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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RUPURA / L. J. Smith
A RUPURA / L. J. Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Os vidros do carro de Adam estavam embaçados devido ao calor da respiração dos dois. Era um anoitecer agradável, e o ar cheirava aos primeiros sinais da primavera — uma noite perfeita para abrir as janelas e desfrutar da brisa enquanto se beijavam. Mas Cassie insistia que as janelas ficassem fechadas, pela privacidade. Além disso, agradava-lhe a sensação de estar protegida tão juntinho de Adam, isolada do mundo pelo vidro tomado de vapor. Eles chegariam tarde à reunião, mas ali, dentro daquela nuvem, Cassie não se importava.
— Precisamos ir — avisou ela com desânimo.
— Só mais cinco minutos. Como se eles pudessem começar sem você.
Verdade, pensou Cassie. E sou a líder. Mais um motivo para não me atrasar porque estou me agarrando com meu namorado.
Namorado. A ideia ainda a deixava tonta, mesmo depois de todas aquelas semanas. Ela viu o sol poente criar luzes multicoloridas no cabelo embaraçado de Adam — tons de vinho e laranja — e a centelha cristalina em seus olhos azuis.
Ele se curvou e a beijou com delicadeza naquele ponto do pescoço de Cassie, pouco abaixo da orelha.
— Tudo bem — disse ela. — Mais três minutos.
O primeiro beijo dos dois como casal mudou tudo para Cassie. Realmente importou. A boca de Adam na dela parecia decidida e significativa, como um acordo selado, e todo o corpo de Cassie tomou consciência do fato. Era amor, ela havia percebido.
Cassie supôs que a sensação diminuiria com o passar dos dias, que o beijo dos dois se tornaria rotineiro e habitual, mas não aconteceu. Na realidade, a intensidade aumentava com o tempo. Agora, estacionados na frente do antigo farol na Shore Road, Cassie sabia que precisavam parar de se beijar, mas não conseguia. Assim como Adam. Sua respiração acelerada e a urgência aflita das mãos nos quadris de Cassie deixavam isso evidente.
Mas não ficaria bem chegar atrasada em sua primeira reunião como líder do Círculo.

 


 

 

— Precisamos mesmo ir. — Ela se afastou e pôs a mão no peito de Adam a fim de pará-lo.

Ele respirou fundo e soltou o ar pela boca, tentando se acalmar.

— Eu sei.

Com relutância, deixou que Cassie se desvencilhasse de seu abraço e ficasse mais apresentável. Depois de respirar fundo mais algumas vezes e de uma carícia rápida no cabelo rebelde, Adam a acompanhou.

***

Atravessando a campina de relva alta que levava ao antigo farol, Cassie não pôde deixar de se impressionar com a beleza desgastada e rústica. Melanie disse que datava do final dos anos 1700, a idade patente na aparência dilapidada. A torre em si era feita de pedra acinzentada e tijolos, e chegava a quase 30 metros de altura, mas na base havia uma casa de madeira pequena, em ruínas — o chalé do faroleiro. Foi construído para a mulher e os filhos do faroleiro, para que pudessem estar perto enquanto ele cuidava de seus deveres no topo. Segundo Melanie, o chalé foi legado a várias gerações até a desativação definitiva do farol no início dos anos 1900. Desde então, falou-se muito sobre convertê-lo em um museu, mas ele continuou abandonado por décadas.

Adam sorriu para ela, e a respiração de Cassie ficou presa na garganta. Ela abriu a porta do chalé e entrou; Adam a seguiu. Com um silvo quase audível, a atenção do Círculo se voltou para sua entrada grandiosa e atrasada.

Ficou imediatamente claro que eles deixaram o grupo esperando por tempo demais e que todos sabiam exatamente a razão da demora. Cassie examinou todos os rostos, absorvendo as diferentes reações e acusações silenciosas.

Os olhos normalmente frios de Melanie tinham uma impaciência tempestuosa, e Laurel ria com timidez. Deborah, sentada na ponta do banco de madeira no canto, parecia pronta a fazer um comentário maldoso, mas, antes que tivesse oportunidade, Chris e Doug Henderson, que brincavam com uma bola de tênis perto da janela, disseram em uníssono:

— Já não era sem tempo.

Nick, sentado no chão, as costas apoiadas na parede, fitou Cassie com uma dor sutil nos olhos, obrigando-a a virar o rosto.

— Adam — disse Faye, com sua voz indolente e rouca —, seu gloss está borrado.

A sala explodiu numa gargalhada incontrolável, e Adam ficou vermelho. Diana olhava fixamente o chão, humilhada por eles, ou talvez por si mesma. Ela agia com elegância a respeito de Adam ficar com Cassie, mas havia um limite para o que uma garota podia suportar.

— Damos início aos trabalhos desta reunião — disse Diana, recuperando a compostura. — Por favor, sentem-se todos.

Diana falava como se o riso tivesse cessado, mas ainda era alto e estridente.

— A primeira questão de ordem — continuou ela — é o que faremos com as Chaves Mestras.

Isso silenciou o grupo. As Chaves Mestras — o diadema, o bracelete de prata e a liga de couro — pertenceram ao coven original de Black John. Ficaram desaparecidas por centenas de anos até Cassie deduzir que estavam escondidas dentro da lareira da cozinha de sua avó. O Círculo usou as Chaves para derrotar Black John, mas adiou quaisquer decisões relacionadas a elas desde então. Tinha chegado a hora de decidir seu destino.

— É verdade — disse Cassie, juntando-se a Diana no meio da sala. — Agora temos um poder real. E precisamos...

O quê? O que eles precisavam fazer? Cassie se virou para Diana. Seus olhos verdes e cabelo brilhante eram radiantes, mesmo na luz espectral do lampião do velho chalé. Se alguém sabia o que o Círculo deveria fazer, era Diana.

— Acho que devemos destruir de algum modo o poder das Chaves Mestras — completou Diana em sua voz clara e musical. — Assim ninguém poderá usá-las.

Por um momento, não houve resposta. Todos ficaram chocados demais com esta sugestão. Então Faye rompeu o silêncio.

— Você só pode estar brincando. Você e Adam passaram metade da vida tentando encontrar as Chaves Mestras.

— Eu sei — disse Diana. — Mas depois de tudo que passamos e agora que derrotamos Black John, sinto que ter muito poder não pode ser bom para nós nem para ninguém.

Cassie se surpreendeu tanto quanto Faye. Essas palavras nem pareciam ser de Diana, ou pelo menos da Diana que Cassie conhecia.

Adam também aparentava igual espanto, mas permaneceu em silêncio. Os líderes falavam primeiro. Estas eram as regras.

Cassie sentiu a atenção do grupo se voltar para ela. Agora era um triunvirato, o que significava que o poder de Cassie equivalia ao de Diana e Faye. Ela queria usar bem sua autoridade, declarar sua opinião abertamente e com inteligência, mas não queria se colocar contra Diana.

— O que a fez mudar de ideia? — perguntou ela.

Diana cruzou os braços finos.

— As pessoas mudam de ideia o tempo todo, Cassie.

— Bem — disse Faye, focalizando seus olhos cor de mel em Diana. — Discordo totalmente. Seria um desperdício não usar as Chaves. No mínimo, devíamos experimentar. — Sua boca formava um sorriso cruel. — Não concorda, Cassie?

— Hummm — disse ela. Era estranho. Cassie concordava um pouco com Faye nesse aspecto, e talvez fosse a primeira vez que concordava com ela em qualquer coisa. Não queria apoiar Faye contra Diana, mas como destruiriam as Chaves? E se Black John voltasse? Elas eram sua única defesa. Cassie queria que Diana tivesse discutido o assunto com ela antes.

— Podemos pedir a ajuda de Constance para nos livrarmos delas — propôs Diana. — Se for isso o que decidirmos.

Constance, tia-avó de Melanie, esteve ajudando o Círculo com a magia. Desde que usou seus poderes para recuperar a saúde da mãe de Cassie no inverno passado, ela ficou mais disposta a partilhar seu conhecimento dos velhos tempos.

— Constance deve saber que feitiço podemos usar — disse Diana. — E com Black John desaparecido para sempre, aposto que ela concordará que está na hora de colocar as Chaves para descansar.

Cassie percebia que Diana tinha fortes sentimentos com relação a isso. Assim como Faye — a raiva furiosa e familiar penetrava furtivamente em suas feições afiladas.

— Temos que fazer uma votação — apelou uma voz forte. Pertencia a Nick, que raras vezes se manifestava nas reuniões do Círculo. Ouvi-lo expressar uma opinião pegou Cassie desprevenida.

— Nick tem razão — disse Melanie. — Todos devemos ter voz equivalente em uma decisão tão importante.

Diana assentiu.

— Por mim, tudo bem.

Faye agitou teatralmente as unhas vermelhas para o grupo.

— Então, votem — disse ela, com a confiança de alguém que já venceu.

Melanie se levantou e foi para o centro da sala. Ela sempre convocava as votações no Círculo, percebeu Cassie.

— Levantem a mão os favoráveis a destruir as Chaves Mestras — pediu ela.

A mão de Diana subiu primeiro, seguida pela da própria Melanie, depois Laurel. Uma pausa de um segundo e Nick levantou a dele, e, por fim, Adam.

Cassie nem acreditou. Adam votou a favor de Diana, embora ela soubesse que ele preferia experimentar as Chaves.

— Levantem a mão os favoráveis a ficar com as... — continuou Melanie.

— Esperem — interrompeu Cassie. Ela se distraíra e perdera a oportunidade de escolher o lado de Diana.

Faye riu.

— Vacilou, dançou, Cassie. E um voto contra Diana é um voto a meu favor.

— Errado — declarou Cassie, surpreendendo a si mesma ao falar. — É um voto a meu favor.

Ela se interrompeu para olhar para Adam e viu que ele sorria com orgulho.

— Proponho uma terceira opção — disse ela. — Ficamos com as Chaves, para o caso de precisarmos delas. Não destruiremos seu poder, mas também não faremos experiências com elas.

— Neste caso — disse Faye —, terei prazer em guardar as Chaves em segurança até precisarmos delas.

— Nem pensar — disse Adam.

Cassie levantou a mão.

— Ainda não terminei. — Ela olhou para Faye e Diana. — Proponho que cada líder esconda uma das três relíquias, assim elas só poderão ser usadas se todo o grupo concordar.

Agora todos ficaram em silêncio, refletindo sobre essa nova possibilidade.

Era uma boa ideia, Cassie sabia. O que ela não sabia era como lhe viera, assim, de estalo. Quando assumiu o controle da reunião, não tinha a menor ideia do que ia dizer.

Diana foi a primeira a se manifestar:

— Me parece um meio-termo justo — concordou ela. — Melanie, peço outra votação.

— Apoio o pedido de outra votação — disse Nick com cavalheirismo.

Melanie ergueu as sobrancelhas.

— Tudo bem. Levante a mão os favoráveis à... ideia de Cassie.

Todas as mãos se levantaram, exceto as de Deborah, Suzan e Faye.

— Então, está decidido — disse Melanie.

Faye ficou inteiramente imóvel. Não mexia um músculo, mas uma sombra escura tomou seu rosto.

Suzan deu um pulo da cadeira.

— Ah, bem. Acho que está resolvido. Estou morta de fome. Agora podemos ir comer?

— É, vamos comprar uns tacos — disse Sean.

Um por um, todos se levantaram e começaram a pegar seus pertences, falando sobre a reunião na casa da tia-avó de Melanie, Constance, para praticar invocações. Diana apagou as velas e os lampiões. Enquanto isso, Faye permanecia imóvel.

— Você — chamou ela.

Por instinto, Cassie recuou um passo, embora Faye estivesse do outro lado da sala.

— Não fique tão cheia de orgulho. — Ela foi rebolando até Cassie e se inclinou para mais perto. Cassie sentiu seu perfume forte e ficou tonta. — Pode ter vencido a batalha — disse Faye. — Mas... Bem, sabe como é.

Cassie saiu do alcance de Faye. Seu medo ainda levava a melhor sempre que ela a ameaçava. Não importava se Faye a essa altura era realmente mais forte ou não. A garota era obcecada como uma sociopata e não tinha nenhum escrúpulo. Não se podia argumentar com Faye, e era isso que a tornava perigosa.

— Estamos do mesmo lado — contemporizou Cassie com a voz fraca. — Queremos a mesma coisa.

Faye estreitou os olhos cor de mel.

— Não é verdade. Pelo menos, ainda não.

As palavras pareciam uma ameaça, e Cassie sabia que Faye nunca fazia uma ameaça vazia.


2

Cassie e Adam não disseram uma palavra durante o percurso de carro até a casa de Cassie. Ela continuava abalada pelas palavras de Faye, e Adam, sentindo isso, apenas segurou sua mão em silêncio enquanto dirigia.

Ela ligou o rádio, procurando uma distração, e mexeu no controle até encontrar uma música do seu agrado. Não conseguia se lembrar do nome, mas ela despertou uma nostalgia em seu coração, a lembrança de uma época em que a vida era muito mais simples. Estava em New Salem havia menos de um ano, mas parecia uma eternidade e mais um dia.

Em vez de olhar a noite de primavera pela janela, Cassie fechou os olhos. Deixou-se ser dominada pela música e tentou se lembrar de como era não ser uma bruxa, só uma garota.

Depois abriu os olhos para dar uma espiada rápida em Adam. Ele era lindo. Na luz clara da lua, seu cabelo parecia castanho avermelhado, os olhos escurecidos a um azul-marinho que combinava com o céu noturno. Como era possível que esse garoto estivesse apaixonado por ela e só por ela? A Cassie do ano anterior jamais teria acreditado nisso.

Ela olhou o próprio reflexo no retrovisor lateral do carro. Nem mesmo tinha a aparência da Cassie que ela conhecia na Califórnia. Na época, sempre se sentia mediana. Altura mediana, constituição mediana, cabelo castanho comum. Mas agora Cassie percebia suas luzes multicoloridas e os olhos azuis-acinzentados, grandes e redondos. E, mais importante, reconhecia que tinha amadurecido em seu poder. Agora estava confiante de um jeito antes inimaginável.

Quando eles pararam no número 12, a última casa na escarpa, Cassie se lembrou da primeira vez que a vira, como lhe pareceu assustadora e velha, com seu telhado íngreme e desgastadas paredes cinza. Era mesmo bom que ela tivesse se acostumado com aquela e todas as outras casas antigas da Crowhaven Road? Tudo que no passado tinha lhe parecido estranho e um tanto horripilante agora era normal para ela; tinha se tornado a sua vida.

Adam desligou o motor e se virou para Cassie com olhos ávidos.

— Basta ignorá-la — disse ele.

— Quem?

— Faye. O que ela disse sobre você vencer a batalha, mas ela ganhar a guerra... Não pode deixar que te afete. Ela está sempre dizendo isso a respeito de tudo. Se houvesse uma boneca Faye, quando você puxasse a cordinha, era o que ela diria... — Ele imitou a voz rouca de Faye. — Quem vence a batalha perde a guerra.

Cassie teve que rir.

Adam pegou as mãos dela, evidentemente satisfeito por ter conseguido fazê-la sorrir.

— Você achou uma ótima solução para as Chaves Mestras — elogiou ele. — Como pensou nisso?

— Não sei. Foi esquisito. Simplesmente me ocorreu, do nada.

— Não foi do nada. Foi daqui. — Ele apontou para o coração de Cassie. — E daqui. — Ele apontou para sua cabeça. — Por isso votamos em você para líder. Quando vai se acostumar com isso, Cassie? Você é especial.

Naquele momento, Cassie ficou tão agradecida por ter Adam a seu lado. É claro, ele votou em Diana antes, mas, quando Cassie falou, ele a apoiou. Era isso que importava. Ela se inclinou para beijar seus lábios vermelhos carnudos.

Beijá-lo era sempre uma novidade. Mas ele interpretou o doce beijo de despedida como um convite para mais pegação. Apressadamente, Cassie soltou o cinto de segurança e o jogou de lado.

— Não. De novo, não.

Adam ergueu as sobrancelhas como um cachorrinho triste.

— A luz da sala de jantar está acesa. — Cassie mexeu no cabelo dele e o afastou. — O que significa que minha mãe deve estar nos vigiando agora mesmo.

Adam a agarrou de brincadeira, com malícia nos olhos.

— Um dia, meu amor, não vamos dar a mínima para o que os outros pensam.

Ela deu um último beijo em sua bochecha macia e correu para casa, antes que mudasse de ideia.

***

Depois de entrar, Cassie encontrou a mãe sentada à grande mesa de mogno da sala de jantar. Havia um calor tranquilizador no cômodo pouco iluminado. Pela primeira vez, Cassie apreciou a antiga rede elétrica do avô, embora fosse de má qualidade. As paredes cor de milho dourado teriam ficado amarelas sob implacáveis luzes modernas.

A cabeça escura da mãe se ergueu, e ela sorriu, surpresa. Ao que parece, não os estava vigiando, graças a Deus.

— Cassie, eu não esperava você em casa tão cedo — disse a mãe. — Pode me ajudar?

Cassie examinou as ilhas espalhadas de papel crepom colorido que tomavam a vasta mesa.

— O que é tudo isso?

A mãe ergueu as mãos como quem se desespera.

— Narcisos e estrelítzias. Enfeites para o festival de primavera. Me ofereci como voluntária, não sei por quê. Agora estou soterrada em papel crepom.

Depois de ver a mãe doente na cama por tanto tempo, noite após noite, assistindo à tia-avó de Melanie, Constance, alimentá-la com ervas curativas e passar emplastros medicinais em seu corpo, era um prazer encontrar a mãe tão exaltada com uma tarefa sem importância nenhuma. E também era bom vê-la se envolver em um evento da comunidade. Cassie queria que a mãe se sentisse em casa em New Salem e que tivesse amigos, em especial agora que a avó não estava ali.

— Por onde eu começo? — perguntou Cassie, juntando-se à mãe na mesa majestosa. Pegou pilhas de papel amarelo e verde, supondo que era mais fácil fazer narcisos do que estrelítzias. Ao começar a dobrar e afofar o papel fino em pétalas, ela pensou consigo mesma: deve haver alguma magia para terminar isso mais rápido. Mas estava tão feliz e aliviada por ter a mãe de volta ao normal que não se importaria se a tarefa levasse a noite toda.

— E então — disse a mãe, enfim focalizando os olhos em Cassie. — Como está Adam?

Cassie sentiu as bochechas arderem.

— Está bem.

— E seus amigos?

— Também estão bem.

A mãe largou a estrelítzia prateada com que estava lutando e avaliou o rosto de Cassie.

— Sabe de uma coisa, tenho muito orgulho de você. Você se recuperou com muita rapidez do... — Ela se interrompeu.

— De todo o drama?

— Sim, do drama, acho que pode chamar assim. — A mãe tentou sorrir.

Cassie hesitou só por um momento; tempo suficiente, porém, para chamar a atenção da mãe.

— Tem algo errado — disse ela. — O que é?

A ansiedade inundou o estômago de Cassie. Estava curtindo esse momento de convívio e não queria estragá-lo. Mas a mãe parecia genuinamente disposta a conversar. Pela primeira vez na vida de Cassie, parecia que todos os segredos entre elas eram enfim revelados e sua relação tinha uma tabula rasa. Um novo começo, pensou Cassie. Era isso que estavam comemorando, não? Afinal, era para isso que serviam todos esses idiotas narcisos e estrelítzias de papel.

Cassie respirou fundo e encarou atentamente a mãe.

— Estive me perguntando sobre meu pai.

A mãe enrijeceu de imediato. Cassie notou sua mandíbula cerrada antes de tomar um longo gole do chá. A xícara tremia quase imperceptivelmente em sua mão. No mesmo instante Cassie se arrependeu do que disse. Mas, quando baixou a xícara de chá, a mãe parecia ter se recuperado do choque da pergunta. Ou, pelo menos, esforçava-se para dar essa impressão.

Quando finalmente falou, as palavras saíram forçadas, mas pacientes e gentis.

— É um prazer lhe contar qualquer coisa que queira saber. Você só precisa perguntar.

O alívio tomou os ombros de Cassie. Notou há quanto tempo estava guardando suas preocupações e perguntas bem amarradas dentro do corpo. Ela se obrigou a continuar falando.

— Eu sei que ele... quero dizer, Black John... era mau — começou Cassie. — Mas ele faz parte de mim. E é uma parte que sinto que preciso entender. Há algo a respeito dele que você possa me contar?

Pronto. Ela falou. As cartas estavam na mesa.

A mãe se concentrou firmemente na estrelítzia de papel que tinha nas mãos.

— Tem toda razão — disse ela, mas não respondeu à pergunta, nem olhou para a filha ao falar.

Cassie fitava a mãe em um silêncio cauteloso. Estava concentrada demais na estrelítzia prateada que segurava, dobrando e redobrando várias vezes.

— O problema é que fazem esse papel fino e frágil demais — disse ela. — Ele se desmancha no instante em que você o toca.

Bem diante dos olhos de Cassie, a mãe tinha encerrado a conversa das duas. Mas Cassie estava decidida a não desistir com tanta facilidade e, depois de alguns minutos do olhar fixo e penetrante de Cassie, a mãe parou de ignorá-la e ergueu a cabeça brevemente.

— Há algo que você queira me perguntar agora? — indagou ela, fingindo indiferença.

A expressão nos olhos da mãe revelava um medo que Cassie não via nela desde que adoeceu. Seu rosto ficou lívido e espectral, como se ela tivesse envelhecido vinte anos naqueles cinco segundos de silêncio. E Cassie percebeu que o papel crepom prateado que a mãe tinha nas mãos se enrugava e rachava sob a tensão esmagadora dos dedos, como se sua vida dependesse de apertá-lo.

Era demais, e Cassie não podia lidar com isso. A mãe começara a melhorar havia pouco tempo. Só agora recomeçava a participar da vida. Cassie não podia estragar tudo com perguntas egoístas. A mãe era frágil, muito mais do que Cassie jamais seria.

— Deixe pra lá — disse Cassie. — Podemos conversar sobre isso outra hora. Temos muito o que fazer aqui.

Sempre foi assim. Cassie sempre teve de ser adulta na relação das duas, aquela que guardava as perguntas para si porque a mãe não aguentava as respostas — ou a verdade. Ela era uma tola por pensar que podia ser diferente.


3

– Aprimavera está no ar — disse Melanie a Cassie e Laurel, fechando por um momento os olhos cinzentos e respirando fundo. — Quase dá para sentir o cheiro, né?

Cassie bateu a porta do seu armário e inspirou, mas só conseguia sentir o mesmo cheiro de corredor escolar: suor, papel e amônia.

— Foi um inverno ruim — explicou Laurel. — Acho que tem alguma coisa a ver com isso. — Ela se arrumou de maneira condizente aquela manhã, com um vestido de estampa floral. — O festival do equinócio da primavera deste ano será demais.

Havia um alvoroço ao redor delas — as vozes pareciam mais altas, os passos, mais rápidos, todo mundo parecia mais animado e cheio de vida —, todos tinham a febre da primavera. Então Cassie se lembrou de que o novo diretor seria anunciado na assembleia dos alunos daquela manhã. Talvez fosse esta a fonte de toda a nova energia no ar. Ela estava ansiosa para conhecer o homem que seria encarregado da sua escola, em particular depois que o último diretor revelou-se ser Black John disfarçado. Mas Melanie e Laurel deviam ter razão — era o festival da primavera daquele fim de semana que animava a todos. Os colegas de escola planejavam suas roupas e debatiam quem seria um parceiro digno. Ninguém se importava com o novo diretor.

— É um bom sinal — disse Melanie. — Esta cidade precisa justamente de uma comemoração de novos começos.

Cassie queria ficar animada com a primavera como todos os outros, mas seu coração pesava no peito. A tentativa desastrosa de conversar com a mãe na noite anterior ainda a incomodava.

Nesta hora, Chris e Doug Henderson passaram voando de patins, rindo e disparando pelo corredor abarrotado. O impulso para a frente soprava os cabelos louros e embaraçados para longe dos idênticos olhos verde-azulados. Eles desaceleravam um pouco, apenas para entregar flores em formato de estrela a qualquer garota bonita por que passassem. Suzan, carregando um cesto de vime cheio de flores, corria atrás deles para mantê-los abastecidos.

— Mas o que foi isso? — perguntou Cassie.

— Chionodoxa luciliae — disse Laurel.

Melanie deu um empurrão na amiga.

— Na nossa língua.

— Desculpe. — Laurel sorriu. — Aquelas flores azuis. Chamam de glória-da-neve. É um dos primeiros sinais da primavera.

Nessa hora, ocorreu a Cassie que até os gêmeos Henderson, que perderam a irmã Kori no último outono, estavam abraçando a nova estação. Ela podia se esforçar um pouco mais para ter uma perspectiva mais positiva.

— Acho que já vi essas flores — disse ela. — No jardim de pedras atrás do ginásio existem algumas.

— Não mais — refutou Sean, dando uma gargalhada. Ele passou por elas com um buquê de flores azuis na mão magricela e o ofereceu, hesitante, a Cassie.

— Obrigada, Sean — respondeu, mas, antes que pudesse aceitar o buquê, Faye avançou e o arrancou da mão de Sean. Cheirou as flores, depois as empurrou contra o peito do garoto.

— Corra para a assembleia e encontre outra garota ridícula a quem dar isto — disse ela. Então se virou para Cassie. — Preciso ter uma palavrinha com você.

Faye estava toda de preto, como de costume, mas a roupa daquele dia era mais apertada e reveladora do que o usual. Cassie acenou para Melanie e Laurel.

— Está tudo bem. Podem ir para o auditório. Verei vocês lá.

Ela prometeu a si mesma que não demonstraria medo de Faye, acontecesse o que fosse. Não podia se permitir ter medo de ficar sozinha com ela, em especial na escola, onde, era seguro supor, estava protegida de quaisquer maus-tratos que ela quisesse lhe infligir.

Faye, é claro, não perdeu tempo em argumentar.

— Sei que você é nova em toda essa história de liderança — disse ela a Cassie. — Mas até você deve saber que não vai conseguir dar uma de boazinha por muito tempo.

— Não sei do que você está falando.

Faye escarneceu, como se fosse indigno ter que se explicar.

— Não banque a inocente comigo, Cassie. Não funciona.

Cassie olhou para os dois lados do corredor vazio e pôs as mãos nos quadris.

— Se tem alguma coisa a me dizer, Faye, então diga. Mas, se você só está tentando me intimidar, não está conseguindo.

— Mentira. — Faye estendeu a mão a fim de jogar levemente para o lado alguns fios de cabelo que tinham caído nos olhos de Cassie, e esta se afastou em um salto.

Faye sorriu.

— É disso que estou falando. O poder sempre cria inimigos. Divide as pessoas em dois tipos, as boas e as más. Se realmente quiser ser uma líder deste Círculo, precisa escolher um lado.

Cassie se lembrou de Diana uma vez ter dito que poder era só poder — não era nem bom, nem ruim. Só o uso que fazemos dele é bom ou ruim, dissera. Mas até Diana mudou de opinião.

— Já escolhi um lado — disse Cassie.

O rubi estrela no pescoço de Faye cintilou. Era da mesma cor do seu batom.

— Não, não escolheu. Há algo em você, uma prova de que você é a garotinha do papai. Pode sentir por dentro. Trevas. Sei que você sente.

Cassie abraçou os livros no peito com mais força.

— Você não sabe de nada.

— Não é cansativo tentar tanto imitar Diana, quando, na realidade, você é igual a mim?

— Não. Porque não sou igual a você.

Faye soltou uma gargalhada grave e gutural, e deu um passo para trás. Ela atingiu seu objetivo. Cassie ficou consideravelmente abalada.

— É melhor correr — disse Faye. — Não vai querer se atrasar para a assembleia. — Ela pegou um batom na bolsa e passou outra camada do pigmento escuro nos lábios. — Quer um pouco? — Estendeu o batom vermelho-sangue para Cassie. — Acho que é a cor certa para você.

Em um lampejo de raiva, Cassie pensou em arrancar com um tapa o batom da mão de Faye. Mas isso significaria dar exatamente o que ela queria. Faye tentava pressionar Cassie a ceder a seus impulsos mais inferiores, a ser insolente e impulsiva como a outra.

Mas Cassie não faria isso. Não daria essa satisfação a Faye. Deu-lhe as costas e, ao fazê-lo, viu rapidamente alguém que não tinha percebido. Um garoto. Faye o notou também.

Juntas, elas o viram andar pelo corredor. Era alto e musculoso, tinha cabelo castanho-claro e devia ter acabado de malhar, porque usava agasalho e tênis. Trazia uma bolsa de ginástica em uma das mãos, e o taco de lacrosse na outra.

— Que gato. — Faye fechou o batom e o enfiou na bolsa. — Sabe que eu adoro esses atletas suados.

Cassie revirou os olhos.

De imediato, Faye abordou o garoto para reclamar seus direitos.

— Está perdido? — chamou. — Posso te ajudar a se encontrar.

Sua cabeça se levantou de repente ao perceber que falavam com ele. Cassie viu que os olhos eram verdes como esmeraldas, lindos como os de Diana.

— Não, obrigado — respondeu ele, numa voz ao mesmo tempo rude e presunçosa. — Sei para onde estou indo.

— Para aquela assembleia chata? — Faye não ia desistir com tanta facilidade. — Nesse caso, posso te ajudar a se perder.

Isso arrancou um sorriso dele, mas foi dirigido à Cassie.

— Oi. Meu nome é Max.

— Esta é Faye — disse Cassie, retribuindo o sorriso de Max. — É um prazer para ela conhecê-lo.

Max deixou cair sua bolsa de ginástica no chão e apertou a mão de Faye de um jeito que deixou evidente que estava acostumado a ter as garotas caídas por ele.

— Cassie — disse Faye, ainda segurando a mão grande de Max. — Adam não está esperando por você na assembleia? Acho que precisa ir.

Cassie assentiu.

— Ela tem razão. Tenho que ir.

Enquanto se afastava, Cassie ouviu Max dizer às suas costas: “A gente se vê.”

***

Cassie entrou no auditório bem a tempo para a cerimônia de boas-vindas. Ficou aliviada ao encontrar Adam acenando para ela da última fila, onde estava sentado. O auditório estava mais lotado do que ela já vira. Grupos de alunos se espremiam nos fundos e em cada fila perto da saída. A forte empolgação que Cassie sentiu no corredor foi transportada até ali, onde aumentava como água turbulenta contida por uma represa. Mas, depois que o Sr. Humphries deu um tapinha no microfone para silenciar a multidão e fazer alguns anúncios, a energia inquieta se reduziu a um leve tédio. As assembleias sempre eram divertidas, até chegar a parte da assembleia.

Cassie deixou o olhar vaguear pela multidão. Encontrou Diana bem na frente, sentada com sua turma de inglês avançado. Melanie e Laurel tinham se juntado a Suzan, Sean e os irmãos Henderson nas filas intermediárias, no meio do caminho para o palco. Deborah e Nick estavam algumas filas atrás deles. Cassie notou que nenhum deles parecia preocupado; aparentavam o mesmo tédio e apatia do resto da escola. Será que ela era a única que ainda vacilava devido à última assembleia em que eles deram as boas-vindas ao diretor? Ou só fingiam, tentando dar o máximo de si? Todos eram de fato tão melhores do que Cassie em prosseguir com a vida?

Sally Waltman e Portia Bainbridge estavam sentadas com seu grupo de líderes de torcida. O cabelo cor de ferrugem de Sally se destacava do resto das amigas, a maioria loura, e assim era fácil localizá-la na multidão. Ela ria de alguma coisa dita por Portia, provavelmente zombando de alguém, como sempre fazia. O Círculo havia chegado a uma trégua desconfortável com Portia e seus irmãos, mas Cassie ainda não gostava dela.

— Você está bem? — perguntou Adam, quando Cassie se sentou. — Está com aquela cara de acabo-de-ter-um-encontro-com-Faye.

— Estou ótima. Faye bancou a valentona comigo, mas um cara bonito passou e ela se esqueceu de mim.

— Essa é a nossa Faye. — Adam segurou a mão de Cassie e a apertou. — Quem era o cara?

— Não sei, alguém novo. O nome dele é Max.

Cassie procurou por Faye no auditório e a encontrou de pé no canto, conversando com Max — falando para ele é uma descrição mais exata. Ele se apoiava com as duas mãos no taco de lacrosse, como se pudesse desmoronar de tédio se não estivesse se segurando.

Cassie voltou a atenção ao homem que ela supunha ser o novo diretor, esperando ao lado. Usava um terno escuro bem cortado e tinha cabelos grisalhos. Era alto, de ombros largos, e mantinha as mãos entrelaçadas às costas. Era bonito, assim como o Sr. Brunswick.

Aplausos fracos o receberam no palco.

— Obrigado. — Ele ajeitou o microfone. — Sou o Sr. Boylan, e é um prazer conhecê-los.

Sua voz era mais grave do que Cassie esperava. Tinha a aparência esmerada e elegante, mas a voz de um lenhador — havia uma dureza nela, uma aspereza, e a mais leve sugestão de um sotaque que ela não conseguia identificar.

Um tremor correu por sua coluna.

Não, pensou Cassie consigo mesma. É paranoia sua. Só porque o Sr. Brunswick acabou se revelando mau, não quer dizer que o Sr. Boylan também o será. Ela imaginou que devia estar sofrendo de algum estresse pós-traumático, como os soldados que voltavam das guerras e se assustavam com os ruídos mais inofensivos.

Porém, enquanto o Sr. Boylan continuava a falar, cada músculo do corpo de Cassie se retesava, em defesa. Ela olhou para Adam a fim de checar se ele também sentia alguma coisa estranha no diretor, mas ele observava calmamente o palco, sem nenhuma expressão de alarme.

— Obrigado a todos pelas graciosas boas-vindas — agradeceu o Sr. Boylan. — Espero que façam o mesmo por meu filho, que também será aluno daqui. — Ele apontou para um canto distante, onde Max ainda estava apoiado no taco de lacrosse, olhando para a frente.

Adam e Cassie trocaram olhares. Nenhum dos dois tinha o que dizer.

É claro. A nova paixão de Faye era o filho do diretor.

Faye sorria com malícia atrás dele, olhando para sua nuca, como se pudesse queimar um buraco ali com seu desejo. Quando percebeu o olhar de Cassie, franziu os lábios em um beijo e o soprou para ela. Depois mostrou a língua, fingindo lamber a nuca de Max.

— Isso não pode ser bom — disse Cassie.


4

Enquanto caminhava da escola para casa naquela tarde, Cassie enfim teve um momento a sós para pensar. Diana e alguns dos outros iam ao centro comprar roupas para o festival da primavera. Você precisa de um vestido de primavera para o festival, insistira Suzan, quando Cassie explicou que estava cansada demais para fazer compras. Mas Diana se intrometeu em nome de Cassie, dizendo que, se ela estava cansada, era melhor ir para casa.

Será que isso significava que Diana na realidade não queria que ela estivesse lá? Cassie desejou se sentir mais confiante a respeito da amizade com Diana, mas isso era um aborrecimento, como tudo naquele momento.

Cassie decidiu tomar o caminho mais longo e bonito para casa pela Cherry Hill Road, onde filas de cerejeiras Kwanzan e anãs estariam no auge da floração. Era um dia tempestuoso de março, e o barulho do vento nas árvores era seu preferido. Ela parou de andar por um momento a fim de olhar as folhas, e observou-as se sacudirem e dançarem no alto, até ficar tonta.

— Esse pedaço é meu — avisou uma voz atrás dela.

Ela olhou em volta e viu uma jaqueta de couro e jeans pretos.

— Nick — disse ela. — Vim para cá sozinha, então talvez você esteja no meu pedaço. — Ela tentava ser sarcástica e brincalhona. Depois imediatamente estragou tudo ao acrescentar: — Mas é muito bom encontrar você.

Cassie notou que ele se remexeu, pouco à vontade com o comentário tolo, mas a boca da garota não ia parar agora.

— É só que... nós não temos conversado ultimamente. E nunca mais fizemos nada juntos.

A expressão de Nick era fria. Nem um sorriso, nem mesmo a sugestão de um. Ele evidentemente não sentia o mesmo. Virou a cara e procurou pelos cigarros no bolso da jaqueta. Depois se lembrou de que tinha parado de fumar, e ficou imóvel.

— Sinto sua falta, Nick. — Cassie se ouviu dizer. E desejou na hora que não tivesse saído tão carente e digno de pena.

Nick estava daquele jeito — indiferente e fechado — desde que Cassie e Adam ficaram juntos. A parte racional do seu cérebro sabia que ele só se afastava porque se sentia magoado, mas a outra parte, a irracional, não se importava em nada com isso e só queria que ele voltasse à sua vida.

Ela tocou o couro macio da sua jaqueta e perguntou, com a maior inocência possível:

— Não sente nem um pouco a minha falta?

Uma onda de agonia disparou pelo rosto dele, como se ela o tivesse apunhalado na barriga com uma faca afiada.

— Cassie — disse ele.

Ele estava prestes a dizer alguma coisa importante. Ela sabia, pela suavidade da sua voz e pela luta para encontrar as palavras certas. Era muito difícil para Nick expressar emoções, e vê-lo se esforçando tanto derreteu um pouco o coração de Cassie. Este era o lado terno de Nick, a que poucas pessoas tinham acesso.

— Cassie, escute — disse ele.

Mas nessa hora Adam passou de carro e buzinou.

— Ei, vocês dois — chamou ele. — Querem uma carona?

Droga. Que timing horrível. Ela e Nick finalmente estavam chegando a algum lugar.

Mas o momento se perdeu. A cara de Nick, que se abrira brevemente, voltou a se fechar, mais apertada e trancada que uma catacumba.

— Quer uma carona para casa? — perguntou-lhe Cassie sem convicção.

Vê-la com Adam era a última coisa de que Nick precisava, e Cassie sabia disso.

— Passo — disse ele, na voz mais fria que pôde invocar. — Mas é melhor você ir — acrescentou, quando notou a hesitação de Cassie. — Sua carruagem a espera.

Cassie ficou dividida. Por uma fração de segundo, imaginou seu futuro alternativo, aquele em que Adam não aparecia, em que ela e Nick conversavam por toda a longa caminhada para casa, debaixo da copa das árvores. Não queria deixar escapar aquela possibilidade. Mas sabia que não devia pressioná-lo demais. Afinal, sua lealdade era para com Adam, e sempre seria.

Nick partia na direção contrária de casa quando Cassie correu para acompanhá-lo e cochichou em seu ouvido:

— Você pode ter conquistado o direito de ficar infeliz por um tempo — disse ela. — Mas não vou deixar que escape com tanta facilidade.

Depois ela correu de volta ao carro de Adam, abriu a porta e entrou.

***

Por dentro, o carro de Adam sempre tinha o mesmo cheiro. Era o almíscar doce das folhas de outono misturado a gasolina, couro lubrificado e borracha, e nunca deixava de excitar Cassie.

Adam a olhava, analisando cada centímetro de seu rosto com os penetrantes olhos azuis.

— Pensei que você fosse fazer compras com as garotas.

— Não estava com vontade.

Ele colocou a mão quente em seu joelho.

— Cassie, tem certeza de que está tudo bem?

Ela olhou pela janela e não respondeu.

— Nick estava criando problemas para você?

— O quê? Não, claro que não. Na verdade, eu é que crio problemas para ele, tentando fazer com que seja meu amigo de novo.

Adam devolveu a mão ao volante e apertou com força, embranquecendo os nós dos dedos.

— Ele precisa de tempo.

— Eu sei.

Cassie via as ruas mais comuns de New Salem dando lugar à Crowhaven Road, e decidiu mudar de assunto.

— Captou algo estranho com relação ao novo diretor hoje? — perguntou ela.

— Não, por quê? Você teve?

