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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ROSA DE IORQUE / Juliette Benzoni
A ROSA DE IORQUE / Juliette Benzoni

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Quando o príncipe Aldo Morosini, especialista em pedras preciosas antigas, encontrou Simon Aronov, cognominado o Judeu de Varsóvia, não estava à espera da missão que esta misteriosa personagem lhe confiaria: encontrar as quatro pedras em falta no Peitoral do Supremo Sacerdote do Templo de Jerusalém, uma placa em ouro onde se encastoavam doze pedras preciosas. Ora segundo diz a tradição, Israel só poderá reencontrar a sua terra ancestral quando o Peitoral lá tiver regressado na sua íntegra.

Depois de ter descoberto a primeira das pedras, a Estrela Azul, o príncipe parte para Inglaterra, onde julga que se encontra a segunda, a Rosa de Iorque.

Nesta demanda repleta de armadilhas, antes de chegar ao fim da sua procura, Aldo Morosini passará de surpresas a desencorajamentos, de alegrias a decepções, descobrindo que a alma feminina é ainda mais misteriosa e imprevisível do que as ruelas sórdidas das docas de Londres.

Neste segundo volume da saga O Judeu de Varsóvia, Juliette Benzoni leva-nos à procura desse fabuloso diamante que é a Rosa de Iorque.

 

 

 

 

                                    OS NEVOEIROS DE LONDRES

 

                   CAPÍTULO 1 - OS HERDEIROS

Ficava no fim do mundo, ou quase...

Era ali que acabavam as terras altas da Escócia, onde jorravam as águas perigosas, turbulentas e sempre diferentes, agitadas pelas pérfidas correntes do Pentland Firth. Além, no que era o último bastião antes da imensidão dos mares árcticos que se estendiam até ao pólo, existiam apenas os torvelinhos nevoentos que envolviam as ilhas Orkney e, ainda mais longe, as ilhas Shetland, povoadas por carneiros de cabeça preta. Os habitantes dos dois arquipélagos conservavam o sangue e as tradições viquings, mas pertenciam contudo à Grã-Bretanha, que serviam com fidelidade, mesmo que se sentissem mais ligados à Noruega pelas suas raízes, país ao qual tinham pertencido durante séculos.

Encostado a uma muralha meio em ruínas de uma torre de vigia, Aldo Morosini contemplava a paisagem marítima, selvagem e grandiosa, esforçando-se por conter a sua emoção: fundeado no meio da baía, o Robert-Bruce estava em vias de separar-se para sempre do seu velho mestre, lorde Killrenan, assassinado alguns meses antes no Egipto, acabando de trazê-lo de volta à sua terra ancestral. O apito do comandante da tripulação anunciava a partida do capitão, enquanto os marinheiros desciam o pesado caixão num bote encostado ao comprido casco do navio.

Quando a embarcação se afastou, a sirene do navio retomou a transmissão. Os remos mergulharam ao mesmo ritmo e o bote dirigiu-se para a margem onde o esperava uma pequena multidão em redor de um pastor e da família. Esta era muito reduzida: no total perfazia apenas seis pessoas, especadas num luto convencional, com ares apropriados à circunstância e nas quais não se descortinava nenhuma lágrima.

Que fossem filhos da única irmã do defunto - pelo menos três de entre eles, pois as outras pessoas eram as esposas! - isso em nada influenciava o facto de não sentirem qualquer tristeza: tratavam-se dos herdeiros e era tudo. E foi também por esse motivo que Morosini preferiu manter-se à distância. Só se aproximaria dessa gente o mais tarde possível, pois a tristeza dele, essa era bem real: ele gostara do velho marinheiro ao qual não o ligava contudo nenhum laço de sangue. No entanto, sir Andrew fora durante vários anos o apaixonado discreto e fervoroso da princesa Isabel, sua mãe, também ela falecida.

Quando esta enviuvara, afoitou-se ao ponto de propor-lhe que se tornasse condessa de Killrenan, mas Isabel de Montlaure, princesa Morosini, era mulher de um só amor. Aliás, como o próprio Killrenan, que nunca se casou, optando por tornar-se o eterno viajante de todos os oceanos do mundo. Não obstante, volta e meia o seu iate lançava ferro em Veneza, na baía de São Marcos, para que ele viesse entregar um enorme ramo de flores, especiarias raras ou requintadas guloseimas que trouxera das suas viagens, numa homenagem pela sua fidelidade. Colocava sempre a mesma pergunta, recebia a mesma resposta e voltava a partir sem se desencorajar. Voltavam a vê-lo dois ou três anos mais tarde, com alguns cabelos a menos e algumas rugas a mais, mas sempre com o mesmo amor no coração.

Apenas uma vez, a última, o devoto de Isabel tentou que ela aceitasse uma dádiva inabitual, um objecto extraordinário e carregado de história: um bracelete de esmeraldas e safiras que o imperador Shah Jahan oferecera outrora à sua esposa bem-amada, Mumtaz Mahal, para a qual haveria de mandar construir um dia o Taj Mahal, talvez o mais belo túmulo de toda a História.

Um pouco nesciamente, sem dúvida, sir Andrew esperava fazer esquecer o valor do presente que via apenas como uma homenagem e um símbolo de fidelidade eterna, mas enganava-se: a viúva de Enrico Morosini recusara-o. Foi por isso que três anos depois, Killrenan encarregou Aldo - que entretanto se tornara antiquário e especialista em pedras preciosas - de vender o bracelete, mas sob uma condição formal: a jóia nunca poderia passar para as mãos de qualquer súbdito britânico, homem ou mulher... Quanto a ele, regressara ao mar.

Na altura Morosini pensou que esta interdição era apenas uma mania e não a compreendeu. Só se fez luz no seu espírito depois de ter encontrado uma das sobrinhas, por afinidade, do velho homem. Encantadora, elegante, mas um nada inquietante, Mary Saint Albans alojava na sua cabecinha gananciosa uma paixão devoradora, quase patológica, pelas pedras preciosas. Aquando de um prestigioso leilão no hotel Druout em Paris, ele pudera vê-la perder todo o domínio sobre si mesma por não ter conseguido vencer um Rothschild no jogo dos lanços. E quando ela o fora visitar a Veneza, quase se ajoelhara diante dele para que lhe cedesse o famoso bracelete, persuadida que estava - e com razão! - que o tio Killrenan lho tinha confiado. É claro que não obteve qualquer resultado.

Para se desembaraçar da jovem, o príncipe-antiquário esforçou-se por persuadi-la que lorde Killrenan nada lhe entregara, preferindo sem dúvida guardar consigo a sua prova de amor, levando-a naquela viagem à volta do mundo que ele empreendera sem verdadeira intenção de regressar. Talvez contasse deixá-la nas índias, o seu país de origem.

Infelizmente sir Andrew não fora mais além que Port-Said, onde o esperava um ladrão desdobrado em assassino imbecil, que lhe pilhara a cabina. Um fim sinistro e até sórdido para um homem tão apaixonado pela imensidão e pela munificência!

Era nisto que Aldo pensava, enquanto, lá em baixo, na margem, os quatro marinheiros mais robustos do Robert-Bruce - auxiliados por quatro outros vigorosos habitantes locais, de joelhos nodosos sob o kilt verde, vermelho e preto - colocavam aos ombros o pesado caixão de cedro para transportá-lo até à cripta da sua antiga residência senhorial. Nessa altura, dois músicos de gaitas-de-foles, vestidos à maneira tradicional, levaram os instrumentos à boca, cujos sons estridentes prolongaram o da sirene do navio. Encabeçaram o cortejo, que os seguiu. O observador solitário limitou-se a vê-los chegar, arrastando atrás todas aquelas pessoas, cujos pés faziam rolar os pedregulhos do caminho. A subida até ao castelo era dura, mas condizia com este, pois era constituída por pedras tão duras quanto ele, por vezes talhadas em forma de degraus desgastados que pareciam deslizar das suas muralhas severas.

Killrenan Castle era uma torre quadrada, alta e impressionante, um keep(1) erguido no séc. xii, que parecia partir ao assalto das terras altas e que dispunha a seus pés, como se fosse uma matilha deitada, de um conjunto de dependências para a criadagem e de uma capela que, em certos lugares, ainda estavam abrigados pelo recinto interior da fortaleza que outrora os protegera. Agora estava à espera do último dos seus filhos em linhagem directa. Morosini tinha a certeza que aqueles que seguiam os despojos do morto, os sobrinhos, não haveriam certamente de querer tomar posse de um castelo daqueles...

O tempo desse mês de Setembro estava clemente. Amontoados de nuvens desfilavam para leste, deixando entre eles grandes espaços azuis percorridos por feixes de raios luminosos. Para a última viagem de Andrew Killrenan, as terras altas tinham posto o seu mais belo ornamento, por ser o mais frágil, aquele que brevemente as brumas e as neves do Inverno precoce se encarregariam de apagar: uma espantosa sinfonia de cores cambiantes de malva, índigo, violeta e cinzento, onde por vezes despontava o dourado da folhagem, como uma flor preciosa, em tons que iam do amarelo cor de palha ao ruço-profundo.

Quando o cortejo chegou à ponte levadiça meio destroçada e às enormes portas consteladas por pregos de aço, Aldo achou que era altura de se lhe juntar, a fim de assistir à última cerimónia; debruçou-se, então, para agarrar no grande ramalhete de cardos azuis enlaçados com as cores do velho lorde, que deixara rente ao solo, mas uma mão enrugada antecipou-se-lhe, enquanto uma voz um pouco rachada observava:

- Uma boa ideia estes cardos!... O emblema do país, não é? E assenta muito bem no velho Andrew! Talvez possa consolá-lo do facto de ir entregar o nome e a casa àquela gente...

Ao voltar-se, Morosini viu junto ao seu cotovelo um homenzinho de pele enrugada como um pergaminho e de cor terrosa, tão pequeno que a princípio julgou tratar-se de um duende da planície. Trazia um kilt, um sporran(nt), uma faixa em tecido escocês axadrezado e uma boina enfeitada com as cores do clã,

 

*1. Correspondente ao torreão francês.

  1. Sporran - Pequeno saco, usualmente de cabedal ou em pele de foca, que os habitantes das Terras Altas da Escócia utilizavam diante do kilt

 

conjunto que exalava um tal odor a pimenta da Jamaica que demonstrava tratar-se do traje cerimonial que só era retirado do baú por ocasião dos grandes acontecimentos. Depois de espirrar três vezes, o visitante afastou-se de modo a evitar encontrar-se do lado de onde soprava o vento:

- Acha que ele precisa de ser consolado?

- Sem dúvida! Só tinha de ter engendrado os seus próprios herdeiros, ao invés de ter passado três quartos da vida a percorrer os mares. Se tivesse desposado Flora Mac Neil, não estaria agora nesta situação.

- Quem é Flora Mac Neil?

- Aquela que o seu pai, o velho Angus, queria que ele desposasse. Admito de bom-grado que ela não era lá muito bela, mas tinha boa saúde, um belo dote e ter-lhe-ia dado filhos robustos. Ele não a quis, tudo bem, mas não me diga que durante as suas viagens à volta do mundo não poderia ter encontrado alguma rapariga que lhe conviesse...

- Encontrou uma, mas ela não estava livre e, infelizmente, só a amou a ela!

Com um ar desolado, o duende afastou a boina para coçar o colmo cinzento que crescia por baixo:

- Isso é que é azar! Mesmo assim, devia ter pensado na sua descendência. Deve ser uma dura punição, lá onde ele está, a de ter de ver os filhos da defunta Margaret, a sua pobre irmã louca, a trotarem atrás do caixão, para tomarem posse dos seus bens!

- A irmã era doida? - perguntou Morosini, que nem sequer chegara a saber que sir Andrew tivesse um parente tão chegado.

- Não era louca ao ponto de ter de ser internada, mas talvez não estivesse longe disso! É preciso ser-se um pouco apanhada da cabeça para ir enamorar-se de um inglês, ainda por cima magistrado, quando podia escolher entre uma meia dúzia de belos moços cá da terra... Agora, veja o resultado! Esse Desmond Saint Albans, que se torna o sexto conde de Killrenan, parece um pote-de-banha. Tudo o que se possa dizer dele, é que tem um bom alfaiate! E os irmãos parecem-se com ele... numa versão ainda mais frouxa! A sua mulher sim, ela até é bastante bonita, só que não é uma rapariga daqui e isso vê-se logo: olhe só para ela a torcer os pés nas pedras do caminho com os saltos altos! É coisa da cidade! Nunca deve ter vivido sequer um momento no campo! Ah, isto é tudo muito triste!...

O veneziano reteve um sorriso: o velho tinha boa vista! Os encantadores tornozelos de lady Mary, ainda mais apertados por causa das meias de seda preta, corriam efectivamente grandes riscos a cada passo que dava, obrigando-a a autênticos prodígios de equilíbrio. Agarrava-se ao braço do "pote-de-banha", visivelmente aborrecido por ser obrigado a sustê-la, quando teria sem dúvida preferido caminhar sozinho atrás do corpo, tal como o exigia o seu novo estatuto.

A descoberta do casal herdeiro era uma surpresa para Aldo. Claro que sabia, e por intermédio da própria Mary, que o marido dela era um dos sobrinhos de sir Andrew, mas ela nunca lhe dera a entender que este o fosse em linhagem directa. Era então a eles que teria de apresentar os seus pêsames? Tratava-se de uma perspectiva pouco agradável, mas à qual lhe era impossível escapar.

- Tome! - suspirou o duende, devolvendo-lhe o ramalhete. - Eles já estão a entrar, talvez seja a altura de se lhes reunir...

- Não me acompanha?

- Não, eu vim apenas saudar o regresso de Andrew à terra de todos nós, mas não tenho nada a fazer em Killrenan Castle. Se lhe disser que me chamo Malcolm Mac Neil, decerto compreenderá: sou o irmão daquela que ele não quis desposar... A propósito, quem é o senhor?

- Sou um estrangeiro, um fiel amigo... e o filho daquela que não o quis...

- Ah! Então é melhor não ir já ter com eles e esperar que se tenham afastado, para poder rezar em paz. Esses estrangeiros não irão decerto eternizar-se! Vê-se logo que não previram nenhum draigie. Não conhecem nada dos nossos costumes.

- Draigie? O que é isso ? Não conheço esse termo.

- É a festa do funeral. Trata-se de uma expressão gaélica que acha por bem que os vivos comam, em memória do defunto e, sobretudo, que bebam um bom uísque. Os meus bons-dias, senhor!

O homenzinho afastou-se pela planície num passo rápido enquanto que Aldo se dirigia para o castelo, negligenciando o seu conselho.

A cerimónia na cripta da capela foi simples e breve: um curto sermão do pastor, algumas preces e, enquanto as gaitas-de-foles tocavam o Amazing Grace, o caixão foi colocado num nicho ainda vazio.

Depois, a assistência retomou silenciosamente o seu caminho. Só Aldo é que se demorou um momento para depositar os seus cardos azuis, enquanto murmurava umas últimas palavras de adeus.

A tentação para se demorar era forte, dando tempo aos amigos e à família de se dispersarem. No entanto, Aldo resistiu. Evitar dar os pêsames teria sido descortês e ao esquivar-se estaria a dar provas de certa cobardia, mesmo que as suas relações com a nova condessa não fossem das melhores.

Ao chegar ao pátio, pôde constatar as predições do duende: era evidente que o novo lorde não tinha a menor intenção de receber quem quer que fosse no castelo, pois ele e os seus estavam alinhados frente à capela, apertando as mãos e proferindo algumas palavras com ar grave. Aldo foi ocupar o seu lugar.

Quando se apresentou, apertando a mão a sir Desmond, no olhar deste, até então morno, surgiu uma rápida centelha. No mundo de todo o tipo de coleccionadores mas, sobretudo, no dos coleccionadores de jóias, o príncipe veneziano - que por necessidade se tornara antiquário e especialista em jóias antigas pela paixão que lhes dedicava - era um nome muito conhecido. O novo lorde Killrenan pertencia a esse mundo e aproveitou o ensejo:

- Vai ficar algum tempo na Escócia? - inquiriu.

- Não, vou imediatamente para Inverness, onde me esperam, e amanhã estarei em Londres.

- Suponho que o famoso leilão o irá reter alguns dias, não é verdade? Terei muito prazer em encontrar-me consigo, caso tenha um momento disponível para a minha pessoa.

- E por que não? - disse Morosini, com amabilidade, pensando que o prazer não seria forçosamente partilhado. O novo lorde não lhe agradava nada: de acordo com os dizeres do duende, exibia um rosto muito duro, que apresentava a singularidade de parecer ter sido moldado em manteiga. Isso devia-se, sem dúvida, à pose escultural e, sobretudo, ao olhar cinzento e neutro como uma pedra.

Inclinou-se rapidamente perante os dois irmãos seguintes para chegar finalmente diante da esposa de Desmond, perguntando a si mesmo como fora possível que uma mulher tão linda tivesse atado o seu destino ao de uma personagem tão pouco atraente. É verdade que sendo conhecido como fervoroso coleccionador de jades antigas, o homem devia possuir uma linda fortuna e talvez fosse também possível que a paixão de Mary pelas jóias encontrasse eco por parte do marido. Mas enganava-se redondamente se estava a pensar que se ia desembaraçar com uma saudação e algumas palavras bem apropriadas. Sem sequer lhe estender a mão, ela desferiu logo:

- Contava um pouco que viesse. Temos de falar.

- Acerca do quê, meu Deus?

- Sabe-o muito bem: sobre o bracelete de Mumtaz Mahal.

- Não me parece que seja o local e a hora apropriadas - respondeu-lhe severamente. - Tanto mais que não há nada a dizer...

- Não é esse o meu parecer. Ousa negar que me mentiu quando fui a sua casa, ao pretender que o meu tio não lho tinha entregue? O nosso notário recebeu uma importante soma da sua parte, proveniente da venda de um objecto que lhe foi confiado pelo falecido lorde Killrenan.

- É verdade que o meu velho amigo me tinha confiado um objecto, mas sob uma condição formal: a de não o vender a nenhum súbditto britânico, fosse ele homem ou mulher.

O rosto louro, iluminado por uns olhos da cor cinzenta das nuvens, enrubesceu.

- Ele fez isso? E, claro está, tratava-se do bracelete... A quem o vendeu?

- A discrição é uma das regras de ouro da minha profissão.

- Mas eu quero saber...

- Minha cara, não deve reter o príncipe Morosini dessa maneira - interrompeu a voz morna de lorde Desmond. - Ele é esperado

e nós próprios temos de reunir um conselho de família... Voltaremos a ver-nos mais tarde, não é verdade? - acrescentou, endereçando a Aldo o que podia passar, a rigor, por um sorriso. - Pelo menos no dia do leilão, em que todos estaremos presentes.

O veneziano inclinou-se sem dizer palavra e deixou o castelo para ir ao encontro do carro de aluguer que o esperava na planície. Não gostara da última frase de sir Desmond: apesar de uma aparente amabilidade, julgou descortinar uma vaga ameaça, sentimento do qual se arrependeu imediatamente. Se ia começar a detectar más intenções e a ver inimigos por todo o lado, não só não conseguiria levar a bom termo a sua tarefa, como acabaria também por ver vis homenzinhos de preto e elefantes cor-de-rosa. Que ladyMary tivesse um pouco enlouquecida pela sua paixão pelas pedras preciosas e que o falecido sir Andrew tivesse detestado a sua própria família, isso não implicava forçosamente que esta fosse inteiramente composta de malfeitores. Felizmente tinham acabado por prender o assassino do velho lorde, um indiano fanático que se enforcou na prisão com o turbante. Não fosse a ocorrência, teria decerto atribuído o crime aos seus herdeiros. Chegara realmente a acalentar essa ideia, se bem que o acontecimento tivesse ocorrido longe deles...

Antes de entrar no carro, lançou um último olhar à velha torre feudal, no cimo da qual flutuava ao vento, subitamente carregado de humidade, a bandeira com as cores dos Killrenan. Segundo todas as probabilidades o seu velho amigo apenas poderia contar com a companhia dos seus antepassados, pensou Aldo com certo desdém.

O tempo mudava. O céu ensombrava-se com massas negras, enquanto as ilhas Orkney se engalfinhavam nos torvelinhos das suas brumas. Lá em baixo, na pequena enseada, regressados os homens a bordo, o Robert-Bruce levantava ferro enquanto se despedia com um último toque de sirene. Ia decerto levantar-se uma tempestade: o navio precisava de encontrar um abrigo mais seguro. A viatura arrancou por sua vez, para levar Morosini até Inverness, a capital das Terras Altas, situada aproximadamente a cento e quarenta milhas dali.

Durante todo o trajecto, que teria sido agradável se o bom tempo tivesse persistido pois a estrada descia para o sul ladeando o mar, Aldo esforçou-se por desviar o seu espírito daquele que não mais voltaria a ver, para se preocupar exclusivamente com o leilão que sir Desmond mencionara há pouco: a de uma jóia histórica de primeira grandeza, chamada a Rosa de Iorque. Tratava-se de um diamante precioso de belo tamanho, que fora outrora o motivo central de uma peça, da qual se ignorava o destino dos restantes elementos e que representava as armas da família de Iorque. Na altura a peça em questão chamava-se "Rosa Branca" e fora oferecida a Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, pela sua terceira esposa, a princesa inglesa Marguerite, para celebrar o casamento, em Damme, no dia 3 de Julho de 1468. Após a desastrosa batalha de Grandson a jóia desaparecera com a maior parte dos tesouros do Temerário.

Mas a história do diamante não principiava com a dinastia inglesa, pois remontava a tempos longínquos, quando fora transportada pelas caravanas da rainha de Sabá, que a ofereceu ao rei Salomão, sendo então encastoada com onze outras numa grande placa, dita peitoral do Supremo Sacerdote, fabricada por ordem do Rei Sábio, para ser colocada no Templo de Jerusalém.

Após muitas e muitas tribulações, o peitoral ainda existia, mesmo apesar de certas pedras terem desaparecido. Pertencia agora a um homem fora do comum, uma pessoa extraordinária: um judeu coxo e vesgo, muito rico mas, sobretudo, muito culto e misterioso, chamado Simon Aronov, que Aldo Morosini fora convidado a encontrar numa residência secreta, numa noite da última Primavera, depois de um longo périplo através das caves e dos subterrâneos que imperavam no gueto de Varsóvia.

O desejo de Simon Aronov era simples: ele queria que o especialista europeu em jóias antigas o ajudasse a recuperar as quatro pedras que faltavam ao peitoral, com o mais nobre dos intuitos: existia efectivamente uma tradição judaica segundo a qual Israel seria uma pátria e teria soberania quando lhe restituíssem, na sua íntegra, esse símbolo das Doze Tribos.

A escolha que recaíra sobre o príncipe-antiquário não fora fortuita: há séculos que a sua família materna possuía uma das quatro pedras, a safira visigoda ou "Estrela Azul", e Aronov esperava conseguir que o seu hóspede aceitasse vendê-la, ignorando então que a sua última proprietária, Isabel Morosini, fora assassinada por um assaltante.

Nessa noite selou-se um acordo entre o judeu e o príncipe cristão. Acordo frutuoso, pois havia dois meses que na ilha-cemitério de San Michele, em Veneza, Simon Aronov recebera das mãos do seu emissário a safira que regressara à posse deste no termo de uma louca aventura(1) marcada por várias mortes pois, infelizmente, as gemas arrancadas ao peitoral atraíam a desgraça.

A Rosa de Iorque era pois a segunda pedra que faltava e desde há uma semana que, secundada por vários jornais europeus, a imprensa britânica anunciava com todo o clamor a sua venda, prevista no Sotheby's para o dia 5 de Outubro, sem suspeitar minimamente que a jóia assim anunciada não era a verdadeira, mas sim uma cópia admirável executada até ao mais pequeno pormenor graças a um método que só Simon Aronov conhecia.

 

*1. Ver o volume I, -A Estrela Azul-.

 

O raciocínio deste era simples: tendo adquirido a certeza que o diamante só se podia encontrar em Inglaterra, escondido no fundo do cofre de algum coleccionador particularmente discreto, decidira, deste modo, fazer uma jogada de póquer baseando-se no seu profundo conhecimento da alma humana e, sobretudo, da alma complexa de todo o tipo de coleccionadores. Segundo as suas previsões, o possuidor do verdadeiro diamante não conseguiria suportar a intrujice em redor da falsa pedra porque das duas uma: ou o reboliço causado pelo anúncio do leilão inspirar-lhe-ia uma dúvida insidiosa sobre a autenticidade da sua própria pedra, ou então o seu orgulho não toleraria ver um falso exemplar suscitar a admiração, a cobiça e, até, a devoção. De qualquer modo, acabaria por manifestar-se e era aí que Simon Aronov o esperava, por intermédio de Aldo Morosini. Deste modo, logo que regressasse a Londres, este contava dirigir-se ao joalheiro, presumível descobridor da jóia e que se aprestava a entregá-la à parada das ofertas, na "secreta" esperança - segundo a imprensa - de incitar o governo de Sua Majestade a comprá-la para a incorporar no Tesouro da Coroa depositado na Torre de Londres, impedindo assim que uma peça pertencente à história da Inglaterra acabasse por deixar o país. Os jornais publicavam também várias cartas anónimas enviadas ao sr. Harrison, acusando o seu diamante de ser um falso e avisando-o que correria o risco de ser publicamente desmascarado caso não anulasse a venda. Toda uma série de bons motivos para efectuar uma visita à luxuosa loja de New Bond Street!

Já era tarde e as ruas de Inverness eram inundadas por violentas rajadas de chuva quando a viatura depositou o seu passageiro diante do Caledonian Hotel. Transido de frio, pois o mercúrio estava em queda livre, este pagou ao motorista e precipitou-se para o interior, morto por encontrar uma banheira cheia de água quente - o Caledonian era o melhor hotel da cidade e de um conforto sem defeitos! -e um copo da bebida nacional mas, ao atravessar o hall, avistou o seu amigo Adalbert, instalado no bar, com um jornal em cima dos joelhos, um copo de uísque na mão e, aparentemente, absorto em profunda meditação, o que não era nada hábito seu. Por isso optou por ir ter com ele para saber qual o motivo de uma expressão tão sombria.

- Então, como vai isso? - perguntou, instalando-se no banco vizinho e fazendo um gesto ao barman para que lhe servisse a mesma coisa. - Que cara é essa?

Adalbert Vidal-Pellicorne estremeceu, mas mostrou logo o sorriso que quase nunca o abandonava. Era o companheiro mais agradável que podia existir: sempre optimista e sem quebras de disposição, desde há alguns meses que travara uma amizade com Aldo que, inicialmente ditada pela necessidade, não deixara de se ir consolidando para inteira satisfação de ambos. Se bem que o primeiro encontro entre eles se tivesse desenrolado em circunstâncias pitorescas, este fora esperado e desejado por Simon Aronov. Vidal-Pellicorne era um dos raros homens nos quais o Coxo depositava uma absoluta confiança, apesar de uma aparência e de um comportamento originais, para não dizer extravagantes.

Fisicamente era um homem nos quarenta, mas que parecia ter dez anos menos. Alto e magro a ponto das pessoas se perguntarem se tinha ou não um esqueleto, arvorava uma figura de querubim sob uma cabeleira loura e encaracolada sempre em desordem, com uns olhos de um azul-cândido e um sorriso angélico, o que não o impedia de ser manhoso como um macaco, robusto como um rochedo e dotado de uma notável destreza manual. Arqueólogo de profissão, com um fraco pela egiptologia e um sólido conhecimento de pedras preciosas, escrevia prazenteiramente, vestia-se com elegância, possuía todas as qualidades de um epicurista, de um homem profundamente conhecedor do mundo, de um hábil prestidigitador e de um serralheiro capaz de causar inveja ao fantasma do rei Luís XVI. Fora sobretudo graças aos seus múltiplos talentos que Morosini pudera recuperar a safira e restituí-la a Simon Aronov. Morosini gostava dele tal como ele era e apreciava tê-lo como parceiro na perigosa demanda do peitoral.

Sem responder à pergunta do amigo, Adalbert acentuou o seu sorriso:

- Então, e esse enterro? - perguntou, afastando automaticamente a madeixa que lhe caía constantemente sobre a sobrancelha. - Passou-se bem?

- Se me tivesses acompanhado sabê-lo-ias.

- Não me deves pedir demasiado, meu caro! Vim até este país quase bárbaro para te fazer companhia. Além disso, detesto enterros.

- Este valia a deslocação: foi de uma simplicidade cheia de grandeza e de cor local e ainda deu ensejo a uma surpresa.

- Boa ou má?

- Nada de especial. Já sabia que os Saint Albans pertenciam à família de sir Andrew, mas ignorava que fossem seus herdeiros directos. Agora tornaram-se conde e condessa de Killrenan, descendência que não deve dar muita alegria ao meu velho amigo. Acho-os tão antipáticos um quanto o outro, se bem que ela seja bonita.

- Ele devia ter pensado mais cedo na sua progenitura e tê-la procriado - observou Adal, aderindo sem o saber à filosofia do duende da planície.

- Já alguém me disse o mesmo de manhã. Verás o aspecto deles no dia do leilão no Sotheby's, talvez até antes, pois lady Mary continua a não ter digerido a história do bracelete...

- Pensas que farão parte do grupo dos interessados pela Rosa?

- Ela, decerto: quando vê uma jóia, entra logo em transe. Quanto a ele, não sei: é um coleccionador de jades raros, mas talvez esteja apaixonado e como é um advogado com aspecto de endinheirado...

- Ah, ele pratica a advocacia?

- Parece que sim.

Enquanto Morosini levava à boca o copo que tinham acabado de lhe servir, Adalbert esvaziava o seu, caindo novamente na concentração de há pouco, mas o seu amigo nem teve tempo de lhe fazer perguntas. Ele coçou a ponta do nariz e suspirou:

- A propósito de advogado, alguém que te é muito chegado vai precisar urgentemente de um nos próximos dias!

- Quem?

- Anielka Ferrais. É acusada da morte do marido.

Os dedos nervosos de Morosini agarraram no último momento o copo que se lhe escapava da mão. O seu segundo reflexo foi esvaziá-lo de um trago.

- Como soubeste isso? - murmurou.

O arqueólogo pegou novamente no jornal estendido sobre os joelhos, voltou-o e ofereceu-lho:

- Vem aqui. Hesitava um pouco em dizer-to para não acabar por destruir o teu moral depois de um enterro de um amigo, mas afinal isso seria apenas adiar o inevitável: mais vale que saibas já tudo.

- Efectivamente, prefiro que assim seja...

Leu rapidamente a informação, que era breve, quase lacónica. Era visível que a Scotland Yard mantinha um silêncio prudente em relação aos jornalistas, a fim de evitar que eles se imiscuíssem na investigação, estorvando-a: as suspeitas de envenenamento do esposo que recaíam sobre lady Ferrais eram sérias e a jovem fora levada até ao comissariado central de Canon Row, sendo depois conduzida perante o juiz, que lhe recusara a liberdade provisória. Tinha acabado de ser encarcerada na prisão de Brixton. Nada mais!

Enquanto Aldo lia a notícia, Vidal-Pellicorne observava o amigo. Este parecia desfeito, tendo desaparecido qualquer vestígio da indolente ironia que tornava tão sedutor o seu magro rosto moreno com perfil de condottiere! E quando os olhos de um azul de aço se ergueram na sua direcção, Adalbert pôde vislumbrar uma sombra de dor que confirmou as suas inquietações. Apesar da dura decepção que ela lhe causara, Morosini continuava apaixonado pela jovem polaca com quem esperara a certa altura poder casar-se.

No entanto, evitou fazer qualquer observação, sabendo que seria mal acolhida:

- O que não consigo compreender é como se pôde chegar a este ponto - limitou-se a suspirar. - Ela não pode ser culpada.

- É isso que pensas? Mas as suas reacções são tão imprevisíveis! Tive frequentemente a impressão que a morte - quer se tratasse da sua ou da dos outros! - não tinha qualquer importância para ela. Julgo que deve saber amar, mas o que tenho a certeza é que sabe odiar. Lembra-te do seu casamento e dos dias que se seguiram!

- Mesmo assim havia algumas circunstâncias atenuantes! O esposo comportou-se com ela como um velho canalha, sem ter sequer esperado que a Igreja os tivesse casado. Quanto a ti, ela estava persuadida que troçavas dela com a tua antiga amante, a sublime Dianora Kledermann.

- Concordo contigo, mas daí a matar, ainda assim há uma grande diferença. De qualquer modo, não serve de nada estarmos para aqui a pairar: ao regressar a Londres amanhã, talvez fiquemos a saber mais alguma coisa... E a propósito, tu, que conheces toda a gente, não tens por acaso relações na Scotland Yard?

- Nenhuma! A Inglaterra não é o meu local de vilegiatura preferido. Aprecio os seus alfaiates, os camiseiros, os jardins, o tabaco, o uísque e o seu código de civismo pueril e honesto, mas detesto o clima, o cheiro a carvão, o Tamisa oleoso, o nevoeiro, os Serviços Secretos com os quais tive por vezes alguns desaguisados e, sobretudo, detesto a sua cozinha! O pior neste capítulo é o haggis(nt), sem dúvida a mais abominável mixórdia que me foi dada a comer...

Evitaram-no cuidadosamente ao jantar, durante o qual Aldo nada comeu. Apesar da severidade que ostentara, o seu espírito continuava assombrado por Anielka. A imagem daquela encantadora mulher, adolescente de dezanove anos, vegetando nas sombras maléficas de uma prisão, era-lhe tanto mais insuportável porquanto se esforçava, desde há quatro meses, para relegá-la para as profundezas da sua memória, junto às fronteiras do esquecimento. Sem qualquer resultado, claro está! Para este género de exercício, era preciso dar tempo ao tempo...

Anielka! Ela obcecava-o desde que a encontrara pela primeira vez nos jardins de Wilanow, perto de Varsóvia. Talvez por ela ter irrompido na sua vida na mesma altura que Simon Aronov e talvez por não ter sido por mera coincidência que ela aparecera com a Estrela Azul numa noite de Abril, em Paris, ao desembarcar do Expresso do Norte na companhia do pai e do irmão. Nessa altura já Morosini a tinha salvo por duas vezes do suicídio. Se ela quisera atentar contra a sua vida fora, primeiramente, por ter de renunciar a Ladislas, o estudante niilista que amava e, em seguida, por se recusar a ter de ficar noiva de Eric Ferrais, o negociante de armas. Seguira-se então o encontro no Jardim de Aclimatação (ela adorava jardins!), onde, depois de lhe ter dito que o amava, ela suplicara a Aldo que a salvasse de um casamento odioso, mas necessário para restabelecer a fortuna da sua família; ele lembrava-se de tudo o que daí decorrera, até àquele último bilhete em que lhe dizia que tendo acabado por aceitar a vida conjugal pelas razões invocadas, nem por isso deixara de dedicar um amor eterno ao seu príncipe veneziano. Bilhete que este rasgara nessa mesma noite, lançando-o pela janela do comboio que o conduzia a Veneza...

Teria ela morto o marido devido a esse amor? Era uma grande tentação acreditá-lo e Morosini defendia-se cada vez mais debilmente contra uma explicação romântica que lisonjeava a sua vaidade

 

*nt. Haggis - Prato tradicional escocês de carneiro ou veado, confeccionado com a gordura dos rins, flocos de aveia, etc., e cozido num saco artificial ou feito com o estômago do animal.

 

De qualquer modo, sabia muito bem que mal se encontrasse em Londres ficaria logo cheio de pressa em ir ao seu encontro, caso isso fosse possível, procurando visitá-la, disposto a tudo para a auxiliar.

Esta ideia fixa ocupou-o a maior parte da noite e durante toda a interminável viagem a bordo do comboio da Great Northern Rail-way que os desembarcou dois dias depois, a ele e a Adalbert, no cais da gare de King's Cross, mortos de cansaço e cobertos pelas cinzas do glorioso carvão britânico. Daí, um táxi corajoso levou-os até ao hotel Ritz através de um nevoeiro de cortar à faca.

Há muito que as preferências de Morosini iam para o grande hotel de Picadilly, tal como para o seu homónimo da praça Vendôme em Paris, talvez porque lhe agradasse a sua arquitectura inspirada nos belos edifícios parisienses e nas arcadas da rua Rivoli. Mas também gostava da sua elegante decoração interior, da perfeita qualidade que fora estudada até ao mínimo pormenor, da atenção irrepreensível do pessoal e, sobretudo, do seu estilo incomparável. Por seu lado, Adalbert tinha uma predilecção pelo Savoy, que atraía a clientela americana e as vedetas de Hollywood... que o Ritz se recusava aliás a aceitar desde que Charlie Chaplin se comportara de modo pouco conveniente. Contudo, para não abandonar o amigo, aderira às suas preferências e não o lastimava.

Os dois homens chegaram ao hotel à hora do chá. Um cortejo de mulheres elegantes e de homens bem vestidos dirigia-se para o grande salão onde se desenrolava a importante cerimónia. Cheio de pressa para se desembaraçar das cinzas de carvão e para poder descansar, Adalbert foi direito aos elevadores sem olhar para mais nenhum lado. Aldo segurou-o pela manga:

- Olha só quem ali vem!

Duas damas atravessavam o hall na direcção do salão de chá, seguidas por um criado de libré. A mais velha apoiava-se no braço da companheira e era ela que retinha a atenção de Morosini. Alta, de porte distinto, trazia um alto gorro de veludo violeta, copiado dos modelos que a rainha Mary apreciava, por cima de um rosto sulcado de rugas, mas cuja ossatura perfeita lhe conservava uma beleza que, se bem um pouco fóssil, era contudo verídica.

- A duquesa de Danvers? - sussurrou Vidal-Pellicorne. - Esta agora!

- Não é? Se alguém sabe o que se passou em casa de Ferrais, é ela. Lembra-te: durante o casamento, sir Eric tratava-a como uma parente próxima.

- Oh, não me esqueci de nada! E já temos o nosso caminho traçado: subimos depressa para mudar de roupa e vamos tomar chá!

Um quarto de hora depois, Aldo e o amigo apresentavam-se à jovem vestida de preto e branco que oficiava como maitre d'hôtel naquela altura do dia, dedicada sobretudo às mulheres. Ambos sabiam que tinham de lidar com ela para obter acesso às delícias da hora do chá.

- Se não reservou mesa há pelo menos três semanas, não poderei arranjar-lhe nenhuma - disse a jovem, com certa severidade.

- Somos clientes do hotel - disse Morosini com o seu sorriso mais charmoso - e os nossos aposentos já estão reservados desde há um bom mês. Isso não basta?

- Talvez, com efeito; se tiverem a amabilidade de me dizer os vossos nomes...

Tendo o declinar do título de príncipe produzido o seu efeito habitual e dado que a menina condescendeu até em sorrir, Aldo tentou algo mais:

- Mademoiselle, acaso pode levar a sua amabilidade ao ponto de nos colocar... próximo de uma dama que chegou há pouco e que temos a honra de conhecer?

A hospedeira franziu o sobrolho alourado:

- Uma... dama? - disse, com uma nota de desdém que deixava supor que se tratava de uma espécie desconhecida.- Não faz parte dos nossos hábitos...

- Não se equivoque, menina - interrompeu Morosini, com secura. - Penso que não infringiremos os hábitos do Ritz ao prestarmos as nossas homenagens a Sua Graça, a duquesa de Danvers. Posso assegurar-lhe que não temos qualquer má intenção a seu respeito.

Depois de ter adquirido uma bela cor carmesim, a jovem murmurou uma vaga frase de desculpas que terminou pelo pedido:

- Tenha a amabilidade de me seguir, Alteza!

A sorte estava do lado dos dois amigos. Depois de tê-los feito atravessar metade da sala florida, onde brilhava a baixela de prata e pairava o aroma subtil do lapsang-soucbong(1) e dos bolos, a hospedeira,

 

*1. Uma das variedades de chá oriental mais apreciadas.

 

talvez para se certificar que não lhe tinham mentido, conduziu-os até à mesa vizinha ao lado da da condessa. No seu olhar cintilava uma pequena chama de desafio que muito divertiu Morosini, mas antes que se sentassem ela foi obrigada a render-se à evidência pois os dois estrangeiros saudaram respeitosamente Sua Graça, que soltou uma exclamação divertida, depois de os olhar erguendo a haste da luneta:

- Por aqui, cavalheiros? Mas que curiosa coincidência! Ainda há dois minutos acabei de falar de vocês quando evoquei à minha prima, lady Windfield, o estranho casamento desse pobre Eric Ferrais.

- Estranho, efectivamente e que, a crer no que diz o jornal, acaba de se concluir de modo ainda mais estranho. Terão prendido lady Ferrais?

- Então não é uma estupidez? Uma mulher tão nova, quase uma criança. Mas venham tomar o chá connosco! Será mais fácil conversarmos.

Nenhum dos dois homens escondeu o largo sorriso que lhes provocou esta proposta. Decididamente, a Providência estava do lado deles. Enquanto a hospedeira chamava um criado para efectuar as necessárias modificações na mesa, procedeu-se ao ritual das apresentações e dos cumprimentos. Finalmente, instalaram-se.

- Senhora duquesa - disse Aldo, escolhendo o tratamento protocolar francês - se bem a entendi, a senhora não acredita na culpabilidade de Anielka?

- Tenho sempre um preconceito desfavorável quando se trata de uma lady e quando o acusador é um criado ou... pelo menos, um subalterno.

- Então existe um acusador?

- Existe. É o secretário de sir Eric. Esse tal John Sutton é peremptório. Um dos criados também: visto que o esposo se queixava de uma enxaqueca, lady Ferrais deu-lhe uma Aspirina ou Deus sabe lá o quê... e ele caiu morto. A autópsia revelou a presença de estricnina. O efeito foi fulminante.

- Sem dúvida - disse Aldo, que se recordou do que tinha lido - mas não havia veneno nem no uísque nem na soda. Em compensação, o copo...

- Que grande coisa! Alguém deve tê-lo despejado discretamente. Talvez um criado... - aventurou Vidal-Pellicorne. - E porque não esse John Sutton? Desconfio sempre dos acusadores.

- É impossível - afirmou peremptoriamente a duquesa. - O secretário nunca se aproximou de sir Eric ou da bandeja onde estava tudo colocado. Eu própria o testemunhei.

- Ah, então, a senhora estava presente?

- Estava, estava. Encontrávamo-nos a beber um copo no escritório desse querido amigo antes de irmos jantar ao Trocadero. De outra forma, como poderia ser tão formal? Claro está que a imprensa não pôde mencioná-lo. O chefe superintendente Warren, que supervisiona a investigação, fecha-se como uma ostra e silencia toda a gente.

- O que torna a sua gentileza ainda mais abonatória, cara prima, ao confiar tudo isso a estes cavalheiros - proferiu lady Winfield, cujo olhar inspeccionava os dois estrangeiros com certa desconfiança.

- Pára de dizer disparates, Penélope! Estamos entre pessoas do mesmo mundo. Meu caro príncipe, o que joga em desfavor da jovem Anielka - tão nova, coitada! - é que o casal já andava aos tropeções desde há algumas semanas. As disputas eram frequentes e tinha rebentado uma última antes de eu chegar no fim desse dia terrível. Sutton ouviu lady Ferrais exclamar. "Tudo isto tem de acabar um dia. Já não o posso suportar!". Eric ter-se-ia então ido embora batendo com a porta, mas quando nos reunimos todos no seu escritório, queixou-se de uma violenta dor de cabeça. Foi nessa altura que a sua jovem esposa, que parecia no seu estado normal e talvez até ligeiramente arrependida, lhe entregou um saquinho contra a enxaqueca que ela própria foi buscar ao seu quarto. Suponho que se tratava de um gesto de boa vontade, de um pequeno passo para restabelecer a paz...

- E depois de ter bebido, sir Eric caiu que nem uma estaca? Caso tivesse desejado desembaraçar-se do esposo, parece-me que lady Ferrais teria agido de modo mais apropriado e, sobretudo, de forma mais recatada, menos exposta aos olhares públicos - opinou Adalbert, que seguia apaixonadamente a narrativa.

- É essa também a minha opinião e a de Sua Graça - interveio novamente lady Winfield. - Inclino-me mais para um criado. Quem é que serviu o famoso uísque? O mordomo? Um criado?

- Foi um criado que entrara há pouco ao serviço dos Ferrais. Tratava-se de um compatriota de Anielka, um antigo serviçal do pai dela, um polaco chamado Stanilas, que ela encontrou casualmente e que procurou ajudar contratando-o para se juntar ao quadro do pessoal de Grosvenor Square. Aliás era um rapaz muito correcto, que assegurava o seu serviço com a discrição que lhe convém. Infelizmente parece ter desaparecido mesmo antes da polícia chegar. Morosini engasgou-se com a chávena de chá, de tal forma se sentiu indignado:

- Desaparecido? - conseguiu finalmente articular, depois de alguns acessos de tosse. - E é Anielka que prendem? Mas o que era preciso era correr atrás dele!

- Pode ter a certeza que a Scotland Yard não deixará de o fazer! Desgraçadamente, parece que esse Stanislas é mais querido do coração da nossa jovem ladydo que seria conveniente. Quando um inspector veio dizer que não o encontravam em lado nenhum, ela desatou aos soluços, balbuciando que ele devia ter ficado cheio de medo mas que iria decerto regressar e que lhe custava muito acreditar que tivesse algo a ver com o sucedido... ou algo do género. Não me recordo lá muito bem das palavras exactas, mas o que nunca esquecerei foi a súbita fúria do secretário! Não hesitou em insultar a pobre moça dizendo-lhe que não era nada surpreendente que ela procurasse defender o seu amante! Asseguro-lhe que foi um verdadeiro horror, mas não sei dizer-lhe mais nada. Uma vez recolhido o meu depoimento pelo superintendente - um homem muito cortês - conduziram-me de volta a casa e não tive mais contactos com a polícia - concluiu, satisfeita por ter desempenhado um papel importante numa tragédia, o que lhe dava um vivo prazer. - Mas, meu caro príncipe, ficou subitamente todo pálido - acrescentou. - Não está a levar esta história demasiado a peito?

A expressão era fraca. O que acabara de ouvir transtornara Aldo a ponto de, durante um momento, se ter esquecido onde se encontrava. Adalbert veio em seu auxílio. Sabia, desde que a encontrara pela primeira vez, que ladyDanvers não era propriamente muito inteligente, mas receava que o sangue italiano do amigo o levasse a provocar algum escândalo. Deste modo despachou-se a fazer uma pergunta destinada a desanuviar um pouco a atmosfera.

- Os jornais não o mencionaram, mas espero que o conde Solmanski tenha acorrido em socorro da filha! Uma notícia destas é de molde a transtornar um pai - acrescentou hipocritamente.

- Não, ele não está por cá neste momento, mas não deve tardar a chegar. Na altura do drama encontrava-se em Nova Iorque, onde vai casar o filho não sei com que herdeira de não sei quê, mas vai regressar. Actualmente deve ir a bordo do Mauretania, que vai a caminho de Liverpool. Mas, por favor, meus amigos, falemos de outra coisa. Esta história horrível é-me tanto mais dolorosa porquanto eu gostava muito de Eric Ferrais! Tinha por ele sentimentos um pouco... maternais. Conheci-o quando ele ainda era tão novo! Mas regressemos a si, príncipe! Suponho que está aqui por causa da venda do diamante que fez correr tanta tinta...

Recomposto da sua emoção, Aldo abafou um suspiro. Por ora mais valia regressar à conversa mundana e afastar a imagem de uma Anielka defendendo a causa de um criado que Sutton não hesitou em considerar como seu amante alguns minutos depois da morte do esposo, de uma Anielka vestida de preto, sentada numa tarimba de prisão, pensando talvez num Stanislas saído não se sabe de onde, mas que conseguira impor a Ferrais por um motivo só dela conhecido. Pelo seu lado, não acreditava minimamente num gesto caridoso para com um companheiro numa situação difícil. Uma ideia atravessou-lhe subitamente o espírito, ideia talvez absurda, mas suficientemente insistente para que interrompesse a duquesa que se lançara com Adalbert numa acalorada conversa sobre jóias egípcias.

- Perdoe-me, Vossa Graça! Tem bem a certeza que o tal criado se chamava Stanislas?

Ela apontou-lhe a haste da luneta com a rapidez com que lhe assestaria o cano de uma espingarda:

- Com certeza! Mas que raio de pergunta!

- Pode ser que tenha a sua importância. Ele não se chamava antes Ladislas?

- Oh, não!... Bem sabe que esses nomes polacos se parecem todos, mesmo aqueles que são pronunciáveis, mas juraria de bom-grado que se trata efectivamente de Stanislas. Agora diga-me: que importância pode isso ter...

Era difícil esquivar-se à pergunta sem se mostrar mal-educado para com a duquesa! Aldo optou por responder num tom casual:

- Não é importante, e falei mais do que pensei. Lembrei-me apenas que quando a encontrei pela primeira vez em Varsóvia, a jovem condessa Solmanski via frequentemente um certo Ladislas por quem manifestava grande interesse... mas nunca consegui decorar o seu nome de família, de tal modo é difícil pronunciá-lo - acrescentou com o seu sorriso mais sedutor.

- Meu caro amigo - disse lady Danvers, dando-lhe umas palmadinhas indulgentes na mão com a ponta da haste - está a cometer um grave erro ao atormentar-se dessa maneira com um pormenor desta natureza. Esses polacos são pessoas impossíveis e o meu pobre Eric teria feito muito melhor em conservar-se solteiro, o que lhe convinha sob todos os aspectos. Agora deve largar essa chávena, na qual remexe com a sua colher desde há um quarto de hora. Essa bebida deve estar intragável!

E estava. Aldo pediu que lhe servissem outra, desculpando-se com boa-disposição da sua distracção e, deste modo, regressaram ao tema dos adornos egípcios. Quando se separaram, os dois amigos haviam recebido da parte da velha dama um passaporte verbal que lhes facultava entradas pela porta grande da sua residência em Portland Place.

- Não é de desdenhar! - comentou Adalbert, depois de ter acompanhado as duas damas até ao respectivo carro. - Deve encontrar-se uma data de gente em casa dela! Sempre pode vir a ser interessante... Entretanto, que fazemos hoje à noite?

- O que quiseres. Pelo que me diz respeito, apetece-me sobretudo deitar-me bastante cedo. Esta viagem foi arrasadora!

- Além disso preferes reflectir a conversar, não é verdade?

- É mais ou menos isso. O que ouvi há pouco nada tinha de agradável.

- Dir-se-ia que não conheces as mulheres! Dito isto, ficarias aborrecido se te deixasse?

- De modo algum! Quando tiver digerido o chá, encomendarei provavelmente qualquer coisa. Queres ir ver as raparigas? - acrescentou com o seu sorriso impertinente.

- Não, quero visitar os pubs de Fleet Street.(1) Os seus frequentadores locais estão sempre sequiosos e veio-me a ideia que nos fazem falta relações no meio da imprensa. Talvez consiga arranjar algum amigo de infância, que não me recusará nada em matéria de informações. Nos últimos tempos, acho os jornais um tanto discretos.

 

*1. Em Londres, Fleet Street é a rua onde se encontram todos os grandes jornais.

 

Talvez haja algo a vasculhar nas famosas cartas anónimas que falam da venda da Rosa de Iorque.

- Se pudesses saber mais alguma coisa acerca da morte de Eric Ferrais, também não seria nada mau...

- Era nisso mesmo que estava a pensar!

 

                     CAPÍTULO 2 - UMA AVE CURIOSA

Adalbert Vidal-Pellicorne apertou a cintura do seu Burbeny, como se se quisesse cortar ao meio, subiu a gola, enfiou bem a cabeça entre os ombros e resmungou:

- Nunca teria pensado que seria tão caro tornarmo-nos um amigo de infância de um jornalista, mesmo quando este não é uma vedeta. Percorremos meia dúzia de pubs, sem contar com o jantar no Grenadier, onde ele fez absolutamente questão de me oferecer - à minha conta, claro! - o jantar que o duque de Wellington encomendara para os seus oficiais: carne de vaca regada com ale, batatas cozidas com a pele, rábanos silvestres e, para concluir, uma torta de maçã e amoras, cheia de creme. Sem contar com toneladas de cerveja. O que aquele animal é capaz de emborcar!

- Se ele for interessante, posso ajudar-te nas despesas - ironizou Morosini. - Seria justo.

- Oh, ele é interessantíssimo, conquanto amemos Shakespeare. Cita-o todos os trinta segundos, mas acabamos por nos habituar. É um rapaz tão curioso quanto beberrão.

Os dois homens desciam Picadilly na direcção de Old Bond Street, onde se encontrava a loja do joalheiro George Harrison. De facto, só restavam duas ou três horas para poder ainda pedir para ver o diamante que fazia correr tanta tinta: ao princípio da tarde, um camião blindado guardado por um esquadrão de polícias, devia transferi-lo para o Sotheby's na New Bond Street, quer dizer, para algumas centenas de metros mais longe, onde permaneceria até ao leilão. O acontecimento estava marcado para dali a dois dias.

O tempo não estava nada propício a passeios mas, no entanto, as ruas estavam muito animadas: a habitual morrinha londrina era incapaz de fazer recuar as pessoas que a ela se tinham habituado com o correr dos séculos. Estas tinham pegado em chapéus-de-chuva e as cúpulas de seda preta ondulavam a perder de vista como um rebanho de carneiros karakuls(Nt). Desdenhando este acessório que achavam incómodo, Aldo e o seu amigo contentavam-se com o impermeável e o boné de pala como usam os trabalhadores.

- E que sabe esse teu novo amigo de infância? - perguntou o primeiro. - A propósito, como é que ele se chama?

- Bertram Cootes, e é jornalista no Evening Mail. Bom, é óbvio que está relegado para a rubrica dos cães atropelados, o que é de certo modo justo porque ele até se parece muito com um épagneul mas, fiel a esta raça, tem também umas orelhas compridas que se intrometem em todo o lado. Para dizer a verdade, foi uma autêntica sorte tê-lo encontrado.

- Como aconteceu?

- Foi o acaso. Eu estava a beber um copo numa taberna de Fleet Street quando presenciei uma pequena altercação entre o patrão e Bertram. Tratava-se, é claro, de uma conta que já se alongava e como o meu homenzinho já tinha um grão na asa, a explicação embrulhava-se. Foi então que chegou um terceiro indivíduo, um certo Peter, que depressa percebi que também trabalhava no Evening Mail, mas na secção dos grandes títulos. Como Bertram ainda tinha sede, pediu-lhe que lhe emprestasse algumas libras. O outro recusou num tom de desprezo, tratando Bertram de Zé-Ninguém; então, este respondeu-lhe que ele cometia um erro em não querer ajudá-lo, porque talvez não tardasse em levar-lhe a melhor no caso Ferrais. Peter limitou-se a rir. Bebeu um trago e logo que se foi embora eu entrei em cena. Apresentei-me como sendo um colega francês atraído a Londres pela venda no Sotheby's e procedi como se já nos tivéssemos encontrado há alguns meses em Westminster, aquando do casamento da princesa Mary com o visconde Larcelles. Imaginas bem que o meu Bertram nunca cobriu, nem de perto nem de longe, um acontecimento desta importância, mas ficou lisonjeado. Nessa altura paguei a conta dele e propus que fôssemos jantar. Daí a incursão no Wellington... O resto já sabes.

 

*nt. Variedade de carneiros oriundos da Ásia Central, geralmente de pêlo longo e ondulado.

 

- Não sei nada! Esse jornalista sabe mesmo alguma coisa sobre a morte de Ferrais?

- Sabe certamente, mas não foi fácil levá-lo a falar. Mesmo bêbedo como um regimento de polacos, Bertram Cootes agarrou-se ao seu pequeno segredo como um cão a um osso. Para o fazer largar, prometi-lhe que lhe daria todas as informações que pudesse obter acerca do diamante que, obviamente, não o deixa indiferente, tanto mais que as cartas anónimas continuam a chover, quer no seu jornal, quer nos outros. Só que desta vez estão repletas de ameaças. Se a jóia não for retirada da venda, o sangue correrá...

- Isso também é interessante, mas...

Interrompeu-se. A elegante rua, normalmente animada uns momentos antes, estava agora em vias de transformar-se numa espécie de turbilhão. O centro parecia ser a loja, cuja opulência não conseguia ser disfarçada pela austera e discreta decoração à moda antiga, toda britânica, dado que era uma das grandes joalharias de Old Bond Street.

Ouviram-se gritos aos quais responderam imediatamente os apitos da polícia. Claro que toda a gente desatou a correr nessa direcção.

- Não há dúvida, é na loja do Harrison! - disse Morosini, que conhecia bem o local por lá ter ido várias vezes. - Deve ter acontecido algo de grave.

Os dois homens arremeteram sem se preocupar em terem pisado um pé, magoado uma costela e suscitado protestos de indignação: o resultado valeu a pena, pois encontraram-se diante da porta, obstruída pelo largo peito de um polícia:

- Sou jornalista! - exclamou Adalbert, empunhando uma carta de imprensa, cujo aparecimento surpreendeu o companheiro.

- Lembra-me de te perguntar onde desencantaste isso - murmurou-lhe ao ouvido; mas, verdadeira ou falsa, a carta de nada serviu.

- Lamento, senhor, mas não se pode passar! As autoridades estão a chegar de um momento para o outro.

- Posso perceber que não aceite a imprensa - disse Aldo com um sorriso desvanecido - mas sou amigo de George Harrison e tenho um encontro marcado com ele. Somos confrades e...

- Tenho muita pena, senhor! É impossível!

- Ao menos deixe-me falar com miss Price, a sua secretária!

- Não, senhor. Não pode ver ninguém até que chegue a Scotland Yard.

- Nesse caso, ao menos conte-nos o que se passou!

O rosto do agente fechou-se como se tivessem acabado de fazer-lhe uma proposta desonesta. O seu olhar passou por entre a borda do seu chapéu e a cabeça do importuno, para se imobilizar na contemplação da longínqua agitação da rua.

Nessa altura Morosini ouviu alguém cochichar atrás de si.

- Eu ainda assisti a algo e vou contar-lhe o que se passou, pois deu-me uma excelente indicação quando me aconselhou a ir até à loja do Harrison por volta das onze.

Voltando-se, Aldo descobriu Vidal-Pellicorne numa conversa confidencial com um pequeno homem de cujo chapéu de feltro escorria água e que identificou como sendo o jornalista do Evening Mail.

Esta personagem, de boa corpulência, conseguia a façanha de ter também um comprido rosto de épagneul melancólico, semelhança que era ainda acrescida pelo facto de ter os cabelos assaz compridos, à "artista". A única coisa que Adalbert não mencionara era que se tratava de um jovem, quando Aldo o imaginara como um velho frequentador de bares.

- E que tem para mim, amigo Bertram? - perguntou o arqueólogo. - Pode falar sem receio: apresento-lhe o príncipe Morosini, de quem já lhe tinha falado.

O olhar moreno e vivaço do jornalista avaliou brevemente o porte altivo do veneziano, enquanto declamava:

- "Pensa antes de falar e pesa antes de agir!" - citou, erguendo um dedo sentencioso, antes de precisar: - Polonius, no Hamlet. Primeiro acto, terceira cena! Mas, efectivamente, penso que me posso aventurar.

- Já te tinha prevenido que ele vai buscar três quartos dos seus discursos ao grande Will - disse Adal. - Entretanto, repito a minha pergunta: que viu?

- Venham por aqui! - disse Bertram, afastando-os dali, para felicidade dos outros curiosos. - Quando cheguei estavam aqui dois carros, ambos pretos: um digno Rolls-Royce, um pouco fora de moda, mas muito bem conservado, e um grande Daimler, de fabrico muito mais recente, conduzido por um motorista quase invisível. Subitamente, vi sair da loja uma velha lady, de luto carregado, apoiada por uma enfermeira. Corria tão depressa quanto lhe permitia a fraqueza das suas pernas, soltando gritinhos desarticulados. Tinha um ar aterrorizado. Aliás, a enfermeira também, mas esta conservava o seu sangue frio. Quase que enfiou a sua patroa à força para dentro do Rolls, sem esperar sequer que o motorista lhe abrisse a porta, gritando-lhe, ainda por cima, para que avançasse imediatamente. O carro arrancou como se lhe tivessem tentado pegar fogo. Esperem, ainda não é tudo - acrescentou, ao ver os dois amigos trocarem um olhar de surpresa. - Alguns momentos depois saíram dois homens a correr. Eram asiáticos, muito bem vestidos. Entraram a toda a pressa no Daimler que desandou a toda a velocidade, enquanto se ouviam gritos horríveis, vindos da loja, o que atraiu evidentemente os dois polícias que fazem o giro dia e noite. Estes irromperam pela loja dentro tal como eu o quis fazer, mas rechaçaram-me apesar do facto de que "de todas as coisas, somos mais ardentes na perseguição do que..."

A chegada intempestiva de dois carros de polícia interrompeu a citação de "O Mercador de Veneza", mas Bertram Cootes recomeçou logo a falar:

- Olhem! Chegaram as autoridades, e não é pessoal de pequena monta! Trata-se do superintendente Warren e do seu habitual burro de carga, o inspector Pointer. Os ases da Criminal! Julgava que fosse um roubo, mas deve ter corrido sangue! Permitem? Tenho de trabalhar. Ver-nos-emos mais tarde. No Black Friars, por exemplo. Fica...

E intrometeu-se na multidão, mais densa que nunca.

- Não tem importância! - disse Adalbert. - Eu sei onde fica: ele levou-me lá a noite passada, mesmo que não se lembre. Em todo o caso, com o que acaba de nos contar, vai suplantar os seus colegas...

Morosini não respondeu. Estava a olhar para os dois polícias que entravam na loja. Não devia ser lá muito encantador cair sob as suas garras e fora isso que acontecera infelizmente a Anielka.

Fisicamente, Gordon Warren parecia-se com uma ave pré-histórica. Alto, magro e careca, tinha uns olhos redondos e amarelos, fixos e desconfiados. A semelhança era ainda mais realçada pela velha capa sem mangas de um cinzento-desbotado que lhe caía dos ombros ossudos, como os membros das asas de um pterodáctilo. O seu rosto, de lábios finos e duros, bem escanhoado, não abonava nada em favor de qualquer benignidade moral. Aliás, o superintendente via-se a si mesmo como a própria imagem da Lei, clarividente e inflexível.

Atrás desta impressionante silhueta, o inspector Jim Pointer quase passava despercebido, apesar da sua imponente estatura. O seu rosto, com um queixo retraído e de compridos incisivos superiores, fazia-o parecer-se com um coelho e quando deambulava atrás do seu chefe, como acontecia naquele momento, este ficava sempre com o ar de quem volta da caça.

Quando Warren voltou sozinho da loja, os curiosos tinham sido arredados para cederem o lugar a uma horda de jornalistas que tinham acorrido atrás da polícia, mas Bertram Cootes mantinha-se corajosamente na primeira fila. A matilha lançou-se sobre o superintendente bombardeando-o de perguntas, cujo ímpeto ele abrandou imediatamente com um gesto autoritário:

- O pouco que tenho a dizer-lhes, senhores da imprensa, é que não os quero ver intrometidos numa investigação talvez muito delicada...

- Não exagere, Superintendente! - disse alguém. -Já nos pregou a partida aquando do assassinato de Eric Ferrais. Consigo todas as investigações são delicadas...!

- Não tenho outra escolha, sr. Larke. São as circunstâncias que decidem. Fiquem apenas a saber o seguinte: o sr. Harrison acaba de ser assassinado com uma facada e desapareceu o diamante que devia ser confiado ao Sotheby's esta tarde. Dir-lhes-emos mais alguma coisa logo que for possível. Que quer o senhor?

A última frase era dirigida a Bertram que, dando provas de uma bela coragem, acabara de segurar-lhe na manga.

- Eu... eu vi-o... ou antes, os assassinos! - gaguejou, no cúmulo da excitação.

- Vejam só! E que fazia o senhor aqui?

- Nada, eu... estava de passagem.

- Então, venha comigo! E procure ser claro nas suas declarações!

Afastando Cootes dos seus colegas, que pretendiam sem dúvida interrogá-lo, puxou-o para dentro de um carro que se pôs logo a andar sob o olhar estupefacto de Peter Larke, o homem que na véspera se mostrara tão pouco caridoso.

- Pois bem - comentou Vidal-Pellicorne - se Bertram consentisse em beber um pouco menos, a sua carreira poderia ter um novo início. A propósito, não disseste que conhecias Harrison?

- Conhecer é dizer muito. Tive de tratar de negócios com ele por duas vezes. Sem o ter visto, aliás, o que não me impede de me recordar do nome da secretária. Aqui entre nós, devo dizer-te que gostaria muito de poder falar com ela um momento. Infelizmente nem sequer sei qual é o seu aspecto.

- O momento é mal escolhido para travar relações. Aliás, não vamos poder ficar aqui por mais tempo...

Efectivamente, a polícia dispersava os curiosos enquanto dois empregados fechavam a loja como se o dia de trabalho tivesse acabado.

- Simon Aronov não tinha previsto este drama //nefn a entrada em cena dos asiáticos. A armadilha que tinha tecido para o verdadeiro proprietário do diamante fora bem concebida, mas agora não estou a ver como iremos desencantá-lo: já não haverá leilão e o silêncio vai acabar por se instalar - suspirou Vidal-Pellicorne, com uma melancolia inabitual na sua pessoa.

- A menos que o dito proprietário seja o instigador do crime e que tenha pago a estes homens para eliminarem um concorrente que parecia estorvá-lo, a acreditar nas cartas anónimas que os jornais receberam. Se queres a minha opinião, ao procurar a pista da jóia falsa, talvez encontremos uma oportunidade de descobrir a verdadeira.

- É possível que tenhas razão; contudo há qualquer coisa que me estorva neste crime crápula: é que ele não cola com os bilhetes anónimos.

- No entanto, estes anunciavam que o sangue poderia correr se se mantivesse a sessão no Sotheby's. Ora o sangue acaba de ser derramado - insistiu Aldo.

- Sim, mas é um tanto cedo demais! As ameaças deviam dirigir-se ao eventual comprador. Era ele que procuravam intimidar. Pergunto-me se não temos antes de nos haver com alguém que julga que a jóia posta à venda era a autêntica e que descobriu este meio radical para obtê-la sem ter de abrir os cordões à bolsa.

Desta vez Morosini não respondeu. Tanto um como o outro podiam ter razão. De qualquer modo, agora encontravam-se diante de um impasse que tornava difícil a prossecução da sua missão conjunta. Caso o assassino de Harrison não fosse depressa desmascarado e encontrada a pedra, talvez viesse a ser necessário retomar contacto com o Coxo, talvez tivessem até de se ir embora, como o fariam os ricos amadores que a venda atraíra a Londres. Só que Aldo sabia que não se podia resignar a isso. Sem dúvida porque equivaleria a considerar-se vencido e não suportava essa ideia. E talvez porque achasse ainda mais insuportável a ideia de regressar a Veneza abandonando Anielka a um destino dramático. Se não conseguissem fazê-la sair dali, a jovem arriscava-se a ser enforcada. Ora ele amara-a demasiado - e talvez ainda a amasse... - para suportar a terrível imagem da sua linda cabeça loura desaparecendo sob a cogula, antes de sentir o solo a fugir-lhe sob os pés...

- Suponho que é escusado perguntar-te se não estás a ruminar ideias sombrias - resmungou Adalbert. - Está estampado no teu rosto em todos os caracteres...

- Não o nego mas, com tudo isto, ainda não me contaste aquilo que o "meu amigo Bertram" te disse sobre o caso Ferrais...

- Falaremos disso ao almoço, enquanto o esperamos. Se nada tens contra as melhores tostas de queijo amanteigado de Inglaterra, levo-te até ao Black Friars. Não é um lugar desagradável e desse modo matamos dois coelhos de uma cajadada.

Enquanto falava chamou um táxi que os levou até ao quarteirão do Temple onde se situava o estabelecimento, entre Fleet Street e a ponte, sempre cheia, de Black Friars. Ao marcar-lhes encontro naquele local Bertram dera provas de esperteza pois este era frequentado tanto pelo mundo judicial, como pelo da imprensa. Além disso, com as suas madeiras platinadas e os metais brilhantes, o Black Friars era um local assaz aprazível.

Aldo teve amplamente ocasião de apreciar o conforto interior pois só quando se viram instalados num compartimento revestido de couro preto é que o seu amigo consentiu finalmente em fornecer-lhe as informações.

- Como não as vais achar nada agradáveis, prefiro que estejas bem sentado para que as ouças.

Mesmo que não tivesse consciência disso e teimasse em beber como uma esponja para se esquecer dos seus infortúnios, o jovem Cootes era mais favorecido pela sorte do que julgava. Foi assim que, no dia seguinte ao do crime, ao ir farejar em redor da residência dos Ferrais deparou com uma jovem da sua idade, Sally Penkowski, sua amiga de infância e que era uma das criadas de quarto da casa. Nascidos na mesma rua de Cardiff, eram ambos crianças da mina. O pai de Sally, um emigrante polaco, casara com uma mulher da região e assentara. Era mineiro, tal como o pai de Bertram, e tinham sido ambos vítimas da mesma catástrofe, o que acabara por deixar Bertram completamente desgostoso quanto a uma profissão que, de qualquer modo, não desejava. Partiu então para Londres com a ideia de se tornar jornalista, o que acabou por conseguir depois de passar por muitas vicissitudes. Há anos que nada sabia de Sally, até àquela manhã em que o acaso os pôs frente-a-frente. E foi, portanto, com toda a naturalidade que a pequena criada derramou as mágoas que lhe enchiam o coração, confiando-as ao seu antigo camarada.

Não era por Ferrais que chorava, mas pelo desaparecimento desse criado polaco que ingressara dois meses antes ao serviço, em Grosvenor Square, por recomendação da dona da casa. A infeliz apaixonara-se à primeira vista por esse Stanislas Rasocki, se bem que se tivesse logo apercebido que não tinha qualquer hipótese: era preciso ser-se cego para não ver que ele estava apaixonado pela sua encantadora patroa.

- Eles já se conheciam da Polónia, antes do casamento de Mylady - confiou Sally a Bertram. - Talvez também se tivessem amado ou ainda se amassem: ouvi-os cochichar muitas vezes um com o outro quando se julgavam a sós e, claro está, falavam em polaco, mas eu compreendia quase tudo. Ela pedia-lhe que tivesse paciência, que nada empreendesse que pudesse comprometer a sua causa, fazendo-a correr, a ela, riscos inúteis. Oh, nunca durava muito tempo e eu não entendia tudo o que diziam, dado que falavam em voz muito baixa, mas o que me surpreendeu foi que ela o chamava Ladislas...

A faca escapou da mão de Aldo e caiu com estrondo no chão, mas ele nem pareceu aperceber-se. Foi Adalbert que chamou um criado para que lhe trouxessem outra. Quanto a Morosini, parecia-se com uma estátua. Para chamá-lo de volta à realidade, o arqueólogo tocou-lhe no braço:

- Sabia que a minha primeira revelação te ia causar um certo efeito - disse, com satisfação. - Meu caro, estavas cheio de razão quando perguntaste a lady Danvers se ela tinha a certeza de como se chamava realmente o criado.

- Chama-lhe premonição se quiseres, mas algo me dizia que só podia tratar-se desse rapaz. O que eu gostaria de saber é como é que Anielka voltou a encontrá-lo e por que motivo ousou introduzi-lo em casa do marido. Começo a crer que ela é ainda mais falsa do que pensava...

Perdido o apetite, afastou o prato, procurou um cigarro e acendeu-o com uma mão que tremia ligeiramente.

- Ora vamos, nada de julgamentos temerários que te arriscarias a lamentar depois! - disse Adalbert. - Entretanto é preciso que avives as minhas recordações! Parece-me que já me tinhas falado de uma personagem com esse nome, mas confesso-te que estou um nada esquecido. Quem é ele precisamente?

- Trata-se do indivíduo pelo qual a impedi duas vezes de se suicidar: uma, no Expresso do Norte e a outra, anteriormente, nos jardins de Wilanow. Foi aí que a vi pela primeira vez.(1)

- Ah! Já estou a lembrar-me! O estudante pobre e, claro está, niilista, que ela desejava tanto acompanhar até ao fundo da sua miséria... logo antes de se apaixonar precisamente por um príncipe quarentão, veneziano e assaz afortunado?

- Essa observação é cá de um gosto! - grunhiu Aldo.

- Talvez, mas chama as coisas pelo seu devido nome. Segundo as últimas notícias, ela amava-te a ti. Até o escreveu num bilhete que teve a audácia de te passar sob as barbas do marido. Nesse caso, se partirmos do postulado que ela estava a ser sincera, não vejo porque iria incomodar-se com um defunto amor, tanto mais que estamos em Londres e não em Varsóvia. Não foi certamente ela que o mandou chamar...

Adalbert parou de falar para ingurgitar metade da sua caneca de cerveja com um ar inspirado.

- Continua! - pressionou-o Aldo. - Pensas que é devido a uma iniciativa dele e que foi ele quem veio de novo incitá-la?

 

*1. Ver o volume 1, -A Estrela Azul.

 

- É claro! Lembra-te dos pedaços de conversa que Sally surpreendeu! Anielka suplicava-lhe para que nada fizesse que pudesse pô-la em perigo, a ela ou à causa dele. De certeza que foi ele que lhe veio solicitar ajuda! Talvez chantageando-a, quem sabe? Não sabes nada acerca das relações que tinham.

- Concordo, mas não estou a vê-lo a aceitar vestir-se de criado. Esse tipo tem um orgulho infernal.

- Os revolucionários são todos assim! Esmagam o burguês do alto da sua ideologia intransigente, mas logo que se trata de servir a Causa, estão dispostos a tudo. Até a engraxar os sapatos de um capitalista, ainda por cima negociante de armas, como o era esse pobre sir Eric.

- Pensas que ele a obrigou a introduzi-lo em sua casa?

- Não vejo outra hipótese. Deve ter-lhe contado sabe Deus que história enternecedora, evocando lembranças, etc. Depois, mata o marido, foge e deixa-a a desenvencilhar-se sozinha.

À medida que Adalbert ia falando, Aldo sentia-se reviver. Tudo parecia tão claro agora! Excepto um pormenor:

- Nesse caso, diz-me porque é que ela se limitou a chorar quando soube que ele se tinha escapado? Melhor ainda, suplicou aos polícias que o deixassem tranquilo jurando-lhes que ele nada tinha a ver com o caso e deixando-se prender em vez dele... Essa história não tem pernas para andar.

- A não ser que... vejo duas soluções: ou bem ela fica debaixo de uma grave ameaça caso decida denunciá-lo, ameaça que lhe fará preferir a prisão, ou então... ele voltou a seduzi-la: ela está outra vez apaixonada por ele e espera safar-se mantendo-o afastado do caso. O que implicaria evidentemente - espero que me perdoes! - que foi o processo inverso que se desenrolou no seu pequeno coração e que ela já não te ama. A menos que... ah, mas ainda é possível!... que ela vos ame a ambos! Parece-me que te disse um dia que é de esperar tudo com as mulheres eslavas!

- Efectivamente, já o disseste. Não é preciso repetires-te. Morosini encomendou um café e consultou o relógio:

- O teu amigo Bertram não aparece frequentemente! Se não te aborrece, vou deixar-te à sua espera. Não precisamos de estar a dois para tomar nota das suas confidências... caso ele as tenha.

- E tu, onde é que vais? Porque é óbvio que estás com uma ideia nessa cabeça...

- Claro. Tenciono ir até à Scotland Yard para solicitar uma audiência ao sr. Warren.

- Estás à espera que ele te vá pôr ao corrente dos últimos desenvolvimentos da sua investigação? Esse homem não tem cara de quem faz confidências.

- Não lhas pedirei. O que desejo é obter autorização para visitar Anielka na prisão.

Vidal-Pellicorne reflectiu um momento e depois assentiu com a cabeça.

- Não é má ideia! Tudo o que arriscas é que ele se recuse, mas se me permites um conselho, não lhe fales no caso Harrison.

- Não sou idiota. Esse é para ti... momentaneamente. Encontramo-nos no hotel.

Ao sair de Black Friars, Aldo apercebeu-se que o tempo estava ainda mais detestável do que há pouco mas, mesmo assim, optou por ir a pé até ao seu destino. A primeira metade do dia tinha-se revelado fértil em emoções e ele sentia necessidade de caminhar um pouco. Enfiando o boné na cabeça e as mãos nos bolsos, pôs-se a caminho, dando passadas largas e rápidas na direcção do severo edifício baptizado Nova Scotland Yard.(1) A sede da célebre polícia britânica, de um granito sombrio extraído das planícies de Dartmoor, fora construída pelos prisioneiros da penitenciária vizinha por volta de 1890, em forma de torre entalhada de múltiplas janelas, ao estilo escolhido pelos barões escoceses e assemelhava-se assaz a uma sentinela com uma centena de olhos fixos para sempre na cidade, no porto, no país, no império... O conjunto provocava arrepios, sobretudo quando se sabia que a Scotland Yard abrigava um museu dos horrores, o Black Museum, onde se perfilava uma rica colecção de relíquias criminosas.

O agente de guarda ao portão recebeu o visitante e o seu pedido com uma certa cortesia, pegou num telefone interior para saber se os podia encaminhar e, finalmente, confiou-o à guarda de um dos seus homens, encarregue de conduzi-lo ao seu destino. O nobre estrangeiro tinha muita sorte: não só o superintendente Warren estava presente, como consentia também em recebê-lo.

 

*1. O seu nome anterior, Nova Corte da Escócia, provinha de um palácio que pertencera outrora aos reis da Escócia e que se encontrava no local onde a polícia se instalou.

 

Já sem a sua capa sem mangas à Sherlock Holmes, Gordon Warren parecia-se menos com um pterodáctilo. No seu fato de um cinzento de aço, de muito bom corte, assumia uma aparência mais conforme com a sua realidade: a de um alto funcionário consciente das suas responsabilidades, mas que também se podia recordar dos usos e costumes de um gentleman. Talvez faltasse uma certa delicadeza na mão que lhe indicou um assento, mas ela era forte e estava bem cuidada. Com a outra, pousou em cima da secretária o cartão de visita que Aldo entregara ao seu apresentador.

- O príncipe Morosini, de Veneza? Queira desculpar-me, mas estou pouco ao corrente dos costumes do continente. Como o devo tratar? De Alteza, Excelência, ou...

- Nada disso: simplesmente por príncipe, cavalheiro ou senhor - disse Aldo com um semi-sorriso. - Senhor superintendente, acredite-me que não me permiti incomodá-lo para vir discutir consigo o protocolo europeu.

- Agradeço-lhe. Disseram-me que me queria falar do caso Ferrais, não é verdade? Era amigo de sir Eric?

- Dado que tive o privilégio de ter sido convidado para o seu casamento, podemos considerar as coisas dessa maneira. Na realidade sou, sobretudo, um amigo de lady Ferrais, que encontrei na Polónia quando ela era ainda a filha do conde Solmanski...

O ataque que chegou sem qualquer pré-aviso foi brutal, apesar da voz calma que o entoava:

- E, naturalmente, está apaixonado por ela?

Morosini encaixou sem se mexer, dando-se ao luxo de sorrir enquanto o seu olhar aguentava o do polícia.

- É possível. Admita que é difícil ficar insensível a tanta graça e a tanta juventude. Sobretudo quando se é italiano e meio francês, como eu!

