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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SAGA DE UM PENSADOR / Augusto Cury
A SAGA DE UM PENSADOR / Augusto Cury

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Cheios de expectativa e tensão, os caloiros da faculdade de medicina ficam chocados ao encontrar, na sua primeira aula de Anatomia, o triste espectáculo de corpos sem identificação estendidos no mármore branco. Marco Polo, um jovem inteligente e audacioso, não consegue deixar de pensar nas vidas que estas pessoas viveram, nas histórias que teriam para contar... É ao tentar descobrir algo mais sobre esses seres anónimos que Marco Polo conhece Falcão, um filósofo sem-abrigo, um «indigente inteligente», que o leva a conhecer o mundo de sonhos frustrados, futuros desfeitos e esperanças mortas de quem perdeu tudo. Mas juntos, o jovem sonhador e o velho pensador vão, passo a passo, encetando um combate contra o preconceito, levando todos à sua volta a encarar a vida com um novo olhar, mais humano e solidário.

 

 

 

 

                        Capítulo 1

A ansiedade pulsava no interior de alguns jovens. Um grande sonho encenava-se no teatro das suas emoções. Movidos pela euforia, percorriam como crianças os corredores das salas de aula da Faculdade de Medicina.

Olhos fixos nas paredes, cativados por estranhas e belas imagens que retratavam pormenores do tórax e dos músculos. Imagens de corpos nus dissecados revelavam que por dentro os seres humanos foram sempre mais parecidos do que imaginaram. A fotografia de um cérebro, saturado de reentrâncias, como riachos que sulcam a terra, indicava o centro vital da nossa inteligência e das nossas loucuras.

Tinha chegado o grande dia, o mais esperado e o mais temido. Os novos alunos teriam a primeira aula de Anatomia. Desvendariam os segredos do objecto mais complexo da ciência: o corpo humano. Impacientes, aguardavam os seus mestres do lado de fora do laboratório, que exalava um ar enigmático.

Não lhes cabia no imaginário o que os esperava. Queriam ser heróis da vida, aliviar a dor e prolongar a existência, mas o currículo insensível da Medicina abalá-los-ia, sem nenhuma preparação, com a imagem grotesca da morte. O sonho de se tornarem heróis da vida receberia um duro golpe. Iam deparar-se com corpos despidos, dispostos sequencialmente, como animais.

Finalmente, chegaram os professores e os técnicos de anatomia. Subtraiu-se a palavra, e um silêncio gélido envolveu o grupo. Os professores entraram na grande sala do laboratório e convidaram os sessenta alunos a acompanhá-los. Caminharam lentamente, espremidos, pela porta dupla, mas estreita.

Como se estivessem a assistir a um grande espectáculo, a tensão aumentou e procurou órgãos para se alojar, provocando sintomas psicossomáticos. Uns sentiram palpitações, outros ficaram ofegantes e outros ainda transpiraram.

Ao entrar, um choque emocional ecoou no âmago da jovem plateia. Os alunos viram 12 cadáveres completamente nus, deitados erectos, com o peito e a cara voltados para o tecto. Cada um estava estendido sobre uma alva mesa de mármore branco. O cheiro a formol, usado para conservar os corpos, era quase insuportável. Com olhos estatelados e mentes abismadas, os alunos contemplavam os olhos opacos e inertes dos cadáveres. A maioria, de meia-idade. Entre eles, o de um velho cuja pele não tinha brilho, mas cujo rosto expressava doçura.

As mesas estavam separadas umas das outras por dois metros e meio. Cada grupo de cinco alunos ficaria encarregado de dissecar e estudar um cadáver ao longo do ano. Teriam de rebater a pele, separar os músculos, encontrar o trajecto dos nervos e das artérias. Teriam de abrir o tórax e o abdómen e vasculhar com precisão a cor, o tamanho, a localização e a disposição de cada órgão interno. Os jovens deveriam ser artesãos que penetrariam na mais bela obra de arte.

Mas, no momento, ninguém desejava dissecá-los. Todos estavam sob o efeito que a cena causara. Permeados por conflitos existenciais diante do retrato desnudo da vida humana, os alunos perguntavam-se: «Quem somos?», «O que somos», «Em que nos tornamos diante do caos da morte?», «Qual o sentido da existência humana?» Perguntas simples e intrigantes, mas que desde sempre perturbaram a humanidade, geraram um drama no palco da inteligência dos jovens espectadores.

O ambiente produziu um abalo emocional repentino e incontrolável. Alguns jovens, em especial algumas alunas mais sensíveis, procuravam sair rapidamente da sala. Os seus olhos lacrimejavam, estavam amedrontadas e apreensivas. Não eram familiares ou amigos, mas viram naqueles corpos o espelho da existência humana. Vislumbraram como a vida é tão vasta e tão efémera, tão complexa e tão frágil. Enquanto elas queriam sair da sala, outros colegas desejavam entrar. O tumulto aumentou. Ninguém se entendia.

A fazer face aos conflitos dos alunos estavam os professores e técnicos no fundo da sala. Alguns entreolhavam-se e riam diante do desespero da plateia. «São caloiros», pensavam com sobranceria. No passado, também eles tinham sentido as suas inquietações, mas ao longo dos anos perderam a sensibilidade, bloquearam a sua capacidade de perguntar e de procurar respostas. Abafaram os seus conflitos, tornaram-se técnicos na vida.

No currículo dessa famosa faculdade não existiam aulas de Filosofia e Psicologia que preparassem os alunos para enfrentar o dilema da vida e da morte, o paradoxo entre o desejo de preservar a saúde e a derrota diante do último suspiro.

Os sonhos eram dilacerados, a paixão pela vida esmagada. O prejuízo no inconsciente dos futuros médicos era imenso. Treinados para serem lógicos e objectivos, não desenvolviam capacidades para lidar com o território da emoção.

Pouco a pouco, os pacientes deixavam a sua condição de seres humanos únicos para se tornarem órgãos doentes, que precisavam de se submeter aos exames e não ao diálogo. Deste modo, a mais bela e importante das ciências submetia-se ao cárcere da economia de mercado. Hipócrates, o pai da Medicina, revolver-se-ia no túmulo se o soubesse.

Procurando controlar o impacto inicial, o Dr. George, chefe do departamento de Anatomia, pediu silêncio e solicitou que todos regressassem ao laboratório e fizessem um círculo em redor da sala.

Começou a aula. Ignorando o caos emocional que os alunos atravessavam, nem sequer pensou na angústia deles. Com voz imponente e gestos eloquentes, aquietou a agitação dos presentes. Iniciou a aula apresentando as suas credenciais. Primeiro, especializara-se em Cirurgia Gastrointestinal. Depois, tornara-se um especialista em Anatomia. Fez o doutoramento em Harvard. Era reconhecido internacionalmente. Tinha mais de cinquenta artigos publicados em revistas científicas. Um cientista notável na sua área.

Escondendo-se atrás do seu currículo, apresentou o programa da sua disciplina. Após a introdução, começou desde logo a revelar algumas técnicas de dissecação da pele, músculos, artérias e nervos. Tudo decorria normalmente como em todos os anos, até que um aluno subitamente levantou a mão. O seu nome era Marco Polo.

O Dr. George não gostava de ser interrompido. Não era um amante dos debates. Cada aluno teria de ruminar as suas dúvidas até ao fim da aula, para depois lhe fazer as perguntas, ou aos outros três professores e três técnicos que o auxiliavam. Desprezou o gesto de Marco Polo. Alguns colegas ficaram apreensivos. Para não fazer papel de parvo, o jovem baixou a mão.

Marco Polo era intrépido e determinado. Não conseguia elaborar o turbilhão de pensamentos que transitavam no anfiteatro da sua mente na sala de anatomia. Mas era um observador e não tinha medo de expressar as suas ideias. Embora imaturo, exercitava uma importante característica dos grandes pensadores que brilharam na História: as grandes ideias surgem da observação dos pequenos pormenores.

Cinco minutos depois de ouvir falar sobre técnicas e peças anatómicas. Marco Polo não suportou o calor da sua ansiedade. Estava a transpirar. Novamente, levantou a mão. O professor, irritado com a sua ousadia, explicou que as dúvidas deveriam ser colocadas sempre no fim de cada aula. E disse que abriria uma única excepção. Fez um gesto com as mãos para que Marco Polo falasse, como se lhe prestasse um enorme favor.

Com uma sinceridade cristalina. Marco Polo perguntou:

- Qual é o nome das pessoas que vamos dissecar?

O Dr. George recebeu a pergunta como um golpe. Olhou para os professores que o auxiliavam, meneou a cabeça e balbuciou: «Há sempre algum estúpido na turma.» Com voz solene, respondeu:

- Estes corpos não têm nome!

Diante da resposta seca, os alunos saíram repentinamente da apreensão para o riso tímido. Constrangido, Marco Polo passou os olhos pelos cadáveres e comentou:

- Como não têm nome. Eles não choraram, não sonharam, não amaram, não tiveram amigos, não construíram uma história?

A plateia ficou muda. O professor mostrou-se indignado. Sentiu-se desafiado. Então troçou do aluno publicamente:

- Olha, rapaz, aqui só há corpos sem vida, sem história, sem nada. Ninguém respira, ninguém fala. E você está aqui para estudar Anatomia. Saiba que há muitos médicos medíocres na sociedade porque não se dedicaram a esta matéria. Se não quer ser mais um deles, deixe de filosofar e não interrompa a minha aula.

Os alunos fizeram um burburinho maior, sentindo que Marco Polo levara uma lição que o paralisaria. Diante das gargalhadas mais soltas, o professor sentiu-se vitorioso.

Mas Marco Polo ainda teve fôlego para retorquir:

- Como vamos penetrar no corpo de alguém sem saber nada sobre a sua personalidade? Isso é uma invasão!

E, para picar o professor, resolveu filosofar. Emendou:

- Um homem sem história é um livro sem letras.

A plateia ficou surpreendida com a dimensão da frase. Interrompendo-o, o Dr. George foi directo e agressivo:

- Vamos parar com essa filosofia barata! Se você quer ser um detective que investiga a identidade de mortos, escolheu a faculdade errada. Siga a carreira policial.

Os colegas desta vez troçaram de Marco Polo. Alguns emitiram sons como se estivessem num estádio a assistir a um jogo muito disputado. Marco Polo observou a cena e ficou abalado, não tanto pela agressividade do professor, mas principalmente pela complexidade da mente humana. Há poucos minutos, os seus colegas estavam numa sala de terror e, agora, no centro de uma arena, e ele era o palhaço. Começou a entender que a dor e o riso, a loucura e a sanidade estão muito próximas.

Em seguida, o professor encerrou o assunto, dizendo:

- Esses cadáveres não têm história. São mendigos, indigentes, sem identidade e sem família. Morrem pelas ruas e nos hospitais e ninguém reclama a existência deles. Não seremos nós que a reclamaremos.

Além de humilhar publicamente o seu intrépido aluno, ele desafiou-o com sarcasmo. Fitou-o e disse-lhe:

- Se você quiser tentar identificá-los, procure informações na secretaria do departamento. Ah! E se, por acaso, encontrar uma história interessante sobre algum destes indigentes, por favor, traga-nos para que possamos ouvi-la.

Com isto. Marco Polo calou-se.

Um professor auxiliar sussurrou ao ouvido do chefe:

- Parabéns! Você foi terrível com o rapaz. Um outro disse:

- Você é um especialista a cortar as asas dos novatos.

O Dr. George sorriu; no entanto, a sua emoção não era uma lagoa plácida, mas um mar atormentado. Nunca um aluno levantara tais questões no laboratório de anatomia.

Marco Polo saiu daquela aula com a impressão de que há um preço a pagar para os que querem pensar. Era mais confortável calar-se, seguir o roteiro curricular e ser mais um aluno na multidão. Todavia, o conforto de se calar geraria uma dívida impagável com a sua própria consciência... Tinha de fazer uma escolha.

 

                     Capítulo 2

Marco Polo estava inconformado com a maneira como fora tratado pelo seu professor. Ele questionava-se sobre a pertinência das suas perguntas. «Não podem ser parvas. Cada ser humano é um mundo», pensava ele. Muitos gostam da rotina, outros não vivem sem aventura. O jovem pertencia ao segundo grupo. Detestava o mercado da rotina. A última frase do Dr. George provocara a sua inteligência, não saía da sua mente. Tornara-se um desafio que o obcecava.

No dia seguinte, foi à procura dos papéis que registavam a entrada dos cadáveres. Ficou decepcionado. Não havia registo de nomes, actividades e parentescos. Após folhear diversos papéis, encontrou apenas uma informação vaga, sem pormenores, sobre um dos corpos. A informação tinha sido colhida por uma das assistentes sociais do hospital da faculdade.

Ela relatou que o velho possuía um apelido bizarro: Poeta da Vida. Escrevera no relatório: «Um mendigo maltrapilho, apelidado de Falcão, que frequenta a praça central da cidade, identificou o corpo. Ele não conseguiu expressar-se. Tudo indica que seja portador de uma grave e incapacitante doença mental. Por isso, não deu pormenores sobre o morto, apenas disse que ele era seu amigo e se chamava Poeta da Vida.»

Estas palavras vagas mexeram com o imaginário de Marco Polo. «Quem poderia ser? Porque é que o indigente morto tinha o estranho apelido de Poeta da Vida?», reflectiu. Procurou a assistente social para mais informações.

Marco Polo encontrou-a a conversar com uma psicóloga. Identificou-se e perguntou-lhe como poderia encontrar o tal Falcão descrito no seu relatório, pois queria entrevistá-lo. Indagado sobre os motivos da informação, ele disse, para espanto das duas profissionais, que era para desvendar a história de um dos cadáveres do laboratório de anatomia.

A assistente social, sem meias-palavras, desanimou-o.

- Eu lembro-me desse tal Falcão. Fiquei mais de 15 minutos a tentar fazê-lo falar. Mas o coitado era um demente, com a personalidade destruída. Não conseguia manter um diálogo racional. Você perderá o seu tempo se conseguir encontrá-lo.

A psicóloga, mostrando um psicologismo autoritário, foi mais longe:

- Esses cadáveres da sala de anatomia, na grande maioria, são portadores de graves doenças mentais. Não têm documentos ou cultura e mal sabem conversar. Vivem por instinto à margem da sociedade, andam como animais pelas ruas e estradas.

Marco Polo ficou indignado com a posição fechada delas. Elas conseguiram ser mais contundentes que o seu professor de Anatomia. Era como se aqueles cadáveres fossem montagens de peças anatómicas sem direito sequer a uma história. Inconformado, confrontou-as:

- Não concordo com a vossa maneira de pensar. Será que esses mendigos não têm personalidades complexas e nós é que somos incapazes de as entender?

- Você está a iniciar o seu curso de Medicina e já quer parecer um professor? - disse a psicóloga, impaciente com a petulância do estudante.

Marco Polo não quis prolongar a conversa. Despediu-se e saiu frustrado.

Após a sua saída, a assistente social comentou com a psicóloga:

- Não se preocupe. Essa febre romântica passa nos anos seguintes.

Durante dias, o jovem procurou o tal Falcão na praça central. Ela era enorme como o Central Park de Nova Iorque, muitas ruas, bosques, bancos e imensos relvados. Devido à dimensão da praça, bem como ao aumento do número de sem-abrigo devido à crise financeira e ao facto de os mendigos serem nómadas, a tarefa de encontrar o tal Falcão era dantesca.

Marco Polo fazia a sua investigação por tentativa e erro. Abordava qualquer mendigo que encontrava. Alguns não entendiam o que ele dizia, outros fingiam não ouvir e outros ainda prestavam-lhe alguma atenção, mas diziam que não tinham ouvido falar de nenhum Falcão. Um deles afastou-se rindo e imitando o voo de uma ave.

Às vezes Marco Polo tinha a impressão de que algumas pessoas conheciam o Falcão, mas o diálogo não evoluía. Nunca conseguiu conversar mais do que um minuto com os que lhe deram atenção. Começava a convencer-se de que os outros estavam certos e ele errado. Pensava em terminar a sua aventura de Indiana Jones entre os banidos da sociedade. No entanto, todas as vezes que passava perto do seu professor sentia-se provocado.

Os colegas irritavam-no, perguntando: «Que é feito da história do mendigo?» Alguns mais trocistas e atrevidos apontavam para um cadáver e diziam: «Este foi Júlio César, o imperador de Roma!» Todos riam. Os cadáveres já não causavam espanto na turma. O anormal tornou-se normal.

Marco Polo observava todos esses fenómenos. Não os entendia, mas registava-os. Começou a perceber que o ser humano se adapta a tudo, inclusive ao caos. A humilhação alimentava ainda mais o seu desafio. Desistir perturbava-o.

Um mês depois da primeira aula de Anatomia, resolveu fazer mais uma tentativa. Novamente, entrou na imensa praça, percorreu centenas de metros, conversou com alguns indigentes, mas não obteve a resposta que procurava. Dois deles, sentados no mesmo banco, balbuciaram algumas palavras entre si quando interrogados por Marco Polo. Mas calaram-se sobre o Falcão.

De repente, cinquenta metros à sua frente, viu mais um mendigo que abordava os transeuntes num local movimentado. Tentava conseguir uns trocados para uma possível refeição nocturna. Tinha uma barba comprida e branca. Os seus cabelos eram revoltos como os de Einstein a troçar com o mundo, mas parecia que ele troçava era do banho. A pele estava seca, sem brilho, desidratada, gasta pelo tempo. Vestia um casaco preto, remendado com tiras brancas. Cheirava a azedo.

Aproximou-se dele, deu-lhe o pouco dinheiro que tinha no bolso e perguntou-lhe se conhecia o tal Falcão. O mendigo olhou para ele, pegou no dinheiro e fingiu que não o ouvira.

Marco Polo interrogou-o novamente. Desta vez, o mendigo pôs o dedo na boca e disse:

- Silêncio! A princesa está a chegar.

O jovem olhou de lado, não viu nada. Mas o mendigo continuava atento. Em seguida, levantou-se e começou a perseguir com os olhos uma borboleta, totalmente deslumbrado. Levantou os braços e começou a fazer um movimento imitando o seu bailado. Ela voou no alto da copa de uma árvore e regressou pousando suavemente na sua mão.

Marco Polo, admirado, não conseguia dizer se o pouso fora uma coincidência ou uma atracção instintiva e inexplicável. O mendigo respirou profundamente e contemplou a borboleta. Parecia livre como ela. Depois soprou-a suavemente, dizendo:

- Adeus, princesa! Você encanta este lugar, mas siga o seu caminho e cuidado com os predadores.

Marco Polo ficou intrigado com estas palavras. Perguntou pela terceira vez:

- Você conhece o Falcão?

O mendigo fitou-o e respondeu:

- Há muitos anos que me pergunto quem sou. Quanto mais me pergunto, menos sei quem sou. O que penso que sou não é o que sou.

Marco Polo ficou confuso. Não entendeu nada, mas ficou extasiado com a possibilidade de aquele homem ser o Falcão. Rapidamente, identificou-se e pediu informações sobre o tal Poeta da Vida. Não percebeu que a sua ansiedade bloqueara o andarilho. Para piorar as coisas, acrescentou ingenuamente:

- Quero essas informações porque o Poeta está na sala de anatomia da minha faculdade de Medicina, e eu e os meus colegas vamos dissecá-lo. Gostaria de saber algo sobre a sua vida.

O mendigo ficou assombrado com estas informações. Marco Polo percebeu que fora frio e agressivo na conversa. Tentou amenizar rapidamente o que dissera:

- Mesmo depois de morto, o Poeta será útil para a formação de médicos e, consequentemente, para a humanidade.

Com os olhos rasos de lágrimas, o indigente parecia ter saído do lugar, estava noutro mundo. Como viajante do tempo, olhava vagamente para o infinito. Marco Polo insistiu, perguntando se ele era o Falcão. O mendigo não respondeu. Levantou-se e partiu em profundo silêncio.

O jovem estudante ficou sentado no banco, paralisado na sua inteligência. Parecia ser ele o miserável. Tinha muito e não tinha nada. Não sabia definir os seus sentimentos e sentia-se incapaz de compreender o mundo desses andarilhos que vagueiam pela vida sem rumo. Voltou no dia seguinte e não encontrou o mendigo. Ficou abatido.

Três dias depois, encontrou-o novamente. Desta vez, foi mais comedido. Sentou-se delicadamente no banco. Ficou um minuto sem falar. Olhava o mendigo, que parecia ignorá-lo.

- Por favor, senhor, diga-me se é o Falcão.

Depois de outra insistência, o mendigo voltou-se para ele e perguntou:

- Quem é você?

Marco Polo identificou-se, disse o seu nome, endereço, onde estudava e outras informações.

- Não estou a perguntar o que é que você faz, mas quem você é, o que está na sua essência, por detrás da sua maquilhagem social.

Marco Polo sentiu um nó na garganta. Foi apanhado de surpresa pelo raciocínio perspicaz do mendigo. «Este mendigo não é demente. Pelo contrário. No primeiro encontro, ele usou a palavra "predador", agora fala de "maquilhagem social"», analisou. Não soube o que responder. Então, o mendigo disse:

- Se você demora tanto para dizer quem é, como ousa perguntar quem sou eu?

Foi mais um rude golpe para o jovem. Por isso, insistiu:

- O senhor conheceu o Poeta. Quem era? Porque tem ele essa alcunha?

- Rapazes perfumados, trajando belas roupas, vivendo à superfície da existência. Quem são vocês para estudar o Poeta da Vida? Podem retalhar o seu corpo, mas nunca penetrarão na sua alma.

Tais palavras abalaram Marco Polo. Era um raciocínio brilhante, embora ofensivo. Convenceu-se de que aquele mendigo era o Falcão.

Em seguida, fez-se um silêncio gélido. O mendigo levantou os braços, cerrou os olhos e ouviu atentamente a serenidade do farfalhar do vento nas folhas das árvores próximas. Respirou fundo e disse para si mesmo:

- Que brisa maravilhosa! Marco Polo, estupefacto, persistiu:

- Fale-me sobre o seu amigo! Falcão não gostou do seu tom de voz.

- Não me dê ordens, rapaz! Não me controle! Não estou no seu mundo! Sou livre!

- Desculpe-me a insistência.

- Só continuo a conversa se você me responder a uma pergunta.

- Terei o maior prazer em responder - disse apressadamente, confiando que um mendigo não faria uma pergunta complexa.

- Qual é a diferença entre um poeta e um poeta da vida? - indagou, fitando Marco Polo.

O jovem percebeu que caíra numa armadilha. Subestimara a inteligência do mendigo. Esfregou as mãos no rosto, baixou a cabeça e, depois de muito pensar, reconheceu:

- Perdoe-me, senhor, mas não sei a resposta.

- Um poeta escreve poesia, um poeta da vida vive a vida como uma poesia. O meu amigo era um Poeta da Vida.

Marco Polo quis tentar uma nova pergunta. Cortando-lhe a palavra, Falcão disse-lhe:

- Seja honesto. Você não respondeu e a conversa está terminada.

Marco Polo ficou imóvel no banco. Achava-se muito esperto, mas deparara-se com a sua estupidez e arrogância. Apesar de decepcionado consigo mesmo, estava eufórico com a inteligência de Falcão.

Falcão levantou-se e, como se nada tivesse acontecido, começou a caminhar. Abraçou uma árvore. Beijou-a. Agachou-se diante de uma flor, parecia querer penetrar nas suas entranhas. Dizia algumas palavras inaudíveis, como se estivesse a fazer uma oração ou a elogiar a flor.

Marco Polo, teimoso e com a voz embargada, arriscou dizer algo para manter o vínculo:

- Até amanhã!

Falcão levantou-se e comentou:

- O tempo não existe, rapaz. Amanhã, a chama da vida pode ter-se apagado!

Em seguida, foi-se embora sem se despedir. Enquanto andava, abria os braços e fazia um movimento de dança. Com uma voz vibrante, olhava para a paisagem enquanto cantava «What a Wonderful World», de Louis Armstrong, com algumas modificações na letra:

Eu vejo o verde das árvores, rosas vermelhas também. Eu vejo-as florescerem para a humanidade E eu penso comigo... que mundo maravilhoso. Eu vejo o azul dos céus e o branco das nuvens. O brilho do dia abençoado, a sagrada noite escura. E eu penso comigo... que mundo maravilhoso.

O mundo intelectual de Marco Polo não estava maravilhoso, pois passara por um vendaval. Profundamente intrigado, ele disse para si mesmo: «Que homem é este que se esconde na pele de um miserável? Que mendigo é este que parece ter muito, mas possui tão pouco?»

 

                Capítulo 3

Ao regressar à república de estudantes, onde morava. Marco Polo recolheu-se no seu interior. O seu pai, Rodolfo, fora desde sempre um admirador do italiano Marco Polo, um dos maiores aventureiros da História. O viajante veneziano tinha apenas 17 anos quando, em 1271, partiu da belíssima Veneza para a Ásia com o seu pai e o seu tio. A incrível odisseia durou 24 anos.

Correram enormes riscos, navegaram por rios e mares, andaram por desertos, escalaram montanhas, pisaram em solos nunca antes tocados por um europeu. A aventura revelou um mundo fascinante, jamais descrito. A sua obra, o Livro das Maravilhas: A Descrição do Mundo, influenciou o mapa-múndi traçado em 1450, hoje exposto na Biblioteca Marciana de Veneza.

Rodolfo era um ávido admirador da ousadia de Marco Polo e por isso deu o seu nome ao filho. A medida que ele foi crescendo, relatava com entusiasmo ao pequeno Marco Polo as peripécias do aventureiro italiano. Contava-lhe, com doses de ficção, os sonhos do navegador veneziano, a sua coragem imbatível e a sua incontrolável motivação para conhecer novos mundos, explorar culturas, costumes e gastronomia desconhecidos. O menino bebia as palavras do pai.

Entre as suas muitíssimas descobertas, Marco Polo trouxe o macarrão, inventado pelos chineses, para a Itália. Os italianos, com a sua habilidade gastronómica ímpar, aperfeiçoaram-no. O senhor Rodolfo, amante de uma boa massa, todas as vezes que comia esparguete fazia um brinde a Marco Polo.

Uma frase dita e repetida pelo pai ecoava na mente do pequeno Marco Polo:

- Meu filho, os aventureiros realizam as suas conquistas e as demais pessoas aplaudem-nos. Sai sempre do lugar-comum!

Agora, o jovem era um estudante de Medicina. Desejava conhecer os mistérios do corpo humano. No entanto, como a vida tem cruzamentos imprevisíveis, deparou-se com um desafio muito maior: conhecer o complicado mundo da mente humana.

Não bastasse esse pungente desafio, a personalidade que precisava de desvendar era a de um ser humano que vivia na periferia da sociedade e, como tal, era rotulado de louco, impenetrável e portador de uma história existencial desprezível.

Teve a impressão de que não conseguiria introduzir-se no universo de Falcão, pois viviam em ambientes e culturas completamente distintos. «Como o fazer? Que ferramentas usar? Que atitudes tomar sem protagonizar uma invasão? Certamente o Marco Polo do século XIII também ficaria perturbado diante desta aventura!», pensava constantemente.

Precisava de ser ousado e criativo para percorrer os solos intangíveis da alma humana e caminhar no indecifrável território da emoção. Após viajar nos seus pensamentos e fazer anotações sobre os factos ocorridos, fez-se luz. Teve uma ideia invulgar para romper as barreiras e a distância entre ele e o mendigo pensador: «Tenho de me tornar um deles», pensou.

No dia seguinte, um sábado ensolarado, entrou na casa de banho, passou pasta de alho pelo rosto, pegou num nabo podre da cozinha e esfregou-o nos braços e no peito. Pegou em gel, misturou-o com a pasta de alho, esfregou-o na cabeça e despenteou os cabelos. Ficou parecido com um pequeno monstro ou com alguém que acabou de receber um choque eléctrico. Mas tudo valia para tal conquista. Afinal de contas, não aguentava mais ser alvo da troça dos colegas.

Em seguida, foi ao quarto, pegou numa camisa de um vermelho-vivo, rasgou-a e vestiu-a. Vestiu também umas calças pretas desbotadas e manchadas, que comprara numa loja de roupa em segunda mão, e um casaco preto remendado, comprado no mesmo lugar. Ao passar pela sala, os colegas apanharam um susto. Marco Polo não parecia um mendigo, mas um ET. De tanto rir, todos se atiraram para o chão. O seu dia começara mal. Não podia explicar nada aos amigos, ninguém entenderia. Saiu de casa aos pulos, deixando estáticos os seus colegas da república de estudantes.

Cheirava tão mal que ninguém conseguia passar perto dele na rua sem abanar a mão diante do nariz. O excêntrico jovem causava espanto nos adultos, mas divertia as crianças. Nunca tinha chamado tanto a atenção.

Ao aproximar-se da praça, as pessoas apontavam-lhe o dedo e troçavam dele. Começou a sentir raiva dos normais. Teve vontade de pedir satisfações. «Ser mendigo deve ser uma vida dura», pensou. Mas a sua meta impelia-o, era a sua prioridade, e estava convicto de que Falcão se aproximaria dele.

Após meia hora à sua procura, encontrou-o e sentou-se ao seu lado. Fez um grande silêncio, queria impressionar. Falcão afastou-se dele. Não suportou o cheiro. Disfarçadamente, olhou o estudante da cabeça aos pés. Afastou-se mais um pouco. Cada um assobiava e olhava para o lado oposto. De repente, os seus olhares cruzaram-se.

Quando Marco Polo pensou que estava a causar impacto. Falcão gritou-lhe:

- Como você é feio!

Em seguida, desatou a rir. A praça emudeceu com tanto riso. Marco Polo ficou vermelho, não sabia se havia de rir ou de fugir. Preferiu rir. Riu muito. Riu para não chorar. Era a primeira vez que ria das próprias tolices. Era um jovem inteligente e intrépido, mas pouco flexível e sem grande sentido de humor. Rir de si mesmo foi um bálsamo. Os transeuntes aproximaram-se. Queriam um pouco da alegria dos dois alienados.

Marco Polo apontou para a plateia e riu mais. A plateia começou também a rir, ninguém sabia porquê. Riam sem motivo. Uns riam dos outros. Era a terapia do riso, tão ilógica e tão singela.

Momentos depois, o espectáculo acabou. Surgiu o silêncio. Com o silêncio, a plateia dispersou-se. Enquanto se dispersavam, davam-lhes moedas. Falcão disse:

- Meu Deus, como os normais estão carentes. Como é fácil diverti-los. Até um palhaço inexperiente se torna uma atracção.

Marco Polo franziu o rosto e ficou a pensar se a carapuça não era para ele. Mas resolveu seguir o seu plano. Pegou na sacola, deu-lhe alguns alimentos bem embalados e uma caixa de bombons. Pensou que depois do circo e dos presentes tinha conquistado Falcão. Ledo engano! O mendigo olhou para o jovem e desferiu-lhe um golpe inesquecível:

- O seu alimento sacia a minha fome, mas não compra a minha liberdade.

- Eu não quero comprar a sua liberdade! - reagiu ele imediatamente.

- Seja honesto! Você deseja que eu fale, que lhe dê informações. Quem vende a sua liberdade nunca foi digno dela - disse Falcão.

Marco Polo coçou a cabeleira arrepiada e perguntou-se de novo: «Quem é esta pessoa tão rápida nas respostas e tão ferina nas ideias?!»

Ele sentiu a pobreza do seu plano para conquistar alguém tão invulgar. No fundo, ele queria comprar aquilo que não tem preço. Precisava de usar a estratégia da transparência. Reconhecendo o seu erro, disse:

- Desculpe-me pelas minhas segundas intenções. Eu realmente quis que os meus presentes abrissem as janelas da sua mente.

Mais sensível diante da humildade de Marco Polo, Falcão adoçou a voz:

- Rapaz, o seu nome é o de um desbravador, mas você nunca será como um de nós. Pode maquilhar-se, vestir roupas rasgadas, cheirar mal, mas continuará a ser você mesmo. No seu mundo, vocês crêem que a embalagem muda o valor do conteúdo. No meu mundo, isso é uma tolice. Você continuará a ser um prisioneiro.

Marco Polo ficou abismado:

- Prisioneiro de quê?

- Do sistema.

- Eu sou livre!

- Você pensa que é livre. Você tem os pés livres para caminhar e a boca livre para falar. Mas você é livre para pensar?

- Creio que sim.

- Então responda-me com sinceridade: você sofre pelo futuro, ou seja, você atormenta-se por causa de coisas que não aconteceram?

- Sim - disse ele, consternado.

- Você tem necessidades que não são necessárias?

- Sim.

- Você sofre quando alguém o critica? Preocupa-se com a opinião dos outros?

- Sim.

Falcão calou-se e Marco Polo ficou pensativo. Lembrou-se do quanto as opiniões do seu professor e dos seus colegas de curso o atormentaram. A discriminação que sofrera fora registada de maneira privilegiada, gerando um conflito. Perdeu o sono algumas vezes. Deixou que o lixo de fora invadisse a sua emoção.

Começou a analisar o que estava a fazer naquela praça. Conquistar Falcão era motivado pela dor da discriminação e não pelo que realmente ele representava. Assim, começou a rever o seu objectivo. Com honestidade, admitiu:

- Não sou tão livre como imaginava.

Falcão continuou e pela primeira vez chamou-o pelo nome.

- Marco Polo, o mundo em que você vive é um teatro. As pessoas frequentemente representam. Elas observam-se a todo o momento, esperando comportamentos previsíveis. Observam os seus gestos, as suas roupas, as suas palavras. A liberdade é uma utopia. A espontaneidade morreu.

Marco Polo nunca pensou que poderia encontrar sabedoria num maltrapilho. Recordou a primeira aula de Anatomia, as palavras preconceituosas do seu professor, da psicóloga e da assistente social. Percebeu como somos superficiais ao julgar pessoas diferentes. Compreendeu a sua própria superficialidade.

Entendeu que muitos indigentes podiam ser doentes mentais sem condições de exprimir grandes ideias, mas todos eles tiveram uma grande história. Além disso, começou a descobrir que alguns miseráveis das ruas, como Falcão e provavelmente alguns doentes mentais, tinham uma sabedoria que os intelectuais não alcançavam. Convenceu-se de que cada ser humano é uma caixa de segredos a ser explorada.

Quando os excluímos, tal acontece porque não os entendemos. A partir daí, começou a sentir-se fascinado pela mente humana. Pouco a pouco, despertou nele o desejo de um dia se especializar na mais enigmática e complexa das especialidades médicas: a psiquiatria. As ideias do pensador das ruas inspiraram-no.

Após questionar a sua própria liberdade. Marco Polo fez alguns minutos de silêncio. Falcão recostara-se folgadamente no banco. Em seguida, o jovem voltou à carga revelando as suas inquietações e a sua famosa incapacidade de ficar calado. Resolveu provocar Falcão:

- Será que, pelo facto de não ter tido sucesso no sistema que condena, você não se alienou dele? Quem me convence de que você não é uma pessoa socialmente frustrada e interiormente presa?

Marco Polo foi perspicaz nos seus argumentos, mas, depois de dizer tais palavras, sentiu que corria o risco de destruir o seu relacionamento com Falcão. Recordou que criara problemas com o Dr. George pela sua impetuosidade. Por menos, o médico tinha-o humilhado publicamente.

Quando a relação parecia ter ficado estremecida, surpreendeu-se. O brilho nos olhos e um sorriso entrecortado de Falcão indicavam que ele gostara de ser provocado. Com lucidez, o mendigo deu uma breve resposta, sem grandes pormenores:

- Você tem futuro, rapaz! Você pensa. O sistema feriu-me drasticamente e baniu-me. A dor que vivi poderia destruir-me ou construir-me. Resolvi deixá-la construir-me. Atormentado, saí sem um endereço, procurando um endereço dentro de mim mesmo...

Falcão emudeceu. Não deu mais pormenores da sua vida e Marco Polo não queria invadir a sua intimidade. Havia profundidade e intenso sofrimento naquelas breves palavras. Sentiu que era hora de partir. Foi-se embora calado e pensativo.

O filósofo das ruas estava a tornar-se mestre de um jovem da elite social. O jovem admirou o mendigo e o mendigo encantou-se com o jovem. Começaram a ser amigos. Ambos viviam em mundos distintos, mas foram aproximados pela linguagem universal da sensibilidade e da arte de pensar. Começava a escrever-se uma fascinante história.

 

                           Capítulo 4

A descoberta do mundo rico e profundo que se escondia atrás dos escombros da miséria de Falcão parecia loucura nas sociedades modernas, que valorizam muitíssimo a tecnologia e pouquíssimo a sabedoria. Esta descoberta deixara Marco Polo atónito.

No encontro seguinte, ainda teve receio de ir com o seu vestuário normal. Novamente, foi trajado de mendigo, mas mais discreto e menos fétido. Os cabelos continuavam em estado de choque. Não tinha jeito para ser um andarilho. Bem-humorado. Falcão não o censurou. Marco Polo já não era um invasor de território. O mestre das ruas continuava a sua vida sem aparentemente lhe dar muita atenção.

Ele observava os transeuntes e dava gargalhadas. Marco Polo esforçava-se por entender, mas não sabia o que estava a acontecer. Falcão divertia-se imaginando o que as pessoas estariam a pensar naquele exacto momento. Minutos depois, permitiu que o jovem entrasse na brincadeira. Queria ensinar-lhe uma lição.

- Está a ver aquele sujeito apressado, apreensivo, de gravata desalinhada. Olhe como ele torce o nariz e faz caretas. Deve estar a pensar: «Eu não aguento mais o meu chefe! Eu vou pedir a demissão e mandá-lo plantar batatas.» Coitado! Ele é o melhor plantador de batatas desta cidade. Há anos que repete a mesma coisa.

Marco Polo fez um sorriso analítico. Pensou: «Foram sempre os normais que troçaram dos trejeitos dos marginalizados. Eles falam sozinhos, gesticulam, são curiosos. Não imaginava que alguns deles vissem a sociedade organizada como um circo.» Falcão chamou a sua atenção para outra pessoa.

- Está a ver aquela mulher toda embonecada, a tentar equilibrar-se em cima daquelas saltos altíssimos. Olhe lá. Como ela anda torta. Quase caiu. Que coisa mais estranha. Nunca ninguém olhou para aqueles saltos, mas ela não desce deles. Deve estar a pensar: «Quem será que me está a admirar?!» Em seguida, perguntou ao jovem:

- Quem está a admirar aquela mulher?

- Não sei - respondeu Marco Polo.

- Só nós, seu tonto! Ficou mais de uma hora a sofrer diante do espelho para dois tolos a observarem - respondeu, brincando.

E completou:

- Se você não brincar com a vida, a vida zangar-se-á consigo.

Marco Polo compreendeu o recado e percebeu a brincadeira. Em seguida, chamou a atenção para um homem aparentemente muito famoso, devia ser um actor ou cantor. Estava rodeado por seguranças e era perseguido por alguns repórteres que tentavam entrevistá-lo. Agressivo, desdenhava deles.

- Ele deve estar a pensar: «Eu sou o herói desta cidade!» Marco Polo não conseguiu dizer mais nada sobre o homem

e percebeu que Falcão não apreciara a sua frase.

- Você escolheu a personagem errada. Ele não tem graça nenhuma, vive em torno da fama, pisa os outros. Morre todos os dias um pouco, mas acha-se acima dos mortais. Os media produziram-no e os media detestam-no.

Marco Polo, incomodado, perguntou-lhe:

- Quem deveria eu escolher?

- Você poderia escolher aquela jornalista que tenta entrevistá-lo. Ela está a bufar de raiva por dentro! Deve estar a pensar: «Não acredito que ganho tão pouco para entrevistar um tipo tão vazio.»

Marco Polo parou para meditar naquelas palavras. Falcão completou:

- Os jornalistas são profissionais interessantes. São como bactérias que criticam o sistema, mas dependem dele para sobreviver.

Enquanto Falcão e Marco Polo se divertiam, algo interrompeu abruptamente o momento de descontracção. Perto deles, um jovem de 15 anos, toxicodependente, aproveitou estar no meio da multidão e roubou, pelas costas, a mala de uma senhora. Para que ela não o visse, empurrou-a impiedosamente. Ela caiu, feriu os joelhos e os lábios. O infractor fugiu a correr.

A senhora gritava sem parar: «A minha mala! Roubaram a minha mala!» Na confusão, os transeuntes não conseguiram identificar o ladrão. Dez metros à frente, estavam dois polícias, que ouviram os gritos. Correram ansiosos para ver se o apanhavam.

Ao perceber que estava a ser perseguido, o jovem, amedrontado, atirou a mala para o colo de Falcão, que se levantou para procurar a sua dona. Os polícias, ao passarem por ele, viram a bolsa. Deduziram que um mendigo não poderia ser proprietário de tal peça. Agarraram-no.

Marco Polo implorava a atenção dos polícias. Tentava em vão explicar o que eles não queriam entender. Um dos polícias foi até à senhora, que estava a uns trinta metros, e perguntou-lhe se a mala lhe pertencia. Diante da resposta positiva e vislumbrando os joelhos e lábios a sangrar, dirigiu-se indignado para o mendigo. Uma pequena multidão, sequiosa de vingança, acompanhava-o. Daria voz definitiva de prisão ao violento mendigo.

Falcão estava relativamente calmo. Sabia que nenhum argumento seria convincente. O momento era tenso. Mais uma vez, seria vítima dos polícias que odiavam os vagabundos. Alguns gritavam palavras de ordem querendo linchá-lo. A agressividade gerava agressividade, revelando o inextinguível ciclo da violência. As sociedades modernas vivem tempos insanos. A serenidade é um artigo de luxo.

Sob o coro da multidão, os polícias, revoltados, mal recitaram os direitos do cidadão e algemaram-no. Que direito tem um maltrapilho? Que advogado terá motivação para o defender? Quem poderia crer na sua inocência? Marco Polo tentava em vão defendê-lo. Estava desesperado diante da injustiça.

De repente, Falcão tentou tirar algo volumoso do bolso. Os polícias pensaram que ele estava a tirar uma arma. Bateram-lhe, deitaram-no ao chão e colocaram os joelhos sobre o seu pescoço. Mas era um tubo de metal e não uma arma.

Ao ver o amigo caído e ferido, Marco Polo tomou uma atitude inesperada. Aos berros, dizia:

- Fui eu! Fui eu! Fui eu que roubei a mala! Ele é inocente! Os polícias ficaram confusos. A multidão fez silêncio. Falcão, perturbado, desmentiu-o. Gritou:

- Não! Fui eu. Eu roubei-a.

Ninguém entendeu nada. Os polícias estavam atónitos. Nunca tinham presenciado uma reacção como aquela. Marco Polo foi mais incisivo.

- Pai! Você é um velho. Protegeu-me a vida inteira. Não tem forças nem para andar. Como a poderia roubar? Eu roubei-a e atirei-a para o seu colo. Não assuma a minha culpa!

Sem pedir desculpas a Falcão, os polícias simplesmente trocaram as algemas de pulsos. Marco Polo foi conduzido ao carro num cortejo com pessoas que gritavam:

- Ladrão! Ladrão! Matem-no! - berravam algumas.

Ao aproximar-se do carro da polícia, Falcão pegou no tubo de metal, abriu-o e dele saltou uma rosa de seda vermelha. Ele ia entregá-la aos polícias como sinal de paz. Agora, encontrara alguém mais digno de a receber, o jovem amigo. Falcão era amigo das crianças. Recebera aquele presente de um menino que de vez em quando lhe trazia comida à praça.

Os olhos do mendigo fitaram o jovem. O seu silêncio gritou em agradecimento, mas estava apreensivo com as consequências de tal atitude.

Marco Polo entrou no carro e partiu. Nunca tinha entrado numa esquadra. Não podia alegar inocência, tinha assumido o delito. Durante o inquérito, a capacidade de argumentar de Marco Polo foi inútil. Todos estavam revoltados com um criminoso que rouba e magoa frágeis senhoras idosas.

No interrogatório, o comissário perguntou-lhe se alguma vez tinha estudado ou trabalhado. Marco Polo fitou-o e disse-lhe que era estudante de Medicina. O comissário e o escrivão quase estouraram de tanto rir.

- Era só o que me faltava! Um palhaço na esquadra. Não estou aqui para brincar, rapaz - gritou. - O que é que faz na vida?

- Já lhe disse. Sou estudante de Medicina.

- Um mendigo futuro médico? Se com essa cabeleira linda vier a ser um médico, então eu sou a Marilyn Monroe.

O escrivão ria a bandeiras despregadas. Abriu a porta e chamou várias pessoas para entrarem na sala. Apresentou-lhes o intelectual mendigo. Todos troçaram, aplaudiram, fizeram algazarra.

Marco Polo começou a compreender o peso de ser uma pessoa excluída, os perigos de viver fora do modelo social. Porém, já estava a ficar calejado. Com a sua estranha cabeleira e roupa rasgada, não era possível ser levado a sério.

O comissário sabia que os mendigos, na maioria, eram doentes psiquiátricos. Pensou que Marco Polo estivesse a delirar. Sem respeito, murmurou para alguns dos presentes: «Não suporto estes vermes.» Em seguida, aproximou-se e gritou:

- Diga-me quem você é, seu estafermo! Se é um futuro doutor, então mostre-me o seu cartão de estudante.

Marco Polo engoliu em seco. Não tinha bilhete de identidade nem cartão de estudante no momento.

- Esqueci-me dele em casa.

- Ah, seu espertinho, esqueceu-se dele em casa. Muito bem. O comissário não teve dúvidas. Como montara um palco, queria continuar o espectáculo.

- Então descreva-me o corpo humano. Dê uma aula sobre o que tem estudado, seu megalomaníaco.

A plateia foi ao delírio diante da esperteza do comissário.

- Você é uma fera, chefe! - diziam os subordinados, querendo exaltar o seu ego. O comissário, por sua vez, acariciou a sua cabeça avantajada.

Mas mexeram num vespeiro. Não sabiam em que armadilha tinham caído. Marco Polo, por ser perseguido nas aulas de Anatomia, tinha de ser um excelente estudante para passar nas provas.

Ele fixou o olhar nos presentes e começou, com a maior segurança, a discorrer sobre os intricados músculos do antebraço. Logo às primeiras informações, as pessoas ficaram de olhos arregalados.

Depois começou a descrever o trajecto do nervo radial. Em seguida, deixou-os espantados ao falar sobre as aurículas e os ventrículos do coração. Descreveu a localização da aorta, as artérias e arteríolas. Indicou também quantos ossos tinha o esqueleto humano.

Após ter conquistado a plateia, resolveu gozar de forma subtil com o comissário.

- Pelo crânio enorme que o senhor comissário possui, certamente o seu cérebro é privilegiado.

Pegou numa folha de papel que estava sobre a mesa. Dobrou-a e pediu para medir a testa da autoridade. E armou espectáculo.

- É de se supor que o senhor tenha uns noventa mil milhões de neurónios.

O comissário, desde a infância, tinha um complexo de inferioridade por causa da sua cabeça volumosa. A sua alcunha na escola era Cabeçudo. Os seus colegas troçavam dele. A medida que ia crescendo, tentou compensar a sua baixa auto-estima sendo agressivo e autoritário. Impunha as suas ideias e não as expunha. Mas, diante da descrição supostamente favorável de Marco Polo, sentiu-se um intelectual.

Não sabia que Marco Polo brincara reduzindo o número dos seus neurónios. Um cérebro normal tem mais de cem mil milhões de neurónios. Bem-humorado, Marco Polo chamara-o solenemente diante dos amigos de «grande cérebro».

- Grande cérebro! Nunca ninguém me chamou isso.

Satisfeito, passou as mãos novamente na cabeça, pela primeira vez com alívio. Diante do vasto conhecimento de anatomia do jovem e sentindo-se elogiado pelas suas palavras, mudou o tom do interrogatório.

«Este rapaz tem comportamentos estranhos, mas parece uma boa pessoa», analisou novamente consigo mesmo. Além disso, ele podia realmente ser um estudante de Medicina excêntrico e o comissário temeu sofrer um processo por abuso de autoridade.

Perguntou porque é que Marco Polo estava vestido daquela maneira. Recebeu as explicações. Diante da história indigesta e não sabendo como proceder, deixou o rapaz numa sala especial até esclarecer os factos.

Uma hora depois, apareceu uma testemunha para depor espontaneamente. Era um empregado de balcão que trabalhava numa loja nas redondezas. No momento em que passava pela praça, viu o infractor menor atirar a mala para cima do velho mendigo.

Comentou ainda que aquele mendigo frequentava a praça há algum tempo e era conhecido dos transeuntes pela sua inteligência e bizarria. Contou como Marco Polo protegera o velho. E, antes que o comissário lho perguntasse, disse que não tomara nenhuma atitude na hora porque o ambiente estava conturbado. Tivera medo de esclarecer os factos na praça. Mas, comovido com a atitude do jovem, viera depor a seu favor.

O comissário esfregava as mãos na nuca. Piscava os olhos e respirava fundo. Tentava descobrir se aquilo era sonho ou realidade. Estava tão perplexo, que comentou:

- Nunca ouvi falar sobre um indigente inteligente, nunca ouvi falar sobre alguém assumir a culpa de outrem, nunca vi um estudante de Medicina mendigo! Isto é de mais para mim. Isto é coisa de gente maluca.

- Ou de gente que se ama - emendou o empregado de balcão.

Sabendo que tinha sido autoritário para com Marco Polo, chamou-o à parte e tentou justificar o injustificável: a sua atitude discriminatória. Disse que não podia adivinhar que na pele de um vagabundo estivesse um jovem da elite. E aproveitou para confirmar se ele achava mesmo que o seu cérebro tinha muitos milhões de neurónios.

- A sua cabeça é a de um génio. Freud teria inveja do senhor - disse-lhe Marco Polo.

O comissário foi às nuvens. Mas Marco Polo estava consternado. Deixou o templo da justiça decepcionado. Sentiu na pele que a justiça é forte para com os fracos e frágil para com os fortes...

Apesar disso, saiu a cantarolar. Afinal de contas, o seu mestre ensinara-o a brincar com a vida e não a zangar-se com ela.

 

                       Capítulo 5

No dia seguinte, Marco Polo foi novamente encontrar o amigo. Vestia as suas roupas habituais. No entanto, de dia para dia convencia-se de que os normais eram mais doentes do que poderia supor.

Falcão, desta vez, aguardava-o.

- Fazia tempo que não me preocupava com a sorte de alguém.

- Você preocupou-se comigo? - indagou Marco Polo, agradavelmente surpreendido.

- Esqueceu-se de que arranjei um filho cabeça-dura? - brincou.

A situação em que os dois se envolveram foi tão invulgar, que Marco Polo conseguiu algo raro do velho sábio: que ele falasse sobre o seu mundo. Falcão era um cofre. O jovem estudante só conseguiu que ele abrisse a sua boca porque conquistou a sua alma. Sentaram-se e tiveram uma longa conversa.

Marco Polo estava boquiaberto com as revelações de Falcão sobre o Poeta da Vida. Relatou que ele sabia transformar as coisas simples num espectáculo para os seus olhos. Fazia da aurora um momento de meditação. Considerava o orvalho da manhã como pérolas anónimas que por instantes aparecem e logo se dissipam, sendo apenas notadas pelos seres sensíveis. Despedia-se da Lua como quem se despede de uma amiga. Cantava quando as gotas de chuva humedeciam a terra. Era apaixonado pela vida, pela natureza e pelo Autor da existência.

O jovem bebia as palavras do velho qual sedento no deserto. Marco Polo sentiu que os que estavam à margem da sociedade tinham muitas perturbações, mas viviam mais aventuras, pelo menos alguns deles. A sociedade tornara-se um mercado de tédio, sem poesia e sensibilidade.

Falcão tinha uma maneira peculiar de se expressar: falava a olhar para uma plateia invisível e não directamente para Marco Polo. Quando queria, era um homem de pormenores, dissecava os sentimentos. Tinha a habilidade impressionante de produzir frases de efeito.

Relatou ainda que o Poeta da Vida era um grande crítico do sistema social. Dizia que na sociedade havia muitas pessoas que tentavam conquistar o mundo exterior, mas não o seu mundo interior. Elas compravam bajuladores, mas não amigos; roupas de grife, mas não o conforto. Colocavam trancas nas portas, mas não tinham protecção emocional. «Mendigam o pão da tranquilidade. Estão piores do que nós, meus amigos», dizia a mim e aos que o rodeavam para beber da sua inteligência.

Ele gostava de proclamar que ricos são os que extraem muito do pouco e livres os que perdem o medo de ser o que são. «Somos ricos e livres», gostava de dizer aos miseráveis das ruas, tentando consolá-los. Alguns não entendiam as suas palavras, mas ainda assim ele não deixava de as dizer.

De repente, apareceu um mendigo a pedir comida a Falcão. Ele só tinha alguns trocados, mas deu-lhos. Despediu-se dele desejando que caminhasse em paz.

- Você deu todo o dinheiro que possuía. Não vai passar fome à noite?

- Pode ser. Mas há uma fome que saciei agora. A fome de aliviar a dor de alguém.

Marco Polo emudeceu. Após um momento de silêncio. Falcão olhou novamente para a sua plateia invisível e perguntou.

- Você passa pelos vales da dor? Marco Polo reflectiu e considerou:

- Algumas vezes, sim.

- Não se intimide. Eu e o Poeta comentávamos que não há pessoas isentas de sofrimento, nem no meu nem no seu mundo. O que há são pessoas menos encarceradas que outras. Todos somos reféns de algum período do passado.

Falcão não fez comentários sobre as algemas do seu passado nem Marco Polo se atreveu a questioná-lo. Continuou a descrever o Poeta. Disse que, quando a fome apertava, ele não pedia dinheiro, fazia os homens viajarem.

- Viajarem?

- Sim. Viajarem para dentro de si mesmos.

- Como?

Falcão subiu para um banco da praça e repetiu a cena que o seu amigo fazia e que ele aprendera a fazer. Convidou a multidão a aproximar-se. Começou a declamar alto e bom som uma poesia à natureza. Os transeuntes, admirados, fizeram um semicírculo à sua volta. Apontou para um belo pássaro e levou a multidão a viajar nas suas asas.

- Mais sábios que os homens são os pássaros. Enfrentam as tempestades nocturnas, tombam dos seus ninhos, sofrem perdas, dilaceram as suas histórias. Pela manhã, têm todos os motivos para se entristecerem e reclamarem, mas cantam agradecendo a Deus por mais um dia. E vocês, portadores de nobres inteligências, que fazem com as vossas perdas?

Em seguida, colocou o esgaçado chapéu à sua frente. Calou-se e sentou-se ao lado do deslumbrado Marco Polo. Os ouvintes, extasiados, aplaudiram-no e deram-lhe dinheiro. Marco Polo indagou:

- Você recebeu muitas esmolas?

- Não recebi esmolas. As pessoas pagaram-me pela viagem que lhes proporcionei. Saiu-lhes barato.

Aquilo era de mais para a mente de Marco Polo. Ele ficava atónito a cada frase de Falcão. Após a dispersão da multidão, vários mendigos famintos aproximaram-se. Falcão distribuiu o dinheiro entre eles. Este ritual era comum.

- Você deu-lhes todo o dinheiro?

- No meu mundo, os mais fortes servem os mais fracos. No seu, os mais fracos servem os mais fortes. Qual é mais justo?

Marco Polo sentiu um nó na garganta. Achou desnecessário responder. Após este episódio, Falcão começou a falar da identidade social do Poeta. Há semanas que Marco Polo esperava por isso.

Contou que o Poeta era um médico respeitado na sociedade. Casou-se e amou a sua mulher. Tiveram dois filhos que encantavam o casal. Amava-os até ao limite do seu entendimento. Brincava com eles diariamente. Raramente um pai foi tão presente e tão carinhoso. Todavia, o «pássaro» enfrentou a mais dramática tempestade nocturna.

O ninho do Poeta desabou. Certa vez, toda a sua família viajava de carro. Chovia muito. Numa ultrapassagem, ele perdeu o controlo do carro e sofreu um grave acidente. Toda a sua família morreu. Um dos filhos não partiu imediatamente. Ficou durante um longo período em coma. O Poeta também, mas por poucos dias.

Quando acordou, o mundo desabou sobre ele. Atormentava-se dia e noite com ideias negativas que alimentavam o seu sentimento de culpa e esmagavam a sua tranquilidade. Como consequência, teve sucessivas crises depressivas. Nada o consolava.

- Ele não se tratou, não tomou antidepressivos? Para surpresa de Marco Polo, Falcão comentou:

- Os antidepressivos tratam a dor da depressão, mas não curam o sentimento de culpa nem tratam a angústia da solidão...

- Ninguém conversava com ele? Ele não fez terapia?

- Ele tinha sede de compreensão, de interiorização, e não de conselhos e técnicas frias. Poucos têm maturidade para entender o drama de alguém que perdeu tudo. Que teoria e que técnica psicológica poderiam levantar a esperança do caos? Os terapeutas tinham teoria, mas faltava-lhes sabedoria...

Tais palavras fizeram eco no jovem Marco Polo, abriram o leque da sua inteligência. Desejou anotar com mais pormenor as conversas com o seu mestre. Estimulado pelos seus diálogos, também começou a reflectir e a anotar os comportamentos das pessoas que o rodeavam. Pouco a pouco, aprendia a ser um garimpeiro do indecifrável mundo da mente humana.

A conversa continuou, e o jovem perguntou:

- O Poeta nunca foi internado em hospitais psiquiátricos?

- Ele isolava-se durante dias no quarto da sua casa para organizar as suas ideias, procurar sentido para a sua vida, mas os psiquiatras interpretavam esse isolamento como um agravamento da crise depressiva. Por isso, internavam-no. No hospital, os medicamentos embotavam os seus sentimentos. Não conseguia pensar, reflectir ou alimentar a sua lucidez. Assim, deprimia-se mais ainda, deixava de se alimentar e de ter contacto social.

Então, fizeram-lhe terapia com electrochoques. Não apresentou nenhuma melhora.

