Ventos gelados de março açoitavam os muros do castelo de Keure, e as duas mulheres que estavam sentadas juntas no grande aposento arejado encolhiam-se mais perto do fogo. Ambas estavam atarefadas, costurando.
A mais velha das duas fez uma pausa repentina e ergueu uma pequena peça de roupa.
- Eu nunca pensei - disse ela - que se chegaria a este ponto. Um filho para nascer e aqui estou eu com dificuldades para encontrar roupas dignas dele. Quem teria pensado que um filho do rei de Anjou um dia ficaria num apuro desses?
Sua companheira ergueu do trabalho um rosto notavelmente bonito. A expressão era de uma serenidade rara numa pessoa tão jovem.
- A França toda tem de estar preparada para aceitar essas diferenças, Theophanie - disse ela.
- Para os jovens, está tudo bem - foi a resposta. - Lembre-se de que estive com o rei e a rainha de Anjou durante anos, até vir para cá. Criei as crianças... todas elas.
- Bem, na verdade você não deixou a casa deles.
- Não... não... Aqui estou com o Sr. René e sua pequena família. Que Deus os conserve. Agnès, minha jovem, no momento há coisas terríveis acontecendo na França.
Penso muito naquelas pobres almas de Orleans.
- Precisamos ter esperanças e rezar para que o socorro deles chegue em breve.
- Deus parece ter nos abandonado. Você não se lembra, Agnès, mas quando eu era jovem não havia esses problemas. A vida era tranquila. Depois, começou. Primeiro foram os Armagnac contra os Borgonha.
- Ainda é assim - disse Agnès.
- Mas os nossos verdadeiros inimigos são os ingleses. Eles estão arruinando este país. É por causa da guerra... porque eles dizem que estamos derrotados, que tenho de reformar as coisas de D. Yolande para esse novo bebé.
- Poderia haver problemas piores - sugeriu Agnès.
Ela voltou para sua costura, mas Theophanie, ama dos cinco filhos do rei e da rainha de Anjou e agora transferida para a ala infantil do segundo filho do casal, René, para ficar encarregada dos filhos dele, estava com espírito de reminiscências.
- René... ele sempre foi meu favorito - refletiu ela. - Ele foi um belo menino, é um belo homem. Sempre gostou de poesia... do canto dos trovadores. Estava mais interessado nisso do que em todas aquelas manobras elegantes com o cavalo. A mãe, a rainha Yolande, ficava um pouco preocupada com isso. O pai raramente estava no castelo. "René gosta mais de ler livros do que de derramar sangue", dizia ela. "É admirável, mas os livros não manterão suas propriedades juntas se alguém lançar sobre elas um olhar ganancioso." "Ah, senhora, não se preocupe", dizia eu a ela, "que quando a hora chegar, meu senhor vai saber como agir da forma correta."
- É disso que qualquer um de nós precisa - disse Agnès -, saber a forma correta de agir quando chegar a hora.
Theophanie olhou-a fixamente. Ela passara a considerar a jovem como uma das pessoas colocadas sob sua tutela. Agnès fora mandada pela família para ser educada numa casa nobre, como acontecia com tantas meninas de boa família. Não era possível deixar de gostar dela. Ela era quieta, modesta e sempre prestativa. Gostava muito das crianças, e como estas eram muito pequenas, Theophanie estava contente com a sua ajuda na ala infantil. John ainda não completara quatro anos, e havia Luís, que tinha três, e Yolande, com não muito mais de oito meses. Ela tivera um irmão gémeo, Nicolas, que infelizmente morrera poucas semanas depois de nascer. Era uma ninhada agradável, achava Theophanie; e a senhora ainda era jovem. O patrão se ausentava por longos períodos, como quase todos os nobres, mas eles davam um jeito de aumentar as famílias. Às vezes, Theophanie achava que o bom Deus, muito obsequiosamente, fazia com que aquelas senhoras tivessem uma fertilidade fora do comum, a fim de que a longa ausência de seus senhores não impedisse que as alas infantis se enchessem.
A Sra. Isabelle ainda era muito jovem e aquele novo filho seria o quarto - e teria sido o quinto, não fosse a morte do pobre pequeno Nicolas.
Ela correu os olhos pelo aposento com orgulho. Aquele era um dos castelos mais bonitos da Lorena e fazia parte do dote da Sra. Isabelle. René tinha sido feliz no casamento, pensou Theophanie. Casara-se com uma jovem resoluta. Na verdade, todas as mulheres da casa eram muito ativas por natureza - mais do que os homens, a ponto de Theophanie muitas vezes achar que os homens deveriam ficar em casa, e as mulheres, ir à guerra. René teria sido um companheiro maravilhoso para os filhos; com paciência, ele os teria iniciado nas delícias da poesia e da música. Quanto à Sra. Isabelle, podia-se imaginá-la liderando suas tropas em combate.
"Será que isso é uma de suas piadinhas, Senhor?", perguntava Theophanie. Sua fé era simples e ela muitas vezes conversava com Deus, tratando-O como se Ele fosse humano como nós uma espécie de rei acima do rei da França, é claro, mas não sem suas fraquezas, e como o papel dela na vida era o de ama-seca, às vezes ficava inclinada a adotar seus modos de ama-seca para com o seu Senhor.
Claro que era um privilégio trabalhar para a Casa de Anjou. Tinha uma grande admiração pela Sra. Isabelle, tal como tivera pela Sra. Yolande. A Sra. Yolande era filha do rei de Aragão; e sua filha Marie, irmã de René, casara-se com o delfim da França.
- Veja bem - disse Theophanie a Agnès -, o delfim é um pobre homem, sob todos os aspectos. Às vezes, sinto pena da pobre Marie. Ela era uma boa menina e merecia melhor sorte. Pobre Marie... nós achávamos que ela seria uma rainha, e o que é que ela é agora... casada com um delfim... que devia ser o rei, e estão chamando um garotinho inglês de rei da França. É lamentável quando as coisas chegam a este ponto, Agnès.
Agnès curvou a cabeça sobre a costura. Estava pensando em Marie e em como esta se sentia em meio àquele conflito, porque, embora o pai louco tivesse aceitado os ingleses e permitido que sua filha Katherine se casasse com o rei da Inglaterra, o delfim não concordara com ele e opusera resistência, embora de maneira muito fraca. Mas talvez fossem aqueles que o cercavam que resistiam e o usavam como testa-de-ferro.
Qual seria o resultado? Parecia sombrio; mais triste do que os frios ventos de março que assolavam Pont-à-Mousson e batiam raivosos nos muros do castelo de Keure.
A situação era tensa em todo o país. Orleans, a chave para o Loire, estava sitiada desde outubro. Se ela caísse, seriam poucas as esperanças de a França livrar-se do jugo que os ingleses lhe haviam passado pelo pescoço. E como poderia ela ser salva? Era pedir um milagre.
- Mas o Senhor poderia fazê-lo - advertiu Theophanie. Isso não está acima de seus poderes. Pensei que o Senhor pudesse mover montanhas. Ora, se pode fazer isso, por que não expulsa os ingleses de Orleans?
E assim havia espera por todo o país, como no castelo em Pontà-Mousson.
No castelo, eles foram atendidos antes de o povo de Orleans.
Naquele mesmo dia em que Theophanie e Agnès estavam sentadas costurando em volta do fogo, começaram as dores de parto da Sra. Isabelle. E no vigésimo terceiro dia de março, ela deu à luz uma saudável menina.
Deram-lhe o nome de Margaret.
Os tempos estavam difíceis, mas o bebé precisava ter um batizado à sua altura. Theophanie apanhou os esmerados trajes de batizado que tinham sido usados por gerações da Casa de Anjou, e Margaret foi batizada na catedral de Toul. Os padrinhos foram o irmão mais velho de René, Luís, rei de Nápoles, e a avó materna, a duquesa de Lorena, em homenagem à qual ela recebera o nome.
Margaret, bem-aventuradamente inconsciente quanto à importância da cerimónia, aceitou-a com serenidade e por fim foi levada de volta para a ala infantil, nos braços de Theophanie, que a esperava. René estava fazendo uma de suas raras visitas ao castelo. Ele acabara de adquirir o título de duque de Bar, com a morte de seu tio-avô, e isso havia contribuído, até certo ponto, para sua renda e sua importância, especialmente considerando-se que com o ducado viera o marquesado de Pont-à-Mousson. Antes disso, como filho mais jovem, ele não tivera coisa alguma, a não ser o pequeno condado de Guise.
Ele conversou entusiasmado com Isabelle sobre a mudança de sua sorte.
- Agora poderei ajudar um pouco Carlos - disse ele.
Isabella fez um gesto afirmativo com a cabeça. Como todo mundo na França, ela olhava o futuro com muitas esperanças. O que acontecera em Orleans parecera realmente um milagre. Isabelle não tinha certeza de que acreditava nos poderes especiais da camponesa que fora guiada por vozes do céu. Mas a verdade era que aquela jovem atacara Orleans e de algum modo derrotara os ingleses, salvando, assim, a cidade e, em consequência, Carlos agora seria coroado em Reims.
Poucos meses antes, aquilo não teria parecido possível. Mas as fortunas da França tinham mudado, mesmo, e por estranho que parecesse as da família também haviam mudado. René, agora, era um homem de certa importância. Ele teria recursos para levantar homens e armas; e naturalmente queria colocar-se ao lado do cunhado e ajudá-lo a recuperar tudo o que perdera para os ingleses.
Ele se proclamara partidário de Armagnac - o que o delfim era, é claro -, e isso significava que ele se tornara inimigo do duque de Borgonha, cujas ações, ao aliar-se aos ingleses, deviam ser deploradas por todos os franceses de verdade.
- Só espero que não antagonizemos demais Borgonha disse Isabelle.
- Borgonha deve nos considerar abaixo do seu nível de preocupações - garantiu-lhe René.
- Esperemos que sim, mas acredito que ele está cônscio de cada Armagnac e o considera inimigo.
- Borgonha vai mudar de tom em breve; isso não me surpreenderia. As coisas mudaram, Isabelle. E de uma forma imensamente milagrosa.
- René, você ficou enfeitiçado por essa Donzela, como tantos outros.
- Você ficaria impressionada se a visse, Isabelle. A princípio, eles zombaram, mas aos poucos começaram a vê-la sob uma luz diferente. Confio no julgamento de minha mãe. No início, ela ficou cética, mas quando examinou a Donzela, mudou de ideia e persuadiu minha irmã a fazer o mesmo... não que Marie precisasse de muita persuasão. Ela também começou a acreditar na Donzela.
- E a esposa e a sogra do rei o persuadiram.
- Isso mesmo, mas ele também percebeu logo que ela possuía um certo poder... algo divino... e você está vendo que deu resultado. Ela amedrontou os ingleses... não há outra maneira de descrever o fato. E embora a derrota estivesse à nossa frente em Orleans, nós a transformamos em vitória.
- Só posso me alegrar muito. E agora, Carlos vai ser coroado.
Ficou feliz com isso. Depois da cerimónia, ele não será mais conhecido apenas como nosso delfim, mas como nosso rei.
- Você verá que a vida será diferente para a França... para nós...
- Talvez isso signifique que você poderá estar mais tempo conosco. Talvez, quando esta guerra terminar, as pessoas possam ficar de vez com suas famílias. Mas ainda não acabou, René. O rompimento do cerco a Orleans e a coroação do rei não significam que a guerra acabou.
- Não acabou mesmo - concordou René. - Mas quem teria acreditado, poucos meses atrás, que teríamos conquistado tamanho sucesso?
Era verdade. Mas Isabelle era mais realista do que o marido e sabia que os ingleses não seriam expulsos só por causa de uma vitória francesa - por mais brilhante que tivesse sido.
Houve um lufa-lufa em todo o castelo, enquanto René fazia seus preparativos para partir para Reims. Até mesmo as crianças perceberam isso, e o jovem John quis saber por que o pai estava com eles.
- Ele não ficará por muito mais tempo, senhor - disse-lhe Theophanie. - Ele partirá em breve. Ele vai colocar uma coroa de ouro na cabeça do rei.
- Por quê? - perguntou John.
- Porque ele é o rei, claro.
- Eu quero uma coroa de ouro.
- O senhor não pode ter uma coroa, meu pequeno senhor, e assunto encerrado, e não posso dizer que lamente isso. As coroas - murmurou Theophanie mais para si mesma do que para o menino -, pelo que já vi, nunca trouxeram muita felicidade para ninguém.
John tendeu a choramingar até que Agnès pegou-o no colo e explicou que as coroas às vezes eram coisas pesadas que machucavam a cabeça de quem as usava. Ele não deveria ansiar muito por uma coroa. Aqueles que as possuíam tinham de usá-las e às vezes não gostavam muito disso.
John adormeceu, e enquanto permanecia sentada segurandoo no colo, Agnès ficou pensando no rei. O que ela ouvira sobre ele não era muito lisonjeiro. Ele causara má impressão ao povo, e poucos tinham alguma esperança nele, exceto a estranha camponesa que se dizia ter instruções do céu para fazer com que ele fosse coroado e para reconquistar a França para ele.
"O pai dele era louco", diziam. E no entanto havia quem falasse que ele não passava de um bastardo e não era filho do rei louco coisa nenhuma. Ele agora estava com cerca de vinte e seis anos de idade. "Mas parece ter quarenta", era outro comentário. "É a vida que ele leva. Dizem que as damas da corte não olham para ele embora ele seja o delfim e se possa dizer que é o rei -, de modo que ele se satisfaz com criadas que o recebem de bom grado em seus leitos por causa do ar de realeza que ele lhes traz."
Agnès era inteligente o bastante para perceber que aquelas histórias deviam ser exageradas - e, por outro lado, era possível que houvesse um resquício de verdade nelas.
"A mãe disse a ele que ele era um bastardo... que não era filho verdadeiro do rei. Comentam que isso o perturbou mais do que a perda do reino."
Pobre Carlos, pensou Agnès.
Mas ele era casado e era pai. com toda certeza, encontrava algum consolo junto à sua família.
"Os lábios dele são grossos e ele praticamente não tem sobrancelhas e pestanas; nasceu com um exagerado nariz Valois, que é bulboso e extremamente desfigurante em seu rosto inchado..."
Por Deus, não, pensou Agnès, ele não pode ser tão ruim assim! O Sr. René gostava dele e estava muitíssimo feliz porque ia à coroação dele. Talvez um dia eu o veja e julgue por mim mesma, e como estou preparada para um monstro, poderei ter uma surpresa agradável.
Theophanie entrou e tirou dela o menino John adormecido.
- Uma coroa, não é? Deus o preserve disso, meu querido - disse Theophanie, beijando o rosto adormecido.
René estava pronto para partir, e todos se encontravam no pátio para desejar-lhe felicidade em sua viagem até Reims.
Theophanie lá estava ao lado dele - a ama com privilégio especial que se lembrava da época em que o segurara no colo e lhe ensinara os primeiros passos vacilantes.
- Tome cuidado, Sr. René, e não se envolva em nenhuma dessas encrencas. Permaneça longe daqueles borgonheses... eles não prestam... ficando contra o próprio país. E diga a Marie que estou pensando nela e que ela não se esqueça de conter o génio. Diga-lhe que ela agora é a rainha... de verdade. Diga-lhe que Theophanie quer ficar orgulhosa dela.
René sorriu para ela e beijou-lhe a mão. Querido René, o melhor de todos eles - sempre muito delicado e cortês, um verdadeiro cavaleiro galante. Ela só esperava que ele pudesse precaver-se se entrasse em contato com aqueles malvados borgonheses ou com os ainda mais malvados ingleses.
Dois anos tinham-se passado desde que René saíra cavalgando em direção a Reims para ajudar a coroação de Carlos VII. A guerra não terminara, como tanta gente profetizara com otimismo que acabaria. A Donzela fora capturada pelos borgonheses e vendida aos ingleses, que a mataram na fogueira na praça em Rouen. Aquela breve glória acabara - mas não de todo. Joana causara seu impacto. As fortunas da França tinham mudado, e embora ainda houvesse ingleses na França - e em posições dominantes -, Orleans fora salva, várias cidades tinham sido recapturadas pelos franceses e havia um rei da França coroado. Os ingleses tinham querido levar para lá o pequeno rei da Inglaterra, a fim de coroá-lo, e o tinham feito, mas não em Reims. Aquela cidade ainda estava nas mãos dos franceses. Eles haviam tido de se contentar com Paris, e todo mundo sabia que uma coroação em Paris não era o mesmo que uma coroação em Reims.
René estava com frequência junto à família no castelo de Keure. Eram dias maravilhosos quando ele ia até a ala infantil e brincava com os filhos e lhes contava histórias. Ele era muito mais delicado do que a mãe deles, e todos o adoravam. Até Margaret, com dois anos de idade, aguardava sua vinda e gritava de alegria quando ele aparecia.
- Para mim, isso é que é vida - disse René a Isabelle. - Eu me sinto muito mais feliz com minha família do que na corte.
- Mas você gosta de estar com sua irmã.
- É bom ver Marie. Ela é perfeitamente capaz de cuidar de si mesma.
- E, pelo que parece, de Carlos também.
- Bem, ela e minha mãe exercem uma forte influência sobre ele. Ele mudou, Isabelle. A chegada da camponesa de Domrémy teve um efeito notável sobre ele. Dizem que garantiu a ele que é filho legítimo do rei.
- Isso é bom, e ao mesmo tempo não é - comentou Isabelle.
- Ser filho de um pai louco e ter todos os direitos à Coroa ou estar livre de mácula e sem direito algum. Uma escolha difícil.
- Para Carlos, não. Ele agora está convencido de que tem direito a usar a coroa e ultimamente parece que está se erguendo da letargia anterior. Ele está verdadeiramente concentrado em libertar o país e trazer de volta a prosperidade.
- Talvez ele faça isso... com sua irmã para ajudá-lo.
- Não se esqueça de minha mãe.
- É isso mesmo. Bem, talvez haja dias melhores à espera da França.
De vez em quando, René partia para fazer exercícios militares. Então, o castelo ficava triste; mas quando ele voltava, a alegria do reencontro era tão grande que, segundo Theophanie, quase valia a pena a tristeza que eles tinham sentido durante sua ausência.
Um dia do mês de janeiro, dois dias antes do segundo aniversário de Margaret, chegaram mensageiros ao castelo.
Eles levavam notícias tristes. O pai de Isabelle, o duque de Lorena, tinha morrido.
A dor de Isabelle foi atenuada pela súbita percepção de que ela, como herdeira do pai, herdaria o ducado de Lorena. A posse daquele rico território faria uma diferença decisiva para eles. Claro que René adotaria o título, e isso significaria que Lorena e Bar seriam unidas e que René, em vez de ser um nobre não muito afluente, tornar-se-ia um nobre rico e influente.
A suposição dela se revelou correta. As propriedades do duque passaram para sua única filha, e as fortunas da família mudaram da noite para o dia.
A primeira providência seria deixar Pont-à-Mousson e ir para Nancy. Lá, eles ocupariam o castelo do duque e viveriam num estilo que a sua nova posição permitia.
- Desse jeito é muito melhor - disse Theophanie. - É assim que deve ser para o filho de minha Sra. Yolande.
Houve uma grande agitação na ala infantil quando as crianças perceberam que mudariam para Nancy. John assediava todo mundo com perguntas, e Luís e Yolande ouviam de olhos arregalados as respostas. Até a pequenina Margaret percebia que alguma coisa estava se passando. Theophanie estava muito contente com a ajuda que Agnès lhe dava.
- Ela é muito boa com crianças - comentava ela com a Sra. Isabelle. - Eu conto com ela. Preste atenção no que vou dizer, ela vai ser uma boa mãe quando chegar a hora.
- Ela é uma boa menina - disse a Sra. Isabelle -, e agora que temos recursos, vamos tratar de arranjar um marido para ela.
- vou pedir a Deus que arranje um bom - disse Theophanie. - Aquela merece o melhor que houver.
Foi tudo muito agradável enquanto durou. Todos estavam encantados com o castelo em Nancy e com todos os bens valiosos que podiam adquirir. Eles não tinham reparado, até ali, como tudo tinha sido pobre no castelo de Keure. Nancy era majestoso.
- Pouco mais parecido com o que tínhamos quando eu estava com a Sra. Yolande - comentou Theophanie. - O Sr. René deve se lembrar.
Lady Isabelle poderia ter comentado que fora criada em ambientes suntuosos, também, e que na verdade eles deviam a nova boa fortuna ao seu lado da família.
Mas a desgraça estava à espreita.
Um dia, chegaram viajantes ao castelo. Enquanto observavam a aproximação deles, René e Isabelle sentiram um toque de alarma, porque reconheceram as cores do duque de Borgonha.
O duque não estava presente. Eles não teriam esperado que o grande homem aparecesse sem que algum arauto o avisasse primeiro; e fosse como fosse, tratava-se de um dos inimigos deles. Ele proclamara que lamentara profundamente a chegada de René com seus homens para ajudar os orleanenses na época do cerco.
Os visitantes foram recebidos com a hospitalidade de costume, e enquanto bebiam vinho no grande salão, tocaram no assunto.
O fato era que René e Isabelle estavam sendo solicitados a deixar o castelo assim que pudessem fazê-lo sem inconvenientes, e René também deveria abrir mão de seu título de duque de Lorena. Ao aceitar o título e com a dedução, por parte de Isabelle, de que ela era a herdeira do pai, os dois tinham esquecido um detalhe importante. A Lei Sálica vigorava na França, e isso significava que ela não podia herdar as propriedades do pai. O título e as propriedades de Lorena pertenciam, na verdade, ao sobrinho mais velho do falecido duque, Antoine, conde de Vaudémont, que era o herdeiro masculino mais próximo.
- Não é verdade - bradou Isabelle. - Sou a filha de meu pai. Ele queria que tudo passasse para mim.
- Minha senhora-foi a resposta -, o conde de Vaudémont não concorda com isso. Nem, devo lhe dizer, o duque de Borgonha.
- O duque de Borgonha! Ele nada tem a ver com isso.
- Ele discorda.
René ficou profundamente deprimido. Sua breve trégua terminara. Ele sabia o que se passava na cabeça de Borgonha. Aquilo era o castigo por apoiar o povo de Armagnac. Era mais do que isso. Borgonha queria mandar em Lorena. Borgonha queria controlar a França inteira.
Os olhos de Isabelle faiscavam de fúria.
- Podem voltar e dizer ao seu senhor que Lorena é minha... nossa. Não vamos ceder uma única parte dela.
- Senhora, eu lhe pediria que pensasse com cuidado... O senhor duque está decidido.
- Volte para o duque de Borgonha e para o conde de Vaudémont - bradou Isabelle. - Se eles quiserem a Lorena, digalhes que venham toma-la.
Foi assim que o idílio terminou e que começou a batalha pelas propriedades de Lorena.
Theophanie abanou a cabeça ao perceber a reviravolta que a situação deles sofrera.
- O Sr. René não tinha vontade alguma de insistir - disse ela a Agnès. - Se tivesse ficado a critério dele, ele teria devolvido tudo àquele Vaudémont. Há um ditado, minha querida Agnès, que diz que se você quiser viver em paz, seja amiga de Borgonha.
- Não tenho respeito algum por um francês que trabalha contra os franceses.
- Isso vem de muito tempo, minha cara. O pai do duque foi assassinado pelos homens do delfim... Isso foi o começo. Bem, mais ou menos, mas antes disso o duque de Orleans foi assassinado por Borgonha. São essas desavenças entre famílias. Jamais gostei delas. Se eu fosse o Senhor, eu pegaria esse Borgonha e o Armagnac e daria uma palmada no ponto mais sensível.
Agnès soltou uma risada, visualizando aquelas táticas típicas da ala infantil sendo utilizadas pelo Todo-poderoso.
Mas ela sabia que havia desgraça no ar. Ela se tornara interessada nos assuntos nacionais desde a chegada de Joana dArc. Gostava de ouvir dizer que a Donzela restaurara a confiança do delfim em si mesmo. Mas aquilo, é claro, não passava de uma desavença particular - uma batalha pela Lorena.
- Eles deviam modificar essa Lei Sálica - disse ela a Theophanie.
- Claro que deviam - concordou a ama. - Quando penso nas mulheres na minha família... - ela se referia, naturalmente, à de Anjou, na qual ela servira desde garota. - Bem, quando penso nas nossas mulheres, uma coisa eu lhe digo, Agnès: elas se sairiam tão bem em combate quanto qualquer homem... e também dariam mais sentido à coisa, se quiser saber. O Senhor percebeu isso quando mandou a Donzela. Veja o que ela fez. O que aconteceria se eles começassem a falar nessa Lei Sálica com ela, hein?
- A lei praticamente não se aplicaria a ela-assinalou Agnès.
- Lei Sálica - continuou Theophanie. - Como se a Sra. Isabelle não tivesse todos os direitos ao que o pai lhe deixou. O que isso tem a ver com esse Borgonha? É isso que eu gostaria de saber.
Os dias se passavam. A Sra. Isabelle estava nitidamente angustiada. Ia para a torrinha mais alta e de lá corria o olhar em busca de sinais de René e seus homens voltando, ela esperava que vitoriosos, da batalha, para defender os direitos deles.
Não precisou esperar muito. A batalha terminara logo e fora decisiva.
Ela estava na torrinha observando, quando viu vários homens dirigindo-se para o castelo a galope. Descendo depressa, ela estava no pátio antes deles chegarem. Um olhar para eles foi suficiente para lhe dizer que seus piores temores tinham se confirmado.
- Senhora - disse o chefe do grupo, ofegante. - Más notícias. Fomos completamente dominados em Bulgnéville. Lutamos bravamente, mas ninguém poderia resistir às tropas de Borgonha. Eles estavam por toda parte e nós estávamos inferiorizados em número. Vaudémont não teria vencido sem a ajuda do grande duque.
Isabelle bradou, impaciente:
- O senhor... René... Que Deus nos ajude, eles o levaram. Ele está morto...
- Não, não, senhora. Mas sim, eles o levaram. Ele estava gravemente ferido... mas continua vivo... nas mãos dos borgonheses.
Isabelle fechou os olhos. Theophanie estava ao seu lado.
- Pronto, senhora. A notícia não é tão má assim. Ele está vivo... é isso o que mais importa. O resto, nós resolveremos.
- Prisioneiro... - murmurou Isabelle. - Prisioneiro de Borgonha...
- O bom Deus não vai deixar aquele homem mau ficar muito tempo com um homem bom como o Sr. René. Eu sei disso. Ele vai voltar, minha senhora. A senhora vai ver. Agnès, segure o braço da senhora. Vamos levá-la para o quarto dela. Isso foi um grande choque para ela.
Isabelle teve um sorriso irónico.
- Pare de me tratar como uma de suas crianças, Theophanie.
- Tem razão - disse a ama. - A senhora não é uma de minhas crianças. A senhora saberá o que fazer. Eu não digo sempre que as mulheres é que resolvem essas coisas da melhor maneira?
E assim as duas foram para dentro do castelo, e os soldados foram instalados e alimentados, e mais tarde chegaram mais, com mais notícias, de que René lutara bravamente e que só depois que a maioria de sua força tinha sido destruída e ele ficara gravemente ferido por uma flecha no lado esquerdo da testa, o que quase o cegara, ele se deixara aprisionar.
Mas histórias sobre sua bravura pouco serviam para consolar a família. Era um prisioneiro nas mãos do inimigo.
Isabelle não era de ficar sentada e aceitar a desgraça. Não entregaria humildemente ao primo as propriedades que considerava serem suas de direito.
Ela sabia o que faria. Levantaria um exército e ela mesma iria liderá-lo contra o conde de Vaudémont. E as crianças? Ela mandou um mensageiro à sua mãe, a duquesa-mãe Margaret, madrinha da pequena Margaret, e pediu que ela cuidasse das crianças enquanto ela se dedicava a libertar o marido da prisão e conservar o que o pai lhe deixara.
A duquesa-mãe, uma dama de vontade firme, tal como a filha, atendeu de imediato. Cuidaria das crianças enquanto Isabelle trabalhava pela libertação do marido.
Isabelle ficara muito perturbada com o fato de que seu próprio primo agira daquela maneira. Os dois se conheciam desde crianças, e ficou surpresa, porque ele sempre parecera amistoso e razoável e pensara que ele seria um bom amigo.
De repente, ocorreu a Isabelle que iria vê-lo. Talvez pudesse provocar um pouco de piedade, algum senso de honra.
A mãe de Isabelle não tinha certeza de que fosse recomendável ela ir. Afinal de contas, estaria se colocando nas mãos do inimigo. Outra pessoa deveria ir em seu lugar, sugeriu a Sra. Margaret. Mas Isabelle achava que só ela poderia pressionar o primo e se decidira a ir.
A mãe sabia que seria inútil tentar dissuadi-la. No lugar da filha, ela teria feito a mesma coisa. Nenhuma das duas era mulher de se esconder por trás do poder dos maridos. Tinham sido elas que tomavam as decisões em suas famílias, porque mulheres assim invariavelmente conquistavam ascendência sobre os maridos. Assim, Isabelle partiu, e pouco depois estava diante do primo.
Ficou feliz ao ver que Antoine de Vaudémont estava um pouco envergonhado com o que fizera.
- Fico surpresa - disse ela - por estarmos nos encarando como inimigos.
- Um caso lamentável, eu admito.
- E provocado pela sua ganância - lembrou-lhe Isabelle. -Você sabe muito bem que meu pai queria que as propriedades passassem para mim. Isso sempre ficou subentendido.
- O Sr. de Borgonha pensa o contrário.
- Isso não é assunto do duque de Borgonha.
- Ele acredita que os interesses de Lorena dizem respeito a ele.
- Estou surpresa, Antoine, por você ter-se permitido ser um fantoche dele. Ele é um traidor da França.
- Cuidado com o que diz, prima. Se essas palavras fossem repetidas...
- Guarde o medo por esse homem para si mesmo. Direi a ele o que penso dele, se algum dia tiver a infelicidade de ficar cara a cara com ele. Mas vim falar sobre o meu marido, René.
- Infelizmente, ele sofreu uma derrota amarga. Mas se recuperou dos ferimentos. Quanto a isso, não precisa ficar aflita.
- Neste caso, vamos conversar sobre minhas outras aflições. Quero que ele seja libertado.
- Isso é coisa que não se discute.
- Por quê? Já se esqueceu, Antoine, de que somos primos? Meu pai e o seu eram irmãos. Tem de haver esse traço entre nós. Solte René. Esqueça essa sua reivindicação gananciosa.
- Minha querida prima, mesmo que eu quisesse soltar René, não poderia. Ele não é meu prisioneiro. Está nas mãos do duque de Borgonha.
- E por quê? Por que você o entregou àquele homem?
- René foi capturado pelo marechal de Toulongeon, comandante das forças que Borgonha enviou para Bulgnéville.
Isabelle se sentiu fraca de desânimo.
- Neste caso, o que posso fazer? Antoine deu de ombros.
- Não tenho dúvidas de que Borgonha vai impor condições.
- E essas condições, sem dúvida, serão que eu abra mão de minhas propriedades. Onde está René?
- Em Dijon. Ouvi dizer que está preso no castelo de lá. Isabelle cobriu o rosto com as mãos e por uns instantes deu vazão à emoção. Depois, encarou Antoine com firmeza.
- Fico surpresa por você se portar dessa maneira. Tenho certeza de que meu pai irá amaldiçoá-lo lá do céu. A grande preocupação dele era com meu bem-estar e com o de minha família. Pense no que você nos causou, Antoine.
Antoine disse, de mau humor:
- A Lei Sálica impera na França.
- A Lei Sálica que vá para o inferno! As propriedades de meu pai deveriam ir para quem ele quisesse, e essa pessoa era a filha dele. Antoine, sua consciência deve estar incomodando-o muito.
Ela o atingira no ponto certo. A consciência o estava perturbando.
- Isabelle - disse ele -, por favor, compreenda que não há nada que eu possa fazer. Isso está nas mãos do duque de Borgonha. Mas talvez, no final, haja uma coisa...
- Sim? - perguntou ela, aflita.
- Eu poderia pedir uma trégua... digamos por seis meses. Uma trégua de seis meses!, pensou ela. Já era alguma coisa. Aceitaria isso, porque estava vendo que não poderia conseguir nada mais do primo.
Isabelle voltou para junto da família. Seis meses. Era um período muito curto, e o que poderia ela esperar obter?
Mas não era mulher de ficar sentada e remoer pensamentos. Tinha de haver alguma providência que ela pudesse tomar, e quando tivesse decidido qual seria a melhor, iria toma-la.
Então, teve uma ideia. René demonstrara amizade para com o rei Carlos. Tinha ido a Orleans na época do sítio e levara consigo uma tropa para lutar pela cidade - uma força pequena, era verdade, mas fora tudo o que ele conseguira arranjar, e Carlos soubera disso e ficara agradecido. René ajudara na coroação. Sempre fora leal ao rei, e agora que o país estava saindo um pouco do jugo inglês, talvez Carlos fizesse alguma coisa por ele e sua família.
Ela iria falar com o rei.
Chamou Theophanie e disse que pretendia fazer uma viagem a Vienne, em Dauphiné, onde a corte estava naquele momento.
- Vou precisar de tempo para preparar as crianças - disse Theophanie.
- Você não vai, Theophanie, nem as crianças... exceto as meninas.
Theophanie olhou para Isabelle, estupefata.
- A senhora vai levar as menininhas? Ora, D. Margaret só tem dois anos de idade.
- Eu sei muito bem a idade dela, Theophanie, mas vou levar Yolande e ela, e quero que você cuide dos meninos enquanto estivermos fora.
- Claro que meus meninos estarão a salvo comigo, mas já pensou, minha senhora, que não é nada fácil levar duas garotinhas... pouco mais que bebés de colo... numa viagem tão longa assim?
- Pensei e decidi - disse Isabelle, com frieza. Não estava tão inclinada quanto René a aceitar a familiaridade de Theophanie, que não tinha sido sua ama-seca. E, Isabelle muitas vezes pensava, já estava na hora de lembrarem a ela que ela não era mais a ama-seca de René. Mas ela gostava muito das crianças, e Isabelle podia confiá-las a ela. A mãe de René dissera que Theophanie era uma ama excelente e que era sensato manter pessoas assim na família.
- O detalhe - prosseguiu Isabelle - é que precisarei de alguém para tomar conta de Yolande e Margaret, e resolvi levar Agnès.
- Agnès é uma boa menina. A senhora não ficará decepcionada. É nas pobrezinhas que estou pensando... viajar essa distância toda...
-- Não se preocupe com elas. Procure Agnès e mande-a vir falar comigo. Eu direi a ela que preparativos ela deverá fazer.
Isabelle voltou para o seu quarto. Perguntava-se de que adiantaria fazer aquilo. Adiantaria alguma coisa. Depositava suas esperanças na natureza delicada do rei e na possibilidade de que ele ficasse emocionado ao ver Yolande e a pequenina Margaret. Elas eram crianças encantadoras.
Agnès foi procurá-la. Uma criatura bonita e graciosa, pensou Isabelle. E útil na criadagem, dissera Theophanie.
- Agnès - disse Isabelle -, vamos viajar. Theophanie lhe disse?
- Ela mencionou alguma coisa. Não entendi direito do que se tratava.
Isabelle decidiu explicar àquela jovem tranquila e sensata.
- Você está a par da difícil situação do Sr. René. Ele está mantido preso pelo duque de Borgonha. vou procurar o rei e pedir que ele me ajude.
- Espero sinceramente que ele a ajude, senhora.
- Falarei com ele e tentarei persuadi-lo. É uma esperança... talvez uma esperança vã... mas a visão de minhas duas menininhas sem pai talvez possa fazer com que ele se mexa. Mas preciso ter esperança, Agnès. Nossa situação, aqui, é desesperadora. Quero que você venha conosco e ajude a cuidar das crianças.
- Farei isso com o maior prazer, senhora.
- Foi o que pensei, Agnès. Agora, deve fazer seus preparativos.
Agnès ouviu com atenção. com que então ela iria até a corte. Talvez fosse ver o rei e a rainha. Ela pensara muito em Carlos na época da coroação e no quanto a Donzela fora leal a ele. Não podia acreditar que ele fosse mesmo tão desprovido de atrativos e tão desamparado quanto as pessoas o descreviam.
Finalmente, ela se certificaria.
- Você está sonhando - disse Isabelle com rispidez. - Suponho que, como a maioria das jovens, queira ir à corte. Posso lhe dizer que nossa visita será um tanto triste, e duvido que mesmo agora a corte seja nem mesmo um mínimo do que você imagina.
Agnès ficou pensativa.
- Estarei preparada para qualquer coisa - respondeu ela.
E assim elas partiram.
Foi uma viagem exaustiva, mas as crianças, sob a supervisão de Agnès, estavam agitadas demais com a novidade de tudo para reclamar.
Por fim, elas chegaram à corte, e Isabelle não teve dificuldade em conseguir uma audiência com o rei. Carlos estava deprimido. Finalmente, era reconhecido como o rei, depois daquela milagrosa coroação em Reims, mas desde então os acontecimentos não se passaram muito depressa.
Estava muito cansado de tudo. Chegava a desejar que fosse um nobre do interior e pudesse se retirar para suas propriedades e acabar com todos os problemas que o cercavam.
Joana dArc não saía da sua consciência, e muitas vezes aquele estranho episódio intrometia-se em seus pensamentos, e por mais que tentasse não conseguia esquecê-la. Luxemburgo, homem de Borgonha, a capturara e a vendera aos ingleses. Foram os ingleses que a queimaram como se fosse uma feiticeira, mas o remorso dele devia ser tão grande quanto o deles, se não maior porque nada fizera para salvá-la. Devia ter lutado com todas as suas forças... e dera as costas ao fato. Ele a rejeitara; tentara dizer a si mesmo que, no final das contas, Joana tinha algo de feiticeira.
Ele odiava a guerra. O derramamento de sangue era revoltante. Tinha de admitir que havia quem saísse lucrando. Pensou em Harry da Inglaterra em Agincourt. Mas onde se achava Harry da Inglaterra agora? E se a guerra trouxera miséria à França, como se saíra a Inglaterra? Eles ainda estavam lutando pela coroa da França. Estavam gemendo sob o peso da tributação para pagar a guerra, e havia muitas viúvas na Inglaterra de luto pelos maridos, e crianças chorando por um pai que fora à França e jamais voltaria.
Que bom seria se houvesse paz!, pensava Carlos.
E agora ali estava Isabelle de Anjou, que fora pedir-lhe alguma coisa. Ele tinha pena de René. Gostava de René. Tinha uma consideração especial pela mãe de René, que era sua sogra. Ela era uma das mulheres mais esclarecidas e interessantes que ele conhecia. Sentia prazer na companhia dela e tinha pelos conselhos dela um respeito maior do que aquele que sentia por muitos de seus ministros. Sim, ele gostaria de ter ajudado Isabelle. Mas como podia fazê-lo contra Borgonha? Como ele odiava Borgonha! Borgonha era o espantalho de sua vida.
As meninhas dela eram adoráveis. Isabelle era uma mulher bonita e fizera um apelo muitíssimo eloquente, mas como ele dissera à sogra, Yolande, nada havia que pudesse fazer contra Borgonha. Os recursos do duque eram muito superiores aos seus; e por mais que quisesse, Carlos não podia envolver o que tinha numa disputa particular entre duas famílias.
Ele lamentava desesperadamente. Teria gostado de ajudar. Yolande compreendia. Isabelle tinha de compreender.
Como era exaustivo ser o rei de um país numa situação tão difícil quanto aquela em que a França estava naquele momento!
Ele gostava de andar sozinho pelos jardins que cercavam o castelo. Um dia, enquanto estava sentado sob uma árvore, meditando em seu estilo melancólico, viu uma jovem. Ela caminhava pelos jardins e parava de vez em quando para admirar as flores. Observou-a por alguns momentos antes que ela percebesse sua presença. Era diferente de qualquer outra jovem que ele conhecera. Ele imaginou que ela pertencesse à corte, mas nunca a vira antes. Teria se lembrado se tivesse visto, porque havia nela um ar de muita distinção.
- Bom dia, senhora - bradou ele. - Está desfrutando dos jardins como eu?
Ela fez uma pausa e sorriu para ele.
- São muito bonitos, senhor.
Pensou que a jovem não saberia quem ele era, porque não mostrou sinal algum da grande honra que ele lhe fazia ao dirigirse a ela.
- Gostaria de sentar-se um pouco e conversar? - disse ele. Ela se aproximou e sentou-se ao lado dele. A pureza de seus
traços deixou-o estupefato. Ele admirava a beleza, admirava as mulheres. Pelos trajes dela, imaginou que não se tratava de uma mulher de alta classe. Não podia ser, porque se fosse, com toda certeza a conheceria. Tampouco era uma criada. As aventuras dele com mulheres tinham sido muitas. Nunca hesitara em distrair-se, e devido àquele senso de inferioridade que sua mãe lhe incutira, as mulheres de classe baixa o atraíam. com elas, pudera sentir-se superior. Desprezava a si mesmo, e muitas vezes desejava não se conhecer tão bem. Mas aquilo era diferente. Admirava a beleza dela, mas não sentia desejo algum de uma sedução rápida naquele dia para esquecer-se dela no dia seguinte.
- Não a vi na corte antes - disse ele.
- Não é de surpreender, porque cheguei recentemente respondeu ela.
- E o que acha dela?
- De certo modo, parece uma corte triste. A ameaça dos invasores ingleses ainda paira sobre ela.
- Ah, sim - disse ele, suspirando. - Mas melhorou, não acha? Nos últimos dois anos houve uma mudança.
- Uma mudança lenta - disse Agnès.
- E a senhora acha que deveria ser mais rápida?
- Mas é claro, meu senhor.
- Acha que o rei devia se mexer?
- É isso, devia, sim. Ele devia livrar-se dos ministros que o atrapalham e agir por conta própria.
- A senhora não pertence à corte, mas chegou há pouco tempo, pelo que diz, e no entanto sugere aos ministros do rei como eles deviam agir.
- Os ministros dele, não. Mas eu acho que o rei devia despertar. Ele devia tomar nas mãos o governo do país. Devia ser rei de verdade.
- Coisa que no momento ele não é?
- Como o senhor disse, sou uma simples moça do interior, mas eu ouço, eu penso; e sei o que aconteceu. Tivemos uma breve glória quando a Donzela veio e expulsou os sitiantes de Orleans e fez com que o delfim fosse proclamado rei em Reims... e depois...
- Sim, minha senhora, e depois?
- Depois, parou.
- A senhora quer dizer que não houve mais milagres. A Donzela perdeu os poderes e então os ingleses a mataram na fogueira como se fosse uma feiticeira.
- Nunca se deveria ter deixado que eles fizessem isso.
- É, o que a senhora diz é verdade. E acha que é por isso que Deus não parece estar mais do lado dos franceses?
- Ele também não está do lado dos ingleses.
- Na verdade, Ele fechou as portas do céu e está nos deixando por nossa própria conta.
- Eu acho...
- Sim, minha senhora, o que acha?
- Acho que Deus voltaria a ajudar a França se a França ajudasse a si mesma. - Ela se levantou.
- A senhora está indo agora?
- Estou, porque tenho de voltar para os meus tutelados.
- Quem são os seus tutelados?
- As filhas da duquesa de Lorena. Yolande e Margaret.
- Então está na comitiva daquela senhora. Voltará aos jardins amanhã?
Ela olhou para ele com firmeza.
- Eu voltaria, se o senhor quisesse.
- É muita gentileza sua. Então, ela riu.
- Não, todos diriam que é muita gentileza sua. Eu sei quem o senhor é, majestade.
Ele ficou pasmo. Ela não se portara como se estivesse na presença do rei. E o tempo todo soubera quem ele era!
Ela estava inteiramente imperturbável por sua temeridade.
- Eu o conheço há muito tempo - disse ela. - Muitas vezes pensei no senhor... durante os dias difíceis. Eu teria tido um grande prazer se tivesse estado em Reims nos dias em que coroaram Vossa Majestade.
- Você é uma jovem estranha - disse ele. - Qual é o seu nome?
- Agnès Sorel.
- Agnès Sorel - repetiu ele. - Gostei muito da nossa conversa. Eu a verei novamente.
Agnès tornou a vê-lo. Ele sentia-se atraído por ela. Para início de conversa, era de uma beleza notável, e de uma maneira serena, diferente das resplandecentes beldades de sua corte. Ela se preocupava com o país. Era isso que o impressionava. Não havia sinal algum de coquetismo. Ela devia ter pensado que ele fosse extremamente feio, que sem dúvida era, e velho demais, porque parecia ser mais velho que era, e ela era muito jovem. Estava estupefato diante do quanto ela sabia sobre os assuntos do país.
Ao final do segundo encontro, estava mais fascinado do que ficara no primeiro. O jeito franco, a completa indiferença para com a realeza dele o encantavam. Não podia parar de olhar para ela. Descobriu que estava mais bonita a cada vez que a via. Mas o principal foi que ele descobriu uma paz, em sua companhia, que jamais sentira.
Conversou com a mulher que admirava mais do que a qualquer outra. Era sua sogra, Yolande de Anjou, que era uma visitante frequente da corte e que se tornara uma das pessoas mais amigas dele desde que a conhecera. Era mais chegado a ela do que à sua mulher. De fato, sentia-se contente por ter-se casado com Marie, porque o casamento lhe trouxera Yolande.
- Conhece a jovem que viajou na comitiva de sua nora? Ela está encarregada das meninas.
- Você se refere a Agnès. É uma criatura encantadora, não é? Ele ficou aliviado ao ver que a sogra partilhava de sua opinião.
- Eu acho - disse ele.
- Então, você a conheceu... pessoalmente.
- Conheci. Mas não como a senhora pode estar pensando. Ela não é do tipo de jovem para um rápido encontro hoje e para ser esquecida amanhã.
- Eu concordo.
- A conversa dela é impressionante, tratando-se de uma pessoa que passou a vida no interior.
- Ela tem uma inteligência brilhante e uma beleza fora do comum.
- Foi essa a minha opinião.
- Você tem... planos referentes a essa moça? O rei ficou calado.
- Eu me vejo pensando nela com frequência, mas não... da forma de costume.
- Entendo - disse Yolande, pensativa. Estava pensando que seria bom, para ele, ter uma amante de boa reputação. Se Carlos quisesse conquistar algum dia o respeito de seu povo, teria de mudar. Teria de adquirir confiança em si mesmo; teria de agir com mais energia; teria de livrar-se de ministros cujo único objetivo era enriquecer. Ele gostava de mulheres; ouvia as mulheres com atenção. Yolande achava isso uma virtude. Ela acreditava que se Carlos pudesse cercar-se de pessoas sensatas, se pudesse ser despertado de sua letargia, se fosse possível convencê-lo de que possuía os dons de um grande monarca, ele poderia tornar-se um grande rei.
Ela continuou, com ar pensativo:
- Acho que a jovem seria um elemento valioso na nossa corte. Ela tem uma certa graça. Eu mesma percebi isso. Ela poderia tornar-se membro da criadagem de Marie. vou falar com ela.
- Como sempre, a senhora é uma grande amiga minha.
- Deixe por minha conta - disse Yolande.
Pode ter parecido estranho, meditou ela, ter admitido na equipe da filha uma jovem que muito provavelmente estava destinada a tornar-se amante do rei. Mas Yolande enxergava longe. Como seria muito melhor, para o rei, ter uma boa mulher à qual fosse dedicado do que uma sucessão de trapalhadas furtivas com criadas, que de qualquer modo estavam arruinando-lhe a saúde e solapando-lhe a dignidade! Yolande, olhando para o futuro, via chegar o dia em que Carlos poderia ser um grande rei. Por isso, não podia permitir que obstáculo algum ficasse no caminho dele. O rei precisava de orientação até encontrar o caminho que deveria seguir; e Yolande acreditava que ele iria conseguir. Ela conhecia os homens; sabia governar; ela mesma atuara como regente de Anjou para seu filho mais velho, Luís, que estava em Nápoles tentando manter a posse da coroa de lá. Em sua sabedoria, acreditava que Carlos precisava de tantas influências equilibradoras quantas se pudesse encontrar. E parecia-lhe que aquela bela e sensata jovem bem poderia ser uma delas. Ela iria moldar Agnès, tornar-se sua amiga. Carlos não era a única pessoa a perceber qualidades raras naquela garota. Valia a pena fazer uma tentativa.
Isabelle, percebendo que nenhuma ajuda poderia ser conseguida junto ao rei, preparou-se para voltar para o palácio em Nancy, do qual sua mãe estava tomando conta.
Quando partiu, deixou Agnès Sorel. Agnès tornara-se dama de honra da rainha da França.
Nesse ínterim, René estava encontrando um certo prazer no cativeiro. Ele nunca fora de dar importância a batalhas. Sua posição obrigava-o a ficar numa situação que sua tendência teria sido evitar, se tivesse havido opção. Yolande fizera com que ele fosse criado para reverenciar as leis da cavalaria, e estas muitas vezes faziam fortes exigências de um homem.
No entanto, em Dijon, ele desfrutava de lazer e estava liberado de guerrear. As leis da cavalaria exigiam que fosse tratado com o máximo de respeito, o que resultava no fato de que, embora rigorosamente confinado, em Dijon, era mais um hóspede do que um prisioneiro.
Embora estivesse vigiado de perto, podia ir para onde quisesse dentro do castelo, e gostava de estar na capela, onde havia muitos vitrais, alguns dos quais tinham sido decorados com pinturas requintadas. René era um pintor de certa habilidade; era também poeta e músico; vivia se lamentando da impossibilidade de dedicar-se àquelas atividades de que tanto gostava. Agora, ali estava uma oportunidade. Admirara tanto as pinturas na capela que sentiu vontade de pintar em vidro. Arranjaram vidro para ele e forneceram-lhe tinta, e em pouco tempo René estava passando os dias de cativeiro de maneira muito agradável.
O tempo voava. Ele completara um retrato do falecido duque de Borgonha, que fora conhecido como O Destemido; e ficou tão satisfeito com o resultado que pintou outro do filho do duque, o atual duque Filipe.
Depois, pintou miniaturas de outros membros da família, e aguardava ansioso a chegada de cada novo dia, quando poderia continuar sua obra.
Quando soube que o duque de Borgonha anunciara sua intenção de visitar Dijon, ele mal ouviu a notícia; estava demasiado concentrado em conseguir a textura certa para os cabelos do motivo de um de seus quadros.
O duque Filipe chegou, e esperando encontrar um René de Anjou abjeto, implorando por ser solto, ficou surpreso ao encontrar o prisioneiro dedicado ao seu trabalho.
O duque olhou para a pintura.
- Ora, é uma beleza - disse ele. - Eu não fazia ideia de que o senhor fosse um artista.
- Ora - disse René, modesto -, isso faz o tempo passar. Falou sobre o modo de misturar as tintas e sobre os motivos
que mais o agradavam.
- Parece que o senhor encontrou uma maneira agradável de aproveitar seu cativeiro - disse o duque.
- Um artista - explicou René - não pode nunca ser um verdadeiro prisioneiro de coisa alguma, a não ser de sua imaginação.
- Quer dizer que um artista pode estar contente onde quer que se encontre.
- Enquanto estiver dedicado ao ato de criação, sem dúvida alguma.
- A mim parece que o senhor não acha tudo isso nem um pouco maçante.
- Às vezes, acho. Eu gostaria de estar com minha família. Meus filhos estão crescendo, sabe?, e é sempre um prazer vê-los mudar. Mas enquanto eu pinto, meu trabalho me absorve. Isso acontece com os artistas.
O duque estava perplexo. Não podia haver um homem menos parecido com ele. Não que o duque não fosse um homem altamente culto. Era. Gostava muito de coisas bonitas, mas acima de tudo era o duque de Borgonha, e seu principal objetivo na vida era manter seu poder e aumentá-lo.
Mas ficou muitíssimo impressionado com o trabalho de René, e quando viu os retratos que seu prisioneiro pintara do duque John e dele mesmo, declarou que eram realmente muito bonitos e deviam ser colocados na janela da capela.
- O senhor me deixa constrangido - disse ele.-Não gosto de manter um artista como o senhor no cativeiro.
- Existe uma solução fácil para isso - disse René com um sorriso. - Ponha-me em liberdade.
- Ora, o senhor sabe que isso não é possível. Existem convenções que devem ser observadas em assuntos como este. Se eu libertasse sem condições, eu teria que fazer o mesmo com todos os prisioneiros que fizesse alegando ser artistas.
Isso é uma questão, senhor duque, que poderia ser testada.
- A apreciação da grande arte é uma questão individual. Iriam me dizer que meu prisioneiro era um grande artista, mas de uma escola diferente daquela que eu admiro. O senhor compreende minhas dificuldades.
- Compreendo, senhor.
- Por outro lado - disse o duque -, eu gostaria de discutir condições com o senhor. O senhor foi capturado em combate. A disputa sobre Lorena tem de ser resolvida. Quem tem a precedência na reivindicação... o senhor, como marido de Isabelle, ou Antoine de Vaudémont? Devemos fazer cumprir a Lei Sálica, ou não? Eu vejo uma solução fácil para essa disputa.
- Seria um prazer ouvi-la.
- O senhor tem uma filha, certo?
- Duas. Yolande e Margaret.
- É sobre a mais velha que eu gostaria de falar.
- É a Yolande.
- Meu caro, Antoine tem um filho, o jovem Ferri. Por que esses dois não são prometidos em casamento? com o tempo, o filho de Antoine e sua filha herdariam a Lorena. O senhor concordaria com isso? Eu lhe pergunto isso, mas ao mesmo tempo devo lembrá-lo de que ficará preso até concordar.
- Parece uma solução bem razoável - disse René.
- Neste caso, isso resolverá a principal pendência. Mas é natural que haja um resgate. Certos castelos, digamos?
- Quais? - perguntou René.
- Clermont, Châtille, Bourmont e Charmes?
- O senhor faz uma proposta difícil.
- E vinte mil coroas de ouro.
- Vinte mil coroas de ouro! Onde vou consegui-las?
- O senhor terá tempo para arranjar o dinheiro. Eu o aconselharia a concordar. Os resgates têm um hábito de aumentar com o passar dos anos. Estou sendo leniente. O senhor tem de admitir. É devido ao respeito que tenho por um artista.
Depois que o duque se retirou, René refletiu sobre o assunto. Queria estar com a família. Estava ansioso por ver os filhos. Era verdade que a pequenina Yolande teria de ir morar com os Vaudémont. Ora, isso era o tipo de coisa que acontecia às meninas.
Ele concordou, e muito pouco tempo depois estava seguindo a toda velocidade para juntar-se à família.
Depois que René foi calorosamente recebido pela família, Isabelle e a mãe dela estudaram as condições de sua soltura e declararam que eram muito rigorosas.
Na ala infantil, Theophanie estava enfurecida.
- Otima, essa situação - disse ela. - Uma criancinha como a minha Yolande ir embora e morar com estranhos. Eles podem ser primos dela, mas não está certo. Não está nada certo. E Agnès. Quem teria acreditado? Uma dama de honra, hein, da rainha. Acho que dentro em pouco ela estará louca de saudades do seu belo lugar na minha ala infantil. Agnès na corte! Não consigo imaginar. Não consigo imaginar nem um pouco.
Mas a verdadeira tragédia, é claro, era a partida de Yolande.
Era uma felicidade, murmurava para si mesma, a menina ser tão jovenzinha... criança demais para compreender. Tinha apenas quatro anos, pobre pinguinho de gente. Estava fazendo muitas perguntas sobre o novo lar.
- Como se eu pudesse dizer - lamentava Theophanie. Margaret ficava olhando, os olhos arregalados.
- Por que Yolande vai embora?
- Porque ela vai ficar noiva.
- O que é noiva?
- Casada, depois de um certo tempo.
- Theo, eu vou ficar noiva?
- Claro que vai, queridinha.
- É bom ser noiva?
- Às vezes, é muito bom... para os outros - acrescentou Theophanie, amargurada.
Os meninos estavam interessados.
- Você terá de ir embora um dia, Margaret - mexiam eles com ela.
Yolande estava metade triste, metade orgulhosa. Ela era, afinal de contas, o centro das atividades. Tinha de comprar roupas novas e recebia aulas especiais sobre como se portar.
Era um sofrimento maior o fato de ter de ir embora agora que o pai estava em casa. Quando Margaret salientou isso para Theophanie, esta disse de forma um tanto misteriosa:
- Ora, é exatamente por isso...
E por mais que tentasse, Margaret não conseguiu arrancar mais nada dela.
Quando chegou o momento, Yolande foi embora, e Margaret sentiu muito sua falta, embora o pai estivesse com eles outra vez e isso tornasse a vida muito agradável. Ele mudara. Havia uma cicatriz no lado esquerdo da testa, onde a flecha o atingira quando fora capturado pelo marechal de Toulongeon, motivo pelo qual Yolande não estava mais com eles.
René era muito diferente da mãe deles. Ele gostava de estar com eles. Pintava, cantava e lia poesia, e isso era muito interessante. Conversava com os filhos sobre a maneira de ter sido capturado e sobre as pinturas que fizera sobre vidro no castelo de Dijon; era de uma franqueza total para com as crianças e estava proporcionando a todos um interesse pela música e pela poesia.
- Isso é muito bom - disse a duquesa-mãe Margaret, que estava com eles. - Eles serão cultos; mas não podemos esquecer que têm de aprender outras coisas além de apreciar as artes.
Margaret gostava do genro, mas de vez em quando ficava exasperada com a atitude dele. Era um excelente artista, sabia disso; sua poesia e sua música davam prazer a todos que viviam no castelo, e até os mais jovens pajens ouviam fascinados quando René cantava composições de sua autoria no grande salão, após o almoço.
- Mas, e esse resgate? - perguntou a duquesa-mãe à filha.
- Belos poemas e quadros não vão pagar isso, vão? E será que Borgonha vai esperar muito mais tempo?
Houve uma desgraça adicional. O marechal de Toulongeort acrescentara suas reivindicações às de seu chefe Borgonha.
Fora ele que capturara René. Por isso, reivindicava outras dezoito mil coroas como sua parte no resgate.
- Aí está - disse a duquesa-mãe. - O tempo está passando, e nada está sendo feito.
- Não acredito que René se preocupe com isso - disse Isabelle. - Ele se sente muito feliz por estar aqui com a família e dedicar-se aos prazeres que tanto o deliciam.
- Dessa maneira, ele está apenas adiando o dia aziago. Já faz mais de dois anos desde que voltou e nada foi feito, exceto mandar Yolande para Vaudémont. Acredite em mim, Borgonha não vai esperar muito mais tempo, e agora que Toulongeon está acrescentando suas exigências, René irá envolver-se em grandes dificuldades. Algo precisa ser feito.
- Falarei com René - disse Isabelle. Margaret abanou a cabeça.
- Não adianta. Falarei com o imperador da Alemanha.
- Sigismundo?
- Por que não? Ele tem um grande poder. Talvez tenha meios de persuadir Borgonha a ser mais moderado. Há alguma possibilidade de que Borgonha lhe dê atenção.
- Vale a pena tentar - disse Isabelle. - Mal não poderá fazer.
Quanto mais a duquesa-mãe pensava nisso, mais satisfeita ficava com a ideia. Ela mandaria mensagens ao imperador, que, por ser seu cunhado, praticamente não poderia recusar-se a ajudála. Ela estava ficando velha, alegou, mas graças a Deus ainda podia tomar decisões.
- No dia em que eu não puder fazer isso - disse à filha -, vou querer partir desta vida.
- Minha adorada mãe - disse Isabelle -, a senhora sempre foi uma mulher de poder. Às vezes penso que as mulheres da nossa família é que deveriam ter governado. Em toda parte, somos amaldiçoadas por essa ridícula Lei Sálica.
Ela é mais um obstáculo que temos de vencer, minha querida. Agora, vamos ver o que Sigismundo pode fazer por nós junto a Borgonha.
Demorou algum tempo para ela descobrir. Os mensageiros tinham de chegar a Sigismundo e ele tinha de decidir como agir. Ele queria ajudar, e enviou mensageiros ao famoso duque para dizer-lhe que considerava rigorosas demais as condições que ele acordara com René. Em nome do bom senso, elas deveriam ser modificadas. Ele sabia da situação em que René se encontrava e que este não tinha condições de atender a exigências como as que o duque fizera.
Passaram-se alguns meses. A vida agradável continuava. René não pedia mais do que estar com os filhos e a filhinha; seu único desgosto era que a pequena Yolande tivera de ir emboral Ele podia prazerosamente esquecer que tinha de arranjar o resgate e que a paciência de Borgonha poderia estar se esgotando.
A duquesa-mãe parecia muito satisfeita consigo mesma. Ela recebera uma mensagem de Sigismundo dizendo que ele faria o possível para convencer Borgonha a cair em si, e já o abordara. Congratulava-se por sua habilidade para resolver muito melhor os problemas do genro do que ele próprio, quando recebeu um desagradável choque. Chegaram a Nancy emissários do duque de Borgonha.
A mensagem que levavam era de que o duque estava enfurecido com o fato de René ter tido a temeridade de apelar para Sigismundo. Quanto ao imperador, seria bom que fosse cuidar da vida dele. Como resultado daquela intromissão, Borgonha não negociaria mais. René tinha de voltar para o cativeiro e levando dessa vez consigo seus dois filhos, como reféns.
René ficou perplexo. Não sabia o que Borgonha pretendia.
Expressou sua perplexidade à mulher e à sogra.
- Não compreendo sobre o que Borgonha está falando disse ele. - Sigismundo! O que ele tem a ver com isso?
A duquesa-mãe empalidecera. Ela levou a mão ao coração. Isabella passou-lhe um braço sobre os ombros e sussurrou:
- A senhora não deve se perturbar. Vai lhe fazer mal. A senhora só estava tentando ajudar. René vai compreender.
Margaret abanou a cabeça.
- A culpa é minha - disse ela. - René, será que você pode me perdoar? Eu não podia suportar ver você não fazendo nada, e fui eu que pedi ajuda a Sigismundo.
- Ah - disse René, lentamente. - Agora eu entendo o que deixou Borgonha furioso. - Ele deu de ombros. - A senhora não deve se recriminar. Sei que tudo o que fez foi por mim e Isabelle. Bem, isso põe um fim na nossa vida aqui em Nancy, mas apenas por algum tempo. Tudo acabará bem.
- René - disse Isabelle -, fique e lute. Veremos se podemos derrotar esse duque arrogante.
- com o quê? - perguntou René. - Não temos como enfrentá-lo. Serei obrigado a ir e levar os meninos comigo.
- René... fique. Encontraremos algum meio... Mas ele abanou a cabeça.
- As leis da cavalaria exigem que eu honre meus compromissos. Fui capturado numa batalha justa; portanto, tenho de pagar o resgate exigido ou continuar preso.
Elas viram que era impossível - por ele ser René - ele seguir qualquer caminho que não o indicado pela honradez.
- Depois que você levar os meninos junto - disse Isabelle
- só me restará a pequenina Margaret.
René segurou-lhe o rosto com as mãos e a beijou.
- Ela é uma bela menina. Você encontrará um grande consolo com ela.
Poucos dias depois, Isabelle, com a pequenina Margaret de um lado e a duquesa-mãe do outro, fizeram os acenos de despedida de René, enquanto ele seguia a cavalo para o cativeiro.
Havia tristeza no castelo. A duquesa-mãe estava muito abatida. Não conseguia esquecer que provocara aquilo e não tinha como perdoar a si mesma.
- Às vezes, penso que é melhor ser como René - disse à filha. - Ele analisa o cativeiro com calma e sem vergonha. Se eles lhe fornecerem tintas, ele ficará feliz.
Querida mãe - replicou Isabelle -, precisa parar de se lamentar. A senhora mesma está prejudicando sua saúde. Estava certa ao fazer tudo o que podia. Quem poderia acreditar que Borgonha fosse ficar tão zangado a ponto de vingar-se dessa maneira?
.- Acho que Sigismundo deve tê-lo abordado sem tato. Eu devia ter pensado nisso. Não fosse por minha causa, René estaria aqui agora, e embora vocês sejam pobres e não tenham meios de sair dessa situação humilhante, pelo menos estavam juntos.
Nada havia que Isabelle pudesse fazer para consolar a mãe. A cada dia a duquesa-mãe ficava mais pálida, abatida e apática. Perdera o apetite e não conseguia dormir à noite, pensando sobre a enorme confusão que sua interferência causara.
Quando chegou o mês de agosto, fez um calor sufocante, e ela foi obrigada a recolher-se ao leito. Em poucos dias, Isabelle ficou realmente aflita. A velha senhora perdera aquela enorme verve que parecia torná-la imortal, e porque ela a havia perdido, Isabelle sabia que a mãe estava mesmo muito doente.
À medida que o mês avançava, ela foi piorando cada vez mais, e na manhã do dia 27, quando as amas entraram em seu quarto, pensaram que ela estava dormindo tranquilamente e não a incomodaram, mas antes da manhã acabar percebeu-se que ela estava morta.
Isabelle se ajoelhou ao lado da cama e pensou em tudo o que aquela mulher vital fizera por ela. Não podia acreditar que nunca mais tornaria a vê-la. Mãe dedicada, grande governante, afetuosa, inteligente... como Isabelle se sentia afortunada por ter nascido de uma mulher assim!
Tenho de ser igual a ela, pensou Isabelle. Preciso ser forte, muito forte, já que estou casada com um homem que não é nada disso.
Lamentou profundamente a morte da mãe, mas havia pouco tempo para lamentações. Aquilo implicaria mudanças. Margaret, a duquesa-mãe de Lorena, teria sua ausência muito sentida. Ela fora popular junto ao povo, e isso servira de grande utilidade na luta contra Antoine de Vaudémont. Isabelle teria de assumir grande parte do trabalho que a mãe continuara a fazer até que a doença a dominasse. Sim, havia pouco tempo para lamentações.
Precisava fazer planos. Ali estava ela, sem o apoio do marido e da mãe. Tinha de conseguir os filhos de volta; tinha de libertar o marido; e tinha de governar Lorena e evitar que Antoine de Vaudémont a tirasse dela.
Sua mãe fora uma potência em toda Lorena. O que aconteceria, agora que estava morta?
Isabelle precisaria de todos os seus recursos para segurar o que tinha até que René e os filhos voltassem.
Chegaram mensagens da mãe de René, a temível Yolande de Aragão. Ela compreendia a situação desagradável em que sua nora se encontrava; ela admirava Isabelle, vendo nela uma mulher forte, igual a ela. O único tipo para um homem com a natureza delicada de René, e sentia-se agradecida à nora.
Agora, escreveu para ela:
"Você tem uma grande missão pela frente. Dos seus filhos, só Margaret se encontra sob os seus cuidados. Ela deve estar com cinco anos de idade. Se você concordar em mandá-la para cá, eu teria prazer de me encarregar da educação dela. Theophanie poderia trazê-la. Prometo-lhe que cumprirei meu dever para com a menina."
Isabelle ficou muitíssimo aliviada ao receber a carta. Ela andava se perguntando o que faria com Margaret. com o pai ausente e ela incapaz de dedicar muito tempo à menina, andara angustiada. Além do mais, Margaret devia ter sentido uma falta enorme dos irmãos, depois de ter perdido a irmã algum tempo antes.
Era um bom plano.
A pequenina Margaret ficou alarmada quando soube que moraria com a avó paterna, mas Theophanie ficou encantada.
Vai Ser como voltar para casa - disse ela. - Ficaremos
naquela mesma ala infantil em que cuidei de seu pai e dos seus irmãos.
não havia dúvida quanto à satisfação de Theophanie, e isso fez com que Margaret ficasse menos apreensiva.
Margaret logo ficou absorvida pela vida no castelo em que sua avó era quem mandava. A menina acostumara-se ao domínio feminino. Sua mãe tinha sido muito mais importante do que o pai, em Nancy; e ali, é claro, todos os homens da criadagem curvavam-se diante da vontade de sua indominável avó.
Yolande, bonita, aparentando menos idade do que tinha estava na casa dos cinquenta -, era uma mulher que exigia uma obediência imediata, e com bons motivos. Sob seu governo, o ducado de Anjou prosperava tanto quanto qualquer outro estado com a constante ameaça de invasão. Era verdade que os franceses estavam reconquistando gradativamente o território que os ingleses lhes haviam arrancado, mas os ingleses ainda eram um perigo, e devia haver uma vigilância permanente, para o caso de chegarem fazendo uma incursão pelo interior.
Yolande tinha sentinelas em todos os pontos e estava sempre em alerta.
Recebeu a neta com um afeto refreado pela dignidade e atenuado por uma certa severidade. Margaret seria criada para tornar-se uma mulher forte como a avó. Yolande não tinha paciência com aquelas mulheres que se mantinham ignorantes sobre tudo que estivesse fora das necessidades de uma família e que eram apenas objetos de adorno. As mulheres deviam ser capazes de governar quando houvesse necessidade, e Yolande era de opinião de que com muita frequência elas tinham um desempenho melhor do que o dos homens.
Ao mesmo tempo, sua neta deveria ser educada para gostar das artes e praticá-las se tivesse qualquer habilidade para isso. No íntimo, Yolande esperava que a neta não tivesse talento demais, como acontecera com o pai. Muitas vezes, lamentava a situação de René, que se dedicara à sua instrução artística com o entusiasmo maior do que aquele que sentia pelo treinamento em realizações ao ar livre. René tinha talentos demais nos campos artísticos. Sabia pintar como o artista mais refinado; escrevia poesia e compunha música que podiam ser comparadas com qualquer trovador. Sim, René era talentoso em muitas áreas, exceto naquela de que mais precisava para manter juntas suas propriedades naquela época conturbada.
Por isso, Yolande estava ansiosa para que a filha de René fosse criada de maneira adequada. Os melhores professores deveriam ser arranjados para ela, e Yolande podia confiar em que a velha Theophanie seria uma boa ama para ela.
Na sua primeira semana no castelo, Margaret teve duas conversas com a avó. Foram mais como audiências e aconteceram com um certo grau de cerimónia.
Nelas, Yolande salientou a importância de Margaret absorver tudo o que lhe ensinassem. Ela deveria aprender a apreciar as belas-artes, que era o que seu pai desejaria. Ao mesmo tempo, precisava dar a devida atenção aos estudos académicos. Tinha de praticar a obediência. Na verdade, tinha de crescer para ser digna da avó.
Margaret, com cinco anos de idade, perplexa depois de ter sido tirada da família, ainda lamentando a perda dos irmãos e, acima de tudo, de seu bondoso pai, tentava compreender tudo o que a avó tentava incutir-lhe. Ela considerava Yolande - que lhe parecia muito, muito velha - como uma deusa em seu templo, todo-poderosa, onividente, onisciente, uma pessoa que nunca devia ser ofendida e devia sempre ser obedecida. Todos os que viviam no castelo prestavam a maior deferência a ela, e Theophanie pronunciava o nome dela naquela voz abafada especial que ela usava quando falava da Virgem Maria.
Yolande achou que era bom que a menina, embora de pouca idade, compreendesse a realidade da situação.
- Seu pai é prisioneiro do duque de Borgonha - explicou ela -, e você, entre os filhos dele, é a quarta. Como duque de Bar e marquês de Pont-à-Mousson, ele teria tido pouca projeção no país, ainda que se encontrasse em liberdade. Ele está afundado em dívidas e há um resgate a ser pago. Assim, você percebe que sua situação não é muito gloriosa.
Yolande estava decidida a que a menina deveria aprender sobre humildade. Não devia pensar que por ser neta de Yolande já era importante. Ela fora aceita no castelo como um ato de caridade, porque sua mãe estava tão ocupada tentando manter unidas as empobrecidas possessões de seu pai que alguém tinha de tomar conta de sua filha.
Margaret aparentou uma vergonha adequada, e Yolande continuou:
- Nunca se esqueça de que é minha neta. Não sabemos o que o futuro lhe reserva. Talvez um dia você seja chamada a governar, como aconteceu comigo, e com sua mãe. Você tem de estar preparada para isso.
Margaret disse que faria o possível.
Yolande dispensou-a e ficou pensativa por alguns instantes. Pobre menina, pensou ela, que esperança haverá de um casamento ilustre para ela? René jamais recuperará suas propriedades, e se as recuperasse, teria capacidade de conservá-las?
Se Margaret não fosse tão criança, ela teria explicado que ela, Yolande, era a regente de Anjou porque seu filho mais velho, o tio de Margaret, Luís, estava em Nápoles tentando tornar realidade sua reivindicação daquela coroa. Ela era uma mulher que tinha muitas ocupações, porque também mantinha excelentes relações com o rei, que era seu genro. Dispunha de pouco tempo para criar uma menina - ainda mais a filha caçula do seu segundo filho. Ainda assim, ela fizera bem ao levá-la para lá. Isabelle, por capaz que fosse, estaria demasiado envolvida na defesa das propriedades de René e tentando juntar o dinheiro para o resgate. Era uma época difícil, aquela.
Theophanie estava em estado de êxtase, por mais que sentisse falta dos irmãos de Margaret. Falava muito na pequenina Yolande e esperava que os Vaudémont fossem bons para ela.
- A esta altura, ela já deverá ter-se esquecido de nós, disso não tenho dúvidas - disse a Margaret, temendo e ao mesmo tempo esperando que Yolande se esquecesse. Pobre pingo de gente, ser arrancada de casa.
Theophanie esperava que não estivessem preparando um casamento para Margaret... só para resolver algumas de suas diferenças.
- O Senhor deixou que levassem os outros, Senhor - repreendia ela. - Pelo menos faça com que me deixem essa pequenina.
Os dias começaram a passar devagar, no início, e depois de forma imperceptível à medida que Margaret ia se acostumando a viver em Saumur.
Ela começou a gostar de música e de poesia. Lia os trabalhos de Boccaccio com grande prazer; os professores descobriram que ela tinha aptidão para aprender; estava ficando bonita, e seus longos cabelos alourados e brilhantes, com um toque de ruivo, eram seu maior atrativo.
Sentia saudades de casa, acima de tudo do pai; mas a cada dia que passava, lembrava-se cada vez menos dele. Gostava de agitação e chegava até a ficar alegre nos dias em que o castelo ficava em estado de alerta porque havia ingleses nas redondezas. Sua avó tinha tudo pronto para o caso deles serem sitiados.
Um dia, ela foi chamada à presença da avó. Aqueles chamados eram raros e deviam anunciar algum fato importante, de modo que Margaret foi à reunião num estado de agitação misturada com apreensão.
Fez uma mesura para a avó, certa de que aqueles olhos alertas observavam cada movimento e de que seria percebido se a mesura fosse tudo, menos perfeita.
- Venha cá, menina - disse Yolande, e quando Margaret se aproximou, ela segurou-lhe a mão e pediu que se sentasse num tamborete a seus pés.
- Tenho más notícias - disse ela.
Margaret teve vontade de gritar, porque logo pensou no pai, e quase que imediatamente depois na mãe, nos irmãos e na irmã.
- Seu tio Luís morreu.
Grandes ondas de alívio passaram por Margaret. O tio Luís era uma figura vaga. Nunca o vira. Apenas sabia que era o irmão mais velho de seu pai.
- Como você sabe, ele estava na Itália lutando pela coroa de Nápoles, que pertence a ele por direito.
- Sim, senhora - disse Margaret.
- Ele morreu de febre. Tinha uma esposa, Margaret como você e filha do duque de Sabóia, mas não tinham filhos. Você percebe o que isso significa?
Margaret sabia que dizia respeito a alguma coisa ligada à coroa de Nápoles. Era sempre alguma coroa ou algum castelo o motivo de controvérsia quando alguém morria. Por isso, achou que aquilo também era.
- Significa que a coroa de Nápoles irá para... - começou Margaret.
- O parente mais próximo. Você tem razão - Yolande fez um gesto afirmativo com a cabeça, aprovando. - E quem é o parente mais próximo, já que ele não tem filho homem e a mulher dele não pode herdar? É seu pai, René. Seu pai é agora rei de Nápoles, Jerusalém e Sicília.
- Mas... ele está preso...
- Isso não faz diferença. Sua mãe terá, agora, que reivindicar o direito de seu pai a Nápoles, já que ele não pode fazê-lo pessoalmente.
- Mas ele não a conquistou. Ele tem de lutar por ela.
- Você aprenderá que é preciso lutar pela maioria das coisas desta vida, minha filha. O que você tem de compreender é o que isso significa para você. Você é filha de um rei, agora, e não apenas a filha de um duque. Você é uma princesa, Margaret.
- Oh! - exclamou Margaret, impressionadíssima.
- Feche a boca, por favor - disse Yolande -, e lembre-se sempre de que pertence a uma família real.
Apesar de ter-se tornado uma princesa, Margaret descobriu que a vida continuava praticamente como antes. Pouco via a avó, que passava o tempo entre o castelo de Nagers e o de Saumur. A própria Margaret viajava de vez em quando entre aqueles dois castelos, porque Angers ficava a menos de quarenta e cinco quilómetros de Saumur e era de fácil acesso. Os dois castelos eram magníficas fortalezas, e se os ingleses tentassem toma-los, poderiam resistir a um cerco prolongado.
Margaret estava crescendo e se transformando numa jovem bonita. Não era alta, mas bem formada, muito esguia e com traços bem definidos. Tinha belos olhos azuis e uma boca firme.
- Não será difícil achar um marido para ela - confidenciou Theophanie a uma das amas. - Uma princesa, e mesmo que o pai ainda tenha de reconquistar o reino, ela tem uma beleza suficiente para fazer com que algum galante jovem pretendente se esqueça disso.
Ela era inteligente, também, diziam os professores. Tinha uma inteligência ágil e estava crescendo (novamente nas palavras de Theophanie) para ser igual à avó.
Havia quem teria gostado de vê-la ficar mais alta, mas Theophanie não tinha tanta certeza assim. Mulheres pequenas muitas vezes tinham um jeito de conseguir o que
queriam com uma facilidade maior do que a de suas irmãs mais altas. Sabiam ser femininas e atraentes quando preciso. Theophanie reconhecia que Margaret tinha o melhor dos dois lados da moeda. Seria tão voluntariosa quanto a mãe e a avó, e com sua aparência bonita agradaria à masculinidade dos homens que tinha de combater.
Levando-se tudo em consideração, refletia Theophanie, ela não desejaria que a sua princesa fosse outra coisa que não o que era.
Margaret completara o nono aniversário quando um grande fato aconteceu.
Ela estava tendo aula, como fazia todas as manhãs, quando um tropel no pátio anunciou a chegada de visitantes. Deviam ser amigos, caso contrário teria sido dado o alerta. Havia sempre homens nas torres de observação para detectar a aproximação dos ingleses.
Sem esperar para pedir permissão, ela saiu correndo da sala e desceu para o pátio. Um pequeno grupo de homens ali estava, e quando os olhos dela caíram sobre um deles, soltou um grito de alegria. Não pôde esperar pela cerimónia. Atirou-se nos braços do pai. Não havia como confundir o sorriso bondoso, embora tivesse envelhecido muito, e lá estava a cicatriz, lívida como sempre, no lado esquerdo da testa.
- Minha adorada filha-bradou René. - Ora... não é mais uma criança. Como você cresceu! Que bela dama fizeram de você!
- Meu pai, meu adorado, adorado pai...
Os dois ficaram abraçados. E lá estava Yolande, de pé no pátio, observando-os.
René soltou a filha e abraçou a mãe.
- É uma ótima notícia - bradou ela. - René, meu filho. Você está livre.
- Livre... mas com muita coisa para contar.
- É preciso preparar quartos e dar ordens na cozinha. Que prazer tê-lo conosco. Você já viu Margaret.
Margaret não se lembrou de nada que devesse ser feito em ocasiões como aquela. Só conseguia pensar que seu pai adorado estava com ela outra vez. Limitava-se a ficar com ele, os braços envolvendo-o, e nem mesmo Yolande conseguia esconder a emoção.
Eles entraram no castelo. Havia um azáfama por toda parte, e pouco depois cheiros apetitosos invadiam o local.
Teria de haver um banquete em honra àquele filho que, desde a morte do irmão, era o mais velho de Yolande.
Havia, mesmo, muita coisa a contar, e nem tudo era agradável de se ouvir. René insistira que Margaret ficasse junto. Ele não podia demorar-se e queria o maior tempo possível com a filha.
- Quando você tem de ir? - perguntou Yolande.
- Não posso ficar mais do que três ou quatro dias.
Yolande, para surpresa de Margaret, não fez tentativa alguma de mandá-la retirar-se, de modo que ela ouviu tudo o que acontecera com o pai.
- Então você está realmente livre - disse Yolande.
- Completamente - replicou René. - O resgate foi pago. Isabelle foi maravilhosa ao arrecadar o dinheiro.
- Você devia ficar agradecido à sua mulher - disse Yolande.
- Estou. Não se engane quanto a isso. Ela é uma mulher maravilhosa... como a senhora, minha mãe. Ela veio do mesmo molde.
Yolande inclinou a cabeça, graciosa. Ele nunca negava coisa alguma em que acreditava. Era verdade que o querido e fraco René fora abençoado com uma mulher e uma mãe fortes.
- E Borgonha? - perguntou ela.
- Pode estar certa de que ele fez um grande negócio. John está noivo da sobrinha dele, Marie de Bourbon.
- É mesmo! - disse Yolande. Ela se ressentia pelo fato de um casamento ter sido arranjado sem que fosse consultada.
- Sobrinha de Borgonha - disse René. - E portanto uma boa ligação. Além do mais, ele foi inflexível. Suas condições eram essas.
- Pelo menos isso mostra que ele ainda tem apreço suficiente por você para querer essa ligação. com que idade John está agora?
- Doze anos.
- com idade suficiente, diria eu. E onde está Luís?
- com a mãe dele, em Nápoles. Para onde tenho de ir a toda velocidade. Mas não pude resistir a vir ver minha mãe e minha filha.
- Meu querido René, que Deus o conserve e lhe dê forças.
- vou precisar disso - disse René. - Sei que as coisas não estão muito boas em Nápoles.
- Como você deve estar feliz por sentir-se livre de novo.
- Por estar com a minha família, sim, mas fui bem tratado durante meu cativeiro. Tenho pintado muito, e é impressionante como isso faz passar o tempo depressa.
Yolande sorriu para ele, carinhosa. Pintando quando deveria estar pensando em meios de governar suas possessões, e antes de tudo pôr as mãos em algumas delas.
René ineficiente. Mas René querido, mesmo assim. Ninguém podia deixar de gostar dele.
Foi um dia triste quando ele partiu. Estava ansioso por juntar-se a Isabelle, mas era evidente que seu coração não estava na luta que deveria ser travada para conquistar a coroa de Nápoles.
Todo dia Margaret esperava notícias do pai, mas os meses se passavam, e nada acontecia. Havia menos perigo, agora, de os ingleses atacarem a terra de surpresa, porque a fortuna estava favorecendo aos franceses e a situação era muito diferente da que existira quando Joana dArc chegara de sua aldeia para falar com o rei.
Passou-se um ano, e depois mais outro, e nada de notícias de Nápoles.
- Uma coroa não se consegue com facilidade - dizia Yolande. - Seu pai está com pouco dinheiro, e não acredito que ele seja o maior general do mundo. Se ao menos ele fosse, como soldado, metade do que é como pintor, a história seria diferente.
Então chegaram notícias emocionantes, mas não de René.
O rei mandara avisar que fazia muito tempo que não via a sogra. Pretendia, se ela o recebesse, fazer-lhe uma visita.
Yolande não cabia em si de felicidade; e quase que imediatamente ficou apreensiva. Uma visita real! Tinha de ser feita de maneira adequada, e isso significava que eles deveriam começar a preparar-se já.
A visita deveria acontecer no castelo de Angers, que seria mais apropriado do que Saumur. Ela reveria a filha querida, mas Margaret sentiu que a pessoa de quem ela gostava mesmo era o rei.
Durante várias semanas, não se falou em outra coisa que não na visita do rei. O castelo foi limpo da mais alta torrinha à mais baixa masmorra, embora, como dizia Theophanie resmungando, não acreditava que o rei fosse até lá. Ela ficaria contente por ver a jovem Marie outra vez, mas deduzia que Marie mudara bastante desde a época da ala infantil. Theophanie cuidara de todas aquelas crianças, e de uma rainha também. Esperava então ver mudanças em Marie.
Mas fazia-lhe bem ver a Sra. Yolande tão feliz com a vida. Só ultimamente é que ela imaginara que a ama estava ficando um pouco cansada, sentindo o peso da idade. Caso isso acontecesse, seria a primeira vez na vida - o que deixava Theophanie preocupada.
Tinha de haver roupas novas para todos. Margaret devia ficar imóvel enquanto ricos tecidos eram medidos para ela. Nunca se sentira tão adulta na vida.
Chegou então o grande dia.
Os vigias na torre deram o sinal. A cavalgada fora avistada. Todos deveriam estar prontos, agora, para saudá-los, a fim de demonstrar-lhes como era grande aquela honra.
Yolande se posicionou nos portões do castelo, Margaret ao seu lado. Os arautos sopraram suas trombetas, e lá estavam o rei e a rainha e uma brilhante comitiva de damas e cavalheiros.
O rei desmontou. Yolande ficou de joelhos, e Margaret a imitou.
- Levante-se, senhora - disse o rei. - É um prazer vê-la. Tenho sentido falta de sua companhia.
E ali estava a rainha, a tia de Margaret, Marie. Ela abraçou Yolande, e então Margaret foi apresentada a ela e ao rei.
Ela estava nervosa demais para olhar para eles muito atentamente e demasiado ocupada lembrando-se de tudo que lhe tinham ensinado que devia fazer, mas teve tempo de olhar de relance para Carlos e achou que este tinha a aparência de um rei. Não era muito bonito. O nariz fascinou-a; parecia cair bem sobre a boca. No entanto, ele falou com muita delicadeza com ela, que, apesar da aparência pouco atraente dele, o considerou gentil.
Então, quando Yolande estava prestes a conduzi-los para o salão, Margaret percebeu mais alguém. Sua mão foi segura e agarrada com firmeza. Ela se voltou e ergueu os olhos para um rosto bonito e não de todo estranho. Por um instante, pareceu indecisa, e depois murmurou:
- Agnès.
- Sim, sou Agnès. Margaret, como você cresceu!
- Você também mudou.
Uma expressão estranha tomou conta do rosto de Agnès.
- É - disse ela. - Mudei, não acha?
Não houve tempo para mais conversa enquanto elas seguiam o grupo para o salão.
Foi uma visita que Margaret jamais esqueceria. Nunca vira uma recepção daquelas em Angers. Mas claro que não vira. Jamais soubera o que acontecia quando o rei fazia uma visita. Yolande dissera que deveria haver todo o esplendor do passado em Angers na ocasião da visita do rei, e não restava dúvida de que mantivera a palavra quanto a isso. Os banquetes, os bailes, os afores que foram convocados, o canto, os dançarinos - os espetáculos se sucediam. Yolande dedicou-se aos preparativos com tanto entusiasmo que no fim do dia mal conseguiu ir cambaleando para a cama.
Theophanie estava certa, porque quando Margaret foi ao quarto da avó encontrou-a estendida na cama, os olhos fechados e uma expressão de extremo cansaço no rosto. Não estava satisfeita com Margaret, e deixou isso claro. Não era, disse ela, porque fosse inadmissível fazer o trabalho de uma criada, mas porque detestava que a neta visse seu estado de exaustão.
Era verdade que Yolande estava sentindo o peso da idade. Podia dizer a si mesma que ficara agitada demais, atirara-se com uma energia demasiada à tarefa de recepcionar a comitiva real, mas poucos anos atrás aquelas atividades não teriam provocado coisa alguma, a não ser estímulo.
Sessenta! Era uma idade considerável. E Yolande, até ali, acreditara inconscientemente que era imortal.
Quanto tempo mais lhe restava? Havia coisas que ela gostaria de ver antes de morrer. René bem instalado e tranquilo. Ora, ela já desistira de querer aquilo. Conhecia-o muito bem. Ele era muito amado, mas um tanto ineficiente. Muitas vezes se perguntava como podia ter dado à luz um filho daqueles. Não, ela era realista. Não devia desejar o impossível. O que desejava, mais do que qualquer outra coisa, era ver a França livre, e queria que Carlos instalasse aquele estado feliz. Um estranho instinto sempre lhe dissera que ele poderia fazê-lo. Houvera época em que aquilo teria parecido absurdo para alguns, mas nunca para ela. Fora atraída pelo rei quando ele, ainda delfim, se casara com a filha dela. Ele também se sentira atraído por ela. Tratava-se de um relacionamento estranho, uma vez que não continha nenhum dos elementos que o rei costumava sentir em relação às mulheres. Era uma amizade durável, uma devoção rara. Se ela tivesse sido mais jovem, talvez estivessem casados. Não, era melhor assim. Ela observara de longe o progresso dele e ficara contente, e achava que tivera um pequeno papel no surpreendente avanço feito por ele.
Yolande estava decidida a ter uma conversa em particular com Agnès Sorel, porque talvez conseguisse muita coisa com isso, mas primeiro queria conversar com a filha.
Não era típico de Yolande sentir-se constrangida a respeito de seus atos. Estava quase certa de que tinha razão, e ficou provado que, naquele caso, acertara. A mudança em Carlos tinha sido quase milagrosa, e Yolande tinha uma ideia astuta de como aquilo acontecera.
Estava prestes a mandar chamar a filha quando se lembrou de que nem ela poderia mandar chamar a rainha da França. Em vez disso, solicitou que a filha fosse falar com ela.
Marie foi imediatamente. Tal como o marido, tinha o maior respeito por Yolande.
- Querida filha, vou me esquecer de que você é a rainha por algum tempo e lembrar-me apenas de que é minha filha - disse Yolande. - E tão raro eu ter uma oportunidade de ficar a sós com você! Diga-me, Marie, como vão as crianças?
- Gozando de boa saúde, obrigada, mamãe.
- E Luís?
A rainha deu de ombros.
- Luís seguirá sempre seu caminho.
- Para o pai, isso é uma contrariedade - disse Yolande. Pobre Carlos, ele já tem problemas suficientes sem um delfim rebelde.
- É uma pena - concordou Marie.
Mas Yolande não tinha chamado Marie para falar sobre o comportamento do delfim. Ela continuou:
- Carlos tornou-se um homem diferente. Fico feliz com isso.
- Claro. A França está se saindo vitoriosa por todo o país. Em breve teremos expulsado os ingleses.
Yolande fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- E como você se sente a respeito de... Agnès Sorel? Uma vez mais o dar de ombros.
- Carlos sempre teve amantes - disse a rainha.
- Agnès talvez seja... diferente.
- Ah, é - disse a rainha -, muito diferente. Na verdade, poder-se-ia dizer que o rei não tem mais amantes. Ele tem uma amante.
- Agnès é uma boa jovem, Marie, não concorda?
- Concordo.
- E você, Marie... você é amiga dela. Marie sorriu.
- Eu sei o que a senhora está pensando, minha mãe. A senhora decidiu que Agnès devia ficar na corte ao perceber que ele ficara impressionado com ela. E a senhora está se perguntando o que eu, como mulher dele, penso de minha mãe que o apresentou a essa amante. Não se esqueça, querida mãe, de que foi a senhora que me criou. A vida foi difícil antes. A senhora sabe como nós vivíamos quando o pai dele deu Katherine ao rei da Inglaterra e prometeu àquele rei seu trono quando ele morresse. Carlos foi descartado. Mesmo depois da morte do pai, ele não passava do delfim, quando na verdade era o rei. Nós não tínhamos dinheiro... nada. Tive de vender jóias para comprar comida para nós. E ele não se importava... Ia para onde o guiassem. Era humilhante. E então, a Donzela apareceu. Nós duas acreditávamos nela, não é?, e fizemos com que ele acreditasse e o convencemos. Ela salvou Orleans e fez com que ele fosse coroado em Reims, e mesmp depois disso ele continuava inerte. Na verdade, ele nunca se perdoou por ter deixado que ela fosse morta na fogueira como uma feiticeira.
- Pobre Carlos, precisa de quem cuide dele.
- Ele tem quem cuide dele. Tem a rainha dele... a sogra... e, acima de tudo, a amante.
- Ah, eu sabia que Agnès seria boa para ele.
- Ele a ama, senhora. Nunca pensei que ele pudesse despertar de sua letargia para amar. Mas ele ama Agnès. Ela é uma boa mulher. Acho que ele teve de insistir muito para que ela se convencesse a compartilhar de seu leito e ter filhos dele. Ela também o ama. Apesar da aparência, há algo de cativante em Carlos.
Yolande concordou. Ela mesma o amava.
- Então, foi certo não afastar Agnès - disse ela.
- Agnès tem feito mais por ele do que ninguém. Ele despertou a si mesmo para conquistar a simpatia dela. Ela o mudou e, ao fazer isso, mudou a França. Querida mãe, alivie sua consciência. Sou esposa dele, mas me regozijo com Agnès.
A consciência de Yolande estava, agora, tranquila quanto àquele detalhe. Ela mandou chamar Agnès.
Agnès atendeu ao chamado e ficou parada à sua frente. Como é bonita!, pensou Yolande. Está mais bonita do que quando era empregada de Isabelle. Ela se beneficiou com a maturidade.
Agnès adivinhou que Yolande queria falar com ela sobre seu relacionamento com o rei, e como Yolande era a mãe da mulher dele, esperava algumas repreensões.
Yolande mandou que ela se sentasse.
- Você mudou desde a última vez em que a vi, Agnès - disse ela -, mas está mais bonita do que nunca. E feliz. Assim espero.
- Sim, senhora, eu me sinto tão feliz quanto se pode ser nessa época conturbada.