- São impressões que um britânico também pode ter, a não ser, talvez, quando é frequentemente confrontado com os inumeráveis rostos do crime. Penso que veio para me dizer que ela não é culpada, que me arrisco a ter de acarretar com o peso de um erro judiciário...

- Nada disso - interrompeu Aldo. - Suponho que um homem com a sua experiência não iria pôr na cadeia uma mulher da idade e da classe dela - ela nem vinte anos tem! - baseando-se apenas num simples capricho...

- Muito agradecido por essa valorosa opinião - disse Warren, com um ligeiro cumprimento irónico. - Nesse caso, que posso fazer por si?

- Conceder-me o favor de poder visitá-la na prisão. Creio conhecê-la suficientemente bem e não é impossível que chegue a obter algumas luzes sobre o que se passou no momento em que o marido faleceu.

- Oh, mas nós sabemo-lo: ela ofereceu a sir Eric um saquinho contra as enxaquecas, cujo conteúdo ele verteu no seu copo de uísque, que bebeu, morrendo em seguida. Acrescentemos ainda que, momentos antes, tinham discutido violentamente... Aliás, o casal já funcionava mal desde há algumas semanas...

- Dado o modo como começou, o que me teria espantado era que estivesse a funcionar bem, mas não julga que é uma insensatez envenenar um homem à vista e com o conhecimento de toda a gente? Ora, lady Ferrais não é nem estúpida nem insensata. Parece-me que antes de a ter prendido, em primeiro lugar o senhor teria podido indagar sobre esse criado polaco que, se as minhas informações são correctas, serviu o uísque com soda antes de desaparecer tão oportunamente.

- Tenciono pôr-lhe a mão em cima, se bem que não tenhamos encontrado vestígios de estricnina nem na garrafa de uísque, nem na água...

- Se ele for um pouco habilidoso, esse rapaz terá muito bem podido verter o veneno no copo na altura em que o ia servir. Não pode estar inocente. Aliás é preciso saber que meios terá utilizado para com lady Ferrais para conseguir introduzir-se no local. Não se esqueça que esse Ladislas é um niilista!

Os olhos amarelos do pterodáctilo arredondaram-se ainda mais sob as espessas sobrancelhas.

- Ladislas? Então ele não se chama Stanislas Rasocki?

- Ignoro o seu nome de família, mas o seu primeiro nome é Ladislas.

- Está a começar a interessar-me, príncipe! Conte-me algo mais e talvez consiga obter a visita.

Morosini contou então o que sabia das relações passadas entre Anielka e o seu antigo apaixonado. Warren, que regressara atrás da secretária para se sentar, escutou-o tamborilando num dossiercom a ponta da caneta. Finalmente, desferiu:

- Isso explica, sem dúvida, por que motivo ela chorava tanto, recusando-se a acusá-lo formalmente. Nesse caso, ela poderá ser sua cúmplice ou até a instigadora. O que ainda é mau. Aliás a acusação que a levou a ser presa foi a de ter "envenenado ou mandado envenenar" o marido.

- Espero que a continuação da sua investigação lhe venha a provar que ela está inocente; mas como é que o advogado dela não conseguiu obter a liberdade provisória aquando da audiência preliminar?

- Aí admito que ela não teve sorte. Foi defendida por um jovem inexperiente, que só se preocupava com o estado da peruca e com as pregas da toga. Foi ele quem fez com que as portas de Brixton se fechassem atrás dela.

- Mas um homem como Eric Ferrais dispunha seguramente de um advogado experimentado...

- Efectivamente, mas sir Geoffrey Harden, que é como ele se chama, está ocupado na caça ao tigre com o marajá de Patiala. Foi um dos seus estagiários que ficou encarregue do caso, o qual me parece ter mais relações que talento. Quando vir lady Ferrais aconselhe-a a escolher outro defensor! Com este, a corda espera-a no fim da viagem.

- Quando a vir? Isso significa que me permite...

- Permito. Pode ir visitá-la amanhã à prisão. Aqui está um salvo-conduto - acrescentou Warren, estendendo-lhe um papel no qual acabara de escrever algumas palavras. - Mas espero que tenha a amabilidade de me vir informar se ficar a saber de um facto de relevo ou até de somenos importância.

- Está prometido. Tudo o que desejo é tirá-la dali porque tenho a certeza de que ela está inocente... Aliás, a propósito, posso pedir-lhe um conselho?

- Pergunte!

- Na ausência de sir Geoffrey Harden, a quem confiaria a defesa de um ser que lhe fosse... querido?

Morosini ouviu pela primeira vez o riso do pterodáctilo. Um riso franco e sonoro que quase o tornava simpático.

- Não tenho a certeza - disse -, de estar a cumprir bem o meu papel, ao fornecer um adversário tenaz ao advogado da Coroa, mas creio que me dirigiria a sir Desmond Saint Albans.

É manhoso como uma raposa, é uma autêntica peste, mas conhece as leis e a jurisprudência na ponta das unhas e as suas diatribes de cortar à faca produzem frequentemente mais efeito sobre o júri que os belos voos líricos. Se existe alguém capaz de aterrorizar os jurados, é bem ele. Acrescento ainda que é muito caro, sem dúvida por ser muito rico, mas suponho que a viúva de sir Eric dispõe de meios para o pagar. Foi ao declarar na peroração que a sua cliente estava disposta a pagar qualquer caução, mesmo muito elevada, que o jovem fedelho conseguiu a proeza de enviá-la para Brixton. O juiz ficou persuadido que ela escaparia no primeiro navio.

- Conheço um pouco sir Desmond - suspirou Morosini, a quem a evocação do nome causara um pequeno choque desagradável. - Nestes últimos dias, assisti ao enterro do seu tio, o conde de Killrenan, cujo título acaba de herdar...

- ... e a fortuna também, o que deve enchê-lo de alegria. Ele tem grandes necessidades, como todos os coleccionadores... Mas, a propósito, já vi o senhor. Não estava há pouco diante da loja desse pobre Harrison?

Decididamente, o homem tinha uma excelente vista mas Aldo pensou que no fundo não arriscava nada em responder-lhe, mesmo que tivesse captado na sua voz uma sombra de suspeita. Por deformação profissional, sem dúvida....

- Não pensava que alguém tivesse reparado em mim - sorriu. - Efectivamente, ia visitar o sr. Harrison com um dos meus amigos,

um arqueólogo francês, que se interessa quase tanto como eu pelas pedras antigas. Como acontece que ele me acha especialista na matéria, desejávamos examinar o famoso diamante antes que ele chegasse à sala de leilões. Infelizmente, quando chegámos, já o crime ocorrera e o melhor que conseguimos fazer foi juntarmo-nos aos mirones, para tentar saber algo mais. E não lhe escondo que, quanto a mim, estou a arder de desejo de lhe fazer uma ou duas perguntas.

- Tencionava assistir ao leilão?

- Claro... e talvez até lançar algumas ofertas.

- Diabo! - riu-se Warren. - Então o senhor é mesmo muito rico?

- Digamos que o sou razoavelmente. Em compensação, tenho alguns clientes afortunados que estariam dispostos a pagar um preço muito elevado por uma peça dessa importância.

- Dado que está dentro do assunto, não deve certamente ignorar que algumas pessoas pretendem que se trata de uma peça falsa. A avalanche de cartas que os jornais receberam...

- É por esse motivo que queria examiná-la pessoalmente - disse Morosini. - Aliás, por mera curiosidade! Já forjei a minha opinião, bem assente na reputação do sr. Harrison: um joalheiro do seu calibre não poderia deixar-se enganar por uma cópia grosseira - acrescentou virtuosamente.

Sentia um prazer perverso em louvar, diante de um alto funcionário da polícia, a autenticidade de uma pedra que sabia perfeitamente ser falsa. Pelo seu lado, o superintendente pareceu descobrir os encantos de uma grande pasta de cartão verde-escuro que acariciou, enquanto lhe endereçava um terno sorriso.

- Não tenho a menor dúvida a esse respeito - proferiu, numa voz subitamente sedosa - e os assassinos também não. Quanto a mim, tenho a esperança de conseguir deitar-lhes a mão num curto prazo de tempo, para que o leilão ainda possa ocorrer. São asiáticos e acontece que conhecemos uma grande quantidade deles. Já foram transmitidas indicações para que nenhum "amarelo" seja autorizado a deixar o país até nova ordem.

- Empregou os grandes meios!

- E por que não, se tenho todo o poder para o fazer? Até o próprio rei deseja que o caso seja tratado com mão de mestre. Não se trata de uma jóia que fazia parte da Coroa no século xv?

- Tem todos os meus votos de bom sucesso... mas não me pode confiar como é que as coisas se passaram? Os criminosos forçaram a entrada?

Gordon Warren decidiu finalmente abandonar a sua pasta, depois de nela ter tamborilado num gesto de encorajamento:

- Foi um infeliz concurso de circunstâncias! - suspirou. - Harrison devia receber esta manhã a velha lady Buckingham, que lhe pedira que lhe mostrasse, em privado, uma gema que pertencera outrora a um dos seus antepassados, o famoso e faustoso duque de Buckingham, cujo amor por uma rainha de França ter-nos-ia custado uma guerra suplementar, não fosse a facada de Felton. É uma dama muito idosa que vive enclausurada na sua residência, que nunca recebe ninguém e que é guardada por criados quase tão velhos quanto ela. Era impossível recusar um tal pedido e Harrison respondeu-lhe que a receberia com toda a alegria. Foi quando ela estava ocupada a admirar o diamante no escritório do joalheiro, que os dois homens mascarados e armados irromperam pela loja dentro. Puseram a velha senhora na rua, antes de abaterem Harrison e fugir com o produto do saque.

- Acredita em coincidências?

Desta vez os olhos do superintendente arredondaram-se mais do que o costume.

- Não está decerto a suspeitar que lady Buckingham possa ser cúmplice dessa gente? Claro que enviei Pointer a casa dela para recolher o seu testemunho, mas ela teve de se deitar e encontra-se em tal estado que teria sido um acto bárbaro querer arrancar-lhe qualquer palavra. As declarações foram prestadas pela sua criada, que aliás a acompanhou até à loja... Por ora, príncipe, receio não lhe poder dispensar mais tempo. Com dois casos desta envergadura, pode facilmente imaginar que tenho muito que fazer. Mas é de bom-grado que voltarei a vê-lo... caso tenha algo a contar-me.

- Assim o espero, sinceramente. Obrigado por me ter recebido.

Ao deixar a Scotland Yard, Morosini hesitou quanto ao que fazer. Não se sentia nada tentado a voltar ao hotel, pois Adalbert ainda não devia ter certamente regressado. Mas veio-lhe a vontade de ir respirar o ambiente para os lados da casa do crime. Chamou um táxi e mandou-o seguir até Grosvenor Square.

- Que número? - perguntou o motorista.

- Não sei mas não conhece por acaso a residência de sir Eric Ferrais?

- Claro que conheço. A partir do momento em que foi perpetrado um crime, a casa mais anónima torna-se logo célebre.

Situado no coração de um quarteirão muito nobre de Mayfair, Grosvenor Square abrigava várias embaixadas e algumas residências aristocráticas, frequentemente construídas ao estilo georgiano. Os nobres ao serviço do soberano tinham-nas mandado edificar no século anterior, nesse local próximo do Palácio de Buckingham.

- Ora cá estamos! - disse o motorista apontando para um dos edifícios mais imponentes, diante do qual acabara de parar outro táxi. - Deseja descer ou esperar que aquele se vá embora?

- Prefiro esperar...

De facto, um homem em fato de viagem saiu do veículo com tanta impetuosidade que quase aterrou aos pés de um dos dois polícias destacados para a vigilância do palacete particular e que, de mãos nas costas, calcorreavam o passeio com um andar firme e lento. Aldo reconheceu imediatamente o conde Solmanski, acabadinho de chegar dos Estados Unidos. Observou-o a parlamentar um momento com os guardas, a mostrar algo que devia ser um passaporte e, finalmente, a galgar as escadas que conduziam até ao portão de colunas, cuja porta lhe foi aberta pouco depois; mas, dado que o táxi que o trouxera não saía dali, o observador concluiu que se tratava de uma visita e que o pai de Anielka não contava demorar-se. Nas actuais circunstâncias, devia ser um pouco delicado para um parente da presumível assassina instalar-se em casa do assassinado.

Antecipando a pergunta do motorista, Morosini disse-lhe que iria esperar. E assim foi durante uma boa dezena de minutos, após os quais Solmanski saiu repentinamente. O observador pôde descortinar que ele tinha corado muito e que fazia grandes esforços para conservar a calma. Devia ter certamente passado por um acesso de cólera. Parou um momento de pé, no alto das escadas, recuperando a pouco e pouco o fôlego. Finalmente, colocou o monóculo na órbita respectiva e, depois, ajustando o chapéu, desceu até ao táxi que o transportara e que se pôs imediatamente em andamento.

- Siga aquele carro! - mandou Morosini.

A perseguição foi curta. Precisamente o tempo de dar a volta a Grosvenor Square e de entrar pela Brook Street, onde pararam finalmente diante do hotel Claridge.

- E agora, que fazemos? - perguntou o motorista de Morosini.

Este hesitou. Apetecia-lhe descer, seguir o conde para se certificar que ele ia fixar domicílio naquele local, mas era inútil: os bagageiros já estavam a descarregar as malas do carro que o trouxera. Parecia evidente que a perigosa personagem não se movimentaria enquanto Anielka não fosse ilibada ou enquanto não ocorresse o

julgamento.

Lá perigoso era, esse russo que se apossara dos despojos de um nobre polaco que tratara de enviar para o fundo da Sibéria! Quando Simon Aronov avisara Morosini no cemitério de San Michele em Veneza, não estivera com meias medidas ao revelar-lhe a verdade acerca do seu adversário mais mortífero. Inimigo jurado dos filhos de Israel, Fedor Ortschakoff, carrasco sanguinário do pogrom de Nidji-Novgorod em 1822, procurava recuperar por todos os meios as pedras do peitoral e a própria jóia, animado tanto pela paixão do dinheiro como pelo ódio que nutria por Simon Aronov, o homem que ousava combatê-lo, a ele e aos seus amigos, aos quais o Coxo chamava a Ordem Negra.

Até ao presente, o falso Solmanski ainda ignorava o papel que Morosini desempenhava na demanda das pedras desaparecidas: para ele este era apenas o último proprietário da safira, que partira à procura do tesouro familiar desaparecido. Sem dúvida que se tratava de um especialista em jóias antigas, mas pouco temível, e paralisado pelo amor que lhe inspirava a sua encantadora filha... Porém, Aronov fora peremptório: caso Aldo se interpusesse entre ele e as pedras que faltavam, Solmanski não hesitaria em pôr um círculo vermelho em volta do seu nome, na lista daqueles que convinha abater.

Esta perspectiva em nada perturbava o príncipe-antiquário. O perigo nunca o fizera recuar e, além disso, ele não duvidava que o aventureiro tivesse encomendado, ou até executado ele próprio, o assassinato da princesa Isabel, sua mãe. E como não era homem para jogadas subterrâneas, quanto mais depressa estivessem em guerra aberta, melhor seria.

Pelo momento, a situação do conde permitia a Morosini ser um simples observador e isso era uma boa coisa. Era inútil ir exibir-se sob as barbas do inimigo, mais ou menos paralisado pela morte do genro.

Deste modo, deixando-o instalar-se, acendeu um cigarro e mandou o motorista levá-lo de volta ao Ritz.

 

         CAPÍTULO 3 - A CADA UM A SUA VERDADE

Construída em 1820, a prisão de Brixton não era verdadeiramente uma penitenciária. Era utilizada sobretudo para os prisioneiros em regime de detenção preventiva, ali guardados enquanto aguardavam julgamento mas, mesmo assim, não se podia dizer que se tratasse de um local aprazível. As pedras seculares tresandavam a tristeza e a humidade. Uma vez no interior e cumpridas todas as formalidades, Morosini mergulhou numa atmosfera angustiante até que o introduzissem no compartimento dividido por um vidro, a que chamavam sala de visitas, onde ficou à espera.

Quando lady Ferrais apareceu, escoltada por uma mulher que só era diferente de um polícia pelo uso de uma saia e pela ausência de um bigode, Aldo sentiu pular-lhe o coração. Naquele cenário grisalho e com a severa indumentária preta a realçar o brilho da sua beleza loura, Anielka estava mais bonita que nunca, mas já não se tratava propriamente da mesma pessoa...

Isso devia-se ao facto de não parecer estar viva. Com o rosto empalidecido, os cabelos e os olhos de tom dourado, ela parecia-se com uma dessas estatuetas creselefantinas com as quais o escultor Chiparus triunfava nessa altura. Estava tão erecta e fria quanto elas.

O facto de ver o seu visitante não lhe trouxe nenhum brilho ao olhar. Foi sentar-se na extremidade oposta da mesa, enquanto a sua guarda permanecia para lá do vidro. Aldo inclinou-se. Ela ficou impassível.

- É mesmo você? - perguntou, simplesmente. - Que veio fazer aqui?

O tom dava a entender que ele não era bem-vindo.

- Saber se lhe posso ser útil nalguma coisa.

- Não me compreendeu bem. Não me estava a referir à prisão, mas sim a Londres.

- Se bem que já estivesse ao corrente da morte trágica do seu esposo antes de ter partido de Veneza, esse não foi o motivo da minha viagem. Na realidade, tive de deslocar-me à Escócia para assistir ao funeral de um velho amigo e foi em Inverness que, ao ler o jornal, fiquei a saber que...

- Que eu matei sir Eric. Não tenha medo de dizê-lo! É-me indiferente.

Ela fez-lhe sinal para que se sentasse na cadeira à sua frente.

- Não tenho medo das palavras - respondeu-lhe, obedecendo. - É aquilo que elas significam que me mete medo e no que não consigo acreditar. Você, uma assassina? Deixemo-nos de histórias!

Ela mostrou um leve sorriso de desdém:

- E por que não? Bem sabe que não o amava, e que até o detestava. Junto a ele, os meus dias eram dourados, mas as noites eram feitas de trevas repugnantes.

- Não a ponto de matá-lo; sobretudo desse modo tão estúpido, porque demasiado evidente: um saquinho de pó contra as enxaquecas exibido perante testemunhas para, em seguida, ser diluído num copo de uísque, e tudo isso depois de uma disputa? Você é demasiado esperta para uma coisa dessas. Tal como a conheço, via-a antes armada com um revólver, disparando sobre Eric Ferrais; essa história de medicamento para acalmar as dores e que acaba por causar a morte, isso é que não! Não se parece nada consigo.

- E por que não? Na sua terra, em Itália, ofereceu-se frequentemente veneno a um convidado e com o maior dos sorrisos!

- É um hábito há muito perdido e você não é um Bórgia. Desde que foi parar à prisão você não pára de clamar a sua inocência.

- Em pura perda, meu caro príncipe! A tal ponto que começo a ficar cansada de repeti-lo. Respondem-me, não sem razão, que dado que não havia estricnina nem no álcool, nem na água, ela não pode ter ido parar sozinha dentro do copo... E, no entanto, analisaram os outros saquinhos que estavam no meu quarto...

- Mas só esse é que continha veneno? Nesse caso, por que não analisaram também o papel que envolvia o pó?

- Foi o que pedi, mas não o encontraram. O fogo estava aceso na sala. Alguém deve tê-lo lançado na chaminé. Eric amarrotou-o e tinha-o deixado em cima da bandeja.

- Quem poderia ser? Tem alguma ideia?

Anielka teve então a reacção que o seu visitante menos esperava encontrar: soltou uma risada brusca, mas amarga e sem alegria.

- Talvez tenha sido John Sutton, o brilhante, o devotado secretário de Eric, que não hesitou em acusar-me do crime logo que viu o seu amo morrer. Ele odeia-me.

- Porque motivo? Que lhe fez?

- Esbofeteei-o. Parece-me ser a reacção normal de uma mulher honesta quando um homem a encosta a um canto apertando-lhe os seios e beijando-a no pescoço...

Aldo já sabia desde há muito que a jovem polaca não era pessoa de meias palavras e que possuía o talento das evocações precisas. Esta, no entanto, arrancou-lhe uma careta de desagrado. A lembrança que conservava do secretário, sempre de uma correcção perfeita, não correspondia em nada a esta súbita imagem digna do repertório de um sátira, mas também sabia que sob o gelo britânico se escondiam por vezes pulsões vulcânicas.

- Ele está apaixonado por si?

- Se assim se pode dizer! Há muito que sei que ele quer ir para a cama comigo.

- Não o contou ao seu marido?

- Ele chamou-me louca e limitou-se a rir. Tinha uma ligação com esse... criado, que ia para além dos limites permitidos. Creio que teria preferido cortar um braço a ter de separar-se dele. Sem dúvida que entre ambos devia existir algum esqueleto escondido no armário...

- Minha cara, quanto a cadáveres, como bom negociante de armas que sir Eric era, este tinha demasiados na consciência para se preocupar com um caso isolado. E se agora me falasse sobre esse tal criado polaco que contratou para o seu serviço?

A jovem perdeu a palidez e corou subitamente, desviando a cabeça.

- Como sabe?

Aldo sorriu-lhe com grande gentileza.

- Dir-se-ia que não perdeu esse seu hábito de responder a uma pergunta colocando outra. Sei-o, e é tudo!

Mas como ela permanecia calada, procurando talvez como contra-atacar, ele recomeçou.

- Fale-me um pouco desse Stanislas... ou devemos antes dizer Ladislas?

Os olhos da jovem esbugalharam-se e ele pôde ler neles algo semelhante ao terror:

- Você é o Demónio! - explodiu Anielka.

- Nem por isso... ou então sou um bom diabrete ao seu inteiro dispor. Vamos lá, Anielka, deixe de estar sempre a desconfiar e diga-me como conseguiu introduzir o seu antigo apaixonado em casa do seu esposo!

Ela desviou a cabeça mas, na triste luminosidade daquele local lúgubre, ele viu uma lágrima que lhe brotava no canto dos olhos.

- Apaixonado? Será que alguma vez o esteve realmente? Presentemente, duvido muito... como duvido também desse grande amor que você pretende ter por mim.

- Pelo momento deixemos isso de lado, se não se importa! - interrompeu Morosini brandamente. - Não fui eu quem escolheu cair nos braços de sir Eric na casa de Vésinet...

- Ele acabara de salvar-me e eu não tinha qualquer alternativa. Tal como não a tive com Ladislas, quando o encontrei em Hyde Park, onde aliás ele estava à minha espera...

- Como podia ele saber que você ia passar por aí? Já ninguém ignora que tem uma predilecção pelos parques, mas porquê logo esse? Em Londres, jardins é coisa que não falta...

- Não, mas eu costumava ir lá todas as manhãs passear a cavalo.

- Sozinha?

- Claro! Não gosto de estar acompanhada, pois dá-me demasiado a sensação de estar a ser vigiada. Oh, é óbvio que costumava encontrar um ou outro conhecido, mas geralmente conseguia sempre desembaraçar-me dele.

- Dir-se-ia que não foi o caso com Ladislas. Suponho que o efeito de surpresa deve ter jogado a favor dele, não?

- Efectivamente, tanto mais que saiu detrás de uma moita, esbarrando praticamente contra as patas da minha égua, fazendo-me quase largar os estribos.

- Ficou contente ao vê-lo?

- Na altura fiquei... Ele trazia-me um ar do país e também a lembrança dos primeiros amores. Para uma mulher, isso é algo que conta...

- Para um homem também. Mas acabou de dizer: "na altura"; então esse sentimento não perdurou?

- Não. Depressa entendi que tinha um adversário diante de mim, para não dizer um inimigo. Oh, ele começou por mostrar-se muito amável. À sua maneira, é claro. Dizia que apenas viera a Inglaterra para me encontrar, que fora muito estúpido termo-nos separado daquela maneira...

- Ele desejava reatar as relações passadas?

- Não propriamente. O que exigia - pois não demorou para começar a fazer exigências! - era que eu o introduzisse no meio do meu esposo. Declarou-se indignado por eu ter podido tornar-me a mulher de um traficante de armas, mas ele contava sobretudo servir-se disso para a "sua causa". Na realidade, foram os seus companheiros anarquistas que o enviaram para cá, com papéis falsos e um objectivo preciso: arranjar dinheiro para a revolução que queriam fazer. Tinha-lhes parecido extremamente divertido sacar uns tantos subsídios de um negociante de canhões. Também queriam armas.

Aldo retirou a cigarreira do bolso e ofereceu um cigarro à jovem antes de pegar num para si e de acendê-los a ambos.

- Mas isso é uma história de doidos! Ele queria que você roubasse...

-Já lhe disse que não. Tudo o que me exigia era fazê-lo entrar ao serviço de Eric. Uma vez colocado, pretendia que se empenharia em encontrar por si próprio o que procurava.

- E por que aceitou? Parece-me que tinha apenas uma atitude conveniente a adoptar: saltar de novo para a sela e saudá-lo - pois suponho que tinha descido do cavalo - enquanto lançava o animal a toda a brida.

- Era o que gostava de ter feito. Só que era impossível. Não imagina certamente que Ladislas me iria abordar sem ter as costas quentes?

- Chantagem?

- Naturalmente. Quando se é jovem e se está apaixonado pela primeira vez, acontece sermos imprudentes. Foi o meu caso. Escrevi cartas...

- Mas que deplorável mania vocês, mulheres, têm e que às vezes lhes custa bem caro! E o que é que ele queria fazer com as cartas? Mostrá-las a Ferrais? Este não era parvo e devia certamente imaginar que você já tivesse tido um namoro... Além disso, cartas enviadas por uma moça nova e apaixonada nunca são nada de muito grave...

- As minhas podiam sê-lo; tinha uma tal confiança nele que lhe contei detalhadamente os planos do meu pai para obrigar Eric a desposar-me.

- Ai, não gosto nada disso! - exclamou Morosini, com uma careta.

- Ainda há pior. Nessa época tinha aderido às ideias de Ladislas e do seu grupo. Queria, pelo menos, poder continuar a tê-lo como amante.

- Então ele foi seu amante? - perguntou Aldo, atónito. O olhar que ela lhe dirigiu era um poema de candura:

- Mais ou menos... sim. E como eu queria continuar a minha relação com ele, creio que vos dei por duas vezes a prova disso, comprometi-me, prometi que os ajudaria a... como é que eles diziam?... ah, a depenar o gordo pombo capitalista. Já imaginou o efeito que poderia ter sobre o meu marido uma correspondência deste teor?

- Imagino muito bem! Como imagino aliás a continuação: suponho que você deve ter então comovido Ferrais com a triste história de um primo caído na miséria e que encontrou por milagre...

- Foi quase isso: disse que ele era o filho da minha ama e ofereceram-lhe logo um lugar como criado.

- Parece uma novela. Nelas, há sempre uma ama com filhotes tão incómodos e desencaminhados quanto pitorescos! E, claro está, foi ele o assassino!

- Evidentemente. À partida a intenção fora certamente essa, mas tiveram muito cuidado em não me avisar.

- Mas que diabo! Por que não contou tudo à polícia, em vez de deixar que a detivessem e a aprisionassem? Nessa altura, as acusações formuladas pelo secretário teriam possuído muito menos credibilidade.

- Era impossível! Não podia fazer isso sem arriscar a vida. Tente compreender! Ladislas não veio sozinho para Inglaterra.

Ele tem companheiros que... formam uma célula, como ele dizia, encarregue de zelar por ele, de recuperar o que roubasse e de ajudá-lo a fugir em caso de perigo. Quanto a mim, fora bem prevenida: neste último caso nada podia dizer que pudesse colocar a polícia no seu rasto, caso contrário...

- Caso contrário não haveria perdão nem piedade - disse lentamente Aldo. - Você seria imediatamente condenada à morte.

- É isso mesmo. Além disso, também disse a mim mesma que pelo menos na prisão não teria nada a recear de ninguém. Ficaria protegida.

- Salvo da corda que a espreita! Mas, infeliz criatura, trate de entender que se não deitarem a mão ao verdadeiro criminoso, você arrisca-se pura e simplesmente a ser enforcada!...

- Não creio. O meu pai vai regressar da América. Ele saberá defender-me. Melhor que esse jovem imbecil que substituiu sir Geoffrey Harden. Ele encontrará um bom advogado.

- A propósito - disse Aldo, retirando um papel do bolso - recomendaram-me um advogado muito hábil e combativo. Está aqui o nome e a morada...

- Quem o recomendou?

- Por muito estranho que lhe possa parecer, foi um alto funcionário da polícia. Acontece que eu conheço vagamente sir Desmond Saint Albans e que ele não me inspira lá muita simpatia, mas parece que com a peruca na cabeça é um campeão que se agarra à sua causa como um cão a um osso. Para lhe dizer tudo, acrescento ainda que ele sairá muito caro, mas talvez valha a pena...

Ela pegou no papel, leu-o e guardou-o na mão.

- Obrigada - agradeceu. - Vou mandar chamá-lo. O dinheiro pouco importa.

A guarda entrou nessa altura:

- Cavalheiro, acabou o tempo...

- Só mais uma palavra! - disse Morosini, levantando-se. -Quando encontrar o seu novo defensor, rogo-lhe que lhe diga a verdade, toda a verdade. A propósito, qual é o verdadeiro nome de família do seu Ladislas?

- Wosinski. Por que me faz essa pergunta?

- Não acha que o melhor para si seria que afinal fosse eu a encontrá-lo, a ele e ao seu bando? Se isso acontecesse, não teria mais nada a recear... Anielka, trate de conservar a esperança. Espero poder regressar. Não precisa de nada?

- A Wanda deve trazer-me algumas pequenas coisas...

Sem acrescentar mais nada, sem demonstrar sequer o menor sinal de satisfação pela visita que recebera, a jovem juntou-se à guarda que já mexia ruidosamente na fechadura da porta. Aldo não conseguiu suportar deixá-la daquela maneira e chamou-a:

- Anielka! Esse homem que se esforça por proteger, está mesmo segura que já não o ama?

- Você devia ser a última pessoa a fazer-me essa pergunta, Aldo! Já lhe respondi meses atrás num bilhete que lhe escrevi e desde então não mudei(1)...

Graças a um desses milagres que só o amor consegue obter, Aldo teve a impressão de que um raio de sol acabara de iluminar e de aquecer as sinistras paredes grisalhas e foi com um passo alegre que saiu da prisão.

Na altura em que se dirigiu para o carro que o esperava, um outro táxi parou atrás do seu. Dele saiu uma mulher de meia-idade e de sólida corpulência, que se esforçou por extrair do veículo uma mala que parecia muito pesada. Prestando apenas ouvidos à sua galantaria, Aldo apressou-se a ajudá-la.

- Deixe-me ajudá-la, senhora! Isto é demasiado pesado para si!

- Oh, obrigada, cavalheiro! - agradeceu a dama com um sotaque estrangeiro, desatando logo a chorar. Foi então que Aldo viu que se tratava de Wanda, a fiel criada de quarto de Anielka, que lhe trazia decerto as "pequenas coisas" de que ela precisava.

- O senhor Morosini! - exclamou, entre dois soluços. - Por aqui? Mas que alegria, meu Deus! Que grande alegria!

E desatou a chorar copiosamente.

- Se está tão contente por me ver, tem que se acalmar! - disse Aldo, que teve subitamente uma ideia.

- Como é possível que tenha vindo até aqui de táxi? Já não há mais carros disponíveis em casa de sir Eric?

- Já não há nenhum que possa ser posto ao serviço da minha pobre lady - indignou-se Wanda, que parecia dominar agora a língua francesa. - Esse horrível sr. Sutton proibiu-o,

 

*1. Ver o volume 1, -A Estrela Azul.

 

a pretexto de que não se deve fazer nada que possa ajudar uma... uma assassina Oh! Isto é tão... horrível!

- Para um inglês, esse homem conhece muito mal a lei do seu próprio país: qualquer detido preventivo é considerado inocente até que seja provada a sua culpabilidade...

- Nesse caso, porque é que a minha pobre pequena está na prisão?

- É o que se chama prisão preventiva. Vai levar-lhe essa mala?

- Vou, ela pediu-me várias coisas. Pobre anjo, ela que é tão... Interrompendo lestamente o panegírico sobre Anielka, que não

poderia deixar de ser longo, Aldo conduziu Wanda até à porta de Brixton e propôs-lhe esperá-la para levá-la de volta a casa.

- Um só carro chegará para os dois - disse. - Vou mandar embora o seu táxi.

No meio do desespero de Wanda despontou um começo de acalmia.

- Esperar-me-á?

- Claro. Isso permitir-nos-á conversar um pouco... Não se demore!

- Oh, não, não tenho direito a vê-la. Vou deixar a mala na recepção e volto já.

Efectivamente, regressou passados alguns minutos e sentou-se ao pé de Aldo, que não perdeu tempo para ir directamente ao assunto.

- Acabei de dar à sua senhora o nome e a morada de um advogado sério. Parece que até agora ela foi muito mal defendida.

- Oh, lá isso é verdade! Ela nunca devia ter sido trazida para aqui. Se não fosse esse secretário mentiroso...

- Desse sei com que contar - interrompeu Morosini. - Gostaria que me falasse antes daquele que desapareceu: um tal Ladislas Wosinski, que ingressou recentemente ao serviço da casa sob um nome falso. O que, aliás, me parece uma medida supérflua, pois sir Eric nunca ouvira certamente falar dele.

- Ele não, mas quanto ao senhor conde, esse teria seguramente ficado furioso ao dar pela sua presença. A minha pombinha teria tido grandes aborrecimentos se ele viesse a saber que o jovem estava presente.

- Suponho que agora já sabe. Vi-o chegar ontem a Grosvenor Square. Não se demorou muito tempo e quando se foi embora estava com ar furioso, se bem que fizesse um grande esforço para se dominar.

Ao lembrar-se do que se tinha passado, Wanda ergueu os olhos ao céu e juntou as mãos.

- Oh, houve uma terrível disputa com Sutton por causa do que ele fez e também devido ao criado polaco mas, graças a Deus, o secretário só o conhece como Stanislas Rasocki e o senhor conde não sabe o resto!

- Como assim, "graças a Deus"? Ora aí está um homem que obrigou a sua senhora a acolhê-lo, que lhe assassinou o marido e que se escapuliu, deixando-a endossar sozinha as consequências, e você parece achar que está tudo bem?

- Com certeza! Ladislas Wosinski é um patriota, um nobre coração e se matou foi para proteger a sua amada... pois ele ama-a sempre e muito apaixonadamente. Deve ter ouvido a cena horrível que o esposo fizera pouco antes.

- Eu sei que se disputaram, mas não foi decerto pela primeira vez...

- Foi a primeira vez que foi tão violento. Já havia um tempo que o meu anjinho se recusava a dormir com ele. Ela sofria de grandes enxaquecas que acalmava com um medicamento.

Apesar da gravidade do assunto, Morosini sorriu ligeiramente. Há muito que as enxaquecas, secundadas por males mais íntimos, eram a arma favorita das mulheres contra o dever conjugal.

- E nesse dia, ela estava de novo com dores de cabeça? Não era muito cedo para ir para a cama?

- Sem dúvida, mas a nossa jovem lady estava a fazer a sua toilette e a preparar-se para passar a noite. Devo dizer que trazia um vestido com um grande decote e que parecia particularmente bela e desejável. O marido bebera. Enfureceu-se, pôs-me dali para fora e não vi mais nada, mas o que ouvi foi horrível. Pouco depois sir Eric saiu, muito vermelho, quase roxo, desapertando o colarinho para não abafar. Quanto à minha pombinha, estava a chorar, sentada na cama, quase despida: o seu vestido fora rasgado... sirEric regressou pouco depois para se desculpar, mas não lhe abrimos a porta.

O que Aldo estava a ouvir devia ser certamente a verdade. O que ficara a saber sobre as primeiras relações entre Anielka e Ferrais e, sobretudo, o que sucedera na noite do contrato de casamento só confirmava que Wanda não estava a mentir.

Imaginava facilmente a continuação da história que se desenrolara no escritório, na presença da duquesa de Danvers: sir Eric a queixar-se de uma dor de cabeça e Anielka, friamente irónica, oferecendo-se para lhe ir buscar um saquinho do próprio remédio que ela tomava nesses casos...

- Foi ela quem foi buscar a aspirina, ou foi outra pessoa? - perguntou.

- Ela disse a Ladislas que fosse pedi-la a mim e fui eu quem lha entreguei.

- Mas então, que diabo, porque raio foi ela presa? O que pode ter contado esse Sutton para que ela fosse detida? O saquinho passou por dois pares de mãos e suponho que quando vieram pedir-lho, você pegou num qualquer ao acaso, não foi?

- Evidentemente, e foi isso que contei ao senhor da polícia. Mas Sutton pediu para falar com este em particular e não pude ouvir nada do que lhe contou... Tudo o que sei é que a minha pombinha está presa.

- Faz bem em lembrar-me! - disse Morosini, sarcasticamente. - A propósito, penso que está na altura de me explicar porque está

tão contente por Ladislas andar por aí à solta, deixando a sua pombinha a definhar na palha húmida dos cárceres.

- Pode ter a certeza que ele não vai deixá-la lá ficar!... Ama-a demasiado para isso!

- Verdadeiramente? - exclamou Morosini, que o ar lírico de Wanda começava a aborrecer prodigiosamente. - Não acha que teria sido mais simples que ele não tivesse dado às de vila-diogo, que tivesse assumido as suas responsabilidades protegendo Anielka o melhor que pudesse?

- Não, porque isso teria apenas feito com que fossem ambos presos. Enquanto ele estiver cá fora, ainda há esperança para a minha jovem lady. Tenho a certeza que ele tem amigos neste país e que está a preparar a sua libertação... ou a sua evasão, para que possam finalmente regressar, a fim de continuarem a viver o seu amor no velho país do qual nunca devíamos ter saído.

Morosini desistiu. Estavam a navegar em plena ficção científica e era óbvio que não iria conseguir arrancar aquela boa mulher aos seus sonhos cor-de-rosa. Uma coisa era certa: entre a versão da jovem e a da sua fiel camareira existia um fosso demasiado profundo e espinhoso para que alguém nele se aventurasse.

- Enquanto penso nisso - reatou Morosini - não sabe por acaso onde poderei procurar Ladislas Wosinski?

Obrigada a descer bruscamente das regiões celestes para onde se tinha deixado levar, Wanda olhou severamente para o seu vizinho.

- Porque me pergunta isso? Espero que não tenha a intenção de entregá-lo à polícia, pois não?

- De modo algum - replicou Aldo, evitando cuidadosamente revelar-lhe que já tivera uma conversa a esse respeito com o superintendente Warren -, mas é que mesmo assim gostaria muito de saber onde ele se encontra. Imagine só que ele decida optar pela sua própria segurança, esquecendo-se do grande amor que tem por Anielka e abandonando-a às mãos da justiça inglesa...

- Se o conhecesse, não lhe ocorreria uma abominação dessas. É o coração mais generoso que existe, um verdadeiro paladino que dedicou a vida à liberdade do seu país, à verdadeira liberdade, e ao aliviar das misérias de que padece o povo polaco. Acredite-me, na altura certa ele fará o que for preciso. Basta ter um pouco de paciência...

Morosini fez uma careta de dúvida. Era preciso ter a fé de um carvoeiro para se persuadir daquela maneira da pureza de intenções de um homem que Anielka apresentava como um chantagista. Desistiu.

O resto da viagem decorreu no meio do silêncio, apenas acompanhado pelos murmúrios das preces de Wanda, mas quando a residência Ferrais ficou à vista, Aldo declarou.

- Antes de nos separarmos fique sabendo o seguinte: quanto a mim, tenciono salvar a sua senhora. Primeiro porque a julgo inocente e, depois, porque a amo. Caso precise da sua ajuda, poderei contar consigo?

Wanda mostrou-se logo toda arrependida:

- Oh, desculpe-me! Já me tinha esquecido que o senhor também a ama e devo tê-lo magoado, mas é óbvio que estou disposta a ajudá-lo. Se quiser falar comigo, vou todas as manhãs ouvir a missa das nove na igreja do Oratório, perto do Museu Victoria and Albert. Não fica muito longe de minha casa, enquanto que a igreja polaca se encontra num subúrbio. Ela agradar-lhe-á, julgo que é uma igreja italiana. Não é muito frequentada e aí podemos conversar tranquilamente. Além disso, durante a missa estamos sob o olhar do Senhor! - acrescentou Wanda, apontando um dedo sentencioso para o tecto da viatura.

- Está tudo bem mas se, por outro lado, você desejar dizer-me alguma coisa, pode sempre deixar uma mensagem no hotel Ritz. Vou escrever o número aqui - disse, arrancando uma página do seu canhoto para anotar os números.

Como o táxi tinha parado Wanda ia descer quando Morosini a reteve:

- Só mais uma palavra! Não fique espantada se daqui a um quarto de hora eu vier bater à porta. Não será para si. Desejo ter um encontro com o sr. Sutton.

- Quer falar-lhe? - gemeu a mulher, subitamente inquieta. - Mas acerca de quê?

- Isso, cara senhora, é assunto meu. Tenho uma ou duas perguntas a fazer-lhe.

- Ele não o receberá.

- Seria desajeitado da parte dele. De qualquer modo, não arrisco nada. Vou dar uma volta e já venho.

Efectivamente, um quarto de hora depois, um mordomo de ar glacial abria-lhe a porta da casa do falecido Eric Ferrais, deixando-o depois a esperar ao fundo de uma escadaria com uma linda forma elíptica, que subiu enquanto o informava que ia certificar-se se o sr. Sutton podia receber alguma visita. Aldo foi obrigado a esperar na companhia de uma colecção de bustos romanos de olhos fechados, de um sarcófago bizantino e de uma jarra de bronze para as abluções, que devia ter visto o dia algures para os lados de Pequim. A residência londrina do negociante de armas parecia-se muito com a do parque Monceau, mas ainda conseguia a proeza de ser mais sinistra, pois o lado pomposamente pesado do estilo georgiano que ali prevalecia não era de molde a amenizar as coisas. Devia abafar-se facilmente naquela atmosfera revestida de pesadas passamanarias e de veludo da cor do chocolate.

O pequeno escritório onde introduziram Aldo alguns momentos depois não era muito mais espairecido. A única nota de vida devia-se ao mar de papéis que cobria a secretária e à poderosa lâmpada que os alumiava. Em volta, havia um batalhão de dossiers verde-escuros que tapava as paredes. No meio da sala, John Sutton esperava o visitante de pé, completamente vestido de preto, como se fosse o guardião de um templo.

O silêncio que reinava na residência era impressionante. Não se ouvia um único ruído, um único roçagar ou sussurro! Até o fogo de carvão que ardia na chaminé estava silencioso, como se um estalido ou uma faúlha fosse um sacrilégio.

Quando Morosini entrou o secretário inclinou-se, declarando-se encantado por voltar a vê-lo em tão boa forma - ainda não lhe fora dado esse prazer desde aquela famosa noite em que Aldo viera buscar o resgate de Anielka e o Rolls-Royce à rua Alfred-de-Vigny - e, ao apontar-lhe um assento, acrescentou que considerava como um favor se pudesse ser-lhe útil nalguma coisa.

Morosini sentou-se, mostrando-se muito cuidadoso com a prega das calças, estudando o jovem durante um momento, enquanto tirava um cigarro, com cuja ponta bateu na superfície brilhante do estojo dourado.

- Vim fazer-lhe uma pergunta, senhor Sutton! - disse, por fim.

- De alguns dias para cá já me fizeram muitas.

- Ficaria surpreendido se já lhe tivessem feito esta: diga-me por que motivo parece tão empenhado em que lady Ferrais seja enforcada?

Antes de abrir a boca, Aldo preparara-se para ouvir todo o tipo de reacções, salvo a que ocorreu. John Sutton aguentou o olhar sem manifestar a menor emoção e, depois, respondeu com voz branda:

- Porque ela não merece outra coisa. É uma assassina da pior espécie, e premeditou o seu crime.

E sorriu, o que obrigou Morosini a dominar uma violenta reacção do seu sangue latino. Para o conseguir, acendeu o cigarro e inspirou uma baforada que expeliu para o tecto encaixilhado.

- Como pode ser tão peremptório? - perguntou, numa voz perfeitamente monocórdica. - Tem provas?

- Palpáveis, não tenho! A única que poderia ser determinante - o saquinho de papel que contivera o veneno - desapareceu milagrosamente; não há dúvida que foi lançado ao fogo por mão diligente. Mas eu vi e ouvi, e é por isso que não hesitei sequer um momento em acusá-la. É possível que isso lhe cause muita pena, mas acredite-me que não tenho a menor dúvida quanto à sua culpabilidade!

- A partir do momento em que esteja disposto a dizer-me o que viu e ouviu, não terei mais nenhuma razão para pôr em causa as suas convicções. Julgo que você era muito ligado a sir Eric, não é verdade?

- Muito! Logo que saí de Oxford entrei ao seu serviço como secretário e não mais o deixei.

- Mas você não é uma pessoa idosa. Isso não deve ter ocorrido há muito tempo...

- Há três anos, mas com um homem da sua índole, algumas semanas teriam chegado.

- Talvez!... Não tive o privilégio de frequentá-lo muitas vezes, para além do facto de nos termos oposto acerca de certo caso que decerto conheceu. Mas, mesmo assim, volto a reiterar a pergunta de há pouco: que viu e ouviu?

- Quer mesmo sabê-lo? Nesse caso, tenho de começar por lhe dizer que há aproximadamente dois meses contratámos um criado polaco...

- Deixemos por ora esse pormenor! Foi Sua Graça, a duquesa de Danvers, que me contou a trágica noite: ela falou-me desse criado que se volatilizou na natureza...

- Esse pormenor, como diz, não deixa de ter a sua importância. Acabará por admiti-lo quando lhe disser que surpreendi lady Ferrais abraçada a ele...

- Abraçada a ele?... Tem a certeza que não está a... dramatizar a situação?

- Julgue por si próprio! Foi há três semanas, aproximadamente. Nessa noite sir Eric foi jantar a casa do senhor lorde, Presidente da Câmara, e eu fora ver o balletem Convent Garden. Como disponho da minha própria chave, entrei sem fazer barulho e sem acender sequer a luz. Conheço tão bem os cantos à casa, que estou habituado a andar às escuras, tanto mais que sir Eric detestava que os meus regressos nocturnos não fossem pautados pela discrição. Estava portanto a subir as escadas quando ouvi um riso e alguns cochichos. O som vinha dos aposentos de lady Ferrais e então constatei que a porta do seu boudoirestava entreaberta. A luz que filtrava era fraca mas suficiente para que eu pudesse ver esse Stanislas saindo em bicos dos pés. Na altura em que se esgueirava para fora da sala, lady Ferrais seguiu-o até à entrada e aí eles abraçaram-se... apaixonadamente, antes de ele a empurrar com toda a suavidade para que ela voltasse para dentro...

Sutton parou, inspirou uma ou duas vezes e depois continuou, deixando transparecer a sua cólera.

- Direi ainda que ela estava praticamente despida, se se puder chamar roupa ao trapo de cambraia branca que trazia... Isto foi o que vi! Não lhe escondo que depois comecei a espiá-los...

- E quanto ao que ouviu? - perguntou penosamente Aldo, cuja garganta acabara de secar.

- Ouvi muita coisa, mas não percebi nada porque eles falavam na sua língua natal e eu não a conheço. Excepto uma vez... Uma vez em que a ouvi dizer-lhe: "se quiseres que te ajude, primeiro tenho de ser livre. Começa por seres tu a ajudar-me...". Isto, quatro dias antes da morte de sir Eric.

- E foi o que disse à polícia?

- Naturalmente. Já era difícil suportar que ela tivesse tido a audácia de introduzir o amante nesta casa. Porém, eu decidira não dizer nada e deixar que a verdade explodisse aos olhos de sir Eric, o que não podia deixar de acontecer. Mas quando o vi morrer ali, quase a meus pés, já não me foi possível continuar calado. Desejei matá-la com as minhas próprias mãos!

Fez-se silêncio. Morosini não sabia muito bem o que pensar. Esta versão aproximava-se da de Wanda, demasiado dedicada a Anielka para que se pudesse suspeitar da sua autenticidade. Por outro lado, estava tão longe da versão da jovem!... Ele sabia por experiência própria que Anielka tinha um certo talento para inventar mentiras, mas até àquele ponto, isso era difícil de admitir. Optou então por encurralar Sutton nas suas próprias defesas.

- Para sentir tanta... cólera, é preciso que tenha tido uma enorme estima por sir Eric... ou, então, que o ódio que sente pela sua mulher - pois não é verdade que a odeia? - se deva ao facto de você estar apaixonado por ela e de ela o ter rejeitado.

O jovem soltou um risínho, enquanto um raio lhe perpassava pelos olhos sombrios, profundamente encovados:

- Apaixonado? Não: ela não me despertava qualquer ternura; mas desejei-a, isso sim! - respondeu, com uma rudeza toda britânica. - Confesso que a desejava e que ainda a desejo.

A minha única esperança é que esse desejo morra com ela!

Não havia nada a acrescentar. Morosini ficara a saber tudo o que desejava e mais ainda. Levantou-se.

- Agradeço-lhe - disse -, por me ter falado com toda a franqueza. Talvez eu não esteja tão convencido quanto você da culpabilidade de lady Ferrais. Agora julgo entender melhor as suas motivações, se bem que o ciúme ainda me pareça ser o motor principal...

A palavra fez reagir John Sutton, que parecia perdido num sombrio devaneio. Estremeceu, e desferiu a Aldo um olhar onde brilhavam as lágrimas.

- O ciúme? Oh, confesso-o de bom-grado, mas não pelo motivo que está a imaginar. Eu não tinha ciúmes por ela me recusar o corpo que aviltava com um lacaio, mas por uma razão completamente diferente, que não estou disposto a confiar-lhe. Muito boa noite, príncipe Morosini!

- Igualmente. Gostaria de poder, ao mesmo tempo, desejar-lhe a paz de alma, se bem que você não pareça estar no bom caminho para lá chegar...

Apesar da morrinha que não parecia decidida a parar, Aldo optou por regressar a pé. Precisava de arrumar um pouco as ideias e a marcha sempre lhe parecera um meio propício. Além disso, a distância não era assustadora. De mãos enfiadas nos bolsos, partiu a passos rápidos através da luminosidade incerta - a noite caía - da qual brotava por vezes a forma piramidal de um polícia de capacete e capote. Também se avistavam alguns transeuntes, se bem que naquele quarteirão aristocrático as pessoas se deslocassem sobretudo de carro.

O encontro com Sutton deixara-lhe um travo amargo. O que lhe fora dado ouvir durante todo o dia deixava-o indeciso, desencorajado, com a sensação de lhe ter caído em cima uma rede tecida de mentiras e de meias-verdades, destinada a paralisar-lhe os movimentos. As imagens demasiado precisas que o secretário evocara afectavam-no tanto mais porquanto aquele não negara ter tentado a sua sorte junto a Anielka. Que mulher era ela realmente? Quem, dos dois, Ladislas ou ela, manipulava o outro? E que crédito podia dar Morosini aos sentimentos que ela afirmava ter por ele? Que esperava dele e até que ponto não estaria tentando manipulá-lo?

Todas estas perguntas entrechocavam na sua cabeça, tanto mais irritantes porquanto era impossível encontrar-lhes uma só resposta... E pensar que se sentia tão feliz ainda há pouco, ao sair da prisão de Brixton, tão decidido a terçar armas pelos lindos olhos dourados da sua bela, disposto a tentar tudo para acorrer em seu socorro! Presentemente, hesitava quanto à conduta a adoptar.

Ocorreu-lhe uma frase de Chateaubriand que o seu preceptor, Guy Bateau, lhe seringava durante a adolescência, quando ficava indeciso quanto ao que fazer: "Avançai, se não tiverdes medo e se não preferirdes fechar os olhos!..."

Fechar os olhos? Nem sequer se podia preocupar com isso, pois sentia-se quase cego. Avançar, então? Mas em que direcção?

Subitamente sentiu-se acometido por uma dor, tão aguda que era quase física: a dor que sente qualquer homem que começa a duvidar se deu ou não o seu amor a uma mulher indigna dele. Magoou-o tanto que teria podido gritar, obrigando-o a parar, para se apoiar a um candeeiro. Nunca experimentara tal sensação de desespero e de impotência, mesmo quando dissera adeus a Dianora, uns anos antes.(1) Tirou o chapéu num gesto brusco e, de olhos fechados, deixou que a chuva fria lhe molhasse a cabeça. As lágrimas que não conseguia reter misturaram-se às gotas da chuva. Uma voz de mulher levou-o a abrir os olhos.

- Posso ajudá-lo, cavalheiro? Não parece sentir-se bem...

A desconhecida era jovem, não era feia e, debaixo de um amplo chapéu-de-chuva, abrigava um rosto claro com uma touca de veludo na cabeça. Morosini conseguiu sorrir-lhe:

- Obrigado, senhora! Isto vai passar!... É uma velha ferida de guerra, que me vem por vezes à memória.

Nenhum dos dois teve tempo para dizer mais alguma coisa: saindo de uma limusina verde-escura que acabara de parar, um motorista de libré preto aproximara-se e pegara no braço de Morosini com tanta autoridade que este, apanhado desprevenido e num estado em que não podia oferecer resistência, nada encontrou para objectar.

- O senhor príncipe não devia sair com um tempo destes! Já lhe disse isto antes, mas ele não me ouve! Felizmente que o avistei... - disse o criado, cujo tipo mongol pareceu subitamente familiar a Morosini.

 

*1. Ver volume 1, "A Estrela Azul-.

 

Entretanto, já o arrastava para o carro. Aldo mal teve tempo de dirigir um último agradecimento à caridosa londrina, antes de se ver agarrado por uma mão vinda de nenhures e impelido a sentar-se nas almofadas de veludo no fundo de um poderoso automóvel, ao lado de um homem cujo rosto desaparecia parcialmente sob o rebordo de um elegante chapéu, de um par de óculos escuros e da soerguida gola de pelica forrada de astracã. Mas o que atraiu primeiro o olhar de Aldo foi uma bengala de ébano com o pomo dourado, com o qual brincava uma mão enluvada. Ficou tão surpreendido que se esqueceu momentaneamente dos seus tormentos:

- O senhor por aqui? - murmurou. - Mas que surpresa!

- Efectivamente. Fique sabendo que vim apenas por sua causa e que já o estamos a seguir desde que saiu do hotel.

-Mas... porquê?

- Porque ao saber da morte de Ferrais, receei o que acaba de acontecer: o amor que tem pela filha de Solmanski começou a destruí-lo e se ninguém vier em seu auxílio, ele levará a sua tarefa a bom porto.

- Não está a exagerar um pouco? - protestou Morosini. - Eu, destruído?

- Ainda não, mas não vai tardar. Pense que só em poucas horas passou da felicidade ao sofrimento e à dúvida. Porque está a sofrer. Está estampado, com todas as letras, no seu rosto.

Morosini encolheu os ombros e pareceu muito absorto a secar a cabeça com o lenço.

- São coisas que acontecem! - suspirou. - Por ora tenho medo de me tornar um idiota. Já não sei que pensar ou acreditar.

- E se pensasse noutra coisa?

Só havia doçura na voz profunda de Simon Aronov, que soava como um violoncelo; contudo, Aldo detectou uma crítica velada que o fez corar.

- Está a dar-me a entender que eu não vim a Londres para me ocupar dos assuntos de lady Ferrais e não posso deixar de lhe dar razão, mas há novos factos. Deve sabê-lo... e admitir que a morte de Harrison mudou consideravelmente as coisas. Na situação em que nos encontramos, eu e Vidal-Pellicorne, pareceu-me que ele chegaria para procurarmos inteirar-nos de mais alguma coisa e que eu me podia consagrar a ela...

- Ela, que o enfeitiçou e por quem você já arriscou a vida! Está disposto a recomeçar e não posso criticá-lo: é uma reacção humana. Além disso, está de acordo com o seu temperamento. E eu peço-lhe que deixe de se intrometer ainda mais neste assunto... pelo menos, durante algum tempo. É demasiado perigoso!

- Perigoso? Ora vamos. Até aqui agi com o acordo do superintendente Warren a quem devo aliás prestar contas do que puder vir a saber. Onde está o perigo?

- No Claridge! Solmanski acaba de regressar da América.

- Bem sei: ontem vi-o chegar a casa do genro e sair de lá furioso...

- Tem de admitir que há motivo para isso: ele regressava tranquilamente para assistir ao leilão do diamante, certamente regozijado ao saber da morte do genro, o que lhe iria permitir recuperar de uma só vez a safira, ou aquela que ele julga ser a original, e uma bela fortuna; ora, quando chega, a filha está presa e a Rosa de Iorque desapareceu. E esse homem detesta as contrariedades!

- Não duvido, mas isso não me explica de que modo é que eu poderia correr algum perigo ao procurar descobrir o verdadeiro assassino.

- Lembre-se do que lhe disse em Veneza: a partir do momento em que Solmanski o encontre de novo no seu caminho, você deixará de estar em segurança. Tente entender que a filha é o melhor instrumento de que ele dispõe e que não permitirá que ninguém se interponha entre ele e ela!

- Eu apenas quero interpor-me entre ela e o enforcamento. Não ignora decerto que ela estará perdida se ninguém vier em seu auxílio?... Que tem de defrontar um acusador que insiste na sua perda e que nenhum advogado conseguirá sequer que ela possa mudar uma só vírgula à sua deposição?

- Estamos ambos de acordo... mas se deixasse antes a Scotland Yard fazer o seu trabalho? Essa gente é muito hábil e bem capaz de deitar a mão ao polaco foragido. E note ainda que Solmanski nunca permitirá que executem a sua querida menina e nem sequer que a condenem. Não se vá meter no meio disto tudo. Aliás, não me confessou há pouco que já não sabia em que acreditar?

- É verdade que o disse, mas você não pode compreender!

- Nesse caso, explique-me! - suspirou Simon Aronov.

- Quanto a mim não estou apressado e Wong pode dar ainda umas duas ou três voltas ao Hyde Park! Você hoje viu três pessoas. Talvez eu o possa ajudar a esclarecer as ideias caso me confie o que elas lhe disseram.

- Afinal de contas... por que não?

Aldo sabia contar os factos sem se afundar em pormenores. Conseguiu narrar os seus encontros sem se deixar de novo invadir pela angústia de há pouco.

- Então - disse, por fim -, Que pensa? Qual será a boa versão? Quem diz a verdade?

- Todos e ninguém. Cada um agarra-se à "sua" verdade, adaptando-a ao seu temperamento. O secretário sente-se bem no seu papel de vingador a ponto de não negar a sua frustração sexual, mas é difícil acreditar que um simples patrão possa inspirar um sentimento que justifique tanta obstinação; a criada fiel vive enredada na nostalgia dos amores adolescentes da sua jovem patroa. Quanto a lady Ferrais, a sua visita surpresa deve ter-lhe feito o mesmo efeito que a aparição milagrosa do Cavaleiro à Princesa. Ela compreendeu que ainda a ama e quase de certeza que a sua versão ressentiu-se disso. Talvez até de modo inconsciente, pois ela é ainda muito nova.

- Não quer acreditar que ela me ama?

- Sim, por que não? Suponho que ela o ama... também! Mas não se agarre exclusivamente a essa ideia! Acabaria por perder a alma... e, talvez, a própria vida. Acredite-me! Acabe o que começou, contando ao superintendente a sua visita à prisão e, depois, retire-se deste caso! Pelo menos durante algum tempo. É a pista do diamante que é preciso seguir de imediato, enquanto ainda está quente!

- A pista? Mas não dispomos de nenhuma, dado que a pedra pela qual mataram é falsa!

- Talvez seja procurando a falsa que terá mais hipóteses de encontrar a verdadeira. Que faz Adalbert neste momento?

- Passa o tempo na companhia de um pequeno jornalista rameloso que teve a sorte de ter visto sair os assassinos. São chineses, ao que parece - acrescentou Aldo, relanceando os olhos pelo motorista.

- Nem todos os asiáticos são chineses, mas o seu jornalista não sabe, sem dúvida, diferenciá-los; por exemplo, Wong vem do país do Calmo Amanhecer. É coreano. Dito isto, penso que Adalbert tem razão ao querer investigar as menores informações.

- E eu faria melhor em fazer o mesmo - disse Morosini, reencontrando pela primeira vez um vago sorriso. - Mas, afinal de contas, por que julga que, ao procurar a pedra falsa, acabaríamos por descobrir a verdadeira? Não há motivo para isso: mataram Harrison para se apropriar do que julgavam ser a jóia do Temerário, ponto final.

- A não ser que o indivíduo que procuramos, e dado o facto da campanha de cartas anónimas não ter produzido qualquer resultado, só tenha encontrado esse meio simples e prático para retirar da circulação um objecto irritante a fim de não ser desmascarado.

- Nesse caso ele tê-lo-á destruído e não encontraremos nada! O Coxo soltou um pequeno riso brando e indulgente.

- Conhece assim tão mal os seus clientes e confrades, os verdadeiros apaixonados pelas jóias antigas? A que roubaram é decerto uma cópia, mas é tão bela, tão bem conseguida! Se o proprietário do verdadeiro diamante está na origem do crime, não terá coragem para se separar dela, e guardá-la-á... a título de curiosidade! E tão cuidadosamente quanto à original!

-Já devia saber que você tem resposta para tudo - disse Aldo, sem conseguir dissimular a sua má-disposição. - Contudo, nada nos diz que o objecto ainda esteja em Inglaterra. Mesmo que o seu "meío-irmão" ainda por cá ande. O uso de asiáticos...

- ... É a coisa mais fácil do mundo em Londres, para quem tiver os meios para tal. Os quarteirões mal afamados do Tamisa estão cheios de chineses e da escória amarela ou preta do Império. De qualquer modo, o percurso do diamante até aos nossos dias, mostra que a Inglaterra desfrutou sempre das suas preferências...

- Você conhece-o, esse percurso? Quanto a mim, não sei lá grande coisa: era o motivo central de uma jóia de belo tamanho, então chamada Rosa Branca, que representava as armas de Iorque e que desapareceu com as outras jóias que foram pilhadas no campo do Temerário, depois da batalha de Grandson, em 1476. Ao que se diz, a cidade de Bale teria comprado algumas das jóias em segredo, apesar do acordo estipulado com os restantes cantões, que esperavam reunir o tesouro na sua íntegra. Depois, Bale tê-la-ia revendido aos Fugger de Augsbourg.

- Não "aos" Fugger! Mas a Jacob Fugger, o homem mais rico da Europa da época, quando o ramo "em lis" se distinguia dos outros menos afortunados, "em esquilo"; mas, nessa altura, já faltava o diamante que formava a própria flor. No entanto, a pedra era tão bela que Jacob recusou-se a vendê-la e só depois de ele morrer é que o seu sobrinho Matias a cedeu a Henrique VIII de Inglaterra, na ocasião em que lhe deu igualmente um rubi que também pertencera ao duque de Borgonha.

"O diamante permaneceu nas jóias da Coroa Inglesa até Carlos I, que o ofereceu ao seu favorito, George Villiers, duque de Buckingham, para lhe agradecer o ter levado a bom termo as negociações do seu casamento com Henriqueta de França. A Rosa de Iorque - doravante é assim que será chamada! - entrou na posse do segundo duque e é aí que o seu rasto desaparece. Segundo um rumor da corte, ele tê-la-ia perdido a jogar às cartas contra a actriz Nell Gwyn, que era então a favorita do rei Carlos II e grávida do filho que lhe ia dar nesse ano de 1670. Um dos numerosos filhos bastardos desse soberano demasiado amigo dos prazeres e que nunca conseguiu obter um herdeiro da sua mulher, Catarina de Bragança...

- E por que não seria essa a verdade? Parece-me uma história bem plausível. E, a partir dessa altura, não se sabe de mais nada?

- Em todo o caso, não se sabe grande coisa: a pedra teria reaparecido por duas ou três vezes nas mãos de usurários que, por serem judeus, não deixavam de ignorar a tradição do peitoral, mas uma coisa é certa: desde o séc. xvii ela não mais saiu desta ilha.

- Pode ser que tenha razão. Também sabe decerto como foi possível efectuar o roubo na loja de Harrison?

- Confesso que não estou ao corrente dos pormenores. Esse crime apanhou-me desprevenido.

- Pois bem, os assassinos devem ter sabido, não sei por que indiscrição, que uma senhora muito nobre e velha desejava ver o diamante, em privado, antes que este fosse transportado para o Sotheby's. Quase que entraram atrás dos seus calcanhares. Ela só teve tempo para desandar dali para fora com a ajuda da criada e de regressar a casa, onde se recolheu. Ora, o que me despertou a atenção ao ouvir o que me contou, é que esta dama se chama precisamente lady Buckingham.

Aronov soltou uma exclamação.

- Lady Buckingham? Tem a certeza?

- Não há a menor dúvida. Harrison não teria concedido uma visita dessas a qualquer pessoa.

- Muito me surpreende, meu amigo. Acontece que conheço essa dama. Segundo me recordo, parece-me que não só ela é muito idosa, como também está paralisada das pernas.

- Segundo me disseram, ela parecia ser arrastada em vez de andar e também é verdade que o corpo consegue por vezes fornecer um esforço muito particular quando se encontra sob o efeito de uma emoção muito forte. Ora ela desejava muito poder admirar a pedra que pertencera ao seu antepassado...

- Humm... está bem! Mas, mesmo assim, isso parece-me muito estranho. Bem sei que a marquesa vive completamente retirada desde que se considera uma ruína - ela foi tão bela outrora! - que nunca recebe ninguém e que até, por assim dizer, já se esqueceram dela, mas também me parece que, tendo em conta o seu nome, estatuto e estado de saúde, ela podia conseguir facilmente que Harrison se deslocasse para exaurir o seu desejo.

- Talvez isso fosse imprudente! Sobretudo se ela mora muito longe. Além disso, teria sido preciso uma escolta policial e toda essa agitação podia atrair a imprensa até à sua porta. Ora, se o que ela quer é sombra e silêncio...

- Você tem provavelmente razão - admitiu o Coxo - mas mesmo assim devo tentar saber algo mais.

- Está a pensar numa impostura? É impossível: ela veio com o carro, com os criados...

- Sem dúvida, sem dúvida... no entanto, tenho de pôr tudo em pratos limpos. Regressemos a si. Posso contar consigo para, de ora em diante, se consagrar à demanda da Rosa?

- Evidentemente, mas se para isso tiver de abandonar lady Ferrais...

- Contudo, é isso que terá de fazer, príncipe Morosini.

A voz de veludo sombrio revestira-se subitamente de um tom em que transparecia uma vontade imperiosa.

- Dei-lhe uma oportunidade para quebrar este nosso acordo quando estivemos juntos na ilha de San Michele e no mausoléu de seus pais. Nessa altura, você recusou com muita nobreza e isso não me surpreendeu. Actualmente já não vai a tempo de se retirar.

- Mas eu não o desejo! - bradou Aldo, mortificado. - Talvez seja possível ocupar-me dos dois casos ao mesmo tempo.

- Não. Acabo de lhe dizer que não é nada bom que apareça de novo no campo visual de Solmanski. Pelo momento - e mesmo que ache isto de mau gosto - você tem mais com que se ocupar do que andar atrás de uma pedra, correndo o risco de esbarrar com a polícia. É preciso saber aproveitar o tempo. Está-me a entender?

- Oh, é muito claro e, fique tranquilo, não deixarei de o fazer! Contudo, se eu deparar casualmente com um facto que lhe possa ser útil, não me impedirá de utilizá-lo! Nem você, nem ninguém! - afirmou Morosini, casmurro.

A máscara imperturbável do Coxo iluminou-se de novo com um sorriso marcado pela ironia.

- Nunca lhe pedi que arrancasse o coração! Mas como sinto estima e amizade por si, receio que você o faça bem depressa e procuro defendê-lo contra si próprio. Agora, tenho de deixá-lo. Levo-o de volta ao hotel?

O carro acabara de contornar Hyde Park Corner para entrar em Picadilly.

- Não, deixe-me aqui! Já estou quase lá e talvez seja melhor que este carro não pare diante das luzes do Ritz. Vai ficar em Londres ainda algum tempo?

- Nunca fico em Londres. Subitamente Aronov desatou a rir:

- O seu desejo em ver-se livre de mim é demasiado transparente, caro príncipe! Vai ficar plenamente satisfeito. Até à próxima!...

Os dois homens apertaram as mãos em silêncio. Momentos depois, após ter depositado o seu passageiro, o Daimlerdeu uma meia volta perfeita e afastou-se pelo asfalto molhado com um ruído de seda a rasgar-se. De pé, no passeio arenoso que ladeava Green Park, Morosini contemplou-o embrenhando-se noite dentro.

No halldo hotel reinava uma agitação inabitual. O leilão no Sotheby's acabara e, se bem que tendo proposto algumas peças de valor, ela revelara-se uma decepção devido ao dramático desaparecimento da jóia vedeta. Numerosos amadores estrangeiros que se tinham hospedado no Ritz trocavam por isso impressões entre eles, enquanto se preparavam para a partida. A opinião geral era a seguinte: dado que ninguém sabia quando reapareceria o diamante, se é que ele chegaria a reaparecer, o melhor era não perder mais tempo e regressar a casa, esperando por eventuais notícias. Todos falavam ao mesmo tempo e a ampla sala que reluzia com tantas luzes e flores parecia-se com um jardim povoado por uma centena de aves palradoras.

No meio desta multidão, Adalbert Vidal-Pellicorne parecia desempenhar o papel de maestro. Esforçava-se por incitar aqueles senhores a confiar na inigualável Scotland Yard que, segundo os últimos rumores, não deixava de acalentar a esperança de reaver rapidamente a jóia desaparecida. Isto dirigia-se, claro, àqueles que tinham vindo de longe: de além-Atlântico, da África do Sul e até das índias.

De pé, no meio de um grupo de quatro pessoas, ele falava com uma segurança que divertiu Aldo mas, achando que o amigo estava a perder o seu tempo, foi ter com ele e apartou-o das restantes pessoas, não sem ter primeiro apresentado desculpas e saudado com desenvoltura.

- O que é que te deu para te pores a desejar que esta gente permaneça aqui a todo o custo? Agora defendes os interesses do Sotheby's?

- De modo algum! Defendo os nossos: enquanto continuar a acreditar que uma importante matilha está sempre disposta a lançar-se sobre a pedra falsa, o proprietário da verdadeira não ficará tranquilo. Vai pensar que a imprensa esconde informações e talvez dê um passo em falso... Devias ter-me deixado continuar...

- Não digas disparates! Essa gente não tem interesse nenhum, mesmo que seja muito rica!

- Ah, é isso que pensas?... Então, olha para aquele que se dirige agora para os elevadores... o fulano vestido de cinzento que se não estivesse tão elegante se pareceria muito com um clérigo. Sabes quem é?

- Como queres que o saiba? Não sou adivinho.

Com um largo sorriso e uma cara glutona, Adalbert especificou:

- É um banqueiro suíço, de Zurique, cuja mulher conheces muito bem. Até bem demais.

- Moritz Kledermann? É ele?

- O próprio! E movido pelo que considerava como um dever sagrado: trazer a pedra do Temerário de volta ao seu país, jóia que devido à rapacidade da cidade de Bale foi outrora indevidamente sonegada aos cantões! O que quer dizer que estava disposto a pagar um elevado preço!

Morosini não respondeu: estava a examinar atentamente a personagem que, alguns passos adiante, esperava calmamente pelo elevador; pensava que não o imaginara nada na pele daquele quinquagenário, de traços finos e inteligentes por debaixo de uma grande testa, cujos cabelos, de um louro-acinzentado, estavam a desaparecer, pondo a nu um crânio poderosamente modelado. Sem nunca se ter preocupado muito com o aspecto que podia ter o marido da sua antiga amante, julgara-o mais pesado, maciço, mais... suíço! Na verdade, ao desposá-lo, Dianora não dera provas de mau gosto! Aquele homem tinha tanto ou até melhor porte que a maioria dos gentlemen presentes.

- E dizer que ele podia ser meu sogro! - pensou divertido, ao lembrar-se da proposta matrimonial do seu notário veneziano no dia em que regressara a Veneza, depois da guerra. - Se a filha se parece com ele, talvez tenha cometido um erro ao não ter pedido pelo menos para vê-la...

- Queres que to apresente? - propôs Vidal-Pellicorne, que desfrutava da surpresa do amigo.

- Nem pensar! Ele veio sozinho? - acrescentou Morosini, subitamente inquieto.

- Sozinho! Pensa só um pouco: se a bela Dianora estivesse no Ritz ou simplesmente em Londres, isso saber-se-ia! Ela não é mulher para esconder o seu esplendor. Agora diz-me, sucintamente, como decorreu a tua visita à prisão.

- Bem... Enfim, mais ou menos, mas encontrei muito mais gente do que imaginas. Depois de Anielka, vi Wanda, a sua camareira, e fui visitar John Sutton. E todos eles me contaram versões tão diferentes que já não sei a quantas ando. Por fim, dei um passeio de carro com Simon Aronov.

- Ele está cá?

- Dir-se-ia que sim. Enfiou-me num carro verde, conduzido por um motorista coreano. Achou que era para meu bem e fez-me uma autêntica lavagem cerebral. O que ele quer é que eu deixe de me ocupar do caso Ferrais.

- Não deixa de ter razão. Nunca é bom correr atrás de duas lebres ao mesmo tempo. Mas vem daí contar-me isso tudo ao bar, enquanto nos revigoramos! Estás encharcado. E não pareces bem.

Com uma delicadeza quase paternal, antes de o levar até um canto tranquilo Adalbert ajudou o amigo a retirar a roupa molhada, que entregou a um criado.

- Conta! - pediu-lhe, depois de ter encomendado as bebidas ao barman,

Quando Morosini acabou, olhou-o de modo perplexo e, em seguida, puxando a madeixa loura que se obstinava em cair-lhe em cima do nariz, disse-lhe:

- Qual é a tua sensação? - perguntou-lhe.

Aldo, que bebia distraidamente o seu uísque, encolheu os ombros com o olhar perdido no vago.

- Não sei... a não ser que sinto talvez um grande cansaço.

- Então, se me queres ouvir, segue o conselho de Simon. Para que ele tenha saído da penumbra desta maneira, é preciso que o estejas a inquietar e não estou longe de partilhar a sua preocupação. Não tens qualquer meio para voar em socorro da bela prisioneira. Em compensação, a Warren não lhe faltam meios. Conta-lhe a tua visita e depois deixa-o procurar o polaco. Se fores meter o nariz na história, arriscas-te a intervir a despropósito na sua investigação.

Tudo isto trazia o cunho de uma razão sã. Morosini teve de aceitá-lo: prometeu deixar que as investigações policiais seguissem o seu curso sem intervir.

- Bravo! - aplaudiu Adalbert, que reencontrou todo o seu sorriso, entrechocando o seu copo com o do amigo.- Para te consolar, vou oferecer-te uma distracção: hoje à noite vamos desempenhar Shakespeare na comunidade chinesa!

- Na comunidade chinesa? De onde saiu essa ideia? É mais uma de Bertram...

- Exactamente! Pensa ter descoberto uma pista, mas quer que a exploremos com ele.

- Porquê? Está com medo?

- Humm... é um pouco isso. Tenta compreender: Cootes é um rapaz normalmente corajoso na maior parte das circunstâncias, mas tem pavor dos chineses. Fica com náuseas só à ideia de que o possam apanhar: já se vê submetido a um daqueles mil suplícios em que eles são tão engenhosos; entregue aos ratos, por exemplo, ou cortado vivo aos pedacinhos com uma lâmina adequada. Por isso, não lhe agrada nada a perspectiva de ter de deambular sozinho e de noite, em Limehouse, no quarteirão deles. Aldo desatou a rir.

- A verdade é que isso não tem nada de agradável. Onde é que o encontramos?

- Numa cervejaria do Strand, onde costuma ir. Entretanto, proponho-te um bom jantar, para podermos abordar a aventura em plena forma. De preferência aqui, onde nada há a recear quanto à comida.

- Excelente ideia! Vamos mudar de roupa.

- A propósito de comida e enquanto penso nisso, estamos convidados para ir depois de amanhã à noite a casa da duquesa de Danvers. Isto é, tu estás convidado: ela quer apresentar-te a uma amiga americana que deseja conhecer-te e como é uma pessoa bem-educada, também me convidou. Servir-te-ei de acompanhante! - concluiu com a sua habitual boa-disposição.

Morosini, que estava a acabar o seu uísque, fez uma careta:

- Uma americana? A ideia não me encanta nada. A maioria deles tem muito dinheiro, mas pouco gosto. E quando se trata de antiguidades, misturam tudo.

- Bah! Não arriscas grande coisa. É uma mulher, não é? Quer certamente falar-te de jóias. Espantar-me-ia que ela te pedisse uma cómoda Luís XV. Além disso, eu ficarei muito contente por passar uma noite na companhia da alta aristocracia inglesa. É um meio que conheço pouco... nada, mesmo!

- Não serás um pouco snobe?

- Não propriamente, mas confesso-te que fico excitado com a proximidade de um palácio real, de uma corte, de um aparato que não conheço. Isso muda-nos um pouco da atmosfera dos nossos ministros que estão sempre com ar de luto. Sem falar nas recepções maçudas no Eliseu...

- Não te vou recusar esse prazer. Iremos juntos!

 

                             CAPÍTULO 4 - CHINATOWN

- ... Nessa altura o miúdo disse-me: "Se me der dez libras, dir-lhe-ei onde poderá encontrar os assassinos do joalheiro". Dez libras! Onde queria ele que eu as fosse buscar? Então pensei em sir Vidal (o resto do nome não devia ser-lhe fácil de pronunciar e preferiu ignorá-lo) e fui até ao vosso hotel, para procurar saber onde ele estava. Por sorte encontrava-se lá: esse pessoal da recepção tem cá uma maneira de nos olhar, como se fôssemos uma casca qualquer esquecida por uma empregada da limpeza! Mas o miúdo recebeu as suas dez libras e eu tive a minha informação!

Aconchegado no fundo do táxi, entre Adalbert e Aldo, Bertram Cootes revelava as suas fontes.

- Dez libras já é qualquer coisa - observou Morosini. - Que foi que o levou a crer que o miúdo não lhe estivesse a enfiar um barrete?

O jornalista encolheu os seus ombros roliços:

- Não sei! Creio que foram os seus olhos, quando me disse que podia confiar nele. Aliás, deitou logo tudo cá para fora: os assassinos são os irmãos Wu, Han e Yen. Volta e meia trabalham na West índia Docks e parece que frequentam o Crisântemo Vermelho, uma imunda casa de chá situada no extremo de Limehouse Causeway.

- Só isso já é difícil de acreditar. Segundo o seu próprio relato, os homens que entraram na loja eram elegantes, estavam bem vestidos e vieram num Daimlercom motorista.

- Não pensa decerto que estivessem a agir por conta própria! - insurgiu-se Bertram, que prosseguiu imediatamente num tom declamatório: "O adorno é a aparência da verdade que reverte a um século pérfido para ludibriar os mais sábios..."

- Que vem a ser isso? - resmungou Morosini, agastado.

- Euh... O Mercador de Veneza, no papel desempenhado por Bassanio, cena... o que eu quero dizer é que só a aparência é que conta. Por muito estivadores que fossem, eles até podiam ter aparecido vestidos de príncipes, se o mandatário que os enviou assim o entendesse. Trata-se de um homem rico que reina sobre as casas de jogo e sobre as baiúcas de ópio clandestinas. Isto é o mesmo que dizer que reina sobre toda a população de cor do East End. Até correm lendas sobre ele...

