casa para me magoares.
Falava sem me olhar, com a cara cheia de lágrimas. Eram lágrimas de despeito; a invejosa desta vez era ela; sofria de uma inveja sem objectivo e corava sem o saber pelo meu amor desesperado por Jaime e pelo desprendimento amargo que este amor me dava. Mas, compreendendoa tão bem, e porque a compreendia, senti pena dela. Levanteime, aproximeime e pouseilhe a mão no ombro.
Porque dizes isso? Não sou invejosa... Não são estas coisas que eu invejo. Mas estou contente por te saber feliz. Então, vá, mostrame os outros quartos disselhe beijandoa.
Assoouse e pareceume desejar fazêlo:
São só quatro disseme , e estão quase vazios.
Mostramos.
Levantouse, precedeume no corredor, abriu várias portas e mostroume o quarto, onde havia só uma cama, um sofá aos pés da cama, um quarto vazio onde ela tinha a intenção de pôr mais uma outra cama para os convidados e o quarto da criada, que não era mais que um cubículo. Mostroume estas três casas com uma espécie de despeito, explicandome com brevidade o seu respectivo uso e sem tirar qualquer prazer disso. Mas a sua vaidade era mais forte do que o seu mau humor quando me mostrou a casa de banho e a cozinha, ambas revestidas de azulejos, com engenhos eléctricos novos e torneiras cintilantes... Explicoume a maneira como funcionavam esses aparelhos, a sua superioridade sobre a aparelhagem de gás, o seu asseio e o seu rendimento; e se bem que o meu espírito andasse longe, fingi desta vez interessarme pelas suas explicações com exclamações de admiração e de surpresa. Ficou tão contente com a minha atitude que me disse, uma vez acabada a visita:
Vamos lá dentro tomar outro cálice de licor.
Não, não respondilhe. Tenho de me retirar.
Porquê esta pressa? Espera um momento.
Não posso.
Estávamos no corredor. Hesitou um momento, depois declaroume :
Gostava que voltasses. Sabes o que podemos fazer? Ele vai com frequência a Roma... Um destes dias mando dizerte, arranjamos dois dos teus amigos e passamos um bom bocado.
Mas se ele sabe?
E porque háde saber?
Está bem disse eu. Fica combinado.
Hesitei por minha vez, depois pergunteilhe corajosamente :
A propósito, dizme uma coisa... e ele nunca te falou do amigo que o acompanhava naquela noite?
O estudante? Porque? Interessate?
Não, é só para saber...
Ainda ontem à noite o vimos.
Não consegui dissimular mais a minha perturbação.
Ouve disselhe com a voz mal segura , se o vires dizlhe que venha ter comigo.. mas dizlhe sem parecer ligar grande importância ao assunto.
Está bem respondeume. Eu digolhe.
Mas ela perscrutavame com ar desconfiado e eu, sob o seu olhar, perdi a segurança, porque me parecia que o meu amor por Jaime estava escrito na minha cara em letras bem visíveis. Pelo tom da sua resposta compreendi que não faria o que lhe pedira. Desesperada, abri a porta, pedi licença e desci a escada com rapidez sem olhar para trás. No segundo andar parei e apoieime à parede olhando para cima. “Porque lhe disse isto? pensava. Que se passou em mim?” Continuei a descer, de cabeça baixa.
Tinha marcado encontro com Astárito em minha casa. Quando cheguei estava esgotada; já não estava habituada a sair de manhã; todo este sol e todas estas idas e vindas me tinham fatigado. Sentiame triste; a minha visita a Gisela já a tinha expiado quando chorara no táxi que me transportara à sua casa nova. Foi minha mãe quem me abriu a porta, dizendome que alguém me esperava há mais de uma hora no meu quarto. Fui directamente para lá e senteime na beira da cama, sem me importar com Astárito, que, de pé, em frente da janela, parecia olhar para o pátio. Fiquei um momento imóvel, com a mão sobre o coração, ofegante, tanto correra pelas escadas acima. Estava de costas voltadas para Astárito e olhava com ar abstracto para a porta do quarto: ele tinhame dado os bonsdias, mas nem sequer lhe respondera. Veio sentarse ao pé de mim e, passandome a mão pela cintura, olhoume fixamente.
No meio de todas as minhas preocupações esquecera a sua louca sensualidade, sempre viva e aguçada. Acheia intolerável.
Então tu tens sempre desejo? disselhe lentamente, num tom desagradável e recuando.
Não respondeu, tomoume a mão e levoua aos lábios com um olhar submisso.
Tens sempre desejo? repeti. Mesmo a esta hora? Depois de teres trabalhado toda a manhã? Em jejum? Antes do almoço? Sabes que és extraordinário?
Mas eu amote disseme. Vi os lábios tremeremlhe e os olhos franziremselhe.
Mesmo assim... disselhe. Há uma hora para o amor e uma hora para o resto. Marqueite encontro justamente a esta hora para que compreendesses que não era de amor que se tratava... e tu, ao contrário... Não tens vergonha?
Olhavame fixamente sem responder. Bruscamente tive a impressão de o compreender demasiado bem. Ele amavame e este encontro esperavao há não sei quantos meses. Enquanto eu me debatia no meio de mil dificuldades, ele não tinha feito outra coisa senão pensar nas minhas pernas, no meu seio, nas minhas ancas, na minha boca!
Então disselhe mais branda , se eu me despir...
Ele disse que sim com a cabeça. Deume vontade de rir, sem maldade, mas não sem despeito.
E a ideia de que me possa sentir triste ou simplesmente longe de todas estas coisas nunca te passa pela cabeça? Que posso ter fome, estar cansada... ou ainda ter outras preocupações... Isso nunca te ocorre, não?
Olhavame. De repente atirouse sobre mim, abraçoume com força e aconchegou a cabeça na cavidade do meu ombro. Não me beijava, contentavase em apoiar a cara contra a minha carne para sentir o seu calor. Respirava com força e de vez em quando suspirava. Agora já não estava irritada com ele; os seus gestos suscitavamme pelo menos a compaixão e a consternação que me eram habituais: já não estava triste. Quando achei que ele já tinha suspirado bastante, repelio e disselhe:
Preciso de falar contigo de uma coisa muito séria.
Olhoume, segurou a minha mão e começou a acariciála. Era persistente. Realmente para ele nada mais existia que o seu desejo.
Tu és da polícia, não és? pergunteilhe.
Sou.
Pois bem! Então mandame prender e meteme na prisão!
Disselhe isto em tom resoluto. Naquele momento desejava realmente que ele o fizesse.
Mas porquê? Que te aconteceu?
Aconteceu que sou uma ladra! disselhe com força. Acontece que roubei e que prenderam uma inocente por minha causa... portanto é preciso que me prendam; irei para a prisão de boa vontade. É isso que eu quero.
Não me pareceu admirado, mas apenas contrariado. Fez uma careta e disse:
Explicate!
Já acabei de te dizer... sou uma ladra!
Em poucas palavras conteilhe o roubo e expliqueilhe como tinha sido presa a criada de quarto. Falei do estratagema de Gino, mas sem o nomear; disse somente: “um criado”. Mas desejava imenso falarlhe de Sonzogne e do seu crime; fiz um esforço enorme para me conter. Concluí:
Agora escolhe: ou libertas esta mulher da prisão... ou vou hoje mesmo entregarme ao comissariado.
Devagarinho!... repetia levantando a mão. Não há urgência alguma. Essa mulher está na prisão, mas não foi condenada. Esperemos.
Não... não posso esperar. Ela está presa e parece que lhe batem... não posso esperar... Agora és tu quem tem de decidir...
O meu tom fezlhe compreender que estava a falar sério. Levantouse com uma expressão descontente e deu alguns passos pelo quarto. Depois disse como se falasse consigo próprio :
Ainda há a história dos dólares.
Mas ela negou sempre... depois de lhos terem encontrado... podemos dizer que era uma vingança de alguém que a detesta.
E a caixa, temna?
Está aqui! disselhe tirando o objecto da mala e dandolho.
Ele recusouse a aceitálo.
Não, não disseme , não é a mim que o tens de dar.
Hesitou um momento, depois acrescentou:
Posso conseguir libertar essa pobre mulher, mas é preciso que ao mesmo tempo a policia tenha a prova da sua inocência... esta caixa precisamente.
Pronto! Vai restituí-la à sua proprietária.
Teve um riso desagradável.
Como se vê que nada percebes destas coisas! disseme. Se és tu quem me dá a caixa, sou moralmente obrigado a mandarte prender... Senão dirão: como é que Astárito tem o objecto roubado, quem lho deu e como? Não, tens de arranjar maneira de fazer chegar a caixa às mãos do comissário, mas sem te descobrir.
Posso mandála pelo correio?
Não, pelo correio, não.
Deu ainda alguns passos pelo quarto e depois veio sentarse ao meu lado e disseme:
Vais fazer o seguinte... Conheces algum padre? Lembreime do monge francês ao qual me confessara depois do passeio a Viterbo.
Sim respondilhe , o meu confessor.
Confessaste ainda?
Confessavame.
Bem... vai procurar o teu confessor e contalhe o que fizeste como acabas de mo fazer a mim... rogalhe que devolva a caixa ao comissariado... nenhum confessor pode recusar uma coisa destas... ele não é obrigado a fornecer qualquer indicação porque está ligado ao segredo da confissão. Um ou dois dias depois, telefonarei e agirei... por fim a tua criada de quarto será posta em liberdade.
Senti uma alegria tão grande que não me contive e deiteilhe os braços à roda do pescoço e beijeio. Continuou já com a voz trêmula de volúpia:
Mas não deves tornar a fazer destas coisas. Quando precisares de dinheiro, não tens mais que me pedir...
Posso ir hoje mesmo procurar o confessor?
Com certeza!
Tinha ficado com a caixa na mão. Fiquei muito tempo imóvel com o olhar perdido. Sentia um grande alivio, como se fosse eu a criada de quarto. Tinha realmente a impressão de ser ela ao pensar no alivio que ela experimentaria, bem maior que o meu quando a libertassem! Já não me sentia triste, nem cansada, nem desgostosa. Entretanto, Astárito, introduzindo os dedos em volta do meu pulso, procurava subir ao longo do braço por debaixo da manga. Volteime e disselhe com doçura e com voz acariciadora :
Ainda continuas a desejarme?
Incapaz de falar, disse que sim com a cabeça.
Não te sentes cansado? continuei com voz terna e cruel. Não achas que é tarde, que seria melhor deixar para outro dia?
Vio fazer um gesto negativo com a cabeça.
Amasme assim tanto? pergunteilhe.
Sabes bem que te amo respondeu em voz baixa. Fez menção de me beijar. Liberteime e disse:
Espera!
Acalmouse logo porque compreendeu que eu tinha acedido. Levanteime, dirigime lentamente para a porta e dei volta à chave na fechadura. Depois fui à janela, abria, corri as persianas e fechei as portas. Ele seguiame com os olhos enquanto eu girava pelo quarto, com uma atitude cheia de complacência, de preguiça, de majestade. Sentia o seu olhar sobre mim e compreendia até que ponto a minha aceitação inesperada lhe era agradável. Logo que puxei as persianas comecei a cantarolar em surdina com voz íntima e alegre. Sempre cantarolando, abri o armário, tirei o casaco e pendureio. Depois, sem cessar de cantar em voz baixa. olheime no espelho. Tive a impressão de nunca ter estado tão bonita, com os olhos brilhantes, doces e profundos, as narinas frementes, a boca entreaberta sobre os meus dentes regulares e brancos. Compreendi que era bela porque estava contente comigo própria e porque me sentia boa. Cantei um pouco mais alto e comecei a desabotoar o vestido de baixo para cima. Cantava uma canção completamente idiota que estava muito em voga nessa altura e dizia:
- Canto esta canção de que gosto tanto, que faz dlin dlon, dlin dlon, dlin dlon!
Esta cançoneta pateta pareciame a própria vida, absurda sem dúvida, mas por vezes também doce e sedutora. Bruscamente, quando já estava com o peito nu, alguém bateu à porta.
Mais logo disse eu. Agora não posso.
É uma coisa urgente respondeu a voz de minha mãe.
Desconfiei de qualquer coisa, abri a porta e espreitei.
Minha mãe fezme sinal para sair e fechar a porta. Depois sussurroume :
Está uma pessoa na sala que quer falarte por força.
Quem é?
Não sei. É um rapaz moreno.
Abri devagarinho a porta da sala e olhei. Vi um homem virado de costas para mim, encostado à mesa. Depois recomendei a minha mãe:
Dizlhe que venho já... Não o deixes sair da sala.
Ela disseme que ficasse descansada que o faria e tornei a entrar no quarto.
Astárito estava ainda sentado na cama como eu o tinha deixado :
Depressa, depressa! Tenho pena, mas preciso de que te vás embora!
Perturbouse e começou a balbuciar quaisquer protestos. Não o deixei acabar e continuei:
A minha tia adoeceu de repente no meio da rua e eu e minha mãe temos de ir já ao hospital... Depressa, depressa!
Era uma mentira bastante grosseira, mas naquele momento foi a única que me ocorreu. Olhavame aparvalhado, como se não acreditasse na sua pouca sorte. Reparei que tinha tirado os sapatos e que tinha umas meias listadas.
Então! Porque me olhas assim? Tens de te retirar! insistia eu, desesperada.
Está bem, voume embora.
Baixouse para calçar os sapatos. De pé, na sua frente, estendialhe já o casaco. Compreendi que teria de lhe fazer alguma promessa se quisesse que interviesse a favor da criada de quarto.
Ouve acrescentei, ajudandoo a vestir o sobretudo , estou realmente vexada... mas volta amanhã à noite... depois do jantar... podemos estar juntos com tranquilidade... agora teria que te deixar logo em seguida... assim é melhor.
Ele não respondeu e eu acompanheio até à porta, conduzindoo pela mão, como se fosse a primeira vez que ele tivesse vindo a minha casa, tal era o medo de que ele entrasse na sala onde Jaime me esperava.
Ouve disselhe. Olha que vou hoje mesmo falar ao confessor.
Respondeu que sim com a cabeça para dizer que era conveniente. Tinha uma expressão ofendida e gelada. Na minha Impaciência, nem esperei que ele se despedisse e fecheilhe a porta.
Enquanto me aproximava da porta da sala grande e punha a mão no puxador, compreendi de repente que, a menos que sucedesse um milagre, eu arriscavame a criar entre mim e Jaime as lamentáveis relações que existiam entre mim e Astárito. E apercebime de que o sentimento de timidez, de receio e de cego desejo que eu inspirava a Astárito era o mesmo que eu sentia por Jaime.
Compreendendo perfeitamente que se quisesse ser amada me devia portar de uma maneira diferente, sentiame invencivelmente impulsionada pelo desejo de me colocar perante a sua pessoa numa posição de dependência, de ansiedade, de sujeição. Quais poderiam ser os motivos da minha posição de inferioridade não saberia dizer: se os tivesse conhecido, esta posição deixaria de existir. O meu instinto advertiame apenas de que éramos feitos de maneira diferente e que eu era mais resistente do que Astárito, mas mais frágil que Jaime: que da mesma maneira que qualquer coisa me impedia de amar Astárito, alguma coisa também havia que impedia Jaime de me amar; que da mesma forma como o amor de Astárito por mim, o meu amor por Jaime nascera sob mau signo e acabaria ainda pior. O coração saltavame do peito e tinha a respiração entrecortada antes de o ver e de lhe falar. Estava cheia de medo de dar um passo em falso, de lhe fazer notar a minha ansiedade e o desejo que tinha de lhe agradar e ao mesmo tempo o receio de o perder para sempre. esta seguramente a pior maldição do amor; nunca é suficientemente retribuído: quando se ama não se é amado e quando nos amam não correspondemos. Nunca acontece dois amantes terem a mesma força de desejo e de sentimento, se bem que este seja o ideal para o qual todos os homens tendem, cada um por sua conta. Sabia com certeza que desde o momento em que me apaixonasse por Jaime ele não estaria apaixonado por mim. E sabia também, sem querer confessálo a mim própria, que, por mais que fizesse, nunca conseguiria que ele me tivesse amor. Tudo isto me passou pelo espírito enquanto esperava. mortalmente perturbada, atrás da porta da sala grande. Sentiame completamente aturdida, pronta a cometer as maiores tolices, e isso irritavame o mais possível. Acabei por me encher de coragem e entrei.
Estava ainda na posição em que o vira quando espreitara pela porta entreaberta, apoiado à mesa, de costas para a porta. Ouvindome entrar, voltouse, olhoume com ar hesitante, atento e crítico e disseme:
Passei por tua casa e lembreime de te fazer uma visita... achas que fiz mal?
Reparei que falava devagar, como se quisesse observarme antes de pronunciar as palavras, e eu tremia à ideia de que talvez lhe parecesse menos sedutora que a recordação que o levara a procurarme depois de tanto tempo. Encorajoume a lembrança de que pouco antes, quando me olhara ao espelho, me achara bela. Respondilhe ansiosa:
De maneira nenhuma. Fizeste muito bem... ia sair para almoçar... Vamos almoçar juntos!
Mas tu reconhecesme? perguntoume, talvez com ironia. Sabes quem eu sou?
Se te reconheço! disse eu, brincalhona.
E antes que a minha vontade dominasse os meus gestos, já lhe tinha pegado na mão e levado aos lábios, olhandoo com amor. Ele perdeu um pouco a serenidade e isso deume prazer.
Porque nunca mais deste sinal de vida, grande maroto! disselhe com voz terna.
Abanou a cabeça e respondeu:
Tenho tido muito que fazer.
Eu perdera completamente a cabeça. Dos lábios levei a mão ao coração, abaixo do seio, e disselhe:
Sente como o meu coração bate!
Mas ao mesmo tempo chamavame idiota, porque pensei que não deveria fazer nem dizer aquilo.
Fez uma careta um pouco aborrecida; então, assustada. acrescentei depressa:
Vou vestir o casaco. Volto já. Espera.
Sentiame tão transtornada e tinha tanto medo de o perder que, uma vez no vestíbulo, fechei rapidamente à chave a porta da escada e tireia da fechadura. Se ele quisesse aproveitar o momento em que eu me vestia para se safar não lhe seria possível. Em seguida entrei no quarto e, diante do espelho, tirei o resto da pintura da boca e dos olhos com um canto do lenço. Depois tornei a pôr bâton, mas muito levemente. Fui ao bengaleiro buscar o casaco, não o encontrei e sentime completamente perdida; depois lembreime de que o tinha pendurado no armário, tireio e vestio. Olheime no espelho e pareceume que o penteado que tinha chamava demasiado a atenção. Rapidamente, com algumas penteadelas, arranjei o cabelo como o usava na época em que era a noiva de Gino. Mas enquanto me penteava jurei solenemente que de futuro dominaria a minha paixão e não teria nem gestos nem palavras irreflectidos. Por fim estava pronta. Passei pelo vestíbulo e cheguei à porta da sala grande para chamar Jaime.
Mas quando saímos, a porta da escada que eu tinha esquecido que fechara à chave revelou o meu subterfúgio.
Tinhas medo que eu saísse! murmurou enquanto eu, confusa, procurava a chave na mala.
Ele agarrou a chave e foi ele próprio quem abriu a porta, olhandome com um abanar de cabeça que parecia reprimir uma afectuosa severidade. O meu coração encheuse de alegria e corri atrás dele na escada, segureilhe o braço e pergunteilhe esbaforida:
Não ficaste contrariado, pois não?
Não respondeu.
Na rua começamos a caminhar ao sol, de braço dado, ao longo das portas e das lojas. Estava tão feliz de andar ao seu lado que esqueci completamente os meus juramentos, e quando passamos em frente do pequeno pavilhão do torreão foi como se alguém pegasse na minha mão e a forçasse a apertar a sua. Apercebime de que me inclinava para a frente para o olhar melhor e lhe dizia:
Sabes que estou bem contente de te ver?
Fez a sua careta habitual de embaraço e respondeume:
Também estou contente mas num tom que não condizia com as suas palavras.
Mordi os lábios até fazer sangue e desentrelacei os meus dedos dos seus. Não pareceu dar por isso; olhava à sua volta com ar distraído. A porta das muralhas parou e pronunciou numa voz reticente:
Ouve, devo dizerte uma coisa.
Diz!
Foi realmente por acaso que vim verte... e também por acaso não tenho nem um soldo no bolso. Por isso é melhor que nos separemos.
E dizendo isto estendiame a mão. Comecei por experimentar um grande pavor: “Ele deixame”, pensava e, no meu desespero, não via outra solução senão agarrarme ao seu pescoço chorando e suplicando. Mas o meu segundo movimento fezme encontrar, no próprio pretexto que ele encontrara antes para me abandonar, uma solução fácil e mudei de sentimento. Pensei que podia pagar a refeição, e a ideia de lhe pagar da mesma maneira que toda a gente me pagava a mim seduziume. Já tenho falado no prazer sensual que sentia de cada vez que recebia dinheiro dos homens. Descobrira agora que havia em pagarlhe um prazer também forte, e que a mistura do amor e do dinheiro seja o dinheiro dado ou recebido não era somente uma questão de proveito. Impetuosamente griteilhe:
Mas não penses nisso! Serei eu quem pagará! Olha: tenho dinheiro.
Abri a mala e mostreilhe algumas notas que metera lá na véspera à noite.
Ele disse com uma espécie de decepção:
Mas isso não se faz!
Que importância tem isso? Tu voltaste: é justo que festeje o teu regresso!
Não, não, não quero!
De novo fez menção de estender a mão e de se ir embora. Mas desta vez agarreio pelo braço declarandolhe:
Vá! Depressa! Não falemos mais nisso!
E dirigime para o restaurante. Sentámonos à mesma mesa que da primeira vez. Tudo estava como então, à parte um raio de sol invernal que penetrava pelos vidros da porta, iluminando as mesas e a parede. O dono da casa trouxenos a lista e eu dei as ordens num tom seguro e protector, parecido com aquele que empregavam comigo os meus amantes. Enquanto encomendava o almoço, ele conservouse em silêncio, de olhos baixos. Esquecerame de pedir vinho porque não bebia; mas lembreime de que na primeira vez ele bebera; tornei a chamar o homem e encomendeilhe um litro.
Logo que ele se afastou, abri a mala, tirei uma nota, dobreia em quatro, olhei à minha volta e estendia por debaixo da mesa ao meu companheiro.
Olhoume com ar interrogativo.
É o dinheiro disselhe em voz baixa. Assim, quando quiseres, podes pagar.
Ah! O dinheiro disse lentamente.
Apanhou a nota, desdobroua em cima da mesa, olhoua, depois tornou a dobrála, abriu a minha mala e tornou a metêla lá com uma seriedade ligeiramente irônica.
Queres que seja eu a pagar? perguntei, desconcertada.
Não respondeu tranquilamente. Eu pagarei.
Mas então porque me disseste que não tinhas dinheiro?
Hesitou, depois respondeu com uma sinceridade cheia de amargura:
Não foi por acaso que te procurei. Para te dizer a verdade. há um mês que penso em vir. Mas quando me encontrei diante de ti desejei tornar a irme embora. Então lembreime de te dizer que não tinha dinheiro: esperava que tu me mandasses para o diabo. Sorriu e passou a mão pelo queixo:
Enganeime, ao que parece acrescentou.
Fora então uma espécie de experiência que ele fizera comigo. Mas não me desejava. Ou, para ser mais exacta, a atracção que sentia por mim era combatida por uma aversão igualmente forte. De futuro reconheceria nesta faculdade de mentir e de representar um papel para fazer uma experiência uma das suas características principais. Naquele momento sentiame deveras perturbada e perguntava a mim própria se me devia lamentar ou felicitar pela sua astúcia e pela sua desfeita.
Porque te querias ir embora? pergunteilhe maquinalmente.
Porque compreendi que não experimentava qualquer sentimento por ti... ou, mais exactamente, um desejo como aquele que o meu amigo sente pela tua camarada.
Sabes que eles vivem juntos? disselhe.
Sim respondeume com ar de desprezo. São feitos um para o outro.
Nada sentes por mim repeti , e vieste? No meu amor decepcionado (decepção que eu, de resto, previra) tinha prazer em lhe fazer notar a sua inconsequência.
Pareceme respondeu que eu sou o que vulgarmente se chama um carácter fraco.
Vieste e isso bastame - disselhe cruelmente.
Alonguei a mão por debaixo da mesa e pouseilha sobre os joelhos, olhandoo. A este contacto vio perturbarse e notei que o queixo lhe tremia. Senti prazer em vêlo tremer; compreendi que, apesar de me desejar tanto como acabara de me dizer quando me confessara ter pensado durante um mês em me vir ver, havia uma parte dele próprio que me era hostil e que era contra essa parte que eu deveria dirigir os meus esforços a fim de a humilhar e destruir. Lembreime do seu olhar passando como um fio sobre as minhas costas nuas na primeira vez em que estivemos juntos; fizera mal em me deixar gelar por aquele olhar, que se eu tivesse persistido nos meus esforços para o seduzir, esse olhar se teria extinto da mesma maneira que neste momento a dignidade convulsa da sua cara caíra e se evaporara. Inclinada sobre a mesa como se lhe quisesse falar em voz baixa, acariciavao e espiava com o olhar um olhar que eu sentia alegre e satisfeito o efeito da minha carícia sobre o seu rosto. Olhavame com o ar interrogativo e magoado dos seus grandes olhos brilhantes com longos cílios de mulher. Acabou por me dizer:
Se te chega agradaresme desta maneira, podes continuar.
Endireiteime imediatamente. Quase no mesmo instante o patrão trouxe a comida. Começamos os dois a comer, sem apetite.
No teu lugar procuraria obrigarme a beber disseme.
Porque?
Porque quando estou embriagado faço com mais facilidade aquilo que os outros querem.
A frase que tinha já pronunciado: “Se te chega agradaresme desta maneira, podes continuar!” tinhame magoado. O que ele dizia a respeito do vinho convenceume da inutilidade dos meus esforços. Desesperada, respondilhe:
Quero que faças só aquilo que te apetecer. Se te queres ir embora, não tens mais que ir... a porta está ali.
Para me ir embora disse ele num tom brincalhão - era preciso que tivesse a certeza de o desejar!
Queres que seja eu a irme embora?
Olhamonos. A minha dor davame a segurança da minha resolução. Esta atitude pareceu perturbálo tanto como as carícias que lhe fizera primeiro:
Não disseme com esforço. Fica.
Recomeçamos a comer em silêncio. Depois vio encher um grande copo de vinho e esvaziálo de um trago.
Vês? Estou a beber disseme.
Vejo.
Daqui a pouco estou bêbado. Então já serei bem capaz de te fazer uma declaração!
Estas palavras trespassaramme o coração. Tive a impressão de que já não podia continuar a sofrer desta maneira.
Ouve disselhe humildemente. Não me atormentes mais!
Atormentote?
Sim, metesme a ridículo. Mas eu não te peço outra coisa senão que não te preocupes mais comigo. Apaixoneime por ti... acabará por passar... Mas por enquanto deixame tranquila.
Não respondeu e bebeu o segundo copo de vinho. Temi têlo ferido e pergunteilhe:
Que queres? Estás zangado comigo?
Eu? Pelo contrário.
Se te agradar troçar de mim, podes fazêlo; dizia aquilo só por dizer.
Mas eu não faço troça de ti.
E se te dá prazer dizeresme maldades insistia eu, tomada de não sei que desejo de me mostrar submissa com ele, sem manobras nem cálculos , podes dizêlas... não te amarei menos por isso; amarteei ainda mais! Se me batesses, beijaria a mão com a qual me tivesses batido.
Olhavame com atenção e parecia extraordinariamente embaraçado. Era evidente que a minha paixão o desconcertava. Acabou por dizer:
Vamos embora?
Para onde?
Para tua casa.
Estava tão desesperada que tinha quase esquecido o motivo do meu desespero. A um convite tão inesperado, quando ainda nem sequer tínhamos comido o primeiro prato e metade do vinho ainda estava no jarro, senti mais estupefacção que prazer. Pensava que não era o amor mas o embaraço que o levava a interromper o almoço e disselhe:
Estás sobre brasas para me deixar, não é?
Como percebeste? perguntoume.
Esta resposta, demasiado cruel para ser verdade, encorajoume, respondilhe baixando os olhos:
Sabes... há coisas que se compreendem logo! Não, vamos acabar de comer; depois vamonos embora!
Como quiseres... mas vou embebedarme.
Embebedate... Nada tenho com isso!
Mas vou embebedarme até me fazer mal... e então em vez de um amante para amar, tens um doente para tratar.
Tive a ingenuidade de lhe mostrar o meu receio. Estendi a mão para o jarro e disselhe:
Não bebas mais.
Desatou a rir e disse:
Caíste no laço!
Qual laço?
Não te aflijas, que eu não adoeço assim com essa facilidade!
Só o fazia por ti disselhe, humilhada.
Por mim? Oh! Oh!
Continuou a arreliarme. Mas conservava nas suas alfinetadas a gentileza que lhe era natural, se bem que isso não me contrariasse muito.
Mas tu, também, porque não bebes? perguntou.
Não gosto. Além disso, a mim bastame um copo para me embriagar.
Que mal pode fazerte? Ficaremos os dois alegres.
É feio uma mulher embriagada; não quero que me vejas assim!
Porquê? Que tem isso de feio?
Não sei. É feio ver uma mulher cambalear, dizer disparates, fazer gestos inconvenientes... É triste. Eu sei que sou uma desgraçada e sei que tu também pensas o mesmo de mim, que sou uma desgraçada. Mas se bebesse e tu me visses embriagada, nunca mais me poderias ver.
E se te ordenasse que bebesses?
Queres por força aviltarme! disse, reflectindo. A única coisa boa que tenho é não ser ignóbil... Queres realmente que eu perca até mesmo esta qualidade?
Quero! disseme com ênfase.
Não percebo em que te pode isso dar prazer! Mas se o desejas muito, está bem, serveme vinho! disselhe.
E estendi o copo.
Olhou o copo e, depois de me olhar também, desatou a rir outra vez:
Estava a brincar disse.
Nunca deixas de brincar!
Então tu não és ignóbil repetiu passado um momento em que me olhara em silêncio.
É o que dizem, pelo menos.
Julgas que eu também o penso?
Como heide eu saber o que pensas?!
Vejamos... que julgas tu que penso de ti e sinto por ti?
Não sei disse eu lentamente cheia de pavor. Certamente que não me amas como eu te amo. Talvez eu te agrade como uma mulher pode agradar a um homem quando não é de todo feia.
Ah! Então achas que não és de todo feia?
Disso tenho a certeza disse com orgulho. Sei mesmo que sou muito bonita. Mas de que me serve a beleza?
A beleza para nada serve.
Entretanto, tínhamos acabado de comer e esvaziáramos quase dois jarros de vinho.
Como vês disseme , bebi e não estou bêbado. Mas os seus olhos brilhantes e a agitação das mãos contradiziam as suas palavras. Olhavao talvez com um ar esperançado.
Queres voltar para casa? disseme. É Vênus toda inteira agarrada à sua presa.
Que estás a dizer?
Nada. São uns versos franceses. Hep! Chefe! Era sempre um pouco enfático, mas de uma maneira cômica. E foi de uma maneira cômica que interpelou o patrão e lhe meteu o dinheiro debaixo do nariz, juntandolhe uma gorjeta excessiva e declarando:
Este dinheiro é para si!
Em seguida bebeu o resto do vinho e veio ter comigo. Já na rua, sentia uma grande pressa de chegar a casa.
Sabia que era de má vontade que ele voltava comigo; sabia que me desprezava e detestava o sentimento que o impelia para mim sem que o pudesse impedir. Mas eu tinha a maior confiança na minha beleza e no meu amor por ele e estava impaciente por afrontar a sua hostilidade com essas armas; sentia de novo uma vontade agressiva e alegre, e que o meu amor seria mais forte do que a sua aversão, que ao calor da minha chama o seu metal duro acabaria por se fundir e ele amarmeia por sua vez.
Caminhando a seu lado na grande avenida deserta às primeiras horas da tarde, disselhe:
Vais prometerme que, uma vez em minha casa, não procurarás irte embora.
Prometo.
Vais prometerme ainda outra coisa.
Qual?
Hesitei, depois disse:
Da outra vez tudo se teria passado bem se não te tivesses posto, a certa altura, a olhar para mim de uma maneira que me envergonhou. Tens de me prometer que não tornas a olharme daquela maneira.
De que maneira?
Não sei... de uma maneira maldosa.
Não se comanda o olhar disseme. Se quiseres, nem te olharei, fecharei os olhos. Está bem?
Não, não está! insisti com obstinação.
Mas de que maneira queres que olhe para ti?
Como eu te olho respondilhe.
Sem parar, segureilhe o queixo e mostreilhe a maneira como me devia olhar.
Assim, com doçura.
Ah! Ah! Com doçura!
Quando chegamos à minha escada suja e lúgubre, não pude impedirme de me lembrar da casa de Gisela, branca, asseada e límpida. E disse como se falasse comigo:
Se eu não morasse numa casa suja, se não fosse a desgraçada que sou, com certeza te agradaria mais!
Parou de repente, seguroume pela cintura com as duas mãos e disseme num tom sincero:
Se pensas isso, podes estar certa de que te enganas. Pareceume ver nos seus olhos qualquer coisa muito parecida com afecto. Ao mesmo,tempo curvouse sobre mim e procuroume a boca. O seu hálito cheirava muito a vinho. Nunca pude suportar o cheiro do vinho, mas neste momento, na sua boca, pareciame agradável e puro, quase comovente, como o seria na boca de uma criança inexperiente. Compreendi que as minhas palavras tinham, sem que o tivesse procurado, tocado o seu ponto sensível. Pareceume, como já disse, ter feito nascer nesse momento na sua alma a centelha da afeição. Em seguida percebi que ele agia mais por ponto de honra e que, ao beijarme, não obedecia tanto a um gesto de amor, que não sentia, como, à sua maneira, a uma espécie de chantagem moral. Mais tarde estimuleio da mesma maneira mais vezes, acusandoo de me desprezar pela minha pobreza e pela minha profissão. Obtive sempre o mesmo resultado favorável aos meus desejos, ao mesmo tempo que completava o meu conhecimento da sua pessoa um conhecimento singularmente humilhante e falaz. Mas nesse dia não o conhecia ainda como depois. E esse beijo deume uma grande alegria, como se fosse uma vitória definitiva. Satisfeita com o gesto, contenteime em aflorar os seus lábios, pegarlhe na mão e dizerlhe:
Vamos. Vamos para cima! Corre! e puxavao, fazendoo galgar alegremente até ao último andar. Ele deixavase levar sem pronunciar palavra.
Cheguei ao meu quarto quase a correr, arremessandoo como a um boneco contra a parede do vestíbulo. Entrei violentamente, e assim que cheguei junto da cama atireio para lá. Só então percebi que ele não estava apenas bêbado, mas, como me prevenira, parecia sentirse mal. Estava extremamente pálido, passava a mão pela testa como se estivesse tonto e tinha nos olhos um brilho vacilante e perturbado. Vi tudo isso apenas com um olhar e fiquei logo com medo de que desmaiasse, e que do nosso segundo encontro nada resultasse outra vez. Por um instante, ao andar de um lado para o outro para me despir, senti um vivo remorso, como que um desespero, por não o ter impedido de beber. Mas notese que nem sequer me passou pela ideia renunciar a este amor tão desejado. Só tinha uma esperança: que não se sentisse mal a ponto de não me poder amar, ou que, se a indisposição fosse verdadeiramente forte, os seus efeitos se fizessem sentir depois, e não antes, de ter satisfeito o meu desejo. Estava realmente apaixonada por ele; mas tinha tanto medo de o perder que o meu amor não ultrapassava os limites do meu egoísmo.
Portanto, fingi não notar a sua embriaguez, e depois de despida senteime na cama a seu lado. Tinha ainda o sobretudo vestido como quando tinha entrado. Ajudei a despilo. Enquanto o fazia, ialhe falando para o distrair e impedir de pensar em se ir embora.
Ainda não me disseste quantos anos tens disselhe tirandolhe o sobretudo pelas mangas, enquanto ele levantava docilmente o braço para me auxiliar nos meus esforços.