- Mas como foi ele parar às ruas?

Falcão relatou que o Poeta, ao saber que o seu filho tivera uma paragem cardíaca e morrera na UCI depois de mais de seis meses em coma, ficou agitado, entrou em desespero. Foi o golpe fatal. Internaram-no novamente.

- Se tivesse sido simplesmente abraçado, ouvido, amparado, talvez tivesse suportado o seu caos. Mas foi tratado como um doente. A dor tornou-se insuportável. Não tentou o suicídio, não desistiu de viver, mas fugiu do hospital e saiu sem destino pelo mundo.

Falcão contou que, tal como ele, se tornara um andarilho sem rumo, pois procurava um lar dentro de si mesmo para descansar. Um lugar de conforto nos destroços das suas perdas. Queria resgatar uma razão para continuar a respirar fisicamente e a oxigenar a sua emoção.

- Como foi a sua adaptação a um ambiente inóspito? As suas crises não pioraram quando saiu sem rumo?

- Nas ruas, o Poeta encontrou miseráveis como ele. Conheceu os incompreendidos, os dilacerados pelas perdas, os mutilados pela culpa, os transtornados pelas psicoses, os que são considerados o lixo do sistema. Ajudar todas essas pessoas deu-lhe ânimo.

Em seguida, apontou ao longe uma mulher indigente, chamando-a pelo nome, dizendo que ela perdera os seus pais, a sua segurança, o seu chão. Bárbara já não tinha família nem amparo. Tornou-se alcoólica. Saiu pelo mundo. Falcão apontou ainda outras pessoas.

- Tiago era rico e perdeu tudo: dinheiro, privilégios, esperança, autoconfiança, capacidade de lutar. Tinha status, glamour, mas perdeu a sua glória e os seus amigos e, não suportando o anonimato, abandonou-se. Aquele de casaco preto é o Tomás. Foi um brilhante jornalista. O alcoolismo e as crises depressivas roubaram-lhe o emprego, a mulher, os bens e a serenidade.

Em sequência, apontou para mais duas pessoas.

- João e Adolfo ainda são psicóticos, deliram, atormentam-se com imagens aterradoras. Ambos foram professores universitários. Ficaram saturados das crises que tinham e dos internamentos. Fizeram do mundo um lugar mais amplo para fugir dos seus fantasmas.

Em seguida, apontou para uma mulher muito magra. Joana fora modelo na sua adolescência. Engordou, perdeu as curvas do corpo, a beleza exterior e admiração social. Foi descartada, deixou-se abater, teve anorexia nervosa. Os seus pais adoptivos morreram. Ela ficou só. Foi internada de hospital em hospital, até que resolveu procurar um lugar onde ninguém se preocupasse com a aparência.

- A sua sociedade usa as pessoas e descarta-as como objectos. Cuidado, meu jovem! Os aplausos não duram.

Marco Polo estava impressionado. Todas aquelas pessoas tinham histórias riquíssimas, porém passavam despercebidas aos preconceituosos olhares dos transeuntes. «Ninguém teria coragem de abandonar completamente o conforto social se não tivesse uma vida dilacerada, um motivo fortíssimo», reflectiu.

Respirou fundo e, em seguida, relatou o seu encontro com o amigo. Disse que o Poeta chorara muitas vezes ao longo das estradas. Tinha passado noites inteiras a chorar nas praças das cidades e nos becos escuros, a perguntar: «Porquê? Meus filhos, onde é que vocês estão?» Numa dessas praças, Falcão encontrou-o a chorar.

As lágrimas aproximaram-nos. Nenhum deles falou. Choraram juntos, cada um pela sua história. Nenhum dos dois precisou de se apresentar ou mostrar as suas credenciais.

- Eu compreendi-o sem o ouvir e ele entendeu-me sem me escutar. Das lágrimas nasceu uma grande amizade.

Respirando pausadamente, completou:

- Para o Poeta, ajudar os abandonados era prestar uma homenagem aos seus filhos e à sua mulher. Pouco a pouco, ele resgatou a fé em Deus. Começou a ver a assinatura do Criador no delírio de um psicótico, no desespero de um deprimido, no perfume de uma flor, no sorriso de uma criança.

Marco Polo ouvia a sua própria respiração, enquanto escutava o relato de Falcão.

- Desse modo, o Poeta saiu do casulo, levantou-se das ruínas. Fez das suas perdas uma lâmina cortante para lapidar a sua inteligência, coisa rara no seu e no meu mundo. A sua saudade nunca foi resolvida, mas as perdas não mais o asfixiaram. Por isso, citava os seus filhos e a sua mulher sem culpa e com alegria nas longas conversas com os excluídos. Eles estavam vivos no único lugar em que nunca poderiam morrer - dentro dele.

- Você foi ajudado por ele?

A pergunta de Marco Polo ecoou dentro de Falcão. O homem forte desapareceu, entristeceu e conteve os seus soluços. A sua voz emudeceu.

Marco Polo leu o seu silêncio. Percebeu que Falcão não perdera apenas um amigo, mas talvez toda a sua família. Tocou no seu ombro afavelmente em sinal de compreensão. Levantou-se. Era o momento de partir e não de dialogar.

Enquanto caminhava para casa, sabia que o seu amigo caminhava pelas avenidas do seu passado. Roupas rasgadas, corações despedaçados, feridas abertas, enfim, uma história de segredos que fora reconstituída e se tornou uma brilhante poesia. «Foi uma pena não ter conhecido o Poeta», pensou. E reflectiu se não estaria a perder a oportunidade de conhecer outros Poetas, outras pessoas interessantes que passavam pela sua vida, mas que só conhecia superficialmente.

Pensou particularmente no seu pai, que morava numa cidade distante da sua. O senhor Rodolfo fora sempre incompreendido pelo seu idealismo social e por não se preocupar com o amanhã.

Até à sua pré-adolescência. Marco Polo admirava-o e era influenciado pela sua habilidade em contar histórias. Todavia, à medida que foi crescendo, os atritos da sua mãe, Elisabete, que era ambiciosa, com o pai, que era desprendido, aumentaram. Ela acabou por exercer uma maior influência sobre o filho nos anos que antecederam a sua faculdade.

Elisabete amava o seu marido, mas criticava-o frequentemente em frente de Marco Polo, dizendo que o pai deveria ter menos sonhos e mais dinheiro. Tomando o partido da mãe, Marco Polo teve alguns atritos com o pai. Chegou a pensar que ele era um fracassado, um alienado e uma pessoa complexada.

Agora que tinha uma personalidade formada e maior consciência crítica, precisava de o julgar menos e compreender mais. O seu contacto com Falcão fê-lo ver o mundo por outros ângulos. Precisava de ir para lá da aparência. Necessitava de descobrir os traços subtis que compunham o quadro dos comportamentos do seu pai.

Chegado a casa, escreveu-lhe uma carta.

 

   Pai,

Desculpe-me pelas atitudes impensadas. Eu sei que o feri com as minhas críticas precipitadas. Perdi tanto tempo a julgá-lo. Eu tenho a impressão de que não o conheço interiormente, embora tenha vivido consigo num espaço pequeno durante tantos anos. Fomos estranhos a morar na mesma casa. Gostaria de saber quem você é, quais foram as lágrimas que não chorou, quais foram os dias mais tristes da sua história e quais foram os desafios que nunca teve coragem de me contar?! Pai, se eu pudesse voltar no tempo, não pediria apenas que voltasse a contar-me as belas histórias de aventura, mas principalmente que me contasse a sua própria história, falasse dos seus projectos, dos seus sonhos, das suas derrotas. Tenho a certeza de que ela é fascinante. Eu tenho muitos defeitos, mas gostaria de ter uma nova oportunidade de ser seu amigo.

 

Ao receber aquela carta, o senhor Rodolfo ficou profundamente comovido. Não sabia o que se passava com o seu filho, mas tomou consciência de que também não o conhecia. Poderia ter brincado, conversado e vivido mais momentos descontraídos com ele. Agora, separados pela distância física, começaram a corresponder-se, a aproximar-se e a admirar-se.

Marco Polo compreendeu que um dia a maioria das pessoas tinha de juntar os seus pedaços e rescrever a sua história. Contudo, aprendeu que reconstruir as relações sociais não era uma tarefa simples - exigia audácia.

Ao anotar o último encontro com o filósofo mendigo, terminou o seu texto escrevendo: «Muitos dos que têm morada certa passam pela existência sem nunca percorrer as avenidas do seu próprio ser. São forasteiros para si mesmos. Por isso, são incapazes de corrigir as suas rotas e superar as suas loucuras.»

 

                           Capítulo 6

Marco Polo chegou às 15 horas à praça. O dia fora cansativo, mas encontrar Falcão era um convite a novas experiências. Ele mostrava um comportamento estranho, tenso, fechado. Parecia querer distância. Remoer o passado no dia anterior mexera com o seu ânimo.

Marco Polo tentava distraí-lo, mas o seu olhar era opaco, sem o brilho das outras vezes. Estava circunspecto. Percebendo que a conversa seria um monólogo, resolveu ir-se embora. Respeitou o seu momento. «Não vale a pena pressionar quem não está disposto ao diálogo», reflectiu. Após os primeiros passos. Falcão disse-lhe:

- Não é recomendável que os normais se aproximem de mim.

Marco Polo, intrigado, sabia que ele não se abriria se não provocasse a sua inteligência. Mas não poderia ser estúpido. Arriscou dizer:

- Não há um normal que não seja anormal nem um anormal que não seja passível de ser um mestre.

Falcão olhou admirado o amigo, mas desferiu-lhe um golpe inesperado:

- Disseram-me que sou perigoso para a sua sociedade. O que espera você de mim? Sou um doente mental. É melhor desaparecer.

Marco Polo ficou calado. Fora sempre impulsivo, mas estava a aprender a difícil arte de pensar antes de reagir. Após um momento de introspecção, disse:

- Os aparentemente saudáveis sempre cometeram mais loucuras contra a humanidade do que os loucos. Você não é perigoso, a não ser para os que têm medo de pensar.

Falcão esfregou a mão direita na testa, levantou-se, foi até uma flor e começou a falar com ela.

- És tão linda e eu sou tão rude, mas obrigado por invadires os meus olhos e me encantares sem nada exigir!

Marco Polo também se levantou. Foi até uma árvore próxima, abraçou-a, beijou-a e disse algumas palavras em voz audível:

- És tão forte! Suportaste tantas tormentas. Mas fortaleceste-te e hoje, gratuitamente, dás-me a tua sombra, a mim que sou tão frágil. Obrigado pela tua perseverança!

Falcão olhou de relance o jovem e fez um sorriso.

Os transeuntes tropeçavam uns nos outros ao ver a cena. Riam. Faziam gestos a querer dizer que estavam diante de dois loucos. Voltando-se para eles. Falcão declarou:

- Quem nunca abraçou uma árvore ou conversou com uma flor nunca foi digno das dádivas da natureza! Não sejam insensíveis! Aprendam a amar quem tanto lhes dá!

Envergonhadas com as ideias do mendigo, as pessoas dispersaram-se pensativas. Trinta metros adiante, um adolescente com um corte de cabelo punk abraçou um imenso tronco e beijou-o. Ao seu lado, um senhor de idade baixou-se diante de uma pequena flor. Parecia reverenciá-la. Um adulto de fato e gravata também abraçou um tronco de árvore por um minuto. Outras pessoas repetiram a cena. A sensibilidade deles foi contagiante.

Em seguida, os amigos sentaram-se no banco e reiniciaram uma longa conversa. Depois do Poeta, Marco Polo tornou-se a primeira pessoa a quem Falcão relatou a sua surpreendente história. Nem os seus companheiros de caminhada conheciam certos becos da sua vida.

- Porque é que você tem a alcunha de Falcão?

- Foi ideia do Poeta. Dizia exageradamente que a minha inteligência era aguçada como os olhos de um falcão e a minha criatividade voava alto como as suas asas. Mas, na realidade, nasci das cinzas.

- Como assim?

Uma breve pausa. Falcão olhou para a sua plateia invisível e comentou.

- Eu sou doutorado em Filosofia.

Marco Polo quase caiu do banco. O céu da sua mente clareou subitamente. Agora entendia o génio que o ensinava.

- Fui professor de Filosofia numa grande universidade. Já brilhei no pequeno mundo de uma sala de aula, embora tenha sido sempre um crítico do sistema académico. Escrevi textos, orientei teses, formei alguns pensadores.

Em seguida, falou espontaneamente da sua intimidade. Contou que a sua família era de origem humilde e cheia de problemas. O seu pai era explosivo, materialista e alcoólico. A sua mãe, tímida, afectuosa e vítima da agressividade do marido. Ele crescera no centro da miséria física e emocional. Por serem pobres, os seus pais não tinham condições de o financiar na universidade.

- Para conquistar os meus sonhos, tive de estudar e trabalhar muito. Mas não resolvi os meus conflitos.

- Você constituiu família?

Mais uma pausa. Desta vez longa e dolorosa.

- Eu era considerado o melhor aluno da faculdade e o mais destacado orador. Encantei uma linda jovem da mesma universidade. Amei e fui intensamente amado por ela. O seu pai era um famoso e rico advogado. O Dr. Pedro era fascinado pelo dinheiro e fixado no status social.

Continuou a contar que não conseguiu dar à sua mulher o padrão de vida que ela tivera na casa dos pais. O pai dela incentivou sempre a separação. Frustrava-o o facto de a única filha não se ter casado com um juiz ou promotor de justiça. Ter um filósofo e pobre professor universitário na família foi um pesadelo que sempre o perturbou.

- Os professores são heróis anónimos, meu amigo. Trabalham muito, ganham pouco. Semeiam sonhos numa sociedade que perdeu a sua capacidade de sonhar.

Ao ouvir aquele relato, Marco Polo ficou embaraçado. Percorria com os olhos a imagem de Falcão enquanto ele discorria sobre si e não entendia como uma pessoa intelectualmente brilhante pôde ser completamente excluída da sociedade. Ficou a pensar se Falcão tivera perdas semelhantes às do Poeta. Desenhou um quadro imaginário com falecimentos, depressão e solidão.

De repente, piscou os olhos, fez um movimento rápido com a cabeça e voltou para a realidade. Sentiu Falcão abatido, percebeu que não queria tocar mais no assunto da família. Marco Polo procurou mudar um pouco o rumo da conversa.

- Quando é que começou a adoecer?

- Seis anos depois de me casar, comecei a ter insónias. Os meus pensamentos eram agitados e acelerados. Estava ansioso, não conseguia coordenar as minhas ideias. Milhares de imagens transitavam na minha mente num processo ininterrupto. Pouco a pouco, comecei a perder os parâmetros da lógica. Já não conseguia distinguir a realidade da fantasia.

Falcão dissecava as suas mazelas com a precisão de um cirurgião na sala de anatomia. Só conseguia fazer tal descrição porque era um brilhante pensador que muitas vezes penetrara na sua própria história tentando compreendê-la. Marco Polo sentia um aperto no peito e um nó na garganta diante da exposição do amigo.

- Comecei a ter paranóia. Achava que algumas pessoas liam os meus pensamentos e queriam controlar a minha inteligência. Ideias de perseguição atormentavam-me. Ter inimigos fora de si é perturbador, tê-los dentro da própria mente é assustador. A sensação de ser invadido no único lugar em que devemos ser livres atormentava-me.

- Você não tinha controlo sobre o seu raciocínio?

- No começo, desconfiava das minhas personagens, tinha certa consciência de que eram irreais, mas elas avolumaram-se e, pouco a pouco, comecei a lutar com elas como se fossem reais. Elas tornaram-se predadores e eu, a caça.

Marco Polo estava perplexo com o relato vivo da destruição de uma complexa personalidade.

- Nesse embate delirante, perdi a maior dádiva de um ser humano: a sua consciência crítica, a sua identidade. Não sabia quem eu era. A minha mente tornou-se um tenebroso teatro. Antes da psicose, eu era o actor principal desse teatro, semanas depois era um actor secundário, meses depois tornei-me a plateia da minha miséria psicológica. Foi horrível. Fiquei confuso, desorientado e amedrontado. A minha estrutura intelectual desfez-se.

Marco Polo não sabia o que dizer. Não conseguia formular uma pergunta. Falcão parecia alguém tão lúcido, não imaginava que tivesse vivenciado tamanho sofrimento. Passado o primeiro impacto, indagou:

- Como foi que você deixou de leccionar?

- Os alunos admiravam a minha eloquência. Era o professor mais procurado e mais solicitado para apadrinhar as turmas. Lutava para que aqueles jovens pensassem, não fossem formatados, não se tornassem repetidores de ideias, mas engenheiros de novos pensamentos. No entanto, quando comecei a ter as minhas crises, foi um desastre.

Falcão disse que quem o conhecia ainda o respeitava, mas os demais troçavam dos seus gestos bizarros. Às vezes, ficava dias sem dar aulas. Fez mais uma pausa e contou como fora excluído da universidade.

Certa vez, estava a ensinar a uma turma de Direito a ética dos filósofos gregos. A sala estava cheia. Falava com entusiasmo. Subitamente, interrompeu-se e começou a discutir com as personagens do seu imaginário. Os alunos entreolhavam-se assustados.

- Eu delirava e alucinava, sentia-me na Grécia Antiga, sentado num cenáculo repleto de pensadores, entre eles Platão. Levantei a voz e proclamei: «Platão, a ética está a morrer! A violência faz parte da teia social. As pessoas não sabem perscrutar os recônditos das necessidades dos outros!»

Ao fazer a descrição dos factos ocorridos na sala de aula, Falcão inspirou profundamente e soltou o ar como se quisesse expulsar os demónios do passado. Marco Polo estava ansioso por conhecer o desfecho.

- Ao ouvir o meu discurso, os alunos aplaudiam e assobiavam, tanto pelo brilho das ideias como pela loucura do espectáculo. Não compreendiam que eu estava a ter um surto psicótico.

Falcão comentou que os aplausos dos alunos o excitaram. Ele subiu para a cadeira e continuou o seu discurso ainda com mais veemência. Alguns gritaram: «Louco! Louco!» Então, voltou-se para eles e começou a provocá-los.

- Gritei para os alunos: «Eis uma plateia de servos gregos! Sorriem das misérias alheias porque escondem as suas misérias debaixo das suas vestes. Vocês não sabem filosofar, só sabem ser comandados. Servos!»

Marco Polo exclamou:

- Mas as suas ideias tinham coerência!

- Não há louco que não seja lúcido nem lúcido que não seja louco. O problema é que os psicóticos juntam na mesma cena ideias coerentes com delírios. Os pensamentos ficam entrecortados. Eu parava de falar com os alunos e começava a conversar com as minhas personagens. Rebatia uma, concordava com outra, discutia com outras.

Todavia, brincando com o seu passado. Falcão disse a Marco Polo:

- Eu fui tão genial que Platão ficou assombrado com os meus pensamentos...!

Mas, em seguida, olhando vagamente para o espaço, recordou o desfecho do doloroso momento. Quando provocou os alunos, eles passaram imediatamente dos aplausos para as vaias. Alguns chamaram rapidamente o director da faculdade.

O director solicitou que três seguranças o retirassem da sala. Ele recusou-se. Devido ao tumulto, outros professores aproximaram-se. Eles agarraram-no como se fosse um animal.

- Senti-me como Sócrates, condenado à cicuta, destinado ao eterno silêncio. E bradei novamente: «Hipócritas! Deponham as armas! Enfrentem-me no campo das ideias!»

Diante do breve silêncio de Falcão, Marco Polo antecipou-se com ansiedade:

- Eles levaram-no para um hospital psiquiátrico?

- Quando me puseram as mãos em cima, eu tinha a força de um gladiador diante das feras. Consegui escapar. Subi para a mesa e proclamei o hino à liberdade, uma poesia filosófica que escrevi nos momentos de lucidez.

- Ainda se lembra dela?

- Algumas frases.

Falcão subiu para o banco da praça e proclamou-a. Ao ouvi-la, juntou-se uma multidão.

Vocês podem calar a minha voz, mas não os meus pensamentos!

Vocês podem acorrentar o meu corpo, mas não a minha mente!

Não serei plateia desta sociedade doente, serei autor da minha história!

Os fracos querem controlar o mundo; os fortes, o seu próprio ser!

Os fracos usam as armas; os fortes, as ideias!

Após proclamá-la, a plateia ovacionou-o. Falcão sentou-se e relaxou. Voltou a falar com Marco Polo. Contou que o director chamara a polícia, que por sua vez chamara a ambulância de um hospital psiquiátrico. Colocaram-no numa camisa-de-forças e injectaram-lhe uma dose de um forte tranquilizante.

Falcão fitava os enfermeiros. Sentia-se vítima da maior injustiça do mundo. Enquanto a droga não o induzia ao sono, o espectáculo prosseguia. Continuava a conversar com as suas personagens fictícias. Devido à resistência à internação, foi considerado no hospital um paciente com alto potencial de agressividade. Ficou isolado por uma semana num quarto mal iluminado.

O que ninguém foi capaz de fazer, as drogas conseguiram: calar as ideias do filósofo. Doses maciças de medicamentos invadiram o seu cérebro, actuaram no processo de leitura da memória, bloquearam as janelas da sua história, obstruíram a construção de pensamentos, refrearam a sua racionalidade. Parecia um zombie no hospital. Os seus delírios e alucinações foram silenciados, todavia, o pensador também.

Ficou dois meses internado. Foi a primeira de uma série de internamentos. Depois de sair do hospital, regressou à universidade. Os seus músculos estavam tensos, a sua voz pastosa e trémula, o seu raciocínio lento. Não era mais o eloquente Falcão. A medicação que o ajudou foi a mesma que o aprisionou. Estava numa camisa-de-forças química.

Alguns alunos, ao encontrá-lo no corredor, troçavam disfarçadamente, mas ele percebia. Outros, que conheciam a sua inteligência, aproximavam-se, abraçavam-no e agradeciam a sua sabedoria, mas ficavam espantados ao vê-lo a salivar e sem expressão facial. Alguns ficavam com lágrimas nos olhos.

- Eu queria voltar a fazer o que mais amava: ensinar. Mas como poderia um louco dar aulas? O reitor da universidade disse que eu não poderia leccionar mais. Para ele e para alguns directores dos cursos em que eu leccionava, a minha doença era incurável e contagiosa, como nos tempos da varíola.

Eles acreditavam que Falcão podia perturbar o ambiente com a sua psicose. Não percebiam que os pacientes psicóticos precisam de inclusão e não de exclusão. Não compreendiam que muitos deles são dotados de refinada inteligência e sensibilidade. Já não bastava o ónus pesado da doença que transportavam, tinham ainda de carregar o ónus da rejeição.

- Pode esquecer-se de milhares de sofrimentos na vida, mas o sentimento de rejeição é uma dor inesquecível.

Solicitaram que Falcão se afastasse e se aposentasse por incapacidade. Sentindo-se inútil, o seu quadro clínico agravou-se. A sua auto-estima e autoconfiança estilhaçaram-se. Já não conseguia ter dignidade diante da sua família e da sociedade.

Desse modo, foi excluído. Disse que sempre se sentira fora do ninho dos intelectuais, mas, agora, fora banido sem compaixão.

 

                             Capítulo 7

O medo de enlouquecer sempre perturbou o ser humano. O facto de perder o juízo, não discernir a realidade, desorganizar o pensamento, romper com a consciência de si mesmo e do mundo angustia milhões de pessoas de todas as eras e de todas as sociedades.

Muitos crêem erradamente que enlouquecerão porque se afligem com ideias absurdas, sofrem com pensamentos fixos, angustiam-se com imagens mentais que nunca quiseram produzir. Mas, por terem coerência no seu raciocínio e saberem distinguir a imaginação da realidade, não desenvolvem confusão mental.

Loucura é um nome popular carregado de discriminação e de falsos medos. O nome científico é psicose. Há vários tipos de psicoses, que se apresentam com vários graus de intensidade e, consequentemente, com vários níveis de superação.

A mais temível das psicoses havia penetrado no tecido da personalidade de Falcão, comprometendo a sua racionalidade. Embora tivesse períodos de serenidade, durante as crises ou surtos psicóticos ele perdia a consciência de quem era, do que fazia e, às vezes, de onde estava. Não conseguia controlar os seus próprios actos.

Como tinha refinada cultura e era um pensador, nos períodos de lucidez esforçava-se por encontrar as causas do seu caos psíquico. Um esforço dantesco para quem tinha o seu eu fragmentado. Todavia, o tratamento psiquiátrico não evoluía.

Havia pouca troca de ideias entre ele e os seus médicos psiquiatras. Não discutiam sobre «como» e «porque» construía nos seus delírios personagens que o atormentavam. Psiquiatra e paciente viviam em mundos distintos e usavam linguagens distintas.

No dia seguinte, Falcão continuou a contar a sua história ao jovem amigo. Sentia necessidade de falar, e Marco Polo sentia necessidade de ouvir. Por isso, indagou:

- Ficou decepcionado com os seus psiquiatras? Com voz pausada, ele disse:

- Não com todos. Nos meus internamentos, encontrei alguns psiquiatras humanos, solidários e cultos, mas o contacto era raro. Com a maioria, fiquei decepcionado. Devido às ideias de perseguição e à crença fatal de que estava a ser controlado, diagnosticaram a minha doença como esquizofrenia paranóica. Sabe o que é carregar o peso de ser um psicótico?

- Nem imagino.

- É inimaginável. Os diagnósticos podem ser úteis para os psiquiatras, mas podem tornar-se um cárcere para os pacientes. Eu já não era um ser humano, era um esquizofrénico.

Falcão tinha os olhos cheios de lágrimas. Tais palavras tornaram-se inesquecíveis para Marco Polo.

- Você tentava ajudar-se?

- A única coisa saudável que me restava quando saía das minhas crises era pensar no meu mundo, tentar entender-me, reorganizar a minha personalidade fragmentada, mas tratavam-me como um doente mental incapaz de construir brilhantes ideias e dar grandes saltos interiores. Sentia-me como um rio represado que produzia muitos pensamentos perturbadores, mas não tinha para onde os escoar.

- Porque é que os doentes mentais são tão discriminados na sociedade?

- Nunca leu Foucault?

- Não!

- Devia ler. Foucault escreveu a História da Loucura na Idade Clássica. Esta obra mostra as raízes antropológicas pelas quais se classifica um indivíduo como louco. A Psiquiatria formatou essa classificação e marginalizou todos os comportamentos que se afastavam dos padrões de comportamento universalmente aceites numa sociedade. Muitos erros foram cometidos, muitas pessoas foram rotuladas de loucas apenas por terem comportamentos que fugiam ao trivial.

-      Qual é a sua definição de loucura?

- Quem a pode definir? Classicamente, loucura é toda a desagregação duradoura da personalidade que foge aos parâmetros da realidade. Mas quais são esses parâmetros? São psicóticas as pessoas que se sentem perseguidas por personagens criadas no seu imaginário. Mas as pessoas que perseguem personagens reais, como generais que desencadeiam guerras, soldados que torturam, polícias que matam, políticos que controlam, o que são? São psicóticas as pessoas que têm delírios de grandeza, que acham que são Jesus Cristo, Napoleão, Buda. Mas e os mortais que se sentem deuses pelo dinheiro e poder que possuem, que não se importam com a dor dos outros, são o quê? Para mim, há uma loucura racional aceite pela sociedade e uma loucura irracional condenada por ela.

Estas palavras saíram dos porões da memória de Falcão, do lugar mais secreto do seu ser. Revelava um pensador culto com um passado despedaçado e uma emoção profundamente ferida. Elas alojaram-se para sempre na memória do jovem Marco Polo. Falcão completou:

- Alguns psiquiatras diziam que minha psicose era crónica, incurável, porque tinha um fundo orgânico. Estava condenado.

- Como assim?

- Diziam que algumas substâncias estavam alteradas no meu cérebro e só com medicação isso poderia ser corrigido. Para eles, o aparelho psíquico é apenas um caldeirão de reacções químicas.

- Não concorda com essa tese?

- Como pode um filósofo acreditar numa tese tão rígida, limitada e débil?! A Filosofia tem milénios de existência. A Psiquiatria tem pouco mais de um século. Ela teve avanços impressionantes, mas ainda está na sua adolescência e, como a maioria dos adolescentes, a Psiquiatria tem um comportamento prepotente. É uma ciência importante, mas não é uma ciência madura. Falta-lhe humildade para compreender o mundo insondável da psique humana.

Falcão estudava a história da psiquiatria, os seus avanços, hipóteses e limitações. A sua cultura nesse campo tornara-se vasta, superava a da maioria dos psiquiatras. Em seguida, fez complexa explanação sobre a relação da psique - alma - com o cérebro.

Disse que muitos filósofos discorreram sobre a metafísica, como Aristóteles, Agostinho, Descartes, Espinosa. Revelou que a metafísica é a área da filosofia que discursa sobre a alma humana, afirmando que ela ultrapassa os limites estritamente físicos do cérebro. Descartes, seduzido pela metafísica, considerava-a como objecto primeiro do mundo das ideias. Kant submeteu-a aos limites da razão. Todavia, a metafísica foi alvo de debates e críticas acaloradas a partir do materialismo de Nietzsche, do determinismo histórico de Hegel, do marxismo, do existencialismo de Sartre, do positivismo lógico. Assim, deixou de ser debatida.

- Numa sociedade materialista, lógica, pragmática, encarcerada pela matemática e fascinada pela informática, a metafísica foi quase reformada como objecto de discussão científica.

Falcão defendia a metafísica como explicação para os indecifráveis fenómenos psicológicos que nos tecem como seres pensantes. Após este comentário, olhou para o seu jovem discípulo e questionou:

- Somos apenas um cérebro sofisticado que tomba numa sepultura para não ser mais nada? A nossa história esgota-se nessa breve existência? São débeis os milhões de seres humanos ligados a milhares de religiões que crêem numa vida que transcende a morte? O intelecto humano é apenas um computador cerebral? Não creio. Eu creio que o mundo bioquímico do cérebro não pode explicar completamente as contradições dos pensamentos, o território das emoções, os vales dos medos.

Afagando a cabeça de Marco Polo, Falcão foi mais longe no seu raciocínio:

- Grave esta frase, meu filho: a vida é um ponto de interrogação. Cada ser humano, seja ele um intelectual ou um analfabeto, é uma grande pergunta em busca de uma grande resposta...

Comentou que o tamanho das perguntas determina o tamanho das respostas. A Filosofia perguntou muito ao longo dos milénios, e a Psiquiatria, por ser jovem, perguntou pouco e respondeu rapidamente. Quem responde rapidamente corre riscos enormes.

Marco Polo apanhou um choque de lucidez. Tentava acompanhar o pensamento de Falcão, mas não era tarefa fácil. As ideias filosóficas e a compreensão de vida do velho amigo mudariam para sempre a sua visão como futuro psiquiatra. Por desejar explorar o desfecho da sua doença, perguntou:

- Como era a sua relação com os psiquiatras?

- Os psiquiatras têm um poder que nenhum ser humano alguma vez teve na história. Os reis e ditadores tiveram armas para ferir o corpo e aprisioná-lo. Os psiquiatras têm medicamentos que invadem o inconsciente, o lugar onde nascem as ideias e as emoções. Um espaço jamais penetrado, que nem os próprios psiquiatras conhecem.

- Você precisava dessas drogas para combater os seus delírios?

Com um ar triste, o pensador disse:

- O meu cérebro precisava de medicamentos, mas a minha alma precisava de diálogo. Todavia, quando somos rotulados como psicóticos, raramente alguém reconhece que temos um mundo complexo com necessidades intrincadas. Criamos monstros nas nossas crises e temos de conviver sozinhos com eles. Raramente alguém quer partilhá-los connosco.

Marco Polo fez uma introspecção, olhou para a sua história e percebeu que também criava os seus monstros e não os partilhava.

- Creio que todos nós criamos os nossos monstros, os nossos medos, inseguranças, pensamentos mutiladores, mas raramente encontramos pessoas dispostas a partilhá-los.

- Quando não há como partilhá-los, temos de os enfrentar, caso contrário, não sobrevivemos. Mas a maioria foge dos seus monstros.

Marco Polo começou a ter apreço pela filosofia, o que o levaria a tornar-se um estranho no berço da medicina. Ao interpretar a história de Falcão, compreendeu que os génios e os psicóticos estiveram sempre próximos, foram sempre incompreendidos. Frequentemente, a solidão envolveu-os.

Percebeu também que, no fundo, todos somos abraçados por alguns tentáculos da solidão. Alguns falam muito, mas calam-se sobre os aspectos íntimos das suas vidas. Concluiu que uma dose de solidão estimula a reflexão, mas a solidão radical estimula a depressão.

Compreendeu ainda que, quando o mundo nos abandona, a solidão é tolerável; mas, quando nós mesmos nos abandonamos, ela é insuportável. Falcão rompeu a sua solidão, tornou-se companheiro de si mesmo e encontrou um grande amigo, o Poeta.

 

                             Capítulo 8

Noutro dia, Falcão revelaria a parte mais dolorosa da sua história. Queria andar, movimentar-se, para discorrer sobre a sua úlcera emocional. Marco Polo acompanhou-o. Pausadamente, foi directo ao assunto.

- Débora, a minha ex-mulher, era uma mulher linda, afectuosa e corajosa. Enfrentou o pai e a sociedade para estar ao lado de um filósofo pobre. Apreciava o meu modo simples de viver. Correu riscos por me amar. Lutou por mim. No começo, acreditou até nos meus delírios. Mas não conseguiu aguentar. Sem querer, acabei por magoá-la muito.

Enquanto caminhavam, as suas lágrimas saíram da clandestinidade e começaram a percorrer as estrias do seu rosto. - Você teve filhos?

Falcão olhou para o céu. Um sopro de brisa afagou o seu rosto. Os seus cabelos longos e brancos caíram-lhe sobre o rosto. Respirou pesadamente e, como se estivesse a viajar no tempo, acenou afirmativamente com a cabeça.

- Um único filho.

Pela primeira vez, mostrava-se desprotegido diante de Marco Polo. O ponto central da sua vida estava a ser desvendado. Marco Polo pensou que provavelmente o filho estaria morto. Não queria perguntar, mas, diante do silêncio prolongado do amigo, não se conteve.

- O seu filho está vivo?

Imagens mentais povoaram o imaginário de Falcão, como se fossem representações cinematográficas. Ele viu-se de braços abertos e o seu filho com a idade de quatro anos a correr para um abraço amoroso. O menino dizia: «Papá, eu amo-te.» Brincando com ele, o pai respondia: «Eu não te amo, eu "superamo-te"! Estou apaixonado por ti, meu pupilo.» Pupilo era a alcunha carinhosa que o pai lhe dera. Pegava no seu menino ao colo, despenteava os seus cabelos e fazia-lhe cócegas. Ao voltar a si, comentou:

- É provável que o Lucas esteja vivo. Raramente recebi notícias dele.

Marco Polo, afoito, fez uma pergunta óbvia, aquela que toda a gente é capaz de fazer e a que Falcão menos precisava de ouvir:

- Porque é que não recebe notícias dele? A resposta foi contundente:

- Porque elas me esmagam com um sentimento de culpa. Marco Polo sentiu um nó na garganta.

- Há quanto tempo não o vê?

- Há mais de vinte anos.

«Vinte anos é muito tempo», pensou Marco Polo. Sentiu que, se estivesse no lugar de Falcão, nunca se afastaria do seu filho, fosse qual fosse a circunstância. Criticou-o rapidamente, sem conhecer a verdadeira história.

Falcão prosseguiu contando que, quando saía das suas crises, tinha vergonha da sociedade, sentia-se julgado e observado por todos, não por delirar, mas por se considerar o último dos seres humanos. Compreendia a dor da rejeição que os leprosos na época de Cristo sentiam ao serem excluídos da sociedade.

A partir dos cinco anos de Lucas, Falcão começou a ter crises. Todavia, amava tanto o seu filho que nos períodos de lucidez fazia um esforço descomunal para brincar com ele e para o ensinar. Era a sua razão de viver. Mas as crises aumentaram.

O seu último psiquiatra seduziu a sua mulher. Débora estava frágil, desprotegida e carente. Envolveu-se com ele. Certa vez. Falcão descobriu algumas cartas secretas que o psiquiatra escrevera para ela. Apesar das elevadas doses de remédios, conseguiu chorar, os seus lábios tremiam, mas não reagiu. Sabia que a tinha perdido.

O psiquiatra, com total falta de ética, disse à sua mulher que Falcão seria sempre um doente mental. Incentivou a separação para o bem do próprio filho. Confusa, Débora pediu conselho ao pai. O Dr. Pedro, que não gostava do filósofo pobre, tinha verdadeiro desprezo pelo filósofo psicótico. Só faltou comemorar.

Enquanto ouvia a história do amigo. Marco Polo começou a desculpá-lo. Reconheceu mais uma vez como os seus julgamentos precipitados eram superficiais.

Devido aos internamentos. Falcão ficava semanas sem ver Lucas. A dor do afastamento da mulher era suportável, mas a do filho era indescritível. Algumas vezes, a saudade era tão grande que Falcão ia buscá-lo à escola, mesmo fazendo gestos e trejeitos com as suas personagens fictícias. Os rapazes troçavam dele, o menino procurava defender o pai e discutia com eles.

- Como pode um filho pequeno defender o seu pai, um homem? O Lucas abraçava-me e protegia-me! - disse, com orgulho do filho. Mas, em seguida, caiu em si e ficou aflito, pois já não o tinha.

Aceitou a separação de Débora, embora não estivesse em condições de escolher. Facilitou as coisas, porque queria o melhor para ela e para o filho. Já causara muitos transtornos. Na separação, o juiz, conhecedor do caso, estabeleceu que ele visitasse Lucas uma hora duas vezes por semana. Era pouco para quem amava muito.

Falcão não conseguia cumprir a ordem judicial. O juiz, perante a carta do psiquiatra, namorado de Débora, considerou o pai perigoso para a educação do filho. Restringiu a visita a uma hora por semana e com a supervisão de uma assistente social. Já não podia ficar a sós com Lucas. Dois grandes amigos foram separados por uma parede judicial.

- Esse foi o motivo da sua saída para o mundo?

Falcão abanou a cabeça dizendo que não. Teria de tocar no epicentro da sua miséria emocional. Nem o Poeta tinha ido tão longe ao explorar a história do génio das ruas.

Descreveu, assim, o capítulo mais dramático da sua vida. O seu filho ia fazer dez anos. Para comemorar o aniversário do neto e a separação da filha, bem como para mostrar o seu status social e os jardins do seu palacete, o Dr. Pedro mandou preparar uma festa memorável.

Centenas de pessoas foram convidadas. Entre elas, não apenas os colegas de Lucas, mas um grande número de advogados, promotores, juízes e autoridades da cidade.

Na penúltima visita supervisionada, Lucas comentou com o pai a festa e ingenuamente insistiu que ele fosse. A assistente social, que recebia dinheiro do Dr. Pedro para controlar a relação, torceu o nariz. Disse que não era uma boa ideia. Falcão, reticente, comentou apenas que iria pensar no assunto.

A assistente social comentou com o Dr. Pedro o pedido do menino. Lucas recebeu do avô uma severa repreensão. «O teu pai vai estragar a festa. Não sabes que ele é louco?», disse intempestivamente. Lucas desatou a chorar e gritou: «Ele é meu pai!» O Dr. Pedro, consternado, baixou o tom de voz e tentou explicar a sua violência a uma frágil criança.

Na última visita, o menino contou o que o avô lhe dissera. Falcão tentou esconder as suas lágrimas. Confessou ao filho: «O papá está doente, mas vai ficar bom. Não tenhas medo, pupilo. É melhor eu não ir a essa festa.»

Falcão tinha dito várias vezes a Lucas para ele não se importar quando ele falasse ou gesticulasse sozinho. Pedia-lhe que olhasse para o coração do seu pai. Preocupava-se com o desenvolvimento da personalidade do filho e, por isso, dentro das suas limitações, tentava vaciná-lo contra as suas perturbações. Lucas raramente ficava constrangido ou tinha vergonha de Falcão.

A assistente social apoiou a decisão de Falcão de não ir à festa. Posteriormente, deu a boa notícia ao Dr. Pedro. Embora aliviado, ele contratou uma equipa de seguranças para evitar eventuais transtornos.

No dia da festa, Falcão estava muito angustiado, ansioso e solitário. Sentiu uma saudade incontrolável do filho. Era o seu décimo aniversário, queria pelo menos beijá-lo nesse dia importante. Resolveu fazer uma breve surpresa. Apareceu no palácio do ex-sogro.

Habilidoso, vestindo fraque e fingindo ser um empregado de mesa, burlou o esquema de segurança facilmente. Entrou no imenso jardim. Nunca o vira tão decorado. Deparou-se com Débora ao longe, abraçada ao namorado. Sentiu um choque.

Ela viu-o e ficou apreensiva. O namorado sussurrou: «Este tipo tem de ser internado imediatamente.» Foi avisar o anfitrião.

Muitos que o conheciam entreolhavam-se como se ele fosse um terrorista. Rostos tensos e cerrados, sussurros ao ouvido, Falcão tornou-se o centro das atenções. Ser observado perturbava-o. Constrangido, foi rapidamente procurar o filho.

Lucas correu ao seu encontro, abraçou-o e beijou-o. Estava exultante. Levou-o para ver o imenso bolo de dez camadas. Dos lados, havia dizeres escritos em letras grandes com glace azul: «Parabéns, Lucas, tu és um vencedor!»

- Filho, tu és realmente um vencedor.

- Obrigado, papá, tu também és.

Abraçaram-se de novo. A emoção de Falcão atingia um ponto surreal. Então, para espanto dos convivas, ele gritou:

- Este é o melhor filho do mundo!

As pessoas aglomeraram-se. Animado com o movimento. Falcão resolveu elogiar Lucas com frases de alguns filósofos e pensadores que exaltavam a luta pela vida.

- Olhei para o pequeno Lucas e proclamei: Epicuro disse que, se quisermos vencer, devemos gravar no nosso espírito o alvo que temos na nossa mente. Einstein disse que há uma força maior que a energia atómica: a vontade! Confúcio comentou: para vencer na vida, exija muito de si e pouco dos outros! Pascal bradou: para quem deseja ver, haverá sempre luz suficiente; para quem rejeita ver, haverá sempre obscuridade! Sófocles disse: procura e encontrarás, pois o que não é procurado permanece para sempre perdido. Lucas, não tenhas medo da luz! Procura o tesouro que está dentro de ti!

Algumas pessoas entraram em pânico, outras em êxtase diante das ideias de Falcão. Tomando consciência da situação e preocupadíssimo com a perturbação do ambiente, o Dr. Pedro accionou rapidamente o esquema de segurança para o banir da festa. Os seguranças invadiram a área e começaram a fazer um círculo em torno da mesa. As pessoas começaram a dispersar, apavoradas.

- Subitamente, vi uma cena dramática. Um homem de fato preto sacou uma arma, apontou-a para mim e não atirou.

Em seguida, apontou-a para o meu filho e engatilhou-a. Quando ele ia atirar, lancei-me para a frente de Lucas. Caí em cima do bolo, derrubei tudo o que estava em cima da mesa. As pessoas gritavam como se estivessem a sofrer um ataque terrorista. Ninguém se entendia. Não houve mais festa.

- E o assassino?

- Não havia assassino. Não havia arma. Eu estava a alucinar. A personagem era um advogado que tirou um lenço do bolso e apontou o dedo para mim e para Lucas. Mais uma vez, feri profundamente o meu filho.

Marco Polo engoliu a saliva. Estava abalado. Ficou paralisado, não sabia o que dizer nem como reagir.

- Não vai perguntar-me porque não vi mais o meu filho? Marco Polo, constrangido, acenou com a cabeça que não.

Era muita dor soterrada nos solos de uma vida. Falcão não interrompeu a narrativa.

O Dr. Pedro chamou-o ao seu sumptuoso escritório. Na sua presença, três advogados e duas advogadas que trabalhavam para ele. Afirmou que falava em nome de Débora, embora fosse mentira.

Comentou que tinha um laudo de um conceituado psiquiatra a dizer que Lucas poderia tornar-se um doente mental, como o pai, se este continuasse a visitá-lo e a fazê-lo passar por escândalos e situações «stressantes». Se ele o amasse de verdade, deveria desaparecer da sua vida. «É a única possibilidade de Lucas ter saúde mental», completou ardilosamente o ex-sogro.

Falcão pegou no relatório e leu-o atentamente. Ficou perplexo. Andava de um lugar para o outro sem parar. A ideia de que o seu filho pudesse tornar-se psicótico torturava-o há anos. Chorou como uma criança na frente de todos os advogados.

Aflito, perguntava-se em voz alta: «Para onde vou? Os meus pais já morreram, os meus parentes não me toleram, os meus amigos afastaram-se. Para onde vou?» Depois, bradava: «Lucas! Querido Lucas! Eu amo-te! Perdoa-me!» Alguns advogados ficaram comovidos. O Dr. Pedro parecia uma pedra dura e fria.

- Então, por amar muito o meu filho, resolvi sair da vida dele e permitir que ele construísse uma história diferente da minha. Não há preço mais alto do que abandonar o seu próprio filho. Talvez seja mais perturbador do que vê-lo sem vida. Marco Polo mergulhou dentro de si. A sua alma chorava profusamente. Teve vergonha do julgamento precipitado que fizera de Falcão.

- Tomei as nuvens como lençol, fiz da noite o meu cobertor e do álcool o meu remédio. Tive crises nas ruas. Andei desorientado e errante. Felizmente, depois de vários anos, encontrei o Poeta. Com a sua ajuda, enfrentei os meus monstros, lutei com os meus delírios, destruí os meus fantasmas, venci as algemas do meu alcoolismo. Reconstruí-me, rescrevi a minha história.

- Como é que ele fez isso?

- O Poeta aconselhou-me a usar as minhas próprias ferramentas para superar as minhas crises. Pensei, embrenhei-me nos textos de filosofia e então descobri a pérola da sabedoria. O Poeta já a tinha encontrado, pois, apesar de médico, amou sempre o mundo das ideias, estudou sempre filosofia.

- Qual ferramenta? - perguntou Marco Polo, admirado.

- A arte da dúvida.

- A dúvida? Como assim?

- Tudo aquilo em que cremos controla-nos. Se aquilo em que se acredita é saudável, tal crença ajudar-nos-á. Mas se aquilo em que se acredita é destrutivo, tal crença algemar-nos-á. Desse modo, usei a arte da dúvida para questionar tudo aquilo que doentiamente me controlava, como os pensamentos angustiantes, as imagens irreais, as ideias de perseguição.

Relatou que todos os grandes pensadores, como Isaac Newton, Freud, Thomas Edison, usaram, ainda que intuitivamente, a arte da dúvida para combater as ideias correntes e gerar novas ideias. Falcão usou-a para combater as ideias perturbadoras e gerar ideias tranquilizadoras. E acrescentou:

- Quem despreza a dúvida paralisa a sua inteligência.

- Desculpe-me, mas não entendo como você fazia. Relatou que saía pelas ruas a gritar contra as personagens

que o assombravam: «Eu duvido que vocês existam! Porque não posso ser livre? Ninguém me persegue, eu persigo-me! Eu criei-os e eu destrui-los-ei! Vocês são uma farsa!» O Poeta não dizia nada, acompanhava-o apenas, calado e solidário.

Quando estava nas praças, Falcão gritava no seu interior. Ninguém ouvia, mas ele guerreava contra os carrascos no seu inconsciente.

Fez esse exercício dia e noite, semana após semana, mês após mês. Construiu assim, pouco a pouco, uma plataforma no seu intelecto para distinguir os parâmetros da realidade. A arte da dúvida estimulou a construção da arte crítica. Deste modo, começou a criticar a cada instante qualquer ideia delirante. Foi uma tarefa difícil, árdua e morosa. No entanto, um ano depois. Falcão tinha organizado a sua mente.

- Não houve necessidade de medicamentos?

- Se o Poeta fosse meu terapeuta no período em que tomei medicação, poderia não ter perdido a minha mulher e o meu filho - disse, consternado.

Contou que, se tivesse tomado medicamentos em doses que não bloqueassem os seus pensamentos, facilitaria a aplicação da arte da dúvida e da crítica, estruturaria o seu eu - que representa a capacidade de decidir - e aceleraria o seu tratamento.

- Quem se preocupa em alicerçar o eu através da arte de pensar nesta sociedade superficial. Até nas universidades se bloqueia o eu, bloqueia-se a capacidade de decidir. Milhões de estudantes preparam-se para actuar no mundo exterior, mas permanecem crianças no mundo interior - disse indignado o génio.

- Você teve tranquilidade depois de organizar o seu raciocínio?

- Não! A mesma luz que ilumina os olhos expõe as nossas mazelas. A lucidez revelou as minhas perdas, os meus erros, escândalos. Não tinha mais nada. Nem mulher, nem filho, nem as minhas aulas. Surgiu, então, o temível monstro da culpa.

Houve momentos em que Falcão pensara em desistir da vida. Felizmente, ele e o Poeta uniram as suas ruínas e ajudaram-se mutuamente a sobreviver ao demónio da culpa. Saíram pelas ruas, dormiram ao relento e viajaram juntos para o epicentro dos seus terramotos emocionais. Viram as perdas por outros ângulos, aceitaram as suas limitações, cantaram, sorriram, brincaram com a vida, deixaram de lutar contra ela.

Marco Polo desejou ter participado dessas andanças. Sentiu que havia mais excitação nelas do que nos melhores filmes de Hollywood. Em seguida, perguntou:

- Se há anos você recobrou a sua plena consciência, porque é que não foi procurar o seu filho?

Falcão temia essa pergunta. Ela já o atormentara muitas vezes. Fitou o amigo nos olhos e declarou com humildade:

- Venci muitos inimigos dentro de mim. Mas não venci o medo de não ser aceite. Preferi ter a imagem do amor do meu filho nos meus sonhos do que enfrentar a dura realidade de que talvez ele não me ame mais. Ter um pai psicótico trouxe-lhe sofrimento; o que sentiria ele ao ter um pai mendigo?

- Não sei responder - disse o jovem Marco Polo.

- Talvez um pai dado como morto seja menos doloroso. Mas não sei. Na vida, fazemos escolhas. Em toda a escolha há perdas. Eu escolhi e perdi muito. A capacidade de escolha que me mantém consciente é a mesma que, às vezes, fere a minha própria consciência.

Falcão reclinou-se no banco. Estava fatigado pelo peso das recordações. Queria descansar. O sol recolhia-se, a noite surgia sorrateiramente. Os pássaros, agitados, procuravam um lugar entre as folhas das árvores para repousar. Fascinado com tudo o que ouvira, Marco Polo despediu-se do amigo tocando-o profundamente:

- Eu não teria feito melhor escolha. Se fosse seu filho, teria muito orgulho de si.

Falcão suspirou aliviado. Levantou-se, abraçou-o afectuosamente. Sentiu-se como se estivesse a abraçar Lucas. Beijou-o na cara.

- Obrigado por ouvir este velho!

- Não. Obrigado por me deixar ouvi-lo.

Realmente, era um privilégio ouvir Falcão. Marco Polo aprenderia com ele mais do que em décadas de escola. Em seguida, o pensador deitou-se no banco. Jamais o achou tão macio. A noite foi suave. Tinha conforto dentro de si.

 

                             Capítulo 9

Ao percorrer a sala de anatomia, Marco Polo não sabia ao certo qual era o corpo do Poeta, tinha apenas um palpite e acertou. O seu semblante dócil era quase inconfundível, mas não tocaria na sua história com ninguém. Não acreditariam.

A maioria dos seus colegas respeitava-o. Admiravam a sua capacidade crítica. Mas alguns possuíam uma incansável energia para troçar. Coisa de jovens. Apontavam um cadáver e diziam: «Este tipo foi um grande artista!» Riam descaradamente. Quando souberam que Marco Polo tinha um amigo mendigo, a troça aumentou: «Onde está o génio?» O professor George não os incentivava, mas também não os repreendia.

Saturado pelo preconceito com que eram tratados os corpos anónimos. Marco Polo certa vez ousou fazer um convite a Falcão para ir ao laboratório de anatomia. Queria que dissecassem os corpos respeitando as suas histórias. Não previa as consequências do seu convite, tinha apenas uma vaga impressão de que a presença do mendigo no laboratório poderia trazer-lhe constrangimentos. A sua ida tinha de ser espontânea.

- O Poeta está a ser dissecado por mãos que desprezam a sua biografia. Se você lhes contasse a sua história, os meus amigos e professores poderiam ampliar a sua visão sobre a vida.

Embora inicialmente resistente. Falcão disse que iria pensar. E pensou. Após uma semana, a sua resposta foi afirmativa. Sentiu que poderia prestar um último tributo ao Poeta. Numa manhã ensolarada de segunda-feira. Marco Polo preparou silenciosamente a surpresa.

Chamou a psicóloga e a assistente social, que tinham feito um diagnóstico tão limitado sobre os excluídos. Disse-lhes que o Dr. George as convidara para uma aula especial. Entrar na sala de anatomia não era um convite ao prazer, mas não podiam recusar o pedido de um respeitado professor. Ao vê-las, o professor disse que havia um engano. Zangou-se com o aluno rebelde.

Quando elas tentavam sair daquele ambiente, o jovem e o mendigo entraram na sala. O silêncio instalou-se. O Dr. George e os seus colaboradores fizeram um sinal de espanto perante a ousadia. Marco Polo pediu licença para falar:

- Ilustre Dr. George! O senhor pediu-me que trouxesse um mendigo que tivesse uma boa história para nos contar. Humildemente, apresento o meu amigo Falcão.

Todos sorriram, excitados. O Dr. George, olhando o perfil do indigente, achou que Marco Polo cairia no ridículo. Todavia, Marco Polo continuou:

- Ele não tem a aparência de um intelectual, mas é um sábio.

Passou a palavra a Falcão. Esperava desforrar-se. Falcão calou-se. Marco Polo, constrangido, incentivava-o com o olhar, mas ele permanecia mudo. Cada segundo que passava parecia mais longo que um dia. O silêncio do mendigo estimulou as pessoas a fazerem mais troça. Marco Polo ficou abalado.

Falcão ficou plantado no umbral da porta. Limitava-se a olhar a multidão, parecia estar bloqueado, inibido. Percebendo o fiasco. Marco Polo começou a achar que poderia ser expulso da escola pela sua atitude intrépida. Sentiu também que agredira o seu amigo ao trazê-lo para aquele ambiente. «Fui injusto. Usei uma pessoa para resolver o meu trauma de rejeição», considerou.

Os alunos, impacientes, começaram a achincalhar o mendigo. «Fala! Fala!», gritavam. Um mais ousado disse: «Olhem o pensador! Este homem vai arrasar!» Outro rebatia: «Vai o quê? Esse tipo já está com os copos.» O Dr. George e os auxiliares incharam, gostaram do circo. Apenas a assistente social e a psicóloga mantiveram o respeito.

Marco Polo pegou no braço do amigo. E disse-lhe:

- Desculpe-me.

Em seguida, tentou tirá-lo da sala.

- Não se preocupe - tranquilizou-o Falcão. Ele não estava perturbado. A troça fazia parte do cardápio de um indigente. O que o incomodava era a prepotência das pessoas. Para ele, o orgulho era uma das maneiras mais tolas de manifestar inteligência.

Soltou-se de Marco Polo, voltou-se para as pessoas e começou a falar com eloquência sobre filosofia pura. Deu um nó na cabeça dos presentes. Todos ficaram paralisados. Citou o pensamento de vários filósofos. Comentou sobre as relações entre o mundo dos pensamentos e o mundo físico. Disse que tudo o que pensamos sobre o mundo físico não é real e sim um sistema de intenções que define e conceptualiza os fenómenos, mas não incorpora a sua realidade.

Depois, falou das relações entre os pensamentos e a interpretação que fazemos da nossa personalidade. Deixou a audiência mais perplexa ainda.

- O pensamento consciente é virtual. Tudo o que vocês pensam sobre vocês mesmos não é real. É apenas uma interpretação de quem são e não a realidade essencial de quem são. Os vossos pensamentos podem aproximar-se da vossa realidade interior ou afastar-se dela. Por isso, ao pensarem sobre si mesmos, vocês podem ser estúpidos, colocando-se acima dos outros e querendo controlá-los, ou podem ser carrascos de si mesmos, diminuindo-se e permitindo serem controlados por eles. Aprendam a pensar com consciência crítica. Caso contrário, tratarão de doenças, mas serão doentes...

Os alunos entreolhavam-se espantados. Embora entendessem pouco do que ele lhes dizia, vislumbraram a profundidade das suas palavras. O mendigo era muito mais culto do que os estudantes e os intelectuais da sala. As reacções foram as mais variadas.

Os que sempre troçaram de Marco Polo queriam enfiar-se debaixo da mesa. O Dr. George e os seus auxiliares depararam-se com a sua pequenez. A assistente social e a psicóloga sentiram a necessidade de rever os seus paradigmas. Foram cinco minutos, um breve tempo para que o génio das ruas os deixasse atónitos. Em seguida, mudou o foco da sua atenção. Começou a percorrer com o olhar os, cadáveres. Caminhou entre eles.

Todos seguiam os seus passos. Percebiam até os seus movimentos respiratórios. Falcão chegou perto de um cadáver e quebrou o silêncio, em voz alta:

- General! Você aqui! Era o grande Napoleão das ruas. Lutou com exércitos do seu imaginário. Venceu batalhas. Queria mudar o mundo, mas a morte não respeita os heróis. O álcool venceu-o - finalizou, abanando a cabeça.

A plateia ficou titubeante.

Andou mais alguns passos. Olhou atentamente para uma mulher de uns cinquenta anos, de pele negra, rosto sem expressão, resultado da longa exposição ao sol durante a vida e do formol após a morte.

- Julieta! Você também, quantas vezes deu o pouco que tinha para saciar a fome dos que não tinham. Entendeu que ser feliz é repartir. Por fim, pode descansar! Veja, Julieta! Quantos se importam consigo! Todos querem estudá-la. É pena que fiquem apenas à superfície da sua pele.