— Mais ou menos, mas não tenho certeza — disse Cassie com sinceridade. — Acho que quero perguntar a Constance sobre isso. Talvez ela conheça um feitiço ou coisa assim que possa nos mostrar a verdadeira natureza dele.

Adam tentou reprimir um sorriso.

— Acho que está sendo meio paranoica, Cassie. O que é muito justo, depois de tudo que passamos. Mas, sinceramente, a única coisa que achei esquisita no diretor foi Faye dando em cima do filho dele.

— Eu sei, você deve ter razão. — Cassie voltou a olhar pela janela. Notou um sedã preto atrás deles e se esforçou para ver se era um dos amigos. Não havia muitos carros com motivo para entrar na Crowhaven Road.

— Cassie. Preste atenção. Black John não está mais nos assombrando. Ele morreu. Nós vencemos.

Apesar de toda a sensibilidade de Adam, incomodava Cassie o fato de ele ainda se esquivar do fato de que Black John era pai dela, apesar da sua maldade. Quando Adam falava nele, era sempre, Ele morreu, foi embora para sempre — o que naturalmente era bom, mas Adam podia pelo menos perceber que a morte dele era perturbadora para Cassie.

— Acho que ainda gostaria de ver Constance — insistiu ela. — Pode me deixar lá, por favor?

Adam então ficou em silêncio, o que significava que teve a sensibilidade de saber que disse algo que incomodou Cassie.

Eles agora estavam quase na casa de Constance, então ele soltou o acelerador, reduziu e parou. Cassie notou que o carro preto atrás deles também parou. Fez um retorno e voltou para a rua principal. Que estranho, pensou ela.

***

No início ninguém atendeu à porta, mas então Cassie viu a cabeça grisalha de Constance aparecer na janela da frente. Ela acenou para Cassie e abriu a porta.

— Veio procurar Melanie? — perguntou ela. — ainda não voltou da escola.

— Na verdade, tia Constance, vim falar com você.

— Epa. Qual é o problema? — Ela guiou Cassie pelo imaculado piso de madeira até a sala de visitas, onde estava tomando um chá.

Cassie ficava muito à vontade naquela casa desde que sua mãe se hospedou ali, quando estava doente. Era parecida com a casa de Cassie, mas estava em melhores condições. As paredes eram recém-pintadas, a prata brilhava de tão polida e não havia um grão de poeira em lugar nenhum. A sala de visitas cheirava a lustra-móveis.

Constance encheu sua xícara de chá com desenho de salgueiro e serviu outra para Cassie. Depois voltou a se sentar na grande cadeira de balanço.

— O que está incomodando você? — perguntou.

— Na verdade, nada — respondeu Cassie. — Acho que só vim para pedir um conselho.

— Sobre o quê? — Constance era magra e majestosa, mas parecia quase uma criança se balançando em sua cadeira.

— Ando me sentindo inquieta ultimamente — explicou Cassie.

Constance parou de se balançar e plantou os pés no chão.

— Terá que ser mais específica se quiser um conselho, querida.

— Pode acreditar, estou tentando. — Cassie baixou a xícara de chá. — Acho que parte disso é que sei que devia estar feliz. O Círculo derrotou Black John, e minha mãe voltou a ficar bem. E eu tenho Adam, que me ama muito.

— Mas?

— Mas parece que não consigo relaxar. — Cassie se curvou para mais perto de Constance e passou a falar mais baixo. — Hoje, por exemplo, quando nosso novo diretor foi apresentado, comecei a ficar toda trêmula, bem ali, na assembleia. Sei que não era por causa dele, mas como vou saber, como posso saber... Ah, sei lá.

— Como pode saber a diferença entre instinto e ansiedade? — Constance sorriu.

Cassie concordou com a cabeça.

— Só existe um jeito — afirmou Constance. — Anos de prática. Este é um dos maiores desafios de possuir a visão.

Ela se recostou na cadeira e parecia, por um momento, perdida nos próprios pensamentos. Depois os lábios vermelhos e finos formaram um sorriso.

— Sua avó também era assim — disse ela. — O que se pode chamar de “nervosa”. Se você soubesse quantas vezes ela me acordou de um sono profundo, gritando por causa de um mau presságio que acabou sendo uma indigestão...

Constance ria tanto que as lágrimas brotaram no canto dos olhos. Pegou um lenço de papel e as enxugou, antes de prosseguir.

— Desculpe, eu não pretendia fazer troça. Mas vai ficar mais fácil com o tempo, Cassie, pode ter certeza.

— Então, você está dizendo que não existe um jeito mágico de ter certeza sobre quem é bom e quem é mau, nem um feitiço para testar a verdadeira natureza do diretor?

Constance resistiu ao impulso de rir novamente.

— Meu bem, se existisse um feitiço desses, teria sido o primeiro que eu mostraria a você. — Ela olhou com carinho para Cassie. — Infelizmente, não existe atalho para a paz de espírito.

Como Cassie não respondeu, rugas apareceram entre as sobrancelhas de Constance.

— Pratique suas meditações e invocações diariamente — aconselhou ela. — Cultive a tranquilidade o máximo que puder.

Era uma recomendação simples, mas Cassie saiu da casa de Constance se sentindo um pouquinho mais leve.


5

Quando Cassie chegou ao Old Town Hall, o sol brilhava baixo enquanto barracas e mesas eram arrumadas para as festividades da noite. Ela procurou pela mãe entre os voluntários, para ajudá-la a colocar os enfeites que as duas finalmente terminaram de fazer na noite anterior.

O Old Town Hall era um dos primeiros prédios municipais de New Salem. Quando se encontrava em funcionamento, abrigava todos os escritórios federais da cidade. No passado, a área em volta era ocupada por um mercado ao ar livre, mas ultimamente era usada como espaço de arte pública e, é claro, abrigava os festivais anuais da primavera e do outono.

— Oi, Cassie. — Laurel apareceu carregando uma bandeja de bulbos de tulipa com quase o dobro do seu tamanho. Ela a baixou em uma mesa próxima e tirou alguns fios de cabelo suados do rosto de fada. — Está animada com o festival desta noite?

— Claro — disse Cassie, sem convencer.

— Bem, devia mesmo. O equinócio de primavera é importante para nós, como bruxas. — Laurel olhou para os lados a fim de ter certeza de que ninguém ouvia. Depois, como Cassie esperava, começou uma aula de história. As aulas de história e botânica eram praticamente obrigatórias nas conversas com Laurel. Ou você a amava por isso, ou tinha o impulso de tapar sua boca com fita adesiva, mas no momento Cassie fez a vontade da amiga.

— Como muitas tradições em New Salem, a origem do festival da primavera tem raízes no paganismo — continuou Laurel. — O festival antigamente era chamado de Festival de Ostara e era um feriado para celebrar a deusa que despertava do seu sono de inverno. Era uma época em que nossos ancestrais honravam o equilíbrio de todas as coisas, o físico com o espiritual. Os livros antigos diziam que era uma época de plantar sementes no jardim, também de plantar as sementes da manifestação desejada.

— Mas o que isso quer dizer? — perguntou Cassie.

— Quer dizer que é uma época de começar novos projetos e colocar novos planos em prática. — Laurel pegou sua bandeja com um grunhido e foi se afastando. — É motivo para ficar animada — disse ela por sobre o ombro.

Cassie deixou os olhos vagarem pela praça. Em cada barraca havia um comerciante local oferecendo amostras de comida ou bebida, ou a chance de dar um lance em algum objeto em leilão. Bandas locais armavam seus equipamentos em um palco decrépito. Todo o evento era simplesmente cenário para o início da temporada de turismo. Ainda assim, Cassie pensou que deveria abraçá-lo. Era uma espécie de celebração, como disse Laurel.

Cassie encontrou a mãe do outro lado da praça, prendendo narcisos de papel com um grampeador numa chapa de madeira. À frente dela, viu Melanie e Constance montando sua barraca de joias. O cabelo castanho e macio de Melanie estava puxado para trás, enquanto o grisalho de Constance voava loucamente ao vento. Elas formavam uma dupla e tanto; Melanie era alta, bonita e fascinante, enquanto Constance era mirrada, recurvada e autoritária, gritando ordens com seu indicador enrugado. Mas o amor e a compaixão entre elas eram palpáveis, e as joias que elas desenharam eram a materialização do seu amor. Melanie dissera a Cassie que o povo da cidade não compreendia verdadeiramente os cristais, mas não importava. Suas joias davam boas conversas, e a tia Constance apreciava o dinheiro extra.

De longe, Cassie acenou para Melanie, depois viu Diana. Estava toda de branco, e o cabelo louro, à luz do sol, parecia quase branco também. Meu Deus, pensou Cassie, Diana está literalmente reluzindo como um anjo. E, o que era apropriado, ajudava na rifa de caridade daquele ano. Na verdade, foi ela quem a organizou. Às vezes, Cassie se perguntava se havia algo que Diana não soubesse fazer.

Cassie sinalizou sua presença para a mãe e se dirigiu à mesa da rifa a fim de cumprimentar Diana. Ultimamente se sentia muito distante dela e pensou que passar ali seria um gesto gentil. Talvez até o primeiro passo para limpar o terreno entre as duas.

Cassie entendia que a distância se devia ao fato de ela passar a maior parte de seu tempo livre com Adam. Como isso não deixaria as coisas estranhas quando, há não muito tempo, era Diana quem passava todo seu tempo com ele?

Apesar de tudo, ao ver Cassie se aproximar, Diana não poderia ter lhe dado uma saudação mais calorosa. Baixou a prancheta na mesa e correu pela praça a fim de encontrar Cassie no meio do caminho.

— Estou tão feliz por você estar aqui — revelou ela. — Os enfeites da sua mãe estão incríveis.

— Obrigada — disse Cassie, depois hesitou. Não sabia que ia fazer isso, mas no momento parecia o certo. — Podemos conversar? — perguntou.

Sem esperar por uma resposta, ela segurou com força a mão de Diana e a levou para o lado da praça, onde havia um comprido banco de pedra em que elas podiam se sentar sem o risco de alguém ouvir a conversa.

— Tem uma coisa que preciso te contar — afirmou Cassie.

Os olhos verdes de Diana se estreitaram de preocupação, mas ela se sentou, como foi instruída. Cassie se acomodou de frente para ela, passando ansiosamente os dedos pela superfície de pedra do banco.

— Ando me sentindo muito mal — disse ela. — Por causa de todo esse climão.

Diana abriu um largo sorriso.

— Como esse, de agora?

— É. — Cassie sentiu que ruborizava. — Acho que no momento estou criando um climão. Eu sei que você e Adam eram íntimos, sei do sacrifício que você fez e...

Diana interrompeu Cassie no meio da frase:

— Cassie, eu sei. Sei de verdade. E às vezes tem sido difícil, mas acho que todos nos acostumamos com isso muito mais rápido do que você.

Ela pôs as mãos nos ombros de Cassie e a sacudiu um pouco.

— Não tenho ressentimentos. Sinceramente. É você quem está dificultando as coisas, para si mesma.

Os olhos de Cassie se encheram de lágrimas, e ela percebeu que Diana tinha razão. Estava dificultando desnecessariamente as coisas. Aquele devia ser um novo começo. Em toda parte, as pessoas abraçavam a mudança enquanto ela se prendia a velhas mágoas e medos do passado.

— Isto quer dizer que podemos passar mais tempo juntas? — perguntou ela.

— Espero que sim! — Diana a puxou para um abraço, e Cassie, fechando os olhos, teve a sensação de que tudo ficaria bem. Um novo começo, pensou. Agora seria de fato capaz de desfrutar do festival.

Juntas, ela e Diana atravessaram a praça, de braços dados, voltando à mesa da rifa. Cassie não queria que essa proximidade renovada terminasse, mas tinha trabalho a fazer.

— É melhor eu ajudar minha mãe — disse ela, e estava a ponto de se afastar quando uma menina se aproximou. O cabelo ruivo ondulado era brilhante, e usava botas pretas e altas que chegavam à bainha de seu vestido de alcinha.

— Com licença — disse ela. — Estou procurando pela pousada que deveria ficar por aqui. — Ela era quase da mesma altura e com o mesmo corpo de Cassie, e seus olhos eram de um castanho muito escuro, quase preto.

Diana apontou para oeste.

— Fica por ali, a uns dois minutos de caminhada.

A garota, segurando a alça da mala abarrotada, continuou a encarar as duas, como se esperasse ouvir mais.

— Meu nome é Scarlett — revelou, estendendo a mão para Diana.

Diana apresentou a si mesma e Cassie, depois perguntou:

— Está de visita?

— De visita, não. Acabo de me mudar para cá. — Scarlett roeu a unha do indicador, coberta de esmalte preto e lascado. — Por enquanto vou ficar numa pousada se conseguir encontrá-la.

Diana ergueu as sobrancelhas.

— Uma mudança para uma cidade nova com apenas uma mala; isto é impressionante.

Scarlett riu, pouco à vontade, como se não soubesse se Diana estava brincando ou sendo grosseira. A própria Cassie não tinha lá muita certeza. Conhecia Diana o suficiente para sentir que ela estava de guarda alta perto desta estranha.

— Vai frequentar a New Salem High? — perguntou Diana.

Scarlett meneou a cabeça.

— Eu me formei cedo. Vou passar o verão trabalhando nas docas.

— Sei — disse Diana em um tom que beirava a crítica.

Diana às vezes ficava assim perto de forasteiros. Cassie sabia que ela não pretendia ser indelicada; na verdade, provavelmente nem tinha consciência disso. Era uma superioridade que vinha de saber o tempo todo que ela era especial. Mas Cassie sabia como era crescer na média e já foi uma garota nova na cidade. Solidarizava-se com a estranheza e alienação que Scarlett devia estar sentindo no momento.

— Bem, obrigada pelas informações — disse Scarlett. — Foi um prazer conhecê-la.

— Espere. — Cassie teve o impulso repentino de consertar as boas-vindas pouco hospitaleiras de Diana. — Devia vir ao festival esta noite. Vai acontecer aqui mesmo; você não pode perder.

Scarlett riu de um jeito que a fez parecer uma garotinha, e Cassie não pôde deixar de se juntar a ela. Havia algo de revigorante na garota.

— Acabamos de nos conhecer e você já está apontando meu péssimo senso de direção? — Depois seu rosto se aqueceu. — Adoraria vir, obrigada.

— Ótimo — disse Cassie. — Então, a gente se vê depois.

Cassie observou Scarlett se afastar, e Diana pegou a prancheta na mesa.

— Isto foi muito hospitaleiro da sua parte.

— Como assim?

— Você sabe. — Diana examinou a lista do que tinha para fazer, folheando algumas páginas. — Atencioso, sociável.

— Sei o que significa hospitaleiro, mas o que você quis dizer?

Diana baixou a prancheta e rolou a caneta de um lado a outro dos dedos enquanto analisava a expressão de Cassie.

— Você viu alguma coisa nela, não viu? O que foi?

Cassie devia saber que Diana jamais deixaria passar nada. Era verdade, ela havia visto alguma coisa em Scarlett, mas não sabia o que era.

Cassie sentiu um formigamento subir pela coluna e descer pelos braços até chegar aos dedos. Era uma empolgação que ela não conseguia definir.

— Não sei bem. Mas acho que é bom.

— Ah, uma notícia agradável, para variar — disse Diana.

— Nem me fale.

— Talvez o cabelo tingido tenha atraído você.

— Seja boazinha — pediu Cassie.

— Não estou sendo má — respondeu Diana, como quem faz birra. — Me deu vontade de beber um copo de Kool-Aid de cereja silvestre. Adoro esse troço. — E, como nos velhos tempos, as duas soltaram uma gargalhada alta e desinibida.


6

A lua era um crescente branco e luminoso, e o céu estava limpo. Cassie e Adam estavam de mãos dadas perto do mastro, e ela se sentia radiante no vestido amarelo escolhido pelas amigas. Encontrou-o na sala de jantar no início da manhã. Suzan o deixou lá com um bilhete em sua letra oblíqua: Este vestido gritava “Cassie”!

Suzan também comprou gravatas para todos os meninos, e eles estavam ótimos, mas as meninas os superavam com os vestidos. Melanie estava de chiffon verde, e Laurel com um voile cor-de-rosa. Suzan, sempre voluptuosa, escolhera um tubinho cor de cobre que chegava nos limites da indecência. Diana usava uma discreta bata de seda marfim.

Deborah, que raramente usava vestidos, trajava-se à própria maneira. Vestia jeans brancos apertados, uma camiseta branca e uma jaqueta de couro roxa.

— Vocês viram Faye? — perguntou a Cassie e Adam.

Adam deu de ombros, mas Sean respondeu:

— Está lá fora procurando por Max.

Deborah riu com escárnio.

— Ela ainda não desistiu? Ele fugiu dela a semana toda.

Sean meneou a cabeça.

— Nem pensar — disse ele. — Faye não desiste assim tão fácil.

— E Nick? — perguntou Cassie. — Você o viu?

A expressão de Deborah endureceu com a pergunta. Ao se tratar de Cassie, ela era extremamente protetora em relação ao primo.

— Acho que ele não vem.

— Por quê? — perguntou Cassie.

— Porque não.

Deborah tentou encará-la com superioridade, mas Cassie deixou para lá. Ela pensava agir corretamente, protegendo Nick de se magoar ainda mais, mas não entendia que as intenções de Cassie eram boas. Depois de esclarecer as coisas com Diana, ela se sentia muito melhor. Tinha esperanças de fazer o mesmo com Nick esta noite.

Diana franziu o cenho para Deborah, revelando assim sua solidariedade com a aflição de Cassie.

— Nick pode aparecer. Se tem uma coisa que sei dele, é que é imprevisível.

Houve um momento de silêncio enquanto Cassie deixava os olhos vagarem para o alto do mastro. Ela admirou as guirlandas e fitas multicoloridas que desciam do topo. Depois, Diana falou.

— Ei, Cassie, aquela não é Scarlett?

Scarlett os vira e atravessava a multidão em sua direção. Usava um vestido baby-doll azul, o cabelo ruivo e comprido metido em um chapéu-coco de feltro marrom. Acenou quando olhou nos olhos de Cassie, depois acelerou o passo.

— Quem é essa? — perguntou Adam.

Cassie notou certa curiosidade fascinada na voz de Adam.

— Aaah, adorei esse chapéu — elogiou Suzan.

Deborah assentiu em confirmação. Sempre apreciava uma garota com estilo suficiente para vestir uma peça de roupa masculina.

— As botas também são de matar — disse ela.

Scarlett era toda sorrisos e confiança enquanto Cassie a apresentava ao resto do grupo. Seus olhos escuros passaram por cada um deles individualmente, e ela cumprimentou a todos com o afeto de uma velha amiga.

Não era só o senso de moda de Scarlett que era cativante, observou Cassie. Era sua natureza; em um instante ela ficava à vontade com todos que conhecia. E era bonita. A língua de Sean estava praticamente pendurada para fora da boca quando ele apertou a mão dela.

Scarlett conseguiu se soltar da mão dele com uma risadinha e se virou para Diana.

— É bom ver você de novo — disse ela.

— Sim — respondeu Diana, de um jeito que fez Cassie se retrair. Mas Scarlett abriu um sorriso branco, mostrando que se recusava a levar a sério a indiferença da menina.

— A corrida de ovo na colher está começando — avisou Sean, animado, tentando recuperar a atenção de Scarlett. — Temos que torcer para Chris e Doug. O grande prêmio é um vale-presente de quinhentos dólares da Pete’s Candy Store, e eles estão decididos a ganhar.

Scarlett passou os olhos pelas muitas barracas e trailers de comida.

— Pra falar a verdade — disse ela —, estou morta de fome. E morrendo de vontade de comer um desses espetinhos de linguiça.

— Vou com você — disse Cassie. Ela estava ansiosa para saber mais sobre Scarlett, e, pensando bem, também estava com muita fome.

O grupo então se dividiu, uma parte seguindo para o gramado da corrida de ovo, enquanto Adam e Diana, visitavam Melanie e Constance na barraca de joias.

Cassie e Scarlett compraram um espetinho cada uma e lutaram para não falar de boca cheia enquanto andavam pelo perímetro do festival.

— E então, está hospedada na pousada? — perguntou Cassie com a maior inocência possível.

Scarlett assentiu, depois mastigou e engoliu.

— Onde estão os seus pais?

— Minha mãe faleceu — respondeu abruptamente, como se quisesse se livrar da informação o mais rápido possível.

— Ah, eu sinto muito.

— Ela foi criada aqui — continuou Scarlett. — Por isso eu quis vir para New Salem, para tentar me reconectar com ela e com meu passado. — Nessa hora ela virou o rosto, talvez com medo de estar falando demais.

Cassie vasculhou em sua cabeça a coisa certa a dizer:

— Acho isso ótimo. Quero dizer, acho que é uma coisa muito corajosa de se fazer. Mesmo que seja doloroso.

Scarlett assentiu.

— Acho que só estou procurando por um novo começo.

— Sei o que quer dizer — disse Cassie.

— Então, conte alguma coisa a seu respeito.

A mente de Cassie disparou. Ela queria mudar de assunto para algo menos pesado, mas toda coisa boa e empolgante que queria contar, ela percebeu, também envolvia o Círculo, e assim ficou calada. Pela primeira vez desde que se mudou para New Salem, ela entendeu por que fazer amizade com um forasteiro podia ser um desafio.

— Bem — disse enfim Cassie —, minha mãe está ali, vendendo rifa. — Mas, quando ela apontou para a mãe, também viu Adam e Diana no canto, dividindo um sorvete de casquinha de baunilha. Riam porque Adam tinha sorvete no nariz e no queixo e, quanto mais ele tentava limpar, mais espalhava sorvete pela cara.

Cassie sentiu o estômago afundar. Mas por quê? Era só um sorvete de casquinha. Um lanche dividido entre amigos não era motivo para perturbação. Ela logo se juntaria a eles. Levou Scarlett para lá e percebeu Faye aproximando-se na direção contrária.

Faye estava com um vestido preto transparente que se ajustava como um corpete. Alguns passos atrás dela estava Max, que, mesmo com uma camisa polo informal, ainda parecia ter acabado de sair de um catálogo da Abercrombie.

Adam e Diana pararam de rir e recuperaram o controle do problema com o sorvete quando perceberam Cassie e os outros indo em sua direção.

Faye apresentou Max e avaliou Scarlett.

— Quem é você? — perguntou ela.

— Esta é Scarlett — disse Cassie. — É nova na cidade, assim como você, Max.

Max acenou para Scarlett, mas seu foco claramente estava em Diana.

— Vi você na assembleia de sexta-feira — disse ele. — Você era a única que prestava atenção ao discurso chato do meu pai.

Diana ficou envergonhada.

— Você me viu? — perguntou, depois acrescentou: — Não foi chato.

— Não? Tem certeza? — Max a encarou com malícia até que ela riu.

— Tudo bem, talvez só um pouco.

— Obrigado pela franqueza. — Max segurou a mão de Diana e a apertou entre os dedos grossos. — Agora podemos ser amigos.

Diana ruborizou, e Cassie percebeu Adam se remexendo desconfortavelmente.

— Meu pai está por aqui em algum lugar — mencionou, ainda se dirigindo apenas a Diana. — Se encontrá-lo, precisa dizer a ele o ótimo orador que você pensa que ele é.

Faye trincava tanto os dentes que Cassie receou que a cabeça da garota explodisse.

— Vou fazer isso — disse Diana. — Mas, se me der licença agora, temos que ir torcer por nossos amigos. — Ela gesticulou para a corrida de ovo na colher.

Max demonstrou certa decepção.

— É, e eu tenho que encontrar meu pai — respondeu.

Faye teve a intenção de segui-lo, mas ele a impediu.

— Vejo você mais tarde. — Depois disso, desapareceu na multidão.

Adam, que até agora estivera num silêncio mortal, tinha uma expressão de repulsa.

— Bem, isso foi esquisito.

— Adam! — Diana o repreendeu. — Ele só estava tentando se enturmar. É o que fazem as pessoas que são novas num lugar. Farão qualquer coisa para impressionar você.

Scarlett baixou os olhos, supondo que era uma indireta para ela. Cassie abriu a boca, mas, antes que qualquer palavra saísse, Faye saiu de perto como um trovão.

— Max não estava tentando impressioná-la tanto assim — disse Adam.

— Faye está assediando sexualmente o cara desde o minuto em que ele pôs os pés aqui — disparou Diana, elevando a voz. — Ele não precisa tentar com ela.

Cassie desejava que Scarlett não estivesse testemunhando este estranho momento de tensão. Foi constrangedor de verdade ver que os amigos deviam parecer medíocres.

— Vamos — disse ela a Scarlett. — Eles nos alcançam depois.

Juntas, elas atravessaram a praça.

— Diana e Adam não costumam ser assim — explicou Cassie. — Por acaso você pegou os dois numa hora esquisita.

— Eu entendo. — Scarlett sorriu. — Casais têm ciúmes e brigam.

De repente Cassie sentiu náuseas de novo.

— Adam é meu namorado — disse ela em voz baixa. — Não de Diana.

— Ah. — Scarlett mordeu o lábio. — Que idiotice a minha, eu não tinha percebido...

— Não, está tudo bem. Entendo por que você pensou isso. É meio complicado.

Elas encontraram o resto do grupo reunido em uma extremidade da torcida, e Cassie ficou aliviada pela oportunidade de mudar de assunto. A competição estava reduzida a Chris e Doug e um casal de irmãos que não podia ter mais de 11 anos.

— Eles gostam mesmo de doces — disse Cassie a Scarlett, como se fosse uma explicação lógica.

— Respeito isso — disse Scarlett. — Também gosto muito. Uma vez comi tantos Skittles, que espirrei arco-íris por três dias.

Era uma piada boba, mas Cassie entendeu o que significava. Scarlett tentava deixar o clima mais leve, reconfortá-la, e ela valorizou isso. Fosse ou não forasteira, Cassie gostava daquela menina.

Então, um grito de socorro soou do lado norte da praça, e a atenção de todos se voltou para lá. Todos os olhos procuraram pela origem do grito apavorante, mas um grupo reconheceu imediatamente a voz de Melanie. Correram para a barraca de joias. Até Chris e Doug deixaram os ovos caírem para ajudar.

Cassie chegou à barraca, abriu caminho pela multidão e encontrou Constance, a tia-avó de Melanie, esparramada no chão. Melanie gritava para alguém chamar uma ambulância. Alguns moradores com treinamento médico estavam ajoelhados, verificando seus sinais vitais, pedindo a todos que se afastassem e dessem espaço. Um deles segurava Melanie, que se debatia e o atacava antes que Diana e Laurel a pegassem pelos braços e a afastassem.

Uma mulher, que pretendia comprar um colar de Constance, falou:

— Num minuto ela estava ótima, depois fez uma cara de pânico e simplesmente desmaiou.

Adam observou a multidão à procura de alguém suspeito. Cassie investigou a massa de rostos estranhos, tentando encontrar a mãe, sem conseguir. Talvez tivesse ido buscar ajuda. Ou talvez a visão de Constance caindo no chão fosse demais para ela. Em momentos de crise, a mãe tendia a desmoronar em vez de se erguer. Não seria surpresa para Cassie se ela tivesse corrido para casa.

Os paramédicos chegaram, e Cassie precisou virar o rosto enquanto faziam ressuscitação cardiopulmonar no corpo inerte de Constance. O grupo abraçava Melanie, e Adam abraçava Cassie com força. Ela enterrou a cabeça no ombro dele.

Era impossível saber quanto tempo se passou enquanto os paramédicos tratavam de Constance. Cassie não parava de pensar que tinha de ser uma brincadeira. Ha ha, te peguei, Cassie imaginava Constance dizendo do chão. Constance sempre tentava lembrar a eles da fragilidade da vida e do delicado equilíbrio de todas as coisas. Talvez aquela fosse mais uma lição. Mas então os paramédicos pararam de empurrar e puxar, bombear e soprar. Não havia mais golfadas de ar a dar ou receber e não havia mais esperanças. Os paramédicos encarregados se levantaram, colocando uma conclusão definitiva a seus esforços. Declararam tia Constance morta. Expirou, foi a palavra que usaram, o que, para Cassie, pareceu uma grosseria inacreditável.

— Provavelmente um aneurisma cerebral — explicou o assistente, depois expressou suas condolências a Melanie. — Fizemos tudo que podíamos, senhorita.

Cassie nunca tinha visto Melanie perder o controle como naquele momento. Ela sempre ficava sóbria diante de qualquer dificuldade — em particular quando estava em público. Mas aquilo era simplesmente demais. Ela caiu de joelhos e gemeu. Lá se foram os novos começos, pensou Cassie.


7

– Todos que se aproximam de nós morrem — disse Cassie. — Não importa o que fazemos.

A cena não parava de se repetir em sua mente; o grito de Melanie e a visão de Constance no chão. Ela não conseguia parar de tremer. Mesmo com todas as lanternas e velas bruxuleando em volta, Cassie sentia frio no farol.

Laurel queria realizar uma cerimônia de fortalecimento para ajudar Melanie a passar pelos próximos dias. Eles juntaram as ervas e cristais necessários, mas, quando estavam prestes a começar, o grupo descobriu que não era capaz de fazer nada de forma organizada. Todos estavam perdidos em sua própria névoa, traumatizados.

Adam colocou um cobertor nos ombros de Cassie, mas este também parecia frio e úmido. Ela não conseguia parar de tremer.

— Ela precisa de algo que a ajude a se acalmar — disse Adam, e Diana rapidamente vasculhou a primeira gaveta da grande cômoda de peltre que eles abasteciam com ervas e raízes medicinais.

Pegou um diminuto frasco de vidro e um conta-gotas.

— Isto é tintura de raiz de valeriana — disse ela, segurando o conta-gotas sobre a boca de Cassie. — Vai acalmar seus nervos. Todos nós precisamos tomar um pouco.

Faye puxou Cassie para longe antes que as gotas alcançassem sua língua.

— Não tente sedá-la de verdade, Diana. — Ela passou o braço pela cintura de Cassie. — O que Cassie disse está certo. Todo mundo perto de nós morre. E ela tem razão em se descontrolar um pouco por causa disso. — Faye correu os olhos por cada integrante do grupo até se acomodá-los em Diana. — O que eu me pergunto é se precisa continuar assim.

Diana botou a tintura na mesa.

— Do que você está falando?

— Acho que você sabe. — Faye foi para o meio da sala. — Estamos com as Chaves Mestras. Os instrumentos mais poderosos que um bruxo pode ter. Podemos trazer Constance de volta.

Diana ficou em silêncio, mas Laurel deu um pulo da cadeira.

— Faye tem razão. Constance estava nos ensinando muito sobre nossos poderes, e este era só o início de nosso treinamento. Precisamos dela.

Deborah assentiu.

— Deve ser fácil trazer de volta uma bruxa assim, tão poderosa.

O rosto já pálido de Diana ficou ainda mais branco.

— Não sei — disse ela. — Quero salvar Constance, mas pode ser perigoso libertar esse tipo de magia negra. Não sabemos que tipo de repercussão terá.

— Mas será que vocês ficaram completamente loucos? — perguntou Cassie. — Acreditam mesmo que podemos ressuscitar os mortos?

— Na verdade — disse Adam —, não é assim tão absurdo. Sei que tudo isso ainda é novo para você, Cassie, mas a necromancia tem sido usada desde o século III.

— E ainda existe um termo para isso? — Cassie nem conseguia acreditar.

— Vem do grego — explicou Laurel. — De nekos, que significa morto, e manteia, que quer dizer adivinhação.

Cassie procurou confirmação em Diana, que assentiu.

— Mas, para os gregos, a necromancia significava a descida ao Hades. Era usada como forma de consultar os mortos. Não pretendiam ressuscitá-los para a esfera dos mortais.

— Só que sabemos — interferiu Adam — que foi usada desta maneira por nossos próprios ancestrais. Na realidade, Diana, você não...

Os olhos verdes de Diana faiscaram para que Adam se calasse. Porém, Faye, sempre vigilante, percebeu.

— Diana, você não o quê?

Diana colocou as mãos magras na mesa extensível diante dela. Para não desmaiar, Cassie imaginou. Em seguida, falou com cautela:

— Existe um feitiço de ressuscitação em meu Livro das Sombras. Adam e eu o descobrimos há alguns anos.

Faye soltou um gemido de pura satisfação.

— Eu sabia.

— Vamos fazer, então — disse Deborah. — Temos o poder e temos um feitiço.

Suzan concordou.

— Precisamos pelo menos tentar.

Adam ficou em silêncio, mas Cassie percebeu certa empolgação tremendo sob sua expressão indiferente. Ele queria isso: testar os limites do próprio poder. Este era um lado de Adam de cuja existência Cassie costumava esquecer. Por trás da fachada incessantemente responsável, ele era, no fundo, um aventureiro.

Diana, ainda preocupada, falou:

— Suponho que valha a pena tentar. Desde que tenhamos extremo cuidado. Mas precisamos colocar em votação.

Laurel se juntou a Faye no meio da sala.

— Farei as honras, na ausência de Melanie — disse ela. — Levante a mão quem estiver a favor de salvar Constance.

Todos levantaram a mão, menos Cassie. Laurel a olhou, surpresa pela votação não ter sido unânime.

— Eu quero isso — explicou Cassie. — É claro que quero. Só estou... com medo.

— Não podemos fazer o feitiço sem um Círculo completo — argumentou Diana. — É tudo ou nada.

A voz de Laurel assumiu um tom suplicante.

— É da família de Melanie que estamos falando. Sua única família.

Mas Diana foi firme.

— Não podemos obrigar Cassie a realizar um feitiço desta magnitude contra sua vontade.

Cassie sentiu a atenção da sala se voltar para ela.

— Eu farei — declarou antes de qualquer outro dizer alguma coisa. — Ninguém está me obrigando. Constance era da família de todos nós, e quero fazer o feitiço.

Faye bateu palmas e de imediato começou a dar ordens.

— Precisamos trabalhar rápido — disse ela. — E precisamos das Chaves. Vou pegar a liga.

Ela apontou para Cassie e Diana.

— Vocês duas, tirem o bracelete e o diadema de onde os esconderam; Diana, não se esqueça do seu Livro das Sombras. Quanto aos demais, vão buscar Melanie. — Ela se interrompeu. — E o corpo.

— O corpo? — perguntou Sean, espantado. — Quer dizer que precisamos trazê-lo para cá?

Faye lhe deu um empurrão.

— Em que outro lugar você sugere que a gente o ressuscite? Agora vá!

Cassie foi até Diana, sentada à mesa, enquanto os outros entravam rapidamente em ação.

— O diadema está escondido no meu quarto — revelou Diana solenemente. — Vamos juntas?

Cassie assentiu.

— Afinal, parece que Faye conseguiu o que queria. Ela queria usar as Chaves, e aqui estamos nós.

Diana pegou a bolsa.

— Você ainda pode voltar atrás se não estiver à vontade.

— E você está? — perguntou Cassie.

— Quero Constance viva — disse Diana. — E depois que fizermos o feitiço, vamos colocar cada relíquia de volta em seu esconderijo.

— Mas você disse que pode haver repercussões.

Diana ficou imóvel por um momento, depois falou com cautela.

— Toda magia tem repercussões, Cassie. O poder sempre traz consequências.

Então se afastou, como se a declaração não fosse nada, e procurou a chave na bolsa.

— Vamos pegar as Chaves. Eu dirijo.


8

A cozinha parecia escura e silenciosa quando Cassie entrou. A mãe não estava em casa, e ela ficou feliz por isso. Não queria ter de explicar por que tirava tijolos da lareira. Na mesma quadra, Diana recolhia o diadema e quaisquer outros materiais necessários para completar o feitiço de ressuscitação. Pouco mais além, na Crowhaven Road, o resto do grupo de algum jeito ia convencer Melanie a permitir que levassem o corpo da tia-avó ao farol. Antes daquele ano, Cassie jamais vira um cadáver de verdade, e agora colocaria as mãos sobre um e tentaria trazê-lo de volta à vida.

A lareira não era um esconderijo muito criativo para o bracelete, Cassie sabia, mas funcionou muito bem por tantos anos, então por que pensar em um lugar diferente? No fundo da boca de pedra, ela encontrou a caixa prateada de documentos, exatamente onde a tinha deixado. Quando removeu a antiga tampa, o bracelete brilhou ali dentro, como se comemorasse a luz surpreendente e súbita.

Cassie se permitiu admirar a beleza do objeto só por um segundo. Correu os dedos pelo desenho complexo da superfície de prata requintada e sentiu o peso nas mãos. Mas então Diana a chamou do lado de fora.

— Já vou! — gritou Cassie, correndo até o segundo andar para rapidamente vestir o traje branco cerimonial.

Depois de vestida e preparada, encontrou Diana esperando na varanda, balançando-se com um grande saco de tecido ao lado. Também tinha trocado para o traje cerimonial, mas havia uma compostura na aparência de Diana a que Cassie só podia aspirar. Mesmo com todo aquele estresse, Diana permanecia controlada.

Cassie procurou por sua mão, na esperança de que parte da força passasse de Diana para ela. E, de algum modo, aquilo funcionou. Alguns momentos tocando Diana a acalmaram.

— Estamos fazendo o que é certo — assegurou Diana. — Precisamos de Constance.

Cassie se lembrou do refúgio que Constance foi desde a perda da avó. E de todas as tardes que ela passou em sua sala de visitas, aprendendo novos feitiços e estudando antigos rituais. Constance era a única ligação que o Círculo tinha com a tradição antiga.

— Sei que estamos — disse Cassie, no tom mais corajoso que conseguiu. — Estou pronta para ir.

***

— Muito bem, todos vocês, vamos começar. — Diana esvaziou o saco de tecido na mesa quando elas chegaram ao farol e de imediato começou a ler instruções do seu Livro das Sombras.

Não surpreendeu a Cassie que todos automaticamente se voltassem para Diana em momentos como aquele — momentos importantes de verdade. Ela sempre foi a líder mais natural entre eles, independentemente de qualquer coisa.

— O corpo deve ser coberto em tecido branco de duas camadas — leu Diana, em voz alta, para Adam. — Com a cabeça e a face num véu de tule. — Ela gesticulou para uma pilha de tecido fino e branco na mesa.

Adam assentiu.

— Vou cuidar disso — disse ele.

Nick, Chris e Doug empurraram toda a mobília para as laterais da sala. Melanie estava ajoelhada no meio, ao lado do corpo coberto. Cassie ajudou Deborah a cobrir as janelas com pano púrpura.

Diana se aproximou de Faye, carregando dois incensórios dourados.

— Precisamos defumar a câmara com incenso de sálvia e olíbano — avisou ela.

Faye vestira seu traje preto cerimonial e já estava com a liga de couro verde e sete fivelas prateadas. Pegou os incensórios de Diana, depois chamou Sean para cuidar da tarefa.

— Onde está o diadema? — perguntou ela.

Diana acenou a cabeça para Melanie, sentada solenemente com o diadema na cabeça.

— Ela é quem deve usar as Chaves esta noite — disse Diana. — Ela fará a conjuração. Nós seremos seu apoio.

Nem Faye podia discordar que Melanie fosse a líder naquele feitiço, mas ainda assim soltou a liga da perna com fúria antes de se aproximar da menina. Cassie a seguiu bem de perto, retirando o bracelete no caminho.

Em alguns minutos, a sala havia sido adequadamente preparada e Diana convocou o início do ritual.

— Faye e Cassie, vocês farão as honras de traçar o círculo, segundo minhas instruções? Me desculpem se eu for lenta... É muito difícil ler este texto... Mas farei o melhor que puder. Todos estão prontos?

Cassie examinou a sala mal iluminada. Não era a única que aparentava nervosismo, mas agora ninguém estava disposto a recuar. Melanie parecia presa em um torpor meio cego, mas estava mais bonita com as Chaves Mestra do que Cassie já a vira.

Diana pigarreou e começou a ler em voz alta.