Respondeu passado um momento:
Tenho dezanove anos.
Tens menos dois do que eu.
Tu tens vinte e um?
Quase vinte e dois.
Os meus dedos procuravam desmancharlhe o nó da gravata. Lentamente ele afastoume e desfez o nó. Depois deixou cair os braços e tireilhe a gravata.
Está velha a tua gravata disselhe. Heide comprarte uma. De que cor queres?
Ele riu. Gostava de o ver rir, porque tinha um riso amável e gentil.
Tu queres por força sustentarme! disse. Primeiro querias pagarme o almoço e agora queres comprarme uma gravata?
Que disparate! disselhe com ternura. Que mal te pode isso fazer? Eu tenho gosto em oferecerte uma gravata: isso não pode contrariarte!
Enquanto me ouvia, tirara o casaco e o colete e estava sentado na beira da cama em mangas de camisa.
Notase que tenho dezanove anos? perguntoume.
Agradavalhe sempre falar dele; depressa o descobri.
Sim e não disse hesitando, vendo que isso o lisonjeava. Vêse sobretudo pelos cabelos acrescentei acariciandolhe a cabeça. Um homem tem o cabelo menos forte. Na cara não.
Que idade me darias?
Vinte e cinco.
Calouse e fechou os olhos como se fosse vencido pela embriaguez. De novo tive medo que se sentisse mal e apresseime a ajudálo a tirar a camisa, acrescentando:
Falame mais de ti. És estudante?
Sou.
Em que curso estás?
Direito.
Vives com a tua família?
Não, a minha família mora na província, em S...
Estás numa pensão?
Não, tenho um quarto mobilado respondeume mecanicamente de olhos fechados. Na Rua Cola di Rienzo, 20, apartamento 8, em casa da viúva Medolaghi, Amélia Medolaghi.
Tinha o tronco nu. Não resisti à tentação de lhe passar gulosamente as mãos sobre o peito e o pescoço dizendo:
Porque ficas assim? Não tens frio?
Levantou a cabeça e olhoume. Depois riuse e disseme com uma voz um pouco áspera:
Julgas que eu não percebo?
O quê?
Que me despes disfarçadamente? Estou embriagado, mas não a esse ponto.
E então! respondi, desconcertada. Mesmo que assim fosse, que mal há nisso? Devias ser tu a fazêlo, mas como não fazes, auxiliote.
Parecia não me ouvir Estou bêbado continuou, abanando a cabeça , mas sei muito bem o que faço e porque estou aqui. Não preciso de ajuda... Olha!
Bruscamente, com gestos violentos que a magreza fazia parecer serem de louco, tirou o cinto, fez voar para longe as calças e tudo o que tinha ainda vestido:
E sei também o que esperas de mim! acrescentou apoiando as mãos nas minhas ancas.
As suas mãos, fortes e nervosas, apertavamme e nos seus olhos a bebedeira parecia ter cedido o lugar a uma espécie de enérgica malícia. Esta malícia tornei a encontrála mesmo nos momentos em que parecia abandonarse completamente. Era um claro indício da sua lucidez de consciência, que conservava sempre, fosse o que fosse que fizesse, e que acabei por descobrir mais tarde com mágoa o impedia de se entregar e amar realmente.
É isto que queres, não é? acrescentou sem me largar, enterrandome as unhas na carne. - E depois isto, isto?
De cada vez que dizia isto tinha um gesto de amor, beijandome, mordendome e beliscandome traiçoeiramente com as duas mãos nos sítios onde eu menos esperava. Eu ria, defendiame, debatiame, estava demasiadamente feliz por ver acordar o seu desejo para notar o que havia de forçado e de insincero na sua atitude. Magoavame como se o meu corpo fosse para ele um objecto de ódio e não de amor. Julguei ver brilhar nos seus olhos, em vez de desejo, uma espécie de cólera. Depois o seu frenesi terminou de repente, como tinha começado. De uma maneira curiosa, inexplicável, talvez por estar dominado pela embriaguez, deixouse cair de costas na cama a todo o comprimento e encontreio ao meu lado com a bizarra impressão de que ele não se mexera, nem me falara, que nunca me tinha tocado, nem beijado, como se tudo estivesse ainda por começar.
Fiquei muito tempo imóvel, ajoelhada na sua frente sobre a cama, os cabelos nos olhos, olhandoo e aflorando de vez em quando timidamente com a ponta dos dedos o seu belo corpo alongado, magro e puro. Tinha a pele branca debaixo da qual sobressaíam os ossos, os ombros largos e magros, as ancas estreitas e as pernas longas; não tinha pêlos, salvo alguns no peito; a posição em que estava, deitado de costas, esticavalhe o ventre de maneira que o púbis parecia estendido como uma oferta. Em amor eu não gosto de violência; por isso me parecia que nada se tinha passado entre nós, que tudo estava ainda no princípio. Deixei, pois restabelecerse a calma e o silêncio depois deste tumulto irônico e fictício, e quando me senti de novo no estado de alma apaixonado e sereno que me é habitual, lentamente, do mesmo modo que durante o tempo quente se entra lentamente na água deliciosa de um mar calmo, estendime ao seu lado, entrelacei as minhas pernas nas suas, rodeeilhe o pescoço com os braços e aperteime contra ele. Desta vez não se mexeu nem falou até ao fim. Eu chamavalhe os nomes mais doces, respirava sobre o rosto, envolviao na rede apertada e quente das minhas carícias, e ele, como se estivesse morto, jazia deitado de costas, imóvel. Mais tarde soube que esta passividade sem participação era a maior prova de amor que ele podia dar.
Muito mais tarde, durante a noite, levantavame apoiada no cotovelo e contemplavao com uma intensidade da qual guardo, passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer conservar a todo o custo abandonarao. Nos seus traços, que o sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembravame de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro profundo que para mim ficava longínquo e secreto. Não desejava que ele me explicasse estas atitudes, desmontandoas e analisandoas por palavras, como se desmontam as peças de uma máquina. Desejaria conhecêlas nas suas raízes mais fundas por um simples acto de amor, e ainda o não tinha conseguido. O pouco que me escapava da sua pessoa era todo ele e o muito que não me escapava não tinha qualquer importância; não sabia que fazer. Gino, Astárito e mesmo Sonzogne estavam mais próximos de mim, conheciaos melhor. Olhavao e sentia a parte mais profunda de mim própria sofrer por não ter podido unirse ao que ele tinha de mais profundo, como acabavam de unirse os nossos corpos. Ela estava viúva e chorava amargamente esta ocasião perdida. Talvez, enquanto nos amávamos, tivesse havido um momento no qual ele se libertou e em que bastaria um gesto ou uma palavra para que eu pudesse entrar na sua alma e lá ficar para sempre. Mas não tinha sabido encontrar esse momento e agora era tarde: dormia e de novo se afastara de mim.
Quando assim o contemplava, abriu os olhos sem se mexer, com a cara enterrada de perfil na almofada e perguntoume:
Também dormiste?
A sua voz pareceume mudada, mais confiante e mais próxima. Eu esperava de repente que misteriosamente, durante o sono, a nossa intimidade tivesse aumentado.
Não... estive a olhar para ti.
Guardou silêncio por um instante, depois disse:
Tenho um favor a pedirte... mas posso contar contigo?
Que pergunta!
Será preciso que me faças o favor de guardar por alguns dias na tua casa um pacote que te entregarei. Virei buscálo e talvez te traga outro.
Noutra ocasião, esta história dos pacotes teria excitado a minha curiosidade. Mas neste momento o que me interessava era ele e as nossas relações. Pensava que era mais uma ocasião para nos tornarmos a ver, que lhe devia agradar o mais que pudesse e que, se lhe fizesse perguntas, poderia arrependerse e faltar ao prometido.
Respondilhe com ar despreocupado:
Se é só isso o que queres...
Calouse ainda durante muito tempo. Parecia reflectir. Depois insistiu:
Então aceitas?
Já te disse que sim.
E não te interessa conhecer o conteúdo dos pacotes?
Se não queres dizer respondi esforçandome por parecer desinteressada , é porque tens razões para isso! Não to pergunto.
Mas poderia ser alguma coisa perigosa; não sabes?
Está bem! Tanto pior!
Podia ser uma coisa roubada continuou estendendose de costas, enquanto os olhos lhe brilhavam com uma expressão divertida e ingênua ao mesmo tempo. Eu podia ser um ladrão.
Recordeime de Sonzogne, que não só era ladrão como também assassino, e lembreime dos meus próprios roubos: a caixa de pó de arroz e o lenço de seda. Pareceume uma curiosa coincidência que ele quisesse passar por ladrão aos olhos de uma pessoa como eu, autêntica ladra, vivendo no meio de ladrões. Fizlhe uma carícia e disselhe com doçura:
Não, tu não és um ladrão com certeza.
Irritouse. O seu amorpróprio, sempre desperto, tomava a mal as coisas mais estranhas e imprevistas.
Porquê? disseme. Podia muita bem sêlo.
Não tens cara disso. Tudo é possível... mas realmente tu não pareces.
Porquê? Que cara tenho eu?
Tens cara daquilo que és... um rapaz de boa família, um estudante...
Fui eu quem te disse que era estudante... Podia muito bem ser outra coisa qualquer... e é a verdade...
Já não o ouvia. Pensava que também eu não tinha cara de ladra e no entanto era uma ladra e desejava imenso dizerlho. A sua curiosa atitude aumentava a minha tentação. Sempre pensara que roubar era um acto censurável. E eis que alguém não só não parecia censurar um tal acto, mas parecia encontrar nisso um aspecto positivo que para mim continuava misterioso. Hesitei um momento, depois disselhe:
Tens razão. Penso que não és um ladrão porque estou convencida de que não o és; mas, quanto à cara, bem podias sêlo. Nunca se tem a cara daquilo que se é. Eu, por exemplo... Tenho cara de ladra?
Não respondeu sem me olhar.
E no entanto souo acrescentei tranquilamente.
Tu és?
Sou.
E que roubaste?
Tinha deixado a mala sobre a mesadecabeceira. Peguei nela, tirei a caixa e mostreilha.
Isto, numa casa aonde ia aqui há uns tempos, e, no outro dia, numa loja, um lenço que dei a minha mãe.
Não acreditou que fizesse estas revelações por vaidade. Na realidade, o que me levara a fazêlas fora um desejo de intimidade, de cumplicidade sentimental: à falta de melhor, a confissão de um delito pode aproximar e fazer amar. Vio tornarse grave e olharme com ar concentrado, e de repente receei que ele me julgasse mal e tomasse a resolução de não me tornar a ver. Acrescentei depressa:
Mas não julgues que estou contente por ter roubado. Pelo contrário, já decidi devolver a caixa... hoje mesmo. O lenço não o posso restituir... mas tenho tido remorsos e resolvi nunca mais o fazer.
Ao ouvir estas palavras, vi brilhar nos seus olhos a malícia que lhe era habitual. Olhoume e desatou bruscamente a rir. Depois agarroume pelos ombros, atiroume para cima da cama e começou outra vez a beliscarme e a fazerme cócegas traiçoeiramente, repetindo:
Ladra, tu não passas de uma ladra, uma ladrazinha, uma grande ladra, uma enorme ladra, uma suja ladra... - com uma espécie de ternura sarcástica da qual eu não sabia se me deveria sentir vexada ou lisonjeada. Num certo sentido, a sua impetuosidade excitavame e agradavame. Era melhor do que a habitual, a mortal passividade.
Ria pois e o meu corpo mais se contorcia quanto mais cócegas ele me fazia, maldosamente, debaixo dos braços. Mas, torcendome e rindo até às lágrimas, via a sua cara, inclinada para mim, com uma espécie de crueldade, conservando uma expressão fechada e concentrada. Sem rir, parou bruscamente, como tinha começado. Deixouse cair de costas sobre a cama e disse:
Eu, pelo contrário, não sou um ladrão... não, na verdade. Estes pacotes que te pedi para guardares não são o produto de um roubo.
Percebi que ele desejava muito dizerme o que eles continham. E compreendia que, ao contrário do que se passara comigo, nele era sobretudo por vaidade. Uma vaidade muito parecida, no fundo, com a que levara Sonzogne a revelarme o seu crime. Apesar de todas as suas diferenças, os homens têm muitas coisas comuns; em presença de uma mulher que eles amam, ou pelo menos com quem têm ligações amorosas, eles tendem sempre para ostentar a sua virilidade sob a forma de actos enérgicos e perigosos que fizeram ou que farão. Fiz notar a Jaime, com doçura:
No fundo, morres por me contar o que há nesses pacotes.
És uma idiota disseme, irritado. Não me interessa fazêlo. Somente devo pôrte ao corrente do seu conteúdo para que possas decidir se me prestas este serviço ou não... Pois bem! Contêm material de propaganda.
Que quer isso dizer?
Faço parte de um grupo de pessoas que não gostam muito, digamos assim, do governo actual, ou, melhor, que lhe têm ódio e desejariam que ele caísse o mais depressa possível. Esses pacotes contêm justamente prospectos impressos, nos quais explicamos às pessoas porque este governo não presta e indicamos a maneira de agir para se desembaraçarem dele.
Nunca me ocupei de política. Para mim, como para muita gente, pareciame, a questão do governo nem sequer se punha. De repente lembreime de Astárito e das alusões que ele de tempos a tempos fazia à política. Gritei então, aflita:
Mas é proibido! É perigoso!
Olhoume com satisfação. Disseralhe enfim uma coisa que lhe agradava e lisonjeava o seu amorpróprio. Confirmou com excessiva gravidade e ligeiramente enfático:
De facto, é perigoso... Agora é a ti que compete decidir se queres ou não prestarme esse serviço.
Não é por mim que digo isto repliquei vivamente - É por ti. Por mim, aceito.
Toma cuidado, porque é de facto perigoso preveniume ainda. Se te descobrem, vais parar à prisão.
Olhavao, e bruscamente senti por ele um excesso de afeição impossível de conter. Os olhos encheramseme de lágrimas e balbuciei:
Não compreendes então que isso para mim não tem importância alguma? Serei presa... e depois?
Abanei a cabeça e as lágrimas rolaramme pelas faces. Admirado, perguntoume:
Porque choras tu agora?
Perdoame disselhe. Sou uma imbecil... Eu própria não sei porquê... talvez porque quisesse que te desses conta de que te amo e que por ti estou pronta a fazer seja o que for.
Ainda não tinha compreendido que não lhe devia falar do meu amor. Ao ouvir as minhas palavras, o seu rosto mostrouse embaraçado e tomou uma expressão vaga e distante, alteração que de futuro, em casos idênticos, eu havia de notar! Desviou os olhos e disseme apressadamente:
Então, está bem! Dentro de dois dias tragote os pacotes, fica combinado. Agora é tarde; preciso de me ir embora.
Dizendo isto, saltou da cama e começou a vestirse a toda a pressa. Fiquei onde estava, sobre a cama, com a minha emoção e as minhas lágrimas, nua e um pouco envergonhada, sem saber se seria de estar nua se de estar a chorar. Apanhou as roupas que atirara para o chão e vestiuas. Foi ao bengaleiro, tirou o sobretudo, enfiouo e aproximouse de mim.
Toca aqui! disseme com um sorriso gracioso e ingênuo que tanto gostava de lhe ver.
Olhei e vi que me indicava um dos bolsos do sobretudo. Aproximarase da cama para que eu pudesse estender a mão sem esforço. Senti um objecto duro.
Que é? pergunteilhe sem compreender.
Sorriu satisfeito, introduziu a mão na algibeira, olhoume nos olhos e tirou devagarinho, mas só metade, um revólver preto.
Um revólver? gritei. Para que o queres?
Nunca se sabe respondeume. Pode vir a ser preciso...
Fiquei inquieta, tentando pensar, porém ele não me deu tempo para isso. Tornou a meter a arma no bolso, curvouse, aflorou os meus lábios com os seus e disseme:
Então está combinado, não está? Volto daqui a dois dias.
Antes que me refizesse da surpresa ele tinha saído. Muitas vezes, daí em diante, pensando neste primeiro encontro de amor, repreendime cruelmente por não ter sabido prever os perigos aos quais o expunha a sua paixão política. A verdade é que não tinha, nem nunca vim a ter, qualquer influência sobre ele. Mas, pelo menos, se eu soubesse então o que soube depois, teria podido aconselhálo: e mesmo que os conselhos para nada servissem, estaria ao seu lado em plena consciência da causa e firmemente decidida.
Esta foi certamente a minha culpa, ou, melhor, a culpa da minha ignorância, da qual não era culpada, mas sim a minha condição. Como já disse, nunca me ocupei de assuntos de política, nada deles percebia, e sentiaos estranhos ao meu destino; era como se eles se desenrolassem não à minha volta, mas num outro planeta. Quando lia o jornal, saltava a primeira página porque as notícias sobre política não me interessavam e tomava conhecimento dos assuntos comezinhos, em que certos acontecimentos ou alguns crimes forneciam ao meu espírito matéria de reflexão. Na realidade a minha condição era muito parecida com a de certos animaizinhos transparentes que vivem, segundo dizem, no fundo do mar, quase às escuras, e nada sabem do que se passa à superfície, à luz do sol. A política, como de resto numerosas coisas às quais os homens pareciam ligar tanta importância, chegava até mim como de um mundo desconhecido, superior mais obscuras, mais incompreensíveis que a luz do dia é para esses simples animálculos no fundo dos seus esconderijos submarinos.
Mas não foi só culpa minha e da minha ignorância; foi também culpa dele, da sua imprudência e da sua vaidade. Se eu me tivesse apercebido dos perigos que a sua vaidade poderia fazer surgir e esses perigos existiam , eu poderia talvez ter agido de maneira diferente; não sei qual seria o resultado, mas termeia esforçado por compreender e conhecer tudo o que ignorava. Aqui quero notar outro elemento que de certo modo contribuiu para o meu procedimento despreocupado: o facto de Jaime dar a impressão de, em vez de agir com seriedade, representar um papel e de uma maneira quase cômica. Dirseia que ele compunha peça por peça uma personagem ideal na qual não acreditava senão até certo ponto, e que se esforçava sempre, quase maquinalmente, por harmonizar os seus actos com os desta personagem. Essa contínua comédia dava a impressão de um jogo no qual ele era, num certo sentido, um perfeito mestre; mas, como acontece aos jogadores, uma impressão semelhante roubava uma grande parte da seriedade a tudo o que ele fazia e sugeria também a falsa certeza de que para ele nada era irreparável e que no último momento o seu adversário lhe devolveria o dinheiro perdido e lhe estenderia a mão. Talvez até, como acontece com as crianças, para quem tudo é jogo, se divertisse realmente; mas o seu adversário era de respeito, isso viuse pela continuação. Foi assim que, acabada a partida, se encontrou desprevenido e desarmado, excluída toda a possibilidade de continuar o jogo e preso numa armadilha mortal.
Estas coisas e muitas outras ainda mais tristes ai de mim! e não menos razoáveis só as pensei mais tarde, reflectindo sobre os factos. Mas então, assim como ele parecia terme feito compreender, a suspeita de que este assunto dos pacotes poderia influenciar as nossas relações nem sequer me aflorou o espírito. Estava satisfeita por ele ter voltado, estava contente por lhe poder prestar um serviço e não ia mais além dessa dupla satisfação. Lembrome de que, ao surpreenderme a pensar vagamente e como em sonhos neste singular serviço que ele me pedira, abanava a cabeça como se dissesse “Que infantilidade!” e pensava noutra coisa. De resto encontravame num estado de alma feliz a tal ponto que mesmo que o quisesse não teria podido aplicar a minha atenção a qualquer facto que me preocupasse.
Tudo me parecia correr pelo melhor. Jaime tinha voltado e encontrara um meio de fazer sair da prisão a criada de quarto acusada injustamente sem ser obrigada a tomar o seu lugar. Naquele dia, depois de Jaime ter saído, passei duas horas a saborear a minha felicidade, como se saboreia por vezes a posse recente de uma jóia, de um objecto precioso, com um misto de admiração, incompreensão e ingenuidade que não exclui de forma alguma uma profunda alegria. O tocar das vésperas acordoume desta voluptuosa contemplação. Lembreime do conselho de Astárito e da urgência que havia em socorrer esta pobre mulher aprisionada. Vestime e saí à pressa.
É uma doce coisa, no Inverno, quando ficamos toda a manhã e uma parte da tarde em casa, só com os nossos pensamentos, sair e percorrer as ruas do centro da cidade, onde o movimento é maior, mais numerosa a multidão e as lojas mais bem iluminadas. No ar puro e frio, no meio do barulho, do movimento e da cintilação da vida citadina o pensamento aclarase, o espírito libertase e experimentase uma excitação estranha, uma embriagadora alegria, como se todas as dificuldades se aplanassem e como se não houvesse realmente outra coisa a fazer que vaguear por entre a multidão, leve e sem cuidados, feliz por seguir agora uma, agora outra, as impressões fugazes que o espectáculo das ruas oferece à ociosidade. Realmente dirseia então por alguns instantes que as nossas dívidas, como diz a oração cristã, nos são perdoadas sem que para isso tenhamos algum mérito, sem que as pagássemos, mas unicamente por uma benevolência geral e misteriosa. Bem entendido que é preciso sentirse feliz ou pelo menos contente, porque, no caso contrário, a vida da cidade pode dar a angustiosa impressão de uma agitação absurda e vã. Mas nesse dia, como já disse, sentiame feliz e apercebime particularmente de que o estava uma vez chegada ao centro e logo que comecei a caminhar nos passeios, pelo meio das pessoas.
Sabia que devia ir à igreja confessarme, como decidira fazer. Mas talvez justamente por me ter proposto esta ideia, nenhuma pressa tinha de o fazer e nem mesmo pensava nisso. Caminhei pois, lentamente, de uma rua para a outra, parando de vez em quando para examinar os objectos expostos nas montras. Se os que me conheciam me tivessem visto, teriam com certeza pensado que eu procurava interessar os passeantes. Mas na verdade nada estava mais longe do meu espírito. Poderia talvez terme deixado deter por algum homem que me tivesse agradado, mas não por dinheiro, mas por simples transporte de alegria, por exuberância de vida. Os poucos homens que me viram parada em frente das montras e me abordaram com as suas frases habituais e as suas propostas para me acompanharem não me agradavam. Nem lhes respondi, nem sequer os olhei e continuei a passear como se eles não existissem, com o meu passo habitual, indolente e majestoso.
A vista da igreja na qual me confessara a última vez, depois do passeio a Viterbo, apanhoume desprevenida, neste estado de alma feliz e distraído. Entre os cartazes do cinema e a montra da loja das meias, rutilante de luz, a sua fachada barroca mergulhava no escuro, disposta à maneira de guardavento num recanto da rua, com a sua alta frontaria encimada por dois anjos tocando trombetas, e as manchas violetas que projectava sobre elas o anúncio luminoso de uma casa contígua davame a impressão da cara escura e enrugada de uma velha, abrigada com um xaile fora de moda, que me tivesse feito um sinal de chamada familiar no meio das caras iluminadas das pessoas. Lembreime do belo confessor francês, o padre Élie, e tive a impressão de que ninguém se sairia melhor do que ele, homem do mundo e homem novo, desta maçada de restituir a caixa. Além disso, ao padre Élie, conhecendome num certo sentido, eu teria menos dificuldade em confessarlhe as coisas terríveis e vergonhosas que pesavam sobre a minha alma.
Galguei os degraus, afastei a cortina que obstruía a porta e entrei depois de ter colocado na cabeça um lenço de bolso. Enquanto molhava os dedos na água benta, reparei numa figura esculpida em volta da pia: uma mulher nua, com os cabelos ao vento, os braços levantados, que fugia perseguida por um repugnante dragão, com bico de papagaio, levantado sobre as patas de trás, como um homem. Julguei reconhecer esta mulher; pensava que fugia também de um dragão parecido, mas a minha fuga, como a desta mulher, era uma fuga circular. Aconteciame por vezes andar à roda, não para fugir, mas para seguir com ardor e alegremente este vil dragão. Afasteime da pia de água benta e, persignandome, volteime para o interior da igreja. Pareceume que conservava a mesma desordem, a mesma obscuridade, a mesma desolação que da última vez que a tinha visto. Como então, estava mergulhada na escuridão, salvo o altarmor, onde os círios iluminavam o crucifixo, fazendo brilhar confusamente os candelabros de cobre e as alfaias de prata. A capela dedicada à Virgem, na qual eu rezara com uma tão profunda e vã convicção, estava também iluminada; empoleirados em escadotes, dois sacristães pregavam à arquitrave cortinados vermelhos franjados de ouro. Vi que o confessionário do padre Élie estava ocupado e fui ajoelharme, em frente do altarmor, sobre uma das cadeiras de palha em desordem. Não sentia qualquer emoção, mas só impaciência por despachar o assunto da caixa. Uma impaciência impetuosa, feliz e não isenta de vaidade, precisamente a que se sente quando nos preparamos para fazer uma boa acção com a qual sonhávamos há muito tempo. Reparei logo que esta impaciência, que vem do coração e parece querer ignorar todas as sugestões da inteligência, acaba por comprometer a boa acção e fazer por vezes mais mal que uma conduta mais reflectida.
Assim que vi a pessoa que se confessava levantarse e afastarse, fui direita ao confessionário, ajoelheime e, sem esperar que o confessor me falasse, disselhe depressa:
Padre Élie, não me venho confessar como habitualmente o fazemos... venho dizervos uma coisa extremamente grave e pedirvos um favor que não me recusareis, estou certa.
Do outro lado da grade a voz do confessor, muito baixa, disseme que falasse. Estava tão convencida de que era o padre Élie quem se encontrava do outro lado que quase me parecia ver o seu belo rosto, não escondido, mas à frente da placa escura e perfurada. Então, pela primeira vez depois de ter entrado, experimentei uma grande emoção confiante e religiosa. Foi como um impulso do meu espírito que o impelia a libertarme do corpo e a ajoelharse todo nu, com as suas máculas bem em evidência, sobre os degraus, diante desta grade. Verdadeiramente tive durante um momento a impressão de ser uma alma sem carne, livre, feita de ar e de luz, como dizem que acontece depois da morte. E julguei sentir o padre Élie também, com a sua alma muito mais luminosa do que a minha, libertarse da sua prisão corporal, fazer desaparecer a grade, as paredes, o escuro do confessionário e aparecer diante de mim em pessoa, absolvendo e consolando. Talvez seja esse o sentimento que se deve experimentar quando nos ajoelhamos para nos confessarmos. Mas nunca o sentira de uma maneira tão profunda.
Pusme então a falar, com os olhos fechados, apoiando a testa na grade, e disse tudo. O meu ofício, falei de Gino, de Astárito e de Sonzogne, do roubo e do crime. Disse o meu nome, o de Gino, o de Astárito e o de Sonzogne. Contei onde praticara o roubo, onde fora o crime, onde eu morava. Descrevi mesmo o aspecto físico das pessoas. Não sei a que impulso obedeci. Talvez ao da dona de casa que acaba por decidirse a limpar a sua casa depois de uma longa negligência e que não tem sossego enquanto não tiver varrido o último grão de poeira, a última partícula de cotão alojada debaixo dos móveis ou nos cantos. Realmente, à medida que contava e citava todos os detalhes da minha confissão sentiame mais livre e mais pura.
Falava sempre com a mesma voz razoável e tranquila. O meu confessor ouviume até ao fim, sem dizer uma palavra, sem nunca me interromper. Depois ouvi uma horrível voz lenta, arrastada, pronunciar estas palavras:
As coisas que acaba de me dizer, minha filha, são terríveis, assustadoras; o espírito recusase a crer numa coisa destas, mas fez bem em ter vindo confessarse e farei por si tudo o que puder.
Muito tempo se passara depois da minha última confissão nesta igreja, e no agradável tumulto da minha vaidosa bondade tinha quase esquecido um detalhe bem característico e bem agradável: a pronúncia francesa do padre Élie. Ora aquele que me falara não tinha qualquer acento particular na voz, mas a sua pronúncia era sem dúvida italiana, com os seus toques de futilidade que se notam na voz de alguns padres. Compreendi bruscamente o meu erro e senti, no mesmo instante, uma impressão de gelo, parecida com a que deve experimentar alguém que, ao estender a mão para colher uma bela flor, sente na ponta dos dedos a pele fria e vibrátil de uma serpente. Quanto à desagradável surpresa de me encontrar em frente de um confessor diferente do que tinha imaginado, era igual ao horror que me causou esta voz insinuante e sombria. Encontrei, no entanto, forças para balbuciar:
Mas vós sois realmente o padre Élie?
Em pessoa respondeu o padre desconhecido. Já cá tinha vindo alguma vez?
Só uma vez.
Ficou calado durante um momento, depois disse:
Tudo o que me contou merecia ser examinado de novo ponto por ponto... Não se trata só de uma coisa, mas de várias, das quais algumas lhe dizem respeito, outras a certas pessoas... Naquilo que vos diz respeito já compreendeu que cometeu pecados muito graves?
Sim murmurei. Já sei.
E sentese arrependida?
Julgo que sim.
Se o vosso arrependimento é sincero continuou no seu tom confidencial e paternal , pode com certeza esperar a absolvição... Infelizmente não sois só vós... há também os outros e os crimes dos outros... tendes conhecimento de um crime pavoroso... a vossa consciência não a leva a revelar o nome do culpado, a fim de que seja punido como merece?
Sugeriame que denunciasse Sonzogne. Não digo que, sendo padre, ele fizesse isso por mal. Mas insinuada desta maneira e com esta voz neste momento, a sua proposta aumentou a minha desconfiança e o meu medo:
Se digo o nome do autor do crime balbuciei , prendemme também.
Os homens e Deus disse ele logo a seguir apreciariam o vosso sacrifício e o vosso arrependimento. A lei não conhece só o castigo; conhece também o perdão. Em troca de alguns sofrimentos leves em relação à agonia da vítima teria contribuído para restabelecer a justiça, horrivelmente ofendida... Oh! Não ouve a voz do homem assassinado invocar em vão a piedade do seu assassino?
Continuou as suas exortações, escolhendo cuidadosamente as palavras e não sem se comprazer com esta escolha, para compor as frases convencionais e próprias do seu ofício. Mas eu agora não tinha outro desejo que não fosse o de me ir embora, um desejo histérico.
Disselhe rapidamente:
Quanto à denúncia, prefiro pensar... Voltarei amanhã e dirlheei o que decidi. Encontráloei aqui amanhã?
Com certeza, a qualquer hora!
Então disse eu, atônita , por agora só lhe peço que devolva este objecto.
Caleime, e ele, depois de uma breve oração, tornoume a perguntar se me sentia arrependida sinceramente, e ao ouvir a minha resposta afirmativa deume a absolvição. Persigneime e saí do confessionário; nesse momento ele abriu a porta e vio na minha frente. Todos os receios que a sua voz me tinham inspirado foram confirmados em seguida pela sua pessoa. Era baixo, mas com uma cabeça grande, que uma espécie de torcicolo crônico mantinha de lado. Não tive tempo de o observar bem, tão grande era a pressa de me ir embora e tão grande era o horror que ele me inspirava. Mas entrevi uma cara entre o moreno e o amarelo, uma grande testa pálida, uns olhos vazios perdidos nas órbitas, um nariz adunco com largas narinas e uma boca grossa e informe com lábios criminosos e violáceos. Não devia ser velho... Não tinha idade. Disseme com ar aflito, pondo as mãos sobre o peito e acenando com a cabeça:
Mas porque não veio mais cedo, minha querida filha? Porquê? Que coisas horríveis se teriam evitado!
Desejaria responderlhe o que pensava, que Deus não quisera que eu viesse! Mas contiveme, tirei da mala a caixa e metilha na mão, dizendo com sinceridade:
Peçolhe para agir depressa... Não lhe posso dizer como estou atormentada pela ideia de que esta pobre mulher está na prisão por minha causa.
Hoje mesmo respondeume apertando a caixa contra o peito e abanando a cabeça com ar dolorido e suplicante.
Agradeci em voz baixa e, cumprimentandoo com um movimento de cabeça, sai rapidamente da igreja. Ficou onde o deixei, junto do confessionário, com as mãos no peito e abanando a cabeça.
Quando cheguei à rua, procurei reflectir calmamente sobre o que me acabara de acontecer. Por agora, deixando de parte as minhas primeiras confusas apreensões, compreendi que do que tinha medo, em suma, era de que o padre não respeitasse o segredo da confissão; esforçavame por aclarar por mim própria os fundamentos do meu receio. Sabia, como toda a gente, que a confissão é um sacramento e como tal inviolável. Sabia também que era quase impossível que um padre, por mais corrupto que fosse, se não sentisse culpado de uma tal violação. Mas, por outro lado, o seu conselho para denunciar Sonzogne faziame recear que ele tomasse a iniciativa, se eu não me adiantasse, de denunciar à polícia o autor do crime da Rua Palestro. Era sobretudo a sua voz que me fazia recear o pior. Sou mais emotiva do que reflectida e possuo, como certos animais, uma presciência instintiva do perigo. Todas as razões que me apresentava a minha inteligência para me dar segurança ficavam reduzidas a nada em presença deste pressentimento sem razão. “É bem verdade pensava eu que o segredo da confissão é inviolável.” Mas só um milagre pode impedir este padre de denunciar Sonzogne e os outros!
Um outro facto contribuiu para me dar a impressão de uma ameaça de desgraça iminente e misteriosa: a substituição do segundo confessor. Evidentemente que o monge francês não era o padre Élie, se bem que ele me tivesse ouvido no confessionário que tinha esse nome. Então quem era? Arrependime de não ter pedido noticias ao verdadeiro padre Élie. Mas ao mesmo tempo dizia que este embirrante padre me teria dito que nada sabia, reforçando assim o carácter de aparição que a silhueta do jovem religioso deixara no meu espírito. Realmente ele tinha muito de fantasma, tanto pela sua figura, tão diferente da dos outros padres, como pela maneira como apareceu na minha vida e como desapareceu. Cheguei a duvidar de que o tivesse visto alguma vez, ou, melhor, de que o tivesse visto em carne e osso, e pensei por momentos numa alucinação, quanto mais não fosse porque eu começava a encontrarlhe uma indefinida semelhança com Cristo tal como o representam habitualmente nas imagens santas. Mas se assim era, se Cristo me tinha realmente aparecido num momento doloroso e tinha aceite a minha confissão, o facto de um padre repugnante e sórdido o ter substituído era claramente de mau agouro. Isso indicava pelo menos que num momento da maior angústia a religião me tinha abandonado. Era como se num momento de necessidade urgente eu tivesse aberto um cofre que supunha recheado de peças de ouro e aí encontrasse, em lugar delas, poeira, teias de aranha e cotão.
Entrei em casa com o pressentimento de uma desgraça que a minha confissão iria provocar e fui logo deitarme sem jantar, convencida de que iria ser presa e esta seria a última noite que passaria em casa. Devo dizer, no entanto, que não experimentava o menor medo nem o menor desejo de fugir ao meu destino. Uma vez passado o primeiro pavor, devido a uma fraqueza nervosa comum a quase todas as mulheres, foi substituído na minha alma, não propriamente por um sentimento de resignação, mas por uma verdadeira vontade de aceitar a sorte que me ameaçava. Experimentava mesmo uma espécie de volúpia em deixarme arrastar até bem ao fundo do que eu imaginava ser o último desespero. Tinha a impressão de me sentir de qualquer maneira protegida pelo excesso da desgraça e pensava com um certo prazer que, à parte a morte, que já não me assustava agora, coisa alguma me podia acontecer de pior.
Mas no dia seguinte foi em vão que esperei a visita, que eu previra, da polícia. Todo esse dia e o dia seguinte decorreram sem que nada acontecesse que justificasse as minhas apreensões. Durante todo este tempo não saí de casa, nem mesmo do quarto, e depressa me cansei de pensar nas consequências da minha imprudência. Voltei a pensar em Jaime e desejei tornar a vêlo, nem que fosse só mais uma vez antes que a denúncia do padre continuava a considerála inevitável fizesse o seu efeito. No terceiro dia, à tardinha, quase sem reflectir, saltei da cama, vestime com cuidado e saí de casa.