- Ficando cada vez menos conturbada desde que o rei despertou e decidiu assumir seu posto.
Agnès não respondeu; baixou a cabeça, mas Yolande percebeu o sorriso de satisfação.
- Agnès, ouvi dizer que Carlos construiu um castelo para você na floresta perto de Loches. O castelo de Guerche, creio eu.
- É verdade, senhora. O rei tem sido muito bom para mim.
- Acredito também que você tem sido muito boa para ele. A delicada cor das faces de Agnès acentuou-se ligeiramente.
- Minha senhora, eu não queria me ver nessa situação.
- Eu sei disso. Ele se apaixonou por você, e você quis fugir dele. Não tinha ambição alguma quanto a ser amante de um rei. Eu acredito nisso, Agnès, e o mesmo farão todos os que a conhecem. Mas você estava na corte dele e ele não quis liberá-la. Você não era uma jovem que se apaixonaria só por se apaixonar. Carlos nada tinha do tipo para inspirá-la, certo? Você resistiu e disse a ele que o achava indolente, que ele estava destruindo seu país, que você não poderia admirar um rei que se portasse como ele. Foi assim, Agnès?
- Talvez eu tenha dado a entender isso. Uma dama de honra da rainha não tinha como ser atrevida para com o rei.
- Mas você foi ousada, Agnès, porque causou esse efeito sobre ele. Ele mudou seus modos para agradá-la. Ele foi atrás de você. Falou com você. E você sempre foi uma jovem inteligente.
Raramente se é tão abençoada com beleza e sabedoria, e quando Deus concede esses dons, Ele espera que sejam usados. Eu a trouxe aqui, Agnès, para dizer-lhe que eu e a rainha somos gratas a você. Acreditamos que você tem feito tanto pela França quanto a Donzela fez. Ela mostrou a ele o caminho da vitória, mas você o levou até lá. Quero que saiba, Agnès, que eu e a rainha lhe somos gratas... como a França inteira deveria ser. Você agora o ama.
- Seria impossível não amá-lo. Ficamos juntos grande parte do tempo. Conversamos sobre os assuntos da França.
- Ele lhe dá ouvidos.
- Não sou nenhum general, senhora. Nem uma estadista. Mas sei que o rei tem de se mexer. Ele tem de governar. Senhora, ele agora governa.
- Sim, governa. E veja que resultado isso está tendo. Os ingleses perderam Henrique e depois o duque de Bedford. Isso foi bom para a França, especialmente por termos recuperado nosso rei. Eu queria que você soubesse, Agnès, que estamos com você... a rainha e eu. A França estará com você... se não agora, um dia. Fico surpresa pelo fato de a França ter de ser grata a duas mulheres, Joana, a Donzela, e Agnès Sorel.
- A outras, também, senhora. À senhora mesma. O rei dá grande importância à sua opinião. E também há a rainha.
- E suas filhinhas estão bem? São três, não são?
- São. O rei as adora.
- Que Deus a conserve, Agnès... a você, ao rei e à sua família.
Depois que Agnès se retirou, Yolande foi até o quarto, para descansar. Outra vez aquele humilhante cansaço a dominara, mas se sentia aliviada e feliz.
Ela agira certo ao levar Agnès para a corte.
Margaret também conseguiu ficar com Agnès por um curto espaço de tempo. Embora Agnès tivesse crescido e se transformado numa mulher e fosse nitidamente muito importante, Margaret se sentia capaz de conversar com ela como fazia com poucas pessoas.
Ela quis saber o que Agnès fizera quando entrara para a corte francesa e como era ser uma dama de honra da rainha.
Agnès lhe contou. Falou com Margaret sobre suas filhinhas.
- Charlotte está crescendo - disse ela -, e Agnès não fica muito atrás. E depois, vem a de colo.
- Suas filhas, Agnès? Eu não sabia que você tinha um marido.
Agnès hesitou. Margaret estava com onze anos. Poderia ouvir mexericos. Seria melhor para ela ouvir a verdade por intermédio de Agnès do que por terceiros.
- São filhas do rei - explicou Agnès.
- Mas eu pensei que era preciso ter um marido para ter filhos.
- Deve ser assim - explicou Agnès -, mas às vezes a situação é diferente. As pessoas compreendem.
- Eu suponho - disse Margaret com um certo bom senso - que esteja certo porque ele é o rei.
- É, acho que essa poderia ser a explicação - respondeu Agnès.
- Agnès, você ficará na corte para sempre?
- Espero que sim.
- O rei a ama muito, não é?
- Quem lhe disse isso?
- Vi nos olhos dele quando ele olhou para você. Agnès ficou contente.
- Sim - disse ela -, o rei me ama e eu o amo, e isso deixa tudo certo.
- Eu era muito pequena quando você foi embora. Mas me lembro de você. Acho que é porque você é muito bonita. Eu sinto que posso conversar com você... como não consigo falar com ninguém mais. Não se pode falar com Theophanie sobre certas coisas, e ninguém jamais pode falar com minha avó. Eu poderia falar com meu pai, mas ele não está aqui.
- Sobre o quê, Margaret?
- Eu... às vezes fico com um pouco de medo. Sabe, minha irmã Yolande foi embora para morar com os Vaudémont quando era muito criança, e agora o meu irmão John vai se casar com Marie de Bourbon. Um dia arranjarão alguém para se casar comigo e eu serei mandada embora.
- E isso a amedronta?
- Isso me faz pensar no que será de mim.
- Querida Margaret, nenhuma de nós conhece nosso destino. Isso está nas mãos de Deus.
- Sim, mas nós podemos nos livrar delas se não gostarmos do que Deus planeja para nós... às vezes.
- Por que você fala isso?
- Ora, dizem que o rei, que era fraco e devasso, agora adquiriu ares de rei e governa bem seu país. Se Deus pretendia que ele fosse um grande rei, por que Ele o fez ser um bobo esse tempo tedo? Ouvi minha tia Marie dizer à minha avó que você e a Donzela o tiraram do desânimo e despertaram nele o desejo de ser rei.
- Bem, talvez fosse essa a vontade de Deus.
- A mim parece - disse Margaret - que se pode dizer que tudo é vontade dele. Mas foram a Donzela e você que fizeram isso, não? Acho que você decide o que quer fazer e faz, e se der errado, diz: "Foi a vontade de Deus", e se der certo, foi você que fez.
Agnès soltou uma risada.
- Você tem uma maneira inteligente de raciocinar, Margaret. Isso é raro numa criança. Onde aprendeu isso?
- com a minha avó. Eu pretendo ser exatamente igual a ela quando crescer, porque se for, não vai fazer diferença com quem eles me casarem. Eu é que vou dizer o que tem de ser feito.
A visita real acabara, e Margaret e a avó voltaram para Saumur. Depois de toda a agitação, o castelo de Angers precisava de uma limpeza completa.
Margaret percebeu o quanto a viagem - embora fosse inferior a quarenta e cinco quilómetros - cansara a avó. Quando chegaram a Saumur, ela ficou de cama dois dias, coisa que jamais lhe acontecera antes.
Quando se levantou, estava tão enérgica como sempre, e a vida voltou à rotina.
Dois anos se passaram. Não havia boas notícias vindas de Nápoles. Na verdade, raramente havia alguma notícia. Yolande passara a acreditar que René jamais teria sucesso. Já não havia o medo de que os ingleses pudessem aparecer e tentar tomar o castelo. Estes estavam sendo expulsos da França, e um grupo de paz, sob a orientação do cardeal Beaufort, foi formado na Inglaterra.
- O que eles vão tentar fazer é casar um jovem rei com uma das filhas de Carlos.
- Seria uma boa maneira de acabar com a guerra - disse Margaret.
- Não tenho dúvidas de que é isso que vai acontecer. Uma princesa francesa para Henrique. Sim, essas alianças sempre são uma boa maneira de resolver diferenças. Ouvi dizer que ele é um bom rapaz, religioso, ansioso por fazer o melhor possível. Claro, o tipo dele sempre parece carecer de energia. Ele precisa de uma esposa forte, uma mulher que o lidere assim como o país.
Margaret sorriu. Yolande sempre acreditara firmemente no poder das mulheres. Ela ensinara Margaret a ter a mesma convicção.
- Teremos de arranjar um marido adequado para você, Margaret - disse Yolande. - Não fossem as proezas de seu pai em Nápoles, isso já deveria ter sido feito há muito tempo.
- Estou satisfeita por esperar um pouco.
- Não pode demorar muito mais. Você está com treze anos, não é?
- Isso mesmo, senhora.
- Então, já é tempo.
Um pouco antes, e aquela conversa teria deixado Margaret aflita. Agora, ela não estava tão certa assim. Sabia o grau de influência que Agnès exercia sobre o rei; ele, até certo ponto, era guiado pelas mulheres que o cercavam. Ela sabia o poder que sua avó tinha, assim como o de sua mãe. Se houvesse sucesso em Nápoles, seria devido a ela, não a René.
Às vezes, Margaret sonhava com o casamento e em ser a mulher de um homem que ela pudesse levar à notoriedade.
Que esse assunto ocupava os pensamentos de sua avó era óbvio, porque apesar do fato de estar ficando cada vez mais cansada, Yolande decidiu que iria à corte e levaria Margaret com ela. Era perfeitamente correto, disse ela, que Margaret visitasse a tia, e ela sabia que lá elas sempre seriam bem recebidas.
Os preparativos para uma visita daquelas eram demorados. Margaret devia estar vestida de forma adequada, e Yolande vivia lembrando-a da etiqueta da corte, que Margaret assimilava com facilidade.
A avó ficou encantada ao ver o sucesso da menina. Isso era devido à criação que ela tivera, e Yolande recebia o crédito por isso. Margaret era uma menina bonita. Uma pena não ser um pouco mais alta, mas era bem-feita de corpo e tinha um ar de requinte que era atraente e fazia um certo contraste com sua brilhante inteligência, que ficava evidente quando ela conversava.
Agnès ficou encantada ao ver Margaret, e sua tia, a rainha Marie, também expressou seu contentamento.
- Agora que você está ficando uma moça - disse ela -, deve ficar conosco mais vezes.
Havia muita coisa acontecendo nos círculos da corte na época. Em primeiro lugar, o cardeal inglês, Beaufort, estava lá.
- Ele veio para tentar conseguir a paz - disse Yolande a Margaret. - Esse cardeal é um homem inteligente. Sabe que continuar a guerra pode arruinar o país dele.
- Estou certa de que o rei vai concordar com ele - disse Margaret. - Neste caso, isso deve significar que em breve teremos paz.
- Infelizmente, o cardeal não representa o consenso geral da opinião inglesa. Você ouviu falar no duque de Gloucester, irmão do rei Henrique V e do duque de Bedford. Ele é a favor de que se continue com a guerra.
- Então, ele deve ser extremamente louco.
- Acredito que sim. Ele causou muito dano à causa inglesa. Ele quase provocou uma briga entre Borgonha e os ingleses.
- Teria sido muito bom.
- Para a França, sim... para a Inglaterra, um desastre. No entanto, é realmente bom ver o cardeal aqui. Ele é um homem extremamente culto e, creio eu, um homem que serve bem ao seu país.
Margaret foi apresentada ao cardeal. Ele pareceu muito interessado por ela, que falou um pouco sobre a situação do país dela. Ouviu-a com o respeito que teria demonstrado por um dos ministros do rei.
Mais tarde, ele declarou que a filha do rei de Nápoles era uma jovem interessantíssima. Além do mais, de ótima aparência.
- Estou vendo - disse tia Marie - que você conquistou a atenção do senhor cardeal. O que foi que disse a ele que o deixou tão impressionado assim?
- Nós conversamos um pouco sobre a guerra e seus efeitos.
- Ele deve ter achado isso engraçado... partindo de alguém que sabia muito pouco sobre o assunto.
- Eu conheço alguma coisa, tia. Tenho mantido meus ouvidos atentos. Seja como for, o cardeal pareceu interessado nos meus pontos de vista.
A rainha soltou uma risada.
- Ora, minha querida Margaret, parece que você está sendo um sucesso na corte. Seus pais teriam ficado orgulhosos de você, não tenho dúvida. vou pedir à sua avó que deixe você voltar em breve. Você está ficando crescida demais para se manter isolada no interior a vida toda.
- Obrigada, senhora - disse Margaret com fervor. Quando elas voltaram para Angers, sem dúvida que a vida
parecia um pouco enfadonha. Yolande percebeu a mudança em Margaret e comentou o fato. Não ficou contrariada. A jovem estava destinada a tomar parte nos negócios de Estado. Possuía uma inteligência ágil. Deveria haver mais visitas à corte, e talvez alguém ficasse impressionado por ela a ponto de considerá-la como uma possível esposa, apesar do fato de ela não possuir dote algum.
Sim, Yolande estava decidida a que houvesse mais visitas à corte.
No verão, elas foram outra vez. Aquilo também fez bem a Yolande. Ela adorava ficar ao lado de Carlos e estava encantada com a mudança que houvera nele. Ela passava bastante tempo com a filha e com Agnès. As visitas eram estimulantes.
- Estou contente por ter vivido o suficiente para ver a mudança que está por vir - disse ela. - A França será grandiosa outra vez. Se os ingleses tivessem qualquer grau de bom senso, iriam embora agora.
- Eles iriam - disse Carlos -, não fossem Gloucester e seus adeptos. Mas acredito que Beaufort vai conseguir. Os ingleses devem estar cansados de pagar por uma guerra que não está lhes trazendo nada, a não ser derrota. A senhora vai ver. Teremos paz dentro em breve.
- O que você acha de minha neta? - perguntou Yolande.
- Margaret? Uma beleza, e também uma inteligência muito viva. Sabe, acho que ela vai ser mais uma igual à avó dela, e este é o mais alto elogio que posso dar a ela.
Sim, não havia dúvida de que as visitas à corte eram muito agradáveis.
O inverno daquele ano foi rigoroso. A neve chegou cedo e ficou empilhada em altas camadas em torno dos muros do castelo. Era difícil manter-se aquecido, apesar das grandes fogueiras. Yolande parecia sentir mais o frio do que o normal. Talvez fosse porque já não conseguia deslocar-se com o vigor habitual. Não havia dúvida de que estava doente.
No início de dezembro, ela recolheu-se ao leito. Theophanie estava apreensiva.
- Isso é muito estranho nela - vivia ela dizendo.
Ela fazia preparados à base de leite quente, cerveja e vinho e mandava levá-los para o quarto de Yolande. Mas Yolande precisava de mais do que aquelas bebidas que eram boas para resfriados.
Ela levara uma vida muito plena e agitada, e a verdade pura e simples era que aquela vida estava se aproximando do fim.
No dia 14 daquele mês, completamente exausta, ela morreu pacificamente em seu leito.
O mais novo de seus filhos, o duque de Maine, chegou ao castelo e assumiu os preparativos para o funeral. Ela sempre quisera ser enterrada no mesmo túmulo que o marido, localizado em frente ao altar principal da catedral de Angers.
Margaret teve pouco tempo para pensar em qualquer coisa antes que a cerimónia acabasse, e então teve de enfrentar o fato de que haveria uma grande mudança em sua vida.
Carlos de Maine, seu tio, discutiu a situação com ela. Agora estava com treze anos, o que era considerado como tendo uma certa maturidade.
- Será impossível você ficar aqui, agora que sua avó morreu - disse ele. - Mandei avisar seu pai e não tenho dúvida de que em breve teremos notícias dele.
- Sim-disse Margaret. - Talvez agora meus pais venham até aqui.
- Seria sensato vir - replicou Carlos. - Eu acredito que a aventura de Nápoles foi um desastre. Você deve ficar aqui até recebermos notícias precisas deles.
- Ficarei - replicou Margaret.
O duque mostrou-se satisfeito. Margaret fora criada da maneira certa pela avó e, portanto, seria capaz de enfrentar uma situação como aquela.
Carlos de Maine estava certo quanto à volta de René. Ele e Isabelle já estavam em Marselha, já tendo abandonado a aventura de Nápoles. Partiriam para Saumur a toda velocidade.
A expectativa do reencontro ajudou muito a atenuar a dor de Margaret com a morte da avó. Na verdade, demorou muito para que ela se convencesse de que a velha senhora havia morrido. Yolande tinha sido um caráter tão dominante e sua casa fora dirigida com tamanha disciplina, que continuou a funcionar da mesma maneira depois que ela se fora.
Todos os dias, Margaret ficava aguardando a chegada dos pais, e não demorou muito e a aproximação deles foi avistada pelo vigia na torre.
Margaret estava nos portões do castelo esperando para saudá-los.
UM RETRATO ROUBADO
O encontro foi extasiante. Fazia muito tempo que Margaret não via a mãe. Oito anos, lembrou-lhe Isabelle. Fazia quatro anos que o pai estivera em Anjou.
Embora fosse um reencontro muito alegre, René tinha uma história triste para contar. Quando chegara a Nápoles, ele fora calorosamente recebido pelo povo, mas assim que seu rival, Alfonso de Aragão, começara a invadir, ficou claro que René não era adversário para ele. René percebera rapidamente que se quisesse continuar a viver devia sair de Nápoles. Não tinha dinheiro para continuar a luta; odiava a guerra; não tinha muita vontade de conquistar a coroa. Até mesmo sua mulher Isabelle percebera que eles estavam lutando uma batalha perdida.
- Quando uma galera genovesa apareceu, nós a tomamos e fomos trazidos de volta para a França - disse René. - E, minha filha adorada, estou muito contente por estar com você.
Havia muito o que conversar, e os assuntos de família eram bem mais interessantes para René do que a busca de uma coroa. Ele ainda era o rei de Nápoles, ainda que não pudesse ficar lá e conquistar a coroa, e Margaret era uma princesa, fato que ela sabia que seria importante quando chegasse a hora de encontrar um marido para ela.
Margaret queria saber muito. Como estava John, agora que estava casado com Marie de Bourbon? Teriam eles sabido como Yolande estava se saindo na casa do noivo, Ferri de Vaudémont? Quando é que Luís iria juntar-se a eles? Era maravilhoso estar uma vez mais com os pais.
Ocorreu a Margaret que eles poderiam ter ficado juntos o tempo todo, porque qual o benefício que eles tinham conseguido com as tentativas de conquista de René? No final das contas, talvez ele fosse sensato. Fora só a opinião de terceiros e a necessidade de submeter-se às leis da cavalaria que o tinham mandado à luta. Se ele tivesse obedecido a suas inclinações, teria ficado em casa, pintando, compondo música, cantando para plateias deliciadas e construindo estradas e pontes, que era o que ele sempre quisera fazer. Sua grande ideia era transformar suas cidades em centros de cultura, nos quais pessoas do mundo inteiro fossem ver belos quadros e ouvir poesia e música.
Ele tinha planos para Angers que iriam precisar de muita reconstrução, como aconteceria com Anjou inteira quando ela fosse finalmente arrancada das mãos dos ingleses.
Eles foram para o castelo de Angers e de lá para Tarascon, porque René também era o conde de Provença e tinha responsabilidades tanto naquela parte do país quanto em Anjou.
Por alguns meses, Margaret achou que podia esquecer tudo, exceto a alegria de estar com os pais. Mas havia tristezas no mundo que não podiam ser ignoradas.
Seu irmão Luís morrera de repente de disenteria. A notícia fora um golpe terrível, porque eles estavam planejando a ida dele para juntar-se a eles.
A família e todos da criadagem estavam de luto. René ficou cada vez mais absorvido pela pintura. Isabelle decidiu que não adiantava persuadi-lo a partir em qualquer aventura mais que inevitavelmente acabaria em desastre.
A vida continuou tranquila até que chegaram ao castelo emissários do duque de Borgonha.
Depois de uma longa consulta com o mensageiro do duque de Borgonha, René e Isabelle mandaram chamar Margaret. Aquilo a interessava e ela tinha idade bastante para estar preparada para o que deveria ser inevitável.
Era evidente que René estava constrangido. Isabelle também estava, mas menos, porque ela sempre pensava mais em termos políticos do que o marido.
- Margaret, minha filha - disse René -, como você sabe, nossos visitantes vieram a mando do nobre duque de Borgonha e ele nos submete uma certa proposta.
O coração de Margaret começou a bater depressa. Ela previa qual seria a resposta.
- O duque sugeriu uma aliança que sem dúvida seria boa para nós.
Margaret esperou que ele continuasse, mas ele hesitou. Ele não queria aquela união. Isabelle poderia dizer que seria vantajosa, e fosse como fosse eles não ousavam ofender o duque de Borgonha, mas René não queria ver a filha casada com um velho. Margaret deveria ter alguém jovem e bonito, igual a ela.
René suspirou. Não podia ser fraco. Tinha sido fraco muitas vezes.
- Ele sugere que você dê sua mão em casamento ao sobrinho dele, Carlos, conde de Nevers.
- Entendo - disse Margaret.
- Ele será um bom marido. Já provou isso à primeira esposa. Formar uma aliança assim tão estreita com a Casa de Borgonha será bom para nós, e o próprio duque deseja que o casamento se realize. Na verdade, foi ele que o propôs. Eu acho que devíamos nos alegrar com isso. Seu casamento sempre foi um assunto que preocupou sua mãe e eu. Agora, aqui está a solução.
Ele estava olhando para ela ansioso, querendo que não ficasse perturbada com a proposta. Ela sabia disso e dirigiu-lhe um sorriso tranquilizador, embora se sentisse muito angustiada.
Ela pensara muito em se casar, mas um marido de meia-idade não se encaixava em seus sonhos. Ela imaginara alguém jovem e bonito, alguém que precisasse dela como apoio, alguém como seu pai - inteligente, charmoso, cuja companhia fosse um prazer e, ao mesmo tempo, precisasse dos cuidados dela. Um conde de meia-idade, sobrinho do grande Borgonha, não se encaixava em seus sonhos.
- É realmente um casamento muito bom - disse René.
- Sim, senhor, acho que é.
- Que mulher importante você vai ser! Condessa de Nevers.
- Já sou uma princesa.
- Uma princesa... Sim, seu pai é um rei. É um título sem grande valia, mas, apesar de tudo, um rei. Eles estão pedindo um dote de cinquenta mil libras.
- O senhor jamais terá condições de pagar isso! - bradou Margaret com um toque de alívio.
- Vamos pensar nisso quando chegar o momento - disse René, com o abandono de costume.
E assim parecia que Margaret estava destinada a casar-se com o conde de Nevers.
Poucos dias haviam-se passado quando chegou um visitante ao castelo de Tarascon. Ele chegou apenas com dois criados. Vinha de longe, disse ele, e estava louco por uma cama para passar a noite.
Viajantes assim nunca eram recusados, e aquele se mostrou um cavalheiro interessante.
Era Guy de Champchevrier, um cavalheiro de Angers. Ele os distraiu, enquanto se sentavam à mesa, com suas histórias sobre a guerra na qual servira alguns anos até ser capturado e feito prisioneiro. Fora detido por um soldado inglês, Sir John Fastolf, para ser trocado por um resgate. Teriam eles ouvido falar nele? Deviam ter ouvido falar na Batalha dos Arenques, fora de Orleans. Ele fora o herói daquela pequena aventura.
- Sua única pretensão à fama - disse o visitante. -A menos que a outra tenha sido capturar Guy de Champchevrier...
Ele ficara na Inglaterra por algum tempo e estivera na corte de lá. Conversara com o rei da Inglaterra, que parecera gostar dele.
- Ele gostava de me ouvir falar sobre a França - disse ele.
- E que tipo de homem é esse rei da Inglaterra? - perguntou René.
- Um homem bom... muito religioso. Um tanto bonito, mas não como os reis Plantagenetas com pernas compridas e cabelos louros. Ele não se irrita ou blasfema, nem se mete com mulheres. Eu diria que, antes de tudo, Henrique da Inglaterra é um homem bom.
- Em breve estarão procurando uma esposa para ele - disse Isabelle.
- Ah, sim, senhora, já estão sendo preparadas as negociações. Será uma filha do rei... ou uma filha do conde de Armagnac. Um casamento francês. Será como um selo para a paz.
- Não há nada como um casamento entre dois inimigos para fazer a paz - disse René.
- No entanto, Henrique V casou-se com Katherine da França e depois disso só houve guerra - lembrou-lhes Margaret.
- Foi um casamento vergonhoso - disse a mãe dela. - O nosso pobre rei louco entregou a França, naquela época.
- Bem, nós a estamos reconquistando - disse Champchevrier -, e um casamento vai pôr um fim na guerra. Eu sei que um pintor foi enviado à corte de Armagnac com a finalidade expressa de retratar as filhas do conde. Elas são três, e dizem que o rei vai se casar com aquela que mais lhe agradar. Eu conheço bem o pintor. Um holandês chamado Hans, que é ágil no manejo de um pincel. Ele recebeu instruções no sentido de que as jovens sejam pintadas com roupas simples, tal como ele as vê, e de forma alguma Hans deverá pensar em fazer retratos bonitos, mas pintar exatamente o que vir.
- Ah, parece que o rei é sério. E vai escolher aquela de que mais gostar.
- Isso é humilhante - disse Margaret. - Se eu fosse uma das filhas do conde de Armagnac, eu me recusaria a ser retratada.
- O quê, minha senhora, e negar a sua chance de ser a rainha da Inglaterra?
- Se isso significasse ser submetida a um teste desses, sim.
- Meu senhor, o senhor tem uma filha enérgica - comentou Champchevrier. E então passou a deliciá-los com histórias da corte da Inglaterra, e foi uma noite muito agradável.
Ele partiu cedo na manhã seguinte, com muitos protestos de gratidão. Só dias depois foi que René descobriu que um retrato que ele pintara de Margaret desaparecera.
Era um encantador retrato da jovem num vestido simples, com os belos cabelos caindo pelos ombros e mostrando à perfeição aqueles tons avermelhados. Era um dos quadros favoritos de René.
A raiva passou logo, e ele achou muito divertido.
- Sabe - disse ele -, eu acho que aquele bandido do Champchevrier roubou o retrato de Margaret. Ele deve ter ficado muito impressionado com ela.
Guy de Champchevrier estava se congratulando consigo mesmo pela maneira de ter realizado o que se decidira a fazer. O rei ficaria satisfeito com ele. Era um retrato encantador; e o mais importante do que a aprovação do rei seria a aprovação de senhor de Suffolk. William de Ia Polé, duque de Suffolk, era, depois do cardeal, o homem mais poderoso do país; o grande inimigo tanto do duque como do cardeal era o duque de Gloucester, e a cada dia que passava este último ficava mais ineficiente.
Não, era o cardeal que governava o país com Suffolk nos calcanhares, e assim seria, porque embora a Inglaterra tivesse um rei e ele agora já tivesse passado dos vinte anos, não tinha sido feito para ser um governante. Era delicado demais com os inimigos; odiava ver derramamento de sangue; jamais queria prejudicar seus inimigos; gostava de ficar com seus livros e vivia fazendo orações. Não mostrava interesse algum pelas damas da corte, muitas das quais não teriam hesitado em fazer algumas travessuras com o rei, e quando ele vira algumas delas vestidas, segundo ele, de forma ousada, dera-lhes as costas, trémulo, bradando: "Que vergonha!" Sua imprecação mais forte era: "Ora essa, ora essa!" Ele teria sido melhor como padre do que como rei, pensava Champchevrier.
E enquanto cavalgava, de repente percebeu que estava sendo seguido. Mandou que os criados fossem mais depressa, e eles passaram a galopar, mas não demorou muito e foram cercados.
Champchevrier protestou, mas disseram-lhe que ele estava preso em nome do rei.
- O rei da França... - bradou Champchevrier.
- Rei da França, sim. Que outro rei poderia haver em território francês?
- Eu posso explicar - disse Champchevrier.
- Que você é um prisioneiro que fugiu. Isso nós já sabemos. É por isso que você agora está preso.
Não havia o que Champchevrier pudesse fazer, a não ser submeter-se.
Mas quando chegou à corte, conseguiu garantir a seus captores que estava executando uma missão de certo sigilo e que ele só poderia revelar ao rei em pessoa.
- Você está louco se acha que o rei irá recebê-lo - disseram-lhe.
- Vocês ficarão encrencados se se recusarem a levar minha mensagem ao rei. Eu venho a mando do rei da Inglaterra.
Depois de certos preâmbulos, a reivindicação de Champchevrier foi apresentada ao rei, e Carlos, intrigado, concordou em recebê-lo.
Champchevrier fez uma mesura acentuada diante de Carlos e pediu que pudesse falar com ele em particular, porque a natureza de sua missão era muito confidencial.
Os que cercavam o rei ficaram desconfiados, mas Carlos insistiu que ouviria o que o homem tinha a dizer, e seus guardas retiraram-se para ficar junto à porta.
- Muito bem, fale - disse Carlos.
- Majestade, estou numa missão muito particular para o meu senhor duque de Suffolk e o rei da Inglaterra. É verdade que fui preso em combate por Sir John Fastolf e que o resgate exigido não foi pago.
- Neste caso, você feriu as leis da cavalaria, e tenho de entregá-lo a Sir John.
- Deixe-me explicar, majestade. Conversei muito com o rei da Inglaterra, porque fui muitíssimo bem tratado lá. Sou natural de Anjou, e em várias ocasiões vi a filha do rei René. O senhor cardeal também a viu. Vossa Majestade deve saber que existem negociações visando a um casamento entre o rei e uma das filhas do conde de Armagnac. O duque de Gloucester quer o casamento, mas o cardeal e lorde Suffolk não acreditam que um casamento desses ajude a trazer a paz.
O rei fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Acho que concordo com isso.
- O senhor de Gloucester deseja que esse casamento aconteça porque ele é totalmente a favor de que se prolongue a guerra. Ele é um homem de raciocínio errado, majestade.
- O que você diz é correto.
- O cardeal ficou muito impressionado com Margaret de Anjou.
- Começo a entender do que se trata - disse o rei com um sorriso.
- Sim, majestade. Sendo natural de Anjou, eu conheço bem o território. Pude somar a minha opinião quanto à beleza da Sra. Margaret à do cardeal. Vossa Majestade sabe como esse assunto é delicado. Os ingleses não querem que o conde de Armagnac saiba que o rei está procurando em outros pontos. É uma desgraça o fato de que,
tendo completado minha missão, eu venha a ser preso. Na minha opinião, a única solução era submeter o caso a Vossa Majestade.
- E qual era a sua missão? - perguntou o rei.
- Apanhar um retrato da princesa Margaret, majestade. O pai dela é um ótimo pintor. Parecia quase certo que ele tivesse feito um retrato de sua bela filha.
- Você o apanhou?
- Roubei-o, majestade. Estou indo mostrá-lo ao rei da Inglaterra.
- Ele está com você? Isso provaria a sua história. Champchevrier pediu que o rei mandasse buscar o quadro na
sua bagagem.
O rei apanhou-o e examinou-o atentamente.
- Uma bela menina - disse ele. - Acho que o pai pintoua bem. Eu gosto do pai dela. E gostava muito da avó dela. E também gostei da menina. Ela causou uma ótima impressão na minha corte.
- Majestade, é ousadia minha pedir, mas a sua solidariedade e sua compreensão me tentam a fazê-lo. Vossa Majestade aprovaria um casamento entre Margaret de Anjou e Henrique da Inglaterra?
O rei ficou em silêncio por um instante. Depois, disse:
- Eu acho que isso teria agradado à avó dela.
Ele se sentiu muito triste ao pensar em Yolande. Sofrera um golpe terrível ao perdê-la. Claro que Yolande estava com idade, e ele não devia ter ficado surpreso com sua morte, mas isso não servia de consolo.
Mas que negócio era aquele? Champchevrier roubando um retrato de Margaret e sendo apanhado com ele, e Sir John Fastolf ficando irritado porque seu prisioneiro estava foragido e exigindo que ele lhe fosse entregue.
Sir John ficaria desapontado. Aquilo seria um revide pela Batalha dos Arenques, que representara tamanha desonra para os franceses. Além do mais, um casamento entre Margaret e o rei da Inglaterra poderia ser vantajoso para a França.
E como Yolande teria ficado contente! Muitas vezes ela se preocupara bastante com a falta de oportunidades de Margaret. E ali estava uma oportunidade que era deslumbrante demais para que Yolande pudesse ter sonhado com ela.
- Eu lhe dou permissão para viajar livremente pelo território da França - disse Carlos. - Você será libertado imediatamente para voltar para o rei da Inglaterra. Proteja bem o retrato de minha sobrinha. É muito bem-feito e a representa fielmente. Acho que Henrique irá gostar muito dele.
René estava aflito. Não conseguia concentrar-se na pintura e isso era um sinal inequívoco de que havia alguma coisa ocupando muito sua mente.
Era o casamento de Margaret. Na verdade, não queria que a filha se casasse com o conde de Nevers. Ela era jovem demais; e tinha um caráter demasiado dominador para um casamento daqueles. Ele sabia que Nevers iria esperar uma jovem dócil que ele pudesse moldar a seu modo e cuja única tarefa importante seria dar-lhe filhos.
Margaret era uma menina fora do comum. Ele não pensava assim só porque ela era sua filha. Ela se parecia com a mãe dela e com a mãe dele. Elas eram mulheres fortes, dominadoras - e havia sinais de que Margaret era a mesma coisa.
Por que teria Champchevrier roubado o retrato? Estava perfeitamente claro que a chegada dele ao castelo não tinha sido um acaso. Ele tivera alguma finalidade. Roubar o retrato de Margaret. Para quem? Essa era a questão.
Correu o boato de que Champchevrier fora preso, levado à presença do rei e que Carlos lhe dera permissão para seguir seu caminho, muito embora fosse de fato um prisioneiro pelo qual estava sendo pedido um resgate.
Era tudo muito misterioso, e René tinha uma ideia astuta de que a missão tinha sido conseguir sub-repticiamente um retrato de Margaret, a fim de que ninguém adivinhasse o motivo.
E ela deveria ir para Nevers.
Ele não poderia impedir o casamento. Tampouco queria impedi-lo enquanto não tivesse certeza de que seria inevitável; mas ele não podia protelar o assunto.
Nevers - e Borgonha com ele - estava ansioso por que fosse assinado um contrato, e o conde mandara avisar que seus emissários estariam chegando muito em breve.
Tenho de fazer alguma coisa, pensou René.
Então, teve uma ideia. Sua filha Yolande iria casar-se com Ferri de Vaudémont, e haveria um dote a dar a ela.
Ele precisava pensar naquilo com muito cuidado. Tudo o que ele tinha a oferecer eram promessas. Eles deviam saber como ele ficara pobre. Seu único património de valor eram as filhas.
Embora não pudesse cancelar o contrato com Nevers sem provocar a fúria da Casa de Borgonha, ele poderia incluir uma cláusula capaz de fazer com que o contrato desagradasse a alguém, e ele teria de trabalhar através dos Vaudémont. Ele concordava que os filhos de Margaret herdassem a Sicília, a Provença e Bar, excluindo quaisquer filhos que Yolande e Ferri pudessem ter. Acrescentou que se Yolande tornasse a se casar, todo filho homem do segundo casamento teria precedência aos filhos de Margaret no que se referia a Bar.
Isso foi considerado, como René sabia que seria, um insulto pelos Vaudémont, e eles protestaram. Declararam que levariam o assunto ao Parlamento. Iriam submetê-lo ao rei e ver o que ele pensava sobre uma injustiça como aquela.
Tudo ótimo, pensou René. Delonga... delonga... isso é sempre uma boa política.
- Por que o senhor fez isso?-perguntou-lhe Margaret. O senhor devia ter sabido qual seria o resultado.
- Eu fiz isso por esse motivo.
- Mas por quê, papai?
- Permita que lhe faça uma pergunta. Você quer se casar com o conde de Nevers?
Magaret refletiu calmamente.
- Tenho de me casar com alguém - disse ela.
- Mas você pode imaginar alguém mais jovem... alguém mais romântico... do que um conde de meia-idade, talvez?
- Ora, posso, é claro.
- Então não quer se casar com ele? Preferiria esperar um pouco. Quem sabe que pretendente galante poderá apresentarse? É isso, minha querida filha?
- É, papai. Não quero me casar com o conde de Nevers.
- Foi o que pensei - disse René. - Agora, vamos nos acomodar e esperar.
MARGARET E HENRIQUE
O rei estava cavalgando de St. Albans para Westminster. Ele aguardava com impaciência a volta de Champchevrier. A ideia daquela jovem cujo pai ficara pobre devido a uma série de fracassos o agradava. Henrique sempre lamentava os fracassos. Talvez fosse porque às vezes ele achasse que ele mesmo era um fracasso. Muitas vezes ele desejava que o destino não o tivesse transformado num rei. Às vezes imaginava o que teria sido se não tivesse nascido numa família real. Poderia ter entrado para um mosteiro onde pudesse passar a vida ilustrando manuscritos, rezando, trabalhando para os pobres. Teria ficado contente fazendo isso e o teria feito bem.
Mas ele era filho de um rei, tornara-se um rei, e como tal estava sobrecarregado de responsabilidades que não podia suportar.
Ele não fora formado para ser rei - ainda mais um rei Plantageneta. Ele não se encaixava entre aqueles louros gigantes de pernas compridas que tinham apenas de agitar uma bandeira para fazer com que homens em quantidade fossem juntar-se a eles. Tinham imposto sua vontade de ferro ao povo ou a maioria fizera isso - e o povo a aceitara, quase sempre. Eduardo Pernas Longas; Eduardo III; seu pai, o grande Henrique V. Foram todos reis dos quais a Inglaterra podia orgulhar-se.
E então viera Henrique, rei aos nove meses de idade, cercado por homens ambiciosos, todos disputando o poder. Não, ele era diferente. Seus ancestrais, em sua maior
parte, tinham sido homens vigorosos. Espalhara seus bastardos pelo país inteiro. Mas ele era diferente. Acreditava na castidade e na santidade dos votos do matrimónio. Ficava muitíssimo embaraçado quando mulheres se aproximavam procurando tentá-lo, como costumavam fazer. Elas agora não faziam tanto isso porque sabiam que era inútil; mas sempre haveria mulheres que ficariam encantadas por se tornarem amantes do rei. Nunca, dizia ele, e afastava-se enojado.
Lembrava-se de uma ocasião em que alguns de seus cortesãos tinham providenciado que dançarinas se apresentassem para ele e elas se aproximaram dele, os seios nus. Ele ficara tão horrorizado que se retirara rapidamente da sala murmurando o expletivo mais próximo de um palavrão de que era capaz: "Ora essa, ora essa!" E então, "Que vergonha! Vocês são os culpados, por trazerem mulheres assim à minha presença." E se recusara a olhar para elas.
Eram necessários incidentes como aquele para assegurar aos que o cercavam que na verdade ele era um homem profundamente religioso, de uma pureza autêntica.
Muito elogiável num padre. Mas num rei!?
Tudo o que queria era viver tranquilo, numa casa tranquila; não queria mais saber do conflito na França. Será que ele queria ser o rei da França? Não queria nem mesmo ser o rei da Inglaterra! Seu tio-avô, o cardeal Beaufort, garantira-lhe que com a morte de seu tio Bedford as esperanças de manter o controle sobre a França tinham acabado. Tudo mudara desde os dias gloriosos de Harfleur e Agincourt. Na época, a Inglaterra tivera um grande rei guerreiro, e se ele tivesse vivido não havia dúvida de que França e Inglaterra estariam, àquela altura, formando um só país. Mas ele morrera, e Joana dArc se apresentara e modificara o rumo da guerra. Ela agora estava morta... queimada como se fosse uma feiticeira, e ele ainda estava horrorizado com a lembrança daquele ato. Ele a vira uma vez, quando era menino, e olhara para ela através de um buraco na parede e vira o interior da cela onde ela estava; jamais se esquecera dela. Estava certo, agora, de que ela fora enviada por Deus. Era um sinal de que Deus queria que a França continuasse nas mãos dos franceses. Henrique também queria isso.
O grande cardeal em quem ele confiava dissera que estava na hora de fazer a paz com os franceses - uma paz honrada, antes que tivessem perdido demais.
Henrique concordara sinceramente com aquilo. Outros também haviam concordado. Havia uma exceção importante: o tio de Henrique, Gloucester. Henrique não gostava do tio Gloucester e tinha medo dele. Ele não passava de um criador de encrencas, e a mulher dele agora estava presa em um dos castelos do país porque se envolvera em feitiçaria numa tentativa de destruir a vida de Henrique.
Qual fora o motivo? Para que Gloucester pudesse ser rei, já que era o próximo da fila.
Não, Henrique jamais confiaria em Gloucester. Não o queria perto dele. Dera ordens para que tivesse guardas extras e se algum dia seu tio Gloucester tentasse se aproximar dele deveriam vigiá-lo com o máximo de cuidado.
Fora o cardeal que sugerira que um casamento com Margaret de Anjou poderia ser bom. Era necessário um casamento francês. O rei da França não estava inclinado a oferecer uma de suas filhas.
- Houve época em que poderíamos ter insistido - disse o cardeal -, mas os tempos mudaram, e quanto mais cedo aceitarmos isso, melhor. Margaret é sobrinha da rainha da França; é uma princesa, mesmo que René seja rei de Nápoles apenas no título. Ela é jovem e poderia ser educada. Parece-me, majestade, que Margaret seria uma proposta muito boa.
Henrique concordara, como invariavelmente fazia, com o cardeal, e o fato de saber que seu tio Gloucester seria contra o casamento tornava-o duplamente atraente.
E, por causa disso, ele enviara Champchevrier à França para trazer-lhe, em segredo, um retrato de Margaret, porque ainda não deveria ser revelado que se estava pensando num casamento. Queria ter a certeza de que sua esposa em perspectiva era de fato uma jovem pura. Não queria nenhuma mulher descaradamente voluptuosa, mas gostaria de uma que fosse bonita; ele gostava muito da beleza, em geral na pintura, na poesia e na música, de modo que sua esposa deveria atender a seus gostos estéticos. Pretendia viver com ela como um bom marido, e se ela fosse uma boa esposa para ele, os dois ficariam fiéis até que a morte os separasse, e no ínterim dariam ao país o herdeiro necessário.
O duque de Gloucester era a favor de um casamento com uma das filhas do conde de Armagnac. Naquela época, Armagnac não mantinha relações de amizade com o rei da França, e a última coisa que Gloucester queria era a paz com a França. Henrique não estava certo de que Gloucester queria que o conflito continuasse porque se considerava um grande guerreiro como seu irmão Henrique V e tinha sonhos de levar a coroa francesa para a Inglaterra, ou se queria o casamento porque o cardeal era contra. Mas qualquer casamento que Gloucester arranjasse para ele jamais poderia agradar a Henrique. Mas ele, diplomaticamente, despachara Hans para a corte de Armagnac, dizendo-lhe que não havia pressa, e ao mesmo tempo mandara Champchevrier em segredo e a toda velocidade.
O cardeal havia visto Margaret e conversado com ela e informara que não só era uma jovem bonita, mas também inteligente.
Quando Champchevrier voltasse, seguiria primeiro para Westminster, e Henrique queria estar lá quando ele chegasse, para evitar demoras. Era por isso que naquele momento ele estava a caminho.
Quando se aproximou da capital, foi reconhecido e saudado por poucas pessoas. Elas não estavam loucamente entusiasmadas, porque ele não era homem que pudesse inspirar aquela admiração alucinada que elas tinham dedicado a alguns de seus ancestrais, e de qualquer forma era sempre difícil os vivos ganharem numa comparação com os mortos.
Entrando em Cripplegate, alguma coisa espetada numa estaca chamou-lhe a atenção. Olhou para ela intrigado, sem identificá-la. Depois, voltou-se para um de seus assistentes e disse:
- O que é aquela coisa repugnante?
- Majestade, é o que restou de algum desgraçado que foi punido por traição a Vossa Majestade - foi a resposta.
Henrique cobriu os olhos com as mãos.
- Isso me repugna - disse ele. - Mandem tirá-lo de lá. Não me agrada o fato de meus súditos serem tratados dessa maneira por minha causa.
- Esse homem era um traidor, majestade. Ficou provado que era.
- Os traidores talvez devam morrer, mas não desse jeito. Mande tirar imediatamente aquela carne em decomposição. Nunca mais quero ver coisa igual.
Suas ordens foram obedecidas, mas ele sabia que os homens estavam se perguntando: "Que tipo de rei é esse?"
Ele continuou em direção a Westminster. Champchevrier ainda não tinha chegado. Henrique se instalou para esperar com paciência.
Ele tinha muitas coisas para absorverem seu interesse na época. Estava profundamente envolvido em planos de fundar faculdades em Eton e Cambridge. Um dos maiores prazeres de sua vida era a instrução, e ele queria fazer o possível para estimulála. O planejamento daquelas faculdades o agradava mais do que qualquer outra coisa naquele momento, e ele queria fervorosamente poder dedicar mais tempo a projetos daquela natureza, em vez de à preocupação contínua de prosseguir com a guerra na França. Ele via com perfeita nitidez que nada de bom resultaria daquela guerra. Ela existia havia cem anos e nada ainda fora resolvido. Era como uma gangorra: primeiro a Inglaterra estava em ascensão e depois desabava no chão; a França subia e depois descia... Continuaria assim e não significava coisa alguma, a não ser derramamento de sangue para os homens que iam para a França e uma tributação excessiva para aqueles que ficavam na Inglaterra.
Não havia alegria na guerra. Ele gostaria de acabar com ela assim que fosse possível, e aquele casamento francês seria um passo naquela direção.
Ele ficou encantado quando finalmente Champchevrier chegou a Westminster com o retrato. Ele o roubara do castelo de Tarascon, explicou ele, onde, numa jogada estratégica, fazendose passar por um viajante, ele passara uma noite.
Henrique agarrou o retrato, ansioso. Um par de olhos azuis olhava para ele num rosto em forma de coração; a testa era alta, indicando inteligência, a expressão era serena e os cabelos caíam-lhe pelos ombros - louros, com toques de vermelho.
- Vossa Majestade gosta do quadro? - perguntou Champchevrier.
- Por São João, gosto, sim.
Aquilo era o mais perto que Henrique podia chegar de uma imprecação, mas significava que ele gostava do que via - gostava muito.
O cardeal Beaufort seguia a cavalo para Westminster. Tinha assuntos urgentes para tratar com o rei, mas antes de procurar Henrique ele queria sondar o conde de Suffolk, porque o cardeal escolhera o conde como o mais adequado dos nobres ingleses para realizar as negociações que eles tinham pela frente.
O cardeal mostrava-se pensativo. Estava chegando perto do fim de uma vida plena e muito satisfatória. Nascido filho bastardo de John de Gaunt e Catherine Swynford, ele fora legitimado pelo pai e desfrutara de muitas honrarias. Tivera um importante papel no governo do país desde que seu meio-irmão Henrique IV tomara a coroa do pobre e ineficaz Ricardo e assim instalara a Casa de Lancaster como a casa governante.
Em determinada época, parecia que o sonho de conquistar a coroa da França seria realizado. E teria sido, se Henrique V tivesse vivido. Henrique tinha um génio para a guerra, e quando se casou com a princesa francesa ficou combinado que ele receberia o trono em caso de morte do louco Carlos; parecera que a guerra estava praticamente acabada. Mas a mudança acontece depressa e de forma inesperada, especialmente na história de países em guerra. Quem teria acreditado, vinte anos atrás, que a coroa da França deveria ser salva para os franceses por uma jovem camponesa e que Carlos, o delfim, indolente, sem ligar para nada, exceto para o próprio prazer, apático, indiferente ao destino de seu país, iria tornar-se um dos mais astutos reis que a França já conhecera?
Havia uma verdade que ficara aparente para o cardeal durante muito tempo: a Inglaterra perdera a batalha para a França e quanto mais cedo isso fosse entendido e os melhores termos escolhidos, melhor.
Mas, sem dúvida, havia pontos de vista divergentes, e o duque de Gloucester, apesar de tudo o que acontecera, ainda era uma força a ser levada em consideração.
Gloucester não queria a paz com a França. Ele ainda sonhava que iria vencer batalhas espetaculares como a de Agincourt. Acreditava realmente que era um génio militar como o irmão. Nem Bedford fora assim, apesar de ter sido um grande soldado e também um administrador sensato. Não havia quem se comparasse a Henrique V Esse tipo de pessoa só aparecia uma vez num século. E Gloucester achava que poderia realizar o que o irmão conseguira! Considerava aquilo desprezível.
Era uma pena Gloucester não ter sido declarado culpado de praticar feitiçaria quando sua mulher fora condenada.
Mas, por algum motivo, Gloucester era benquisto pelo povo. Devia ter alguma qualidade carismática. Muitos dos Plantagenetas a tinham - era um dom de família, embora falhasse com alguns. Apesar de toda a sua excelência, Bedford nunca o tivera. Henrique V tivera uma dose dupla. E por estranho que parecesse, Gloucester, que tinha um génio para apoiar causas perdidas e transformava em fracasso tudo em que se metia, que se casara com uma mulher muito abaixo de seu nível social, que agora estava acusada de feitiçaria... tudo isso, e o povo ainda mantinha uma certa simpatia para com ele. Por isso, apesar de tudo, ainda era preciso levar Gloucester em consideração.
E Gloucester queria continuar aquela guerra desastrosa.
Portanto, deveria haver um certo segredo sobre aqueles entendimentos para o casamento de Henrique. Uma princesa de Anjou era o melhor que eles podiam esperar conseguir. Não adiantava atormentar Carlos sobre uma de suas filhas. Infelizmente, a Inglaterra já não estava em condições de fazer exigências. Um casamento com Armagnac seria o equivalente a um compromisso de continuar com a guerra, de modo que isso era a última coisa de que eles precisavam. Carlos poderia ficar satisfeito por permitir o casamento da sobrinha - ela era, na verdade, sobrinha da mulher dele - e poderia achar que era um casamento muito bom para Margaret de Anjou, e estava certo. Ela iria ser a rainha da Inglaterra, e se isso não fosse uma perspectiva impressionante para a filha mais nova de um homem empobrecido que era rei de Nápoles apenas no título, Beaufort não sabia o que seria.
Ele escolhera o homem que seria o principal embaixador junto à corte de Anjou e falaria com ele antes de procurar o rei. Na verdade, ele achava que os dois deveriam ir juntos, sem demora, falar com o rei, a fim de que as negociações pudessem ser postas em prática imediatamente.
Quando o cardeal chegou a Westminster, seguiu logo para os aposentos do conde de Suffolk antes de procurar uma audiência com o rei.
Suffolk gostou muito de vê-lo, enquanto ao mesmo tempo se perguntava se aquilo poderia significar-lhe problemas sérios ou alguma tarefa desagradável. Ele e o cardeal trabalhavam em estreita colaboração; e os dois eram inimigos figadais de Gloucester.
William de Ia Polé tornara-se conde de Suffolk quando seu irmão mais velho morrera em Agincourt. Tivera uma carreira militar de destaque, e depois da morte de Henrique V servira sob o comando do duque de Bedford. Estivera com Salisbury no cerco de Orleans. Tinha visto a misteriosa morte de Salisbury e a chegada da Donzela.
Ele sabia, como o cardeal também, que aquelas esperanças inglesas que pareciam tão auspiciosas antes do cerco de Orleans tinham se tornado deprimentemente ténues. A Inglaterra deveria sair da França e tentar manter o maior número possível das antigas possessões. Só os estouvados como Gloucester discordavam disso.
Desde que se casara, ele formara uma ligação com a família Beaufort, porque sua mulher era viúva do conde de Salisbury e tinha sido Alice Chaucer quando solteira. Catherine Swynford - a mãe dos Beaufort - tivera uma irmã, Filipa, que se casara com o poeta Geoffrey Chaucer, de modo que havia laços de família.
Sua longa carreira militar fizera com que ele sentisse com muita intensidade que a paz era necessária, e ele e o cardeal tinham discutido muitas vezes a melhor maneira de consegui-la.
Agora o cardeal pensava ter encontrado um meio.
- Um casamento com Margaret de Anjou poderia ser um degrau para a paz - disse ele a Suffolk depois de os dois terem trocado as gentilezas de costume.
- E o rei vai concordar com o casamento?
- Ele o quer. Ele sabe que terá de se casar mais cedo ou mais tarde. É seu dever arranjar um herdeiro, e embora pouco se interesse por mulheres, ele cumprirá com seu dever. Podemos contar com isso. Na verdade, ele enviou um mensageiro secreto à França para procurar um retrato dela e está encantado com o que vê.
- É sabido que os retratos de princesas tendem a favorecê-las.
- Ora, que importância teria isso? Ele já estaria quase apaixonado por ela antes da sua chegada, e isso não pode fazer mal algum. Além do mais, eu a vi. Achei-a bonita, inteligente e vivaz. Na verdade, tudo aquilo de que Henrique precisa numa esposa.
- E naturalmente há as condições do casamento a serem combinadas.
- O que precisamos é de um tratado de paz. Quero que esse casamento signifique que nós abandonamos a nossa reivindicação da coroa da França.
- E você acha que o povo vai aceitar isso?
-: Ele tem de ser convencido de que é a melhor solução.
- Ele está inebriado por vitórias como as de Agincourt e Verneuil. Ele não compreende por que não continuamos a proporcionar-lhe momentos gloriosos como aqueles dois.
- O povo vai aceitar o que tiver de ser feito. Dê a ele um casamento real e ele ficará feliz.
- Ele não gosta dos franceses.
- Ele adorava Katherine de Valois.
- Ela veio em circunstâncias muito diferentes. Quando ela se casou com Henrique, foi na vitória. O povo achava que ele tinha conquistado a França e estava aceitando a princesa francesa para dar uma solução feliz para os dois países.
- O que se passa com você, William? Até parece que você criaria obstáculos para esse casamento.
Suffolk ficou em silêncio. Depois, disse:
- Tenho a impressão de que você decidiu que deverei ir falar com Margaret de Anjou como representante do rei.
- Quem seria mais indicado?
- Eu sabia. Era por isso que você queria falar comigo.
- Você é um homem de maturidade e bom senso, William. Para mim, está claro que é você quem deve ir a Anjou para negociar com o rei da França, porque será esse o significado do tratado.
- Você sabe, cardeal, que o rei da França é um homem astuto. Não é com o antigo delfim que temos de lidar. Sempre que penso em Carlos da França, eu digo a mim mesmo: "Ali está um milagre de Joana dArc."
- É, Carlos mudou. Essas mudanças acontecem. Eu me lembro de meu sobrinho, Henrique V., um jovem devasso que nos enchia a todos de preocupação e que então, assim que a coroa foi colocada em sua cabeça, se tornou o herói de Agincourt.
- Terei de barganhar com o rei da França.
- Não há dúvida de que a coisa chegará a esse ponto.
- E nós teremos de sacrificar alguma coisa em troca de Margaret. E será sob a forma de terras, castelos... pode ter certeza.
- Mas é claro.
- E o povo não vai gostar do tipo de sacrifício que Carlos vai pedir.
- Mesmo assim, o sacrifício terá de ser feito.
- E o povo vai culpar quem o provocou. Não o rei, não o cardeal, mas o embaixador Suffolk. Posso imaginar o que Gloucester vai fazer com base nisso.
- Então é isso que está detendo você. Suffolk ficou calado por alguns instantes.
- Sinto que o povo não vai gostar de um casamento francês, e quando souber que tivemos de sacrificar território conquistado em combate, vai pôr a culpa naquele que fez essas concessões, ou seja, o embaixador do rei, que se chama Suffolk... se ele concordar.
O cardeal chegou mais para perto de Suffolk.
- Mas já pensou o quanto a nova rainha ficará grata ao homem que a trouxe para a Inglaterra e providenciou com muita habilidade os detalhes necessários para o casamento dela? O homem que cair nas graças da rainha será realmente afortunado. O rei não tem um caráter muito forte, certo? Posso vê-lo apoiandose na sua rainha, e aí quem estiver nas graças dela estará numa posição privilegiada.
Suffolk ficou pensativo. Talvez pudesse acontecer algo parecido com aquilo, mas havia condições em demasia. Não, ele preferiria não ser envolvido em qualquer coisa daquele género. Estava envelhecendo. Completaria quarenta e oito anos em outubro. Não que quisesse retirar-se da política, mas pelo menos não queria envolver-se com coisa alguma que pudesse ser incómoda ou mesmo perigosa.
- Eu preferiria não ser o embaixador do rei desta vez-disse ele.
O cardeal deu de ombros.
Poucos dias depois, o rei mandou chamar Suffolk. Queria que ele desempenhasse uma missão delicada, e Henrique estava certo de que ele era o melhor homem para isso.
Suffolk nem precisou perguntar. Sabia qual era a natureza da ordem. Ele devia ir à França, chefiando uma embaixada para negociar os termos do casamento do rei com Margaret de Anjou.
Em um dia de março com muito vento a embaixada desembarcou em Harfleur. Ainda constrangido, Suffolk congratulou-se consigo mesmo por ter pelo menos a garantia do rei de que nenhuma acusação seria apresentada contra ele caso corresse perigo, o que significava que ele não deveria ser acusado se aquela manobra fosse mal recebida.
Eles juntaram-se ao duque dOrleans em Blois, e de lá navegaram pelo Loire até Tours, onde estava a corte, e por fim Suffolk foi apresentado a Carlos em seu castelo de Montilsles-Tours.
Suffolk ficou estupefato com a mudança do rei da França. Ali estava um monarca astuto e resoluto, e o impressionante era que a mudança fora provocada por mulheres. Primeiro, a Donzela; e depois, a esposa e a sogra; e agora, dizia-se, Agnès Sorel.
Era evidente que o novo Carlos seria difícil nas negociações. Ele não iria dar a Henrique uma de suas filhas, o que poderia ter feito com toda facilidade; mas Margaret, dava ele a entender, era suficiente para Henrique. Era uma princesa francesa, e os franceses não estavam mais na situação em que se encontravam quando Katherine, irmã do rei atual, fora dada a Henrique V.
Carlos não estava inclinado a concordar com um tratado de paz. Por que concordaria, com tudo indo a seu favor? Claro que estaria de acordo com uma trégua; mas deu a entender que a única coisa que poderia trazer a paz era a Inglaterra desistir de sua reivindicação da coroa da França.
René de Anjou manifestou sua dúvida. Poderia ele dar a filha a uma pessoa que usurpara seus domínios hereditários de Anjou e Maine?
Aquilo era um indício das condições que seriam exigidas.
Suffolk ficou aliviado por ter podido fugir da conferência e voltar para perto de sua mulher. Estava satisfeito por ter levado Alice com ele, porque só podia confidenciar com ela.
- Não estou gostando disso - disse ele. - Posso ver o que vai acontecer. Os franceses farão grandes exigências, e o rei irá aceitá-las, porque ele quer a paz e Margaret. E mais tarde, quando se perceber o que tivemos de pagar por ela, o povo irá me culpar.
- Você tem a garantia do rei de que nenhuma culpa será atribuída a você.
- As garantias do rei não contam muito em assuntos como este.
- O que você pode fazer?
- Não posso concordar em abrir mão de Anjou e Maine, claro. Não sei se uma trégua será aceitável quando se exigiam termos de paz. Tenho conseguido muito pouca vantagem para nós.
- E qual vai ser o dote de Margaret?
- Quanto a isso, também, eles parecem dar um valor elevado a essa jovem que só recentemente adquiriu a condição de princesa, e mesmo assim o pai dela nada tem além de um título sem valor.
- Infelizmente - disse Alice - isso mostra o quanto a Inglaterra caiu, quando você se lembra que faz só pouco mais de dois anos que era a Inglaterra quem dava as cartas.
- O que nos leva de volta à Donzela de Orleans, que provocou a mudança. Carlos é um homem diferente do delfim.
- Dizem que foi Agnès Sorel que o modificou.
- É impressionante o fato de as mulheres terem um efeito desses sobre os homens.
- Isso acontece muito - retorquiu Alice -, embora mais raramente de forma tão espetacular. Talvez por Carlos ser o rei isso fique tão evidente. Mas o que você vai fazer, William?
- Só vejo um caminho. Voltarei para casa e submeterei as propostas ao conselho.
E assim eles viajaram para a costa e navegaram para a Inglaterra, Suffolk estava diante do Parlamento. Ele já transmitira a proposta ao rei e ao cardeal. Os franceses estavam pedindo muito, mas o rei parecia gostar cada vez mais da ideia de um casamento com Margaret de Anjou, e o cardeal considerava aquilo importante para a paz, e embora as exigências de Maine e Anjou os tivessem deixado perplexos a princípio, eles estavam indecisos e chegando à conclusão de que era aceitável qualquer coisa que levasse ao casamento.
Para piorar a situação, o dote de Margaret seriam as ilhas de Majorca e Minorca, que de nada valiam, porque embora René alegasse tê-las herdado da mãe, Yolande não tinha jurisdição alguma sobre elas. Na verdade, tudo o que René tinha a oferecer eram títulos. Raramente poderia ter havido um homem que tivesse tantos títulos e tão poucas possessões.
O duque de Gloucester levantou-se e, em voz alta, foi contrário ao casamento.
Era humilhante, disse ele, o rei da Inglaterra pensar em casar-se com uma mulher sem possessões cujo título de princesa era suspeito, que exigia tudo e não dava dote algum. Ele e seu partido - que era muito importante - opunham-se à união. Ele faria tudo o que estivesse ao seu alcance para impedi-lo.
Aquilo era ceder aos franceses; era fazer o jogo de Carlos. Eles podiam ter a certeza de que os inimigos estavam rindo deles. Esqueçam-se desse casamento com Anjou. Que o rei aceite uma das filhas do conde de Armagnac e então que continuem com a guerra e reconquistem tudo o que perderam devido à fraca política que tinham seguido desde a morte de seu irmão, o duque de Bedford.
O cardeal levantou-se para opor-se a Gloucester. A inimizade entre eles, que durava dois anos, estava mais forte do que nunca.
O cardeal fez um apelo pela paz. O país precisava de paz. Aqueles que pensavam o contrário não sabiam o que se passava na França.
Gloucester se levantou de um salto. Ele era um soldado, lembrou aos presentes, um homem que participara de uma campanha atrás da outra.
- com grande fracasso - comentou o cardeal. Gloucester, de rosto rubro, quase espumando de raiva, dirigiu-se com veemência ao tio:
- E o senhor, eminência, o senhor, homem da Igreja, o que sabe sobre campanhas militares?
- Eu sei, meu senhor, se elas são bem-sucedidas ou não, e nós não temos como suportar mais fracassos. O povo não vai concordar em continuar a ser tributado para uma guerra que não nos traz vantagem alguma.
- Meu irmão, o rei...
- Seu irmão, o rei, foi um dos generais mais vitoriosos que o mundo já conheceu. Infelizmente, ele já morreu e suas vitórias foram com ele. Os tempos mudaram. Os franceses estão em ascensão. Continuar uma guerra na França, com todas as dificuldades de transporte e suprimento que lhe são inerentes, é impossível. Nós precisamos de paz. E se os franceses querem apenas nos dar uma trégua, vamos aceitá-la.
O Parlamento se acostumara a ouvir o cardeal. Os falecidos rei e Bedford tinham confiado em seu bom senso. Ele era reconhecido como um homem que servia bem à Coroa, enquanto Gloucester, por mais benquisto que fosse em alguns setores, era famoso pela impetuosidade.
E estava evidente que o rei queria o casamento.
O Parlamento foi, portanto, convencido de que o casamento com Anjou seria bom para o país e ficou acordado que os termos para uma trégua seriam aceitos e a questão de Maine e Anjou deveria ficar em aberto para ser discutida em data posterior. E assim Suffolk foi mandado de volta à França para providenciar o casamento por procuração.
Pelos serviços naquele caso ele foi agraciado com o título de marquês.
Theophanie estava num estado que ficava entre o êxtase e a tristeza. Ela iria perder sua pupila, mas a jovem, que tinha tão pouco em possessões a oferecer a um marido, faria um casamento brilhante, porque embora fosse casar-se com o inimigo seria uma rainha, e ainda mais uma rainha de verdade. Não como o pai e a mãe, que se intitulavam rei e rainha e não tinham país algum para governar.
Ah, ela estava orgulhosa da sua Margaret. Assim teria ficado a avó, a Sra. Yolande, se pudesse vê-la agora.
Margaret não parecia muito impressionada.
- Você não parece querer ser a rainha da Inglaterra - reclamou Theophanie.
- A Inglaterra tem sido nossa inimiga, Theophanie. Já se esqueceu de como costumávamos ficar vigilantes à espera dos soldados e como todo mundo ficava alarmado quando eles estavam por perto?
- Jovens como você nasceram para pôr um fim nessas guerras. Eu sempre imaginei que você fazia mais, com a sua beleza, do que os homens com seus canhões e suas bestas.
- Você se refere a alianças. Eu sou apenas uma peça no jogo, Theophanie.
- Você é mais do que isso. É igual à sua mãe e à sua avó. Você será uma dessas mulheres que governam. Eu sempre vi isso em você.
- Vai ser estranho estar em outro país, longe de todos vocês. Theophanie estava triste e ergueu a mão para afastar uma lágrima com uma certa impaciência.
- Conosco, as amas, é sempre a mesma coisa - disse ela.
- Temos os nossos bebés e depois eles são roubados da gente. Reis, rainhas e nobres perdem as filhas quando elas ficam em condições de se casar. Só os pobres podem manter os filhos com eles. Você terá de me prometer que nunca se esquecerá da velha Theophanie e do que ela lhe ensinou quando for rainha da Inglaterra.
Pobre Theophanie, sentia muito a separação. Margaret também. Aquilo era o fim de sua infância. Ela estava indo para o novo país e um marido. Ela pensava muito a respeito de Henrique.
Os pais deveriam escoltá-la até Nancy, onde a cerimónia por procuração teria lugar. O rei da França compareceria, porque o casamento dela era importante para a França. Ela sabia disso. Tornaria a ver tia Marie e Agnès.
O pai falou com ela sobre o casamento enquanto pintava, porque não queria interromper o retrato em que estava trabalhando.
- Ele nunca parece a mesma coisa quando se volta a trabalhar nele - disse ele. - Quando as pessoas produzem obras de arte, deveriam viver com elas, ficar com elas noite e dia, até concluí-las.
- Querido pai - replicou ela -, eu lamento que meu casamento o esteja afastando do trabalho que o senhor adora.
- Eu estava brincando. Claro que quero ir ao casamento de minha filha. Você percebe o que você está fazendo pela França... por todos nós, com esse casamento?
- Percebo - respondeu ela.
- Você estará num cargo de responsabilidade. Poderá guiar o rei a agir em favor do seu país.
- O senhor acha que um rei da Inglaterra seria levado a agir contra seu próprio país em favor da França?
- Não é bem assim, é claro, nem poderíamos esperar que ele fizesse isso. Eu me refiro é a uma discreta persuasão, hein?, quando surgir algum assunto.
- Eu terei de esperar para ver quais as questões que surgem.
- Eu sei que você irá encantá-lo. E ele deve querer muito esse casamento para pensar em abrir mão de Maine e Anjou por ele.
Poucos dias depois, o pai de Margaret ficou agitado. Desde o noivado dela, ele a tomara como sua confidente. Era como se já a considerasse rainha da Inglaterra, e se ela ia trabalhar para o bem da França tinha de estar a par dos assuntos de Estado.
- Os Vaudémont vão comparecer ao casamento e estão dizendo que já está na hora de sua irmã Yolande e Ferri se casarem. Yolande é mais velha do que você, e no entanto você será uma mulher casada. Eles querem um casamento duplo.
- Vai ser maravilhoso tornar a ver a Yolande.
- Margaret, eu sempre pretendi que esse casamento nunca se realizasse. Yolande... minha filha... casar-se com o meu grande inimigo.
- Mas isso foi uma condição para a paz, papai. O senhor concordou com esse casamento.
- Porque fui obrigado.
- Mas foi por isso que o senhor foi solto.
- Yolande era apenas uma criança na época. Eu estava determinado a fazer com que o casamento nunca se realizasse. Ainda estou. E agora os Vaudémont comparecerão ao seu casamento e estão fazendo planos para Ferri de Vaudémont casar-se com Yolande ao mesmo tempo.
Margaret ficou assombrada. Mostrou-se muito aflita quando viu a expressão de determinação no rosto do pai e começou a imaginar se ele não estava planejando algum ato extremo para evitar o casamento de Yolande e Ferri de Vaudémont.
Margaret se sentia triste ao se despedir de Theophanie, que estava em lágrimas sabendo que era muito improvável que as duas algum dia voltassem a se encontrar, e com os pais partiu na viagem para Nancy.
A vizinhança toda estava en fête. Aquele seria o casamento mais grandioso que eles tinham visto havia muito tempo. Era verdade que o noivo não estaria presente e haveria um nobre de alto nível para representá-lo, mas o rei e toda a corte estariam lá, entre eles a famosa beldade e conselheira do rei, Agnès Sorel, à qual, segundo se dizia, ele amava mais do que à própria vida.
Haveria festividades que durariam dias, e os comerciantes da redondeza haviam lucrado com todo o trabalho que aquilo lhes proporcionara.
Multidões convergiam para a cidade de Nancy, vindas de todas as partes da França, e o público chegou até a ovacionar a delegação inglesa.
Quando Margaret apareceu cavalgando entre o pai e a mãe, o povo ficou louco de alegria. "Vida longa para a bela noiva!", gritavam. Margaret ficou emocionada pela primeira vez com a aclamação do povo. Foi então que percebeu a importância da ocasião. Ela estava indo para um novo país como rainha, e em silêncio jurou que jamais se esqueceria de sua terra natal.
O rei e a rainha já estavam no castelo. Margaret caiu de joelhos e foi erguida pelo rei e calorosamente beijada. Sua tia Marie também irradiava afeto, e lá estava Agnès em pé ao lado do rei, estonteante como sempre com aquela sua beleza extraordinária.
Eles estavam transformando aquela ocasião num fato muito importante.
Então, ela foi apresentada à embaixada inglesa, chefiada por Suffolk. Ele a apresentou à esposa, de quem ela gostou de imediato. E também de Suffolk. Ele irradiava bondade e tinha um ar muito protetor.
O rei disse a ela que justas e todo tipo de entretenimento estavam sendo planejados para celebrar as núpcias.
- Minha querida sobrinha - disse ele -, esta será uma ocasião que você jamais esquecerá.
- Suponho, majestade - disse Margaret -, que pouca gente esquece o dia de seu casamento.
- Este é apenas um casamento por procuração, e haverá a cerimónia oficial quando você chegar à Inglaterra. Quero que se lembre desta como a sua última cerimónia como uma princesa da França.
Ele pôs a mão sobre a dela e deu-lhe uma palmadinha. Ela sentiu que ele estava muito satisfeito com o casamento.
Foi um grande prazer tornar a ver Yolande.
No início, as irmãs não se reconheceram, o que era natural, já que devia fazer doze anos desde que tinham estado juntas pela última vez. As duas se lembravam, embora vagamente, das convulsões sociais em suas vidas que, embora elas fossem crianças, tinham deixado uma profunda impressão. Havia a viagem à França, feita quando Margaret estava com dois anos e Yolande com três, .para irem com a mãe fazer um apelo ao rei. As duas se lembravam de que pouco depois Yolande fora levada embora para morar com os Vaudémont.
- E agora nós duas vamos casar - disse Yolande.
- Você também? - perguntou Margaret.
- Ferri está decidido. Ele disse que já esperamos demais. Toda vez que isso é sugerido, nosso pai apresenta alguma desculpa para que ele não se realize.
- Então você quer se casar, Yolande?
- Mas é claro - disse Yolande. - Ferri e eu crescemos juntos. Sempre fomos bons amigos. com você é diferente, Margaret. Nunca viu seu noivo.
- A marquesa de Suffolk fala muito bem dele. Diz que é bonito, mas de uma forma delicada... se é que você sabe o que isso significa. Na verdade, tudo a respeito dele é delicado. Ele é gentil e odeia ser cruel com alguém, mesmo com os inimigos, e é um grande erudito e se interessa por poesia, pintura e música.
- Isso deve ser bom para você - disse Yolande -, e se você se parecer um pouquinho com nossa mãe e com vovó... e eu desconfio que se parece... terá condições de dizer a ele o que ele deve fazer.
- Quanto mais falo sobre ele, mais apreensiva me sinto. E como é Ferri?
- Ferri é ousado e romântico, e eu não iria querer que ele fosse de outro jeito. Tenho sorte de não estar indo para um homem que não conheço.
- Mas eu acho que já conheço Henrique por intermédio de Alice.
- Quem é Alice?
- Ela é a marquesa. Eu a chamo de Alice. Ela me pediu isso. É uma mulher muito agradável. Gostei dela e acho que ela também gostou de mim.
- A maioria das pessoas estaria pronta a gostar de sua rainha.
- Não tenho dúvidas, mas sinto amizade por Alice. Ela é diferente de todas as mulheres que conheci. Talvez seja porque não descenda inteiramente da nobreza. O pai, disse-me ela, era Thomas Chaucer, filho mais velho de Geoffrey Chaucer, que ficou conhecido pelos seus escritos. Ele casou-se com uma irmã de Catherine Swynford, que foi a terceira esposa de John de Gaunt. Você percebe a ligação.
- Ah, ela subiu para a nobreza.
- O pai é um homem muito rico. Foi presidente da Câmara dos Comuns, e o marquês de Suffolk é o terceiro marido dela.
- Quanta coisa você sabe a respeito dela!
- Nós conversamos e informações foram surgindo. Ela foi filha única e acho que tinha uma fortuna. Foi casada com o conde de Salisbury antes de se casar com Suffolk. Eu gosto muito dela. Na verdade, também gosto de Suffolk. Sinto que neles terei bons amigos em minha nova casa.
- Você está entusiasmada com esse casamento, Margaret. Eu quisera que o meu pudesse ser resolvido. Acho que papai vai impedi-lo novamente.
- Talvez se você falasse com ele...
- Já falei. Ele odeia os Vaudémont, Margaret.
- Suponho que isso seja natural. Eles foram, na verdade, o começo dos problemas dele. Se não tivessem reivindicado a Lorena...
- Eles tinham esse direito - declarou Yolande. - A Lei Sálica existe, mesmo, e o direito deles a Lorena vem antes do dele.
- Você jamais vai conseguir que nosso pai entenda isso.
- Mas ele concordou com as condições... o casamento que nos uniria.
- Estou certa de que papai vai ceder. Seria agradável ter os dois casamentos juntos.
- Nós vamos insistir nisso.
- Então, tenho certeza de que acontecerá.
Mas René foi inabalável quando aquilo foi sugerido.
- Há muita coisa que precisa ser resolvida antes - insistiu ele.
Mas aqueles que o conheciam bem entendiam perfeitamente que se tratava de mais um exemplo de sua procrastinação. Na verdade, ele não queria que a filha se casasse com o membro de uma casa que ele considerava sua inimiga. O fato de ele ter prometido, o fato de o casamento ter sido uma das condições de um acordo não o preocupava. René estava acostumado a adiar o cumprimento de um acordo quando isso lhe interessava.
Mas ele não pensara num amante impetuoso, romântico. Ferri estava fazendo planos, e se não pudesse obter algum apoio do pai de sua noiva, ele pretendia executá-los.
O tempo encoberto de novembro não teve efeito sobre as cerimónias. Na verdade, acentuou o brilhantismo delas, e multidões presenciaram o casamento por procuração de Margaret, com o marquês de Suffolk representando o noivo quando o bispo de Toul realizou a cerimónia na igreja de St. Martins em Nancy e na presença de uma ilustríssima plateia presidida pelo rei da França.
O rei dissera que aquela deveria ser uma ocasião para ficar na lembrança e estava determinado a isso. René não se fez de rogado. Estava ansioso para que não se poupassem despesas - mesmo que se tratasse de despesas dos outros - e com o rei da França dando as ordens, o acontecimento foi mesmo grandioso.
Devia haver um torneio em honra da nova rainha da Inglaterra, e todos os famosos campeões da França deveriam apresentar-se nele. Margaret não podia deixar de ficar emocionada com a visão dos pavilhões exibindo seus galhardetes e os números dos cavaleiros galantes que usavam a margarida. Ela escolhera aquele símbolo porque seu nome era Margaret, que significava margarida, e ela sempre gostara da flor por causa disso. Dali por diante, seria seu emblema e aquela exibição de cavalaria devia ser o Campo das Margaridas.
Ela se sentou com as duas rainhas - sua mãe e sua tia Marie da França - e assistiu à justa. O próprio rei tomou parte mais de uma vez, e René também cavalgou na arena.
Margaret nunca vira coisa parecida em toda a vida, e o fato de ser tudo em sua honra - uma jovem de quinze anos - era fabuloso.
O rei decretara que deveria haver oito dias de comemorações, e cada dia deveria ser melhor do que o anterior. Houve uma ocasião em que uma figura vestida de armadura incrustada de jóias apareceu no torneio, e quando o visor foi girado para trás revelou-se o rosto mais bonito da França. Agnès Sorel aparecera daquele jeito a pedido do rei, que queria que a França inteira soubesse o quanto ele a reverenciava.
Carlos cavalgou em volta do campo com Agnès, e até a rainha juntou-se aos aplausos.
Enquanto isso acontecia houve uma súbita agitação em volta do camarote real, onde as senhoras estavam sentadas. Ferri de Vaudémont subira até perto de Yolande e, segurando-a pela mão, atravessara o campo com ela, a pé. Atentos à faiscante Agnès e à homenagem feita a ela pelo rei, pouca gente percebera. E então Ferri colocara Yolande sobre um cavalo e com ele próprio montando atrás dela, acompanhado de cinco ou seis amigos, começara a se afastar a galope.
René foi o primeiro a perceber.
- Atrás deles! - gritou. - Vários de seus homens iniciaram a perseguição.
O rei ficou estupefato. Em vez de admiração pela sua bela Agnès, houve um riso abafado na multidão, e todos ficaram ansiosos por saber o que tinha acontecido.
Ele ordenou que enviassem um tropa de guardas para ver o que significava aquele distúrbio e trazer de volta os fugitivos.
A tentativa de Ferri de raptar sua noiva durou pouco; talvez ele tivesse tido a intenção de que fosse assim mesmo e o motivo ao fazê-lo tivesse sido apenas o de chamar atenção para o seu caso. Poucas horas depois, ele foi levado à presença do rei.
- O que você pretendia ao se portar dessa maneira no meu torneio? - perguntou Carlos.
- Majestade - replicou Ferri -, eu tinha de chamar sua atenção e a de outras pessoas para a situação em que o rei René me colocou e a filha dele. Yolande foi mandada para nós ainda criança. Nós crescemos juntos. Ela quer se casar comigo, como eu quero casar com ela, e repetidas vezes a cerimónia é adiada simplesmente porque o rei de Nápoles não quer honrar o acordo que fez.
- vou falar com a moça - disse Carlos, e mandou que Yolande fosse levada à sua presença.
"Você foi vítima de um rapto - disse Carlos. - Como se sente quanto a isso?
- Eu estava querendo muito que o rapto acontecesse, majestade.
Carlos começou a rir.
- E sem dúvida o planejou com seu raptor?
- Vossa Majestade está certo.
- E você pretende se casar. Você é um ano mais velha do que sua irmã, hein, e ela está se casando agora. É isso mesmo que você quer?
- É, majestade.
- Da minha parte, não vejo motivo para que não tenhamos um casamento duplo. Talvez eu deva falar com o rei René.
Os dois jovens caíram de joelhos e beijaram as mãos do rei.
- Já chega - disse Carlos. - Sei que ficarão agradecidos se eu convencer René a permitir que o casamento se realize. Por isso, deixem-me ver o que posso fazer.
Ele mandou chamar René. Agnès estava com ele quando René chegou.
- Então sua filha foi raptada - disse ele.
- Isso é um ultraje. Isso muda tudo. Isso me libera de meu compromisso. vou levar minha filha de volta comigo.
- Nada disso, nada disso. Você está muito apressado. Em primeiro lugar, isso não o libera de seu compromisso. O casamento estava na raiz do acordo que você fez com os Vaudémont quando foi derrotado por eles em combate. Você tem de manter-se fiel às leis da cavalaria, meu cunhado.
René ficou calado. Ele sempre se orgulhara de obedecer àquelas leis.
- Seja razoável. O casamento tem de se realizar, se você dá valor à sua honra. Os jovens estão ansiosos por ele. Por que adiar?
- Há certos assuntos que precisam ser resolvidos.
- Ora vamos, René, quantos anos você teve para resolver esses assuntos?
- Se me permite, majestade - disse Agnès -, parece-me que muitas despesas seriam poupadas se Yolande e Ferri se casassem agora. Margaret poderia compartilhar suas comemorações com a irmã.
No íntimo, Carlos sorriu. Podia-se confiar em que Agnès encontrasse sempre a resposta certa.
René estava indeciso. As despesas com o casamento de uma filha eram enormes. Ele estava profundamente endividado em toda parte. Claro que se o casamento acontecesse agora, Carlos estaria pagando por tudo.
- Raptá-la desse jeito... - disse ele.
- Pobre rapaz. Ele estava desesperado.
- O senhor deve perdoá-lo - disse Agnès, delicada. - Lembre-se de que foi por amor à sua filha.
- Bem - disse René -, como parece ser este o seu desejo, majestade, e o seu, senhora...
- Vamos mandar chamar o feliz casal e dar a eles a boa nova
- disse Agnès.
E assim Yolande e Ferri se casaram, e as justas e as diversões continuaram.
Carlos conversou com Agnès sobre a aliança de Margaret e Henrique. Ele estava certo de que era boa para a França.
- Isso é um indício da mudança que houve desde que o pai dele se casou com uma princesa francesa. O quinto Henrique ficou com a filha do rei da França. A nossa querida Margaret é uma princesa muito menor... na verdade, haverá quem diga que ela não é princesa coisa nenhuma.
- Ora, o pai dela é o rei da Sicília e de Nápoles.
- Pobre René, você acha que ele vai tornar a ver a Sicília?
- Não, mas ele sente uma certa satisfação ao se chamar de rei.
- E isso trouxe uma coroa para a filha dele. Duvido que ela tivesse sido levada em consideração se não usasse o título de princesa... por menor que ele seja.
- Espero que a querida menina seja feliz.
- Ela vai mandar em Henrique, disso estou certo. Ele é um fraco, como sabe, e ela é o tipo de mulher para mandar. Nunca me esquecerei da avó dela...
Agnès colocou a mão sobre a dele.
- Eu sei o quanto você gostava dela.
- Ela foi uma mulher extraordinária. Fiquei triste ao perdêla. Graças a Deus na época eu tinha você, Agnès.
- Eu estarei sempre ao seu lado.
- Tem de ser assim - disse ele. - Seria duro demais, para mim, viver sem você. - Ele ficou pensativo por algum tempo. Depois, disse: - É muito bom para a França ter uma francesa forte como rainha da Inglaterra.
- Lembre-se de que ela é muito criança.
- Eu me lembro. Mas ela é inteligente, e eu acho que irá lembrar-se de seu dever para com a França. vou mandar chamála e conversar com ela, e depois você me dirá se acha que ela será boa para a França quando estiver na Inglaterra.
Margaret ficou satisfeita ao ser chamada pelo rei. Ela ficara gostando muito dele. Ele era sempre delicado e tratava-a como se ela fosse sua filha. Ele fizera um grande esforço para dar a ela um casamento suntuoso e, embora ela soubesse que aquilo era para impressionar os ingleses, ao mesmo tempo ele tivera prazer em agradá-la. Além do mais, ele provocara a realização do casamento de Ferri e Yolande, porque se ele não tivesse decidido resolver o problema, René teria arranjado desculpas para adiá-lo outra vez.
Carlos recebeu-a informalmente e beijou-a com ternura. Agnès fez o mesmo.
- Então - disse o rei -, nós agora temos à nossa frente a rainha da Inglaterra. Que tal ser uma rainha?
- Para ser sincera, não me sinto ainda uma rainha.
- É verdade que você ainda não viu seu marido e teve de aceitar o velho Suffolk no lugar dele.
- O marquês de Suffolk tem sido um bom amigo para mim, como acontece com a marquesa.
- É bom você fazer amigos. Poderá precisar deles quando chegar ao seu novo lar. Você gostou dos Suffolk. E dos Talbot também, creio eu.
- Eu os achei muito delicados para comigo.
- E deviam ser, mesmo... para com a rainha deles. O caminho que você tem de seguir vai ser difícil. Às vezes é preciso seguir uma política sinuosa. Você é muito jovem, e há quem irá procurar explorar a sua juventude. Você terá de ficar vigilante, Margaret.
- Eu sei que não vai ser fácil...
- Mas você é uma jovem inteligente. É frequente eu ver sua avó em você, e sua mãe sempre teve a minha maior admiração. Você é mais uma igual a elas, e posso lhe dizer que vai achar o rei fácil de conduzir. Margaret, assegure-se de que é você que mandará nele.
- O senhor acha que ele irá me ouvir?
- Claro que vai. Você será a pessoa mais próxima a ele. Disseram-me que ele é uma pessoa delicada. Não liga para cerimónias brilhantes e para toda a pompa do cargo de um rei. Ele é um moço bom. Você não terá dificuldades com ele. É com aqueles que o cercam que terá de ter cuidado. Você deverá influenciálo na escolha das pessoas mais chegadas a ele, e deixe que eu lhe diga uma coisa que aprendi: caminhe com muita cautela no início. Deixe que vejam em você a jovem... a menina... um pouco perplexa com o novo lar, ansiosa por agradar. Mas, o tempo todo, deverá estar alerta. Não deixe de tratar bem os que estiverem mais próximos ao rei. No momento, ele é governado por eles. Um daqueles com os quais você terá de ter um cuidado especial é o duque de Gloucester. Ele foi contra o casamento e não irá tratá-la bem. Vai tentar provar que isso foi um erro. Vigieo, mas não tenha medo dele. Se for esperta, não haverá o que temer da parte dele. Ele é benquisto... por alguma razão estranha.. mas a mulher dele foi acusada de feitiçaria, que estava usando para destruir o rei. Ele está perdendo o poder, mas tome cuidado com ele.
- Vou fazer como o senhor manda, querido tio. Estou vendo que terei de aprender bastante.
- Neste caso, já deu o primeiro passo. Não é, Agnès?
- É, sim - disse Agnès -, a primeira lição é sempre aprender que se tem muito que aprender.
- Nunca é prudente delegar poder demais aos nobres prosseguiu o rei. - com isso, eles brigam entre si. Cria rivalidades entre eles. É melhor dar cargos de autoridade àqueles que venham de origens mais humildes e que tenham mostrado, por seu talento, que podem destacar-se com ele. Acima de tudo, minha querida, lembre-se de que você é francesa. Nunca se esqueça de sua terra natal.
- Eu nunca poderia me esquecer disso. vou sempre amar a França. A Inglaterra será meu país por adoção, mas a França será o verdadeiro.
- Tem razão - disse o rei. - E seu casamento trouxe a trégua entre nós. Eles queriam a paz, mas não a terão enquanto não retirarem todas as reivindicações à coroa da França. Enquanto isso, estão segurando Maine e Anjou. Margaret, eles têm de abrir mão dessas províncias, especialmente de Maine. Só quando Maine estiver em nossas mãos é que poderemos ter a certeza de expulsá-los da França. Você tem de convencer o rei a entregar Maine.
- O senhor não poderia toma-la?
- A um custo elevado de vidas e dinheiro, e ainda por cima poderíamos fracassar. Não, quero que eles a devolvam a nós em troca da paz.
- Farei o que puder... pela França - disse Margaret.
- Deus a abençoe, menina - disse o rei. - Nosso amor e nossa fé estarão com você.
Estava na hora de partir, e o pai dela, com ar muito solene, entregou-a ao marquês e à marquesa de Suffolk. O rei estava presente e foi visto afastando uma lágrima quando tomou a sobrinha nos braços e a beijou com ternura.
Enquanto a mantinha abraçada a ele, sussurrou:
- Lembre-se de nós. Lembre-se da França.
- vou me lembrar. Prometo que vou - disse ela. Quando o cortejo saiu do castelo, o rei cavalgou duas léguas
com Margaret e depois disse que tinha de despedir-se dela pela última vez. Os dois se abraçaram e estavam chorando.
- Você está indo para um dos mais importantes tronos da Europa, querida sobrinha - disse Carlos -, mas ele nem de longe é digno de você.
- vou tentar fazer o que é correto - disse-lhe ela. - E irei sempre amar o senhor e a França.
O rei ficou sinceramente emocionado, e depois de um último abraço fez meia-volta e afastou-se, triste, de volta para Nancy.
René e Isabelle continuaram cavalgando com ela. A separação deles viria mais tarde; e enquanto seguiam, ocorreu-lhes que a filha era muito jovem e eles a estavam colocando na zona de intriga em um país que não era totalmente a favor de recebê-la.
Chegaram a Bar, onde deveriam separar-se, e quando chegou o momento não conseguiam falar - nenhum deles. Conseguiram apenas olhar uns para os outros, calados, com medo de que os sentimentos reprimidos pudessem escapar e eles cedessem à dor.
Enquanto Margaret se afastava a cavalo, sem coragem de olhar para trás para o pai, Alice conduziu seu cavalo para ficar ao lado dela. Ela não disse coisa alguma, mas a solidariedade e aquele gesto emocionaram profundamente Margaret. Significava que ela se despedira dos pais, mas ainda tinha amigos.
Ainda restava um longo caminho a percorrer. A comitiva consistia nas pessoas mais importantes da Inglaterra, chefiadas pelo marquês e pela marquesa de Suffolk e pelo conde e pela condessa de Shrewsbury. Ó conde de Wiltshire também ali estava, junto com os lordes Greystock e Clifford. Os ingleses estavam tão decididos quanto os franceses tinham estado a causar uma boa impressão, e tinham enviado não apenas guardas, mas todos os criados de que a jovem rainha poderia vir a precisar em sua viagem; e além de cavaleiros e escudeiros, havia entaIhadores, cavalariços e criados para realizar qualquer tarefa que ela pudesse exigir deles. O salário daquele pessoal, além da alimentação que tinha de ser-lhe fornecida, custara ao rei da Inglaterra mais de cinco mil libras, que tiveram de ser tiradas de um tesouro muito esvaziado e mostravam, diziam aqueles que sabiam a situação das finanças do rei, o quanto ele estava ansioso pelo casamento francês.
Quando a comitiva chegou a Paris, o povo saiu para saudála, e houve um encontro nas ruas entre Carlos, duque dOrleans, e a rainha. O povo ficou encantado e ovacionava, alucinado. A rainha era muito jovem, muito atraente, muito bonita. Nossa Margaridinha, era como eles a chamavam, e todos seguravam margaridas - algumas das quais feitas de papel; e tudo isso em honra da pequena rainha. Houve um serviço na Notre-Dame, onde foi cantado um Te Deutn, e na rua a alegria era enorme, porque o povo via naquele casamento uma perspectiva de paz; e era isso que eles esperavam, mais do que qualquer outra coisa.
Quando a comitiva deixou Paris, o duque dOrleans acompanhou-a até Pontoise. Aquele era um ponto importante da viagem, porque ficava na fronteira entre as possessões francesas e inglesas na França. E lá, esperando para recepcioná-la, estava Richard, duque de York.
Foi o primeiro encontro dela com um homem que se considerava tão membro da realeza quanto o rei. Ele descendia de Eduardo III pelo lado paterno e pelo materno, porque o pai tinha sido filho de Edmund Langley, quinto filho do rei; e a mãe era filha de Roger Mortimer, neto de Lionel, duque de Clarence. Ele fora juntar-se à comitiva e conduzir Margaret à Inglaterra.
Estava imensamente orgulhoso, e embora fosse cortês, Margaret o achou arrogante e não gostou dele como gostara dos Suffolk e dos Shrewsbury. Mas ele era um homem de grande importância na Inglaterra e devia ser muito chegado ao rei. Ela se lembrou do que o seu mentor, o rei da França, lhe dissera e tentou conquistar a amizade do duque de York.
Em Pontoise, ela teve de se despedir das últimas de suas criadas pessoais e também de seu irmão John e do duque dAlençon, que a tinham acompanhado até ali. Ela agora estava inteiramente entre os ingleses.
Numa barcaça decorada especialmente para ela com um belo arranjo de margaridas, Margaret seguiu pelo Sena até Rouen, e lá foi recebida com uma grande aclamação.
Foi levada para a cidade numa liteira profusamente decorada com mais margaridas. O marquês de Suffolk, que representara o rei na cerimónia por procuração, cavalgou à frente da liteira, e o duque de York e o conde de Shrewsbury seguiram um de cada lado dela. Os outros membros da comitiva seguiram atrás.
Ela devia descansar um pouco em Rouen para que depois se realizassem as cerimónias previstas.
Alice mostrou ser uma boa amiga, porque pouco depois Margaret teve dificuldades relativas a dinheiro. René, sempre com problemas financeiros e com muitas dívidas que jamais poderia esperar pagar, não conseguira fornecer-lhe o dinheiro de que ela iria precisar para cobrir os custos da viagem, cujo pagamento era de sua responsabilidade.
Quando Alice lhe disse que era costume, em Rouen, as noivas reais darem aos pobres certos artigos de vestuário de acordo com a idade da noiva, ela ficou perplexa.
- Vestuário - bradou ela. - Que tipo de vestuário?
- Um vestido qualquer e um par de sapatos... os sapatos são muito importantes. Você tem de dar isso. O povo assim o espera.
- Mas quantas roupas e pares de sapatos eu terei de dar?
- Tantos quantos forem os anos que você tiver vivido. No seu caso, serão quinze. Ah, não se preocupe. Nós providenciamos tudo, e os vestidos e os sapatos estão todos prontos. Eles serão entregues assim que forem pagos. O povo de Rouen não confia em ninguém... nem mesmo em rainhas.