O Dr. George, absorto pelas ideias do indigente, ficara imóvel. Falcão estava comovido por reencontrar os amigos. Subitamente, os seus olhos ampliaram o seu campo visual. Comportava-se como a câmara de um exímio realizador em busca de uma imagem única.

Captou ao fundo, do lado esquerdo, o corpo de um homem grande, de meia-idade, pele branca, mas maltratada pelo tempo. Aproximou-se lentamente, viu as rugas realçadas, mas a face era gentil, suave, tranquila. O seu coração palpitava.

A cada passo, um filme rodava na sua mente, recuperando as experiências espectaculares que passara com o amigo. Andaram juntos, cantaram juntos, lutaram juntos. Lembrou-se do Poeta a discursar nas praças e a elogiar os humildes. As lágrimas de Falcão deixaram o anonimato e percorreram as cicatrizes do rosto e do tempo.

Fixou a face do amigo. Curvou-se e abraçou o seu corpo inerte e frio. Ali estava toda a sua família. Ali estava um amigo que o amara, que o compreendera e que o ajudara a recuperar a sua condição humana. Sentiu que perder um amigo pode ser tão difícil como perder o solo para caminhar. Chorou sem medo.

- O que fizeram contigo, Poeta! - disse, observando aquele corpo retalhado. - Sem ti, a brisa não tem a mesma suavidade. As borboletas não bailam com a mesma graça. Os miseráveis perderam o mapa interior. Temos sede da tua sensibilidade.

Marco Polo verteu lágrimas. Os olhos de alguns alunos também lacrimejaram. Reflectindo sobre a perda. Falcão emendou:

- Queríamos que não morresses, mas o Jardineiro da Vida sabe quando colher as suas mais belas flores...

Olhou para os alunos e bombardeou-os com as suas palavras.

- No mundo há mistérios, no corpo há enigmas, mas no espírito e na mente humana escondem-se os maiores segredos do universo. Vocês estão a penetrar no corpo deste homem, mas nunca no seu ser. Dissecarão os seus músculos e nervos, abrirão o seu tórax e crânio, mas não dissecarão a sua belíssima personalidade. Ele foi um poeta da vida, uma estrela no palco da existência.

Então suspirou e revelou-lhes alguns segredos da sua história, que Marco Polo já conhecia.

- O homem que vocês estão a estudar foi um médico ilustre. Mas, como na vida há curvas imprevisíveis, foi-lhe reservada uma dramática surpresa. Conduzia o carro com toda a sua família numa viagem de férias. Ao fazer uma ultrapassagem, sofreu um acidente. Perdeu tudo o que mais amava: a mulher e os seus dois filhos.

Comentou também que um dos seus filhos não morrera na altura do acidente. Ficara muito tempo internado na UCI, mas posteriormente falecera. A dor do Poeta fora indescritível. Teve graves crises depressivas. Sentiu-se o mais miserável dos homens.

Ao ouvir estas palavras, o Dr. George começou a perder a cor e a fazer gestos estranhos, esfregando as mãos na nuca. Parecia estar a sofrer um ataque de pânico, com taquicardia, falta de ar, suor excessivo e vertigens. Os seus auxiliares ficaram preocupados com as suas reacções.

Falcão continuava a descrição do Poeta. Revelou que ele tinha sido um brilhante terapeuta das ruas, ajudara miseráveis, sem-abrigo e excluídos. Enquanto o descrevia, o Dr. George dirigia-se ao corpo. Olhava fixamente para a face do cadáver e para a parede. Parou e contemplou-o. De repente, com a voz trémula, começou a balbuciar palavras que paulatinamente conquistaram sonoridade.

- Não! Não é possível! Não é possível! Não pode ser! Todos ficaram mais perturbados ainda, A cena era incompreensível. Então, solicitou:

- Olhem para o retrato afixado na parede!

Os mais próximos perceberam a sobreposição das imagens. O homem da foto tinha a cara do cadáver estendido. Era a mesma pessoa. O Dr. George adiantou-se às expectativas, dizendo:

- Este homem chama-se Dr. Ulisses Burt. Foi um dos maiores cientistas deste país e um dos mais notáveis cirurgiões. Trata-se de um ilustre director desta instituição e também um exímio professor, o meu mais brilhante mestre. Nele inspirei a minha carreira académica. Mas acho que absorvi pouco da sua sensibilidade.

Pegou delicadamente nas mãos do morto.

Falcão ficou surpreendido. O Poeta, sempre humilde, nunca falara sobre a sua notoriedade. O Dr. George continuou a relatar que o acidente do Dr. Ulisses, ocorrido há mais de dez anos, e o seu desaparecimento tinham tido destaque na imprensa na época. O meio universitário ficara abalado. Muitos professores e alunos tentaram procurá-lo nas esquadras, hospitais, asilos, mas não encontraram vestígios dele.

Antes de ir para as ruas como sem-abrigo, doara todos os seus bens à faculdade de Medicina. Esses bens, que não eram poucos, foram usados para ajudar a construir o hospital-escola.

Uma coisa ninguém sabia, nem mesmo Falcão, e só foi deduzida quando leram novamente a sua carta-testamento, em que ele autorizava a doação de todos os seus órgãos para transplantes. Como cirurgião, o Dr. Ulisses transplantara muitos órgãos. Para estimular a doação de órgãos e mostrar a grandeza desse gesto, ele gostava de usar uma frase:

Ninguém morre, quando vive em alguém. Doem os seus órgãos. Vivam em alguém.

No seu testamento, disse que, se não fosse possível aproveitar os seus órgãos para transplantes, desejava que pelo menos o seu corpo fosse utilizado na sala de anatomia.

Falcão entendeu finalmente porque é que o Poeta insistira em voltar à sua cidade natal. Sabia que estava a chegar o seu fim. Tinha fortes dores no peito. Queria morrer próximo da faculdade onde sempre leccionara. Queria ser encontrado. Almejava ser útil à humanidade, mesmo depois de fechar os olhos em definitivo.

Professores e alunos ficaram fascinados com a sua coragem, força e amor pela vida. Como havia várias fotografias do Dr. Ulisses afixadas nos vários departamentos da faculdade, escreveram uma placa e afixaram-na em baixo de cada imagem, com os dizeres de Falcão:

Foi um poeta. Uma estrela no palco da vida.

O Dr. George estava sob intensa comoção. Não conseguiu continuar a aula. Olhou para Marco Polo e Falcão e enunciou com os olhos o que as palavras não conseguiam expressar. Reconheceu o seu erro e demonstrou agradecimento... Em seguida, foi levado da sala pelos amigos.

Uma coroa de flores foi colocada ao lado do corpo, com os mesmos dizeres afixados nas fotos. O Poeta continuou na sala de anatomia, na mesma sala onde sempre dissecara peças anatómicas nas suas pesquisas. Os antigos amigos, respeitados professores universitários, passaram por ele nos dias seguintes como se estivessem no cortejo de um rei, um herói da vida. Cirurgiões de cabelos grisalhos que tinham perdido a sensibilidade choravam ao ver o peito aberto e membros dissecados do velho amigo.

Os alunos daquela turma mudaram para sempre a sua compreensão da existência. Nunca mais tiveram uma atitude superficial diante dos cadáveres. Foi uma das raras vezes na história da medicina em que as lâminas cortantes dos bisturis encontravam poesia enquanto dissecavam nervos, artérias e músculos.

Também mudaram para sempre a sua formação profissional. Os seus pacientes foram privilegiados. Os futuros médicos aprenderam a perceber que, atrás de cada dor, de cada sintoma, há sonhos, aventuras, medos, alegrias, coragem, recuos, enfim, uma história maravilhosa que precisa de ser descoberta. Assim, aprenderam a tratar de seres humanos e não de órgãos. O árido solo do fim da existência do Poeta produziu, um oásis de sabedoria num pequeno grupo. Em vida foi brilhante; na morte, reluzente!

 

                             Capítulo 10

O tempo passou e Marco Polo continuava a encontrar-se com Falcão. Os seus laços estreitaram-se. Percebendo o desconforto de que o amigo sofria, queria tirá-lo das ruas. Falcão resistia.

- Você tem de sair das ruas.

- Não me ponha num cubículo. O meu lar é o mundo.

- Mas não é saudável, corre riscos - insistia Marco Polo.

- Ninguém corre riscos quando tem tão pouco. Essa é uma das vantagens de se ser um miserável.

- Mas você dorme mal, come mal, veste-se mal. A sua saúde não está bem.

- Não pago imposto nem renda de casa - brincou o velho amigo.

A relação com Falcão fez Marco Polo aprender uma das mais difíceis lições de vida: ser transparente, não ser escravo do que os outros pensam e dizem de nós. Falcão era o que era, não tinha necessidade de provar nada a ninguém. Sem tal peso emocional, a sua emoção era suave.

Eles viam-se pelo menos três vezes por semana. O mendigo e o jovem ficaram tão íntimos que faziam peripécias juntos. Davam verdadeiros espectáculos nas praças, sem procurar plateia. Para eles, a vida era uma brincadeira no tempo, uma aventura imperdível.

Nalguns momentos pareciam dois palhaços, noutros, duas crianças. O tédio não fazia parte do dicionário deles. As pessoas que assistiam às suas brincadeiras, por viverem numa enfadonha rotina, reviam as suas vidas. Até das coisas simples faziam um espectáculo. Quando comiam gelados, diziam um para o outro:

- Que sabor! Que textura!

Quem estava ao lado surpreendia-se, pois, apressados, não sentiam o sabor do mesmo modo que eles.

Ao comer fruta. Falcão dizia:

- Que fruta maravilhosa! Que belas cores! Como surgiu ela? Quem a plantou? Que sonhos tinham os agricultores quando a cultivaram?

Marco Polo tinha gestos semelhantes. Algumas vezes, olhavam demoradamente para as folhas de uma palmeira, observando a sinfonia do vento. Pareciam dois lunáticos. Os transeuntes, curiosos, paravam de andar e olhavam também para cima, tentando ver o mesmo que os dois, mas não conseguiam ver nada. Pensavam que estavam a ver algo sobrenatural ou um disco voador.

Quando precisava de dinheiro. Falcão convidava o amigo a fazer uma dobradinha com ele. Criavam e teatralizavam um texto na hora. Não precisavam de ensaiar, pois viviam a existência como um teatro ao vivo. Falcão bradava uma frase e Marco Polo proclamava outra. Era infalível para ganhar uns trocados.

- Não tenho morada certa - dizia Falcão.

- Mas resido dentro de mim - completava Marco Polo.

- Ninguém pode roubar o meu sono.

- Não dependo dos outros para dormir.

- Muitos moram em palácios.

- Mas são miseráveis mendigos.

- De que adianta acumular tesouros.

- Se a alegria não podem comprar!

Pessoas de todas as raças paravam e sentavam-se nos bancos para ouvir a dupla poética. Vários colegas de Marco Polo apareciam para os verem. Aprenderam a apreciar o mendigo pensador. A fama bateu-lhes à porta, mas desprezaram-na. Queriam apenas viver intensamente.

Falcão ensinou ao amigo a música de Louis Armstrong, «What a Wonderful World». De vez em quando, cantavam-na juntos, exaltando a vida e a natureza. Preservavam a melodia, mas modificavam a letra de acordo com o momento. Era como se houvesse uma orquestra sinfónica a acompanhá-los.

- Eu vejo o verde das árvores, rosas vermelhas também - cantava Falcão, com o seu vozeirão, a primeira frase.

- Eu vejo-as florescerem para a humanidade - cantava a frase seguinte o intrépido Marco Polo.

- E eu penso comigo... que mundo maravilhoso - cantavam juntos.

- Eu vejo o azul dos céus e o branco das nuvens.

- O brilho do dia abençoado, a sagrada noite escura.

- E eu penso comigo... que mundo maravilhoso.

- As cores do arco-íris, tão bonitas no céu.

- E também na cara das pessoas que passam - cantavam juntos gesticulando para o público.

- Vejo povos distintos a apertar as mãos e a dizer: como é que vão.

- Eles realmente dizem: «Amo-te!»

Ao acabarem de cantar, americanos, chineses, árabes, judeus, indianos, brasileiros, europeus abraçavam-se na imensa praça. Alguns tinham realmente a coragem de dizer aos outros «amo-te». Dois lunáticos, um maltrapilho e um jovem, um pensador e um académico, embriagados de alegria, magnetizavam as pessoas.

Num desses encontros, um facto inusitado abalou a dupla. Falcão estava cansado, sem muita disposição para dialogar. Queria apenas contemplar o belo. Andara muito no dia anterior.

Sentara-se descansadamente no canto direito do banco da praça com a cabeça voltada para o espaço. O movimento de pessoas era grande, pois havia uma concentração de lojas e bancos perto dessa área.

Falcão observava as nuvens. Estava fascinado com a sua anatomia flutuante. O êxtase foi tão grande que não conseguiu deixar de dizer:

- Que belas pinturas! As nuvens são como os andarilhos, vagueiam por lugares longínquos à procura de um lugar de descanso. Quando o encontram, destilam lágrimas - balbuciou.

Marco Polo também as observava atentamente. Entrou no clima.

- Quando o céu chora, o riso brota na natureza. Inesperadamente, Falcão olhou para o infinito e começou a interrogar o Criador. Ele falava com Deus como se fosse seu amigo.

- Ei ! Quem é você que está atrás da cortina das nuvens? Porque é que se esconde atrás do véu da existência? Porque silencia a sua voz e grita através dos fenómenos da natureza? Porque gosta de se esconder dos olhos humanos? Sou uma ínfima parte do universo, mas clamo por uma resposta. Deixe-me descobri-lo.

Marco Polo ficou espantado com aquele diálogo singular. No entanto, mostrando um ar de intelectual, virou-se orgulhosamente para o amigo e disse:

- Falcão, Deus não existe. Ele é uma invenção espectacular do cérebro humano para suportar as limitações da vida. Desculpe-me, mas, para mim, a ciência é o deus do ser humano.

Numa reacção surpreendente. Falcão levantou-se. Subiu para um banco da praça e começou a chamar aos gritos todos os que por ali passavam. Com gestos histriónicos, bradava:

- Venham! Aproximem-se! Vou mostrar-lhes Deus! Num instante, reuniu um grupo.

Marco Polo ficou apavorado. Nunca vira Falcão reagir assim. Tentava acalmá-lo, sem êxito. Ele continuava a gritar:

- Deus está aqui! Acreditem! Vocês ficarão perplexos ao vê-lo.

Marco Polo achava que Falcão entrara num repentino surto psicótico, estava a ter uma alucinação. Procurava ansiosamente pegar no seu braço para que ele se sentasse. De repente, Falcão calou-se. Estendeu as duas mãos para Marco Polo e disse em altos brados:

- Eis Deus aqui em carne e osso!

Marco Polo ficou assustado. Um burburinho reinou entre os que o ouviam.

- Acreditem! Este jovem é Deus! Porque afirmo isto? Porque ele acabou de me dizer que Deus não existe, que é um mero fruto do nosso cérebro! Vejam só! Se este jovem não conheceu os inumeráveis fenómenos dos tempos passados, se ele nunca percorreu os biliões de galáxias com os seus triliões de segredos, se ele não desvendou como ele mesmo consegue entrar no seu cérebro e construir os seus complexos pensamentos, e, apesar de todas essas limitações, ele afirma que Deus não existe, a conclusão a que cheguei, meus amigos, é que este jovem tem de ser Deus. Pois só Deus pode ter tal convicção!

A multidão ficou boquiaberta. O discurso do indigente era tão inteligente que esfacelou não apenas a soberba de Marco Polo, mas o orgulho das pessoas que o ouviram. O jovem amigo ficou vermelho e espantado.

Falcão desceu do banco e sentou-se. Desembrulhou uma sanduíche e começou a saboreá-la. Com a boca cheia, disse a Marco Polo:

- Sabe que sabor tem esta sanduíche?

Marco Polo, envergonhado, meneou a cabeça dizendo que não.

Falcão prosseguiu:

- Se não tem segurança para falar de algo tão próximo e visível, não fale convictamente sobre algo tão distante e inatingível. Não é sensato.

O jovem ficou bloqueado. Pela primeira vez não encontrou qualquer frase para rebater. Disse apenas:

- Não precisava de exagerar. Falcão retrucou:

- Se você disser que é ateu, que não acredita em Deus, a sua atitude é respeitável, pois reflecte a sua opinião e convicção pessoal. Mas dizer que Deus não existe é uma ofensa à inteligência, pois reflecte uma afirmação irracional. Não seja como alguns meninos da teoria da evolução.

- Como assim. - perguntou intrigado Marco Polo.

- Alguns filósofos acham que certos teóricos da evolução possuem uma arrogância insana. Não estou a criticar as hipóteses da evolução biológica, mas a arrogância científica sem alicerces. Vários desses cientistas negam veementemente a ideia de Deus apenas porque se apoiam em alguns fenómenos da sua teoria. Como você, esquecem-se de que desconhecem biliões de outros fenómenos que tecem os segredos insondáveis do teatro da existência. São meninos que brincam com a ciência, construindo o seu orgulho sobre a areia.

Marco Polo ficou abalado com a ousadia, com o raciocínio esquemático e a criatividade de Falcão. Os darwinistas eram intelectuais reverenciados. Nunca ouvira ninguém fazer-lhes uma crítica tão contundente, a não ser os religiosos. Falcão tinha trazido a discussão desse delicadíssimo tema não para o campo da religiosidade, mas para o campo dos limites e alcances da própria ciência.

Marco Polo tentou organizar o seu pensamento e perguntou:

- Mas não são os evolucionistas respeitados pela comunidade científica?

- São respeitados, mas, para mim, estão aprisionados no cárcere da biologia. Sem romper esse cárcere e abraçar o terreno das ideias da filosofia, serão redutores e não expansores do conhecimento. Precisam de seguir o caminho de Einstein.

- Como assim?

- Einstein disse que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Ele brilhou porque amava a filosofia. Não tinha um cérebro privilegiado como muitos ingénuos cientistas pensavam. Tinha uma imaginação privilegiada. Quando desenvolveu os pressupostos da sua teoria, era um jovem de 27 anos. Tinha menos cultura académica do que muitos universitários da actualidade. Mas porque brilhou ele, enquanto os universitários são opacos? Brilhou porque usou a arte da dúvida, libertou a sua criatividade, aprendeu a pensar com imagens.

A partir desse comentário. Marco Polo interessou-se pela história de Einsten. Passou a estudá-la.

- Einstein era ousado, queria conhecer a mente de Deus - completou.

Falcão não era menos ousado, passava a vida a tentar desvendá-lo à sua maneira. Ele amava Deus, mas não era religioso nem defendia uma religião. Considerava que só um deslumbrante Artista, capaz de ultrapassar os limites da nossa imaginação, poderia ser o Autor do próprio imaginário humano e de toda a existência.

Contou-lhe que ele e o Poeta aprenderam a procurar e a relacionar-se com Deus nas suas misérias psíquicas, e que este relacionamento foi um dos segredos que os levaram a suportar as suas perdas e a oxigenar o seu sentido de vida. Assim, sobreviveram ao caos. Para eles, cada ser humano, em especial os cientistas, deveria posicionar-se como eterno aprendiz. E rematou:

- A sabedoria de um ser humano não está no quanto ele sabe, mas no quanto ele tem consciência de que não sabe. Você tem essa consciência?

Após uma pausa, Marco Polo disse, pensativo:

- Creio que não.

- O que define a nobreza de um ser humano é a sua capacidade de ver a sua pequenez. Você vê-a?

- Estou a tentar - disse Marco Polo, ameaçado pela inteligência do filósofo.

- Nunca deixe de tentar.

Em seguida, Falcão fez um momento de silêncio. Ponderou as suas atitudes e teve coragem de pedir desculpa a Marco Polo pela situação constrangedora por que o fizera passar.

- Desculpe-me. Às vezes, acho que algumas das minhas reacções são sequelas do meu passado, da minha doença.

- Por favor, não se desculpe. Eu é que fui estúpido, arrogante.

Vendo que o jovem Marco Polo reflectia sobre os mistérios da existência, Falcão acrescentou:

- Você pode duvidar de que Deus existe, mas Deus não duvida de que você existe. É nisso que creio.

Marco Polo ficou inquieto. Esfregou as duas mãos no rosto. Suspirou, colocou a mão no queixo, apoiou o cotovelo sobre a coxa como um pensador e perguntou:

- O que pensavam os filósofos a respeito de Deus?

- Lembre-se do que eu lhe disse: muitos filósofos acreditavam na metafísica. Eles não tinham medo de argumentar e discutir a respeito de Deus. A ciência tem medo de debater sobre Ele por receio de pender para uma religião e perder a individualidade. Nós não sabemos quase nada sobre a caixa de segredos da existência. Milhões de livros são uma gota no oceano. Lembre-se, somos uma grande pergunta à procura de uma resposta nos poucos anos desta vida.

Mas filósofos como Marx, Nietzsche e Sartre foram ateus.

Falcão fitou vagarosamente o amigo e, como se estivesse iluminado, disse:

- Há dois tipos de Deus: um Deus que criou os homens, e outro que os homens criaram. Para mim, esses filósofos não acreditavam no Deus criado pelos homens. Eles foram contra a religiosidade da sua época, que dilacerava os direitos humanos, mas não são ateus puros. Todavia, não posso falar por eles.

O jovem pensou e inquiriu:

- Quem somos? O que somos? Para onde vamos?

- Frequentemente, faço-me tais perguntas. Quanto mais as faço, mais me perco e, quanto mais me perco, mais procuro achar-me.

Em seguida, Falcão emendou:

- Olhe para as pessoas à nossa volta. O que vê?

- Pessoas de fato, mulheres bem vestidas, jovens a exibir os seus ténis, adolescentes a pentear o cabelo, enfim, pessoas que passam.

- A maioria dessas pessoas vive porque respira. Já não perguntam «quem são», «o que sou». Estão entorpecidas pelo sistema. O ser humano actual não ouve o grito da sua maior crise. Cala a sua angústia porque tem medo de se perder num emaranhado de dúvidas sobre o seu próprio ser. No começo do século XX, a ciência prometeu ser o deus do Homo sapiens e responder a essas perguntas. Mas ela traiu-nos.

- Porque é que nos traiu?

- Primeiro, porque não desvendou quem somos; continuamos a ser um enigma, uma gota que por um instante aparece e logo se dissipa no palco da existência. Segundo, porque, apesar do salto na tecnologia, ela não resolveu os problemas humanos fundamentais. A violência, a fome, a discriminação, a intolerância e as misérias psíquicas não foram debeladas. A ciência é um produto do ser humano e não um deus do ser humano. Use-a e não seja usado por ela.

Ao esquadrinhar a sua inteligência, Marco Polo confessou honestamente:

- O orgulho é um vírus que contagia a minha mente.

- Contagia todos. Até um psicótico tem ideias de grandeza.

- Será que é possível destruir o orgulho?

- Não creio. A nossa maior tarefa é controlá-lo.

Para finalizar a complexa aula, voltou-se para o jovem amigo e completou:

-A sabedoria de um ser humano não é definida pelo quanto ele sabe, mas pelo quanto ele tem consciência de que não sabe...

Marco Polo incorporou com impacto aquela frase. Precisava de a analisar, bem como todo o conhecimento que tinham abordado. A sua mente tornou-se um caldeirão de ideias.

Resolveu que era altura de partir. Um pouco atordoado, despediu-se de Falcão e foi-se embora. O sol do entardecer brilhava sobre ele e projectava a sua sombra sobre o solo. A sombra era enorme. A distorção da imagem convidou-o à auto-análise.

Sempre quisera ser grande, uma estrela em cuja órbita os astros gravitassem. Percebeu que a busca da fama era uma tolice. Concluiu que tinha de reduzir a sua sombra social. Tinha de aprender a encontrar grandeza na sua pequenez.

 

                             Capítulo 11

Sempre que se deitava na sua cama quente e confortável, Marco Polo pensava em Falcão a dormir ao relento. Ficava perturbado, às vezes acordava a meio das noites chuvosas incomodado. Tinha receio de que Falcão não estivesse nos albergues municipais.

Os sem-abrigo, por terem condições de vida precárias, morriam cedo. A falta de higiene, de alimentação regular, de protecção contra as intempéries e o alcoolismo ceifava a sua vida nos primeiros anos de jornada.

A sobrevivência de Falcão foi uma excepção. O Poeta ajudara-o a livrar-se do alcoolismo e a cuidar da sua saúde. Todavia, o Poeta morrera e Marco Polo sentiu que de algum modo ocupava uma parcela do seu lugar.

Cuidar da qualidade de vida de Falcão e ajudá-lo a resgatar o seu passado preocupava o jovem estudante. Mas tinha medo de tirar o amigo das ruas e estimulá-lo a reencontrar o seu filho. O sistema social que o excluíra era cruel em algumas áreas. Talvez Falcão não suportasse esse stresse. O conforto exterior poderia gerar desconforto interior.

Seis meses se passaram. A saúde de Falcão andava debilitada. Tinha crises de falta de ar e recusava-se a ir ao hospital. Face a essa situação. Marco Polo sentiu que era o momento de fazer uma investida para o ajudar. Mas como?

«Falcão poderia conservar as suas ideias e a sua maneira de ser ao regressar ao seio da sociedade. Poderia ser um vírus que se alimenta do sistema para combater as chagas do próprio sistema, tal como os grandes jornalistas e outros nobres pensadores», pensava o jovem.

Estas ideias povoaram a sua mente, diluíram paulatinamente o seu medo e deram corpo à sua decisão. Recebera muito de Falcão, queria retribuir um pouco.

Por outro lado, embora não quisesse sair das ruas. Falcão sentiu, pouco a pouco, que precisava de construir uma ponte para o seu passado. A relação com Marco Polo era diferente da que tivera com o Poeta. Marco Polo era um espelho do seu próprio filho. Relances de Lucas apareciam no seu imaginário enquanto cantavam e faziam poesias. Negar radicalmente o passado atormentava-o.

Certa vez, Marco Polo tocou directamente no problema.

- Você correu grandes riscos para recuperar a sua identidade e reconstruir a sua sanidade. E ensinou-me a correr riscos para explorar a mente humana e lutar pelos meus sonhos. Que tal correr os riscos de entrar no sistema social e reavaliar o seu passado.

Falcão entendeu a mensagem e fez um silêncio glacial. Marco Polo foi cortante e insistiu:

- O seu filho tem o direito de saber que você está vivo. O risco de ser rejeitado é o preço que você tem de pagar.

Estas palavras gelaram a coluna do mestre. Nunca a sua segurança ficou tão abalada. Fez um mergulho interior.

- Eu estou morto para ele. Os mortos não incomodam os vivos.

- Você disse que Deus se esconde atrás da cortina da existência e grita através dos fenómenos que criou, mas você não é Deus. Então, porque é que se esconde atrás da cortina dos seus argumentos? Porque grita através dos fenómenos que imaginou? Que base tem para afirmar que está morto para o seu filho? Quantas vezes deve ele ter olhado para a multidão à sua procura?

Marco Polo aprendera com o próprio Falcão que a dúvida é a melhor arma para abrir as janelas da inteligência, e a resposta pronta é a melhor para as fechar. As suas perguntas provocaram um forte abalo no seu magnífico professor. Falcão não podia fugir de si mesmo.

- Você ama-o? - instigou Marco Polo o calado Falcão.

- O amor é imortal! Você pode negá-lo, sufocá-lo, enterrá-lo, mas ele nunca morre. Já lhe disse. O meu filho nunca morreu dentro de mim. Ele ainda vive nos meus sonhos.

- Não há como correr riscos para recuperar quem está morto, mas, se ele está vivo, corra riscos por ele!

Quando Marco Polo pensou que Falcão cedera, ele ergueu uma enorme muralha:

- As nossas linguagens, interesses, visão de vida, expectativas são muito diferentes. Será quase impossível reconstruir as nossas histórias. Se, mesmo convivendo durante anos a fio, os membros da maioria das famílias não toleram as suas diferenças, não se respeitam, como se pode esperar harmonia entre dois instrumentos que há mais de duas décadas não tocam juntos?

Vencer a inteligência do génio era quase impossível. «Realmente, o choque poderia ser insuportável», ponderou Marco Polo. «Mas falharemos 100% das vezes que não tentarmos», reflectiu.

Teve a sensação de que ninguém conseguiria transpor a fortaleza dos pensamentos do filósofo lapidada pelas crises psíquicas e esculpida pelos corredores da vida. Mas tinha uma última bala na sua arma intelectual, um argumento forte. Construíra aquele argumento ao longo dos meses da relação com Falcão.

Lapidara-o pacientemente, como Miguel Angelo o fez com o mármore bruto em busca da sua obra-prima. Sedimentara-o, assimilara-o e escrevera-o. Era o momento de discorrer sobre ele: o princípio da co-responsabilidade inevitável. Este princípio mesclava alguns fundamentos da psicologia e da filosofia.

- Falcão, você nunca viveu fora do meu sistema. Quer queira quer não, você faz parte dele.

- Que absurdo! Não confunda o meu mundo com o seu. No meu, as pessoas são transparentes; no seu, elas escondem-se atrás dos sorrisos, da estética. No meu, as pessoas têm tempo para investir no que amam; no seu, elas são transformadas em máquinas de trabalho e consumo.

Marco Polo ficou constrangido, mas não se deixou intimidar.

- Eu concordo que a sociedade organizada está doente em muitos aspectos, mas o princípio da co-responsabilidade inevitável demonstra que é impossível haver dois sistemas distintos. O que existe são duas maneiras de ver e actuar no mesmo sistema. As pessoas nunca estão completamente separadas umas das outras.

Falcão nunca tinha ouvido falar daquele princípio. Pela primeira vez, coçou a cabeça, revelando-se confuso diante do discípulo. Estava perturbado com a ideia. Se ele se convencesse de que não havia dois sistemas, qual era o argumento para se esconder no seu casulo?

- Que princípio é esse? Que pensador o elaborou? - perguntou, desconfiado.

- Eu elaborei-o!

Falcão encolheu os ombros. Foi contagiado pelo orgulho. Consciente desse contágio, refez-se em seguida.

- Desculpe-me. Debata-o. Apresente as suas ideias!

Ao dizer estas palavras, recordou-se de quando tivera uma crise na sala de aula no curso de Direito. Queria ser enfrentado no campo das ideias. Era neste ponto que Marco Polo o desafiara, e, o que era pior, no ponto mais delicado da sua história. Marco Polo defendeu a sua tese com veemência. Comentou que o princípio da co-responsabilidade inevitável demonstra que as relações humanas são uma grande teia multifocal. Revela que ninguém é uma ilha física, psíquica e social dentro da humanidade. Todos somos influenciados por outros. Todos os nossos actos, quer sejam conscientes ou inconscientes, quer sejam atitudes construtivas ou destrutivas, alteram os acontecimentos e o desenvolvimento da própria humanidade.

Qualquer ser humano - intelectual ou iletrado, rico ou pobre, médico ou paciente, activista ou alienado - é afectado pela sociedade e, por sua vez, interfere nas conquistas e perdas da própria sociedade através dos seus comportamentos. Marco Polo queria dizer que todos são co-responsáveis pelo futuro da sociedade e, em consequência, pelo futuro da humanidade e do planeta como um todo.

- Os nossos comportamentos afectam de três modos as pessoas: alteram o tempo delas; alteram a memória delas, através do registo desses comportamentos; e alteram a qualidade e frequência das suas reacções. Alterando o tempo, a memória e as reacções das pessoas, modificamos o seu futuro, a sua história.

Falcão começou a sair do estado de indiferença para o de assombro. «Onde é que este rapaz quer chegar?», pensou.

Marco Polo foi mais longe. Discorreu afirmando que os comportamentos mais insignificantes podem provocar grandes reacções na História. O espirro de um norte-americano pode afectar as reacções das pessoas no Médio Oriente. Uma atitude de um europeu, por mínima que seja, pode interferir no tempo e nas acções da China.

Falcão começava a entender onde é que o seu amigo queria chegar, mas as suas ideias ainda não estavam completamente claras. Observava atentamente cada uma das suas frases. Marco Polo passou da teoria para os exemplos:

- O padeiro que fez pão no século XV em Paris afectou o tempo e a memória da dona de casa que o comprou, afectando as reacções dos seus filhos, que, por sua vez, alteraram os comportamentos dos seus amigos, vizinhos, colegas de trabalho, que, numa reacção em cadeia, influenciaram a sociedade francesa da sua época e de outras gerações. Assim, numa sequência ininterrupta de eventos, o padeiro do século XV influenciou, séculos mais tarde, os pais, amigos e, consequentemente, a formação da personalidade de Napoleão, que afectou o mundo.

«Hitler, em 1908, mudou-se para Viena com o objectivo de se tornar pintor. O professor da academia de belas-artes que o rejeitou afectou o seu tempo, a sua memória, o seu inconsciente. Por sua vez, influenciou a sua afectividade, a sua compreensão do mundo, as suas reacções, a sua luta no partido nazi, a sua prisão, o seu livro. Todo este processo interferiu na eclosão da Segunda Guerra Mundial, que afectou a Europa, o Japão, a Rússia, os EUA, que mudou o rumo da humanidade.

»Se Hitler tivesse sido aceite na escola de belas-artes, talvez tivéssemos um artista plástico, ainda que medíocre, e não um dos maiores psicopatas da História. Não estou a dizer que a psicopatia de Hitler seria resolvida com a sua admissão na escola de Viena, mas poderia ser atenuada ou talvez não se manifestar.

Falcão estava espantado. Os papéis tinham-se invertido. Marco Polo disse ainda que um índio numa tribo isolada da Amazónia também afecta a História. Ao abater um pássaro, este deixará de produzir ovos, de os chocar e de ter descendentes, afectando o consumo de sementes, os predadores e toda a cadeia alimentar, o ecossistema, a biosfera terrestre.

Além disso, a ausência de descendentes do pássaro abatido afectará o processo de observação dos biólogos, interferindo nas suas reacções, pesquisas, livros, universidade e sociedade. Uma pessoa que se suicida não deixou de actuar no mundo social, afirmou Marco Polo. O acto do suicídio alterou o tempo dos amigos e parentes e, principalmente, despedaçou a emoção e a memória deles, gerando vácuo existencial, lembranças e pensamentos perturbadores que afectarão as suas histórias e o futuro da sociedade.

- Ninguém desaparece quando morre. Viver com dignidade e morrer com dignidade deveriam ser tesouros cobiçados ansiosamente. Portanto, o princípio da co-responsabilidade inevitável demonstra que nunca podemos ser uma ilha na humanidade. Nunca deveria existir a ilha dos norte-americanos, dos árabes, dos judeus, dos europeus. A humanidade é uma família que vive numa complexa teia. Somos uma única espécie. Deveríamos amá-la e cuidar dela, caso contrário não sobreviveremos.

Para o jovem pensador, inevitavelmente somos todos responsáveis, em maior ou menor grau, pela prevenção do terrorismo, da violência social, da fome mundial.

Falcão concordou com o engenho do raciocínio de Marco Polo. Embora fosse um especialista na arte de pensar, não percebeu que estava a cair na rede do seu discípulo. Em seguida, o jovem comentou com o seu mestre que as reacções dos outros podem afectar-nos fraca ou intensamente. Ver um filme, conversar com um amigo, elogiar alguém, pode mudar pouco ou muito o curso das nossas vidas.

Lembrou-se de um amigo humilhado pela professora porque não conseguira ler correctamente um parágrafo. Ela pediu que ele repetisse várias vezes a leitura do texto, sendo alvo da troça dos colegas. O registo daquela experiência tinha bloqueado a inteligência do aluno, gerando gaguez e insegurança e afectando drasticamente o seu futuro como pai e como profissional. Nunca mais conseguiu falar em público.

Depois de fazer a abordagem geral e dar esse exemplo. Marco Polo calibrou a arma da sua inteligência e desferiu um golpe fatal em Falcão. Preparou, ainda que sem grandes pretensões, uma base para que ele questionasse o seu comportamento nas últimas duas décadas e mudasse para sempre o curso da sua história. Foram vinte minutos que mudaram uma vida. Cortou a resistência do amigo como se a cortasse com a lâmina de um bisturi.

- Você é o mestre e eu o aprendiz, mas, por favor, face a esta explanação, responda-me: é possível haver sistemas socialmente isolados?

Falcão sorriu e admitiu honestamente:

- Não. Há sistemas que pouco comunicam, mas não são isolados.

- Subir para um banco numa praça, declamar uma poesia ou pedir dinheiro para comprar um pão são reacções que interferem na dinâmica dos comportamentos das pessoas que o ouviram, interferindo, por sua vez, nos seus colegas de trabalho, na sua empresa, na sociedade, no comércio internacional. Por isso, fechar-se no seu mundo pode ser um acto egoísta! Concorda ou discorda?

- Sob essa óptica, o isolamento pode ser um acto egoísta - disse Falcão a transpirar.

- Você fechou-se dentro de si mesmo porque a sociedade o excluiu e o discriminou, mas superou-se, tornou-se um sábio. Essa mesma sociedade que o feriu precisa das suas ideias e da sua coragem para se transformar. Até porque o seu sistema nunca foi separado do meu.

O mundo desabou sobre Falcão. Ficou boquiaberto, atónito, pensativo. «Como é que nunca tinha pensado nisso?» Marco Polo tinha razão. «Estamos sempre a interferir na memória e no tempo dos outros. A memória e o tempo unem-nos numa inevitável rede», pensou.

- As suas ideias são amargas como fel, mas não posso fugir delas. Eu influencio o seu mundo e sou influenciado por ele.

E, para completar, o jovem fitou o génio e deu-lhe o último golpe:

- Responda-me a mais uma pergunta, pensador. Porque é que não é possível alienar-se ou isolar-se socialmente de maneira pura, completa, absoluta?

Com a voz embargada e sabendo de antemão onde é que Marco Polo queria chegar, o filósofo disse com sinceridade:

- Porque a ausência de uma reacção é já em si uma acção, é a acção da não-reacção. A não-reacção contribui para a acção dos outros. Assim como uma pessoa que se suicida continua a interferir na história dos que lhe são próximos, um pai que se torna um sem-abrigo continua a interferir no seu próprio filho - disse Falcão, com lágrimas nos olhos.

- Muito bem, mestre! Sei que é doloroso tocar nesse assunto, mas a sua ausência desencadeou uma sequência de eventos que influenciaram a personalidade de Lucas. Todas as vezes que ele o procurou e não o encontrou ou teve de explicar a alguém a sua ausência, você alterou fortemente as suas emoções, pensamentos, auto-estima. Portanto, nunca deixou de ser co-responsável por ele.

Falcão levantou-se do banco. Começou a andar em círculos. Nunca palavra alguma gerou tantas consequências no seu intelecto. Concluiu que até mesmo fazer discursos nas praças e levar as pessoas a viajarem para dentro de si mesmas eram factos que influenciavam a sociedade e atingiam indirectamente o seu filho.

A questão não era se a sua ausência fora melhor ou pior para Lucas. A questão é que nunca conseguira isolar-se dele. O pensador foi vencido no único lugar que poderia mudar a rota da sua vida: no campo das ideias. Temeroso, disse sinceramente:

- Não conseguimos fugir dos outros porque não conseguimos fugir de nós mesmos. Correrei riscos para reencontrar o meu filho!

Resolveu romper o seu casulo. Havia um grande preço a pagar para reconstruir a sua história. Os problemas que enfrentaria seriam enormes. Teria de se deparar com predadores dentro e fora de si. Poderia ser rejeitado por ter sido um mendigo. Teria de enfrentar o ex-sogro, a ex-mulher, os ex-colegas de trabalho. E, o que era pior, Lucas poderia culpá-lo, ser indiferente em relação a ele, ter vergonha do pai. Poderia também não estar vivo. O preço era incalculável; os riscos inimagináveis.

- Tenho medo! - reagiu.

Marco Polo nunca ouvira Falcão dizer tais palavras. Sempre o considerara imbatível.

- Medo! Você sempre foi destemido.

- Tenho medo de mim mesmo. Medo de me enfrentar. Medo de caminhar por estradas que há muito não piso e as quais pensei nunca mais pisar.

Pelo facto de estar a aprender a arte de produzir frases de efeito com o próprio Falcão, Marco Polo surpreendeu-o novamente:

- O medo pode ser um excelente mestre. Tira reis do seu trono e ensina-os a serem o que sempre foram: frágeis seres humanos.

Falcão deu uma gargalhada entrecortada no meio da sua dor. Procurando consolar-se, olhou outra vez para a sua plateia invisível e disse:

- Todos nós temos uma criança para encontrar. Uns dentro, outros fora de si. Preciso de achar a de fora, sem perder a de dentro.

Em seguida, pediu para ficar mais um dia nas ruas. Teria de se despedir, pelo menos temporariamente, do seu estilo de vida e da ampla casa onde vivia há anos. Queria abraçar mais árvores, conversar com mais flores, brincar com as borboletas, observar as estrelas enquanto fechava os seus olhos para mais uma noite de sono.

Marco Polo combinou que no dia seguinte, sábado, o iria buscar pela manhã. Os seus amigos, que dividiam consigo a mesma casa, viajariam para as suas cidades. A casa estaria vazia. Falcão passaria o fim-de-semana com ele. Planeariam juntos a longa viagem para a sua cidade.

Falcão fez uma longa despedida. Abraçou uma dúzia de árvores. Sentiu a brisa, o som sereno do vento. Ajoelhou-se nos jardins, beijou as rosas, dialogou com Deus. Terminou com estas palavras: «Deus, você foi meu amigo na loucura, na miséria e nas noites sem abrigo. Tenho medo que não o seja na fartura e nas noites confortáveis. É tão fácil esquecê-lo. Caminhe nos meus passos.»

Ao deitar-se, as estrelas não induziam o seu sono como sempre o tinham feito. O velho cobertor não o aqueceu como antes. O banco da praça pressionava as suas costelas desconfortavelmente. Teve pesadelos. Viu-se alvo de risos e desprezo. A sua mente tornou-se um turbilhão de imagens ameaçadoras.

No dia seguinte, Marco Polo levou-o para casa. Falcão tomou um bom banho, aparou a barba, cortou apenas parte do seu longo cabelo. Marco Polo emprestou-lhe algumas roupas, mas, como era dez centímetros mais baixo do que o amigo, as calças e a camisa ficaram engraçadas.

O velho, que aparentava entre setenta a oitenta anos, rejuvenesceu. Regressou aos 55 anos, a sua idade real. Marco Polo riu da aparência do amigo. Falcão parecia um rapaz despenteado com as roupas curtas.

Troçando de Marco Polo, afirmou:

- Ainda estou bonito! - E fez uma pose desajeitada.

- Bonito o suficiente para não me espantar.

O jovem amigo juntou algumas economias e ambos saíram em busca de roupas decentes. Para Falcão, qualquer roupa estava bem. Entraram numa loja e Marco Polo escolheu uma camisa de mangas compridas verde-seco e umas calças vermelhas. Falcão vestiu-as e achou-as belíssimas, lembravam as rosas vermelhas com hastes verdes dos jardins. Felizmente, as vendedoras intervieram. Compraram duas camisas brancas e um par de calças beges.

Ao sair da loja, Falcão sentia-se mascarado, artificial. Andava erecto, sério e sem espontaneidade. Há anos que não se preocupava com os olhares das pessoas. Sentia-se observado. Não era um sentimento decorrente da antiga paranóia, mas de ter de representar o que não sentia, de sorrir quando estava infeliz.

Marco Polo viu o rosto do amigo entristecer pouco a pouco. Nada o animava. Ligou a televisão num canal de notícias para que ele se distraísse um pouco, mas piorou as coisas. Desde que tinha saído pelo mundo. Falcão nunca mais vira televisão, apenas de relance.

Viu um repórter a denunciar a fome na Etiópia, mostrando imagens de crianças magríssimas, só com pele e osso, sem expressão facial, em profundo estado de melancolia. Quase não tinham força muscular para se movimentarem. Deviam estar a brincar, mas estavam a morrer. Falcão curvou-se, colocou a cabeça à frente do corpo e arregalou os olhos.

O repórter disse que, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), a cada cinco segundos morre uma criança de fome. Falcão, estarrecido, meneou a cabeça e gritou:

- Não é possível! Estão a deixar as crianças morrerem! Em seguida, viu outra imagem fantasmagórica: um pai que corria e gritava desesperadamente com um filho a sangrar ao colo. Ele fora vítima de um ataque terrorista. As imagens que saltavam do ecrã pareciam mais loucas do que as alucinações que o perturbavam na sua fase psicótica mais drástica. E aquilo era real. Falcão começou a sentir-se mal. Teve palpitações e suor excessivo.

Em seguida, observou a expressão facial do repórter que transmitia as notícias. Para seu espanto, o rosto não traduzia o drama da notícia, revelava apenas um ar de consternação.

Posteriormente, o mesmo repórter mudou rapidamente o semblante, fez um sorriso e falou de um milionário excêntrico, que apareceu no ecrã a acariciar os seus cavalos em sumptuosos estábulos. Esta notícia penetrou como um terramoto no intelecto de Falcão. Estava incrédulo.

Percebeu que o processo de transmissão das informações destruía a afectividade dos espectadores. Fitou o jovem amigo e comentou incisivamente:

- Vocês não sentem asco por esta sociedade?

- Esses acontecimentos são péssimos! - confirmou Marco Polo.

- Péssimos? São horríveis! Vocês estão adaptados ao lixo social. Não se perturbam mais com eles!

- Não! Nós detestamos essas imagens!

- Os seus olhos detestam-nas, mas as suas emoções não reagem.

Marco Polo ficou abalado. Sentiu que Falcão estava coberto de razão. Embora vagueasse pelas ruas e presenciasse determinados tipos de sofrimentos, não tinha contacto com algumas das mais repugnantes misérias cometidas pelo sistema. A sua sensibilidade não estava doente nem era exagerada, mas anestesiada, constatou.

Nesse momento, teve um insight. Num relance súbito de lucidez, analisou a psicoadaptação dentro da sala de anatomia. As primeiras imagens dos cadáveres, bem como o cheiro a formol, tinham causado fortes reacções nos alunos, mas pouco a pouco essas reacções diluíram-se no inconsciente. O cheiro a formol tornara-se suportável. Alguns estudantes que choraram de tensão no primeiro dia brincavam com os cadáveres, movimentando os seus membros como se eles estivessem vivos.

Marco Polo fez um paralelismo entre a sala de anatomia e o ambiente social. O impacto causado pelas imagens grotescas exibidas na televisão perdia o efeito à medida que os espectadores as viam diariamente. Percebeu que a sensibilidade da humanidade estava em vias de morrer. Tornara-se um espectáculo de terror. Por isso, humildemente, disse:

- Estamos doentes.

Ainda completamente indignado. Falcão usou o próprio discurso de Marco Polo, do princípio da co-responsabilidade, para questionar:

- Os líderes da sociedade são adultos?

- Obviamente que são adultos.

- Então responda-me: os governantes dos países ricos e os empresários que dominam o mundo são co-responsáveis por essas misérias?

- Sim.

- Eles têm ou não insónias por tais sofrimentos? Acuado, o rapaz não soube responder. Então, Falcão respondeu por ele.

- Se eles dormem e se sentem tranquilos, são crianças. Só uma criança não tem consciência das misérias dos outros e não é responsável por elas. Só uma criança come fartamente e dorme serenamente enquanto há outras crianças a morrer de fome.

Falcão e o Poeta divertiam frequentemente as crianças nas praças e ensinavam-nas habilmente a pensar com as suas ideias e gestos. Para eles, pensadores excluídos, as crianças eram a única coisa pura da sociedade, o seu maior tesouro. Vê-las maltratadas esmagava os seus sentimentos.

De repente. Falcão abriu as janelas do seu inconsciente e resgatou as suas reacções nos dias posteriores a ter abandonado o seu filho. Reviveu as primeiras noites em que vagueava pelas ruas. Relembrou os gritos que dava a chamar por Lucas. Olhava para os estudantes e via neles a cara do filho. Queria abraçá-los, mas os pais afastavam-nos.

Essas imagens mesclaram-se com as cenas da televisão, aumentando a sua perturbação. As imagens dos cavalos abrigados nos estábulos luxuosos com as imagens das crianças a morrer de fome baralharam-se na sua mente. Inquieto, andava pela sala. Parecia que vivia a dor daquelas crianças.

Teve vontade de vomitar. Queria vomitar a sua indignação. Fixou-se na sua plateia invisível e começou a discursar como se estivesse em crise. Os vizinhos mais próximos ouviram os seus brados. Marco Polo ficou paralisado.

- Loucos! Estúpidos! Uma espécie que destrói os seus descendentes comete homicídio! Que sociedade é esta em que as crianças são tratadas como animais e os animais são tratados como crianças? Não as maltratem! Deixem-nas brincar! Deixem-nas viver!

Asfixiado interiormente, Falcão saiu rapidamente de casa. Precisava de respirar.

 

                         Capítulo 12

Ao sair pela rua fora, Falcão foi acompanhado de longe por um Marco Polo apreensivo. Na rua, entretanto, pouco a pouco, Falcão libertou-se. Começou a dançar e a fazer caretas às crianças, fazendo-as sorrir. Cumprimentava toda a gente, inclusive quem não conhecia. Abraçou uma árvore. Voltou a ser o Falcão de sempre. Refez-se, mas não esqueceu as imagens. Regressou a casa e, com Marco Polo, começou a organizar a viagem. Saíram na madrugada de domingo para segunda-feira no velho carro do rapaz. A viagem durou mais de seis horas. Quando o dia amanheceu, ainda estavam na estrada.

Os primeiros raios solares entravam pelos seus olhos. Falcão estava convencido de que precisava de reencontrar os porões do seu passado, abrir algumas feridas que nunca tinham cicatrizado e enfrentar os fantasmas que não tinham morrido. O nome verdadeiro de Falcão era Sócrates. A sua mãe escolhera o nome do filósofo grego sem grandes pretensões intelectuais, apenas porque o achara bonito, sonoro. Mas aquele nome levou-o a interessar-se pelo extraordinário filósofo nos tempos de colégio.

Descobriu que Sócrates fora um questionador do mundo, mas não deixara nada escrito. Os seus discípulos escreveram sobre ele, tal como Marco Polo um dia escreveria sobre Falcão. Fascinado com a postura intelectual do filósofo, o jovem Sócrates resolveu seguir a carreira de filosofia.

- Para mim, será sempre Falcão - comentou Marco Polo.

- Já não sou Sócrates.

Finalmente chegaram à cidade. Foi difícil para Falcão reconhecer as ruas, praças e bares. A cidade sofrera mudanças, mas não substanciais. Conseguia orientar-se. Sentia taquicardia, as suas mãos suavam, os músculos estavam tensos.

Encontrou o velho restaurante italiano próximo da sua casa. Pediu para parar.

Era um lugar simples, mas agradável. Nesse restaurante, à volta de uma mesa e segurando um copo de bom vinho, fizera grandes debates sobre política, crises sociais, relações humanas. Os clientes ouviam-no embevecidos. Aprendiam a filosofar como na Grécia Antiga. Falcão lembrou-se de algumas passagens agradáveis. Todavia, foi também desse restaurante que teve de ser retirado pelos amigos quando tinha os seus surtos psicóticos.

As paredes estavam desbotadas, o piso de xadrez mantinha-se, mas sem brilho, os azulejos floridos com fundo branco permaneciam intocáveis. Toni, o proprietário, um pouco mais velho do que Falcão, admirava a sua inteligência, e tinham-se tornado grandes amigos.

Desceu do carro lentamente. Olhou para o horizonte da rua, fitou as construções. Respirou a brisa da manhã, ainda eram dez horas. Marco Polo, pegando-o pelo braço direito, impeliu-o suavemente para dentro do estabelecimento.

Falcão perguntou por Toni. O jovem ao balcão contou que o proprietário havia sofrido uma isquémia cerebral e andava com dificuldade, mas não perdera a lucidez. Disse que ia chamá-lo, mas antes perguntou quem o procurava.

- Diga que é Falcão, ou melhor, Sócrates, um velho amigo.

O jovem abriu a porta dos fundos, que dava para uma casa antiga. Um homem de cabelos grisalhos, ao saber da notícia, ficou espantado. Com andar trôpego, esforçava-se ansiosamente por andar mais rapidamente. Ao aproximar-se, um sorriso incrédulo estampou-se no seu rosto. Parecia que via algo do outro mundo. Afinal de contas, um morto acabava de reaparecer.

- Sócrates! Sócrates! Não podes ser tu! - disse, tentando correr.

A cena foi indescritível. Os olhos viram as letras do tempo. Os dois amigos abraçaram-se demoradamente sem palavras. As palavras não eram necessárias. O silêncio foi mais eloquente.

Toni sempre reconhecera a genialidade de Sócrates. Sofrera intensamente com as crises psicóticas do amigo. Dizia que a sua genialidade o enlouquecera. O seu desaparecimento tornara-o tabu naquelas bandas. Ainda hoje comentavam o seu caso.

Após o afectuoso abraço, Toni perguntou de onde é que ele vinha.

- Venho de todos os lugares e de lugar nenhum. Pertenço ao mundo, meu amigo.

Toni ficou felicíssimo com a resposta. Percebeu que Sócrates continuava acutilante nas frases curtas, mas de grande alcance. Marco Polo observava tudo como um espectador atento. Após alguns minutos de conversa, Falcão entrou no árido terreno do seu passado, perguntando ao amigo:

- E Lucas?

Falcão trouxera muitas vezes o filho ao restaurante. Toni conhecia a história. Sabia da longa e penosa separação. Fez uma pausa. A pausa gelou os sentimentos de Falcão. Em seguida, a grande notícia.

- Tornou-se um grande homem.

- Como assim? - indagou Falcão, extasiado e aliviado.

- As sementes que plantaste geraram um pensador.

- Não plantei semente alguma. O meu filho teve um pai psicótico - disse humildemente.

Toni, discordando dele, repetiu uma frase inesquecível da autoria do próprio Falcão.

- Lembras-te de dizeres: «O maior favor que se pode fazer a uma semente é enterrá-la»? Tu enterraste-a no coração do teu filho. Parecia que morrera, mas eclodiu. Vai à Universidade Central e vê com os teus olhos - disse taxativamente.

As lágrimas escorriam dos olhos de Falcão. Em seguida, o velho amigo completou:

- O teu filho veio muitas vezes a este restaurante para me ouvir falar de ti. Conheceu as tuas peripécias intelectuais.

O pensador das ruas não suportou ficar de pé. Foram longos anos de sofrimento. Parecia estar fora da realidade diante de Toni. Sentou-se e disse, incrédulo:

- Não é possível! O meu filho procurou-me!

Marco Polo reteve a respiração. Teve a certeza nesse momento de que tinha escolhido o caminho certo. Toni ofereceu-lhes bebidas e comida.

- Desculpa-me, amigo, mas a fome e a sede da minha alma são mais urgentes...

Foram à universidade, a mesma onde Falcão tinha leccionado e de onde fora expulso. Os longos corredores e o piso de granito escuro abriram as janelas da sua memória. Novamente lembranças agradáveis e frustrantes ocuparam o cenário da sua mente. Ficou apreensivo.

Chegaram à secretaria e perguntaram por Lucas. Descobriram que ele chegara longe. Era doutor em Sociologia e pró-reitor da universidade. Tinha apenas 32 anos. Falcão ficou espantado com a notícia. Como é que o filho de um doente mental, que fora perturbado pelas crises do pai, tinha chegado tão jovem ao topo da hierarquia académica?

Falcão sabia que as doenças psíquicas não são contagiosas nem são determinadas geneticamente; no máximo, exercem uma certa influência que pode ser dissipada pelo ambiente educacional. Sabia que o universo psíquico é tão complexo que os filhos de psicóticos e depressivos eram capazes de superar o clima «stressante» das suas casas e tornar-se felizes, seguros, líderes.

Vivera dez anos com Lucas. A base da personalidade do seu filho já se formara. O temor de que a sua ausência pudesse ter prejudicado a personalidade da criança sempre o atormentara. As notícias actuais sobre Lucas foram um alívio para a sua emoção.

A secretária comunicou que o Dr. Lucas estava no departamento de ciências jurídicas a dar uma conferência sobre «A crise na formação de pensadores». Falcão, indeciso, disse que voltaria noutra altura. Marco Polo segurou-o pelo braço e pediu para lhe indicarem a direcção do anfiteatro. Chegaram ao evento. A sala estava praticamente cheia.

Havia apenas alguns lugares na primeira fila. Sem alternativa, sentaram-se próximo do conferencista. O Dr. Lucas fez uma pausa, esperou que os novos ouvintes se acomodassem e continuou a sua exposição.

Falcão estava irreconhecível com os seus cabelos grisalhos, relativamente longos e revoltos, pele seca e sulcada pelos maus tratos da rua. Na plateia estavam professores, alguns antigos colegas.

Ouvir o filho discursar com segurança fez disparar inúmeros gatilhos na sua memória. Um vendaval de imagens passou na sua mente. Recordou-se de inúmeras passagens do pequeno Lucas. Parecia incrível, surreal, que depois de tantos anos estivesse diante dele novamente. Os seus olhos fixavam-se comovidos no rosto do filho. Tinha vontade de interromper a conferência, correr e abraçá-lo. Mas conteve-se. Até porque não sabia como é que ele reagiria.

Lucas terminou a sua palestra afirmando que as universidades se tinham multiplicado, mas a formação de pensadores não aumentara. Comentou que uma das causas era o facto de o conhecimento estar separado, dividido, a formar profissionais com uma visão unifocal e não multifocal da realidade. Disse que a matemática, a física e a química deveriam unir-se à sociologia, psicologia e filosofia, a fim de construir uma ciência humanista, capaz de produzir ferramentas que modificassem o mundo. Em seguida, concluiu, sob os aplausos calorosos da plateia:

- O conhecimento humanista produz ideias. As ideias produzem sonhos. Os sonhos transformam a sociedade...