Sabia a morada de Jaime; em vinte minutos cheguei lá. Mas no momento de entrar pensei que não o tinha avisado e fui tomada de um acesso de timidez. Receava que me recebesse mal, que até mesmo me pusesse na rua! Atrasei o passo impaciente, e com a alma cheia de tristeza parei em frente de uma montra pensando se não seria melhor voltar pelo mesmo caminho e esperar que fosse ele a decidirse verme. Compreendia que era preciso mostrar muita cautela e muita perspicácia, particularmente neste primeiro período das nossas relações, e nunca mostrar que estava presa a tal ponto que me era impossível viver sem ele. Por outro lado pareciame duro voltar para trás, agora que a minha confissão me deixara inquieta e que tinha necessidade de o ver, até mesmo só para me distrair das minhas preocupações. Os meus olhos caíram sobre a montra da loja em frente da qual parara; era uma casa de camisas e gravatas; lembreime de repente de que lhe tinha prometido uma gravata nova para substituir a outra esfiada. Quando se está apaixonado não se raciocina; disse a mim mesma que a gravata podia servir de pretexto para o visitar, sem reparar que essa dádiva confirmava precisamente o carácter inferior e ansioso do meu sentimento por ele. Entrei na loja, e, depois de ter escolhido durante muito tempo, preferi uma gravata cinzenta com riscas vermelhas a mais bonita e a mais cara. Com a cortesia um pouco indiscreta dos empregados que pretendem influenciar os clientes, o empregado perguntoume se a pessoa a quem se destinava a gravata era loura ou morena. “É moreno”, respondi lentamente; reparei que disse a palavra “moreno” com um acento terno e sentime corar à ideia de que o caixeiro pudesse ter notado este acento.
A viúva Medolaghi habitava o quarto andar de uma velha casa triste, com janelas que davam para o cais do Tibre. Subi os oito lanços de escada e toquei sem tomar fôlego à porta, mergulhada na sombra. A porta abriuse quase em seguida e Jaime apareceu no limiar.
Ah! És tu? disse, surpreendido. Era evidente que esperava alguém.
Posso entrar?
Sim, sim! Por aqui!
Atravessamos um vestíbulo quase às escuras e ele fezme entrar numa sala, que estava igualmente na penumbra porque as janelas tinham os vidros esguios como as das igrejas. Entrevi uma quantidade de móveis escuros com nácar incrustado. Ao meio havia uma mesa redonda com um licoreiro azul, de feitio fora de moda. Havia muitos tapetes e uma pele de urso branca um pouco gasta. Tudo era velho ali dentro, mas asseado, arrumado, como se estivesse conservado pelo profundo silêncio que parecia reinar na casa desde tempos imemoráveis. Senteime num canapé ao fundo da sala e perguntei a Jaime:
Esperas alguém?
Não, mas porque vieste cá?
Eram na realidade palavras pouco acolhedoras. Não parecia no entanto zangado, apenas surpreendido.
Vim dizerte adeus respondilhe, sorrindo , porque creio bem que é a última vez que nos vemos.
Porquê?
Estou convencida de que amanhã, o mais tardar, me vêm buscar para me meterem na prisão.
Na prisão? Que diabo fizeste tu?
Percebi na sua voz e na sua cara uma alteração e compreendi que estava com medo por ele próprio. Talvez pensasse que o tinha denunciado ou comprometido de uma maneira ou de outra, revelando a alguém a sua actividade política. Sorri ainda e continuei:
Não tenhas medo... nada disto te diz respeito... nem mesmo de longe.
Não, não apressouse a dizer. Mas não compreendo é tudo. Na prisão? Porquê?
Fecha a porta e sentate aqui disselhe indicando um lugar ao meu lado, no canapê.
Ele foi fechar a porta e sentouse ao pé de mim. Então, com muita calma, conteilhe a verdadeira história da caixa de pó de arroz e a minha confissão. Ouviame de cabeça baixa, sem me olhar, roendo as unhas, o que nele era sintoma de estar interessado. Acabei por concluir:
Estou certa de que este padre me fará passar um mau bocado... Que dizes?
Abanou a cabeça e respondeume, não olhando na minha direcção mas na dos vidros da janela:
Ele não o deve fazer... estou mesmo certo de que o não fará... Não basta que um padre seja feio...
Mas se tu o tivesses visto! interrompi.
- ... que seja monstruoso, se quiseres, para que faça uma coisa semelhante. Não é menos verdade que tudo pode acontecer acrescentou vivamente com um sorriso.
Então achas que não devo ter medo?
Acho... até mesmo porque nada podes fazer... isso não depende de ti!
É bom de dizer! Temse medo porque se tem medo... é mais forte do que nós!
Teve de repente um gesto afectuoso, um dos seus gestos. Pôsme uma mão no pescoço, sacudiume rindo e dizendo:
Tu não tens medo, pois não?
Mas se te disse que tenho!
Tu não tens medo!És uma mulher corajosa.
Assegurote que tenho um medo horrível; é tão verdade que me deitei e só me levantei dois dias depois.
Sim... mas em seguida vieste ter comigo e contasteme a coisa com a maior tranquilidade... Tu não sabes o que é ter medo!
E que posso eu fazer? perguntei, sorrindo sem querer. Não posso começar a gritar de medo!
Tu não tens medo!
Houve um momento de silêncio. Depois perguntoume com uma entoação particular que me surpreendeu:
E o teu amigo... chamemoslhe assim, esse Sonzogne, que tipo tem?
É um tipo como há tantos disse vagamente. Nesse momento nada encontrava para dizer de Sonzogne.
Mas como é? Descrevemo!
Porquê? Queres mandálo prender? disselhe rindo. Lembrate de que me engavetavam também a mim. Depois acrescentei: É alourado... baixo... largo de ombros... com uma cara pálida, olhos azuis... nada de especial, em suma. A única coisa que ele tem de diferente é ser muito forte.
Muito forte?
Quando se vê não se acredita. Mas se se lhe toca num braço, parece de ferro.
Como via que me escutava com interesse, conteilhe o incidente passado com Gino e Sonzogne. Não fez comentários, mas quando acabei perguntoume:
E julgas que Sonzogne tenha premeditado o crime, quero dizer, que o tenha preparado e executado a frio?
De maneira nenhuma! disselhe. Ele nunca premedita coisa alguma. Um momento antes de atirar Gino ao chão provavelmente nem pensava em fazêlo. Deve ter acontecido o mesmo com o ourives.
Então porque o fez?
Sei lá... porque é mais forte do que ele. Como um tigre... está muito tranquilo e de repente atiranos um pontapé.
Conteilhe toda a história das minhas relações com Sonzogne, a maneira como me batera e como tinha tido com certeza a ideia de me matar quando estávamos às escuras. E concluí:
Nunca pensa nisso... mas num certo momento é dominado por qualquer coisa mais forte do que a sua vontade e então é melhor não estar ao pé dele. Tenho a certeza de que foi procurar o ourives para lhe vender a caixa... O outro insultouo e ele matouo.
Em suma, é uma espécie de animal.
Chamalhe como quiseres. Isso deve ser disse eu, procurando pôr a claro para mim própria o sentimento que me inspirava o furor homicida de Sonzogne um impulso semelhante ao que me leva a amarte. Porque gosto eu de ti? Só Deus o sabe... Porque sente Sonzogne em certos momentos o impulso de matar? pela mesma razão. Só Deus o sabe. Pareceme que neste caso não há qualquer explicação.
Depois de reflectir, levantou a cabeça e perguntoume:
E eu, que impulso julgas que me leva para ti? Julgas que sinto um impulso amoroso?
Tive um medo horrível de o ouvir dizer que não me amava. Tapeilhe a boca com a minha mão e supliqueilhe:
Por piedade... não me digas o que sentes por mim!
Mas porquê?
Porque não me interessa saber. Não sei o que sentes por mim e não o quero saber. Chegame saber o que eu sinto por ti.
Abanou a cabeça e disse:
Fazes mal em gostar de mim... devias amar um homem como Sonzogne.
Olheio sinceramente admirada.
Mas que dizes tu? Um criminoso?!
Pode ser que seja um criminoso... mas sente os impulsos que tu dizes... assim como tem impulsos para matar, tenho a certeza de que terá um impulso para amar, assim, com simplicidade, sem complicações... eu, pelo contrário...
Não o deixei acabar e protestei:
Mas tu não te podes comparar com Sonzogne. Tu és aquilo que és... o outro é um criminoso, um monstro. E depois não deve ser verdade que ele possa sentir impulsos amorosos. Para ele é simplesmente uma satisfação dos sentidos: eu ou outra, é a mesma coisa.
Não parecia convencido, mas nada disse. Aproveitei este silêncio, e, estendendo a mão, enfiei os dedos na manga do seu casaco e procurei fazêlos subir ao longo do seu braço.
Jaiminho disselhe.
Porque me chamas Jaiminho?
É o diminutivo de Jaime. Não tenho o direito?
Sim... sim... tens o direito... Somente é o diminutivo que usam em família... mais nada.
É a tua mãe quem te chama assim? perguntei largandolhe o pulso e introduzindo os dedos entre a gravata e a camisa e passandoos sobre o peito nu.
Sim, minha mãe chamame Jaiminho confirmou com certa impaciência.
E passado um momento, com um acento meio sarcástico meio furioso :
De resto, não é o único caso em que tu e minha mãe usam as mesmas expressões. No fundo vocês têm a mesma opinião sobre quase todas as coisas.
Por exemplo? perguntei.
Estava perturbada; tinha desabotoado a camisa e esforçavame por alcançar o seu ombro magro e grácil de rapazinho.
Por exemplo, quando te contei que me ocupava de política tu gritaste logo com voz apavorada: Mas é proibido! É perigoso! Pois bem! Minha mãe teria dito exactamente a mesma coisa, com a mesma voz.
A ideia de que me parecia com a mãe dele envaideciame, primeiro por ser sua mãe e depois porque era uma senhora.
Que pateta! disselhe com ternura. É porque ela gosta tanto de ti como eu. É bem verdade que é perigoso ocuparse de política; um rapaz que eu conheço foi preso e há dois anos que está detido. E para que? Eles são mais fortes, e mal vocês se mexem metemnos na prisão. Pareceme que se podia muito bem viver sem política.
A minha mãe! A minha mãe! gritou, rejubilante e sarcástico. Exactamente o que diz minha mãe !
Não sei o que diz a tua mãe respondi , mas é bem certo que tudo o que ela te diz é para teu bem. Devias deixar a política. Tu não és um político profissional... és um estudante... os estudantes só tem que estudar.
Estudar, doutorarse e arranjar uma posição murmurou como se falasse consigo.
Não lhe respondi, mas aproximei a minha cara da sua e oferecilhe os lábios. Beijamonos, depois separamonos; parecia zangado por me ter beijado e olhavame com ar hostil e mortificado. Julguei têlo magoado por interromper com o meu beijo a sua conversa sobre política e acrescentei depressa:
De resto, faz o que quiseres, nada tenho com a tua vida... Se quiseres, visto que estou aqui, podes darme o pacote... escondêloei como combinamos.
Não, não respondeu. Este não é o momento para favores destes! Dada a tua amizade com Astárito... se ele os encontra...
Porquê? Astárito é assim tão perigoso?
É dos piores respondeume com gravidade.
Senti não sei que tentação maliciosa de o arreliar e de lhe espicaçar o amorpróprio, mas afectuosamente, sem maldade.
No fundo observei com doçura , nunca tiveste a intenção de me confiar esses pacotes!
Então porque te falei neles?
Ouve, não te zangues, mas penso que me falaste neles por falar, para te tornares interessante, para me mostrares que fazias realmente coisas perigosas e proibidas.
Zangouse e vi que tinha tocado na sua corda sensível.
Que disparate! gritou. És uma parva!
Depois, subitamente calmo, perguntoume com ar desconfiado :
Porquê? Que te leva a pensar isso?
Não sei respondi sorrindo. Toda a tua maneira de agir... Tu talvez não dês por isso, mas não dás a impressão de fazer essas coisas a sério.
Teve um gesto cômico que parecia dirigido contra ele:
São, pelo contrário, coisas muito sérias! disseme. Levantouse, estendeu os braços magros, recitou com voz de falsete, num tom enfático: “Armas! Sim, armas! E só eu cairei!” E continuou a agitar os braços e as pernas como um fantoche. Estava cômico.
Que queres dizer? perguntei.
Nada respondeu. É um verso.
De uma maneira bizarra pareceu passar da excitação a um brusco abatimento; tornouse sombrio e meditativo, tornou a sentarse e disseme num tom sincero:
Pelo contrário, olha, faço as coisas tão a sério que espero com toda a certeza ser preso... Então toda a gente verá bem se fiz as coisas a sério!
Não respondi; acaricieilhe o rosto, tomeilho entre as mãos e disselhe:
Que lindos olhos tens!
Era verdade; os seus olhos eram realmente belos, grandes e doces, com uma expressão intensa e ingênua. De novo se perturbou e o queixo tremeulhe.
Porque não vamos para o teu quarto? murmurei.
Nem pensar nisso. É contíguo ao quarto da viúva, que fica lá todo o dia de porta aberta para vigiar o corredor.
Então vamos a minha casa.
É muito tarde... moras longe... Espero uns amigos de um momento para o outro.
Então aqui.
Tu és doida!
Confessa antes que tens medo insisti. Não tens medo de fazer propaganda política, mas tens medo de ser surpreendido nesta sala com a mulher que te ama. Que pode acontecerte no fim de contas? Que a viúva te despeça? Que sejas obrigado a procurar outro quarto?
Sabia que excitando o seu amorpróprio podia obterse tudo dele. Com efeito, pareceu convencido. Devia sentir um desejo pelo menos tão forte como o meu.
Não passas de uma louca! repetiu. Talvez seja mais aborrecido ser despedido daqui do que ser preso... Aliás onde nos vamos encaixar?
No chão disselhe docemente com uma intensa ternura. Vem... eu mostrote como se faz.
Parecia tão perturbado que não tinha já forças para falar. Levanteime do canapé e, sem pressa, estendime no chão. O mosaico estava coberto por muitos tapetes; ao meio do quarto havia a mesa com o licoreiro. Estendime sobre o tapete, a cabeça e o busto debaixo da mesa, depois puxei Jaime pelo braço e obrigueio, contra a sua vontade, a estenderse sobre mim.
Deitei a cabeça para trás e fechei os olhos: o cheiro do pó e do velho pêlo do tapete pareceume embriagador e bom como se estivesse deitada num prado na Primavera e como se este cheiro fosse das flores, das ervas, e não o da lã suja. Jaime estava em cima da mim, e o seu peso faziame sentir a deliciosa dureza do chão; estava contente por não ser ele a sentila e que o meu corpo lhe servisse de leito.
Depois beijoume no pescoço, nas faces, e senti uma grande alegria com isso porque ele nunca o fazia. Abri os olhos, tinha a cara virada de lado, a face contra a lã áspera do tapete; vi para lá do tapete uma vasta extensão de mosaico encerado, depois, lá ao fundo, a parte inferior dos batentes da porta. Suspirei profundamente e tornei a fechar os olhos. O primeiro a levantarse foi Jaime; eu fiquei um grande bocado como ele me deixara, deitada de costas, um braço em cima da cara, as saias levantadas, uma perna para a direita, outra para a esquerda. Sentiame feliz e como que aniquilada pela minha felicidade; sentia que poderia ficar muito tempo assim, com esta agradável dureza do chão debaixo das costas, este cheiro a tapete e a pó nas narinas. Talvez mesmo tivesse dormido um bocadinho, um sono extasiado e leve; julguei sonhar que estava realmente num prado florido, estendida na erva, e que não era a mesa, mas um céu inundado de sol, que tinha sobre a minha cabeça. Jaime julgou com certeza que me sentia mal, porque de repente percebi que me sacudia e me dizia em voz baixa:
Mas que tens? Que fazes? Depressa! Levantate! Tirei o braço da cara, saí lentamente de debaixo da mesa e pusme de pé! Estava feliz e sorri. Jaime, encostado à parede, curvado, ainda ofegante, olhavame em silêncio com uma expressão longínqua e hostil.
Nunca mais te quero ver! acabou por dizer. Ao mesmo tempo o seu corpo curvado deu um esticão, como um fantoche a quem tivessem partido as molas.
Respondi sorrindo :
Porquê? Amamonos... vernosemos!
Aproximeime e fizlhe uma festa na cara. Mas virou o rosto, pálido e perturbado, repetindo:
Nunca mais te quero ver!
Sabia que esta hostilidade era sobretudo devida ao desgosto de ter cedido. Nunca se resignava a amarme sem muita resistência e muito remorso, como um homem que se resolve a fazer uma coisa que não quer e sabe que não deve fazer. Mas estava certa de que o seu mau humor não duraria muito tempo e que o desejo que sentia por mim, por muito que o combatesse e o detestasse, seria mais forte, por fim, do que a sua estranha aspiração à castidade. Não liguei importância às suas palavras. Lembrandome da gravata que acabara de lhe comprar, aproximeime do móvel onde deixara a mala e as luvas e disselhe:
Vá, não estejas zangado comigo... não voltarei aqui... Estás contente?
Continuou calado. Ao mesmo tempo a porta abriuse e, uma velha criada de quarto mandou entrar dois homens. O primeiro disse em voz baixa mas grossa:
Viva, Jaime.
Compreendi que estes deviam ser os camaradas do partido e olheios com curiosidade. O que falara era um autêntico colosso; mais alto que Jaime, de ombros largos e com aspecto de boxeur profissional. Era louro, de olhos azulesverdeados, nariz adunco, boca vermelha e informe. Mas a sua cara tinha uma expressão franca que me agradou, com uma simpática mistura de timidez e de simplicidade. Se bem que estivéssemos no Inverno, não trazia sobretudo e apenas usava debaixo do casaco uma grossa camisola branca de gola alta, de acordo com o seu aspecto desportivo. Admiraramme as suas mãos vermelhas e os fortes pulsos que saíam das mangas. Devia ser extremamente novo, talvez tivesse a mesma idade de Jaime. O segundo parecia, pelo contrário, um quarentão, e em vez de ter ar de trabalhador ou de camponês parecia um homem da burguesia. Não era alto e parecia minúsculo ao lado do seu camarada. Era um homenzinho escuro, com a cara sumida debaixo de uns grossos óculos. Tinha um nariz largo, e debaixo desse nariz uma boca que ia de orelha a orelha. As faces magras, escurecidas pela barba, o colarinho esfiado, o fato deformado e com nódoas, dentro do qual o seu pequeno corpo nadava, tudo nele tinha um ar de negligência agressiva e de miséria. Para dizer a verdade o aspecto destes dois homens espantavame, porque Jaime andava sempre vestido com uma certa elegância, sem requinte, aliás, e traía, por muitos indícios, uma classe diferente da deles. Se não tivesse ouvido esta gente dar os bonsdias a Jaime e ele corresponder ao cumprimento, nunca teria imaginado que pudessem ser amigos. Instintivamente senti logo simpatia pelo grande e antipatia pelo pequeno. O grande perguntou com um sorriso aborrecido:
Viemos talvez muito cedo?
Não, não! respondeu Jaime.
Parecia aturdido e não se recompunha facilmente.
Vocês foram pontuais.
A pontualidade é a virtude dos reis disselhe o baixo, esfregando as mãos.
E bruscamente, de uma maneira imprevista, como se esta frase fosse extremamente cômica, desatou a rir. Depois, com a mesma rapidez desagradável, tornouse sério outra vez e eu perguntava a mim própria se ele de facto rira ou não.
Adriana disse Jaime com esforço , apresentote dois amigos meus: Túlio e Tomás.
Reparei que não pronunciou os apelidos e supus não serem os seus verdadeiros nomes. Estendilhes a mão, sorrindo. O grande deume um aperto de mão que me adormeceu os dedos, o pequeno humedeceumos de suor com a sua gorda manápula. O mais baixo disseme: “Encantado!”, com uma ênfase que me pareceu cômica. O alto disse: “Muito prazer!” com simplicidade e, pareceume também, com simpatia. Notei que a sua voz tinha um ligeiro sotaque.
Olhamonos um momento em silêncio.
Se queres, Jaime, se tens que fazer disse o grande , podemonos ir embora, voltaremos amanhã.
Vi Jaime estremecer e olhálo; compreendi que lhes ia dizer que ficassem e convidarme a sair. Agora conheciao o suficiente para saber que a sua conduta não podia ser outra. Lembreime de que me tinha entregue a ele havia poucos minutos; tinha ainda no pescoço a sensação dos seus lábios ao beijaremme; na carne, a das suas mãos, que me tinham abraçado. O que se revoltou em mim não foi a alma, sempre pronta a ceder e a resignarse; foi o meu corpo, indignado por ver tratar assim a sua beleza e a sua dádiva. Dei um passo em frente e disse com violência:
Sim, é melhor que se vão embora e que voltem amanhã... Tenho ainda muitas coisas a dizer a Jaime.
O meu amante observoume com ar desagradavelmente surpreendido:
Mas eu preciso de lhes falar.
Falarlhesás amanhã.
Bem! disse Tomás com ar bonacheirão. Decidamse. Se querem que fiquemos, digamno; se querem que nos vamos embora...
Por nós é o que nos apetece fazer! acrescentou Túlio com o mesmo riso desagradável.
Jaime ainda hesitou. De novo o meu corpo, mesmo contra vontade, teve um impulso desagradável.
Ouçam disse levantando a voz. Apenas há alguns minutos Jaime e eu possuímonos aqui, no chão, sobre este tapete... Vocês em seu lugar, que fariam? Mandavamme embora?
Tive a impressão de que Jaime corava. De qualquer maneira perdera a segurança, voltounos as costas e aproximouse da janela. Tomás olhoume de soslaio, depois disse a sorrir :
Compreendo. Nós retiramonos. Até à vista, Jaime; amanhã à mesma hora.
A Túlio, pelo contrário, as minhas palavras pareceram têlo perturbado. Fixoume de boca aberta e os olhos franzidos. Com certeza nunca ouvira uma mulher falar com esta franqueza, e mil pensamentos sujos devem terlhe agitado o espírito. Mas o alto chamouo da porta:
Túlio... Vamos !
Então, sem tirar da minha pessoa os olhos espantados, recuou até à porta e saiu.
Esperei que desaparecessem para me aproximar de Jaime, que ficara junto da janela, de costas voltadas, e passarlhe um braço à roda do pescoço:
Aposto que neste momento não me podes ver! Voltouse lentamente e olhoume. Havia cólera no seu rosto; mas ao olhar o meu, que devia ter uma expressão doce, cheia de amor até mesmo inocente, à sua maneira , o seu olhar mudou; perguntoume num tom resignado, quase triste :
Agora estás contente? Tens o que querias.
Sim, estou contente! disselhe, beijandoo com força.
Deixouse beijar, depois respondeu:
Quais são as coisas que tens para me dizer?
Nada respondi. Tenho desejos de ficar contigo esta tarde.
Mas eu disse , daqui a pouco vou jantar. Janto cá com a viúva Medolaghi.
Bem! Convidame para jantar.
Olhoume e o meu àvontade fêlo sorrir, mas involuntariamente.
Está bem disse com condescendência. Vou avisála... mas como queres que te apresente?
Como quiseres... como uma parente.
Não... vou apresentarte como minha noiva.. está bem?
Não ousei mostrarlhe até que ponto a sua proposta me dava prazer. Afectei um ar indiferente e respondi:
Pelo que me diz respeito... noiva ou outra coisa, tanto faz... contanto que fiquemos juntos.
Espera, volto já.
Saiu. Fui a um canto da sala, arranjeime, ajustei rapidamente a combinação, toda torcida pelo amor e pela chegada inopinada dos amigos de Jaime. Num espelho colocado na minha frente vi a minha perna longa e perfeita calçada de seda e fezme um curioso efeito no meio de todos estes velhos móveis, com ar silencioso e fechado. Lembreime do dia em que estivera com Gino na casa da patroa dele e de onde trouxera a caixa de pó de arroz, e não pude deixar de comparar esse momento da minha vida, agora tão longínquo, com o instante presente. Naquela altura experimentara uma impressão de vazio e de amargura e o desejo de me vingar, senão de Gino, pelo menos do mundo que por intermédio de Gino tão cruelmente me ofendera. Agora, pelo contrário, sentiame contente, livre, leve. Compreendi mais uma vez que amava verdadeiramente Jaime e que pouco me importava não ser amada por ele.
Sacudi o vestido, aproximeime do espelho e arranjei o cabelo. A porta abriuse nas minhas costas e Jaime entrou.
Esperava que me abraçasse enquanto me olhava ao espelho. Mas foi sentarse no canapé, no fundo da sala, acendeu um cigarro e disse:
Pronto, já está. Vão pôr mais um talher. Daqui a pouco vamos para a mesa.
Afasteime do espelho e vim sentarme ao seu lado, enfiei o meu braço no dele e aperteio contra mim.
Estes dois homens disse são amigos políticos, não são?
São.
Não devem ser muito ricos.
Porquê?
A julgar pela maneira como estão enfarpelados.
Tomás é filho de um dos nossos caseiros disseme. O outro é um professor.
Não simpatizo com ele.
Com quem?
Com o professor. É porco. Olhoume de uma tal maneira quando eu disse que acabara de ter estado contigo...
Quer dizer que lhe agradaste.
Calamonos durante algum tempo. Depois eu disse:
Tens vergonha de me apresentar como tua noiva. Se queres voume embora.
Sabia que era a única maneira de lhe arrancar um gesto afectuoso: picar o seu amorpróprio, acusandoo de se envergonhar de mim. Com efeito, passoume logo o braço em torno da cintura e disseme:
Fui eu quem teve a ideia: porque havia de me envergonhar de ti?
Não sei... Vejo que estás mal disposto.
Não estou mal disposto; estou aturdido respondeume num tom sério. Foi por nos termos amado. Deixa recomporme.
Reparei que ainda estava muito pálido e parecia fumar com aborrecimento.
Tens razão disselhe. Desculpa. Mas tu és sempre tão frio, tão distante, que me fazes perder a cabeça.. Se não fosses assim, há pouco não tinha insistido para ficar.
Apagou o cigarro e disseme:
Não é verdade que eu seja frio e distante.
E no entanto...
Agradasme muito continuou, olhandome com atenção. E, com efeito, há um instante não te resisti como teria desejado.
Esta frase agradoume e baixei os olhos sem pronunciar palavra. Ele acrescentou:
Contudo, suponho que no fundo tens razão... não se pode chamar amor a isto.
Apertouseme o coração e não pude deixar de murmurar:
Que é para ti o amor?
Se eu te amasse respondeume , há pouco não teria desejado que te fosses embora... e depois não me teria zangado quando tu decidiste ficar.
Zangastete?
Sim... e agora conversaria contigo, estaria alegre, desenvolto e brincalhão. Estaria a acariciarte, a dizerte madrigais, a fazer projectos para o futuro... beijarteia. Não é isto o amor?
Sim disse eu em voz baixa. Em todo o caso, são esses os efeitos do amor.
Não falou durante algum tempo, depois disse sem nenhuma vaidade, com uma seca humildade:
Eu faço tudo da mesma maneira, sem nada sentir no coração... sem amar coisa nenhuma, sabendo somente pelo espírito como se fazem as coisas. Por vezes mesmo façoas a frio, exteriormente. Sou assim e creio que não posso mudar.
Fiz um grande esforço sobre mim e respondilhe:
Amote como és; não te atormentes!
Depois beijeio com grande amor. Quase no mesmo instante, a porta abriuse. Uma velha criada veio dizer que o jantar estava servido.
Saímos da sala e passamos por um corredor para ir para a casa de jantar. Lembrome bem de todos os pormenores desta casa e das pessoas, porque naquele momento estava sensível como uma chapa fotográfica. Não tinha tanto a impressão de agir como a de me ver agir com os olhos tristes e bem abertos. Tal é talvez o efeito da revolta que nos inspira uma realidade na qual sofremos e que desejaríamos diferente.
A viúva Medolaghi pareceume parecida, não sei porquê, com o seu salão de ébano com incrustações de nácar. Era uma mulher gorda, de estatura imponente, com peito volumoso e ancas maciças. Toda vestida de seda preta, com um largo rosto desfeito, de uma palidez nacarada, precisamente enquadrada por cabelos pretos que pareciam pintados, com fundas olheiras em torno dos olhos. Ficou de pé em frente de uma terrina decorada com flores e servia a sopa com uma espécie de aborrecimento. O candeeiro de suspensão descia sobre a mesa, iluminavalhe o peito como um grosso embrulho preto e luzidio e deixavalhe a cara na sombra. Nesta sombra os seus olhos rodeados de rugas pretas pareciam esburacar a cara branca como uma mascarilha de Carnaval. A mesa não era grande e tinha quatro pratos; um par de cada lado. A filha da senhora estava já sentada no seu lugar e não se levantou quando nos viu entrar.
A menina sentase ali disse a viúva Medolaghi. - Como se chama a menina?
Adriana.
Tem graça, como a minha filha! disse negligentemente. Temos duas Adrianas!
Falava com ar distante sem nos olhar; era claro que a minha presença nenhum prazer lhe dava. Como já disse, pintavame pouco e não oxigenava os cabelos, em suma, não traía o meu “trabalho” por qualquer sinal exterior. Mas que eu era rapariga do povo, simples e sem educação, isso viase com certeza e eu nenhum interesse tinha em o dissimular.
“Que estranha gente traz para a minha casa!”, devia pensar a Sr.a Medolaghi. “Uma rapariga do povo!” Senteime e observei a rapariga que tinha o meu nome. Era por metade do meu tamanho, como da minha cabeça, como do meu peito... por metade em tudo. Magra, pouco cabelo, uma cara oval e fina com grandes olhos mortiços, uma expressão estupefacta. Olheia e via baixar os olhos. Pensei que fosse tímida e disse para quebrar o gelo:
Sabe que acho curioso que outra pessoa tão diferente de mim tenha o meu nome?
Tinha dito qualquer coisa, só para meter conversa e a minha frase era parva. Mas, com grande surpresa, não recebi resposta. A rapariga fixou em mim os seus olhos esbugalhados e depois, sem dizer nada, curvou a cabeça sobre o prato e começou a comer. Então bruscamente fezse luz no meu espírito: ela não era tímida, mas estava aterrada. E a causa do seu terror era eu. Estava aterrada com a minha beleza, que brilhava no ar parado e poeirento da sua casa como uma rosa numa teia de aranha, pela minha exuberância impossível de passar despercebida mesmo quando eu estava calada e quieta, e sobretudo pela minha origem popular. Os ricos não gostam dos pobres, mas não os temem; sabem mantêlos a distância com orgulho e suficiência. Mas o pobre ao qual a sua origem ou a sua educação dão uma alma de rico fica literalmente aterrado por ver o pobre em carne e osso, como um homem predisposto a uma doença em frente de alguém que está atacado desse mesmo mal. Ricas, as duas Medolaghi não eram com certeza, porque senão não alugariam quartos. Como se sentiam pobres sem o admitirem, a minha presença de pobre desprovida de qualquer artifício parecialhes um insulto e um perigo. Deus sabe as ideias que passaram pela cabeça da rapariga quando lhe falei: “Olha aquela a dirigirme a palavra; quer tornarse minha amiga e nunca mais me verei livre dela!” Com um simples olhar compreendi o que se passou e decidi não abrir mais a boca até ao fim do jantar.
Mas a mãe, que tinha mais àvontade e talvez mais curiosidade, não quis renunciar à conversa:
Não sabia que estava noivo disse ela a Jaime. Há quanto tempo?
Tinha uma voz afectada e parecia falar por detrás do seu enorme peito como se estivesse ao abrigo de uma trincheira.
Há um mês disse Jaime.
Era verdade; não remontava a mais de um mês o nosso conhecimento.
A menina é romana?
Ultraromana. Sete gerações.
E quando se casam?
Depressa. Logo que a casa para onde vamos morar esteja livre.
Ah! Já têm casa?
Sim... uma casinha com jardim... um pátio... muito bonita.
O que ele descrevia com aquele tom sardônico era a moradia que eu lhe havia mostrado, ao pé da minha casa, na avenida.
Se esperarmos por aquela casa disse eu com esforço , receio nunca mais casarmos!
Ora, histórias! disse Jaime, que parecia recomposto, até mesmo com o rosto mais corado. Sabes bem que estará livre no dia marcado.
Não gosto de intrujices. Por isso nada mais disse. A criada mudou os pratos.
As moradias têm muitas comodidades, Sr. Diodatti disse a Sr.a Medolaghi , mas não são práticas; exigem muito criados.
Porquê? perguntou Jaime. Não será necessário; a Adriana será a cozinheira, a criada de quarto, a governanta... Não é, Adriana?
A Sr.a Medolaghi mediume com o olhar e declarou:
Para dizer a verdade uma senhora tem outras coisas para fazer que não seja ocuparse da cozinha, limpar os quartos e fazer as camas... mas se a menina Adriana está habituada a fazêlo... então nesse caso...
Não acabou a frase e voltou os olhos para o prato que a criada lhe apresentava.
Não sabíamos que vinha; senão teríamos acrescentado dois outros ovos.
Estava ofendida com Jaime e com a Sr.a Medolaghi. Quase desejava responderlhe: “Não, o que eu estou habituada é a ser prostituta.” Jaime, radiante, serviase e serviame generosamente de vinho. (Os olhos da Sr.a Medolaghi seguiam a garrafa com inquietação.) Depois continuou:
Mas a Adriana não é uma senhora. Ela nunca será uma senhora. A Adriana fez sempre as camas e arrumou os quartos. A Adriana é uma rapariga do povo.
A Sr.a Medolaghi olhoume como se me visse pela primeira vez, depois confirmou com uma delicadeza injuriosa:
Foi justamente o que eu disse... se ela está habituada...
A filha inclinou a cabeça sobre o prato.
Sim continuou Jaime. Ela está habituada e não serei eu com certeza que lhe farei perder hábitos tão aproveitáveis. Adriana é filha de uma camiseira; e ela também é camiseira... não é, Adriana?
Estendeu o braço sobre a mesa, agarroume a mão e virouma de costas para cima:
Ela pinta as unhas, é verdade, mas a sua mão é a de uma operária; grande, forte e simples. Como os cabelos... ela ondulaos, mas de facto são rebeldes e duros.
Largoume a mão e puxoume os cabelos, como se faz à crina dos animais.
Em suma, Adriana é em tudo e por tudo uma digna representante do nosso bom povo vigoroso e são.
Sentiase na sua voz um desafio sarcástico de que ninguém desconfiou. A filha olhava através da minha pessoa como se eu fosse transparente e ela quisesse ver um objecto que estivesse atrás de mim. A mãe ordenou à criada que mudasse os pratos e voltouse para Jaime perguntandolhe de uma maneira completamente inesperada:
Então, Sr. Diodatti, chegou a ver a tal comédia? Esta maneira tão desastrada de mudar de conversa quase me deu vontade de rir. Jaime não pareceu desconcertado e declarou:
Nem me fale nisso, uma verdadeira idiotice!
Nós vamos amanhã. Dizse que os actores são excelentes.
