Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SALA ÂMBAR / Steve Berry
A SALA ÂMBAR / Steve Berry

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SALA ÂMBAR

 

CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE MAUTHAUSEN, ÁUSTRIA,

10 DE ABRIL DE 1945

Os prisioneiros o chamavam de Ouvidos porque era o único russo do galpão 8 que entendia alemão. Ninguém jamais usava seu nome ver­dadeiro, Karol Borya. Yxo - Ouvidos - era seu apelido desde o dia em que entrara no campo há mais de um ano. Era um rótulo que ele con­siderava com orgulho, uma responsabilidade que levava a sério.

- O que você ouve? - sussurrou um dos prisioneiros no escuro.

Ouvidos estava encolhido perto da janela, encostado ao vidro ge­lado, com a respiração leve como um fio de teia de aranha no ar seco e taciturno.

- Eles querem mais diversão? - perguntou outro prisioneiro.

Há duas noites os guardas tinham vindo pegar um russo no galpão 8. Era um soldado de infantaria vindo de Rostov, perto do Mar Negro, relativamente novo no campo. Seus gritos foram ouvidos a noite toda, terminando apenas depois de uma rajada de tiros em staccato, e na manhã seguinte o corpo ensangüentado foi pendurado no portão prin­cipal, para todos verem.

Ele desviou rapidamente o olhar do vidro.

- Quietos. O vento torna difícil escutar.

Os catres cheios de piolhos tinham três andares, e cada prisioneiro tinha menos de um metro quadrado de espaço. Cem pares de olhos fundos o encaravam.

Todos os homens respeitavam seu comando. Nenhum se mexeu, com o medo há muito absorvido no horror de Mauthausen. De repen­te, ele deu as costas para a janela.

- Estão vindo.

Um instante depois, a porta do galpão foi aberta. A noite gelada entrou, seguindo o sargento Hunter, encarregado do galpão de prisio­neiros número 8.

- Achtung!

Claus Humer era Schutztaffel, da SS. Mais dois SS armados estavam atrás dele. Todos os guardas de Mauthausen eram da SS. Humer não carregava arma. Nunca. O corpo de 1,83 metro e membros pesados eram toda a proteção de que necessitava.

- Precisamos de voluntários - disse Humer. - Você, você, você e você.

Borya foi o último escolhido. Imaginou o que estaria acontecendo.

Poucos prisioneiros morriam à noite. A câmara da morte ficava desli­gada e o tempo era usado para expulsar o gás e lavar os ladrilhos para a chacina do dia seguinte. Os guardas tendiam a ficar em seus aloja­mentos, amontoados ao redor de fogões de ferro mantidos quentes pela lenha que os prisioneiros morriam cortando. Do mesmo modo, os médicos e seus auxiliares dormiam, preparando-se para outro dia de experiências em que os presos eram usados indiscriminadamente como animais de laboratório.

Humer olhou direto para Borya.

- Você me entende, não é?

Borya ficou quieto, encarando os olhos pretos do guarda. Um ano de terror havia lhe ensinado o valor do silêncio.

- Não tem nada a dizer? - perguntou Humer em alemão. - Ótimo. Você precisa entender... com a boca fechada.

Outro guarda passou com quatro sobretudos de lã sobre os braços estendidos.

- Agasalhos? - murmurou um dos russos.

Nenhum prisioneiro usava agasalho. Uma imunda camisa de aniagem e calças rasgadas, mais trapos do que roupas, eram recebidos ao chegar. Quando morriam, esses trajes eram despidos para ser entre­gues, fedendo e sem serem lavados, aos que chegavam. O guarda jo­gou os casacos no chão.

Humer apontou.

- Mantel anziehen.

Borya pegou um dos amontoados verdes.

- O sargento mandou vestir - explicou em russo.

Os outros três o acompanharam.

A lã arranhava sua pele, mas a sensação era boa. Fazia muito tem­po que não ficava sequer remotamente aquecido.

- Para fora - disse Humer.

Os três russos olharam para Borya e ele sinalizou em direção à por­ta. Todos saíram para a noite.

Humer guiou o grupo pelo gelo e a neve em direção ao pátio princi­pal, enquanto um vento gelado uivava entre as filas de galpões baixos, de madeira. Havia oitenta mil pessoas amontoadas nas construções ao redor, um número maior do que os moradores de toda a província natal de Borya na Bielo-Rússia. Passara a achar que jamais veria aquele local outra vez. O tempo quase se tornara irrelevante, mas, em nome da sanidade, Borya tentava manter algum sentido de sua passagem. Era o final de março. Não. Início de abril. E continuava gelado. Por que ele não podia simplesmente morrer ou ser morto? Centenas encontravam esse destino a cada dia. Será que o dele era sobreviver a este inferno?

Mas para quê?

No pátio principal, Humer virou à esquerda e marchou para uma área aberta. Havia outros galpões de prisioneiros de um dos lados. A cozinha, a cadeia e a enfermaria do campo eram do outro. Na extre­midade mais distante, ficava o rolo compressor, uma tonelada de aço que era arrastado sobre a terra congelada a cada dia. Esperou que o trabalho não envolvesse aquela tarefa desagradável.

Humer parou diante de quatro estacas altas.

Há dois dias um grupo fora levado para a floresta ao redor, e Borya também fora um dos dez prisioneiros escolhidos naquela ocasião. Tinham derrubado três faias pretas. Um prisioneiro quebrou o braço durante o serviço e foi morto a tiro no ato. Os galhos foram retirados e os troncos cortados em quatro partes, depois arrastados de volta ao campo e enfiados no chão até ficarem da altura de um homem, no pá­tio principal. Mas as estacas tinham permanecido nuas nos últimos dois dias. Agora dois guardas armados os vigiavam. Luzes de arco voltaico ardiam acima e enevoavam o ar cortante e seco.

- Esperem aqui - disse Humer.

O sargento subiu um pequeno lance de escada e entrou na cadeia. A luz vazava de um retângulo amarelo na porta. Um instante depois quatro homens nus foram trazidos para fora. As cabeças louras não estavam raspadas como as dos outros russos, poloneses e judeus que constituíam a vasta maioria dos prisioneiros do campo. Nada de mús­culos fracos ou movimentos lentos, tampouco. Nem olhares apáticos ou olhos fundos nas órbitas, ou edemas inchando nos corpos emaciados. Aqueles homens eram fortes. Soldados. Alemães. Borya tinha vis­to outros assim. Rostos de granito, sem emoção. Frios e pétreos, como a noite.

Os quatro andaram eretos e desafiadores, com os braços ao lado do corpo, nenhum evidenciando o frio insuportável que a pele leitosa de­via estar sentindo. Humer os acompanhou para fora da cadeia e sinali­zou para as estacas.

- Ali.

Os quatro alemães nus marcharam para onde foram ordenados.

Humer se aproximou e jogou quatro rolos de corda na neve.

- Amarrem-nos às estacas.

Os três companheiros de Borya o olharam. Ele se abaixou e pegou as quatro cordas, entregando-as aos outros três e dizendo o que fazer. Cada um se aproximou de um alemão nu, que estava em posição de sentido diante dos ásperos toros de faia. Que violação teria provoca­do tamanha loucura? Passou o cânhamo rústico em volta do peito do homem e amarrou o corpo à madeira.

- Apertado - gritou Humer.

Borya deu um nó e puxou a fibra áspera com força sobre o peito nu do alemão. O sujeito nem se mexeu. Humer olhou para os outros três. Borya aproveitou a oportunidade para sussurrar em alemão:

O que você fez?

Não houve resposta.

Apertou mais a corda.

Eles não fazem isso nem conosco.

É uma honra desafiar quem nos capturou - sussurrou o alemão.

Sim, pensou Borya. Era mesmo.

Humer se virou de volta. Borya apertou o último nó.

- Para lá - disse Humer.

Borya e os outros três russos caminharam sobre a neve recente, sain­do do caminho. Para manter o frio a distância, enfiou as mãos nas axi­las e ficou se mexendo sobre um pé e o outro. O sobretudo era maravi­lhoso. Era o primeiro calor que sentia desde que fora trazido ao campo. Naquele momento, sua identidade fora completamente retirada, subs­tituída por um número - 10901 - tatuado no antebraço. Um triângu­lo foi costurado no peito de sua camisa rasgada, do lado esquerdo. Um R no triângulo significava que era russo. A cor também era importante. Vermelho para prisioneiros políticos. Verde para criminosos. Estrela-de-davi amarela para os judeus. Preto e marrom para prisioneiros de guerra.

Humer pareciaaguardar alguma coisa.

Borya olhou à esquerda.

Mais luzes de arco voltaico iluminavam o pátio de desfiles até o portão principal. A estrada lá fora, em direção à pedreira, ia sumindo na escuridão. A sede do comando, logo do outro lado da cerca, não estava iluminada. Ele ficou olhando enquanto o portão principal era aberto e uma figura solitária entrava no campo. O sujeito usava um sobretudo que ia até os joelhos. Calças claras se estendiam por baixo, até as botas de cano alto. Um quepe de oficial, de cor clara, cobria a cabeça. Coxas grandes caminhavam arqueadas, com passo decidido, e a barriga proeminente do sujeito abria o caminho. As luzes revelaram um nariz afiado e olhos claros, feições não desagradáveis.

E instantaneamente reconhecíveis.

Último comandante do Esquadrão Richthofen, comandante da For­ça Aérea Alemã, porta-voz do parlamento alemão, primeiro-ministro da Prússia, presidente do conselho de estado da Prússia, Reichmaster de florestas e caça, presidente do conselho de defesa do Reich, Reichsmarschall do Grande Reich Alemão. Escolhido pelo Führer como sucessor.

Hermann Göring.

Borya tinha visto Göring uma vez. Em 1939. Roma. Göring aparece­ra usando um espalhafatoso terno cinza, o pescoço carnudo enrolado numa gravata escarlate. Rubis adornavam os dedos grossos e uma águia nazista com diamantes engastados estava presa à lapela esquer­da. Tinha feito um discurso contido defendendo o lugar da Alemanha ao sol, perguntando: Vocês preferem ter armas ou manteiga? Preferem im­portar gordura de porco ou minério de ferro? O preparo nos torna poderosos. A manteiga nos torna gordos. Göring tinha terminado o discurso com um floreio, prometendo que a Alemanha e a Itália marchariam ombro a ombro na luta vindoura. Borya se lembrou de ter ouvido com atenção e não ter se impressionado.

-Senhores, imagino que estejam confortáveis - disse Göring em voz calma aos quatro prisioneiros amarrados.

Ninguém respondeu.

O que ele disse, Yxo? - sussurrou um dos russos.

Está ridicularizando eles.

Calem a boca - murmurou Humer. - Fiquem atentos ou vão se juntar a eles.

Göring se posicionou bem na frente dos quatro homens nus.

- Pergunto de novo a cada um de vocês: têm algo a dizer? Apenas o vento respondeu.

Göring se aproximou de um dos alemães trêmulos. O que Borya havia amarrado à estaca.

Mathias, sem dúvida você não quer morrer assim, não é? Você é um soldado, um servidor leal do Führer.

O... Führer... não tem nada a ver... com isto - gaguejou o alemão, o corpo tremendo violentamente.

Mas tudo que fazemos é pela glória maior dele.

Motivo pelo qual... escolho morrer.

Göring deu de ombros. Um gesto casual, como alguém faria se de­cidisse comer mais um bolinho. Fez um gesto para Humer. O sargen­to sinalizou para dois guardas, que empurraram um grande barril na direção dos homens amarrados. Outro guarda se aproximou com qua­tro conchas e as jogou na neve. Humer olhou para os russos.

- Encham-nas com água e fiquem perto de cada um desses homens.

Borya disse aos três, o que fazer, e quatro conchas foram apanhadas e submergidas.

- Não derramem nada - alertou Humer.

Borya teve cuidado, mas o vento soprou algumas gotas para fora. Ninguém notou. Ele voltou ao alemão que havia amarrado à estaca. O que se chamava Mathias. Göring ficou no centro, retirando as luvas de couro.

- Veja bem, Mathias - disse Göring. - Estou tirando as luvas para sentir o frio, como sua pele.

Borya ficou suficientemente perto para ver o pesado anel de prata que envolvia o anular da mão direita do sujeito, no qual estava grava­do um punho de ferro. Göring enfiou a mão direita num bolso da calça e tirou uma pedra. Era dourada, como mel. Borya reconheceu aquilo. Âmbar. Göring acariciou a pedra com os dedos e disse:

- A água será derramada sobre vocês a cada cinco minutos, até que alguém me diga o que quero saber ou até que vocês morram. Qualquer das opções me é aceitável. Mas, lembrem-se, quem falar vive. Então um desses russos miseráveis ficará no seu lugar. E vocês poderão ter o casaco de volta e derramar água nele até que ele morra. Imaginem como seria divertido. Só precisam me contar o que quero ouvir. Agora, têm algo a dizer?

Silêncio.

Göring assentiu para Humer.

- Gieβe es - disse Humer. Derramem.

Borya obedeceu e os outros três o seguiram. A água encharcou a juba loura de Mathias, depois escorreu pelo rosto e o peito. Tremores acompanharam o derramamento. O alemão não emitiu qualquer som, além de bater os dentes.

- Algo a dizer? - perguntou Göring outra vez. Nada.

Cinco minutos depois, o processo foi repetido. Vinte minutos mais tarde, após serem molhados mais quatro vezes, a hipotermia começou a atuar. Göring permanecia impassível e massageava metodicamente o âmbar. Pouco antes que outros cinco minutos se expirassem, ele se aproximou de Mathias.

- Isto é ridículo. Diga onde das Bernstein-zimmer está escondida e interrompa seu sofrimento. Não vale a pena morrer por isso.

O alemão trêmulo só o encarou de volta, com um desafio admirável. Borya quase odiava ser cúmplice de Göring para matá-lo.

- Sie sind ein lügnerisch diebisch-schwein - conseguiu dizer Mathias num só fôlego. Você é um porco mentiroso e ladrão. Depois o alemão cuspiu.

Göring recuou, com uma mancha de saliva na frente do sobretudo. Abriu os botões e sacudiu a mancha, depois puxou as lapelas, reve­lando um uniforme cinza-pérola cheio de condecorações pesadas.

- Eu sou seu Reichsmarschall. Só estou abaixo do Führer. Ninguém usa este uniforme além de mim. Como ousa achar que pode sujá-lo com tanta facilidade? Você dirá o que quero saber, Mathias, caso contrá­rio vai congelar até a morte. Lentamente. Muito lentamente. Não será agradável.

O alemão cuspiu de novo. Desta vez no uniforme. Göring perma­neceu surpreendentemente calmo.

- Admirável, Mathias. Sua lealdade é notável. Mas por quanto tem­po conseguirá sustentá-la? Olhe para você. Não gostaria de estar quen­te? Com o corpo perto de uma grande lareira, a pele enrolada num aconchegante cobertor de lã? - De repente, Göring estendeu a mão e empurrou Borya para perto do alemão amarrado. A água se derramou da concha para a neve. - Este agasalho seria maravilhoso, não é, Ma­thias? Vai permitir que este cossaco miserável fique quente enquanto você congela?

O alemão ficou quieto. Apenas tremia.

Göring empurrou Borya para o lado.

- Que tal um gostinho do calor, Mathias?

O Reichsmarschall abriu a braguilha da calça. A urina quente jorrou num arco, soltando vapor e deixando riscas amarelas na pele nua, que escorreram até a neve. Göring sacudiu o membro e depois fechou a calça.

- Sente-se melhor, Mathias?

- Verrottet in der schzveinshölle.

Borya concordou. Apodreça no inferno dos porcos.

Göring se adiantou rapidamente e deu um tapa com as costas da mão no rosto do soldado, e seu anel de prata lhe rasgou a bochecha. O sangue escorreu.

- Derramem! - gritou Göring.

Borya voltou ao barril e encheu de novo sua concha.

O alemão chamado Mathias começou a gritar.

- Mein Führer. Mein Führer. Mein Führer. - Sua voz ficou mais alta. Os outros três homens amarrados se juntaram a ele.

A água escorria.

Göring ficou parado, olhando, remexendo furiosamente o pedaço de âmbar entre os dedos. Duas horas depois, Mathias morreu coberto de gelo. Dentro de mais uma hora, os outros três alemães sucumbiram. Ninguém mencionou nada sobre das Bernstein-zimmer.

A Sala de Âmbar.

 

ATLANTA, GEÓRGIA

TERÇA-FEIRA, 6 DE MAIO, TEMPO PRESENTE, 10H35

A juíza Rachel Cutler olhou por cima dos óculos de aro de tartaruga. O advogado tinha dito aquilo de novo e, desta vez, ela não deixaria o comentário passar.

Perdão, advogado?

Eu disse que o réu alegará erro de julgamento.

Não. Antes disso. O que o senhor disse?

Disse: sim, senhor.

Se não notou, eu não sou um senhor.

Correto, meritíssima. Peço desculpas.

Você fez isso quatro vezes nesta manhã. Tomei nota.

O advogado deu de ombros.

- Parece uma questão sem importância. Por que a meritíssima se daria ao trabalho de anotar meu simples lapso verbal?

O sacana impertinente chegou a sorrir. Ela ficou mais ereta na cadei­ra e o encarou, irritada. Mas percebeu imediatamente o que T. Marcus Nettles estava fazendo. Por isso permaneceu quieta.

- Meu cliente está sendo julgado por agressão com agravantes, meri­tíssima. No entanto, a corte parece mais preocupada com o modo como me dirijo à senhora do que com a questão do desvio de conduta.

Ela olhou para o júri, depois para a mesa da promotoria. O promo­tor assistente do condado de Fulton permaneceu impassível, aparente­mente satisfeito ao ver que o oponente estava cavando a própria sepul­tura. Obviamente, o jovem promotor não captava o que Nettles estava tentando. Mas ela sim.

- Está absolutamente certo, advogado. É uma questão sem impor­tância. Prossiga.

Ela se recostou na cadeira e notou o momentâneo olhar de irritação no rosto de Nettles. Uma expressão que um caçador poderia ter quan­do seu tiro não acertava o alvo.

- E quanto à minha moção de erro de julgamento? - perguntou Nettles.

- Negada. Continue. Prossiga com seu sumário.

 

Rachel ficou olhando enquanto o primeiro jurado se levantava e pronunciava o veredicto de culpado. As deliberações tinham demora­do apenas vinte minutos.

- Meritíssima - disse Nettles, levantando-se. - Peço uma investiga­ção pré-sentença.

Negada.

Peço que o anúncio da sentença seja adiado.

Negado.

Nettles pareceu sentir o erro que havia cometido antes.

Peço que o tribunal se declare impedido.

Baseado em quê?

Atitude tendenciosa.

Contra quem ou o quê?

Contra mim e meu cliente.

Explique-se.

O tribunal demonstrou preconceito.

Como?

Com aquela observação hoje cedo sobre meu uso inadvertido da palavra senhor.

Pelo que recordo, advogado, eu admiti que era uma questão sem importância.

Sim, admitiu. Mas nossa conversa ocorreu com o júri presente, e o dano foi causado.

Não me lembro de qualquer objeção ou moção de erro de julga­mento baseado naquela conversa.

Nettles ficou quieto. Ela olhou para o assistente da promotoria.

Qual é a posição do Estado?

O Estado se opõe à moção. O tribunal foi justo.

Ela quase sorriu. Pelo menos o jovem advogado sabia a resposta certa.

- Moção de impedimento negada. - Rachel olhou para o réu, um rapaz branco de cabelos arrepiados e rosto cheio de marcas de espi­nhas. - O réu deve ficar de pé. - Ele obedeceu. - Barry King, você foi considerado culpado do crime de agressão com agravantes. Portanto, este tribunal o envia ao departamento de correções por um período de vinte anos. O meirinho levará o réu sob custódia.

Ela ficou de pé e foi na direção de uma porta de carvalho que le­vava à sua sala de audiências.

- Sr. Nettles, posso falar com o senhor um momento? - O assistente da promotoria também foi em sua direção. - Sozinha.

Nettles deixou o cliente, que estava sendo algemado, e a acompa­nhou até a sala.

- Feche a porta, por favor. - Ela abriu o zíper da toga, mas não a retirou. Foi para trás da mesa. - Bela tentativa, advogado.

- Qual?

- Antes, quando achou que aquele golpe do senhor e senhora me ti­raria do sério. Você estava tremendo nas bases com aquela defesa ca­penga, por isso achou que minha perda de estribeira lhe garantiria uma moção de erro de julgamento.

Ele deu de ombros.

A gente precisa tentar tudo.

O que você precisa é demonstrar respeito pelo tribunal e não chamar uma juíza de senhor. No entanto fez isso. Deliberadamente.

- A senhora acaba de sentenciar meu cliente a vinte anos sem o benefí­cio de uma audiência pré-sentença. Se isso não é preconceito, o que é?

Ela se sentou e não convidou o advogado a fazer o mesmo.

Não preciso de audiência. Condenei King por espancamento com agravantes há dois anos. Seis meses preso e seis em condicional. Eu me lembro. Desta vez, ele pegou um bastão de beisebol e fraturou o crâ­nio de um homem. O sujeito esgotou o pouco de paciência que tenho.

A senhora deveria ter se considerado impedida. Todas essas in­formações turvaram seu julgamento.

Verdade? A investigação pré-sentença, pela qual você ficou gri­tando, revelaria tudo isso, de qualquer modo. Eu simplesmente lhe poupei o trabalho de esperar o inevitável.

Você é uma puta escrota.

Isto vai lhe custar cem dólares. Pagáveis agora. Junto com mais cem pelo que armou no tribunal.

Tenho direito a uma audiência antes que você me acuse de de­sacato.

Certo. Mas você não quer isso. Não vai servir de nada para esta imagem chauvinista que você se esforça tanto para mostrar.

Nettles ficou quieto e ela pôde sentir o fogo crescendo. Era um sujei­to pesado, com papadas e reputação de tenacidade, sem dúvida, desa­costumado a receber ordens de uma mulher.

- E a cada vez que você mostrar essa sua bunda enorme no meu tribunal, vai lhe custar cem dólares.

Ele foi em direção à mesa e pegou um maço de dinheiro, tirando duas notas de cem dólares, novas em folha, com o Benjamin Franklin inchado. Bateu as duas na mesa, depois desdobrou mais três.


-           Foda-se.

Uma nota foi largada.

-           Foda-se.

A segunda nota caiu.

-           Foda-se.

O terceiro Ben Franklin desceu flutuando.


 

Rachel tirou a toga, voltou à sala do tribunal e subiu os três degraus até o tablado de carvalho que havia ocupado nos últimos quatro anos. O relógio na parede dos fundos marcava 13h45. Imaginou por mais quanto tempo teria o privilégio de ser juíza. Este era um ano de eleição, as inscrições tinham terminado há duas semanas, e ela atraíra dois opositores para as primárias de julho. Havia boatos de que pessoas entrariam na corrida, mas ninguém apareceu até dez minutos antes das cinco da tarde na sexta-feira, para pagar os quase quatro mil dólares necessários para concorrer. O que poderia ter sido uma elei­ção fácil e sem concorrentes agora se transformara num longo verão de levantamento de verbas e discursos. Nenhuma das duas coisas era agradável.

No momento, não precisava de mais isso. Sua agenda estava lota­da, com mais processos acrescentados a cada dia. Mas o calendário de hoje fora encurtado por um veredicto rápido no caso estado da Geórgia contra Barry King. Menos de uma hora de deliberação era rápido, segun­do qualquer padrão, e o júri obviamente não tinha se impressionado com o teatro de T. Marcus Nettles.

Com a tarde livre, decidiu cuidar de vários assuntos atrasados, que não precisavam de júri. As horas de julgamento tinham sido produtivas. Quatro condenações, seis admissões de culpa e uma absolvição. Onze processos criminais fora do caminho, abrindo espaço para o novo lote que sua secretária informou que seria entregue pelo encarregado da programação de manhã.

O Fulton County Daily Report dava notas anualmente a todos os juízes do tribunal superior local. Nos últimos três anos, ela estivera perto do topo, resolvendo os processos mais rápido que a maioria de seus colegas juízes, com uma taxa de apenas dois por cento de rever­são nos tribunais de apelação. Nada mal estar certa em 98 por cento do tempo.

Acomodou-se atrás da bancada e assistiu ao início do desfile da tarde. Advogados vinham e iam, alguns trazendo clientes que precisa­vam da finalização de um divórcio ou da assinatura de um juiz, ou­tros procurando uma resolução para moções pendentes em casos cíveis que aguardavam julgamento. Umas quarenta questões diferentes no total. Quando olhou de novo para o relógio do outro lado da sala, eram 16h15 e a agenda tinha se reduzido a dois itens. Um era uma adoção, tarefa da qual realmente gostava. O menino de 7 anos lhe lembrava Brent, seu filho de mesma idade. A última questão era uma simples mudança de nome, e a pessoa não era representada por um advoga­do. Ela havia marcado o caso especificamente para o fim, esperando que o tribunal estivesse vazio.

A secretária lhe entregou a pasta de documentos.

Ela olhou para o velho, vestido com paletó de tweed bege e calça marrom, diante da mesa dos advogados.

Seu nome completo? - perguntou ela.

Karl Bates. - A voz cansada tinha sotaque da Europa Oriental.

Há quanto tempo mora no condado de Fulton?

Quarenta e seis anos.

Nasceu neste país?

Não. Vim da Bielo-Rússia.

E é cidadão americano?

Ele assentiu.

- Sou um velho. Tenho 83 anos. Passei quase metade da vida aqui.

A pergunta e a resposta não eram relevantes para a petição, mas nem a secretária nem o escrivão disseram nada. Seus rostos pareciam entender o momento.

Meus pais, irmãos, irmãs, todos foram mortos pelos nazistas. Mui­tos morreram na Bielo-Rússia. Éramos russos-brancos. Muito orgulho­sos. Depois da guerra não restaram muitos de nós quando os soviéticos anexaram nossa terra. Stalin foi pior que Hitler. Um louco. Carniceiro. Nada restou por lá quando ele terminou, por isso fui embora. Este país é a terra das oportunidades, não é?

O senhor era cidadão russo?

-Acredito que a designação correta era cidadão soviético. - Ele ba­lançou a cabeça. - Mas nunca me considerei soviético.

O senhor serviu durante a guerra?

Por necessidade. A Grande Guerra Patriótica, como dizia Stalin. Era tenente. Fui capturado e mandado a Mauthausen. Passei dezesseis meses num campo de concentração.

Qual foi sua ocupação aqui, depois de emigrar?

Joalheiro.

O senhor fez uma petição a este tribunal para mudar de nome. Por que deseja ser conhecido como Karol Borya?

É meu nome de nascimento. Meu pai me chamou de Karol. Sig­nifica obstinado. Eu era o mais novo de seis filhos e quase morri ao nascer. Quando imigrei para este país pensei que deveria proteger a identidade. Tinha trabalhado em comissões do governo enquanto esta­va na União Soviética. Odiava os comunistas. Eles arruinaram minha pátria, e eu falava disso. Stalin mandou muitos compatriotas para os campos na Sibéria. Achei que minha família sofreria. Muito poucas pessoas podiam sair de lá na época. Mas antes de morrer quero meu passado de volta.

O senhor está doente?

Não. Mas me pergunto quanto tempo este corpo cansado vai agüentar.

Ela olhou para o velho parado à frente, o corpo encolhido pela idade, mas ainda distinto. Os olhos eram inescrutáveis e fundos, o ca­belo de um branco nítido, a voz grave e enigmática.

- O senhor parece muito bem para um homem de sua idade.

Ele sorriu.

- O senhor deseja essa troca devido a uma fraude, para fugir de processos ou se esconder de um credor?

Jamais.

Então concedo a petição. O senhor será Karol Borya outra vez.

Ela assinou a ordem anexada à petição e entregou a pasta à secre­tária. Descendo da plataforma, aproximou-se do velho. Lágrimas es­corriam pelas bochechas barbadas. Os olhos dela também ficaram vermelhos. Ela o abraçou e disse baixinho:

- Te amo, papai.

 

16H50

Paul Cutler se afastou da poltrona de carvalho e se dirigiu ao tribu­nal, com a paciência de advogado se esgotando.

- Meritíssimo, o espólio não contesta os serviços do reclamante. Apenas questionamos a quantia que ele está tentando cobrar. Doze mil e trezentos dólares é muito dinheiro para pintar uma casa.

Era uma casa grande - disse o advogado do credor.

Espero que sim - acrescentou o juiz de sucessões.

A casa tem 185 metros quadrados - disse Paul. - Não há nada de incomum. O serviço de pintura era rotineiro. O reclamante não tem direito à quantia cobrada.

Juiz, o falecido contratou meu cliente para uma pintura comple­ta na casa, coisa que meu cliente fez.

O que o reclamante fez, juiz, foi se aproveitar de um velho de 73 anos. Ele não realizou serviços que valessem 12.300 dólares.

O falecido prometeu um bônus ao meu cliente, caso terminasse em uma semana, e ele terminou.

Paul não podia acreditar que o outro advogado estivesse dizendo aquilo com tamanha cara-de-pau.

Muito conveniente, considerando-se que a única pessoa capaz de Contradizer essa promessa é o falecido. O fato é que nossa empresa é testamenteira do espólio, e não podemos, em sã consciência, pagar essa conta.

- Vocês querem ir a júri? - perguntou o enrugado juiz à outra parte.

O advogado se abaixou e sussurrou com o pintor, um homem mais jovem, perceptivelmente desconfortável no terno marrom, de poliéster, e gravata.

- Não, senhor. Talvez um acordo. Sete mil e quinhentos.

Paul não se abalou sequer por um instante.

- Mil duzentos e cinqüenta. Nem um centavo a mais. Nós contra­tamos outro pintor para examinar o serviço. Pelo que ele me disse, te­mos uma boa possibilidade de processo por trabalho malfeito. Além disso, a tinta parece ter sido diluída. Por mim, podemos deixar o júri de­cidir. - Ele olhou para o outro advogado. - Eu ganho 220 dólares por hora enquanto lutamos. Portanto, demore quanto quiser, advogado.

O outro advogado nem sequer consultou o cliente.

Não possuímos recursos para litígio, por isso não temos opção a não ser aceitar a oferta do espólio.

Aposto que sim. Extorsionário desgraçado - murmurou Paul en­quanto pegava sua pasta, em volume suficiente para apenas o outro advogado escutar.

- Redija uma ordem, Sr. Cutler - disse o juiz.

Paul saiu rapidamente da sala de audiências e marchou pelos corre­dores da divisão de sucessões do condado de Fulton. Ela ficava três andares abaixo da confusão do Tribunal Superior, e a um mundo de distância. Nenhum assassinato sensacional, nenhum litígio de alto ní­vel ou divórcios contestados. Testamentos, fundos e disputas de guar­da formavam o âmbito de sua jurisdição limitada - comum, tediosa, com provas que geralmente não passavam de lembranças diluídas e histórias de alianças reais e imaginárias. Um recente estatuto que Paul ajudara a esboçar permitia julgamentos com júri em determinadas cir­cunstâncias, e ocasionalmente um litigante exigia isso. Mas, no geral, os negócios eram feitos por um grupo de juízes idosos - ex-advogados que tinham percorrido esses mesmos corredores em busca de instru­mentos de execução testamentária.

Desde que a Universidade da Geórgia o havia mandado para o mundo com um doutorado em direito, o juizado de sucessão era a es­pecialidade de Paul. Não fora direto da faculdade para a escola de di­reito, sumariamente rejeitado pelas 22 escolas às quais se candidatara. Seu pai ficou arrasado. Durante três anos trabalhou no Geórgia Citizens Bank, no departamento de sucessões e curadoria, como um escriturário melhorado, e a experiência serviu de motivação suficiente para fazer de novo a prova para a faculdade de direito. Três escolas o aceitaram, e um terceiro ano como escriturário resultou num trabalho na Pridgen & Woodworth depois da formatura. Agora, treze anos depois, era só­cio participante da empresa, com experiência suficiente no departa­mento de sucessões e curadoria para ser o próximo na fila para uma sociedade integral e as rédeas administrativas do departamento.

Virou uma esquina e passou pela porta dupla na outra extremidade.

O dia de hoje tinha sido agitado. A moção do pintor fora marcada há mais de uma semana, mas logo depois do almoço seu escritório re­cebeu um telefonema do advogado de outro credor para a audiência de uma moção arranjada às pressas. Originalmente fora marcada para as 16h30, mas o advogado da outra parte não compareceu. Por isso ele correra para uma sala de audiências adjacente e cuidado da tentativa de roubo por parte do pintor. Puxou com força a porta de madeira e caminhou pelo corredor central do tribunal deserto.

- Teve notícias do Marcus Nettles? - perguntou à secretária do tri­bunal, na outra extremidade.

Um sorriso se abriu no rosto da mulher.

- Claro.

- São quase cinco horas. Onde ele está?

- No departamento do xerife. Pelo que eu soube, puseram o sujeito numacela.

Paul colocou a pasta na mesa de carvalho.

Está brincando?

Não. Sua ex mandou prendê-lo hoje de manhã.

Rachel?

A secretária assentiu.

- Dizem que ele bancou o engraçadinho com ela na sala de audiên­cias. Pagou trezentos dólares e depois mandou ela se f... três vezes.

A porta dupla do tribunal se abriu e T. Marcus Nettles entrou bamboleando. Seu terno Neiman Marcus bege estava amarrotado, a grava­ta Gucci fora do lugar, os sapatos italianos amassados e sujos.

Já era hora, Marcus. O que aconteceu?

Aquela vaca que você já chamou de mulher me pôs na cadeia e me deixou lá desde cedo. - A voz de barítono estava tensa. - Diga, Paul, ela é realmente uma mulher ou algum híbrido com bagos entre aquelas pernas compridas?

Paul começou a dizer alguma coisa, mas decidiu deixar para lá.

Ela pegou no meu pé diante do júri só porque eu a chamei de senhor...

Quatro vezes, pelo que ouvi contar - disse a secretária.

É. Provavelmente foi. Depois de eu fazer uma moção por erro de julgamento, que ela deveria ter aceitado, a vaca deu vinte anos ao meu cliente, sem audiência pré-sentença. Depois quis me dar uma lição so­bre ética. Não preciso dessa merda. Menos ainda vinda de uma vaca metida a esperta. Agora é o seguinte: vou dar dinheiro para os dois concorrentes dela. Um monte de dinheiro. Vou me livrar desse pro­blema na segunda terça-feira de julho.

Paul já ouvira o suficiente.

- Está pronto para discutir esta moção?

Nettles pôs a pasta na mesa.

Por que não? Pensei que ia ficar na cela a noite inteira. Acho que a puta tem coração, afinal de contas.

Já chega, Marcus - disse Paul, com a voz um pouco mais firme do que pretendia.

Os olhos de Nettles se apertaram, com um olhar penetrante e feroz que parecia ler seus pensamentos.

- Não diga que você se importa, merda. Vocês estão divorciados... o quê... há três anos? Ela deve arrancar um bom naco do seu salário como pensão.

Paul ficou quieto.

Puta que o pariu - disse Nettles. - Você ainda é a fim dela, não é?

Podemos ir em frente?

Filho-da-puta. - Nettles balançou a cabeça grande.

Paul foi até a outra mesa preparar-se para a audiência. A secretária saiu de sua cadeira e voltou para chamar o juiz. Ele ficou satisfeito por ela ter saído. As fofocas de tribunal corriam de boca em boca como fogo na mata.

Nettles acomodou seu corpanzil na poltrona.

- Paul, meu garoto, aprenda com alguém que perdeu cinco vezes: quando você se livrar delas, mantenha-se assim.

 

17H45

Karol Borya pegou a entrada de veículos e estacionou o Oldsmobile. Com 83 anos, sentia-se feliz por continuar dirigindo. Sua visão era espantosamente boa, e a coordenação, ainda que lenta, parecia bas­tante adequada para que o estado renovasse sua carteira. Não dirigia muito, nem ia longe. À mercearia, ocasionalmente ao shopping center e à casa de Rachel pelo menos duas vezes por semana. Hoje ti­nha se aventurado apenas 6,5 quilômetros até a estação de trens, onde pegou um trem até o centro para a audiência de troca de nome, no tribunal.

Morava há quase quarenta anos no nordeste do condado de Fulton, muito antes da explosão de Atlanta em direção ao norte. Os morros que já haviam sido cobertos de florestas, cuja argila vermelha havia escorrido para o rio Chattahoochee ali perto, agora estavam tomados por empreendimentos comerciais, áreas residenciais de alto nível, apartamentos e ruas. Milhões de pessoas viviam e trabalhavam ao re­dor dele e, nesse meio-tempo, Atlanta havia adquirido as designações de metropolitana e "anfitriã olímpica".

Foi até a rua e verificou a caixa de correspondência na calçada. A tarde estava quente, incomum para maio, o que era bom para suas juntas artríticas, que pareciam sentir a aproximação do outono e odi­avam completamente o inverno. Virou-se para a casa e notou que as empenas de madeira precisavam de pintura.

Tinha vendido suas terras há 24 anos, recebendo o suficiente para pagar uma casa nova à vista. Na época, o local era uma das novas áreas de empreendimentos imobiliários, e agora a rua havia se trans­formado num agradável recanto sob uma cúpula de árvores com um quarto de século. Sua querida esposa, Maya, tinha morrido dois anos antes de a casa ficar pronta. O câncer a reclamou depressa. Depressa demais. Ele mal teve tempo de se despedir. Rachel estava com 14 anos e foi corajosa, Karol tinha 50 anos e morreu de medo. A perspectiva de envelhecer sozinho o havia apavorado. Mas Rachel sempre ficou por perto. Tinha sorte de ter uma filha tão boa. A úni­ca filha.

Entrou na casa e ficou ali apenas alguns minutos quando a porta dos fundos se abriu violentamente e os dois netos entraram correndo na cozinha. Eles jamais batiam, e Karol jamais fechava a porta. Brent tinha 7 anos, Maria, 6. Ambos o abraçaram. Rachel os seguia.

- Vovô, vovô, cadê a Lucy? - perguntou Marla.

- Dormindo na sala. Onde mais estaria? - O animal vadio tinha aparecido no quintal havia quatro anos e nunca mais foi embora.

As crianças correram para a parte da frente da casa. Rachel abriu a geladeira e achou uma jarra de chá.

- Você ficou um tanto emotivo no tribunal.

- Sei que falei demais. Mas pensei no meu pai. Gostaria que você o tivesse conhecido. Ele trabalhava no campo todo dia. Era czarista. Leal até o fim. Odiava os comunistas. - Karol fez uma pausa. - Eu esta­va pensando que não tenho nenhuma foto dele.

Mas tem o nome dele outra vez.

E agradeço por isso, querida. Ficou sabendo onde Paul estava?

- Minha secretária verificou. Estava preso no tribunal de sucessões e não pôde ir.

- Como ele vai?

Rachel tomou um gole de chá.

- Bem, acho.

Karol examinou a filha. Era muito parecida com a mãe. Pele branca perolada, cabelos castanho-avermelhados e ondulados, olhos casta­nhos perceptivos, que davam a aparência firme de uma mulher no controle das coisas. E inteligente. Talvez inteligente demais para seu próprio bem.

Como você está? - perguntou ele.

Eu me viro. Sempre me viro.

- Tem certeza, filha? - Karol tinha notado mudanças ultimamente. Ela estava um tanto aérea, um pouco mais distante e frágil. Uma hesi­tação com relação à vida que ele achava perturbadora.

- Não se preocupe comigo, papai. Vou ficar bem.

- Ainda não tem pretendentes? - Ele não sabia de nenhum homem nos três anos desde o divórcio.

- Como se eu tivesse tempo. Só faço trabalhar e cuidar daqueles dois ali. Para não mencionar você.

Karol precisava falar:

Eu me preocupo.

Não precisa.

Mas ela desviou o olhar enquanto respondia. Talvez não tivesse tanta certeza.

Não é bom envelhecer sozinho. Ela pareceu captar a mensagem.

O senhor não está sozinho.

Não estou falando de mim, e você sabe.

Rachel foi até a pia e lavou o copo. Karol decidiu não insistir e ligou a televisão sobre a bancada. O aparelho continuava sintonizado nas manchetes da CNN desde a manhã. Baixou o volume e sentiu que precisava falar:

- O divórcio é errado.

Ela o interrompeu com um de seus olhares.

Vai começar com o sermão?

Engula esse orgulho. Vocês deviam tentar de novo.

Paul não quer.

O olhar do velho sustentou o dela.

Vocês dois são orgulhosos demais. Pense nos meus netos.

Eu pensei, quando me divorciei. Nós só brigávamos. Você sabe.

Ele balançou a cabeça.

Teimosa como a mãe.

Ou seria como ele? Difícil dizer.

Rachel enxugou as mãos com a toalha de pratos.

- Paul vai chegar lá pelas sete, para pegar as crianças. Vai levar os dois para casa.

- Aonde você vai?

- A uma festa de levantamento de fundos para a campanha. Vai ser um verão difícil, e não estou ansiosa por isso.

Ele se concentrou na televisão e viu cordilheiras, montanhas íngre­mes e penhascos rochosos. A visão era instantaneamente familiar. Uma legenda na parte de baixo da tela dizia STOD, ALEMANHA. Aumentou o volume.

-           ...empreiteiro milionário Wayland McKoy acha que esta área na região central da Alemanha ainda pode guardar tesouros nazistas. Sua expedição começa na semana que vem, nas montanhas Harz, num lu­gar que pertencia à antiga Alemanha Oriental. Só recentemente esses locais se tornaram acessíveis, graças à queda do comunismo e à reuni­ficação das duas Alemanhas. – A imagem passou para uma visão fecha­da, de cavernas em encostas cobertas de florestas. - Acredita-se que, nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, objetos roubados pelos nazistas foram guardados às pressas dentro de centenas de túneis que atravessam essas montanhas antigas. Alguns também eram usados como depósito de munição, o que complica a busca, tornando o empreendimento ainda mais perigoso. De fato, mais de duas dúzias de pessoas já perderam a vida tentando localizar tesouros nesta área, desdea guerra.

Rachel chegou perto e lhe deu um beijo no rosto.

- Preciso ir.

Ele deu as costas para a televisão.

- Paul vai chegar às sete?

Ela assentiu e foi para a porta.

O velho voltou a atenção imediatamente para a TV.

 

CINCO

Borya aguardou até a próxima meia hora, esperando que as manchetes contivessem alguma repetição da matéria. E teve sorte. O mesmo rela­tório da busca de Wayland McKoy aos tesouros nazistas nas monta­nhas Harz apareceu no segmento das 6h30.

Continuava pensando na informação, vinte minutos depois, quan­do Paul chegou. Mas nessa hora estava na sala íntima, com um mapa rodoviário da Alemanha desdobrado na mesinha de centro. Compra­ra-o no shopping há alguns anos, substituindo o ultrapassado, da National Geographic, que usara durante décadas.

Onde estão as crianças? - perguntou Paul.

Molhando minha horta.

Tem certeza que é seguro para a horta? Ele sorriu.

Andou seca. Eles não podem fazer mal.

Paul se deixou cair numa poltrona, com a gravata frouxa e o cola­rinho desabotoado.

- Aquela sua filha contou que mandou prender um advogado hoje cedo?

Borya não ergueu o olhar do mapa.

- Ele merecia?

- Provavelmente. Mas ela está se candidatando à reeleição, e o sujeitonão é flor que se cheire. Aquele temperamento esquentado vai acabar rendendo encrenca para ela.

Borya olhou o ex-genro.

- Exatamente como a minha Maya. Num instante ficava meio louca.

E não ouve o que ninguém diz.

Herdou isso da mãe, também. Paul sorriu.

-Aposto que sim. - E sinalizou para o mapa. - O que está fazendo?

Verificando uma coisa. Vi na CNN. Um sujeito diz que ainda há obras de arte nas montanhas Harz.

Hoje de manhã saiu uma matéria no USA Today. Atraiu minha atenção. Um cara chamado McKoy, da Carolina do Norte. Eu achava que as pessoas iam parar com esse negócio de legado nazista. Cinqüenta anos é muito tempo para uma tela de trezentos anos ficar numa mina úmida. Seria um milagre se não tivesse virado uma massa de mofo.

Borya franziu a testa.

- As coisas boas já foram encontradas ou estão perdidas para sempre.

- Acho que você deve saber tudo sobre isso. Borya confirmou com a cabeça.

- Tenho alguma experiência, sim. - E tentou esconder o interesse atual, ainda que suas entranhas estivessem fervilhando. - Poderia me comprar um exemplar desse USA?

- Não preciso. O meu está no carro. Vou pegar.

Paul saiu pela porta da frente no momento em que a porta dos fun­dos se abriu e as duas crianças foram correndo até a sala íntima.

- Seu pai está aqui - disse Borya a Marla.

Paul voltou, entregou o jornal e depois disse às crianças:

- Afogaram os tomates?

A menininha riu.

- Não, papai. - Ela puxou o braço de Paul. - Vem ver as verduras do vovô.

Paul olhou para ele e sorriu.

- Já volto. A matéria está na página quatro ou cinco, acho.

Borya esperou até eles saírem pela cozinha antes de encontrar a ma­téria e ler cada palavra.

 

TESOUROS ALEMÃES À ESPERA?

Fran Downing, repórter

Cinqüenta e dois anos se passaram desde que os comboios nazistas passaram pelas montanhas Harz entrando em túneis escavados especi­ficamente para esconder obras de arte e outros objetos valiosos do Reich. Originalmente, as cavernas eram usadas como locais de fabricação de armas e depósitos de munição. Mas nos últimos dias da Segunda Guer­ra Mundial tornaram-se perfeitas para material saqueado e tesouros nacionais.

Há dois anos, Wayland McKoy liderou uma expedição às cavernas de Heimkehl perto de Uftrugen, na Alemanha, em busca de dois vagões fer­roviários enterrados sob toneladas de gipsita. McKoy encontrou os vagões, junto com várias antigas obras-primas da pintura, pelas quais os governos francês e alemão pagaram uma bela recompensa.

Desta vez, McKoy, um empreiteiro, incorporador de imóveis e caçador de tesouros da Carolina do Norte, está esperando coisa maior. Ele fez parte de quatro expedições anteriores e tem expectativa de que esta última, a ini­ciar na próxima semana, seja a mais bem-sucedida.

"Pensem bem. É 1945. Os russos estão vindo de um lado, os americanos de outro. Você é curador do museu de Berlim, cheio de obras de arte roubadas de cada país invadido. Você tem algumas horas. O que colocará no trem que sairá da cidade? Obviamente, as coisas mais valiosas."

McKoy conta a história de um desses trens, que deixou Berlim nos úl­timos dias da Segunda Guerra Mundial em direção ao sul, para a região Central da Alemanha, onde ficam as montanhas Harz. Não existem regis­tros de seu destino, e ele espera que a carga esteja em algumas cavernas Encontradas no outono passado. Entrevistas com parentes de soldados alemães que ajudaram a carregar o trem o convenceram de sua existência. No início deste ano, McKoy usou um radar de penetração no solo para examinaras novas cavernas.

"Há algo lá", diz ele. "Certamente é grande o bastante para serem vagões de carga ou caixotes de depósito."

McKoy já conseguiu uma permissão das autoridades alemãs para escavar. Está particularmente empolgado com as perspectivas de trabalhar neste novo local, já que, pelo que sabe, ninguém escavou a área. Tendo feito parte daAlemanha Oriental, a região se manteve isolada durante décadas. A lei alemãatual diz que McKoy pode ficar apenas com uma pequena parte do que não for reivindicado pelos donos legítimos. No entanto, McKoy não se abala.

"É empolgante. Diabos, talvez a Sala de Âmbar possa estar escondida debaixo de todas aquelas rochas."

As escavações serão lentas e difíceis. Retroescavadeiras e tratores podem causar danos ao tesouro. McKoy será obrigado a fazer furos nas rochas e depois parti-las quimicamente.

"É um trabalho lento e perigoso, mas vale a pena", diz ele. "Os nazis­tas obrigaram prisioneiros a escavar centenas de cavernas, onde guardavam munição a salvo dos bombardeios. Até as cavernas usadas como depósi­tos de arte sofreram a ação das minas por várias vezes. O segredo é achar a caverna certa e entrar em segurança."

O equipamento de McKoy, sete empregados e uma equipe de TV já es­tão esperando na Alemanha. Ele planeja ir para lá no fim de semana. O custo de quase um milhão de dólares está sendo pago por investidores par­ticulares que esperam lucrar com a operação.

Segundo McKoy: "Há coisas enterradas lá. Termo certeza. Alguém vai encontrar todo aquele tesouro. Por que não eu?"

 

Borya ergueu o olhar. Mãe de Deus Todo-Poderoso. Seria isso? E se fosse, o que poderia ser feito? Ele era um velho. Em termos realistas, restava pouco a fazer.

A porta dos fundos se abriu e Paul entrou na sala íntima. Borya jo­gou o jornal na mesinha de centro.

Ainda está interessado nessa coisa de arte? - perguntou Paul.

Hábito de toda a vida.

Seria empolgante escavar naquelas montanhas. Os alemães as usavam como depósito. Não dá para dizer o que ainda existe.

Esse tal de McKoy fala da Sala de Âmbar. - Borya balançou a cabeça. - Outro homem procurando os painéis desaparecidos.

Paul riu.

- A atração do tesouro. Rende ótimos especiais de TV.

Eu vi os painéis de âmbar uma vez - disse Borya, cedendo a uma ânsia de falar. - Peguei um trem de Minsk a Leningrado. Os comu­nistas tinham transformado o palácio de Catarina num museu. Vi a sala em toda a sua glória. - Ele gesticulou. - Dez metros por dez me­tros. Paredes de âmbar. Como um quebra-cabeça gigantesco. Toda a madeira entalhada maravilhosamente e folheada com ouro. Incrível.

Já li a respeito. Muita gente a considera a oitava maravilha do mundo.

Era como entrar num conto de fadas. O âmbar era duro e bri­lhante como pedra, mas não frio como o mármore. Mais parecido com madeira. Limão, castanho-uísque, cereja. Cores quentes. Era como estar ao sol. Incrível o que os antigos artistas podiam fazer. Pequenas figuras esculpidas, flores, conchas. Os acabamentos intri­cados. Toneladas de âmbar, tudo trabalhado à mão. Ninguém jamais fez isso antes.

- Os nazistas roubaram os painéis em 1941? Borya assentiu.

- Criminosos desgraçados. Deixaram a sala vazia. Nunca mais aquilo foi visto, desde 1945. Ele estava ficando furioso ao pensar naquilo, e sabia que já falara demais, por isso mudou de assunto. - Você disse que minha Rachel pôs um advogado na cadeia?

Paul se recostou na poltrona e cruzou os tornozelos sobre um pufe.

- A Rainha do Gelo ataca outra vez. É como a chamam no tribunal. Ele suspirou. - Todo mundo acha que, como nós nos divorciamos, eu não me importo.

E se importa?

Infelizmente, sim.

Você ama minha Rachel?

- E meus filhos. O apartamento fica muito silencioso. Sinto falta de todos eles, Karl. Ou será que devo dizer Karol? Vou demorar um tem­po até me acostumar.

- Nós dois.

- Desculpe não ter ido lá hoje. Minha audiência foi adiada. Era com o advogado que Rachel prendeu.

Agradeço a ajuda com a petição.

De nada.

- Você sabe que ela não teve nenhum namorado desde o divórcio - disse Borya com um brilho nos olhos. - Será por isso que anda tão irritada? - Paul se empertigou visivelmente. Borya achou que tinha captado o pensamento dele. - Diz que anda ocupada demais. Mas eu duvido.

O ex-genro não engoliu a isca e simplesmente ficou sentado em silêncio. Borya voltou a atenção ao mapa. Depois de alguns instantes, disse:

- Braves, na TBS.

Paul pegou o controle remoto e ligou a TV.

Borya não mencionou Rachel de novo, mas durante todo o tempo ficou olhando o mapa. Um verde claro delineava as montanhas Harz, rolando de norte a sul e depois virando para leste, acompanhando a antiga fronteira entre as duas Alemanhas, que havia desaparecido. As cidades eram marcadas em preto. Göttingen. Münden. Osterdode. Warthberg. Stod. As cavernas e túneis não eram marcados, mas ele sabia que estavam lá. Às centenas.

Onde estava a caverna certa?

Difícil dizer, hoje em dia.

Será que Wayland McKoy estava na trilha certa?

 

22H25

Paul segurou Maria no colo e levou-a gentilmente para dentro de casa. Brent foi atrás, bocejando. Uma sensação estranha sempre o acompa­nhava ao entrar. Ele e Rachel tinham comprado a residência colonial de dois andares logo depois do casamento, há dez anos. Quando veio o divórcio, sete anos depois, ele havia se mudado voluntariamente. A propriedade continuava no nome dos dois e, de modo interessante, Rachel insistiu que Paul ficasse com uma chave. Mas ele a usava com parcimônia, e sempre com o conhecimento prévio dela, já que o Parágrafo VII do decreto final determinava que era para uso e posse exclusivos de Rachel, e ele respeitava sua privacidade, não importan­do o quanto às vezes doesse.

Subiu a escada para o segundo andar e pôs Maria na cama. As duas crianças tinham tomado banho na casa do avô. Paul despiu-a e vestiu nela um pijama da Bela e a Fera. Tinha levado os filhos duas vezes para assistir ao filme da Disney. Deu-lhe um beijo de boa noite e acariciou seu cabelo até ela dormir profundamente. Depois de ajeitar as cober­tas de Brent, desceu.

A sala íntima e a cozinha estavam uma bagunça. Nada incomum. Uma faxineira vinha duas vezes por semana, já que Rachel não era conhecida pela arrumação. Esta era uma das diferenças entre os dois. Ele era uma pessoa perfeitamente organizada. Não compulsivo, ape­nas disciplinado. A bagunça o incomodava, não podia evitar. Rachel parecia não se incomodar com roupas no chão, brinquedos espalha­dos e uma pia cheia de pratos.

Rachel Bates tinha sido um enigma desde o começo. Inteligente, sem papas na língua, afirmativa, mas fascinante. O fato de se sentir atraída por ele foi surpreendente, já que as mulheres nunca eram o ponto forte de Paul. Tivera uns dois namoros firmes na faculdade e um relacionamento que ele achava sério, na escola de direito, mas Rachel o cativou. O motivo ele jamais entendeu. A língua afiada e os modos bruscos podiam magoar, mas noventa por cento do que ela dizia não era para valer. Pelo menos era o que ele se dizia repetidamen­te para justificar sua insensibilidade. Paul era um sujeito tranqüilo. Tranqüilo demais. Parecia muito menos problemático ignorá-la sim­plesmente do que aceitar o desafio. Mas algumas vezes sentia que ela queria ser desafiada.

Será que a desapontou, recuando? Deixando que ela tivesse as coisas ao seu modo?

Difícil dizer.

Foi até a frente da casa e tentou esvaziar a cabeça, mas cada cômo­do o assaltava com lembranças. O console de mogno com o tampo de pedra fóssil que haviam encontrado em Chattanooga num fim de se­mana procurando antigüidades. O sofá creme e areia onde os dois ti­nham se sentado muitas noites para assistir à televisão. O aparador de vidro com chalés liliputianos, algo que os dois colecionavam com zelo e que marcou os presentes mútuos em muitos natais. Até o cheiro evo­cava coisas boas. A fragrância peculiar que os lares pareciam possuir. O almíscar da vida filtrado na peneira do tempo.

Chegou ao saguão e notou o retrato dele com as crianças, ainda à mostra. Imaginou quantas divorciadas mantinham uma foto 25x30 do ex, para que todos vissem. E quantas insistiam que o ex-marido ficas­se com uma chave da casa. Os dois ainda tinham uns dois investimen­tos em conjunto, que ele administrava por ambos.

O silêncio foi rompido por uma chave na fechadura da frente.

Um segundo depois, a porta se abriu e Rachel entrou.

As crianças deram problema? - perguntou ela.

Nunca.

Paul observou o casaco-princesa apertado na cintura e a saia justa com bainha acima do joelho. Pernas compridas e esguias desciam até os escarpins de salto baixo. O cabelo castanho-avermelhado caía em camadas, mal roçando os ombros estreitos. Pedras olho-de-tigre verdes, com acabamento em prata, pendiam das orelhas, combinando com os olhos, que pareciam cansados.

- Desculpe não ter conseguido ir à troca de nomes - disse ele. - Mas seu entrevero com Marcus Nettles atrasou as coisas no tribunal de sucessões.

- Ele é um sacana machista.

- Você é juíza, Rachel, e não a salvadora do mundo. Não pode ser um pouquinho diplomática?

Ela jogou a bolsa e as chaves numa mesa de canto. Seus olhos se endureceram como bolas de gude. Paul já vira aquele olhar.

- O que você espera que eu faça? O sacana joga notas de cem dólares na minha mesa e diz para eu me foder. Ele merecia passar algumas horas na cadeia.

Você precisa se exibir constantemente?

Você não é meu guardião, Paul.

- Alguém precisa ser. Você tem uma eleição pela frente. Dois oposi­tores fortes, e só está no primeiro mandato. Nettles já fala em finan­ciar os dois. O que, por sinal, ele pode fazer. Você não precisa desse tipo de problema.

- Foda-se o Nettles.