— Um círculo mágico deve ser formado no chão com uma tinta de fuligem e vinho do Porto. Outro então é formado dentro do primeiro, a 15 centímetros de sua borda.

Juntas, Cassie e Faye criaram os círculos em volta de Melanie e Constance, usando o cálice de tintura preparado por Diana.

— E, no interior deste — continuou Diana —, tracem um triângulo cujo centro servirá de lugar de descanso do falecido e principal conjurador.

Cassie e Faye formaram o triângulo dentro dos círculos, contornando Melanie e Constance.

— Todos devem entrar — disse Diana. — Depois fecharei o círculo externo com as quatro camadas de proteção.

Rapidamente o grupo se organizou, ajoelhando-se no perímetro do círculo externo, enquanto Diana apelava aos elementos.

— Poderes do Ar, protegei-nos — exclamou Diana. — Poderes do Fogo, protegei-nos.

Cassie fechou os olhos e ouviu.

— Poderes da Água, protegei-nos. — Diana declarava cada sílaba com precisão. — E, finalmente, apelo aos poderes da Terra por vossa proteção.

Diana então se juntou ao círculo ao lado de Cassie e continuou a ler.

— Para dar início, o conjurador deve acender uma vela negra e em seguida corrê-la pelo corpo sete vezes, pronunciando o nome do espírito a ser invocado.

Todos os olhos agora se voltaram para Melanie. Cassie se perguntou se a amiga teria forças para isso. Mas as Chaves cintilaram e a postura de Melanie se endireitou enquanto ela acendia a vela e passava sobre o lençol branco, invocando: “Tia-avó Constance, Constance Burke, ouça-nos.”

Diana continuou:

— Em seguida, de um cálice de ouro com flores secas de amaranto, borrife o corpo e sua área circundante.

Enquanto Melanie obedecia, Diana falava:

— Melanie, repita comigo: Tu que és pranteado, vê agora a natureza deste pranto.

Ela repetiu:

— Tu que és pranteado, vê agora a natureza deste pranto.

Cassie sentiu os olhos se encherem de lágrimas enquanto Diana entoava:

Entoamos este único feitiço
De carne a carne, osso a osso
Nervo a nervo e veia a veia
Constance será mais uma vez inteira

Todos se concentraram muito, utilizando seus poderes como um só. Cassie sentia a energia se elevando do triângulo central, fluindo para cada integrante do grupo, ligando a todos em um labirinto de luz.

Diana leu em voz alta:

— Depois de um momento de silêncio e concentração, revele a face do falecido. Em seguida, chame o espírito novamente, com afeto. Diga “bem-vindo”.

Com as mãos trêmulas, Melanie suavemente desvelou o rosto de Constance.

— Tia-avó Constance — disse ela. — Bem-vinda.

— O corpo se agitará — leu Diana. — Os olhos se abrirão, e então o despertar desejado acontecerá.

A sala crepitava de energia. Cassie a sentia sibilar e se torcer à sua volta em espirais, mas não tinha mais medo. O ar em torno deles se aqueceu, e Cassie viu a vida palpitar devagar na face de Constance, como o sol nascente.

Uma forma começou a se criar. Cassie a percebeu fraca no início, um brilho na testa de Constance, mas depois ficou maior e mais luminosa até que se destacou como um hematoma iridescente. Era certamente um símbolo, uma marca de aparência primitiva parecendo duas letras U unidas dentro de um hexágono. Então tudo ficou escuro. A luz que surgiu do rosto de Constance, o símbolo, as velas que iluminavam a sala — tudo desapareceu, como se um manto pesado tivesse caído do teto, sufocando a sala até a morte.

Diana acendeu a lanterna e apontou para o rosto pesaroso de Melanie. A tia-avó Constance ainda estava morta. E agora ela teve de experimentar sua morte mais uma vez.

— O feitiço não funcionou — declarou Laurel.

— Mas estava funcionando. — Os olhos de Diana investigaram freneticamente o grupo. — Vocês todos não sentiram?

— Sim, claro — respondeu Adam. — Não entendo o que deu errado.

Faye ficou em silêncio, mas parecia tão confusa quanto os outros.

Adam voltou a falar.

— Existe mais alguma coisa no feitiço, Diana? Diz mais alguma coisa em seu livro?

Diana estreitou os olhos para o pé da página que estava lendo, depois virou para a página seguinte e então à anterior.

— É praticamente ilegível — disse ela. — Mas há uma frase escrita aqui no rodapé. — Ela segurou a lanterna perto das palavras microscópicas.

— Diz: “Nenhum efeito terá, se tal bruxo foi verdadeiramente...” Depois se interrompe. O que vem em seguida ficou borrado.

— Borrado? — Faye tirou o livro das mãos de Diana para ver por si mesma. — Como uma coisa tão importante pode ter sido borrada?

— É um livro de 300 anos — disse Adam em defesa de Diana. — Não é assim tão difícil de acreditar.

Cassie pensou se foi a única que viu o símbolo aparecer na testa de Constance. Ou será que o imaginou? Com os ecos do choro de Melanie, ela sabia que não era a hora certa de perguntar. Constance estava perdida para sempre.

***

Era tarde quando Cassie voltou para casa, mas a mãe estava acordada, deitada no sofá, de camisola. Endireitou-se assim que a filha entrou.

— Está tudo bem com você? — perguntou ela.

— Sim — garantiu-lhe Cassie, fechando e trancando a porta.

— Como está Melanie?

— Já esteve melhor. — Cassie puxou o casaco para bem junto do corpo, sem querer que a mãe visse o traje branco.

— E Constance?

Cassie hesitou. Percebeu que a mãe olhava o bracelete mestre em seu braço esquerdo.

— Então, você sabe — disse Cassie. — Do feitiço de ressuscitação.

A mãe assentiu e gesticulou para a filha se juntar a ela no sofá.

— Eu imaginei — disse ela. — Funcionou?

No início Cassie simplesmente balançou a cabeça e tirou o casaco. Mas queria poder contar tudo à mãe, até sobre o símbolo que viu iluminando a testa de Constance. E pela primeira vez ela contou, sem esconder nada.

A mãe a surpreendeu, ouvindo de fato, prestando atenção. Não mudou de assunto nem ficou transtornada de medo a ponto de Cassie ter que se preocupar mais com ela do que consigo mesma.

Até ela mencionar o símbolo que viu surgir na testa da tia-avó.

— O símbolo — descreveu Cassie — parecia primitivo. Como dois Us juntos dentro de um hexágono. — Cassie notou o olhar alarmado que apareceu rapidamente no rosto da mãe. — O que foi?

A mãe meneou a cabeça.

— Não são dois Us — corrigiu ela. — É uma letra. Um B.

Cassie não entendeu.

— B, de bruxa — explicou a mãe.

Cassie ficou sem ar. A mãe fechou os olhos por um instante, e, quando os reabriu, eles pareciam escuros como dois pedaços de carvão.

— Sei o que deu errado com o feitiço — disse ela. — Existe uma forma de matar uma bruxa de maneira irreversível. Mas só existe um tipo de pessoa que pode fazer isso.

— Quem? — perguntou Cassie. — Que tipo de pessoa?

— Um caçador de bruxas — respondeu a mãe.


9

Os caçadores são tão antigos quanto os bruxos. Assim como Cassie descendia de uma longa linhagem de ancestrais poderosos, os caçadores de bruxas também tinham a própria linhagem. Foi o que disse a mãe de Cassie enquanto elas andavam pela Crowhaven Road, a caminho da casa de Melanie.

Caminhavam lado a lado, a mãe levando uma caçarola e Cassie segurando algumas ervas calmantes do jardim. Cassie sentia o vento salgado do mar soprar seu cabelo e o via tomar conta das árvores. As aves que ali faziam ninho começaram a cantar, e uma estranha calma dominou Cassie.

— O símbolo que você viu na testa de Constance era uma antiga marca, que só um verdadeiro caçador pode fazer — explicou a mãe. — Algo deve tê-los trazido a New Salem.

Cassie notou os brotos mínimos de açafrão começando a surgir do solo, junto da calçada. A primavera ainda avança, pensou ela, mesmo enquanto somos caçados e mortos.

— Queria que o que os trouxe a New Salem fosse embora — disse ela.

A casa de Melanie estava tão lotada quando elas chegaram que as duas mal conseguiram passar pela porta. Parecia que todos os que viram o colapso de Constance no festival da primavera haviam aparecido para prestar respeito à idosa. O primeiro rosto conhecido que Cassie viu pertencia a Sally Waltman. O que ela estava fazendo aqui? Será que veio com Portia? E os irmãos de Portia, Jordan e Logan, também estavam presentes?

Umas mil hipóteses das piores dispararam pela mente de Cassie. Será que eles esperavam transformar o despertar de Constance em uma celebração? Jordan e Logan eram inimigos do Círculo havia muito tempo, e Cassie pensava que eles seriam bem capazes de se gabar publicamente da morte de uma bruxa. Mas, quando Sally olhou nos olhos de Cassie e se aproximou dela com as mãos estendidas, ela reconheceu que Sally viera sozinha, apenas com boas intenções.

— Lamento muito por sua perda e pela perda de Melanie. — Sally parecia meio nervosa por estar ali. Mexia no vestido e brincava com o cabelo cor de ferrugem.

— Obrigada — agradeceu Cassie, hesitante.

Sally continuou, respondendo quase diretamente à hesitação de Cassie.

— Sei que meu lugar não é aqui — declarou ela — e que seus amigos nem gostam de mim, mas Constance sempre me tratava com simpatia quando eu a via na cidade, e era uma boa senhora, então acho que eu só queria passar para prestar meus sentimentos.

Sally tomou fôlego, e Cassie gentilmente deu tapinhas em suas costas. Era verdade, o Círculo não gostava muito de Sally, e ela e Cassie provavelmente jamais seriam amigas, mas, desde o outono passado, quando superaram suas diferenças e trabalharam juntas para suportar o furacão de Black John, as duas chegaram a um entendimento. Sally era o mais próximo que o grupo tinha de uma aliada forasteira, e não podiam deixar de levar isso em consideração.

— Foi bom você ter vindo — disse Cassie. — É sério. É um belo gesto, e sei que Melanie o apreciará.

Isto deixou Sally à vontade. Seu corpo pequeno e magro relaxou.

— E por falar em Melanie — começou a mãe de Cassie. — Acho que devemos encontrá-la.

— Claro — respondeu Sally, e Cassie e a mãe abriram caminho às cotoveladas pela multidão com a maior educação possível até localizarem Melanie.

O grupo a cercava como um exército de agentes secretos vestidos de preto. Na maioria dos dias, Cassie se esquecia de como o Círculo podia intimidar os outros; eles pareciam superiores se comparados aos jovens comuns da mesma idade. Não era apenas a genética que os destacava; também era sua atitude. Mas, perguntou-se Cassie, será que eles nunca se cansam do esforço de aparentar ser tão infinitamente fortes para o mundo? Às vezes a vulnerabilidade era adequada, e esta era uma dessas ocasiões.

Cassie olhou nos olhos de Adam e sonhou com um momento em que eles pudessem fugir juntos, para longe de tudo aquilo. Ele ainda nem mesmo sabia o quão ruim aquilo era. Ninguém do Círculo sabia. Como reagiriam quando ela contasse tudo o que soube pela mãe sobre os caçadores de bruxas?

Cassie se aproximou de Adam primeiro, só para respirar seu cheiro e sentir seus braços fortes em volta do corpo. Depois deu as condolências e as ervas calmantes à Melanie.

Diana deu um tapinha no ombro de Cassie e a puxou para um abraço apertado. Abraçar Diana era como abraçar a luz do dia, igualmente constante. A menina alta e imperiosa era sempre confiável.

— Como você está? — cochichou ela no ouvido de Cassie.

Porém, antes que Cassie tivesse a oportunidade de responder, Diana se distraiu. Sua atenção se voltou para outra pessoa que acabara de entrar.

— Scarlett está aqui — disse ela.

Foi uma surpresa vê-la passando pela multidão, vestida de forma conservadora, toda de preto, com o cabelo rebelde preso num rabo de cavalo.

A menina costurava seu caminho pelas pessoas, e todos, Cassie notou, davam um passo para o lado a fim de deixá-la passar. Estranho, pensou ela, mas então lhe ocorreu o motivo: todos esses estranhos deviam pensar que Scarlett pertencia ao grupo. Ela assumia o ar de quem estava em seu lugar de direito com Melanie e o resto do Círculo, e as pessoas acreditavam.

Mas, quando finalmente Scarlett alcançou Cassie e os outros, parte desta confiança desmoronou.

— Sei que não conheço realmente nenhum de vocês — disse ela, baixando os olhos. — Mas queria dar meus pêsames.

Diana fitou Scarlett de cima a baixo com seus olhos verdes e afiados, depois disse num tom um tanto artificial:

— Foi gentileza sua ter vindo.

— Sim, obrigada — concordou Melanie.

Como Sally, Scarlett não precisava estar ali, mas fez esforço para mostrar seu apoio a Melanie e ao grupo. Talvez, pensou Cassie, se esta crise resultar em algum bem, será o início de melhores relações com os forasteiros.

Adam avançou para conversar com Scarlett, dando a Cassie a oportunidade de abordar Diana e levá-la a um canto mais tranquilo.

— Reúna os outros — disse Cassie em voz baixa. — Melanie também. Sei por que o feitiço de ressuscitação não deu certo.

Diana arregalou os olhos. Deu um passo para trás para avaliar a expressão de Cassie, e imediatamente começou a juntar o grupo.

***

A garagem de Constance era cheia de lixo e quinquilharias que podiam ou não ter sido relíquias mágicas autênticas. Duas espadas de pedra estavam em ganchos na parede, caixas de bronze para joias e livros de herança de família empoeirados formavam pilhas altas nas prateleiras arriadas, e aves empalhadas e multicoloridas se encontravam precariamente penduradas em arames presos ao teto. Uma mesa com pés em garra estava no meio do espaço, na frente de um sofá verde deformado.

Melanie se sentou no sofá, mas todos os outros permaneceram de pé entre pilhas de caixas de papelão. Esperavam em silêncio que Cassie começasse.

Curvada para a frente, Melanie a observava, ansiosa para ouvir. Seus olhos, em geral atentos, tinham olheiras, e toda a vida fugira de suas feições. De repente, Cassie teve medo de que a notícia fosse um fardo pesado demais para Melanie naquele momento.

Cassie se demorou um pouco e tentou suavizar o golpe, explicando, aos poucos, a conversa que teve com a mãe na noite anterior. Ela media as palavras, cuidadosamente montando a descrição do símbolo que viu na testa de Constance antes de tudo ficar escuro durante o feitiço de ressuscitação.

— Alguém viu isso? — perguntou ela.

Todos balançaram a cabeça.

— Como você sabe que não foi só uma alucinação? — perguntou Faye com certa maldade. — Ou sua imaginação hiperativa?

— Porque Cassie tem a visão — disse Diana. — Conte, Cassie, como era exatamente o símbolo?

— Bem — Cassie olhou rapidamente para Melanie antes de falar —, pensei que era um hexágono com dois Us unidos por dentro. Mas minha mãe me corrigiu.

— Era um B — disse Melanie, quase consigo mesma. — A tia-avó Constance foi morta por um caçador de bruxas.

A sala estremeceu.

— Isto é ruim — disse Melanie, meneando a cabeça. — Já li sobre este símbolo.

Adam se sentou ao lado dela, no sofá.

— Acha que quer dizer que alguém na cidade está atrás de nós?

Melanie assentiu, entorpecida demais para chorar.

— E não são amadores, como a família Bainbridge. Essa gente é pra valer. São descendentes de um antigo clã de caçadores.

O queixo de Adam enrijeceu, e seus olhos se aguçaram num azul-marinho intenso.

— O caçador pode ser qualquer um.

— Ou os caçadores — rebateu Diana. — Pode haver mais de um.

Laurel se sentou no sofá do outro lado de Melanie e segurou sua mão.

— Precisamos ter cuidado.

— Verdade — disse Adam, levantando-se para andar pela garagem, quase batendo a cabeça em várias aves penduradas, pisando forte de um lado a outro. — E temos de ficar unidos. Mais do que nunca. Entenderam? — Ele parou e olhou cada um dos integrantes do grupo.

Depois seu olhar caiu em Faye.

Para surpresa de Cassie, desta vez a outra não tinha nenhuma observação cretina. Simplesmente concordou com a cabeça. Mas a reação atípica preocupava Cassie mais do que se Faye demonstrasse sua personalidade irritante e inadequada. Se Faye sentia medo, eles tinham sérios problemas.

Diana olhou para a porta. As pessoas dentro da casa ficavam mais barulhentas, e uma voz abafada perguntava por Melanie.

— Tenho que voltar para dentro — disse Melanie.

Diana assentiu.

— É melhor. Melanie, me desculpe por ir embora, mas vou correndo para casa. Sei que vi um feitiço de proteção em algum lugar do Livro das Sombras. Vou procurar e ver o que posso fazer.

— É uma boa ideia — disse Melanie, agora se levantando, mas ainda segurando a mão de Laurel.

Hesitantes, eles começaram a sair da garagem, mas Nick ficou para trás e Cassie aproveitou a oportunidade para conversar com ele a sós. Tocou seu braço e começou a falar antes que ele pudesse dizer alguma coisa.

— Sei que você esteve evitando o grupo por minha causa — disse ela. — E quero que pare de fazer isso.

Nick virou a cara, mas ela o obrigou a olhá-la.

— Preste atenção. Agora temos de ficar próximos. Corremos sério perigo.

Ele estreitou seus olhos cor de mogno para ela como se Cassie fosse um objeto estranho.

— Não quero ver você se machucar — disse Cassie desesperadamente. — Por favor.

— Bem, obrigado por sua preocupação. — Ele disse isso incisivamente, como se pretendesse machucá-la, mas Nick sempre respondia com sarcasmo quando sentia alguma coisa. Significava que ela o havia afetado, pelo menos um pouquinho. Por enquanto, ela aceitaria o que conseguisse.


10

Cassie acordou com o sol entrando pelas janelas. Seu quarto reluzia, mas estava frio, o gelado e ventoso ar matinal de março sacudindo as janelas. Ela daria tudo para ficar embaixo das cobertas e passar o dia escondida, mas sabia que não tinha essa opção. Em vez disso levantou-se, enrolou-se no felpudo roupão azul e saiu para pegar o jornal. Supôs que haveria uma nota sobre Constance no obituário.

Não havia jornal na varanda, mas Cassie encontrou Adam, enroscado na jaqueta, dormindo no balanço. Ela o observou por um momento. Parecia tranquilo, mas não podia estar à vontade. As pernas e os braços compridos estavam encolhidos sobre o banco, metade pendurada para fora. Provavelmente passou a noite toda ali.

Esse garoto me ama de verdade, pensou Cassie, olhando o corpo belamente esculpido, embora estivesse embolado nos confins do balanço. Ele provavelmente me ama demais.

Ela estendeu o braço e roçou a ponta dos dedos pela maçã do seu rosto.

Ele sorriu levemente para ela, espreguiçando-se.

— O que você está fazendo aqui fora? — perguntou ela.

Adam deu uma rápida olhada em volta e esfregou a nuca dolorida.

— Protegendo você.

— De caçadores de bruxas? — perguntou Cassie. — Mas quem te protegia enquanto você passava a noite toda aqui fora me protegendo?

— Eu estava — respondeu Adam, depois riu. — Mas acho que cochilei.

Cassie botou o rosto dele entre as mãos.

— O que vou fazer com você? — Ela deu um beijo lento e caloroso em seus lábios rachados. — Me prometa que da próxima vez pelo menos você vai entrar e dormir no sofá.

Adam retribuiu seu beijo apaixonadamente. Envolveu-a com os braços fortes e a puxou para mais perto. Ela sentiu cheiro de mar em suas roupas e nas dobras do seu pescoço. Ela o beijou ali, esperando sentir gosto de sal, mas em vez disso o sentiu fresco e frio como gelo.

— Eu prometo — disse ele, estremecendo.

— Agora vai entrar e deixar que eu esquente você? — perguntou, sedutora.

Ele piscou os cílios escuros e longos, e a seguiu ansiosamente pela porta.

***

— Onde está Faye? — perguntou Diana, mas ninguém parecia saber.

Diana havia encontrado um feitiço de proteção no Livro das Sombras e queria lançá-lo sobre o grupo o mais rápido possível. Mas havia mais de uma hora que eles estavam esperando na praia.

— Faye tem chegado atrasada a toda reunião esta semana — reclamou Diana. — Isso é inaceitável. Suzan, pode ligar para ela de novo?

— Ela não está atendendo — disse Suzan. — Ultimamente tem sido uma completa irresponsável.

Sean concordou:

— Combinamos umas coisas com ela ontem à noite, e ela nos deu um bolo.

Se estivessem falando de outra pessoa e não de Faye, Cassie ficaria preocupada. Mas ela sabia que uma hora Faye apareceria. Nesse meio tempo, Cassie ficava feliz por estar na praia e não no farol. Sentia-se segura ali, na longa faixa de areia, a repetição constante das ondas se quebrando e o céu vasto e ilimitado. Queria desfrutar de cada segundo que tinham antes de a temporada turística ocupar a areia com estranhos. Ela agora imaginava a cena como um pesadelo: cadeiras dobráveis até onde a vista alcançava, pirralhos tomando banho de sol e surfistas metidos a besta; latas de refrigerante viradas e crianças gritando, com os dedos laranja, mastigando Doritos. Ela preferia muito mais uma praia fria e abandonada a outra quente e lotada.

Depois pensou em Scarlett, em como seria legal convidá-la para vir à praia uma noite daquela semana. Talvez elas pudessem montar uma fogueira e fazer marshmallow com chocolate. Seria um jeito divertido de compensar toda essa história estressante do Círculo.

Então Faye apareceu, despertando Cassie de seus devaneios.

— Estou atrasada? — Quis saber ela. — Desculpe.

— Onde você estava? — perguntou Diana.

— Pode acreditar, você não vai conseguir lidar com isso.

Diana ignorou o comentário.

— Precisamos começar o feitiço de proteção antes do pôr do sol.

Cassie tentou assumir o papel de líder enquanto o grupo se organizava em um círculo amplo. Diana se ajoelhou diante do caldeirão de pedra, misturando um preparado escuro e gorduroso.

— Este caldeirão tem água do mar e óleo de mirtilo com eucalipto — disse ela. Depois olhou para Faye e Cassie. — Vocês duas, juntas, podem traçar com a adaga um círculo em volta de mim?

Faye tirou da bainha a adaga prateada, escondida por baixo da saia preta rodada e presa à parte interna da coxa. Seus olhos se estreitaram, como sempre acontecia quando segurava um objeto afiado.

— Me dê sua mão — disse ela à Cassie. Faye guiou os dedos finos de Cassie pelo punho pérola da adaga e os envolveu com a própria mão. Juntas, como uma só, traçaram o círculo na areia.

Cada integrante do grupo deu um passo à frente enquanto Melanie colocava duas velas de cada lado do caldeirão que Diana mexia.

— Aqui coloco duas velas — anunciou Melanie de acordo com a cerimônia. — Uma azul, para proteção física, e uma roxa, para o poder e a sabedoria.

Abaixando-se para acender as velas, ela recitou um feitiço do Livro das Sombras de Diana:

— Divina Deusa, Divino Deus, se o mal habita este local, que agora deixe nosso espaço. — Depois posicionou o livro no chão ao lado de Diana e assumiu seu lugar dentro do círculo, junto de Laurel.

Diana ficou no centro, segurando o caldeirão.

— Para que isto dê certo — disse ela —, todos vocês precisam imaginar uma luz branca em volta de nós. Deixem que a luz cerque todo seu corpo enquanto eu recito o encantamento.

Todos concordaram e fecharam os olhos. Diana ergueu o caldeirão para o céu e falou:

— Pelo poder da Fonte, nenhum mal aqui entrará.

Então Cassie também fechou os olhos e imaginou uma luz branca envolvendo seu corpo como um manto quente. A voz de Diana baixou uma oitava, e o encantamento saiu da sua garganta como um trovão.

Caçadores sobrenaturais da noite
Caçadores sobrenaturais do dia
Basta de destruir meus feitos
Basta de destruir meus proveitos

Seguiram-se alguns segundos de silêncio, interrompidos apenas pelo vento forte e o quebrar das ondas. Em seguida, Cassie ouviu o eco semelhante ao de um sino quando Diana mexeu o conteúdo do caldeirão de pedra.

Diana continuou.

Unto com esta poção o Círculo
Protege-nos de vós, esta magia a que dou voz

Cassie abriu os olhos e viu Diana passar um pouco da mistura azul-escuro na testa com o polegar. Fez o mesmo na testa de Faye, Cassie e de todos os outros.

Quando terminou de ungir o grupo, Diana pediu a Cassie e Faye que se juntassem a ela no centro. As três puseram as mãos no caldeirão e nas velas, de olhos fechados. Cassie imaginou a luz branca cercando não apenas o próprio corpo, mas o grupo todo, como um só. Imaginou que a luz os envolvia como um gigantesco balão de hélio, levando-os a flutuar para a segurança do céu sem nuvens.

Diana encerrou o feitiço.

Pelo poder deste mar, de largura e profundidade
Pelo poder do dia, da noite, da trindade
Que seja feita a nossa vontade!

Pouco a pouco, todos abriram os olhos.

— Funcionou? — perguntou Sean, levando os dedos à mancha azul na testa.

— Quanto tempo vamos ter de andar por aí com esse óleo no corpo? — perguntou Suzan. — Deve dar acne.

— Podemos lavar no mar daqui a pouco — disse Diana.

— Então acabou? — perguntou Faye, pegando a adaga na areia e recolocando na bainha por baixo da saia. — Agora somos invencíveis? Por que não fizemos isso há mais tempo?

— Tem algumas condições — observou Diana.

— Que condições? — perguntou Faye, zombando do tom sóbrio e calculado de Diana.

Diana não se deixou incomodar pelo escárnio de Faye, provavelmente porque estava muito acostumada a ele.

— Ficaremos a salvo de danos corporais infligidos pelos caçadores — disse ela. — Mas o feitiço só nos protege na ilha de New Salem. Se dermos um passo para fora, ficaremos vulneráveis.

— Então, ninguém sai da ilha — disse Adam. — Em circunstância nenhuma.

Ele olhou para Nick, que costumava desaparecer por dias de vez em quando, mas este o ignorou.

Diana cavou um buraco fundo na areia para descartar o que restava da poção.

— Também não quer dizer que os caçadores não possam nos encontrar. Então, todos precisam ser supercuidadosos. Temos que fazer o possível para que não nos detectem.

Ela se ergueu, limpou a areia das mãos e olhou diretamente para Faye.

— Não podemos praticar magia nenhuma. Os caçadores estarão procurando por qualquer coisa fora do comum para descobrir quem nós somos.

— Como é? — Faye avançou para Diana como se fosse derrubá-la no chão. — Nossa magia é o único poder que temos. Como vamos derrotar essa gente se não podemos usá-la?

Diana aprumou os ombros magros e encarou Faye com igual ferocidade.

— Vamos encontrá-los antes que eles nos encontrem — declarou ela. — É assim que os derrotaremos.

— Faye — disse Melanie, colocando-se entre ela e Diana. — É dos assassinos da minha tia que estamos falando. Você vai deixar a magia de lado, porque, senão, vai colocar em risco todo o grupo. E não podemos tolerar isso.

A controlada Melanie nunca ameaçou ninguém na vida, mas ali estava ela, três centímetros mais alta do que Faye, pronta para uma briga.

Adam se intrometeu entre as duas antes que as coisas piorassem.

— Todo mundo precisa respirar fundo e se acalmar — disse ele. — Não é hora de brigarmos.

— Não — argumentou Melanie, empurrando de lado a mão pacificadora de Adam. — O que não podemos suportar é Faye não seguir as regras do Círculo quando nossa vida está em risco.

— Por favor, Faye. — Adam praticamente implorava a ela para colaborar. — Sem magia. Só até descobrirmos quem são os caçadores. Tudo bem?

— Ok. Meu Deus, vocês são tão chatos. — Faye ia se afastando para o mar.

— Não acabou — chamou Diana. — Também precisamos ficar atentos a forasteiros que estejam se aproximando demais. E a qualquer um que seja novo na cidade.

Diana lançou um olhar penetrante para Cassie. Não mencionou especificamente Scarlett, mas nem precisava. Depois se virou para Faye.

— Então, você precisa largar Max.

Suzan sorriu com malícia.

— Como é que ela vai largar o cara quando ele nem mesmo deixa que ela o pegue?

Pareceu que toda a vontade de brigar tinha sido arrancada de Faye. Evidentemente a incomodava que Max não estivesse caindo sob seu feitiço, como qualquer outro garoto da escola.

— Acabou? — perguntou ela a Diana.

Diana assentiu.

— Por enquanto.

Faye se virou e andou a passos firmes para o mar, a fim de lavar a testa. Sua saia preta e o cabelo flutuavam às costas, como uma sombra escura.

***

Na manhã seguinte, na escola, Faye parou na vaga de estacionamento ao lado de Cassie e Adam.

— Diana já chegou? — perguntou, antes mesmo de sair do carro.

— Ainda não — respondeu Adam. — Qual é o problema?

Faye perscrutou o estacionamento ansiosa, depois observou Sally e Portia reunindo seus pompons e livros, alguns jogadores de lacrosse brincando de bola e finalmente Suzan, sentada no capô do seu Corolla, maquiando-se.

— Não posso lidar com essa história de não usar magia — desabafou Faye. — Tive que esperar a água ferver esta manhã. Dá pra acreditar nisso? Oito minutos. Até parece que não tenho nada melhor para fazer com meu tempo.

— Concordo com Faye — disse Suzan de trás do espelho de mão. — Eu me sinto tão comum, tão simplesinha. Isso é desumano.

— Além disso, você está com uma mancha na blusa — adicionou Faye.

— Eu sei. — Suzan esfregou o colarinho. — Como é que as pessoas normais tiram ketchup da roupa?

Diana jogou seu Volvo na vaga ao lado de Faye e abriu a porta depressa. Encontrava-se menos composta do que o habitual. O cabelo estava solto e rebelde, e seu casaco, vestido pela metade. Tinha um copo de café numa das mãos, e um bagel na outra, que ela meteu na boca para pegar os livros no banco traseiro.

— Estão vendo? — disse Faye. — Até Diana está uma zona. Não podemos viver assim.

Até esse momento, Cassie não tinha notado o quanto os amigos usavam a magia na vida cotidiana.

Adam ajudou Diana com os livros.

— Não está fácil para nenhum de nós — disse ele. — Mas precisamos aguentar firmes. É temporário.

O resto do grupo chegou aos poucos. Fosse ou não puramente psicológico, Cassie notou que todos estavam meio aflitos sem a magia; a não ser por Deborah, que cortou o estacionamento com a moto empinada em uma roda só. Carros e pessoas saíram do seu caminho até que ela baixou a moto, parou, cantando pneu, e desligou o motor.

— Cadê o seu capacete? — perguntou Diana depois que Deborah se juntou ao resto do grupo.

Ela revirou os olhos.

— Não vou estragar meu cabelo com um capacete quando sou invencível.

— Você pode ser invencível — disse Diana. — Mas ainda pode atropelar alguém por acidente.

— Então talvez eles devessem usar capacete — ironizou Faye, o que atraiu um olhar afiado de Diana.

— Por favor, não abusem do feitiço de proteção — disse Diana. — Não é desculpa para ser irresponsável.

— Você diz isso pra mim? — Deborah tirou uma das luvas de couro, depois a outra, e apontou para cima. — E eles?

Cassie notou que todos no estacionamento pararam o que faziam e se concentravam em alguma coisa no alto. Assim como Diana, ela seguiu o olhar de todos, encontrando Chris e Doug no telhado do prédio da escola.

Alguém gritou:

— O que esses malucos estão fazendo ali em cima?

— Acho que estão duelando — disse outra voz.

Diana teve de desviar o rosto.

— Por favor, me digam que eles não trouxeram espadas de verdade para a escola.

— Tecnicamente, eles não estão na escola — argumentou Sean. — Estão em cima dela.

Chris e Doug trocavam golpes, atacando-se loucamente, abaixando-se e levantando-se. A turma ofegou quando Doug foi atingido no ombro. Ele gritou, caiu no chão e o sangue falso jorrou do telhado como um irrigador de jardim. Seus colegas de escola berraram, mas Doug se levantou de um salto com um braço escondido dentro da manga e voltou a lutar.

— Eles estão se divertido demais com isso — comentou Adam.

Cassie olhou a multidão, perguntando-se se alguém notara que Chris e Doug eram imunes às lâminas afiadas das espadas. Mas, de tão acostumados com as loucuras dos gêmeos, ninguém questionava nada.

Até Max, que ainda era o assunto da escola, se divertia com o teatro dos dois. Estava com os amigos do lacrosse e um grupo de meninas bonitas, que o circundavam o tempo todo. Pela primeira vez, as meninas desviaram a atenção de Max e olharam para o telhado.

Doug cortou Chris no peito, rasgando sua camisa em diagonal. Ela se agitava como uma bandeira ao vento.

— Bem feito para você, irmão — exclamou Chris. — Esta camiseta era sua.

O riso percorreu a multidão como uma onda. Max balançou a cabeça, afastou-se da sua turma e veio se aproximando de Diana.

— Alguém devia parar esses dois — disse ele. — Antes que fiquem completamente pelados. — Cassie observou que as admiradoras de Max visivelmente suspiraram ao vê-lo falar com Diana. Era evidente que a consideravam uma concorrente. — Mas não sou eu quem vou parar os dois — continuou Max, curvando-se para mais perto dela. — Não pode fazer um pouco da sua magia?

Diana ficou petrificada por um segundo, mas ficou claro para Cassie que Max não estava falando sério. Os olhos dele estavam fixos nos de Diana.

— Você deve ter todos os caras da escola na palma da mão — concluiu ele. — Acho que, se existe alguém capaz de fazê-los descer, é você.

Diana inspirou profundamente e riu. Constrangida, tentou ajeitar o cabelo, mas ele continuou lindamente rebelde.

— Quem dera isso fosse verdade — disse ela.

— Posso tirá-los do telhado — ofereceu-se Faye, mas Max a ignorou.

— É só que, se meu pai pegar os dois lá em cima, não sei o que vai fazer — avisou Max. — Ele não é muito fã de crianças trazendo armas para a escola.

— O que é compreensível — respondeu Diana, assentindo. Mas, antes que pudesse voltar sua atenção a Chris e Doug, Nick apareceu no telhado atrás deles.

— O show acabou — gritou ele, aproximando-se dos dois, como se pudesse torcer seus pescoços.

Chris e Doug se entreolharam e largaram as espadas. Levantaram as mãos em rendição e se afastaram de Nick, chegando cada vez mais perto da beira do telhado. A multidão se calou. Devia ser uma queda de 6 metros.

Nick caiu no truque e ficou imóvel.

— Já chega — disse ele. — Vocês já se divertiram. Agora desçam com calma.

Chris e Doug olharam para a multidão, depois se deram as mãos.

— Nunca! — gritaram e pularam do telhado, caindo numa grande caçamba de lixo.

As pessoas taparam a boca e viraram o rosto. Até Max estremeceu, voltando-se sutilmente para Diana ao fazer isso. Mas a queda dos gêmeos foi sincronizada. E, sem um arranhão, os dois desceram e fizeram uma mesura para a garota.


11

Cassie estava na cidade, resolvendo alguns assuntos, quando o aroma delicioso da Witch’s Brew Coffee Shop encheu seus pulmões. Café, pensou ela. Que ótima ideia. A Witch’s Brew era uma artimanha simples e óbvia para ganhar dinheiro com a história do julgamento das bruxas de Salem. À noite, exibia luzes estroboscópicas e teias de aranha feitas de algodão, sendo o lugar favorito para turistas que queriam uma bebida cara com nome gótico. Os moradores, especialmente os amigos de Cassie, evitavam o lugar por motivos óbvios. Mas, à luz do dia, a Brew quase podia passar por uma cafeteria comum, com as mesas recém-postas na calçada. Cassie pensou que não faria mal se sentar ali para tomar um café ao sol, e, assim, procurou por um lugar vago.

Foi quando notou o familiar cabelo ruivo tingido que ela sabia pertencer a Scarlett. A garota estava recurvada sobre um livro, lendo e roendo distraidamente um lápis. O primeiro instinto de Cassie foi se sentar com ela, mas então se lembrou da nova regra. Por enquanto, os forasteiros eram proibidos.

Aquilo não era justo. O Círculo não devia ter o poder de ditar com quem Cassie tomava café. Mas até Faye estava disposta a abdicar de parte da liberdade pessoal pelo bem do grupo. E Cassie, de qualquer modo, precisava ir ao farol. No lugar da magia, Melanie e Laurel recorriam ao herbalismo para passar o tempo. Elas pediram a Cassie para levar flores de uma planta rara de seu jardim — a genciana de Plymouth. Cassie tateou o saco de papel que continha as flores em sua bolsa, como que para se lembrar da importância da tarefa. Ela se virava para sair quando Scarlett a viu.

— Cassie? — A cara de Scarlett se iluminou de imediato. — É tão bom te ver — afirmou ela. — Venha se sentar comigo.

— Não posso — comentou Cassie, olhando ao redor. — Só tenho um minuto.

— Então fique só um minuto. — Scarlett fechou o livro e o deixou de lado.

Scarlett parecia tão solitária sentada ali. Teria sido crueldade rejeitar.

— Quais são seus planos para hoje? — perguntou Cassie despreocupadamente.

Scarlett levantou as mãos e olhou de um lado para o outro.

— Isto — disse ela. — Não é grande coisa.

Cassie riu com educação.

— Obrigada de novo por ir à casa de Melanie outro dia. Lamento ter perdido você de vista, não consegui me despedir.

Os olhos escuros de Scarlett irradiavam carinho.

— Não tem problema. — Ela tomou um longo gole de café gelado e parecia pesar alguma coisa mentalmente ou tentar entender algo.

Cassie se sentia examinada com tal profundidade que Scarlett podia muito bem estar contando cada um de seus poros ou cílios, mas ela permitiu mesmo assim. Não sabia por quê, mas queria que Scarlett a conhecesse e que realmente a enxergasse.

Depois de outro instante, Scarlett falou.

— Gosto de verdade dos seus amigos. E, como não conheço ninguém na ilha, eu tinha esperanças de causar uma boa impressão.

Cassie sabia que este era o momento em que ela convidaria Scarlett para sair se fosse uma garota comum sem vínculos com o Círculo. Em vez disso, saiu-se com um meio- -termo que lhe pareceu patético.

— Não faz muito tempo eu era a garota nova na cidade — revelou ela. — Sei como pode ser terrível fazer amigos por aqui.

Os lábios vermelhos e cheios de Scarlett se abriram em um largo sorriso.

— Por isso vou te deixar culpada se você não for minha amiga.

Cassie riu. Gostava da atitude despretensiosa de Scarlett. Ela era exatamente o tipo de garota prática com quem Cassie teria feito amizade na Califórnia.

— Por exemplo — disse Scarlett —, vou lembrar a você que me mudei para cá com uma única mala ridícula para convencê-la a fazer compras comigo.

Cassie se lembrou do comentário irritado de Diana sobre a mala de Scarlett e ficou constrangida de novo. Olhou o relógio. Tinha mais duas horas para chegar ao farol. Que mal haveria visitar algumas lojas durante uma hora?

— Para sua sorte, fazer compras é uma das minhas atividades preferidas — confessou Cassie.

— Quer dizer que você topa?

— E por que não? — Cassie se levantou. — O que tenho para fazer pode esperar.

Scarlett se levantou rapidamente.

— Isto deu mais certo do que eu esperava.