- Estou vendo que é um povo inteligente - disse Margaret um tanto séria -, porque, francamente, Alice, eu não posso pagar essas coisas. Se pagar, não poderei continuar a viagem. Ainda há outras despesas a serem feitas.
- Seu pai pagará, sem dúvida.
- Alice - disse Margaret pausadamente -, meu pai jamais poderá pagar. Ele está endividado e vive assim desde que eu me entendo por gente.
- Então terei de emprestar o dinheiro - disse Alice.
- vou empenhar um pouco de minha prataria com você. Você fica com ela até que eu possa lhe pagar.
- Não há necessidade... - começou Alice. Mas Margaret a fez calar-se.
- Não quero criar dívidas - disse ela, com firmeza. Não quero ser descuidada com o dinheiro dos outros. Desconfio que meu pai tenha sido sempre assim, e veja o que aconteceu a ele. Está sempre evitando algum credor. Não que ele se importe com isso. Ele é sublimemente indiferente a essas questões. Ah, ele é o mais querido dos homens, o melhor homem... Eu o adoro, mas ele tem essa característica... e não quero ficar assim.
E então Alice aceitou a prataria e arranjou o dinheiro para as roupas e os sapatos, e mais algum, porque havia todo tipo de pessoas a serem pagas pelo caminho, e a rainha não podia começar causando má impressão por não pagar o que devia.
Por fim, eles chegaram a Harfleur, onde dois navios os esperavam na baía. Um deles era o Cokkejohn ofCherbourg, no qual Margaret e sua comitiva imediata deveriam viajar, e o outro,Mflry ofHampton, destinava-se ao resto da comitiva.
Foi uma viagem curta para o outro lado do canal, porque o forte vento sudoeste empurrou-os para lá, mas foi extremamente incómoda, e quase tão logo se afastaram da costa, Margaret vomitou sem parar.
A maioria da comitiva ficou enjoada, mas não com a intensidade da jovem rainha. Alice, sentindo-se também terrivelmente enjoada, tentou atendê-la, mas Margaret só conseguia murmurar:
- Nunca me senti tão mal. Eu só quero morrer.
Foi um grande alívio para todos quando a terra foi avistada. Alice curvou-se sobre Margaret e sussurrou:
- Chegamos. Esse enjoo vai passar logo, assim que estivermos em terra firme.
Mesmo assim, ela foi chamar o marido, porque a rainha parecia estar sofrendo de algo mais do que os efeitos do mar.
Foi grande a consternação, porque manchas começavam a aparecer no rosto de Margaret. Alice abriu o vestido de Margaret e viu que elas também estavam no peito dela.
- Que Deus nos ajude - bradou ela. - A rainha está com a peste.
O marquês disse à sua mulher que envolvesse a rainha num cobertor, e ele a levaria para a terra. Alice fez o que lhe foi pedido e, pegando a rainha nos braços, Suffolk caminhou pela água rasa até chegar à praia. Da cidade chegaram os sons de folguedos, e muitas pessoas, tendo avistado o navio fundeando, desceram para saudar Margaret.
Houve um silêncio abafado quando Suffolk colocou-a numa liteira e levou-a, a toda velocidade, para um convento na cidade de Portsmouth, conhecido como Goddes House (Casa de Deus). Chegando lá, foi atendida pelos médicos. As freiras cuidaram dela, seguindo as instruções deles.
Houve uma grande consternação porque se acreditava que a rainha estivesse com a terrível varíola, o que quase que certamente significaria sua morte ou, na melhor das hipóteses, iria deixá-la desfigurada. Mas foi com um enorme alívio porque, depois de alguns dias, Margaret pareceu estar não com varíola, mas com uma forma branda de catapora, e as manchas começaram a desaparecer sem deixar qualquer sinal. Sob o cuidado das freiras, ela começou a recuperar-se.
Enquanto isso, Henrique, impaciente, cavalgou até Southampton e imediatamente mandou chamar Suffolk para saber das últimas notícias da rainha.
- Ela está se recuperando, majestade - disse Suffolk. Todos nós ficamos muito aflitos, mas a doença da rainha não era o que temíamos. Não há nada, a não ser uma pequena erupção de alguma forma de catapora, e ela está se recuperando depressa.
- Eu quero vê-la. Ela sabe que estou aqui?
- Penso que não, majestade. Mas pode estar seguro de que ela está tão ansiosa por vê-lo quanto Vossa Majestade.
Temeroso de que pudesse encontrá-la horrivelmente desfigurada e não pudesse conseguir esconder a repugnância, Henrique disse, num impulso:
- Não irei vê-la como o rei. Quero que o senhor diga a ela que sou um escudeiro que foi levar a ela uma mensagem do rei. Assim, poderei vê-la tal como é... naturalmente...
sem cerimónia, compreende?
- Perfeitamente, majestade. Direi a ela que o escudeiro do rei trouxe uma carta dele.
Margaret estava sentada numa cadeira. Estava pálida e enfraquecida e tinha um cobertor grosso envolvendo-a. Suffolk aproximou-se dela e disse-lhe que o rei enviara um de seus escudeiros com uma mensagem para ela. Será que ela se sentia em condições de recebê-lo?
- Eu tenho de receber o escudeiro do rei - disse ela.
- Neste caso, vou pedir que ele venha falar com a senhora.
Margaret viu vagamente um jovem, vestido com simplicidade, recatado. Mal olhou para ele, enquanto ele se ajoelhou diante dela e entregou-lhe uma carta. Ela a pegou, e o rei ficou observando-a enquanto lia.
- Há resposta, majestade? - perguntou ele. Ela abanou a cabeça.
- Vou escrever ao rei quando me sentir um pouco melhor. Depois que o escudeiro se retirou, ela recostou-se na cadeira,
e Alice entrou para falar com ela.
- Eu soube - disse Alice - que um escudeiro trouxe uma carta para você. O que achou dele?
- O escudeiro? - bradou Margaret. - Mal prestei atenção nele.
Alice começou a rir.
- Então você não faz ideia de quem era aquele escudeiro? Margaret continuou a olhar fixo para ela.
- Era o rei - continuou Alice. - Ele estava tão ansioso por ver você e não quis perturbá-la com uma visita formal, que veio como se fosse um escudeiro.
- O rei! - bradou Margaret, estupefata. - Meu marido. Mas eu deixei que ele ficasse de joelhos!
- Bem feito para ele - disse Alice. - Se ele vem como escudeiro, tem de esperar ser tratado como um escudeiro.
- Alice - bradou Margaret -, você me pergunta o que eu achei dele. Fico imaginando o que ele pensou de mim!
Enquanto isso, Henrique estava escrevendo ao arcebispo de Canterbury. Tinha visto a rainha a sós e estava encantado com ela. Era tudo o que ele acreditava que fosse, mas era evidente que ainda estava muito fraca e por isso eles deveriam esperar um pouco para que o casamento pudesse ser celebrado.
O casamento aconteceria no dia 22 de abril, na abadia de Tichfield, e o bispo de Salisbury celebraria a cerimónia. Margaret estava se recuperando depressa da doença; era jovem e saudável, e o fato de sua indisposição não ter sido a que se temera era um sinal, diziam aqueles que a cercavam, de que ela iria ser feliz em sua nova pátria. Alice não podia deixar de comentar que teria sido ainda melhor se não tivesse havido doença alguma, mas não disse isso a Margaret, que, em seu estado de fraqueza, sentia-se feliz por lhe apresentarem tantos bons augúrios.
Ela pensava muito no humilde escudeiro que se ajoelhara à sua frente; desejava muito que tivesse prestado mais atenção nele; mas sabia que ele tinha uma fisionomia delicada, e aquilo a fazia sentir-se tranquila.
Henrique pensava muito em Margaret. Ela parecera muito jovem e frágil envolta em seus cobertores grossos, e ele ficara enternecido. Ela também era muito bonita, apesar de estar pálida, mas isso a tornava um tanto vulnerável. Ficara encantado com o que tinha visto e estava ansioso pelo casamento com um entusiasmo do qual não se teria considerado capaz se não a tivesse visto.
Ele rezava com fervor para que o casamento fosse feliz. Precisava desesperadamente, como sempre, de recursos, porque um casamento era necessariamente uma ocasião dispendiosa, e ele fora forçado a levantar dinheiro com base nas jóias da Coroa para pagá-lo. Mandara fazer a aliança de uma outra, de ouro e rubis, que lhe tinha sido dada por seu tio, o cardeal Beaufort. Era o anel de sua coroação. Durante o seu reinado, o tio viera muitas vezes em seu auxílio com o dinheiro de que ele precisava. O cardeal parecia ter cofres inesgotáveis, dos quais podia servir-se numa emergência, e Henrique muitas vezes se perguntava como, sem o tio, ele teria sobrevivido a todas as dificuldades que o cercavam. Agora, ele usaria o anel dado pelo cardeal para fazer o de Margaret.
Presentes chegavam para a rainha - um deles foi muito fora do comum e muito difícil de manobrar. Era um leão, que depois de ter sido devidamente admirado, teve de ser enviado para a casa dos bichos, que ficava na torre.
E assim o casamento se realizou. Não foi tão pomposo quanto o feito por procuração na França, mas quando a noiva e o noivo deram-se as mãos deixaram de ter medo um do outro e perceberam que a afeição começava a surgir.
Solenes, fizeram seus votos, e enquanto ouviam o discurso do bispo juraram no íntimo que iriam cumprir com o seu dever.
"Bendito todo aquele que teme a Deus; que segue o Seu caminho.
Porque tu comerás o labor de tuas mãos; serás feliz e tudo estará bem contigo.
Tua mulher será como uma videira fértil ao lado de tua casa; teus filhos, como oliveiras em torno de tua mesa."
Eles eram jovens; tinham muitos anos pela frente. Era de seu dever produzir herdeiros para a Coroa. Os dois juraram que não faltariam herdeiros.
Para Margaret, Henrique era o marido perfeito. Gentil, cortês, ansioso por ser amado e dar a ela o máximo de devoção. Ela reconhecia a fraqueza dele, e isso o tornava caro a ela. Queria alguém que ela pudesse liderar, guiar, de quem pudesse cuidar. E sentia que Henrique era exatamente o homem para isso.
Henrique via em Margaret a jovem que parecia mais bonita cada vez que olhava para ela e não se esquecia da pequena criatura de aparência frágil que ele vira pela primeira vez envolta em cobertores grossos. Naquela ocasião, ele começara a se apaixonar por ela.
E assim o casamento parecia ter um começo feliz.
Nos primeiros dias após a cerimónia, o casal real ficou alojado na abadia. Eles tinham um exaustivo programa pela frente, e Henrique achou que depois da curta convalescença e de todas as cerimónias do casamento, Margaret precisava de um descanso.
Foram dias agradáveis para os dois irem se conhecendo, Henrique revelando aos poucos seus sentimentos, Margaret ficando mais segura de si mesma à medida que as horas se passavam.
Teriam de ir a Londres para a coroação dela, explicou Henrique, e isso aconteceria em fins de maio.
- Mas, primeiro - disse Henrique a ela -, temos de percorrer o país. Todos vão querer vê-la. Estou ansioso por mostrar a eles que esposa bonita eu tenho.
Sentindo-se mais forte a cada dia, Margaret ia ficando agitada com a perspectiva de sua vida como rainha da Inglaterra. Estava percebendo o quanto fora enfadonho até ali, quando ela não passara de uma figura de segundo plano - uma filha mais moça de um rei que não era bem um rei e estava sempre tentando encontrar algum meio de fugir dos credores.
Ela adquirira um gosto pela atenção quando se tornara importante no mundo dos casamentos, e o rei da França a vira como um meio de recuperar Maine e Anjou. Agora, ela tinha um país dela. Tinha um marido que já começava a adorá-la, respeitá-la, falar com ela e ouvir suas opiniões. O rei governava o país, e a rainha iria governar o rei. Era uma perspectiva agradável.
Ajice a trouxe de volta para a Terra rapidamente.
Ela estivera examinando o guarda-roupa de Margaret.
- Eu não fazia ideia de que você tinha tão pouca roupa disse Alice. - E os vestidos de que vai precisar para sua viagem para Londres? O povo espera uma demonstração de esplendor de uma princesa que agora é rainha.
- Mas eu não tenho mais do que você está vendo.
- Os vestidos com os quais você viajou pela França. Você não pode estar dizendo que pretende usá-los outra vez. Além disso... eles não suficientemente finos. Onde está o guarda-roupa que seu pai deve ter fornecido para sua chegada na Inglaterra?
- Ele não forneceu coisa alguma.
Alice se sentou num banco e cobriu o rosto com as mãos. Depois de alguns segundos, levantou-se.
- Tenho de falar com meu marido imediatamente, e ele tem de ir falar com o rei - disse ela.
- Mas Alice, que agitação por causa de umas poucas roupas!
- Agitação? Em absoluto. Você tem de causar uma boa impressão ao povo. Ele não gosta muito dos franceses, como sabe, e não deve ter chance de criticar. O público irá lhe dar as boasvindas porque você representa a paz. Mas você tem de parecer uma rainha.
Alice se lembrou do protocolo o suficiente para pedir autorização para retirar-se. Foi logo falar com o marido, que imediatamente procurou o rei.
A consternação dominou o ambiente quando a situação foi explicada, mas poucas horas depois o valete de Suffolk cavalgava o mais rápido que podia para Londres e levava ordens de voltar - a toda velocidade - com uma tal de Margaret Chamberlayne, que era uma das melhores costureiras da cidade.
Dentro de pouco tempo a Sra. Chamberlayne chegou e com ela estavam fardos de tecidos muito finos. Arranjaram-se de imediato várias mulheres para trabalhar de acordo com as instruções da Sra. Chamberlayne, e foram feitas túnicas que seriam consideradas adequadas à viagem da rainha até Londres.
Henrique, que nunca se importara muito com suas roupas, ficou encantado ao ver Margaret esplendidamente trajada. A própria Margaret parecia muito satisfeita. Ela estava gostando mais da Inglaterra a cada dia que passava.
E assim começou a viagem para Londres. Foi um triunfo. Margaret estava bonita em seus magníficos trajes novos, os abundantes cabelos dourados refletindo tons de ruivo ao sol, caindo-lhe pelos ombros; um diadema de pedras preciosas estava em sua cabeça e seus olhos azuis brilhavam de agitação; um leve rubor brilhava-lhe nas faces, e ela parecia, sem tirar nem pôr, a fada rainha enquanto cavalgava pelo interior com o marido. O fato de ser pequena e ter uma aparência de muita fragilidade aumentava seu encanto para o povo. Parecia muito delicada. Aonde quer que fosse, eram exibidas margaridas, e as pessoas que iam vê-la passar levavam, todas, aquela flor - a maioria artificial, agitando-as extasiadas.
- A guerra acabou - diziam elas. - Esse casamento significa paz.
E assim ovacionavam, e as saudações eram tanto para a paz como para Margaret; e quando gritavam "Vida longa para a rainha", também queriam dizer: "A prosperidade está chegando."
Era uma recepção calorosa, e dirigida a ela. O povo deixava isso claro. Estava na hora do rei deles se casar e dar-lhes um herdeiro, e ali estava a esposa - vinda da França para acabar com a guerra. Agora haveria uma coroação, e depois um nascimento real. E nada de guerra. Bons tempos estavam por vir.
Por fim, eles chegaram ao palácio de Eltham e ali ficaram alguns dias para se preparar para a entrada em Londres. Margaret sabia que agora as importantes cerimónias estavam prestes a começar. Mas a devoção de Henrique por ela aumentava dia a dia, e ela sentia uma confiança plena em seu poder de cativar o povo dele tal como cativara o rei deles. Até aquele momento, ela não encontrara ninguém que não tivesse expressado satisfação com o casamento; mas ela sabia que havia algumas pessoas que se opunham a ele. O poderoso duque de Gloucester era uma delas, e ela devia estar pronta para ele quando ele aparecesse, como sem dúvida apareceria.
De Eltham a comitiva real seguiu para Blackheath e lá, vindo em direção a ela, viu-se uma procissão consistindo em todos os altos dignitários de Londres. O prefeito, os vereadores e os xerifes da cidade formavam um espetáculo colorido com suas capas escarlates, enquanto os artesãos que os acompanhavam estavam vestidos num azul muito vivo com bordados nas mangas e capuzes vermelhos. Eles tinham ido até ali, disse o prefeito a Margaret em seu discurso de boas-vindas, para conduzi-la na entrada da cidade de Londres.
Margaret respondeu gentilmente e ficou muito satisfeita por Alice ter percebido o quanto teria estado despreparada para enfrentar uma plateia tão brilhante como aquela. Margaret nanca poderia ter agradecimentos que chegassem pelos cuidados de Alice - nem pelos do marquês. vou insistir para que eles sejam devidamente recompensados, prometeu a si mesma. Henrique vai estar disposto a fazer qualquer coisa que eu lhe peça.
Outro grupo chegara a Blackneath. Era liderado por um homem de grande importância. Ela não podia deixar de estar ciente disso. Aquilo estava aparente na expressão de quase reverência no rosto dos que a cercavam. Eles também estavam pasmos. Era velho mas bonito, de forma deteriorada pela devassidão; estava esplendidamente trajado, e o libré de seus criados era estonteante.
O homem cavalgou até onde estava a rainha, curvou-se de forma acentuada e fez um discurso de boas-vindas repulsivo pelo excesso de falsidade.
Margaret ia respondendo com a graça de costume quando o rei disse:
- Majestade, devo lhe apresentar meu tio, o duque de Gloucester.
O duque de Gloucester! O inimigo! Ela viu a expressão sensata de seu tio Carlos; ouviu a voz dele: "Você precisará ter cuidado com o duque de Gloucester."
Ela era jovem demais para ter aprendido a esconder seus sentimentos. Aquele era o homem que fizera tudo para opor-se ao casamento. E tentaria prejudicá-la. A mulher dele estava presa porque fizera uma imagem de Henrique em cera com a finalidade de destruí-lo. Inimigo, mesmo.
- Eu lhe agradeço, senhor duque, por ter vindo me receber
- disse ela, em tom frio, e virou-se para o outro lado.
Todos os que a cercavam perceberam a afronta ao poderoso Gloucester, e sabendo que ele herdara sua quota do famoso mau génio Plantageneta, esperaram os acontecimentos num silêncio respeitoso.
Gloucester, porém, não pareceu perceber a afronta. Ele era muito cortês, e quando queria, apesar de sua aparência decadente, sabia ser charmoso.
- Que prazer descobrir que nossa rainha é tão bonita - disse ele. - O rei é um homem a ser invejado por mais do que as suas possessões.
- Há sempre quem inveje os reis - disse Margaret. - Isso é de se esperar e deve ser aceito, desde que essas pessoas não tentem substituí-los.
Margaret nunca se controlara, e isso era algo que nunca aprendera a dominar. Na casa de sua avó, ela nunca fora provocada; mas ouvira falar muito sobre a oposição de Gloucester ao seu casamento e era jovem demais para esconder o ressentimento.
- Ah - disse Gloucester -, isso é que é sabedoria de verdade. Mas quem, majestade, não iria querer estar no lugar do rei agora que ele possui uma esposa tão formosa?
- Isso é delicadeza de sua parte.
- Majestade, eu teria prazer em dar-lhe as boas-vindas ao país, que estou certo de que a senhora irá governar bem... com o rei.
Ele se voltara de modo a que seu cavalo magnificamente ajaezado ficasse lado a lado com o dela.
- Eu teria um grande prazer - disse ele - se Vossa Majestade descansasse em meu palácio de Greenwich para comer e beber alguma coisa antes de prosseguirem para Londres. O povo vai adorá-la tanto que poderá atrapalhar seu avanço com as saudações e os desfiles alegóricos. Todos querem mostrar-lhe o quanto estão encantados com a sua vinda para cá.
Margaret estava para dizer que não precisava comer ou beber coisa alguma e não tinha intenções de descansar no palácio dele em Greenwich, quando o rei disse:
- É bondade sua, meu tio. A rainha vai gostar muito de conhecer Greenwich.
Não havia nada que ela pudesse dizer depois disso, mas não olhou para o duque cavalgando a seu lado e perguntou-se por que Henrique era tão afável com uma pessoa que, diziam todos, era sua inimiga.
O duque, cavalgando a seu lado, sorria, alegre. Falou com ela sobre Greenwich e sobre como ele passara a gostar muito do local desde que o herdara de seu tio Beaufort. Não o cardeal que ela conhecera, mas o irmão dele, Thomas, duque de Exeter.
- Recebi mais cem hectares para fazer um parque. Foi o que fiz, e assim temos boas caçadas por lá. Vossa Majestade gosta de caçar?
- Gosto.
- Neste caso, irá divertir-se muito em algumas de nossas florestas. Eu sempre digo que temos as melhores do mundo. Quando recebi a terra, tive de concordar em amear a mansão e fazer uma torre e um fosso... e fiz tudo isso. Assim, terei orgulho em recebê-la em Greenwich.
Ela seguiu em silêncio, o rubor aumentado, a cabeça bem erguida.
E assim eles fizeram uma pausa em Greenwich e depois seguiram por Southwark e entraram na cidade de Londres. Os préstitos a assombraram e encantaram, a ponto de fazerem com que ela esquecesse o desagradável encontro com Gloucester. Londres superara a si mesma. Os cidadãos divertiam-se ruidosamente com quadros vivos, e aquela exibição que estavam dando para recepcionar a rainha era um prelúdio de toda a comemoração que aconteceria na coroação.
Todos os quadros e cenas que foram representados eram em favor da união de Henrique e Margaret, e o tema era aquilo que todos andavam esperando ansiosos. Paz. Era verdade que todos tinham acreditado que a paz chegaria com a conquista da França. Houvera época, cerca de vinte anos antes, em que aquele sonho parecia estar ao alcance deles. E então Henrique V morrera de repente, derrubado em pleno apogeu, e desde então o cenário mudara.
Ora, se aquilo não era uma grande vitória, significava a paz, e paz iria representar o fim da exorbitante tributação que estivera prejudicando o comércio e deixando todos eles pobres.
Na ponte em Southwark, o quadro vivo representava a Paz e a Abundância. Havia um quadro de bonecos com a Justiça e a Paz como figuras. Estas se aproximavam uma da outra e depois de muito malabarismo uniam-se no beijo da paz. Então, Santa Margarida aparecia; e havia dançarinos e crianças recitando, e nos cabelos de cada menina havia uma margarida.
Foi um grande triunfo. Henrique estava encantado com a impressão que ela causara ao povo e recusava-se a ter o ânimo abatido por saber que as pessoas estavam ovacionando uma paz que ainda não tinha sido feita. O casamento acontecera, sim... mas a única concessão sobre a qual se chegara a um acordo era uma trégua. Nós precisamos da paz, dissera o cardeal Beaufort; e Henrique concordava com ele.
- Meu irmão se levantaria e o amaldiçoaria, se pudesse fora o comentário de Gloucester. - Paz. Nunca. Vamos continuar lutando até colocarmos a coroa francesa no lugar em que ela deve estar: na cabeça do rei da Inglaterra.
Gloucester era um agitador. Sempre fora. Mas por que tinha ido a Blackheath e sido tão afável? E Margaret demonstrara desprezo por ele. Henrique tinha de explicar a ela.
Foi o que fez.
- Eu não consegui compreender - disse ela - como você pôde ser tão amável para com ele. Ele não é seu amigo.
- Eu sei disso muito bem. Não confio nele. Sempre dobro a guarda quando ele está por perto. Estou certo de que ele me faria algum mal, se pudesse.
- E no entanto, você se portou como se ele fosse seu tio muito querido!
- Ele estava representando um papel, Margaret. Eu também tive de representar.
- Não pude esconder o que sentia. Ele sorriu para ela com ternura.
- Você é muito boa, muito honesta. Mas, minha adorada, Gloucester é um homem perigoso. Ele tem seus seguidores. Sempre foi o favorito dos londrinos.
- Neste caso, os londrinos são falsos com você.
- Não são, não. Você viu a recepção deles. Eles são poderosos, como sabe. Às vezes, são independentes... Se exprimirem desaprovação, devemos ter cuidado.
- E você... um rei. Henrique soltou uma risada.
- Querida Margaret, você é sensata e inteligente. Mas tem muito que aprender.
Ela não respondeu, mas pensou: "Eu jamais aceitarei os que forem meus inimigos. Não vou fingir que gosto deles."
Enquanto isso, Gloucester discutia sobre a rainha com o duque de York. Havia um elo entre os dois. Ambos acreditavam ter direito ao trono. Gloucester teria de esperar que o sobrinho morresse; mas York, descendendo, pelos dois lados da família, de Eduardo III e, pelo lado materno, do duque de Clarence, que fora mais velho do que John de Gaunt, acreditava intimamente que tinha mais direito do que o próprio Henrique. Por isso, Gloucester podia estar certo da concordância de York.
- Ela me desfeiteou - disse Gloucester. - Não sei por que não me retirei imediatamente. O impulso de fazê-lo lá estava. Mas eu me contive.
- Você se conteve de forma admirável. Ficamos todos perplexos. Você parecia realmente admirar a jovem.
- Ela é bem bonita, eu admito. Mas há nela uma vontade forte. Posso ver que o nosso Henrique vai se tornar um fantoche nas mãos dela.
- Neste caso, será com a rainha que teremos de negociar. Gloucester cerrou os punhos.
- vou pensar duas vezes antes de me submeter à vontade de uma mulher... ainda mais de uma francesa. Isso é um casamento desastroso. Demos tanta coisa e ganhamos o quê? Uma rainha francesa! Guarde bem as minhas palavras, nós vamos ser solicitados a dar mais. Devíamos estar fazendo guerra contra a França, não nos casando com ela.
- Nós ganhamos pouco, é verdade. Minorca, Majorca! Títulos sem expressão! E eles estão atrás de Maine...?
- Uma coisa eu lhe asseguro - disse o duque de Gloucester -, não vou deixar que a filha do suposto rei René me insulte impunemente.
- A garotinha terá de aprender a reconhecer o seu lugar concordou York -, e isso significa que, embora possa sentar-se num trono e usar uma coroa na bela cabeça, ela terá de levar em consideração seus súditos nobres.
- Ah, sim, a nossa delicada rainhazinha tem muito que aprender.
Em fins de maio, houve a coroação. Foi um acontecimento esplendoroso, e o povo deslocou-se em massa até Westminster para participar das comemorações. Houve regozijo por toda a capital, e apesar do fato de o tesouro real ter tido os cofres raspados para promover aquilo, todos pareciam muito satisfeitos.
O vinho jorrava dos dutos nas ruas de Londres; o povo dançava e cantava.
- Esse casamento significa paz - declarava ele. - Finalmente, a paz. Vida longa para o rei Henrique e sua bela rainhazinha.
O povo não permaneceria muito tempo naquele estado de euforia.
Margaret se sentia feliz. Henrique era tudo o que ela poderia ter desejado e era dedicado a ela. Ele mandara exibir sua divisa, a margarida, em todos os lugares
possíveis; o emblema fora até esmaltado e gravado em sua armadura.
- O jovem tolo está enfatuado pela prostituta francesa comentou Gloucester.
Mas ele iria vingar-se. Iria vingar-se de todos eles. Ele nunca conseguira vencer aquele velho astuto, o cardeal, nem Suffolk; mas teria conseguido, não fosse aquele lamentável caso com Eleanor e a figura de cera. Ele muitas vezes se perguntava não como uma mulher inteligente como aquela podia ter-se envolvido em tais práticas, mas como fora tão descuidada a ponto de ser apanhada. Claro que ela estivera trabalhando para o progresso dele. Ela queria vê-lo no trono.
Ele teria conseguido, não fosse por gente como o cardeal e Suffolk. Eles achavam que eram inteligentes arranjando aquele casamento francês, mas o caso ainda não estava encerrado. Tudo o que tinham conseguido era uma trégua temporária, e em breve os franceses estariam fazendo mais exigências. Ele estava certo de que isso iria acontecer.
Enquanto isso, Margaret deliciava-se com o seu papel de rainha. Deixava Henrique perplexo com sua beleza e seu espírito vivaz. Visitava o cardeal na mansão dele em Waltham e era recebida com grande prazer.
O velho homem ficava encantado com seu jovem charme. Ela era uma criatura muito delicada e ele achava engraçado pensar que uma pessoa aparentemente frágil assim pudesse esconder uma mulher de vontade forte, o que sem dúvida ela era.
Mas ela estava disposta a submeter aquela vontade a ele.
- Eu sei - disse ela - que há muita coisa que devo aprender, e quero que o senhor me ensine.
Para o cardeal, aquilo pareceu o máximo de sensatez, porque, apesar da adulação que estava recebendo, ela percebia suas deficiências e não poderia ter procurado um professor melhor.
Os velhos olhos dele enevoaram-se enquanto ele observava a bela e jovem criatura e ela ergueu os olhos azuis para os dele e disse:
- Nunca me esquecerei do nosso primeiro encontro. Naquele momento, percebi que o senhor seria meu amigo.
- A senhora é muito jovem, e no entanto desde o início notei seu bom senso latente - disse o cardeal. - Não há ninguém, no mundo, exceto a senhora, que eu gostaria de ver ao lado do rei no trono.
- Espero poder vir procurá-lo muitas vezes, agora que o senhor nem sempre acha fácil ir à corte.
- Que praga é a velhice, quando uma bela rainha convida um homem à corte e ele está doente demais para aproveitar-se da honraria. Minha queridíssima senhora, sempre que vier me visitar, considerarei isso como a maior honra que poderia me caber.
Margaret gostava de elogios como aquele, especialmente vindos daquele idoso homem da Igreja que era, percebera ela logo, o homem mais importante da Inglaterra.
Ele conversou com ela sobre a situação na Inglaterra. Disse que o que a Inglaterra precisava era de paz e que ele estava certo de que o rei entendia isso. Ela concordou sinceramente, porque era exatamente o que seu tio, o rei da França, queria. O problema, sabia ela, era que ele queria a paz sob certas condições que os ingleses poderiam não estar dispostos a aceitar.
Ele falou de Gloucester. Seu ódio pelo duque estava em todas as inflexões de sua voz, em todos os gestos, em todas as expressões que passavam pelo velho rosto.
- Gloucester tem estado na raiz de todos os nossos problemas. No seu primeiro casamento, ele ofendeu Borgonha quando a amizade deste era de uma importância vital para nós. Foi uma ameaça para o irmão Bedford, um homem entre os de primeira linha que a Inglaterra já teve e quase um soldado tão valoroso quanto o irmão dele, o falecido rei. Foi uma pena Gloucester não ter sido estrangulado ao nascer. Ele não tem causado outra coisa que não encrenca neste reino.
- Tenho ódio dele - disse Margaret com veemência. Henrique também tem. Ele se precavém quando Gloucester está por perto.
- A senhora deve ter cuidado com Gloucester. Ele odeia seu casamento. Ele queria que o rei se casasse com uma das filhas do conde de Armagnac. Ele não quer a paz. Ele quer continuar a guerra.
- A mulher dele tramou contra o rei?
- Tramou, fez imagens de cera com uma feiticeira e alguns adivinhos. Eles receberam o castigo justo. Ela está presa desde então.
- Por que deixaram Gloucester em liberdade?
- Ele não foi suspeito de ter tramado contra a vida do rei.
- Estou certa de que ele esteve envolvido. Henrique acha que sim.
- Bem, Gloucester é assim. Tenha cuidado com ele. Irá prejudicá-la, se puder. A senhora tem um bom amigo na pessoa do marquês de Suffolk.
- Tenho, e a marquesa é uma amiga queridíssima.
- Agarre-se aos dois. E aos Shrewsbury. Reis e rainhas têm muitos inimigos.
- Eles não levarão vantagem comigo - disse Margaret.
Da próxima vez em que ela foi a Waltham, o cardeal mostrou-lhe uma câmara que ele mandara preparar para ela. Chamou-a de a Câmara da Rainha, e o cardeal gastara muito dinheiro para mobiliá-la com requinte, com tapeçarias de pano e ouro de Damasco.
Margaret ficou encantada com a câmara. Tendo amigos como o cardeal e os Suffolk, ela não precisava se importar com os inimigos. E não fingiria nem um pouco que gostava deles. Deixaria muito claro ao conde de Gloucester que o considerava seu inimigo.
Margaret estava encantada com os amigos que a cercavam. com gente assim, o que teria ela a temer dos inimigos? Ela já estava reunindo o que era conhecido como o Partido da Corte, e insistia para que Alice estivesse sempre presente.
Alice ficou encantada, mas era inteligente o bastante para saber que o espírito alegre que na época vigorava no país inteiro não poderia durar. Seu marido também estava preocupado.
- É apenas uma trégua, e é isso que eles não percebem disse ele. - Terá de haver um acerto de contas em breve, e a questão de Maine e Anjou será levantada de novo. Quando o povo souber o preço que tivemos de pagar pela paz, irá pôr a culpa em mim.
- Ele não pode fazer isso - bradou Alice. - O que foi que você fez, a não ser o que considera o melhor para a Inglaterra?
- Querida, as intenções de uma pessoa têm pouco reconhecimento. Se é bem-sucedida, torna-se um herói nobre; se fracassa, torna-se um vilão.
- Ora vamos, William - disse Alice. - Você tem poder suficiente para enfrentá-los.
- Tenho medo de Gloucester.
- Hoje em dia ele não tem o mesmo poder.
- Ele sempre conseguiu causar encrencas, e agora sua amizade com York está cada vez mais consistente.
- York. Qual é a queixa dele?
- A de que ele não está usando a coroa.
- Ora, isso é um absurdo.
- Parece que sim. Mas ele calcula que ele está mais próximo, através de Clarence, do que Lancaster está através de John de Gaunt.
- Isso é recuar muito no tempo.
- Não importa. Há uma certa razão nisso.
- É coisa muito antiga.
- Como você diz, é muito antigo e há assuntos mais próximos com que me preocupar. Terei de enfrentar o Parlamento. Ora, posso dizer a eles que a delegação estará vindo à Inglaterra para discutir a trégua e que, nesse ínterim, eu aconselho o fortalecimento das fronteiras em torno de Maine.
- Isso deverá agradar a eles.
- Por enquanto. Mas o acerto de contas está chegando. Quero que eles saibam que não tenho nada a ver com o acordo que for combinado.
Alice olhou para ele com um ar um tanto duvidoso. Não lembrou a ele que quando um homem se dispunha a orientar a política de um país, a ser o ministro mais importante do país, não havia dúvida de que seria acusado se alguma coisa saísse errada.
- Ao que parece, a rainha está se adaptando perfeitamente - disse ela, para mudar de assunto.
- Ela está, mesmo, começando a mandar no rei?
- Não tenho dúvidas. Ela nasceu para mandar, e ele, para ser mandado, de modo que o resultado é inevitável.
- Alice, tente contê-la um pouco.
- É difícil. Ela é honesta por natureza. Acha difícil não expor o que pensa. Diz abertamente que considera Gloucester um veneno. Está certa de que ele está tramando destruir o rei.
- Talvez ela tenha razão, mas não devia dizer essas coisas.
Gloucester vai mostrar seu jogo se ela avançar muito. No momento, ele está fingindo apoiar o casamento... e nós sabemos muito bem que ele fez tudo o que pôde para evitar. Eu desconfio dele nesse estado de espírito.
- Margaret ainda não compreende os métodos tortuosos dos estadistas.
- Ela tem de aprender, Alice. Alice ergueu os ombros.
- Ela é uma mulher de pontos de vista muito firmes. Acho que ela faz as coisas à sua maneira.
- Se alguém pode influenciá-la, esse alguém é você.
- Ela é leal. É afetiva. Mas não vai prevaricar. Não importa o que se possa tentar fazer para mudá-la, ela será sempre Margaret de Anjou.
- E o rei?
- Ele acha que as palavras que saem dos lábios dela são pura sabedoria.
- Ela conseguiu enfeitiçá-lo.
- Ele adora a força dela. Essa força atrai a fraqueza dele. A beleza adolescente da rainha e sua baixa estatura se tornam uma atração especial para um homem como Henrique. Ele se sente protetor quando olha para ela, sabendo o tempo todo que vai contar com ela para protegê-lo.
- Bem, Alice, nós devemos rezar para que consigamos sair dessa situação com habilidade, para não sermos acusados por qualquer uma das exigências que terão de ser feitas.
Parecia que ele iria conseguir, porque quando explicou, no Parlamento, que embora não houvesse uma paz verdadeira com a França, apenas uma trégua, que as fronteiras de Maine e Anjou estavam sendo fortalecidas e que uma delegação estava indo à Inglaterra, foi aplaudido.
A Câmara dos Comuns congratulou-o pela maneira com que conduzira o assunto, e quando o duque de Gloucester apresentou uma proposta no mesmo sentido na Câmara dos Lordes, ele sentiu que se saíra realmente muito bem.
Mas muito rapidamente ficou mais aflito do que nunca. Quando Gloucester o cumprimentava, ele devia ficar mesmo muito desconfiado.
Sabia que aquilo era apenas uma pausa.
A embaixada francesa chegara à Inglaterra.
Da Cidade, seus membros seguiram por barcaça até Westminster, onde Henrique, com Margaret, esperava para recebê-los. com eles estavam o duque de Gloucester, o duque de Buckingham e o conde de Warwick. Margaret estava muito interessada em conhecer este último nobre, porque Henrique falara muito sobre seu tutor, o conde de Warwick, e parecia ter uma grande afeição por aquele severo senhor. Mas aquele não era o tal conde de Warwick, e sim um jovem muito ambicioso de cerca de dezessete ou dezoito anos, um certo Richard Neville que chegara ao título devido ao seu casamento com a filha do velho Warwick, Anne Beauchamp. Também presentes estavam os arcebispos de Canterbury e York. A embaixada francesa era chefiada pelos condes de Vendôme e Lavai e pelo arcebispo de Reims.
Logo ficou muito claro que havia apenas uma condição que o rei da França levaria em consideração para fazer a paz, e era a entrega de Maine. Aquela era a grande questão. Ele sabia, e os ingleses também, que assim que aquela província fosse entregue, a esperança inglesa de revindicar a coroa francesa acabaria.
Quando ficaram a sós, Margaret discutiu o assunto com Henrique.
- Você quer a paz - disse ela. - Devia entregar Maine. Conheço bem meu tio. Se ele diz que essa é a única condição, insistirá nela. Ele está falando sério.
- Ele está falando sério - disse Henrique. - Disso eu não duvido. Se dependesse só de mim, eu diria: "Leve Maine." Não vamos mais ter guerra. Chega de perdas de vida. Chega de tributação elevada. Mas o povo... o que ele vai dizer? Meu pai conquistou muita coisa. O povo passou a esperar vitórias.
- Ultimamente, ele tem tido muito poucas.
É verdade, e isso desde que a Donzela apareceu. Mas o povo acredita que isso vai passar. Essa guerra, entende, vem durando anos e anos, com altos e baixos. No momento, está num ponto baixo, mas eles acham que subirá outra vez.
- E no entanto, eles protestam quanto a pagar impostos para custeá-la.
- O povo sempre protesta contra o pagamento de impostos. Ele quer que a guerra acabe... mas vitoriosa para nós.
- Henrique, os ingleses estão derrotados.
- Os ingleses nunca estão derrotados até que haja a última batalha.
- Não trave mais batalhas. Elas são inúteis, Henrique. Elas não lhe trazem bem algum.
- Eu sei. A guerra é um desperdício de homens e material. As pessoas deviam estar desfrutando as belezas da vida. Mas o que posso fazer?
- Entregue Maine - disse Margaret, baixinho.
Gloucester estava alegre. O cardeal ficara doente e tivera de afastar-se de suas atividades. Um inimigo a menos, pensou Gloucester.
Ele agora concentrou o ataque em Suffolk.
Suffolk era amigo dos franceses. Tinha levado a francesa para lá. Iria vender possessões inglesas na França aos franceses, só para comprar uma bonita esposa francesa para o rei.
Será que o povo iria ficar indiferente e deixar que aquilo acontecesse? Gloucester sabia como armar uma campanha de sussurros. Derrubaria Suffolk e, talvez, o rei e a rainha. Quem sabia o que aconteceria então? Talvez seu sonho fosse realizado. Ele era o parente mais próximo.
York acreditava que tinha uma chance. York antes de Lancaster! Ele era um homem muito ambicioso. Durante as negociações do casamento de Margaret com o rei, York mantivera correspondência com o rei da França tentando arranjar um casamento para seu filho mais velho, Eduardo, com uma das filhas de Carlos. O jovem Eduardo devia ter cerca de três anos de idade. Sim, York era mesmo ambicioso, e estava de olhar fixo no trono.
Tudo muito bem. Ele seria um bom adversário de Suffolk.
Gloucester foi procurar York. Estava fazendo amizade com ele. Era isso que acontecia quando homens tinham um objetivo similar, embora a meta pudesse não ser a mesma, porque os dois estavam atrás da Coroa.
- O que acha dessa conferência? - perguntou ele a York.
- Os franceses estão pedindo a devolução de Maine e Anjou.
- E como soldado, o que diz disso?
- É o mesmo que dizer adeus à coroa da França.
- É o que eu penso. Mas nós casamos nosso rei com uma princesa francesa, não casamos?, e este é o preço pedido por ela. O preço da paz e de Margaret.
- Nós já temos Margaret. Maine é em troca da paz.
Os dois homens ficaram em silêncio, e depois Gloucester disse:
- A nossa rainhazinha é a favor de Suffolk.
- Tinha de ser. Ela o considera como o articulador do casamento dela.
- Ela gosta muito de Suffolk.
- E da mulher dele.
- Mas especialmente de Suffolk.
- Você não está querendo dizer...?
- Por que não? Ela é jovem e saudável, e eu duvido que Henrique tenha um bom desempenho.
- Não... Suffolk é dedicado a Alice Chaucer e Alice é amicíssima de Margaret.
- O que isso tem a ver com o assunto? Essa devoção por Suffolk só pode ter um motivo.
- Suffolk é velho.
- Algumas jovens gostam de um pouco de maturidade, especialmente quando estão presas a um jovem.
- O rei não é nada disso.
- No modo de agir, é.
- Não acredito.
- Como explicar, então, essa devoção?
- Ora, ele a trouxe para cá. Arranjou o casamento dela. Foi o primeiro inglês com quem ela teve contato... Ele e o cardeal. Ela também é devotada ao cardeal.
- Eu acredito que haja um relacionamento especial entre Suffolk e Margaret.
York deu de ombros. Estava um pouco impaciente. Gloucester sempre fora um louco, sempre mergulhando em aventuras malucas. Agora, estava deixando a imaginação à solta com ele.
Apesar disso, dentro de muito pouco tempo o escândalo estava sendo comentado em sussurros nas tabernas.
- Já soube...? Bem, deve ser verdade. Eu soube por uma pessoa da corte. Sim... a rainha e quem é que você acha? Suffolk!
A rainha, amante de Suffolk! Era incrível. Seria possível acreditar? Ela parecia tão jovem e inocente.
- Mas - dizia-se - você conhece os franceses. Afinal de contas, ela é francesa. Ela é inimiga.
- Dizem que os franceses estão exigindo que a gente dê tudo o que o rei Henrique conquistou. Ele iria se revirar no túmulo.
- Mas nós não vamos dar. Não podemos. O duque de Gloucester vai providenciar para que isso não aconteça.
O povo estava ficando convencido de que alguma coisa fora combinada, enquanto a embaixada francesa estava em Londres e estava sendo escondida dele.
A rainha estava persuadindo o rei a concordar com as propostas francesas. Claro que estava. Ela era uma deles. Ela era inimiga.
As pessoas já não portavam a margarida. Alguma coisa estava muito errada, e elas culpavam Margaret.
Nunca se pode confiar nos franceses, diziam elas. A curta popularidade de Margaret chegara ao fim.
Quando Suffolk ouviu os rumores, não teve dúvida de quem os iniciara. Estava ciente da amizade entre Gloucester e York. Eles estavam armando um caso contra ele, e o fato de terem envolvido o nome de Margaret mostrava claramente que estavam tentando virar o rei contra ele.
Não adiantava protelar. Era perfeitamente óbvio que Maine teria de ser entregue. A rainha estava persuadindo o rei e este queria satisfazê-la e conseguir a paz.
Tinha de ser. Suffolk teria concordado logo, se não tivesse ficado com medo do efeito sobre o povo, sabendo que iriam transformá-lo no bode expiatório. Gloucester providenciaria para que isso acontecesse. Era evidente que ele já estava pondo sua maldade em ação.
Suffolk foi falar com o rei. Não era difícil manobrar os temores dele e ele estava sempre pronto a acreditar no pior a respeito de Gloucester. A questão do envolvimento da duquesa com a Feiticeira de Eye e os outros afetara muito Henrique. Ele acreditava que um dia seu tio armaria um golpe, depois iria assassiná-lo e tomaria o trono.
Portanto, era simples.
Gloucester fizera um longo discurso no Parlamento, insistindo para que a trégua fosse violada. Ele estava alimentando um sentimento contrário aos franceses, e isso era uma ameaça ao casamento do rei.
- Vossa Majestade está vendo - disse Suffolk - que temos de tomar uma providência. Sabemos que ele está em conluio com York. Pelo menos Gloucester pode estar tramando contra Vossa Majestade.
- Isso não me surpreenderia - disse Henrique. - A mulher dele fez isso uma vez, e acredito que ele pode muito bem tê-la apoiado. Ele está esperando a oportunidade para tentar de novo.
- Majestade, na minha opinião, devemos convocá-lo para enfrentar o Parlamento e responder a certas acusações.
O rei hesitou. Era uma pena o cardeal ter-se retirado para Waltham. Claro que ele poderia ir visitá-lo, mas agora o velho estava inteiramente afastado da política.
Henrique tinha de tomar uma decisão sozinho.
- Onde está Gloucester agora? - perguntou ele.
- Ouvi dizer que está no País de Gales, majestade.
- No País de Gales? O que ele estaria fazendo lá?
- Provocando encrencas, sem dúvida. Ouvi dizer que está reunindo um exército.
Para vir contra mim! Ah, estou cansado desse meu tio.
Desde quando eu me lembro, ele não tem sido outra coisa que não uma ameaça.
- Leve-o perante o Parlamento e ele que responda às acusações apresentadas contra ele. O Parlamento estará se reunindo em Bury no dia 10 de fevereiro. É desejo de Vossa Majestade que Gloucester seja intimado a comparecer?
- Sim - disse o rei -, é este o meu desejo.
E assim Gloucester foi chamado a Bury para comparecer ao Parlamento e responder a certas acusações que seriam apresentadas contra ele.
Gloucester estava morto. O país estava perplexo. Sabia-se, é claro, que fora assassinado. Nas cidades e no interior, falava-se sobre o caso.
A notícia espalhou-se com rapidez. Ele cavalgara por Lavenham, a caminho de Bury. Muitas pessoas o tinham visto - o mesmo de sempre, esplendidamente vestido, sorrindo e respondendo às saudações do povo, certo de sua popularidade. Muita gente sabia que ele era um tanto bandido, mas gostava de sua bandidagem. O rei era um santo, diziam. Nem todo mundo podia ser assim, e os santos eram pessoas constrangidas. Sim, eles gostavam de bandido, e apesar de toda a sua libertinagem e suas loucuras, Gloucester mantivera um lugar no coração do povo. O casamento com uma mulher que era humilde comparada a ele e sua devoção a ela agradavam ao povo. A devoção continuava, e mesmo agora ele estava tentando obter a libertação dela. Sim, Gloucester era uma figura popular.
O que acontecera? Cavalgando para Bury, ele tinha sido interceptado pela guarda do rei, recebera ordem de voltar a seus aposentos e depois de alguns dias foi anunciado que ele tinha morrido. Ele adoecera e morrera. O povo simplesmente não acreditava que ele morrera de causas naturais.
O tempo estava horrível, é claro - muitas pessoas tinham morrido de frio -, tinha sido o pior inverno de que muitos se lembravam; o Tamisa congelara, e o mesmo acontecera com todos os rios do país. O duque levara uma vida desregrada durante anos para que isso não tivesse seus efeitos sobre ele. Mas morte súbita? Não.
No dia seguinte à sua morte, o corpo foi exibido. Os lordes e cavaleiros do Parlamento e o povo foram em massa para vê-lo. Não havia sinal de ato criminoso. Havia insinuações tenebrosas sobre Eduardo II, que morrera misteriosamente no castelo de Berkeley. Eles haviam enfiado um tição em brasa em seu corpo, destruído seus órgãos internos, e não ficara sinal algum de crime no corpo, exceto aquela expressão de agonia no rosto frio, imóvel. Era muito bom os inimigos dele expressarem seu pesar e mandarem o corpo de Gloucester ser levado com pompa para St. Albans, a fim de ser enterrado no belo jazigo que tinha sido preparado para ele enquanto vivia. Não era o suficiente. O povo não acreditaria que ele morrera de causas naturais.
Além do mais, os criados dele tinham sido presos. Eles foram acusados de tramar para fazer do duque Humphrey o rei. O filho ilegítimo de Gloucester conhecido como Arthur foi preso com eles e, incluindo-se quatro deles, foi condenado à morte dos traidores.
Henrique estava contrariado. Não podia deixar de sentir-se aliviado pelo fato daquele criador de casos, Gloucester, ter sido eliminado, mas ao mesmo tempo tinha aversão à ideia de homens serem submetidos à horrível morte dos traidores.
- Eles tramaram contra você - lembrou-lhe Margaret.
- Se fizeram isso, foi por ordem de Gloucester - disse Henrique. - Ele é que devia ser condenado.
- Bem, ele agora pagou o preço.
- O que quer dizer? - perguntou Henrique, rápido.
- Quero dizer que Deus o levou enquanto ele cometia suas iniquidades.
- Espero que um padre tenha estado com ele no final.
- Henrique - disse Margaret, rindo -, você vai sempre gostar muito de seus inimigos?
Suffolk foi visitá-los. Ele não queria comentar sobre os rumores que estavam aumentando. Eram embaraçosos demais. Era totalmente absurdo ligar seu nome ao de Margaret.
Alice iria rir da ideia. Outros poderiam não rir.
Mas ele percebia que se os membros da criadagem de Gloucester fossem condenados, seria o mesmo que dizer que houvera uma trama, e caso se confirmasse isso, iria parecer que Gloucester bem que poderia ter sido assassinado.
Ele expôs o caso ao rei.
- O duque de Gloucester morreu como agiu a vida toda disse ele. - Por isso quero dizer que ele morreu para causar o máximo de transtorno aos que o cercavam. Não acredito que houvesse uma trama contra a Coroa. Se havia, o povo vai dizer que Gloucester foi assassinado... sem julgamento. Isso não é verdade. Se não havia trama, parece muito provável que Gloucester tenha tido uma morte natural, que poderia ser a melhor das soluções. Majestade, acho que o melhor será libertarmos os criados do falecido duque.
Nada poderia agradar mais a Henrique. Agora ele não ficaria perturbado pelas revoltantes coisas que seriam feitas com aqueles homens. Aceitou a ideia com entusiasmo.
- Vamos libertá-los - disse ele. - Eles já foram castigados demais por esperar um destino terrível. Sim, ponha-os em liberdade. Não havia trama alguma. Meu tio morreu de velhice e da tensão a que ele submeteu seus anos de vida com uma vida devassa.
E assim eles foram libertados. Mas isso não acabou com os rumores.
O povo ainda insistia na ideia de que Gloucester fora assassinado. Ele era inimigo do duque de Suffolk, e a rainha demonstrara que o odiava.
A rainha ajudara a planejar o assassinato, sussurrava-se, e se ela não o cometera pessoalmente, era tão culpada quanto os que o tinham cometido.
E assim Margaret, que cavalgara pelas ruas de Londres sendo aclamada pelo povo e diante de margaridas que eram agitadas, agora era chamada de "Adúltera. Assassina. E francesa!".
Margaret achava difícil compreender a mudança na atitude do povo para com ela. Quando saía a cavalo, era saudada por olhares mal-humorados. Eles não a ofendiam. Sussurravam enquanto ela passava, e ela procurava em vão pelas margaridas. Perplexa e magoada, ela perguntou a Alice:
- Por que me culpam pela morte de Gloucester?
- Eles vão sempre culpar alguém - disse Alice, consolando-a. - Eles também acusam William.
- É verdade que eu o odiava - disse Margaret. - Mas outras pessoas também devem tê-lo odiado.
- O povo sempre procura bodes expiatórios entre os membros da nobreza - lembrou-lhe Alice.
- Isso me deixa infeliz e... aflita. Sim, pensou Alice, era isso mesmo.
- Você agora terá de agir com muito cuidado. Não deve demonstrar a satisfação que sentiu com a morte dele.
Margaret deu de ombros. Achava muito difícil esconder seus sentimentos e não podia deixar de sentir-se aliviada com a morte de Gloucester.
Ela foi a Waltham visitar o cardeal. Ele teria conselhos a lhe dar.
Ficou horrorizada ao encontrá-lo de cama. Parecia muito doente - pior que da última vez que o visitara.
Sentiu que não poderia preocupá-lo com seus problemas. De qualquer modo, parecia doente demais para ouvi-los. Mas ele ficou contente ao vê-la e ela sentou-se ao lado da cama e tentou ficar alegre.
Disse que ele tinha de melhorar. Ela precisava dele.
- A senhora vai se sair bem - disse ele. - Vai cuidar do rei. Só uma vez ele falou em Gloucester.
- Aquele criador de casos se foi - disse ele. - Bem, foi um fim adequado. Sabe que me disseram que algumas pessoas me acusaram de ter participado da morte dele? - O rosto dele se enrugou para formar um sorriso. - A senhora não me vê em condições de cometer um assassinato.
- Eles dizem qualquer coisa... qualquer coisa! - bradou Margaret com veemência.
- É verdade. Mas essas coisas são logo esquecidas. Eles olham à sua volta. "Quem era inimigo de Gloucester?", perguntam. "Ó... o cardeal." Todo mundo sabia da inimizade existente entre nós. Ela existia fazia anos. Sempre percebi a ameaça que ele era para a Coroa, para a Inglaterra. Pena que outras pessoas não tenham visto, também. O irmão dele, Beauford, sabia. Pois bem, ele já se foi. Não pode mais criar encrencas aqui na Terra. E você, querida menina, perdoe minha temeridade de me dirigir assim à minha rainha, mas para mim você é uma menina querida e eu a amo e tenho muita fé em você. Acho que você pode ser exatamente aquilo de que o nosso rei precisa. Ele a ama. Quem não amaria? Querida senhora, tem de orientá-lo sempre. Cuide do rei... Ele vai precisar de seus cuidados. Ele está cercado de inimigos... mas o maior deles agora está morto. Cuide bem dele...
- vou cuidar, vou cuidar - disse Margaret, com fervor. Mas o senhor fala como se fosse nos deixar. Não vai. Não consentirei isso. O senhor vai ficar conosco. Eu preciso do senhor.
- Deus a abençoe - disse o cardeal.
Margaret estava sentada ao lado da cama dele e via como estava cansado. Ele tentou esforçar-se para se levantar quando ela se retirou, mas ela não deixou. Curvou-se e o beijou.
- Voltarei para vê-lo... em breve - disse ela.
Mas não voltou, porque poucas semanas depois o cardeal morreu.
A dor que ela sentiu foi grande. Acreditava ter perdido o seu pior inimigo, e muito pouco depois, seu melhor amigo.
Alice estava muito preocupada. Não gostava dos rumores que circulavam sobre a morte de Gloucester. Falou com o marido sobre isso.
- Você se preocupa sem necessidade - assegurou-lhe ele.
- A morte de Gloucester foi a melhor coisa que poderia nos ter acontecido.
- Sim, teria sido se ele tivesse morrido sem mistério.
- O caso será esquecido em breve. Enquanto isso, há muito a ganhar. Gloucester era rico, e o que acontecerá com as suas propriedades? A mulher dele, uma prisioneira suspeita de tramar contra a vida do rei por meio de feitiçaria, não pode reivindicar coisa alguma. Será necessário desfazer-se dos bens dele. Eu lhe prometo que não deixaremos de tirar proveito disso.
- Eu não estava pensando em bens - disse Alice.
- Como eu disse, você se preocupa sem necessidade. Vai dar tudo certo. Margaret vai ficar com algumas propriedades, mas nós pegaremos a nossa quota.
Alice teve um arrepio.
- O que há com você?
- Nada. Se você diz que está tudo bem, está tudo bem. Ele olhou para ela, sério. Gostava muito de Alice e nunca se arrependera do casamento deles. Ela lhe dera dois filhos e uma filha e a união tinha sido muito boa. Era uma mulher inteligente, também, e realmente passou um pouco de sua apreensão para o marido. Ele acabou admitindo.
- Gloucester era meu inimigo - disse ele -, e era um louco.
- Exatamente - replicou Alice. - Você agora sabe o que tenho em mente.
- Haverá outro inimigo... menos louco, talvez. Alice balançou a cabeça.
- E você sabe quem vai ser. Suffolk respondeu em uma sílaba.
- York.
- Ele não se portará de forma tão inconsequente ou tão maluca quanto Gloucester.
- Se o rei pudesse arranjar um herdeiro, isso faria com que a coisa ficasse menos fácil para York.
- York ainda estaria lá. Há uma determinação nele. Vai esperar o momento oportuno.
- Mas se a rainha tiver um filho, o povo vai adorar a criança. Margaret irá recuperar parte da popularidade que perdeu.
- Se tiver um filho.
- Então não há sinal algum?
- Nenhum. Ela me diria, se houvesse. Eu sei que ela está impaciente e frustrada porque não parece ser capaz de conceber.
Um filho fará uma diferença enorme. O povo até poderia passar a usar margaridas de novo.
- Temos de rezar por um filho.
- Com fervor. Precisamos desse filho. Enquanto isso, não se preocupe com York. Ele tem de esperar o momento oportuno.
- E vai esperar - disse Alice.
- Nesse ínterim, haverá um filho. Tem de haver... e por que não haveria? Os dois são jovens e saudáveis. O rei é louco por ela, e ela gosta muito do rei. Vai acontecer. É por estarem ansiosos demais que eles falham.
Alice colocou a mão sobre o braço dele.
- Temos de ficar vigiando York. O marido balançou a cabeça.
Poucos dias depois, ele voltou a procurá-la, evidentemente muito animado.
- Boas notícias, meu amor - disse ele. - Acho que você vai gostar.
Ela olhou para ele, na expectativa.
- York vai ser banido para a Irlanda.
- Banido?
- Bem, é como se fosse. Ele foi nomeado representante do rei lá, por dez anos. Isso irá tirá-lo de cena por algum tempo.
- Ele deve estar furioso.
- Está. Mas o que ele pode fazer? Não pode dizer: "Quero ficar na Inglaterra e fazer uma tentativa de pegar a coroa", pode? Tem de se submeter com toda a gentileza. Tenho a impressão de que ele vai adiar a partida o máximo que puder. Pouco importa. Ele terá de ir para a Irlanda.
- Henrique concordou?
- Tive apenas de dizer a ele que era uma coisa boa, e Margaret ajudou, porque eu explicara tudo a ela antes.
- Parece que é preciso falar com a rainha antes de se falar com o rei.
- Bem, isso é verdade. Margaret pretende governar, e Henrique tem o maior prazer em deixar alguém assumir o papel que na verdade ele jamais quis.
- É realmente uma boa notícia.
- E haverá mais. Há alguns títulos importantes vindo em nossa direção. Já tenho o condado de Pembroke.
- Do legado de Gloucester? - acrescentou Alice, tranquila.
- É, e não apenas isso, mas tesoureiro e condestável de Dover e diretor dos Cinque Ports. vou ser almirante da Inglaterra, também. O que acha disso?
- Fiquei incapaz de me mexer com tanta honraria, e você também deve estar.
- E além do mais, senhora marquesa, que tal tornar-se uma duquesa?
- Então... isso também.
- Você está olhando para o duque de Suffolk.
- O rei deve estar muito satisfeito com você. Ele deve gostar muito de você.
- O rei - disse o novo duque de Suffolk - e a rainha também.
NICHOLAS DA TORRE
Henrique sentia-se mais feliz do que nunca. Estava encantado com o casamento. Acreditava estar cercado por bons ministros chefiados pelo duque de Suffolk, mas estava
triste porque seu tio-avô, o cardeal, tinha morrido. Aquilo tinha sido uma tristeza, e Margaret sentira profundamente. Ela gostara muito do velho e ficara muito emocionada com o fato de ele ter-lhe deixado o belo damasco escarlate e a cama que mandara fazer especialmente para ela usar quando de suas visitas a Waltham.
- vou sempre guardá-los com muito carinho - disse ela, mas chorou amargamente e ficava triste todas as vezes em que os via.
Mas ela estava se recuperando da dor e se interessava pelos planos de construção de Henrique. Eles visitavam a obra com frequência. Ele gostara de mostrar a Margaret o College of the Blessed Mary de Eton, ao lado de Windsor. Ele lhe explicara como tinha sido interessante estudar os projetos para o prédio e o benefício que ele representaria para os estudiosos. Eles seguiam da faculdade para aquela que ele estava construindo em Cambridge. Ele iria chamá-la de College Royal ou de Kings College to Our Lady and St. Nicholas.
Margaret ficou muito interessada. Disse que gostaria muito de fundar uma faculdade.
E devia, mesmo, disse Henrique, e pensou em como era muito mais agradável aquilo do que as eternas negociações e planos para a guerra.
Juntos, eles foram a Cambridge, e lá Margaret conheceu um certo Andrew Doket, que era o reitor da St. Botolphs, de lá. Ele ficou muito contente com o interesse do rei e da rainha, porque já colocara as pedras de fundação e estava procurando ajuda para levantar o prédio de uma faculdade. Aquilo era a sua maior ambição, mas uma falta de fundos era uma tremenda desvantagem para o avanço. Mas em vista do interesse real suas esperanças estavam nas alturas, e já que Margaret queria fundar uma faculdade, por que não trabalhar em conjunto com Doket?
Ele pretendera chamar a faculdade de The College of St. Bernard, já que antes de tornar-se reitor de St. Botolphs ele fora diretor do Albergue St. Bernard. Mas ele estava pronto a mudar o nome a fim de ter a faculdade construída, e ficou decidido que ela deveria chamar-se Queens College of St. Margaret and St. Bernard.
Assim, Margaret ficou com um projeto que se igualava ao do rei, e os dois passavam muitas horas felizes irradiando entusiasmo, discutindo planos e visitando locais de obra. Eles também tinham a literatura em comum. Margaret gostava muito da obra de Boccaccio, e ela e Henrique liam juntos os trabalhos dele. E ainda havia a caça para ocupar Margaret. Henrique não a acompanhava com o mesmo entusiasmo, mas Margaret adorava cavalgar, porque depois de algumas horas com os livros, ela achava a perseguição à caça estimulante. Adorava seguir à frente das demais pessoas do grupo, para ser a primeira a atacar a caça acossada. Aquilo era algo que Henrique gostava de evitar, porque detestava o derramamento de sangue, mesmo de animais.
Quando Margaret descobriu que alguns dos cortesãos tinham estado caçando na floresta real, imediatamente deu ordens para que a caça fosse preservada absolutamente para uso dela. Henrique nunca dera uma ordem daquelas, e o fato de Margaret ter feito aquilo sem consultá-lo indicava sua natureza dominadora. Por que deveria ter consultado Henrique?, teria ela perguntado. Ele iria concordar em dar-lhe o que ela queria. E isso era verdade. Henrique estava vivendo num estado de felicidade bem-aventurada. Tinha uma bonita rainha que ele amava e que o amava. A descabida guerra com a França estava desaparecendo aos poucos. Ele fizera a paz com o seu casamento, e Margaret e ele, com seus livros, sua música e sua fundação de faculdades, eram felizes.
Por enquanto, eles ainda não tinham filhos, e isso era uma fonte de desapontamento; mas teriam. Margaret era muito jovem, e ele não era velho.
Quando o filho deles nascesse, eles teriam atingido a perfeição.
Ele lamentava profundamente a morte do cardeal, mas então, como que para compensar isso, Gloucester também tinha morrido. York iria para a Irlanda - embora estivesse demorando muito para partir. Tudo podia ser deixado em segurança nas competentes mãos do duque de Suffolk, e Henrique só precisava preocupar-se com sua vida feliz.
E era, realmente, uma época feliz. Ele e Margaret percorreram os mosteiros do país. Foram ao convento Austin de frades, em Lynn, e chegaram até Durham, ao norte.
Em meio a todos aqueles prazeres mútuos, Margaret recebia cartas da França; entre elas estava uma de seu pai. Ele reclamava que tinha havido grandes demoras e implorava, para o bem da Inglaterra, dizia ele, e também para o bem da França, para que ela insistisse na entrega de Maine ao rei da França.
Margaret pensava muito no assunto. Ela sabia que os ingleses estavam se agarrando a Maine como uma das mais importantes de suas possessões na França. Eles deviam entregá-la. Ela pertencia à França, e se fosse devolvida
àquele país, o pai de Margaret sairia lucrando, porque a província seria reintegrada à Casa de Anjou.
Margaret escreveu ao pai. "vou atender ao seu pedido no que estiver ao meu alcance, como já fiz."
Ela e Henrique tinham tido um dia feliz. Tinham ido até as faculdades e deliciado-se com uma pequena rivalidade amigável que deixava Henrique encantado.
Ela era muito afável, muito divertida e muitíssimo bonita. Ele dizia a si mesmo que tinha recebido uma bênção fora do comum com o casamento.
Quando os dois ficaram em seus aposentos, ela sentou-se a seus pés com um livro no colo. Leria em voz alta para ele; mas depois de ler um pouco, ela pôs o livro de lado e disse:
- Ah, quem dera que pudéssemos ter uma paz absoluta. Eu penso que se pudesse ter um filho e paz entre os nossos países, eu conheceria a felicidade perfeita.
- O filho virá - disse Henrique. - E a paz... bem, no momento, não existe uma guerra ativa.
- Nós temos uma trégua! - bradou ela. - O que é uma trégua? Significa que a guerra pode irromper a qualquer momento.
- É - concordou ele, sério.
- E a possibilidade da guerra poderia ser afastada imediatamente.
Henrique abanou a cabeça.
- Sim - insistiu ela. - Maine. Ela é tudo que está entre nós e o fim dessa guerra.
- Se eu tivesse certeza...
- Sim? - perguntou ela, ansiosa. - Se você tivesse certeza que entregar Maine iria acabar com a guerra, você a entregaria?
- Entregaria - bradou ele. - Entregaria, sim.
Ela se levantou e, aproximando-se dele, passou-lhe os braços pelo pescoço.
- Então, não há mais dúvida - disse ela.
Ele abanou a cabeça.
- O Parlamento...
- O Parlamento. Você é o rei. Henrique, não posso suportar quando você deixa que outros mandem em você. Você é o rei. Cabe a você decidir.
- Sim, cabe a mim decidir - repetiu ele. Ela levou pena e papel para ele.
- Henrique, escreva isso. Diga que vai abrir mão de Maine... pela paz.
Henrique hesitou, mas só por um instante. Ela estava tão insistente e era tão bonita! E inteligente, também. Muito mais do que ele. E queria mesmo agradá-la.
Além do mais, ele queria desesperadamente a paz.
Ela ficou triunfante. Estava resolvido. O rei concordara em entregar Maine.
com que então Maine seria entregue e Edmund Beaufort, duque de Somerset e sobrinho do cardeal, estava na França com Adam Moleyns, bispo de Chichester, para combinar os termos da paz.
O rei da França não estava ansioso por fazer a paz, a menos que conseguisse o que queria e ele sabia que era impossível fazer com que os ingleses concordassem com aquilo. O que ele queria era expulsar os ingleses da França e fazer com que eles desistissem para sempre de sua reivindicação da coroa da França. Eles não estariam dispostos a fazer aquela concessão - mas a entrega de Maine era um bom golpe de sorte que servia como motivo para se ir levando o caso. Tudo o que ficara combinado era uma prorrogação da paz por dois anos.
O Parlamento estava muito angustiado. Eles não deviam ter entregue Maine, mas, por outro lado, não estavam em condições de continuar a guerra. Os franceses estavam ficando prósperos sob o comando de um rei que, quando era jovem, parecera irrecuperável. Os ingleses tinham um rei que não ligava para a guerra e não tinha competência para fazê-la. A Inglaterra não estava em condições de continuá-la, mas por outro lado eles tinham de sair dela com algumas vantagens.
A entrega de Maine foi um grande erro, e por ele acusaram a rainha e Suffolk.
Bem, havia uma trégua, e isso poderia dar a eles tempo para constituir um exército, aumentar impostos - se o povo não se revoltasse e se recusasse a pagá-los. Era tempo de espera, mas a inquietação aumentava.
Então, aconteceu um desastre. Francis l'Arragonois, um dos capitães ingleses, vendo o acúmulo de armas francesas e sabendo que um ataque aconteceria mais cedo ou mais tarde, antecipouse a eles e entrou na Bretanha, ocupou várias fortalezas e capturou a cidade de Fougères.
Foi um ato impensado, porque deu aos franceses exatamente a oportunidade que eles queriam. Os ingleses tinham rompido a trégua. Muito bem, isso significava que ela terminara. Agora não havia nada para impedi-los. Eles estavam prontos. Em muito pouco tempo, eles tinham capturado a Normandia.
A perda da Normandia desmoralizou os ingleses. Acontecera a mesma coisa havia muito tempo, no reinado do rei João. A Normandia passara para a Inglaterra com o Conquistador e fizera parte da tradição inglesa desde a Conquista.
O povo ficou pasmo. O que tinha acontecido com as gloriosas vitórias de Henrique V? Fora pouco mais de trinta anos atrás que os sinos estavam tocando, e o país se rejubilava por causa de Ágincourt.
E agora... o desastre. A entrega de Maine significara o começo da rendição à França. E eles tinham deixado que aquilo acontecesse. O rei, não... ele era fraco demais para isso. Ele fora obrigado a fazê-lo. Pelos seus ministros, pelo grande duque de Suffolk e pela rainha. O duque de Somerset era um tolo. Tinha sido derrotado na França, e ele e o bispo Moleyns mereciam ser enforcados.
Havia uma inquietação por todo o país.
O idílio de Henrique fora rudemente destroçado.
Eles estavam perdendo a França. Muito bem, que perdessem. Ele estava contente com a Inglaterra. Queria ver o povo feliz. Queria estimular os artistas. Queria que seu povo apreciasse a boa música e a boa arte, tivesse colégios onde estudar. A guerra era a última coisa que ele queria. Que abandonassem a França... a França toda, se necessário, e que se concentrassem em ser felizes na Inglaterra.
Suffolk foi a Windsor para falar com ele. Era um novo Suffolk, um homem preocupado. Sua autoconfiança estava se desmoronando.
- Senhor, senhora. - Os olhos dele estavam dirigidos para a rainha. Ela compreendia aqueles assuntos melhor do que o rei.
- Más notícias.
- Nada de mais perdas - bradou Henrique. - O povo devia pensar mais em rezar.
- Rezar de pouco adiantará para salvar Moleyns agora. Ele tinha ido até Portsmouth para pagar os marinheiros pelo
trabalho de transportar os soldados para a França, e se hospedou na estalagem chamada Gods House.
Margaret levou a mão ao seu coração que batia descontrolado. Ele está com medo de nos contar, pensou ela. É por isso que está hesitando.
- Senhor duque - começou ela. - William, conte-nos o pior. Nós temos de saber.
- Bem, majestade, os marinheiros começaram a discutir sobre o pagamento. Disseram que não era suficiente e acusaram Moleyns de ter ficado com ele. Moleyns respondeu com um certo desdém, pelo que entendi, dizendo que eles estavam sendo tolos. Então, eles começaram a gritar: "Normandia. Você perdeu a Normandia que era nossa." E depois avançaram sobre ele.
- Ora essa, ora essa! - bradou o rei. - Eles não... o machucaram...
- Eles o mataram, majestade. Surraram-no tanto que pouco depois ele morreu.
Margaret olhou para Henrique. Ele ficara muito pálido. A ideia de violência o irritava.
- Foi a turba - bradou ela. - Eu a odeio. Eles agem sem motivo...
Suffolk falou em tom pausado:
- Isso mostra para que lado o vento começou a soprar. Ele tinha razão. Seus inimigos estavam se reunindo. Maine tinha sido entregue, Rouen, perdida. Somerset poderia ser o culpado até certo ponto, Moleyns pagara o castigo, mas o líder era Suffolk e agora era a sua vez.
Pouco depois do assassinato de Moleyns, Suffolk foi levado para a torre.
Alice, duquesa de Suffolk, foi à torre e pediu para que a deixassem ver o prisioneiro.
Quando foi levada para a pequena câmara onde ele estava sentado, ela correu até ele e foi erguida nos braços do marido.
- William - bradou ela -, como é que isso pôde acontecer? Como é que eles...
- Eu sou o bode expiatório, Alice.
- Alguma coisa tem de ser feita - bradou ela. - Eles jamais deixarão que isso continue. O rei... a rainha...
- Eu duvido que qualquer um deles tenha o poder de impedi-lo, Alice.
- O que foi que você fez, a não ser sempre servir ao seu país? Suffolk ficou calado. Ele servira ao seu país, era verdade, mas não podia negar que ao mesmo tempo servira a si mesmo muitíssimo bem.
Ele sentou-se e cobriu o rosto com as mãos.
- É como uma profecia que se torna realidade. Lembra-se de que há muitos anos um adivinho me disse que se eu pudesse fugir da torre viveria? Se não fugisse, morreria.
- Uma profecia que vale para a maioria dos prisioneiros da torre... - disse Alice, com desprezo. - Mas tire essas ideias tolas da cabeça. O que vai acontecer? Você vai ter uma audiência, e como é que alguém poderia apresentar acusações contra você?
- Vão me acusar de dar Maine aos franceses.
- Mas aquilo tinha de acontecer. Era o preço da paz.
- Mas não comprou a paz. Eles vão me acusar de perder a Normandia.
- Você não estava lá. Somerset estava no comando.
- Isso pouco importa. Eles querem apresentar essas coisas contra mim, e o farão. Eles me acusaram de muitas coisas.
Um silêncio caiu entre os dois. Sim, o povo o acusara... do assassinato de Gloucester, de ser amante de Margaret.
Quaisquer acusações em que se pudesse pensar seriam apresentadas contra ele. Quando um homem estava caído, tudo podia lhe acontecer.
- Não vamos perder as esperanças - disse Alice. - vou falar com a rainha.
- Tenha cuidado. Eles odeiam a rainha. Não vamos envolvêla nisso mais do que ela já está envolvida. Pode não nos ajudar em nada e também prejudicá-la. Seja paciente, Alice. Tenho de enfrentar o Parlamento e posso me sair muito bem, eu lhe prometo.
- Mas se eles estiverem decididos a declará-lo culpado...
- Eles têm de provar, minha querida. Não cheguei a essa posição da qual tanta gente quer me derrubar sendo irresponsável ou sem astúcia.
- Eu sei. Confio em você, William. Você se sairá dessa como se saiu de outras situações. Só que ver você aqui...
- Isto é a torre. Ela tem esse efeito. Foram muitas as coisas cruéis que aconteceram nesta sombria fortaleza. Mas eu vou me sair bem dessa confusão. Assim que me deixarem sair da torre, tudo correrá bem.
- Eu acredito em você - disse Alice.
Tinha de acreditar. Não podia suportar pensar de forma diferente.
Ele ficou diante de seus pares e ouviu as acusações.
Eles declararam que ele conspirara para garantir o trono para seu filho John Polé ao contratar para ele um casamento com Margaret Beaufort, filha do primeiro duque de Somerset. A menina tinha apenas dois anos de idade quando o pai morrera e fora levada para a casa de Suffolk, a fim de ali ser educada até o momento em que pudesse casar-se com o filho dele. Aquilo era um absurdo. Ele não tinha aquela intenção. Haveria muita gente reivindicando o trono antes de Margaret Beaufort. A verdadeira queixa era a perda de Maine e Anjou, que tinham sido entregues aos franceses. Suffolk foi acusado de trabalhar para os franceses e dizia-se que era por isso que entregara aquelas importantes províncias. Além do mais, ele deixara de fornecer forças e armas adequadas ao exército que servia na França e, por isso, era responsável pelo fracasso do momento. Aquelas eram as principais acusações, mas foram apresentados outros depoimentos de que houvera uma certa má administração de bens e dinheiro e que Suffolk se beneficiara de um número demasiado grande de transações envolvendo os interesses da nação.
Estavam decididos a condená-lo, e ele sabia disso. Mas ele também tinha seus poderes. Não seria derrotado com facilidade. Poderia sair-se muito bem.
Foi levado de volta para a torre.
Alice foi procurar a rainha. Atirou-se aos pés de Margaret e, agarrando-lhe a mão, implorou para que a ajudasse.
- Eles vão condenar William - disse ela. - Já se decidiram. Estão todos contra ele.
- Nem todos - disse Margaret. -Nós iremos salvá-lo. Eu lhe prometo, Alice. Venha falar com o rei agora mesmo. Ele dará uma ordem para que William seja liberado dessas acusações ridículas.
Alice beijou a mão da rainha. Havia lágrimas em seus olhos.
- Eu sabia que Vossa Majestade seria uma boa amiga minha.
- Claro que sou sua amiga. Acha que algum dia vou me esquecer de como cuidou de mim quando eu era tão jovem e estava tão apreensiva? Você e William são os meus primeiros amigos na Inglaterra. Claro, Alice, que não vamos permitir que aqueles malvados façam mal a William. Eles vão retirar as acusações imediatamente. Venha, vamos falar com o rei.
Henrique ficou tão amargurado quanto Margaret. William era um bom amigo seu. Ele confiava em William.
- Você tem de mandar que eles o soltem da torre imediatamente - disse Margaret.
Ele olhou para ela com um ar muito triste. Havia muita coisa que Margaret não compreendia. Ele era o rei, sim, mas em grande parte era governado pelo seu Parlamento, e não podia ordenar a soltura de um homem que eles tinham condenado.
- Não vai ser tão simples assim - explicou ele. - Os londrinos estão contra William, e o Parlamento sempre tem medo dos londrinos. Entende, o povo não compreende que nós tínhamos de entregar Maine em troca da paz. Eles culpam William pela perda de Maine.
Margaret não enfrentou o olhar de Alice. Não podia. Não tinha sido ela que persuadira o rei, porque seu pai e seu tio tinham querido a entrega de Maine? Ela ajudara a criar aquela situação e era, em parte, responsável pela desgraça que atingira seus amigos.
-- A guerra não poderia ter continuado - disse ela, rápido.
- Nós tínhamos de ter a paz. Se perdemos quase toda a Normandia, isso não é culpa de William.
- O povo vai ter o seu bode expiatório - disse Henrique.
- E eles se decidiram por William - acrescentou Alice. Houve silêncio por algum tempo, e então o rei disse:
- Não posso mandar que ele seja solto. Se o fizesse, poderia haver arruaças pelo país inteiro. Posso mandar que ele seja banido. Sim, esta é a solução.
- Banido - bradou Alice.
- Sim, minha querida. Ele irá para o exterior por uns tempos, e você poderá juntar-se a ele. Depois de algum tempo, ele voltará.
Margaret olhou para Alice. Viu o nascer da esperança em seus olhos.
O rei dera a ordem de banimento. Suffolk deveria ficar fora da Inglaterra durante cinco anos. Alice foi visitá-lo na torre.
- Não está vendo, isso é uma comutação de pena - disse ela.-William, eu tenho estado tão desesperada, com tanto medo! Mas Margaret e Henrique são nossos amigos. Henrique faz isso porque é a única maneira de combater seus inimigos.
- Ser banido do país ao qual servi... de meu lar...
- Não fale assim - disse Alice. -Agradeça e alegre-se. Eles estavam querendo sua vida. Lembre-se do que já fizeram com outras pessoas. Eles teriam conseguido a sua cabeça, não fosse a intervenção do rei. A rainha foi maravilhosa. Ela é uma amiga de verdade... uma amiga fiel. Ela insistiu para que o rei agisse e você sabe que ele faz tudo o que ela diz. Você irá para a França. Lá, você ficará... talvez nem cinco anos, e eu irei me juntar a você. E talvez as crianças...
- Eles vão confiscar nossas propriedades.
- Nós as teremos de volta, William. Seja agradecido. Eles o transformaram em bode expiatório por uma derrota inevitável. Mas alegre-se por ter escapado com essa facilidade.
Os dois ficaram sentados juntos, calados. Então, ele disse:
- Você é um grande consolo para mim, Alice, e sempre foi. Ele estava mais animado quando eles se despediram e dedicou-se a se preparar para deixar a prisão.
O ar frio de março era estimulante depois do confinamento da torre. Alice estava certa. Sairia tudo bem. Os muros da torre eram suficientes para enervar qualquer homem quando ele se via prisioneiro entre eles. Dali a seis semanas ele deixaria a Inglaterra. Não estaria a salvo enquanto não tivesse feito isso, mas aquelas seis semanas podiam ser passadas em sua propriedade em Suffolk. Lá, ele poderia ficar cercado pela família. Poderia pôr seus negócios em ordem.
Um dos guardas da torre aproximou-se dele enquanto ele estava de pé, olhando o rio, inalando o ar fresco da manhã.
- Meu senhor - disse o guarda -, o senhor deve sair da cidade sem chamar atenção. Seria imprudente ir com sua comitiva. O povo está resmungando contra o senhor. Fuja em silêncio, apenas com um criado. Assim, talvez não seja reconhecido. Seus criados poderão ir depois.
- Que Deus me ajude - disse Suffolk. - Já não sofri o bastante?
- O senhor sabe como é a turba - foi a resposta.
Ele sabia que era sensato seguir o conselho, e assim saiu da cidade sem chamar atenção, com um criado cavalgando ao lado, como dois amigos viajando juntos.
Ele percebeu o quanto o conselho tinha fundamento quando viu as multidões se reunindo e ouviu o que elas sussurravam. Mas não foi reconhecido e chegou são e salvo ao interior. Os homens de sua comitiva foram menos afortunados. Assim que seu libré foi reconhecido, eles foram cercados.
- Onde está o duque? - bradavam as pessoas. E ficou claro qual teria sido o seu destino se eles tivessem posto a mão nele. Vários de seus empregados foram feridos,
mas quando se descobriu que o duque não estava com eles, deixaram que eles continuassem viagem, enquanto a multidão foi até a torre para esperar o duque aparecer.
Enquanto isso, seguindo em direção oeste, ele percebia a sorte que tivera em escapar.
Ele passou seis semanas muito melancólicas em Suffolk. Não podia se esquecer de que era um exilado, mas as semanas passaram depressa e logo depois chegou a hora da partida.
Alice não saíra do seu lado, e estava sempre assegurando-o de que eles não iriam ficar separados por muito tempo. Em breve ela estaria com ele.
- vou escrever ao nosso filho, Alice - disse ele. - Sei que ele tem apenas oito anos de idade, mas há coisas que devo dizer a ele no caso de nunca mais revê-lo.
- Claro que tornará a vê-lo. É apenas por cinco anos, e talvez eu possa conseguir que a rainha diminua o prazo. Estou certa de que ela quer nos ajudar em tudo que for possível, e o rei também gosta muito de nós e fará tudo o que a rainha pedir. Sim, escreva ao pequeno John e mantenha-se animado. Dê graças por ter escapado da torre. Lembre-se do adivinho. Se puder fugir da torre, sobreviverá...
- Deus a abençoe, Alice - disse o duque. - Agora, vou escrever ao nosso filho. E amanhã de manhã, partiremos para Dover.
Fazia um bom vento para navegar e o ar estava claro. Ele podia ver o perfil do litoral daquele país que iria proporcionar-lhe abrigo contra seus inimigos. Estava muito perto, e no entanto ficaria muito longe, porque ele não poderia deixá-lo enquanto o período de banimento não acabasse. Quantas vezes ele iria olhar, saudoso, para o outro lado da faixa de água!
Mas Alice iria ao encontro dele. Os dois fariam planos... e quem sabe ela conseguisse convencer a rainha a reduzir o banimento? O rei não faria isso, a menos que instigado. Pobre Henrique. Era um amigo bom e leal, um homem bom e santo, mas faltavam-lhe a disposição e o poder para agir.
No fundo do coração, Suffolk sabia que estivera errado ao alegrar-se com um rei fraco, porque um rei desses significava poder para seus ministros. O país precisava de um rei forte como os Eduardos I e III. Homens duros, rigorosos, todos eles. Não adiantava colocar um delicado erudito no trono e esperar um governo forte.
Ele cometera erros. Aproveitara-se ao máximo da situação. Enriquecera. Quem não enriqueceria? Ele quisera riqueza e poder para sua família.
Agora era tarde demais para se lamentar.
Mas eu vou voltar, dizia ele a si mesmo. Eu escapei da torre.
Ele subiu a bordo. Havia um navio acompanhante e uma pinaça. Ele começou a imaginar qual seria sua recepção em Calais e decidiu mandar a pinaça na frente para descobrir se haveria alguém lá para recebê-lo e se ele podia esperar hospitalidade ou hostilidade.
E então eles puseram-se à vela.
Não tinham avançado mais de poucas milhas quando ele viu um navio aproximando-se deles.
Eles foram saudados, e o capitão do navio convidou Suffolk para subir a bordo.
Suffolk aceitou e enquanto subia para o convés um arrepio de apreensão passou por ele, porque viu o nome do navio pintado do lado. Si. Nicholas ofthe Tower (São Nicolau da Torre).
Era a palavra torre que o perseguira durante o tempo que ele ficara naquela terrível fortaleza, porque não conseguia esquecer as palavras do adivinho.
Assim que ele pisou a bordo, ouviu-se um brado de "Seja bemvindo, traidor!".
Então, ele viu que seus piores temores tinham se materializado. Seus inimigos estavam decididos a não deixá-lo ir embora.
O capitão falou com ele. Disse que aqueles que acreditavam na justiça não tinham intenção de deixar que ele escapasse para o banimento. Ele fora julgado e condenado, e suas últimas horas estavam perto.
Mas eles eram cristãos e dariam a ele o resto do dia e uma noite para que confessasse a si mesmo.
Ele sabia que não adiantava apelar. Aquilo era o fim.
Pediu material de escrita, o que lhe foi dado porque homens iguais àqueles não queriam negar as últimas vontades de um homem condenado a morrer por suas mãos. Ele escreveu ao rei protestando inocência.
Pensou em Alice e em seu filhinho John. Ficou satisfeito por ter escrito a ele; e pensou em como a fortuna era volúvel, a ponto de elevar um homem aos píncaros do poder e depois, com a mesma facilidade, derrubá-lo.
A torre. Ele não pensara em nenhuma outra torre. Mas ali estava ela, e a profecia era verdadeira. Ali estava ele, um prisioneiro condenado, na torre... St. Nicholas ofthe Tower.
Ele encarou o seu carrasco, um irlandês com uma fisionomia cruel, que revelava o prazer que sentia no ato que estava prestes a cometer.
Suffolk olhou para a espada enferrujada que estava na mão do homem e rezou para que a morte chegasse depressa.
Foram precisos seis golpes para separar a cabeça do corpo, e quando o ato terminou, o corpo e a cabeça foram levados de volta para Dover e jogados na praia.
O país inteiro estava falando sobre o assassinato do duque. Muita gente chamou aquilo de execução, porque ele fora considerado culpado. Dizia-se que ele tinha trabalhado para os franceses.
Ele entregara Maine; enriquecera; era um traidor de seu país; era amante da rainha e estivera envolvido numa intriga adúltera desde que ela chegara à Inglaterra. Ele, com ela, tinha assassinado o duque de Gloucester, que agora, por nenhuma outra razão a não ser a de que estava morto, se tornara um santo.
Toda acusação ridícula que podia ser lançada contra Suffolk foi lançada; sua morte foi usada para aumentar a impopularidade da rainha.
O rei ainda detinha a admiração da nação. Ele era bom, era um santo, era profundamente religioso, fundava faculdades e odiava derramamento de sangue. Sim, eles ainda amavam o rei. Mas ele era fraco e era escravo de uma mulher malvada... uma adúltera, uma assassina... uma francesa... e os maiores inimigos do país não eram - e sempre tinham sido - os franceses?
Alice estava arrasada. A rainha tentava consolá-la, e Alice sentia-se aliviada com o fato de que nem todas as calúnias expressas contra seu marido chegavam aos ouvidos de Margaret.
Henrique mostrou uma certa força quando Suffolk foi proscrito, numa tentativa de impedir a condenação máxima. Mas o St. Nicholas ofthe Tower era um navio real, e
não havia dúvida de que o capitão e a tripulação tinham agido por ordem de alguém que ocupava um alto cargo.
Havia sussurros de que Richard, duque de York, estava envolvido. Ele se encontrava na Irlanda, é verdade, mas contava com partidários pelo país inteiro. Ele tinha sido um grande inimigo de Suffolk. Só que Suffolk tivera um número enorme de inimigos.
Margaret manteve Alice com ela. A rainha estava fervendo de ódio contra aqueles que tinham assassinado seu amigo. Queria prender o capitão do St. Nicholas ofthe Tower e condená-lo à morte dos traidores.
Margaret era violenta na sua denúncia daqueles que considerava dignos do mais cruel dos castigos. Seus sentimentos eram profundos, quer fossem provocados pela raiva contra seus inimigos, quer pela lealdade a seus amigos. Ela sofria com uma intensidade que se igualava à de Alice.
Mas era inútil. Aquilo não traria Suffolk de volta.
O rei, no entanto, recusou-se a admitir que Suffolk fosse um traidor e ordenou que o corpo fosse levado para um enterro digno em Wingfield. Uma efígie de pedra foi colocada sobre ele; e o rei e a rainha, juntamente com Alice, continuaram a lamentar sua morte.
JACK CADE
Em sua casa senhorial no condado de Sussex, Sir Thomas Dacre estava sentado à comprida mesa sobre cavaletes em seu espaçoso salão, recebendo seus convidados. Era verão, e estavam todos cansados depois de um longo dia de caça. O cheiro de carne assando vinha da cozinha atrás dos biombos, e criados e criadas que serviam iam de um lado para o outro com pratos fumegantes.
Jack Cade, o irlandês, estava dando ordens. Ele era o tipo de homem que gostava de dar ordens. Começara ali na mansão como ajudante de cozinha mas rapidamente mostrara suas habilidades e não demorara muito para que os cozinheiros lhe dessem tarefas especiais. Ele estava encarregado dos empregados que serviam à mesa; sua tarefa era fazer com que os pratos chegassem quentes à mesa e decidir quem deveria levá-los.
Ele era expedito e inteligente; dizia-se que guardava um pouco de dinheiro debaixo do colchão que conseguira poupar. Ele cavalgava até o mercado e comprava mantimentos necessários, e todo mundo sabia que ele obtinha algum lucro com isso. Pouco importava. As pessoas fingiam não ver aquelas transações. Jack Cade era um sujeito esperto. Até mesmo Sir Thomas Dacre comentara que se ele tivesse tido um berço melhor, poderia ter progredido bastante.
Não havia dúvida de que John Cade progredira bastante na equipe de Sir Thomas Dacre. Era um homem que tinha de ser levado em consideração, um pequeno César, um homem de destaque em seu mundo.
Se possuía uma fraqueza, era por mulheres, e praticamente não tinha dificuldade em satisfazer seus desejos nessa área. Era um homem que chamava atenção, bem-apessoado, cortês, amante de roupas finas, e muitas vezes o criado pessoal de seu patrão davalhe alguns trajes de que Sir Thomas não precisava e que não serviam nele, criado. Era vigoroso, insinuante; e ansioso por que todos reconhecessem seu poder. Muitas vezes ele dava a entender que tinha sangue nobre - o pai era um duque que o tivera com uma empregada e depois não o reconhecera. Essa era a história que ele contava. Não ia dizer quem era o duque. Não havia tantos duques assim, e isso seria atenuar um pouco sua importância. Era suficiente dizer que possuía uma parte nobre de nascimento e uma parte humilde, e aquela combinação transformara-o no que era agora.
Naquela ocasião, ele estava um pouco preocupado. Havia uma das criadas que estava lhe causando um certo problema. A tolinha ficara grávida e queria que ele se casasse com ela.
Por que não poderia ela ter ido procurar a feiticeira na floresta ali perto que tinha um método muito bom de lidar com filhos indesejáveis? Algumas das jovens mais cordatas tinham tido seus filhos e sufocado-os ao nascer, sepultando-os respeitosamente em algum lugar secreto; outras tinham os pequenos bastardos e consideravam aquilo como apenas uma maneira de viver. Mas aquela - aquela tinha de gritar e ameaçar. Ele nunca teria se envolvido com ela se soubesse o que ela era.
Tinha sido relativamente difícil para Jack convencê-la do seu interesse, um tipo de mulher tímida, ela precisara de muita persuasão. E agora... estava ameaçando ir procurar Lady Dacre para contar tudo e pedir que obrigasse Jack Cade a se casar com ela. Era realmente perturbador, porque embora ele não tivesse intenção alguma de casar-se com a jovem, seria muito inconveniente se Lady Dacre insistisse para que ele o fizesse.
A jovem estava lá na cozinha, naquele momento girando o leitão no espeto. O cozinheiro queria o leitão quente e suculento quando fosse necessário levá-lo para as mesas. Isso aconteceria dentro de quinze minutos, depois que eles tivessem comido a torta de perdiz, a carne de vaca e a de carneiro.
O olhar dela cruzou com o dele quando ele estava para passar por ela, e havia aquela expressão que fez com que ele parasse. Era metade suplicante, metade ameaçadora. Ele sabia, por experiência própria, que as mulheres tímidas eram capazes de atos violentos. Tinha de tratá-la com cuidado.
- O que há com você? - murmurou ele.