Na última vez, Paul havia produzido os eventos para levantar fun­dos, distribuído propaganda e cortejado as pessoas necessárias para garantir apoio, atraído a imprensa e conseguido votos. Perguntou-se quem organizaria a campanha dela desta vez. Organização não era o ponto forte de Rachel. Até agora ela não tinha pedido ajuda, e Paul realmente não achava que ela fosse fazer isso.

Você pode perder, sabe?

Não preciso de um sermão político.

Do que você precisa, Rachel?

Não é da sua conta. Estamos divorciados. Lembra?

Paul se lembrou do que o pai dela tinha dito.

- E você? Nós já estamos separados há três anos. Namorou alguém durante esse tempo?

- Também não é da sua conta.

Talvez não. Mas pareço ser o único que se importa.

Ela chegou perto.

O que isso significa?

A Rainha do Gelo. É como chamam você no tribunal.

- Eu faço meu trabalho. Tive nota mais alta do que todos os juízes do condado na última vez em que o Daily Report verificou os números.

- É só isso que importa? A velocidade com que libera uma pauta?

- Juízes não podem se dar ao luxo de ter amigos. Ou você é acusado de ser tendencioso ou é odiado por não ser. Prefiro ser a Rainha do Gelo.

Era tarde, e ele não estava com vontade de discutir. Passou por ela, em direção à porta da frente.

- Um dia talvez você precise de um amigo. Se eu fosse você, não queimaria todas as pontes.

Paul abriu a porta.

- Mas você não é - disse ela.

- Graças a Deus. E ele saiu.

 

NORDESTE DA ITÁLIA

QUARTA-FEIRA, 7 DE MAIO, 1H34

O macacão cor de ferrugem, luvas de couro preto e tênis cor de carvão se fundiam à noite. Até mesmo o cabelo curto tingido de castanho, as sobrancelhas da mesma cor e a pele morena ajudavam, já que as últi­mas duas semanas percorrendo o norte da África tinham deixado um bronzeado no rosto nórdico.

Picos lúgubres se erguiam ao redor, um anfiteatro serrilhado, prati­camente indistinguível do céu de breu. Uma lua cheia pendia a leste. Um frio de primavera se prolongava no ar puro, vivo e diferente. As montanhas ecoavam um som fraco de trovões distantes.

Folhas e palha acolchoavam cada passo, o mato baixo era fino sob as árvores compridas. O luar atravessava as copas, marcando a trilha com iridescência. Ele escolhia com cuidado onde pisar, resis­tindo à vontade de usar a mini-lanterna, com os olhos afiados pron­tos e alerta.

O povoado de Pont-Saint-Martin ficava dez quilômetros ao sul. O único caminho para o norte era uma sinuosa estrada de duas pistas que, depois de mais quarenta quilômetros, levava a Innsbruck e à fron­teira com a Áustria. O BMW que ele havia alugado na véspera no aero­porto de Veneza esperava um quilômetro atrás, num pequeno bosque. Depois de terminar o serviço, planejava ir para o norte até Innsbruck, onde no dia seguinte um vôo da Austrian Airlines às 8h35 o levaria a São Petersburgo, onde mais serviços esperavam.

O silêncio o rodeava. Nenhum sino de igreja tocando nem carros passando ruidosos pela estrada. Apenas antigos bosques de carvalho, bétula e lariços cobrindo as encostas como uma colcha de retalhos. Samambaias, musgos e flores selvagens acarpetavam os vales escuros. Era fácil ver por que Da Vinci tinha incluído os Dolomitas ao fundo da Mona Lisa.

A floresta terminou. Uma campina coberta de capim e lírios-laranja se abriu adiante. O castelo se erguia na outra extremidade, tendo na frente um caminho de pedras pequenas em forma de ferradura. A cons­trução tinha dois andares, as paredes de tijolos vermelhos decoradas com losangos cinza. Ele se lembrou das pedras, de sua última visita há dois meses, sem dúvida, colocadas por pedreiros que tinham apren­dido com os pais e avós.

Nenhuma das cerca de quarenta janelas de águas-furtadas tinha luzes acesas. A porta da frente, de carvalho, também estava escura. Não havia cercas, cães ou guardas. Nem alarmes. Era apenas uma gran­de propriedade no campo, nos Alpes italianos, de um industrial reclu­so que estava semi-aposentado há quase uma década.

Ele sabia que Pietro Caproni, dono do castelo, dormia no segundo andar, numa série de aposentos que formavam a suíte principal. Ca­proni morava sozinho, a não ser por três empregados que vinham dia­riamente de Pont-Saint-Martin. Esta noite Caproni tinha visita, o Mer­cedes creme estacionado na frente ainda devia estar quente da viagem desde Veneza, mais cedo. A convidada era uma das muitas mulhe­res da vida, de alto preço. Algumas vezes vinham passar a noite ou o fim de semana, pagas em euros por um homem que podia bancar o preço do prazer. A excursão desta noite fora programada para coincidir com avisita dela, e ele esperava que a mulher representasse uma distração suficiente para encobrir uma entrada e uma saída rápidas.

As pedrinhas faziam barulho a cada passo enquanto ele atravessa­va o caminho de veículos e rodeava o canto nordeste do castelo. Um jardim elegante levava até uma varanda de pedras, nos fundos, e fer­ro fundido italiano separava mesas e cadeiras da grama. Um conjunto de portas duplas dava para a casa, e as duas maçanetas estavam tran­cadas. Ele torceu o braço direito. Um punhal saiu do anel retentor e deslizou pelo antebraço, com o cabo de jade se aninhando firmemente na mão enluvada. A bainha de couro era invenção sua, especialmente projetada para ser liberada de modo confiável.

Enfiou a lâmina no batente de madeira. Bastou uma torção e a lingüeta se soltou. Guardou o punhal de novo na manga.

Entrando num salão com teto em abóbada, fechou suavemente a porta de vidro. Gostou da decoração neoclássica ao redor. Dois bronzes etruscos adornavam a parede mais distante, sob uma pintura, Vista de Pompéia, que ele sabia ser item de colecionador. Duas bibliothèques do século XVIII abraçavam duas colunas coríntias, com as prateleiras cheias de volumes antigos. Da última visita, ele se recordava de um belo exemplar da Storia d'Italia, de Guicciardini, e dos trinta volumes do Teatro Francese. As duas obras eram de valor inestimável.

Deslizou por entre os móveis sombreados, passou entre as colunas, entrou no saguão e tentou ouvir algum som no andar de cima. Nenhum. Seguiu na ponta dos pés pelo piso de mármore com padrão em círcu­los, tendo cuidado para que as solas de borracha não guinchassem. Pinturas napolitanas adornavam os painéis de imitação de mármore. Traves de castanheira sustentavam o teto escuro, com pé direito da al­tura de dois andares.

Entrou na sala de estar.

O objeto de sua busca estava inocentemente sobre uma mesa de ébano. Uma caixinha de fósforos. De Fabergé. Prata e ouro com esmal­te translúcido vermelho-morango sobre uma base de guilhochê. O co­larinho de ouro tinha acabamento com pontas em forma de folhas. O acionador do fecho era um cabochão de safira. Tinha iniciais gravadas em cirílico, N. R. 1901. Nicolau Romanov. Nicolau II. O último czar da Rússia.

Ele tirou um saco de feltro do bolso de trás e estendeu a mão para a caixa.

Subitamente a sala foi inundada de luz. Feixes de raios incandes­centes vindos de um lustre de teto queimaram seus olhos. Ele apertou os olhos e se virou. Pietro Caproni estava parado na arcada que dava no saguão, segurando uma arma na mão direita.

Buona sera, signor Knoll. Estava me perguntando quando voltaria. Ele lutou para acostumar a vista e respondeu em italiano:

Não sabia que o senhor esperava minha visita.

Caproni entrou na sala. O italiano era um homem baixo, com peito largo, de cinqüenta e poucos anos e cabelos de um preto não natural. Usava um roupão atoalhado azul-marinho amarrado na cintura. As pernas e os pés estavam nus.

- Seu disfarce usado na última visita não bateu. Christian Knoll, historiador da arte e acadêmico. Ora veja! Uma coisa fácil de se ve­rificar.

A visão do intruso se acomodou à medida que os olhos se ajusta­vam à luz. Ele estendeu a mão para a caixa de fósforos. A arma de Ca­proni se projetou para a frente. O homem recuou e ergueu os braços, num fingimento de rendição.

- Queria apenas tocar a caixa.

- Vá em frente. Devagar.

Ele ergueu o tesouro.

- O governo russo está procurando por ela desde a guerra. Pertenceu ao próprio Nicolau. Foi roubada de Peterhof, perto de Leningrado, em algum momento de 1944, um soldado carregou no bolso um suvenir do tempo que passou no Rússia. Mas que suvenir! Inigualável. Atual­mente vale no mercado aberto cerca de quarenta mil dólares. Isso se alguém fosse idiota o bastante para pôr à venda. "Belo botim" acho que é a expressão que os russos usam para descrever coisas como esta.

- Tenho certeza de que, depois de seu trabalho de liberação nesta noite, ela teria encontrado rapidamente o caminho de volta à Rússia, não é?

Ele sorriu.

- Os russos também não são melhores do que ladrões. Querem seus tesouros de volta apenas para vendê-los. Estão sem dinheiro, pelo que eu soube. Parece que é o preço do comunismo.

- Estou curioso. O que o trouxe aqui?

Uma fotografia desta sala, na qual a caixa de fósforos estava visí­vel. Por isso vim, bancando professor de história da arte.

Você determinou a autenticidade dela naquela breve visita há dois meses?

Sou especialista nessas coisas. Particularmente em Fabergé. -Ele pousou a caixa. - O senhor deveria ter aceitado minha oferta de compra.

Era baixa demais, até mesmo para um "belo botim". Além disso, a peça tem valor sentimental. Meu pai era o soldado que enfiou a lem­brança no bolso, como você descreveu de modo tão apropriado.

E o senhor a expõe de modo tão casual?

Depois de cinqüenta anos, achei que ninguém se importasse.

O senhor deveria ter cuidado com visitantes e fotos.

Caproni deu de ombros.

Poucos vêm aqui.

Só as signorinas? Como a que está lá em cima agora?

E nenhuma delas se interessa por estas coisas.

Só por euros?

E prazer.

O intruso deu um sorriso e casualmente acariciou de novo a caixa com os dedos.

O senhor é um homem de posses, signor Caproni. Esta casa parece um museu. Aquela tapeçaria Aubusson ali na parede não tem preço. Aqueles dois capriccios romanos certamente são objetos valiosos. Hof, acredito, século XLX?

Ótimo, signor Knoll. Estou impressionado.

Sem dúvida o senhor pode abrir mão desta caixa de fósforos.

Não gosto de ladrões, signor Knoll. E, como disse durante sua úl­tima visita, a peça não está à venda. - Caproni sinalizou com a arma. - Agora deve ir embora.

Ele ficou firme.

Que dilema! O senhor certamente não pode envolver a polícia. Afinal de contas, possui uma relíquia importante que o governo rus­so gostaria muito de ver devolvido. O que mais, nesta casa, está na mesma categoria? Haveria perguntas, investigações, publicidade. Seus amigos em Roma ajudariam pouco, já que o senhor seria considerado um ladrão.

Sorte sua, signor Knoll, eu não poder envolver as autoridades.

O intruso se empertigou casualmente, depois torceu o braço direi­to. Foi um gesto imperceptível, parcialmente obscurecido pela coxa. Ficou observando enquanto o olhar de Caproni permanecia na caixa de fósforos em sua mão esquerda. O punhal saiu da bainha e desli­zou lentamente pela manga frouxa até se acomodar na palma da mão direita.

Sem reconsideração, signor Caproni?

Nenhuma. - Caproni recuou para o saguão e sinalizou de novo com a arma. - Por aqui, signor Knoll.

O intruso envolveu o cabo do punhal com força e girou o pulso para a frente. Um movimento rápido e a lâmina voou pela sala, pene­trando no peito nu de Caproni, no V peludo formado pelo roupão. O velho ofegou, olhou para o cabo e caiu para a frente, a arma fazendo barulho no piso.

O intruso colocou rapidamente a caixinha de fósforos no saco de feltro e passou por cima do corpo. Pegou o punhal e verificou a pul­sação de Caproni. Nenhuma. Surpreendente. O sujeito morreu de­pressa.

Mas a mira dele fora perfeita.

Limpou o sangue no roupão, enfiou o punhal no bolso de trás e subiu a escada até o andar de cima. Mais painéis de imitação de már­more ladeavam o corredor, periodicamente interrompidos por portas de madeira, todas fechadas. Andou rapidamente e foi para os fundos da casa. Uma porta fechada esperava no fim do corredor.

Virou a maçaneta e entrou.

Duas colunas de mármore definiam uma alcova onde ficava uma enorme cama de dossel. Um abajur com luz fraca estava aceso na mesinha-de-cabeceira, e a luz era absorvida por uma sinfonia de lambris de nogueira e couro. O quarto era definitivamente de um homem rico.

A mulher sentada na beira da cama estava nua. O cabelo compri­do, dramático e ruivo emoldurava um par de seios parecidos com pirâmides e exóticos olhos amendoados. Estava soltando baforadas num fino cigarro preto e dourado e lhe deu apenas um olhar desconcertante.

- E quem é você? - perguntou baixo em italiano.

- Amigo do signor Caproni. - Ele entrou no quarto e fechou casual­mente a porta.

Ela terminou o cigarro, levantou-se e se aproximou, com as pernas finas dando passos deliberados.

- Você está vestido de modo estranho para um amigo. Mais parece um ladrão.

- E você não parece preocupada.

Ela deu de ombros.

- Homens estranhos são o meu negócio. As necessidades deles não são diferentes das dos outros. - Examinou-o da cabeça aos pés. - Você tem um brilho maligno nos olhos. É alemão, não?

Ele ficou quieto.

A mulher massageou as mãos dele através das luvas de couro.

Poderosas. - Em seguida, passou os dedos pelo peito e pelos om­bros do intruso. - Músculos. - Agora ela estava perto, os mamilos eretos quase tocando o peito dele. - Onde está o signore?

Teve um problema. Sugeriu que talvez eu gostasse de sua com­panhia.

Ela o encarou com fome nos olhos.

- Você tem as capacidades do signore?

Monetárias ou de outro tipo?

Ela sorriu.

As duas.

O intruso pegou a prostituta nos braços.

- Veremos.

 

SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA

10H50

O carro parou com um tranco e Knoll saiu na movimentada Nevsky Prospekt, pagando ao motorista com duas notas de vinte dólares. Ima­ginou o que teria acontecido com o rublo. Hoje em dia, não valia muito mais do que dinheiro de brinquedo. Há anos o governo russo havia proibido abertamente o uso de dólares, sob pena de prisão, mas o moto­rista de táxi parecia não se importar, exigindo e enfiando ansiosamente as notas no bolso antes de partir com o táxi a toda velocidade.

O vôo de Irvnsbruck tinha pousado no aeroporto de Pulkovo há uma hora. Ele havia despachado a caixa de fósforos de Innsbruck para a Alemanha durante a noite, com um bilhete sobre o sucesso no norte da Itália. Antes de voltar à Alemanha, havia uma última tarefa.

A prospekt estava apinhada de pessoas e carros. Ele examinou a cúpula verde da catedral de Kazan do outro lado da rua e se virou para olhar o pináculo dourado do distante Almirantado, à direita, parcial­mente obscurecido por uma névoa matinal. Imaginou o passado do bulevar, quando todo o tráfego era puxado por cavalos, e prostitutas presas durante a noite varriam as pedras do calçamento. O que Pedro, o Grande, pensaria agora de sua "janela para a Europa"? Lojas de departamentos, cinemas, restaurantes, museus, lojas, ateliês de arte e cafés ladeavam a movimentada rua de cinco quilômetros. Néon piscan­do e quiosques elaborados que vendiam de tudo, desde livros até sorvete, e alardeavam o rápido avanço do capitalismo. Como foi que Somerset Maugham havia descrito? Suja, sórdida e dilapidada.

Não mais, pensou ele.

Graças à mudança, ele podia vir a São Petersburgo. O privilégio de examinar antigos registros soviéticos fora estendido aos estrangeiros apenas recentemente. Ele fizera duas viagens anteriores, nesse ano - uma há seis meses, outra há dois - ambas ao mesmo arquivo em São Petersburgo, o prédio onde entrava agora pela terceira vez.

Tinha cinco andares, com fachada de pedra áspera, suja do escapamento dos motores. O Banco Comercial de São Petersburgo possuía uma agência movimentada numa parte do térreo, e a Aeroflot, a com­panhia aérea nacional russa, ocupava o resto. Do primeiro ao terceiro e o quinto andares eram austeros escritórios governamentais: Depar­tamento de Vistos e Registro de Cidadãos Estrangeiros, Controle de Exportações e a seção regional do Ministério da Agricultura. O quar­to andar era dedicado apenas a um arquivo de registros. Um dos muitos espalhados pelo país, um lugar onde os restos de 75 anos de comunis­mo podiam ser guardados e examinados em segurança.

Yeltsin tinha aberto os documentos ao mundo através do Comitê Arquivista Russo, um modo de os estudiosos pregarem a mensagem de anticomunismo do governante. Na verdade, foi inteligente. Não era preciso resgatar o povo, encher os gulags ou reescrever a história, como fizeram Khruschev e Brezhnev. Simplesmente deixe os historiadores descobrirem as incontáveis atrocidades, os roubos e a espionagem - segredos escondidos por décadas sob toneladas de papel apodre­cendo e tinta desbotando. Os eventuais escritos deles serviriam como propaganda mais do que suficiente para atender às necessidades do estado.

Knoll subiu os degraus de ferro preto até o quarto andar. Eram estreitos, ao estilo soviético, indicando aos que sabiam - como ele - que o prédio era pós-revolucionário. Um telefonema na véspera, da Itália, tinha informado que o arquivo estaria aberto até as 17h. Ele visitaraeste e outros quatro no sul da Rússia. Esta instalação era única, já quehavia uma copiadora disponível.

No quarto andar, uma desgastada porta de madeira se abria para Um espaço entulhado, com as paredes verde-claras descascando por falta de ventilação. Não havia teto, apenas tubos e canos cobertos de amianto se entrecruzando sob o concreto quebradiço do quinto andar. O ar era frio e úmido. Um local estranho para abrigar documentos su­postamente preciosos.

Knoll caminhou pelos ladrilhos sujos e se aproximou de uma mesa solitária. O mesmo funcionário com cabelos castanhos ralos e cara de cavalo esperava. Na última vez, ele havia concluído que o sujeito era um involuído e auto-depreciativo novo burocrata russo. Típico. Pra­ticamente sem qualquer diferença da velha versão soviética.

Dobriy den - disse ele, acrescentando um sorriso.

Bom-dia - respondeu o funcionário. Em russo, Knoll declarou:

Preciso ver os arquivos.

- Quais? - um sorriso irritante acompanhou a pergunta, a mesma expressão de que se recordava, de dois meses atrás.

- Tenho certeza que o senhor se lembra de mim.

Achei seu rosto familiar. Os registros da Comissão, correto? A tentativa de discrição do funcionário foi um fracasso.

Da. Registros da Comissão.

Gostaria que eu os pegasse?

Nyet. Sei onde estão. Mas obrigado pela gentileza.

Ele pediu licença e desapareceu entre as estantes de metal entulha­das de caixas de papelão apodrecido, o ar rançoso com um cheiro forte de poeira e mofo. Sabia que uma variedade de registros o rodeava, muitos eram do Hermitage, ali perto, mandados para cá por falta de espaço, a maioria devido a um incêndio há cinco anos na Academia de Ciências local. Ele se lembrava bem do incidente. A imprensa rotu­lara a tragédia de "Chernobyl da nossa cultura". Mas tinha se pergun­tado até que ponto teria sido não intencional. Na União Soviética, as coisas sempre tinham uma tendência conveniente a desaparecer no momento certo, e a Rússia reformada não era muito melhor.

Examinou as estantes, tentando recordar onde havia parado da úl­tima vez. Poderia levar anos para terminar a análise meticulosa de tudo. Mas lembrava-se de duas caixas em particular. Na última visita, o tempo havia acabado antes que chegasse a elas, já que o arquivo havia fechado cedo por causa do Dia Internacional da Mulher.

Encontrou as caixas e tirou as duas da prateleira, colocando-as numa das mesas de madeira. Com cerca de um metro de lado, cada caixa era pesada, talvez com 25 a 30 quilos. O funcionário continuava sentado na parte da frente do arquivo. Knoll percebeu que não demoraria muito até o idiota impertinente vir se certificar de seu último interesse.

A etiqueta em cima das caixas dizia, em cirílico: COMISSÃO EXTRA­ORDINÁRIA DE ESTADO PARA REGISTRO E INVESTIGAÇÃO DOS CRIMES DOS OCUPANTES ALEMÃES FASCISTAS E SEUS CÚM­PLICES E OS DANOS CAUSADOS POR ELES AOS CIDADÃOS, FAZENDAS COLETIVAS, ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS, EMPREENDIMENTOS ESTATAIS E INSTITUIÇÕES DA UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS.

Ele conhecia bem a comissão. Criada em 1942 para resolver proble­mas relacionados à ocupação nazista, acabou fazendo de tudo, desde investigar campos de concentração libertados pelo Exército Vermelho até avaliar tesouros de arte saqueados de museus soviéticos. Em 1945, a comissão passou a ser a principal agência a enviar milhares de prisio­neiros e supostos traidores para os gulags. Foi uma das invenções de Stalin, um modo de manter o controle, e eventualmente empregava milhares de pessoas, inclusive investigadores de campo que na Europa Ocidental, no norte da África e na América do Sul procuraram obras de arte pilhadas pelos alemães.

Acomodou-se numa cadeira de metal e começou a folhear página por página da primeira caixa. O trabalho era vagaroso, graças ao volu­me e às pesadas diatribes russas, escritas em cirílico. No geral, a caixa foiuma frustração. Continha principalmente resumos de relatórios de várias investigações da comissão. Duas longas horas se passaram e ele nãoencontrou nada interessante. Começou a verificar a segunda caixa,que continha mais relatórios. Perto do meio, chegou a uma pilhade relatórios de investigadores de campo. Adquirentes, como ele próprio. Pagos por Stalin, trabalhando exclusivamente para o gover­no soviético.

Examinou os relatórios um a um.

Muitos eram narrativas sem importância sobre buscas fracassadas e viagens frustrantes. Mas havia alguns sucessos narrados em lin­guagem bombástica. Place de la Concorde, de Degas. Duas irmãs, de Gauguin. A última pintura de Van Gogh, A casa branca à noite. Ele até reconheceu os nomes dos investigadores. Sergei Telegin. Boris Zernov. Pyotr Sabsal. Maxim Voloshin. Tinha lido outros relatórios de campo escritos por eles, em outros arquivos. A caixa continha cerca de cem relatórios, todos certamente esquecidos, de pouca utilidade hoje a não ser para os poucos que ainda procuravam.

Outra hora se passou, durante a qual o funcionário se aproximou três vezes fingindo que queria ajudar. Knoll havia recusado as ofertas, ansioso para que o homenzinho irritante fosse cuidar de sua vida. Perto das cinco horas, encontrou um bilhete para Nikolai Shvernik, o impla­cável defensor de Stalin que tinha comandado a comissão extraordi­nária. Mas este memorando era diferente dos outros. Não era selado, em papel timbrado oficial da comissão. Em vez disso, era escrito à mão e pessoal, datado de 26 de novembro de 1946, com a tinta preta quase sumida do papel finíssimo.

 

Camarada Shvernik

Espero que esta mensagem o encontre com boa saúde. Visitei Donnersberg, mas não pude localizar nenhum dos manuscritos de Goethe que supostamente estariam lá. As investigações, discretas, claro, revelaram que investigadores soviéticos anteriores podem ter removido os itens em novembro de 1945. Sugiro uma nova verifi­cação dos inventários de Zagorsk. Encontrei Yxo ontem. Ele informa sobre ativida­des de Loring. Suas suspeitas parecem corretas. As minas de Harz foram visitadas repetidamente por várias equipes de trabalho, mas nenhum trabalhador local foi empregado. Todas as pessoas eram transportadas por Loring. A yantarnaya komnata pode ter sido encontrada e removida. É impossível dizer neste momento. Yxo está seguindo pistas adicionais na Boêmia e irá informá-lo diretamente durante a semana.

Danya Chapaev

 

Presas à folha de papel fino havia duas folhas mais novas, ambas fotocópias. Eram memorandos de informação da KGB datados de março, sete anos atrás. Estranho estarem ali, pensou ele, enfiados indis­criminadamente entre originais de mais de cinqüenta anos. Leu a primeira anotação datilografada em cirílico:

 

Está confirmado que Yxo é Karol Borya, que já foi empregado pela comissão entre 1946 e 1958. Emigrou para os Estados Uni­dos em 1958 com permissão do governo da época. Teve o nome tro­cado para Karl Bates. Endereço atual: Stokeswood Avenue, 959. Atlanta, Geórgia (Condado de Fulton), Estados Unidos. Contato fei­to. Nega ter qualquer informação sobre a yantarnaya komnata de­pois de 1958. Não pude localizar Danya Chapaev. Borya afirmou não saber do paradeiro de Chapaev. Peço instruções adicionais sobre como devo agir.

 

Danya Chapaev era um nome que ele reconhecia. Tinha procura­do o velho russo há cinco anos, mas não conseguiu encontrá-lo, era o único dos investigadores sobreviventes que ele não havia entrevista­do. Agora talvez houvesse outro. Karol Borya, ou Karl Bates. Estranho, o apelido. Os russos pareciam adorar codinomes. Seria por carinho ou segurança? Difícil dizer. Ele já vira referências como Lobo, Urso Preto, Águia e Olhos Penetrantes. Mas Yxo? "Ouvidos". Era diferente.

Passou para a segunda folha, outro memorando da KGB datilografado em cirílico que continha mais informações sobre Karol Borya. Agora o sujeito teria 83 anos. Joalheiro de profissão, aposentado. A esposa tinha morrido há 25 anos. Tinha uma filha, casada, que morava em Atlanta, Geórgia, e um neto. Informações de sete anos atrás, sem dúvida. Mesmo assim, era mais do que ele possuía sobre Karol Borya.

Olhou de novo o documento de 1946. Em particular, a referência a Loring. Era a segunda vez que via esse nome nos relatórios. Não pode­ria ser Ernst Loring. Jovem demais. Mais provavelmente o pai, Josef. Estava se tornando cada vez mais inevitável a conclusão de que a família Loring também estivera seguindo a pista há muito tempo. Talvez a viagem a São Petersburgo tivesse valido a pena. Duas refe­rências diretas à yantarnaya komnata, raras em documentos soviéticos, e uma informação nova.

Uma nova pista.

Ouvidos.

- O senhor vai terminar logo?

Ele ergueu os olhos. O funcionário o encarou. Knoll se perguntou há quanto tempo o sacana estaria ali.

Passa das cinco - disse o sujeito.

Não notei. Já vou terminar.

O olhar do funcionário percorreu a página na mão dele, tentando ver alguma coisa. Knoll pôs o papel na mesa, num gesto casual. O su­jeito pareceu captar a mensagem e voltou para a sua mesa.

Knoll levantou os papéis.

Interessante a KGB estar procurando, até alguns anos atrás, dois ex-membros da comissão extraordinária. Ele pensava que a busca à yantarnaya komnata havia terminado em meados dos anos 1970. Pelo menos essa era a versão oficial. Knoll havia encontrado apenas algu­mas referências isoladas, datadas dos anos 1980. Nada recente, até hoje. Os russos não desistem, isso ele precisava admitir. Mas, considerando o prêmio, dava para entender. Ele também não desistia. Tinha seguido pistas nos últimos oito anos. Entrevistado velhos com memória fraca e língua presa. Boris Zernov. Pyotr Sabsal. Maxim Voloshin. Investi­gadores, como ele, todos procurando a mesma coisa. Mas nenhum sa­bia de nada. Talvez Karol Borya fosse diferente. Talvez soubesse onde estava Danya Chapaev. Esperava que os dois ainda estivessem vivos. Certamente valeria uma viagem aos Estados Unidos para descobrir. Já estivera em Atlanta uma vez. Durante os Jogos Olímpicos. Era quente e úmida, mas impressionante.

Olhou ao redor, procurando o funcionário. O sujeito irrequieto esta­va do outro lado das estantes entulhadas, recolocando pastas no lu­gar. Rapidamente Knoll dobrou as três folhas e enfiou no bolso. Não tinha intenção de deixá-las para outra mente inquisitiva encontrar. Recolocou as duas caixas na prateleira e foi para a saída. O funcionário estava esperando com a porta aberta.

Dobriy den - disse ao funcionário.

Bom dia para o senhor.

Knoll saiu e a tranca estalou imediatamente atrás dele. Imaginou que não demoraria muito para o idiota informar a visita, sem dúvida recebendo uma gratificação dali a alguns dias, pelo trabalho diligente. Não fazia mal. Ele estava satisfeito. Em êxtase. Tinha uma nova pista. Talvez algo definitivo. O início de uma trilha. Talvez até uma aquisição.

A aquisição.

Desceu rapidamente a escada, com as palavras do documento ressoando nos ouvidos.

Yantarnaya komnata.

A Sala de Âmbar.

 

BURG HERZ, ALEMANHA

19H54

Knoll olhou pela janela. Seus aposentos ocupavam a parte mais alta da torre oeste do castelo. A cidadela pertencia a seu patrão, Franz Fellner. Era uma reprodução do século XIX, já que o original fora incen­diado e saqueado até os alicerces pelos franceses que invadiram a Alemanha em 1689.

Burg Herz, "Castelo Coração", era um nome adequado, já que a fortaleza se aninhava quase no centro de toda a Alemanha unificada. O pai de Franz, Martin, adquiriu a construção e a floresta ao redor após a Primeira Guerra Mundial, quando o dono anterior fez um julga­mento errado e apoiou o kaiser. O quarto de Knoll, seu lar durante os últimos onze anos, já servira como aposento do administrador-chefe. Era espaçoso, reservado e equipado com banheira. A vista abaixo se estendia por quilômetros e abarcava campinas, cobertas de grama, as elevações cobertas de florestas do Rothaar e o lamacento Eder fluin­do para leste até Kassel. O administrador-chefe havia cuidado de Mar­tin Fellner, pai do patrão de Knoll, todos os dias dos últimos vinte anos de sua vida e morreu apenas uma semana depois dele. Knoll ouvira as fofocas, todas atestando que os dois eram muito mais do que pa­trão e empregado, mas nunca dera muito crédito a boatos.

Estava cansado. Os últimos dois meses, sem dúvida, tinham sido exaustivos. Uma longa viagem à África, depois uma passagem pela Itália e finalmente a Rússia. Percorrera um longo caminho desde o apartamento de três quartos num prédio do governo, trinta quilôme­tros ao norte de Munique, seu lar até os 19 anos. O pai era operário de fábrica, a mãe, professora de música. As lembranças de sua mãe sempre evocavam algo bom. Era uma grega que o pai conhecera du­rante a guerra. Knoll sempre a havia chamado pelo primeiro nome, Amara, que significava "indelével", uma descrição perfeita. Dela havia herdado a testa bem definida, o nariz afilado e a curiosidade insaciável. Ela também havia lhe incutido uma paixão pelo apren­dizado e lhe dera o nome de Christian, já que era uma religiosa devota.

O pai o transformou num homem, mas o idiota amargo também instilou um sentimento de raiva. Jakob Knoll havia lutado no exérci­to de Hitler como nazista fervoroso. Apoiou o Reich até o fim. Era um homem difícil de amar, mas igualmente difícil de ignorar.

Knoll deu as costas para a janela e olhou a mesinha-de-cabeceira ao lado da cama de dossel.

Um exemplar de Os carrascos voluntários de Hitler estava em cima. O volume tinha atraído sua atenção há dois meses. Um dos vários livros publicados ultimamente falando da psique do povo alemão du­rante a guerra. Como é que tantos deixaram existir tal barbarismo vin­do de tão poucos? Seriam participantes voluntários, como o escritor sugeria? Difícil dizer sobre todo mundo. Mas seu pai definitivamente era. O ódio lhe vinha fácil. Como uma droga. Como era mesmo a citação de Hitler que ele costumava fazer? Sigo o caminho que a Providência dita, com a segurança de um sonâmbulo.

E era exatamente isso que Hitler havia feito - direto até a queda. Jakob Knoll também morreu amargo, doze anos depois de Amara ter sucumbido ao diabetes.

Knoll tinha 18 anos e estava sozinho quando seu QI de gênio lhe garantiu uma bolsa na Universidade de Munique. A área de Humanas sempre lhe interessara, e durante o último ano ganhou um bolsa de his­tória da arte na Universidade de Cambridge. Lembrava-se, com diver­são, do verão em que teve um breve contato com simpatizantes neonazis­tas. Na época, esses grupos não se pronunciavam tanto quanto hoje, já que tinham sido considerados fora-da-lei pelo governo alemão. Mas sua visão especial de mundo não lhe interessou. Nem na época nem agora. Assim como o ódio. Ambos eram pouco lucrativos e contraproducentes.

Em particular porque ele conheceu mulheres muito fascinantes de peles variadas.

Passou apenas um ano em Cambridge antes de abandonar a esco­la e ir trabalhar para a Nordstern Fine Art Insurance Limited, em Londres, como solucionador de reivindicações. Lembrava-se da rapi­dez com que fez nome depois de recuperar um quadro de um grande artista holandês supostamente perdido para sempre. Os ladrões telefo­naram, exigindo um resgate de vinte milhões de libras, caso contrário a tela seria queimada. Ainda podia ver o choque no rosto dos superio­res quando disse peremptoriamente para os ladrões queimarem. Mas eles não fizeram isso. Knoll sabia que não fariam. E um mês depois recuperou a pintura quando os bandidos, em desespero, tentaram vendê-la de volta ao antigo dono.

Outros sucessos vieram de modo igualmente fácil.

Obras antigas de grandes artistas no valor de trezentos milhões de dólares, tiradas de um museu de Boston, foram encontradas. Um Jean-Baptiste Oudry, de doze milhões de dólares, roubado no norte da Inglaterra de um colecionador particular, foi recuperado. Dois magní­ficos Turner afanados da Tate Gallery, em Londres, foram localizados num apartamento em ruínas em Paris.

Franz Fellner o conhecera há onze anos, quando a Nordstern o des­pachou para fazer um inventário de sua coleção. Como qualquer cole­cionador cuidadoso, Fellner punha no seguro suas obras de arte conhecidas, aquelas que algumas vezes apareciam em revistas especializadas européias ou americanas, já que a publicidade era um modo de fazer fama, provocando o pessoal do mercado negro a procurá-lo com tesourosrealmente valiosos. Fellner o convenceu a abandonar a Nordstern comum salário generoso, um quarto no Burg Herz e a empolgação que vinha de roubar de volta algumas das maiores criações da huma­nidade. Ele possuía talento para procurar, gostando demais do desafio de achar o que as pessoas se esforçavam tremendamente para escon­der. As mulheres que encontrava eram igualmente fascinantes. Porém, matar era particularmente empolgante. Seria esse o legado de seu pai? Difícil dizer. Será que era doente? Depravado? Será que realmente se importava? Não. A vida era boa.

Tremendamente boa.

Afastou-se da janela e entrou no banheiro. A janela circular acima do toalete estava aberta e o ar fresco da tarde tirava dos azulejos a umidade de seu banho de chuveiro mais cedo. Examinou-se ao espelho. A tinturacastanha usada nas últimas duas semanas de trabalho havia saído, e o cabelo estava louro de novo. Os disfarces não eram seu ponto forte, mas ele achara sensato mudar a aparência, nessas circunstâncias. Tinha se barbeado durante o banho, e o rosto bronzeado estava Uso e limpo. O rosto continuava com ar confiante, a imagem de um homem direto, com gostos e convicções fortes. Jogou um pouco de colônia no pescoço e enxugou a pele com uma toalha, depois vestiu o smoking.

O telefone da mesinha-de-cabeceira tocou no quarto. Ele atraves­sou o cômodo e atendeu antes do terceiro toque.

Estou esperando - disse uma voz feminina.

E a paciência não é uma das suas virtudes?

Nem um pouco.

Já estou indo.

Knoll desceu a escada em espiral. O estreito caminho de pedras se enrolava no sentido horário, copiado de um projeto medieval que obri­gava os espadachins invasores destros a lutar contra a torre, e não só contra os defensores. O complexo do castelo era gigantesco. Oito torres enormes adornadas com estruturas de enxaimel preenchidas de argamassa acomodavam mais de cem cômodos. Janelas de caixilhos e águas-furtadas animavam o exterior e proporcionavam vistas exóticas dos vales cobertos de floresta. As torres eram agrupadas num octógono ao re­dor de um espaçoso pátio interno. Quatro corredores as conectavam, e todas as construções eram cobertas por um íngreme telhado de ardósia que testemunhava a dureza dos invernos alemães.

Knoll virou na base da escada e seguiu por uma série de corredores com piso de ardósia, em direção à capela. Tetos abobadados erguiam-se acima. Machados de batalha, dardos, lanças, elmos com viseira, armaduras - peças de colecionador - ladeavam o caminho. Ele adquiri­ra pessoalmente de uma mulher em Luxemburgo a maior armadura, um cavaleiro com quase 2,40 metros. Tapeçarias flamengas adornavam as paredes, todas originais. A luz era suave e indireta, os cômodos, quentes e secos.

Uma porta em arco na extremidade mais distante se abria para um claustro. Ele saiu e seguiu por um caminho coberto até um vão adorna­do de colunas. Três rostos de pedra esculpidos na fachada do castelo observavam seus passos. Eram restos da estrutura original do século XVII, com identidades desconhecidas, mas uma lenda dizia que eram o mestre construtor do castelo e dois assistentes, que foram mortos e emparedados para jamais construir outra estrutura semelhante.

Aproximou-se da capela de São Thomas. Um nome interessante, já que não era apenas o nome de um monge agostiniano que tinha fun­dado um mosteiro ali perto há sete séculos, mas também o primeiro nome do antigo administrador-chefe do velho Martin Fellner.

Empurrou a pesada porta de carvalho.

Ela estava de pé no corredor central, logo depois de uma grade dou­rada que separava a área de entrada dos seis bancos de carvalho. Lumi­nárias incandescentes iluminavam um altar rococó em preto e ouro mais além e a deixavam na sombra. Os vitrais e as clarabóias à esquer­da e à direita estavam escuros. Os escudos de cavaleiros do castelo, também em vitral, pareciam pouco impressionantes, esperando ser reavivados pelo sol da manhã. Pouco se cultuava ali. Atualmente, a capela era uma sala de exposição para relicários dourados - a coleção de Fellner, uma das maiores do mundo, rivalizava com as da maioria das catedrais européias.

Ele sorriu para a anfitriã.

Monika Fellner tinha 34 anos e era a filha mais velha do patrão. A pele que cobria o corpo alto e esguio tinha o tom trigueiro da mãe, uma libanesa por quem o pai tinha se apaixonado há quarenta anos. Mas o velho Martin não se impressionou com a escolha do filho e even­tualmente forçou o divórcio, mandando-a de volta ao Líbano, deixan­do dois filhos. Knoll pensava freqüentemente que o ar contido e quase intocável de Monika era resultado da rejeição da mãe. Mas esta era uma coisa que ela jamais verbalizaria, e ele jamais perguntaria. Estava parada com jeito orgulhoso, como sempre, os cabelos escuros e encaracolados caindo em cachos soltos. Um leve sorriso se abriu nos lábios. Usava um casaco de brocado cinza-castanho sobre uma saia de chiffon justa, com uma fenda subindo até as coxas finas e fortes. Era a única herdeira da fortuna Fellner, graças à morte prematura do irmão mais velho há dois anos. Seu nome significava "devota a Deus". No entanto, era qualquer coisa, menos isso.

- Tranque - disse ela.

Knoll baixou a alavanca.

Ela se aproximou, os saltos fazendo barulho no antigo piso de már­more. Knoll a encontrou junto ao portão aberto na grade. Imediata­mente abaixo dela estava a sepultura de seu avô, MARTIN FELLNER 1868-1941 gravado no mármore cinza e liso. O último desejo do velho fora ser enterrado no castelo que tanto amava. Nenhuma esposa o acom­panhava na morte. O administrador-chefe do velho Fellner jazia ao lado, e mais letras gravadas na pedra marcavam a sepultura. Ela notou o olhar de Knoll indo até o chão.

- Pobre vovô. Ser tão forte nos negócios e tão fraco no espírito. Devia ser uma barra ser veado na época.

- Pode ser genético?

- Acho difícil. Mas devo dizer que algumas vezes uma mulher pode ser uma diversão interessante.

- Seu pai não gostaria de ouvir isso.

- Não acho que ele se importe. É com você que ele está perturba­do. Ele está com um exemplar do jornal de Roma. Há uma matéria de primeira página sobre a morte de Pietro Caproni.

Mas, além disso, ele tem a caixa de fósforos. Ela sorriu.

Você acha que o sucesso resolve tudo?

Descobri que é a melhor garantia de segurança no trabalho.

Você não mencionou que matou Caproni, em seu bilhete de ontem.

Pareceu um detalhe sem importância.

- Só você consideraria sem importância uma faca no peito. Papai quer falar com você. Está esperando.

Eu imaginava isso.

Você não parece preocupado.

Deveria?

Ela o encarou com intensidade.

- Você é um sacana, Christian.

Knoll sabia que ela não tinha nada do ar sofisticado do pai, mas em dois sentidos eram muito parecidos: ambos eram frios e impetuosos. Os jornais a associavam a um homem depois do outro, imaginando quem eventualmente agarraria Monika e sua fortuna resultante, mas Knoll sabia que ninguém jamais a controlaria. Fellner estivera preparando-a meticulosamente nos últimos anos para assumir seu impériode comunicações junto com sua paixão por colecionar, um dia que chegaria em breve. Tinha sido educada fora da Alemanha - na Inglaterra e nos Estados Unidos -, adotando nesse tempo uma língua ainda mais afiada e uma atitude mais impetuosa. Mas o fato de ser rica e mimada também não ajudara a formar a personalidade.

Ela estendeu a mão e bateu na manga direita de Knoll.

Sem punhal esta noite?

Preciso?

Ela chegou mais perto.

- Eu posso ser bem perigosa.

Seus braços o envolveram. As bocas se fundiram, a língua de Monika explorando, excitada. Ele gostou do sabor e desfrutou a paixão que ela oferecia livremente. Quando recuou, Monika mordeu o lábio inferior dele. Knoll sentiu gosto de sangue.

É, pode mesmo. - E limpou o ferimento com um lenço. Ela estendeu a mão e abriu seu zíper.

Achei que tivesse dito que Herr Fellner estava esperando.

- Há tempo suficiente. - Ela o empurrou no chão, bem em cima da sepultura do avô. - E não estou usando calcinha.

 

Knoll seguiu Monika pelo térreo do castelo até o salão da coleção. O espaço consumia a maior parte da torre noroeste e era dividido em sala pública, onde Fellner expunha seus itens notáveis e legais, e sala secreta, onde apenas ele, Fellner e Monika se aventuravam.

Entraram na sala pública e Monika trancou a pesada porta de ma­deira. Vitrines iluminadas se enfileiravam como soldados em posição de sentido, mostrando uma variedade de objetos preciosos. Quadros e tapeçarias cobriam as paredes. Afrescos adornavam o teto com ima­gens representando Moisés entregando as leis ao povo, a construção de Babel e a tradução da Vulgata dos Setenta.

O escritório particular de Fellner ficava do outro lado da parede norte. Os dois entraram e Monika seguiu pelo piso de parquete até uma fileira de estantes, todas de carvalho marchetado e dourado em estilo barroco. Knoll sabia que todos os volumes eram peças de colecio­nador. Fellner adorava livros. Seu Beda Venerabilis do século IX era o mais antigo e mais valioso que possuía. Knoll tivera a sorte de encon­trar alguns volumes na sacristia de uma paróquia francesa há alguns anos, e o padre se mostrou disposto a se separar deles em troca de uma modesta contribuição para a igreja e para si mesmo.

Monika tirou do casaco um controle remoto preto e apertou um bo­tão. A estante do centro girou lentamente sobre o eixo. Uma luz branca veiode uma sala do outro lado. Franz Fellner estava de pé no meio de um longo espaço sem janelas, uma galeria inteligentemente escondida entre a junção de dois grandes salões. O teto alto e agudo e a forma oblonga do castelo proporcionavam mais camuflagem arquitetônica. Todas as grossas paredes de pedra eram à prova de som, e um equipamentoespecial filtrava o ar. Havia mais vitrines em filas irregulares, cada qual iluminada por luzes halógenas muito bem situadas. Knoll abriu caminho por entre as vitrines, notando algumas das aquisições. Uma escultura de jade que ele roubara de uma coleção particular no México, o que não era problema, já que o suposto dono também a havia roubado do museu da cidade de Jalapa. Várias estatuetas africanas, esquimós e japonesas recuperadas de um apartamento na Bélgica, saque de guerra supostamente destruído há muito tempo. Sentia orgulho especial da escul­tura de Gauguin à esquerda, uma peça exótica que ele havia liberado de um ladrão em Paris.

Pinturas adornavam as paredes. Um auto-retrato de Picasso. A Sa­grada Família, de Correggio. O Retrato de uma Dama, de Botticelli. O Retrato de Maximiliano I, de Dührer. Todos originais, supostamente per­didos para sempre.

A última parede de pedra estava coberta por duas enormes tape­çarias de Gobelin, saqueadas por Hermann Göring durante a guerra, recuperadas de outro suposto dono há duas décadas e ainda procura­das arduamente pelo governo austríaco.

Fellner estava ao lado de uma vitrine contendo um mosaico do sécu­lo XIII representando o papa Alexandre IV. Knoll sabia que era uma das peças prediletas do velho. Ao lado estava a reentrância com a caixa de fósforos de Fabergé. Uma minúscula lâmpada halógena iluminava o es­malte vermelho-morango. Obviamente, Fellner havia polido a peça. Knoll sabia como o patrão gostava de preparar pessoalmente cada tesouro, mais segurança para impedir que olhos estranhos vissem suas aquisições.

Fellner era um sujeito magro como um falcão, de rosto escarpado, cor de concreto, e emoções combinando. Usava óculos com aro de me­tal que emolduravam olhos suspeitosos. Sem dúvida, pensava Knoll freqüentemente, um dia eles tiveram a aparência luminosa de um idea­lista. Agora mostravam a palidez de um homem à beira dos 80, que construíra um império com revistas, jornais, televisão e rádio, mas perdera o interesse em ganhar dinheiro depois de atravessar a marca dos muitos bilhões de dólares. Sua natureza competitiva estava total­mente canalizada para outras aventuras, mais particulares. Atividades em que homens com muito dinheiro e coragem sem limite podiam obter sucesso incrível.

Fellner pegou um exemplar do International Daily News na vitrine e o estendeu.

- Quer me dizer por que isso foi necessário? - A voz tinha a rou­quidão de um milhão de cigarros.

Knoll sabia que o jornal era uma das posses corporativas de Fellner, e que um computador no escritório do outro lado era alimentado diaria­mente com matérias de todo o mundo. A morte de um rico industrial italiano era certamente algo que atrairia o olhar do velho. No fim da primeira página, estava a matéria:

 

Pietro Caproni, 58, fundador das Indústrias Due Mori, foi encontrado ontem em sua propriedade no norte da Itália com um ferimento mortal de faca no peito. Também foi encontrada morta a facadas Carmela Terza, 27, cuja identificação no local do crime indicou que residia em Veneza. A polí­cia encontrou evidências de invasão através de uma porta no térreo, mas até agora não descobriu o desaparecimento de qualquer coisa da vila. Caproni estava aposentado do Due Mori, o conglomerado que transfor­mou num dos maiores produtores de e cerâmica da Itália. Permanecia ativo como um dos principais acionistas e consultor, e sua morte deixa um vazio na empresa.

 

Fellner interrompeu a leitura dele.

- discutimos isso antes. Você foi alertado para desfrutar de suas peculiaridades no tempo livre.

Foi necessário, Herr Fellner.

Matar nunca é necessário, se você fizer o serviço direito.

Knoll olhou para Monika, que estava observando com aparente di­versão.

- O signor Caproni apareceu no meio da minha visita. Estava esperandopor mim. Tinha suspeitado desde a viagem anterior. Que, se osenhor recorda, fiz por sua insistência.

Fellner pareceu captar a mensagem imediatamente. O rosto do velhosuavizou. Knoll conhecia bem o patrão.

O signor Caproni não queria compartilhar a caixa de fósforos sem luta. Eu simplesmente fui forçado, concluindo que o senhor desejava a peça independentemente de qualquer coisa. A única alternativa era sair sem ela e me arriscar a ser denunciado.

O signore não lhe ofereceu a oportunidade de ir embora? Afinal de contas, ele não podia telefonar para a polícia.

Knoll achou que uma mentira seria melhor do que a verdade.

O signore quis atirar em mim. Estava armado.

Os jornais não mencionam isso - disse Fellner.

- Prova da falta de confiabilidade da imprensa - disse Knoll com um sorriso.

- E a puta? - perguntou Monika. - Também estava armada? Knoll se virou para ela.

- Não fazia idéia de que você tinha tanta simpatia pelas mulheres da vida. Ela sabia dos riscos, tenho certeza, quando concordou em se envolver com um homem como Caproni.

Monika chegou mais perto.

Você trepou com ela?

Claro.

Um fogo incendiou os olhos dela. Mas não disse nada. Seu ciúme era quase tão divertido quanto surpreendente. Fellner quebrou a ten­são, conciliador como sempre.

Christian, você conseguiu a caixa. Aprecio isso. Mas matar só faz atrair a atenção. É a última coisa que desejamos. E se seu sêmen for rastreado pelo DNA?

Não havia sêmen, além do pertencente ao signore. O meu foi para o estômago dela.

E as digitais?

Usei luvas.

Sei que você é cuidadoso. E agradeço por isso. Mas sou um ve­lho que apenas quer passar à filha o que acumulou. Não desejo ver to­dos nós na cadeia. Fui claro?

Fellner parecia exasperado. Já tinham tido essa discussão antes, e Knoll genuinamente odiava desapontá-lo. O patrão era bom para ele, compartilhando com generosidade a riqueza que tinham acumulado meticulosamente. Em muitos sentidos, era mais parecido com um pai do que Jakob Knoll jamais fora. Mas Monika não era nem um pouco como uma irmã.

Knoll notou a expressão dela. A conversa sobre sexo e morte sem dúvida era excitante. Certamente ela visitaria seu quarto mais tarde.

- O que encontrou em São Petersburgo? - perguntou Fellner por fim.

Ele informou sobre as referências à yantarnya komnata, depois mostrou aos dois os papéis que tinha roubado do arquivo.

É interessante saber que os russos ainda estavam investigando sobre a Sala de Âmbar até recentemente. Esse tal de Karol Borya, Yxo, é uma pessoa nova.

Ouvidos? - Fellner falava russo perfeitamente. - Designação es­tranha.

Knoll assentiu.

- Achoque uma viagem a Atlanta pode valer a pena. Talvez Yxo aindaesteja vivo. Talvez saiba onde está Chapaev. Ele foi o único que não encontrei há cinco anos.

- Imagino que a referência a Loring também sirva como corroboração - disse Fellner. - Você encontrou o nome dele duas vezes. Aparentemente, os soviéticos estavam bem interessados no que Loring fazia.

Knollsabia da história. A família Loring dominava o mercado de aço e armas na Europa Oriental. Ernst Loring era o principal rival deFellner como colecionador. Era tcheco, filho de Josef Loring, e ti­nha um ar de superioridade alimentado desde a juventude. Como PietroCaproni, era um homem definitivamente acostumado a ter as •coisas do seu jeito.

- Josef era um homem determinado. Ernst, infelizmente, não her­dou o caráter do pai. Fico pensando nele. Uma coisa que sempre me perturbou é aquela cordialidade irritante que ele acha que eu aceito. - Fellner se virou para a filha. - O que acha, liebling? Christian deve ir aos Estados Unidos?

O rosto de Monika enrijeceu. Nesses momentos, era muito pareci­dacom o pai. Inescrutável. Resguardada. Furtiva. Nos próximos anos, certamente daria orgulho a ele.

Eu quero a Sala de Âmbar.

E eu a quero para você, liebling. Procurei durante quarenta anos. Mas nada. Absolutamente nada. Nunca entendi como toneladas de âmbar podem simplesmente desaparecer. - Fellner se virou para Knoll. - Vá a Atlanta, Christian. Encontre Karol Borya. Esse tal de Yxo. Veja o que ele sabe.

O senhor sabe que, se Borya estiver morto, estaremos sem pistas. Verifiquei os arquivos na Rússia. Apenas o de São Petersburgo tem al­guma informação digna de nota.

Fellner assentiu.

O funcionário de São Petersburgo certamente está sendo pago por alguém. De novo ele ficou atento. Por isso guardei os papéis.

O que foi inteligente. Tenho certeza de que Loring e eu não somos os únicos interessados na yantarnaya komnata. Que descoberta seria, Christian. Quase dá vontade de contar ao mundo.

Quase, mas o governo russo ia querê-la de volta e, se fosse encontrada aqui, os alemães certamente a confiscariam. Seria uma exce­lente moeda de barganha para a volta dos tesouros que os soviéticos levaram embora.

É por isso que nós precisamos encontrá-la - disse Fellner. Knoll o encarou.

Para não mencionar o bônus que o senhor prometeu.

O velho deu um risinho.

Isso mesmo, Christian. Não esqueci.

Bônus, papai?

Dez milhões de euros. Prometi há anos.

E eu honrarei a promessa - Monika deixou claro.

Sem dúvida que honraria, pensou Knoll.

Fellner se afastou da vitrine.

- Ernst Loring sem dúvida está procurando a Sala de Âmbar. Ele pode muito bem ser o benfeitor daquele tecnocrata de São Petersburgo. Nesse caso, ele sabe sobre Borya. Não vamos demorar, Christian. Você precisa ficar um passo adiante.

- É o que pretendo.

- Você pode cuidar de Suzanne? - perguntou o velho, com um sor­riso malicioso no rosto magro. - Ela será agressiva.

Knoll percebeu Monika se eriçando à menção do nome. Suzanne Danzer trabalhava para Ernst Loring. Era muito culta e possuía uma determinação que poderia ser mortal, se necessário. Há apenas dois meses tinha disputado uma corrida com ele pelo sudoeste da França, procurando um par de coroas de casamento russas, do século XIX, cravejadas de jóias. Mais um "belo botim" escondido durante décadas por ladrões. Danzer tinha vencido aquela corrida, encontrando as co­roas com uma velha nos Pireneus perto da fronteira com a Espanha. O marido da mulher as havia roubado de um colaborador dos nazistasdepois da guerra. Danzer fora implacável em conseguir o prêmio, uma característica que Knoll admirava tremendamente.

- Não espero nada menos da parte dela - disse ele.

Fellner estendeu a mão.

- Boa caçada, Christian.

Ele aceitou o gesto, depois se virou para sair, indo em direção à parede mais distante. Um retângulo surgiu na pedra quando a estante do outro lado se abriu de novo.

 

WOODSTOCK, INGLATERRA

22H45

Suzanne Danzer se ergueu do travesseiro. O rapaz de 20 anos dormia profundamente ao lado. Passou um instante examinando a nudez esguia. O jovem projetava a segurança de um cavalo de exposição. Que prazer tinha sido trepar com ele!

Levantou-se da cama e se esgueirou pelo piso de madeira de lei. O quarto escuro ficava no terceiro andar de uma mansão do século XVI, propriedade de Audrey Whiddon. A velha havia servido em três man­datos na Câmara dos Comuns, e acabou adquirindo o título de lady, com­prando a mansão durante a execução de uma hipoteca, quando o dono anterior não pôde pagá-la. A velha Whiddon ainda fazia visitas ocasio­nalmente, mas Jeremy, seu único neto, era agora o principal morador.

Como tinha sido fácil se ligar a Jeremy! Ele era volúvel e animado, mais interessado em cerveja e sexo do que em finanças e lucro. Dois anos em Oxford e já havia abandonado o curso duas vezes, por defi­ciências acadêmicas. A velha o amava demais e usava todas as influên­cias que ainda possuía para levar o garoto de volta, esperando não ter mais desapontamentos, mas Jeremy parecia incapaz de ceder a seus desejos.

Suzanne estivera procurando a última caixa de rapé durante quase dois anos. Quatro constituíam a coleção original. Havia uma caixa de ouro com um mosaico em cima. Uma oval com acabamento em frutinhas translúcidas, verdes e vermelhas. Outra feita de pedra dura com engastes em prata. E uma caixa turca, esmaltada, adornada com uma cena do Chifre de Ouro. Todas criadas no século XIX pelo mesmo mestre artesão - cuja marca estava gravada nitidamente no fundo - e saqueadas de uma coleção particular na Bélgica durante a Segunda Guerra Mundial.

Supostamente estavam perdidas, derretidas pelo valor ouro, com as jóias arrancadas, o mesmo destino de muitos objetos preciosos. Mas uma havia surgido há cinco anos num leilão em Londres. Suzanne estiveralá e a havia comprado. Seu patrão, Ernst Loring, era fascinado pelo artesanato intricado das antigas caixas de rapé e possuía uma grande coleção. Algumas legítimas, compradas no mercado aberto, mas a maioria adquirida secretamente de proprietários como Audrey Whiddon. A caixa comprada no leilão havia gerado uma batalha judicial com os herdeiros do proprietário original. Os representantes legais de Loring finalmente venceram, mas a luta foi cara e pública, e o patrão não tinha desejo de repetir aquilo. Por isso a aquisição das ultimas três fora delegada à seu trabalho sub-reptício.