***

Fazer compras com Scarlett foi a distração perfeita para todos os problemas de Cassie. Uma vez que não podia falar de nenhuma das questões do Círculo, baniu-as inteiramente da cabeça. Era como poder ser outra pessoa por algumas horas, alguém com preocupações normais. Preocupações do tipo: Quarenta dólares são demais por um uma camiseta, mesmo que ela seja muito macia? E Scarlett era uma mestra nas compras; sabia achar o melhor artigo em uma liquidação, com uma perspicácia rápida digna da admiração de uma bruxa. De algum modo ela convenceu Cassie a comprar brincos de penas turquesa.

— Fazem mais o seu estilo do que o meu — disse Cassie, logo após a compra por impulso.

— Podemos compartilhar. — O sorriso de Scarlett era luminoso. — Na verdade, podemos compartilhar a maioria dessas coisas. Esta é a beleza de usar o mesmo tamanho.

Cassie concordou e sugeriu que elas guardassem as sacolas na mala do seu carro antes de procurar os sapatos de verão perfeitos. Ela e Scarlett construíam facilmente uma amizade, e Cassie se esqueceu de que devia guardar distância dela. Assim, a visão de Diana saindo de seu Volvo, no outro lado do estacionamento, não pareceu a Cassie motivo imediato para alarme. O pânico só apareceu quando seus olhos e os de Diana se encontraram — primeiro com o prazer de um encontro surpresa, seguido por um desgosto doloroso e tenso. Cassie foi flagrada descumprindo uma promessa feita ao Círculo.

Diana se aproximou delas aos poucos. Seu “oi” mais pareceu uma crítica do que um cumprimento.

— Vejo que as duas andaram se divertindo muito — comentou, gesticulando para as sacolas.

Scarlett, sentindo a frieza na voz de Diana, sorriu educadamente, mas não disse nada.

— Encontrei Scarlett por acaso — disse Cassie.

Diana olhou Cassie com ironia.

— Acho que isso está acontecendo muito hoje.

Cassie mordeu os lábios, mas não disse nada.

Scarlett se remexeu, constrangida.

— Talvez seja melhor eu ir andando.

— Não — cortou Diana. — Eu é que vou. — Ela passou pelas duas na direção da entrada do shopping. — Converso com você mais tarde, Cassie.

— Essa garota não gosta nada de mim — disse Scarlett, quando Diana ficou fora de alcance.

Cassie não sabia como defender o comportamento da amiga. Scarlett não poderia entender.

— Não tem nada a ver com você — explicou Cassie. — Acredite em mim. Mas eu sinto muito.

Scarlett deu de ombros.

— Vou deixar você compensar jantando comigo.

Cassie ficou dividida. Sabia que o certo a fazer era se separar de Scarlett e imediatamente se desculpar com Diana, mas ela estava se divertido tanto, e afastar-se de Scarlett agora só magoaria seus sentimentos.

— Que tal um hambúrguer da Buffalo House? — perguntou Scarlett. — Por minha conta.

— Na verdade, eu não deveria. — Cassie sentiu o saco com as ervas na bolsa e olhou o relógio. Mas um cheeseburger de bacon agora seria o máximo. Uma garota precisa comer, não é?

— Tudo bem — concordou por fim Cassie. — Se você primeiro me acompanhar para resolver um assunto. É só um favor rápido para uma amiga. Depois podemos ir comer.

Scarlett ficou radiante.

— Perfeito.

É claro que o Círculo não aprovaria Cassie aparecendo com Scarlett, mas ela foi cuidadosa. E Scarlett não fez pergunta nenhuma, mesmo quando Cassie insistiu que ela ficasse no carro enquanto corria ao farol abandonado com o saco de papel debaixo do braço. E como Melanie e Laurel ainda não tinham chegado, ela só precisou deixar o saco na mesa e ir embora. Levou menos de um minuto para entrar e sair. Então ela e Scarlett estavam livres para ir até a Buffalo House.

***

Mais tarde, Adam foi à casa de Cassie para uma noite aconchegante de pipoca e filme. A mãe dela estava no segundo andar, dando privacidade a eles na sala, onde relaxaram no sofá de encosto macio. Cassie afundou na almofada com a cabeça no ombro de Adam, sentindo seu cheiro. Podia se embriagar do perfume dele. Eles não estavam realmente assistindo ao filme, ou pelo menos Cassie não estava. Tinha os olhos fechados e se concentrava nas carícias suaves de Adam, que deslizava os dedos macios pela parte interna do seu braço, começando pelo pulso, seguindo para o cotovelo e descendo novamente. Ela podia ficar assim a noite toda; o filme era só um ruído de fundo. Mas então Adam baixou os olhos para ver se ela estava acordada.

— Você está dormindo — disse ele.

Cassie abriu os olhos.

— Não estou dormindo, só curtindo.

Adam exibia uma expressão séria, e Cassie tinha certeza de que logo ele se curvaria para beijá-la. Era assim que costumavam terminar suas sessões de filme. Porém, daquela vez, no lugar de beijá-la, ele desligou a TV e se sentou mais ereto.

— Tem uma coisa que eu queria conversar com você — começou ele.

Cassie também se endireitou e abraçou os joelhos no peito. Nem imaginava o que sairia da boca de Adam. Mil possibilidades, uma pior do que outra, disparavam por sua mente.

— Diana disse que viu você no shopping esta tarde — falou Adam. — Com Scarlett.

Cassie enrijeceu.

— Ah.

— Ela acha que sua amizade com Scarlett está ficando íntima demais.

— Bem, obrigada por me contar o que Diana pensa — retrucou Cassie.

O comentário fez Adam elevar a voz, algo que ele nunca fazia na presença de Cassie.

— Acho que não preciso dizer que você não está colocando só a si mesma em perigo quando passa muito tempo com uma forasteira. Você está colocando todos nós em perigo.

— Isso é o que você realmente sente, ou é a opinião de Diana?

Adam recuou como se Cassie tivesse batido nele.

— O que quer dizer com isso?

— Por que está do lado de Diana nessa questão? Sempre foi você quem pulou em defesa dos forasteiros.

— Cassie, o que está havendo com você? Vem cá. — Adam tentou tocá-la, mas ela se afastou.

Cassie sabia que sua reação era exagerada — este era Adam, o cara que passou a noite toda na sua varanda só para protegê-la. E Adam e Diana eram amigos desde sempre; é claro que Diana o procurou para se aconselhar. Mas ela ainda não queria que ele encostasse nela.

— Não estou do lado de ninguém — disse Adam. — Estas não são circunstâncias normais. Você sabe disso.

Mas só o que Cassie conseguia ouvir eram as palavras de Diana na boca de Adam, e não pôde deixar de ficar meio magoada.

— Sinto com todo meu ser que Scarlett é inofensiva — disse Cassie.

Adam parecia estar prestes a tocar em Cassie de novo, mas pensou melhor.

— Eu só quero que você tenha cuidado — disse ele. — Estou sempre do seu lado. Você sabe disso.

Ele se aproximou cuidadosamente.

— Desculpe por ter falado mais alto. Mas meus sentimentos em relação a isso são fortes. Não temos como saber se Scarlett não é uma caçadora de bruxas. Ela chegou à cidade na noite da morte de Constance.

— Você está sendo ridículo — rebateu Cassie.

— Não, a ridícula é você. E teimosa.

Cassie respirou fundo e tentou se acalmar.

— Vamos deixar isso pra lá, tá bom?

Mas Adam se recusou.

— Sei que você gosta de verdade de Scarlett — disse ele. — E entendo isso. Ela parece legal, divertida, e é bonita. Todos nós gostamos dela, mas não é uma boa hora para baixar a guarda.

— Nunca é quando se trata de um de nós.

— Está falando como se não quisesse ser uma de nós, como se fosse uma espécie de maldição.

— Vamos terminar de ver filme — disse Cassie.

— Cassie, olhe para mim.

— Vou parar de andar com ela, tá legal? — gritou Cassie. — Encontrei Scarlett por acaso, mas pelo visto Diana não contou essa parte.

Cassie religou a TV. Olhou fixamente para a frente e se sentou o mais longe de Adam que o sofá permitia. Estava farta de conversa.


12

Cassie dormiu até tarde no dia seguinte, o que não era comum. Normalmente costumava levantar cedo, quer quisesse ou não. Mas devia precisar do descanso, porque acordou se sentindo renovada e com a mente mais clara do que na noite passada. A discussão que teve com Adam a deixou confusa e aborrecida, mas aquele era um novo dia. E um dia lindo e ensolarado, sem nem uma nuvem no céu.

Depois de vestir os jeans mais confortáveis e o suéter azul preferido, Cassie decidiu dar uma caminhada. Ainda não estava preparada para conversar com Adam, nem com ninguém, mas, com sorte, enquanto andasse, as palavras começariam a lhe ocorrer, e ela voltaria para casa sabendo exatamente o que dizer para que tudo voltasse a ficar bem. Cassie precisava entender melhor os próprios sentimentos. Não era uma pessoa ciumenta e não queria ser. Mas também não podia ignorar o que a incomodava em Adam e Diana. Ela devia isso aos dois e a si mesma, para ser franca. Sabia que eles tinham uma história juntos com a qual ela não podia competir.

Cassie amarrou bem os tênis e saiu pela porta dos fundos. Lutou pelo labirinto da horta da avó e atravessou o meio hectare circundante de relva verde e ondulante. Pisou em algumas pilhas encharcadas de folhas caídas e seguiu pela trilha de areia e terra que levava à escarpa.

Ali encontrou Nick perto da beira da água. Estava sem a jaqueta de couro, jogada no chão ao lado. O vento que vinha da água soprava pela camiseta branca, e era como se ele estivesse voando. O cabelo castanho-escuro era afastado de seu rosto sério pelas lufadas de ar. Observar Nick quando ele não estava com as defesas erguidas era como ouvir um segredo sem querer. Cassie se sentiu especial por testemunhar aquilo, mas também um pouquinho culpada.

Cassie desejara ficar sozinha, mas agora só queria ficar com Nick. Não no sentido amoroso, é claro. Ela amava Adam, mas isso não significava que ela e Nick não pudessem ser amigos. Então se aproximou dele, preparando-se o tempo todo para uma rejeição. Mas sentia que precisava pelo menos tentar. Nick podia ser sombrio e rabugento, podia ser imprevisível e, na maioria dos dias, até ser chamado de grosseiro — mas havia um centro sólido por baixo de tudo isso que era puro, como o âmago cristalino de uma rocha áspera. Cassie via isso, estava decidida a romper essa casca dura para alcançar o cerne de novo. Sentia falta da amizade dele, embora soubesse que ela o estava pressionando quando o rompimento ainda era muito recente.

— Oi. — Ela o chamou a alguns passos de distância, sem querer assustá-lo.

Ele se virou lentamente, sem qualquer surpresa, quase como se a esperasse.

— Oi — respondeu, o que foi convite suficiente para Cassie se aproximar.

— Como você está? — perguntou Cassie.

— Tudo bem. E você?

— Bem.

Foi estranho, sem dúvida alguma, mas, enquanto eles insistiam na conversa, começaram lentamente a voltar aos velhos hábitos. Nick a provocava, fingindo ser cruel, e Cassie ignorava, rindo alto demais. Ela desejou isso por tanto tempo que não queria estragar tudo, mas havia uma coisa que não podia deixar passar.

— Posso te fazer uma pergunta? — indagou ela, quando houve uma calmaria na conversa dos dois.

Nick assentiu, o maxilar tensionado.

— Pode me perguntar qualquer coisa, mas isso não quer dizer que eu vá responder.

Cassie sorriu.

— Você veio aqui na esperança de me encontrar?

— Nossa, como você é convencida. — Nick deu uma gargalhada.

— Isto é um sim?

Nick parou de rir e apenas sorriu. Andava tão reservado quanto ao seu sorriso cheio de dentes que Cassie havia se esquecido de como era bonito e luminoso. Sua escassez só tornava maior o seu valor.

— Talvez a ideia de você aparecer aqui tenha passado rapidamente por minha cabeça — disse Nick. — Eu sentia falta disso entre nós.

Enfim. Aquele era o Nick que ela conhecia.

— Eu também — disse Cassie.

— Agora eu tenho de te perguntar uma coisa. — Nick abriu rapidamente seu sorriso de bad boy. — Adam ainda te deixa louca?

— Nick!

— Deixa. Sei que ele deixa. Nem tente negar isso.

— Sem comentários — disse Cassie, rindo. Mas acrescentou: — Acho que ainda estou me acostumando com a...

— Sufocação?

— A generosidade dele — repreendeu-o Cassie. — Seja bonzinho.

De repente Nick parecia mais leve, mais feliz. Talvez, para se sentir melhor, ele só precisasse atacar Adam.

Cassie repousou o olhar no mar.

— Prometo que as coisas vão voltar ao normal — continuou ela. — Para você e para mim. Para todos nós.

Mas, no momento em que as palavras saíram de sua boca, nuvens escuras se formaram no céu, rápidas demais para serem naturais. Eram nuvens sinistras, daquelas vistas em filmes quando se aproximava o apocalipse. Nick segurou a mão de Cassie, e eles deram alguns passos cautelosos para trás, afastando-se do mar.

— O que está acontecendo? — perguntou Cassie. — É um tornado? Já viu um desses por aqui?

— Não sei o que é isso. — Nick examinou o entorno, procurando por um abrigo seguro. — Temos que sair daqui. Todas essas árvores. Precisamos correr até a sua casa.

Eles dispararam. Mal tinham dado alguns passos quando raios furiosos faiscaram em volta deles, aparentemente na cola dos dois.

— Continue correndo — gritou Nick. — E proteja a cabeça.

Caiu uma chuva gelada, batendo neles como flechas com ponta de agulha. O céu ficou completamente escuro, a não ser pelos raios que iluminavam o vento furioso nas árvores. A areia revolta e o lixo se elevaram, agitados, do chão. Cassie se esforçava para manter os olhos protegidos de sedimentos, mas abertos o suficiente para seguir a rota de fuga de Nick.

— Nunca vamos conseguir — gritou Cassie, sem fôlego. — Precisamos tentar um feitiço para acabar com isto.

— Não! — gritou Nick. — Sem magia. Continue correndo.

Um clarão depois do outro, os raios e trovões lembravam Cassie de fogos de artifício.

— São eles, não são? — gritou Cassie. — Os caçadores.

Por um segundo, Nick parou de correr, e Cassie também, respirando com dificuldade. O pescoço grosso de Nick pulsava, seu peito subia e descia.

— Acho que sim — disse ele. — Pode ser um truque para nos levar a usar magia.

Então um raio caiu em um alvo receptivo — um dos muitos olmos por perto. A árvore estalou e faiscou com o golpe.

Cassie protegeu os olhos com as mãos, observando o olmo tremer e soltar fumaça.

— Parece que eles já sabem que somos bruxos, não acha?

Em seguida, o alvo foi outra árvore bem ao lado daquela atingida, em seguida outra, cada uma mais próxima de Cassie e Nick. Por fim, um relâmpago feroz estourou no chão bem ao lado dos pés de Cassie. Ela gritou, e Nick a tirou do caminho, protegendo seu corpo com o dele.

Agora, os dois estavam no chão, com ela por baixo. O corpo musculoso e largo de Nick pesava sobre o de Cassie.

— Você está bem? — perguntou ele. A água da chuva pingava de seu rosto no dela.

— Sim — afirmou Cassie. Debaixo dele, ela olhou as árvores atingidas sucumbirem às desenfreadas chamas laranja. Era o incêndio mais furioso que Cassie viu na vida, com uma fumaça preta subindo em ondas feito um fantasma.

Podia ter sido eu, pensou Cassie. Se Nick não a tivesse tirado do caminho, ela estaria morta.

Era uma visão e tanto, aqueles olmos antes grandiosos escurecendo e se reduzindo a cinzas com tanta facilidade. Sua irregular casca marrom derretia com o calor, como uma barra de chocolate deixada no sol.

O que quer que os caçadores quisessem provar, eles conseguiram. Claramente eram poderosos e estavam dispostos a matar. Não eram bruxos, mas esse tipo de controle sobre os elementos, para Cassie, parecia magia negra. Que caçador de bruxos usava as mesmas táticas de bruxos malignos?

— Eles chegaram perto demais — disse Cassie.

Nick tirou parte do seu peso do corpo trêmulo de Cassie.

— E estão chegando mais perto a cada minuto.

Parecia à Cassie que não havia escapatória. Ela e Nick podiam se levantar e continuar correndo, mas os raios e trovões os seguiriam a cada passo até finalmente os acertarem, atingindo-os com uma bola de fogo que arderia e derreteria seus ossos como os galhos delicados de um olmo. Ou eles podiam ficar deitados ali no chão, sem se mexer, agarrados um ao outro, fechando os olhos a tudo. Eles podiam enfrentar aquilo tranquilamente, em vez de tentar lutar contra. Morrer ao lado de Nick era melhor do que ser atingida por um raio.

Então foi como se tudo tivesse sido um sonho; a chuva subitamente parou, os raios cessaram e o céu clareou, dando lugar ao sol. O dia retornou, lindo e misterioso, à perfeita fotografia em cores de antes. Se as árvores ao lado dos dois ainda não estivessem ardendo, enevoando o ar em volta deles com uma fumaça preta e triste, Cassie teria acreditado que imaginou todo aquele pesadelo.

— Acho que passamos no teste — disse Nick, levantando-se e espanando os jeans. Passou os dedos pelo cabelo ensopado, depois estendeu a mão para ajudar Cassie a se colocar de pé.

— Como é isso? — perguntou Cassie, aceitando a ajuda de Nick. — Não morrendo?

— É um ótimo começo. — Nick pôs o braço forte em volta do suéter ensopado de Cassie. — Vou te levar para casa.

Cassie encarou, agradecida, os olhos cor de mogno. Jamais se esqueceria de como ele a protegeu. Sem hesitar nem por um momento, ele se dispôs a morrer por ela.

— Só vou para casa se você vier comigo — disse ela.

— Bem, de uma coisa tenho certeza, não fico aqui fora — brincou Nick, tentando deixar a situação mais leve.

— Nick. — Cassie recusou-se a dar outro passo antes que ele a olhasse nos olhos e reconhecesse o que havia acabado de se passar entre os dois.

— Que foi?

— Obrigada.

Ele balançou a cabeça e virou o rosto de novo.

— Não precisa agradecer.

— Sim, preciso.

Nick começou a rir de um jeito estranho e nervoso. O tipo de riso que sai quando você está tentando não chorar. Depois puxou Cassie para perto e lhe deu um beijo carinhoso na testa, como faria um irmão mais velho.

— Tudo bem — disse ele.


13

Cassie e Nick ouviram os caminhões dos bombeiros ao longe, a caminho da casa. Estão indo apagar as árvores em chamas, imaginou Cassie. Eles apertaram o passo para se livrar da suspeita de incêndio criminoso. Não havia como saber que deturpação os caçadores criariam para destruí-los.

Depois que estavam seguros e trancados na casa de Cassie, Nick entrou em ação.

— Precisamos contar aos outros — disse ele. — Todos eles precisam vir para cá agora.

Suas roupas estavam encharcadas da chuva, e o cabelo pingava em seu rosto.

— Espere — soltou Cassie, saindo da cozinha para a sala de estar. — Há tempo para isso. — Ela pegou duas toalhas de banho grandes no armário e jogou uma para Nick. — Você precisa se secar.

Ele riu.

— Acho que estamos meio molhados. — Em um movimento rápido, ele tirou a camiseta e a torceu na pia da cozinha.

Cassie ficou de queixo caído com o tronco musculoso de Nick e rapidamente virou o rosto.

— Vou trocar de roupa — avisou, correndo para o quarto. — Volto logo.

Quando ela retornou, Nick parecia quase seco, e sua camisa felizmente estava de volta. Mas os sapatos também retornaram aos pés, e Cassie sabia que Nick estava prestes a escapar.

— Sabe de uma coisa? — disse ele, dirigindo-se à porta. — Vou para casa tomar um banho quente. Depois contarei aos outros o que aconteceu.

Por mais que quisesse manter Nick ali, Cassie sabia que precisava deixá-lo ir.

— Um banho quente me parece bom — concordou ela.

Nick parou, segurando a maçaneta.

— Imagino que a parte de contar para Adam fique por sua conta.

Cassie assentiu. Mas, depois que Nick saiu, só o que ela pôde fazer foi se jogar no sofá.

Ela perdeu a noção de quanto tempo ficou sentada ali, mas foi o suficiente para que a mãe, ao chegar em casa, a assustasse, como se tivesse despertado de um sonho.

— Está um dia lindo lá fora — disse a mãe. — Você deveria estar perto da água.

— Não, não deveria.

A mãe tinha acabado de ir ao mercado dos fazendeiros. Carregava sacos abarrotados de frutas e legumes para a bancada da cozinha, sem perceber o estado de espírito de Cassie.

— Está com fome? — perguntou ela. — Vou preparar o almoço.

— Mãe — disse Cassie, e seu jeito de falar finalmente chamou a atenção da mãe.

— Que foi? — Ela se juntou a Cassie no sofá. — O que houve?

— Só um susto. Mas tenho certeza de que foram os caçadores.

A mãe empalideceu.

— Então eles não vão parar em Constance.

Cassie meneou a cabeça.

— Infelizmente, não. Preciso que você me diga o que sabe sobre eles. — Cassie ouvia a súplica na própria voz.

A mãe ficou visivelmente inquieta.

— Não sei muita coisa. Mas existe uma história de quando eu era muito mais jovem.

Cassie inspirou da forma mais silenciosa possível.

— Conte.

— De quando eu estava com seu pai.

Cassie tentou ficar imóvel, sem fazer o mais leve ruído, nada que pudesse perturbar o delicado equilíbrio do momento: uma história sobre o pai dela.

— Estávamos em uma viagem de carro — disse a mãe, olhando fixamente à frente. — Com alguns amigos. E tivemos um encontro com uma família de caçadores. Um de nossos amigos foi marcado com o antigo símbolo do caçador.

Cassie pensou no símbolo que viu na testa de Constance.

— O B dentro do hexágono — disse ela.

— Sim. — A mãe engoliu em seco. — É assim que os caçadores determinam suas vítimas. Depois que você é marcado, é quase impossível escapar da morte definitiva.

Cassie não demonstrou reação. Deixou que a mãe continuasse.

— Mas seu pai salvou meu amigo. E todos nós escapamos.

— Então ele não era assim tão mau — disse Cassie.

A mãe tentou sorrir.

— Ele era poderoso. As pessoas tinham medo da sua intensidade, mas, quando ele se importava com alguma coisa, tinha uma lealdade fervorosa a ela. — Sua voz tremeu. — E ele era encantador. Não consegui resistir a ele, e eu adorava ser toda dele e ele ser todo meu. Eu era especial aos olhos dele. Foi como consegui que ele salvasse meu amigo dos caçadores. Ele fez tudo isso por mim. Teria feito qualquer coisa por mim. — Uma única lágrima escorreu por seu rosto, como um rio sinuoso. Ela rapidamente a enxugou com a ponta do dedo. — Nos últimos tempos, ele colocou os próprios desejos na frente da vontade dos outros, mas havia um motivo para que eu ficasse com ele.

Este era um lado inteiramente novo do pai de Cassie, um que ela jamais conhecera, nunca nem mesmo considerou. De repente, ela percebeu uma coisa. A mãe verdadeiramente amou John Blake. O verdadeiro amor. Como Cassie amava Adam. O tipo de amor que não passa só porque a pessoa se transforma em algo diferente do que você pensava.

Ao refletir, Cassie entendeu por que era tão difícil para a mãe falar sobre ele. Não é que ela estivesse sendo distante ou cheia de segredos; ela ainda sofria.

Cassie abraçou a mãe e a apertou com muita força.

— Obrigada por me contar — disse ela.

Cassie ficou ali sentada, pensando, tentando processar tudo o que acabara de ouvir. Tentou imaginar como era a mãe quando estava feliz e apaixonada. E imaginou como seria agora se os pais ainda estivessem juntos. Mas, em seu quadro mental, ele era um homem comum, um marido e um pai; não uma força do mal. Era uma ilusão otimista e agora não tinha nenhuma utilidade para Cassie. Quer ele tenha um dia sido bom ou não, ela precisava lembrar a si mesma do que o pai havia feito.

— Eu queria saber algo mais sobre os caçadores que fosse útil — disse a mãe.

Os olhos dela ficaram vidrados por um momento, e Cassie supôs que a conversa estava encerrada. Mas então a mãe falou:

— Podemos ir embora, sabe, se você quiser. Não precisamos ficar nesta cidade.

— Não posso ir embora. — Cassie ficou espantada. — E você sabe disso.

— Antigamente eu também pensava assim. Mas não é verdade. Sempre é possível partir.

Cassie se aproximou cautelosamente da mãe.

— Foi você que me trouxe para cá, lembra?

— E talvez seja eu a levá-la embora. — A mãe agora a olhava com firmeza.

— Não vou fugir — garantiu Cassie, a voz falhando de emoção.

— Você não vai fugir por causa de Adam. — A mãe disse isso como uma afirmação, e não uma pergunta. Como se fosse um ponto fraco que ela conhecesse muito bem.

— Não vou fugir porque fiz um juramento — argumentou Cassie.

A mãe recomeçou a chorar, não apenas uma lágrima, mas muitas, como se uma represa tivesse se rompido dentro dela.

— Eu jamais quis isto para você — disse ela. — Foi exatamente disso que tentei protegê-la minha vida inteira.

— Eu sei. — Cassie se esforçava para não aparentar medo. — Mas a melhor maneira de você me proteger agora é continuar conversando comigo, me contando coisas do passado que preciso saber, mesmo que seja difícil para você falar. Porque não tenho mais ninguém para me contar essas coisas, só você.

A mãe abriu os braço, e Cassie se deixou ser abraçada.

— Eu prometo, Cassie — disse a mãe. — Só quero que você esteja em segurança.

Elas choraram juntas por algum tempo, abraçadas. Parecia que estavam de luto, lamentando uma morte, e talvez de certo modo fosse assim. A morte do silêncio protetor entre as duas e de seus segredos e mentiras. A morte da normalidade. A mãe acariciou suas costas em círculos e disse que ficaria tudo bem, que elas estavam nisso juntas. Pela primeira vez, Cassie se sentiu uma filha.

***

Naquela mesma noite, Cassie foi à casa de Adam para contar sobre o ataque do caçador na praia. Raras vezes os dois ficavam juntos na casa dele, e ela estava feliz com a mudança de ambiente. Adorava ficar no quarto dele. Deitada na cama de Adam, ela não podia deixar de imaginá-lo dormindo, enrolado naqueles lençóis, com suas feições se abrandando inocentemente enquanto sonhava. Ela passou os olhos ao redor e observou as coisas dele, objetos cotidianos que não teriam nenhum significado para ela se não pertencessem a ele: os livros da escola empilhados na mesa, os tênis amontoados de qualquer jeito no armário e uma calça jeans jogada no chão. Ela quase podia vê-lo chegando da escola, jogando os livros na mesa, tirando os sapatos e os jeans de qualquer jeito para vestir algo mais confortável. Sentiu um afeto por toda a cena e por cada objeto que ele tocava; por extensão, tudo era parte dele.

Adam voltou ao quarto com um lanche e bebidas. Fechou a porta.

— Desculpe pela bagunça — disse ele. — Tentei arrumar, mas...

— Está perfeito exatamente assim — disse Cassie.

Ele se juntou a ela na cama, e Cassie teve o impulso repentino de acariciar seus ombros, beijar seu rosto e seu pescoço... esquecer tudo sobre a medonha tempestade na praia.

A respiração de Adam ficou mais lenta, e Cassie sentiu que pensavam o mesmo. Ele passou os dedos sugestivamente por sua coxa.

— Você está linda esta noite — elogiou ele. — Mas estive preocupado com você. O que aconteceu? — Sua mão subiu da coxa para o quadril, que era o lugar que mais gostava de tocar.

Cassie respirou fundo e se endireitou.

— Fui dar uma caminhada na praia e encontrei Nick — contou. Ela parou para interpretar a expressão de Adam, mas esta continuava neutra.

— E fiquei feliz por vê-lo — continuou ela —, porque você sabe que estive tentando reatar minha amizade com ele do jeito que posso. Estávamos batendo papo quando o céu ficou preto e começou um temporal horroroso. De cara entendemos que era alguma coisa sobrenatural.

— Os caçadores — concluiu Adam.

Cassie assentiu.

— Não conseguimos fugir tão rápido. Os raios voavam direto para nós. Um deles teria...

Cassie se sentiu sufocar. Esforçou-se para engolir um nó que se formou na garganta.

— Nick arriscou a própria vida para me salvar, Adam. Eu teria sido atingida se ele não tivesse agido com tanta rapidez e me tirado do caminho.

Vincos se formaram na testa de Adam, mas ele encarava a colcha da cama.

— Ele se provou um amigo de verdade naquele momento — disse Cassie. — De nós dois. Não acha?

Adam continuou olhando para baixo por um momento antes de voltar o olhar para ela.

— Sim, tem razão. — Então se remexeu, pouco à vontade.

Pelo modo como ele pressionava o maxilar, Cassie viu que ele ficou incomodado que tenha sido Nick o salvador dela, mas jamais diria isso.

— Eu queria ter estado lá, mas que bom que você está bem. — Adam pegou suas mãos e as acariciou. Trouxe-as aos lábios e as beijou. — Não sei o que eu teria feito se você tivesse se machucado.

Ele beijou a parte interna do pulso de Cassie e subiu por seu braço. Ela sabia aonde isso levaria. Por mais difícil que fosse, ela se obrigou a afastar o braço da mão dele.

— Tem mais — continuou ela. — Conversei com minha mãe. Conversei de verdade com ela.

Adam voltou a se concentrar e se sentou mais ereto.

— E?

— Ela me falou do meu pai. Ele não era de todo mau, Adam. Ela realmente o amava.

Parecia que Adam não sabia como reagir. Black John sempre foi um assunto delicado entre os dois.

— Sei como isso soa — disse Cassie. — Mas procure imaginar. Estar apaixonado por alguém como nós estamos, apaixonado de verdade, e depois perder essa pessoa para o lado negro.

Adam balançou a cabeça.

— Não quero imaginar isso.

— Nem eu, então pense em como deve ter sido horrível para a coitada da minha mãe. — Cassie podia sentir suas emoções levando a melhor, e reprimiu o impulso de chorar.

Adam segurou suas mãos de novo.

— Não consigo pensar em nada pior — disse ele. — Mas é bom que agora você compreenda isto. Estou feliz que você tenha rompido essa barreira com sua mãe.

Cassie deixou os olhos vagarem pelo quarto de Adam. Por algum motivo, era difícil olhar para ele naquele momento. Em vez disso, ela se concentrou no pôster de uma banda de que nunca ouvira falar colado na parede.

— Deve ter sido fácil se apaixonar por seu pai — disse Adam. — Ele era um homem carismático, um líder natural. Sua mãe é inteligente... caso contrário, não teria ficado com ele. Não foi culpa dela o que aconteceu.

Às vezes Adam sabia exatamente o que dizer. Foi uma mudança sutil na mente de Cassie, mas de súbito ela se sentia à vontade. Se Adam não culpava sua mãe, de certo modo isso significava que ele também não culpava Cassie. Ela olhou nos olhos dele e estendeu a mão.

— O importante é que você está bem — disse Adam, se deixando relaxar no sofá. — E que estamos juntos.

Cassie se recostou, e Adam puxou-a para perto. Ela o amava tanto que quase doía. Sentia que jamais se cansaria dele.

Adam a beijou com paixão, depois parou por um momento.

— Com tudo que está acontecendo — disse ele —, eu fico aliviado...

Cassie pôs o dedo em sua boca para silenciá-lo.

— Chega de falar — disse ela, e o puxou para mais perto.


14

– Tudo bem — disse Diana. — Não temos muito tempo. Há algo que alguém queira contar?

O Círculo almoçava em seu ponto de encontro novo, um pequeno bosque no alto de uma das trilhas estreitas à margem do terreno da escola — um esconderijo de relva verde sob a cobertura de bétulas altas e macieiras frondosas. Adam sugeriu que fosse o novo local para almoço nos meses de clima mais quente.

Todos os olhos se voltaram para os irmãos Henderson. Eles tiveram uma missão aquela manhã: armar uma bomba de fedor na aula de matemática do terceiro tempo. O plano era serem mandados à sala do novo diretor juntos, onde podiam se revezar à procura de provas. Todas as pessoas novas na cidade estavam sob investigação do Círculo, mas o diretor era o número um na lista de possíveis caçadores.

— Não devíamos esperar por Faye? — perguntou Deborah, enquanto desembrulhava seu almoço.

— Ultimamente só o que fazemos é esperar por Faye — disse Melanie. — Se ela tem lugares melhores aonde ir, vamos continuar sem ela.

— Eu ouvi — anunciou Faye do alto da trilha. Ela andava lentamente.

— Como eu estava dizendo... — Diana elevou a voz. — Chris, Doug, descobriram alguma coisa?

Faye percorreu o caminho bem a tempo de cutucar as costelas de Doug com a bota preta e pontuda.

— Ande logo, fala. Você saiu de lá sem nada.

— Nós saímos sem nada — disse Chris. Doug continuava em silêncio. — Mas não porque não tentamos. O Sr. Boylan parece um cara muito certinho.

— Não engulo essa — duvidou Nick. — Ele chega na cidade e tudo vira uma bagunça. É coincidência demais. Precisamos interrogá-lo, levar a investigação adiante.

Cassie notou que Nick a olhava ao dizer isso.

— Não há necessidade de ser imprudente — disse Diana.

Nick riu.

— Há, sim.

A diferença era imensa entre Nick e Adam, que era sempre muito justo. Até sua busca por aventuras se baseava na devoção; nem por um momento tomava a forma da revolta.

Observando Adam, Cassie notou o modo como andava pelo grupo, sempre um mediador que tenta manter a paz acima de todas as coisas. A unidade do Círculo significava mais do que tudo para ele.

Era isso o que passava por sua mente desde que eles discutiram outra noite, o que ela não conseguia situar. Mas, agora que percebia, soou como uma verdade incontestável: nada, para Adam, vinha antes do Círculo. Nem mesmo ela.

Como se sua competição discreta com Diana não bastasse, Cassie percebeu que também ficaria eternamente em conflito com o Círculo, como se este fosse outra mulher — uma que recebia uma lealdade muito maior da parte de Adam. Como é possível que ela não tenha percebido isso antes?

Diana, que mal tinha tocado em sua salada, então olhava para Adam, depois pigarreou.

— E todo mundo tem evitado os forasteiros, como conversamos?

Cassie colocou no guardanapo seu sanduíche de pasta de amendoim com geleia.

— Não precisa ser tão vaga, Diana, todo mundo sabe de que forasteira você está falando.

Melanie e Laurel olharam os próprios almoços. A insolência repentina e pouco característica de Cassie evidentemente as deixava constrangidas. Suzan e Sean se olharam, surpresos, e a expressão de Deborah endureceu. Mas Nick, Cassie percebeu, sorria, achando graça em sua explosão.

— Briga de mulher — exclamou Faye, esfregando as mãos. — Mas lembrem-se, senhoras, nada de puxar cabelo.

Diana, porém, mantinha-se controlada, como sempre, e não revelou nenhuma reação defensiva em sua resposta.

— As regras se aplicam igualmente a todos os forasteiros, Cassie. Não é só relacionada com sua amizade com Scarlett.

Cassie sentiu as bochechas se avermelharem e o pescoço esquentar.

— Tem que acreditar em mim — disse ela com a voz trêmula. — Não há nada de estranho em Scarlett. Só porque ela é uma forasteira, não quer dizer que esteja contra nós.

— Não? — disse Faye com sarcasmo.

— Você não pode ter certeza — insistiu Diana. — Não sabemos nada sobre Scarlett.

— Sim, eu posso. — Agora Cassie gritava. — Sei o que vejo quando olho para ela. E confio na minha visão.

Foi golpe baixo de Cassie mencionar a visão — um lembrete à Diana de que só Cassie tinha o dom da visão paranormal.

— Cuidado — sugeriu Faye. — Cassie está apelando para armas pesadas.

— Sua visão pode estar nublada — argumentou Diana com rigidez.

Mas Cassie rebateu rapidamente.

— Nublada pelo quê?

— Pelo fato de você estar obcecada por ela desde o minuto em que a conheceu — vociferou Diana por fim, perdendo a frieza.

— Arrá. — Faye batia palmas. — Enfim aparece a verdade. Diana tem ciúme de Cassie ter encontrado uma nova melhor amiga!

Uma rodada de risadinhas percorreu o grupo. Suzan e Deborah assentiram em aprovação.

— Uma falha no mármore impecável da nossa preciosa Diana — continuou Faye. — Adorei.

— Não estou com ciúmes. — Diana fixou os olhos verdes diretamente em Cassie.

— Você está, sim — disse Cassie.

Diana ficou sem fala com aquele último ataque, mas se recusou a desviar os olhos dos de Cassie. Esta também não virou o rosto. Toda a frustração, confusão e raiva que sentia por Diana rejeitar Scarlett e ficar com Adam nas suas costas agora pareciam escorrer dela. E juntavam-se à decepção e ao ultraje de Diana com a audácia de Cassie em desafiá-la e ao grupo. Era um embate de vontades. Era a isso que tinham de recorrer? Aquele confronto insignificante? Ninguém se mexeu nem disse uma palavra, e, por um segundo, Cassie pensou que continuaria assim para sempre.

Mas então, naturalmente, Adam se colocou entre elas.

— Vamos continuar — intermediou ele. — Não temos muito tempo, e ainda há muito o que discutir. Diana, Deborah, contem o que aconteceu quando vocês seguiram Max.

Ao ouvir o nome de Max, Faye explodiu, furiosa de uma hora para outra.

— Vocês fizeram o quê?

Diana agora tinha que lidar com uma nova discussão, então direcionou toda a sua energia para Faye.

— Ainda nem acusamos Max de alguma coisa. Ninguém precisa exagerar.

— Eu tenho todos os motivos do mundo para exagerar. Vocês agiram pelas minhas costas.

— Ele é forasteiro e é novo na cidade — disse Deborah. — Você sabia que ele estava na nossa lista.

— E nós o seguimos diretamente até sua casa — revelou Diana, calma como água estagnada.

O choque rompeu a superfície do grupo, criando histeria. Esta reunião estava se mostrando muito mais explosiva do que qualquer um teria previsto.

— Ele foi à sua casa? — Os olhos cinza de Melanie ferveram.

— Então são duas pessoas que infligiram a regra de não ter contato com forasteiros — constatou Laurel com um toque de antagonismo na voz normalmente pacífica.

Suzan falou com a boca cheia de Twinkie:

— Mas Max não queria nada com Faye. Ele a está evitando há semanas.

Deborah meneou a cabeça, incrédula.

— Bem, alguma coisa mudou. Agora ele está a fim dela. Ele abandonou aquela atitude sou bom demais para todo mundo e estava andando atrás de Faye feito um cachorrinho carente. Até matou o treino de lacrosse para ficar com ela. Quase parecia que estava sob um feitiço...

Assim que Deborah pronunciou a palavra feitiço, todos se sobressaltaram.

Adam fixou os olhos azuis elétricos em Faye.

— Você não fez isso — disse ele. — Diga que não fez.

Mas todos sabiam. Era o que Faye esteve aprontando aquele tempo todo, o que a fazia chegar atrasada às reuniões e ficar cheia de segredos. Faye fez um feitiço de amor para conquistar o cara de quem estava a fim.

— Você jurou — lembrou Adam. — Todos nós juramos não praticar magia nenhuma.

Faye fez um gesto de desdém para Adam com as unhas vermelhas compridas, como se quisesse tirá-lo da sua vista.

— Não foi nada. Um simples feitiço de amor nem pode ser chamado de magia.

Melanie se colocou ao lado de Adam. Estava mais furiosa do que Cassie jamais a vira.

— Agora eles vão nos descobrir, sabia? Os caçadores.