Jaime respondeu que, depois de tudo bem considerado, os actores não eram tão bons como os jornais diziam. A senhora admirouse de que os jornais mentissem. O meu amante respondeu, com calma, que os jornais eram uma pura e simples mentira da primeira à última linha. A partir desse momento a conversa decorreu sempre sobre esses assuntos. Logo que um destes temas convencionais era abordado, a Sr.a Medolaghi encetava outro com uma precipitação mal dissimulada. Jaime, que parecia divertirse, entrava no jogo e dava a réplica sem se fazer rogado. Falavam de actores, depois da vida nocturna de Roma, de cafés, de cinemas, de teatros, de hotéis e de outras coisas parecidas. Pareciam dois jogadores de pinguepongue atirando constantemente a mesma bola e fazendo por não a deixar cair. Mas enquanto Jaime o fazia pelo amor à comédia, tão desenvolvida nele, o que levava a Sr.a Medolaghi a fazêlo era o medo e o aborrecimento que eu lhe inspirava, eu e tudo o que se me pudesse ligar. Esta conversa de pura formalidade, só convencional, parecia significar: “É a minha maneira de lhe dizer que é indecente casar com uma rapariga do povo e também indecente trazêla a casa da Sr.a Medolaghi, viúva de um alto funcionário.” A filha não piava. Percebiase que estava aterrada e desejava claramente que a refeição terminasse e que eu me fosse embora o mais depressa possível. Durante algum tempo divertime a seguir a conversa. Depois fatigueime desse jogo e deixei a tristeza que me enchia o coração tomar inteiramente conta de mim. Compreendia com amarga clareza que Jaime não me tinha amor, e apesar de tudo sofria com isso. Depois reparei que ele se servira das minhas confidências para inventar a comédia do nosso noivado; não chegava a compreender se o fizera na intenção de troçar de mim ou delas. Talvez de mim e delas ao mesmo tempo, mas seguramente dele próprio, como se no fundo do seu coração acalentasse, como eu, o vivo desejo de uma vida normal e decente que, por motivos muito diferentes dos meus, pensava nunca poder vir a ter. Eu compreendia perfeitamente que os elogios que me fizera como filha do povo nada tinham de envaidecedor, quer para mim, quer para o povo; que a sua intenção fora tornarse desagradável às duas mulheres e nada mais. Estas observações faziamme reconhecer a verdade do que ele dissera pouco antes: que o seu coração não era susceptível de amar. Nunca como então me foi dado compreender que qualquer coisa com amor é tudo e nada sem amor é qualquer coisa. O amor ou existe ou não. Se existe, amase não somente alguém, mas toda a gente; era o que me acontecia. Se não existe, nada se ama, nem ninguém; era o seu caso. E a ausência de amor conduz fatalmente à incapacidade e à impotência.
A mesa fora entretanto levantada. Em cima da toalha cheia de migalhas, no clarão arredondado da luz que caía do candeeiro, havia quatro pequenas chávenas de café, um cinzeiro de barro em forma de tulipa e uma grande mão branca, cheia de manchas escuras, com os dedos carregados de grossos anéis fora de moda, segurando um cigarro aceso: a mão da Sr.a Medolaghi. De repente senti uma grande intolerância tomar conta de mim e levanteime:
Tenho muita pena, Jaime disse, exagerando propositadamente a minha pronúncia popular , mas tenho que fazer... Preciso de me retirar...
Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e levantouse também. Eu larguei umas “boasnoites” sonoras, fiz uma leve reverência, à qual a Sr.a Medolaghi respondeu com altivez distante e que a filha ignorou por completo, e saí. Na antecâmara disse a Jaime:
Palpitame que logo à noite a Sr.a Medolaghi vai pedirte que procures quarto noutro sitio...
Ele encolheu os ombros:
Não me parece respondeu. Eu sou dos que pagam bem e com pontualidade.
Voume embora disse eu. Este jantar pôsme triste.
Porquê?
Porque me convenci, por fim, de que tu és realmente incapaz de amar.
Disse isto com tristeza, sem olhar para ele. Depois ergui os olhos e tive a impressão de que ele próprio estava mortificado. Talvez fosse apenas efeito da pouca luz do vestíbulo sombrio, mas sentime possuída por um grande remorso.
Ficaste aborrecido? perguntei.
Não respondeu ele. No fundo o que tu disseste é verdade.
A minha alma inundouse de afeição. Beijeio impetuosamente e disselhe:
Não é verdade... disseto para te arreliar... e depois isso não impede que te ame... Olha... Trouxete esta gravata.
Abri a mala, tirei a gravata e estendilha. Olhoua e perguntoume:
Roubastea?
Esta brincadeira nele valia talvez mais do que um caloroso agradecimento: mas só o compreendi mais tarde. Naquele momento senti o coração apertado. Os olhos encheramseme de lágrimas e balbuciei:
Não, compreia... na loja lá em baixo.
Reparou na minha humilhação e beijoume dizendo:
Pateta! Estava a brincar. De resto darmeia o mesmo prazer se a tivesses roubado. Talvez até ainda mais...
Espera, que eu ponhota! disselhe, um pouco mais consolada.
Levantou o queixo, tireilhe a gravata velha, puslhe a nova e deilhe o nó.
Esta gravata velha e toda esfiada vou levála! disselhe. Não a deves pôr mais.
Na realidade o que eu queria era uma recordação sua, qualquer coisa que ele tivesse usado.
Então voltaremos a vernos em breve? disse.
Quando?
Amanhã depois de jantar.
Está bem!
Agarreilhe na mão e fiz menção de lha beijar. Ele baixou o braço, mas não pôde impedir os meus lábios de aflorarem os seus dedos. Rapidamente, sem me voltar, desci a escada.
Depois desse dia continuei a minha vida habitual. Amava realmente Jaime e mais de uma vez senti desejo de abandonar uma vida tão oposta ao verdadeiro amor.
Mas o amor não mudara a minha situação. Estava sempre na mesma, quer dizer, sem dinheiro e na impossibilidade de o ganhar de outra maneira. Nada queria pedir a Jaime, que de resto estava limitado à pequena pensão que a família lhe enviava. Devo mesmo dizer que eu sentia continuamente o desejo de pagar sempre em todos os lugares a que íamos juntos, cafés ou restaurantes. Ele recusava sistematicamente as minhas ofertas, o que me dava sempre desilusão e amargura.
Quando já não tinha dinheiro levavame para os jardins públicos, onde conversávamos e olhávamos os transeuntes, sentados num banco, como fazem os pobres. Um dia disselhe:
Mesmo que não tenhas dinheiro podemos ir na mesma ao café; pagarei eu; que mal é que tem isso?
Não é possível.
Mas porquê? Queria ir beber alguma coisa a um café.
Então vai sozinha.
Na verdade não era tanto ir ao café o que me interessava, como pagarlhe a ele. Desejava fazêlo de uma maneira tenaz e lamentável. Mais ainda do que pagarlhe desejaria darlhe directamente dinheiro, todo o dinheiro que ganhasse à medida que o fosse recebendo dos meus amantes de passagem.
Pareciame que para uma pessoa como eu seria a única maneira de lhe provar o meu amor. Pensava que sustentandono ligava a mim por um laço mais forte que o da afeição. De uma outra vez disselhe:
Davame imenso prazer darte dinheiro... E tenho a certeza de que também a ti te daria prazer recebêlo.
Desatou a rir e respondeume:
As nossas relações, pelo menos no que me diz respeito, não são fundamentadas no prazer.
Então em quê?
Hesitou, depois retorquiu:
Na tua vontade de me amar e na minha fraqueza perante essa vontade... mas não julgues que a minha fraqueza não tem limites.
Que queres dizer?
É muito simples respondeume tranquilamente. Já lhe expliquei muitas vezes. Estamos juntos porque tu o quiseste. Eu, pelo contrário, não o quis, e agora ainda, em teoria pelo menos, não o quero.
Está bem, está bem interrompio. Não falemos mais do nosso amor. Não tenho razão para te sustentar!
Muitas vezes, pensando no seu carácter, acabei por chegar à conclusão dolorosa de que ele não me tinha amor algum, e que eu era para ele objecto de não sei qual experiência. Realmente só se preocupava consigo próprio, mas nestes limites o seu carácter revelavase extraordinariamente complicado.
Era, como me parecia ter compreendido, filho de uma família provinciana abastada; um rapaz delicado, inteligente, culto, bem educado, sério. A sua família, depois do pouco que pude depreender, porque ele não gostava de falar nela, era exactamente a família na qual os meus vãos sonhos de regularidade me tinham feito sonhar para mim.
A família tradicional; um pai médico, uma mãe ainda nova, que vivia muito para a casa, para o seu marido e para os seus filhos, três irmãs mais novas e um irmão mais velho. É verdade que o pai, uma autoridade local, era um faztudo, a mãe uma provinciana, as irmãs raparigas talvez frívolas e o irmão mais velho um licencioso do gênero de João Carlos. Mas estes defeitos, todos somados, eram suportáveis, e para mim, que nascera num meio e numa situação tão diferentes, nem mesmo eram defeitos. De resto esta família era muito unida, e todos, irmãs, irmão e pais, gostavam muito de Jaime.
Eu achava que ele era muito afortunado por ter nascido numa família assim. Ele, pelo contrário, nutria por ela uma aversão, uma antipatia e um aborrecimento que eram realmente incompreensíveis para mim. Parecia sentir a mesma antipatia, a mesma aversão e o mesmo aborrecimento por si próprio, pelo que fazia, pelo que era. Mas este ódio por ele não era mais do que um reflexo do ódio que sentia pela família.
Por outras palavras, parecia odiar na sua pessoa tudo o que conservava da sua família ou, de uma maneira ou de outra, recebera a influência da família. Acabei de dizer que era bem educado, culto, inteligente, delicado e sério. Desprezava a sua boa educação, a sua inteligência, a sua cultura, a sua delicadeza, a sua seriedade unicamente porque supunha que as devia ao seu meio ou à família na qual nascera e fora criado.
Mas, em suma disselhe uma vez , que querias tu ser? Tudo isso são boas qualidade... devias agradecer ao Céu possuílas.
Ora! respondeu, depreciativo. Para o que me serve! Por mim teria preferido ser como Sonzogne.
A história de Sonzogne tinhao tocado muito, não sei porque.
Que horror! gritei. É um monstro! Tu querias ser um monstro?
Naturalmente que não queria ser em tudo como Sonzogne explicou com calma. Se falo em Sonzogne é só para tornar mais clara a minha maneira de pensar. Seja ele como for, Sonzogne é feito para viver neste mundo e eu não.
Queres saber disselhe eu então o que gostaria eu de ser?
Vejamos.
Quereria ser disselhe lentamente saboreando cada uma das minhas palavras como se elas fossem um sonho há muito acariciado exactamente o que tu és e o que tanto te desgosta ser... Gostaria de ter nascido de uma família rica como a tua, que me tivesse dado uma boa educação... gostaria de viver numa casa asseada e bonita como a tua... Gostaria de ter tido, como tu, bons professores, preceptores estrangeiros... Gostaria de, como tu, passar o Verão na praia ou na montanha.. ter bonitas roupas, ser convidada, receber... E depois gostaria de me casar com alguém que me amasse, um bom rapaz que trabalhasse e tivesse tido também ele uma vida abastada... Gostaria de viver com ele e darlhe filhos.
Falávamos estendidos na cama. De repente saltou para cima de mim e começou a apertarme e a beliscarme, dizendo muitas vezes :
Hip! Hip! Hurra! Em suma, tu querias ser como a Sr.a Lobianco?
Quem é a Sr.a Lobianco? pergunteilhe, um pouco magoada e desconcertada.
Uma pavorosa ave de rapina que me convida com frequência para as suas recepções com a esperança de que eu me apaixone por uma das suas horríveis filhas e case com ela, porque eu sou aquilo a que vulgarmente se chama um bom partido.
Mas eu não quereria ser de modo algum como a Sr.a Lobianco.
Tu serias forçosamente como ela se tivesses tido todas as coisas que disseste! Ela também, a Sr.a Lobianco, nasceu de uma família rica, que lhe deu uma excelente educação, com bons professores e preceptores estrangeiros, que a mandaram para o liceu e até mesmo, creio eu, para a Universidade. Ela também cresceu numa casa bonita e asseada... Ia para a praia ou para a montanha quando chegava o Verão... Teve bonitos vestidos, foi convidada e fez convites... muitos convites e muitas recepções... Também ela se casou com um bom homem, o engenheiro Lobianco, que é um trabalhador e que “cavou” bastante dinheiro para a casa... Enfim, ela teve desse marido, ao qual vou até ao ponto de acreditar que foi fiel, um bom número de filhos, três raparigas e um rapaz precisamente... E é nem mais nem menos como acabo de te dizer, uma pavorosa ave de rapina!
Mas talvez seja uma ave de rapina... independentemente do seu meio.
Não, ela é assim como o são as suas amigas e as amigas das suas amigas.
É possível disselhe eu experimentando desembaraçarme do seu sarcástico abraço , cada um tem o seu carácter. É possível que a Sr.a Lobianco seja como dizes... mas eu tenho a certeza de que na sua situação teria sido muito, muito superior ao que sou.
Não serias menos horrível do que a Sr.a Lobianco.
Porquê?
Porque sim!
Vejamos!... A tua família também te parece horrível?
Sem dúvida nenhuma! Absolutamente horrível!
Então tu também és horrível?
Souo dentro de todos os elementos que me ficaram dá minha família.
Mas porquê? Dizme porquê.
Porque sim!
Isso não é uma resposta.
É a resposta que te daria a Sr.a Lobianco se lhe fizesses certas perguntas.
Que perguntas?
É inútil que tas diga respondeu em tom leve. Para as perguntas que nos podem embaraçar um bom “porque sim” pronunciado com convicção fecha a boca ao mais curioso. “Porque sim...” Sem razão nenhuma... “Porque sim!”
Não compreendo.
Que importa que nós nos não compreendamos se nos amamos mesmo assim, não é? concluiu beijandome com a sua habitual ironia, isenta de amor.
E foi assim que acabou a discussão. Da mesma maneira que ele nunca se abandonava por completo a um sentimento, parecendo guardar sempre uma parte para ele, talvez a mais importante, de modo a tirar todo o valor aos seus raros gestos de afecto, igualmente ele nunca abria inteiramente o seu espírito e de cada vez que eu julgava chegar ao centro da sua inteligência, de uma brincadeira, de um gesto cômico, repudiavame e furtavase à minha atenção. Era fugidio em todo o sentido da palavra. Tratavame como a um ser inferior, uma espécie de objecto de estudo e de experiência. Mas talvez mesmo por isso eu o amava de uma maneira tão submissa e indefesa. Aliás, pareciame por vezes que não odiava somente a família e o seu meio, mas realmente todos os homens. Disseme um dia, não sei já a que propósito:
Os ricos são horríveis... mas, se bem que por motivos diferentes, os pobres não valem por certo muito mais!
Seria mais fácil disselhe eu dizeres francamente que detestas todos os homens.
Pôsse a rir e respondeu:
Quando não estou no meio deles não os detesto... detestoos tão pouco que acredito na possibilidade de eles melhorarem. Se não acreditasse não me ocuparia de política. Mas quando me encontro com eles, fazemme horror... Realmente os homens nada valem acrescentou de repente com tristeza.
Nós também somos homens disselhe , por conseguinte nada valemos. Não temos, portanto, o direito de julgar.
Riuse de novo e acrescentou:
Não os julgo, sintoos, ou, melhor, farejoos como um cão o rasto de uma perdiz ou de uma lebre... O cão julga? Não... Eu farejoos como maus, estúpidos, egoístas, mesquinhos, vulgares, falsos, ignóbeis, cheios de ideias sujas... um sentimento... Não se pode abolir um sentimento, pois não?
Não sabia que responder. Limiteime a observar:
Eu não tenho esse sentimento.
De uma outra vez declaroume:
De resto, não sei se os homens são bons ou maus, mas são com certeza inúteis, supérfluos!
Que queres dizer?
Quero dizer que podia muito bem passarse sem a humanidade inteira... Ela não é mais que uma ruim excrescência sobre a face do mundo... uma verruga. O mundo seria muito mais belo sem os homens, as suas cidades, as suas ruas, os seus portos, os seus arranjinhos. Pensa em como o mundo seria belo se só existisse o céu, o mar, as árvores, a terra, os animais.
Não pude deixar de rir e gritei:
Que ideias esquisitas tu tens!
A humanidade continuou ele é uma coisa sem pés nem cabeça e portanto negativa... A história da humanidade não é mais que um longo bocejo de aborrecimento... Que falta faz? Por mim passaria bem sem ela.
Mas também tu fazes parte desta humanidade. Então gostarias de não existir?
Eu sobretudo!
Uma outra das suas ideias fixas, ainda mais singular porque não tentava pôla em prática e não servia senão para estragarlhe o prazer, era o da castidade. Elogiavaa sempre, mas principalmente como se fosse para me arreliar, logo a seguir a termonos amado. Dizia que o amor era a forma mais fácil e idiota de nos livrarmos de todos os problemas, resolvendoos às escondidas, sem que ninguém desse por isso, como se manda sair um hóspede embaraçoso pela porta de serviço.
Em seguida declarava , feita a operação, vaise passear com a cúmplice, mulher ou amante, maravilhosamente dispostos a aceitar o mundo tal qual é... nem que fosse o pior mundo possível.
Não te compreendo disselhe.
No entanto respondeume isto pelo menos devias compreender; não é a tua especialidade?
Sentime ferida e repliqueilhe:
A minha especialidade, como tu dizes, é amarte. Mas se tu queres, nunca mais teremos relações e eu amarteei da mesma maneira.
Riuse e perguntoume:
Tens a certeza?
Nesse dia a discussão ficou por aqui, mas repetiuse noutras ocasiões. Acabei por não ligar importância: aceitei a coisa como de resto os outros traços do seu carácter tão cheio de contradições.
Pelo que dizia respeito à política, pelo contrário, era assunto em que não tocava. Ainda agora ignorava qual o seu fim, quais as suas ideias, a que partido pertencia. Esta ignorância tinha origem no segredo em que ele envolvia este aspecto da sua vida, no facto de eu nada perceber de política e de, quer por timidez quer por ignorância, não lhe pedir explicações que me poderiam esclarecer. Fazia mal; Deus sabe como me arrependi mais tarde! Mas pareciame naquela altura extremamente cômodo não me misturar em coisas que supunha não me dizerem respeito e não pensar senão no amor. Em suma, portavame como muitas outras mulheres, esposas ou amantes, que ignoram como o homem que lhes pertence arranja o dinheiro que lhes dá. Aconteciame muitas vezes encontrar os seus dois camaradas, que ele via quase todos os dias. Mas eles não falavam de política na minha presença; gracejavam ou conversavam sobre coisas sem importância.
No entanto não conseguia banir da minha alma uma apreensão constante, porque compreendia que tramar conspirações contra o governo era perigoso. Receava, sobretudo, que Jaime se entregasse a qualquer acto de violência; na minha ignorância, não conseguia separar o tema da conspiração da ideia de armas e de sangue. A propósito disto, lembrome bem de um facto que demonstra que, mesmo obscuramente, eu sentia o dever de intervir para desviar os perigos que o ameaçavam. Sabia que é proibido usar armas e que a transgressão era o suficiente para o meter na cadeia. Por outro lado depressa se perde a cabeça em certos momentos; o emprego de armas tem muitas vezes comprometido pessoas que se teriam salvo sem elas. Por todos estes motivos pensava que o revólver de que Jaime se sentia tão orgulhoso, longe de lhe ser necessário, como ele pretendia, seria extremamente perigoso no caso de ele ser obrigado a fazer uso dele, ou até se, mais simplesmente, lho encontrassem. Mas não ousei falarlhe nisso; de resto sabia que seria inútil. Resolvi por isso agir às escondidas. Ele uma vez tinhame explicado como a arma funcionava. Um dia, enquanto dormia, tireilhe o revólver do bolso das calças, abrio e tireilhe as balas; depois tornei a pôlo no bolso. Escondi as balas numa gaveta, debaixo da roupa. Fiz tudo isto num abrir e fechar de olhos e voltei a deitarme a seu lado. Dois dias mais tarde meti as balas na mala e fui atirálas ao Tibre.
No decurso de um destes dias Astárito procuroume. Quase o esquecera; quanto ao caso da criada de quarto achava que tinha cumprido o meu dever e não queria mais pensar nisso. Astárito informoume de que o padre tinha devolvido a caixa, que, a conselho do próprio comissário, a patroa de Gino tinha retirado a queixa e que a criada de quarto, reconhecida inocente, fora libertada. Devo reconhecer que esta boa noticia me agradou sobretudo porque me dissipou a impressão de mau agouro que me tinha deixado a minha última confissão. Agora já não pensava na criada, já em liberdade, mas em Jaime, e dizia a mim própria que, visto a denúncia que eu receava não ter sido feita, nada mais tinha a temer, nem por ele nem por mim. Na minha alegria não pude deixar de beijar Astárito.
Tinhas assim tanto interesse em que esta mulher saísse da prisão? observou ele com uma careta de desconfiança.
Para ti disselhe hipocritamente , que mandas todos os dias inocentes para a cadeia, pode parecerte estranho! Mas para mim era um verdadeiro tormento.
Ninguém mando para a cadeia tartamudeou ele. Cumpro apenas o meu dever.
Mas tu viste o padre? pergunteilhe.
Não, não o vi... telefonei... disseramme que efectivamente a caixa de pó de arroz tinha sido devolvida por um padre, que a recebera sob o segredo da confissão... Então ordenei que libertassem a mulher.
Fiquei pensativa sem bem saber porquê. Depois disselhe:
Amasme realmente?
A minha pergunta perturbouo logo. Beijoume com força e respondeume balbuciante:
Porque mo perguntas? Já o deves ter percebido.
Queria beijarme. Defendime e respondilhe:
Perguntote porque queria saber se me amarás sempre... e se me ajudarás mais vezes, se te pedir.
Sempre disseme tremendo dos pés à cabeça. Depois aproximou a cara da minha: Tu serás gentil comigo?
Agora que Jaime voltara, eu estava firmemente decidida a nunca mais ter relações com Astárito. Era diferente dos meus amantes passageiros; se bem que não o amasse, e por vezes mesmo sentisse por ele uma real aversão, justamente por isso talvez pareciame que entregarme a ele seria enganar Jaime. Estive tentada a revelarlhe a verdade e a declararlhe: “Não, nunca mais serei gentil para contigo!”, mas bruscamente retiveme e mudei de ideias. Pensava que ele era um trunfo importante, que a todo o momento Jaime podia ser preso e que se quisesse a intervenção de Astárito para o conseguir libertar não o devia melindrar. Resigneime e disse num sopro:
Sim, serei amável contigo.
Dizme perguntou já mais alegre. Gostas de mim um bocadinho?
Não, amarte não te amo! disselhe com decisão. Isso já tu sabes; já to disse muitas vezes.
Nunca me amarás?
Creio bem que não.
Mas porquê?
Não há porquê.
Tu gostas de outro.
Isso a ti não te pode interessar.
Mas eu preciso do teu amor! disseme desesperado, olhandome com os seus olhos biliosos. Porquê... porque não queres gostar de mim um bocadinho?
Nesse dia permiti que ficasse comigo até mais tarde. Não podia conformarse com a minha impossibilidade de o amar e não parecia convencido de que lhe dizia a verdade.
Mas eu não sou pior do que os outros repetia. Porque não me podes amar tanto como a outro?
Faziame pena; como me interrogava com insistência e se esforçava por encontrar nas minhas palavras um pretexto para qualquer esperança, sentia quase a tentação de lhe mentir para lhe deixar esta ilusão que ele tanto ambicionava. Reparei que nessa noite estava mais melancólico e mais desencorajado do que habitualmente. Parecia querer suscitar em mim, por gestos e por atitudes, o amor que o meu coração lhe recusava. Lembrome de que a certa altura mandoume sentar, toda nua, num sofá. Ajoelhouse na minha frente, meteu a cabeça entre os meus joelhos e apertou a cara contra a minha barriga, ficando muito tempo imóvel, enquanto eu lhe devia repassar a mão pela cabeça numa carícia incessante e leve. Não era a primeira vez que me obrigava a esta espécie de pantomima de amor; mas nesse dia pareceume mais desesperado que de costume; apoiava com força a cara no meu colo como se quisesse lá entrar e gemia. Nestes momentos não me fazia o efeito de um amante, mas de uma criança procurando a escuridão e o calor das entranhas maternais. Pensava que muitos homens desejariam não ter nascido, e que esse gesto, talvez inconsciente, exprimia o obscuro desejo de voltar ao ventre do qual tão dolorosamente tinham brotado para a luz.
Nessa noite essa sua atitude levou tanto tempo que adormeci, com a cabeça descaída para trás e a mão pousada na sua cabeça. Dormitei não sei quanto tempo. A certa altura julguei acordar e vi Astárito sentado na minha frente todo vestido e olhandome com os seus olhos biliosos e melancólicos. Mas talvez tivesse sido um sonho, porque depois acordei completamente e vi que Astárito já lá não estava. Tinha deixado no sítio onde pousara a cabeça a sua soma habitual de dinheiro.
Em seguida passaram os quinze dias que eu considero os mais felizes da minha vida.
Via Jaime quase todos os dias e, se bem que as nossas relações não tivessem mudado, contentavame com esta espécie de hábito, na qual parecia termos encontrado um ponto de acordo. Tacitamente estava bem claro entre nós que ele não me tinha amor, nunca me amaria e de qualquer maneira preferia sempre a castidade ao amor. Também estava tacitamente estabelecido que eu o amava, o amaria sempre a despeito da sua indiferença e que de qualquer maneira preferia um amor incompleto e vacilante como aquele que ausência de amor. Mas eu não era feita como Astárito; não me resignando a não ser amada, não encontrava menos prazer em amar; juraria que no fundo do meu coração não perdera a esperança de ser amada por Jaime à força de submissão, de paciência e de afeição. Mas não acalentava esta aspiração; ela era, bem mais que outra coisa, o tempero levemente amargo de deliciosas incertezas duramente ganhas.
Entretanto, como quem não quer a coisa, procurei penetrar na sua vida. Já que não podia entrar pela porta principal procurei esgueirarme pela de serviço. A despeito deste ódio pelos homens que ele proclamava, e que creio que sentia, experimentava, por uma curiosa contradição, um impulso indomável para pregar e esforçarse por fazer o que ele considerava o bem do povo. Quase sempre intercalado por bruscos acessos de sarcasmo e de aborrecimento não era menos sincero quando o fazia.
Foi nesta altura que ele pareceu apaixonarse pelo que ele chamava, não sem ironia, a minha educação. Como já disse, eu procurava prendêlo a mim; assim, favoreci o seu entusiasmo. Esta experiência, no entanto, acabou quase de repente de uma maneira que vale a pena relatar. Vinha ter comigo muitas noites a seguir, traziame livros seus e depois de me explicar abreviadamente o assunto de que tratavam liame um trecho ou outro. Lia bem, com grande variedade de inflexões, segundo o assunto, e com um fervor que o tornava corado e lhe dava uma grande vivacidade ao rosto. Mas o que ele mais lia eram coisas que, a despeito dos meus esforços, não chegava a compreender. Bem depressa deixei de o ouvir, contentandome em observar, com um entusiasmo que nunca fraquejava, as diversas expressões que a sua cara tomava. Na realidade, no decurso dessas leituras libertavase, sem ironia, nem receio, como alguém que está no seu elemento e já não teme mostrarse sincero. Aquilo magoavame porque até então julgava que era o amor, e não a leitura, a situação mais favorável à expansão da alma humana. Para Jaime, parecia bem ser o contrário. Nunca lhe vi no rosto uma expressão de tanto entusiasmo e ao mesmo tempo de candura, mesmo nos raros momentos de sincero afecto por mim, como logo que elevava a voz com curiosas entoações cavernosas ou a baixava num tom reflectido para me declamar os seus autores preferidos. Eu via então desaparecer por completo aquele ar afectado, teatral e cômico que nunca o abandonava até mesmo nos momentos mais sérios e que dava a impressão de que ele estava sempre a representar um papel. Muitas vezes chegava a comoverse até às lágrimas.
Fechava o livro e perguntavame num tom brusco:
Gostas disto?
Geralmente dizia que gostava sem especificar porquê; não o poderia fazer, porque desde o princípio abandonei toda a tentativa de compreender. Mas um dia insistiu e perguntoume:
Dizme porque gostas... explicame!
Para dizer a verdade respondi depois de uma hesitação nada te posso explicar, porque nada percebi.
Porque não me disseste?
Nada compreendo... ou quase nada do que me lês.
E deixasme ler sem mo dizer?
Saltava, batia com os pés no chão, furioso:
Diabo! Mas tu és uma idiota, uma estúpida!... E eu a esforçarme. És uma cretina!
Fez menção de me atirar com o livro à cabeça, mas contevese a tempo e continuou a injuriarme durante um bom bocado. Deixei passar a fúria e observeilhe:
Dizes que me queres educar... mas a primeira coisa a fazer era agir de maneira a que eu não precisasse de ganhar a vida da maneira que sabes. Para engatar homens não é verdadeiramente necessário ler poesias ou reflexões sobre a moral. Podia muito bem não saber ler nem escrever; davammo o mesmo dinheiro.
Respondeu num tom sarcástico:
Querias uma bonita casa, um marido, filhos, vestidos, um automóvel, não é? A desgraça é que as Sr.as Lobianco não lêem. Os motivos são diferentes dos teus, mas não menos justificáveis, ao que parece.
Não sei o que quereria respondi irritada , mas esses livros convêm a uma condição diferente da minha. É como se oferecesses um chapéu de grande categoria a uma pedinte e quisesses que ela o usasse com os seus andrajos habituais!
É possível disseme. Mas para mim é a última vez que te leio uma linha!
Narro esta escaramuça porque me pareceu característica da sua maneira de pensar e de agir. Duvido de que tivesse continuado a sua obra educativa mesmo se eu não lhe tivesse mostrado a minha incompreensão. Não que fosse inconstante, mas tinha uma singular incapacidade que se poderia chamar física para manter qualquer esforço que exigisse um entusiasmo contínuo e sincero. Nunca mo disse claramente, mas compreendi depressa que esta atmosfera de comédia que criavam as suas palavras correspondia a um contíguo estado de espírito. Em suma, acontecia entusiasmarse por um motivo qualquer, e enquanto durava o fogo do seu entusiasmo, ver a coisa como possível e concreta. Depois, de repente, o fogo extinguiase e não lhe deixava mais que aborrecimento, desagrado, e sobretudo um sentimento total de absurdo. Neste caso ou se deixava cair numa gélida indiferença ou se agitava de uma maneira exterior e convencional como se este fogo não se tivesse apagado e então fingia. Para mim é difícil explicar o que lhe acontecia nessas ocasiões: provavelmente uma paragem brusca da vitalidade, como se de repente o calor do seu sangue tivesse abandonado o seu espírito, não deixando mais do que aridez e vazio. Era uma interrupção súbita, imprevisível, total, comparada à brusca interrupção de uma corrente eléctrica que mergulhasse no escuro uma casa faustosamente iluminada um minuto antes. Estas intermitências da mais profunda vitalidade, descobrias depois das várias alternativas de entusiasmo e ardor para estados de apatia e inércia; mas acabei por ter a verdadeira revelação por ocasião de um incidente curioso, mas que mais tarde me pareceu significativo. Perguntoume um dia, de uma maneira inesperada:
Gostavas de fazer alguma coisa por nós?
“Nós”, quem?
Pelo nosso grupo. Por exemplo, ajudarnos a fazer propaganda.
Estava sempre à espreita de tudo o que me pudesse aproximar dele e reforçar a nossa ligação. Respondilhe sinceramente:
Com certeza! Dizme o que devo fazer que eu o farei.
Não tens medo?
Medo de quê? Desde que tu o fazes também...
Sim disse , mas primeiro é preciso que te explique de que se trata. Precisas de conhecer as ideias pelas quais te expões e te arriscas.
Está bem! Explicame!
Mas não te interessam.
Porquê? Primeiro interessamme com certeza; além disso, tudo o que fazes me interessa, quanto mais não seja por tu o fazeres.
Olhoume. Bruscamente, de uma maneira inesperada, os olhos iluminaramselhe e a cara animouselhe.
Está bem disse. Hoje é muito tarde... mas amanhã explicote tudo... de viva voz porque os livros aborrecemte. Mas já sabes que precisarás de me escutar, mesmo que te pareça não estares a compreenderme.
Farei o possível por compreender disselhe.
Tens de compreender disse como se falasse consigo próprio.
Foise embora.
No dia seguinte espereio mas não veio. Voltou dois dias depois. Uma vez no quarto, sentouse, sem dizer palavra, aos pés da cama:
Então disse eu alegremente , estou pronta. Sou toda ouvidos!
Notara a sua cara abatida, os olhos mortiços; toda a sua atitude era de abatimento: mas fingi não perceber. Acabou por me responder:
É inútil ouvires, porque nada tenho para te dizer.
Porquê?
Porque não!
Dizme a verdade protestei. Julgasme muito estúpida ou muito ignorante para compreender certas coisas? Agradeçote.
Não respondeu gravemente. Enganaste.
Então porquê?
Continuamos durante algum tempo, eu a insistir para saber e ele a defenderse. Acabou por me dizer:
Queres saber porquê? Porque eu próprio, hoje, já não te poderia expor estas ideias.
Mas como, se pensas nisso continuamente?
É verdade; mas depois daquela noite, e sabe Deus por quanto tempo ainda, estas ideias já não estão claras no meu espírito; já nada percebo disso.
Então!
Procura compreenderme disse. Há dois dias, quando te propus trabalhar para nós, se te tivesse exposto logo estas ideias estou certo de que não só o teria feito com vigor, clareza e convicção, mas tu as terias compreendido. Hoje, pelo contrário, poderia mexer os lábios e a língua para pronunciar palavras, mas fáloia mecanicamente, sem qualquer participação. Hoje concluiu já nada compreendo.
Nada compreendes?
Não, nada mais compreendo; ideias, conceitos, factos, recordações, convicções, tudo se transformou para mim numa espécie de burburinho... este burburinho encheme a cabeça, a cabeça toda (batia com os nós dos dedos na testa...) e desagradame como se fossem excrementos!
Eu olhavao sem compreender. Um frêmito de desespero parecia percorrerlhe o corpo.
Tenta compreenderme repetia. Hoje não são as ideias, mas todas as coisas escritas, ditas ou pensadas são incompreensíveis para mim... absurdo. Por exemplo, sabes o Pai Nosso?
Sei.
Pois bem, dilo.
Pai Nosso que estais no céu. comecei.
Chega! interrompeume. Agora reflecte sobre a quantidade de maneiras como se escreveu esta oração no decurso dos séculos e na variedade de sentimentos que levou a dizêla. Pois bem! Eu de nenhuma maneira a compreendo... Poderias recitála de trás para diante que para mim seria a mesma coisa.
Calouse, depois continuou:
Não são só as palavras que me fazem este efeito, mas também as coisas e as pessoas. Tu estás ao meu lado, sentada no braço do sofá; julgas talvez que eu te vejo? Não te vejo porque não te compreendo. Posso tocarte, não te compreenderia melhor. Vês, eu tocote sacudiu o meu penteador e descobriume o peito , apalpote o seio, sintolhe a forma, a tepidez, o contorno; vejolhe a cor, o relevo... mas não compreendo o que é. Digo a mim próprio: é um objecto redondo, quente e mole... que serve para amamentar... que se sente prazer quando se acaricia... mas não compreendo o que é... Digo a mim mesmo que é belo, que me deveria inspirar desejo, mas isso não me impede de nada compreender. Entendes agora? repetiu, furioso, apertandome o seio de tal maneira que não pude impedir um grito de dor.
Largoume logo e fez notar passado um instante, tendo o ar de reflectir:
É provável que seja este género de incompreensão que arrasta tanta gente à crueldade. Eles procuram encontrar o contacto com a realidade através da dor alheia.
Houve um momento de silêncio, depois eu disse:
Se isso é verdade, então como te arranjas quando tens de fazer certas coisas?
Por exemplo?
Não sei. Tu dizes que distribuis os panfletos, que tu mesmo os rediges. Se não acreditas, como os rediges e distribuis?
Deu uma gargalhada sarcástica:
Façoo como se acreditasse disse.
Mas é impossível!
Como é impossível? Quase toda a gente faz assim. Salvo comer, beber, dormir ou amar, quase todos fazem as coisas como se acreditassem nelas... Ainda não tinhas dado por isso?
Ria nervosamente.
Eu não respondi.
Tu não respondeume de uma maneira quase ofensiva , precisamente porque te limitas a comer, beber, dormir e amar de cada vez que te apetece. Para todas essas coisas não parece que seja necessário simular. É muito, mas também é pouco!
Ria. Deume bruscamente uma grande palmada na nádega, depois tomoume nos braços, como fazia muitas vezes, pelo prazer de me apertar e de me sacudir, repetindo sem parar :
Tu não sabes que o nosso mundo é o mundo do “Porque sim”? Tu não sabes que neste mundo, desde o rei ao mendigo, toda a gente se comporta “Porque sim”? O mundo do “Porque sim”, do “Porque sim”, do “Porque sim”!
Deixeio fazer porque sabia que nesses momentos mais valia não protestar, mas esperar que isto lhe passasse. Acabei por lhe dizer com certa firmeza:
Amote. É a única coisa que sei e isso bastame.