Suzanne tinha encontrado a segunda na Holanda, a terceira na Finlândia e a quarta inesperadamente, quando Jeremy tentou vendê-la em outra casa de leilões, sem que a avó soubesse. O leiloeiro alerta reconheceu a peça e, sabendo que não poderia vendê-la, lucrou quan­do Suzanne lhe pagou dez mil libras para saber do paradeiro do obje­to. Ela possuía muitas fontes em casas de leilão por todo o mundo, pessoas que ficavam de olhos abertos para tesouros roubados, coisas que não podiam manusear legalmente, mas que podiam vender com facilidade.

Terminou de se vestir e penteou o cabelo.

Enganar Jeremy tinha sido fácil. Como sempre, suas feições de mo­delo, os olhos azuis redondos como pratos e o corpo em forma deram resultado. Tudo isso mascarava uma calma controlada e a fazia pare­cer algo fácil de dominar e conter. Os homens sentiam-se rapidamente confortáveis com ela, e Suzanne tinha aprendido que a beleza podia ser uma arma muito melhor do que balas ou lâminas.

Saiu do quarto na ponta dos pés e desceu uma escada de madeira, tendo o cuidado de minimizar o ruído das tábuas. Elegantes estênceis elizabetanos decoravam as paredes altas. No passado, tinha imagina­do morar numa casa parecida, com marido e filhos. Mas isso foi antes que o pai lhe ensinasse o valor da independência e o preço da dedica­ção. Ele também havia trabalhado para Ernst Loring, sonhando um dia comprar sua própria propriedade. Mas nunca realizou essa ambi­ção, morrendo num acidente aéreo há onze anos. Na época, ela esta­va com 25 anos e tinha acabado de sair da faculdade, no entanto Loring não hesitou, permitindo-lhe suceder imediatamente ao pai. Suzanne aprendeu o trabalho na prática e descobriu rapidamente que, como o pai, possuía instintivamente a capacidade para procurar; e gostava tremendamente da caçada.

Virou na base da escada, passou pelo salão de jantar e entrou na sala de música, forrada de lambris. As janelas que faziam destacar o terreno ao redor estavam escuras, o teto jacobino branco em sombras. Ela se aproximou da mesa e pegou a caixa de rapé.

Número quatro.

Era de ouro dezoito quilates, a tampa com dobradiça esmaltada en plein com Júpiter engravidando Dânae em uma chuva de mais ouro ainda. Trouxe para perto a caixa minúscula e olhou a imagem da gor­ducha Dânae. Como é que os homens haviam considerado atraente tamanha obesidade? Mas parecia que sim, já que achavam necessário fantasiar que seus deuses desejavam uma bola de banha daquelas. Virou a caixa e passou os dedos sobre as iniciais.

B. N.

O artesão.

Tiroudo bolso dos jeans um pedaço de tecido. A caixa, com menos de dez centímetros de comprimento, sumiu rapidamente nas dobras carmesins. Enfiou o embrulho no bolso e depois atravessou o térreo até a biblioteca.

Ter crescido na propriedade de Loring trazia vantagens óbvias. Uma belacasa, os melhores professores, acesso à arte e à cultura. Loring havia se certificado de que a família Danzer fosse bem cuidada. Mas o isola­mento do castelo Loukov a privara de amigos de infância. Sua mãe mor­reu quando ela estava com 3 anos e o pai viajava constantemente. Era Loring que passava tempo com ela, e os livros se tornaram seus companheiros de confiança. Certa vez, leu que os chineses consideravam os livros capazes de afastar maus espíritos. E, para ela, afastavam. As histórias se tornaram sua fuga. Em particular, a literatura inglesa. As tragédias de Marlowe sobre reis e potentados, a poesia de Dryden, os ensaios de Locke, os contos de Chaucer, a Morte d'Arthur, de Malory.

Mais cedo, quando Jeremy lhe mostrou o andar térreo, ela notara um livro específico na biblioteca. Casualmente havia tirado o volume em couro da estante e encontrado a esperada suástica espalhafatosa dentro, e a inscrição dizia: EX LIBRIS ADOLF HITLER. Dois mil livros de Hitler, todos de sua biblioteca pessoal, tinham sido retirados às pressas de Berchtesgaden e guardados numa mina de sal próxima, apenas alguns dias antes do fim da guerra. Mais tarde foram encontra­dos por soldados americanos e acabaram catalogados na Biblioteca do Congresso. Mas alguns foram roubados antes disso. Vários tinham aparecido ao longo dos anos. Loring não possuía nenhum, não desejan­do lembranças do horror do nazismo, mas conhecia outros colecio­nadores que os queriam.

Ela tirou o livro da prateleira. Loring ficaria satisfeito com esse tesouro a mais.

Virou-se para sair.

Jeremy estava nu junto à porta, no escuro.

- É o mesmo que você olhou antes? - perguntou ele. - Vovó tem tantos livros que não vai sentir falta deste.

Ela se aproximou e decidiu rapidamente usar sua melhor arma.

Gostei desta noite.

Eu também. Você não respondeu à minha pergunta.

Ela sinalizou com o livro.

É. É o mesmo.

Quer ficar com ele?

Quero.

Você vai voltar?

Uma pergunta estranha, considerando a situação, mas Suzanne percebeu o que ele realmente desejava. Por isso baixou a mão e o segu­rou onde sabia que ele não poderia resistir. O rapaz reagiu instanta­neamente às carícias.

- Talvez - disse ela.

Vi você na sala de música. Você não é apenas uma mulher que saiu de um casamento ruim, não é?

Isso importa, Jeremy? Você gostou. - Ela continuou a acariciá-lo. - E está gostando agora, não é?

Ele suspirou.

E, de qualquer modo, tudo aqui é da sua avó. Por que você se importa?

Não me importo.

Suzanne o soltou. O membro dele ficou em posição de sentido. Ela deu-lhe um beijo suave nos lábios.

- Tenho certeza de que vamos nos ver de novo.

Em seguida, passou por ele e foi para a porta da frente.

- Se eu não tivesse cedido, você teria me machucado para ficar com o livro e a caixa?

Elase virou. Interessante verque alguém tão imaturo em relação à vidapudesse ser perceptivo o bastante para entender a profundidade de seus desejos.

- O que você acha?

Ele pareceu pensar genuinamente na pergunta. Talvez com mais intensidade do que pensava em qualquer coisa há algum tempo. Acho que estou satisfeito por ter trepado com você.

 

VOLARY, REPÚBLICA TCHECA

SEXTA-FEIRA, 9 DE MAIO, 14H45

Suzanne virou o Porsche bruscamente para a direita e a suspensão de molas espirais e o controle de torque do 911 Speedster se agarraram à curva fechada. Mais cedo, tinha posto de volta o teto de fibra de vidro. Mantinha o carro estacionado no aeroporto de Ruzynè, e a viagem de 120 quilômetros de Praga até o sudoeste da Boêmia era fácil e durava uma hora. O carro fora presente de Loring, um bônus há dois anos, depois de um ano de aquisições particularmente produtivo. Cinza-ardósia-metálico, interior de couro preto, carpete de veludo fofo. Ape­nas 150 exemplares foram produzidos. O seu tinha uma insígnia de ouro no painel. Drahá. "Queridinha", apelido que Loring lhe dera na infância.

Ela ouvira as histórias e lera o material de imprensa sobre Ernst Loring. A maioria o retratava como maligno, sério e rejeitado, com energia de fanático e moral de déspota. Não estava muito longe da verdade. Mas havia outro lado. O que ela conhecia, amava e respeitava.

A propriedade de Loring ocupava um terreno de 120 hectares no sudoeste da República Tcheca, apenas a alguns quilômetros da fron­teira com a Alemanha. A família havia prosperado sob o governo comunista, e suas fábricas e minas em Chomutov, Most e Teplice eram vitais para o antigo desejo de auto-suficiência da Tchecoslováquia. Ela sempre achara engraçado que as minas de urânio da família no norte, em Jáchymov, nas quais trabalhavam presos políticos - onde a conta­gem de mortes no trabalho chegava a quase cem por cento - fossem oficialmente consideradas irrelevantes pelo novo governo. Do mesmo modo, não era importante que, depois de anos de chuva ácida, as Mon­tanhas Tristes tivessem se transformado em fantasmagóricos cemité­rios de florestas apodrecendo. Era uma mera nota de rodapé o fato de Teplice, que já fora uma próspera cidade balneário perto da fronteira polonesa, ser mais conhecida pela curta expectativa de vida dos habi­tantes do que pela revigorante água quente. Há muito tempo ela havia notado que nenhuma imagem da região saía nos elegantes livros de lotos vendidos do lado de fora do Castelo de Praga aos milhões que o visitavam todos os anos. O norte da República Tcheca era uma ruí­na. Algo para lembrar. Algo que já fora uma necessidade, e atualmente algo para ser esquecido. Mas era um local onde Ernst Loring lucrava, e o motivo pelo qual ele vivia no sul.

A Revolução de Veludo de 1989 garantiu a queda dos comunistas. Três anos depois, tchecos e eslovacos se divorciaram, rapidamente divi­dindo os espólios do país. Loring se beneficiou dos dois acontecimen­tos, rapidamente se aliando a Havei e ao novo governo da República Tcheca, nome que ele considerava digno, mas sem energia. Suzanne tinha ouvido seus pontos de vista sobre as mudanças. Como suas fábri­cas e fundições tinham mais demanda do que nunca. Apesar de poupa­do no comunismo, Loring era um capitalista verdadeiro e experiente. Seu pai, Josef, e o avô, antes disso, tinham sido capitalistas.

O que era mesmo que ele dizia o tempo todo? Todos os movimen­tos políticos precisam de aço e carvão. Loring fornecia ambos, em troca de proteção, liberdade e um lucro acima do modesto sobre os in­vestimentos.

De repente, a propriedade senhorial surgiu no horizonte. Castelo Loukov. Antigo hrad de um cavaleiro, num formidável promontório acima do rápido rio Orlík. Construído no estilo borgonho-cisterciano, foi iniciado no século XV, mas só foi terminado em meados do século XVII. Sedilhas triplas e capitéis com folhas marcavam as pare­des altíssimas. Balcões envidraçados pontilhavam as ameias cober­tas de trepadeiras. Um telhado de barro brilhava em laranja ao sol do meio-dia.

Um incêndio havia quase destruído todo o complexo durante a Se­gunda Guerra Mundial, os nazistas o confiscaram como quartel-general e os aliados finalmente o bombardearam. Mas Josef Loring conseguiu recuperar a posse aliando-se aos russos que libertaram a região a cami­nho de Berlim. Depois da guerra, ressuscitou seu império industrial e o expandiu, até deixar tudo para Ernst, o único filho sobrevivente, gesto que o governo apoiou totalmente.

Homens inteligentes e ativos sempre são necessários, dissera muitas vezes o patrão de Suzanne.

Ela reduziu a marcha do Porsche para terceira. O motor gemeu, de­pois obrigou os pneus a agarrarem o pavimento seco. Começou a subir a estrada estreita, cujo asfalto preto era rodeado por florestas densas, e diminuiu a velocidade diante do portão principal do castelo. O ca­minho que um dia acomodara carruagens puxadas a cavalo e impedira agressores fora alargado e pavimentado para aceitar a passagem de carros.

Loring estava do lado de fora, no pátio, vestido de modo casual, usando luvas de trabalho, aparentemente cuidando das flores de prima­vera. Era alto e anguloso, com peito surpreendentemente liso e físico forte para um homem de setenta e muitos anos. Na década anterior, ela havia observado o cabelo sedoso, louro cinzento, desbotar até um tom sem brilho, com o cavanhaque da mesma cor acarpetando o maxilar e o pescoço enrugados. A jardinagem sempre fora uma de suas obsessões. As estufas do lado de fora dos muros estavam cheias de plantas exóticas de todo o mundo.

- Dobriy den, minha cara - gritou Loring em tcheco.

Ela parou e saiu do Porsche, pegando a bolsa de viagem no banco do carona.

Loring bateu a terra das luvas e se aproximou.

- Boa caçada?

Suzanne pegou uma pequena caixa de papelão no banco do carona. Nem a alfândega de Londres nem a de Praga questionaram o badulaque quando ela explicou que fora comprado numa loja de lembranças da Abadia de Westminster por menos de trinta libras. Conseguiu até mostrar um recibo, já que havia parado na loja e comprado uma repro­dução barata, que jogou numa lata de lixo do aeroporto.

Loring tirou as luvas e levantou a tampa, examinando a caixa de rapé à luz da tarde que se esvaía.

- Linda - sussurrou. - Perfeita.

Ela enfiou a mão na bolsa e tirou o livro.

O que é isso? - perguntou ele.

Uma surpresa.

Loring recolocou o tesouro na caixa de papelão e segurou cautelo­samente o volume, desdobrando a capa e se maravilhando com o ex-libris.

Drahá, você me espanta. Que bônus maravilhoso!

Reconheci instantaneamente e achei que você gostaria.

- Certamente podemos vender ou trocar isto. Herr Greimel adora, e eu gostaria muito de uma pintura que ele possui.

- Tinha certeza de que você ficaria feliz.

- Isso deve fazer Christian notar, hein? Seria uma tremenda reve­lação em nosso próximo encontro.

- E Franz Fellner.

Ele balançou a cabeça.

Não mais. Acredito que agora é Monika. Ela parece estar assumin­do o controle de tudo. Devagar, mas com firmeza.

Vaca arrogante.

Certo. Mas não é idiota. Falei bastante com ela recentemente. Meio impaciente e ansiosa. Parece ter herdado o espírito do pai, se não o cérebro. Mas quem sabe? Ela é jovem, talvez aprenda. Tenho certeza de que Franz vai ensinar.

E quanto ao meu benfeitor? Algum pensamento semelhante em aposentadoria?

Loring riu.

O que eu iria fazer?

Ela indicou as flores.

Jardinagem?

- Dificilmente. O que fazemos é revigorante demais. Colecionar gera muita empolgação. Sou como uma criança abrindo presentes no Natal.

Ele aninhou os dois tesouros e levou-a para dentro de sua oficina de carpintaria, que ocupava o térreo de uma construção adjacente ao pátio.

- Recebi um telefonema de São Petersburgo. Christian esteve de novo no arquivo. Nos registros da Comissão. Fellner obviamente não vai desistir.

- Ele encontrou alguma coisa?

- Difícil dizer. O funcionário idiota já deveria ter examinado as caixas, mas duvido que tenha feito isso. Diz que vai levar anos. Parece muito mais interessado em ser pago do que em trabalhar. Mas pôde ver que Knoll descobriu uma referência a Karol Borya.

Ela percebeu o significado.

- Não entendo essa obsessão de Franz - disse Loring. - Tantas coisas esperando para serem descobertas. A Virgem e o Menino, de Bellini, per­dida desde a guerra. Que descoberta seria! A peça de altar de Van Eyck com o CordeiroMístico. Os dozemestres antigos roubados do Museu de Trevés, em 1968. E aquelas obras impressionistas roubadas em Florença. Não existem sequer fotos delas para ajudar na identificação. Qualquer um adoraria adquirir ao menos uma.

Mas a Sala de Âmbar está no topo da lista de todos os colecionadores- disse ela.

Certo, e esse parece ser o problema.

Acha que Christian tentará encontrar Borya?

- Sem dúvida. Borya e Chapaev são os únicos investigadores aindavivos. Knoll não encontrou Chapaev há cinco anos. Provavelmente esperaque Borya saiba do paradeiro de Chapaev. Fellner adoraria que aSala de Âmbar fosse a primeira revelação de Monika. Não tenho dúvida de que Franz mandará Knoll aos Estados Unidos, pelo menos para tentar encontrar Borya.

- Mas não será um beco sem saída?

- Exato. Literalmente. Mas apenas se necessário. Esperemos que Borya ainda mantenha a boca fechada. Talvez o velho tenha finalmente morrido. Deve estar com quase 90 anos. Vá à Geórgia, mas fique fora do caminho, a não ser que seja obrigada a agir.

Uma empolgação a atravessou. Seria maravilhoso batalhar contra Knolloutra vez. O último encontro dos dois na França fora revigorante. Mas perigoso. O que tornava a aventura muito mais empolgante.

- Cuidado com Christian, minha cara. Não fique perto demais. Tal­vez você tenha de fazer alguma coisa desagradável. Deixe-o para Monika. Eles se merecem.

Ela deu um beijo na bochecha do velho.

- Não se preocupe. Sua drahá não vai deixá-lo na mão.

 

ATLANTA, GEÓRGIA

SÁBADO, 10 DE MAIO, 18H50

Karol Borya se acomodou na espreguiçadeira e leu de novo o único artigo que sempre consultava quando precisava recordar detalhes. Era da International Art Review, de outubro de 1972. Ele o havia encontra­do numa de suas idas regulares ao centro da cidade, à biblioteca da Universidade Estadual da Geórgia. Fora da Alemanha e da Rússia, a mídia havia mostrado pouco interesse na Sala de Âmbar. Menos de duas dúzias de relatos em inglês tinham sido publicados desde a guer­ra, a maioria repetições de fatos históricos ou uma avaliação da últi­ma teoria sobre o que poderia ter acontecido. Ele adorava o modo como o artigo iniciava, com uma citação de Robert Browning, ainda sublinhado com tinta azul, da primeira leitura: Subitamente, como acon­tece com as coisas raras, ela desapareceu.

Essa observação era particularmente relevante para a Sala de Âm­bar. Sem ser vista desde 1945, sua história era atulhada de tumultos políticos e marcada por morte e intriga.

A idéia veio de Frederico I da Prússia, um homem complicado que trocou seu voto precioso como eleitor do Sacro Império Romano pela garantia de ter um reino hereditário próprio. Em 1701, encomendou painéis de âmbar para uma sala em seu palácio de Charlotenburgo. Frederico se divertia diariamente com peças de xadrez, castiçais e candelabros de âmbar. Tomava cerveja em canecas de âmbar e fumava cachimbos com bocais de âmbar. Por que não uma sala forrada do teto ao chão com painéis de âmbar esculpidos? Por isso encarregou o arquiteto da corte, Andreas Schülter, da tarefa de criar essa maravilha.

A encomenda original foi feita a Gottfried Wolffram, mas em 1707 ErnsSchact e Gottfried Turau substituíram o dinamarquês. Durante quatro anos, Schact e Turau trabalharam, revirando meticulosamente o litoral do Báltico em busca de âmbar de alta qualidade. Há séculos aárea vinha produzindo toneladas da substância, tanto que Frederico treinou batalhões inteiros para procurar. Por fim, cada pedaço bruto foifatiado até uma grossura de não mais de cinco milímetros, polido e aquecido para mudar de cor. Então as peças foram colocadas, como um quebra-cabeça, em painéis de mosaico com motivos florais, bustose símbolos heráldicos. Cada painel incluía um relevo do brasão da Prússia, uma águia coroada, de perfil, com fundo de prata para enfa­tizar o brilho.

Asala foi parcialmente terminada em 1712, quando Pedro, o Grande, da Rússia, fez uma visita e admirou o trabalho. Um ano depois, Fre­derico I morreu e foi sucedido pelo filho, Frederico Guilherme I. Como acontece algumas vezes com os filhos, Frederico Guilher­me odiava tudo que o pai amava. Não tendo desejo de gastar mais dinheiro da coroa com o capricho do pai, ordenou que os painéis de âmbar fossem desmontados e guardados.

Em 1716, Frederico Guilherme assinou uma aliança russo-prussiana com Pedro, o Grande, contra a Suécia. Para comemorar o tratado, os painéis de âmbar foram cerimoniosamente presenteados a Pedro e transportados a São Petersburgo no mês de janeiro seguinte. Pedro, mais preocupado em criar a marinha russa do que em colecionar arte, simplesmente os guardou. Mas, em agradecimento, retribuiu o pre­sente com 248 soldados, um torno mecânico e uma taça de vinho fei­ta por ele próprio. Dentre os soldados estavam 55 de seus guardas mais altos, em reconhecimento pela paixão do rei prussiano por guer­reiros de grande estatura.

Trinta anos se passaram até que a imperatriz Elizabeth, filha de Pedro, pediu a Rastrelli, o arquiteto da corte, para colocar os painéis numa sala no palácio de inverno de São Petersburgo. Em 1755, Elizabeth ordenou que fossem levados para o palácio de verão em Tsarskoe Selo, cinqüenta quilômetros ao sul de São Petersburgo, e instalados no que passou a ser conhecido como o Palácio de Catarina.

Foi lá que a Sala de Âmbar foi aperfeiçoada.

Nos vinte anos seguintes, 48 metros quadrados de painéis adicio­nais de âmbar, a maioria com o brasão dos Romanov e decorações elaboradas, foram acrescentados aos 36 metros quadrados originais, acréscimos necessários, já que as paredes de nove metros do Palácio de Catarina eram muito mais altas que as da sala original. O rei prus­siano chegou a colaborar com a criação, enviando outro painel, este com um baixo-relevo da águia de duas cabeças dos czares russos. Oitenta e seis metros quadrados de âmbar foram produzidos, e no fim as paredes eram salpicadas de belas estatuetas, guirlandas flo­rais, tulipas, rosas, conchas, monogramas e rocaille, tudo em tons brilhantes de castanho, vermelho, amarelo e laranja. Rastrelli emoldurou cada painel numa cártula de madeira entalhada em estilo Luís XV, separando-os verticalmente por pares de estreitas pilastras espe­lhadas adornadas com candelabros de bronze, tudo folheado a ouro para se fundir ao âmbar.

O centro de quatro painéis tinha exóticos mosaicos florentinos feitos de jásper e ágata polidos e emoldurados em bronze dourado. Um mu­ral de teto foi acrescentado, junto com um intricado piso de parquete com marchetaria em carvalho, bordo, sândalo, pau-rosa, nogueira e mogno, tão magnífico quanto as paredes ao redor.

Cinco mestres de Königsberg trabalharam até 1770, quando a sala foi declarada pronta. A imperatriz Elizabeth ficou tão deliciada que costumava usar o local para impressionar embaixadores estrangeiros. Ele também servia como kunstkammer, um gabinete de curiosidades para ela e os czares posteriores, lugar onde tesouros reais podiam ser expostos. Em 1765, setenta objetos de âmbar - baús, castiçais, caixas de rapé, pratos, facas, garfos, crucifixos e tabernáculos - enfeitavam a sala. Em 1780, uma mesa de canto de âmbar incrustado foi acrescentada. O último objeto de decoração veio em 1913, uma coroa de âmbar sobre uma almofada, peça comprada pelo czar Nicolau II.

Incrivelmente, os painéis sobreviveram intactos a 170 anos e à Revolução Bolchevique. Foram feitas restaurações em 1760, 1810, 1830, 1870, 1918, 1935 e 1938. Uma ampla restauração foi planejada nos anos 1940, mas, em 22 de junho de 1941, tropas alemãs invadiram a União Soviética. Em 14 de julho, o exército de Hitler havia tomado a Bielo-Rússia, a maior parte da Letônia, a Lituânia e a Ucrânia, chegando ao rio Liga, a menos de 160 quilômetros de Leningrado. Em 17 de setembro, soldados nazistas tomaram Tsarskoe Selo e os palácios na cidade e ao redor, inclusive o de Catarina, que havia se tornado um museu estatal durante o governo dos comunistas.

Nos dias anteriores à captura, autoridades do museu enviaram às pressas todos os pequenos objetos da Sala de Âmbar para o leste da Rússia. Mas tinha sido impossível remover os painéis. Num esforço para escondê-los, uma camada de papel de parede foi colada em cima, mas o disfarce não enganava ninguém. Hitler ordenou que Erich Koch, gauleiter da Prússia Oriental, devolvesse a Sala de Âmbar a Königsberg, que, segundo a idéia do Führer, era seu local de direito. Seis homens demoraram 36 horas para desmontar os painéis, e vinte toneladas de âmbar foram meticulosamente encaixotadas e transportadas em com­boio de caminhão e de trem para o oeste, eventualmente reinstaladas no castelo de Königsberg, junto com uma vasta coleção de arte prus­siana. Um artigo de jornal alemão, em 1942, proclamava que o even­to era uma "volta ao verdadeiro lar, o verdadeiro local de origem e o único lugar de origem do âmbar". Cartões-postais do tesouro restau­rado foram publicados. A exposição se tornou o mais popular espetáculo de museu dos nazistas.

O primeiro bombardeiro aliado contra Königsberg ocorreu em agos­to de 1944. Algumas colunas espelhadas e alguns dos painéis menores de âmbar foram danificados. O que aconteceu depois não é claro. Em algum momento entre janeiro e abril de 1945, enquanto o exército so­viético se aproximava de Königsberg, Koch ordenou que os painéis fossem encaixotados e escondidos no porão do restaurante Blutgericht. O último documento alemão que mencionava a Sala de Âmbar foi datado de 12 de janeiro de 1945, e observava que os painéis estavam sendo preparados para o transporte até a Saxônia. Num determinado ponto, Alfred Rohde, encarregado da sala, supervisionou a colocação dos caixotes num comboio de caminhões. Esses caixotes foram vistos pela última vez em 6 de abril de 1945, quando os caminhões saíram de Königsberg.

Borya pôs o artigo de lado.

Cada vez que lia as palavras, sua mente voltava à primeira frase. Subitamente, como acontece com as coisas raras, ela desapareceu. Como era verdadeiro!

Passou um tempo e folheando o dossiê aberto no colo. Continha cópias de outros artigos que havia colecionado durante os anos. Olhou casualmente alguns, a memória instigada pelos detalhes. Era bom lembrar.

Até certo ponto.

Levantou-se da espreguiçadeira e saiu do pátio para fechar a tor­neira. Sua horta de verão brilhava com uma boa encharcada. Tinha es­perado o dia inteiro para molhá-la, esperando que chovesse, mas até agora a primavera estava seca. Lucy olhava do pátio, empertigada, com os olhos felinos estudando cada movimento seu. Sabia que ela nãogostava da grama, em particular da grama molhada, cheia de cuidados com o pêlo desde que adquirira status de moradora. Pegou a pasta de arquivo.

- Venha, gatinha, para dentro.

A gata o acompanhou pela porta dos fundos e os dois entraram na cozinha. Ele jogou a pasta na bancada perto do jantar, um filé enrola­do em bacon, marinado em teriyaki. Já ia cozinhar espigas de milho quando a campainha da porta tocou.

Saiu da cozinha arrastando os pés e foi para a frente da casa. Lucy o acompanhou. Borya espiou pelo olho mágico e viu um homem vesti­do de terno escuro, camisa branca e gravata listrada. Provavelmente outra testemunha de Jeová ou um mórmon. Costumavam aparecer nessa época, e Borya gostava de conversar com eles.

Abriu a porta.

- Karl Bates? Anteriormente conhecido como Karol Borya?

A pergunta o pegou desprevenido, e seus olhos o traíram com uma reação afirmativa.

- Sou Christian Knoll - disse o homem.

Um leve sotaque alemão, que desagradou Borya instantaneamente, temperava as palavras. Um cartão de visitas reiterando o nome com letras pretas em relevo junto com as palavras PROCURADOR DE ANTIGÜIDADES PERDIDAS foi estendido, mas não oferecido. O en­dereço e o número de telefone eram de Munique, Alemanha. Borya examinou o visitante. Quarenta e poucos anos, ombros largos, cabelos louros ondulados, pele curtida de sol, cor de canela, e olhos cinzentos dominando um rosto gélido - que exigia atenção.

- O que quer de mim, Sr. Knoll?

- Posso? - O visitante indicou o desejo de entrar, enquanto guar­dava o cartão de novo.

- Depende.

- Quero falar sobre a Sala de Âmbar.

Borya pensou em protestar, mas decidiu não fazê-lo. Na verdade, esperava uma visita há anos.

Knoll o acompanhou até a sala íntima. Os dois se sentaram. Lucy rodeou, investigando, depois se empoleirou numa poltrona ad­jacente.

- O senhor trabalha para os russos? - perguntou Borya.

Knoll balançou a cabeça.

- Eu poderia mentir e dizer que sim, mas não. Sou empregado de um colecionador particular que procura a Sala de Âmbar. Recentemente descobri seu nome e endereço nos registros soviéticos. Parece que o senhor já esteve numa busca semelhante.

Borya assentiu.

- Há muito tempo.

Knoll enfiou a mão no paletó e pegou três folhas dobradas.

- Achei essas referências nos registros soviéticos. Elas se referem ao senhor como Yxo.

Borya examinou os papéis. Décadas tinham se passado desde que lera escritos em cirílico.

Era o meu nome em Mauthausen.

O senhor foi prisioneiro?

- Durante muitos meses. - Borya virou o braço direito e mostrou a tatuagem. - 10901. Tentei tirar, mas não consegui. Trabalho alemão.

Knoll indicou as folhas.

- O que sabe sobre Danya Chapaev?

Borya notou com interesse que Knoll ignorou a alfinetada étnica.

Danya era meu parceiro. Trabalhamos juntos até eu sair.

Como o senhor foi trabalhar para a comissão?

Borya encarou o visitante, pensando se deveria responder. Há dé­cadas não falava sobre aquela época. Só Maya sabia de tudo, e as in­formações tinham morrido com ela há anos. Rachel sabia o suficiente paraentender e nunca esquecer. Será que deveria falar? Por que não? Eraum velho que já passara da idade. O que importava agora?

Depois do campo de extermínio, voltei à Bielo-Rússia, mas mi­nha pátria não existia mais. Os alemães foram como gafanhotos. Minha família estava morta. A comissão parecia um bom lugar para ajudar nareconstrução.

Estudei a comissão atentamente. Organização interessante. Os nazistas fizeram seus saques, mas os soviéticos os suplantaram em muito. Os soldados pareciam satisfeitos com luxos mundanos como bicicletas e relógios. Mas os oficiais mandavam para casa vagões e aviões cheios de obras de arte, porcelana e jóias. Aparentemente, a comissão foi a maior saqueadora de todos. Milhões de itens, pelo que acredito.

Borya balançou a cabeça, em oposição.

- Não era saque. Os alemães destruíram terras, lares, fábricas, cida­des. Mataram milhões. Na época, os soviéticos pensavam nisso como reparação.

- E agora? - Knoll parecia ter sentido sua hesitação.

- Concordo. Saque. Os comunistas eram piores que os nazistas. É incrível como o tempo abre nossos olhos.

Aparentemente, Knoll ficou satisfeito com a concessão.

- A comissão se transformou em algo falso, não diria? Acabou aju­dando Stalin a mandar milhões para os gulags.

Motivo pelo qual saí.

Chapaev ainda está vivo?

A pergunta veio depressa. Inesperada. Certamente programada para induzir uma resposta igualmente rápida. Ele quase sorriu. Knoll era bom.

- Não faço idéia. Não vejo Danya desde que saí. A KGB veio aqui há anos. Um checheno grande e fedorento. Disse a mesma coisa a ele.

- Foi muita ousadia, Sr. Bates. A KGB deveria ser levada a sério.

- Os muitos anos me deixaram ousado. O que ele ia fazer? Matar um velho? Esses tempos se foram, Herr Knoll.

Sua mudança de senhor para Herr foi intencional, mas, de novo, Knoll não reagiu. Em vez disso, o alemão mudou de assunto.

Entrevistei muitos dos investigadores antigos. Telegin. Zernov. Voloshin. Nunca pude encontrar Chapaev. Nem sabia sobre o senhor até alguns dias atrás.

Os outros não mencionaram meu nome?

Se tivessem feito isso, eu teria vindo antes.

O que não era surpreendente. Como ele, todos tinham aprendido o valor de manter a boca fechada.

- Conheço a história da comissão - disse Knoll. - Ela contratou in­vestigadores para percorrer toda a Alemanha e a Europa Oriental em busca de obras de arte. Uma corrida contra o exército pelo direito de pilhagem. Mas foi muito bem-sucedida e conseguiu pegar o ouro de Tróia, o Altar de Pérgamo, a Madona Sistina, de Rafael, e toda a coleção do Museu de Dresden, creio.

Borya assentiu.

Muitas, muitas coisas.

Pelo que sei, só agora alguns desses objetos estão vendo a luz do dia. A maior parte foi escondida em castelos ou trancada em salas du­rante décadas.

Eu li as matérias. Glasnost. - Borya decidiu ir ao ponto. - O se­nhor acha que sei onde está a Sala de Âmbar?

Não. Caso contrário, o senhor já a teria encontrado.

- Talvez seja melhor continuar desaparecida. Knoll balançou a cabeça.

- Alguém com o seu passado, seu amor pela arte, certamente não ia querer que essa obra-prima fosse destruída pelo tempo e pelas forças da natureza.

- O âmbar dura para sempre.

- Mais a forma em que ele foi trabalhada, não dura. A cola do sécu­lo XVIII não pode ser tão eficaz assim.

É verdade. Se fossem encontrados hoje, aqueles painéis seriam como um quebra-cabeça.

Meu patrão está disposto a financiar a remontagem desse quebra-cabeça.

- Quem é seu patrão?

O visitante riu.

Não posso dizer. A pessoa prefere o anonimato. Como o senhor bem sabe, o mundo dos colecionadores pode ser um local traiçoeiro para os que são conhecidos.

Eles procuram um grande prêmio. A Sala de Âmbar não é vista há mais de cinqüenta anos.

Mas imagine, Herr Bates, desculpe, Sr. Bates...

É Borya.

Muito bem. Sr. Borya. Imagine a sala restaurada à sua glória an­terior. Que visão seria! Atualmente existem apenas algumas poucas fotografias coloridas, junto com algumas em preto e branco que cer­tamente não fazem justiça à beleza da sala.

Vi essas fotos quando estava pesquisando. Também vi a sala antes da guerra. Realmente magnífica. Nenhuma foto jamais poderia captu­rar. É triste, mas parece perdida para sempre.

Meu patrão se recusa a acreditar nisso.

Existem boas evidências de que os painéis foram destruídos quan­do Königsberg foi bombardeada em massa em 1944. Alguns acham que eles estão no fundo do Báltico. Eu próprio investiguei o Wilhelm Gustloff. Nove mil e quinhentos mortos quando os soviéticos afundaram o navio. Alguns dizem que a Sala de Âmbar estava no compartimento de car­ga. Teria sido levada de caminhão de Königsberg a Danzig e posta no navio para a viagem a Hamburgo.

Knoll se remexeu na cadeira.

Também estudei o Gustloff. As evidências são contraditórias, na melhor das hipóteses. Francamente, a história mais digna de crédito que pesquisei foi que os painéis teriam sido tirados de Königsberg pe­los nazistas e mandados a uma mina perto de Göttingen, junto com munição. Quando os ingleses ocuparam a área, em 1945, explodiram a mina. Mas, como em todas as outras versões, existem ambigüidades.

Alguns até mesmo juram que americanos a encontraram e trans­portaram para o outro lado do Atlântico.

Ouvi isso também. Junto com uma versão propondo que os sovié­ticos encontraram e guardaram os painéis em algum lugar desconheci­do por todos que estão no poder atualmente. Dado o simples volume do que foi saqueado, isso é totalmente possível. Mas dado o valor e o desejo de retorno do tesouro, não é provável.

O visitante parecia conhecer bem o assunto. Borya tinha relido todas essas teorias mais cedo. Olhou intensamente para o rosto de granito, mas os olhos vazios não traíam coisa alguma do que o alemão pensava. Lembrou-se do treino necessário para levantar uma barreira tão completa.

- O senhor não se preocupa com a maldição? Knoll riu.

Já ouvi falar. Mas essas coisas são para os desinformados ou os sensacionalistas.

Como fui grosseiro! - disse Borya de repente. - O senhor quer uma bebida?

- Seria bom.

- Já volto. - O velho sinalizou para a gata na poltrona. - Lucy lhe fará companhia.

Foi em direção à cozinha e lançou um último olhar ao visitante antes de passar pela porta de vaivém. Encheu dois copos com gelo e serviu um pouco de chá. Também colocou na geladeira o filé ainda mergu­lhado no tempero. Na verdade, não estava mais com fome, a mente emdisparada, como nos velhos tempos. Olhou para a pasta com artigos derevistas, ainda na bancada.

- Sr. Borya? - gritou Knoll.

A voz foi acompanhada por passos. Talvez fosse melhor que os artigos permanecessem sem ser vistos. Borya abriu rapidamente a geladeirae pôs a pasta na prateleira de cima, perto do congelador. Fechou a portano instante em que Knoll passou pela porta de vaivém e entrou na cozinha.

Sim, Herr Knoll?

Posso usar seu toalete?

No corredor. Depois da sala íntima.

Obrigado.

Nem por um instante Borya acreditou que Knoll precisasse usar o banheiro. Era mais provável que quisesse trocar a fita no gravador de bolso sem se preocupar em ser interrompido, ou usar a oportunidade paradar uma olhada na casa. Era um truque que ele utilizara muitas vozes nos velhos tempos. O alemão estava ficando irritante. Decidiu se divertir um pouco. No armário embaixo da pia, pegou um laxante que seus intestinos idosos o obrigavam a tomar pelo menos duas vezes por semana. Jogou os grânulos sem sabor num dos copos de chá e mexeu. Agora o sacana realmente precisaria ir ao banheiro.

Levou os copos gelados à sala íntima. Knoll voltou e aceitou o chá, teimando vários goles compridos.

- Excelente - disse Knoll. - Uma bebida realmente americana. Chá gelado.

Temos orgulho disso.

Temos? O senhor se considera americano?

Estou aqui há muitos anos. Agora é o meu lar.

A Bielo-Rússia não está independente de novo?

- Os líderes de lá não são melhores que os soviéticos. Suspenderam a constituição. Não passam de ditadores.

O povo não deu ao presidente da Bielo-Rússia esse nível de poder?

A Bielo-Rússia é mais como uma província da Rússia, essa não é uma independência verdadeira. A escravidão demora séculos para ser eliminada.

- O senhor parece não gostar de alemães nem de comunistas.

Borya estava cansado da conversa, lembrando-se do quanto odia­va os alemães.

- Dezesseis meses num campo de extermínio podem mudar nossa opinião.

Knoll terminou o chá. Os cubos de gelo fizeram barulho quando o copo bateu na mesa.

Borya continuou:

Os alemães e os comunistas estupraram a Bielo-Rússia e a Rússia. Os nazistas usaram o palácio de Catarina como alojamento, depois como alvo de tiros. Visitei o lugar depois da guerra. Pouco restava da beleza regia. Os alemães não tentaram destruir a cultura russa? Bom­bardearam os palácios até os alicerces para nos ensinar uma lição.

Não sou nazista, Sr. Borya, portanto não posso responder à sua pergunta.

Passou-se um momento de silêncio tenso. Então Knoll perguntou:

Por que não paramos de discutir? O senhor encontrou a Sala de Âmbar?

Como falei, a sala se perdeu para sempre.

Por que será que não acredito? Borya deu de ombros.

Sou um velho. Vou morrer logo. Não tenho motivo para mentir.

De algum modo duvido desta última observação, Sr. Borya.

Borya sustentou o olhar de Knoll.

- Vou lhe contar uma história que talvez ajude em sua busca. Meses antes de Mauthausen cair, Göring veio ao campo. Me obrigou a tortu­rar quatro alemães. Göring mandou amarrá-los a estacas num frio congelante. Derramamos água sobre eles até morrerem.

- E qual era o objetivo?

Göring queria das Bernstein-zimmer. Os quatro homens estavam entre os que tiraram os painéis de Königsberg antes da invasão dos russos. Göring queria a Sala de Âmbar, mas Hitler pegou primeiro.

Algum dos soldados revelou qualquer informação?

- Nada. Só gritaram "Mein Führer" até morrerem congelados. Al­gumas vezes ainda vejo os rostos congelados nos meus sonhos. O estranho, Sr. Knoll, é que de certo modo eu devo a vida a um alemão.

Como assim?

Se um dos quatro tivesse falado, Göring teria me amarrado à estaca eme matado utilizando o mesmo método. - Borya estava cansado delembrar. Queria o sacana fora de sua casa antes que o laxante fizesse efeito. - Odeio os alemães, Herr Knoll. Odeio os comunistas. Não disse nada à KGB. Não vou lhe dizer nada. Agora vá.

Knoll pareceu sentir que seria infrutífero perguntar mais e se le­vantou.

- Muito bem, Sr. Borya. Não se pode dizer que eu o pressionei. De­sejo-lhe boa noite.

Foram até o saguão e Borya abriu a porta. Knoll saiu, virou-se e es­tendeu a mão. Um gesto casual, aparentemente mais por educação que por dever.

- Foi um prazer, Sr. Borya.

O velho pensou de novo no soldado alemão, Mathias, nu no frio congelante, e em como ele reagira a Göring. Cuspiu na mão estendida.

Knoll não disse nada, nem se moveu durante alguns segundos. En­tão, calmamente, o alemão pegou um lenço no bolso da calça e enxu­gou o cuspe enquanto a porta era batida na sua cara.

 

21H35

Borya mais uma vez examinou a matéria da International Art Review e encontrou a parte da qual se lembrava:

 

...Alfred Rohde, o homem que supervisionou a evacuação da Sala de Âmbar de Königsberg, foi preso logo depois da guerra e levado a autoridades soviéticas. A chamada Comissão Extraordinária de Estado para Investigar os Danos Causados pelos Invasores Fascistas Alemães procurava a Sala de Âmbar e queria respostas. Mas Rohde e sua esposa foram encontrados mortos na manhã em que deveriam ser interrogados. A causa oficial, plausível, foi disenteria, já que na época as epidemias grassavam devido à água poluída, mas abundaram especulações de que tinham sido mortos para proteger a localização da Sala de Âmbar.

No mesmo dia, o Dr. Paul Erdmann, o médico que assinou os atestados de óbito dos Rohde, desapareceu.

Erich Koch, representante pessoal de Hitler na Prússia, acabou sendo preso e julgado pelos poloneses por crimes de guerra. Koch foi condenado à morte em 1946, mas sua execução foi continuamente adiada a pedido de autoridades soviéticas. Acreditava-se amplamente que Koch era o único homem vivo que sabia do paradeiro dos caixotes que saíram de Königsberg, era 1945. Paradoxalmente, a sobrevivência de Koch dependia de ele não revelar o paradeiro, já que não havia motivo para acreditar que os soviéticos interviriam a seu favor quando possuíssem de novo a Sala de Âmbar.

Em 1965, os advogados de Koch finalmente obtiveram dos soviéticos a garantia de que sua vida seria poupada quando a informação fosse revelada. Então Koch anunciou que os caixotes foram emparedados num bunker perto de Königsberg, mas afirmou que não podia lembrar o local exato, em resultado da reconstrução feita pelos soviéticos depois da guerra. Foi para a sepultura sem revelar onde os painéis estavam.

Nas décadas seguintes, três jornalistas da Alemanha Ocidental morreram misteriosamente enquanto procuravam a Sala de Âmbar. Um caiu no poço de uma mina de sal abandonada na Áustria, local supostamente usado como depósito de saques nazistas. Dois outros foram mortos atropelados. George Stein, pesquisador alemão que investigou durante muito tempo a Sala de Âmbar, supostamente cometeu suicídio. Todos esses acontecimentos alimentaram as especulações de uma maldição associada à Sala de Âmbar, tornando ainda mais intrigante a busca ao tesouro.

Borya estava no andar de cima, no quarto que fora de Rachel. Agora era um escritório onde ele mantinha seus livros e documentos. Havia uma antiga escrivaninha, um arquivo de carvalho e uma poltrona em que ele gostava de sentar e relaxar. Quatro estantes de nogueira guardavam romances, tratados históricos e literatura clássica.

Tinha subido depois do jantar, ainda pensando em Christian Knoll, e encontrou mais artigos numa das pastas. Todos eram curtos, na maioria, espalhafatosos, sem conter informações reais. O resto continuava na geladeira. Precisava pegá-los, mas não sentiu vontade de descer a escada de novo.

No geral, os relatos dos jornais e revistas sobre a Sala de Âmbar eram contraditórios. Um dizia que os painéis desapareceram em janeiro de 1945, outro em abril. Tinham saído em caminhões, de trem ou pelo mar? Diferentes escritores ofereciam diferentes pontos de vista. Um relato dizia que os soviéticos tinham torpedeado o Wilhelm Gustloff, afundando-o no Báltico com os painéis, outro mencionava que o navio fora bombardeado pelo ar. Um tinha certeza de que 72 caixotes tinham saído de Königsberg, o seguinte falava de 26, outro de 18. Vários relatos tinham certeza de que os painéis tinham sido queimados em Königsberg durante o bombardeio. Outro rastreava pistas dando a entender que tinham atravessado o Atlântico sub-repticiamente até os listados Unidos. Era difícil extrair qualquer coisa útil, e nenhum artigo jamais mencionava a fonte das informações. Poderiam ser de segunda ou terceira mão. Ou, pior ainda, pura especulação.

Apenas uma publicação obscura, O Historiador Militar, contava a história de um trem que saíra da Rússia ocupada por volta de 1º. de maio de 1945 com a Sala de Âmbar supostamente encaixotada a bordo. Relatos de testemunhas diziam que os caixotes tinham sido descarregados na minúscula cidade de Tynecnad-Sázavou, na Tchecoslováquia. Dali supostamente foram mandados de caminhão para o sul e guardados num bunker subterrâneo que abrigava o quartel-general do marechal-de-campo von Schörner, comandante dos milhões de soldados do exército alemão, ainda esperando na Tchecoslováquia. Mas a matéria dizia que uma escavação no bunker, feita pelos soviéticos em 1989, não encontrou coisa alguma.

Perto da verdade, pensou ele. Bem perto.

Há sete anos, quando lera pela primeira vez o artigo, tinha imaginado qual seria a fonte, até mesmo tentara contatar o autor, mas não teve sucesso. Agora um homem chamado Wayland McKoy estava se enfiando nas montanhas Harz, perto de Stod, Alemanha. Estaria na pista certa? A única coisa clara era que pessoas tinham morrido procurando a Sala de Âmbar. O que aconteceu com Alfred Rhode e Erich Koch era história documentada. Assim como as outras mortes e desaparecimentos. Coincidência? Talvez. Mas Borya não tinha tanta certeza. Particularmente devido ao que acontecera há nove anos. Como poderia esquecer? A lembrança o assombrava toda vez que via Paul Cutler. E muitas vezes se perguntava se dois outros nomes não deveriam ser acrescentados à lista de baixas.

Um guincho veio do corredor.

Não era um som que a casa costumava fazer quando vazia.

Ergueu os olhos, esperando ver Lucy entrar na sala, mas a gata não estava à vista. Pôs os artigos de lado e se levantou da poltrona. Foi arrastando os pés até o saguão do segundo andar e olhou para o saguão de baixo, do outro lado de uma balaustrada de carvalho. As estreitas luzes laterais que emolduravam a porta da frente estavam apagadas, o térreo iluminado por uma única lâmpada na sala íntima. O andar de cima também estava escuro, a não ser pelo abajur de pé, no escritório. Logo adiante, a porta de seu quarto estava aberta, o cômodo escuro e silencioso.

- Lucy? Lucy?

A gata não respondeu. Ele tentou ouvir. Não houve mais sons. Tudo parecia silencioso. Virou-se e começou a voltar para o escritório. De repente, alguém o atacou por trás, saindo do quarto. Antes que pudesse se virar, um braço forte envolveu seu pescoço, tirando-o do chão. O cheiro de látex exalava das mãos enluvadas.

- Können wir reden mehr, Yxo.

A voz era do visitante, Christian Knoll. Borya traduziu facilmente.

Agora falaremos mais, Ouvidos.

Knoll apertou sua garganta com força e a respiração falhou.

- Russo desgraçado. Cuspiu na minha mão. Quem você acha que é, porra? Já matei por muito menos.

Borya ficou quieto, com a experiência de toda uma vida alertando para o silêncio.

- Você vai contar o que quero saber, velho, ou eu o mato. Borya se lembrou de palavras semelhantes ditas há 52 anos. Göring informando aos soldados nus sobre seu destino antes que a água fosse derramada. O que foi mesmo que o soldado alemão, Mathias, tinha dito?

É uma honra desafiar quem nos capturou.

Verdade, ainda era.

- Você sabe onde Chapaev está, não sabe?

Borya tentou balançar a cabeça.

O aperto de Knoll ficou mais forte.

- Você sabe onde está das Bernstein-zimmer, não sabe?

Ele estava quase desmaiando. Knoll afrouxou o aperto. O ar entrou nos pulmões num jorro.

- Não sou uma pessoa a ser desconsiderada. Viajei de longe em busca de informações.

- Não digo nada.

- Tem certeza? Mais cedo, você disse que seu tempo era curto. Agora é mais curto do que você imaginava. E sua filha? Seus netos? Não gostaria de mais alguns anos com eles?

Borya gostaria, mas não o bastante para ser acovardado por um alemão.

- Vá se foder, Herr Knoll.

Seu corpo frágil foi jogado por cima da escada. Ele tentou gritar, mas antes que conseguisse juntar o fôlego, bateu a cabeça nos degraus de carvalho e rolou. Seus membros se esparramaram. Braços e pernas bateram nas hastes do corrimão enquanto a gravidade o fazia dar cambalhotas. Algo estalou. A consciência sumiu e voltou. A dor rasgou suas costas. Por fim, bateu com a coluna no ladrilho duro, uma agonia se irradiando pela parte superior do corpo. As pernas estavam entorpecidas. O teto girou. Ouviu Knoll descendo a escada, então o viu abaixar a mão e puxá-lo pelos cabelos. Irônico. Ele devia a vida a um alemão, e agora um alemão ia tirá-la.

- Dez milhões de euros é uma coisa. Mais nenhum sacana russo vai cuspir em mim.

Borya tentou juntar saliva para cuspir de novo, mas a boca estava seca, o queixo imobilizado.

O braço de Knoll envolveu seu pescoço.

 

Suzanne Danzer olhava pela janela e ouviu o estalo quando Knoll partiu o pescoço do velho. Viu o corpo se afrouxar, a cabeça deixada num ângulo não natural.

Então Knoll jogou Borya de lado e chutou o peito do velho.

Ela havia seguido o rastro de Knoll de manhã, depois de chegar a Atlanta num vôo vindo de Praga. As ações dele até então tinham sido previsíveis, e ela inicialmente o localizou enquanto percorria o bairro numa missão de batedor. Qualquer adquirente com competência sempre examinava primeiro a paisagem, certificando-se de que uma pista não fosse uma armadilha.

E, independentemente de qualquer coisa, Knoll era bom.

Tinha ficado no hotel no centro da cidade durante a maior parte do dia, e ela o havia seguido antes, quando visitou Borya pela primeira vez. Mas, em vez de voltar ao hotel, Knoll esperou num carro a três quarteirões de distância e voltou depois do escurecer. Ela havia observado ele entrar por uma porta dos fundos, que aparentemente estava destrancada, já que a maçaneta girou à primeira tentativa.

Obviamente, o velho não quis cooperar. O temperamento de Knoll era lendário. Havia lançado Borya escada abaixo com a casualidade de alguém que jogava um papel numa lixeira, depois quebrou o pescoço com um prazer visível. Ela respeitava os talentos do adversário, sabia sobre o punhal que ele usava no antebraço e a capacidade de usá-lo sem hesitação.

Mais ela própria não era desprovida de talentos.

Knoll se levantou e olhou ao redor.

O ponto de observação de Suzanne permitia ver com clareza. O macacão preto e o gorro preto que ela usava sobre o cabelo louro ajudavam a fundi-la à noite. A sala para onde a janela dava, uma sala de estar, estava com as luzes apagadas.

Será que ele sentiu sua presença?

Encolheu-se abaixo do parapeito e dos altos azevinhos que rodeavam a casa. O suor se juntava em gotas na testa, por baixo do elástico do gorro. Ergueu-se cautelosamente e viu Knoll desaparecer escada acima. Seis minutos depois, ele retornou com as mãos vazias. O paletó estava de novo ajeitado, a gravata, perfeita. Suzanne ficou olhando enquanto ele se abaixava e verificava a pulsação de Borya e depois ia para os fundos da casa. Alguns segundos depois, escutou uma porta se abrir e fechar.

Esperou dez minutos antes de se esgueirar até os fundos. Com as mãos enluvadas, virou a maçaneta e entrou. O cheiro de anti-séptico e velhice pairava no ar. Atravessou a cozinha e foi até o saguão.

Na sala de jantar, um gato atravessou seu caminho de repente. Ela parou, com o coração acelerado, e xingou a criatura.

Respirou fundo e entrou na sala íntima.

A decoração não mudara desde sua última visita, há três anos. O mesmo sofá com encosto em corcova, o relógio de parede com carrilhão e abajures Cambridge de ferro. As litografias nas paredes tinham-na intrigado desde o início. Havia imaginado se alguma poderia ser original, mas uma inspeção atenta na última vez revelou que todas eram cópias. Tinha invadido a casa numa noite depois de Borya sair, e a busca não revelou nada sobre a Sala de Âmbar além de algumas matérias de jornais e revistas. Nada de valor. Se Karol Borya sabia algo importante sobre a Sala de Âmbar, certamente não havia anotado ou não mantinha as informações nesta casa.

Passou pelo corpo no saguão e subiu a escada. Outra verificação rápida no escritório não revelou coisa alguma além de que aparentemente Borya estivera lendo alguns materiais sobre a Sala de Âmbar recentemente. Vários artigos estavam espalhados na mesma poltrona castanha da qual ela se lembrava.

Esgueirou-se de volta para o andar de baixo.

O velho estava caído com o rosto no piso. Verificou a pulsação. Nenhuma.

Ótimo.

Knoll havia lhe poupado o trabalho.

 

DOMINGO, 11 DE MAIO,

8H35

Rachel parou o carro na entrada de veículos do pai. O céu da manhã de maio era de um azul convidativo. A porta da garagem estava levantada, com o Oldsmobile descansando do lado de fora, o orvalho brilhando no exterior marrom. A visão era estranha, já que seu pai geralmente guardava o carro.

A casa tinha mudado pouco desde sua infância. Tijolos vermelhos, acabamento branco, telhado de tábuas cor de carvão. As magnólias e os cornisos na frente, plantados há vinte anos quando a família se mudara para ali, agora eram altos e fartos junto com azevinhos e juníperos que envolviam a frente e as laterais. O exterior precisava de cuidados, e ela fez uma anotação mental de falar com o pai sobre isso.

Parou e as crianças saíram correndo para a porta dos fundos.

Verificou o carro do pai. Destrancado. Balançou a cabeça. Ele simplesmente se recusava a trancar qualquer coisa. O Constitution da manhã estava caído na entrada e ela foi pegá-lo, depois seguiu pelo caminho de concreto até os fundos. Maria e Brent estavam chamando Lucy no quintal.

A porta da cozinha também estava destrancada. A luz sobre a pia estava acesa. Por mais que seu pai fosse descuidado com as fechaduras, era absolutamente neurótico com as luzes, só acendendo alguma quando era totalmente necessário. Sem dúvida a teria desligado na noite passada, antes de ir dormir. Chamou:

- Papai? Está aí? Quantas vezes tenho de dizer para não deixar a porta destrancada?

As crianças chamaram Lucy, depois passaram pela porta de vaivém em direção à sala de jantar e à sala íntima.

- Papai? - sua voz saiu mais alta.

Marla correu de volta para a cozinha.

- Vovô está dormindo no chão.

- O quê?

- Ele está dormindo no chão perto da escada.

Rachel correu da cozinha para o saguão. O ângulo estranho do pescoço do pai lhe disse instantaneamente que ele não estava dormindo.

 

- Bem-vindo ao Museu de Arte High - dizia o recepcionista a cada pessoa que passava pelas amplas portas de vidro. - Bem-vindo. Bem-vinda. - Pessoas continuavam passando pela roleta, uma a uma. Paul esperou sua vez na fila.

- Bom dia, Sr. Cutler - disse o recepcionista. - Não precisava esperar. Por que não passou na frente?

- Não seria justo, Sr. Braun.

- Os membros da diretoria devem ter algum privilégio, não é? Paul sorriu.

- Seria de se pensar. Há um repórter aí me esperando? Eu deveria encontrá-lo às dez horas.

- Sim. O sujeito está na galeria da frente desde que eu abri.

Paul se afastou, com os saltos de couro fazendo barulho no terraço brilhante. O átrio com altura de quatro andares era aberto até o teto, Com rampas semicirculares para pedestres circulando as enormes paredes em cada andar. Pessoas andavam de um lado para o outro e o rumor de conversas baixas flutuava pelo ar-condicionado.

Ele não podia pensar num modo melhor de passar uma manhã de domingo do que no museu. Nunca fora de ir à igreja. Não que não acreditasse. Só que admirar as verdadeiras realizações humanas parecia mais satisfatório do que ponderar sobre algum ser onipotente. Rachel era igual. Freqüentemente ele se perguntava se a atitude laica dos dois com relação à religião afetava Maria e Brent. Talvez as crianças precisassem ser expostas à crença, argumentou uma vez. Mas Rachel havia discordado. Deixe que eles se decidam quando quiserem. Era ferrenhamente anti-religiosa.

Apenas mais uma das discussões entre os dois. Foi até a galeria da frente, cujas telas eram uma amostra hipnotizante do que esperava no resto do prédio. O repórter, um homem magro, de aparência agitada, com barba crespa e uma bolsa de máquina fotográfica pendurada no ombro direito, estava diante de um grande óleo.