— Relaxe. — Faye riu. — Eles não são caçadores de cupidos. Ninguém percebeu. Nem vai perceber.

— Mas qualquer deslize pode nos expor — criticou Nick. Suas mãos estavam cerradas em punhos, e a respiração era pesada. — Não podemos cometer erro algum.

Faye girou o corpo rapidamente e disparou para Nick.

— Por que você não disse isso a Cassie?

— Cassie não fez nada de errado. Você fez. — Nick cerrou ainda mais os punhos.

— Tem certeza? — Faye empurrou Nick com força no peito.

— Já chega — gritou Diana. — Essa discussão não está nos levando a lugar algum, e precisamos voltar à escola. Continuaremos depois.

Mas como?, pensou Cassie. Como eles poderiam continuar depois de todo aquele caos? Todos pegaram suas coisas lentamente e seguiram para o prédio da escola, mas Faye ficou onde estava.

— Sério? Vocês todos vão embora? A diversão só estava começando.

Melanie lhe deu uma cotovelada ao passar, mas Faye continuou inabalável. Divertindo-se, ela gritou para Cassie:

— Gosto muito mais da nova versão zangada de Melanie do que daquela velha chata e racional, e você?

Cassie a ignorou, enfiando o restante de seu sanduíche no saco de papel.

— A nova versão ciumenta de Diana também não é nada má — continuou Faye. — E a versão mentirosa de Cassie, bem, essa é uma novidade e tanto.

Era o que Faye queria, provocá-la para uma briga, mas Cassie não conseguiu ignorar por mais tempo. Encarou-a nos olhos e falou:

— Não sei do você está falando. E também não me importo.

Faye segurou o queixo de Cassie com os dedos fortes.

— Você devia se importar.

Cassie resistiu ao impulso de se afastar. A pedra vermelha que Faye usava no pescoço refletiu a luz do sol nos olhos de Cassie, fazendo-os arder, mas ela sustentou o olhar.

— Não tenho medo de você — disse ela, contra o aperto de Faye.

— Mais um de seus muitos erros idiotas. — Faye segurou com ainda mais força o queixo de Cassie.

— Ei! Solte a Cassie. — Era Nick no alto da trilha.

Rindo, Faye a soltou.

— Cassie sabe se cuidar sozinha, Nicholas. Não precisa que você a salve. Não é verdade, Cassie?

Cassie andou até o lado de Nick enquanto Faye gritava:

— Você nunca será Adam, Nicholas. Por mais que tente.

Cassie olhou para Faye do outro lado da trilha, sentindo o fogo nas entranhas subir para a garganta.

— Faye, você é ridícula. E, bem no fundo, você é fraca, muito mais fraca do que eu. Não me pressione a provar isso.

Faye lambeu os lábios vermelho-sangue, depois passou a língua sedutoramente pelos dentes.

— Gosto mais assim — disse ela. — Me mostre mais do seu lado negro, Cassandra. É o que quero ver.


15

Era uma caminhada de aproximadamente dez minutos até o farol, tempo o suficiente para Cassie acalmar o coração acelerado e encher os pulmões de ar frio. Parte da tensão vivenciada na reunião anterior do grupo tinha se dissipado. Cassie pensou que Faye tinha se safado com bastante facilidade depois de fazer o feitiço de amor, mas também estava aliviada ao ver que todos se entendiam para mencionar o que pensavam. Além do mais, Cassie também foi perdoada por andar com Scarlett.

Foi Diana quem sugeriu que os 12 fossem a pé ao farol, juntos, em um grupo grande, mas todos queriam fazer isso. Ir de carro era legal, pensou Cassie, mas não havia nada como andar pela rua sob o luar com um bando de amigos mais íntimos. Fazia com que ela se sentisse invencível e parte de algo muito maior e mais importante do que ela mesma.

A lua estava cheia, e Laurel levou uma sacola de biscoitos recém-assados. Era uma antiga receita de família que exigia folhas esmagadas de artemísia, que devia ser colhida e ingerida durante a lua cheia. Laurel alegou que os biscoitos melhoravam a adivinhação, a clarividência e os poderes paranormais, mas Cassie e os outros encheram a boca enquanto andavam porque eram deliciosos. Todas as outras coisas eram apenas bônus.

Adam procurou pela mão de Cassie, e, quando a encontrou, ela não se afastou. Apesar de ter estado tensa nos últimos dias, no momento tudo parecia bem e sua ligação com Adam era forte. Os dedos dele envolveram os da garota, tranquilizando-a, dizendo que apesar de todos os seus temores, ela não estava sozinha e que, juntos, eles podiam superar qualquer coisa.

A noite era revigorante. As árvores tinham o perfume de flores doces, e o chão sob os sapatos de Cassie se encontrava úmido de orvalho. Uma rara despreocupação tomou os amigos durante a caminhada. Não apenas Cassie e Adam, mas o grupo inteiro. Eles gritavam pela rua, brincando entre si e batendo nas latas de lixo. Chris desafiou Doug para uma corrida pelo resto do percurso, e todos começaram a correr na frente para julgar o vencedor. No entanto, logo em seguida, pararam abruptamente e soltaram um ofegar coletivo.

Parecia impossível. O farol tinha sido completamente queimado. Em seu lugar havia uma pilha de fuligem e cinzas.

De forma irracional, Cassie pensou que eles estavam no lugar errado. Como uma estrutura tão sólida e firme, tão permanente em sua vigilância, fundiu-se daquele jeito? Mas a fúria nos olhos de Adam obrigou Cassie a aceitar a verdade mais difícil. Não só o farol tinha sumido, como alguém o destruíra de propósito.

Melanie foi a primeira a falar:

— Era um marco histórico. Existia há uns trezentos anos.

— É nisso que você está pensando agora? — perguntou Nick. — E os caçadores que sabiam exatamente onde nos encontrar?

Diana pousou a mão com delicadeza no ombro de Nick.

— Espere, não vamos tirar conclusões precipitadas. Não temos certeza de que foram os caçadores.

Nick se desvencilhou.

— Isto foi um recado, em alto e bom som. Como você acha que eles poderiam ser mais claros?

Diana se virou para Melanie e Laurel.

— Vocês duas foram as últimas a vir aqui, não foram? Têm certeza de que não deixaram nenhuma vela acesa por acidente?

Os olhos de Melanie se arregalaram.

— Você está nos acusando de ter incendiado o farol?

— Não estou acusando. Só perguntando.

Cassie não suportava mais ouvir nenhuma discussão. Atravessou a relva na direção de onde, antigamente, ficava a entrada do chalé.

Cassie ouviu Adam sair em defesa de Diana contra Melanie e Laurel.

— Seria melhor para todos nós se vocês tivessem causado o incêndio — disse ele. — Assim pelo menos teríamos certeza de que foi um acidente e não um ato de...

— Não foi um acidente — gritou Cassie para eles. Sua voz ecoou como uma onda do mar. Bem onde ficava a entrada do chalé do faroleiro, havia um símbolo queimado em cinza no chão. O mesmo símbolo que apareceu na testa de Constance.

Adam foi o primeiro a alcançá-la.

— O símbolo do caçador — disse ele, no momento em que os outros formavam fila atrás dele. Agora eles também viam. Não era possível que não enxergassem.

— O coven foi marcado — disse Cassie.

— Faye, isso tudo é culpa sua — gritou Nick. — Porque você tinha que fazer magia.

Pela primeira vez, Adam concordou com Nick.

— Eles rastrearam o seu feitiço de amor.

— Eu te falei — vociferou Melanie. — Eu te falei que isso ia acontecer.

— Já chega! — Os olhos de Faye ardiam de cólera. — Por que têm tanta certeza de que a culpa foi minha?

Ela apontou a unha vermelha mais comprida para Diana.

— Você, sempre tão preocupada em não tirar conclusões precipitadas. Pare por um momento, prenda os cachorros e pense em quem realmente pode ter feito isso. — Depois virou o pescoço para fulminar Cassie com os olhos enquanto mantinha os ombros virados para Diana. — Acho que Scarlett seria uma suspeita lógica — observou ela. — Em particular porque Cassie a trouxe aqui outro dia.

Cassie continuou em silêncio.

— Eu vi vocês — confessou Faye.

— Não tente virar isto contra mim — disse Cassie, mas foi só o que conseguiu dizer. Não podia negar aquele fato.

Adam e Diana encararam Cassie com idêntica incredulidade.

— Isso é verdade? — perguntou Adam. — Você trouxe Scarlett ao farol?

Cassie olhou o horrível símbolo queimado no chão, com seu B sinuoso e o hexágono de aparência satânica. Isto não foi obra de Scarlett. Cassie tinha certeza.

— Cassie, como pôde fazer isso? — Diana não conseguia conter a exasperação.

A menina voltou-se suplicante para os olhos enfurecidos de Diana.

— Ela estava comigo quando passei a fim de deixar umas ervas para Melanie e Laurel. Mas eu não a deixei entrar e não lhe contei nada. Eu juro, ela não tem nada a ver com isso.

— Não era para você estar saindo com Scarlett em primeiro lugar — disse Melanie. — E você ainda a trouxe ao nosso espaço sagrado.

Faye desfrutava inteiramente do banho de sangue que havia começado. Com que facilidade a atenção foi desviada do seu feitiço de amor proibido. Faye se dirigiu ao grupo.

— O que Cassie fez é imperdoável — insistiu ela com maldade. — Ela nos traiu.

— Você nos traiu também, Faye — retrucou Cassie. — E como você poderia saber que eu trouxe Scarlett ao farol, a não ser que estivesse me espionando?

— A questão não é essa — interferiu Diana. — Nisto eu concordo com Faye. Trazer Scarlett ao farol foi uma traição. E agora precisamos de união mais do que nunca. Não podemos confiar em nenhum forasteiro, aconteça o que acontecer.

Cassie perdeu o pouco controle que lhe restava.

— Deixe ver se eu entendi direito — disse ela. — Sua ideia de união é apoiar Faye?

Adam respondeu por Diana.

— É para sua própria segurança, Cassie. Scarlett não é uma de nós. E em circunstância alguma ela poderia chegar perto do nosso local de reunião.

— Talvez eu que não seja uma de vocês — explodiu Cassie antes que pudesse se conter.

Esta foi a gota d’água para Diana. Ela gritou como Cassie jamais imaginou ser possível:

— É claro que você é uma de nós, Cassie. Você é mais fundamental para este Círculo do que qualquer um. Acha que não sabemos disso? — Depois se virou para Faye. — E você também não está livre. Cassie tem razão, você também traiu o grupo. Max é proibido, assim como sua magia.

— Ou o quê? — disse Faye.

Diana nem piscou.

— Ou você abre mão dos seus privilégios de líder deste Círculo.

Passaram-se alguns segundos antes que Adam rompesse o silêncio mortal.

— O coven foi marcado — disse ele. — Mas os caçadores sabem quem somos, individualmente?

— Boa pergunta — comentou Melanie. — Seja como for, temos de pensar num jeito de combatê-los.

— É verdade — concordou Diana. Sua voz recuperou o timbre angelical. — E eu tinha algo muito importante para contar a todos vocês esta noite. Antes de todas essas surpresas.

Ela fitou Cassie e Faye, repreendendo-as individualmente com o olhar. Depois vasculhou a bolsa e pegou seu Livro das Sombras.

— Encontrei um feitiço — anunciou ela. — Um feitiço para destruir caçadores de bruxas.

— O quê? — perguntou Adam, mostrando-se ofendido por Diana ter escondido essa descoberta dele. — Por que não disse antes?

— Não tinha certeza se era o que eu pensava ser — disse Diana em defesa própria. — O texto estava majoritariamente em latim e precisou ser traduzido. Mas agora tenho certeza. Por isso eu queria a reunião desta noite, para contar a todos ao mesmo tempo.

— Vamos fazer o feitiço agora mesmo — disse Melanie, parecendo esperançosa pela primeira vez em dias.

Diana meneou a cabeça.

— Primeiro precisamos ter certeza de quem são os caçadores.

Nick disparou um olhar a Chris e Doug.

— Vamos enfeitiçar o diretor. Temos certeza que é ele.

— Não. — Os olhos verdes de Diana faiscaram. — O feitiço só funcionará com um verdadeiro caçador. Se o tentarmos com alguém que não é um deles, só estaremos expondo nossa bruxaria. Para não falar em machucar um inocente.

— Nossa, que ótima notícia — ironizou Faye. — Temos um feitiço que não podemos usar.

— Nós o usaremos. — Adam lançou um último olhar ao símbolo queimado no chão. — Quando eles atacarem novamente. A essa altura, acho que podemos contar com isso.

— Mas e depois? — perguntou Melanie. — Se fizermos o feitiço. Os caçadores vão morrer?

Diana hesitou.

— Não está muito claro. A tradução deixa muito para a interpretação, mas parece que o efeito do feitiço depende do caçador.

— Então, eles podem morrer — disse Melanie.

— Me deixe dar uma olhada nisso. — Faye pegou o Livro das Sombras das mãos de Diana e passou os olhos pela página. À medida que seus olhos examinavam a antiga escrita, ela parecia prender a respiração e se afastar das palavras, sem acreditar.

— Isto não é um feitiço — disse Faye. — É uma maldição.

Diana mirou fixamente o chão.

— Sim — disse ela. — Tecnicamente, é uma maldição.

De repente, Faye ficou agitada de empolgação.

— Parece um feitiço de deflexão que volta o poder do caçador para ele, mas invoca Hécate. Isto pode ser... — Ela não conseguiu encontrar a palavra certa.

— Perigoso — disse Diana. — Só usaremos como último recurso.


16

A chuva caía muito fraca, e, embora fosse noite, as pessoas perambulavam para lá e para cá. Scarlett havia convidado Cassie para sair. É claro que ela declinou, embora desejasse não ter que fazer isso. Era justamente o que ela precisava para desanuviar — ver gente que não fosse bruxa. Decidiu ir de carro ao centro da cidade. Mesmo que não pudesse se juntar à multidão em suas tarefas rotineiras, podia pelo menos observá-la de dentro do seu Volkswagen.

Mas Cassie mal havia entrado na Bridge Street quando a chuva leve aumentou para um aguaceiro. Todos que estavam na rua procuraram abrigo dentro dos restaurantes e lojas; alguns aguardavam nas soleiras de portas e embaixo de passarelas. Cassie estava seca e em segurança dentro do carro, e parecia estar em um domo de neve que alguém tinha sacudido, submersa pela chuva que estremecia de todos os lados, mas também intocada por ela.

De repente, sentiu perder esta segurança. Seu coração começou a martelar no peito, e ela transpirava. Sentia que estava sendo seguida, mas não via nenhum carro atrás do seu. Continuou espiando pelo retrovisor, e só o que via era a escuridão molhada no próprio vidro traseiro. Ainda assim, decidiu pegar um desvio, na esperança de se livrar da sensação.

Com um giro repentino do volante, Cassie deu uma guinada para a Dodge Street, uma rua isolada que a levaria de volta à via expressa. Cassie teve que reduzir para manobrar pelas várias curvas fechadas, mas, quando pisou no freio, seu pé não sentiu resistência e afundou até o chão.

Ela tentou de novo e de novo, mas nada adiantou. O freio não funcionava.

De repente, o carro pareceu ganhar velocidade, levando-a furiosamente em disparada para a morte. Ela não conseguia pará-lo, e soltar o acelerador só piorava a situação. Em pânico, agarrou-se ao volante e tentou jogar o veículo para o acostamento, onde talvez a grama reduzisse a velocidade o bastante para Cassie conseguir saltar em segurança.

Mas a grama nada fez para desacelerar o automóvel. A única chance de Cassie era saltar enquanto o carro continuava seguindo a toda velocidade. Em pânico, ela segurou a maçaneta e abriu a porta. Mas antes que tivesse a oportunidade de pular, o carro bateu em um carvalho gigantesco de casca grossa.

Ela desmaiou por um momento, talvez um bem longo. Quando abriu os olhos, viu que fora lançada para fora do carro através do para-brisa. Verificou braços e pernas para ver se conseguia mexê-los, e procurou por sangue no rosto. Inacreditavelmente, ela estava bem.

Mas o carro foi completamente destruído. Observando-o através da chuva escura, lembrava à Cassie uma lata de refrigerante que virou uma sanfona. Era um milagre estar viva.

Ela se levantou devagar, continuando a investigar os arredores, e reconheceu que a sensação desagradável tinha passado. A sombria presença perseguidora havia desaparecido, mas Cassie não conseguia se livrar da sensação de que aquilo não fora um acidente.

Então ela caiu em prantos. Não foi um milagre. Foi o feitiço de proteção que a salvou.

Cassie detestava fazer aquilo, mas sabia que precisava. Procurou no corpo e na roupa o assustador símbolo antigo. Isto a lembrou de quando procurava carrapatos depois de um dia na mata, só que as consequências neste caso significavam a morte definitiva. Ficou aliviada por não encontrar nenhum. Cassie quase morreu naquela noite, mas pelo menos não foi marcada.

Com as mãos tremendo, Cassie pegou o celular para pedir ajuda. Mas ali, no meio do nada, não conseguia sinal. Seu pânico recomeçou. Ela estava presa ali, um alvo fixo.

Cassie não devia ter saído sozinha, sem contar a ninguém aonde iria. Foi ingênua ao pensar que os caçadores não iriam atrás dela de novo na primeira oportunidade que tivessem. Não havia como escapar deles.

Cassie não conseguia parar de tremer enquanto esperava na chuva torrencial, torcendo para que um estranho gentil passasse de carro por ali. Mas cada ruído e sombra a faziam pular com receio de outra possibilidade, e ela enrijeceu quando um carro prata reduziu e parou diante dela. Mas então Cassie reconheceu o rosto dentro dele. Era Scarlett.

— Ah, meu Deus, você está bem? — Scarlett saiu do carro e correu até Cassie, deixando a porta aberta. — Você se machucou?

— Eu estou bem — disse Cassie, soltando um suspiro de alívio ao ver um rosto conhecido.

Scarlett a abraçou junto ao peito, quase tão embasbacada com a visão do carro amassado quanto Cassie.

— Você podia ter morrido! — exclamou ela. — E está ensopada!

A ruiva correu ao porta-malas do carro e pegou um enorme cobertor de lã. Enrolou Cassie nele e esfregou seus braços até que se aquecessem.

Cassie estava apavorada demais com o acidente para resistir.

— Está tudo bem — assegurou Scarlett numa voz tão reconfortante quanto a lã grossa em seus ombros. — Vou levar você para casa.

***

Na escola, no dia seguinte, todos falavam do recente encontro de Cassie com a morte. Era como se o acidente lhe desse pontos de popularidade de uma forma doentia e distorcida. Até Portia Bainbridge atravessou o corredor abarrotado para dar uma espiada em Cassie junto do seu armário. Ela empinou o nariz fino para Cassie e estreitou seus olhos castanhos e frios.

— Que bom que você não estragou essa sua carinha bonita quando voou pelo para-brisa — disse ela.

Passou uma ideia pela cabeça de Cassie: poderia Portia ter cortado os freios do carro, ou um de seus irmãos estúpidos?

Mas Portia tinha deixado de se meter com o Círculo depois do último embate entre eles no outono passado. Desde então, ela andava distraída com um novo namorado e mal parecia pensar em outro assunto. E os irmãos, Jordan e Logan, cursavam a faculdade. Cassie saberia se eles estivessem de volta à cidade.

Nessa hora, Sally Waltman parou ao lado de Cassie. Mais baixa do que Portia, Sally ainda assim cruzava os braços finos com a intensidade de quem é mais alta e forte.

— Ela já sofreu bastante, Portia — disse Sally. — Não precisa ainda por cima ser atormentada por você.

Portia riu com escárnio.

— Não se esqueça de que lado você está, Sally. Não vai querer começar a ser confundida com um deles, ou pode se machucar.

— Deixe pra lá. — Sally puxou Portia com força pelo braço e insistiu que ela se afastasse. — Vem, vamos chegar atrasadas — disse ela, e lançou a Cassie um olhar de desculpa.

Sally enfrentando Portia significava muito, considerando que antigamente ela era uma das mais odiadas inimigas do Círculo. Se a relação do grupo com Sally podia chegar àquele ponto, ela não via por que eles não podiam ter mais aceitação de outros forasteiros bem-intencionados, como Scarlett. Nenhum deles era tão cruel como Portia. Por que o Círculo não conseguia enxergar isso?

***

No almoço, o grupo se reuniu em seu lugar na mata e exigiu os detalhes de Cassie. Ela lhes contou da sensação ruim que teve pouco antes do acidente e que os freios falharam, mas guardou alguns detalhes para si. Estava exausta, física e emocionalmente, e não conseguiria lidar com a reação deles se contasse que Scarlett apareceu logo depois do acidente.

— Mas havia alguma pista de que foram os caçadores que fizeram isso? — perguntou Diana.

— Não — respondeu Cassie. — Nenhuma.

— Vi Portia te infernizando perto do seu armário esta manhã — disse Nick. — Ela tem estado fora de nosso radar há muito tempo, não confio nisso.

Diana pareceu duvidar, mesmo assim disse:

— Não faria mal pensar em Portia e os irmãos como possíveis suspeitos.

— E Sally Waltman — adicionou Suzan.

Diana negou com a cabeça.

— Sally tem sido muito correta conosco. De todos os forasteiros, acho que ela é a menos provável de querer nos machucar.

— Vocês estão fugindo da questão — observou Deborah. — Esses caçadores são fortes. Quem quer que seja, só chegou à cidade agora, ou já teríamos tomado conhecimento.

Melanie concordou.

— Aquele símbolo arcaico não veio de nenhum dos nossos antigos colegas de escola.

Adam esteve andando de um lado para outro, como sempre fazia quando estava nervoso. Ele não se acalmara desde que soube do acidente.

— Eu ainda queria que você tivesse me telefonado — disse ele a Cassie. — Como conseguiu chegar em casa?

Cassie hesitou.

Era uma pergunta simples. Não havia nenhuma necessidade de uma pausa tão longa, e todo o grupo percebeu.

Adam enrijeceu e se virou para Nick num tom de acusação.

— Ela ligou para você? Foi você quem a levou para casa?

Nick foi pego de surpresa com a acusação de Adam, mas rapidamente espelhou a postura agressiva de Adam.

— Não, ela não me ligou. Mas bem que eu queria — respondeu ele.

— Parem com isso, vocês dois. — Cassie não tinha alternativa. Precisava contar a verdade. — Não telefonei para ninguém me buscar. — Ela se interrompeu, sem querer continuar. Olhou os próprios sapatos. Fuja, pensou ela. Fuja deste momento horroroso. Mas não havia para onde correr, ela sabia. Quase inaudível, concluiu: — Por acaso Scarlett passou de carro por ali enquanto eu estava atolada. Ela me levou para casa.

Adam balançou a cabeça, afastando-se de Nick, que também perdeu sua bravata. Diana se apoiou em uma árvore próxima para se equilibrar. Eles ficaram sem fala, mas Faye tinha as palavras bem à mão para anunciar o que todo o grupo pensava.

— Ah, sei — disse ela. — Scarlett por acaso passou de carro, encontrando você no meio do nada. Que maravilhosa coincidência!

Cassie não ia suportar aquilo. A última pessoa a quem devia explicações era Faye. Ela se aproximou da menina, com ousadia.

— Por que ela teria me ajudado se foi ela que tentou me machucar?

— Você está sendo idiota — disse Deborah, sem conter um grama que fosse de repulsa. — Não pode ser coincidência.

— Ela não está sendo idiota — retrucou Diana. — Cassie só está cega. Ela quer enxergar o melhor em Scarlett.

— Exatamente. O que é a mais pura idiotice — insistiu Deborah.

— Não — protestou Cassie. — Scarlett é inocente, eu juro.

Diana franziu a testa para ela, solidária.

— Me desculpe, Cassie. Mas é suspeito demais que Scarlett por acaso soubesse onde você estava ontem à noite depois do acidente. Parece ser a prova que estivemos procurando esse tempo todo.

— É o diretor — gritou Cassie. — Sinto isso até os ossos.

Adam respondeu suave e cautelosamente:

— Não conseguimos desencavar nada de suspeito sobre o novo diretor. Ele está limpo, Cassie.

Desta vez, nem Adam estava disposto a apoiar Cassie. Ela podia suplicar a ele, a todos eles, a tarde toda, mas era inútil; eles já haviam decidido não acreditar nela. Cassie se virou para Nick, desesperada, pensando que, se alguém podia lhe dar apoio, seria ele. Mas Nick estava inexpressivo, sem disposição para se rebelar contra o status quo.

Faye se ergueu e se posicionou no meio do grupo.

— Acho que devemos ir às docas depois da escola e ter uma palavrinha com Scarlett.

— Devíamos lançar a maldição do caçador de bruxas contra ela — gritou Deborah.

Diana foi para o lado de Faye, cruzou os braços e assentiu.

— Concordo. Quem está conosco? — Ergueu-se uma série de mãos. — Mas, para isso, precisamos ter o Círculo completo. Caso contrário, talvez não tenhamos força suficiente. — Diana fitava Cassie. — Temos um Círculo completo, ou não?

Cassie se virou para Adam. Seus olhos estavam cheios de desejo e amor, insistindo que ela confiasse neles, que confiasse nele. E ela queria, de verdade.

— Cassie — disse Nick. — Se Scarlett não é uma caçadora, o feitiço não vai funcionar nela. Pode ser sua chance de provar que tem razão. — Ele sorriu com gentileza, assentindo para Diana e Adam. — E provar que eles estão errados.

— É verdade — disse Melanie a Diana. — Se lançarmos a maldição sobre Scarlett e ela não for uma caçadora, vai saber o que nós somos.

— Sei disso — confirmou Diana, confiante.

Cassie ergueu o olhar para Diana.

— Você tem certeza — disse ela — de que está disposta a expor o Círculo a uma forasteira inofensiva e bem-intencionada?

— Tenho certeza. — Diana voltou a encarar Cassie sem raiva ou ódio, apenas com completa convicção.

— Então, estou com vocês — disse Cassie em voz baixa, quase para si mesma. — Hoje vamos às docas depois da aula.


17

O grupo atravessou a pitoresca orla de New Salem até as docas, onde Scarlett trabalhava. No caminho, Diana puxou Cassie de lado e a agradeceu por acompanhá-los. Disse sentir-se mal por se colocar contra os desejos de Cassie, mas insistiu que era para a segurança de todo o grupo.

Cassie se obrigou a demonstrar boa vontade e disse que entendia. De que adiantava bater cabeça com Diana naquele momento? Além disso, como Nick falou, o encontro podia provar de uma vez por todas que Scarlett era só uma garota comum, sem intenções de prejudicar o Círculo. Então Cassie estaria livre para ser sua amiga.

Entreouvindo a aparente trégua entre Cassie e Diana, Adam segurou a mão da namorada. Ainda a segurava, enquanto Diana se dirigia ao grupo.

— Todos conhecem bem o plano? — perguntou. Seu cabelo louro cintilava ao sol, e ela mostrava a segurança de uma comandante suprema.

Os olhos de Deborah brilharam com a expectativa da batalha.

— Nós a puxamos para fora, cercamos, depois lançamos a maldição contra o caçador de bruxas.

— Não — corrigiu Adam. — Nós a cercamos e conseguimos todas as informações.

— É isso mesmo — disse Diana. — Precisamos obter o máximo de informações antes de lançarmos a maldição. — Ela se interrompeu. — Em particular porque não temos certeza absoluta do que acontecerá depois que a lançarmos.

Cassie não conseguia nem pensar nessa parte. O único jeito de superar a situação seria continuar acreditando em Scarlett.

— Lá está ela. — Laurel apontou a saída lateral do Oyster Bar. — Deve estar fazendo um intervalo.

— Perfeito — esbravejou Faye. Era fácil ver que seu sangue fervia de empolgação. Ela se adiantou ao grupo, liderando.

Scarlett os viu se aproximando quase de imediato. Qualquer um em seu juízo perfeito teria ficado alarmado ao ver a aproximação do grupo furioso de 12 pessoas, mas Scarlett abriu um largo sorriso e acenou para eles, agitando o braço fino de um lado a outro, como se precisasse chamar a atenção deles.

— Ela está blefando — disse Faye enquanto eles continuavam a abordagem. — Não caiam nessa.

Mas as palavras de Faye eram desnecessárias. Nenhum deles vacilou ou reduziu o passo. Antes de Scarlett poder dizer “oi”, eles a tinham cercado.

Finalmente ela começava a entender que algo peculiar acontecia, que estava com problemas.

— O que está havendo? — Ela se virou, rodando, tentando localizar Cassie no círculo de corpos de respiração pesada ao redor dela.

A cena não podia ter acontecido em um lugar mais tranquilo. Estavam posicionados ao lado do Oyster Bar, onde não havia ninguém, a não ser pelo ocasional ajudante de garçom checando as caçambas de lixo. Scarlett estava encurralada. Ninguém sequer a ouviria gritar.

Agora, só Cassie podia salvá-la.

— Scarlett — disse ela. — Precisamos ouvir a verdade de você, ou pode se machucar. Meus amigos acham que você tem alguma relação com meu acidente de carro. Eu não acredito nisso. Mas preciso que você prove a eles que é inocente.

Os olhos escuros e redondos de Scarlett relaxaram.

— É por isso? É claro que não tenho nada a ver com o acidente.

— E o farol? — A voz de Diana era severa. Mais parecia uma ameaça do que uma pergunta.

— O que tem ele? — perguntou Scarlett.

— Você o destruiu totalmente num incêndio — gritou Faye.

— O quê? — Scarlett agora perdia a calma. — Por que eu faria uma coisa dessas? — Seus instintos de sobrevivência assumiram, e Cassie sabia que a hora da verdade não estava longe.

Adam estreitou os olhos para ela.

— Com quem você está trabalhando?

— No Oyster Bar? — Agora Scarlett tremia, como um gato vira-lata ameaçado e preparado para atacar.

— Responda à pergunta — ordenou Diana. — Com quem você está trabalhando?

— Não sei do que vocês estão falando — gritou Scarlett, correndo para Cassie, em busca de ajuda. O Círculo se fechou, bloqueando qualquer saída.

Mas Faye entendeu a corrida de Scarlett para Cassie como uma ameaça direta e reagiu rapidamente. Ergueu as mãos e entoou:

— Pelo poder deste Círculo, invoco Hécate!

Naquele momento, o tempo ficou mais lento para Cassie. Ela via o choque no rosto de Scarlett e a fúria nos olhos de Faye. Ouviu Diana gritar: Não, ainda não!

Mas Faye era irrefreável. Ela pareceu ter tomado proporções gigantescas no instante em que invocou Hécate, como se incorporasse a forma da própria deusa. Parecia chegar a 2 metros de altura, e seus olhos cor de mel escureceram como bolas de gude. Ela lançou a primeira parte da maldição com o poder do trovão.

Que a maldição caia sobre o caçador que me quer prejudicado
Os atos de maldade vos retornarão três vezes multiplicado!

O céu acima das mãos estendidas de Faye se avermelhou e espiralou numa nuvem violenta e afunilada. Ela a chamou para si, puxando e moldando em uma bola de fogo ao mexer a ponta dos dedos encantados. Enquanto jogava a bola de uma das mãos à outra, o Círculo entoava as palavras em latim que tinham decorado — palavras sombrias e insondáveis que eles nem compreendiam — até que Faye atirou a bola de fogo em Scarlett, como se fosse uma pedra pesada.

Mas Scarlett chocou a todos. Com um movimento rápido, pegou o fogo e o explodiu entre as palmas.

— Que seja desfeito! — exclamou ela, o clássico feitiço de defesa.

Em segundos, Faye encolheu ao tamanho normal e tombou de lado no chão. A abertura no céu se fechou sozinha, e a luz do dia voltou ao normal.

— Como você conhece o feitiço de defesa? — perguntou Cassie.

Mas mesmo enquanto a pergunta saía dos seus lábios, Cassie sabia que só podia haver uma explicação. Scarlett não era uma caçadora de bruxas. Era uma bruxa, como eles.

Deborah e Suzan correram até Faye para verificar se a amiga estava bem. Lentamente, a colocaram de pé, mas ela parecia tonta e desequilibrada.

Scarlett se virou para Cassie. Seus olhos escuros ainda inflamados com o feitiço.

— Lamento que você tenha descoberto desse jeito — disse ela.

Adam avançou um passo, aturdido.

— Você é uma bruxa?

Scarlett assentiu e se virou de novo para Cassie.

— Eu queria te contar no momento em que nos conhecemos.

— Por que não contou? — perguntou Diana.

— Estava esperando pela hora certa — disse Scarlett.

— Você é uma bruxa? — perguntou Cassie, repetindo as palavras e o tom atordoado de Adam.

— E não sou qualquer bruxa. — Scarlett sorriu timidamente. — Sou sua meia-irmã.

— O quê? — Cassie mal podia respirar. — Como assim?

— Temos o mesmo pai — revelou ela. — Black John.

Scarlett observou o choque em cada um daqueles rostos.

— Vim para cá tentando escapar dos caçadores de bruxas, como vocês estão fazendo agora. Fomos descobertos na minha cidade.

Ela se virou para Diana, de certo modo entendendo que ela era a líder do Círculo.

— Os caçadores mataram minha mãe — disse ela. — Depois me marcaram. Vim para cá procurando a proteção do Círculo.

— Então você sabia a nosso respeito — disse Melanie.

— Sim. — Scarlett segurou as mãos de Cassie. — Minha mãe foi criada nesta cidade. A vida toda eu soube que tinha uma irmã aqui, e queria conhecê-la.

Era quase demais para Cassie suportar. Todo o mundo começou a girar, e ela pensou que estava de fato sonhando, mas Diana se manifestou, arrancando-a ruidosamente do choque.

— Então Cassie estava certa o tempo todo — disse ela, apoiando uma das mãos esguias no ombro de Cassie e a outra no de Scarlett. — Aceitem minhas desculpas, por favor — pediu ela. — Nossas desculpas. A vocês duas. Deveríamos ter tido mais fé.

— Eu aceito — disse Scarlett, sorrindo.

Mas a voz rouca de Faye estragou o momento sentimental. Ao que parecia, ela havia recuperado as forças.

— Como vamos saber se você não está mentindo, Scarlett? Que prova você tem de qualquer uma dessas alegações?

Deborah respondeu por Scarlett e pelo grupo.

— Quando ela fez você cair de costas desviando sua maldição — alfinetou ela —, foi prova suficiente para mim.

— Para mim também — disse Suzan, rindo.

Faye sorriu com malícia.

— Eu quis dizer sobre ser meia-irmã de Cassie.

— Ela está dizendo a verdade — disse Cassie. — Eu sinto, bem no fundo, que a conheço a vida toda.

Diana se virou para Faye.

— Acho que está na hora de confiarmos em Cassie. É evidente que sua visão não estava nada nublada.

Um por um, todos expressaram suas desculpas a Scarlett. Até Melanie, que queria tanto acreditar que Scarlett fora a caçadora responsável pela morte da tia-avó Constance, deixou de lado o desejo de vingança e apertou sua mão.

— Nós a julgamos mal — disse Melanie. — Me desculpe.

Não compensava muito, considerando que eles tinham acabado de tentar matá-la, mas era só o que podiam dizer.

As desculpas foram para Cassie também. Mas ela não precisava que ninguém se desculpasse — estava com a razão. Sabia que se sentia ligada a Scarlett, simplesmente sabia! Era um alívio que enfim a verdade fosse revelada.

Adam parecia tão aliviado quanto Cassie. Aproximou-se da namorada e a abraçou.

— Eu nunca devia ter duvidado de você — disse ele.

— Está tudo bem — afirmou Cassie. — Pode se lembrar disso da próxima vez. — Ela abraçou Adam e, ao fazer isso, percebeu Nick a observando. Ele foi o único que ficou ao seu lado quando todos os outros estavam certos de que Scarlett era maligna. Ela teria que se lembrar de agradecer a ele depois, quando tivessem um instante a sós.


18

Cassie sempre sonhou em ter uma irmã, alguém em quem confiar e com quem trocar segredos, alguém que sempre estaria junto dela, independentemente de qualquer coisa. Cassie e Diana prometeram ser irmãs, as irmãs que nenhuma das duas tinha. Mas isso não estava dando muito certo ultimamente, ou pelo menos não como as duas imaginavam. Porém, agora Cassie possuía uma irmã de verdade. Bem, meia-irmã, mas ainda assim Scarlett era de verdade. Cassie não era mais filha única.

Naquela noite, Cassie convidou Scarlett para dormir em sua casa. Tinha o impulso de saber tudo que pudesse sobre a menina o quanto antes. Não para descobrir o que Scarlett sabia sobre o pai das duas e os caçadores de bruxas, embora naturalmente isto também fosse importante, mas para descobrir tudo sobre ela. Havia muito tempo para Scarlett contar ao Círculo sobre os caçadores. Esta noite, porém, eram apenas as duas. Elas mereciam isso.

A mãe de Cassie havia ido visitar uns amigos em Cape Cod, e assim as meninas tinham a casa toda para elas. Cassie ficou aliviada, porque não sabia ainda como abordar o assunto de Scarlett com a mãe. Como exatamente se começa uma conversa dessas? “Mãe, sabe o amor da sua vida, que ficou mau? Ele também tem outra filha.” Em especial com uma mãe como a de Cassie, que sempre preferia se esconder do passado e fingir que ele não existiu. Sua mãe enfiaria a cabeça na areia como um avestruz e viveria para sempre assim se pudesse. Descobrir que Cassie tinha uma meia-irmã e, pior ainda, que o marido teve uma filha com outra, podia ser demais para ela. Cassie precisaria de muito tato a fim de prepará-la para esse choque.

Naquela noite, porém, elas podiam ser apenas irmãs. Ela se sentiu num estado espontâneo de felicidade. Como se Scarlett e ela tentassem compensar a infância que não puderam ter juntas. Nas primeiras horas, fizeram todas as coisas tradicionais de uma festinha de pijama. Pediram pizza de pepperoni e riram muito. Pintaram as unhas uma da outra com esmalte roxo cintilante e devoraram sundaes de chocolate até ter dor de barriga.

Depois as duas vestiram os pijamas, e Scarlett prendeu o cabelo de Cassie em duas tranças francesas entrelaçadas. Cassie escovou as ondas compridas do cabelo vermelho de Scarlett e não conseguiu deixar de perguntar:

— Se você não tingisse seu cabelo, seria da mesma cor do meu?

— É — disse Scarlett. — Olhe para nossas sobrancelhas; têm o mesmo tom de castanho.

— E temos o mesmo formato de nariz.

— É verdade. Nós duas temos o mesmo nariz pequeno e perfeito.

— Você detesta ervilha? — perguntou Cassie, sentindo-se ridícula.

— Detesto, mas não acho que isso seja genético.

— Você não entende. — Cassie ria descontroladamente. — Eu odeio tanto ervilha que juro que está no meu DNA.

Scarlett caiu na gargalhada.

Ter uma festinha de pijama com Scarlett não era nada parecido com dormir na casa de Diana. A amiga sempre se comportava como uma adulta séria. Raras vezes relaxava o bastante para ser apenas boba. Mas bobeira não era problema para Scarlett. Embora fosse uma bruxa, ela nem sempre agia de tal maneira. E, embora tivesse sofrido uma tragédia e uma perda insuportáveis, não se afundava na melancolia. Antes de tudo, Scarlett era uma menina que queria se divertir um pouco, e isto era o sopro de ar fresco de que Cassie necessitava.

A conversa seguiu até tarde da noite. O mundo foi ficando calmo e sonolento até por fim silenciar enquanto Cassie e Scarlett continuavam acordadas, trocando histórias. E, à medida que as horas passavam, a conversa vagou para águas mais profundas. Aos sussurros, Scarlett preencheu os muitos hiatos na história da família de Cassie.

— Eu sempre senti que era diferente — disse ela. — Mesmo antes de saber que era uma bruxa.