- Mais um homem invisível? - inquiriu Aldo, que pensava em Simon Aronov com vago rancor.

- De modo algum. Chama-se Yuan Chang e possui uma loja de penhores e de bugigangas em Pennyfields. Pelo que sei, trata-se de um velho senhor avisado, prudente, tranquilo, que não fala muito. Diz-se que é poderoso, que tem grande fortuna e que a polícia o poupa porque ele lhe presta alguns serviços.

- Se foi ele que encomendou o assassinato de Harrison e o roubo da jóia, a polícia cometeria um erro continuando a protegê-lo.

- Eu falei na polícia, e não na Scotland Yard. Creio mesmo que Warren daria muito para o engavetar em flagrante delito, mas é inútil sonhar: isso não está perto de suceder.

- E se conseguirmos capturar os irmãos Wu?

- Eles não falarão. Preferirão que lhes metam a corda no pescoço a denunciar o patrão, pois sabem que isso seria ainda o paraíso comparado ao género de morte que o pessoal de Yuan Chang lhes reservaria caso dessem com a língua nos dentes.

Aldo procurou um cigarro, acendeu-o e resmungou:

- Nesse caso que vamos fazer a Limehouse? Adalbert proferiu entredentes:

- Isso é contudo muito claro: procurar saber algo acerca da Rosa de Iorque.

- É o que estou a dizer: vamos perder o nosso tempo. Se, tal como o supomos, é esse chinês que a tem, já lhe deve ter dado sumiço e não há qualquer esperança de reavê-la.

- Não é forçoso que assim seja! - exclamou Bertram . - O famoso diamante não tem qualquer interesse para Yuan Chang. Diz-se que ele possui tesouros escondidos, mas que só está interessado pelas peças chinesas, mongóís, manchurianas, e tudo o mais! Para ele, o Temerário ou até os reis de Inglaterra não significam nada, a não ser o facto de se tratarem de estrangeiros pouco recomendáveis! Não quer a Rosa de Iorque para nada! Quanto a trabalhar para outra pessoa, europeia ou americana, seria preciso que houvesse realmente um motivo excepcional: até as próprias jóias da Coroa não o interessariam! Claro que talvez os irmãos Wu tenham decidido arrecadar um pequeno extra!

- Aí está o motivo da mudez da rapariga! - concluiu Adalbert entredentes, antes de acrescentar: - De qualquer modo, não passará de uma soirée pitoresca! Amanhã dedicar-nos-emos a um outro tipo de exercício...

Ao jantar, os dois amigos tinham traçado uma nova linha de conduta: partilhar entre ambos as fastidiosas buscas nos arquivos, particularmente em Somerset House, onde a administração britânica dos Registos guarda os testamentos, com especial cuidado para os de Nelson, Newton e William Shakespeare; ou ainda na Conservatória, na esperança insensata de descobrir um rasto da velha pedra, mas sem acalentar ilusões a esse respeito pois ia ser o mesmo que procurar uma agulha num palheiro!

Por alturas de Stepney, deixaram a rua Comercial para se encaminharem para sul. Presentemente o táxi rodava aos solavancos pelos pedregulhos descalcetados de uma ruela estreita e sombria que dava para uma outra, um pouco mais larga, chamada Narrow Street. Nessa altura o motorista agarrou no tubo acústico que permitia conversar com os ocupantes do interior do táxi(1) e declarou:

- Não gosto nada destes quarteirões, gentlemen! Pensam demorar muito? Não é um local recomendável.

- Ainda não sabemos! - respondeu Bertram que, vendo-se protegido no meio de uma vigorosa escolta, devia sentir-se com uma alma de paladino. - Estará com medo?

O tom desdenhoso só teve o condão de reforçar o sotaque londrino do motorista, que já devia ter passado por outras.

- Não tenho vontade nenhuma de ficar aqui sozinho neste canto podre. Aqui já não estamos em Inglaterra, estamos na China,

 

*1. Como é sabido, os táxis londrinos têm um vidro que separa o motorista dos seus clientes.

 

e não me sinto nada tentado em apanhar com uma facada nas costas... Além disso, já chegámos praticamente ao vosso destino.

- Se for preciso pagaremos o triplo do preço indicado, mas tem que esperar por nós - disse Morosini agrestamente. - Quando chegarmos ao nosso destino, estacione o carro num local onde não desperte as atenções e espere por nós. Não ficará sozinho por muito tempo! - acrescentou, olhando para Bertram, que soprava nas mãos enquanto erguia os ombros, como se estivessem em pleno Inverno. Esse também não se devia sentir lá muito à vontade.

- Bom, está bem! - assentiu o motorista, contrariado. - Mas vocês são três e gostaria que um me ficasse a fazer companhia!

- Ora vejam só! - resmungou Adalbert. - Se todos os ingleses fossem como o senhor, não teríamos ganho a guerra!

Depois de ter transposto a ponte do Regent Canal, o táxi parou um momento ao pé do Tamisa, para que Bertram descesse a fim de inspeccionar as imediações. Já não chovia, mas sobre o rio estava a formar-se uma neblina que ameaçava transformar-se em nevoeiro. Devido à humidade penetrante, quase que fazia frio. Pairava no ar um cheiro a carvão, a turfa e, sobretudo, a lodo, cujo odor denso invadia tudo. A água quase estagnara e o rio surgia como uma vasta extensão de água plana onde mal se reflectiam os lampiões dos barcos fundeados. Por entre as margens de um cinzento-esbranquiçado surgiam as formas maciças de um comboio de chalupas parado, de algumas embarcações de comércio e de barcos à vela mais ou menos sobrecarregados. A sirene de um rebocador irrompia noite dentro, quando o jornalista regressou para dizer que havia um pequeno beco um pouco antes do Crisântemo Vermelho. Ofereceu-se para indicar o caminho ao táxi, enquanto os seus dois companheiros desciam para entrar numa ruela onde a lama substituíra os pedregulhos. Esta estava ladeada por construções baixas e miseráveis. Uma delas arvorava um esboço de telhado arregaçado à moda asiática; outras exibiam painéis com caracteres chineses cuja elegância não conseguia no entanto dar um ar mais nobre à miserável artéria.

Algumas sombras passavam, furtivas, com pequenos passos rápidos, envoltas em longas roupas informes que pareciam prolongar o solo desfeito, curvando as costas no meio da neblina que depressa os tragava.

Por momentos a luz difusa de uma lâmpada fraca iluminava um rosto amarelo e depressa se tornou evidente que o único centro de actividade da rua nocturna era a taberna de janelas iluminadas, mas tão sujas que a luminosidade do interior mal conseguia atravessá-las. Silhuetas de homens ou de mulheres - como diferenciá-los no meio daquela obscuridade? - entravam ou saíam. Mas já era tarde e elas escasseavam cada vez mais.

Uma vez o táxi devidamente abrigado e com todas as luzes apagadas, Aldo e Bertram abandonaram o veículo tendo Adalbert momentaneamente aceite ficar a fazer companhia ao receoso condutor. Dirigiram-se para a porta baixa, por cima da qual rangia uma lanterna vermelha ao balancear-se. Presentemente não havia mais ninguém na rua.

Antes de entrar, Morosini foi dar uma vista de olhos através do vidro da janela que lhe parecia menos sujo. Para sua grande surpresa, constatou que a sala baixa, mobilada com um balcão e algumas mesas de madeira e iluminada por lâmpadas a petróleo, encontrava-se praticamente vazia. Num canto estavam sentados dois homens a uma mesa, com um bule de chá e duas canecas entre eles. Atrás do balcão, outro chinês dormitava, com as mãos enfiadas nas mangas de algodão azul.

Dando um passo para o lado, Aldo fez sinal a Bertram Cootes para olhar por sua vez e, depois, sussurrou-lhe:

- Vimos entrar seis pessoas, pelo menos. Onde estão?

- Deve haver outra sala. Por detrás do cortinado que se vê ao fundo, ou então na cave... Talvez haja uma sala de fumo ou de jogo. A menos que se trate de ambas as coisas!

- Era o que eu pensava. De outra forma não há explicação possível: o seu Crisântemo Vermelho é praticamente tão excitante quanto uma sala de espera de uma gare...

- De qualquer modo, uma coisa é certa: os dois bebedores de chá não são os irmãos Wu! Que fazemos agora?

- Nada! Esperamos!... Tem a certeza que não há outra saída?

- Como quer que o saiba? Este não é o meu local de vigilância preferido... e caso quiser esperar talvez seja melhor que nos afastemos pois entretanto pode chegar alguém e descobrir-nos a espiar.

- Regresse ao carro - disse Morosini, agastado. - Vou ver se é possível dar uma volta a esta espelunca.

Sem esperar por uma resposta, embrenhou-se ainda mais pela rua dentro, perscrutando a escuridão na esperança de descobrir uma passagem e, subitamente, refreou uma exclamação de regozijo: a alguns metros da porta, uma viela estreita dava para o rio assinalado por um vago reflexo. Estava muito escuro dentro daquela espécie de gruta, mas os seus olhos acostumaram-se depressa à escuridão. Caminhando prudentemente, tacteando um dos muros com uma das mãos, dirigiu-se na direcção do reflexo.

Tudo estava silencioso. Apenas se ouvia o marulhar da água e o clamor longínquo e abafado de Londres. Em breve o explorador chegou ao fim do seu percurso para descobrir que este estava vedado por uma barreira oscilante. Sacudiu-a, verificou que estava aberta e encontrou-se num largo cais de aproximadamente um metro, para onde dava uma escadaria de pedra que descia até ao Tamisa. Presentemente via de forma muito mais nítida e não hesitou em aventurar-se pelas escadas escorregadias.

A sua intenção era descer o mais possível de modo a obter uma visão do conjunto da casa, do lado do rio. Parou aproximadamente a meio do caminho, voltou-se, e viu que os dois andares eram praticamente desprovidos de aberturas, à excepção de uma janela quadrada na qual ainda havia alguns pedaços de vidro e, ao nível do subsolo, por dois respiradouros largos, tapados por grades situadas dos dois lados de uma espécie de pequeno túnel redondo, no qual a água devia fluir nos dias das fortes marés. No estado actual do rio, o seu nível não ultrapassava um bom pé de altura. A impressão geral era lúgubre, sobretudo no meio da noite; o aspecto assaz banal da parte da frente da taberna desaparecia para passar a evocar vagamente o de uma fortaleza bem sinistra.

"Gostava de dar uma volta lá dentro!" - pensou Aldo. - "Algo me diz que isso seria muito instrutivo, mas como fazer?"

Ocorreu-lhe a ideia de que o buraco negro era o único meio de que dispunha para penetrar nas entranhas do Crisântemo Vermelho. Mesmo assim, tinha de encontrar uma embarcação...

Ia subir para estudar a questão quando, subitamente, proveniente do respiradouro mais próximo, ouviu um ruído de voz abafada. As pessoas falavam todas ao mesmo tempo como se, após um momento de espera, os presentes tivessem começado a comentar o que acabara de se passar, uns num tom de satisfação e outros num tom desiludido. Morosini teve imediatamente a certeza que havia ali uma sala de jogo clandestina. Restava saber se era apenas reservada aos amarelos ou se seria possível ser admitido nela.

Enquanto retrocedia pensativo, ouviu o ruído de um motor, o que lhe causou uma súbita inquietação: teria o motorista do táxi decidido escapulir-se deixando-os entregues a eles próprios? Podia esperar-se tudo de um medroso daqueles, mas não foi esse o caso. Ao dobrar a esquina da estreita passagem foi de encontro a Adalbert, que viera à sua procura e que o puxou para dentro do carro, repetindo-lhe "Vem por aqui, vem por aqui!". Só quando chegaram ao beco é que começaram as explicações:

- Temos novidades - murmurou o arqueólogo. - Não ouviste o ruído de um motor?

- Sim, mas...

- Há um carro parado no fim da rua, que também estacionou a um canto, de luzes apagadas. Transportou uma mulher que entrou na taberna...

- E então? Não é a primeira que entra.

- Com aquele porte, é! Só avistei um sobretudo de pele preta, cobrindo umas pernas finas e uma cabeça envolta por um pequeno véu espesso, mas juraria que ela é jovem e talvez bela...

- O que é que esse tipo de criatura poderia vir aqui fazer?

- É o que gostaria de saber. Detecto um cheirinho a mistério, o que me excita e proponho-te que esperemos que ela saia.

- Só se ela não se demorar por muito tempo! Encontrei uma maneira de entrar na casa pelo rio, mas preciso de uma embarcação... Se os irmãos Wu estão nas imediações, é certamente aqui. Aposto que existe uma sala de jogo.

- Não teremos tempo para fazer isso tudo esta noite e, depois, se quiseres saber a minha opinião, eu preferiria que encontrássemos um motorista de táxi que não se borrasse de medo! Um medroso é sempre perigoso e, no estado actual das coisas, estamos a braços com dois!

- Sim, mas o teu Bertram bem precisa de resguardar-se. Ele conhece o aspecto dos irmãos Wu. Nós não.

Encostados ao motor do carro que assim os aquecia um pouco, os dois homens deixaram escoar o tempo. Nervoso, Aldo acendeu um cigarro com o borrão do precedente sem conseguir acalmar a sua impaciência e, até, um começo de irritação. Que estavam para ali a fazer, numa ruela sórdida, a espreitar uma desconhecida enquanto havia certamente algo de melhor a fazer? Consolava-se pensando que uma vez acabado o jogo, talvez os participantes deixassem o Crisântemo acompanhados pela desconhecida que vigiavam. Nesse caso, bastaria segui-los. Entretanto, começava a sentir as pernas a enrijecer. No interior do táxi, Bertram e o motorista continuavam calados. Quem sabe, talvez tivessem adormecido...

- Aí vem ela! - murmurou subitamente Vidal-Pellicorne. Efectivamente a porta da taberna acabara de ser aberta para dar

passagem a uma silhueta feminina - a que o arqueólogo descrevera anteriormente. Uma boa descrição, aliás! Tratava-se de uma mulher jovem, pertencente à alta sociedade. Isso via-se na sua maneira de andar. Dispuseram-se a segui-la de longe, evitando fazer o mínimo barulho possível.

Afastando-se gradualmente da fraca luz fornecida pela lanterna vermelha, a desconhecida caminhava lentamente, com grande prudência, para evitar que o seus saltos altos lhe torcessem os tornozelos nos carreiros formados pelas rodas dos carros ou nas pedras descalcetadas da rua. Subitamente caiu, soltando um grito: saídas não se sabe de onde, duas sombras tinham-na atacado.

Um impulso idêntico precipitou Aldo e Adalbert em seu socorro: nalguns segundos caíram ambos em cima dos agressores, que conseguiram apartar da vítima. Surpreendidos por este auxílio inesperado e pouco desejosos de terem de entrar num combate de boxe a valer com aqueles justiceiros imprevistos - o punho de Morosini entrara um pouco rudemente em contacto com um queixo que devia estar a sofrer - escaparam-se-lhes por entre as mãos e desandaram a correr dali para fora, sem pedir contas a ninguém. Desapareceram num ápice. Ajoelhado ao pé da mulher que jazia inerte no solo, sem dúvida inanimada, Aldo tentava levantar o véu que lhe tapava a cabeça, não ousando puxar com muita força pelo tecido enrolado à volta de um pescoço que sentia frágil.

- Diabo - resmoneou. - Não se vê nada neste maldito buraco. Adal, não tens aí a tua lanterna?

Este regressava, depois de ter corrido algum tempo no encalço dos malandrins. Ajoelhou-se ao pé do amigo e encadeou a cabeça inanimada com o ligeiro feixe de luz da sua inseparável lanterna de bolso.

- O carro que a transportou ainda ali está - disse. - Também é um táxi e o seu condutor deve ser tão corajoso quanto o nosso!... Mas olha só: dir-se-ia que acertei em cheio - é uma jovem e bem bonita!

Não ouve qualquer eco à sua exclamação. Morosini conseguira finalmente retirar o véu negro e olhava agora estupefacto para o rosto encantador, de olhos fechados, de Mary Saint Albans.

- Mas o que é que ela faz aqui? - conseguiu por fim articular.

- Conhece-la?

- E de que maneira! É a nova condessa de Killrenan. Ajuda-me a levantá-la, vamos levá-la até ao seu carro.

- E por que não a levamos para o nosso?

- Porque ficaremos a saber onde é que o táxi a apanhou e se é a primeira vez que a traz aqui. Além disso, não te escondo que não tenho nenhuma vontade de partilhar a nossa descoberta com Bertram. Não nos esqueçamos que essa destemida personagem é jornalista e que a descoberta de uma esposa de um par do reino, a deambular em plena noite em Limehouse, poderia dar asas à sua imaginação...

- Não te escondo que a minha está prestes a voar!... Agora! Consegues?

Ergueram a jovem inconsciente que, por sorte, não caíra numa poça de lama e, depois, Aldo transportou-a até ao táxi:

- A propósito - disse Vidal-Pellicorne - conheces a sua morada?

- Não, mas espero que me diga assim que recobrar os sentidos. Espantar-me-ia que o motorista a conhecesse. Neste género de aventura a tendência pende mais para o lado da discrição.

- Não queres que te acompanhe?

- Não, vai ter com os outros e ide-vos embora! Esta noite não ficaremos a saber mais nada e eu, a sós com ela, talvez venha a extorquir-lhe qualquer coisa.

Mary Saint-Albans era mais pesada do que dava a supor. Aldo já estava com calor quando alcançou a viatura, cujo condutor se apressou a descer, para ajudá-lo a estendê-la sobre o assento.

- Aconteceu-lhe alguma coisa? - inquietou-se. - Não ouvi nada.

- Um acidente estúpido! Ela deve ter torcido o pé neste caminho impossível e isso deve ter-lhe provocado um achaque, como nós costumamos dizer. É a primeira vez que a transporta aqui?

- É sim! Até que nem estava muito contente por ter de conduzir uma dama a este quarteirão, mas como ela me pagou generosamente...

- Onde é que a apanhou?

- Em Picadilly Circus. Note que já levei muito boa gente até Chinatown, mas trata-se sempre de homens em busca de prazeres exóticos e olhe, ainda noutro dia...

Aldo, ocupado a dar pequenas bofetadas nas faces do rosto de Mary, preferiu cortar imediatamente o fluxo verbal que se anunciava.

- Não tem algo forte que ela possa beber? - perguntou.

- ... encontrei-me... Oh, sim! Tenho bom gin! Trago-o sempre comigo para as noites de mau tempo...

- Obrigado! Agora trate de pôr o carro em andamento para que eu possa acender a luz do tecto sem provocar um ajuntamento!

Efectivamente, duas silhuetas aproximavam-se furtivamente. Curiosos atraídos por aquele carro parado ou, talvez, algo ainda pior. Pulando para o seu assento, o motorista pôs o motor a funcionar, acendeu os faróis cuja luz encadeou dois homens de má cara, um dos quais empunhando uma faca. O carro partiu a toda a velocidade, fez uma curva soberba derrapando calculadamente, e disparou na direcção de Limehouse Causeway enquanto, no interior, comprometido pela brutalidade da acção, o passageiro procurava manter um certo equilíbrio. Altamente esclarecido quanto aos reflexos de um tal ás do volante, prometeu a si mesmo que lhe havia de pedir as coordenadas em vista das outras expedições que projectava fazer.

Ligeiramente inquieto com aquele prolongado desmaio, Aldo acendeu a pequena lâmpada interior e tratou de forçar Mary a beber qualquer coisa, pois as maçãs do seu rosto permaneciam obstinadamente pálidas. Caso isso não resultasse, talvez fosse preciso levá-la a um hospital, eventualidade que não lhe agradava nada mas, graças a Deus, o remédio revelou-se milagroso: a jovem estremeceu, engasgou-se e desatou a tossir enquanto que os olhos se lhe enchiam de lágrimas. Aldo soergueu-a para lhe bater nas costas e o seu rosto encontrou-se quase ao nível do de Mary que, tendo recobrado plenamente consciência, olhava-o com um espanto entremeado de cólera, que levou algum tempo a exprimir:

- Como... como é que você pode estar aqui? E que... faz ao pé de mim?

- Se essa é a sua maneira de agradecer, então ela é bem esquisita! Salvei-a das garras de dois malandrins e durante um momento julguei que estivesse gravemente ferida... Estou muito feliz por ver que não é esse o caso.

- Efectivamente, estou apenas com uma grande dor de cabeça... Oh, Senhor, esses brutos deram cabo de mim!... Dê-me mais um pouco de gin!

Enquanto ela bebia prudentemente, ele arriscou-se a perguntar-lhe o que tinha vindo fazer a um local daqueles.

- Podia ter-lhe acontecido algo ainda pior... O que é que uma mulher do seu nível pode vir procurar neste miserável quarteirão chinês?

- Isso não é da sua conta! - declarou, sem se incomodar com delicadezas supérfluas; mas Morosini não teve tempo para lhe dirigir qualquer reparo pois ela tinha-se posto febrilmente a procurar algo à sua volta, soltando subitamente um grito:

- O meu saco!... Onde está o meu saco?

- Palavra que não sei, mas é provável que tenha sido roubado. Sem o ouvir, ela precipitou-se para o vidro de separação, que

abriu, para ordenar ao motorista que regressasse ao local de onde vinham. Desta vez, Aldo interpôs-se:

- Que idiotice! Que espera encontrar? A menos que tenha inimigos pessoais, esse saco é certamente o único motivo para o ataque de que foi vítima.

- Quero certificar-me disso! Mas você não é obrigado a acompanhar-me. Pode descer, se isso lhe der na gana!

- Está fora de questão! - grunhiu o seu companheiro. - Salvei-a e agora irei até ao fim! Pode regressar, senhor motorista, visto que madame assim o deseja!

Claro que o resultado foi nulo e ao fim de intermináveis buscas, lady Mary entrou no táxi chorando tão desesperadamente que o bom coração de Aldo se enterneceu; tratou, pois, de consolá-la.

- Não fique nesse estado! O que havia de tão precioso nesse saco?... Quer ir até à polícia? Receio que não sirva de grande coisa...

Teve a impressão de lhe ter administrado um antídoto. Mary parou imediatamente de chorar e endireitou-se soltando um risinho nervoso.

- À polícia? Que quer que ela faça? Fui roubada por ladrões e é tudo! Eu tinha... esta noite, eu tinha ganho ao fantan!

- É para jogar que vem aqui? - murmurou Aldo, sem procurar esconder a sua surpresa. - Mas isso é pura loucura!

Ela fixou nele toda a tempestade dos seus olhos cinzentos zebrados por relâmpagos.

- Talvez seja louca, efectivamente, mas gosto de jogar e gosto sobretudo deste jogo, o fantan! Fique sabendo que passei grande parte da minha adolescência em Hong-Kong onde o meu pai ocupava um posto. Foi aí que aprendi a jogá-lo.

- Julgava que as jóias fossem a sua única paixão. A colecção e o jogo não são uma boa parelha, pois um acaba sempre por pôr o outro em perigo.

- Mas não se trata de uma paixão! Apenas de... um prazer. Não venho aqui todas as noites! Na realidade, esta é a terceira vez.

- Se quiser saber o que penso, isso já são vezes demais. O seu esposo está ao corrente?

- Claro que não. Ele ocupa-se muito pouco com o meu estilo de vida e não quero que o saiba: acharia que se trata de um atentado à sua respeitabilidade, o que não poderia suportar. Sobretudo agora!

- Não duvido. Mas como descobriu esta espelunca? Não foi certamente por acaso...

- Não. Aconteceu com um grupo de amigos no termo de uma noite bem divertida. Um deles conhecia o Crisântemo e levou-nos até lá. Os clientes da alta roda são menos raros do que pensa, porque circula por lá muito dinheiro, mas esta noite eu era a única representante.

- E ganhou... uma grande soma, talvez?...

Calou-se. O motorista acabara de abrir o vidro para perguntar para onde se dirigiam afinal de contas. LadyMary não deu tempo a Morosini de responder. Indicou logo Picadilly Circus.

- É aí que está alojada? - perguntou Aldo, num tom ambíguo.

- Não seja estúpido! - respondeu-lhe ela, encolhendo os ombros. - Não quero que fiquem a saber o meu endereço.

Aldo não insistiu, O resto do trajecto decorreu no meio de um profundo silêncio.

Chegados ao local, Aldo pediu ao táxi que o esperasse, ajudou a sua companheira a descer, meteu-a dentro de outra viatura que chamou, beijou-lhe a mão, fechou a porta e voltou ao seu próprio veículo.

- Outro passeio pelos locais mal frequentados, cavalheiro? -perguntou o condutor com um brilho malicioso no olhar.

- Por ora, não; vou voltar ao Ritz, mas gostaria de saber como entrar em contacto consigo quando tiver de partir em expedições do género. O motorista que me conduziu há pouco até Limehouse não me pareceu lá muito corajoso.

- É muito fácil! - respondeu o homem, lisonjeado e, aliás, encorajado pela nota que a ponta dos dedos do seu cliente agitava. - Telefone ao White Horse, no Strand, e pergunte por Harry Finch: é lá que estou de manhã, à tarde e à noite. Aqui está o número... Note que após dez anos passados na Marinha, por entre os quais os anos de guerra, já não há grande coisa que me meta medo! Diga-me apenas qual é o seu nome... ou aquele com o qual se identificará...

Já passava um pouco das duas da manhã quando Harry Finch largou o seu cliente. Como Vidal-Pellicorne ainda não tinha regressado, Morosini pensou que ele talvez se demorasse nalguma taberna para levantar o moral de Bertram e decidiu que não o iria esperar, preferindo deitar-se. O dia fora longo, um tanto duro e sentia a necessidade de descansar. A aventura que acabara de viver atormentava-o mais do que teria desejado, talvez porque houvesse algo que lhe soava a falso na estranha história que Mary lhe contara. Decididamente, aquela bela mulher inspirava-lhe mais desconfiança que simpatia! Misturava-se-lhe ainda um vago rancor, que não teria existido se ela tivesse continuado a ser Mary Saint Albans, mas presentemente ela arvorava o nome de um homem que ele sempre amara e respeitara. Que este nome se encontrasse à mercê de uma rusga policial numa duvidosa casa de jogo, isso era-lhe extremamente desagradável. O velho lorde Killrenan, esse apaixonado do mar e das viagens, sempre se deixara atrair pela magia das terras do Oriente, mas esta nada tinha em comum com a inclinação que a sua herdeira manifestava por uma nota de cor local que roçava a depravação.

- O pobre sir Andrew não gostava da família - declarou à sua escova de dentes. - O que não teria sido se soubesse o que ainda estava para vir! A esta hora deve dar voltas no túmulo...

Uma vez deitado, descobriu que o cansaço nem sempre traz o sono. Tinham ocorrido demasiadas emoções contraditórias que se agitavam na sua cabeça para que fosse possível arredá-las e quando conseguiu finalmente adormecer, foi para mergulhar num pesadelo no qual Anielka, lady Mary, Aronov, os chineses e um estudante polaco se entregavam a uma sarabanda esgotante. Por isso acolheu com vivo alívio e súbita determinação o nascer do dia e a mesa rolante com o pequeno-almoço. O Coxo tinha razão! A ocupar-se daquele modo de tanta gente ao mesmo tempo, perdia-se o senso comum. O que era preciso era largar Anielka e Mary provisoriamente a fim de se consagrar ao diamante e, a esse respeito, algo lhe dizia que uma expedição fluvial ao Crisântemo Vermelho seria talvez mais gratificante que as fastidiosas buscas nos arquivos. Daí a pouco, juntamente com Adalbert, procurariam afinar um plano de combate e iriam procurar uma embarcação. E, além disso, por que não ir a Pennyfields visitar a loja de penhores e de bugigangas que pertencia a esse tal Yuan Chang, que lhe tinham pintado como alguém de tão perigoso e cheio de poder? Afinal de contas, postos os empréstimos de lado, tratava-se, de certo modo, de um confrade, e uma conversa com ele poderia revelar-se interessante. Sobretudo se, como Aldo não parava de pensar, a Rosa de Iorque fora lá parar: alguém tinha de ter enviado os assassinos!

Consultado, Adalbert não manifestou qualquer entusiasmo para mais esta nova expedição em território chinês. Era possível que Yuan Chang possuísse a pedra, mas se fosse esse o caso, não ia decerto revelá-lo a um perfeito desconhecido.

- Além disso, de qualquer modo a pedra é falsa e se ele mandou alguém roubá-la, o que é a hipótese mais provável, nada tem a ganhar com a aventura. Sobretudo se esse alguém se aperceber que se trata afinal de uma magnífica tampa de garrafa! Prefiro remexer na poeira de Somerset House, para ver se o testamento de Nell Gwyn não estará por lá.

- Vais desperdiçar o teu tempo! Simon Aronov já deve ter pensado nisso antes de ti.

- Não estou a vê-lo a passar dias de enfiada a vasculhar nos arquivos oficiais. Além disso, os felizes acasos também acontecem!

- Saneia simplicitas! Então irei sozinho.... Por volta das três, o táxi de Harry Finch, prevenido ao meio-dia, deixou Morosini diante da maior casa de Pennyfields, um edifício atarracado de dois andares, cujos tijolos tinham descolorido até ficarem de um cinzento rosáceo. Uma loja ocupava metade do rés-do-chão, mas os vidros estavam tão sujos que era impossível espreitar para o interior. Presentemente reinava uma grande actividade naquele quarteirão algumas horas antes tão lúgubre e deserto. Havia todo um magote de gente que se atarefava: os pequenos vendedores ambulantes, os vendedores de sopa ou de outros géneros alimentícios colocados rente ao solo, as lojas abertas como nos mercados árabes, cujas mercadorias deslizavam por vezes até ao rio e à beira das quais imperava uma estátua de olhos em bico, mãos enredadas no fundo das mangas, vestida com um fato de algodão azul ou preto. Tudo isto compunha um quadro florido do Extremo Oriente, a que não faltava um certo pitoresco. Dir-se-ia uma rua de Pequim ou de Cantão.

A viatura foi imediatamente cercada por um grupo de miúdos que, contudo, não lhe tocaram: os táxis eram coisa rara naquelas paragens; como qualquer outro, este era motivo para espectáculo. A atmosfera transportava os odores da comida misturados ao do incenso, que abafavam o eterno cheiro a lodo e carvão.

Na loja de penhores, o espaço reservado à clientela encontrava-se reduzido por balcões sobrepostos por uma grade através da qual se podiam ver objectos de todo o tipo. Se bem que fosse dia, estava tão escuro que havia um bico de gás aceso e sobre aquilo tudo reinava um chinês de meia-idade, de cara enfadonha, que o tinir dos sinos da entrada nem sequer levou a mexer-se. Contudo, ao avistar o homem elegante que acabara de entrar, começou a movimentar-se. Avançou ao seu encontro e, depois de uma série de salamaleques, perguntou-lhe num inglês sibilante em que é que uma casa tão miserável poderia ajudar tão distinto visitante. Morosini deixou circundar um olhar perplexo sobre aquela decoração poeirenta.

- Disseram-me que podia encontrar aqui algumas antiguidades interessantes, mas tudo o que vejo é uma loja de penhores...

- Para admirar os objectos, é por aqui! - anunciou o empregado erguendo a tampa que unia os dois balcões e levantando com a outra um cortinado pendurado a um canto.

Uma vez transposto o cortinado, o visitante não pôde deixar de ficar surpreendido com o que descobriu: tratava-se realmente de uma verdadeira loja de antiguidades, sem qualquer semelhança com a sua ou a do seu amigo Gilles Vauxbrun em Paris, mas mesmo assim tinha a sua classe. Ali se expunha todo o panteão hindu e do Extremo-Oriente, sob a forma de múltiplas estátuas, de alguns lindos budas oriundos da China ou do Japão, colocados ao lado de porcelanas translúcidas, de incensórios ainda, repletos do seu odor característico, de candelabros de bronze, de um enorme gongo, de monstros com terríveis esgares, guardas habituais das portas do templo, de sedas, de leques e de uma quantidade de pequenos objectos de marfim ou de pedra dura. Como descobriu o olhar exercitado do príncipe-antiquário nada disto era muito antigo, e isso devia dever-se, em parte, à proximidade dos West e East índia Docks, mas o conjunto fora bem escolhido e os processos de envelhecimento, destinados a conferir alguns séculos ao patim, não sobressaíam demasiado. Além disso, algumas das peças pareciam autênticas.

Foi então que se ouviu uma voz de timbre ligeiramente rachado, mas agradável e cultivada.

- Esta loja não é fácil de encontrar. É preciso conhecer a sua existência... e eu nunca tive a honra de o encontrar, senhor. Quem o enviou aqui?

Aldo não duvidou um só instante que estava em presença de Yuan Chang. Como dissera Bertram, tratava-se de um velhote pequeno e magro, quase alquebrado, mas a personagem, vestida com um comprido fato de cetim preto cujo único adorno era uma fina ourela dourada, irradiava uma espantosa sensação de vigor, como se tivessem acabado de cravar no solo uma lâmina de espada e não um homem idoso com o rosto estriado de múltiplas rugas. Isso talvez se devesse à expressão imperiosa dos olhos negros e brilhantes que nunca piscavam. No boné de seda negra que lhe cobria a cabeça esbranquiçada não havia nenhum ornamento que indicasse qualquer tipo especial de estatuto ou grau. No entanto, Morosini seria capaz de jurar que no seu país Yuan Chang não era um simples lojista. No mínimo, era um homem letrado, talvez até um mandarim!

- Foi a curiosidade, bem como o amor pelas coisas antigas. Eu próprio sou antiquário e venho de Veneza. Príncipe Morosini! - apresentou-se, com uma ligeira inclinação da cabeça, à qual o velho homem respondeu.

- A honra ainda é maior mas, se me permite, reitero a minha pergunta: a quem devo esta visita?

- A todos e a ninguém: umas simples palavras captadas num salão, aquando da escuta casual de uma conversação mundana e, em seguida, umas outras que ouvi no hall de um palácio. Penso que o senhor é Yuan Chang, não é verdade?

- Devia ter-me apresentado logo a seguir a si, senhor príncipe. Queira perdoar-me, pois acabei de cometer um atentado às boas maneiras. Poderei agora perguntar-lhe o que procura nesta loja indigna dos seus olhares?

- Um pouco de tudo, e nada em particular. Vejamos, senhor Yuan Chang, não seja demasiado modesto! O senhor é considerado como um especialista em matéria de antiguidades asiáticas... e aqui, no meio de... objectos de valor mediano - bem o concedo - estou contudo a ver algumas peças dignas de outro cenário. Este gancho gravado em esmalte dourado deve ter sido feito algures no seu país entre o século X e o século XII - acrescentou, inclinando-se sobre um pequeno leão alado, colocado sobre uma placa aveludada. Yuan Chang nem sequer pensou em esconder a sua surpresa.

- As minhas sinceras felicitações! O senhor é especialista na arte do meu país?

- Não propriamente, mas interesso-me pelas jóias antigas, qualquer que seja a sua proveniência. É por isso que me espanta que deixe esta tão pouco protegida! Qualquer pessoa pode roubá-la.

Durante um breve instante, sob aquelas sobrancelhas quase brancas, perpassou um raio pelo olhar.

- Ninguém ousaria roubar o que quer que fosse nesta casa. E a propósito desse leão, e isto caso esteja tentado, lastimo ter de lhe anunciar que já está vendido. Não deseja ver outra coisa?

- São as pedras que me atraem particularmente. Na realidade especializei-me em jóias antigas... de preferência históricas. Não teria qualquer coisa em jade, por exemplo?

- Não. Já o avisei: apesar do que se poderá ter dito, a minha casa é modesta e eu...

Não acabou a frase. Ouviu-se uma chiadeira indignada proveniente do outro lado do cortinado que uma mão enérgica levantou bruscamente, dando passagem ao superintendente Warren em pessoa, com a sua capa sem mangas e assemelhando-se, mais do que nunca, a uma ave de mau agouro.

- Estou desolado por entrar na sua loja sem me fazer anunciar e sem quaisquer formalidades, Yuan Chang, mas tenho que falar consigo.

Se o chinês sentiu qualquer cólera, a rasgada reverência que lhe curvou a espinha dissimulou-a muito bem. Em compensação, a entrada brutal do polícia não lhe inspirava seguramente qualquer temor. O que Aldo detectou na sua voz monocórdica parecia-se muito mais com a ironia.

- Quem sou eu para que o célebre superintendente Warren se digne sujar os seus sapatos na poeira da minha loja miserável?

- Yuan Chang, esta não é altura para começar com bonitos floreados. Tem razão ao pensar que só um motivo grave me levaria até aqui. Senhor - acrescentou, voltando-se para Morosini, sem parecer tê-lo reconhecido -, suponho que o táxi estacionado diante da porta está à sua espera. Se não se importa pode ir até lá esperar por mim?

- Acaso temos algo a dizer-nos? - perguntou Aldo com uma certa altivez, tal como convinha à personagem que desempenhava actualmente. - Sou apenas um simples cliente... casual.

- Sem dúvida, mas eu sou um homem extremamente curioso e nenhum dos clientes do distinto Yuan Chang me pode deixar indiferente. Tenha a bondade!

Afastou-se para dar passagem a um Morosini que, deste modo, se viu obrigado a sair apesar de estar a arder de curiosidade. Na rua encontrou uma possante viatura preta e outra mais pequena, bem como novos ajuntamentos de miúdos, desta vez mantidos à distância por dois polícias à civil, um dos quais era o inevitável inspector Pointer. Sem se apressar, entrou para o seu carro.

- Onde vamos? - inquiriu Harry Finch.

- Para lado nenhum, meu amigo. Ficamos aqui. O funcionário da polícia que acabou de entrar na loja pediu-me que esperasse, porque depois quer ter uma conversa comigo.

- Não se trata de qualquer polícia: é o superintendente Warren, o melhor "faro" da Scotland Yard! Um osso bem duro de roer!

- Ignorava esse pormenor. Dir-se-ia que este Yuan Chang é alguém importante.

- É o rei de Chinatown, nem mais, nem menos. Deve ter a alma tão escura quanto o seu fato, mas não houve ainda ninguém que conseguisse apanhá-lo com a boca na botija. É mais esperto que uma aldeia de macacos!

- Talvez tenham vindo prendê-lo, não? Este destacamento de polícia...

- Nada de exageros! São apenas meia dúzia. Além disso, quando o superintendente se incomoda a ir a qualquer lado, nunca vem sozinho ou de bicicleta. Questão de prestígio! E, em Limehouse, o prestígio conta muito!

A espera prolongou-se por um comprido quarto de hora, findo o qual Warren reapareceu, disse algumas palavras ao ouvido do seu fiel ajudante, enfiou-se dentro do táxi, ordenou a Finch que o levasse de volta à Scotland Yard, fechou o vidro de separação e, finalmente, acomodou-se confortavelmente no fundo do carro.

- Agora conversemos! - suspirou. - Espero que você seja mais palrador que esse rato pequinês de olhos em bico...

- Contava realmente obrigá-lo a falar? E acerca de quê?

- Poderia responder-lhe que quem faz as perguntas aqui sou eu, mas como não vejo qualquer inconveniente em informá-lo, dir-lhe-ei que não contava com grande coisa. Queria ver como é que ele ia reagir às minhas últimas notícias: esta alvorada, a brigada fluvial de Wapping, que procurava o barco de um traficante de ópio, repescou os cadáveres de dois indivíduos amarelos, atados e estrangulados, próximo da Ilha dos Cães. Foram identificados como sendo os irmãos Wu e são certamente os assassinos do joalheiro Harrison.

A novidade era de todo o tamanho e Morosini levou alguns segundos a apreciar-lhe o sabor, enquanto que o seu companheiro puxava do bolso um cachimbo e um estojo de tabaco, enchendo meticulosamente o primeiro e acendendo-o antes de expelir uma verdadeira nuvem de fumo acre. Aldo desatou a tossir:

- Por todos os santos do Paraíso! Que mete aí dentro? Bosta de boi?

O pterodáctilo desatou a rir.

- Como o senhor é delicado! É tabaco francês! Aquele que nas trincheiras os soldados chamavam "mata-ratos". Acostumei-me a apreciá-lo quando estava em Somme. Desperta as ideias a um homem quase tão bem quanto um bom uísque!

- Bom! Admitamos que estou a exagerar!... Mas, se bem compreendo, a sua investigação está portanto concluída, visto que os dois assassinos morreram, não é verdade?

- Ela apenas vai no começo. Esta foi a prova, mas nunca duvidámos disso!, que eles eram apenas meros executantes contratados por alguém.

- E pensa que Yuan Chang seria...

- Não penso nada! - vociferou subitamente Warren. - Não estou aqui para lhe prestar contas. Em compensação, tenho muitas perguntas a fazer-lhe: para começar, que estava a fazer na loja de Yuan Chang?

- É muito simples: ele é um usurário, mas também é um antiquário, como eu. Nesta profissão andamos sempre à caça... - disse Morosini com desenvoltura.

- Realmente? E, por acaso, não contava saber algo sobre um certo diamante desaparecido?... Ora vamos, príncipe, deixe de me gozar! E, antes de mais, como descobriu Yuan Chang?

Morosini hesitou um momento, o tempo preciso para escolher a melhor mentira.

- Bem sabe que desde que Harrison morreu correm por aí muitos rumores. O Ritz está pejado de gente que veio a Londres para assistir ao leilão. Também há os jornalistas e falou-se dos assassinos que, ao que parece, seriam uns indivíduos asiáticos... Foi então que alguém mencionou o nome de Yuan Chang... Era natural que eu o quisesse conhecer.

- Hum!... Vou ter de me contentar com essa resposta, mesmo que ela não me convença. Deixe-me dizer-lhe o seguinte: não sei precisamente qual é o seu jogo, mas pressinto que você não ficaria zangado se pudesse deitar a mão à Rosa de Iorque. Portanto, peço-lhe que fixe bem o que lhe vou dizer: não quero, de modo algum, que se intrometa numa investigação que é da nossa competência! Compreendeu-me bem?

- Deus me livre! - disse Morosini, que começava a sentir-se exasperado.

A vida não se lhe anunciava fácil, entre Aronov, que queria impedi-lo de ocupar-se de Anielka e este chui rabugento que o proibia de procurar o diamante. Tanto quanto possível, ia ser preciso jogar pelo seguro.

- O senhor devia contudo levar em conta a minha actual posição: eu vim a Londres com a missão de comprar a Rosa para um... cliente de alta nobreza, cujo nome não posso revelar.

- Não vo-lo peço.

- Ainda me posso dar por feliz por você respeitar o meu segredo profissional! Porém, procure entender que eu acho desagradável ficar aqui de braços cruzados, sem fazer nada para procurar encontrar essa pedra carregada de história!

- Se persiste nessa via, arrisca-se a ir parar no Tamisa com uma corda ao pescoço, como aconteceu aos irmãos Wu, ou a ser apunhalado com uma faca nas costas. No entanto, se isso o diverte... mas mudemos de assunto! Fiquei à espera da sua visita ontem à tarde, depois de ter passado por Brixton. Não tem nada a dizer-me?

- Tenho e contava fazê-lo ainda hoje.

- Depois do seu passeio por Chinatown? - perguntou Warren, de modo trocista. - Então, que diz a nossa linda viúva?

Morosini retraçou grosso modo a narrativa de Anielka, o que lhe deu a satisfação de ver arregalarem-se ainda mais - como se isso fosse possível... - os olhos amarelos do pterodáctilo, que soltou um ligeiro assobio:

- Então ela considera a prisão como um refúgio contra uma espécie de terroristas decididos a proteger um dos seus a qualquer preço? Isso é novo e não é completamente estúpido! Conquanto isso seja verdade, é claro.

Quanto a isso, o príncipe-antiquário já não estava tão certo! Era mesmo o seu tormento secreto mais agudo, mas como não desejava de modo algum evocar as conversas com Wanda e John Sutton, evitou qualquer alusão a esse respeito e deixou passar os segundos. Warren, aspirando furiosamente o cachimbo, parecia mergulhado num abismo de reflexões, do qual emergiu para resmungar:

- Se quiser saber a minha opinião, pergunto-me se esta história rocambolesca não foi apenas forjada na sua intenção, meu caro príncipe. A verdade talvez seja mais simples e mais feminina: lady Ferrais reencontrou o seu antigo amor e o fogo mal apagado voltou a reacender-se. Não sei o que se passou entre eles em Grosvenor Square, mas inclino-me para que tenha sido uma aventura amorosa! e agora a bela Anielka gostaria muito de se salvar a si mesma e ao seu amante.

- Contudo, ela não hesita em apontá-lo e acusá-lo de assassínio - disse Morosini secamente.

- Nesse caso por que não nos conta tudo isso a nós? Por recear uns vagos anarquistas polacos? Primo: não tive qualquer conhecimento de uma célula polaca. Se se tratassem de russos, já seria outra coisa. Secunda nós possuímos todos os meios para proteger eficazmente lady Ferrais até que esse Ladislas e o seu bando sejam postos definitivamente à sombra. Finalmente, ela está muito enganada se pensa que sem uma séria ajuda o pai, o conde Solmanski, a poderá tirar da terrível embrulhada em que se meteu.

- A ajuda séria, ela tê-la-á: aconselhei-a a que mandasse chamar sir Desmond Saint Albans.

- Esperemos que ela lhe preste ouvidos, para seu bem! Coisa de que não estou lá muito certo, a partir do momento em que ela ouvir falar das qualidades de sir Desmond: terá grandes dificuldades em omitir-lhe a verdade pois, se ele consegue "cozinhar" tão bem as testemunhas é porque primeiro começa por sujeitar o seu cliente a uma peneira cheia de armadilhas. Quer ela queira quer não, terá de confessar-se! Ora já cá estamos! - acrescentou Warren, enquanto o táxi parava diante da sentinela de serviço à Scotland Yard. - Obrigado por aquilo que me revelou. Conta ficar em Londres mais algum tempo? Se deseja esperar pelo julgamento, os seus negócios arriscam-se a periclitar.

- Pelo momento, a única preocupação que me causam consiste no desaparecimento da Rosa de Iorque. Deste modo, há-de compreender que eu deseje demorar-me ainda um pouco por cá. Na esperança - acrescentou com um sorriso impertinente - de poder assistir ao seu triunfo quando tiver recuperado a pedra. Do que não duvido um só momento!

- Eu também não! - retorquiu o outro, energicamente. - Isso dar-nos-á a ocasião para nos voltarmos a encontrar.

A careta que acompanhou a expressão deste desejo podia passar esforçadamente por um sorriso. Contudo, Aldo não conseguiu ficar convencido. Pareceu-lhe antes uma ameaça.

No hotel esperava-o uma carta; ou antes, um bilhete, dada a brevidade da mensagem, que, não obstante, despertou imediatamente um cortejo de pontos de interrogação na sua mente.

 

"Lady B. foi transportada há quinze dias para uma casa de repouso. Muito discretamente, dado que a família não quis que fosse dada a menor publicidade a um estado mental deplorável. S. A."

 

Nesse caso, quem seria a velha dama que o infeliz Harrison aceitara receber para que pudesse contemplar uma gema ancestral?

 

           CAPÍTULO 5 - OS CONVIDADOS DA DUQUESA

Quando Aldo e Adalbert, anunciados por um criado, entraram no salão onde a duquesa de Danvers reunia os seus convidados antes do jantar, o primeiro foi assolado por um violento desejo de dar meia volta e de escapar o mais depressa possível. Ao chegar, já não vinha muito contente. Não lhe agradava mesmo nada a ideia de ter de encontrar uma americana tão insuportável quanto riquíssima; mas quando, ao alcançar a entrada, avistou a mulher que conversava com a sua anfitriã e lady Winfield num canapé Regência, começou mesmo a entrar em pânico. Parou bruscamente, esboçando imediatamente um movimento de retorno. Vidal-Pellicorne inquietou-se logo:

- Não te sentes bem? Que é que tens? - cochichou-lhe, a seu lado.

- Nunca devia ter vindo! É possível que vá passar uma das piores soirées de toda a minha vida de antiquário.

- Lamento, mas é muito tarde para escapar. Efectivamente, tendo o anunciante pronunciado os nomes dos

recém-chegados na sua voz forte, a velha duquesa endereçava-lhes já um sorriso encantado atrás do seu leque e ao longo da sala. Não tinham outra alternativa senão corresponder. Um instante depois - que lhe pareceu demasiado curto - Aldo inclinava-se sobre a mão da hospedeira. Esta já dizia:

- Minha querida Ava, eis a pessoa que lhe prometi trazer! Quanto a si, príncipe, fui inteirada por lady Ribblesdale que já se encontraram antes da guerra ter eclodido na América.

- Lady Ribblesdale? - murmurou Aldo, com um olhar interrogativo ao saudar a dama. - Isso recorda-me outro nome. Aliás, inesquecível... como a própria milady.

Efectivamente, há uma dezena de anos, aquando de uma estada estival em Newport, a estância balnear dos milionários nova-iorquinos, Morosini tivera a honra de ser apresentado à mulher que era então considerada a mais bela dos Estados Unidos, se bem que tivesse ultrapassado os quarenta: Ava Lowle Willing, a qual, apesar do divórcio pronunciado dois anos antes entre ela e John Astor IV, não deixara de continuara a utilizar o nome de Sra. Astor. Para dizer a verdade, o ex-marido já não tinha meios para o impedir, se bem que se tivesse casado de novo logo a seguir: ao regressar da sua viagem de núpcias pela Europa, tivera a infeliz ideia de embarcar a bordo do Titanic, onde morreu como um grande senhor, depois de ter obrigado a sua jovem esposa a entrar num bote de salvação. Ava, aliás mãe de duas crianças, mas ignorando completamente a jovem viúva, permaneceu Sra. Astor como anteriormente.

Encantadora, dotada de uma extrema sedução, não deixava contudo de ser uma megera de coração ressequido que nunca amara o marido ou os filhos e, nem sequer, os amantes. Apenas se interessava pela sua própria pessoa. Além disso, e apesar de pertencer a uma das melhores e mais abastadas famílias de Filadélfia - os Lowle Willing pretendiam descender de alguns reis ingleses e de um monarca francês! - ela fora terrivelmente mimada e, portanto, mal-educada e infelizmente ainda guardava alguns resquícios dessa educação. Aldo lembrava-se, horrorizado, de um jantar em casa dos Vanderbilt, em que Ava, sentada ao lado de uma nobre dama inglesa - o que muito lhe desagradava pois preferia a companhia dos homens - exclamara ao deixar a mesa: "Pergunto-me onde é que ouvi dizer que lady X... podia ser divertida e graciosa de espírito!" o que provocara um frio glacial na sala. Quanto ao príncipe, Ava persistia em crer que ele passava a vida equilibrando-se nalguma gôndola, dedilhando a guitarra enquanto cantava O sole mio!, o que lhe repetia constantemente como se se tratasse de uma óptima piada e o que tinha o dom de fazê-lo perder a cabeça.

Se contava que os dez anos passados a tivessem acalmado, enganava-se redondamente. Ela acolheu-o numa voz estridente:

- Mas é o meu pequeno príncipe-gondoleiro! Estou encantada por voltar a vê-lo, meu caro!

- Eu também, lady... Ribblesdale? Não é esse o seu nome? - perguntou Aldo, decidido a desempenhar a sua parte naquele dueto e a ripostar à insolência com a mesma moeda, mesmo que a sua reputação de homem galante tivesse de sofrer com isso.

- É bem verdade! - aprovou ela, com um sorriso deslumbrante. - Um marido muito decorativo e muito rico, que não terei o prazer de lhe apresentar. Antes de nos casarmos ele era o mais divertido dos companheiros e dava festas de arromba, mas a partir do casamento já não foi mais possível arrancá-lo àquele horroroso solar Tudor que possui no Sussex, onde substituiu os violinos dos bailes pela leitura em voz alta dos grandes clássicos. O que é uma enorme maçada, mesmo com uma voz tão bela quanto a sua! Por isso, volta e meia venho a Londres distrair-me. Muito poucas vezes para o meu gosto, mas ele não consegue dispensar a minha presença...

- Como o compreendo! Nem devia permitir que o deixasse um só instante! Posso apresentar-lhe o meu amigo Adalbert Vidal-Pellicorne, egiptólogo francês de grande reputação?

- Bom dia, cavalheiro, muito bom dia! Um egiptólogo é sempre divertido, se bem que os ingleses sejam muito superiores aos franceses nesse capítulo...

- Digamos que dispõem de mais meios, lady Ribblesdale! -trauteou Adalbert.- De resto, creio lembrar-me que Champollion, que decifrou os hieróglifos, era francês e...

- Sim, mas já passou tanto tempo! Aliás a sua Roseta encontra-se aqui exposta, no Museu Britânico... Mas, dado que se trata da sua profissão, que está a fazer neste salão? A minha filha Alice encontra-se presentemente no Egipto com o nosso muito prezado amigo Carnavon, seguindo muito atentamente as suas buscas no Vale dos Reis.

- Mademoiselle, a sua filha é arqueóloga?

- Meu Deus, não! Que horror! Não pensa decerto que ela esgravata na areia, pois não? Não, ela está apenas apaixonada por esse país, pois está persuadida que foi lá que viveu uma vida anterior durante a qual, filha de um grande sacerdote de Amon, não deixava contudo de aderir à doutrina solar de Akhenaton. Aliás, a esse propósito, ela até tem alguns pesadelos muito engraçados.

O fluxo ininterrupto de palavras teria ainda podido continuar por muito tempo, caso a duquesa não tivesse intervido firmemente e com brandura, levantando-se e exprimindo o desejo de ir apresentar os recém-chegados aos seus outros amigos.

- Vocês vão ficar sentados lado a lado - disse, numa espécie de apaziguamento. - Consequentemente, terão todo o tempo para conversar...

Para dar a volta pelo salão, pegou no braço de Aldo, acabrunhado à ideia da refeição-calvário que o esperava. Deste modo saudou uma dezena de pessoas sem se aperceber muito bem quem eram, só regressando à realidade quando se encontrou a apertar a mão de Moritz Kledermann...

- Muito feliz em conhecê-lo! - disse o banqueiro suíço, sem o menor entusiasmo. - É uma surpresa inesperada que aprecio devidamente. Parece que temos alguns amigos comuns.

- Efectivamente - respondeu Morosini, lembrando-se a tempo que durante o casamento de Anielka e de Eric Ferrais, a duquesa de Danvers e Dianora Kledermann ocupavam posições destacadas. - Suponho que o senhor lastima tanto quanto eu o trágico destino de sir Eric Ferrais... e da sua jovem esposa...

Nos olhos cinzentos do homem de Zurique surgiu um brilho de curiosidade, matizado de surpresa.

- Julga-a inocente?

- Tenho a certeza disso - disse Aldo, com firmeza. - Ela não tem sequer vinte anos, cavalheiro, e neste caso creio que é sobretudo uma vítima...

O brilho persistiu, acompanhado por um lento sorriso que conferiu uma nota de boa-disposição naquele rosto um pouco severo. - Pois bem, não irá concordar com o parecer da minha mulher. Ela não pára de enviar para a forca a esposa do seu velho amigo... mas creio que a conhece, não é verdade?

- Tenho essa honra e esse prazer. Posso perguntar-lhe como é que ela vai, dado que não me parece que esteja a fazer-lhe companhia? - perguntou Aldo, com a brandura mais serena possível.

- Penso que vai lindamente, pelo menos assim o creio. Ela desejava comparecer, mas quando se trata de um negócio importante eu prefiro estar só. Na ocorrência, tive razão. Ela nada tinha a fazer nesta atmosfera de crime crápula que rodeou a morte desse pobre Harrison.

- Foi o diamante do Temerário que o trouxe até cá?

- Naturalmente. Como a tantos outros... e como a si próprio, suponho. Tenciono prolongar um pouco a minha estada, na esperança que o reencontrem.

- Acontece-me o mesmo: deposito grande confiança nos talentos da Scotland Yard.

O anunciar do jantar pôs termo à conversa. Aliás, já tinham acabado de dar a volta pelo salão e Morosini, resignado, foi dar o braço à temível lady Ribblesdale, para conduzi-la até à mesa.

Foi ainda pior do que imaginara. Mal se sentou diante da comprida mesa de mogno, cuja madeira magnificamente brilhante estava enfeitada por um arquipélago de fabulosas porcelanas inglesas, por cristais cintilantes e por um enorme vaso central donde emergiam flores, a sua companheira, com um notável à-vontade, afogou-o em perguntas acerca do seu "pequeno comércio" e, até, sobre a sua vida íntima. Além disso, entalado entre ela e a sua anfitriã, foi obrigado a honrar o que lhe serviam: uma sopa clara e parcimoniosa onde flutuavam coisas indefiníveis, um carneiro demasiado assado com batatas, que não o estavam suficientemente, à mistura com aquele molho de menta aflitivo que tanto detestava; um excelente e reduzidíssimo pedaço de queijo de Stilton, do qual teria comido um prato inteiro e, depois de um sortido de jellies trementes mas enfeitadas com flores-de-açúcar, as elegantes "delícias", foi a vez de um requinte destinado a neutralizar o adocicado da sobremesa e que consistia, nessa noite, em fatias torradas com medula, de tal modo condimentadas que, com as goelas a arder, Aldo quase desatou a chorar. Mas antes de terem chegado a este extremo, a ex-Sra. Astor contara-lhe o motivo pelo qual a sua presença fora solicitada, o qual tinha a ver com a Rosa de Iorque. Lady Ribblesdale queria comprá-la e considerava como uma ofensa pessoal a falta de consideração que demonstrara o pobre Harrison ao deixar-se roubar e assassinar.

- Não é nada certo que o tivesse podido adquirir - observou Morosini. - A concorrência era muito forte, lady Ava. Os Rothschild, ingleses ou franceses, faziam parte da assistência... e diante de si tem um dos maiores coleccionadores europeus. Em todo o caso, o maior coleccionador suíço.

- Pfft!. Que representa tudo isso? - disse a dama, varrendo com a sua pequena mão carregada de anéis tais exemplos negligenciáveis. - Eu tê-lo-ia obtido, porque obtenho sempre o que quero e esta noite você tê-lo-ia visto resplandecer na minha pessoa.

A voz lenta mas precisa de Moritz Kledermann fez-se então ouvir do outro lado da mesa:

- Não é uma peça que se possa trazer. Ela é sem dúvida muito bela, mas menos brilhante do que imagina. Não a pode ver?

- Não, mas isso não importa!

- É isso que julga? Talvez a tivesse desiludido. Para começar trata-se de um cabochão, o que significa que tem uma superfície arredondada, desprovida de ângulos e polida muito rudimentarmente, porque se trata de um velho diamante que nasceu numa época em que se ignorava a lapidação.

- É verdade! - aprovou Aldo. - A Rosa de Iorque não reflecte tanto a luz quanto o seu adorno desta noite.

Efectivamente, a americana, enfeitada com colares de diamantes, brincos com pedrarias, um diadema e alguns braceletes, resplandecia mil luzes, dignas de uma árvore de Natal. Aliás, na sua maioria eram peças muito lindas mas, devido à sua profusão, acabavam por se atenuar mutuamente. Um outro gesto varreu a objecção.

- Que importa! Tê-la-ia mandado lapidar, é tudo! - disse a dama, com desenvoltura.

O especialista e o coleccionador trocaram um olhar horrorizado por cima da sombria superfície de mogno, cujo significado Morosini apressou-se a explicar:

- Não se "lapida" uma jóia histórica! Sobretudo desta importância, madame!

- E por que não, a partir do momento em que a tivesse pago?

- Porque a Coroa Britânica, de quem ela dependeu muito tempo, poder-lhe-ia pedir contas desse acto. Quando se trata de uma peça desta natureza as leis do mercado são sensivelmente diferentes. Sobretudo neste território, e quando se trata de um património histórico - disse Aldo severamente. - De qualquer modo, uma vez lapidado não seria só a imagem do diamante do Temerário que se desvaneceria na memória dos homens, como boa parte do seu valor mercantil. Na verdade, não compreendo porque insiste tanto em adquiri-lo.

A tez perfeita de lady Ribblesdale corou bruscamente, enquanto os seus magníficos olhos negros faiscavam com uma cólera que ela nem pensou sequer em reprimir.

- Não compreende? Vou explicar-lhe - exclamou, sem se preocupar em interromper todas as conversas. -Já não suporto ver, na Corte ou em todas as grandes recepções, a minha prima lady Astor(1) - essa pretensiosa da Nancy, que achou por bem ser eleita para a Câmara dos Comuns - trazer um diadema no meio do qual brilha o Sancy, um dos mais belos diamantes da coroa de França, e é por isso que desejo obter a Rosa de Iorque.

- Mesmo usada por si, madame, ela nunca produziria tanto efeito quanto o Sancy. É uma das pedras mais belas que conheço - disse Moritz Kledermann.

- Nesse caso, quero possuir pelo menos o equivalente... num tamanho maior, é claro! É esse o motivo do nosso encontro, meu caro príncipe - acrescentou insolentemente. - Dado que vende jóias históricas, encontre-me, pois, uma!

Era uma tal enormidade que, longe de se zangar, Morosini desatou a rir.

- Nesse caso, lady Ava, deve convencer Sua Majestade a vender-lhe uma das pedras que se encontram na Torre de Londres, uma das Cullinan, por exemplo, ou então o duque de Westminster, para que ele se desfaça do Nassak, que pesa oitenta quilates e meio, enquanto que o Sancy só pesa cinquenta e três...

- Isso não me interessa! - interrompeu a dama impacientemente. - Quero uma jóia célebre e que tenha sido usada por uma ou várias rainhas. É o caso do Sancy! Nancy não deixa que ninguém ignore a sua história! A famosa Maria Antonieta, por exemplo, trazia-a frequentemente consigo.

- Nesse caso - interveio novamente Kledermann, num tom ambíguo - tem de pedir a Regente ao museu do Louvre. - Os seus cento e quarenta quilates até brilharam como diadema real da coroa de França na ocasião da sagração de Luís XV. Maria Antonieta usou-a, bem como Napoleão...

 

*1. Amigo do rei Eduardo VII, William-Waldorf Astor, instalado definitivamente em Inglaterra, foi nobilitado por aquele em 1916. Foi o tronco principal do ramo inglês e primeiro visconde Astor de Hever. Efectivamente, ele comprara este castelo, no qual nascera Ana Bolena. O esposo de Nancy Langhorne Shaw, que foi na realidade a primeira mulher deputada, era filho desse mesmo Astor.

 

- Não seja ridículo! - proferiu a americana, sem se incomodar com as boas maneiras. - Deve ser possível encontrar o que quero! E, visto que se trata da sua profissão, Morosini, trate de me satisfazer!

Nesta altura da discussão, a duquesa achou por bem intervir. Se bem que nunca tivesse dado provas de grande fineza, nem sequer de inteligência, sentiu que a atmosfera estava a ficar carregada de electricidade e não gostou muito da estranha luz verde que se acendia nos olhos cinzento-azulados de Aldo.

- Devia acalmar-se, querida amiga! O que pede não é nada fácil, mas tenho a certeza que o príncipe fará... o impossível para lhe agradar. Tem apenas de ter um pouco de paciência.

Levantou-se enquanto falava, o que obrigava as damas presentes a imitá-la. Os homens permaneceram para a cerimónia ritual do vinho do Porto.

- Que hábito interessante! - cochichou Aldo, com um suspiro de alívio, mas destinado unicamente aos ouvidos do seu amigo Adalbert. - Nunca o apreciei tanto.

- É apenas uma trégua. Não te vais safar com tanta facilidade. É uma mulher que sabe o que quer! É verdade que desta vez te está a pedir a lua ou quase!

- Pode não ser assim! Ocorreu-me uma ideia que talvez pusesse em ordem as finanças de uma velha amiga da minha mãe. Ela possui um diamante, montado em diadema, que é um pouco maior que o Sancy, o qual sempre me perguntei se não seria o Espelho de Portugal, que desapareceu depois do roubo das jóias da coroa francesa, na arrecadação de móveis da praça Concórdia em 1792. A esse, não se sabe mesmo o que lhe aconteceu.

Falava muito baixo, não desejando que Kledermann o ouvisse, o qual falava aliás com o seu vizinho de mesa, um coronel da Armada das índias.

- A tua ideia não vale nada. Essa dama não tem certamente nenhuma vontade de vendê-lo.

- Oh sim! Explico-te tudo em duas palavras. Ela veio ver-me alguns dias antes da minha ida para a Escócia e perguntou-me se não haveria um meio para se desembaraçar discretamente de um "objecto" - a palavra é dela! - que nunca apreciou porque o julga responsável por todas as catástrofes que lhe caíram em cima desde que se casou, dia em que o pôs pela primeira vez na cabeça - nesse dia quebrou um joelho ao sair da igreja e, desde então, passou a coxear. Mas isto não é tudo: perdeu ainda, sucessivamente, um marido que amava e os seus dois filhos, em circunstâncias dramáticas acerca das quais não me alongarei esta noite. Restava-lhe uma filha, casada por amor com um outro veneziano nobre, um rapaz muito bonito, mas do género teso, beato e avaro como não é possível. A rapariga não era bonita mas estava perdidamente apaixonada pela personagem que pretendia obter compensações financeiras em troca do seu belo físico. Para que o casamento pudesse ocorrer, a minha velha amiga vendeu tudo e mais alguma coisa, excepto esse infeliz adorno, pois não queria que os malefícios em que acredita pudessem recair sobre uma pessoa inocente. Só que agora a sua saúde vai muito mal e ela gostaria de tratar-se, desembaraçando-se do diamante.

- Que maravilha! Só terá de vendê-lo!

- Não é assim tão fácil. O genro não pára de a adular para que ela o ofereça à filha. E, claro está, vigia-a: se ela puser a jóia à venda, o drama rebenta.

- Ele seria capaz de...?

- De matá-la, não; é um bom cristão, mas seria capaz de sequestrá-la. Foi por isso que ela me veio visitar muito discretamente certa manhã, muito cedo, enquanto o genro estava na missa. Prometi-lhe que faria tudo o que pudesse para lhe encontrar um comprador interessante, talvez aproveitando a reunião que a Rosa de Iorque aqui engendrou e envergonho-me um pouco ao ter de confessar que até há pouco já me tinha esquecido dela.

- Pois bem, aqui está a tua oportunidade! Agarra-a!

- Há um pequeno problema: tenho quase a certeza que se trata do Espelho de Portugal, mas não possuo nenhuma prova disso... à parte, evidentemente, do facto de se tratar de um causa-enguiços...

- Ah! Ele também!

- É frequentemente o caso com essas pedras quase lendárias. Por exemplo, o Sancy não constitui uma excepção à regra e lady Ribblesdale não devia invejar tanto a sua prima. Quanto ao Espelho, ele passou pelas mãos de Filipe II de Espanha quando se casou com a sua primeira mulher, Maria, de Portugal. Ela veio a falecer após dois anos de casada. Em seguida, fez parte do tesouro inglês até ao reinado de Carlos I, o rei decapitado. A sua mulher, filha de Henrique IV, ao fugir de França com as jóias e ao ver-se reduzida à miséria, deve tê-lo deixado a Mazarin. Finalmente, Maria Antonieta também o usou e concordo contigo que existe matéria que chegue para fazer pular de alegria esta americana mas, desconfiada como todas as que se lhe assemelham, ela talvez não o aceite, caso não possa declamar todo o seu historial. Ora, a partir de 1792, nem sequer a minha amiga conhece o resto da história. O seu marido nunca lhe quis dizer como o diamante tinha entrado em sua posse. Preferiria que ela se dirigisse a um coleccionador que saberia manter-se calado, como Kledermann. Em primeiro lugar, ele possui um dos dezoito mazarinos, entre os quais figuraram o Espelho e o Sancy...

Parou de falar. Tendo o Porto circulado suficientemente aos olhos de lady Danvers, ela enviara o seu mordomo a reclamar a presença dos convidados masculinos.

- O divertimento acabou - sussurrou Vidal-Pellicorne - mas se fosse a ti, estudaria a questão cuidadosamente: essa meio-louca é capaz de pagar uma fortuna.

- Tenho vontade de dizer uma palavrinha a Kledermann. Afinal de contas a concorrência não pode fazer mal e, caso ele se interesse, isso poderia levá-la a aumentar o preço.

No entanto, teve de deixar para mais tarde a conversa que previra. Durante o jantar que reunira um número restrito de pessoas, um dos salões fora guarnecido com mesas de brídege e tinham surgido novos convidados. Organizavam-se jogos e foi um pouco contrariado que Aldo se apercebeu que o banqueiro de Zurique já se instalara. Não gostava daquele jogo, que achava demasiado lento e absorvente, preferindo-lhe as alegrias mais fortes e nervosas do póquer. Por vezes desempenhava o papel de quarto jogador em caso de necessidade mas constatando, desta vez com alívio, que a sua perseguidora se preparava para jogar, optou por ir até ao outro salão onde as pessoas se contentariam em falar de tudo e de nada em redor da anfitriã, enquanto iam bebendo café e licores.

Com uma chávena na mão e um pouco desamparado - Adalbert adorava o brídege - Morosini tratou de dar uma volta pelo salão que se encontrava um tanto esmagado sob o peso das douraduras vitorianas, mas cujas paredes exibiam alguns belos quadros, paisagens ou retratos. Um destes atraiu-lhe particularmente a atenção devido à sua feitura e à personagem que representava. A julgar pelo aparato do quadro, tratava-se de um homem de elevada posição e mesmo de sangue real. O modelo era do tipo Bourbon e parecia-se muito com Carlos II(1), mas a massa de cabelos ruivos e encaracolados que enquadravam o rosto e uma certa vulgaridade no sorriso e na expressão, tornavam-no um tanto mais desconcertante. Aldo inclinou-se para tentar decifrar a assinatura do artista quando, atrás dele, alguém o informou:

- Kellner PinxitL. Como talvez o saiba, era o pintor favorito do rei George I. Um alemão, como ele, é claro.(2) Uma figura pitoresca em todos os sentidos do termo, não é verdade? É certo que as suas origens não o eram menos...

Segurando também numa chávena de café, um homem que Morosini reconheceu como sendo o novo lorde Killrenan encontrava-se a seu lado, arvorando um sorriso de esguelha que lhe animava o rosto pesado e pouco expressivo.

- Este encontro é inesperado, lorde Desmond. Como é possível que não me tenha apercebido da sua presença durante o jantar?

- Simplesmente porque eu não me encontrava presente. Devia ter estado, mas encontrei-me retido no Old Bailey(nt) por causa de um caso importante. Este quadro interessa-o?

- Temos de nos interessar por algo num salão. Confesso que me intriga um pouco. Mas não estava a falar de... origens pitorescas?

- No mínimo. A mãe dele foi vendedora de laranjas e, depois, comediante, antes de se tornar a favorita do nosso rei Carlos, segundo do seu nome. É o filho da famosa Nell Gwynn, mas o pai fê-lo duque de Saint Albans.

Morosini ergueu ironicamente o sobrolho:

- Como o senhor? Não será um dos seus antepassados?

- Deus me livre! Mesmo por um título ducal não gostaria de encontrar a mui famosa Nellie na lista dos meus antepassados. Eu provenho de um outro Saint Albans que, antes de se instalar em Inglaterra, foi médico de um rei de França no século xii. E se nos sentássemos? Seria mais cómodo para conversarmos. Além disso, este café já esfriou...

 

*1. Graças a sua mãe, Henriqueta de França, este era neto de Henrique IV.

  1. A dança das sucessões colocou George de Hanôver no trono inglês.

nT. O mais famoso dos tribunais londrinos.

 

Enquanto escolhiam duas poltronas, Aldo lançou um último olhar na direcção do bastardo real. Acudiram-lhe à memória as palavras de Simon Aronov quando falavam da Rosa de Iorque dentro do seu carro. "Um rumor da Corte pretende que Buckingham a perdeu ao jogar às cartas contra a actriz Nell Gwynn, nessa altura favorita do rei Carlos e grávida de uma criança...". Esta personagem com um ar um pouco acanalhado, cujo nome o Coxo não mencionara, tinha certamente possuído o diamante. De repente Morosini pensou que as pesquisas efectuadas por Adalbert em Somerset House talvez pudessem vir a revelar-se uma fonte de informações...

Entretanto, talvez fosse útil "cozinhar" um pouco o Saint Albans que tinha à mão de semear, fosse ou não descendente do filho de Carlos II.

- Posso perguntar-lhe como vai ladyMary, dado que ela não o acompanha? Não está adoentada, pelo menos?

- Não, mas ela não gosta muito deste género de reuniões e ainda menos de lady Danvers, com a qual eu mantenho relações quase familiares. Aliás, é a primeira vez que me regozijo por isso: receio que ela não o traga propriamente no coração. Uma história de bracelete que você teria recusado vender-lhe...

- Acredite-me que lastimo imenso, mas eu não tinha outra alternativa pois as ordens do vendedor eram formais: não podia vendê-lo nem a um inglês nem a uma inglesa.

- Nunca percebi porquê. Morosini pôs-se a rir:

- Não faz parte das minhas atribuições rebuscar nos segredos dos meus clientes. Tal como um médico... ou um advogado, estou ligado a um segredo profissional.

- De bom-grado o admito mas, na verdade, Mary não tem sorte: ela estava a começar a esquecer-se do Mumtaz Mahal para depositar as suas esperanças na Rosa de Iorque, e eis que esta desaparece!'Mas acabou de aludir à minha profissão e parece que lhe devo agradecer: lady Ferrais deu-me a entender que me recomendou como seu defensor. Ignorava que o meu nome fosse conhecido até Veneza! - E tem razão: apenas lhe transmiti o conselho de um amigo cuja identidade não lhe revelarei, mas que é grande apreciador do seu grande talento e que, não tendo a honra de a conhecer, encarregou-me de aconselhá-la a mudar de advogado de defesa. Ponto final! Por isso, não me deve qualquer agradecimento.

Com os cotovelos apoiados nos braços da poltrona, Saint Albans enclavinhou os dedos das mãos, nas quais assentou a boca numa atitude meditativa.

- Talvez não, efectivamente! É uma causa lisonjeante e também interessante a defender, mas que se arrisca a nada acrescentar à minha reputação. Essa jovem é desnorteante e confesso-lhe que no estado actual das nossas conversas ainda não determinei qual a táctica que irei utilizar no tribunal. Ao vê-la, jurar-se-ia que está inocente, mas ao ouvi-la é difícil formular uma opinião.

- Já interrogou Wanda, a sua camareira?

- Não, conto fazê-lo amanhã.

- Depois disso, ainda encontrará mais dificuldades mas, na minha opinião, penso que se deve confiar em Ani... em lady Ferrais, e empreender todos os esforços para encontrar o polaco foragido.

- Sem dúvida alguma! Mas, diga-me, príncipe, o senhor conhece-a bem?

- Quem pode vangloriar-se de conhecer bem uma mulher? As nossas relações datam de algumas semanas antes do seu casamento.

- Um casamento com o qual o amor não tinha grande coisa a ver. Não lhe escondo que é um dos elementos que me irão estorvar perante o tribunal, caso não consiga fazê-la mudar de atitude: ela não dissimula suficientemente o nojo que lhe causava o marido. O advogado da Coroa terá grande facilidade em jogar a carta do ódio reforçado pelas relações adúlteras com esse polaco fantasma...

- O pai dela acabou de chegar a Londres. Já o viu?

- Ainda não. Temos um encontro marcado para amanhã.

- Ele deve poder reconfortá-lo - disse Aldo com um sorriso irónico. - É um homem que sabe o que quer e que sempre impôs a vontade à filha.

- Verdadeiramente?

- Verdadeiramente! Alguns segundos com ele bastar-lhe-ão para fazer uma avaliação da personagem...

Um gentleman de cabelos e bigode grisalhos, cujo nome Morosini esquecera, mas que era um primo da duquesa, aproximou-se deles a fim de solicitar a sir Desmond que viesse juntar-se aos jogadores de brídege. Para além do facto de ser inevitável acabar por solicitar a presença de um jogador da sua craveira, também era preciso encontrar um quarto parceiro. O advogado levantou-se, desculpando-se:

- Príncipe, gostaria de conversar consigo ainda mais algum tempo, mas espero que tenhamos outra ocasião para tal. Senão, saberei como criá-la: temos de voltar a encontrar-nos!

- Não creio que essa perspectiva encante ladyMary.

- A antipatia dela não irá durar. Como muitas mulheres ela é muito versátil. Além disso, esquecer-se-á da história do bracelete para passar a encará-lo como um caçador de pedras preciosas: alguém que a fascinará.

- Eu inclino-me mais para um rancor tenaz...

- Ora vamos! Eu próprio encarregar-me-ei disso. Por que não vem com o seu amigo, que tem um nome impossível de pronunciar, passar um fim-de-semana campestre na nossa casa no Kent? Gostaria que apreciasse a minha colecção de jades...

A súbita cordialidade do tom, o desejo tão inesperado em travar mais amplo conhecimento da parte de um homem pouco simpático e difícil de entender, ficaram explicados a partir do momento em que pronunciou a palavra "jade". Aparentemente, sir Desmond pertencia àquela raça de coleccionadores que gostam que admirem os seus bens. E como o destino de Anielka ia depender em boa medida do seu talento, Aldo pensou que o convite não devia ser desdenhado.

- E por que não, desde que a dona da casa não nos considere como uns insuportáveis intrusos? Estamos a contar ficar ainda algum tempo em Londres.

- Ainda bem! Claro, deve contar com uma tempestade de perguntas acerca da Rosa de Iorque mas, se me permite um conselho, pode muito bem desenvencilhar-se levando-a a crer que sempre esteve persuadido que se tratava de um exemplar falso. Aliás, eu inclino-me muito nesse sentido. Vou já, meu caro, vou já!

As últimas palavras foram endereçadas ao homem de bigode que voltara à carga, achando sem dúvida que já tinha decorrido muito tempo. O advogado juntou-se-lhe e passaram ambos para o primeiro salão, deixando Morosini algo surpreendido pela última frase. Onde fora ele buscar aquela convicção? Seria apenas a expressão de um desejo natural e simples de estar em paz em sua casa, ou então...

- Ou então o quê? - resmoneou Aldo entredentes.-Já é tempo de pores um freio na tua imaginação, rapaz, e de não te deixares açambarcar pela atmosfera turva na qual banhas desde há alguns dias! Não é por este infeliz estar atribulado por uma mulher meio-louca que prefere o fantan ao brídege e que à noite percorre os bairros esconsos, que se deve desconfiar que ele esconde pensamentos inconfessáveis. Na realidade o seu pior defeito é o de ter má cara, mas isso também não é da sua culpa!

Entretanto, abandonando a sua chávena vazia e a poltrona, Aldo regressou para contemplar novamente o retrato do filho de Nell Gwynn. Decididamente, este quadro atraía-o mais do que seria razoável. Talvez fosse devido ao olhar galhofeiro, ao sorriso impudico, como se aquele Saint Albans o desafiasse a desvendar um segredo que há muito detinha... Afinal de contas, se alguém podia saber por que caminhos andara o diamante, esse alguém era bem ele, pois era indiscutível que o possuíra.

Desta vez foi uma voz de mulher que veio interromper a sua reflexão, a voz afável e divertida de lady Winfield.

- Dir-se-ia que este quadro o cativa, meu caro príncipe, o que não abona muito em seu favor: a nossa única companhia masculina está reduzida ao general Elmsworth, que dorme a sono solto...