- Você é Gale Blazek?

O rapaz se virou e assentiu.

- Paul Cutler. - Os dois se cumprimentaram e ele sinalizou a pintura. - Linda, não é?

- A última de Del Sarto, acredito - respondeu o repórter.

Ele assentiu.

- Tivemos a sorte de convencer um colecionador particular a nos emprestar por um tempo, junto com várias outras ótimas telas. Estão no segundo andar, com o restante dos italianos dos séculos XIV e XVIII.

- Farei questão de vê-las antes de ir embora.

Paul notou o enorme relógio de parede. 10hl5.

- Desculpe o atraso. Por que não caminhamos um pouco e você pode fazer suas perguntas?

O sujeito sorriu e pegou um mini-gravador na bolsa a tiracolo. Os dois andaram pela ampla galeria.

- Vou direto ao ponto. Há quanto tempo o senhor faz parte da diretoria do museu? - perguntou o repórter.

- Nove anos.

- É colecionador?

Ele riu.

- De jeito nenhum. Tenho apenas alguns óleos pequenos e algumas aquarelas. Nada substancial.

- Disseram-me que seus talentos estão em organizar. A administração fala muito bem do senhor.

- Adoro o trabalho voluntário. Este lugar é especial para mim. Um ruidoso grupo de adolescentes veio do mezanino.

- O senhor tem formação em arte?

Ele balançou a cabeça.

- Na verdade, não. Tenho bacharelado em ciência política em Emory e fiz alguns cursos de história da arte. Então descobri o que os historiadores da arte fazem e fui para a escola de direito. - Paul deixou de fora a parte sobre não ter sido aceito na primeira tentativa. Não por vaidade, só que depois de treze anos isso realmente não importava mais.

Passaram perto de duas mulheres admirando uma tela de Santa Maria Madalena.

- Quantos anos o senhor tem? - perguntou o repórter.

- Quarenta e um.

- É casado?

- Divorciado.

- Eu também. Como está se virando com isso?

Ele deu de ombros. Não precisava fazer qualquer comentário sobre isso enquanto estava sendo gravado.

- Eu me viro bem.

Na verdade, o divórcio significava um frugal apartamento de dois quartos e jantares sozinho ou com colegas de trabalho, a não ser nas duas noites por semana em que comia com as crianças. Os contatos sociais se restringiam às funções da ordem dos advogados do Estado, único motivo pelo qual ele atuava em tantos comitês, algo para ocupar o tempo livre e as semanas alternadas em que não ficava com as crianças. Rachel era boa com relação às visitas. Na verdade, elas podiam acontecer a qualquer momento. Mas ele não queria interferir no relacionamento dela com as crianças e entendia o valor de uma programação e da necessidade de coerência.

- Que tal se descrever um pouco?

- Perdão?

- É algo que pergunto a todas as pessoas sobre quem escrevo. Elas podem fazer isso muito melhor que eu. Quem melhor para conhecê-lo do que o senhor mesmo?

- Quando o administrador me pediu para dar esta entrevista e mostrar o lugar, achei que a matéria era sobre o museu, e não sobre mim.

- E é. Para a revista do Constitution do domingo que vem. Mas o editor quer alguns boxes sobre pessoas fundamentais. As personalidades por trás das mostras.

- Que tal os curadores?

- O administrador disse que o senhor é uma das figuras centrais por aqui. Alguém com quem ele realmente pode contar.

Paul parou. Como poderia se descrever? Um 1,78 metro, cabelos castanhos, olhos castanho-claros. Físico de alguém que corre cinco quilômetros por dia? Não.

- Que tal rosto comum num corpo comum com personalidade comum? Confiável. O tipo de cara com quem você gostaria de estar, numa trincheira.

- O tipo de cara que se certifica de que a propriedade da gente seja bem cuidada depois de a gente ter morrido?

Ele não dissera nada sobre ser advogado de sucessões. Obviamente, o repórter tinha feito o dever de casa.

- Algo assim.

- O senhor falou de trincheiras. Prestou serviço militar?

- Minha geração é posterior à época do alistamento obrigatório. Pós-Vietnã e coisa e tal.

- Há quanto tempo exerce a advocacia?

- Já que você sabe que sou advogado de sucessões, presumo que também saiba há quanto tempo exerço a profissão.

- Na verdade, esqueci de perguntar. Resposta honesta. Bastante justa.

- Estou na Pridgen & Woodworth há treze anos.

- Seus sócios falam muito bem do senhor. Conversei com eles na sexta-feira.

Paul ergueu uma sobrancelha, perplexo.

- Ninguém mencionou nada sobre isso.

- Pedi para não mencionarem. Pelo menos até hoje. Queria que nossa conversa fosse espontânea.

Mais freqüentadores entraram. A sala estava ficando apinhada e barulhenta.

- Por que não vamos até a Galeria Edwards? Tem menos gente. Há algumas esculturas excelentes expostas.

Paul foi na frente, passando pelo mezanino. A luz do sol jorrava pelas passarelas através de altos painéis de vidro grosso, que pareciam renda numa edificação de porcelana branca. Um gigantesco desenho a tinta cor de rubi enfeitava a parede norte. O aroma de café e amêndoas vinha de uma lanchonete aberta.

Magnífico - disse o repórter olhando ao redor. - Como foi que o New York Times chamou? O melhor museu que uma cidade construiu durante uma geração?

- Ficamos satisfeitos com o entusiasmo deles. Ajudou a trazer obras para as galerias. Os doadores se sentiram imediatamente confortáveis conosco.

Adiante estava um polido monólito de granito vermelho no centro do átrio. Paul foi instintivamente na direção dele, jamais passando por ali sem parar um momento. O repórter foi atrás. Uma lista de 29 nomes estava gravada na pedra. Seus olhos sempre gravitavam até o centro:

 

YANCY CUTLER

4 DE JUNHO DE 1936 - 23 DE OUTUBRO DE 1998

ADVOGADO DEDICADO

PATRONO DAS ARTES

AMIGO DO MUSEU

 

MARLENE CUTLER

14 DE MAIO DE 1938 - 23 DE OUTUBRO DE 1998

ESPOSA DEDICADA

PATRONA DAS ARTES

AMIGA DO MUSEU

 

- Seu pai foi da diretoria, não foi? - perguntou o repórter.

- Durante trinta anos. Ajudou a levantar dinheiro para este prédio. Minha mãe também era ativa.

Ficou em silêncio. Reverente, como sempre. Aquele era o único memorial que existia para os pais. O airbus explodira sobre o mar. Vinte e nove pessoas morreram. Toda a diretoria do museu, cônjuges e vários funcionários. Nenhum corpo foi achado. Nenhuma explicação para a causa, além de uma conclusão das autoridades italianas de que terroristas separa listas tinham sido responsáveis. O Ministro de Antigüidades da Itália, a bordo, seria o alvo. Yancy e Marlene Cutler estavam simplesmente no lugar errado na hora errada.

- Eram boas pessoas - disse ele. - Todos sentimos falta.

Virou-se guiando o repórter para a Galeria Edwards. Uma curadora-assistente veio correndo pelo átrio.

- Sr. Cutler, por favor, espere. - A mulher se aproximou com uma expressão preocupada. - Acabamos de receber um telefonema para o senhor. Sinto muito. Seu ex-sogro faleceu.

 

ATLANTA, GEÓRGIA

TERÇA-FEIRA, 13 DE MAIO

Karol Borya foi enterrado às onze horas, numa manhã de primavera nublada e com um frio penetrante, o que era incomum para maio. O funeral foi concorrido. Paul fez as honras, apresentando três antigos amigos de Borya que fizeram discursos comoventes. Em seguida, também disse algumas palavras.

Rachel estava de pé na frente, com Maria e Brent ao lado. O sacerdote da igreja ortodoxa de São Methodius, usando mitra, presidiu a cerimônia, já que Karol tinha sido freqüentador da paróquia. A cerimônia aconteceu sem pressa, lacrimosa e enfatizada por um coro cantando Tchaikovsky e Rachmaninov. O enterro foi no cemitério ortodoxo adjacente à igreja, um terreno de argila vermelha e grama bermuda sombreado por sicômoros cheios de musgo. Enquanto o caixão era baixado, as últimas palavras do sacerdote soaram verdadeiras:

- Do pó vieste, ao pó retornas.

Ainda que tivesse adotado totalmente a cultura americana, Borya sempre mantivera uma conexão religiosa com sua pátria, seguindo rigidamente a doutrina ortodoxa. Paul não se lembrava do sogro como um homem explicitamente devoto, apenas alguém que acreditava solenemente e transferia essa crença para uma vida boa. O velho havia mencionado muitas vezes que gostaria de ser enterrado na Bielo-Rússia, em meio aos bosques de faias, aos pântanos e aos campos ondulados cobertos de flores azuis do linho. Seus pais e irmãos estavam em covas coletivas cuja localização exata morrera com os oficiais da SS e soldados alemães que os trucidaram. Paul pensou em falar com alguém do Departamento de Estado sobre a possibilidade de um enterro no estrangeiro, mas Rachel vetou a idéia, dizendo que queria o pai e a mãe por perto. Rachel também insistiu em que a reunião pós-enterro acontecesse em sua casa, e cerca de setenta e poucas pessoas chegaram e saíram num intervalo de duas horas. Vizinhos trouxeram comida e bebida. Ela conversou educadamente com todo mundo, aceitou os pêsames e agradeceu.

Paul a observava atentamente. Ela parecia estar agüentando bem. Por volta das duas horas, desapareceu no andar de cima. Ele a encontrou no antigo quarto dos dois, sozinha. Fazia tempo que não entrava ali.

- Você está bem? - perguntou.

Ela estava sentada na beira da cama de dossel, olhando para o tapete, os olhos inchados de chorar. Paul chegou mais perto.

- Eu tinha consciência de que esse dia chegaria - disse ela. - Agora os dois se foram. - Fez uma pausa. - Eu me lembro de quando mamãe morreu. Achei que era o fim do mundo. Não pude entender por que ela foi levada.

Paul havia se perguntado freqüentemente se essa seria a fonte das crenças anti-religiosas dela. Ressentimento contra um Deus supostamente misericordioso que podia implacavelmente privar uma menininha de sua mãe. Queria abraçá-la, reconfortá-la, dizer que a amava e sempre amaria. Mas ficou imóvel, lutando contra as lágrimas.

- Ela sempre lia para mim. Estranho, mas o que mais recordo é a voz. Tão gentil! E as histórias que ela contava. Apolo e Dafne. As batalhas de Perseu, Jasão e Medéia. Todas as outras crianças ouviam contos de fadas. - Rachel deu um sorriso débil. - Eu escutava mitologia.

O comentário foi uma das raras vezes em que ela mencionou algo específico sobre a infância. Não gostava de abordar o assunto e, no passado, tinha deixado claro que considerava qualquer pergunta uma intromissão.

- É por isso que você lê o mesmo tipo de coisa para nossos filhos?

Ela enxugou as lágrimas das bochechas e confirmou com a cabeça.

- Seu pai era um homem bom. Eu gostava demais dele.

- Mesmo a gente não tendo dado certo, ele sempre considerou você um filho. Disse que sempre consideraria. - Ela o encarou. - O maior desejo dele era que nós dois voltássemos a ficar juntos.

O de Paul também, mas ele ficou quieto.

- Parece que você e eu só fazíamos brigar - disse ela. - Duas pessoas teimosas.

Ele precisou dizer:

- Não era só isso que fazíamos.

Ela deu de ombros.

- Você sempre foi o otimista da casa.

Paul notou a foto de família, posta em ângulo em cima da cômoda. Tinham tirado um ano antes do divórcio. Ele, Rachel e as crianças. A foto de casamento também estava ali, como a do andar de baixo.

- Sinto muito sobre a noite de terça-feira - disse ela. - O que falei quando você saiu. Sabe como minha boca é, algumas vezes.

- Eu não devia ter pegado no seu pé. O que aconteceu com o Nettles não é da minha conta.

- Não, você está certo. Eu reagi exageradamente com ele. Meu temperamento me traz problemas. - Ela enxugou mais lágrimas. - Tenho coisas demais para fazer. Este verão vai ser difícil. Não estava planejando uma disputa desta vez. E agora, isso.

Paul não verbalizou o óbvio. Talvez, se ela exercesse um pouquinho de diplomacia, os advogados não se sentissem tão ameaçados.

- Olhe, Paul, você pode cuidar do espólio de papai? Simplesmente não posso lidar com isso agora.

Ele estendeu a mão e apertou de leve o ombro dela. Ela não resistiu ao gesto.

- Claro.

A mão de Rachel foi até a dele. Era a primeira vez que se tocavam em meses.

- Confio em você. Sei que vai fazer o que é certo. Ele ia querer que você cuidasse das coisas. Papai respeitava você.

Ela retirou a mão.

Ele também. Começou a pensar como advogado. Qualquer coisa que afastasse a mente da situação.

- Você sabe onde está o testamento?

- Procure pela casa. Provavelmente no escritório. Pode estar no cofre dele no banco. Não sei. Ele me deu a chave.

Rachel foi até a penteadeira. Rainha do Gelo? Não para ele. Paul se lembrou do primeiro encontro, há doze anos, numa reunião da ordem dos advogados de Atlanta. Ele era um quieto advogado em seu primeiro ano na Pridgen & Woodworth. Ela era uma agressiva promotora-assistente. Namoraram por dois anos até que ela finalmente sugeriu que se casassem. No início, foram felizes e os anos passaram depressa. O que deu errado? Por que as coisas não podiam ser boas de novo? Talvez ela estivesse certa. Talvez fossem melhores amigos do que amantes.

Ele esperava que não.

Pegou as chaves do cofre das mãos de Rachel e disse:

- Não se preocupe, Rach. Cuidarei de tudo.

 

Saiu da casa de Rachel e foi direto à de Karol Borya. Era uma viagem de menos de meia hora por uma combinação de movimentados bulevares comerciais e confusas ruas de bairro.

Parou na entrada de veículos e viu o Odsmobile de Borya aninhado na garagem. Rachel tinha lhe dado a chave da casa e ele destrancou a porta da frente. Os olhos foram imediatamente atraídos para os ladrilhos do saguão, depois para as hastes do corrimão da escada, algumas partidas ao meio, outras se projetando em ângulos estranhos. Os degraus de carvalho não tinham qualquer evidência de impacto, mas a polícia disse que o velho se chocou contra um deles e caiu para a morte, com o pescoço de 81 anos se partindo no processo. Uma autópsia confirmou os ferimentos e a causa aparente. Acidente trágico.

Parado em meio ao silêncio, uma estranha combinação de arrependimento e tristeza o fez estremecer. Sempre gostara de ir ali, falar de arte e dos Bravos. Agora o velho tinha morrido. Outro elo com Rachel se partira. Mas um amigo também se fora. Borya era como um pai para ele. Tinham se tornado especialmente ligados depois que os pais de Paul foram mortos. Borya e seu pai tinham sido bons amigos, ligados pela arte. Agora lembrou-se dos dois com uma pontada no coração.

Homens bons que se foram para sempre.

Decidiu seguir o conselho de Rachel e procurar primeiro no escritório, no andar de cima. Sabia que existia um testamento. Ele o havia redigido há alguns anos e duvidava que Borya tivesse procurado qualquer outra pessoa para modificar a redação. Certamente havia uma cópia arquivada na empresa e, se necessário, ele poderia usá-la. Mas o original passaria mais rápido pelo tribunal de sucessões.

Subiu a escada e examinou o escritório. Havia artigos de revistas espalhados na poltrona, alguns no tapete. Folheou as páginas. Eram todas sobre a Sala de Âmbar. Borya tinha abordado o assunto muitas vezes ao longo dos anos, e sua convicção eram as palavras de um russo branco que ansiava por ver o tesouro devolvido ao palácio de Catarina. Mas, afora isso, Paul não havia percebido o interesse intenso do velho, aparentemente o bastante para colecionar artigos e recortes que remontavam a trinta anos.

Examinou as gavetas da escrivaninha e os arquivos, e não encontrou nenhum testamento.

Olhou as estantes. Borya adorava ler. Homero, Hugo, Poe e Tolstoi enchiam as estantes, junto com um volume de contos de fadas russos, uma coleção das Histórias, de Churchill, e um exemplar encadernado em couro das Metamorfoses, de Ovídio. Também parecia gostar de escritores sulistas, obras de Flannery O'Connor e Katherine Anne Porter faziam parte da coleção.

Seus olhos foram atraídos para a flâmula na parede. O velho a havia comprado num quiosque no Centennial Park durante os Jogos Olímpicos. Um cavaleiro cor de prata num cavalo empinado, espada embainhada, uma cruz de ouro, de seis pontas, adornando o escudo. O fundo era vermelho-sangue, símbolo de valor e coragem, segundo Borya, com acabamento em branco para indicar liberdade e pureza. Era o emblema nacional da Bielo-Rússia, um desafiador símbolo de autodeterminação.

Muito parecido com o próprio Borya.

Borya tinha adorado os Jogos Olímpicos. Eles foram a vários eventos e estavam lá quando a Bielo-Rússia ganhou o ouro no remo feminino. O país ganhou quatorze outras medalhas - seis de prata e oito de bronze, no disco, heptatlo, ginástica e luta greco-romana - e Borya sentiu orgulho de cada uma delas. Mesmo sendo americano por osmose, no coração, o ex-sogro sem dúvida era um russo branco.

Voltou para baixo e examinou cuidadosamente as gavetas e armários, mas não encontrou nenhum testamento. O mapa da Alemanha ainda estava desdobrado na mesa. O USA Today que ele tinha dado a Borya também estava ali.

Entrou na cozinha e fez uma busca, com a hipótese remota de haver papéis importantes guardados ali. Certa vez, tinha cuidado de um caso em que uma mulher guardara o testamento no congelador. Por isso, num impulso, abriu a porta dupla da geladeira. A visão de uma pasta de arquivo em ângulo embaixo do congelador o surpreendeu. Tirou e abriu a pasta gelada.

Mais artigos sobre a Sala de Âmbar, remontando às décadas de 1940 e 1950, mas alguns recentes, de até dois anos atrás. Imaginou o que estariam fazendo na geladeira. Decidindo que, no momento, encontrar o testamento era mais importante, decidiu ficar com a pasta e ir ao banco.

A placa de rua do Geórgia Citizens Bank, no Carr Boulevard, indicava 15h23 quando Paul entrou no movimentado estacionamento. Era cliente do Geórgia Citizens há anos, desde que havia trabalhado para eles antes de cursar direito.

O gerente, um sujeito pequeno e magro com cabelos ralos, inicialmente recusou o acesso ao cofre particular de Borya. Depois de um rápido telefonema para o escritório, a secretária de Paul mandou por fax uma carta de representação que ele assinou, atestando que era advogado do espólio de Karol Borya, falecido. A carta pareceu satisfazer o gerente. Pelo menos agora havia algo arquivado para mostrar a algum herdeiro que reclamasse que o cofre estava vazio.

A lei da Geórgia continha uma provisão específica permitindo aos representantes de um espólio acesso aos cofres para procurar testamentos. Paul havia utilizado a lei muitas vezes, e a maioria dos gerentes de banco era familiarizada com essas determinações. Mas ocasionalmente podia surgir alguma dificuldade.

O sujeito o levou até a sala do cofre, onde ficavam as fileiras de caixas de aço inoxidável. A posse da chave de número 45 parecia confirmar ainda mais a autenticidade de Paul. Ele sabia que a lei exigia que o gerente permanecesse, visse o conteúdo e inventariasse exatamente o que era retirado e por quem. Destrancou a caixa e puxou o retângulo estreito para fora, com um ruído de metal contra metal.

Dentro havia um único maço de papéis presos com elástico. Um documento tinha capa azul, e ele o reconheceu imediatamente com o testamento que havia redigido há anos. Cerca de uma dúzia de envelopes brancos estavam presos a ele. Paul folheou-os. Todos vinham de um tal de Danya Chapaev e eram endereçados a Borya. Muito bem dobradas no maço havia cópias de cartas de Borya para Chapaev. Tudo escrito em inglês. O último documento era um envelope simples, lacrado, com o nome de Rachel escrito na frente, em tinta azul.

- As cartas e este envelope estão anexados ao testamento. O Sr. Borya obviamente pretendia que formassem uma unidade. Não há mais nada no cofre. Vou levar tudo.

- Em situações assim, somos instruídos a liberar apenas o testamento.

- Estava tudo preso junto. Estes envelopes podem estar relacionados ao testamento. A lei declara que posso ficar com eles.

O gerente hesitou.

- Terei de ligar para o escritório de nossa advogada-chefe, no centro, para uma autorização.

- Qual é o problema? Não há ninguém para reclamar de nada. Eu escrevi este testamento. Sei o que ele diz. O único herdeiro do Sr. Borya é a filha dele. Estou aqui em nome dela.

- Mesmo assim, preciso verificar com nossa advogada.

Paul já estava cheio.

- Faça como quiser. Diga a Cathy Holden que Paul Cutler está em seu banco sendo embromado por alguém que obviamente não conhece a lei. Diga-lhe que, se eu tiver de ir ao tribunal para pegar uma ordem me autorizando a retirar o que posso retirar de qualquer modo, o banco terá de me compensar pelos 220 dólares a hora que cobrarei pelo trabalho.

O gerente pareceu pensar nas palavras.

- O senhor conhece nossa advogada-chefe?

- Já trabalhei para ela.

O gerente pensou na situação em silêncio e, finalmente, disse:

- Pode levar. Mas assine aqui.

 

Danya,

Meu coração dói todo dia pelo que aconteceu com Yancy Cutler. Que homem excelente! E sua esposa era uma mulher tão boa! Todas as outras pessoas naquele avião também eram boas. Pessoas boas não deveriam morrer de modo tão violento ou tão súbito. Meu genro sofre muito, e me dói pensar que posso ser responsável. Yancy telefonou na véspera do acidente. Ele pôde localizar o velho que você mencionou, cujo irmão trabalhou na propriedade de Loring. Você estava certo. Eu jamais deveria ter pedido a Yancy para fazer indagações de novo enquanto estava na Itália. Não era certo envolver outras pessoas. O fardo recai sobre você e eu. Mas por que sobrevivemos? Será que eles sabem onde estamos? O que sabemos? Será que não representamos mais ameaça? Só os que fazem perguntas e chegam perto demais atraem a atenção deles. A indiferença talvez seja muito melhor do que a curiosidade. Tantos anos se passaram, e a Sala de Âmbar parece mais uma lembrança do que uma maravilha do mundo. Será que alguém ainda se importa realmente? Fique em segurança e bem, Danya. Mantenha contato.

Karol

 

 

Danya,

A KGB apareceu hoje. Um checheno gordo que fedia como um cano de esgoto. Disse que encontrou meu nome nos registros da comissão. Eu pensava que a pista era antiga demais e fria demais para ser seguida. Mas estava errado. Seja cuidadoso. Ele perguntou se você ainda está vivo. Eu contei o de sempre. Acho que somos os dois únicos da antiga que restam. Todos os amigos se foram. É triste demais. Talvez você esteja certo. Chega de cartas, só para garantir. Ainda mais agora, que eles sabem onde estou. Minha filha está para ser mãe. Meu segundo neto. Desta vez é uma menina, pelo que me disseram. Ciência moderna. Eu gostava dos velhos tempos, quando a gente ficava imaginando. Mas uma menininha seria ótimo. Meu neto é uma alegria. Espero que os seus estejam bem. Fique em segurança, velho amigo.

Karol

 

Amigo Karol

O recorte anexo é do jornal de Bonn. Yeltsin chegou à Alemanha proclamando saber onde estava localizada a Sala de Âmbar. Os jornais e revistas se empolgaram com o anúncio. Você ficou sabendo, do outro lado do oceano? Ele disse que estudiosos descobriram a informação em registros soviéticos. A Comissão Extraordinária para Examinar Crimes Contra a Rússia, foi como Yeltsin nos chamou. Ha! Tudo que o idiota fez foi extrair meio bilhão de marcos de ajuda de Bonn, depois pedir desculpa dizendo que os registros não eram sobre a Sala de Âmbar, e sim sobre outros tesouros roubados de Leningrado. Mais mentira russa. Russos, soviéticos, nazistas. Tudo igual. A conversa atual sobre a devolução dos tesouros russos é mais propaganda. O que eles fazem é vender nossos tesouros. Todo dia os jornais estão cheios de histórias sobre quadros, esculturas e jóias sendo vendidos. Uma liquidação de nossa história. Devemos manter os painéis em segurança. Chega de cartas, pelo menos por um tempo. Agradeço a foto de sua neta. Que alegria ela deve trazer a você! Boa saúde, amigo.

Danya

 

Danya,

Espero que esta carta o encontre bem de saúde. Faz muito tempo que nos correspondemos pela última vez. Achei que talvez depois de três anos possa ser seguro. Não houve mais visitas, e li poucos relatórios sobre qualquer coisa relativa aos painéis. Desde que nos comunicamos pela última vez, minha filha e o marido se divorciaram. Os dois se amam, mas simplesmente não conseguem viver juntos. Meus netos estão bem. Espero que os seus também estejam. Ficamos velhos, os dois. Seria bom se aventurar e ver se os painéis estão realmente lá. Mas nenhum de nós dois pode fazer a viagem. Além disso, ainda pode ser perigoso. Alguém estava vigiando quando Yancy Cutler fez perguntas sobre Loring. Sei, no fundo do coração, que a bomba não se destinava a um ministro italiano. Ainda sofro pelos Cutler. Tantos morreram procurando a Sala de Âmbar. Talvez ela devesse permanecer desaparecida. Não importa. Nenhum de nós pode protegê-la por muito mais tempo. Boa saúde, velho amigo.

Karol

 

Rachel

Minha querida preciosa. Minha única filha. Agora seu pai descansa em paz com sua mãe. Certamente estamos juntos, porque um Deus misericordioso não negaria a duas pessoas que se amavam a oportunidade da felicidade eterna. Escrevi este bilhete para dizer o que talvez devesse ter dito em vida. Você sempre soube de meu passado, do que fiz para os soviéticos antes de emigrar. Eu roubava arte. Não passava de um ladrão, mas era sancionado e encorajado por Stalin. Na época, racionalizava isso com meu ódio pelos nazistas, mas estava errado. Nós roubamos muito de muitas pessoas, tudo em nome de uma reparação. O que mais procurávamos era a Sala de Âmbar. Nossa por herança, roubada por invasores. As cartas que estão junto deste bilhete contam parte da história de nossa busca. Meu velho amigo Danya e eu procuramos muito. Será que encontramos? Talvez. Nenhum de nós foi realmente olhar. Naquela época, havia muitas pessoas vigiando e, quando estreitamos a busca, ambos percebemos que os soviético;. eram muito piores que os alemães. Por isso deixamos para lá. Danya e eu prometemos nunca revelar o que sabíamos, ou talvez o que simplesmente pensávamos que sabíamos. Só investiguei de novo quando Yancy se ofereceu para fazer indagações discretas, verificando informações que eu havia considerado dignas de crédito. Em sua última viagem à Itália, ele estava fazendo indagações. Jamais saberemos se a explosão no avião foi atribuível às perguntas dele ou a outra coisa. Só sei que a busca pela Sala de Âmbar se mostrou perigosa. Talvez o perigo venha do que Danya e eu suspeitamos. Talvez não. Não tenho notícias de meu velho camarada há anos. Minha última carta a ele não foi respondida. Talvez ele também esteja comigo agora. Minha preciosa Maya. Meu amigo Danya. Bons companheiros para a eternidade. Espero que se passem muitos anos antes que você se junte a nós, querida. Tenha uma vida boa. Tenha sucesso. Cuide de Maria e Brent. Eu os amo demais. Tenho muito orgulho de você. Pense em dar outra chance a Paul. Mas nunca, absolutamente nunca, se preocupe com a Sala de Âmbar. Lembre-se da história de Faetonte e das lágrimas das Helíades. Pense na ambição dele e na tristeza delas. Talvez os painéis sejam encontrados um dia. Espero que não. Os políticos não deveriam ser encarregados de tamanho tesouro. Deixe-o em sua sepultura. Diga ao Paul que sinto muito. Amo você.

 

18H45

O coração de Paul martelava quando Rachel ergueu o olhar do último bilhete do pai, as lágrimas enchendo os olhos tristes. Podia sentir a dor. Era difícil dizer onde terminava a dele e começava a dela.

- Ele escrevia com tanta elegância - disse Rachel. Paul concordou.

- Ele aprendeu bem o inglês, lia incessantemente. Sabia mais sobre gramática e sintaxe do que eu jamais absorvi. Acho que a fala hesitante era apenas um modo de se agarrar ao passado. Pobre papai.

O cabelo castanho-avermelhado dela estava preso num rabo-de-cavalo. Não usava maquiagem, vestia apenas um roupão branco atoalhado sobre uma camisola de flanela. A casa finalmente estava livre de todos os visitantes depois do enterro. As crianças tinham ido para os quartos, ainda perturbadas com o dia emotivo. Lucy circulava pela sala de jantar.

- Você leu todas essas cartas? - perguntou Rachel.

Ele confirmou com a cabeça.

- Depois de sair do banco. Voltei à casa do seu pai e peguei o resto das coisas dele.

Estavam sentados na sala de jantar de Rachel. A antiga sala de jantar dos dois. As duas pastas com os artigos de jornais e revistas sobre a Sala de Âmbar, um mapa da Alemanha, o USA Today, o testamento, todas as cartas e o bilhete para Rachel estavam abertos em leque sobre a mesa. Paul havia dito o que encontrara, e onde. Também falou sobre o artigo do USA que seu pai tinha pedido especificamente na terça-feira e suas perguntas sobre Wayland McKoy.

- Papai estava assistindo a alguma coisa na CNN sobre isso quando deixei as crianças com ele. Lembro do nome. - Seu corpo relaxou na cadeira. - O que essa pasta estava fazendo na geladeira? Isso não era do estilo dele. O que está acontecendo, Paul?

- Não sei. Mas obviamente Karol estava interessado na Sala de Âmbar. - Paul apontou para o último bilhete de Borya. - O que ele quis dizer com Faetonte e as lágrimas das Helíades?

- Outra história que mamãe costumava me contar quando eu era pequena. Faetonte, o filho imortal de Hélio, o deus sol. Eu era fascinada pela história. Papai adorava mitologia. Disse que pensar em fantasia era uma das coisas que o fizeram suportar o tempo em Mauthausen.

- Folheou os recortes e fotocópias, olhando atentamente para alguns.

- Ele se achava responsável pelo que aconteceu com seus pais e o resto das pessoas naquele avião. Não entendo.

Nem Paul. E tinha pensado praticamente apenas nisso durante as últimas duas horas.

- Seus pais não estavam na Itália a serviço do museu?

- Toda a diretoria foi. A viagem era para conseguir empréstimos de obras de museus italianos.

- Papai parecia achar que havia alguma conexão.

Paul também se lembrava de algo que Borya escreveu. Eu jamais deveria ter pedido a Yancy para fazer indagações de novo enquanto estava na Itália.

O que ele quis dizer com de novo?

- Você não quer saber o que aconteceu? - perguntou Rachel subitamente, a voz ficando mais alta.

Paul não gostava desse tom há anos, e não gostou agora.

- Nunca falei isso. Só que seis anos se passaram, e seria quase impossível descobrir. Meu Deus, Rachel, nem encontraram os corpos!

- Paul, seus pais podem ter sido assassinados e você não quer saber nada?

Impetuosa e teimosa. Como foi que Karol disse? Herdou as duas coisas da mãe. Certo.

- Também não falei isso. Simplesmente não há nada de prático que possa ser feito.

- Podemos encontrar Danya Chapaev.

- Como assim?

- Chapaev. Ele ainda pode estar vivo. - Ela olhou para os envelopes, os endereços de remetente. - Kehlheim não deve ser muito difícil de encontrar.

- Fica no sul da Alemanha. Na Baviera. Encontrei no mapa.

- Você procurou?

- Não foi difícil de achar. Karol circulou o nome.

Ela desdobrou o mapa e viu.

- Papai disse que eles sabiam algo sobre a Sala de Âmbar, mas nunca foram verificar. Talvez Chapaev possa nos dizer o que era, não?

Paul não podia acreditar no que ela estava dizendo.

- Você leu o que seu pai disse? Para deixar a Sala de Âmbar em paz. Encontrar Chapaev é a única coisa que ele não queria que você fizesse.

- Chapaev pode saber mais sobre o que aconteceu com seus pais.

- Eu sou advogado, Rachel, não um investigador internacional.

- Certo. Vamos levar isto à polícia. Eles podem dar uma olhada.

- Isso é muito mais prático do que sua primeira sugestão. Mas a pista é muito antiga.

O rosto dela endureceu.

- Espero tremendamente que Maria e Brent não herdem sua complacência. Gostaria de pensar que eles iam querer saber o que aconteceu se um avião explodisse no ar, com você e eu dentro.

Rachel sabia exatamente como tocar nos pontos fracos dele. Era uma das coisas das quais ele mais se ressentia.

- Você leu essas matérias? - perguntou Paul. - Pessoas morreram procurando a Sala de Âmbar. Talvez meus pais. Talvez não. Uma coisa é certa: seu pai não queria que você se envolvesse. E você não tem o mínimo cacife. O que sabe sobre arte poderia caber num dedal.

- Junto com sua coragem.

Paul encarou os olhos furiosos dela, mordeu a língua e tentou entender. Rachel havia enterrado o pai naquela manhã. Mesmo assim, uma palavra ficava reverberando no cérebro dele.

Vaca.

Respirou fundo antes de dizer em voz baixa:

- Sua segunda sugestão é a mais prática. Por que não deixamos a polícia cuidar disso? - Fez uma pausa. - Sei o quanto você está perturbada. Mas, Rachel, a morte de Karol foi um acidente.

- O problema, Paul, é que, se não foi, temos de acrescentar meu pai à lista de baixas, junto com os seus. - Ela lhe deu um daqueles olhares. Do tipo que ele vira tantas vezes. - Ainda quer ser prático?

 

QUARTA-FEIRA, 14 DE MAIO, 10H25

Rachel se obrigou a sair da cama e vestir as crianças. Depois deixou-as na escola e, relutante, foi para o tribunal. Não estivera em sua sala de audiências desde a sexta-feira anterior, tirando folga na segunda e na terça.

Durante toda a manhã, sua secretária facilitou as coisas, interferindo, desviando telefonemas, afastando advogados e outros juízes. Originalmente, a semana fora programada para julgamentos cíveis, mas todos foram adiados. Há uma hora, ela havia ligado para o departamento de polícia de Atlanta e pedido que alguém da divisão de homicídio fosse mandado à sua sala. Não era a juíza mais popular com a polícia. Todo mundo parecia presumir que, como ela já fora uma promotora durona, seria uma juíza pró-polícia. Mas suas decisões, se pudessem ser rotuladas, tendiam a ser orientadas para a defesa. Liberal era a palavra que a Ordem Fraterna da Polícia e a imprensa gostavam de usar. Traidora era a descrição que tinham lhe dito ser usada por muitos detetives do setor de narcóticos. Mas ela não se importava. A Constituição existia para proteger o povo. A polícia deveria trabalhar dentro de seus limites, e não fora. Seu trabalho era garantir que ela não pegasse nenhum atalho. Quantas vezes seu pai havia pregado: quando o governo vem antes da lei, a tirania está logo atrás.

E, se alguém sabia, era ele.

- Juíza Cutler - disse a secretária pelo interfone. Na maioria das vezes, elas se tratavam simplesmente como Rachel e Sami; apenas quando alguém chegava ela era chamada de juíza. - O tenente Barlow, da polícia de Atlanta, está aqui. Em resposta à seu pedido.

Rachel enxugou rapidamente os olhos com um lenço de papel. A foto de seu pai no aparador tinha provocado mais lágrimas. Levantou-se e alisou a saia e a blusa de algodão.

A porta se abriu e um homem magro, com cabelos pretos ondulados, entrou. Fechou a porta e se apresentou como Mike Barlow, da divisão de homicídios.

Ela recuperou a compostura judicial e ofereceu uma cadeira.

- Agradeço sua vinda, tenente.

- Sem problema. O departamento sempre tenta atender aos juízes.

Mas ela ficou pensando. O tom era de uma cordialidade irritante, às raias da condescendência.

- Depois de a senhora ligar, peguei o relatório sobre a morte de seu pai. Sinto muito sobre a perda. Parece ser um daqueles acidentes que às vezes acontecem.

- Meu pai era muito independente. Ainda dirigia. Não tinha problemas de saúde e subiu aquela escada durante anos sem problema.

- O que a senhora quer dizer com isso?

Rachel estava gostando ainda menos do tom dele.

- Diga o senhor.

- Juíza, entendi sua mensagem. Mas não há nada que sugira alguma ilegalidade.

- Ele sobreviveu a um campo de concentração nazista, tenente. Acho que era capaz de subir uma escada.

Barlow não pareceu convencido.

- O relatório diz que aparentemente nada sumiu. A carteira dele estava na penteadeira. Os televisores, o aparelho de som, o videocassete, tudo estava lá. As duas portas estavam destrancadas. Não havia evidências de arrombamento em lugar nenhum. Onde está o ladrão?

- Meu pai deixava as portas destrancadas o tempo todo.

- Isso não é inteligente, mas não parece ter colaborado para a morte dele. Olhe, eu concordo, o fato de não haver evidência de roubo poderia levar a uma implicação de assassinato, mas não há nada sugerindo que alguém ao menos estivesse por perto quando ele morreu.

Ela ficou curiosa.

- Vocês revistaram a casa?

- Disseram que alguém olhou. Nada elaborado. Parecia não haver necessidade. Estou curioso. Qual a senhora acha que foi o motivo para o assassinato? Seu pai tinha inimigos?

Ela não respondeu. Em vez disso, perguntou:

- O que o legista disse?

- Pescoço partido. Causado pela queda. Nenhuma outra evidência de trauma além de hematomas nos braços e pernas, causados pela queda. De novo, juíza, o que a faz pensar que a morte de seu pai não foi acidental?

Ela pensou em falar sobre a pasta na geladeira, Danya Chapaev, a Sala de Âmbar e os pais de Paul. Mas o sacana arrogante nem queria estar ali, e ela ia parecer uma louca fascinada por conspirações. Ele estava certo. Não havia prova de que seu pai fora empurrado escada abaixo. Nada que ligasse sua morte a qualquer "maldição da Sala de Âmbar", como sugeriam alguns dos artigos. E daí, se seu pai tinha interesse no assunto? Ele adorava arte. Nos velhos tempos, trabalhava com isso o dia inteiro. E daí, se ele estava lendo os artigos no escritório, se enfiou outros na geladeira, desdobrou um mapa da Alemanha na sala íntima e possuía um forte interesse por um homem que ia escavar em cavernas esquecidas na Alemanha? Daí para o assassinato era um salto gigantesco. Talvez Paul estivesse certo. Decidiu não entrar em detalhes com aquele sujeito.

- Nada, tenente. O senhor está certo. Não passa de uma queda trágica. Obrigada por ter vindo.

 

Rachel ficou sentada, carrancuda, e pensou em quando tinha 16 anos, com o pai explicando pela primeira vez sobre Mauthausen, e como os russos e holandeses trabalhavam na pedreira transportando toneladas de pedregulhos por uma série longa de degraus estreitos até o campo, onde mais prisioneiros as cinzelavam na forma de tijolos.

Mas os judeus não tinham tanta sorte. Todo dia eram jogados do penhasco da pedreira simplesmente por esporte, os gritos ecoando enquanto os corpos voavam e os guardas apostavam em quantas vezes a carne e os ossos ricocheteariam antes de serem silenciados pela morte. Por fim, explicou o pai, a SS parou com os lançamentos porque atrapalhavam o serviço.

Não porque estavam matando pessoas, lembrou-se do pai dizendo, só porque aquilo afetava o serviço.

Naquele dia, seu pai chorou, uma das poucas vezes na vida, e ela também. A mãe havia lhe contado sobre as experiências de guerra dele e sobre o que ele fizera depois, mas o pai raramente mencionava aquele tempo. Rachel sempre havia notado a tatuagem manchada, no antebraço direito, perguntando-se quando ele ia explicar.

Eles nos obrigavam a correr de encontro à cerca eletrificada. Alguns faziam isso voluntariamente, exaustos da tortura. Outros eram mortos a tiros, enforcados ou recebiam injeções no coração. O gás veio depois.

Rachel havia perguntado quantos morreram em Mauthausen. E ele disse, sem hesitar, que sessenta por cento dos duzentos mil não sobreviveram. Ele chegou em abril de 1944. Os judeus húngaros vieram pouco depois, e todos foram trucidados como ovelhas. Borya tinha ajudado a levar os corpos da câmara de gás para o forno, um ritual diário, comum, como tirar o lixo, diziam os guardas. Ela se lembrou do pai contando sobre uma noite em particular, perto do fim, quando Herman Göring entrou no campo usando um uniforme cinza-pérola. A maldade sobre duas pernas, disse ele.

Göring tinha ordenado que quatro alemães fossem assassinados, e seu pai fez parte do grupo que derramou água sobre os corpos nus até morrerem congelados. Göring ficou impassível o tempo todo, esfregando com os dedos um pedaço de âmbar, querendo saber algo sobre a Sala de Âmbar. De todo o horror que aconteceu em Mauthausen, segundo o pai, aquela noite com Göring foi o que ficou com ele.

E estabeleceu seu rumo na vida.

Depois da guerra, ele foi mandado para entrevistar Göring na prisão, durante os julgamentos de Nuremberg.

Ele se lembrou de você? - Perguntou ela.

Meu rosto em Mauthausen não significava nada para ele.

Mas Göring se lembrava da tortura, dizendo que admirava tremendamente os soldados por terem resistido. Superioridade alemã, treinamento, dissera ele. O amor de Rachel pelo pai se multiplicou por dez quando finalmente soube sobre Mauthausen. O que ele havia suportado era inimaginável, e a sua simples sobrevivência era um feito. Mas sobreviver com a sanidade intacta não era menos do que um milagre.

Sentada no silêncio da sala de audiências, chorou. Aquele homem precioso se fora. Sua voz estava silenciada para sempre, seu amor era apenas uma lembrança. Pela primeira vez na vida estava sozinha. Toda a família dos pais tinha morrido na guerra ou estava inacessível, em algum lugar da Bielo-Rússia, estranhos, ligados meramente pelos genes. Só restavam seus dois filhos. Lembrou-se de como tinham terminado aquela conversa sobre Mauthausen, há 24 anos.

Papai, você encontrou a Sala de Âmbar?

Ele a encarou com olhos pensativos. Na época, e agora, ela se perguntou se havia algo que o pai queria falar. Algo que ela precisasse saber.Ou seria melhor não ter conhecimento? Difícil dizer. E as palavras dele não ajudaram.

Jamais, querida.

Mas o tom de voz dele fazia lembrar de quando tinha explicado que Papai Noel, o Coelho da Páscoa e a Fada dos Dentes realmente existiam. Palavras vazias que simplesmente precisavam ser ditas. Agora, depois de ter lido as cartas trocadas entre o pai e Danya Chapaev e o bilhete escrito pela mão dele, Rachel se convenceu de que havia mais coisas na história. Seu pai guardara um segredo, aparentemente por muitos anos.

Mas tinha morrido.

Só restava um.

Danya Chapaev.

E ela sabia o que precisava ser feito.

 

Rachel saiu do elevador no 23° andar e seguiu até a porta em que estava escrito PRIDGEN & WOODWORTH. A empresa de advocacia ocupava o 23° e o 24° andares do prédio no centro da cidade. A divisão de sucessões ficava no 23°.

Paul fora trabalhar na empresa logo que saiu da faculdade de direito. Ela havia trabalhado primeiro na promotoria, em seguida em outra empresa de Atlanta. Os dois se conheceram onze meses depois e se casaram dois anos mais tarde. O namoro foi típico de Paul, jamais com pressa de fazer qualquer coisa. Muito cuidadoso. Deliberado. Com medo de correr riscos, aproveitar as chances, arriscar-se ao fracasso. Fora ela a sugerir o casamento, e ele concordara prontamente.

Era um homem bonito, sempre fora. Não vigoroso, nem estonteante, apenas bonito de um modo comum. E era honesto. Além de possuir uma confiabilidade fanática. Mas sua dedicação inabalável à tradição tinha lentamente se tornado irritante. Por que não variar o jantar de domingo de vez em quando? Assado, batatas, milho, ervilhas, bolinhos e chá gelado. Todo domingo, durante anos. Não que Paul exigisse, mas as mesmas coisas sempre o satisfaziam. No início, ela gostava dessa previsibilidade. Era reconfortante. Uma utilidade conhecida que estabilizava seu mundo. Perto do fim, tornou-se um tremendo pé no saco.

Mas por quê?

Rotina era uma coisa tão ruim?

Paul era um homem bom, decente, bem-sucedido. Ela sentia orgulho dele, mas raramente verbalizava isso. Ele era o próximo da fila para chefiar a divisão de sucessões. Nada mal para um sujeito de 41 anos que precisou tentar duas vezes entrar na escola de direito. Mas Paul conhecia o direito sucessório. Não estudava nada além, concentrando-se em todas as nuances, até mesmo atuando em comissões legislativas. Era um especialista reconhecido no assunto, e a Pridgen & Woodworth lhe pagava dinheiro suficiente para impedir que outra empresa o atraísse. A empresa administrava milhares de espólios, muitos eram bastante substanciais, e a maioria que ela conhecia era atribuível à reputação de Paul Cutler em todo o estado.

Empurrou a porta dupla e seguiu o labirinto de corredores até a sala de Paul. Tinha ligado antes de sair de sua sala de audiência, por isso ele a estava esperando. Rachel entrou direto, fechou a porta e anunciou:

- Vou à Alemanha.

Paul ergueu os olhos.

- Vai o quê?

- Eu não gaguejei. Vou à Alemanha.

- Procurar Chapaev? Provavelmente está morto. Nem respondeu à carta de seu pai.

- Preciso fazer alguma coisa.

Paul se levantou de trás da mesa.

- Por que você sempre tem de fazer alguma coisa?

- Papai sabia sobre a Sala de Âmbar. Eu devo a ele uma verificação.

- Deve a ele? - A voz de Paul estava subindo. - Você deve a ele respeitar seu último desejo, que foi de você ficar de fora disso tudo. No mínimo, por sinal. Droga, Rachel, você tem 40 anos. Quando vai crescer?

Ela se manteve surpreendentemente calma, considerando como se sentia com relação aos sermões dele.

- Não quero brigar, Paul. Preciso que você cuide das crianças. Você faz isso?

- É típico, Rachel. Pirar de vez. Fazer a primeira coisa que lhe vem a mente. Sem pensar. Apenas fazer.

- Você toma conta das crianças?

- Se eu dissesse que não, você ficaria?

- Eu ligaria para o seu irmão.

Paul sentou-se de novo. Seu rosto sinalizava rendição.

- Você pode ficar na casa - disse ela. - Vai ser mais fácil para as crianças. Elas ainda estão perturbadas por causa do papai.

- Elas ficariam ainda mais perturbadas se soubessem o que a mãe está fazendo. E você se esqueceu da eleição? Faltam menos de oito semanas, e você tem dois oponentes se esforçando ao máximo para vencer, principalmente agora, com o dinheiro de Marcus Nettles.

- Foda-se a eleição. Nettles pode ficar com o cargo de juiz. Isso é mais importante.

- O que é mais importante? Nós nem sabemos o que isso é. E quanto à sua pauta de trabalho? Como pode simplesmente largar tudo e ir embora?

Ela lhe concedeu dois pontos pela boa tentativa, mas isso não ia desencorajá-la.

- O juiz-chefe entendeu. Eu lhe disse que precisava de um tempo para curtir o luto. Não tiro férias há dois anos. Tenho licença garantida.

Paul balançou a cabeça.

- Você vai à Baviera numa busca inútil a um velho que provavelmente está morto, procurando algo que provavelmente se perdeu para sempre. Você não é a primeira a procurar a Sala de Âmbar. Pessoas dedicaram a vida inteira a isso e não encontraram nada.

Ela não ia ceder.

- Papai sabia de algo importante. Posso sentir. Esse tal de Chapaev talvez saiba também.

- Você está sonhando.

- E você é patético. - Ela se arrependeu imediatamente das palavras e do tom de voz. Não havia necessidade de magoá-lo.

- Vou ignorar isso porque sei que você está perturbada - disse ele devagar.

- Viajo amanhã à noite, num vôo para Munique. Preciso de uma cópia das cartas de papai e dos artigos guardados por ele.

- Deixo com você quando estiver indo para casa. - A voz dele estava cheia de total resignação.

- Eu ligo da Alemanha, avisando onde ficarei hospedada. - Rachel foi para a porta. - Pegue as crianças na creche amanhã.

- Rachel.

Rachel parou, mas não se virou.

- Tenha cuidado.

Ela abriu a porta e saiu.

 

QUINTA-FEIRA, 15 DE MAIO, 10H15

Knoll saiu do hotel e pegou um trem até o tribunal do condado de Fulton. A folha de informação da KGB que tinha afanado no arquivo de São Petersburgo indicava que Rachel Cutler era advogada, e havia o endereço do escritório. Mas uma visita à empresa de advocacia no dia anterior revelou que ela se demitira há anos, depois de ser eleita juíza do tribunal superior. A recepcionista foi extremamente solícita, dando o novo número de telefone e indicando o local do escritório no tribunal. Ele decidiu que um telefonema poderia provocar uma recusa imediata. Uma visita cara a cara, sem se anunciar, parecia a melhor abordagem.

Cinco dias tinham se passado desde que ele matara Karol Borya. Precisava se certificar do que a filha sabia sobre a Sala de Âmbar, se é que sabia de alguma coisa. Talvez o pai tivesse mencionado alguma coisa ao longo dos anos. Talvez ela soubesse sobre Chapaev. Era uma chance remota, mas ele estava ficando rapidamente sem pistas, e precisava esgotar todas as possibilidades. Uma trilha que já parecera promissora ia ficando fria.

Entrou num elevador apinhado e subiu ao sexto andar do tribunal. Os corredores eram ladeados por salas de julgamento lotadas e escritórios movimentados. Ele usava o terno cinza claro, camisa listrada e gravata de seda amarelo-clara comprada na véspera, numa loja masculina nos subúrbios. Intencionalmente mantivera as cores suaves e conservadoras.

Passou pela porta de vidro em que estava escrito SALA DE AUDIÊNCIAS DA MERITÍSSIMA RACHEL CUTLER e entrou na silenciosa ante-sala. Uma mulher negra, de cerca de 30 anos, esperava atrás de uma mesa. O crachá dizia SAMI LUFFMAN. Em seu melhor inglês ele disse:

- Bom-dia.

A mulher sorriu e devolveu o cumprimento.

- Meu nome é Christian Knoll. - Ele lhe entregou um cartão, semelhante ao usado com Pietro Caproni, só que este proclamava apenas COLECIONADOR DE ARTE, não acadêmico, e não tinha endereço. - Gostaria de saber se eu poderia falar com a meritíssima.

A mulher aceitou o cartão.

- Sinto muito. A juíza Cutler não está, hoje.

- É muito importante que eu fale com ela.

- Posso perguntar se o assunto tem a ver com algum caso pendente no nosso tribunal?

Ele balançou a cabeça, cordial e inocente.

- Absolutamente não. É um assunto pessoal.

- O pai da juíza morreu no fim de semana passado e...

- Ah, sinto muito - disse ele, fingindo emoção. - Que terrível!

- É, foi terrível. Ela ficou muito perturbada e decidiu tirar uma licença.

- É uma infelicidade para ela e para mim. Só estou na cidade até amanhã e esperava falar com a juíza Cutler antes de ir embora. Será que a senhora poderia dar um recado, e ela ligaria para o meu hotel?

A secretária pareceu pensar no pedido, e ele aproveitou o momento para estudar uma foto emoldurada, pendurada atrás dela na parede forrada de papel. Havia uma mulher de pé diante de outro homem, Com o braço rígido erguido como se fizesse um juramento. Tinha cabelos castanho-avermelhados que iam até os ombros, nariz arrebitado e olhos intensos. Usava uma toga, o que dificultava saber como era o corpo. As bochechas lisas estavam ruborizadas e o leve sorriso parecia adequado à circunstância solene. Ele indicou a foto.

- É a juíza Cutler?

- Quando fez o juramento de posse, há quatro anos.

Era o mesmo rosto que ele vira no enterro de Karol Borya na terça-feira, parada diante das pessoas enlutadas, abraçando duas crianças pequenas, um menino e uma menina.

- Eu poderia dar seu recado à juíza Cutler, mas não sei se o senhor terá notícias dela.

- Por quê?

- Ela vai sair da cidade hoje à tarde.

- Uma viagem longa?

- Para a Alemanha.

- Que lugar maravilhoso! - Ele precisava saber aonde, por isso tentou os três principais pontos de entrada. - Berlim é exótica nesta época do ano. Assim como Frankfurt e Munique.

- Ela vai a Munique.

- Ah! Cidade mágica. Talvez ajude a aliviar a tristeza.

- Espero que sim.

Ele já soubera o suficiente.

- Obrigado, Sra. Luffman. A senhora ajudou muito. Aqui está a informação sobre meu hotel. - Inventou um hotel e um número de quarto, pois já conseguira o que queria. - Por favor, informe à juíza Cutler sobre minha visita.

- Vou tentar.

Ele se virou para sair, mas olhou pela última vez a foto emoldurada na parede, gravando na mente a imagem de Rachel Cutler.

Saiu do sexto andar e desceu ao térreo. Uma fileira de telefones públicos se espalhava em uma das paredes. Foi até lá e fez uma ligação internacional para a linha particular no escritório de Franz Fellner. Eram quase cinco da tarde na Alemanha. Ele não tinha certeza de quem atenderia ou mesmo a quem tinha de prestar contas atualmente. O poder estava claramente em transição - Fellner estava se afastando enquanto Monika assumia o controle. Mas o velho não era do tipo que abria mão com facilidade, em especial quando estava em jogo algo como a Sala de Âmbar.

- Guten tag - atendeu Monika depois de dois toques.

- Você é a secretária de serviço hoje? - perguntou ele em alemão.

- Já estava na hora de você ligar. Faz uma semana. Teve alguma sorte?

- Vamos esclarecer uma coisa. Eu não presto contas como um colegial. Dê-me um serviço e me deixe em paz. Ligo quando for necessário.

- Estamos sensíveis, não?

- Não preciso ser supervisionado.

- Vou lembrá-lo disso na próxima vez em que você estiver entre as minhas pernas.

Ele sorriu. Era difícil vencê-la.

- Encontrei Borya. Ele disse que não sabia de nada.

- E você acreditou?

- Eu falei isso?

- Ele está morto, certo?

- Uma queda trágica pela escada.

- Papai não vai gostar.

- Achei que você estava no comando.

- Estou. E, francamente, isso não importa. Mas papai está certo: você corre riscos demais.

- Não corri nenhum risco desnecessário.

De fato, ele fora bastante cauteloso. Na primeira visita, teve cuidado de não tocar em nada além do copo de chá, que removeu na visita seguinte. E quando voltou pela segunda vez, estava usando luvas.

- Digamos que decidi que a ação era necessária, nas circunstâncias.

- O que ele fez, insultou seu orgulho?

Era espantoso como ela podia decifrá-lo mesmo a seis mil quilômetros de distância. Knoll nunca havia se achado tão transparente.

- Isso não é importante.

- Um dia sua sorte vai acabar, Christian.

- Você parece ansiosa por esse dia.

- Na verdade, não. Vai ser difícil substituí-lo.

- Em que sentido?

- Em todos, seu sacana.

Ele sorriu. Era bom saber que estava ligado a ela.

- Fiquei sabendo que a filha de Borya vai a Munique. Talvez esteja indo ver Chapaev.

- O que o faz pensar isso?

- O modo como Borya se desviou de mim, e algo que ele disse sobre os painéis.

Talvez seja melhor que permaneçam perdidos.

- A filha poderia simplesmente estar tirando férias.

- Duvido. É coincidência demais.

- Vai segui-la?

- Hoje à tarde. Há algo que preciso fazer antes.

 

Suzanne olhava Christian Knoll do outro lado do mezanino. Estava sentada numa apinhada sala de espera, em cuja porta de vidro estava escrito MULTAS DE TRÁFEGO — ENTRADA. Cerca de 75 pessoas esperavam a vez para se aproximar de um balcão de fórmica e apresentar as citações de multas. A cena toda era caótica, com fumaça rançosa de cigarro pairando na atmosfera apesar de vários avisos de PROIBIDO FUMAR.

Estivera seguindo Knoll desde o sábado. Na segunda, ele fora duas vezes ao Museu de Arte High e uma a um prédio de escritórios no centro de Atlanta. Na terça, havia comparecido ao enterro de Karol Borya. Ela ficou olhando o serviço junto à sepultura, do outro lado da rua. Knoll tinha feito pouca coisa na véspera, uma ida à biblioteca pública e a um shopping, mas hoje havia acordado cedo e estava em movimento.

O cabelo curto de Suzanne estava enfiado sob uma peruca castanho-avermelhada cheia de mechas. O excesso de maquiagem cobria o rosto, e os olhos estavam abrigados por óculos baratos. Usava jeans justos, uma blusa sem gola, dos Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996, e tênis. Uma bolsa preta barata pendurada no ombro. Misturava-se muito bem à multidão, com uma revista People aberta no colo, os olhos constantemente indo da página para a fileira de telefones do outro lado do mezanino cheio de movimento.