Quando acabou, incentivou os participantes a debaterem as suas ideias e experiências. A plateia estava hesitante, como se o orador não tivesse dado margem para interpelações.

Marco Polo, ousado, fez sinal a Falcão para falar, mas ele emudeceu. Novamente, o jovem incentivou o amigo, sussurrando-lhe:

- É a sua grande oportunidade para ajudar as pessoas e impressionar o seu filho. Você é um mestre nesse tema. Vamos!

Falcão balbuciou:

- Não sou capaz.

Nesse momento. Marco Polo recordou a lição que Falcão lhe dera quando dissera insensatamente que a ciência era o deus do ser humano. Sentiu que era a sua vez de lhe devolver a lição. Levantou-se subitamente, foi à frente da plateia, pegou no microfone e subiu ao palco onde estava o Dr. Lucas.

Ao ver a atitude de Marco Polo, Falcão percebeu que tinha entrado numa das situações mais complicadas da sua vida. O seu discípulo aprendia as coisas rapidamente.

Do alto do palco. Marco Polo falou ousadamente:

- Estimada plateia! Vou apresentar-lhes um dos maiores pensadores da actualidade. Percorreu várias universidades do mundo. Ele é tão requisitado que nem tem morada certa. É tão eloquente que é capaz de discursar até em cima de um banco de praça. Entende como ninguém a crise dos pensadores.

As pessoas, admiradas, riram. Em seguida, Marco Polo apontou para o amigo.

- Convosco, o Dr. Falcão!

Havia mais de trezentos participantes. A plateia achou estranho o nome do interveniente. O Dr. Lucas, em sinal de respeito, levantou-se e aplaudiu. A plateia fez coro. Falcão não teve outra alternativa.

Subiu ao palco, fitou a plateia demoradamente. Reconheceu por detrás dos cabelos brancos alguns colegas. Lembrou-se dos que lhe viraram as costas e troçaram dele. O seu olhar penetrante invadiu-lhes a inteligência.

Começou a falar com uma voz vibrante e pausada. Parecia que nunca tinha saído do microcosmo da sala de aula. Disse que os grandes homens produziram as suas mais brilhantes ideias na juventude, quando ainda eram imaturos.

- Porque foram eles tão produtivos na juventude, senhores? Porque não tinham medo de pensar. E porque é que não tinham medo de pensar? Porque não eram escravos dos paradigmas e conceitos antigos nem das suas verdades. Não foram aprisionados pelo conhecimento pronto.

Em seguida, questionou a plateia.

- O que é mais importante para formar um pensador: a dúvida ou a resposta pronta?

- A dúvida! - responderam em coro.

- O que ensinam vocês?

Surpreendidos com a pergunta, a grande maioria dos professores de Direito, Psicologia, Sociologia, Engenharia e Pedagogia disseram com honestidade:

- A resposta pronta.

- Senhores, desculpem-me, mas ainda que não tenham consciência disso, por transmitirem o conhecimento pronto, vocês estão a formar repetidores de ideias e não pensadores. O sistema académico tem aprisionado o ser humano e não libertado a sua inteligência.

Enquanto Falcão falava, alguns membros da plateia tiveram a impressão de que o conheciam. O seu atrevimento e fineza de raciocínio remetiam-nos ao passado. Falcão, então, dirigindo-se aos antigos docentes e pesquisadores, golpeou-os frontalmente:

- Talvez muitos de vocês também estejam algemados por esse sistema sem que o saibam. No início da vossa carreira académica, provavelmente duvidavam, aventuravam-se e produziam mais conhecimento do que hoje, quando são reconhecidos. O sucesso na carreira e os títulos que valorizam os cientistas podem funcionar como venenos que matam a sua ousadia e criatividade. Na realidade, não deveríamos ser doutores, senhores, mas eternos aprendizes.

Lucas ouvia atentamente o homem culto e provocador. Como líder da universidade, ele sabia que muitos ilustres professores escondiam-se atrás dos seus títulos e deixavam de produzir ciência. Lucas tornara-se um destemido pensador; o seu sucesso viera do seu caos. Crescera num dos piores ambientes, mas o seu pai, antes da sua psicose e nos momentos de lucidez entre os surtos, levara-o a não ter medo do novo, a explorar o desconhecido, a molhar-se com a chuva, a construir os seus próprios brinquedos, a enfrentar a sua insegurança e sentimento de humilhação.

Falcão olhou para Lucas, para Marco Polo, depois para a plateia, e finalizou:

- Os nossos alunos consomem o conhecimento como uma sanduíche, como fast food. Não o digerem, não o assimilam nem conhecem o seu processo de produção. Recebem diplomas e preparam-se para o sucesso, mas não para lidar com frustrações, perdas, desafios e fracassos. As universidades, com as devidas excepções, têm gerado servos e não autores da sua história.

A plateia ficou abalada com aquela exposição crítica e contundente. Houve uma explosão de aplausos. Perguntaram baixinho a Marco Polo de onde vinha o professor. Marco Polo disse-lhes que de muitos lugares e de lugar nenhum. Falcão, com a voz embargada, agradeceu e disse:

- Dirijo os aplausos a uma pessoa aqui presente mais importante do que eu. Alguém com quem, na sua infância, brinquei, a quem beijei e amei mais do que tudo na vida... Mas também alguém que feri e perturbei com as minhas crises. Para o poupar, parti para uma longa viagem. Nessa viagem, superei as minhas crises, mas não tive coragem de voltar. Tive medo de mim mesmo. Sei agora que errei e muito...

O público, confuso, não entendeu a mudança de discurso, e Lucas igualmente. Falcão chorava. Fez mais uma pausa para conter as lágrimas.

- O meu filho sofreu muito, perdeu muito, mas usou a sua dor para conquistar o seu sucesso. Tornou-se um brilhante pensador e um generoso ser humano...

Falcão falava a olhar para Lucas. Entrou em estado de choque. Com a voz entrecortada, baixou o microfone e, limpando com as mãos as suas lágrimas, disse:

- Filho... Eu amo-te! Perdoa-me, meu pequeno pupilo. Lucas nunca se esquecera da alcunha carinhosa que o pai lhe dera. Como um raio, as últimas palavras de Sócrates abriram as crateras do seu interior e iluminaram os becos da sua história. Ele reconheceu o pai. Transportou-se para o passado. Imediatamente, inúmeras imagens saíram da colcha de retalhos da sua memória, ganharam visibilidade no palco consciente. Começou a ver e ouvir o pai de braços abertos a chamá-lo. Regressou aos dez anos e viu também o seu próprio rosto apavorado a procurá-lo no meio da multidão.

Tinha chorado muitas vezes na adolescência, gritando pelo pai em silêncio. Lucas não se importava se os outros troçavam dele. Amava-o e queria-o da maneira que ele era, o seu querido pai. Agora, Sócrates estava no palco flamejando a sua inteligência como se nunca tivesse deixado o cenário da sua vida. Parecia irreal. Lucas começou a chorar. Ficou aturdido.

Não eram dois intelectuais que se encontravam, mas duas almas despedaçadas, um pai e um filho cujas histórias foram mutiladas pelas intempéries da existência, mas que agora eram reunidas.

Lucas levantou-se a soluçar e balbuciou:

- Pai! Papá! És tu...

Abraçaram-se demoradamente. Consolaram-se das suas dores. Beijaram-se carinhosamente. O tempo parou. A plateia estava atónita.

Momentos depois, Lucas olhou para Falcão e disse-lhe:

- Pai, não sabes como te procurei! Foram noites de insónias e pesadelos.

- Meu filho, meu filho! Perdoa-me! Quis ser um herói, mas fui um cobarde!

- Não, papá, foste o mais corajoso dos homens. O avô Pedro, no leito da morte, confessou a mim e à mamã o que te fez. Disse que comprou um laudo de um psiquiatra para te afastar de mim. Nunca te deixei de amar.

Eles abraçaram-se novamente. O público levantou-se e aplaudiu sem entender bem os factos. Estavam apenas conscientes de que presenciavam uma das mais belas cenas de amor... Marco Polo não suportou a comoção. Foi até à janela, abriu-a e sentiu a brisa acariciar-lhe o rosto. Observou os movimentos suaves das folhas e flores. Num mergulho interior, pela primeira vez sussurrou algumas palavras que pareciam uma oração: «Deus, eu não sei quem tu és. Eu também não sei quem eu sou. Mas obrigado pela vida e por todas as alegrias e sofrimentos que a transformam num espectáculo único!»

Falcão virou-se para Marco Polo, abraçou-o sentidamente e agradeceu-lhe. Apresentou-o como filho adoptivo e, para não perder o seu humor, ainda teve tempo para brincar.

- Os loucos vivem mais aventuras do que os normais. Nunca sejas muito normal, Marco Polo...

Ao ouvir aquela frase, o rapaz recordou a frase do seu pai que estava submersa no seu inconsciente: «Sai do lugar-comum, meu filho!»

Abanando a cabeça, Marco Polo entendeu o recado. Resolveu no seu íntimo libertar a sua criatividade e caminhar sem medo pelas curvas da existência. Desejou honrar o seu nome e fazer da sua vida uma fascinante aventura.

 

                         Capítulo 13

Falcão e Marco Polo foram para casa de Lucas. Ele havia casado e já tinha uma filha de dois anos. Conversaram longamente. No dia seguinte, Débora, a ex-mulher, apareceu. Lucas comunicara-lhe a surpreendente notícia. Ela estava abalada e céptica. Parecia um sonho o regresso de Sócrates, principalmente a recuperação da sua lucidez.

O relacionamento de Débora com o ex-psiquiatra de Falcão tinha durado pouco, cerca de um ano. Viveram juntos durante seis meses. Como todas as relações que não têm raízes, caso frequente entre terapeutas e pacientes, eles não suportaram as dificuldades. O psiquiatra, tão gentil e solidário nos primeiros meses, mostrou-se intolerante e pouco amante do diálogo. Terminaram a relação e nunca mais se falaram.

Débora teve outros namorados. Chegou a viver durante quatro anos com um juiz, amigo do seu pai. Mas o relacionamento não tinha tempero emocional. Faltava-lhe cumplicidade e afecto.

O juiz era reservado, vivia para o trabalho e não trabalhava para viver. Era um excelente profissional, mas não sabia investir naquilo que mais amava. Não conseguia compreender a emoção ferida e carente de Débora nem penetrar no mundo solitário de Lucas. Assim, desde a partida de Sócrates, ela nunca mais encontrara um grande amor. Há dois anos que estava só.

Débora chegou de surpresa a casa de Lucas. Ao entrar na sala, os olhos dela encontraram os olhos dele. Foi um momento regado com ternura. A doçura e a dor entreteceram-se. Os olhos dele humedeceram, os dela lacrimejaram. Só o silêncio conseguia decifrar a magia daquele momento.

Lucas calou-se. Marco Polo, que se preparava para regressar à sua cidade, imobilizou-se. Conhecia Débora pelas palavras de Falcão. O olhar do amigo denunciara-a, sabia que estava diante dela. Após uma rápida apresentação, Marco Polo e Lucas deixaram-nos a sós, mas Falcão e Débora preferiram sair. Precisavam de percorrer as avenidas do seu passado.

Reflectindo sobre o período em que não suportara as suas crises e o tinha trocado pelo seu psiquiatra, Débora baixou lentamente a cabeça e disse-lhe suavemente:

- Não sei se é possível, mas perdoa-me. Perdoa-me por te ter abandonado no momento em que mais precisavas de mim...

Abanando a cabeça, Falcão tentou aliviar rapidamente o peso do sentimento de culpa dela.

- Eu compreendo-te. Eu compreendo-te...

Raramente poucas palavras foram tão eloquentes. Em seguida, ele reflectiu sobre o ciúme doentio que tinha da mulher. Por isso, acrescentou:

- Perdoa-me também. Perdoa-me pelo meu ciúme paranóico. Perdoa-me por todas as vezes em que nos meus delírios te acusei de traição.

- Tu não tinhas consciência.

- Consciente ou não, feri-te. Não consigo imaginar o quanto sofreste. Sei que não foi fácil suportar as minhas loucuras.

- Por detrás das tuas loucuras havia um ser humano maravilhoso.

Em seguida, ela abraçou-o carinhosamente. Ele beijou-a no rosto suavemente. Aos seus olhos, ela ainda era linda. De mãos dadas, continuaram a conversar. A partir dali, tornaram-se grandes amigos.

Falcão foi reconduzido à sua universidade. Alguns antigos colegas reconheceram com gestos e não com palavras o erro cometido. Eles tinham-no discriminado por ter sido um paciente psiquiátrico e erraram ao rotular a sua doença mental como doença completamente incapacitante. Em muitas universidades, havia outras vítimas.

O regresso de Falcão às suas actividades profissionais foi mais do que um acto de compaixão da sociedade, tentando realizar a inclusão social. Foi uma das raras vezes em que a sociedade reconheceu a sabedoria de um ex-psicótico e lhe deu a oportunidade de provar que vários mutilados pela vida têm muito a ensinar a quem tem muito a aprender.

Falcão manteve a sua alcunha. Provocador, ele instigava os seus alunos a abrirem as janelas do intelecto, a terem audácia para construir ideias críticas contra tudo o que formatava as suas mentes. Com um olhar penetrante e um discurso afiado, o mestre das ruas voltou a incendiar o pequeno mundo da sala de aula.

Marco Polo regressou à sua cidade. Enquanto conduzia, contemplava o ocaso. Os raios solares trespassavam os espaços entre as nuvens deixando estrias douradas. Era uma anatomia celeste encantadora. Enquanto observava a natureza, mergulhou dentro de si. Um pensamento deixou o silêncio do seu ser e ganhou sonoridade: «Gastarei a minha vida a explorar o mais complexo e deslumbrante dos mundos: a mente humana. Serei um garimpeiro que procura ouro nos escombros das pessoas que sofrem.»

Esse pensamento mudaria para sempre a sua vida, pautaria a sua conduta e a pouco e pouco fá-lo-ia ver os transtornos psíquicos por outros ângulos. Ao longo dos anos, teria um pensamento diferente do pensamento corrente da ciência. Não encararia as psicoses, as depressões e os demais transtornos psíquicos como atributo dos fracos, mas como fazendo parte da complexidade da personalidade humana.

O contacto estreito com Falcão fez Marco Polo tornar-se um estudante de Medicina mais questionador e crítico do que antes. Era um modelo de estudante raro no mundo académico. A grande maioria dos seus colegas de turma tinha medo de expor as suas dúvidas e críticas. Ele, pelo contrário, embora procurasse ser educado, não suportava ficar calado. Causava agitação na sala de aula devido à sua ousadia de interrogar os professores. Estes ficavam aflitos diante dele, pois estavam preparados para ministrar aulas a uma plateia passiva.

Alguns alunos, muito bem-comportados, tiravam melhores notas do que Marco Polo, mas não tiravam as melhores notas nas funções mais importantes da inteligência - não trabalhavam a capacidade de pensar antes de reagir, a segurança, a sensibilidade, a intrepidez. Eram sérios candidatos à frustração profissional e emocional.

Não ter medo de ser diferente nem sempre era o caminho mais confortável para o jovem Marco Polo. Tinha um preço, mas, como desejava ter luz própria e não ficar na sombra dos outros, estava disposto a pagá-lo. Para ele, o diploma passou a ser apenas um apêndice.

Por pensar muito e analisar constantemente os factos internos e externos da sua vida, Marco Polo era uma pessoa muito distraída. Esquecia-se de onde deixara a chave do velho carro e, às vezes, de onde o estacionara.

Certa vez, no quinto ano de Medicina, ficou de levar um paciente com a perna engessada e que andava de muletas para o sector de Ortopedia. Entretanto, esqueceu-se de que o paciente o seguia. Subiu alguns andares, desceu outros, andou por corredores compridos e entrou na cozinha do grande hospital. Ao chegar lá, percebeu que alguém o perseguia. Era o paciente de muletas. Pediu desculpas e disse com humor:

- Você está melhor do que eu! O traumatizado sorriu. Algumas pacientes diziam-lhe:

- Doutor, a minha memória está má.

- Não se preocupe, a minha está péssima - dizia ele em tom de brincadeira.

Estava a tornar-se quase tão distraído como Hegel na sua velhice. O ilustre filósofo entrou certo dia na sala de aula apenas com um sapato calçado. Deixou o outro, sem se aperceber disso, na lama.

Apesar da sua distracção, Marco Polo era bastante generoso e carinhoso com os pacientes. Nas aulas práticas, os seus professores reuniam grupos de oito alunos e, à beira do leito dos pacientes, começavam a descrever as doenças, as suas causas, os tratamentos e as taxas de sobrevivência. Referiam-se em códigos a algumas doenças, como «ca.» para cancro, para não constranger os pacientes. Mas estes ficavam sempre ansiosos.

Depois de o grupo sair das aulas práticas, Marco Polo procurava esses pacientes. Queria entrar no âmago das suas histórias, aliviar-lhes a angústia decorrente do internamento e o medo de morrer. Tornava-se amigo deles. Fascinado pela medicina, pensava: «Um dia, mais cedo ou mais tarde, todo o ser humano adoecerá e precisará de um médico. Ricos e miseráveis, famosos e anónimos, são iguais perante a dor e a morte. Elas são os fenómenos mais democráticos da existência.»

Com o passar do tempo, apesar do apreço pela medicina, Marco Polo começou a ficar decepcionado com o que observava. A medicina moderna especializou-se em eliminar a dor física e emocional, mas não aprendeu minimamente a utilizá-la. A ânsia de querer eliminar a dor retardava o alívio e bloqueava os pacientes, impedindo-os de usar a dor como ferramenta para corrigir as suas rotas e lapidar a sua maturidade. Por detestar a dor, a medicina, tal e qual a sociedade moderna, especializou-se em tratar o sofrimento do ser humano e não o ser humano que sofre.

A medicina tornou-se lógica, objectiva, uma escrava da tecnologia. Muitos aparelhos, muitos exames, muitos procedimentos, mas pouca sensibilidade para descobrir as causas emocionais e sociais. A ansiedade na génese dos enfartes quase não era levada em conta. O stresse escondido nos bastidores dos cancros era pouco analisado. Os pensamentos antecipatórios atrás de gastrites, hipertensão arterial, cefaleias e dores musculares raramente eram investigados.

Certa vez, Marco Polo estagiava nas Urgências. O ambiente do pronto-socorro era sombrio, excessivamente técnico e pouco afectivo. Nesse estágio, ficou inconformado com as atitudes de certos professores de Medicina diante dos sintomas de algumas mulheres. Elas apresentavam fortes dores de cabeça, dores abdominais, dores no tórax, mas não tinham doença física que justificasse os sintomas.

Diante disso, prescreviam analgésicos, às vezes, tranquilizantes e mandavam-nas embora secamente, dizendo que não tinham nada. No máximo, alguns sugeriam que elas procurassem um psicoterapeuta.

Depois de as pacientes saírem do consultório, os professores queixavam-se com os estudantes. Diziam que elas atrapalhavam o serviço, que simulavam sintomas, inventavam doenças, não tinham mais que fazer. Negavam que elas tivessem um conflito interior doloroso.

Certa vez, Marco Polo teve uma discussão com um professor, o Dr. Flávio, que tratou indelicadamente uma mulher. Ela aparecia todas as semanas para ser atendida com aperto no peito, taquicardia e sensação de falta de ar. Ao vê-la novamente com a mesma queixa, o Dr. Flávio arguiu rispidamente:

- Você não tem mais que fazer? Quantas vezes já lhe disse que não tem nada fisicamente? Vá tratar da sua vida! Procure um psiquiatra.

A paciente desatou a chorar.

Marco Polo segurou-a cortesmente pelo braço e pediu-lhe que esperasse lá fora. Em seguida, olhou para o seu professor e disse-lhe:

- Porque é que, em vez de a criticar, o senhor não conversa sobre as causas psíquicas desses sintomas? Porque é que não investiga a sua história?

Uma das tarefas mais difíceis do mundo é ensinar um professor que perdeu a capacidade de ser aluno. Sentindo-se afrontado, o professor elevou o seu tom de voz. Com autoritarismo, disse à frente de outros três colegas de Marco Polo presentes na sala:

- Olha lá, rapaz, não me venhas dar lições de moral. Sou doutor em emergência médica e tu és um mero aprendiz. Aqui não temos tempo para tratar de disparates.

Intrépido, Marco Polo retrucou:

- Se o senhor, que é culto e saudável, ficou ofendido com as minhas simples palavras, imagine como essa paciente não se ofendeu com as suas.

O professor engoliu em seco. Em seguida, Marco Polo emendou:

- Vir às urgências não é a coisa mais agradável de se fazer. Se essa paciente teve coragem para vir a este ambiente tenso, desprovido de alegria, é porque deve estar a sofrer muito. O senhor não acha que os seus sintomas, ainda que imaginários, representam um grito de que ela está a precisar que o senhor dialogue com ela?

Os demais alunos sentiram calafrios pela ousadia de Marco Polo.

- Não sou psiquiatra.

- Professor, desculpe a minha ignorância diante da sua competência, mas será que não loteamos os pacientes entre a medicina biológica e a psiquiatria? Talvez ela não precise de um psiquiatra no momento, mas de um especialista como o senhor que a ouça, lhe dê apoio e compreensão e lhe assegure de que ela não tem nenhuma doença grave.

Os alunos entreolharam-se apreensivos. O professor ficou perturbado e sem acção. Mas, depois de um momento de silêncio, teve um gesto de rara humildade.

- Reconduza-a a esta sala.

Na sala, o Dr. Flávio perguntou-lhe o seu nome completo e indagou se ela podia falar sobre a sua história à frente de todos os alunos ou se preferia conversar a sós. Catarina comentou que podia falar com todos. Era uma mulher de feições bonitas, mas marcadas pela angústia crónica. Tinha trinta anos, era casada e tinha um filho de um ano e meio.

Para surpresa do professor e dos alunos, ela relatou espontaneamente que há um ano perdera, através de um enfarte fulminante, uma das pessoas que mais amava na vida: o seu pai. Ele fora sempre o seu grande amigo e estivera sempre presente nos momentos mais difíceis da sua história. Agora, ela atravessava um problema gravíssimo, mas já não tinha o seu ombro, o seu consolo e conselho.

Há quatro meses, o seu marido sofrera um grave acidente de viação, tivera um trauma na coluna e estava numa cadeira de rodas. Ele chorava diariamente por querer andar, praticar desporto, rever os amigos. A sua casa, anteriormente um canteiro de alegria, tornara-se uma terra seca. Os médicos disseram que ele podia voltar a andar, mas ela temia que isso não acontecesse.

O medo da vida, o medo do amanhã, o medo de ter um marido paraplégico dominavam-na. Insegura, começou a ter outros tipos de medos: o medo de não conseguir sustentar a sua casa, o medo de morrer de enfarte tal qual o seu pai, o medo de deixar o filho sozinho no mundo.

Não tinha o pai para aliviar com ele a sua dor e não podia contar com o marido. Além disso, o marido não tinha seguro de saúde nem subsídio de desemprego. Ela tinha de trabalhar para sustentar a casa, mas o seu salário mal dava para a família sobreviver. E, enquanto trabalhava, pensava no marido numa cadeira de rodas e no filho indefeso. Ao dizer tudo isto, desatou a chorar. Estava insone, deprimida e profundamente solitária. Sentia-se desprotegida.

Ao olhar para a angústia de Catarina, o Dr. Flávio pensou em tudo o que tinha e não valorizava. Sentiu-se um grande egoísta. A sua mulher era saudável, os filhos maravilhosos, tinha uma empregada para cuidar da casa, não tinha problemas financeiros. Possuía tudo que Catarina não possuía, mas vivia insatisfeito, reclamava da vida e do trabalho.

Marco Polo antecipou-se-lhe e disse-lhe:

- Você tem razões para ter esses sintomas, Catarina. Eles são a ponta do icebergue do seu sofrimento.

Para surpresa da paciente, o professor que a ofendera completou amavelmente:

- Desculpe a minha atitude inicial. Eu concordo com o Marco Polo. Os seus sintomas são pequenos diante de tantos transtornos. Catarina, você é uma heroína. Creio que é mais forte do que nós. Saiba que não tem nenhum problema físico significativo. Os exames que fizemos na semana passada mostram que o seu coração está óptimo. Venha aqui todas as vezes que desejar. Encontrará sempre alguns amigos para a ouvir.

Marco Polo ainda acrescentou:

- Você está a canalizar para o seu corpo a ansiedade decorrente das suas perdas. Lute contra os seus medos, lute pelas pessoas que você ama, lute pelo seu filho e pelo seu marido.

O Dr. Flávio ficou impressionado com os conflitos da sua paciente e com o altruísmo e a força do seu aluno. Profundamente sensibilizada, Catarina agradeceu e saiu das urgências, pela primeira vez alegre e disposta a enfrentar a vida.

Sabia, agora, que tinha um porto seguro, que podia contar com alguns amigos. Compreendeu o que se passava e convenceu-se de que os seus sintomas eram de origem emocional. Quando eles apareciam, deixou de gravitar em seu redor. Recuperou a sua auto-estima e segurança.

Infelizmente, o marido teve sequelas irreversíveis - ficou paraplégico. Catarina encorajou-o a não se entregar, a encontrar alegria e liberdade nas suas limitações. Apoiado pela mulher, ele não se pôs a lamentar, não se considerou um pobre miserável, mas foi à luta. Em vez de ficar deprimido, encontrou ânimo no filho.

Mesmo numa cadeira de rodas, ficou dois anos a cuidar da criança enquanto Catarina trabalhava. Raramente um pai teve tanto prazer em estar com um filho. Posteriormente, conseguiu um emprego. A criança foi para a creche. Tornaram-se uma família rica, embora não tivessem grandes recursos financeiros.

Catarina nunca mais voltou às urgências como paciente. Voltou apenas para apresentar o filho e o marido aos novos amigos. Superou a masmorra do medo.

 

                               Capítulo 14

Marco Polo correspondia-se frequentemente com Falcão e, pelo menos uma vez em cada semestre, visitavam-se. Quando se encontravam, ainda faziam peripécias. As suas atitudes inusitadas de abraçar árvores, contemplar prolongadamente a natureza, fazer poesias de improviso e declamá-las continuavam a atrair todos à sua volta.

Chegou o dia da formatura. Pela admiração que adquirira junto dos colegas, Marco Polo foi o orador da turma. A sua prelecção resgatava a sua experiência desde os tempos da sala de anatomia, mesclava filosofia com uma visão crítica da medicina e da psiquiatria. Finalizou o seu ousado discurso com estas palavras:

Um dia, todos nós vamos para a solidão de um túmulo. Uma criança com um dia de vida já é suficientemente velha para morrer. A morte é a derrota da medicina. Todavia, apesar das limitações da ciência, devemos usar todas as nossas habilidades, não apenas para prolongar a vida, mas para fazer dessa breve existência uma experiência inesquecível. Os médicos devem ser pessoas de rara sensibilidade, artesãos das emoções, profissionais capazes de ver as angústias, ansiedades e lágrimas que se escondem sob os sintomas. Caso contrário, tratarão de órgãos e não de seres humanos. Acima de tudo, os médicos, bem como todos os profissionais da saúde, devem ser vendedores de sonhos. Pois se conseguirmos fazer os nossos pacientes sonharem, ainda que seja com mais um dia de vida ou com uma nova maneira de ver as suas perdas, teremos encontrado um tesouro que os reis não conquistaram...

Marco Polo foi aplaudido com entusiasmo. O seu discurso deixou os presentes pensativos. Mas ele não imaginava que um dia passaria por muitas dificuldades e que teria de fazer desse audacioso discurso os pilares centrais da sua vida, caso contrário não sobreviveria. Teria de vender e construir sonhos.

Logo após a sua formação, ingressou num curso de especialização em Psiquiatria, num grande hospital psiquiátrico, chamado Atlântico. Havia mais de oitocentos pacientes internados. Parte do tempo, ele atendia os pacientes internos e na outra parte dava consultas a pacientes não internados. Frequentemente, os seus professores reuniam-se para discutirem os casos mais complexos.

O Hospital Atlântico era constituído por três grandes prédios, com belas fachadas, janelas torneadas e ricamente trabalhadas. As construções lembravam os edifícios da parte velha de Paris. Porém, por dentro, o ambiente estava longe de ser encantador. As paredes eram brancas e sem graça. As áreas de lazer entre os prédios eram enormes, mas mal utilizadas, e os jardins extensos e pouco cuidados.

Nos tempos de Marco Polo, a hospitalização já era desencorajada. Em tese, os pacientes deveriam ficar o menor tempo possível internados, mas ainda havia inúmeros hospitais e muitos pacientes internados cronicamente, abandonados pelas suas famílias. O jovem pensador entristecia-se ao constatar que a sociedade insistia em separar os normais dos anormais. O problema consistia em saber quem era menos doente, se os de fora ou os de dentro.

Alguns hospitais psiquiátricos eram mais humanizados do que o Atlântico. Neles, os pacientes menos graves passavam o dia internados e à noite regressavam às suas casas. Mas o velho hospital, embora fosse uma referência nacional, parecia mais um depósito de doentes mentais.

Os enfermeiros eram irritáveis e ansiosos. Os psiquiatras raramente sorriam, tinham um mau humor latente. A tristeza era contagiante. Faltava alegria e solidariedade no famoso hospital. Marco Polo estava chocado com o que se passava. No início da sua especialização, perguntava-se frequentemente: «O que estou a fazer aqui?» Era um mundo completamente distinto da sociedade em que crescera.

Embora tivesse tido um breve contacto com alguns pacientes psiquiátricos durante o curso de Medicina, agora estava na cidade deles. Via pessoas por toda a parte com o eu desagregado, partido, sem identidade, sem parâmetros de realidade. Os pacientes estavam embotados, não tinham expressão facial, os seus músculos permaneciam tensos. O tratamento baseava-se fundamentalmente na medicação. Tal procedimento contrariava tudo o que aprendera com a história de Falcão. Marco Polo estava inconformado.

Nos seus delírios, alguns pacientes achavam que eram grandes personagens históricas. Outros sentiam-se controlados, perseguidos e achavam que as suas mentes eram invadidas por vozes, como Falcão nos seus surtos. Outros ainda construíam imagens de animais ou de objectos ameaçadores. Havia também pacientes vítimas de alcoolismo, dependência de outras drogas e depressão.

A doença psíquica não escolhia cor, raça, nacionalidade ou status social. As pessoas internadas vinham de todos os estratos sociais, de simples funcionários a executivos. Advogados, engenheiros e até alguns médicos faziam parte da população do Hospital Atlântico.

De acordo com o engenho inconsciente, cada paciente construía os seus delírios e alucinações com características e frequências próprias. Cada cabeça era um mundo. Um mundo que encantava Marco Polo.

Logo que começou a atender os pacientes internados, o jovem pensador percebeu que o tratamento psiquiátrico gerava uma fábrica de preconceitos. As pessoas da sociedade tinham medo de procurar psiquiatras porque achavam que eles eram médicos de loucos, e os internados estavam tão combalidos que eles mesmos se declaravam como doentes, proclamando espontaneamente o seu diagnóstico: «Eu sou esquizofrénico», «eu sou PMD (psicótico maníaco-depressivo)».

Não havia brilho nos olhos dos pacientes internados, não havia esperança. Para sua tristeza, Marco Polo concluiu que, se havia um lugar na sociedade onde os sonhos morreram, era dentro dos hospitais psiquiátricos. Os presídios eram menos cáusticos. Parecia que por ali a psiquiatria não vendia sonhos, mas pesadelos.

Algumas pessoas preconceituosas viam os pacientes internados como a escória da sociedade, não percebiam que eles mereciam respeito. Os pacientes não eram culpados pelos seus transtornos psíquicos, como os pacientes com sida, cancro ou enfartes também não o são. Todavia, a sociedade dos «normais» gosta de procurar explicações superficiais, gosta de encontrar culpados para os problemas que não entende.

Marco Polo também descobriu que até os que tinham leves transtornos emocionais facilmente perdiam a auto-estima. Eles rotulavam-se a si mesmos de depressivos, fóbicos, «stressados». «Quais são as raízes desse preconceito, se não há ninguém psiquicamente saudável na sociedade?», pensava, inconformado.

Começou a desconfiar que os pacientes vestiam o rótulo dos diagnósticos na psiquiatria e se sentiam condenados a viver com eles para toda a vida. Perdiam a maior dádiva da inteligência: reconhecer que acima das nossas mazelas psíquicas somos seres humanos e, como tal, possuidores de uma personalidade fascinante. Abalado, começou a entender mais estreitamente as rejeições que Falcão vivenciou durante as suas crises antes de se lançar pelo mundo.

Não demorou muito para Marco Polo fazer mexer as coisas. Ele reunia os pacientes nos corredores, nas áreas de lazer, nas salas de atendimento, fitava-os e com convicção dizia-lhes: «Vocês não são doentes mentais. Vocês são seres humanos portadores de uma doença mental. Acreditem no vosso potencial intelectual. Não desistam de vocês mesmos. Vocês são fortes e capazes.»

Alguns pacientes choravam diante do conforto que nunca tinham recebido. Outros não entendiam o que ele queria dizer. Outros iam embora eufóricos com a injecção de ânimo. Outros ainda achavam que ele era também um paciente que se fazia passar por médico. Diziam: «Que louco simpático!»

Ele sorria. Aos poucos, a fama de Marco Polo foi-se espalhando. Uma raposa aparecera no ninho do grande Hospital Atlântico para despertar mentes cerradas e perturbar os dogmas.

Ele achava que devia haver mais romantismo e prazer num ambiente tão tétrico. Criticava o mau humor dos profissionais do hospital.

Por isso, começou a revolucionar o relacionamento com os pacientes. As formalidades foram dispensadas. A distância entre médico e paciente foi diluída. Marco Polo começou a chamar cada um, alegre e efusivamente, pelo nome. Abraçava-os e elogiava-os onde quer que os encontrasse: «Joana, você está maravilhosa! Eduardo, hoje está mais sorridente! Jaime, que bom voltar a vê-lo!»

Os psiquiatras e enfermeiros admiravam-se com as atitudes do jovem psiquiatra. Algumas pessoas maldosas diziam que ele era candidato a algum cargo político.

Um belo dia, uma senhora de 75 anos, deprimida, pessimista e excessivamente crítica, foi atendida por Marco Polo. O seu nome era Noemi. Ela possuía inúmeras janelas killers no seu inconsciente. Essas janelas são zonas de conflito que geram um elevado grau de tensão capaz de «assassinar» ou bloquear a capacidade de pensar de uma pessoa num determinado momento, levando-a a reagir por instinto, com agressividade.

Qualquer contrariedade, até um pequeno olhar, disparava um gatilho inconsciente que conduzia Noemi a abrir as janelas killers, levando-a a reagir sem pensar, a ofender e criticar impulsivamente as pessoas à sua volta. Antes de ela entrar no consultório de Marco Polo estava zangada e ansiosa como sempre, mas ele desarmou-a. Levantou-se da cadeira, foi até à porta, recebeu-a com um sorriso, chamou-a pelo nome e fez-lhe um grande elogio.

- Dona Noemi, como a senhora é bonita!

Fazia dez anos que ela não ia ao cabeleireiro. Ela mesma cortava o próprio cabelo e raramente o penteava. Constrangida e admirada pelo gesto do psiquiatra, ela sentou-se feliz, procurou ajeitar os cabelos.

- Obrigada, doutor, pela sua gentileza. Você é muito simpático - disse ela, devolvendo quase que inconscientemente o elogio.

- Gostaria muito de conhecer a sua história.

Noemi era uma pessoa fechada e incapaz de fazer elogios aos outros, até mesmo aos seus três filhos. Na primeira consulta, abriu alguns capítulos da sua vida. Na consulta seguinte, foi mais aberta ainda. Veio com uma roupa mais apresentável e o cabelo todo arranjado. Tinha ido ao cabeleireiro pintar e pentear o cabelo.

A paciente tratava agressivamente as pessoas e estas devolviam-lhe a indelicadeza, fechando o ciclo da ansiedade. Um pequeno gesto de Marco Polo começou a quebrar o círculo vicioso do seu pessimismo. Aos poucos, estimulou-a a criticar a sua postura diante da vida, a repensar o seu passado, a actuar no seu pessimismo, a tirar prazer das pequenas coisas e principalmente a aprender a colocar-se no lugar dos outros.

Noemi não precisava apenas de tratamento psiquiátrico, mas de reaprender a viver. E conseguiu. Do alto dos seus 75 anos, reeditou as janelas killers, desenvolveu solidariedade, gentileza e altruísmo.

Marco Polo tornou-se mais ousado e quebrou os paradigmas do atendimento. Começou a sair do consultório e a receber os pacientes na própria sala de espera. Sempre com elogios e um sorriso na casa, características da sua personalidade. Lisonjeados, os pacientes sentiam-se pessoas de raro valor e não doentes. Entravam para a consulta com a sua auto-estima elevada, rompendo com as resistências conscientes e inconscientes que causavam um bloqueio, impedindo-as de entrar em contacto com a sua própria realidade. As consultas, embora tivessem momentos tensos, com lágrimas, relatos de perdas e crises ansiosas, eram de um modo geral muito agradáveis.

Para Marco Polo, a sociedade moderna empobreceu, perdeu a amabilidade e a afabilidade. As pessoas têm cultura como em nenhuma outra geração, mas perderam o poder da gentileza e do elogio. A medicina foi contagiada por esta insensibilidade.

Ele era afável não só com os pacientes, mas com os mais simples funcionários do hospital. Brincava com os porteiros e as auxiliares de enfermagem. Abraçava as empregadas da limpeza. Trouxe alegria ao sombrio ambiente do Hospital Atlântico.

Até nas terapias de grupo procurava conduzir as reuniões não só com inteligência, mas com humor. Certa vez, aconteceu algo inusitado. Um dos pacientes do grupo era Ali Ramadan, um palestiniano que vivera no Iraque durante muitos anos. Ele fora torturado pela polícia de Saddam Hussein, conseguira escapar, mas perdera grande parte da família. O seu pai nunca havia saído de Abu Ghraib, a cadeia símbolo do regime. Ali Ramadan desenvolvera a sua psicose a partir dos 25 anos. Ele atormentara-se durante anos com a imagem de extraterrestres. Com a evolução da sua doença, o grau da sua perturbação aumentou. Começou a conversar com E.Ts e a falar obsessivamente sobre eles com as pessoas, em particular com os seus colegas do Hospital Atlântico. Numa das sessões do grupo, ele perguntou a Marco Polo:

- Doutor, você sabia que existem seres de outros planetas?

- Se há seres noutros planetas, não sei, mas sei que dentro de cada um de nós há muitos monstros que nos perturbam.

Apanhado de surpresa com a resposta, Ali Ramadan, pela primeira vez, sorriu quando falou sobre extraterrestres. Percebendo que o seu relaxamento era uma preciosa oportunidade para o ajudar a ter consciência crítica, Marco Polo aproveitou o momento e emendou:

- Estimado Ali, não se preocupe com seres de outros planetas, bastam os monstros criados diariamente nas nossas mentes. Combata-os, critique-os sem medo. Seja livre!

- Estou cheia de monstrinhos na minha cabeça. Quer alguns, Ali? - perguntou Sara com espontaneidade.

- Não, já bastam os meus E.Ts! - respondeu Ali pensativo. Todos riram. Marco Polo não perdeu tempo a dizer que o

paciente alucinava. Não era o momento, mas usou o potencial intelectual de Ali para que ele mesmo reparasse na incoerência das suas ideias e compreendesse a real fonte das suas perturbações.

O paciente tornou-se pensativo, o que não era uma característica sua. Abriu as janelas da sua inteligência e começou paulatinamente a progredir na terapia de grupo. Começou a criticar as suas fantasias e a potencializar o efeito dos remédios. O jovem médico e Ali teceram uma longa amizade.

Aos poucos, Marco Polo passou a ser motivo de conversas na direcção do hospital. O meio hospitalar perdeu a sua rotina com o jovem irreverente. Certa vez, ao contemplar uma árvore repleta de flores amarelas no meio do imenso jardim do hospital, não resistiu. Abraçou o seu tronco, deu-lhe um beijo e disse algumas palavras. Foi um escândalo para alguns profissionais que o viram.

Observando-o, muitos pacientes começaram a imitá-lo logo que ele saiu. Formou-se uma imensa fila diante dessa árvore. Cada paciente abraçava-a por alguns minutos e depois beijava-a. Iam-se embora aliviados.

Jaime, um professor de Biologia que depois de muitas crises fora abandonado pela família, gostou da experiência. Há anos que não abraçava ninguém, nem mesmo os responsáveis pela sua saúde. Ao abraçar a árvore e ao sentir a sua frescura, desatou aos pulos pelos jardins. Abraçava e beijava todas as árvores que estavam à sua frente e gritava:

- És maravilhosa!

O caso chegou ao arrogante e autoritário Dr. Mário Gutenberg, director-geral do Hospital Atlântico. O Dr. Mário era um europeu inteligente, perspicaz, radical. Era um médico respeitado, mas pouquíssimo flexível. Chamado a dar explicações, Marco Polo foi interrogado.

- O que é que você está a ensinar aos pacientes?

- Não estou a entender, doutor Mário!

- Não está a entender? Dezenas de pacientes andam a beijar árvores neste hospital.

Marco Polo, com um nó na garganta, disse:

- Não pedi que o fizessem. De vez em quando, eu gosto de abraçar uma árvore e dar-lhe um beijo. É a minha forma de agradecer à natureza pela dádiva da vida.

- Dádiva da vida? O senhor está a tratar pacientes ou precisa de tratamento?

- Todos nós precisamos.

- Onde aprendeu a ser tão atrevido? O seu comportamento pode precipitar crises nos pacientes.

- Abraçar árvores pode desencadear crises?

- Não sei, mas eles estão eufóricos, diferentes.

- Se os psiquiatras, psicólogos e enfermeiros pudessem abraçar os pacientes e ser mais afectuosos com eles, talvez eles não precisassem de abraçar árvores.

- Que petulância! O senhor ainda nem é um especialista em Psiquiatria e quer virar de cabeça para baixo o nosso sistema! Esta instituição tem quase um século. Não a perturbe! Ficarei a observá-lo.

 

                               Capítulo 15

Noutra ocasião, Marco Polo envolveu-se num novo incidente, agora mais grave, com o corpo de médicos. Havia mais de quarenta psiquiatras em exercício no hospital e dez médicos em processo de especialização.

Marco Polo participava numa reunião de discussão de casos, que contava com a presença de dez psiquiatras, incluindo alguns professores e cinco alunos. O Dr. Alexandre, um psiquiatra de grande reputação, professor universitário de renome, conduzia a discussão. Ele concluiu a reunião com o seguinte comentário:

- Quem não aprender com seriedade a fazer diagnósticos será um péssimo psiquiatra.

Quando cessaram os aplausos, Marco Polo retrucou:

- O diagnóstico pode ser útil para mim, mas é ético dizê-lo categoricamente aos pacientes?

- Sim, os pacientes têm o direito de saber a verdade.

- Concordo que os pacientes devam saber a verdade, mas que verdade é essa que construímos na psiquiatria? Não é a verdade das nossas teorias que estão sujeitas a inúmeras mudanças ao longo dos anos?

- Você quer questionar a psiquiatria? - disse impacientemente o professor.

- Ela precisa de ser questionada nalgumas áreas. Gostaria que o senhor me respondesse: devemos colocar os pacientes dentro de uma teoria ou a teoria dentro dos pacientes?

O professor reflectiu e ficou sem resposta. Escrevera muitos artigos científicos, mas nunca tinha pensado nisso. Marco Polo tentou simplificar a sua pergunta:

- Se as teorias estão acima dos seres humanos, se elas são irrefutáveis, então devemos colocar os pacientes dentro delas e rotulá-los de acordo com os seus pressupostos. No entanto, se os seres humanos estão acima das teorias e as suas personalidades são tão diferentes umas das outras, devemos ter cuidado com os diagnósticos. O diagnóstico que pode servir para conduzir a minha conduta pode servir para controlar a vida de um paciente e cometer atrocidades.

Os demais colegas sentiram-se desarmados. O Dr. Alexandre ficou abalado com o argumento e a ousadia de Marco Polo. Nunca enfrentara uma situação como aquela. Mas tentou sair pela tangente.

- É folclore que os pacientes possam sofrer com os diagnósticos.

- Há milhões de pessoas no mundo que vivem sob a ditadura dos rótulos e afirmam: sou depressivo, sou esquizofrénico, sou bipolar.

- Você não acha que é muito jovem para criticar a psiquiatria? - disse o Dr. Alexandre, constrangido.

- Professor, se eu perder a minha capacidade de criticar, serei um servo das teorias e não um servo da humanidade.

Marco Polo via diferenças entre comunicar o diagnóstico de uma doença física e de uma doença psíquica. Um paciente que sofreu um enfarte ou tem um cancro, quando sabe qual é a sua doença, colabora com o tratamento para superar a doença, melhorando e aumentando assim a sua qualidade de vida. Por isso, emendou:

- Raramente os pacientes que têm cancro ou sofrem um enfarte são discriminados por tais doenças. Pelo contrário, frequentemente recebem afecto, apoio e visitas dos amigos e parentes, enquanto os portadores de psicose maníaco-depressiva ou esquizofrenia são rejeitados por alguns familiares e excluídos socialmente. Raramente são visitados pelos seus amigos. O rótulo na psiquiatria gera um isolamento cruel e injusto.

- Eu não rotulo os pacientes - disse um outro professor.

- Desculpe-me, mas às vezes rotulamo-los sem o querermos. A maneira como lhes comunicamos o nosso diagnóstico pode gerar um desastre emocional. Eles perdem a identidade como seres humanos e interiorizam que são doentes.

Em seguida, Marco Polo respirou e acrescentou:

- E quanto ao poder dos rótulos? Einstein disse uma vez: «É mais fácil desintegrar um átomo do que desfazer um preconceito.»

Os professores presentes ficaram intrigados com a cultura e intrepidez do jovem médico. Felipe, que também estava a especializar-se, disse:

- Einstein era um génio. Se ele disse isso, temos de ser mais cuidadosos. Podemos causar mais danos do que ajudar os pacientes.

- O próprio Einstein foi atingido pelo preconceito em duas ocasiões - completou Marco Polo.

- Quando? - perguntou outro psiquiatra.

- Na primeira, foi vítima de preconceito, na segunda, foi agente. Einstein mostrou que o espaço e o tempo são intercambiáveis e pertencem à mesma estrutura. Todavia, a estrutura espaço-tempo, como um todo, não varia, não é relativa, por isso o próprio Einstein quis mudar o nome da teoria da relatividade para teoria da invariância, mas não conseguiu. E porquê? - perguntou, olhando para o Dr. Alexandre.

- Porque a palavra «relatividade» já se tinha tornado popular - respondeu.

- Correcto! A maior teoria da física foi perpetuada com o nome errado. O preconceito venceu.

Marco Polo calou-se. Não disse qual foi a segunda ocasião em que o preconceito atingira Einstein. Tinha uma coisa muito séria para revelar, talvez nunca anteriormente comentada sobre o reverenciado cientista. Esperou que a curiosidade produzisse um stresse saudável nos presentes, capaz de abrir as possibilidades do pensamento. Ansioso, um dos psiquiatras não se conteve e perguntou:

- Qual foi a segunda situação?

- Um dos maiores génios da humanidade também gerou um doente mental. Ele teve um filho portador de esquizofrenia.

Os colegas entreolharam-se curiosos, não sabiam disso. Marco Polo completou:

- Aqui há uma grande lição. Exceptuando as causas genéticas, uma pergunta vem-nos à mente: se um dos maiores génios da humanidade gerou um filho mentalmente doente, quem está livre de os gerar? Esta pergunta induz uma resposta angustiante: ninguém está livre desse drama. Porém, devemos questioná-la para a rebater: Einstein foi o expoente da ciência lógica, do mundo da física e da matemática, mas para gerar filhos psiquicamente saudáveis precisamos de ser expoentes noutro mundo, o mundo ilógico da emoção, da sensibilidade, da flexibilidade, do diálogo, do perdão.

Eles ficaram intrigados com o raciocínio de Marco Polo. Olharam para a própria história. Era de se esperar que psiquiatras ou psicólogos raramente gerassem filhos doentes. Mas sabiam que vários profissionais de saúde mental, incluindo alguns dos psiquiatras na plateia, tinham filhos «stressados», deprimidos, fóbicos, tímidos e com outros conflitos.

Todo o conhecimento lógico sobre a mente humana que possuíam não fora suficiente para lhes garantir o sucesso na formação da personalidade dos seus filhos. Entenderam que educar era lavrar um solo ilógico. Todo o ser humano, mesmo os psiquiatras e psicólogos, tem dificuldade em pisar nesse terreno sinuoso.

Outro psiquiatra indagou:

- Qual foi a reacção de Einstein diante de um filho psicótico?

- Não poderia ter sido pior! Einstein desta vez não foi vítima, mas agente do preconceito.

- Como assim?

- Einstein visitou apenas uma vez o seu filho no hospital psiquiátrico. Abandonou-o, deixou que a solidão fosse sua companheira. E a rejeição e a solidão, caros amigos, não são mais rápidas do que a luz estudada pela física, mas são mais penetrantes do que ela.

A plateia ficou em silêncio. Depois de alguns instantes de profunda reflexão, o próprio Dr. Alexandre perguntou humildemente:

- Ainda que dentro das limitações da interpretação, quais foram as causas que você detectou e que levaram Einstein a abandonar o seu filho, se nós recomendamos exaustivamente às famílias que não desamparem os seus familiares neste hospital?

Porque é que uma das mentes mais brilhantes da humanidade foi ignorante nessa situação?

Marco Polo respirou profundamente e comentou:

- Na minha singela opinião, quatro causas foram responsáveis pela atitude preconceituosa de Einstein, incompatível com a sua inteligência. Primeira, o abalo emocional pelas condições inumanas do hospital em que o filho estava internado. Notem que até hoje os nossos hospitais são deprimentes. Segunda, a falta de esperança de que o filho superasse a sua psicose. Terceira, a dramática angústia que as alucinações e delírios do filho lhe causavam. Quarta, o medo de ter de enfrentar a sua própria impotência face a um mundo que não conhecia.

- Einstein tinha uma mente ávida de respostas, mas deve ter ficado perturbado com a falta de respostas que explicassem a desagregação da inteligência do seu filho - concluiu o Dr. Alexandre.

Após uma breve pausa para respirar, Marco Polo completou:

- Essas quatro causas revelam que o homem que melhor entendeu as forças do universo físico não compreendeu as forças do mais complexo dos universos: o psíquico. Einstein foi um homem afectuoso e amante da paz, mas o preconceito encarcerou-o. O seu eu, nessa área, foi prisioneiro das janelas killers ou zonas de conflitos arquivadas no seu inconsciente. A sua fascinante história revela que é mais fácil lidar com o átomo e com o imenso espaço do que com as nossas mazelas e misérias psíquicas.

Em seguida, finalizou:

- Senhores, cada cabeça é um universo a ser explorado. Bem-vindos à área mais complexa da ciência!

O Dr. Alexandre inspirou-se com esta última frase. Ele fora sempre uma pessoa madura. Como toda a gente, tinha as suas defesas quando interrogado ou contrariado. Mas, ao ser convencido sobre o seu equívoco, teve a coragem de apertar as mãos do seu aluno.

- Marco Polo tem razão. Reconheço o meu erro. A psiquiatria e a psicologia, bem como a medicina em geral, não podem ver a doença como um produto, tal como no mundo capitalista.

Com o passar do tempo, tornamo-nos técnicos de doenças e perdemos a sensibilidade para com os doentes. Vamos vacinar-nos contra a indústria do preconceito. Usem os diagnósticos, mas não sejam usados por eles.

Desse modo, encerrou a reunião. A pequena plateia deu um salto na compreensão do fantástico mundo da psique humana.

 

                             Capítulo 16

No Hospital Atlântico trabalhavam mais de duzentos profissionais, entre médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, recepcionistas, seguranças e outros. A maioria dos profissionais não conhecia intimamente Marco Polo e desconfiava da sua actuação. Alguns psiquiatras, entre os quais o director do hospital, viam-no mais como um amotinador do que como um competente profissional. Menos de um décimo dos pacientes o conhecia, mas os que o conheciam amavam-no. De longe, cumprimentavam-no.

Felipe estreitara os laços com Marco Polo. Tornaram-se grandes amigos. Todavia, embora Felipe também tivesse críticas ao sistema de tratamento do hospital, era contido, discreto, avesso a escândalos e preocupado com o seu futuro e a sua imagem social.

Numa tarde de segunda-feira, Marco Polo e Felipe passeavam pelo pátio onde os pacientes apanhavam sol e tentavam divertir-se. Olhando para os rostos cabisbaixos, entristecidos, desesperançados, como prisioneiros na pior de todas as celas - a cela psíquica -, Marco Polo subiu para um pequeno coreto que estava no centro do jardim.

Preocupado, Felipe perguntou-lhe:

- O que vais fazer?

- Garimpar ouro.

- Garimpar o quê?

Ao subir para o coreto, Marco Polo recordou-se dos discursos que ele e Falcão faziam nas praças para levarem as pessoas a realizarem uma viagem interior. Em seguida, recordou-se do que prometera a si mesmo no seu velho carro depois de ter deixado Falcão na casa de Lucas: «Farei da minha vida uma grande aventura, procurarei um tesouro escondido nos escombros das doenças psíquicas.»

Ao mesmo tempo que trazia essas imagens à sua mente, olhava para os pacientes do Hospital Atlântico e ficava frustrado. Ele tinha um número máximo de pacientes para atender por dia, portanto, sabia que nunca teria oportunidade de conversar e conhecer a maioria deles. Movido por um forte ímpeto, exclamou solenemente:

- Queridos amigos, aproximem-se! Nós podemos mostrar o caminho, mas só vocês podem abrir as portas da vossa mente e caminhar para a liberdade. Nós podemos dar a caneta e o papel, mas só vocês podem escrever a vossa história. Vocês não são doentes! Vocês estão doentes! Aqui não é o vosso lar! O vosso lar é o mundo livre! Sonhem em ser felizes!

Os pacientes nunca tinham visto uma apresentação como aquela. Vários não entenderam o que Marco Polo lhes disse, mas aplaudiram com entusiasmo. Os que compreenderam a sua mensagem, ficaram com os olhos cheios de lágrimas. Entre eles, o Dr. Vidigal, um médico de clínica geral vítima de um transtorno bipolar crónico. O Dr. Romero, um psiquiatra, vítima há mais de 15 anos de uma psicose esquizofrénica, sentiu os seus lábios tremerem. E, aproximando-se, beijou as mãos do jovem psiquiatra.

Centenas de pessoas aglomeraram-se à volta do coreto. Inúmeros seguranças e enfermeiros começaram a supervisionar o local. Num primeiro momento, julgaram que se tratava de mais um psicótico a delirar, mas depois as enfermeiras perceberam que era o futuro psiquiatra a perturbar novamente o ambiente.

O Sr. Bonny, um velhinho de oitenta anos, que tinha sido internado vinte vezes no Hospital Atlântico e conhecia bem alguns psiquiatras, gritou, sorridente:

- Eu voto nesse homem! Fora o Dr. Mário!

Jaime, que se tornara um beijoqueiro de árvores, ficou animadíssimo com o discurso. Acatou a sugestão do Sr. Bonny e começou a clamar:

- Marco Polo! Marco Polo! Todos os pacientes fizeram coro.

A plateia fervia de entusiasmo. Era a primeira vez em cem anos da instituição que os pacientes experimentavam uma euforia colectiva. Todos o aplaudiam e gritavam em uníssono.

- Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!

Esta era a eleição a que Marco Polo jamais queria concorrer. A enfermeira-chefe, Dora, rangia os dentes de raiva ao presenciar o transtorno que ele causara. Ele viu-a conversar com os outros psiquiatras e com os seguranças para tentar contê-lo, mas não se intimidou. Olhou prolongadamente para a plateia ferida, observou os trejeitos dos pacientes e exclamou novamente:

- Eu não mereço os aplausos. Vocês é que os merecem. Quem são mais importantes: nós, psiquiatras, ou vocês, pacientes?

Gritaram sem titubear:

- Os psiquiatras!

- Não! Os psiquiatras existem porque vocês existem. Vocês são mais importantes do que nós.

E acrescentou:

- Olhem para as enfermeiras. Vocês são inferiores a elas? Alguns pacientes mais próximos beijavam as mãos delas

como divas, deusas da sobrevivência. A atenção que elas lhes dispensavam era fundamental para que tivessem o mínimo de conforto, mas muitas não tinham qualquer paciência para eles.

Um paciente foi beijar as mãos de Dora, mas, assumindo a postura de chefe, ela não o permitiu. Quinze anos antes, Dora era uma profissional afectuosa, solidária, mas os anos de trabalho no Hospital Atlântico tornaram a sua afectividade árida como o Sara. O ambiente degradava-se.

O Dr. Vidigal, com a voz trémula devido aos remédios e esquecendo-se de que um dia já fora um respeitado médico, exclamou para Marco Polo:

- Doutor... Nós não... não... somos nada. Nada mesmo.

Esquecendo-se de que já fora um psiquiatra, o Dr. Romero disse, com lágrimas nos olhos:

- Somos lixo, doutor! Não temos nenhum valor para a sociedade.

Marco Polo conhecia-os e ficou profundamente sensibilizado. Criticara intensamente o preconceito, mas agora percebia que os seus efeitos eram mais graves do que imaginava era um cancro emocional. «Se os dois médicos, por serem pacientes do hospital, se acham lixo, imagine-se como está a auto-estima dos demais pacientes que não têm a cultura deles», pensou.

Marco Polo, com os olhos húmidos e a voz embargada, chamou alguns pacientes que conhecia pelo nome e começou a encorajá-los.