Acalmouse de repente e respondeume simplesmente:
Tens razão.
A noite chegou sem que tornássemos a falar nem em política nem na sua capacidade.
Uma vez só, depois de muito reflectir, concluí ser possível que as coisas fossem como ele dizia; mas que era mais que certo que não me tornaria a falar em política por pensar que não a compreenderia e por recear que o comprometesse com qualquer indiscrição. Não que eu imaginasse que ele mentia; sabia, por experiência própria, que pode acontecer a toda a gente ter dias em que o mundo inteiro parece voar em estilhas, em que, como ele dizia, nada se compreende, nem mesmo o Pai Nosso. Eu também, quando tinha algum dissabor, chegava a sentir a mesma impressão de aborrecimento, de desagrado e de prostração. Mas, evidentemente, devia haver outro motivo para que me recusasse a participar na sua vida mais secreta: a falta de confiança, como já disse, tanto na minha inteligência como na minha discrição. Com o tempo compreendi, demasiadamente tarde, que me enganava e que ou fosse por inexperiência da idade ou por fraqueza de carácter, estes estados mórbidos tomavam uma importância particular para ele.
Nesse momento pensava que não o devia importunar com a minha curiosidade. E foi o que fiz.
Não sei porquê, lembrome muito bem do tempo que estava naqueles dias. Fevereiro, que tinha sido frio e chuvoso, acabara; com Março haviam chegado os primeiros dias calmos. Uma rede cerrada de finas nuvens brancas velava inteiramente o céu, ferindo os olhos quando se saía de casa para a rua. O ar era doce mas ainda dorido dos friores do Inverno. Eu caminhava com prazer e alheamento neste ar seco, magoado e sonolento. De vez em quando chegava a retardar o passo e fechar os olhos ou parar a contemplar as coisas mais insignificantes: um gato branco e preto que alisava o pêlo no vão de uma porta, um ramo de loureiro caído, cortado pelo vento, um tufo de erva entre as pedras do passeio. O musgo que a chuva dos meses anteriores deixara nos rebordos das casas inspiravame uma grande tranquilidade e confiança. Pensava que se este belo veludo cor de esmeralda podia viver numa tão fina camada de terra, a minha vida que não tinha raízes mais profundas e se contentava em vegetar e se sustentar com tão pouco alimento, verdadeiro bolor, ela também ao pé de uma ruína - tinha alguma probabilidade de continuar a florir.
Estava convencida de que todas as desagradáveis aventuras dos últimos tempos tinham acabado definitivamente, que não tornaria a ver Sonzogne nem ouviria mais falar dos seus crimes, e que de futuro poderia gozar em paz a minha ligação com Jaime. Esta ideia davame a impressão de sentir pela primeira vez o verdadeiro sabor da vida, feito de um doce tédio, de esperança e de disponibilidade.
Começava mesmo a entrever a possibilidade de mudar de existência. No fundo, o meu amor por Jaime desinteressavame dos outros homens, de maneira que os meus encontros ocasionais tinham perdido até o aguilhão da curiosidade e da sensualidade. Mas eu pensava ser inútil tentar modificarnos e que eu não mudaria senão quando, sem choques nem violências, pela própria ordem natural das coisas, criasse hábitos, sentimentos e interesses novos.
Não via outra maneira de mudar de existência, não sentia de momento qualquer desejo de aumentar nem de melhorar materialmente a minha condição e não tinha a impressão de que, transformando a minha vida, eu própria melhorasse qualquer coisa.
Um dia contei a Jaime estas minhas reflexões. Ouviume atentamente, depois observoume:
Pareces contradizerte. Não dizes sempre que querias ser rica, ter uma bela casa, um marido e filhos? São coisas legítimas: ainda é possível que as obtenhas, mas nunca as conseguirás se raciocinares dessa maneira.
Não digo que queria, digo que teria querido. respondilhe. Quer dizer que se tivesse podido optar antes de ter nascido, não teria escolhido isto que sou. Mas nasci naquela casa, de uma mãe como aquela, nesta situação, e apesar de tudo, sou a que sou.
O quê?
Pareceme absurdo querer ser outra. Desejaria ser outra unicamente se, tornandome outra, pudesse continuar a ser eu própria... quer dizer, se pudesse realmente desfrutar da mudança. Mas ser outra só para não ser eu, não vale a pena.
Vale sempre a pena murmurou. Senão por ti, pelos outros.
E depois continuei sem responder à sua interrupção o que conta são os factos. Imaginas que eu não poderia ter encontrado um amante rico como a Gisela? Ou até mesmo casar? Se não o fiz, quer dizer que no fundo, apesar de todas as minhas tagarelices, não o desejei verdadeiramente.
Casarei eu contigo disse a brincar beijandome. Sou rico. A morte da minha avó, que não pode demorar muito, tornarmeá herdeiro de muitos hectares de terra, de uma casa no campo e de outra na cidade. Montaremos casa com todo o rigor, convidarás senhoras da vizinhança em dias certos, teremos uma cozinheira, uma criada de quarto, um automóvel, até mesmo havemos de descobrir que somos nobres e farnosemos chamar marqueses ou condes.
Contigo nunca se pode falar a sério; estás sempre a brincar! disselhe repelindoo.
Numa destas tardes fui ao cinema com Jaime. A volta subimos para um eléctrico muito cheio. Jaime vinha para casa comigo e íamos jantar ao restaurantezinho das fortificações. Tirou os bilhetes e furou por entre as pessoas que enchiam a coxia do eléctrico. Quis seguilo, mas perdio de vista. Enquanto agarrada a um assento, o procurava com os olhos, senti tocaremme na mão. Olhei e vi Sonzogne sentado ao pé de mim.
Fiquei sufocada. Sentime empalidecer e mudar de expressão. Olhavame com a sua intolerável fixidez. Levantouse e disseme por entre os dentes:
Queres sentarte?
Obrigada, desço já balbuciei.
Sentate, mesmo assim!
Obrigada repeti, sentandome.
Se não me tivesse sentado, julgo que teria desmaiado. Ficou de pé à minha frente como que a espiarme, segurandose com uma mão ao meu banco e com a outra ao que estava à minha frente. Nada tinha mudado; trazia a mesma gabardina de sempre, atada na cintura, e os seus maxilares tinham o mesmo estremecimento maquinal. Fechei os olhos e durante um momento procurei ordenar os meus pensamentos. Lembreime da minha confissão e pensei se, como desconfiara, o padre tinha falado, a minha vida não estava muito segura.
Esta ideia não me assustou. Mas ele, de pé ao meu lado, assustavame, ou, mais exactamente, fascinavame, subjugavame. Sentia que nada lhe podia recusar; que entre mim e ele havia um laço, não de amor seguramente, mas talvez mais forte do que aquele que me unia a Jaime. Ele também o sabia por instinto: portavase como um dono.
Vamos para tua casa! disseme passado um instante.
Como quiseres! respondi docilmente, sem hesitar.
Jaime aproximouse depois de se ter desembaraçado com esforço das pessoas que o comprimiam. Sem dizer uma palavra veio colocarse exactamente ao lado de Sonzogne, agarrandose ao mesmo banco que ele; os seus dedos magros e longos quase afloravam os dedos curtos e grossos de Sonzogne. Uma sacudidela do eléctrico atirouos um contra o outro e Jaime desculpouse delicadamente. Comecei a sofrer por os ver assim lado a lado, tão perto e tão ignorantes um do outro; de repente disse a Jaime, voltandome ostensivamente para ele, de maneira a que Sonzogne não pudesse duvidar de que era com ele que eu falava:
Olha! Lembrome agora de que marquei encontro esta noite com uma pessoa; é melhor que nos separemos.
Se quiseres acompanhote a casa.
Não, esperamme na paragem do eléctrico.
Não era uma invenção. Continuava, como já disse, a trazer homens para casa e Jaime sabiao.
Como quiseres disse tranquilamente. Então vernosemos amanhã.
Disselhe que sim com os olhos e perdio de vista por entre os passageiros do eléctrico.
Por um momento, ao vêlo afastarse, fui tomada de um grande desespero. Pensava sem saber porquê que era a última vez que o via.
“Adeus”, murmurei para mim mesma. “Adeus, meu amor.” Desejaria gritarlhe que parasse, que voltasse, mas nenhum som saiu da minha boca. O carro parou e pareceume vêlo descer. Nem Sonzogne nem eu abrimos a boca durante todo o trajecto. Acalmeime e pensei que não era possível que o padre tivesse falado. Por outro lado, reflectindo nisso, não lamentava muito ter encontrado Sonzogne. Este encontro permitia livrarme de uma vez para sempre das suspeitas a respeito da minha confissão.
Quando descemos andei uns passos sem olhar para trás. Sonzogne vinha ao meu lado:
Que me queres? Porque voltaste? acabei por dizer.
Foste tu quem me disse para voltar disseme com admiração.
Era verdade; com o medo esquecerao. Aproximouse, pegoume no braço e apertoumo com força. Contra vontade minha, comecei a tremer dos pés à cabeça.
Quem é este homem? perguntoume.
Um dos meus amigos.
E o Gino? Tornaste a vêlo?
Nunca mais.
Olhou à sua volta, desconfiado.
Não sei porquê disseme , há uns dias que tenho a impressão de ser seguido. Só há duas pessoas que me podem ter vendido: Gino e tu.
Porquê o Gino? murmurei.
O meu coração batia desordenado.
Ele sabia que eu devia levar o objecto àquele ourives... disselhe até mesmo o nome... Ele não sabe ao certo que fui eu quem o matou, mas pode muito bem ter deduzido.
Gino não tem interesse em te denunciar; ficava também ele envolvido no caso.
É o que eu penso disseme por entre dentes.
Quanto a mim continuei com a voz mais tranquila podes ter a certeza de que nada disse... não sou parva... prendiamme a mim também.
Espero por ti que não o faças! disseme num tom ameaçador. Depois acrescentou: Tornei a ver Gino... ele disseme, brincando, que sabia muitas coisas. Não me sinto tranquilo... É um crápula.
Naquela noite tratasteo muito mal; com certeza que te odeia agora disselhe.
E sentia, enquanto falava, uma vaga esperança de que Gino realmente o tivesse denunciado.
Aquele foi um bom soco! declarou com vaidade. - Doeume a mão durante dois dias!
Gino não te denunciará disse eu como conclusão. - Não lhe interessa, e além disso tem muito medo de ti.
Falávamos em surdina, caminhando ao lado um do outro sem nos olharmos. Era ao entardecer; uma bruma azulada envolvia as muralhas enegrecidas, as ramadas brancas dos plátanos, as casas amareladas, a longa perspectiva das avenidas. Quando chegamos à minha porta senti pela primeira vez a impressão de atraiçoar Jaime. Desejaria darme a ilusão de que Sonzogne era um homem qualquer entre muitos; mas sabia não ser verdade. Entrei no vestíbulo, empurrei a porta e no escuro parei, volteime para Sonzogne e declareilhe :
Olha... é melhor que te vás embora.
Porquê?
Apesar do medo que me inspirava, desejava dizerlhe a verdade toda:
Porque amo outro e não o quero enganar.
Quem? O que estava contigo no “eléctrico”?
Não... outro... tu não o conheces. Mas agora fazme o favor de me deixares e de te ires embora.
E se eu não quiser?
Tu não compreendes que há coisas que não se podem obter pela força? comecei a dizer. Mas não pude acabar. Não sei como, sem que a escuridão me deixasse vêlo e ao seu gesto, recebi na cara uma tremenda bofetada.
Anda! disse-me.
De cabeça baixa dirigime rapidamente para a escada. Seguravame outra vez pelo braço; parecia que me sustinha e me fazia voar. A cara ardiame, mas sobretudo eu tinha um horrível pressentimento. Esta bofetada cortava o ritmo feliz deste último período da minha vida; as dificuldades e os terrores recomeçavam.
Tomoume um tal desespero que decidi escaparme de qualquer maneira. Sairia de casa nesse mesmo dia; iria refugiarme em qualquer parte. Em casa de Gisela ou num quarto alugado.
Pensava nisto com tanta intensidade que nem reparei que entrava no meu quarto. Encontreime quase diria acordei sentada na beira da cama, enquanto Sonzogne, com os seus gestos meticulosos, tirava as peças de roupa uma por uma e as punha em cima da cadeira com método. A cólera passaralhe.
Quis vir mais cedo disseme tranquilamente , mas não pude. No entanto pensei sempre em ti.
E que pensaste? pergunteilhe maquinalmente.
Que somos feitos um para o outro disseme num tom estranho, parando de se despir e ficando com o colete na mão. Vim mesmo para te fazer uma proposta.
Qual?
Tenho dinheiro. Vamos os dois para Milão, onde tenho muitos amigos. Vou lá montar uma garagem. E em Milão podemonos casar.
Fui tomada de uma tal fraqueza que fechei os olhos. Era a primeira vez, depois de Gino, que me propunham casamento; e quem me fazia esta proposta era Sonzogne! Desejara tanto uma vida normal, com um marido e filhos, e eis que ma ofereciam. Mas era uma normalidade reduzida a uma espécie de concha no interior da qual tudo era anormal e aterrador. Disselhe molemente:
Porquê? Mal nos conhecemos; só me viste uma vez...
Respondeume sentandose ao meu lado e segurandome pela cintura:
Ninguém me conhece melhor do que tu... sabes tudo a meu respeito.
Atravessoume o espírito a ideia de que ele estivesse comovido e quisesse mostrar que me amava e que eu devia amálo. Mas em nada me baseava, porque nada na sua atitude me revelava semelhante sentimento.
Pouco sei de ti disselhe em voz baixa. Só sei que mataste aquele homem!
E depois continuou como se falasse consigo estou cansado de estar só... Quando se vive só acabase sempre por fazer alguma asneira.
Disselhe passado um momento:
Assim de repente não te posso responder nem sim nem não... Dáme algum tempo para reflectir.
Com grande admiração minha, respondeume, de dentes cerrados:
Reflecte, reflecte, não há pressa.
Depois continuou a despirse.
O que me ferira fora sobretudo a frase: “Somos feitos um para o outro.” Agora perguntava a mim mesma se ele não teria razão apesar de tudo. A quem poderia eu aspirar de futuro senão a um homem como ele? Por outro lado, não era verdade que um laço obscuro que eu reconhecia e temia me ligava a ele? Surpreendime repetindo em voz baixa: “Acabou! Acabou!” e sacudindo desesperadamente a cabeça disselhe em voz clara:
Para Milão? Mas tu não tens medo que te procurem?
Disse isso por dizer... Na realidade eles nem sabem que eu existo!
De repente a lassidão que me tomara os membros desapareceu: sentime muito forte e muito decidida. Levanteime, tirei o casaco e fui pendurálo no bengaleiro. Como habitualmente, fechei a porta à chave, depois fui à janela e puxei as cortinas. De pé em frente do espelho, comecei a desabotoar o vestido. Mas interrompime e volteime para Sonzogne. Estava sentado na beira da cama a tirar os sapatos.
Espera um momento... disselhe afectando um tom despreocupado estou à espera de uma pessoa, é melhor eu prevenir minha mãe para que a mande embora.
Não respondeu nem eu lhe dei tempo. Saí do quarto fechando a porta atrás de mim. Fui à sala grande.
Minha mãe estava a coser à máquina ao pé da janela; havia já algum tempo que, para se distrair, tinha recomeçado a trabalhar um pouco. Disselhe depressa em voz baixa: Telefoname amanhã de manhã para casa da Gisela ou da Zelinda.
Zelinda era dona de uma hospedaria para onde eu levara algumas vezes os meus amantes: minha mãe conheciaa.
Mas porquê?
Voume embora para lá disselhe. Quando aquele homem perguntar onde estou, dizlhe que nada sabes.
Minha mãe olhavame de boca aberta, enquanto eu tirava do bengaleiro o casaco curto de peles, meio pelado, que lhe pertencia depois de ter sido meu.
Sobretudo acrescentei não lhe digas onde estou, era capaz de me matar!
Mas...
O dinheiro está no sítio do costume... suplicote que nada digas e telefoname amanhã de manhã.
Saí à pressa, na ponta dos pés, e desci a escada. Uma vez na rua comecei a correr. Sabia que Jaime a esta hora estava em casa e queria chegar antes que ele saísse com os amigos, como fazia sempre depois do jantar. Tomei um táxi e dei a direcção de Jaime. Compreendi bruscamente que não fugia tanto de Sonzogne como de mim própria, obscuramente atraída por esta violência e por este furor. Lembreime do grito dilacerante, misto de horror e de volúpia, que soltara na primeira vez em que Sonzogne me tinha possuído; disse a mim mesma que nesse dia ele me havia subjugado como nunca nenhum homem o fizera até então, nem mesmo Jaime. “Sim, não pude deixar de concluir, nós somos verdadeiramente feitos um para o outro, mas como o corpo é feito para o precipício que faz virar a cabeça, turvar a vista e finalmente o atrai para um fundo vertiginoso.” Subi a escada a quatro e quatro, cheguei ofegante e perguntei por Jaime à velha criada que me veio abrir a porta.
Olhoume com ar assustado, não disse palavra e foise embora, deixandome só.
Pensando que teria ido prevenir Jaime, entrei no vestíbulo e fechei a porta. Ouvi então um cochichar atrás do reposteiro que separava o vestíbulo do corredor. Depois o reposteiro levantouse e vi aparecer a viúva Medolaghi. Esqueceraa depois da primeira e única vez em que a vira. A sua maciça silhueta negra, a face branca, os seus olhos circundados de negro surgindo bruscamente diante de mim inspiraramme nesse momento, não sei porquê, um arrepio, como se tivesse visto uma aparição aterradora. Disseme rapidamente, falandome de longe:
Procura o Sr. Diodatti?
Sim.
Prenderamno.
Não percebi bem. Não sei porquê liguei esta prisão ao crime de Sonzogne. Balbuciei:
Preso? Mas ele nada tem com isso...
Não sei nada disseme. Só sei que fizeram uma busca e prenderamno.
Pela sua cara zangada compreendi que não me diria nem mais uma palavra e no entanto ainda perguntei:
Mas porquê?
Já lhe disse, menina, que nada sei.
Mas para onde o levaram?
Não sei.
Mas digame ao menos se deixou algum recado?
Desta vez nem me respondeu; voltouse e chamou com um ar ofensivo e majestoso:
Diomira!
A criada de idade reapareceu com a sua cara assustada. A patroa indicoulhe a porta e disse:
Acompanhe essa menina. O reposteiro tornou a cair.
Só depois de me encontrar outra vez na rua é que compreendi que a prisão de Jaime e o crime de Sonzogne eram dois factos distintos e independentes um do outro. O único traço a ligálos era o meu pavor. Discernia sobre o conjunto destes acontecimentos imprevistos e desgraçados as amplitudes de um destino que me cumulava de um só golpe de todos os dons funestos, como a Primavera faz amadurecer ao mesmo tempo os frutos mais diversos. É bem verdade que, segundo o provérbio, uma desgraça nunca vem só. Sentiao mais do que o pensava enquanto caminhava, de rua em rua, de cabeça baixa e curvando as costas sob um peso imaginário.
Naturalmente a primeira pessoa à qual me lembrei de recorrer foi a Astárito. Sabia de cór o número do telefone da repartição; entrei no primeiro café. O telefone estava livre mas ninguém me respondeu. Liguei várias vezes e acabei por me convencer de que Astárito não estava lá. Devia ter ido jantar: voltaria mais tarde. Estas coisas são assim; mas, como acontece sempre, esperava que justamente desta vez, por excepção, o encontraria na repartição.
Olhei para o relógio. Eram oito horas da noite; Astárito não voltaria antes das dez. Fiquei de pé, à um canto da rua; à minha frente estava uma ponte, percorrida por transeuntes que surgiam em silêncio, escuros e rápidos, como folhas mortas agitadas por uma incessante tempestade. Mas para lá da ponte as casas alinhadas davam uma impressão de tranqüilidade, com as janelas todas iluminadas e as pessoas que iam e vinham por entre as mesas e os outros móveis. Lembreime de que não estava muito longe do Comissariado Central, para onde supunha terem levado Jaime. E, se bem que compreendesse ser essa uma tentativa desesperada, decidi ir lá directamente para pedir informações. Sabia de antemão que não mas dariam; mas pouco importava, queria sobretudo fazer alguma coisa por Jaime. Segui por uma rua transversal, caminhei rapidamente rente às paredes, cheguei ao Comissariado, subi alguns degraus e entrei. Diante da porta do porteiro, um polícia que lia o jornal, refastelado numa cadeira, com os pés noutra e o boné em cima da mesa, perguntouse aonde é que eu ia. “A Secção dos Estrangeiros”, disselhe. Era uma das numerosas secções do Comissariado; ouvira falar nela uma vez a Astárito, já não sei a que propósito.
Não sabendo para que lado ir, subi ao acaso os degraus de uma escada suja e mal iluminada. Encontrava continuamente empregados e polícias com as mãos cheias de papéis e colavame à parede o mais possível, baixando a cabeça. Em todos os andares encontrava corredores sujos e escuros com gente que ia e vinha, depois portas abertas e salas e salas. O Comissariado parecia um enxame atarefado; mas as abelhas que o habitavam não pousavam decerto sobre flores; o seu mel, que eu saboreava pela primeira vez, era fétido, escuro e bem amargo. No terceiro andar, desesperada, enfiei ao acaso por um dos corredores. Ninguém olhava para mim, ninguém me ligava importância. A direita e à esquerda do corredor alinhavamse portas quase todas abertas; à entrada, agentes sentados em cadeiras de palha falavam e fumavam. No interior das salas vi quase sempre o mesmo espectáculo: rimas e rimas de papéis, um agente sentado a uma mesa, com a caneta na mão. O corredor não era direito: era oblíquo e daí a pouco já não sabia onde estava. De vez em quando enfiavame por uma passagem mais baixa e então era preciso subir ou descer três ou quatro degraus; cruzava outros corredores parecidos, com outros agentes, portas abertas e mal iluminadas. A certa altura pareceume andar num corredor que já tinha percorrido. Como passasse um guarda pergunteilhe ao acaso: “Onde é o vicecomissário?” Indicoume com um gesto uma passagem entre duas portas. Desci quatro degraus e enfiei por um corredorzinho direito. Nesse momento, ao fundo, onde esta espécie de lombriga fazia um ângulo recto, abriuse uma porta e apareceram dois homens; estavam de costas e caminhavam na direcção do canto. Um deles segurava o outro pelo pulso e por um instante tive a impressão de que era Jaime.
Jaime! gritei, correndo para os alcançar. Mas alguém me segurou pelo braço. Era um policia muito novo, de cara afilada, moreno, com o quépi enfiado numa massa de cabelos pretos encaracolados.
Que quer? Quem procura? perguntoume. Ao meu grito, os outros dois tinhamse voltado para mim e verifiquei ter cometido erro.
Expliquei com voz ofegante:
Prenderam um dos meus amigos e queria saber se o tinham trazido para aqui.
Como se chama ele? perguntou o agente, sem me largar, com um ar peremptório.
Jaime Diodatti.
Que faz ele?
É estudante.
Quando o prenderam?
Compreendi que me fazia estas perguntas todas para se dar importância e que nada sabia. Disselhe com irritação:
Em vez de me fazer tantas perguntas era melhor que me dissesse onde é que ele está.
Estávamos sós no corredor. Olhou à volta, depois apertoume e disseme num tom claramente cúmplice:
Pensaremos no estudante mais tarde. Por agora vais darme um beijo.
- Não! Não me faça perder tempo! Deixeme ir embora! - gritei cheia de raiva.
Deilhe um encontrão, desatei a correr, penetrei noutro corredor, vi uma porta aberta e para lá dessa porta uma sala maior do que as outras com uma secretária ao fundo, atrás da qual estava sentado um homem de meia idade.
Entrei e pergunteilhe de um fôlego:
Queria saber para onde levaram o estudante Diodatti... o que prenderam esta tarde.
O homem levantou os olhos da secretária, onde estava um jornal desdobrado, e perguntoume, estupefacto:
Queria saber...
Sim... para onde levaram o estudante Diodatti, preso esta tarde.
Mas quem é a menina? Como se atreveu a entrar aqui?
Isso agora não interessa... digame só onde é que ele está.
Mas quem é a menina? repetiu berrando e dando socos na mesa. Como se atreveu? Sabe onde está?
Compreendi que não conseguiria saber coisa alguma e que em compensação corria o risco de ficar presa também. E então não poderia já falar a Astárito e Jaime ficaria na prisão.
Não tem importância. Enganeime. Desculpe disse retirandome.
As minhas desculpas ainda o enfureceram mais que as minhas perguntas anteriores. Mas agora eu já estava ao pé da porta.
Entrase e saise fazendo a saudação fascista! gritou mostrandome um cartaz suspenso sobre a sua cabeça.
Disse que sim com a cabeça, para confirmar que ele tinha razão, que era verdade, que se devia entrar e sair fazendo a saudação fascista e saí da sala recuando. Percorri o corredor todo, acabei por encontrar a escada depois de vaguear um pouco ao acaso e desci à pressa. Tornei a passar em frente do porteiro e saí para o ar livre.
O único resultado desta ida à polícia fora o terme feito passar um pouco de tempo. Calculei que se fosse devagarinho até ao Ministério de Astárito demoraria talvez três quartos de hora, até mesmo uma hora. Uma vez lá próximo sentarmeia num café e telefonaria a Astárito daí a vinte minutos.
Enquanto andava veiome à ideia a possibilidade de esta prisão de Jaime ser uma vingança de Astárito. Astárito tinha uma posição importante, justamente na polícia política; com certeza que havia muito tempo que eles vigiavam Jaime e que sabiam da nossa ligação; nada havia de improvável que o seu cadastro tivesse passado pelas mãos de Astárito e que fosse ele, levado pelos ciúmes, que tivesse dado a ordem para prenderem o estudante. A esta ideia senti uma espécie de furor contra Astárito. Sabia que ele continuava sempre apaixonado por mim; sentiame capaz, se as minhas suspeitas tivessem fundamento, de o fazer expiar amargamente a sua má acção, não sem pensar também com pavor que as coisas talvez não se tivessem passado dessa maneira e que com as minhas frágeis armas me preparava para combater um adversário obscuro e sem rosto, mais parecido com uma máquina bem afinada do que com um homem sensível e acessível a paixões.
Quando cheguei em frente do Ministério renunciei à ideia de me sentar num café e fui directamente telefonar.
Ao primeiro toque, desta vez, alguém levantou o auscultador e a voz de Astárito respondeume.
Sou eu... a Adriana disse eu impetuosamente. - Quero verte. Já. Imediatamente... é uma coisa urgente... Estou aqui ao lado do Ministério.
Pareceume que reflectia um momento e depois disseme que podia ir. Era a segunda vez que subia a escada do Ministério de Astárito, mas com uma disposição de espírito bem diferente. Da primeira vez tinha medo da uma chantagem de Astárito, temia que ele desmanchasse o meu casamento com Gino, receava a vaga ameaça que todos os pobres sentem suspensa sobre as suas cabeças nos meios policiais. Chegara com o coração alanceado e a alma trêmula. Agora vinha de espírito agressivo decidida a servirme de qualquer meio para socorrer Jaime e a fazer por minha vez chantagem com Astárito. Mas o meu amor por Jaime não chegava para explicar a minha agressividade. Neste estado de espírito entrava também o desprezo por Astárito, pelo seu Ministério e, na medida em que Jaime se ocupava da política, mesmo por ele. Nada percebia de política, mas talvez por causa da minha ignorância, ao lado do meu amor a Jaime, a política pareciame coisa ridícula e sem importância. Lembreime de como Astárito gaguejava quando me via ou simplesmente me ouvia e pensava com satisfação que ele não gaguejava com certeza daquela maneira quando falava com os seus chefes - fosse ele Mussolini. Enquanto pensava nestas coisas caminhava com pressa pelos vastos corredores do Ministério e apercebiame de que olhava com desprezo os empregados que encontrava. Apeteciame arrancarlhes os processos verdes ou encarnados que levavam debaixo dos braços e atirálos pelos ares, espalhando todas aquelas maldosas folhas de interdições e de iniquidades. Disse em tom imperativo ao contínuo que veio ao meu encontro na antecâmara:
Preciso de falar com o Sr. Astárito... depressa... tenho audiência marcada e não posso esperar...
Olhoume com admiração, mas não ousou protestar e foime anunciar.
Logo que Astárito me viu veio ao meu encontro, beijoume a mão e conduziume para um divã no fundo da sala. Já da primeira vez ele me tinha acolhido da mesma maneira e eu pensava que se portava assim com todas as mulheres que iam ao seu gabinete. Reprimi o mais possível a fúria que me dilatava o peito e disselhe:
Toma cuidado, que se tu fizeste com que prendessem Jaime precisas de libertálo o mais depressa possível... senão podes ter a certeza de que nunca mais me verás!
Vi a sua cara tomar uma expressão de profunda admiração e pena. Compreendi que ele de nada sabia.
Um momento! Que diabo! Qual Jaime? perguntoume, balbuciante.
Julgava que sabias disselhe.
E o mais rapidamente possível conteilhe a história do meu amor por Jaime e a maneira como tinha sido preso, de tarde. Vio mudar de cor quando lhe disse que amava Jaime, mas preferi dizer a verdade porque não só receava prejudicar o meu amante mentindo, mas porque experimentava um desejo violento de gritar o meu amor a toda a gente. Agora, que descobrira que Astárito nada tinha a ver com a prisão, a cólera que me impulsionara até ali caíra; sentiame de novo fraca e desarmada. Por isso, depois de ter começado a conversa com voz firme e animada, acabaraa num tom lamentoso. Os meus olhos encheramse de lágrimas quando lhe disse com voz angustiada:
E depois eu não sei o que lhe farão... Dizse que lhes batem!
Astárito interrompeume:
Está tranquila. Ainda se fosse um operário!... Mas um estudante...
Mas eu não quero... não quero que esteja preso! gritei com lágrimas na voz.
Em seguida calámonos. Tentava dominar a comoção e Astárito olhava. Pela primeira vez não me parecia disposto a aceder ao meu pedido. O desapontamento de me saber apaixonada por outro homem devia tornarlhe repugnante a ideia de me ajudar. Acrescentei, pousando a minha mão na sua:
Se conseguires que ele saia prometote que farei tudo o que tu quiseres.
Fixoume com ar irresoluto. Se bem que não tivesse vontade alguma de o fazer, inclineime para ele e oferecilhe os lábios ao mesmo tempo que dizia:
Então, fazesme este favor?
Olhoume hesitando entre o desejo de me beijar e a consciência do significado humilhante de um beijo semelhante, oferecido por pura tentativa de corrupção, com o rosto cheio de lágrimas. Depois afastoume, levantouse, disse que esperasse e desapareceu.
Agora já tinha a certeza de que Astárito tinha ido tratar de libertar Jaime. Na minha inexperiência dessas coisas imaginavao a telefonar, num tom mal humorado, a algum comissário servil, ordenandolhe que libertasse, imediatamente o estudante Jaime Diodatti. Contava os minutos com impaciência, e quando Astárito reapareceu levanteime pensando em agradecerlhe e irme logo embora ao encontro de Jaime.
Mas Astárito vinha com uma expressão estranha, desagradável, feita de desilusão, de raiva e de malícia.
Porque dizes tu que o prenderam? articulou secamente. Disparou sobre os polícias e safouse... um dos agentes está, moribundo, no hospital. Agora se o apanham, e apanhamno com certeza, já nada posso fazer.
O espanto cortoume a respiração. Não tinha eu tirado as balas do revólver? É verdade que podia ter posto outras sem que eu soubesse. Em seguida senti uma grande alegria, mas era também a alegria de saber que ele matara um polícia, uma acção de que eu o julgava incapaz e que modificava totalmente a ideia que até então eu fazia dele. Admireime que a minha alma, habitualmente inimiga de toda a violência, aplaudia o acto desesperado de Jaime: no fundo era a mesma irresistível satisfação que experimentara outrora ao reconstruir na imaginação o crime de Sonzogne; mas desta vez acompanhada de uma espécie de satisfação moral. Em seguida pensava que o encontraria depressa e que fugiríamos juntos para nos escondermos; se fosse preciso iríamos para o estrangeiro, onde eu sabia que os refugiados políticos eram bem acolhidos: e o meu coração dilatavase de esperança. Pensava ainda que uma nova vida iria realmente começar para mim; dizia para comigo que esta renovação da minha vida a devia a Jaime, à sua coragem, e sentia por ele gratidão e amor. Entretanto Astárito passeava de um lado para o outro no gabinete, com ar furioso e parando de vez em quando para mexer em qualquer coisa em cima da secretária. Eu disse tranquilamente:
Isto significa que, depois de preso, ele teve coragem: disparou e pôsse a salvo.
Astárito parou e olhoume com uma expressão má que lhe crispou o rosto.
Estás contente, não estás? perguntoume.
É bem feito que tenha morto o polícia disse eu com sinceridade. O agente queria metêlo na prisão... Tu terias feito a mesma coisa!
Respondeume com voz desagradável:
Mas eu não me ocupo de política e esse guarda cumpria o seu dever... Esse homem tinha mulher e filhos.
Se ele se ocupa de política deve ter as suas razões disselhe. E o agente já devia supor que, antes de se deixar engaiolar, um homem tenta seja o que for... Pior para ele!
Sentiame tranquila porque me parecia ver Jaime a caminhar livremente pelas ruas da cidade e alegravame já ao pensar no momento em que ele me chamasse às escondidas e eu o tornasse a ver. A minha calma parecia desesperar Astárito:
Mas havemos de o apanhar! gritou bruscamente. Então imaginas que não o apanhamos?
Eu nada imagino... Estou contente por ele se ter escapado... Só isso.
Havemos de o apanhar e podes ter a certeza de que isto não ficará assim.
Passado um momento disselhe:
Sabes porque estás tão furioso?
Não estou furioso!
Porque esperavas que o tivessem apanhado e querias fazer valer a tua generosidade comigo e com ele... e em vez disso ele escapoute. É isto que te enfurece.
Vio levantar os ombros com fúria. Depois o telefone tocou e Astárito atendeu com ar aliviado. Era um bom pretexto para interromper uma conversa embaraçosa. Logo às primeiras palavras vi o seu rosto desanuviarse e tomar uma expressão mais serena. E isso, mesmo sem saber porquê, pareceume de mau agouro. O telefonema demorou bastante tempo, mas Astárito não respondeu senão “Sim” e “Não”, se bem que eu não percebesse a que perguntas.
Lamentoo por ti disse pousando o auscultador , mas a primeira comunicação referente à prisão desse estudante era errada. Para maior segurança a polícia tinha mandado agentes não só à casa dele mas também à tua... assim estavam mais certos de o apanharem. Com efeito prenderamno em casa da viúva que lhe alugava o quarto. Na tua casa, pelo contrário, os guardas encontraram um homem baixo, louro, com pronúncia do Norte, que logo que os viu, em vez de lhes mostrar os seus papéis, como eles lhe pediram, disparou e fugiu. De momento julgaram que era ele. Tratavase evidentemente de alguém que tinha contas a ajustar com a polícia.
Sentime desfalecer. Nesse caso Jaime estava preso e Sonzogne convencido de que o denunciara. Qualquer pessoa que me tivesse visto desaparecer e os agentes virem logo depois da minha saída, teria pensado a mesma coisa. Jaime estava na prisão e Sonzogne procuravame para se vingar! Fiquei tão aturdida com este golpe que só pude murmurar: “Pobre de mim”, dando uns passos para a porta.
Devia ter ficado muito pálida porque Astárito perdeu o ar triunfante e satisfeito e aproximouse de mim dizendome com ansiedade:
Sentate um instante. Conversemos! Nada há irreparável!
Abanei a cabeça e agarrei o puxador da porta. Astárito deteveme e balbuciou:
Ouve, prometote que farei o impossível; eu mesmo o interrogarei e se ele nada praticou de grave darei ordem para o libertarem o mais depressa possível; está bem assim?
Sim, está bem respondi com voz apagada. E acrescentei com esforço: Por tudo o que fizeres já sabes que te ficarei reconhecida.