- Você sabe muito bem, Jack Cade, e a culpa é sua.
- Acho que você também participou disso, hein?
- Nós dois participamos e deveríamos assumir o que está para acontecer.
Ele lhe deu um empurrãozinho de brincadeira.
- Ora vamos. Você bem que quis.
- Pode dizer o que quiser, Jack Cade. vou falar com a minha patroa.
- Escute aqui. Você está indo depressa demais. Eu quero falar com você. Tenho planos.
- Que planos? - Ele viu a esperança tomar conta dos olhos dela.
- Escute. Depois que eles tiverem sido servidos e estiverem reclinados sobre as mesas ouvindo os menestréis, dê uma escapada até o bosque. Eu encontro você lá. Tenho uma coisa a lhe dizer.
- Está bem, Jack. Estarei lá.
Ele ficou pensativo. O que poderia dizer à garota? Não se casaria com ela. Aquilo não se encaixava absolutamente em seus planos. Ela de nada lhe serviria. Ele iria progredir no mundo. Quando se casasse, seria com a filha de algum cavalheiro de posição. Aquele era o jeito de progredir no mundo, e Jack Cade conseguiria vencer. Que ninguém se enganasse a esse respeito, e ele não iria fazê-lo casando-se com uma das criadas da mais baixa categoria dentre a equipe dos Dacre.
Era uma infelicidade muito grande aquela garota ter ficado grávida. E era uma garota decidida também. Ele não gostara da expressão do olhar dela quando ela disse que iria contar a Lady Dacre. Não seria a primeira vez em que aquela senhora, que acreditava em impingir moralidade aos pobres, insistiria num casamento. Ele queria continuar na mansão dos Dacre. Estava indo bem lát Ainda não estava pronto para seguir adiante. Encontrara um meio de vida lucrativo com os comerciantes.
E agora, aquela criadinha ameaçava estragar tudo.
Teria de achar um meio de lidar com ela.
Quando foi até o bosque, ela já estava lá.
- Jack - bradou ela, e correu em sua direção, toda afeição agora, pensando que ele fosse ceder.
- Escute aqui - disse ele -, você tem de entender uma coisa. Não vai haver casamento algum. Você terá de ir procurar a velha feiticeira. Ela vai lhe dar alguma coisa... e pouco tempo depois você estará magra e nova como uma virgem.
- Não dá mais pra fazer isso, Jack. Você sabe o que aconteceu com a jovem Jennet. Ela se livrou dele tarde demais e isso foi o fim dela.
Quisera Deus que fosse o seu fim, pensou ele.
Ela estava olhando para ele com uma expressão de súplica.
- Bem, e agora? - perguntou ela.
- Agora... você irá tê-lo, só isso. O que é mais um bastardozinho no mundo?
Ele não estava preparado para o golpe que recebeu no rosto, e cambaleou. A menina tinha força.
Ele agarrou o braço dela e os dois rostos ficaram bem próximos, olhando fixo um para o outro.
- Não fale assim do seu filho - disse ela.
- Essa é boa, isto é, vindo de alguém que há um minuto estava falando em livrar-se dele. Além do mais, como posso saber que ele é meu?
Os olhos dela faiscaram na direção dele. Parecia estar com vontade de matar alguém. Ali estava uma mulher com quem ele teria de lidar com muito cuidado.
- O filho é seu e é meu - disse ela -, e não vai ser um bastardo porque vou procurar Lady Dacre amanhã e ela fará com que você veja qual é o seu dever.
- Você não vai falar com Lady Dacre.
- vou. Eu lhe prometo, Jack Cade, que vou.
Ela iria, mesmo. Sim, não restava dúvida. Ele agarrou o braço dela e torceu-o para trás. Ela continuou a olhar para ele, apesar da dor.
Ele a soltou de repente, e quando ela estava prestes a fugir dele, agarrou-a. Sacudiu-a.
- Você não vai falar com Lady Dacre.
- vou - bradou ela. - vou. vou.
Tudo acontecera em poucos momentos. As mãos dele estavam no pescoço dela. Ela abriu a boca para protestar, e depois fez-se silêncio. Os olhos dela pareciam saltar das órbitas; o rosto foi ficando roxo... e de repente ficou calada.
Quando a soltou, ela deslizou para o chão.
- Que Deus nos ajude! - exclamou ele. - Eu a matei. Ficou imóvel por alguns segundos, olhando para ela no chão.
Seu problema estava resolvido. Agora, Lady Dacre não poderia obrigá-lo a casar-se com ela.
Era um homem de ação rápida. Aquele era um dos motivos pelos quais ele chegara até aquele ponto. Ele poderia enterrar o corpo. Por quanto tempo o corpo ficaria oculto? Dariam pela falta dela. Havia gente que sabia que ele mantivera amizade com ela. Poderia haver quem soubesse que ela estava esperando um filho dele. Se ela desaparecesse, iriam ficar se perguntando onde estaria. Poderiam começar a fazer investigações.
Só havia uma coisa que ele poderia fazer. Era exatamente aquilo que ele combatera. Tinha de deixar aquele lucrativo ninho que estava construindo com tão bons resultados e encontrar algum outro campo para os seus talentos.
Escondeu o corpo da jovem no bosque e esgueirou-se de volta para casa. Lá, apanhou o dinheiro que acumulara, colocou suas roupas numa mochila e escolheu a oportunidade de sair da casa sem ser visto.
O episódio Dacre terminara. Tinha de encontrar novos campos para conquistar.
Seguiu para a costa. Estava fazendo planos. Iria para Dover ou Sandwich e lá ficaria esperando até encontrar um navio que fosse para a França. Havia sempre navios indo para a França levando soldados e munição. Ele poderia embarcar em um deles e procurar sua fortuna como soldado. Os soldados eram sempre bem recebidos naquela perpétua guerra contra a França.
Seria bom ele sair do país por uns tempos.
Tinha razão. Não foi difícil entrar num navio em Dover. Estavam procurando o maior números de homens possível, para lutar contra os franceses. Ele tivera a precaução de comprar uma caixa de estanho, colocar nela a maior parte do dinheiro que juntara e enterrá-la numa floresta perto da costa. E assim atravessou o oceano e considerou encerrado aquele pequeno incidente na propriedade dos Dacre.
Era pena. Tinha sido lucrativo, mas teria sido o fim de sua ambição se ele tivesse sido obrigado a casar-se, e conhecendo Lady Dacre, estava certo de que o resultado teria sido aquele. Era uma pena que tivesse sido levado a matar. Mas a garota fora uma louca. Ocorreu-lhe que ele poderia ter fugido daquela maneira sem ter cometido um assassinato. Mas estava feito e agora ele estava deixando tudo para trás.
Parecia uma precaução sensata mudar de nome. Ele sempre gostara de imaginar que era de berço nobre e considerava Mortimer um bom sobrenome. Tinha ligações com a realeza. Ele se tornou Jack Mortimer e deixou que pensassem que era parente do duque de York - do outro lado da cerca talvez, mas o sangue ali estava.
Livre da servidão na criadagem dos Dacre, ele começou a darse um certo ar de importância. Tinha o cuidado de não exagerar, de aprender aos poucos, de imitar aqueles de sangue nobre; e depois de alguns meses, ninguém discutiria o seu direito ao sobrenome de Mortimer.
Começou a ficar muito satisfeito com o modo pelo qual a vida mudara para ele. Não pensava muito no incidente dos Dacre, mas de vez em quando se perguntava quem teria encontrado o corpo da jovem. Iriam suspeitar dele, claro, porque ele fugira e a garota estava grávida. Ainda assim, era melhor ter fugido do que ter ficado para enfrentar a situação. Sem dúvida, se tivesse permanecido lá, àquela altura estaria pendurado por uma corda no pescoço.
Ele sonhara em saquear cidades, conquistando grandes trofeus, mas a guerra estava sendo ruim para os ingleses e o butim era pouco.
O exército estava se mostrando menos lucrativo do que a criadagem dos Dacre, de modo que ele decidiu voltar para a Inglaterra. Se mudasse de nome e se instalasse em outra parte do país, assumindo uma personalidade diferente, não teria nada que temer.
Desertou do exército e resolveu procurar uma aldeia tranquila onde pudesse instalar-se como médico. Por que não? Ele sempre se interessara pelo corpo humano, e por ter conversado com muitos curandeiros aprendera os segredos de fazer unguentos e poções.
Chegando à Inglaterra, primeiro apanhou sua fortuna no bosque e tomou a decisão de ficar em Kent. Encontrou uma aldeia adequada e, adotando o sobrenome de Aylmer, ali praticou como médico. Seus modos cativantes e sua indubitável beleza tornaram-no, em breve, popular e ele ficou impressionado com a facilidade com que se encaixou na profissão que escolhera.
A fortuna acabou sorrindo para ele, porque um dia foi chamado para atender o senhor da mansão feudal, e o tratamento foi bem-sucedido, de modo que a família acreditou que ele era um médico muito competente. Foi convidado para jantar e tornou-se um amigo especial do jovem da casa. Não havia dúvida de que subira na escala social desde seus dias como ajudante de cozinha dos Dacre.
À medida que os meses se passavam, sua ligação com a pequena nobreza ia tendo efeito sobre ele. Ele falava como eles, agia como eles, e como era assíduo no estudo deles e na determinação de ser aceito, passava perfeitamente por um igual.
Um fidalgo rural de Tandridge, em Surrey, estava de visita na mansão mais ou menos por uma semana, e o médico foi convidado a ir até lá.
Aconteceu que o fidalgo tinha uma bela filha e assim que aquele que se dizia ser o dr. Aylmer olhou para ela, decidiu casar-se com ela. Que proposta diferente daquela da pequena criada dos Dacre! Ele sabia como cativá-la, e por ser considerado um homem de posição, o fidalgo não viu razão para que não pudesse haver o casamento entre o digno médico e sua filha.
O casamento foi celebrado. Houve um belo dote para a noiva, e Jack Cade começou a pensar que a melhor coisa que lhe acontecera tinha sido matar uma jovem num bosque. Se não tivesse feito isso, ainda estaria ali, talvez casado com ela - que Deus o livrasse - ou ganhando um dinheirinho aqui e ali. Ah, aquilo era diferente. Ele realizara uma ambição. Subira um grande degrau no mundo.
Ele desejou ter mantido o sobrenome de Mortimer. Mas talvez tivesse sido inteligente ao mudá-lo. Um sobrenome como aquele poderia ter feito com que se investigasse para descobrir suas verdadeiras origens.
Durante uns dois anos, ele viveu perfeitamente satisfeito com a nova situação, a nova esposa e a profissão que escolhera. Mas houve um ou dois momentos de ansiedade. Um deles aconteceu com a chegada de um médico amigo do pai de sua
mulher, que os visitou e que, naturalmente, esperava que houvesse um interesse mútuo pela medicina. Era em ocasiões como aquela - quando Cade ficava muito apreensivo - que ele percebia que podia ser desmascarado. E se fosse? E se as informações a seu respeito recuassem até a casa dos Dacre em Sussex?
Ele não estava tão contente assim. Além do mais, sua natureza era tal que ele estava sempre procurando um lugar mais elevado.
Havia muita reclamação em todo o país. Os impostos eram extorsivos, e Kent parecia ter sido escolhido para uma agrura ainda maior.
Jack sempre gostara de ouvir a si mesmo falar. As palavras nunca lhe faltavam. Ele se viu discursando sobre o assunto; era convidado para a casa das pessoas e, lá, discursava; e pouco depois as pessoas iam ouvi-lo falar. Isso o deixava encantado. Ele estava entusiasmado com o seu novo papel.
E quando o duque de Suffolk foi assassinado, ele declarou que o rei estava sendo rigoroso com Kent porque de lá haviam partido os navios que o haviam interceptado.
Lembranças de um certo Wat Tyler foram revividas. Wat liderara o povo até Londres para protestar. Ele fracassara, é verdade, porque o rei Ricardo o expulsara para Smithfield e Blackheath e enfrentara os rebeldes, prometendo-lhes todo tipo de concessões que ele não tinha intenção alguma de cumprir. Wat era apenas um telheiro. Jack Aylmer, Cade ou Mortimer, fosse lá por que nome as pessoas gostassem de chamá-lo, era muito diferente.
Wat Tyler começara sua insurreição quando assassinara um coletor de impostos que insultara sua filha. Bem, a aventura de Jack Cade começara com um assassinato... de um tipo diferente, era verdade, mas havia uma similaridade.
Mas como aqueles dois homens eram diferentes! O pobre Wat era um humilde telheiro. Jack Cade era um homem que deixara para trás suas origens humildes.
Ele conhecia um pouco de política. Havia problemas em postos elevados. A rainha era muito impopular. O rei era fraco. Não havia herdeiro para o trono, e o duque de York, embora estivesse na Irlanda, tinha uma reivindicação muito forte. A Casa de York estava pronta para empurrar a Casa de Lancaster para fora do trono.
E o que dizer daqueles que aderiram no começo para ajudar? E Jack Cade, Aylmer, como se chamava? Por que não iria ele tomar uma parte ativa na política? Seria mais interessante do que atender os doentes numa longínqua aldeia do interior.
Jack era impulsivo por natureza. Em pouco tempo estava pregando uma revolução.
- Vamos nos unir, irmãos. Vamos falar com o rei, como outros de Kent fizeram antes. Eles fracassaram. Não tinham a nossa visão. Wat Tyler era o líder deles... um homem de força e determinação, mas um telheiro sem instrução. Conosco será diferente. Nós vamos começar de maneira diferente. Temos um líder que pode falar com o rei quando ficar frente a frente com ele. Vocês terão um líder pertencente à própria casa real. Sim, meus amigos, meu sobrenome verdadeiro é Mortimer e eu sou primo do duque de York. Nós vamos trabalhar para o meu primo. Um homem forte... um homem de mais realeza do que o rei, porque ele tem sangue real pelo lado paterno e pelo lado materno. Ele irá governar a Inglaterra e nós iremos afastar esse erudito com a prostituta francesa que manda nele em tudo o que ele faz.
Era uma bela conversa inspiradora, e as pessoas aderiam a ele. Era um novo papel para ele, um papel pelo qual ele ansiara no íntimo. Ele se tornaria um líder, e quando eles vencessem e o duque de York estivesse no trono, era provável que o duque se lembrasse de tudo o que devia ao homem que começara tudo.
Na semana de Pentecostes, eles já estavam prontos para marchar, porque Jack Cade reunira cerca de vinte mil homens. Eles partiram e chegaram a Blackheath no primeiro dia de junho. Ali, acamparam e balizaram a área como se estivessem em guerra e esperassem um ataque, truque que Cade aprendera durante suas experiências na França. Ali eles esperaram, prontos para marchar contra Londres.
Enquanto isso, o rei, ao saber que rebeldes vindos de Kent estavam acampados em Blackheath e lembrando-se da história que ouvira muitas vezes sobre seu ancestral Ricardo II que, ainda menino, enfrentara os rebeldes e os dispersara, dissolveu o Parlamento em Leicester, onde se encontrava no momento, e foi a toda velocidade para Londres.
Ele não era um garoto como Ricardo tinha sido; ele odiava derramamento de sangue. Não queria ter de sair com um exército para dominar aquela gente, de modo que ao chegar em Londres mandou uma delegação a Blackheath para saber quais eram as queixas que tinham levado os homens a Londres.
Jack estava preparado. Eles tinham ouvido dizer que o condado inteiro de Kent deveria ser destruído e transformado numa floresta como represália pela morte de Suffolk. O homem do povo não escolhera os navios que haviam sido enviados para interceptar o duque. Ele nada sabia sobre aqueles assuntos e não iria sofrer por eles. O rei cercava-se de homens de baixo nível que o povo não aprovava, enquanto lordes que tinham seu sangue eram afastados de sua presença. Eles estavam se referindo ao duque de York, que fora mandado para a Irlanda e do qual Cade queria ser aliado. As pessoas não recebiam indenização por objetos e provisões levados para a residência do rei. O principal de tudo, é claro, era que o povo de Kent estava enfurecido com a pesada tributação que lhe era imposta. O povo queria reformas. Queria, também, que o rei evitasse a estirpe de todos aqueles que simpatizassem com o duque de Suffolk e se cercasse do verdadeiro lorde que era York, recentemente exilado por Suffolk, os duques de Buckingham, Exeter e Norfolk. O povo queria que os assassinos do duque de Gloucester fossem punidos. Os ducados de Normandia, Gasconha, Guienne, Anjou e Maine tinham sido perdidos graças à ação de traidores. Todas as exações da gente simples deviam ser suspensas.
Henrique ouviu as reclamações com muita atenção. Ele compreendia que o povo estivesse zangado por ter sido pesadamente tributado, mas as acusações contra Suffolk e seus amigos deixaram-no irritado. Dos amigos de Suffolk,
a rainha tinha sido a principal, e Henrique via naquilo críticas a ela.
Deu ordens para que todos os servos do rei e do país se unissem contra os rebeldes.
Sabendo que se o exército do rei atacasse eles seriam derrotados, Cade deu ordens para que se retirassem para Sevenoaks. Lá acamparam, enquanto o exército do rei avançava.
Henrique cometeu o erro de mandar um pequeno destacamento sob o comando dos irmãos Stafford - Sir Humphrey e William. O resultado foi o triunfo dos rebeldes. Os dois Stafford foram abatidos, e o resto do destacamento bateu em retirada para Blackheath, onde o rei mantinha seus soldados.
Cade ficou encantado. Ele estava mostrando ser um líder nato. Sua força estava bem ordenada; o que ele aprendera na França estava sendo de grande valia; ele era um soldado brilhante. Do morto Sir Humphrey ele tirou as esporas, a magnífica armadura, a brigandina feita de pequenas placas e aros presos com couro, o elmo de morrião que se apoiava totalmente na cabeça e não era preso ao resto da armadura corporal. O topo tinha uma crista que caía numa longa cauda nas costas. Vestido com aquilo, Jack sentiu-se o nobre a que sempre aspirara ser.
A bela armadura e o sucesso deixaram Jack tão enleado que ele acreditou ser um grande soldado. Viu-se subindo ao poder e tornando-se o assessor principal do novo rei que, é claro, seria o duque de York, elevado ao trono pela coragem e pelo brilhantismo de Jack Cade.
- Nós somos parentes - parecia que ele ouvia o duque dizer. - Você será meu chanceler.
Ter saído vitorioso num combate contra as forças do rei era mesmo um triunfo.
O rei ficou muitíssimo perturbado. Aquilo era de fato uma rebelião. Estava à beira de se tornar uma guerra civil. Seus ministros não gostavam do estado de espírito em que o povo em geral se encontrava. O que acontecia em Kent naquele dia estaria ocorrendo no resto do país no dia seguinte.
Talvez eles devessem aplacar os insurgentes.
- Ora essa, eu concordo - bradou Henrique. - Não deve haver mais derramamento de sangue. Vamos conversar com esses homens. Quem é esse tal de Mortimer?
- Diz ele que é parente do duque de York - foi a resposta.
Todos eram de opinião de que o duque de York, lá da Irlanda, estava por trás daquela revolta. Aquilo era bem razoável. O rei era fraco; a rainha era odiada, e não havia herdeiro, e o duque de York tinha mesmo direito a reivindicar o trono.
Sim, eles eram de opinião de que não se devia deixar que aquela revolta se espalhasse, de modo que iriam negociar com os rebeldes.
O fato de o rei estar disposto a fazer isso deu a Jack uma nova confiança.
- Cabe a nós impor as condições - bradou ele. - Vejamos qual vai ser a resposta.
Um dos homens mais odiados era lorde Say, o tesoureiro, cujo dever era fazer as exorbitantes exigências que tinham provocado a ira do povo. O fato de ele não se apropriar do dinheiro mas arrecadá-lo para atender às necessidades do país não vinha ao caso. Ele arrecadava o dinheiro; ele fazia as exigências; ele era o culpado. Lorde Say era um nome xingado por todo o país.
- Vamos nos recusar a negociar com o rei até que lorde Say seja preso - disse Jack.
- Isso é fácil - disse o rei -, e temos de fazê-lo. Temos de evitar mais confusão a todo custo. Say pode ser mandado para a torre por enquanto. Basta que ele fique por lá até isso terminar. Pode ser o lugar mais seguro para ele.
E assim lorde Say foi para a torre; o rei e seu exército voltaram para Londres, e cerca de um dia depois Henrique foi enganado e levado a pensar que se não levasse os rebeldes a sério eles iriam dispersar-se e voltar a suas atividades no interior.
Ele mesmo foi para Kenilworth.
Assim que ele partiu, Jack entrou na capital com o seu exército.
Foi um grande dia para Jack quando ele entrou na cidade a cavalo. Não houve resistência alguma. As pessoas saíam de suas casas para saudá-lo. Camelos e aprendizes estavam todos lá para dar a eles as boas-vindas. Para eles, era como se fosse um dia de feira - um feriado.
Mas Jack estava sério. Via a si mesmo no píncaro do poder, muito além do que sonhara. Ele batia com a espada nas pedras do calçamento da rua e gritava:
- Agora, Mortimer é o senhor desta cidade.
Ele manteve seus homens em ordem. Não deveria haver roubos nas casas, nada de estuprar jovens e mulheres. Aquela era a bela cidade de Londres, que pertencia a eles, e aqueles que tinham vencido não deviam ofender os londrinos.
- Temos de tê-los do nosso lado - disse ele -, trabalhando para nós.
Era verdade que até ali os londrinos pensavam que tudo não passava de uma brincadeira. Eles não eram avessos a ver o rei desaprovado, porque sabiam que aquilo iria irritar muito mais a rainha do que o rei. Não, aquilo era divertido, mais parecido com um casamento real ou uma coroação... mas para não ser levado muito a sério.
Pouco depois, eles viram a situação sob uma ótica diferente.
Jack e seus homens passaram a noite em Southwark, depois de colocarem guardas na cidade para manter a paz. No dia seguinte, porém, ele voltou para a cidade e ocupou seu lugar no Guildhall.
Depois, mandou alguns de seus homens até a torre, com instruções de levar lorde Say à sua presença.
O perplexo chanceler foi levado ao palácio e quando viu quem seriam os seus juizes, tentou explicar que procedera daquela maneira por ordem de seus superiores. Jack Cade não quis saber daquilo. Ele estava decidido a mostrar àquela gente que ele estava no comando.
- Você me condena-disse lorde Say -, mas não pode fazer isso. Eu exijo ser julgado por meus pares.
- Não cabe ao senhor fazer exigências - disse Jack. - Está condenado. O senhor é culpado de crimes contra o povo. Faça as pazes com Deus.
Mas nem lhe deram tempo para isso. O próprio Jack liderou o cortejo até o pilar no Chepe e ali deceparam a cabeça de lorde Say.
A cabeça foi erguida bem alto, para que todos os que estavam ali reunidos pudessem vê-la.
- Aqui está a cabeça de um traidor do povo - disse o carrasco.
Então, o povo de Londres viu que a rebelião de Jack Cade não era brincadeira para fazer que um dia fosse feriado.
Aquilo não era o suficiente. O genro de lorde Say, William Crowmer, que era o xerife de Kent, foi capturado e arrastado para o Chepe. Sua cabeça foi colocada numa vara e erguida até ficar lado a lado com a de lorde Say. As pessoas que levavam as varas riam e zombavam enquanto uniam as duas cabeças e faziam com que parecesse que elas se beijavam.
- Uma dupla de bandidos - gritavam os homens de Kent.
- Que assim morram todos eles.
Os cidadãos de Londres tinham ficado sérios. Eles não gostavam de quem chegava sem ter sido convidado e fazia o que quisesse com a cidade deles.
Jack voltara para Southwark depois das execuções, vangloriando-se pelo sucesso, mas em breve iria descobrir que seu otimismo era um pouco prematuro. Quando retornou para Londres no dia seguinte, descobriu que os cidadãos haviam se levantado contra ele. Aquilo não era mais uma brincadeira. Eles não queriam que ele ditasse a ordem na cidade deles, e quando se tratava de sentenciar pessoas à morte e executar a sentença sem julgamento e sem tempo para que o prisioneiro se arrependesse, isso era inteiramente inaceitável. Se uma conduta daquelas fosse permissível, seria apenas entre os londrinos.
Antes de retirar-se para Kenilworth, o rei deixara um certo Matthew Gough tomando conta da torre de Londres e, com o prefeito, Gough conclamou os cidadãos a defenderem sua cidade. A resposta foi imediata, e quando Jack chegou com seu exército para atravessar a ponte, foi recebido por uma força resoluta. O exército de Cade era o mais forte, e durante o combate Matthew Gough foi morto. Jack aproveitara a oportunidade para invadir a Kings Bench e a prisão de Marshalsea e os prisioneiros que ele soltou lutaram ao seu lado.
Eles lutaram com ferocidade, mas os londrinos estavam defendendo sua cidade, e o conflito durou a noite toda. Ao amanhecer, os dois lados estavam exaustos e prontamente concordaram que deveria haver uma trégua de algumas horas.
O arcebispo de York, John Kemp, que também era o chanceler, embora velho e doente, permanecera em Londres e não sentira vontade alguma de retirar-se para Kenilworth com o rei. John Stafford, o arcebispo de Canterbury, também estava em Londres e os dois decidiram que tinham a obrigação de dispersar os rebeldes e evitar qualquer outro derramamento de sangue.
Mandaram chamar William Waynflete, o bispo de Winchester, que por acaso naquele momento estava em Haliwell, um priorado em Shoreditch, e os três religiosos reuniram-se para um conselho na torre de Londres.
- Essas rebeliões podem ser perigosas - disse o arcebispo Kemp. - Um ato apressado poderia deflagar uma guerra civil. Por outro lado, uma ação correta no momento certo poderia pôr um fim na rebelião. O rei Ricardo fez isso com Wat Tyler, mas eu não gostaria de fazer promessas vãs a esses rebeldes.
- Há uma coisa que podemos oferecer a eles - disse o bispo de Winchester. - Perdão. Deve haver alguns que estão ficando angustiados. Se nós nos propusermos a deixá-los ir em paz de volta a suas casas e garantir-lhes que não haverá represálias contra eles, é muito provável que eles concluam que este é o melhor plano de ação para eles.
- Será que o rei vai concordar? - perguntou Kemp.
O bispo de Winchester estalou os dedos.
- O rei optou por recuar. Não acho que deveríamos pedir a opinião dele neste caso. De qualquer maneira, não haveria tempo. O que dizem de oferecermos perdão a esses malfeitores, sob a condição de que voltem calmamente para suas casas?
Os três concordaram que se pudessem acabar com a rebelião de imediato isso seria o melhor caminho possível, e por isso foi combinado que Jack deveria ter uma reunião com o bispo de Winchester na igreja de St. Margaret, em Southwark.
Jack estava percebendo que continuar poderia significar um desastre. Ele havia arrecadado um butim enorme que, se pudesse levá-lo dali, iria mante-lo vivendo com conforto pelo resto da vida. Se a aventura terminasse naquele ponto, ele poderia sair dela com muita vantagem. Poderia voltar para sua casa no interior como um herói.
Sim, concordou ele, em troca de um perdão, ele desmancharia seu exército de rebeldes e eles voltariam para casa.
O bispo voltou para os arcebispos, triunfante. O caso foi encerrado de forma amigável. Era vergonhoso que homens pudessem levantar-se e causar tantos danos e depois receber perdão, mas às vezes a prudência se fazia necessária.
Os perdões - dois deles - foram emitidos, um para os rebeldes e outro para o líder deles, em nome de Mortimer.
Jack ficou em Southwark. Tinha um servicinho a fazer. Precisava recolher todos os bens que havia pilhado, alugar uma barcaça e mandá-los embora pelo rio. Estava encantado com suas aquisições e regozijava-se delas enquanto as empacotava com cuidado e as colocava na barcaça.
Assim que elas estivessem a salvo, longe dali, ele iria embora e então gostaria de desaparecer. Aqueles que tinham sido roubados poderiam estar alerta para localizá-lo. Ora, ele dissera chamar-se Mortimer para os fins da insurreição. Agora poderia mudar o sobrenome e voltar para Aylmer. Embora como Aylmer ele tivesse levantado os rebeldes; e voltar para Cade poderia despertar recordações na terra dos Dacre. Talvez precisasse de um novo nome, mas não queria abandonar a vida confortável com a filha do maior proprietário de terras de Tandridge.
Ficou satisfeito por ter alguns dias para planejar a jogada seguinte.
A barcaça estava pronta para partir para Rochester com a maré do dia seguinte. Ele iria voltar ao seu alojamento e preparar-se para seguir com ela.
Ao afastar-se da beira do rio, um homem que estava sentado ali, sem fazer nada, dirigiu-se a ele: - bom dia.
Ele respondeu com cordialidade, e o homem continuou:
- Já soube da novidade sobre Mortimer?
Jack se divertia um pouco ao ouvir histórias a seu respeito. Achava extremamente agradável pensar na impressão que causara. - Não - disse ele -, qual é a última?
- Bem, parece que ele não é mais Mortimer do que eu.
- Como sabe disso?
- Ora, eles investigaram o passado dele, sabe? Mortimer... é um nome muito importante e a família se perguntou: "Quem é esse que alega ser um de nós?" Parece que ele não tinha direito algum... direito algum...
Jack começava a ficar muito aflito.
- Que providência eles vão tomar?
- Bem, segundo ouvi dizer, parece que deram um perdão a esse tal de Mortimer, e se ele não for um Mortimer, então não há perdão para ele, há? Eu lhe digo uma coisa. Eles o estão procurando. Dizem que ele é Jack Cade... um bom sacripanta em todos os sentidos. Eles irão pegá-lo; e eu não ia querer estar na pele dele quando isso acontecer.
Que sorte enorme ter conversado com aquele homem! Ter ouvido aqueles comentários feitos por ele. Que era verdade, ele não tinha dúvida. O homem chegara até a mencionar seu nome verdadeiro.
Então, estavam à sua procura. Não haveria perdão para ele se o pegassem. Eles sempre gostavam de apanhar os líderes.
Ele corria perigo iminente.
Não poderia voltar para o alojamento. Ficaria a bordo da barcaça e no primeiro instante partiria.
Deitou-se entre seus preciosos bens. Nunca deveria ter dito que seu sobrenome era Mortimer. Uma vez mais, aquilo era resultado do seu orgulho. Mas ele não devia culpar o orgulho. Fora ele que o levara até o ponto em que chegara. Ele nascera com sorte. Estava claro que a sorte não iria abandoná-lo agora.
Se fosse apanhado, teria a morte dos traidores. Seu perdão nada significava. Era para Mortimer, e ele não era Mortimer coisa nenhuma. Eles iriam aproveitar-se de qualquer pretexto para pegá-lo. Ele poderia ter de balançar pendendo de uma corda pela jovem que matara na casa dos Dacre, mas aquela última aventura significaria enforcamento, estripamento e esquartejamento, um destino suficiente para encher de terror o mais ousado dos corações.
Mas a boa sorte sempre estivera do seu lado. Confiava nela, agora.
Parecia que ela o ajudaria, porque à meia-noite ele conseguiu começar a viagem para Rochester.
Ele podia ter abandonado o butim, mas não teve coragem. Iria guardá-lo em algum lugar, e ele estaria sempre lá, esperando pelo momento em que pudesse desfrutá-lo à vontade.
A fortuna parecia favorecê-lo outra vez. Ele chegou a Rochester a salvo e colocou o butim numa casa que lhe fora recomendada e onde ele sabia que em troca de um pagamento elevado - que ele podia perfeitamente pagar - estaria em segurança até que ele fosse buscá-lo.
Enquanto ele tentava traçar um plano, uma proclamação circulou pela cidade. Oferecia-se uma recompensa de mil marcos a quem pudesse entregar Jack Cade vivo ou morto ao rei.
com que então sabiam mesmo quem era ele. Iriam concluir, agora, que o líder da rebelião era o assassino de Sussex.
Ele deveria ter-se contentado com a vida que construíra como Aylmer. Por que não percebera isso? Se não tivesse cuidado, perderia todo aquele precioso butim.
Não podia ficar em Rochester. Sem perda de tempo, tinha de se disfarçar e fugir para o mais longe possível. Viu que talvez tivesse de começar do zero, com uma personalidade totalmente nova. De fato, essa parecia ser a única saída possível. Ele já fizera isso antes, como Aylmer, e com um sucesso notável. Por que não conseguiria outra vez? E teria seu depósito em Rochester, para o qual voltaria quando toda a onda tivesse acabado.
A primeira necessidade era fugir.
Disfarçando-se como um velho mascate, ele deixou Rochester e atravessou o país em direção a Lewes, em Sussex.
Havia um homem que jurara levar Jack Cade à justiça. Era Alexander Iden, o fidalgo rural de Kent que se tornara xerife depois que Jack Cade assassinou seu predecessor, William Crowmer.
Ele foi a Southwark, onde fez muitas perguntas àqueles que tinham visto ou conhecido Jack Cade. A trilha levou-o a Rochester. Jack Cade desaparecera, foi o que lhe disseram. Alguém se lembrou de ter visto um mascate que se parecia um pouco com ele.
Um mascate. Era um disfarce que fora usado muitas vezes antes. Alexander Iden iria trabalhar com base no pressuposto de que Cade, disfarçado de mascate, estava indo esconder-se.
Iden era incansável. Estava decidido a pegar o assassino de Crowmer, e enquanto avançava pelo interior, tinha a certeza de que estava na pista certa.
Enquanto isso, Jack continuava sua viagem. Seguiria para a costa. Talvez fosse prudente sair do país. Àquela altura, já não havia tantos navios partindo para a França. A guerra estava acabando, aos poucos, em derrota para os ingleses. Mas talvez ele pudesse atravessar para lá sob algum pretexto. Tinha uma fé absoluta em si mesmo.
Se fosse apanhado, não haveria piedade para ele. Iriam descobrir que ele era o assassino da criada dos Dacre. Não que aquele fosse um crime tão grave quanto liderar uma rebelião e executar homens importantes como lorde Say e Crowmer.
Encontrava-se numa situação realmente desesperadora. Tinha medo de se apresentar nas estalagens. Sabia que estavam à sua procura. Haveria um número muito grande de pessoas atrás daquela recompensa de mil marcos.
Ele contornou Heathfield, em Sussex. Não queria entrar na cidade. Isso, agora, poderia ser perigoso. Chegou a um grande jardim, parte de uma grande propriedade. Ali, era silencioso e tranquilo. Havia um extenso pomar onde poderia fazer uma cama confortável e partir ao amanhecer.
Quando estava se instalando para dormir, pensou ouvir um farfalhar entre as árvores, uma passada na grama. Uma pedra chocalhou como se alguém a tivesse deslocado ao caminhar. Jack ficara muito sensível àquele tipo de som.
Ele levou um susto.
Havia alguém ali. O vulto de um homem erguia-se por entre as árvores.
Cade ergueu-se num instante.
- O que faz aqui? - perguntou o homem.
- Nada de mau - replicou Jack. - Apenas procurando um lugar para passar a noite.
- Isto é um pomar particular.
- Desculpe, meu senhor, se invadi uma propriedade. Era apenas um lugar para um pobre homem deitar a cabeça até de manhã. Não quis fazer mal algum.
- Você causou um grande mal, Jack Cade - disse o homem -, e eu vim para levá-lo a julgamento.
Jack saltou sobre Alexander Iden, e por alguns momentos os dois lutaram desesperadamente. Jack era forte, mas Alexander estava armado. Jack ficou no chão, gemendo, e Alexander inclinou-se sobre ele.
- Não adianta - disse ele. - Acabou-se para você, Jack Cade.
Ele ergueu Jack para colocá-lo em seu cavalo e levou-o de volta para Healthfield.
Enquanto Alexander conseguia uma carroça para transportá-lo, Jack estava apenas semiconsciente, mas sabia que estava preso.
Alexander Iden explicou ao espantado estalajadeiro que forneceu a carroça e os cavalos:
- Este é Jack Cade, e vou levá-lo para Londres.
- Pobre sujeito - disse o estalajadeiro -, apesar de ser um bandido. Eu não gostaria de estar na pele dele.
- Ele não vai ficar nela por muito tempo.
- É... isso vai ser o fim dele. Por que as pessoas não podem ficar no nível em que nasceram?
Alexander não respondeu. Queria chegar a Londres o mais rápido possível.
Jack estava deitado na carroça. Mal sentia as sacudidelas. De vez em quando, ficava consciente e se recordava.
Então, tudo terminara. Estava tudo acabado. Ele estava liquidado.
Isso não, pensou ele. Tudo, menos isso.
Teve sorte. Morreu a caminho de Londres.
Alexander levou-o para a White Hart Inn, em Southwark, onde ele se hospedara.
- É ele, sim - disse a estalajadeira. - Não há dúvida. Ele é Jack Cade. Eu o reconheceria em qualquer lugar.
Jack foi levado à prisão Kings Bench, onde ficaria até que se decidisse o que devia ser feito.
Depois, tiraram-no de lá e o decapitaram. O corpo foi esquartejado e, para que todos pudessem testemunhar o que acontecia com aqueles que achavam uma boa ideia rebelar-se contra o rei, foi colocado numa armação sobre rodas e levado pelas ruas, com a cabeça colocada no peito. De Kings Bench para Southwark e, passando pela ponte de Londres, para Newgate... a cena de sua breve glória.
As partes do corpo foram exibidas em pontos de destaque em Blackheath, Gloucester, Salisbury e Norwich.
Foi o fim da Rebelião de Jack Cade, dizia o povo. Mas não era bem assim.
NOS JARDINS DO TEMPLO
Do castelo de Dublin, Richard, duque de York, observava os acontecimentos na Inglaterra com muita atenção. Assim que chegavam quaisquer mensagens, ele esquadrinhava
seu conteúdo à procura de notícias sobre a rebelião.
Aquele tal de Jack Cade - desavergonhadamente dizendo chamar-se Mortimer - havia se rebelado. com que finalidade?, perguntava ele a Cecily, sua inteligente e vigorosa mulher.
Porque, era a resposta, o país estava maduro para uma rebelião. O rei não era rei coisa nenhuma. Ele era tolerado porque os rumores o haviam dotado de uma certa santidade. Seu grande prazer era construir faculdades e frequentar igrejas. Elogiável num padre, mas nada compatível com um rei.
- Às vezes eu penso que o Destino gosta de zombar de nós. Ele escolhe o homem menos indicado para usar a coroa, quando...
- Quando existem outros com o mesmo direito... haverá quem diga que com mais direito... de usá-la - terminou Cecily, que não acreditava em diplomacia.
O marido, aquele importante duque de York, tinha muito mais direito à coroa do que Henrique de Lancaster, e que rei ele seria!
- Henrique está caminhando para o desastre - prosseguiu o duque. - com uma grande ajuda daquela pequena virago vinda de Anjou.
- E pelo senhor de Somerset.
- Você acha que os rumores sobre ele e a rainha são verdadeiros?
- Não sei, querida, mas o fato de circularem contra ela é bem feito para ela. É afetuosa demais com os amigos e vingadora demais com aqueles de quem não gosta.
- Eu receio que nós nos encaixemos na segunda categoria - disse Cecily.
- É melhor regozijar-se por isso. Vai chegar o dia...
- Bem que poderá chegar - respondeu Cecily. - É uma pena eles terem banido você para esta terra esquecida por Deus.
- Sabendo, é claro, que nunca teremos paz com os irlandeses. Os irlandeses são um povo versátil. Eles gostam de muitas coisas, mas, acima de qualquer outra coisa, eles adoram uma discórdia. Eles nascem com a vontade de brigar. Pode-se ver isso até mesmo nas criancinhas.
- Sempre achei que seria bom deixar que eles brigassem entre si.
- É isso, minha querida, que estou pensando em fazer.
Ela esperava. Richard sempre falava com ela sobre seus planos e ouvia seus conselhos. Ele a apreciava. Ela fizera jus ao apelido de A Orgulhosa Cis (Proud Cis) e não havia dúvida de que o merecia. Não era nenhuma mulher sem cérebro, feita apenas para gerar filhos - embora também fosse muito boa nisso. Vinha de uma família fértil. Era da família Neville e sua mãe tinha sido Joan Beaufort, filha de John de Gaunt e Catherine Swynford. De modo que tinha sangue real - porque os Beaufort tinham sido legitimados, e ela não se esquecia disso. Sua mãe tivera dez filhos, dos quais ela era a caçula; e antes de se casar com a mãe dela, o pai tinha feito oito filhos na primeira mulher, filha do conde de Stafford.
Temos motivo para sermos ambiciosos, pensava Cecily. Nossos filhos têm sangue real de ambos os pais.
Richard estava impregnado de realeza. Descendia de Eduardo III por parte do pai e da mãe. O pai fora o segundo filho de Edmund de Langley, que tinha sido o quinto filho de Eduardo III; e a mãe era uma das filhas de Roger Mortimer, neto de Lionel, duque de Clarence, segundo filho de Eduardo III, já que a filha de Lionel, Filipa, casara-se com Edmund Mortimer, o terceiro conde de March. Lionel tinha sido mais velho do que John de Gaunt, de modo que se Henrique IV não tivesse usurpado o trono de Ricardo II, sem dúvida que Richard, duque de York, teria ficado na frente do rei atual.
Aquilo era para ser motivo de orgulho. Eles jamais se esqueceriam desse fato, e desde aquele caso de Jack Cade, Richard andava pensando muito naquilo.
Claro que o povo da Inglaterra não estava satisfeito com o rei e, em consequência, o duque de York era temido em certos círculos, motivo pelo qual fora enviado para a Irlanda. E o que estava mais claro do que qualquer outra coisa era que poderia estar chegando a hora certa em que alguma coisa poderia ser feita para livrar o país de um governante incompetente e substituílo por alguém capaz de governar bem - e de qualquer modo tivesse mais direito a isso.
Cecily acompanhava os pensamentos dele.
- Seria aconselhável eu voltar para a Inglaterra - prosseguiu Richard -, a fim de me desfazer dessa suspeita que Jack Cade levantou contra mim.
- Aquele bandido! Ter a ousadia de se dizer um Mortimer!
- Bandido, sim, mas esperto. O nome Mortimer iria levar muita gente a aderir ao movimento dele.
- Porque pensariam que você estivesse por trás do levante.
- Bem poderia ser isso. Assim, minha querida, você compreende que preciso ir enfrentar meus acusadores.
Cecily confirmou com a cabeça, inteligente.
- Tenho a impressão de que isso não será um grande inconveniente para a senhora.
- Eu terei um grande prazer em ir. Estou ansiosa por ver o litoral da Inglaterra uma vez mais. Fará bem a George. Pobrezinho. Ele nunca viu sua terra natal.
- Duvido que ele perceba onde está.
- Mesmo as criancinhas são capazes de odiar este país.
- Neste caso, devo concluir que você vai gostar de voltar para a Inglaterra.
- Deve, mesmo.
- Poderá haver dificuldades...
- Você quer dizer que o rei ficará desconfiado de você. Pobre tolo. Será que ele tem capacidade para desconfiar de alguém?
- Não o subestime. Ele simplesmente não foi talhado para ser rei. É um erudito de muita categoria, creio eu. Ele adora os livros.
- Livros não mantêm reinos unidos - disse Cecily com ar de desprezo. E depois, acrescentou: - Estou ansiosa por ver as crianças.
Eles tinham uma ala infantil cheia. Havia Anne, com onze anos; Eduardo, com oito; Edmund, com sete; Elizabeth, com seis; Margaret, com quatro; e o pequeno George, que nascera na Irlanda. Uma família agradável e que seria de esperar-se de uma filha de uma mulher tão fértil como sua mãe. A família tivera momentos de tristeza. Três garotinhos - Henry, William e John - não haviam sobrevivido à infância. Mas eles ainda tinham três, o que servia de consolo, porque era bom ter filhos homens. A alegria da vida de Cecily era Eduardo - o menino mais velho desde a morte do pequeno Henry; e Eduardo parecia estar crescendo para ser um verdadeiro Plantageneta. Ele ia ser muito alto; já havia sinais disso. Apresentava os fortes traços louros de seus ancestrais. Parecia-se impressionantemente com Eduardo I; e isso era um bom sinal. Era animado, fazendo exigências, saindo-se muito bem em exercícios ao ar livre e encantando a todos os empregados. Um digno sucessor do pai - e quem saberia, imaginava a ambiciosa Cecily, o que o pai teria de legar a ele quando chegasse a hora.
Richard sacudiu a cabeça. Também estava ansioso por rever as crianças.
- Então - disse Cecily -, vamos voltar à Inglaterra.
- Em quanto tempo você pode estar pronta? - perguntou o duque.
- Posso estar pronta assim que você der as ordens para partir.
Os dois riram juntos. Ele viu a alegria nos olhos dela; ela viu os sonhos nos dele. Quem sabe, os dois poderiam estar indo para a terra natal a fim de lutar pela coroa.
Edmund Beaufort, duque de Somerset, estava cavalgando pelas ruas de Londres em direção ao palácio de Westminster. Ele era o homem mais impopular da Inglaterra e estava indo visitar a mulher mais impopular. Ele odiava a turba. Idiotas que não raciocinavam, resmungava consigo mesmo. Julgavam um homem pelas suas vitórias e pelas suas derrotas. Nunca lhes ocorrera levar em consideração circunstâncias alheias. Como poderia algum general ser bem-sucedido na França naquele momento? Estava tudo contra ele. Carlos da França - aquele fraco e ineficiente delfim - livrara-se de repente do torpor e rugia como um leão. Os ingleses tinham perdido o ânimo desde que Joana d'Arc aparecera para dizer-lhes que Deus estava do lado dos franceses. Era tudo inútil. Somerset estava com tanta raiva que queria sair da França para sempre.
Ele havia voltado não exatamente em desgraça, mas andara por perto. Fora obrigado a ceder Rouen, e isso era o equivalente a perder a Normandia. Foi considerado culpado pelos desastres dos últimos anos. Bedford estava morto; Gloucester estava morto... embora Gloucester não os tivesse ajudado a vencer... mas agora o povo falava nele como se fosse um mártir. Eles acreditavam que ele fora assassinado e acusavam Margaret de ter participado do crime.
Parecia que Margaret era sua única amiga, uma amiga importante, era verdade, porque Henrique dependia dela por completo e obedecia à vontade dela sob todos os aspectos.
Por isso, apesar de ter apenas uma pessoa amiga, tratava-se da pessoa mais poderosa do reino.
Aquilo iria passar, pensou ele, a menos, é claro, que esse rumor sobre York fosse verdade.
Margaret ficou muito contente quando soube da sua volta. Somerset era um amigo de verdade, como tinham sido os Suffolk. Ela ficava triste ao pensar em Suffolk, aquele homem querido que tinha ido à França e a levara para a Inglaterra e se mostrara tão bom para ela. E Alice, também... pobre Alice, tão abatida. Margaret ficava furiosa ao pensar na maneira covarde com que tinham assassinado Suffolk. Ela ficava lívida de raiva ao pensar e só podia ser acalmada dizendo a si mesma o que iria fazer com aqueles que tinham assassinado seu amigo querido se um dia surgisse essa oportunidade.
Henrique era muito conciliatório, claro. Ela tivera uma grande dificuldade para convencê-lo a permitir que sentenças rigorosas fossem aplicadas àqueles que tinham sido apanhados tomando parte na rebelião de Jack Cade. Era verdade que eles tinham recebido o perdão. Aqueles constituíam a ralé, a turba, que seguia às cegas. Só líderes tinham sido severamente punidos. Ela lamentava que Jack Cade não tivesse sido levado perante os juizes ainda vivo. Henrique tremia ao pensar em derramamento de sangue. Na verdade, ele se tornava cada vez mais alheio à vida. Queria ficar sozinho com seus livros, e o tempo que passava de joelhos fazia com que Margaret se perguntasse se o cérebro dele não estaria amolecendo. Havia uma virtude em tudo aquilo, porque a deixava com liberdade para agir. Ele raramente questionava o que ela fazia, mas quando se tratava de castigo, erguia uma voz fraca e dizia a única imprecação que ele usava, que era "Por São João!", e se estivesse muito aborrecido: "Ora essa, ora essa!"
Henrique vivia como um recluso, e um recluso muito piedoso.
Não se vestia como um rei, mas como um citadino, com uma pelerine redonda e uma capa comprida de cor pardacenta; recusava-se a usar os sapatos da moda, com pontas
longas, e preferia os redondos usados pelos homens do interior. Quando tinha de se vestir para ocasiões de gala, vestia uma camisa de cilício por baixo das faiscantes túnicas. Margaret adorava estar vestida com roupas suntuosas. Claro que adorava. Não tinha sofrido os efeitos da pobreza a vida toda, antes de ir para a Inglaterra, e não era ela a rainha? Além do mais, era bonita e naturalmente queria aproveitar ao máximo seus encantos.
Henrique não queria coisa alguma para ele, mas dava à vontade aos outros. Jamais queria castigar os malfeitores - nem mesmo assaltantes e gente dessa espécie. Ele encontrava desculpas para elas. Aquilo era muita benevolência, mas de nada adiantava para desencorajar os criminosos. Na verdade, ele era um homem bom; teria ficado à vontade num mosteiro, e era pena que o destino o tivesse colocado num trono.
Naquela época, ele estava interessando-se muito por seus meio-irmãos, os meninos dos Tudor. Ele mesmo iria supervisionar a educação deles e providenciar para que fossem sustentados.
- É o que minha mãe, que Deus a tenha, teria desejado declarou ele.
Ela vivera com Owen, e ele se lembrava de Owen com carinho. Owen ainda estava em algum lugar do País de Gales. A mãe de Henrique e Owen podiam não ter se casado, mas, como Henrique disse a Margaret, as crianças não tinham culpa disso.
Margaret dava de ombros. Os Tudor não a interessavam. Ela tinha de se preocupar com governar o reino, porque estava ficando cada vez mais óbvio, para ela, que Henrique era incapaz de fazê-lo.
No entanto, o povo adorava-o. Tudo que acontecia de errado nas questões de Estado era atribuído a outras pessoas - e em especial à rainha.
Eles a odiavam, e a cada mês aquele sentimento aumentava.
Os ingleses estavam perdendo suas possessões francesas para os franceses - e ela era francesa. Eles procuravam bodes expiatórios. Tinham pegado Suffolk, mas não estavam satisfeitos. Queriam outros, e seus pensamentos passaram a concentrar-se em Margaret.
Quem dera Maine aos franceses?, perguntavam eles. Quem traíra os exércitos? Margaret. Claro que traíra. Ela não estava trabalhando em favor da Inglaterra. Estava trabalhando para seu pai, René de Anjou, e seu tio Carlos, o rei da França. O que acontecera com o duque de Gloucester? Morrera misteriosamente quando de sua prisão a caminho de Bury. Ela estivera envolvida naquilo.
De modo que lá estava ela. Uma espiã francesa entre eles, a assassina, a arrogante rainhazinha que mandava no pobre santo rei que era virtuoso demais para ver pecado nos outros.
Começara a circular o rumor de que ela não passava de uma bastarda, e não a filha de René de Anjou. Qual teria sido o seu relacionamento com Suffolk? Era inútil
alguém alegar que Suffolk tinha sido um velho e Margaret mantivera uma grande amizade com a mulher dele. O povo queria que ela fosse não apenas ilegítima, mas imoral, e faria o possível para que outras pessoas aceitassem esse ponto de vista. Não havia dúvida de que ela se tornara a mulher mais impopular da Inglaterra.
Ela recebeu Somerset com demonstrações de afeto. Nunca procurara esconder o amor que tinha para com os amigos, como também não escondia o ódio que sentia dos inimigos. Margaret se orgulhava de sua honestidade, e nada deveria conter isso, não importava o quanto a demonstração pudesse melindrar terceiros.
- Vossa Majestade mandou me chamar - disse Somerset, ajoelhando-se.
- Levante-se, Edmund - disse ela. - É um prazer vê-lo. Pelo menos tenho um amigo em você.
- Até o fim de meus dias.
- Edmund, há rumores perturbadores. É verdade que York deixou a Irlanda?
- Creio que sim.
- com que finalidade? Será que isso tem algo a ver com Jack
Cade?
- Receio que sim.
- Cade dizia chamar-se Mortimer, mas ficou provado que não tinha ligação alguma com os Mortimer.
- Eu não teria tanta certeza assim.
- Então, se isso for verdade, York é um traidor do rei.
- York é um homem ambicioso.
- Nós agimos bem mandando-o para a Irlanda. Ele não tem o direito de voltar sem a nossa permissão.
- O que diz o rei a esse respeito?
- O rei! - Os lábios de Margaret crisparam-se. - Ele diz que York esteve na Irlanda, que mostrou ser um bom administrador.
- Mais uma razão para que deva ser mantido por lá.
- É o que eu digo a Henrique. Mas você acaba de confirmar que York já está vindo para cá.
- Foi essa a informação que tive.
- Você acha que ele vai provocar encrenca?
- Acho que ele está vindo para provar que não teve participação alguma na rebelião de Cade. Isso significa que ele vem para afirmar a Vossa Majestade e ao rei sua lealdade.
- É melhor que seja isso - replicou Margaret, séria. -vou levá-lo à presença do rei. Ele tem muito carinho por você, Edmund.
- Pelo qual eu creio que tenho de agradecer às suas boas graças.
- Henrique está sempre pronto a gostar muito dos meus amigos - respondeu ela, complacente.
Era verdade. Ele a idolatrava. Nada iria significar tanto, para Margaret, quanto sua realeza, e embora às vezes se esquecesse de que Henrique lhe concedera essa realeza, gostava dele. No íntimo, gostava da fraqueza dele, que permitia que ela desenvolvesse sua força. Ela nunca precisava brigar com Henrique nem achava difícil impor a ele seus pontos de vista; ela podia ter tido de persuadi-lo algumas vezes, mas isso sempre fora fácil. Ele estava encantado com o fato de ter conseguido uma esposa tão bonita assim que podia ocupar o lugar dela nos assuntos de Estado - na verdade, ocupar o lugar dele, de modo que muitas vezes ele podia fugir do que lhe fosse desagradável. Era sempre delicada com ele, porque ele nunca lhe dera motivos para ser o contrário. Ele não era exigente de forma alguma. Sentia-se muito agradecido a Margaret e achava maravilhoso o interesse dela por aqueles que a cercavam. Ela providenciara vários casamentos para as mulheres de sua criadagem. Se gostava delas, demonstrava isso, e usava todas as suas energias para trabalhar pelo que considerava ser o bem delas. Naturalmente que se ofendia se não concordavam com ela e às vezes se rebelavam contra os planos que fazia para elas. Nessas ocasiões, ficava zangada, e uma amiga poderia virar uma inimiga. Ela fazia muito pelos seus amigos, mas nunca deixava que um inimigo não ficasse ciente de seu ressentimento.
Era impressionante o quanto de força, energia e paixão existia naquele pequeno corpo.
Henrique recebeu Somerset com afeto. Margaret gostava dele e fizera com que Henrique entendesse o bom servidor que ele era, apesar das coisas indelicadas que eram ditas sobre ele em quase todos os níveis.
- Nós temos de apoiar nossos amigos - dizia Margaret; e ele concordava com ela.
- O Sr. Somerset está um pouco perturbado com a notícia sobre York - disse Margaret. - Ele não tem o direito de deixar a Irlanda sem uma permissão sua.
- Ele tem se saído muito bem lá - disse Henrique -, e eu não acho que estivesse muito ansioso por partir.
- Claro que não estava - bradou Margaret. - Ele queria ficar aqui. Gostava de ficar de olho na coroa.
- Ele tem sido um bom servidor dela - arriscou Henrique.
- Ele vai ser um bom servidor enquanto isso convier a ele.
- Convém a todos nós servir à Coroa - replicou Henrique placidamente.
- Depende de que modo - replicou Margaret com rispidez.
- O Sr. Somerset vem aqui para nos prevenir sobre a chegada de York.
- Nós o veremos quando ele chegar. Ele vai nos trazer notícias da Irlanda.
Margaret ergueu os olhos para o teto, um tanto exasperada. O gesto dava a entender que era inútil tentar conversar com o
rei.
Caberia a ela... e a Somerset... agir quando York se apresentasse.
Richard sabia que estava se metendo em encrenca. Ele tinha duas desculpas muito boas para voltar à Inglaterra. Uma era de que para que ele mantivesse a ordem na Irlanda, seria preciso enviarlhe dinheiro. Isso não tinha sido feito. A outra era a de que as acusações que tinham sido feitas contra ele como o homem que estivera por trás da rebelião de Jack Cade precisavam ser refutadas.
Ele estava precisando de dinheiro. Embora fosse o maior proprietário de terras da Inglaterra, sua renda não era suficiente para sustentar suas vastas propriedades, e como não tinha sido pago pelo trabalho na Irlanda, precisava ir ao seu país a fim de regularizar seus negócios. Mas o principal, é claro, era pôr fim àquelas suspeitas de que estivesse por trás dos levantes. Pelo menos, as duas eram razões muito boas. Uma outra era perigosa demais para discutir com qualquer outra pessoa que não com Cecily.
- O rei consegue manter uma certa popularidade, mas será que continuará a fazê-lo quando os problemas do país vão de mal a pior? - perguntou ele a ela. - Todas as nossas possessões francesas - ou quase todas - foram perdidas. Durante o último reinado, nós éramos os governantes daquele país; agora, não temos nada... nem mesmo aquilo que herdamos por direito. O povo irá voltar-se contra Henrique. Já está contra a esposa dele. Somerset é impopular. E aí...
- E aí - continuou Cecily - será a sua vez. Eles não conseguem ter um filho. - A fértil Cecily demonstrou desdém. Eu não ficaria surpresa se Henrique fosse impotente. Nenhum filho homem... uma esposa que é uma virago francesa e um rei que tem dificuldade em assustar um ganso. Isso não vai durar, Richard. Não, não pode durar.
- É o que eu penso. O povo quer um homem forte... que ainda mais pelo seu nascimento tem perfeitas condições de ser o rei deles.
- Mais perto de um Plantageneta de sangue real do que o próprio Henrique - acrescentou Cecily.
Sim, Cecily sabia que ele estava voltando não apenas para ver suas propriedades, não apenas para provar sua inocência, mas com uma perspectiva muito brilhante em mente que poderia resultar na glória.
Eles partiram da Irlanda e desembarcaram no País de Gales, onde amigos aguardavam para dizer-lhe que a rainha o estava denunciando como traidor. Parecia que eles não estavam ignorando a linha de raciocínio que havia por trás dos atos dele.
Muito bem, ele iria a Londres e, com dissimulada humildade, garantiria a eles que não tinha conhecimento algum da rebelião de Jack Cade, o que era verdade. Se ele
tivesse tido a intenção de desencadear uma insurreição, não teria usado um bandido como Jack Cade com essa finalidade. Ficou imaginando qual seria o estado de espírito do país, e seus instintos lhe disseram que a hora ainda não chegara.
Henrique ainda detinha uma certa popularidade; havia a esperança de que Margaret tivesse um herdeiro; quanto à impopularidade da rainha, era frequente as rainhas serem impopulares, e seria imprudente reforçar muito as suspeitas do povo quanto àquela.
Quando ele começou a marchar em direção a Londres, homens juntaram-se a ele. Queriam um rei forte e estavam alarmados com a perda das possessões francesas e com a influência da rainha.
O ânimo de Richard foi se levantando, em especial quando soube que William Tresham, que tinha sido presidente da Câmara dos Comuns, estava indo ao seu encontro. As diferenças de Tresham com Suffolk tinham feito com que ele perdesse o cargo.
Ele se voltara contra o grupo da corte liderado por Margaret e aeora via claramente que havia uma chance de o duque de York tornar-se uma potência no país.
Era óbvio que quando soubera do desembarque de York ele decidira juntar-se a ele. O que poderia ser uma melhor indicação do apoio que Richard obteria por parte daqueles que estavam insatisfeitos com o regime atual?
Infelizmente, uma grande decepção viria em seguida, porque Tresham nunca chegou até ele. Ele fora interceptado por Edmund Grey, lorde Gray de Ruthin, em Northamptonshire, e no encontro fora morto.
Quer dizer, pensou Richard, que embora houvesse alguns homens que o apoiassem, haveria homens poderosos contra ele. Ele teria de ser cuidadoso.
Ele tinha um aliado forte na pessoa do duque de Norfolk. Mesmo antes da notícia do retorno de York, Norfolk expressara sua insatisfação com o governo do rei - ou melhor, da rainha e convocara certos cavaleiros e senhores feudais ao seu castelo de Framlingham para discutir o assunto.
Assim que soube que York estava na Inglaterra, Norfolk foi ao encontro dele e se encontraram em Bury, onde fizeram imediatamente uma reunião.
Nada foi dito sobre a reivindicação do trono por parte de York. Era um assunto perigoso demais, e Richard tinha de ir tateando com muito cuidado. Ele encontrara uma certa oposição e estava claro que a nobreza não aderira exatamente à sua bandeira. Por isso, ele daria a entender que tudo o que queria eram reformas. A ele e Norfolk juntaram-se o conde de Oxford e lorde Scales. Haveria um reunião do Parlamento em breve e eles decidiram quem seriam os cavaleiros do condado a favor de Norfolk.
Até ali, tudo bem. Homens aderiam a York, e ele mandou mensagens à sua frente pedindo a todos aqueles que desejassem a sua felicidade que se juntassem a ele. Quando chegou a Londres, estava acompanhado de quatro mil homens armados.
Ele teve facilidade em vencer a tentativa de impedir que ele falasse com o rei e, entrando à força, ficou frente a frente com Henrique, quando se ajoelhou com uma humildade que Henrique ficou muito aliviado ao ver. York era parente dele. Henrique estava certo de que York não queria seu mal. Pediu-lhe que se levantasse e dissesse por que chegara daquela maneira.
- Senhor meu rei - disse York. - Venho pedir justiça... nada mais. Não fui pago pelo meu trabalho na Irlanda e acho impossível continuar lá. Eu soube que têm sido ditas mentiras a meu respeito com relação ao bandido Jack Cade e venho garantir a Vossa Majestade que esse homem era um estranho para mim. Só fui saber o nome dele depois que ele morreu, e lamento a traição dele para com Vossa Majestade, como deve fazer todo homem correto na Inglaterra.
- Eu acredito no senhor - disse Henrique. - Ora, meu caro primo, eu sei que o senhor é meu amigo. Nós ficamos muito contrariados com esse assunto e nunca acreditamos que o senhor tivesse participado dele.
York pegou a mão do rei e a beijou.
- Neste caso, majestade, esses casos serão tratados no Parlamento.
- Têm de ser tratados lá, sim, e caro primo, lembre-se de que quando o senhor vem com um exército, haverá quem se oponha ao senhor. Isso é natural, hein? Mas para mim, o senhor veio em paz e, como diz como muita razão, essas situações têm de ser resolvidas pelo Parlamento.
- Talvez Vossa Majestade vá nomear um conselho.
- vou mesmo.
- E tendo em vista a minha posição, eu deveria ser membro desse conselho.
- Assim será - disse o rei.
York se curvou, satisfeito. Era fácil lidar com Henrique. Tudo o que ele queria era paz.
No interior do templo em Londres, onde acontecera uma reunião entre certos membros do Parlamento para discutir as perdas na França, o calor ficara tão insuportável que a reunião fora interrompida com acrimônia de ambos os lados, principalmente entre o duque de Somerset e o conde de Warwick.
Somerset era acusado por Warwick pelas desastrosas perdas na França, e Warwick era de opinião de que um homem que levara tamanho infortúnio ao seu país devia ser levado a juízo.
Os dois homens eram arrogantes por natureza. Ambos se consideravam de uma importância rara. Edmund Beaufort, duque de Somerset, tinha o apoio da rainha e, por meio dela, do rei. Além do mais, tinha sangue real. Seu avô era John de Gaunt, e embora seu pai tivesse de ser legitimado, ele tinha sangue real. Na juventude, obtivera vitórias brilhantes na França; ficara conhecido como um dos maiores comandantes. Seria culpa sua se toda a frente de batalha mudara, se alguma praga se instalara nos exércitos ingleses? Ele estava começando a acreditar que tinham razão os que achavam que Joana d'Arc fora realmente enviada por Deus, e Somerset não seria condenado por aquilo que era inevitável. Claro que ele fracassara na França. Ninguém poderia ter vencido em tais circunstâncias. No íntimo, ele acreditava que se Henrique morresse - e Henrique estava adoentado e não tinha herdeiros, não havia sinal de um herdeiro após todos aqueles anos -, ele, Somerset, teria uma boa chance de reivindicar o trono.
O conde de Warwick observava-o atentamente, como se estivesse lendo seus pensamentos.
Warwick, pensou Somerset. Quem era Warwick? De muito pouca importância antes de ter o primeiro golpe de sorte ao casar-se com Anne Beauchamp, filha do conde de Warwick. Filho de Salisbury, que se casara com a única filha de Richard Beauchamp e herdara as vastas terras do pai dela e o título de conde de Warwick! Por estranho que parecesse, ele e Somerset eram parentes, porque a avó de Warwick tinha sido Joan Beaufort, filha de John de Gaunt.
Aqueles galhos entrelaçados brotavam de muitas árvores. Era uma genealogia intrincada. A tia de Warwick, Cecily, casara-se com o duque de York, e Warwick estava se aliando cada vez mais a York.
O verdadeiro inimigo, acreditava Somerset, era o duque de York. Sim, York estava decidido a destruí-lo. Somerset sabia para onde seguiam os pensamentos de York.
Ele se considerava herdeiro do trono. O doentio Henrique, sem filhos, e uma rainha impopular significavam que os olhos estavam todos voltados para o próximo pretendente.
Podia ser York. Havia quem dissesse que ele era o mais provável. Mas Somerset não deixava de ter seus partidários.
Quando eles saíram para os jardins do templo a fim de respirar ar fresco, o perfume das rosas estava em toda parte. Elas tinham sido bem tratadas e cresciam em profusão dos dois lados do caminho, e o jardineiro arrumara-as de tal maneira que as vermelhas estavam de um lado e as brancas, do outro.
Warwick se aproximou de Somerset e não havia como não reconhecer a hostilidade que havia em seus olhos.
- Senhor duque - disse Warwick -, o senhor deveria considerar-se um homem de sorte por estar caminhando livremente nestes jardins.
- Eu não compreendo, senhor conde - retorquiu Somerset.
- Hoje em dia, nosso país é um país triste. Quanto tempo faz que as ruas desta cidade ressoavam com sinos triunfantes e havia procissões para celebrar nossas vitórias?
- O senhor deveria saber isso, Sr. Warwick, tanto quanto eu, e não sei por que o senhor devesse me fazer uma pergunta dessas.
- A que outra pessoa eu a faria, já que o senhor é o autor de nossas dificuldades?
- O senhor vai longe demais.
Começava a juntar gente em volta deles, pressentindo uma agitação crescente. Uma discussão entre dois dos mais poderosos nobres do país.
A mão de Somerset estava apoiada em sua espada. Ele era famoso pelo seu pavio curto. O duque de Buckingham segurou a manga do casaco dele, para contê-lo. Warwick olhou-o firme nos olhos.
- Senhor duque - disse Warwick -, vejo planos em seus olhos.
Não havia como não entender o que ele queria dizer. Somerset sentiu uma inquietação tomar conta dele.
Eu sou leal ao rei - bradou ele. - Sou servidor dele enquanto me honrar com suas ordens.
Nós todos somos bons servidores do rei e deste reino -
retorquiu Warwick. - Mas eu acho, lorde Somerset, que existe uma pessoa que está antes do senhor na proximidade do rei.
- Então você está a favor de York, não está, Warwick? Decidiu tomar partido nessa discussão que você procura fomentar.
.- Não sou eu que a estou fomentando, mas quando existem pessoas que se preocupam com grandes projetos, é dever de todos os homens honrados apoiar aquilo que for correto.
Somerset fervia de raiva. Estava alarmado. O país voltara-se contra ele. Injustamente, culpavam-no pelas derrotas na França. Ele contava apenas com o apoio do rei e da rainha. Mas não, havia outros. Devia haver quem não quisesse ver York subir ao poder.
Afastou-se da mão controladora de Buckingham e, colhendo uma das rosas vermelhas, o símbolo da Casa de Lancaster desde a época de Edmund, conde de Lancaster e irmão
de Eduardo I, bradou:
- Eu colho esta rosa vermelha. A rosa vermelha de Lancaster. Sou a favor de Lancaster e do rei.
Warwick fez meia-volta e imediatamente colheu uma rosa branca - o símbolo de York, a rosa branca usada pelo Príncipe Negro em pessoa. Ergueu a rosa bem alto.
- Eu colho esta rosa - disse ele. - A rosa branca de York. Que cada um dos homens que estão aqui escolha a sua rosa. Que cada um se declare com essas belas flores. Então, ficaremos sabendo como estamos.
Houve um grito de agitação quando todos começaram a colher as rosas, até que os canteiros ficaram completamente vazios. Os gritos deles enchiam o ar.
- Por York. Por Lancaster.
Aquilo foi o prelúdio. A cortina estava para ser erguida para mostrar a guerra das rosas.
O duque de York partira para seu castelo de Fotheringay às margens do rio Nen, em Northamptonshire, que se tornara a sede favorita da Casa de York desde que Edmund
Langley tomara posse dele. Lá, juntaram-se a ele o duque de Norfolk, o conde de Salisbury e o filho de Salisbury, Richard Neville, conde de Warwick.
Eles tinham se reunido para planejar como deveriam agir na sessão do Parlamento que estava para acontecer.
- O rei não pode continuar a reinar, a menos que pare de ser guiado pela mulher - declarou Warwick.
Desde a cena nos jardins do templo ele resolvera assumir o posto de assessor de York, em cujo lado ele agora proclamara muito abertamente estar. Ele acreditava que York fosse um homem forte, e o que o país precisava era de um homem assim.
- Pobre Henrique - disse York. - É uma pena ele não poder entrar para um mosteiro. Seria mais indicado para ele do que o trono que ele ocupa.
- É bem possível que com o tempo ele entre - acrescentou Warwick.
Os outros ficaram calados. Talvez Warwick estivesse sendo impulsivo não ao ter aquela opinião, mas ao expressá-la.
- Se a rainha tivesse um filho... - começou Salisbury.
- Senhor conde, acha que isso é possível? - perguntou York, desejando desesperadamente ouvir dizer que não, porque se Margaret tivesse mesmo um filho, toda a trama deles daria em nada.
- É praticamente impossível - disse Salisbury. - Não depois de todo esse tempo. O rei está demasiado preocupado com suas orações, e a rainha, em ser rainha. Ela divide o tempo entre instruir suas costureiras na feitura de roupas extravagantes e arranjar casamento para suas empregadas. A rainha é uma intrometida.
- É melhor ela se intrometer com as costureiras e criadas do que com os assuntos deste país - interpôs Warwick.
- Mas ela se intromete em tudo. E Somerset é o queridinho dela.
- O senhor acha...?
York tivera um pensamento desagradável.
- Duvido-disse ele.-Nem mesmo Margaret desceria tanto a ponto de colocar sub-repticiamente um bastardo no trono.
- Mas Somerset... se ele fosse o pai... iria salvar sua consciência declarando... para si mesmo, é claro... que se tratava de um bebé de sangue real.
- Nós estamos indo longe demais - disse Warwick. - A rainha não está grávida ou tem probabilidade de ficar, e por isso perdemos tempo ao discutirmos quem poderia ser o pai de um possível bastardo. Dediquemo-nos a assuntos de interesse imediato. Temos de livrar o país de Somerset. Ele deveria ser levado a juízo pelo que fez na França.
- A rainha jamais concordará com isso.
- Isso é assunto para o Parlamento. Nossa finalidade é tirar Somerset e colocar o senhor, senhor de York, no lugar dele. Protetor do reino para servir sob as ordens do rei, o que significa que o senhor irá assessorá-lo, com a ajuda de seus ministros, e pode muito bem acontecer que possamos arrancar uma pequena vitória desse atoleiro de desastre e fracasso em que caiu o nosso outrora grande país. Vamos comparecer ao Parlamento usando rosas brancas. Isso mostrará claramente quais são nossas intenções.
- Não é fácil encontrar rosas brancas nesta época do ano - assinalou Norfolk.
- Neste caso, elas deverão ser fabricadas de papel ou com o material que puder ser encontrado. Vamos aderir por completo ao nosso símbolo da Rosa Branca. Todos aqueles que estiverem a nosso favor deverão usá-la, e podem estar certos de que nossos inimigos irão retaliar exibindo a rosa vermelha de Lancaster. Então saberemos quem
são nossos amigos... e nossos inimigos.
E assim eles iriam ao Parlamento.
Margaret ficou furiosa quando soube que Richard de York falara com o rei e que Henrique concordara em convocar uma reunião do Parlamento.
- Esse homem é um traidor - bradou ela. - Você sabe o que ele quer, não sabe?... ele e aquela insolente mulher dele? Sabe que a Orgulhosa Cis já está se comportando como se fosse uma rainha e que as aias dela têm de se ajoelhar para ela?
- Ela sempre foi uma mulher orgulhosa.
- É porque é filha daquela bastarda Joan Beaufort - prosseguiu Margaret.
Henrique lhe dirigiu um sorriso afetuoso. Ela gostara muito daquele outro bastardo, irmão de Joan, o cardeal. Margaret era tão violenta em suas lealdades, em seus afetos e em seus desafetos, que nem sempre era lógica.
- Você se engana com York - disse ele. - Ele foi acusado erroneamente de cumplicidade com Jack Cade. Ele queria ser inocentado. Só isso.
- "Só isso" - imitou ela. - E acusado erroneamente. Ele não foi acusado erroneamente. Pode estar certo disso, Richard de York está de olho na sua coroa.
- Como pode ele ter alguma esperança de conseguir isso?
- perguntou Henrique, os olhos arregalados. - Eu sou filho do rei. Venho usando a coroa quase que desde quando ainda estava no berço.
Margaret olhou para ele desanimada. Será que ele jamais iria aprender? Será que ele não conseguia ver o mal quando este rastejava em sua direção e o cercava por todos os lados? Como era um idiota ao pensar que o mundo inteiro estava preocupado em fazer o bem e todos os homens eram santos como ele. Ainda bem que tinha uma mulher forte para cuidar dele.
- No Parlamento - disse ela - os partidários de York irão usar rosas brancas nos chapéus ou nas mangas dos casacos.
- A rosa branca é, claro, o símbolo de York e vem sendo há algum tempo.
- Eles a usam a título de desafio. Já se esqueceu da cena nos jardins do templo?
- Eu fiquei sabendo - disse Henrique.
- Você não percebe que foi significativa? Foi como que uma declaração de guerra.
Minha querida Margaret, não existe guerra. Não haverá guerra. Aqueles que usam a rosa branca sentem orgulho dela porque há muitos anos ela é o símbolo deles.
Era inútil falar com ele, tentar fazer com que compreendesse.
- Muito bem - disse ela. - Que usem suas rosas brancas. Nós iremos usar a rosa vermelha de Lancaster e mostrar a eles que a nossa rosa vermelha jamais cederá à rosa branca de York.
Ela iria usar uma rosa vermelha nos cabelos. Henrique usaria uma em seu manto. Deveria haver um arranjo de rosas vermelhas mais bonito do que o de brancas.
Assim, na fatídica reunião do Parlamento foram plantadas as sementes que se transformariam numa guerra sangrenta - rosa vermelha contra rosa branca - e mudariam o curso da História.
As duas cores estiveram bem representadas. Já havia homens esforçando-se para avançar uns nos outros. Eles se empurravam, procuravam um pretexto para brigar.
Foi um acontecimento agitado.
Margaret não percebeu isso porque, muito bonita com a rosa vermelha nos cabelos, ouviu com atenção a cerimónia do Parlamento, durante a qual ficou combinado que o duque de York deveria ser reconhecido como herdeiro do trono se o rei viesse a morrer sem deixar herdeiros.
A facção da rosa branca pareceu encantada com isso, e o Parlamento encerrou a sessão de forma pacífica.
Nos aposentos de York, Cecily declarou-se satisfeita com os trabalhos.
- O povo não vai suportar o tolo Henrique e a orgulhosa Margaret por muito tempo - bradou ela. - Que chegue logo o dia de colocarem um rei de verdade no trono.
Seus olhos carinhosos estavam voltados para o marido. Claro que Richard devia ser o rei!
Quanto a Margaret, estava enfurecida. Que desfaçatez do duque de York! Herdeiro do trono, não é? Ah, se ao menos ela pudesse ter um filho!
Enquanto isso, Henrique tinha de manter seu domínio sobre o afeto do povo.
- Vamos fazer algumas peregrinações - disse ela.
Sim, era isso. Eles percorreriam o país. O povo adorava ver o rei: e ela iria aparecer entre o povo suntuosamente vestida, bonita, e tentaria esconder a impaciência com os idiotas e seria tão graciosa que todos iriam considerá-la a rainha mais bonita que já tinham visto.
Sim, era isso. Eles deveriam mostrar-se ao povo. Não havia nada de que o povo mais gostasse.
A LOUCURA DO REI
Richard sentia uma frustração quase insuportável. A tarefa mais difícil que um homem de ambição podia ser chamado a fazer era esperar. No entanto, ele tinha de esperar. Estava certo de que a oportunidade viria; e atacar prematuramente seria arruinar suas esperanças. Por isso, nada havia que pudesse fazer a não ser afastar-se da corte e esperar o momento propício.
Haviam-se passado quase dois anos desde aquela reunião do Parlamento em que os hostis portadores de rosas vermelhas e brancas tinham-se enfrentado. Aquilo poderia ter evoluído facilmente para um conflito que teria sido insensato e ele não teria conseguido coisa alguma.
Na época, Richard sentira uma certa tentação. Eram muitos os que reconheciam a incompetência do governo de Somerset, o domínio da rainha sobre o rei, e que consideravam Somerset e Margaret dois conspiradores cruéis. Mas aquele não era o momento.
Teria sido um jogo inconsequente que poderia ter resultado no fim da esperança.
Olhando o passado, ele agora começava a se perguntar se não teria sido cauteloso demais. Quando o povo se revoltara em Westminster depois daquela memorável reunião do Parlamento, pedira aos berros o sangue de Somerset. Eles o teriam matado se o tivessem pegado. Sim, e o teriam transformado num mártir. Não era esse o caminho. Somerset devia ser julgado pelos seus crimes, e seus fracassos deveriam ser explicados a todos. O povo culpava-o pelo fracasso na França, e um grupo de soldados que tinham voltado das guerras cercou a casa dele em Blackfriars e o teria assassinado ali mesmo se ele não tivesse sido salvo.
Havia quem achasse irónico que seus salvadores tivessem sido o duque de York com seu aliado Devonshire. Mas era tudo parte de uma estratégia. Richard estava ansioso por que todo mundo percebesse que a última coisa que ele queria era provocar um conflito no país. Ele se mostrava totalmente a favor da lei e da ordem. Queria que Somerset fosse levado a juízo, que fosse submetido a um julgamento, sim. O que ele não queria era que Somerset fosse morto pela turba.
Juntos, ele e Devonshire tinham salvado Somerset e o levado para a torre. Não como prisioneiro, salientara York, ansioso, mas para sua segurança. Ele estava ansioso por causar uma boa impressão ao povo; e se algum dia ficasse com o governo nas mãos, a última coisa que queria era ter chegado a ele por meio da turba.
Richard era um homem cauteloso e em pouco tempo percebeu que o rei, com Margaret por trás, estava sentado no trono com um peso forte demais para ser derrubado com facilidade. A Câmara dos Comuns poderia apoiar York, mas era claro que a dos Lordes não o apoiava. Ele sabia que o melhor que tinha a fazer era afastar-se tranquilamente por algum tempo e esperar o momento propício.
Ele se retirou para a fronteira galesa, onde não ficou, em absoluto, inativo. Estava persuadindo os amigos a apoiarem-no; fazendo com que eles percebessem que não poderia haver prosperidade para a Inglaterra enquanto ela fosse governada por Margaret e Somerset, um homem que fracassara tristemente na França e agora estava fazendo a mesma coisa com a Inglaterra. Será que eles iriam cruzar os braços e aceitar o declínio de seu país, ou livrar-se daquela débil Casa de Lancaster e instalar aquela que tinha mais direito de estar lá e tinha a vontade e a força para governar - a Casa Real de York?
O rei estava ficando mais fraco; a rainha, mais arrogante; e Somerset, mais ineficaz. Além do mais, estava claro que o rei não podia gerar um filho.
- Terá de chegar a hora em que a mudança será inevitável
- dizia o duque de York, e no entanto ele sabia que o momento ainda não era aquele.
Tinha havido uma série de viagens pelo país. Margaret gostava delas; Henrique as tolerava por causa dela e porque o conde de Somerset achava que aquilo agradava ao povo. Não restava dúvida de que representava uma mistura de vantagem e desvantagem para os anfitriões da comitiva real, e aqueles que recebiam a honra de recepcioná-los tinham, é claro, que levar em conta os custos. Se a comitiva ficasse mais de alguns dias, a falência podia ficar cara a cara com o anfitrião, porque providenciar a quantidade de alimentos que tinha de ser fornecida à comitiva itinerante do rei podia levar uma pessoa à ruína.
Mas como Margaret gostava daquelas viagens! Sentada em seu cavalo ou carregada em sua liteira, brilhantemente trajada, sentia-se uma rainha de verdade. Ela percorrera um longo caminho desde a época de probreza em que fora obrigada a procurar refúgio com a avó. Sabia que aquela avó teria dado todo tipo de conselho agora. Mas Margaret estava decidida a desfrutar seus triunfos. O rei a admirava. Suas roupas requintadas eram motivo de comentários aonde quer que ela fosse. Sabia que ficava muito bonita com a coroa real colocada sobre os cabelos dourados que usava caídos sobre os ombros para mostrá-los em toda a sua beleza. Por baixo da capa púrpura presa com tiras de ouro e pedras preciosas, a roupa colante ajustava-se à perfeição ao seu belo corpo e era sempre feita dos tecidos mais ricos e adornada com jóias faiscantes. Ela sempre gostava que seu emblema ficasse em destaque por toda parte - não apenas em seus trajes, mas aonde quer que eles fossem. As pessoas já não levavam margaridas como faziam antes, a título de homenagem a ela quando ela chegara pela primeira vez ao país; mas nas casas de classe, ficava satisfeita ao ver a flor exibida com destaque.
Era uma pena Henrique não prestar mais atenção no trajar. Era difícil fazê-lo usar as roupas corretas, mesmo para cerimónias oficiais.
Pelo menos ele admirava sua mulher e aos seus olhos ela não errava nunca; e se o povo mostrava pouco entusiasmo por ela - e na verdade às vezes deixava transparecer uma antipatia taxativa -, ela não dava a mínima para ele. Tinha total confiança em sua capacidade de mandar em Henrique, e como Henrique era o rei, isso ignificava que ela, em grande parte, governava a Inglaterra.
Ela estava decidida a distinguir o conde de Somerset, e seu ódio pelo duque de York era profundo. Ela gostava de insultá-lo; divertia-se com seu ódio. Achava que se ele chegasse a determinado ponto, ela teria a cabeça dele na ponte de Londres.
Num dia frio de março, ela estava em sua escrivaninha. Tentava arranjar um casamento para uma de suas empregadas. Gostava muito de arranjar casamentos, e encontrara o homem certo para sua criada. Ela daria a boa notícia a eles, faria com que os dois se casassem e talvez comparecesse ao batizado do primeiro filho.
Ela tinha várias protegidas para as quais arranjara casamento.
Adorava meter-se um pouco na vida delas, tomar conta delas, ouvir seus problemas e acompanhar o curso de suas vidas. Quando tinham filhos, ela ficava satisfeita, mas muitas vezes com um pouco de inveja. Não parecia certo que as pessoas do povo pudessem ter filhos enquanto aquelas para as quais os filhos eram da máxima importância continuavam estéreis.
Nem ela nem Henrique eram apaixonadamente interessados pelo ato da procriação. Para os dois, era um dever necessário, mas ela estava ficando cada vez mais desanimada. Já tinham se passado nove anos, e apesar dos zelosos esforços de ambos, ainda não havia sinal de um filho. Se ela pudesse ter um filho homem, que alegria não seria. York seria silenciado para sempre.
Quando se levantou da escrivaninha, ela se perguntou se devia chamar a aia e dar-lhe a boa nova. "Você vai se casar", diria ela à jovem perplexa; e esperava que ela ficasse devidamente agradecida.
Mandou chamar a mulher. Enquanto conversava com ela, uma de suas criadas entrou para dizer que um mensageiro chegara e estava pedindo uma audiência com ela.
Ela dispensou a empregada e disse que trataria do caso dela mais tarde. Enquanto isso, iria receber o mensageiro.
Ficou muito contente ao ver que ele vinha a mando de seu pai, mas quando olhou para o rosto dele percebeu logo que as notícias não eram boas.
- Majestade - disse ele, fazendo uma mesura acentuada -, venho a mando do rei da Sicília, seu nobre pai. Aqui estão cartas para Vossa Majestade, mas ele disse que poderia ser melhor se eu a preparasse para a notícia.
- Então, prepare-me - ordenou ela.
- Sua nobre mãe, lady Isabelle, está muito doente. Margaret olhou firmemente para o mensageiro.
- Está querendo me dizer que ela está morta? - perguntou ela.
- Receio que sim, majestade. Ela balaçou a cabeça.
- Dê-me as cartas - disse ela. - Agora pode ir até a cozinha, onde eles irão alimentá-lo depois de sua viagem.
Ela pegou as cartas do mensageiro e viu que realmente tinham a caligrafia de seu pai. Correu os olhos por elas. Iria concentrarse nelas mais tarde.
Sua mãe morta. Ela mal podia acreditar. Não aquela mulher forte, vital.
Lembranças vieram-lhe em quantidade à cabeça. Ela se lembrava mais da mãe no tempo em que era muito criacinha. Nunca se esqueceria daquela viagem, à corte francesa, quando Agnès Sorel as acompanhara.
Agnès... bela Agnès, querida de um rei.
Margaret levantou-se da escrivaninha e ao fazê-lo sentiu-se repentinamente fraca e tonta. Agarrou-se à mesa para se apoiar e então voltou a sentar-se na cadeira.
Uma das aias estava correndo para ela. Margaret ouviu vagamente a expressão de alarme da mulher.
Quando acordou, estava descansando em sua cama, e os médicos estavam lá.
Eles não tinham certeza, disseram. Mas havia sinais. Havia uma possibilidade.
- Estou grávida - sussurrou ela.
- Majestade - foi a resposta -, é bem possível que seja isso.
Ela ficou perplexa. Chegando tão logo depois do choque da morte de sua mãe, que mal conseguia entender. Morte de um lado e possibilidade de nascimento - glorioso nascimento - do outro. Não admirava que se sentisse confusa.
Não devia ficar agitada demais. Tinha de esperar até que pudesse ter certeza, antes de contar a Henrique.
Chegou o dia em que teve certeza. Correu para Henrique e abraçou-o. Ele sorriu ternamente para ela.
- Parece que você teve boas notícias - disse ele.
- A melhor notícia possível - disse ela. - Finalmente, aconteceu. Henrique, estou grávida.
- Ora essa, ora essa! - bradou ele. - É possível, mesmo?
- Acredito que sim. Os médicos também acham.
- Há tanto tempo que esperamos! Tanto empenho...
- Mesmo assim, é verdade. Eu vou ter um filho. Pense no que isso vai significar. Pense na cara do duque de York quando souber. Do que adianta ele exibir a sua rosa branca, agora? Isso vai mudar tudo.
- Se for um menino - começou Henrique.
- Vai ser menino - bradou Margaret. - Tem de ser menino!
Ela estava certa. York ficou estupefato quando recebeu a notícia. Se aquele filho fosse um menino saudável, isso arruinaria suas esperanças. Um filho... depois de nove anos! Mas ele ainda não havia nascido. Poderia nunca nascer, e se fosse menina não representaria tanto perigo, mas um menino seria um desastre.
- Você acha que pode ser verdade? - perguntou a Cecily.
- Só vou acreditar quando vir a criança - retorquiu ela.
- É possível, claro. Talvez seja apenas um boato. Não posso acreditar nisso logo agora.
- Você não acha que seja de outra pessoa?
- Você está se referindo a Somerset?
- Pode ser de Henrique? Dizem que ele está ficando cada vez mais fraco.
- Não há dúvida de que não está interessado em mulheres. Nunca teve uma amante, e acredito que tenha feito muito esforço para dormir com a rainha.
A saudável Cecily soltou uma gargalhada. Depois, séria, disse:
- Acredito que a rainha seja capaz de tudo.
- Temos de esperar com paciência. Primeiro, o rumor pode não ser verdade; segundo, a criança pode não viver.
- E se viver, Richard, e se for um menino?
- Neste caso, poderá ser necessário tomar a coroa à força
- respondeu Richard, sério.
- Foi o que pensei na época em que houve aquela hostilidade nos jardins do templo entre os portadores de rosas brancas e vermelhas.
- Uma guerra civil é a última coisa que eu quero.
- Mas a alternativa...
- Se não pudermos resolver por meios pacíficos, teremos de apelar para as armas.
Cecily sacudiu a cabeça.
- O povo de Lancaster está rindo devido à sorte que teve.
- Talvez essa alegria não dure muito tempo - respondeu Richard.
Henrique estava contente com a vida. Recusava-se a ver os sérios problemas que o rodeavam. Somerset temia York e declarava que ele estava fomentando encrencas. Henrique não acreditava muito nele. Preferia acreditar que os homens eram bons, embora de vez em quando um pouco desorientados, talvez, mas não podia aceitar o fato de que seu parente, York, quisesse fazer-lhe algum mal. Margaret, claro, concordava com Somerset. Estava sempre dizendo a Henrique que não devia ser tão bondoso, estar tão pronto a acreditar no bem em todo mundo. Margaret era muito impetuosa, às vezes - só porque gostava dele, evidentemente, e se preocupava muito com a prosperidade do país.
Naquele verão, eles iriam fazer uma longa viagem pelo país. Henrique gostava de visitar os mosteiros, as abadias e os colégios enquanto seguia pelo interior e prometia a si mesmo que iria construir mais. Estava contente por eles estarem se retirando da França. Que outros deplorassem suas perdas, se quisessem; ele achava que seria muito melhor quando não tivessem mais nada por que lutar na França.
De vez em quando, sentia-se muito estranho, tão apático que tudo o que queria era ficar sozinho com seus livros. Então, às vezes se via quase dormindo em meio à leitura. Acordava assustado e se perguntava onde estava e durante algum tempo não conseguia se lembrar.
Ficava encantado ao ver Margaret tão contente agora que ia ter um filho. Era o que ela desejara mais do que qualquer outra coisa.
- Finalmente agora - dizia ela - não poderão me criticar pela minha infertilidade.
Ele tentava dizer a ela que na verdade não a estavam criticando. Estavam apenas ansiosos para que houvesse um herdeiro do trono. Era o amor pelo país que os deixava tristes por não haver herdeiro. Agora seria muito diferente.
Eles estavam em Clarendon, na Nova Floresta. Margaret se sentia feliz lá. Ela adorava caçar, mas estava abrindo mão daquele prazer agora porque estava grávida de seis meses e ficava mais volumosa a cada dia. Algumas das mulheres de idade diziam que a forma que sua barriga exibia indicava que seria um menino.
Como eles ficariam contentes se fosse mesmo um menino! Mas uma criança, não importava de que sexo, seria muito bem recebida. Pelo menos, iria mostrar que eles podiam ter filhos. Embora, é claro, todos estivessem querendo um menino.
Bem, eles estavam em paz ali em Clarendon. Henrique vinha se sentindo muito cansado ultimamente. O longo cavalgar de um dia tinha sido mais cansativo do que de costume. Eles ficariam mais um pouco em Clarendon.
Na manhã seguinte, quando os criados foram ao seu quarto de dormir, encontraram-no deitado muito quieto, os olhos arregalados, olhando para um ponto à sua frente. Ele não parecia tê-los visto. Quando falaram com ele, não respondeu. Ficou deitado muito parado e não parecia poder mexer com os membros.
Consternados, eles foram procurar a rainha, sabendo que ela ficaria zangada se não fosse informada do estado estranho do rei.
Ela olhou para ele ali deitado, inerte, na cama. Ele estava um tanto diferente - parecia um cadáver.
Ela segurou-lhe a mão. A mão soltou-se da dela sem que Henrique parecesse estar ciente. Parecia que ele não a estava vendo. Ele limitava-se a ficar deitado - sem ver, sem ouvir, sem pensar.
- Chamem os médicos - ordenou a rainha.
Os médicos chegaram, mas não conseguiram fazer com que ele visse nem ouvisse. Ele não reagia de forma alguma.
- Do que se trata? - perguntou a rainha, impaciente.
- Parece que o rei perdeu o juízo.
Margaret se levantou, as mãos no corpo. Podia sentir a criança se mexendo. O rei perdendo o juízo. Que absurdo! Ela precisava mandar chamar Somerset imediatamente.
Voltou-se para os médicos.
- Não digam nada sobre isso... por enquanto - ordenou ela. - Isso poderá passar. Ainda não sabemos o que o rei tem, mas não quero espalhar rumores que provoquem agitação.
Os médicos disseram que não diriam coisa alguma.
Somerset cavalgou a toda velocidade para Clarendon, e Margaret levou-o imediatamente para ver o rei, que permanecia numa espécie de coma, embora parecesse consciente. Os olhos estavam abertos; ele estava respirando; mas, afora isso, poderia não ter vida alguma.
- Edmund, meu querido amigo - bradou ela -, que calamidade é essa que caiu sobre nós?
- Os médicos parecem achar que o rei perdeu o juízo.
- Eu receio que possa ter sido isso mesmo. Mas há uma possibilidade de que ele se recupere.