Efectivamente, formara-se um pequeno círculo de damas em redor da duquesa e do general em questão que estava ocupado a dormitar beatificamente no fundo de uma poltrona. Aldo começou a rir.

- Triste situação na realidade, lady Winfield, e se a puder distrair ficarei muito satisfeito, mas que ideia foi essa de mandar instalar as mesas de brídege? Isso é a morte das soirées,

- É coisa indispensável quando se pretende atrair gente. Este jogo está por todo o lado.

Convidado a partilhar o canapé da sua anfitriã que lhe pedia amavelmente para "fazer um pouco as despesas da conversa", como se diz em França, Morosini não tardou a sentir a falta da companhia do seu duque pintado na tela. Até começou a invejar o general: aquelas damas trocavam entre si as mexeriquices londrinas envolvendo o Palácio de Buckingham. A questão da noite dizia respeito ao duque de Iorque, segundo filho de George V e da rainha Mary, e podia formular-se do seguinte modo: "Irá ela desposá-lo ou não?". Ela, Elizabeth Bowes-Lyon, era uma encantadora jovem da alta nobreza escocesa, filha do conde de Strathmore, por quem "Bertie"(nt) estava apaixonado desde há dois anos, mas que não parecia dar o devido valor à honra que lhe era concedida, o que não era de molde a simplificar a tarefa a um príncipe um tanto sedutor, mas tão tímido que até gaguejava. Além disso, era um canhoto contrariado e desde a infância que sofria de dores no estômago. Estas desgraças não o predispunham frequentemente para a boa-disposição, enquanto que a sua bem-amada era só graça, jovialidade e alegria de viver.

- Ele não lhe agrada - disse ladyDanvers. - Isso ficou bem patente no último mês de Fevereiro, durante o casamento da princesa Mary, em que ela foi dama de honor. Nunca a tinha visto tão triste.

- No entanto, ela não lhe poderá escapar! - assegurou lady Airlie, que era uma amiga chegada da Rainha. - Sua Majestade escolheu-a para o seu filho e quando ela quer qualquer coisa...

-Julga realmente que será desejável forçar o seu consentimento dessa maneira? Eu bem sei que sob a sua aparência reservada o príncipe é um rapaz encantador e que tudo fará para tornar a sua mulher feliz, mas uma jovem é um ser frágil...

- Não é o caso de Elizabeth! - protestou lady Airlie. - Pelo contrário, ela é muito forte. A sua saúde moral é tão robusta quanto a sua saúde física e, para Albert(1), ela seria a companheira perfeita.

- Não discordo, e estaria inteiramente de acordo consigo caso se se tratasse do herdeiro do trono, mas é pouco provável que o príncipe de Gales não venha a reinar. Ora ele não é casado e, nessas condições, não há nenhum motivo para se precipitar em "arrumar" o filho cadete. Acredite-me, acabo de ver com os meus próprios olhos a prova do desastre que pode causar um casamento em que se forçou uma rapariga de dezanove anos a desposar um homem que não lhe convinha. Porém, só Deus sabe quanto o pobre Eric Ferrais estava profundamente apaixonado!

A declaração de lady Clementine foi saudada por um coro de protestos. Era impensável estabelecer uma comparação entre a união de um homem já de certa idade com uma jovem estrangeira

 

*nt. Tratamento familiar para Albert.

  1. Até se tornar o rei George VI, o duque de Iorque chamou-se Albert, tal como o príncipe de Gales, futuro e temporário Eduardo VIII, se chamava David.

 

não o conhecia e um projecto de casamento dizendo respeito à família real inglesa! Em que pensava a duquesa ao estabelecer um tal paralelo? Na verdade, que coisa mais inconcebível! E como a maioria destas damas se mostravam persuadidas da culpabilidade de Anielka, o reboliço acabou por despertar o general, tornando-se rapidamente insuportável para Morosini que, não obstante, conseguiu acalmar os ânimos.

- Minhas senhoras, minhas senhoras, por favor! Tentem encarar as coisas sob uma perspectiva menos emocional! É certo que Sua Graça acaba de aludir a um caso extremo que seria chocante se lady Ferrais tivesse assassinado o esposo, mas quanto a mim estou convencido do contrário.

- Ora essa! - exclamou lady Winfield. - Isso equivale a negar a evidência! A nossa estimada duquesa viu essa infeliz dar ao esposo um saquinho de pó contra as enxaquecas, que ele verteu no copo e que o matou de imediato. De que mais precisa?

- De um verdadeiro culpado, lady Winfield! Estou persuadido de que não havia qualquer substância nociva nesse saquinho... Em compensação, as minhas suspeitas inclinam-se mais para o criado que serviu o copo. Ninguém o vigiava e ele teve sobejamente a ocasião para nele verter o que quisesse... Com um pouco de destreza, não é coisa difícil.

- Também sou um pouco da sua opinião, meu caro príncipe -reatou a duquesa - e pergunto-me se essa mania que tinha o pobre Eric de deitar cubos de gelo nas bebidas que tomava no escritório não acabou por lhe ser fatídica. Pessoalmente, não tenho nenhuma confiança nessa máquina que ele mandara vir da América e que instalara atrás da biblioteca, tratando-a com tanta reverência quanto a um cofre-forte.

- Não diga disparates, Clementine - disse lady Airlie. - Um cubo de gelo nunca matou ninguém e foi estricnina que encontraram no copo.

- A que máquina se refere, senhora duquesa? - perguntou Morosini intrigado.

- Ao pequeno armário onde ele conservava as bebidas frescas e que fabricava gelo. É coisa nova, mesmo nos Estados Unidos, e o de sir Eric é decerto o único exemplar existente em Inglaterra. Ele orgulhava-se muito disso, e pretendia que o seu gelo era melhor que qualquer outro e que o uísque adquiria um sabor particular mas, para além do facto de nós, ingleses, não gostarmos nada de beber coisas muito geladas, eu considerava esse utensílio como um joguete algo infantil. Eric tinha gostos tão estranhos!

- Contou isso à polícia?

- Não, meu Deus! Aliás, ninguém pensou em tal coisa: Eric não autorizava quem quer que fosse a manipular esse objecto, cuja chave guardava e era ele próprio que vertia o gelo no copo que lhe apresentava o criado, antes de enchê-lo de álcool. Posteriormente, sob o efeito do choque, esquecemo-nos deste pormenor; mas, mais tarde, coloquei-me algumas questões: talvez esse gelo, artificialmente fabricado, possa ser nocivo.

- Não a esse ponto - disse lady Winfield - e procedeu bem ao nada dizer à polícia! Esses senhores da Scotland Yard, já de si demonstram demasiada tendência para julgarem as mulheres umas loucas!

A discussão prosseguiu durante um momento. Desta vez Aldo não participou, sem compreender porque o preocupava aquela história; talvez porque nem Anielka, nem a duquesa ou o secretário a tivessem contado à polícia. Aliás, porque haveriam de o ter feito? Não apreciando nada os hábitos ingleses de beber líquidos mornos, sobretudo a cerveja, sir Eric adquirira um gadget de que se servia. Não era, portanto, nada de grave. Restava saber se a máquina era fiável e se não continha algum ponto fraco, como sucede frequentemente aos inventos quando são colocados inicialmente no mercado. Se bem que não fosse de uma inteligência transcendente, talvez a duquesa não deixasse de ter uma certa razão, afinal de contas... Contudo, estricnina, isso era demais!

Deixando as damas entregues à sua discussão, apostando sobre o eventual casamento do duque de Iorque(1), Morosini apresentou uma vaga desculpa que mal foi ouvida, de tal modo a discussão era animada, partindo depois à procura de Adalbert.

Foi encontrá-lo de pé, atrás da cadeira do seu parceiro de jogo que era a própria lady Ribblesdale, assumindo o seu papel de "morto" ao controlar o jogo. Afastou-o dali.

 

*1. Foi ladyAirlie que ganhou a aposta pois no dia 26 de Abril de 1923, Lady Elizabeth tornava-se duquesa de Iorque ao desposar o futuro rei George VI. Ainda hoje é a rainha-mãe de Inglaterra.

 

- Acabo de ficar ao corrente de algo que me preocupa - disse-lhe.

E contou-lhe a história do armário-frigorífico.

- Não achas estranho que ninguém o tenha referido depois da morte de Ferrais?

- Nem por isso! Não há nada de extraordinário no facto de ter preferido ser ele próprio a fabricar o seu gelo em vez de recorrer àquele que as casas especializadas entregam todos os dias nas residências senhoriais. Ele prestava grande atenção à sua saúde e talvez receasse que as entregas não fossem devidamente asseadas... Não vejo por que motivo isso te atormenta.

- Não sei. Tenho uma sensação... Se quiseres saber a verdade, estou cheio de vontade de ir ver com o que se parece esse engenho...

- É simples: faz outra visita a Sutton e pede-lhe que satisfaça o teu desejo.

- Isso é que não! Imagina, e não comeces aos gritos, trata-se de uma mera hipótese!, Imagina que o veneno tenha sido posto no gelo?

As sobrancelhas de Adalbert ergueram-se até ao meio da testa, desaparecendo metade sob a sua madeixa rebelde.

- Arriscando-se a matar qualquer pessoa? Estás a sonhar? Imagina que a duquesa, por exemplo, tivesse aceite um cubo de gelo, o que é pouco provável, bem te concedo, mas... mesmo assim...?

- E depois? Alguém disposto a matar não está com todos esses cuidados. E se não me quero dirigir ao secretário é por causa da hipótese de eu ter razão e de ser ele o assassino...

- Desta vez estás a delirar completamente! Ele não tinha nenhum motivo para assassinar um homem que amava e ao qual devia uma situação das mais lucrativas. Mesmo admitindo que seja ele o culpado, já terá limpo tudo, mudado a água, por exemplo. A tua lucubração só faria sentido - e, mesmo assim! - com o polaco como culpado... dado que, nesse caso, evidentemente, nada deve ter sido ainda limpo pois ele escapuliu-se logo que Ferrais faleceu. Acredita-me... isso é uma ideia louca... dado que só ele possuía a chave.

- Não tão louca quanto isso! E tenciono ir investigar, com ou sem a tua ajuda. Com chave ou sem ela! Mas voltaremos a falar disso mais tarde. A tua parceira reclama a tua presença e não parece estar de boa-disposição!

- Não vês que perdemos, por Deus? Ela anuncia o seu jogo como uma estouvada e depois fica espantada que as coisas não funcionem!

- Ouve, se isso não te aborrecer, vou regressar. Vem ter comigo ao hotel. Começo a achar que as coisas se arrastam e...

Não concluiu a frase. Algo ocorria em redor da mesa para a qual Adalbert se precipitava. A voz furiosa de Ava Ribblesdale quebrava o silêncio que é regra num salão em que se joga ao brídege. Era evidente que contestava a sua derrota. Todos se aperceberam depressa que tanto atacava os seus adversários - Moritz Kledermann e um jovem deputado conservador - como o seu parceiro que acusava de "lhe ter deixado um jogo impossível" e de ter "anunciado as cartas contrariamente ao que ditava o bom senso".

- Nestas condições, recuso-me a continuar a jogar! - exclamou, levantando-se. - Os meus hábitos talvez me inclinem para disputar um jogo audacioso, mas que seja ao menos minimamente inteligente! Fiquemos por aqui, cavalheiros!

Aldo, que seguira atrás do amigo, apercebeu-se demasiadamente tarde que fora ao encontro do perigo. Deixando os seus parceiros num grande esvoaçar de cetim branco e de rendas pretas, era para ele que lady Ribblesdale se encaminhava. Num gesto peremptório agarrou-lhe no braço e, obrigando-o a dar meia volta, levou-o dali para fora.

- Não me devia ter entregue à paixão por este jogo quando ainda temos tantas coisas interessantes para dizer - suspirou, dedicando-lhe um sorriso radiante. - Tem de me perdoar por tê-lo maltratado há pouco e quero que permaneçamos amigos. É o que seremos, não é verdade? Faço grande questão.

Repentinamente, falava num tom de suave confidência, persuasivo, como se esta amizade, por ela reclamada, lhe fosse de importância vital. Foi então que Morosini compreendeu o terrível poder de sedução que irradiava daquela mulher imprevisível quando se dava ao trabalho de cativar alguém.

- Como não ficar sensibilizado por tão charmoso convite? Efectivamente, não há razão alguma para que não sejamos amigos.

- Não é verdade? E você vai encontrar o que tanto desejo, não é? Repare, príncipe, ao pedir-lhe que faça um pequeno milagre para mim - tenho a certeza de que não deve ser coisa fácil! - estou a obedecer a um profundo impulso, quase vital! É certo que diamantes não me faltam - acrescentou erguendo num gesto negligente a cascata cintilante que brilhava no decote - mas são pedras modernas e eu quero uma, pelo menos uma, que tenha uma alma... uma história autêntica!

- Não estou seguro que tenha razão. As pedras vindas da noite dos tempos são frequentemente portadoras das marcas do sangue, das lágrimas, das catástrofes que engendraram e se...

Ela interrompeu-o com um gesto da mão.

- Certas pessoas pensam que eu tenho muitos defeitos, mas não houve ainda ninguém para contestar a minha coragem. Não há nada que receie neste mundo e, sobretudo, essa pretensa maldição associada às jóias célebres e que é apenas fruto da imaginação popular. Depois do seu sogro lhe ter oferecido o Sancy, não aconteceu nada de grave à minha prima. Antes pelo contrário... E então?

- Que poderei dizer-lhe? Conheço um diamante antigo, lapidado de forma plana e um pouco mais importante que aquele que lhe perturba o sono. Teria pertencido à coroa inglesa antes de passar para as mãos do cardeal Mazarin. Estou bem a dizer "teria", pois não lhe posso dar qualquer certeza de que se trata daquilo que penso. Se for esse o caso, não se sabe o que lhe aconteceu desde 1792.

- Maria Antonieta não o terá usado?

- Julgo que sim, mas sempre na condição...

- Pare de repetir sempre a mesma coisa: onde é que ele está?

- Em Veneza, em casa de uma amiga.

- Nesse caso, amanhã parto consigo para Veneza...

Aldo sorriu ao considerar o rosto da sua companheira transfigurado pela paixão: os seus olhos pretos brilhavam, as narinas estremeciam e ela humedeceu os lábios duas ou três vezes com a ponta da língua.

- É impossível, porque a sua proprietária só o quer vender ao abrigo do maior segredo. A sua presença seria demasiado reveladora...

- Nesse caso, vá buscá-lo! Mande trazê-lo! Eu sei lá, faça algo para que eu o possa ver. A propósito, como se chamaria?

- O Espelho de Portugal... escute, lady Ava, vou tentar que o meu procurador o traga, mas peço-lhe que seja um pouco paciente: não se passeia uma peça dessa importância pela Europa fora sem tomar antes algumas previdências.

E, sobretudo, peço-lhe que não fale do assunto a ninguém... senão, não haverá qualquer negócio entre nós. Não quero que o meu emissário tenha de correr qualquer risco. Compreendeu-me bem?

Lady Ribblesdale olhou atentamente para os olhos claros de Morosini, enquanto pousava uma mão na dele, com uma força que o surpreendeu.

- Tem a minha palavra! Enviarei um bilhete ao Ritz para lhe indicar onde e como poderá entrar em contacto comigo. De qualquer modo, agradeço-lhe antecipadamente por tentar satisfazer-me! Agora, vamos beber algo consistente. Todas estas emoções deram-me sede.

A conversa conduzira-os até um jardim de Inverno que prolongava o salão onde se encontrava a duquesa. Saíram dali, falando acerca de banalidades, e só quando os viu afastarem-se é que Moritz Kledermann saiu detrás de um arbusto de altas plantas verdes, onde se escondera. Foi sentar-se numa cadeira de vime, revestida de chintz florido, pegou num charuto que retirou do bolso interior do smoking e, recostando-se, pôs-se a fumar voluptuosamente. Sorria.

Entretanto, no carro que os levava de volta ao hotel, Adalbert e Aldo reatavam a conversa no ponto em que a haviam deixado.

- Diz-me lá, tu que tens a franqueza do ouro! Que querias dizer há pouco quando declaraste que entrarias em casa de Ferrais com ou sem a minha ajuda?

- Não vejo em que é que a minha frase precisaria de mais esclarecimentos. Parece-me ter sido muito claro - resmungou Morosini. - Contudo, direi que gostaria de contar contigo. Infelizmente, não possuo os teus talentos de serralheiro.

- Era disso que estava mesmo à espera. Sabes que o que não te falta, é lata? Por que não recorres à tua amiga Wanda?

- Ficaria muito aborrecido em causar-lhe qualquer transtorno. Além disso, a sua dedicação desabrida inspira-me uma confiança limitada. Com esse género de mulheres nunca se sabe o que pode acontecer. Se se encontrar qualquer coisa, ela é capaz de ajoelhar-se para agradecer à Divina Providência, atraindo a atenção da casa inteira. Também pensei em Sally, a pequena criada de quarto, amiga de Bertram Cootes, mas isso obrigar-nos-ia a pô-lo ao corrente do nosso segredo e não quero que isso aconteça. Portanto, como vês, restas apenas tu - concluiu Aldo calmamente.

- Estás a delirar, não estás? Estás a ver-me a arrombar uma porta que se encontra em pleno Grosvenor Square e, certamente, bem aferrolhada?

- Como se não soubesses que as portas das cozinhas, situadas nos subsolos, estão muito menos protegidas!

Como resposta, Vidal-Pellicorne grunhiu algo incompreensível e pouco agradável e, voltando a cabeça para o outro lado, absorveu-se na contemplação das ruas de Londres que tinham mergulhado simultaneamente na noite e no nevoeiro. Morosini não insistiu e fez a mesma coisa, preferindo deixar que a ideia calcorreasse o seu caminho pela cabeça do amigo, mas quase certo de ter ganho a parada: Adal resistia muito dificilmente ao atractivo de uma aventura um pouco arriscada...

Como estavam a chegar, o arqueólogo abandonou a sua meditação para sugerir algo, na esperança de afastar as ideias de Aldo: - Pensava que tínhamos de ir dar uma volta pelo Tamisa para penetrar nos segredos do Crisântemo Vermelho por via marítima...

- Uma coisa não impede a outra, e cada uma a seu tempo! Não vamos precipitar-nos no palacete Ferrais, sem tomarmos primeiro as devidas precauções: pelo menos, precisamos de travar conhecimento com as imediações. Entretanto vamos procurar uma embarcação para amanhã à noite. Estás satisfeito?

- Pois não! Eis que em vez de uma, teremos duas soberbas oportunidades para sermos engavetados pela polícia! Mas que sonho! Até exulto!

Antes de se deitar, Morosini arranjou tempo para escrever uma longa carta ao seu antigo preceptor, mas sempre seu amigo, Guy Buteau, que o ajudava a gerir a sua loja de antiguidades em Veneza. Perfeito conhecedor de pedras antigas e de uma dedicação a toda a prova, Guy era o homem ideal para ir falar discretamente com a velha marquesa Soranzo e para conseguir que a jóia proposta fosse depois devidamente transportada até Inglaterra. Além disso, ele adorava viajar.

 

                 CAPÍTULO 6 - NA SENDA DA GUERRA

A noite estava glacial, liberta do nevoeiro por um vento que devia vir do pólo, mas apresentava uma pureza inabitual e se havia ainda algumas faixas de bruma que se arrastavam à superfície da água, elas eram devidas ao ambiente húmido, como se por momentos o Tamisa tivesse desatado a fumegar. Desta vez, erguendo a cabeça, podia ver-se o brilho das estrelas que se estendiam por Londres fora, facto tão raro naquela época do ano, mas nenhum dos três homens a bordo da barcaça pensava em contemplá-las. Atrelados aos remos, Morosini e Vidal-Pellicorne remavam com a energia de pessoas que sentem necessidade de se aquecer. Quanto a Bertram Cootes, sentado à proa, perscrutava as margens escuras iluminadas de vez em quando por um ténue morrão que assinalava um candeeiro.

A presença do jornalista revelara-se indispensável. Ir para algum lado de táxi era uma coisa; outra, muito diferente, era dirigir-se ao mesmo local pelo rio e no meio da escuridão. Sobretudo para estrangeiros.

- A partir de Tower Bridge e logo que atingirmos a zona das docas, as margens parecem-se todas umas com as outras. Mesmo que tenhas bem localizado a casa em questão, nunca lá chegaremos sem a ajuda de uma pessoa daqui. De dia já não é fácil, quanto mais por volta da meia-noite...

Tendo Aldo concordado com a sapiência deste parecer, dispunham-se a telefonar para o quartel-general do jornalista quando este apareceu para se colocar à disposição das suas novas relações, tão generosas quanto eficazes. Ocorrera-lhe a ideia que, se quisesse prosseguir a sua investigação acerca do diamante desaparecido nos quarteirões mal afamados, era melhor que aproveitasse a presença providencial daqueles dois homens que pareciam não ter medo de nada. Deste modo acorrera, de orelhas um pouco murchas, mas transbordando de boa vontade, a fim de propor o seu profundo conhecimento da cidade, jurando por todos os grandes deuses que não mais deviam "ter medo do seu medo".

Ao cair deste modo nas boas graças, deu provas de uma boa vontade comovedora ao desencantar uma pequena barcaça de fundo plano que foram buscar à Doca de Santa Catarina, vizinha da Torre de Londres, onde acostavam os grandes navios carregados de chá, índigo, perfumes, madeiras preciosas, lúpulo, casquinhas, madrepérola e mármore. Era indubitavelmente a doca mais simpática do Tamisa, onde era possível alugar uma embarcação sem se arriscar a ser roubado. A partir dessa altura remaram sem dificuldades de maior: a maré, parada, não tardaria a descer, o que os ajudaria.

- De que vamos à procura? - resmungou Adalbert, enquanto remava. - Apetece-te visitar um antro clandestino ou certificar-te que existe uma sala de ópio escondida?

- Não sei ao certo, mas algo me diz que ao explorar o covil subterrâneo de Yuan Chang não vamos perder o nosso tempo. Ainda é longe? - perguntou, dirigindo-se a Bertram.

- Não muito. Ali estão as grandes escadarias de Wapping. Só mais um esforço!

Alguns minutos depois a barcaça atracava suavemente num anel de ferro destinado a esse efeito, situado próximo da entrada circular do túnel que tanto intrigava Morosini. A água estava quase ao nível da entrada. Aldo e Adalbert desceram e, deixando Bertram encarregue da guarda do batel, embrenharam-se beco adentro. Reinava uma escuridão cerrada mas, graças à lanterna de bolso que o arqueólogo acendia durante breves instantes, puderam prosseguir caminho sem se arriscarem a estatelar-se no solo viscoso. Deviam encontrar-se ao nível da sala de fantan, pois ouvia-se o falatório excitado dos jogadores.

O túnel não era muito comprido. Ligeiramente inclinado, desembocava numas escadas que davam para uma porta de madeira grosseira, sob a qual se vislumbrava uma luz amarela.

Estava fechada à chave: sem dizer nada, Adalbert tirou algo do bolso, baixou-se diante do fecho e pôs-se a manobrá-lo com toda a delicadeza necessária para evitar qualquer ruído. Foi rápido. Em poucos segundos a porta abria-se, revelando um corredor fracamente iluminado por uma lâmpada chinesa fixa ao tecto.

Morosini soltou um ligeiro assobio de admiração:

- Mas que talento! Mas que habilidade! - cochichou.

- É só o a b c desta arte! - respondeu o outro, com desenvoltura. - Esta fechadura nada tem de rara.

- E um cofre-forte? Conseguirias abri-lo?

- Depende, mas... chiu! Não estamos aqui para tagarelar. Havia apenas uma porta que dava para o corredor, do lado oposto a um muro decrépito, atrás do qual se encontrava a sala de jogo. Estava alguém a falar do outro lado e, sem compreender muito bem o que se dizia, Aldo julgou reconhecer a voz de Yuan Chang. Subitamente ribombou outra voz, feminina, deformada, ampliada pela cólera:

- Não faça troça de mim, velho homem! Paguei pelo serviço prestado e agora não tenho nada. Ora, eu quero aquilo que combinámos entre nós.

- Está a revelar grande pressa, milady! É um impulso tanto mais perigoso porquanto a trouxe até aqui, sem que tivesse sequer esperado que eu a chamasse.

- Não pode compreender a minha impaciência?

- Ela é sempre má conselheira. Por isso, não se queixe agora a mim pelo facto de ter sido atacada ao sair daqui.

- Tem a certeza que não teve nada a ver com a ocorrência? Seguiu-se um silêncio que pareceu a Morosini mais inquietante

que os gritos. Não era possível alimentar dúvidas: a mulher em questão era mesmo Saint Albans e ele sentia-se perturbado pela sua audácia. O assunto de que ela se ocupava devia ser importante para ousar voltar-se daquela maneira contra aquele chinês, mais perigoso que uma cobra cascavel. Num gesto maquinal, apalpou a arma que tivera o cuidado de levar no bolso e da qual não hesitaria em servir-se caso fosse preciso ir em socorro daquela louca.

De repente ouviu-se o arrastar de um assento deslocado, seguido pelo rangido do soalho. Yuan Chang devia estar a aproximar-se da visitante, pois a sua voz soou mais distintamente.

- Posso perguntar-lhe como conta resolver o assunto? - perguntou.

- Oh, é muito simples e eu devia ter desconfiado que você haveria de me pregar uma partida. Não paguei o suficiente, não é?

- Fui eu que estabeleci o preço. Ele é razoável...

- Ora vamos! Só é razoável porque você esperava ganhar em todas as frentes. Era muito fácil, não era? Eu vim trazer-lhe o dinheiro, você entregou-me o que eu viera buscar e depois enviou os seus esbirros atrás de mim a fim de recuperarem o diamante.

Os dois homens à escuta tiveram dificuldade em reter uma exclamação de estupefacção, mas aquele não era o momento nem o local indicados para trocarem impressões entre si. Yuan Chang pusera-se a rir.

- Você é inteligente, para uma mulher... Sobretudo, para uma mulher tão ávida - disse com um desdém divertido - mas não tem qualquer motivo para se envaidecer pois, na realidade, desempenhou exactamente o papel que eu esperava.

- Então, confessa?

- Para que haveria de me dar ao trabalho de o negar? Como é que não percebeu ainda que a soma que eu pedi era nitidamente insuficiente para pagar a vida de um homem?

- Nunca esteve em questão ter de matar. No meu espírito...

- O seu espírito perde qualquer capacidade de discernimento logo que se trata de jóias. Não se devia preocupar com os meios utilizados mas, presentemente, já não se trata só do joalheiro que faleceu, mas de três homens. Efectivamente, tive de ordenar que executassem os irmãos Wu, meus fiéis servidores, porque, depois de lhe terem roubado a pedra, negligenciaram trazê-la. A tentação do lucro! Que é que se há-de fazer? Felizmente, eram vigiados e os meus homens agarraram-nos na altura em que se preparavam para entrar num navio com destino ao continente. Uma ideia estúpida que lhes custou muito caro: a polícia fluvial encontrou-os no Tamisa.

- Li os jornais e devia ter adivinhado que era obra sua, mas a sua organização não me interessa. O que eu quero é o diamante.

- Quer ser de novo atacada à noite? Desejo guardar esta pedra ainda algum tempo e até estou disposto a devolver-lhe o seu dinheiro.

- Isso significa que quer outra coisa? O quê?

- Ah, eis que a senhora se torna compreensiva. Efectivamente, conhece-me o suficiente para saber que eu não tenciono guardar indefinidamente este diamante que tantos desejos lhe dá. Estas... bagatelas ocidentais não representam grande coisa para mim.

- Diabo! - sussurrou Adalbert. - Ele não está com meias medidas!

- Em compensação - prosseguiu o chinês - o propósito da minha vida miserável é o de reencontrar os tesouros dos nossos grandes antepassados imperiais. Uma parte deles encontra-se na sua posse e a senhora poderá obter a sua bugiganga quando eu obtiver a colecção de jade do seu venerável esposo.

O golpe assestado devia ser tão duro quanto inesperado. Foi realçado por um silêncio; em seguida, com uma voz que reflectia o medo pela primeira vez, lady Mary balbuciou:

- Quer que roube o meu marido? Mas isso é impossível!

- Roubar o diamante sob as barbas da Scotland Yard era tão difícil quanto o que lhe peço.

- Admito-o. No entanto, você nunca o teria conseguido sem o meu auxílio.

- Ninguém diz o contrário. A senhora desempenhou o seu papel admiravelmente e, por isso, não faço tenção de lhe pedir para que seja você a actuar. Apenas terá de nos facilitar a tarefa, revelando-me, em primeiro lugar, onde está a colecção.

- No nosso castelo de Kent. Em Exton Manor.

- Muito bem, mas isso ainda não chega. Quero todas as indicações, todos os planos de que necessitarei para levar a bom termo este empreendimento de... recuperação dos tesouros que outrora nos foram roubados. Quando eu entrar na posse dos jades imperiais, então terá a sua pedra.

- Por que não me disse isso mais cedo?

- Eu sou adepto da pesca: para apanhar certos peixes é preciso um isco de qualidade e, depois, antes de tirá-los da água é preciso dar-se a um certo trabalho, temos de nos cansar. Foi o que fiz, pois conheço-a bem desde há muitos anos, lady Mary, e porque sabia que ao primeiro contacto talvez não estivesse disposta a aceitar a transacção. Isso teria sido até perigoso para mim. Era preciso deixá-la amadurecer como o fruto que resiste à colheita quando ainda está verde, mas que cai naturalmente na palma da mão quando está suficientemente maduro. Deve pois facilitar-nos o acesso a sua casa... mas... está com um ar muito sonhador. A minha ideia terá começado a seduzi-la?

- A seduzir-me? Quando me está a pedir para despojar um homem que eu...

- Que a senhora nunca amou. O único que conseguiu tocar o seu pequeno coração tão duro não foi aquele jovem oficial da marinha que encontrou num baile dado pelo governador de Hong-Kong? A senhora estava doida por ele, mas o seu pai nem queria ouvir falar do assunto e impediu-a a tempo que partisse com ele, o que teria dado cabo da sua carreira, mas talvez tivesse podido encontrar a felicidade. Tanto mais que ele não teria seguramente morrido durante a guerra...

- Onde soube isso tudo? - murmurou a jovem, aterrada.

- Não é bruxaria nenhuma e Hong-Kong é uma pequena ilha onde se sabe tudo acerca das pessoas importantes, se nos dermos a esse trabalho. Ora, nessa altura a senhora já se tinha apaixonado pelo jogo e isso despertou-me o interesse. Mais tarde, aceitou Saint Albans por causa da sua fortuna: pelo menos, graças a ela, ia poder finalmente saciar a sua paixão pelas pedras. Presentemente, é mulher de um par de Inglaterra, esposa de um dos homens mais ricos do país. Pode obter tudo o que quiser.

- Não creia nisso! Nem sequer tenho a certeza se Desmond me ama. Ele orgulha-se de mim porque sou bela. Quanto à minha paixão, como diz, ela até o diverte, mas ele gasta muito mais na sua colecção. Julgo que está agarrado aos seus jades mais do que a qualquer outra coisa no mundo.

- Tanto pior para ele! Está ou não decidida a ajudar-me? Desta vez não decorreu nenhum tempo de reflexão e a voz de

Mary já tinha recuperado a sua firmeza quando respondeu:

- Estou, conquanto seja capaz disso.

- Quando se deseja algo, somos capazes de autênticas proezas. Não são os cristãos que dizem que a fé poderia erguer montanhas se a soubessem empregar? Portanto, vou colocar-lhe a minha pergunta de outra maneira: continua a desejar o diamante?

A resposta chegou, imediata, precisa, firme:

- Continuo. Quero-o mais do que tudo e você sabe-o muito bem. Contudo, deixe-me um pouco de tempo para ordenar as minhas ideias, pensar no assunto e preparar-me para satisfazer as suas condições. Que deseja precisamente?

- Um plano minucioso da casa, o número de criados e as suas atribuições. Os seus hábitos e os dos seus convidados, quando os há. A descrição das imediações e de tudo o que disser respeito à guarda da propriedade. Neste género de empreendimentos é preciso ser-se de uma precisão extrema. Conto consigo para consegui-lo. - Sabe muito bem que farei o melhor que puder. Infelizmente não lhe poderei dar a conhecer mais do que isso, pois ignoro a combinação para abrir a câmara-forte.

- A câmara-forte?

- É o termo apropriado. O meu marido fê-la construir num compartimento da adega cujas paredes, que datam do século XII, medem vários pés de espessura. Está fechada por uma verdadeira porta de cofre-forte, fabricada por um especialista. Sem dispor do número, é impossível abri-la.

- Isso é muito aborrecido mas não é algo de insuperável. Se não o puder obter, tratarei de descobrir algo... de uma maneira ou de outra. O homem mais discreto pode tornar-se um tagarela a partir do momento em que nos dirijamos a ele no tom que convém.

Lady Mary proferiu uma exclamação onde despontava uma verdadeira angústia.

- Não está a pensar em... magoá-lo, pois não?

- Todos os meios são bons para alcançar o fim a que nos propomos, mas... é verdade que preferiria não ter de chegar a esses extremos. Esse segredo, milady, uma mulher tão inteligente quanto a senhora deveria poder consegui-lo. Ah, já me ia a esquecer: não imagine que me poderá tecer uma armadilha prevenindo a polícia! Também sei tomar as minhas precauções por esse lado e, nessa altura, nunca mais veria a Rosa de Iorque!

- Depois do que fiz, não tenho qualquer interesse em pôr a Scotland Yard ao corrente dos nossos assuntos... mesmo para salvar o meu esposo! Como devo fazer para lhe fazer chegar as minhas informações?

- Nada de pressas! Daqui a algum tempo uma mulher irá até sua casa para lhe propor lingeríe parisiense. Esteja descansada, é uma ocidental. Tudo o que tem a fazer é entregar-lhe um envelope selado.

Depois, far-lhe-ei saber quando contarei entrar em acção pois é óbvio que é preciso que esteja presente... para nos introduzir! Por ora, vá-se embora, e está proibida de voltar aqui! Não gosto de riscos inúteis.

- Muito bem. Mas... antes de me ir embora, não me poderia mostrá-lo novamente?

- O diamante?

- Parece-me que a sua visão estimularia a minha coragem!

- E por que não? Ele nunca fica longe de mim.

No corredor, Aldo rodou a cabeça e o seu olhar encontrou o do amigo. Tinham acabado de ter a mesma ideia: por que não aproveitar a oportunidade? Parecia incrivelmente fácil irromper pela sala adentro e apoderar-se da pedra depois de ter neutralizado o chinês e a sua visitante! E era um acto que teria a vantagem de pôr todos de acordo...

Aldo já sacava da arma e ia pôr a mão no puxador de cobre quando Adalbert o reteve, fazendo-lhe uma negativa com a cabeça e indicando que era tempo de se afastarem. Efectivamente, ouviam-se passos que se aproximavam. Foram-se embora discretamente, tendo o cuidado de fechar o pesado batente da porta de madeira atrás deles. Um momento depois, encontravam Bertram, agachado no fundo da barca, para evitar que o vissem se por acaso algum barco passasse por ali perto. Acolheu-os com um enorme suspiro de alívio, mas não disse nada. Embarcaram sem proferir palavra e, em seguida, remando vigorosamente para lutar contra a maré vazante, despacharam-se para se distanciar o mais possível do Crisântemo Vermelho. Sempre silencioso, o jornalista ardia de curiosidade.

- Que tempo demoraram! - declarou finalmente, esfregando as mãos para as aquecer. - Começava a ficar inquieto. Ao menos, descobriram alguma coisa?

- Digamos que esta visita valeu a pena - disse Morosini. -Pudemos surpreender uma conversa entre Yuan Chang e uma personagem desconhecida que nos deu a certeza que o diamante se encontra efectivamente na posse do chinês. Yuan Chang até o mostrou ao seu visitante...

- ... e tivemos de fazer o maior esforço para não irrompermos pela casa dele para recuperar a pedra - concluiu Vidal-Pellicorne.

- Senhor! Fizeram bem em reter-se, pois não teriam recuperado nada e a esta hora talvez estivessem a chafurdar no Tamisa. A dar fé no que se murmura acerca das casas dos chineses, estas dispõem de alçapões que lhes permitem desembaraçarem-se, de modo simples e cómodo, dos visitantes indiscretos ou indesejáveis.

- Nada de exageros! - resmungou Morosini. - Há algo de lendário nisso tudo.

- Com os asiáticos, as piores lendas estão frequentemente muito aquém da verdade - disse Bertram, numa voz pouco firme. - E já ouvi muita coisa sobre Yuan Chang. Talvez seja por isso que tenho tanto medo dele e do que o rodeia.

Em seguida, mudando de tom, continuou:

- Que contam fazer agora? Ir dizer tudo isso ao superintendente Warren?

- Vamos pensar no assunto.

- É melhor, porque se eu fizer a menor alusão a isto no meu jornal, ele vai cair-me em cima.

- Não vai mencionar seja o que for, meu amigo! Pelo menos por ora - protestou Adalbert. - Pensava que nos tínhamos posto de acordo. Estava combinado que você iria ficar bem tranquilo, contentando-se em prestar-nos uma ajudinha. Em troca, teria a exclusividade da história. O acordo já não o interessa?

- Sim, claro que sim! Só que a paciência não é a minha virtude dominante.

- Isso é um grave defeito para um jornalista! A paciência, meu caro, é a arte de esperar. Não foi Shakespeare quem o escreveu, mas sim um francês denominado Vauvenargues. Não é por isso que a sentença é pior e aconselho-o a meditar nela.

A sirene de um paquete que descia o rio, iluminando-o com os seus faróis, interrompeu imediatamente a discussão para privilegiar a estabilidade da barcaça, sacudida pelo poderoso sulco que agitava a água. Quanto a Aldo, desinteressara-se da conversa dos seus companheiros. Como bom italiano, sentia-se facilmente tentado a colocar qualquer linda mulher num pedestal, pelo que experimentava agora certa dificuldade em recobrar da sua recente descoberta, ou seja, que lady Mary estava na origem de um crime horrível, no qual participara indiscutivelmente. Uma frase que ouvira há pouco, obcecava-o particularmente: "depois do que fiz, não tenho qualquer interesse em pôr a Scotland Yard ao corrente dos nossos assuntos..."

Que papel teria ela desempenhado no assassinato de Harrison, essa encantadora criatura cujo rosto angélico escondia uma alma tão negra?

Subitamente, a verdade surgiu-lhe de modo evidente, até estrondosamente! E por que não teria ela desempenhado o papel da velha Lady Buckingham, que ele tinha a certeza que não pudera deslocar-se à loja de Old Bond Street? Claro que havia ainda o carro e a mulher que supostamente a apoiara. Talvez se tratasse da enfermeira da velha dama, essa mesmo que recusara a Warren o acesso ao quarto, declarando que ela estava em estado de choque profundo, não podendo por isso responder a quaisquer perguntas. Devia supor que lady Mary se assegurara da sua cumplicidade? Esta versão explicaria tanta coisa...

Dali a pouco, quando Adalbert e ele próprio se tivessem desembaraçado dos ouvidos curiosos do jornalista, então teriam todo o tempo para debater à vontade a questão que se impunha: pôr ou não a polícia ao corrente. A primeira solução seria a mais sensata e a melhor maneira de proteger lorde Desmond, cuja vida se lhe tornara preciosa pois, no estado actual dos acontecimentos, só o seu talento poderia interpor-se entre Anielka e a forca. Por outro lado, se se encontrasse envolvido no turbilhão de um terrível escândalo, talvez o advogado perdesse o direito a defender a sua jovem cliente. No fundo, o melhor seria esperar ainda um pouco, pois o ataque contra os jades de Exton Manor não estava previsto para já.

Só que nessa noite estava escrito que Aldo nada poderia decidir.

Na altura em que a barcaça retomava o seu lugar na Doca de Santa Catarina, uma silhueta demasiado reconhecível ergueu-se no alto da escadaria junto à qual tinham atracado.

- Então, cavalheiros? Fizeram um bom passeio? A noite está um pouco fresca, mas vêem-se tantas estrelas que quiseram certamente contemplá-las, não é verdade?

A voz zombeteira do pterodáctilo estava repleta de ameaças que não conseguiram, contudo, dar cabo da inesgotável boa-disposição de Vidal-Pellicorne.

- Soberbo! É tão raro vê-las por aqui que não conseguimos resistir. Vocês, ingleses, apenas conhecem o Sol graças aos escritos dos vossos antepassados. E então, as estrelas, nem falar!

- Sempre a má-fé dos franceses! E onde estiveram?

- Aqui e além! Deixámo-nos guiar pela nossa fantasia...

- Até às margens encantadas de Limehouse? Compreendo-os: esse canto podre é tão exaltante para o espírito!... Mas basta de brincadeiras, cavalheiros! Creio que vamos todos ter uma conversazinha das mais interessantes, de coração aberto! Se tiverem a amabilidade de me acompanhar...

- Está a prender-nos? - protestou Morosini.- Não há qualquer motivo para isso!

- Efectivamente! Convido-os a ir beber um café ou um ponche no meu escritório na Yard. Devem precisar grandemente de algo quente...

- Talvez, mas detestamos a ideia de o incomodar.

- De modo algum, de modo algum! Desejo muito tagarelar com vocês os dois - disse Warren, apontando um dedo autoritário para Aldo e o seu amigo. - Não me obriguem a pedir uma escolta. Façamos as coisas com simplicidade.

- E eu, não estou convidado? - inquiriu Bertram, dividido entre o alívio e o vexame.

- Não. Pode ir-se embora, mas não para muito longe! Convocá-lo-ei mais tarde.

- Mas... não vai prendê-los, pois não?

Aldo julgou que o pássaro pré-histórico ia levantar voo, de tal modo as asas da capa sem mangas se agitaram furiosamente.

- E se metesse o nariz no que lhe diz respeito? - rosnou, realizando deste modo uma bela performance zoológica. - Desande daqui para fora ou ponho-lhe as algemas! E trate de comparecer quando for convocado!

Assim descomposto, Bertram Cootes desapareceu pela noite dentro com a velocidade de um génio de contos orientais, deixando os companheiros a conversar com o grande chefe. Estes abandonaram imediatamente o local.

Durante o dia os escritórios da Scotland Yard não eram lá muito acolhedores, mas à noite eram francamente sinistros: os grandes dossiers de um castanho quase preto e as lâmpadas revestidas de quebra-luzes opalinos, da cor verde das maçãs, em nada contribuíam para desanuviar a atmosfera. Os visitantes forçados foram acolhidos por duas cadeiras, enquanto o superintendente se sentava numa poltrona de cabedal depois de ter mandado o polícia de serviço trazer ponches escaldantes, como fora prometido. Felizmente que o cheiro do rum e do limão perfumou a sala.

- Bom! - suspirou Warren, após ter absorvido metade da sua bebida. - Qual de vocês os dois vai falar? Mas, primeiramente, uma pergunta: Cootes participou na vossa visita discreta às entranhas do Crisântemo Vermelho?

- Não - respondeu Aldo que, depois de trocar um olhar com Adalbert, decidira ser o mais franco possível. - Ele pela-se de medo dos chineses e deixámo-lo numa barca a fazer de vigilante.

- Nesse caso porque o levaram convosco?

- Para que nos ajudasse a situarmo-nos no meio do rio! Mas, antes de prosseguir, gostaria de saber como está tão ao corrente dos nossos actos e gestos. Não demos por ninguém.

- Não há qualquer mistério. Mandei-os seguir, praticamente persuadido que não iriam fazer nenhum caso do meu aviso do outro dia. Quando vos viram pegar numa barcaça nas docas, o vosso destino tornou-se óbvio. E agora, contem-me tudo! A julgar pela cara preocupada que têm desde que me viram, deve ter ocorrido algo que não estavam minimamente dispostos a confiar-me.

Como não lhes fora possível consultarem-se entre si, Vidal-Pellicorne achou por bem vir em auxílio do amigo.

- Não creia isso. Confesso que ainda estamos sob o efeito do choque provocado pelo que acabámos de descobrir e o facto de ir prevenir ou não a polícia era merecedor de certa reflexão, dadas as consequências que uma tal decisão poderia acarretar para outras pessoas.

- Hum! O seu discurso não é lá muito claro, senhor... Vidal-Pellicorne. Não é assim que se chama?

A pronúncia era abominável mas, de qualquer modo, em francês ou em inglês, o interpelado já se habituara.

- Mais ou menos. O facto de ter conseguido decorar o meu nome já é uma bela façanha.

- Sou todo ouvidos, príncipe.

Assim solicitado, Aldo lançou-se na narrativa da conversa que escutara entre Yuan Chang e uma dama, cujo rosto lhe fora impossível descortinar. Quanto à sua voz, jovem e agradável, era a de uma personagem certamente culta. Mas, nesta altura do relato, Warren interrompeu-o.

- Não se arme em esperto comigo! Tenho a certeza de que a reconheceu. Ou estarei muito enganado sugerindo que se poderia tratar de lady Killrenan?

A surpresa foi tanto mais forte porquanto Morosini ainda não tinha conseguido colar aquele nome que estimava à sua nova proprietária. O mesmo sucedeu com Adalbert, cujos olhos se esbugalharam, não conseguindo dissimular a sua surpresa.

- Então, o senhor sabe?

- Que às vezes ela vai até Narrow Street? Claro! Reparem que é coisa assaz corrente as pessoas da boa sociedade frequentarem o antro de Yuan Chang, embora se trate sobretudo de homens. Logo que uma mulher se desloca até lá sozinha, estabelecemos uma certa vigilância.

- Isso não é lá muito eficaz! Algumas noites atrás ela foi atacada.

- Efectivamente - disse Warren, sem se desconcertar - mas foi tão prontamente socorrida por dois gentlemen, que se tornou desnecessária qualquer intervenção. Agora reatem a vossa narrativa sobre novas bases; assim, ela só poderá tornar-se mais clara.

- De qualquer modo - disse Adalbert -, teria sido preciso lá chegar...

Desta vez o relato foi completo e decorreu sem interrupções até chegar ao fim. Enquanto falava, Aldo esforçava-se para poder ler as impressões que se manifestassem no rosto do seu interlocutor, mas isso foi impossível: o rosto do superintendente mexia-se tanto como se tivesse sido talhado no granito.

- Muito bem! - concluiu este, por fim, soltando um suspiro. - Não sei se devo agradecer mais a vocês do que à sorte, mas é certo que acabam de trazer elementos essenciais à nossa investigação. Agora digam-me porque hesitaram tanto em informar-me acerca disso tudo.

- Por receio de ver lady Ferrais perder um defensor de que tanto precisa. O que não deixará de ocorrer, caso os actos de Mary Saint Albans mergulhem o esposo no escândalo.

- Escândalo haveria certamente se eu mandasse prender desde já a nossa condessa tão empreendedora, mas não tenho intenção de o fazer como, aliás, não possuo esse direito.

- O quê, não tem o direito? Acabo de lhe revelar que ela é cúmplice de um crime, que se apresta a cometer outro e isso não lhe chega? - exclamou Morosini, indignado.

- Não, isso não me chega! Pelo momento apenas me posso apoiar na palavra de vocês os dois: surpreenderam uma conversa e é tudo. Isso é insuficiente perante qualquer tribunal, tanto mais que vocês são estrangeiros. Ora, eu preciso de algo sólido e isso só o conseguirei deixando lady Killrenan prosseguir com a sua obra. Se ela deve ser presa, sê-lo-á em Exton e com a boca na botija.

- Se ela deve ser presa? - engasgou-se Aldo, que não apreciara a alusão ao peso dos estrangeiros perante um tribunal britânico. - Dir-se-ia que o senhor tem dúvidas. Não está por acaso a encarar a hipótese de poupá-la, quando não hesitou em enviar lady Ferrais para a prisão devido a uma simples denúncia... inglesa, é certo...

A mão de Warren abateu-se sobre a mesa com tanta força que os dossiers saltaram.

- Senhor Morosini, nunca ninguém me ditou o meu dever. Um culpado é um culpado, seja qual for o seu estatuto, mas até que eu esteja completamente seguro das minhas afirmações e da minha retaguarda, nunca deitarei a mão à esposa de um par de Inglaterra e actuarei com a prudência que se impõe quando nos aproximamos dos membros chegados à realeza. Não se esqueça que os Saint Albans são amigos do príncipe de Gales.

- Ah! Ora eis a grande verdade! As pessoas do Palácio de Buckingham! Então escute-me, superintendente Warren! Nós contámos tudo e eu estou a ficar farto de servir-lhe de cobaia... e de cobaia maltratada. Com sua permissão, vou deitar-me! Desenrasque-se com os seus Saint Albans, chineses, diamantes e com a sua Família Real! Obrigado pelo ponche! Vens daí, Adal?

E sem dar sequer ao seu adversário o tempo de respirar, Morosini deixou o escritório cuja porta Vidal-Pellicorne agarrou antes que ela lhe batesse na cara. Prudentemente, articulou algumas palavras vagas de desculpa endereçadas ao pterodáctilo, que parecia ter estado sob os cuidados de um taxidermista. Depois, correu no encalço de Aldo, mas a indignação lançara este a tal velocidade que só o alcançou uma vez transposto o posto da guarda.

Morosini estava de tal modo furioso que o seu amigo julgou mais prudente chamar um táxi antes de procurar acalmá-lo. Não foi coisa fácil, pois Aldo ruminava a sua indignação seguindo a grande tradição italiana, proferindo pedaços de frases envoltas em imagens garridas, visando as origens duvidosas dos ingleses em geral e do superintendente Warren em particular.

Quando se dispôs finalmente a parar para recuperar o fôlego, Adalbert, que esperara pacientemente pelo final da tempestade, perguntou-lhe com suavidade:

-Já acabaste?

- Nem por isso! Podia passar toda a noite a vituperar desta maneira! É indigno, é escandaloso, é...

Ia recomeçar. Vidal-Pellicorne fê-lo calar num tom vigoroso:

- É normal, teimosa mula italiana que és! Aquele homem é polícia e, ainda por cima, de alta patente! Está ao serviço do seu país e tem de respeitar as suas leis!

- Chamas respeitar as leis a deixar uma criminosa britânica de mãos livres e a enclausurar uma infeliz inocente, cujo único defeito é o de ser de nacionalidade polaca, tal como tu és francês e eu italiano? Mesmo que nos esfalfemos a proclamar a verdade, nunca nos darão ouvidos! Os ingleses são assim!

- Quando se trata de uma investigação policial, devias saber que tudo se passa de forma idêntica, quer estejamos em Paris, em Roma ou em Veneza. Portanto, pára com toda essa agitação!

- Eu não estou agitado, mas o que me exaspera é ver o pouco caso que fazem daquilo que dizemos. E ainda querias que eu lhe falasse do frigorífico de Ferrais? Ele julgar-me-ia doido.

- Nunca o quis. Sabes bem o que penso dessa história assombrosa!

- Não é assim tão assombrosa quanto isso! E prová-lo-ei!

- Senhor, tende piedade!

Nessa noite não foi mais possível arrancar-lhe uma só palavra. Pela primeira vez na sua vida, talvez Aldo Morosini estivesse amuado... mas como já eram quase três da manhã, Adalbert não se aborreceu por aí além, sentindo-se demasiado ensonado para se demorar por causa de um momento de má-disposição. Apenas se espantava, e lamentava-o profundamente, que Aldo tivesse abandonado tão rapidamente as suas belas resoluções quanto a lady Ferrais. Decididamente, quando se deixavam levar pelo coração, aqueles italianos tornavam-se imprevisíveis!

Já passava um pouco das nove quando, na manhã seguinte, um táxi depôs Morosini diante da entrada principal do Museu Victoria e Albert, que só abria às dez, mas o príncipe achava que o local fornecia um excelente álibi para o caso de haver ainda algum indivíduo da Scotland Yard a seguir-lhe os passos. Efectivamente, que poderia existir de mais natural para um veneziano culto, que ir admirar o importante conjunto de esculturas italianas que lá se encontrava exposto? Como não pôde evidentemente entrar, fez o papel dos visitantes desconsolados: olhou para o relógio e, em seguida, caminhando como se passeasse, deu alguns passos na direcção da igreja vizinha - de estilo renascentista italiano - onde esperava encontrar Wanda.

Não tendo nunca entrado no Oratório, ficou surpreendido pelo seu fausto: o interior era inteiramente constituído por mármores de diversas cores. As dimensões também o surpreenderam, mas como havia pouco público presente depressa avistou o que procurava: ajoelhada diante do altar, Wanda recebia nessa altura a hóstia sagrada. Proferiu então uma breve oração e, depois, foi sentar-se ao pé de uma estátua de mármore de um apóstolo e esperou pelo final da missa, o que não demorou, pois naquela igreja davam-se missas todas as meias-horas.

No entanto, teve de aguardar: dobrada sobre o seu genuflexório, Wanda eternizava a sua oração e quando finalmente se levantou foi para ir buscar um círio que acendeu diante da Pietá da capela das Sete Dores, próximo do local em que Aldo a observava. Ao vê-la aproximar-se, reparou que ela chorava, mas como não havia mais ninguém que viesse rezar diante da distinta cópia de uma obra de Francesco Francia, ele foi ao seu encontro. Na outra extremidade da igreja começava uma missa e aquele era verdadeiramente o local ideal para poderem conversar.

Ao descobri-lo de pé atrás dela, Wanda soltou guinchinhos de ratinha assustada, revelando-lhe um rosto tão dolorosamente inchado pelas lágrimas que sentiu a inquietação tomar conta dele.

- Que se passa, Wanda? - perguntou com solicitude. - Tem más notícias sobre Lady Ferrais? Vamos sentar-nos ali - acrescentou, apontando-lhe um banco entalado entre uma parede e um confessionário. - Lá, ficaremos tranquilos.

Ela deixou-se conduzir, talvez feliz por encontrar uma mão amiga no meio da sua dor. A vida nem sempre devia ser cor-de-rosa na casa do defunto sir Eric, onde pairava o ódio vigilante do seu secretário. Logo que ela ficou instalada, ele pegou-lhe na mão, cuja frieza sentiu através da luva de filosela.

- Conte-me tudo! Sabe que pode confiar em mim e que eu desejo ajudá-la.

- Bem sei, bem sei, senhor príncipe, e estou muito contente por encontrá-lo. Meu pobre anjo querido! Ela está tão infeliz! Tem cada vez mais dificuldade em suportar aquela horrível prisão e quando fui visitá-la ontem, achei-a tão pálida, com os seus lindos olhos todos inchados de vermelho e o pobre pequeno corpo sacudido por tremores. Tenho a certeza de que está a adoecer! Repare se não é caso para isso, fechada que está entre quatro paredes com grades horríveis, que mal a deixam avistar um pedaço do céu cinzento, ela, uma pessoa que não podia viver sem estar ao ar livre e sem os jardins!... Senhor príncipe, ela está a definhar e talvez venha mesmo a morrer antes de ser julgada!

E desatou a chorar ainda mais copiosamente, entremeando os seus soluços com invocações endereçadas à Virgem e a alguns santos polacos. Pressentindo que aquele fluxo de palavras e de lágrimas aliviaria a pobre mulher, Aldo deixou que a tempestade passasse. Sabia pertinentemente que Anielka fizera uma má escolha ao imaginar que a prisão poderia constituir um abrigo. Ela ainda era muito nova para saber que uma vez ali enclausurada, este género de armadilha não volta a abrir as suas portas com tanta facilidade.

- Não crê - disse, finalmente - que já é altura para que esse Ladislas Wosinski se manifeste? Que espera para vir desempenhar o papel de valoroso cavaleiro andante? Que os juízes ponham as perucas e vistam as togas vermelhas para decidirem se a sua senhora deve ou não ser enforcada? Se a ama e se tem a menor ideia do sítio onde ele está, tem de falar agora. Dentro em pouco, será demasiado tarde!

- Mas eu ignoro-o. Juro-lhe perante a Virgem Santa que me está a ouvir. Se me vê neste estado, é porque estou cheia de medo. Se eu soubesse onde é que ele está, iria vê-lo imediatamente para lhe explicar tudo o que o meu pobre cordeirinho tem de suportar, pois ele nem deve imaginar o que se passa. Os jornais calaram-se e Ladislas deve julgar que a investigação prossegue e que, portanto, é melhor manter-se escondido...

- Mas que estupidez! Ele devia compreender que quando a polícia apanha um suposto culpado, ela esforça-se muito menos para descobrir outro! A propósito, lady Ferrais já deve ter visto o seu novo advogado. Está satisfeita com ele?

- Ela diz que ele parece uma pessoa muito habilidosa, mas que é muito duro, que a atormenta com perguntas e mais perguntas.

- E que faz o conde Solmanski? Também está à espera da ajuda celeste? Disseram-me que ele rezou muito depois do sequestro da filha no dia do casamento.

- Ele está muito, mas muito furioso! Não trouxe qualquer auxílio ao meu pobre anjinho! Só foi visitá-la a Brixton uma única vez e mostrou-se muito cruel. Chamou todos os nomes à filha, criticando-a por se ter comportado como uma desgraçada criatura sem vontade própria, tratando-a de idiota... e fez algumas perguntas. Queria saber onde estava o jovem apaixonado!

Conhecendo o falso conde polaco e os seus propósitos ao casar a filha com Ferrais, Morosini não duvidou do comentário de Wanda. Solmanski devia estar furioso com o regresso do estudante niilista, que viera encravar o mecanismo tortuoso, mas delicado, das suas combinações. Em Veneza, Simon Aronov previra a morte de Ferrais, pois ela era necessária para que Solmanski pudesse deitar a mão à fortuna do seu genro mas, no seu íntimo, estava fora de questão que Anielka se pudesse encontrar implicada, fosse de que maneira fosse, naquele plano.

- Não posso deixar de lhe dar razão. É natural que pense antes de tudo em salvar a filha. Deixemo-lo portanto actuar à sua vontade e vejamos o que nós podemos fazer.

Wanda ergueu um olhar marejado de lágrimas e umas mãos suplicantes na direcção da Pietá.

- É isso que é terrível! Santa Mãe de Deus, nós não podemos fazer nada!

- Sim, podemos! É esse o motivo da minha presença esta manhã: você tem de conseguir maneira de me facilitar a entrada em sua casa. Tenho de examinar o escritório de sir Eric.

- Entrar na casa? - murmurou Wanda, aterrorizada. - Mas, vejamos, isso é impossível! O sr. Sutton nunca o permitirá!

- Está fora de questão pedir-lhe qualquer autorização! Vamos lá, não é assim tão difícil! Tudo o que lhe peço é para que tente evitar que fechem as portas das cozinhas amanhã à noite.

Tem também de explicar-me como me devo dirigir até ao escritório e onde fica o quarto de Sutton. Preciso de conhecer os hábitos dos criados e os seus horários para me assegurar de que não esbarrarei com alguém. Direi ainda que a vida de Anielka talvez dependa do que vier a encontrar.

Ela não respondeu, silenciada por um terror que ele pôde ler nos seus olhos de um azul de porcelana. Insistiu.

- Wanda, acredite-me! Já é altura para que abandone os seus sonhos românticos e para que defronte a realidade! O que lhe peço não a fará correr grandes riscos! Quando todos se tiverem deitado, terá apenas de descer às cozinhas e abrir a porta. Depois, regressará ao seu quarto. Eu encarrego-me do resto! A que horas costumam fechar as portas?

- Às onze, excepto quando o sr. Sutton diz que vai regressar a horas tardias. Nessa altura, o mordomo espera-o.

- Ele nunca se ausenta?

- Quase nunca. Está de guarda à residência até ao dia do julgamento e leva o seu papel muito a sério.

- De qualquer modo, não preciso de muito tempo: um quarto de hora... talvez meia-hora. Ajudar-me-á? Chegarei por volta... digamos, da meia-noite e meia.

- E se o sr. Sutton tiver saído?

- Bastar-lhe-á telefonar ao Ritz. Se eu não estiver lá, deixe o seu nome. Eu compreenderei e adiaremos o assunto para amanhã à mesma hora! Vamos lá, um pouco de coragem, Wanda! Espero sinceramente poder ser de alguma utilidade ao seu "anjinho". Pergunte à Madona qual a sua opinião a este respeito...

Quanto a isso, Wanda não precisava de encorajamentos e quando Morosini se afastou ela estava quase prostrada diante da Pietá, concentrada numa oração cujo fervor devia corresponder ao seu medo. Mas fornecera-lhe uma boa discrição do interior da casa.

Por descargo de consciência, Aldo foi dar uma volta pelo museu e quedou-se alguns instantes diante de um Lamento sobre a morte de Cristo de Donatello, como se tivesse vindo ali para esse efeito. Depois deu meia volta e foi-se embora. Como o tempo continuava claro, conquanto estivesse frio, decidiu regressar a pé. Talvez um pouco de exercício acalmasse o desejo lancinante que lhe acorrera de ir até à prisão de Brixton, na esperança de ver Anielka. Ideia tão estúpida quanto insensata pois não dispunha de autorização mas, sabendo quanto ela padecia e o medo que devia ter, reencontrara integralmente o seu primeiro impulso amoroso e desejava esquecer-se das mentiras e das contradições que ela lhe pregava desde o primeiro encontro. Deste modo, quando chegou ao final do seu percurso, acariciava a ideia de ir até à Scotland Yard, a fim de pedir a Warren um novo salvo-conduto. Dada a maneira como se haviam separado naquela noite, não era lá uma grande ideia, mas desejava tanto vê-la outra vez!

Um rasgo de amor-próprio salvou-o do ridículo ao pensar que nessa mesma noite faria qualquer coisa por ela e que, pelo momento, isso deveria chegar. Se as coisas se passassem como esperava, talvez aparecesse como um triunfador ao pé do superintendente. A desejada autorização seria naturalmente concedida a fim de que pudesse levar a boa nova à sua querida prisioneira.

Os raros transeuntes que passavam ainda por Grosvenor Square não prestaram qualquer atenção àquele homem em traje de noite, de chapéu alto na cabeça, capa negra e cachecol branco aos ombros, empunhando uma bengala e passeando calmamente enquanto respirava o ar fresco da noite. Este género de noctívago não era coisa rara naquele elegante quarteirão onde, quando o tempo assim o permitia, os gentlemen regressavam de bom-grado a pé do clube. Mas ninguém, nem tão-pouco o polícia que ao cruzá-lo o saudou levando um dedo à testa, teria imaginado que ele se preparava para penetrar indevidamente numa residência alheia. No fundo, o grande aparato era um excelente álibi e para justificá-lo Morosini fora passar a noite no Convent Garden, onde matara o tempo assistindo ao bailado de Giselle. Vidal-Pellicorne, que passara o dia no Museu Britânico com um confrade, ainda não regressara e Aldo jantara sozinho no restaurante do hotel.

Já passava ligeiramente da meia-noite e meia quando, não avistando ninguém, empurrou o portão e percorreu a pequena escadaria que levava até à porta de serviço. Aparentemente, Wanda desempenhara a sua missão a preceito.

Na altura de entrar na casa, Aldo respirou profundamente. Ainda estava do lado da legalidade, mas logo que tivesse franqueado aquela porta, teria transposto a barreira que separa as pessoas honestas dos delinquentes. Podiam dar-lhe ordem de prisão, encarcerá-lo, destruindo o universo muito agradável e, sobretudo, apaixonante, que ele construíra... mas ao pensar em prisão isso recordou-lhe aquela que lá se encontrava, talvez a morrer...

- Rapaz, não está na altura de voltar para trás! - disse a si mesmo.

Empurrou o batente, esperando que a porta não chiasse. Tal como lhe tinham indicado, encontrou-se no corredor que, de um lado, dava para as cozinhas e, do outro, para os quartos da criadagem. Ao fundo, ficava a escada de serviço que ligava o subsolo ao rés-do-chão, que era muito elevado. Para ter a certeza que não faria barulho, descalçou os sapatos envernizados, pô-los nos bolsos, encontrou as escadas quase às apalpadelas e esperou até ter dado meia volta, para acender a lanterna eléctrica que trouxera por precaução. Momentos depois chegava ao grande hall e punha a lanterna de lado: os bicos de gás da rua davam-lhe luz suficiente para que pudesse orientar-se. Voltou a encontrar a bela e nobre escadaria elíptica que subia até ao andar superior, os bustos dos imperadores romanos, o sarcófago e o resto dos objectos de que se recordava.

Descobrir o escritório de Ferrais foi coisa fácil: era contíguo à pequena divisão em que Sutton o recebera uns dias antes mas, desta vez, pôde acender as luzes. As janelas estavam tapadas por cortinados espessos que tinham sido cuidadosamente corridos. Num certo sentido isso até era bom pois assim não se arriscava a que o vissem do exterior. Restava-lhe descobrir o famoso armário-frigorífico, que a duquesa julgava recordar-se que estava ao lado da mesa de trabalho e "escondido pela biblioteca". Ora, a divisão em que os passos eram abafados por tapetes persas era vasta e, à excepção da chaminé onde se apagavam as últimas brasas, encontrava-se coberta de livros.

"Pensemos um pouco! As paredes não são assim tão espessas. Deve haver algures umas tantas falsas prateleiras repletas de encadernações..."

Retirando a capa e o chapéu, que colocou numa das poltronas, tratou de explorar a ampla biblioteca, começando pela parte mais chegada à mesa de trabalho. Os seus compridos dedos enluvados percorriam as encadernações, puxando de vez em quando pela metade de um livro numa das prateleiras até que, finalmente, um deles se recusou a mexer por estar colado aos livros do lado. Puxou com mais força e assim conseguiu deslocar uma placa de livros e de prateleiras falsas, que rodava sobre invisíveis dobradiças. Em baixo havia uma porta de aço da cor da madeira. Não existia qualquer puxador para abri-la, mas sim uma fechadura. Restava saber onde se encontrava a chave.

Deixando as coisas na mesma posição, começou a rebuscar dentro das gavetas quando a sala se iluminou e se ouviu uma voz fria:

- Mãos ao alto e, sobretudo, nem mais um gesto!

Aldo deixou escapar um suspiro enfastiado ao pensar que aquele indivíduo devia ter ouvidos de cão de guarda, pois tinha a certeza de não ter feito qualquer ruído. De qualquer modo, envergando um roupão escarlate, de cabelos emaranhados, John Sutton conservava-o sob a ameaça de um revólver.

- Pode baixar essa coisa, eu não estou armado - disse Morosini calmamente...

- Não sou obrigado a acreditá-lo e, por isso, continuaremos assim. Com que então, príncipe - acrescentou, sublinhando o título com um desdém insultante - chegámos ao ponto de andar a revolver prateleiras? Que esperava encontrar? Se pensa num cofre-forte...

- Eu sei que não se trata de um cofre-forte, mas de uma geladeira eléctrica. Creio que na América a chamam Frigidaire, que é o nome do seu construtor. É o único motivo da minha presença aqui.

Exibia uma desenvoltura que estava longe de sentir e isso por uma razão muito humilhante: é difícil manter um certo porte quando estamos de peúgas, mesmo que sejam de seda, perante um sujeito cujos olhos se fixam nesse pormenor da nossa indumentária.

- Verdadeiramente? E julga que vou engolir essa patranha? - interrogou Sutton.

- Devia fazê-lo. Direi ainda que se tiver a chave para abrir isto, isso agradar-me-ia. Tal como gostaria de saber por que motivo ninguém, nem mesmo você, teve a ideia de falar deste assunto à polícia.

- E por que motivo o teríamos feito? Esse era o brinquedo querido de sir Eric. Só ele é que lá metia a água, tal como só ele é que dela se servia. Não imagina decerto que era lá que o veneno se encontrava e que o meu amo se envenenou a si próprio, pois não? Tem de descobrir outra coisa, se quiser que o deixe escapar!

- Mas não tenho vontade nenhuma de me escapar. Até ficaria muito contente se você pegasse nesse telefone a fim de pedir ao superintendente Warren que se digne juntar-se à nossa alegre reunião. Só que será preciso encontrar a chave.

- Que espera? Que eu baixe a minha guarda para pegar no telefone? Pode ter a certeza que o farei, logo que me confessar a verdadeira razão da sua presença.

- Você é escocês ou irlandês, para se mostrar tão casmurro? Se isso lhe convém, posso ser eu a chamá-lo. Tenho a certeza que o ptero... que o superintendente vai achar o vosso pequeno armário muito interessante. Entretanto, se assim o permite, vou baixar os braços e calçar os sapatos. Dispare se o entender, mas estou com frio nos pés.

Passando das palavras aos actos, voltou a calçar-se. O outro parecia perplexo e resmoneou, exprimindo em voz alta o que pensava:

- É uma história de doidos. Eu inclino-me mais a pensar que você continua à procura da sua preciosa safira...

- Num armário-frigorífico? Ou não concorda que é disso que se trata?

- Concordo, mas quem é que lhe falou nele?

- Vai ficar surpreendido: foi a duquesa de Danvers. Ela acha que o gelo fabricado por esta máquina pode ser nocivo, A ideia do veneno nem sequer a aflora: ela apenas critica os métodos de fabrico, mas eu tirei outras conclusões.

- Quais?

- É simples: este móvel não está protegido por nenhuma fechadura secreta, mas sim por uma simples chave... que basta encontrar. A menos que se consiga abri-lo com uma gazua. Em seguida, nada mais fácil que esvaziar o recipiente do gelo para enchê-lo depois com água à qual se adicionou a estricnina.

- Isso é ridículo! Sir Eric guardava sempre a chave consigo.

- E levou-a para o túmulo? Suponho que antes de proceder à autópsia, devem ter-lhe retirado as roupas para entregá-las à família: a si, na ocorrência, dado que a esposa já tinha sido presa.

- Não. Confesso não me ter preocupado com isso. Tudo isso deve ter sido entregue ao seu criado de quarto...

- Podemos perguntar-lhe. Entretanto...

Enquanto continuava a vigiar Sutton, que parecia desorientado, Aldo pegou no auscultador e chamou a Scotland Yard. Tal como receava, Warren não estava. Em compensação, o inspector Pointer anunciou a sua chegada o mais brevemente possível.

- Dentro de cinco minutos saberemos o que pensa a polícia da nossa pequena disputa. Mas talvez não deseje que ela venha?

- Que quer dizer?

- Parece-me ser claro. Para o caso de ter sido você quem introduziu o veneno.

Os olhos de Sutton esbugalharam-se enquanto que o rosto corava, sob o efeito de um violento acesso de cólera.

- Eu?... Mas como poderia eu matar um homem que venerava? Vou mas é partir-lhe as ventas, meu pequeno príncipe!

Arremeteu de punhos em riste na direcção de Aldo mas, transportado pela sua fúria, calculou mal o balanço. O seu adversário evitou-o, desviando-se como um toureiro diante do animal e o secretário estatelou-se contra a porta do armário-frigorífico. Deve ter-se magoado pois o choque acalmou-o e ao soerguer-se lançou a Morosini um olhar cheio de ódio.

- A sua história da carochinha vai desmoronar-se como um castelo de cartas e você será preso por ter entrado aqui após um arrombamento. Entretanto sou eu quem lhe vai mostrar se este gelo está ou não envenenado!

Apressadamente, com gestos desajeitados, vasculhou nas gavetas da secretária e, depois, em duas ou três caixas de correio no seu interior, antes de extrair, finalmente, o pequeno objecto que procurava de dentro de uma espécie de estojo de caneta.

- Aqui está ! - exclamou.

- Que quer fazer?

- Já verá.

Retirou uma garrafa de uísque de um móvel baixo, bem como um copo que encheu por metade e, em seguida, dirigiu-se para o armário, que abriu sem dificuldade, pondo a descoberto duas ou três garrafas de cerveja e um recipiente meio cheio. Numa taça de cristal havia alguns pedaços de gelo que estavam a derreter-se. Ia pegar num deles quando Morosini se intrometeu, puxando-o para trás e fechando a porta, contra a qual se apoiou.

- Pare de fazer de imbecil ou então espere pela chegada de Pointer! Não tenho vontade nenhuma que me descubram na companhia do seu cadáver.

Nessa altura ouviu-se uma sirene de polícia. Com um gesto de ombros de desânimo, John Sutton foi sentar-se, esvaziando de um trago o líquido que vertera enquanto Aldo procurava um cigarro, que acendeu, expelindo voluptuosamente uma longa baforada.

- Pensa realmente que há veneno aí dentro? - perguntou o secretário com uma voz pouco firme.

- Não posso afirmar que tenho a certeza, mas admita que tal hipótese merece ser considerada. Essa história de saquinho contra as enxaquecas é um pouco grosseira, não é?

- Não é verdade que faria tudo para ajudar essa pequena galdéria?

- Eu procuro a verdade. Se tiver razão, não há qualquer motivo para que ela continue detida.

- Não acredite nisso. Resta ainda que foi ela quem introduziu o amante nesta casa e que foram ambos que urdiram a morte de sirEríc. Você mesmo disse que deve ser possível dispensar a chave, a menos que ela tenha sido roubada ou que dela tenham feito uma cópia. Não se esqueça do que ouvi e da fuga do cúmplice. Por fim, ela foi inculpada de assassinato ou de incitação ao crime. Não irão libertá-la.

- E isso dá-lhe grande prazer! - disse Aldo, que começava a recear que o outro tivesse razão.

- Claro que sim! Você é livre de pensar o que quiser! Eu nunca escondi que a odiava. Ela matou ou mandou matar um homem admirável, pleno de generosidade, de bondade...

- Do modo como construiu a sua fortuna, isso é a própria evidência...

- Oh, pense o que quiser, isso não tem qualquer importância! Ouça, chegaram os nossos visitantes!

- Terá a satisfação de me mandar prender.

- Nem sequer. Você não me interessa. Só falarei das inquietações da duquesa de Danvers e da sua... visita, um pouco tardia, para me pôr ao corrente da sua hipótese.

- Mas que grandeza de alma! Contudo, sinto-me pouco inclinado a agradecer-lhe.

Posto ao corrente da situação, o inspector Pointer deplorou que na altura do falecimento ninguém tivesse pensado em mencionar o curioso gadget da vítima, mas elogiou muito os dois homens pela forma como se preocupavam em descobrir a verdade. Depois pôs mãos à obra, com a ajuda do sargento que o acompanhava.

Retirados com grande cuidado, o recipiente e a taça com pedaços de gelo foram depositados numa tina que foi coberta por sua vez por duas ou três toalhas, para ser tudo levado para o laboratório da Scotland Yard.

Isto feito e com um largo sorriso que pôs a nu os seus dentes de coelho e que fez desaparecer o queixo, o assistente preferido de Warren declarou que quanto a ele não acreditava na presença de qualquer veneno no que chamava "o armário de gelo", dado que sir Eric era a única pessoa que podia abri-lo.

- Não sei o que irá pensar o superintendente - concluiu, na altura de se ir embora - mas estou quase certo que ele irá divertir-se imenso.

Morosini não percebia o que havia de divertido. No entanto, recobrou um pouco a esperança quando, no dia seguinte, recebeu um telefonema convocando-o à sede da polícia metropolitana em geral, e ao escritório de Warren em particular. Correu para lá.

- Mas que ideia mais curiosa a sua - declarou este último ao apertar-lhe a mão. - Como lhe ocorreu?

- Ela nunca me teria ocorrido se a duquesa de Danvers não a tivesse tido antes de mim. É verdade que ela não estava a pensar no veneno. Esta conspiração silenciosa não deixa de ser incrível. Deviam ter pensado em falar de tudo o que foi vertido nesse maldito copo. O mais incrível é que ontem cheguei a perguntar a mim mesmo se o seu Pointer não me ia julgar doido.

- Que quer? Um pedido de desculpas? - rosnou Warren. - É certo que houve negligência. Talvez voluntária, da parte das testemunhas...

- Permita que interceda em favor de lady Danvers. Ela nada premeditou.

- Não penso que a sua inteligência lhe permita premeditar seja o que for, mas para voltarmos à negligência, ela é quase indesculpável da parte dos homens. Estou muito vexado por ter de confessá-lo, mas é você quem tem razão: no recipiente, havia estricnina suficiente para matar um cavalo. Ou até a casa inteira, se tivessem tentado servir-se do sacrossanto gelo de sir Eric.

Se tivesse dado apenas ouvidos ao seu temperamento italiano, Aldo teria gritado de bom-grado de alegria. Havia muito que não tinha sentido um tal regozijo.

- Maravilhoso! - exclamou. - Nesse caso, pode dar ordem para libertar lady Ferrais? Oh, peço-lhe que me deixe levar-lhe a boa-nova!

- Primeiro tenho de informar o advogado da Coroa e sir Desmond, e peço-lhe que se acalme! Está fora de questão libertá-la; as acusações que pesam sobre ela ainda são muito pesadas.

- Mas não tem agora a prova que não foi esse danado analgésico que o matou?

- Sem dúvida, mas isso não significa que ela não tenha sido assassina ou cúmplice. Aliás, o sr. Sutton mantém a sua acusação, fundamentando-a na conversa que surpreendeu.

- Eu pensava que nos termos da vossa lei - disse Aldo amargamente -, qualquer detido em prisão preventiva é considerado inocente até que se prove a sua culpabilidade, não?

- Sem dúvida, mas enquanto não encontrarmos o polaco ela terá de permanecer em Brixton. Concedo-lhe de bom-grado autorização para visitá-la. Tente que ela diga algo mais sobre ele. Estou persuadido - acrescentou Warren, já com mais brandura - que é ele o assassino, mas enquanto não lhe deitarmos a mão...

- Mas isso é injusto, é desumano! Soube que ela está doente, que tem cada vez mais dificuldade em suportar a prisão... e ela só tem vinte anos! Não pode obter a sua libertação sob caução?

- Isso já não é da minha competência. Fale com o seu advogado... e vá visitá-la!

Porém, quando Aldo chegou a Brixton, não pôde ver Anielka: ela estava doente e fora internada na enfermaria da prisão. E, deste modo, foi-se embora com a morte na alma.

 

                               CAPÍTULO 7 - LISA

Aldo Morosini passou os três dias seguintes num marasmo depressivo. Fizera tudo o que podia para ajudar Anielka e tal como lhe aconselhara Simon Aronov, devia ter entregue o caso aos cuidados e ao talento da Scotland Yard, à consciência das autoridades judiciais e, até, a Deus, mas isso era-lhe impossível. Receava pela jovem e, ao aperceber-se deste seu medo, media o poder que ela ainda detinha sobre ele. Já não acreditava no amor que ela lhe declarara, pois tornara-se a amante de Wosinski, mas tinha suficiente nobreza de alma para se dar por satisfeito se lhe pudesse devolver a liberdade. Desse modo, a sua própria consciência ver-se-ia aliviada de um grande peso, permitindo-lhe então ajudar melhor Vidal-Pellicorne na tarefa comum da busca da Rosa. Mas no estado actual das coisas isso era impossível: Anielka assombrava-o, o que o tornava deveras infeliz.

Os dois encontros que teve com sir Desmond não ajudaram nada, dando-lhe apenas a mera satisfação de poder falar dela, conquanto o advogado se tivesse mostrado mais preocupado pelo estado de espírito do que pela saúde da sua cliente. Em seu entender, ela estaria muito melhor se se tivesse alimentado devidamente.

- Ela não começou com uma greve de fome? - inquietou-se Morosini.