- Dr. Romero, o senhor é uma pessoa de grande valor; o mundo pode desprezá-lo, mas nunca se diminua. Sara, olhe para o tesouro que se esconde dentro de si! Ali Ramadan, meu amigo, você é inteligente e capaz de vencer os seus fantasmas interiores. A sua mulher espera por si! Jaime, você é um poeta da natureza. Lute pelos seus sonhos, os seus filhos precisam de si.

Em seguida, respirou profundamente e bradou em voz alta para toda a plateia:

- Vocês são mais fortes do que muitos generais. Vocês têm enfrentado as crises, suportado a dor da discriminação, a rejeição dos amigos, o afastamento dos familiares, mas conseguiram sobreviver. Grandes homens da história não estariam de pé se sofressem tais perdas, mas vocês ainda estão. Não desistiram da vida. Vocês são heróis! Pelo menos, meus heróis!

Estas palavras comoveram Felipe. Num impulso, ele subiu para o coreto e bradou:

- Vocês também são os meus heróis!

Marco Polo, animado com a atitude do amigo, percorreu as caras dos pacientes com os olhos. Estendeu as mãos para eles e proclamou várias vezes com Felipe:

- Vocês são heróis! Vocês são heróis!

Os pacientes, sem nenhum valor social, estavam atónitos com aquele clamor. Nunca se tinham sentido tão importantes. Enquanto os dois amigos gritavam estas palavras, algo poético e belíssimo aconteceu. A multidão de pacientes começou a chorar colectivamente. Foi a primeira vez que houve um choro colectivo de exultação num ambiente deprimente.

Os anónimos ganharam visibilidade. Os fracos sentiram-se grandes, os desesperados ganharam força, os rejeitados sentiram-se amados. Os dois irreverentes médicos escavaram as ruínas psíquicas dos pacientes e revelaram as preciosas relíquias escondidas nelas. Exerceram a bela arte da antropologia psicológica.

A cena, que provocava uma indescritível emoção, mexeu com o inconsciente colectivo dos internos. Eles começaram a abraçar-se como soldados que, numa guerra, amparavam os amigos mutilados. Sentiram-se compreendidos e amados. Sentiram que eram seres humanos.

De repente, alguns pacientes começaram a recolher as suas coisas para se irem embora. As enfermeiras, os seguranças e os outros psiquiatras ficaram temerosos. Perguntaram rispidamente:

- Onde é que vão? Uns diziam:

- Vamos para casa. Precisamos de abraçar os nossos filhos.

Outros comentavam:

- Precisamos de abraçar as nossas mulheres. E outros ainda afirmavam:

- Aqui não é nosso lugar. Queremos ser livres. Dora tentou impedi-los com a ajuda dos seguranças.

- Vocês estão a ficar loucos! O Dr. Vidigal respondeu:

- Agora, um pouco menos. Sou um herói em ficar aqui.

A medida que tentavam sair, eram barrados pelos seguranças do hospital. Alguns pacientes foram empurrados e caíram. Devido aos efeitos dos fortes tranquilizantes, eles estavam fracos. Sensível, Sara entrou em pânico e começou a chorar inconsolavelmente. O ambiente ficou tenso. Marco Polo meteu-se no meio deles e dirigiu-se com firmeza aos seguranças e enfermeiras.

- Não toquem nestes pacientes! Não há maior loucura do que agredir para convencer as pessoas. Falem com respeito, que eles obedecerão.

Em seguida, Marco Polo, temendo pela integridade dos pacientes, suplicou-lhes:

- Queridos amigos, não vão embora ainda. Com esse ardente desejo de liberdade, vocês acelerarão o tratamento e em breve terão alta. Serão livres.

Os pacientes ouviram-no e recuaram. Na sequência, outros seguranças, a pedido do Dr. Mário, seguraram Marco Polo pelo braço e levaram-no até uma sala. Com ele, estavam reunidos o director clínico, a enfermeira-chefe, Dora, o chefe de segurança e alguns psiquiatras mais idosos da instituição. O Dr. Alexandre não estava presente. Os dias de Marco Polo no Hospital Atlântico pareciam estar contados.

O Dr. Mário bufava de raiva. Pelo relato distorcido de Dora e de alguns psiquiatras, Marco Polo colocara em risco tanto a vida dos pacientes como a própria instituição. Nunca alguém ameaçara tanto o bom nome do hospital. O Dr. Mário temia um escândalo na imprensa, o que poderia representar o fim da sua carreira.

Antes de começar a julgar Marco Polo, o Dr. Mário enviou uma equipa de enfermeiros com injecções e camisas-de-forças para travar a euforia e os possíveis excessos de alguns pacientes. O Dr. Romero, Ali Ramadan, entre outros pacientes, foram contidos quimicamente. Jaime resistiu. Gritando, recusou uma dose adicional de tranquilizante, mas não adiantou, recebeu-a à força. Silenciaram, assim, a suposta rebelião. Felipe estava presente na reunião. Marco Polo adiantou-se.

- Felipe não tem culpa de nada. Os acontecimentos são da minha inteira responsabilidade.

- O senhor assume toda a responsabilidade pelos seus actos inconsequentes? - perguntou irado o director.

- Assumo a responsabilidade, mas não assumo que os meus actos foram inconsequentes - rebateu Marco Polo, que podia perder a guerra, mas não o ânimo para o combate.

- Eu investiguei a sua vida, doutor. Fiquei a conhecer a sua fama nos tempos da faculdade de Medicina. Aluno rebelde, irreverente, agitador da classe, questionador do mundo. A sua ficha é uma bomba!

Os presentes ficaram apreensivos com aquelas palavras. Consideraram Marco Polo uma ameaça. O director continuou:

- Você escolheu o lugar errado para pôr as suas asas de fora seu... seu rebelde.

- Eu posso ter errado na acção, mas acertei na intenção. Eu queria...

Antes que ele pudesse completar a frase, o director interrompeu-o.

- Deixe de ser cínico. Você quebrou a rotina do serviço, a tranquilidade dos pacientes e colocou o hospital em perigo.

Marco Polo sabia que seria expulso da instituição. Naquele momento lembrou-se de uma frase marcante de Falcão: «Vocês podem aprisionar o meu corpo, mas não as minhas ideias.» Ficou convicto de que poderiam excluí-lo, mas não seria infiel à sua consciência. Fitou os olhos do Dr. Mário e depois olhou para os presentes e disse com segurança:

- Eu quis mostrar aos pacientes que eles são seres humanos, que devem lutar pela sua liberdade. Eu disse-lhes que «estão doentes» e não que «são doentes». Vocês podem expulsar-me, mas nunca calarei o que penso.

A intrepidez de Marco Polo abalou o grupo. Imóvel, e sentindo raiva e fascínio face à sua intrepidez, o Dr. Mário resolveu dar o último golpe de misericórdia ao jovem aventureiro:

- Você está aqui para aprender e não para ensinar. Ponha-se no seu lugar. A sua atitude é digna de expulsão. Vamos dar-lhe uma única oportunidade. Não se esqueça, não terá uma segunda oportunidade.

E assim encerrou drasticamente a reunião.

 

                             Capítulo 17

Desde que Marco Polo começou a perturbar o ambiente do Atlântico, o hospital ficou mais alegre. As pessoas comunicavam mais, alguns enfermeiros tornaram-se mais sensíveis e alguns psiquiatras mais bem-humorados.

Após a reunião para a sua expulsão, Marco Polo ficou mais contido, mas não menos arrojado. Continuava a fazer pequenas transformações, agora com o aval da directoria. Pintou os quartos dos pacientes com tintas coloridas e sujou as mãos com elas. Fez algumas competições entre os pacientes e organizou um teatro com eles. Tentava formar um grupo de apoio em que os pacientes menos graves ajudariam os mais graves. Queria que eles se sentissem úteis.

O Dr. Mário sentia-se impelido a aprovar algumas sugestões de Marco Polo, desde que o mantivesse sob controlo. Tinha medo da sua liberdade criativa. Para evitar maiores transtornos, garantiu que estivesse sob constante vigilância. Os seguranças não tiravam os olhos dele. Alguns tinham a coragem de bater à porta do seu consultório para saber se tudo decorria normalmente.

Marco Polo mostrava sinais de abatimento. Continuava a admirar o universo dos pacientes, mas entristecia-o o clima de policiamento. Naquele ambiente, escreveu uma comovente carta ao seu velho amigo. Nela, a sua alma transpirava e exalava a sua visão sobre a vida e o sofrimento humano.

 

         Caro amigo Falcão!

Certa vez, disse-me que tanto você como o Poeta viam a assinatura de Deus nas flores, nas nuvens e também nas crises dos que sofriam de transtornos psíquicos. Na altura, pensei sinceramente que isso era um delírio, que era impossível encontrar beleza no caos. Pois bem, você tem razão. Tenho encontrado uma indescritível riqueza dentro daqueles que sofrem. Eles não são miseráveis nem passíveis de pena. Precisam de ser compreendidos, apoiados e encorajados. Tenho encontrado um património psíquico de inestimável valor no meio das lágrimas e do desespero.

Nos que sofrem de psicose, tenho descoberto uma criatividade espantosa. Embora os delírios e alucinações os perturbem, eles revelam uma criatividade excepcional, um engenho intelectual sem precedentes. Nem os melhores guionistas e realizadores de Hollywood conseguiriam ter tanta imaginação. É de lamentar que a psiquiatria clássica despreze o imenso potencial intelectual deles.

A inteligência dos que sofrem de psicose maníaco-depressiva assombra-me. São verdadeiros génios. Na fase maníaca, a excitação, a rapidez de raciocínio e o volume de pensamentos que produzem transportam-nos para as nuvens, num estado de graça, longe de toda a realidade. Nessa fase, têm uma auto-estima exacerbada. Acham-se imbatíveis, revestidos de um poder sobrenatural. Na fase depressiva, pelo contrário, eles aterram a sua euforia, os seus pensamentos tornam-se pessimistas, levando-os a atolar-se em sentimentos de culpa e a viver os patamares mais baixos da auto-estima. Se aprendessem a pilotar os seus pensamentos e a gerir o motor da sua inteligência para não abandonarem os parâmetros da realidade, brilhariam mais do que qualquer «normal». Infelizmente, são incompreendidos, tanto por eles mesmos como pela sociedade em que estão inseridos.

Entre as pessoas deprimidas, tenho encontrado uma rara sensibilidade. São tão sensíveis que não possuem protecção emocional. Quando alguém as ofende, estraga-lhes o dia, a semana, o mês e, às vezes, a vida. São tão encantadoras que, sem disso terem consciência, vivem o princípio da co-responsabilidade inevitável de maneira exagerada. Por isso, perturbam-se com o futuro e sofrem intensamente devido a problemas que ainda não aconteceram. Preocupam-se tanto com os outros que vivem a dor deles! São óptimas para a sociedade, mas péssimas para si mesmas. Falcão, eu não tenho dúvida de que, se os líderes políticos tivessem uma pequena dose da sensibilidade que as pessoas deprimidas possuem, as sociedades seriam mais solidárias e menos injustas. Sinto que a minha emoção é fria e seca quando comparada à deles.

Entre os que têm a síndrome do pânico, tenho encontrado um desejo invejável de viver. Quando um ataque de pânico os atinge, o cérebro deles entra em estado de alerta tentando protegê-los de uma grave situação de risco, um risco virtual. Ficam com taquicardia, ofegantes e suam muito, procurando fugir da síncope ou da morte, uma morte imaginária que só existe no teatro das suas mentes. Se aprendessem a recuperar a liderança do eu nas suas crises seriam livres do cárcere do medo. Quem dera que os que consomem drogas, os que vivem perigosamente, os terroristas, os que promovem guerras tivessem a consciência da finitude da vida e da grandeza da existência que os portadores da síndrome do pânico possuem. Apesar do sofrimento imposto pelo pânico, amam a vida. Queria amar a vida como eles a amam, viver cada minuto como se fosse um momento eterno.

Falcão, você tem razão em me dizer que a sociedade é estúpida. Realmente, ela valoriza a estética e não o conteúdo. Estou decepcionado até com as pessoas aparentemente cultas. Não percebem que cada ser humano, e em especial, se sofrer de algum transtorno psíquico, é uma jóia única no anfiteatro da existência.

O meu desafio como psiquiatra não é apenas medicar os pacientes ou fazer sessões de psicoterapia, mas mostrar-lhes que a flor mais exuberante brota no Inverno emocional mais rigoroso. Os que atravessaram os seus desertos psíquicos e os superaram tornaram-se mais belos, lúcidos e ricos do que eram.

Não é o que aconteceu consigo, meu dilecto amigo? Através do drama da sua psicose você expandiu a sua nobre inteligência e tornou-se um mestre, meu mestre. Agora, os meus pacientes ensinam-me. Em alguns momentos, aprendo mais com eles do que com os meus professores. Espero que a minha capacidade de aprender nunca morra.

Procurei especializar-me em psiquiatria para conhecer a fascinante personalidade humana e tratar das suas doenças. No entanto, assim como você questionou o que era a loucura, tenho-me interrogado muito sobre o que é a saúde psíquica. Quem é saudável? São saudáveis os meus colegas psiquiatras incapazes de receber os seus pacientes com um abraço e um sorriso? São saudáveis os pais que conhecem as personagens da TV, mas não conhecem os temores e as frustrações dos seus filhos, nem têm paciência para os seus erros? São saudáveis os professores que se escondem atrás de um giz ou de um computador e não conseguem falar da sua própria história com os seus alunos? São saudáveis os jovens cuja emoção é incapaz de extrair muito do pouco, cujos prazeres são fugazes? E os que lutam para ganhar dinheiro, mas não sabem lutar pelo que amam, são eles ricos ou miseráveis?

Tenho também questionado a minha própria qualidade de vida. Pensei que eu era saudável, pois digo o que penso, luto pelo que amo e procuro proteger a minha emoção, mas descobri que conheço apenas a sala de visitas do meu próprio ser. Falta-me tolerância, afectividade, sabedoria, tranquilidade. No dia em que deixar de admitir o que me falta estarei mais doente do que os meus pacientes. Obrigado por me ensinar que sou apenas um caminhante. Há muita estrada a percorrer...

   Do seu amigo e admirador, Marco Polo.

 

Ao ler a carta, Falcão ficou emocionado. Recordou os momentos difíceis da sua história e os belos tempos com Marco Polo. Alegrou-se com a psiquiatria humanista que ele e alguns dos seus colegas exerciam. Acreditava que Marco Polo poderia fazer muito pela humanidade, mas pouco pelo próprio bolso.

Passados alguns dias, Marco Polo passou por uma experiência em que o Hospital Atlântico quase desabou sobre ele: um paciente com uma grave depressão associada a uma psicose, caracterizada por confusão mental, perda de identidade e dificuldade em se localizar no espaço e no tempo, foi a origem deste tumulto. Chamava-se Isaac.

Isaac era membro de uma família judia riquíssima e politicamente influente na região. Devido a uma grave depressão, os seus sentimentos estavam embotados. Ele recusava-se a ter contactos sociais, a sair do quarto, a dialogar, tomar banho e alimentar-se. Desenvolvera, assim, uma importante anorexia nervosa.

Frequentemente, ficava prostrado na cama. Tinha um comportamento estranho e invulgar, uma projecção psicótica, afirmava algo que não era. Repetia continuamente que era um sapo. Abria e fechava a boca com frequência, imitando os comportamentos do anfíbio.

Quando alguém se aproximava e lhe perguntava alguma coisa, Isaac dizia apenas: «Sou um sapo.» Eliminava qualquer possibilidade de interacção. Queria ficar no seu claustro e morrer nele. Este bizarro comportamento repetia-se há várias semanas. Pouco a pouco, o paciente emagrecia. Simplesmente, recusava-se a viver.

O tratamento não surtia efeito. Vários medicamentos em diversas dosagens foram tentados. Os psicólogos tentaram também ajudá-lo, mas ele não saía do seu casulo. Alguns psiquiatras resolveram, então, fazer algumas sessões da antiga e questionável terapia de electrochoques. Também não houve resultados. Isaac corria o sério risco de morrer.

Levaram o caso ao Dr. Mário. Ele ficou preocupado com o drama do paciente e com a imagem da instituição face à ausência de qualquer melhoria.

O Dr. Mário já tratara outras vezes de Isaac. Apesar de o conhecer, ignorava a gravidade da sua crise actual.

- Não é possível que durante dois meses, com todo o arsenal de medicamentos de que dispomos, vocês não tenham conseguido aliviar a depressão do paciente, retirá-lo do surto psicótico e trazê-lo à lucidez! Já consegui fazer com que esse paciente saísse de várias crises. Precisamos de profissionais mais eficientes na casa - repreendeu ele com arrogância a sua equipa.

Alguns profissionais de saúde mental são capazes de ajudar os outros, mas incapazes de se ajudar a si mesmos. Era o caso do Dr. Mário. Reconhecido como um excelente profissional, tinha um doutoramento em psiquiatria, era um eloquente professor universitário, publicara inúmeros trabalhos científicos, mas não sabia lidar com os seus próprios conflitos emocionais.

Em situações de stresse, não conseguia pensar antes de reagir nem conseguia pôr-se no lugar dos outros. O mundo tinha de girar em torno das suas verdades. Como muitos chefes bem-intencionados, mas autoritários, a sua atitude bloqueava a inteligência dos seus subordinados.

Depois de questionar a eficiência dos psiquiatras, pediu-lhes que fizessem um resumo dos procedimentos e medicamentos psicotrópicos utilizados, bem como das respectivas dosagens. Após o relato, caiu em si e percebeu que Isaac apresentava uma crise gravíssima e diferente de todas as outras.

Todavia, para não perder a postura de chefe, convidou alguns psiquiatras e alguns jovens que estavam a especializar-se, entre eles Marco Polo e Felipe, para fazer uma avaliação do paciente. Queria dar-lhes uma aula.

No quarto, Isaac, como sempre, mostrou indiferença aos presentes. O director apresentou-se e começou a fazer-lhe algumas perguntas.

- Qual é o seu nome?

Isaac permanecia em silêncio. O Dr. Mário insistiu:

- Por favor, qual é o seu nome?

- Sou um sapo.

- Qual é a sua idade e onde mora?

- Sou um sapo.

Fez outras perguntas sobre os seus familiares, onde é que já trabalhara, mas a resposta era a mesma. A conversa não evoluiu. Ficou constrangido diante dos alunos. Deu algumas rápidas explicações sobre aquele tipo de psicose, falou da impotência da psiquiatria nalguns casos e deu por terminada a sua visita. Mas ainda inconformado por não poder dar uma brilhante aula, perguntou antes de sair do quarto:

- Desde quando é um sapo?

O paciente olhou para ele e disse:

- Desde quando era um girino!

Os alunos, embora respeitassem o paciente e o director, não se contiveram. Levaram as mãos à boca para abafar o riso. O director abanou a cabeça descontente e insistiu:

- Sr. Isaac, você é um ser humano. Tem cabeça, braços, pernas de um homem. Você não pode ser um sapo.

O paciente olhou de relance para ele e disse novamente:

- Sapo. Sou um sapo.

Fechou-se no seu mundo, não havia como fazê-lo mudar de ideias. Todos saíram do quarto, à excepção de Marco Polo. Observador, percebeu que enquanto as pessoas insistissem em dizer o que Isaac não era, ele manteria a sua convicção obsessiva. No entanto, quando o Dr. Mário entrou sem perceber no delírio dele, perguntando desde quando era um sapo, ele formulou uma frase diferente: «Desde quando era um girino!»

Resolveu, então, não questionar o delírio, mas entrar nele. O caso era diferente do de Ali Ramadan, inspirava mais cuidado e comportava mais riscos. O discurso de Isaac não tinha qualquer lógica.

Marco Polo não se esquecera de que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Usou a sua imaginação. Disse:

- Olhe que lagoa linda que está à nossa frente. Como as estrelas são belas. Veja quantos sapos estão a coaxar.

Paulatinamente, Marco Polo deixou de ser um intruso no mundo de Isaac. Assim, ele começou a abrir-se, a dizer distintamente outras frases.

- Onde está a lagoa? - perguntou.

- Olhe! Está à sua frente. Não está a vê-la?

- Sim!

- Onde é que você mora nessa lagoa? Isaac começou a pensar no espaço.

- Naquele lado.

- De que tamanho é você?

- Não está a ver-me? - perguntou contundente. Depois deste breve diálogo, Isaac voltou a fechar-se. Dizia

apenas que era um sapo. Marco Polo ficou eufórico com as suas palavras. Em seguida, lembrou-se de que no corredor junto à sala do Dr. Mário havia um sapo de porcelana. Foi até lá e pegou nele.

Um segurança avisou rapidamente o director. Curioso e apreensivo, este mandou interceptar o aluno e foi até ao local para verificar por ele mesmo o comportamento do intrigante Marco Polo. Interrogado sobre as suas atitudes, o jovem respondeu-lhe que queria entrar no mundo do paciente, no universo dos seus delírios, e ganhar sua confiança. Após ganhar a sua confiança, queria tentar estimular a sua capacidade crítica.

- Não perca tempo. Profissionais bem mais experientes do que você tentaram sem sucesso. E, além disso, se este caso não foi resolvido com medicamentos antipsicóticos, não é com palavras que será solucionado.

- Mas então porque é que nos levou ao quarto de Isaac e conversou com ele?

- Bom, eu fui dar-vos uma aula - justificou-se constrangido.

- Professor, sei da sua competência, mas acredito na força da psicologia e não apenas na acção de medicamentos. Vamos dar-lhe uma medicação convencional e, apesar da minha falta de experiência, permita-me tentar ajudá-lo.

Relutante, o Dr. Mário resolveu dar a sua autorização.

- Vá em frente, mas, logo depois da consulta, procure-me - disse incrédulo, tentando manter tudo sob controlo.

Em seguida, Marco Polo entrou no quarto, tirou o sapo de porcelana da bata branca e disse:

- Isaac, isto é um sapo. Você é igual a este sapo?

O paciente teve um choque. A imagem da porcelana não era a imagem alucinante que criara no palco do seu imaginário. Apesar de ainda estar confuso, o impacto da descoberta levou-o a abrir um pouco mais as portas da sua racionalidade.

- Pegue no sapo, Isaac.

Isaac pegou nele, observou-o, pensou e, em seguida, disse:

- Não sou um sapo.

E deste modo a conversa começou a evoluir. Posteriormente, Isaac fixou-se noutra ideia que intrigou Marco Polo. Como estava a conversar com ele há mais de meia hora, resolveu poupá-lo. Percebeu o seu cansaço. Resolveu voltar no dia seguinte.

Marco Polo foi à sala do Dr. Mário. Vários psiquiatras estavam reunidos. Numa das raras vezes em que estava bem-humorado, o director perguntou:

- Fale, pesquisador! O que é que conseguiu com o homem-sapo?

- Consegui estabelecer um pequeno diálogo com ele. Os psiquiatras estavam cépticos. Acharam que ele fazia bluff.

- Você conseguiu que ele falasse de outros pensamentos? - perguntou um.

- Como é que fez? - perguntou outro.

- Entrei no seu delírio e a partir daí comecei a levá-lo a duvidar das suas fantasias. Agora, ele diz que é outra coisa.

Desconfiado, o Dr. Mário perguntou:

- O que diz ele que é agora?

Marco Polo fez uma pausa e disse apreensivo:

- Agora ele diz que é algo melhor.

- Fale, vamos - perguntaram curiosos.

- O Isaac diz que é o Dr. Mário.

Os psiquiatras, embora habitualmente fossem comedidos à frente do director, não se seguraram. Riram às gargalhadas. Acharam a piada engraçadíssima. Até o Dr. Alexandre, que estava presente, não se aguentou. Além disso, alguém murmurou baixinho «um pouco melhor».

O Dr. Mário, humilhado, levantou-se furioso, convocou os psiquiatras para o acompanharem até ao quarto do paciente, mas antes disse:

- Prepare as suas malas para sair desta instituição. Você cometeu um grave erro que poderá manchar a sua carreira para sempre: falta de ética com o seu paciente e com o seu director.

Rapidamente, dirigiram-se ao local e mais rapidamente ainda o Dr. Mário perguntou a Isaac:

- Quem é você?

Ele levantou a cabeça, olhou fixamente para o director e disse:

- Eu sou um sapo.

Os psiquiatras gelaram. Gostavam de Marco Polo. Era a primeira vez que um estudante de Psiquiatria era expulso do Hospital Atlântico. Marco Polo ficou tenso. Teve vontade de abrir a boca e arrancar outras palavras a Isaac, mas, se o bombardeasse com perguntas tentando extrair-lhe respostas que ele não quisesse dar, aí sim estaria a selar a sua falta de ética.

O Dr. Alexandre, desde a discussão sobre alguns traços da personalidade de Einstein e o preconceito, tornara-se amigo de Marco Polo. Tentando ir em sua defesa, insistiu ansiosamente:

- Qual é o seu nome? Onde mora?

O Dr. Mário estava com um pé no corredor, mas ouviu Isaac dizer:

- Sou o Dr. Mário.

Desta vez foi o próprio Dr. Mário que sentiu um arrepio percorrer a sua espinha dorsal, circulando pela cabeça e alojando-se na garganta. Além de ter ficado profundamente envergonhado diante dos colegas, estava a ser muito injusto para com Marco Polo.

Ele sabia que Marco Polo, embora fosse irreverente, era arrojado, sensível e inteligente. Não se tratava de «mais um» profissional, mas de um construtor de conhecimento, que amava o que fazia. Todavia, não suportava a sua audácia. Desde que ele entrara na instituição, há um ano, o Dr. Mário era perturbado pelo seu comportamento e questionava silenciosamente a sua própria prática e rigidez.

Teve algumas noites de insónias a tentar espantar Marco Polo dos seus pesadelos. Ter de o expulsar do hospital seria doloroso para ele, por isso, apesar de envergonhado, ficou feliz pelo seu aluno e pela pequena evolução do paciente.

Marco Polo disse humildemente ao Dr. Mário:

- Por o conhecer de longa data e o admirar, Isaac identificou-se com o senhor.

- Não tente justificar o meu erro. Desculpe-me. E assuma o caso.

Com estas palavras, saiu rapidamente do ambiente. Foi a primeira vez que o Dr. Mário reconheceu um erro publicamente e pediu desculpa. O homem imbatível começou a ver o que sempre fora, apenas um ser humano, e, como tal, sujeito a falhas e erros. A partir desse momento, começou a ser mais flexível. Sair do seu trono não o deixou menos líder nem menos admirável, pelo contrário.

Assumir o tratamento de Isaac, portador de uma das doenças mais difíceis do Atlântico, era uma tarefa dantesca, mas, como Marco Polo detestava a rotina, aceitou com prazer o desafio. Qualquer melhoria do paciente era recebida com grandes elogios pelo jovem psiquiatra.

- Quem sou? Onde estou? - dizia Isaac agitado e a caminhar.

- Parabéns, Isaac, você está a melhorar! Não tenha medo de pensar! Não tenha medo da vida!

O paciente não compreendia bem o cumprimento, mas compreendia o acolhimento e o afecto. A acção dos medicamentos começou a ser potencializada quando ele passou a colaborar com o tratamento.

Ao longo das semanas, Isaac foi-se alimentando melhor. Aos poucos, dizia frases mais complexas e recuperava a consciência. Lentamente, foi-se deparando com a sua dura história, que o fizera romper com a realidade e perder a identidade. Certo dia, ao ter plena consciência de si mesmo, começou a chorar.

- Eu não tive infância, doutor... Fez uma pausa.

- Fale sem medo, Isaac, estou aqui para o ouvir.

- A minha mãe teve sempre problemas psíquicos. O meu pai, embora rico, bebia diariamente grandes doses de uísque. Era um judeu praticante, mas abandonou a religião.

Fez novamente uma pausa.

- Casei-me apaixonado. Elisa era a mulher mais bela e mais amável que conhecia. Em seguida, tivemos um filho maravilhoso. A minha família era o meu oásis. Quinze anos depois, o meu casamento tornou-se um solo estéril. Apanhei a minha mulher na cama com o meu melhor amigo, o gerente da minha empresa. Eu era um homem rico, mas sentia-me um miserável.

Isaac soluçou.

- A minha mulher suplicou o meu perdão. Hesitante, eu não a abandonei, mas também nunca lhe perdoei.

Marco Polo solidarizava-se com ele através do seu silêncio. Em seguida, perguntou:

- E o seu filho?

- Posteriormente, o meu querido filho, Gideão, tornou-se dependente de heroína. Ele tinha febre, vómitos, dores no corpo quando parava de consumir droga. Era horrível ver o meu filho de 15 anos naquele desespero. Procurava a heroína como um asmático procura o ar. Eu tinha medo que ele morresse. Aflito, tentei ajudá-lo de todas as formas, mas ele era agressivo, fechado, alienado, parecia impenetrável. Acusava-me de nunca ter sido seu amigo. Agora ele tem 19 anos, mora sozinho, a sua dependência agravou-se e é seropositivo. Há um ano que se recusa a falar comigo. Não tenho mais nada.

Marco Polo compreendeu finalmente as causas da depressão psicótica de Isaac. O seu eu, que representa a sua vontade consciente, preferia mergulhar num estado de inconsciência a suportar o peso das suas perdas e frustrações.

- Você gostava de lagoas?

- Pescar era o meu passatempo preferido. Sempre gostei da calmaria de uma lagoa.

Tentando descontraí-lo, Marco Polo disse:

- Você é esperto, Isaac. Viver numa lagoa é uma das melhores maneiras de fugir à realidade.

Isaac sorriu. Marco Polo acrescentou:

- Mas você acha esse mecanismo saudável?

- Não!

- Todos passam por sofrimentos na vida, uns mais, outros menos. Fugir de nós mesmos produz um falso alívio e, além disso, dilacera a nossa saúde psíquica.

Isaac olhou para as paredes do hospital, recordou o seu processo de adoecimento nos últimos quatro anos e disse:

- O preço foi muito alto.

- Não é fácil enfrentar as nossas ruínas, mas é a única maneira de sermos autores da nossa história e não vítimas dela.

- Mas que vou eu fazer da vida? Perdi tudo aquilo que

mais amo.

- Todos perdem algo na vida. Uns precisam de assumir as suas perdas, outros precisam de apanhar os pedaços que sobraram. Que atitude deve tomar? Nenhum psiquiatra ou psicólogo pode fazer essa escolha por si.

Isaac ficava impressionado pela maneira como Marco Polo conduzia as sessões de psicoterapia. Ele provocava a sua inteligência e não o tratava como um coitado, digno de pena.

Em cada momento, estimulava-o a tomar as suas próprias decisões.

- Sobraram os pedaços. Preciso de os apanhar.

- Apanhe-os com coragem. Não importa o quanto algumas pessoas o decepcionaram, você ama-as, não pode apagá-las da sua vida. Mesmo que as apague do seu consciente, não as apagará do seu inconsciente.

Além de usar estas técnicas, Marco Polo recordou como Falcão se libertara das suas crises. Pediu que Isaac fizesse um exercício intelectual diariamente no silêncio da sua mente.

- Tudo aquilo em que você acredita controla-o. Se aquilo em que você acredita o encarcera, então você será um prisioneiro; se aquilo em que você acredita o liberta, então você será livre.

Isaac tinha-se tornado um caso crónico. Ninguém esperava mais nada dele, nem mesmo ele.

- Como posso libertar-me das algemas que me transformaram num doente mental?

- Duvide dos seus pensamentos perturbadores. Questione o seu sentimento de incapacidade, questione porque é que está programado para ser infeliz. Grite dentro de si. Critique a sua fuga. Critique as suas fantasias. Determine-se estrategicamente a conquistar as pessoas à sua volta. Retire o seu eu da plateia. Entre no palco da sua mente e treine ser líder de si mesmo. Faça-o todos os dias e em silêncio.

Isaac aprendeu a manipular a arte da dúvida, da crítica e da determinação e teve melhorias substanciais, apesar de pequenas recaídas. Todos os profissionais ficaram entusiasmados com ele. Um mês depois, estava tão bem que diminuíram a dose dos medicamentos. Teve alta passado pouco tempo. Continuaria a fazer tratamento apenas no consultório. Antes de sair, Marco Polo fez-lhe algumas recomendações:

- Isaac, os fracos condenam, mas os fortes perdoam. Você acusa a sua mulher e o seu filho acusa-o. Todos erramos. Perdoe-a e, se sentir necessidade disso, peça desculpa ao seu filho, descubra-o. E principalmente perdoe-se, não carregue consigo o monstro da culpa. Surpreenda-os e permita-se ser surpreendido por eles.

Isaac abraçou Marco Polo e disse simplesmente:

- Obrigado por me fazer acreditar em mim e na vida! Obrigado por me fazer acreditar que é possível sobreviver quando se perde tudo.

Isaac traçou conscientemente os seus caminhos. Fez as suas escolhas. Voltou para os braços da mulher. Permitiu-se ser amado por ela e entregou-se ao amor.

Começou a olhar para o filho por outra perspectiva. Descobriu que o maior problema de Gideão talvez não fosse a droga, mas sentir-se órfão de um pai vivo. Começou a atraí-lo, a cativá-lo, a falar menos sobre a droga e mais sobre si mesmo. Tornou-se um contador de histórias. Gideão conheceu a história de Moisés, Abraão, David e Salomão. Depois de algumas semanas, sentiu que era mais importante para o seu pai, apesar da sua dependência. Teve mais forças para lutar contra a droga. Mais tarde, Marco Polo tratou dele e ajudou-o.

Marco Polo rompeu as barreiras e as distâncias e tornou-se amigo da família de Isaac. Do mesmo modo, tornou-se amigo da família de Ali Ramadan quando ele deixou o hospital, um mês depois de Isaac.

Embora não tivesse muito tempo, frequentava a casa deles. Gostava muito da cozinha judia e árabe. Na realidade, tinha grande apreço por estas culturas fascinantes.

Seis meses depois, Marco Polo aproximou Ali Ramadan de Isaac. Ali queria viver noutro planeta, pois a Terra fora um palco de perdas. Isaac, por sua vez, queria viver numa lagoa, porque a Terra também fora um palco de perdas, um deserto. As perdas e a dor haviam sido tantas que os fizeram tecer um belíssimo relacionamento. Tornaram-se grandes amigos.

Passaram a frequentar a casa um do outro. Faziam grandiosos jantares, tinham longas conversas sobre o Médio Oriente. Ambos eram descendentes de Abraão. Tinham mais pontos em comum do que diferenças.

Comentavam um com o outro e com o maior respeito as belas passagens do Pentateuco, de Moisés, dos salmos e dos suras do Alcorão. Marco Polo era convidado e ouvia-os com grande prazer. Além de aprender com eles, Marco Polo gostava de falar sobre a inteligência do Mestre da sensibilidade, Jesus, de que ouvira o filósofo mendigo falar. Todos se respeitavam, todos ensinavam, todos aprendiam, todos comiam até fartar. Era uma festa o encontro dos três amigos. Só faltava Falcão.

Mais uma vez, assistiu-se a um fenómeno que entusiasmava os olhos do coração: uma flor exuberante surgiu no caos do Inverno psíquico.

 

                               Capítulo 18

O Dr. Mário acompanhou a brilhante actuação de Marco Polo com Isaac e ficou deslumbrado. Teceu um carinho especial pelo jovem profissional. Os demais psiquiatras começaram também a respeitá-lo e a serem mais criativos. Cada cabeça é um planeta e cada planeta tem uma rota peculiar que exige um plano de voo distinto para ser atingida.

Psiquiatras e psicólogos perderam o medo de tocar, de se relacionar e de brincar saudavelmente com os seus pacientes. Aumentou assim o grau de confiança e empatia entre eles.

Tornaram-se mais bem-humorados, sociáveis, sensíveis. Naquele ambiente, a psiquiatria e a psicologia deram um salto qualitativo. Cortaram com o modelo superficial e doentio decalcado das relações empresariais, em que chefes e funcionários não se podem aproximar, em que a hierarquia tem de ser mantida para o bem da ordem e do progresso. Tal modelo servia para disciplinar um exército, mas não para formar pensadores, pessoas livres e criativas.

Apesar da melhoria no ambiente do Hospital Atlântico, Marco Polo ainda não estava satisfeito. Achava que os pacientes ficavam muito tempo mergulhados nas suas ideias negativas e pensamentos mórbidos. Faltava alguma coisa.

Através da sua observação clínica, descobriu que as crianças hiperactivas, com défice de atenção, em quem as mães desenvolveram o gosto pela música clássica na infância se tornaram menos agitadas e mais produtivas, aumentaram a sua capacidade de concentração e diminuíram o seu nível de ansiedade.

Passado um mês, trouxe uma aparelhagem e pediu que ela fosse instalada no pátio central. Comprou CDs de Mozart, Chopin, Bach, e pediu que os tocassem durante o recreio dos pacientes.

Quinze dias depois, os pacientes estavam mais serenos, motivados, alegres e menos pensativos. Até as crises diminuíram.

Marco Polo e outros psiquiatras desconfiaram que a música gerava uma abstracção sublime que exaltava o universo dos afectos, rompia o ciclo da construção ansiosa e exacerbada dos pensamentos, libertava endorfinas e potencializava o efeito da medicação no metabolismo cerebral. Mas esta era apenas uma hipótese que precisava de ser comprovada. A música ambiente começou a ser usada nos quartos e enfermarias do hospital.

Cláudia, uma paciente que andava frequentemente desanimada e com as costas curvadas, animou-se com a música. Tinha sessenta anos, mas aparentava oitenta. O som da música revigorou-a. Ninguém sabia, porém, que ela tinha sido uma exímia dançarina e professora de dança na juventude. Era uma especialista em valsa. Motivada, Cláudia encontrou Marco Polo e contou-lhe o seu passado.

- Eu já brilhei nas pistas de dança, Dr. Marco Polo!

O jovem psiquiatra ficou encantado com a sua história.

- Você ainda pode brilhar, Cláudia.

- Não sei. Quando um vendaval passa pelas nossas mentes, a arte desaparece.

- Nem por isso. Muitos artistas produziram as suas obras-primas nos piores momentos de dor e de frustração. O sofrimento lapidou a arte.

Cláudia afastou-se pensativa. Marco Polo registou o que ela dissera. Certo dia, quando muitos pacientes estavam aglomerados no pátio, ele apareceu e tirou o CD de música clássica. Gerou-se um burburinho entre alguns pacientes, que manifestavam a sua desaprovação. Em seguida, ele pôs a tocar uma belíssima valsa.

Cláudia, ao ouvi-la, ficou excitada. Estava de lado no pátio. Marco Polo dirigiu-se a ela e, à frente de todos, incitou-a a dançar. Ela ficou extasiada e, ao mesmo tempo, indecisa. Ele pegou nas suas mãos e levou-a para o centro do pátio. Há 25 anos que ela não dançava, pelo menos em público. Os seus amigos fizeram uma grande roda e clamaram:

- Dança! Dança!

Ela não resistiu. Marco Polo posicionou mal as suas mãos sobre as costas dela. Delicadamente, ela corrigiu-o. Ele não era um bom dançarino, e Cláudia estava destreinada. Nos primeiros trinta segundos, ela não acertava o passo e ele falhava ainda mais.

Em seguida, ela soltou-se e começou a corrigir os seus movimentos. Os pacientes ficaram encantados. Aplaudiram calorosamente. Desconheciam a artista que vivia com eles. Cláudia sentiu-se uma princesa. A sua mente trouxe-lhe agradáveis imagens do glorioso passado.

Aos poucos, os pacientes formaram pares e começaram também a dançar. Como não havia par para todos, alguns formaram par com outros do mesmo sexo. Dora entrou no pátio com uma expressão de poucos amigos. «Desta vez, Marco Polo foi longe de mais», pensou.

Ao ver a sua irritação, o jovem pediu que Cláudia fizesse par com o Dr. Vidigal, que estava isolado num canto. O Dr. Vidigal estava prestes a receber alta e nunca tinha dançado uma valsa, mas ficou com vontade de aprender.

Marco Polo foi ter com Dora e convidou-a para dançar. Ela recusou-se. De repente, as pessoas começaram a aquietar-se e a prestar atenção ao clima entre os dois. Ele insistiu:

- A vida é tão efémera, passa tão depressa, permita-se descontrair-se.

Ela voltou-lhe as costas, preparando-se para retirar-se. Contudo, a plateia gritou novamente:

- Dança! Dança!

Ela respirou e subitamente voltou-se para Marco Polo. Todos se espantaram. Pensaram que ela ia dar-lhe uma bofetada. Com incrível segurança, ela pegou na mão do rapaz, colocou-a firmemente nas suas costas e começou a dançar com incrível agilidade.

Dora tinha feito ballet clássico durante toda a adolescência e sabia dançar música de salão com uma destreza ímpar, porém perdera a habilidade de dançar a valsa da vida. Assombrado, Marco Polo deixou-se conduzir por ela. Após os aplausos, todos começaram novamente a dançar.

O Dr. Mário e outros psiquiatras ficaram a saber da confusão no pátio. Ao chegar ao local, o Dr. Mário ficou perplexo. «Até Cláudia, que é tão recatada, foi contagiada», pensou.

Embora gostasse de Marco Polo, aquilo era insuportável para ele. Afinal de contas, sabia que em nenhum hospital psiquiátrico do mundo havia música ambiente. Uma roda de valsa era de mais para a sua cabeça.

Estava para desligar o aparelho quando sentiu uma mão tocar-lhe no ombro. Era Dora. Delicadamente, impediu-o. Os pacientes aquietaram-se novamente.

- Dora, você foi sempre tão equilibrada, comedida. O que é que está a acontecer? Ficaram todos malucos?

Sorrindo, Dora disse:

- Agora, um pouco menos.

Em seguida, Cláudia adiantou-se e disse:

- Dr. Mário, por favor, dance comigo!

Ele resistiu, coçou a cabeça e achou o convite absurdo. No entanto, num lampejo, ficou pensativo e ansioso. Ele já tinha atendido Cláudia num surto psicótico, e agora ela queria levá-lo para o centro do palco. Ela estava segura e ele sentia-se inseguro. Os papéis tinham-se invertido. «O que é que está a acontecer, meu Deus?», interrogou-se.

As crateras do seu inconsciente rapidamente se abriram e perturbaram-no ainda mais. Percebeu que, embora fosse o psiquiatra mais respeitado da grandiosa instituição, ele também estava doente. Tinha medo de ir para o palco, ser observado, falhar, fazer uma figura ridícula, ser alvo de troça - os mesmos sintomas de muitos dos seus pacientes.

Naqueles poucos segundos de intensa reflexão, o Dr. Mário passou os olhos pela multidão de pacientes e descobriu que eles possuíam algo valiosíssimo que ele perdera: a espontaneidade. A espontaneidade, uma característica da personalidade fundamental para a saúde psíquica, escasseava nas sociedades modernas. Naquele momento, o Dr. Mário percebeu que ela não fazia mais parte do dicionário da sua vida.

A plateia, eufórica, clamou mais uma vez em coro, porém agora citando o seu nome:

- Dr. Mário, dance! Dr. Mário, dance!

Sob a mira daquelas pessoas mutiladas pela vida, ele despiu-se da sua inatingível posição. Resolveu também entrar na dança. Aparentemente sem jeito, pegou numa das mãos de Cláudia e colocou a outra mão nas suas costas. Ela não fez nenhuma correcção.

Logo no início, o Dr. Mário tropeçou. Porém, para surpresa de todos, transformou o tropeção num passe de dança. A plateia gostou. Rapidamente, soltou-se e fez boa figura no meio dos outros. Sabia dançar muito bem, mas tinha-se tornado uma máquina de trabalhar. Como Cláudia, há mais de vinte anos que não dançava.

Tratava de grandes empresários e de celebridades na sua clínica particular, era um especialista em resolver problemas, mas desaprendera a arte de viver, não seguia as suas próprias orientações. Nos primeiros anos após a sua formação médica, era descontraído, leve, feliz. Com o passar do tempo, tornara-se circunspecto, fechado, perdera a singeleza. Nem ele se suportava.

Marco Polo, observando a habilidade e graça do director, pensou: «Quem me dera que não escondêssemos as nossas identidades atrás dos nossos títulos! Quem me dera que a psiquiatria, sem perder a sua base científica, tivesse mais romantismo e generosidade!»

O Dr. Mário e Cláudia formavam um par maravilhoso. Não era um psiquiatra e uma paciente a dançar, mas dois seres humanos que precisavam de recuperar o prazer pelas pequenas coisas. Quando Cláudia se cansou, ele enlaçou Dora e começaram a dançar. Dois psiquiatras saíram dali a abanar a cabeça com indignação. Comentaram um com o outro:

- O Dr. Mário enlouqueceu!

Outros psiquiatras, no entanto, inclusive alguns seguranças, aproveitaram a oportunidade e soltaram-se na pista improvisada. Dora aproximou-se de Marco Polo e pediu-lhe desculpas pela arrogância com que o tratava. Complacente, ele limitou-se a dizer:

- Eu entendo-a.

- Nós trabalhamos num dos ambientes mais tristes do mundo. Precisamos de ser mais descontraídos - acrescentou Dora.

- Esse é um grande desafio. O maior paradoxo da psiquiatria moderna é que ela usa antidepressivos para tratar o humor triste, mas não sabe como produzir alegria. Mas veja o que conseguimos. Com tão pouco, as pessoas estão muito felizes.

- Eu preciso de mudar o meu estilo de vida - reflectiu ela.

- Todos precisamos. Creio que o ambiente tenso e triste do Hospital Atlântico é apenas um reflexo da sociedade que construímos.

O Dr. Mário, sem que eles o percebessem, ouvia atentamente a conversa. Interrompendo-a, disse:

- Infelizmente, parece que desaprendemos a viver. A sociedade lá fora não é menos doente do que esta em que trabalhamos.

Aliviado, colocou as mãos nos ombros do jovem amigo e disse-lhe:

- Muito obrigado, Marco Polo! Obrigado por me ensinar que é sempre possível recomeçar.

Sorrindo, o Dr. Mário fez um comentário que nunca tinha feito:

- Precisamos de agradecer aos nossos pacientes por nos ensinarem o caminho das coisas simples.

Despediu-se e foi-se embora. À medida que se afastava, o director ia abraçando vários pacientes que encontrava pelo caminho. Deu mais abraços em poucos minutos do que em trinta anos de profissão.

Depois destes acontecimentos, o Hospital Atlântico mudou para sempre. Havia brilho nos olhos das pessoas. As capacidades dos pacientes foram aproveitadas.

Cláudia abriu uma «escola de dança» no hospital. Brilhou como nunca. A sua escola gratuita tornou-se a sua obra-prima. Quem sabia pintar, encenar, escrever e fazer trabalhos manuais ensinava os que queriam aprender. O índice de melhoria e o tempo de internamento diminuíram significativamente.

Alguns pacientes sentiram-se tão úteis que, depois de receberem alta, regressavam como voluntários. A arte do prazer irrigou as suas vidas. Foi a primeira vez que se ouviu dizer que os pacientes gostavam de um hospital psiquiátrico.

 

                                 Capítulo 19

Marco Polo terminou a sua especialização em Psiquiatria. De vez em quando, visitava os seus amigos no Hospital Atlântico. Ao mesmo tempo que se destacava como profissional, escrevia as suas ideias sobre o mundo inatingível da mente humana. A sua busca de novas descobertas e a sua incapacidade de aceitar passivamente o que contrariava a sua consciência não diminuíram quando se formou, pelo contrário, intensificaram-se.

Ele concordava com o pensamento de Aristóteles: «O homem é um animal político.» Para ele, o ser humano era um actor social. Os psiquiatras e psicólogos deviam sair do microcosmo dos seus consultórios para actuar socialmente. Deviam contribuir para prevenir os transtornos psíquicos e não viver às expensas de um sistema que produz pessoas doentes.

Pouco a pouco, Marco Polo tornou-se um psiquiatra influente na sua cidade e região. Devido à ousadia das suas ideias, convidavam-no com frequência para dar conferências nas faculdades.

Certa ocasião, foi convidado para dar uma palestra a duas turmas de alunos do último ano da faculdade de Psicologia. A plateia era composta por mais de cem pessoas. O tema era «Depressão, a doença do século». Depois da sua exposição, Marco Polo comoveu os alunos. Terminou com estas palavras a sua prelecção:

- Futuros psicólogos e psicólogas, a depressão é a experiência mais dramática do sofrimento humano. Só sabe a dimensão dessa dor quem já atravessou os seus vales. As palavras são pobres para a descrever. Devemos aprender a respeitar esses pacientes, a ouvi-los abertamente e a fazê-los deixar de ser espectadores passivos do seu caos emocional. Precisamos de levar os pacientes a gerirem os seus pensamentos, a protegerem as suas emoções e a reeditarem o filme das suas histórias. Esta é a grande tarefa da psicologia. Os que exercem a psicologia devem ser pessoas apaixonadas pela vida e, acima de tudo, devem desenvolver a capacidade de descobrir os tesouros soterrados nos escombros dos que sofrem. O mapa desse tesouro não está nas teorias, mas nos comportamentos expressos subtilmente pelos próprios pacientes. Deixem-se ser ensinados por eles. Nunca se esqueçam de que nós não tratamos de doentes por não sermos doentes, mas porque sabemos que somos...

Marco Polo foi ovacionado entusiasticamente pelos alunos. Eles ficaram pensativos e até chocados positivamente com as suas ideias. Face ao entusiasmo da plateia, ele comunicou que no mês seguinte haveria um congresso internacional de psiquiatria cujo tema principal era justamente a depressão. Se eles quisessem saber mais sobre o assunto, poderiam participar.

Em seguida, disse que estava aberto o debate. Como o assunto era de interesse geral, vários alunos de Direito, Engenharia e Pedagogia, que passavam pelos corredores do anfiteatro e tinham ouvido as eloquentes palavras finais de Marco Polo, pediram licença para ouvir o debate. Sentaram-se no corredor. Logo de início, uma aluna tocou com ousadia num assunto sério.

- Professor, alguns psiquiatras não enviam os seus pacientes aos psicólogos. Eles confiam no poder da medicação e dão pouca importância à acção psicoterapêutica. Alguns pensam mesmo que a psicoterapia é uma perda de tempo. Porque é que a psiquiatria se considera superior à psicologia?

O assunto era polémico, mas real e grave. Embora a psiquiatria e a psicologia devessem caminhar juntas, não poucas vezes andavam separadas, disputando pacientes e prejudicando a evolução deles. Faltava ética e conhecimento nesse delicado terreno. Recordando e concordando com as sábias palavras do Falcão, Marco Polo disse:

- Os psiquiatras têm um poder que ditadores e reis jamais tiveram. Através dos antidepressivos e tranquilizantes, eles penetram no mundo onde nascem os pensamentos, onde surgem as emoções. Este poder pode ser muito útil, mas, se mal usado, é capaz de controlar e não libertar os pacientes. Em tese, os medicamentos produzem efeitos mais imediatos, enquanto a psicoterapia produz efeitos mais duradouros. No entanto, a psiquiatria não é superior à psicologia. As duas ciências são complementares.

- E porque é que são separadas? - indagou uma intrépida estudante.

A pergunta era curta, mas as suas implicações eram vastas. Ela tocava na evolução da ciência, na formação de dezenas de milhares de profissionais (psiquiatras e psicólogos) e afectava a vida dos milhões de seres humanos que anualmente adoecem psiquicamente. Como Marco Polo não tinha medo de dar a sua opinião, disse taxativamente o que pensava:

- Para mim, a psiquiatria e a psicologia estão separadas porque a ciência está doente. A psiquiatria e a psicologia desenvolveram-se separadamente no século XX. A psicologia tornou-se uma ciência separada ensinada numa universidade e a psiquiatria tornou-se uma especialidade médica. Elas deviam unir-se, pois a mente humana não está dividida, o ser humano é indivisível. Na minha opinião, a psiquiatria devia ser uma especialidade da psicologia e não da medicina.

Os alunos deliraram. Irromperam em aplausos pela elevação do estatuto da psicologia diante da poderosíssima psiquiatria. Nunca pensaram ouvir esse parecer de um psiquiatra. Marco Polo completou:

- Os psiquiatras saem bem formados na compreensão do metabolismo cerebral e na acção dos medicamentos, mas mal formados na compreensão da personalidade. Os psicólogos, pelo contrário, saem bem formados na compreensão da personalidade, mas mal formados na compreensão do cérebro e na acção dos psicotrópicos. Os psiquiatras podem actuar como psicoterapeutas, mas os psicoterapeutas não podem actuar como psiquiatras, não podem prescrever medicamentos. Esta é uma injustiça científica.

- Há prejuízos para os pacientes pelo facto de a psiquiatria ser separada da psicologia? - bradou curioso um jovem estudante de Direito, sentado no meio do corredor.

Marco Polo ficou feliz pelo seu interesse.

- Em certos casos há, e muitos. Quando um psicólogo atende um caso grave que necessita de intervenção rápida de medicação e encaminha o paciente para um psiquiatra, pode haver um intervalo de tempo perigoso até que o atendimento psiquiátrico seja feito. Por exemplo, nesse intervalo, os pacientes podem cometer suicídio, ter surtos psicóticos ou ataques de pânico. Se os psicólogos tivessem mais dois anos de especialização em psiquiatria, poderiam estudar melhor o corpo humano, a biologia do cérebro, a acção dos medicamentos e, assim, poderiam prescrevê-los. Mas infelizmente existe uma disputa de mercado nos bastidores da ciência. Nem sempre o ser humano está em primeiro lugar.

Em seguida, uma aluna tocou noutro assunto importante e frequentemente mal entendido.

- Às vezes, os psicólogos, por falta de conhecimento ou por medo de perder os seus pacientes, também não os enviam aos psiquiatras. Quando devíamos enviá-los para serem medicados?

- Não há regras rígidas, mas vou referir alguns princípios. Todas as vezes em que há um quadro de confusão mental, risco de suicídio, humor intensamente depressivo, ansiedade grave ou insónia, o paciente deve ser medicado. Por favor, não se esqueçam de que vocês mexem com vidas. Cada paciente é mais importante do que todo o ouro do mundo. Usem sempre o bom senso.

Os alunos ficaram pensativos. Há anos que estudavam Psicologia, mas esses parâmetros não estavam claros nas suas mentes. Alguns psicólogos punham em risco a saúde dos pacientes por não os encaminharem para os psiquiatras. Tinham receio de trabalhar em conjunto.

- Porque é que a insónia deve ser medicada, professor?

- Porque o sono é o motor da vida. Ele repara toda a energia que gastamos. A sua falta desencadeia ou intensifica muitas doenças psíquicas e psicossomáticas. Você pode tentar remover ou trabalhar as causas da insónia, mas não tente por muitos dias. Encaminhe o seu paciente para um psiquiatra ou até um neurologista, se o caso for simples. E não se esqueça de que você pode lutar com o mundo e sobreviver, mas, se lutar com a sua cama, vai perder. Ah! E não leve os seus inimigos para a cama. Perdoe-os, fica mais barato. O grupo sorriu.

- Qual é a proporção de deprimidos na população?

- Existem diferentes estatísticas. No passado, dizia-se que os deprimidos eram 10% da população. Actualmente, aproximamo-nos dos 20%. O que indica que mais de mil milhões de seres humanos, mais cedo ou mais tarde, terão um episódio depressivo. E, infelizmente, por preconceito ou falta de políticas de saúde pública, a maioria das pessoas não se tratará, o que acarreta sérias consequências psíquicas, sociais e profissionais.

A plateia agitou-se. A situação era gravíssima. Pela projecção, de dez a vinte alunos do anfiteatro desenvolveriam depressão. Na realidade, alguns já estavam deprimidos. Como naquela faculdade 70% dos alunos eram mulheres, uma aluna num dos lados da sala perguntou:

- Quem tem mais transtornos emocionais, as mulheres ou os homens?

- As mulheres têm uma incidência maior.

Houve um tumulto na classe. Os alunos troçaram das suas colegas. Marco Polo fitou-os e disse:

- As mulheres não adoecem mais facilmente no território da emoção por serem mais frágeis do que os homens, como sempre acreditou o machismo que reinou durante milénios. Exceptuando as causas metabólicas, elas adoecem mais porque amam, dão-se, entregam-se e preocupam-se mais com os outros do que os homens. Além disso, frequentemente são mais éticas, sensíveis e solidárias do que eles. Elas estão na vanguarda da batalha da vida, por isso, estão mais desprotegidas. Os soldados na frente de batalha têm mais hipóteses de serem alvejados.

Marco Polo suspirou e pediu:

- Por favor, aplaudam as mulheres desta plateia. Sem elas, as nossas manhãs não teriam orvalho, os nossos céus não teriam andorinhas!

Os futuros psicólogos ficaram rubros, as futuras psicólogas foram às nuvens. Marco Polo, em seguida, deu às últimas uma pequena mas preciosa orientação terapêutica. Disse-lhes:

- Queridas mulheres, vocês podem viver com milhares de animais e não ficarem frustradas, mas, se viverem com um ser humano, por melhor que seja a relação, haverá decepções. Dêem-se, mas não esperem muito retorno dos outros. Esta é uma das mais excelentes ferramentas para proteger as vossas emoções.

A partir daí, por usarem essa ferramenta, algumas mulheres evitaram transtornos psíquicos. Passaram também a aplicar este princípio com os seus futuros pacientes.

Uma aluna da área das ciências exactas, que estava recostada em pé no lado direito da sala, não se conteve:

- Professor, eu estou a morrer de curiosidade. Sou estudante de Engenharia, mas estou tão impressionada com o nível das ideias expostas aqui que penso que os alunos de todas as faculdades deviam ouvir as suas palavras. Nós aprendemos a lidar com números e dados, mas saímos completamente despreparadas para a vida. Porque é que existe esse vazio nas universidades?

Marco Polo agradeceu-lhe e disse:

- O sistema académico não precisa de conserto, mas de uma revolução. Ele gera gigantes na lógica, mas crianças na emoção. Os alunos não aprendem a libertar a criatividade, a ser empreendedores, a lidar com riscos e desafios. As faculdades ensinam a amar o pódio, mas não ensinam a usar as derrotas.