— Sei o que você quer dizer, pode acreditar. — Cassie trouxe os joelhos ao peito. — Nunca me senti em casa em lugar nenhum. Sempre me sentia uma aberração.

— E os sonhos e pesadelos — disse Scarlett.

Cassie concordou com a cabeça.

— Principalmente os pesadelos.

— E as coisas estranhas que acontecem sempre que fico com raiva. — A voz de Scarlett se elevou um pouco. — Foi assim que começou.

Cassie assentiu com mais intensidade. As semelhanças entre as duas eram fantásticas. Cassie queria contar a Scarlett sobre as trevas que às vezes sentia por dentro. Não só sentimentos ruins incitados por determinadas pessoas, como o novo diretor, por exemplo, mas aquela outra escuridão. Aquela bem no fundo, cuja existência ela mal conseguia admitir a si mesma. Será que Scarlett sentia isso também? Será que tinha medo de que alguma parte sinistra de Black John estivesse alojada em sua alma, contaminando-a e embaçando-a como o pulmão canceroso de um fumante? Mas, antes que Cassie criasse coragem para fazer a pergunta, o rosto redondo de Scarlett ficou mortalmente sério.

— E quando eu toquei pela primeira vez a hematita — disse ela. — A sensação no peito foi...

— Eu sei! — exclamou Cassie. — Eu também!

— É minha pedra de trabalho — disse Scarlett.

— A minha também.

Scarlett sorriu com astúcia, como se já desconfiasse.

— É uma ocorrência verdadeiramente rara, sabia? Ter a hematita como sua pedra de trabalho.

Cassie virou o rosto por um segundo, envergonhada. Tinha que lembrar a si mesma de que não precisava se constranger de sua ligação com Black John, pelo menos não com Scarlett.

Scarlett a observava com paciência.

— Está tudo bem. Sei que é muita coisa para processar.

Ela sente, pensou Cassie. Scarlett compreende a tortura do segredo mais profundo de Cassie. Scarlett suportou a mesma esmagadora escuridão latente dentro de si.

O ar entre elas se aquietou por um momento, e Cassie sentiu que era a oportunidade de perguntar sobre o pai.

— É por causa dele — disse ela. — Que a hematita funciona para nós duas. Não é?

Scarlett assentiu.

— Eu diria que esta deve ser a razão principal.

— Você o conheceu? — perguntou Cassie, sem precisar pronunciar o nome do pai.

Scarlett meneou a cabeça.

— Não. Mas minha mãe contou histórias. A sua contou?

Cassie ficou vermelha, com vergonha dos defeitos da própria mãe.

— Na verdade, não.

— Nossas mães foram grandes amigas na adolescência — contou Scarlett. — Sabia disso?

Cassie vasculhou a memória em busca de qualquer lembrança da mãe falando de velhas amigas, mas nada lhe veio à cabeça.

— Não — respondeu ela, decepcionada. — Não sei muita coisa do passado da minha mãe.

— Bem, nossas mães eram grandes amigas — disse Scarlett categoricamente. — Até Black John se colocar entre as duas. Sua mãe o roubou dela. Por isso minha mãe saiu da cidade.

— Eu não sabia. — O coração de Cassie doeu um pouco devido àquela nova imagem da mãe, mas também porque subitamente pensou em Diana e Nick, e em como Adam e ela se colocaram entre os dois. Será que as coisas voltariam a ser como antes entre eles, ou estariam ligados pelo mesmo destino?

Scarlett notou uma alteração no estado de espírito de Cassie.

— Eu te aborreci? — perguntou. — Talvez eu esteja falando muito... e cedo demais.

— Não, deixe de ser boba. — Cassie se obrigou a relaxar e, por enquanto, tirar Adam e os outros da mente. — Quero saber de tudo. Não me esconda nada, por favor.

Scarlett franziu os lábios e olhou Cassie, incrédula.

— Temos a vida inteira para colocar tudo em dia, sabia? Não precisamos fazer tudo numa noite só.

Era uma ideia incrivelmente reconfortante. A vida inteira. Elas podiam voltar a rir e brincar, e continuar a conversa séria no dia seguinte. Mas Cassie esperou aquela oportunidade por tempo demais para deixar escapar mais um minuto que fosse. Precisava saber a verdade, sobre tudo.

— Por favor, me conte mais — disse ela. — Eu aguento.

— Então, tá. — Scarlett segurou a mão de Cassie e a apertou, e, quando fez isso, Cassie olhou para baixo, para os dedos entrelaçados das duas. Quase parecia ser possível ver um cordão envolvendo as mãos, ligando-as. Como a ligação entre mim e Adam, pensou Cassie. Ela e Scarlett estavam ligadas. Eram predestinadas. Isso explicava tudo o que ela sentiu no momento em que pôs os olhos nela, o fato de estar disposta a contrariar o Círculo inteiro para defendê-la e protegê-la.

Se Scarlett também viu, não mencionou. Continuou falando como sempre, acariciando a mão de Cassie.

— Nunca vou me esquecer do dia em que minha mãe me disse que eu tinha uma irmã. Isso mudou tudo para mim. Eu sabia que um dia ia te encontrar. E, olha só, eu tinha razão. — Ela esperou um instante para ver a expressão de Cassie. — Não entendo por que a sua mãe nunca te contou.

De repente, Cassie se sentiu em um novo nível de consciência. Afastou a mão.

— Espere um minuto. Minha mãe sabia de você?

— É claro que ela sabia. — A voz de Scarlett continha uma leve sugestão de escândalo. — Todos ainda moravam em New Salem quando nascemos.

Cassie pensou na conversa que teve recentemente com a mãe. Em como ela olhou fundo em seus olhos e jurou ter contado à filha toda a verdade sobre o pai. Eu adorava ser toda dele e que ele fosse todo meu, disse ela, mas era mentira. Sabia que ele estava com outra.

— Como minha mãe não me contou que eu tinha uma irmã? — indagou-se Cassie em voz alta.

Esta era uma nova fronteira que tinha brotado entre ela e a mãe, e, no momento, parecia intransponível. Toda sua infância e adolescência foram corroídas por mentiras — a verdade só veio à luz quando elas se mudaram para New Salem e Cassie descobriu que era uma bruxa. Ela conseguira entender todo o segredo que a mãe havia mantido na esperança de protegê-la. Mas agora lhe ocorria que mesmo suas conversas mais recentes foram envenenadas pela falsidade. Naquele exato momento, a mãe ainda mentia para ela. Cassie nunca se sentiu mais distante da mãe quanto agora.

— Ela devia ter te contado — disse Scarlett. — Que outras coisas estaria escondendo de você?

Cassie percebeu que Scarlett tinha completa razão. Se a mãe podia mentir sobre a existência de uma irmã, podia mentir a respeito de tudo. E, se ela ainda ia guardar segredos, Cassie também guardaria. Decidiu, então, não contar nada à mãe sobre ter conhecido Scarlett. Ela não merecia sua sinceridade. Não a havia conquistado.

Felizmente, agora Cassie tinha uma irmã, e tudo seria diferente. Tudo ficaria melhor. Se tivesse que ser só as duas contra o resto do mundo, assim seria. Elas continuariam inseparáveis, e esta era a única coisa de que Cassie se sentia segura agora.

— Scarlett — disse ela, sentindo o coração transbordar de amor e carinho —, agora que você está aqui, finalmente eu me sinto em casa.

— Eu também. — Os olhos escuros de Scarlett brilharam. — Eu nunca estive tão certa de coisa alguma. Este é o meu lugar.


19

– Você quer um latte ou um cappuccino? — perguntou Adam na frente da fila do balcão da cafeteria.

— Me surpreenda — disse Cassie, e o viu falar com o balconista, fazendo seu pedido e contando o dinheiro.

Cassie fingiu não o conhecer por um momento, e imaginou que ele era um estranho que ela via pela primeira vez. Observou seu maxilar e os ombros largos, aqueles cachos castanhos avermelhados. Sim, pensou. Seria amor à primeira vista mais uma vez.

As questões entre Cassie e Adam tinham fechado um círculo completo. Os últimos dias desde o confronto com Scarlett nas docas foram românticos e excitantes, como os primeiros dias do relacionamento. Quando ele a beijava, ela estremecia com aquele prazer e excitação familiares; amava-o completamente, de todo corpo e alma, e sabia que ele sentia o mesmo.

Desde que veio à tona a verdade sobre Scarlett, Adam voltou a ser Adam, e Cassie era de novo Cassie, porém mais feliz e mais confiante.

Adam retornou à mesa dos dois, onde colocou um mocha gelado com creme e um gigantesco cookie de chocolate.

— Você disse para fazer uma surpresa — disse ele.

— Você está tentando me deixar doidona de açúcar.

— É como eu mais gosto de você. — Ele mergulhou o dedo no creme para provar.

Cassie espiou a porta, mas a garota que entrava não era Scarlett.

Adam riu.

— Ela só está alguns minutos atrasada, relaxe.

— Eu sei. — Cassie quebrou um pedaço do cookie e pôs na boca enquanto Adam tirava outra porção do creme. Ela desviou o olhar, sem querer ser pega observando-o lamber o creme dos dedos.

— Será que devo deixar você e meu mocha a sós? — perguntou ela.

Adam ficou vermelho e empurrou a bebida para mais perto de Cassie, fora do seu alcance. Depois limpou a boca com um guardanapo e tentou ficar sério.

— Estou muito feliz por você — disse ele. — Scarlett é incrível. Dá para ver totalmente que vocês duas são parentes.

— Eu tentei te dizer — respondeu ela.

— Eu sei. E nunca fiquei tão feliz em admitir que estava errado.

— Bem, pode dizer isso pessoalmente a Scarlett se ela aparecer aqui. — Cassie olhou a porta mais uma vez e tomou um gole da bebida. — Estou começando a me preocupar por ela ainda não ter aparecido. Vou ligar.

Mas Scarlett não atendia ao telefone, e Cassie ficou ainda mais preocupada.

— Estou com um mau pressentimento. — Ela sabia que Adam a levaria a sério se ela colocasse desta forma.

— Então precisamos ir à pousada ver se ela está lá. — Adam se levantou, sem perder tempo.

Era exatamente o que Cassie queria sugerir. Às vezes a previsibilidade era o que ela mais gostava em Adam.

A pousada onde Scarlett estava hospedada era uma construção georgiana perto da Old Town Square. Era uma das pousadas históricas mais bonitas de New Salem, de propriedade de um velho que Cassie conhecia de vista. Ela se acostumou a vê-lo passeando com seus três lulus da Pomerânia pela cidade. Algumas vezes, ela se abaixava para fazer carinho em um dos cachorros, mas nunca conversou muito com o velho. Foi ele quem atendeu a porta quando eles chegaram, os cachorros latindo e pulando em volta dos seus pés.

Cassie apresentou a si e a Adam enquanto o homem mandava os cães fazerem silêncio. Depois de entrar, ela gaguejou um pouco antes de dizer:

— Desculpe incomodar o senhor, mas minha irmã, Scarlett, está hospedada aqui. Queríamos saber se ela está.

Era a primeira vez que Cassie dizia aquelas palavras, minha irmã. Era extasiante, mas também parecia estranho, como se estivesse mentindo.

O homem assentiu e coçou a barba grisalha por fazer.

— Sim, sim, Scarlett, do cabelo louco — disse ele.

— Então, ela está? — Por um momento, Cassie ficou aliviada.

— Não — respondeu ele. — Não aparece desde ontem.

Adam notou o pânico nos olhos de Cassie e buscou mais informações.

— Tem certeza? Ela não voltou para cá ontem à noite, nem para dormir?

— Não, não voltou — disse o homem, aprumando a postura. — Mas isto não é da sua conta. Uma garota tem direito à privacidade. — Seus olhos correram entre Adam e Cassie, depois ele ergueu as sobrancelhas brancas. — Me desculpem, mas terei que pedir para vocês saírem. Não posso dar informações sobre meus hóspedes a dois estranhos, jovens ou não.

— É claro — disse Adam. — Nós entendemos. Obrigado pela ajuda. — Ele deixou um número telefônico para que fossem procurados caso Scarlett voltasse, ou se ele soubesse do seu paradeiro.

No carro, Cassie se virou para ele.

— Agora estou morrendo de preocupação. O que vamos fazer?

Adam estava concentrado na direção.

— Acho que devemos esperar um pouco mais — disse ele com calma. — Não sabemos se ela está com problemas. Ela pode estar simplesmente cuidando da própria vida.

— Cuidando da própria vida? — Cassie se exasperou. — Se fosse assim, ela teria aparecido na cafeteria na hora marcada, ou pelo menos teria atendido ao telefone.

— Cassie. — Adam escolheu as palavras com cuidado. — Procure se lembrar de que não sabemos muito sobre Scarlett. Ela pode ter ido visitar amigos e se esquecido de ligar para você.

— Então você acha que ela simplesmente deixou a nova irmã na mão?

— Não é isso que estou dizendo.

— Você acha que ela é instável — disse Cassie. — Só porque ela não é tão travada como todos vocês.

— Todos vocês? — Adam, segurando o volante com força, parou o carro. — Quer dizer nós, o Círculo? Por que você insiste em se separar de nós? Eu não entendo, Cassie.

Cassie sentia coisas demais ao mesmo tempo para conseguir compreendê-las. Mas ali estavam eles de novo, tendo a mesma briga que pareciam ter sempre. Ela estava cansada de Adam sempre tentando racionalizar os sentimentos de Cassie.

— Não estou me separando — retrucou ela. — Mas não sei o que mais você precisa para aceitar totalmente Scarlett. Ela é minha irmã, Adam.

— Eu sei — disse ele, continuando pela Crowhaven Road até a casa de Cassie. — Eu não quis dizer nada quando sugeri que talvez ela não esteja com problemas. Vê a rapidez com que você chega a essa conclusão?

Cassie não queria admitir, mas era verdade. Ficou em silêncio até eles chegarem à sua casa.

— Acho que só estou abalada — disse ela por fim.

— Vamos dar a noite como encerrada — disse Adam. — Se você ainda não tiver notícias dela, prometo que reuniremos o grupo para procurar por ela pela manhã.

— Tudo bem. — Cassie deu um beijo no rosto de Adam, mas não o convidou para entrar.

***

Naquela noite, ela teve um sonho. Num minuto estava em uma praia, bronzeando-se ao sol de verão, com o barulho do mar e das gaivotas enchendo seus ouvidos, e no seguinte ouvia um grito. Era um pedido de socorro horripilante, muito parecido com o grito de Melanie na noite em que Constance foi morta no festival. No sonho, Cassie abriu os olhos e descobriu que não estava mais em uma praia ensolarada, mas em um campo ou campina, à noite. E o céu tinha escurecido, parecendo água poluída.

O grito de socorro se tornou mais alto. Cassie pensou que vinha de uma casa escura ao longe. Era inconfundivelmente a voz de Scarlett, mas Cassie não conseguia alcançá-la. Na realidade, não conseguia se mexer.

Scarlett!, gritou Cassie, ainda no sonho. Estou te ouvindo!

Parecia tudo tão nítido que, para Cassie, era real.

A ligação funcionou, respondeu Scarlett, aliviada, porém ainda apavorada.

Onde você está?, perguntou Cassie.

Não sei! Os caçadores me mantêm em cativeiro. Estão me torturando, estudando meus poderes. Me ajude, por favor!

Procure ficar calma, disse Cassie. Pense bem, há alguma pista de onde você está?

Me ajude, Cassie. Por favor, rápido. Acho que eles vão me matar logo.

Não! Cassie a estava perdendo. A ligação ficava mais fraca. Scarlett, ainda consegue me ouvir? Prometo que vou te encontrar, de algum jeito. Scarlett? Oi? Aguente. Vamos salvar você!

Cassie se sentou na cama, assustada. Agora estava inteiramente desperta, em seu quarto, sozinha. Os móveis de mogno a encaravam. Pelo corredor, ela ouvia a mãe ressonar. Tudo estava como devia ser.

Eram 3 horas da manhã. Adam disse para dar a noite como encerrada. Mas e se Scarlett não tivesse até a manhã? Ela precisava ligar para ele.

Tremendo, discou o número de Adam e, no momento em que ele atendeu, Cassie falou:

— Scarlett foi raptada.

Adam soava grogue e confuso.

— O quê?

— Eu sonhei. Mas não foi um sonho. Ela procurou por mim, Adam. Nós nos comunicamos.

— Tem certeza?

— Nunca tive certeza maior na vida. São os caçadores. Eles a pegaram.

— Tudo bem. — Adam pigarreou. — Vou ligar para os outros. Onde nos encontramos?

— Atrás da minha casa, na escarpa. Não podemos correr o risco de acordar minha mãe.

— OK. Já chego aí.

— Adam, mais uma coisa. — Cassie mal conseguia expressar como estava agradecida por tê-lo numa hora dessas. — Eu te amo.

Ela quase o ouviu sorrir.

— Eu também te amo — disse ele.


20

Faye, Deborah e Suzan foram as últimas a chegar. Cambalearam na direção dos outros, de olhos baços, desgrenhadas e muito pouco vestidas para o frio do crepúsculo.

— Estavam curtindo a noite — constatou Adam quando as viu chegando. — Parece que ainda estão.

— E aí, qual é a grande emergência? — disse Faye num tom alto demais. — É melhor que seja boa. Sabe que horas são?

— Qual é o seu problema? — perguntou Melanie.

Faye riu e deu um tapinha no ombro de Melanie.

— Você e Laurel não são as únicas interessadas em herbalismo. — Ela tirou um conta-gotas do bolso. — Quer provar? É totalmente natural.

A expressão de Melanie endureceu.

— Não é hora para isso — criticou ela. — Os caçadores pegaram Scarlett.

Faye devolveu o conta-gotas ao bolso.

— Acho que isso é um não.

Cassie decidiu ignorar Faye, Deborah e Suzan, e só se dirigiu aos que eram capazes de prestar atenção.

— Scarlett não sabe onde a mantém — contou ela. — Mas está com medo de que a matem.

Ela então descreveu seu sonho em detalhes, que os caçadores mantinham Scarlett em cativeiro, torturando-a e estudando seus poderes, e que ela implorou a Cassie para salvá-la.

— O que vamos fazer? — Adam dirigiu a pergunta a Diana, mas foi Cassie quem respondeu.

— Precisamos descobrir onde os caçadores a estão mantendo — disse ela. — Podemos usar o feitiço de localização que Constance nos ensinou.

— Isso! — disse Faye, olhando fixamente a lua, como se o corpo celeste falasse com ela. — Vamos voltar a usar magia!

— Não tão rápido. — Diana franziu os lábios. — Temos que tratar disso com muito cuidado.

— Desmancha-prazeres — reclamou Faye.

— O que fizemos nas docas foi uma exceção — disse Diana com firmeza. — O uso da magia ainda nos coloca em perigo. E se este for um truque para ajudar os caçadores a descobrir quem somos?

— Não dou a mínima para isso — soltou Cassie.

Todos viraram a cabeça na direção dela, assombrados com sua resposta.

— Minha irmã está em perigo — continuou Cassie, recusando-se a desanimar. — O risco vale a pena.

Deborah foi a primeira a romper o silêncio com uma gargalhada.

— A decisão não é sua, princesinha.

Cassie teve o impulso de gritar de novo, mas se conteve e disse simplesmente:

— Como uma das líderes do Círculo, parte da decisão é minha.

— Quando é que você vai entender? — gritou Faye. — Não pode colocar suas necessidades insignificantes acima do Círculo.

— Esta não é uma necessidade insignificante, Faye — replicou Cassie. — Scarlett está sendo torturada. Provavelmente irão matá-la.

— Mas está tudo bem para você se todos nós formos mortos tentando salvá-la. — Faye deu as costas para Cassie com desprezo, jogando o cabelo preto como breu na direção dela. — Você está sendo egoísta.

— Olha quem fala — rebateu Cassie. — Quem é mais egoísta do que você?

— Tudo bem. Já chega. — Diana elevou sua voz clara e dominadora e mandou que se calassem.

Adam tentou acalmar Cassie colocando a mão em suas costas.

— Deve haver um jeito de fazer o feitiço de localização sem que os caçadores o rastreiem.

Todos ficaram em silêncio por um momento, refletindo, mas Cassie não conseguia entender toda essa deliberação. Uma sensação de calor a dominava, vindo não de fora — a escarpa ainda estava fria e ventava —, mas de suas entranhas, onde borbulhava uma fúria fervente.

Não tem jeito, ela pensou. Teria que encontrar Scarlett sozinha.

Então Adam se levantou do tronco em que estava sentado.

— Podemos fazer isso em um lugar lotado — propôs ele. Ninguém respondeu, mas Adam exibia uma expressão de prazer, e sua respiração estava acelerada. — Não entenderam? Se fizermos isto numa multidão, os caçadores vão ter dificuldade para decifrar a origem da magia.

— Essa, meu amigo, foi brilhante — aprovou Chris, trocando um high five com Adam.

Os olhos cinza de Melanie se arregalaram.

— Isso pode dar totalmente certo. Podemos usar um evento da escola como distração.

— Embaixo das arquibancadas — exclamou Laurel. — Durante as provas de atletismo, depois da aula de hoje.

Cassie se atirou em Adam e passou os braços com força em volta dele.

— É por isso que te amo — disse ela. — Você sempre tem as melhores ideias.

Os olhos de Adam irradiaram uma luz azul encantadora.

— É por isso? — Ele riu. — Tudo bem, então temos um plano. Vamos fazer o feitiço de localização esta tarde.

— Ainda temos que colocar em votação — interrompeu Diana bruscamente.

Faye sorriu com malícia.

— Boa forma de estragar um momento especial, D.

— É justo que todos tenham uma palavra nesta questão — insistiu Diana. — E todos devemos ter em mente que localizar Scarlett é só metade da solução. — Ela parou e olhou para Cassie. — Decidir o que vamos fazer a partir daí é outra votação completamente diferente.

Cassie explodiu, incapaz de se conter.

— Você não entende que eles irão matá-la? Ela é parte da minha família. Isso não significa nada para você?

Os lábios de Diana se separaram, mas ela não emitiu som algum. Investigava os olhos de Cassie como se procurasse algo que tinha perdido.

A raiva de Cassie não era dirigida unicamente a Diana, mas podia muito bem ser. Ela gritou quase na cara dela. Isso não era um comportamento adequado, mas, até onde Cassie sabia, esta não era hora para uma análise séria e uma estratégia meticulosa. Não quando a vida de Scarlett corria perigo.

Diana olhou para Cassie em outro momento de espanto mudo, depois virou o rosto.

— Estamos nos precipitando — avisou ela. — Não há garantias de que o feitiço de localização vá funcionar.

Adam se colocou ao lado de Cassie e a abraçou.

— Mas vamos tentar. Todos concordam?

Houve gestos afirmativos de cabeça da parte de todos.

Adam era muito bom para ela, e já era alguma coisa o grupo estar disposto a experimentar o feitiço, mas ainda não bastava para consolar Cassie. Toda esta votação e planejamento era um desperdício excessivo de tempo. Nesse ritmo, eles nunca salvariam Scarlett.


21

Cassie foi para casa na hora do almoço a fim de repassar todas as anotações sobre o feitiço de localização que Constance havia lhes ensinado. Como nunca havia feito aquele feitiço, os detalhes do seu funcionamento estavam obscuros em sua memória. As anotações ocupavam algumas páginas, mas, pelo que Cassie via, aquilo servia para localizar objetos perdidos. Em nenhum lugar ela escreveu sobre usá-lo para encontrar uma pessoa.

Nesse momento, houve uma batida na porta da frente. Era Adam; ela deveria ter adivinhado.

— Imaginei que encontraria você aqui — disse ele, seguindo Cassie até o quarto.

— Não estou evitando o Círculo. Queria pesquisar um pouco.

— Eu sei. De qualquer modo, você está fora de perigo... Todos foram em casa pegar coisas para o feitiço. — Ele se jogou na cama de Cassie, acenando para ela se juntar a ele.

Será que ele realmente pensava que esta era uma boa hora para namorar? Cassie se sentou ao seu lado, segurando as anotações entre os dois.

— Esse feitiço de localização serve para pessoas? — perguntou ela. — Não tinha percebido que, na verdade, foi feito para encontrar a chave do carro.

Adam pegou as anotações das mãos de Cassie e as colocou na mesa de cabeceira.

— Talvez não funcione — disse ele. — Mas é possível que sim. Esses feitiços podem ser usados para encontrar gente perdida se essas pessoas realmente querem ser encontradas.

Cassie sentiu os ombros relaxarem um pouco. Não havia dúvida de que Scarlett queria ser encontrada.

— Mas e se os caçadores não quiserem que ela seja encontrada? — perguntou ela.

Adam franziu a testa em solidariedade.

— Isto pode ser um problema. Mas acho que os caçadores querem ser encontrados, porque eles querem que nós os procuremos. — Depois seus olhos se encheram de remorso. — Há um motivo para que eles mantenham Scarlett viva, Cassie. Caso contrário, eles já a teriam matado. Vamos encontrá-la. Eu prometo.

Cassie sabia que Adam tinha razão. Deu-lhe um beijo suave no rosto.

— Não sei como eu passaria por tudo isso sem você.

— Para sua sorte, não precisa saber — disse ele enquanto avançava para um beijo. Só por um momento, o mundo pareceu certo de novo.

***

Naquela tarde, depois da escola, o Círculo se reuniu embaixo das arquibancadas, pouco antes do início das finais de atletismo. Faye, no entanto, não estava em lugar algum. Ao procurar nas arquibancadas por ela, Cassie e Laurel não ficaram surpresas ao descobrir que não estava sozinha.

Uma multidão lotava as arquibancadas ao redor de Faye e Max, mas eles nem percebiam. Max beijava o pescoço de Faye, que corria as unhas por seu tronco e puxava seus jeans, como um animal faminto.

— Ela não largou Max, era tudo papo — disse Laurel. — Mas acho que depois que se faz um feitiço de amor, está feito.

Cassie assentiu.

— Só que Faye não está sob feitiço nenhum, então qual é a desculpa dela?

— Ela é Faye — explicou Laurel.

Cassie notou Portia andando na direção delas, ou, mais exatamente, marchando para elas, vestindo uma blusa de gola alta do mesmo tom do cabelo cor de palha.

— Lá vem problema — avisou Cassie.

— Vocês vão dizer à sua amiga nojenta para ir para um motel? — gritou Portia. — Isto é uma prova de atletismo, não um filme pornô.

Laurel riu.

— Portia tem razão. Acho que eles devem estar assustando as crianças. — Ela se virou para Cassie: — Você joga água gelada neles, ou eu jogo?

Portia abriu um meio sorriso.

— Obrigada, Laurel. Eu sempre soube que você era a mais racional da sua panelinha. — Depois, olhando para Cassie, acrescentou: — Mas o nível tem estado bem baixo.

— Vou cuidar disso — disse Cassie, já se afastando. Ela aceitava qualquer desculpa para escapar de Portia.

Laurel e Portia continuaram conversando por alguns minutos enquanto Cassie fazia o possível para separar Faye de Max.

— Não — gemeu Max. — Para onde você vai levá-la?

Toda altivez tinha sido sugada dele.

— Diga tchau, Max — insistiu Cassie. — Agora Faye precisa ir.

Faye lutou por um último carinho dele antes de ser levada. Roçou os dedos pelo rosto perfeito do garoto.

— Seja bonzinho e fique aqui — disse ela. — Mais tarde será recompensado.

As feições fortes de Max se abrandaram com um prazer juvenil.

— Promete?

Faye respondeu soprando um beijo, e Cassie a arrastou arquibancada abaixo.

Depois de alcançarem uma distância segura, Cassie balançou a cabeça.

— Nem acredito que este é o mesmo Max.

Faye sorriu.

— Você acreditaria se o visse sem camisa.

***

Embaixo da arquibancada, o Círculo quase tinha terminado de preparar o feitiço de localização. Suzan e Sean prenderam velas no chão: uma ao norte, outra ao sul, uma ao leste e outra a oeste. Nick acendeu os pavios com seu Zippo de bronze.

Melanie deu um tapinha no ombro de Cassie.

— Com licença — disse ela, empurrando-a para o lado. — Tenho incensos a acender.

— Eles não vão sentir cheiro do incenso? — perguntou Cassie, referindo-se à multidão na arquibancada.

— Não — respondeu Melanie, enquanto limpava a energia do chão. — É só jasmim. No máximo, vão pensar que tem alguém fumando alguma coisa.

— Está todo mundo pronto para começar? — chamou Diana, olhando para Cassie.

Ela puxou Cassie de lado depois da aula de química para discutir o que aconteceria na reunião da manhã. Tentou explicar sua posição: ela queria salvar Scarlett tanto quanto Cassie, mas precisava equilibrar esse desejo com sua responsabilidade para com o Círculo. Não é pessoal, disse ela. Cassie garantiu à Diana que entendia. Mas era pessoal. Era isso que ninguém reconhecia. Para Cassie, tudo isso era muito pessoal.

O barulho dos colegas de escola torcendo acima deles indicava o começo das provas.

— Estamos prontos, como sempre estaremos — disse Laurel.

O grupo se sentou ao redor das velas, como Diana os havia instruído a fazer. Em seguida, ela colocou um cálice de água dentro do círculo.

— Todos devem invocar o elemento da água — explicou ela.

Cassie olhou o cálice, imaginando que continha todo o oceano, tão azul, frio e profundo que, se tentasse afundar os dedos ali para chegar ao fundo, jamais conseguiria.

— Poder da água, eu vos rogo — invocou Diana.

Então, coletivamente, o Círculo repetiu em voz baixa o encantamento quatro vezes:

A bruxa perdida será encontrada agora
Esconderijos, revelem-se a nós sem demora

Eles miravam fixamente o cálice enquanto Diana fazia a invocação.

— Que a água mostre a localização de Scarlett.

No início nada aconteceu, só água comum em uma taça elegante. A multidão acima de suas cabeças gritou e se levantou, e o líquido se agitou. Levou alguns segundos para se aquietar, mas, quando aconteceu, Cassie notou o próprio reflexo se tornando mais pronunciado. O formato do seu rosto, os olhos redondos e lábios protuberantes, aguçados a uma clareza imaculada. Como parecia assustada, como parecia desesperada. Mas logo essa imagem desapareceu e uma nova surgiu, com igual clareza. Era uma casa arruinada — a que apareceu em seu sonho, só que agora Cassie realmente conseguia vê-la, não apenas sentir.

Era um frágil chalé de praia, em que Cassie reconhecia o estilo clássico de Cape Cod. Situava-se perto do final de uma faixa de areia longa e desolada, com uma única faixa de água de um lado, e um pântano formado pela maré do outro.

Conheço este lugar, pensou Cassie, mas no instante seguinte a imagem se transformou em outra coisa.

O que era?

A imagem se formava devagar, mas ela podia jurar que era um pão. Depois ele se separou em fatias. Talvez ela só estivesse com fome, porque, com a mesma rapidez com que se formou, a imagem se remodelou em outra coisa: era o rosto de um homem que parecia ser dos anos 1800. Tinha sobrancelhas grossas e um bigode basto, e usava gola alta. Cassie tinha certeza de que reconhecia esse homem também, mas de onde?

Depois, a imagem mudou pela última vez — para um número. Faiscou só por um segundo, quase rápido demais para ver, mas era 48. Pareceu a Cassie uma bola branca numerada de um bingo. Depois a água escureceu e ficou imóvel.

— Acho que Scarlett está em Cape Cod — disse Cassie, procurando confirmação nos outros.

— Sim — concordou Adam. — Na cidade de Sandwich. Fica no canto noroeste do Cape.

Cassie riu consigo mesma. É claro. Por que não deduziu isso?

— Mas quem era aquele homem? — perguntou ela.

— Eu já o vi antes — disse Diana.

Então foi a vez de Melanie rir.

— Eu acabei de ler A letra escarlate — explicou ela. — Este era Nathaniel Hawthorne.

— Deve ser uma pista para o nome da rua — sugeriu Laurel. — Muitas ruas de lá têm nomes de escritores do passado.

— Quarenta e oito — disse Adam, digitando em seu celular. — Hawthorne Street, 48, é lá que ela está.

— Bem, e o que estamos esperando? — disse Nick. — Vamos buscá-la.

— Não podemos — disse Diana com firmeza. — Cape Cod fica fora do domínio do feitiço de proteção. É perigoso demais.

Melanie, sentindo que Cassie estava prestes a explodir, apoiou Diana.

— Vamos precisar de todo o poder possível se quisermos ter uma chance de derrotar os caçadores — disse ela. — Precisamos esperar e entrar em batalha com eles aqui, em New Salem, sob a guarda do feitiço de proteção.

— Estou cheia de esperar — disse Cassie. — Não podemos confiar que os caçadores vão poupar Scarlett por tanto tempo.

Antes que alguém tivesse a oportunidade de responder, ouviu-se um grito de arrepiar vindo das arquibancadas. Imediatamente, percebeu-se que não era o tipo de grito que se ouve em uma prova de atletismo. Era medonho, de dor, choque e horror ao mesmo tempo. Parecia a morte.

Cassie e os outros correram para ver, mas estava um caos completo quando chegaram. Eles se esforçaram para enxergar por cima da multidão enlouquecida de estudantes, professores e pais transtornados tomados pelo pânico.

— Tem um aluno caído na arquibancada — disse Adam.

Cassie conseguiu ver uma cabeça cor de palha, e de imediato soube a quem pertencia. Era Portia Bainbridge. E estava deitada bem acima de onde o Círculo fizera o feitiço.

— Ela desmaiou — disse alguém da equipe de corrida.

Laurel passou pela multidão às cotoveladas para ver se Portia ainda estava viva. Ajoelhou-se ao lado dela, chamou seu nome e verificou a pulsação. Inutilmente.

Portia estava morta — tão rígida e sem vida quanto Constance na noite do festival de primavera. E o pior, o que Cassie desejava mais do que tudo não ter visto: havia o fraco brilho do símbolo do caçador na blusa de Portia, sobre o lugar onde seu coração deveria estar batendo.

Desta vez, Cassie não precisou perguntar aos outros se eles também conseguiram enxergar. Ela sabia, pelas expressões apavoradas, que sim.

— Precisamos sair daqui — disse Melanie, parecendo um fantasma.

— Agora — ordenou Diana. — Todos para a minha casa.

***

Na sala de estar de Diana, o Círculo tentou se reagrupar, mas todos estavam totalmente perturbados pela morte chocante de Portia, e por terem eles mesmos escapado por pouco.

Adam descrevia um oito pelo tapete artesanal, roendo as unhas.

— Não entendem o que isso significa? — disse ele. — Os caçadores mataram uma humana pensando ser a origem da magia. Então eles ainda não sabem quem são os bruxos.

— Eles ainda não sabem que somos nós — concordou Faye, refestelada no sofá. — Depois de todo esse tempo. Eu falei para vocês. — Havia certo triunfo em sua voz.

Laurel se encolheu com a insensibilidade de Faye.

— Mas o preço para descobrirmos isso foi muito alto, não acha? Portia morreu.

— Ah, sim, mais sangue de forasteiro em nossas mãos — disse Faye em tom de zombaria.

Suzan desembrulhou um Twinkie que tinha no fundo da bolsa e deu uma mordida ávida.

De boca cheia, ela murmurou:

— Eu estava finalmente começando a não odiar Portia. E lá fomos nós e conseguimos com que fosse morta.

— Não foi nossa culpa — disse Deborah. — Não tinha como a gente saber o que ia acontecer.

Melanie discordou.

— Sabíamos que fazer um feitiço tão poderoso tinha um risco, e nos dispusemos a assumi-lo. Portia ainda estaria viva se não o tivéssemos feito.

Até agora, Cassie continuava em silêncio. Claro, ela se sentia responsável pelo que houve com Portia, mas não era hora de remoer o fato. Ela assumiu o controle, na esperança de canalizar o medo e a raiva do grupo, e até sua culpa, para a tarefa que tinham de cumprir.

— Estou tão abalada quanto todos vocês — anunciou Cassie. — Isto prova que os caçadores são fortes e estão chegando mais perto. Enquanto conversamos aqui, Scarlett ainda é refém deles, sendo torturada em uma cabana em Cape Cod. Temos que agir rápido, antes que ela tenha o mesmo destino de Portia.

Diana começou a balançar a cabeça antes mesmo de Cassie terminar a frase.

— Sinto muito, Cassie, mas não podemos simplesmente correr esse risco. Vamos pensar em outra maneira.

Melanie se apressou a ajudar Diana a rejeitar a ideia de Cassie.

— Não podemos mexer com esses caçadores. Veja do que eles são capazes.

Faye parecia estar apreciando tudo. O que a deixava tão inebriada? Era a perda brutal de uma vida humana, a divisão do grupo, ou o fato de todos estarem se voltando contra Cassie?

Ela se sentou com a coluna ereta, abandonando sua posição largada no sofá.

— Você devia saber que jamais iríamos direto para as mãos dos caçadores. — Ela estreitou os olhos de serpente para Cassie. — Não com esse grupo de covardes, pelo menos.

Nick se levantou da cadeira.

— Não devíamos colocar isto em votação?

— Não. — Faye riu. — Chama-se poder de veto. Não é, D?

Diana olhou para as próprias mãos finas.

— Chama-se decisão executiva.

— Não podemos ir atrás dos caçadores em Cape Cod — disse Adam. — Mas e se tentarmos trazê-los para cá, para New Salem?

— Não há tempo para isso! — Cassie perdia a paciência.

Chris Henderson se levantou e se colocou ao lado de Nick.

— Precisamos votar. Como sempre fazemos.

— Concordo. — Doug se juntou ao irmão e a Nick em sua pequena insurreição. — Desde quando vocês todos viraram fascistas? Nós temos que resgatar Scarlett. — Depois, diretamente para Cassie: — Sei o que é perder uma irmã. Você não precisa passar por isso.

— E eu confio na capacidade crítica de Cassie — exclamou Nick. Seu maxilar estava rígido, mas os olhos se enchiam de emoção. — Estou disposto a assumir o risco.

O coração de Cassie estava confuso. Como podia sua alma gêmea não entendê-la como Nick às vezes fazia? Adam, parado ali, teimoso e exageradamente protetor, balançava a cabeça em negativa enquanto Nick estava disposto a fazer o que fosse necessário para apoiar Cassie e resgatar Scarlett.

— Não vai acontecer, meninos — disse Faye com malícia.

— Temos o direito de votar — insistiu Nick, com Chris e Doug ficando visivelmente mais indóceis ao seu lado.

Mas, mesmo se eles votassem, estava claro quem venceria. Depois de tudo que passaram, Scarlett ainda era uma forasteira para eles. Tomariam qualquer providência para salvar a tia-avó de Melanie, mas quando a irmã de Cassie estava com problemas e eles tinham uma maneira de salvá-la, recusavam-se a agir.

— Tudo bem. — Diana estava aturdida e um tanto irritada com aquele motim. — Vamos votar. Mas a decisão é definitiva para o Círculo. E quero lembrar a vocês que...

— Poupem sua energia. — Cassie interrompeu Diana. — Não preciso dos seus votos. Não preciso de nenhum de vocês. — Ela se afastou, deixando uma ruptura no Círculo.


22

Cassie ficou acordada na cama, o olhar fixo no dossel que caía em cascata da sua cama de baldaquino. Observou o sol se refletindo nos castiçais de peltre sobre a lareira e no relógio de porcelana da parede oposta. Às vezes, ela ainda se sentia uma estranha naquele quarto, como se estivesse em uma grande festa de pijama na casa de outra garota.

Como Cassie não saiu da cama em seu horário de costume, a mãe bateu suavemente na porta.

— Vai chegar atrasada na escola — avisou, entrando no quarto cheio de luz. Cassie não se deu ao trabalho de dizer que não se sentia bem. Nem se deu ao trabalho de falar. Na realidade, estava quase catatônica em seu silêncio imóvel. — Você não me parece muito bem — disse a mãe, estreitando os olhos de preocupação. — Está doente?