- Não a cumpre integralmente, mas não se alimenta deliberadamente. Procura enfraquecer para que a deixem em paz. Enquanto estiver internada na enfermaria, ninguém está autorizado a visitá-la, excepto eu, para encaminhar o seu processo. Posso dizer-lhe que logo que ouve pronunciar o nome de Ladislas fecha-se como uma ostra.

- Então, ela ama-o a esse ponto?

- Eu penso que tem sobretudo medo. A guarda descobriu na sua cama um bilhete redigido em polaco, que a ameaçava de morte caso ela falasse.

- E o pai? Que diz? Que faz?

- Continua furibundo. Julgo que é sobretudo por causa dele que ela preferiu ficar doente e impedir, desse modo, as visitas. Quando ele vinha, submetia-a logo a um apertado interrogatório. Está convencido que ela sabe onde Wosinski se esconde e não pára de assediá-la.

- E o senhor? Qual é a sua opinião?

- Que Solmanski não deixa de ter razão e que ela esconde qualquer coisa.

Também era esse o parecer de Adalbert, com a ligeira diferença que ele achava inútil importunar a jovem. Podia depositar-se confiança na Scotland Yard e em Warren, bastante decidido a deitar a mão ao polaco.

- Se ele conseguisse agarrar o grupo que aterroriza a tua pequena amiga, ainda seria melhor: pelo menos, ela poderia finalmente respirar! Mas desaconselho-te a lançares-te sozinho nessa caça.

O arqueólogo reconhecera elegantemente o seu erro na história do frigorífico e, desde essa altura, encarava o amigo com um outro respeito. Isso não desagradava a Morosini que, erguendo um nariz arrogante e fixando em Adalbert uns brilhantes olhos azuis, sussurrou-lhe:

- Serias capaz de me abandonar? Sempre pensei que estivéssemos mais ou menos associados.

- No caso do diamante é verdade, mas eu nunca me alistei no corpo dos cavaleiros ao serviço da encantadora Anielka.

- Confesso que te deixei um pouco de lado nestes últimos dias mas, não sei porquê, parece-me que há uma ligação entre os dois casos. A propósito, como decorrem as tuas pesquisas?

- Vou avançando, vou avançando! Creio que Simon tem razão quando pretende que a Rosa nunca saiu de Inglaterra. É verdade que o duque de Saint Albans a herdou da mãe, mas não a legou ao seu descendente. Consegui reencontrar o seu rasto no começo do século xx, graças a uma espécie de milagre, devido ao meu amigo Barclay, o arqueólogo. Ao que consta, ela teria sido inocentemente dada pelo príncipe Regente à sua amante favorita, a sra. Fitzherbert. Depois, ficamos de novo às escuras. Mas este resultado animou-me e não desespero de desvendar o novo mistério. É curioso como esta jóia real parece ter encontrado um certo prazer em eleger domicílio junto às "rainhas morganáticas"! E a propósito de domicílio: que achas se mudarmos daqui? Estou a ficar um pouco farto desta vida de hotel. Sem contar que, dadas as nossas actividades mais ou menos... regulares, ficaríamos com maior liberdade de acção.

A proposta não encantou Morosini. Para além de ter sempre apreciado a atmosfera impecável dos hotéis de César Ritz, não discernia qualquer razão válida para se instalarem numa residência desconhecida e pouco a seu gosto, ficando obrigados a procurar pessoal e a acarretar com todos os pequenos inconvenientes que isso implicaria.

- Seria válido se tivéssemos de permanecer mais alguns meses em Inglaterra mas, quanto a mim, tenho de resignar-me a voltar a Veneza. Tenho uma loja comercial que sou obrigado a fazer funcionar. Quanto ao caso do falso diamante, Warren faz disso uma questão pessoal, o que é normal. Nós já o prevenimos: é a ele que compete proteger lorde Desmond e impedir que Mary e Yuan Chang possam actuar. Afinal de contas é o verdadeiro diamante que procuramos e não o falso.

- Não tencionas ir-te embora antes do julgamento, pois não? Sabes que se calhar serás citado como testemunha?

- Não me apetece pôr-me a andar. Daqui a quanto tempo é que julgas que será o julgamento?

- Talvez não ocorra antes do mês de Janeiro. Já me informei. E ainda nos podemos dar por satisfeitos: se se tratasse da esposa de um par do reino de Inglaterra isso acarretaria muito mais tempo de espera porque seria necessário reunir o Parlamento, mas como se trata da mulher de um simples barão, conquanto célebre, as coisas decorrem mais depressa. Quanto às investigações para descobrir a Rosa, receio que ainda se arrastem por algum tempo dado que a bomba, que Simon nos preparou, explodiu-nos na cara. Portanto vou procurar uma residência, chamar o meu fiel Théobald, acompanhado, se for preciso, pelo irmão gémeo e, desse modo, sentir-me-ei nas minhas sete quintas. Sem contar que, se houver problemas, os dois juntos representam uma força nada negligenciável.

Aldo matutou na ideia durante uns momentos. Não era assim tão má, pois apresentava a vantagem de lhes diminuir as despesas enquanto, ao mesmo tempo, lhes protegia mais a liberdade de actuação.

- De acordo! - acabou por concordar. - Mas ainda fico aqui durante mais alguns dias porque estou à espera de Guy Buteau, que me traz a jóia de que falei a lady Ribblesdale. Além disso, não te escondo que Kledermann me intriga. Ora aqui temos um banqueiro de classe internacional, que se ocupa de avultados negócios e que se demora em Londres, onde não parece divertir-se por aí além. Porquê?

- Ele disse-te que esperasses pelo reaparecimento da Rosa, pois tenciona adquiri-la. Conheces melhor que eu a paixão dos grandes coleccionadores.

- É possível! Não obstante, tenho a estranha sensação de que ele me vigia.

Vidal-Pellicorne explodiu numa gargalhada:

- Ele tem bons motivos para isso: terias podido desposar a filha e foste amante da mulher. Resta saber qual dos dois assuntos lhe interessa mais.

- Espero que não seja nenhum e, sobretudo, que não se trate do segundo! Não, estou mais inclinado em crer que o que lhe interessa é o especialista em pedras preciosas. Quando nos encontramos nunca falamos de outra coisa.

- Ora aí está! Uma coisa explica a outra. Vou escrever a Théobald e, em seguida, ponho-me à procura de um apartamento de jeito.

Enquanto o seu amigo abandonava o hotel numa passada alegre, assobiando as notas de Fifi, uma opereta que fazia furor em Paris desde o fim da guerra, Aldo optou por regressar aos seus aposentos. Aproximava-se a sacrossanta hora do chá e os frequentadores do costume estavam a chegar. Abrigado atrás da planta verde, avistou a duquesa de Danvers e lady Ribblesdale - com um gorro de violetas de Parma e uma capinha de veludo preto bordada a sutache dourado! - e ali permaneceu escondido até que elas foram ao encontro da jovem encarregue da cerimónia, antes de se dirigir para o elevador. Não lhe apetecia nada tagarelar. Além disso, a ex-sra. Astor começava a aborrecê-lo: não parava de chamá-lo ao telefone sob os mais diversos pretextos, quando o que desejava na realidade era saber se já tinha chegado aquilo por que tanto esperava. Aldo sentia-se entalado entre a pressa em ver chegar Buteau e o desgosto que lhe causava ter falado do diadema da sua velha amiga Soranzo...

Mas se pensava ir desfrutar tranquilamente a calma do pequeno salão que partilhava com Adalbert, enganava-se redondamente. A bem dizer, ainda não se tinha propriamente instalado junto à janela que dava para as folhas amarelecidas de Green Park, quando o telefone tocou. Do outro lado da rede, a voz untuosa, quase episcopal do chefe da recepção informou-o que uma jovem acabara de chegar e perguntava por ele: tratava-se de missVan Zelden e...

- Vou já descer! - exclamou, pousando o auscultador e precipitando-se para a saída, perseguido por uma súbita inquietação que podia resumir-se numa só pergunta: que viera Mina, a sua secretária, fazer a Londres, quando ele esperava por Guy Buteau? Oxalá não lhe tivesse acontecido alguma coisa! Desde que o encontrara em Paris num estado quase miserável, Aldo zelava pelo seu antigo preceptor com uma afeição quase filial.

Mas era bem de Mina que se tratava. Quando chegou ao hall, reconheceu-a imediatamente naquela indumentária que ainda não conseguira que ela pusesse de lado: fato acinzentado em forma de saco, sapatos sem saltos, chapéu de feltro enfiado até à altura dos óculos largos de vidros brilhantes, mal deixando ver a parte de baixo do carrapito severo que disciplinava uma cabeleira ruiva que, melhor arranjada, teria decerto deixado transparecer uma certa beleza. Por cima disto tudo envergava uma capa que lhe encobria a sua longa silhueta informe.

O suspiro resignado de Morosini transformou-se bruscamente num sopro de cólera à vista do espectáculo que descobria subitamente: diante de Mina, mas quase dobrado em dois, Moritz Kledermann ria a bandeiras despregadas. Consternada, ela esforçava-se por acalmá-lo, sem resultado. Era intolerável! Aldo arremeteu ao encontro do banqueiro, segurando-lhe no braço.

- Não tem vergonha de troçar desta maneira de uma pobre rapariga? Julgava-o uma pessoa distinta mas, na realidade, o senhor comporta-se de modo indigno! E você, Mina, porque fica para aí especada? Venha comigo e diga-me o que se passa. Eu estava à espera do sr. Buteau.

- Teve de ser levado para o hospital de San Zanipolo com uma crise de apendicite. Pode ficar tranquilo: decorreu tudo bem, mas era preciso que viesse alguém...

À beira das lágrimas, ela deixou-se levar até uma poltrona, mas Kledermann, que aquele breve diálogo parecia ter acalmado, seguiu atrás deles e até se intrometeu:

- Um momento! Exijo explicações - começou.

- Não se fartou de rir? - disse Aldo com desprezo. - Se alguém deve pedir explicações, serei antes eu. Encontro-o ocupado a troçar da minha secretária e devia dar-se por feliz por eu não lhe ter partido a cara, mas isso não tardará caso não nos deixar tranquilos! Mina acaba de fazer uma longa viagem e precisa de repouso.

- Mina? Mina como, se faz favor? - perguntou o banqueiro, zombeteiro.

- Não vejo o que tem a ver com isso, mas enfim... Mina Van Zelden. A menina é holandesa. Isso chega-lhe?

Estavam sem dúvida a navegar em pleno surrealismo pois subitamente Kledermann ficou com um ar muito infeliz.

- Que tenhas utilizado um falso nome ainda posso entender, mas que ouses renegar o teu país, isso é imperdoável! Tu, com vergonha de seres suíça? E, para começar, tira esses óculos ridículos. Quero ver os teus olhos.

A jovem obedeceu, mas ficou cabisbaixa, não sabendo mais que fazer e sentindo-se muito pouco à vontade.

- Já está melhor, mas quero que olhes para mim para me explicares como é possível que eu te encontre ao pé deste homem a quem concederam um dia a honra de oferecer a tua mão e que nem sequer se dignou ver-te?

Desta vez Mina insurgiu-se.

- É precisamente por isso que o quis conhecer e que arranjei maneira para que ele não pudesse estabelecer qualquer ligação com a minha verdadeira identidade! Além disso, nunca lhe ocultei que adorava Veneza e que queria lá viver. Assim, arranjei as coisas de modo a poder encontrar o príncipe. Sobretudo quando soube a profissão apaixonante que ele tinha!

- E que esperavas? Seduzi-lo? Vestida dessa maneira? Que grotesco!

- Se escolhi este porte foi precisamente porque nunca fiz questão de seduzi-lo. Sobretudo quando me apercebi que as mulheres andavam atrás dele.

- Nesse caso, por que não te foste embora?

- Não sei... Ou antes, por acaso até sei. Quis saber como ele era e fui bem castigada porque me apaixonei. Não por ele, mas antes pela sua casa, pelas pessoas que lá vivem e que são adoráveis!... Oh, pai, porque havia logo de estar hoje aqui?

- Escutem-me ambos: não acham que agora é a minha vez de falar? - exclamou Morosini, cuja estupefacção o reduzira ao silêncio. - Enquanto estão ocupados a lançar afrontas um ao outro, eu estou para aqui feito parvo a ouvi-los! Tenho direito a explicações! Por isso, se não se importam, vamos ter uma conversa sentados além, junto àquelas aspidistras! Tenho a impressão de estar numa casa de doidos, ou que eu próprio estou a enlouquecer.

Os outros seguiram-no e instalaram-se todos em volta de uma mesa, da qual se aproximou um criado para lhes perguntar se desejavam tomar alguma coisa.

- Boa ideia! - aprovou Morosini. - Dê-me uma aguardente fina... mas sem água. E para você, Mina? Um chocolate?

- Eu chamo-me Lisa!

- Não quero saber! Um chocolate, amigo. Aqui ele é excelente e a menina adora-o.

- Pelo menos nesse aspecto ela continua sendo suíça! - suspirou Kledermann. - Que consolação! Vou tomar o mesmo que o príncipe.

- Perfeito! Então vejamos em que ponto íamos!... Se bem a entendi, cara Mina, você seria...

- Já disse que me chamava Lisa!

- E eu não a quero conhecer sob esse nome. Mademoiselle Kledermann é-me completamente estranho. Em compensação, tanto eu como o meu pessoal acalentávamos muita estima e amizade por Mina Van Zelden. Por isso tenha um pouco de paciência e permaneçamos o que éramos um para o outro há apenas dez minutos! Quer dizer: um patrão e a sua... perfeita secretária! Kledermann, devia empregá-la ao seu serviço! Ela está acima de qualquer elogio! Às vezes é um tanto intratável, mas é tão eficiente!

Os olhos da rapariga encheram-se de novo de lágrimas e, conquanto se esforçasse por desviar a cabeça, Morosini não conseguiu evitar admirá-los. Tinham exactamente a cor das violetas! Dois lagos sombrios e aveludados, bordejados por cílios tão espessos quanto juncos! Subitamente do fundo da sua memória surgiu a voz de Mme. de Sommíères, a sua tia-avó, tão sábia e perspicaz. Ela dissera: "Mesmo que te obstines em não ver nela uma mulher, apesar de tudo é isso que ela é. Aos vinte e dois anos, também tem o direito de sonhar!" A tia Amélie tinha sugerido que talvez Mina estivesse apaixonada por ele, mas nesse aspecto enganara-se, pois tinham acabado de lhe revelar o motivo que retinha a filha do riquíssimo banqueiro de Zurique em sua casa: o charme da sua residência e dos seus servidores, aliados ao encanto todo poderoso de Veneza...

- Vamos lá, pare de chorar! - disse. - Utilizar um nome falso não é um crime assim tão grave. Mesmo que me sinta magoado.

- Acabou de dizer que tinha grande estima e amizade pela minha pessoa - murmurou Mina. - Agora, que sabe a verdade, já não é assim?

- Que verdade? Você quis ver que tipo de homem eu era e concluiu com satisfação que estava perante alguém que corria atrás das saias, o que não lhe inspirava a menor pena, mas cuja agitação era divertido observar. Uma espécie de insecto curioso! Durante todo esse tempo, eu depositava a minha confiança em si. O que resta agora disso tudo, sou incapaz de lhe dizer. Preciso pelo menos de uma boa noite para fazer o ponto da situação. Mas antes de nos separarmos, devemos concluir os nossos assuntos: trouxe o que pedi ao sr. Buteau?

Ela assentiu com um gesto da cabeça e inclinou-se para pegar no saco de cabedal depositado a seus pés, onde guardava os seus apetrechos.

- Não o abra aqui! Tenho de lhe agradecer por ter realizado esta viagem em tão perigosa companhia. Deve certamente saber que se tivesse sido posto ao corrente do acidente que vitimou o meu amigo Guy, nunca teria permitido que o substituísse. Este tipo de transporte é muito perigoso para uma jovem.

- Não vejo porque não o teria feito! - disse Mina, reencontrando subitamente o seu aprumo e as suas reacções habituais. - Ainda não há muito tempo levei de Paris a Veneza uma jóia tão importante quanto esta, se não ainda mais...

- Qual? - não conseguiu impedir-se de perguntar Kledermann a quem esta parte da discussão interessava cada vez mais. - Mais uma jóia real?

- Em primeiro lugar, isso não lhe diz respeito - resmungou Morosini -, e, em segundo, ninguém falou de jóia real.

- Ora vamos! - disse o banqueiro. -Julga porventura que ignoro o que há aí dentro? - acrescentou, apontando para o saco da filha. - O senhor apresta-se a vender uma peça carregada de história a uma criatura meio louca, na qual ela assentará o pior possível! Por acaso, reflectiu seriamente no assunto? O Espelho de Portugal na cabeça de uma filha do cornedbeef, dos amendoins ou de não sei qual delirante produção americana?

- Incrível! - exclamou Morosini. - Onde diabo foi desencantar tudo isso?

Os olhos de Kledermann semicerraram-se.

- No jardim de Inverno da duquesa, meu caro! Escondido atrás de uma moita de gardénias para onde me retirara a fim de fumar um charuto, pelo que tive o privilégio de escutar a sua conversa com a temível Ava. Palavra que não foi de propósito!

- Tal como a sua filha também não veio expressamente espiar-me no meu domicílio, não é? Isto é alguma espécie de pancada na família?

- Digamos que se trata de um acaso! Vamos lá, Morosini, mostre-se bom desportista! Mostre-me o Espelho!

- Não o chame assim! Não tenho a certeza que se trate do verdadeiro!

- Eu saberei dizê-lo! Não se esqueça que eu já possuo dois dos seus irmãos mazarinos. Por este estou disposto a cometer loucuras e, sem saber sequer qual o preço que vai pedir, ofereço desde já o dobro!

- É louco?

- Quando se trata de pedras? Sempre. Aliás, deste modo você evitará negociações difíceis. Esses americanos têm o hábito de regatear como usurários. Acredite-me que essa dama o obrigará a baixar o preço! Pense na sua velha amiga!

- Não me conhece.

- É possível, mas você é um gentil-homem e ela não! Além disso, posso garantir-lhe que saberei guardar o segredo, o que duvido muito que ela faça... e que, uma vez em minha posse, o diamante encontrará um escrínio digno do seu estatuto. Então, não mo quer mostrar?...

- De qualquer modo, aqui não! Mina...

Não teve o tempo de prosseguir. Subitamente vermelha de cólera, esta acabara de levantar-se bruscamente, afastando a bandeja sem se preocupar com os estragos que provocava. Pousou o saco em cima da mesa, abriu-o, extraiu um pacote embrulhado em papel ordinário e cuidadosamente atado, que atirou depois para cima dos joelhos de Morosini.

- As vossas jóias! As vossas malditas jóias!... Para vocês os dois, é só isso que conta, não é verdade? Nesse caso, deixo-os em boa companhia! Muito bons-dias!

Antes que os dois homens pudessem reagir, ela voltara a fechar a mala e deixara a mesa a correr, volteando atrás de si a larga capa. Aldo quis ir-lhe no encalço, mas Kledermann reteve-o.

- É inútil! Mesmo admitindo que a alcançasse - o que me espantaria pois ela corre como Atalanta e já deve ter apanhado um táxi! - não conseguiria fazê-la mudar de opinião. Sei do que estou a falar: ela é minha filha e tão casmurra quanto eu!

- Mas vai deixá-la partir desta maneira, sem saber para onde vai e numa cidade que não conhece?

- Lisa conhece Londres como as suas algibeiras! Tem amigos por cá. Quanto a saber para onde vai, muito esperto seria quem o conseguisse. Uma coisa é certa: nem eu nem você estamos perto de voltar a vê-la - concluiu o banqueiro, com uma calma toda helvética, mas que Morosini achou insuportável.

- É esse o efeito que tudo isto lhe faz? Mas é monstruoso! Aquela pobre rapariga arrisca-se a ver-se aflita de dinheiro e eu sinto-me responsável! Sem contar que dinheiro, é coisa que lhe devo...

Kledermann deu uma pancadinha apaziguadora na palma da mão do seu companheiro:

- Não se preocupe com isso! A minha filha possui uma fortuna pessoal da qual desfruta desde que atingiu a idade adulta. Herdou-a da mãe, uma condessa austríaca que era uma mulher adorável, mas de fraca saúde.

- Uma condessa austríaca rica? É difícil de acreditar. Tal como a Alemanha desde a guerra, a Áustria também está arruinada.

- O país talvez o esteja, mas ainda existem fortunas particulares, entre as quais a dos Adlerstein. Portanto, não se atormente com Lisa!

- O senhor é um pai bem curioso! Há quase ano e meio que a sua filha trabalha para mim e creio que desde então ela não mais saiu de Veneza. Nunca a vê?

Uma ou duas pequenas rugas que despontaram na testa de Kledermann deram a entender ao seu interlocutor que talvez ele se preocupasse mais do que queria admitir. No entanto, quando respondeu, a sua voz continuava tão monocórdica quanto antes:

- Não. Ela já não vai a casa desde que eu lhe quis apresentar outro partido, após a sua recusa - que aliás eu compreendo e que, afinal de contas, o honrava! Um veneziano também, dado que ela é doida por essa cidade, e este consentia em desposá-la. Ela riu-lhe na cara e, depois, fez as malas. Este incidente coincidiu aliás com uma altercação com a minha segunda mulher. Elas nunca se entenderam e julgo que se odeiam.

Nisso Aldo estava disposto a acreditar. Conhecia sobejamente Dianora para imaginá-la no seu papel de madrasta. Ela não despendera certamente o menor esforço para se tornar amiga de uma rapariga cuja presença no lar paterno a envelhecia.

- Mas, a propósito - reatou Kledermann - gostava de saber como é que Lisa fez para entrar ao seu serviço.

Morosini contou então como tinham travado conhecimento no rio dei Medicanti, no qual a jovem caíra ao recuar a fim de admirar melhor a estátua de Colleone, quando ele próprio saía da missa de casamento de um dos seus amigos, na igreja de São Giovanni e São Paolo.

- Simples acidente! - concluiu.

- Não acredite nisso! - disse o banqueiro, rindo-se. - Quando Lisa deseja alguma coisa, consegue obtê-la. Ora, como ouviu, ela desejava conhecer o homem que recusara a sua mão e deve ter levado a fim uma investigação minuciosa. Pode ter a certeza que o seu acidente nada teve de fortuito. Estava programado, como dizem os americanos.

- Mas, visto que não sabe nadar, ela arriscou-se a morrer afogada!

- Ela nada melhor que uma truta! Aos quinze anos já atravessava a nado o lago de Zurique. Estou a dizer-lhe que ela já tinha planeado tudo de antemão. A identidade e os papéis falsos também, é claro!

E tenho a certeza que você perdeu uma valiosa assistente! Agora... talvez ela regresse a sua casa...

- Isso espantar-me-ia. De qualquer modo, nestas condições, não quero conservá-la. Tal como qualquer veneziano, gosto de mascaradas, mas não em minha casa! Preciso de ter uma confiança absoluta nos meus colaboradores. O que não significa que não venha a lamentar o sucedido! Não quer arrumar agora este assunto? - acrescentou, pegando no pacote que a jovem abandonara. - Com prazer!

Nos minutos seguintes Aldo esqueceu-se um pouco dos seus tormentos, tal como acontecia cada vez que lhe era dado contemplar pedras perfeitas. O diadema da condessa Soranzo era uma peça encantadora, composta por diamantes em nó, sustendo raminhos floridos, dispostos harmoniosamente à volta de uma soberba pedra lapidada de forma plana, que formava o coração de um malmequer de pérolas e diamantes. Quanto a Kledermann, quase delirava.

- Magnífico! Esplêndido! Um adorno de rainha! De verdadeira rainha, claro, e que deve ter resplandecido nalgumas ilustres cabeças! Aposto a minha em como se trata do Espelho de Portugal! Tem de vendê-lo a mim!

- E que vou dizer a lady Ribblesdale?

- Mas... que a jóia já tem comprador, que a sua amiga renunciou a desfazer-se dela... Sei lá! A nossa americana nunca saberá que ela se encontra em minha posse. Até a minha própria mulher não terá conhecimento. Será a maneira mais segura de ficar em paz - acrescentou com um sorriso. - Senão, ela não pararia de me incomodar para que eu a autorizasse a pô-la. E infelizmente sou muito fraco com ela... Não pode dar-me agora um preço?

Aldo reflectia desde que tinham regressado aos seus aposentos. A brutal separação provocada por Mina - conseguiria chamá-la Lisa? - colocava-o numa situação difícil, dado que Guy Buteau ainda estava hospitalizado. Ia ter de regressar a Veneza para zelar ele próprio pela sua loja de antiguidades e para pôr em dia os negócios correntes - graças a Deus, a sua secretária foragida não era mulher para deixar tudo em desordem atrás de si! - e, também, para assistir a dois leilões anunciados para o fim do mês, um em Milão e o outro em Florença... Tudo isso dava-lhe pouco tempo para uma discussão de "feirantes" com lady Ribblesdale. Além disso, a ideia de ver aquele diadema fazer parte de uma das principais colecções europeias agradava-lhe sobejamente. Seria mais reconfortante que vê-lo a vogar pelos salões, na cabeleira ondulada de uma beldade já ligeiramente desvanecida... Na realidade, já tomara uma decisão...

O negócio foi rapidamente concluído. Kledermann não só não discutiu o preço anunciado, como ainda ofereceu mais. Na verdade, Dianora não exagerava quando afirmava que o seu Moritz era um grande senhor. Acabara de dar provas disso e imaginando a alegria que Maria Soranzo teria em breve, Morosini já se sentia um pouco menos desolado por ser obrigado a partir.

Efectivamente, pela primeira vez na vida, Aldo não estava encantado por ter de regressar a casa. Até essa altura, cada retorno fora motivo de profunda alegria. Ele adorava a sua cidade, o seu palácio e aqueles que lá residiam, a atmosfera de Veneza, a sua animada população, tão garrida e, contudo, sempre tão digna. Nada tinha a ver com Londres, da qual ele não gostava lá muito. E, no entanto...

Kledermann também se ia embora, mas num estado de espírito completamente diferente: obtivera o que queria e a brevidade do seu encontro com uma filha que já não via há dois anos não parecia traumatizá-lo por aí além. Ele resumia o acontecimento em duas pequenas frases: "A Lisa é assim. É inútil atravessar-se-lhe no caminho que escolheu". Para aquele suíço calmo e ponderado, o importante devia ser que ela estivesse de boa saúde e satisfeita com o que fazia!

Os dois homens despediram-se na maior cordialidade. Aldo foi calma e afavelmente convidado a visitar a grande residência dos Kledermann em Zurique.

- A minha mulher, que deve ter conhecido quando ela era veneziana, ficará encantada em recebê-lo e em falar consigo dos tempos passados - certificou o banqueiro, com a inocência feliz de um marido que conhece mal a sua esposa.

Claro está que Aldo prometeu que haveria de ir, enquanto jurava a si próprio que nunca o faria. Não duvidava um só momento das boas-disposições de Dianora a seu respeito mas, sobretudo, fazia questão em viver doravante o mais longe possível dela.

Liberto do seu visitante e do diadema Soranzo, Aldo escreveu a lady Ribblesdale uma daquelas mentiras que estão na base de qualquer sociedade que se pretende civilizada: falava de inesperadas dificuldades que encontrara junto ao dono do diadema e que o obrigavam a regressar o mais depressa possível a Veneza para tentar resolver a situação. Acrescentando ainda alguns cumprimentos tão discretos quanto parcimoniosamente escolhidos, estimou, com certa satisfação, que acabara de concluir um negócio que começara mal

e que, com um pouco de tacto, não ouviria mais falar da ex-Sra. Astor.

Estava prestes a concluir esta pequena obra-prima quando Adalbert entrou, de rosto corado e olhar vivaço, trazendo consigo os odores húmidos do exterior. O arqueólogo estava com óptima disposição pois acabara de descobrir em Chyne Walk, Chelsea, uma linda casa antiga com um atelier, na qual residira o pintor Dante Gabriel Rossetti até à altura do seu falecimento.

- Pensei que te irias sentir bem, rodeado pelas paredes de um artista de origem italiana e vais ver que ficaremos como peixe na água logo que Théobald tome posse do local!

- Não tenho a menor dúvida. Infelizmente só tu é que poderás aproveitar a situação, pois eu vou-me embora!

E contou-lhe o acontecimento que acabara de alterar os seus projectos, enviando-o prosaicamente de volta para se ocupar da sua loja comercial.

- Sem contar - suspirou Vidal-Pellicorne - que vais ter de encontrar outra secretária. É coisa fácil para os teus lados?

- Oh, não! Quanto a esperar encontrar outra Mina, isso é praticamente impossível! Imagina só: ela falava quatro línguas, conhecia a História da Arte tão bem quanto eu e sabia diferenciar uma turmalina de uma ametista. Para mais, sob a sua aparência áspera, era uma pessoa ordenada, divertida, plena de humor. Ouvi-la rir era um autêntico prazer, talvez porque fosse coisa rara... onde queres que vá descobrir uma pérola destas?

Enquanto Aldo falava, Adalbert olhava para ele com um vago sorriso à medida que o seu olhar se arregalava.

- Parece coisa difícil, mas por que não tentas apanhá-la? Talvez tenha regressado a Veneza pois, ao que parece, não foi por amor à Sereníssima República que ela foi até tua casa? Não existem alguns objectos que ela deseje e que pretenda agora recuperar? De qualquer modo, dado que tens de partir, tenta a tua sorte!

- Seria mesmo sorte? Agora que sei quem ela é, as nossas relações já não seriam as mesmas. O jogo está falsificado e mais vale eu resignar-me... O que me aborrece é que não tenho qualquer ideia quanto à data em que devo regressar.

- Ora, logo que o teu Buteau estiver recuperado! Com ou sem secretária, ele acabará por desenvencilhar-se: afinal, não se trata de dirigir uma fábrica. Algumas semanas, quanto muito, e estarás de volta. Pelo momento, posso safar-me sozinho com as minhas investigações...

- Eu sei que posso contar contigo, mas aborrece-me faltar à palavra dada a Simon Aronov.

- Enquanto não se encontrar a verdadeira Rosa de Iorque, nada tens a censurar-te. Na verdade, penso que o que te aborrece é teres de afastar-te da cadeia de Brixton...

- É verdade. Acabei por entender que não devo esperar grande coisa de Anielka, dado que nunca chegarei a saber quem é que ela ama verdadeiramente, mas gostava tanto de ajudá-la a sair deste mau passe!

- Procurarei também substituir-te nesse capítulo. Vou tratar de travar boas relações com o advogado e manter-te-ei ao corrente da situação.

- Agradeço-te, mas caso encontres esse maldito Ladislas, não poderás identificá-lo, pois nunca o viste. A mim, ele não escaparia. Além disso, há ainda o caso Yuan Chang-lady Mary, que gostava de seguir de perto...

-... E, já agora, por que não todo o trabalhinho da Scotland Yard? Essa história já não nos diz respeito, filho! Quanto à tua Anielka, ela não irá a julgamento na próxima semana. Portanto, vai fazer as tuas malas! Entretanto vou chamar a recepção para que tratem de reservar um lugar nos comboios e no barco. Quanto mais depressa regressares a casa, melhor será para ti!

Adalbert punha tanto afinco nas suas directivas que Morosini, vexado, não se conteve e observou:

- Palavra, vou acabar por crer que estás contente por te veres desembaraçado de mim!

- Ora essa! Se quiseres que te diga a verdade, ficarei contente por não mais te ouvir a lamentares-te sem qualquer motivo. Além disso... Se te despachares, não perco a esperança de ver o destino dar-te uma ajudinha fazendo com que encontres a tua Mina no comboio ou no barco. Porque, se quiseres saber a minha opinião, o que te aborrece mais é tê-la perdido...

- Estás louco?

- De modo algum. Quer queiras quer não, tu precisas dela, nem que seja para teu conforto. Portanto, se conseguires apanhá-la, põe o teu orgulho de lado e trata de te entenderes com ela, pois creio que, para ti, será a melhor maneira de voltares rapidamente!

No dia seguinte, Aldo entrou a bordo do barco-comboio que, via Dover, lhe iria permitir chegar a Calais e a Paris, onde faria uma breve escala, antes de embarcar no Simplon-Orient-Express. Nem sequer teria o consolo de ir almoçar a casa da tia Amélie. Naquela altura do ano, ela devia viajar algures pela Europa.

Não aceitara que Adalbert o acompanhasse. Detestava as despedidas num cais em que os minutos ou pareciam passar muito depressa ou nunca mais findar, consoante o caso. Além disso, tais despedidas entre dois homens eram ainda mais ridículas e a visão de Vidal-Pellicorne agitando um lenço enquanto o comboio se punha em andamento não surtiria qualquer efeito numa morosa disposição que a perspectiva de uma viagem em nada alegrava. Além disso, estava um tempo péssimo: a chuva e o vento misturavam-se; o Canal da Mancha devia estar na sua melhor forma para sacudir os estômagos dos passageiros.

Aldo lá chegou sem percalços de maior. Uma vez em Paris, registou as bagagens na gare de Lyon e, em seguida, de mãos libertas e dispondo de algum tempo, tomou um táxi até à rua Alfred-de-Vigny onde, tal como pensava, apenas encontrou Cyprien, o velho mordomo.- a senhora marquesa e Mlle du Plan-Crépin estavam viajando por Itália.

- Com um pouco de sorte, vou encontrá-las em minha casa - disse Morosini, consolando-se com esta ideia.

Entretanto, tratou da sua toilette, telefonou ao seu amigo Gilles Vauxbrun, o antiquário da praça Vendôme, e marcou um encontro com ele para o almoço. Encontrar-se-iam ao meio-dia e meia no restaurante Albert, um dos melhores de Paris, que dava para os Campos Elíseos, frente ao Claridge.

Como o Outono parisiense se revelava mais clemente que o londrino, o viajante pediu que o deixassem na praça Concórdia, dado que tinha a intenção de subir a pé a mais bela avenida do mundo. Pensava poder saborear em paz os jogos de luz de um sol amenizado pelas frondescências acastanhadas das grandes árvores. Gostava de parar ao pé dos carrocéis onde as crianças, montadas nos cavalinhos de madeira, tentavam apanhar os anéis de ferro em andamento, com uma vara semelhante a uma sovela de sapateiro: aquele que apanhasse a maior quantidade ao fim de algumas voltas obtinha o aplauso geral e um doce amascavado. Mas naquela manhã não havia quase ninguém. A grisalha inglesa devia ter viajado no mesmo barco que Morosini: o céu encobriu-se repentinamente, o vento levantou-se e começou a chover. Ao dar por isso, apressou-se na direcção do restaurante, onde chegou adiantadamente.

A sala ainda estava deserta, mas um maítre d'hôtelatencioso conduziu o recém-chegado até à mesa reservada em nome do sr. Vauxbrun, informando-o que "o senhor Albert" teria muito gosto em vir cumprimentá-lo um pouco mais tarde. Morosini não era pessoa desconhecida nesta casa que visitara várias vezes durante as suas viagens a Paris. Quanto ao "senhor Albert", que seria um dia o célebre maitre d'hôtel do Maxim's, era um suíço da região de Thun, que conquistara os seus galhardetes em diversos palácios e restaurantes de luxo, antes de abrir a sua própria casa e de se tornar o melhor anfitrião de Paris.

Ele acabara precisamente de aparecer e dispunha-se a ir saudar Morosini à sua mesa, o qual, entretanto, lia um jornal para passar o tempo, quando se abriu a porta giratória e entrou uma jovem alta e magra, muito elegante, num conjunto de veludo verde-escuro enfeitado com uma pele de raposa menos dourada mas quase tão ruiva quanto a massa brilhante dos seus cabelos, sobre os quais trazia altivamente um chapéu de três bicos de um veludo idêntico.

- Albert - exclamou a recém-chegada - espero que não me recuse a hospitalidade! É tão vulgar chegar adiantadamente, mas ao sair de Guerlain a chuva apanhou-me desprevenida e pensei que estaria muito melhor aqui enquanto espero pelo meu primo Gaspard.

- Menina Lisa? - dizia já Albert Blazer, precipitando-se ao encontro da dama para desembaraçá-la do montão de pequenos pacotes atados com fitinhas de seda que a sobrecarregavam. - Mas que raro prazer! Já faz pelo menos... oh, sim... dois anos, que não a vejo! Posso perguntar-lhe o que lhe aconteceu?

- Oh, nada de especial! Tenho viajado aqui e acolá... Aliás só estou de passagem por Paris para ir às compras!

- Ainda não está casada?

- Oh não, Deus me livre! Espero que me instale num canto tranquilo! Há sempre tanta gente aqui...

- Mas com certeza. Faça o favor de me seguir! Vou colocá-la ao pé da rotunda. É o local onde instalo os meus clientes preferidos.

E dirigiu-se directamente para uma mesa próxima da que era ocupada por um Morosini que não sabendo muito bem que compostura adoptar, hesitava entre esconder-se por detrás do seu jornal ou ir ao encontro dela. Se Albert não a tivesse chamado Lisa, teria hesitado em reconhecer a ex-Mina naquela linda jovem que trazia tão graciosamente uma criação da autoria evidente de um grande costureiro. O rosto era o mesmo e, contudo, parecia tão diferente! As sardas lá estavam no pequeno nariz direito, mas não havia nenhumas lentes brilhantes a dissimular o brilho das pupilas violetas sob a espessa franja das pestanas sombreadas por uma maquilhagem tão ligeira quanto aquela que sublinhava os contornos dos seus lábios sorridentes. O decote do vestido punha a descoberto um delgado pescoço comprido que fora até então encurtado por camisas e casacos de gola alta. Na verdade, nem era de acreditar no que via! Que teria podido levar aquela encantadora criatura a fardar-se daquela maneira durante quase dois anos?

Optou por levantar-se e ir saudá-la. Ao reconhecê-lo, ela empalideceu e esboçou um movimento de recuo.

- Albert, instala-me noutro sítio! Mais perto da entrada... Já tinha dado meia volta quando Aldo a alcançou.

- Peço-lhe que fique aqui! Serei eu a ir embora mas, ao menos, conceda-me dois dedos de conversa! Parece-me ser... necessário, e é algo que devemos um ao outro. Albert, pode deixar-nos a sós durante uns instantes? Eu vou levar a menina Kledermann até à sua mesa - acrescentou para o suíço estarrecido com a rapidez do acontecimento.

- Certamente, senhor príncipe... conquanto a menina Kledermann esteja de acordo...

A jovem apenas hesitou dois ou três segundos.

- Por que não? Visto que ainda não chegou ninguém, acabemos já com a conversa! Depois, não haverá mais motivo para se privar do almoço. Bastará que Albert nos separe!

Ela sentou-se, abrindo mais generosamente a gola de pele do sobretudo, exalando então um cheiro a perfume ligeiro e fresco, um verdadeiro aroma de pessoa jovem, que o olfacto apurado de Aldo logo identificou. Chamava-se Depois da Borrasca, nome que naquele momento se adequava bem às circunstâncias... Durante uns momentos contemplou a sua vizinha em silêncio.

- Então? - impacientou-se esta. - Que tem a dizer-me?

- Nada de especial, no estado actual das coisas. Estou a olhá-la e a tentar compreendê-la...

- Compreender o quê?

- Como conseguiu reunir a imensa coragem para se ter enterrado viva sob aqueles farrapos incríveis que nos impôs.

- Era indispensável, caso quisesse alcançar o meu propósito, que era o de passar a conhecê-lo interiormente e, sobretudo, o de me introduzir nesse magnífico palácio Morosini, um dos mais belos de Veneza e aquele que mais me seduzia! Queria lá entrar, lá viver... e, depois, ver de perto um homem que, arruinado, preferira trabalhar a selar um casamento vantajoso. Uma espécie de ave rara!

- Estou a perceber, mas porquê o disfarce? Por que não ter preparado um encontro utilizando um nome falso? Você tinha tudo o que era preciso para seduzir-me - acrescentou com uma enorme suavidade que, aliás, ela rejeitou.

- Para obter o quê? Para me tornar uma das suas amantes?

- Encontrou muitas?

- Não, mas soube de uma ou duas aventuras: uma aqui, outra em Milão. Não duraram muito e nenhuma das mulheres foi viver para o palácio. Ora era precisamente isso que eu desejava: integrar-me naqueles muros antigos, deixar-me impregnar pela sua atmosfera tão carregada de história, pôr-me à escuta do que diziam. Só era possível fazendo o que fiz: ser uma secretária anódina, muito apagada, mas capaz e inteligente. O género de personagem de quem é difícil prescindir. E fui paga pelos pequenos inconvenientes a que tive de me sujeitar. Primeiro veio Cecina. Calorosa, generosa, simultaneamente vulcão e fonte de abundância. Irresistível! Depois, foi a vez do majestoso Zaccaria, de Zian, o gondoleiro, e das duas gémeas, criadas de quarto... A sua prima também, com a paixão que tinha pela música e os seus lindos objectos... no fundo, devo agradecer-lhe. Fui feliz em sua casa.

- Nesse caso, regresse! Para quê dar cabo de tudo? Volte a ocupar o seu lugar. Será outra pessoa, é claro, mas...

Num gesto vivo, a mão de Morosini aprisionara a da sua companheira, mas esta retirou-a logo, interrompendo-o:

- Não, não é possível. Seria alvo de chacota e não poderia suportá-lo. Aliás... talvez eu nem sequer tivesse ficado lá por muito mais tempo...

- Porquê? Fartou-se do seu disfarce?

- Não, mas trabalhar ao pé de um homem solteiro é uma coisa e outra é trabalhar ao pé de um homem casado.

- Onde foi buscar a ideia de que eu me ia casar?

- Não era o que pensava fazer esta Primavera, quando fui ter consigo a casa de Mme. de Sommières? Nessa altura, você estava perdidamente apaixonado por essa condessa polaca.

- Mas não fui ao seu casamento?

- É verdade, mas acalentando outras ideias. E hoje não sobra lá grande coisa dessa união!

- Não sobra mesmo nada. Lady Ferrais está presa e corre grande perigo de...

- Ser executada por assassínio. Eu sei. Comprei os jornais ingleses desde que se foi embora. Deve sentir-se extremamente infeliz... Isso explica porque tenta convencer-me a regressar. A minha partida obrigou-o a abandonar a Inglaterra, o que tem de admitir que não lhe apetecia mesmo nada.

- Confesso que é verdade. Para além da situação em que se encontrava lady Ferrais, ainda me retinham lá alguns motivos de interesse.

Pela primeira vez ela endereçou-lhe um sorriso, mas pleno de ironia.

- Como o famoso diamante do Temerário, que foi surripiado sob os seus olhos e que custou desgraçadamente uma vida humana? Não me diga que ainda está a contar que ele apareça?

- E por que não? Os agentes da Scotland Yard ainda o crêem. Até têm uma pista. Nesse caso, por que não acalentar esperanças? De qualquer modo, o meu amigo Vidal-Pellicorne ficou por lá. Ele manter-me-á ao corrente.

- Então, corre tudo às mil maravilhas!... Penso que chegou a altura de nos deixarmos! Suponho que está à espera do Sr. Vauxbrun, não é?

- Efectivamente. E você?

- Estou à espera do meu primo Gaspard Grindel. É ele que dirige a sucursal francesa do banco Kledermann e é um bom amigo...

Lisa voltou-se, dando a entender que a conversa acabara. Morosini, contudo, experimentava uma curiosa dificuldade em afastar-se. Não é fácil apagar dois anos de vida comum e de colaboração fiel. Quis ganhar ainda mais alguns minutos.

- Serei indiscreto ao perguntar-lhe quais são os seus projectos?

- Não faço a menor ideia.

- Conseguirá... esquecer Veneza?

Ela soltou uma pequena gargalhada ligeira, esfuziante de alegria e terrivelmente trocista.

- Isso não é uma maneira sorrateira de me perguntar se saberei esquecê-lo?... Creio que... sim! Quanto a Veneza, é claro, isso será mais difícil. Por ora vou reflectir no assunto para Viena, na casa da minha avó. Ah! Gaspard já chegou!

A porta giratória acabara de deixar passar uma espécie de deus nórdico, louro e cinzento, arvorando um sorriso encantado, que Aldo achou antipático. Ao ver a sua prima a conversar com um desconhecido, estacou um momento enquanto franzia o sobrolho, mas Lisa chamou-o com um gesto. Procedeu às apresentações, anunciando Morosini como "um amigo que encontrei em Veneza" durante a sua última estada naquela cidade; depois, estendeu a mão ao príncipe, que se inclinou, mas que foi assim obrigado a regressar à sua própria mesa.

Aliás, nessa mesma altura, Gilles Vauxbrun, tal Napoleão de regresso, vestido à moda de Saville Row(NT), dirigia-se directamente ao seu encontro, depois de ter cumprimentado Albert Blazer de passagem. Mas, à medida que se aproximava, continuava com o olhar preso em Lisa, cujo compartimento estava separado do de Aldo por um conjunto de plantas em flor.

- Haverá ainda alguma parisiense que eu não conheça? - sussurrou com voz gulosa. - Ela é encantadora e devias-me apresentá-la.

- Primeiro, ela é suíça; depois, já a conheces.

- Eu? Ter-me-ia lembrado dela.

 

*nt. Famoso local de Londres, onde se adquiriam alguns dos melhores fatos ingleses.

 

- O que eu queria dizer era que já a conheceste - resmungou Morosini. - Quando ela se chamava Mina Van Zelden e era minha secretária...

- O quê?

- Ouviste muito bem: é a minha Mina que estás ali a ver, vestida por Madeleine Vionnet ou Jean Patou e que está neste momento entretida a deixar-se beijar por aquele armário louro! Devo dizer-te que o seu verdadeiro nome é Lisa Kledermann, a filha...

- Do banqueiro coleccionador?

- Isso mesmo! Agora, se queres que te conte a história, apressa-te em dar-me algo a beber! Bem preciso!

Enquanto Aldo contava ao seu amigo o que se passara nas últimas quarenta e oito horas, a sala ia-se enchendo de gente: havia políticos que saudavam o Presidente do Conselho, Raymond Poincaré, que acabara de se sentar à mesa na companhia de dois secretários de Estado, enquanto outros se encontravam acompanhados por uma mulher de renome, nomeadamente a cantora Marthe Chenal e a poetisa Anna de Noailles, que viera com toda uma corte de admiradores, entre os quais o escritor Henry Bordeaux e o poeta Paul Géraldy. Havia ainda outros, mais anónimos, mas arvorando no rosto aquele ar regozijado de quem se prepara para comer um bom almoço. Em breve o ruído das conversas isolou Gilles e Aldo, impedindo este último de ouvir o que diziam Mina e o primo.

Estes não se demoraram. Foram os primeiros a partir, saudados por Albert e seguidos pelos olhos de Aldo, que não conseguiu reter um pequeno aperto no coração quando os vidros da porta giratória tragaram a jovem de veludo verde que talvez nunca mais voltasse a ver. Pousando o garfo no prato ainda meio cheio, Aldo acendeu um cigarro, especado na contemplação daquela porta por onde mais ninguém passava. Por seu lado Vauxbrun parou de cortar a sua perdiz com couves.

- Continuas apaixonado pela tua polaca? - perguntou.

- Penso... que sim - respondeu Morosini distraidamente. Com um gesto, o antiquário pediu ao criado que lhes enchesse os copos.

- Afinal de contas, isso é lá contigo - concluiu, antes de abordar outro tema de conversa.

Contudo, ao cair da noite, um pouco antes das oito e meia, quando Aldo embarcou no cais número 7 a bordo do Expresso do Oriente que o levaria a Veneza, ainda não conseguira libertar do seu espírito a imagem daquela que nunca mais seria Mina. Tinha a desagradável impressão que lhe haviam roubado qualquer coisa.

 

 

                                               O SANGUE DA ROSA

                                               Outono de 1922

 

 

             CAPÍTULO 8 - UM PEDIDO DE SOCORRO

O suave aroma do café de Cecina enchia o salão das Lacas, onde Aldo acabava de almoçar na companhia da sua prima Adriana. Como sempre, a refeição fora um êxito: feliz por voltar a encontrar um amo a quem ainda chamava "meu pequeno", a cozinheira dos Morosini dava livre curso ao seu talento inspirado, e os pratos, tal como o seu café, tinham alcançado o sublime. Contudo, Morosini não conseguia sentir a euforia que o invadia quando provava habitualmente uma boa carne. Enquanto ia remexendo a untuosa bebida numa minúscula chávena de porcelana francesa, continuava a fitar a sua prima com um olhar tempestuoso que o fazia passar de azul-acinzentado a verde: pela primeira vez, Adriana recusava-se a prestar-lhe um serviço.

Na véspera, ele fora até ao Hospital de San Zanipolo, esperando trazer Guy Buteau de volta, o qual já fazia dez dias que fora operado, mas o cirurgião expressara o desejo de conservar o seu doente ainda por mais quarenta e oito horas a fim de proceder a certos exames: depois, tudo decorreria bem caso o antigo preceptor se decidisse a mostrar algum bom senso, aceitando passar três boas semanas de convalescença, antes de retomar uma actividade normal.

Isso em nada ajudava Morosini, que ia ter de fechar a sua loja para assistir a dois leilões importantes, anunciados em Milão e em Florença, apenas com alguns dias de intervalo. No entanto, tivera muito cuidado em não mostrar a sua preocupação ao seu amigo Guy, que já estava suficientemente desolado. A partida de Mina causara-lhe um choque e ele inquietara-se, sabendo por experiência o género de trabalho cuidadoso que exigia uma das lojas de antiguidades mais famosas da Europa.

- Como vai fazer, Aldo? Há as duas avaliações a que tenho de ir e temos ainda o senor Montaldo que chega de Cartagena por causa do adorno mongol que comprámos há três meses...

- Não se atormente! Vou pedir ajuda à minha prima Adriana. Já não será a primeira vez que ficará encarregue da loja e ela saberá muito bem como lidar com o senor Montaldo. Seduzi-lo-á e talvez acabe até por vender-lhe outras peças.

Este belo optimismo só durou o tempo de sentar-se à mesa com Adriana. Logo após as primeiras palavras, ela interrompeu o primo.

- Tenho muita pena, Aldo, mas vou a Roma depois de amanhã! - A Roma? Não me digas que te vais juntar à tropa dos turiferários do signor Mussolini?

Nos últimos dias do mês de Outubro de 1922, a Itália vivia uma profunda transformação, que se tornara necessária devido ao estado de anarquia no qual o país mergulhara depois da guerra, estado perante o qual o rei Vitor-Emmanuel III se encontrava ultrapassado. Antigos combatentes reduzidos à miséria e ao desemprego, uma pequena burguesia arruinada pela queda da moeda e uma agitação operária sempre galopante faziam despontar no horizonte o espectro do bolchevismo. Surgira então um homem, um professor filho de camponeses da Romanha(NT), que se tornara jornalista, um antigo combatente no qual se ancorara a ideia de que uma nação armada e mobilizada representaria o melhor exemplo para uma comunidade democrática. Deste modo, no dia 23 de Março de 1919, Benito Mussolini fundava em Milão os primeiros "fachos" de combate, constituídos por antigos soldados animados de aspirações algo antinómicas, nas quais se procuravam fundir o nacionalismo puro e duro e um vago socialismo republicano. O uniforme destes "fascistas" era a camisa e a boina pretas, a arma que preferiam era a violência e, no entanto, as multidões erguiam-se em massa diante deles, ávidas de uma ordem há muito esquecida e animadas por um desejo ardente de ver a Itália, tão enfraquecida, erguer-se de novo para reencontrar o esplendor perdido e o poder da Roma Antiga.

No congresso de Nápoles, aquele que já se fazia chamar Duce, sentiu-se com força suficiente para reclamar a dissolução da Câmara e a sua própria participação no poder. Depois organizou

 

*nt. Antiga província italiana, no litoral do Adriático, que fez parte do estado pontifical.

 

a marcha sobre Roma (27-29 de Outubro de 1922). Talvez o rei tivesse podido parar o avanço daqueles furiosos demasiado populares, mas para isso teria sido preciso recorrer ao exército e proclamar o estado de sítio, e Vitor-Emmanuel recusou-se a fazê-lo. No dia 30 de Outubro pediu a Mussolini que formasse um novo governo e o romanhês trocou a sua camisa negra pelo fraque, as calças às riscas e o chapéu alto.

Claro que foi com certa inquietação que os intelectuais, de esquerda ou menos à esquerda, os homens de livre pensamento, a Igreja e as classes mais altas da sociedade viram o poder a cair nas mãos de pessoas que - não era difícil prevê-lo - contavam instaurar uma ditadura talvez tão dura quanto a dos Sovietes. Porém havia um grande número de entre eles que, por patriotismo e nostalgia do esplendor de outrora, se dispuseram a conceder o benefício da dúvida a esse Mussolini, que julgava que saíra de alguma lenda do tempo de César. Entretanto, sem enfraquecer, continuava o jogo da legalidade democrática. As suas milícias dirigiram-se em cortejo até ao Quirinal para prestar homenagem ao rei, depositar depois uma coroa no monumento ao Soldado Desconhecido e finalmente, acompanhada pelo novo governo instituído, assistir a uma missa fúnebre presidida pelo rei e pela rainha na Igreja de Santa Maria de Todos os Anjos.

Sim, tudo aquilo era belo, nobre, pomposo e, até, grandiloquente e o príncipe Morosini não gostava da grandiloquência. Tal como não lhe agradava o fácies brutal, vulgar e arrogante do novo mestre. Já se falava em motins jugulados no sangue, de estudantes presos, maltratados, de descidas de uma polícia paralela que, muito segura de um poder que desejava total, elaborava listas e fichas para melhor vigiar aqueles que se mostrassem dispostos a respirar a outro ritmo. Além disso, no fundo da sua memória, Aldo ouvia a voz grave de Simon Aronov nos subterrâneos de Varsóvia: "Ficai sabendo que dentro em breve erguer-se-á pela Europa uma ordem negra, a negação furiosa dos mais nobres valores humanos. Ela será, já o é, o inimigo jurado do meu povo, que tem tudo a recear dela... a menos que Israel possa renascer a tempo de evitá-lo...". Como não crer numa semelhança, numa estranha premonição do guardião do peitoral? Deste modo, sem mesmo o conhecer, ele sabia que detestava esse Mussolini porque desconfiava dele instintivamente.

O sarcasmo implícito da sua última frase teve o condão de fazer arregalar de surpresa os olhos da condessa Orseolo.

- Aldo, não me digas que, nesta altura em que ele une o país, tu já lhe és hostil? Não duvido que não exista nenhuma afinidade entre vocês os dois, mas o que é preciso ver é o fim que se pretende alcançar. Este homem só quer a grandeza da Itália. Tal como tu, é um patriota e também combateu valorosamente.

- O que eu combati foi o fastio no meu ninho de águia austríaco, onde estava prisioneiro! Nota que eu admito de bom-grado que a Itália estava prestes a dissolver-se, a desabar sob os golpes corruptos e os apetites comunistas e que já era tempo para que um homem se erguesse a fim de tentar pôr um pouco de ordem nesta barafunda toda. Mas não me parece que este seja o homem indicado. Os seus métodos não me inspiram confiança.

- Lá chegarás, acredita-me! Tenho alguns amigos que o conhecem e que clamam que ele é um génio. Contudo, se vou a Roma não é para vê-lo ou para tentar aproximar-me dele, mas por causa de Spiridion.

- O teu criado de quarto?

- Antes diria o meu mordomo. Não sei se já te disse, mas ele possui uma voz admirável, mas que precisa de ser trabalhada, ampliada, levada à perfeição. Tem um grande futuro à sua frente e tenho a obrigação de ajudá-lo. Consegui obter-lhe uma audição perante o maestro Scarpini e, claro está, vou levá-lo comigo. Se Scarpini se interessar por ele, Spiridion poderá vir a cantar as mais belas peças líricas e eu terei a felicidade de ter descoberto uma nova estrela.

O entusiasmo um pouco delirante que ela manifestava desagradou a Morosini, que não pôde resistir ao prazer maligno de deitar água naquele fogo demasiado ardente para o seu gosto:

- E as lições, quem irá pagá-las? O teu Scarpini não deve dá-las de graça...

- Claro que não, sou eu quem vai pagá-las. - Tens meios para isso?

- Não te preocupes. Já não tenho problemas de dinheiro graças a ti e... a certos investimentos judiciosos. Posso preparar à vontade o futuro de Spiridion. Aliás, ele devolver-me-á tudo até ao tostão!

- Conquanto as coisas funcionem!... As grandes vozes são coisa rara, mesmo no nosso país. Arriscas-te a cavar um sério buraco no teu orçamento e é por isso que talvez fizesses bem em reconsiderar a minha proposta para seres minha assistente. A tua viagem a Roma não me parece um obstáculo intransponível: leva o grego contigo e apresenta-lo. Se se interessarem por ele, deixa-o lá ficar e, se ele fracassar, trá-lo de volta enquanto esperas por outra oportunidade e é tudo! Sabes bem que te pagarei, não sabes?

Adriana compôs o pequeno véu que descia do seu minúsculo chapéu, alisou as luvas, cruzou e descruzou as suas pernas sempre muito belas e, finalmente, sorriu com ar pouco à-vontade.

- Conheço-te sobejamente para não duvidar e gostava de te poder ajudar mas, no momento, isso não é possível. Não posso deixar Spiridion sozinho em Roma: ele não conhece ninguém de lá. Perder-se-ia...

- Ele não é nenhum miúdo e não tem o ar de quem se perde com facilidade! - resmungou Morosini ao lembrar-se do perfil de medalha, do ar arrogante e da silhueta musculosa do corfuense. - Não achas que exageras demasiado?

- Não, não acho. Para além de não o conheceres, sempre alimentaste contra ele um preconceito desfavorável. Na realidade, sempre que o abandono ele só faz disparates, tal como uma criancinha. E como confio no parecer de Scarpini, conto lá ficar um mês ou dois.

Uma cólera brusca apossou-se de Morosini.

- Não me vais dizer que vais viver com ele, pois não? Ou então perdeste o tino - desferiu brutalmente. - És minha prima. Somos do mesmo sangue do lado masculino e tu vais ligar-te a um criado? Não penses que te vou deixar fazer isso!

Se contava magoá-la, enganava-se. Ela limitou-se a desatar às gargalhadas, mas com um riso que, a bem dizer, era um pouco forçado.

- Não sejas estúpido, Aldo! Não vou morar com ele, conquanto não veja o que isso teria de chocante, pois há vários anos que ele vive sob o telhado da minha casa e nunca ninguém encontrou algo a dizer a esse respeito. Que seria de nós se tivéssemos de alojar os criados a dois ou três quilómetros das nossas residências? No entanto, admito que se deva guardar uma certa distância a partir do momento em que ele deixar de pertencer à minha casa... Se Scarpini não puder alojá-lo, encontrar-lhe-ei uma pensão e, quanto a mim, conto com a hospitalidade dos meus primos Torlonia. São doidos por música, sobretudo pelo bel canto, e...

Ela continuava a falar, um pouco naquele tom empregue por alguém que recita uma lição, desfiando as palavras, as frases, as razões que Aldo mal ouvia, apenas sensível à espécie de júbilo que aquele fluxo verbal traía: era visível que a sábia condessa Orseolo exultava à ideia dos dias felizes que iria passar em Roma ao pé daquele rapaz, demasiado belo e jovem, mas ao qual - Morosini tê-lo-ia jurado! - a ligava um sentimento que não era o amor pela música.

Um pouco agastado, ele interrompeu a conversa, desculpando-se com um encontro marcado no notário. Levantou-se e acompanhou a sua prima até à gôndola que a esperava e beijou-a, desejando-lhe boa viagem.

- Manda notícias tuas de vez em quando! - gritou-lhe.

E voltou para dentro, muito mais descontente do que queria admitir. Meu Deus, em que mulher se podia fiar, se Adriana, modelo das viúvas venezianas pela sua exemplar beleza um pouco severa de madona contemplativa, se punha agora, quase com cinquenta anos, a percorrer os lupanares como qualquer criatura?

Como gostava muito da sua prima, criticou-se por ter feito este julgamento ousado e, ao encontrar no vestíbulo a personagem olímpica mas, sobretudo, o olhar interrogativo do seu fiel Zaccaria, encolheu os ombros, esboçou um trejeito à laia de sorriso e suspirou:

- Ora bem, vou ter de encontrar outra alternativa para dar uma ajuda ao Sr. Buteau quando ele puder voltar ao trabalho! A nossa condessa parte para Roma, onde ficará mais de um mês.

Não teve tempo para acrescentar mais nada e o mordomo tão-pouco: uma voz furiosa ecoava estrondosamente pela ampla sala.

- Nunca pensei que viveria o suficiente para assistir a um escândalo destes com os meus próprios olhos! Donna Adriana endoideceu! Madona Santíssima! Quem poderia acreditar que uma tão grande dama se fosse comportar desta maneira!

Com os ouropéis que vestia de bom-grado, mal seguros pelo avental branco engomado que lhe cobria o vasto corpo, com as tiras da touca a esvoaçarem ao sabor do vento da sua ira, Cecina acabara de surgir do cortile que dava directamente para a cozinha, qual fragata entrando no porto de bandeira bem desfraldada. O seu esposo, Zaccaria, bem tentou apanhá-la à sua passagem, mas ela afastou-o com uma mão vigorosa, postando-se diante de Aldo e clamando:

- E tu, príncipe Morosini, tu, que és seu primo, vais deixar fazer isto?

Era inútil perguntar-lhe o que entendia por "isto". Cecina, reconhecida como a melhor cozinheira de Veneza, era um potentado dotado de um serviço de informações que lhe permitia saber tudo o que se passava na cidade, sem ter de deixar o palácio Morosini.

- Devias acalmar-te, minha Cecina - disse Aldo, esforçando-se por aparentar certa desenvoltura. - e, sobretudo, devias deixar de prestar ouvidos às tuas mexeriqueiras favoritas. Elas interpretam tudo arrevesadamente e penso que é este o caso: donna Adriana vai apenas passar alguns dias a Roma, a fim de confiar o seu criado às mãos de um célebre mestre de canto...

- O seu criado? - zombou a gorda napolitana. - Queres dizer: o seu amante!

- Cecina! - descompôs Morosini severamente. - Sabia que eras tagarela, mas não te julgava má-língua. Onde foste pescar isso?

- Não precisei de ir pescar a lado nenhum, pois toda a cidade está ao corrente. Se te estou a dizer que ela dorme com o seu Spiridion é porque a sua pobre velha Ginevra veio chorar no meu avental esta manhã. Sabendo que donna Adriana vinha cá almoçar, ela esperava que ao menos tu conseguirias impedi-la de cometer esta... esta... indecência! E tu, tudo o que achaste para lhe dizer foi "boa viagem!", sem procurares um só momento retê-la!

- Não disponho de meio algum para a reter! Ela é viúva, livre, maior de idade...

- Isso sim... e já há algum tempo! Garanto-te que a tua pobre mãe, a nossa santa princesa Isabel, teria sabido o que seria preciso dizer e isso seria o seguinte: uma mulher de cinquenta anos e um janota de trinta não se conjugam... mesmo que se entendam muito bem na cama!

- Mas que raio - enfureceu-se Morosini - tu não vais também acreditar numa coisa dessas, pois não? Contemporiza um pouco as coisas: Ginevra está velha e tem ciúmes da influência adquirida por este rapaz, aliás antipático, mas daí a clamar que ele é amante de donna Adriana há uma grande distância. Não me digas que esteve de candeia à espreita?

- Não, mas viu tudo! - clamou Cecina num tom dramático, apoiado por um gesto acusador do braço. - Estou a dizer-te que viu aquela a quem chamava a sua pequena Madona nos braços do amalecita, como ela diz. Foi numa noite em que o seu reumático não a deixava dormir, à pobre criatura! Desceu à cozinha para aquecer um pouco de leite. Já era tarde e Ginevra pensava que estavam todos a dormir. Só que, ao passar diante da porta de donna Adriana, que estava seguramente mal fechada, ela viu uma pequena luz e, sobretudo, ouviu ruídos... esquisitos. Suspiros, gemidos... Um pouco inquieta, pois a condessa podia muito bem estar doente, ela empurrou a porta...

- ... E deu uma olhadela? - concluiu Aldo, de modo trocista. - E que foi por pura curiosidade, pois não acredito nem um momento na sua dita inquietação. Se os ruídos que ela ouviu eram o que imagino, não estão de modo algum relacionados com a dor. E tu sabes isso muito bem!

- Claro que sei! Seja como for, não precisou de espreitar duas vezes para compreender o que faziam. O choque foi tal que desatou a correr!

- Não obstante o reumático? Uma espécie de cura milagrosa! -ironizou Morosini, contendo mal a sua cólera, pois não duvidava um só instante do relatório da velha Ginevra, uma daquelas fiéis serventes à moda antiga, dedicadas de corpo e alma àqueles que servem e que conhecia Adriana desde o berço.

- Não é bonito troçar assim disto! - protestou Cecina. - A pobre nem ousou subir de novo para o seu quarto. Ficou na cozinha até à hora da primeira missa em Santa Maria Formosa, onde foi verter todas as lágrimas do seu corpo. E hoje, abandonam-na naquela casa enorme onde, de certeza, irá morrer de medo ao pensar que a sua cara senhora está a danar-se em Roma!

- Não há mais ninguém para ficar de guarda? Essa pobre Ginevra já não deve poder fazer grande coisa naquela casa.

- Para as limpezas havia uma mulher que costumava ir todas as manhãs, mas donna Adriana dispensou-a. Está tudo protegido do pó e as salas de recepção foram fechadas. Ginevra contentar-se-á com a cozinha e o quarto...

Aldo já não a ouvia. Dando meia volta, dirigiu-se para o escritório, levantou o auscultador do telefone e pediu o número da casa de sua prima, esperando que não fosse o amalecita a atendê-lo. Por sorte, foi Adriana quem respondeu, um pouco ofegante por ter certamente subido quatro a quatro os degraus da sua magnífica escadaria gótica.

- Adriana, quando é que te vais embora?

- Julgava que já te tinha dito: depois de amanhã.

- E deixas o teu palácio à guarda dessa infeliz Ginevra que mal se aguenta nas pernas? Ela está muito velha para uma tarefa tão rude: ainda tens aí muitos objectos bonitos...

Seguiu-se um silêncio depressa animado pela respiração um pouco opressa da condessa.

- Não tenho meios para empregar mais pessoal. Por isso contentar-nos-emos em trancar tudo o melhor possível, confiando na graça de Deus.

- Isso é um tanto fácil e farias melhor em confessar a verdade: o teu Spiridion custa-te uma fortuna, e eu não gosto nada disso...

- É porque não o conheces. Tem bom coração e garanto-te que me devolverá tudo...

- Até ao tostão, já o disseste, e se ele nada te devolver encontrar-te-ás arruinada. Portanto, ao menos, cuida de proteger o que te resta. Mesmo em Veneza existem larápios.

No outro extremo do fio, Adriana começava a enervar-se.

- Mas afinal o que queres que faça? Vou-me embora daqui a algumas horas e já não tenho tempo para tomar outras medidas. Vou dizer à Ginevra que tente chamar um dos seus sobrinhos de Mestre, mas se não lhe pagarmos...

- Não tens nada que pagar! Previne Ginevra que logo que te fores embora, eu vou enviar Zian, para que ele passe a dormir em tua casa. Entretanto, Zaccaria vai procurar encontrar uma companhia para a tua pobre velha. Quanto ao dinheiro, não te atormentes. Reembolsar-me-ás quando Spiridion, o Magnífico, te tiver coberto com rios de ouro. E não me agradeças, senão vais ouvir coisas desagradáveis.

Cecina seguira-o e escutava tudo à entrada da porta. Ele olhou-a sombriamente.

- Já estás satisfeita?

- Sim, assim já está melhor e vou tentar deixar de me atormentar por causa da Ginevra, mas será que disseste a verdade?

- Que verdade?

- Tencionas realmente ir buscá-la caso ela se arraste por lá muito tempo?

- Evidentemente! Não quero ver a honra da família a servir para limpar o pó das pranchas sobre as quais o grego deverá em princípio obter o seu triunfo, nem desejo, sobretudo, que esta doida se arruine por causa dele!

- Isso já sucedeu em boa parte! Amanhã, aquando da instalação de Zian, dá pois uma volta pela Cá Orseolo. Segundo Ginevra, terás algumas surpresas...

- Não tenho o hábito de ir vasculhar em casa das pessoas logo que estas estão de costas voltadas... Não, não! Nada de protestos! Por ora vou encontrar-me com mestre Massaria para ver se ele me pode encontrar uma secretária decente.

- E por que não "um" secretário? Em geral os rapazes trabalham melhor que as raparigas e não costumam fazer olhinhos ao patrão.

- Mina nunca me fez olhinhos.

- Não te fez muito mal, pois ela era uma pessoa de bem. Devias tê-la desposado!

Morosini limitou-se a responder-lhe com um encolher de ombros, preferindo guardar para si o que pensava. Desposar Mina, com os seus fatos em forma de cone de batatas fritas, com aquele seu aspecto que se parecia com um cruzamento entre uma quakere uma professora, com aqueles cabelos tão puxados que pareciam pintados sobre o crânio e com aqueles óculos enormes? Ridículo! É verdade que se ela fosse diferente ele não a teria contratado e isso teria sido uma pena! Que excelente colaboradora ela se revelara! Ainda não tinha acabado de lastimar a sua partida...

Quase a seguir, a imagem enfarpelada da falsa holandesa apagou-se, impetuosamente escorraçada por outra: a de uma deslumbrante jovem de veludo verde, cujos olhos se assemelhavam a largas violetas brotando de um jovem e terno musgo. Essa sim, talvez tivesse pensado em tomá-la como esposa. Só que ela não o desejava. O julgamento severo que ela pronunciara em Londres não deixava pairar qualquer dúvida a esse respeito: para ela, ele era apenas um incorrigível perseguidor de saias e nada a faria mudar de opinião. Isto, admitindo que ele tivesse vontade...

- O que não é o caso! - disse em voz alta, enquanto enfiava uma gabardina e punha um boné. - Já está na altura de arrumar este assunto e passar a outra coisa!

Com estas palavras decididas, saiu ao encontro do vento e da chuva que assolavam Veneza desde há alguns dias, inundando os telhados cor de rosa e os campanários com uma obstinação digna de um Outono londrino. Desdenhando o motoscaffo e a gôndola, aliás resguardados, encaminhou-se pelas ruas de Rialto, perto do qual se situava o escritório do seu notário, mestre Massaria. O mesmo que, no dia em que regressara da guerra e a fim de salvá-lo da ruína, viera propor-lhe um casamento com uma desconhecida, uma jovem de Zurique, filha de um banqueiro coleccionador, que metera na cabeça a ideia de se integrar em Veneza como uma pedra num muro, pela simples razão de gostar da cidade.

Coberto pelo seu orgulho, acampado na sua honra que rechinava perante um casamento por dinheiro, Morosini recusara categoricamente. Decisão que continuava a não lastimar, pois essa tomada de posição incitara Lisa a tornar-se Mina, para vir ver de perto com o que é que se parecia tão curiosa personagem. Tal como a conhecia agora, ela tê-lo-ia decerto desprezado caso ele tivesse aceite a proposta. Nesse caso que casal teriam sido?

Foi isto que explicou alguns momentos mais tarde ao seu velho amigo que o escutava serenamente, com os cotovelos apoiados numa velha poltrona de cabedal preto e com os dedos das mãos enclavinhados, de ar grave, mas revelando no fundo dos olhos um brilho divertido e deixando estremecer a barbicha, o que podia muito bem esconder uma vontade de rir.

- Portanto vim perguntar-lhe duas coisas - concluiu Aldo com um suspiro. - Em primeiro lugar, se estava ao corrente da mascarada que Mlle Kledermann fabricou.

A gravidade desfez-se em pedaços, enquanto o notário se sobressaltava:

- Eu? Ao corrente? Nunca! Creio que conheço bem Moritz Kledermann e, estando ao corrente tanto das suas qualidades como das dificuldades que o senhor tinha então, formulámos esse projecto sem entrar em grandes pormenores. Ele aceitou a sua recusa como devia ser. Com estima e compreensão, e ficámos por aí.

- E ela, nunca a tinha visto?

- Nunca tive oportunidade, senão pensa bem que a teria reconhecido, mesmo sob o seu disfarce. Qual é a outra pergunta?

- Não é uma pergunta, é um serviço que vim pedir-lhe: preciso de alguém para substituir... Mina, e pensei que o senhor seria a pessoa mais indicada para isso. Claro que necessito de alguém de confiança...

- A sua profissão não facilita as coisas. Também é verdade que logo que o Sr. Buteau se restabelecer, poderá encarregar-se de formar essa nova colaboradora...

- Não tenho nada contra o facto de ser um rapaz. E até me pergunto, se afinal de contas, não será preferível.

- Por que não?... Tenho um jovem amanuense apaixonado por História e pela Arte, muito mais que pelo direito, e pergunto-me se não seria o ideal para si. Só que se ausentou por ora, dado que teve de ir até à Sicília para tratar de um assunto de família.

- Um siciliano? Mas que horror! Está a ver-me acompanhado por um mafioso? - perguntou Morosini rindo-se.

- Nada tem a recear! Trata-se da herança de uma tia que vivia em Palermo, mas o rapaz é um veneziano de boa cepa. Talvez seja difícil convencer o pai, um dos meus confrades, que deseja que o filho lhe suceda. Mas, afinal de contas, talvez seja só por um curto período de tempo e a sua reputação profissional servir-lhe-á de garantia. Quer que experimentemos? Julgo que estará de volta daqui a uns dez dias.

Aldo conteve uma careta. Dez dias era uma eternidade, quando tinha precisamente de ir a Milão dali a dois, mas visto que não havia outra alternativa fecharia a loja até que tivesse regressado e ponto final.

- Logo veremos quando ele tiver regressado. Desculpe-me por lhe ter tomado uma parte do seu tempo precioso - acrescentou, constatando que o telefone tocara pelo menos três vezes no escritório, sem que mestre Massaria respondesse.

- Ora essa! Bem sabe quanto aprecio falar consigo. Isso recorda-me o tempo em que a princesa Isabel recorria à minha pessoa. Tempos verdadeiramente felizes... - acrescentou com um suspiro que traduzia toda a nostalgia que sentia, toda a melancolia de um amor que nunca ousara declarar-se...

- Que também o foram para ela - asseverou Aldo com gentileza. - Sei que ela apreciava muito os momentos passados em sua companhia...

Foram palavras mágicas. O rosto amigável, em que um monóculo cavalgava o nariz arredondado, iluminou-se como se uma luz acabasse subitamente de se acender no interior. O velho e fiel apaixonado de Isabel Morosini ia viver durante semanas, talvez meses, à custa daquela felicidade que ele acabara de lhe dar. Satisfeito consigo mesmo, Aldo despediu-se, mas mestre Massaria reteve-o na altura em que ele ia abandonar o escritório, segurando-lhe o braço com uma mão.

- Desculpe a minha curiosidade, mas gostava de saber! Conhecia assaz bem a sua secretária e pergunto a mim mesmo qual é realmente o seu aspecto actual. Existe alguma... grande diferença?

Sob as espessas sobrancelhas, o olhar do notário luzia de curiosidade amigável, à qual Aldo respondeu com um sorriso impertinente:

- Uma grande diferença! O suficiente para que ainda o lastime, se é isso que quer saber, mas já é muito tarde para qualquer dos casos. Até breve!...

Apesar do que dissera a Cecina, no dia seguinte Aldo acompanhou Zian quando este foi ocupar o seu posto em casa da condessa Orseolo. Não obstante o facto de ir desempenhar uma missão transitória e ter de passar ali as noites, o gondoleiro dos Morosini não queria instalar-se sem que primeiro o seu amo e a velha Ginevra tivessem efectuado uma espécie de inventário do estado do local.

Não era inútil. O salão de música em que Adriana se encontrava habitualmente, tão agradável com as suas sedas com folhas secas e os tecidos em veludo turquesa que pendiam das mesas, não mudara desde a última visita de Aldo. Em compensação, mal entraram no pequeno salão ao lado, Ginevra, com um braço vingativo ao melhor estilo de Cecina, apontou para um grande espelho oval no interior de um quadro dourado com um tom ligeiramente desbotado, que era sem dúvida belo, mas que datava do século XIX; tratava-se de uma peça realmente banal, e que ocupava o lugar onde estivera outrora um soberbo espelho veneziano do século xvi. Também faltava uma lanterna antiga de uma galera, à luz da qual o pai de Adriana se instalava para escrever quando ficava naquela sala que servia a um tempo de escritório e de biblioteca...

Ao ver isto, Aldo sentiu que a mostarda lhe vinha ao nariz.

- Há muito que estes objectos desapareceram?

- Há dois meses - respondeu a velha criada. - Era preciso arranjar dinheiro para a viagem a Roma e para as lições do miserável! Excelenza, ele está a arruiná-la e quando tiver acabado com ela deitá-la-á fora como a um par de peúgas usadas... - acrescentou a velha senhora, espirrando para o soalho como uma gata furiosa.

- Se eu puder impedi-lo, pode ter a certeza que ele não o conseguirá. Foi o seu antiquário milanês que veio buscar isto tudo? Esse tal... Sylvio Brusconi?

- Foi, e essa desgraça ocorreu de noite!

Morosini começou a sentir-se inquieto. Para ter agido daquela maneira era preciso que Adriana estivesse com um sentimento de culpa. Até essa altura, e como ele sabia que ela praticava um pouco a compra e venda mundanas, ele ajudara-a, emprestando-lhe dinheiro quando era preciso; mas, tratando-se de peças daquele valor, ela não teria deixado de recorrer a ele. O facto de ter ido procurar Brusconi, graças ao qual arranjara dinheiro para sobreviver durante a guerra, era só por si mais que significativo: o seu Spiridion subjugara-a e bem... Ela devia estar louca por ele. Com a sua idade, era mais que perigoso!

Como Ginevra desatasse a chorar deixando-se cair à beira de um assento, pôs-lhe uma mão firme e apaziguadora em cima do ombro.

- Lastimo não ter sabido isto mais cedo mas console-se: irei a Milão esta noite. Amanhã verei Brusconi. Talvez consiga reaver o espelho e a lanterna.

- Oh, não se dê a esse trabalho, don Aldo! Se lhos devolver, ela revendê-los-á oito dias depois.

- É por isso mesmo que não o farei. Pelo menos enquanto ela não tiver ganho juízo. Confie em mim, Ginevra! E procure dar-se bem com Zian, ele é um rapaz gentil...

Três dias depois Morosini regressava de Milão assaz satisfeito: não só conseguira arrebatar alguns dos lanços importantes num leilão, como conseguira também recuperar os despojos de Adriana junto ao seu confrade Brusconi, um homem de quem não gostava, conquanto tivesse de reconhecer que tinha uma certa honestidade: era um espertalhão, sabendo manipular maravilhosamente as pessoas aflitas de dinheiro, mas não as aldrabava. Com um homem com a força de Morosini, estava fora de questão brincar ao mais esperto: este conhecia o valor das coisas. Além disso, o veneziano dispunha de trunfos importantes: o bom aspecto, o charme pessoal e o título de príncipe. Brusconi soube contentar-se com um benefício ínfimo, esperando por um eventual retorno num futuro incerto.