Há cinco minutos, tinha seguido Knoll até o sexto andar e visto ele entrar na sala de audiência de Rachel Cutler. Reconheceu o nome e percebeu a conexão. Knoll obviamente não ia desistir, e agora provavelmente estava informando o que sabia a Monika Fellner. Aquela vaca teria definitivamente um problema. Jovem. Agressiva. Faminta. Uma digna sucessora de Franz Fellner, e um incômodo em muitos sentidos.

Knoll não tinha ficado muito tempo na sala de Rachel Cutler, certamente não o bastante para se encontrar com ela. Por isso Suzanne recuou, temendo que ele notasse sua presença, sem saber se o disfarce seria uma camuflagem suficiente. Vinha usando um conjunto diferente a cada dia, tendo o cuidado de não repetir nada que ele pudesse reconhecer. Knoll era bom. Tremendamente bom. Felizmente, ela era melhor.

Knoll desligou o telefone e foi para a rua.

Ela jogou a revista de lado e foi atrás.

 

Knoll parou um táxi e voltou ao hotel. Tinha percebido alguém na noite de sábado na casa de Borya, depois de torcer o pescoço do velho. Mas definitivamente detectou Suzanne Danzer na segunda, e em todos os dias desde então. Ela havia se disfarçado bem, mas anos demais em campo tinham aguçado as capacidades dele. Pouco lhe escapava agora. Quase estivera esperando-a. Ernst Loring, o patrão de Danzer, queria a Sala de Âmbar tanto quanto Fellner. O pai de Loring, Josef, fora obcecado por âmbar, juntando uma das maiores coleções particulares do mundo. Ernst havia herdado os objetos e o desejo do pai. Muitas vezes Knoll tinha ouvido Loring discursar sobre o assunto e visto ele trocar ou comprar peças de âmbar com outros colecionadores, inclusive Fellner. Sem dúvida Danzer fora despachada a Atlanta para ver o que ele estava fazendo.

Mas como soubera onde encontrá-lo?

Claro. O funcionário xereta em São Petersburgo. Quem mais poderia ser? O idiota deve ter dado uma olhada no papel da KGB antes de Knoll colocá-lo na mesa. O sujeito certamente estava sendo pago, tendo Loring como um dos vários benfeitores prováveis - agora o principal benfeitor, já que Danzer estava aqui.

O táxi parou junto ao Marriott e Knoll desceu. Em algum lugar atrás, Danzer certamente o estava seguindo. Provavelmente também havia se hospedado ali. Provavelmente se enfiaria num dos toaletes do térreo e modificaria o disfarce, trocando perucas e acessórios, na certa pagando a um carregador para alertá-la caso ele saísse do prédio.

Knoll foi direto ao seu quarto no 12° andar e ligou para o setor de reservas da Delta.

- Preciso de um vôo de Atlanta para Munique. Há algum partindo hoje?

Teclas de computador foram apertadas.

- Sim, senhor, temos um que sai às 14h35. Direto para Munique.

Ele precisava ter certeza de que não havia outros vôos.

- Algum mais cedo ou mais tarde?

Mais teclas foram apertadas.

- Não conosco.

- Que tal outra companhia aérea?

Mais teclas.

- Este é o único vôo direto de Atlanta para Munique hoje. Mas o senhor pode fazer conexão em dois outros.

Knoll apostou que ela iria no vôo direto e não em outro para Nova York, Paris, Amsterdã ou Frankfurt com conexão para Munique. Confirmou a reserva, depois desligou e rapidamente arrumou sua bolsa de viagem. Precisava programar com exatidão a chegada ao aeroporto. Se Rachel Cutler não estivesse no vôo que ele havia escolhido, teria de pegar a pista dela de outro modo, talvez quando ela ligasse ao escritório para dizer à secretária onde poderia ser encontrada. Ele poderia ligar de volta, dar um número de telefone correto e provocar a curiosidade da mulher até que ela retornasse o telefonema.

Desceu para pagar a conta. O saguão estava movimentado. Pessoas correndo por toda parte. Mas notou rapidamente uma morena magra, a cinqüenta metros, sentada a uma mesa numa das áreas de espera no átrio central. Como suspeitava, Danzer tinha trocado de roupa. Um macacão cor de pêssego e óculos de sol, mais estilosos e escuros do que antes, substituíam a aparência grunge.

Pagou a conta e saiu para pegar um táxi até o aeroporto.

 

Suzanne olhou a bolsa de viagem. Knoll estava indo embora? Não havia tempo para retornar a seu quarto. Teria de segui-lo e ver aonde ele ia. Era exatamente por isso que sempre carregava pouca coisa nas viagens e nunca incluía nada fundamental ou que não pudesse substituir.

Levantou-se, jogou cinco dólares na mesa para pagar uma bebida da qual só havia tomado dois goles e foi para as portas giratórias e a rua.

 

Knoll saiu do táxi no Aeroporto Internacional de Hartsfield e olhou o relógio: 13h25. Jogou três notas de dez para o motorista, pendurou a bolsa de viagem, de couro, no braço direito e marchou para dentro do terminal sul.

Estava curioso para ver o que Danzer faria, por isso ignorou o quiosque eletrônico e foi para uma das filas de check-in da Delta e ficou olhando enquanto Danzer passava pelo terminal até outra fila, não tão longa. Certamente estava imaginando aonde ele iria. Mas o dilema da mulher era complicado. Precisaria de uma passagem para segui-lo mais para dentro do terminal. Por isso provavelmente compraria qualquer coisa que pudesse, algo que lhe garantisse acesso ao interior.

Claramente fora apanhada desprevenida pela partida súbita de Knoll, já que ainda usava a mesma peruca morena, o macacão pêssego e os óculos escuros do Marriott. Meio desleixada. Deveria andar com equipamento de reserva. Algo para variar a aparência, se o disfarce fosse o único modo de camuflagem. Ele preferia a vigilância eletrônica, que permitia o luxo da distância entre caçador e caça.

Ficou parado, pacientemente e, na sua vez, conseguiu um cartão de embarque e despachou a bolsa. O punhal estava dentro, o único lugar seguro, já que a arma não teria sobrevivido aos detectores de metal. Danzer já havia saído de sua fila, agora posicionada na extremidade mais distante do movimentado posto de verificação, segurando uma passagem.

Ele quase sorriu.

Ela era tão previsível!

Depois de passar pelos detectores, Knoll desceu uma comprida escada rolante até o setor de transporte interno. Danzer o seguia, vinte metros atrás. Na base da escada, ele saiu com o resto dos viajantes da tarde em direção aos trens automáticos. Entrou no vagão da frente e notou Danzer subindo no segundo, posicionando-se perto das janelas frontais.

Ele conhecia bem o aeroporto. Os trens se movimentavam entre seis terminais, e o internacional era o mais distante. Na primeira parada, o terminal A, ele e outras cinqüenta pessoas desceram. Sem dúvida Danzer estava se perguntando o que ele fazia, certamente também familiarizada com o Hartsfield para saber que nenhum vôo internacional usava os terminais de A à D. Devia pensar que talvez ele estivesse pegando um vôo doméstico para outra cidade americana.

Ele ficou parado, como se estivesse esperando alguém. Em vez disso, contava silenciosamente os segundos. A noção de tempo era fundamental. Danzer também esperava, a quinze metros de distância, tentando parecer desinteressada, aparentemente confiando que ele não a estava notando. Knoll esperou exatamente um minuto e foi para a escada rolante.

Os degraus subiam lentamente.

Eram trinta metros até o terminal movimentado. Amplas clarabóias quatro metros acima recebiam o sol luminoso. Uma rampa de alumínio separava a escada rolante que subia da que descia, com uma planta de seda surgindo a cada seis metros. A outra escada, que voltava para a área de transporte interno, tinha poucas pessoas. Nenhuma câmera de vigilância ou guardas à vista.

Esperou o momento exato, depois segurou o corrimão de borracha o pulou por cima da rampa, pousando na escada que descia. Agora estava indo na direção oposta e, quando passou por Danzer, inclinou a cabeça numa saudação zombeteira. A expressão dela disse tudo.

Precisava se mover depressa. Não demoraria muito até que ela copiasse sua ação. Passou pelos poucos viajantes à frente e ficou repetindo:

- Segurança do aeroporto, por favor, saiam da frente.

A noção de tempo foi perfeita. Um trem rugiu entrando na estação, indo na direção certa. As portas se abriram. Uma voz robótica anunciou:

- Por favor, afastem-se das portas, ocupem o centro dos corredores.

Pessoas entraram. Knoll olhou para trás e viu Danzer pular por

cima da rampa, com um movimento não tão gracioso quanto o dele. Ela cambaleou um momento e depois recuperou o equilíbrio.

Knoll entrou no trem.

- As portas vão se fechar - anunciou a voz robótica.

Danzer correu da escada rolante para o trem, mas era tarde demais. As portas se fecharam e o trem saiu rugindo da estação.

 

Knoll saiu no terminal internacional. Danzer acabaria chegando até lá, mas o embarque no vôo para Munique certamente já estava sendo feito e, quando ela corresse pelo túnel de transporte ou esperasse o próximo trem, ele já teria ido. O terminal era gigantesco, o maior terminal internacional de vôo dos Estados Unidos. Cinco andares. Vinte e quatro portões. Demoraria uma hora somente para caminhar e verificar todos.

Ele pisou na escada rolante e começou a subir. A mesma sensação luminosa e arejada permeava o espaço. A diferença, periodicamente, eram vitrines recuadas mostrando uma variedade de arte mexicana, egípcia e fenícia. Nada extravagante ou precioso, apenas peças comuns, com placas na parte de baixo falando do museu ou colecionador de Atlanta que fizera o empréstimo.

No topo da escada rolante, acompanhou outros viajantes para a direita. O aroma de café saía de um Starbucks. Havia um grande número de pessoas na W. H. Smith’s comprando revistas e jornais. Knoll examinou as telas de partida. Nos próximos trinta minutos, cerca de uma dúzia de vôos saíam dos portões. Danzer não teria como saber qual ele ia tomar, se é que ia tomar algum.

Knoll examinou a tela do vôo para Munique, encontrou o portão e marchou pelo terminal. Quando chegou, o embarque já estava sendo feito. Entrou na fila e, quando chegou sua vez, disse:

- Vôo cheio, hoje?

O comissário se concentrou no monitor de vídeo.

- Sim, senhor. Lotado.

Agora, mesmo que Danzer o encontrasse, não haveria como segui-lo. Knoll foi para o portão, com cerca de trinta pessoas à frente. Olhou para o início da fila e notou uma mulher com cabelos castanho-avermelhados na altura do ombro, vestida com um belo terninho azul-escuro. Estava entregando o cartão à aeromoça e entrando no corredor de embarque.

O rosto era instantaneamente reconhecível.

Rachel Cutler.

Perfeito.

 

ATLANTA, GEÓRGIA

SEXTA-FEIRA, 16 DE MAIO, 9H15

Suzanne entrou na sala. Paul Cutler se levantou de trás de uma enorme mesa de nogueira e foi em sua direção.

- Agradeço por ter me recebido - disse ela.

- Sem problema, Srta. Myers.

Cutler usou o sobrenome que ela havia dado à recepcionista. Suzanne sabia que Knoll gostava de usar o próprio nome. Mais arrogância. Ela preferia o anonimato. Menos chance de deixar uma impressão duradoura.

- Por que não me chama de Jo?

Ela sentou na poltrona oferecida e examinou o advogado de meia-idade. Era alto e magro, com cabelos castanho-claros, não era careca, os pêlos estavam ficando meio ralos. Vestia a esperada camisa branca, calça escura e gravata de seda, mas os suspensórios davam um toque de maturidade. Deu um sorriso cativante, e ela gostou dos olhos castanhos e cheios de brilho. Cutler parecia acanhado e despretensioso, alguém que ela decidiu rapidamente que poderia ser conquistado com charme.

Por sorte, havia se vestido para o papel. Peruca castanha. Lentes de contato azuis cobriam os olhos. Óculos com lentes octogonais transparentes e armação de ouro ajudavam na ilusão. A saia de crepe com casaco trespassado e lapelas em ponta tinham sido comprados na véspera, na Ann Taylor, e davam um nítido toque feminino, já que a idéia era afastar a atenção para longe do rosto. Quando sentou-se, cruzou as pernas, expondo lentamente as meias pretas, e tentou sorrir um pouquinho mais do que o usual.

- A senhora é investigadora de arte? - perguntou Cutler. - Deve ser um trabalho interessante.

- Pode ser. Mas tenho certeza que seu trabalho é igualmente desafiador.

Ela captou rapidamente a decoração da sala. Uma gravura de Winslow, emoldurada, ficava acima de um sofá de couro, com uma aquarela de Kupka de cada lado. Diplomas salpicavam outra parede, junto com numerosos documentos de associações profissionais e prêmios da Ordem dos Advogados, da Sociedade dos Advogados de Sucessão e da Associação dos Advogados de Tribunais. Duas fotos coloridas tinham sido aparentemente tiradas no que parecia ser uma câmara legislativa - Cutler apertando a mão de um homem mais velho.

Suzanne apontou para as obras de arte.

- O senhor é conhecedor?

- Nem de longe. Coleciono um pouquinho. Mas participo ativamente do nosso Museu High.

- O senhor deve sentir um enorme prazer com isso.

- A arte é importante para mim.

- Foi por isso que concordou em me receber?

- Isso e simples curiosidade.

Ela decidiu ir ao ponto.

- Passei há pouco pelo tribunal do condado de Fulton. A secretária de sua ex-esposa disse que a juíza Cutler está fora da cidade. Não quis dizer aonde ela foi e sugeriu que eu viesse procurá-lo.

- Sami ligou há pouco e disso que o assunto tem a ver com meu ex-sogro, não é?

- Sim. A secretária da juíza Cutler confirmou que um homem esteve lá ontem, procurando sua ex-esposa. Um europeu alto e louro. Usou o nome de Christian Knoll. Estou seguindo Knoll há uma semana, mas perdi ontem à tarde no aeroporto. Temo que ele possa estar seguindo a juíza Cutler.

A preocupação atravessou o rosto do advogado. Excelente. Ela adivinhara.

- Por que esse tal de Knoll seguiria Rachel?

Suzanne estava jogando, ao ser franca. Talvez o medo baixasse as barreiras do advogado e ela pudesse descobrir exatamente para onde Rachel Cutler tinha ido.

- Knoll veio a Atlanta para falar com Karol Borya. - Ela decidiu omitir a referência de que Knoll falou com Borya na noite de sábado. Não precisava fazer uma conexão forte demais. - Knoll deve ter sabido que Borya morreu e procurou a filha. É a única explicação lógica para ele ter ido à sala dela.

- Como ele, e a senhora, sabem sobre Karol?

- O senhor deve saber o que o Sr. Borya fazia quando era cidadão soviético.

- Ele nos contou. Mas como a senhora sabe?

- Os registros da comissão para a qual o Sr. Borya trabalhou são públicos atualmente na Rússia. É fácil estudar a história. Knoll está procurando a Sala de Âmbar e, provavelmente, esperava que Borya soubesse algo a respeito.

- Mas como ele soube como encontrar Knoll?

- Na semana passada, Knoll examinou registros, num arquivo em São Petersburgo, que se tornaram disponíveis para inspeção apenas recentemente. Ele obteve as informações no arquivo.

- Isso não explica por que a senhora está aqui.

- Como disse, eu segui Knoll.

- Como a senhora soube que Karol morreu?

- Só soube quando cheguei à cidade, na segunda-feira.

- Srta. Myers, por que tanto interesse pela Sala de Âmbar? Estamos falando de algo que está perdido há mais de cinqüenta anos. A senhora não acha que, se ela pudesse ser encontrada, já teria sido?

- Concordo, Sr. Cutler. Mas Christian Knoll pensa de outro modo.

- A senhora disse que o perdeu no aeroporto ontem. O que a faz pensar que ele está seguindo Rachel?

- Só uma intuição. Procurei pelos terminais, mas não pude encontrá-lo. Notei vários vôos internacionais que partiam alguns minutos depois de Knoll ter se livrado de mim. Um era para Munique. Dois para Paris. Três para Frankfurt.

- Ela estava no vôo para Munique.

Paul Cutler parecia estar gostando de Suzanne. Começando a confiar. A acreditar. Ela decidiu aproveitar o momento.

- Por que a juíza Cutler foi a Munique tão pouco tempo depois da morte do pai?

- O pai deixou um bilhete sobre a Sala de Âmbar.

Agora era hora de pressionar.

- Sr. Cutler, Christian Knoll é um homem perigoso. Quando quer uma coisa, nada o impede de conseguir. Aposto que também estava naquele vôo para Munique. É importante que eu fale com sua ex-esposa. O senhor sabe onde ela está hospedada?

- Ela disse que ligaria de lá, mas ainda não tive notícias.

A preocupação temperava as palavras. A mulher olhou para o relógio.

- São quase três e meia em Munique.

- Eu estava pensando a mesma coisa, antes de a senhora chegar.

- O senhor sabe exatamente para onde ela ia?

Paul não respondeu. Suzanne pressionou mais:

- Entendo que sou uma estranha. Mas garanto que sou amiga. Preciso encontrar Christian Knoll. Não posso entrar em detalhes por uma questão de sigilo, mas acredito fortemente que ele está procurando sua ex-esposa.

- Então acho que devo contatar a polícia.

- Knoll não significa nada para a polícia local. Isso é uma questão para as autoridades internacionais.

Ele hesitou, como se pensasse nas palavras, pesando as opções. Ligar para a polícia tomaria tempo. Envolver agências européias demoraria mais ainda. Ela estava ali agora, pronta para agir. A escolha deveria ser fácil, e a mulher não ficou surpresa quando ele escolheu.

- Rachel foi à Baviera procurar um homem chamado Danya Chapaev. Ele mora em Kehlheim.

- Quem é Chapaev? - perguntou ela, fingindo inocência.

- Um amigo de Karol. Os dois trabalharam juntos para a comissão, há anos. Rachel acha que talvez Chapaev saiba algo sobre a Sala de Âmbar.

- O que a levaria a achar isso?

Paul enfiou a mão numa gaveta e tirou um maço de cartas. Entregou-as a ela.

- Veja a senhora mesma. Está tudo aí.

Suzanne demorou alguns minutos e leu todas as cartas. Não havia nada definido ou preciso, apenas sugestões do que poderia ser sabido ou suspeitado. Mas o bastante para preocupá-la. Agora não havia dúvida de que tinha de impedir Knoll de se juntar a Rachel Cutler. Era exatamente isso que o sacana planejava fazer. Não descobrira nada com o pai, por isso jogou-o escada abaixo e decidiu jogar charme para a filha e ver o que poderia descobrir. Levantou-se.

- Agradeço a informação, Sr. Cutler. Verei se sua ex-esposa pode ser localizada em Munique. Tenho contatos lá. - Ela estendeu a mão. - Muito obrigada por seu tempo.

Cutler se levantou e cumprimentou-a.

- Agradeço sua visita e o alerta, Srta. Myers, mas a senhora não disse qual é o seu interesse.

- Não tenho autorização para divulgar, basta dizer que o Sr. Knoll é procurado por sérias acusações.

- A senhora é da polícia?

- Sou investigadora particular contratada para encontrar Knoll. Trabalho em Londres.

- Estranho. Seu sotaque é mais da Europa Oriental do que inglês.

Ela sorriu.

- Exato. Nasci em Praga.

- Poderia deixar um número de telefone? Se eu tiver notícias de Rachel, talvez possa pôr as duas em contato.

- Não precisa. Ligarei de novo para o senhor mais tarde hoje ou amanhã, se não tiver problema.

Ela se virou para sair e notou a foto emoldurada de um homem e uma mulher mais velhos. Sinalizou.

- Um belo casal.

- Meus pais. A foto foi tirada três meses antes de eles morrerem.

- Sinto muito.

Ele aceitou as condolências com um ligeiro gesto de cabeça, e ela saiu sem dizer mais nada. Na última vez em que tinha visto o mesmo casal idoso, eles, e outros vinte, estavam saindo da chuva para um airbus da Alitalia, preparando-se para deixar Florença e fazer uma viagem rápida à França, por sobre o mar da Ligúria. Os explosivos que ela pagara para colocarem a bordo estavam seguros no compartimento de bagagem, com o relógio tiquetaqueando, marcado para trinta minutos depois, sobre o mar.

 

MUNIQUE, ALEMANHA

16H35

Rachel estava encantada. Nunca estivera numa cervejaria. Uma banda de música, com trompetes, percussão, acordeão e cowbells tocava de modo ensurdecedor. Compridas mesas de madeira estavam apinhadas de pessoas festejando, e o aroma de fumo, salsicha e cerveja era denso e forte. Garçons pegajosos de suor, com bermudas de couro, e mulheres com vestidos coloridos serviam canecas de um litro de cerveja escura. Maibock, como ela ouviu a bebida sendo chamada, uma cerveja servida apenas nesta época do ano, anunciando a chegada do tempo mais quente.

A maioria das cerca de duzentas pessoas ao redor parecia estar se divertindo. Ela jamais havia gostado de cerveja, sempre achara que era um gosto adquirido, por isso pediu uma Coca e um frango assado, para jantar. O recepcionista do hotel tinha sugerido a cervejaria, desencorajando-a da Hofbrauhaus ali perto, onde havia turistas demais.

Seu vôo de Atlanta havia chegado naquela manhã. Desconsiderando os conselhos que sempre ouvira, alugou um carro, hospedou-se num hotel e curtiu um longo cochilo. No dia seguinte, iria até Kehlheim, cerca de setenta quilômetros ao sul, pertinho da Áustria e dos Alpes. Se Danya Chapaev tinha esperado tanto tempo, poderia esperar mais um dia, presumindo que estivesse lá, para ser encontrado.

A mudança de cenário estava lhe fazendo bem, mas era estranho olhar em volta, ver os tetos abobadados e as roupas coloridas dos em¬pregados da cervejaria. Só tinha viajado ao estrangeiro uma vez, há três anos, a Londres para um congresso de justiça patrocinado pela Ordem dos Advogados da Geórgia. Os programas de televisão sobre a Alemanha sempre a haviam interessado, e ela sonhara em um dia poder visitar o país. Agora estava aqui.

Mastigou o pedaço de frango e desfrutou do espetáculo. Isso afastava sua mente do pai, da Sala de Âmbar e de Danya Chapaev. De Marcus Nettles e da próxima eleição. Talvez Paul estivesse certo e aquilo fosse uma completa perda de tempo. Mas ela se sentia melhor só de estar ali, e isso significava alguma coisa.

Pagou a conta com euros trocados no aeroporto e saiu. O fim de tarde estava fresco e agradável, o que, em Atlanta, seria tempo de usar suéter, com um sol de primavera pintando as pedras do calçamento, alternando entre luz e sombras. As ruas estavam apinhadas com centenas de turistas e consumidores, as construções da cidade antiga eram uma intrigante mistura de pedra, enxaimel e tijolos, uma atmosfera de povoado, de uma antigüidade elegante e medieval.

Virou para o oeste e caminhou de volta à Marienplatz. O hotel ficava do outro lado da praça. No meio havia uma feira, com barracas cheias de verduras, carne e especialidades cozidas. Uma cervejaria ao ar livre se espalhava à esquerda. Ela se lembrava de algumas coisas sobre Munique. Antiga capital da Baviera, lar do Duque e Eleitor, sede dos Wittelsbachs que governaram a região por 750 anos. Como era mesmo que Thomas Wolfe a havia chamado? Um toque do céu alemão.

Passou por vários grupos de turistas com guias falando francês, espanhol e japonês. Diante da prefeitura, encontrou um grupo inglês, com leve sotaque cockney que ela recordava da viagem anterior à Inglaterra. Ficou a trás do grupo, ouvindo a guia, olhando para a chamejante decoração gótica à frente. O grupo seguiu devagar pela praça, parando do lado mais distante, de frente para a prefeitura. Ela foi atrás e notou o guia olhando para o relógio de pulso. O mostrador do relógio lá no alto marcava 16h58.

De repente, as janelas da torre do relógio se abriram e duas fileiras de coloridas figuras de cobre esmaltado saíram dançando sobre uma plataforma giratória. A música inundou a praça. Os sinos tocaram marcando cinco horas, ecoados por outros sinos à distância.

- Este é o glockenspiel - disse a guia acima do ruído. - Ele funciona três vezes por dia. Às onze horas, ao meio-dia e agora, às cinco da tarde. As figuras em cima estão representando um torneio que acompanhava os casamentos reais na Alemanha, no século XVI. As figuras de baixo fazem a Dança dos Cobres.

As figuras coloridas giravam ao tom de uma animada música bávara. Todos na rua pararam, com o pescoço inclinado para cima. A vinheta durou dois minutos, depois parou, e a praça voltou à vida. O grupo de turistas se afastou e atravessou uma das ruas laterais. Ela se demorou alguns segundos e ficou olhando as janelas do relógio se fecharem totalmente, depois seguiu pelo cruzamento.

O som de uma buzina despedaçou a tarde.

Rachel virou bruscamente a cabeça para a esquerda.

A frente de um carro se aproximava. Quinze metros. Dez. Seis. Seus olhos se concentraram no capo e no emblema da Mercedes, depois nas luzes e nas letras que significavam táxi.

Três metros.

A buzina continuava tocando. Ela precisava se mexer, mas os pés não reagiam. Preparou-se para a dor, imaginando o que doeria mais: o impacto ou a queda nas pedras do calçamento.

Pobres Marla e Brent.

E Paul. O doce Paul.

Um braço envolveu seu pescoço e ela foi puxada para trás.

Guincho de freios. O táxi parou. O cheiro de borracha queimada subiu do pavimento.

Ela se virou para ver quem a segurava. O homem era alto e magro, com cabelos cor de milho caindo sobre a testa bronzeada. Lábios finos como fendas cortadas por uma navalha marcavam o rosto bonito, com pele de tom moreno. Vestia uma camisa de sarja cor de trigo e calça xadrez.

- Você está bem? - perguntou ele em inglês.

O auge do momento havia exaurido suas emoções. Percebeu instantaneamente como estivera perto de morrer.

- Acho que sim.

Uma multidão se juntou. O motorista tinha saído do táxi, preocupado.

- Ela está bem, pessoal - disse o salvador. Depois acrescentou algo em alemão e as pessoas começaram a se afastar. Ele falou em alemão com o motorista de táxi, que respondeu e foi embora.

- O motorista lamenta. Mas disse que você apareceu do nada.

- Achei que era uma rua de pedestres - disse ela. - Não estava preocupada com um carro.

- Os táxis não deveriam estar aqui, mas eles dão um jeito. Lembrei isso ao motorista, e ele decidiu que o melhor era ir embora.

- Deveria haver uma placa, ou algo assim.

- É dos Estados Unidos, não é? Tudo tem placa nos Estados Unidos. Aqui, não.

Ela se acalmou.

- Obrigada pelo que fez.

Duas fileiras de dentes brancos exibiram um sorriso perfeito.

- O prazer foi meu. - Ele estendeu a mão. - Sou Christian Knoll.

Ela aceitou a oferta.

- Rachel Cutler. E fico feliz de o senhor estar aqui, Sr. Knoll. Não tinha visto aquele táxi.

- Seria uma infelicidade, se eu não estivesse.

Ela riu.

- Nem me fale. - E começou a tremer incontrolavelmente, com o choque retardado do que quase havia acontecido.

Por favor, deixe-me pagar uma bebida para acalmá-la.

- Não é necessário.

- A senhora está tremendo. Um vinho seria bom.

- Agradeço, mas...

- Como recompensa pelo meu esforço.

Seria difícil recusar isso, então ela cedeu.

- Certo, talvez um pouco de vinho caia bem.

 

Acompanhou Knoll até um café a dois quarteirões dali, com as duas torres de cobre da catedral erguendo-se do outro lado da rua. Mesas cobertas com toalhas brotavam nas pedras do calçamento, cada uma com pessoas segurando canecas de cerveja escura. Knoll pediu uma cerveja para ele e uma taça de vinho do Reno. O líquido transparente era seco, amargo e bom.

Knoll estava certo. Seus nervos estavam abalados. Era o mais próximo da morte que já estivera. Seus pensamentos na hora tinham sido estranhos. Brent e Maria eram compreensíveis. Mas Paul? Ela havia claramente pensado nele, o coração doendo por um instante.

Tomou um gole de vinho e deixou o álcool e o ambiente aliviarem os nervos.

- Tenho uma confissão a fazer, Sra. Cutler - disse Knoll.

- Que tal Rachel?

- Muito bem. Rachel.

Ela tomou mais vinho.

- Que tipo de confissão?

- Eu a estava seguindo.

As palavras atraíram sua atenção. Ela pousou a taça.

- Como assim?

- Eu a estava seguindo. Venho seguindo-a desde Atlanta.

Ela se levantou da mesa.

- Acho que talvez a polícia deva ser envolvida nisto.

Knoll ficou sentado, impassível, e tomou um gole de cerveja.

- Não tenho problemas com isso, se você desejar. Só peço que me ouça até o fim antes.

Ela considerou o pedido. Estavam sentados ao ar livre. Do outro lado de um parapeito de ferro fundido, a rua estava cheia de pessoas fazendo compras. Que mal faria ouvi-lo? Sentou-se.

- Certo, Sr. Knoll. O senhor tem cinco minutos.

Knoll pôs a caneca na mesa.

- Viajei a Atlanta no início da semana para me encontrar com seu pai. Ao chegar, fiquei sabendo da morte dele. Ontem fui à sua sala no tribunal e soube de sua viagem. Cheguei a deixar meu nome e o número de telefone. Sua secretária não repassou meu recado?

- Não liguei para lá. O que o senhor queria com meu pai?

- Estou procurando a Sala de Âmbar e achei que ele poderia ajudar.

- Por que está procurando a Sala de Âmbar?

- Meu patrão a quer.

- Assim como os russos, tenho certeza.

Knoll sorriu.

- Certo. Mas, depois de cinqüenta anos, consideramos que seja do tipo "é de quem chegar primeiro", acho que é assim que os americanos dizem, não é?

- Como meu pai poderia ajudar?

- Ele procurou durante muitos anos. Encontrar a Sala de Âmbar era uma grande prioridade dos soviéticos.

- Isso foi há mais de cinqüenta anos.

- Para esse prêmio específico, a passagem do tempo não significa nada. No mínimo torna a busca mais intrigante.

- Como o senhor localizou meu pai?

Knoll enfiou a mão no bolso e lhe entregou alguns papéis dobrados.

- Descobri isto na semana passada em São Petersburgo. Estes papéis me levaram a Atlanta. Como verá, a KGB o visitou há alguns anos.

Rachel desdobrou e leu. As palavras datilografadas eram em cirílico. Havia ao lado uma tradução em inglês, em tinta azul. Ela notou instantaneamente quem havia assinado a folha de cima. Danya Chapaev. Também notou o que estava escrito sobre seu pai no papel da KGB.

 

Contato feito. Nega qualquer informação sobre a yantarnaya komnata depois de 1958. Não pude localizar Danya Chapaev. Borya afirmou não saber do paradeiro de Chapaev.

 

Mas seu pai sabia exatamente onde Chapaev morava. Tinha se correspondido com ele durante anos. Por que havia mentido? E seu pai jamais tinha mencionado nada sobre a visita da KGB. Também não tinha falado muito sobre a Sala de Âmbar. Era meio irritante pensar que a KGB sabia sobre ela, Maria e Brent. Imaginou o que mais seu pai havia escondido.

- Infelizmente não pude falar com seu pai - disse Knoll. - Cheguei tarde demais. Sinto muito, realmente, sobre a sua perda.

- Quando o senhor chegou?

- Na segunda-feira.

- E esperou até ontem para ir à minha sala no tribunal?

- Fiquei sabendo da morte de seu pai e não quis me intrometer em seu sofrimento. Meu trabalho poderia ser adiado.

A ligação com Chapaev começou a aliviar sua tensão. O sujeito podia ser digno de crédito, mas ela ficou alerta contra a complacência. Afinal, mesmo bonito e charmoso, Christian Knoll ainda era um estranho. Pior, um estranho num país estrangeiro.

- O senhor estava no mesmo vôo que eu?

Ele assentiu.

- Quase não consigo pegar o avião.

- Por que esperou até agora para se apresentar?

- Não sabia o motivo de sua visita. Se fosse pessoal, eu não queria interferir. Se tivesse a ver com a Sala de Âmbar, pretendia abordá-la.

- Não gosto de ser seguida, Sr. Knoll. Nem um pouco.

O olhar de Knoll se fixou no dela.

- Talvez tenha sido uma felicidade eu ter feito isso.

O táxi surgiu na mente de Rachel. E se ele estivesse certo?

- E pode me chamar de Christian - disse ele.

Rachel disse a si mesma para recuar. Não precisava ser tão hostil. Ele estava certo. Tinha salvado sua vida.

- Certo. Christian.

- Sua viagem tem a ver com a Sala de Âmbar?

- Não sei se devo responder a isso.

- Se eu fosse perigoso, simplesmente deixaria o táxi atropelá-la. Bom argumento, mas talvez não o bastante.

- Frau Cutler, sou um investigador treinado. A arte é a minha especialidade. Falo a língua daqui e sou familiarizado com este país. A senhora pode ser uma juíza excelente, mas presumo que seja uma investigadora novata.

Ela ficou quieta.

- Estou interessado em informações sobre a Sala de Âmbar, nada mais. Contei a você o que sei. Só peço o mesmo, em troca.

- E se eu recusar e for à polícia?

- Simplesmente desapareço, mas vou mantê-la sob vigilância para saber o que você faz. Não é nada pessoal. Você é uma pista e pretendo segui-la até o fim. Simplesmente achei que poderíamos trabalhar juntos e economizar tempo.

Havia algo áspero e perigoso em Knoll, e ela gostava disso. Suas palavras eram claras e diretas, a voz firme. Rachel examinou o rosto dele, procurando indícios, e não encontrou nenhum. Por isso tomou o tipo de decisão rápida ao qual estava acostumada no tribunal.

- Certo, Sr. Knoll. Vim procurar Danya Chapaev. Aparentemente o mesmo nome que está nesta folha. Ele mora em Kehlheim.

Knoll ergueu a caneca e tomou um gole de cerveja.

- Fica ao sul daqui, em direção aos Alpes, perto da Áustria. Conheço a cidadezinha.

- Aparentemente ele e papai estavam interessados na Sala de Âmbar. Obviamente, mais do que eu imaginava.

- Alguma idéia do que Herr Chapaev saberia?

Ela decidiu não mencionar nada sobre as cartas, por enquanto.

- Nada além de que eles já trabalharam juntos, como você já parece saber.

- Como ficou sabendo do nome?

Rachel decidiu mentir.

- Meu pai falou dele durante muitos anos. Os dois tinham sido próximos.

- Posso ser uma ajuda valiosa, Frau Cutler.

- Com toda a honestidade, Sr. Knoll, eu esperava passar algum tempo sozinha.

- Entendo completamente. Lembro-me de quando meu pai morreu. Foi muito difícil.

O sentimento parecia genuíno, e ela apreciou a preocupação. Mas ele ainda era um estranho.

- Você precisa de ajuda. Se esse tal de Chapaev possui alguma informação, eu posso ajudar a desenvolvê-la. Tenho um vasto conhecimento sobre a Sala de Âmbar. Conhecimento que pode ajudar.

Ela ficou quieta.

- Quando planeja ir para o sul? - perguntou Knoll.

- Amanhã de manhã. - Ela respondeu depressa demais.

- Deixe-me levá-la de carro.

- Eu não gostaria que meus filhos aceitassem carona de estranhos. Por que eu deveria fazer o mesmo?

Knoll sorriu.

Ela gostou disso.

- Fui aberto e franco com sua secretária sobre minha identidade e minhas intenções. Uma tremenda pista para alguém que pretendia lhe fazer mal. - Ele engoliu o resto da cerveja. - De qualquer modo, eu simplesmente a seguiria até Kehlheim.

Ela tomou outra decisão rápida. Uma decisão que a surpreendeu.

- Certo. Por que não? Vamos juntos. Estou hospedada no hotel Waldeck. Uns dois quarteirões, naquela direção.

- Eu estou hospedado do outro lado da rua, em frente ao Waldeck, no Elisabeth.

Ela balançou a cabeça e sorriu.

- Por que será que isso não me surpreende?

 

Knoll viu Rachel Cutler desaparecer na multidão.

A coisa correra bastante bem.

Jogou alguns euros na mesa e saiu do café. Virou várias esquinas e atravessou de novo a Marienplatz. Depois de passar pela feira cheia de pessoas jantando cedo e de gente simplesmente aproveitando a tarde, foi para a Maximilianstrasse, um elegante bulevar ladeado de museus, prédios governamentais e lojas. O pórtico com colunas do Teatro Nacional se erguia adiante. Na frente, uma fileira de táxis envolvia a estátua de Max Joseph, o primeiro rei da Baviera, pacientemente esperando passageiros que sairiam da primeira apresentação da noite. Knoll atravessou a rua e foi até o quarto táxi na fila. O motorista estava parado do lado de fora, braços cruzados, encostado ao Mercedes.

- Foi bom? - perguntou o motorista em alemão.

- Mais do que suficiente.

- Meu desempenho depois convenceu?

- Foi notável. - Knoll entregou um maço de euros ao sujeito.

- É sempre um prazer fazer negócio com você, Christian.

- Com você também, Erich.

Ele conhecia bem o motorista, tendo-o usado antes em Munique. O sujeito era confiável e corrupto, duas qualidades que Knoll procurava em seus auxiliares.

- Está ficando mole, Christian?

- Como assim?

- Você só queria que ela ficasse apavorada, e não que fosse morta. Não é o seu estilo.

Ele sorriu.

- Nada como um contato de perto com a morte para gerar confiança.

- Você quer comer a dona, ou algo assim?

Knoll não queria falar muito mais, mas também queria que o sujeito estivesse disponível no futuro. Assentiu e disse:

- É um bom modo de ir para a cama.

O motorista contou as notas.

- Quinhentos euros é um bocado de grana em troca de um rabo.

Mas Knoll pensou na Sala de Âmbar e nos dez milhões de euros que ela lhe traria. Depois pensou de novo em Rachel Cutler e em sua atratividade, que havia permanecido depois de ela ter ido embora.

- Na verdade, não.

 

ATLANTA, GEÓRGIA

12H35

Paul estava preocupado. Tinha deixado de almoçar e ficado no escritório, esperando que Rachel ligasse. Eram mais de 18h30 na Alemanha. Ela havia mencionado a possibilidade de ficar em Munique por uma noite, antes de ir para Kehlheim. Por isso Paul não tinha certeza se ela ligaria hoje ou no dia seguinte, depois de ter ido para o sul, ou se ao menos ligaria.

Rachel era franca, agressiva e durona. Sempre fora. Era esse espírito independente que a tornava uma boa juíza. Mas isso também a tornava difícil de ser conhecida, e ainda mais difícil de se gostar. As amizades não surgiam com facilidade. Mas no fundo era calorosa e amorosa. Ele sabia disso. Infelizmente os dois eram como água e fogo. Mas seriam mesmo? Ambos achavam que um jantar calmo em casa era melhor do que um restaurante apinhado. Alugar um vídeo era preferível ao cinema. Uma tarde com as crianças no zoológico era o paraíso, comparada a uma noite de farra na cidade. Percebeu que ela sentia falta do pai. Os dois eram íntimos, em especial depois do divórcio. Karol tinha se esforçado tremendamente para que os dois voltassem a ficar juntos.

O que era mesmo que dizia o bilhete do velho?

Pense em dar outra chance ao Paul.

Mas não adiantava. Rachel estava decidida a que vivessem separados Tinha negado cada tentativa de reconciliação que ele fizera. Talvez fosse hora de ele ceder e desistir. Mas havia alguma coisa ali. A falta de uma vida social para Rachel. E quantos homens possuíam a chave da casa da ex-mulher? Quantos ainda compartilhavam a escritura? Ou continuavam a manter uma conta de investimentos conjunta? Ela jamais insistira que a conta dos dois no Merrill Lynch fosse fechada, e ele tinha conseguido que a conta durasse três anos sem que ela questionasse seu julgamento.

Olhou para o telefone. Por que ela não havia ligado? O que estava acontecendo? Um homem, Christian Knoll, supostamente estava procurando-a. Talvez fosse perigoso. Talvez não. Toda a informação que ele possuía era a palavra de uma morena bonita com olhos azuis brilhantes e pernas em forma. Jo Myers. Ela havia se mostrado calma e contida, reagindo bem às perguntas, com respostas rápidas e objetivas. Era quase como se pudesse sentir a apreensão dele com relação a Rachel, as dúvidas dele sobre a viagem à Alemanha. Paul havia falado um pouco demais, e esse fato o incomodava. Rachel não tinha o que fazer na Alemanha. Disso ele estava certo. A Sala de Âmbar não era da conta de Rachel, e havia dúvidas de que Danya Chapaev estivesse ao menos vivo.

Estendeu a mão sobre a mesa e pegou as cartas do ex-sogro. Encontrou o bilhete para Rachel e olhou o trecho na metade da página.

 

Será que encontramos? Talvez. Nenhum de nós foi realmente olhar. Naquela época, havia muitas pessoas vigiando e, quando estreitamos a busca, ambos percebemos que os soviéticos eram muito piores que os alemães. Por isso deixamos para lá. Danya e eu prometemos nunca revelar o que sabíamos, ou talvez o que simplesmente pensávamos que sabíamos. Só investiguei de novo quando Yancy se ofereceu para fazer indagações discretas, verificando informações que eu havia considerado dignas de crédito. Em sua última viagem à Itália, ele estava fazendo indagações. Jamais saberemos se a explosão no avião foi devido às perguntas dele ou a outra coisa. Só sei que a busca pela Sala de Âmbar se mostrou perigosa.

 

Continuou lendo e encontrou o alerta:

 

Mas nunca, absolutamente nunca, se preocupe com a Sala de Âmbar. Lembre-se da história de Faetonte e das lágrimas das Helíades. Pense na ambição dele e na tristeza delas.

 

Tinha lido bastante os clássicos, mas não conseguia se lembrar da situação específica. Rachel fora evasiva há três dias, quando ele perguntou sobre a história à mesa de jantar.

Virou-se para o terminal de computador e acessou a internet. Escolheu um mecanismo de busca e digitou: "Faetonte e as Helíades". A tela indicou mais de uma centena de sites. Verificou alguns, aleatoriamente. O terceiro era o melhor, uma página intitulada "O mundo mítico de Edith Hamilton". Examinou até encontrar a história de Faetonte, e uma bibliografia observava que o relato era tirado das Metamorfoses, de Ovídio.

Leu a história. Era pitoresca e profética.

Faetonte, filho ilegítimo de Hélio, o deus sol, finalmente encontrou seu pai. Sentindo-se culpado, o deus sol concedeu um desejo ao filho, e o garoto escolheu imediatamente ocupar o lugar do pai durante um dia, pilotando a carruagem do sol pelo céu, do amanhecer ao crepúsculo. O pai percebeu a tolice do filho e tentou em vão dissuadi-lo, mas este não cedeu. Por isso Hélio concedeu o desejo, mas alertou ao garoto como era difícil controlar a carruagem. Nenhum dos alertas do deus sol pareceu significar coisa alguma. O garoto só se via de pé na carruagem maravilhosa, guiando os cavalos que o próprio Zeus não conseguia dominar.

Mas assim que decolou, Faetonte descobriu rapidamente que os alertas do pai estavam corretos, e perdeu o controle da carruagem. Os cavalos partiram para o topo do céu e depois mergulharam suficientemente perto da terra para incendiar o mundo. Não tendo opção, Zeus disparou um raio que destruiu a carruagem e matou Faetonte. O misterioso rio Eridano o recebeu e apagou as chamas que engolfaram seu corpo. As Náiades, com pena de alguém tão ousado e tão jovem, o enterraram. As irmãs de Faetonte, as Helíades, vieram à sua sepultura e choraram. Tendo pena da tristeza delas, Zeus as transformou em choupos cujas folhas murmuravam tristes à margem do Eridano.

Paul leu as últimas frases da história na tela:

 

ONDE, TRISTES, CHORAM NO RIO PARA SEMPRE.

CADA LÁGRIMA AO CAIR BRILHA NA ÁGUA

COMO UMA RELUZENTE GOTA DE ÂMBAR.

 

Lembrou-se instantaneamente do exemplar das Metamorfoses, de Ovídio, que tinha visto na estante de Borya. Karol estava tentando alertar Rachel, mas ela não quis ouvir. Como Faetonte, correu numa busca idiota, sem entender os perigos nem avaliar os riscos. Será que Christian Knoll seria seu Zeus? Aquele que lançaria um raio?

Olhou para o telefone. Toque, desgraçado!

O que deveria fazer?

Não podia fazer nada. Ficar com as crianças, cuidar delas e esperar a volta de Rachel de sua busca insensata. Poderia ligar para a polícia e talvez alertar as autoridades alemãs. Mas se Christian Knoll não passasse de um investigador curioso, Rachel sem dúvida lhe daria uma bronca. Ia chamá-lo de alarmista.

E ele não precisava disso.

Mas havia uma terceira opção. A que mais o atraía. Olhou o relógio: 13h50, 19h50 na Alemanha. Pegou o catálogo telefônico, encontrou o número e ligou para a Delta Airlines. O funcionário encarregado de reservas atendeu.

- Preciso de um vôo de Atlanta para Munique, partindo esta noite.

 

KEHLHEIM, ALEMANHA

SÁBADO, 17 DE MAIO, 8H05

Suzanne havia ganhado tempo. Tinha saído do escritório de Paul Cutler na véspera e viajado imediatamente para Nova York, onde pegou o Concorde que partia às 18h30 para Paris. Chegando pouco depois das 22h, hora local, uma ponte aérea da Air France para Munique deixou-a no solo à uma hora. Conseguiu dormir um pouco num hotel do aeroporto e depois partiu para o sul num Audi alugado, seguindo a autobahn E533, direto até Oberammergau, depois para o oeste, numa estrada sinuosa até o lago alpino chamado Förggensee, a leste de Füssen.

O povoado de Kehlheim era um amontoado irregular de casas caiadas cobertas por telhados ornamentados que se aninhava perto da margem leste do lago. Uma igreja com torre dominava o centro, com uma desconexa markplatz ao redor. Encostas cobertas de florestas envolviam as margens mais distantes. Alguns barcos com velas brancas deslizavam na água cinza-azulada como borboletas na brisa.

Ela parou ao sul da igreja. Vendedores ocupavam a praça com calçamento de pedras, preparados para a feira da manhã de sábado. O ar cheirava a carne crua, verduras úmidas e tabaco queimado. Caminhou pela confusão cheia de turistas de primavera. Crianças brincavam em grupos ruidosos. Golpes de martelo ecoavam a distância. Um homem idoso numa das barracas, com cabelos prateados e nariz torto, atraiu sua atenção. Não estava longe da idade que Danya Chapaev teria. Suzanne se aproximou e admirou suas maçãs e cerejas.

- Belas frutas - disse em alemão.

- Eu mesmo as planto - respondeu o velho.

Ela comprou três maçãs, deu um sorriso largo e se mostrou calorosa. Sua imagem era perfeita. Peruca loura-avermelhada, pele clara, olhos castanho-claros. Os seios eram aumentados em dois números por um par de enchimentos de silicone. Tinha aumentado também os quadris e as coxas, e os jeans justos eram dois números maiores que os dela, para acomodar o corpo artificial. Uma camisa de flanela xadrez e botas marrons encerravam o disfarce. Óculos de sol escondiam os olhos, escuros, mas não o bastante para atrair atenção. Mais tarde, testemunhas certamente iam descrevê-la como uma loura peituda e gorducha.

- O senhor sabe onde Danya Chapaev mora? - perguntou enfim. - É um senhor de idade. Morou aqui um tempo. Era amigo do meu avô. Vim dar um presente, mas perdi o endereço dele. Só encontrei o povoado por sorte.

O velho balançou a cabeça.

- Que descuido, Fräulein.

Ela sorriu, adorando a censura.

- Eu sei. Mas sou assim. Minha mente sempre fica a quilômetros de distância.

- Não sei onde mora nenhum Chapaev. Sou de Nesselwang, a oeste. Mas deixe-me falar com alguém daqui.

Antes que ela pudesse impedi-lo, o velho gritou para outro homem do outro lado da praça. Suzanne não queria atrair muita atenção. Os dois falaram em francês, uma língua em que ela não era totalmente fluente, mas captou uma ou outra palavra. Chapaev. Norte. Três quilômetros. Perto do lago.

- Eduard conhece Chapaev. Diz que mora ao norte da cidade. Três quilômetros. Junto à margem do lago. Aquela estrada lá. Um pequeno chalé de pedras com chaminé.

Ela sorriu e assentiu, depois escutou o homem do outro lado da praça gritar:

- Julius! Julius!

Um garoto de cerca de 12 anos correu para a barraca. Tinha cabelos castanho-claros e rosto bonito. O vendedor falou com o menino, que em seguida correu até ela. Atrás, um bando de patos voou do lago para o pálido céu da manhã.

- Está procurando Chapaev? - perguntou o garoto. - É o meu avô. Posso mostrar.

Os olhos jovens do garoto examinaram os seios dela.

- Então mostre.

Homens de todas as idades eram tão fáceis de manipular!

 

9H15

Rachel olhou para Christian Knoll, no outro banco. Iam a toda velocidade para o sul, pela autobahn E533, trinta minutos ao sul de Munique. O terreno emoldurado pelas janelas de vidro fumê do Volvo mostrava picos fantasmagóricos emergindo de uma cortina de névoa, com neve branqueando as dobras das maiores altitudes, e as encostas abaixo se vestiam de verdejantes abetos e lariços.

- É um lugar lindo - disse ela.

- A primavera é a melhor época para visitar os Alpes. É a sua primeira vez na Alemanha?

Ela assentiu.

- Vai gostar muito da região.

- Você viaja muito?

- O tempo todo.

- Mora onde?

- Tenho um apartamento em Viena, mas raramente fico lá. Meu trabalho me leva por todo o mundo.

Rachel examinou o motorista enigmático. Seus ombros eram largos e musculosos, o pescoço grosso, os braços compridos e poderosos. De novo se vestia de modo casual. Camisa de camurça xadrez, jeans, botas, e cheirava levemente a uma colônia doce. Era o primeiro europeu com quem realmente conversava por algum tempo. Talvez esse fosse o fascínio. Ele definitivamente instigara seu interesse.

- O documento da KGB dizia que você tem um filho. Tem marido? - perguntou Knoll.

- Tinha. Nós nos divorciamos. E são dois filhos.

- O divórcio é bem comum nos Estados Unidos.

- Cuido de mais de cem por semana no meu tribunal.

Knoll balançou a cabeça.

- É uma pena.

- Parece que as pessoas não conseguem viver juntas.

- Seu ex-marido é advogado?

- Um dos melhores. - Um Volvo passou a toda na pista da esquerda. - Incrível. Aquele carro deve estar a mais de 160 por hora.

- Quase 160. Nós estamos a quase 160.

- Essa é uma clara diferença com relação ao meu país.

- Ele é bom pai? - perguntou Knoll.

- Meu ex? Ah, sim. Muito bom.

- Melhor pai do que marido?

Estranhas, as perguntas. Mas ela não se incomodou, já que o anonimato de um estranho fazia diminuirá intromissão.

- Eu não diria isso. Paul é um bom homem. Qualquer mulher ficaria empolgada em tê-lo.

- Por que você não ficou?

- Não disse que não fiquei. Simplesmente disse que não conseguíamos viver juntos.

Knoll pareceu sentir a hesitação dela.

- Não quis xeretar. Só que as pessoas me interessam. Não tendo lar nem raízes permanentes, gosto de sondar os outros. Simples curiosidade. Nada mais.

- Tudo bem. Não me ofendi. - Ela ficou sentada em silêncio por alguns instantes, depois disse: - Eu deveria ter ligado e dito ao Paul onde estou. Ele ficou tomando conta das crianças.

- Você pode avisar hoje à noite.

- Ele não ficou feliz por eu ter vindo. Ele e meu pai disseram que eu deveria ficar fora disso.

- Você falou sobre o assunto com seu pai, antes de ele morrer?

- Não. Ele me deixou um bilhete junto com o testamento.

- Então por que veio aqui?

- É algo que preciso fazer.

- Entendo. A Sala de Âmbar é um tremendo prêmio. As pessoas a procuram desde a guerra.

- Foi o que me disseram. O que a torna tão especial?

- É difícil dizer. A arte tem um efeito muito variado sobre as pessoas. O interessante da Sala de Âmbar é que ela comovia todo mundo do mesmo modo. Li relatos dos séculos XIX e início do XX. Todos concordam que era magnífica. Imagine, uma sala inteira forrada de âmbar!

- Parece incrível.

- O âmbar é muito precioso. Sabe alguma coisa a respeito?

- Muito pouco.

- Não passa de resina de árvore fossilizada, com quarenta a cinqüenta milhões de anos. Seiva endurecida pelos milênios até virar pedra preciosa. Os gregos o chamavam de elektron, "substância do sol", pela cor e porque, se você esfregar um pedaço nas mãos, ele produz uma carga elétrica. Chopin costumava segurar colares de âmbar antes de tocar piano. Ele se aquece ao toque e afasta a transpiração.

- Não sabia disso.

- Os romanos acreditavam que, se você fosse de Leão, usar âmbar traria sorte. Se fosse de Touro, haveria problemas adiante.

- Talvez eu devesse arranjar algum. Sou de Leão.

Ele sorriu.

Se você acredita nesse tipo de coisa. Os médicos da Idade Média prescreviam vapor de âmbar para tratar dor de garganta. Os vapores da fervura são muito perfumados e supostamente possuíam qualidades medicinais. Os russos a chamam de "incenso do mar". Além disso... desculpe, talvez eu esteja chateando você.

- De jeito nenhum. Isso é fascinante.

- Os vapores podem amadurecer frutas. Há uma lenda árabe sobre um xá que ordenou que seu jardineiro lhe trouxesse peras frescas. O problema é que não era época de peras e as frutas só estariam maduras no mês seguinte. O xá ameaçou decapitar o jardineiro se ele não trouxesse peras maduras. Por isso o jardineiro pegou algumas peras verdes e passou a noite rezando a Alá e queimando incenso de âmbar. No dia seguinte, em resposta às suas preces, as peras estavam rosadas e doces, prontas para serem comidas. - Knoll deu de ombros. - Se é verdade ou não, quem sabe? Mas o vapor de âmbar contém etileno, que estimula o amadurecimento precoce. Também serve para amaciar couro. Os egípcios usavam o vapor no processo de mumificação.

- Meu único conhecimento é da joalheria, ou das fotos que vi com insetos e folhas dentro.

- Francis Bacon o chamava de "túmulo mais do que real". Os cientistas consideram o âmbar uma cápsula do tempo. Os artistas o consideram uma pintura. Há mais de 250 cores. Azul e verde são as mais raras. Vermelho, amarelo, marrom, preto e dourado as mais comuns. Associações inteiras surgiram na Idade Média, para controlar a distribuição. A Sala de Âmbar foi feita no século XVIII, e é a epítome do que o homem podia fazer com aquela substância.

- Você conhece bem o assunto.

- É o meu trabalho.

O carro diminuiu a velocidade.

- Nossa saída - disse Knoll enquanto deixava a aulobahn, descia uma rampa curta e freava no fim. - Daqui vamos para o oeste, pela auto-estrada. Kehlheim não fica longe. - Virou o volante para a direita e rapidamente trocou de marcha, recuperando a velocidade.

- Para quem você trabalha? - perguntou ela.

- Não posso dizer. É uma pessoa discreta.

- Mas obviamente rica.

- Como assim?

- Mandá-lo percorrer o mundo procurando obras de arte. Não é um hobby de homem pobre.

- Eu disse que trabalho para um homem?

Ela riu.

- Não, não disse.

- Bela tentativa, meritíssima.

Campinas verdes salpicadas de bosques de altos pinheiros ladeavam a estrada. Ela baixou a janela e se inundou com o ar cristalino.

- Estamos subindo, não?

- Os Alpes começam aqui e se estendem para o sul até a Itália. Vai ficar frio antes de chegarmos a Kehlheim.

Rachel havia se perguntado, antes, por que ele usava camisa de mangas compridas e calça comprida. Tinha vestido uma bermuda caqui e blusa de mangas curtas. De repente, percebeu que era a primeira vez, desde o divórcio, que viajava de carro com um homem que não era Paul. Eram sempre as crianças, seu pai ou uma amiga.

- Ontem falei sério - disse Knoll. - Sinto muito pelo que aconteceu ao seu pai.

- Ele era muito velho.

- Essa é a coisa terrível com relação aos pais. Um dia a gente os perde.

Ele parecia falar a sério. Palavras esperadas. Sem dúvida ditas por cortesia. Mas ela apreciou o sentimento. E o achou ainda mais intrigante.

 

11H45

Rachel observou o velho que abriu a porta. Era baixo, com rosto estreito coberto por cabelos prateados e desgrenhados. Pêlos grisalhos cobriam o queixo e o pescoço enrugados. O corpo era magro, a pele cor de talco e o rosto encolhido como uma noz. Tinha pelo menos 80 anos, e o primeiro pensamento dela foi no pai e em como o velho a fazia lembrar-se dele.