Cassie a esteve evitando desde a noite em que descobriu a existência da irmã. Ela sabia que, se a confrontasse sobre essa questão, a mãe só tentaria se explicar, como fazia com todo o resto. Assim, em vez disso, Cassie trancou o segredo no peito, como uma arma escondida.

A mãe sentiu a temperatura em sua testa. Apreensiva, examinou os olhos e o rubor na pele de Cassie.

— Não acho que esteja com febre — constatou ela.

Seu cabelo preto e comprido, afastado do rosto, deixava-a ainda mais branca e magra do que de costume, e Cassie teve medo de que fosse a mãe que não se sentisse bem.

Porém, por mais que Cassie quisesse se abrir e contar tudo o que estava acontecendo, não podia. Ainda não estava preparada para perdoá-la.

— Hoje não vou à escola — afirmou asperamente, deixando claro que de jeito algum ia pedir permissão para ficar em casa.

Mas a mãe não discutiu.

— Vou preparar uma xícara de chá quente para você — disse ela.

— Não quero chá nenhum.

— Tudo bem, então, nada de chá. — Ela pegou um cobertor a mais na arca de mogno no canto, sacudiu e cobriu Cassie com carinho. — Está tudo bem, Cassie? Está chateada comigo por alguma coisa?

Cassie se virou de lado, afastando-se.

— Não estou chateada — replicou ela, virada para a janela. — Estou cansada. Pode fechar a porta depois de sair?

A mãe ficou em silêncio por alguns segundos, mas Cassie sentia que ela ponderava se devia pressionar a filha a falar, sabendo que havia algo errado, ou deixar para lá e dar o espaço que ela pedia.

— Por favor — disse Cassie para ajudá-la a se decidir. — Pode sair e me deixar descansar?

A mãe puxou o ar e soltou um longo suspiro. Era o som da resignação.

— Tudo bem. Me diga se precisar de alguma coisa. Mais tarde vou preparar uma sopa para o almoço. — E saiu sem dizer mais nada.

Cassie não poderia se sentir mais sozinha depois que a porta se fechou. A mãe era uma estranha para ela, e, como se não bastasse, Adam se colocou contra ela na última reunião e Diana mais parecia uma inimiga do que uma amiga. Cassie não tinha para quem apelar.

Ela saiu da cama e foi até a janela. A vista da água azul sempre a tranquilizava, mas naquele dia parecia fria e solitária.

Preciso achar um jeito de salvar Scarlett, pensou Cassie. Não importa o quanto isso custe.

De que adiantava ser uma bruxa se não podia usar seus poderes? E também, quanta magia será que tinha Cassie sem o Círculo completo para apoiá-la?

Um tremor correu por sua coluna enquanto ela mirava o mar, mas nenhuma resposta lhe veio. Distinguiu a extensão imensurável da água e de suas ondas, mas seu ritmo interno não estava em sincronia com o mar, como costumava acontecer. Pela primeira vez, não lhe parecia que o céu e o mar esperavam, observando, ouvindo-a.

Ela começou a se sentir febril, dolorida e pegajosa. Você não está doente de verdade, disse Cassie a si mesma, mas ainda assim voltou para a cama e se enterrou nos cobertores. Passaram-se minutos, talvez uma hora, mas ela não conseguia descansar. Sempre que caía em um sono leve e entorpecente, acordava assustada. Como podia se permitir descansar numa hora dessas?

Seu Livro das Sombras estava ao alcance, na gaveta da mesa de cabeceira. Ela o pegou e folheou, procurando por alguma pista. No fundo, porém, sabia que não havia nenhum atalho mágico. Teria de ir a Cape Cod e enfrentar sozinha os caçadores. Era o único jeito. Podia morrer tentando, sabia disso, mas não conseguia pensar num motivo melhor para morrer.

Seus pensamentos foram interrompidos por outra batida na porta do quarto, daquela vez mais alta e menos delicada.

— Mãe, estou dormindo — disse ela em voz alta.

— É o Adam — anunciou a voz atrás da porta.

Cassie não deu permissão, mas ele girou a maçaneta e abriu a porta mesmo assim.

— Sua mãe me falou que você não estava se sentindo bem — falou ele, fechando a porta ao entrar.

Cassie o olhou com indiferença.

— Estou bem — garantiu ela.

Ele tirou os sapatos e se sentou na cama ao seu lado. Algo brilhou nos olhos dele, e Cassie percebeu que ele tentaria a bajulação com ela.

— Não me lembro de te dizer para ficar à vontade — disse ela.

Ele nem se incomodou.

— Já entendi, Cassie, você está chateada comigo. Mas, por favor, me escute.

Cassie não respondeu.

Adam tomou isto como sua deixa para continuar.

— Sabe que estou sempre do seu lado. E quero salvar Scarlett tanto quanto você. Todos nós queremos.

— Então, não deve haver problema nenhum — argumentou Cassie. — Todos queremos a mesma coisa.

Adam franziu a testa.

— Ainda não terminei. Quero salvar Scarlett, mas estou preocupado com o desenrolar disto. E não quero que você, nem nenhum de nós, se machuque.

— Isso está começando a parecer um disco arranhado, Adam. Todo mundo só diz que tudo é perigoso, que não podemos fazer magia, não podemos ir atrás dos caçadores. Estou começando a pensar que Faye tem razão. Este Círculo é formado por um bando de covardes.

Adam se inclinou um pouco para a frente, como se Cassie tivesse lhe dado um soco na barriga.

— Não sou covarde — afirmou ele.

Prove, ela queria dizer, mas sentiu um espasmo de autocensura. Agredir Adam não a levaria a lugar algum. Nem o convenceria a entender seu lado da história.

— Não sou covarde — repetiu Adam rigidamente, e por um momento Cassie viu nele algo que achou assustador. Um poder dominador que sempre esteve latente dentro dele. Se Cassie ao menos pudesse usar tal poder a favor dela, e não contra.

No fundo da sua alma, Cassie sabia como o Círculo era de fato poderoso quando trabalhava unido. Não precisavam depender de um feitiço de proteção para se manter em segurança. Por que Adam não conseguia enxergar isso?

— Não dá para falar sobre isso com você agora — disse Cassie. — Preciso de algum tempo para mim. Para pensar.

Adam se levantou. Seus olhos se escureceram, como o céu numa tempestade.

— Eu te amo — disse ele. — E se você tiver que ficar chateada comigo para provar esse amor, tudo bem. Mas não estou disposto a perder você.

Ele pôs as mãos nos quadris. O sol que brilhava pela janela trouxe à tona todas as cores em seu cabelo, as ondas reluzentes de vermelho se misturando com o castanho e o dourado.

— Se é tempo que você quer, tudo bem — declarou ele. — Estarei aqui quando estiver pronta. Mas tenho um pedido a fazer.

Ele parou para ter certeza de que Cassie o ouvia com atenção.

— Qual? — Ela ainda não o encarava nos olhos.

— Não faça nada imprudente sem falar com o Círculo primeiro.

Cassie deixou os ombros caírem. Este não era lá um pedido muito justo.

— Prometa — insistiu ele.

Ela cometeu o erro de olhar nos olhos amorosos e imaculados de Adam. Ele não era um covarde. Era uma boa alma corajosa, que sempre queria o melhor para todos.

— Por favor — disse ele. — Não cometa nenhuma loucura.

A raiva que Cassie sentia dele agora não era menor do que quando ele chegou, mas ela também o amava de todo coração. E estava impotente contra o impulso de tranquilizar a mente aflita do namorado.

— Eu prometo — disse ela.

Mas ela sabia que era uma promessa que provavelmente não conseguiria cumprir.


23

Escuridão por quilômetros. Era só o que Cassie conseguia enxergar, uma escuridão avermelhada como o interior de suas próprias pálpebras. Seus olhos, contudo, estavam bem abertos. Ela sentiu a casa em ruínas de longe, escondida na noite enegrecida. Chamou: Scarlett!

Ela não veio até Cassie naquele sonho — Cassie foi até ela. Forçou seu caminho por uma noite negra feito breu, como que cega e louca, gritando o nome da irmã. Era como viajar pelo espaço sideral em um universo sem estrelas, mas, com persistência, Cassie encontrou o que procurava. A casa. E, pela porta bamba, descobriu Scarlett. Estava amarrada pelos pulsos e tornozelos a um poste de madeira lascado e gritava.

Eles a açoitavam. Quem quer que fossem. Cassie tentou distinguir os rostos dos caçadores, mas não conseguiu. Não tinham rosto; eram entidades escuras e amorfas como fantasmas. Ela só conseguia sentir que suas almas sombrias tremiam e que eles estavam assustados ao ponto da brutalidade. Era o medo que os impelia, medo do desconhecido, do sobrenatural, da bruxaria. Como soldados da Guerra Santa, sua fé na própria superioridade era inabalável, e sua capacidade para agredir os inimigos, extrema. Davam chibatadas em Scarlett, sem misericórdia, sem parar, sem se deixar afetar por seus gritos.

Cassie se perguntou por que os caçadores não cobriram a boca de Scarlett com fita adesiva para que ela se calasse. Depois teve uma ideia, como uma luz se acendendo. Os caçadores queriam que Scarlett falasse, que desse informações — não só os segredos da sua magia, percebeu Cassie, mas os segredos do Círculo, quem eles eram e onde encontrá-los. Scarlett chorava, gritava e cuspia nos caçadores sem forma, mas nenhuma palavra escapava de sua boca ferida. Estaria ela suportando toda essa dor para proteger o Círculo? E para proteger Cassie?

Seu corpo espancado pendia do poste de madeira, flácido e murcho como uma flor moribunda. O rosto era uma confusão de sangue e sujeira, e um dos olhos se fechara completamente, de tão inchado. O cabelo vermelho molhado pingava como sangue nos ombros ossudos. Ela foi quase completamente despida; seu tronco e as pernas estavam cobertos de marcas de chicote e hematomas roxos. Quanto tempo mais ela suportaria tantos maus-tratos?

Como no último sonho que teve, Cassie não conseguia se mexer. Seus pés ficaram paralisados na soleira da porta — de onde podia ver Scarlett, mas não sabia se a irmã conseguia avistá-la. Ela a chamou dali.

Scarlett, sei onde você está, disse ela. E chegarei em breve. Eu prometo.

Com isso, ela acordou num sobressalto.

Minha irmã, pensou Cassie, coitada da minha querida irmã. Ela preferia que Scarlett desse aos caçadores o que eles queriam, que contasse toda a verdade sobre o Círculo, se isso significava que eles a soltariam viva. Era melhor do que vê-la morrer para protegê-los. Scarlett fora para New Salem em busca da segurança do Círculo, e não o contrário. Como a situação chegou a tal ponto?

Mas Scarlett ainda estava viva, disso Cassie tinha certeza. E como ainda estava viva, ainda havia tempo de resgatá-la. Talvez, se o Círculo compreendesse que Scarlett era torturada para protegê-los, considerariam seu resgate com um pouco mais de seriedade. Talvez finalmente a aceitariam como parte do grupo.

Então houve um barulho alto e penetrante no ouvido de Cassie. Ela olhou a mesa de cabeceira e percebeu que seu telefone tocava, mas quem estaria telefonando àquela hora da noite?

— Alô? — Cassie atendeu com cautela, quase acreditando que do outro lado da linha estaria um dos antigos caçadores de bruxas do seu sonho. Mas a voz áspera que se desculpou por acordá-la pertencia a Deborah.

— O que aconteceu? — Cassie sabia que, se Deborah estava telefonando no meio da noite, era porque alguém tinha se ferido ou pior, possivelmente as duas coisas.

— Alguém botou fogo no gramado de Laurel — respondeu Deborah. — Queimaram a forma do símbolo do caçador.

Se Cassie não tivesse acabado de acordar de um pesadelo, juraria ter entrado em outro.

— Laurel foi marcada — acrescentou Deborah, caso Cassie não tivesse compreendido toda a magnitude da situação.

Cassie de repente se sentiu sufocar, como se um dos caçadores do pesadelo tivesse agarrado seu pescoço, apertando-o, e arrancado seu fôlego.

— Cassie? — chamou Deborah. — Você está bem?

Cassie tossiu. Laurel. De todas as pessoas a marcar, eles escolheram a doce e amante da paz Laurel. Como aquilo podia estar acontecendo?

— Só estou em choque — disse Cassie. — Pode falar.

Deborah voltou a seu sussurro grave.

— Então, vamos ter uma reunião do Círculo amanhã cedo, antes da aula. Para decidir o que fazer.

— É claro. Estarei lá.

— Vamos nos reunir na casa de Diana. Às seis e meia da manhã.

— Tudo bem. — Cassie se sentia trêmula e esquisita. Sua voz não parecia dela. Aquelas mãos invisíveis ainda apertavam seu pescoço, fechando a garganta e dificultando a respiração. — Laurel está bem? — conseguiu perguntar.

Mas o telefone estalou. Deborah já havia desligado. Pareceu estranho a Cassie que fosse Deborah, de todos os integrantes do Círculo que podiam ter telefonado para ela com esta notícia. Não Adam ou Diana.

Com cuidado para não acordar a mãe, Cassie saiu da cama, calçou os tênis e vestiu o casaco. Depois destrancou a porta da frente e escapuliu para a margem do terreno. Do topo da escarpa, tinha uma ampla vista de toda a quadra, de cada casa velha na curva da Crowhaven Road — tanto aquelas bem conservadas quanto as que passavam a impressão de que desmoronariam com um vento forte.

Cassie forçou a vista para enxergar mais adiante. Primeiro, viu que o fogo havia sido extinto, mas ainda sentia no ar o cheiro da fumaça e da grama queimada. Depois percebeu duas figuras rondando pelo escuro, nos arredores do gramado. Era difícil distinguir quem podiam ser através da fumaça persistente. Cassie semicerrou os olhos, inutilmente. Pensou em andar até lá. Tinha que ser alguém do Círculo. Então as figuras se aproximaram e Cassie os reconheceu. Adam e Diana.

O cabelo louro e comprido de Diana brilhava sob as luzes da rua enquanto ela, cautelosamente e bem perto de Adam, caminhava para a casa de Cassie.

Cassie sentiu uma onda de ressentimento. Os dois estavam acordados e juntos, na rua. E nenhum deles teve tempo para telefonar.

Como foi que ela se distanciou tanto das duas pessoas mais importantes da sua vida?

Cassie se virou e foi para casa com um vazio no estômago. Passou pela sala pé ante pé, voltou ao quarto e fechou suavemente a porta. Depois tirou os sapatos e subiu na cama, lamentando ter saído dali.

Ela podia adivinhar o que eles faziam. Estavam planejando, formando estratégias, tramando a reunião que aconteceria dali a algumas horas. Isso era apenas quem eles eram e como sempre seriam. O bravo cavaleiro e a sumo-sacerdotisa, sempre vigilantes. Eles eram a eminência parda por trás do grupo, independentemente de quem fosse chamado de líder ou usasse as Chaves.

Adam podia ser a alma gêmea de Cassie, mas o Círculo sempre estaria presente. E o Círculo, se fosse representado por uma pessoa, seria Diana. Nem por um segundo Cassie suspeitou de que Adam a traísse com Diana. Ele não precisaria disso. O que ele partilhava com Diana era algo que estava acima e além da traição.

Cassie olhou fixamente o teto, sem sono. Eles que criassem suas estratégias. Cassie estava farta de esperar, ansiosa. Resgataria Scarlett sozinha e destruiria os caçadores antes que eles marcassem mais alguém — e antes que tivessem a oportunidade de matar Laurel.

Mas Cassie sabia que, se ia lutar sozinha contra os caçadores, precisava de duas coisas: o diadema e a liga de Diana e Faye.


24

Na manhã seguinte, Cassie chegou à casa de Diana com café e muffins frescos. Diana parecia meio indecisa ao aceitar os bolinhos de Cassie, sem saber o que fazer com a gentileza. Desde a última divergência e da saída intempestiva de Cassie da reunião do Círculo, elas se evitavam. Assim, era justo que Diana ficasse meio desconfiada de uma mudança de intenções tão repentina e drástica.

— Pode sentar comigo à mesa da cozinha por um instante, antes dos outros chegarem? — perguntou Diana.

Cassie se sentou, puxou um dos copos de café para mais perto e ouviu.

Diana mordiscou a ponta de um muffin de milho.

— Fiquei acordada a noite toda pesquisando feitiços para reverter a marca — disse ela. — Para salvar Laurel.

— E?

— Não há nada ainda perfeito, mas é promissor. Tenho esperanças de encontrar um jeito de combinar um feitiço de descruzamento com outro de cura.

Cassie só conseguia pensar no diadema, mas se obrigou a dar um aceno de encorajamento para Diana.

— Me diga se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar. — Cassie sabia que precisava dar mais a Diana para recuperar sua confiança. — Sei que estive agindo de forma meio intempestiva ultimamente. E eu não devia ter saído da última reunião daquele jeito, quando é tão importante para nós ficarmos unidos.

As sobrancelhas de Diana se ergueram, e Cassie sentia o coração da amiga se enchendo de esperança.

— Quero ajudar a manter o Círculo unido, no auge da sua força — disse Cassie. — Acredito sinceramente que juntos somos fortes o bastante para derrotar os caçadores.

Diana apontou com o queixo para Cassie assim que Adam apareceu na porta lateral.

Ao ver a namorada, seu rosto tenso e vigilante relaxou. Depois, seus olhos encontraram brevemente os de Diana e um lampejo de compreensão foi transmitido entre os dois.

— Espero não estar interrompendo — disse Adam. — Mas preciso admitir que é bom ver vocês duas conversando.

Diana sorriu para Adam, inteiramente convencida de que as coisas entre ela e Cassie estavam resolvidas. Ela desistiu do seu muffin e pegou a mão de Cassie.

— Estou muito feliz por você ter compreendido — disse ela. — Vamos atrás desses caçadores aqui, em nosso próprio território. — Seus olhos esmeralda se encheram de lágrimas. — E assim posso ter certeza de que a minha irmã vai ficar a salvo.

Adam se juntou a elas na mesa, pegando um café, sem querer ficar de fora da conversa.

— E lembre-se, Cassie — disse ele —, Scarlett é uma bruxa poderosa, tanto quanto você. Talvez até mais. — Ele mexeu o café. — Você precisa confiar que ela pode cuidar de si mesma.

Logo o resto do grupo chegou. Deborah estava com Melanie e uma Laurel em pânico. Nick, com uma beleza glacial, entrou atrás dela. Foram seguidos por Chris e Doug, e por um Sean esquivo e sonolento. Por fim, Faye apareceu com Suzan, que quase a derrubou na pressa para alcançar a travessa de muffins.

Por alguns minutos, todos se agitaram pela mesa da cozinha, bebendo e comendo. A conversa do grupo tinha um tom diferente do normal. Cassie sentia uma tensão partindo deles, uma nova espécie de medo. E sentia uma escuridão em seu interior, como se, com esta última ameaça, tivesse sido mais empurrada para a periferia do grupo de uma forma definitiva.

Foi fácil para Cassie escapar sem ser notada. Rapidamente pegou sua bolsa e foi ao banheiro, sem que ninguém estranhasse. Depois continuou andando. Sabia que o diadema estava escondido no quarto de Diana, só precisava encontrá-lo. E a porta do quarto estava aberta, praticamente convidando-a a entrar.

Ela estacou no vão da porta. Uma vez ali dentro, não havia como desfazer seus atos. Ela precisava ter certeza de que estava disposta a sofrer as consequências mais tarde. Porém, lembrar-se dos pesadelos e dos gritos de Scarlett bastou para convencê-la a dar o passo fundamental e atravessar a porta.

Cassie havia se acostumado demais à elegância do quarto de Diana. Em certa época, parecia-lhe um quarto estranhamente adulto para uma adolescente, mas agora era perfeito para ela.

Se ela fosse Diana, onde teria escondido o diadema?

Cassie deixou que o olhar vagueasse pelo quarto e passasse por cada móvel de aparência antiga. Olhou o banco à janela e os muitos prismas pendurados na frente dela. O sol da manhã os acertava em cheio, refletindo arco-íris mínimos do outro lado do quarto. Explosões de luz multicolorida se balançavam pelas estampas de deusas acima da cama de Diana.

Cassie sorriu. As estampas das deusas. Ela conhecia muito bem Diana, sua irmã jurada; nem mesmo precisava recorrer à magia para saber exatamente onde estava escondido o diadema.

Eram seis estampas no total. Cinco eram parecidas, em preto e branco e um tanto antiquadas. Eram Afrodite, a deusa do amor; Ártemis, a caçadora; Hera, a rainha dos deuses; Atena, a deusa da sabedoria; e Perséfone, a deusa de tudo que se cultiva. Mas a última estampa era diferente das outras. Era em cores, maior e mais moderna. Era uma jovem sob um céu estrelado, com um crescente lunar brilhando em seu cabelo comprido e ondeante. Era a deusa Diana. E usava a mesma roupa branca que Diana vestia nas reuniões do Círculo, assim como a liga na coxa e um bracelete prateado. E, mais importante, na cabeça tinha um aro fino com um crescente lunar de pontas para cima. O diadema.

É claro, pensou Cassie. Era quase óbvio demais.

Cassie segurou a estampa e gentilmente a afastou da parede. Como suspeitava, o espaço atrás da moldura era oco, e ali estava. Colocado dentro de um vão secreto de reboco quebrado, havia uma caixa prateada para documentos.

Cassie a pegou ansiosamente e abriu a tampa. E ali, acomodado tranquilamente no fundo da caixa, estava o diadema, reluzindo em toda sua glória.

Rapidamente, Cassie o enfiou na bolsa e recolocou a caixa firmemente na parede. Então pendurou a estampa no lugar, cobrindo o buraco e deixando tudo como encontrou.

Todo o ato sórdido durou menos de cinco minutos. Os móveis antigos ainda estavam no lugar, e os prismas ainda lançavam arco-íris coloridos pelo quarto. Tudo parecia estar como sempre. Mas o diadema em sua bolsa parecia ter mudado — parecia vivo. Ela sentia seu poder emanando.

Cassie voltou inocentemente ao grupo, colocando a bolsa numa das cadeiras da cozinha e empurrando-a depois para baixo da mesa. O grupo tinha se deslocado para a sala de estar, onde se espalhava pelo sofá e pelo chão, cercando a mesa de centro. Todos agora fitavam Cassie em um silêncio peculiar.

Ela prendeu a respiração. Talvez tenha demorado mais do que pensava.

— O que aconteceu, desmaiou? — perguntou Doug Henderson, e todos riram.

— Desculpe. — Aliviada, Cassie soltou o ar. — Estava retocando a maquiagem.

Adam olhou feio para Doug e convidou Cassie a se sentar ao lado dele no sofá. A reunião estava prestes a começar.

Cassie sorriu inofensivamente e se aproximou de Adam. Segurou sua mão forte e quente, e esperou que Diana se levantasse e começasse a falar. Não sentiu nem um grama de culpa pelo que acabara de fazer. Isso era tão pouco característico dela, mas Cassie sabia que, se estivesse em perigo, Scarlett faria o mesmo. O grupo compreenderia quando tudo acabasse, depois que ela, sozinha, resgatasse Scarlett e derrotasse os caçadores com o poder das Chaves Mestras a seu comando. Depois, eles entenderiam que ela estava certa o tempo todo, e que até mesmo ter roubado as Chaves Mestras de suas companheiras líderes foi um mal necessário. Um mal necessário; esse era um conceito em que Cassie jamais pensou realmente, mas que se aplicava a tudo aquilo.

Ela olhou de lado a bolsa na cozinha e podia jurar que uma energia a cercava, uma força de pura potência e vigor. Torceu para que ninguém mais notasse. Só precisava agora pegar a liga de Faye.


25

Alguns diriam que andar de mansinho pela casa de Faye Chamberlain no meio da noite era suicídio, e estariam corretos. Porém, Cassie não chegara até ali só para recuar, e tinha ido preparada. Passou o dia todo estudando seu Livro das Sombras, decorando o máximo de feitiços que a ajudassem a passar por sua missão secreta sem ser detectada.

Faye se divertia demais com feitiços, assim era impossível que a liga estivesse desprotegida. Mesmo arriscando ser rastreada, era só pela magia que Cassie poderia colocar as mãos na liga. Mas primeiro tinha que encontrá-la.

Cassie sabia como invadir a casa de Faye pelo porão. Só precisava soltar a trava da porta de madeira no quintal e deslizar para o piso de cimento abaixo — sabia que era assim que Faye entrava e saía furtivamente a qualquer hora da noite.

Depois de entrar, Cassie olhou o entorno. O porão era escuro e mofado, atulhado de engradados empoeirados e caixas de papelão úmidas. Passou pela cabeça de Cassie que, se Faye tivesse saído esta noite e voltasse pelo porão, ela seria apanhada. E ser apanhada por Faye equivalia a ser destruída por Faye. Cassie olhou para trás, para a porta fechada, depois passou os olhos cautelosamente pelo ambiente úmido. Precisava continuar; agora não havia como voltar atrás, qualquer que fosse o risco. Antes que ela permitisse que o medo levasse a melhor, decidiu experimentar um feitiço de invocação para a liga.

Segurando o pingente de quartzo rosa que tinha no pescoço, Cassie sussurrou o encantamento que decorou do Livro das Sombras, modificando-o para seu propósito atual.

Agora perdida
Logo encontrada
Liga antiga, seja revelada

No início nada aconteceu, mas ela esperou com paciência, andou pelo porão e repetiu as palavras.

Não teve sorte nenhuma. E não sentiu nada. Então decidiu experimentar algo mais forte. Também era um feitiço de invocação, mas o Livro dizia que aquele podia localizar a energia de um objeto, e não simplesmente o objeto físico.

Para isso, Cassie precisava de concentração extra. Fechou os olhos e respirou fundo até estar centrada em um estado meditativo. Levou alguns minutos, mas logo sua respiração assumiu o ritmo de um batimento cardíaco. Ela se deixou mergulhar nesse ritmo até ser tomada pela sensação de que o dominava, como se a pulsação da própria vida estivesse sob seu controle. Quando as palavras saíram, vieram do fundo da sua barriga.

Espíritos Guias, peço vossa caridade
Emprestai vosso foco e claridade
Liga antiga, eu vos conjuro
Do preto ao branco, à luz do escuro
Mostrai-me vossa preciosa intensidade

Cassie abriu os olhos e encontrou uma luz verde-azulada cintilante diante de si. Ela pairou, esperando que Cassie a visse, depois disparou pelo ar, deixando um rastro como a cauda de um cometa.

Ora, era isto que Cassie sempre imaginou que seria a magia. Ela seguiu o rastro verde-azulado pelo porão, sendo levada a um espaço debaixo da escada que servia de depósito.

Cassie ficou exultante. Tinha que ser ali.

Então ela ouviu algo — passos acima da sua cabeça. Perdeu o fôlego e sentiu todo o corpo enrijecer. Ficou inteiramente imóvel, procurando possíveis esconderijos nos cantos do porão. Ouviu de novo o barulho e percebeu que era só o vento do lado de fora, soprando na porta de madeira. Era alarme falso, graças a Deus, mas foi o bastante para romper sua concentração. A luz verde-azulada bruxuleou.

O espaço embaixo da escada era baixo, estreito e repleto de caixas. Cassie passou as mãos pela superfície úmida de algumas delas para ver se sentia alguma vibração. Com o cuidado de não fazer muito barulho, vasculhou-as até perceber uma caixa com um desenho gasto na lateral — um redemoinho parecido com um nó celta. Apressadamente, abriu a tampa e olhou seu interior. Ali encontrou outra caixa. Uma feita de aço para documentos. Em sua empolgação, ela estendeu a mão sem pensar. Uma faísca irrompeu com seu toque, queimando a pele dos dedos.

É claro que Faye a protegeu. Cassie pegou no bolso um cristal de obsidiana que trouxera de casa. Preto como a noite e com bordas afiadas, a pedra era do tamanho da sua mão e podia tranquilamente ser usada como arma. Mas Cassie a trouxe devido à sua capacidade de purificar matéria escura. Ela passou o cristal várias vezes pela caixa de aço para desativar o feitiço de Faye enquanto sussurrava as palavras memorizadas:

— Vão-se as trevas, não há mais defesa, entra e sai desimpedida a pureza.

E deu certo. Quando Cassie tocou a caixa com a ponta do dedo pela segunda vez, para ver se geraria uma faísca, estava fria e calma ao toque. Agora confiante, ela abriu a tampa metálica.

Mas não encontrou a liga ali dentro. Em vez disso, achou um bilhete escrito em tinta vermelha que dizia: Valeu a tentativa.

Cassie bateu a tampa da caixa, furiosa. Era típico de Faye. Cassie teria de usar a astúcia para resolver aquele problema. Precisava pensar como ela.

Faye era... o quê? Faye era... possessiva, para dizer o mínimo. Só confiaria em si mesma como sistema de proteção da liga. Deve guardar perto dela. Na verdade, provavelmente jamais deve perdê-la de vista.

De repente Cassie entendeu, sem nenhuma sombra de dúvida, o que precisava fazer. Tinha que ir ao quarto de Faye, onde ela estava dormindo, e encontrar a liga ali. Era o único lugar onde poderia estar, onde Faye a protegeria mesmo durante o sono.

Agora Cassie desejou que Faye tivesse saído de casa, deixando o quarto vazio. Porém, ela sabia que era hora de agir, e não de pensar. Um feitiço de silêncio ajudaria com a subida da escada.

— Do queixo aos dedos dos pés, silenciosa agora és.

Cassie passou os dedos pela boca, descendo pelo tronco, por braços e pernas, até os pés, sentindo cada centímetro de si ficar silencioso sob seu toque. Quando avançou, a sensação do sapato tocando o chão era a mesma, porém não acompanhava a menor sugestão de ruído. Mesmo quando ela pulava, nenhum barulho escapava. Era sombrio, mas incrível.

Como um ladrão furtivo na noite, ela subiu a escada principal, passou pela sala de estar opulenta e foi ao quarto de Faye. Girou a maçaneta e abriu a porta com segurança.

O quarto estava como Cassie se lembrava, porém mais escuro. A luz da lua entrava por uma janela ampla, mas ainda era difícil enxergar, e Cassie não podia se arriscar a acordar Faye com o facho de sua lanterna. Havia muitas velas vermelhas espalhadas por ali, mas naturalmente estavam todas apagadas. Cassie esperou alguns segundos até sua visão se adaptar, depois lhe vieram palavras que ela nem sabia que conhecia.

Pelo poder do sol, a treva em luz tornará
E visão terei para à noite enxergar

Subitamente, Cassie conseguia enxergar no escuro como se tivesse colocado óculos de visão noturna. E ali estava Faye, dormindo, ressonando muito suavemente. Por uma fração de segundo, Cassie sentiu ternura por ela — era, de longe, o estado mais tranquilo em que Cassie já havia visto a garota. Quase parecia uma criança, serenamente enroscada em sua cama enorme, cercada de almofadas macias e travesseiros bordados. O cabelo preto embaraçado caía em cachos longos e grossos, emoldurando o rosto de tal maneira que Cassie mal conseguia se lembrar de que era isso que deixava Faye tão assustadora em suas horas de vigília.

Mas Cassie se sacudiu para se livrar da ideia. Sabia que estava em um lugar perigoso e que Faye era como um dragão adormecido protegendo uma joia. Um movimento em falso e Cassie poderia...

Antes mesmo que pudesse completar o pensamento, os babados da cama se mexeram e apareceu a cabeça de um gato laranja, seguida por outra, de um cinza.

Cassie se esquecera completamente dos gatinhos sanguessugas de Faye. Agora eram adultos. Sem dúvida com dentes e garras mais afiados do que da última vez que Cassie os encontrou. Ela ficou completamente imóvel e observou as criaturas saírem de baixo da cama. Podia estar silenciosa, mas os gatos ainda a enxergavam e sentiam seu cheiro. Eles farejaram os dedos de seus pés, ronronando. O gato laranja escalou sua perna até o joelho e rosnou. Depois o cinza arranhou seu pé e deu um golpe cruel na pele do tornozelo.

De olho em Faye, ela chutou o gato cinza para longe do pé direito, fazendo-o tombar pelo carpete. Mas isso só pareceu enfurecer ainda mais o laranja. Do seu poleiro, com as duas patas no joelho esquerdo de Cassie, ele saltou para seu rosto, passando as garras afiadas pela bochecha.

Não!, gritou Cassie, mas não produziu som nenhum. Com um movimento rápido de defesa, ela pegou o gato pela nuca. Ele cortou seu pulso com as garras e mordeu a pele da sua mão. O sangue pingava dos seus dedos para o chão.

Ela jogou o gato laranja para fora do quarto, fechando a porta em seu focinho antes que ele pudesse atacá-la de novo. Enquanto isso, o gato cinza tinha pulado na cama, afofando o pescoço de Faye, tentando acordá-la.

— Ai! — exclamou Faye.

Veloz como os gatos, Cassie disparou para o armário de Faye, fechando-se ali sem fazer ruído algum antes que Faye pudesse detectá-la.

— Ai... O que deu em você? — Faye, agora totalmente acordada, repreendeu o gato cinza.

Por hábito, Cassie prendeu a respiração e fechou os olhos dentro do armário.

Faye voltou a ficar em silêncio, mas Cassie ouvia o farfalhar dos lençóis. Tinha certeza de que Faye sentiu que havia algo errado. Explicações e desculpas dispararam por sua cabeça. Ela bem queria saber o feitiço para ficar invisível. Só isso poderia salvá-la se Faye abrisse a porta do armário.

Mas então a menina riu distraidamente.

— Assim está melhor — disse ela. — Agora deixe a mamãe ter seu sono de beleza. Hoje você pode dormir aqui em cima comigo se prometer que será bonzinho.

Cassie expirou. Essa foi por pouco. Mas, quando voltou a abrir os olhos, o armário parecia diferente. Uma luz verde-azulada incomum irradiava de uma peça de roupa pendurada ali.

O feitiço de localização ainda estava funcionando. A luz pairava dentro da jaqueta de couro preferida de Faye, aquela que ela usava todo dia, em qualquer clima. Cassie passou os dedos pelo couro macio e pelo suave cetim vermelho do forro.

É claro. Faye costurou a liga por dentro do forro da jaqueta. Fazia total sentido.

Cassie passou as unhas pelo cetim até romper a superfície e abrir um rasgo. E ali estava, colocada em um leito de cetim vermelho macio — a liga de couro verde. Cassie estava prestes a estender a mão para o tecido a fim de soltá-la quando se lembrou das faíscas que queimaram seus dedos. Pegou o cristal de obsidiana no bolso mais uma vez e o passou por cima e em volta da liga a fim de desativar qualquer feitiço que Faye tivesse colocado ali. Então estava livre para pegá-la. Enfim.

A liga parecia pesada e triunfante em sua mão. Ela a segurou com força, admirando as fivelas brilhantes, sem acreditar. Ela conseguiu mesmo! Mas não havia tempo para comemorar. Cassie ouvia o gato laranja arranhando a porta do quarto de Faye, e precisava fugir antes que esta acordasse de novo.

Sem ruído nenhum, ela tentou colocar o forro no lugar, mas sem uma agulha e linha, ou um feitiço adequado, seria impossível. Faye descobriria seu desaparecimento pela manhã — isso era inevitável. Mas não importava. A essa altura, Cassie estaria em Cape Cod, com o poder de todas as Chaves Mestras. Ela deixou a jaqueta pendurada como um túmulo saqueado, saiu de fininho do armário e atravessou o quarto. No instante em que abriu a porta, o gato laranja pulou para dentro, mas em segundos Cassie desceu a escada e saiu por onde entrou.

Foi só então, finalmente, que ela deixou a realidade dominá-la. Agora possuía todas as Chaves Mestras e o poder que precisava para salvar Scarlett, mesmo sem a ajuda do Círculo.


26

Cassie acordou às 5 horas em ponto na manhã seguinte, sem o despertador. Era como se seu corpo estivesse tão sintonizado com a missão do dia que as tecnologias de conveniência feitas pelo homem, como relógios, fossem desnecessárias. Ela se sentia completa com os elementos, e não mais à sua mercê.

Levantou-se da cama e se vestiu de forma cerimonial, como um guerreiro espartano preparando-se para a batalha. Enrolou-se no manto branco que Diana tinha lhe dado e prendeu orgulhosamente o bracelete de prata na parte superior do braço, a liga de couro na coxa e o diadema faiscante na cabeça. Estava pronta para salvar a irmã.

Cassie desceu até a cozinha. Tinha que pegar o carro da mãe emprestado, mas não podia contar que precisava dele para entrar em uma batalha com caçadores de bruxas e salvar a irmã sobre a qual ela nunca contou. Assim, teria de levar o carro sem pedir. Este parecia ser o tema de toda a missão: pegue o necessário para fazer o trabalho e explique depois. E ela pegaria. Tudo seria revelado mais tarde, à sua mãe, a Diana, a Faye, a Adam, todos. Por enquanto, Cassie não permitiria que nenhuma culpa a invadisse ou a distraísse — tinha que se concentrar unicamente em chegar a Cape Cod.

Porém, à medida que Cassie se afastava da Crowhaven Road e depois de New Salem, uma náusea começou a se formar em seu íntimo. Nervosismo, deduziu ela, e disse a si mesma que tinha todo o direito de ficar nervosa; aquele era um ato perigoso. Os caçadores tinham a magia negra a seu lado.

As Chaves Mestras não me decepcionarão em meu momento de necessidade, pensou Cassie. E isso a lembrou da calcedônia rosa que escondera dentro do bolso.

Era um amuleto da sorte que Adam lhe dera muito tempo atrás, para o caso de ela ter problemas — ela o levava só por precaução. Depois de tudo por que eles passaram e todas as desavenças das últimas semanas, Cassie ainda acreditava em Adam e tinha fé no vínculo dos dois. Será que eles precisavam do cristal raro para conectá-los a essa altura da relação? Não, claro que não. Talvez Cassie só levasse a calcedônia por superstição, mas, mesmo assim, a acalmava passar a mão em sua superfície irregular. A pedra parecia viva ao seu toque, como aconteceu quando Adam lhe deu. Segure com força, ele tinha dito, e pense em mim. Ela fez isso agora e sentiu sua coragem aumentar.

Ao atravessar o limite do condado para a cidade de Sandwich, o medo de Cassie se elevou a um novo nível. A placa decadente alertando que ela havia chegado dizia fundada em 1639, lembrando a Cassie da história de um lugar com profundas raízes, a mais antiga cidade de Cape Cod. As Chaves em si pareciam reagir sozinhas ao ambiente. Cassie podia jurar que as sentia cada vez mais quentes contra o corpo enquanto avançava rumo a Hawthorne Street.

Ela devia ter um plano de ataque, percebeu, para quando encontrasse os caçadores. Sabia de cor a maldição contra caçadores de bruxas, e as Chaves certamente viriam em seu auxílio, mas agora, na realidade da situação, dúvidas começaram a se formar em sua mente. Ela não sabia quantos caçadores haveria lá. Será que existia um limite para quantos poderia derrubar com uma só maldição? E se Scarlett estivesse ainda pior quando chegasse do que no sonho de Cassie? No fundo, havia um medo à espreita de que a irmã talvez já estivesse morta.

Mais uma vez, Cassie tocou a calcedônia rosa. Mas mesmo com o conforto do cristal, ao avistar a casa de número 48 da Hawthorne Street, todo o seu ser foi inundado de medo. Era exatamente como Cassie a imaginou nos pesadelos, idêntica à imagem que lhe veio durante o feitiço de localização. Era o chalé de praia em ruínas, com paredes de madeira cinza, perto da ponta de uma faixa de areia longa e desolada, com uma grande massa de água de um lado, e um pântano formado por maré do outro. Não havia outra casa à vista.