E, recordando as histórias dos pacientes do Hospital Atlântico, acrescentou:

- Por mais cuidadosos que sejam, vocês poderão sofrer algumas derrotas, às vezes difíceis de suportar. Mas lembrem-se desta frase: ninguém é digno do palco se não usar as suas derrotas para o conquistar.

Os alunos aplaudiram-no com entusiasmo. Em seguida, outra aluna perguntou, um pouco trémula:

- Qual é a proporção de pessoas «stressadas» na sociedade?

Como muitos, ela era uma pessoa tímida. Todas as vezes que falava em público, tinha suores frios e taquicardia, enfim, sofria um desgaste enorme. Aliás, a maioria das pessoas na plateia sofriam de algum grau de timidez. Elas não estavam acostumadas a debater, mas Marco Polo criara um clima de entusiasmo tal que não conseguiram ficar caladas.

Como crítico do sistema social, Marco Polo passou os olhos pela plateia e falou convictamente:

- O sistema transformou-nos em máquinas de consumir, uma conta bancária a ser explorada. Temos sido escravos que vivem em sociedades democráticas. Vocês são livres para pensar e sentir o que desejam? Quantas vezes se atormentam com coisas que ainda não aconteceram ou com necessidades fictícias?

Os alunos sentiram um nó na garganta. Em seguida, Marco Polo suavizou o seu tom de voz.

- Embora exista um stresse saudável que nos incentiva a sonhar, a planear, a enfrentar desafios, as sociedades modernas tornaram-se fábricas de stresse doentio, que bloqueia a inteligência, impede o prazer, gera ansiedade, dores musculares, dores de cabeça, fadiga excessiva. De acordo com algumas estatísticas, mais de dois terços das pessoas estão «stressadas» nas sociedades actuais.

Um estudante brincalhão apontou para um colega de turma mais agitado e disse:

- Professor, aqui está um «stressadíssimo»! Marco Polo também brincou com a plateia.

- Actualmente, o normal é ser «stressado» e o anormal é ser saudável. Se vocês estiverem «stressados», são normais.

A turma, aliviada, sorriu. Uma outra aluna perguntou:

- Mas quem pode ficar livre do stresse neste mundo maluco e agitado?

Marco Polo fez um passeio ao seu passado.

- Quem abraça as árvores, conversa com as flores e vê o mundo com os olhos de um falcão.

Os alunos assobiaram. Deram gargalhadas, pensando que ele dissera uma piada.

Havia uma jovem chamada Anna, sentada na primeira fila no canto esquerdo da sala. Era a única que não mostrava qualquer tipo de reacção quando Marco Polo respondia às perguntas. Ele tinha notado o seu ar de tristeza. Somente quando ele falou sobre abraçar árvores e conversar com as flores é que ela esboçou um sorriso. Marco Polo acrescentou:

- Isto não é loucura. Não estou a brincar. Abracem as árvores, contemplem a forma das nuvens, abracem o porteiro do prédio, cumprimentem o segurança da escola, não escondam os vossos sentimentos de quem amam, falem dos vossos sonhos. Deixem-me filosofar: a existência é um belíssimo livro. Ninguém pode fazer uma excelente leitura desse livro se não aprender a ler as pequenas palavras...

Dizendo isto, Marco Polo encerrou o debate. Os alunos estavam impressionados com o que ouviram. Ele falara com poesia numa palestra sobre depressão. Nunca tinham visto a psique humana sob essa perspectiva. Vislumbraram a psicologia a namorar a filosofia.

Marco Polo saiu debaixo de aplausos. No corredor, tentou aproximar-se de Anna e cumprimentá-la. Tímida, ela estendeu friamente a mão e pediu licença. Em seguida, afastou-se a conversar com uma amiga. Ele achou estranha a sua atitude, mas, como os alunos o envolveram, não conseguiu abordá-la. Quando a roda se desfez, foi ao pátio procurá-la.

Viu-a novamente. Aproximou-se e perguntou:

- Desculpe-me, mas qual é o seu nome?

- Anna. Mas, por favor, dê-me licença que tenho compromissos.

Marco Polo ficou inconformado. Somente Anna não o aplaudira. Não era a falta de aplausos que o incomodava, mas o retraimento da jovem. Daí a alguns meses, ela seria uma psicóloga. «Que condições terá para exercer a sua profissão?», pensou ele. Por isso insistiu:

- Posso conversar consigo noutra altura?

- Não!

- Não existe um «não» sem uma explicação. Você tem namorado?

- Não! Desculpe-me, mas não quero falar.

- Então a minha palestra foi péssima para si - argumentou.

- O problema não é você, o problema sou eu - disse Anna com dificuldade, devido à sua insegurança.

- Você tem medo de conversar comigo?

Ela fitou-o e, sem titubear, disse-lhe:

- Você é que terá medo de conversar comigo! - E foi-se embora sem se despedir.

Marco Polo ficou perturbado com a reacção dela. Mais uma vez, confirmava que cada ser humano é uma caixa de segredos. Tinha atendido tantas pessoas, conhecia tantos tipos de personalidade, mas Anna intrigara-o.

 

                           Capítulo 20

O incansável apetite para explorar os solos da alma humana levou Marco Polo a ansiar conhecer os mistérios que envolviam a reacção de Anna. Entretanto, algo subtil e inesperado chamou-lhe à atenção. Anna era uma jovem alta, morena, cabelos longos e encaracolados. Ela atraiu-o.

Fez outra tentativa indo à faculdade para a encontrar. Avistando-o, os alunos rodearam-no. Ele agradecia, mas os seus olhos procuravam outra personagem. Anna, ao vê-lo de longe, eclipsou-se por entre a multidão de estudantes.

A atitude dela incomodava-o. Ao mesmo tempo que tentava distanciar-se para interpretar as suas reacções, os comportamentos da jovem feriam o seu orgulho. Não era apenas o psiquiatra que fora alvejado, mas também o homem Marco Polo. Um sentimento ambíguo envolveu-o.

Queria saber ao menos as causas da sua resistência. Preferia que ela o criticasse, o considerasse um tolo, mas não o rejeitasse. Ele tinha aprendido a proteger-se das frustrações, mas, como a emoção não segue as regras da matemática, naquele momento sentiu-se frágil.

Na semana seguinte, fez uma última tentativa para se encontrar com Anna, mas ela não estava na faculdade. Ao interrogar uma das suas amigas, ela disse apenas:

- Anna é uma pessoa espectacular, mas os seus comportamentos de vez em quando são estranhos. Ela isola-se de todos. Fica dias sem ir às aulas. Parece que tem medo de enfrentar alguma coisa.

Marco Polo ficou a pensar se a sua insistência teria provocado ou agravado o isolamento dela. Achou que ultrapassara os limites. Criticou a sua atitude tola de querer respostas para tudo. Foi atingido por um sentimento de culpa. «Devia ter-lhe dado o direito de não conversar comigo, ainda que sem explicações. Afinal de contas, ninguém é obrigado a gostar de mim», reflectiu.

Na realidade, Anna tinha um passado mutilado, não revelado nem às suas amigas. Dissimulava as suas reacções. Sorria por fora, chorava por dentro. Era portadora de uma depressão crónica que se arrastava desde a infância. As amigas tentavam conhecê-la, mas Anna era uma pedra de granito, difícil de penetrar. Embora fosse fechada, era carinhosa, sensível, fiel aos amigos. Adorava ler. Goethe era o seu escritor preferido e Fausto, a sua obra predilecta.

Apesar dos seus períodos de ausência, era considerada uma aluna exemplar, pelo menos nos testes. Tirava as melhores notas da turma. Procurava esconder nas notas altas a sua baixa auto-estima.

Como muitos alunos, escolhera conscientemente o curso de Psicologia para ser uma psicoterapeuta, mas inconscientemente para se compreender e superar os seus próprios conflitos. No entanto, sentia-se frustrada, pois a sua doença emocional resistira, perpetuara-se durante os anos de faculdade. Percebeu que seria mais fácil ajudar os outros do que ajudar-se a si mesma. Anna era prisioneira no único lugar em que devia ser livre: dentro de si mesma. Belíssima por fora, triste por dentro, não suportava críticas, ofensas, desafios. Era tolerante com os outros, mas auto punitiva. Exigia demasiado de si própria. O seu perfeccionismo roubava-lhe o encanto pela vida e imprimia nela uma grave ansiedade.

Os seus antigos namorados não conseguiram entender as suas crises e isolamentos. Ela não se entregava na relação por medo de perder quem amava. Quando o relacionamento exigia cumplicidade, ela recuava e rompia a relação.

Tratou-se com vários psiquiatras e psicólogos desde a infância. Os resultados não foram consistentes. Alternava períodos de melhorias com crises. A sua emoção era como um navio sem âncora, incapaz de navegar com segurança no belo e tumultuoso oceano das emoções.

Alguns psiquiatras de renome fizeram um diagnóstico sombrio e inadequado da sua doença psíquica. Disseram que ela teria de conviver com a sua depressão para o resto da vida, pois tinha um défice de serotonina no cérebro.

Para uma futura psicóloga que sonhara em ajudar as pessoas a serem saudáveis era difícil aceitar a depressão como hóspede ad a eternum da sua personalidade. O sonho da liberdade que inspirou seres humanos a escrever poesias, escalar montanhas, quebrar grades de ferro, quase não existia em Anna, pois diluíra-se no auge das suas crises.

Marco Polo amava o desafio. Anna amava a rotina. Ele resolveu respeitar o espaço dela. Não a procurou mais.

No mês seguinte, ele foi ao famoso Congresso Internacional de Psiquiatria. Milhares de psiquiatras de todo o mundo participavam do magno evento. Lampejos de esperança seriam anunciados para o tratamento das doenças psíquicas, em especial a depressão.

Marco Polo discorrera na faculdade de Psicologia sobre os tesouros ocultos nos destroços dos que sofrem. A sua forma sensível de falar sobre a psique levou dezenas de futuros psicólogos a participarem no evento. Estavam entusiasmados. Não sabiam que as suas expectativas se tornariam um pesadelo.

Anna ousou também participar. Evitava Marco Polo, mas as suas ideias atraíram-na. Os alunos esperavam enriquecer a sua formação. Afinal de contas, em breve conquistariam um diploma e teriam de tratar das mais complexas doenças, as que atingem o mundo invisível da psique. Pensavam: «Em breve, a vida de um ser humano estará nas nossas mãos.» Alguns sentiam calafrios diante dessa gigantesca responsabilidade.

A maioria das conferências do congresso eram sobre farmacologia (estudo dos medicamentos), lançamento de antidepressivos de última geração e causas metabólicas das doenças psíquicas. O poder dos remédios seria exaltado. O poder da interacção social, de técnicas para proteger a emoção e da expansão da sabedoria para sobreviver nas «stressantes» sociedades modernas seriam pouco valorizados.

Marco Polo ficou visivelmente satisfeito ao encontrar os estudantes no imenso átrio do hotel onde o congresso se realizava. Abraçou-os. Viu Anna, ficou feliz, mas cumprimentou-a discretamente.

Passada a descontracção, ele ficou apreensivo. Olhou à volta e observou, constrangido, os laboratórios farmacêuticos instalados em luxuosos stands a seduzir os presentes. Ele tinha estimulado os alunos a virem ao templo da psiquiatria, mas começou a ficar preocupado com os factos imprevisíveis que poderiam ocorrer.

As indústrias farmacêuticas - principalmente as indústrias que estavam a lançar um novo medicamento - patrocinavam o evento, as horas extraordinárias de alguns conferencistas e o cocktail. Além disso, pagavam a inscrição, as passagens e a hospedagem de alguns destacados psiquiatras para participarem do conclave.

Até à década de 1970, nos EUA, a maior parte das pesquisas clínicas para produzir novas drogas era financiada com verbas públicas. Com o declínio da economia norte-americana na década de 1980, os recursos escassearam e os investigadores académicos começaram a receber patrocínios das empresas.

Na década de 1990, a situação agravou-se. Cerca de 70% das pesquisas eram agora financiadas pelas indústrias farmacêuticas, mas a situação ainda era positiva, pois grande parte delas realizava-se no santuário das universidades, onde a averiguação de dados era mais pormenorizada, mais comprometida com a saúde do ser humano e menos com os lucros.

Marco Polo tinha consciência dessas mudanças na produção científica, coisa rara entre psiquiatras e cientistas. Analisando os dados, percebeu que as mudanças se intensificariam no século XXI. A maioria das pesquisas, além de serem financiadas pelas indústrias farmacêuticas, passaram a ser realizadas dentro das suas próprias dependências e não nas universidades. Os objectivos eram cortar gastos, reduzir a burocracia e melhorar a rapidez dos resultados.

Tal mudança não foi em si mesma um processo antiético, até porque essas indústrias contribuíram em muito para a saúde mundial. Marco Polo sabia-o. No entanto, para ele, assim como os tribunais e o aparelho policial são úteis para a sociedade, embora às vezes cometem graves erros, as indústrias farmacêuticas não estavam isentas de os cometerem, principalmente porque lidavam com quantias inimagináveis de dinheiro.

As pesquisas de novas drogas nas dependências das indústrias farmacêuticas eram o objecto da sua inquietação. Ele preocupava-se com três tipos de controlo, que, feitos inadequadamente, poderiam prejudicar a saúde de uma parte significativa da humanidade: controlo do processo de pesquisa, controlo dos resultados da pesquisa e manipulação desses resultados e sua divulgação à classe médica.

O terceiro tipo de controlo era o que mais o incomodava. No campo da psiquiatria, bem como noutras especialidades médicas, era muito fácil manipular de forma inadequada os resultados das pesquisas e difundi-los de forma prejudicial.

Todos os medicamentos têm efeitos colaterais. Omitir tais efeitos era uma forma perniciosa de divulgar uma nova droga. Mas o que mais preocupava Marco Polo era a maneira como os materiais gráficos eram produzidos pelas indústrias farmacêuticas e distribuídos entre os médicos do globo. Nesses riquíssimos materiais, confeccionados com papéis caríssimos, os efeitos positivos dos medicamentos eram super destacados e os efeitos colaterais colocados no rodapé, às vezes quase imperceptíveis.

Como os médicos trabalham excessivamente para sobreviver, vivem «stressados» e não têm tempo para assimilar o universo de informações transmitidas nos congressos e nas revistas científicas, acabam por confiar nas sintéticas informações divulgadas nos materiais didácticos produzidos pelas indústrias farmacêuticas.

Baseados nessas informações, alguns médicos prescreviam medicamentos sem necessidade, sem uma eficácia adequada ou, então, com efeitos colaterais que comprometiam a saúde dos pacientes. Na medicina, os dados são fundamentais; a sua manipulação, ainda que em baixo grau, viola a ética e maximiza os riscos.

A poderosa indústria dos medicamentos tornou-se um negócio como qualquer outro, em que o lucro tem um destaque primordial. A vida de milhões de pessoas estava em jogo numa disputa em que o juiz nem sempre era imparcial.

Marco Polo estava particularmente preocupado com os grandes laboratórios que sintetizavam os medicamentos que actuam no delicado e indecifrável cérebro humano, como os tranquilizantes, indutores do sono e antidepressivos. Desde o seu estreito contacto com Falcão, começou a questionar a pressão e a sedução dessas indústrias para que os médicos prescrevessem os seus medicamentos.

Somava-se a essa pressão a permissão de publicidade nos media de medicamentos que exigiam prescrição médica. Isto apenas era permitido nos EUA e na pequena e bela Nova Zelândia. Anúncios de antidepressivos eram divulgados na televisão por actores profissionais que simulavam ser pacientes depressivos, mas que depois de tomar o tal remédio davam um salto emocional e faziam um brinde à felicidade.

As imagens desses anúncios entravam no inconsciente colectivo da população, gerando a crença nos poderes miraculosos dessas drogas, não levando em consideração a necessidade de aprender a navegar nas turbulentas águas da emoção, a reavaliar o estilo de vida, a trabalhar conflitos psíquicos e a superar decepções.

Muitos pacientes chegavam aos seus psiquiatras pedindo-lhes os medicamentos que gostariam de tomar. O paciente queria controlar o médico, e o clima que se estabelecia entre eles tornava-se péssimo. Com a recusa dos médicos, os pacientes trocavam de profissional e encontravam sempre algum que prescrevesse os remédios da sua preferência.

Deste modo, a medicina e em particular a psiquiatria, que deveria ser o exercício pleno de um espírito livre e de um intelecto consciente, acabaram por ser pressionadas pelo poder do marketing. A medicina foi contagiada pelas leis do mercado. Além disso, surgiu outro problema. O acesso através da Internet às informações sobre doenças e tratamentos levou muitos pacientes a serem os seus próprios médicos - médicos virtuais. A democratização das informações também gerou efeitos colaterais.

Alguns internautas efectuavam os seus diagnósticos, faziam as suas prescrições e automedicavam-se. Esqueciam-se das particularidades de cada organismo, de cada doença e de cada medicamento, análises que somente os verdadeiros médicos foram treinados a fazer.

O mundo moderno estava em conflito, vivia em franco processo de transformação. Médicos virtuais, manipulação de dados dos medicamentos, pressões do mercado, tudo isso gerava inquietação em Marco Polo. Ele devia apenas preocupar-se em ganhar o seu dinheiro, cuidar do seu futuro, desfrutar das suas férias, como qualquer outro profissional. No entanto, não conseguia fugir à sua paixão pela humanidade.

Alguns dos seus amigos não entendiam esse sentimento pelo ser humano, queriam sentir um pouco do que Marco Polo experimentava, mas tinham dificuldade. Essa paixão fora desencadeada pelas histórias que o seu pai lhe contava e aumentara ao deparar-se com os corpos sem história na sala de anatomia.

Depois, ela foi forjada na relação com Falcão e esculpida quando começou a descobrir o fascinante universo dos «miseráveis» da sociedade. Portanto, a sua paixão pela humanidade não era movida por um messianismo. Desde que desenvolvera o princípio da co-responsabilidade inevitável, não conseguia ser individualista, viver somente para si.

Para ele, nenhum doente mental tinha menos grandeza do que qualquer celebridade política ou artística. Uns são artistas por encenar dramas em Hollywood, outros são-no ao produzir os seus próprios dramas no palco das suas mentes. Achava que a fama era uma estupidez intelectual e criticava a propagação de gurus feita pelos media, pois acreditava que todos deviam construir a sua própria história. Pensava convictamente que cada ser humano merecia toda a dignidade, mesmo os mais anónimos ou as crianças especiais.

Por ser um exímio observador, analisava alguns paradoxos das sociedades modernas que o perturbavam. Para ele, nunca a indústria do lazer - televisão, videojogos, Internet, desporto, música, cinema - fora tão divulgada e, no entanto, nunca o ser humano tivera um humor tão triste e ansioso. Nunca as pessoas viveram tão concentradas nos escritórios, elevadores, salas de aula, e nunca foram tão solitárias e fechadas sobre si mesmas. Nunca o conhecimento se multiplicou tanto, mas nunca se destruiu de tal maneira a formação de pensadores. Nunca a tecnologia deu saltos tão grandes e, contraditoriamente, nunca o Homo sapiens desenvolveu tantos transtornos psíquicos e teve tanta dificuldade em se tornar autor da sua própria história.

O drama desses paradoxos levou Marco Polo a pensar que, se a ciência não mudasse o seu foco e avultadas quantias de dinheiro público e privado não fossem gastas em pesquisas que evitassem o adoecimento do ser humano, a humanidade implodiria.

Achava completamente injusto e até um crime social esperar que as pessoas padecessem de ansiedade, doenças psicossomáticas, depressão, para depois as tratar. Considerava que isso feria frontalmente o seu princípio psicossocial.

O que mais asfixiava a sua alma era este pensamento: «Se as poderosíssimas indústrias farmacêuticas dependem da existência de doentes para vender os seus produtos, qual seria o seu interesse em que esses doentes fossem curados?»

No congresso em que Marco Polo e o grupo de futuros licenciados em Psicologia se encontravam, via-se um batalhão de funcionários e profissionais vestidos a rigor, contratados pelos laboratórios para abordar os psiquiatras e médicos de outras especialidades. Vários psiquiatras seguiam a sua consciência e não se deixavam seduzir, mas era uma tarefa árdua escapar a qualquer envolvimento.

Para os atraírem, sorteavam viagens, davam brindes pomposos e distribuíam dossiers e material de categoria. Os futuros psicólogos não estavam acostumados a tanto luxo. Eles não sabiam que por detrás dessa intensa propaganda de medicamentos estavam em jogo biliões de dólares. Os congressos de psicologia eram bastante humildes, sem pompa e circunstância. As ideias sobrepunham a estética.

Havia várias conferências simultâneas no evento. Sentindo-se desconfortável sob os olhares tensos dos estudantes, Marco Polo recomendou que eles assistissem no auditório principal à palestra de um professor de psiquiatria de renome, um conceituado investigador das neurociências, o Dr. Paulo Mello. Ele iria discorrer sobre as causas e os tratamentos da mais insidiosa e angustiante doença psíquica.

Depois da sua conferência, haveria uma mesa-redonda, composta de ilustres psiquiatras, e um debate aberto aos participantes.

Entre os membros da mesa estava o Dr. Mário Gutenberg, director-geral do Hospital Atlântico.

Anna, ansiosa por saber mais sobre os vales da sua dor, aceitara a sugestão de Marco Polo. Ele não sabia, mas fizera uma péssima escolha para os futuros psicólogos, pois, na conferência, o complexo funcionamento da mente seria tratado como fruto de um computador cerebral. O intangível ser humano seria confinado dentro dos limites da lógica. As abordagens causariam náuseas aos jovens que tinham alimentado belos sonhos com a psicologia.

Todavia, Marco Polo estava presente e a sua presença, como em muitos lugares que frequentava, era um convite para destruir os paradigmas e agitar o ambiente. Uma revolução aconteceu por aqueles lados.

 

                             Capítulo 21

O Dr. Paulo Mello não era apenas um cientista de renome internacional, mas também um eloquente conferencista. Não tinha medo de expor as suas ideias. Durante a sua exposição, comentou sobre as bases biológicas dos transtornos mentais. Disse que a deficiência de neurotransmissores, em especial da serotonina, era a causa fundamental da depressão e de outras doenças psíquicas.

Explicou que os neurotransmissores eram como carteiros do cérebro que transmitem as mensagens através das sinapses nervosas, ou seja, no espaço de comunicação entre os neurónios ou células cerebrais. A sua deficiência gerava falta de comunicação na rede de neurónios, diminuindo as respostas emocionais e causando crises depressivas. O papel dos antidepressivos, disse ele, era preservar esses carteiros em doses aceitáveis no metabolismo cerebral.

A plateia de psiquiatras estava atenta às suas ideias, mas os alunos de psicologia não gostaram. Ele não disse nada sobre os conflitos na relação pais-filhos, o stresse social, as crises familiares e a má formação do eu como causas das doenças psíquicas.

Sentiram que estavam num mundo diferente daquele em que tinham vivido durante esses árduos anos de formação psicológica. Parecia que o ilustre professor falava de uma outra espécie, um outro ser humano que eles não tinham estudado na faculdade. Perceberam aquilo de que já desconfiavam: em algumas áreas, a psiquiatria estava tão distante da psicologia como o Sol da Terra. Sentiram-se frustrados com o convite de Marco Polo.

Incomodado, Marco Polo fez um gesto com as duas mãos, querendo significar: «Paciência! Acalmem-se, a conferência ainda não terminou.» Era melhor que tivesse terminado.

Passados alguns momentos, a decepção atingiu o auge. O Dr. Paulo Mello radicalizou o seu discurso, afirmando:

- A alma ou psique é química, fruto do metabolismo cerebral. Portanto, toda a doença psíquica provém de um erro químico e, consequentemente, precisa de correcção química para ser resolvida, ou seja, necessita de medicamentos.

Os futuros psicólogos viram o mundo desabar sobre as suas cabeças. Sentiram-se feridos e humilhados. «Se a psique é química e os transtornos psíquicos são erros químicos, que espaço sobra para a psicologia? Qual é o papel, nessa situação, das técnicas psicoterapêuticas?», pensaram. Alguns tiveram vontade de sair. Não suportavam a afronta.

Marco Polo nunca tinha assistido a uma conferência do Dr. Paulo, conhecia apenas a sua fama. Sabia que muitos neurocientistas tinham uma visão estritamente biológica e química da psique. Também sabia que a portentosa indústria farmacêutica dos psicotrópicos era condescendente com esta visão, usava-a e ajudava a disseminá-la na imprensa leiga mundial: jornais, revistas e televisão.

Vários jornalistas, desconhecendo os fundamentos da ciência, noticiavam com segurança que o défice de serotonina e outros neurotransmissores eram causadores de doenças psíquicas, e que esse défice precisava de ser corrigido através dos medicamentos. Não sabiam que essas informações eram apenas suposições e não verdades científicas irrefutáveis. Sem perceber, divulgavam a séria e restrita tese de que a psique era química e, sem ter consciência, contribuíam para os ganhos elevadíssimos da indústria farmacêutica.

Marco Polo sentiu que tinha sido muito ingénuo ao convidar os estudantes de Psicologia para aquele evento. Eles poderiam sentir-se demasiado frágeis para iniciarem a sua profissão. Sequelas inconscientes poderiam ocorrer. Visivelmente preocupado, pediu mais uma vez através de gestos que eles não saíssem.

Para arrematar, o conceituado conferencista deu o golpe fatal à psicologia. Ele não sabia que havia uma plateia de alunos dessa área, pensava que o seu público fosse constituído apenas por médicos, em especial por psiquiatras.

- Precisamos de medicamentos cada vez mais eficientes, como os que apresentei na minha palestra. Os psicólogos serão substituídos por drogas de última geração. As neurociências triunfarão sobre a psicologia. Ninguém pode contrapor-se aos seus avanços. O progresso das neurociências anuncia um futuro saudável para a humanidade.

Os alunos ficaram paralisados, incrédulos diante do que ouviam. Eles, assim como a maioria dos presentes, não sabiam que por detrás desse cenário estava em jogo muito mais do que a opinião de um cientista num congresso de psiquiatria. A palestra do Dr. Paulo era o reflexo do perigoso caminho que a ciência moderna estava a trilhar.

Nos bastidores da ciência, estava em jogo uma disputa intelectual muito grave sobre a natureza do Homo sapiens. Muitos dos actores que participavam nesse jogo, incluindo cientistas e profissionais, por saberem cada vez mais do cada vez menos, ou seja, por serem especialistas nas suas áreas, não tinham consciência do próprio jogo e muito menos das suas consequências para a humanidade. Há alguns anos que Marco Polo pensava nessas consequências e se preocupava muitíssimo com elas.

O que estava em questão era se a psique humana seria ou não meramente um computador biológico, um aparelho químico; se pensar, produzir ideias, sentir medo, amar, odiar, sonhar, ousar, recuar, eram ou não apenas frutos do metabolismo cerebral; se o ser humano possuía ou não um espírito, um mundo psicológico que ultrapassava os limites da lógica e das reacções bioquímicas. Estava em jogo o eterno debate sobre quem somos e o que somos. Estava em jogo a última fronteira da ciência.

A julgar pela visão da indústria dos psicotrópicos e pelo pensamento de muitos neurocientistas, esse jogo já estava ganho. Se as neurociências realmente vencessem aquele braço-de-ferro, como já estava a acontecer, as consequências para o futuro da humanidade poderiam ser chocantes. A psicologia desapareceria ou pelo menos perderia a sua importância. Os medicamentos seriam usados em massa. Os psicotrópicos poderiam ser colocados no terreno para tratar colectivamente certas doenças psíquicas. As vidas de todos seriam controladas.

Além disso, se a mente humana fosse meramente um complexo computador biológico, ela poderia ser alimentada pelos computadores electrónicos. Os professores desapareceriam, seriam substituídos por sofisticados programas mais baratos e que não fizessem exigências. A Internet tornar-se-ia uma baby-sitter electrónica, como já estava a acontecer nos tempos de Marco Polo.

Os jogos electrónicos, os programas multimédia e os programas de televisão poderiam tornar-se a mais excelente fonte de prazer e formação da personalidade. Não haveria necessidade de contemplar o belo, de abraçar árvores, de cultivar flores, nem de extrair alegria das coisas singelas. Marco Polo sentia calafrios ao pensar nisso.

Ele pressentia que a juventude estava a tornar-se triste a nível mundial. Na sua época, os jovens já tinham perdido a capacidade de contestar as loucuras dos adultos, como no período da contracultura. Já não criticavam o veneno do capitalismo selvagem, pelo contrário, lutavam para o beber em doses cada vez maiores. Exploravam os seus pais. Eram ávidos consumidores, vítimas de uma insatisfação crónica e insaciável.

Além disso, o triunfo das neurociências poderia anunciar também o triunfo dos transumanistas, o grupo cada vez maior de pessoas que enfatizava a melhoria da espécie humana através da manipulação genética e do uso da clonagem. Alguns transumanistas congelavam os seus corpos após a morte para serem ressuscitados no futuro, quando a ciência estivesse mais avançada. Eles sonhavam acelerar o processo da evolução humana. Neste afã científico, os que não aderissem a esse processo evolutivo ou não se encaixassem no seu padrão de qualidade poderiam ser excluídos. Os riscos seriam gravíssimos.

As religiões também desapareceriam caso prevalecesse a ideia de que a alma humana é apenas uma fantástica máquina biológica, pois o vazio existencial, as inquietações do espírito, a busca do Criador e da transcendência da morte seriam meros desarranjos bioquímicos. Uma vez corrigidos esses desarranjos, os conflitos existenciais dissipar-se-iam, pondo fim à religiosidade humana.

As religiões tentaram durante milénios compreender a natureza intrínseca do ser humano e perceberam que ela é indecifrável. Agora chegara a vez de a ciência fazer essa fascinante tentativa, porém, havia um risco no ar. A ciência poderia tornar-se a mais fechada e perigosa das religiões se vendesse os seus postulados e hipóteses como verdades inquestionáveis.

Ao analisar todos esses factores, Marco Polo pressentia que o mundo científico estava dentro de um imenso Coliseu. Embora houvesse diversas interconexões entre as partes, de um lado encontravam-se as neurociências, que incluíam a medicina biológica, a farmacologia, a neurologia, uma parte da psiquiatria clássica e as ciências informáticas. Elas discursavam sobre neurotransmissores, sistema límbico, amígdalas, corpo caloso, lobo frontal, enfim, estruturas anatómicas e metabólicas cerebrais como a grandiosa fonte da indecifrável personalidade.

Do outro lado, estavam as ciências humanistas, que incluíam outra parte da psiquiatria, a antropologia, a sociologia, o direito, a filosofia e em especial uma parte significativa da psicologia.

Embora não formulassem um pensamento claro sobre a natureza humana, as ciências humanistas viam os fenómenos da psique de maneira mais complexa, capaz de ultrapassar os limites das leis físico-químicas. Para elas, a solidariedade e a tolerância não poderiam ser conquistadas com programas de computador, o espírito humano teria de ser educado, a sabedoria deveria ser lapidada, a sensibilidade necessitaria das experiências existenciais, o papel dos mestres seria insubstituível no desenvolvimento das funções mais importantes da inteligência, como pensar antes de agir e colocar-se no lugar dos outros.

Depois de discursar sobre o domínio das neurociências, o Dr. Paulo Mello encerrou a sua conferência. Foi ovacionado, alguns aplaudiram-no de pé. Em seguida, sentou-se satisfeito. Havia mais de quinhentos participantes na plateia. Além dos 42 alunos de Psicologia, estavam presentes professores de Psiquiatria de diversas universidades internacionais, psiquiatras particulares, neurologistas, farmacologistas e directores de laboratórios farmacêuticos.

Os estudantes perceberam também a apreensão de Marco Polo face ao pensamento radical do conferencista, mas pensavam que ele não podia fazer nada, pois era «peixe miúdo» face ao «tubarão» que se movimentava no palco. Não o conheciam.

Iniciou-se o debate. Alguns membros da mesa teceram rápidas considerações e elogios ao conferencista. Em seguida, abriram o debate à participação da plateia. Houve um silêncio de cortar à faca.

De repente, Marco Polo levantou-se, saiu do centro do anfiteatro e dirigiu-se apressadamente para o microfone, que estava no lado direito do palco, a mais ou menos oito metros da mesa. A audácia era a sua característica principal. Agradeceu rapidamente a oportunidade de falar e, sem rodeios, partiu para o confronto com o conferencista, olhando-o fixamente.

- Estimado Dr. Paulo. O senhor sabe o que é a ditadura da hipótese?

Ninguém entendeu o termo. Este termo não existia na literatura científica. Fora cunhado pela habilidade de Marco Polo em sintetizar ideias. Tentando mostrar segurança, o Dr. Paulo respondeu:

- Não, meu jovem, nunca ouvi falar dessa ditadura. Explique-se.

- Não preciso de a explicar. O senhor acabou de a usar no seu discurso.

Levantou-se um burburinho entre os psiquiatras. «Será que este jovem está a questionar o ilustre conferencista? Não é possível!», murmuravam. Os estudantes também não faziam qualquer ideia de onde queria chegar Marco Polo, mas começaram a animar-se. O Dr. Mário, que estava recostado na mesa, colocou as mãos na cabeça, pois sabia que tinha chuva e trovoada pela frente. Constrangido e irritado, o Dr. Paulo perguntou:

- O que é que quer dizer com isso?

Marco Polo ensinava com perguntas. Não transmitia conhecimento pronto. Levava os seus opositores a pensarem e a tirarem as suas próprias conclusões, mesmo num momento em que parecia digladiar num Coliseu. Aprendera a técnica com o mestre das ruas. Em vez de responder, fez outra pergunta:

- O que é uma hipótese e qual a distância dela para uma verdade científica?

O Dr. Paulo começou a ficar preocupado com a ousadia do jovem. Respondeu:

- Uma hipótese é algo em que se acredita, que se supõe, enquanto que uma verdade científica é um facto unanimemente aceite pela comunidade científica. A distância entre elas pode ser pequena ou grande, dependendo da qualidade da hipótese.

Então, Marco Polo deu-lhe o primeiro golpe intelectual:

- A deficiência da serotonina como causadora de doenças psíquicas é uma hipótese ou uma verdade científica?

- Uma hipótese.

- Parabéns, doutor! Então, o senhor acaba de confirmar que cometeu a ditadura da hipótese, pois vendeu à plateia a sua hipótese pelo preço de uma verdade científica.

Os alunos de Psicologia entreolharam-se e aplaudiram. Perturbado com os aplausos, o Dr. Paulo retrucou agressivamente:

- Isso é uma afronta! Apenas expus o meu pensamento.

- Não, doutor. O senhor impôs o seu pensamento. Deveria ter dito que a deficiência da serotonina era uma hipótese. Além disso, o senhor teve a coragem de sentenciar a psicologia ao desaparecimento. O senhor super valorizou o metabolismo cerebral e a acção dos fármacos (medicamentos) e desprezou o complexo mundo emocional e intelectual que nos torna uma espécie inteligente.

- Rapaz, deixe-se de argumentos vazios e apresente as suas ideias para haver um verdadeiro debate! - rebateu agressivamente o professor, tentando esconder o seu erro.

Marco Polo não se deixou intimidar. Respirava desafios.

- Diga-me, ilustre professor, é possível entrar na cidade de Nova Iorque de olhos vendados e encontrar a casa de uma pessoa sem saber em que bairro ela mora, em que rua, em que número?

Achando que Marco Polo estava perdido nas suas ideias, o Dr. Paulo disse-lhe desdenhoso:

- Não, a não ser que demore décadas por tentativa e erro.

- Então, como é que o senhor encontra de olhos vendados e em milésimos de segundos a morada dos verbos e substantivos na sua memória, que é milhares de vezes mais complexa do que Nova Iorque, e os insere nas cadeias de pensamento? Constrangido, ele disse:

- Não sei. Mas quem sabe como é que isso acontece?

- Mais duas perguntas, mestre. O senhor sabe como é construída a nossa consciência existencial, que nos faz perceber que somos seres únicos no palco da vida? O senhor sabe como é que essa consciência reconstrói o passado ou antecipa os factos futuros, quando não se pode voltar ao passado e o futuro é inexistente?

A plateia ficou perturbada. A mente do Dr. Paulo ficou confusa com as perguntas, mas ele disse honestamente:

- A actual fase da ciência está apenas a arranhar os fenómenos que constroem os pensamentos e desenvolvem a consciência.

Subitamente, mudando de assunto, Marco Polo perguntou:

- Parabéns, mestre! Mais uma pergunta: o senhor acredita em Deus?

- Essa pergunta é de foro íntimo. Estamos no plano científico. Não quero falar sobre isso.

Levantando o tom de voz e abrindo os braços, Marco Polo bradou para a plateia:

- Deus está aqui! Ele está presente em carne e osso. Apresento-lhes Deus - e apontou na direcção do Dr. Paulo, como Falcão fizera com ele.

- Você está a ter um delírio religioso, um surto psicótico! - disse o conferencista num tom irónico, tentando descontrair o público.

A plateia riu de Marco Polo.

- Não é um delírio! Se o senhor desconhece os insondáveis segredos que tecem a inteligência humana, se não sabe como pensa e se desenvolve a consciência existencial, mas tem a ousadia de afirmar que a psique é o cérebro, que a alma é química, então o senhor é Deus. Pois só Deus é capaz de ter tamanha convicção. Milhões de pessoas tentaram descobrir esse segredo e foram enterradas com as suas dúvidas, mas o senhor conseguiu. O senhor tem de ser Deus.

A plateia sorriu e até os neurocientistas presentes se soltaram. Mas o Dr. Paulo tentou esquivar-se:

- Você está a ofender-me.

- Desculpe-me. Eu aceito que o senhor expresse a sua opinião, mas não concordo que o senhor imponha o seu pensamento. A minha crítica é que muitos profissionais, confiando nas teses de ilustres cientistas como o senhor, tomam essas teses como verdades absolutas e, assim, cometem erros crassos. Se o senhor e os demais neurocientistas expusessem essas teses como sendo hipóteses, a democracia das ideias poderia ser exercida. Os que lessem ou ouvissem as suas ideias poderiam criticá-las e filtrá-las.

A plateia emudeceu. Os futuros psicólogos apertaram as mãos uns dos outros em sinal de aprovação. E Marco Polo parafraseou Shakespeare:

- Há mais mistérios entre o cérebro e a alma humana do que imagina a nossa vã ciência!

A plateia sorriu novamente.

- Tenho um pós-doutoramento em psiquiatria e psicofarmacologia. E o senhor, que tese defendeu? - perguntou o Dr. Paulo com altivez.

Um membro da mesa, querendo ajudar, acrescentou:

- O Dr. Paulo publicou mais de 50 artigos em revistas científicas de todo o mundo.

O conferencista corrigiu:

- Não, publiquei 150 artigos.

- Isso, 150 artigos. Quantos artigos é que já publicou? Quais são as suas credenciais como cientista?

Alguns psiquiatras da plateia assobiaram. Pensaram que o jovem colega perderia a voz.

- Sou Marco Polo, um explorador de mundos - respondeu sem titubear.

A plateia desta vez riu à gargalhada. Os estudantes aplaudiram.

- Vamos rapaz, revele-se.

Diante da insistência, Marco Polo acrescentou:

- Tenho explorado os desfiladeiros onde surgem as ideias perturbadoras e os arquipélagos onde se levantam as defesas emocionais, até mesmo as defesas aqui presentes, mas não defendi ainda nenhuma tese, nem publiquei nenhum artigo. Reconheço que sou um jovem psiquiatra e não tenho o seu currículo. Mas reconheço também que a ciência mais lúcida debate as ideias de um pensador pelo seu conteúdo e não pelos títulos que o autor apresenta. Creio que os verdadeiros cientistas amam o debate e não a submissão.

A plateia ficou em alvoroço e começou a aplaudir, solidária com Marco Polo. As universidades tinham sido seduzidas pelos títulos e pela fama do apresentador. Deixavam assim de ser um templo de debates em busca da isenção de preconceitos, como na Grécia Antiga.

Os congressos de psiquiatria e mesmo de psicologia eram frequentemente entediantes. Há muito tempo que os presentes não viam uma discussão tão rica, com tantas implicações científicas. Vários professores universitários de psiquiatria vibravam com este caldeirão de ideias. Faziam anotações com entusiasmo.

- Está a dizer-me que não sou um verdadeiro cientista? O ambiente aqui está insuportável - disse o Dr. Paulo, que estava com suores frios e ameaçava deixar a mesa.

O Dr. Mário não permitiu que o conferencista saísse do palco. Pegou no microfone e comentou:

- Muito interessantes as suas ideias, Dr. Marco Polo. Se tem mais alguma coisa a acrescentar, por favor, continue.

O Dr. Paulo, que continuava com suores frios, sentou-se. Não sabia que os dois se conheciam. Marco Polo procurou ser mais brando, elogiou o conferencista, tentando abrir as janelas da sua inteligência. Tinha de dizer ao médico e à plateia as coisas que estavam entaladas na sua garganta.

- Sei que o senhor é um dos psiquiatras mais reconhecidos do mundo. Eu tenho muito a aprender com o seu conhecimento.

O Dr. Paulo sentiu-se lisonjeado.

- Mas, para mim, a medicação, quando necessária, é o actor coadjuvante, e a psicoterapia é o actor principal de um tratamento psíquico.

- Que ingenuidade! Você ama a poesia e eu, a ciência. Em pleno século XXI, você desconhece os espectaculares avanços das neurociências? Nunca usou tranquilizantes e antidepressivos nas doenças psíquicas? O senhor deve ser um psicólogo para pensar dessa forma.

Alguns psiquiatras acharam a piada maldosa.

- Sou psiquiatra, doutor, e uso com certa frequência esses medicamentos. Conheço, embora não completamente, as suas vantagens e os seus limites. Mas a minha tese é que se não nutrirmos o eu dos pacientes, que representa a sua capacidade de decidir, para serem os actores principais do teatro das suas mentes, não geraremos pessoas livres, capazes de administrar os seus pensamentos, fazer as suas escolhas e construir a sua própria história.

Os futuros psicólogos ficaram entusiasmados com aquela abordagem. Anna, numa atitude inusitada, levantou-se e aplaudiu-o. Marco Polo observou-a, admirado. O Dr. Paulo ficou profundamente irritado.

- O senhor está a usar filosofia barata.

- Eu respeito a sua posição, mas faço questão de defender o que penso.

Um outro membro da mesa, o Dr. Antony, um psiquiatra de 65 anos, sereno, de voz pausada, um ícone no meio académico, estava deliciado com o calor do debate. Mostrando-se extremamente interessado, perguntou a Marco Polo:

- Você discorda da hipótese dos neurotransmissores nas doenças psíquicas, doutor?

- Dr. Antony, para mim essa tese é pobre se considerada isoladamente. Há outras hipóteses tão ou mais importantes, tais como os conflitos na infância, o stresse social, as perdas existenciais, as frustrações interpessoais, a incapacidade de libertar a criatividade, de preservar a emoção. Todavia, para mim, a verdade é um fim inatingível. O que deve acontecer é uma conjunção das hipóteses das neurociências com as da psicologia.

- O que é a alma para si, meu jovem? - perguntou o Dr. Antony.

Marco Polo respirou pausadamente. Teria de entrar num assunto delicado, um assunto que a ciência se sentia quase proibida de discutir. Mas não teve medo de exprimir o seu pensamento. Usou a poesia.

- Quando vejo uma mãe perdoar um filho apesar de ele não merecer, quando vejo alguém apostar num amigo quando mais ninguém acredita nele, quando vejo um paciente com cancro acreditar na vida apesar de estar a morrer, ou quando contemplo um mendigo a dividir o seu pão apesar de não ter qualquer valor para a sociedade, fico encantado, embevecido. Eu penso para mim: «Que mundo maravilhoso é a mente humana.»

Nesse momento, comoveu-se com as recordações. Mas continuou:

- Percebo que amar, cantar, tolerar, recuar são reacções que ultrapassam os limites lineares das leis físico-químicas do cérebro. A nossa alma é mais do que uma máquina cerebral lógica. Os computadores nunca terão tais reacções, nunca terão consciência de si mesmos, serão sempre escravos de estímulos programados.

A plateia ficou alvoroçada.

- As suas ideias chocam a ciência. Se formos mais do que um cérebro organizado, então o que somos e quem somos? - perguntou o Dr. Antony.

- Não sei quem somos, mas posso dizer alguma coisa sobre o que somos. Para mim, a psique é um complexo e indecifrável campo de energia que coabita, coexiste e co-interfere com o cérebro, ultrapassando os seus limites.

Isto deixou a plateia perplexa. Nunca se vira um postulado com aquela dimensão. O Dr. Antony, introspectivo, comentou:

- Parabéns pelas suas ideias inovadoras. Você tocou na última fronteira da ciência. Se a nossa espécie comprovar a sua tese, ela dará um salto sem precedentes para o futuro. No entanto, apesar da profundidade dessa tese, não há como prová-la. O único argumento de que dispomos é a fé. E a fé é uma incerteza científica.

- Tenho alguns argumentos que podem fundamentar esta tese, mas ainda estão a ser elaborados.

- Estão a ver? Eu disse que as suas ideias eram filosofia barata! - exclamou com entusiasmo o Dr. Paulo.

O Dr. Antony corrigiu-o rapidamente:

- As ideias do Dr. Marco Polo são de grande alcance, trata-se da tese das teses da ciência. Os nossos congressos de neurociências têm sido secos, mórbidos, unifocais. Não discutimos os ditames do espírito humano. Temos medo de entrar num terreno que não conhecemos, mas que é essencial à vida. Temos receio de transpor a delicada fronteira entre a psiquiatria e a filosofia, entre a ciência e a religião. As vezes, penso que essa fronteira não existe, nós é que a criámos. Seria muito bom que nos nossos áridos congressos falássemos mais sobre as emoções, a educação, a espiritualidade, as crises existenciais, o conflito social, e menos sobre o metabolismo cerebral.

Vários psiquiatras se levantaram para aplaudir o Dr. Antony, concordando com o seu pensamento. A discussão teria terminado ali se o Dr. Paulo não se mostrasse desrespeitoso com o sereno Dr. Antony.

- Desculpe-me, Dr. Antony, mas estamos no terceiro milénio e misturar fé com ciência, psiquiatria com filosofia, é uma ingenuidade científica, um atraso cultural. É retroceder mil anos no tempo. O senhor já deixou de produzir ciência. Hoje é apenas um professor aposentado, está afastado das grandes pesquisas. As neurociências estão cada vez mais perto de provar que a alma é um aparelho químico.

Para Marco Polo não havia vencedores naquela discussão, mas teses distintas, que deveriam ser discutidas com respeito para o bem da humanidade e não para benefício de grupos. Diante da arrogância do Dr. Paulo, ele continuou e elevou o nível do debate. Colocou na ordem do dia algumas questões que havia elaborado desde os tempos da sua amizade com Falcão. De início, poucos entenderam o seu raciocínio.

- Dr. Paulo, sabemos que um grupo de pacientes tem novas crises depressivas após a interrupção dos antidepressivos, ainda que usados por um longo período de tempo, como seis meses ou um ano. Mas outro grupo, após a interrupção dessas drogas, deixa de ter essas crises. Esta informação está correcta ou não?

O professor fez um sinal com as mãos para ele continuar.

- Pois eu pergunto-lhe: porque é que o último grupo de pacientes não teve mais crises?

Sem titubear, o professor respondeu de imediato:

- Os pacientes superaram-se. Venceram as suas dificuldades, reorganizaram os seus conflitos, aprenderam a enfrentar os estímulos «stressantes».

- O défice de serotonina ou erro químico permaneceu nesse grupo de pacientes que teve pleno sucesso no tratamento?

O professor sentiu um nó na garganta. Marco Polo apanhara-o com os seus próprios argumentos. Alguns professores de psiquiatria perceberam a armadilha em que o Dr. Paulo caíra. Pensaram: «Que argumento fatal.» No entanto, outros psiquiatras não entenderam onde é que Marco Polo queria chegar. Um tanto temeroso, o Dr. Paulo respondeu:

- Sim, provavelmente o défice continuou.

- Parabéns, professor! O senhor acabou de questionar o futuro das neurociências. Após a suspensão do antidepressivo, o défice de serotonina continuou, pois o defeito metabólico que produz o défice não foi solucionado pela medicação. Se o defeito continuou e o paciente não teve mais crises, isso indica que superar dificuldades, reorganizar-se, resolver conflitos são processos psicológicos, cognitivos, que estão muito além da tese importante, mas simplista, da serotonina.

Alguns psiquiatras coçaram as cabeças. Nunca tinham pensado nesse assunto. O Dr. Antony e o Dr. Mário saíram do formalismo e aplaudiram Marco Polo.

O Dr. Paulo ficou sem saída. Ele fora sempre um exímio pesquisador, mas infelizmente deixara-se seduzir pelo dinheiro. Durante a sua conferência, ele tinha divulgado um novo medicamento antidepressivo, cujo nome comercial era Venthax. Comentou que participara de pesquisas clínicas para averiguar a sua eficiência e estava muitíssimo animado com os resultados.

Ninguém sabia, mas o ilustre professor recebera secretamente um milhão de dólares do poderoso laboratório que tinha sintetizado a droga para a divulgar naquele congresso, assim como nos seus respeitados artigos científicos veiculados nas principais revistas especializadas.

Na indústria farmacêutica, um único medicamento, quando aceite pela comunidade médica, é capaz de dar lucros altíssimos, mais do que a grande maioria dos produtos do mundo capitalista.

O Venthax tinha realmente eficiência terapêutica, mas os seus importantes efeitos colaterais foram minimizados pelo Dr. Paulo. Poderia afectar o fígado, aumentar os riscos de enfarte e, em alguns pacientes, induzir agressividade e aumentar os riscos de suicídio.

Na plateia, estava presente o director comercial do laboratório desse novo antidepressivo, o Dr. Wilson, que estava a abominar as ideias de Marco Polo. O debate desviou a atenção dos ouvintes do novo medicamento. O Dr. Wilson esperava, a partir daquele congresso, dar um forte impulso ao lançamento internacional do Venthax. Ele poderia vender mais de cinco mil milhões de dólares anuais. Mas estava decepcionado com o rumo que a conferência tomava.

Vendo o Dr. Wilson muito insatisfeito na primeira fila do evento, o Dr. Paulo disse:

- Vamos encerrar este debate.

Mas Marco Polo precisava de dizer mais algumas coisas:

- Somos crianças a brincar à ciência no teatro da existência. Eu também sou uma pessoa orgulhosa, por vezes estúpida, mas estou a aprender que, nesse teatro, o orgulho é a força dos fracos e a humildade a dos fortes.

O Dr. Paulo ficou paralisado e a plateia, emudecida. Perceberam que todos são capazes de errar nesse campo delicado. Marco Polo expunha e não impunha as ideias.

- Eu não sou orgulhoso. Sou realista! - afirmou o Dr. Paulo, orgulhoso da sua humildade.

- Diga-me, então, professor, a eficácia clínica da nova droga sobre a qual o senhor discorreu, o Venthax, foi comparada com placebos, que são falsos remédios ou mentiras químicas?

A voz do Dr. Paulo tremeu. Não queria entrar naquele campo.

- Claro! Fizemos um estudo duplo-cego. Formámos dois grupos de pacientes deprimidos. A um deles ministrámos a nova droga e ao outro o placebo. Nenhum dos dois sabia que tipo de substância estava a tomar. Mas já falei de tudo isso na minha palestra.

- Mas não nos forneceu alguns dados. Qual é a percentagem de eficácia de um e de outro?

- O Venthax teve 62% de eficácia, e o placebo, 46%. Os estudantes de Psicologia entreolharam-se. Não sabiam

que uma mentira química, o placebo, tinha tido uma eficácia não muito distante da droga psicoactiva. Nunca tinham discutido esse assunto de uma importância fundamental na faculdade.

Diante das suas palavras, Marco Polo deu o golpe fatal no absolutismo e arrogância do grande mestre:

- Porque é que os placebos tiveram a incrível eficácia de melhorar 46% dos pacientes deprimidos?

Novamente caindo em si e percebendo onde Marco Polo queria chegar, o Dr. Paulo assinou a sua matrícula como aluno na escola da existência. Com um nó na garganta, foi obrigado a responder para não passar uma vergonha maior:

- Porque eles acreditaram no tratamento, sentiram-se amparados, confiaram nos médicos que os assistiam.

- Muito bem, Dr. Paulo, o efeito fabuloso dos placebos é o efeito espectacular da mente humana, que tem uma incrível capacidade de sonhar, transcender o seu caos, enfrentar as suas perdas, juntar os seus pedaços, reconstruir a sua história, reeditar o filme do inconsciente. Os medicamentos podem ajudar muito, mas todos esses processos são conquistados pelo diálogo, pela intervenção do eu, pelo auto conhecimento, pela troca, pela interacção social. Portanto, obrigado por concluir que a psicologia jamais morrerá!

Os futuros psicólogos levantaram-se e ovacionaram com euforia o seu amigo. Alguns choraram. A esperança de encontrar tesouros nos escombros dos que sofrem reacendeu-se.

Marco Polo olhou fixamente para a plateia e terminou com estas palavras o debate:

- As indústrias farmacêuticas investem biliões de dólares em pesquisas de novas drogas que actuam no cérebro humano para tratar as doenças psíquicas, mas não investem nada em medidas preventivas, em melhorar a educação, desenvolver a arte de pensar das crianças, educar a auto-estima, diminuir o stresse social e combater a miséria física e psíquica. A sociedade precisa de saber que na esteira do adoecimento psíquico da humanidade, a indústria farmacêutica prepara-se silenciosamente para se tornar a mais poderosa do mundo, mais robusta do que a indústria das armas e do petróleo. Essa indústria precisa de uma sociedade doente para continuar a vender os seus produtos. Aliás, nunca se venderam tantos tranquilizantes e antidepressivos! Precisamos de repensar o futuro da ciência e reflectir sobre para onde caminha a humanidade.

Marco Polo olhou para o relógio e calculou que tivessem ficado quase uma hora a debater o assunto. Tendo isso em vista, completou:

- De acordo com as estatísticas, durante o curto período em que estivemos a discutir as nossas ideias, mais de mil pessoas em todo o mundo tiveram crises depressivas, ataques de pânico, surtos psicóticos e doenças psicossomáticas. Mais de vinte pessoas cometeram suicídio. Pessoas maravilhosas desistiram de viver e deixaram um rasto de dor nos membros das suas famílias, que se perpetuará por décadas. Estamos a construir uma sociedade de miseráveis. Isso não os atormenta, senhores?

- Sonhador! - foi a última palavra do conceituado conferencista.

Marco Polo, com os olhos húmidos, também disse a última frase:

- Se deixar de sonhar, morrerei! - Nisso vieram-lhe à mente as imagens de crianças com depressão e com anorexia nervosa que ele tratava, doenças raras no passado. As crianças com anorexia estavam caquécticas, em pele e osso. As lágrimas de Marco Polo tornaram-se visíveis.

O Dr. Mário e o Dr. Antony saíram das suas cadeiras e foram cumprimentá-lo. Vários psiquiatras ficaram entusiasmados com o pensamento de Marco Polo. Eles eram profundos e afectivos. Concordavam plenamente que a psiquiatria não podia ser estritamente curativa, deveria ser redireccionada para a prevenção. Enquanto o jovem psiquiatra percorria o auditório, muitos cumprimentaram-no.

Anna aguardava-o do lado de fora. Encontrava-se num estado dúbio de alegria e angústia. Alegria, porque as ideias de Marco Polo arejaram os becos da sua emoção, levando-a a perceber que não estava programada para ser depressiva. Angústia, porque as suas últimas palavras a levaram a um mergulho na sua infância, nos segredos que tinham feito dela uma

jovem cronicamente triste.

Ao encontrá-lo, deu-lhe um beijo suave no rosto. Surpreendido, ele não entendeu a sua reacção, nem fez um esforço para a entender. O psiquiatra do debate recuou e o ser humano emergiu. Desejava apenas sentir aquele momento. Deixou a emoção sobrepor-se à razão.

Saíram juntos do anfiteatro. Caminharam sem direcção. Procuravam-se um ao outro.

 

                             Capítulo 22

Anna e Marco Polo encontraram um lugar agradável para fazer cruzar os seus mundos: uma bela, espaçosa e florida praça. As folhas bailavam sob a orquestra do vento. Os cabelos de Anna moviam-se suavemente e vendavam os seus olhos.

Marco Polo conhecia bem aquele lugar. Nessa praça, repensara a sua vida, fizera discursos, construíra poesias com Falcão e dera os primeiros passos para ser um pensador. Recordou-se de uma árvore que gostava de abraçar.

Anna, sem meias-palavras, surpreendeu-o dizendo:

- Eu sou depressiva!

Marco Polo não sabia desse facto.

- Anna! Não és nada depressiva. És um ser humano que está a passar por «uma depressão.

- Ser humano? Quantas vezes me senti a escória da sociedade!

Marco Polo ficou impressionado. «Que causas levam uma pessoa tão bonita e, além disso, futura psicóloga, a sentir-se tão insignificante?», pensou. A sua doença devastara a sua história.

Sob o efeito das palavras que ouvira de Marco Polo no escaldante debate, Anna completou:

- Acho que vou deixar de tomar os antidepressivos. Serenamente, ele disse-lhe:

- Não, Anna. Não deixes de tomar a tua medicação até que aprendas a navegar sem medo no belo e turbulento oceano das emoções!

- Mas eu preciso de tomar uma atitude. As tuas ideias e coragem no debate deram-me motivação para isso.

- Óptimo. Toma atitudes, mas espero que saibas que no território da emoção não existem heróis, mas pessoas que treinam no dia-a-dia a sua força. Lembra-te do que eu disse: equipa o teu eu para ser o actor principal do teu tratamento, trabalha as causas que alicerçam o teu humor depressivo, confronta os teus pensamentos perturbadores. Assim, serás tu a realizadora do teu próprio guião.