- Danya Chapaev? Sou Rachel Cutler. Filha de Karol Borya.

O velho a encarou atentamente.

- Vejo Karol em seu rosto e em seus olhos.

Ela sorriu.

- Ele teria orgulho disso. Podemos entrar?

- Claro.

Ela e Knoll entraram na casa minúscula. A construção de um andar era feita de madeira velha e reboco antigo. O chalé de Chapaev era o último dos vários que ladeavam uma estrada que vinha de Kehlheim em meio à floresta.

- Como encontrou minha casa? - perguntou Chapaev. Seu inglês tinha pronúncia muito melhor que o do pai dela.

- Nós perguntamos, na cidade, onde o senhor morava.

A sala era aconchegante e quente devido à um pequeno fogo que estalava numa lareira de pedras. Havia dois abajures acesos ao lado de um sofá acolchoado, onde ela e Knoll se sentaram. Chapaev ocupou uma cadeira de balanço, de madeira, diante deles. O cheiro de canela e café pairava no ar. Chapaev ofereceu algo para beber, mas eles recusaram. Rachel apresentou Knoll, depois falou a Chapaev sobre a morte do pai. O velho ficou surpreso com a notícia. Ficou sentado em silêncio por um tempo, com lágrimas surgindo nos olhos cansados.

- Ele era um bom homem. O melhor - disse Chapaev por fim.

- Estou aqui, Sr. Chapaev...

- Danya, por favor. Me chame de Danya.

- Certo. Danya. Estou aqui por causa das cartas que o senhor e meu pai trocaram falando da Sala de Âmbar. Eu as li. Papai disse algo sobre o segredo que vocês dois compartilhavam e que agora eram velhos demais para verificar. Vim descobrir o que for possível.

- Por quê, minha filha?

- Parecia importante para o meu pai.

- Alguma vez ele falou disso com você?

- Ele falava pouco sobre a guerra e o que fez em seguida.

- Talvez tivesse motivos para o silêncio.

- Tenho certeza que sim. Mas agora papai se foi.

Chapaev ficou em silêncio, parecendo contemplar o fogo. Sombras tremulavam em seu rosto idoso. Ela olhou para Knoll, que observava atentamente o anfitrião. Fora obrigada a dizer algo sobre as cartas, e Knoll tinha reagido. Não era surpresa, já que ela intencionalmente havia escondido a informação. Deduziu que mais tarde haveria perguntas.

- Talvez seja hora - disse Chapaev em voz baixa. - Eu me perguntava quando seria. Talvez agora seja o momento.

Ao lado, Knoll inspirou profundamente. Um arrepio desceu pela coluna de Rachel. Seria possível que o velho soubesse onde estava a Sala de Âmbar?

- Erich Koch era um monstro - sussurrou Chapaev.

Ela não entendeu.

- Koch?

- Um gauleiter - disse Knoll. - Um dos governadores provinciais de Hitler. Koch governou a Prússia e a Ucrânia. Seu serviço era arrancar cada tonelada de grão, cada grama de aço e cada trabalhador escravo que pudesse da região.

O velho suspirou.

- Koch dizia que, se encontrasse um ucraniano digno de se sentar à sua mesa, atiraria nele. Acho que devemos agradecer por sua brutalidade. Ele conseguiu converter quarenta milhões de ucranianos, que receberam os invasores como se os libertassem de Stalin, em guerrilheiros ferozes que odiavam os alemães. Tremendo feito.

Knoll ficou quieto.

Chapaev continuou:

- Koch brincou com os russos e os alemães depois da guerra, usando a Sala de Âmbar para ficar vivo. Karol e eu assistimos à manipulação, mas não podíamos dizer nada.

- Não entendo - disse Rachel.

Knoll respondeu:

- Koch foi julgado na Polônia depois da guerra e condenado à morte como criminoso de guerra. Mas os soviéticos adiaram repetidamente a execução. Ele afirmava saber onde a Sala de Âmbar fora enterrada. Foi Koch quem ordenou que ela fosse retirada de Leningrado e levada a Konigsberg em 1941. Também ordenou que a levassem para o oeste em 1945. Koch usou seu suposto conhecimento para ficar vivo, raciocinando que os soviéticos o matariam assim que ele revelasse o local.

Agora ela começava a se lembrar de algo que tinha lido nos artigos guardados pelo pai.

- Mas ele acabou conseguindo uma garantia de vida, não foi?

- Em meados dos anos sessenta - disse Chapaev. - Mas o idiota disse que não conseguia se lembrar do local exato. Na época, Königsberg tinha mudado o nome para Kaliningrado, e fazia parte da União Soviética. A cidade foi bombardeada até virar um monte de entulho durante a guerra, e os soviéticos passaram trator em tudo, depois reconstruíram. Nada restou da cidade anterior. Ele culpou os soviéticos por tudo. Disse que eles destruíram seus marcos. Era culpa deles não encontrar o local agora.

- Koch não sabia de nada, não é? - perguntou Knoll.

- Nada. Era um simples oportunista tentando ficar vivo.

- Então diga, velho, vocês encontraram a Sala de Âmbar? Chapaev assentiu.

- O senhor a viu? - perguntou Knoll.

- Não. Mas ela estava lá.

- Por que guardaram segredo?

- Stalin era maligno. O diabo encarnado. Ele roubou e vendeu tesouros russos para construir o Palácio dos Sovietes.

- O quê? - perguntou Rachel.

- Um gigantesco arranha-céu em Moscou - disse Chapaev. - E queria pôr em cima daquilo uma gigantesca estátua de Lenin. Dá para imaginar tal monstruosidade? Karol, eu e todos os outros estávamos recolhendo peças para o Museu de Arte Mundial, que faria parte daquele palácio. Seria o presente de Stalin ao mundo. Nada diferente do que Hitler planejou fazer na Áustria. Um gigantesco museu de arte roubada. Graças a Deus, Stalin jamais construiu seu monumento, também. Era loucura. Nem um pouco sadio. E ninguém conseguiu impedir o desgraçado. Só a morte. - O velho balançou a cabeça. - Loucura total, absoluta. Karol e eu estávamos decididos a fazer nossa parte e jamais dizer nada sobre o que achávamos ter encontrado nas montanhas. Melhor deixar enterrado do que ser uma peça de exposição para satã.

- Como encontraram a Sala de Âmbar? - perguntou ela.

Praticamente por acaso. Karol encontrou um trabalhador de ferrovia que nos indicou as cavernas. Ficavam no setor russo, o que se tornou a Alemanha Oriental. Os soviéticos roubaram até isso, mas foi um roubo com o qual concordei. Coisas medonhas acontecem sempre que os alemães se unem. Não acha, Herr Knoll?

- Não opino sobre política, camarada Chapaev. Além disso, sou austríaco, e não alemão.

- Estranho. Achei ter detectado um sotaque bávaro.

- Bons ouvidos para um homem de sua idade.

Chapaev se virou para ela.

- O apelido de seu pai era "Yxo. Ouvidos. Assim o chamavam em Mauthausen. Era o único nos alojamentos que falava alemão.

- Eu não sabia. Papai falava pouco sobre o campo.

Chapaev assentiu.

- É compreensível. Também passei os últimos meses da guerra num deles. - O velho olhou atentamente para Knoll. - Quanto ao seu sotaque, Herr Knoll, eu era bom nesse tipo de coisa. A Alemanha era minha especialidade.

- Seu inglês também é muito bom.

- Tenho talento para línguas.

- Seu antigo trabalho certamente exigia poder de observação e comunicação.

Ela ficou curiosa com o atrito que parecia existir. Dois estranhos, no entanto, agiam como se fossem conhecidos. Ou, mais precisamente, como se sentissem ódio mútuo. Mas o embate estava atrasando a missão.

- Danya, pode nos dizer onde está a Sala de Âmbar? - perguntou Rachel.

- Nas cavernas do norte. Nas montanhas Harz. Perto de Warthberg.

- O senhor está parecendo Koch - disse Knoll. - Aquelas cavernas foram totalmente examinadas.

- Essas não. Ficavam na parte leste. Os soviéticos as isolaram. Não deixavam ninguém entrar. São muitas. Levaria décadas para explorar todas, e são como labirintos de ratos. Os nazistas minaram a maioria com explosivos e guardavam munição no resto. Por esse motivo, Karol e eu nunca fomos olhar. Melhor deixar o âmbar descansar em paz do que correr o risco de explodir tudo.

Knoll pegou um caderninho e uma caneta no bolso de trás.

- Desenhe um mapa.

Chapaev fez um esboço durante alguns minutos. Rachel e Knoll ficaram sentados em silêncio. Apenas os estalos do fogo e a caneta sobre o papel quebraram a quietude. Chapaev entregou o bloco de novo a Knoll.

- A caverna certa pode ser encontrada orientando-se pelo sol - disse Chapaev. - A abertura aponta para o leste. Um amigo que visitou a área recentemente disse que agora a entrada está fechada com barras de ferro, com a designação BCR-65 do lado de fora. As autoridades alemãs ainda não fizeram uma varredura lá dentro à procura de explosivos, por isso ninguém ainda se aventurou a entrar. Pelo menos foi o que me disseram. Desenhei um mapa dos túneis do melhor modo que pude lembrar. No fim, vocês terão de cavar. Mas depois de pouco mais de um metro chegarão à porta de ferro que dá na câmara.

- O senhor manteve esse segredo por décadas - disse Knoll. - Mas agora o entrega livremente a estranhos?

- Rachel não é estranha.

- Como sabe que ela não está mentindo sobre quem é?

- Vejo o pai nela, claramente.

- Mas não sabe nada sobre mim. Nem perguntou por que estou aqui.

- Se Rachel o trouxe, isso me basta. Sou um velho, Herr Knoll. Meu tempo é curto. Alguém precisa saber o que sei. Talvez Karol e eu estivéssemos certos. Talvez não. Pode não haver nada lá. Por que não vão ver, para certeza? - Chapaev se virou para ela. - Agora, se é só isso que você queria, filha, estou cansado e gostaria de repousar.

- Certo, Danya. E obrigada. Veremos se a Sala de Âmbar está lá.

Chapaev suspirou. Faça isso, filha. Faça isso.

 

- Muito bem, camarada - disse Suzanne em russo quando Chapaev abriu a porta do quarto. Os visitantes tinham acabado de sair e ela ouviu o carro se afastando. - Já pensou em fazer carreira como ator? Christian Knoll é difícil de ser enganado. Mas você se saiu maravilhosamente bem. Eu mesma quase acreditei.

- Como sabe que Knoll vai até a caverna?

- Ele está ansioso para agradar a nova patroa. Quer tanto a Sala de Âmbar que vai se arriscar a olhar, mesmo que considere isso um beco sem saída.

- E se descobrir que é uma armadilha?

- Não há motivo para ele suspeitar de nada, graças ao seu desempenho notável.

Os olhos de Chapaev se fixaram no neto, amordaçado e amarrado numa cadeira de carvalho junto à cama.

- Seu precioso neto agradece enormemente o seu desempenho. - Ela acariciou o cabelo do menino. - Não é, Julius?

O garoto tentou se sacudir para trás, fazendo barulho por baixo da fita grudada na boca. Ela ergueu uma pistola com silenciador perto da cabeça dele. Os olhos jovens se arregalaram quando o cano encostou no crânio.

- Não há necessidade disso - disse Chapaev rapidamente. - Eu fiz o que você pediu. Desenhei o mapa exatamente. Sem truques. Mas meu coração dói pelo que pode acontecer com Rachel. Ela não merece isso.

- A pobre Rachel deveria ter pensado antes de decidir se envolver. Esta luta não é dela, não é da conta dela. Deveria ter ficado de fora.

- Podemos ir para o outro cômodo? - perguntou ele.

- Como quiser. Não creio que o querido Julius vá a lugar algum, não acha?

Foram à sala. Ele fechou a porta do quarto.

- O menino não merece morrer - disse em voz baixa.

- Você é perceptivo, camarada Chapaev.

- Não me chame assim.

- Não tem orgulho de sua herança soviética?

- Não tenho herança soviética. Eu era russo branco. Só me juntei a eles contra Hitler.

- O senhor não tinha reservas quanto a roubar tesouros para Stalin.

- Foi um erro da época. Santo Deus. Guardei o segredo por cinqüenta anos. Jamais disse uma palavra. Você não pode aceitar isso e deixar meu neto viver?

Ela ficou quieta.

- Você trabalha para Loring, não é? - perguntou ele. - Josef certamente está morto. Deve ser Ernst, o filho.

- De novo, muito perceptivo, camarada.

- Eu sempre soube que você viria. Foi o risco que assumi. Mas o garoto não faz parte disso. Deixe-o ir.

- Ele é uma ponta solta. Como você era. Li a correspondência entre você e Karol Borya. Por que não pôde deixar a coisa como estava? Deixar o assunto morrer? Com quantos mais você se correspondeu? Meu patrão não deseja se arriscar mais. Borya se foi. Os outros investigadores se foram. Só resta você.

- Você matou Karol, não foi?

- Na verdade, não. Herr Knoll foi mais rápido.

- Rachel sabe?

- Aparentemente não.

- Coitada, que perigo ela corre!

- Como eu disse, é problema dela, camarada.

Acho que você vai me matar. De certa forma, acho bom. Mas, por favor, deixe o menino vivo. Ele não pode identificá-la. Não fala russo. Não entendeu nada que nós dissemos. Certamente esta aparência não é a sua. O garoto jamais poderia ajudar a polícia.

- Você sabe que não posso fazer isso.

Chapaev tentou saltar sobre ela, mas os músculos que um dia talvez tivessem escalado penhascos e saltado de prédios tinham se atrofiado com a idade e a doença. Ela se desviou facilmente da tentativa inútil.

- Não há necessidade disso, camarada.

Ele caiu de joelhos.

- Por favor. Imploro em nome da Virgem Maria, deixe o menino viver. Ele merece. - Chapaev dobrou o corpo para a frente e grudou o rosto ao chão. - Pobre Julius - murmurou entre as lágrimas. - Pobre, pobre Julius.

Ela apontou a arma para a nuca de Chapaev e pensou no pedido dele.

- Dasvidániya, camarada.

 

- Você não pegou um pouco pesado com ele? - perguntou Rachel.

Estavam indo para o norte pela autobahn, a toda velocidade, deixando Kehlheim e Danya Chapaev uma hora ao sul. Ela estava dirigindo. Knoll dissera que logo assumiria o volante, nas estradas sinuosas que atravessavam as montanhas Harz.

Knoll ergueu o olhar do desenho de Chapaev.

- Você precisa entender, Rachel, que venho fazendo isso há muitos anos. As pessoas mentem muito mais do que dizem a verdade. Chapaev disse que a Sala de Âmbar está numa das cavernas de Harz. Essa teoria foi explorada mil vezes. Pressionei para ver se ele estava dizendo a verdade.

- Ele pareceu sincero.

- Tenho suspeitas disso. Depois de todos esses anos, o tesouro está simplesmente esperando no fim de um túnel escuro?

- Você não disse que há centenas de túneis e que a maioria não foi explorada? É perigoso demais, não é?

- Correto. Mas estou familiarizado com a área descrita por Chapaev. Eu mesmo procurei nas cavernas.

Ela lhe falou sobre Wayland McKoy e a expedição atual.

- Stod fica a apenas quarenta quilômetros de onde estaremos - disse Knoll. - Há um monte de cavernas por lá, também, supostamente cheias de riquezas. Se você acreditar no que os caçadores de tesouros dizem.

- Você não acredita?

- Aprendi que tudo que vale a pena possuir já tem dono. A verdadeira caçada é aos que possuem. Você ficaria surpresa ao saber quantos tesouros desaparecidos estão simplesmente sobre a mesa do quarto de alguém ou pendurados na parede, livres como um badulaque comprado numa loja de departamentos. As pessoas acham que o tempo as protege. Não protege. Nos anos sessenta, um turista encontrou um Monet numa casa de fazenda. O dono o havia recebido em troca de meio quilo de manteiga. Histórias como essa são intermináveis, Rachel.

- É isso que você faz? Procura essas oportunidades?

- Junto com outras buscas.

Seguiram, o terreno ficando plano e depois subindo enquanto a estrada atravessava a região central da Alemanha e ia para o norte, pelas montanhas. Depois de uma parada no acostamento, Rachel passou para o banco do carona. Knoll levou o carro de volta à estrada.

- Estas são as montanhas Harz. As que ficam mais ao norte, no centro da Alemanha.

Os picos não eram os precipícios gigantescos dos Alpes. Em vez disso, as encostas subiam em ângulos suaves, redondas no topo, cobertas de pinheiros, faias e nogueiras. Cidades e povoados se aninhavam em vales minúsculos e amplas ravinas. Ao longe, podiam ver a silhueta de picos ainda mais altos.

- Faz-me lembrar dos Apalachianos - disse ela.

- Esta é a terra dos Grimm. O reino da magia. Na Idade das Trevas, era um dos últimos locais do paganismo. Fadas, bruxas e gnomos supostamente percorriam a região. Dizem que o último urso e o último lince da Alemanha foram mortos aqui perto.

- É estupendo.

- Antigamente havia minas de prata, mas a prata acabou no século X. Depois vieram o ouro, o chumbo, o zinco e o oxido de bário. A última mina foi fechada antes da guerra, nos anos trinta. Daí veio a maioria das cavernas e dos túneis. Minas antigas que os nazistas usaram. Esconderijos perfeitos contra os bombardeiros e difíceis de serem alcançados por tropas terrestres.

Ela ficou olhando a estrada sinuosa à frente e pensou na menção de Knoll aos irmãos Grimm. Meio que esperou ver a gansa dos ovos de ouro ou as duas pedras pretas que tinham sido irmãos cruéis, ou o flautista atraindo ratos e crianças com uma canção.

Uma hora depois, entraram em Warthberg. A escura silhueta de uma muralha envolvia o povoado compacto, suavizada apenas por passagens em arco e bastiões com tetos cênicos. A diferença arquitetônica com relação ao sul era óbvia. Os telhados vermelhos e as fortificações gastas de Kehlheim eram substituídas por fachadas de enxaimel e telhados de ardósia opaca. Menos flores adornavam as janelas. Havia um nítido tom medieval, mas aparentemente temperado por um verniz de acanhamento. Não era muito diferente, concluiu ela, do contraste entre a Nova Inglaterra e o sul dos Estados Unidos.

Knoll parou diante de uma hospedaria com o interessante nome de Goldene Krone. "Coroa Dourada", disse ele, antes de desaparecer no seu interior. Ela esperou do lado de fora e examinou a rua movimentada. Um ar de comercialismo brotava das vitrines ao lado da rua calçada de pedras. Knoll retornou alguns minutos depois.

- Consegui dois quartos para a noite. São quase cinco horas, e a luz do dia vai durar mais cinco ou seis horas. Mas vamos subir a montanha de manhã. Não há pressa. A coisa já esperou cinqüenta anos.

- O dia demora tanto assim por aqui?

- Estamos quase no Círculo Ártico, e é quase verão.

Knoll pegou as bolsas dos dois no carro alugado.

- Vou acomodar você, depois há umas coisas que preciso comprar. Em seguida podemos jantar. Notei um lugar interessante enquanto vínhamos.

- Seria ótimo.

 

Knoll deixou Rachel no quarto. Tinha notado a cabine telefônica amarela enquanto dirigia, e rapidamente voltou em direção à muralha. Não gostava de usar telefones de hotéis. Eles mantinham muitos registros. O mesmo era verdade com relação aos celulares. Uma cabine telefônica obscura era sempre melhor para um rápido interurbano. Ligou para o Burg Herz.

- Já era hora. O que está acontecendo? - perguntou Monika ao atender.

- Estou tentando achar a Sala de Âmbar.

- Onde está?

- Não muito longe.

- Não estou no clima, Christian.

- Nas montanhas Harz. Warthberg. - Ele contou sobre Rachel Cutler, Danya Chapaev e a caverna.

- Já ouvimos falar disso antes. Aquelas montanhas são como formigueiros, e ninguém nunca encontrou nada.

- Eu tenho um mapa. Que mal pode fazer?

- Você quer trepar com ela, não é?

- A idéia me passou pela cabeça.

- Ela está sabendo de coisas demais, não acha?

- Nada importante. Não tive escolha além de trazê-la. Presumi que Chapaev ficaria mais à vontade com a filha de Borya do que comigo.

- E?

- Ele foi aberto. Aberto demais, se quer saber.

- Cuidado com essa tal de Cutler.

- Ela acha que estou procurando a Sala de Âmbar. Nada mais. Não há conexão entre mim e o pai dela.

- Parece que você andou desenvolvendo um coração, Christian.

- Nem de longe. - Em seguida, contou sobre Suzanne Danzer e o episódio em Atlanta.

- Loring está preocupado com o que estamos fazendo - disse Monika. - Ele e papai conversaram ontem por longo tempo, ao telefone. Loring estava definitivamente tentando captar alguma informação. O que é meio óbvio da parte dele.

- Bem-vinda ao jogo.

- Não preciso de diversão, Christian. Quero a Sala de Âmbar. E, segundo papai, esta parece ser a melhor pista de todos os tempos.

- Não tenho tanta certeza.

- Sempre tão pessimista! Por que diz isso?

- Algo me incomoda com relação a Chapaev. É difícil dizer. Só alguma coisa.

- Vá à mina, Christian, e olhe. Satisfaça seu desejo. Depois coma sua juíza e prossiga com o trabalho.

 

Rachel pegou o telefone ao lado da cama e deu a uma telefonista internacional da AT&T o número de seu cartão de crédito. Depois de oito toques, a secretária eletrônica atendeu em sua casa e sua própria voz a instruiu a deixar um recado.

- Paul, estou numa cidade chamada Warthberg, na região central da Alemanha. Este é o hotel e o número. - Ela falou sobre o Goldene Krone. - Ligo amanhã. Dê um beijo nas crianças por mim. Tchau.

Olhou o relógio: 17h. Onze da manhã em Atlanta. Talvez ele tivesse levado as crianças ao zoológico ou ao cinema. Sentia-se satisfeita por elas estarem com Paul. Era uma pena não ficarem com ele todo dia. As crianças precisam de um pai, e ele precisava delas. Era a coisa mais difícil com relação ao divórcio: saber que uma família não existia mais. Tinha ocupado a cadeira de juíza durante um ano, divorciando terceiros, antes que seu próprio casamento se desmoronasse. Muitas vezes, enquanto ouvia provas que ela realmente não precisava ouvir, imaginava por que, subitamente, casais que haviam se amado não tinham nada de bom a dizer. Seria o ódio um pré-requisito para o divórcio? Um elemento necessário? Ela e Paul não se odiavam. Tinham se sentado, dividido calmamente as posses e decidido o que era melhor para as crianças. Mas que opção havia restado a Paul? Ela deixara claro que o casamento estava acabado. O assunto não estava aberto para debate. Ele havia tentado convencê-la a não fazer isso, mas ela se mostrou decidida.

Quantas vezes tinha se feito a mesma pergunta? Teria feito a coisa certa? Quantas vezes chegara à mesma conclusão?

Quem sabe?

 

Knoll chegou ao quarto dela e Rachel o acompanhou a uma curiosa construção de pedras que, segundo ele explicou, tinha sido uma estalagem de diligências, agora transformada em restaurante.

- Como sabe disso? - perguntou ela.

- Perguntei antes, quando parei para ver até que horas ficava aberto.

O interior era uma cripta de pedras, gótica com teto em abóbadas, vitrais e luminárias de ferro fundido. Knoll pegou uma das mesas de cavalete na extremidade mais distante. Duas horas tinham se passado desde a chegada a Warthberg. Rachel havia aproveitado o tempo para tomar um banho rápido e trocar de roupa. Seu acompanhante também havia se trocado. Jeans e botas substituídos por calça de lã, um suéter colorido e sapatos de couro marrom.

- O que você fez quando saiu mais cedo? - perguntou ela quando se sentaram.

- Comprei o que vamos precisar amanhã. Lanternas, uma pá, uma torquês, dois casacos. Vai fazer frio dentro da montanha. Notei que você usou um par de botas curtas hoje. Vá com elas amanhã, vai precisar de calçados bons.

- Você parece já ter feito isso antes.

- Várias vezes. Mas é preciso ter cuidado. Ninguém deveria se aventurar nas minas sem permissão oficial. O governo controla o acesso para impedir que as pessoas morram numa explosão.

- Presumo que não estejamos preocupados com permissões, não é?

- Nem de longe. Por isso demorei tanto. Fiz compras em várias lojas. Nunca o bastante para atrair atenção.

Um garçom se aproximou e anotou os pedidos. Knoll pediu uma garrafa de vinho, um tinto vigoroso que o garçom insistiu que era do lugar.

- O que está achando da aventura até agora? - perguntou ele.

- Muito melhor que o tribunal.

Ela olhou o restaurante íntimo, ao redor. Cerca de vinte outras pessoas ocupavam mesas espalhadas. Na maioria em duplas. Numa delas havia quatro ocupantes.

- Acha que vamos encontrar o que estamos procurando?

- Muito bom - disse ele.

Ela ficou perplexa.

- O que quer dizer?

- Não mencionar nosso objetivo.

- Presumi que você não ia querer anunciar nossas intenções.

- Presumiu certo. E eu duvido.

- Ainda não confia no que ouviu hoje cedo?

- Não é que eu não confie. É que já ouvi tudo isso antes.

- Mas não do meu pai.

- Não é seu pai que está nos guiando.

- Ainda acha que Chapaev mentiu?

O garçom trouxe o vinho e a comida. A de Knoll era um pedaço de carne de porco fumegante, a dela frango assado, ambos com batatas e salada. Rachel ficou impressionada com o serviço rápido.

- Que tal eu reservar o Julgamento até de manhã? - disse Knoll. - Dar ao velho o benefício da dúvida, como vocês dizem.

Ela sorriu.

- Acho boa idéia.

Knoll sinalizou o jantar.

- Vamos comer e falar de coisas mais agradáveis?

 

Depois do jantar, Knoll a levou de volta ao Goldene Krone. Eram quase 22h, mas o céu continuava iluminado, o ar da noite parecendo o outono no norte da Geórgia.

- Tenho uma pergunta - disse ela. - Se acharmos a Sala de Âmbar, como vai impedir que o governo russo reivindique os painéis?

- Há rotas legais disponíveis. Os painéis estiveram abandonados por mais de cinqüenta anos. A posse certamente servirá para alguma coisa. Além disso, talvez os russos nem os queiram de volta. Eles recriaram a sala com âmbar novo e nova tecnologia.

- Não sabia disso.

- A sala no palácio de Catarina foi refeita. Demorou mais de duas décadas. A perda dos estados bálticos, quando a União Soviética desmoronou, significou que eles foram obrigados a comprar o âmbar no mercado aberto. Foi caro. Mas benfeitores doaram o dinheiro. Ironicamente, um conglomerado alemão fez a contribuição mais substancial.

- Mais motivo ainda para quererem os painéis de volta. Os originais seriam muito mais preciosos que as cópias.

- Não acho. O âmbar seria de cor e qualidade diferentes. Não daria certo misturar as peças.

- Então os painéis não estariam intactos, caso fossem encontrados?

Ele balançou a cabeça.

- O âmbar era originalmente colado a tábuas de carvalho sólido com uma cola de cera de abelha e seiva de árvore. O palácio de Catarina não tinha controle de temperatura, de modo que, à medida que a madeira se expandiu e se contraiu durante mais de duzentos anos, o âmbar foi caindo progressivamente. Quando os nazistas os roubaram, quase trinta por cento já haviam caído. Estima-se que outros quinze por cento foram perdidos durante o transporte até Königsberg. De modo que agora haveria apenas uma pilha de cacos.

- Então, de que adiantam?

Ele riu.

- Existem fotografias. Se você tiver os pedaços, não seria difícil montar de novo a sala inteira. Minha esperança é que os nazistas tenham embalado direito, já que a pessoa para quem trabalho não está interessada em recriações. O que importa é o original.

- Parece um homem interessante.

Ele sorriu.

- Bela tentativa... de novo. Mas eu nunca disse que é um homem.

Chegaram ao hotel. Knoll parou diante da porta do quarto dela.

- A que horas, amanhã? - perguntou Rachel.

- Vamos sair às sete e meia. O recepcionista disse que o café-da-manhã é servido depois das sete. O lugar que procuramos não fica longe, cerca de dez quilômetros.

- Agradeço por tudo que você fez. Sem mencionar que salvou minha vida.

Knoll levou os dedos à cabeça.

- O prazer foi meu.

Ela sorriu do gesto.

- Você mencionou seu marido, e mais ninguém. Há algum homem em sua vida?

A pergunta veio de repente. Um pouco depressa demais.

- Não. - Ela se arrependeu instantaneamente da honestidade.

- Seu coração ainda deseja seu ex-marido, não é?

Não era da conta daquele sujeito, mas por algum motivo ela quis responder.

- Às vezes.

- Ele sabe?

- Às vezes.

- Há quanto tempo?

- O quê?

- Você não faz amor com um homem?

O olhar dele se demorou mais do que ela esperava. Aquele sujeito era intuitivo, e isso a incomodava.

- Não o suficiente para eu pular na cama com um completo estranho.

Knoll sorriu.

- Talvez esse estranho possa ajudar seu coração a esquecer.

- Não creio que seja disso que eu precise. Mas obrigada pela oferta. - Enfiou a chave e abriu a fechadura, depois olhou para trás. - Acho que é a primeira vez que me fazem uma proposta.

- E certamente não será a última. - Ele inclinou a cabeça e sorriu. - Boa noite, Rachel. - E se afastou em direção à escada e a seu quarto.

Mas algo chamou a atenção dela. Era interessante como as censuras pareciam desafiá-lo.

 

DOMINGO, 18 DE MAIO, 7H30

Knoll saiu do hotel e estudou a manhã. Uma névoa de algodão envolvia o povoado silencioso e o vale ao redor. O céu estava um tanto escuro, com o sol de fim de primavera se esforçando para esquentar o dia. Rachel estava recostada no carro, aparentemente pronta. Ele se aproximou.

- A névoa ajudará a esconder nossa visita. O fato de ser domingo também é bom. A maioria das pessoas está na igreja.

Subiram no carro.

- Achei que você tinha dito que este era um bastião do paganismo.

- Isso é para os livros de turismo e os guias de viagem. Muitos católicos vivem nestas montanhas há séculos. São pessoas religiosas.

O Volvo rosnou ao dar a partida, e Knoll rapidamente dirigiu o carro para fora de Warthberg, com as ruas calçadas de pedras quase desertas e úmidas do orvalho matinal. A estrada que saía da cidade pelo leste subia serpenteando e depois descia num vale envolto em névoa.

- Esta área me lembra ainda mais das Great Smoky Mountains, na Carolina do Norte - disse Rachel. - São enevoadas assim também.

Knoll seguiu o mapa dado por Chapaev e se perguntou se aquela não seria uma busca inútil. Como é que toneladas de âmbar poderiam ficar escondidas por mais de meio século? Muitos haviam procurado. Alguns até morrido. Ele tinha consciência da suposta maldição da Sala de Âmbar. Mas que mal poderia haver em dar uma rápida olhada em mais uma montanha? Pelo menos a viagem seria interessante, graças à Rachel Cutler.

Passando por sobre uma crista na estrada, desceram em outro vale, com densos bosques de faias enevoadas de cada lado. Knoll chegou ao local onde a estrada do mapa de Chapaev terminava e parou em meio às árvores. Falou:

- O resto do caminho é a pé.

Desceram e ele pegou no porta-malas um kit de explorador de cavernas.

- O que há aí? - perguntou Rachel.

- Tudo que vamos precisar. - Ele pôs a mochila nas costas. - Agora somos apenas dois caminhantes dando um passeio.

Entregou um casaco a ela.

- Não perca. Vai precisar dele assim que estivermos no subterrâneo.

Knoll tinha vestido seu casaco no quarto do hotel, com o punhal escondido no braço direito, sob a manga de náilon. Foi na frente, entrando na floresta, e o terreno coberto de capim subia enquanto eles se afastavam da estrada indo em direção ao norte. Seguiam uma trilha nítida que serpenteava na base de uma cordilheira, e caminhos se desviavam subindo as encostas cobertas de árvore em direção aos cumes. Ao longe, era possível ver a entrada escura de três túneis. Um estava fechado com um portão de ferro, com uma placa - GEFAHR-ZUTRITT VERBOTEN-EXPLOSIV - presa ao granito áspero.

- O que diz? - perguntou Rachel.

- Perigo. Proibido entrar. Explosivos.

- Você não estava brincando sobre isso.

- Essas montanhas eram como cofres de banco. Os Aliados encontraram o tesouro nacional da Alemanha numa delas. Quatrocentas toneladas de obras de arte do museu Kaiser Friedrich, de Berlim, também estavam guardadas aqui. Os explosivos eram melhores que soldados e cães de guarda.

- É atrás dessa arte que Wayland McKoy está?

- Pelo que você disse, é.

- Acha que ele terá alguma sorte?

- Difícil dizer. Mas duvido seriamente que milhões de dólares em telas antigas ainda estejam esperando aqui para serem encontrados.

O cheiro de folhas úmidas era denso no ar pesado.

- Qual era o sentido? - perguntou Rachel enquanto andavam. - A guerra estava perdida. Por que esconder tudo isso?

- Você precisa pensar como um alemão em 1945. Hitler ordenou que o exército lutasse até o último homem ou seriam executados. Acreditava que, se a Alemanha se sustentasse por tempo suficiente, os Aliados acabariam se juntando a ele contra os bolcheviques. Hitler sabia o quanto Churchill odiava Stalin. Também decifrou Stalin corretamente e previu, de modo correto, o que os soviéticos tinham em mente para a Europa. Hitler achava que a Alemanha poderia permanecer intacta se suplantasse os soviéticos. Raciocinava que os alemães e os ingleses acabariam se juntando a ele contra os comunistas. Então todos esses tesouros poderiam ser salvos.

- Tolice.

- Loucura é uma descrição melhor.

O suor formava gotas na testa dele. As botas de couro estavam manchadas do orvalho. Knoll parou e examinou as várias entradas de túneis a distância, junto com o céu.

- Nenhuma aponta para o leste. Chapaev disse que a abertura era virada para o leste. E, segundo ele, deveria estar marcada com BCR-65.

Aprofundou-se mais entre as árvores. Dez minutos depois, Rachel apontou e gritou:

- Ali.

Knoll olhou adiante. Através das árvores havia outra entrada visível, a abertura fechada com ferro. Numa placa enferrujada afixada às barras estava escrito BCR-65. Ele verificou o sol. Leste.

Filho-da-puta.

Aproximaram-se e ele tirou a mochila das costas. Olhou ao redor. Não havia ninguém à vista, e nenhum som perturbava o silêncio, além dos pássaros e do farfalhar ocasional dos esquilos. Examinou as barras e o portão. Todo o ferro estava arroxeado, devido à forte oxidação. A corrente de aço e um cadeado eram definitivamente novos. Mas nada incomum. Os inspetores federais da Alemanha verificavam rotineiramente a entrada dos túneis. Knoll pegou a torquês na mochila.

- É bom ver que você está preparado - disse Rachel.

Ele cortou a corrente, que caiu tilintando. Guardou a torquês de novo na mochila e começou a abrir o portão.

As dobradiças gritaram.

Knoll parou. Não havia sentido em atrair atenção desnecessária.

Abriu o portão devagar, e o ruído de metal contra metal soou mais baixo. Adiante havia uma abertura em arco, com cerca de cinco metros de altura e quatro de largura. Liquens se grudavam à pedra enegrecida, mais além da entrada, e o ar rançoso fedia a mofo. Como uma sepultura, pensou ele.

- A abertura tem tamanho suficiente para receber um caminhão.

- Caminhão?

- Se a Sala de Âmbar está aí dentro, os caminhões também estão. Os caixotes não poderiam ter sido transportados de outro modo. Vinte toneladas de âmbar pesam. Os alemães devem ter entrado na caverna com os caminhões.

- Eles não tinham empilhadeiras?

- Dificilmente. Estamos falando do fim da guerra. Os nazistas estavam desesperados para esconder seus tesouros. Não havia tempo para delicadezas.

- Como os caminhões chegaram aqui em cima?

- Cinqüenta anos se passaram. Havia muitas estradas e menos árvores. Toda esta área era um local vital para as indústrias.

Ele pegou na mochila duas lanternas e um rolo grosso de barbante, e recolocou-a nos ombros. Fechou o portão depois de passarem e pendurou a corrente e o cadeado de novo nas barras, dando a aparência de que a abertura ainda estava trancada.

- Podemos ter companhia - disse ele. - Isso deve fazer com que as pessoas sigam até outra caverna. Muitas não estão obstruídas, são bem mais fáceis de entrar.

Entregou uma lanterna a ela. Os dois fachos estreitos rompiam apenas alguns metros adiante, na escuridão ameaçadora. Um pedaço de ferro enferrujado se projetava da pedra. Knoll amarrou a ponta do barbante e entregou o rolo a Rachel.

- Vá desenrolando enquanto entramos. Assim poderemos achar a saída se ficarmos desorientados.

Ele foi na frente, com cautela, e as lanternas revelaram uma passagem áspera que penetrava nas entranhas da montanha. Rachel o acompanhou depois de vestir o casaco.

- Tenha cuidado - disse ele. - Este túnel pode estar minado. Isso explicaria a corrente.

- E reconfortante saber.

- Nada que valha a pena possuir é fácil de alcançar.

Knoll parou e olhou de volta para a entrada, quarenta metros atrás. O ar havia se tornado fétido e frio. Pegou o desenho de Chapaev no bolso e examinou o caminho com a lanterna.

- Deveria haver uma bifurcação adiante. Vejamos se Chapaev está certo.

Um fedor sufocante permeava o ar. Podre. Nauseabundo.

- Guano de morcego - disse ele.

- Acho que vou vomitar.

- Não respire fundo. E tente ignorá-lo.

- É como tentar ignorar estéreo de vaca embaixo do seu nariz.

- Esses túneis são cheios de morcegos.

- Que maravilha!

Ele riu.

- Na China, os morcegos são reverenciados como símbolos da felicidade e da vida longa.

- A felicidade fede.

Surgiu uma bifurcação no túnel. Ele parou.

- O mapa manda ir para a direita - disse ele. Rachel foi atrás, desenrolando o barbante. - Avise se chegar ao fim do rolo. Eu tenho mais.

O odor ficou mais fraco. O novo túnel era mais apertado que o principal, mas ainda tinha largura suficiente para um caminhão, com ramificações escuras que surgiam periodicamente. O eco de morcegos piando, à espera da noite, era claro.

A montanha era certamente um labirinto. Todas eram. Trabalhadores procurando minério e sal haviam escavado durante séculos. Que maravilhoso se esse túnel fosse o que levava à Sala de Âmbar! Dez milhões de euros. Tudo dele. Para não mencionar a gratidão de Monika. Talvez então Rachel Cutler ficasse suficientemente excitada para abrir as pernas. Knoll não ficaria surpreso se o ex-marido fosse o único homem com quem ela já estivera. E esse pensamento era inebriante. Quase uma virgem. Certamente era, desde o divórcio. Que prazer seria tê-la!

O túnel começou a se estreitar e a subir.

A mente dele retornou ao momento.

Tinham entrado pelo menos cem metros no granito e no calcário. O diagrama de Chapaev mostrava outra bifurcação à frente.

- O barbante acabou - disse Rachel.

Knoll parou e lhe deu um rolo novo.

- Amarre bem as pontas:

Ele examinou o diagrama. Supostamente, o destino ficava logo à frente. Mas algo não estava certo. Agora o túnel não tinha largura suficiente para um veículo. Se a Sala de Âmbar fora escondida ali, teria sido necessário carregar os caixotes. Dezoito, se ele recordava corretamente. Tudo catalogado e indexado, os painéis envolvidos em papel de enrolar cigarro. Haveria outra câmara adiante? Não era incomum que salões fossem escavados na rocha. A natureza fazia alguns. Outros eram feitos pelo homem. Segundo Chapaev, pedaços de pedra e sedimentos bloqueavam a porta para uma câmara assim, vinte metros adiante.

Continuou andando, tendo cuidado a cada passo. Quanto mais penetravam na caverna, maior o risco de explosivos. Sua lanterna rompia a escuridão adiante e os olhos focalizaram alguma coisa.

Olhou com atenção.

Que diabo...?

 

Suzanne ergueu o binóculo e examinou a entrada da mina. A placa que havia prendido ao portão de ferro há três anos, BCR-65, continuava lá. O ardil parecia ter dado certo. Knoll estava ficando descuidado. Tinha corrido direto para a mina, rebocando Rachel Cutler. Era uma pena que as coisas tivessem chegado a esse ponto, mas restava pouca escolha. Knoll sem dúvida era interessante. Até mesmo excitante. Mas significava problema. Um grande problema. A lealdade dela a Ernst Loring era absoluta. Além de qualquer censura. Devia tudo a Loring. Ele era a família que ela jamais possuíra. Durante toda a vida o velho a tratara como filha, e o relacionamento dos dois talvez fosse mais íntimo do que o que ele possuía com os dois filhos naturais, já que o amor pela arte preciosa era a cola que os unia. Loring ficara tão empolgado ao receber a caixa de rapé e o livro! Agradá-lo dava a ela um sentimento de satisfação. Por isso uma escolha entre Christian Knoll e seu benfeitor simplesmente não era escolha.

Mesmo assim era uma pena. Knoll tinha seus pontos positivos.

Estava parada sem disfarces na encosta coberta de árvores, o cabelo louro caindo até os ombros, um suéter de gola rolê envolvendo o peito. Baixou o binóculo e pegou o detonador acionado por rádio, estendendo a antena retrátil.

Knoll obviamente não sentira sua presença, pensando ter se livrado dela no aeroporto de Atlanta.

Nem de longe, Christian.

Apertou um interruptor e o detonador foi ativado.

Olhou o relógio.

Knoll e a mocinha deviam estar bem dentro da caverna. Distância mais do que suficiente para jamais saírem. As autoridades alertavam repetidamente ao público para não explorar as cavernas. Explosivos eram comuns. Muitos haviam morrido ao longo dos anos, motivo pelo qual o governo começou a exigir licença para a exploração. Há três anos, houvera uma explosão nesse mesmo túnel, arranjado por ela quando um repórter polonês chegou perto demais. Ela o havia atraído com visões da Sala de Âmbar, e o acidente acabou sendo atribuído a outra exploração, não autorizada. O corpo jamais fora encontrado, enterrado sob o entulho que Christian Knoll devia estar examinando agora mesmo.

 

Knoll examinou a parede de rocha e areia. Tinha visto um fim de túnel antes. Esta não era uma interrupção natural. Uma explosão causara o que estava à sua frente, e não haveria como abrir caminho com a pá através do entulho que ia do teto ao chão.

E não havia porta de ferro do outro lado.

Isso ele sabia.

- O que é? - perguntou Rachel.

- Houve uma explosão aqui.

- Será que fizemos alguma volta errada?

- Impossível. Segui exatamente as instruções de Chapaev.

Algo estava definitivamente errado. A mente dele desenrolou os fatos. A informação dada por Chapaev sem qualquer resistência. A corrente e o cadeado novos no portão. As dobradiças de ferro ainda funcionando. A trilha fácil de seguir. Fácil demais.

E Suzanne Danzer? Em Atlanta? Talvez não.

O melhor a fazer era voltar à entrada, desfrutar Rachel Cutler e sair de Warthberg. Tinha planejado matá-la o tempo todo. Não precisava deixar uma fonte de informações viva, disponível para outro adquirente. Danzer já estava na trilha. Portanto, era apenas questão de tempo até rastrear Rachel e falar com ela, talvez ficar sabendo sobre Chapaev. Monika não gostaria disso. Talvez Chapaev realmente soubesse onde estava a Sala de Âmbar, mas intencionalmente os tivesse levado nesta busca errada. Por isso decidiu se livrar de Rachel Cutler aqui e agora e em seguida voltar a Kehlheim e arrancar a informação de Chapaev, de qualquer maneira.

- Vamos - falou. - Enrole o barbante de volta até a entrada. Eu vou atrás.

Começaram a voltar pelo labirinto, com Rachel na frente. A luz de Knoll revelava o traseiro firme e as coxas bem torneadas dela através dos jeans marrons. Examinou as pernas esguias e os ombros estreitos. Seu sexo começou a reagir.

A primeira bifurcação apareceu, depois a segunda.

- Espere - disse ele. - Quero ver o que há aqui.

- A saída é por aqui - disse ela, apontando na direção do barbante.

- Sei disso. Mas já que viemos, vamos dar uma olhada. Deixe o barbante. Sabemos o caminho a partir daqui.

Ela jogou no chão a bola de barbante e virou à direita, continuando à frente dele.

Knoll sacudiu o braço direito. O punhal se soltou e deslizou para baixo. Ele segurou o cabo.

Rachel parou e se virou, a lanterna momentaneamente apontada para ele.

A luz de Knoll captou o rosto chocado dela ao ver a lâmina brilhando.

 

Suzanne apontou o controlador por rádio e apertou o botão. O sinal disparou através do ar matutino até as cargas explosivas que tinha posto na pedra na noite anterior. Não era uma explosão suficiente para atrair a atenção de alguém em Warthberg, a seis quilômetros de distância, porém mais do que suficiente para desmoronar o interior da montanha. Acabando com outro problema.

 

O chão tremeu. O teto desmoronou. Knoll tentou se firmar.

Agora ele sabia. Era uma armadilha.

Virou-se e correu para a entrada. A rocha cascateava numa chuva de pedras e poeira cegante. O ar fedia. Ele segurou a lanterna numa das mãos, o punhal na outra. Rapidamente enfiou a faca no bolso e puxou a camisa, usando a parte limpa para proteger o nariz e a boca.

Mais pedras choveram.

A luz na direção da entrada ficou cheia de poeira e densa, depois se obliterou atrás de pedregulhos. Agora era impossível ir naquela direção.

Virou-se de novo e correu na direção oposta, esperando que houvesse outra saída do labirinto. Felizmente sua lanterna ainda funcionava. Rachel Cutler não estava à vista. Mas não importava. As pedras tinham poupado o trabalho.

Correu mais para dentro da montanha, seguindo pelo túnel principal, passando pelo ponto onde a vira parada pela última vez. As explosões pareciam ter ocorrido atrás dele, e as paredes e o teto adiante eram estáveis, mas agora toda a montanha vibrava.

Mais pedras despencaram atrás dele. Definitivamente havia apenas um caminho. Uma bifurcação apareceu no túnel. Ele parou e se orientou. A entrada original, atrás, era virada para o leste. De modo que o oeste ficava à frente. O ramo à esquerda parecia ir para o sul, o da direita para o norte. Mas quem sabia? Precisava ter cuidado. Não dar muitas voltas. Seria fácil se perder, e ele não queria morrer andando no subterrâneo até se acabar de fome ou desidratado.

Baixou a bainha da camisa e encheu o pulmão de ar. Tentou se lembrar do que sabia sobre as minas. Jamais havia apenas uma entrada ou saída. A simples profundidade e extensão dos túneis exigia múltiplas entradas. Mas, durante a guerra, os nazistas lacraram a maioria dos portais, tentando garantir seus esconderijos. Agora esperava que esta mina não fosse assim. O que o encorajava era o ar. Não tão rançoso como quando estavam mais lá dentro.

Levantou a mão. Uma brisa leve chegava do túnel à esquerda. Será que deveria se arriscar? Se houvesse muitas outras viradas, ele jamais encontraria o caminho de volta. A escuridão total não possuía pontos de referência, e sua posição atual só era conhecida por causa da orientação do túnel principal. Mas poderia facilmente perder essa referência com alguns poucos movimentos descuidados.

O que deveria fazer?

Foi para a esquerda.

Trinta metros adiante, o túnel se bifurcava de novo. Levantou a mão. Não havia brisa. Lembrou-se de ter lido uma vez que os mineiros projetavam todas as suas rotas de segurança na mesma direção. Uma virada à esquerda significava que todas as viradas deveriam ser à esquerda, até sair. Que escolha ele possuía? Ir para a esquerda.

Mais duas bifurcações. Mais duas à esquerda.

Um facho de luz apareceu adiante. Fraco. Mas estava lá. Seguiu rapidamente e virou a esquina.

A luz do dia surgiu a cem metros de distância.

 

KEHLHEIM, ALEMANHA

11H30

Paul olhou pelo retrovisor. Um carro se aproximava rapidamente, com as luzes piscando e a sirene uivando. O compacto verde e branco, com POLIZEI escrito nas portas em letras azuis, passou a toda no outro sentido e desapareceu numa curva.

Paul seguiu em frente, entrando em Kehlheim dez quilômetros depois.

O povoado calmo era cheio de construções coloridas que cercavam uma praça calçada de pedras. Ele não era um grande viajante. Fora uma vez a Paris há dois anos, a serviço do museu - a chance de percorrer o Louvre fora atraente demais para deixar passar. Tinha convidado Rachel para ir junto. Ela recusou. Não é uma boa idéia para uma ex-esposa, lembrou-se de ouvi-la dizendo. Paul nunca teve certeza do que isso significava, mas pensava sinceramente que ela gostaria de ter ido.

Só conseguira um vôo saindo de Atlanta na tarde do dia anterior, e de manhã tinha levado as crianças à casa do irmão. A falta de um telefonema de Rachel o preocupava. Mas não tinha verificado a secretária eletrônica desde as nove da manhã da véspera. O vôo foi atrasado por escalas em Amsterdã e em Frankfurt, o que só o deixara em Munique há duas horas. Tinha se limpado do melhor modo possível num banheiro do aeroporto, mas adoraria tomar um banho, fazer a barba e trocar de roupa.

Entrou na praça da cidade e parou diante do que parecia uma mercearia. Obviamente, a Baviera não era um lugar domingueiro. Todas as construções estavam fechadas. A única atividade acontecia ao redor da igreja, cujo pináculo era o ponto mais alto do povoado. Havia carros estacionados em fileiras sobre as pedras irregulares. Um grupo de homens mais velhos estava parado nos degraus da igreja conversando. Barbas, casacos escuros e chapéus predominavam. Ele deveria ter trazido um casaco, também, mas tinha arrumado a bagagem depressa, trazendo apenas o essencial.

Foi até lá.

- Com licença. Algum de vocês fala inglês?

Um velho, aparentemente o mais velho dos quatro, respondeu:

- Ja. Um pouco.

- Estou procurando um homem chamado Danya Chapaev. Pelo que sei, ele mora aqui.

- Não mais. Agora morto.

Paul temia isso. Chapaev devia ser velho.

- Quando ele morreu?

- Ontem à noite. Assassinado.

Será que tinha ouvido direito? Assassinado? Ontem à noite? Seu maior medo cresceu por dentro. A pergunta se formou imediatamente no pensamento.

- Mais alguém sofreu alguma coisa?

- Nein. Só Danya.

Ele se lembrou do carro da polícia.

- Onde isso aconteceu?

Saiu de Kehlheim e seguiu as orientações. A casa apareceu dez minutos depois, fácil de identificar, com quatro carros da polícia parados em diagonal na frente. Um homem uniformizado, com rosto pétreo, montava guarda diante da porta aberta. Paul se aproximou, mas foi imediatamente parado.

- Nicht eintreten. Kriminelle szene - disse o policial.

- Inglês, por favor.

- Não pode entrar. Local de crime.

- Então preciso falar com a pessoa encarregada.

- Eu sou o encarregado - disse uma voz vinda de dentro, com o inglês temperado por um gutural sotaque alemão.

O homem que se aproximou da porta da frente era de meia-idade. Tufos de cabelos pretos desgrenhados coroavam o rosto de traços rudes. Um sobretudo azul-escuro cobria o corpo magro até os joelhos, com um terno verde-oliva e gravata de tricô aparecendo por baixo.

- Sou Fritz Pannik. Inspetor da polícia federal. E o senhor?

- Paul Cutler. Advogado dos Estados Unidos.

Pannik passou pelo guarda à porta.

- O que um advogado da América está fazendo aqui numa manhã de domingo?

- Procurando minha ex-mulher. Ela veio atrás de Danya Chapaev.

Pannik olhou para o policial.

Paul notou a expressão curiosa.

- O que é?

- Uma mulher pediu informações ontem em Kehlheim sobre como chegar a esta casa. Ela é suspeita desse assassinato.

- O senhor tem a descrição?

Pannik enfiou a mão no bolso do paletó e pegou um caderninho. Abriu a capa de couro.

- Altura mediana. Cabelo louro-avermelhado. Seios grandes. Jeans. Camisa de flanela. Botas. Óculos escuros. Gorducha.

- Não é Rachel. Mas poderia ser outra pessoa.

Ele contou rapidamente a Pannik sobre Jo Myers, Karol Borya e a Sala de Âmbar, descrevendo a aparência da mulher que o visitara. Magra, seios moderados, cabelo castanho, olhos azuis, óculos octogonais com armação de ouro.

- Tive a impressão de que o cabelo não era dela. Pode chamar de intuição de advogado.

- Mas ela leu as cartas que Chapaev e esse tal de Karol Borya trocaram?

- Todas.

- O envelope tinha este local no endereço do remetente?

- Só o nome da cidade.

- Há mais alguma coisa nesta história?

Paul contou ao inspetor sobre Christian Knoll, as preocupações de Jo Myers e as dele próprio.

- E o senhor veio alertar sua ex-esposa? - perguntou Pannik.

- Principalmente ver se ela estava bem. Eu deveria ter vindo com ela.

- Mas o senhor considerava a viagem dela uma perda de tempo?

- Totalmente. O pai tinha pedido expressamente para ela não se envolver. - Atrás dos ombros de Pannik, dois policiais se moviam dentro da casa. - O que aconteceu aí?

- Se o senhor tiver estômago, eu mostro.

- Sou advogado - disse Paul, como se isso significasse alguma coisa. Não mencionou que jamais havia cuidado de um caso criminal em toda a vida e que jamais estivera numa cena de crime. Mas a curiosidade o impulsionou. Primeiro Borya morrera, agora Chapaev fora assassinado. Mas Karol tinha caído da escada.

Tinha mesmo?

Seguiu Pannik para dentro. A sala quente abrigava um odor peculiar, enjoativamente doce. Os romances policiais sempre falavam do cheiro da morte. Seria isso?

A casa era pequena. Quatro cômodos Uma sala, cozinha, quarto e banheiro. Pelo que podia ver, a mobília era velha e gasta, mas o lugar era limpo e aconchegante, a tranqüilidade despedaçada pela visão de um velho esparramado num tapete puído, com uma enorme mancha vermelha saindo de dois buracos no crânio.

- Tiros à queima-roupa - disse Pannik.

O olhar de Paul estava cravado no cadáver. A bile começou a subir pela garganta. Ele lutou contra a ânsia, mas não conseguiu. Saiu correndo da sala.

 

Estava curvado, vomitando. O pouco que havia comido no avião se empoçou na grama úmida. Respirou fundo algumas vezes e recuperou o controle.

- Terminou? - perguntou Pannik.

Paul assentiu.

- Acha que a mulher fez isso?

- Não sei. Só sei que uma mulher perguntou onde Chapaev morava, e o neto se ofereceu para mostrar o caminho. Os dois saíram da feira ontem de manhã. A filha do velho ficou preocupada ontem à noite, quando o menino não voltou para casa. Veio até aqui e encontrou o garoto amarrado no quarto. Aparentemente, a mulher tinha problema em matar crianças, mas não se importou em atirar num velho.

- O menino está bem?

- Abalado, mas bem. Ele confirmou a descrição, mas não pôde dizer muito mais. Estava no quarto. Lembra-se de ter escutado vozes. Mas não pôde entender a conversa. Então seu avô e a mulher entraram no quarto por um momento. Falaram em outra língua. Experimentei algumas palavras, e parece que estavam falando em russo. Então o velho e a mulher saíram do quarto. Ele ouviu um tiro. Depois disso, houve silêncio até que sua mãe chegou, algumas horas depois.

- Ela atirou na cabeça dele?

- E de perto. A aposta devia ser alta.

Um policial entrou.

- Nichts im haus hinsichtlich des Bernstein-zimmer.

Pannik olhou para ele.

- Mandei que eles revistassem a casa em busca de qualquer coisa sobre a Sala de Âmbar. Não há nada aí.

Um rádio estalou no quadril do alemão que montava guarda junto à porta. O sujeito tirou o transmissor da cintura e se aproximou de Pannik. Em inglês, o policial disse:

- Preciso ir. Recebemos um chamado para busca e resgate. Estou de serviço neste fim de semana.

- O que aconteceu? - perguntou Pannik.

- Explosão numa das minas perto de Warthberg. Uma americana foi retirada, mas ainda estão procurando um homem. As autoridades locais requisitaram nossa ajuda.

Pannik balançou a cabeça.

- Domingo movimentado.

- Onde fica Warthberg? - perguntou Paul imediatamente.

- Nas montanhas Harz. Quatrocentos quilômetros ao norte. Algumas vezes eles usam equipes de resgate alpinas quando há acidentes.

Wayland McKoy e o interesse de Karol pelas montanhas Harz relampejaram na mente de Paul.

- Uma mulher americana foi encontrada? Qual é o nome dela? Pannik pareceu perceber o sentido da pergunta e se virou para o policial. Trocaram algumas palavras, e o policial falou de novo ao rádio.

Dois minutos depois, as palavras chegaram pelo aparelho:

- Diefrau ist Rachel Cutler. Amerikanerin.