A terrível sensação nas entranhas de Cassie aumentou. O ácido do estômago subiu à garganta, enchendo a boca com um gosto nauseante. Cada centímetro do seu corpo gritava para ela dar a volta e ir para casa. Mas ela sabia que não podia deixar que o medo levasse a melhor. Não quando tinha chegado até ali.

Com determinação, saiu do carro e andou pela relva alta até a casa, mas, depois de alguns passos, foi imobilizada. Tentou continuar, mas não conseguiu. Havia uma espécie de barreira mágica protegendo o entorno da casa, parecida com aquela proteção de Faye para a liga escondida. Mas esta seria fácil de penetrar, pois Cassie usava as Chaves. Ela tocou cada uma das relíquias, ajeitando-as, e em silêncio apelou a seu poder coletivo. Não foi sua imaginação; as Chaves ficaram quentes ao toque, Cassie tinha certeza.

— Dissolva-se agora, escudo poderoso! — Sua voz saiu, profunda e grave, da garganta, e ela enviou toda sua energia para a casa. Concentrou-se bem e repetiu as palavras, daquela vez pressionando com a mente até sentir o poder das Chaves dispararem dela como um calor causticante.

O feitiço pareceu funcionar de imediato. A nuvem escura que pairava acima da casa clareou, e a força protetora no entorno do terreno desapareceu. As relíquias estão mesmo funcionando, pensou Cassie. Scarlett estava praticamente salva.

Sem demora, ela avançou. Praticando mentalmente a maldição contra caçadores de bruxa, ela andou com lentidão e cautela, num estado de profunda meditação, até a casa.

Quando estava a centímetros de distância da porta de entrada, ela pôde ver que esta fora atingida pelo vento e danificada pela água, apodrecendo até chegar a uma consistência nada adequada à madeira. As fundações da casa rangiam e chocalhavam ao vento, como se ela pudesse desmoronar a qualquer momento. Ocorreu a Cassie tentar algum feitiço de proteção para si mesma antes de entrar, ou talvez outro de silêncio. Mas então pensou melhor. Entraria exatamente como estava, sem truques covardes, sem artifícios. As Chaves eram o único poder de que precisava.

Cassie ficou atenta a vozes, mas não escutou nenhuma. No silêncio sinistro, o medo de Scarlett já estar morta disparou por sua cabeça. Uma imagem do seu cadáver pendurado do teto, balançando-se, como o ponteiro de um relógio — tique-taque tique-taque — assombrou Cassie. Mas ela não podia passar por aquela porta nem com a menor das distrações. Tinha segundos para lançar a maldição, na realidade menos do que isso. Lance a maldição, resgate Scarlett, depois dê o fora. Era esse o plano.

Com cautela, Cassie pôs a mão na maciez podre da porta. Surpreendeu-a que estivesse destrancada. Na verdade, nem mesmo parecia inteiramente fechada. Ela empurrou gentilmente a superfície úmida com a palma da mão, e a porta se abriu facilmente. Já entoava em voz baixa a maldição, preparada para qualquer coisa que surgisse; porém, quando deu um passo para dentro, a cena não era nada parecida com a visão dos sonhos.

A sala principal era grande e arrumada. Suas paredes eram pintadas em azul-marinho e tinham acabamento de sanca branca e brilhante. O piso de tábua corrida fora encerado recentemente, e o ar dentro da sala era quente e cheirava a cedro com o calor de uma lareira acesa.

Scarlett estava ali, sozinha, recostada em um sofá desbotado na frente da lareira. O cabelo tingido de vermelho caía em ondas saudáveis pelos ombros, emoldurando seu rosto sorridente e rosado.

— Finalmente — disse ela. — Eu já estava ficando morta de tédio, esperando por você.

De imediato Cassie entendeu o terrível erro cometido. Era tudo uma armadilha.


27

– Venha se sentar perto do fogo. — Scarlett sorria de um jeito malicioso.

Cassie tentou correr porta afora, mas descobriu os pés mais uma vez firmemente plantados, como ficaram no entorno do terreno.

— O que está havendo? — perguntou ela.

— Você pode chegar mais perto, só não pode ir embora. — O sorriso de Scarlett se iluminou.

— Onde estão os caçadores? — perguntou Cassie.

Scarlett deu de ombros.

— Não sei.

— Eles pelo menos existem?

— Ah, os caçadores existem de verdade. Eles mataram minha mãe e me seguiram até aqui. Só que jamais me pegaram.

Ela deu um tapinha no espaço vazio no sofá a seu lado, indicando a Cassie que se sentasse.

— Seu Círculo nem imagina no que está se metendo com os caçadores. Mas eles proporcionaram o cenário perfeito enquanto eu praticava meus feitiços de invasão mental.

Então, esse tempo todo que Cassie pensou ter visões, comunicando-se pelo espaço e o tempo com a irmã, era tudo um truque. O Círculo estava certo o tempo todo. Cassie não raciocinara com clareza.

Ela não podia se virar e fugir, mas ainda tinha as Chaves, e elas estremeciam de energia. Ela podia se proteger.

Tocou cada relíquia e invocou seu poder. De imediato, as Chaves esquentaram — no entanto, ficaram quentes demais. Queimaram sua pele como se estivessem se voltando contra ela.

— Sente queimar? — perguntou Scarlett.

De algum modo, ela conseguiu com que as Chaves se voltassem contra Cassie. Elas se tornaram coléricas e impacientes, chiando de tormento.

— Vou tirá-las de você — disse Scarlett.

Tranquilamente, com um estalar de dedos, as Chaves Mestras obedeceram a seu chamado. Como metal a um ímã, desprenderam-se do corpo de Cassie e voaram para as mãos estendidas de Scarlett.

Mas como? Como Scarlett tinha tanta influência sobre as Chaves a ponto de conseguir chamá-las? Ela devia ser uma bruxa mais poderosa do que Cassie jamais teria imaginado.

— É mesmo uma pena que você nunca tenha se interessado pelas artes negras — disse Scarlett, sentindo o assombro de Cassie diante de sua habilidade.

De repente Cassie se sentiu com frio e despida, sem nada além do manto branco. Impotente e chocada, ela estremecia.

— Quem é você? — perguntou ela.

— Sou filha de Black John. Não é evidente? — Scarlett gesticulava para as Chaves Mestras.

— Então, somos mesmo irmãs.

— Ah, sim. Esta parte é verdade.

Scarlett, agora usando as Chaves Mestras por cima da camiseta e dos jeans pretos, pegou um atiçador na lareira. Cassie enrijeceu, mas relaxou quando Scarlett se curvou sobre o lado do sofá até um saco aberto de marshmallows. Perfurou um deles com o atiçador de metal preto e o segurou sobre o fogo.

— Essas Chaves deveriam ser minhas — disse Scarlett. — Toda sua vida deveria ser minha.

— Não acredito em você. — Cassie tentava ao máximo demonstrar força e controle. — Não tenho motivos para acreditar em nada do que você diz.

Scarlett riu.

— Você tem todos os motivos para isso. — Ela observou o marshmallow dourar relutantemente na chama. Parecia desfrutar de como ele lutava para preservar seu exterior antes de sucumbir ao calor.

— Era eu que ele pretendia colocar no Círculo com os outros — contou ela. — Nasci em novembro, como os outros. Não você. Tudo de que você desfrutou desde que chegou a New Salem... Tudo isso pertence a mim, por direito.

— Não — protestou Cassie. Não podia ser verdade.

— Sim. Você era apenas secundária, um plano de apoio.

Cassie ficou enjoada. E o cheiro açucarado de marshmallow queimando não estava ajudando.

Scarlett rolou o atiçador na mão, como um espeto de churrasco.

— E agora estou aqui para reclamar meu lugar de direito no Círculo. Mas terei que matá-la para conseguir. — Ela voltou os olhos negros e faiscantes para Cassie. — Isso não é frustrante, mana?

Scarlett pegou o atiçador de metal com as duas mãos, e Cassie percebeu o perigo que corria. Scarlett parecia louca o bastante para matá-la. Ela precisava tentar dissuadi-la.

— Por que me matar — perguntou Cassie —, quando podemos liderar o Círculo juntas?

Scarlett arregalou os olhos.

— Sério? — Sua voz saiu infantil. — Você estaria disposta a isso?

Cassie assentiu com vigor.

— Claro — disse ela, tentando soar crível. — A gente expulsaria alguém para dar espaço a você como décima segunda integrante. Acredite, os elos fracos são muitos.

Os lábios vermelho-escuros de Scarlett se abriram em um sorriso cruel, e ela gargalhou com todo o corpo.

— Como você é ridícula. Não sabe muita coisa, mas até você deve ter noção de que não é assim que funciona.

Ela tirou o atiçador das chamas. O marshmallow derretido e queimado em sua ponta agora estava em chamas, vermelho como um carvão em brasa.

— Alguém precisa morrer para romper o vínculo do Círculo — disse Scarlett. — E o integrante que morre é imediatamente substituído por alguém da sua própria linhagem sanguínea.

Ela brandiu a ponta em brasa do atiçador embaixo do nariz de Cassie.

— Não sabia disso? Ou você e seus amiguinhos não aprenderam essa lição na escola de bruxos? Você me saiu um alvo fácil — continuou Scarlett. — Até que aquele feitiço de proteção me impediu de matá-la em New Salem.

— Foi você quem cortou meus freios — disse Cassie. Finalmente tudo começava a fazer sentido.

Scarlett ignorou a acusação.

— Mas agora você está vulnerável — disse ela. — Sem feitiço de proteção. E sem seu precioso Círculo para salvá-la.

Cassie tentou pensar em um feitiço, qualquer um, que a ajudasse a sair daquela situação, mas não lhe veio nenhum. Era como se seu cérebro tivesse sido zerado a uma página em branco. Scarlett de algum modo a deixou completamente impotente.

— E como você trouxe as Chaves Mestras diretamente a mim, deve ser fácil matar você. — Scarlett colocou, a centímetros do rosto de Cassie, o atiçador com a ponta de fogo.

Ela vai me queimar, pensou Cassie. Ela vai atear fogo em mim.

— Não desperdice sua energia tentando fazer um feitiço — disse Scarlett. — Nesta casa, só magia negra funciona.

Magia negra. Isso explicava tudo.

Podiam faltar a Cassie as palavras para invocar o elemento da água, mas ela precisava tomar uma providência. Sem ter outra opção, ela deu um golpe no atiçador, sabendo muito bem que queimaria a mão, mas deu certo. Arrancou a arma da mão de Scarlett, fazendo-a voar pela sala e cair com um baque no tapete grosso.

Cassie sentiu certo orgulho de si, mas Scarlett não parecia nem um pouco abalada por ela ter arrancado o atiçador quente da sua mão.

— Bom trabalho — disse Scarlett. — Eu não teria feito melhor. — Ela voltou a atenção de Cassie para a fumaça que subia do tapete, onde caíra o atiçador. Depois a fumaça deu lugar a uma chama pequena e recém-criada.

Os olhos escuros de Scarlett faiscaram, refletindo a prata do diadema, do bracelete e das fivelas da liga. Com um aceno das mãos, ela lançou o pequeno fogo por todo o piso e pelas quatro paredes do chalé, cercando Cassie em uma tenda sufocante de calor e chamas.

Sou uma idiota, pensou Cassie, uma idiota por confiar tanto.

Cassie se encolheu à visão do fogo. Não havia como escapar de um incêndio daquela magnitude.

— Você foi longe demais — gritou Cassie. — Vai queimar aqui dentro comigo.

Scarlett se levantou e rapidamente atravessou as chamas para pegar seus pertences.

— Outra coisa que você não sabe. — Ela pegou as roupas no armário e as colocou em uma grande bolsa de viagem. — O feitiço de proteção contra o fogo. Era um dos preferidos de papai.

A fumaça enchia a sala. Entrou por sua garganta e lhe provocou lágrimas nos olhos, mas Scarlett se mantinha inabalável.

— Não! — gritou Cassie, arrastando-se pelo chão até Scarlett, mas só conseguia se mover alguns centímetros para qualquer lado. O fogo bloqueava todas as saídas. Em minutos a consumiria. — Por favor, Scarlett, somos irmãs. Por favor, não faça isso!

Scarlett estava parada, com as bolsas na mão. Chamas furiosas dançavam e crepitavam ao redor, e uma fumaça preta cercava seu corpo, como um tornado nefasto.

— Pelo menos morra com alguma dignidade, Cassie.

Ela baixou as bolsas e se aproximou em alguns passos decididos. Curvou-se um pouco, como uma serpente, para olhar nos olhos de Cassie.

— Nosso pai pediu misericórdia aos gritos quando vocês o mataram, Cassie? Aposto que não.

Scarlett tinha os olhos dele, Cassie percebeu. Aquelas bolas de gude pretas, frias como a morte, como as de Black John. Ela era mais filha dele do que Cassie. Como pôde se deixar enganar tanto por ela?

Então Cassie se lembrou das palavras da mãe sobre Black John. Ele não é inteiramente mau, havia dito ela.

— Você não precisa fazer isso — exclamou Cassie, tentando abrandar o olhar duro e frio de Scarlett com o próprio. — Existe o bem dentro de você, mesmo agora. Você pode escolher não ser igual a ele.

— Eu sei. — Scarlett deu um chute com o calcanhar da bota preta em Cassie. — Mas que graça teria?


28

As chamas rugiam e estalavam com uma intenção maligna, como se tivessem vontade própria. Seu calor abrasador pôs Cassie de joelhos e a cobriu de bolhas. Ela tossiu e não conseguia prender a respiração, logo se entregando completamente a seu poder absoluto. Scarlett a olhou uma última vez.

— Adeus, Cassie. Foi um prazer conhecê-la.

O rosto de Cassie ardia com o calor sufocante. O inferno devia ser assim, pensou ela, esta tortura interminável pelo fogo. Isolada da mãe, dos amigos e de Adam, Cassie morria sozinha. E aqui estava Scarlett, a filha mais forte, a irmã perversa e o último rosto vivo que Cassie veria antes de morrer.

Mas ela não podia desistir. Obrigou-se a ficar de pé e se aproximar de Scarlett o máximo que as chamas permitiam. As Chaves tinham escurecido a um cintilar sinistro no corpo de Scarlett. Black John está nela, pensou Cassie.

Mas também está em mim.

Scarlett deu a impressão de notar uma mudança nos olhos de Cassie. Foi o suficiente para fazê-la recuar.

— Ele está em mim — disse Cassie, desta vez em voz alta, e isto deu poder a algum recesso secreto dentro dela, como um gerador de emergência que é ativado em um blecaute.

Scarlett ainda recuava, através das chamas, para a saída. O feitiço de proteção contra o fogo ainda funcionava para ela, mas de repente a menina sentiu medo.

O poder do fogo, pensou Cassie. O poder do fogo está em mim.

Então algo se abriu bem no fundo do peito de Cassie, aquele espaço escuro que ela nunca acessou antes. Isto a assustou, a explosão de energia que sentiu enquanto a palavra deixava seus lábios.

— Queime! — ordenou Cassie.

E Scarlett queimou. Nas chamas, a meio caminho da porta, ela gritou com a brutalidade que Cassie havia ouvido em seu pesadelo. Não estava mais protegida do fogo, não podia mais sair com segurança da casa em chamas para o ar frio do lado de fora.

Scarlett pulou da porta, batendo furiosamente as chamas nas roupas. Depois se virou para Cassie.

— Pensei que você fosse boa — disse ela.

Cassie se erguia, alta, com uma nova energia.

— Digo o mesmo.

Cassie sentia algo se agitando no fundo das entranhas. Subiu à garganta, como uma bile negra, e escapou da boca, como um grito que fez a torneira da cozinha se romper em um gêiser. Depois as paredes se sacudiram, e cada cano dentro delas explodiu, jorrando água fria pela sala em torrentes diagonais. O incêndio foi apagado em segundos.

Scarlett se afastou, em choque com aquela guinada nos acontecimentos, mas tinha seus próprios feitiços, assim como as Chaves Mestras para aumentar seu poder.

— Fragilis! — gritou ela, lançando as palmas abertas para Cassie.

Era um feitiço em latim que Cassie não entendeu, mas a fez cair no chão como se toda a energia fosse retirada dela. Seu corpo parecia pesado, e a sala começou a girar. Ela nem mesmo conseguia levantar a cabeça.

— Sentis infirma. — Scarlett dirigiu os dedos carregados para a cabeça de Cassie, depois a seu coração.

Cassie ficou muito fraca e cansada, tonta, quase desmaiando, e teve certeza de que ia morrer.

Acabou, pensou Cassie. Scarlett é forte demais. Ela estava perdida.

Ela desejou poder ver Adam naquele momento, que o rosto dele fosse sua última visão antes de seguir para a morte. Lembrou-se da rosa calcedônia no bolso e a procurou, desajeitada. Precisou de toda a energia que lhe restava para segurá-la na mão. Apertou-a com a força que os dedos permitiam, e imaginou o rosto forte e amoroso de Adam com tal concentração que jurou que ele realmente apareceu. A fumaça clareou, e o cabelo ruivo escuro de Adam lhe parecia tão próximo e real que ela acreditou poder ver cada mecha. Morrer deve ser assim. Cassie estava fraca demais para sorrir, mas ficou agradecida por seu último desejo se realizar.

Cassie precisou de um segundo para perceber que Adam estava de verdade na casa, ao seu lado. Era de fato ele. Pegou seu rosto nas mãos e chamou seu nome. Ela se sentiu entrando e saindo da consciência. Como em seus pesadelos e visões, sua vista estava ao mesmo tempo enevoada e nítida, uma confusão distorcida e desconcertante. Mas a ligação entre ela e Adam em seu momento mais elevado era intensa. O cordão prateado que zumbia entre eles se materializou, mais brilhante e pronunciado do que Cassie jamais vira. Parecia tão vivo que ela jurou poder estender a mão e tocá-lo com a ponta dos dedos. Seu peito se encheu de amor enquanto ela seguia o caminho do cordão, do coração de Adam para o dela. Mas então, ao olhar com mais atenção, notou algo estranho. Havia dois cordões prateados. Um se estendia de Adam a ela, o outro se estendia de Adam à Scarlett.

Num lampejo, os dois cordões sumiram. Como num estalo. Cassie nem tinha certeza de que Adam os viu.

Deve ter sido um erro, uma alucinação. Era impossível decifrar o que era real e o que pertencia à sua imaginação.

— Cassie. — Adam ainda tinha seu rosto nas mãos. — Fique comigo, Cassie. Fique acordada.

Ela piscou para se livrar das lágrimas que enchiam seus olhos, e se virou, vendo todos eles ali — Diana e o resto do Círculo. Eles cercavam Scarlett.

— Entregue as Chaves Mestras — disse Diana. — E não precisaremos machucar você.

— Quero ver você tentar. — Scarlett riu.

Diana ficou imóvel. Demorou um momento para perceber que não podia fazer magia, mas, quando percebeu, Scarlett lançou as mãos para ela.

— Praestrangulo — disse.

De imediato, Diana pôs as mãos no pescoço e caiu de joelhos, lutando para respirar.

— Ela está sufocando! — Adam se colocou de pé num salto, e Cassie gritou, mas ainda estava fraca demais para impedi-lo. Ele partiu para Scarlett, entoando: — Terra meu corpo, água meu sangue.

Faye e os outros foram ao seu auxílio.

— Terra meu corpo, água meu sangue, ar minha respiração e fogo meu espírito!

Cassie gritou:

— Não vai funcionar! — Mas nenhum deles ouviria, ou talvez seus gritos tivessem a intensidade de um sussurro. Ela não sabia dizer.

— Caecitas! — Scarlett agitou as mãos para o grupo.

Adam foi o primeiro a gritar.

— Não enxergo nada — disse ele. Depois, um por um, cada um deles gritou, cobrindo os olhos. Scarlett cegara a todos.

Diana se contorcia no chão, tossindo, a pele azulando. Cassie não tinha forças, mas precisava fazer alguma coisa. As trevas estavam dentro dela; não podia ter medo de alcançá-las. Ainda que a matasse, era o único jeito de salvar os amigos.

Precisou de todo o seu poder para se levantar com dificuldade.

Scarlett, vendo-a de pé, pegou as bolsas e correu para a porta.

Cassie pressionou mentalmente e soltou um grito debilitante.

— Scarlett!

Ela procurou pelas palavras em sua alma, o feitiço debilitante mais sombrio em que podia pensar, mas Scarlett tinha saído pela porta e desaparecido em segundos.

***

— Magicae negrae conversam — disse Cassie, debilmente. Aquelas eram as palavras que lhe vieram depois de Scarlett ter fugido.

Diana ofegou e inspirou o ar. Adam piscou, com a visão de volta. Lentamente, todos recuperaram seus sentidos. As forças de Cassie retornaram, e ela foi até Adam e o abraçou. Havia arranhões nas pálpebras.

— Você desfez os feitiços de Scarlett? — perguntou ele.

Cassie assentiu, depois olhou os rostos suados e sujos de fuligem dos amigos que arriscaram a vida para salvá-la. Como poderia um dia se desculpar o suficiente pelo que eles acabaram de passar?

— Eu estava errada a respeito de Scarlett — disse ela. — Mas acho que a essa altura vocês já deduziram isso.

O tom da asfixia ainda não tinha deixado plenamente o rosto de Diana.

— O que aconteceu? — indagou ela. — Scarlett era intocável.

— Você tinha razão, ela é má — disse Cassie, mal conseguindo olhar nos olhos da amiga. — Estava fazendo magia negra. Ela disse que era a única magia que funcionaria aqui. Por isso nenhum de vocês podia lançar feitiços.

— Mas então, como você...? — Diana se interrompeu no meio da pergunta, quando a resposta lhe ocorreu.

Cassie baixou os olhos. Ouviu Faye andar num círculo pela sala queimada, as botas ecoando no piso arruinado a cada passo.

— Eu sabia o tempo todo — disse Faye. — Cassie tem a magia negra dentro dela.

Era verdade. Não adiantaria negar, por mais que Cassie quisesse.

Ela perscrutou a reação de Adam em seu rosto, morta de medo do que encontraria.

Mas seus olhos estavam cheios de lágrimas, e ele puxou Cassie para seu peito.

— Estou tão feliz por você estar bem — disse ele.

Cassie se sentia indigna desse conforto e tentou sair dos seus braços.

Adam apertou com mais força.

— Você acaba de salvar a vida de todos nós — disse ele.

— Eu quase acabei com a vida de vocês — desabafou Cassie, agora não mais capaz de conter o choro. — Foi tudo minha culpa. Tudo isso. Eu peço desculpas.

Diana pôs a mão nas costas de Cassie.

— Estamos todos juntos nisso — disse ela. — E estamos todos bem. É isso que importa.

Cassie começou a soluçar no peito de Adam.

— Mas eu quero ser boa.

— Você é boa. — Diana abraçou Cassie por trás, espremendo-a entre ela e Adam. — Não pode começar a duvidar disso.

— A má é Scarlett — falou Adam. — Não você.

Cassie valorizou o apoio deles. Eles tinham boas intenções, ela sabia, mas a verdade era que nenhum deles podia ter certeza do que significava para Cassie a capacidade de fazer magia negra.

Faye sorriu para ela com a nova descoberta.

— Qual é a sensação? — perguntou.

— Eu só quero ir para casa — desconversou Cassie.


29

Todos se recuperaram milagrosamente bem da batalha. Um pouco de sopa, água e uma troca de roupas, e cada um deles estava praticamente de volta à sua antiga identidade.

Diana preparou um chá de ervas na cozinha e voltou à sala com uma bandeja.

— Faye ainda não chegou? — perguntou.

O Círculo estava desesperado para saber o que acontecera em Cape Cod antes da sua chegada e preencher os espaços vazios.

— Vamos começar sem ela — disse Susan, mexendo na cutícula das unhas.

Diana lançou um olhar preocupado a Adam e perguntou a Susan:

— Onde ela está?

— Sabemos exatamente onde ela está — disse Laurel. — Está com Max.

— Não fui eu quem te contou isso — falou Suzan.

— Talvez a gente deva começar sem ela — disse Cassie. Ela sabia da sorte inacreditável de nenhum deles ter se ferido gravemente, e estava ansiosa para se desculpar mais uma vez por seus erros. — Quero ter certeza de que jamais vou colocar nenhum de vocês em perigo de novo. Assim, tenho muito o que contar.

Justamente nessa hora Faye passou pela porta. Seus olhos carregavam uma energia palpável. As bochechas estavam coradas, e os lábios vermelhos e grossos quase pareciam inchados de sangue.

— Desculpe pelo atraso — disse ela.

— Você precisa terminar com Max já — declarou Adam. — Quantas vezes temos que lhe dizer? Não sabemos se podemos confiar nele.

Faye tateou um pingente preto pendurado em seu pescoço, e Cassie notou algo incomum em seus olhos.

— Já pedi desculpas. — Faye continuou a brincar com o pingente. Ela sempre usava um colar com um rubi estrela vermelho, mas o pingente era novo. Brilhava como opala negra.

— Max te deu isso? — indagou Cassie.

De imediato, Faye soltou o colar e lançou um olhar ameaçador à menina, que notou, porém, um rubor em seu rosto. Imediatamente, Cassie entendeu a verdade: os sentimentos de Faye por Max eram genuínos.

Melanie suspirou ruidosamente.

— Não temos coisas mais importantes sobre o que falar do que a vida amorosa de Faye?

— Sim, temos — disse Diana. — Cassie, por que não conta o que perdemos?

Ela foi para o meio da sala.

— Primeiro, quero me desculpar formalmente com todos vocês. Eu nunca devia tê-los traído como fiz. Em especial minhas companheiras de liderança, Diana e Faye.

— Não é necessário pedir desculpas — disse Nick, sentado no canto.

Todos assentiram.

Faye zombou dela.

— Nem acredito que as bichinhas vão deixar que ela escape assim tão fácil. Se eu tivesse roubado as Chaves Mestras e perdido todas...

— O Círculo a perdoa, Cassie — disse Diana, interrompendo Faye. — Mas, no futuro, lembre-se de que somos sua família também.

— Agora sei disso — afirmou Cassie. — Eu sabia antes, mas acho que me esqueci. — O coração de Cassie martelava no peito.— Você foi uma irmã para mim desde que cheguei aqui — declarou para Diana. — E você é a única irmã de que jamais precisarei.

Os olhos de Diana se turvaram.

— Obrigada — disse ela.

Melanie pigarreou.

— Detesto interromper este momento sentimental, mas talvez Cassie possa nos contar o que ela descobriu a respeito de Scarlett, assim vamos saber contra o que lutamos.

— Claro — concordou Cassie. Ela explicou como Scarlett a tinha enganado, fazendo-a se afastar do feitiço de proteção, e contou que Scarlett era a filha que Black John pretendia colocar no Círculo.

Nick se aproximou de Cassie com seriedade.

— Então, Scarlett quer te matar.

— Sim. Assim, ela pode tomar meu lugar no Círculo, porque somos da mesma linhagem de sangue.

— E os caçadores? — perguntou Melanie. — Quem matou a tia-avó Constance e Portia?

— E quem queimou o símbolo no gramado da minha casa? — perguntou Laurel, a voz aguda de medo.

Cassie respirou fundo.

— Os caçadores existem e estão aí fora. Mas Scarlett não tem nada a ver com eles. Ela só aproveitou a oportunidade para usar nosso medo contra nós.

— Estamos ferrados — disse Faye, e Cassie notou que ela tocava o pingente de novo. Havia algo nele que atraía Cassie, o jeito como captava a luz.

— Posso ver isso mais de perto? — perguntou ela, estendendo a mão. Antes que Faye pudesse resistir, Cassie tinha a pedra em sua mão e examinava a superfície. Era um pouco transparente, não inteiramente preta, mas um misto de verde, azul e vermelho. Enquanto a balançava, notou que difratava a luz em uma dança contínua de cores cambiantes.

No momento em que Cassie viu, seu sangue ficou gelado. Camuflada dentro da superfície fascinante da opala, estava o símbolo do caçador, brilhando iridescente.

— Ah, meu Deus — disse Cassie. — Faye, você foi marcada.

O resto do grupo ofegou.

— Não é possível — Faye baixou os olhos para o colar. — Não! — gritou ela, reconhecendo de imediato o símbolo. — Ele não pode ter feito isso!

Por alguns minutos, ninguém falou. Cassie olhou para cada um dos amigos na sala. Com que rapidez a energia do lugar tinha mudado. A poderosa Faye havia caído.

Ela parecia outra pessoa. Os ombros largos se curvaram para a frente, e toda a cor sumiu do seu rosto. Ela se sentou no sofá, chorando. Era uma visão que nenhum deles conseguia compreender.

— Como? — perguntou ela. Seus olhos estavam vermelhos, e a maquiagem preta escorria pelo rosto. Era a primeira vez que Cassie a via chorar. — Simplesmente não entendo como isso pode ter acontecido.

— Max é um caçador de bruxas — afirmou Melanie com firmeza. — Foi ele quem deu isso a você.

— E isso significa que o diretor provavelmente também é um caçador. — Adam olhou para Cassie expressivamente. — Como você suspeitava.

Melanie assentiu.

— Tal pai, tal filho.

Cassie não conseguia se sentir bem por ter razão a respeito do diretor, em particular numa hora dessas. Preferia que tudo se revelasse uma paranoia boba.

Diana se sentou ao lado de Faye e segurou delicadamente sua mão.

— Sei que ainda está em choque, Faye, mas precisamos saber tudo que disse a Max.

Faye levantou a cabeça. As lágrimas escorriam dos cílios escuros, e sua expressão estava além do choque.

— Eu nem me lembro.

Ela abriu o fecho do colar e o deixou cair sobre a mesa.

— Pensei que ele realmente gostasse de mim — disse ela baixinho, quase consigo mesma. — Eu não queria contar, mas desfiz o feitiço de amor um tempo atrás. Para ver se os sentimentos dele eram... — Ela nem conseguia falar.

Diana pôs os braços em torno de Faye, e, inacreditavelmente, ela deixou. Cassie teve de virar o rosto. Ver Faye de coração partido era quase tão brutal quanto vê-la marcada.

— Mas ele parecia tão dominado pelo feitiço — argumentou Laurel.

— Pode ser que o tempo todo ele tenha resistido à magia dela, mas estava fingindo para chegar mais perto de nós — sugeriu Adam.

Cassie lançou a Adam um olhar para que se calasse. Ele e Laurel podiam encaixar as peças necessárias, mas em outro ambiente, onde Faye não os escutasse. Eles não estavam conscientes do efeito de suas palavras sobre a garota, que agora chorava ainda mais. Cassie, porém, compreendia. Quando Faye desfez o feitiço de amor e Max ainda agia como se não pudesse viver sem ela, Faye confundiu isso com amor verdadeiro.

Melanie balançou a cabeça, incrédula.

— Então os caçadores sabem de dois de nós — disse ela. — E, sem as Chaves Mestras, não temos força para lutar contra eles.

— E Scarlett ainda quer matar Cassie — adicionou Nick.

Diana ainda abraçava Faye.

— Não é hora de entrar em pânico — disse, mas sua voz tremia. — É hora de união, de dar apoio e proteger uns aos outros.

Ela focalizou os olhos diretamente em Cassie.

— Vamos pensar numa saída — afirmou ela. — Sempre pensamos.


30

Da varanda da frente, Cassie via o azul bruxuleante da televisão faiscando como uma luz estroboscópica em uma casa mal-assombrada. A mãe devia estar esperando acordada.

— Preciso entrar — disse Cassie, segurando a maçaneta. — Ela está acordada.

— Ainda não. — Adam procurou sua mão e a apertou. — Com tudo que está acontecendo e tudo que houve, quero que você saiba: vamos superar tudo isso.

— Eu sei — disse Cassie.

— Tem certeza? — Ele se curvou para um beijo, mas parou bem perto dos seus lábios.

Cassie sentia a respiração dele em sua pele e o calor do seu corpo tão próximo a ela. Sustentou o olhar, e seu coração martelou pesado no peito.

— Tenho certeza. — Ela o puxou, encontrando a boca macia de Adam. Com uma entrega a impulsos esquecidos, ela e Adam se fundiram em um só, e ela se deixou ser levada.

Eles se beijaram até que ambos ficassem vermelhos e com calor. Cassie permitiu que sua respiração se acalmasse e o coração se aquietasse. Depois o olhou nos olhos por um momento, cativada com o fluxo da vida que pulsava entre os dois. O cordão prateado, pensou ela, o vínculo misterioso que a havia unido a ele desde o início, e sempre uniria. Agora era mais forte do que nunca. Depois da mescla louca de emoções que Cassie viveu nas últimas semanas, uma coisa lhe parecia firme e clara. Ela percebeu, sob um novo aspecto, a sorte de ter Adam a seu lado.

— Eu te amo — declarou ela.

Ele abriu um sorriso luminoso.

— E eu te amo.

Ela o beijou mais uma vez, com ternura, e respirou fundo o cheiro dele.

— Eu te amo de verdade — disse ela.

Os olhos azuis dele faiscaram, e Adam riu alto.

— Podemos ficar nesse jogo a noite toda.

— Ou toda a nossa vida — disse Cassie, sorrindo radiante para ele. Descobriu que não conseguia desgrudar os olhos dele. Atraíam-na cada vez mais para perto.

— Talvez até por mais tempo do que isso.

***

Quando finalmente entrou em casa, Cassie fechou a porta e parou. A mãe quase parecia um fantasma e estava assustada como se tivesse visto um. Cassie se sentia péssima por lhe causar tanta preocupação. A mãe tinha todo o direito de ficar zangada com ela.

— Mãe. Me desculpe.

Como a mãe não respondeu, ela acrescentou:

— Eu precisava ir a Cape Cod; era uma emergência. E depois...

— Deixe o carro pra lá — interrompeu a mãe. — Você está bem?

Cassie assentiu e deixou a bolsa cair no chão. Quando buscou os braços da mãe, olhou-a, na esperança de ver um sinal de censura em seus olhos. Em vez disso, uma expressão entristecida tomava seu rosto, como uma enorme onda de dor.

— Mãe? — perguntou Cassie, sem saber o que dizer.

Os olhos pretos e grandes da mãe, escurecidos por olheiras, encheram-se de lágrimas.

— Pensei que você tivesse fugido — confessou ela. — Depois pensei que estivesse morta. Juro que pude sentir a sua dor.

Ela falava numa voz baixa e pesarosa, e Cassie percebeu que a mãe provavelmente sabia quando ela sentia dor. Elas estavam ligadas, e ela era uma bruxa, afinal.

— Parece que você está se afastando de mim, justo quando pensei que ficávamos mais próximas — continuou. — Foi algo que eu fiz ou disse que te aborreceu? Pode me falar.

Quando Cassie descobriu que a mãe escondia a existência de Scarlett, pareceu-lhe uma traição, como o pior segredo do mundo escondido dela a vida inteira. Mas agora, olhando o rosto frágil e penitente da mãe, Cassie notou que ela o fez para protegê-la. Ela devia saber que Scarlett era má.

— Ah, mãe. Eu não estava zangada, só confusa. Eu estava confusa a respeito de muita coisa.

Depois de tudo o que aconteceu, Cassie percebeu que era hora de finalmente falar a verdade.

— Tenho muito o que contar — revelou ela.

Cassie nem mesmo sabia por onde começar, mas fez o possível para falar com tranquilidade e não deixar nada de fora. Cravou as unhas nas palmas das mãos e continuou, sem se interromper, pelo que pareceu uma eternidade. No final, a mãe puxou o ar suavemente e fechou os olhos. Cassie sabia que era hora de se calar e deixá-la falar.

— A mãe de Scarlett também não teve medo do lado negro de Black John — disse ela. — Foi banida do nosso Círculo por fazer magia negra. Mas eu tinha esperança de que esses dias estivessem para trás. Por isso nunca mencionei Scarlett.

Cassie assentiu, e a mãe pegou seu rosto nas mãos.

— Eu nunca teria escondido isso se pensasse que você estava em perigo.

— Não é sua culpa — disse Cassie. — Eu devia ter contado quando descobri sobre ela.

— Não é culpa de ninguém. Ainda assim, chegou a este ponto. — Ela respirou fundo e se ergueu. — Há uma coisa que eu estava esperando para te dar até que fosse necessário. — A mãe falou enigmaticamente. — Agora parece que chegou a hora.

Seu tom de voz era perturbador.

— O que é?

— Volto logo.

Ela saiu da sala e demorou mais do que Cassie esperava. Justo quando estava prestes a ir atrás dela, sua mãe voltou com um livro nas mãos. Era um diário com capa de couro desbotada e páginas de bordas douradas. Parecia à Cassie uma Bíblia antiga.

— Este era o Livro das Sombras do seu pai — explicou a mãe, estendendo-o para a filha com as duas mãos.

Cassie parou, petrificada, e sentiu o sangue sumir do rosto. O Livro das Sombras de Black John — só a ideia dele a fazia tremer. Ela achava melhor deixar a magia negra inexplorada.

A mãe ainda lhe estendia o livro.

— Está tudo bem — disse ela. — Pode pegar.

Cassie o tirou da mãe com relutância. O livro parecia cruel e frio em suas mãos; quase vivo.

— Como conseguiu isto? — perguntou Cassie.

A mãe voltou a se sentar a seu lado.

— É uma longa história. Mas esteve escondido aqui por muito tempo. Você precisa entender que este livro pode ser extremamente perigoso nas mãos erradas.

Como as Chaves Mestras, pensou Cassie.

— E você quer que eu fique com ele?

O rosto da mãe era severo.

— Vai precisar se quiser ter alguma chance de derrotar Scarlett.

O livro era mais pesado do que aparentava, como se seu conteúdo fosse maior do que a soma das páginas. Era impossível compreender os feitiços e segredos sombrios que encerrava. O couro preto da capa, notou Cassie, não era completamente liso. Era levemente gravado com um símbolo que lembrava Cassie das inscrições no bracelete e no diadema de prata. Também tinha arranhões e marcas, como se unhas tivessem marcado sua superfície. E seu canto superior direito estava gasto, quase completamente cinza, como um selo deteriorado em forma oval.

A digital de Black John, percebeu Cassie.

Ela desviou os olhos da mancha cinzenta, e seu estômago se sacudiu. Ficou intrigada, mas também perturbada.

Cassie voltou a se concentrar no símbolo gravado, tentando se lembrar de onde mais havia visto aquele desenho. Então lembrou: era idêntico à inscrição no anel de magnetita de Black John, aquele usado para identificá-lo como John Blake, e mais tarde como John Brunswick.

Ter este livro nas mãos era o mais próximo de ter Black John ali, na sala com ela. Parecia que toda a escuridão do mundo podia ser despejada de suas páginas a qualquer instante.

A mãe de Cassie a observava manusear o livro com apreensão.

— Sei que parece vivo para você — disse ela. — Mas é só um livro, eu garanto. E você é forte o bastante para lidar com ele. — Havia uma franqueza em seus olhos jamais vista por Cassie.

O livro estremecia em suas mãos enquanto ela tentava se acalmar. Era só papel e palavras, só isso. E suas palavras continham a chave para derrotar Scarlett, salvar o Círculo e recuperar as Chaves Mestras. Ela não podia se dar o luxo de fingir que o livro não existia, por mais maligno e assustador que parecesse. Não podia simplesmente recolocá-lo em seu esconderijo. Era sua responsabilidade ler, estudar e absorver seus segredos até que fizessem parte do seu ser. Só então ela seria forte contra Scarlett.

A mãe observava em silêncio sua luta mental e parecia saber exatamente o que ela estava pensando.

— Lembre-se, Cassie. Há muita bondade em você. Há muito mais luz em sua alma do que trevas. Entende isso?

Cassie concordou.

— Acho que sim.

— Mas existem coisas neste livro que não serão fáceis para você ler. Compreende o que quero dizer?

— Sim.

— Se você o abrir — avisou a mãe —, não haverá volta.

 

 

                                                   L. J. Smith         

 

 

 

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