Agora sabia que Astárito faria, como tinha dito, tudo o que lhe fosse possível para libertar Jaime e eu não desejava outra coisa que irme embora, sair o mais depressa possível daquele horrível Ministério. Mas Astárito perguntoume com um escrúpulo policial:
A propósito... se tens alguma razão para recear o homem que encontraram na tua casa dizme o seu nome e isso facilitará a prisão.
Não sei como se chama respondi. E comecei a andar.
Seja como for insistiu seria melhor que te apresentasses espontaneamente no comissariado para dizeres o que sabes. Eles vão pedirte para ficares à sua disposição e depois deixamte ir embora. Mas se não fores lá... Pior para ti!
Respondilhe que o faria e disselhe adeus. Ele não fechou logo a porta e ficou a verme afastar ao longo do corredor.
Uma vez na rua comecei a andar depressa, como se fugisse, até uma praça que havia próxima. Quando cheguei ao meio da praça fiquei sem saber para onde ir e pensei onde me iria refugiar. De momento tinha pensado em Gisela; mas a casa dela era longe e sentiame tão fraca que as pernas se me vergavam. Por outro lado não estava certa de que Gisela me recebesse de boa vontade. Restava Zelinda, a dona da hospedaria de quem falara a minha mãe quando saí de casa. Zelinda era uma amiga; pára mais a sua casa era ali perto: decidime por ela.
Zelinda morava num prédio amarelo igual a outros que dominavam a Praça da Gare. Esta casa de Zelinda distinguiase das outras pela escada mergulhada numa quase total escuridão, mesmo às primeiras horas da manhã. Não havia elevadores nem janelas: subiase às escuras, acotovelando de vez em quando as pessoas que desciam e se agarravam ao mesmo corrimão. Um cheiro a cozinha empestava eternamente o ar; mas era o de uma cozinha apagada há muitos anos e onde os aromas tinham tido tempo para se decomporem neste ar gelado e tenebroso. Subia, com as pernas moles e o coração partido, esta escada que tantas vezes trepara, abraçada a algum amante impaciente. Zelinda abriume a porta e eu disselhe:
Preciso de um quarto para esta noite.
Era uma mulher corpulenta, que a gordura envelhecera precocemente, dandolhe aparência de mais idade. Trôpega, com manchas vermelhas nas faces doentias, olhos azuis lacrimejantes e um cabelo ralo e alourado, sempre despenteado e esfarripado, subsistia nela, no entanto, não sei que graciosidade afectuosa, que lhe iluminava o rosto como um reflexo de luz em água estagnada ao pôr do Sol.
Tenho um quarto disseme. Estás só?
Estou.
Entrei. Ela fechou a porta e acompanhoume tropeçando, baixa e larga, com um velho penteador, o carrapito meio despenteado caído pelas costas e cheio de ganchos mal espetados. O apartamento era tão gelado como a escada. Mas o cheiro a cozinha era autêntico: era o de guisado saboroso. Zelinda, que alugava quartos à hora, gostava muito de mim, não sei porquê. Frequentemente depois das minhas habituais visitas ela retinhame para conversar e davame bolos e licor. Era uma rapariga envelhecida e ninguém a deve ter amado nunca porque desde muito nova a gordura a deformara. Adivinhavase a sua virgindade pela timidez, a curiosidade e a maneira desajeitada como me perguntava pelos meus amores. Creio que ela, embora sem malícia nem inveja, lamentava secretamente nunca ter feito o que se fazia nos seus quartos e que adoptava o ofício de alugar quartos para pouca permanência menos pela sofreguidão do lucro do que para assim satisfazer um desejo, talvez inconsciente, de não ser inteiramente excluída do paraíso, perdido para ela, das relações amorosas.
Ao fundo do corredor havia duas portas que eu conhecia bem. Zelinda abriu a da esquerda. Acendeu o lustre de três braços terminado por tulipas de vidro branco e foi fechar a janela. O quarto era grande e asseado. Mas a limpeza acusava impiedosamente o uso e a pobreza dos móveis, os rasgões do tapete, os remendos da colcha de algodão, os “gatos” do espelho, as falhas do lavatório. Ela olhoume e perguntoume:
Não te sentes bem?
Sintome bastante bem.
Mas porque não dormes na tua casa?
Não me apetece.
Vamos a ver se adivinho disseme ela com ar amigo e malicioso: Tens um desgosto. Esperavas alguém que não veio.
É possível.
Vamos a ver ainda se tenho razão ou não. Este alguém é o oficial moreno com quem cá vieste a última vez.
Não era a primeira pergunta deste gênero que Zelinda me fazia. Com a garganta apertada pela angústia, respondilhe ao acaso:
Tens razão... E então?
Então nada, mas, como vês, compreendi depressa... Assim que te vi, adivinhei logo o que te tinha acontecido. Não te rales. Se não veio deve ter as suas razões. Os militares, já sabes, nem sempre estão livres.
Eu não respondi. Ela olhoume durante um momento, depois, com ar hesitante e afectuoso, disseme:
Queres fazerme companhia e jantar comigo? Tenho um bom jantar.
Não, obrigada respondi. Já jantei.
Olhoume e fezme uma festa na cara. Depois, com a expressão prometedora e misteriosa de certas tias velhas falando com um sobrinho miúdo, disseme:
Vou darte uma coisa que com certeza não recusarás. Tirou da algibeira um molho de chaves, foi à cômoda e abriu a gaveta, voltandome as costas.
Eu entreabrira o casaco, e com a mão na anca, apoiandome à mesa, olhava Zelinda, encafuada na sua gaveta. Lembreime de que Gisela vinha frequentemente a este quarto com os seus amantes e também de que Zelinda não gostava dela. Gostava de mim por ser eu; mas não gostava de toda a gente. Sentime reconfortada. “Apesar de tudo”, pensava, “não há só neste mundo polícias e ministérios, prisões e outras coisas parecidas inanimadas e cruéis.” Entretanto Zelinda fechara a gaveta com cuidado e vinha para junto de mim dizendo:
Toma. Isto não recusas com certeza.
Pousou qualquer coisa em cima da mesa. Olhei e vi cinco cigarros cigarros bons com filtro , um punhado de bombons embrulhados em papel de cor e quatro bolinhos de amêndoa em forma de frutas.
Está bem? perguntoume com uma palmadinha na cara.
Embaraçada, balbuciei:
Está bem, obrigada!
De nada, de nada. E se precisares de alguma coisa não tens mais do que chamar, sem cerimônia.
Uma vez só, sentime gelada. Não tinha sono e não me queria ir deitar. Por outro lado, neste quarto glacial, onde o frio do Inverno parecia conservarse durante anos, como nas igrejas e nas caves, não havia outra coisa a fazer. Das outras vezes estes problemas nem se punham: o homem que me acompanhava e eu não desejávamos outra coisa que enfiarmonos nos lençóis e aquecermonos mutuamente; se bem que não experimentasse qualquer sentimento por estes amantes de acaso. O acto do amor em si absorviame e mergulhavame na sua magia. Agora pareciame incrível ter podido amar e ser amada no meio de um mobiliário tão lúgubre, de aspecto tão sórdido. Por certo que o ardor dos sentimentos nos enganara, aos meus companheiros e a mim, tornando estes objectos, tão paradoxalmente estranhos, agradáveis, familiares. Veiome à ideia que se não pudesse tornar a ver Jaime a minha vida seria como este quarto. Ao olhála de uma forma objectiva, sem ilusões, a minha vida nada tinha de belo nem de íntimo; mais até: como o quarto de Zelinda, ela compunhase de coisas estragadas, desagradáveis e frias. Arrepieime e comecei lentamente a despirme.
Os lençóis estavam gelados e pareciam húmidos. A tal ponto que quando me deitei tive a impressão de deixar o meu corpo marcado em argila molhada. Fiquei muito tempo absorta a reflectir, enquanto que, lentamente, a cama aquecia. O caso de Sonzogne veio desviar os meus pensamentos e tentei analisar os motivos e as consequências desta tenebrosa história. Agora Sonzogne estava persuadido de que eu o denunciara; não havia dúvida de que as aparências estavam todas contra mim. Mas seriam só as aparências? Lembreime da sua frase: “Tenho a impressão de que me seguem” e perguntei a mim própria se no fim de contas o padre não teria falado. Não me parecia; mas até agora não podia provar o contrário.
Continuando a pensar em Sonzogne pusme a imaginar o que se teria passado na minha casa depois da minha saída: Sonzogne, que esperava, impacientavase, vestiase aquando da entrada dos dois agentes. Da mesma maneira que com o crime de Sonzogne, esta reconstituição davame um prazer insaciável e obscuro. A minha imaginação apresentoume os vários aspectos da cena de tiros, cujos pormenores me deliciavam. Sem dúvida, na luta tomava o partido de Sonzogne. Fremia de alegria vendo o polícia ferido cair, suspirei de alívio vendo Sonzogne fugir; seguiao com ansiedade ao descer as escadas e não me sentia tranquila enquanto o não via desaparecer na distância escura da avenida. Acabei por me cansar desta espécie de filme que imaginei e apaguei a luz. Já das outras vezes reparara que a cama estava encostada a uma porta de comunicação que dava para um quarto contíguo. Logo que apaguei a luz vi filtrarse um raio luminoso por entre os batentes mal fechados. Apoieime nos cotovelos sobre a almofada, passei a cabeça por entre as grades de ferro da cama e espreitei pela fresta. Não o fazia por curiosidade, pois já sabia de antemão o que poderia ver ou ouvir do outro lado; era mais para fugir aos meus pensamentos e à solidão, que procurava, mesmo só espreitando, uma companhia no quarto vizinho. Mas durante um bom bocado ninguém vi, em frente da fresta da porta havia uma mesa redonda: a luz do lustre caía sobre esta mesa atrás da qual entrevi o reflexo de um espelho de guardafato. No entanto ouvia falar; eram as palavras habituais que eu tão bem conhecia, as perguntas sobre a terra natal, a idade e o sobrenome. A voz da mulher era tranquila e reticente; a do homem rápida e trêmula. As vozes vinham de um canto do quarto: talvez estivessem já deitados. À força de olhar sem ver nada, pôsseme uma dor na nuca e estava a ponto de abandonar aquela posição quando a mulher apareceu e se foi pôr do outro lado da mesa em frente do espelho, que estava na sombra. Estava de pé, nua, de costas para mim, mas a mesa só me permitia vêla da cintura para cima. Devia ser muito nova: via umas costas magras, duras, sem graça, de uma brancura anêmica, encimadas por uma cabeleira crespa. Pensei que ela não devia ter ainda vinte anos, mas tinha o seio caído e talvez até já tivesse sido mãe. Devia ser urna das esfomeadas raparigas que rondavam os bosques das praças municipais, ao longo da estação, sem chapéu e frequentemente sem casaco, grosseiramente pintadas e esfarrapadas, com enormes sapatos de solas rotas. Pensava que, quando se ria, devia mostrar as gengivas. Vieramme estas ideias todas sem que eu reflectisse, porque ao ver estas pobres costas nuas me sentia reconfortada e tive a impressão de que gostava desta rapariga e compreendia bem de mais os sentimentos dela ao olharse ao espelho do guardafato. Mas o homem disse com uma voz brutal:
Pode saberse o que estás aí a fazer?
Ela afastouse. Via um momento de perfil, as costas curvas, o peito chato, exactamente como eu a imaginara. Depois desapareceu e passado um momento a luz apagouse.
Senti extinguirse na minha alma o vago sentimento que a rapariga me suscitara e tornei a encontrarme só na grande cama ainda gelada, no quarto escuro e cheio de objectos vulgares e feios. Pensei naqueles dois, do outro lado da parede, que adormeceriam juntos daí a momentos e ela debaixo do seu companheiro, o queixo sobre o seu ombro, as pernas entrelaçadas nas suas, o braço à volta da cintura, a mão na virilha, os dedos anichados nas pregas do ventre, como raízes procurando a vida nas profundezas da terra. Sentime de repente como uma planta desenraizada e atirada para um pavimento de pedra lisa onde irá estiolar e morrer. Jaime faziame falta. Estendia a mão e parecia sentir um grande espaço gelado, inabitado, que me rodeava por todos os lados e no meio do qual me encolhia, só e abandonada. Sentia um violento e doloroso desejo de me agarrar a ele, mas ele não estava presente e tinha a impressão de estar viúva. Comecei a chorar estendendo os braços debaixo dos lençóis e imaginando abraçálo. Acabei por adormecer não sei como.
Tive sempre o sono pesado; por isso na manhã seguinte, quase me admirei ao acordar na cama de Zelinda com um raio de sol sobre a almofada. Ainda estava meia atordoada quando ouvi tocar o telefone no corredor. Zelinda atendeu. Chamoume e depois bateu à porta. Saltei da cama, e, em camisa e com os pés nus, corri para o corredor. Zelinda voltara para a cozinha. Peguei no auscultador e ouvi a voz da minha mãe a perguntar:
És tu, Adriana?
Sim.
Mas porque te foste embora? Aqui aconteceram coisas!... Podias ao menos terme avisado! Tive tanto medo!
Já sei tudo disse rapidamente. É inútil falar agora nisso.
Estava em cuidados contigo! prosseguiu. Está cá o Sr. Diodatti?
O Sr. Diodatti?
Sim. Veio esta manhã muito cedo e quer verte por força. Diz que te espera.
Dizlhe que vou já. Dentro de um minuto estou lá. Repus o auscultador, corri para o quarto e vestime à pressa. Não esperava que Jaime fosse posto em liberdade tão depressa e sentime menos feliz do que se estivesse esperando alguns dias ou uma semana pela sua libertação. Uma libertação tão rápida inspiravame desconfiança; não podia deixar de sentir uma vaga apreensão. Mas acalmei a minha inquietação pensando que, além de tudo, podia ser que Astárito tivesse conseguido soltálo imediatamente, como mo tinha prometido. De resto estava impaciente por vêlo e esta impaciência era feita de um sentimento de felicidade ligeiramente angustiante.
Acabei de me vestir, meti na mala os cigarros, os bombons e os bolinhos, para não magoar Zelinda, depois entrei na cozinha para me despedir da dona de casa.
Estás mais bem disposta agora? disseme. Passoute o mau humor?
Estava cansada... Até qualquer dia.
Julgas que não ouvi o que dizias ao telefone? O Sr. Diodatti... mas espera... toma uma chávena de café.
Já estava fora de casa e ela ainda falava atrás de mim. No táxi, toda curvada no banco com as mãos em cima da mala, estava preparada para descer logo que o carro parasse, porque temia encontrar um ajuntamento em frente da minha porta, depois dos tiros de Sonzogne. Perguntava a mim própria se seria prudente entrar em casa; Sonzogne podia vir de um momento para o outro para se vingar... Senti que isso não me importaria. Se Sonzogne se queria vingar, que o fizesse; eu queria ver Jaime e estava disposta a não me esconder mais por actos que não tinha praticado.
Ninguém encontrei em frente da casa, nem ninguém na escada. Impetuosamente irrompi pela sala e vi minha mãe, que cosia à máquina, sentada ao pé da janela. O sol entrava a jorros pelos vidros da janela; o gato da casa, sentado em cima da mesa, alisava as patas. Minha mãe parou logo de coser e disseme:
Até que enfim... Não podias ao menos terme dito que ias à polícia?
Que polícia? Mas que estás a dizer?
Eu teria ido contigo. Não teria passado por este susto!
Mas eu não saí para ir chamar a polícia! disselhe, irritada. Saí por sair. Os agentes procuravam outro. Quer dizer que este também tinha alguma coisa na consciência.
Não queres dizerme, nem mesmo a mim? respondeume com um olhar de reprovação maternal.
Mas o que?
Não serei eu quem irá contar. Mas tu não quererás que eu acredite que saíste só por sair. Aliás, os polícias vieram justamente alguns minutos depois de teres saído.
Mas não é verdade. Eu...
De resto, fizeste bem. Há por aí muitos espiões. Sabes o que um dos guardas me disse?
“Esta cara não me é estranha”.
Compreendi que não havia maneira de a persuadir de que eu não saíra para denunciar Sonzogne. Nada havia a fazer.
Está bem. Está bem interrompia bruscamente. E o ferido... como é que o levaram?
Qual ferido?
Disseramme que havia um moribundo.
Informaramte mal... Um dos polícias teve um raspão num braço com um tiro... fui eu quem lhe ligou a ferida... foise embora pelo seu pé. Mas se tu tivesses ouvido aqueles tiros! Foi na escada que eles dispararam. Toda a casa estremeceu de alto a baixo. Depois interrogaramme. Mas eu disse que nada sabia.
Onde está Diodatti?
No teu quarto.
Se eu tive esta pequena conversa com minha mãe fora porque agora experimentava uma espécie de repugnância em ir ter com Jaime, como se pressentisse uma má notícia. Saí da sala e dirigime para o quarto. Estava mergulhado numa escuridão completa; mas mesmo antes de eu ter posto a mão no interruptor, ouvi a voz de Jaime que me dizia:
Por favor, não acendas a luz.
Feriume o tom da sua voz, muito pouco alegre de verdade! Fechei a porta, aproximeime da cama às apalpadelas e senteime aos seus pés:
Senteste bem? perguntei.
Sintome muito bem.
Não estás cansado?
Não, não estou.
Previra um encontro diferente. Mas a verdade é que a alegria não se pode separar da luz. Nesta escuridão pareciame que os meus olhos não podiam brilhar, a minha voz não podia soltar exclamações alegres, as minhas mãos não se podiam estender para reconhecer as formas queridas. Esperei um momento; depois inclinandome sobre ele, murmureilhe:
Que queres fazer? Queres dormir?
Não.
Queres que me vá embora?
Não.
Que fique ao pé de ti?
Sim.
Queres que me deite em cima da cama?
Sim.
Queres que nos amemos? perguntei por perguntar.
Sim.
Esta resposta surpreendeume porque, como já disse, ele nunca estava realmente disposto a fazer amor. Sentime de repente perturbada e acrescentei com voz acariciadora:
Gostas de fazer amor comigo?
Sim.
Vais amarme sempre daqui em diante?
Sim.
E ficaremos juntos para sempre?
Sim.
Mas não queres mesmo que eu acenda a luz?
Não.
Não tem importância... Dispome às escuras.
Comecei a despirme com o embriagador sentimento da vitória completa. Pensava que a noite passada na prisão lhe revelara bruscamente que me amava e que precisava de mim. Enganavame, como se verá em seguida; se bem que pensasse que houvera uma ligação entre esta brusca condescendência e a prisão, não compreendia que esta mudança de atitude nada tinha que me pudesse envaidecer, ou simplesmente alegrar. O meu corpo, como um cavalo há muito tempo refreado, impeliame impetuosamente para ele; estava impaciente por lhe fazer o alegre, o ardente acolhimento que um momento antes a obscuridade e a sua atitude me não tinham permitido.
Mas quando me aproximei e me inclinei sobre a cama para me estender ao seu lado, sentio de repente tomarme os joelhos com os braços e morderme a anca esquerda até fazer sangue. Senti ao mesmo tempo uma dor aguda e uma sensação de desespero que se exprimia por esta dentada, como se não fôssemos dois amantes preparandose para se amarem, mas dois danados que o ódio, o furor e a tristeza impelissem, no fundo de um inferno de um novo gênero, a morderse um ao outro. A dentada foi tão grande que quase se podia dizer que ele me queria arrancar um bocado de carne. Enfim, se bem que eu quase gostasse que ele me mordesse e, a despeito do pouco amor que eu sentia nesta mordedura, me desse prazer, não pude suportar a dor e empurreio dizendo em voz baixa e magoada:
Mas não... que fazes? Magoasme.
Foi assim que acabou o meu ilusório sentimento de vitória. Em seguida, durante todo o tempo em que nos amamos, não dissemos uma palavra; mas a sua atitude não deixava por isso de me revelar obscuramente o verdadeiro porque do seu abandono, que ele me explicaria mais tarde pormenorizadamente. Compreendi que até então o que ele não aceitava não era tanto a minha pessoa como uma parte dele próprio levada a desejarme; agora, pelo contrário, por um motivo que só ele sabia, deixava esta parte dele próprio, refreada até então, saciarse livremente. Eu em nada contribuíra. Da mesma maneira que ele não me amava antes, também não me amava agora. Eu ou outra era a mesma coisa para ele. Agora como dantes eu não era mais do que um meio do qual ele fazia uso para se punir ou para se recompensar. Todas estas coisas, enquanto estivemos deitados no escuro, não as pensara; sentiaas na, minha carne e no meu sangue, da mesma maneira que algum tempo antes sentira que Sonzogne era um monstro, sem saber ainda nada do seu crime. Mas amava Jaime, e o meu amor era mais forte do que este sentimento. Admiroume a violência e insaciabilidade do seu desejo, anteriormente tão avaro. Sempre pensara que ele se moderava um pouco por razões de saúde, porque era de compleição fraca. Por isso, depois de me ter possuído duas vezes, ao vêlo recomeçar pela terceira vez, não pude deixar de lhe sussurrar ao ouvido:
Por mim, podes... mas vê lá não te faça mal.
Tive a impressão de que se riu e ouvi a sua voz murmurarme:
De futuro nada me pode fazer mal.
Este de “futuro” deume uma impressão fúnebre, se bem que até mesmo o prazer que eu encontrava nestes beijos foi quase suprimido e eu esperava com impaciência o momento em que lhe pudesse falar e saber enfim o que lhe acontecera. Depois do amor pareceu dormitar: mas talvez não dormisse. Esperei um tempo razoável e, fazendo um esforço tal que o coração quase me saltava do peito, pergunteilhe em voz alta:
Agora vais dizerme o que te aconteceu.
Nada me aconteceu.
No entanto deve ter sucedido qualquer coisa.
Calouse um momento, depois disseme como se falasse consigo próprio:
Depois disto tudo, suponho que tu também o deves saber. Pois bem! Aconteceu que depois das onze horas da noite eu torneime um traidor.
Estas palavras gelaramme horrivelmente, não tanto por elas, como pela maneira como foram ditas.
Um traidor? balbuciei. Porquê?
Respondeume no seu tom frio e lúgubre:
Entre os seus companheiros de ideal político, o Sr. Diodatti era conhecido pela sua intransigência de opiniões e pela violência dos seus ódios. Consideravam muito simplesmente o Sr. Diodatti como um futuro chefe e ele estava de tal maneira certo de que faria boa figura em qualquer circunstância que quase desejava ser preso e posto à prova. Sim, porque o Sr. Diodatti pensava que a captura, a prisão e os outros sofrimentos são necessários na vida de um homem político como são necessários os longos cruzeiros, as tempestades e os naufrágios na vida de um homem do mar!... Mas à primeira onda, o marinheiro sentiuse mal como qualquer criaturinha sem importância... Assim que se viu em frente de um polícia, sem mesmo esperar que o ameaçassem ou o espancassem, o Sr. Diodatti abandonou a carreira política e entrou na que podia chamarse da denúncia.
Tiveste medo! gritei.
Respondeume com calma:
Não. Nem sequer tive medo. Somente sucedeume aquilo que me aconteceu naquela famosa noite, contigo, quando querias que te explicasse as minhas ideias... bruscamente aquilo deixou de me interessar por completo. O que me interrogou pareceume quase simpático. Tinha interesse em saber certas coisas... e eu, nesse momento, não tinha interesse em esconderlhas... então disselhas... simplesmente. Ou talvez acrescentou depois de uns minutos de reflexão não tão simplesmente como isso, mas logo, apressadamente, poderia dizer que quase com zelo. Mais um pouco e seria ele quem moderaria o meu entusiasmo!
Pensei em Astárito e pareceume estranho que Jaime o tivesse achado simpático.
Mas quem te interrogou? perguntei.
Não o conheço. Um homem novo, com uma cara amarelada, olhos pretos, muito bem vestido. Devia ser um alto funcionário.
E achasteo simpático! não me pude impedir de gritar, reconhecendo nesta descrição o próprio Astárito.
No escuro, disseme ao ouvido:
Devagarinho... não ele pessoalmente, mas a sua função. Mas sim, quando se renuncia a si mesmo, ou quando não somos aquilo que devíamos ser, o que conta é o que se é. Não sou eu o filho de um rico proprietário? E este homem, dentro das suas funções, não defende os meus interesses? Reconhecemos que éramos da mesma raça... solidários da mesma causa... Que imaginas? Que simpatizei com ele pessoalmente? Não, não... senti simpatia pela sua função... Senti que era eu quem lhe pagava, que era a mim que ele defendia; comparecendo perante a sua pessoa como acusado estava por detrás como patrão.
Ria, ou, melhor, dava umas risadinhas que arranhavam os meus ouvidos. Eu nada percebia, senão que acontecera qualquer coisa muito triste e que a minha vida estava de novo em risco.
Acrescentou passado um momento:
Talvez eu me calunie... talvez eu tenha falado assim, porque nenhuma importância dava ao facto de não falar... Porque bruscamente tudo me pareceu absurdo e sem importância e porque não compreendia coisas nas quais deveria ter acreditado.
Nada mais compreendias? perguntei maquinalmente.
Não... Quando muito compreendia as palavras como as compreendo agora, mas não os factos que essas palavras traduziam... E então... não se pode sofrer pelas palavras. As palavras não são mais que sons... E ninguém vai para a cadeia porque um burro zurrou ou a roda de um carro guincha. As palavras já não tinham valor para mim, pareciamme todas iguais e absurdas. Ele queria palavras, eu deilhe tantas quantas ele queria.
Mas então objectei eu se eram só palavras, que mal é que isso te pode fazer?
Sim, mas, infelizmente, logo que foram pronunciadas essas palavras cessaram de ser simples palavras e passaram a ser factos.
Porquê?
Porque eu comecei a sofrer. Porque devo ter tido remorsos de as ter dito. Porque, compreendi, senti que dizendo essas palavras me tornara naquilo que se chama um traidor.
Mas então porque as disseste?
Respondeume lentamente:
Porque se fala quando se sonha? Dormia talvez... mas agora acordei.
Virávamos o assunto por todos os lados e voltávamos sempre ao mesmo ponto. Senti um desalento atroz e disselhe com esforço:
Talvez te tenhas enganado; julgas ter dito sabe Deus o que é possível que não te tenhas comprometido.
Não, não me engano respondeu.
Caleime um momento. Depois disse:
E os teus amigos?
Quais amigos?
Túlio e Tomás.
Nada sei a respeito deles disse afectando indiferença. Vão prendêlos.
Não gritei. Não os prenderão.
Pensava que Astárito não se tinha com certeza aproveitado deste momento de fraqueza de Jaime. Pela primeira vez, no entanto, a ideia da prisão dos dois amigos fezme entrever a gravidade de toda esta história.
Porque não os prenderão? disse ele. Dei os seus nomes. Nenhuma razão há para que não os prendam.
Oh! Jaime! gritei com angústia. Porque fizeste isso?
É o que pergunto a mim próprio.
Mas se os prendem disse eu, passado um momento, agarrandome assim à única esperança que me restava - nada há de irreparável. Eles nunca saberão que foste tu...
Não interrompeume. Mas eu saberei... saberei sempre... saberei que não mais serei como era, que sou outra personagem, à qual no momento em que falava dera a vida como a mãe dá ao filho deitandoo ao mundo. E, infelizmente, esta personagem não me agrada... aí é que está a desgraça... Há maridos que matam as mulheres porque lhes é intolerável continuarem a viver juntos. Imagina o que é ter dois seres no mesmo corpo quando há um que odeia o outro até à morte. Quanto aos meus amigos, vão com certeza prendêlos.
Não pude conterme por mais tempo e disselhe:
Mesmo que não tivesses falado, terias sido posto em liberdade. E os teus amigos não correm qualquer perigo.
Contei por alto e rapidamente a história das minhas relações com Astárito, a minha intervenção a seu favor e a promessa que Astárito me havia feito. Ouviume sem dizer palavra, depois declarou:
Sim, senhor! Com que então devo a minha liberdade não só à minha actividade de espião, mas ainda às tuas relações amorosas com um polícia.
Jaime! Não fales assim!
De resto continuou, passado um momento , estou contente que os meus amigos se consigam livrar; pelo menos não terei esses remorsos na consciência.
Vês? disselhe vivamente. Que diferença há entre ti e os teus amigos? Eles também devem a sua liberdade, assim como tu, a mim e ao facto de Astárito estar apaixonado.
Perdão, aí há uma diferença! Eles não falaram.
Quem to disse?
Espero bem que não o tenham feito, fossem eles o que fossem: de resto isso não seria uma consolação para mim.
Mas tu não tens mais que passar a comportarte como se nada se tivesse passado! insisti de novo. Volta para o pé deles sem fazer nenhuma alusão ao assunto... Que pode acontecer? Acontece a toda a gente ter um momento de fraqueza.
Sim respondeume , mas não acontece a toda a gente morrer e continuar vivo. Sabes o que me aconteceu no momento em que falei? Morri... estou morto... simplesmente morto... para sempre.
Incapaz de suportar por mais tempo a angústia que me apertava o coração desfizme em lágrimas.
Mas porque estás a chorar? perguntoume.
Por causa das coisas que dizes respondi soluçando -, que estás morto. Isso assustame tanto!
Desagradate estar ao lado de um morto? perguntoume brincando. No entanto não é tão horrível como parece... Não é mesmo nada horrível... Estou morto mas de uma maneira particular... no que diz respeito ao corpo, estou bem vivo... apalpa aqui e vê lá se não estou vivo.
Agarroume a mão e fezme tocarlhe no corpo.
Estou bem vivo como tu sentes...
Puxavame a mão para obrigarme a apalpálo.
Estou portanto vivo... por aquilo que te diz respeito, como acabas de verificar, estou mais vivo do que nunca.. não tenhas medo; se nós, enquanto eu estava vivo, não nos amamos muitas vezes, em compensação vamos fazêlo agora, que estou morto, com muito mais frequência.
Com uma espécie de desprezo raivoso tirou de cima dele a minha mão inerte. Levei as duas ao rosto e dei largo curso à minha miserável dor. Desejaria ter chorado sempre, não parar de chorar, porque temia o momento em que o pranto cessa e se fica vazio e como que apatetado diante das coisas que o faziam sofrer. No entanto, esse momento chegou; limpei ao lençol a minha cara inundada e fixei os olhos dilatados no vácuo. Então ouvi que ele me perguntava numa voz afectuosa e doce:
Vejamos, na tua opinião que devia eu fazer?
Volteime para ele com violência, aperteime contra o seu peito e disselhe:
Não pensar mais nisso... o que aconteceu, aconteceu... não te preocupes... é o que deves fazer!
E depois?
Depois, retoma o trabalho... faz o teu doutoramento... depois volta para a tua terra... pouco me importa se não te tornar a ver desde que te saiba feliz... arranja um emprego! Quando chegar o momento, casa com uma rapariga da tua região, da tua situação social, que te ame sinceramente... A política para que te serve? Tu não foste feito para a política... fizeste mal em te meter nela... foi um erro; acontece a toda a gente cometer erros... Um dia háde parecerte estranho como chegaste a interessarte por essas coisas. Eu amote sem egoísmo. Jaime. Outra mulher não quereria separarse de ti... Pois bem!... se for preciso parte amanhã... não nos veremos mais, contanto que sejas feliz!
Mas eu disse ele em voz baixa e clara , nunca mais serei feliz; sou um delator.
Não é verdade! respondi, exasperada. Não és um delator! E mesmo que o tivesses sido podias ainda ser feliz. Há pessoas que cometeram verdadeiros crimes, e no entanto são felizes. Eu, por exemplo. Quando se diz uma mulher da rua, sabe Deus o que se imagina: ora eu sou uma rapariga como as outras. Muitas vezes sou até feliz. Nestes últimos dias acrescentei com amargura era tão feliz!
Eras feliz?
Sim, completamente! Mas sabia bem que não podia durar muito, e naturalmente...
Ao dizer isto tive outra vez vontade de chorar, mas contiveme.
Tu julgavas ser muito diferente do que és... E o que aconteceu, aconteceu. Agora aceita ser como és realmente.. e verás como tudo se arranjará depressa. No fundo sofres pelo sucedido porque tens vergonha e receias o julgamento dos outros, dos teus amigos... Pronto! Deixa de andar com eles, procura outras pessoas, o mundo é tão grande.. Se eles não te querem o suficiente para compreenderem que isto não foi mais que um momento de fraqueza, fica comigo, eu amote, compreendote e não te julgo... Assegurote gritei com força -, quanto pior fosse a acção que tivesses cometido mais serias para sempre o meu Jaime!
Nada replicou e eu continuei:
Não sou mais que uma pobre rapariga ignorante, eu sei, mas há coisas que compreendo melhor do que tu. Eu também já passei pelo que tu sentes neste momento. A primeira vez que nos vimos, e em que tu nem sequer me tocaste, meteuseme na cabeça que era porque me desprezavas e de repente perdi até mesmo o gosto de viver. Sentiame tão desgraçada! Gostaria de ser outra e ao mesmo tempo compreendia ser impossível e que continuaria sempre a ser o que era; tinha uma vergonha que me queimava, um aborrecimento, um desespero... sentiame gelada. paralisada... por instantes desejei morrer. Depois, um dia, saí com minha mãe e entrei por acaso numa igreja, e ali, rezando. compreendi que no fundo nada havia de que corar... que se eu era feita desta maneira era porque Deus o tinha querido, que não me devia revoltar contra a minha sorte, mas, pelo contrário, aceitála com docilidade e confiança, e que se me desprezavas era por defeito teu e não meu... Em suma, pensei muitas coisas, e por fim passoume toda a mortificação e sentime de novo alegre.
Começou a rir, com aquele riso que me gelava, e disse:
Em resumo, devia aceitar o que fiz e não me revoltar. Devia aceitar aquilo em que me tornei e não me julgar. Talvez que na igreja se possam passar essas coisas, mas fora da igreja...
Pois bem! Vai à igreja! propuslhe, agarrandome a esta nova esperança.
Não, não irei. Não sou crente e a igreja aborreceme. E depois...
Recomeçou a rir, depois, de repente, pôsse sério, agarroume pelos ombros e começou a sacudirme com violência, gritando:
Mas tu não compreendes a minha acção? Não compreendes? Não compreendes?
Abanavame com tal força que me cortava a respiração. Com uma última sacudidela atiroume para trás e sentio saltar da cama e começar a vestirse às escuras.
Não acendas a luz! disseme com ar ameaçador. - É preciso que eu me habitue a que me olhem outra vez de frente... por agora é ainda cedo. Ai de ti se a acendes!
Nem ousava respirar, mas acabei por perguntar:
- Vaiste embora?
Sim, mas voltarei disseme.
Pareceume que ria de novo:
Não tenhas medo, que voltarei... Devo mesmo darte uma boa notícia: tenciono viver contigo definitivamente.
Aqui, em minha casa?
Sim, mas não te incomodarei... terás a liberdade necessária para continuares com a tua vida habitual. De resto acrescentou poderemos viver os dois com o que me manda a minha família... dava para pagar a pensão... mas aqui em casa chega bem para os dois.
Esta ideia de ele viver em minha casa pareciame mais estranha do que agradável. No entanto nada me atrevi a dizer. Acabou de vestirse em silêncio, às escuras.
Voltarei esta noite disseme.
Ouvio abrir a porta, sair e tornar a fechála. Fiquei com os olhos abertos fixos na escuridão.
10
Nessa mesma tarde, como Astárito me aconselhara, fui ao comissariado do bairro fazer um depoimento sobre a história de Sonzogne. Não entrava ali sem repugnância, porque depois do que acontecera a Jaime, tudo o que era polícia ou policial inspiravame um malestar de morte. Mas agora já estava quase resignada. Compreendia que durante algum tempo a vida não teria o menor atractivo para mim.
Esperamola de manhã disseme o comissário quando lhe disse o motivo da minha visita.
Era um excelente homem e há muito tempo que o conhecia: se bem que fosse pai de família e tivesse passado os cinquenta, já há muito tempo que eu compreendia que tinha por mim mais do que uma simples simpatia. Lembrome, sobretudo do seu nariz: grosso, esponjoso e com um ar melancólico. Tinha sempre o cabelo despenteado e os olhos sonolentos, como se tivesse acabado de levantarse. Esses olhos, de um azul intenso, olhavam como do interior de uma máscara num rosto espesso, rosado e gretado, lembrando a casca de certas laranjas enormes, mas ocas.