 

15H30

O helicóptero da polícia cortava o ar em direção ao norte na tarde de maio. Depois de passarem por Würzburg, começou a chover. Paul estava sentado ao lado de Pannik, com uma equipe de busca e resgate atrás.

- Um grupo de caminhantes ouviu as explosões e alertou as autoridades - disse Pannik acima do rugido da turbina. - Sua ex-mulher foi retirada perto da entrada de um dos túneis. Foi levada ao hospital local, mas conseguiu falar sobre um homem. O nome dele é Christian Knoll, Herr Cutler.

Paul ouvia com preocupação crescente. Mas só podia ver Rachel deitada num hospital, sangrando. O que estava acontecendo? Em quê Rachel havia se metido? Como Knoll a havia encontrado? O que aconteceu nesse meio-tempo? Será que Marla e Brent corriam algum perigo? Precisava ligar para o irmão e alertá-lo.

- Parece que Jo Myers estava certa - disse Pannik.

- Os informes falam do estado de Rachel?

Pannik balançou a cabeça.

O helicóptero foi primeiro até o local da explosão - a entrada da mina ficava dentro da floresta, na base de uma das montanhas mais altas. A clareira mais próxima se abria meio quilômetro a oeste, e o pessoal de resgate foi deixado lá, para seguir a pé. Paul e Pannik permaneceram no helicóptero e voaram para leste de Warthberg, até um hospital regional, para onde Rachel fora levada.

Chegando lá, ele foi direto para o quarto andar, onde Rachel estava. Vestia uma camisola azul. Havia um grande curativo no couro cabeludo. Ela sorriu da cama quando o viu.

- Por que será que eu sabia que você estaria aqui?

Ele se aproximou. As bochechas, o nariz e os braços dela estavam arranhados e com hematomas.

- Não tinha muita coisa para fazer neste fim de semana. Por que não uma viagem à Alemanha?

- As crianças estão bem?

- Ótimas.

- Como chegou aqui tão depressa?

- Saí de lá ontem.

- Ontem?

Antes que ele pudesse explicar, Pannik, parado em silêncio junto à porta, se aproximou.

- Frau Cutler, sou o inspetor Fritz Pannik, da polícia federal.

Paul contou a Rachel sobre Jo Myers, Christian Knoll e o que tinha acontecido a Danya Chapaev.

O choque invadiu o rosto de Rachel.

- Chapaev está morto?

- Preciso ligar para o meu irmão - disse Paul a Pannik - e mandar que ele vigie bem as crianças. Talvez até alertar a polícia de Atlanta.

- Acha que eles correm perigo? - perguntou ela.

- Não sei o que pensar, Rachel. Você se meteu numa coisa realmente ruim. Seu pai alertou para ficar de fora.

- O que quer dizer?

- Não se faça de boba. Eu consigo ler Ovídio. Seu pai queria que você ficasse fora disso. Agora Chapaev está morto.

O rosto dela enrijeceu.

- Não é justo, Paul. Eu não fiz isso. Não sabia.

- Mas talvez tenha apontado o caminho - deixou claro Pannik.

Rachel olhou o inspetor, e a percepção ficou clara em seu rosto. De repente, Paul se arrependeu de tê-la censurado. Queria ajudá-la a carregar a culpa, como sempre.

- Isso não é totalmente verdadeiro - disse ele. - Eu mostrei as cartas à mulher. Ela ficou sabendo sobre Kehlheim através de mim.

- E o senhor teria feito isso se não achasse que Frau Cutler corria perigo?

Não, não teria. Paul olhou para Rachel. Lágrimas surgiram nos olhos dela.

- Paul está certo, inspetor. A culpa é minha. Não quis deixar isso como estava. Ele e meu pai me alertaram.

- E esse tal de Christian Knoll? - perguntou Pannik. - Fale sobre ele.

Rachel informou o que sabia, o que não era muito. Depois disse:

- Ele me salvou de ser atropelada por um carro. Era charmoso e cortês. Sinceramente, achei que ele queria ajudar.

- O que aconteceu na mina? - perguntou Pannik.

- Estávamos seguindo o mapa de Chapaev. O túnel era bem amplo e, de repente, caiu como se houvesse um terremoto, e uma avalanche dividiu o caminho. Eu voltei para a entrada e comecei a correr. Só consegui chegar à metade, quando as rochas me derrubaram. Por sorte não fui soterrada. Fiquei ali até que uns caminhantes vieram e me resgataram.

- E Knoll? - perguntou Pannik.

Ela balançou a cabeça.

- Gritei por ele, depois que o desmoronamento acabou, mas não tive resposta.

- Ele provavelmente continua lá - disse Pannik.

- Foi um terremoto? - perguntou Paul.

- Não temos terremotos aqui. Provavelmente eram explosivos da época da guerra. Os túneis estão cheios deles.

- Knoll falou a mesma coisa - disse Rachel.

A porta do hospital se abriu e um policial atarracado sinalizou para Pannik. O inspetor pediu licença e saiu.

- Você está certo - disse Rachel. - Eu deveria ter ouvido.

Paul não estava interessado nas concessões dela.

- Temos de sair daqui e voltar para casa.

Rachel ficou quieta, e ele ia enfatizar o argumento quando Pannik voltou.

- O túnel foi liberado. Ninguém mais foi encontrado dentro. Havia outra entrada, sem bloqueios, num túnel distante. Como a senhora e Herr Knoll chegaram à mina?

- Fomos num carro alugado, depois caminhamos.

- Que tipo de carro?

- Um Volvo marrom.

- Nenhum carro foi encontrado na estrada - disse Pannik. - O tal Knoll fugiu.

O inspetor parecia saber mais alguma coisa. Paul perguntou:

- O que mais o policial disse?

- Aquele túnel nunca foi usado pelos nazistas. Não havia explosivos dentro. No entanto, é a segunda explosão lá em três anos.

- O que significa...

- O que significa que alguma coisa muito estranha está acontecendo.

 

Paul saiu do hospital e pegou carona num carro da polícia até Warthberg. Pannik o acompanhou. Ser inspetor federal lhe garantia certos privilégios.

- É semelhante ao seu FBI - disse Pannik. - Eu trabalho para a polícia nacional. Os agentes locais cooperam conosco o tempo todo.

Rachel disse-lhes que Knoll tinha alugado dois quartos no Goldene Krone. O distintivo de Knoll lhes garantiu acesso imediato ao quarto de Rachel, que estava arrumado, a cama feita, a mala desaparecida. O quarto de Knoll também estava vazio. Não havia nenhum Volvo marrom à vista.

- Herr Knoll saiu hoje cedo - disse o proprietário do hotel.

- A que horas?

- Por volta das dez e meia.

- O senhor não ouviu falar na explosão?

- Há muitas explosões nas minas, inspetor. Não presto muita atenção para saber quem está envolvido.

- O senhor viu Knoll retornar hoje cedo?

O sujeito negou balançando a cabeça careca. Os dois agradeceram ao proprietário e saíram.

Paul disse a Pannik:

- Knoll tem uma vantagem de cinco horas, mas talvez o carro possa ser identificado através de um boletim.

- Herr Knoll não me interessa. O máximo que ele fez até agora foi invadir a mina.

- Ele deixou Rachel lá para morrer.

- Isso também não é crime. O que procuro é a mulher. Uma assassina.

Pannik estava certo. Mas Paul percebia a dificuldade do inspetor. Não havia descrição precisa. Nem nome verdadeiro. Nem provas físicas. Nem informações sobre o passado. Nem nada.

- Alguma idéia de onde procurar? - perguntou ele.

Pannik olhou para a calma praça do povoado.

- Nein, Herr Cutler. Nenhuma.

 

CASTELO LOUKOV, REPÚBLICA TCHECA

17H10

Suzanne aceitou a taça de estanho oferecida por Ernst Loring e se acomodou confortavelmente numa poltrona Império. O patrão pareceu satisfeito com o relatório.

- Esperei meia hora no local e fui embora quando as autoridades começaram a chegar - disse ela. - Ninguém saiu do túnel da mina.

- Vou verificar com Fellner amanhã, com alguma desculpa. Talvez ele diga se algo aconteceu a Christian.

Ela tomou um gole de vinho, satisfeita com as atividades do dia. Tinha vindo de carro direto da região central da Alemanha até a República Tcheca, atravessando a fronteira e acelerando para o sul até o castelo de Loring. Os trezentos quilômetros foram uma viagem fácil, de duas horas e meia, no Porsche.

- Muito inteligente, manobrar o Christian assim - disse Loring. - Ele é um sujeito difícil de enganar.

- Estava ansioso demais. Mas devo dizer que Chapaev foi bem convincente. - Ela tomou mais vinho. A bebida antiga, frutada, era do próprio Loring. - Uma pena. O velho era dedicado. Tinha ficado quieto por muito tempo. Infelizmente não tive opção além de silenciá-lo.

- Foi bom deixar o menino incólume.

- Não mato crianças. Ele não sabia nada além do que as outras testemunhas do mercado informariam. Foi meu instrumento para que o velho fizesse o que eu queria.

O rosto de Loring tinha uma expressão pesada, cansada.

- Fico me perguntando quando isso vai terminar. A cada intervalo de alguns anos somos obrigados a cuidar desse assunto.

- Eu li as cartas. Deixar Chapaev vivo seria um risco desnecessário. Mais pontas soltas que acabariam levando a problemas.

- Lamentavelmente, drahá, você está certa.

- Conseguiu descobrir mais alguma coisa de São Petersburgo?

- Só que Christian esteve definitivamente no arquivo da comissão. Nosso homem notou o nome de papai num documento que Knoll estava lendo, mas o papel sumiu quando Knoll foi embora.

- É uma coisa boa Knoll não representar mais problema. Com Borya e Chapaev fora do caminho, as coisas devem ficar em segurança.

- Temo que não - disse Loring. - Há outro problema.

Ela pôs o vinho de lado.

- O quê?

- Uma escavação começou a ser feita perto de Stod. Um empreendedor americano procurando tesouros.

- As pessoas não desistem, não é?

- A atração é inebriante demais. É difícil dizer com certeza se esse último empreendimento é na caverna certa. Infelizmente não há como saber até que a caverna seja explorada. Só sei que ele está na área correta, em termos gerais.

- Temos uma fonte?

- Diretamente lá dentro. O sujeito me manteve informado, mas nem mesmo ele sabe com certeza. Infelizmente, papai guardou muito bem a informação exata... não confiou nem mesmo no filho.

- Quer que eu viaje até lá?

- Por favor. Fique de olho. Minha fonte é confiável, mas gananciosa. Exige demais e, como você sabe, a ganância é algo que não posso tolerar. Ele está esperando ser contatado por uma mulher. Minha secretária pessoal foi a única pessoa a falar com ele até agora, e só por telefone. A fonte não sabe nada sobre mim. Conhecerá você pelo nome de Margarethe. Se algo for descoberto, certifique-se de que a situação permaneça restrita. Sem deixar qualquer pista. Se o local não tiver relação, esqueça e, se necessário, elimine a fonte. Mas, por favor, tentemos minimizar as mortes.

Ela sabia o que ele queria dizer.

- Não tive outra opção com o Chapaev.

- Entendo, drahá, e agradeço o empenho. Esperemos que essa morte seja o fim da suposta maldição da Sala de Âmbar.

- Junto com mais duas.

O velho riu.

- Christian e Rachel Cutler?

Ela confirmou com a cabeça.

- Acredito que você esteja satisfeita com seu trabalho. Estranho, pensei ter sentido hesitação no outro dia, com relação a Christian. Talvez uma atraçãozinha?

Ela ergueu a taça num brinde ao patrão.

- Nada que me impeça de viver.

 

Knoll ia a toda a velocidade para o sul, em direção a Füssen. Havia muitos policiais em Kehlheim e ao redor do povoado para que ele passasse a noite lá. Tinha fugido de Warthberg e retornado aos Alpes, no sul, para falar com Danya Chapaev, mas ficou sabendo que o velho fora assassinado durante a noite. A polícia estava procurando uma mulher que tinha pedido informações sobre a casa na véspera e deixado a feira com o neto de Chapaev. Sua identidade era desconhecida. Mas não para ele.

Suzanne Danzer.

Quem mais seria? De algum modo ela havia descoberto a pista e encontrado Chapaev antes dele. Todas as informações dadas livremente por Chapaev vinham dela. Sem dúvida. Ele fora atraído para uma armadilha e quase morrera.

Lembrou-se do que Juvenal disse em suas Sátiras. A vingança é o deleite de um espírito mau e de uma mente mesquinha. Prova disso é que ninguém se regozija mais com a vingança do que uma mulher.

Certo. Mas ele preferia Byron. Os homens amam depressa, mas detestam devagar.

Seria um inferno quando o caminho dos dois se cruzasse de novo. Um tremendo inferno. Na próxima vez, ele teria a vantagem. Estaria preparado.

As ruas estreitas de Füssen estavam apinhadas de turistas de primavera atraídos pelo castelo de Ludovico ao sul da cidade. Era fácil se misturar ao movimento vespertino das pessoas que procuravam comida e álcool nos cafés agitados. Parou durante meia hora e comeu num dos menos cheios, ouvindo uma deliciosa música de câmara que ecoava de um concerto de primavera do outro lado da rua. Em seguida, encontrou uma cabine telefônica perto do hotel e ligou para o Burg Herz. Franz Fellner atendeu.

- Ouvi falar de uma explosão nas montanhas hoje. Uma mulher foi retirada dos escombros, e ainda estão procurando o homem.

- Não serei encontrado - disse ele. - Era uma armadilha. - Em seguida, contou a Fellner o que havia acontecido desde que saíra de Atlanta até o momento em que ficou sabendo do assassinato de Chapaev, há pouco. - Interessante saber que Rachel Cutler pode ter sobrevivido. Mas não importa. Ela certamente voltará para Atlanta.

- Tem certeza de que Suzanne está envolvida?

- De algum modo, ela se adiantou a mim.

Fellner deu um risinho.

- Será que você está ficando velho, Christian?

- Presunçoso é uma definição melhor - disse Monika, de repente. Sem dúvida estava numa extensão.

- Estava me perguntando onde você estaria.

- Sua mente provavelmente só pensava em como ia trepar com ela.

- Que sorte a minha, ter você para me lembrar de todos os meus defeitos.

Monika riu.

- Metade da diversão em tudo isso, Christian, é assistir você trabalhando.

- Parece que essa pista agora está gelada - respondeu Knoll. - Devo passar para as outras aquisições?

- Conte a ele, filha - disse Fellner.

- Um americano, Wayland McKoy, está escavando perto de Stod. Diz que vai encontrar as obras de arte do museu de Berlim, talvez a Sala de Âmbar. Já fez isso antes com algum sucesso. Verifique para ter certeza. No mínimo poderá conseguir alguma informação útil, talvez uma nova aquisição.

- Essa escavação é bem conhecida?

- Saiu nos jornais locais e a CNN internacional fez várias matérias - disse Monika.

- Sabíamos disso antes de você ir a Atlanta - disse Fellner. - Mas achamos que Borya valia uma investigação imediata.

- Loring está interessado na nova escavação?

- Parece interessado em tudo que nós fazemos - respondeu Monika.

- Você espera que Suzanne seja despachada? - perguntou Fellner.

- Mais do que espero.

- Boa caçada, Christian.

- Obrigado, senhor, e quando Loring ligar para saber se estou morto, não o desaponte.

- Precisa de um pouco de anonimato?

- Isso ajudaria.

 

WARTHBERG, ALEMANHA

20H45

Rachel entrou no restaurante e acompanhou Paul até uma mesa, saboreando o ar quente temperado com o cheiro de cravo e alho. Estava mor¬rendo de fome e se sentindo melhor. A bandagem do hospital fora substituída por gaze e esparadrapo na lateral da cabeça. Usava uma calça de algodão e blusa de manga comprida que Paul havia comprado numa loja local, já que as roupas rasgadas, da manhã, não eram mais usáveis.

Paul a havia tirado do hospital há duas horas. Ela estava bem, a não ser pelo galo na cabeça e alguns cortes e arranhões. Tinha prometido ao médico pegar leve nos próximos dias, e Paul disse a ele que os dois voltariam para Atlanta, de qualquer modo.

Um garçom se aproximou e Paul perguntou de que tipo de vinho ela gostaria.

- Um bom tinto seria ótimo. Algo local - respondeu ela, recordando-se do jantar da noite anterior com Knoll.

O garçom partiu.

- Liguei para a companhia aérea - disse Paul. - Há um vôo saindo de Frankfurt amanhã. Pannik disse que conseguiria arranjar para que fôssemos levados ao aeroporto.

- Onde está o Inspetor?

- Voltou a Kehlheim para continuar a investigação sobre Chapaev. Deixou um número de telefone.

- Não acredito que todas as minhas coisas sumiram.

- Knoll obviamente não queria deixar nada que pudesse levar a você.

- Ele parecia tão sincero! Na verdade, era charmoso.

Paul pareceu sentir a atração na voz dela.

- Você gostou dele?

- Era um sujeito interessante. Disse que era um investigador procurando a Sala de Âmbar.

- Isso atrai você?

- Ora, Paul! Você não acha que nós levamos uma vida comum demais? Trabalho e casa. Pense só. Viajar o mundo, procurando obras de arte perdidas. Isso empolgaria qualquer um.

- O sujeito deixou você lá para morrer.

O rosto dela ficou tenso. Aquele tom de voz de Paul funcionava todas as vezes.

- Mas também salvou minha vida em Munique.

- Eu deveria ter vindo com você desde o início.

- Não me lembro de tê-lo convidado. - A irritação dela estava crescendo. Por que isso acontecia tão depressa? Paul só estava querendo ajudar.

- Não, não me convidou. Mas mesmo assim eu deveria ter vindo.

Rachel ficou surpresa com a reação dele a Knoll. Difícil dizer se Paul estava com ciúme ou preocupado.

- Precisamos ir para casa - disse ele. - Não há mais nada aqui. Estou preocupado com as crianças. Ainda fico vendo o corpo de Chapaev.

- Você acredita que a mulher que foi procurá-lo matou Chapaev?

- Quem sabe? Mas ela certamente sabia onde procurar, graças a mim.

Agora parecia a hora certa.

- Vamos ficar, Paul.

- O quê?

- Vamos ficar.

- Rachel, você não aprendeu a lição? Há gente morrendo. Temos de sair daqui antes que seja a nossa vez. Você teve sorte hoje. Não force a barra. Isto não é um romance de aventuras. É de verdade. E uma idiotice. Nazistas. Russos. É tudo além de nossa capacidade.

- Paul, papai devia saber alguma coisa. Chapaev também. Nós devemos a eles a tentativa.

- Tentativa de quê?

- Resta uma pista a seguir. Lembre-se de Wayland McKoy. Knoll me disse que Stod não fica longe daqui. Ele pode estar perto de alguma coisa. Papai se interessou pelo que ele estava fazendo.

- Deixe para lá, Rachel.

- Que mal faria?

- Foi exatamente o que você disse com relação a encontrar Chapaev.

Ela empurrou a cadeira para trás e se levantou.

- Isso não é justo, e você sabe. - Sua voz ficou mais alta. - Se quer ir para casa, vá. Eu vou conversar com Wayland McKoy.

Algumas outras pessoas no restaurante começaram a notar. Rachel esperava que nenhuma falasse inglês. O rosto de Paul tinha a expressão usual de resignação. Ele realmente nunca soubera o que fazer com ela. Este era outro problema dos dois. A impetuosidade era estranha à personalidade dele. Paul era um planejador meticuloso. Nenhum detalhe era pequeno demais. Não era obsessivo. Apenas consistente. Se já fizera alguma coisa espontânea na vida? Sim. Tinha viajado para cá praticamente num impulso momentâneo. E ela esperava que isso significasse alguma coisa.

- Sente-se, Rachel - disse ele em voz baixa. - Ao menos uma vez, será que não podemos discutir algo de modo racional?

Ela se sentou. Queria que ele ficasse, mas nunca admitiria.

- Você tem uma campanha eleitoral pela frente. Por que não canaliza toda essa energia para isso?

- Eu tenho de ficar, Paul. Algo me diz para continuar.

- Rachel, nas últimas 42 horas, duas pessoas apareceram do nada, ambas procurando a mesma coisa, uma possivelmente é assassina, a outra insensível o bastante para deixar você morrer. Karol se foi. Chapaev também. Talvez seu pai tenha sido assassinado. Você tinha tremendas suspeitas disso antes de vir para cá.

- Ainda tenho, e isso faz parte da coisa. Para não mencionar seus pais. Eles também podem ter sido vítimas.

Ela quase podia ouvir a mente analítica de Paul funcionando. Examinando as opções. Tentando pensar no próximo argumento para convencê-la a irem para casa.

- Certo - disse ele. - Vamos falar com McKoy.

- Está falando sério?

- O que estou é doido. Mas não planejo deixar você sozinha aqui.

Ela estendeu a mão e apertou a dele.

- Vigie minhas costas que eu vigio as suas. Certo?

Ele riu.

- É, certo.

- Papai teria orgulho.

- Seu pai provavelmente está se revirando no túmulo. Estamos ignorando tudo que ele queria.

O garçom chegou com o vinho e serviu duas taças. Rachel ergueu a dela.

- Ao sucesso.

Ele devolveu o brinde.

- Ao sucesso.

Ela tomou um gole do vinho, satisfeita porque Paul ia ficar. Mas a visão relampejou em sua mente outra vez. O que viu quando a luz da lanterna revelou Christian Knoll no segundo antes da explosão. Uma lâmina de faca brilhando na mão dele.

No entanto, não tinha dito nada a Paul ou ao inspetor Pannik. Era fácil adivinhar a reação dos dois. Em especial a de Paul.

Olhou para o ex-marido, lembrou-se do pai e de Chapaev e pensou nas crianças.

Estaria fazendo a coisa certa?

 

STOD, ALEMANHA

SEGUNDA-FEIRA, 19 DE MAIO, 10H15

Wayland McKoy entrou na caverna. O ar frio e úmido o envolveu e a escuridão tomou conta da luz matinal. Ele se maravilhou com o túnel antigo. Ein Silberbergwerk. Uma mina de prata. Antigo "tesouro do Sacro Império Romano", agora a terra estava exaurida e abandonada, lembrança sórdida da prata mexicana barata que fechou a maioria das minas de Harz em 1900.

Toda a área era espetacular. Colinas cobertas de pinheiros, mato baixo e retorcido e campos alpinos, tudo lindo e irregular, no entanto permeado por uma atmosfera sobrenatural. Como dissera Goethe em Fausto: "Onde as bruxas faziam seu sabá".

Este já fora o canto sudoeste da Alemanha Oriental, na temida zona proibida, e arruinados postos de fronteira continuavam espalhados pela floresta. Os campos minados, armadilhas explosivas, cães de guarda e cercas de arame farpado tinham sumido. Wende, a unificação, tinha posto fim na necessidade de conter toda uma população e aberto oportunidades. Oportunidades que ele estava explorando agora.

Seguiu pelo túnel amplo. A trilha era marcada a cada trinta metros por uma lâmpada de cem watts, e um fio elétrico serpenteava um cami¬nho até o gerador, lá fora. A face da rocha era afiada, o chão coberto de entulho, trabalho de uma equipe inicial que ele mandara na semana anterior para abrir a passagem.

Essa tinha sido a parte fácil. Britadeiras e pistolas de ar. Não era preciso se preocupar com explosivos antigos dos nazistas, pois o túnel fora farejado por cães e examinado por equipes especializadas em demolição. A falta de qualquer coisa nem sequer remotamente ligada à explosivos era preocupante. Se esta fosse de fato a mina certa, a que os alemães usaram para guardar as obras de arte do museu Kaiser Friedrich, de Berlim, quase certamente teria sido minada. Mas nada fora encontrado. Só pedras, sedimentos e milhares de morcegos. Os sacaninhas malignos povoavam os afluentes do túnel principal durante o inverno e, de todas as espécies do mundo, esta tinha de estar em perigo de extinção. O que explicava por que o governo alemão havia hesitado tanto em lhe conceder uma permissão para explorar. Por sorte, os morcegos saíam da mina a cada mês de maio e só voltavam em meados de julho. Preciosos 45 dias para o trabalho. Sua permissão exigia que a mina estivesse vazia quando os bichos voltassem.

Quanto mais entrava na montanha, mais largo o túnel se tornava - o que também era perturbador. A rotina normal era os túneis se estreitarem, finalmente se tornando intransponíveis, com os mineiros escavando até ficar impossível ir em frente. Todos os túneis eram um testamento a séculos de mineração, cada geração tentando suplantar a anterior e descobrir um veio de minério não detectado anteriormente. Mas, apesar de toda a amplitude, esse túnel ainda o preocupava. Era simplesmente estreito demais para guardar qualquer coisa tão grande quanto o botim que ele procurava.

Aproximou-se de seus três empregados. Dois estavam sobre escadas de mão, outro embaixo, cada um fazendo buracos em ângulos de sessenta graus na rocha. Cabos levavam ar e eletricidade. Os geradores e compressores estavam cinqüenta metros atrás dele, do lado de fora, ao ar da manhã. Luzes ásperas, quentes, branco-azuladas, iluminavam a cena e faziam a equipe se encharcar de suor.

As máquinas pararam e os homens tiraram os protetores de ouvidos. Ele também tirou os seus.

- Alguma idéia de como estamos indo? - perguntou.

Um dos homens tirou os óculos embaçados e enxugou o suor da testa.

- Avançamos cerca de trinta centímetros hoje. Não há como saber o quanto vamos prosseguir, e estou com medo de usar a britadeira.

Outro homem pegou uma garrafa. Lentamente encheu os buracos com solvente. McKoy chegou perto da parede de rocha. O granito e o calcário porosos beberam instantaneamente o caldo marrom derramado em cada buraco, enquanto o líquido cáustico se expandia, criando fissuras na pedra. Outro homem com óculos se aproximou com uma marreta. Bastou um golpe e a pedra se despedaçou, caindo no chão. Outros centímetros tinham sido escavados.

- Está lento - disse ele.

- Mas é o único modo de fazer - alertou uma voz vinda de trás.

McKoy se virou e viu Herr Doktor Alfred Grumer parado na caverna. Era alto, com braços e pernas compridos, magro a ponto de parecer uma caricatura, com uma barba grisalha estilo Vandyke envolvendo os lábios finos como se riscados a lápis. Grumer era o especialista residente da escavação, tinha diploma da Universidade de Heidelberg em história da arte. McKoy havia se ligado a Grumer há três anos, durante seu último empreendimento nas minas de Harz. O sujeito alardeava conhecimento e cobiça, dois atributos que ele não somente admirava, mas também necessitava em seus companheiros de trabalho.

- Estamos ficando sem tempo - disse McKoy.

Grumer chegou mais perto.

- Você ainda tem permissão para mais quatro semanas. Vamos conseguir.

- Presumindo que haja algo a ser conseguido.

- A câmara está aí. O radar confirma.

- Mas a que distância, naquela rocha?

- É difícil dizer. Mas há algo lá.

- E como, diabos, a coisa entrou lá? Você disse que o radar confirmou múltiplos objetos metálicos de tamanho razoável. - Ele sinalizou para trás, além das luzes. - Este túnel mal tem tamanho para três pessoas andarem lado a lado.

Um riso fino riscou o rosto de Grumer.

- Você está presumindo que esta seja a única entrada.

- E você presume que eu tenho uma fábrica de dinheiro.

Os outros homens ajustaram as ferramentas e começaram a furar novamente. McKoy voltou pelo túnel, passando pelas luzes, até onde era mais fresco e mais silencioso. Grumer foi atrás.

- Se não fizermos algum progresso amanhã, para o diabo com essa coisa de ficar furando - disse ele. - Vamos dinamitar.

- Sua permissão proíbe que isso seja feito.

McKoy passou a mão pelo cabelo preto e úmido.

- Foda-se a permissão. Precisamos de progresso, e rápido. Tenho uma equipe de TV esperando na cidade, e isso me custa dois mil por dia. E aqueles burocratas bundões em Bonn não têm um punhado de investidores vindo para cá amanhã, esperando ver obras de arte.

- Isso não pode ser apressado - disse Grumer. - Não dá para dizer o que há atrás das pedras.

- Supostamente há uma câmara enorme.

- Há mesmo. E contém alguma coisa.

McKoy suavizou o tom de voz. Não era culpa de Grumer a escavação estar vagarosa.

- Algo provocou orgasmos múltiplos no radar, não foi?

Grumer sorriu.

- É um modo poético de dizer.

- É melhor você esperar que seja verdade, caso contrário estamos ambos fodidos.

- A palavra alemã para "caverna" é höhle - disse Grumer. – A palavra para "inferno" é hölle. Sempre achei que a semelhança tinha algum significado.

- Interessante pra caralho, Grumer. Mas não é o sentimento correto neste momento, se é que você me entende.

Grumer pareceu não se importar. Como sempre. Outra coisa que irritava McKoy tremendamente.

- Vim dizer que temos visita - disse Grumer.

- Outro repórter?

- Um advogado e uma juíza. Americanos.

- Os processos já começaram?

Grumer deu um de seus risos condescendentes. McKoy não estava no clima. Devia demitir aquele idiota irritante. Mas os contatos de Grumer no Ministério da Cultura eram valiosos demais para dispensar.

- Nada de processos, Herr McKoy. Esses dois falam sobre a Sala de Âmbar.

O rosto de McKoy se iluminou.

- Achei que você se interessaria. Eles afirmam que têm informações.

- Malucos?

- Não parecem.

- O que eles querem?

- Conversar.

McKoy olhou de volta para a parede de rocha e as furadeiras zumbindo.

- Por que não? Não está acontecendo nada aqui.

 

Paul se virou quando a porta da cabana minúscula se abriu. Viu um homem parecendo um urso pardo com pescoço de touro, peito largo e fartos cabelos pretos entrar na sala pintada de branco. O peito estufado e os braços forçavam uma camisa de algodão onde estava bordado ESCAVAÇÕES MCKOY, e os intensos olhos escuros avaliaram imediatamente a situação. Alfred Grumer - que Paul e Rachel tinham conhecido há alguns minutos - entrou atrás dele.

- Herr Cutler, Frau Cutler, este é Wayland McCoy - disse Grumer.

- Não quero ser grosseiro - disse McKoy -, mas estamos num momento crítico por aqui, e não tenho muito tempo para conversas. Então, o que posso fazer por vocês?

Paul decidiu ir direto ao ponto.

- Tivemos alguns dias interessantes...

- Por que um advogado e uma juíza da Geórgia vieram ao meio da Alemanha me incomodar?

- Estamos procurando a Sala de Âmbar.

McKoy deu um risinho.

- Quem, diabos, não está?

- O senhor deve pensar que ela está perto, talvez até mesmo onde está escavando - disse Rachel.

- Tenho certeza de que vocês, águias jurídicas, sabem que não vou discutir qualquer particularidade desta escavação. Tenho investidores que exigem sigilo.

- Não estamos pedindo que revele nada - disse Paul. - Mas talvez ache interessante o que aconteceu nos últimos dias. - Em seguida, contou a McKoy e Grumer tudo o que havia ocorrido desde a morte de Karol Borya até o momento em que Rachel foi tirada da mina.

Grumer sentou-se num dos bancos.

- Ouvimos falar da explosão. Não encontraram o homem?

- Não havia o que encontrar. Knoll tinha ido embora há muito. - Paul explicou o que ele e Pannik ficaram sabendo em Warthberg.

- Vocês ainda não disseram o que desejam - disse McKoy.

- O senhor pode começar com algumas informações. Quem é Josef Loring?

- Um industrial tcheco. Está morto há cerca de trinta anos. Dizem que ele encontrou a Sala de Âmbar logo depois da guerra, mas nada jamais foi verificado. Outro boato para os livros.

- Loring era conhecido pelas obsessões caras - disse Grumer. - Tinha uma enorme coleção de arte. Uma das maiores coleções particulares de âmbar no mundo. Pelo que sei, o filho ainda a possui. Como seu pai sabia sobre ele?

Rachel explicou sobre a comissão extraordinária e o envolvimento do pai. Também falou de Yancy e Marlene Cutler e das reservas do pai quando à morte dos dois.

- Qual é o nome do filho de Loring? - perguntou ela.

- Ernst - respondeu Grumer. - Deve ter uns oitenta anos. Ainda mora na propriedade da família no sul da República Tcheca. Não muito longe daqui.

Havia algo em Alfred Grumer que simplesmente não agradava a Paul. A testa franzida? Os olhos que pareciam pensar em outra coisa enquanto os ouvidos escutavam? Por algum motivo, o alemão o lembrava do pintor de paredes que há duas semanas tinha tentado tirar 12.300 dólares do espólio que ele representava, aceitando facilmente um acordo de 1.250. Sem escrúpulos quanto a mentir. Mais logros do que verdade em tudo que dizia. Alguém em quem não se devia confiar.

- Você está com as cartas de seu pai? - perguntou Grumer a Rachel.

Paul não queria mostrá-las a ele, mas achou que o gesto seria uma demonstração da boa-fé dos dois. Enfiou a mão no bolso de trás e pegou os papéis. Grumer e McKoy examinaram cada carta em silêncio. McKoy, particularmente, parecia fascinado. Quando terminaram, Grumer perguntou:

- Esse tal de Chapaev está morto?

Paul assentiu.

- Seu pai, Sra. Cutler... por sinal, vocês são casados? - perguntou McKoy.

- Divorciados - respondeu Rachel.

- E viajam pela Alemanha juntos?

O rosto de Rachel ficou tenso.

- Isso é relevante?

McKoy lhe deu um olhar curioso.

- Talvez não, meritíssima. Mas são vocês que estão interrompendo minha manhã com perguntas. Como eu estava dizendo, seu pai trabalhou para os soviéticos procurando a Sala de Âmbar?

- Ele ficou interessado no que o senhor fazia aqui.

- Disse alguma coisa em particular?

- Não - respondeu Paul. - Mas assistiu à matéria da CNN e quis o relato do USA Today. A próxima coisa que soubemos era que ele estava estudando um mapa da Alemanha e lendo matérias antigas sobre a Sala de Âmbar.

McKoy foi sentar-se numa cadeira giratória, de carvalho. As molas gemeram com o peso.

- Vocês acham que talvez estejamos no túnel certo?

- Karol sabia alguma coisa sobre a Sala de Âmbar - disse Paul. - Chapaev também. Meus pais talvez soubessem alguma coisa. E alguém pode ter desejado que todos eles ficassem quietos.

- Mas vocês têm alguma coisa mostrando que eles eram o alvo daquela bomba? - perguntou McKoy.

- Não - respondeu Paul. - Mas depois da morte de Chapaev, tenho de ficar pensando. Karol sentia muito remorso pelo que aconteceu com meus pais. Estou começando a acreditar que há mais nisso do que eu pensava.

- Coincidências demais, hein?

- Pode-se dizer.

- E quanto ao túnel ao qual Chapaev mandou vocês? - perguntou Grumer.

- Não havia nada - disse Rachel. - E Knoll achou que o final desmoronado do túnel se deveu a uma explosão. Pelo menos foi o que disse.

McKoy riu.

- Foi uma busca inútil?

- Provavelmente - respondeu Paul.

- Alguma explicação para Chapaev mandar vocês a um beco sem saída?

Rachel teve de admitir que não tinha.

- E quanto a esse tal de Loring? Por que meu pai estaria preocupado a ponto de mandar os Cutler investigá-lo?

- Os boatos sobre a Sala de Âmbar são disseminados. São tantos que é difícil discernir qualquer coisa. Seu pai podia estar verificando outra pista - disse Grumer.

- O senhor sabe alguma coisa sobre esse tal de Christian Knoll? -perguntou Paul a Grumer.

- Nein. Nunca ouvi o nome.

- Vocês vieram aqui atrás de aventura? - perguntou McKoy, de repente.

Paul sorriu. Meio que esperava um papo de vendedor.

- Nem de longe. Não somos caçadores de tesouros. Só apenas duas pessoas que se meteram em algo que provavelmente não é da nossa conta. Como estávamos por perto, pensamos que valeria dar uma olhada.

- Venho escavando estas montanhas há anos...

A porta da cabana se abriu de repente. Um homem sorridente, com macacão sujo, disse:

- Atravessamos!

McKoy pulou da cadeira.

- Cacete, Todo-Poderoso. Chamem a equipe de TV. Diga para virem para cá. E ninguém entra antes de mim.

O trabalhador saiu correndo.

- Vamos, Grumer.

Rachel se adiantou, bloqueando o caminho de McKoy para a porta.

- Deixe-nos ir.

- Por quê, merda?

- Pelo meu pai.

McKoy hesitou alguns instantes, depois disse:

- Por que não? Mas fiquem fora do caminho.

 

Uma sensação desconfortável dominou Rachel. O túnel era largo, porém mais apertado que o da véspera, e a entrada havia sumido atrás deles. Há vinte e quatro horas, quase fora enterrada viva. Agora estava de volta ao subsolo, seguindo uma trilha de lâmpadas expostas para dentro de outra montanha alemã. O caminho terminava numa galeria aberta com paredes de rocha branco-acinzentada rodeando-a, a parede mais distante quebrada por uma fenda escura. Um trabalhador estava brandindo uma marreta, alargando a fenda até ter tamanho para uma pessoa passar.

McKoy pegou um dos refletores e foi até a abertura.

- Alguém olhou dentro?

- Não - respondeu um trabalhador.

- Ótimo. - McKoy levantou uma haste de alumínio da areia e prendeu o refletor na ponta. Então estendeu as seções telescópicas até a lâmpada estar a uns três metros de distância. Aproximou-se da abertura e enfiou a luz na escuridão.

- Filho-da-puta - disse McKoy. - A câmara é gigantesca. Estou vendo três caminhões. Ah, merda. - Ele retirou a luz. - Corpos. Dá para ver dois.

Passos se aproximaram de trás. Rachel se virou e viu três pessoas correndo para eles, com câmeras de vídeo, luzes e baterias.

- Preparem esse material - disse McKoy. - Quero que a visão inicial seja documentada para o programa. - Em seguida, virou-se para Rachel e Paul. - Eu vendi os direitos de vídeo. Vão fazer um especial de TV. Mas eles queriam gravar tudo enquanto estivesse acontecendo.

Grumer chegou perto.

- Você disse caminhões?

- Parecem NAGs Büssing. Quatro toneladas e meia. Alemães.

- Isso não é bom.

- Como assim?

- Não haveria transporte disponível para o material do museu de Berlim. Tudo teria de ser carregado à mão.

- Que porra você está falando?

- Como eu disse, Herr McKoy, o material de Berlim foi transportado de trem e depois de caminhão até a mina. Os alemães não descartariam os veículos. Eram valiosos demais, necessários para outras tarefas.

- Não sabemos que diabo aconteceu, Grumer. Pode ser que a porra dos chucrutes tenham decidido deixar os caminhões, quem sabe?

- Como eles entraram na montanha?

McKoy se aproximou do rosto do alemão.

- Como você disse antes, poderia haver outra entrada.

Grumer se encolheu.

- Como o senhor diz, Herr McKoy.

McKoy apontou um dedo.

- Não. Como você diz. - O grandalhão voltou a atenção para a equipe de vídeo. Luzes se acenderam. Duas câmeras foram postas nos ombros. Um operador de áudio estendeu um microfone boom e ficou fora do caminho.

- Eu entro primeiro. Filmem segundo minha perspectiva.

Os homens assentiram.

E McKoy penetrou na escuridão.

Paul foi o último a entrar. Seguiu dois trabalhadores que arrastaram barras de luz para a câmara. Os raios branco-azulados fizeram evaporar a escuridão.

- Esta câmara é natural - disse Grumer, a voz ecoando.

Paul examinou a rocha que subia num arco de pelo menos dezoito metros de altura. A visão o fez se lembrar do teto de alguma catedral grandiosa, só que o teto e as paredes eram envoltos em helicites e espeleotemas que brilhavam à luz forte. O piso era macio e arenoso, como no túnel de entrada. Paul respirou fundo e não gostou particularmente do cheiro rançoso do ar. As luzes de vídeo estavam apontadas para a parede mais distante. Outra abertura, ou pelo menos o que restava de uma abertura, surgiu. Era maior do que o túnel que tinham usado, com espaço mais do que suficiente para admitir os veículos, e tinha pedras e entulho comprimidos contra a arcada.

- A outra entrada, hein? - disse McKoy.

- Ja - respondeu Grumer. - Mas é estranho. Toda a idéia de esconder era poder recuperar depois. Por que fechar isso assim?

Paul voltou a atenção aos três caminhões. Estavam parados em ângulos estranhos, todos os dezoito pneus vazios, as laterais esmagadas pelo peso. As lonas escuras sobre as carrocerias compridas continuavam no lugar, mas cheias de mofo, e os cabos de aço e a estrutura tremendamente enferrujados.

McKoy penetrou mais no salão, com um cinegrafista atrás.

- Não se preocupem com o áudio. Podemos dublar depois. Garantam as imagens.

Rachel se adiantou.

Paul chegou perto dela.

- Estranho, não é? Como andar numa sepultura.

Ela assentiu.

- Exatamente o que eu estava pensando.

- Olhem isso - disse McKoy.

As luzes revelaram dois corpos esparramados na areia, com rochas e entulho ao lado. Nada restava além de ossos, trapos de roupas e botas de couro.

- Levaram tiros na cabeça - disse McKoy.

Um trabalhador aproximou uma barra de luz.

- Tentem não tocar em nada até termos um registro fotográfico completo. O ministério vai exigir isso. - A voz de Grumer era firme.

- Há mais dois corpos ali adiante - disse um dos outros trabalhadores.

McKoy e a equipe de vídeo foram naquela direção. Grumer e os outros os seguiram, assim como Rachel. Paul se demorou perto dos dois corpos. As roupas tinham apodrecido, mas mesmo à luz fraca os restos pareciam ser de algum tipo de uniforme. Os ossos estavam acinzentados e enegrecidos, e a carne e os músculos tinham virado pó há muito. Sem dúvida havia um buraco em cada crânio. Ambos pareciam ter morrido deitados de costas, com a coluna e as costelas ainda no lugar. Uma baioneta estava ao lado, presa ao que restava de um cinto costurado. Um coldre de couro estava vazio.

O olhar de Paul foi mais para a direita.

Parcialmente coberto pela areia, nas sombras, notou algo preto e retangular. Ignorando o que Grumer dissera, abaixou-se e pegou o objeto.

Uma carteira.

Separou cuidadosamente cada dobra rachada de couro. Restos do que parecia ter sido dinheiro enchiam o compartimento de notas. Enfiou um dedo numa das abas laterais. Nada. Depois na outra. Pedaços de um cartão deslizaram para fora. As bordas estavam esgarçadas e frágeis, a maior parte da tinta se desbotara, mas parte das palavras permanecia. Esforçou-se para ler as letras.

AUSGEGEBEN 15-3-51. VERFÄLLT 15-3-55. GUSTAV MÜLLER.

Havia mais palavras, mas apenas letras esparsas tinham sobrevivido, nada legível. Aninhou a carteira na palma da mão e voltou para o grupo principal. Rodeou a parte de trás de um caminhão e, de repente, viu Grumer afastado. Já ia se aproximar e perguntar sobre a carteira quando viu que Grumer estava curvado sobre outro esqueleto. Rachel, McKoy e os outros estavam reunidos dez metros à esquerda, de costas para eles, com as câmeras ainda ligadas, McKoy falando para as lentes. Trabalhadores tinham erguido uma haste telescópica e uma barra de luz halógena no centro, gerando iluminação mais do que suficiente para que ele visse Grumer examinando a areia em volta dos ossos.

Paul recuou para as sombras atrás de um dos caminhões e continuou a vigiar. A lanterna de Grumer acompanhou os ossos meio enterrados na areia. Paul imaginou a carnificina que teria acontecido ali. A luz de Grumer terminou o exame na ponta de um braço estendido, onde os restos dos ossos dos dedos eram visíveis. Paul prestou atenção. Havia letras desenhadas na areia. Algumas sumidas devido ao tempo, mas três permaneciam, espalhadas com espaços irregulares entre elas.

O   I      C.

Grumer ficou de pé e tirou três fotos, o flash da máquina iluminando rapidamente a cena.

Depois se abaixou e apagou cuidadosamente as três letras da areia.

 

McKoy ficou impressionado. O vídeo ficaria espetacular. Três enferrujados caminhões alemães da Segunda Guerra Mundial relativamente intactos numa mina de prata abandonada. Cinco corpos, todos com tiros na cabeça. Que programa! Seu percentual sobre os direitos de exibição seria impressionante.

- Pegaram imagens suficientes do exterior? - perguntou a um dos cinegrafistas.

- Mais do que suficientes.

- Então vejamos que porra há nessas coisas. - Em seguida, pegou uma lanterna e foi na direção do veículo mais próximo. - Grumer, onde está você?

O Doktor veio de trás.

- Pronto? - perguntou McKoy.

Grumer assentiu.

Ele também estava.

A visão dentro de cada carroceria deveria ser de caixotes de madeira montados às pressas e empilhados ao acaso, muitos contendo cortinas, roupas e tapetes como enchimento. Tinha ouvido histórias de como os curadores do Hermitage usaram as roupas reais de Nicolau II e Alexandra para proteger pinturas e mais pinturas mandadas para o leste, para longe dos nazistas. Roupas inestimáveis enfiadas indiscriminadamente em caixotes baratos de madeira. Qualquer coisa para proteger as telas e as cerâmicas frágeis. Esperava que os alemães tivessem sido igualmente frívolos. Se esta fosse a câmara certa, a que continha o acervo do museu de Berlim, a descoberta seria a nata da coleção. Talvez a Rua de Delft, de Vermeer, a Cabeça de Cristo, de Da Vinci ou O Parque, de Monet. Cada peça valeria milhões no mercado aberto. Ainda que o governo alemão insistisse em manter a propriedade - o que era provável -, o pagamento para quem descobrisse seria de milhões de dólares.

Afastou cuidadosamente a lona rígida e apontou a luz para dentro.

A carroceria estava vazia. Nada além de ferrugem e areia.

Correu para o caminhão seguinte.

Vazio.

Ao terceiro.

Vazio também.

- Puta que o pariu - disse ele. - Desliguem a porra dessas câmeras.

Grumer apontou sua lanterna para dentro de cada carroceria.

- Eu tinha medo disso.

McKoy não estava no clima.

- Todos os sinais diziam que esta talvez não fosse a câmara - disse Grumer.

O alemão pretensioso quase parecia gostar da dificuldade dele.

- Então por que não me disse em janeiro?

- Na época, eu não sabia. Os sinais de radar indicavam algo grande e metálico aqui dentro. Só nos últimos dias, à medida que nos aproximávamos, comecei a suspeitar que talvez este fosse um local seco.

Paul se aproximou.

- Qual é o problema?

- O problema, Sr. Advogado, é que as merdas das carrocerias estão vazias. Porra nenhuma dentro. Simplesmente gastei um milhão de dólares para recuperar três caminhões enferrujados. Como é que vou explicar isso às pessoas que vêm para cá amanhã esperando ficar ricas com o investimento?

- Eles sabiam dos riscos quando investiram - disse Paul.

- Nenhum dos sacanas vai admitir isso.

Rachel perguntou:

- Você foi honesto com eles quanto aos riscos?

- Tão honesto quanto possível quando se está pedindo dinheiro. - Ele balançou a cabeça, revoltado. - Jesus Cristo Todo-Poderoso, cacete.

 

STOD

12H45

Knoll jogou sua bolsa de viagem na cama e examinou o apertado quarto de hotel. O Christinenhof tinha cinco andares, com o exterior de enxaimel e o interior exalando história e hospitalidade. Intencionalmente, havia escolhido um quarto no terceiro andar, virado para a rua, recusando o lado mais luxuoso e caro, do jardim. Não estava interessado em ambientação, apenas em localização, já que o Christinenhof ficava diretamente em frente ao hotel Garni, onde Wayland McKoy e seu grupo ocupavam todo o quarto andar.

Tinha se informado sobre a escavação de McKoy através de um solícito funcionário do escritório de turismo. Também tinham-lhe dito que no dia seguinte um grupo de investidores chegaria à cidade - todos os quartos no Garni haviam sido reservados, e dois outros hotéis receberiam o excesso.

- É bom para os negócios - tinha dito o funcionário. Era bom para ele, também. Nada melhor do que muita gente para causar distração.

Abriu o zíper da bolsa de couro e tirou um barbeador elétrico.

O dia anterior tinha sido difícil. Danzer o havia suplantado. Provavelmente estava contando vantagem agora mesmo para Ernst Loring sobre como o atraíra a mina. Mas por que matá-lo? Nunca antes as disputas entre os dois tinham chegado a um ponto tão definitivo. O que havia aumentado a aposta? O que era tão importante a ponto de Danya Chapaev, ele e Rachel Cutler terem de morrer? A Sala de Âmbar? Talvez. Certamente eram necessárias mais investigações, e ele pretendia fazer exatamente isso, assim que essa missão fosse realizada.

Havia se demorado na viagem de Füssen até Stod, ao norte. Não tinha pressa. Os jornais de Munique relatavam a explosão da véspera na mina de Harz, mencionando o nome de Rachel Cutler e o fato de ela ter sobrevivido. Não havia referência a ele, só que ainda estavam procurando um homem branco, não identificado, mas as equipes de resgate não tinham esperança de encontrar nada. Sem dúvida Rachel falara dele às autoridades, e a polícia ficaria sabendo que ele havia saído do Goldene Krone com suas coisas e as de Rachel. No entanto, não havia qualquer menção. Interessante. Um ardil da polícia? Possivelmente. Mas ele não se importava. Não tinha cometido nenhum crime. Por que a polícia ia querê-lo? Deviam achar que ele estava morrendo de medo e tinha decidido sair da cidade, já que ver a morte de perto bastava para amedrontar qualquer um. Rachel Cutler estava viva e certamente voltando para os Estados Unidos, e sua aventura na Alemanha não passaria de uma lembrança desagradável. De volta à vida de juíza de uma grande cidade. A busca do pai pela Sala de Âmbar morreria com ele.

Tinha tomado banho de manhã, mas não fizera a barba, por isso agora o pescoço e o queixo pareciam lixa e cocavam. Demorou-se um momento e pegou a pistola no fundo da bolsa de viagem. Massageou suavemente o polímero liso e não reflexivo, depois segurou o cabo da arma, com o dedo no gatilho. Pesava menos de um quilo, presente de Ernst Loring, uma de suas novas CZ-75B.

- Mandei expandir o pente para quinze tiros - dissera Loring quando o presenteara com a arma. - Nada de pente burocrático, de dez tiros. Portanto, é idêntica ao nosso modelo original. Lembrei-me de seu comentário de que não tinha gostado da modificação de fábrica, reduzindo para dez tiros. Também mandei montar e ajustar a trava na estrutura para que a arma possa ser carregada tanto na posição engatilhada quanto na travada, como você notou. Agora essa mudança está em todos os modelos.

As fundições de Loring na República Tcheca eram as maiores produtoras de armas de pequeno porte na Europa Oriental, e sua qualidade era lendária. Somente nos últimos dias os mercados ocidentais tinham se aberto totalmente aos seus produtos, já que as altas tarifas e as restrições de importação haviam ido pelo mesmo caminho da Cortina de Ferro. Felizmente, Fellner permitira que ele ficasse com a arma, e Knoll apreciou esse gesto.

- Também mandei rosquear a ponta do cano para colocar um silenciador - dissera Loring. - Suzanne tem uma idêntica. Achei que vocês dois gostariam da ironia. O campo de jogo nivelado, por assim dizer.

Knoll atarraxou o silenciador na ponta do cano curto e colocou um pente novo.

É. Gostava tremendamente da ironia.

Jogou a arma na cama e pegou o barbeador. No caminho para o banheiro, parou por um momento diante da única janela do quarto. A entrada principal do Garni ficava do outro lado da rua, com colunas de pedra se erguendo de cada lado de uma pesada porta de bronze, e os quartos virados para a rua iam até o sexto andar. Obviamente, Wayland McKoy gostava do bom e do melhor. Knoll também ficara sabendo, enquanto se hospedava, que o Garni possuía um grande restaurante e uma sala de reuniões, duas instalações que a expedição parecia exigir. Os funcionários do Christinenhof ficaram satisfeitos por não precisar atender às necessidades constantes de um grupo tão grande. Knoll tinha sorrido diante dessa observação. O capitalismo era muito diferente do socialismo europeu. Nos Estados Unidos, os hotéis teriam brigado por esse tipo de negócio.

Olhou através de uma grade de ferro fundido que protegia a janela. O céu da tarde estava ficando cinza e sujo, à medida que nuvens grossas rolavam do norte. Pelo que tinham lhe dito, o pessoal da expedição geralmente voltava às seis horas, todos os dias. Então ele começaria leu trabalho de campo, jantando no Garni e descobrindo o que fosse possível nas conversas às mesas.

Olhou para a rua. Primeiro numa direção, depois na outra. De repente, seu olhar se fixou numa mulher. Estava abrindo caminho pela rua de pedestres. Loura. Rosto bonito. Vestida de modo casual. Bolsa de couro pendurada no ombro direito.

Suzanne Danzer.

Sem disfarce. De cara limpa.

Fascinante.

Jogou o barbeador na cama, enfiou a arma sob o paletó, num coldre de ombro, e foi rapidamente para a porta.

 

Uma sensação estranha preenchia Suzanne. Parou e olhou para trás. A rua estava apinhada, com a multidão da hora do almoço se espalhando com força total. Stod era uma cidade movimentada. Cerca de cinqüenta mil habitantes, pelo que ficara sabendo. A parte mais antiga da cidade se espalhava em todas as direções, quarteirões cheios de construções com estrutura de enxaimel com vários andares, de pedra e tijolos. Algumas eram realmente antigas, mas a maioria era de reproduções construídas nos anos cinqüenta e sessenta, depois que os bombardeios deixaram sua marca, em 1945. Os construtores fizeram um bom trabalho, decorando tudo com belos moldes de estuque, estátuas em tamanho real e baixos-relevos, tudo criado especificamente para ser fotografado.

Lá no alto, a Abadia das Sete Aflições da Virgem dominava o céu. A estrutura monstruosa fora erguida no século XV em honra à ajuda da Virgem Maria para virar a maré de uma batalha. O prédio barroco coroava um penhasco que dava para Stod e o lamacento rio Eder, clara personificação do antigo desafio e do poder senhorial.

Olhou para cima.

O enorme edifício da abadia parecia se inclinar para a frente, curvando-se ligeiramente para dentro, com as duas torres amarelas ligadas por um balcão voltado para o oeste. Imaginou uma época em que monges e prelados examinavam seu domínio daquele alto poleiro. Lembrou-se do que proclamara um cronista medieval: "A Fortaleza de Deus". Paredes cor de âmbar e brancas se alternavam no exterior, cobertas por um teto de telhas cor de ferrugem. Que adequado! Âmbar. Talvez fosse um presságio. E, se ela acreditasse em algo além de si mesma, poderia ter notado. Mas no momento a única coisa que notava era a sensação de ser vigiada.

Certamente Wayland McKoy provocaria interesse. Talvez fosse isso. Mais alguém estava ali. Procurando. Vigiando. Mas onde? Centenas de janelas ladeavam a rua estreita, alcançando vários andares. O calçamento tinha rostos demais para digerir. Alguém poderia estar disfarçado. Ou talvez alguém estivesse a cem metros de altura, no balcão da abadia, olhando para baixo. Só conseguia discernir minúsculas silhuetas ao sol do meio-dia, turistas aparentemente desfrutando uma visão grandiosa.

Não importava.

Virou-se e entrou no hotel Garni.

Aproximou-se da recepção e disse ao funcionário, em alemão:

- Preciso deixar um recado para Alfred Grumer.

- Certamente. - O homem empurrou um bloco.

Ela escreveu: Estarei na Igreja de São Gerhard às 22h. Esteja lá. Margarethe. E dobrou o bilhete.

- Vou me certificar de que Her Doktor Grumer o receba - disse o funcionário.

Ela sorriu e lhe deu cinco euros pelo trabalho.

Knoll ficou no saguão do Christinenhof e puxou cuidadosamente o fino tecido da cortina para olhar a rua. Observou enquanto, a menos de trinta metros, Suzanne Danzer parava e olhava ao redor.

Será que o havia sentido?

Ela era boa. Tinha instintos aguçados. Ele sempre gostara das comparações de Jung dizendo que os antigos viam as mulheres como Eva, Helena, Sofia ou Maria - correspondendo a impulsiva, emotiva, intelectual e moral. Danzer certamente possuía as três primeiras características, mas nada nela era moral. Também era outra coisa: perigosa. Mas sua guarda provavelmente estava baixa, pensando que ele estava enterrado sob toneladas de rochas numa mina a quarenta quilômetros de distância. Knoll esperava que Franz Fellner tivesse informado a Ernst Loring que seu paradeiro era desconhecido, ardil que lhe garantiria o tempo necessário para deduzir o que estava acontecendo. Mais importante ainda, isso lhe garantiria tempo para decidir como resolver a pendência com sua bela colega.