Anna ficava fascinada com a linguagem de Marco Polo. Ele conseguia falar de fenómenos complexos através de histórias, usando uma inspiração criativa e uma linguagem poética.

- Eu aprecio as tuas palavras, mas estou cansada. A minha vida tornou-se insuportavelmente pesada. Foram muitos anos de sofrimento.

- Posso fazer-te três perguntas? - disse Marco Polo, que já reflectira sobre alguns dos comportamentos de Anna.

- Está à vontade - concordou ela delicadamente.

- És hipersensível? Quando alguém te ofende, sentes-te muito ferida, o teu humor fica arruinado nesse dia?

Admirada com a pergunta, ela respondeu:

- Não apenas nesse dia. As críticas perturbam-me durante uma semana e, às vezes, o mês ou o ano inteiro. Sou muito sensível.

- Preocupas-te excessivamente com a opinião dos outros, com o que eles dizem e pensam a teu respeito?

- Sim. Tenho medo de não ser aceite. A minha auto-estima é péssima. Qualquer rejeição, ainda que com um olhar, fere-me. Mas como sabes isso?

- Pensas demasiado, a tua mente é muito agitada, não pára de pensar? Sofres com problemas que ainda não aconteceram ou ruminas situações angustiantes do passado?

Impressionada com o poder de observação de Marco Polo, ela respirou e respondeu:

- Não paro de pensar um minuto, a minha mente é inquieta. Sofro muito por antecipação. Sofro pelas provas, pelo imprevisível, pelos erros do passado, pelos erros que ainda não cometi. O passado perturba-me e o amanhã atormenta-me. - Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.

- Anna tu tens a síndrome tri-hiper.

- Tri o quê? Nunca ouvi falar dessa síndrome na faculdade.

- Tive a felicidade de descobrir essa síndrome e a infelicidade de saber que ela atinge milhões de pessoas e está na base da maioria dos transtornos emocionais. Analisando inúmeros pacientes, observei que muitos têm três importantíssimas características de personalidade que estão desenvolvidas exageradamente, daí o nome tri-hiper. Quem é hipersensível, hiper preocupado com a imagem social e hiper pensante tem mais propensão para desenvolver depressão, síndrome do pânico e doenças psicossomáticas. Mas há duas boas notícias: a primeira é que essa síndrome pode ser tratada, a segunda é que ela atinge as melhores pessoas da sociedade, as que são emocionalmente ricas e excessivamente generosas.

- Emocionalmente ricas e excessivamente generosas, como assim? - indagou Anna espantada. - Eu sempre estudei nos meus livros que as pessoas deprimidas eram problemáticas e tu dizes-me que elas possuem uma personalidade rica!...

- É o que penso. Pelo facto de essas três nobres características estarem super desenvolvidas gera-se uma enorme desprotecção emocional. Por isso, elas ofendem-se facilmente, exigem muito de uma pessoa e gravitam em torno de factos que não ocorreram.

Anna ficou extasiada. Desde a infância que passava por consultórios de psiquiatria e psicologia, mas pela primeira vez sentiu orgulho de si mesma. Ela era muito sensível, incapaz de matar um insecto. Dava-se a toda a gente, vivia a dor dos outros. Os empregados da sua casa adoravam-na. Entendeu que não era uma pessoa frágil, inferior, desprezível, mas um ser humano de valor que não sabia defender-se. Por ser muito inteligente, ela mesma concluiu:

- Por isso, essas pessoas não se adaptam ao mundo social, competitivo, inumano, insensível. Elas possuem um tesouro aberto, que a agressividade das pessoas e os problemas da vida podem facilmente atacar.

Marco Polo admirou a sua refinada capacidade analítica.

- Parabéns, Anna! As pessoas que têm a síndrome tri-hiper são óptimas para os outros, mas carrascos de si mesmas. São éticas, singelas, afectuosas, mas não têm protecção emocional. Exceptuando os casos em que alguém nos fere fisicamente, qualquer ofensa, crítica, rejeição ou decepção só pode ferir-nos se o permitirmos. Como disse na sua sala de aula: dê-se, mas não espere muito o retorno dos outros.

Em seguida, Marco Polo começou a explicar que não é necessário que os três pilares dessa síndrome estejam presentes para que as pessoas desenvolvam transtornos emocionais. Em alguns casos, basta um pilar. Comentou que a prevenção dessa síndrome, feita através da educação da emoção, poderia evitar que milhões de pessoas adoecessem.

Fitando os dóceis e húmidos olhos de Anna, acrescentou:

- Não te sintas discriminada, nem inferior a ninguém. És melhor do que eu em muitos aspectos.

Anna ficou comovida. Sentira-se sempre pequena diante das pessoas e, principalmente, dos psiquiatras que a tinham tratado. Nalguns momentos, pensara desistir da sua profissão, noutros, da própria vida.

A poesia era uma das poucas coisas que a entusiasmavam. Tentando disfarçar as suas lágrimas, indagou:

- Já leste Goethe?

- Admiro a inteligência e sensibilidade argutas dele. - E completou, a brincar: - Mas ele foi o filho preferido da sua mãe.

- Como assim? - perguntou Anna.

- Segundo Freud, o brilhantismo intelectual de Goethe começou pela mãe dele. Freud disse que os filhos que foram preferidos e valorizados pelas mães tornam-se mais optimistas, vencedores, enfrentam com mais coragem os incidentes da vida.

Marco Polo não se deu conta de que aquelas palavras tinham ferido as entranhas de Anna. A relação com a sua mãe fora pautada pela dor. Percebendo algo estranho no ar, ele tentou emendar.

- Mas não concordo com Freud. Ele também foi o preferido de Amalie, a sua mãe, mas, embora fosse um pensador inteligente, o seu humor não foi irrigado com optimismo. Por isso, vivia atormentado com a ideia de morrer antes de Amalie. A minha opinião é que as mães amam todos os seus filhos e não preferem um mais do que outro, apenas distribuem a sua atenção de maneira diferente, por serem diferentes as suas preocupações com cada um deles.

Anna não suportou. Chorou. Tentou esconder a cara, sentando-se no banco.

Marco Polo estava confuso. Percebeu que havia algo grave na relação de Anna com a mãe. Não queria invadir a sua intimidade. Colocou suavemente o seu braço direito nos ombros dela e respeitou a sua angústia.

Era um entardecer. Os raios solares penetravam no tecido das flores e revelavam a bela Primavera. O ambiente externo contrastava com o mundo de Anna. Depois de alguns momentos de silêncio, ele disse:

- Desculpa se te feri.

Ela levantou-se e disse subitamente:

- Tenho de ir.

Na realidade, ela hesitava entre o afastamento e o desejo de ficar junto dele.

- Podemos ver-nos amanhã? - perguntou Marco Polo inseguro.

- Acho que não.

- Porque não?

Bloqueando temporariamente as palavras de Marco Polo que a encorajaram a recuperar a sua auto-estima e lutar contra a doença, ela voltou-se para o epicentro do seu conflito e disse:

- Não vais gostar de me conhecer. Eu sou uma pessoa muito difícil. Nem eu me entendo.

- Somos iguais! Eu também não me entendo algumas vezes - disse ele com um sorriso.

Então, numa das raríssimas oportunidades que se deu a si mesma, ela abriu o mapa da sua dramática história e, soluçando, bradou em voz relativamente alta:

- Roubaram a minha alegria! Destruíram a minha infância sem me pedirem licença. Não consegues perceber que sou uma fonte de tristeza? O que é que esperas de mim?

O resgate súbito do passado gerou um grau de tensão que bloqueou o fluxo das ideias de Anna. Marco Polo mergulhou no silêncio. Esperou que ela se refizesse e continuasse.

- Eu era filha única e pensava que a minha mãe me amava e me valorizava mais do que tudo na vida. Mas quando eu tinha oito anos, ouvi um som que jamais saiu da minha cabeça. Ouvi o estampido de um revólver no quarto dela. Corri para lá e vi a minha mãe coberta de sangue em cima da cama. Tentei socorrê-la, pegar nela, mas eu era muito pequena. Apenas gritava: «Mamã! Mamã! Não me deixes!...» Ela morreu fisicamente e eu morri emocionalmente. Ambas morremos.

Raramente alguém sofreu tanto como a pequena Anna. Antonieta, a sua mãe, tinha graves crises depressivas, mas, apesar das crises, procurava dar à filha o máximo de atenção e carinho que conseguia. No período entre as crises, brincava com Anna e dizia que ela era a melhor filha do mundo. No entanto, as crises aumentaram e a mãe hipersensível tinha períodos de afastamento. Antonieta dizia algumas vezes aos empregados e à frente da pequena Anna que não aguentava mais viver. Anna chorava e vivia atormentada.

O seu pai, Lúcio Fernández, era um rico industrial. Ele nunca compreendeu e apoiou a mulher. O casal tinha atritos frequentes, às vezes na presença de Anna. Lúcio entendia muito de matemática financeira e absolutamente nada da aritmética emocional.

Diferente de Anna e Antonieta que eram hipersensíveis, Lúcio era um homem frio, calculista, colérico, que não sabia colocar-se no lugar dos outros. Não amadurecia à medida que os seus cabelos embranqueciam. Repetia sempre os mesmos erros. Era incapaz de ver a angústia da mulher. Para ele, a depressão era pieguice, uma coisa de quem não tem o que fazer.

Tinha aversão a psiquiatras. Considerava-os os maiores charlatães da sociedade. Na realidade, tinha medo de ver o próprio ser. Entrou apenas uma vez num consultório de psiquiatria acompanhado pela mulher. Saiu a chamar louco ao psiquiatra.

Lúcio Fernández era um homem de muitas mulheres. A sua infidelidade aliada à sua postura agressiva e auto centrada contribuíram para irrigar a baixa auto-estima da mulher e agravar a sua depressão. Não se casou após a morte de Antonieta. O milionário tinha medo de partilhar o seu dinheiro.

Anna nutria uma profunda mágoa em relação ao pai, não apenas pela sua falta de afecto, mas porque, à medida que foi crescendo, começou a entender que ele fizera muito pouco para prevenir o suicídio da mãe. Um pensamento perturbador sufocava-a: o de que o pai facilitara o suicídio. Antonieta tinha-se matado com uma arma que estava na mesa-de-cabeceira ao lado da cama do casal. No fundo, Anna sabia que o pai tinha uma arma na mesa-de-cabeceira e outra no carro porque era desconfiado e inseguro. Tinha uma personalidade paranóica.

- Certa vez, disse ao meu pai que a mamã falava em morrer. Com um ar prepotente, ele afirmou categoricamente que eu podia ficar tranquila, pois quem ameaça não faz. Era incapaz de ouvir os clamores da minha mãe por detrás do seu humor triste.

Marco Polo, através da sua fina capacidade de ver o que a imagem não mostra e ouvir aquilo que os comportamentos visíveis não revelam, fez uma pergunta que levou Anna a penetrar no centro do seu caos emocional.

- Tens raiva da tua mãe?

Anna sentia mágoa em relação ao pai, mas a mágoa que nutria pela mãe era muito maior. No entanto, ela negava esse sentimento. A mágoa alojava-se clandestinamente nos porões do seu inconsciente e nunca fora superada nas sessões de psicoterapia. Os seus terapeutas não detectavam este dramático sentimento, ou pela resistência de Anna em falar sobre o suicídio da mãe, ou porque tinham receio de entrar nesse árido terreno e não conseguir controlar a sua crise. Afinal de contas, Anna falava em dormir e não acordar mais, em desistir de tudo.

Além da mágoa oculta em relação à mãe, ela sentia-se envolvida por uma névoa de culpa. A mãe dera sinais de que queria morrer e ela sentia que não conseguira protegê-la. Nada é tão asfixiante para a emoção de uma frágil criança quanto sentir-se culpada pelos actos dos pais. Esses conflitos pautaram o desenvolvimento da sua personalidade. Anna tornou-se insegura, frágil, com um humor cronicamente triste, com medo de enfrentar a vida e assumir os seus próprios sentimentos.

Era auto punitiva, tolerava os erros dos outros, mas era implacável com os seus.

Ela demonstrara sempre compaixão pela mãe diante dos outros terapeutas. Pela primeira vez, teve coragem de dizer que sentia raiva da mãe e não dó. Na realidade, os seus sentimentos eram confusos.

- Sim. Às vezes tenho raiva dela. Porque me abandonou? O amor que ela sentia por mim era menor do que o desejo de desistir da vida. Eu fiquei só. Perdi tudo. Perdi o prazer de viver - disse inconformada. E acrescentou: - Não disseste no debate que os que se suicidam deixam um rasto de dor que se perpetua durante décadas? Eu sou um exemplo vivo dos teus argumentos. Para mim, quem se mata é um grande egoísta. Acaba com o seu problema e começa o dos outros. Já sentiste tal solidão?

As lágrimas continuavam a correr. Anna perdera o que mais amava, não sobrara nada da sua perda. Não tinha pedaços para juntar. Marco Polo ficou profundamente sensibilizado com a sua história. Na infância, ela deve ter corrido atrás dos pássaros, brincado com as bonecas, transitado sem medo pelas vielas da existência, mas o som do projéctil e a imagem da mãe inerte numa cama eram um filme de terror que se repetia sem cessar no palco da sua mente, contagiando toda a estrutura do seu inconsciente.

Marco Polo sabia que nalguns casos o desenvolvimento da síndrome tri-hiper tinha uma influência genética. Acreditava que pais deprimidos não transmitem geneticamente a depressão aos filhos. Na realidade, o que transmitem é uma tendência para desenvolver a síndrome tri-hiper, que em alguns casos, se não for corrigida pela educação e pela actuação do eu como autor da própria história, pode facilitar o aparecimento da depressão e de outras doenças.

Ele acreditava que as causas sociais e psíquicas, como perdas e frustrações, eram muito mais importantes no desenvolvimento dessa síndrome do que a genética, e nem sempre precisavam de ser intensas. No caso de Anna, as causas foram marcantes. Um vendaval destruíra a fase mais importante da sua vida.

Desde o suicídio da mãe, ela nunca mais acreditou que as pessoas poderiam amá-la verdadeiramente e, por isso, tinha uma enorme dificuldade em se entregar. O medo da perda era um fantasma sempre presente. Sentia-se a pessoa mais solitária do mundo. Marco Polo reagiu à sua pergunta:

- Nunca senti a solidão por que passaste, mas de uma coisa estou convicto: quando o mundo nos abandona, a solidão é suportável, mas quando nós mesmos nos abandonamos, a solidão é intolerável. Tu abandonaste-te.

Anna ficou abalada com a frase. Esperava que Marco Polo tivesse compaixão dela, que ficasse paralisado diante da sua miséria emocional. Embora estivesse profundamente condoído da sua dor, ele instigou a inteligência dela, levando-a a concluir que realmente se tinha abandonado. Deixara de se amar. A sua solidão tornara-se insuportável. Todavia, ela levantou uma barreira, como se não conseguisse superar o seu passado:

- Como apostar na vida e amá-la, se quem me gerou se suicidou?

Então chegou o momento de Marco Polo ajudar Anna mais profundamente. O seu conceito de suicídio entrava em confronto com o pensamento corrente na psiquiatria e na psicologia.

Ele levantou com suavidade o rosto da jovem, fitou-a nos olhos e disse-lhe solenemente:

- Anna, não existe suicídio!... Perplexa, ela imediatamente argumentou:

- O que é que estás a dizer? Durante anos, procurei entender porque é que a minha mãe morreu e porque é que as pessoas desistem de viver. E agora dizes-me que não existe suicídio! Não brinques com os meus sentimentos.

- Estou a falar a sério. As pessoas deprimidas têm fome e sede de viver - afirmou ele contundentemente.

Então, ela tocou num assunto que era tabu:

- Não digas isso. Eu também já tentei matar-me uma vez. Tomei comprimidos em excesso. O que fiz eu? Não quis matar-me? - disse, abalada.

- Não! Quiseste matar a tua dor e não a tua vida. Do mesmo modo, a tua mãe não quis morrer. Na realidade, o seu desejo era destruir a tristeza, a angústia que a sufocava.

- Nenhum psiquiatra me disse isso! - exclamou Anna.

- O conceito de suicídio tem de ser corrigido na psiquiatria e na sociedade em geral. A consciência do fim da existência é sempre uma manifestação da própria existência. Toda a ideia de morte é uma homenagem à vida, pois só a vida pensa. A ideia de morte não é uma atitude omnipotente do ser humano que traça o seu destino, mas uma atitude desesperada de tentar destruir o drama emocional que ele não conseguiu superar. Assim, não existe a ideia pura de suicídio. Sempre que uma pessoa pensa em matar-se, ela não leva em consideração a consciência do nada existencial. O seu pensamento é uma reacção, não para eliminar a sua vida, mas para decepar a sua dor. A tentativa de suicídio, portanto, revela não o desejo de morrer, mas uma fome desesperada de viver.

Anna não compreendeu plenamente a dimensão psicológica das ideias de Marco Polo, mas o pouco que compreendeu foi o suficiente para a chocar, aliviar e fazer mergulhar dentro de si. Novamente, a sua inteligência manifestou-se:

- Quando pensei em pôr fim à minha vida, uma sensação estrangulava o meu ser. Sentia-me num cubículo sem ar. Uma ideia tentadora passava pela minha mente, mostrando-me que era tão fácil acabar com tudo aquilo. Mas, na realidade, eu lutava dentro de mim para romper as algemas dessa prisão. Queria ser livre, respirar, amar, não queria morrer.

Após esta conclusão, Anna mergulhou mais profundamente nos recônditos do seu ser e abriu as comportas do seu remoto passado. Como se saísse de um ambiente escuro e entrasse numa sala completamente iluminada, recordou imagens que há anos estavam escondidas nas suas ruínas.

Lembrou-se dos momentos agradáveis em que a mãe se escondia atrás dos sofás e das cortinas, a brincar às escondidas. Recordou-se de quando a mãe tocava piano e ela ficava aos seus pés, encantada. Lembrou-se de que, por influência da mãe, aprendera a gostar de poesia e que a primeira vez que ouvira falar de Goethe fora da boca da própria mãe. Recordou-se ainda de uma frase que nunca mais tinha resgatado: «Filha, eu amo-te, nunca te abandonarei.»

Pela primeira vez, percebeu que a mãe não tinha sido egoísta, mas prisioneira da própria dor. Ela não tinha querido matar-se, mas sim eliminar a sua miséria emocional. A raiva que sentia pela mãe dissipou-se. O sentimento de abandono ruiu naquele momento. Recuperou o amor que a mãe sentia por ela. Então, algo sublime aconteceu. Anna, a chorar, exclamou:

- Mãe, eu compreendo-te e perdoo-te... Mãe, eu amo-te! Tu foste maravilhosa.

Em seguida, disse:

- Obrigada, Marco Polo! Saiu um peso da minha alma. Ela abraçou-o suave e sentidamente. Apertava-o nos seus

braços. Em seguida, num rasgo de serenidade, comentou:

- Se as pessoas que pensam em suicídio soubessem o quanto têm fome e sede de viver, não se matariam. Mas usariam essa fome e essa sede para combater tenazmente as suas perdas, decepções e angústias. A ideia de suicídio revela uma fome desesperada de viver e não um desejo de morrer. Estas palavras têm de ser gritadas e grifadas no mundo inteiro.

- O pior cárcere do mundo é o cárcere da emoção, mas ninguém é escravo quando resolve ser livre. Por verem o suicídio por esse ângulo, vários dos meus pacientes saíram desse cárcere, extraíram coragem da sua fragilidade e voltaram a acreditar na vida.

Raramente duas pessoas falaram de um assunto que estrangula a tranquilidade com tanta suavidade. Como o clima entre eles era leve e agradável, Marco Polo resolveu mostrar uma outra face da sua personalidade, a face irreverente. Elevando o tom de voz, exclamou:

- Não tenhas medo da dor, minha princesa, vive a vida com vibração.

- Eu sou muito complicada - disse ela descontraída.

- As mulheres mais complicadas são mais interessantes - retrucou ele em tom de brincadeira.

Ela despenteou-lhe o cabelo e fez-lhe cócegas. Sorrindo, ele emendou:

- Cuidado! Tu é que corres riscos ao meu lado.

- Como assim? - perguntou Anna, surpreendida.

- Tenho o sangue de um aventureiro, a irreverência de um filósofo e o desprendimento de um poeta. Lembra-te: sou Marco Polo, um caminhante na vida. Sou um explorador de mundos e, agora, do teu lindo mundo.

- Não o estou a entender!

Em vez de lhe dar uma resposta, Marco Polo subiu para um banco da praça e, sem se importar com os transeuntes apressados, declamou uma poesia de braços abertos com voz vibrante. Recordou os bons velhos tempos.

 

Minha doce donzela!

Enfrenta a tempestade nocturna, como os pássaros.

Ao amanhecer, mesmo com os ninhos derrubados,

Eles cantam sem palco e plateia!

Para eles, a vida é uma grande festa!

Minha querida princesa!

Não tenhas medo da vida,

Tem medo de não viver;

Não tenhas medo de cair,

Tem medo de não caminhar.

Rasga o teu coração, entrega-te,

Deixa este aventureiro descobrir-te!

 

Uma pequena multidão parou para ouvir o poeta. Anna ficou vermelha, pois sempre tinha evitado expor-se aos olhos dos outros. Ao terminar a poesia, Marco Polo desceu e deu-lhe um beijo prolongado. Ela, trémula, entregou-se. Depois de a beijar, várias pessoas aplaudiram.

Algumas senhoras idosas ficaram encantadas com a cena romântica. Uma delas, com mais de oitenta anos, clamou com ternura:

- Agarre este príncipe, minha filha. Há falta de homens no mercado!

Ela entendeu o recado e desta vez ela própria tomou a iniciativa. Beijou-o ardentemente.

 

                           Capítulo 23

Na semana que se seguiu, Anna encontrou-se mais duas vezes com Marco Polo. O seu amor por ele crescia. Dias depois, ela participou num seminário sobre síndrome do pânico na universidade. Não conhecia a grande maioria dos participantes nesse seminário.

Um professor fez uma abordagem de que ela não gostou. Comentou que os portadores da síndrome do pânico são emocionalmente frágeis, não têm auto controlo, desconfiam da opinião dos seus médicos, giram na órbita da própria insegurança. Por serem frágeis, sob um ataque de pânico, o mundo desaba sobre eles.

O contacto com Marco Polo fez com que Anna tivesse uma percepção mais profunda dos transtornos psíquicos. Não concordava com a visão pessimista e determinista do professor. Ele fora incapaz de exaltar as belas características desses pacientes e de mostrar o drama emocional que eles vivem durante a crise.

Face a isso, teve a coragem de levantar a mão e colocar uma questão. Os poucos amigos que a conheciam admiraram a sua ousadia. Nunca a tinham visto manifestar-se na sala de aula.

- Será que esses pacientes não são hipersensíveis e, por possuírem uma consciência acima da média das limitações da vida e do fim da existência, não ficam propensos aos ataques de pânico? Quando esses pacientes desconfiam dos médicos que afirmam que a sua saúde é óptima, isto é um sinal de fragilidade ou um grito desesperado de alguém que tem sede de viver e quer espantar o fantasma da morte?

Depois dessa intervenção, Anna ficou aliviada. Queria ao

menos ser respeitada pelos seus argumentos. O seu discurso deixou os presentes pensativos, mas o professor não suportou ser contrariado. Em vez de debater os seus argumentos, preferiu sair-se airosamente. Foi irónico.

- Você está aqui para estudar psicologia e não filosofia.

A plateia divertiu-se. Marco Polo sabia defender-se quando criticado e ridicularizado. A troça dos outros aguçava o seu raciocínio. Anna ainda não tinha tal defesa, não havia reeditado o filme do seu inconsciente, ainda era uma pessoa hipersensível e hiper preocupada com sua imagem social. Fizera sempre um esforço enorme para não errar diante de uma pessoa, quanto mais de várias pessoas. Agora, na primeira vez em que se manifestava diante de uma plateia, tinha sido humilhada.

Todos esperavam que ela reagisse à ironia do professor. Mas a sua voz ficou embargada, não conseguiu contra argumentar. Chocada, ficou paralisada. O riso dos presentes ecoou na sua mente. Levantou-se e saiu da sala. O ambiente ficou pesado. Saiu como uma derrotada.

No dia seguinte, como era de se esperar, não foi à escola. Não saiu de casa nem da cama. Punia-se muito. Não conseguia parar de pensar na humilhação pública. Relembrava continuamente a cena, teve raiva do professor e mais raiva ainda de si mesma por não ter conseguido reagir. Entregou-se a uma nova crise.

Marco Polo foi procurá-la à faculdade, mas não a encontrou. Ela ficou ausente por vários dias. Tentava telefonar, mas Anna estava incomunicável, não queria falar com ninguém. Os empregados, que sabiam das suas crises, tinham ordens do seu pai para não a importunarem. Marco Polo estava intrigado: «O que estará a acontecer? Porque se recusa a falar comigo? Será que devo desaparecer da sua vida?»

Entretanto, escreveu uma carta a Falcão. Falou-lhe do seu relacionamento com Anna e das suas dificuldades.

Falcão enviou uma carta com pouquíssimas, mas significativas palavras:

 

         Querido amigo Marco Polo!

Se você ama essa mulher, lute por ela. Mas saiba que as mulheres são maravilhosamente incompreensíveis. No dia em que você compreender uma alma feminina, desconfie do seu sexo...

 

Ao ler a missiva, ele abanou a cabeça com alegria.

No dia seguinte, Marco Polo encontrou coragem para visitar Anna. Ao chegar a casa dela, ficou assombrado com o palacete de três mil metros quadrados de construção colonial. Ela era tão simples, meiga, despojada. Não imaginava que fosse tão rica. Tinha dez suites, um salão de festas, cinema e inúmeras outras divisões. O palacete ocupava um quarteirão inteiro.

Os portões eram altos, de ferro fundido, com grades torneadas e lanças espetadas, as janelas todas em arco com vitrais. O jardim era imenso. Havia muitas flores para esconder uma jovem tão triste.

Duas empregadas, duas cozinheiras, dois jardineiros e uma mulher-a-dias cuidavam da casa, e dois motoristas serviam Anna e o pai. Havia seguranças dentro e fora da casa. A maioria das amigas de Anna não sabiam, mas a segurança da jovem era garantida por um profissional disfarçado nas instalações da faculdade.

Após contactar um segurança, o mordomo, Carlos, veio recebê-lo. Alto, calvo e trajando sempre um casaco branco, Carlos comandava a equipa. O seu olhar era sisudo, distante e desconfiado. O mordomo parecia um icebergue, duro, frio, impenetrável.

- Gostaria de falar com a Anna.

Da escadaria do palacete, Carlos gritou:

- O senhor tem hora marcada?

- Não, mas sou amigo dela.

- A menina Anna só recebe pessoas com hora marcada.

- Por favor, fale com ela. Provavelmente, ela receber-me-á. Relutante, o mordomo afastou-se. Anunciou a visita ao senhor Lúcio Fernández.

O pai, que não respeitava as mulheres e considerava todo e qualquer homem um aproveitador da sua filha, mandou dizer que ela tinha saído. Marco Polo desconfiou que o mordomo estava a mentir, que nem sequer a avisara.

- Senhor, diga-lhe que será rápido, falarei apenas alguns minutos.

- Retire-se, senhor!

Percebendo a insistência do jovem pela janela, Lúcio abriu a porta central, aproximou-se de Carlos e de lá exclamou:

- Deixe a minha filha em paz!

- Desculpe-me, senhor, mas talvez a sua filha precise de mim.

- Que arrogância! Quem é o senhor para fazer tal afirmação?

- Sou um amigo.

- Anna tem colegas e não amigos.

- Mas eu insisto, sou amigo dela.

- Qual é o seu nome?

- Marco Polo.

- Qual é a sua profissão?

Marco Polo hesitou em revelá-la, mas foi honesto:

- Sou psiquiatra.

- Psiquiatra?! Era só o que me faltava. Um psiquiatra a tentar seduzir a minha filha. Ninguém o chamou aqui.

- Estou aqui como amigo e não como psiquiatra - disse Marco Polo irritado.

- O senhor está a ser antiético. Retire-se!

- A sua filha está num casulo. Precisa de se tornar sociável, de se libertar, de ser feliz.

O prepotente empresário não gostou.

- Um mísero doutorzinho a querer dar-me lições de moral. Saia da minha casa, senão chamo a polícia! - disse taxativamente o general, e entrou sem se despedir.

- E não apareça mais aqui! - completou o coronel Carlos. Dois seguranças aproximaram-se, ameaçando Marco Polo. Parecia que toda a gente ali, à excepção de Anna, vivia num exército.

O jovem foi-se embora contrariado. Começou a pensar que Anna até era saudável, considerando que vivia num quartel daqueles. Era quase impossível não ser doente naquele ambiente. Começou também a ponderar se valia a pena investir naquele romance.

Ele já tivera outras namoradas. A última era extremamente controladora, ciumenta. Não conseguia respirar sem que ela notasse. Anna, pelo contrário, vivia alienada, trocava-o pelos seus conflitos. Marco Polo viveu o velho dilema da existência: a razão dizia-lhe para ele se afastar, a emoção pedia-lhe que se aproximasse. Antes de desistir, precisava de a ver pela última vez.

No dia seguinte, voltou à casa de Anna, certificando-se antes pelo telefone se o pai dela estava ausente. Para além dele, precisava de vencer o coronel Carlos. Lembrou-se do passado. Usou um disfarce, não tão ridículo como nos tempos de Falcão, mas não menos bizarro. Cabelos espetados, barbicha preta, óculos escuros. Parecia um vocalista de rock lunático. Carlos apareceu após insistência do segurança.

Antes que ele abrisse a boca, Marco Polo disse em alto e bom som:

- Carlos, como está?

- Como sabe o senhor o meu nome?

- Como sei? Lúcio disse-mo. Creio que você me conhece - gritou.

- Não, senhor! - disse inseguro o mordomo face à potência da voz do estranho.

- Nunca viu esta bela imagem nos jornais?

- Não.

- Que absurdo! Os mordomos já não lêem jornais. Chame urgentemente o Lúcio.

- O Dr. Lúcio não está, senhor.

- O quê? Não está? Já não se fazem pais como antigamente. Vamos, preciso de fazer a consulta urgentemente.

- Que consulta, senhor?

- A consulta da sua filha! O Lúcio suplicou-me que viesse aqui. Sou um especialista em transtornos intestinais.

- Desculpe-me, mas ele não me avisou.

- Nem precisa de avisar! O grande Lúcio já não manda nesta casa! Se não abrir esta porta agora, vou-me embora. E se a filha piorar, o senhor será o responsável.

Carlos ficou inseguro e Marco Polo emendou:

- Aliás, o senhor está muito pálido. Olhe só essas manchas no seu rosto. Deixe-me ver de perto.

Apesar de autoritário, Carlos era um hipocondríaco, tinha a mania das doenças. Ficou vermelho. Passou a mão pela cara, a cabeça calva começou a suar.

- O caso parece grave. O senhor está a tratar-se convenientemente?

- Não, senhor, não estou em tratamento. Mas o que é que o senhor pensa que eu tenho? - perguntou o mordomo timidamente.

Marco Polo tirou o estetoscópio, colocou-o sobre a barriga de Carlos e, para brincar um pouco, colocou-o também sobre a sua cabeça, dizendo:

- Hum! Hum! Não se preocupe, porque essa doença não mata. Tome este remédio agora. Depois de consultar a Anna, conversaremos.

Deu um laxante ao mordomo. Marco Polo foi para o quarto de Anna e o ditador para o «trono».

O quarto era enorme, mas gélido e escuro. Tinha cerca de sessenta metros quadrados. Anna estava deitada, mas acordada. Marco Polo tirou o disfarce, aproximou-se vagarosamente da cama, sentou-se ao seu lado. Ao ouvir a voz do rapaz, ela assustou-se, mas não se levantou nem o cumprimentou. Ele tentou animá-la.

- Anna, o que se passa contigo? Ela permaneceu muda.

- Sou teu amigo. Fala comigo! - Ela pôs a almofada sobre a cabeça.

- Tudo bem, Anna, tens o direito de não falar comigo. Se é essa a tua escolha, vou desaparecer da tua vida.

Levantou-se e começou a afastar-se. Quando ele estava no meio do quarto, ela bradou.

- Eu não disse que sou complicada? Em vez de a poupar, ele comentou:

- Anna, o problema não é ser complicada, o problema é complicar a vida.

- Esquece-me! É melhor para ti. Indignado, ele abalou-a com uma frase cortante:

- O problema não é a doença do doente, mas o doente da doença.

Ela tirou a almofada do rosto e perguntou:

- O que é que queres dizer com isso?

- O problema é o teu eu, a tua capacidade de decidir, e não a tua doença. Tiveste motivos para estar deprimida. Mas insistes em ser doente.

- Eu não desejo ser doente!

- Não desejas conscientemente, mas inconscientemente desejas ficar na plateia, não tens coragem de subir para o palco e dirigires a peça da tua vida. Anna, tu és forte e magnífica, sai do «coitadismo»!

- Eu não sou coitada!

Marco Polo misturava elogios e críticas positivas, pois tinha plena consciência de que não era fácil vencer os transtornos psíquicos. Sabia que os conselhos vazios não adiantavam, era necessário ser um artesão da psique.

- Então, porque é que estás sempre à espera que as pessoas te aprovem ou tenham compaixão de ti? Fiquei a saber que brilhaste no seminário, mas não suportaste ser confrontada.

Anna permaneceu muda, e ele continuou:

- Tu és inteligente, mas auto punitiva, não admites falhar, ser ridicularizada ou criticada. Schopenhauer disse que não devíamos basear a nossa felicidade na cabeça dos outros. Esqueceste-te de que não deves esperar os aplausos dos outros para seres livre!

Anna ficou chocada com aquelas palavras. Não podia fugir delas.

- Eu sou uma estúpida!

- Também eu o sou às vezes. Mas luta pela tua saúde psíquica! Recorda-te! Tu tens fome de viver! Não te entregues.

- Há algo que me amordaça, que sufoca a minha alma. Eu sei que tenho de lutar, mas não consigo.

Face a estas palavras, Marco Polo citou um famoso escritor:

- «Não basta saber, é também preciso aplicar; não basta querer, é também preciso agir.»

- Goethe! - reconheceu ela com alegria.

- Sim, Goethe. Não basta lê-lo, é preciso aplicar as suas ideias.

Anna ficou desconcertada. Todas as vezes que tinha uma crise, o pai, em vez de a encorajar a enfrentar os seus problemas, incentivava-a a fugir deles. Dizia-lhe para não ir à escola quando estava aborrecida, aconselhava-a a trocar de amizades quando ela se decepcionava, a mudar de ambiente quando se perturbava. Tentava super protegê-la. Queria compensar a ausência da mãe, mas a sua protecção era doentia, alimentava a fragilidade dela, destruía a sua auto-estima.

As palavras de Marco Polo fizeram-na perceber que tinha sempre feito a pior escolha: esconder-se. Percebendo a sua interiorização, ele acrescentou:

- Não voltes as costas aos teus problemas, senão eles tornar-se-ão os predadores e tu serás a caça. Inverte essa relação. Lembra-te da poesia: «Não tenhas medo da vida, tem medo de não viver. Não tenhas medo de cair, tem medo de não caminhar...» Tu és uma pessoa corajosa, já começaste até a discutir num seminário - disse a brincar, e deu por concluída a sua argumentação com estas palavras: - Ninguém é digno de segurança se não usar a sua fragilidade para a alcançar.

Anna levantou-se subitamente, e disse:

- Espera-me lá fora. Surpreendido, ele saiu.

Ela penteou-se, pintou-se, disfarçou as olheiras, vestiu um belíssimo vestido azul-claro com decote em V Depois de uma demoradíssima meia hora, saiu. Marco Polo não acreditou no que via. Ficou pasmado. Ela estava linda, encantadora, sensual. Curioso, perguntou:

- Vais a alguma festa?

- A vida é uma festa! - afirmou ela alegremente.

A partir desse momento, Anna deu um grande salto em direcção à sua liberdade. Nunca mais foi a mesma. Passou ainda por momentos difíceis, chorou não poucas vezes, deprimiu-se em alguns momentos, mas não se submetia mais ao seu cárcere interior. Aprendeu a fazer das suas quedas e das suas falhas uma oportunidade para crescer. Resolveu sair de peito aberto para a vida.

Marco Polo tomou-a pelo braço e saíram. Quando estavam para abrir a porta da sala, Carlos gritou:

- Doutor! Doutor!

Para espanto de Anna, ele colocou rapidamente a barbicha postiça e os óculos escuros, e despenteou o cabelo.

- Pois não, senhor Carlos!

- Não paro de ter diarreia, doutor! - disse pálido.

- Excelente notícia! O senhor está a deitar para fora todos os seus vermes.

- Que vermes são esses?

- Orgulhus lumbricoides. A sua cabeça, ou melhor, a sua barriga está cheia de Orgulhus lumbricoides.

Anna morria de riso.

- É grave, doutor? - perguntou o mordomo esfregando a barriga, com vontade de ir novamente à casa de banho.

- Não! Tome bastantes líquidos. Sente-se com bastante humildade na retrete, concentre-se, e verá que em breve os seus vermes o deixarão.

E foram-se embora. Carlos ficou felicíssimo. Quando se afastavam da casa, Marco Polo disse:

- Um dia terei de me redimir com o Carlos e pedir-lhe desculpas.

- Não te preocupes. Os empregados não o suportam. Quem me dera que o orgulhus do Carlos fosse eliminado.

A noite começava e prometia ser encantadora. Como reprimia sempre os seus comportamentos, Anna nunca tinha corrido pela rua e brincado às escondidas em público.

Marco Polo fez questão de quebrar a sua rotina. Queria libertar a sua espontaneidade, libertar a criança que se escondia dentro dela e que nunca pudera respirar. Os dois fugiam um do outro e brincavam como adolescentes no meio da multidão. Ela deixou-se envolver por aquele clima e deixou de se importar com os olhares dos transeuntes. Era a sua história, só sua, tinha de a viver intensamente.

Ele não tinha uma máquina fotográfica, mas, imitando uma com as mãos, pedia para que ela fizesse poses. Clicava sem parar na câmara imaginária. As pessoas esbarravam uma nas outras ao contemplá-los, embriagados de alegria. Ela corria para os braços de Marco Polo e ele girava o corpo dela. Anna começou a entender que a verdadeira liberdade começa de dentro para fora...

 

                   Capítulo 24

A convivência entre Marco Polo e Lúcio Fernández foi apenas suportável. O milionário evitava qualquer aproximação. Rezava para que o namoro não evoluísse. Chegou mesmo a tomar certas atitudes para que Anna rompesse a relação. Gritou, pressionou, fez chantagens, mas não adiantou. O namoro prosseguiu. Todavia, Lúcio Fernández não se deu por vencido.

O relacionamento entre Marco Polo e Anna, construído pouco a pouco, tornou-se demasiado sólido para ser abalado por manipulações. Foi tecido com alegria, descontracção, diálogos prolongados e comportamentos que fugiam ao trivial.

Passados alguns meses, Anna tinha reeditado uma parte significativa dos conflitos arquivados no seu inconsciente. Paulatinamente, deixou de viver a dor dos outros e de esperar excessivamente contrapartidas deles. Tornou-se bem-humorada, estável, protegida, decidida, capaz de lutar pelos seus sonhos. O convívio social já não era uma fonte de medo e frustrações. Assim, teve segurança para interromper o uso de antidepressivos.

Anna formou-se em Psicologia e começou a estagiar num grande hospital de cardiologia, cujo director era amigo do seu pai. Ela e outras psicólogas atendiam os pacientes submetidos a cirurgias cardíacas, principalmente os candidatos a transplantes.

Marco Polo surpreendia-a frequentemente com um gesto, um elogio ou uma atitude inesperada. Às vezes, chegava subitamente com um ramo de flores e oferecia-lho no corredor do hospital. Beijava-a, dizia algumas palavras e ia-se embora. Fazia de um minuto um momento de afecto eterno. Para eles, pequenas acções tinham um grande impacto.

Certa ocasião, no começo do estágio, algumas colegas de Anna viram Marco Polo a fazer uma pequena declaração de amor, tendo numa das mãos um botão de rosa vermelho.

Ficaram surpreendidas com a atitude dele. Para elas, esse romantismo tinha sido eliminado dos tempos modernos. Uma das colegas, vítima de um sentimento de inveja, comentou rispidamente:

- O teu namorado é um pouco estranho. Não me parece muito normal.

- Não é possível ser normal quando se ama - rebateu Anna.

Uma enfermeira problemática nas suas relações afectivas e que se envolvia sempre com namorados autoritários e dominadores perguntou:

- Dar flores no início do dia não é uma coisa de neurótico?

- Não sei. Mas sei que ele trata de muitos... - Elas não entenderam.

- Vocês não conhecem o namorado da Anna? - disse uma psicóloga que o conhecia.

- Não!

- Ele é o famoso Marco Polo. Uma das pessoas mais inteligentes que já conheci.

Caladas, entraram no imenso edifício do hospital. Elas não entendiam que a inteligência e o sucesso profissional podiam e deviam ser combinados com a sensibilidade e leveza do ser.

Anna tornou-se querida desde as primeiras semanas no hospital de cardiologia. Aprendeu com Marco Polo a cumprimentar alegremente os funcionários, em especial os mais simples, a brincar com os pacientes e a entrar sem receio no epicentro da insegurança deles. Aprendeu a ser vendedora de sonhos e de esperança num ambiente em que a expectativa de morte contagiava as pessoas.

O casal saía com frequência e cada encontro era especial, mas um deles foi inesquecível. Certa noite, Marco Polo manifestou a intenção de lhe dar um presente marcante. Saiu do perímetro urbano e levou-a para o campo. Parou o carro e convidou-a a sair.

Pegou nas suas mãos e foram andando pela estrada. Enquanto caminhavam, chamou a atenção de Anna para a harmonia da natureza.

- Todos os dias, as flores exalam perfume, a brisa toca as folhas, as nuvens passeiam obscuras, mas não prestamos atenção. Ouve a serenata dos grilos! É um magnífico espectáculo sem fim.

Vendo a sua maneira simples de encarar a vida, ela perguntou:

- O que é a felicidade para ti? Surpreendendo-a, ele assustou-a ao dizer:

- A felicidade não existe, Anna... Apreensiva, perguntou subitamente:

- Assustas-me! Qual é a esperança para os que vivem na miséria emocional? O que posso esperar da vida, se tive tanta riqueza exteriormente e tão pouco dentro de mim?

Marco Polo completou:

- A felicidade não existe pronta, não é uma herança genética, não é um privilégio de uma casta ou camada social. A felicidade é uma eterna construção.

Respirando aliviada, ela indagou:

- Como posso construí-la?

Como um contador de histórias que passeia pela psicologia, ele fitou os seus olhos e discorreu:

- Houve reis que tentaram aprisionar a felicidade com o seu poder, mas ela não se deixou prender. Milionários tentaram comprá-la, mas ela não se deixou vender. Famosos tentaram seduzi-la, mas ela resistiu ao estrelato. Sorrindo, ela sussurrou ao ouvido de cada ser humano: «Ei! Procura-me nas decepções e dificuldades e, principalmente, encontra-me nas coisas anónimas da existência.» Mas a maioria não ouviu a sua voz, e entre os que a ouviram, poucos lhe deram credibilidade.

- Que lindo! Fala mais sobre o que é ser feliz, meu imprevisível poeta.

- Ser feliz é ser capaz de dizer «eu errei», é ter sensibilidade para dizer «eu preciso de ti», é ter ousadia para dizer «eu amo-te».

Lembrando-se do pai, ela disse condoída:

- Muitos pais morrem sem nunca terem coragem de dizer essas palavras aos filhos. Esquecem-se das coisas mais simples.

- É verdade. Tropeçamos nas pequenas pedras e não nas grandes montanhas.

Olhando para ele num clima de terno amor, ela falou de alguns temores reais e não fruto da sua doença. Como amava a poesia, também usou a inspiração.

- Obrigada por existires. Mas tenho medo de que o nosso amor se evapore como o orvalho ao calor do sol.

- Nalguns momentos, eu decepcionar-te-ei, noutros, tu frustrar-me-ás, mas se tivermos coragem para reconhecer os nossos erros, habilidade para sonharmos juntos e capacidade para chorarmos e recomeçarmos tudo de novo tantas vezes quantas forem necessárias, então, o nosso amor será imortal.

- Eu amo-te como nunca amei alguém! - disse ela, tentando aproximar-se para beijá-lo. Marco Polo subitamente deu um passo para trás e elevou o tom da voz:

- Espera um pouco, rapariga! Tu entraste subtilmente na minha vida, foste ocupando espaços e, sem me pedir licença, invadiste o meu coração. Portanto... - fez uma pausa prolongada.

- Fala! Estou ansiosa.

- Aceitas casar-te comigo, princesa? - disse sorridente, baixando a cabeça num gesto de reverência.

Beijaram-se. Dois mundos, duas histórias cruzaram-se. Amoroso, ele cobriu os seus olhos, testa e queixo com delicados beijos.

Em seguida, quis dar algo forte, único, inesquecível, que marcasse aquele momento e fosse capaz de simbolizar tudo o que ele sentia por ela e revelasse o tipo de homem que ela encontraria. Um homem invulgar tinha de dar um presente invulgar.

A Lua estava minguante e o céu límpido. Abrindo os braços, ele perguntou:

- Anna, olha para cima. Observa o teatro incompreensível do universo. O que vês?

Curiosa, ela respondeu:

- Vejo lindas estrelas.

- Escolhe uma estrela.

Ela sorriu. Havia milhares de estrelas a invadir a sua pupila. Anna escolheu uma estrela brilhante do lado esquerdo do firmamento.

- Escolho aquela - disse, apontando.

- De hoje em diante, essa estrela será tua. Mesmo quando o teu céu estiver coberto pelas tempestades, essa estrela brilhará dentro de ti, mostrando os caminhos que deves seguir e revelando o meu amor.

Anna ficou nas nuvens. Já recebera presentes caríssimos, colares de esmeraldas, anéis de diamantes, carros do último modelo, acções na bolsa de valores, apartamentos, mas nunca se esqueceu de que tinha recebido uma estrela. Percebeu claramente que as coisas mais importantes da vida não podem ser compradas com dinheiro. Era riquíssima, mas vivera sempre na miséria.

Ela guardou no recôndito do seu ser o significado da estrela que Marco Polo lhe deu. Quem tem uma estrela no seu interior não precisa da luz do sol para se guiar.

Marco Polo tinha a profundidade de um pensador e a sensibilidade de uma criança. Não sabia, mas também precisaria de uma estrela interior. As suas ideias teriam alcance mundial. Lutaria pelos direitos humanos, perturbaria meios e sociedades, atravessaria vales e planaltos e o céu desabaria sobre ele. Para sobreviver, precisaria de ver com os olhos do coração.

 

                             Capítulo 25

Anna anunciou ao pai a sua intenção de se casar com Marco Polo. Lúcio tentou impedir de todas as formas que isso acontecesse. Fez de tudo para que ela se apaixonasse por alguém da sua classe social e nível económico, mas não teve êxito. «Imagine-se, um psiquiatra na minha família, a vigiar os meus passos. Não suportarei tal coisa», pensava. «Preciso de alguém que multiplique os meus bens e não que aponte os meus problemas», reflectia.

Tentou mais uma vez seduzi-la:

- Filha, não é por causa do dinheiro, mas há filhos de banqueiros e de industriais fascinados por ti. São pessoas do teu meio. Sentir-te-ás menos deslocada. Dá-lhes uma oportunidade.

- Já namorei alguns deles e aumentei o meu vazio.

- Que vazio? O que é que esse rapaz tem de especial?

- Marco Polo ama-me intensamente. Além disso, ele ama o ser humano, preocupa-se com a humanidade.

- Não sejas ingénua, minha filha! As pessoas só se preocupam com o seu próprio bolso.

- É uma pena que penses assim, papá. Quem vive para si mesmo só vê segundas intenções nos outros.

Ele resmungou, mas antes que rebatesse, ela perguntou:

- Já te apaixonaste por alguém?

Lúcio hesitou. Nunca tivera uma explosão afectiva, nem pela mãe de Anna. Nos últimos anos, só andava acompanhado por mulheres bem mais jovens, algumas famosas, mas não amava ninguém. A única coisa que mexia com a sua emoção era aumentar a sua grande fortuna. Titubeando, respondeu:

- Bom, não sei. Acho que sim.

- Quem ama não tropeça no «achismo». O amor é a única certeza da existência, papá. Se nunca amaste alguém, nem a minha mãe, jamais entenderás o que sinto.

Lúcio saiu desconcertado. Anna estava realmente diferente. Ele perdera o domínio sobre ela. Inconformado, dias depois fez mais uma tentativa. Disse que ia comprar uma casa em Inglaterra, conseguiria arranjar-lhe um trabalho num excelente hospital e uma vaga para fazer o doutoramento em Cambridge.

- Não tens de acabar o namoro com Marco Polo - disse com esperteza. - Será bom para o futuro dos dois que continues os teus estudos e te prepares melhor profissionalmente.

Ela não aceitou.

- Pai, a vida inteira esperei que te preocupasses realmente comigo, que conversasses sobre as nossas vidas.

- Eu trabalho para ti, minha filha. Tenho feito tudo ao meu alcance para te fazer feliz. Dou-te as melhores roupas de marca. Viajas duas vezes por ano, em primeira classe, para fora do país. O limite do teu cartão de crédito internacional é de cem mil dólares. E qual é a jovem da tua idade que tem um Mercedes descapotável na garagem e um motorista à sua disposição?

- Tu deste-me muitas coisas, papá, mas esqueceste-te da mais importante.

- Qual? - perguntou ele indignado.

- Esqueceste-te de te dar a ti mesmo. Não conheço os teus sonhos, os teus temores, as tuas lágrimas. Somos dois estranhos que vivem na mesma casa - disse, começando a chorar.

Abalado, ele tentou evitar que o ambiente se tornasse emotivo.

- Filha, tu és a rainha desta casa.

- De que adianta ser uma rainha presa num palácio, vigiada por seguranças e com um pai que só vive para o trabalho?

Lúcio emudeceu, não sabia rebater essas verdades. Anna, então, tocou num assunto que nunca tinha conversado com o pai.

- Pai, nós nunca falámos sobre a mamã. Quem não dialoga sobre o seu passado não o sepulta com maturidade, perpetua as suas feridas. A morte da mamã é um túmulo aberto nos nossos corações. Tu nunca tiveste coragem de conversar comigo sobre a sua doença e as causas que a levaram a acabar com a vida.

Lúcio ficou paralisado, sem reacção. Não conseguia organizar as ideias. Aquele assunto era tabu para ele. Na casa dos Fernández até os empregados estavam proibidos de o comentarem. O quarto que fora do casal estava trancado, somente a mulher-a-dias e a empregada entravam lá uma vez por semana. Lúcio pensou várias vezes em mudar de casa, mas o palacete era belíssimo, uma mansão única, embora triste. Acabou apenas por mudar de quarto.

Como o pai não se manifestava, Anna, lembrando-se da pergunta fatal que Marco Polo lhe fizera sobre a mãe, também fez uma pergunta fatal ao seu impenetrável pai. Ansiava por ajudá-lo.

- Tens sentimentos de culpa pela morte da mamã, pai?

- Culpa? Eu? Que absurdo! Não me acuses!

- Não te estou a acusar, pai, estou a perguntar. Estou a pedir-te para olhares para dentro de ti sem medo.

A reacção súbita e eloquente de Lúcio indicou que a pergunta tinha mexido com os porões da sua mente. Procurando desesperadamente evitar o contacto com o espelho da sua alma, ele olhou para o relógio e disse resolutamente:

- Tenho um compromisso importante. Preciso de ir. Percebendo que ele entrara no desconhecido terreno da própria sensibilidade, ela insistiu:

- Espera! Papá, os grandes homens também choram... Os olhos dele lacrimejaram. Um acontecimento raro para quem não se permitia a doce e catártica experiência do choro. Sofria muito, tinha insónias e períodos de angústia, mas negava a dor. As suas lágrimas ficaram sempre submersas sob os seus rudes comportamentos.

Ao perceber que elas tinham saído da clandestinidade e subido ao palco dos seus olhos, rapidamente tentou escondê-las. Não admitia que um espectador contemplasse a sua fragilidade, pois somente a glória podia ser admirada. A pedra de gelo da sua emoção estava a derreter, mas, antes que o sentimento irrigasse a sua inteligência com o afecto, ele esquivou-se.

- Depois conversaremos sobre os grandes homens... - e saiu apressadamente, sem mostrar a cara e sem dar oportunidade à filha para continuar o diálogo.

Lúcio Fernández evitava todas as conversas e situações que o remetessem à interiorização, não se permitia crescer. Jamais reconhecera um equívoco, jamais pedira desculpas ou ajuda emocional. Era um homem doente que contribuía para formar pessoas doentes.

Tinha algumas características respeitáveis desde que o assunto fosse números e dinheiro. Era empreendedor, arrojado e perspicaz. Sabia investir em novos projectos e farejar os rumos da economia mundial, mas não tinha qualquer noção do rumo da sua qualidade de vida.

Lúcio tinha oito empresas, nas quais era sócio maioritário.

Elas empregavam onze mil funcionários. Entre as suas empresas, havia um banco, uma indústria de computadores, uma fábrica de sumo de laranja e mais recentemente uma indústria farmacêutica. Além disso, tinha participação minoritária em dezenas de outras empresas. Gostava de investir na bolsa de valores, comprar acções das empresas de tecnologia de ponta que se tornariam vedetas no mercado globalizado. Na maioria das vezes, acertava.

Estava na lista da revista Fortune como o 83.º homem mais rico do planeta. No seu país, era o 42.º da lista. A sua fortuna girava em torno dos quatro mil milhões de dólares. Todos os anos, o maior prazer de Lúcio era melhorar a sua classificação nas duas listas. O poder e o prestígio gerados por essas listas tornaram-se a sua droga. Pensava nelas obsessivamente durante todo o ano.

Marco Polo não sabia quão rico era o seu futuro sogro. Nem Anna tinha essa noção, pois era desligada, desapegada. Os dois nunca tinham falado sobre o dinheiro de Lúcio.

Por subir para os bancos das praças e fazer poesias, ter uma explosão emocional com as pequenas coisas, cuidar dos feridos da alma, romper paradigmas e confrontar preconceitos, Marco Polo pressentia que o dinheiro de Lúcio poderia ser um grande problema para ele e para Anna. Queria ser riquíssimo no seu âmago. Rejeitava ser massificado pelo sistema social.

Ansiava fazer da sua história uma experiência única, exultante, em que cada dia fosse um novo dia. Almejava incluir

Anna nesse projecto existencial, mas preocupava-se com as dificuldades que ela atravessaria ao seu lado. E tinha razão. Por isso, perguntou-lhe:

- Anna, o sofrimento humano perturba-me. Um dia vou sair do meu consultório e dedicar-me aos grandes temas sociais. Desde o primeiro ano da faculdade de Medicina que este desejo me domina. Viver comigo poderá ser muito inseguro. Temo por ti. Com o teu pai, não correrás riscos.

- Mas não terei aventura!

- Com ele, estarás protegida.

- Mas não terei paz interior!

- Com ele, terás um padrão de vida melhor.

- Mas não terei conforto!

O rapaz ficou pensativo. E antes que proferisse outra frase, ela acrescentou:

- Marco Polo, às vezes, acho que te conheço muito pouco, mas o pouco que conheço dá-me a certeza de que és a minha escolha. Pressinto que ao teu lado o meu amanhã será imprevisível. Mas o amanhã não existe - disse a sorrir.

Beijaram-se. Ao afastar os lábios dos dele, ela inclinou um pouco a cabeça e brincou:

- Mas, por favor, quebra menos a rotina e arranja menos problemas.

- Não consigo - afirmou ele com alegria. E não conseguia mesmo.

Passada uma semana, Anna e Marco Polo procuraram o poderoso Lúcio para marcar a data do casamento. Os transtornos foram inevitáveis.

- Vocês são precipitados! Deviam esperar mais tempo - retrucou o pai.

Marco Polo insistiu:

- Não há razão para esperar, nós amamo-nos. Então, sem delicadeza, Lúcio comentou:

- Amor! O amor é um interesse disfarçado.

- Papá, não fales assim! Eu amo o Marco Polo!

Não havendo como impedir o casamento, Lúcio tentou bloquear radicalmente o golpe do pretendente. Não queria que Marco Polo tivesse acesso à sua fortuna.

- Só aceito que se case com Anna se for com separação total de bens!

Anna, indignada, retrucou:

- Sou eu quem decide isso, papá! Marco Polo, intrépido, interferiu, dizendo:

- Pois eu só me caso com a sua filha se levar toda a sua fortuna!

Anna espantou-se. Lúcio levantou-se furioso com a petulância dele. Esbracejando, bradou:

- Estás a ver, minha filha? Eu disse-te que este rapaz era ambicioso! Mostrou a verdadeira cara! Desiste enquanto é tempo!

Em seguida, olhou para Marco Polo e acrescentou:

- Você nunca tocará na minha fortuna. Há um batalhão de advogados de olho em si.

Anna estava chocada com o rumo da conversa. Marco Polo levantou-se e confirmou:

- Sim! Sou ambicioso. Só me caso se levar toda a sua fortuna, pois para mim a sua única fortuna é a Anna. O resto não tem valor. Não quero um tostão do senhor.

Anna ficou deslumbrada, nunca fora tão valorizada. O seu intratável pai caiu do pináculo do seu orgulho.

O casamento foi marcado para três meses depois. Fariam um casamento civil em público e, posteriormente, o religioso, em particular. O religioso seria ecuménico e contaria apenas com algumas pessoas, em especial o amigo de Deus - Falcão.