Somerset balançou a cabeça.
- Isso aconteceu de repente. É bem possível que vá embora da mesma maneira.
- E enquanto isso não acontece?
- Devemos esperar um pouco. Não deixe ninguém saber disso até termos certeza do que se trata.
Ela balançou a cabeça.
- Foi o que pensei. Dei ordem aos médicos para que não dissessem nada.
- Isso é bom, mas a senhora sabe que há espiões por toda parte. Os criados...
- Acho que posso confiar neles.
- Nunca se pode confiar nos criados, cara senhora. No entanto, temos de ter a esperança de que nada disso chegue aos ouvidos do povo até que compreendamos do que se trata e planejemos o que fazer.
- Meu filho deverá nascer daqui a três meses.
- Se pudermos manter isso em segredo até a criança nascer... e se a criança for um príncipe...
- Edmund, como fico contente por pensarmos da mesma forma! Vamos esperar até que a criança nasça, e até lá Henrique poderá ter-se recuperado. Mas o que pode significar essa doença?
- Temo que ele esteja perdendo o juízo. A rainha olhou para ele horrorizada.
- Você sabe quem era a mãe dele. Isso significa que ele poderia, acho eu, ter saído ao avô.
- O rei louco da França! Ouvi histórias terríveis sobre ele.
- O temperamento de Henrique é muito diferente do dele. Henrique é muito delicado, muito amante da paz. A doença... se for a mesma... afetou-o de forma diferente. Apenas tirou-lhe os sentidos. Carlos VI era um lunático furioso, às vezes violento, causando estragos sempre que ficava assim, de modo que ninguém tinha coragem de chegar perto dele.
- Deus queira que não chegue a esse ponto.
- com o delicado Henrique, não. Mas mesmo assim é uma calamidade. Tudo o que podemos fazer é esperar. Não queremos que isso chegue aos ouvidos de York.
- Deus nos livre. Ele iria querer instalar-se como protetor ou regente ou algum cargo parecido antes de podermos planejar alguma coisa.
-York não deve saber. É possível que seja um estado passageiro. Há quanto tempo ele adoeceu?
- Desde que os criados foram ao quarto dele e o encontraram assim, há poucos dias.
- Então, vamos aguardar. Mantenha o caso tão secreto quanto possível, e os senhores devem ir para Westminster, onde a criança deverá nascer. Não podem ficar em Clarendon. com certeza, isso provocaria suspeitas.
- Não vai ser fácil levar Henrique para Westminster sem que se perceba que há algo de estranho com ele.
- Vamos fazer a coisa da melhor maneira possível, e sugiro que comece a fazer a mudança assim que possível.
- vou providenciar, e dou graças a Deus por você estar ao meu lado.
Margaret estava no seu quarto, em Westminster, esperando o nascimento do filho. Aquele deveria ter sido o momento mais feliz de sua vida, e em vez disso era na verdade angustiante.
Em quase três meses, o estado de Henrique pouco mudara. Ele agora podia mexer os membros; podia comer; dormia; mas não falava e estava inteiramente alheio ao que se passava à sua volta. Margaret tentara falar com ele sobre o filho e ele, que ficara tão contente com a perspectiva de ser pai, evidentemente não sabia do que ela estava falando.
Ela convocara os médicos William Hacliff, Robert Warren e William Marschall para o acompanharem, porque não havia ninguém na Inglaterra com a mesma competência, mas eles abanavam a cabeça e trocavam impressões. Tinham de admitir que o rei perdera o juízo. A doença poderia ter vindo do avô, muito embora o tivesse atacado de forma diferente. Eles estavam sempre ao lado dele. Preparavam xaropes e poções, banhos, fomentações e emplastros. O rei aceitava tudo com paciência e ficava deitado ou sentado quieto, sem dizer nada, sem ouvir nada, sem reagir de forma alguma.
Margaret sabia que corriam rumores terríveis, porque era inteiramente impossível guardar o segredo. Em breve a verdadeira situação teria de ser divulgada, porque muitos dos rumores eram mais horríveis do que a realidade.
Os médicos tinham dito que ela não devia ter medo. Sua grande tarefa, agora, era ter um filho saudável. Era uma infelicidade aquilo ter acontecido logo naquele momento, mas ela precisava pensar em sua importantíssima tarefa.
Claro que eles tinham razão. Ela deveria livrar a cabeça de toda a angústia. Não devia pensar em nada além do parto. Nada poderia dar errado com ele. Ela se perguntava quanto do que acontecia chegara aos ouvidos do duque de York.
Então, as dores começaram. Suas aias estavam com ela, e finalmente, depois de horas de agonia, ela ouviu o choro de uma criança.
Estava tão preparada para um revés, que mal pôde acreditar na verdade quando lhe disseram que tinha um menino - um belo e saudável menino.
Ficou deitada, imóvel, regozijando-se; e pouco depois chegaram e colocaram-no em seus braços.
Somerset foi visitá-la com a duquesa. Os dois expressaram sua satisfação com a criança, e a duquesa andou pelo quarto com ele nos braços.
- Mas ele é muito bonito! - bradou ela. - Parece mesmo filho de um rei.
- O povo vai ficar satisfeito - disse Margaret.
- Vamos fazer o batismo e a purificação assim que possível - disse Somerset. - Já se decidiu sobre um nome para o menino?
- Já - replicou Margaret. - Ele nasceu no dia de Santo Eduardo, o Confessor, e Eduardo é um bom nome para um rei, não é?
- Um dos melhores - disse a duquesa.
- O povo adorou dois dos Eduardos - disse o duque. - O segundo, ele desprezou. Mas acho que vai gostar do nome, porque quando o povo pensa em Eduardo pensa no Pernas Longas e no neto dele, Eduardo III. Sim, Eduardo é um bom nome.
- O filho mais velho de York se chama Eduardo - lembrou a duquesa.
- Eu sei - disse a rainha - e sob todos os aspectos é um Plantageneta dos pés à cabeça. Ele é mesmo tão alto quando dizem?
- Ele é um belo rapaz: louro e alto e, apesar de jovem, um favorito das mulheres. Pelo menos é o que ouço dizer.
- Maldito seja ele - disse Margaret, em tom de brincadeira. - Mas por que estamos falando daquele Eduardo quando temos este pequenino aqui? - ela voltou-se para o duque. Quem sabe a visão do filho possa estimular Henrique?
- Se há alguma coisa que possa estimulá-lo, deverá ser o filho - disse Somerset.
Margaret sacudiu a cabeça. Ela estava meio temerosa, porque alguma coisa lhe dizia que Henrique nem mesmo reconheceria o próprio filho.
Não havia tempo para dormir sobre seu sucesso.
Todo mundo saberia, agora, que havia algo de muito errado com o rei se ele não aparecesse no batizado do filho.
Assim, foi proclamado que o rei estava doente, mas a verdade não poderia ser escondida por muito tempo.
A cerimónia do batizado foi esplêndida. Uma dispendiosa vestimenta branca foi arranjada para o menino - ricamente bordada em sedas requintadamente coloridas e incrustada de pérolas e ricas pedras preciosas, mas forrada de linho para que a pele delicada da criança não fosse arranhada. Foram necessários vinte metros de tecido de ouro para decorar a pia batismal, e o vestido de Margaret para a cerimónia de comparecimento à igreja depois do nascimento do filho continha quinhentas e quarenta peles de zibelinas. O custo disso superior a quinhentas libras.
Margaret esforçou-se muito para viver somente para aquele dia e recusava-se a olhar adiante. Não era fácil. As nuvens negras estavam se agrupando.
- Então - disse York - a rainha tem um filho. Filho de quem? Não daquele idiota, por certo! Eu acredito que ele seja impotente. Nesse caso, como é que a nossa bela rainha gera uma criança?
- De quem o senhor desconfia? - perguntou Warwick.
- Ela tem uma ligação muito íntima com Somerset.
- Ele é muito velho.
- Mas capaz de fazer um filho.
- Ela é amiga de Buckingham.
- Ah, ela tem seus amigos. Mas agora tem de haver uma regência, algum tipo de protetor. Henrique está incapacitado para governar.
- É verdade - disse Warwick. - E o senhor, senhor duque, deveria ser o nosso protetor. Como o segundo na linha de sucessão... recém-deslocado por esse pequeno príncipe... é de seu direito.
- Foi o que pensei - disse York. - É preciso convocar um Parlamento sem demora.
Depois da cerimónia de seu comparecimento à igreja pela primeira vez depois do parto, à qual compareceram vinte e cinco das senhoras de maior destaque do país, inclusive
dez duquesas, Margaret seguira para Windsor. Ela decidira que seria melhor o rei ficar lá por algum tempo, onde pudesse não ficar muito exposto. Ela sabia, claro, que havia rumores em abundância e que muito em breve haveria uma decisão quanto a quem governaria o país. Como rainha, ela acreditava que deveria ser ela, e iria lutar pelo cargo.
Enquanto isso, ela rezava pela volta de Henrique à sanidade, mas ele ainda não mostrava sinal algum de ter pelo menos uma ideia de onde estava.
Por certo o menino despertaria algo nele?
O jovem Eduardo foi vestido em sua magnífica roupa de batismo e Margaret colocou-o nos braços do duque de Buckingham. com Somerset de um lado dela, os três entraram no quarto do rei.
Ele estava sentado numa cadeira, os trajes comuns, que nada tinham de próprios de um rei, caindo soltos sobre ele, as mãos pendendo dos lados, e ele estava com o olhar parado, fixo à sua frente.
Margaret adiantou-se e ajoelhou-se a seus pés.
- Henrique, Henrique, sou eu, Margaret, sua esposa. Você me conhece. Você tem de me conhecer.
O olhar dele passava por cima de sua cabeça, e ela sentiu uma grande ânsia por sacudi-lo.
- Henrique - bradou ela, num tom agudo de voz. - Você me conhece. Você tem de me conhecer.
Ainda assim não houve resposta.
- Nós temos um filho - bradou ela. -Um filho. Era o que nós queríamos. Nós queríamos esse filho mais do que qualquer outra coisa. O povo está muito satisfeito. Está chamando por ele... e por você. Você precisa despertar.
Não houve um único lampejo de inteligência naqueles olhos opacos.
Margaret voltou-se para Buckingham.
- Traga o menino - disse ela.
Buckingham adiantou-se. Estendeu o menino para Henrique, mas este ficou ali sentado, mudo e alheio.
Todo mundo sabia que o rei estava incapaz de governar e sofria de uma doença estranha. Não a chamavam de loucura, mas se falava de seu avô francês e todos sabiam o que acontecera a ele.
Por isso, enquanto o rei ficasse assim, teria de haver um Protetor do Reino, um Substituto do Rei, alguém que pudesse ficar à frente dos negócios de Estado até que o rei se recuperasse.
Como rainha, cabe a mim agir em nome do rei, pensava Margaret. Sua mãe e sua avó tinham feito isso quando surgira a ocasião, e ela não via razão para não fazer o mesmo.
O barco ia correndo. O Natal chegou, nenhuma decisão fora tomada, e Henrique continuava em seu estranho estado, alheio a tudo que se passava ao seu redor.
Margaret, depois de uma reunião com Somerset e Buckingham, decidiu tomar as rédeas nas mãos. com a ajuda deles, preparou um projeto de lei estabelecendo o que ela considerava como direitos seus.
Ela queria governar o país em nome de Henrique. Seria ela que nomearia quem escolhesse para os importantes cargos no governo; ela deveria ter o poder de conceder dioceses a membros do clero; e pretendia receber o necessário para sustentar a ela, ao rei e ao pequeno príncipe no nível que eles mereciam.
O Parlamento fingiu examinar o caso. Seus membros estavam encantados com o nascimento do príncipe, mas não havia dúvida de que não colocariam mais poderes nas mãos de Margaret, que muitos consideravam culpada pelos desastres na França. Somerset era impopular; ele estava aliado à rainha. Por isso, ficou decidido que a tarefa deveria caber a um homem que estava próximo ao trono e ao mesmo tempo era um homem forte que era capaz de governar: o duque de York.
Ali estava um triunfo. A Orgulhosa Cis não cabia em si de contente. Reuniu as crianças e enquanto segurava o jovem Richard no colo - ele tinha apenas um ano de idade - disse-lhes que seu importante pai, que na verdade devia ser o rei, era agora o chefe da nação.
- Temos de garantir que ele continue assim - disse ela, e suas palavras foram dirigidas em particular ao seu filho alto, de doze anos, de aparência de um Plantageneta, que já adquiria uma reputação de rebeldia... o filho do qual ela se sentia muitíssimo orgulhosa.
Eduardo declarou que estava pronto para lutar pelos direitos do pai, e o duque colocou a mão no ombro dele e disse:
- Quando chegar a hora, meu filho. Quando chegar a hora.
E o tempo chegaria. Todos estavam certos disso.
A rainha ficou furiosa. Eles a tinham desfeiteado. Ela era a rainha; tinha gerado o herdeiro do trono. A regência deveria ter sido dela.
O duque de York queria jogar com cautela. Declarou ao Parlamento que só aceitava o cargo porque considerava isso de seu dever. O rei - tão logo recuperasse a saúde - deveria saber que ele, York, iria afastar-se do cargo.
Como homem que acreditava que um dia seria rei, ele queria mostrar sua determinação em manter a lei e a ordem. Os reis não podiam governar de forma satisfatória sem isso, e ele decidira que um dia iria governar.
York nomeou seu cunhado Richard, conde de Salisbury, chanceler. Queria cercar-se de amigos em altos cargos, e a primeira coisa a fazer era livrar-se de Somerset, que foi levado a juízo e mandado para a torre.
Seria praticamente improvável que seus inimigos fossem se omitir e deixar que York governasse em paz, e pouco tempo depois ele teve de marchar para o Norte e abafar conflitos naquela região, onde certos nobres, liderados pelo duque de Exeter, tinham levantado suas bandeiras contra ele.
Durante os meses de seu protetorado, York mostrou ser o homem forte de que o país precisava. Ele era cauteloso e estava ciente de que havia um grande apoio aos lancastrianos por todo o país. O rei era o rei, e o povo gostava dele - por mais tolo que pudesse ser. Havia muitas histórias circulando sobre sua clemência e sua delicadeza. "Pobre Henrique!", diziam. Sua rainha era uma virago. Era francesa; era extravagante; governava o rei; mas, mesmo assim, era a mãe do herdeiro do trono. York sabia que ainda não chegara a hora de dar a grande cartada. Enquanto isso, ele se contentava em governar o país, o que todos tinham de admitir que ele fazia com mais habilidade do que seus predecessores. Ele capturara Exeter, e Somerset era seu prisioneiro, mas não levara nenhum dos dois a julgamento. Ele não estava certo quanto a que efeito isso teria sobre o povo.
Nesse ínterim, Margaret, intimamente furiosa por ter sido preterida como regente, via claramente que se quisesse manter o poder, isso só poderia acontecer através do rei. Henrique era a sua salvação. Ele faria o que ela dissesse. Toda a força dela viera por intermédio dele. Se ele continuasse naquele estado de demência, aquilo seria o fim das esperanças dela de governar.
Henrique tinha de ficar bom.
com a energia característica, ela se dedicou à tarefa de cuidar dele e fazê-lo recuperar a saúde. Em primeiro lugar, acreditava que ele nunca poderia ficar bom enquanto estivesse no centro das atividades em Westminster, onde havia gente demais visitando-o e falatório demais sobre seu estado de saúde. As pessoas continuavam falando sobre o avô dele e esperando que ele ficasse louco a qualquer momento.
Não era bem assim. Margaret pensou que estava começando a compreender o que poderia ter acontecido. Henrique nunca quisera ser rei; o cargo sobre o qual homens como York - e mesmo Somerset- lançavam olhos cobiçosos era um castigo para Henrique. Ele odiava as cerimónias, os conflitos, o desejo de manter sua posição; mesmo as viagens pelo país, que ele parecera pensar serem a resposta para todos os males, não lhe eram tão agradáveis assim. Na opinião de Margaret, um ressentimento para com um destino que o tornara rei culminara naquele colapso completo, naquele desligamento da responsabilidade, naquela rejeição de uma coroa.
De uma coisa ela estava certa - as poções, os xaropes e as fomentações não eram, em absoluto, o que se fazia necessário. Fora a mente de Henrique que o abandonara; o corpo, na verdade, não estava doente.
Ela encontrara um novo médico, um certo William Hately, e ele concordara com as suas teorias.
- Leve o rei para longe daqui - dissera ele. - Leve-o para um lugar tranquilo, onde possa haver uma atmosfera de paz em torno dele. Ele pode ser sensível a conflitos à sua volta. Isso não podemos saber.
- O senhor se refere a levá-lo para algum lugar onde as pessoas lhe sejam leais. Onde não houvesse espaço para os inimigos dele. Meu caro doutor, nem sempre é fácil saber quem são os nossos amigos, e quem são os nossos inimigos.
- Há regiões do país que são leais ao rei e que só toleram o duque de York porque ele está ocupando o trono enquanto o rei está doente.
- Ele sempre gostou muito de Coventry. Ele tem tido uma recepção mais leal lá do que em qualquer outro lugar. Ele estava interessado na construção de St. Marys Hall e gostou muito das tapeçarias de lá.
- Vamos arriscar, majestade. Pode não adiantar, mas temos de tentar de tudo.
- Iremos para o nosso castelo de Coventry - disse a rainha.
Ela teria prazer em ir para longe, em dedicar-se inteiramente às necessidades do rei. Sabia que naquele momento não adiantava lutar contra York. Somerset se encontrava na torre, e o governo forte mas contido de York estava tendo o seu efeito. O fato de homens como Somerset e Exeter estarem detidos e não terem sido executados mostrava uma tolerância por parte do duque de York que agradava ao povo. Este já estava começando a confiar nele.
Assim que o rei ficar bom, isso será o fim de York, prometeu Margaret a si mesma.
E isso a levou de volta à grande necessidade do momento: a recuperação do rei.
Eles viajaram para Coventry, o rei em sua liteira. Por ordem da rainha, eles tomaram caminhos secundários e evitaram as cidades, mas não podiam entrar em segredo em Coventry, e o povo daquela cidade saiu para ovacioná-los enquanto eles passavam. O rei jazia imóvel em sua liteira, com Margaret a cavalo a seu lado, maravilhosamente trajada, como cabia a uma rainha. Ela respondia à saudação da multidão, embora soubesse que aqueles gritos eram para o rei e não para ela. Pouco importava.
Eles estavam a favor da causa lancastriana, e o importante era isso.
Coventry, no condado de Warwickshire, ficava próximo ao centro da Inglaterra e recebera o seu nome de um convento que antigamente existira no local e que tinha sido fundado na época do rei Canuto. O convento fora destruído pelo traidor Edric no ano de 1016, antes da chegada dos normandos. Mas o conde Leofric e sua mulher, Lady Godiva, fundaram um mosteiro beneditino no mesmo local e fizeram grandes doações a ele. Foi naquela época que a cidade começou a prosperar. O castelo foi construído e ficou pertencendo aos lordes de Chester. A cidade tinha sido toda murada na época de Eduardo II e tinha seis portas e várias torres sólidas. O castelo acabara passando para as mãos do Príncipe Negro e tornara-se uma de suas residências favoritas.
Parecia um local muito adequado para onde levar o rei e, se fosse possível, tratar dele para fazê-lo recuperar a saúde.
Os dias passavam tranquilos. Margaret ficava muito tempo com o rei. Falava com ele, apesar de ele não ouvi-la, mas William Hately acreditava que havia uma possibilidade de que um dia ele a escutasse. A pior coisa, dizia o médico, era tratá-lo como se ele fosse um débil mental.
- É evidente que os sentidos dele existem - insistia ele. Eles estão adormecidos. Cabe a nós despertá-los, e só conseguiremos isso usando métodos delicados.
Ele ficou impressionado, o mesmo acontecendo com outras pessoas, ao ver como Margaret se adaptara à vida em Coventry. Ela, que fora tão enérgica, tão pronta a expor suas opiniões, tão determinada a fazer com que elas fossem obedecidas, agora representava o papel de enfermeira e mãe, dividindo o tempo entre o marido e o filho, tentando despertar a mente atrofiada de um e ajudar a mente em expansão do outro.
Não passava pela cabeça deles, na época, que aquilo era mais um indício de seu caráter. Assim como se mostrava fiel aos amigos, o mesmo acontecia em relação ao marido. Seu afeto por ele era intenso; ele a tirara da França, onde desfrutava de pouca importância, e a transformara numa rainha. Ele a amava; ouvia o que ela dizia; ele a adorava. Margaret jamais se esqueceria disso. Ela o amava, e como jamais conseguia fazer alguma coisa pela metade, sentia um amor profundo por ele; durante aquele período, sua devoção era totalmente voltada para o marido e o filho. com relação a Henrique, suas emoções eram ternas e protetoras; com relação ao filho, algo parecido com adoração e com uma intensa possessividade.
Era uma grande tarefa a que ela se dedicara; e estava decidida a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para levá-la a bom termo.
Era exasperante saber que York estava tornando sua tarefa um sucesso. Ele agora tinha sido nomeado Protetor e Defensor do Reino e da Igreja e Conselheiro Principal do Rei.
Margaret olhava para um futuro que poderia ser sombrio se o rei continuasse em seu estado presente. Não havia segurança alguma na declaração de York que apenas substituía o rei, e assim que Henrique se recuperasse, ou que o príncipe atingisse a maioridade, sua autoridade cessaria. Ela ficava enfurecida ao pensar que ele fosse ter o controle sobre aquele precioso infante de berço.
Mas ainda não. O menino era criança demais, e ela estava decidida a levar Henrique de volta à sanidade.
Os meses se passavam. A cansativa tarefa continuava. Às vezes, Henrique erguia uma das mãos e isso fazia com que as esperanças dela fossem às alturas. Em outras, quando ela o alimentava, ele parecia mostrar um pouco de interesse pela comida. Certa vez, pensou que os olhos dele a seguiam enquanto ela atravessava o quarto. Foi um grande avanço. Depois, durante dias, ele tornava a cair numa total imobilidade, e ela perdia as esperanças.
O pequeno Eduardo era a salvação dela. Passava muito tempo com ele. Quando ele sorria para ela, uma grande ternura a invadia e ela o apertava tanto que ele choramingava para que fosse solto. Era uma criança bonita; era a compensação dela; a cada dia, seu amor maternal parecia ficar mais forte. Tudo... sim, tudo valia a pena... enquanto tivesse o seu filhinho.
O Natal se aproximava. Henrique estava naquele estado havia mais de um ano. Fazia muito tempo desde que ela o levara para Coventry. William Hately era seu grande consolo. Jamais esquecerei o que ele tem feito por mim... e por Henrique, prometia a si mesma. Quando ela se desesperava, William Hately tinha um pouco de esperança a dar. Quando ele pensava ter percebido uma mudança no rei, os dois a procuravam juntos.
- Às vezes penso que você é tanto meu médico quanto do rei - disse ela.
Faltavam poucos dias para o Natal. Margaret entrou no quarto do rei. Seu coração deu um salto, porque o rei sorriu para ela.
- Margaret - disse ele, e estendeu-lhe a mão.
Ela se pôs de joelhos ao lado da cama. Não conseguia ter coragem de olhar para ele. Temia que tivesse imaginado ter ouvido a voz dele. Acreditava que aquilo devia ser um sonho.
Sentiu os dedos dele em seus cabelos.
- Margaret - disse ele. - Minha rainha Margaret.
Ela ergueu o rosto. Não conseguia vê-lo com nitidez porque as lágrimas a cegavam.
Então, ela disse numa voz fraca, sufocada:
- Henrique... Henrique, você vai ficar bom.
Ela não podia esperar por mais alguma coisa. Suas emoções, que controlara por tanto tempo, estavam se libertando. Foi para o quarto dela e pela primeira vez em meses chorou.
Margaret foi procurar William Hately. Olhou para ele, perplexa.
- Eu sei - disse ele. - Vi o rei.
- Ele está bem. Ele se recuperou. Voltou ao normal.
- Majestade, vamos precisar de paciência com ele. Sua mente estará muito insegura por enquanto. Ela ficou adormecida por muito tempo.
- Tem razão - disse ela. - Temos de agir com cuidado. E o nosso filhinho? Ele ainda não o viu.
- Espere em pouco. Ele é um homem que está voltando de um longo sono. Deixe que acorde lentamente. É melhor para ele.
Não vamos sobrecarregar sua mente com qualquer assunto que possa afligi-lo.
- Nosso filho iria deixá-lo encantado.
- É verdade, mas iria lembrar a ele que ali está o herdeiro do trono. Acho que não devemos deixar que ele pense, por enquanto, em seus deveres de rei.
Margaret estava pronta para seguir o conselho do médico.
- Pelo menos - prosseguiu William Hately - vamos esperar alguns dias. Vejamos o que realmente significa essa cura.
E assim eles esperaram. Margaret ficava sentada ao lado de Henrique. Ele falava um pouco e depois dormia por longos períodos. Margaret ficava horrorizada quando ele caía em um daqueles sonos demorados, imaginando se quando acordasse estaria como antes.
Más isso não acontecia. Ele continuava a melhorar.
Ele sabia que era Natal.
- No Natal - disse ele - eu costumo enviar uma oferenda ao santuário de Santo Eduardo, o Confessor.
- Sim, eu sei - disse Margaret. - Ele é o seu modelo. Você sempre disse que preferia ser como ele do que como qualquer um de seus ancestrais que foram grandes guerreiros.
- Dizia e estava sendo sincero. E mandava também para Canterbury, para o santuário de S. Thomas Becket.
- Sua vontade será feita. vou tomar as providências. Ele segurou-lhe a mão e a beijou.
O Natal foi comemorado tranquilamente no castelo de Coventry, mas havia uma grande esperança no coração de Margaret. Os longos meses de angústia estavam chegando ao fim.
Ela e o médico decidiram que talvez tivesse chegado a hora de apresentar o filho a Henrique.
Ela levou o príncipe até o quarto dele e estendeu-o para Henrique.
- Henrique - disse ela -, este aqui é o nosso filho.
Ele olhou dela para o bebé e a memória voltou. Sim, ela estivera grávida antes de a escuridão baixar sobre ele. Muito tempo já se passara. Aquela criança estava, agora, com um ano de idade.
- Nosso filho, nosso príncipe - disse ele, admirado.
- Ele mesmo, meu amor - disse Margaret, a emoção ameaçando uma vez mais dominá-la.
- Que nome você deu a ele? - perguntou Henrique.
- Eduardo. Achei que era um bom nome. Achei que o povo iria gostar.
- Eu gosto - disse Henrique.
Então, ficou de mãos postas e começou a rezar.
O menino Eduardo olhou para ele com ar de dúvida e não teve certeza de que gostava ou não dele. Voltou-se para a mãe e parecia querer chorar, até que o colar incrustado de jóias que ela usava despertou-lhe a atenção. Ele agarrou-o e seu interesse por ele foi tamanho que as lágrimas foram evitadas em seu primeiro encontro com o pai.
Mais tarde, Margaret sentou-se ao lado de Henrique, e ele lhe disse que não se lembrava de nada do que acontecera desde que a doença o atacara. Ele não estivera consciente da presença de qualquer pessoa ou de coisa alguma.
- Tenho estado com você todos esses meses - disse ela.
- Eu mesma tenho cuidado de você. Não confiei em mais ninguém.
Ela não foi logo explicando o que estava acontecendo. A conselho de William Hately, iria fazê-lo aos poucos.
York estava no comando. O povo parecia gostar dele. Ele estabelecera um pouco de ordem no país inteiro. Os queridos amigos deles, Somerset e Exeter, estavam presos.
- Eles têm de ser libertados - disse o rei.
- É a primeira coisa que vamos fazer quando estivermos no trono outra vez. Vamos demitir York e seus amigos e trazer de volta os nossos.
Henrique parecia um pouco cansado e fechou os olhos. William Hately disse:
- Não fale muito de assuntos de Estado com ele. Deixe que isso venha aos poucos. Ele se recuperou, mas ainda está fraco.
Deixá-lo recuperar-se aos poucos!
Por mais impaciente que estivesse para agir, Margaret percebia o bom senso disso. Por enquanto, os assuntos do país tinham de continuar nas mãos de York, mas não por muito tempo...
O bispo Waynflete e o prior da catedral de St. John foram a Conventry visitar o rei.
Ele ficou encantado ao recebê-los e sentiu-se feliz rezando com eles.
Ele não mudou, pensou Margaret.
Em breve teremos de deixar Coventry. Logo assumiremos as rédeas do governo.
Foi uma temporada de Natal feliz. Todos os dias, Henrique mostrava alguma melhora e começou a interessar-se pelo mundo que o cercava.
A escolha de Coventry tinha sido sábia, porque o castelo sempre fora um de seus favoritos. Ele quis visitar as igrejas da cidade. Pelo menos três existiam havia muitos e muitos anos. Henrique gostava bastante delas, em especial da de St. Michael, que tinha sido construída fazia muito tempo, no reinado do primeiro Henrique, e fora dada aos monges de Coventry pelo conde Randulph. E depois, havia St. Marys Hall, que ele mesmo construíra. Tinha um telhado com um entalhe complicado, com figuras que eram quase grotescas, uma galeria de menestréis e um arsenal. As enormes janelas de vidro eram verdadeiros tesouros. Henrique gostava muito de lá, e o entusiasmo refletia-se em seus olhos enquanto ele falava nele com Margaret. Naquele salão havia uma tapeçaria que Henrique mandara fazer e que tinha sido pendurada poucos anos antes. Media nove metros por três, e Henrique ajudara a desenhá-la. As cores, salientava ele, mostravam os avanços que tinham sido feitos no processo de tintura e eram realmente primorosas.
Era maravilhoso ver a agitação dele com aquelas coisas, mas Margaret desejava que ele pudesse demonstrar o mesmo em relação aos assuntos de Estado. Ele não parecia querer discuti-los. Sempre que se levantavam questões daquele tipo, uma nuvem cobria seus olhos e ele levava a mão à cabeça como se estivesse cansado. Ainda era perigoso demais insistir, porque Margaret ficava desesperada ante a possibilidade de ele cair outra vez naquela letargia que beirava a idiotia.
Só lhe restava levar os amigos dele para vê-lo. Que ele conversasse com eles. Que visse que era amado por muita gente. Então, eles iriam dedicar-se a demitir o arrogante York do Protetorado e trazer Somerset de volta.
Um dia, chegaram visitantes ao castelo, e Margaret recebeuos calorosamente, porque sabia muito bem que não poderia haver adeptos mais fortes para a causa lancastriana. A prosperidade deles dependeria, sem dúvida alguma, daquilo, e aquele era o melhor apoio que se podia ter de amigos. Uma observação cínica, poderiam dizer alguns, mas mesmo assim verdadeira, e ainda que houvesse uma consideração verdadeira, esta devia ser fortalecida pelo oportunismo.
Os visitantes foram levados à presença do rei, e quando ele os viu sua satisfação ficou evidente.
- Será que é, mesmo... Owen? - disse Henrique. Owen Tudor estava de joelhos diante do rei.
- Seu servidor - disse ele.
- Owen Tudor. - Os olhos do rei estavam vidrados de emoção. - Eu me lembro bem de você, Owen.
- Majestade, sua mãe e eu falávamos muito em Vossa Majestade, pensávamos muito em Vossa Majestade... Quando estávamos juntos... antes de nos separarem, nós dizíamos o quanto poderíamos ter sido felizes se Vossa Majestade estivesse conosco.
- Sim, eu também teria me sentido feliz. Eu me lembro de ter ficado impressionado com todos vocês e de sentir um pouco de saudade e um ressentimento, também, porque eu era o filho de um rei. Owen, é muito bom ver você e recordar aquela época em que você me ensinou a cavalgar meu pónei. Receio ter sido um aluno tímido.
- Vossa Majestade foi um bom aluno. Ouvia com atenção seu instrutor, coisa que poucos fazem.
- Minha mãe, Owen... Aquilo foi uma tragédia.
- Ela não pôde suportar a fragmentação do nosso lar feliz.
Aquilo foi cruel, cruel... E você foi embora para o País de
Gales. Como você se saiu, Owen?
Razoavelmente bem... no País de Gales, minha terra natal. Vossa Majestade foi bom para nós. Nunca se esqueceu de nós.
Eu fiz muito pouco, Owen, pelo meu padrasto e pelos
meus meio-irmãos. Diga-me, como vão eles?
- Se quiser, Vossa Majestade poderá ver por si mesmo. Dois deles estão aqui em Coventry, esperando sua permissão para se apresentar.
- Esperando minha permissão! Meus irmãos! Que sejam trazidos à minha presença agora mesmo. Mas há mais de dois.
- Meu filho mais moço, Owen, agora é um monge.
- Ah, um homem de sorte. Onde ele está?
- Em Westminster.
- Eu me lembro bem dele. E sua filha?
- Jacina está crescendo. Em breve atingirá a idade casadoura.
- Vamos conseguir um marido para ela. A rainha adora arranjar esses casamentos. Estou dizendo a verdade, meu amor?
- É um prazer unir gente jovem. Todos deviam casar-se jovens. É o que eu penso. Devem ter filhos... filhos em quantidade.
- Sim - disse Henrique, com ternura. - Margaret é a casamenteira da corte.
- O meu mais velho, o seu meio-irmão Edmund, irá pedir sua permissão para se casar. Ele está apaixonado pela sobrinha do duque de Somerset.
- Margaret Beaufort! Ela é uma garotinha muito assediada. Eu me lembro de que o duque de Suffolk a queria para o filho dele.
- Penso que ela tenderia a aceitar Edmund... se Vossa Majestade levar isso em consideração. No final de contas, Edmund tem sangue real pelo lado materno.
- Não tenho dúvida de que a rainha vai resolver esse assunto. Agora, mande meus irmãos até aqui. Eu gostaria de vê-los.
- Eles querem transmitir a garantia de sua devoção a Vossa Majestade. Se algum dia precisar deles, estarão à sua disposição.
Owen sabia que a rainha o estava observando atentamente. O rei podia não querer pensar na possibilidade de uma guerra, mas essa existia, e a rainha sabia exatamente o que ele quisera dizer.
Quando os dois rapazes foram levados à presença do rei, ele os recebeu com emoção. Seus meio-irmãos , Edmund e Jasper Tudor. Eles o lembravam muito da mãe deles , que também era a mãe de Henrique, e ele ficou satisfeito por ter laços de parentesco tão estreitos com eles.
Eles formavam uma dupla bonita - poucos anos mais novos do que Henrique, que àquela altura estava com trinta e três anos de idade. Edmund devia estar com cerca de vinte e cinco e Jasper com vinte e três ou quatro. Os dois tinham razão de estar gratos a Henrique, que providenciara para que fossem educados de maneira adequada, primeiro pela abadessa de Barking e depois tinham sido colocados aos cuidados de padres. Além do mais, Henrique concedera títulos a eles - Edmund era o conde de Richmond, e Jasper, o conde de Pembroke. Ele teria dado ao caçula, Owen, um título, se não tivesse entrado para um mosteiro. O mais afortunado de todos eles, na opinião de Henrique.
Margaret olhou para os três homens com ar de aprovação. Firmes e fortes partidários de Lancaster e mantidos unidos por laços de parentesco.
Henrique sentiu-se feliz por abandonar toda a cerimónia e conversar com o padrasto e com os irmãos com naturalidade. Falaram um pouco sobre o passado, o que foi triste porque tiveram de pensar na morte de Katherine, mãe deles.
- Ela teria ficado muito feliz se pudesse estar aqui conosco assim - disse Owen.
- Ela está nos vendo lá do céu - respondeu Henrique.
- Há um assunto que nos entristece muito - disse Edmund ao rei. - É o escândalo que tem sido comentado sobre nossa mãe e o estigma que é lançado sobre nós...
- Eles nos chamam de bastardos - disse Jasper.
- Houve um casamento, majestade - disse Owen. - Eu lhe garanto que houve. Ele aconteceu pouco antes do nascimento de Edmund, mas quando ele nasceu eu e sua mãe estávamos
casados.
Henrique olhou para Margaret, que disse:
- Poderia haver uma declaração no Parlamento. Por que não? Já se fez isso antes. Ora, a própria Margaret Beaufort vem de uma linha que começou como um galhinho bastardo e só bem depois do nascimento dos Beaufort John de Gaunt os legitimou. Não vejo razão para que não haja uma declaração no Parlamento.
- Vamos providenciar isso - disse Henrique. Margaret se alegrou. Foi a primeira vez que ele falara em reunir-se com um Parlamento.
Não havia dúvida de que a visita dos Tudor fizera algum bem.
Quando eles já haviam se retirado, depois de dar uma firme indicação de sua lealdade a Henrique e Lancaster, Margaret conversou sobre eles com o rei.
- São belos homens... todos eles. Owen está ficando velho, é claro, mas você precisa de homens fortes como Edmund e Jasper.
- Owen não me pareceu um homem velho, mas creio que ele tinha a mesma idade de minha mãe, e ela estava com vinte e um anos quando eu nasci.
- Eu confiaria em que todos eles iriam servi-lo bem - disse Margaret-e isso me faz gostar deles. vou arranjar um casamento para a menina, e não vejo razão para Edmund não se casar com Margaret Beaufort.
- Neste caso, meu amor - disse Henrique -, se você decidir que será assim, assim será.
Não podia mais haver demora. Henrique ainda se sentia fraco, mas Margaret insistiu para que ele fosse levado à Câmara dos Lordes, e quando chegou lá, ele dissolveu o Parlamento.
O reinado do duque de York chegara ao fim. O rei reassumiu, e York sabia que seu poder era de natureza temporária.
Para o rei e Margaret foi lamentável que o período de supremacia de York tivesse durado o suficiente para mostrar ao povo que ele era um bom governante. A lei e a ordem tinham sido devolvidas ao país, e o governo de York fora considerado justo e firme.
Agora ele acabara, mas York não abriria mão facilmente daquilo de que tanto gostara e para o qual tinha uma indubitável aptidão. No entanto, tinha de fazê-lo. Ele
assumira o Protetorado sabendo que deveria deixá-lo assim que o rei ficasse bom.
O primeiro ato do rei - ou melhor, de Margaret - foi mandar soltar Somerset da torre. Exeter seguiu-o pouco depois.
Margaret readmitiu Somerset e ele ficou sendo o homem mais importante do país depois do rei.
Havia, naturalmente, um ódio violento entre Somerset e York. Somerset jamais perdoaria York por tê-lo mandado para a prisão; e York desprezava Somerset e se perguntava se não devia ter aproveitado a situação e liquidado com ele de uma vez por todas.
A rixa entre os dois era irreconciliável e só terminaria com a morte de um deles.
Enquanto isso, Margaret se deliciava com a volta ao poder. Dedicava-se ao passatempo favorito de arranjar casamentos. Margaret Beaufort casou-se com Edmund Tudor, e para Jacina ela arranjou lorde Grey de Wilton.
Ela ficou encantada com o resultado de seus esforços e sabia que, se precisassem deles, os Tudor ficariam do lado de Henrique.
EM ST. ALBANS
O duque de York estava irritado. Tudo estivera mudando; os acontecimentos encaixavam-se nos lugares certos; ele estava obtendo sucesso; mostrara ao povo que possuía os dons de um governante e então... o rei se recuperara.
- E até que ponto ele se recuperou? - perguntou ele a Cecily.
- É bem provável que ele torne a cair na demência.
- Não que desejemos mal a ele - acrescentou o duque. Cecily apertou bem os lábios. Ela desejava mal a ele. Desejava que recaísse na sua loucura.
- Mas - prosseguiu o duque - quando tive um controle relativamente livre, senti que estava pondo as coisas em ordem.
- Estava, e se o povo tivesse um mínimo de juízo, faria de você o rei.
- O povo sempre teve muito respeito por um rei coroado - disse York.
Cecily ficou calada, imaginando ela e Richard sendo coroados na abadia de Westminster. Assim deveria ser. Os dois possuíam sangue real, e Richard tinha mais direito à coroa do que Henrique.
- E agora? - perguntou ela.
- Salisbury e Warwick estarão aqui dentro em pouco. Então, nós decidiremos.
Ele tinha razão. Não demorou muito e Salisbury e Warwick chegaram.
Estavam tão indignados quanto o próprio York.
- O que vai acontecer agora? - bradaram eles.
- Um desastre para o país - respondeu York.
Eles ficaram em silêncio. O Grande Selo tinha sido tirado de Salisbury e dado a Bourchier, o arcebispo de Canterbury. A governança de Calais fora tirada de York e dada a Somerset. A gota dágua aconteceu quando Somerset convocou uma reunião do Conselho em Westminster, à qual nem York, nem Warwick, nem Salisbury foram convidados a comparecer.
- Somerset está na raiz de toda essa encrenca - declarou York. - Não fosse ele, eu teria ficado no cargo.
- Não se esqueça de que a rainha está do lado dele.
- A rainha e Somerset são nossos inimigos, é verdade concordou York. - Sim, e inimigos da Inglaterra.
- Eles têm de ser contidos - disse Warwick.
- Como? - perguntou Salisbury.
O duque de York ficou pensativo. Depois, disse lentamente:
- Tudo aquilo que trabalhamos para conseguir no ano que passou está perdido. Era como se nunca tivesse acontecido. Não podemos culpar o rei. Ele nunca desejou tomar as rédeas nos assuntos de Estado antes da doença, e agora... está claro que ele quer ser guiado. Ele é o testa-de-ferro, mas quer um homem forte para tomar as decisões por ele.
- E Somerset assumiu o papel - disse Salisbury.
- Senhores - bradou York -, Somerset é nosso inimigo. Temos de nos livrar de Somerset. É tudo o que peço. O rei é o rei... o rei coroado. Não quero derrrubá-lo. Mas ele não está em condições de governar, e se quisermos salvar este país de seus inimigos e trazer prosperidade para ele, precisamos ter um governo forte.
Os outros concordaram com ele.
- E como vamos impô-lo? - perguntou Warwick.
- Temos de nos preparar para um conflito.
- Quer dizer para lutar? Guerra civil?
- Não estaremos lutando contra o rei. Quero fazer com que entendam isso. Nós marcharemos. Vamos mostrar nossa força e exigir o afastamento de Somerset.
Warwick observou York atentamente.
- É a única maneira - disse ele. - Isso vem fermentando desde aquela cena nos Jardins do Templo. A coisa chegou a um impasse. Pode ser a guerra.
- Não deve chegar a isso - insistiu York.
- Uma guerra entre as rosas vermelhas e as brancas - disse Salisbury.
- Não desejo guerra - continuou York. - Quero Somerset fora do poder, quero que a rainha perceba que não pode nos governar, e quero um bom governo forte para assumir até que o rei recupere a plena sanidade ou que o príncipe de Gales tenha idade para governar.
- Caberá a nós provocar essa situação feliz - disse Salisbury.
Em Westminster, o rei e Margaret ficaram sabendo que York reunira um exército, que a ele tinham se juntado Warwick e Salisbury, e que ele estava se preparando para marchar para o sul.
Somerset fora correndo dar-lhes a notícia. A luz do combate estava em seus olhos. Ele estava pensando que talvez ali estivesse a oportunidade de acertar de uma vez por todas as contas com seu inimigo York.
O rei ficou angustiado.
- Marchando!-bradou ele. - com que finalidade ele quer marchar?
A rainha tentou esconder seu desespero. Quando é que Henrique iria perceber que nem todos eram bondosos e delicados como ele?
Ela explodiu, impetuosa:
- Porque ele se considera o rei. Ele quer tirar você do trono e apoderar-se dele.
- Não, não, minha querida, York não tem essa intenção. Ele está zangado porque não foi convidado para o Conselho. Talvez, meu caro Edmund, devêssemos tê-lo incluído.
- Nada disso, majestade - tranquilizou-o Somerset. - A rainha sabe que temos de ter cuidado com nossos inimigos.
- Então ele está marchando para o sul - disse Margaret.
- Eu diria que ele espera chegar a Londres.
Margaret entendeu. York era popular em Londres. Durante seu protetorado, o comércio florescera. Lucro era a única coisa em que aqueles mercadores pensavam. Londres estaria do lado de York, e ela sabia como os londrinos ficavam quando eram provocados. Eles próprios constituíam um exército.
- O que faremos - disse Somerset-é marchar para o norte e enfrentá-los.
Henrique franziu o cenho, mas estava cansado demais para levantar objeções, e estava claro que Margaret concordava com Somerset.
- Vossa Majestade deveria marchar com seu exército - disse Somerset.
Henrique ficou muito triste, mas não protestou.
"Ó Deus", pensou Margaret, "quem dera que eu fosse homem! Estaria lá, à frente do meu exército. Levaria esse traidor York à justiça."
Ela percebeu que não podia marchar com o exército.
- vou levar o príncipe para Greenwich - disse ela com calma. - Voltou-se para Somerset: - Lá, ficarei ansiosa à espera da notícia. Tenho de saber imediatamente quando o traidor York estiver em suas mãos.
- Ficará sabendo com toda presteza, majestade - prometeu Somerset.
- Espero que seja em breve.
A boca de Margaret se contraíra e ela cerrara os punhos enquanto pensava no castigo que aplicaria àquele homem que tivera a ousadia de desafiar a Coroa.
Ao lado do duque de York cavalgava seu filho mais velho, Eduardo. O menino estava com treze anos, talvez ainda criança para seguir para o que poderia tornar-se uma batalha, mas Eduardo era um menino precoce, e isso desde o início da infância. Um filho que era motivo de orgulho, pensava York - que tinha muita coisa da mãe. E o melhor de tudo era que ele tinha aquela aparência loura, atraente, dos Plantagenetas. Ele era um pouco travesso, um fato considerado normal para os meninos, já lançando um olhar especulativo para as mulheres, e o pai ouvira dizer que ele já se envolvera em algumas aventuras. Jovem demais, talvez. Mas em épocas como aquela, um menino precisava amadurecer depressa.
York tinha orgulho do jovem Eduardo. Queria que ele entendesse a situação. Conversou com ele enquanto cavalgavam juntos.
Disse que esperava que não houvesse conflito algum. O que eles realmente queriam fazer era mostrar força e, ao fazer isso, lembrar aos inimigos que podiam ser uma força merecedora de respeito.
- Se pudermos fazer com que entendam isso sem derramamento de sangue, tanto melhor - disse ele.
Eduardo ouvia com atenção. Ele acreditava que o pai devia ser o rei. Sua mãe sempre dizia isso. Eduardo admirava o pai quase à idolatria, e estar cavalgando ao lado dele numa ocasião como aquela o enchia de orgulho. No íntimo, ele esperava que houvesse uma batalha. Ele queria destacar-se, fazer o pai sentir-se orgulhoso dele.
- O rei está mal assessorado - prosseguiu York. - A rainha está contra nós e trabalha com o duque de Somerset, que tem causado um grande mal a este país.
Eduardo escutava, ávido. Esperava ficar cara a cara com o duque de Somerset. Iria cortar-lhe a cabeça com sua espada e entregá-la ao pai.
- Lembre-se sempre - disse o duque -, nunca se envolva numa batalha, a menos que seja o último recurso.
- Sim, senhor - disse Eduardo, ainda assim sonhando com a cabeça de Somerset.
O duque ficou consternado quando soube que o rei estava marchando para o norte à frente de um exército, para enfrentálo. Aquilo era coisa de Somerset e da rainha. Henrique nunca teria partido para uma batalha por vontade própria.
O duque discutiu com Warwick e Salisbury o que deveria ser feito.
- Haverá derramamento de sangue se os exércitos se enfrentarem - disse York. - Vai ser a batalha de abertura de uma guerra civil. O rei não quer isso, nem nós.
- Somerset quer. A rainha também.
- Somerset sabe que vamos pedir ao rei que o entregue a nós. Ele tem de ser julgado. Temos de salvar o país. Isso é tudo o que pedimos. Então, formaremos um Conselho e governaremos sob as ordens do rei.
- A rainha não irá entregar seu favorito, e está claro que Somerset vai fazer tudo para evitar cair nas nossas mãos.
- Quero avisar ao rei que isso não é uma batalha contra ele. Nem uma luta pela coroa. Quero que ele saiba que somos súditos leais, dedicados ao bem-estar do país, e que por causa disso não podemos ficar parados e deixar que o país seja arruinado.
Quando eles chegaram à cidade de Ware, em Hertfordshire, Richard já decidira que devia avisar o rei de suas verdadeiras intenções. Quando um súdito - e um súdito daquele nível - colocava-se à frente do que podia ser chamado de pequeno exército, bem poderia parecer que tivesse a intenção de fazer guerra.
O rei teria de compreender.
York escreveu a Henrique. Explicou claramente que não tinha vacilado em sua lealdade para com ele. Sua queixa era de ter sido excluído do governo pelo duque de Somerset, que tinha de responder a algumas acusações. Todos os homens que cavalgavam com ele eram leais ao rei.
York chamou um de seus mensageiros de confiança e entregou-lhe a carta.
Siga a toda velocidade - disse ele. - É imperativo que o rei leia esta carta antes que se passe mais um dia.
York estava confiante em que Henrique ficaria muitíssimo contente por cancelar qualquer confrontação.
O mensageiro partiu, e pouco tempo depois chegou ao acampamento real.
Revelou imediatamente que estava levando uma mensagem urgente do duque de York e tinha uma carta que queria entregar em mãos do rei.
Foi levado logo para a tenda real. O rei estava dormindo, mas um homem que evidentemente era um nobre aproximou-se para perguntar o que ele desejava.
- Venho com uma importante carta para o rei, mandada por meu patrão, o duque de York. Ela deverá ser entregue ao rei, em mãos.
- Dê-me a carta e eu farei com que ela seja entregue ao rei assim que ele acordar.
- Obrigado, senhor.
- E darei ordens para que você tenha salvo-conduto para voltar a Ware.
O mensageiro ficou agradecido e retirou-se, achando que seu dever estava cumprido.
Ele não sabia que o homem que havia interceptado a carta era Somerset.
Um golpe de sorte, pensou o duque. Quem saberia o que o rei faria ao receber uma carta como aquela? Mas talvez se soubesse. Ele diria: "Seja bem-vindo, meu querido primo de York. Vamos esquecer nossos ressentimentos..." e dentro em pouco York teria um lugar no Conselho.
- Nunca, enquanto eu tiver voz ativa! - murmurou Somerset.
Ele rompeu o lacre e leu a carta. Então, York não tinha ressentimento algum contra o rei! Era um súdito leal! Não queria usurpar o trono. Queria servir sob as ordens reais. No entanto, havia uma nota de aviso. Um feliz estado de paz só poderia ser atingido se certas pessoas fossem entregues para ser julgadas.
- Claro que estou percebendo seu jogo, mestre York. Você será um bom súdito se o rei me entregar a você e seus amigos. E para quê? Não, obrigado. Minha cabeça me é útil demais para que eu queira me separar dela.
Ele levou a carta de York à chama de uma tocha. O rei nunca deveria saber que ela fora enviada.
Então o rei ignorara sua carta. Muito bem, nada mais havia para fazer, a não ser tentar resolver aquele assunto pela força das armas.
Chegou a notícia de que o rei saíra com um exército e fizera uma parada em Watford.
- Vamos tentar uma vez mais - disse York. - Se lutarmos, teremos dado início a uma guerra. Vale a pena mais uma tentativa. Mas Henrique tem de compreender que Somerset tem de ser entregue para enfrentar o julgamento de seus pares.
"Entregue aqueles que acusamos, majestade", escreveu York. "Depois que tiver feito isso, Vossa Majestade será servido como o nosso rei absoluto. Não podemos ceder, agora, enquanto não os tivermos. Vamos lutar e pegá-los, ou morrer na tentativa."
Somerset estava com o rei quando este recebeu a carta, porque daquela vez ele não conseguira interceptá-la. O rei ficou pálido.
- O que querem eles dizer, Edmund? Eles querem você, é claro. O que podemos dizer a eles?
- Vossa Majestade não receberá ordens de súditos rebeldes.
- Não devo. Acho melhor eu falar com York. Seria mais fácil conversar.
- Seria inútil, majestade. Permita que eu redija uma resposta para Vossa Majestade. vou dizer que Vossa Majestade ficou ofendido com os tons dominadores de York, e talvez isso o faça cair em si.
Sim, temos de fazê-lo cair em si. Faça isso, Edmund.
A resposta de Edmund a York não era bem o que o rei pretendera.
"Saberei que traidores ousam ser tão atrevidos a ponto de predispor meu povo contra mim em minha própria terra. Eu os destruirei... a todos eles, porque eles são traidores em relação a mim e à Inglaterra. Em vez de entregar qualquer lorde que esteja aqui comigo, eu mesmo irei, nesta data, viver ou morrer."
Quando York leu aquilo, ficou pasmo. Não parecia nada com o rei que sempre se arrepiara ao pensar em derramamento de sangue e certa vez fizera com que seus empregados retirassem os restos em decomposição de um traidor que estavam sendo exibidos na cidade de Londres. Ele os estava considerando traidores e qual seria o destino deles se caíssem em suas mãos.
Ele mostrou a resposta a Warwick.
- Só existe um caminho aberto para nós - disse Warwick.
- Temos de lutar.
- Então, vamos pensar na batalha, já que o rei decidiu que ela tem de acontecer. Primeiro, vamos mostrar a carta do rei a cada capitão. Ele lutará melhor para vencer, já que saberá qual será seu destino se for capturado.
A carta foi devidamente mostrada, e o exército todo ficou sabendo o destino que os aguardaria se não conseguissem a vitória. Não havia um só homem entre eles que não estivesse preparado para lutar, porque estava lutando não apenas por uma causa, mas pela própria vida.
York examinou de forma imparcial seu exército. Eram cinco mil homens, maior do que o do rei, mas o rei tinha homens treinados entre os dele. A vitória não seria fácil.
Chegou a notícia de que o exército monarquista estava seguindo para a cidade de St. Albans, de modo que os iorquistas deveriam chegar lá a toda velocidade. Quem chegasse primeiro poderia escolher a posição, que era de uma importância vital.
York dividira seu exército em três seções - uma liderada por ele mesmo, uma por Salisbury e a outra por Warwick, que ficava no centro, com o capitão Robert Ogle e seiscentos homens.
Em torno da cidade havia um fosso que estava dominado por uma cerca de estacas. Os lancastrianos, tendo chegado primeiro, tomaram imediatamente a melhor posição atrás daquelas paliçadas e estava claro que tinham a vantagem. Salisbury e York lançaram-se ao ataque, mas apesar de constantes assaltos, não conseguiram atravessar as cercas.
As esperanças dos lancastrianos eram grandes. Eles eram homens treinados do exército do rei, e os seguidores de York não passavam de homens com mais um desejo de corrigir o que achavam errado do que com habilidade em assuntos militares.
Vendo que seus aliados estavam em dificuldades, Warwick avançou em defesa deles, mas ao fazer isso percebeu que havia um setor das paliçadas que não estava sendo defendido. Sua tarefa tinha sido esperar e ir em auxílio de York ou de Salisbury, mas ele decidiu ignorá-la. Viu uma oportunidade e aproveitou-a.
Deu a ordem para que seus homens seguissem para a paliçada desguarnecida enquanto seus arqueiros os protegiam com um jorro de flechas. Sir Robert Ogle os liderou na travessia do fosso e das paliçadas, e depois na entrada da cidade, enquanto gritos de "A Warwick! A Warwick!" enchiam o ar.
Em pouco tempo o estandarte de Warwick, fincado num ponto que dominava a cidade, provocou terror nos lancastrianos. York o viu e exultou.
Gritou para os seus homens. Eles iriam juntar-se ao bravo Warwick.
Agora Warwick poderia atacar os lancastrianos pela retarguarda, e àquela altura York e Salisbury atacavam pela frente. Graças à ação pronta de Warwick, os lancastrianos tinham perdido a vantagem e estavam presos desatrosamente entre as forças inimigas.
Nas ruas da cidade a luta era violenta. Por Shropshire Lane e Cock Lane até a St. Peters Street e a Holwell Street, soavam os gritos de batalha.
- Ataquem os lordes - gritava Warwick. - Poupem o povo.
Talvez o aviso não fosse necessário. Eram os lordes que não conseguiam escapar de seus perseguidores, de tão atrapalhados que estavam por suas armaduras. Os soldados da infantaria e os arqueiros, com seus gibões de couro, eram muito mais móveis.
Warwick fez uma parada perto da Castle Inn, na St. Peters Street, e olhou para a figura que jazia ali no chão.
- Meu Deus - bradou ele. - Acredito que é ele.
A batalha estava praticamente terminada. Uma vitória returnbante para York. E ali, morto sob o letreiro da Castle Inn, estava Somerset...
O caso está resolvido, pensou Warwick.
Henrique ficou muitíssimo atormentado. Ele odiava derramamento de sangue. Era trágico o fato de aqueles assuntos não poderem ser resolvidos de modo pacífico.
Ele sabia que Somerset odiava York, que mostrara nitidamente ser inimigo dele. York queria acabar com o domínio de Somerset, e este estava decidido a fazer o mesmo com York. Henrique gostava muito de Somerset, e o mesmo acontecia com Margaret. Ele também gostava de York. Meu Deus, por que eles não quiseram resolver suas diferenças em paz?
E ali estavam eles em St. Albans. Aquilo era muitíssimo incómodo, e suas forças estavam todas em seus postos sob as ordens de Somerset, e ele estava com eles... liderando-os, supunha Henrique. Ele não gostava de batalhas.
E do lado oposto estava York com Salisbury e Warwick. Todos deviam ser amigos.
A luta começara. Somerset lhe dissera que York não tinha chance alguma de sucesso.
- Eu sei, eu sei - disse Henrique -, mas nenhum derramamento de sangue além do necessário.
- Assim será, majestade - disse Somerset, a luz do combate brilhando em seus olhos.
Henrique fechou os dele. Buckingham estava ao seu lado. Havia barulho e gritos por todos os lados. Ele tinha horror a ouvir homens e cavalos sofrendo. Eles estavam gritando por Warwick.
- Que Deus nos ajude - disse Buckingham. - Warwick rompeu o cerco e entrou na cidade.
Uma flecha atingiu Buckingham naquele momento e ele caiu ao chão. O rei voltou-se para ele, consternado, e ao fazê-lo uma flecha o atingiu no pescoço. Ele caiu do cavalo e ficou deitado no chão, sangrando em profusão.
Viu que o rosto de Buckingham estava coberto de sangue.
- Meu pobre amigo - murmurou ele; e então percebeu que sua roupa estava ensopada com seu próprio sangue.
Alguém estava em pé, olhando para ele.
- Majestade...
- York. É York?
- Vossa Majestade está ferido. - Havia uma consternação sincera na voz dele.
- Ora essa, ora essa! - disse Henrique. York se ajoelhou ao seu lado.
- Nós somos seus servos leais - disse ele.
- Então, acabem com esse massacre de meus súditos.
- Assim será feito - disse York. - A batalha terminou. Vitória dos súditos leais do rei. Essa rixa era necessária. Majestade, nós imploramos o seu perdão por qualquer contratempo causado a Vossa Majestade.
- A guerra não faz sentido - disse o rei.
- É verdade, majestade; nós teríamos preferido ter resolvido numa conversa pacífica.
- Não lhe quero mal - disse o rei. - Mas pare com essa luta. Cuidem dos feridos. Vamos acabar com essa guerra.
Henrique percebeu que outras pessoas o cercavam e deixouse ser erguido para ser colocado numa liteira. Foi escoltado até a abadia por York, Salisbury e Warwick, e lá o ferimento foi tratado. Era um ferimento feio, mas não parecia fatal.
Quando soube da morte de Somerset, ele ficou muito triste. E mais triste ainda quando soube quantos de seus homens tinham morrido. Lorde Clifford, lorde Northumberland, e o filho de Buckingham. O conde de Dorset, filho e herdeiro de Somerset, estava ferido com tamanha gravidade que teve de ser levado numa
carroça.
- Ora essa, ora essa! - murmurou o rei.
Era necessário que ele seguisse com eles para Londres, disselhe York, para que o povo pudesse ver que não havia desavença entre eles.
O que Henrique podia fazer?
A vitória tinha sido de York.
com grande expectativa, Margaret aguardava, em Greenwich, notícias da Batalha de St. Albans.
Quando viu mensageiros se aproximando, desceu correndo para recebê-los, perguntando:
- Quais são as novas?
Não precisou esperar que lhe dissessem. Ela viu na fisionomia deles.
Somerset, morto. O rei, ferido!
Aquilo a fez sentir medo. Como? Quando? com que gravidade?
Uma flecha no pescoço! Ah, aqueles traidores! O que ela não faria com eles se um dia lhe caíssem nas mãos!
Mas o rei. Qual a gravidade? Aquilo era o bastante para fazêlo cair de novo em estupor.
Eles estavam marchando para Londres. O rei com York, Salisbury e Warwick, aquele trio de traidores. Ele vinha como prisioneiro deles, não? Não. Eles o tratavam como o rei deles. Insistiam muito nisso. Eles não tinham queixa alguma do rei. Somerset estava morto. A missão deles estava cumprida.
Como era triste perder amigos! Ela pensou em Suffolk e no sofrimento da pobre Alice. E agora Edmund também fora abatido. E o filho dele tinha sido ferido, aquele belo rapaz que agora não passava de um destroço humano sendo levado embora numa carroça. Margaret não poderia ter suportado aquilo, não fosse a raiva que lhe queimava as entranhas. Era apenas o pensamento de que um dia iria vingar-se de uma forma tão terrível, que eles iriam se arrepender de ter nascido.
O ódio era maior do que a dor. Lutaria contra eles. Transformaria a vitória deles numa amarga derrota humilhante.
Ela foi à ala infantil real. O pequeno Eduardo dormia em paz, mas ela o pegou e apertou-o nos braços.
Um dia, meu amor, você será um rei. Queira Deus que seja um rei mais forte do que seu pai.
O menino começou a choramingar, zangado por ser perturbado enquanto dormia. Mas ela não o largava. Sentou-se num banco e balançou o menino de um lado para o outro.
Ele era a sua esperança. Iria lutar por ele, e um dia... um dia ela teria a cabeça de York numa estaca.
Margaret colocou-o no berço. Depois, foi para seus aposentos. Não queria comer coisa alguma. Ficou sentada, olhando fixamente para a frente; e assim permaneceu por várias horas, durante as quais nenhuma de suas aias ousou aproximar-se dela.
Houve uma reunião do Parlamento, é claro, à qual o rei compareceu com York no comando.
Margaret considerou ter sido insultada em público, porque foi declarado que o governo, tal como exercido pela rainha, pelo duque de Somerset e seus partidários, tinha sido uma opressão e uma injustiça para o país.
Em Greenwich, Margaret desabafou toda a sua fúria, mas do que adiantava? O rei foi solicitado a nomear o duque de York para o cargo de Protetor do Reino, e Henrique concordou.
Margaret sabia que ele não podia fazer outra coisa. York o tinha em seu poder. Mas um dia... um dia...
Pelo menos eles não o haviam prendido. Continuavam a apresentar-lhe protestos de louvor, da boca para fora. Declararam que ele era o verdadeiro rei e que não tinham outro desejo que não o de servir a ele e ao país.
Tolo de quem acreditar neles, pensou Margaret. Só há uma coisa que York quer, e é a coroa.
Então Margaret ficou sabendo que ela, com o príncipe, deveria ir para Hertford, onde o rei iria juntar-se a ela. Havia sinais de que a confrangedora doença estava voltando.
E assim o rei foi para o lado dela a fim de ser tratado até recuperar a saúde. O ferimento provocado pela flecha não era sério e estava cicatrizando. Mas ele estava doente, não havia dúvida. Não mergulhou num completo torpor como antes. Falava um pouco e lia muito. Mas não havia dúvida de que sua mente estava abalada.
- Não há outro lugar em que ele preferiria ficar do que nas carinhosas mãos da rainha - disse York.
E assim, os dois estavam juntos; e ela ficava emocionada ao vê-lo. Ele estava encantado por estar com ela e com o filho.
- Isto é paz - dizia ele.
O DIA DO AMOR
Margaret, agora, tinha um firme propósito. Vingança contra seus inimigos. Destruiria aqueles três homens: York, Salisbury e Warwick. Eles eram seus inimigos num grau que Gloucester nunca atingira, e ela não iria sossegar enquanto não tivesse se vingado deles. Isso era uma coisa que não podia fazer sozinha. Ela compreendia. Se o rei perdesse o juízo por completo ou morresse, ficaria desesperadamente sozinha para lutar por um filho e sem os meios adequados para isso. Precisava de Henrique, de um Henrique são, mas não forte demais, porque ele tinha de ser guiado por ela.
Ela iria garantir a coroa para o filho.
O estado de saúde de Henrique a deixava muito alarmada. Não se deveria permitir que ele fosse entrando naquele torpor que equivalia à idiotia. Agora estava preparada.
Chamaria William Hately de volta e, juntos, eles levariam Henrique de volta à saúde, porque os conselhos sensatos de Hately tinham feito milagres antes, e ela estava certa de que ainda fariam.
Ela procurava fazer Henrique interessar-se pelo filho deles. O garotinho era muito útil. Seu jeito encantador cativava a todos, e Margaret estava mais apaixonadamente dedicada a ele a cada dia que passava, amando-o com toda a força de sua natureza. Ninguém tiraria a coroa dele.
Por isso, ela precisava de Henrique, de um Henrique vivo, de juízo perfeito.
Uma vez mais, dedicava seus dias aos cuidados dos dois. Discutia com William Hately sobre o melhor modo de agir e, devido à paixão de Henrique pela música, por conselho médico ela enviou seus xerifes ao interior à procura de músicos. Ela achava que os músjcos jovens iriam interessar ao rei, porque ele gostava muito de estimular os jovens.
- Vão às cidades e às aldeias - disse ela. - Encontrem meninos com talento. Avise-os de que se quiserem tornar-se músicos, há um lugar para eles na corte. Eles receberão bons salários e jamais passarão necessidade.
Quando os meninos começaram a chegar, Henrique mostrou interesse por eles e seus estudos. Ele sempre acreditara em ensinar e fazer brotarem as habilidades de quem quer que as tivesse. Não havia dúvida de que fora uma ideia excelente.
Havia alguns que queriam entrar para a Igreja. Henrique tinha um interesse especial por eles. Prometia fazê-los progredir e assim fazia e se interessava muito pelo progresso deles. Margaret se mudou para Greenwich a fim de ficar mais perto de Londres - mas não próximo demais, porque os londrinos eram iorquistas ardorosos, e ela estava ansiosa por não atrair atenção demasiada para si mesma e para o rei àquela altura. Ela achava importante levar os iorquistas a terem uma sensação de segurança. Deixem que eles pensem que estão no comando. Estavam, sim, mas não por muito tempo, prometeu a si mesma.
Ela regozijou-se com a recuperação definitiva de Henrique, embora lenta. Pessoas deslocavam-se até Greenwich. Havia os filhos de pais que tinham sido mortos em St. Albans. Eles estavam com sede de vingança, com uma paixão que quase se igualava à de Margaret. Ela os estimulava. Um dia a história será diferente, dizia-lhes com fervor. Nós é que mandaremos neles. E então, para alguns, será a ida para a torre como preparativo para o cadafalso.
York, Warwick e Salisbury perturbavam o sono dela.
O dia chegará, prometia a si mesma. E então não haverá piedade. Sentia prazer em inventar tormentos para eles. Henrique teria ficado horrorizado se soubesse o que lhe passava pela cabeça. Ele sempre fora supersensível. Talvez tivesse sido por isso que quase perdera o trono.
Pouco importava. Ele era um homem bom e carinhoso. Obedecia à mulher. E então, quando o filho deles atingisse a maioridade, daria um belo rei forte, porque ela iria criá-lo para ser exatamente isso.
Enquanto isso, era uma questão de saber onde pisava - o que era muito difícil para uma mulher do seu temperamento. Mas ela estava se saindo bem.
Em Greenwich, falava-se sempre do dia em que eles ficariam fortes bastante para derrotar York.
- Não se preocupem, vamos ter a cabeça dele na Ponte de Londres - dizia Margaret. - Mas nem uma só palavra sobre isso em frente ao rei. Ele é um santo. Ele preferiria morrer a derramar o sangue de alguém.
As pessoas estavam começando a ver em Margaret uma líder. Era uma incongruência o fato de aquela mulher pequena, com as mãos pequeninas e os longos cabelos louros e os olhos que soltavam faíscas azuis quando falava nos seus inimigos, ser aquela que iria liderá-las. Mas tal era o poder de sua resolução, tal a sua eloquência, tamanha a sua veemente determinação, que estavam começando a aceitá-la.
Henry, o novo duque de Somerset, recuperara-se dos ferimentos e vivia ao lado dela. Ela iria colocá-lo no lugar do pai assim que fosse possível. Era o mínimo que podia fazer pelo querido Edmund; mas tirando isso, ela gostava do novo duque pelo que ele era de verdade. Ele era seu ardente partidário e, como acontecia com ela, estava com sede de vingança.
Havia três pessoas que eram muito bem-vindas a Greenwich: o padrasto de Henrique, Owen Tudor, e os meio-irmãos do rei, Edmund e Jasper. Henrique ficava sempre encantado ao vê-los e sentia-se feliz ao recordar a época em que era um garotinho e Owen Tudor lhe ensinara a andar a cavalo.
Mas os Tudor não iam apenas para conversar sobre o passado com Henrique. Eles eram a favor da causa lancastriana. Eram homens fortes - os três, prontos para enfrentar dificuldades, prontos a arriscar suas vidas; e em homenagem a Katherine, adorada esposa de um deles e mãe dos outros dois, apoiavam Henrique com firmeza.
Eram dias agradáveis para Henrique, que ignorava os planos de vingança. Ele não queria pensar naquela terrível situação em St. Albans. O ferimento no pescoço fora superficial, e ele não suportava pensar no pobre e querido Somerset caído morto debaixo do letreiro da estalagem. Nunca mais chegaria perto de St. Albans outra vez.
Queria apenas esquecer os horríveis sons e visões da guerra.
- Ora essa, ora essa! - murmurava para si mesmo. - Por que os homens fazem a guerra, quando todos sabem que sempre é mais vantajoso vivermos sem ela?
Que York fosse o protetor do reino. Por que não? Era o que York queria; aquilo acabara com a guerra. Várias pessoas queriam aquilo. Diziam que York administrava muito bem, e enquanto continuasse assim, não precisava haver encrencas. York o tratara com o máximo de respeito e enfatizara o fato de que o considerava o único rei daquele reino. Era só porque ele precisava recu perar-se da doença - que fora agravada pelos acontecimentos em St. Albans - que York tinha sido empossado como Protetor. Era só uma medida temporária.
Mas Henrique ficava muito feliz com a permanência dela.
Assim, ele ouvia a música tocada pelos meninos que tinham sido levados para lá a fim de ser ensinados e admoestava-os delicadamente quando não tocavam da forma correta. Ele adorava ouvi-los e eles adoravam tocar para ele.
E também havia aqueles que queriam ir em peregrinações aos santuários . Eles chegavam e discutiam seus projetos com o rei. Ele ficava encantado ao ouvi-los. Ele mesmo gostaria de fazer uma peregrinação.
- Isso poderia ser uma ideia excelente - disse Margaret. Eles viajariam pelo país, e o povo ficaria contente ao vê-los, especialmente se levassem o pequeno príncipe junto - o cortês rei que não desejava mal a ninguém e o encantador príncipe que sempre podia cativar com a sua inocência. E ela... bem, eles poderiam não gostar tanto assim dela. Havia muito preconceito a vencer. Mas o povo devia aplaudir a dedicação dela à família.
Mas aquela não era a hora. Margaret tinha outros planos... só para começar.
- Quando você estiver em condições - disse ela a Henrique
- faremos a nossa peregrinação.
- Eu me sinto bem, agora - disse Henrique. - O suficiente para fazer uma viagem curta.
- Vamos ver - disse Margaret.
Ainda não, pensou ela. Só quando o povo puder ver você como o governante deles. Só depois que York não for mais o Protetor. Dentro em pouco, talvez, mas por enquanto, não.
Os visitantes continuavam a chegar. Margaret fazia suas reuniões secretas, e o rei ouvia música, discutia possíveis peregrinações, passava um tempo enorme com seu confessor, rezava e meditava.
Alquimistas iam procurá-lo, dizendo acreditar que pudessem descobrir a pedra filosofal, com a qual poderiam transformar metais não-preciosos em ouro.
- Seria uma descoberta milagrosa - dizia Henrique, pensando tristemente em seus cofres exauridos e em como seria maravilhoso se o país não tivesse que impor uma tributação tão pesada a seus súditos.
Ele visitava os laboratórios reais e passava horas com os alquimistas. Eles chegavam a Greenwich vindos de todas as partes do país. Estavam todos prestes a descobrir a fórmula secreta; mas nenhum deles a encontrou.
E assim os dias do rei passavam de forma agradável, enquanto a rainha reunia à sua volta uma força respeitável.
A saúde do rei melhorara muito, mas ele se cansava com facilidade, e não havia dúvida de que a batalha de St. Albans exercera um certo efeito sobre ele. Mas ele estava bem o bastante para montar um cavalo; estava lúcido; e embora nunca fosse ficar robusto, gozava de boa saúde.
Chegou a hora, pensou Margaret.
Ela não discutiu o próximo passo com Henrique. Queria que ele percebesse isso como a opinião ponderada não apenas dela própria, mas dos amigos dele.
O jovem Henry Beaufort, filho de Edmund e agora duque de Somerset, era um rapaz brilhante de dezenove ou vinte anos. Como era compreensível, ele odiava York com uma virulência igual à da rainha.
- A alegação de York diz que ele só é Protetor do Reino durante a doença do rei - disse o jovem Somerset. - Se o rei não está mais doente, agora não há necessidade de York manter esse cargo. Parece-me, majestade, que tudo que temos de fazer é anunciar que o rei está bom.
Margaret ficou pensativa. Era assim que deveria ser. Mas ela sabia que haveria uma violenta oposição. York, Warwick e Salisbury tinham reunido suas tropas e ido enfrentar Henrique.
- Isso foi feito com rapidez e astúcia - lembrou-lhes Margaret.
com os lordes lancastrianos, eles discutiam como o efeito desejado deveria ser atingido. York não estava em Londres naquele momento. Ele deveria ser mantido na ignorância quanto ao progresso do rei. Se ele soubesse que Henrique estava se recuperando, apareceria logo.
- Temos de escolher a nossa hora com cuidado - disse Owen Tudor.
Jasper achava que o rei, sem que fosse esperado, deveria ir a uma das sessões do Parlamento, que York e seus apaniguados imediatos não presidiam, e fazer o anúncio de que agora estava bem e tinha condições de assumir o governo do país.
- O caminho é esse - disse Margaret. - Agora, temos de persuadir o rei.
Isso não era tão fácil. Henrique gostava muito da vida em Greenwich. Ele amava a sua música, as conversas com aqueles que eram quase tão religiosos quanto ele; adorava a companhia do filho e sentia-se agradecido pelo fato de ter uma rainha que podia cuidar dele e manter os assuntos desagradáveis longe dele.
Ela o lembrava delicadamente de que ele era filho de um rei; tinha sido rei desde os nove meses de idade e o povo o queria. Chegara a hora de assumir seus deveres. Ela estaria ao lado dele, sempre pronta a ajudá-lo. Ele não precisava ter medo.
Era um dia frio de fevereiro; o duque de York se encontrava no Norte, e Warwick em Calais, porque recebera o importante governo daquela cidade quando York se tornara Protetor. Quanto aos principais membros da facção de York, estavam todos em suas propriedades rurais em várias partes do país.
O rei cavalgou de Greenwich para Westminster, Margaret do lado.
Entrou na Câmara dos Lordes.
A assembleia, sem saber que ele tinha saído de Greenwich, ficou perplexa ao vê-lo entrar com toda aquela cerimónia.
O rei estava diante deles, aparentando uma saúde impressionantemente boa.
- Meus senhores - disse ele, como tinham decidido que devia dizer -, os senhores me vêem, pela bênção de Deus, com boa saúde. Não penso que meu reino precise agora de um Protetor. Peço a sua permissão para reassumir as rédeas do governo.
Os parlamentares levantaram-se todos ao mesmo tempo e o ovacionaram.
Ele estava bem. Ele era o rei. Cabia a ele governar.
Tinha sido um sucesso completo. Margaret estava contentíssima.
- Está vendo, tudo o que precisamos é de mão firme. Nosso primeiro ato tem de ser avisar ao duque de York que ele não é mais Protetor deste reino, já que houve um acordo unãonime dos lordes no sentido de que ele deixasse de exercer aquele cargo.
Agora, eles iam pôr mãos à obra. York não podia fazer coisa alguma. Seus homens estavam espalhados, e o mesmo se aplicava Salisbury. Warwick se achava em Calais, de modo que não constituía uma preocupação imediata.
O Parlamento concordara que os serviços de York não eram mais necessários. O rei não podia ser destituído de seu cargo. Ele o reivindicava. Ele agora se sentia bem.
Henrique era rei outra vez.
O principal assessor do rei devia ser o jovem duque de Somerset. Sobrancelhas foram erguidas quanto a isso. Henry Beaufort era bastante leal, mas faltava-lhe experiência, e o pai praticamente não podia ter sido chamado de um sucesso nos últimos anos de vida. Era o conflito entre York e Somerset que estava na raiz do problema. Mas Margaret, veemente em suas lealdades, nada tinha de astuta em seu julgamento. Ela queria mostrar àquele rapaz a compaixão pela morte de seu adorado pai; queria recompensá-lo pela amizade dele para com ela. Suas emoções diziam a ela que aquela devia ser a recompensa dele; ela não fez uma pausa para pensar no bom senso do ato.
Henrique queria nomear seu bom amigo William Waynflete, bispo de Winchester, e Margaret não via razão pela qual Henrique não fizesse o que queria. Waynflete era um bom lancastriano não violentamente contra o duque de York, é verdade, mas acreditando firmemente que Henrique era o rei de direito e por isso devia ser apoiado. Ele e Henrique tinham passado muitas horas agradáveis juntos, discutindo teologia e arquitetura. Waynflete acompanhara muitas vezes o rei a Eton e ao Kings College e tinha um grande interesse por eles.
Sim, Waynflete era o homem.
As mudanças foram completadas antes que York pudesse fazer alguma coisa, e houve consternação no castelo de Sandal, perto de Wakefield, quando a notícia lhe foi dada.
Sua exoneração pedida! Praticamente não era necessário. Ele já estava destituído do cargo. O rei se achava em condições suficientes para reassumir seus deveres.
Foi uma surpresa total.
A família cercou-o. Eduardo queria que o pai lhe dissesse exatamente o que acontecera. Queria partir de imediato e impor uma nova batalha ao rei. Edmund, seu irmão e mais novo do que ele um ano, estava ansioso por saber de maiores detalhes. George tentava imitar Eduardo e falava em batalha, e o pequeno Richard caminhava com passos incertos para tentar compreender o motivo de tanta agitação. Até as garotinhas prestavam atenção.
Cecily ficou furiosa.
- Isso é coisa daquela mulher - disse ela.
Eduardo confirmou com um gesto de cabeça. Todos os filhos sabiam que "aquela mulher" era a rainha e ela era muito má. George disse que ela viera da França montada num cabo de vassoura e que só por ser uma feiticeira é que conseguira casar-se com o rei. Quando Elizabeth perguntou a Eduardo se aquilo era verdade, ele deu de ombros num gesto impaciente.
- Quando se diz que ela é uma feiticeira - explicou ele -, isso significa apenas que é ardilosa, má e cruel e devia ser destruída.
- Claro que é coisa dela - disse o duque de York. Henrique nunca tem inteligência para fazer alguma coisa sozinho.
As crianças ficaram impressionadas. O pai estava falando do rei, e só o pai delas podia falar assim do rei. As demais pessoas tinham de ser muito cautelosas. Aquilo era porque o pai delas devia mesmo ter sido o rei e aquele era o motivo de toda aquela confusão.
Até os pequeninos usavam suas rosas brancas e estavam sempre de olhos abertos, à procura de qualquer pessoa usando uma rosa vermelha; se viam alguém - embora raramente vissem em Yorkshire e em qualquer lugar perto deles, onde quer que estivessem -, Eduardo e Edmund sempre queriam matá-los.
- Quando marcharemos para o sul? - perguntou Eduardo. Ele sentiria muita pena se tivesse que ir, porque havia uma
certa empregada na qual ele estava interessado. Ela era velha de acordo com os padrões dele -, mas ele não se importava, nem ela com a juventude dele. Ela tinha muito a ensinar-lhe; ele gostava das aulas que tinha com ela e não queria interrompê-las... mem mesmo por causa de uma batalha.
Não acho que marcharemos - disse o duque, pensativo.
Você quer dizer que vai ficar parado e deixar aquela mulher tratá-lo dessa maneira? - bradou Cecily.
- Minha cara, nós não queremos uma guerra civil.
.- Você foi o vencedor em St. Albans. Aquilo deveria ter sido o fim dessa história.
- Creio que sim. Mas esteja certa, Cis, de que não haverá fim para o conflito enquanto a rainha dominar o rei.
- Que absurdo! Você mostrou que está mais apto a governar do que Henrique.
- Eu penso que o povo sabe disso. Ele se lembrará... quando chegar a hora. Temos que manter a calma.
Nãodemorou muito, e Salisbury chegou. Ele também ouvira a notícia.
- O que isso significa? - perguntou ele.
- Que o rei está melhor de saúde. Tem de estar, para apresentar-se ao Parlamento. Ele é o rei uma vez mais, o que significa que já não sou o Protetor.
- E o que você propõe quanto a isso?
- Nada - disse York. - Continuar aqui no interior... e esperar.
Salisbury estava plenamente de acordo.
- E esperar - disse ele, mas havia algo de ominoso naquelas palavras.
Margaret ficou satisfeita quando York não fez tentativa alguma de questionar o fato de que o rei tinha direito a governar e que ele estava apto a fazê-lo.
- Ele sabe quando está derrotado - comentou ela com o jovem Somerset. - Apesar de estar enganado se pensa que algum dia vou me esquecer do que ele fez. vou lembrar ao Henrique - porque ele tende a esquecer - que independente do que York diga, ele pegou em armas contra o rei dele em St. Albans.
- Ainda vamos ter a cabeça do traidor - prometeu-lhe Somerset.
- Estou decidida a isso. York não deve pensar que tudo está esquecido e perdoado. Isso nunca acontecerá. vou descobrir o estado de espírito do país e levarei Henrique e o príncipe numa longa viagem. Quero que o povo veja seu rei, que veja que ele está bem e que está capacitado a governá-los. Ele nunca é avesso a essas viagens, e se puder visitar as igrejas e os mosteiros, ficará feliz. O povo também gosta disso. Ele fica contente por ter um rei puro e virtuoso.
Ficou combinado que uma expedição daquelas seria benéfica para a causa lancastriana, e a rainha poderia avaliar com que apoio poderia contar. Ela sonhava em liderar um exército triunfante contra York.
com a energia característica, ela passou a planejar a viagem. Seguiriam devagar pelo interior, parando em importantes casas senhoriais e castelos pelo caminho, onde ficariam alguns dias e deixariam que o povo os visse. Iriam para Coventry, que sempre fora uma cidade leal. E quando chegasse a hora... quando o país estivesse apoiando plenamente a sua causa, ela atacaria.
E assim começou a expedição. O rei era bem recebido com sinceridade; o pequeno príncipe era ovacionado aonde quer que fossem; e se as saudações a Margaret eram menos exuberantes, ela podia suportar isso. Ela prometeu que no fim aquelas pessoas iriam compreender.
Eles chegaram a Coventry e lá instalaram a corte. As senhoras do castelo fizeram uma tapeçaria em honra à visita. Era bonita e retratava Margaret rezando, usando uma touca decorada com pérolas e um vestido amarelo brocado com bordas de arminho. O rei era mostrado ao lado dela, e a tapeçaria foi pendurada em St. Marys Hall como símbolo da lealdade da cidade para com seus soberanos.
Enquanto estavam em Coventry, Margaret aconselhou Henrique a mandar chamar York, Salisbury e Warwick para que fossem vê-los. Todos eles recusaram-se, pressentindo problemas. Como poderiam ir, perguntou York, sem levar uma força armada?
E se fizessem isso, não pareceria que tinham ido em paz. Salisbury concordou com ele. Quanto a Warwick, ele estava ocupado demais em Calais, onde seus deveres não teriam permitido que ele saísse.
Estão com medo de vir - disse Margaret, exultante, e que seria chamado de Porto Seguro de Coventry ela prosseguiu com seus planos.
Apesar de mergulhada em tramas de vingança, ainda reservava tempo para um romance. Gostava de discutir os planos com Henrique, porque ele sempre concordava e sorria com ternura para ela, chamando-a de Casamenteira Real.
- Bem - disse ela -, agora que o querido Somerset foi assassinado... - ela sempre se referia à morte de Somerset em ação como assassinato e ao assassino-chefe como York -, eu me acho no dever de cuidar do bem-estar dos filhos dele.
- Acho que se poderia dizer que você fez isso, Margaret replicou o rei.
- Eles são bons rapazes. Se Edmund continuasse vivo, a esta altura eles estariam casados.
- Pois eu digo que eles irão se casar quando chegar a hora.
- Eles devem conseguir os melhores casamentos possíveis, e acho que encontrei a solução. O rei da Escócia tem duas filhas. Talvez fosse uma boa ideia se elas se casassem com Henry e o irmão, Edmund.
- Filhas de rei!
- Ora, e por que não? Os Beaufort têm sangue real, não têm? A família foi legitimada, e eles descendem em linha direta de John de Gaunt.
- Sim, mas o que James vai dizer...?
- Estou certa de que James da Escócia poderia ser convencido. Nós devemos isso a Somerset, Henrique.
- Minha querida Margaret, se isso fosse aceito pelo rei da Escócia, eu não faria objeção.
- Não pensaria em fazer - bradou Margaret. - Esses casamentos só poderiam nos trazer benefícios.
- Eu não acho que o rei da Escócia vai concordar.
- Claro que não pode concordar se não souber o que está sendo proposto.
- Minha querida, se é isso que você quer...
- É, e devia ser também o que você quer. Já pensou o que esses casamentos poderiam significar para nós? Há sempre atritos na fronteira. com Henry de Beaufort lá e o irmão ao lado dele, nós teríamos amigos, não inimigos, nos escoceses.
- Se isso for significar a paz, minha querida senhora, eu daria todo o estímulo possível.
Margaret ficou satisfeita. A aprovação do rei não lhe era necessária, mas ele sempre achou que ela gostava de tê-la.
Ela iniciou as negociações. Foi uma decepção haver uma resposta pouco entusiasmada por parte do rei dos escoceses, que poderia muito bem significar: "Não se meta nesses assuntos e mantenha seus planos casamenteiros dentro das fronteiras de seu país." Se ela estava propondo um casamento com o príncipe de Gales, isso seria outra história.
Margaret viu-se obrigada a engavetar o assunto temporariamente. Havia algo de grande importância com que se ocupar, e isso estava decidida a fazer sem consultar Henrique.
Ela sempre mantivera contato com seu tio, o rei da França, e com seu pai, o rei da Sicília e de Nápoles apenas no nome. Se René era muito frívolo, o rei da França estava longe disso. Margaret estava ansiosa por garantir o trono para Henrique, e achava que isso nunca poderia acontecer enquanto York vivesse. Ela não se sentiria feliz enquanto não visse a cabeça de York exibida em algum prédio de importância para que todos testemunhassem sua derrota e sua humilhação. A vingança era como um fogo violento dentro dela, que só poderia ser apagado por uma morte horrível. Não lhe passou pela cabeça que a rainha da Inglaterra manter correspondência com um inimigo da Inglaterra era mais do que incongruente. Poderia ser considerado traição, e em vista de sua impopularidade, que já era avassaladora, Margaret estava fazendo um jogo muito perigoso.
Havia uma pessoa que Margaret odiava quase com a mesma intensidade com que odiava o duque de York, e essa pessoa era o conde de Warwick. Graças à tática de Warwick, eles haviam conseguido a vitória em St. Albans para os iorquistas. Ele era tão perigoso quanto York. A única diferença era que ele não reivindicava o trono.
Warwick - com a astúcia característica -. assumira o governo de Calais, que algumas pessoas diziam ser o porto mais importante da Europa, e se não tivesse sido bem assim antes, não havia dúvida de que Warwick o estava colocando naquele ponto. Ele estava se transformando numa espécie de rei pirata do canal e tornando impossível os navios franceses passarem a salvo.
Margaret já escrevera ao tio explicando que não queria Warwick de volta à Inglaterra. Ele era inteligente demais, importante demais para a causa iorquista, e enquanto permanecesse em Calais ficaria afastado do caminho. Será que o rei podia atormentar o porto um pouco, tornando a presença de Warwick em Calais absolutamente necessária à sua segurança? Ameaçá-lo? Fazer um ataque determinado? Independente do que custasse, manter Warwick longe da Inglaterra?
Uma vez mais, não ocorreu a ela que pedir a um inimigo de seu país que atacasse uma de suas possessões era traição da pior espécie. Margaret era ingénua. Ela queria Henrique em segurança no trono, e isso só poderia ser conseguido com a morte de York, e ela não se importava com os meios que empregasse para provocar esse resultado.
Carlos VII mudara desde aquela época em que, como delfim, ele ficara inerte e deixara que seu país escapasse ao seu controle. Agora era considerado o monarca mais astuto da Europa. Escreveu dizendo que queria ajudar a querida sobrinha e estava autorizando Pierre de Brézé, o senescal da Norrnandia, que sempre fora um dos dedicados admiradores de Margaret, a preparar uma frota com a finalidade de destruir a frota de Warwick e imobilizar o porto de Calais, a fim de que - assim disse o rei da França - Warwick ficasse impossibilitado de usá-lo em ataques contra Margaret e Henrique. Ele não acrescentou que Calais era a cidade em que ele mais desejava pôr as mãos.
Margaret ficou encantada. Warwick nunca seria capaz de resistir a uma frota francesa.
O verão chegara quando a frota ficou pronta. De Brézé partiu margeando a costa, à procura da frota de Warwick. Mas um forte nevoeiro baixou, e a visibilidade era fraca, e não havia sinais de Warwick e seus navios. Era uma pena, pensou de Brézé, porque ele estava com sessenta navios levando um total de quatro mil homens e estava prevendo uma vitória fácil.
Avistaram terra. Ele ficou intrigado. Aquilo só podia ser a Inglaterra. Ele fundeou ao largo por um instante, e quando o nevoeiro se levantou um pouco, teve a certeza de que estava próximo à costa inglesa.
Ele desembarcou alguns de seus homens numa baía tranquila e depois seguiu em frente até chegar à cidade de Sandwich.
Então, levou o restante para terra. Os habitantes de Sandwich foram apanhados de surpresa. Quando tinham avistado os navios pela primeira vez, tinham pensado que eram de Warwick e estavam preparados para dar-lhes uma boa recepção, porque Warwick era considerado um herói em Kent.
O ataque foi um sucesso - do ponto de vista francês, e de Brézé, que foi embora com butim e prisioneiros de cujas famílias esperava arrecadar vultosos resgates.
Quando se descobriu que a rainha solicitara a ajuda dos franceses - porque havia espiões na equipe real, e Margaret, que era impulsiva em seus atos, também era descuidada, e algumas das cartas entre ela e o rei da França tinham sido interceptadas - o ódio contra ela aumentou de intensidade. Era uma traidora. Estava lutando pelos franceses, contra os ingleses. A própria rainha deles. Nunca tinham gostado dela. Agora, uma onda de ódio espalhou-se pelo país, e em nenhum ponto ele foi mais forte do que no condado de Kent e na cidade de Londres. Eles a culpavam pelo ataque-surpresa a Sandwich. Culpavam-na pela perda do comércio que perturbava especialmente os londrinos.
A pequena trama de Margaret para imobilizar Calais fracassara tristemente e, além do mais, prejudicara sua reputação de forma irreparável.
Henrique ficou perturbadíssimo e percebeu que Margaret, no seu entusiasmo, fizera um grande mal. Ele tentou explicar a ela, e pela primeira vez ela compreendeu que ele sabia ser decidido.
Afinal, ele era o rei; havia momentos em que a sua realeza parecia ser importante para ele. "Eu sou o rei", lembrava ele, com delicadeza, àqueles que procuravam passar por cima dele - até mesmo Margaret.
- Esse conflito não pode nos trazer benefício algum - declarou ele com certa intensidade. - Estou ansioso por acabar com
ele.
- Você não vai conseguir enquanto York viver-disse Margaret, impiedosa.
- Margaret, eu não quero mais mortes, não quero mais lutas. York tem direito a suas opiniões. Ele jamais quis tirar meu lugar. Ele disse isso.
- Disse - bradou Margaret. -Você acredita na palavra de um traidor.
- Ele não é traidor! Pense na conduta dele depois de St. Albans. Ele se aproximou de mim, apesar de eu estar ferido, e ajoelhou-se diante de mim. Ele poderia facilmente ter me matado naquele momento.
Margaret cobriu o rosto com as mãos, desesperada.
Henrique afastou-as com delicadeza. Ela olhou para o rosto dele e viu nele uma expressão decidida.
Terei de fazer o que ele quer, pensou ela; ele é o rei e agora está se lembrando disso.
Ela ouviu o que ele tinha a propor. Ele iria convocar todos os nobres a Londres; York, Warwick, Salisbury, e com eles lordes como Northumberland, Egremont e Clifford, que tinham queixas contra eles pelo sangue que fora derramado em St. Albans.
- Você quer lutas pelas ruas de Londres?