Aldo estava pois muito contente, mas ainda o ficou mais com a surpresa que o aguardava. A sua tia-avó, a marquesa de Sommières, chegara na véspera, acompanhada pela sua inseparável Marie-Angéline du Plan-Crépin e logo ao chegar ao Grande Canal já se podia ouvir Cecina a cantar alto e em bom som a grande ária da Norma. Foi encontrar a velha dama e o seu satélite no salão das Lacas, onde Zaccaria lhes servia devotadamente o champanhe, conquanto ainda fossem cinco da tarde mas, à parte o seu café com leite matinal, a bebida dos reis era a única que a marquesa suportava, e estava fora de questão servir-lhe outra coisa às refeições ou à hora do chá, "essa insuportável tisana que os ingleses vos despejam por baldes inteiros a qualquer hora do dia".

- Então, sempre acabaste por chegar? - exclamou a marquesa, apertando-o junto ao peito, que brilhava com longos cordões de ouro, pérolas e pedras finas. -Já começávamos a desesperar poder encontrar-te um dia!

- Não troque os papéis, tia Amélie! Quando passei por sua casa, ao voltar de Inglaterra, Cyprien disse-me que "estavam viajando pela Itália", sem explicar onde...

- Ele não teria sido capaz, pois percorremos muito caminho! Lembra-te que devias ir a Inglaterra pelo mês de Setembro. Portanto, eu e a Plan-Crépin fomos aborrecer-nos mesmo a sério na residência de lady Winchester mas, como não estavas em nenhum lado, nem no Ritz nem noutro sítio, fomo-nos embora para Veneza... onde ficámos a saber que tinhas ido para Inglaterra. Como Mina e o Sr. Buteau eram do parecer que tu não te devias ausentar mais que quinze dias ou três semanas, passámos um dia no Danieli antes de dar a nossa pequena volta pela península. Quedámo-nos em Florença, Siena, Perúsia e, por fim, em Roma, onde ficámos horrorizadas ao ver que fora invadida por uma horda de formigas pretas que achámos profundamente antipáticas. Até pretenderam controlar as nossas identidades, pretextando que éramos estrangeiras! Pode lá entender-se uma coisa destas! Os clientes do hotel Quirinal estavam escandalizados... bem como outras pessoas, que chegaram a perguntar-se em que pensava o rei quando confiara nesse Mussolini!

- Creio que não tinha alternativa! - suspirou Aldo. - A Itália estava a viver sob grande desordem desde a guerra e a ameaça bolchevique, mas pergunto-me se esta ordem lhe convirá ainda muito tempo.

- Convirá àqueles que ela enriquecer! E, acredita-me, eles serão muitos! Mas, voltando a nós as duas, apressámo-nos portanto a apanhar o primeiro comboio para Veneza... de onde te ausentaras uma vez mais.

- Felizmente que desta vez teve a feliz ideia de me esperar. Não imagina a que ponto a sua presença me dá prazer! Espero que fique por cá algum tempo, mesmo que Novembro não seja dos meses mais agradáveis, com as grandes marés que tantas vezes nos trazem as inundações...

Marie-Angéline, que ainda não se fizera ouvir, soltou um suspiro de contentamento:

- Confesso que me agradaria muito! Deve ser uma experiência muito divertida ter de atravessar a piazza São Marco passando por cima de pequenas pontes feitas de tábuas.

- Plan-Crépin, sempre achei que a menina alimentava secretamente um gosto perverso pela aventura! - suspirou a marquesa. -Agora me lembro, Aldo, hoje de manhã trouxeram o teu amigo Buteau do hospital. Não está com bom aspecto, mas penso que dentro de alguns dias sentir-se-á melhor: Cecina dispensa-lhe todos os cuidados que pode.

- Vou subir para mudar de roupa mas, antes, vou passar pelo quarto dele.

No entanto, estava escrito que Morosini não haveria de regressar tão cedo aos seus aposentos. Estava a atravessar o vestíbulo na direcção da escada quando Zian, que mal tivera tempo para amarrar a sua gôndola, surgiu a toda a pressa. Parecia totalmente transtornado e as notícias de que era portador justificavam a sua emoção.

- Assaltaram o palácio Orseolo! - desferiu, sem qualquer preâmbulo. - Quando cheguei para tomar o serviço de noite, fui encontrar Ginevra a chorar, rodeada por três ou quatro comadres que se lamentavam. Também estavam presentes dois carabineiros que tentavam deslindar alguma coisa no meio daquele concerto de clamores, mas eu percebi logo do que se tratava: por um lado, partiram os vidros onde se encontram os objectos de prata e, por outro, o que guardava as pequenas jóias preciosas. Rogo-lhe, Excellenza, venha imediatamente comigo! Esses sujeitos da polícia ainda são capazes de prender-me.

- Vamos lá! No teu entender, quando é que ocorreu o roubo?

- De dia, de certeza, durante uma daquelas intermináveis paragens que a velha Ginevra faz pela igreja. Ela vai lá pelo menos três vezes ao dia.

- E ninguém viu nada?

- Bem sabe que diante do palácio existe um muro que tapa o jardim. De qualquer modo, uma coisa é certa: à parte as fechaduras dos móveis, nenhuma outra foi arrombada. Até leva a crer que os ladrões possuíam as chaves...

Zian não exagerava. Na casa de Adriana reinava uma atmosfera de fim do mundo, no meio da qual se agitava o comissário Salviati, procurando acalmar os espíritos. Este acolheu a chegada de Morosini com um alívio visível, tanto mais que o seu aparecimento desviou a atenção das carpideiras: Ginevra, transformada numa autêntica fonte arrastou-se, de joelhos no chão, para lhe segurar na mão, suplicando-lhe que pusesse termo aos danos provocados pelo amalecita. As suas companheiras entoaram o mesmo coro de súplicas.

- Feliz em vê-lo, príncipe! - desabafou Salviati. - Talvez consiga perceber alguma coisa do que dizem estas loucas e explicar-me quem é esse tal amalecita.

- É para isso que aqui estou, mas se quiser um bom conselho, envie Ginevra e as suas amigas para a cozinha a fim de que preparem um bom café, tanto para elas como para nós.

Dito e feito. Desembaraçados da horda, os dois homens percorreram as diferentes salas do palácio, frente ao qual estavam agora postados dois carabineiros. Em poucas palavras Aldo resumiu a situação, identificou o misterioso amalecita, falou da ausência da prima e das razões altruístas que a justificavam. A paixão da condessa Orseolo pela música era conhecida por Veneza inteira e permitia lançar um véu pudico sobre a realidade das suas relações com o seu criado demasiado sedutor.

Aldo também explicou como encarregara Zian de zelar pela tranquilidade nocturna da velha senhora e da casa, sem imaginar um só momento que o assalto poderia ocorrer em pleno dia.

- Quem iria pensar numa coisa dessas? Ginevra saía várias vezes ao dia, sobretudo para ir à igreja...

- Sempre às mesmas horas?

- Sim, mais ou menos. O seu emprego do tempo estava sujeito ao ritmo dos diversos ofícios: missa matinal, vésperas, completas, eu sei lá! Nunca fui especialista na matéria - acrescentou, com um sorriso de desculpas.

- Eu também não - disse o comissário - mas deve ter sido fácil registar uns hábitos tão regulares. Suponho que ela levava as chaves consigo...?

- Levava. Zian esperava que ela regressasse da missa e, em seguida, ia à sua vida. Como não o emprego a tempo inteiro, ele põe os seus talentos ao serviço dos clientes do Danieli, pois possui a sua própria gôndola.

- Ele mora em sua casa?

- Mora, e já há alguns anos. Não é casado e ponho as minhas mãos no fogo por ele. Caso contrário, não o teria recomendado a donna Adriana.

- Bem sei, bem sei. O mais espantoso é que tenham podido entrar sem qualquer dificuldade. Não parece que tenham escalado algum muro, o que, durante o dia, teria certamente dado muito nas vistas e também não houve arrombamento de fechaduras! É de crer que essa gente possuía as chaves...

- E ninguém deu por nada?

- Sim, por volta das quatro, uma vizinha que estendia roupa à janela reparou numa pequena barca de carvoeiro à vela, parada diante do palácio. Ia voltar para dentro, quando avistou dois homens que regressavam, carregando aos ombros algumas pilhas de sacos para madeira e carvão, que deviam ter esvaziado antes.

- Ou enchido. Imagino que, à ida, um deles levava um saco com madeira e, o outro, os sacos vazios: temos de dar uma vista de olhos à cozinha. Depois, deitaram mãos à obra e é relativamente infantil fazer crer que se transportam sacos de juta vazios, se eles estiverem amontoados descuidadamente e não muito bem dobrados. Esses dois homens são os culpados.

- Claro que vamos investigar essa pista mas, contudo, espantar-me-ia que descobríssemos alguma coisa. Conheço as pessoas que se dedicam a esse comércio, e são todas elas pessoas honestas...

- Mas o melhor patrão do mundo pode sempre contratar um elemento duvidoso. Tanto mais que essas pessoas podem ser oriundas de Mestre... Por outro lado, se permite que lhe dê um conselho, signor comissário, o senhor deve procurar saber algo mais acerca daquele que Ginevra chama o amalecita, esse tal Spiridion Melas, um corfuense evadido das prisões turcas e recolhido "morto de fome na praia do Lido". Cito o que me disseram, pois é mais ou menos tudo o que sei.

- Pensa que a condessa Orseolo, levada pela sua caridade proverbial e pelo seu amor pela música, tenha podido introduzir em sua própria casa um lobo de uma espécie bem particular?

- Exactamente! - disse Aldo, com ar encantado. - É um verdadeiro prazer ser tão bem compreendido.

O pequeno Salviati emproou-se, contente por ter sido devidamente apreciado na medida dos seus méritos por um homem da importância de Morosini.

- Muito obrigado. Pelo seu lado, príncipe, pode ficar ciente que a minha investigação irá até ao fundo das coisas. Não se importa de subir ao primeiro andar?

- Com prazer. Claro que duvido que a minha prima tenha cometido a loucura de ter ido embora deixando por cá as jóias, a não ser que as tenha confiado a um cofre bancário, mas lá em cima existem muitos objectos lindos e preciosos.

O quarto de Adriana, tão feminino e quase virginal graças aos seus cortinados azuis e brancos, recebera a visita dos ladrões. O toucador fora esvaziado: já lá não estavam as escovas ou as palmatórias de velas acobreadas, nem os paninhos de mesa em renda antiga, nem qualquer daqueles mil e um pequenos objectos frágeis e muito caros que enfeitam tão lindamente o quarto de uma grande dama, ainda para mais, mulher formosa. As pequenas gavetas embutidas jaziam sobre o tapete e as duas cabeças de anjo pintadas por Ticiano, que até àquele dia tinham velado cada lado da cama, brilhavam agora pela sua ausência. De entre todos, esses dois quadros de formato reduzido eram os mais fáceis de transportar.

Houve contudo algo que intrigou Morosini: o mais lindo móvel da sala era uma pequena secretária florentina do século xvi, de ébano, marfim, madrepérola e lasca de mármore, realçada a ouro. Aldo conhecia bem a peça, pois ela viera do palácio Morosini e Adriana, que a recebera como prenda de casamento do príncipe Enrico, pai de Aldo, levara-a consigo. Não se podia fechá-la à chave, dado que a sua abertura consistia num segredo que o príncipe-antiquário não ignorava. Ora, este magnífico objecto estava intacto: não havia vestígio de qualquer tentativa de arrombamento e ainda menos que o tivessem forçado. Era como se se tivesse cumprido uma ordem para que, sobretudo, não lhe mexessem, para que não lhe fizessem nada que fosse susceptível de lhe diminuir o valor! Tanto mais que, com o que tinham roubado, os malandrins dispunham de mercadoria suficiente para obter uma bela soma, mesmo ao preço dos receptadores.

Aproveitando o facto de Salvati estar entretido no outro extremo do quarto a proceder a um rigoroso exame do toucador - colocado entre duas janelas - e, em seguida, de uma cómoda, calçou as luvas e fez pressão sobre uma camada de marfim: as duas portas da secretária abriram-se, pondo a descoberto uma quantidade de pequenas gavetas e um nicho dourado que servia de quadro a uma estatueta de Minerva em marfim, revestida de ouro, da qual Adriana pretendia fazer o seu emblema, o que arrancou um esgar irónico ao seu primo. A louca condessa, debatendo-se com as tentações sexuais da meia-idade, há muito que já não devia contemplar aquela linda imagem e, sobretudo, devia certamente fechar as portas da secretária quando recebia o amante na cama... Que desperdício, realmente! E que estupidez!... Ele sabia por experiência que o amor nos leva a cometer disparates, mas até àquele ponto era demais!

Deixando de lado a sua discrição habitual, abriu as gavetas uma após outra. Estavam repletas de ninharias. Um terço de primeira comunhão, medalhas, sinetes com os brasões da casa, cartas antigas juntas por guitas e amarelecidas pelo tempo, e que ele evitou desatar. Nalgumas delas reconheceu a sua própria caligrafia. Também havia alguns papéis pertencentes à família. Nada daquilo tinha grande interesse.

Aprestava-se a fechar o armário quando o seu olhar vivo descortinou, quase sob o suporte da estatueta, um canto de papel um pouco amarelecido e, nessa altura, lembrou-se que o nicho também possuía uma abertura secreta.

Um relance de olhos pelo canto onde estava o comissário fê-lo compreender que já não lhe restava muito tempo. Um outro polícia juntara-se-lhe, trazendo o material destinado a tirar as impressões digitais. Impelido por uma curiosidade irresistível, Aldo retirou a Minerva, pegou no pequeno suporte que, mal fechado, deixava a descoberto o papel rectangular, mergulhou a mão na abertura e retirou um molho de cartas que fez desaparecer no bolso da gabardina antes de voltar a colocar tudo no seu respectivo lugar, mas abstendo-se de fechar a secretária. De qualquer modo, Salviati haveria de querer abri-la e já vinha ao seu encontro.

- Que móvel soberbo! - comentou o comissário. - Como fez para abri-lo?

- É a minha profissão - sorriu Morosini. - Enquanto antiquário, estudei muito este tipo de móveis que, outrora, levaram o prestígio dos nossos marceneiros por essa Europa fora. Além disso, acontece que este aqui veio de minha casa: é uma prenda de núpcias oferecida pelos meus pais!

Deixou Salviati a vasculhar as gavetas e levou a sua complacência até ao ponto de revelar o esconderijo defendido por Minerva, sentindo uma espécie de prazer perverso, talvez devido aos papéis que lhe queimavam os dedos dentro do bolso. Não foi descoberto nada de importante e o polícia respeitou escrupulosamente os maços de cartas atadas pela fita de cetim azulado.

Regressado a casa, Morosini adiou para o jantar a narrativa do que sucedera e foi até ao quarto a fim de tomar o banho que o caro Zaccaria lhe preparara. Contrariamente ao que era costume, não se demorou nada. Enfiou um roupão de esponja espessa e voltou ao quarto, tendo Zaccaria colocado em cima da cama a camisa e o smoking que ele costumava sobretudo vestir nas noites em que havia convidados no palácio. Nas outras, preferia sentar-se à grande mesa da cozinha para conversar com Cecina. Com Guy Buteau ainda na clínica e Mina desaparecida, os diversos salões - nos quais, consoante a disposição do dia se instalava a mesa de jantar e sobretudo a imensa "sala da pranzo", destinada a banquetes - pareciam-lhe ainda demasiado grandes. Como outrora, durante a infância, Aldo sentia desejos súbitos de um certo calor e ninguém o dispensava melhor que Cecina.

Um relance de olhos ao relógio fez-lhe ver que ainda lhe restavam uns bons três quartos de hora antes de ter de descer para se juntar aos seus convidados.

- Podes deixar-me - disse a Zaccaria. -Já me visto. Apetece-me descansar um bocado.

- Não vai ver o Sr. Buteau? Ele esperava tão impacientemente pelo seu regresso!

- Meu Deus!

Com toda aquela história, acabara por se esquecer do amigo!

- Vai dizer-lhe que me estou a lavar e que passarei pelo seu quarto antes de descer. Quanto tempo é que ele ainda tem de ficar acamado?

- O doutor Licci pensa que no final desta semana ele já poderá descer as escadas com a sua nova cicatriz sem sofrer demasiado.

- Ajudá-lo-emos e, se for preciso, transportá-lo-emos. Deve estar a morrer de tédio... Vá, mexe-te! Vai dizer-lhe que já lá vou ter!

Mal Zaccaria se eclipsou, Aldo foi buscar o pequeno maço que, ao entrar, lançara na gaveta da antiga secretária dos seus tempos de juventude e, instalando-se numa poltrona, começou a ler. Quase que esteve para parar nas primeiras linhas: tratava-se de cartas de amor que datavam dos dois últimos anos da guerra. Não reconhecia a si mesmo o direito de violar daquela maneira a intimidade da prima; no entanto, continuou a sua tarefa, impelido por algo mais forte que uma simples curiosidade e que chegava quase a ser uma espécie de fascínio.

Isso era devido ao tom empregue nas cartas. Redigidas em letras muito firmes, elas provinham certamente de um amante apaixonado, mas também de um mestre. À medida que ia lendo as frases, Aldo tinha a estranha impressão de estar sentindo um ascendente cada vez mais poderoso, cada vez mais imperioso. O misterioso R. - não havia mais nenhuma assinatura - evocava, com a paixão que lhe era inspirada pela amante, certa causa à qual se dedicava.

As cartas, cujos envelopes tinham todos desaparecido, indicavam diferentes cidades suíças: Genebra, Lausanne, Interlaken e, sobretudo, Locarno, onde, ao que parecia, desabrochara o amor entre eles. A última, que datava de Agosto de 1918, provinha desta cidade. Era ainda mais sibilina e, também, mais autoritária que as restantes: "Chegou a altura; a guerra vai terminar e ele regressará. Deves fazer o que a causa espera de ti, mais ainda do que da parte daquele para quem tu representas toda a vida. Spíridion ajudar-te-á. É para isso que ele está ao pé de ti... R.".

 

Com a impressão que os caixotões do tecto tinham acabado de lhe desabar em cima, Aldo ficou longos minutos imóvel, com a carta presa na mão, experimentando a atroz sensação que acabara de descobrir diante dele a abertura de um dos infernais círculos dantescos. Nesta Adriana que amava como a uma irmã mais velha, ao ponto de, durante um momento, ter chegado a acarinhar a ideia de um delicioso incesto, descobria agora uma vida escondida, secreta, carnal e cheirando a enxofre. Que causa era aquela a que lhe pediam que se dedicasse, deixando-a acalentar a ideia de uma ardente recompensa? E que tarefa era aquela que estava na altura de realizar? Quem era aquele R.? De onde saíra afinal o belíssimo Spiridion que não fora casualmente descoberto na praia do Lido? Ele fora enviado pelo amante escondido e, presentemente, parecia tê-lo substituído na cama de Adriana. E, por que não o teria feito acatando ordens? Efectivamente, porque razão não teria R. utilizado o suposto criado, tanto no intuito de levar a condessa a realizar os seus propósitos, como para se desembaraçar, pela mesma ocasião, de uma amante que talvez se tivesse tornado um estorvo? De facto era de espantar que a última carta datasse de há quatro anos.

As perguntas irrompiam, todas elas sem resposta, ou quase. Morosini não gostava da concordância que existia entre as lições romanas do corfuense, personagem agora tão suspeita, e a eclosão do fascio mussolíniano, em relação ao qual Adriana não parecia hostil. Seria possível que fosse essa a famosa "causa" e, nesse caso, em que consistiria o serviço que se esperava da parte da condessa Orseolo? A primeira coisa a fazer era tentar descobrir quem poderia ser R., o homem a quem Adriana parecia ter jurado pertencer de corpo e alma...

Só com uma inicial não se podia ir muito longe, mas a personagem que tanto amava a Suíça devia pertencer a uma dessas células revolucionárias que lá se tinham refugiado devido aos desacatos provocados nos seus respectivos países...

O tinir de um sino, anunciando o jantar, arrancou Morosini ao seu amargo devaneio, apressando-o a vestir a camisa e o fato para a soirée, cujo nó de gravata compôs atabalhoadamente. Não dera pela passagem do tempo e mal lhe sobrava um minuto para consagrar a Guy Buteau.

Calçando os escarpins envernizados enquanto andava, o que representava um exercício algo difícil, precipitou-se para fora do quarto a fim de ir ter com o seu antigo preceptor... que encontrou à entrada do quarto, apoiado numa bengala, ligeiramente pálido, mas vestido rigorosamente a preceito.

- Guy! - exclamou. - Enlouqueceu? Devia estar deitado.

- Caro Aldo, estou mais que farto da cama! Além disso - acrescentou com o sorriso caloroso e um pouco tímido que tão bem lembrava o jovem professor acabado de sair da sua Borgonha natal e ao qual fora confiada a instrução de um miúdo -, algo me diz que precisa de mim...

- Preciso sobretudo é de vê-lo de boa saúde! Como se arranjou para se levantar e para se vestir?

- Zaccaria deu-me uma ajuda. Aproveitei para pedir que pusessem também os talheres para mim. A presença da senhora marquesa de Sommières, da senhorita Marie-Angéline e do senhor, vai operar maravilhas para a minha convalescença. Sobretudo se se acrescentar ainda a presença de uma velha garrafa das minhas queridas adegas de Beaune!

- Se quiser, pode dispor da cave inteira! É uma loucura o quanto estou feliz por vê-lo! - exclamou Morosini. - Mas tem que se apoiar no meu braço.

E foi apoiados um no outro que os dois homens chegaram ao salão das Lacas, reunindo-se às vestes brilhantes e quase episcopais de Mme. de Sommières, ao fato de um cinzento-ténue, em crepe de China, de Marie-Angéline, e à explosão alegre de uma rolha de garrafa de champanhe.

Apesar das preocupações que evitou cuidadosamente revelar, Aldo sentiu vivo prazer naquele jantar em família, animado pela inspiração cáustica da tia Amélie, tanto mais que tinham muito para contar. Falaram evidentemente do assassinato de Eric Ferrais, da acusação que recaía sobre a esposa e, talvez mais ainda, sobre a espantosa metamorfose de Mina Van Zelden, austera holandesa que se transformara numa milionária suíça.

- Tens de reconhecer que tenho um certo faro - disse a marquesa. - Eu não te tinha dito que se fosse a ti havia de tentar esgravatar naquela carapaça um nada severa, para ver o que se escondia debaixo?

- É pena que não tenha sido mais explícita! - suspirou Aldo. - Isso ter-me-ia evitado muitos tormentos e, sobretudo, ter-me-ia evitado encontrar-me numa posição bem incómoda...

- Não vejo o que teria podido acrescentar. A partir do momento em que te tinha revelado as minhas impressões, era a ti que cabia mostrares-te mais perspicaz...

- Eu também devo ser criticado - disse o Sr. Buteau. - Confesso que ela me intrigava pois, de tanto a olhar, acabara por chegar à conclusão que sob aquelas incríveis vestimentas se escondia uma linda rapariga e não conseguia compreender por que motivo ela se enfarpelava daquela maneira. Quando tantas moças feias sonham em tornar-se bonitas, Mina... permitam-me que ainda a trate por esse nome... fazia todos os possíveis para parecer baça, apagada, quase invisível.

- Ela conseguiu fazê-lo comigo! A partir da altura em que, não obstante os meus conselhos, eu percebi que ela não iria mudar, deixei de a olhar. Em compensação, Mina estava incrivelmente presente e eu tinha inteira confiança nela. Isto, sem contar com os seus profundos conhecimentos em matéria de arte e de antiguidades. Nunca encontrarei ninguém do seu nível! Sabia datar uma jóia e não confundia uma porcelana de Rouen em forma de pagode com uma autêntica peça chinesa...

Mlle du Plan-Crépin deixou por um momento de remexer com a sua colher no prato de ovos mexidos com trufas brancas e, levantando o seu comprido nariz, mostrou um sorriso de conhecedora: - Isso são os primórdios do conhecimento da arte - declarou com uma autoridade inesperada. - Basta reconhecer as assinaturas, as formas, as cores e, também, os materiais. Quando era miúda, o meu querido pai, que tinha a paixão pelas antiguidades, levava-me de bom-grado aos leilões. Também me instruiu bastante e fez-me ler muitas obras. Agora posso confessá-lo: se nessa altura não fosse algo de inconcebível para uma rapariga da nossa condição abrir uma loja... e, também, é claro, se eu tivesse então possuído os fundos necessários, teria gostado de ser antiquária.

O ruído de um talher assestado num prato fez desviar as cabeças na direcção da marquesa que olhava estarrecida para a sua leitora.

- E por que me escondeu isso tudo, Plan-Crépin? Porquê?

- Não pensei que este pormenor nos pudesse interessar - respondeu a velha rapariga que só se dirigia à sua prima e patroa na primeira pessoa do plural. - Mesmo que se trate apenas de um bobby, experimento sempre um vivo prazer em visitar um museu...

- Mais do que eu! Sempre me aborreci imenso nesses depósitos para objectos de arte...

- É pena que fique por cá apenas alguns dias, Marie-Angéline - disse Aldo, sorrindo. - Talvez tivesse recorrido à sua assistência. É verdade que você não é uma secretária...

- É a minha, o que já não é mau - resmungou Mme. de Sommières.- Detesto escrever e ela livra-me das papeladas. Trabalhava-se bem no convento dos Pássaros! Até lhe ensinaram o inglês e o italiano...

- Se acrescentarmos o seu jeito para as acrobacias aéreas, pode dizer-se que recebeu uma educação completa! - disse Aldo, rindo-se. - Quase que me apetece pedir-lhe uma ajudinha - acrescentou, já mais sério, e recuando a cadeira para olhar melhor para a velha senhora. - Mestre Massaria talvez tenha alguém a propor-me, mas não antes de três semanas. Tia Amélie, está assim com tanta pressa de partir?

- De modo algum. Bem sabes que adoro Veneza, esta casa e os que aqui moram. Vê pois o que poderás fazer com este fenómeno. Isso permitirá que o nosso amigo Buteau descanse um pouco.

- Nada de repousos prolongados! - protestou este. - A partir do momento em que não me desloco, posso receber os clientes e se Mlle Marie-Angéline quiser debater-se com as chinesices do secretariado sob a direcção de Aldo, então obteremos um magnífico resultado!

- Tanto mais que, exceptuando aquele leilão em Florença, não tenciono ausentar-me. Vou escrever à minha prima para informá-la do que aconteceu na sua casa. Ela logo decidirá se deve ou não regressar.

- Não devias voltar a Londres? - perguntou a tia Amélie. Com um olhar subitamente sombrio, Aldo pediu a Zaccaria que

enchesse os copos.

- Terei de lá voltar, mas não há motivos para pressa. Não precisam de mim - acrescentou com certo azedume.

Ora, a carta chegou no dia seguinte...

Fora enviada de Londres. No envelope, havia apenas uma caligrafia desajeitada que assinalava: "Senhor príncipe Aldo Morosini. Veneza. Itália.".

No interior, algumas frases assinadas por Anielka: "Entrego este bilhete aos cuidados de Wanda para que ela o envie cumprindo as minhas directivas. Aldo, tem de regressar! Tem de vir em meu auxílio, pois agora estou cheia de medo. Muito medo! E talvez seja o meu pai quem mais me assusta, porque penso que está a enlouquecer. E eu sinto-me abandonada, sobretudo por Ladislas, que ninguém consegue encontrar. Mestre Saint Albans contou-me o que fez por mim, mas infelizmente isso de nada serviu. E, depois, você foi-se embora. Só você, e você apenas, pode salvar-me desta terrível alternativa: a forca ou a vingança dos companheiros de Ladislas! Ainda não faz muito tempo, disse que me amava..."

 

Sem pronunciar palavra, Aldo entregou o bilhete à tia Amélie. Ela devolveu-o com um sorriso e um encolher de ombros:

- Pois bem - suspirou - creio que eu e a Plan-Crépin temos de nos preparar para hibernar aqui, pois não estou a ver como conseguirás impedir-te de montar no teu fogoso corcel para voar em socorro da beldade em perigo! O que tenho ainda maior dificuldade é em ver o que poderás fazer.

- Não sei, mas talvez ela possa dizer-mo. Tanto eu como o seu advogado, estamos persuadidos que ela não contou toda a verdade.

- E, depois, é tão agradável poder pedir socorro a um paladino como tu! Tem cuidado onde vais meter os pés, meu rapaz. Eu não gostava desse infeliz Ferrais e confesso-te que também não gosto da sua esposa encantadora e tão jovem, mas se lhe acontecer alguma desgraça sem que tenhas tentado tudo para salvá-la, haverias de lastimá-lo toda a tua vida e nunca mais poderias ser feliz. Portanto, põe-te a andar! Entretanto, enquanto esperamos por ti, eu e a Plan-Crépin, que vai ficar felicíssima, vamos desempenhar o papel de divindades domésticas. Afinal de contas, as antiguidades talvez sejam um assunto divertido!...

Aldo respondeu apertando-a nos braços e beijando-a com toda a ternura que ela lhe soubera inspirar. Aquela espécie de bênção que Amélie lhe concedia, era um pouco como se tivesse sido a sua própria mãe a dá-la.

Graças a Deus era uma quinta-feira, um dos três dias em que o Expresso do Oriente passava por Veneza no trajecto para Paris e, até, para Calais. Aldo só dispunha do tempo necessário para enviar Zaccaria a reservar-lhe uma cama numa carruagem, para pôr em ordem alguns negócios com Guy e para preparar as bagagens. Quanto às misteriosas cartas de Adriana, adiou o seu estudo para mais tarde e guardou-as no cofre-forte, exceptuando a última, que era também a mais intrigante, a qual meteu dentro da carteira.

Às quinze horas em ponto, o grande expresso transeuropeu deixava a estação de Santa Lúcia...

 

                       CAPÍTULO 9 - CLARO-ESCURO

Ao desembarcar na gare Victoria em Londres, Morosini lastimou não poder dirigir-se ao seu caro hotel Ritz, cuja atmosfera e conforto familiar eram tanto do seu agrado. Se bem que enquanto digno descendente de tantos senhores do mar ele se pudesse vangloriar de possuir uma costela marítima, o canal da Mancha tinha-o de tal forma maltratado, abanado, sacudido, triturado e moído, que pela primeira vez na sua vida se viu obrigado a prestar-lhe um tributo humilhante. Ao regressar a terra firme, ainda se sentia esverdeado e de pernas flácidas. Foi portanto com um suspiro de contrariedade que descobriu Théobald no cais da estação. O fiel criado de Adalbert viera buscá-lo para conduzi-lo ao novo apartamento em Chelsea. Estava completamente fora de questão evitá-lo! Aldo só podia censurar-se a si mesmo, pois enviara um telegrama anunciando a hora da sua chegada. Por outro lado, Vidal-Pellicorne não teria gostado que não o tivessem prevenido.

- O senhor príncipe não está com boa cara - notou Théobald, ao pegar nas malas. - Suponho que terá sido o mar, não? E, também, este danado clima debilitante! Como se pode ser inglês?

- Ah, porque você chama a isto um clima ? - resmungou Morosini enquanto subia a gola do sobretudo..

Londres encontrava-se envolta num daqueles nevoeiros gelados que são segredo seu, nos quais se esbatem as formas e os edifícios e em que a luminosidade dos mais poderosos candeeiros se reduz a tonalidades amarelas e difusas que evocam a luz fraca das velas.

- O senhor príncipe sentir-se-á melhor quando chegarmos a casa. Conseguimos transformá-la em algo gracioso e acolhedor, do que nunca me poderei gabar suficientemente, dada a disposição do senhor Adalbert nestes dias.

- Aconteceu-lhe alguma coisa? - perguntou Morosini, ao acomodar as suas pernas compridas dentro do carro de aluguer cuja porta lhe abriam.

- O senhor príncipe não lê os jornais?

- Não, desde que parti de Veneza. Matei o tempo a dormir quanto podia e a lutar contra o enjoo... Que contam os jornais?

- A descoberta, ora essa! A incrível descoberta que o sr. Howard Cárter acaba de fazer no vale dos Reis do Egipto: o túmulo de um faraó da décima oitava dinastia, com todo o seu tesouro intacto! É incrível! Prodigioso! É a descoberta do século!

- E isso contraria o seu amo? Enquanto bom egiptólogo ele não deveria antes regozijar-se? Se não me engano, a décima oitava dinastia não era o seu passatempo favorito?

- Era, mas o sr. Cárter é um britânico.

Devido às dificuldades que o nevoeiro causava à circulação do trânsito, Morosini deixou de fazer perguntas e o trajecto decorreu sem percalços até que Théobald parasse o veículo frente a uma residência em tijolo vermelho, velha e encantadora, cuja ornamentação conservava ainda as suas antigas grades de ferro forjado.

- Se conseguíssemos que o céu nos concedesse um dia digno desse nome, do que começo a desesperar, o senhor príncipe poderia ver que Chelsea é um quarteirão pitoresco e até agradável, um bom velho quarteirão aristocrático que com o passar do tempo se tornou numa espécie de Montparnasse. Por todo o lado podem ver-se ateliers onde moram pintores, escultores, estudantes de Belas-Artes, que trazem consigo uma atmosfera boémia e descontraída e que...

- A sua descrição é perfeita - resmungou Morosini, pondo bruscamente cobro ao devaneio lírico de Théobald -, mas já estava inteirado. É por isso mesmo que estou inquieto...

Não havia razão para isso: a antiga residência de Dante Gabriel Rossetti, que fora outrora denominada Casa da Rainha em lembrança de Catarina de Bragança, não só era muito bela como uma das mais graciosas. Foi aí que o viajante encontrou o seu amigo instalado diante de um lume crepitante, no meio de um verdadeiro mar de jornais que folheava febrilmente. O salão em que se desenrolava esta cena típica, aquecido por grandes cortinados de um veludo amarelo-esmaecido e por um arquipélago de tapetes de diferentes cores, agradou tanto mais a Morosini porquanto havia uma mesa posta, não muito longe da chaminé em mármore branco.

- Na hora certa! - exclamou Adalbert, levantando-se e sacudindo o vinco das calças. - Com este nevoeiro, é um recorde! Fizeste uma boa viagem?... Não, não fizeste - emendou logo. - E, além disso, estás cheio de preocupações: estás com uma cara desgraçada. Vem, vou mostrar-te onde fica o teu quarto.

Também aí Théobald operara maravilhas: o fogo ardia ao pé de uma boa poltrona e um ramo de margaridas outonais atenuava a severidade do mobiliário e dos cortinados de veludo verde.

- Tu também tens motivos de preocupação - disse Aldo com um meio sorriso. - O túmulo que esse Cárter descobriu próximo de Lucsor...

- Uma sorte incrível! - suspirou Vidal-Pellicorne, levantando os olhos ao céu. - O túmulo intacto de Tutankhamon, um faraó sem grande importância que só reinou oito anos, mas que nesse intervalo de tempo amassou um sagrado tesouro funerário! Quando penso no caro M. Loret, o meu estimado mestre, que se esfalfa por lá sem obter grandes resultados, é de levar as mãos à cabeça! Também é verdade que nós, franceses, não beneficiamos das larguezas de um mecenas como lorde Carnavon(1). gostaria de ir examinar tudo isso de perto...

- Que te impede? Avançaste alguma coisa no caso da Rosa?

- Não, por assim dizer! Já explorei dois becos sem saída, sem chegar a qualquer resultado. Escrevi a Simon para ver se ele não disporia de outras luzes... Confesso-te que começo a perder a coragem.

- E o caso de Exton Manor? Não há novidades?

- Nada. O casal Killrenan parece viver numa concórdia perfeita. É verdade que Yuan Chang teve alguns pequenos aborrecimentos que devem ter atrasado os seus projectos. Mas o pterodáctilo vai contar-te isso tudo, pois convidei-o para jantar. Afinal, que te traz de volta?

Como resposta, Aldo estendeu-lhe a carta de Anielka.

- Pois! - exclamou Adalbert, devolvendo-lha. - As coisas também não se encaminham bem para ela. Dentro de uma dezena de dias, terá de passar perante a justiça. Ao ver a tua cara, lamentei um bocado ter convidado Warren; agora, começo a crer que fiz bem.

- Inteiramente: preciso urgentemente de uma autorização para poder fazer uma visita a Brixton.

- Não duvido. Portanto, instala-te, vai tratar um pouco da tua toilette, descansa um bocado! Jantamos às oito.

Não é por se ser polícia que se deixa de ser um indivíduo como os outros, e o smoking do superintendente não o deixava nada atrás dos seus anfitriões.

- Estou contente por vê-lo! - disse, apertando a mão a Morosini. - Foi por ter acabado de chegar que aceitei o convite desta noite. Lady Ferrais causa-nos muitos problemas...

- No entanto, pensava ter trazido uma prova da sua inocência ao demonstrar como o esposo foi envenenado.

- Bem sabe que é insuficiente. Persiste a certeza quase absoluta que existe cumplicidade com outro assassino, admitindo que este exista. Além disso, há um criado que jura ter visto várias vezes lady Ferrais sozinha no escritório do esposo.

- Suponho que estando em sua própria casa, ela tinha o direito de se deslocar pelas salas que bem entendesse...

- Então porque continua a recusar-se, ao pai, ao advogado e a mim mesmo, a ajudar-nos a encontrar esse malfadado polaco?

- Talvez a mim me diga qualquer coisa... Vim por causa de uma carta: aqui está ela...

Warren leu-a depressa e, em seguida, devolveu-a ao seu proprietário.

- Amanhã terá a sua autorização. Enviá-la-ei por uma ordenança. É melhor que fique desde já a saber que ela teve uma verdadeira crise de desespero quando soube que o senhor partiu para Veneza.

- De desespero?

- Pergunte a mestre Saint Albans, ele poderá confirmá-lo. Não quero champanhe, obrigado! - acrescentou, dirigindo-se a Vidal-Pellicorne que lhe estendia uma taça: - Só bebo vinho às refeições e não é todos os dias.

Na realidade, bebia muito mais do que comia, mas o seu comportamento mantinha-se inalterável. Aldo, que optara por se calar durante a maior parte da refeição, não deixou de ficar surpreendido ao ver que durante a sua ausência o arqueólogo e o polícia tinham estabelecido laços de amizade. Talvez fosse coisa difícil de compreender, mas era um facto que podia vir a revelar-se útil. Os dois homens falaram do caso do túmulo egípcio que, segundo eles, apaixonava a Inglaterra. Adalbert ocultava a sua frustração diante do convidado. Quando era Vidal-Pellicorne que conduzia o diálogo, este era cortês, amável, e até erudito mas, decorrido certo tempo, Morosíni fartou-se. Decidiu atacar, aproveitando a altura em que o superintendente atacava o rosbife sem o qual não há refeição que se preze para um inglês:

- A propósito, já conseguiu reaver o diamante do Temerário que estava na posse de Yuan Chang?

- Não, e apesar da busca minuciosa que os meus homens efectuaram no Crisântemo Vermelho e na sua loja. Contudo, conseguimos pô-lo entre as grades, tecendo-lhe uma armadilha graças à traição de uma mulher, amiga de um dos irmãos Wu. Foi apanhado num barco quando estava a receber uma importante quantidade de ópio e de cocaína. Perdeu o sangue-frio e dois polícias ficaram feridos. Prendê-mo-lo juntamente com vários dos seus homens.

- E ladyMary?

- Porta-se como uma santa. Eu próprio interroguei o chinês e, sem entrar em pormenores, disse-lhe que sabia que ele possuía o diamante, mas não consegui que "molhasse" a sua cúmplice. É um homem com uma enorme paciência e não está disposto a perder esse trunfo que guarda escondido na manga.

- Até que ponto é que ela se envolveu na morte de George Harrison?

- Penso que desempenhou o papel da velha lady que é sua prima e que visitava frequentemente, talvez o suficiente para conseguir obter a dedicação de pessoas ao serviço de uma senhora conhecida pela sua avareza-, daí a mulher que a acompanhou e o carro... a menos que o tivessem alugado... Pointer investigou essa pista, mas não descobriu nada. Ainda temos muito trabalho a fazer! Quanto à nossa encantadora lady, leva uma agradável vida mundana e aproveita a publicidade que o processo Ferrais traz ao seu esposo. Quase todos os fins-de-semana organiza recepções em Exton Manor, que continuamos a vigiar de perto...

- Sir Desmond continua a não estar ao corrente de nada?

- Das actividades da mulher? Não. Já lhe disse, desejo que ela seja apanhada com a boca na botija. Mas está ao corrente do perigo que o ameaça. Durante um encontro que tive com ele, depois de Yuan Chang ter sido preso, "confiei-lhe" que, a acreditar em certas informações acerca das quais não me alonguei, o chinês estava de olho na sua colecção de jóias imperiais. Portanto, já está avisado; agora cabe-lhe tomar as precauções necessárias.

- Elas não servirão de grande coisa se não desconfia da mulher, pois era com ela que Yuan Chang contava.

- Tão-pouco desconfia que tem o castelo vigiado. Na verdade não me basta ter aprisionado o chefe da quadrilha. Em primeiro lugar, porque um dia destes vai conseguir sair; em segundo, porque ainda ignoramos muitas coisas sobre as pessoas que trabalham para ele. E receio que sejam muitas. Então...

- Nestas condições é óbvio que só me resta esperar...

- Tanto mais que - concluiu Vidal-Pellicorne quando o superintendente se despediu -, nos estamos marimbando que encontrem ou não o falso diamante. O que nos interessa é o verdadeiro e chego a perguntar-me se chegaremos um dia a descobrir-lhe o rasto.

- Visto que preveniste Aronov, espera que ele te responda; ele, que sabe sempre tudo, talvez tenha uma ideia - acrescentou Morosini, recordando com um vago rancor o passeio à volta de Hyde Park, durante o qual o Coxo o obrigara a prometer que ele deixaria a Solmanski e aos advogados a tarefa exclusiva de se ocuparem do destino de Anielka. - Se me quiseres desculpar, vou dormir. Uma travessia impossível e um polícia inquieto é demasiado para o velho cansado que sou...

Deixando-se recostar no fundo da poltrona, Adalbert colocou as suas solas diante do fogo da chaminé e pôs-se a mexer na madeixa rebelde que mais uma vez lhe caía sobre o nariz.

- Só mais uma pergunta, que não te irá decerto esgotar: em que ponto estás com a adorável lady Ferrais? Ainda gostas muito dela ou, ao voar em seu socorro estás simplesmente a obedecer ao teu célebre instinto cavalheiresco?

- Isso, meu amigo, é uma pergunta à qual responderei quando a tiver visto.

 

De novo a pequena sala cinzenta, estreita, mal-iluminada por uma janela disposta no alto; de novo a mesa de madeira, as duas cadeiras e, depois, a porta que foi aberta por uma guarda em uniforme, para deixar passar a jovem viúva.

Aldo inclinou-se, abafando um suspiro de alívio.

Durante todo o trajecto temera aquele encontro tão desejado. Sabendo que ela estava doente, receara deparar com uma pálida sombra, com a forma quase desencarnada da jovem radiante pela qual se apaixonara tão facilmente. Receara encontrar um rosto empalidecido, cavado pela angústia e pelo sofrimento, uns olhos inchados, plúmbeos, repletos de infinita lassidão, mas Anielka estava parecida com a imagem que dela guardara da última vez: o mesmo vestido preto moldava-lhe o corpo delgado e gracioso, os cabelos estavam dispostos como uma auréola em redor de um rosto fino de tez muito pura e, sobretudo, nas suas compridas pupilas douradas brilhava um raio de alegria. Ela sorriu ao vê-lo, de modo talvez tremido, mas não deixava de ser um sorriso.

- Então regressou? - murmurou, como se não acreditasse.

- Não me chamou?

- Sim... mas sem grande convicção. Wanda teria podido enganar-se ao escrever o endereço no envelope, a carta podia não lhe chegar às mãos e, sobretudo, você podia estar ausente... Porque se foi embora?

- Pelo mais banal dos motivos: precisavam de mim, mas bem vê que não hesitei sequer um momento em vir ao seu encontro. Como vai? Da última vez que quis visitá-la, a menina estava doente, hospitalizada...

- Eu sei. Houve até uma altura em que julguei que ia morrer e quase fiquei feliz por isso, mas agora as coisas vão melhor... pois veio ajudar-me, não é verdade?

- Faz tanto tempo que lhe peço que aceite a minha ajuda - criticou brandamente - que tem de concordar que se fiquei incapacitado de socorrê-la, não foi por culpa minha.

Impelida por um súbito impulso ela estendeu-lhe as mãos. Ele agarrou-as, apertando-as contra si, desolado por senti-las tão frias.

- Meu Deus! Está gelada!

Ia abraçá-la quando ouviram a voz da guarda:

- Têm que se sentar cada um de um dos lados da mesa. É o regulamento.

- Que regulamento mais estúpido! - resmoneou Morosini que, sem a largar, obrigou Anielka a sentar-se, instalando-se diante dela.

- Ora bem! Vamos pôr mãos à obra - disse, com um sorriso tão comunicativo que ela só lhe pôde corresponder. Contudo, ele continuava inquieto. Sentia-a frágil, nervosa. O olhar dela, instável, era o de um ser encurralado. Nestas condições, iria conseguir arrancar-Lhe alguma confissão?

- Suponho - reatou, numa voz mais baixa - que deseja dizer-me algo, não?

- Desejo e você é certamente a única pessoa no mundo a quem eu me possa confiar sem correr riscos, e isso por um só motivo: Ladislas nunca o viu, ele não o conhece e os seus amigos também não.

- Eu conheço-o - disse Aldo que não tinha qualquer dificuldade em rever no ecrã fiel da sua memória o jovem vestido de preto dos jardins de Wilanow. - E quando um rosto me interessa nunca o esqueço. Não sabe por acaso onde temos uma possibilidade de encontrá-lo?

- Talvez. É uma hipótese muito remota mas é a única que me resta, caso não queira ser condenada.

- Por que não falou mais cedo? Pelo menos ao seu pai, mesmo que não fosse à polícia, pois tinha medo das represálias...

- Ao meu pai? Ele só tem uma atitude: as maneiras rudes. Se encontra Ladislas pela frente, abatê-lo-á sem lhe dar tempo sequer para exalar um suspiro; ele só presta ouvidos ao seu ódio!

- E porque é que de vez em quando não presta ouvidos ao seu amor? Você é a filha dele e a única maneira de salvá-la é levar o polaco a comparecer bem vivo diante dos juízes...

- Talvez tenha razão... Seja como for, não quero correr esse risco. Já aceitei riscos que cheguem até agora.

- É isso que não consigo perceber. Logo após a morte do seu esposo, teve a oportunidade para acusar esse Ladislas e reclamar a protecção da polícia. Em vez disso, deixou que lhe dessem ordem de prisão, que a enclausurassem, e limitou-se a bradar a sua inocência. É uma idiotice!

- Talvez tivesse confiado um pouco demais na grande reputação da Scotland Yard. Contava que o encontrassem sem a minha ajuda. Além disso, também acreditava nele: "Fica descansada, dizia-me, se por acaso as coisas derem para o torto, eu e os meus amigos saberemos safar-te".

- E acreditou nele? Enfim, Anielka, não acha que está na altura de me revelar a verdade?

- Que verdade?

- A única que é válida: que há precisamente entre vocês os dois? Disse-me que ele foi seu amante, mas Wanda parece convencida que vocês estão unidos por um amor como só existe nas lendas e que você o ama tanto quanto ele a adora.

Caso não fosse tão triste, o pequeno riso de Anielka teria sido encantador.

- Pode julgar da autenticidade desse amor pela forma como ele me abandonou. Pobre Wanda! Ela nunca deixará de ser uma criança que se alimenta de contos de fada e de narrativas heróicas como tanto prezam na nossa querida Polónia!

- O que ela pensa é uma coisa, outra muito diferente é o que você pensa. Quero saber se ainda ama esse rapaz e confesso-lhe que não estou longe de pensar que é verdade.

Ela arregalou os seus grandes olhos marejados de lágrimas, que se assemelhavam a dois lagos de ouro líquido, contemplando com uma espécie de desespero o rosto orgulhoso que lhe fazia frente e, sobretudo, fixando-se no olhar de um azul de aço, como se nele se procurasse afundar.

- Parece-me já lhe ter dito várias vezes que o amava, que queria ser sua. Já se esqueceu do Jardim de Aclimatação? Dispus-me a ser sua amante, quando ainda tinha de desposar Eric. Até o escrevi...

- Anielka, é difícil acreditar em si. John Sutton pretende que Ladislas se tornou de novo seu amante, que o viu a sair do seu quarto.

Recostando-se no espaldar da cadeira com um suspiro de lassidão, ela retirou as suas mãos das de Aldo e fechou os olhos.

- Você é livre de preferir acreditar nesse abominável mentiroso! Nesse caso, julgo que não temos mais nada a dizer... Abandone-me ao meu destino, seja ele qual for, e não se fala em mais nada!

Já esboçava um movimento para se levantar mas, saltando para a frente, ele reteve-a com um punho firme.

- Vamos falar, sim senhora! Imagina que fiz todo este caminho para nada? Mesmo que só houvesse uma hipótese de salvá-la, eu agarrá-la-ia. Depois, uma vez livre, fará o que bem entender! Pensa que há algum lugar onde possa encontrar Ladislas, mesmo que ele tenha regressado à Polónia?

- Não, tenho a certeza que ele ainda está em Inglaterra, porque a morte do meu esposo não era o desfecho previsto para a sua missão. Mas se eu lhe der uma morada, jura-me que não falará disso nem ao meu pai, nem a qualquer elemento da polícia, nem ao meu advogado?

- Não direi nada. Tem a minha palavra.

- Vai agir sozinho?

- Não forçosamente. Tem algo contra Adalbert Vidal-Pellicorne? No entanto, ele já agiu em sua defesa.

Durante um breve instante ela reencontrou um sorriso de criança ladina que iluminou a atmosfera da sala de visitas.

- O egiptólogo um pouco louco? Também está por cá?... Se ele o quiser ajudar, não peço melhor: ele mostrou-se bom amigo aquando daquele horrível casamento e Ladislas também não o conhece. Trate de compreender que é preciso que consiga agarrar Ladislas, raptando-o se for preciso, como se houvesse um acerto de contas privado entre vocês os dois. Talvez isso me possa evitar a vingança dos amigos dele.

- O que não seria o caso se ele fosse apanhado pela polícia ou, até, por iniciativa de sir Desmond. Já percebi, tranquilize-se! Actuarei de molde a evitar colocá-la em perigo. Onde me devo dirigir?

- A Shadwell. É um subúrbio londrino. Em Mercer Street fica a Igreja Polaca Católica Romana, cujo sacristão é um amigo de Ladislas. Ele só me deu esse contacto, sem dúvida por ser a única pessoa que a Scotland Yard não pensaria em desconfiar, pois tem uma reputação de santo homem. Deu-me as suas coordenadas para o caso de ter de contactá-lo de urgência num dos seus dias de folga, ou para o caso em que tivesse necessidade de encontrar um refúgio face a um perigo repentino.

- Ah, ele até pensou em abrigá-la? - perguntou Aldo, com um desdém não dissimulado.

- Mesmo quando me obrigou a falar, ele nunca cessou de repetir que me amava e que queria viver comigo.

- Mas que não desejava morrer por si, não é verdade?... Magnífico! Mas que grande coração! E, no seu entender, que espera ele para tentar ajudá-la? O julgamento? Imagino mal um golpe de teatro. Nem sequer teve a ideia de enviar cartas à polícia, mesmo que fossem anónimas, para proclamar e reiterar que você estava inocente.

Tem muito medo que possam descobrir o expedidor! Não só é um assassino, como também é um cobarde.

O ruído da porta a abrir-se e uma tossezita assinalaram o regresso da guarda. O tempo destinado às visitas acabara. Ele não tentou que o prolongassem; levantou-se e beijou a mão que ainda segurava.

- Vou revolver céu e terra por si. Fique tranquila!

- Diga-me só que me ama...

- Como se não o soubesse! Amo-a, Anielka, e salvá-la-ei! Ah, como se chama finalmente o seu sacristão?

- Dabrovski. Stephan Dabrovski.

Shadwell era um pouco a memória do império marítimo inglês. Aí se desfrutavam amplos panoramas sobre o tráfego fluvial e, além disso, alguns meses antes era lá que tinha sido inaugurado o Memorial Park do Rei Eduardo, onde se encontrava um monumento dedicado aos grandes marinheiros que no século xvi tinham sulcado os mares para grande glória da nação: sir Martin Frobisher, sir Hugh Willoughby e uns quantos outros. Tudo isto conferia uma certa nobreza a um quarteirão assaz tranquilo. Quanto a Mercer Street, tratava-se de uma rua em que a igreja polaca não ocupava grande lugar.

Como se tratava de um santuário católico, Morosini não viu qualquer inconveniente, antes pelo contrário, em entrar para fazer uma curta prece, o que lhe permitiu inspeccionar o local. Por sorte não havia ninguém, à excepção de um homem louro, dos seus trinta anos, de aspecto robusto por debaixo das suas roupas pretas usadas, e que estava ocupado a retirar os restos dos círios e os escoamentos de cera de uma de duas bandejas dispostas diante de uma grande estátua da Virgem.

Pensando que devia ser o homem que procurava, Aldo pegou no maior círio que viu e aproximou-se do altar. Acendeu a mecha de algodão branco, colocou a comprida vela na ponta mais ao centro do porta-velas acabado de limpar, e depois recolheu-se num momento em silêncio. De costas voltadas para ele, o sacristão não lhe prestava a menor atenção e prosseguia o seu trabalho. Finalmente, Morosini dirigiu-se-lhe:

- Chama-se Stephan Dabrovski? - perguntou em francês.

O outro voltou-se de forma a olhar para aquele homem de tão grande porte envergando roupas que pareciam um tanto modestas. Os seus olhos castanhos, encovados sob a arcada, fixaram-se nos traços altivos e no olhar frontal e calmo, antes de admitir, no mesmo idioma:

- Sou eu, efectivamente. E o senhor, quem é?

- Temo que o meu nome não lhe diga nada. Chamo-me Aldo Morosini, sou veneziano e antiquário. Gostaria de falar consigo sem recear que nos pudessem ouvir. Onde podemos ir?

- E por que não aqui mesmo? Não há ninguém, a não ser Aquela que pode ouvir tudo e que nada repete - acrescentou com uma ligeira saudação dirigida à estátua da Virgem.

- Tem razão, tanto mais que só a franqueza é de rigor perante uma presença destas. Portanto, irei directamente ao assunto: desejo ver aquele que aqui se fazia chamar de Stanislas Rasocki, mas cujo nome verdadeiro é Ladislas Wosinski. Disseram-me que o senhor o conhecia e, sobretudo, não o negue porque isso seria uma mentira.

- Conheço-o, efectivamente. Que lhe quer?

- Falar-lhe.

- Acerca de quê?

- Se me permite, é assunto nosso.

- Quem lhe indicou o meu nome?

As perguntas e as respostas eram disparadas a um ritmo rápido, como uma troca de balas. Aldo pensou que aquele jovem com um ar tão sereno devia ser mais coriáceo do que julgava. Sorriu candidamente a Dabrovski, olhando rapidamente para a Madona, para pedir-lhe de antemão desculpa pelas mentiras que iria ter de proferir.

- Foi um polaco que trabalha nos escritórios da Legação em Portland Place, mas também me podia ter dirigido a qualquer pessoa deste quarteirão. Todos os seus compatriotas londrinos - e eles não são assim tantos - conhecem este santuário, os seus curas e o seu sacristão, dado que esta é a única igreja polaca católica. Se se quiser encontrar alguém desta nacionalidade este é sem dúvida o melhor local onde procurá-la. Então, vai ou não dizer-me onde poderei encontrar Ladislas?

- O senhor é um dos seus amigos?

- Digamos que temos amigos comuns, mas conheci-o na última Primavera em Wilanow. Quer que o descreva?

- É inútil. Se o quiser ver, terá de se deslocar de novo a Varsóvia. Foi para lá que ele foi. Boa noite, cavalheiro!

Morosini ergueu as sobrancelhas de espanto, embora tivesse contado um pouco com aquele género de resposta. -Já?

- Sim. Se me permite, tenho de preparar o próximo serviço religioso.

- Não era a isso que me referia, mas sim se ele "já" se foi embora. Quando regressará?

- Salvo o devido respeito, cavalheiro, o senhor está a dizer disparates. Porque deveria ele regressar?

Voltava-se no intuito de se dirigir para a sacristia mas Aldo reteve-o com um punho de ferro: acabara o joguinho das réplicas delicadas e começava o da explicação mais dura, destinada a despertar o receio.

- E por que não seria para salvar a vida de uma jovem que acreditou nele, que o albergou em sua casa e que ele abandonou como o último dos cobardes?

O outro empalideceu e mordeu os lábios; as suas pupilas semi-cerraram-se até se tornarem pequenos pontos sombrios.

- O senhor é da polícia? Já vi alguns dos seus colegas e devia ter desconfiado. É verdade que não se parece com os outros...

- Pela excelente razão que não o sou. Juro-o pela Madona. Quer ver o meu passaporte? - perguntou, retirando o documento de um bolso interior. Dabrowski pegou nele, dando-lhe uma vista de olhos, enquanto Aldo acrescentava: - Como vê sou príncipe cristão e dou-Lhe a minha palavra de honra que ninguém me enviou, quer seja a Scotland Yard, o conde Solmanski, o advogado da prisioneira, ou até esta mesma. Foi ela quem me deu o seu nome pois Ladislas indicara-o para que o pudessem prevenir em caso de perigo urgente. Ora é o que se passa agora. Quando se ama uma mulher...

- Ele já a amou e até demais! Ela aproveitou-se dele, como de outras tantas pessoas das quais o senhor parece fazer parte. Ir ajudá-la equivale a pôr uma corda ao pescoço e isso, nós, os seus irmãos, nunca o permitiremos. Que ela se desenvencilhe da armadilha para onde o levou! Aliás já lhe disse que ele partiu, mas se quer tentar convencê-lo, o que muito me espantaria, sempre pode ir até Varsóvia.

- A mim espantar-me-ia é que ele tivesse deixado este país. Há semanas que a polícia o procura e eles fazem boa guarda. Portanto, não acredito minimamente nessa partida.

- Ninguém o obriga a isso... Agora, tenho de voltar às minhas ocupações: estão a chegar os primeiros fiéis para o ofício.

- De qualquer modo, acabarei por encontrá-lo onde quer que ele esteja, mas se por acaso o vir, diga-lhe o seguinte: estou disposto a entregar-lhe uma grande soma de dinheiro em troca da confissão escrita que salvará lady Ferrais. Irei mesmo até ao ponto de ajudá-lo a sair de Inglaterra, fazendo-o passar por um criado meu. Dou-lhe a minha palavra, mas se ele não fizer nada por ela, se deixar que a condenem, juro-lhe que ela será vingada!

- Como quiser. Quanto a mim, não tenho mais nada a dizer-Lhe.

Aldo não insistiu. A pequena igreja começava a encher-se. Ajoelhando-se, benzeu-se rapidamente frente ao altar e, depois, dirigiu-se para a saída, passando de raspão por Théobald que, tendo entrado discretamente um pouco antes, se ajoelhara diante de um genuflexório, mergulhando numa profunda prece.

- Agora, é a sua vez de jogar! - sussurrou-lhe.

Morosini sabia que se podia confiar nele e que logo que este começasse a seguir os passos do sacristão, não mais o largaria, tal como um cão ao seu osso favorito.

Contudo, não se foi embora.

Acabara de sair da igreja, de mãos enterradas no fundo dos bolsos da gabardina e de boné descido até à altura dos olhos, quando um táxi parou diante do portão. Num reflexo de curiosidade, rodou a cabeça e reconheceu o conde Solmanski. Este pediu ao motorista que o esperasse e depois entrou na capela. Subitamente inquieto, Aldo voltou imediatamente para trás. Seria possível que Anielka, apesar dos receios que manifestava, também tivesse dado aquelas coordenadas ao pai? Nesse caso, era inútil tê-lo chamado, a ele, em seu socorro...

A missa começara. No altar, oficiava um padre envergando uma casula branca bordada com um sol dourado, e que era ajudado por um sacristão que trazia uma alva branca.

Como Solmanski fora ajoelhar-se nas primeiras filas, Aldo optou por instalar-se perto de Théobald que olhou para ele surpreendido.

- Que é que se passa? - cochichou.

Com um sinal da cabeça, Morosini indicou-lhe o homem que trazia um elegante sobretudo preto:

- É o Solmanski. Pergunto-me o que veio aqui fazer. Aproveitando o facto de uma trintena de vozes sólidas encher o

espaço ao entoar o Tantum ergo, acrescentou ainda, já sem receio de ser ouvido:

- Ele não irá demorar-se; tem um táxi à espera. Se se aproximar do sacristão, não se mexa ou então siga-o discretamente. Senão, eu próprio me encarrego.

Dito isto, distanciou-se algumas cadeiras. Só lhe restava seguir o ofício até ao fim.

Quando este acabou, o padre e o seu acólito regressaram à sacristia. Algumas pessoas demoraram-se ainda, enquanto outras se iam embora. Solmanski permaneceu sentado durante uns momentos e, em seguida, levantou-se e dirigiu-se para a sacristia. Aldo não se mexeu, mas Théobald mudou de lugar a fim de se aproximar.

O conde reapareceu na companhia daquele que oficiara e que trazia agora uma capa acachoada por cima da batina e um chapéu redondo na cabeça. Falando em voz baixa, os dois homens abandonaram a igreja seguidos por Morosini. Escondendo-se sob o alpendre, viu-os entrar no táxi que se pôs imediatamente em andamento. Como não se avistava mais nenhum carro de serviço público, teve de renunciar a persegui-los e entrou mais uma vez na capela, onde Dabrovski estava ocupado a limpar tudo.

Quanto a Théobald, tinha desaparecido. Sem dúvida devia ter ido certificar-se que não existia mais nenhuma saída pela sacristia. Alguns segundos depois, esgueirou-se pela saída, avistou Morosini e foi ao seu encontro.

- As únicas saídas são o portão e a pequena porta do lado - cochichou. - Vamos embora! Vou esperá-lo lá fora, não quero ficar fechado aqui dentro.

- Quer que eu fique nas imediações?

- É inútil. Vou seguir o nosso homem e esperar para ver se ele não sai. Regresse a casa, senhor príncipe. Se por acaso precisar de ajuda, nessa altura telefono-lhe.

Há uma espécie de pastelaria à esquina, que faz também de café.

- Na Polónia chamam-lhe uma cukierna, e é lá que geralmente costumam servir uns bolos deliciosos...

- Pode servir. Agora, vá-se embora depressa. É melhor que não nos vejam juntos.

Morosini assentiu com a cabeça e fundiu-se na bruma da noite. Um táxi errante levou-o de volta a Chelsea, onde não encontrou ninguém em casa. No lugar e em vez de Adalbert, havia um pequeno bilhete que o informava que ele fora passear até Whitechapel "onde talvez houvesse algo a escarafunchar".

Whitechapel! O quarteirão judaico, cuja reputação já não precisava de ser feita desde as façanhas sangrentas de Jack, o Estripador! O que é que Vidal-Pellicorne poderia ir "escarafunchar" naquelas paragens? Aldo não gostava lá muito de saber o seu amigo vagueando por ali à noite. Contudo, sabia que ele era prudente e que estava habituado às expedições bizarras - não era verdade que ele pertencia, mais ou menos, aos serviços de informação do exército francês? - nas quais nunca se metia sem levar consigo uma arma. Afinal de contas, por que não teria a inatingível Rosa de Iorque florescido, num ou noutro momento da sua tumultuosa existência, junto a esses mestres da agiotagem que são os filhos de Israel? Por outro lado, se tal fosse o caso, como é que Simon Aronov não o soubera?

- Mas que estúpido sou! - exclamou, após um momento de reflexão. - Adalbert não me disse que lhe tinha escrito? Deve ter recebido uma resposta...

Tranquilizado, foi tomar um banho quente e, depois, como ninguém regressara, vasculhou o armário dos alimentos, escolhendo uma coxa de frango fria, um pedaço de queijo cheddar, um copo de vinho de Bordéus e transportou tudo para a sala de fumo, a fim de esperar pelo desenrolar dos acontecimentos mais comodamente instalado. Estava a acabar a refeição quando o telefone tocou. Do outro lado, ouviu a voz um pouco ofegante de Théobald:

- Encontro-me na gare de London Bridge. O nosso homem apresta-se a partir para Eastbourne e eu vou segui-lo.

- Eastbourne? Que vai ele fazer para lá?

- É o que vou tentar saber.

- Eu também. Vou ter consigo.

- Não há tempo, o comboio parte daqui a sete minutos.

- Nesse caso, apanho o comboio seguinte. Conhece Eastbourne?

- Nadinha!

- Eu também não, mas suponho que deve haver um ou dois hotéis nas imediações da gare. É uma prestigiada estação balnear. Irei ter consigo ao hotel que ficar situado em frente da estação...

- E se houver dois?

- O que ficar mais à direita. Alugarei dois quartos em meu nome. Faça a mesma coisa se chegar antes de mim. A que horas parte o próximo comboio?

- Às oito e doze. Deve chegar por volta das dez.

- Perfeito. Boa sorte, Théobald, mas, sobretudo, não faça nada sem eu estar presente! Seja o que for que descobrir, vá primeiro ter comigo e logo veremos o que fazer... se é o que o penso, essa gente é perigosa. Está armado?

- Sempre, quando sigo alguém...

- Agora, despache-se! Seria muito estúpido perder o comboio...

Depois de desligar, Aldo reuniu alguns objectos de toilette e algumas peças de roupa que pôs dentro de uma maleta, vestiu-se, escreveu a Adalbert uma carta curta mas suficientemente explícita, certificou-se que tinha a cigarreira cheia, verificou se o seu Browning estava carregado, pegou nalguns cartuchos suplementares, apagou as luzes, fechou a porta à chave e saiu de casa. Chamou um táxi que o conduziu sem percalços até à gare de London Bridge e embarcou para uma viagem de uma centena de quilómetros.

Não compreendia o que podia ir fazer a Eastbourne um sacristão com um aspecto um tanto desgraçado. Ele próprio nunca lá fora, mas conhecia-se bem a reputação daquela cidade balneária, mandada construir pelo duque de Devonshire em meados do século precedente para rivalizar com Brighton, junto à alta aristocracia. Era talvez a mais sumptuosa das cidades que desfilavam entre Portsmouth e Dover, e se a má estação do ano a esvaziava em larga medida dos seus elegantes e episódicos habitantes, mesmo assim ela continuava a ser o local de retiro favorito de toda uma classe da sociedade abastada.

Ao chegar a Eastbourne por volta das dez e um quarto, Morosini avistou logo o hotel desejado: o Terminus estendia-lhe os braços, quase diante da saída.

Era uma daquelas paragens para passageiros em negócios ou apressados; não tinha nada a ver com os palacetes à beira-mar, mas este género de albergue tinha a vantagem de ninguém prestar muita atenção às idas e vindas dos clientes. Apresentou-se como sendo M. Morosini e pediu dois quartos que pagou adiantadamente, um para si próprio e o outro, contíguo, para o seu criado, que se atrasara devido a um assunto de família e que devia chegar nessa mesma noite. Um porteiro ensonado, mas que se tornou logo surdo e cego graças à fabulosa oferta de uma nota de uma libra oferecida com o mais amável dos sorrisos, entregou-lhe duas chaves informando-o que ficara alojado no terceiro andar, mas que o elevador não estava a funcionar. O homem levou a sua complacência ao ponto de lhe anunciar que ele próprio se encarregaria de subir dali a pouco com a garrafa de uísque, o soda e os dois copos que Aldo lhe pedira.

Instalado num quarto sem idade e cujo único interesse residia no seu estado quase limpo, Aldo dispunha-se a uma longa espera, mas esta demorou menos do que temia. Pouco depois da meia-noite bateram à porta e Théobald entrou.

-Já de volta? - perguntou Morosini, estendendo-lhe um copo que ele aceitou reconhecido, esvaziando-o de um trago. - Pôde seguir o nosso homem até ao seu destino?

- Inteiramente, não... a menos que deseje que regresse a Londres com ele. Acabo de deixá-lo na gare, onde se dispõe a esperar pelo primeiro comboio da manhã na sala apropriada. Só ficou uma hora na casa para onde se dirigiu. Se bem que o termo casa seja um tanto impróprio para descrever a magnífica vivenda onde o vi entrar... E nem sequer foi pela porta de serviço! É quase incrível.

- Pode descrever-me essa vivenda e dizer-me onde se situa?

- Na Grand Parade, o passeio que bordeja o mar e onde ficam os hotéis mais belos, mas o mais simples é conduzi-lo até lá.

- Já se cansou quanto baste. Contente-se em explicar-me onde é e ficará aqui.

- Agradeço imenso ao senhor príncipe, mas não conheço suficientemente a cidade para lhe poder explicar o caminho; confio mais na memória dos meus passos e, além disso, não é longe daqui! Tanto mais que a bebida me espevitou.

- Nesse caso, vamos lá!

Foi fácil sair do hotel sem despertar as atenções: o porteiro ressonava, emitindo ruídos semelhantes ao crepitar do fogo na chaminé. Tal como Théobald dissera, o trajecto não era muito longo. Momentos depois, os dois homens deambulavam pela Grand Parade, de nome bem apropriado, pois era constituída por um estranho conjunto de edifícios que datavam da época vitoriana. Era evidente que o homem que engendrara aquela espantosa cidade quisera mais prestar uma homenagem ao orgulho britânico do que à glória da famosa soberana: afinal, não se tratava de levar a melhor sobre Brighton, que fazia as delícias da Corte? Brighton a barulhenta, a agitada. Ali, mesmo no Verão, devia reinar apenas a calma solene de uma aristocracia que se considerava acima de todas as coisas e que só tolerava o mar frente à sua grandeza, o qual reinava agora a esta hora tardia. A noite opaca, carregada de fria humidade, era apenas perturbada pelo ruído sedoso da ressaca das ondas.

A vivenda diante da qual pararam não destoava do conjunto que o veneziano avaliou severamente. Aldo estava muito impregnado da beleza pura da Sereníssima República para apreciar aquele incrível conjunto de pequenas torres, coruchéus, pilastras, cúpulas, terraços e colunas que traziam a assinatura de Paxton e dos seus confrades.

- Um autêntico bolo de casamento ! - considerou. - É aqui?

- Não há dúvida! Não há muitas que façam esquina...

- Nunca conseguirei habituar-me ao gosto inglês! Por onde é que se entra?

- Se decidir tocar, é por ali - indicou Théobald, apontando para a alta porta abobadada, situada sob um alpendre e da qual desciam algumas escadas até ao passeio marítimo, por entre quatro enormes janelas arqueadas. - A entrada de serviço fica na outra rua.

Aldo não respondeu. O seu olhar avaliava a altura do andar onde duas janelas realçadas por uma varanda gótica deixavam escoar um pouco de luz. Feitas as contas, o estilo vitoriano tinha algo de bom, pois oferecia muitas anfractuosidades a quem quisesse tentar uma escalada, ideia que o seduzia cada vez mais...

Examinando rapidamente a vizinhança, avaliou as suas possibilidades. Estas eram boas. Não se avistava um gato! Estava uma noite escura, apenas aclarada, aqui e além, por um parcimonioso bico de gás, enquanto que, no Verão, as casas e os hotéis deviam estar repletos de luz.

Retirando o sobretudo que lhe podia estorvar os movimentos, pô-lo nos braços de Théobald:

- Fique aí e cuide de se tornar invisível, sobretudo se passar alguma ronda; mas, se dentro de uma hora eu não tiver regressado, vá prevenir a polícia.

O fiel criado concordou, sem pensar em proferir a menor observação. Estava muito habituado às excentricidades do seu amo para se espantar com as do príncipe-antiquário, tanto mais que não lhe desagradava a ideia de viver um pouco perigosamente, tal como acontecia ao seu irmão gémeo Romuald(1). Portanto, limitou-se a murmurar:

- O senhor príncipe não quer que o acompanhe?

- Não, obrigado. Em casos destes, um vigia é sempre um auxiliar precioso. Deseje-me apenas boa sorte!

- Espero que o senhor príncipe não tenha dúvidas a esse respeito.

Aldo já subia pelas grossas pedras angulares sobre as quais reinava uma cornija, tanto mais atraente porquanto o trepador julgou avistar a essa altura uma janela entreaberta. Não teve qualquer dificuldade em alcançá-la. Era uma escalada fácil para o seu corpo robusto e bem treinado. Era a primeira vez que ia introduzir-se em casa de alguém pela janela e não sentia o menor remorso. Experimentava antes uma alegre excitação que lhe recordava Adalbert. Subitamente compreendia o prazer, um nada perverso, que este tinha quando, ao voltar as costas às suas ocupações oficiais de arqueólogo, se lançava numa das suas aventuras à margem da lei, para grande bem da nação francesa. Desta vez era para grande bem de uma jovem amada, o que era mais ou menos o mesmo...

Depois de transpor a janela que abriu sem o menor ruído, Aldo encontrou-se envolto pela escuridão e preso nas dobras dos cortinados de seda que se apressou a correr atrás de si, logo que se libertou. Depois, para se situar, acendeu a sua lanterna de bolso por breves momentos. Descobriu então que estava no interior de um quarto de senhora, recheado de móveis, mas sem qualquer presença humana. O seu diagnóstico foi confirmado pela existência de um toucador repleto de objectos e por uma abundância de passamanaria,

 

*1. Ver o volume 1, A Estrela Azul.

 

em que se detectavam vestígios de um rasto de perfume, ao qual se juntava curiosamente um odor de charuto. Era sem dúvida o quarto de um casal e se este ainda não se tinha deitado apesar da hora tardia, não devia estar longe dali. Talvez na sala vizinha, a que tinha a luz acesa...

O visitante aproximou-se da porta debaixo da qual passava uma réstia de luz, agarrou na maçaneta cuidadosa mas firmemente e abriu-a devagarinho, o suficiente para poder ver uns pés masculinos pousados em cima de um tamborete estofado de veludo castanho. Ia alargar o seu campo visual quando ficou imobilizado pelo ruído de uma outra porta que desta vez foi aberta sem precauções especiais. Quase logo a seguir ouviu-se uma voz masculina:

- Tenciona ficar de pé toda a noite? É vazamar e ainda não é para hoje.

- Pergunto-me se chegará um dia. Há semanas que espero! -resmungou outra voz também masculina, mas com um sotaque da Europa Central. - E talvez seja tempo de nos apressarmos: a visita de hoje à noite não foi de molde a tranquilizar-nos.

- Estou de acordo. Aliás, amanhã de manhã vou ter de me deslocar a Londres, para ver em que pé estão as coisas... É preciso dizer que andamos com pouca sorte com esta história de tráfico de ópio que se veio juntar à do assassinato do joalheiro que o palácio de Buckingham segue de tão perto. As polícias estão todas em estado de alerta e não é altura de pôr armas em circulação...

- É possível, mas não quero ficar mais tempo aqui. Há alguém à minha procura e se esse italiano soube encontrar Dabrovski, talvez chegue até mim.

- Dabrovski sabe o que faz e tem a certeza que não o seguiram.

No seu canto sombrio, Aldo cumprimentou mentalmente Théobald. Este também conhecia o seu ofício...

- Contudo - reatou a voz inglesa - é melhor tomar algumas precauções. Vou ver o sr. Simpson e pedir-lhe que lhe encontre um esconderijo enquanto esperamos pela sua partida. Dizer que será tão seguro quanto aqui, já é outra coisa, mas faremos o melhor que pudermos. Entretanto deite-se ou fique por aí, isso é lá consigo. Eu vou dormir!

Depois de o companheiro se ter ido embora, o homem estendido - que Morosini tinha quase a certeza ser Ladislas - soltou um profundo suspiro, apagou uma lâmpada e dirigiu-se para o local onde se encontrava o príncipe, que recuou na direcção da janela que não teve contudo o tempo de transpor, pois entretanto a luz acendera-se. Com um gesto rápido, puxou do revólver e apontou-o para o homem que acabara de entrar e que era efectivamente Ladislas.

- Boa noite! - proferiu tão tranquilamente como se tivesse encontrado o seu adversário à esquina de uma rua.

O jovem sobressaltou-se, olhando estarrecido para a alta silhueta daquele desconhecido cujos olhos, de um azul tão claro, pareciam querer pregá-lo ao soalho.

- Quem é o senhor?

- O italiano de quem lhe acabaram de falar. Está a ver que o seu sacristão era mais fácil de seguir do que supunha...

Enquanto falava, pensava que o estudante anarquista não mudara muito desde que o avistara nos jardins de Wilanow: era a mesma personagem morena, romântica e despenteada, a que se juntava um vestígio de barba e um roupão demasiadamente grande para o seu tamanho. Não havia nada que explicasse a existência de um amor capaz de levar uma rapariga encantadora ao suicídio...

- Que deseja? - perguntou Ladislas.

- Já lhe devem ter dito: quero que tire Anielka da embrulhada em que a meteu... Para isso, até estou disposto a dar-lhe dinheiro e a auxiliá-lo a regressar a casa...

- Desandar daqui para fora é o que mais desejo, mas quem lhe disse que a coloquei em apuros? Foi ela que se enredou a si própria...

- Na verdade? Então que foi fazer para casa dela? Que eu saiba não foi ela que vos foi buscar à Polónia!

- Não, é verdade. Pedi-lhe que me prestasse... alguns serviços... Não se importaria de baixar essa coisa? Tenciona matar-me?

- Não no imediato, porque você é mais preciso vivo do que morto. Portanto, mantenhamos as nossas respectivas posições e fale-me desses "pequenos serviços", que obteve aliás obrigando-a a dar à língua, não é verdade?

- Não foi preciso muito! O fim justifica os meios, cavalheiro, e nós precisamos de dinheiro e de armas. A oportunidade era demasiadamente bela: a minha querida amiga que vai desposar o maior comerciante de canhões da Europa...

- Por que diabo necessita de tantas munições de toda a espécie? Que eu saiba, agora a Polónia é um país livre...

- Ah! é isso que julga? Vê-se bem que não conhece o glorioso marechal Pilsudski, o nosso herói nacional. Para começar, o que é que um italiano pode perceber sobre a Polónia?

- O suficiente para ter ficado a saber que o Pilsudski em questão já não está no poder...

- Lá voltará e, além disso, é ele que puxa os cordelinhos. A Polónia, um país livre? Enfie nessa sua cabecinha que ele é apenas um ditador e que nós não queremos ditadores, mesmo que sejam polacos!

- Então, qual é o seu intuito? Fazer a revolução, como na Rússia? Você e os seus amigos são sem dúvida niilistas...

- Não tem nada a ver com isso. De qualquer modo, no que diz respeito a lady Ferrais, está fora de questão que seja eu a responsabilizar-me pela morte do marido. Não tive nada a ver com isso...

- Foi sem dúvida por isso que se escapou logo que o viu desfalecer...?

- Coloque-se no meu lugar! Percebi logo que a polícia ia chegar e que eu seria preso.

- Mas não se esqueceu de roubar as jóias de lady Ferrais...

- Não roubei nada: ela deu-mas, para que eu as trocasse por dinheiro.

Morosini sentiu-se vagamente enojado mas não conseguiu evitar de se rir ao pensar na imagem quase santa que a pobre Wanda fazia daquele rapaz. Um paladino! Um apaixonado de lenda! Grotesco!

- E dizer que há gente estúpida ao ponto de pensar que a ama. O rosto crispado do rapaz desanuviou-se como se tivesse sido

tocado por um sopro de doçura.