Disselhe que me fora impossível vir mais cedo. Os seus olhos olharamme um momento, depois perguntoume com um ar cúmplice:
Então como se chama ele?
Como quer que saiba?
Então, sabe muito bem!
Palavra de honra! disselhe pondo a mão no peito. Abeirouse de mim no Corso. Tive, de facto, a impressão de qualquer coisa estranha na sua atitude, mas não lhe prestei grande atenção.
Como se compreende que não estivesse em casa e ele tivesse lá ficado só?
Tinhao deixado porque tinha um encontro urgente.
Mas ele julgou que tivesse saído para ir procurar a policia. Sabia? Julgou que o tinha vendido.
Já sei.
E que lhe faria pagar isso.
Tanto pior.
Mas não percebe acrescentou olhandome de lado - que é um homem perigoso e que amanhã, para se vingar da sua suposta denúncia, pode muito bem atirarlhe, como disparou sobre os polícias?
Com certeza que já percebi!
Então porque não diz o seu nome? Seria preso e deixaria de a preocupar.
Pois se eu lhe digo que não sei! Não é por mal! Só me faltava saber o nome de todos os homens que levo para casa!
Está bem! Nós, pelo contrário afirmou de repente com voz forte e teatral, curvandose para a frente , nós sabemos o nome dele!
Percebi que era uma cilada e respondi tranquilamente:
Se o sabe, porque me atormenta tanto? Prendamno e não se fala mais nisso.
Olhoume um momento em silêncio; notei que os seus olhos, incertos e perturbados, fixavam mais o meu corpo do que a minha cara e compreendi subitamente que, contra a sua vontade, o seu velho desejo substituíra o fervor profissional.
Sabemos ainda outra coisa continuou é que se ele disparou e se safou é porque tinha boas razões para o fazer!
Ah! Quanto a isso não tenho dúvidas!
Mas conhece essas razões?
Não sei coisa alguma. Pois se eu nem lhe conheço o nome, com quer que saiba o resto?
Nós sabemos muito bem o resto.
Falava mecanicamente, como se pensasse noutra coisa: tinha a certeza de que não tardaria a levantarse e a vir ao pé de mim.
Nós sabemos muito bem e havemos de o apanhar... é uma questão de dias, talvez de horas.
Ainda bem para vocês.
Levantouse, como eu tinha previsto, chegouse a mim e agarroume o queixo com a mão:
Vamos! Vamos! disseme. Sabe tudo e não quer dizer. De que tem medo?
De nada tenho medo e nada sei respondi. Mas trate de tirar as mãos...
Vamos! Vamos! repetiu.
Mas voltou a sentarse à secretária.
Tem sorte em eu simpatizar consigo e saber que é boa rapariga disseme. Sabe o que qualquer outro faria para a obrigar a falar? Têlaia engaiolado durante um bom bocado. Ou então mandavaa para S. Galicano.
Levanteime declarando:
Bem! Tenho que fazer! Se nada mais tem para me dizer...
Pode retirarse concordou mas tenha cuidado com a frequência... políticos e outros!
Fingi não perceber as últimas palavras, pronunciadas num tom cheio de alusões, e saí rapidamente das salas sórdidas do comissariado.
Enquanto andava pensava em Sonzogne. O comissário não tinha feito mais que confirmar o que eu já tinha pensado: Sonzogne estava convencido de que eu o denunciara e queria vingarse. Fui tomada de pavor, não por mim, mas por Jaime. Sonzogne estava furioso; se ele encontrasse Jaime comigo não hesitaria em matálo também. Devo dizer que a ideia de morrer com Jaime me sorria estranhamente. Pareciame ver a cena: Sonzogne disparava; eu punhame à frente de Jaime para o proteger e recebia a bala em seu lugar. Mas não me desagradava imaginar Jaime também ferido e a nossa morte comum, com os nossos sangues misturados. No entanto reflectia que ser morto ao mesmo tempo pelo mesmo assassino não era tão belo como um suicídio duplo, o qual me parecia um fim digno de um grande amor. Era como matar uma flor antes de ela começar a fenecer, fecharse no silêncio depois de ter ouvido uma música sublime. Tinha algumas vezes pensado nesta forma de suicídio que pára o tempo antes que ele corrompa e avilte o amor e que se leva a efeito mais por excesso de alegria que pela intolerância da dor. Momentos havia em que me parecia amar Jaime com demasiada intensidade ao ponto de recear a impossibilidade de, no futuro, o amar tanto; tive a ideia deste suicídio duplo com a mesma naturalidade e a mesma espontaneidade como o beijava e o acariciava. Mas nunca lhe falara nisso porque sabia que para nos matarmos juntos era condição essencial que o nosso amor tivesse a mesma intensidade. E Jaime não me tinha amor ou se o tinha não me queria o suficiente para desejar deixar de viver.
Continuando a andar de cabeça baixa na direcção de casa, reflectia intensamente em tudo isto. De repente senti uma espécie de vertigem acompanhada de náuseas e de um malestar horrível. Nem sei como consegui entrar numa leitaria. Estava a poucos passos da minha casa, mas não tinha forças para fazer aquele curto trajecto; teria caído no chão se o tentasse.
Senteime a uma mesa atrás da porta envidraçada e fechei os olhos. Continuava a sentir uma violenta sensação de náusea e de vertigem e esta sensação era agravada pelo arquejar da máquina do café, embora bastante afastada, que me produzia uma sensação de angústia. Sentia na cara e nas mãos a tepidez da sala fechada e aquecida e, no entanto tinha muito frio. O empregado conheciame e gritoume por detrás do balcão:
Um café, menina Adriana?
Disse que sim com a cabeça, sem abrir os olhos. Por fim reanimeime e tomei o café que o empregado colocara em cima da mesa. A bem dizer não era a primeira vez que era tomada por esta má disposição; nos últimos tempos sentiraa já, mas não tinha ligado importância, devido aos acontecimentos insólitos e angustiantes. Mas agora, pensando nisso e estabelecendo uma relação entre a indisposição e uma irregularidade significativa verificada na minha vida física no decurso do mês, convencime de que certas suspeitas que ultimamente haviam atravessado o meu espírito e a que eu não dera consistência correspondiam à verdade.
“Não há dúvida alguma”, pensei bruscamente. “Espero com certeza um filho.” Paguei o café e saí. O que nesse momento sentia era muito complicado: hoje ainda, passado tanto tempo, não me é fácil traduzilo. Por experiência própria sabia que as desgraças nunca vêm sós; a presente certeza que tempo atrás e noutras circunstâncias seria acolhida com alegria, neste momento não podia deixar de considerála uma desgraça. Mas, por outro lado, um movimento irresistível e misterioso da minha alma levame sempre a descobrir o lado agradável das coisas mais desconcertantes. Desta vez o lado agradável não era difícil de descobrir; era o mesmo que enchia de esperança e de satisfação o coração de todas as mulheres logo que sentem que foram tomadas pela prenhez. Era um facto que o meu filho nasceria nas mais desfavoráveis condições; no entanto, não seria menos meu filho: seria eu quem o amamentaria, o criaria e o educaria. “Um filho é um filho”, pensava eu; “não há pobreza, nem circunstâncias adversas, nem futuro sombrio que possam impedir uma mulher, por mais miserável e abandonada que seja, de se alegrar à ideia de ir ser mãe.” Estas reflexões acalmaramme; depois de um minuto de apreensão e de desencorajamento sentime tão tranquila e confiante como sempre. O jovem médico que me vira há tanto tempo já, quando minha mãe me levara à farmácia de serviço para saber se eu tinha ou não pertencido a Gino. tinha o consultório próximo da pastelaria. Resolvi ir lá e consultálo. Era cedo: ninguém havia na sala de espera; o doutor, que me conhecia muito bem, acolheume com simpatia. Logo que fechei a porta, anuncieilhe tranquilamente:
Doutor, tenho quase a certeza de estar grávida.
Ele começou a rir porque sabia qual era o meu ofício e perguntoume:
Estás contrariada por isso?
De maneira nenhuma. Estou contente.
Vejamos.
Depois de me ter feito algumas perguntas sobre a minha indisposição, mandoume estender na marquesa, examinoume e disse alegremente:
Desta vez é certo!
Sentime feliz por ver as minhas suspeitas confirmadas. Disselhe com o espírito tranquilo e sem sombra de desapontamento:
Já o sabia; vim só para ter a certeza.
Agora podes estar certa.
Esfregava as mãos alegremente como se fosse ele o pai da criança, alegre, cheio de simpatia por mim. Mas uma dúvida atravessoume o espírito:
Há quanto tempo? perguntei.
Bom! Talvez dois meses... um pouco mais, um pouco menos... Porquê, queres saber de quem é?
Já sei.
Dirigime para a porta.
Se precisares seja do que for, podes procurarme - disse, abrindome a porta. Quando chegar a altura, procuraremos fazer com que nasça nas melhores condições possíveis.
Tinha por mim, como o comissário, uma inclinação muito acentuada. Mas a diferença é que este agradavame.
Vinha frequentemente consultálo. Pelo menos uma vez de quinze em quinze dias. E duas ou três vezes, por gratidão, tinha consentido que ele me amasse, ali mesmo sobre a marquesa coberta de oleado onde acabara de me examinar. Mas ele era discreto e contentavase com pequeninos gracejos afectuosos, sem nunca me impor os seus desejos. Davame conselhos e imagino que, à sua maneira, estava também um pouco apaixonado por mim.
Tinha dito ao médico que conhecia o pai do meu filho. Na realidade no momento em que pronunciei estas palavras não tinha mais do que uma suspeita e mais por instinto que por cálculo. Mas caminhando, quando contei os dias e reavivei as minhas recordações, esta suspeita tornouse certeza. Lembreime do desejo e do terror que me tinham arrancado, precisamente quase há dois meses, um longo grito lamentoso de agonia e de prazer, e fiquei quase certa que o pai não podia ser outro senão Sonzogne. Era horrível pensar que iria ter um filho de um assassino insensível e monstruoso como Sonzogne; podia recear que a criança se parecesse com o pai e viesse marcada com o seu carácter. Por outro lado não podia deixar de encontrar alguma justiça nesta paternidade. Entre tantos homens que me tinham amado Sonzogne era o único que realmente me possuíra fora de qualquer sentimento amoroso, no fundo mais obscuro e mais secreto da minha carne. O facto de eu experimentar por ele apenas medo e horror e de me ter entregue contra vontade não desmentia, antes confirmava, a profundidade desta posse. Nem Gino, nem Astárito, nem mesmo Jaime, por quem eu tinha uma paixão de um gênero completamente diferente, tinham suscitado em mim o sentimento de uma posse tão legítima quão detestada. Tudo isto me parecia ao mesmo tempo estranho e assustador, mas era assim: os sentimentos são a única coisa que não se pode recusar, nem desmentir, nem mesmo analisar, num certo sentido. Acabei por concluir que o amor exige uns certos homens e a procriação outros, e que se era justo que eu tivesse um filho de Sonzogne não era menos justo da minha parte detestálo, fugirlhe e amar Jaime como o amava.
Subi lentamente a minha escada pensando no fardo vivo que de futuro traria no ventre. Quando entrei no vestíbulo ouvi falar na sala grande. Espreitei e vi com surpresa Jaime, sentado à mesa, conversando calmamente com minha mãe, sentada a coser ao pé dele. Só o candeeiro central estava iluminado: um candeeiro de suspensão. Uma grande parte da sala estava às escuras.
Boasnoites disse, molemente, aproximandome.
Boasnoites, boasnoites disseme Jaime com voz hesitante e desagradável.
Olheio de frente, vilhe os olhos brilhantes e tive a certeza de que estava embriagado. Num canto da mesa havia dois guardanapos e dois pratos. Como minha mãe comia sempre na cozinha, percebi que o outro era para Jaime.
Boasnoites repetiu. Trouxe as minhas malas. Estão no teu quarto. Já conversei amigavelmente com tua mãe... Não é verdade, minha senhora, que nos entendemos às mil maravilhas?
Senti no coração um enorme desalento ao ouvir esta voz sarcástica e lugubremente chocarreira. Caí sobre uma cadeira e fechei os olhos. Ouvi minha mãe responderlhe:
Disse que nos entendíamos... se diz mal de Adriana nunca nos entenderemos.
Mas que disse eu? gritou Jaime, falsamente admirado. Que Adriana é feita para a vida que leva. Que Adriana se sente bem nesta vida... Que mal há nisso?
Não é verdade retorquiu a minha mãe. Pelo contrário, a Adriana não é feita para a vida que leva. Com a sua beleza ela merecia melhor, muito melhor. Não sabe que a Adriana é uma das mais bonitas raparigas do bairro, para não dizer de Roma? Vejo outras raparigas muito mais feias do que ela fazerem fortuna, enquanto a Adriana, que é bela como uma rainha, nada possui. Mas eu sei porque é.
Porque é?
Porque ela é boa de mais, aí está! É tão bonita como boa. Se ela fosse bonita e má, veria como as coisas seriam diferentes.
Então! Então! disse eu aborrecida com a discussão, e sobretudo com o tom de Jaime, que parecia troçar de minha mãe. Tenho uma destas fomes! O jantar ainda não está pronto?
Está quase pronto disse minha mãe pousando a costura sobre a mesa e saindo rapidamente.
Levanteime e seguia até à cozinha.
Então isto agora é uma pensão? resmungou ela quando me aproximei. Veio armado em patrão... meteu as malas no teu quarto, deume dinheiro para as despesas...
Então não estás contente?
Preferia como dantes.
Bem. Faz de conta que estamos noivos. E depois é provisório; é uma questão de dias; ele não vai ficar sempre aqui.
Disselhe outras coisas do mesmo gênero para a apaziguar, beijeia e voltei para a sala grande.
Recordarei por muito tempo este primeiro jantar com Jaime lá em casa, comigo e com minha mãe. Ele esteve sempre a brincar enquanto comia com apetite. Mas a mim as suas brincadeiras pareciamme mais frias do que gelo e amargas como o fel. Viase bem que não tinha senão uma ideia, que esta ideia estava enterrada na consciência como um espinho na carne e que estas brincadeiras não faziam senão mergulhar mais profundamente este espinho e reavivarlhe a dor. Era a ideia do que dissera a Astárito. Nunca na minha vida vi alguém arrependerse tão sinceramente de uma falta cometida. Somente, ao contrário do que os padres me tinham ensinado quando eu era garota, que o arrependimento lava a falta este arrependimento parecia não ter fim, nem consequência, nem o mínimo resultado benéfico. Compreendi que Jaime sofria horrivelmente e eu tanto como ele ou talvez ainda mais, porque não sofria somente a sua dor, mas a minha impotência para lha tirar, ou pelo menos aliviar.
Comemos em silêncio o primeiro prato. Depois minha mãe, de pé, disse não sei o quê sobre o preço da carne e então Jaime levantou a cabeça e respondeulhe:
Não tenha medo, minha senhora. De ora em diante serei eu quem pensará em tudo; vou ter um bom emprego.
A esta notícia senti um pouco de esperança.
Que lugar? perguntou a minha mãe.
Um lugar na polícia respondeulhe Jaime, com uma gravidade contrita , foi um amigo da Adriana quem mo propôs... o Sr. Astárito.
Pousei o garfo e a faca e olheio intensamente.
Descobriuse continuou que eu possuía excelentes qualidades para fazer parte da organização.
É possível respondeu minha mãe , mas eu nunca gostei de polícias... O filho da lavadeira que mora cá em cima também se fez policia. Sabe o que disseram os rapazes que trabalham no depósito de cimento, aqui ao lado? “Podes pôrte ao largo porque já não te conhecemos!” Além disso, eles ganham mal.
Fez uma careta, mudoulhe o prato e apresentoulhe a carne.
Mas não se trata disso replicou Jaime servindose. Tratase de um lugar importante, delicado, secreto... Que diabo! Eu para alguma coisa andei a estudar! Estou quase doutorado, falo várias línguas. Só os pobresdiabos se tornam agentes, não pessoas como eu.
É possível repetiu minha mãe. Toma! acrescentou pondo no meu prato o bocado maior da carne.
Não é possível disse Jaime é certo!
Calouse por um instante, depois repetiu:
O governo sabe que há malintencionados por toda a parte... Não só nas classes pobres, mas também nas ricas... Para vigiar os ricos são precisas pessoas bem educadas, que falem como eles, se vistam como eles, tenham os mesmos modos... que lhes inspirem confiança, em suma... É o que farei... frequentarei os hotéis de primeira categoria, viajarei no wagonlit, comerei nos melhores restaurantes, vestirei dos melhores alfaiates, frequentarei as praias de luxo, os desportos de Inverno mais famosos... Que diabo! Por quem me tomam vocês?
Minha mãe agora olhavao pasmada. Todos estes esplendores a maravilharam.
Nesse caso declarou já nada mais tenho a dizer.
E eu, tendo acabado de comer, de repente tornaraseme impossível continuar a assistir a esta lúgubre troca de palavras.
Estou cansada disse bruscamente. Vou para o meu quarto.
Levanteime e saí da sala. Uma vez no quarto, senteime na cama, e toda enrolada comecei a chorar em silêncio com o rosto entre as mãos. Pensava no desgosto de Jaime e na criança que ia nascer e tinha a impressão de que as duas coisas, a mágoa e a criança, aumentavam por uma força estranha que não dependia de mim e que eu não podia dominar; elas estavam vivas, nada havia a fazer. Passado um momento ele entrou; levanteime e errei um pouco pelo quarto para que ele não visse os meus olhos com lágrimas e dar tempo a secálos. Acendeu um cigarro, atirouse para cima da cama e ficou deitado de costas. Senteime ao seu lado e pedilhe:
Suplicote, Jaime... não fales assim à minha mãe.
Porque?
Porque ela não compreende; eu, pelo contrário, compreendo e cada uma das tuas palavras é como uma agulha que me enterrassem no coração.
Não respondeu e continuou a fumar em silêncio. Tirei da gaveta uma das minhas camisas, agulha e linha, senteime na cama ao lado da lâmpada e, calada, comecei a coser. Não queria falar porque tinha medo de que ele voltasse ao mesmo assunto; esperava, pelo contrário, que se guardássemos silêncio ele acabaria por desanuviar o espírito e pensar noutra coisa. A costura requer muita atenção visual, mas deixa o espírito livre; as mulheres batidas nesse trabalho sabemno bem. Enquanto cosia, os pensamentos fervilhavam e giravamme na cabeça, ou, melhor, assim como o fio passava e repassava através do tecido, assim eles pareciam coser no meu espírito não sei que bainha ou rasgão. Também eu tinha agora a mesma obsessão e não conseguia deixar de pensar no que ele dissera a Astárito e nas consequências que se seguiriam. Mas queria libertar o espírito destes pensamentos, até porque receava que alguma misteriosa influência o poderia obrigar a pensar a ele também, levandoo a aumentar a sua dor. Queria, pois, pensar nalguma coisa clara, alegre e leve, e com todas as forças da minha alma concentrava toda a minha imaginação sobre o filho que iria nascer; era, com efeito, o único aspecto alegre da minha vida entre tantas coisas terrivelmente tristes. Imaginavao tal como seria quando tivesse dois ou três anos, a melhor idade, em que as crianças são sempre mais bonitas e mais engraçadas; e, cogitando em tudo o que ele faria e diria e na maneira como o criaria, senti voltarme a alegria, como esperava; esqueci por momentos Jaime e a sua mágoa. Acabara de coser a camisa; peguei noutra peça de roupa para passajar, e lembreime de que poderia aliviar a tensão das longas horas que passaria com Jaime fazendo o enxovalinho do meu filho. Somente, seria preciso fazêlo às escondidas ou arranjar um pretexto. Diria a Jaime que o destinava a uma das nossas vizinhas que também, por acaso, com efeito esperava um bebé; a ideia pareceume óptima, até porque já falara nesta mulher a Jaime e aludira à sua pobreza. Estes pensamentos distraíramme de tal maneira que comecei, quase sem dar por isso, a cantar em voz baixa. Tenho a voz fraca, mas afinada, com uma grande doçura de timbre, que se nota mesmo quando falo. Comecei uma canção muito em voga naquele tempo que se chamava Cidade Triste. Como levantasse os olhos para partir a linha com os dentes, vi que Jaime me olhava. Então, pensando que me poderia censurar por cantar num momento tão grave, caleime:
Olhoume e disse:
Continua a cantar.
Gostas que eu cante?
Sim.
Mas não canto bem.
Não faz mal.
Recomecei a coser e a cantar para ele. Como todas as raparigas, eu sabia um grande número de canções; tinha boa memória e lembravame do que aprendera em criança. Canteilhe um pouco de tudo. A uma canção seguiase outra. Comecei por cantar em surdina, mas depois tomeilhe o gosto e cantei em voz alta com o maior sentimento que podia. As cantigas sucediamse; enquanto cantava uma pensava já noutra. Ele ouviume com uma certa seriedade no rosto e eu sentiame feliz por poder distrair o seu espírito. Mas ao mesmo tempo pensava que quando era pequena tinha perdido não sei que brinquedo de que gostava muito; como não deixasse de chorar a sua perda, minha mãe, para me consolar, sentarase na minha cama e começara a cantar as três únicas canções que sabia. Cantava mal, tinha voz de falsete, mas apesar de tudo acabara por me distrair: ouviaa exactamente como Jaime me ouvia agora. Passado um momento. a ideia do brinquedo perdido começou a infiltrarse como gotas de amargura no breve esquecimento que minha mãe me oferecera e acabou por apagálo totalmente e tornálo, por contraste, insuportável, tanto assim que eu tinha recomeçado a chorar e que minha mãe, impaciente, me tinha apagado a luz deixandome a chorar às escuras. Tinha a certeza de que apenas tivesse passado a apaziguadora doçura do meu canto, era impossível que ele não voltasse a sentir a sua mágoa, mais forte e mais aguda ainda, pelo contraste do superficial sentimentalismo das minhas canções. Não me enganava. Havia quase uma hora que eu cantava quando de repente me interrompeu:
Agora chega! Aborrecesme com as tuas canções!
Enroscouse como para dormir e voltoume as costas. Esperava esta indelicadeza, por isso não me afligiu. De resto agora só esperava coisas desagradáveis e só o contrário me faria admirar. Levanteime e fui guardar a minha roupa já passajada. Depois despime sem dizer palavra e enfieime na cama no lado que Jaime deixara livre. Ficamos assim muito tempo, em silêncio, de costas um para o outro. Sabia que ele não dormia e que continuava possuído da sua ideia dominante; esta certeza, aliada ao agudo sentido da minha impotência, provocava no meu espírito um turbilhão de pensamentos confusos e desesperados. Estava deitada de lado e, reflectindo, fixava os olhos num canto do quarto. Via uma das duas malas que Jaime trouxera de casa da viúva Medolaghi; uma velha mala de couro amarelo, recamada de etiquetas de hotéis. Havia uma, com um rectângulo de mar azul, uma grande rocha vermelha e a inscrição: “Capri”. Na sombra, pelo meio do mobiliário pálido e pobre do meu quarto, esta mancha azul pareciame luminosa; dirseia, mais que uma mancha, um buraco através do qual eu podia ver um bocado deste mar longínquo. Assaltoume uma grande nostalgia do mar, tão alegre, tão vivo, onde todos os objectos, mesmo os mais corruptos e os mais disformes, se purificam, se alisam, se arredondam, até se tornarem puros e belos. Sempre gostei do mar, até do mar entulhado de óstia. Ao ver o mar sinto sempre uma impressão de liberdade que embriaga os meus ouvidos mais do que os meus olhos, como se as notas de uma música mágica eterna andassem sobre as vagas. Pusme a pensar no mar com um desejo agudo da sua espuma transparente, que parece lavar ao mesmo tempo os corpos e as almas, tornandoas leves pelo seu líquido contacto. Disse a mim mesma que se pudesse levar Jaime para o mar talvez que esta imensidade, este marulhar perpétuo obtivessem o efeito que o meu amor só por si não podia provocar. Pergunteilhe de repente:
Estiveste em Capri?
Sim respondeu sem se voltar.
É bonito?
Sim... muito bonito.
Ouve disselhe voltandome e passandolhe o braço pelo pescoço porque não vamos a Capri ou a qualquer outro sítio junto do mar? Ficando aqui, em Roma, nada mais farás do que pensar nessas coisas desagradáveis... Se mudares de ares e de meio, tenho a convicção de que verás tudo por outro prisma. Há tantas coisas que agora não vês... Estou certa de que te faria bem!
Não respondeu imediatamente e parecia reflectir. Depois disseme:
Não preciso de ir para o mar. Também aqui podia, como tu dizes, ver as coisas de outra maneira... Seria suficiente aceitar o que fiz, como me aconselhas; gozaria logo a existência do céu, da terra, de ti, de tudo... Julgas que não sei que o mundo é belo?
Então aceita disse eu com voz ansiosa... Que te pode isso fazer?
Começou a rir.
Seria preciso pensar nisso antes respondeume. - Aceitar desde o início. Mesmo os mendigos que se aquecem ao sol aceitaramno desde o princípio. Para mim é demasiado tarde.
Mas porque?
Há os que aceitam e os que não aceitam. É evidente que eu pertenço à segunda categoria.
Caleime sem saber que dizer. Acrescentou, passado um momento:
Agora apaga a luz; dispome às escuras... Creio que são horas de dormir.
Obedeci. Despiuse às escuras e deitouse ao meu lado. Volteime para ele e tentei beijálo. Repeliume sem uma palavra, enrolouse e voltoume as costas. Este gesto encheume de amargura e aconchegueime, por minha vez, a alma viúva, esperando o sono. Tornei a pensar no mar: desejei ardentemente morrer afogada. Pensava que não sofreria mais do que um momento. Depois o meu corpo inanimado flutuaria muito tempo sob o céu, de vaga em vaga. Os pássaros marinhos debicariam os meus olhos, o sol queimarmeia o peito e o ventre; os peixes mordermeiam as costas. Por fim mergulharia puxada por alguma corrente azul e fria que me faria viajar no fundo do mar durante meses e anos, pelo meio de recifes submarinos, peixes e algas; e muita, muita água límpida e salgada, passaria sobre a minha testa, o meu peito, o meu ventre, as minhas pernas, levando lentamente a minha carne, polindome, gastandome cada vez mais. Por fim qualquer vaga, num dia qualquer, me atiraria com fragor para uma praia distante, reduzida a alguns ossos frágeis e brancos. Gostava da ideia de ser arrastada pelos cabelos para o fundo do mar; gostava da ideia de um dia ou outro ser reduzida a uma ossada sem identificação, no meio dos brancos calhaus de uma praia. Talvez alguém, sem que o sentisse, caminhasse sobre os meus ossos e os reduzisse a poeira branca. Acabei por adormecer com estes pensamentos voluptuosos e tristes.
No dia seguinte verifiquei que o sono e o repouso não haviam modificado de forma alguma os sentimentos de Jaime. Pelo contrário, julguei notar que se tinham agravado. Como na véspera, passava muito tempo em longos silêncios obstinados e lúgubres ou falava com sarcasmo sobre coisas indiferentes, mas nas quais, no entanto, transparecia sempre o mesmo pensamento dominante. O agravamento que julguei observar consistia numa inércia, numa apatia e numa negligência quase voluntárias que nele, sempre tão activo e enérgico, era qualquer coisa nova e parecia indicar um desprendimento progressivo de tudo o que fizera até então. Abrilhe as malas e arrumeilhe as roupas e os fatos. Mas quando se tratou dos livros dos seus estudos, e que eu sugeri os alinhasse provisoriamente sobre o mármore da cômoda, em frente do espelho, respondeume:
Podes deixálos na mala... já não servirão mais.
Porquê? pergunteilhe. Tu não tens que fazer o teu doutoramento?
Não farei o doutoramento.
Não queres continuar a estudar?
Não.
Não insisti, receosa que voltasse a falar da sua habitual angústia e deixei os livros na mala. Também não se lavava nem pensava em fazer a barba, ele que fora sempre asseado e muito cuidadoso com a sua pessoa. Este segundo dia passouo no quarto fumando, estendido na cama, ou passeando para trás e para diante, com ar pensativo e as mãos nos bolsos. Mas ao almoço, como me prometera, não falou com minha mãe. Veio a noite, declaroume que jantaria fora e saiu sozinho; não ousei proporlhe a minha companhia. Não sei onde foi; estava já para ir deitarme quando entrou; era patente que tinha bebido. Beijoume com grandes e cômicos gestos e quis possuirme. Anui, embora notasse que amar era para ele, de fato, como beber, um acto desagradável, cumprido por força, com o único fim de se fatigar e aturdir.
Disselho e acrescentei:
Tanto te fazia ir comigo como com qualquer outra.
Riuse e respondeu:
Com efeito, tanto fazia... mas como és tu quem está aqui, é mais fácil!...
Magoaramme estas palavras e, mais ainda, afligiume a pouca afeição, ou melhor, a falta absoluta de afeição que as suas palavras demonstravam.
Mas bruscamente, como se alguma coisa me iluminasse, volteime para ele e disselhe:
Olha.. eu sei que não sou mais do que uma rapariga qualquer... mas procura amarme. É por ti que o peço. Se chegares a amarme, estou certa de que acabarás por te amar a ti mesmo.
Olhou e repetiu com voz forte e trocista: “Amor! O amor!” e apagou a luz. Fiquei às escuras com os olhos dilatados, aflita, perplexa, não sabendo o que pensar.
Os dias que se seguiram não lhe trouxeram qualquer modificação: tudo continuou na mesma. Parecia ter substituído os seus velhos hábitos por outros novos, e era tudo. Primeiro trabalhava, ia à Universidade, conversava com os amigos no café e lia. Agora fumava, estendido na cama, passeava no quarto, tinha as suas conversas habituais alusivas e estranhas, embebedavase e possuíame. Ao quarto dia comecei a sentirme desesperada. Sabia que a sua mágoa não diminuíra e pareciame impossível continuar a viver assim. O meu quarto, constantemente cheio de fumo dos cigarros, pareciame uma oficina de dor, trabalhando noite e dia sem descanso; o próprio ar tornarase carregado de tristes e obcecantes pensamentos. Nesses momentos amaldiçoava muitas vezes a minha insignificância, a minha ignorância e o facto de ter uma mãe ainda mais insignificante e ignorante do que eu. Quando se têm graves problemas o nosso primeiro movimento é pedir conselhos a uma pessoa mais velha e mais experiente. Ora eu ninguém conhecia que estivesse nessas condições: pedir conselhos a minha mãe era a mesma coisa que os pedir a uma das muitas crianças que brincavam no pátio da casa. Por outro lado não chegava a penetrar bem fundo na dor de Jaime: havia muitas coisas fora do alcance da minha inteligência, e acabei por me persuadir de que o seu principal tormento era saber que as declarações que fizera perante Astárito constavam dos papéis da polícia, que ficariam no arquivo como o eterno testemunho da sua fraqueza. Certas frases dele confirmaramme esta ideia. Uma tarde disselhe:
Se te tortura que se tenha escrito tudo o que disseste a Astárito... ele fará por mim seja o que for. Tenho a certeza de que se lho pedir ele fará desaparecer o interrogatório.
Olhoume e perguntoume em tom singular:
Que te faz pensar isso?
Tu mesmo o declaraste no outro dia... Quando te disse que devias tentar esquecer tu respondesteme: “Mesmo que eu o esquecesse, a polícia lembrarseá”.
E como lhe pedirás?
É muito simples. Telefonolhe e vou ao Ministério.
Não disse nem sim nem não. Insisti:
Então queres que lhe vá pedir?
Por mim, faz como entenderes.
Saímos juntos para irmos telefonar à leitaria. Encontrei logo Astárito e disselhe que precisava de falar com ele. Pergunteilhe se podia ir ao Ministério. Mas ele, gaguejando, respondeume de uma maneira estranha:
Ou em tua casa, ou então não.
Compreendi que queria pagarse do favor que eu lhe podia e procurei disfarçar:
Num café? perguntei.
Ou em tua casa, ou então não.
Está bem! disse. Então vem a minha casa!
E acrescentei que o esperava nesse mesmo dia ao fim da tarde.
Sei o que ele quer disse a Jaime quando voltávamos. Mas ninguém pode obrigar uma mulher a fazer isso contra vontade. Chantagens... fezmas enquanto eu era ainda uma inexperiente, mas agora não mas fará mais!
Mas porque não queres? perguntoume Jaime negligentemente.
Porque é a ti a quem amo.
É muito possível disse no mesmo tom indiferente que se tu não quiseres aceder aos seus desejos ele se recuse a destruir o interrogatório... E então?
Háde destruílo, não tenhas receio.
Mas se não o fizer senão com essa condição?
Estávamos já na escada. Parei e declareilhe:
Farei o que tu quiseres.
Seguroume pela cintura e disseme lentamente:
Pois bem! Ouve o que quero. Que faças com que Astárito venho cá e que o leves para o teu quarto com o pretexto de ires para a cama com ele... Eu estarei à espreita atrás da porta e quando ele entrar matáloei com um tiro de revólver. A seguir empurramolo para debaixo da cama e nós é que nos amaremos toda a noite!
Livres pela primeira vez da névoa que os embaciara durante os dias antecedentes, os seus olhos brilhavam agora. Assusteime, sobretudo porque sentia que havia uma lógica nesta proposta e também porque daqui em diante só esperava desgraças cada vez maiores e definitivas e este crime tinha todo o ar de se poder executar.
Tem pena de mim, Jaime! gritei. Não digas isso nem a brincar!
Nem a brincar! repetiu. Com efeito estava a brincar!
Eu admitia que talvez até mesmo não brincasse. Mas o que me tranquilizou um pouco era a ideia de que o revólver de que se serviria estava vazio, porque eu às escondidas lhe tirara as balas.
Está descansado disselhe. Astárito fará tudo o que eu quiser. Mas não fales mais dessa maneira, que me assustas!
- Então agora já não tenho o direito de brincar? - disse num tom ligeiro penetrando em casa.
Desde que chegamos à sala grande notei que fora tomado de uma brusca excitação. Começou a passear de um lado para o outro, com as mãos nos bolsos, segundo o seu hábito, mas com uma atitude diferente, mais enérgica, com uma expressão que parecia denotar uma profunda e lúcida reflexão e não a sua costumada apatia. Atribui esta mudança ao alívio que sentia ao saber que esses documentos bem depressa seriam destruídos; mais uma vez abri o coração à esperança e disselhe:
Verás que tudo se arranjará!
Olhoume como se não me conhecesse e repetiu num tom mecânico:
Sim, com certeza... tudo se háde arranjar!
Tinha mandado minha mãe fazer compras para o jantar. Tive de repente uma onda de optimismo. Pensava que de facto tudo se arranjaria talvez até melhor do que se esperava. Astárito anuiria ao meu pedido, se não o tinha feito já; e em cada dia que passasse Jaime veria diminuir o seu remorso, retomaria o gosto pela vida, tornaria a olhar o futuro com confiança. Os homens têm este traço comum; na infelicidade contentamse em sobreviver; mas logo que a sorte parece querer mudar, acalentam os planos mais vastos e mais ambiciosos. Dois dias antes sentiame capaz de renunciar a Jaime se isso fosse necessário para que ele fosse feliz; agora, que confiava na possibilidade de lhe poder oferecer rapidamente esta felicidade, não só já não pensava em deixálo, mas estudava até a maneira de o prender. O que me levava a fazer estes planos não eram cálculos inteligentes, mas um impulso obscuro da minha alma, que espera sempre e não suporta por muito tempo a mortificação e a dor. Tive a impressão de que no ponto em que estavam as coisas não havia para nós mais do que duas soluções: ou nos separaríamos ou nos uníamos para toda a vida. Como não queria nem a sonhar a primeira solução, perguntava a mim própria se não haveria um meio de conseguir a segunda.
Não gosto da mentira; posso contar no número das minhas raras qualidades uma franqueza quase excessiva. Se naquele momento eu mentia a Jaime era porque não tinha a impressão de mentir, mas de dizer a verdade. Uma verdade mais verdadeira do que a própria verdade; uma verdade segundo a alma e não baseada em factos materiais. De resto em nada pensei; foi como que uma inspiração.
Continuava a andar de um lado para o outro; estava sentada ao pé da mesa. Chameio subitamente!