- Não - disse Henrique, enfático. - Isso eu vou proibir. Esses homens irão apertar-se as mãos em sinal de amizade. Ordenarei que façam isso. Eu sou o rei.
Margaret ficou perplexa. Nunca vira Henrique com aquela aparência antes.
Henrique percebera que o caminho que Margaret estava seguindo levaria à guerra civil. Ela se tornara muito impopular, e não havia saudações para ela nas ruas, embora elas surgissem de imediato para o príncipe e para Henrique. Mas havia um silêncio constrangedor na multidão quando Margaret aparecia. Henrique temia que aquilo pudesse transformar-se em algo muito desagradável, e até a vida de Margaret poderia estar em perigo.
Ele tinha de pôr um fim naquele conflito. Tinha de conseguir um certo entendimento com os iorquistas. Acreditava, no fundo do coração, que, tanto quanto ele, o povo não queria a guerra. Só pessoas que pensavam como Margaret é que estavam tão sedentas de vingança que fariam com que o país mergulhasse num mar de sangue para consegui-la.
Decidiu, numa desesperada tentativa de fazer a paz entre eles, chamar todos os principais nobres a Westminster. Quando chegaram, eles causaram uma grande consternação aos londrinos, que não queriam que batalhas fossem travadas em seu precioso território. Se as facções rivais quisessem lutar, disseram eles, que fossem para outro lugar.
Os iorquistas estavam chegando em peso. Salisbury fez-se acompanhar de quinhentos homens e alojou-se com eles em Fleet Street, e não muito tempo depois o duque de York chegou ao castelo de Baynard com cerca de quatrocentos ou quinhentos homens.
Sir Geoffrey Bolena, o prefeito de Londres, ficou preocupado e ordenou que os guardas da cidade protegessem a propriedade dos mercadores de Londres; destacou patrulhas para marchar pelas ruas depois de anoitecer, e havia um ar de tensão por toda a cidade.
Margaret achou que o rei nunca deveria ter tentado reunir os nobres; jamais iriam chegar a um acordo; além do mais, ela estava certa de que não podia confiar nas promessas dos iorquistas. No íntimo, ela não desejava a paz. Queria vingança contra York e não poderia consegui-la com muita facilidade se não houvesse uma guerra.
Então, os lancastrianos leais começaram a chegar. Havia os jovens lordes exibindo suas rosas vermelhas liderados por três, todos os quais tinham perdido seus pais na batalha de St. Albans Clifford, Egremont e Northumberland, cada qual procurando uma solução na base de olho por olho. O sangue que havia sido derramado só podia ser satisfeito com sangue.
A tensão aumentou quando Warwick, o herói de Calais, chegou à cidade com seiscentos soldados treinados.
Henrique preparou um encontro que deveria ser presidido pelo bispo Waynflete e Thomas Bourchier, o arcebispo de Canterbury.
O rei tivera, antes, uma reunião com York, Salisbury e Warwick e ficara satisfeito ao descobrir o quanto os três estavam conciliadores. York insistira que a guerra civil era a última coisa que ele queria. Ele achara necessário que o falecido duque de Somerset fosse demitido do cargo e só por isso ele marchara para Londres quando o conflito em St. Albans estourara. Era lamentável que o rei tivesse sido ferido e que Somerset tivesse morrido. Ele também sentia pena daqueles jovens lordes cujos pais tinham sido abatidos e compreendia a dor e a raiva de suas perdas.
- Talvez fosse bom os senhores mostrarem que lamentam realmente esse conflito - sugeriu Henrique. - O que achariam de construir uma capela em St. Albans... no local da batalha? Missas poderiam ser rezadas nela pelas almas dos homens que lá morreram.
Os três homens pensaram no caso e disseram que teriam um grande prazer em construir uma capela com aquela finalidade.
- Neste caso, acho que estamos fazendo algum progresso - disse Henrique, satisfeito. - Mas será exigido um pouco mais.
- O que Vossa Majestade sugere? - perguntou York.
- Eu penso que se houvesse uma recompensa financeira às famílias que sofreram, poderíamos conseguir que elas mantenham a paz. Há certas quantias devidas aos senhores - ao senhor, Sr. Warwick, pela governança de Calais, e ao senhor, senhor duque, pelos serviços de protetor. Vamos supor que essas quantias fossem desviadas para a duquesa de Somerset, para os jovens Clifford e Egremont e outros que tenham sofrido perdas.
York, Warwick e Salisbury disseram que gostariam de ter um pouco de tempo para analisar aquela proposta.
- Não demorem muito - avisou-os Henrique. - O povo está inquieto e quer uma declaração de paz entre todos os senhores o mais cedo possível.
York riu quando ficou a sós com os amigos.
- A capela... sim, nós podemos fazer isso - disse ele. Isso é um assunto sem importância. O dinheiro...? Quando foi a última vez em que você foi pago, Warwick?
- Eu nunca recebi um tostão.
- Nem eu. Por isso, ofereçamos muito magnanimamente a essas famílias aquilo que com toda probabilidade nunca teria chegado às nossas mãos. Deixemos que os nossos salários sejam transferidos para elas. Elas podem esperar por eles... tal como nós esperamos... e duvido que algum dia vejam a cor do dinheiro.
Henrique ficou encantado.
- Está vendo - disse ele a Margaret - como é simples quando se faz a abordagem correta? No fundo, as pessoas são boas, mas se deixam levar pelas paixões. Se ao menos parassem e se comunicassem com Deus.
com os iorquistas tão dispostos a concordar com a paz, não havia nada que os lancastrianos pudessem fazer, exceto aceitar.
- Haverá uma missa de ação de graças na catedral de St Paul
- anunciou Henrique, satisfeito.
- E você acredita nesses iorquistas? - perguntou Margaret com desdém na voz.
- Acredito que eles queiram a paz. York é um bom homem. Eu o conheço bem. Lembre-se de que ele é um parente próximo. E quer realmente o que for melhor para este país.
- Sem esquecer a Casa de York - acrescentou Margaret.
- Todos nós queremos ver nossas famílias bem amparadas.
- Mas felizmente nem todos querem usar a coroa.
- York não pensa nisso. Ele é um homem bom, eu juro, Margaret.
- Henrique, você é enganado com muita facilidade. E Warwick. Ele é o mais perigoso de todos. Ele é um hipócrita. Foi se infiltrando no afeto do povo. O povo o ovaciona aonde quer que ele vá. As pessoas acham que ele é maravilhoso porque faz pirataria em alto-mar.
- Ele só ataca os franceses que criam uma situação incómoda para ele em Calais.
- Ele nunca deveria estar em Calais. Deveria ser exonerado daquele posto. Henrique, você poderia dar o cargo ao jovem Somerset. Isso iria mostrar o quanto lamentamos o fato de o pai dele ter morrido a nosso serviço.
- Somerset é muito jovem para o posto.
- Quê idade tem Warwick?
- Deve ter quase trinta.
- Não tão mais velho assim do que Somerset.
- Não é apenas uma questão de idade, minha querida. Warwick já mostrou ser um grande líder.
- Ele já mostrou ser um pirata. Mas sei que os ingleses adoram piratas.
- Os ingleses adoram a lei e a ordem, como todos os povos sensatos. Não, seria um erro tirar o governo de Calais das mãos de Warwick. O povo ficaria zangado. No sudeste, eles o idolatram. Dizem que quando ele cavalga de Sandwich a Londres as pessoas correm até as ruas para ovacioná-lo e jogar flores nele.
- Mais uma razão para que seja exonerado do cargo.
- Mas ele sobressaiu nele, e você sabe o que o povo sente em relação ao ataque de Brézé a Sandwich.
Aquele era um terreno perigoso. Ela cometera um erro terrível naquele caso, dizia-se. Eles a culpavam, embora ela nunca tivesse pedido que o continente inglês fosse atacado.
No entanto, com uma firmeza a que não estava acostumado, Henrique deixou claro que a governança de Calais não deveria ser tirada de Warwick, e os cidadãos de Londres, que pouco antes tinham-se mostrado apreensivos, ficaram encantados ao saber que haveria uma cerimónia. O rei decidira que aconteceria na Festa da Anunciação, e que seria
um dia de ação de graças nacional. Inimigos entrariam na catedral como amigos - de mãos dadas - e todos iriam dar graças a Deus por aquele dia.
Houve uma grande procissão pelas ruas. O duque de Somerset e o conde de Salisbury - inimigos jurados até aquele dia - lideravam a procissão; e atrás deles vinha o duque de Exeter com Warwick. Henrique seguia com todos os mantos reais que ele tanto odiava usar, mas por baixo deles vestia a sua camisa de cilício e esperava que o desconforto anulasse o extravagante esplendor aos olhos do Todo-Poderoso. Atrás do rei seguiam Margaret e o duque de York. Os dois caminhavam de mãos dadas.
Ela achava difícil esconder a repugnância que sentia por aquele gesto. Caminhar assim com seu maior inimigo, segurando a mão dele quando era a cabeça dele que ela
queria, e fincada numa estaca, era repugnante. Ela quase se recusara a fazer aquilo, mas, lembrando-se do que acontecera em Sandwich e do novo estado de espírito do rei, achou que praticamente não podia recusar. Mas ela não era amiga de York, e nunca seria.
York, no entanto, fingia sentir uma grande amizade. Poderia ele realmente querer a paz? Teria ele realmente desistido da ambição de usar a coroa?
Ela não acreditava.
Aquilo tudo não passava de uma farsa.
Mas agradou a Henrique. Pobre alma simplória, ele acreditava naquela gente quando eles diziam que devia haver paz. Ele usava a si mesmo como modelo e parecia pensar que todos tinham os mesmos motivos e eram tão sinceros e honestos quanto ele. Pobre tolo Henrique! Ele precisava muito de uma mulher para tomar conta dele. E aquele novo estado de espírito era ligeiramente alarmante.
E assim eles entraram na catedral, e a missa começou.
Depois, havia fogueiras nas ruas, e o povo dançava alegre em volta delas. As pessoas acreditavam que os problemas tinham acabado. Os inimigos, agora, eram amigos. Aqueles que tinham sofrido tinham sido recompensados.
Aquele dia foi chamado de O Dia do Amor. O dia em que os portadores de rosas vermelhas e brancas ficaram amigos.
O FAZEDOR DE REIS
Henrique gostou muito de receber Jasper Tudor, o conde de Pembroke, que estava animado. Seu irmão Edmund, conde de Richmond - um título, tal como o de Jasper, devido à boa vontade do rei, porque se ele não os tivesse reconhecido eles não teriam título algum e teriam muito poucas possessões -, não pôde comparecer.
Ele não estava bem, ultimamente. Caso contrário, teria ido correndo contar ao rei sua boa fortuna. Sua mulher, Margaret Beaufort, com a qual o rei tivera a boa vontade de arranjar o casamento dele, ficara grávida e a família estava muito contente. Jasper continuava solteiro, e Owen era um monge, de modo que era um prazer saber que a família seria aumentada.
- É uma notícia maravilhosa - bradou Henrique, sempre muito contente com a boa sorte dos outros. - E como vai Margaret?
Margaret vai bem e esperando ansiosa pelo acontecimento.
Ela é um pouco jovem para ter um filho.
Ainda não fez quatorze anos - disse Jasper. - Jovem, sim, mas já é bem madura. Eles estão muito felizes juntos, e esse filho vai abençoar a união dos dois. Meu pai, eu e nossa irmã estamos contentíssimos. Esperamos que seja um menino, é claro.
- Eu compreendo, mas não tenho dúvidas de que vocês ficarão agradecidos pelo que o Senhor mandar.
- Claro que sim. Margaret é jovem. É bom ela ter provado tão cedo sua fertilidade.
Depois que Jasper se retirou, Henrique deu a Margaret a boa nova. Margaret entendeu a alegria deles com a chegada da criança. Ela mesma esperara um longo tempo e agora o seu menino era a alegria de sua vida. Mas ficava um pouco irritada com os Tudor, porque alguns dos títulos que Henrique lhes concedera tinham sido tirados dela. As propriedades dos Pembroke, em especial, tinham sido dadas a ela no início, e ela não gostara nada de abrir mão delas em favor de Jasper. Tendo tido pouco quando jovem e sendo filha de um homem que vivia endividado, ela dedicava aos seus bens algo parecido com um fanatismo. Ainda assim, a causa lancastriana precisava de homens como os Tudor. Tudo o que eles tinham de bom vinha de Henrique, benfeitor e meio-irmão deles, e por isso ela não demonstrava abertamente o ressentimento com relação às propriedades dos Pembroke, mas recebia bem os Tudor sempre que eles iam à corte. Mostrava interesse pelas atividades deles, e agora se regozijava com Henrique pela sorte deles.
- Espero que tudo corra bem com Margaret - disse Henrique. - Na verdade, ela mesma não passa de uma criança.
- Vai correr tudo bem - disse Margaret, frívola. Na sua opinião, as dificuldades dos outros eram sempre insignificantes.
- Pedi que mandassem notícias do nascimento assim que ele acontecesse - disse Henrique.
- Bem, vamos esperar mensageiros do País de Gales com a boa nova.
Num dia encoberto de novembro os mensageiros chegaram. Estava evidente que não levavam boas notícias.
Quando Henrique soube da sua chegada, ficou muito apreensivo. Ainda não estava na hora do nascimento, porque ele entendera que seria em janeiro.
Owen Tudor viera pessoalmente. Era, mesmo, uma notícia desagradável.
- Meu caro Owen - bradou o rei -, o que foi? Não se trata de Margaret? Eu temia que ela fosse criança demais.
- Margaret está doente de tanta dor, majestade. - Owen parecia incapaz de continuar.
- Meu querido Owen - começou o rei -, ela é jovem... Haverá mais.
Owen abanou a cabeça.
- É meu filho, seu meio-irmão... Edmund.
- Edmund? O que houve com Edmund?
- Ele morreu, majestade.
- Morreu? Edmund? Mas como...? Morto...? Assassinado?
- Não, majestade. Foi uma doença. Ela o atacou de repente e...
- Mas ele era tão jovem!
- Vinte e seis anos, majestade.
Owen se virou e se afastou. Estava se lembrando do dia em que Katherine lhe dissera que iria ter um filho e de como a alegria deles se misturara à apreensão que sentiam quando tinham conseguido que o relutante padre os casasse. Fazia muito tempo... vinte e seis anos... aqueles dias felizes para os quais ele tantas vezes voltava o pensamento. Ele se lembrava muito deles... da tranquilidade da vida em Hadham; da paz dos jardins... da felicidade da obscuridade. Que loucos eles tinham sido - que loucos idílicos, ao pensar que uma rainha alguma vez poderia ser deixada em paz.
- Meu caro Owen, que dor. vou rezar pela alma dele. Pobre Edmund. E pobre Margaret.
- A criança deve nascer dentro de dois meses.
- Sim, eu sei. Espero que isso não a prejudique em nada.
Jasper passou a tomar conta dela. É por isso que ele não veio aqui comigo. Ele a levou para o castelo de Pembroke. Vai ficar ao lado dela até a criança nascer.
Jasper é um bom homem.
. Ele era dedicado ao irmão. Nós somos uma família unida, majestade.
- Graças a Deus.
- Não há nada que possamos fazer agora, a não ser esperar o nascimento da criança.
- Volte para Pembroke, Owen. Transmita meus pêsames a Margaret. Diga que meus pensamentos estão com ela e que irei incluí-la em minhas orações.
- Eu sei que isso irá consolá-la.
Depois que Owen se retirou, Henrique pensou muito na triste menina que estava prestes a ser mãe. Citava o nome dela sempre que rezava, e como vivia rezando, isso significava que o citava com muita frequência.
Pobre menina, pensava ele. Mas Jasper é um homem bom. Vai tomar conta da criança, em homenagem ao irmão.
Em janeiro chegaram notícias de Pembroke.
Dessa vez, eram boas. Margaret dera à luz um menino, sem problemas.
Owen chegou pouco depois que os mensageiros tinham levado a notícia, e Henrique o recebeu de braços abertos e o abraçou calorosamente.
- Então você é avô, hein, Owen?
- com muito orgulho - disse Owen.
- E a melhor notícia. Margaret se saiu perfeitamente, apesar da pouca idade e do terrível choque que sofreu.
- E a criança é um belo menino saudável.
- Deus o enviou para consolá-la.
- Ela está feliz com o filho, e ficou muito emocionada com sua preocupação com ela. Transmiti a ela todas as suas mensagens carinhosas e estou certo de que serviram de grande ajuda. Ela queria um único nome para o filho. É Henrique.
Henrique riu.
- Então ele terá o meu nome. Que Deus abençoe o pequeno Henrique Tudor.
Desde a comemoração do Dia do Amor, Margaret andava muito inquieta. Analisando sua situação naquele momento e consultando seus adeptos mais chegados, aqueles nobres que ela considerava como líderes do partido da corte como os jovens Somerset, Egremont, Clifford, Northumberland, Exeter e Rivers, ela chegara à conclusão de que Warwick era um inimigo ainda maior do que York.
Havia uma certa aura carismática em torno de Richard Neville, conde de Warwick. Ele era o tipo de homem que a natureza parecia ter destinado a representar um importante papel nos negócios de uma nação. Quem era ele? Em primeiro lugar, filho do conde de Salisbury, e não teria tido muita importância enquanto o pai vivesse. Mas o que iria ele fazer, a não ser casar-se com Anne Beauchamp, filha do conde de Warwick? No entanto, na época do casamento duas vidas se achavam entre ele e a posse do título de Warwick e das vastas propriedades que a ele correspondiam. A natureza removera convenientemente aqueles obstáculos e com a morte do conde, Richard Neville assumira o título.
Ele não tinha apenas sorte. Tinha não só força, crueldade, amor pela aventura; era um homem de dar forma aos negócios. Margaret lamentava o fato de ele ter-se aliado ao York em vez de ter ficado com seu rei.
Desde que assumira o governo de Calais, ele se tornara uma ameaça para os franceses; e enquanto estivesse de posse de Calais, isso seria de grande vantagem para York.
Margaret estava zangada. Quisera que o jovem Somerset ficasse com Calais. Implorara a Henrique para que a desse a ele, mas Henrique, naquela sua nova energia, estava se recusando teimosamente a atender os desejos dela.
- Não daria certo, Margaret - dizia ele. - O povo gosta de Warwick. No sudeste do país, eles o consideram um herói.
- Ele não passa de um pirata. Ele nos desmoraliza perante os franceses.
Minha querida, os franceses não são exatamente amigos nossos, são? Eu sei que eles são seus compatriotas e que você os adora, o que é natural. Eu não esperaria que fosse o contrário. Mas você tem de se lembrar de que agora você é uma inglesa e que é com os nossos sucessos que tem de se regozijar.
- com os de Warwick? com os do nosso inimigo?
- Mas ele é um de nossos grandes condes. Ele caminhou com Exeter na procissão. Havia amizade entre nós.
Do que adiantava conversar com Henrique? Haveria quem dissesse que os franceses estavam agindo como corsários no canal e que Warwick estava apenas retaliando. Poderia ser salientado que nos últimos anos o alto-mar tornara-se lucrativo para os piratas e que Warwick estava tirando sua parte e não deixando todos os frutos para os franceses. Margaret não queria saber disso. Ela odiava Warwick - mais ainda do que odiava York, e queria Calais para Somerset. Queria ter a certeza de que aquela importante cidade não ficasse nas mãos de seus inimigos.
Surgiu uma oportunidade que ela aproveitou, ansiosa. Não era uma característica de Margaret analisar as vantagens e as desvantagens de uma situação. Ficava otimista quando lhe ocorria uma ideia e impaciente com quem quer que pudesse tentar salientar falhas nos planos que fazia.
Warwick fora longe demais em sua proeza mais recente. Ele interceptara navios transportando carga vinda de Líibeck. Era uma coisa muito diferente interceptar navios vindos da França, com a qual o país estava em termos de guerra havia muito tempo, mas existia um acordo entre Liibeck e a Inglaterra que fora selado fazia apenas dois anos. Interceptar e roubar aqueles navios representava, portanto, uma flagrante violação daquele tratado.
Margaret reuniu imediatamente seus amigos e providenciou para que Henrique não estivesse presente nem soubesse coisa alguma sobre a reunião.
- Isso é ultrajante - bradou ela, os olhos faiscando e brilhando de triunfo. - Mas põe Warwick em nossas mãos. vou convocar um conselho que será presidido pelo senhor, Sr. Rivers, e outros que vamos nomear, e o conde de Warwick será intimado a pedir demissão do cargo. Como o posto será oferecido ao senhor, Sr. Somerset, seria bom o senhor não comparecer à primeira reunião do Conselho. Isso será o fim do poder de Warwick em Calais.
Foi fácil fazer com que o Conselho concordasse, porque eram todos membros do partido da corte, todos adeptos de Lancaster, todos contra York, e com grande satisfação Margaret enviou uma embaixada a Calais, comunicando a Warwick que ele deveria resignar ao cargo naquele momento, já que fora decidido por unanimidade que em vista do caso Lúbeck ele não tinha mais capacidade de exercê-lo.
A resposta de Warwick foi aquela que deveria ter sido esperada.
- Foi o Parlamento que me nomeou. É evidente que não vou resignar, a menos que por uma ordem do Parlamento. Não levo em consideração conselhos internos aos quais falta a autoridade parlamentar.
Margaret espumou de raiva. Ela sabia que o Parlamento não concordaria em obrigá-lo a demitir-se. Seus membros pensavam no efeito que a demissão dele teria sobre o povo de Londres e do sudeste, que ficara rico enquanto ele era governador de Calais. Disseram que ele tornara o canal seguro para os navios ingleses; eles gostavam do seu bucaneiro. Gostavam de pensar que ele espalhava o terror entre os velhos inimigos, os franceses; o butim que ele capturava era enviado para a Inglaterra, e isso estava enriquecendo o país.
Somerset nada fizera que o recomendasse, a não ser cair nas graças da rainha, e isso depunha contra ele na opinião de muita gente.
Uma vez mais, Warwick zombara dela. Mas ela viu um lampejo de esperança.
Warwick estava indo a Londres - sem dúvida para fazer um discurso bombástico no Parlamento e dizer aos seus membros que ele era o melhor homem para Calais e, se eles quisessem ver a Inglaterra triunfante na França outra vez, precisavam de homens como ele.
Margaret não queria ver a verdade que havia nisso. Mas Warwick era um inimigo, e ela queria destruí-lo.
Não era impossível. Ela ficou pensando em quem poderia confiar- Tinha de parecer uma coisa natural, é claro. Havia discussões contínuas entre portadores de rosas vermelhas e de rosas brancas, que muitas vezes acabavam em derramamento de sangue. Uma briga entre eles não pareceria ter nenhum significado especial, mas se uma briga daquelas ocorresse num determinado lugar e Warwick estivesse lá e fosse abatido... seria difícil atribuir a culpa a alguém, muito menos à rainha.
Warwick estaria em Westminster. Ele estava indo explicar ao Conselho a situação em Calais; dizer a eles que ele era um sujeito excelente, é claro, pensou Margaret. Pois bem, enquanto ele estivesse em Westminster Hall deveria haver uma discussão entre os membros da comitiva de Warwick e os da casa real. Warwick deveria ser levado às pressas da sala do conselho, e haveria homens esperando por ele. Deveriam cair sobre ele, matá-lo e depois misturar-se no tumulto geral.
Para Margaret, parecia relativamente simples. com Warwick fora do caminho, York teria perdido seu amigo mais poderoso. York sem Warwick era muito menos ameaçador do que parecia no momento, Warwick tinha o apoio do sudeste do país e estava se tornando conhecido como um herói, um daqueles homens que entravam numa batalha levando a certeza da vitória como se fosse uma bandeira.
O dia foi marcado. Margaret esperava, numa atmosfera de tensão cada vez maior, pela chegada da notícia da morte de seu inimigo.
Warwick chegou a Westminster Hall com sua comitiva exibindo com grande destaque sua insígnia do Galho Nodoso e era reconhecido em todo o país e aplaudido sempre que avistado.
Ele deixou seus homens no saguão enquanto entrava na sala do conselho. Não estivera lá mais de cinco ou seis minutos quando estourou a briga no saguão. Um dos homens do rei dera um empurrão num portador do Galho Nodoso, resmungando observações depreciativas contra Warwick.
Os homens de Warwick agrediram o homem do rei, que imediatamente puxara de uma adaga. Era o sinal. Os empregados reais estavam preparados a fazer o que a rainha mandara, e numa questão de segundos a briga começara. Os homens de Warwick foram tomados de surpresa. Embora estivessem preparados para insultos, não haviam pensado que a coisa seria tão séria quanto estava se mostrando. Eles se lançaram contra os assaltantes, gritando: "A Warwick! A Warwick!"
Warwick, ouvindo o tumulto, saiu correndo da sala do conselho, tal como Margaret previra que faria.
Aquilo foi o sinal. Aqueles que estavam preparados para matálo avançaram. Mas ele foi rápido demais para eles e enquanto aparava o golpe foi cercado pelos seus homens, porque eles tinham percebido quase que de imediato que não se tratava de uma briga comum. Aquilo era uma tentativa de assassinar o líder deles. Iriam defendê-lo à custa da própria vida, e foi o que passaram a fazer.
Warwick, aventureiro audaz que era, viu logo que se encontrava numa situação muito perigosa. Seus homens estavam inferiorizados em número, e a finalidade daquele tumulto era matá-lo. Sua única esperança era fugir. Seus homens, bem treinados, perceberam imediatamente a situação. Abriram um caminho à força por entre os homens do rei, e Warwick correu por ele. Vários de seus homens protegeram-no enquanto ele, com poucos amigos, saía do saguão.
Não havia um só momento a perder. Nem mesmo os galantes homens do Galho Nodoso poderiam deter os lancastrianos indefinidamente. As barcaças de Warwick estavam à beira do rio e ele - e alguns amigos - correu para elas e estavam seguindo rio acima quando seus perseguidores, ganindo de raiva frustrada, desceram correndo até a margem do rio.
- Temos de seguir para Sandwich a toda velocidade - disse o conde. - vou voltar imediatamente para Calais. Estou vendo que aqui não estou em segurança. A rainha decidiu me matar.
Antes de atravessar o canal, porém, ele enviou mensageiros a seu pai, Salisbury, e a seu tio por afinidade, o duque de York, contando-lhes sobre a tentativa de assassinato e dizendo que acreditava que a rainha era a responsável.
Warwick também enviou mensagens ao Conselho que ele fora obrigado a abandonar com tanta pressa.
O Parlamento o nomeara para Calais, disse ele. Não abriria mão dela. Preferia abandonar suas propriedades na Inglaterra.
Margaret ficou frustrada. Sua trama falhara; talvez tivesse sido malfeita, não tivesse sido planejada como devia; e agora Warwick sabia que houvera uma trama para assassiná-lo e desconfiaria que a rainha estava por trás dela.
Chegaram cartas a Calais enviadas por Salisbury e York dizendo a Warwick que a rainha estava se preparando para atacar. Eles acreditavam que a trama para assassinar Warwick era o primeiro passo da campanha dela. Muito em breve eles entrariam em conibate, porque York descobrira que Margaret acreditava que o rei era popular o bastante para atrair o povo para sua causa.
Warwick tinha de voltar para a Inglaterra. Precisavam dele.
Warwick pensou no caso. Henrique era um inútil no papel de rei; Margaret, cada vez mais, se tornava o verdadeiro governante. Isso seria um desastre para a Inglaterra... e para Warwick.
Eram homens como Warwick que faziam reis, e este decidira que York era o homem que devia ser rei... York, orientado por Warwick.
Ele tinha de deixar Calais. Levaria consigo seus homens treinados do Galho Nodoso, para buscar a vitória na guerra contra os lancastrianos.
Warwick atravessou a Inglaterra de Sandwich a Londres a cavalo, ao estilo de um rei. Por toda parte o povo de Kent saiu às ruas para ovacioná-lo. Chamavam-no de Capitão de Calais e ele os fazia lembrar de antigamente, quando a Inglaterra tinha reis dignos de governá-los, quando a vitória era a ordem do dia. Warwick era um tipo assim.
Ele sabia. Ele se deleitava com aquilo. Pensava: quando chegar a hora, vou fazer de York um rei.
Seus capitães eram chefiados por Andrew Trollope e John Blount - dois dos melhores soldados que se podia querer encontrar e que ele acreditava que iriam servi-lo bem, mas eles tinham dado a entender, com o máximo de firmeza, que não pegariam em armas contra o rei.
Ele salientara que aquilo não era um conflito com o rei. Tratava-se de uma batalha entre certos nobres. Henrique era o rei todos aceitavam isso. Mas a rainha escolhia os ministros dele, a rainha trabalhava com os franceses contra os ingleses. O que eles tinham de fazer era evitar aquilo, formar um conselho de ministros que garantisse que os melhores homens governariam e que a rainha não pudesse prosseguir no seu trabalho traiçoeiro. Todos os capitães entenderam esse detalhe e sentiam-se orgulhosos ao atravessar o interior exibindo o brasão do RAGGED STAFF.
Mesmo assim, o povo não aderiu em massa a marchar sob sua bandeira. Ele já estava farto de guerras. Não queria mais outra, muito menos uma guerra civil. Paz, era o que ele queria, paz e prosperidade.
Sentindo o estado de espírito dos londrinos, Warwick contornou a cidade e seguiu para sua terra, Warwick. Ali, ouviu uma triste história. Tinha havido ataques-relâmpagos por parte dos lancastrianos. Pelo país inteiro, as pessoas estavam tomando partido, e como um conhecido partidário de seu tio por afinidade, York, suas terras eram consideradas presa fácil pelos lancastrianos.
Ele ficou convencido de que estava na hora de marchar contra a rainha e decidiu seguir de imediato para Ludlow, onde se juntaria a York.
Seu pai, o conde de Salisbury, estava, naquele ínterim, a caminho de Ludlow, e com ele seguiam seus dois filhos, Sir John e Thomas Neville. Enquanto se aproximavam de Blore Heath, ficaram consternados ao ver ao longe uma força armada avançando em sua direção. Era tarde demais para recuar. Eles tinham sido avistados, e dentro de muito pouco tempo ficou claro que estavam prestes a enfrentar lancastrianos em marcha.
Salisbury se achava numa enorme inferioridade numérica.
Vamos derrotá-los, não se preocupe - disse John Neville.
Um de nós vale tanto quanto três deles.
Era o velho brado daqueles que entravam em combate em grande desvantagem. Salisbury não gostou. Mas não restava alternativa. Tinham de ficar ali e lutar.
A batalha foi rápida e sangrenta. Homens morriam por todo canto. Os iorquistas lutaram com tamanha violência que conseguiram resistir a um número muito superior até o anoitecer, e então a confusão foi tanta que Salisbury e aqueles de seus homens que tinham sobrevivido ao embate conseguiram fugir, o que acharam ser a coisa mais sensata a fazer. Foi com grande pesar que Salisbury soube que seus dois filhos tinham sido capturados. Eles tinham sido ousados demais, ao que parecia, ao perseguir os inimigos.
As fortunas da guerra, pensou Salisbury, triste; mas pelo menos ele escapara para continuar seguindo para Ludlow.
Ele levaria a notícia de que o país estava acordando e tomando partido.
Warwick chegou a Ludlow pouco depois do pai. Ele também encontrara uma força hostil, chefiada pelo duque de Somerset, mas Warwick, percebendo que eles poderiam ficar em enorme desvantagem numérica se parassem para lutar, e estando certo de que poderia ser mais útil à causa vivo, deu a ordem para fugirem como pudessem e, assim, eles evitaram um confronto.
Foi desconcertante saber que seu pai tivera uma aventura semelhante e que seus dois irmãos, John e Thomas, estavam em mãos do inimigo.
York o saudou com o máximo de entusiasmo, e Cecily os colocou à vontade. Ela sabia que Warwick era a estrela mais brilhante do partido iorquista, porque sua reputação desde que ele fora para Calais aumentara bastante. Ele era tido como o homem mais notável do país. Cecily tomava nota de coisas assim.
O filho mais velho de York, Eduardo, conde de March, era fascinado por Warwick e sentia-se nitidamente orgulhoso dos laços de parentesco. Para o jovem Eduardo parecia que Warwick corporificava todas as virtudes da masculinidade. Eduardo estava, agora, com dezassete anos, e era até mais bonito do que quando menino; já passara de um metro e oitenta, e continuava a crescer. Era forte, cheio de vigor e decidido a obter sucesso, e Warwick gostava tanto de sua aparência quanto Eduardo gostava de Warwick. Seu irmão Edmund, conde de Rutland, um ano mais novo, não tinha a extraordinária beleza e a disposição de Eduardo, mas mesmo assim era um belo rapaz. York devia sentir orgulho deles - e isso era evidente.
O jovem Eduardo comparecia às conferências deles. Era plenamente a favor de um ataque. Ousado, é claro, pensou Warwick, mas ele mesmo era um pouco assim. Estava começando a pensar que aquele jovem Eduardo poderia ter qualidades de liderança que faltavam a seu pai. Warwick refletiu que o duque de York podia ter sido rei depois da batalha de St. Albans, mas não conseguia vencer seus escrúpulos. Talvez aquilo indicasse uma natureza boa e justa, mas havia momentos em que os reis não podiam dar-se a esses luxos.
Warwick se sentia satisfeito por York ter um filho, porque se York morresse em combate haveria alguém realmente muito digno para ocupar seu lugar.
Foi desconcertante descobrir que a rainha reunira um exército numeroso. Até mesmo Warwick ficou desanimado ao ver de quanto seria a inferioridade numérica deles.
O jovem Eduardo se jactava e dizia que gostava que houvesse tão poucos deles contra o inimigo. Ele estava tentando ser outro Henrique V Ora, era um bom sinal.
Além do mais, Margaret enviou mensageiros ao acampamento iorquista para dizer aos soldados que se qualquer um deles depusesse as armas seria perdoado. Isso deixou York muito angustiado, porque ele sabia que seus seguidores, embora deplorassem a situação do país e soubessem que ela era resultado de um mau governo, não conseguiam livrar-se da crença de que estavam lutando contra o rei. Era impressionante como Henrique conseguira conquistar-lhes a fidelidade. Consideravam-no um santo; sabiam de seu amor pela oração e pela erudição. Se ao menos tivesse tido a força para governar, se ao menos não tivesse sido o instrumento de uma feroz francesa que não tinha senso e não estava acima de um ato ou dois de traição, eles nunca teriam pensado em ir contra o rei. Não eram contra ele, insistiam. Mas sim contra a rainha e seus assessores. Se ela tornasse a nomear York Protetor e Warwick fosse deixado para proteger Calais para eles, todos ficariam contentes.
Mas a rainha era teimosa; preferia lutar a aceitar York.
- Uma vez mais - disse York -, vou mandar uma mensagem ao rei, como fiz antes da batalha de St. Albans. Informarei a ele que somos seus súditos leais, mas que há alguns problemas que precisam ser corrigidos.
O exército lancastriano estava diante de Ludlow; tinha acampado ao sul da cidade, nos campos banhados pelo rio Teme. Margaret estava animada. Sabia que o povo permaneceria leal ao rei. Ela contava com homens e armas, mas o seu maior trunfo era o próprio Henrique.
Embora ele odiasse tanto um combate, ela insistira em que ele acompanhasse o exército. Ele ficara tão relutante, que ela trabalhara incansavelmente, salientando que ele seria chamado de covarde, que estaria falhando no cumprimento do dever se não cavalgasse com o exército e enfrentasse os traidores York, Warwick e Salisbury.
Ela cavalgava pelo acampamento acompanhada pelo rei. Era preciso fazer com que chegasse ao castelo de Ludlow a notícia de que o rei estava com eles. Todo soldado iorquista deveria saber que estava lutando contra seu rei.
Uma vez mais, ela enviou mensagens endereçadas a todos os capitães do campo inimigo. "O rei está aqui, diante de Ludlow. Se vocês lutarem contra o exército dele, estarão lutando contra ele. Façam uma pausa para pensar no que isso significa. Vocês serão traidores do seu rei. Venham para o nosso lado e haverá perdão para todos."
Aquilo foi inteligente.
Margaret ficou quase louca de alegria quando o capitão Trollope, chefiando uma companhia dos melhores soldados de Warwick vindos de Calais, juntou-se ao exército lancastriano.
- Jamais pegarei em armas contra meu rei - declarou Trollope.
Margaret recebeu-o calorosamente. Ele deveria ter um comando em seus exércitos. Ela agora estava certa da vitória.
Havia tristeza no castelo de Ludlow. A derrota estava diante dele. Até Warwick admitiu isso.
- Eu teria apostado minha vida em Trollope - disse ele. E não é só ele. Ele levou alguns de meus melhores homens. Agora estão lutando em favor de Margaret, não dos lancastrianos. Acontece que eles não querem lutar contra o rei. Todos são homens de bem. Se o rei não estivesse lá...
- Mas está - disse Salisbury -, e o que faremos? Temos um punhado de homens contra um exército treinado. Seremos dominados em uma hora.
Warwick confirmou com a cabeça.
- Trollope conhece nossos planos e nossa força. Seria uma loucura ficarmos aqui e sermos aniquilados ou, o que seria pior, feitos prisioneiros. Até onde posso ver, só há uma saída para nós. E é fugir, se quisermos viver para lutar num outro dia. Fomos vítimas de deserção. Estávamos inferiorizados numericamente antes. A rainha reagiu depressa demais para nós. Acho que só nos resta a fuga. Assim que a noite cair, partiremos logo.
York estava pensativo. Ele refletia sobre sua família. Salisbury compreendeu a situação.
- Lamento, mas não há outro jeito - disse ele. - Você terá de deixar Cecily aqui com os filhos mais moços.
- Deixá-los...!
- Se você quiser viver, sim - disse Warwick.
Ele achava que York não tinha os requisitos de um grande líder. Estava pensando na mulher e nos filhos pequenos, quando deveria estar pensando em sobrevivência, para viver e lutar outro dia.
- March e Rutland podem vir conosco - disse Salisbury.
- Não há tempo a perder - acrescentou Warwick. - Assim que cair a noite, temos de fugir daqui.
York percebeu logo que Warwick estava certo, e foi fácil explicar a Cecily, porque ela também entendeu a situação.
Warwick é inteligente-disse ela.-Você tem de ir... você, Eduardo e Edmund. Os pequenos estarão a salvo comigo. Sei que Henrique não deixará que nos façam mal.
- Eu não confiaria em Margaret.
- Ela não vai ter tempo de pensar em mim. Que Deus o acompanhe.
- vou manter você informada e nós voltaremos.
- Claro que voltarão, e quando isso acontecer, estou certa de que serão os vitoriosos.
Cecily era uma mulher forte; teria condições de cuidar de si mesma e dos filhos que ele estava deixando lá.
A escuridão começava a cair. Não havia um só momento a perder. Ele convocou seus capitães e disse-lhes que não havia possibilidade de resistirem ao poderoso exército lancastriano que estava reunido para enfrentá-los. Os soldados deveriam fugir e dispersar-se. Eles não correriam perigo. Eles só queriam os líderes.
York, Warwick e Salisbury, com os jovens condes de March e Rutland, saíram de Ludlow sem chamar atenção. Cavalgaram noite adentro, seguindo em direção ao País de Gales. Lá, decidiram desfazer o grupo e, como York ainda tinha ligações na Irlanda, iria para lá e ficaria até que pudesse fazer planos para a volta. Ele levaria Rutland junto.
Os outros voltariam para Calais. Eduardo estava muito ansioso por ficar com Warwick. Assim, ele, Salisbury e Warwick seguiram para a costa de Devon, onde esperavam encontrar um navio que os levasse para o outro lado do canal. Teria sido perigoso demais tentar partir de Sandwich ou de qualquer um dos portos do sudeste, pois sem dúvida os inimigos estariam à espera dele, imaginando que Warwick tentaria voltar para Calais.
Eduardo gostou muito da aventura. Sua ligação com Warwick aumentava a cada hora que passava. Warwick era um herói. Era muito habilidoso, muito forte, tudo o que o próprio Eduardo gostaria de ser.
Houve certos momentos alarmantes durante a viagem.
Warwick estava certo de que Margaret devia ter enviado avisos a todos os amigos dela no interior dizendo que ficassem alertas quanto à presença dos fugitivos. E se em algum momento ela tivesse York, Warwick e Salisbury nas mãos, não perderia tempo para livrar-se deles. Seria morte na certa.
Warwick estava alerta. Em uma ou duas ocasiões, ele esteve certo de que eles seriam capturados, mas finalmente acabaram chegando a Dynham Manor, que pertencia a John Dynham, um iorquista de confiança.
Foi um grande alívio dormir numa cama; sentar-se a uma mesa e comer boa comida e sentir-se relativamente seguro, mas estava claro que eles não poderiam demorar-se. Estava perto do mar, e quanto mais cedo deixassem a Inglaterra, melhor para eles. A travessia representava uma longa viagem, mas eles estariam mais seguros lá do que ficando onde poderiam ser descobertos a qualquer momento. Guernsey pertencia a Warwick, como feudo da Coroa, de modo que ele poderia seguir para Guernsey primeiro e de lá descobrir o que estava acontecendo em Calais e se seria seguro voltar para lá.
John Dynham era um iorquista ardoroso. Faria o possível para que partissem depressa. Correndo um grande risco, contratou um barco e um grupo de pescadores para levá-los até Guernsey. Enquanto isso, a mulher dele os manteve escondidos.
Assim que foi possível, eles seguiram para Guernsey, mas não tinham avançado muito quando desabou uma tempestade. Os pescadores ficaram desesperados.
Warwick berrou com eles para que parassem de tremer e cuidassem de seus deveres.
- Levem o barco até Guernsey - bradou ele. - O dever de vocês é este.
- Mestre - disse o porta-voz deles -, nós somos apenas uns pobres pescadores. Temos pouca experiência com barcos como este. Nunca estivemos perto de Guernsey na vida.
Warwick olhou para a expressão consternada daqueles que o cercavam e bradou:
- Por Deus, eu cheguei até este ponto para me perder no mar?
Ele então agarrou a cana do leme e estabeleceu o curso em direção oeste. Conduziu o barco através da tempestade, e eles chegaram a Guernsey em segurança.
Eduardo, observando, pensou: Warwick é um herói. Serei exatamente como ele.
Em Guernsey, eles ficaram sabendo que Calais continuara leal a Warwick e puseram-se ao mar imediatamente. Quando chegaram, Warwick foi recebido com aclamação. O povo estava totalmente com ele; mas ele sentia a angústia deles.
Ele explicou isso a Eduardo. Passara a gostar de Eduardo. Estava certo de que ali poderia estar um futuro rei. Se York não estivesse apto a ocupar o trono, aquele filho dele estaria. Warwick queria criá-lo à sua imagem. Faria dele um rei, o que o próprio Warwick queria ser - em tudo, menos no nome. Havia um detalhe no seu caráter que o fazia preferir o papel de manipulador. Desde que os bonecos agissem à sua maneira, aquele era o papel a representar. Além do mais, ele praticamente não podia reivindicar o trono para si próprio, e era essencial que quem o fizesse tivesse aquele direito.
York o tinha. O mesmo acontecia com o jovem Eduardo.
Warwick era absoluto. Eduardo percebia isso claramente. Ali estava ele fugindo dos inimigos, sem nada que lhe restasse a não ser o cargo de governador de Calais que, sem dúvida, lhe seria tirado em questão de semanas, e no entanto ele estava lépido e ainda autoconfiante. Havia nele algo de indestrutível.
Eduardo queria ser exatamente igual.
Warwick admitiu que eles tinham sofrido uma derrota. A guerra era assim. Um dia, perdia-se; no outro, ganhava-se. Era a batalha final que importava. E ela chegaria. Eles agora começariam a planejar a volta e Eduardo veria como aquilo era feito. Aprenderia as táticas que deviam ser adotadas. E como lidar com as emoções das pessoas.
Não havia dúvida de que Warwick sabia fazer isso. Bastava ele aparecer para ser ovacionado e idolatrado. Eduardo o ouvia falando com seus homens.
- Sim, nós perdemos essa batalha. Temporariamente, estamos fugindo. Mas vejam bem, amigos, temos este porto de Calais. Ele é o mais importante da Europa. Eles vão tentar tirá-lo de mim, mas permitiremos isso? Não, isso não.
Os cidadãos de Calais juraram ficar ao lado de Warwick. Emprestaram-lhe o dinheiro de que ele precisava para seu exército. Depositavam sua fé nele, e não num governo fraco da Inglaterra chefiado pela rainha.
Como ele esperara, a rainha nomeou imediatamente o duque de Somerset capitão de Calais.
- Ele pode vir - disse Warwick -, mas eu lhes prometo que não vai desembarcar em Calais.
Eduardo observava com uma agitação cada vez maior. Ele praticamente não podia se afastar do lado de Warwick.
Quando a frota de Somerset apareceu diante de Calais, Warwick deu a ordem para disparar o canhoneio. Somerset, furioso, não podia voltar para a Inglaterra, mas sabia que seria loucura tentar desembarcar. Portanto, desviou-se para um dos lados e desceu mais adiante na costa, em Guisnes, onde subornou o zelador do castelo e seus homens para permitir que ele o ocupasse.
Ele trouxera uma grande companhia, mas os navios em que os soldados estavam eram tripulados por marinheiros de Kent. Os homens de Kent sempre tiveram uma grande admiração por Warwick. Ele era o herói deles. Disseram que os ventos estavam desviando os navios de sua rota. Os mesmos ventos levaram-nos para dentro do porto de Calais.
Eduardo riu muito quando eles chegaram. Warwick foi saudálos, a armadura brilhando, parecendo o herói da lenda.
Houve festividades para aqueles homens, mas os soldados que eles tinham levado com eles tiveram uma recepção diferente. Muitos tinham sido, em determinada fase, adeptos de Warwick sob o comando de Trollope e tinham desertado em favor dos lancastrianos em Ludlow.
Eles foram despachados para as masmorras.
Sempre mostre força - disse ele a Eduardo. - Esses homens desertaram. Os demais são fiéis ao rei. Eduardo ouvia com avidez, enquanto Warwick se dirigia a eles Ele deu aos fiéis homens do rei uma opção. Ele os receberia de bom grado a seu serviço, mas só se eles mesmos quisessem. Podiam falar com toda sinceridade. Não precisavam ter medo disso. Sinceridade era uma qualidade que ele respeitava. Só os traidores é que sofreriam em suas mãos.
Muitos ficaram cativados por ele. Eduardo percebia, cada vez mais, a cada dia que passava, que era esse o efeito que Warwick exercia sobre os homens. . . fileiras de suas tropas aumentaram de forma considerável. Mesmo assim, muitos dos soldados declararam que eram servidores do rei e queriam servir apenas sob as ordens dele.
- Muito bem - disse Warwick. - Vocês são soldados leais. Serão mandados de volta para a Inglaterra.
Ele era justo; um exemplo brilhante. Eduardo não era o único que achava que ele parecia um deus.
Depois de ter ordenado que aqueles que haviam desertado de suas fileiras fossem executados, ele mandou uma mensagem irónica ao duque de Somerset, que estava irritado
em Guisnes.
"Devo agradecer-lhe, senhor duque, por seus mui excelentes mantimentos. Achei-os muitíssimo úteis à minha causa.
Não, uma derrota não podia ser o fim de um homem como Warwick. A rosa vermelha triunfara apenas temporariamente sobre a branca.
Warwick estava olhando para o futuro. A vida era um jogo emocionante, e o melhor de tudo era fazer reis. Ele perdera a
confiança no duque de York, mas não no filho mais velho de York Eduardo, conde de March, tinha as qualidades de um rei. Aquela loura aparência masculina era Plantageneta autêntica. O menino estava se desenvolvendo bem. Atingira um metro e noventa. Num grupo, ele ficava acima dos demais. Os olhos das mulheres seguiam-no. Se fosse um homem ajuizado, seria um rei de verdade.
Ele passou a fazer do jovem March seu confidente. Explicava seus atos quando era prudente fazê-lo. Não disse que ele estava superando o pai na mente de Warwick. Que ele, Warwick, decidira criar um modelo diferente; prender seus cordões em um novo fantoche.
Eduardo não tinha nada de matéria-prima para um fantoche. Ele seria um homem forte, com vontade própria - e tanto melhor que assim fosse. Warwick queria fazer com que a mente dele funcionasse na direção certa.
Havia promessas no ar. Cada pequena circunstância deveria ser aproveitada; e se o desastre em Ludlow o ajudara a saber um pouco mais sobre o duque de York e incliná-lo ligeiramente para longe dele, tanto melhor.
Ele não apoiaria tanto York quanto apoiaria a reforma do Parlamento. Uma coisa era certa: Henrique precisava de orientação; o governo da rainha - e era isso que o país estava tendo, mesmo - era desastroso. Margaret jamais compreenderia o povo inglês. Ela não fazia ideia de que se quisesse governar teria de obter o consentimento dele. Ela precisava ter o respeito e a aprovação do povo. Os cidadãos podiam ser súditos, mas por natureza escolhiam seu governante. Se não gostassem daquele que a providência lhes dera, eles o trocavam. Tinham feito isso antes e tornariam a fazê-lo.
Como Warwick fez ver a Eduardo, a escolha do momento certo era importante. Era a mais importante das coisas. Uma semana poderia significar sucesso; uma semana depois, derrota. Eles tinham sido dizimados; tinham fugido para Calais, mas veja como a sorte começava a sorrir para eles.
Seus adeptos estavam aumentando a cada dia. O grande duque de Borgonha sorria para eles. Na verdade, não se importava que houvesse ataques-relâmpagos aos navios do rei francês. Desde que Warwick não prejudicasse Borgonha, poderia fazer o que quisesse com a França. Borgonha via em Warwick um espírito afim. Achava divertida a maneira pela qual o conde, ao controlar o porto de Calais, dominava os mares.
- Temos de atacar em breve - disse Warwick a Eduardo.
O momento está ficando cada vez mais propício. Não devemos protelar demais, pois como eu lhe disse, tudo pode mudar entre um nascer e um pôr-do-sol. Sabe, temos notícias de Kent que dizem que Somerset está equipando navios em Sandwich para vir nos atacar, porque tenho meus amigos em Kent que me mantêm informado de todos os movimentos. Se fôssemos a Sandwich, poderíamos tomar a cidade facilmente. Meus amigos de Kent iriam aderir à bandeira do Galho Nodoso.
A chegada, numa noite de janeiro, da notícia de que Somerset estava pronto para partir foi interessante e aumentou o prestígio de Warwick. Ele não perdeu tempo. Mandou uma frota sua comandada por Sir John Wenlock e John Dynham para pegá-los de surpresa. Foi o que fizeram, capturando todos os navios que se achavam no porto e ao mesmo tempo desembarcando na cidade e prendendo lorde Rivers e Sir Anthony Woodville ainda na cama. Foi muito bom os habitantes da cidade unirem-se para ajudar Warwick - o que, disse ele, era o melhor de todos os indícios.
Quando chegaram a Calais, lorde Rivers e Anthony Woodville foram presos.
- Só é necessário executar homens que possam ser perigosos para você - explicou ele a Eduardo. - Matar esses dois não nos traria coisa alguma, a não ser a animosidade de suas famílias. Eles são muito fracos para nos prejudicar. É bom deixar que vivam. E se fugirem para tornar a servir à rainha, pouco importa. Eles fazem mais mal do que bem à causa dela.
Havia uma atividade permanente em Calais. À noite, os navios vindos da Inglaterra entravam no porto levando mantimentos e munições. Warwick ficou feliz em saber que os homens de Kent estavam esperando para aderir em massa à sua bandeira quando ele chegasse. O governo na Inglaterra se mostrava ser incompetente; a rainha estava impondo sua vontade aos ministros que ela escolhera e não compreendia os ingleses, e a cada dia conquistava mais um pouco da antipatia deles.
- Chegou a hora de consultar seu pai - disse Warwick. Temos de ir à Irlanda. Há assuntos a ser discutidos que não podem ser tratados por mensageiros.
- A frota inglesa não permitirá que cheguemos lá - disse Eduardo.
- Não é assim que eu espero ouvi-lo falar, senhor. Vamos chegar lá, apesar de qualquer frota que qualquer país possa colocar nos mares.
Eduardo disse que estava claro que chegariam. Mas achava que Exeter e Somerset fariam o possível para detê-los.
Eles partiram para a Irlanda e chegaram àquele país sem contratempos. O duque instalara-se na Irlanda. Era um administrador nato, e assim como os ingleses tinham lucrado com seu governo, o mesmo acontecera com os irlandeses. Eles reconheciam isso e mostravam seu agradecimento permitindo que ele governasse em paz.
Mas o coração do duque estava na Inglaterra. Ele queria notícias de Cecily e dos filhos mais novos. Disse que ele e Rutland estavam ansiosos por ir para casa e ficou encantado ao ver Eduardo crescendo e se transformando num belo espécime de homem e estava certo de que o filho não poderia ter um tutor melhor do que Warwick.
Durante oito semanas, eles debateram a situação; fizeram planos, trocaram ideias e decidiram-se quanto à estratégia. Warwick achou, então, que estava na hora de voltar para Calais, onde faria os preparativos finais.
Eduardo se despediu carinhosamente do pai e preparou-se para partir com Warwick.
- Agora não vai demorar - disse o duque. - Em breve estaremos todos juntos.
Eduardo se animou com a previsão de ver o pai como rei da Inglaterra. Sua mãe ficaria muito orgulhosa. Então ela poderia bancar a rainha de fato. Ele seria o herdeiro do trono, e isso era uma perspectiva estonteante. Rutland e os jovens George e Richard seriam príncipes. Eles ficariam muito animados com isso.
Enquanto isso, o reino tinha de ser conquistado. Eles tinham de expulsar aquela virago de Anjou de volta para seu país natal. Tinham de fazer com que o pobre Henrique entendesse que não estava em condições de usar a coroa.
Foi Eduardo quem primeiro avistou a frota de Exeter ao largo da costa de Devon. Haveria uma grande batalha agora, e
Warwick não estava equipado para um combate, mas não havia jeito.
- Hoje - bradou Warwick - vamos mostrar nosso valor.
Aqui estamos, uma pequena força, e diante de nós está a poderosa frota de Exeter. Não vamos esquivar-nos. Lutamos pelo direito e lembrem-se sempre de que ainda não fui derrotado e que um de nós vale dez deles. Isso iguala os números. Mas temos ousadia e engenhosidade, que eles desconhecem. Vamos, rapazes, sirvam-me bem e lhes prometo a vitória.
Parecia um milagre. Exeter estava se desviando e se afastando. Ele não iria lutar. Warwick soltou uma gargalhada. Ele imaginava o que tinha acontecido.
Os marinheiros, sem dúvida, eram de Kent ou do sudeste. Warwick era o ídolo deles. Eles se recusariam a lutar contra ele. Não apenas por afeto e admiração, mas porque acreditavam que ele possuía alguma qualidade divina, e lutar contra isso era como opor uma força mortal aos deuses.
Rindo de satisfação, Warwick entrou em segurança em Calais.
Durante os agitados preparativos em Calais, Francesco dei Coppini chegou à cidade.
Ele era um bispo italiano que fora enviado ostensivamente à Inglaterra por ordem do novo papa Pio II, mas, na verdade, não passava de um agente secreto do duque de Milão. Diziase que sua missão era levantar dinheiro para combater os turcos. Ele acreditara que como aquilo seria uma espécie de cruzada contra o infiel, o projeto contaria com a simpatia do rei da Inglaterra.
Mas, ao descobrir que um de seus objetivos era político e de certa maneira voltado contra a França, Margaret não quis recebêlo; além do mais, impediu que ele falasse com Henrique.
Warwick, que sabia o que acontecera, decidiu que como Coppini fora desfeiteado por Margaret, seria uma boa ideia cultivar sua amizade, dar importância a ele e, assim, dar à sua própria campanha um sabor religioso, como se tivesse sido aprovada pelo papa.
Warwick ficou um pouco impaciente com a conversa piedosa de seu hóspede, mas garantiu a ele que não tinha a intenção de derrubar Henrique; só queria reformar o governo, demitir os homens que estavam arruinando o país e conter as atividades da rainha. Quando Coppini viu a frota que Warwick reunira e ouviu sua eloquência, teve a certeza de que a expedição seria vitoriosa e, como Margaret não fora amável com ele, daria sua bênção à empreitada, e até mesmo seguiria com ela. E assim ele estava lá quando, sob a forte chuva de verão, Warwick desembarcou em Sandwich, onde foi recebido como um rei; pouco depois, ele estava marchando para Canterbury, onde parou apenas para fazer uma homenagem e pedir a bênção junto ao túmulo de St. Thomas Becket.
Então, ele começou a viagem para Londres.
Warwick jamais se esqueceu da importância do povo. Era nisso que ele era diferente de Margaret. Ela considerava a aprovação do povo um assunto sem importância, enquanto para Warwick ela era importantíssima. Londres recebeu-o de forma calorosa, e seu irmão George, que era o bispo de Exeter, adiantou-se para abraçá-lo e dar-lhe a bênção da Igreja. A força de Warwick crescera de tal maneira, enquanto ele atravessava a Inglaterra, que agora estava com quase quarenta mil homens.
Devia haver uma missa na catedral de St. Paul, à qual todos os líderes compareceriam, e no cruzeiro de St. Paul Warwick dirigiu-se à multidão.
- Nós temos sido chamados de traidores - bradou ele. Não somos traidores. Somos os vassalos do rei e viemos para declarar nossa inocência ao rei ou morrer no campo de batalha. Todos nós que estamos aqui juraremos sobre a cruz de St. Thomas de Canterbury que não estamos fazendo nada que possa conflitar com nosso compromisso com o rei.
A multidão manifestou sua aprovação.
- O rei! O rei! - E depois: - Abaixo a rainha!
Eles compreendiam. Não seriam governados por uma estrangeira. Eles queriam um bom governo, como o que York mostrara poder oferecer, mas sob o comando do rei. Eles queriam um fim para os favoritos de Margaret.
Coppini falou à multidão. O rei não devia continuar cego para as necessidades do país. Os iorquistas tinham o direito do lado deles. Devia haver um bom propósito. O rei tinha de ouvir o duque de York e os condes de Warwick e Salisbury. Eles vinham com argumentos bons e sensatos. Aqueles que os apoiavam receberiam perdões especiais por seus pecados. Os que estavam contra eles estavam desafiando a vontade de Deus.
Warwick percebeu que fora realmente uma jogada inteligente cair nas graças de Coppini. O povo era religioso e supersticioso, e Coppini, disse ele alegremente a Eduardo, valia mil homens.
Warwick enviou mais uma mensagem ao rei, enquanto se aproximava de Northampton. Enquanto isso, Coppini andou pela soldadesca salientando o fato de que se eles servissem ao grande conde de Warwick receberiam absolvição pelos seus pecados. Ele tinha pena dos lancastrianos. Eles estavam ameaçados de excomunhão.
O ânimo dos soldados estava elevado. Eles podiam servir ao seu herói terreno, Warwick, e ao mesmo tempo obter as boas graças do céu.
Num caso desses, a vitória devia ser certa.
As forças do rei tinham sido dispostas nos campos com a frente voltada para o lado oposto ao rio Nené; elas se achavam perto da abadia Delapré, ocupadas em cavar trincheiras e colocar os canhões em suas posições corretas.
O rei estava inquieto. Ele odiava a guerra. Mas se sentia satisfeito por Margaret não estar lá. Ela se instalara não muito longe, em Coventry, com o jovem Eduardo, mas pelos menos ficaria fora da batalha. Margaret o deixava alarmado; ela cavalgava com os soldados como se fosse um general. Se estivesse ali, estaria percorrendo o acampamento, conversando com os soldados em termos bombásticos, portando-se de uma maneira que não a tornava exatamente muito querida por eles. Mas ela jamais compreendeu isso. Achava que eles estavam ali porque era dever deles lutar pelo rei. Era, mas Henrique sempre entendera que eles precisavam respeitar e admirar o rei antes que se pudesse pedir-lhes que lutassem por ele.
Warwick, agora o guerreiro experiente e sempre alerta para aproveitar a vantagem, espalhou suas forças voltadas para o inimigo. Salisbury estava em Londres. York ainda não tinha chegado, de modo que ele nomeou Eduardo para liderar uma ala e Thomas Fauconberg a outra. Ele confiava plenamente em Fauconberg. Este era ligado a Warwick por laços de sangue, por ser bastardo de William Neville, parente de Warwick. Mesmo àquela altura, Warwick enviava mensagens às linhas do inimigo exortando-o a conversar em vez de lutar. Que o rei fosse falar com Warwick. Era tudo o que ele pedia, mas ele estava decidido a falar com o rei ou morrer.
Ele estava perfeitamente cônscio de que se aquela batalha acontecesse ele estaria lutando contra o rei e não queria nenhuma acusação de traição contra ele.
A batalha foi breve. A chuva começou a cair com força, e os canhões do rei ficaram inúteis. As instruções de Warwick eram sempre: "Ataquem os líderes e os lordes, deixem a plebe." Aquilo se mostrara sensato em outras ocasiões e o mesmo ocorreu naquela. Buckingham, Egremont e Shrewsbury jaziam mortos no campo.
Vitória para Warwick.
A primeira providência que Warwick tomou quando soube que a batalha estava ganha foi procurar o rei.
Henrique foi encontrado sentado passivamente em sua tenda. Não estava tão preocupado com o fato de ter perdido a batalha quanto com a quantidade de sangue que fora derramado.
Warwick, com March e o Bastardo de Fauconberg, puseram-se de joelhos e juraram vassalagem a ele. Queriam assegurá-lo de que ele ainda era o rei deles.
- Não parece que os senhores me consideram assim – disse Henrique, delicadamente - quando trazem uma força de armas contra mim.
- Majestade - disse Warwick -, contra Vossa Majestade, não. Jamais contra Vossa Majestade.
- Ser contra meus exércitos é ser contra mim.
- Majestade, tudo o que procuramos é justiça. O povo sabe disso. Dê-nos uma oportunidade de expor nosso ponto de vista ao Parlamento.
- Todo homem deve ter permissão para expor seu ponto de vista e assim será no meu reino, se minha vontade for feita.
Warwick não ficou decepcionado. Ali estava outro fantoche para o mestre manipular.
Por três dias, ele manteve Henrique em Northampton e depois o levou para Londres, tratando-o o tempo todo com o respeito devido ao cargo que ele exercia.
Eles desfilaram pelas ruas de Londres, Warwick seguindo à frente do rei com a cabeça descoberta e levando a espada do rei.
Estava tudo bem, dizia o povo. Warwick estava no comando, como todos sabiam que devia estar, e ao mesmo tempo era um súdito muito bom do rei. Era uma feliz solução conciliatória.
A rainha desaparecera. Alguns diziam que fugira para a Escócia. Já ia tarde, era o comentário geral. Agora o rei, ajudado por Warwick e pelo duque de York, poderia governar com sabedoria.
Henrique ficou em Eltham e depois foi para Greenwich. Enquanto esperava o Parlamento ser convocado, ele passava o tempo caçando para fazer exercício, lendo e ouvindo música. No íntimo, sentia-se muito contente por Margaret não estar ao seu lado. Ele a amava, é claro, como um homem devia amar sua esposa; era bonita e ansiosa pelo seu bem-estar - ele sabia disso tudo, mas gostaria que ela fosse um pouco menos dominadora. Desejava que o deixasse em paz para seguir seu próprio caminho. Era muito agradável quando tinha homens fortes para ajudá-lo a governar. Gostava muito de York, que, afinal de contas, era seu parente, e era verdade que ele descendia dos dois ramos da família, e um deles estava, de fato, mais perto da coroa do que o de Henrique.
Então York chegou à Inglaterra e pela primeira vez reivindicou o trono.
Isso provocou um certo tumulto, e muitos dos lordes ficaram indignados. Mas Henrique compreendia a base da argumentação. Ele sempre fora rei desde quando se lembrava e não conseguia imaginar qualquer outra coisa, e por estranho que parecesse, relutaria em abrir mão da coroa, por mais pesada que fosse. Por outro lado, York tinha direito a reivindicá-la...
Quando foi sugerido que ele deveria continuar a usar a coroa enquanto vivesse e depois deixá-la para York, ele concordou.
Margaret teria ficado furiosa. E o filho deles?, teria perguntado ela.
Pobre menino, seria mais feliz sem uma coroa. As coroas não eram uma garantia de felicidade, mas, isso sim, fonte de sofrimento e decepções.
Sim, ele concordaria que York assumisse o trono quando ele morresse. Aquela era a solução que poria um fim àqueles insensatos derramamentos de sangue.
Chegou a notícia de que Margaret, que fugira para o norte, reunira um exército e estava marchando para o sul.
O rei abanou a cabeça, triste. York, levando Rutland com ele, marchou para o norte a fim de enfrentar a rainha; e Warwick, com Eduardo, ficou em Londres, pretendendo passar o Natal com Henrique.
A COROA DE PAPEL
Quando Margaret soube da derrota em Northampton, rangeu os dentes de raiva. Se ao menos pudesse ter York em seu poder - e acima de tudo Warwick -, não hesitaria em cortar-lhes a cabeça. Era isso que ela ansiava por fazer, mais do que qualquer outra coisa.
Mas havia muita coisa a ser feita; ela não devia desperdiçar suas energias com fantasias infrutíferas do que faria com os inimigos. Ela tinha de pensar no filho. Eduardo estava com sete anos de idade. Ficara sempre sob os cuidados dela, e não deixaria que ele escapasse deles. Garantiria que ele não ficasse igual ao pai quando crescesse.
Houvera um momento em que ela perguntara a Somerset se seria possível depor Henrique e coroar seu filho. Somerset a aconselhara a não falar naquele assunto com ninguém mais. Aquilo poderia ser considerado um ato de traição.
Traição? Quando ela fazia uma sugestão razoável de que seu pobre e ineficiente marido - que de qualquer modo estava sujeito a ficar louco - devia afastar-se em favor de seu jovem e belo filho que um dia herdaria o trono?
Mas ela reconhecia o fato de que devia tomar cuidado, de modo que o assunto não fora adiante.
Ela se despedira de Henrique em Coventry e deixara-o para juntar-se ao exército em Northampton, enquanto ela seguia para Eccleshill, em Staffordshire. Assim que ele tivesse derrotado os iorquistas, ela iria para o lado do rei.
Os mensageiros foram para Eccleshill.
Derrota. Débâde. Uma batalha que quase acabara antes de começar.
E ela? Ali estava ela, não muito longe, e era ela que eles odiavam. Era ela que queriam colocar sob o poder deles. Ela, a rainha... e seu precioso filho, o príncipe de Gales.
- Não há tempo a perder - disse ela. - Temos de partir imediatamente.
Mandou chamar Eduardo e contou a ele.
- Mas para onde iremos, querida senhora? - perguntou Eduardo.
- Vamos procurar nossos amigos de verdade. Sei que há algumas pessoas neste país em quem podemos confiar. E se não forem em quantidade suficiente, procuraremos os inimigos do nosso país. Eles nos ajudarão para o próprio bem deles.
Eduardo ficou perplexo. Pobre menino, era jovem demais para compreender em que mundo nascera. Mas ele era um príncipe, o herdeiro do trono, e Margaret lutaria com todas as forças de que era capaz para ter a certeza de que ele não seria tapeado e impedido de ocupar o trono.
Chamando as criadas, ela se preparou para partir imediatamente, e pouco depois estavam a caminho de Malpas. Margaret era inteiramente incapaz de compreender o efeito que sua arrogância causava em seus seguidores. Por mais interessada que estivesse pelos casos amorosos de suas aias, e apesar de ter uma preocupação sincera com o bem-estar delas, jamais poderia esquecer-se de que era a rainha; e ficaria perplexa se eles não atendessem imediatamente aos seus desejos. Tinha havido duas principais influências em sua juventude, o domínio da mãe e da avó e irresponsável pobreza do pai. Ela tinha visto o poder do domínio feminino. Estava decidida a imitar a avó e a mãe, a agarrar-se no alto cargo que conseguira; se pudesse evitar, jamais viveria como antes na infância, com a pobreza e o medo de que tudo o que a família tinha viesse a ser perdido.
Agora que o rei sofrera uma importante derrota e se encontrava nas mãos dos inimigos, que sem dúvida iriam fazê-lo curvar-se à vontade deles, os empregados dela se perguntavam por que teriam de ser tratados como tão inferiores por uma mulher que, em primeiro lugar, poderia ver seu poder acabado e, em segundo, era uma estrangeira que não compreendia os hábitos ingleses.
Por isso, na fuga de Eccleshill havia um certo volume de murmúrios que Margaret não percebia - mas se tivesse percebido, pouco teria ligado.
Eles tinham chegado a um bosque, e ao entrar nele Margaret teve um arrepio de apreensão. Isso ocorreu apenas porque a tarde já ia avançada, o bosque parecia muito silencioso e as árvores deixavam-no escuro.
Ela olhou preocupada para os cavalos selados que levavam seus preciosos pertences, as jóias que representavam muito dinheiro, as belas roupas que ela adorava. Eles formavam um pequeno grupo e solitário.
Ela acabara de voltar-se para dar a ordem para que se apressassem, quando do bosque saiu um grupo de homens. Ela reconheceu o libré de um dos nobres e com desânimo acreditou que se tratava de homens de lorde Stanley, e ele era um decidido partidário iorquista.
Os homens ficaram em pé a curta distância dela.
Margaret, destemida como sempre, cavalgou à frente da comitiva.
- Boa tarde - disse ela. - Espero que os senhores não estejam tentando impedir nosso avanço.
O tom arrogante a traiu.
- A senhora é a rainha - disse o líder dos homens.
- O senhor parece ter se esquecido disso - respondeu ela com frieza.
- Não, nós estávamos esperando que Vossa Majestade viesse por aqui. Fomos avisados de sua chegada.
- Os senhores vieram juntar-se a mim? Os homens riram.
- Peguem-na! - gritou o líder.
- Vamos pegá-la, John Cleger! - gritaram os outros. Margaret ficou horrorizada ao ver que eles estavam avançando para os cavalos selados e alguns tinham começado a desafivelar a bagagem.
- Detenham-nos! - gritou ela. - Por que estão aí parados, seus idiotas?
Foi um momento terrível, porque seus próprios homens estavam parados, sem tentar deter os assaltantes. Então, ela viu alguns deles se dirigirem aos cavalos selados.
- Cumpram o seu dever - bradou ela. - Matem esses assaltantes.
Um dos assaltantes aproximou-se dela e do príncipe, que estava ao lado de Margaret.
- Nós queremos os cavalos - disse ele. - É melhor desmontar, dona. A senhora e o menino.
- Como ousa falar com sua rainha desse jeito?
- Acho que a senhora não é mais isso aí, dona, ou se for, não vai ser por muito mais tempo. Desça, garoto.
Eduardo, observando a mãe, lembrando-se de suas instruções no sentido de que fosse corajoso, ficou no cavalo olhando fixo para a frente.
O assaltante agarrou-o e arrastou-o para o chão. Margaret soltou um grito e, saltando da sela, foi imediatamente para o lado do filho.
- Está tudo bem, dona. Eu queria os seus cavalos, só isso. Nunca vi dois cavalos tão bonitos assim.
Aquilo era um pesadelo. Ela agarrou o ombro do filho e manteve-o bem junto dela. Os assaltantes e os próprios criados dela estavam discutindo por causa do conteúdo dos alforjes.
As jóias dela! Seus belos vestidos! Tudo perdido!
Um dos homens voltou-se e olhou em direção a ela. Margareth não gostou do que viu. O que iriam eles fazer depois de tirar tudo o que ela possuía! Ela sabia. O instinto lhe disse. Ela os identificara como homens de Stanley. Empregados dela tinham-na desertado para pegar uma quota do butim. Todos eles deveriam ter a morte dos traidores se um dia fossem levados a julgamento, e eles sabiam disso.
Evitariam aquilo a todo custo, e só havia uma maneira de fazê-lo.
Ela sabia que aqueles homens não teriam remorso algum em matá-la e também ao príncipe.
Puxou o filho mais para perto. Era uma característica de Margaret pensar na segurança dele antes da sua. Em seu coração turbulento, aquele menino estava em primeiro lugar. Ele era seu filho adorado, pelo qual ela esperara muito tempo; lutaria por ele com cada centelha de força que tivesse. Morreria por ele, se fosse preciso. Ela gostava do rei, mas o desprezava. Queria cuidar dele e governá-lo. Era possível que também quisesse governar aquele menino. Mas queria que ele crescesse forte, não como o pai. E agora, ele corria um grave perigo. Ela sabia que não iriam permitir que nenhum dos dois deixasse aquele local vivo, se aqueles homens cruéis pudessem evitá-lo.
Mantendo os olhos neles, Margaret recuou um pouco para o meio das árvores. Não devia sair muito às claras. Tinha de ir com cautela. Se pudesse pegar um dos cavalos...
mas isso era impossível, eles a veriam montar.
Eduardo estava olhando para ela com olhos cheios de esperança. Ela estava ali. A mãe que lhe parecia invencível-
Ele sabia que os dois corriam perigo, mas acreditava que ninguém poderia resistir muito tempo à sua mãe.
Os homens ainda estavam brigando por causa das jóias. Quanto tempo aquilo duraria? O momento da morte ficava cada vez mais próximo.
- Senhora... - era uma voz suave por entre as árvores. Margaret ficou alerta. Um menino olhava para ela por trás do tronco de uma árvore.
- Tenho um cavalo aqui. Conheço um caminho pelo bosque... um caminho especial. Eu poderia levar a senhora e o príncipe...
Quem era aquele menino? Ela não sabia. De qualquer modo, ele parecia muito criança e não poderia fazer-lhe o mal que aqueles homens podiam.
- Como... - começou ela.
- Deixe o príncipe vir primeiro - disse ele.
- Eduardo - sussurrou ela. - Vá!
Ela podia ficar ali observando os assaltantes, enquanto Eduardo podia perfeitamente esgueirar-se para dentro do bosque sem ser visto. Ele foi, acostumado a obedecer à mãe sem discutir.
O coração de Margaret batia desordenadamente. Ela mantinha os olhos nos homens. Eles não a estavam vigiando. Achavam que seria inteiramente impossível ela ir embora sem um cavalo, e se ela tentasse montar e levar o filho com ela, eles ficariam sabendo logo.
- Agora, senhora...
Ela estava em meio às árvores. Eduardo já estava montado. Rápido, o menino ajudou-a a subir ao lado dele. Depois, ele montou e eles partiram.
Eles tinham avançado um pouco por entre as árvores quando ela ouviu o grito.
Agarrou-se ao menino, e Eduardo agarrou-se a ela; os lábios dela mexiam-se numa oração.
O menino estava certo. Ele conhecia o bosque muito melhor do que os assaltantes ou os criados dela. De qualquer modo, aqueles homens preferiam perder a rainha e o príncipe do que o conteúdo dos alforjes.
E assim eles avançaram, durante o resto do dia e a noite.
O menino disse a Margaret que tinha quatorze anos e sempre quisera servir ao rei e à rainha. Seu nome era John Combe e ele morava em Amesbury. Estivera cavalgando pelo bosque quando vira os assaltantes, e percebera o que acontecia.
Os olhos dele brilhavam de devoção e lealdade.
- Foi a minha chance, majestade, de lhe prestar um bom serviço. Isso eu agradeço a Deus.
- Você é um bom menino e não será esquecido pelo que fez hoje.
E não seria. Margaret era tão arrebatada em sua devoção ao amigos quanto no ódio aos inimigos.
- Há muita gente que fica à espreita no bosque para assaltar, majestade - disse ele. - Eu vivo sempre alerta quando estou lá. Mas tenho os meus caminhos secretos.
É fácil a gente se perder por lá se não estiver muito atento. As árvores parecem um labirinto.
- Graças a Deus você chegou naquela hora. Você salvou a vida de sua rainha e de seu futuro rei.
O menino estava nitidamente muito emocionado, Margaret também, e ao longo de toda aquela árdua viagem ela pensava, impressionada, na aparição fortuita de John Combe. Ela dissera a ele que queria ir para o País de Gales.
- É uma viagem por terreno montanhoso, majestade.
- Mesmo assim, tenho amigos no País de Gales, e é para lá que preciso ir.
John Combe voltou, então, o cavalo em direção oeste e lá seguiram eles.
Ficou mais fácil quando ele pôde adquirir mais dois cavalos e já não precisaram seguir os três num só.
Mesmo assim, a viagem era longa, e não fosse a engenhosidade do menino, eles teriam se perdido.
Foi com grande alegria que avistaram o castelo de Harlech.
Margaret ficou muito contente com a recepção que teve. Animada, falou sobre a coragem e a habilidade de John Combe para tirá-la e ao príncipe de uma situação perigosíssima. Não demorou muito, e a ela juntou-se Owen Tudor.
Ela estivera certa ao ir para lá. Havia força naqueles Tudor. Era uma grande tragédia Edmund ter morrido, mas Jasper chegou pouco depois e fez um relato detalhado de como o jovem Henrique estava vivendo no castelo de Pembroke com a mãe.
- Um menino inteligente, majestade - disse ele a Margaret.
- Um Tudor da cabeça aos pés, e sem dúvida com um toque da avó.
Margaret estava com muito pouca paciência para dedicar ao jovem Tudor. Queria saber que ajuda poderia obter ali no País de Gales.
Eles compreenderam logo.
- Jasper gosta muito do sobrinho, majestade - disse Owen.
- Até parece que o menino é filho dele.
E então ele passou a discutir que soldados eles poderiam reunir e qual seria o melhor plano para levar um exército à Inglaterra.
- A vitória foi de Warwick, acredito - disse Owen. - É com Warwick que teremos de lutar. York é um bom administrador, mas creio que lhe falta aquilo que é necessário a um líder.
Aqueles Tudor eram um pouco francos demais. A ninguém poderia faltar mais aquela qualidade do que ao rei atual. Ah, mas o rei tinha uma rainha.
Era para a rainha que os lancastrianos teriam de olhar no futuro.
Ela estava desesperada. Precisava de ajuda. Achava que Henrique a abandonara, ela, sua mulher, e, o que era pior, abandonara o filho. Ele prometera o trono a York quando morresse. Não poderia haver traição maior.
Tudo dependia dela. O rei da França sempre gostara dela. Havia quem pudesse ter pensado que ele era ligado a ela por causa do bem que ela poderia fazer à França, mas Margaret era ingénua naqueles assuntos. A maioria de suas dificuldades ao longo da vida tinha tido origem no seu hábito de julgar todo mundo como a si mesma e acreditar que as pessoas agiriam de determinada maneira porque era assim que ela faria.
Agora, suas impetuosas energias estavam concentradas no filho, e ela usaria de qualquer método para recuperar a promessa de uma coroa que Henrique, de maneira muito injustificada, entregara para seus inimigos.
Por que o rei da França não a ajudava? Estava certa de que ele ajudaria, em troca de alguma coisa. com o apoio da França, ela poderia derrotar Warwick, York, Salisbury, todos eles. Mas Carlos iria querer uma recompensa muito grande para dar o tipo de ajuda de que ela precisava. Qual seria o maior prémio que ela poderia oferecer?
No momento em que a ideia surgiu, ela a afastou. Seria um tanto ousado demais. Mas vamos supor que ela dissesse ao rei da França: "Ajude-me a derrotar Warwick e a garantir a coroa da Inglaterra para Eduardo, e eu lhe darei Calais."
Calais! Aquele porto tão caro ao coração de Warwick e do povo inglês! O centro de comércio bem na entrada do continente da Europa! Calais era da máxima importância para a prosperidade da Inglaterra. Lã, couro, estanho e chumbo eram, todos, enviados para Calais para ser vendidos em Borgonha. Em Calais, aqueles produtos eram tributados e separados. Para o comércio e para a defesa, Calais era essencial à Inglaterra. Os franceses não podiam atacá-la sem primeiro atravessar a Borgonha, e como o rei da França estava com relações estremecidas com o duque de Borgonha, Calais se achava relativamente a salvo. Warwick, como capitão de Calais, mostrara o valor do porto. Calais tornara possível que ele aumentasse seu poder. Parecia provável que Carlos da França fizesse muita coisa em troca de Calais.
E no entanto, sem ajuda, como poderia ela derrotar seus inimigos? Como poderia fazer com que a coroa ficasse garantida para seu filho?
Calais. Ela sonhava com isso.
Mandou um mensageiro com uma sugestão a título de sondagem a seu velho amigo e adepto Pierre de Brézé.
Enquanto Margaret se achava no País de Gales, o duque de Exeter chegou. Ele fugira do campo de batalha, com sorte de continuar vivo. Mas estava decidido a continuar a lutar e acreditava que poderia angariar a adesão de homens à sua bandeira no norte da Inglaterra.
- É de ajuda que nós precisamos - disse Margaret. - Queremos vencê-los com a nossa força. Se ao menos meu bom tio, o rei da França, viesse em meu auxílio...
Ela pensou na mensagem que mandara a Brézé. Esperava ansiosa pela resposta, e todas as manhãs, quando acordava, era com a palavra "Calais" nos lábios. Às vezes ficava aterrorizada com o que fizera; e no entanto sabia que se tivesse a oportunidade de voltar atrás, faria tudo de novo.
com os Tudor organizando um exército no País de Gales e Exeter indo para o norte, o cenário era promissor. Mas ela precisava conseguir superioridade numérica sobre Warwick e York; tinha de enfrentar a força deles com uma bem maior; tinha de fazer com que os homens soubessem que se certas pessoas na Inglaterra estavam decididas a destruí-la, ela tinha amigos em outros lugares.
Eles odiariam perder Calais; mas era melhor isso do que o jovem Eduardo, príncipe de Gales, perder o trono.
Margaret resolveu ir à Escócia, procurar ajuda. Arranjaramlhe um navio e num dia frio de dezembro ela fez-se ao mar com o filho, saindo do País de Gales.
O tempo estava ainda pior quando ela chegou a Edimburgo, mas a calorosa recepção por parte da rainha-mãe, Mary de Gueldres, deu novas esperanças a Margaret. A irmã do falecido rei tinha sido a delfina da França, e Margaret a conhecera antes. Achou, portanto, que estava entre amigos.
Se pudesse convencer Mary de Gueldres a dar-lhe uma ajuda, isso, com o que quer que o rei da França lhe mandasse, faria com que ela aumentasse seus exércitos a tal ponto que, em breve, os iorquistas estariam fugindo diante deles.
Mary de Gueldres, era verdade, tinha lá seus problemas naquele momento. O marido, James II, morrera em combate, porque se aproveitara da derrota de Northampton para atacar o velho inimigo; e agora Mary estava atuando como regente em nome do filho de nove anos. Mas mostrou simpatia pelos problemas de Margaret e, precisando da ajuda de Margaret quase tanto quanto esta precisava da sua, parecia provável que as duas chegassem a bom termo.
Chegara uma resposta de Pierre de Brézé. Ele não podia acreditar que tivesse interpretado de forma correta as alusões que ela fizera. Estaria ela falando sério, mesmo, quando dizia que em troca da ajuda da França entregaria Calais? Será que ela percebia o que aquilo significaria para a sua causa? Os ingleses jamais a perdoariam. Se ela fizesse aquilo, veria qual seria a reação deles quando ficassem sabendo. O rei da França ficaria encantado; não havia nada que ela pudesse oferecer mais a seu gosto, mas Pierre era um bom amigo dela e queria que ela pensasse muito seriamente no assunto antes de se comprometer a fazer uma coisa que deixaria os ingleses clamando pelo seu sangue.
Ela ficou meio aliviada, meio irritada.
Eu vou fazer isso, pensou ela. Brézé é muito fraco.
Mas aquilo era injusto. Ele mostrara ser um bom amigo. O relacionamento dos dois fora quase terno. Ele admirava sua força e sua beleza, e de certo modo estava apaixonado por ela. Seus pensamentos estavam dirigidos para aquilo que mais a beneficiasse.
Por enquanto, ela colocaria o assunto de lado e voltaria a atenção para Mary de Gueldres.
Mary sentia pena dela. Queria ajudar; mas estava evidente que não devia ser boba, quando sua própria situação era muito precária. Sempre representava perigo um rei morrer deixando um herdeiro jovem - um menor que tinha de estar cercado por aqueles que desejavam governar por ele.
Na abadia de Lincluden, onde Mary cedera aposentos a Margaret, as duas mulheres conversavam e negociavam juntas Margaret com uma espécie de intensidade febril; Mary, mais friamente, calculando cada passo antes de dá-lo, em contraste com a impetuosidade de Margaret.
Havia um sentimento solidário entre elas. As duas tinham filhos jovens para proteger. Mary estava sem marido, é verdade, mas Margaret sentia que o dela às vezes era mais um estorvo do que uma vantagem.
- A ajuda de que preciso é apenas temporária - explicou Margaret com fervor. - Assim que eu recuperar o que é meu, tudo será pago.
- Eu sei - replicou Mary -, mas há conflitos que duram anos antes de ser resolvidos, e eu tenho dificuldades aqui. Na Escócia temos nobres muito indisciplinados.
- Não podem ser mais indisciplinados do que os da Inglaterra. Muitas vezes sinto vontade de me livrar de todos eles.
- Ah, nós temos de tomar cuidado para que eles não se livrem de nós.
- Você e eu devíamos fazer um trato. Devíamos ajudar uma à outra. Minha querida prima, dê-me soldados, dê-me armas e casemos nossos filhos. Que seja esse o elo entre nós. A sua pequena Mary poderia ser a esposa do meu Eduardo.
Aquilo era tentador. A filha de um rei escocês não era umparti tão atraente como outras poderiam ser. O pai dela já morrera, a mãe estava lutando para manter o trono garantido para o filho - e se Margaret conseguisse derrotar os rebeldes, um dia Eduardo seria rei e a pequena Mary da Escócia se tornaria a rainha da Inglaterra.
Seria uma excelente perspectiva, se ao menos a guerra pudesse ser vencida, se Eduardo não fosse deposto do trono; mas parecia muito provável que fosse, já que, depois de Northampton, Ricardo de York fora declarado herdeiro do trono quando Henrique morresse.
Mary de Gueldres hesitava.
Ela sabia qual era o grau de desespero de Margaret. Sabia que ela faria quase qualquer coisa em troca de ajuda. Não consideraria nada como um preço alto demais a ser pago pelo que ela queria.
- Quanto a mim, eu concordaria de bom grado com esse casamento, mas são aqueles que me cercam... - disse Mary de Gueldres. - Receio que antes de se disporem a ajudar eles vão querer algo mais...
- O quê? - bradou Margaret. - Diga-me o quê!
- Berwick - disse Mary, com calma.
Berwick! A cidade fronteiriça que era muito importante para os ingleses.
Ora, ela estivera pronta a dar Calais. Por que hesitar com relação a Berwick?
- Muito bem - disse ela. - Berwick será de vocês... em troca de um exército que me ajude a destruir aqueles rebeldes.
Cecily, duquesa de York, chegara a Londres em grande estilo, com três de seus filhos - a filha Margaret e os dois meninos mais novos, George e Richard.
Ela dissera a eles que eles tinham de se comportar com o máximo de dignidade. O comportamento deles era importantíssimo, porque eles tinham se tornado príncipes. Eles tinham sempre sido da mais alta classe do país - mas o mesmo acontecia com outros; agora, tinham subido de classe com o pai, que quando o rei morresse seria o substituto dele. Quanto ao irmão deles, Eduardo, todo mundo devia perceber, só de olhá-lo, que não havia dúvida de que nascera para usar uma coroa, Eduardo era o deus das crianças. Estava sempre deslumbrante quando se olhava para ele, e histórias de suas aventuras chegavam até eles; era um grande soldado, um grande aventureiro, e nunca parecia perder a paciência. A mãe lhes dissera que um dia ele seria o rei, mas não por enquanto, graças a Deus, porque seu nobre pai vinha em primeiro lugar.
O duque estava vindo da Irlanda para juntar-se a eles, e quando chegasse seria um grande dia festivo para todos. Cecily decidiu que ficaria bem ela ir ao encontro dele e, por isso, as crianças seriam deixadas na mansão em Southwark, onde estavam morando desde sua chegada a Londres.
- Seu irmão Eduardo virá visitá-los com frequência - disse-lhes ela. - Mas vocês não devem esperar muitas atenções da parte dele. Ele tem grandes assuntos com que se preocupar e vai passar muito tempo com o grande conde de Warwick. Se o conde vier aqui, não deixem de tratá-lo com o devido respeito. Eduardo vai notar, se vocês não fizerem isso.
Eles não acreditavam que seu grande e belo irmão iria se preocupar muito com aquilo. A vida era emocionante. E quando o pai deles chegasse a Londres, iria ao Parlamento, e depois disso ninguém poderia dizer que eles não eram príncipes.
Os dias se passavam. As crianças saíam a cavalo pela cidade mas eram muito novas para perceber a tensão que havia nas ruas. Northampton podia ter sido uma retumbante vitória, mas havia muitos lordes que apoiavam a rosa vermelha de Lancaster, e quando um rei estava em conflito com certos membros da nobreza e quando novos governantes iam substituir antigos, sempre havia um perigo enorme. Era verdade que Henrique não estava apto para governar; era verdade que muita gente odiava a rainha; mas havia um jovem príncipe que no momento estava com sua mãe, e aceitar o duque de York no lugar dele não agradava a todos.
Era evidente que o duque e a duquesa de York já se consideravam os governantes. Quando a duquesa deixara Londres para ir ao encontro do marido, viajara numa carruagem decorada com veludo azul e puxada por quatro parelhas dos melhores cavalos. Margaret de Anjou jamais viajara com tamanha pompa. O duque era um administrador mais competente do que Henrique, era verdade; mas parecia que a Orgulhosa Cis seria tão dominadora quanto Margaret.
Por fim, York entrou em Londres a cavalo. com Cecily em sua carruagem coberta de veludo, era um desfile muito pomposo, mas havia uma notável falta de entusiasmo entre o povo.
O duque não dava a menor importância a isso. Não perdeu tempo e foi apresentar-se ao Parlamento, e no caminho mandou um de seus homens seguir à sua frente levando uma espada - um costume que dava a entender que ele já era o rei.
O povo observava em silêncio, e mais tarde, quando se apresentava ao Parlamento, ele insistiu para que os lordes ouvissem uma descrição de sua linhagem que mostrava que ele tinha mais direito ao trono do que Henrique. O avô de Henrique usurpara o trono, declarou ele. Outros tinham vindo antes dele. Portanto ele, York, era o rei de direito.
Foi grande a consternação da Câmara, e os lordes estavam na dúvida de como agir. Aceitavam a linhagem, mas por outro lado Henrique era o rei coroado. Em dado momento, um deles sugeriu que o assunto era tão complicado que deveria ser submetido a juizes. Era matéria legal e cabia a eles decidir.
Quando York voltou para Southwark, encontrou Warwick e Eduardo lá.
Imediatamente, eles se retiraram a um aposento onde os três pudessem expor suas posições.
Estava claro que Warwick não aprovara o ato de York ao ir ao Parlamento.
- O momento ainda não é propício - disse Warwick; e ele estava lamentando que York estivesse à frente do filho. Como seria muito mais fácil lidar com Eduardo!
- Já protelamos demais - disse York. - Está na hora de deixar o povo ver o que defendemos. Queremos Henrique deposto e temos de avisar a Margaret que ela não tem chance alguma. -
- É verdade - disse Warwick -, mas devemos andar com mais cuidado. Há sentimentos hostis ao nosso redor, e vai precisar pouco para transformar isso em um apoio ativo a Henrique.
- Henrique não tem jeito, e todo mundo sabe disso.
- Ele ainda detém o afeto deles. Bem, nós já chegamos até aqui, e vamos ver o que os juizes decidem.
Os juizes deram a resposta muito rapidamente.
- Esse assunto é difícil demais para nós decidirmos - foi o veredicto. - Está acima do nosso conhecimento da lei e de nossa erudição.
Foi uma sorte o irmão de Warwick, George Neville, ter sido nomeado chanceler. Ele declarou que estava claro que a. saúde do rei o impedia de governar. Que fosse mantida a decisão de deixar que ele usasse a coroa até morrer e depois que ela passasse para York.
Houve quem achasse que aquilo encurtaria a vida de Henrique, porque era praticamente certo que haveria interesse na sua morte.
George Neville disse, então, que se Henrique morresse misteriosamente eles não descansariam enquanto não encontrassem o assassino e não importava o alto nível a que tal pessoa pertencesse no país, ela deveria sofrer a morte dos traidores. Além do mais, o duque de York era muito mais velho do que Henrique. Parecia muito provável que Henrique fosse viver mais do que ele.
Assim, ficou decidido que York seria declarado oficialmente herdeiro do trono.
Quando procuraram Henrique, ele enterrou o rosto nas mãos.
- Eu peço apenas que me deixem em paz - disse ele.
- O duque de York e seus herdeiros ficarão com o trono depois de Vossa Majestade.
- Sim, sim - disse o rei, com ar de cansado.
Eles ficaram estupefatos. Teria ele esquecido o menino do qual ele e Margaret tanto se orgulhavam?
- Eu quero paz - bradou Henrique. - Meu país quer a paz. Ora essa, ora essa, vamos ter paz e pagar o preço dela, se assim for preciso.
E assim York foi declarado herdeiro do trono. Mas não houve comemorações nas ruas.
Warwick abanou a cabeça, apreensivo.
- Foi um erro. O povo não está gostando. É sempre preciso ter o povo do mesmo lado numa situação como esta que poderia ser impopular. Não, você não devia ter feito isso. Devia ter esperado até que pela força das armas pudéssemos ter deposto Henrique e colocado você no trono.
- Eu também acho - disse Eduardo.
York olhou com tristeza para o filho mais velho. Eduardo parecia estar totalmente ao lado de Warwick, agora. Rutland era o seu querido filho fiel. Rutland nunca teria questionado quaisquer atos seus.