- E por que não? Amei-a loucamente... e penso que sobrou alguma coisa desse amor, mas não o suficiente para eu aceitar que me enforquem.

- Prefere que seja ela? Julga que foi ela que o matou? Ladislas passou uma mão tremente pelos cabelos desgrenhados.

- Talvez. Não sei de nada. Compete à justiça britânica prová-lo.

- Eu penso que a dita justiça provaria muito mais facilmente a sua culpabilidade. Se quiser ouvir a minha opinião, penso que você é um cobarde muito servil.

- Proíbo-lhe de me insultar. Se tivesse alguma oportunidade para poder salvá-la, sem ter de morrer, agarrá-la-ia.

- Mas eu trago-lhe essa oportunidade! Você vai escrever uma confissão em troca de uma certa soma, e essa confissão só será entregue à polícia depois de nos termos ambos ido embora. Conseguirei fazê-lo sair de Inglaterra e, depois, regressarei.

- Mas que quer que confesse? Que o matei?

- É claro. Se quiser saber a verdade, é isso mesmo que penso.

- Você é louco, tanto quanto eu o fui por ter querido entrar nessa maldita casa de Grosvenor Square. Não imagina a atmosfera que por lá reinava! Tresandava a ódio. Éramos três a desejar a mesma mulher e ela brincava connosco...

- No entanto, parece-me ter ouvido que as preferências dela pendiam para o seu lado, não? - perguntou Morosini, com uma voz subitamente glacial, à qual respondeu o riso amargo de Ladislas.

- É verdade. Durante um momento regressámos às brincadeiras de Varsóvia, mas o coração já lá não estava. Em Varsóvia ela amava-me. Aqui, queria que eu a desembaraçasse de um homem que a horrorizava. Só que não fui eu quem fez esse trabalhinho.

- Tem a certeza? Pois bem, é o que iremos ver, visto que não quer aceitar a minha generosa proposta - suspirou Aldo, enquanto afastava o duplo cortinado com uma mão, pondo a descoberto a larga abertura da janela. - Venha comigo e poderá dar todas as explicações que quiser à polícia. Por aqui, por favor - acrescentou, indicando a saída com a ponta do cano do revólver.

- Quer que passe pela janela?

- Eu também o fiz. E você é mais novo que eu. Tranquilize-se.

Ia para dizer: "há alguém que o espera lá em baixo", mas o projéctil foi mais rápido e cortou-lhe a palavra. Atingido na têmpora por um objecto projectado por mão firme, Morosini soltou um breve grito e, depois, deixando escapar a arma, caiu no soalho.

 

             CAPÍTULO 10 - ALGUMAS SINGELAS DESCOBERTAS

Quando Morosini recobrou quase distintamente a consciência, encontrava-se envolto numa escuridão oscilante e num estado praticamente lastimável. A cabeça doía-lhe tanto mais porquanto a mordaça que lhe tinham colocado em redor da boca estancava-lhe o sangue. O seu corpo não estava em melhor estado: atado como um salame, deslizava, era sacudido e embatia de encontro a um caixote sempre que o veículo, que devia ser uma furgoneta, andava aos solavancos num caminho onde não deviam faltar carreiros.

Tentando alinhavar as ideias, o prisioneiro concluiu que a sua situação nada tinha de invejável. Quanto ao destino que lhe reservavam, não era impossível que este fosse definitivo... Para onde o levavam?... a julgar pelo solo sobre o qual o engenho rodava deviam ter deixado a cidade, mas em que direcção?

Foi depressa informado ao distinguir a voz de Ladislas, que se sobrepunha ao ruído do motor:

- Não é preciso levar o carro tão longe! Sabe que as falésias são perigosas...

- Eu conheço-as melhor que você - grunhiu o homem que àquela hora contava estar já deitado a dormir. - E sei muito bem onde devo parar para não ter de carregar com ele durante muito tempo. O traste é pesado!

"Ora bem", pensou Morosini num tom lúgubre, "estes dois patifes vão simplesmente deitar-me ao mar de uma altura que não perdoará..."

Nunca tivera medo da morte que contemplara frequentemente de perto durante a guerra e, no fundo, era-lhe indiferente morrer daquela ou de outra forma, mas o fim que o esperava chocava o seu sentido da elegância: contrariava-o o facto de ser lançado como um vulgar saco de lixo, assim como a perspectiva de ter de abandonar uma existência assaz apaixonante.

- Aqui - disse o motorista. - Este sítio deve servir! Despachemo-nos, senão ainda encontramos alguma patrulha da alfândega...

Quando abriram as portas traseiras para puxá-lo para o exterior, Aldo viu que a noite estava mais clara e, sobretudo, menos enevoada: fora decerto a maré que, ao vazar, limpara um pouco a costa. Durante um momento a luz branca de um farol varreu uma nuvem que se arrastava. O anjo-da-guarda do polaco segurou nas cordas que o atavam e deitou-o no chão sem qualquer cerimónia o que, apesar da sua coragem, lhe arrancou um gemido de dor. Para sua surpresa, Ladislas protestou:

- Não é inútil fazê-lo sofrer dessa maneira?

- Ele não vai ter tempo para sofrer muito. Vamos lá, ó coração sensível, pegue-lhe pelos pés!

Aldo sentiu que o levantavam e que se punham a caminho. Pensando que já não tinha grande coisa a esperar deste mundo, rezou mentalmente uma oração, abriu os olhos e olhou para o céu que contava alcançar dentro em breve. Este estava sombrio, sem estrelas. Um digno céu inglês, tão pouco encorajante quanto possível, enquanto que teria sido tão doce morrer sob o de Veneza, terno e aveludado! No entanto, teve um arremesso de alegria consolando-se ao pensar que ia certamente ao encontro de sua mãe...

Subitamente a sua ascensão mística foi duramente interrompida. Uma voz acabara de gritar:

- Pousem-no devagarinho e mãos no ar! Ao menor gesto suspeito, disparo. E tenho boa pontaria!

Théobald! Sabe Deus graças a que milagre conseguira seguir os sequestradores e Aldo sentiu imediatamente, de novo e com toda a força, o pulsar do coração ávido de vida. Mesmo assim, o retorno foi um pouco rude, pois em vez de o pousarem com certas precauções, os dois malandrins deixaram-no cair ao mesmo tempo. Felizmente a erva era espessa e ele aterrou sem grande mal. Entretanto, o desconhecido disparara, mas Théobald também o fez quase em simultâneo. Ouviu-se um grito de dor e, depois, logo a seguir, a voz assustada de Ladislas:

- Fujamos!

Deram às de vila-diogo sem querer saber de mais nada. O feixe luminoso do farol permitiu que Morosini os visse enquanto se escapuliam na direcção da camioneta mas, desta vez, foi Ladislas quem se pôs ao volante. O outro apertava um dos ombros que devia doer-Lhe. Quanto a Théobald, nem sinal dele. Devia certamente ter-se deitado no solo antes de disparar. A viatura fez marcha atrás precipitadamente e, em seguida, deu meia volta. Os faróis acenderam-se e, rapidamente, daquilo que estivera prestes a ser o seu carro funerário, Morosini apenas avistou um fogacho vermelho depressa tragado pela escuridão.

A vaga inquietação que sentia quanto ao que acontecera ao seu companheiro dissipou-se depressa: o feixe de uma lâmpada eléctrica varria a falésia. Desatou a gemer para ajudá-lo a que o encontrasse e, alguns segundos depois, Théobald ajoelhava-se a seu lado.

- Não se sente muito mal?

- Hum, hum... - emitiu o pacote atado.

O fiel criado depressa retirou a mordaça e o sobrevivente inspirou uma grande golfada de ar fresco.

- Devo-lhe a vida, meu caro! - suspirou, enquanto Théobald se apressava a cortar as cordas e a friccionar-lhe os membros doridos. - Como fez?

- Ouvi um grito e pensei que era o senhor. Então escalei também muro acima e pude ver esses fulanos que o atavam e o amordaçavam. Um deles falou das falésias de Beachy Head e como imaginei que não o iriam transportar às costas, dirigi-me para a garagem e esperei pela saída da viatura, pendurando-me na parte de trás...

- Não foi arriscado?

- Já o fiz várias vezes. Se tivesse falhado teria disparado nos pneus mas isso teria sido ainda mais arriscado, pois não sei quantas pessoas há naquela casa e se me caíssem em cima podíamos ambos ser mortos.

- Eu só vi aqueles dois! Ai! Sinto-me enferrujado como ferro velho... - acrescentou Aldo ao verificar a elasticidade dos braços e das pernas.

- Consegue andar até à cidade?

- Que remédio! Vamos lá!

Apoiado no seu salvador, tratou de descer na direcção de Eastbourne, cujas luxuosas construções brancas começavam a aparecer à luz da alvorada mas, ao chegar às primeiras casas, a cabeça de Aldo começou a andar à roda e teve de se sentar num pequeno muro.

- Por acaso não traz nenhum fortificante nos bolsos?

- Infelizmente, não! E lastimo imenso. Até que é a primeira vez! Mas vou bater à porta de uma dessas casas para que nos ajudem.

Ainda não acabara de falar e abriu-se a porta de uma casinha de campo por onde saiu um polícia que estava mesmo a acabar de ajustar o capacete. Reparou depressa nos dois homens e foi ao seu encontro.

- Posso ajudar-vos, meus senhores? O cavalheiro não está com bom aspecto.

- O seu auxílio será bem-vindo - suspirou Aldo depois de lançar uma olhadela para avisar Théobald. - Ontem à noite estava a passear nestas magníficas falésias quando me aconteceu um acidente: caí num buraco. Fiquei por lá mais ou menos inanimado até que o meu secretário, inquieto por não me ver regressar ao hotel, pôs-se à minha procura e conseguiu encontrar-me.

- É verdade que as nossas falésias são muito belas, mas esse seu passeio foi uma grave imprudência, sobretudo à noite! - disse o homem, num tom importante que reforçou a convicção de Morosini em como seria melhor nada revelar da sua aventura a este polícia local, capaz de levá-lo para a prisão por ele ter entrado sem autorização numa rica residência. Aliás, este já acrescentava num tom de ligeira desconfiança: " Que raio de ideia de ir passear por ali ontem à noite! O tempo não estava assim tão bom. E o senhor tem aspecto de estrangeiro!"

- E sou-o! Príncipe Morosini, de Veneza, ao seu serviço! E também sou um romântico incurável! Adoro ver as terras dos confins ao cair da noite, é um excelente remédio para os males do coração...

Tinha a certeza que o polícia haveria de entender esta linguagem. Efectivamente, este prosseguiu:

- Não estava por acaso a pensar em suicidar-se?

- Nesse caso não teria certamente falhado. As vossas falésias são perfeitas para isso. Escute-me, sargento, tudo o que desejo é beber algo quente ou forte e regressar depois ao meu hotel, antes de partir para Londres.

- Bom, venha a minha casa! A sra. Potter preparar-lhe-á um bom chá enquanto eu irei buscar um carro. Em que hotel está hospedado?

- No Terminus. Era o que estava à mão de semear ao sair da gare.

- Para um príncipe teria podido encontrar melhor. Aqui temos os melhores hotéis do país: o Cavendish, o Grand, o Burlington...

Pensando que ia ter direito à lista de todos os hotéis bem como à descrição pormenorizada dos encantos de Eastbourne, Aldo fingiu que se sentia mal, o que lhe valeu receber alguns tabefes antes de ser levado entre os seus dois companheiros até à casinha do sargento Potter, onde uma mulher parecida com uma maçã camoesa teve o maior prazer em acudir a um homem tão belo, possuidor de uma tão bonita voz e que se dirigia a ela como a uma lady.

No entanto, e apesar do seu aspecto um tanto pesado, o esposo talvez fosse menos parvo e, sobretudo, mais curioso do que parecia. Quando o carro da polícia que fora buscar o levou até ao Terminus na companhia dos seus sobreviventes, fez uma nova pergunta que indicava que no seu espírito havia algo que não estava claro.

- Se bem compreendi, o senhor veio apenas dar uma volta pelas falésias, acompanhado por um secretário e agora vai-se embora?

- Eu sei que deve parecer estranho, mas este passeio romântico fazia parte de um todo. Repare, eu sou um estrangeiro, mas a vida inglesa agrada-me e ouvi tecer rasgados elogios sobre o charme de Eastbourne. Quis ver pelos meus próprios olhos. Efectivamente, é possível que pense comprar... ou alugar para a próxima estação estival...

- Compreendo! Mas que tipo de casa lhe agradaria? Uma casinha de campo como a minha?

O carro rodava na Grand Parade. Aldo teve uma ideia e demorou um bocado a responder, até que avistou uma fachada que não estava perto de esquecer.

- A sua casa é encantadora - respondeu finalmente - mas preciso de algo mais amplo para poder convidar os amigos. Conto receber muita gente e gostaria muito... de uma casa como aquela, por exemplo! Seria perfeita.

Apesar de se ter sentido como se lhe tivessem dado um soco no estômago, o sargento Potter acabou por soltar uma grande gargalhada:

- Ah, com efeito! O senhor não é nada difícil, pois não? Só que essa casa não está à venda, nem está para alugar.

- Tem a certeza? - perguntou Morosini, desempenhando o papel dos néscios incrédulos. - Talvez seja uma questão de preço...

- Mesmo que oferecesse milhões, seria coisa impossível! Fique sabendo, cavalheiro - acrescentou, dando-se grandes ares - que esta vivenda pertence a Sua Graça, a duquesa de Danvers...

- Hum, hum! Evidentemente! - disse Aldo, aclarando a garganta para esconder a sua surpresa. - Nesse caso é melhor que procure outra coisa.

 

Algumas horas mais tarde, sentado perto da lareira numa das duas grandes poltronas de cabedal preto do salão de Chelsea, Adalbert ouvia o seu amigo, estendido na outra, a narrar-lhe a sua espantosa odisseia, sem pensar sequer um momento em dissimular o seu espanto.

- A casa da duquesa a servir de asilo para o suposto assassino de Ferrais, de quem sabemos que ela muito gostava mas que, sobretudo, a ajudava a manter um nível de vida normal para a sua classe? É uma história de doidos!

- Durante a minha viagem de regresso, revolvi a questão em todos os sentidos e acabei por chegar à conclusão que talvez não seja assim tão insensato. Se bem compreendi pelo que diziam os dois homens que me quiseram matar, Ladislas estava à espera de um barco para rumar para a Polónia com um carregamento de armas. Estás a seguir-me?

- Passo a passo. É verdade que uma residência tão aristocrática sempre é um esconderijo ideal para um tráfico clandestino, mesmo que isso pareça um bocado difícil de engolir.

- Não sou da mesma opinião. Pelo menos em princípio, toda a gente sabia que sir Eric vendia armas. Essa era a parte visível do ice-bergue, se assim ouso dizer, mas estou persuadido que uma boa parte dos seus negócios decorriam por baixo da mesa e que, aliás, a duquesa o ajudava, conscientemente ou não...

- Que queres dizer?

- Que ela me parece um pouco parva para poder levar a fim negócios tão delicados. Em compensação, quando os dois homens falaram de um certo Simpson, que convinha consultar o mais depressa possível, houve algo que me acudiu à memória.

- Conhece-lo?

- Digamos que já o vi: precisamente em casa de lady Danvers. É o seu mordomo...

Transportando uma bandeja com café, Théobald entrou com um ar tão fresco como se tivesse passado uma óptima noite na cama em vez de ter estado a percorrer as falésias e ouviu o fim da frase.

- Se me permitem - disse -, e no seguimento do que o senhor príncipe me quis contar no comboio, sinto-me tentado a pensar que Sua Graça não está ao corrente de nada e que ignora tudo o que se passa em sua casa...

- Isso não te parece um bocado difícil de engolir? - emitiu Vidal-Pellicorne, apoderando-se de uma chávena fumegante para passá-la sob as narinas com um ar guloso. - Ela não devia saber de onde provinha o dinheiro que recebia?

- Até há pouco, sabia-o sem dúvida. Mas, agora que sir Ferrais desapareceu... por que motivo esse Simpson não teria achado por bem prosseguir com um comércio tão lucrativo? - inquiriu Théobald.

- Eu inclino-me para o parecer dele - reatou Morosini. - Teríamos ainda de saber a quem se dirigem os nossos clandestinos para se fornecerem.

- Isso só Sutton o poderá dizer e, mesmo assim!... Bem imaginas como devem ser infinitamente complexas e delicadas as engrenagens de um negócio desse tipo... De qualquer modo - concluiu Adalbert - uma coisa é certa: tens de ir contar tudo a Warren!

- Eu sei. Penso nisso desde hoje de manhã, mas não tenho o direito de o fazer. Prometi a Anielka que não avisaria a polícia.

- Essa é a melhor! E o que terias feito com o teu Ladislas, caso tivesses conseguido tirá-lo da residência e levá-lo contigo?

- Ele afirma que nada tem a ver com o crime.

- Talvez seja verdade. Resta saber em qual dos dois queres acreditar e, sobretudo, quem desejas salvar. A menos que se tenha tornado estúpida, a própria Anielka devia saber que caso conseguisses apanhar o rapaz, serias obrigado a entregá-lo.

- Sim, mas conquanto fosse eu a apanhá-lo e não uma escolta de polícias.

- Para que ele não parecesse ter sido denunciado por ela? Mas que subtil diferença! - resmungou Adalbert. - Só que agora, com a entrada em cena da duquesa, as coisas estão a ir longe demais! Imagina só que, ao guardar silêncio, te arriscas a tornares-te cúmplice num caso de tráfico de armas, cujas consequências ignoras. Agradar-te-ia passar algumas dezenas de anos em Pentonville ou em Dartmoor?

Aldo reflectiu um pouco e depois, para dispor de um pouco de tempo, procurou mudar de assunto:

- E, a propósito, como vão as coisas contigo? A tua expedição a Whitechapel deu alguns resultados?

- Não tentes adiar as resoluções! Tenho coisas para te contar, mas isso pode esperar até logo à noite... Vais ver o superintendente ou terei eu de ir no teu lugar?

- Não é preciso - suspirou Morosini -, irei eu. É melhor que assim seja, pois posso fornecer uma discrição do inimigo. Só espero que o consiga convencer a agir discretamente e, caso seja necessário, que recorra aos meus préstimos quando tiver uma oportunidade de apanhar o polaco. Bem me poderia conceder esse favor: deve ficar contente com tudo o que lhe trago...

Era dar provas de muita candura e quando chegou à Scotland Yard, as esperanças de Morosini desabaram mais depressa que os muros de Jericó sob a trompa de Josué. O pterodáctilo mostrou-se moderadamente feliz por rever o príncipe-antiquário mas, quando este começou a desfiar a história da sua aventura balneária, o inspector passou sem transição de uma indiferença bem educada a uma espécie de transe e largou voo através da secretária, batendo furiosamente com as asas.

- O quê? - berrou. - O senhor recolheu informações desse gabarito e só agora é que as traz, depois de ter escangalhado tudo? Sabe que poderia mandá-lo prender, acusando-o de obstrução ao trabalho da polícia?

- E que é que isso lhe adiantaria? - perguntou Aldo, sem perder a calma. - Posso recordar-lhe que tive de jurar a lady Ferrais que não revelaria as informações que me confiou, de modo a que eu me encarregasse pessoalmente de "apreender" - não é assim que se costuma dizer? - o seu antigo apaixonado, para que ela não pudesse depois ser acusada de...

- ... o ter denunciado e, portanto, a arriscar-se a que os seus amigos anarquistas o vingassem - declamou Warren, fora de si. - Já conheço a lengalenga. E então, e agora o senhor perdeu os seus escrúpulos, é isso?

- Nem por isso mas, a partir do momento em que me encontrei confrontado com um caso de tráfico de armas susceptível de interessar a segurança do Estado e pondo em causa uma personalidade chegada à Coroa, achei que já não tinha o direito de me calar...

- Valha-nos isso!

O superintendente regressou ao seu assento, pegou num bloco de papel e tirou a tampa da caneta.

- Bom, se não se importa, vamos recomeçar tudo desde o princípio. E pormenorizadamente!

- Não... não chama o seu secretário para tomar nota da minha deposição?

- Devemos agir dentro da maior discrição, não é? - uivou Warren. - Portanto, eu próprio me encarrego disso e depois logo verei como poderemos tentar preservar esse segredo imbecil que essa jovem idiota o obriga a guardar!

Aldo, sentindo-se aliviado de um grande peso, recomeçou a sua história, esforçando-se por ser o mais preciso possível e por não se esquecer de nada. Durante um longo período só se ouviu a sua voz abafada e o raspar da caneta no papel...

Quando tudo terminou e enquanto Warren lia o que acabara de escrever, Morosini, após uma curta hesitação, pediu:

- Pode fazer-me um favor?

- Qual?

- O de me avisar assim que souber onde está Wosinski, para que eu mesmo o agarre. Não o quero impedir de proteger a sua retaguarda mas, ao menos, conceda-me a honra de acabar sozinho o que comecei em Eastbourne...

Os olhos redondos e amarelos do pterodáctilo fixaram-se no rosto crispado do seu visitante.

- Agora que ele já o conhece, isso seria uma grande imprudência. Não hesitará em disparar sobre o senhor. Quer arriscar a sua vida?

- Sem qualquer hesitação. Quero cumprir a missão que me confiaram. Mesmo que seja esse o preço a pagar. A partir de agora estarei ao seu inteiro dispor.

O polícia não respondeu, avaliando o homem que estava diante dele. Por fim fechou a caneta que atirou para cima dos papéis que tinha à sua frente.

- Nunca duvidei que o senhor fosse um homem de nobre coração e compreendo o seu dilema. Prometo-lhe que farei todo o possível para lhe dar satisfação mas apenas, é claro, se, ao deixá-lo agir, não estivermos a comprometer o êxito da operação. Evidentemente, terá de obedecer estritamente - carregou nesta palavra -às ordens que eu lhe der.

- Tem a minha palavra.

Bateram à porta e sem esperar pela resposta, o inspector Pointer entrou no escritório do seu chefe, inclinou-se junto ao seu ouvido, dizendo-lhe algo em voz baixa. Tratava-se seguramente de uma notícia importante pois o superintendente estremeceu, embora afastando o subordinado com um gesto.

- Veremos isso depois! Por ora vou terminar o meu encontro com o príncipe.

- Não consigo perceber como pôde acontecer, sir! A vigilância era contudo impecável...

- Agora, deixe-me, Pointer! Já o chamo.

O inspector saiu contrariado. Morosini dispôs-se a seguir-lhe o exemplo. Quanto a Warren, não se mexia. Parecia perdido num profundo devaneio enquanto os seus longos dedos tamborilavam no braço da poltrona. Subitamente, declarou:

- Não vamos poder guardar isto em segredo por muito tempo, por isso mais vale contar-lhe já: Yuan Chang enforcou-se na prisão com um cordão de seda amarela.

- Enforcou-se? - assobiou Morosini, estarrecido. - Mas numa destas noites não me tinha declarado que não iria conseguir mantê-lo preso muito tempo? Então porque é que ele se matou? Não arriscava a pena de morte.

- No entanto, aplicou-a a si mesmo. Enfim, quase...

- Que quer dizer? Então não foi ele que se matou voluntariamente?

- É um pouco isso. Diria que se trata de um suicídio encomendado. Conhece a China, príncipe Morosini?

- Não. Conheço a sua arte e cultura, mas nunca lá estive.

- A sua cultura? Sabe algo acerca dos antigos costumes imperiais?

Particularmente aquele que era designado por "presentes preciosos"? Não?... Então, explico: quando o imperador tinha motivos de queixa de qualquer dos seus súbditos ou dignitários mais prestigiados e que, devido aos serviços por ele prestados não desejava enviá-lo ao carrasco, enviava-lhe antes os chamados "presentes preciosos": um cordão de seda amarela - a cor imperial! - e um saco de seda contendo veneno e um punhal. Isso significava que lhe dava a escolher que tipo de morte queria...

- E se ele escolhesse a vida?

- Impossível! Nesse caso, era a execução imediata. No caso que nos ocupa, julgo que Yuan Chang não teve alternativa; tudo o que devem ter conseguido entregar-lhe foi o cordão, no interior de um pão ou sabe Deus o quê! Mesmo assim não deixou de obedecer... como o deve fazer qualquer mandarim. O que ele era realmente, não há dúvida!

- Espere, espere! - protestou Morosini. - Diz que ele obedeceu. Mas, a quem? Fala de um costume imperial, mas há anos que a China está em revolução. Sun Yat Sen é o seu mestre e não penso que ele se preocupe em ressuscitar os imperadores manchus!

- Bom, com a China é preciso contar com tudo: com o impossível, o inconcebível, o desconhecido, o delirante, mas, sobretudo, com raízes que mergulham tão profundamente na noite dos tempos que, não obstante as lavras e as mondas, as mais sólidas resistem sempre. Claro que o país vive a sua revolução! No entanto, o jovem imperador Pou Yi, hoje destituído, permanece ainda dentro dos seus palácios na Cidade Proibida. Isso leva a supor que existe ainda um certo número de fiéis espalhados através do império pulverizado. Yuan Chang devia fazer parte deles. Se bem que residisse desde há anos em Londres, não se esqueça que veio de Hong-Kong, onde as conspirações florescem como flores ao Sol...

- À parte o facto deste "suicídio" diminuir as oportunidades para o senhor recuperar o diamante de Harrison, ele ainda altera mais alguma coisa?

Warren retirou de cima da mesa um lindo cachimbo em urze escocesa, que começou a encher com ar sonhador, comprimindo o tabaco com o polegar, antes de acendê-lo e de aspirar uma longa baforada que pareceu descontraí-lo.

- Evidentemente! - respondeu, por fim. - Isso significa que cometemos um erro ao conceder-lhe demasiado poder, ao julgarmos que agia sozinho, como um coleccionador devoto à procura de tesouros desaparecidos. Agora somos obrigados a constatar que ele era apenas uma das cabeças, apontada para a Inglaterra, de uma dessas hidras implacáveis que se chamam as tríades e que, para alcançarem os seus fins, elevam o crime ao nível de uma instituição. Para eles, tudo serve: o tráfico de armas, de drogas, de mulheres, de escravos e, até, de crianças. Se quer saber qual o meu sentimento, até começo a lastimar Yuan Chang. Ao menos com ele sabíamos mais ou menos em que pé nos encontrávamos. Agora vamos navegar no nevoeiro...

- E lady Mary? Também vai navegar, como o senhor, no nevoeiro?

- Não sei. Se se convencer que o diamante lhe vai escapar, pode ser que desista.

- Isso espantar-me-ia. Por debaixo dos seus ares graciosos, ela assemelha-se muito a um buldogue a quem tiraram o osso. Ela levará a sua loucura até ao fim.

- De qualquer modo, continuará a ser vigiada... e tanto melhor se um dia me der a alegria de poder conduzi-la diante dos seus juízes! - concluiu Warren num tom de tal modo selvagem que Morosini sentiu um arrepio na espinha.

- Faz disso uma questão pessoal? - espantou-se.

- Desta vez, sim! Tenho a certeza que foi ela que matou George Harrison; sem a sua cupidez ainda contaríamos com um homem de bem entre nós.

A gravidade do tom deixava supor que, no que lhe dizia respeito, o seu julgamento seria sem apelo mas, afinal de contas, Aldo não sentia a menor vontade de defender a causa da nova condessa de Killrenan, tanto mais que durante um dos seus numerosos devaneios chegara mesmo a perguntar-se se ela também não seria responsável pelo assassinato de sir Andrew. Para uma mulher que dispunha de tais cumplicidades, talvez não representasse dificuldade de maior mandar comprar um ladrão e assassino, em Port-Said. E ainda julgava lembrar-se que, depois da sua malograda visita ao palácio Morosini, ela queria ir no encalço do Robert-Bruce(1)... Mas guardou estas

 

*1. Ver o volume 1,, A Estrela Azul.

 

reflexões para si. Aliás, era tempo de se ir embora. Pegou no chapéu e nas luvas que deixara sobre uma cadeira.

- Penso que sou da mesma opinião a esse respeito e confesso que, neste momento, sinto-me inclinado a lastimá-lo. Dir-se-ia que a alta sociedade está voltada contra si: depois de lady Mary, é a vez da duquesa de Danvers...

- Tem razão; não é um problema dos menores. Se bem que eu pense que esta última é demasiado burra para tramar o que quer que seja... A propósito, conto consigo para que isto tudo permaneça secreto.

- Espero que não duvide...?

- Não, mas desconfio desse jornalista do Evening Mail, com quem o nosso amigo arqueólogo se encontra tantas vezes.

Aldo desatou a rir.

- Devia saber que Vidal-Pellicorne mantém os olhos fisgados no Vale dos Reis e nas façanhas do sr. Cárter. Graças a Bertram Cootes ele fica a saber as novidades mais depressa. A duquesa não tem qualquer interesse para nenhum deles...

- Esperemos que assim continue! Até breve, talvez...

Existe um ditado que diz: "falai no mau, aparelhai o pau". Ao regressar a Chelsea, Morosini quase caiu nos braços de Bertram que descia as escadas a toda a pressa, trauteando uma velha canção galesa. Ao reconhecer o recém-chegado apresentou-lhe desculpas com grande loquacidade e, com um sorriso radiante, pegou-lhe nas mãos que apertou com um afecto inesperado, precipitando-se depois para a rua com o impermeável que ao esvoaçar punha a descoberto um fato de cheviote muito maltratado, enquanto gritava:

- A vida é bela! Nem pode saber como por vezes a vida é bela! Aldo nem procurou destrinçar se era uma frase da autoria de Shakespeare ou do próprio Bertram. Depois de vê-lo desaparecer no nevoeiro nocturno, foi ter com Vidal-Pellicorne que encontrou entretido a fazer uma paciência. Este levantou os olhos ao ver entrar o amigo:

- Então? O pterodáctilo não te comeu?

- Bem tentou, mas finalmente chegámos a um acordo. Olha lá, acabo de encontrar Bertram em pleno júbilo. Um verdadeiro fogo-fátuo! Que lhe aconteceu? Alguma herança?

- Digamos que acaba de herdar cinquenta libras que lhe outorguei a título de gratificação, de agradecimento e de convite ao silêncio. Pelo menos por mais algum tempo...

- Cinquenta libras! És muito generoso.

- Acredita-me que as merece! Foi graças a ele que pude descobrir uma nova pista da Rosa. Desta vez muito mais próxima de nós, pois termina nos primeiros anos deste século.

- Ah, porque ela também acaba? O contrário ter-me-ia surpreendido. Mas, ouve lá, não foste revelar a esse jornalista que a pedra que roubaram na loja do Harrison era falsa, pois não?

- Mas quem julgas que sou? Ele continua a acreditar na nossa versão oficial, mas como nestes últimos tempos não tem encontrado nada para escrever dado que só lhe entregam casos de cães atropelados, teve a ideia de redigir umas quantas páginas contando histórias de pedras estranhas, talvez no intuito de reuni-las num livro; claro que tudo gira em torno do desaparecimento da Rosa. Portanto veio visitar-me para saber o que pude aprender durante a minha longa vida de arqueólogo acerca de jóias estranhas que aparecem subitamente em locais inesperados. O seu projecto não é mau e quis saber onde o desencantara. Foi nessa altura que me falou do seu amigo Lévi, um alfaiate judeu de Whitechapel, que se habituou a frequentar.

Aldo não conseguiu suster o riso ao lembrar-se do fato de cheviote sebento que o jornalista envergava há pouco.

- Um alfaiate? Bertram Cootes? Pensei que se vestisse numa lojeca de trapos.

Vidal-Pellicorne dardejou um olhar severo na direcção do amigo.

- Quando se é tão elegante como tu, há que se mostrar mais condescendente! Bertram desenvencilha-se como pode. Quanto à história que ele e o seu alfaiate me contaram, ela não é para rir.

É indubitavelmente excitante mas é, sobretudo, terrível.

- Não estás a exagerar um bocado? As histórias medonhas de Whitechapel eram coisa de há quarenta anos atrás, do tempo de Jack, o Estripador...

Os olhos azuis de Adalbert, repentinamente graves, pousaram-se nos do amigo enquanto que as suas mãos remexiam nas cartas espalhadas pela mesa.

- Vais apanhar a surpresa da tua vida, tal como me aconteceu a mim, mas a verdade é que esse famoso diamante, essa pedra real que tantas personagens ilustres manejaram, rolou efectivamente pelos riachos sangrentos onde o monstro sem rosto abandonava as suas vítimas. Tenho a certeza!

- O quê? Não estás a sonhar?

- Oh não! Aliás, poderás julgar por ti próprio. Ontem à noite convenci Bertram a que me levasse até lá, prometendo-lhe uma bela recompensa caso conseguisse que o seu amigo partilhasse comigo as lembranças que tinha acerca do que chama "a pedra judaica".

- A pedra judaica? E seria.

- Ora ouve: na noite do dia 29 de Setembro de 1888, por volta da uma da manhã, um vendedor ambulante polaco - e judeu! - entrou com a sua carrinha no pátio do Clube Recreativo dos trabalhadores estrangeiros, que se encontrava em Berner Street. De repente o cavalo afastou-se e, ao dirigir a sua lanterna para o solo, o homem descobriu o corpo de uma mulher degolada. Ao mesmo tempo, avistou uma silhueta sombria que se afastava envolta pela escuridão do pátio. Primeiro quis gritar mas, como o terror o paralisara, não conseguiu e deixou-se cair de joelhos perto do cadáver ainda quente. Nessa altura descobriu uma coisa que brilhava ao pé da sua mão: era uma espécie de pedra suja de lama. Apanhou-a, pô-la no bolso e, por fim, conseguiu gritar por socorro. Pouco depois, as pessoas que ainda estavam no clube acorreram, logo seguidas pela polícia. Trataram de acalmar o vendedor ambulante, meio morto de medo: este fora efectivamente o terceiro crime cometido pelo Estripador, se bem que a vítima não tivesse sido esventrada pois a chegada da carrinha pusera o assassino em fuga. A nova vítima chamava-se Elizabeth Stride: era uma viúva de uns quarenta anos, que se dedicara à prostituição depois do internamento e da morte do marido na prisão, mas que conhecera melhores dias... Esqueçamo-la! Ao regressar a casa, depois de ter passado um bom bocado na esquadra, o vendedor-ambulante lembrou-se do seu achado, tirou-o do bolso e pôs-se a limpá-lo. Se bem que nunca tivesse visto um diamante polido e sem estar lapidado e que a sua cultura fosse das mais rudimentares, percebeu depressa que aquela não era uma pedra como as outras. Teve a ideia de entregá-la à polícia, mas como não o fizera logo na altura, receou as consequências do seu gesto tardio e preferiu submeter o problema ao seu vizinho, o rabi Eliphas Lévi, com o qual era um pouco aparentado. Este era um homem pio, sábio, prudente e em quem se podia depositar toda a confiança.

"O rabi começou por felicitar o vendedor ambulante por ter ido procurá-lo. Dado que cometera a imprudência de apanhar algo no local do crime e de nada dizer, era melhor que prosseguisse nessa via. A polícia agia frequentemente com brutalidade e sem grande discernimento desde o princípio do pesadelo que se vivia em Whitechapel. Foi assim que, por exemplo, por ocasião de um dos crimes precedentes e tendo a imaginação de todos os habitantes do quarteirão assinalado a vaga silhueta de um homem com um avental de cabedal, acabaram por prender um desgraçado sapateiro, judeu e polaco, chamado John Pizer, enquanto que se iniciava o esboço de um pogrom para os seus próximos. Felizmente tinha um álibi e soltaram-no. Eliphas Lévi, que sentira de que lado soprava o vento, não desejava minimamente que aquele se repetisse. O melhor era ficar calado mas para que o seu vizinho não se sentisse lesado, propôs-lhe tomar conta da pedra a fim de estudá-la, entregando-lhe, entretanto, um pouco de dinheiro.

"Uma vez só, o rabi examinou a pedra com grande cuidado. Sempre se interessara pela mineralogia e possuía um pequeno equipamento que continha uma lupa. Depressa descobriu uma minúscula estrela de David na face mais achatada do cabochão. A partir daí, pensando que tinha nas mãos um objecto sagrado, tanto mais que conhecia a lenda do peitoral perdido, fez dele o seu mais querido tesouro, preocupando-se pouco com o seu valor mercantil, persuadido que ele lhe chegara vindo do fundo dos tempos. Contudo, prudente como era, fechou a pedra num cofre sólido e não falou do assunto a ninguém, excepto aos seus dois filhos quando estes chegaram à idade de o compreender. Um deles é Ebenezer, o alfaiate...

- Magnífico! - exclamou Morosini entusiasmado. - Só nos resta convencer esse bravo homem a vendê-la. Admito que será um pouco difícil, mas se lhe dissermos que o peitoral ainda existe e que precisa...

- E se me deixasses acabar? - grunhiu o arqueólogo.- Se o diamante ainda estivesse em Whitechapel tinha começado por to dizer... mas já não é o caso. Há uma dezena de anos, o rabi e o seu filho mais velho, também ele destinado à vida religiosa, foram assassinados numa negra noite de Inverno. E o cofre desapareceu...

- Oh não! - gemeu Aldo, desencorajado. - Começo a crer que nunca conseguiremos encontrar esse malfadado diamante! É o Demónio que o possui!

- É um pouco a minha impressão. Queres que te diga uma coisa? Se o apanharmos, apressamo-nos a entregá-lo a Simon para que ele o volte a pôr no seu lugar. Essa pedra dá-me náuseas e mete-me medo: está muito manchada de sangue!

- O que não consigo compreender é como foi parar às mãos de uma prostituta de baixo nível.

- Vá-se lá saber! O seu marido, cujo desaparecimento a conduziu para a rua, era um ladrão. Quem sabe onde teria podido encontrá-la.

- Mas com uma herança dessas, como é possível que essa tal Elizabeth Stride tivesse optado por uma vida nos esgotos quando podia levar uma existência confortável? Ela podia vendê-la.

- Muito dificilmente! Deve ter compreendido que o marido não a encontrara ao passear por Hyde Park. Além disso, esse velho diamante polido não é uma pedra lá muito cativante. Sem dúvida que ela ignorava o seu valor e até talvez achasse que devia trazê-la como lembrança. O assassino apenas teve tempo para a degolar e rasgar-Lhe o vestido... A pedra deslizou e é tudo!

- É verdade que às vezes as explicações mais simples são as melhores - suspirou Aldo. - Contudo, podemos pôr-nos a conjecturar: e se o Estripador estivesse à procura da pedra?

- Isso já não é conjecturar, é delirar! - sentenciou Adalbert, encolhendo os ombros...

- Não sei se já ouviste isto, mas esse criminoso fora de série seria, nem mais nem menos, o duque de Clarence, neto da rainha Vitória(nt), falecido em 1892, mas que se cochicha que ainda estaria vivo, internado num asilo de loucos, onde o tratam de uma sífilis incurável...

- Onde foste buscar isso?

 

*nT. Efectivamente, esta continua a ser uma das hipóteses mais partilhadas entre os meios especializados na matéria.

 

- Foi lorde Killrenan que contou essa versão à minha mãe. Versão na qual acreditava: não deixa de ser estranho que após terem tentado implicar os judeus nessa abominação, as buscas tivessem cessado bruscamente...

Théobald veio anunciar que o jantar estava pronto e os dois amigos passaram à mesa, contentando-se em lavar as mãos pois nenhum deles tinha vontade de fazer grandes toilettes.

Enquanto provavam a sopa de lagosta, Morosini guardou um silêncio repleto de reflexões, mas assim que acabou o prato voltou aos crimes de Whitechapel.

- O alfaiate de Bertram não teve ideia nenhuma de quem podia ter sido o assassino do pai e do irmão?

- Talvez, mas quando lhe fiz a pergunta, fechou-se como uma ostra, o que me levou a crer que tem é medo...

- Do quê, meu Deus?

- Da polícia. Quando descobriram os corpos dos dois homens, ele não ousou formular nenhuma acusação: para o fazer tinha de aludir à "pedra judaica" e tinha a certeza de que seria então inculpado de receptação, talvez até de roubo... A polícia que nós conhecemos - a dos escritórios e os grandes homens da Scotland Yard! -nada tem a ver com a que opera nos quarteirões miseráveis, onde os estrangeiros são maioritários, sobretudo os judeus.

- A propósito de judeus e da história que me contaste e que envolvia polacos: existem assim tantos a viver em Whitechapel?

- Parece que sim mas, dadas as circunstâncias, não me disseram nada sobre eles. Sintetizando, julgo que encontramos por lá uma bela amostra de toda a Europa Central. Em que é que estás a pensar?

- Que um polaco é sempre um polaco, mesmo que não tenha nascido num gueto e mesmo que os filhos de Israel tenham sempre praticado a hospitalidade. A esta hora, Wosinski já não está em Eastbourne. Deve esconder-se noutro lado...

- Se ele está à espera de um navio, então deve ser num sítio que fique perto da costa. Porque raio queres que ele se venha meter no atoleiro de Whitechapel?

- Meu irmão, as tuas palavras estão cheias de sabedoria e de lógica - declamou Morosini. - No entanto, tenho uma enorme vontade de ir dar uma volta por lá. Julgas que conseguirás encontrar de novo esse alfaiate, Ebezener Lévi?

- Claro, mas não estarás a misturar tudo?

- De modo algum. Sempre se pode esperar matar dois coelhos de uma cajadada. Se concordas, iremos amanhã, porque hoje...

Esquecendo-se das boas maneiras, Aldo estendeu-se e bocejou. Fora uma longa jornada, desde o salvamento nas falésias de Beachy Head e, à excepção de duas pequenas horas passadas no comboio, ainda não dormira desde a véspera. Começava a sentir o peso do cansaço e o seu bocejo acabou numa careta.

- Decididamente, estou a ficar velho! - constatou. - Antes da guerra, podia passar três dias sem dormir e continuava fresco como uma alface. Devíamos pensar nisso quando nos interessamos por uma rapariga de vinte anos...

- De qualquer modo, ainda não está na hora da marcha nupcial, para qualquer de vós dois. Portanto, passa uma noite boa e não penses mais nisso! - disse Adalbert com um meio-sorriso zombeteiro. - Iremos durante o dia de amanhã; assim há-de parecer mais natural.

 

O estado do tempo em nada influenciava a actividade comercial de Whitechapel. O táxi que transportava os dois homens abriu prudentemente caminho no meio de uma multidão que enchia a rua, cujo tamanho era estreitado pelas bancas ambulantes dispostas junto às lojas. Vendedores judeus em mangas de camisa bradavam à porfia, proclamando a excelência da sua mercadoria. Roupa grosseira, roupas mais ou menos usadas, sapatos, botas para a água, chapéus, coletes de fantasia, relógios, fazendas, tecidos... vendia-se e comprava-se de tudo. As mulheres, sujas até aos ombros, com boinas de homem e aconchegando-se nos seus xailes esburacados, discutiam os preços em yiddish, parando apenas para chamar de volta os miúdos sujos que procuravam escapar-se. O tempo de dar um tabefe e continuava o regateio.

A loja do alfaiate ficava diante de uma pequena sinagoga, mas o táxi não parou. Adalbert indicou-lhe um lugar a uma centena de metros e recomendou que os esperassem, depois de ter pago uma parte da viagem e de ter prometido uma boa gorjeta.

Quando os dois homens chegaram diante da loja, aperceberam-se que estava fechada com um cadeado e que não havia qualquer sinal de vida por detrás da montra de pequenos vidros, tal como no andar onde o alfaiate vivia.

- Onde é que ele poderá ter ido? - perguntou Vidal-Pellicorne entredentes, voltando-se para um e outro lado, como acontece quando nos encontramos diante de uma porta fechada e que se espera ver chegar o proprietário.

Quem apareceu foi uma mulher gorda que voltava do mercado arrastando um cabaz pesado, transbordando de alhos-porros e de couves.

- Os cavalheiros procuram o alfaiate? - perguntou com um rasgado sorriso.

- Procuramos - respondeu Aldo. - Ouvimos louvar a sua habilidade.

O olhar avaliador da mulher sopesou as roupas dos visitantes.

- No entanto não parece nada o vosso estilo - constatou -, mas, afinal de contas, isso é lá convosco. Só que hoje vão perder o vosso tempo, porque Ebenezer Lévi não está. Sou a vizinha dele e esta manhã vi-o ir-se embora com um saco de viagem.

- Sendo sua vizinha, ele não lhe disse nada?

- Absolutamente nada. Ele não é lá muito falador, sabem? Outrora tratava-lhe da casa e, depois, discutimos. Agora, desenvencilha-se sozinho.

- Como parece conhecê-lo tão bem, não faz ideia para onde possa ter ido?

- A menor ideia! Tanto quanto sei ele vive só e nunca o vêem ir para qualquer lado.

- Não terá ido para uma casa no campo? A mulher quase se engasgou de riso.

- Julgam que as pessoas de Whitechapel têm meios para isso? Não, cavalheiros, não vos posso dizer mais nada... Ah, sim, ele parecia estar cheio de pressa!

- Pois bem, voltaremos dentro de alguns dias - suspirou Morosini, retirando algumas moedas do bolso sob o olhar interessado da vizinha que as aceitou de bom-grado.

- Espantar-me-ia que ele se ausentasse muito tempo - reatou. - Se querem que os previna quando regressar, deixem-me o vosso endereço.

- Não, não vale a pena. Passaremos noutra ocasião... Depois de saudarem a vizinha, encaminharam-se de volta para o táxi.

- Estranho! - comentou Vidal-Pellicorne. - Dir-se-ia que o nosso homem ficou com medo.

- É verdade, isto parece-se com uma fuga. Na outra noite, ele não te levantou qualquer dificuldade para contar a história da sua pedra judaica?

- Não, até parecia estar contente por poder contá-la. Um pouco como um rapazinho que conhece uma bela lenda e que gosta de falar dela.

- Uma bela lenda selada por um duplo assassinato?

- Oh, bem sabes que os judeus já estão tremendamente habituados à desgraça! Ele começou a ficar com medo foi quando comecei a manobrá-lo para saber se na época do crime ele não tinha desconfiado de alguém...

- Isso é que é extraordinário! Um caso com dez anos! Então, porque contou ele a história a Bertram Cootes?

- Ele não navega propriamente em dinheiro e um pouquinho é sempre bem vindo. E agora, que fazemos? Não seria melhor pedir à Scotland Yard para procurar o alfaiate? - propôs Aldo.

- Este pobre tipo já tem maçadas que cheguem e Warren também tem o seu quinhão com o famoso diamante e o caso Ferrais. Temos apenas de esperar: talvez Ebenezer acabe por voltar...

O táxi empreendera o caminho do regresso, que continuava atulhado de gente, o que obrigava o condutor a rodar a um ritmo pedestre, quando Aldo agarrou de repente no braço do amigo.

- Olha aqueles dois homens parados diante da mercearia.

- Aquele de sobretudo preto e o outro com um cinzento e a boina descaída até ao sobrolho?

- Sim, olha bem para o de sobretudo cinzento; já o conheces. Uma altercação entre dois comerciantes obrigara a viatura a parar, o que permitiu a Adalbert fitar com mais atenção a personagem, ocupada numa discussão animada. Por fim, disse:

- Dir-se-ia... sim, é o nosso velho amigo, o conde Solmanski. Quanto ao outro...

- Já o vi na outra noite: é o cura da igreja polaca de Shadwell. Quanto ao que fazem aqui no quarteirão judaico, não sei mais do que tu, mas por que não vamos desentorpecer as pernas?

Aldo preparava-se para pagar o táxi antes de descer, quando Adalbert o fez parar com um gesto. Solmanski e o seu companheiro tinham começado a andar, caminhando ao encontro de um carro estacionado numa rua transversal que se pôs em andamento logo que entraram. Entretanto, como a altercação terminara, o táxi pôde retomar o seu caminho.

- Siga aquele carro sem dar nas vistas - mandou o arqueólogo.

Mas a perseguição revelou-se uma decepção: o polaco levava apenas o seu compatriota de volta à igreja, seguindo depois para o Claridge. Aldo e Adalbert regressaram a casa prometendo a si mesmos que iriam tentar saber algo mais sobre as actuações do pai de Anielka.

Esperava-os uma surpresa desagradável: nalgumas frases curtas, o superintendente Warren dava-lhes a saber que o julgamento de lady Ferrais estava fixado para segunda-feira, dia 10 de Dezembro, e que pendiam novas acusações contra a jovem.

 

                           CAPÍTULO 11 - O JULGAMENTO

A abertura do julgamento de Anielka ocorreu numa rara manhã ensolarada, pelo que Aldo e Adalbert optaram por passear pelas margens do Tamisa antes de se dirigirem para o local onde se ia desenrolar o drama, o Central Criminal Court, mais conhecido por Old Bailey, a fim de aproveitar aquele momento de excepcional amenidade antes de mergulhar nas trevas de um caso que se apresentava cada vez pior.

Apesar de buscas minuciosas, a polícia não conseguira deitar a mão a Ladislas Wosinski, que talvez já tivesse saído do país. Por seu lado, os dois amigos tinham partilhado a tarefa de seguir o conde Solmanski e o padre polaco, sem chegarem contudo a qualquer resultado: o abade levava uma vida tão austera quanto regular; quanto ao pai da acusada, passeara os seus perseguidores nas várias igrejas católicas de Londres, onde rezava muito e gastava uma fortuna em círios, sem nunca se ter decidido a regressar a Shadwell. Também os levou até à prisão, à embaixada polaca e à residência de alguns membros eminentes do seu pessoal, a casa da duquesa de Danvers e, obviamente, à de sir Desmond... Sempre vestido de preto, encarnava a imagem do pai infeliz.

O tempo estava óptimo: no céu azul, um vento fresco fazia esvoaçar pequenas nuvens brancas umas atrás das outras, enquanto um bando de gaivotas se entregava a uma actividade frenética, pairando sobre Temple Gardens, antes de descerem em voo picado na direcção do rio... Era um espectáculo que acalmava o coração, mas chegou uma altura em que foi preciso decidir a voltar-lhe as costas.

Old Bailey surgia como um imponente edifício que datava do princípio do século e que, devido à sua torre e à sua cúpula parecia-se um pouco com a catedral de São Paulo. A diferença residia numa grande estátua da Justiça que dominava a cúpula cinzenta, estátua que Aldo contemplou com um olhar dubitativo: os tribunais britânicos com as suas engrenagens de uma outra época não o tranquilizavam minimamente. O interior não lhe pareceu mais encorajante.

As altas janelas por detrás das quais o azul-celeste enviava piscadelas de olho sorridentes, deixavam filtrar a luz que aclarava uma vasta sala revestida de madeiras sombrias, cujo centro era a poltrona do juiz, disposta sob um alto relevo que representava a espada da justiça apontando para os brasões da Inglaterra. Era aí que presidiria o juiz, sir Edward Collins, dominando diversos juristas, a fim de arbitrar o combate que a acusação e a defesa iriam encetar dentro de momentos.

Os usos e costumes do sistema judicial britânico diferiam muito dos do continente. Na Grã-Bretanha um processo não era uma investigação destinada a determinar o que ocorrera - investigação durante a qual o juiz é uma espécie de inquisidor, sendo o papel do advogado muito restrito - mas sim uma peleja, uma espécie de desafio entre o advogado da Corte, representando o Ministério Público, e o da defesa, cabendo ao juiz o papel de árbitro supostamente imparcial e imperturbável. A questão não é a de saber se o acusado é culpado, mas sim se o Ministério Público é capaz de prová-lo para lá de qualquer dúvida. Ao defensor cabe o papel de se mostrar mais convincente aos olhos dos doze jurados.

A disposição no interior da sala também era diferente: frente ao juiz ficava o local destinado ao acusado, cujo acesso era facultado por uma pequena escada vinda do subsolo. À direita, e perpendicularmente a esta, colocavam-se algumas fileiras de advogados de toga preta, colarinhos plastronados e com uma pequena peruca branca de rolos apertados que lhes pendia no alto da cabeça. Na primeira destas filas ficava a acusação e a defesa, limitando-se os seus representantes a levantarem-se por altura das respectivas intervenções. Finalmente, do outro lado da sala, na mesma linha em que se situava a espécie de púlpito onde desfilavam as testemunhas, instalava-se o júri, que nenhum magistrado podia contactar na altura dos debates e que devia deliberar de acordo com a sua consciência. O público tinha acesso às galerias superiores, onde se empoleirava como no balcão de um teatro e as diversas testemunhas sentavam-se por detrás do acusado, na companhia dos amigos de ambas as partes.

Como não se tratava de um processo ordinário mas de um caso que interessava a alta sociedade, o público, seleccionado a rigor, só era admitido mediante a apresentação de bilhetes entregues pelos delegados da polícia encarregues da manutenção da ordem. O local destinado à imprensa transbordava de gente e, para surpresa dos seus companheiros, Bertram Cootes assentara arraiais, desta vez muito bem vestido e arvorando um sorriso triunfal.

Como lorde Desmond Killrenan avisara Morosini que talvez o chamasse à barra, este sentou-se na companhia de Adalbert nos bancos dos privilegiados, ficando ao lado da duquesa de Danvers que trazia nesse dia um gorro de tule e veludo pretos que muito se parecia com um ninho de cegonhas e que devia sem dúvida causar muito incómodo às pessoas sentadas atrás dela. Ela acolheu os dois amigos com uma espécie de alívio.

- A angústia aperta-me a garganta - confiou a Aldo -, mas já me sinto melhor ao sabê-lo ao pé de mim. Ser obrigada a testemunhar é uma experiência terrível...

- Não há qualquer motivo para se atormentar dessa maneira: o juiz e os advogados tratá-la-ão com todas as devidas atenções... Lorde Desmond é um amigo meu...

- Sem dúvida, mas sir John Dixon, o advogado da Coroa, não gosta nada de mim. Sempre achou escandalosa a amizade que eu tinha por esse pobre Eric e nunca se coibiu de o mostrar. Eu sei que a nossa justiça obriga os advogados a uma perfeita delicadeza e até a uma grande cortesia, mas conheço alguns que, sob essa fachada, insinuam frases e fazem alusões... muito desagradáveis!

- Vamos lá, tranquilize-se! Tenho a certeza de que tudo decorrerá bem.

- Deus o ouça! Pensa que sir Desmond irá convocar Anielka à barra das testemunhas?

Esse também era um dos direitos da legislação inglesa: o acusado podia ser ouvido enquanto testemunha, o que permitia ao seu advogado interrogá-lo directamente. Esse contra-interrogatório podia revelar-se benéfico ou desastroso consoante os casos... e a cara do acusado.

- Assim o espero! - murmurou Morosini, pensando na juventude e na beleza da jovem: se o júri se mostrasse sensível e compreensivo, talvez essa convocatória o influenciasse favoravelmente.

A entrada do juiz fez levantar os presentes. Vestido de púrpura e de arminho, com o comprido rosto enquadrado por uma ampla peruca do século xvii que se parecia com um xaile frisado, sir Edward Collins dirigiu-se para o assento sobreelevado, no meio de um silêncio quase religioso. Logo que se instalou, um jurista anunciou a abertura do julgamento intitulado "O Rei contra lady Ferrais", curiosa fórmula que teria podido ser utilizada para anunciar um duelo, com a ligeira diferença que neste caso um dos adversários não podia estar presente em carne e osso. Logo depois ouviu-se a ordem:

- Mandem entrar a acusada!

Todas as cabeças se levantaram e, na galeria, o público inclinou-se para ver melhor. Quanto a Aldo, sentiu que o coração se lhe apertava ao pensar que dentro de dois ou três dias o juiz talvez viesse de touca preta, tal como era costume quando tinha de pronunciar uma condenação à morte.

Quando, ladeada por duas guardas, Anielka emergiu da penumbra da escadaria para a luz que escoava pelas altas janelas, um murmúrio percorreu a multidão como um pé-de-vento sobre o mar e, no alto do seu trono, sir Edward Collins ajustou a luneta no nariz para melhor a contemplar. Efectivamente, nunca a jovem polaca parecera mais encantadora, frágil e comovente (nem no dia do seu faustoso casamento); nunca o seu tom alourado sobressaíra tanto como agora, num conjunto de saia e casaco de crepe preto, unicamente enfeitada pelo brilho dos cabelos e da tez, que fazia a sua silhueta assemelhar-se ao caule sombrio de uma flor dourada...

- Que pena! - murmurou a duquesa. - Com apenas vinte anos e veja em que situação se encontra...

Aldo não respondeu. O advogado da Coroa lia a acta de acusação.

- Anielka-Maria-Elwiga Ferrais, é acusada de ter assassinado o vosso esposo, sir Eric Ferrais, na noite do dia 15 de Setembro de 1922. Considera-se culpada ou não culpada?

- Não culpada.

A voz da jovem era pousada, clara e firme, em perfeita sintonia com o seu porte pleno de modéstia e de dignidade. Olhara o seu acusador nos olhos, sem insolência, mas com uma segurança que pareceu agradar-lhe, pois a sombra de um sorriso pairou-lhe nos lábios.

Não se podia imaginar personagens tão diferentes quanto sir John Dixon e sir Desmond. Um era alto e magro, com um rosto feio, que parecia talhado à navalha e no qual brilhava um olhar moreno particularmente vivo; o outro, mais atarracado e rechonchudo, dava a impressão de força concentrada. Sob a peruca que lhe assentava pior que aos outros, parecia-se muito com um buldogue mas, ao contemplar o seu olhar cinzento-baço de uma dureza granítica sentia-se logo que se conseguisse ferrar os dentes num adversário não largaria a presa tão facilmente. Por ora, era o primeiro quem tinha a palavra, era a ele que competia abrir fogo.

Sir John Dixon expôs o caso começando por delinear rapidamente as relações entre o defunto e a sua jovem esposa desde o princípio do casamento, insistindo ainda assim sobre uma diferença de idades pouco propícia à eclosão de um grande amor numa rapariga de dezanove anos. Sir Desmond interveio imediatamente.

- O meu distinto colega devia possuir experiência suficiente para saber que, num casal, uma grande diferença de idade não representa um obstáculo de monta ao desabrochar do amor. A personalidade de sir Eric Ferrais... ousaria até dizer, o seu charme, podiam seduzir uma jovem.

- Daqui a pouco interrogaremos lady Ferrais acerca da natureza exacta dos sentimentos que tinha para com o esposo. Por ora desejaria regressar à noite do drama em que, depois de ter bebido um uísque com soda no qual havia sido diluído um saquinho de pó contra as enxaquecas que a sua mulher lhe dera, Sir Eric morreu passados poucos instantes...

Procedeu então a uma breve narrativa dessa última noite sem se demorar nos pormenores e, a fim de obter um quadro mais completo, solicitou a "Sua Graça, a duquesa de Danvers" a amabilidade de se dirigir à barra das testemunhas.

- Meu Deus - gemeu esta. -Já é a minha vez?

Não foi um sucesso, longe disso. Entrando no boxcom uma majestade que impressionou o público, que se sentira tentado a acreditar um instante que ela talvez fosse a rainha Mary em pessoa, lady Danvers perdeu logo a sua soberba. Nervosa, à beira das lágrimas, a nobre dama teve a maior dificuldade para ler a fórmula do juramento. Quanto à sua versão da soirée, ela foi tão confusa, tão balbuciante, que o juiz acorreu em seu socorro.

- Rogo-lhe, Vossa Graça, que recupere a sua compostura! Compreendemos muito bem a sua emoção por se encontrar aqui e julgo que teria sido preferível não a ter chamado tão cedo. Talvez devêssemos - acrescentou, lançando um olhar severo na direcção do advogado da Corte -, adiar esta audição para mais tarde, quando Vossa Graça se sentir melhor...

O reconhecimento da infeliz foi comovente.

- Oh, muito obrigada, mylord! - desabafou, enxugando os olhos através da abertura do seu pequeno véu, enquanto sir john se inclinava respeitosamente em silêncio e a defesa aquiescia com um meio sorriso sardónico que traduzia bem a sua satisfação. O seu adversário quisera desferir um grande golpe na imaginação dos jurados ao chamar logo de entrada uma tão nobre dama, mas como esta iniciativa se revelou desastrosa, sir Desmond não ficou descontente. Foi portanto com um rosto sereno que ouviu convocar o inspector Pointer, que procedera às primeiras constatações.

Como homem habituado a este tipo de situação, este prestou uma declaração breve e precisa do que encontrara na noite do dia 15 de Setembro ao chegar a casa dos Ferrais: o pânico do pessoal de serviço, as lágrimas das duas damas e a cólera do secretário que não hesitou logo em acusar a mulher do seu patrão de assassina. Como, de certo modo, se tratava de uma constatação do estado do local e das pessoas, sir Desmond não achou necessário proceder a um contra-interrogatório. Tinha melhor para fazer com a personagem seguinte pois, precisamente nessa altura, sir john Dixon chamou John Sutton.

Num fato de sarja preta realçado apenas por uma camisa branca, o secretário parecia mais alto e magro do que era e estava enlutado de uma forma que Aldo julgou ostensiva. Sob os cabelos louros e engomados, o rosto parecia muito pálido.

- Se o que pretende é encarnar a estátua do Comendador, então conseguiu! - cochichou Vidal-Pellicorne. - Não se podia ser mais sinistro!

- Ele veio exigir uma cabeça, não querias decerto que se apresentasse com ar catita...

Morosini calou-se. Pegando na Bíblia com uma mão, Sutton, sem olhar uma só vez para o texto ali colocado para ajudar as testemunhas, proferia o juramento com os olhos fixos à sua frente: devia tê-lo aprendido de cor.

- Em nome de Deus Todo-Poderoso, juro prestar um testemunho fiel e dizer a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade...

A voz calma de sir john Dixon prosseguiu.

- O senhor chama-se John-Thomas Sutton, nasceu em Exeter no dia 17 de Maio de 1899 e exerceu as funções de secretário particular de sir Eric Ferrais de há três anos a esta parte?

- Com efeito...

- Na noite do seu falecimento, estava presente no seu escritório na companhia do dito, de sua esposa e de Sua Graça, a duquesa de Danvers. Qual foi o propósito dessa reunião?

- Não há nada de extraordinário no facto de beber um copo antes do jantar. Sir Eric pedira-me para lhe reservar uma mesa no Trocadero. Gostava particularmente da sua cozinha e da sua atmosfera e não era raro que fosse lá jantar acompanhado por lady Ferrais... Por vezes convidava Sua Graça a juntar-se-lhes.

- E a si, nunca o convidava?

- Sim, mas acompanhava-o de melhor vontade quando ele ia sozinho ou com outro senhor.

- Porquê?

- Porque lady Ferrais não gostava nada de mim e eu, pelo meu lado, retribuía-lhe... com a mesma moeda, e ele sabia-o.

- Sabia e... contudo, não lhe ocorreu a ideia de dispensar os seus serviços?

Um raio de cólera brilhou nos olhos do jovem.

- E porque haveria de fazê-lo? Conheci-o muito antes que ele desposasse a condessa Solmanski. Éramos... muito chegados e, por outro lado, o meu trabalho agradava-lhe. Creio poder afirmar que depositava inteira confiança em mim.

- Não tenho qualquer dúvida, mas ele não ficava contrariado com esse antagonismo entre o senhor e a esposa dele?

- Cheguei a pensar que isso o divertia. Às vezes dizia-me: "estais simplesmente com ciúmes meu pequeno John, mas isso passa com o tempo..."

- E... era verdade?

- Que eu fosse ciumento? Sim, senhor. Sempre considerei esse casamento como um erro porque o perturbava, mesmo nos negócios. O cérebro de sir Eric deixara de trabalhar com aquela bela mecânica que funcionava na perfeição e que era admirada por todos, até pelos seus concorrentes. E a prova é que ele bebia... muito mais.

- E isso inquietava-o?

- Confesso que um pouco. Sempre fui e continuo a ser muito ligado a sir Eric porque lhe devo muito.

- É esse o motivo pelo qual não hesitou em acusar lady Ferrais, logo que a Scotland Yard compareceu no local do crime?

- Em parte, mas essa não foi a única razão. Algumas semanas antes lady Ferrais convencera o esposo a contratar um dos seus compatriotas como criado.

- Criado de quarto?

- Não; um simples criado: temos quatro que estão às ordens do chefe do pessoal. Entre outras coisas, servia à mesa...

- E ele não lhe agradou, sem dúvida, não é verdade? Mas, peço-Lhe que prossiga...

- À primeira vista não havia qualquer motivo para que me desagradasse, pois desempenhava o seu serviço atenciosa e discretamente: o seu porte era irrepreensível e falava perfeitamente a nossa língua. Talvez nem tivesse desconfiado de nada se o acaso não me tivesse colocado frente a uma realidade desagradável, que ocorreu numa noite em que sir Eric fora jantar a casa do senhor lorde, Presidente da Câmara Municipal, e em que eu fora ao teatro. Lady Ferrais ficara sozinha em casa... pelo menos assim o pensei pois, ao regressar assaz tarde e evitando fazer barulho, avistei esse Stanislas...

- Um momento. Como é que ele se chamava precisamente?

- Fora contratado sob o nome de Stanislas Rasocki, mas depois fiquei a saber que esse não era o seu verdadeiro nome. Chama-se...

- Ladislas Wosinski - anunciou o advogado da Corte, depois de consultar um dos seus apontamentos. - Prossiga, por favor!

- Que se chame como bem entender, isso pouco importa. O que interessa, isso sim, é que o vi esgueirar-se para fora do quarto

de lady Ferrais acompanhado por ela própria, que vinha vestida de um modo que qualquer pessoa teria achado inconveniente. Mais ainda tratando-se de um criado...

- Bem sabe que para uma grande dama, um criado não é um homem - disse sir John com um sorriso.

- Pelo beijo apaixonado que trocaram posso garantir-lhe que ela o considerava como um verdadeiro homem. E há ainda melhor...

Foi interrompido pelo zunzum que percorreu a sala e o juiz bateu na mesa.

- Não estamos no teatro! Peço que se restabeleça o silêncio na sala. Continue, senhor Sutton. Que tem ainda de melhor para nos contar?

- O seguinte, mylord. quatro dias antes de sir Eric falecer ouvi lady Ferrais dizer a esse homem: "Se quiseres que te ajude, primeiro terei de ser livre. Começa por seres tu a ajudar-me..."

- É certo que é estranho - disse sir John - mas ainda mais estranho é o facto de lady Ferrais se ter exprimido em inglês. Seria mais seguro que tivesse falado na sua língua materna.

- Talvez, e confesso que eu próprio fiquei surpreendido mas, no entanto, foi assim que as coisas se passaram. A partir dessa altura tive a convicção que algo ameaçava sir Eric mas, sabendo o amor insensato que ele dedicava a esta mulher, optei por não o avisar. Contava conseguir abrir-lhe os olhos sem ter de falar nisto. Quando o vi cair, não duvidei um só momento que os dois amantes tinham acabado de matá-lo diante de mim.

- Porquê? Por ter visto lady Ferrais entregar um medicamento ao seu marido?

- Claro...

- Isso era dar provas de pouca inteligência, pois bastaria mandar analisar o saquinho...

- Só que não o encontraram. Alguma mão diligente deve tê-lo deitado no fogo aceso da chaminé. Sem dúvida a desse criado polaco que, aliás, se escapuliu antes da chegada da polícia.

- Bem o entendo, bem o entendo. Contudo, se continuamos na incerteza quanto ao conteúdo do saquinho, já o mesmo não se pode dizer quanto à presença de veneno detectado nos pedaços de gelo do frigorífico que sir Eric instalara no seu escritório. Uma... fantasia que oferecera a si mesmo e cuja chave guardava sempre consigo, a fim de ser o único a desfrutar de um gelo que sabia ser feito de água pura...

- Eu sei. Encontrava-me presente quando se descobriu esse novo indício. Somos levados a acreditar que alguém deve ter arranjado essa chave ou mandado fazer uma cópia.

- Alguém? Em quem está a pensar? Em lady Ferrais?

- Nela ou no seu cúmplice. De qualquer modo, se não foi ela própria a cometer o crime, foi ela quem o encomendou. Tenho a certeza que é uma assassina.

- É o que devemos estabelecer e, nesse intuito, gostaria que a Corte ouvisse agora...

Sir Desmond pulou da cadeira.

- Um momento, sir John! Se acabou de inquirir essa testemunha, agora é a minha vez. Ou pretende retirar-me o direito a um contra-interrogatório?

- De modo algum, mas... O juiz interveio.

- Nada de "mas", sir john! Ou conta pôr em causa os usos e costumes deste tribunal? A testemunha pertence-lhe, sir Desmond!

- Obrigado, mylord! Senhor Sutton, há pouco admitiu que teve ciúmes. Isso devia-se unicamente à influência que lady Ferrais exercia sobre o esposo e que o senhor julgava nefasta, ou também se veio acrescer à existência de um sentimento mais confuso?

- Quando se detesta uma pessoa, torna-se difícil destrinçar o que é confuso do que não é...

- Deixemo-nos de rábulas, se não se importa! Lady Ferrais é muito jovem. Se faço bem as contas, ela é mais nova três anos do que o senhor. Além disso penso ser inútil realçar a sua beleza: ela é evidente para todos nós, mesmo nesta Corte. Tem a certeza de não estar apaixonado por ela? É que, nesse caso, o seu ciúme apareceria sob uma outra luz...

- Não. Nunca a amei, mas reconheço tê-la desejado...

- ... ao ponto de se ter comportado com ela como um bêbedo com uma prostituta, arrastando-a para cantos sombrios a fim de tentar violá-la...

- Isso não tem pés nem cabeça, senhor! Se existem cantos sombrios em casa de sir Eric, eles estão, no entanto, demasiado expostos aos olhares de todos para poder tentar qualquer violação. Imagino que deve ser uma operação difícil... e um tanto barulhenta, se não se amordaçar a pessoa em questão...

- Admito que não, o senhor não teve sem dúvida a oportunidade para chegar a esse ponto. Lady ferrais queixou-se várias vezes que tentou acariciá-la, beijá-la...

- Admito-o. Porque me iria eu coibir - acrescentou o jovem com insolência - se ela facultava tais intimidades a um criado?

- É o seu ponto de vista, não o meu. Uma coisa é certa: durante o último mês, o senhor passou muito tempo a espiar lady Ferrais, apesar de ainda a perseguir com as suas assiduidades. Isso não afectou o seu trabalho... que era tão satisfatório?

- De modo algum! Vigiei lady Ferrais e o seu criado, mas não passei o meu tempo atrás deles. Já disse que desejava fazer algo para que sir Eric pudesse descobrir por ele próprio que género de mulher desposara. Mas, nos últimos tempos, ela e o seu amante mostravam-se muito prudentes.

- Bem. Presentemente, senhor Sutton, vamos examinar um outro aspecto da sua situação junto a sir Eric. O senhor fazia um bom trabalho, tinha a confiança dele e, em troca, dedicou-lhe uma espécie de culto, um... afecto que ultrapassava, de longe, os sentimentos habituais de um empregado em relação ao patrão...

- É verdade. Gostava profundamente de sir Eric. A lei opõe-se a isso?

- De modo algum! Aliás parece que foi bem retribuído. No seu último testamento, cujo beneficiário é a esposa, sir Eric lega-lhe uma soma de... cem mil libras! Uma soma enorme, a julgar pela reacção do público...

Efectivamente, este acabara de emitir um "oh!" ao mesmo tempo admirado e estupefacto.

- Creio ter dito que ele me apreciava - disse Sutton calmamente -, e cheguei mesmo a pensar que nutria um certo afecto por mim.

- Um certo afecto? Mas ele devia era adorá-lo, para lhe ter dado uma prenda dessas. Note-se, aliás, que isso não o parece surpreender! Então, eu coloco-me outra questão: é indubitavelmente verdade que o senhor desfrutava de uma situação agradável, mas sabendo que fortuna lhe iria parar às mãos quando ele morresse, é possível que se tenha sentido tentado a antecipar a hora da morte dele. Afinal, era o senhor quem se encontrava a maior parte das vezes no escritório dele, perto dele... Para si, era coisa fácil surripiar rapidamente uma pequena chave suficientemente simples para lhe tirar o molde e...

Foi a vez de sir John intervir.

- Protesto, mylord! O meu distinto colega está a fabricar um romance e procura influenciar a testemunha...

Mas o juiz nem sequer teve tempo para abrir a boca. - Com vossa permissão, mylord, eu próprio responderei a sir Desmond. Jurei dizer a verdade e vou dizê-la por inteiro. Sim, eu amava sir Eric e era correspondido nesse amor! O que é muito natural, dado que ele era meu pai!

A vozearia do público encheu novamente a sala e o advogado ficou um momento desorientado. Os seus olhos semicerraram-se até se reduzirem a uma estreita fenda cinzenta, como uma folha de ardósia. No seu local, a imprensa activava-se.

- Seu pai? Mas onde foi buscar isso?

- Disse-mo ele próprio. Melhor, escreveu-o. Posso apresentar abundantes provas...

- Então porque é que ele não o reconheceu como filho?

- Por respeito pela reputação de minha mãe e em nome da honra devida àquele que iria tornar-se meu pai. Presentemente estão ambos mortos... e eu jurei dizer a verdade. Compreende agora porque o amava? Não me legou o nome dele, mas nunca me abandonou. Sempre cuidou de mim, mesmo quando estava afastado. Frequentei as melhores escolas, Eton, Oxford... Assim que obtive o meu diploma, chamou-me para junto dele...

Sir Desmond tirou um grande lenço do bolso e enxugou as gotas de suor que brotavam da sua peruca. Não esperava evidentemente esta peripécia que transtornara o público e procurava uma réplica. Para ganhar tempo, perguntou:

- Não nos pode adiantar mais?

- Sir Desmond - lembrou-lhe o juiz, chamando-lhe a atenção com firme severidade - o senhor não deve prosseguir o seu interrogatório numa direcção que não interessa para este caso. Os motivos pelos quais a nascença deste jovem permaneceu secreta não dizem respeito a ninguém. Penso que divulgá-los seria ir contra as intenções de sir Eric Ferrais. Tem a palavra.

- Por ora não tenho mais perguntas a fazer, mylord.

John Sutton saudou a Corte e o júri, e retirou-se. Durante todo aquele tempo, o seu olhar nem sequer aflorara a cabeça loura da

acusada.

- Pois bem - cochichou Adalbert - isto é que são novidades! Mas que curiosa família, a do pobre Ferrais!

- Receio muito que isto em nada venha ajudar Anielka - respondeu Aldo. - Ainda era possível manipular um secretário despeitado, azedado, cheio de ódio, mas um filho! Deve ter causado forte impressão no júri...

- Logo veremos. Esperemos pela continuação!

A continuação consistiu no interrogatório do mordomo e de Wanda. O primeiro, Soames, apareceu como o modelo do servidor discreto que, do alto da sua posição, se recusa a imiscuir-se nas mexeriquices de cozinha.

Dessa forma, ignorou deliberadamente as relações de lady Ferrais com o criado polaco.

- Esse homem desempenhava bem o seu trabalho, era bem educado e discreto. Nunca tive razões de queixa dele. Por outro lado, dado que ignoro completamente a língua polaca, não me era possível saber o que mylady lhe dizia quando falava com ele.

Interrogado acerca das relações entre os seus patrões, limitou-se a declarar que havia decerto fricções, momentos tensos, mas que isso não era de espantar num casal formado por dois seres tão diferentes. Quanto à cena violenta da última noite, nada sabia.

- O que se passa nos quartos tem a ver com as camareiras, não é da minha competência!

- Um mordomo exemplar! - murmurou Morosini. - Nada vê, nada ouve e nada diz. Bem podiam tê-lo dispensado....

- Wanda será certamente mais interessante.

Só que Wanda era para mais tarde. Depois de puxar do seu relógio por entre as suas roupas de púrpura e arminho, sir Edward Collins declarou que chegara a hora do almoço, pelo que lhe parecia desejável interromper a sessão. Os debates recomeçariam às catorze horas e trinta.

Felizes por poderem escapar um pouco à atmosfera pesada do tribunal, os dois amigos resolveram ir comer ao restaurante do Savoy. Galante como de costume, Aldo propôs que convidassem lady Danvers mas, depois da sua penosa actuação, esta conseguira que a deixassem ir descansar. Não a puderam encontrar.

Em compensação a saída do público reservou-lhes uma surpresa da qual teriam prescindido. No grande hall do Old Bailey, foram abordados por Lady Ribblesdale que, sem mais preâmbulos, agarrou logo no braço de Aldo.

- Fiquei agradavelmente surpreendida por encontrá-lo na sala, meu pequeno príncipe - exclamou. - Por que não veio ainda ver-me? Imagino que trouxe consigo o que me tinha prometido, não é verdade?

- Não prometi nada, lady Ribblesdale - respondeu Aldo, esforçando-se por ocultar a maçada que lhe causava este encontro e a mania que aquela mulher tinha de chamá-lo de "seu pequeno príncipe" -, e foi tanto melhor assim, pois eu não trouxe nada comigo. Tinha aliás a intenção de lhe escrever a esse propósito.

Ela parou imediatamente e largou-lhe o braço para melhor fulminá-lo com o seu olhar sombrio:

- Que está a dizer? Então não terei o meu diamante histórico?

- Não e acredite-me que muito o lastimo, mas quando cheguei a Veneza a sua proprietária acabara de falecer e os seus herdeiros recusaram-se a vendê-lo qualquer que fosse a oferta. É preciso compreendê-los: há anos que esperavam que esta pedra lhes fosse parar às mãos. Tenho muita pena, mas voltei de mãos a abanar.

- De mãos a abanar?... O que é que isso significa?

- É uma expressão usada pelos caçadores quando regressam sem nenhuma peça de caça. Só lhe resta esperar que dentro em breve a Scotland Yard consiga encontrar a Rosa de Iorque.

- Peuh!... Uns incapazes! Neste género de casos, a investigação devia ser conduzida por mulheres. Temos um faro especial para descobrir jóias. Nós... como hei-de dizer? Nós sentimo-las. É isso, sentimo-las.

- Como os porcos sentem as trufas? - resmoneou Vidal-Pellicorne entredentes, demasiado baixo para que pudessem ouvi-lo.

Aliás, Ava lançara-se num grande discurso sobre as espantosas capacidades femininas, sem as quais os desgraçados dos homens nada seriam.

- Veja a minha filha! Continua no Egipto e tenho a certeza de que se esse Cárter descobriu o túmulo de Tut... enfim, do tal faraó, foi só porque Alice estava perto dele. É uma questão de fluido, compreendem?

"Senhor! - pensou Aldo. - Se ela começa a falar de egiptologia, Adal vai convidá-la para almoçar!"

Mas depressa se tranquilizou. Pelo contrário, o arqueólogo felicitou a feliz mãe por ter um tal génio, mas pediu-lhe que os desculpasse pois tinham alguém que os esperava para almoçar.

- Não tem importância! Ver-nos-emos mais tarde! Tenciono assistir ao julgamento até ao fim. Nunca ouvi pronunciar uma sentença de morte. Deve ser muito excitante...

- Mas que mulher impossível! - desabafou Morosini, quando se afastaram. - Este caso já é, só por si, penoso quanto baste, para ter ainda de suportar essas hienas de salão que farejam a morte!

- Esperemos que ela e os seus semelhantes fiquem desiludidos.

- Mas não crês nisso, pois não? Sinto um pouco o mesmo que tu: não gosto do rumo que as coisas estão a tomar...

- Foi apenas a primeira audiência. Os dados ainda não estão lançados.