Os pais de Marco Polo, Rodolfo e Elisabete, moravam noutro estado e estavam felizes com o casamento do filho. Rodolfo vivia com dificuldades financeiras. Era um comerciante que gostava de ajudar as pessoas, mas não conseguia cobrar dos que lhe deviam. Sociável, afectuoso, bem-humorado, gostava de ter longas conversas com os amigos.

Elisabete era descendente de uma família rica. Os seus avós foram latifundiários, grandes proprietários de terra. Os pais dela viveram de forma principesca. Tinham os melhores carros, as maiores casas, as mais belas roupas. Elisabete vivera desafogadamente na juventude. Mas os seus pais, juntamente com os seus tios, dissiparam a herança. Foi-se o dinheiro, ficaram as jóias e permaneceu a pose. Era uma mulher recatada, de gestos comedidos e de poucos amigos. Apesar da sua ambição, era uma mulher de fibra, batalhadora.

Os pais de Marco Polo não tinham recursos para contribuir para a festa. Lúcio Fernández adiantou-se. Disse que fazia questão de oferecer a Anna uma grande festa. O jovem casal recusou o luxo. Lúcio, então, afirmou que faria um evento simples, a combinar com o estilo de vida dos noivos. Mentiu. Secretamente, contratou o melhor buffet da cidade. Alugou o salão nobre do mais imponente hotel de cinco estrelas, do qual era sócio, e mandou preparar uma decoração requintada.

A festa não condizia com a noiva, mas com o seu pai. Sob o controlo de Carlos, o mordomo, e de uma dúzia de funcionários das empresas de Lúcio, fizeram secretamente não apenas os preparativos do casamento, como também uma enorme lista de convidados. A maioria não tinha qualquer tipo de relacionamento com Anna.

Lúcio convidou grandes empresários, celebridades, deputados, senadores, o governador do estado, ministros, o presidente do país. O milionário era um homem muito influente.

Gastou mais de 500 mil dólares no evento, uma quantia irrisória para alguém tão rico. O que era para ser uma simples festa tornou-se o maior acontecimento do ano. Colunistas sociais de jornais e revistas foram convidados para cobrir o evento. Ocupados com o intenso trabalho, Marco Polo e Anna não perceberam o movimento em torno do seu casamento. Carlos e a sua equipa foram eficientes.

A magnitude da festa não tinha por objectivo apenas satisfazer o ego de Lúcio ou dar vazão à sua megalomania usando o poder financeiro para encantar as pessoas. Desejava realmente premiar a filha. A seu modo, ele amava-a. Além disso, procurava diminuir a enorme dívida que tinha na sua consciência. Nos raros momentos de lucidez, atormentava-se com a ideia de ter abandonado as duas mulheres da sua vida: a mulher e a filha.

Queria compensar Anna pelos erros que cometera e pelo seu passado deprimente. Como não aprendera a falar a linguagem da emoção, falou a única linguagem que conhecia - a do dinheiro. Pensava que uma festa memorável podia redimi-lo.

 

                         Capítulo 26

Finalmente, o grande dia! Marco Polo chegou ao salão uma hora antes de Anna e ficou espantado com a presença de tantos estranhos. Assustou-se, pensando que tinha entrado no sítio errado. Havia cinco seguranças trajados a rigor a identificar as pessoas e a verificar a lista.

Carlos tinha dito aos seguranças que havia uma lista oficial, a de Lúcio, e uma segunda lista com o nome de algumas outras pessoas: os convidados de Marco Polo e Anna, dos quais deveria exigir-se apenas a identificação e o convite. Os seguranças acharam estranho haver duas listas, mas ordens são ordens. Marco Polo identificou-se. Pelo nome, reconheceram-no.

- Parabéns pela grandiosa festa! - disseram os seguranças.

O rapaz limitou-se a acenar levemente com a cabeça em agradecimento e entrou. Os lustres cintilantes, os tapetes persas espalhados pelo chão, as dezenas de ramos de flores distribuídos em múltiplos locais saltavam à vista. Havia mais de 250 mesas, todas ricamente decoradas, com taças de cristal francês. Vinhos das melhores safras seriam servidos. As festas de Lúcio eram famosas, ele não poupava esforços para agradar aos convidados. Mas esta era singular.

O psiquiatra pensador, poeta, desprendido, destemido, que tinha coração de andarilho, ficou embaraçado. Marco Polo não acreditava no que via. O que mais o espantava era a presença dos estranhos. Havia mais de 700 convidados e ele conhecia menos de 10% deles. Tentava cumprimentar com a cabeça os presentes, mas eles não respondiam. Não o conheciam, não sabiam quem era o noivo. Não estavam ali por causa dele.

Havia mais de 60 empregados de mesa que serviam freneticamente os comensais. Uma equipa com 30 seguranças vestidos de fato azul-marinho transitava pelo salão.

Ao encontrar Lúcio, preferiu ser mais amigo do silêncio do que das palavras. Sabia que qualquer crítica acabaria em discussão, o que estragaria o momento sublime. Pensou apenas: «Realmente, este homem não gosta de mim!» Sabia que Anna desconhecia os preparativos do pai.

Lúcio foi receber pessoalmente alguns convidados especiais. Levou Marco Polo consigo. Ele deixou-se levar.

- Senhor governador, primeira-dama. A festa pertence-lhes - disse radiante.

- Ah, este é o meu futuro genro - apresentou sem muita espontaneidade.

Assim, ambos cumprimentaram cerca de vinte personalidades, entre as quais alguns riquíssimos industriais e banqueiros que também constavam da famosa lista das grandes fortunas. Havia respeito entre os empresários e um aparente desprezo por essa classificação, mas, no subsolo dos seus comportamentos, vários eram seduzidos por ela. A inveja e a disputa corroíam a alma de muitos.

Ocorreu a Marco Polo que o somatório das fortunas dos convidados do casamento dava uma quantia de cento e cinquenta mil milhões de dólares, superior à soma do Produto Interno Bruto dos trinta países mais pobres do mundo, incluindo os da África subsariana, cuja população ultrapassava trezentos e cinquenta milhões de habitantes. Porém, ninguém estava preocupado com os miseráveis. O que importava era a festa.

Marco Polo, que aprendera a pensar com um mendigo e vivera entre os miseráveis, agora encontrava-se entre os multi-milionários. A festa, que deveria ser um motivo de alegria, prenunciava ser uma fonte de preocupação. No entanto, nos seus discursos ele sempre afirmara que não há ricos ou pobres, famosos ou anónimos, todos são seres humanos com necessidades interiores semelhantes.

Ao lembrar-se disso, recompôs-se. Um pensamento assaltou a sua mente e aquietou a sua emoção agitada: «Não é o ambiente que faz o meu humor, mas o meu humor que faz o ambiente. Vou ser feliz.» Preferiu relaxar. Anna merecia.

O secretário de segurança do estado, o Dr. Cléber, também estava presente. Como era amigo pessoal de Lúcio, fez-lhe um favor: destacou um batalhão de polícias para as redondezas e colocou cinquenta membros da elite da polícia anti-sequestro disfarçados entre os convidados. O objectivo era proteger os grandes empresários e políticos importantes de possíveis ataques.

Marco Polo procurou os seus amigos, mas teve dificuldade em localizá-los, pois estavam perdidos na multidão de estranhos. A sua mãe vibrava, eufórica com o luxo da festa. Era tudo o que sonhara para o filho. Recordou os áureos tempos da sua vida abastada.

Um piano e um conjunto de violinos tocados por profissionais do maior gabarito animavam o ambiente. O conservador mostrava-se ansioso por começar a cerimónia. Estava deslumbrado com a magnitude da festa, nunca abrira a boca perante pessoas tão ilustres. Anna estava a acabar de se arranjar.

De repente, houve um tumulto à porta do salão. Alguns seguranças barraram umas 15 pessoas mal vestidas, com comportamentos bizarros, que faziam trejeitos com a cabeça e movimentos involuntários com os membros superiores. No grupo barrado, alguns não tinham bilhete de identidade nem convite, e disseram que os tinham esquecido. Mas mesmo os que os tinham foram impedidos de entrar. Os seguranças pensaram: «Não é possível um milionário misturar-se com este tipo de gente.»

As pessoas barradas começaram a gritar pedindo passagem e fazendo um grande tumulto à entrada do salão, atrapalhando os nobres convidados que ainda estavam a chegar. Alguns deles perguntaram aos seguranças:

- O que é que essa gente está a fazer na festa do Lúcio?

- Não sabemos, doutor, mas já estamos a expulsá-los.

O grupo pressionava para entrar, mas os seguranças, cada vez mais agressivos, empurravam-nos para fora. O chefe da segurança contratado por Lúcio chegou. Informado da situação, observou os amotinadores e cochichou baixinho com os outros seguranças.

- Essas pessoas são certamente intrusas. Perderemos o emprego se as deixarmos entrar. Não podemos perturbar as autoridades e a elite financeira. Mandem-nos embora, mas evitem escândalos.

O grupo resistiu, o tumulto aumentou. Lúcio foi informado da confusão e ficou visivelmente transtornado. Informou o secretário de segurança do estado, que por sua vez accionou a sua equipa interna, pensando que se tratava de criminosos.

Chegado ao local, o chefe de segurança disse ao Dr. Cléber:

- Estas pessoas parecem ter saído de um hospício. Dizem que são amigos do dono da festa. Como é que isso é possível?

Observando-os, o secretário disse baixinho:

- Cuidado! Podem ser terroristas ou sequestradores disfarçados!

Em seguida, com um olhar, pediu à polícia anti-sequestro que agisse. Os polícias encorpados pegaram nos frágeis braços de Jaime, Isaac, Ali Ramadan, Vidigal, Romero, Cláudia, Sara, Maria e do idoso e simpático Sr. Bonny e começaram a revistá-los, e em seguida a expulsá-los.

Eles tinham ido à festa porque Marco Polo os fizera sentirem-se seres humanos, estrelas únicas no palco da vida, ainda que fosse um palco sem plateia. Não podiam deixar de agradecer a um amigo tão sábio e tão querido. Agora, eram novamente tratados como lixo social.

Isaac trouxera-os. Isaac era um homem mais rico do que vários convidados da festa. Vestia-se de maneira tão simples que não parecia ter uma empresa com 900 funcionários. Isaac alargara os horizontes da sua visão sobre a existência. Não tinha necessidade de ostentação.

A doença abatera-o, mas não eliminara a sua ousadia, garra e criatividade. Tornara-se um empresário que só via sentido em pisar o solo do capitalismo e conquistar mais espaços financeiros se isso fosse contribuir para o bem-estar dos seus funcionários e da sociedade. Sempre gostara de empregar legalmente imigrantes chineses, árabes, indianos, latinos. Conhecia pela própria experiência a dor da solidão de viver em terra estranha. Depois de ter superado a sua doença mental, começou a empregar também ex-pacientes dos hospitais psiquiátricos. Realizou uma solidária inclusão social. Os seus empregados amavam-no.

Como Cláudia não tinha dinheiro para comprar uma roupa nova, escolheu um vestido comprido vermelho,

sobre o qual vestira um blazer preto. As duas peças tinham mais de vinte anos de existência e eram o melhor que ela possuía. Além de não combinarem, contrastavam com o luxo da roupa das demais mulheres presentes na festa.

Para Cláudia, o importante era sentir-se confortável interiormente e demonstrar a Marco Polo que, através dele, aprendera a resgatar o sentido da sua vida e a ser útil à sociedade. Também não tivera recursos para comprar um presente, mas fez da sua presença um presente inesquecível.

O grupo chamava a atenção de todos. Normalmente, os pacientes com depressão, síndrome do pânico e outras doenças emocionais passam despercebidos aos olhos sociais, mas os amigos de Marco Polo eram portadores de transtornos mentais graves e crónicos. Alguns esfregavam frequentemente as mãos no rosto e no peito. Outros, como Jaime, tinham sequelas dos longos anos de medicação. Faziam movimentos musculares repetidos, parecendo que tinham a doença de Parkinson. Para pessoas preconceituosas, não constituíam uma visão agradável.

Algumas convidadas olhavam-nos de cima a baixo, estarrecidas. Eles não pareciam pertencer ao mundo dos mortais.

Sara disse delicadamente a uma delas:

- Eu não mordo, madame ! Também sou gente.

No meio da agitação, a mulher de um importante senador fez um ar de desprezo e de espanto diante de Cláudia. Esta observou-a, com a sensação de que a conhecia.

- Você não teve aulas de dança comigo na sua infância? Perturbada, a outra exclamou:

- Professora Cláudia?!

- Sim. Sou eu.

- Que bom vê-la! - E afastou-se apressada.

Os polícias estavam a perder a paciência. Como empurrar não adiantava, começaram a arrastá-los. Alguns diziam:

- Saiam, senão são presos! Outros acrescentavam:

- Não perturbem, seus intrusos! Esta festa é para gente graúda.

Fragilizados pela doença psiquiátrica e pelo uso prolongado de medicação, alguns começaram a tropeçar e a chorar. Subitamente, Jaime gritou:

- Marco Polo! Marco Polo! - Todos os seus amigos o acompanharam em coro.

O barulho ecoou no interior do salão. Marco Polo, que até ao momento não se apercebera da confusão, ficou assustado. Reconheceu aquelas vozes. Rapidamente, dirigiu-se para a porta de entrada. Ele convidara os seus amigos e esperava que viessem, mas sabia que alguns deles se isolavam, não gostavam de frequentar ambientes sociais estranhos, por perceberem os olhares discriminatórios. Esquecendo-se dos riscos, foram à festa para lhe mostrar o seu amor.

De repente, ao ser empurrado com violência, Ali Ramadan caiu. A sua expressão facial de dor e as lágrimas levaram Isaac a libertar-se do segurança que o agarrava para socorrer o amigo. Não se tratava de um palestiniano e um judeu, mas de dois seres humanos a ajudar-se. Isaac levantou cuidadosamente o amigo e interpelou o polícia.

- Quem é que pensa que é, seu bruto?

Os seguranças e os polícias de elite não gostaram da sua atitude e empurraram-no violentamente, assim como aos outros.

O caos instalou-se e ninguém se entendia.

Entretanto, Marco Polo chegou e exigiu:

- Parem! Parem!

Diante do noivo, os seguranças e os polícias aquietaram-se. Para espanto de todos aqueles homens e de todos os curiosos que se aproximaram, o noivo exclamou:

- Cláudia, querida, que bom vê-la! Jaime, por aqui, que prazer! Isaac, Ali, meus queridos amigos!

Ele abraçava-os e beijava-os na cara e na testa. O Sr. Bonny disse timidamente:

- Marco Polo, não nos quiseram deixar entrar na festa!

- Não, Sr. Bonny? Vocês são os convidados mais esperados desta festa, pelo menos para mim e para a Anna.

O secretário de segurança ficou perplexo. Há muitos anos, quando era apenas comissário da polícia, tinha tido a mesma sensação diante de um jovem vestido de mendigo que apareceu na sua esquadra.

De repente, os olhares de Marco Polo e do secretário cruzaram-se. Marco Polo estava abraçado a Cláudia, mas disse em voz alta:

- Grande cérebro! Você aqui!

Desta vez, o secretário ficou estarrecido:

- É aquele mendigo, mas agora vestido de noivo! Não é possível!

- Continua a ser comissário?

- Hoje sou secretário de segurança do estado e amigo do seu sogro - respondeu ele orgulhoso. E acrescentou: - Fui longe na minha carreira. E você deu-me força. Nunca me esqueci que me disse que o meu cérebro era avantajado.

Marco Polo engoliu em seco. Pensou novamente no poder do elogio, que é capaz de estimular a autoconfiança das pessoas. Ao mesmo tempo, reflectiu sobre o poder da rejeição que, mesmo em tom de brincadeira, sem intenção de magoar, pode provocar estragos na personalidade dos outros. «Ainda bem que o comissário não descobriu que, a brincar, diminuí o número dos seus neurónios», pensou.

Marco Polo estava preocupado com a discriminação que os seus amigos sofreram à entrada do salão. Tal rejeição poderia reduzir a pó a auto-estima deles. Precisava de reparar aquela injustiça. O secretário coçava a cabeça ao vê-los.

- Parabéns, secretário! Realmente o senhor foi longe na sua carreira.

- Parabéns para nós! A vida é irónica. Hoje você é o centro da festa e eu sou o centro da segurança dela.

Em seguida, Marco Polo desfez o mal-entendido. Para não deixar dúvidas, proclamou em voz bem alta para todos ouvirem, tanto os estranhos como os próprios amigos:

- Estas pessoas são minhas convidadas especiais! Estão entre os meus melhores amigos!

Alguns convidados ficaram chocados. Comentaram entre si que tinham entrado na festa errada. Do outro lado, os amigos de Marco Polo ajeitavam orgulhosamente as suas roupas, olhando de modo altivo para os seguranças. Ali Ramadan abordou Marco Polo e perguntou-lhe:

- Existem extraterrestres?

Temendo que as alucinações de Ali tivessem voltado, ele repetiu a velha frase:

- Não sei. Mas sei que criamos monstros dentro de nós.

- Olhe quantos E.Ts existem fora de nós - disse apontando com o queixo para os seguranças.

Marco Polo sorriu.

- São mesmo estranhos, mas, no fundo, são boas pessoas, Ali.

Cláudia bateu na cara de um segurança e, com a ingenuidade de uma criança, disse-lhe:

- Lindo! A festa é nossa!

Anna conhecia uma boa parte daqueles amigos de Marco Polo. Apreciava a singeleza, a inocência e a criatividade deles. Certamente iria alegrar-se muito ao vê-los ali.

Antes de entrarem no grande salão, duas famosas actrizes de cinema, amigas de Lúcio, chegaram ao local perseguidas por alguns repórteres. Uma delas tropeçou em Sara e caiu. Sara também se desequilibrou e foi ajudada por Cláudia. Irritada com as duas, a actriz encarou-as e espantou-se com os gestos bizarros que faziam com os braços e a cabeça. Chamou o segurança e perguntou com alarde:

- Que criaturas estranhas são estas na festa do Lúcio? Marco Polo, vendo as suas amigas novamente humilhadas, disse à actriz:

- De todo o lixo produzido pela sociedade, o culto à celebridade é o mais estúpido.

Abalada com a coragem do desconhecido, a actriz esbravejou:

- Quem é você para dizer isso? Não sabe que sou uma artista famosa!

- Elas também são actrizes do teatro da existência. Até já ganharam um óscar pelo drama que viveram! - disse apontando para Sara e para Cláudia.

- Caramba! Mas eu não as conheço! - comentou admirada.

- Devia conhecer. Elas são fascinantes.

Cláudia e Sara entraram na brincadeira. Disseram às actrizes:

- Queridas, depois damos-lhes um autógrafo.

E pegando-lhes pelo braço, Marco Polo levou-as para o salão juntamente com todos os seus amigos. Ao passarem pelo corredor central, por onde Anna passaria, os convidados ficaram paralisados e fizeram um silêncio fúnebre. Os músicos pararam de tocar. Os gestos incomuns e os movimentos involuntários daquelas pessoas agrediram os olhos dos ilustres convidados. Não estavam acostumados a conviver com pessoas diferentes.

Cláudia, abraçada por Marco Polo, olhava para os convidados e fazia-lhes caretas. Romero estava envergonhado, cabisbaixo, mas Vidigal, muito solto, cumprimentava todos os presentes. Jaime estava um pouco constrangido, mas rapidamente se descontraiu ao beijar as várias flores que encontrou pelo caminho.

Ali Ramadan entrou pomposo. Com um lenço na mão direita, a rodá-lo em torno da cabeça, dançava música árabe enquanto entrava no salão. Era um palestiniano feliz. Isaac andava sorridente. Não devia nada a ninguém e não exigia nada de ninguém para ter bem-estar. Enfrentar aquela pressão não era nada comparado às pressões que já tinha suportado.

Marco Polo observou, um pouco afastado, um homem que não apenas discriminava os seus amigos, mas que olhava assombrado para ele. Parecia querer engoli-lo com os olhos. Balbuciou entre dentes:

- Cretino!

Ao perceber o que o homem disse, Marco Polo ficou perplexo. Não podia acreditar que um convidado estivesse a ofendê-lo no seu próprio casamento. Pensou que era coisa da sua cabeça, afinal de contas a noite estava a ser «stressante».

A medida que o grupo avançava, os convidados entreolhavam-se tentando perceber o que estava a acontecer. Alguns, em tom de chacota, diziam:

- Lúcio preparou um espectáculo circense para nós.

Na realidade, Lúcio, ao ver a cena, ficou a ferver de raiva. Queria estar em qualquer lugar do mundo, menos naquela festa. «Que vergonha! O que vão pensar de mim!», dizia para si próprio com um nó na garganta.

Antes de os amigos de Marco Polo se acomodarem, Lúcio foi chamado, porque a noiva tinha chegado. Como pai, deveria acompanhá-la ao salão. Saiu em estado de choque, sem olhar para os presentes.

Alguns psiquiatras também ficaram perplexos. Nunca tinham visto pacientes com psicose na festa de um psiquiatra.

Antes de se sentar, Jaime passou demoradamente os olhos pela multidão. Viu homens e mulheres preocupados, tensos, com posturas erectas, rígidas, com comportamentos estudados e sem manifestar alegria na majestosa festa. Admirado com a própria observação, pegou no braço do noivo e exclamou:

- Marco Polo. Que pessoal es... estra... estranho! Analisando o comentário do amigo, ele concordou:

- Realmente são estranhos, Jaime!

 

                               Capítulo 27

Anna chegou à festa. Tal como Marco Polo, ao ver o esquema de segurança, sentiu-se tensa. Quando entrou no salão oval, ficou pasmada. Tentando ser discreta, indagou baixinho:

- Papá, o que quer dizer tudo isto?

- Tu mereces, minha filha. Nós merecemos.

Viu ao longe o seu amado. Ele fez um gesto com as mãos tentando aliviá-la, como se dissesse: «O que é que podemos fazer? Descontrai!»

O grupo de cordas começou a tocar a marcha nupcial. Parecia emitir um som celestial que percorria as artérias do corpo e penetrava no tecido da alma dos convidados.

O vestido branco de seda, com poucas rendas, caía sobre o corpo de Anna, delineando-o de maneira sensual. O vestido era simples, mas ela estava deslumbrante. Por ser tão bela interiormente, era Anna quem dava brilho às suas roupas e não as roupas a ela.

Os cabelos encaracolados com mechas douradas repousavam sobre os seus ombros como as ondas sobre a areia da praia. Não tinha grinalda, levava apenas um pequeno ramo de lírios brancos na mão direita. Era a flor de que mais gostava, a que nascia nos pântanos, tal como ela.

Ao vê-la, os amigos do Hospital Atlântico começaram a aplaudir e a assobiar, manifestando o seu júbilo. Ninguém os acompanhou, apenas Marco Polo.

O salão tinha oitenta metros de comprimento. Enquanto Anna e o pai andavam lentamente, as pessoas, emocionadas, cumprimentavam-nos com gestos e olhares. Lúcio sentiu-se um rei. Esqueceu por alguns momentos o tumulto inicial. Agradecia com a cabeça os cumprimentos. Enquanto caminhava, recordava imagens do passado de Anna. A sua pequena filha crescera e tornara-se uma mulher encantadora.

Ao aproximarem-se de Marco Polo, o protocolo foi quebrado mais uma vez. Jaime e Cláudia, que conheciam Anna, não contendo a alegria, levantaram-se e foram ao seu encontro.

Lúcio fez um ar carrancudo. Só não os ofendeu porque o momento exigia discrição. Vários convidados também condenaram a atitude deles. Diziam entre si:

- Que pessoas labregas e sem noção.

Anna, humilde, abraçou-os sem qualquer constrangimento e beijou-os, estragando ligeiramente a maquilhagem. Uma das jovens mais ricas do mundo tornara-se mais rica com bens de que muitos dos presentes eram carentes: a naturalidade e a simplicidade. Os seus gestos foram um brinde aos olhos de Marco Polo.

Felicíssima, Anna ainda acrescentou:

- Cláudia, está magnífica! Jaime, está belíssimo! Ali Ramadan gritou em voz alta:

- Que flor! Que flor! Que Alá a proteja! Isaac, do mesmo modo, bradou:

- Que o Deus de Israel seja o seu cajado e a sua força! Lúcio, envergonhado, apenas mexia as pupilas para ver as reacções dos convidados. Com suores frios, entregou a filha ao noivo. Tentou ficar ligeiramente afastado deles. Não queria ser fotografado ao lado daquela gente bizarra, não queria ser alvo de chacota nas colunas sociais.

Enquanto o conservador iniciava a cerimónia, aproximou-se alguém furtivamente de Lúcio para lhe dar uma péssima notícia, que quase o fez desmaiar. Era o homem que balbuciara «cretino» a Marco Polo.

- Sabe quem foi o psiquiatra que denunciou os efeitos do Venthax - disse, como um predador diante da vítima.

- O desgraçado que me fez perder cem milhões de dólares na bolsa de valores no mês passado? - inquiriu Lúcio.

- Exactamente.

- Não me diga que o estúpido do meu genro teve a coragem de convidá-lo? Quem é o vilão?

- É o seu próprio genro - disse o psiquiatra. E, com sarcasmo, acrescentou: - Quem tem um genro como o seu não precisa de inimigos.

- O que é que me está a dizer, Dr. Wilson?! - bradou, profundamente abalado.

Lúcio, seis meses antes do debate de Marco Polo com o Dr. Paulo no congresso de psiquiatria, tinha comprado 60% das acções da indústria farmacêutica que produzia o Venthax. Quando o Dr. Paulo foi subornado, a empresa já lhe pertencia. A empresa prometia ser uma mina de ouro se houvesse uma aceitação maciça da nova droga pela classe médica.

Marco Polo começara a usá-la logo depois do congresso, tendo verificado importantes efeitos colaterais nos seus pacientes. Como fora desafiado pelo Dr. Paulo Mello, resolveu fazer uma pesquisa mais séria sobre esses efeitos. O resultado foi relatado num dos primeiros artigos que tinha publicado.

O artigo saíra há um mês numa revista científica e rapidamente ganhou destaque na imprensa mundial, em especial nos jornais e televisões. Lúcio tinha amaldiçoado o artigo, mas nunca lhe passara pela cabeça que Marco Polo fosse o autor. Lúcio repetia obsessivamente: «Todos os medicamentos têm efeitos colaterais. Estão a perseguir-me!» As acções do laboratório caíram 15% e continuavam em queda. Foi um desastre económico.

Perante os factos relatados pelo Dr. Wilson, Lúcio mudou de cor, começou a ficar com taquicardia, com suores frios e ofegante, parecendo estar diante de uma grave situação de perigo. O perigo era Marco Polo. A falta de simpatia por ele converteu-se em ódio mortífero.

Imediatamente, mandou um segurança chamar o secretário de segurança. Ofegante, disse-lhe:

- Precisamos de interromper este casamento agora!

- Você está louco, Lúcio?

- Não, mas vou ficar.

- O que é que está a acontecer?

- Acabei de descobrir que o meu futuro genro é o meu pior inimigo.

- Você está a brincar, ele é uma boa pessoa - disse o secretário transtornado.

- Boa pessoa! Esse homem fez-me perder cem milhões de dólares num mês!

O secretário perdeu a compostura. Não acreditava. Nunca presenciara um evento tão perturbador. A confusão da festa transformou-se então num ambiente de guerra. Enquanto isso, o conservador dava continuidade ao ritual.

- O que é que o seu genro fez? Roubou-o?

- Quase isso. Ele acabou com a imagem de uma das minhas grandes empresas, o laboratório Montex. Vou perder uma posição no ranking - disse inconformado.

- Ranking?

- Não ligue.

O Dr. Wilson esclareceu o secretário:

- O jovem psiquiatra denunciou na imprensa os efeitos colaterais de um dos nossos mais importantes medicamentos.

- Ele sabia que a indústria farmacêutica era do seu sogro? - perguntou o secretário.

Sem convicção, o Dr. Wilson afirmou:

- Claro que sim!

Ao saber isto, a falta de ar de Lúcio aumentou, e começou a ter vertigens. Os convidados mais próximos ficaram comovidos ao ver a cena. Pensaram que ele estava emocionado por casar a sua única filha. «Deve estar a sentir-se sozinho com a partida da Anna e emocionado com a alegria de a ver mulher.» Pensaram que ele estivesse a recordar a filha pequena a correr e a brincar e, agora, a assumir os desafios da vida.

Um deputado federal aproximou-se com sensibilidade, tentando consolá-lo.

- Eu compreendo-o, Lúcio. Já casei uma filha. Fique tranquilo, agora ganhou um filho.

Ao ouvir isto, Lúcio sentiu um tremor súbito. Queria engolir o deputado, gritar com ele. Os dois amigos seguraram-no. O deputado não percebeu o que estava a acontecer. Movido pela compaixão, voltou ao seu lugar.

Em seguida, Lúcio voltou à carga:

- Um filho! Estou perdido! Termine este casamento antes de ele começar! A Anna vai compreender quando eu o desmascarar!

- Calma, Lúcio! - disse o secretário.

- Calma! Você teve calma quando precisou de cinquenta mil dólares? Este sujeito pode arruinar-me!

Lúcio Fernández, como vários dos seus amigos, não estava preparado para ser um milionário. Ele gravitava na órbita do dinheiro, não era o dinheiro que gravitava na sua órbita. Antes de enriquecer, era mais solto, sereno, sociável, despreocupado. Depois de se ter tornado um multimilionário, passou a ser controlador, autoritário, ansioso, desconfiado. Precisava de muito para sentir pouco, e, assim, esmagou o seu prazer de viver. Os empregados do seu palácio eram mais felizes do que ele. O dinheiro empobrecera-o.

Além disso, Lúcio tinha uma personalidade paranóica. Não chegava a ser uma psicose paranóica, pois não rompia com a realidade, mas ele vivia atormentado com a ideia de estar a ser perseguido ou lesado. Vivia com medo de ser raptado. Tinha três carros blindados e andava com uma escolta de quatro seguranças. Como se isso não bastasse, não confiava nem nos seus amigos. Achava que toda a gente se aproximava dele por interesse. Mas o pior de todos os seus fantasmas psíquicos era o de que a sua filha caísse nas garras de um aproveitador. Agora, aos seus olhos, o seu maior pesadelo materializava-se.

O secretário sentiu-se encurralado, porque Lúcio revelara em frente do Dr. Wilson que ele tinha precisado do seu dinheiro. Queria atender o dramático apelo que lhe fora feito, mas, como a situação era delicadíssima, ainda teve fôlego para retrucar:

- Como interromper este casamento? Já pensou no escândalo? Olhe para o governador. Estão presentes mais de vinte deputados federais, dez senadores e três ministros. São raros os empresários deste país que reúnem tantas pessoas tão poderosas num só lugar.

Então, Lúcio caiu em si. Embora muitos políticos dependessem do dinheiro dele para serem eleitos, o escândalo poderia gerar consequências imprevisíveis.

Então, de relance, olhou para os amigos de Marco Polo e viu um quadro que o incomodou.

- Olhem para aqueles miseráveis. Eles não precisam de representar. São o que são. Maldito escândalo! Precisamos de um álibi!

 

                             Capítulo 28

Iniciou-se a cerimónia do casamento. O conservador elevou o timbre da sua voz e pronunciou as famosas palavras:

- Se há alguém na sala que saiba de alguma coisa que impeça este casamento, fale agora ou cale-se para sempre.

Lúcio gelou. Queria gritar, mas não podia. Depois de um momento de silêncio, uma pessoa bradou à entrada do salão:

- O noivo abandonou a sua criança!

Fez-se um silêncio de morte entre os presentes. Alguns começaram a sentir-se mal. O conservador emudeceu. O acusador, ainda distante, insistiu:

- Porque é que você abandonou a sua criança? Elisabete sentiu falta de ar e pensou: «Jesus Cristo! Nunca aconteceu isso na nossa família.» Os políticos e empresários ficaram espantados. O secretário de estado disse em voz baixa:

- A festa do ano promete ser o escândalo do século. As mulheres exclamavam:

- Que vergonha! Como pode alguém abandonar um filho?

Todos começaram a condenar Marco Polo. Lúcio num sobressalto levantou-se, pegou nos braços do secretário e disse:

- Este é o nosso álibi! Este sujeito nunca me enganou! Chame os seguranças. Tire Anna imediatamente do local!

- Calma, Lúcio! Espere!

- Esperar o quê?

- Isto pode gerar uma agitação incontrolável. A integridade física das autoridades poderá ser colocada em risco! - disse trémulo.

O homem estranho começou a aproximar-se bradando:

- Você deixou a criança a chorar, sem respirar!

Alguns convidados comentavam:

- Assassino! Este sujeito não vale nada!

Anna sentia um nó na garganta. Marco Polo tentava ansiosamente ver por cima da multidão quem o denunciava. Até mesmo os seus amigos do Hospital Atlântico aquietaram os seus movimentos repetitivos. Quase não respiravam. A plateia, atónita, queria descobrir o acusador com os olhos. O salão tornou-se pequeno para tanta indignação. O burburinho era intenso.

O secretário resolveu agir. Accionou vinte carros de polícia. Pediu que se posicionassem rapidamente à volta do hotel. Também colocou os cinquenta polícias disfarçados a postos. Combinou que ao levantar a mão direita e ao baixá-la subitamente estaria a dar o sinal para entrarem em acção. Iria retirar Anna, proteger Lúcio, as autoridades e os empresários mais importantes. Quando levantou a mão para dar o comando final, outra voz bradou vibrante no salão.

Era a voz de Marco Polo:

- Eu assumo a minha culpa. Abandonei a minha criança. A actividade profissional e as preocupações com a existência roubaram o meu tempo. Mas prometo-lhe que não a abandonarei mais.

As senhoras idosas começaram a dizer umas para as outras:

- Que pai desnaturado! Como pôde trocar a sua criança pelo trabalho? Isso é desculpa!

- Alimente-a com a sabedoria, nutra-a com a simplicidade, irrigue-a com a liberdade! Não deixe a sua criança morrer. Eduque-a - disse o estranho em voz mais alta ainda.

Lúcio exclamou:

- Além de meu inimigo é um péssimo pai. O escândalo já está causado. Vamos, acabe com isto! - disse ao secretário, empurrando-o para que tomasse uma atitude.

O suor escorria como gotas de chuva pela cara do secretário. Sabia que a confusão poderia ser tal que algumas pessoas correriam o risco de ser pisadas. Quando ia dar a ordem pela segunda vez, viu Marco Polo agarrar na mão de Anna e ir ao encontro do denunciante. Respirou fundo e pediu para que os cem olhos fixos nele esperassem.

- Sim! Eu educá-la-ei. - E, olhando para a sua noiva, exclamou: - Pedirei a Anna para me ajudar a cuidar dela.

Alguns, perplexos com a sua ousadia, diziam:

- Irresponsável! Fez o filho e agora quer que outra mulher o assuma.

Lúcio foi mais longe.

- Canalha! Quer introduzir um bastardo na minha família. Tem de ser agora, secretário!

O secretário ergueu pela terceira vez a mão. Não podia desagradar quem tanto o favorecera. Quando ia para baixá-la e dar início à agitação, outra voz encheu a sala. Para perplexidade dos presentes, em especial de Lúcio, uma jovem que sempre fora frágil, tímida, insegura e que não se expressava em público entrou em cena. Anna exclamou:

- Cuidarei da criança de Marco Polo como se fosse minha. - E, olhando para os presentes, acrescentou: - E quem não deixar a sua criança interior viver perderá a sua espontaneidade, destruirá a sua simplicidade, sufocará a sua criatividade. Será infeliz diante de Deus e diante dos homens. Transformar-se-á num miserável, ainda que viva em palácios. Será estéril na sua inteligência, ainda que seja um intelectual.

Os deputados, senadores, ministros, banqueiros, industriais e as suas mulheres quase tiveram um ataque de pânico colectivo. Ofegantes, passaram as mãos pela cara, coçaram as cabeças, entreolharam-se e ficaram profundamente abalados.

O denunciante aproximou-se. Marco Polo proclamou:

- Falcão, meu amigo! Só faltava você nesta festa!

Ele e Anna abraçaram-no afectuosamente. E beijaram-no.

Os convidados saíram do assombro e aos poucos foram-se deslumbrando.

O irreverente Falcão não poderia aparecer de outro modo. Ele nunca se preocupara com a maquilhagem social. Neste sublime momento da vida do seu querido amigo, não se importou com formalidades nem se preocupou com o que os outros poderiam pensar das suas acções. Queria dar publicamente o melhor presente que um ser humano pode dar: o seu coração.

O seu jovem amigo estava a tornar-se famoso e a ficar atolado em trabalho. Isso alegrava Falcão e, ao mesmo tempo, preocupava-o. Sabia que se Marco Polo, bem como qualquer pessoa que atinge o sucesso, não tivesse cuidado, poderia destruir no âmago do seu ser a criança curiosa, aventureira e ousada que ama, que cria, que sonha e que se encanta com a vida. Sabia que o único lugar em que não era admissível envelhecer era no território da emoção.

Muitos convidados já tinham destruído a sua criança interior e viviam num asilo emocional. A existência havia perdido o sabor. Viviam porque respiravam. Não se questionavam, não olhavam para dentro de si e não percebiam que a vida e a morte eram fenómenos indecifráveis no teatro da existência. Tornaram-se plateia nesse insondável teatro. Movimentavam-se muito, mas não saíam do lugar. Eram deuses ricos, famosos, mas falidos.

Anna já tinha estado com Falcão algumas vezes. Concordava e aprendia com as ideias dele e de Marco Polo. Eles contagiaram-na com a sua alegria transbordante, coragem para explorar o novo e pensar de forma diferente. Um ajudava o outro. Queria ser como eles, raciocinar como um adulto e sentir-se como uma criança.

Falcão estava presente também porque queria agradecer a Marco Polo por ter destruído os seus paradigmas e ajudado a recuperar o seu filho. Marco Polo foi discípulo e mestre, filho e pai, mostrando que os pequenos podem aprender com os grandes e os grandes podem permitir-se aprender com os pequenos. Não há hierarquia no terreno da sabedoria.

Quando viu a filha e Marco Polo beijarem o estranho homem, Lúcio não se aguentou. Sentou-se e só conseguia dizer:

- Isto é uma miragem! O que é que está a acontecer?

- Não faço a menor ideia! - disse o secretário limpando o suor do rosto com um lenço.

Alguns convidados, agora mais tranquilos, abriram o leque do pensamento e exclamaram:

- Que espectacular peça de teatro. Nunca vimos nada como isto. Lúcio é um génio!

Outros, em estado de choque, procuravam alívio em doses altas de uísque e vodca. Outros ainda, envoltos numa cortina de medo, temiam que houvesse tiros no local.

Apesar das reacções distintas, a maioria dos convidados, sob forte emoção, aglomeraram-se à volta das três personagens, fazendo uma espécie de roda. Alguns puseram-se em cima das cadeiras e mesas para verem o espectáculo.

O juiz conservador da cerimónia piscava os olhos sem parar, num tique nervoso. Confuso, perguntou ao pianista:

- O casamento de milionários é sempre assim?

Depois de abraçar Marco Polo e Anna, Falcão recordou os velhos tempos das praças. Como se estivesse em cima de um banco, num ambiente completamente livre, proclamou para ambos:

- Todo o amor é belo na sua nascente, mas poucos resistem ao calor do sol. Que o vosso amor suporte os testes da existência!

Fazendo Anna girar com a mão esquerda, Marco Polo bradou:

- Velejarei pelos mares da ansiedade, escalarei as montanhas dos medos e percorrerei os vales das decepções para não deixar o amor morrer! Farei tudo ao meu alcance para transformar esta bela mulher numa princesa da minha história!

As senhoras que queriam crucificar Marco Polo mudaram de opinião.

- Que rapaz romântico! Que príncipe! É de um desses que a minha filha precisa.

Em seguida, Falcão afastou-se um pouco de Marco Polo e começou a cantar com a sua voz estridente a música que se tornara o seu estandarte de vida, «What a Wonderful World». Com as mãos, encenava a melodia e apontava para as flores. Marco Polo acompanhou-o. O piano e os violinos entraram em acção. Foi incrível.

Enquanto cantavam, puseram Anna no meio deles. No início da música, pediram licença em pensamento a Louis Armstrong e mudaram completamente a letra, inventando algumas frases dirigidas à noiva. Para os dois pensadores, Anna simbolizava todas as pessoas que tinham passado pelo caos na infância, por irreparáveis perdas, mas, apesar disso, tinham acreditado que valia a pena viver a vida. Essa superação encorajava-os.

- A vida não te poupou, suportaste tormentas, mas sobreviveste - cantou Marco Polo.

- Obrigada por existires. Contigo, a vida fica mais doce - cantou Falcão.

- E eu penso comigo... Como és maravilhosa - cantaram os dois juntos.

- Tu tropeçaste, feriste-te, mas não desististe dos teus sonhos.

- Tu brilhas para nós, tu brilhas para o mundo.

- E eu penso comigo... Como és maravilhosa.

A música penetrou no tecido mais íntimo da psique de Anna, tornou-se uma actividade sublime do saber, levantou voo da sua emoção, provocou-lhe êxtase e fê-la chorar. A princesa que vivera numa masmorra libertou-se. Enquanto chorava, um filme passava na sua mente, constituído por belas imagens: a sua mãe abraçando-a, a tocar piano para ela, o primeiro encontro com Marco Polo, a conquista, a estrela que ele lhe deu.

Raramente uma criança atravessou os desertos percorridos por Anna e raramente alguém encontrou um oásis tão agradável. Vários convidados também desataram a chorar.

Depois da canção em homenagem a Anna, Cláudia entrou em cena. Gritou para os músicos:

- Valsa! - E puxou Falcão para dançar.

Sorrindo, fez um gesto com as mãos abertas que queria dizer: «Vamos, alinhem!» Os noivos também começaram a dançar livres e alegres.

Os demais amigos de Marco Polo também entraram na dança e começaram a revolucionar a festa. Posteriormente, Cláudia foi buscar outra pessoa para dançar. Falcão, entendendo o seu recado, também convidou outra senhora, a mulher de um banqueiro que nunca tinha dançado com o marido. Jaime chamou para dançar uma senhora de meia-idade que era solteira.

Marco Polo pôs-se a dançar com Dora. Anna tirou um amigo idoso do seu pai, de quem gostava muito. Os músicos ficaram eufóricos, mas o conservador da cerimónia quase teve um ataque cardíaco. Gritava:

- Ainda não terminei o casamento! - Mas ninguém o ouvia.

Isaac não sabia dançar a valsa. Ali Ramadan tinha aprendido com Cláudia. Vendo o amigo deslocado, o próprio Ali tentou ensiná-lo. Sem receio de aprender, Isaac deu com o amigo os primeiros passos de dança. Foi a primeira vez na história que se teve notícia de um palestiniano e de um judeu dançarem juntos a mesma valsa.

De repente, apareceu o Dr. George na pista. Marco Polo alegrou-se intensamente ao ver o seu ex-professor de Anatomia. Depois que o «vendaval» Marco Polo passara pela sua vida, ele tinha revisto os seus valores e a sua rigidez.

A sua mulher suportara-o com heroísmo, mas valeu a pena. O Dr. George aprendeu o caminho do afecto. Tornou-se um homem carinhoso, gentil, sociável, que recuperou a sua criança interior. Aprendeu a brincar com os seus dois filhos. Nas festas de aniversário deles, vestia-se de palhaço para os divertir.

Fez também uma revolução na sala de anatomia. A sua primeira aula deixou de ser sobre técnicas de dissecação de vasos sanguíneos e músculos, e passou a abordar a crise existencial e os sonhos dos futuros médicos. O mestre aprendeu a amar o debate de ideias e não a submissão. Mudou tanto que pedia aos alunos que investigassem a história dos cadáveres que iriam estudar. Se não a descobrissem, deviam imaginar uma história com sonhos, alegrias, perdas, desafios, para depois ser escrita e afixada em cada mesa de anatomia em sinal de respeito às pessoas que ali estavam.

O Dr. George formou uma associação chamada Um Ser Humano, Uma Fascinante História. Esta associação tinha por objectivo ensinar alunos de outras faculdades a descobrirem o valor da vida e a saberem que para alguém se tornar um grande médico é necessário que seja um explorador, um Marco Polo que descobre grandes histórias por detrás da gente anónima.

Em seguida, apareceu discretamente na pista o Dr. Flávio, o especialista das urgências. Ele era agora chefe do sector no seu hospital. Depois de Marco Polo ter passado pela sua vida, entendeu que diante da dor e da morte não há gigantes nem heróis. Tornou-se preocupadíssimo com os conflitos que se escondem por detrás das cefaleias, das dores musculares, das dores no peito, das taquicardias, das crises de hipertensão.

O Dr. Flávio, movido pela sensibilidade, formou a associação Ser Humano Integral. Esta associação, constituída por médicos, psicólogos e psiquiatras, visava consciencializar, através de folhetos e palestras, os profissionais de saúde das salas de urgências de todos os hospitais do país para dialogarem com os seus pacientes.

Desejava treiná-los a ouvirem com o coração e a entenderem que tratavam de doentes e não de doenças, de seres humanos e não de órgãos. O sucesso deste treino diminuiu os internamentos, solucionou doenças e preveniu inúmeros suicídios.

A sua mulher, grávida de seis meses, fez questão de ir ao casamento de Marco Polo. Queria agradecer-lhe pelas mudanças operadas no seu marido, embora Marco Polo soubesse que quem mudara de facto a sua rota tinha sido o próprio Dr. Flávio. O progresso emocional do marido fez com que ela se sentisse a futura mãe mais feliz do mundo.

Eis que apareceu o Dr. Alexandre. Quando Marco Polo o viu a dançar com a sua mulher, diminuiu o ritmo e cumprimentou-o carinhosamente. O nobre professor entendera que se um dos maiores génios da humanidade, Einstein, fora vítima e também agente do preconceito, ninguém estava livre desse mal.

Fez então algumas pesquisas e detectou que muita gente ainda pensava que quem ia a um psiquiatra era louco. Com a ajuda de Marco Polo, formou uma associação denominada Preconceito Nunca Mais para diminuir o estigma social dos pacientes psiquiátricos e para elevar a auto-estima deles. Começou a mostrar que no fundo todo o ser humano possui alguma doença psíquica, e a doença do preconceito é a pior delas.

Apareceu por detrás do casal de noivos, de uma forma suave, quase imperceptível, um homem confiante, sereno, equilibrado, sábio, um artista da psiquiatria. Era o Dr. Antony. Ele e a mulher, com quem estava casado há mais de quarenta anos, dançavam como um casal de adolescentes. Os noivos pensaram «Queremos envelhecer como eles», pois a maneira como se olhavam revelava que eles tinham transformado a fase de menor força muscular na fase de maior força da emoção e cumplicidade do amor.

Depois de Marco Polo ter discursado naquele famoso congresso sobre a ditadura da hipótese da serotonina, sobre o confronto entre a psiquiatria e a psicologia e de ter exposto a sua complexa tese de que a psique humana coabita, coexiste e co-interfere com o cérebro, o Dr. Antony e vários professores ilustres de psiquiatria perderam noites de sono.

Chamaram o jovem psiquiatra para formar uma sociedade científica destinada a estudar a última fronteira da ciência: a natureza da psique ou alma do Homo sapiens. Marco Polo, o Dr. Antony e os seus amigos faziam reuniões do mais elevado nível académico. Participar nelas era como fazer uma carícia à inteligência. Além disso, começaram a debater a possibilidade de a psiquiatria se tornar uma especialidade da psicologia e não apenas da medicina.

De repente, saiu do lado esquerdo da multidão uma pessoa apressada. Pedia licença com insistência. Caminhava eufórico em direcção à pista de dança. Era o Dr. Mário. Ao vê-lo, Marco Polo parou de dançar. Abraçou prolongadamente o Dr. Mário e a sua mulher.

O Dr. Mário, numa atitude inusitada, beijou-o na cara. Em seguida, o director do Hospital Atlântico tomou a sua mulher nos braços e, no centro da pista, começou a mostrar os seus dotes. Quando conhecera Marco Polo, ele ia no terceiro casamento e em vias de separação, mas depois que o «furacão» Marco Polo passou pela sua história, as muralhas ruíram. Saiu do seu trono, deixou de ser um psiquiatra em casa, humanizou-se, tornou-se um cavalheiro.

Os seus três filhos, gerados nos dois primeiros casamentos, estavam a fazer psicoterapia. O Dr. Mário era especialista a criticá-los, a apontar os seus erros e a ser um manual de regras, mas depois de beber da fonte da espontaneidade e de se tornar um dançarino na vida, começou a abraçá-los, a beijá-los, a cativá-los, a ouvi-los.

Aprendeu a pedir desculpas, a reconhecer as suas falhas e a ter coragem de dizer que os amava. Os seus filhos ficaram simplesmente perplexos com ele. Descobriram afinal que tinham um pai-psiquiatra e não um psiquiatra-pai. Rapidamente, progrediram no tratamento. Deixaram, assim, de ser futuros hóspedes de um hospital psiquiátrico.

O Dr. Mário deu um salto tão grande na compreensão da existência que começou a ministrar inúmeras conferências nacionais e internacionais, desincentivando a hospitalização na psiquiatria. Entendeu que o internamento psiquiátrico causava rombos no inconsciente. Nos casos em que ele fosse inevitável, os hospitais deviam envolver os pacientes na dança, no teatro, nas artes plásticas, levando-os a sentirem-se úteis. Contou com a ajuda de Dora e de outros psiquiatras. Cláudia era uma das mais activas, e Isaac tornou-se o maior patrocinador desse projecto.

Isaac e Ali Ramadan também se tornaram sonhadores. Tinham longas conversas com Marco Polo para saber de que forma poderiam ajudar os povos palestiniano e judeu a superarem os seus conflitos. Gemiam emocionalmente a cada ataque terrorista dos palestinianos e a cada retaliação de Israel. Choravam, não mais pelas suas doenças, mas pelos seus povos. «O hospital em que estávamos internados era um ambiente menos terrível e perturbador do que alguns terrenos do Médio Oriente», pensavam.

Sob a orientação de Marco Polo, entenderam que, infelizmente, a violência na Palestina matava fisicamente alguns e emocionalmente, milhões. Não havia vencedores naquele conflito, todos eram vítimas. Acreditavam que se palestinianos e judeus se convencessem de que não eram duas raças ou duas culturas em conflito, mas seres humanos da mesma espécie, com necessidades psíquicas semelhantes, grande parte das resistências e desconfianças mútuas seriam extintas. Os três amigos lutariam pela consciencialização e propagação daquela ideia.

A excepção de Isaac, a soma dos recursos financeiros dos reaccionários amigos de Marco Polo que elaboraram programas para ajudar a sociedade era irrisória. O saldo era quase negativo. Alguns tinham carros comprados a crédito, outros, casas penhoradas e outros ainda, dívidas nos bancos. Mas, apesar disso, fariam uma revolução social incomparavelmente maior do que a dos multimilionários da festa de Lúcio, cujo «PIB emocional» era um dos mais baixos deste magnífico planeta azul.

Dois meses antes do seu casamento, Marco Polo falara a Anna e Falcão de algo que atormentava o seu coração. O princípio da co-responsabilidade inevitável continuava a controlá-lo. Queria formar uma instituição chamada Ser Humano Sem Fronteiras para tratar dos conflitos sociais, dos confrontos raciais, da crise da educação, das misérias físicas e psíquicas.

Além disso, queria organizar um movimento mundial para pressionar as indústrias farmacêuticas de medicamentos psicotrópicos a investirem parte dos seus lucros na prevenção de doenças psíquicas. Sofreria graves consequências por essa ousadia.

Marco Polo achava que a solução para os graves conflitos humanos passava pela juventude e não pelos adultos. Todavia, entristecia-se ao perceber o que o capitalismo selvagem estava a fazer ao ser humano, em especial às crianças de todas as sociedades modernas.

Afligia-se ao tomar conhecimento de que, em Inglaterra, 78% das crianças a partir dos dez anos tinham como passatempo predilecto ir às compras. Era o resultado dos estudos do Instituto do Consumo daquele país. Elas cresciam com uma ansiedade e insatisfação crónicas, porque não aprendiam a libertar a sua criatividade e a extrair prazer dos pequenos estímulos do ambiente. Na grande maioria dos países a situação dos jovens era semelhante.

Falcão e Marco Polo perturbavam-se com a fome física e emocional do terceiro milénio. A cada cinco segundos, morria uma criança de fome no mundo, e a cada segundo assassinava-se a infância de uma criança pelo consumismo. Poucos se importavam com esses dois gravíssimos crimes contra a humanidade.

Os dois amigos rebeldes lutariam com todas as suas forças, até à sua última gota de sangue, para que milhões de jovens de todas as raças, de todas as religiões, de todas as culturas, deixassem de ser servos de um sistema social que lhes entorpece a mente, lhes rouba a identidade e os transforma em meros clientes. Queriam que eles se comprometessem no projecto Ser Humano Sem Fronteiras, se apaixonassem pela humanidade, criassem projectos mundiais para a transformar.

Para eles, os jovens deveriam actuar no palco da vida como actores principais e não morrer na plateia, subjugados por uma vida individualista, ilusória, auto destrutiva, dependente, encarcerada pela rotina e amordaçada pelos padrões doentios de beleza.

Marco Polo tinha falhas, precipitações, momentos de ansiedade, mas conviver com ele era um convite para trilhar caminhos nunca antes percorridos. Faria da sua história uma grande odisseia, tão excitante como a de Marco Polo no século XIII. Iria envolver-se em grandiosas confusões, abalaria alguns pilares da sociedade, sofreria perseguições implacáveis. Mas não mudaria o seu modo de ser, nem deixaria de abraçar as árvores e de falar com as flores.

O relacionamento com Anna aumentou ainda mais a sua coragem. Nunca se viu um casal tão sedento de aventuras. O tumulto na festa do seu casamento era um reflexo da vida que teriam. A desordem era tão grande que havia risco de o casamento não se realizar.

Marco Polo alegrou-se ao ver os seus amigos reunidos sem receio da vida. Aprendera com todos eles. Para delírio de Lúcio Fernández, não foram apenas os amigos de Marco Polo que quebraram o protocolo. Alguns casais, incluindo empresários, deputados, senadores e até um ministro, deixaram de ser espectadores e entraram na pista de dança.

A maioria das autoridades, dos empresários e das celebridades, no entanto, ficou irritadíssima com Lúcio, pois tinham vindo estabelecer contactos políticos e sociais, e depararam com um bando de lunáticos. Franziram o sobrolho, curtiram o velho mau humor.

Havia outros psiquiatras presentes. Alguns acharam que estava a haver um delírio colectivo. Outros soltaram-se, não fizeram exigências para se descontraírem, deram oportunidade ao prazer.

Lúcio começou a ter crises histéricas. Esfregava as mãos repetidamente na cara, rangia os dentes, os lábios tremiam-lhe. Tornou-se um sério candidato ao Hospital Atlântico. Olhou para o secretário, seu guardião, e repetiu:

- Rapte a minha filha, leve-a embora deste local ou vai haver um segundo suicídio na família!

- Você está maluco, Lúcio!

- Quinhentos mil dólares pelo serviço! - disse sem titubear.

- Quanto?

O secretário vacilou. Nisto, um casal atropelou-o enquanto dançava. O assunto ficou momentaneamente suspenso.

Nunca mais houve um episódio chocante como aquele. O conservador da cerimónia, de meia-idade, já fizera o casamento de muitas pessoas, mas não se decidia a casar-se. Durante o conturbado casamento ainda não concretizado, pensou perplexo: «É melhor nem sequer arriscar-me a casar.»

Foi um evento irreverente, de uma jovem que se apaixonou por um vendedor de sonhos, que contagiou pessoas mutiladas, que reconstituíram as suas vidas e que, apesar de todas as suas limitações, aprenderam a dançar a valsa da vida com o espírito livre, sem medo de ser o que eram e sem medo do amanhã.

A certa altura, Marco Polo, Falcão, Anna, o Dr. Mário, o Dr. Antony e outros amigos fizeram uma roda no meio do salão e começaram a girar à volta com emoção. Giraram, giraram e giraram.

Enquanto giravam, observavam atentamente o rosto dos espectadores e percebiam que, para a maioria das pessoas, a sociedade moderna tornava-se cada vez mais um grande hospital psiquiátrico ou uma sociedade de mendigos que não abandonaram os seus lares, mas se abandonaram a si mesmos. De pessoas que, às vezes, têm mesa farta, mas mendigam o pão do prazer, da tranquilidade e da sabedoria.

Para outros, no entanto, o mundo tornava-se uma escola, ou um circo, ou um terreno de aventuras, ou uma pista de dança, ou uma mescla de tudo isso. Marco Polo e os seus amigos não sabiam onde as pessoas, incluindo eles, se situariam no futuro da humanidade. Não sabiam se estariam no rol dos doentes, dos mendigos emocionais ou dos que vivem suave e espontaneamente.

Só sabiam que essa situação dependeria da coragem de cada um em caminhar nas trajectórias do seu próprio ser, em abrir as janelas da sua inteligência, em repensar a sua história e em fazer livremente as suas escolhas.

Quando deixaram de girar, gritaram em coro para eles mesmos e para a plateia: «Bem-vindos ao futuro!...» Esse grito demonstrava que já não eram vítimas do ambiente social, tendo-se tornado agentes transformadores dele.

Marco Polo abraçara os seus amigos ao longo da vida. Agora tinha chegado a vez de eles o abraçarem. Lendo o olhar de preocupação de Marco Polo, Falcão adiantou-se e chamou o conservador da cerimónia para o centro da roda. Protegidos pelos amigos que faziam o som nasal da canção que gostavam, Marco Polo e Anna cruzaram as suas vidas e concretizaram um grande sonho.

Não foi um final feliz, foi uma vírgula feliz, pois esta história, assim como a vida, não tem um ponto final, é um eterno recomeço. A felicidade teria de continuar a ser reconstruída, pois ainda chorariam, atravessariam perdas, desafios, ansiedades e incompreensões. 

 

                                                                                Augusto Cury  

 

 

                      

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