Ouve, pára um momento... tenho uma coisa para te dizer.
O quê?
Havia já um tempo que não me sentia bem; um destes dias fui ao médico... Estou grávida.
Parou, olhoume e repetiu:
Estás grávida?
Estou. E tenho a certeza de que é de ti.
Ele era inteligente. Não podia adivinhar que eu mentia, como compreendeu de repente e perfeitamente a verdadeira razão desta notícia. Pegou numa cadeira, sentouse ao pé de mim, fezme uma festa afectuosa na cara e disseme:
Suponho que esta devia ser mais uma razão... ou, melhor, a razão principal... para me fazer esquecer tudo o que se passou... não é?
Que queres dizer? pergunteilhe fingindo não perceber.
Vou tornarme “pai de família”. continuou. O que não queria fazer por ti vou ter de o fazer por amor desse pequenino, como vocês dizem, as mulheres.
Farás o que quiseres disselhe, encolhendo os ombros, fingindo indiferença. Digote isto porque é verdade, mais nada.
Um filho continuou no seu tom meditativo, como se pensasse em voz alta , pode ser uma razão para viver... Um filho é um bom pretexto. Pode até chegarse a roubar e a matar pelo próprio filho!
Mas quem te pede que roubes ou assassines? interrompi, indignada. Peçote apenas que estejas contente... se não podes, paciência!
Olhoume e acaricioume de novo a face com afeição:
Se estás contente, eu também estou. Estás contente?
Eu estou! respondi com segurança e orgulho. Em primeiro lugar porque gosto muito de crianças e depois porque é teu.
Riu e disseme:
Que finória me saíste!
Porquê finória? Por estar grávida?
Não, mas tens de reconhecer que neste momento e nestas circunstâncias foi um golpe de mestre! Estou grávida... por conseguinte...
Por conseguinte?
Por conseguinte é preciso que aceites o que fizeste! - gritou bruscamente muito alto, saltando e agitando os braços. Por conseguinte é preciso que vivas! Que vivas! Que vivas!
Não saberei descrever o tom da sua voz. Senti um aperto no coração e os olhos encheramseme de lágrimas.
Faz o que quiseres! balbuciei. Se me queres deixar, deixame...
Pareceu arrependerse do seu movimento, aproximouse de mim e acaricioume, dizendo:
Desculpa... não faças caso do que eu disse... pensa no teu filho e não te preocupes comigo.
Segureilhe a mão e passeia pela minha cara molhandoa com as minhas lágrimas e soluçando:
Oh! Jaime... como posso não me preocupar contigo? Ficamos muito tempo assim em silêncio: ele de pé, junto de mim, passando a mão pela minha cara, eu beijandolha e chorando.
Depois ouvimos bater à porta.
Ele afastoume de mim; tive a impressão de que empalideceu; mas de momento não percebi porque e não tive a ideia de lho perguntar. Levanteime e disselhe:
Foge! Deve ser o Astárito! Sai! Depressa!
Foi para a cozinha deixando a porta entreaberta. Limpei rapidamente os olhos, arrumei as cadeiras e passei para o vestíbulo. Sentime de novo tranquila e perfeitamente segura; enquanto caminhava às escuras no vestíbulo, lembreime de que poderia dizer a Astárito que estava grávida; com isso ele deixarmeia sossegada, e se não me quisesse fazer por amor o que lhe iria pedir, com certeza o faria por piedade.
Abri a porta e dei um passo atrás: em vez de Astárito era Sonzogne que estava na soleira da porta. Tinha as mãos nos bolsos como era seu hábito; ao gesto maquinal que fiz de fechar a porta, ele, com uma leve pressão dos seus ombros, abriuma inteiramente e entrou. Seguio até à sala grande. Foi pôrse junto da mesa ao pé da janela. Não trazia chapéu, e ainda não tinha entrado já eu sentia sobre mim os seus olhos fixos. Fechei a porta de comunicação e pergunteilhe afectando indiferença:
Porque vieste?
Denunciasteme, hem?
Encolhi os ombros e senteime na beira da mesa:
Não te denunciei.
Deixasteme, desceste a escada e foste chamar a polícia.
Estava tranquila. Se sentia algum sentimento era mais cólera que medo. Já não me inspirava qualquer receio, mas sentiame possuída de um grande furor contra ele e contra todos os que como ele impedem os outros de serem felizes.
Deixeite disselhe e fuime embora porque amo outro e não quero ter mais relações contigo. Mas não foi para chamar a polícia. Eu não sou delatora! Os polícias vieram por sua conta. Procuravam outro.
Aproximouse de mim, agarroume a cara entre dois dedos e apertouma com uma força terrível levantandoma à altura da sua e forçandome a descerrar os dentes.
Agradece ao teu Deus o seres uma mulher! disseme. Continuava a apertarme a cara, obrigandome a fazer uma careta de dor que eu sentia que era feia e ridícula. Enfurecida, pusme de pé, repelio e gritei:
Vaite embora, imbecil!
Ele tornou a meter as mãos nos bolsos, aproximandose ainda mais de mim e olhandome, como sempre, fixamente nos olhos. Tornei a gritar:
Não passas de um imbecil... com os teus músculos... os teus terríveis olhinhos azuis... a tua cabeçorra! Vaite embora! Desaparece, cretino!
“É realmente um imbecil”, pensava eu quando vi que nada dizia, mas que, com um ligeiro sorriso nos seus lábios finos e tortuosos, avançava para mim, olhandome. Corri para o outro lado da mesa, empunhei um ferro de engomar um ferro de alfaiate muito pesado e griteilhe:
Desaparece, cretino, ou atirote com isto ao focinho!
Hesitou um momento e parou. Nesse instante a porta da sala abriuse atrás de mim e Astárito apareceu. Evidentemente que encontrara a porta aberta e entrara. Volteime para ele e disselhe:
Dizlhe que se vá embora... Não sei o que me quer... Dizlhe que se vá embora!
Não sei porquê, mas senti um grande prazer ao notar a elegância de Astárito. Vestia um sobretudo cinzento, que parecia novo, e uma camisa com riscas encarnadas sobre fundo branco que parecia de seda. Uma bonita gravata cinzentoprata e um fato azul. Olhoume, enquanto eu brandia o ferro, fixou Sonzogne e disse com voz tranquila:
Esta menina dissete que te fosses embora... porque esperas?
Esta menina e eu respondeu Sonzogne, em voz baixa , temos várias coisas a dizer e é melhor que o senhor desapareça.
Astárito, ao entrar, tirara o chapéu, um feltro preto debruado de seda. Sem pressa colocouo sobre a mesa e avançou até à frente de Sonzogne. A sua atitude deixavame estupefacta. Um brilho combativo parecia cintilar nos seus olhos negros e melancólicos. A sua boca, que era grande, alargouse ainda mais num sorriso de satisfação e desafio. Mostrava os dentes. Disse martelando as sílabas:
Ah! Não queres ir? Pois bem! Eu, pelo contrário, digote que vás, e o mais depressa possível!
O outro abanou a cabeça em sinal negativo, mas, com grande admiração minha, recuou. Astárito deu um passo em frente. Estavam agora um em frente do outro, os dois quase da mesma altura.
Vamos lá a saber! Quem és tu? disselhe Astárito sempre com o mesmo ricto. O teu nome! E depressa!
O outro não respondeu.
Não queres dizer, hem? insistiu Astárito num tom quase voluptuoso, como se o silêncio de Sonzogne lhe desse prazer. Não queres dizer e não te queres ir embora... É isto?
Esperou um momento, depois levantou a mão e esbofeteou Sonzogne, primeiro numa face, depois na outra. Eu mordi o pulso. “Sonzogne matao!”, pensava fechando os olhos. Mas ouvi a voz de Astárito, que dizia:
E agora desaparece! Quanto mais depressa melhor!
Abri os olhos e vi Astárito empurrar Sonzogne para a porta, segurandoo pela gola. Sonzogne tinha ainda as faces encarnadas e inchadas, mas parecia não resistir. Deixavase levar como se pensasse noutra coisa. Astárito arrastouo para a porta da sala, depois ouvi fechar a porta com violência e Astárito reapareceu na sala.
Mas quem é? perguntoume tirando maquinalmente um grão de poeira da banda do sobretudo e olhandose como se receasse ter comprometido a sua elegância pelo esforço violento que acabara de fazer.
Nunca soube o seu nome todo. Só sei que se chama Carlos.
Carlos! repetiu abanando a cabeça.
Depois aproximouse de mim. Eu estava no vão da janela e olhava através dos vidros. Astárito passoume o braço à volta da cintura e perguntoume num tom de voz já mudado E tu como vais?
Bem, obrigada respondi sem o olhar.
Foi ele quem me olhou fixamente, depois apertoume com força contra ele, sem dizer nada. Repelio docemente e disselhe:
Foste bem gentil comigo. Telefoneite para te pedir outro favor.
Diz.
Continuava a olharme e parecia nem sequer ouvirme.
Aquele rapaz que tu interrogaste... comecei eu.
Ah! Sim! interrompeu fazendo uma careta. Ainda esse! Não se revelou um herói.
Tive curiosidade de saber a verdade sobre o interrogatório de Jaime.
Porquê? Ele teve medo?
Astárito abanou a cabeça.
Não sei se teve medo respondeume , o que é certo é que à primeira pergunta disse logo tudo. Se ele tivesse negado, eu nada teria podido fazer... Nenhuma prova havia.
“Então”, pensava eu, “passouse tudo como Jaime me contou. Uma espécie de brusca ausência, como se se tivesse afundado, sem razão, sem que o provocassem”.
Bem! continuei. Suponho que escreveram aquilo que ele disse. Queria que tu fizesses desaparecer aquilo que ficou escrito.
Foi ele quem te pediu, hem? troçou.
Não, sou eu quem pede! respondi.
E jureilho solenemente:
Eu morra agora mesmo se não é verdade!
Todos querem ver os processos desaparecer declarou ele. Os arquivos da polícia e o seu peso da consciência. Desaparecido o processo, não há mais remorsos!
Lembreime de Jaime e respondilhe:
Isso poderá ser verdade! Mas desta vez receio bem que te enganes!
Puxoume outra vez, apertando o meu ventre contra o seu; e perguntoume, todo trêmulo e balbuciante:
E tu em troca que me dás?
- Nada respondi-lhe simplesmente. Desta vez, absolutamente nada.
E se eu recusasse?
Davasme um grande desgosto porque amo esse homem, e tudo o que lhe acontece é como se acontecesse a mim.
Mas não me tinhas dito que serias gentil comigo?
Tinha... mas mudei de ideias.
Porquê?
Porque sim.
Estreitoume de novo, e falandome ao ouvido e gaguejando, suplicoume que cedesse ao seu desejo desesperado, nem que fosse pela última vez. Não saberei repetir as coisas que ele me disse, porque, misturadas com as suas súplicas, proferia enormidades que eu não desejaria escrever, das que se dizem às mulheres como eu e que as mulheres como eu dizem aos seus amantes. Ele diziaas com uma precisão meticulosa, mas sem a alegria maliciosa que acompanha habitualmente estas efusões; antes com uma sombra de prazer obcecado. Vi uma vez, num asilo, um doido descrever ao enfermeiro as torturas que lhe infligiria se lhe caísse nas mãos no mesmo tom fanfarrão, mas grave e escrupuloso que tinha Astárito para me sussurrar estas obscenidades. Na realidade o que ele me descrevia desta maneira era o seu amor, ao mesmo tempo sombrio e luminoso, que poderia parecer simples deboche, mas que eu sabia profundo, completo, e à sua maneira tão puro como qualquer outro. Como sempre, inspiravame sobretudo pena, por causa da solidão que eu sentia no fundo de todas estas enormidades. Deixeio acabar as suas efusões; depois declareilhe:
Não te queria dizer, mas tu obrigasme a isso... Faz como quiseres, mas eu não quero voltar a ser o que era dantes... Estou grávida.
Não ficou admirado e não abandonou a ideia fixa:
Bem? disse. E depois?
Revelaralhe o meu estado primeiro que tudo para o consolar da minha recusa. Mas enquanto lho dizia apercebime de que dissera realmente o que pensava e que as minhas palavras vinham do coração. Acrescentei com um suspiro:
Já, antes de te conhecer, eu queria casar... não foi por culpa minha que o não fiz.
Ele conservara o braço à roda da minha cintura, mas já não me apertava. Afastouse de mim e gritou:
Maldito seja o dia em que te encontrei!
Porquê, se me amaste?
Cuspiu de lado e disse ainda:
Maldito o dia em que te encontrei e maldito o dia em que nasci!
Não gritava agora, nem parecia traduzir um sentimento violento; falava com calma e com convicção.
O teu amigo nada tem a recear acrescentou. Nenhum interrogatório foi escrito. Não anotaram qualquer das suas informações... Continua a figurar como um político perigoso. Adeus, Adriana.
Tinha ficado ao pé da janela: disselhe adeus vendoo afastarse. Pegou no chapéu e afastouse sem olhar para trás.
Logo a porta de comunicação do meu quarto com a cozinha se abriu e Jaime entrou com o revólver na mão. Olhavao espantada, vazia, sem forças, muda.
Tinha decidido matar Astárito disseme com um sorriso. Julgas que realmente me interessava que o meu processo desaparecesse?
E porque não o fizeste? perguntei como num sonho.
Ele abanou a cabeça.
Ele amaldiçoou tanto o dia em que nasceu! Deixemolo amaldiçoálo ainda durante mais alguns anos.
Sentia qualquer coisa que me angustiava, mas não conseguia compreender o que era.
Em todo o caso, consegui aquilo que queria. Não há nenhum processo.
Ouvi, ouvi interrompeume. Ouvi tudo; estava atrás da porta e a porta estava aberta... Também vi que é corajoso o teu Astárito acrescentou negligentemente. - Pan! Pan! Que duas estaladas magistrais aplicou no Sonzogne! Mesmo para dar bofetadas é preciso categoria. Estas eram verdadeiramente de um superior para um inferior, de um patrão; de alguém que se julga patrão, a um servidor. E como Sonzogne as recebeu! Nem piou!
Jaime ria enquanto guardava o revólver na algibeira.
Fiquei um pouco desconcertada com o elogio que ele fazia a Astárito. Pergunteilhe com uma certa hesitação:
Que julgas que Sonzogne vai fazer?
Como queres que saiba?
Era quase noite, a sala estava mergulhada na penumbra. Jaime inclinouse sobre a mesa, acendeu o candeeiro de suspensão e tudo ficou escuro à volta da luz. Em cima da mesa estavam os óculos de minha mãe e as cartas com as quais ela fazia paciências. Jaime sentouse, agarrouas e baralhouas. Depois disseme:
Queres jogar uma partida enquanto esperamos pelo jantar?
Que ideia! gritei. Uma partida?
Sim... uma partida de bisca... vá, anda!
Obedeci, senteime ao seu lado e segurei maquinalmente nas cartas que ele me estendia. Tinha a cabeça atordoada e as mãos tremiamme, não sei porquê. Comecei a jogar. As figuras pareciamme ter um carácter maldoso, pouco seguro: o valete de paus sombrio e sinistro com o olho negro e a flor negra na mão; a rainha de copas luxuriante; o rei de ouros frio, impassível, inumano. Jogando, tinha a impressão de que jogávamos qualquer coisa importante, mas não sabia o quê. Sentiame mortalmente triste. De quando em quando soltava um ligeiro suspiro, para ver se aliviava o peso que sentia no peito e que mo oprimia.
Ele ganhou o primeiro jogo, depois o segundo.
Mas que tens? perguntoume baralhando as cartas. Tu jogas francamente mal.
Larguei as cartas e disselhe:
Não me atormentes assim, Jaime! Não tenho disposição para jogar.
Porquê?
Não sei.
Levanteime e dei alguns passos pela sala, torcendo as mãos. Depois pergunteilhe:
Vamos para o quarto? Queres?
Vamos.
Passamos para o vestíbulo e ali no escuro agarroume pela cintura e beijoume no pescoço. Então, talvez pela primeira vez na vida, considerei o amor como ele o considerava: um meio de se aturdir e de não pensar, nem mais agradável nem mais importante que qualquer outro meio. Segureilhe a cabeça entre as mãos e beijeio furiosamente. Foi assim que entrámos no quarto. Estava mergulhado na escuridão, mas eu nem dei por isso. Uma sombra vermelha empalideciame os olhos; cada um dos nossos gestos tinha o brilho de uma língua de fogo, brusca e rápida, do incêndio que nos devorava.
De repente encontrei-me estendida na cama, com a luz da lâmpada reflectindose sobre o meu ventre nu. Fechei as coxas, talvez por causa do frio, talvez por vergonha, e tapeime com as duas mãos. Jaime olhou e disseme:
Bem depressa a tua barriga inchará... inchará cada dia mais... um dia a dor obrigarteá a abrir essas pernas que tu fechas tão ciosamente e a cabeça da criança, já coberta de cabelos, sairá, tu a empurrarás para a luz, agarrálaão e depois irão pôla nos teus braços... ficarás contente e haverá mais um novo ser neste mundo... Esperemos que ele não venha a falar vomo Astárito!
Como?
“Maldito seja o dia em que nasci!”
Astárito é um desgraçado respondi , mas eu tenho a convicção plena de que o meu filho terá sorte e será feliz.
Depois enroleime na roupa e julgo que dormi. Mas o nome de Astárito tinha reavivado o sentimento de angústia que eu já sentira depois de o ver partir. De repente ouvi uma voz que eu não conhecia gritarme com força aos ouvidos: “Pan! Pan!”, como quando se quer imitar dois tiros de revólver; e sem sair da cama dei um salto com um movimento de susto e de angústia. A lâmpada estava ainda acesa; desci da cama e fui à porta para me certificar de que estava bem fechada. Mas vi Jaime, que fumava, de pé, ao pé da porta. Confusa, voltei para a cama, senteime dentro da roupa e perguntei:
Que diz que irá fazer o Sonzogne?
Olhoume e respondeu:
Como poderei saber?
Eu conheçoo disse eu exprimindo por fim, por palavras, a angústia que me oprimia. Não quer dizer o ter consentido que o pusessem fora da sala sem protestar. É capaz de o matar. Que julgas tu?
É muito possível.
Pensas que o vai matar?
Se o fizesse não me admiraria.
E preciso avisálo! gritei levantandome e vestindome. Tenho a certeza de que o vai matar! Ah! Mas porque não pensei nisto mais cedo?
Vestiame a pressa falando sempre do meu receio, do meu pressentimento. Jaime, calado, fumava. Disselhe:
Vou a casa de Astárito... A esta hora está em casa... Esperame aqui.
Vou contigo.
Não insisti. No fundo agradavame que me acompanhasse, porque estava tão agitada que receava sentirme mal. Enfiei o casaco e declarei:
É preciso apanhar um táxi.
Jaime vestiu o sobretudo e saímos.
Na rua comecei a andar rapidamente, quase a correr, enquanto Jaime, sem me largar o braço, me seguia. Encontramos logo um táxi; gritei a direcção de Astárito. Era uma rua no bairro Prati; nunca lá tinha ido, mas sabia que não era longe do Palácio da Justiça. O táxi arrancou. Fora de mim, segui o percurso curvandome, para observar as ruas, sobre o ombro do chauffeur. A certa altura ouvi Jaime rir baixinho, e, como se falasse consigo, pronunciar:
E depois! Uma serpente engoliu outra serpente.
Não lhe prestei atenção. Quando chegávamos em frente do Palácio da Justiça mandei parar e Jaime pagou. Atravessámos as ruas por entre alas de saibro, entre os bancos e as árvores. A rua de Astárito surgiu na minha frente como uma espada: longa e direita, iluminada a todo o comprimento por uma longa fila de candeeiros brancos. Era uma rua ladeada de edifícios regulares e maciços, sem lojas, e que parecia deserta. Astárito morava no fim da rua. Reinava uma tal tranquilidade que eu declarei:
É possível que eu não tenha feito outra coisa que imaginar tudo isto... Fosse como fosse era meu dever vir.
Passamos três ou quatro prédios e várias ruas transversais. Então Jaime disseme com uma voz tranquila:
Deve ter acontecido alguma coisa... olha.
Levantei os olhos e a pouca distância vi um ajuntamento em frente de uma porta. Um cordão de gente alinhavase no passeio fronteiro; olhavam para cima, na direcção do céu sombrio. Senti logo a certeza de que estavam em frente da porta de Astárito. Comecei a correr; tive a impressão de que Jaime corria também.
Que há aqui? O que aconteceu? perguntei, sem fôlego. aos primeiros que estavam no grupo que se comprimia diante da porta de Astárito.
Não se percebe bem respondeu aquele a quem me dirigi, um homem louro, sem casaco, sem chapéu, que segurava a bicicleta pelo guiador , foi alguém que se atirou para a caixa da escada... ou atiraramno. A polícia subiu ao telhado para investigar o caso.
Abri caminho por entre a multidão, e à força de cotoveladas penetrei no hall da casa, que era espaçoso, bem iluminado e estava cheio de gente. Uma escada branca com corrimão de ferro forjado subia formando uma larga curva por cima de todas essas cabeças. Quando consegui chegar à frente, vi por entre todos aqueles ombros uma parte do patamar inferior da escada. Um pilar redondo de mármore branco suportava uma estátua de bronze dourado, alada e nua, com um braço levantado segurando um facho que continha uma lâmpada. Mesmo debaixo do pilar estava um corpo humano coberto com um lençol. Toda a gente olhava para o mesmo lado; olhei também e vi um pé calçado de preto que saía do lençol. No mesmo instante uma voz começou a gritar imperiosamente.
Para trás! Vãose embora!
Sentime projectada com violência para a rua, juntamente com os outros. Os altos batentes da porta fecharamse logo em seguida. Disse com voz apagada a quem estava atrás de mim:
Jaime, vamos!
Vi então uma pessoa desconhecida que, admirada, me olhava. Depois de terem em vão protestado em voz alta e batido com os punhos na porta fechada, as pessoas dispersaramse pelas ruas fazendo comentários: Outras chegavam de todos os lados correndo. Dois automóveis e um bom número de bicicletas pararam para se informarem. Comecei a girar por entre esta multidão com ansiedade cruciante e a olhar todas estas caras sem ousar falar. Certas nucas, certos ombros, pareciamme os de Jaime; enfiavame impetuosamente pelo meio de grupos e via um grande número de pessoas que me olhava com surpresa. Havia muita gente em frente da porta; eles sabiam que ela escondia um cadáver e tinham esperança de o poder ver. Lá estavam, apertados, com uma expressão paciente e grave, como as bichas à porta dos teatros.
Continuava a errar ainda quando me apercebi que já tinha examinado toda a gente e que tornava a ver sempre as mesmas pessoas. Pareceume ouvir, num destes grupos, o nome de Astárito e notei que não me preocupava com ele, mas que toda a minha angústia se concentrava em Jaime. Acabei por me convencer de que já lá não estava. Devia terse afastado no momento em que penetrei no hall. Pareceume, não sei porquê, que deveria ter esperado esta fuga; admiravame de não ter pensado nisto mais cedo. Apelando para todas as minhas forças, arrasteime até praça, subi para um táxi e dei a direcção da minha casa. Pensava que Jaime me podia ter perdido de vista e ter voltado para casa. Mas tinha quase a certeza de que nada disso acontecera.
Não estava em casa e não voltou nem nessa noite nem no dia seguinte. Fiquei fechada no quarto, presa de um malestar tão angustiante que não podia deixar de tremer da cabeça aos pés. Mas não tinha febre. Pareciame apenas que vivia fora de mim própria, num mundo anormal, excessivo, onde todo o espectáculo, todo o ruído, todo o contacto me feriam e me produziam desfalecimentos de coração. Nada me podia impedir de pensar em Jaime, nem mesmo a descrição em pormenor do novo crime de Sonzogne, que os jornais que minha mãe tinha comprado traziam em grandes letras. O crime tinha a assinatura de Sonzogne; parecia que os dois homens tinham lutado por momentos sobre o patamar em frente da porta de Astárito, depois Sonzogne tinhao empurrado contra o corrimão, levantarao e atirarao pela caixa da escada. Esta crueldade era extraordinariamente expressiva; mais ninguém a não ser Sonzogne poderia matar um homem desta maneira. Mas, como já disse, tinha uma única ideia e nem mesmo cheguei a interessarme pelos artigos que contavam como mais tarde, durante a noite. Sonzogne fora morto a tiro enquanto fugia pelos telhados como um gato. Experimentava uma espécie de náusea por tudo o que não dissesse respeito a Jaime, e ao mesmo tempo pensar nele enchiame de uma angústia insuportável. Por duas ou três vezes recordei Astárito; lembravame do seu amor por mim e da sua melancolia com um sentimento de piedade tão forte como impotente; se não sentisse esta angústia por causa de Jaime teria com certeza chorado e rezado por esta alma, que nenhuma luz tinha alegrado e que fora separada do corpo de uma forma tão prematura e tão desumana. Foi assim que passei este primeiro dia, a noite, o dia seguinte e a outra noite. Estendida na cama ou sentada numa cadeira, apertava com força entre as mãos um casaco de Jaime, que encontrara pendurado no bengaleiro, e beijavao de vez em quando com paixão, ou mordiao para refrear a minha grande inquietação. Mesmo quando minha mãe me obrigava a tomar algum alimento, comia com uma das mãos e com a outra apertava convulsivamente o casaco. A segunda noite minha mãe quis deitarme; deixeime despir sem oferecer resistência. Mas quando tentou tirarme o casaco, dei um grito de tal maneira aflitivo que minha mãe se assustou. Ela nada sabia, mas compreendeu vagamente que me desesperava com a ausência de Jaime.
Ao terceiro dia tive uma ideia e toda a manhã me agarrei a ela com obstinação, se bem que compreendesse que não tinha muito fundamento. Pensava que Jaime se assustara ao saber que eu estava grávida, que quisera fugir às obrigações que lhe impunham o meu estado e que se refugiara em sua casa, na província. Era uma vil suposição: mas preferia imaginar uma cobardia sua a admitir outra hipóteses tão tristes, sugeridas pelas circunstâncias que tinham acompanhado a sua desaparição.
Nesse mesmo dia, à tarde, minha mãe entrou no meu quarto e atiroume para cima da cama uma carta. Reconheci a letra de Jaime e senti uma grande alegria. Esperei primeiro que minha mãe saísse, depois que me passasse a perturbação que me assaltara. Em seguida abri a carta. Eila completa :
“Querida Adriana:
No momento em que receberes esta carta estarei já morto. Quando abri o meu revólver e não encontrei as balas compreendi logo que tinhas sido tu quem o esvaziara e pensei em ti com grande amizade. Pobre Adriana, tu não conheces as armas, não sabias que há uma bala no cano! O facto de não te terás apercebido disso reforçou a minha resolução. Aliás há tantas maneiras de se matar! Como te disse não posso aceitar o que fiz. Senti nestes últimos dias que te amava; mas, se eu fosse lógico, deveria odiarte, porque tudo o que odeio em mim, e que o meu interrogatório me revelou, existe em ti no mais alto grau.
Na realidade, naquele momento, foi a personagem que eu deveria ter sido quem baqueou; fui unicamente o homem que sou. Não houve da minha parte nem cobardia, nem traição, mas somente uma misteriosa interrupção da vontade. Não talvez completamente misteriosa, mas o bastante para vir a conduzirme longe de mais. Bastame dizer que matandome, reponho as coisas no seu devido lugar. Não tenhas medo, não te odeio; pelo contrário, amote a tal ponto que o simples facto de pensar em ti chega para me reconciliar com a vida. Se isso fosse possível, com certeza que viveria, casaria contigo e seríamos felizes, como tu o dizias tantas vezes. Mas realmente não era possível. Pensei na criança que vai nascer e escrevi nesse sentido duas cartas: uma à minha família e outra a um advogado meu amigo. Apesar de tudo, os meus são boa gente e, se bem que não se possa ter ilusões sobre os sentimentos deles a teu respeito, estou convencido de que cumprirão o seu dever. No caso improvável de se recusarem a fazêlo, não deves hesitar em servirte da lei. Este amigo advogado irá procurarte e podes confiar nele. Pensa algumas vezes em mim.
Beijate Teu Jaime
Quando acabei de ler esta carta enfieime debaixo da roupa, enrolei a cabeça nos lençóis e chorei lágrimas ardentes. Não saberei dizer por quanto tempo chorei. De cada vez que julgava ter acabado, uma espécie de amarga e violenta derrocada se produzia no meu peito e rompia de novo em soluços. Não gritava, como sentia desejos de o fazer, para não chamar a atenção da minha mãe. Chorava em silêncio, sentindo que era a última vez na minha vida que chorava. Chorava por Jaime, por mim própria, pelo meu passado e pelo meu futuro.
Em seguida, sem deixar de chorar, levanteime e, atordoada. com a vista nublada de lágrimas, vestime à pressa. Lavei os olhos com água fria e pintei ao acaso a cara vermelha e inchada e sai sem que a minha mãe me visse.
Corri ao comissariado do bairro e pedi para ser recebida pelo comissário. Ouviu a minha história e disseme com ar céptico :
Para dizer a verdade de nada temos conhecimento. Vai ver que ele deve terse arrependido.
Desejava que ele tivesse razão. Mas ao mesmo tempo, sem saber porquê, senti uma grande irritação:
Se fala assim é porque não o conhecia disselhe com dureza. Julga que toda a gente é como o senhor!
Mas em suma perguntoume pensa que ele está vivo ou morto?
Eu quero que ele viva! Quero que ele viva! Mas receio bem que esteja morto!
Reflectiu por um momento e depois disseme:
Acalmese. No momento em que escreveu essa carta tinha toda a intenção de se matar... Depois é possível que se tenha arrependido... É humano... pode acontecer a toda a gente.
Sim, é humano balbuciei.
Não sabia o que dizia.
Seja como for, volto esta noite concluiu. Esta noite já lhe poderei dizer qualquer coisa.
Do comissariado fui direita à igreja. Era a igreja onde eu fora baptizada, onde tinha feito a primeira comunhão e onde fora crismada. Uma velha igreja, comprida e nua, com duas alas de colunas de pedra bruta e o chão de mosaicos poeirentos. Ao fundo abriamse três capelas muito ricas e muito douradas, como grutas profundas cheias de tesouros. Uma dessas capelas era consagrada à Virgem. Ajoelheime na penumbra, sobre o mosaico, em frente da grade de bronze que fechava a capela. A Virgem estava num grande altar, em frente do qual havia muitos vasos cheios de flores. Ela segurava o Menino nos braços; a seus pés um santo com hábito de monge adoravaO de joelhos, com as mãos postas. Prostreime e bati com força com a testa no solo de pedra. Cobrindo o chão de beijos em forma de cruz, invoquei a Virgem e pronunciei mentalmente um voto. Prometi que nunca mais na minha vida se aproximaria de mim nenhum homem, nem mesmo Jaime; o amor era a única coisa no mundo que me fazia falta e de que eu gostava: pareciame que não poderia fazer pela salvação de Jaime um sacrifício maior. Depois, sempre prostrada, a fronte contra a laje, rezei sem palavras, durante muito tempo, apenas com a grande força do meu coração dolorido. Mas quando me levantei tive como que um deslumbramento; pareceume que uma brusca claridade envolvia a capela e afastava a espessa sombra em que estava mergulhada; e, nessa claridade, indistintamente a Virgem olharme com doçura e bondade, mas ao mesmo tempo fazerme com a cabeça sinal que não, como para me indicar que não aceitava a minha promessa. Foi coisa de um instante; em seguida encontreime de pé junto da grade, em frente do altar. Mais morta que viva, fiz o sinal da cruz e voltei para casa.
Esperei o dia todo, contando os minutos e os segundos. À tardinha voltei ao comissariado. O comissário olhoume de uma maneira estranha; meio desfalecida pergunteilhe com um fio de voz:
Então? É verdade? Matouse?
Ele agarrou uma fotografia que estava em cima da mesa, estendeuma e disse:
Um individuo não identificado matouse de facto, num hotel, próximo da gare. Veja se é ele.
Peguei na fotografia e reconhecio logo. Tinhamno fotografado da cintura para cima, estendido sobre a cama. segundo me pareceu. Da têmpora, que a bala furara, numerosos fios de sangue negro ralavamlhe a cara. Mas apesar disso o seu rosto tinha uma expressão de tão completa serenidade como nunca tivera em vida.
Disse com voz apagada que era ele e levanteime. O comissário quis ainda falar, talvez para me consolar. Nem o ouvi e saí sem olhar para trás.
Fui para casa e desta vez atireime para os braços de minha mãe, mas sem chorar. Sabia que ela era estúpida e nada compreendia; ela era a única pessoa a quem eu podia confiar o meu desgosto. Conteilhe tudo: o suicídio de Jaime, o nosso amor e que eu estava grávida. Mas não lhe disse que o pai de meu filho era Sonzogne. Faleilhe também da minha promessa e disselhe que tinha decidido mudar de vida, que voltaria a fazer camisas, com ela, ou que me empregaria como criada. Depois de tentar consolarme por meio de uma quantidade de frases parvas mas sinceras, minha mãe disse que não valia a pena precipitarme: por agora era necessário ver o que faria a família de Jaime.
Isso respondilhe é uma coisa que diz respeito ao meu filho e não a mim.
No dia seguinte de manhã os dois amigos de Jaime, Túlio e Tomás, apareceramme de maneira inesperada. Também eles tinham recebido uma carta, na qual, depois de lhes anunciar que se matava, Jaime advertiaos daquilo a que chamava “a sua traição” e punhaos em guarda contra as consequências do seu acto.
Não tenham medo disselhes eu duramente , se estão com medo podem ficar descansados. Nada vos acontecerá.
E conteilhes a história de Astárito, dizendolhes que Astárito, o único que tomara conhecimento das declarações de Jaime, estava morto, que o interrogatório não fora transcrito e que não tinham sido denunciados. Pareceume que Tomás estava sinceramente desgostoso com a morte de Jaime, mas que o outro ainda não estava refeito do susto que apanhara. Passado um momento, Túlio declaroume:
De qualquer maneira ele meteunos num sarilho... quem pode confiar na polícia? Nunca se sabe! É na verdade uma traição!
E esfregava as mãos emitindo uma das suas enormes gargalhadas habituais, como se a coisa fosse realmente cômica.
Levanteime indignada :
Como uma traição? Como? Ele matouse; que mais querem? Nenhum de vocês teria coragem para fazer o mesmo! E depois é preciso que vos diga uma coisa: a vossa traição não vos traria mérito algum, porque vocês não passam de dois pobresdiabos, dois miseráveis, que nunca tiveram um tostão, filhos de desgraçados, pobres camponeses, e se as coisas tivessem corrido bem acabariam por ter aquilo que nunca tiveram e conheceriam uma vida regalada, vocês e as vossas famílias. Mas ele tinha dinheiro; era de boa família; era um senhor; se andava metido nisso era porque acreditava e esperava qualquer coisa de melhor para todos. Ele sim, que tinha tudo a perder, ao passo que vocês tinham tudo a ganhar!... Era isto que eu tinha para lhes dizer... E vocês deviam ter vergonha de me vir falar em traição!
- E tu... - abriu a sua enorme boca para me responder; mas o outro, que me compreendera, fezlhe um gesto para que se calasse e disseme:
- Tem razão, mas esteja descansada. Por mim, nunca pensarei senão bem de Jaime.
Parecia comovido e simpatizei com ele porque se via que era de facto amigo de Jaime. Cumprimentaramme e retiraramse.
Quando fiquei só senti um grande alívio pelas palavras que dissera a estes dois homens. Pensei em Jaime, depois no meu filho. Sabia que iria nascer de um assassino e de uma prostituta. Mas pode acontecer a qualquer homem ter de matar, a qualquer mulher darse por dinheiro; o importante era que viesse ao mundo em bom estado e fosse vigoroso e saudável. Decidi, se fosse um rapaz, que se chamaria Jaime, em memória do meu amado. Mas se fosse uma rapariga, chamarseia Letícia, porque queria que a sua vida fosse, ao contrário da minha, alegre e feliz; e tinha a certeza de que com a ajuda da família de Jaime ela teria essa vida.
Alberto Moravia
O melhor da literatura para todos os gostos e idades