No exato momento em que eles caminhavam juntos, chegavam mensageiros. Margaret estava reunindo forças. Ela encarregara os Tudor de formar um exército no País de Gales. Exeter estava fazendo o mesmo no norte, já que ela estava na Escócia.
- Não é hora de complacência - disse Warwick. - Eduardo e eu ficaremos em Londres para vigiar o rei e montar um exército. Você deve ir para York e reunir o maior número de homens possível. Talvez tenhamos de lutar. Dificilmente Margaret irá aceitar isso com tranquilidade.
O duque de York concordou e deixou Londres, indo para Yorkshire, onde reuniria um exército para lutar a seu lado e manter seu novo título.
O Natal chegaria em breve. Em meio aos frios ventos do inverno, York marchava com seus homens. Ele iria fazer pouca coisa até a primavera; nunca era prudente entrar em cofflbate no auge do inverno.
Não acreditava que Henrique fosse viver muito tempo. Poderia haver quem achasse ter o dever de fazer com que iSSO nao acontecesse. E então... a coroa seria dele. Eduardo seria um digno herdeiro, apesar de ter-se tornado um aliado de Warwick e não de seu pai. Pouco importava. Estavam todos do mesmo lado, e Eduardo era um filho que servia de motivo de orgulho.
Eles tinham chegado à cidade de Worksop e enquanto saíam da cidade marchando, não perceberam a emboscada,e as tropas de Somerset estavam em cima deles antes que pudessem Preparar-se para revidar o ataque.
Houve uma luta feroz, e as baixas de ambos os lados foram grandes.
Eles precisam chegar a York, pensou o duque. Pelo menos tinham de chegar ao castelo de Sandal. O castelo ficava cerca de um quilómetro e meio de Wakefield.
Ele reuniu suas forças e gritou para que abandonassem o campo e seguissem a toda velocidade para Sandal.
Ficou aliviado quando o castelo de pedras cinzentas ergueuse à sua frente, uma poderosa fortaleza na margem esquerda do rio Calder.
Ele olhou para o filho Rutland, que cavalgava a seu lado, seu favorito, ultimamente, que se mantivera aliado ao pai e resistira aos artifícios do herói Warwick. Era uma tolice sentir aquela inveja, mas sob a influência de Warwick, Eduardo mudara em relaÇão a ele. Eles o tinham criticado em Londres; tinham feito com que ele sentisse que não era mais o líder. Warwick era assim. Sempre que se encontrava presente, sentia-se que embora pudesse não estar no comando de fato, no espírito, estava.
- Vamos mostrar a eles, meu filho - disse ele a Rutland.
- Vamos, pai - replicou o menino.
Eles não tinham percebido o tamanho do exército que se aproximava. Exeter, juntamente com Clifford, fizera bem em reunir um exército daqueles para Margaret.
Salisbury, que os acompanhara, disse que eles se achavam em segurança no castelo. Ele mandara mensageiros a Warwick e Eduardo para avisá-los como estavam as coisas. Eles não precisavam preocupar-se. Poderiam resistir até que Warwick e Eduardo chegassem para ajudá-los.
O duque estava frustrado. Ficar sitiado num castelo, esperando por Warwick e pelo filho, era demais. Eles já o criticavam bastante.
Não fazia mal esperar. Ele ficava imaginando o dia em que Warwick chegasse, expulsando o inimigo, entrando orgulhoso na cidade; e Eduardo estaria ao lado dele, admirando, bebendo-lhe as palavras, sentindo pena do pai porque tivera a má sorte - eles poderiam dizer que tinha sido mau desempenho - de ser sitiado no castelo de Sandai.
- Não esperarei por auxílio - disse York. - vou sair para enfrentá-los. Reduzirei as fileiras deles. vou inutilizar esse exército para que ele não tenha condições de voltar a me atacar.
- Isso é sensato? - perguntou Salisbury. - Estamos em inferioridade numérica.
- Não estamos em inferioridade de classe - disse o duque. - Posso entrar em combates sem Warwick e meu filho mais velho.
- É verdade - disse Salisbury. - Mas a ajuda deles seria útil.
- Onde está o inimigo agora?
- Acampado em Wakefield.
- Cerca de um quilómetro e meio daqui. Então, vamos nos preparar para atacar.
Assim foi travada a batalha de Wakefield. Foi uma loucura, desde o início, ter tentado. Os iorquistas estavam inferiorizados numericamente. Muitos foram abatidos naquele campo, inclusive o duque e seu filho Rutland.
Foi com grande exultação que os lancastrianos descobriram o corpo do duque. Cortaram-lhe a cabeça e a enviaram para York, a fim de ser exposta nos muros da cidade, e alguém colocara sobre ela uma coroa de papel.
Salisbury foi capturado, mas não quiseram deixar que ele vivesse. Ele era perigoso demais. Sua cabeça foi exibida nos muros de York ao lado da de seu amigo e aliado.
Era a derrota. York estava morto. Quando Margaret recebeu a notícia, ficou quase louca de alegria.
- A maré mudou - bradou ela. - Esta é a nossa maior vitória. Vamos reconquistar o que é nosso, e o destino de todo traidor na Inglaterra será igual ao do duque de York.
O TRIUNFO DE MARGARET
Eduardo estava em Gloucester quando recebeu a notícia da derrota e da morte do pai. Ficou completamente perplexo. Não podia acreditar que aquilo fosse possível. Ficou com o olhar parado, fixo no mensageiro, e então uma dor terrível tomou conta dele.
Queria ficar sozinho, para pensar no pai. Sempre o admirara muito, sempre o tivera como exemplo, sempre o vira como um rei, invencível. Agora... derrotado... morto, e a cabeça nos muros de York tendo em cima uma coroa de papel. Era o máximo de zombaria.
Uma grande raiva tomou conta dele, então. Aqueles que tinham zombado de seu pai deveriam pagar caro pela alegria que tiveram.
- O que estamos fazendo, esperando aqui? - bradou ele.
- Temos de marchar... marchar contra eles. Temos de impor tamanha carnificina que eles vão gritar pedindo misericórdia.
Ele pensou em Warwick, seu herói. Onde estava ele, agora? Ainda em Londres. Warwick diria: fique calmo. Não grite por
vingança pela simples vingança. Faça com que seja vingança temperada com bom senso. Eles vão pagar, sim, mas da maneira mais favorável à nossa causa.
Eduardo pensou em sua mãe, a orgulhosa Cis, que estava certa de que dentro em pouco seria a rainha da Inglaterra, e nos meninos também... os príncipes. E Rutland? Morrera com o pai. Pai e irmão mortos num mesmo campo. Ele quase podia ouvir os tons calmos de Warwick: "Infelizmente, meu caro senhor, a guerra é assim."
Então ele compreendeu, numa ofuscante percepção do que aquilo significaria para ele. Quando refletiu, por alguns instantes, apesar da dor que sentia, não conseguiu pensar em outra coisa.
Ele, Eduardo, já não apenas conde de March, mas duque de York, podia ser o rei da Inglaterra.
Isso era algo pelo qual valia a pena lutar... valia a pena viver. Meu Deus, pensou ele, eles não rirão da cabeça de meu pai por muito tempo. Rei Eduardo! Aquilo ia acontecer. Alguma coisa dentro dele lhe garantia isso.
Enquanto ele pranteava a morte do pai e do irmão, vários de seus amigos foram procurá-lo para dizer-lhe que não podiam mais ficar em Gloucester. Eles eram Humphrey Stafford, Walter Devereux e o genro de Devereux, Herbert de Raglan.
Eles sabiam que ele estremecia sob o terrível golpe que fora a revelação da morte do pai; estavam cientes de que a derrota em Wakefield fora o revés mais importante que os iorquistas tinham sofrido - mas o resultado dela era colocar nos jovens ombros de Eduardo um pesado ónus, e no modo deles agirem inserira-se um certo respeito que antes não existia.
Mesmo com sua dor, Eduardo notou aquilo e ficou exultante.
- Mensageiros chegaram com notícias da região fronteiriça
- disse Devereux. - Jasper Tudor está na Inglaterra e trouxe com ele franceses bretões e irlandeses, todos inimigos. Ele está se preparando para marchar contra nós. E Margaret, quando souber do que aconteceu em Wakefield, estará marchando para o sul.
- Eles que venham - bradou Eduardo. - Quanto rhais cedo, melhor. Graças a Deus temos um exército de homens valorosos. Estou ansioso por entrar em combate. Juro por Deus que não vai demorar para que o sangue de meu pai e de meu irmão seja vingado.
- Amém - murmuraram os outros.
- Então, por que estamos esperando? Vamos nos preparar agora para marchar.
O ânimo de Eduardo se transmitiu para todos os que o cercavam. Homens olhavam para ele e viam nele o líder que o pai, por algum motivo qualquer, jamais conseguira ser. Eduardo era tão alto, tão bonito, tão Plantageneta, que se dizia que era como se Eduardo Pernas Longas estivesse vivo outra vez. Ele parecia invencível. A determinação de vingar o pai ficava clara a todos que o contemplavam.
Ele fez uma parada em Wigmore, onde possuía um castelo. Ali, providenciou para que seus homens fossem alojados e alimentados de forma adequada. Iriam para a batalha em perfeitas condições; e a lembrança de Wakefield os acompanhava a cada centímetro do caminho.
Entre os vales de Brecon e Hay vinha Jasper Tudor, com seu pai, Owen Tudor, cavalgando a seu lado. Aquele era um grande dia para a Casa de Lancaster. O duque de York estava morto. Que melhor notícia poderia haver? O trono fora salvo para o meioirmão de Jasper Tudor, Henrique. Owen estava confiante em que agora os iorquistas aceitariam a derrota.
- Ainda há Eduardo de York - lembrou-lhe Jasper.
- Um menino fanfarrão.
Jasper pensava de maneira diferente. Ele tinha visto Eduardo. Havia um certo ar de realeza nele.
- Ele parece um rei - disse ele.
- Ah, você está impressionado com a altura dele, por aquela beleza loura. Ouvi dizer que elas vão acabar matando-o. Ele gosta demais da boa vida.
- Muitas vezes os reis são assim - disse Jasper.
- Jasper, meu filho, o que você tem hoje? Eu lhe digo que nós estamos com tudo. Imagine aquela cabeça nos muros de York. Uma coroa de papel, ah, ah!
- Estou imaginando - disse Jasper. - Sem dúvida Eduardo também está.
- Isso vai deixar o rapaz amedrontado - disse Owen. Jasper não respondeu. Ele ficava impressionado com o pai.
Era um homem de grande charme e beleza, que seguira pela vida sem ver os perigos. Talvez tivesse sido isso que o fizera atravessar um arriscado casamento com uma rainha, que durara vários anos, fugir da torre e levar uma vida arriscada nas montanhas galesas para servir ao meio-irmão de Jasper. Às vezes Jasper achava que Owen Tudor não compreendia as realidades da vida. A sorte favorecera-o, fizera com que repetidas vezes ele atravessasse perigos incólume, a ponto de fazer com que ele acreditasse que ela faria sempre isso.
Os dois exércitos estavam próximos. Eduardo levava vantagem porque conhecia o terreno muito bem e estava impelido por um desejo de vingança tão urgente que sabia que não poderia fracassar.
Ele vingaria o pai ou morreria tentando; e no seu íntimo ele tinha a certeza de que iria viver para ser o rei da Inglaterra.
Ele decidira que a batalha deveria acontecer em Mortimers Cross, e ali acampou seu exército em torno da aldeia de Kingsland.
Era o Dia da Candelária, e por volta das dez horas da manhã ouviu-se um grito repentino de um dos soldados. Ele estava em pé, como que alheio a tudo, olhando para o céu. Todos olharam para cima, e houve um silêncio profundo e terrível. Acima deles havia não um sol, mas três. Nenhum deles tinha visto um fenómeno tão raro como um parélio antes, e não sabiam que ele era causado pela formação de cristais de gelo ou neve na atmosfera que, por serem hexagonais, produziam uma refração dupla que tomava a forma de um halo.
Um número cada vez maior de homens saía para olhar para o céu, e quando Eduardo saiu e olhou, ficou desanimado, ainda mais ao ver o efeito que aquilo estava tendo sobre os seus homens. Ele olhou para o céu com ar desafiador.
- Sim - bradou ele -, isso é um presságio. Indica que a Trindade está conosco, Deus Pai, Deus Filho e o Espírito Santo estarão do nosso lado hoje.
Era impressionante como palavras ditas por um homem forte com tamanho tom de autoridade podiam causar um efeito daqueles sobre um exército. Eles agora erguiam os olhos para o céu e ficavam impressionados. Eduardo os convencera de que haveria vitória naquele dia.
As tropas de Jasper tinham chegado e a batalha começou. Eduardo estava no centro dela, lembrando-se de tudo o que aprendera com o pai e em especial com Warwick.
- A Trindade está conosco - bradava ele. - Vingança para Wakefield.
Ele adquirira uma nova estatura. Já era um rei. Era como se Eduardo Pernas Longas tivesse voltado à Terra. O resultado parecia inevitável. Estavam ganhando superioridade sobre o inimigo.
- Poupem a plebe, matem os líderes - gritava ele. Warwick lhe ensinara isso. Eram os líderes que eles precisavam erradicar.
Jasper estava desanimado. Ele via a derrota à sua frente. Aquele Eduardo era um novo líder com poderes mágicos. Deixara de ser um menino quando o pai morrera.
O conde de Wiltshire se achava ao lado de Jasper.
- Está na hora de fugir... - bradou o conde. - É fugir ou morrer. Venha... se quiser viver para lutar outro dia. Não haverá misericórdia para nós se formos capturados.
Era verdade. Toda a esperança se acabara. A batalha de Mortimers Cross tinha sido travada e vencida por Eduardo e pelos iorquistas.
- Onde está meu pai? - disse Jasper.
- Ele irá se defender. Ele sempre teve sorte.
- Eu gostaria de saber que ele está são e salvo.
- Você não pode voltar. Venha, Jasper, ou nos retiramos agora e lutaremos num outro dia ou morreremos.
Jasper entendeu a sensatez da fuga. Seu pai saberia cuidar de si mesmo.
Naquele momento em que Jasper e Wiltshire cavalgavam a todo galope para as montanhas galesas, Owen Tudor estava cercado por soldados. Seu cavalo fora ferido e estava deitado a seu lado e Owen sabia que dessa vez a sorte falhara.
Ele foi levado à presença de Eduardo, que o estudou com ar sardónico.
- Ora, Owen Tudor, desta vez você não teve tanta sorte! Owen deu aquele sorriso que ainda era atraente bastante para cativar.
- Meu senhor, as fortunas da guerra são imprevisíveis.
- Talvez seu destino nada tenha de imprevisível.
Owen sentiu um tremor de desalento. Estaria Eduardo dizendo que mandaria decapitá-lo?
- Você pegou em armas contra meu pai - disse Eduardo.
- Senhor, eu peguei em armas em favor de meu enteado, o rei.
- Ah, Tudor, você sente muito orgulho do seu parentesco.
- Meu senhor, o senhor não sente orgulho pelo parentesco com reis? Não é por isso que esta guerra existe?
- Ela existe para colocar o rei de direito no trono e pôr um fim num mau governo.
- E garantir os direitos do verdadeiro rei. Owen estava muito confiante em si mesmo.
- Levem-no - disse Eduardo.
Eles marcharam para Hereford, onde o povo recebeu bem o exército vitorioso. As pessoas saíam de suas casas para ver Eduardo, de quem tanto tinham ouvido falar. Como as mulheres gostavam dele! Ele ficava exultante com a admiração delas. Queriam um rei como ele - um aventureiro viril, um belo conquistador; elas podiam gostar de Henrique como se ele fosse um santo, mas ele não era o homem para cativá-las.
Aquele povo de Hereford abandonaria Henrique no dia seguinte em nome daquele alto e bonito rei Plantageneta.
Os prisioneiros marchavam com eles. Eduardo percebeu os olhares que Owen Tudor atraía. Owen tinha um encanto indefinível que se achava presente, apesar de ter deixado a juventude para trás. Ele devia ter sido um homem extremamente bonito para a rainha Katherine esquecer sua realeza e fícar com ele.
Mas para ele tinha de chegar o fim. Não devia haver misericórdia para com qualquer um daqueles que tinham se colocado contra a Rosa Branca de York.
O próprio Eduardo presenciaria a execução, e quando ela terminasse deveria haver novas cabeças para serem colocadas nos muros de York, e aquelas que já estavam lá deveriam ser retiradas e enterradas com o máximo de reverência.
Owen não acreditava que ia morrer. Sabia que o povo estava se reunindo na praça do mercado. Sabia que tinham prometido ao povo um espetáculo. Mas acreditava que alguma coisa iria acontecer no último momento para salvá-lo. Sempre acontecera. Ele levara uma vida feliz desde o momento em que a rainha Katherine percebera sua existência na equipe dela e se apaixonara por ele. A lembrança daquela época viveria com ele para sempre. Às vezes, ele acreditava que Katherine o protegia lá do céu... a ele e aos filhos deles. Aqueles longos dias de felicidade oculta pareciam, agora, tão reais como sempre.
Ele nunca deixara de amá-la. Ele a adorara, ele a venerara, e ensinara os filhos a fazerem o mesmo. Edmund estava morto, mas como Katherine ficaria orgulhosa do pequeno Henrique, seu neto! Owen ensinara o menino a venerá-la também.
Ó Katherine, pensou ele, não posso morrer ainda. Há muita coisa a ser feita. Alguma coisa vai acontecer no último instante. Eu irei até lá, para a minha execução, mas haverá algum milagre. Eu sei.
A multidão lotava a praça. Então a coisa chegara até aquele ponto. Algo vai acontecer, pensava ele. Minha hora ainda não chegou.
Ele foi conduzido para a praça, junto com outros homens. Houve um silêncio na multidão quando o viram. Eles o conheciam bem. Ele era o romântico Owen Tudor que se casara com a rainha Katherine, que a amara e que tivera filhos com ela e no fim ela fora arrancada do lado dele e morrera de tristeza, diziase, por amor a ele.
As mulheres estavam tristes. Ele era uma figura romântica mesmo agora, quando já perdera a juventude.
Uma delas avançou e bradou numa voz estridente:
. Salvem Owen Tudor. Ele é bonito demais para morrer.
A mulher foi arrastada dali - pobre louca, disseram.
Mesmo naquele momento ele não podia acreditar. Muito embora visse o cepo e o machado e o carrasco ali de pé.
Algo vai acontecer. Haverá um sinal do céu. Eduardo só está deixando que isso aconteça para me mostrar como estive perto de perder a cabeça.
Chegaria um mensageiro. Parem a execução de Owen Tudor. Seria romântico, dramático, como tinha sido a vida dele desde que se apaixonara por Katherine, a rainha.
Estavam insistindo para que ele avançasse. Ele agora estava subindo os degraus para o cadafalso.
Depressa, depressa, se não vai ser tarde demais.
Mas ninguém chegaria. Não havia ninguém para salvar Owen Tudor agora. Ele tinha de aceitar o destino. Finalmente, este chegara. Alguém erguera a mão e arrancara a gola do seu gibão de veludo vermelho. Agora não havia como evitar. Ele tinha de colocar a cabeça no cepo.
Dirigiu um sorriso afetadamente delicado para a multidão, sobre a qual caíra um profundo silêncio.
- Ah, meus amigos - disse ele com voz firme. - Esta cabeça que agora vocês vão ver colocada sobre esse cepo costumava, em determina época, apoiar-se no colo da rainha Katherine.
O silêncio era profundo. Empurraram-no para a frente. E então, calmamente, percebendo que aquilo era mesmo o fim, ele apoiou a cabeça no cepo.
- Então ele está morto - disse Eduardo. - Assim morrem todos os traidores. Embora ele fosse um homem que apoiasse aquilo que achava que era certo. Pouco importa. Ele lutou do lado errado, e em Mortimers Cross teve seu castigo. Coloquem a cabeça dele no Market Cross, para que todos a vejam.
Assim, aquela cabeça que ele, em seu último suspiro, se jactara de ter apoiado no colo da rainha Katherine foi colocada no Market Cross. Na manhã seguinte, as pessoas ficaram surpresas porque encontraram a louca que tinham visto no dia anterior sentada aos pés do cruzeiro. Ela havia penteado os cabelos de Owen e lavado o sangue de seu rosto, e em torno do cruzeiro colocara cem velas acesas enquanto cantava orações pela alma dele.
- Ali estava um homem que atraía as mulheres - disse Eduardo, pensativo. Ele mesmo as atraía, mas talvez de forma diferente. Uma ideia rápida passou por ele e se perguntou quem acenderia velas em sua memória. Mas ele tinha a vida toda pela frente, e esta seria gloriosa.
Ordenou que a mulher fosse mandada embora e que as velas fossem deixadas acesas.
Que Owen partisse como tinha vivido... romanticamente. Eduardo podia regozijar-se com o fim de Tudor, mas ainda havia Jasper, e este era um homem a ser respeitado.
Ele lamentava que Jasper tivesse fugido. Pouco importava, um dia ele teria a cabeça de Jasper no local adequado e isso seria o fim daqueles arrogantes Tudor.
Lembrou-se, de relance, que havia outro - um menino, em algum lugar. Sim, ouvira falar no jovem Henrique Tudor. Um bebezinho... nada mais.
Tinha de pegar Jasper, e depois que o tivesse apanhado, poderia esquecer que havia um pequenino Henrique Tudor em algum lugar do País de Gales.
Margaret marchava para o sul, vinda do norte. Levava um exército poderoso com ela. Sabia que eles eram indisciplinados e que a estavam seguindo não tanto porque acreditassem na sua causa, mas porque ela prometera que teriam permissão para saquear as cidades pelas quais passassem; marchar com Margaret significava, para os escoceses, que com sorte eles poderiam passar pela fronteira com uma grande quantidade de bens valiosos ingleses quando a guerra terminasse.
Era a única maneira pela qual Margaret podia reunir um exército, e ela nunca fora muito escrupulosa quanto aos meios.
Com ela estava seu filhinho, Eduardo - com oito anos de idade, agora, e no qual estavam depositadas todas as esperanças. Iria criá-lo para ser um homem; não devia ser fraco e vacilante como o pai, mas capaz de conquistar seus direitos e mante-los.
Deveria haver quem a criticasse por levar o menino ao seu lado em ocasiões como aquela. Mas ele aprenderia a lutar desde a infância; seria um grande e impiedoso rei, porque Margaret estava certa de que a crueldade era necessária para governar bem.
Ela o mantinha a seu lado. Ela mesma o ensinava. Para ela, o filho era todo o significado da vida; havia muito tempo ela decidira que Henrique nunca poderia ser transformado no homem que ela queria. Portanto, teria de ser Eduardo. Henrique estava, agora, em poder dos inimigos dela. Aquilo não era uma tragédia tão grande assim quanto teria sido, não fosse Eduardo. O filho era o elemento importante; seria o futuro rei dela; e era, também, seu filho. Ela o amava muito; tudo o que fazia era para o bem dele.
Por isso, começou sua marcha para o sul.
- Mais cedo ou mais tarde - disse ela ao pequeno príncipe
- ficaremos frente a frente com os exércitos do duque de York ou do conde de Warwick, e quando isso acontecer lutaremos e iremos vencer... vencer... vencer...
- Vencer - bradou o jovem príncipe com firmeza, como ela lhe ensinara.
Ela o agarrou e apertou-o com força. Era uma mãe efusiva.
- E um dia haverá uma coroa nesta cabecinha, eu lhe prometo. Muito embora o malvado duque de York vá tentar arrancála de você.
- Ele jamais a arrancará! - bradou o pequeno Eduardo, tal como Margaret lhe ensinara, e tocou a rosa vermelha de seda costurada em sua túnica.
Ele cavalgou ao lado dela à frente do exército e procurava o tempo todo espiões do malvado duque de York e espiões do igualmente malvado conde de Warwick.
Os habitantes das cidades mostravam-se hostis à medida que eles avançavam para o sul. Que ousadia daquela estrangeira levar consigo aquele bando de rufiões que consideravam os butins que pudessem recolher das cidades e das aldeias como presa fácil! Õ problema era que quando o saque começava, vinham pedintes e vagabundos de todas as partes do país para tomar parte nele.
Margaret nunca perdera o talento de voltar o povo contra ela.
Enquanto isso, bem para o sul, em Londres, havia um clima de ansiedade, e quando Warwick partiu com um exército, muita gente juntou-se a ele. Warwick levou o rei junto; estava ansioso por mostrar que ainda era o leal servidor de Henrique. Ele sempre dissera que não era a coroa que ele queria tomar; desejava apenas assegurar que o país fosse bem governado. Ele aceitava Henrique como o rei de direito, mas quando Henrique morresse, o jovem duque de York deveria ser o rei. Isso lhe parecia razoável, e havia muita gente disposta a concordar com ele.
O tempo estava horrível. Aquela não era a época do ano para guerrear. Infelizmente, era algo que Warwick não podia escolher; mas se o tempo estava ruim para ele, o mesmo acontecia em relação a seus inimigos, e aquele era o momento para uma batalha decisiva.
Foi no dia 12 de fevereiro que ele deixou Londres. Levava um exército respeitável e a boa vontade do povo da capital. Tinham chegado a Londres, como a outras cidades também, rumores sobre a conduta de hordas de saqueadores e salteadores que formavam o exército de Margaret, e os mercadores estavam horrorizados com a possibilidade de invadirem a cidade. A simpatia deles estava com os homens disciplinados de Warwick, e este sabia disso.
Ele estava confiante enquanto seguia para o norte. com ele iam o duque de Norfolk, o conde de Arundel, os lordes Montague e Bonville, Sir Thomas Kyriell e o capitão Lovelace, um cavalheiro de Kent que fora capturado em Wakefield e conseguira escapar. Este último era um excelente soldado, e Warwick transformou-o no encarregado de algumas de suas melhores tropas.
Ele tinha novas armas com as quais esperava espalhar o terror entre o inimigo. Havia armas de fogo que atiravam balas de chumbo e uma coisa chamada de fogo grego que, segundo se imaginava, deixava aterrorizados todos aqueles que o vissem. Tratava-se de pano embebido numa mistura inflamável que era acesa e presa às flechas; quando estas com o fogo grego preso a elas fossem disparadas em direção às fileiras inimigas, deveriam causar o pior tipo de pânico, porque incendiariam tudo aquilo que tocassem.
Em St. Albans, Warwick ordenou uma parada. Ele escolhera aquele ponto como o local da batalha. Tinha sido em St. Albans que ele, numa ocasião anterior, obtivera um grande sucesso. Olhando para o passado, ele percebeu que antes daquela famosa batalha era um homem um tanto apagado. Fora em St. Albans que mostrara seu valor. A cidade lhe trouxera boa sorte uma vez. Iria trazê-la de novo, agora.
Era sempre uma vantagem escolher o campo de batalha, e ele estava certo de que sabia de que lado Margaret estava vindo e espalhou suas forças de modo a fazer com que as duas estradas que vinham de Luton ficassem bloqueadas.
A rainha ainda estava um pouco longe, e ele tinha vários dias de descanso; aproveitaria para construir defesas. Ele estava magnificamente equipado. Seus arqueiros tinham escudos de um tipo que nunca fora usado antes; eles abriam enquanto os arqueiros disparavam as flechas e depois tornavam a fechar; aqueles escudos estavam cravejados de pregos, para que se o inimigo se lançasse ao ataque eles pudessem ser jogados ao chão para derrubar homens e cavalos e quebrar-lhes as pernas. Armadilhas foram colocadas de um lado a outro do campo.
Warwick se congratulou com os amigos pelos magníficos preparativos e garantiu-lhes que a batalha não duraria muito.
- Vigiem o rei - disse ele. - Ele não vai querer estar em pleno combate, mas seria bom protegê-lo. Não acho que ele vá tentar fugir, mas você, Bonville, ficará perto dele e alguém mais deverá juntar-se a você.
Sir Thomas Kyriell se ofereceu, e Warwick disse que não poderia haver escolha melhor do que aquela.
- Lovelace, eu o estou colocando no comando do flanco direito.
Lovelace sacudiu a cabeça. Não queria demonstrar o quanto se sentia aflito. Estava num dilema. Sua posição não era muito boa. Ele não havia fugido de Wakefield, como dissera. Tinha sido muito diferente. Ele tinha sido solto com uma condição. Não queria ser espião. Não era, em absoluto, seu papel. Ele era um soldado. Mas quando colocado diante da tortura e de uma morte horrível, tivera de fazer uma opção.
- Você pode voltar para o exército de Warwick - disseram-lhe. - Você irá chefiar soldados dele; mas na verdade estará trabalhando para nós. Enviará mensagens para nós dizendo quais são os pontos fortes e os pontos fracos dele; e vai nos transmitir os planos dele...
Ele queria não ter concordado. Queria ter aceitado a morte e a honra. Mas isso não era fácil para um homem.
De modo que ali estava ele, no exército de Warwick, gozando da confiança de Warwick. Bem, gozando coisa nenhuma... desejando com todas as suas forças que nunca tivesse sido capturado em Wakefield.
Mas talvez ele se preocupasse sem razão. Warwick iria vencer aquela batalha; e se vencesse, por que iria Lovelace preocupar-se com o que Margaret e seus capitães poderiam fazer a ele? Depois da retumbante vitória que sem dúvida Warwick iria conquistar, não haveria coisa alguma com que se preocupar.
Warwick venceria. Tinha de vencer. Tinha de dizimar o inimigo de tal forma que Lovelace nunca tivesse de se preocupar por não ter feito um jogo duplo.
A tenda de Henrique fora erguida embaixo de uma árvore, e lorde Bonville e Sir Thomas Kyriell estavam ao lado dele.
- Não se preocupe - prometeu-lhe lorde Bonville -, não vamos abandoná-lo. Ficaremos ao seu lado enquanto a batalha acontecer.
- Batalhas - murmurou Henrique. - Eu gostaria que nunca mais fosse preciso travar mais batalhas. Do que adianta esse derramamento de sangue? Eu não prometi que York ficará com a coroa quando eu morrer? Que vergonha, que vergonha eles tratarem assim aquele que foi ungido por Deus.
- É a rainha, majestade, que não concorda com a vontade do povo. Ela quer reivindicar a coroa para o filho dela.
O rei abanou a cabeça e balbuciou. Bonville e Kyriell trocaram olhares. Era estranho que o rei estivesse disposto a passar por cima do próprio filho. Seria possível, mesmo, que Eduardo não fosse filho dele e que soubesse disso? Ou simplesmente Henrique estava pronto a fazer qualquer sacrifício em nome da paz?
Uma coisa estava clara. Bastava olhar para o rei para compreender por que aquela guerra tinha de acontecer. Ele não tinha condições para governar; e quando havia um pretendente que se parecia com Eduardo Pernas Longas e agia como ele, estava claro que aquele pretendente seria o rei.
Assim que a batalha começou, Warwick percebeu seu erro. Suas defesas, às quais ele dedicara tanto tempo e das quais a vitória dependia, eram inúteis. Margaret não estava chegando por nenhuma das duas estradas que ele imaginara. Ela atacaria o seu exército na frente noroeste, que não estava defendida. Isso significava que os homens de Warwick estariam de frente para o forte vento, enquanto o inimigo teria o vento pela retaguarda.
Outro detalhe que ele não percebera era o tamanho do exército de Margaret; não chegava a ser exatamente o dobro do dele, mas chegava perto; claro que isso não significava um fator decisivo, mas em vista da topografia do terreno e da posição que lhe fora imposta, poderia resultar num desastre.
Começou a nevar, e o vento soprava a neve contra o rosto dos soldados dele; o fogo grego, ao qual eles não estavam acostumados, era pior do que um fracasso; acabava agindo contra eles. Quando o lançavam, o vento, cruelmente, soprava-o de volta; e eram eles que sofriam os efeitos da arma mortífera.
As redes e as armadilhas que ele armara foram inúteis; e os lancastrianos estavam arruinando suas defesas. Estava ficando claro que sua habilidade e engenhosidade não poderiam salvá-lo. Os homens viram logo que estavam sendo derrotados.
Lovelace percebeu isso. Ele tinha de salvar sua vida e só havia um jeito de fazê-lo.
Berrou uma ordem para a tropa que estava sob seu comando, e os soldados galoparam atrás dele, indo direto para o meio das forças lancastrianas gritando:
- A Henrique! Margaret, rainha para sempre! Margaret exultou. A batalha estava praticamente vencida, mas Lovelace acrescentou o toque final.
Warwick partiu em retirada. A primeira batalha de St. Albans tinha sido um desastre para Margaret; a segunda fora o triunfo.
Em sua tenda, protegido por lorde Bonvile e Sir Thomas Kyriell, Henrique estava sentado, rezando em silêncio. Em toda a sua volta ouviam-se os sons da guerra. Ele estava profundamente triste. Rezava pela morte - a sua morte, pois a ele parecia que na vida não havia outra coisa a não ser um conflito contínuo. Se ele estivesse morto, Eduardo de York seria o rei e talvez houvesse paz. Mas não, Margaret jamais se afastaria e deixaria que tirassem a coroa do filho. Aquilo tudo era por causa disso.
Sir Thomas estava sussurrando para lorde Bonvile:
- Nós devíamos ir agora. Nossos amigos estão batendo em retirada.
Lorde Bonvile hesitou.
- Quem protegerá o rei?
- Ninguém irá fazer mal a ele. Margaret não iria querer isso.
- Quem vai saber que ele é o rei? Henrique os ouviu sussurrando.
- Vocês estão planejando me abandonar - disse ele.
- Majestade, nosso exército está praticamente derrotado. Se ficarmos aqui, com toda certeza seremos mortos.
- Nada disso. Eu os protegerei. Vocês me protegeram e eu os protegerei.
Os dois homens se entreolharam. O dever deles era ficar com o rei. Warwick lhes ordenara isso, para que ele ficasse protegido contra os soldados de quaisquer dos lados que pudessem tentar assassiná-lo e assaltá-lo. Quando o saque começasse, não seria fácil contê-los. Se o rei fosse deixado sozinho em sua tenda e descoberto, muito provavelmente seria morto.
- Neste caso, majestade - disse Bonvile -, nós ficaremos.
A batalha estava ganha. O inimigo estava fugindo. Margaret se sentia triunfante. Abraçou o filho e bradou:
- Nós os derrotamos. Vamos expulsá-los dessa terra. Este é o fim de York e Warwick. Talvez eles agora compreendam isso. Vamos agradecer a Deus por essa vitória. Mas não descansaremos sobre ela, meu filho. Não, não, agora devemos ir para Londres. Vamos proclamar você herdeiro da coroa. Eu serei a regente até que você atinja a idade certa.
- Majestade - disse o príncipe -, e o meu pai?
- Seu pai está em poder deles. Queira Deus que ele esteja são e salvo. Tudo mudou, agora. Foi uma vitória, meu filho.
Lorde Clifford entrou na tenda. Estava nitidamente agitado.
- Majestade, nós encontramos o rei. O criado dele, Howe, está lá fora. Ele foi mandado aqui por lorde Bonvile.
- Traga Howe aqui, imeditamente.
O criado do rei ficou de joelhos em frente à rainha.
- Majestade, posso levá-la à tenda dele. Ele está protegido por lorde Bonvile e Sir Thomas Kyriell.
- Traidores - bradou ela. - Eles sempre foram meus inimigos.
- Eles protegeram o rei contra os soldados que poderiam ter feito mal a ele, majestade. O rei prometeu a eles misericórdia pelos serviços que prestaram.
- Leve-me até o rei... imediatamente - ordenou Margaret. Henrique se levantou com dificuldade.
- Margaret - bradou ele. Ela correu para ele e o abraçou.
- Graças a Deus você está vivo. Henrique... passaram-se tantos meses... Mas agora acabou.
- Margaret, ver você assim...
- Vitoriosa - bradou ela. - Nossos inimigos batendo em retirada!
- Agora, tem de haver paz.
- Paz quando conseguirmos o que queremos. Veja, aqui está seu filho. Eduardo, abrace seu pai.
Henrique abraçou o filho e havia lágrimas em seus olhos, enquanto ele olhava para o menino.
Margaret estava olhando para Sir Thomas Kyriell e lorde Bonvile, que tinham se mantido a distância enquanto o reencontro acontecia. A expressão dela endureceu. Aqueles homens representavam o inimigo. Eles tinham lutado com os iorquistas contra o rei deles.
- Lorde Clifford-disse ela -, chame os guardas e prenda esses homens.
- O rei nos prometeu o perdão - disse Lorde Benvile. Ela o ignorou.
- Majestade - começou Bonvile, apelando para Henrique.
- Sim, esses homens foram meus bons amigos - disse o rei.
- Ficaram comigo, quando poderiam ter fugido. Eu lhes prometi a liberdade.
A rainha fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Mesmo assim, temos de detê-los.
Os guardas entraram e levaram lorde Bonvile e Sir Thomas.
- Agora - disse Margaret, sorrindo - você deve recompensar aqueles que o serviram bem. Primeiro, seu filho. Você deve conceder a ele o grau de cavaleiro; e há outros que serviram à nossa causa com extrema bravura. Vossa Majestade, neste exato momento, quer ter a bondade de honrar aqueles que trarei à sua presença?
- com muito prazer - disse o rei.
Henrique estava descansando em sua tenda. Ainda se sentia muito debilitado e precisava de repouso para que pudesse suportar a viagem até Londres, que parecia necessária para consolidar o triunfo. Margaret sabia que o que tinha de fazer era marchar para Londres, tomar a capital e colocar o rei no lugar que era dele de direito, para que ele pudesse governar e que todos soubessem que ele tinha um herdeiro forte para sucedê-lo. A proclamação que decretara que Henrique deveria governar enquanto vivesse e então fosse sucedido pelo duque de York devia ser rejeitada e declarada irrita e nula.
Ela ficou contente com a fraqueza do rei porque isso lhe dava a oportunidade de fazer o que pretendia, e a partir do momento em que pusera os pés na tenda de Henrique, ela percebera que se o rei soubesse do que se tratava teria tentado impedir que ela o fizesse.
Ela montou um tribunal, e no recinto estavam o cepo e o carrasco com seu machado; ao lado dela, numa plataforma, estava sentado seu filho.
Sir Thomas Kyriell e lorde Bonvile foram trazidos. Eles tinham lutado ao lado do inimigo; tinham levado seus homens para servir contra o rei. Eram traidores do ungido. E qual o destino dos traidores? A resposta era a morte.
- O rei prometeu-nos perdão se ficássemos para protegê-lo
- disse lorde Bonvile.
- Não há perdão para os traidores - disse a rainha com frieza. - O senhor terá o que merece. A justiça será feita.
Ela se voltou para o filho.
- Qual o castigo que será dado a esses dois traidores, meu filho?
Bem instruído e ansioso por mostrar que aprendera bem as lições, o príncipe bradou:
- Eles devem perder a cabeça. A rainha sorriu.
- A sentença foi dada - disse ela. - Que seja cumprida sem demora.
O príncipe ficou olhando, olhos arregalados, enquanto os dois homens eram levados ao cepo do carrasco. Viu o sangue jorrar quando as cabeças rolaram separadas dos corpos.
Margaret percebeu que ele nem estremeceu nem se virou para o outro lado. Ficou satisfeita com ele. Estava certa de que quando crescesse não seria igual ao pai.
A DECISÃO FATÍDICA
- Isso - disse Margaret - deve ser o começo do fim. Demos uma surra no grande Warwick. O que é a vitória em Mortimers Cross agora? Cabe a nós marchar para Londres, a fim de mostrarmos o rei ao povo e dizer a ele que a guerra acabou. O inimigo está derrotado.
A resposta era aquela. Mas os condes de Pembroke e Wiltshire estavam pensativos. O exército de Margaret consistia nos homens mais violentos; grande quantidade deles era mercenária; estavam lutando aquela guerra não por uma causa, mas devido ao butim. Eram temidos e odiados no país inteiro.
Os soldados de York e Warwick eram de outro valor. Estavam lutando porque acreditavam que precisavam de um rei forte, e porque Henrique não estava apto a exercer o papel. Eles tinham apenas querido que ele reinasse com homens fortes para guiá-lo e que depois de sua morte York assumisse o trono. Independente de como fosse, York convencera muitos deles de que tinha mais direito ao trono.
O povo de Londres jamais teria aberto seus portões para o exército de Margaret. Não era preciso pensar muito para imaginar o saque que aconteceria se a cidade mais rica do reino fosse escancarada para os assaltantes. Londres tinha seus próprios soldados. Ela jamais deixaria a ralé de Margaret entrar.
Houve debates e discussões. Margaret começou a entender. Haveria oposição, e Londres já decidira o destino de vários reis.
Talvez ela não estivesse suficientemente forte. Talvez agora que mostrara que podia vencer batalhas ela fosse atrair tipos de homens diferentes para sua bandeira. Talvez não precisasse depender daqueles mercenários arrebanhados para ela por seus grandes amigos.
Quando Jasper acrescentou sua voz à dos outros, ela se viu inclinada a pender para o ponto de vista deles. Enquanto isso, ela ficou em St. Albans.
Warwick seguia à frente de seu exército derrotado. A luta em St. Albans tinha sido uma experiência humilhante. Olhando para trás, ele percebia onde ela não dera certo. Tinha havido preparativos demais, e de nada adiantaram - frustrados pela mais simples das estratégias. Acabaram derrotados também pela direção do vento. Tudo dependera daquilo - e da deserção de Lovelace. Quem teria acreditado que ele faria aquilo? Em quem se podia confiar? Os homens trocavam de lado com a mesma facilidade com que trocavam de botas.
E agora? Bem, ele já estivera em situações piores. Nem tudo estava perdido. Ele tinha de unir-se a Eduardo. O rapaz estaria animado, entusiasmado com o sucesso de Mortimers Cross. Juntos, eles formariam um exército respeitável; e seus homens iriam misturar-se com os vitoriosos e esquecer a derrota.
Warwick mandou mensageiros na frente, a fim de fazerem contato com Eduardo, e enquanto marchava ia fazendo planos.
Ele perdera seu testa-de-ferro. Não tinha mais o rei. Não podia dizer que era servo do rei quando agora o rei marchava com o inimigo. Do que adiantava o rei quando não era um testa-de-ferro? Pobre Henrique, era indolente demais para ser outra coisa qualquer.
- Ora essa, ora essa - disse Warwick, imitando a imprecação do rei -, já que não o controlo, terei de viver sem ele.
Ele estava bem-humorado quando, na cidade de Burford, fez contato com Eduardo e seu exército.
Os dois se abraçaram. Depois, Eduardo correu os olhos à sua volta.
- Onde está o rei? - perguntou ele.
- Bem à minha frente - respondeu Warwick. Eduardo pareceu perplexo.
- Você agora é o rei - disse Warwick.
Eduardo olhou fixo para ele; e então seu rosto ficou iluminado por um sorriso. Ele começou a rir.
- Há pouco tempo a perder. Vamos descansar aqui e eu lhe direi o que vai acontecer em seguida.
E assim eles descansaram, só por aquela noite. Não podia haver demora.
- Temos de chegar a Londres antes de Margaret - disse Warwick. - O povo de Londres não vai deixar que ela entre. Ele não confia nos exércitos dela. O povo vai nos receber bem para protegermos a cidade, e é isso que vamos prometer fazer, e então, meu amigo... e então... vamos dar a eles de presente o novo rei Eduardo - o quarto com esse nome. Eu sei que isso vai dar certo.
- Eu farei com que dê - disse Eduardo.
E Warwick ficou arrebatado de tanta satisfação. Aquela seria a jogada mais inteligente de sua vida. Da derrota, ele arrebanharia a vitória.
Londres estava num torvelinho. A notícia da derrota iorquista chegara até ela, e os cidadãos temiam que agora o exército de Margaret fosse cair sobre eles. Conselhos foram convocados às pressas para discutir a melhor providência.
A Orgulhosa Cis ficou aterrorizada por causa dos dois filhos, George e Richard. Ela estava cheia de presságios. A morte do marido e do filho a deixara melancólica. Estivera convicta de que era quase rainha da Inglaterra. Preocupava-se sempre com a segurança de Eduardo. Se ela o perdesse, todas as esperanças ficariam concentradas em George e em Richard.
Ela se despediu ternamente deles e mandou-os para os Países Baixos e instalou-se em Southwark para aguardar o pior. Enquanto isso, os magistrados tinham decidido que não teriam condições de impedir a entrada do exército da rainha e só lhes restava tentar negociar, talvez acalmá-los; de qualquer forma, evitar que praticassem os saques cometidos antes. Casas e lojas foram protegidas às pressas com tapumes de madeira, e as pessoas começaram a armar-se.
Chegaram mensagens de Margaret; ela precisava de alimento e dinheiro para o seu exército e exigia que Londres os fornecesse. O prefeito e os vereadores puseram-se a coletá-los. Quando chegou a notícia de que muitos dos rudes nortistas tinham ficado cansados de esperar em St. Albans e haviam desertado, voltando para o norte e procurando butins à medida que avançavam, os londrinos ficaram felizes.
Decidiram fazer algum saque e pegaram o alimento e o dinheiro que o prefeito e os vereadores tinham arrecadado para a rainha.
Foi um grande dia quando os mensageiros enviados por Warwick entraram na cidade. Ele, com o duque de York, estava indo para lá e não pediam outra coisa aos londrinos a não ser permissão para proteger a cidade dos rudes mercenários, muitos dos quais constituíam o exército lancastriano. Se a cidade abrisse suas portas, o conde de Warwick, com o duque de York, entrariam marchando e expulsariam todos aqueles que chegassem para destruí-la.
Houve comemoração por toda a cidade e quando os exércitos unidos de Warwick e York apareceram, as portas foram escancaradas e o povo foi às ruas para recebê-los. Um exército ordeiro entrou na cidade. Embora fosse a metade do de Margaret, ele vencera a mais importante de todas as batalhas sem lutar.
Quando, ainda em St. Albans, Margaret recebeu a notícia da chegada de Warwick e York a Londres, percebeu que perdera a grande oportunidade de toda a sua vida. Ela devia ter dispensado seu exército de desclassificados e entrado na capital com o rei e com os cavaleiros fiéis a ela. Eram em número suficiente e tratava-se de homens valorosos que acreditavam na causa. Mas Warwick antecipara-se a ela, e Londres o considerava, juntamente com o belo Eduardo, como seus salvadores.
A hora era aquela. Warwick percebeu isso e acreditava que em todos os assuntos o tempo era o fator importante. Margaret saíra vitoriosa em St. Albans mas vencera com um bando de rufiões, estrangeiros em sua maioria, e cometera o erro fatal de não ir com o rei para Londres. Agora, a perda da batalha de St. Albans não importava. Margaret se colocara em desvantagem em relação a eles, e Warwick não era homem de perder uma oportunidade daquelas.
Convocou os nobres iorquistas ao castelo de Bernard, uma das residências da Casa de York, e lá expôs o que tinham de fazer. Entre os presentes estava George Neville, irmão mais novo de Warwick e partidário leal, arcebispo de York e chanceler da Inglaterra.
- Não há tempo a perder - disse Warwick. - Londres está pronta para receber Eduardo, e o que Londres decidir hoje o resto do país aceitará amanhã. Sou capaz de jurar que se Eduardo for proclamado rei em Pauls Cross, o povo vai ovacionar até ficar rouco e estará pronto a apoiá-lo.
- Eu acredito que sim - disse George Neville.
Os olhos de Eduardo brilhavam. Aquilo representava o sucesso agora. Ele acreditara que acabaria por conseguir a coroa, mas não imaginara que seria tão de repente assim, em especial depois da derrota de Warwick em St. Albans.
Mas Warwick era um mágico. Ele era um daqueles feiticeiros que podia transformar uma derrota em vitória.
O primeiro passo, disse Warwick, seria George fazer um sermão em algum local popular... St. Georges Fields, por exemplo. Lá, ele diria ao povo que Eduardo era o verdadeiro rei deles de acordo com a linhagem. Era um parente mais próximo de Eduardo III do que Henrique. George lembraria ao povo que o filho de John de Gaunt havia usurpado o trono do filho do Príncipe Negro, mas que havia uma linha mais próxima do que a de John de Gaunt.
Depois, poderia dizer aos presentes que Henrique, por santo que fosse, não estava apto a governar. Que o povo entrasse em novos campos onde a rosa branca florescia. George sabia como jogar com o sentimento do povo, como provocar nele um desejo frenético de ver o belo e jovem herdeiro da Casa de York na posição que era dele por direito.
- Eu não gostaria que o povo acreditasse que eram apenas os Neville que tirariam a coroa de Henrique para tornar Eduardo rei - disse Warwick. - O povo de Londres tem de estar conosco. Você pode conquistá-lo, George, com a sua palavra, que pode ser tão poderosa quanto as nossas espadas, creio eu, e mais convincente.
George Neville estava decidido a provar o seu valor. Fez o melhor sermão de sua vida, e desde o começo ficou com o povo do seu lado.
- Meus senhores e minhas senhoras. Os senhores já viram o que acontece quando temos um rei fraco nos governando. O país está à mercê da guerra. Em vez de desfrutarmos dos prazeres simples de ficar ao lado das lareiras, somos vítimas da desesperança. Nossos lares são destruídos, nossas mulheres são seviciadas. Ingleses estão lutando contra ingleses. Isso não é modo de viver, meus amigos. Mas o que podemos fazer para acabar com isso? O que poderíamos fazer para nos vermos caminhando em um novo vinhedo? Nós podemos fazê-lo. Neste mesmo mês de março, poderíamos fazer um jardim alegre com essa bela rosa branca. Pensem no jovem duque de York. Ele não é um rei dos pés à cabeça? Não é ele a imagem viva de seu grande ancestral, aquele que, num excesso de carinho, era conhecido como Eduardo Pernas Longas? Ele tem até o mesmo nome... até as mesmas pernas longas, a mesma aparência bonita, a mesma dedicação ao seu país e aos seus súditos. O rei Henrique é um homem bom, ninguém pode negar. Mas os senhores, meus amigos, sabem que ele não tem domínio sobre suas próprias atitudes. Sabem que houve época em que ele ficou escondido por causa da fraqueza. Amigos, os senhores querem um rei inseguro para governá-los? Querem um rei que é controlado pela sua mulher estrangeira? Querem que a rainha Margaret os governe?
- Não - gritou a multidão com fervor. - Nunca.
- Eu os ouvi. Ouvi bem e, meus amigos, conheço o seu bom senso. Então, se não querem a rainha Margaret, será que aceitarão o rei Eduardo?
Os gritos encheram o ar. Não houve um "não" entre eles.
- Eduardo - cantavam eles. - Eduardo como rei. Warwick ficou contente. Aquilo dera um resultado melhor do
que ele pensara que fosse possível. George fizera o melhor sermão de sua vida, e na cidade o povo estaria falando sobre ele durante semanas... talvez durante anos. Porque iria haver uma mudança. Eduardo seria coroado rei.
Warwick foi a toda velocidade para o castelo de Barnard, onde Eduardo estava esperando ouvir o resultado de Fields.
- Vamos atacar agora - bradou Warwick. - Temos de estar com este caso resolvido antes que alguma coisa possa acontecer para impedi-lo. vou expedir uma proclamação para quartafeira. vou convocar o povo para Pauls Cross, e lá você será proclamado rei.
Para sua grande alegria, correu tudo como ele planejara. Eduardo foi proclamado em Pauls Cross e dirigiu-se imediatamente para Westminster Hall. Sentou-se na cadeira de mármore. Tornara-se Eduardo IV.
O povo gostava muito dele - particularmente as mulheres. As pessoas debruçavam-se em suas janelas para jogar flores da primavera enquanto ele passava. Ele tinha um sorriso para todos, e sorrisos especialmente calorosos para as mulheres. Mesmo num momento daqueles, ele conseguia mostrar sua admiração por elas. Elas haviam escutado histórias de suas aventuras amorosas que as faziam dar indulgentes risinhos abafados. Muito diferente do piedoso Henrique, comentavam elas.
- Ah, mas Eduardo é um homem.
Era isso. Elas o amavam. Era um grande Plantageneta outra vez. Um retorno dos gigantes louros que tinham figurado nas histórias que as mães delas ouviram de suas mães.
Não haveria mais guerras; paz para sempre; e um rei forte para manter a lei e a ordem enquanto lhes fornecia histórias de suas aventuras românticas.
Londres amava Eduardo. Londres fez dele o rei; e o resto do país tinha de aceitá-lo.
Warwick observava com satisfação. Ele agora era o poder por trás do trono, o Fazedor de Reis.
Ele convocou um conselho no castelo de Barnard.
- Não podemos permitir que esse sucesso nos cegue para a realidade - disse ele. - Temos de lidar com um grande exército lancastriano no norte. O rei está com ele, e isso significa que não podemos ficar sentados e desfrutar essa situação na qual nos colocamos à custa de habilidade e diplomacia.
Warwick fez uma pausa e olhou para Eduardo. Ele esperava que o jovem rei percebesse que quando ele dizia "nos colocamos" queria dizer, na verdade, "eu nos coloquei".
com aquela graça fácil que era quase tanto parte de seu charme quanto sua notável beleza, Eduardo disse:
- Richard, meu caro amigo, que eu perca a coroa se em algum momento eu me esquecer de uma só parte de seus esforços para colocá-la sobre minha cabeça.
Warwick ficou satisfeito.
- Você é digno de usá-la - disse ele. - Mais digno do que até mesmo seu pai teria sido. Não duvido que se você e eu ficarmos juntos iremos manter-nos firmes até que cada um de nossos inimigos esteja derrotado.
- Assim seja - disse Eduardo.
Aquilo foi como um elo entre os dois que só poderia ser rompido pela morte.
- Agora - disse Warwick - há serviço a fazer. O povo está conosco. Temos de dizimar os lancastrianos. Não descansarei enquanto Henrique não estiver em nossas mãos... e Margaret, também. Essa mulher é a fonte de todos os nossos problemas.
- Então - disse Eduardo - vamos reunir um exército e marchar atrás de Margaret.
Não foi difícil. Homens aderiam à bandeira de Eduardo. Compreendia-se que o fim da guerra estava próximo. Eles tinham um novo rei. Ele era do tipo que primeiro traria a vitória e, depois, a prosperidade.
Eduardo estava exultante. O papel de rei caía-lhe bem; mas não estava mais satisfeito do que Warwick. Este via em Eduardo o testa-de-ferro perfeito, o belo rapaz com a aparência correta, os modos corretos, tudo o que o povo procurava num rei; amante da boa vida, sim, mas isso era uma vantagem, porque deixaria o governo do país a cargo de Warwick, que seria o poder por trás do trono; Warwick, o governante da Inglaterra; chamariam Eduardo de rei, mas seria o Fazedor de Reis que governaria.
Era muito satisfatório - ainda mais por causa da derrota em St. Albans. Se ele pudera arrancar uma vitória daquela derrota, era capaz de tudo.
Ele fortalecera sua posição. Em todos os lugares importantes havia homens seus. O irmão George era o chanceler; ele providenciaria para que o Parlamento fizesse o que Warwick quisesse; seu irmão John, lorde Montague, iria com ele para controlar os exércitos quando seguissem para o norte. Hastings, Herbert, Stafford, Wenlock... todos reconheciam o génio de Warwick e queriam ser considerados amigos seus.
Foi um dia feliz quando ele levou o novo rei para Londres e Margaret decidiu que seria muito mal recebida se tentasse entrar lá.
A sorte favorecia os ousados - favorecia, mesmo. E ali estava ele naquela posição para a qual assestara sua mira desde a primeira batalha de St. Albans.
Tinha o poder sob seu controle. Tinha de agarrá-lo com forÇa; e não poderia estar certo dele enquanto Henrique não estivesse preso outra vez e Margaret não estivesse com ele.
Por isso, não havia tempo para rejozijo. Eles tinham de partir para o norte e não descansar enquanto não tivessem liquidado o exército de Margaret.
Amargurada, Margaret pensava no que acontecera. Que loucura, ter permitido que Warwick e Eduardo fossem para Londres. Ela sempre odiara os londrinos porque eles a tinham odiado. E eles haviam ovacionado Eduardo e Warwick. Tinham tido a ousadia de chamar Eduardo de rei.
Henrique estava com ela, e rezava o tempo todo. Disse a ela que estava muito cansado de guerras. Será que não acabariam nunca? Ele se sujeitaria a qualquer coisa... qualquer coisa para dar a eles o que queriam, qualquer coisa.
- Ora essa, ora essa, isso não é vida.
- Temos de pensar no nosso filho - disse Margaret, com veemência. -Já se esqueceu disso?
- Ele ficará feliz em algum lugar tranquilo - disse o rei -, bem longe do conflito.
- Ele não é igual a você - retorquiu Margaret. - Meu filho nasceu para ser rei.
Henrique suspirou. Sentia-se muito cansado. Margaret não conseguia ficar sentada, tranquila; ele disse que ela encontraria muito consolo na oração.
Ela andava de um lado para o outro - até a janela, esforçando-se para ver se havia um mensageiro chegando, depois voltava para perto da lareira, ficando ali com o olhar parado dirigido às brasas, vendo Eduardo proclamado pelos traiçoeiros londrinos... Eduardo em combate... a batalha que naquele momento estava acontecendo.
Ela era mantida informada. Assim que Eduardo se declarara rei, ele se preparara para a marcha rumo ao norte. Estava decidido a destruí-la assim como a seus exércitos.
- Não, majestade - pensava ela furiosa -, sou eu que vou destruí-lo.
Era o Domingo de Ramos. Henrique não queria ir com o exército.
- Este é um período para rezar - disse ele. - Devíamos estar ajoelhados juntos, os homens de York e os de Lancaster. Eles deviam pedir a ajuda de Deus para resolver suas diferenças.
Margaret demonstrava desprezo.
- Enquanto isso, eles devem confiar em seus arqueiros. Se as orações dessem resultado, não há dúvida de que você seria o maior rei do mundo.
Henrique abanou a cabeça, triste. Margaret falava com veemência. Ele jamais conseguiria fazer com que ela compreendesse seus sentimentos.
- É possível - continuou ela - que hoje Deus vá estar conosco. Em St. Albans, Ele esteve. Lá, a neve funcionou a nosso favor... não ao deles. Soprou no rosto deles e mandou o horrível fogo grego de volta para as fileiras deles. Os elementos estavam conosco, então. Deus queira que estejam agora. - Ela andava de um lado para o outro no quarto. - Que ousadia deles! Nós os derrotamos em St. Albans. Trouxemos você de volta para nós. Foi uma grande vitória. Como é que eles conseguiram marchar para Londres e proclamar Eduardo rei?
- Eles o fizeram - disse Henrique.
- E vão pagar por isso - replicou Margaret. - Como eu gostaria de estar com o exército agora! Adoraria ver o inimigo destruído. Nada irá me satisfazer enquanto eu não tiver a cabeça de Warwick na Ponte de Londres... sim, Ponte de Londres, onde gostam tanto dele. Quanto a Eduardo... rei Eduardo. Fico imaginando o que ele acharia de uma coroa de papel igual à do pai.
- Eu lhe imploro para não falar assim - disse o rei. - Como eu me sentiria feliz se pudéssemos resolver esse lamentável assunto de maneira amistosa!
Ele não servia para nada. Ela agradecia a Deus o filho que tinha. Sem ele, a vida não teria significado algum. Eduardo, querido Eduardo, possuía o mesmo nome do usurpador. Eduardo, nome de rei, pensara ela. E agora, aquele Eduardo dizia-se ser o rei.
A raiva ameaçava sufocá-la. Ó Deus, rezava ela, mande logo notícias da vitória.
A neve caía. Fazia um frio terrível. A neve ajudara-os em St Albans. Ela dava gargalhadas ao pensar em como Warwick, agindo com inteligência - segundo ele próprio -, se colocara em posição e depois descobrira que estava com seus soldados de cara para o vento.
O que estaria acontecendo agora? Os exércitos estariam se enfrentando...
Mensageiros, afinal. Ela desceu correndo para ir ao encontro deles.
- Quais são as novas? Quais são as novas?
- A batalha está sendo travada, majestade. Eles estão em Towton. Houve uma escaramuça em Ferrybridge. O inimigo estava em Pontefract e tentou garantir passagem pelo Aire em Ferrybridge. Seu exército, sob o comando de lorde Clifford, derrotou-os e abateu o líder deles, lorde Fitzwalter.
- Que Deus seja louvado!
- Mas eles atravessaram o rio mais abaixo, em Castleford, majestade.
- Que Deus os amaldiçoe.
- E agora combatem em Towton.
- Como está indo a batalha?
O mensageiro fez uma pausa, e Margaret sentiu um medo gelado tomar conta dela.
- É cedo para dizer, majestade. O tempo está ruim. A neve cai sem parar.
- Rogue a Deus que Ele a jogue na cara dos traidores, como fez em St. Albans.
O mensageiro ficou calado.
- Se não tem mais nada a me dizer, pode ir até a cozinha para comer e beber alguma coisa.
- Obrigado, majestade - disse o mensageiro. Ele estava contente por ter escapado. Não sentiria inveja daquele que tivesse de levar más notícias para a rainha.
A tensão continuava. Era insuportável. Margaret mandou chamar o filho, para que ele participasse da vigília. Ela não aguentava ver o rei de joelhos, rezando. Parecia muito frágil, inofensivo. Ele devia ter estado lá, com os soldados. Sua presença teria exercido seu efeito sobre eles. Que rei, que não podia guerrear porque chegara a Semana Santa!
As horas passavam. Nada de notícias. O vento uivava em torno dos muros do castelo. Margaret não conseguia afastar-se da janela.
E por fim chegaram notícias.
Para ela ficou claro que eram más. Ouviu com horror a história que o mensageiro tinha a contar.
Os dois exércitos tinham se enfrentado em Towton, uma aldeia não muito longe de Tadeaster, e a batalha durara dez horas. Lorde Clifford, depois de sua brava defesa em Ferrybridge, fora morto. Muitos dos nobres lancastrianos que não tinham morrido em combate tinham sido capturados, Devonshire e Wiltshire entre eles.
A batalha de Towton fora travada e ganha pelos iorquistas; e o rei e a rainha estavam em perigo iminente.
Margaret ficou chocada de dor. O que fazer? Uma coisa era certa: ela não podia permanecer ali e deixar-se ser detida com o rei e o filho deles.
Devia fugir a toda velocidade.
Foi procurar o rei. Ele continuava de joelhos.
- Levante-se - disse ela, de forma autoritária. - Não há tempo a desperdiçar com frivolidades. Temos de nos preparar para partir já. Houve um desastre em Towton. Temos de fugir antes que eles venham nos apanhar.
- Então a batalha terminou...
- Acabou e foi perdida. Partiremos imediatamente. A demora poderia ser o nosso fim. Este ainda não chegou.
O ânimo dela estava se recuperando. Aquele não era o fim de Margaret de Anjou. Houvera desastres antes, e ela sempre se recuperara deles. Ela ainda venceria. Seria derrotada por apenas uma batalha?
E St. Albans? A glória daquela batalha ainda não morrera.
Ela ainda iria vencer. Mas tinha de viver para fazer isso. Precisava manter o rei com ela. E enquanto tivesse o filho querido, Eduardo, pelo qual lutar, seguiria em frente. Acabaria vencendo Nem toda a habilidade de Warwick, nem todo o charme de Eduardo de York evitariam que ela colocasse o rei de direito no trono.
- Para onde podemos ir? - disse Henrique. Ela hesitou apenas um instante.
- Temos bons amigos no norte - disse ela. - O norte sempre esteve conosco. São aqueles pérfidos londrinos que estão contra nós. Pouco importa. Eles pagarão pela traição. Iremos para o lado de nossos bons amigos. Seguiremos para a Escócia.
Eduardo entrou em York com Warwick cavalgando a seu lado. Ao erguer os olhos para os muros, ele viu as cabeças de seu pai, seu irmão e seu tio, e a tristeza sobrepujou seu triunfo, mas logo depois foi substituída pela fúria. Seu primeiro ato seria mandar retirar aquelas cabeças e dar-lhes um enterro decente. Outras deveriam substituí-las. Não seria difícil achá-las.
Entrar em York em triunfo - rei da Inglaterra. Era o que seu pai teria desejado.
Margaret em fuga; seus exércitos em desordem. Um novo reinado começara.
OS ANOS DE ESPERA
Os anos estavam provocando seus efeitos. Ela não era mais a jovem e bonita rainha cuja aparência delicada não correspondia à sua urgente determinação. Mas nada que
o tempo pudesse fazer a ela podia dominar seu espírito. Talvez, se não fosse por Eduardo - seu querido, seu adorado, seu precioso filho -, ela teria desistido. Havia muito tempo que decidira que Henrique de nada valia para suas ambições. Por estranho que parecesse, ainda guardava um certo carinho por ele. Pensava muito nele e se perguntava o que acontecia com ele. Jamais seria capaz de lutar por si mesmo.
Fazia anos que não o via. Eduardo, agora, estava um rapaz. Era tão dedicado à mãe quanto ela era dedicada a ele, e durante todas as suas aventuras os dois mantinham os olhos no objetivo. Alguma coisa dentro dela não a deixava perder a esperança.
A princípio, quando eles tinham fugido de York e ido para a Escócia ansiosos pela hospitalidade de Mary de Gueldres, ela acreditara que dentro em pouco iriam voltar para a Inglaterra. Seria divertido, se não fosse trágico, o quanto do afeto do povo por eles bruxuleava e oscilava segundo a perspectiva dele. Eduardo IV estava coroado; o povo do sul o queria como rei. Mas o norte se mostrava mais fiel a Henrique. Era impressionante o domínio que um homem fraco daquela maneira podia exercer sobre o afeto do povo. Mas ele era um inútil quando se tratava de lutar. Muitas vezes Margaret dizia para si mesma que se ele tivesse aparecido em Towton à frente de suas tropas, em vez de passar o dia de joelhos porque era Domingo de Ramos, poderia ter havido um desfecho diferente para aquela batalha - e isso teria significado uma total inversão da sorte deles.
Bem, isso não acontecera, e ali estava ela no exílio na França... esperando... esperando pelo momento que ela ainda acreditava que chegaria.
Quando de sua chegada à Escócia, vindo direto de York, naquela época terrível, tinham achado necessário cumprir a promessa que ela fizera de entregar Berwick aos escoceses. Claro que os ingleses ficaram com ódio dela por causa disso. Ela sabia, naturalmente, que eles iriam considerar aquilo uma traição. Mas ela fora obrigada a encontrar um refúgio para eles. Precisava pensar no rei e no herdeiro do trono. Berwick, sem dúvida, era um pequeno preço para pagar pela segurança deles.
Ela percebera logo que sua única esperança estava em sua terra natal, com seu povo. Disse a Henrique que iria para a França. Precisava arranjar ajuda. Então, com um exército na retaguarda, voltaria. Pierre de Brézé ajudaria. Ela reuniria seus adeptos leais no norte e todos marchariam contra o usurpador.
Henrique abanara a cabeça, com tristeza. Queria apenas viver em paz.
Mas o espírito indomável de Margaret não ficava quieto. Pela primeira vez, ela se separara do filho. Que agonia tinha sido! Todo dia ficava aflita, pensando no que poderia estar acontecendo com ele. Decidira que quando os dois tornassem a ficar juntos, nunca mais iriam separar-se.
Era difícil chegar como suplicante. Estivera muito animada para rever o pai, e com que entusiasmo ele a recebera! Ele pouco mudara; ainda era o mesmo otimista fracassado. A mãe de Margaret morrera cerca de nove anos antes, e ele tornara a se casar. Estava absorto pela jovem esposa, Jeanne de Lavai, e logo ficou claro para Margaret que embora seu pai oferecesse dispendiosas recepções para ela mas sem poder pagar, na verdade ele não estava interessado em ajudá-la a recuperar o trono. Um olhar opaco surgia em seus olhos quando ela abordava o assunto. Ele concordara que o que acontecera era uma coisa horrível e que Eduardo de York não passava de um traidor que devia pagar pela sua maldade com a cabeça. Palavras... só palavras. Mas, é claro, era o que ela deveria ter esperado de René.
Foi um prazer ver a irmã Yolande, mas foi triste ouvir dela uma narrativa da morte da mãe. Yolande e o marido, Ferri de Vaudémont, tinham cuidado de Isabelle durante uma longa doença.
- Era terrível vê-la sofrer - disse Yolande. - Você não passou por isso, Margaret.
Por alguns dias, as duas ficaram inseparáveis, recordando o passado - no que podiam se lembrar, mas depois de algum tempo Margaret percebeu o tamanho da distância a que ela e a irmã tinham chegado uma da outra. Yolande a achava obcecada pela vingança e dominadora, e Ferri concordava com a mulher. Afinal de contas, Yolande não fora criada por aquela vigorosa avó.
Tinha havido um outro golpe. O tio de Margaret, o rei da França, morrera. Ele sempre gostara muito de Margaret e ela estivera contando com aquela ternura. Agora
que o delfim Luís se tornara o rei, a situação era outra. Luís se mostrava ardiloso, fazendo jus ao apelido de O Aranha; não estava tão enamorado pela prima quanto o pai estivera, e sem dúvida não se esforçaria para ajudá-la.
Houvera um amigo fiel, Pierre de Brézé. Ah, Pierre. Ele fora seu amigo constante; sempre tivera tal consideração por ela, que ela às vezes achava que ele estivesse apaixonado. Ele mudara... não em sua consideração por ela, mas sofrera um curto prazo de cativeiro no castelo de Loches, porque, quando da morte do rei Carlos Luís, se lembrara de velhas contas e tentara ajustá-las. Felizmente para Pierre e para Margaret, este tinha sido libertado logo depois.
Luís não demonstrara qualquer animosidade em relação a Margaret. Na verdade, ele a recebera com demonstrações de afeto, chamando-a de prima e oferecendo recepções em homenagem a ela em sua corte; mas como Pierre a avisara, não se podia ter certeza quanto a Luís. Seus métodos eram dissimulados.
Tinha sido uma grande felicidade quando Jasper Tudor chegara à França com Sir John Fortescue, que fora outro amigo fiel. Então, tinham começado negociações com Luís, que deixara claro que se Pierre de Brézé fosse ajudar Margaret, naturalmente que deveria haver alguma compensação. Luís sabia exatamente o que queria. Calais. A transferência já fora insinuada antes; agora ele queria que Margaret preenchesse documentos que dessem a ele aquela importante cidade.
Houvera longas consultas e expressões de apreensão por parte de Jasper e John Fortescue, que sabiam que se Margaret assinasse a entrega de Calais, os ingleses jamais a perdoariam. Jasper dissera que ela não devia fazer aquilo. Mas, alegara Margaret, o que importava? Calais se encontrava nas mãos dos ingleses; Warwick ainda era o capitão; ela podia assinar a entrega, mas isso não iria necessariamente dá-la aos franceses. A situação era desesperadora, porque eles não poderiam fazer coisa alguma sem a ajuda da França.
Por fim, ela concordara que quando os lancastrianos recuperassem Calais, Jasper deveria ser imediatamente nomeado capitão. Luís emprestaria a ela vinte mil libras, e se aquela quantia não fosse paga de imediato, Calais seria dele.
Foi o melhor negócio que Luís conseguiu, e estava certo de que Calais acabaria sendo sua.
Margaret jamais esqueceria aquele frio dia de outubro quando partiu de Harfleur com cinquenta navios e com os dois mil homens que Luís lhe permitira contratar. Até então, ela acreditara que tudo o que tinha de fazer era desembarcar. Infelizmente, não era assim. A má sorte a perseguia. Embora tivesse conseguido desembarcar em Tynemouth, o povo não fora em massa aderir à sua bandeira, e ela percebeu logo que sobreviver significava velejar a toda velocidade para a Escócia. Uma sorte ainda pior a aguardava; seus navios foram perdidos - dinheiro, mantimentos, tudo. Homens morreram afogados e alguns foram levados pelo mar até a costa, para se render aos homens de Eduardo.
Margaret e Pierre conseguiram chegar a Berwick, onde ela foi recebida com a notícia de que Eduardo estava marchando para o norte.
E não era só isso. Agora, os escoceses estavam menos inclinados a oferecer hospitalidade. Berwick estava em poder deles. O que mais teria para entregar a eles e fazer com que a ajuda deles valesse a pena? Mary de Gueldres queria ser amável; ela sentia pena de Margaret, mas o que podia fazer? Tinha suas próprias dificuldades.
Chegaram notícias da França dizendo que Luís já não se mostrava tão prestativo assim. O duque de Borgonha deixara claro ao rei da França que não aprovava que ele apoiasse a causa de Margaret. Eduardo era o rei e parecia estar firme no trono; o comércio entre Borgonha e a Inglaterra era importante. O duque poderia causar problemas na França se o rei persistisse em suas políticas contra Eduardo em favor de Margaret.
Luís era manhoso. Naquela altura, não queria atrito com Borgonha, de modo que deixou claro que não poderia haver mais ajuda de sua parte.
Parecia que Deus a abandonara. Seu único prazer era o filho. Ele parecia muito contente por ficar com ela. Estava crescendo, e ela prometera a si mesma que quando ficasse homem tudo seria diferente, porque seus soldados teriam, então, um líder a quem pudessem seguir. Ela estava certa de que seu Eduardo iria possuir todas aquelas virtudes necessárias em um líder. Dizia-se que o usurpador, o outro Eduardo, as tinha; mas todo mundo sabia a vida desregrada que ele levava. As esposas dos mercadores de Londres não estavam a salvo de sua devassidão. Era de enlouquecer ver que, quando as pessoas falavam disso, o faziam com um brilho nos olhos, como se se tratasse de alguma virtude. Diziam que isso se devia ao fato de ele ser tão encantador e belo, e era um prazer olhar para ele. Como se aquilo pudesse ser uma desculpa para seu comportamento aviltante! Mas às vezes Margaret achava que o povo estava bestificado por ele. Não seria sempre assim, mas enquanto isso seu Eduardo era apenas um menino e havia uma coroa a ser conquistada.
Houvera um breve momento de esperança quando Brézé marchara com ela entrando na Inglaterra e capturara o castelo de Alnwick. Mas aquele triunfo durara muito pouco. O conde de Warwick marchara para o norte e dentro de um prazo lamentavelmente curto retomara o castelo, e ela fora obrigada a bater em retirada, seu exército em desordem. Nessa época ocorreu um dos momentos mais aterrorizantes de sua vida. Estivera sozinha com Eduardo na floresta, perdida. Mantinha Eduardo a seu lado sempre, e em épocas como aquela jamais deixava que ele ficasse onde não pudesse vê-lo. Sabia que alguns de seus amigos não estavam muito longe, mas temporariamente perdera o senso de direção. As árvores eram muito grossas. Todas se pareciam, e Margareth não tinha certeza quanto ao caminho a seguir. E enquanto se achava ali agarrando com força a mão do filho, de entre as árvores apareceu o homem mais horrendo que ela já vira. Talvez se devesse a uma doença horrível a deformação de suas feições; ele parecia enorme, e era muito assustador.
Eduardo encolhera-se mais para perto dela, que o envolveu num braço protetor. O toque de seu próprio filho deu-lhe uma coragem ainda maior do que a de costume, embora ela nunca se amedrontasse com facilidade e sempre confiasse em seus poderes de sobrevivência.
Aquela criatura era um assaltante, um bandido... que vivia afastado de seus semelhantes, guardando um ressentimento em relação a eles por fazerem dele um pária devido à sua aparência grotesca. Ele se aproximou, uma faca nas mãos.
Margaret não teve coragem de mostrar o medo que sentia.
precisava proteger o filho. Em vez de recuar, segurou Eduardo com firmeza pela mão e aproximou-se do assaltante.
Meu amigo - disse ela -, este é o filho do seu rei.
Estamos perdidos na floresta. Estamos fugindo de nossos inimigos. Eu sei que você irá salvá-lo.
O assaltante dera uma parada. Era claro que ele estava perplexo. Devia ter ficado assustado por se ver cara a cara com a rainha.
- A senhora se arrisca ao perambular por esses bosques gaguejou ele.
- Isso, nós sabemos, e se o fazemos é porque não nos restou outra alternativa.
- Se continuarem, serão capturados pelos soldados. O bosque está cheio deles.
- Eu sei - disse Margaret.
- A senhora confiaria em mim? Ela olhou para ele, sem medo.
- Confiaria - respondeu.
- Então, me siga.
Ela o seguira sem medo porque, por estranho que parecesse, confiava naquele homem, apesar de ser um assaltante. Depois de certo tempo, eles tinham chegado a uma caverna. O homem entrou, assobiando baixo enquanto entrava, e poucos momentos depois uma mulher apareceu. Olhou para Margaret e para o príncipe, e Margaret disse:
- bom dia, minha amiga.
- É a rainha e o seu príncipe - disse o homem.
- O que ela vai querer da gente? - perguntou a mulher.
- Abrigo e um lugar para se esconder dos inimigos. A mulher fez um gesto afirmativo com a cabeça. Ouviram-se ruídos no bosque. Soldados iorquistas estavam
por perto. O que não dariam eles para capturar a rainha e o príncipe? Eles não deviam capturá-los! Ela preferia arriscar tudo a cair em mãos deles. Era melhor que lhe roubassem tudo que ela possuía. Não que tivesse muita coisa.
E assim ela e Eduardo tinham entrado na caverna. O lar do assaltante e sua mulher era dividido em dois aposentos. Um deles foi oferecido a Margaret e o filho, e durante dois dias eles permaneceram lá; tinham comido com o assaltante e sua mulher até o momento em que o assaltante fora anunciar que ela poderia sair em segurança.
Era estranho o fato de pessoas prestativas aparecerem em lugares inesperados. O bandido levará-a até onde estavam os amigos dela e ela se despedira dele com lágrimas de gratidão nos olhos. Ela dissera que tinha pouco a dar a ele, mas que jamais o esqueceria. Só pudera dar-lhe um anel em troca de seus serviços.
- De tudo o que perdi - disse ela a Brézé, que estava encantada e muitíssimo aliviada por reencontrar -, não lamento tanto quanto não poder recompensar à altura do que merecem aqueles que me servem.
Eles tinham conseguido voltar para a Escócia, mas a rainha fora recebida com muita frieza. Era como se todos, exceto ela, considerassem sua causa sem solução. Sendo mal recebida na Escócia, o que poderia fazer?
Brézé a aconselhara a voltar para a França. Lá, não havia dúvida de que encontraria mais solidariedade do que em qualquer outro lugar. Seu pai deveria ajudá-la; e o duque de Borgonha poderia, ela acreditava, ser persuadido a ajudar.
Ela se despediu de Henrique. Ele estava completamente atordoado, mal percebendo o que se passava. Reiterou que queria apenas ser deixado em paz com seus livros e suas orações.
Exasperada, mas de um modo um tanto carinhoso, a rainha se despedira dele.
- Eu conseguirei ajuda - dissera ela. - É a única maneira. Ele fizera um gesto afirmativo com a cabeça, mal prestando atenção.
E assim ela partira uma vez mais para a França com Pierre e o filho dele, Jacques, com Exeter e Sir John Fortescue, os poucos fiéis em quem ela podia confiar. E dessa vez o príncipe Eduardo estava com ela. Jamais voltaria a separar-se do filho.
Olhando para o passado, ela via que em sua determinação seguira fogos-fátuos - quaisquer luzinhas na escuridão que pudessem oferecer alguma esperança. Ela devia ter sabido que o astuto duque de Borgonha não ajudaria uma causa que ele, como tantos outros, achava ser perdida.
Mas saindo da Escócia, para onde eles poderiam ir? A esperança dela tinha sido o duque de Borgonha. Brézé não achava que eles pudessem procurar muita ajuda por lá, mas ela fora inflexível, porque se não fosse com Borgonha, que outro lugar poderia ser? Luís deixara bem claro que não estava disposto a ajudá-la.
Ela estava com muito pouco dinheiro; tinha de arranjar um empréstimo com urgência. Eles não tinham tempo a perder, de modo que assim que desembarcaram em Sluys ela enviou uma mensagem ao duque de Borgonha dizendo-lhe onde estava e pedindo para ser recebida por ele sem demora.
O duque ficara pasmo e aflito. Não queria recebê-la. A posição com o rei da França era delicada; ele sabia que Luís o observava mais atentamente e que Eduardo, apoiado por Warwick, estava se tornando um poder respeitável.
Mandara imediatamente Philippe Pot, um de seus seguidores de mais confiança e um homem de imenso tato e talento diplomático, procurar Margaret com a mensagem de que o duque não podia recebê-la naquele momento devido a compromissos urgentes.
Margaret se recusara a aceitar aquelas desculpas não convincentes e retorquira que se encontrava ali a mando do rei Henrique da Inglaterra e estava decidida a falar com o duque.
- Majestade - dissera o diplomático Philippe Pot -, já percebeu os riscos da viagem? Para encontrar-se com o duque, Vossa Majestade teria de passar perto de Calais. Seria sabido que Vossa Majestade estava viajando por lá e seus inimigos envidariam todos os esforços possíveis para capturá-la.
Claro que ela desprezara os conselhos dele. Ele tinha de saber que não podia dizer a Margaret de Anjou o que ela devia ou não fazer, e até o grande duque de Borgonha descobrira que tinha de obedecer ao que ela queria.
Mas embora ela tivesse forçado sua presença diante dele de tal maneira que a galanteria que era natural nele não lhe permitisse repeli-la, foi logo convencida a perceber que ele pouco podia fazer para ajudá-la. Ele conseguiu dar a entender que embora tivesse prazer em recebê-la, o rei da França não parecia muito satisfeito com o fato de ela ser sua convidada.
Que humilhação! Uma rainha da Inglaterra ser tratada daquela maneira! Fazer com que sentisse repetidas vezes que sua presença era indesejável. Todos eles pareciam ter aceitado Eduardo como rei da Inglaterra e mostravam claramente que não queriam estar envolvidos nas desavenças dela.
Não havia para onde ela pudesse se voltar; Escócia, França, Borgonha; ela representava um estorvo para todos eles.
Chegara uma mensagem de seu pai. Ela devia recolher-se por algum tempo às propriedades dele em Bar. Lá, poderia viver tranquilamente enquanto decidia o que fazer.
E então ela fora para aquela cidadezinha de St. Michiel. Não poderia estar mais isolada. A cidade parecia estar separada do resto do mundo. Havia paz, mas quando é que algum dia ela quisera a paz? Conhecia bem o interior, porque tinha nascido não muito longe dali, em Pont-à-Mousson. Lembrava-se da época de sua infância, quando andava a cavalo pelas margens do Mosela.
René lhe dera uma pequena pensão. Margaret se sentia agradecida, porque sabia que ele deveria ter pedido emprestado para pagá-la. Não era muito, mas adequada para que ela alugasse uma casa e lá formasse uma pequena corte. Mas até ele praticamente não tinha tempo para se preocupar com ela e com os problemas dela. Estava absorto por sua bela e jovem mulher e sempre fora um homem de viver o momento, sem se importar muito com o resto.
De modo que ali se encontrava ela numa pequena cidade murada, levando a vida de uma dama que ficara pobre e que no entanto, de alguma forma, mantinha o que parecia ser uma corte. Estaria eternamente grata aos amigos, em especial a Pierre de Brézé e Sir John Fortescue. Pierre gastara a maior parte de sua fortuna a serviço dela, e sua admiração e devoção eram um constante apoio para ela em todos os seus problemas; quanto a Sir John, sabia que ele estava pronto a segui-la para onde a má sorte a levasse. O que a cativava em especial nele era a dedicação que ele tinha pelo príncipe. Por ser um erudito - juiz e advogado -, ele estava capacitado a cuidar da educação do príncipe, e isso ele fazia. Para o príncipe, ele escrevera De Laudibus Legum Angliae, um trabalho que explicava a Constituição da Inglaterra e o comportamento real, porque ele temia - como confidenciara a Margaret-que o príncipe estivesse mais interessado na excelência marcial do que na instrução.
E assim os anos iam se passando. O príncipe estava crescendo e era motivo de grande satisfação para Margaret. Ele era a própria razão de viver no que dizia respeito a ela. Era dedicado a ela, e à medida que a rainha envelhecia, ele percebia cada vez mais tudo o que ela fizera e estava fazendo por ele.
No íntimo, ele desprezava o pai, mas isso só fazia com que o amor por sua mãe fosse mais intenso.
Observar os acontecimentos - tanto quanto era possível na longínqua aldeia onde morava -, cuidar do filho e ver Sir John treiná-lo para o papel de rei era o prazer dela naqueles anos. Ela nunca duvidara - tampouco Sir John - de que um dia Eduardo seria rei da Inglaterra.
As estações do ano chegavam e iam embora... sete anos passaram-se enquanto Eduardo de York continuava sendo rei da Inglaterra, e Margaret esperava.
Enquanto isso, Henrique estivera em situação ainda pior do que a de Margaret. Depois de Hexham, ele se tornara um fugitivo, escapando por tão pouco de ser capturado, que seus pajens e seu gorro real tinham caído em mãos do inimigo. Ele fugira da batalha com alguns de seus seguidores... cavalgando a noite toda... para qualquer lugar.
Mas ele tinha seus amigos. O norte era-lhe fiel. Havia muitos que acreditavam que o rei ungido era o rei verdadeiro e que qualquer outro que o substituísse, por mais forte que fosse, independente de sua reivindicação, era o usurpador. Havia muitas mansões senhoriais para oferecer hospitalidade onde ele pudesse descansar e ser alimentado e tratado como um rei. Mas, depois de uma ou duas escapadas por pouco, quando alguém o tivesse traído, ele tinha de seguir em frente. Havia muita gente que queria ajudá-lo mas tinha medo, porque o rei Eduardo não demonstraria misericórdia para com quem ele considerasse ser traidor, e abrigar o rei Henrique seria classificado como ato de traição contra Eduardo.
Henrique era um fugitivo. Ele ficava admirado. Ele, que tinha sido rei ainda no berço, agora era perseguido por todo o seu reino por um de seus súditos. Se ao menos pudessem deixá-lo em paz para rezar, meditar, ler seus livros santos, ele não se importaria com quem governasse o reino. Apenas queria sossego.
Mas não achava que conseguiria isso se o capturassem.
Em uma das casas onde lhe deram hospitalidade, ele ficara em épocas mais prósperas durante suas excursões oficiais pela Inglaterra. Lembrava-se da cerimónia de recepção, quando todos os criados ficavam estupefatos e profundamente respeitosos. Como era diferente agora, quando ele tinha de entrar sorrateiramente - com muita frequência receber um quarto pequeno que seu anfitrião dissesse ser seguro.
Tudo o que queria era apenas espaço suficiente para ajoelharse e rezar a Deus e talvez um catre para se deitar para algumas horas de sono necessário.
Uma noite, eles chegaram a Crackenthorpe, perto de Appleby, em Westmorland. Cavalgando noite adentro, tinham passado por um mosteiro. Henrique olhara para ele com olhos cobiçosos. O que ele não teria dado para ser um daqueles felizes monges! O destino fora cruel ao fazer dele um rei.
John Machell, o dono da mansão de Crackenthorpe, foi até o pátio depois que um dos amigos de Henrique entrara na casa para dizer-lhe que ele tinha visitas.
Tomando a mão de Henrique, John Machell a beijou, assegurando-o de seu serviço leal em todos os momentos.
- Este é o momento em que precisamos dele, John - disse Henrique. - Estamos exaustos de tanto viajar. Você pode nos dar uma cama para passar a noite?
- Majestade, minha casa está a sua disposição.
- Não, não, John, isso não adiantaria. Haveria muitos comentários. O seu rei vem como um fugitivo. Na Inglaterra, agora, existe outro que se intitula rei.
John Machell disse que havia apenas um rei no que lhe dizia respeito e que ele serviria a esse rei à custa da própria vida.
- É necessário que haja cautela - disseram-lhe.
Ele percebia isso e foi convencido a deixar que sua criadagem acreditasse que alguns viajantes a caminho de York estavam passando a noite na casa.
Havia um belo quarto para Henrique. Ele caiu de joelhos e ficou assim por muito tempo. Mandaram comida para o quarto, e ele encontrou um bom descanso e grande consolo na casa de John Machell em Crackenthorpe.
Ele pôde descansar ali por alguns dias, e então John percebeu que um de seus criados olhava para o rei de um jeito muito curioso e percebeu que estava na hora de Henrique seguir adiante.
John teve uma ideia. O abade de um mosteiro perto dali era conhecido seu, e ele acreditava que se tratasse de um homem que lamentava a usurpação do trono e fosse um verdadeiro lancastriano.
- Falarei com ele - disse ele. - Fique quieto em seu quarto, mas esteja pronto para partir se houver algum alarma. Pode haver pessoas aqui capazes de denunciá-lo ao inimigo. Estarei de volta antes do anoitecer.
Quando voltou, estava agitado. Acreditava ter algo a dizer que daria um imenso prazer ao rei.
Seu amigo, o abade, dera-lhe um hábito de monge. Ele sugerira que ao amanhecer o rei e seus amigos deixassem a casa. Depois de terem avançado um pouco, o rei poderia trocar a roupa e vestir o hábito. Então deixaria os amigos e se apresentaria ao abade, que saberia quem era ele, mas ninguém mais saberia. Claro que o abade iria oferecer-lhe hospitalidade e talvez ele pudesse misturar-se aos monges e viver como um deles.
Nada poderia ter deixado Henrique mais encantado. Ele ficou ansioso; os amigos nunca o tinham visto tão entusiasmado e disposto a aceitar um plano.
Correu tudo bem. Ele chegou ao mosteiro, foi bem recebido pelo abade e tomou seu lugar entre os monges.
Ele não estivera errado. Aquilo, sim, era vida para ele. Adaptou-se a ela com facilidade. Vivia de acordo com as sinetas. O silêncio preservado no mosteiro era-lhe de ajuda e tornava mais fácil ele esconder sua identidade; e como ele muitas vezes vivera como um monge, ninguém teria adivinhado que não era um deles.
Alguns meses se passaram naquela feliz situação, mas como era tido que ele estava em visita, vindo de outro mosteiro, não poderia ficar ali por muito tempo.
O abade, no entanto, poderia avisar um abade de outro mosteiro da chegada do rei e ele poderia descansar lá por mais um curto período antes de seguir adiante.
Henrique sentiu prazer em fazer aquilo. Deixou o mosteiro com muitos protestos de gratidão; e então começou sua vida errante. Percebeu que nenhuma de suas estadas poderia ser demorada, mas quando sentia os muros de um mosteiro fecharem-se em torno de si, quando ficava em sua cela austera, sentia-se mais feliz do que jamais fora em qualquer outro lugar.
- Se pudesse ter escolhido essa vida - dizia ele -, eu teria sido um homem feliz.
O tempo ia passando. Às vezes ele pensava em Margaret na França e em Eduardo, que estava ficando um homem. Os dois pareciam muito distantes. Talvez no fundo do coração não desejasse a volta de Margaret. Não queria que o conflito recomeçasse.
Por fim, ele chegou ao que era conhecido como a Casa Religiosa de Whalley, em Ribblesdale, e ali encontrou refúgio, como acontecera em outros lugares daquele tipo. com entusiasmo, abraçou a vida; rezar, trabalhar nos campos, independente do que fosse, sentia-se feliz ao fazê-lo. Às vezes, esquecia por completo a outra vida de cerimónias e árduas obrigações que nunca se achara apto a desempenhar.
- Ó Deus-rezava ele -, eu Vos agradeço por me trazerdes a este descanso. Se for de Vossa vontade, deixai-me passar o resto de meus dias numa vida assim tão boa.
Infelizmente para Henrique, suas orações não seriam ouvidas.
Ao lado da casa religiosa de Whalley existia Waddington Hall, e quando o Dr. Manning, reitor de Windsor, estava de visita lá, pediu a honra da companhia do rei. Henrique aceitou o convite e seguiu para o Hall em seus trajes de monge.
Se tivesse sido mais observador, teria percebido que havia alguns dias um dos monges vinha se interessando muito por ele. Os olhos desse monge estavam sempre voltados para ele, mas Henrique não percebera. O fato era que o monge estava ficando cada vez mais convencido da identidade de Henrique, e ocorrera-lhe que se o monge visitante fosse mesmo o ex-rei, o fato deveria ser transmitido àqueles aos quais poderia interessar. O país, havia alguns anos, estava sob o reinado de Eduardo IV, e ninguém negaria que a vida tinha melhorado muito. A mulher francesa era sinceramente detestada no país inteiro e havia rumores constantes de que ela estava esperando uma oportunidade para voltar. Se fosse isso, aquele monge estava representando algum papel. Estava escondido, esperando o momento em que a virago de sua mulher voltasse para tornar a mergulhar a Inglaterra num conflito.
O monge, agora, estava certo de que o homem que ele estava observando era Henrique. Foi procurar Sir John Tempest, a quem Waddlington Hall pertencia. Sir John, com seu genro Thomas Talbot, decidiu imediatamente tomar uma providência. Se aquele monge fosse realmente Henrique disfarçado, haveria uma boa recompensa para a sua apreensão, e além do mais eles se convenceram de que era para o bem do país mante-lo sob vigilância. Ele estava indo a Waddington Hall a fim de que pudesse conversar com o reitor no salão de jantar. Tinham de agir rápido. Não queriam ser acusados de cumplicidade em quaisquer tramas para reconduzir Henrique ao trono. Era muito fácil ver-se envolvido em assuntos daquela natureza, muito fácil homens inocentes serem chamados de traidores.