Contudo, à medida que o tempo ia passando, a esperança esmorecia. Vários criados foram chamados a depor. Nenhum deles acusou directamente Anielka mas, através dos seus testemunhos, a atmosfera de desavença entre os dois esposos tornava-se mais presente, mais sufocante, apesar dos esforços denodados de sir Desmond, que despendia enorme energia. O pior foi quando Sally Penkowski, a amiga de infância de Bertram Cootes, foi chamada a testemunhar. Nessa altura Aldo percebeu quem era que estava na origem das novas acusações formuladas contra lady Ferrais.

O que Sally tinha para dizer resumia-se a poucas palavras: uma semana aproximadamente antes da morte de sir Eric, surpreendera a sua senhora no escritório. Esta tinha aberto o falso painel da biblioteca e debruçava-se sobre a porta do frigorífico.

- A sua senhora estava a abri-la... ou a tentar fazê-lo, é isso? - perguntou sir John Dixon.

- Foi o que me pareceu mas, ao dar pela minha presença, soergueu-se e fechou o painel, encolhendo os ombros e abandonando a sala.

- Parecia incomodada?

- Não, a bem dizer. Até sorria ao de leve.

- Misericórdia! - gemeu Aldo. - O que estava ela a fazer?

Ao tomar posse da testemunha, sir Desmond encarregou-se da resposta.

- Não vejo porque se dá tanta importância a este testemunho. Lady Ferrais estava em sua própria casa, qualquer que fosse a divisão em que se encontrasse e nada há de extraordinário no facto de ter tido a curiosidade de querer abrir aquilo que era o brinquedo favorito do seu esposo. Não existe portanto nada de surpreendente na sua presença no escritório. Em compensação, é a sua presença, Sally Penkowski, que me parece curiosa. A menina é uma das criadas de quarto de Grosvenor Square. Como o título do seu cargo o indica, deve ocupar-se dos quartos e, mais particularmente, do serviço de lady Ferrais. Gostaria de saber o que foi fazer ao escritório de sir Eric. Essa área pertence aos criados.

Sally - que, aliás, era uma linda moça! - corou intensamente sob o chapéu de feltro castanho que puxara até à altura dos seus lindos olhos azuis. Torcia as luvas com as mãos, hesitando em dar uma resposta.

- Então? - insistiu o advogado. - Terei de concluir que espiava a sua senhora e, nesse caso, terá de me explicar porquê. A acreditar no começo da sua deposição, a sua senhora não se mostrou sempre amável para consigo?

- É verdade. E eu... juro que não a espiava!

- Já jurou. Então, que estava ali a fazer?

- Eu... eu procurava Stanislas...

- Aquele que conhece sob esse nome? E porquê? Sally hesitou novamente antes de responder:

- Pois bem... confesso que simpatizava muito com ele... que tinha até uma grande amizade...

- E, talvez, algo mais do que uma simples amizade, não?

- Não... não sei, mas é preciso compreender que ele era polaco, como eu...

- A menina não é polaca. A sua mãe era uma galesa.

- Isso não conta para nós! Connosco, só conta a nacionalidade do pai e o meu ensinara-nos a amar a Polónia e a falar o seu idioma. Quando vi chegar um compatriota, fiquei contente por poder falar com ele. Oh, ele não me prestava muita atenção. Bem vi que era de um nível superior ao trabalho que lhe fora dado.... Mas o caso é que procurava arranjar ocasiões para poder encontrá-lo...

- Mas se a questão era falar um pouco em polaco, não dispunha também de Wanda, a criada de quarto particular de lady Ferrais?

- Oh, não era fácil conversar com ela. Miss Wanda não gostava disso e mostrava-se severa. Com Stanislas já não sucedia o mesmo...

- É fácil entender: tratava-se de um homem e que, ainda por cima, era jovem: devemos depreender que esperava encontrá-lo ao entrar nesse dia nos domínios de sir Eric? É um tanto esquisito.

- De modo algum! - protestou Sally, subitamente vexada. - Eu regressava das cozinhas, onde fora levar a bandeja de milady... e beber uma chávena de chá, quando vi a porta do escritório aberta; ouvi barulho...

- A contemplação de uma porta nada tem de barulhento.

- Não... mas parecera-me ter avistado a silhueta de Stanislas. Foi por isso que entrei... Não tenho mais nada a declarar!

- Teremos de nos contentar com isso. Agradeço-lhe.

A jovem Penkowski ia retirar-se quando se ouviu a voz pausada de Anielka.

- Esta rapariga está a mentir! Não sei qual o seu intuito, mas ela nunca me viu no gabinete do meu marido.

O juiz perguntou:

- Contesta a veracidade desta declaração?

- Absolutamente. Aliás, a inverosimilhança do que ela acaba de dizer devia ser evidente.

- Como assim?

- Pelo menos para qualquer dona de casa. Então, ao estar na biblioteca e ao ver entrar essa rapariga, limito-me apenas a sair... como é que ela disse... arvorando um ligeiro sorriso? Na verdade, essa história é ridícula: ela é que teria de sair depois de eu lhe perguntar o que procurava num local onde não tinha nada a fazer. Era desse modo que teria agido qualquer pessoa da minha condição diante de uma criada...

A sala foi percorrida por um murmúrio tipicamente feminino, mas que era de aprovação. O juiz deixou que ele se extinguisse, antes de prosseguir:

- Então que se passou?

- Nada de especial, mylord, visto que ela não me viu a mim... mas sim aquele que desejava encontrar.

- E que não está presente para que possamos saber o que se passou realmente! - disse sir John.

- Não é por culpa minha! - disse Anielka.

- Tem a certeza? Desde que foi presa, não cessou de afirmar que crê na inocência do seu compatriota, mesmo depois de uma fuga que é contudo suspeita.

- Esse homem tinha falsos papéis de identidade. É normal que tenha tido medo de ser interrogado. De qualquer modo, não se trata por ora de estabelecer a culpabilidade de um de nós, mas sim de saber quem foi que Sally Penkowski viu no gabinete de trabalho. E essa pessoa não era eu!

Com a autorização do juiz e a pedido de sir Desmond, a jovem camareira teve de regressar ao banco das testemunhas, mas foi impossível obrigá-la a mudar o que quer que fosse da sua declaração.

- Já jurei sobre o livro sagrado - retorquiu -, e não quero ir para o Inferno por ter mentido! Apenas disse a verdade!

Foi a última audição. Depois da saída de Sally, ao ver a extrema palidez da sua cliente, sir Desmond pediu que adiassem a continuação dos debates. O juiz concordou de bom-grado. Marcou-se nova sessão para as dez horas do dia seguinte. A acusada abandonou o seu posto para regressar à prisão, enquanto a sala se esvaziava lentamente.

Pensando que a atmosfera serena de casa faria bem ao seu amigo depois daquela dura jornada, Adalbert tentou levar Aldo consigo, mas o companheiro resistiu.

- Um momento! Gostava de dar uma palavrinha a esse jovem Bertram...

- Que esperas?

- Que ele me fale um pouco da sua amiga Sally. Não é uma amiga de infância dele?

- É, mas que queres saber?

- Logo veremos!

Não foi fácil apelar à razão de Cootes, que se precipitava para fora do tribunal com o ímpeto de um veleiro que apanha um vento favorável mas, para além de um punho sólido, Morosini dispunha ainda de argumentos capazes de o sensibilizar.

- Caro amigo, venha jantar a nossa casa - disse ao jornalista apertando-lhe o braço com os seus dedos de aço. - Depois caso

fique satisfeito convosco, o recíproco poderá ser possível. A menos que não o encante a perspectiva de arrecadar uma vintena de libras...?

- Bem gostaria, mas... tenho de telefonar ao jornal para lhes dar um artigo... tentem compreender: Peter Larke está doente e sou eu quem o substitui. Uma sorte!

- Nós temos o telefone... e material para escrever! Sem falar de um verdadeiro uísque!

- Bom, vou convosco! "A espera de uma alegria é quase igual ao prazer que dela retiramos...", Ricardo III, acto... mas se me fizerem falhar o meu artigo, quero muito mais!

- Se for sensato, não vai falhar nada!

Aldo não abriu a boca durante o trajecto de carro mas, mal se instalou no salão, passou ao ataque, enquanto Adalbert enchia os copos.

- Essa Sally Penkowski é mesmo sua amiga?

- Conhecemo-nos desde a infância, mas...

- Ela gosta de dinheiro?

- Penso que como toda a gente, mas bem sabe que "o ouro está para a alma dos homens como..."

- Largue o seu Shakespeare ou não lhe dou nem uma moeda! Na sua opinião, quanto será preciso oferecer-lhe para que ela mude a sua deposição?

- Mudar a sua deposição? - exclamou Adalbert. - Mas, vejamos, isso é impossível! Enlouqueceste!

- De modo algum! Não sei qual é o propósito dela, mas estou persuadido que mente, e que é lady Ferrais que diz a verdade! Quanto a mudar a sua deposição, para uma mulher isso é o a b c da arte: basta simular uma crise de desespero, exprimir sinceros arrependimentos e dar como explicação o desejo desenfreado para afastar qualquer suspeita daquele que ama, pois é evidente que ela ama Ladislas. E estou muito inclinado a pensar que essa é a verdadeira explicação para um testemunho tão assombroso...

- Talvez tenhas razão - suspirou Vidal-Pellicorne - mas se for esse o caso, ela não se deixará comprar.

- Mesmo por mil libras?

A importância da soma sobressaltou os dois homens que o escutavam. Adalbert protestou:

- Tinha razão: enlouqueceste!

- Talvez, mas quero salvá-la, percebes? Quero salvá-la a qualquer preço. Portanto, meu caro Bertram, você vai correr ao encontro da sua amiga. Aqui está o seu dinheiro. Se souber mostrar-se persuasivo ainda terá mais...

Mas quando o jornalista regressou uma hora depois vinha todo desanimado:

- Nada a fazer! - anunciou sobriamente. - Sally detesta lady Ferrais, em quem vê uma rival. Ficará muito feliz por vê-la condenada.

- E tu - resmungou Adalbert apontando um dedo acusador para o amigo - agora arriscas-te a ir ter com a palha húmida das masmorras por tentativa de corrupção de uma testemunha...

- Não - interrompeu Bertram - e por dois motivos: primeiro Sally ignora quem me enviou e depois... ofereci-lhe as vinte libras...

- Fez bem! Só me resta devolver-lhe a soma...

- Muito obrigado! Agora vou tratar do meu artigo. Até amanhã!

Nessa noite Aldo não dormiu nada. Assolado por receios que o

silêncio nocturno ampliava, demorou-se no salão, fumando cigarro atrás de cigarro, estendido numa das poltronas ou andando às voltas pela sala. Quando se foi deitar já o Big Ben tinha há muito assinalado as duas. Pelo seu lado, Adalbert fora deitar-se sem quaisquer estados de alma.

Na manhã seguinte, ao dirigir-se para o Palácio da Justiça depois de se ter forçado a beber umas tantas chávenas de café, Aldo sentia-se de péssima disposição, enquanto Adalbert mantinha um prudente silêncio. No entanto, passado um momento, este não se conseguiu dominar por mais tempo.

- Ontem não notaste nada de estranho?

- Onde? Em Old Bailey?

- Sim. Não vi o conde Solmanski um só momento. Como é possível que não assista ao julgamento da filha?

- Deve ser uma experiência muito dura para esse homem tão sensível - ironizou Morosini. - Deve preferir acender alguns círios e rezar... a menos que se tenha desinteressado do destino da filha, culpada por ter levado a sua avante sem ter esperado pelas directivas do pai...

- Talvez. Logo veremos se ele vem hoje.

Mas uma vez fechadas as portas, foi em vão que ao examinar a sala tentaram detectar o rosto severo e o monóculo daquele que procuravam.

Anielka também não devia ter dormido muito. O seu rosto estava mais pálido do que na véspera e os seus lindos olhos tinham péssimas olheiras. Assim, ainda parecia mais comovedora, mas Aldo estremeceu com mais aquela nota de fragilidade.

Wanda foi a primeira testemunha a ser chamada. O seu aparecimento no respectivo banco não foi de molde a tranquilizar. Vestida de preto, mas agitando prudentemente um lenço branco tão grande quanto uma bandeira de tréguas em tempo de guerra, era a própria imagem da desolação. Efectivamente, quando abriu a boca, foi para se lançar numa apologia apaixonada da sua "pequena pombinha", tratando de desacreditar solidamente o defunto sir Eric Ferrais o que, evidentemente, era a última das coisas a fazer.

- Senhor - rezou Aldo entredentes - protegei-me dos meus amigos que dos inimigos ocupo-me eu...

- Bem o podes dizer - cochichou Adalbert. - Olha para sir Desmond! Nunca acreditaria que um homem pudesse transpirar tanto!

Ainda foi pior quando o advogado da Corte entrou no capítulo Ladislas. Nessa altura, Wanda tornou-se lírica, desatando a narrar os amores ternos e virginais da sua senhora com uma espécie de herói da luta pela libertação polaca, fabricado inteiramente pela sua imaginação; descreveu a cólera e o desespero que ele sentira ao descobri-la casada com um homem que fizera fortuna à custa da morte dos outros, a necessidade que tinha de ajudá-la, de protegê-la...

- Bem a quero acreditar - interrompeu sir John -, mas gostaria de saber se eram amantes.

- Com certeza que não! - respondeu Wanda categoricamente. - Não estou a ver quando isso poderia ser possível, pois eu estava

ao pé dela durante todo o dia!

- E de noite? A senhora dorme bem?

Um sorriso beatífico espaireceu no amplo rosto.

- Oh sim, Vossa Senhoria, muito bem! Agradeço-lhe a amabilidade... eu durmo como um bebé!

A sala desatou a rir e o próprio juiz condescendeu em mostrar um vago sorriso. Sir John limitou-se a encolher os ombros.

- Muito bem, nesse caso continuemos! Se bem a entendo, esse Ladislas só podia odiar sir Eric pois, no seu entender, este tornava a mulher muito infeliz. Tem alguma ideia da forma como ele contava protegê-la?

- Penso que queria raptá-la para levá-la para fora do país, mas as coisas deram para o torto e julgo que se viu obrigado a matar o mau marido!

- ... após o que, desferido o seu golpe, desaparece sem deixar qualquer endereço e deixando a mulher amada a contas com a justiça? Isso não lhe parece um pouco anormal?

- Assim parece, e não paro de rezar a Deus e à Virgem de Czestochowa para que o traga de volta, a fim de que ele possa esclarecer todo este assunto e libertar aquela que tanto ama! Mas talvez esteja doente... talvez lhe tenha acontecido alguma coisa...

- Ou talvez tenha regressado à Polónia...

- Não, não acredito! Ó Ladislas Wosinski, onde quer que estejas, deves ouvir-me! A jovem aqui presente corre um grande perigo e se não vieres estarás ofendendo todos os códigos de cavalheirismo, todas as leis do amor e da generosidade. Ofenderias a Deus Todo-Poderoso...

Lançada daquela maneira, foi preciso mandá-la calar. Desencorajado, sir Desmond renunciou ao contra-interrogatório, mas pediu que a sua cliente fosse chamada à barra. Era tempo de voltar a assentar os pés no chão.

Apesar da sua manifesta lassidão, Anielka prestou juramento com voz firme e olhou calmamente para aqueles que a iam interrogar, com um olhar onde pairava até uma ligeira marca de divertimento.

- Lady Ferrais - começou o seu advogado - está de acordo com a deposição que acabámos de ouvir?

- Por muito estranho que possa parecer, estou parcialmente de acordo. Quero dizer: há muito de verdadeiro nas palavras de Wanda, se bem que ela tenha exprimido a sua própria verdade...

- Que quer dizer?

- Que Wanda nunca mudará. Que ela conserva - e conservará decerto até ao fim da vida - uma alma simples e boa, muito ligada à nossa terra natal, mas também aos seus sonhos. Ela disse a pura verdade quando declarou que eu amara Ladislas Wosinski antes do meu casamento e sofri por ter de obedecer a meu pai, ao desposar sir Eric. Mas esse amor já não existia quando ele veio ter comigo a Hyde Park, onde eu dava o meu passeio quotidiano a cavalo.

- Isso significa que já não se tratava de amor?

- Julga que isso ainda seja possível quando o ser que amou se transformou num chantagista? Ladislas exigiu entrar ao serviço do meu esposo. Se eu não o ajudasse, enviar-lhe-ia certas cartas que eu tive a imprudência de lhe escrever quando estávamos ambos em Varsóvia.

- Essas cartas eram assim tão comprometedoras?

- Eram-no terrivelmente, se atendermos ao carácter violento do meu defunto esposo e, sobretudo, se levarmos em conta o seu ciúme. O que eu escrevera revelava muito bem que eu fora amante de Ladislas antes de me casar. Mas Wanda nunca soube esse... pormenor. Ela é incapaz de perceber que o ardor da juventude possa levar a cometer semelhantes loucuras. Sobretudo a mim, a quem ela chama, com tanta ternura, a sua "pequena pombinha"...

- No entanto, na altura do seu casamento, o seu esposo deve ter-se apercebido de que...

- ... de que eu já não era virgem? - perguntou a jovem com aquele seu modo bem pessoal de dizer as coisas cruamente. - Não, ele não se apercebeu de nada porque a consumação do meu casamento, que ocorreu aliás na véspera da cerimónia religiosa, não foi mais que uma violação. Sir Eric estava tão apressado que eu fosse dele que me violentou, apesar da minha resistência. Julgando que eu era pura, essas cartas teriam sido desastrosas para o prosseguimento da nossa vida em comum.

- A senhora desejava assim tanto conservá-lo como esposo, apesar da sua conduta brutal?

- Sim. Depois ele redimiu-se arriscando a vida para me livrar das garras dos meus sequestradores na noite de núpcias. Julgo que não tenho de contar isso...

- Não. Os jornais daqui, fazendo eco da imprensa francesa, falaram muito nesse caso. Portanto, a senhora não odiava sir Eric?

- De modo algum. Ele sabia mostrar-se encantador e adorava-me...

- Nesse caso, como explica a frase proferida pelo sr. Sutton? Dizia assim... - o advogado pegou num papel pousado à sua frente e leu:

"Se quiseres que te ajude, primeiro terei que ser livre. Começa por seres tu a ajudar-me..."

- Não há nada a explicar. O sr. Sutton inventou essas palavras, tal como inventou as minhas relações adúlteras com Ladislas.

- Então é tudo falso?

- Tudo. Como é que eu poderia entregar-me às mãos de um homem que fazia pender sobre mim uma ameaça terrível, que me obrigou a que lhe entregasse uma parte das minhas jóias e que até ameaçou matar-me caso lhe acontecesse alguma desgraça durante ou depois da sua estada em nossa casa? Ele falava dos seus companheiros escondidos, da sua impiedosa determinação. Metia-me medo, é tudo. Ladislas não se teria arriscado a isso. Eu era muito vigiada e o meu esposo tê-lo-ia morto sem hesitar. O sr. Sutton inventou tudo e agora compreendo porquê. Saber que ele é meu enteado não me dá alegria nenhuma mas, pelo que ontem ouvimos, poderiam explicar-se muitas coisas quanto à morte do meu marido, a começar pelo desaparecimento do saquinho que supostamente continha a estricnina...

Nessa altura o juiz interveio:

- Lady Ferrais, devo recordar-lhe que tal como a senhora o sr. Sutton prestou declarações sob juramento?

- É evidente que um dos dois está a mentir - apressou-se a responder sir Desmond. - E eu sei bem de quem se trata. É a mim que caberá a honra de confundir aquele cuja dor excessiva me pareceu suspeita desde o início deste caso...

- Protesto, mylord! - exclamou o advogado da Coroa. - O meu distinto colega não tem o direito...

- Eu mesmo ia preveni-lo, sir John! As últimas palavras de sir Desmond serão riscadas da acta e o júri não deverá levá-las em consideração! Regressemos a si, lady Ferrais! Continua a pretender que, desde a sua chegada a Grosvenor Square, nunca teve relações... íntimas com esse Ladislas Wosinski?

- Nunca, mylord! Volto a repetir que nada restava dos nossos amores passados e foi apenas por medo que aceitei fazê-lo ingressar ao serviço do meu marido.

- Bom. Sir Desmond, tem de novo a palavra!

- Obrigado, mylord! Lady Ferrais, e se nos contasse o que esperava obter Wosinski disfarçado de criado? Julgo que ele lhe deve ter dito.

- Efectivamente. Ele queria dinheiro mas, sobretudo, armas. Era óbvio que não lhas podia entregar, mas ele contava obter algumas informações acerca dos fornecedores do meu esposo e talvez sobre algumas redes. Desculpe-me, mas não estou nada ao corrente desse género de negócios... nem, aliás, de outros quaisquer. Foi por isso que lhe ofereci algumas das minhas jóias, esperando que ele se fosse embora. Eu tinha muitas, dado que o meu esposo sempre se mostrara generoso para comigo...

- Bem queremos acreditar em si mas, ao agir desse modo, a senhora não estava a correr um sério risco? Como teria explicado a sir Eric o desaparecimento dessas peças que deviam certamente possuir um grande valor?

- Confesso que não pensei nisso. Estava com tanto medo! Ladislas aterrorizava-me...

- E Sutton? Não tinha medo dele?

- Não, sabia como colocá-lo no seu lugar. Não perdia a esperança de um dia me desembaraçar dele, visto que ignorava quem ele era.

- E se o tivesse sabido, que teria feito?

Os olhos de Anielka encheram-se de lágrimas, enrodilhando o lenço que tinha nas mãos e que tirara da manga.

- Não faço ideia... Talvez tivesse fugido. A ideia já me ocorrera. O meu pai e o meu irmão estavam na América. Quando o meu esposo faleceu, nessa altura eu pensava em pedir autorização para ir ter com eles por ocasião do casamento do meu irmão. Dentro daquela casa eu abafava no meio das ameaças de Ladislas, das tentativas sonsas de John Sutton e... é preciso dizê-lo... das exigências incessantes de um marido que em certas alturas parecia tornar-se louco.

- Ele amava-a demasiado?

- Podemos dizer as coisas dessa maneira.

- Contou a alguém esse desejo de evasão?

- Não, nem sequer a Wanda que, no entanto, me é tão dedicada. Porém, na noite do drama estava decidida a falar-lhe no assunto depois de regressarmos do Trocadero. Um pouco antes tivera de suportar uma cena penosa... na qual o sr. Sutton se apoiou para lavrar a sua acusação.

- Efectivamente. Ele tê-la-ia ouvido dizer: "Isto tem de acabar. Já não o suporto mais!..."

- Não vejo como me poderia ter ouvido, a menos que se encontrasse escondido sob a minha cama ou atrás dos cortinados. Esta cena ocorreu à porta fechada e o meu quarto é muito espaçoso. Além disso, nunca pronunciei essa frase...

- Sir Desmond - interveio o juiz - não acha que seria boa ideia ouvirmos novamente o sr. Sutton? Parece-me que estamos a entrar por um caminho cada vez mais obscuro de tal modo se torna difícil saber qual dos dois diz a verdade.

- Não peço melhor, mylord, conquanto não esteja a ver como poderemos obter qualquer esclarecimento...

- Se sir John estiver de acordo, inclinar-me-ia de bom-grado para... vejamos, que há ainda?

Um dos delegados da polícia de Old Bailey entrara, extremamente agitado. Dirigia-se na direcção do advogado da Coroa mas, ao ouvir a interpelação do juiz, parou a meio da sala.

- Com vossa permissão, mylord, o chefe-superintendente Warren pede autorização para que a Corte o ouça imediatamente!

O juiz conseguiu a proeza de erguer uma sobrancelha mais do que a outra.

- Imediatamente? Diabo! Tem que ser urgente... Chame-o então aqui!

Warren, arvorando a sua expressão dos maus dias que acentuava ainda mais aquele seu ar de pterodáctilo, efectuou uma entrada quase sensacional que fez levantar metade da sala e a totalidade das galerias. Começou por pedir que a Corte o desculpasse por uma intrusão tão pouco protocolar, mas a informação que trazia parecia-Lhe de índole a não poder esperar nem mais um segundo.

- A polícia de Whitechapel acaba de nos prevenir que, avisada por um telefonema anónimo, descobriu o corpo de Ladislas Wosinski, que se suicidou enforcando-se.

O súbito rumor do público foi dominado por um grito de mulher:

- Não! Oh, não! Não é possível!

Tiveram de levar Sally Penkowski, sacudida por uma grave crise de nervos, o que aumentou a emoção geral. Depois do juiz solicitar energicamente que se mantivesse a ordem, seguiu-se um profundo silêncio. No banco das testemunhas, Anielka, mais pálida que nunca, parecia-se com uma estátua de cera. Todos retinham a respiração. Foi sir Edward Collins quem retomou a iniciativa:

- Foi suicídio?

- Assim parece, mylord. Encontrámos esta carta sobre a mesa do quarto. Está endereçada à Scotland Yard.

- Posso tomar conhecimento do seu conteúdo?

O juiz encavalitou os óculos no nariz e percorreu a mensagem no meio de novo silêncio. Por fim, declarou:

- Senhoras e senhores, membros do júri, vou levar ao vosso conhecimento esta carta que traz a este processo um elemento de grande importância. Escutem, pois está redigida em inglês.

"Antes de deixar este mundo onde falhei todos os deveres em relação àquela que amo e aos meus irmãos de armas, tenho a declarar que a morte de sir Eric Ferrais, ocorrida na noite do dia 15 de Setembro último, se deve apenas a mim. Fui eu quem verteu a estricnina no recipiente onde se forma o gelo, dentro do armário-frigorífico, do qual consegui fabricar uma chave sem dificuldade, servindo-me de um molde de cera. Apanhado na minha própria armadilha, apercebi-me que já não suportava mais ver lady Ferrais a sofrer devido ao seu esposo e às minhas insistências pessoais. Não lastimo ter morto sir Eric - o homem não merecia viver - e ainda menos de ter de abandonar uma vida que não me foi nada favorável. Pelo menos levo comigo a certeza de ter posto termo ao pesadelo que vive a minha bem-amada. Que Deus e ela me queiram perdoar!"

Acabada a leitura, o juiz agitou um momento a carta, dirigindo-se a Warren:

- Tem algum motivo para crer que esta carta não tenha sido redigida pela mão do defunto?

- Nenhum, mylord! Encontrámos alguns papéis escritos em polaco e que estamos a traduzir neste momento. Foram todos redigidos pela mesma mão...

- Também não existe nada que permita crer que tivessem podido... ajudar este homem a suicidar-se?

- O corpo não apresenta quaisquer marcas de violência.

- Nesse caso...

- Pois bem! - murmurou Vidal-Pellicorne -, Aqui está uma linda literatura! Que pensas?

- Nada! Sinto-me desorientado: isto não se coaduna nada com o homem que encontrei na outra noite. Que raio se poderá ter passado para uma trágica reviravolta destas?

- Pode dizer-se que as vias do Senhor são impenetráveis. O conde Solmanski vai certamente atribuir este milagre às suas preces. Nesta altura deve estar em plena acção de graças!

- Não tem ar disso - disse Morosini. - Podes vê-lo daqui: está além, na quarta fila à nossa esquerda.

- Ele está por cá? Não o vi chegar.

- Eu sim. Foi durante a espécie de confusão que antecedeu a chegada de Warren...

O conde estava muito hirto no seu assento, com os seus olhos demasiado pálidos fixos na filha, que chorava copiosamente. Seguindo uma ordem dada pelo juiz, uma das guardas veio buscá-la, e levou-a de volta para o seu lugar, onde ela própria e uma colega se esforçaram por consolá-la.

O fim da audiência teve o inevitável desfecho. Sir Desmond pediu à acusação para abandonar o caso, pedido a que sir john Dixon acedeu com graciosidade depois de ter consultado o júri, cujo membro principal se colocou do lado do parecer geral.

Ao juiz apenas lhe restava pronunciar a ordem de libertação de lady Ferrais, que foi levada de volta ao subsolo no meio de um burburinho indescritível. Meia-hora depois, apoiada no pai, ela enfiava-se para dentro de um Rolls preto, cujo motorista se viu aflito para abrir caminho no meio da densa multidão que se aglomerava à saída do Old Bailey. Misturados aos desconhecidos e aos repórteres fotográficos, Morosini e Vidal-Pellicorne assistiram a esta partida que não se parecia de modo algum com um triunfo, exceptuando talvez para Solmanski, cujo perfil orgulhoso apareceu um momento por detrás do vidro do carro.

- Ei-lo todo contente! - observou Adalbert. - E, sobretudo, rico! A filha vai poder receber uma soberba herança...

- Podem ter a certeza que eu lhe porei os devidos entraves -disse a voz de John Sutton, junto aos dois homens. - Continuo a ser eu o encarregue dos negócios e dos segredos do meu pai... Ele terá de contar comigo!

- Acaba ou não por admitir ter cometido um erro ao acusá-la? - perguntou Aldo.

- De modo algum. O que vi e ouvi aconteceu realmente. Tenho a certeza de que é ela a assassina. E um dia conseguirei prová-lo.

E desapareceu por entre a multidão, seguido pelo olhar de Adalbert que parecia preocupado:

- Penso um pouco como ele - confessou. - Este suicídio tão oportuno não me convence. E a ti?

- És mesmo um esgravatador de necrópoles - disse Aldo, que reencontrara a sua boa-disposição. - Pára pois de andar à procura do bichinho ruim! Sempre acreditei que Anielka estava inocente e agora ei-la livre! Vem! Vamos festejar!

Os dois homens afastaram-se. Em redor deles, a multidão dispersava-se.

 

               CAPÍTULO 12 - O DRAMA DE EXTON MANOR

Alguns dias antes das festas do fim do ano, Aldo e Adalbert deslocaram-se até Kent para responder ao convite de Desmond Killrenan. A fim de escapar às turbulências causadas pelo curto processo de lady Ferrais, este escolhera passar alguns dias no sossego do seu domínio de Exton Manor. Sabendo que Morosini contava regressar a Veneza para festejar o Natal na companhia dos seus familiares e do pessoal da casa, insistira para que os dois homens fossem seus hóspedes durante quarenta e oito horas.

- Ficaremos a sós - explicou. - Na última semana antes do Natal, a minha mulher acampa em Regent Street, Bond Street, etc., para fazer as suas numerosas compras. E, tal como lhes prometi, antes que partam gostava de lhes mostrar a minha preciosa colecção.

Os dois amigos comprometeram-se de imediato. Para Aldo, a perspectiva de contemplar obras raras longe do olhar rancoroso da bela Mary era tanto mais sedutora porquanto não desesperava de encontrar um meio discreto para avisar o coleccionador sobre as manobras da sua perigosa esposa. Ocorrera-lhe uma ideia que contava pôr em prática. Além disso, esperava encontrar um derivativo para a sua amarga decepção.

Na sua candura néscia, imaginara que Anielka o chamaria logo no dia seguinte à sua libertação, nem que fosse para lhe agradecer pelos seus esforços e regozijar-se com ele sobre um futuro doravante em aberto e que permitia acalentar todos os sonhos, todas as esperanças. Mas tudo o que recebeu foi uma informação dada por Bertram Cootes que montava o cerco ao palacete de Grosvenor Square na companhia dos seus confrades: lady Ferrais abandonava Londres na companhia do pai, dirigindo-se para o castelo do Devon onde passara a sua lua-de-mel. Deixava a residência londrina - que aliás fora alugada - a Sutton, ao espectro do seu falecido esposo, mas também aos homens de lei encarregues pelo pai de zelar para que ela entrasse na posse da herança... Quanto aos seus projectos, não se sabia de nada.

Os de Aldo eram menos precisos, excepto o facto que convencera Adalbert a acompanhá-lo até às margens do Adriático, para lá passar o fim daquele ano de 1922 tão fértil em acontecimentos. A Natividade festejada na companhia da tia Amélie, de Marie-Angéline, de Guy Buteau, de Cecina e de Zaccaria, seria mais doce que em qualquer outro lado e Aldo, desencantado, sentia grande necessidade de doçura familiar. Depois, caso o estado das finanças assim o permitisse, talvez regressasse a Londres com o amigo para tentar perfazer o itinerário da Rosa de Iorque, cujo último desaparecimento decorrera apenas há dez anos. Dez pequenos anos que pareciam bem pouca coisa quando comparados a decénios de escuridão! Infelizmente, o último fio condutor parecia ter-se quebrado: o alfaiate, Ebenezer Lévi, não regressara à sua loja em Whitechapel, o que inquietava a sua vizinha.

- Começo a crer que lhe aconteceu alguma coisa - confessou aos dois homens da última vez que por lá passaram.

Também eles começavam a crê-lo e o nevoeiro do desencorajamento envolvia-os lentamente. Contudo, dessa vez Adalbert deu o seu endereço à vizinha - juntamente com uma ou duas notas - mas especificando claramente que, caso Ebenezer regressasse, ela não devia de maneira nenhuma mencionar a passagem deles.

- Vou voltar a França para lá passar as festas - acrescentou - mas logo que tiver regressado em Janeiro virei vê-la se me tiver dado notícias suas. Trata-se de algo mais importante do que contámos na nossa primeira visita e é do seu interesse conservar-se calada se quisermos resolver isto a contento...

Persuadida que o seu zelo lhe poderia valer uma linda soma, a vizinha jurou tudo o que quisessem.

- E se ele não voltar a aparecer? - perguntou Aldo. - Que faremos? Não podemos passar a nossa vida aqui...

- Perguntaremos a Simon e, caso ele esteja de acordo, talvez possamos dizer uma palavra acerca deste desaparecimento ao nosso amigo Warren. Ele dispõe de meios que nós não possuímos.

- Nesse caso, teremos de lhe contar a verdade.

- Nem toda, talvez só... uma parte, que escolheremos! Logo veremos o que fazer.

Entretanto, numa tarde cinzenta, o carro conduzido por um Théobald digno e compenetrado - como convém a qualquer criado de uma grande casa - atravessava os subúrbios sombrios e severos do sudeste londrino, para tomar a estrada para Dover que percorria Kent em toda a sua extensão, passando por Rochester e Canterbury. A residência campestre dos Saint Albans situava-se nas proximidades de Ashford, a sul da mais importante sede episcopal de Inglaterra.

O tempo húmido, por momentos ligeiramente chuvoso, revelava-se ameno como acontece frequentemente em Kent, cognominado o Jardim de Inglaterra, tal como Touraine é o da França. Era também a região preferida de Dickens: "Kent, senhor, diz o inefável Jingle em As Aventuras de Mr. Pickwick, toda a gente conhece: batatas, cerejas, lúpulo e mulheres!"

Mesmo que não se avistassem muitas mulheres com um tempo feio como aquele, mesmo sem as batatas e mesmo que não houvesse cerejas nas árvores despojadas pelo Inverno, o campo não deixava de se apresentar cheio de encanto graças às velhas residências senhoriais, às lindas aldeias e àquelas curiosas "torres de lúpulo", edifícios atarracados, cónicos, que se pareciam com gigantescos apagadores de velas.

- Devíamos ter vindo na Primavera - disse Adalbert. - Quando as árvores estão em flor, é um espectáculo deslumbrante!

- Ninguém te impedirá de regressar - resmungou Aldo. -Quanto a mim, gostaria de acabar depressa com as Ilhas Britânicas e reencontrar o meu Sol!

- Onde estaremos na Primavera? - suspirou o seu amigo. -Admitindo que deitemos finalmente a mão a esse malfadado diamante do qual tanto sangue escorre, só teremos cumprido metade da nossa tarefa. Restam ainda a opala e o rubi, acerca dos quais o nosso Simon não parece saber lá grande coisa...

- A cada dia a sua dor. Aronov terá de admitir que não se pode encontrar em cinco minutos pedras que foram perdidas há séculos.

Este ano devolvemos-lhe a safira. Já não é mau... Depois, quem viver logo verá!

- Hoje estás mesmo rezingão! No entanto, devias estar contente. Vamos ver coisas magníficas... Olha só para esta casa! É soberba!

Depois de contornar um pequeno bosque, Exton surgira em toda a sua graça. Construído sobre antigas aduelas, das quais uma parte se alargava para formar um lago bordejado por chorões, o velho solar conferia vestígios feudais a uma parelha de edifícios iguais, no mais puro estilo isabelino, reunidos por uma galeria e separados por um jardim em plataforma como só os ingleses sabem plantar. O conjunto oferecia uma imagem de extremo romantismo. Um esplêndido parque muito bem tratado rodeava o que era muito mais um castelo do que um solar.

- Lorde Killrenan deve viver largamente - comentou Vidal-Pellicorne com admiração. - É preciso muito pessoal para tratar disto tudo!

No entanto, quando veio receber os seus convidados à entrada da ponte fixa que passava por cima da aduela, o novo lorde não se parecia nada com um milionário. O seu velho casaco para a caça e as polainas enlameadas faziam-no assemelhar-se mais a um camponês do que a um brilhantíssimo advogado. As pessoas ter-lhe-iam dado uma moeda mas, para alguém entendido no assunto, a espingarda Purdey que trazia ao ombro valia uma fortuna.

Recebeu os seus hóspedes com prazer evidente que lhe aclarava o seu pesado rosto.

- Espero - disse - que não se zanguem por tê-los convidado apenas a vocês. Isso deve-se ao meu egoísmo: faz tanto tempo que desejo falar convosco acerca dos objectos da minha paixão, que é também, um pouco, a vossa!

- Sobretudo não se desculpe - disse Aldo. - É muito melhor assim e penso que certos assuntos não são para todos os ouvidos...

- Sobretudo os femininos! - reforçou Aldo, com um sorriso cândido.

No hall de madeiras sombrias de carvalho, com um austero pavimento de lajes e onde metade de uma árvore ardia alegremente sob o arco Tudor da grande chaminé, um mordomo imponente, flanqueado por dois criados, ocuparam-se dos viajantes: o primeiro conduziu-os aos respectivos quartos e os segundos foram buscar as bagagens e tratar de instalar Théobald.

- Suponho - disse Sir Desmond - que precisam de um pouco de descanso. As estradas são tremendas nesta época do ano. Jantaremos às oito, mas podem encontrar-me às sete e meia no salão das tapeçarias: é a primeira porta à direita, no hall, depois da escadaria.

Não havia nada a censurar quanto à hospitalidade do advogado: os quartos, se bem que tendo sido conservados escrupulosamente fiéis ao cenário da sua época - com lindíssimos móveis - estavam apetrechados de um conforto moderno, tão eficiente quanto discreto: nas casas de banho, pequenas mas bem arranjadas, a água corria a preceito, as toalhas cheiravam a lavanda. Quanto aos pequenos armários de estilo Renascentista, dispostos perto das janelas com vitrais de chumbo engastado, continham uma provisão honesta de frascos variados, de cigarros e charutos.

Os dois convidados teceram rasgados elogios ao seu anfitrião quando, envergando o smoking obrigatório da praxe, se juntaram a ele junto a outra chaminé, esta esculpida em madeira, onde ardia um cepo que espalhava um odor agradável a pinho.

- Lastimamos não poder prestar as nossas homenagens a lady Mary - disse Morosini. - É raro encontrar uma dona de casa tão atenciosa.

- Isso deve-se ao facto de ela ser uma perfeccionista. Aliás, em todas as coisas: só lhe convém o que há de melhor, a peça mais bela, única ou muito rara. Lembre-se das suas antigas relações com ela, príncipe! Claro está que, depois disso, nos podemos perguntar porque me escolheu precisamente a mim como esposo... Não sou propriamente um modelo de beleza.

A ideia que ele talvez padecesse com o facto aflorou a mente de Morosini que, no entanto, conseguiu encontrar resposta:

- O senhor não é por acaso o melhor dos advogados e talvez o coleccionador mais advertido e erudito? Perdoar-me-á se ignorar outras qualidades suas: é que não nos conhecemos suficientemente bem - acrescentou com aquele sorriso indolente que lhe assentava tão bem. Tivera o bom gosto de não aludir ao facto de ele ser sem dúvida o mais rico de todos os advogados da Ordem.

- Gostava que nos tornássemos amigos. Não se importam que passemos agora à mesa?

O jantar correspondeu à imagem dada pelo resto: consistiu numa mistura muito apurada de cozinha francesa, com trutas cozidas em vinha-d'alhos e de tradição britânica, com uma tenra carne assada acompanhada, não por batatas cozidas, mas sim tostadas com manteiga... Os vinhos, bem escolhidos, eram brancos de Chablis, ou tintos de Borgonha, pelos quais lorde Desmond parecia ter um fraco. Na realidade, ele comeu bem, mas bebeu ainda melhor, sem que aliás se ressentisse. Ao deixar a mesa sentia-se de disposição mais jovial que quando nela se sentara, sobretudo depois de um ou dois cálices de um Porto admirável, chamado Regresso das índias.

Conversaram muito: primeiro, da China e dos seus tesouros, mas também de pedras célebres e de arqueologia. Conversa apaixonante para todos e que pareceu entusiasmar grandemente lorde Desmond. Deste modo, foi com toda a naturalidade que por volta das onze horas, quando quase todos os criados se tinham retirado, ele propôs aos convidados que fossem visitar a sua colecção... o que estes aceitaram com alegria. Dirigiram-se na direcção da galeria que ligava os dois pavilhões e que ficava junto à parte mais antiga.

Esta galeria, bastante larga, com um pavimento de lajes e traves falsas no tecto, com elevadas janelas em ogiva que contemplavam a noite a partir do jardim interior, parecia-se com a de um claustro, com a diferença de que, na sua vasta parede, os retratos dos antepassados alternavam com algumas armaduras e armas antigas. No meio situava-se uma porta de carvalho esculpida em ferro engastado e com uma fechadura da época, que foi aberta sem dificuldade pela chave guarnecida de flores de lorde Desmond. Atrás dela, havia uma escada em caracol que mergulhava no solo. Era evidente que tinham mudado de século: bastava olhar para a espessura das paredes e para a armação da escada. A presença discreta da electricidade em nada alterava a sensação de se sentir ali deslocado.

Chegaram a uma sala baixa e abobadada que devia ter sido vasta na sua origem, mas cuja superfície estava agora sensivelmente reduzida por uma parede engastada numa superfície negra e polida. Lembrando-se do que ouvira nas caves do Crisântemo Vermelho, Aldo pensou que lady Mary não mentira: o seu esposo tinha realmente mandado instalar uma câmara-forte numa antiga adega.

O senhor dos domínios mexeu na combinação e o enorme batente em aço deslizou nas suas dobradiças, revelando uma sala que logo se iluminou. Os dois convidados soltaram exclamações de espanto: havia ali um verdadeiro tesouro que justificava as precauções do proprietário... e a cobiça do falecido Yuan Chang. Dentro dos vidros iluminados desfilava diante deles a mais bela colecção de jades, verdes e brancos, que tinham jamais contemplado: objectos rituais representando o Céu e a Terra, que podiam ser datados de 1.500 a.C., dragões translúcidos de asas abertas, uma espantosa couraça em ouro e jade da época Han, "montanhas" esculpidas representando a vida de antigos heróis, ao lado de jóias esplêndidas encastoadas em ouro, por entre as quais três diademas imperiais.

- Como conseguiu reunir isto tudo? - suspirou Morosini, cuja paixão pelas coisas antigas fora atiçada ao máximo.

- O mérito cabe ao meu pai. Eu limitei-me a continuar, mas confesso que com um entusiasmo sempre crescente. No entanto, não conte comigo para lhe revelar como consegui adquirir alguns destes objectos. Por vezes paguei-os muito caro, ou então fui bafejado pela sorte. Príncipe, o senhor também está ligado ao segredo profissional e há-de decerto compreender que um coleccionador não revele facilmente as suas fontes.

- Por isso não lhe perguntarei nada. Peço-lhe que me perdoe esta exclamação arrancada pela surpresa, pela admiração... e, talvez, por um pouco de inveja!

- Está perdoado. E vós, senhor Vidal-Pellicorne, acha que estas jóias seriam dignas das suas queridas princesas egípcias?

- Não me interesso apenas pelo Egipto e confesso de bom-grado que tudo isto é fabuloso! O senhor é um mestre, lorde Desmond!

Com o feio rosto agora iluminado pelas chamas do orgulho que se juntavam às da bebida, o coleccionador declarou:

- Se me derem ambos a palavra que nunca revelarão a ninguém o que tenho vontade de lhes mostrar, penso que não o irão lamentar!

- Não está tudo aqui? - perguntou Aldo.

- Não, ainda há outra coisa.

- Nesse caso, tem a minha palavra!

- E também a minha - disse Adalbert.

- Então, venham!

Levou-os até ao fundo da sala ocupada parcialmente no seu centro por uma montra na qual imperava um conjunto de armas de bronze com lâminas em jade. Estendeu o braço para carregar em algo situado junto ao vidro e a parede abriu-se, deslizando sobre invisíveis dobradiças e arrastando consigo o móvel que lhe estava preso.

- Só um momento, vou acender a luz! - disse sir Desmond, puxando do seu isqueiro.

Com efeito, desta vez não era questão de electricidade. Adalbert e Aldo trocaram entre si um olhar, enquanto o seu anfitrião desaparecia no meio do espaço escuro. A pouco e pouco este foi sendo substituído pela luz das velas e ouviu-se a voz de lorde Desmond dizendo:

- Já podem entrar.

O que os dois homens descobriram deixou-os pregados de espanto. À entrada de uma salinha coberta de veludo castanho, que se assemelhava ligeiramente a uma capela, havia dois candelabros que aclaravam um retrato que Morosini reconheceu de imediato: era o do duque de Saint Albans, esse filho bastardo do rei Carlos II e de Nell Gwynn. Um retrato mais pequeno que o que contemplara em casa da duquesa de Danvers, mas muito mais interessante: alojado entre as rendas da sua gravata, resplandecia um enorme diamante polido de brilho leitoso...

Por baixo do retrato havia uma espécie de altar sobrepujado por um pequeno tabernáculo, cuja porta dourada e esculpida lorde Desmond estava agora a abrir. E ocorreu um milagre: em cima de um suporte de veludo brilhava a pedra reproduzida no quadro!

- Aqui está! - suspirou lorde Desmond, deixando-se cair numa grande poltrona de carvalho que fora ali colocada para longas contemplações solitárias. - Agora podem constatá-lo: os que pretendiam que o diamante de Harrison era falso, tinham razão.

- A Rosa de Iorque! - exclamou Morosini, invadido por um mar de desconfiança. - Então é o senhor quem a tem?

- Sou eu - afirmou o lorde, desfrutando arrogantemente do seu triunfo. - Também sou eu o autor das cartas anónimas aos jornais. Não podia suportar a ideia que existisse outra pessoa que se pavoneasse e exibisse um grosseiro modelo falso.

- Um grosseiro modelo falso? - grunhiu Adalbert. - Houve mais que um especialista que se enganou... a menos que seja este o falso...

- Está a brincar? Eu conheço a história... ou quase toda ela. Desunhei-me para desenterrá-la quando, há quinze anos atrás, encontrei este retrato numa loja de bugigangas em Edimburgo.

-Julgava que não pertenciam à mesma família - alvitrou Aldo, designando a personagem do retrato com uma flamejante cabeleira.

- E não pertencemos efectivamente mas, às vezes, surpreendo-me a sonhar com esta correspondência de nomes e quando venho para aqui meditar, divirto-me a acreditar que também sou descendente de amores reais, que o sangue dos Stuarts corre nas minhas veias... e fico feliz! É uma sensação... divina! Tanto mais que ninguém conhece este cubículo e o que ele contém!

- Inclusive a sua esposa?

- Sobretudo ela! Conhece a paixão dela pelas jóias antigas, de preferência célebres. Eu só estou preso a esta. Tem de admitir que ela vale a pena!

Sem responder, Morosini inclinou-se, pegou delicadamente no diamante com dois dedos e contemplou-o à luz de uma vela. No seu peito, o coração batia a um ritmo mais veloz. Nunca tendo visto o diamante do Temerário, mesmo numa reprodução, sentia uma violenta excitação, que dissimulava bem sob o seu ar descontraído. Finalmente tocava naquela pedra maléfica cuja brancura escondia hipocritamente rios de sangue!

- Que esperava ao escrever essas cartas? Que renunciariam a vender o diamante?

- Com certeza, e confesso não ter compreendido Harrison. Ele era um grande joalheiro, um especialista até. Como é que pôde deixar-se enganar daquela maneira?

- O meu amigo acabou de lhe dizer: muitos foram aqueles que se enganaram. Quando o infeliz Harrison foi morto, nós estávamos a caminho da sua loja - que já conheço de longa data! - para rogar-lhe que nos mostrasse a Rosa. Eu teria sem dúvida emitido o mesmo veredicto que os outros. Mas, diga-me uma coisa: faltava pouco para o leilão. A venda ia ocorrer. Que teria feito nesse caso? Contava mostrar este diamante em público ou...

- ... ou então achei que era mais cómodo pôr ponto final a essa comédia mandando roubar a pedra e ordenando, ao mesmo tempo que... assassinassem Harrison?

- Não. Confesso que há pouco tive dúvidas, mas agora tenho a certeza...

- E o que é que lhe deu essa certeza?

- O facto de lady Mary ignorar que a Rosa lhe pertence...

- Confesso que não estou a entender...

- Isso não tem importância no momento. Mas, não me respondeu: que contava fazer se o leilão tivesse ocorrido?

- Nada! Teria estado presente na sala, como é óbvio, para ver se não haveria outros a colocar dúvidas, porque nem todas as cartas foram da minha autoria, mas penso que teria acabado por ficar calado... Eu, um advogado, teria optado pelo silêncio, a fim de conservar intacto o prazer de que desfruto aqui quando me venho sentar neste lugar e ponho a Rosa nas minhas mãos, tal como o senhor neste momento.

- Há pouco disse-nos que acabou por conseguir retraçar a sua história, de forma mais ou menos completa - interrompeu Vidal-Pellicorne. - Essa foi uma investigação que também levámos ambos a fim... por simples curiosidade, é claro. Saberá dizer-nos se, tal como nos asseguraram, o príncipe Regente a deu à sua amante, a sra. Fitzherbert?

- É exacto. O que o é menos é o termo que acabou de utilizar: Maria Fitzherbert era na realidade a esposa morganática do príncipe que, por isso, se tornou bígamo quando desposou essa pobre Catarina de Brunswick. É incontestável que a amou muito e a Rosa foi-Lhe oferecida, entre outros presentes, no tempo dos seus amores. O facto de nunca a ter recuperado, mesmo quando se separou dela, abona em favor da constância dos seus sentimentos.

- Como bom inglês que é, o senhor dá um belo papel ao seu soberano. Quem se separou foi Maria Fitzherbert, que se foi embora em 1811, depois de ter sofrido uma afronta. Ela até deixou a Inglaterra sem esperanças de regresso. Estou mais inclinado a pensar que foi antes "Georgie" quem não ousou correr atrás dela para recuperar o diamante.

- A menos que se tenha simplesmente esquecido dele, logo que entrou na posse das outras jóias fabulosas da Coroa. Eis, pois, a sra. Fitzherbert a caminho do continente. Leva consigo uma menina à qual se ligou: Minney Seymour. Foi esta que, uma vez casada, trouxe a pedra de volta a este país e que a conservou consigo até à morte.

Efectivamente, roubaram-na aquando do assalto à sua residência de Brook Street. Nessa altura há um buraco na história mas depois fiquei a saber que em 1888 ela estava na posse de um rabi no quarteirão de Whitechapel. Ele achara-a um objecto sagrado, sabe lá Deus porquê, e rebaptizara-a como "a pedra judaica". Guardou-a durante muito tempo e foi apenas há dez anos que soube que ela estava em sua posse...

- Por intermédio de quem? - perguntou Aldo.

- Por intermédio de um homem em quem eu confiava muito, que estava ao serviço do meu pai e que, apaixonado por antiguidades, possuía um faro de cão de caça para desenterrar objectos impossíveis de encontrar. É a ele que devo muitos objectos da minha colecção. Foi ele quem me veio um dia falar acerca da pedra judaica. A discrição correspondia de tal forma ao que procurávamos que lhe abri um largo crédito para que ele a comprasse. E foi o que fez...

- Ele disse-lhe que a tinha comprado? - interveio Adalbert. - Não acha algo bizarro que um rabi tenha aceite vender um objecto sagrado?

- Confesso que sim, tanto mais que o rabi e o seu filho mais velho foram assassinados nessa época. Em todo o caso, não foi por mim - acrescentou sir Desmond, ao ver que os seus convidados franziam o sobrolho. - Quem negociou com o meu mandatário foi o filho cadete, um certo Ebenezer. Aquele disse-me que nunca encontrara uma personagem tão ávida. O fulano era alfaiate, mas só gostava de dinheiro. Confesso que, nessa altura, me perguntei se não seria ele o parricida, mas a investigação da polícia ilibou-o.

Morosini e Vidal-Pellicorne trocaram um olhar pois, tal como lhes acontecia frequentemente, tinha-lhes ocorrido a mesma ideia: o filho podia muito bem ter facilitado o trabalho do ou dos assassinos pagos com o dinheiro de lorde Desmond. Passados dez anos e sempre sequioso de dinheiro, acedera em falar da "pedra judaica" a estrangeiros que pagavam. Era uma velha história e como nunca estivera implicado na mesma, não descortinara qualquer inconveniente em que ela lhe rendesse ainda algum dinheiro, mas algo viera assustá-lo e decidira fugir. Era de apostar que nunca mais o veriam.

Dividido entre o desejo de arremessar para longe a jóia tantas vezes assassina e o de metê-la ao bolso, Aldo acabou por colocá-la no seu leito de veludo.

- Sabendo isso tudo, este diamante não o horroriza? - perguntou, com os olhos ainda fixos no tabernáculo aberto. - Não lhe ocorre que ele traz consigo a desgraça?

Lorde Desmond encolheu os ombros.

- Vocês, os latinos, são demasiado supersticiosos. Quanto a mim, nunca me deixei acabrunhar por essas ideias. Uma boa parte dos nossos castelos guardam sangrentas aventuras entre as suas paredes, crimes que ocasionam almas penadas e fantasmas. Além disso, devido à minha profissão, estou familiarizado com o crime. Acredite-me, isso endurece um homem!

- Contudo, na sua posição, eu desconfiaria - reatou Aldo, com o olhar sempre preso no diamante e com o espírito voltado para a inquietante esposa do lorde. - Talvez esteja na altura de lhe revelar a verdade...

- Acerca de quê, meu Deus? E que faria no meu lugar?

- Vendê-lo-ia. Não numa sala de leilões, é claro, para não provocar a agitação que conhecemos, mas vendê-lo-ia... a mim, por exemplo.

- A si? Sabe que ele custa uma fortuna?

- Pagarei o preço que for solicitado. Qualquer que seja! Não se esqueça que vim a Londres apenas para aumentar os lanços do Sotheby's.

- Não me esqueci de nada, mas não o venderei. Se partilhei o meu segredo foi por pura simpatia e também para lhe evitar a perda de mais tempo à espera do regresso de uma jóia falsa. Deve imaginar que, para mim, está fora de questão separar-me...

Não acabou a frase. Uma exclamação de Adalbert levou a que os dois outros homens olhassem para a porta secreta que permanecera aberta: de pé no meio dela, lady Mary contemplava estupefacta a inesperada cena que lhe era revelada. Os seus olhos claros sobrevoaram as personagens e o quadro antes de se fixarem intensamente na jóia que Aldo acabara de voltar a colocar no seu lugar. Parecia-se tanto com um fantasma que ninguém abriu a boca. Aliás, ela também não, pois já só tinha olhos para a Rosa.

Com passos de autómato, caminhou até à pedra na qual a chama da vela acendia reflexos cintilantes e, depois, com um gesto que evocava tanto a prece como a súplica, ergueu as mãos enluvadas para a agarrar, deixando cair o saquinho de camurça preto, a condizer com o sobretudo e a touca de astracã que trazia. Instintivamente, Adalbert baixou-se para o apanhar e guardou-o.

Mary ia pegar no diamante, quando ribombou a voz do marido:

- Deixe isso aí! Proíbo-a de lhe mexer!

Ela olhou-o com um olhar ausente que não o via e que logo se desviou para regressar ao objecto da sua cobiça.

- A Rosa!... A Rosa está aqui? Mas, então...

Entrando subitamente em pânico, o seu olhar procurou o saquinho que largara um pouco antes mas, compreendendo o que ele continha, Adalbert escondera-o dentro do seu bolso. Ela não teve tempo para vasculhar as zonas sombrias do pavimento: com um ruído abafado, o painel da parede estava a deslizar. Alguém o fechava do exterior.

- Mas o que vem a ser isto? - barafustou lorde Desmond.- Quem está aí? Quem veio consigo? E, antes de mais, que faz aqui? Devia ficar em Londres até sábado...

Agarrara na esposa, sacudindo-a pelos ombros sem que ela opusesse a menor resistência. Aldo interpôs-se entre ambos e obrigou o marido a largar a mulher que parecia perdida, em transe...

-Julgo que esta cena doméstica poderá ficar para mais tarde - sentenciou. - Pelo menos, até que tenhamos saído daqui. Se é que é possível - acrescentou, levando lady Mary a sentar-se na poltrona das contemplações, onde ela caiu como um saco roto.

- É possível! O mecanismo funciona nos dois sentidos. Não sou louco...

Em certas alturas, Morosini tinha as suas dúvidas a esse respeito. Por exemplo, quando momentos antes Mary quisera tocar na pedra, o olhar furioso de sir Desmond foi o de um demente. Mas quando este ergueu o braço para fazer deslizar a porta, Aldo impediu-o.

- Mais devagar! Agora que sabemos que podemos mexer no mecanismo, talvez convenha pensar no que se passa do outro lado. Como o senhor disse, encontra-se lá alguém. A porta não se fechou sozinha... Até pode haver mais gente do que imagina. Se sair, arrisca-se a que disparem sobre si como se fosse um coelho...

- É verdade, e é por isso que é" preciso que ela fale! - exclamou Desmond, voltando-se para a mulher sempre inerte na poltrona, mas com os olhos fixos no diamante. - Mary, trouxe gente consigo? Quem são essas pessoas?

- No estado de prostração em que se encontra, ela não será capaz de lhe responder, mas talvez eu o seja...

- Como? A menos que seja o senhor a mecha - acrescentou o advogado, com um riso desagradável.

- Quando tivermos saído daqui, é possível que lhe dê uma lição por ter dito isso - respondeu Morosini tranquilamente -, Entretanto, temos coisas melhores a fazer. Há algum tempo atrás, o superintendente Warren não o avisou contra as manobras de um certo Yuan Chang, que estava decidido a desembaraçá-lo de uma colecção que ele considerava como um puro produto da pilhagem do seu país?

- Mas esse Yuan Chang morreu na prisão. Além disso, não vejo como podia esperar assaltar-me a casa e, sobretudo, a minha câmara-forte!

- É muito simples: ele tinha a sua mulher entre as mãos. Como? Agora seria um pouco longo explicar-lhe - acrescentou, olhando para Mary com uma comiseração involuntária, enquanto Adalbert se esforçava por lhe prestar alguns cuidados.

- Bem quero acreditar mas, repito-lhe, esse homem enforcou-se. Sem dúvida que obedeceu a ordens, e inclino-me em crer que tenha deixado pelo menos um sucessor... e que esse sucessor tenha obrigado lady Mary a conduzi-lo até aqui e que não veio sozinho...

Efectivamente nesse preciso momento ouviu-se um ruído de vidros partidos, logo seguido de outros idênticos.

- Deus Todo-Poderoso! - gritou lorde Desmond. - - Estão a partir-me as montras!... Não vou deixá-los...

Lançando-se na direcção da parede, carregou num ponto indiscernível e ouviu-se um estalido, mas a porta só se entreabriu. Alguma coisa ou alguém impedia a sua abertura. Ao mesmo tempo, ouviram uma voz gutural dando ordens em chinês, sem dúvida um incitamento para se despacharem...

- Ajudem-me! - admoestou Desmond. - É preciso impedi-los de bloquear a porta, senão morreremos todos. Ninguém, no castelo, conhece o mecanismo.

- Nem sequer eu! - guinchou lady Mary que conseguira voltar a si graças a algumas bofetadas desferidas por Adalbert. - Como me pôde enganar desta maneira?

Ninguém lhe respondeu. Compreendendo que corriam um sério risco de morrer abafados naquele cubículo, Aldo e Adalbert juntavam já os seus esforços aos do castelão para afastar o painel mural.

- Não está armado, evidentemente...? - perguntou Morosini.

- Sim! Sempre que venho aqui...

- Nós também! - disse a voz arrastada de Adalbert. O outro indignou-se logo:

- Vieram armados para minha casa?

- Evidentemente - reatou Aldo, sem deixar de empurrar. - Desde que o superintendente nos fez saber que os asiáticos se interessavam de muito perto pelo seu domínio, julgámos mais prudente não nos aventurarmos até aqui sem estar armados. Dir-se-ia que tínhamos razão... Empurrem com mais força, que diabo! Não é a altura para discussões! Dir-se-ia que o ruído se afasta.

- Devem ter acabado! - gemeu o coleccionador. - É preciso agarrá-los!

Um esforço mais violento acabou com a resistência da porta, travada por um montão de destroços diversos. Ela abriu-se tão bruscamente que os três homens caíram para a frente. Ao mesmo tempo soaram dois tiros que, felizmente, não atingiram ninguém. Espreitavam-lhes a saída mas nem Aldo, nem Desmond, que foram os primeiros, se deixaram apanhar desprevenidos. Mal se encontraram no solo, fizeram pontaria e dispararam.

A sala do tesouro chinês apresentava uma desordem indescritível. Eram só vidros partidos, montras desfeitas, enquanto uma meia dúzia de homens vestidos de preto e carregando sacos se apressavam a sair, protegidos pelo fogo do maior de entre eles, que devia ser o chefe. A fuga não era sem dificuldade, pois todos eles pretendiam transpor a porta blindada ao mesmo tempo. Percebendo que aquela saída atulhada representava uma oportunidade, Aldo fez cuidadosamente pontaria e abateu um dos bandidos mesmo quando este ia precisamente a transpô-la. Uma outra bala, disparada por lorde Killrenan, acertou no ombro do chefe que recuou na direcção da porta. Este soltou uma praga intraduzível e disparou outra bala, talvez a última. Aldo ouviu um grito atrás de si, mas não se voltou. Correndo através da cave caiu em cima do homem na altura em que este chegava à saída. Seguiu-se uma luta selvática mas breve. Os dois homens tinham aproximadamente a mesma força. Contudo, o chinês conseguiu soltar-se das mãos do adversário que, agarrado a ele, deixou-se arrastar até ao fundo das escadas, onde o outro se libertou dando-lhe um pontapé. Atordoado, Aldo só teve tempo para ver o seu anfitrião saltar-lhe por cima da cabeça com uma agilidade insuspeitável e lançar-se atrás dos assaltantes.

Renunciou a segui-lo: o importante era que a câmara-forte não se tivesse fechado, deixando-os presos. Aliás, pouco depois, ouviu alguns tiros, logo acompanhados por ordens para pôr as mãos no ar, proferidas num excelente inglês. Soltou então um suspiro de alívio e deu-se ao luxo de sorrir. Pensou:

"Dir-se-ia que tivemos uma excelente ideia de prevenir Warren da nossa partida e das circunstâncias que rodeavam este convite".

Uma brusca inquietação apagou este breve momento de relaxação. Adalbert!... Por que não estava ele a seu lado? Lembrou-se então do grito rouco que ouvira na altura em que arremetera contra o chefe e sentiu o coração apertar-se. Se tivesse acontecido alguma desgraça ao seu amigo... Mas, logo que regressou à sala, avistou-o ajoelhado diante de qualquer coisa que não conseguiu ver imediatamente por causa do montão de ferro-velho e de vidros partidos.

- Estás ferido? - gritou-lhe, abrindo caminho.

- Não. Vem ver!

Fora Mary quem gritara e pela última vez. Jazia agora no manto escuro das suas peles, numa pose cheia de graça, com os cabelos louros saindo da touca e espalhados à sua volta. A bala deixara-lhe uma marca na testa, um ponto vermelho parecido com aquele que trazem as mulheres hindus e, no momento da morte, guardara um pequeno sorriso. Talvez porque, na cova da palma da sua mão aberta, brilhava o diamante pela posse do qual estivera disposta a tudo sacrificar...

Aldo ajoelhou-se por sua vez e inclinou-se para pegar na pedra que acabara, mais uma vez, de provocar a morte.

- Não lhe toques! - disse Adalbert, passando ligeiramente a mão pelos olhos cinzentos ainda abertos. - Já a troquei... essa não é a verdadeira...

Lá fora, a polícia do condado, chefiada pelo coronel Courtney, requisitado pelo superintendente Warren e secundado pelos criados do castelo, mantinham em respeito os bandidos e o seu chefe, um certo Yuan Yen, o próprio filho do falecido Yuan Chang, enquanto que, a alguns passos dos carros, lorde Desmond Killrenan apanhava febrilmente os sacos que continham o seu tesouro, chorando e rindo ao mesmo tempo, sem se ocupar minimamente com o que se passava à sua volta. Nem sequer parou quando Morosini lhe veio dizer que a sua mulher acabara de ser morta... Só contavam os jades preciosos que quase perdera!

Renunciando a perturbar-lhe a felicidade, Aldo voltou-se para Warren.

- Ensandeceu? - Na minha opinião, se ainda não aconteceu, não irá tardar...

Na véspera de partirem para Veneza, os dois amigos convidaram Warren para jantar no Trocadero, mas ele declarou-lhes sem rodeios que preferia muito mais desfrutar, com toda a tranquilidade, a cozinha de Théobald a ter de suportar durante toda a noite os olhares curiosos, e até mesmo as indiscrições de um público ainda abalado pelas turbulências do processo Ferrais. Foi pois em redor de um admirável recheio de patê e de um frango Vallée d'Auge que se reuniram para comentar os últimos acontecimentos.

Depois de consultas feitas junto às mais altas instâncias, a morte trágica de lady Mary incitara a Scotland Yard a deitar um manto de silêncio acerca do papel que ela desempenhara no assassinato do joalheiro Harrison. A pedra roubada fora encontrada junto ao seu corpo e ninguém procurava saber como fora ali parar, mas salvara-se a honra da polícia e o rei, informado, acabara por dizer que se opunha a que ela fosse posta de novo à venda: já havia dramas e escândalos que bastassem! A Rosa de Iorque, por ele comprada aos herdeiros de Harrison, iria ocupar o seu lugar na Torre de Londres, no meio das jóias da Coroa. Quanto à existência de um verdadeiro e de um falso diamante, ela só era conhecida por Morosini, Vidal-Pellicorne e, claro está, por Simon Aronov, graças à precaução que tivera Adalbert em fechar o pequeno cubículo secreto de lorde Desmond antes da polícia entrar em cena. Não havia nada a temer da parte do seu verdadeiro proprietário, cuja razão periclitante o conduzira para uma dessas clínicas psiquiátricas de luxo, muito caras e pouco conhecidas do grande público, onde ele iria poder viver no meio dos seus queridos jades até que ficasse curado - o que era pouco provável! - ou até que Deus se dignasse a chamá-lo para junto de Si... Os seus bens iam ser postos sob administração judicial.

- Old Bailey perde um grande advogado - resumiu Gordon Warren, com as mãos aquecendo o seu copo de cristal, remexendo lentamente uma aguardente fina da cor do caramelo. - Espero que antes de se ir embora, lady Ferrais tenha pensado em pagar-lhe os seus elevados honorários...

- De qualquer modo, ela não foi para muito longe - disse Aldo, servindo-se generosamente. - Devon não fica no fim do mundo...

Os olhos amarelos do pterodáctilo semicerraram-se por cima do copo cujo aroma aspirava.

- Devon não, mas quando se atravessa o oceano Atlântico já se pode falar de uma longa distância...

- O oceano Atlântico? Ela vai para a América?

- Para conhecer a cunhada. Não me diga que ela não lhe telefonou nem lhe escreveu algumas linhas para o prevenir? Não seria nada gentil, depois de todo o trabalho que teve.

Aldo procurou um cigarro e acendeu-o com uma mão que os seus companheiros puderam constatar que tremia ligeiramente, se bem que a sua voz se mantivesse calma e fria.

- Contudo, é assim. Acabo de ser posto ao corrente por vocês!... Oh, é claro que sinto uma certa pena, mas podem ter a certeza de que não estava à espera de nenhum agradecimento...

- Nem sequer um obrigado? É muito bonito ser-se um grande senhor! É coisa rara servir uma dama, como os cavaleiros de outrora, só pela beleza do gesto!

- Não faça troça de mim, Warren! Contudo, há algo que me intriga: essa pressa em deixar a Inglaterra. Encontrar uma nova cunhada é muito lindo, mas enfrentar o mar no mês de Dezembro não tem nada de agradável. Não podia esperar pela Primavera?

- Às vezes as tempestades da Primavera são piores que as do Inverno - comentou Adalbert -, mas... talvez fosse o conde Solmanski quem estivesse com pressa, não? Não terá achado que Devon ainda ficava muito próximo de Londres, sobretudo depois do suicídio da jovem Sally?

Efectivamente, no dia seguinte à libertação da sua senhora, Sally Penkowski matara-se com uma dose de veronal.

A pequena criada de quarto deixara uma carta declarando que não conseguiria sobreviver à morte de Ladislas Wosinski, que amara profundamente. Confessava também que prestara testemunho falso na esperança de livrá-lo da perseguição que lhe movia a polícia e, por isso, pedia perdão a Deus. A impressão causada junto ao público, ampliada ainda pelos jornais, revelara-se deplorável: é claro que lady Ferrais se encontrava decerto inocentada, mas começavam a ver nela uma dessas mulheres fatais que deixam um rasto de morte à sua passagem. Até Aldo ficara impressionado.

- Não anda longe da verdade - disse o superintendente, dirigindo um pequeno sorriso ao arqueólogo - mas eu estou inclinado em crer que é por causa do suicídio do polaco que ele quer afastar a filha.

- Então Wanda teria razão? Afinal, ela sempre o amava? - disse Aldo, sentindo um aperto desagradável no coração.

- Isso não sei, mas não lhe escondo que essa morte tão oportuna me coloca certas questões. Oh, no quarto de Whitechapel tudo estava em ordem e a confissão desse rapaz fora escrita pela sua própria mão; pudemos comparar as caligrafias. Além disso, o corpo não mostrava sinais de sevícias recentes, e contudo...

- Se tinha dúvidas - perguntou Adalbert - porque se precipitou até Old Bailey?

- Na altura não tive dúvidas. Elas começaram a surgir foi depois, à força de reflectir no caso. E talvez porque me foi assinalada por duas ou três vezes a presença do conde Solmanski no quarteirão.

- Nós também o vimos por lá, mas ele estava acompanhado por um padre, o que nada tem de inquietante. De qualquer modo, não vejo como teriam podido enforcar um homem, jovem e robusto, contra sua vontade, sem primeiro o fazerem desfalecer ou sem o anestesiarem.

- Ainda não sei, mas podem ter a certeza que o descobrirei! Eu sou como os buldogues deste país: quando agarro algo, não mais o largo.

- Mesmo assim, ainda seria preciso encontrar a prova da culpabilidade de Solmanski - disse Aldo. - Dito isto, penso que um homem que participou no pogrom de Nidjni-Novgorod de 1882 é capaz de tudo...

- Onde soube isso?

Morosini fez um gesto evasivo que impedia que lhe fizessem mais perguntas sobre este ponto, mas acrescentou:

- Nessa época ele não se chamava Solmanski, mas sim Ortschakoff..

- Ora aí está algo de interessante para eventuais investigações num quarteirão judaico! Sabe mais alguma coisa?

- Não, mas se um dia conseguir pô-lo fora de circulação, não serei eu quem irá chorá-lo, e menos ainda certos amigos meus! - concluiu, pensando em Simon Aronov.

- Dos quais eu também faço parte - afirmou Vidal-Pellicorne. O superintendente acabara o seu copo e recusou outro. Levantou-se e puxou do relógio.

- Está na altura de deixá-los dormir. Sempre se vão embora amanhã?

- Sim. Amanhã à noite estaremos em França, a caminho de Veneza.

- Vão regressar? - perguntou Warren, depois de uma ligeira hesitação.

- Por que não? - disse Adalbert. - Gosto muito desta casa e, além disso, interesso-me de muito perto pelo que se vai passar nos próximos tempos em redor do Museu Britânico. Antes disso, talvez vá dar uma volta pelo Egipto, mas ficaria muito surpreendido se não me voltasse a ver. E quando me vêem, é muito raro que não vejam também Morosini!

Pela primeira vez desde que o conheciam, um largo sorriso iluminou os traços austeros do pterodáctilo.

- Regressem! - disse. - Isso dar-me-á grande prazer.

E foi-se embora depois de ter apertado vigorosamente as mãos daqueles que tinham sabido tornar-se seus amigos.

- Terei feito mal ao falar-lhe de Solmanski como o fiz? - perguntou Aldo que levantara uma cortina para vê-lo partir.

- Não existe mal algum em querer eliminar um inimigo tão perigoso para Simon e para a missão que temos de cumprir. Não me desagrada nada a ideia de saber que pusemos um homem tão coriáceo e teimoso como Warren agarrado às solas desse fulano... Isso só nos poderá facilitar a vida, ulteriormente.

- Sem dúvida, mas que pensaria Anielka?

- Essa, quanto mais depressa a esqueceres melhor será para todos nós!

Com estas palavras aguerridas, depois de servir o amigo, Adalbert serviu a si mesmo uma nova porção de aguardente Napoléon.

- Brindemos ao nosso êxito! Logo que chegarmos a França, enviaremos esse maldito diamante para o banco suíço de Aronov. Estou com pressa de me desembaraçar dele!

 

Na manhã do dia 24 de Dezembro, Morosini e Vidal-Pellicorne desembarcavam na gare de Santa Lúcia, depois de uma viagem sem história. O Canal da Mancha revelara-se acomodatício e o conforto da Companhia Internacional das carruagens-cama fora sempre irrepreensível.

Adalbert estava de óptima disposição. Encantava-o a perspectiva de ir passar as festas a Veneza, que não visitava desde há muito, e, talvez mais ainda, a de ir morar durante uns tempos num desses magníficos palácios semi-aquáticos, cujo esplendor o fizera sonhar nos seus tempos de adolescência. Enchia-se de felicidade à ideia de que o palácio era de um amigo seu.

- Há quanto tempo nos conhecemos? - perguntara, enquanto o comboio, depois da paragem em Mestre, percorria lentamente o dique que separa Veneza da terra firme e os viajantes contemplavam pelas janelas a chegada à Sereníssima República no meio da bruma leitosa da manhã.

- Julgo que desde a última Primavera. Penso que foi em Abril.

- Curioso! Parece-me ter sido há muito mais tempo. Parece-me que partilhámos a mesma infância, ou que fizemos os mesmos estudos e, por que não, que tivemos a mesma família. Só alguns meses e tu tornaste-te um irmão para mim!

Sabendo que as demonstrações de ternura do amigo não duravam muito tempo e que ele até chegava depois a lastimá-las, Aldo colocou-lhe uma mão firme no ombro.

- Tenho a mesma impressão! - murmurou, mas apressou-se a acrescentar: - Olha, as cúpulas parecem bolhas de sabão pousadas em cima da água! Vamos ter um belo dia.

Depois de descerem da carruagem-cama, apressaram-se na direcção da saída, seguidos por dois carregadores que transportavam as malas.

- Pedi que nos viessem buscar com a gôndola - disse Morosini. - Para a tua chegada pensei que a preferirias ao barco a motor.

- Podes ter a certeza! Obrigado!

Havia multidão, tanto na margem do Grande Canal como na estação. Era a hora em que se cruzavam os viajantes vindos de Paris e os que iam embarcar no expresso para Viena, o que provocava uma espécie de algazarra e os dois homens tiveram alguma dificuldade em chegar à beira da água onde, fiel às suas tradições de acolhimento, Zaccaria os esperava junto à gôndola com os leões de bronze alados, estacionada não longe do embarcadouro do vaporetto. Mas em vez de examinar a multidão para descortinar aqueles que viera buscar, o mordomo voltava-lhes as costas e foi Zian, que trazia o seu mais lindo chapéu de fitas, quem saudou em primeiro lugar o mestre e o seu amigo.

- Então Zaccaria? - chamou Morosini. - Não somos nós que te interessamos?

O esposo de Cecina mal se voltou. E só o fez para apontar para a lancha do hotel Danieli que se aproximava.

- Veja! - disse.

Só havia uma passageira a bordo: uma jovem magra como um lis e ruiva como uma chama, vestida com um conjunto de veludo verde e de raposa, que Morosini conhecia. Só havia uma cabeça a que podia trazer tanta elegância o divertido chapéu de três bicos que lhe escondia uma das sobrancelhas.

Abandonando aqueles que o rodeavam, Aldo precipitou-se e foi a sua mão que foi ao encontro da jovem para ajudá-la a sair do barco. Ela sorriu-lhe, sem manifestar a menor surpresa.

- Soube que regressava hoje - disse -, só que não sabia a que horas.

- Senão teria arranjado maneira de me evitar, é isso?

- Não vejo por que motivo... Ontem passei pelo palácio, para ir buscar alguns objectos e abraçar Cecina. Foi uma surpresa ter encontrado Mme. de Sommières e Marie-Angéline, que parece dar muito bem conta do recado...

- Está cá há muito tempo?

- Não, desde há dois dias. Como pode ver, trago poucas bagagens - acrescentou a ex-Mina, apontando para a mala achatada e para a maleta em pele de crocodilo que o empregado do Danieli acabara de tirar do barco.

- E já se vai embora? Regressa a Zurique?

- Oh não! Vou para Viena, passar o Natal em casa da minha avó... e creio que tenho de me despachar se não quiser apanhar o comboio em andamento - acrescentou, ao consultar o relógio.

- Acompanho-a! - decidiu Aldo, apoderando-se das bagagens, mas ela opôs-se.

- De maneira nenhuma! É muito amável da sua parte, príncipe, mas devia preocupar-se mais com os seus companheiros... e em não abusar demasiado da paciência daquelas que o esperam na casa Morosini! Espero que tenha umas boas festas e que o ano de 1923 seja menos agitado que este!

Ela estendia uma pequena mão enluvada que ele segurou e apertou dentro da sua.

- Será que... Veneza voltará a vê-la? - perguntou-lhe numa voz que lhe pareceu subitamente enrouquecida.

- Não sei... oh, sem dúvida! Não se renuncia assim tão facilmente aos seus antigos amores... Não se importa de me largar a mão? Seria muito difícil para mim partir sem ela - disse, com um sorriso que atenuava um pouco a firmeza do tom.

Foi preciso acabar por largá-la.

- Até à próxima... - disse, pegando no seu saco de viagem, enquanto um carregador se encarregava da mala. Depois, girando nos calcanhares, dirigiu-se para a gare. Nessa altura, Aldo não conseguiu evitar chamá-la:

- Lisa!

Ela parou, voltou-se e agitou a mão desocupada.

- Já não tenho tempo! Feliz Natal!

Logo de seguida desapareceu. Aldo ficou especado no mesmo sítio, com o espírito vagueando. A voz arrastada de Adalbert trouxe-o de volta à terra.

- O que é que ela te disse?

- Não ouviste? Desejou-me "Feliz Natal!" - É um voto amável! Deve-se tentar cumpri-lo... Por seu lado, sem saber bem porquê, Aldo tinha certas dúvidas. Contudo, deixou-se levar até à gôndola...

 

                                                                                Juliette Benzoni 

 

 

                      

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