Por isso Sir John Tempest, com seu genro Thomas Talbot e Sir James Harrington, que morava em Brierly, perto de Barnsley, e era um homem que frequentara a corte, trocaram ideias. Pegariam o rei enquanto ele estivesse sentado à mesa de jantar em Waddington Hall, e de lá iriam transportá-lo para Londres, enviando mensageiros ao rei Eduardo e ao conde de Warwick relatando seu grande feito. Eles não tinham dúvidas de que seriam recompensados pela lealdade e pela rapidez da ação.
Assim, enquanto Henrique estava sentado à mesa de jantar em animada conversa com o reitor, alguns dos criados perceberam uma agitação do lado de fora. Havia um homem que servira ao rei desde a fuga de Hexham e sempre considerara que a segurança do rei estava confiada a ele. Alerta ao perigo, ele o pressentiu logo, e mesmo enquanto o rei fazia a sua refeição simples, estava ao lado dele.
- Majestade - disse ele -, não há tempo para coisa alguma, exceto fugir. Fomos traídos.
O reitor levantou-se depressa. O rei, nem tanto. Às vezes, ele pensava: "Se querem me levar, que me levem!"
Mas a vida levada ultimamente em mosteiros e lugares santos fora boa. Ele não queria abrir mão daquilo por uma prisão em algum lugar qualquer onde aquelas bem-aventuranças lhe poderiam ser negadas.
- Devemos partir... assim como estamos... - disse o fiel servo. - Mesmo agora talvez seja tarde demais.
Levantando-se da mesa, Henrique deixou-se ser quase arrastado do salão. Estava escuro lá fora.
- Temos de seguir para o bosque - disseram a Henrique. As árvores ficavam mais abundantes no bosque.
- Talvez possamos esperar aqui até de manhã - disse Henrique.
Seu criado abanou a cabeça.
- Não. Eles devem estar atrás de nós. Posso lhe garantir isso. Temos de ir para o mais longe possível. Talvez pudéssemos seguir para Bolton Hall.
Bolton Hall era de propriedade de Sir Ralph Pudsey, que já provara ser um leal servo do rei.
- Vamos - disse Henrique.
- Atravessaremos pelas Bungerley Stones - disse-lhe o criado, e quando Henrique tentou fazê-lo, ouviu-se um grito perto deles.
- Aqui estão eles - bradou Thomas Talbot. - Eles não foram muito longe.
Henrique olhou para eles, desanimado. Seus inimigos o tinham cercado. Enquanto eles se juntavam em volta dele, ele ergueu a cabeça e perguntou o que queriam com o rei deles.
- Temos de levá-lo até o rei Eduardo, senhor - disse Talbot.
- Ele quer saber onde o senhor está.
- É uma situação lamentável quando o rei ungido é tratado dessa maneira pelos seus súditos.
Os homens ficaram calados. Estavam apavorados. Mas se mostraram decididos a entregar sua presa ao rei Eduardo.
Foi deprimente cavalgar para o sul. Não estavam lhe mostrando o respeito devido ao rei deles. Ele pensava com saudade nos dias que passara em isolamento. Que bom seria a paz da vida santa! Que bom seria o consolo da oração!
Tinham chegado a Islington e lá, esperando por ele, depois de avisado de sua chegada, estava o conde de Warwick exibindo o Galho Nodoso e cavalgando como um rei, de modo que um observador poderia pensar que os papéis tivessem sido trocados. É ele que vem como um rei, pensou Henrique. Mas só que ele é um fazedor e desfazedor de reis. Ele fez Eduardo, tanto quanto me desfez.
- Bons olhos o vejam, senhor - disse Warwick.
- É mesmo? Você está vendo o seu rei em trajes humildes.
- Mesmo assim, é um prazer vê-lo. Mas o senhor não é mais o rei. Eduardo é o nosso rei.
- Meu pai reinou como rei, e o mesmo fez o meu avô. Eu fui rei ainda no berço. No entanto, vocês decidiram que não sou rei coisa nenhuma.
- Eduardo é o nosso rei, agora. O senhor é prisioneiro dele. O senhor deve se preparar para ir para a torre.
- E você deve fazer comigo o que quiser.
- Duvido que algum mal lhe aconteça se o senhor se mantiver no seu lugar.
- Meu lugar, ah! Esta é a triste questão. Fui ungido rei e acho que eu e outros neste reino conhecemos meu lugar.
Warwick deu ordens para que as pernas de Henrique fossem presas à barriga de seu cavalo com tiras de couro. Colocaram um chapéu de palha na cabeça dele, e assim ele entrou na cidade de Londres.
Londres era a favor de Eduardo, que levara prosperidade ao país; Eduardo sabia governar; ele tinha expulsado a virago angevina do país. Por isso, eles saíram para ver Henrique, pálido, indiferente e nada majestoso. Que diferença do belo Eduardo, todo sorrisos e bonomia, erguendo os olhares às belas mulheres que se debruçavam das janelas para dar-lhe vivas.
Henrique seguia cavalgando olhando para a frente, como se não se importasse com o que pensassem dele. Nunca o tinham odiado como odiavam sua mulher estrangeira. Ela fora a causa de todos os seus problemas, mas Henrique deixara que ela agisse como queria. Henrique era fraco; Eduardo era forte. Os londrinos não tinham de pensar muito para descobrir de que lado estava sua fidelidade.
Alguns ficaram calados; outros zombavam. Mas não lhe desejavam mal. Pobre Henrique.
E assim ele chegou ao seu quarto na torre.
Fracamente, ele protestava junto àqueles que o chamavam de impostor.
- Meu pai foi rei deste país - repetia ele -, ficou com a coroa pacificamente, a vida inteira. O pai dele, meu avô, foi rei antes dele. E quando eu era menino, coroado quase quando ainda de berço, fui aceito como rei por todo o reino e usei a coroa durante quase quarenta anos, todos os lordes jurando-me vassalagem, como tinham feito com meu pai.
Seus carcereiros advertiam-no. Ele tinha de ficar calado. O bom Eduardo estava no trono e ia continuar nele.
Fora um dia triste para Henrique quando de sua prisão. Ele não vira Eduardo, Warwick ou qualquer um dos nobres; fora deixado por conta dos guardas.
Havia muitos deles que se achavam poderosos por ficar encarregados de tomar conta do rei e poder tratá-lo como um ser inferior a eles.
Às vezes, eles o agrediam quando ele não respondia logo.
- Fale, homem - gritavam eles; e ficavam impressionados por terem agredido um rei, porque rei ele era, embora tivesse sido deposto. Era verdade que ele tinha sido ungido e coroado rei. E ali estavam eles, com ele à sua mercê.
Ele raramente protestava. Quando o fazia, era para dizer com
voz suave:
- Ora essa, ora essa!, vocês agem mal agredindo um rei ungido dessa maneira.
A docilidade dele os irritava. Se ele tivesse tentado reagir, eles o teriam respeitado mais. Mas seus modos convidavam aos xingamentos e ao desprezo. Eles não ligavam para o que lhe davam de comer e levavam para ele os restos de suas refeições. Para eles, parecia uma grande piada. Não lhe levavam roupas para mudar; seus cabelos iam ficando compridos; ele estava ficando muito magro e recusava as migalhas que lhe levavam.
Teria sido mais delicado tê-lo levado para o Green e cortado a sua cabeça, pensavam alguns guardas. Mas Eduardo era esperto demais para agir dessa maneira. Não ia fazer com que dissessem que ele tinha assassinado o rei. Ele chegara ao trono pelo direito de sucessão e pela conquista. Assassinato, não. Além do mais, havia um príncipe na França e uma mulher decidida que a qualquer momento poderia levantar a cabeça.
Não, o sangue do rei não devia ficar em suas mãos. Se ele morresse de morte natural, tanto melhor. Haveria um deles fora do caminho. Mas Eduardo concordava com Warwick: não devia haver sinal algum de assassinato.
E assim, enquanto Margaret aguardava em St. Michiel uma resposta a suas orações, Henrique definhava na torre, sujo, descuidado, insultado, frequentemente com fome e com sede, encontrando consolo apenas na oração.
A DISCÓRDIA
Nessa época, Richard Neville, conde de Warwick, encontrava-se no auge do poder. Ninguém podia negar - talvez nem mesmo o próprio Eduardo, o rei - que Warwick era
o homem mais importante do reino. Ele era, mesmo, o Fazedor de Reis. Eduardo nunca poderia ter conquistado a coroa se não fosse Warwick; e se Warwick tivesse decidido apostar tudo em Henrique, este estaria no trono naquele momento.
Ele admitia que a vida tinha sido boa para ele. Não por trazêlo ao mundo com uma fortuna nas mãos; não fora isso que acontecera. Apesar de ser filho do conde de Salisbury, sua grande fortuna não viera de seu nascimento.
Não, a vida sorrira para ele quando se casara com Anne Beauchamp, filha única de Richard Beauchamp, conde de Warwick, embora na época Warwick não fizesse ideia da imensa fortuna que aquilo representava. Na época do casamento, duas vidas tinham estado entre ele e a vasta herança dos Beauchamp. O irmão de Anne Henry, herdeiro de Warwick, morrera deixando apenas uma filha como herdeira, e dois anos depois da morte do pai a menina morrera. Anne era a única herdeira, e por isso, tudo passara para seu marido, que se tornara conde de Warwick e o nobre mais rico do país.
Anne lhe trouxera muita coisa, mas havia uma na qual ela falhara. Ele não tinha filho homem. Tinha suas duas filhas, Isabel e Anne - criaturas encantadoras, mas mulheres. E Anne não podia ter mais filhos. Ora, ela o tornara rico e lhe trouxera um grande título, de modo que ele devia ficar satisfeito, e suas duas filhas seriam as maiores herdeiras do reino.
Depois da primeira batalha de St. Albans e de suas proezas em Calais, ele era aceito como um dos heróis da era e tornara-se uma daquelas figuras lendárias que não podem ser apagadas. Podia haver o revés ocasional... mas não havia nada capaz de detê-los por muito tempo. Ele sabia transformar uma derrota em vitória, como fizera depois da segunda batalha de St. Albans. Quem teria acreditado que depois de sofrer uma derrota daquelas - podiase dizer uma débâde -, ele estaria entrando em Londres e proclamando um novo rei?
Ele tinha génio. Disso não havia dúvida. Ele sabia disso e, com sua inteligência, tinha feito com que outros aceitassem essa realidade.
Ele era o Lorde do Reino.
Eduardo teria lhe dado qualquer honraria de que ele precisasse. Bastaria pedir.
- O que você deseja, Richard? - perguntara ele. - Devo muito a você.
Ele dera de ombros. Não podia ser o rei. Mas era Warwick.
- Quero ser apenas Warwick. Acho que isso é suficiente.
Eduardo declarara, com satisfação instantânea, que sem dúvida era. Ninguém, no reino, jamais deveria esquecer o que todos deviam a Warwick.
- Ah, meu bom amigo, você tem razão. O nome de Warwick é um motivo de orgulho tão grande quanto qualquer homem poderia desejar.
Eduardo tinha aquele charme fácil. Gostava de deixar as coisas a cargo de Warwick. Warwick era astuto; tinha o povo com ele. Mas não tanto quanto Eduardo. Como o público amava aquela juventude dourada na qual as marcas da devassidão ainda não tinham começado a aparecer, mas iriam aparecer, Warwick sabia; ninguém podia viver da mesma forma que Eduardo e continuar ileso. O povo achava que aquilo era másculo. Deus nos livre! Mas era uma mudança, claro, depois da piedade de Henrique. Era surpreendente o fato de que embora o povo admirasse a piedade e a aplaudisse, em pouco tempo ele ficasse sinceramente farto dela; e quando um libertino como Eduardo passava a cavalo pelas ruas e olhava para as mulheres e filhas dos comerciantes, estes pareciam gostar.
Não havia dúvida de que Eduardo possuía aquela indefinível qualidade chamada de charme. Tanto melhor. Ele era o melhor testa-de-ferro possível por trás do qual um Fazedor de Reis podia trabalhar, desde que Eduardo não se esquecesse de que devia sua posição a Warwick.
Muitas vezes ele dizia ao rei que este não estava inteiramente a salvo. Era verdade que Margaret se achava no continente e Henrique estava na torre; mas enquanto Margaret vivesse, eles tinham de continuar vigilantes. Ela tinha amigos na França. Não apenas o pai - pobre inútil René, apaixonado por uma esposa jovem, agora... bem, Warwick estava certo de que ele faria isso muito bem. Mas eles não deviam esquecer-se dele. Ele poderia estar em condições de proporcionar a Margaret os recursos para retornar. Mas a grande ameaça era o rei da França.
- Ele não gosta tanto de Margaret como o pai dele a admirava - disse Eduardo. - Eu duvido que queira ser envolvido.
- Ele gostaria de nos assediar... um passatempo adorado pelos franceses há muito tempo, desde nossos antepassados.
- Ele não desejaria ir à guerra conosco.
- Ele poderia gostar de ajudar Margaret a fazer isso. O norte está pronto para levantar-se com ela. Não se esqueça de que eles esconderam Henrique aqueles anos todos. Ele tem amigos lá em cima. Eduardo, um casamento no nível certo poderia ser a melhor coisa do mundo para a nossa causa.
Eduardo confirmou com um gesto de cabeça.
- Casamento com a França-continuou Warwick, tateando.
- Isso mesmo.
Eduardo estava pensando na mulher mais encantadora que já vira. Quando ele estivera caçando, ela aparecera de repente à sua frente e, atirando-se de joelhos, pedira-lhe que devolvesse as propriedades do marido. Eduardo ficara perplexo ao ver que uma mulher tão jovem pudesse estar viúva. O marido, dissera ela, fora morto na segunda batalha de St. Albans.
Eduardo se apaixonava tão rápida e regularmente quanto a maioria das pessoas se sentava para almoçar; e devido ao seu charme e à sua realeza, invariavelmente ele dispensava as preliminares de uma corte. com a bela e jovem viúva, fora diferente. Ela era muito evasiva, de modo que Eduardo estava pensando nela, sem prestar muita atenção no que Warwick dizia. Claro que ele sabia que Warwick tinha razão. Ele teria de se casar, e casar-se em breve. Só esperava que a princesa francesa fosse apresentável. Não suportava mulheres feias. Mas, com seu habitual temperamento despreocupado, ele jogava tudo para o lado. Teria de cumprir com seu dever, e isso não precisava interferir com seus prazeres.
Warwick estava dizendo alguma coisa sobre negociações com o rei da França, falando um tanto presumidamente. Eduardo sorriu no íntimo. Acreditava que Luís tratasse Warwick como uma pessoa do mesmo nível que o dele. Era impressionante a importância que Warwick dava a isso.
- Nada de honrarias - dissera ele. -Já basta ser Warwick.
- Luís mudou o jeito de falar, ultimamente - disse Warwick, complacente. - Ele está cônscio de nossa força.
Warwick sorria consigo mesmo. Ele se referia à íorçadele. O astuto rei da França sabia com quem estava o poder na Inglaterra. O homem que tinha seu respeito não era tanto o rei, mas o Fazedor de Reis.
Ah, sim, ele podia sentir-se orgulhoso. Não havia dúvida de que estava no auge do poder.
O rei da França era mesmo amigo dele. Quando seu embaixador, jean de Lannoy, chegou à Inglaterra, tinha projetos brilhantes para apresentar a Warwick, que podia trabalhar com Luís. Haveria paz entre os dois países. Eles ficariam contra Borgonha; e seriam os aliados firmes que sem dúvida o destino pretendera que dois homens tão inteligentes assim fossem.
E naturalmente haveria um casamento francês. Eduardo necessitava de uma esposa. Talvez, pensava Luís, sua filha fosse criança demais. Ela precisava de mais tempo para crescer. Que tal a irmã de sua mulher, Bona de Sabóia?
Warwick concluiu que seria um acordo excelente. Ele o discutiu com seu irmão George.
- O rei deve se casar - disse ele. - O casamento é muito necessário para uma pessoa com o temperamento dele. Eduardo devia estar fazendo herdeiros, em vez de bastardos.
George concordou, mas ficava imaginando o que o rei pensaria sobre a escolha da noiva. Já que ele se tornara um conhecedor profundo dos encantos femininos, poderia ser difícil agradar-lhe.
- Isso é casamento, George. Não há necessidade de romance. Que o rei se case e tenha um herdeiro. Quem sabe, isso poderia até fazer com que ele fique um pouco mais sério.
George concordou plenamente. Era uma ideia excelente fazer um casamento que pudesse agradar ao rei da França e fortalecer a amizade entre os dois países.
Eduardo, ouvindo a proposta, exibiu seu costumeiro charme tolerante.
- Podemos confiar em Luís? - perguntou ele.
- Um casamento irá nos aproximar mais dele. Quando é que se pode confiar inteiramente em aliados?
- Essa Bona de Sabóia... - refletiu Eduardo.
- Uma criatura adorável sob todos os pontos de vista.
- Elas sempre são - disse Eduardo. - Muito bem, eu posso afirmar que ela é bem interessante.
Warwick estava contente quando foi contar a George a conversa que tivera.
- Ele prometeu?
- Ele não disse com tantas palavras assim que vai concordar com o casamento, mas acabará aceitando. Ele entenderá as vantagens. Eduardo não é bobo. Ele adora a coroa. Fará tudo para mante-la.
- Ou para deixar que você a mantenha para ele.
- Acho que ele é agradecido pelo que tenho feito.
- Espero que sim.
- Quando fiz dele o rei, eu sabia o que esperar de Edurado. Estarei com ele dentro em pouco. Ele está fazendo uma pausa para uma curta visita a Grafton Regis, para ficar com lorde Rivers, e depois irá juntar-se a mim.
- Ele parece ter passado a gostar muito dos Rivers. Warwick soltou uma risada.
- Creio que a mais recente paixão dele é a filha de Rivers. A viúva de Woodville.
- Uma mulher muito atraente, creio eu.
- Então você já ouviu falar nela. Meu caro irmão, o caminho do rei está coberto de mulheres atraentes.
Ele estava certo de que não seria difícil persuadir o rei. Tinha muita confiança em si mesmo. Subindo na crista da onda. Warwick, o absoluto. Não havia dúvida de que ele era o poder no país. O rei da França tratava-o como se tivesse sangue real; correspondia-se com ele - não com Eduardo. No mundo inteiro ele era conhecido como o governante da Inglaterra, o poder por trás da brilhante figura do rei. Tinham de tratar com ele se quisessem amizade com a Inglaterra. Quem iria ser rei, quando podia ser um Fazedor de Reis?
Ele tinha garantido que sua família partilhasse de sua prosperidade. Isso, sim, era sabedoria. Quando precisava de apoio, eles ali estavam para dá-lo. George, é claro, como chanceler, era rico e poderoso. John era, agora, o zelador da zona fronteiriça do leste; as duas irmãs tinham-se casado com homens de famílias influentes:
uma com William, lorde Hastings, um dos amigos íntimos do rei; e a outra, com Thomas, lorde Stanley, membro de uma poderosa família do norte. Ele espalhara sua influência. Acreditava que se comparasse suas possessões e sua influência às do rei, seria mais rico.
E Eduardo era receptivo. Parecia satisfeito em deixar Warwick governar. Até mesmo os hábitos libertinos do rei agiam em favor de Warwick. Era melhor o rei estar interessado na cama do que em política. Havia força nele, e se não se deixasse ser distraído com tanta frequência pela perseguição às mulheres, teria sido um poder de respeito. Por isso, seja grato outra vez, pensou Warwick. Mesmo assim, não deveria permitir que Eduardo ficasse muito íntimo de homens como Hastings, Staff ord e Herbert. Não seria bom ele achar que podia passar sem Warwick. Não que tivesse feito isso, mas ele estava crescendo. Era mais fácil lidar com um rapaz de dezessete anos do que com um homem entrando na casa dos vinte.
Eduardo não era um homem vingativo. Perdoava com facilidade seus inimigos; e um homem que tivesse lutado contra ele um ano poderia tornar-se seu amigo no ano seguinte. Ele estava até disposto a cultivar a amizade do jovem duque de Somerset, cujo pai fora um dos principais lancastrianos e o maior inimigo de Eduardo.
- Ao contrário das Escrituras, não imponho os pecados dos pais às terceira e quarta gerações - dizia Eduardo. - Se um homem quiser vir a mim e ser meu amigo, estarei pronto a esquecer o que seu pai fez.
E ele atraía homens para perto dele; a naturalidade de seus modos, aquele charme, aquela beleza fora do comum traziamlhe admiradores e amigos e também um número enorme de amantes.
Warwick observou que ele estava gostando muito da família Rivers. Por que, Warwick não conseguia compreender. com toda certeza não era porque ele, em determinada
época, tivesse gostado da filha de Rivers?
- Se ele for favorecer as famílias de suas amantes - brincava ele com George -, vamos ter tanta gente apadrinhada no país, que os favores ficarão na ordem do dia.
Mas precisamos casá-lo. Terei uma resposta dele na próxima reunião do conselho.
Naquela reunião do conselho Warwick recebeu o primeiro sinal de que o relacionamento entre ele e Eduardo mudara.
Havia muitos dos novos e íntimos amigos de Eduardo presentes, e Warwick não percebeu, no início, que eles estavam ali para se congregar em torno do rei, que não deu qualquer indicação a Warwick de que alguma coisa mudara entre os dois.
Todo mundo sabia quais as esperanças que Warwick vinculava à amizade com o rei da França e o quanto ele se orgulhava de sua capacidade de manobrar Luís. Portanto, o primeiro choque veio quando Eduardo declarou que não confiava em Luís da França.
- Nós soubemos, pelo nosso bom amigo, o conde de Warwick - disse o rei -, que Luís está ansioso por uma aliança conosco. Mas é uma realidade que Pierre de Brézé, o mais fervoroso e mais fiel defensor de Margaret de Anjou, goza de grandes favores na corte da França.
- Não é verdade - bradou Warwick. - Quando Luís subiu ao trono, Pierre de Brézé foi preso em Loches...
- E rapidamente libertado - retorquiu Eduardo. - Além do mais, eu soube por um de nossos prisioneiros franceses que Luís está tramando contra nós.
- Isso é um absurdo - bradou Warwick, arrasado não tanto por aquelas acusações, mas pelo fato de que Eduardo as levara ao Conselho sem primeiro consultá-lo. - Mandarei imediatamente um despacho para o rei da França comunicando-lhe as alegações que foram feitas contra ele e pedindo-lhe que prove aos senhores que não passam de um absurdo.
Ele olhou com ar desafiador para o rei, que enfrentou seu olhar com um sorriso, enquanto dizia que, como sempre, o conde de Warwick tinha ido ao cerne do problema, e se achava que aquela providência era a correta, que fosse.
Warwick respirou mais aliviado. Aquilo não chegava a ser uma revolta. Apenas uma opinião que Eduardo expressara. Não pretendera ser deliberadamente contra ele.
- E agora - disse Warwick - há a questão do casamento do rei. Tem de ser resolvida. Tenho muitas esperanças de que o rei concordará comigo.
Uma vez mais aquele sorriso encantador, afável.
- Concordo, senhor conde. Concordo, sim. Nada me agradaria mais do que me casar.
- Seus súditos ficarão encantados - bradou Warwick.
- É possível - disse o rei - que minha escolha não seja do agrado de todos que se encontram aqui presentes. Pouco importa; neste caso, vou fazer o que for do meu gosto.
- Majestade - disse Warwick, irradiando satisfação -, diga-nos quem é a noiva escolhida.
Ele estava certo, agora, de que tudo ia bem. Ele discutira o casamento com Bona de Sabóia, e Eduardo compreendera as vantagens que ele poderia proporcionar.
Então, Warwick não acreditou que tivesse ouvido bem. Será que o rei ficara louco?
Ele estava dizendo:
- Já escolhi a minha noiva. Ela será Elizabeth Woodville, filha de lorde Rivers.
Um profundo silêncio caiu sobre eles. Warwick ficou sentado como se estivesse entorpecido. Por fim, George Neville falou.
- A senhora em questão é virtuosa e muito bonita, majestade - disse ele -, mas será que não está em nível muito inferior ao seu para um casamento?
- Ela é de fato virtuosa e bonita - concordou o rei. Quanto ao seu nível inferior, graças a Deus isto é uma questão que pode ser corrigida facilmente.
George estava tentando adivinhar o que o irmão estava pensando. Ele sabia que Warwick não podia ter feito ideia alguma de que o rei ia anunciar aquilo.
- Eu sei que a mãe dela era a duquesa viúva de Bedford, mas ela não é filha de um duque... - balbuciou ele - nem mesmo de um conde. Como seria recebido um casamento desses, majestade? O que outros soberanos iriam pensar?
- Eles terão liberdade de pensar o que quiserem. vou me casar com Elizabeth Woodville ou não me caso com ninguém.
- Majestade! - Todos prestavam atenção em Warwick, que agora ficara de pé. - Eu conheço bem sua natureza jovial. Vossa Majestade está se divertindo à nossa custa. Não está falando sério, é claro...
Eduardo continuava sorrindo, mas em sua voz havia um tom forte.
- Estou falando sério - disse ele. - Falo de todo o meu coração. Pare com suas tentativas de me persuadir. De qualquer modo, elas já vêm tarde demais. Elizabeth Woodville e eu nos casamos em Grafton Regis...
Warwick desabou na cadeira. Não disse nada. As batidas do seu coração pareciam marteladas. Ele podia ter dado um soco naquele rosto sorridente, bonito.
Não disse nada, mas percebeu que estava acabado.
O fantoche transformara-se num homem e estava fora do seu controle.
Quando Warwick deixou a sala do conselho, tinha um grande desejo de ficar sozinho para pensar. Em toda sua vida, nunca se sentira tão arrasado. O fato de Eduardo ter agido daquela maneira já era péssimo, mas já se passara algum tempo desde aquele dia de maio em Grafton Regis, e ele estivera mantendo o casamento em segredo aquele tempo todo... e enquanto isso ele, Warwick, estivera negociando com o rei da França. Eduardo lhe causara o máximo de humilhação. Não apenas ele se libertara, mas chegara mesmo a não revelar aquele importantíssimo segredo ao homem que o fizera.
Warwick não tinha certeza de como agiria.
Seu irmão George foi procurá-lo, muito aflito. Por alguns instantes, os dois se entreolharam, incapazes de expressar seus pensamentos. George estava muito preocupado.
- O que você vai fazer? - disse ele por fim.
- Ele está decidido a agir como quiser. É essa mulher. Ela deve ser uma feiticeira.
- Ele é facilmente enfeitiçado pelas mulheres.
- Ele teve tantas, que deve sentir muito ter sido arrastado a isso por essa. Pense no que isso significa. Ele me deixou negociar com Luís enquanto na verdade já estava casado. Vou ser motivo de zombaria em toda a França e em toda a Inglaterra.
- Você não, irmão. Luís compreenderá que temos de lidar com um garanhão irresponsável.
- Nunca vou esquecer a maneira dele ficar ali, sorrindo para mim... com aquela expressão no olhar. "Eu vou fazer o que quiser. Não ligarei para as necessidades do meu país, para os esforços que o homem que colocou a coroa na minha cabeça fez para fazer exatamente isso." Ah, George, que torpe ingratidão!
- É mesmo - concordou George.
- E pense nas implicações.
- Estou pensando, e me pergunto o que você vai fazer. Acha que seria melhor não dizer nada, no início? Afinal, a coisa está feita-. Os dois estão casados. Nada pode mudar isso... exceto o divórcio. Você se portou com uma calma admirável no Conselho.
- Fiquei tão chocado que não consegui falar.
- Isso não é tão ruim assim, porque poderia ter sido perigoso você dizer o que pensava.
- Por Deus, se eu tivesse falado...
- Sim... Nós todos estávamos do seu lado. Isso foi um ato de loucura que o rei vai perceber à sua própria custa, e quando isso acontecer, será para você que ele se voltará, irmão. Ele vai desejar ter ouvido seus conselhos.
Warwick ficou calado. George estava certo, é claro. Ele tinha um raciocínio claro, incisivo. Warwick teria de aceitar aquela mulher de berço humilde como rainha. E com o tempo, ao perceber a loucura que cometera, o rei voltaria a ouvi-lo. Soltou um suspiro profundo. Então, disse:
- Você está certo, George. Tenho de ficar calmo. Não devo dizer coisa alguma. Tenho de dar a impressão de que aceito essa mulher como rainha.
Assim, quando Eduardo o procurou sorrindo como se não tivesse havido desavença alguma entre os dois, concordou em apresentar a rainha aos lordes na abadia de Reading.
- Meu irmão Clarence caminhará de um dos lados de Elizabeth e você, Richard, irá do outro. Isso me agrada. Meu irmão e meu amigo mais chegado para recebê-la. Ela ficará muito feliz... e eu também.
Sufocando a raiva, abafando o rancor, Warwick fez o que o rei queria, mas foi preciso um controle acima do normal de seus sentimentos para realizar o exercício de boa vontade.
Manter aquela atitude era mais fácil imaginar do que colocá-la em prática.
Elizabeth Woodville era uma mulher ambiciosa e estava cercada por membros pobres da família. Estava decidida a promovêlos, e seu poder sobre o rei era tal que ela teve pouca dificuldade para fazê-lo.
Warwick ficava contente ao ver que muitos dos nobres tornavam-se cada vez mais desgostosos com a subida de nível da família Woodville. A rainha casou sua irmã Margaret com lorde Maltravers, filho do conde de Arundel; a irmã Mary se casou com o filho de lorde Gerbert, que era herdeiro do título de Pembroke; e houve uma grande indignação quando o irmão John, com vinte anos de idade, ficou noivo da duquesa de Norfolk, que estava com quase oitenta anos.
Era fácil perceber os motivos por trás daqueles casamentos. Ninguém compreendia mais do que Warwick a grande importância do casamento certo. Ele devia sua imensa riqueza e seus títulos ao dele. Estava vendo que dentro de pouco tempo os Woodville teriam mais importância do que os Neville, graças àqueles casamentos vantajosos.
O povo não gostou. Ele lamentava o casamento. Até mesmo os mais humildes do país criticavam a classe inferior de Elizabeth Woodville - o que era divertido, apesar de não muito útil.
Warwick começou a perceber que se não fosse cuidadoso seria expulso do reino do poder. Tudo o que ele fizera seria esquecido; haveria uma nova família mandando no país - a dos Woodville.
Chegara a hora de ele pensar muito. Como devia proceder um Fazedor de Reis quando seu fantoche se recusava a responder aos cordões? Arranjava um novo fantoche.
Era um projeto emocionante. Havia outro. Naquele momento, ele era um pobre prisioneiro esquecido na torre.
Era preciso pensar muito naquilo.
Chegou um dia em que ele ficou frente a frente com Eduardo, e devido ao fato de seus planos já estarem tomando forma em sua mente, não sentia mais a necessidade de esconder seus sentimentos.
Eduardo percebeu a estranha expressão pensativa em seu rosto e quando perguntou qual era o problema, a raiva de Warwick explodiu.
- Precisa perguntar, meu senhor? Estou sofrendo de um excesso dedeslealdade. Dei minha vida ao que acreditava ser uma boa causa. Desperdicei homens e dinheiro para dar à Inglaterra um governante que pensei que fosse servi-la bem. E o que ele faz? Arranja um casamento que é um suicídio para sua vantagem política. Ele destruiu a esperança de uma aliança com a França. No que me toca, jogaram por cima de mim um ultraje. Enquanto eu estava negociando com o rei da França, o senhor estava zombando dessas negociações... não apenas do seu fiel amigo, mas do rei de um poderoso país. O senhor ainda tem dúvidas de que eu esteja angustiado?
Eduardo não expressou surpresa ao ser tratado daquela maneira por um súdito. Ele sempre reconhecera Warwick como um súdito que recebia uma consideração especial. Passou um braço pelo ombro dele.
- Você se irrita sem necessidade - disse ele. - Eu sei que o povo não gosta do meu casamento. Mas Elizabeth é diferente de todas as mulheres que já conheci... e estou falando de uma mulher que sabe muito de sexo. Não me restava opção, Richard. Era casamento, ou nada...
- E você caiu nessa conversa?
- Ora vamos, ela estava sendo sincera. Ela era uma viúva virtuosa.
Warwick empurrou o braço de Eduardo.
- Foi um ato de loucura, e lhe prometo que será um ato do qual se arrependerá.
Ele não esperou por mais nada. Agora fizera o rompimento. Apesar de afável, Eduardo não esqueceria aquela cena tão cedo.
Agora teria de agir, decidiu Warwick, e sabia o que fazer.
Warwick cavalgou para o norte, até seu castelo de Middleham, a cabeça fervilhando de planos. Em Middleham estavam os irmãos do rei, George e Richard. Ele sempre tivera um relacionamento muito bom com eles. Não poderia haver dois irmãos menos parecidos. George, duque de Clarence, era fútil, avaro e egoísta; era manobrado com facilidade, e Warwick conseguira conquistar sua amizade. O outro, Richard, duque de Gloucester, era um rapaz tranquilo, estudioso, muito delicado, fora criado em Middleham e fizera uma amizade muito forte com a filha mais nova de Warwick, Anne.
Portanto, Warwick achava que tinha os dois príncipes em seu poder. Clarence seria manobrável; ele não estava tão certo assim quanto a Richard. O rapaz mais moço era apaixonadamente dedicado ao irmão Eduardo e não seria facilmente convencido de que sua vantagem poderia estar em outro lugar qualquer. Na verdade, Warwick sabia que Richard ficaria do lado do irmão, independente do que acontecesse.
Clarence, por outro lado, estava descontente. Tinha idade suficiente para perceber que os Woodville estavam se tornando rapidamente a família mais importante do país, e isso era algo que ele não estava disposto a tolerar, porque havia uma arrogância em torno da família da nova rainha que se estendia ao irmão do rei.
Assim, só lhe restava ir para Middleham, onde suas duas filhas, Isabel e Anne, e sua mulher esperavam para recebê-lo.
Richard também estava lá, no pátio. O rapaz crescera desde a última vez em que Warwick o vira, embora ainda fosse delicado e fosse um pouco mais alto do que o outro, embora ligeiramente, e de forma quase imperceptível. Pobre Richard, faltavam-lhe a notável beleza e o físico de Eduardo, mas isso não impedira que ele participasse de todos os passatempos másculos necessários aos meninos de sua classe.
O duque de Clarence estava a caminho, disse a condessa. Ele enviara arautos para anunciar sua chegada, já que o conde expressara um desejo urgente de vê-lo.
Warwick abraçou a família. Ele as amava com a afeição que podia desviar de suas ambições. Claro que passara pouco tempo com elas. Jamais conseguia deixar de se lamentar por não ter um filho homem; mas as jovens eram engraçadinhas, encantadoras e obedientes. Portanto, ele devia ser grato pelo que tinha.
Clarence chegou num estilo muito vistoso, ansioso por que ninguém se esquecesse de que era irmão do rei. Warwick o saudou com tal respeito que até Clarence ficou satisfeito. À rnesa, ele se sentou do lado direito do conde. Warwick deu a entender que queria falar com os dois duques a sós, assim que a refeição terminasse.
Quando os três ficaram juntos num cómodo pequeno mas privado, Warwick olhou muito sério de George para Richard e disse não ter dúvida de que os dois estavam tão preocupados quanto ele com a maneira pela qual os Woodville estavam se portando.
- Eu estou mesmo! - bradou Clarence. - Esses casamentos... essa assunção do poder... e tudo por esses novos-ricos.
- Estou vendo que percebe bem a situação - disse Warwick.
- O povo está ficando descontente. Não acho que o rei compreende o quanto o povo está ficando irritado.
- Se o povo estiver ficando irritado, meu irmão, o rei, deve estar ciente disso - disse Richard, com gravidade.
Ah, pensou Warwick, cuidado com Richard!
- Nosso irmão está ocupado demais com a mulher dele disse Clarence com uma risada.
- O que diz é verdade. Receio que este país entrará em guerra outra vez se não ficarmos atentos. Na verdade, acho que está na hora de o nosso rei aprender uma lição.
Richard ficara lívido.
- Não ficarei aqui para ouvir tamanha falta de respeito para com o rei.
com isso, ele se retirou do aposento.
- O senhor se engana-gritou Warwick, enquanto ele saía.
- Eu amo o rei. Eu o tenho servido com tudo o que possuo...
Mas Richard tinha ido embora. Clarence deu de ombros.
- Ele é muito jovem - disse ele. - Ele venera Eduardo cegamente. Chega até a dizer que gosta desse casamento porque é isso que Eduardo quer.
- É verdade que ele é jovem - disse Warwick -, e, portanto, o senhor e eu não precisamos nos preocupar com ele por enquanto. Foi bom ele nos deixar, porque agora podemos conversar de homem para homem.
Clarence sorriu, satisfeito.
- Eu sabia que o senhor tinha algo importante para me dizer.
- Tenho, sim. Como sabe, fiz seu irmão rei da Inglaterra.
- Eu sei que o senhor é chamado de Fazedor de Reis.
- E com razão. Parece-me, senhor duque, que se deixarmos que as coisas continuem como estão, o senhor e eu... e o jovem Richard, que não quer ouvir coisa alguma... por enquanto... seremos os súditos dos Woodville, porque todos esses casamentos que eles estão fazendo irão torná-los mais poderosos do que qualquer um de nós... inclusive o rei.
- Não vou tolerar isso.
- Achei que não iria.
- E então?
- Seu irmão não está tão firme no trono a ponto de dar-se ao luxo de um casamento desses. Há outra pessoa...
- Henrique... pobre Henrique... o prisioneiro na torre.
- Um testa-de-ferro, nada mais. E nós teríamos um herdeiro. Não o bastardo de Margaret... porque acredito que ele seja um bastardo. Henrique nunca poderia ter gerado um filho, e ela foi muito amiga, primeiro de Suffolk, e depois de Somerset... Haveria um herdeiro...
Warwick estava olhando atentamente para Clarence, cujos olhos se arregalaram quando ele percebeu o que o conde estava querendo dizer.
Clarence no trono! Por que não? Ele era irmão de Eduardo e, de fato, se Eduardo não tivesse filho, ele era o próximo na linha que levava ao trono.
Era uma perspectiva maravilhosa.
- Bem? - disse ele, quase em tom imperativo, como se a coroa já estivesse na sua cabeça.
- O rei da França seria nosso aliado. Mas precisaríamos da ajuda dele. Iríamos, também, trazer Margaret de volta para trabalhar ao nosso lado...
- com o príncipe de Gales...
- Por que não iriam eles trabalhar para nós? Embora o povo a deteste, ele gosta de ter tudo em ordem. Se pudéssemos libertar Henrique e seguir com ele para o combate... e trazer Margaret e o suposto príncipe de volta para a. Inglaterra...
Os olhos de Clarence cintilavam. Ele adorava uma intriga, e à medida que pensava nas possibilidades daquela, ia sendo dominado pela agitação. Sempre sentira ciúme de Eduardo. Sua mãe, seu pai, todos tinham ficado maravilhados com a beleza e o charme de Eduardo, e não fora fácil um homem como Clarence ter um irmão assim.
E agora Eduardo bancara o tolo! Casara-se com aquela mulher de classe inferior; ofendera Warwick, e todo mundo sabia que Warwick o colocara no trono. Eduardo mostrara, finalmente, que não era tão inteligente assim. E Clarence mostraria que ele era inteligente, muito inteligente, mesmo.
Warwick estava sorrindo. Como era fácil! Henrique seria muito mais maleável. Imaginem Clarence no trono! Ainda assim, talvez a coisa nunca chegasse a esse ponto.
- Há muito tempo que sei de sua consideração para com a minha filha mais velha, Isabel - prosseguiu Warwick.
Clarence sorria no íntimo. Era tão óbvio! Que astuto era Warwick! Fazer de Clarence o rei e de sua filha Isabel a rainha.
- Senhor duque - disse ele -, o senhor adivinhou meus sentimentos muito bem. Sempre tive a maior consideração para com Isabel, e ultimamente meu coração ficou profundamente envolvido.
- Estive pensando que um casamento entre vocês seria um resultado muito interessante para os dois.
- O senhor adivinhou o desejo que me vai no coração. Warwick colocou a mão sobre o braço do rapaz.
- Bem, primeiro, haverá um trabalho a ser feito.
- Mal posso esperar para começar - respondeu Clarence.
A DOR DA RAINHA
Chegaram visitas importantes ao castelo de St. Michiel. O príncipe Eduardo entrou agitado para comunicar à mãe a chegada delas. A vida era muito tranquila em St. Michiel. O príncipe andava ansioso por que alguma coisa acontecesse. Sua mãe vivia dizendo que um dia eles voltariam para a Inglaterra a fim de reivindicar o que era deles por direito, e Sir John Fortescue estava sempre dando-lhe aulas e incutindo nele que um príncipe nascido para ser rei tinha de ser instruído tanto no que ensinavam os livros quanto nas artes marciais.
Mas nada acontecia. Os anos se passavam. Ele era criança quando fora para lá, e agora estava com dezessete anos. Parecia que passara a vida toda naquele castelo tranquilo onde cada dia era exatamente igual ao anterior.
E agora... mensageiros.
Ele estava ao lado de sua mãe quando os mensageiros foram levados a ela. Ficou ao lado dela, enquanto ela recebia as cartas.
Eram várias. Uma delas levava o selo real. Havia outra do avô dele e uma de sua tia também.
A mãe abriu-as muito lentamente. Procurava fingir tranquilidade, porque devia se sentir assim, já que aquela carta era do rei da França.
Ela leu a carta toda.
- O que diz ela, querida senhora? - suplicou o príncipe. Margaret sorriu diante da impaciência do filho.
- O rei manda que voltemos para Tours.
- O rei. Para Tours! Ah, mãe querida, quando?
- Logo, logo. E agora aqui está uma carta de seu avô.
Eduardo olhou por cima do ombro dela, e Margaret disselhe que, de acordo com a carta, ela e o príncipe não deviam perder tempo e ir logo para Tours. O rei estava ansioso por discutir as perspectivas da Casa de Lancaster que, segundo parecia, estavam ficando um pouco mais brilhantes.
Margaret fixou o olhar à sua frente. O que significava aquilo? O que teria acontecido? Parecia ter-se passado tanto tempo desde que Eduardo usurpara o trono e a mandara para o exílio e Henrique para a torre!
Mas como o rei da França se achava envolvido, aquilo devia ter alguma importância. Não que ela ousasse esperar muita coisa. Talvez tivesse esperado demais, no passado; quando a esperança se transformava em desastre, a amargura era difícil de suportar.
Havia uma carta da irmã dela, Yolande, que reiterava o que o pai dissera. Havia sinais de esperança, e eles estavam animados, porque parece que tinham acontecido certas coisas na Inglaterra que mudaram a perspectiva. O marido de Yolande, Ferri - o conde de Vaudémont -, unia seus votos aos dela no sentido de que Margaret não perdesse tempo e fosse logo para Tours.
Era mesmo emocionante. Ela tinha de admitir. Algo importante estava para acontecer.
- Minha mãe querida, a senhora ficou jovem outra vez disse o príncipe.
Ela o envolveu nos braços e apertou-o contra o corpo, a ponto de sufocá-lo. Ela era muito expansiva, e às vezes sua devoção absoluta causava embaraços ao príncipe. Ele era dedicado a ela. Sabia que lhe devia muito e que toda a veemência dela era por sua causa. Ele fora criado para se convencer de que era o herdeiro de direito da coroa da Inglaterra e que a mais cara esperança de sua mãe era que ele a usasse. Sim, ela era maravilhosa, mas ele gostaria que não fosse tão violenta em suas demonstrações de sentimentos.
Ele se desvencilhou dos braços da mãe, sorrindo para ela e beijando-lhe a face para mostrar que a amava, mesmo apesar de não querer morrer sufocado.
- Vamos nos preparar para partir para Tours imediatamente - disse ela.
Foi com uma grande emoção que ela reencontrou a família.
René estava lá com sua encantadora e jovem esposa, e ele e Margaret choraram abertamente enquanto se abraçavam.
- Sinto-me muito feliz com essa mudança - disse ele. Estou certo, querida filha, de que em breve tudo ficará bem para você.
Depois ela foi abraçada por Yolande e Ferri, e quando todos foram apresentados ao príncipe, comentaram como ele havia crescido, como estava alto, e como era bonito.
- Um verdadeiro rei - disse René.
O rei da França chegou e disse estar profundamente tocado pela emoção que via naquela reunião da família, embora ninguém acreditasse que O Aranha, rei da França, pudesse emocionar-se por um só instante por motivos sentimentais.
Margaret era toda ansiedade para saber qual tinha sido aquela mudança na Inglaterra, e quando lhe contaram a rixa entre Eduardo de York e o conde de Warwick, só pôde expressar o máximo de satisfação. Ficou menos feliz quando soube que Warwick estava a caminho da França e planejava visitá-la.
- Jamais receberei esse homem - bradou ela. - Ele é o responsável por todos os meus problemas.
- Você tem de recebê-lo - disse o pai. - Tem de esquecer tudo o que aconteceu antes. Nossa salvação pode estar nele.
- Neste caso, vou continuar sem salvação. Não receberei um homem que chamou meu filho de bastardo e lançou uma calúnia cruel contra minha honra.
- Minha querida filha, você tem de ser razoável. Margaret disse que eles não precisavam continuar a conversa porque ela já se decidira.
Passaram-se alguns dias, durante os quais René, Yolande e Ferri fizeram o possível para persuadi-la. Ela continuava irredutível.
- Isso é pedir demais. Além do mais, se ele está disposto a trair seu amigo Eduardo, que ele fez rei no nome, como poderia eu confiar nele?
- Eduardo o enganou. Você tem de aproveitar essa desavença entre os dois.
- Não quero nada com Warwick.
René ficou um pouco impaciente. O rei da França estava ansioso por uma reaproximação entre Warwick e Margaret, porque era muito vantajoso para ele tornar a vida difícil para Eduardo.
- Farei com que haja um entendimento entre esses dois disse Luís. - Quando Warwick chegar, ele será apresentado a mim na presença de Margaret.
E foi o que aconteceu.
O rei da França recebeu o conde com entusiasmo e depois o apresentou a Margaret, que olhou para ele com frieza.
- Não, majestade - disse ela, ignorando Warwick e olhando fixamente para Luís -, com todo o respeito por mim mesma e por honra de meu filho, não posso receber o conde de Warwick.
Luís ficou contrariado, mas não podia fazer nada. Atraiu Warwick para um lado.
- A senhora tem um génio violento - disse ele. - Temos de achar um meio de aplacá-lo. Quando perceber o que o senhor pode fazer por ela e pelo filho dela, ficará mais gentil.
Yolande foi aos aposentos privados de Margaret para repreendê-la.
- Você é sempre teimosa - disse ela. - O rei vai ficar furioso. O que você fez foi o mesmo que insultá-lo.
- Ao apresentar aquele homem a mim, ele estava me insultando.
- Você, minha cara Margaret, você não é o rei da França!
- Não, mas sou a rainha da Inglaterra.
- Há quem diga que a Inglaterra tem uma rainha Elizabeth. Margaret teve de se conter, porque poderia ter esbofeteado o
rosto da irmã. Yolande e ela tinham descoberto logo que seus temperamentos não combinavam bem.
- Farei aquilo que estiver certo de acordo com os meus padrões - disse ela com rispidez.
- E perderá um trono. Você pode fazer isso, mas evitar que seu filho consiga o que ele tem direito nada mais é do que egoísmo.
Yolande se retirou de modo brusco, mas sua observação causara mais impressão em Margaret do que toda a persuasão, e pouco depois ela concordou em receber Warwick.
Não era de sua natureza tornar a coisa fácil para ele. Pretendia que ele se humilhasse diante dela, e Warwick, por mais orgulhoso que pudesse ser, estava disposto a ceder muito para obter o que queria. A amizade com Margaret era essencial aos seus planos. Portanto, aquela reconciliação tinha de ser conseguida.
Ele tentou apelar para o bom senso de Margaret.
- Eu coloquei Eduardo no trono - disse ele. - Foi um erro. Eu devia ter apoiado Henrique. Se tivesse feito isso, como seria diferente a história que teríamos de contar!
- De fato, o senhor provocou muita discórdia - retorquiu Margaret. - O senhor foi um traidor para com o rei ungido.
- Eu estava errado e agora estou pronto para reparar os danos que causei. Agora serei inimigo de Eduardo com a mesma veemência com que o apoiei antes. Fui enganado pelo que acreditei ser o direito dele ao trono e por causa da doença do rei...
Ela o fez calar-se. Não queria referência alguma à fraqueza mental de Henrique.
- O que o senhor fez é imperdoável.
- Não há pecado sobre a Terra que não possa ser perdoado pela magnanimidade e pela generosidade do coração, majestade.
O tempo todo, ela estivera pensando no que aquele homem poderia fazer. Ele irradiava poder e força. Não era chamado de Fazedor de Reis sem razão.
Mas ela não cederia com facilidade. Quando o rei da França apareceu e com uma certa humildade implorou para que ela perdoasse o conde de Warwick, Margaret acabou cedendo.
- Vai ser necessário que meu filho faça o mesmo - disse ela. - Não sei se ele vai concordar.
O rei e Warwick trocaram sorrisos. Claro que ele concordaria. Ele iria fazer exatamente o que a mãe dissesse.
Luís expressou o desejo de que todos seguissem para Angers, onde a condessa de Warwick e sua filha mais nova, Anne, estariam esperando para recebê-los.
O ânimo de Margaret estava revigorado. Tivera de dominar o orgulho para concordar com uma amizade com Warwick, mas sabia que tinha de agarrar-se a qualquer coisa que pudesse ajudá-la a reconquistar o trono para o filho. Warwick poderia fazer isso. Era o único homem na Inglaterra capaz disso. Era realmente um milagroso golpe de sorte ele ter discutido com Eduardo. Yolande estava certa. Margaret teria sido uma louca se deixasse aquela oportunidade passar só por causa de seu teimoso orgulho.
E como era bom tornar a seguir numa procissão como rainha. E com Eduardo ao lado. Tornando-se um homem bonito, valente, um filho que era motivo de orgulho. Ele estava, agora, com quase dezoito anos. com idade suficiente para usar a coroa.
Margaret ficara sabendo, com uma certa surpresa, que a filha mais velha de Warwick, Isabel, se casara com Clarence. Como Warwick era esperto! Ele dera um jeito de conquistar Clarence para seu lado, e sem dúvida o suborno da imensa riqueza de Warwick funcionara com o jovem duque. Este era um traidor do irmão. Ela achou que o mundo estava cheio de traidores.
Aquilo apontava para um único fator. Os acontecimentos estavam surgindo. O período de estagnação chegava nitidamente ao fim, e não importava o que o tivesse provocado, era algo com o qual ela devia alegrar-se.
O rei da França cavalgou ao lado dela quando eles entraram em Angers. Ela percebeu que o povo não o saudava com veemência. A Luís faltava aquela atração que Margaret, de má vontade, reconhecia pertencer a Eduardo de York. Os Valois não eram tão bonitos quanto os Plantagenetas tinham sido. As aparências eram importantes. Ela mesma ainda era uma mulher bonita, apesar dos estragos do tempo e dos acontecimentos. Ela percebeu olhares de aprovação dirigidos para seu querido filho, e isso acalentou um pouco seu coração.
Luís também percebeu, porque comentou a aparência de realeza do príncipe.
- Uma grande alegria para Vossa Majestade - disse ele.
- A única que tive num longo espaço de tempo - replicou Margaret.
- E que bem-aventurança! Não duvido de que em breve ele irá se casar, e então Vossa Majestade terá seus netos.
Ela ficou alerta. Aquela conversa estava seguindo para algum lugar. O rei Aranha não era tido como uma pessoa que desperdiçava palavras em conversas inócuas.
- Acredito que o duque de Clarence está muito feliz com o casamento. As filhas de Warwick são belas... além do mais, são as herdeiras mais ricas da Inglaterra.
- Pode ser que sim, e desejo que Clarence seja feliz no casamento. Eu poderia jurar que o irmão dele não sente o mesmo prazer com esse casamento que o senhor Warwick parece ter.
- Ah! - Luís soltou seu curto grito que pretendia ser uma risada. - Eduardo tem cometido tolices enormes. Não é assim que se mantém uma coroa... especialmente quando não se tem direito a ela. Warwick a colocou na cabeça dele e Warwick irá tirá-la quando chegar a hora... e colocá-la onde ela deveria estar.
- Se houver justiça, não há dúvida de que é isso que vai acontecer - disse ela.
- E os príncipes devem casar cedo. Quanto mais cedo começarem a produzir herdeiros, melhor. Warwick tem uma jovem filha encantadora. Que prenda... uma jovem bela e saudável e a metade das mais ricas propriedades da Inglaterra.
- Não posso acreditar, majestade, que esteja sugerindo que o príncipe de Gales deva casar-se com a filha de Warwick.
- A mim... e a outras pessoas... parece uma solução admirável para o problema do casamento do príncipe.
- Majestade, isso está inteiramente fora de cogitação.
- Ah, sem dúvida que não.
- Eu perdoei o conde de Warwick o tratamento que ele dispensou a mim e ao rei. Para mim, fazer isso representou um grande esforço. Permitir que meu filho se case com a filha dele é algo em que nem vou pensar... nem por um instante...
Luís curvou a cabeça e ficou calado. De fato, ele não era de jogar palavras fora.
Em Angers, a condessa de Warwick estava esperando com sua jovem filha. Anne Beauchamp era uma criatura agradável. Pobre mulher, pensou Margaret, casada com um homem como Warwick. Que vida ela tivera! Mas o verdadeiro interesse de Margaret era a jovem. Graciosa, sim, com formas muito delicadas e refinada, de boas maneiras e uma certa beleza. Se tivesse sido filha do rei da França ou do duque de Borgonha, em vez de um simples conde - e além do mais, um inimigo -, Margaret teria pensado na jovem como uma possibilidade como noiva.
Houve festas e diversões em Angers. Warwick se submeteu a elas com o grau de paciência que conseguiu concentrar. com Margaret aconteceu o mesmo. Ó conde tinha uma promessa de ajuda por parte de Luís, mas não queria mexer-se enquanto a hora propícia não chegasse. Seus amigos estavam reunindo forças na Inglaterra; sua mais importante trama era desembarcar quando Eduardo estivesse no norte, porque Warwick combinara com o cunhado, lorde Fitzhugh, o envio de rumores de um levante no norte que fizessem com que Eduardo fosse até lá com um exército. Se Warwick pudesse desembarcar no sul, libertar Henrique da torre e colocá-lo como rei, teria uma vantagem imediata; o irmão de Warwick, John, não se juntara a ele de propósito, por poder ser mais útil parecendo manter-se leal a Eduardo, e quando Eduardo íosse atraído para o norte, John, no momento certo, iria abandoná-lo e declarar-se a favor de Henrique, e Warwick ficaria, então, em condições de derrotar Eduardo.
Era um plano inteligente, e a estratégia de Warwick sempre tinha sido mais vitoriosa do que seus combates físicos.
Ele precisava que tudo se encaixasse em seus lugares. Margaret era uma mulher teimosa; quem dera que ele não precisasse dela. Quando olhava para o passado, ele percebia que se Henrique tivesse tido uma rainha diferente, poderia não estar na torre naquele momento.
Mas Margaret não queria concordar com uma união entre Eduardo e Anne. Enquanto isso, os dois jovens tinham se conhecido, e ficara claro que gostavam um do outro. Eduardo disse achá-la uma jovem encantadora, não se parecendo nada com o pai. Não havia nela nenhum traço de arrogância.
- Nem deveria haver - disse Margaret com aspereza na voz.
- Quem é ela, a não ser a filha de um conde novo-rico que conseguiu os títulos por intermédio da esposa?
- E que se tornou tão poderoso que decidiu quem deveria sentar-se no trono da Inglaterra - lembrou-lhe Eduardo.
Eduardo começava a ter ideias próprias; e Margaret via que ele gostava da ideia de casar-se com Anne Neville, em vez de lhe impingirem uma princesa estrangeira.
René insistia com Margaret para que concordasse com o casamento. Ela devia aceitar o fato de que Warwick era importante para ela. Aquela era a melhor oportunidade que ela já tivera. Parecia um milagre Warwick ter mudado de lado.
Yolande e a madrasta uniram suas vozes à de René. Talvez se eles não tivessem tentado persuadi-la com tanta insistência, ela pudesse ter concordado antes.
O rei da França também conversava com ela. Margaret lhe disse que houvera uma sugestão no sentido de que Eduardo se casasse com a filha de Eduardo IV
- Elizabeth de York é uma criança de quatro ou cinco anos
- lembrou-lhe Luís. - É criança demais, e você casaria seu filho com a filha do seu maior inimigo?
- Vossa Majestade está me pedindo que faça exatamente isso.
- Então a senhora considera Warwick um inimigo maior do que o homem que tirou a coroa de seu marido?
- Foi Warwick quem a tirou.
- Mais uma razão para regozijar-se por ele ter-se tornado seu amigo.
Ela disse a si mesma que cedera porque seu filho adorado gostava da jovem. Mas não era bem assim. Ela sabia que sua única esperança de derrotar Eduardo e colocar Henrique de novo no trono era por intermédio de Warwick.
De modo que, assim como concordara em fazer um pacto de amizade com Warwick, ela agora concordou que houvesse um compromisso de casamento entre a filha dele e seu filho.
Que atordoamento ao pensar no futuro! Warwick estava quase pronto para atacar. Ele estava vencendo, como soubera que venceria. Luís lhe prometera quarenta e seis mil coroas e dois mil arqueiros franceses. Jasper Tudor chegara à França; Jasper jamais fraquejara em sua lealdade para com a causa lancastriana, e agora que Warwick estava do lado deles, suas esperanças eram muito grandes. Ele tinha homens em quem podia confiar esperando no País de Gales para lutar pelo rei Henrique.
Houve muitas conferências, nas quais Warwick expôs seus planos a Margaret. Ela jamais gostaria dele, é claro; mas tinha de admirá-lo. Muitas vezes pensava, durante aqueles dias, em como tudo poderia ter sido diferente se ele tivesse estado do lado deles, e não contra.
- O príncipe de Gales será o regente - dissera ele. - Porque está com idade para governar, e eu duvido muito que o rei estará com saúde suficiente para fazê-lo, depois de ficar tanto tempo preso.
Aquilo satisfazia a Margaret. Ela estaria ao lado dele. Iria orientá-lo. Ah, como ficaria feliz ao ver o filho querido preparando-se para governar seu reino!
Clarence teria sua recompensa por se voltar contra o irmão. Deveria ficar com todas as terras do irmão. Clarence não estava certo de que aquilo era uma recompensa suficiente. Ele estivera de olho na coroa. Mas havia tempo. Quem sabia qual seria o resultado daquilo, e talvez tivesse de lutar algumas batalhas.
Quanto a Margaret, ela teria de cuidar da noiva do filho. Deveria ensinar a Anne os modos e aquilo que seria de esperar dela como esposa do príncipe de Gales. Margaret estava encantada. Não podia deixar de gostar da delicada Anne, e a cada dia que passava ficava menos contra o casamento do que fora antes. Ela deixara claro que o casamento não deveria realizar-se enquanto Eduardo não estivesse no trono, e Warwick concordara.
Warwick partiu e foi de navio para Devonshire com Clarence, Jasper Tudor e o conde de Oxford, enquanto Margaret se pôs a esperar. Estava-se em meados de setembro e só em outubro chegou a notícia.
Ela mal podia acreditar. Acontecera. Mandou chamar o príncipe; abraçou-o com fervor.
- Ele conseguiu - disse ela. - Graças a Deus, Warwick recolocou Henrique no trono.
Acontecera tudo de acordo com o plano. Eduardo cometera a tolice de se deixar ser atraído para o norte, a fim de abafar o levante, em resposta ao pedido de socorro de John Neville.
Assim que ele chegou lá, Warwick desembarcou. John Neville convocou, então, seus homens e disse-lhes que agora eles iriam trazer de volta o verdadeiro rei. Na verdade, seu irmão já estava tratando de fazer aquilo. Eles estavam cansados da crescente arrogância dos Woodville e da nova nobreza que a rainha estava criando. Todos aqueles que concordassem com ele poderiam segui-lo para o sul, a fim de juntar-se aos exércitos do grande Warwick. O nome Warwick funcionou como um passe de mágica.
- Amanhã de manhã - disse Neville - nós levaremos o rei.
Eduardo contava com alguns criados fiéis, e um deles apressou-se imediatamente a dizer-lhe o que acontecera. Eduardo estava sentado à mesa de almoço quando o criado chegou e, percebendo a sua situação, decidiu que só havia um caminho aberto para ele, e era fugir.
- Se ficarmos, seremos capturados... e assassinados, sem dúvida - disse ele. - Warwick saberá que não deve tentar manter-me prisioneiro. Temos de fugir... mas só por uns tempos.
Eles eram cerca de oitocentos homens, inclusive Hastings e seu jovem irmão, Richard. Seguiram para a costa e chegaram a Lynn, onde encontraram navios para levá-los para a Holanda.
- É melhor viver para lutar outro dia - disse Eduardo. Eu nunca teria acreditado que Warwick fosse capaz disso.
- Maldito seja ele - bradou Richard. - Traidor!
- Não, irmão - disse Eduardo. - Ele foi um bom amigo para mim. É por isso que sei que ele será um bom inimigo. Nossos caminhos se separaram. Ele queria continuar me controlando e eu me livrei dos cordões. Sempre gostei de Warwick. Acho que jamais deixarei de gostar dele.
Henrique piscou enquanto olhava para os homens que estavam diante dele. Pensou reconhecê-los. Será que um deles era o arcebispo George Neville, e o outro o bispo Waynflete?
Os dois homens olhavam para ele com um olhar fixo, num silêncio provocado pelo choque. Os cabelos dele estavam despenteados, o rosto e as mãos estavam sujos. As roupas estavam penduradas nele.
- Ele parecia - disse o arcebispo depois ao seu irmão, o conde - um saco de lã... uma sombra... e estava tão mudo quanto uma ovelha abatida. Não fazia ideia do motivo da nossa chegada. Ficou estupidificado e depois de uns instantes nós o ouvimos murmurar: "Ora essa, ora essa!"
- Majestade - disse o arcebispo -, nós viemos tirá-lo des te lugar. Seu leal súdito, o conde de Warwick...
Henrique pareceu mais perplexo ainda. Havia muito o que explicar. Eles tinham de tirá-lo da torre, dar um banho nele, vesti-lo com roupas adequadas ao seu cargo e alimentá-lo.
Tiraram-no em silêncio da torre e levaram-no embora numa barcaça, para que nenhum de seus súditos visse o péssimo estado em que ele se encontrava.
Quando Warwick o viu, ficou horrorizado.
- Como tiveram a ousadia de tratar um rei desse jeito! bradou ele.
Ele se esquecera de que até recentemente ele fora um dos responsáveis pela prisão de Henrique.
Aquilo acabara, agora. Henrique seria o rei. Eduardo tinha fugido. A esposa de Henrique iria juntar-se a ele, e o filho faria o mesmo. Ele ficaria pasmo ao ver o príncipe - um herdeiro bonito e fino como nunca se vira.
Henrique levou muito tempo para compreender o que se passava. A maior parte do tempo, murmurava orações. Não havia sinal algum de júbilo. Dava a impressão de ter preferido ficar onde estava.
Margaret estava satisfeitíssima. Eduardo em fuga; Henrique reposto. Era um milagre. E Warwick o fizera. Isso, ela tinha de admitir. Não era à toa que ele era chamado de Fazedor de Reis. E se fosse leal, o futuro poderia ser brilhante. Ela estivera certa ao abafar seu orgulho. E agora nada deveria ficar no caminho do casamento de Eduardo com Anne Neville. Ela devia isso a Warwick, porque prometera que quando Henrique fosse reposto no trono o casamento deveria acontecer.
Agora a promessa devia ser cumprida.
Foi um casamento pomposo. O mês de agosto acabara de chegar, e aquela era a melhor época para um casamento. Assim, muitas das festividades aconteceram ao ar livre.
O rei da França estava presente. O casamento devia-se, em parte, aos seus esforços, assim como aos de Warwick. Ele estava encantado. Via o fim de seu inimigo, Eduardo da Inglaterra. Sempre era reconfortante quando outras pessoas lutavam as batalhas da gente, e Warwick fizera isso por ele. Portanto, ele sentia prazer em honrar o casamento da filha de Warwick com sua presença.
Foi uma ocasião alegre, e Margaret estava feliz. Não havia atrito algum nem mesmo entre ela e Yolande. Foi um momento ditoso e talvez o detalhe mais feliz dele fosse a evidente afeição que crescia entre o belo príncipe e sua encantadora esposa.
E agora viajariam para Paris com uma guarda de honra a escoltá-los, e na capital os dois receberiam um tratamento de realeza, porque tinha sido aquela a ordem expressa do rei. As ruas estavam cheias de tapeçarias penduradas, e havia música por toda parte.
Só uma coisa poderia satisfazer mais Margaret, e era voltar para a Inglaterra e encontrar uma recepção semelhante esperando por ela.
Tanto tempo se passou nas várias cidades em sua viagem pela França que só em fevereiro ela chegou a Harfleur e ficou pronta para navegar. Então, o tempo ficou ruim, o vento era forte e as ondas açoitavam a costa, de modo que lhe disseram que seria loucura partir. Impaciente, ela olhava o mar com ar ameaçador. Era importantíssimo que chegasse à Inglaterra. Queria ver Henrique; queria mostrar o filho deles a ele e ao país. Durante dias ela esperou, e quando o mar se acalmou um pouco, apesar dos conselhos, insistiu em partir. Pouco depois, os navios estavam de volta ao porto. Continuar, declararam os capitães, seria perdê-los.
Zangada e frustrada, ela vociferou contra a natureza e assim que percebeu que o vento estava amainando um pouco, tornou a partir, para ser mandada de volta por novos ventos fortes.
O povo era supersticioso e começou a dizer que ela não devia voltar à Inglaterra. Aquilo a enfureceu, e uma vez mais partiu e teve de voltar.
Àquela altura, todo mundo estava ficando nervoso, exceto Margaret. Ela iria enfrentar as condições do tempo, e não fosse o fato de temer pôr em risco a vida do filho, teria insistido em partir outra vez.
Então, de repente o vento diminuiu. Imediatamente, eles partiram, e com muita alegria e muitas orações de graças, chegaram sãos e salvos em Weymouth.
Não era de esperar-se que Eduardo abrisse docilmente mão da coroa; mas ele percebeu que Warwick era um inimigo forte e sem dúvida decidira, conhecendo-o muito bem, que providência ele tomaria e ficara preparado para isso.
No entanto, Eduardo não podia permanecer muito tempo na Holanda e, por isso, embarcou em Flushing no dia 2 de março em companhia de seu irmão mais novo, Richard de Gloucester, e do conde Rivers. Os fortes ventos que tinham atormentado Margaret incomodaram-no também, e sua travessia foi retardada alguns dias e perdeu-se algum tempo antes que avistasse Cromer. Mesmo então, ele sabia que seria loucura desembarcar antes de ter descoberto que tipo de recepção encontraria, de modo que mandou um grupo à terra para testar o clima político. O grupo voltou e disse que o clima era frio e que eles não deviam desembarcar, de modo que subiram mais pela costa, até Ravenspur. A população daquela vizinhança não estava mais contente ao vê-lo do que a de Cromer. O povo não queria combates em suas terras. Eles agora tinham o rei legítimo no trono e eram a favor de Henrique.
Eduardo declarou que as pessoas deviam ser avisadas de que ele viera apenas para reivindicar seu ducado, e chegou ao ponto de fazer com seus homens usassem o distintivo da pena de avestruz do príncipe de Gales.
Por terem feito isso, seu exército teve permissão para desembarcar e chegou a York, onde a recepção à sua chegada foi um pouco mais amigável, por se tratar de território iorquista. Eduardo, então, continuou para Wakefield, onde amigos se juntaram a ele e quando chegou a Oxford suas fileiras tinham aumentado bastante, e seu ânimo elevou-se na mesma proporção. Na cidade de Warwick, Eduardo foi saudado como rei e foi proclamado em praça pública. Ali, ele fez um discurso para o povo e prometeu que se o conde de Warwick desfizesse seu exército receberia o perdão.
Enquanto ele estava em Warwick chegaram mensageiros em segredo a mando de seu irmão Clarence.
Clarence implorava o perdão de Eduardo e queria tornar a unir-se a ele. Estava cheio de remorso ao pensar que se passara para o lado do inimigo de Eduardo; e se ao menos pudesse voltar, levaria com ele um grande número de homens.
Eduardo exultou. Ele perdoaria o irmão; e embora não fosse tornar a confiar nele, não lhe guardava rancor, porque ele jamais confiara em Clarence como fizera com Richard, e sempre considerara Clarence pelo que ele realmente era - irresponsável, avaro, interesseiro. Ainda assim, era seu irmão.
Sim, Clarence deveria ser perdoado.
Perto de Banbury, seus homens detiveram-se. O inimigo estava nas vizinhanças. Um grupo de soldados veio cavalgando em direção às forças de Eduardo e este viu que o chefe deles era Clarence, que na verdade mudara de lado e levava seus homens, que Warwick pensara que estavam com ele, para lutar ao lado de Eduardo.
Aquilo era um bom avanço, pensou Eduardo, enquanto abraçava o irmão sem repreendê-lo. Disse apenas que estava tudo perdoado e que ele estava contente por tê-lo de volta para o lado do qual ele fazia parte.
Clarence disse que Warwick não queria saber de quaisquer condições. Ele fora longe demais para recuar. Além do mais, achava que derrotaria Eduardo e continuaria no seu papel de Fazedor de Reis. Ele decidira que Henrique seria seu fantoche agora, já que Eduardo mostrara que não iria obedecer aos comandos de Warwick.
E assim eles se enfrentaram em Barnet. Warwick dispusera suas forças em Hadley Green, logo ao norte da cidade. Ele escolhera sua posição onde o terreno se elevava e se colocara dessa maneira a fim de dominar um pequeno desfiladeiro do qual, segundo seus cálculos, o inimigo teria de surgir. Eduardo não cairia numa armadilha daquelas, e ao abrigo da escuridão deslocou suas forças de modo a ficarem paralelas e muito próximas das de Warwick. Este percebeu logo que seu plano bem-feito falhara e lembrou-se da desastrosa derrota na segunda batalha de St. Albans. Um forte nevoeiro envolveu o campo de batalha, e ficou difícil ver onde estavam as forças. Isso foi igualmente frustrante para os dois lados, e a princípio parecia que Warwick sairia triunfante. De um dos lados de Eduardo estava seu irmão Richard e do outro, Hastings; Clarence estava lutando onde eles pudessem ficar de olho nele, porque Eduardo sabia que se a batalha tendesse contra ele, Clarence tentaria mudar de lado outra vez, e muitas vezes essas mudanças no auge da batalha faziam a diferença entre vitória e derrota.
A batalha começara assim que clareara, entre quatro e cinco horas da manhã, e devido ao forte nevoeiro em determinado momento, os seguidores de Warwick estavam atirando flechas sobre suas próprias fileiras. A batalha oscilava entre um lado e o outro. AR se encontravam dois homens cujo futuro estava na balança e cada qual se mostrava tão decidido quanto o outro a conseguir a vitória.
- Maldito seja esse nevoeiro! - gritava Warwick.
Ele não conseguia saber o que acontecia em seus flancos. Destacando-se do nevoeiro, ele via a bandeira iorquista perigosamente perto, e um de seus homens chegou cavalgando, ofegante, para dizer aos berros que Exeter estava sendo fortemente pressionado. Warwick enviou reforços para o duque, e então se ouviu o grito de que Eduardo de York estava batendo em retirada.
O triunfo tomou conta de Warwick. Ele era invencível. Era o Fazedor de Reis. Não podia falhar.
Mas parecia que Eduardo estava apenas recuando para preparar-se para o ataque. Através do nevoeiro ele avançou, obrigando os lancastrianos a recuar, e os homens de Montague caíam à direita e à esquerda, enquanto Eduardo abria passagem por entre suas forças.
O combate foi feroz, a carnificina horrível, e os gritos dos feridos e dos cavalos que morriam enchiam o ar. Nos pontos em que o nevoeiro se levantara um pouco, Warwick viu que suas forças tinham diminuído e que os iorquistas avançavam sobre eles.
Percebeu, então, que a batalha de Barnet estava perdida para ele. Não se desesperou. Estava pensando na segunda batalha de St. Albans, Ele perdera aquela batalha e a transformara em vitória.
Mas ele tinha de bater em retirada. Tinha de ficar vivo para lutar num outro dia. Uma só batalha não vencia ou perdia uma guerra.
Ele tinha seu cavalo, e enquanto o tivesse, estaria a salvo. Viu que seus homens - aqueles que tinham condições e eram da mesma opinião que ele - estavam se preparando para fugir. Ele sabia que o inimigo estaria atrás dele. Não fora ele que ensinara a Eduardo a deixar os soldados e atacar os líderes?
O momento era aquele. Ele iria para a floresta. Não era o fim. Só mais uma batalha perdida.
Ele extrairia a vitória da derrota. Fugir... chegar a Londres. Uma flecha passou assobiando por ele. Veio outra e atingiu o cavalo. Warwick caiu ao chão; estava fortemente prejudicado pela armadura.
Estava cambaleando e tentando correr quando alguém gritou:
- É Warwick!
Estavam atrás dele. O inimigo. Eles o haviam cercado. Alguém atirou-o no chão. Ergueram-lhe a viseira.
- É verdade. É Warwick.
Nada de misericórdia para o líder. Eles eram iorquistas todos eles, inebriados pela vitória. Estavam todos lutando pela honra de matar o grande conde.
Ele viu o reflexo da faca ao descer. A escuridão anunciava o fim.
Richard Neville não faria mais reis.
Eduardo realimentou a si e aos seus homens na cidade de Barnet. Eles estavam cansados porque a batalha durara três horas. Depois, ele mandou que os feridos fossem atendidos.
Então Warwick estava morto. Aquilo o entristecia. Ele admirara Warwick, idolatrara-o. Não queria que ele morresse. Ficara magoado com o fato de se encontrarem em lados opostos, e se Warwick tivesse ficado vivo ele o teria perdoado.
Deu ordens no sentido de que o corpo de Warwick ficasse exposto a fim de que o público visse, para que ninguém dissesse mais tarde que o Fazedor de Reis ainda vivia. Então, alguns dias depois, ele deveria ser levado para a abadia de Bisham e enterrado junto à sua família.
Margaret estava aguardando notícias da batalha. Estava certa de que aquilo iria tornar firme a posição de Henrique no trono. Eduardo seria o regente, e ela estaria ao lado dele.
Fazia muito tempo que não se sentia tão feliz.
Então, viu os mensageiros. Eles vinham lentamente - não como deveriam vir os portadores de boas notícias.
Ela correu para recebê-los.
- Deus me ajude - bradou ela. - O que aconteceu?
Os mensageiros não conseguiram falar por alguns momentos. Ficaram ali parados, olhando para ela com olhos sem expressão.
Ela não os repreendeu. Ela sabia.
- O conde de Warwick foi morto - disseram eles. - Os exércitos dele estão em retirada. Eduardo de York venceu a batalha de Barnet.
Ela balançou um pouco e procurou se firmar. Viu o filho vindo em sua direção.
- Notícias? - bradou ele. - Querida senhora, quais são as novas?
Ela se voltou para olhar para ele e ele viu o desespero em seu rosto lívido.
Correu para ela e envolveu-a nos braços. Ela disse baixinho:
- Acho que vou desmaiar. Deixe... eu... Deixe que por um breve momento eu deixe de sentir isso.
Então ele percebeu.
Olhou para ela, perplexo, e então a agarrou antes que ela caísse.
O estado de desespero dela não durou muito. Aquilo não era o fim. Uma batalha, só, não fazia uma guerra. Eles haviam sido derrotados antes. Warwick estava morto, é verdade, mas o príncipe de Gales, graças a Deus, não estivera em Barnet. Eles ainda iriam vencer.
- Não é assim que tem sido sempre? - perguntou ela. Desde que a rosa branca começou a lutar contra a vermelha tem havido vitórias e derrotas. Uma única batalha não pode decidir a guerra. Nós perdemos Warwick, mas ele não ganhava sempre. Nós estamos aqui na Inglaterra... O rei está livre. Nós estamos livres. Vamos entrar em combate outra vez, e ganhar.
Jasper Tudor foi falar com ela. Disse que eles ainda não estavam derrotados. O nevoeiro os derrotara em Barnet. Eles ainda venceriam. A rainha não devia perder as esperanças. Se ela e seu galante filho marchassem pelo país, fariam com que o povo aderisse à sua bandeira.
O príncipe disse que Jasper estava certo: eles entrariam em ação; e ao olhar para o filho, Margaret sentiu um medo terrível. O que é que ela mais queria, aquele seu filho vivo, vigoroso, belo, o significado total da vida para ela, são e salvo, ou a possibilidade de uma coroa?
Não tenho coragem de fazer com que ele corra perigo, pensou. Warwick morrera. Há muito pouco tempo, ele estivera certíssimo do sucesso. Ele não era jovem, é verdade, mas a morte e ele tinham parecido muito distantes um do outro, e de repente, naquele campo sangrento, ela o levara.
- Eduardo - disse ela -, talvez o momento não tenha chegado. Acho melhor voltarmos para a França. Vamos esperar lá até conseguirmos uma força tão poderosa, que ninguém possa vir contra nós.
Eduardo olhou para ela perplexo.
- Será que estou ouvindo bem? É essa a minha mãe guerreira?
Por um instante, ela não era mais a rainha combativa, não passava de uma mulher vulnerável devido aos seus temores em relação ao filho.
Ele compreendeu; envolveu-a nos braços.
- Minha adorada mãe - disse ele -, vou colocar uma coroa nessa sua cabeça dentro em pouco. A senhora vai ser reconhecida como a rainha da Inglaterra. Eu lhe prometo.
- Eu quero apenas você... são e salvo ao meu lado. Ele acariciou-lhe os cabelos e a tranquilizou.
- Mãe querida, lembre-se de que a senhora é a rainha. Há anos que me ensina o meu dever. Entrarei em combate, conquistarei a coroa de meu pai e nós vamos viver juntos, a senhora, ele e eu, felizes, pelo resto da vida.
- Eu sou uma boba - disse ela.
- Nada disso - respondeu ele. - A senhora é uma grande mulher. Jamais esquecerei o que lhe devo... vou me lembrar enquanto houver vida em meu corpo.
Ela sabia que seria loucura desistir só porque Warwick morrera em Barnet. Eles tinham confiado demais em Warwick. Poderiam vencer sem ele.
E assim eles marcharam e chegaram a Tewkesbury, onde Eduardo de York os esperava.
Os soldados estavam cansados. Tinham marchado cento e dezesseis quilómetros; deviam dar meia-volta. Não estavam em perfeitas condições para lutar. Mas Eduardo de York estava lá... esperando por eles.
Margaret estava aflita. Quantos homens que estavam naquele campo àquela hora passariam para o lado do inimigo se achassem que a luta estava perdida? Em quantos ela podia confiar?
- Cavalgue ao meu lado - disse ela a Eduardo. - Quero que eles nos vejam... que saibam o quanto estamos decididos. vou dizer a eles quais as recompensas que haverá quando essa batalha tiver sido vencida.
E assim eles cavalgaram juntos, ela e seu nobre filho, e devido à crença do jovem na vitória e à indomável coragem da rainha, o espírito dos soldados reviveu, e eles pararam de reclamar de exaustão e prepararam-se para combater no dia seguinte.
Margaret estava lá quando a batalha começou, e viu logo que seus homens não eram adversários à altura do inimigo. Sentiu um grande medo quanto ao filho e amaldiçoou a si mesma por não insistir para que eles fugissem para a França em vez de envolverse naquela luta tão desigual.
- Isso tem de parar... parar... - gritava ela, histérica. Onde está o príncipe? Tragam o príncipe para perto de mim!
Estava meio alucinada, não apenas pela exaustão, mas de medo. Alguns de seus guardas-costas disseram que seria melhor ela deixar o campo de batalha. Ela seria necessária depois que a batalha acabasse.
- Meu filho... - murmurou ela.
Estava quase desmaiando. Aquelas vertigens eram novidade para ela. Pensou que eram devidas a um excesso de emoção, mas quando chegaram perto dela, estava fraca e indefesa, de modo que deixou que a colocassem em sua carruagem e a levassem para longe do campo.
Perto dali havia um pequeno convento, e foi para lá que a levaram. Anne, sua nora, já estava lá e as duas procuraram consolar uma à outra.
Eduardo de York estava certo da vitória. com a morte de Warwick ele se sentia livre de uma servidão da qual anteriormente não conseguira escapar. Warwick significara muito para ele; fora seu amigo e mentor. Ele gostara muito dele e, no fundo do coração, continuava gostando; mas Eduardo não era homem de ficar preso a cordões controladores para sempre. Tivera de libertar-se. Esperara - e acreditara - que no devido tempo ele e Warwick vencessem suas diferenças, chegassem a um novo entendimento e ficassem amigos de novo.
Agora era muito tarde. Eduardo não queria que o jovem príncipe de Gales morresse em combate. Um número demasiado de mortes era prejudicial para um homem; ele não
queria sangue em suas mãos; e embora não tivesse sido ele em pessoa que matara Warwick, a culpa da morte seria atribuída a ele.
Eduardo expediu uma ordem.
- Se Eduardo que se intitula príncipe de Gales for capturado, não o matem. Prometo cem libras por ano, durante a vida toda, para o homem que o trouxer à minha presença, e a vida do príncipe será poupada.
Ele podia dar-se ao luxo de ser magnãonimo. A batalha estava quase terminada, e era uma indubitável vitória, e Eduardo acreditava que depois daquela não haveria mais nenhuma. Ele estaria seguro no trono.
Viu um grupo de homens vindo em sua direção. Levavam um prisioneiro.
Um dos capitães, Sir Richard Crofts, estava perto, orgulhoso por ter capturado o príncipe, e vinha reivindicar a recompensa.
Vários homens agrupavam-se em torno deles enquanto os dois Eduardos ficaram frente a frente.
O jovem príncipe era arrogante, bem-apessoado, de uma forma um tanto efeminada. Eduardo de York era muito mais alto do que Eduardo de Lancaster.
- Como ousa entrar de forma tão presunçosa assim no campo de batalha com suas bandeiras desfraldadas contra mim, seu rei? - disse Eduardo de York.
O jovem príncipe levantou bem a cabeça e retorquiu:
- Estou aqui para reconquistar a coroa de meu pai e a minha herança, à qual você não tem direito algum.
Eduardo ficou enfurecido diante daquelas palavras. Convencera-se de que tinha mais direito, mas aquele rapaz prisioneiro estava lhe dizendo que era o filho de Henrique VI, que tinha de ser mantido preso porque o homem que lhe usurpara o trono sabia que o povo estava do lado dele.
Num súbito acesso de raiva, ele bateu com a mão no rosto do jovem príncipe.
Aqueles que o cercavam viram naquilo um sinal.
O príncipe insultara o rei, e o rei queria vingança.
Seis ou sete deles aproximaram-se dele, as adagas erguidas.
O príncipe Eduardo teve um grito sufocado, e enquanto caía ao chão seus últimos pensamentos foram para sua mãe.
Já não havia mais coisa alguma pela qual viver. Ela estava aturdida. Não ouvia o que lhe diziam. Tinha apenas um desejo, que era a morte.
Sua delicada nora tentava consolá-la; mas ela também estava mergulhada na mais profunda melancolia. Tinha sido um casamento breve, mas ela e seu príncipe tinham começado a gostar um do outro.
- Precisamos fugir daqui - tinham dito os amigos de Margaret. - Eduardo não descansará enquanto a senhora não for prisioneira dele.
- Pouco me importa - respondera ela.
- É importante. É preciso pensar no rei.
Mas ela não conseguia pensar em outra coisa a não ser no filho morto.
Elas partiram - ela e Anne, e era inevitável que fossem capturadas mais cedo ou mais tarde. Não estavam animadas com a fuga, não tinham desejo algum de sobreviver.
Foram detidas em Conventry.
Eduardo decidira que ela e Anne viajariam juntas na mesma carruagem e participariam do triunfal desfile pelas ruas de Londres. O povo veria que elas eram suas prisioneiras e que a guerra terminara. O direito prevalecera e o rei forte estava no trono. Os londrinos gostariam disso. Eles sempre tinham sido a favor de Eduardo.
Poderia ter sido humilhante, mas ela já não se importava. Não conseguia ver outra coisa que não Eduardo, seu filho... Eduardo ainda menino... crescendo, e Eduardo naqueles últimos encontros... Ela estivera muito certa ao sugerir que fossem para a França. Devia ter sido alguma premonição.
E ela o perdera... ela o perdera. Por que se importaria com o fato de Eduardo de York procurar humilhá-la perante o povo de Londres? Nunca ligara para eles antes.
E assim as duas estavam na torre. Henrique estava lá, naquela que chamavam de Wakefield. Será que ela iria vê-lo? Tinha dúvidas. Não os deixariam ficar juntos.
Eles separaram ela e Anne e as mandaram para diferentes prisões na torre.
"Ó Deus", pensou ela. "O Senhor me abandonou. Por que não me deixou persuadi-lo a ir para a França? Se ao menos meu filho pudesse me ser devolvido, eu não pediria nada mais. Coroas... reinos... o que importam eles agora para mim? Se ao menos eu pudesse viver em paz com meu querido filho, eu não pediria nada mais."
A porta foi trancada depois que ela entrou. Havia guardas do lado de fora.
Sozinha! Presa!
Se eu pudesse ter meu filho de volta, vivo e são e salvo, não pediria nada mais, lamentava-se ela.
Eduardo de York estava radiante de triunfo. O povo de Londres recebera bem sua vitória. Aquilo significaria paz, e paz significava comércio. A odiada Margaret estava na torre; o suposto príncipe de Gales fora morto em combate; aquilo era o fim da causa lancastriana. A rosa vermelha estava pisoteada no lamaçal, e a branca era a vencedora.
- Vamos pôr um fim nas guerras - disse Eduardo. - Vamos procurar tornar o nosso país grande por meios pacíficos.
Seu irmão Richard o ouvia falar, a admiração brilhando nos olhos.
Eduardo colocou a mão no braço dele. Se ao menos ele pudesse confiar em George como podia confiar em Richard!
Enquanto estavam sentados à mesa com os amigos de maior confiança, Eduardo falava sobre o futuro.
- O país está sendo destruído pelas guerras. Já temos inimigos suficientes além-mar. Eles se regozijam com os conflitos que torturam nosso reino. Tem de haver um fim para esses conflitos.
Todos os que estavam à mesa concordaram.
- Margaret finalmente está dominada. A morte do filho contribuiu para fazê-la cair na realidade mais do que qualquer batalha poderia ter feito.
- Já é hora dela perceber que não tem chance de derrubar você do trono - disse Richard.
- Ela jamais perceberá isso... enquanto Henrique estiver
vivo.
Houve um silêncio abafado em torno da mesa.
Henrique, que estava ajoelhado, levantou-se. Seus cabelos compridos caíram-lhe pelo rosto e ele apertou mais o casaco esfarrapado contra o corpo.
Fazia frio na cela, aquela noite. As grossas paredes de pedra impediam a entrada do calor do dia. Não que ele prestasse muita atenção. Desde que pudesse rezar e meditar e receber consolo da experiência espiritual, ele poderia viver.
A comida que lhe traziam muitas vezes era horrível. Ele não ligava muito. De vez em quando, comia e isso era o suficiente para lhe dar forças para rezar.
Foi para a cama e deitou-se.
Encontrou consolo ao pensar em suas belas faculdades em Cambridge e Eton. Esperava que os meninos estivessem conseguindo viver com algum conforto nelas. Se estivesse mais forte, se estivesse livre, ele gostaria de construir mais faculdades. O período mais feliz de sua vida fora quando acabara de se casar com Margaret e os dois tinham tido aquelas reuniões com os arquitetos... Talvez aquele tempo voltasse.
Ele não queria todas a atribulações do cargo de rei. Queria paz. Aquela vez em que estivera no mosteiro, escondido... tinha sido uma fase feliz. Ele gostara muito de misturar-se com os monges, sentar à mesa deles... meditar e rezar.
Alguém estava na cela.
Em geral, não vinham àquela hora. Eram várias pessoas.
Estavam de pé em volta da cama.
De repente, ele percebeu que iriam matá-lo.
Ele estava murmurando alguma coisa. Um dos homens inclinou-se para a frente e ouviu-o murmurar:
- Que Deus dê a vocês tempo para se arrependerem, sejam lá quem forem vocês que põem as mãos sacrílegas naquele que foi ungido por Deus.
Então, ele pensou: Receba, ó Senhor, o Seu servo no céu.
A vida dele se escoava. Não foi muito difícil. Ele estava muito fraco e frágil. Não reagiu. Travesseiros sobre o rosto... e assim deixando-se levar para a eternidade.
Então o rei Henrique estava morto.
Morrera de desgosto, diziam Eduardo e seus amigos. Era razoável. Suas esperanças tinham se acabado. A batalha de Tewkesbury, perdida. O filho, morto em combate.
Não lhe restara nenhum motivo para viver.
- Que seu corpo seja exposto e fique na catedral de St. Paul, para que todos possam vê-lo - ordenou Eduardo. - Haverá quem diga que ele encontrou a morte por meios excusos. Temos de evitar isso a todo custo.
Ele tinha razão. Houve quem dissesse, mesmo, aquilo. Era muito estranho que ele fosse morrer na mesma noite em que Eduardo entrou em Londres, quando Margaret e Anne tivessem sido mandadas para a torre.
Outros - adeptos iorquistas - disseram que tinha sido exatamente devido ao choque por tudo o que acontecera que ele tinha morrido.
O rei, no entanto - firme no trono, agora -, insistiu para que todas as honras fossem prestadas a Henrique.
O corpo foi levado por uma barcaça para Chertsey e, com grande respeito, enterrado na capela de Nossa Senhora na abadia daquela cidade.
FINALE
Os anos iam passando - os longos anos sem sentido. A vida fora dura para ela, ou será que, como sua irmã Yolande dissera, ela jamais compreendera como devia viver? Yolande estava feliz com Ferri e os filhos, nunca procurando aumentar suas ambições. Yolande nunca tivera paciência com ela. Talvez devesse ter dado ouvidos à irmã.
Agora era tarde demais, embora elas pudessem ter vivido juntas. Não, as duas jamais viveriam em harmonia. Era melhor ficar sozinha e em paz.
Ela achava que não podia reclamar do tratamento dado por Eduardo. Ele agora estava garantido no trono, era popular junto ao povo, ainda possuía aquele charme, muito embora tivesse ficado obeso e fosse tão devasso na maturidade quanto fora na juventude.
Margaret reconhecia, agora, que havia nele uma qualidade de rei que faltara a Henrique. Pobre Henrique, tão ineficaz! Que ironia o destino dar a ela um marido daqueles!
Ela só ficara na torre um curto período, e acreditava que tinha sido a rainha Elizabeth Woodville que convencera o rei a tornar a vida mais fácil para ela, de modo que ela passara dos cuidados de uma grande dama para outra e passara o seu cativeiro como hóspede de suas mansões. Depois, o rei da França pagara a Eduardo um resgate por ela e após cinco anos de cativeiro errante, ela embarcara em Sandwich.
Como fora estranho dizer adeus ao país para o qual tinha ido cheia de esperança e ambição fazia tantos anos - quase trinta; e mais estranho ainda, e triste, voltar para a sua terra natal.
Liberdade. Era uma sensação maravilhosa. Por um curto espaço detempo, ela ficara imaginando se poderia começar de novo; se poderia tirar alguma coisa dos destroços da vida. Ela iria a Paris para agradecer a Luís por tê-la ajudado a voltar para seu país e ter comprado sua liberdade. Quando chegou a resposta dele dizendo que ele não estaria em Paris e seria melhor ela ir procurar o pai, ela compreendeu.
Ela agora não tinha importância. Seu marido estava morto... assassinado, pensava furiosa, e o nome de Richard, duque de Gloucester, fora mencionado em conexão com o caso. Mas tinha sido Eduardo, é claro, que tinha pedido a morte dele... tal como Henrique II pedira a de Thomas Becket.
Mas que importância tinha aquilo tudo, agora que seu belo filho estava morto?
René cedera a ela o castelo de Reculée, perto de Angers, e ali ela vivia em extrema melancolia.
Yolande dissera que ela devia começar uma nova vida, mas Margaret discutia sempre com a irmã, que não compreendia o que significava saber que o marido tinha sido assassinado e que a maior tragédia que era possível caíra sobre ela - ela perdera o filho adorado.
Nada podia consolá-la. Ela até mesmo perdera a beleza, porque o choro contínuo e a violência de suas paixões, que ela parecia encontrar uma certa satisfação em extravasar, tinham-na deixado com olhos encovados e, o que era ainda pior, a pele ficara ressecada e com tantas escamas, que
as pessoas que a cercavam acreditavam que ela estivesse sofrendo de uma forma de lepra.
Ela não queria ver ninguém. Aquilo era a desgraça final para uma pessoa que tinha sido bonita e aceitara a beleza como um direito natural seu.
O pai morreu, e ela sentiu que perdera tudo aquilo que prezava.
Ela mesma estava apenas esperando a morte.
Só depois que René morreu ela decidiu fazer uma peregrinação a Dampierre e, fortemente velada para esconder sua deficiência, partiu.
Chegou a Dampierre e descansou no castelo de lá, e enquanto ali estava foi tomada de tal lassidão que não conseguia levantar-se da cama.
- Graças a Deus - disse ela - eu acho que meus sofrimentos acabaram.
Sua premonição estava certa. No quinquagésimo quinto ano de vida, onze anos depois da morte do filho e do marido, Margaret de Anjou fechou os olhos pela última vez.
Jean Plaidy
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