O que ela estava fazendo aqui, sem disfarce, entrando no hotel Garni? Era coincidência demais que Stod fosse o quartel-general de Wayland McKoy, que aquele fosse o hotel em que McKoy e sua equipe estavam hospedados. Será que ela possuía alguma fonte de informações na escavação? Nesse caso, não seria nada incomum. Muitas vezes ele havia cultivado fontes em outras escavações, para que Fellner pudesse ter as primeiras informações sobre qualquer descoberta. Em geral, aventureiros ficavam mais do que ansiosos para vender pelo menos parte de suas descobertas no mercado negro, e ninguém saberia, já que tudo que eles encontravam tinha sido considerado perdido, de qualquer modo. Essa prática evitava incômodos desnecessários e confiscos irritantes por parte dos governos. Os alemães eram conhecidos por confiscar o melhor do que era retirado do chão. Exigências rígidas de informes e pesadas penalidades caíam sobre quem violasse. Mas sempre se podia contar com a cobiça, e ele fizera várias compras excelentes com inescrupulosos caçadores de tesouros para a coleção particular de Fellner.

Uma chuva fraca começou a cair. Guarda-chuvas brotaram. Trovões rolaram ao longe. Danzer apareceu saindo do Garni. Knoll recuou para longe da janela. Esperava que ela não atravessasse a rua e entrasse no Christinenhof. Não havia onde se esconder no saguão pequeno.

Ficou aliviado quando ela ergueu casualmente a gola do casaco e voltou pela rua. Knoll foi até a porta e olhou para fora cautelosamente. Danzer entrou em outro hotel mais adiante, o Gebler, como anunciava a placa na frente, com a fachada de traves cruzadas parecendo afundar sob o peso dos séculos. Knoll tinha passado por ele, a caminho do Christinenhof. Fazia sentido ela se hospedar lá. Era perto, conveniente. Knoll recuou para o saguão e ficou olhando pela janela, tentando não chamar atenção das poucas pessoas ao redor. Quinze minutos se passaram, e ela não reapareceu.

Ele sorriu.

Confirmação.

Suzanne estava hospedada lá.

 

13H15

Paul observou Alfred Grumer com seus olhos de advogado, examinando cada faceta do rosto, avaliando alguma reação, calculando uma resposta provável. Ele, McKoy, Grumer e Rachel estavam de volta ao barracão do lado de fora da mina. A chuva batia no teto de zinco. Quase três horas tinham se passado desde a descoberta inicial, e o humor de McKoy, como o tempo, só havia piorado.

- Que porra está acontecendo, Grumer? - perguntou McKoy.

O alemão estava empoleirado num banco.

- Há duas explicações possíveis. Uma: os caminhões estavam vazios quando foram postos na caverna. Duas: alguém chegou antes de nós.

- Como alguém poderia ter chegado antes de nós? Demoramos quatro dias para abrir caminho até aquela câmara e a outra saída está lacrada com toneladas de merda.

- A violação pode ter acontecido há muito tempo.

McKoy respirou fundo.

- Grumer, 28 pessoas chegarão aqui amanhã. Elas investiram uma porrada de dinheiro nesse buraco de rato. O que vou dizer? Que alguém chegou antes?

- Contra os fatos não há argumentos.

McKoy saltou da cadeira, com fúria nos olhos. Rachel o interrompeu:

- De que vai adiantar isso?

- Faria com que eu me sentisse muito melhor.

- Sente-se - disse Rachel.

Paul reconheceu a voz que ela usava no tribunal. Firme. Um tom que não permitia qualquer dúvida. Um tom que ela usara muitas vezes na casa dos dois.

O grandalhão recuou.

- Meu Deus. Isso é uma tremenda merda. - E sentou-se. - Parece que talvez eu precise de um advogado. A juíza aqui certamente não pode ser. Está disponível, Cutler?

Paul balançou a cabeça, negativamente.

- Eu trabalho com sucessões. Mas minha empresa tem bons litigantes e especialistas em direito contratual.

- Eles estão do outro lado da poça e você está aqui. Adivinhe quem foi eleito?

- Presumo que todos os investidores tenham assinado documentos reconhecendo o risco, não é? - perguntou Rachel.

- E isso vai adiantar muito! Essas pessoas têm dinheiro e advogados. Na semana que vem, estarei afundado até a cintura nessa porcaria jurídica. Ninguém vai acreditar que eu não sabia que esse era um buraco seco.

- Não concordo - disse Rachel. - Por que alguém presumiria que você escavaria se não houvesse o que encontrar? Parece suicídio financeiro.

- Talvez aquele pequeno pagamento de cem mil dólares que eu recebo, quer encontremos alguma coisa ou não.

Rachel se virou para Paul.

- Talvez você devesse ligar para a empresa. Esse cara realmente precisa de um advogado.

- Olhem, vamos deixar uma coisa clara - disse McKoy. - Eu tenho uma empresa para administrar. Não vivo disso aqui. É caro fazer esse tipo de merda. Na última escavação, eu cobrei o mesmo e voltei com muito mais. Os investidores tiveram um bom retorno. Ninguém reclamou.

- Desta vez, não - disse Paul. - A não ser que aqueles caminhões valham alguma coisa, o que duvido. E isso presumindo que você ao menos pudesse tirá-los de lá.

- E não pode - disse Grumer. - É impossível sair daquela outra caverna. Custaria milhões para abrir caminho.

- Foda-se, Grumer.

Paul olhou para McKoy. A expressão do sujeito enorme era familiar, uma mistura de resignação e preocupação. Muitos clientes tinham essa aparência num momento ou em outro. Mas, na verdade, ele queria ficar. Na mente, viu Grumer na caverna de novo, apagando as letras na areia.

- Certo, McKoy. Se quer minha ajuda, farei o possível.

Rachel lhe deu um olhar estranho, e os pensamentos dela eram fáceis de decifrar. Ontem ele quisera ir para casa e deixar toda a intriga para as autoridades. No entanto, aqui estava, oferecendo-se para representar Wayland McKoy, pilotando sua própria carruagem de fogo pelo céu diante de forças aleatórias que não entendia e não podia controlar.

- Ótimo - disse McKoy. - Será bom ter ajuda. Grumer, faça alguma coisa útil e arranje quartos para esses dois no Garni. Ponha-os na minha conta.

Grumer não pareceu satisfeito em receber ordens, mas não questionou e foi até o telefone.

- O que é o Garni? - perguntou Paul.

- O hotel onde estamos hospedados.

Paul sinalizou para Grumer.

- Ele também está lá?

- Onde mais estaria?

Paul ficou impressionado com Stod. Era uma cidade considerável, entrelaçada de ruas veneráveis que pareciam tiradas diretamente da Idade Média. Fileiras e mais fileiras de construções com estrutura de enxaimel ladeavam as vias calçadas de pedras, apertadas como livros numa estante. Acima de tudo, uma monstruosa abadia dominava uma montanha íngreme - as encostas cobertas de lariços e faias explodindo numa floração de primavera.

Ele e Rachel seguiram de carro atrás de Grumer e McKoy. O caminho serpenteava para dentro da cidade antiga, terminando logo à frente do hotel Garni. Um pequeno estacionamento reservado para hóspedes ficava mais adiante na rua, perto do rio, fora da área de pedestres.

No hotel, ficou sabendo que o grupo de McKoy dominava o quarto andar. Todo o terceiro andar já fora reservado para os investidores que chegariam no dia seguinte. Depois de alguma discussão da parte de McKoy e de alguns euros postos na mão, o funcionário disponibilizou um quarto no segundo andar. McKoy perguntou se eles queriam um ou dois quartos, e Rachel respondeu imediatamente:

- Um.

Lá em cima, a mala de Paul mal havia encostado na cama quando Rachel disse:

- Certo, o que está armando, Paul Cutler?

- O que você está armando? Um quarto? Achei que éramos divorciados. Você sempre me lembra disso.

- Paul, você está tramando alguma coisa, e não vou deixá-lo fora da minha vista. Ontem você estava fazendo tudo para ir embora. Agora quer representar esse cara? E se ele for trambiqueiro?

- Mais motivo ainda para precisar de advogado.

- Paul...

Ele sinalizou para a cama de casal.

- Dia e noite?

- O quê?

- Vai ficar de olho em mim dia e noite?

- Não há nada que nós não tenhamos visto antes. Fomos casados por sete anos.

Ele sorriu.

- Acho que vou gostar dessa intriga.

- Vai me dizer o que é?

Ele se sentou na beira da cama e contou o que havia acontecido na câmara subterrânea, depois mostrou a carteira, que tinha mantido durante toda a tarde no bolso de trás.

- Grumer apagou as letras de propósito. Sem dúvida. Aquele cara está armando alguma coisa.

- Por que não contou ao McKoy?

Ele deu de ombros.

- Não sei. Pensei nisso. Mas, como você disse, ele pode ser trambiqueiro.

- Tem certeza de que as letras eram O-I-C?

- Pelo que pude ver.

- Acha que tem alguma coisa a ver com papai e a Sala de Âmbar?

- Por enquanto não há conexão, só que Karol estava muito interessado no que McKoy fazia. Mas isso não significa necessariamente nada.

Rachel sentou-se ao lado dele. Paul notou os cortes e arranhões nos braços e no rosto.

- Esse tal de McKoy se ligou à gente muito rapidamente - disse ela.

- Talvez sejamos tudo o que ele tem. Ele não parece gostar muito do Grumer. Não passamos de dois estranhos que caíram de pára-quedas. Não temos interesse em nada. Nenhum objetivo oculto. Acho que fomos considerados seguros.

Rachel segurou a carteira e examinou atentamente os pedaços de papel em decomposição.

- Ausgegeben 15-3-51. Verfällt 15-3-55. Gustav Müller. Será que devemos arranjar alguém para traduzir?

- Não é uma boa idéia. Neste momento, não confio em ninguém, com exceção da companhia atual, claro. Sugiro que encontremos um dicionário alemão-inglês e vejamos por nós mesmos.

A dois quarteirões do Garni, encontraram um dicionário numa entulhada loja de presentes, um volume fino aparentemente impresso para turistas, com palavras e expressões comuns.

- Ausgegeben significa "emitida" - disse ele. - Verfällt, "expira", "termina". - Olhou para Rachel. - Os números têm de ser datas. Emitida em 15 de março de 1951. Expira em 15 de março de 1955. Gustav Müller.

- Isso é pós-guerra. Grumer estava certo. Alguém chegou antes de McKoy e pegou o que estava lá. Em algum momento depois de março de 1951.

- Mas o quê?

- Boa pergunta.

- Tinha de ser sério. Cinco corpos com buracos na cabeça?

- E importante. Os três caminhões estavam limpos. Não restava absolutamente nada para encontrar.

Ele pôs o dicionário de novo na estante.

- Grumer sabe de alguma coisa. Por que ter o trabalho de tirar fotos e depois apagar as letras? O que ele estava documentando? E para quem?

- Será que deveríamos contar a McKoy?

Ele pensou na sugestão e disse:

- Acho que não. Pelo menos por enquanto.

 

22H

Suzanne empurrou uma cortina de veludo que separava a galeria e o portal externos da nave interior. A igreja de São Gerhard estava vazia. Uma enorme placa do lado de fora proclamava que o santuário ficava aberto até as 23h, motivo principal para ela ter escolhido o lugar para o encontro. O outro era a localização: alguns quarteirões da área de hotéis, na fronteira da cidade antiga, longe da multidão.

A arquitetura do prédio era claramente românica, com muito tijolo e uma fachada alta adornada por torres gêmeas. Simetrias claras dominavam. Arcadas cegas criavam padrões alegres. Um coro lindamente adornado se estendia na extremidade mais distante. O altar alto, a sacristia e os bancos do coro estavam vazios. Algumas velas ardiam num altar lateral, com o brilho parecendo estrelas na ornamentação dourada, no alto.

Ela se adiantou e parou na base de um púlpito dourado. Figuras cinzeladas dos Quatro Evangelistas a envolviam. Olhou os degraus que subiam. Mais figuras enfeitavam os dois lados. Alegorias de valores cristãos. Fé, Esperança, Caridade, Prudência, Fortaleza, Temperança e Justiça. Reconheceu o escultor imediatamente. Riemenschneider. Século XVI. O púlpito acima estava vazio. Mas ela podia imaginar o bispo se dirigindo à congregação, exaltando as virtudes de Deus e as vantagens de acreditar.

Esgueirou-se até a extremidade mais distante da nave, com olhos e ouvidos alertas. O silêncio era irritante. A mão direita estava enfiada no bolso do casaco, os dedos sem luvas envolvendo uma Sauer .32 automática, presente de Loring há três anos, tirada de sua coleção particular. Quase havia trazido a nova CZ-75B que Loring lhe dera. Fora sugestão dela que Christian recebesse uma idêntica. Loring tinha sorrido da ironia. Uma pena Knoll não ter tido chance de usar a dele.

O canto de seu olho captou um movimento súbito. Os dedos se apertaram no cabo da arma e ela girou. Um homem alto e magro passou por uma cortina e veio em sua direção.

- Margarethe? - perguntou ele em voz baixa.

- Herr Grumer?

O sujeito assentiu e se aproximou. Cheirava a cerveja amarga e salsicha.

- Isto é perigoso - disse ele.

- Ninguém sabe de nosso relacionamento, Herr Doktor. O senhor simplesmente precisou vir à igreja falar com seu Deus.

- Precisamos manter a coisa assim.

A paranóia dele não a preocupava.

- O que descobriu?

Grumer enfiou a mão sob o paletó e pegou cinco fotografias. Ela as examinou à luz fraca. Três caminhões. Cinco corpos. Letras na areia.

- Os veículos estão vazios. Há outra entrada para a câmara, bloqueada com entulho. Os corpos são definitivamente do pós-guerra. As roupas e os equipamentos revelam isso.

Ela sinalizou para a foto que mostrava letras na areia.

- Como isso foi resolvido?

- Com um movimento da minha mão.

- Então por que fotografou?

- Para você acreditar em mim.

- E para poder elevar seu preço?

Grumer sorriu. Ela odiou a palidez da cobiça.

- Mais alguma coisa?

- Dois americanos apareceram no local.

Ela ouviu Grumer contar sobre Rachel e Paul Cutler.

- A mulher esteve envolvida na explosão perto de Warthberg. Os dois fizeram McKoy pensar na Sala de Âmbar.

O fato de Rachel Cutler ter sobrevivido era interessante.

- Ela disse alguma coisa sobre outro sobrevivente à explosão?

- Só que houve um. Um tal de Christian Knoll. Ele saiu de Warthberg depois da explosão e levou os pertences de Frau Cutler.

A guarda dela subitamente se enrijeceu. Knoll estava vivo. A situação, que até um momento atrás parecia totalmente sob controle, agora ficava amedrontadora. Mas precisava completar a missão.

- McKoy ainda ouve você?

- O quanto quiser. Ele ficou perturbado com o fato de os caminhões estarem vazios. Tem medo de que os investidores o processem. Contratou a assistência jurídica de Herr Cutler.

- Eles são estrangeiros.

- Mas acredito que McKoy confia mais neles do que em mim. Além disso, os Cutler têm cartas trocadas entre o pai de Frau Cutler e um homem chamado Danya Chapaev a respeito da Sala de Âmbar.

Notícia velha. As mesmas cartas que ela lera no escritório de Paul Cutler. Mas precisava fingir interesse.

- Você viu as cartas?

- Vi.

- Quem está com elas agora?

- Frau e Herr Cutler.

Uma ponta solta que precisava de atenção.

- A obtenção das cartas poderia aumentar consideravelmente o valor do seu trabalho.

- Foi o que pensei.

- E qual é o seu preço, Herr Grumer?

- Cinco milhões de euros.

- O que o faz valer isso?

Grumer indicou as fotos.

- Creio que elas mostram minha boa-fé. É uma evidência clara de saque pós-guerra. Não é isso que seu patrão busca?

Ela não respondeu à pergunta, meramente dizendo:

- Vou informar o preço.

- A Ernst Loring?

- Nunca falei para quem trabalho, e isso não deveria importar. Pelo que sei da situação, ninguém relatou a identidade de meu benfeitor.

- Mas o nome de Herr Loring foi mencionado pelos Cutler e pelo pai de Frau Cutler.

O sujeito estava rapidamente se tornando outra ponta solta que teria de ser amarrada. Assim como os Cutler. Quantas mais haveria?

- Não preciso dizer que as cartas são importantes - disse ela -, bem como o que McKoy está fazendo. Assim como o tempo. Quero isso resolvido depressa e estou disposta a pagar pela rapidez.

Grumer inclinou a cabeça.

- Amanhã seria suficientemente rápido para as cartas? Os Cutler estão hospedados no Garni.

- Eu gostaria de estar lá.

- Diga onde está hospedada, e eu ligo quando o caminho estiver livre.

- Estou no Gebler.

- Conheço o lugar. Terá notícias minhas por volta das oito da manhã.

A cortina na outra extremidade se abriu. Um prior com batina caminhou lentamente pelo corredor central. Ela olhou o relógio. Quase onze da noite.

- Vamos sair. Ele provavelmente veio fechar a igreja.

Knoll recuou para as sombras. Danzer e um homem saíram da igreja de São Gerhard através de portas de bronze esculpido e pararam no pórtico da frente, a menos de vinte metros de distância. A rua calçada de pedras estava escura e vazia.

- Terei uma resposta amanhã - disse Danzer. - Vamos nos encontrar aqui.

- Creio que não será possível. - O sujeito sinalizou para uma placa fixada à pedra perto do portal de bronze. - Há missas aqui às terças, às nove horas.

Danzer olhou o anúncio.

- Certo, Herr Grumer.

O sujeito sinalizou para o céu. A abadia brilhava em ouro e branco à luz dos refletores, de encontro à noite clara.

- A igreja de lá fica aberta até a meia-noite. Poucos visitam no fim do período. Que tal às dez e meia?

- Ótimo.

- E um adiantamento seria bom para mostrar a boa-fé de seu benfeitor. Que tal um milhão de euros?

Knoll não conhecia o sujeito, mas o idiota estava cometendo a burrice de pressionar Danzer. Ele respeitava a capacidade dela, e esse tal de Grumer também deveria. Obviamente era um amador que ela estava usando para descobrir o que Wayland McKoy fazia.

Ou haveria algo mais?

Um milhão de euros? Só de adiantamento?

O sujeito chamado Grumer desceu os degraus de pedra até a rua e virou para leste. Danzer foi atrás, mas virou para oeste. Knoll sabia onde ela estava hospedada - assim havia descoberto a igreja, seguindo-a a partir do Gebler. A presença de Suzanne certamente complicava as coisas, mas neste momento era o tal de Grumer que realmente o interessava.

Esperou que Suzanne Danzer desaparecesse virando a esquina e foi atrás do homem. Manteve-se recuado; foi fácil seguir o sujeito até o Garni.

Agora sabia.

E também sabia exatamente onde Suzanne Danzer estaria às dez e meia do dia seguinte.

 

Rachel apagou a luz do banheiro e foi para a cama. Paul estava deitado de barriga para cima lendo o International Herald Tribune que tinha comprado na loja de suvenires, quando haviam encontrado o dicionário alemão-inglês.

Pensou no ex-marido. Em divórcio após divórcio, via as pessoas adorando se destruir mutuamente. Cada detalhezinho da vida, que há anos eram sem importância, de repente se tornavam vitais para as afirmações de crueldade mental, de abuso ou simplesmente para provar que o casamento estava irrecuperavelmente perdido, como a lei exigia. Haveria realmente prazer naquilo? Como poderia? Felizmente, os dois não tinham feito isso. Ela e Paul resolveram as diferenças numa triste tarde de quinta-feira, sentados calmamente à mesa da sala de jantar. A mesma onde, na terça-feira anterior, Paul tinha lhe contado sobre seu pai e a Sala de Âmbar. Fora rude com ele na semana passada. Não havia necessidade de dizer que ele era covarde. Por que agia assim? Isso era muito diferente de seu comportamento no tribunal, onde cada palavra e cada ação eram calculadas.

- Sua cabeça ainda está doendo? - perguntou Paul.

Ela se sentou na cama. O colchão era firme, o edredom macio e quente.

- Um pouco.

A imagem de uma faca brilhante piscou em sua mente. Será que Knoll ia usar a lâmina contra ela? Será que estava fazendo a coisa certa não contando ao Paul?

- Temos de ligar para Pannik. Dizer o que está acontecendo e o que estamos fazendo aqui. Ele deve estar imaginando.

Paul ergueu o olhar do jornal.

- Concordo. Faremos isso amanhã. Primeiro vamos nos certificar se há alguma coisa aqui.

Ela pensou de novo em Christian Knoll. A segurança dele a havia intrigado e provocado sentimentos contidos há muito. Estava com 40 anos e tinha amado apenas o pai, tivera um romance curto na faculdade - que na época achou que fosse verdadeiro - e Paul. Não era virgem quando se casou com Paul, mas nenhum dos dois era experiente. Paul havia se mostrado um sujeito tímido, reservado, que facilmente se sentia confortável sozinho. Certamente não era nenhum Christian Knoll, mas era leal, fiel e honesto. Por que isso um dia lhe parecera tedioso? Seria sua própria imaturidade? Provavelmente. Marla e Brent adoravam o pai. E eram a prioridade dele. Difícil recriminar um homem por amar os filhos e ser fiel à mulher. Então o que aconteceu? Tinham se afastado? Era a explicação mais fácil. Mas seria verdade? Talvez fosse o preço do estresse. Deus sabia que os dois viviam sob pressão. Mas a preguiça parecia ser a explicação mais correta. Não querer simplesmente trabalhar no que ela sabia ser direito. Tinha lido a expressão - o desdém da familiaridade - que supostamente descrevia o que muitos casamentos produziam, infelizmente. Observação sensata.

- Paul, agradeço por você fazer tudo isso. Mais do que imagina.

- Eu estaria mentindo se dissesse que isso não é fascinante. Além do mais, posso conseguir um novo cliente para a empresa. Parece que Wayland McKoy vai precisar de advogado.

- Tenho a sensação de que o inferno vai correr solto aqui amanhã, quando os investidores chegarem.

Paul jogou o jornal no carpete.

- Acho que você está certa. A coisa pode ficar interessante. - Apagou a luz do abajur, deixando embaixo as cartas do pai dela e a carteira encontrada na escavação.

Rachel desligou o abajur do outro lado.

- Isso é realmente estranho - disse Paul. - Dormirmos juntos pela primeira vez em três anos.

Ela se enrolou sob o edredom, mantendo-se em seu lado da cama. Usava uma das camisas de mangas compridas dele, cheia do cheiro reconfortante que se recordava de sete anos de casamento. Paul se virou de costas para ela, aparentemente se certificando de lhe deixar espaço. Ela decidiu agir e chegou mais perto.

- Você é um homem bom, Paul Cutler.

Envolveu-o com o braço. Sentiu-o ficando tenso e se perguntou se era nervosismo ou choque.

- Você também não é nada má - respondeu ele.

 

TERÇA-FEIRA, 20 DE MAIO, 9H10

Paul seguiu Rachel pelo túnel úmido até a câmara onde estavam os três caminhões. No barracão, ficara sabendo que McKoy estava no subterrâneo desde as sete da manhã. Grumer ainda não havia aparecido no local, o que não era incomum, segundo o empregado de serviço, já que o alemão raramente chegava antes do meio-dia. Os dois entraram na câmara iluminada.

Paul se demorou um momento e examinou mais de perto os três veículos. Na empolgação da véspera, não houvera tempo para olhar detalhadamente. Todos os faróis, os retrovisores e pára-brisas estavam inteiros. As carrocerias cobertas com lonas também permaneciam relativamente intactas. Anão ser por uma pequena cobertura de ferrugem, os pneus enferrujados e a lona mofada, era como se os veículos pudessem sair agora mesmo de sua garagem rochosa.

Duas portas das cabines estavam abertas. Ele olhou dentro de uma. O banco de couro estava rasgado e quebradiço pela idade. Os mostradores do painel de instrumentos permaneciam silenciosos e imóveis. Nenhum pedaço de papel ou qualquer coisa tangível estava à vista. Ele se perguntou de onde os caminhões tinham vindo. Será que já haviam transportado tropas alemãs? Ou judeus indo para os campos de concentração? Será que tinham testemunhado o avanço russo sobre Berlim ou a chegada simultânea dos americanos vindos do ocidente? Estranha, essa visão surreal tão no fundo de uma montanha alemã.

Uma sombra surgiu de repente na parede de pedra, revelando movimento do outro lado do veículo mais distante.

- McKoy? - gritou ele.

- Aqui.

Paul e Rachel rodearam os caminhões. O grandalhão se virou para eles.

- Sem dúvida são NAG Büssing. Quatro toneladas e meia, a diesel. Seis metros de comprimento. Dois e vinte de largura. Três de altura. - McKoy se aproximou de um enferrujado painel lateral e bateu nele com o punho. Uma neve marrom-avermelhada flutuou até a areia embaixo, mas o metal ficou firme. - Aço e ferro sólidos. Essas coisas conseguem carregar quase sete toneladas. Mas são lentas como o inferno. Não fazem mais de trinta, quarenta quilômetros por hora.

- Aonde você quer chegar? - perguntou Rachel.

- Quero saber, meritíssima, se essas coisas desgraçadas foram usadas para carregar um bocado de quadros e vasos. Esses veículos eram preciosos. Serviam para o transporte de carga pesada. E os alemães certamente não os largaram simplesmente numa mina.

- O que significa que... - disse Rachel.

- Essa coisa toda não faz o mínimo sentido. - McKoy enfiou a mão no bolso e pegou um pedaço de papel dobrado e o entregou a Paul. - Preciso que você veja isso.

Paul desdobrou a folha e se aproximou de uma das barras de luz. Era um memorando. Ele e Rachel leram em silêncio.

 

CORPORAÇÃO ESCAVAÇÕES ALEMÃS

6798 Moffat Boulevard

Raleigh, Carolina do Norte 27615

 

Para: Sócios potenciais

De: Wayland McKoy, presidente

Re: Possua um pedaço da história e ganhe férias grátis na Alemanha

 

A Corporação Escavações Alemãs fica feliz em ser patrocinadora e sócia do programa detalhado a seguir, junto com as seguintes empresas colaboradoras: Chrysler Motor Company (Divisão Jeep), Coleman, Eveready, Hewlett-Packard, IBM, Saturn Marine, Boston Electric Tool Company e Olympus America, Inc.

Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, um trem saiu de Berlim carregado com 1.200 tesouros de arte. Chegou aos arredores da cidade de Magdeburg e então foi desviado para o sul, na direção das montanhas Harz, e jamais foi visto de novo. Temos uma expedição pronta para localizar e desenterrar esse trem.

Segundo as leis alemãs, os donos legítimos têm noventa dias para reivindicar suas obras de arte. As obras não reivindicadas são então leiloadas e cinqüenta por cento dos lucros vão para o governo alemão e cinqüenta por cento para a expedição e seus sócios patrocinadores. Um inventário do que havia no trem pode ser fornecido. O valor mínimo estimado das obras de arte é de 360 milhões de dólares - cinqüenta por cento dos quais vão para o governo. A quantia de 180 milhões, reservada aos sócios será dividida segundo as cotas compradas, menos as obras de arte reivindicadas pelos donos originais, os gastos com leilões, impostos etc.

Todo o investimento dos sócios será recuperado através dos direitos de mídia, vendidos antecipadamente. Todos os sócios e cônjuges serão nossos convidados à Alemanha para a expedição. Ou seja: nós já encontramos o local correto. Já temos o contrato. Temos a pesquisa. Vendemos a mídia. Temos experiência e equipamento para fazer a escavação. A Corporação Escavações Alemãs tem permissão de 45 dias para escavar. Até agora, os direitos de 45 cotas no valor de 25.000 dólares cada, para o estágio final da expedição (Fase III) foram vendidos. Temos cerca de 10 cotas de 15.000 dólares cada. Por favor, sinta-se à vontade para ligar para mim, caso esteja interessado nesse empolgante investimento.

Atenciosamente,

Presidente

Corporação Escavações Alemãs

 

- Foi o que mandei aos investidores potenciais - disse McKoy.

- O que quer dizer com "Todo o investimento dos sócios será recuperado através dos direitos de mídia, vendidos antecipadamente"? - perguntou Paul a McKoy.

- Exatamente o que diz. Algumas empresas pagaram pelos direitos de filmar e transmitir o que encontrarmos.

- Mas isso pressupõe encontrar alguma coisa. Elas não pagaram adiantado, pagaram?

McKoy balançou a cabeça.

- Não, merda.

- O problema - disse Rachel - é que você não informou isso na carta. Os sócios poderiam pensar, com todo o direito, que você já tem o dinheiro.

Paul apontou para o segundo parágrafo.

- "Temos uma expedição pronta para localizar e desenterrar esse trem." Isso faz parecer que você já o havia encontrado.

McKoy suspirou.

- Achei que tínhamos. O radar de solo disse que havia algo grande aqui dentro. - McKoy indicou os caminhões. - E há mesmo, droga.

- Isso é verdade? As 45 cotas a 25.000 dólares cada? - perguntou Paul. - Dá um milhão e 250 mil.

- Foi o que levantei. Depois vendi as cotas para mais 150 mil. Sessenta investidores no total.

Paul indicou a carta.

- Você os chama de sócios. Isso é diferente de investidor. McKoy riu.

- Soa melhor.

- Todas essas empresas citadas também investiram? -Forneceram equipamento por doação ou a taxas reduzidas. Portanto, de certo modo, sim. Mas não esperam nada em troca.

- Você balançou diante dos olhos deles quantias como 360 milhões de dólares, talvez metade indo para os investidores, isso não pode ser verdade.

- Mas é. É como os pesquisadores avaliam o material do museu de Berlim.

- Presumindo que as obras possam ser encontradas - disse Rachel. - Seu problema, McKoy, é que a carta pode gerar equívocos. Poderia até mesmo ser considerada fraudulenta.

- Já que vamos ser tão íntimos, por que vocês dois não me chamam de Wayland? E, mocinha, eu fiz o necessário para conseguir o dinheiro. Não menti a ninguém e não estava interessado em enganar essas pes¬soas. Queria escavar, e foi o que fiz. Não peguei um tostão, a não ser o que eles ficaram sabendo que eu teria como adiantamento.

Paul esperou uma censura pelo "mocinha", mas não houve.

- Então você tem outro problema - disse Rachel. - Não há sequer uma palavra nesta carta sobre qualquer pagamento de cem mil dólares para você.

- Todos foram informados. E, por sinal, você é um verdadeiro raio de sol em meio a esta tempestade.

Rachel não recuou.

- Você precisa ouvir a verdade.

- Olhem, metade desses cem mil foram para Grumer, pelo tempo e pelo trabalho dele. Foi ele que conseguiu a permissão do governo. Sem isso não haveria escavação. Fiquei com o resto em troca do meu tempo. Esta viagem está custando uma grana. E só pego a minha parte no final. As últimas cotas pagaram a mim e a Grumer, junto com nossas despesas. Se eu não tivesse levantado isso, estava preparado para pegar emprestado, para vocês verem como eu tinha certeza desse empreendimento.

Paul quis saber:

- Quando os sócios vão chegar?

- Vinte e oito, junto com os cônjuges, chegam depois do almoço. Foram todos os que aceitaram a viagem que oferecemos.

Paul começou a pensar como advogado, estudando cada palavra da carta, analisando a redação e a sintaxe. Será que a proposta era fraudulenta? Talvez. Ambígua? Sem dúvida. Será que deveria contar a McKoy sobre Grumer e mostrar a carteira? Explicar sobre as letras na areia? McKoy ainda era uma incógnita. Um estranho. Mas a maioria dos clientes também não era? Completos estranhos num minuto e confidentes no outro. Não. Decidiu ficar quieto e esperar um pouco mais para ver o que viria.

 

Suzanne entrou no Garni e subiu uma escada de mármore até o segundo andar. Grumer tinha ligado há dez minutos para dizer que McKoy e os Cutler tinham ido para o local da escavação. Grumer esperava no fim do corredor do segundo andar.

- Ali - disse ele. - Quarto 21.

Ela parou junto à porta de carvalho escuro, o portal gasto pelo tempo e o mau uso. A fechadura fazia parte da maçaneta, uma velha peça de latão manchado que aceitava uma chave comum. Sem tranca. Arrombar fechaduras nunca fora sua especialidade, por isso ela enfiou no portal a espátula de cartas apanhada na mesa do recepcionista e remexeu a ponta, facilmente afastando a lingüeta da placa. Abriu a porta.

- Cuidado com a busca. Não vamos anunciar nossa visita.

Grumer começou com os móveis. Ela foi até a bagagem e descobriu apenas uma bolsa de viagem. Revistou as roupas - a maioria de homem - e não encontrou nenhuma carta. Verificou o banheiro. Os objetos de toalete também eram quase todos de homem. Depois procurou nos lugares mais óbvios. Embaixo do colchão e da cama, em cima do armário, embaixo das gavetas e das mesinhas-de-cabeceira.

- As cartas não estão aqui - disse Grumer.

- Procure de novo.

Procuraram. Desta vez não se importando com a arrumação. Quando terminaram, o quarto estava uma bagunça. Mas nada das cartas. Sua paciência estava se esgotando.

- Vá para o local da escavação, Herr Doktor, e encontre essas cartas, caso contrário não receberá sequer um euro. Entendido?

Grumer pareceu sentir que ela não estava de bom humor, e apenas assentiu antes de sair.

 

BURG HERZ

10H45

Knoll penetrou mais fundo o membro ereto. Monika estava de quatro, de costas para ele, a bunda firme arqueada para o alto, a cabeça enfiada num travesseiro de penas de ganso.

- Ande, Christian. Mostre o que aquela vaca da Geórgia perdeu.

Knoll se movimentou com mais força, o suor brotando na testa. Ela estendeu a mão para trás e massageou gentilmente os bagos dele. Sabia exatamente como excitá-lo. E só esse fato já o incomodava. Monika o conhecia bem demais.

Agarrou a cintura fina dela com as duas mãos e torceu o corpo para a frente. Ela aceitou o gesto e suspirou como um gato depois de uma matança satisfatória. Knoll sentiu-a gozar um instante depois, um gemido fundo confirmando o deleite. Moveu-se por mais alguns segundos e gozou também. Ela continuou a massagem nos testículos, ordenhando cada gota de seu prazer.

Nada mau, pensou ele. Nada mau mesmo.

Ela o soltou. Knoll saiu de dentro e relaxou na cama. Monika ficou deitada ao lado, de barriga para baixo. Ele recuperou o fôlego e deixou que os últimos espasmos do orgasmo o atravessassem. Manteve o corpo imóvel, não dando à vaca a satisfação de saber que ele havia gostado.

- Muitíssimo melhor do que uma advogada vagabunda, hein?

Ele deu de ombros.

- Não pude experimentar.

- E aquela puta italiana que você cortou? Era boa?

Knoll beijou o dedo indicador e o polegar dela.

- Buona. Valia bem o que quer que ela cobrasse.

- E Suzanne Danzer?

O ressentimento era claro.

- Esse ciúme não condiz com você.

- Não se sinta lisonjeado.

Monika se apoiou num dos cotovelos. Estava esperando no quarto de Knoll quando ele chegou, há uma hora. O Burg Herz ficava a apenas uma hora a oeste de Stod. Ele havia retornado à base para mais instruções, decidindo que uma conversa cara a cara com o patrão era melhor do que pelo telefone.

- Não entendo, Christian. O que você vê em Danzer? Você prefere as coisas boas da vida, e não um objeto de caridade, criado por Loring.

- Esse objeto de caridade, como você diz, formou-se com honras na Universidade de Paris. Fala uma dúzia de línguas, pelo que sei. É bem versada nas artes e sabe disparar uma pistola com precisão de especialista. Além disso, é bonita e trepa muito bem. Eu diria que Suzanne tem credenciais admiráveis.

- Como a de suplantar você?

Ele riu.

- Tenho de dar crédito ao diabo, sim. Mas a vingança será o inferno.

- Não transforme isso numa coisa pessoal, Christian. A violência atrai atenção demais. O mundo não é seu parque de diversões particular.

- Conheço bem meus deveres e meus limites.

Monika lhe deu um sorriso torto, um sorriso do qual ele jamais gostara. Parecia decidida a tornar isto o mais difícil possível. Era bem mais fácil quando Fellner comandava o show. Agora os negócios se misturavam com o prazer. Talvez não fosse uma idéia muito boa.

- Papai deve ter terminado a reunião. Ele disse para irmos ao escritório.

Knoll levantou-se.

- Então não vamos fazê-lo esperar.

 

Seguiu Monika até o escritório do pai dela. O velho estava sentado atrás de uma mesa de nogueira, do século XVIII, que havia comprado em Berlim há duas décadas. Tragava um cachimbo de marfim com biqueira de âmbar, outra rara peça de colecionador que já pertencera a Alexandre II da Rússia, liberada de outro ladrão na Romênia.

Fellner parecia cansado e Knoll esperava que o tempo que os dois ainda tinham juntos não fosse curto. Seria uma pena. Sentiria falta da conversa sobre literatura e arte clássicas, junto com os debates políticos. Tinha aprendido muito nos anos passados no Burg Herz - uma formação profissional obtida enquanto percorria o mundo procurando tesouros perdidos. Apreciava a oportunidade, grato pela vida, decidido a fazer até o fim o que o velho desejava.

- Christian. Bem-vindo. Sente-se. Conte tudo que aconteceu. - O tom de Fellner era cheio de animação, o rosto iluminado por um sorriso caloroso.

Knoll e Monika se sentaram. Ele informou o que ficara sabendo sobre Danzer e seu encontro na noite anterior com um homem chamado Grumer.

- Eu o conheço - disse Fellner. - Herr Doktor Alfred Grumer. Uma puta acadêmica. Passa de universidade a universidade. Mas tem conexões no governo alemão e vende essa influência. Não é de surpreender que um homem como McKoy se ligue a ele.

- Obviamente, Grumer é a fonte de Danzer na área de escavação - disse Monika.

- Concordo - respondeu Fellner. - E Grumer não estaria lá se não houvesse lucro. Isso pode ser mais interessante do que pensei a princípio. Ernst está bem interessado. Ele ligou de novo hoje cedo, fazendo perguntas. Aparentemente, está preocupado com sua saúde, Christian. Eu lhe disse que não tínhamos notícias suas há dias.

- Tudo isso certamente se ajusta ao quadro geral - disse Knoll.

- Que quadro? - perguntou Monika.

Fellner riu para a filha.

- Talvez seja hora, liebling, de você saber de tudo. O que acha, Christian?

Monika pareceu perturbada. Knoll adorou sua confusão óbvia. A vaca precisava perceber que não sabia de tudo.

Fellner abriu uma das gavetas e tirou uma grossa pasta de papel.

- Christian e eu seguimos isso durante anos. - Sobre a mesa, espalhou uma quantidade de recortes de jornais e revistas.

"A primeira morte de que temos notícia aconteceu em 1957. Um repórter alemão, de um dos meus jornais de Hamburgo. Ele veio aqui pedindo uma entrevista. Eu dei. O sujeito era notavelmente bem informado, e uma semana depois foi atropelado por um ônibus em Berlim. Testemunhas juraram que ele foi empurrado.

"A morte seguinte aconteceu dois anos depois. Outro repórter. Italiano. Um carro o forçou a sair de uma estrada nos Alpes. Mais duas mortes em 1960: uma overdose de drogas e um assalto que deu errado. De 1960 a 1970, houve mais uma dúzia por toda a Europa. Repórteres, investigadores de seguros, da polícia. Os falecimentos iam de supostos suicídios a três assassinatos explícitos.

"Minha cara, todas essas pessoas estavam procurando a Sala de Âmbar. Os predecessores de Christian, meus dois primeiros adquirentes, ficavam de olho na imprensa. Qualquer coisa que parecesse relacionada era investigada em detalhes. Nos anos setenta e oitenta, os incidentes diminuíram. Só soubemos de seis durante esses vinte anos. O último foi um repórter polonês morto numa explosão numa mina há três anos. - Fellner olhou para Monika. - Não tenho certeza da localização exata, mas era perto de onde aconteceu o incidente com Christian.

- Aposto que era a mesma mina - disse Knoll.

- Muito estranho, não diria? Christian encontra um nome em São Petersburgo, Karol Borya, e a próxima notícia que temos é que o sujeito está morto, assim como seu antigo colega. Liebling, Christian e eu pensamos há muito tempo que Loring sabe muito mais sobre a Sala de Âmbar do que quer admitir.

- O pai dele adorava âmbar - disse Monika. - E ele também.

- Josef era um homem cheio de segredos. Mais do que Ernst. Era difícil saber o que ele pensava. Conversamos muitas vezes sobre a Sala de Âmbar. Uma vez cheguei a oferecer um empreendimento conjunto, uma busca total aos painéis, mas ele recusou. Disse que era perda de tempo e dinheiro. Mas alguma coisa em suas negativas me incomodou. Por isso comecei a manter este dossiê, verificando tudo que pudesse. Fiquei sabendo que houve mortes demais, coincidências demais para que fosse aleatório. Agora Suzanne está tentando matar Christian. E pagando um milhão de euros por meras informações sobre uma escavação em busca de tesouros. - Fellner balançou a cabeça. - Eu diria que a pista que achávamos que estava gelada esquentou consideravelmente.

Monika sinalizou para os recortes espalhados na mesa.

- Vocês acham que todas essas pessoas foram assassinadas?

- Há alguma outra conclusão lógica? - perguntou Fellner. Monika se aproximou da mesa e folheou os artigos.

- Nós estávamos indo na direção certa, com o Borya, não estávamos?

- Eu diria que sim - disse Knoll. - De que modo, não sei. Mas foi o bastante para Suzanne matar Chapaev e tentar me eliminar.

- Aquele local de escavação pode ser importante - disse Fellner. - Acho que a hora da conversa e da brincadeira acabou. Você tem minha permissão para cuidar da situação como quiser, Christian.

Monika encarou o pai.

- Achei que eu estaria no comando.

Fellner sorriu.

- Você deve conceder ao velho esta última busca. Christian e eu trabalhamos nisso durante anos. Acho que devemos estar muito próximos de alguma coisa. Peço sua permissão, liebling, para me intrometer em seus domínios.

Monika conseguiu dar um sorriso débil, claramente insatisfeita. Mas o que ela poderia dizer, pensou Knoll? Jamais havia desafiado abertamente o pai, ainda que, em particular, muitas vezes liberasse a fúria contra a paciência perpétua dele. Fellner fora criado na velha escola, em que os homens dominavam e as mulheres davam à luz. Comandava um império financeiro que dominava o mercado de comunicações na Europa. Políticos e industriais cortejavam seus favores. Mas a esposa e o filho estavam mortos, e Monika era a única Fellner que restava. Por isso ele fora obrigado a moldar uma mulher à sua imagem do que era um homem. Por sorte, ela era forte. E inteligente.

- Claro, papai. Faça como quiser.

Fellner estendeu a mão e cobriu a da filha.

- Sei que você não entende. Mas eu a amo por sua deferência. Knoll não pôde resistir.

- Essa é uma coisa nova.

Monika lançou-lhe um olhar duro.

Fellner deu um risinho.

- Certíssimo, Christian. Você a conhece bem. Vocês dois formarão uma tremenda equipe.

Monika recuou para uma poltrona.

- Christian - disse Fellner - volte a Stod e descubra o que está acontecendo. Cuide de Suzanne como quiser. Antes de morrer, quero saber sobre a Sala de Âmbar, de um modo ou de outro. Se tiver alguma dúvida, lembre-se daquele túnel na mina e de seus dez milhões de euros.

Ele se levantou.

- Garanto que não me esquecerei de nenhuma das duas coisas.

 

STOD

13H45

O grandioso salão do Garni estava cheio. Paul se manteve de lado, perto de Rachel, assistindo ao desdobramento do drama. Certamente, se o cenário contasse, a decoração da sala ajudaria Wayland McKoy. Mapas coloridos da Alemanha, com molduras grossas, estavam pendurados nas paredes forradas de painéis de carvalho. Um lustre de latão, cadeiras antigas e polidas e um elaborado tapete oriental completavam a atmosfera.

Cinqüenta e seis pessoas ocupavam as cadeiras, com rostos que eram uma mistura de espanto e exaustão. Tinham sido trazidas de ônibus, direto de Frankfurt, depois de pousar há quatro horas. As idades variavam de trinta e poucos a sessenta e tantos anos. As raças também variavam. A maioria era de brancos, com dois casais negros, ambos idosos, e um par de japoneses. Todos pareciam ansiosos e cheios de expectativa.

McKoy e Grumer estavam de pé na frente da sala comprida, junto com cinco empregados da escavação. Havia uma televisão com um aparelho de videocassete sobre um suporte de metal. Dois homens de aparência sombria sentavam-se ao fundo, segurando cadernos, e pareciam repórteres. McKoy quis excluí-los, mas ambos mostraram identificações da ZDF, uma organização jornalística alemã que tinha comprado as opções para a matéria, e insistiram em ficar.

- Só tenha cuidado com o que diz - alertara Paul.

- Bem-vindos, sócios - disse McKoy, sorrindo como um evangelizador de TV. O murmúrio de conversas foi diminuindo.

- Temos café, suco e salgadinhos lá fora. Sei que vocês fizeram uma longa viagem e estão cansados. Jet lag é um inferno, não é? Mas tenho certeza de que todos estão ansiosos para saber como vão as coisas.

A abordagem direta fora idéia de Paul. McKoy era a favor de embromar, mas Paul tinha argumentado que isso somente levantaria suspeitas. "Mantenha a voz agradável e amena", tinha alertado. "Nada de 'porra' a cada duas palavras, como ouvi ontem, certo?" McKoy garantiu repetidamente que era bem treinado e sabia muito bem cuidar de uma platéia.

- Sei que a pergunta está na mente de todos vocês. Será que encontramos alguma coisa? Não, ainda não. Mas ontem fizemos progressos. - Ele sinalizou para Grumer. - Este é Herr Doktor Alfred Grumer, professor de antigüidades artísticas da Universidade de Mainz. Herr Doktor é nosso especialista residente na escavação. Deixarei que ele explique o que aconteceu.

Grumer se adiantou, aparentando a imagem de um professor idoso, com paletó de tweed de lã, calça de veludo cotelê e gravata de tricô. Ficou parado com a mão direita enfiada no bolso da calça, o braço esquerdo livre. Com um sorriso cativante, disse:

- Pensei em contar um pouquinho sobre como este empreendimento começou.

"Saquear tesouros de arte é uma tradição honrada pelo tempo. Os gregos e romanos sempre tiravam todos os objetos valiosos das nações derrotadas. Os cruzados, nos séculos XIV e XV, saquearam toda a Europa Oriental e o Oriente Médio. As igrejas e catedrais da Europa Ocidental ainda são adornadas com as pilhagens feitas por eles.

"No século XVII, leve início um método de roubo mais refinado. Depois de uma derrota militar, as grandes coleções reais - na época não havia museus - eram compradas, e não roubadas. Um exemplo: quando os exércitos czaristas ocuparam Berlim, em 1757, as coleções de Frederico II não foram tocadas. Mexer com elas seria considerado atitude bárbara, mesmo por parte dos russos, considerados bárbaros pelos europeus.

"Napoleão talvez tenha sido o maior saqueador de todos. Museus da Alemanha, da Espanha e da Itália foram limpos para que o Louvre pudesse ser entulhado. Depois de Waterloo, no congresso de Viena, em 1815, a França recebeu a ordem de devolver as obras de arte roubadas. Algumas foram, mas muitas permaneceram como propriedade da França e ainda podem ser vistas em Paris."

Paul ficou impressionado ao ver como Grumer se portava. Como um professor numa sala de aula. O grupo parecia fascinado com as informações.

- Durante a Guerra Civil, o presidente de vocês, Lincoln, emitiu uma ordem pedindo a proteção das obras de arte clássicas, das bibliotecas, das coleções científicas e dos monumentos preciosos do Sul. Uma conferência em Bruxelas, em 1874, endossou uma proposta semelhante. Nicolau H, o czar russo, propôs proteções ainda mais ambiciosas, que foram aprovadas em Haia, em 1907, mas esses códigos se mostraram de valor limitado durante as duas guerras mundiais que se seguiram.

"Hitler ignorou completamente a Convenção de Haia e imitou Napoleão. Os nazistas criaram todo um departamento administrativo que não fazia nada além de roubar. Hitler queria montar um super-local de exposições, o Führermuseum, para a maior coleção de arte do mundo. Pretendia situar o museu em Linz, na Áustria, seu local de nascimento. Hitler a chamava de Sonderauftrag Linz. Missão Especial Linz. Ia se tornar o coração do Terceiro Heich, projetada pelo próprio Führer.

Grumer parou um momento, aparentemente deixando que as informações fossem absorvidas.

- Mas, para Hitler, o saque servia a outro propósito. Desmoralizava o mirnigo, e isso foi especialmente verdadeiro na Rússia, onde os palácios imperiais ao redor de Leningrado foram dizimados à vista dos moradores locais. Desde os godos e os vândalos a Europa não havia testemunhado uma agressão tão odiosa contra a cultura humana. Museus de toda a Alemanha foram entulhados de arte roubada, em particular o de Berlim. Nos últimos dias da guerra, com os russos e americanos se aproximando, um trem carregado com essas obras de arte foi evacuado de Berlim em direção ao sul, até as montanhas Harz. Aqui, nesta região em que estamos agora.

A televisão foi ligada com uma imagem em panorâmica de uma cordilheira. Grumer apontou um controle remoto e pausou o vídeo numa cena de floresta.

- Os nazistas adoravam esconder as coisas no subsolo. As montanhas Harz, que agora nos rodeiam, foram amplamente usadas, já que eram os depósitos subterrâneos mais próximos de Berlim. Exemplos do que foi encontrado depois da guerra provam esse argumento. O tesouro nacional alemão estava escondido aqui, junto com mais de um milhão de livros, pinturas de todos os tipos e toneladas de esculturas. Mas talvez o lote mais estranho tenha sido encontrado não muito longe daqui. Uma equipe de soldados americanos informou ter achado uma parede de tijolos recente, com quase dois metros de espessura, quinhentos metros dentro da montanha. Ela foi removida, e uma porta de aço trancada esperava do outro lado.

Paul observou o rosto dos sócios. Estavam fascinados. Ele também.

- Ali dentro, os americanos encontraram quatro caixões enormes. Um era decorado com uma guirlanda e símbolos nazistas, tendo na lateral o nome Adolf Hitler. Bandeiras de regimentos alemães cobriam os outros três caixões. Um cetro e orbe de prata, duas coroas e espadas também foram encontrados. A coisa toda tinha uma arrumação teatral, como um templo. Imaginem o que aqueles soldados pensaram. Ali estava o túmulo de Hitler. Mas infelizmente não era. Em vez disso, os caixões continham os restos do marechal-de-campo Hindenburg, da esposa de Hindenburg, de Frederico, o Grande, e de Frederico Guilherme I.

Grumer apontou o controle remoto e liberou o vídeo. A imagem a cores passou para o interior da câmara subterrânea. McKoy tinha ido ao local mais cedo e refeito o vídeo da véspera, uma versão editada para ganhar algum tempo com os sócios. Agora Grumer usou esse vídeo para explicar a escavação, os três caminhões e os corpos. Cinqüenta e seis pares de olhos estavam grudados à tela.

- A descoberta desses caminhões é tremendamente empolgante. Sem dúvida algo de grande valor foi trazido para cá. Os caminhões eram preciosos, e deixar três deles numa montanha significava que havia muito em jogo. Os cinco corpos só fazem aumentar o mistério.

- O que o senhor encontrou dentro dos caminhões? - foi a primeira pergunta vinda da platéia.

McKoy se adiantou.

- Eles estão vazios.

- Vazios? - perguntaram várias pessoas ao mesmo tempo.

- Isso mesmo. As três carrocerias estavam vazias. - McKoy sinalizou para Grumer, que pôs outra fita de vídeo.

- Isso não é incomum - disse Grumer.

Uma imagem se rematerializou, uma área da câmara, intencionalmente não filmada na primeira fita.

- Isto mostra a outra entrada para a câmara. - Grumer apontou para a tela. - Achamos que pode haver outra câmara para além deste ponto. É onde vamos escavar agora.

- Está dizendo que os caminhões estão vazios? - perguntou um homem idoso.

Paul percebeu que essa era a parte difícil. As perguntas. A realidade. Mas tinham repassado tudo, ele e Rachel haviam preparado McKoy como uma testemunha antes de um julgamento. Paul tinha aprovado a estratégia de dizer que poderia haver outra câmara. Diabos, poderia mesmo. Quem sabe? Pelo menos isso manteria os sócios felizes por mais alguns dias, até que a equipe de McKoy pudesse escavar na outra entrada e ter certeza.

McKoy se esquivou bem dos desafios, e cada pergunta era respondida completamente e com um sorriso. O grandalhão estava certo. Ele sabia trabalhar uma platéia. Os olhos de Paul examinavam constantemente o salão espaçoso, tentando avaliar as reações individuais.

Até agora, tudo bem.

A maior parte dos sócios parecia satisfeita com as explicações.

Perto dos fundos da sala, junto à porta dupla que dava no saguão, ele notou uma mulher entrando. Era baixa, com cabelos louros de comprimento médio, e ficou na sombra, tornando difícil distinguir o rosto. Mas havia algo familiar nela.

- Paul-Cutler, que está ali, é o meu conselheiro jurídico - disse McKoy.

Ele se virou à menção de seu nome.

- O Sr. Cutler está disponível para ajudar o Herr Doktor Grumer e a mim, caso tenhamos alguma dificuldade legal na área de escavação. Não esperamos ter nenhuma, mas o Sr. Cutler, um advogado de Atlanta, ofereceu graciosamente seu tempo.

Paul sorriu para o grupo, desconfortável com as representações frouxas, mas sem poder dizer nada. Cumprimentou os presentes e se virou de novo para a porta.

A mulher havia sumido.

 

Suzanne saiu do hotel. Tinha visto e ouvido o suficiente. McKoy, Grumer e os dois Cutler estavam ali, aparentemente ocupados. Segundo sua contagem, cinco trabalhadores também se encontravam no salão. De acordo com as informações de Grumer, ainda havia mais duas pessoas na folha de pagamentos, provavelmente no local das escavações, montando guarda.

Tinha captado o olhar momentâneo de Paul, mas isso não deveria ser problema. Sua aparência física era muito diferente da semana anterior, no escritório dele em Atlanta. Por segurança, ela havia ficado nas sombras e se demorado apenas alguns instantes, o suficiente para ver o que estava acontecendo e fazer uma avaliação. Tinha se arriscado indo ao Garni, mas não confiava em Alfred Grumer. Ele era alemão demais, ganancioso demais. Um milhão de euros? O idiota devia estar sonhando. Será que achava seu benfeitor tão ingênuo assim?

Do lado de fora, voltou rapidamente ao Porsche, depois partiu para o leste, indo até a escavação, e parou no meio de um bosque denso, a cerca de meio quilômetro. Depois de uma caminhada rápida, encontrou um barracão de trabalho e a entrada da mina. Os geradores zumbiam do lado de fora. Não havia caminhões, carros ou pessoas à vista.

Entrou no túnel aberto e seguiu a trilha de lâmpadas até uma galeria semi-escurecida. Três barras de lâmpadas halógenas estavam apagadas, e a única iluminação disponível era a que escapava de uma enorme câmara mais adiante. Esgueirou-se e testou o ar acima da uma das lâmpadas. Estava quente. Olhou para baixo e descobriu que o trio de lâmpadas tinha sido desconectado da tomada.

Nas sombras do outro lado da galeria, captou o vislumbre de uma forma deitada de barriga para cima. Chegou perto. Havia um homem de macacão, caído na areia. Procurou a pulsação. Fraca, mas presente.

Olhou para a câmara através de uma abertura na rocha. Uma sombra dançava na parede mais distante. Ela se agachou e entrou. Nenhuma sombra traiu sua entrada, e a areia fina abafava cada passo. Decidiu não pegar a arma enquanto não visse quem estava ali.

Chegou ao caminhão mais próximo e se abaixou, olhando por baixo do chassi. Um par de pernas e botas estava ao lado do veículo mais distante. Os pés se moviam para a direita. Casuais, sem pressa. Sua presença obviamente não era notada. Ficou parada e decidiu permanecer anônima.

As pernas pararam perto da traseira do caminhão mais distante.

A lona estalou. Quem quer que fosse, devia estar olhando dentro da carroceria. Ela aproveitou o momento para passar pela frente do veículo mais próximo e correr até o capo do seguinte. Agora a pessoa estava parada diagonalmente a ela, do outro lado. Suzanne espiou com cuidado a figura a seis metros de distância.

Christian Knoll.

Um arrepio a atravessou.

 

Knoll verificou dentro da carroceria do último caminhão. Vazia. Os veículos tinham sido esvaziados. Não havia nada em nenhuma cabine ou carroceria. Mas quem fizera isso? McKoy? De jeito nenhum. Ele não ouvira nada na cidade sobre alguma descoberta significativa. Além disso, haveria restos. Caixotes. Material de embalagem. Mas não havia nada. E será que McKoy deixaria um local rico guardado apenas por Um homem dominado com facilidade, se tivesse encontrado uma fortuna em arte roubada? A explicação mais lógica era que os caminhões estavam vazios quando McKoy entrou na câmara. Mas como?

E os corpos. Seriam ladrões de décadas atrás? Talvez. Não havia nada incomum nisso. Muitas das câmaras de Harz tinham sido pilhadas, a maioria pelos exércitos americano e soviético que violaram a região depois da guerra, algumas mais tarde, por rapineiros e caçadores de tesouros antes que o governo passasse a controlar a área. Foi até um dos corpos e olhou para os ossos escurecidos. Todo o cenário era estranho. Por que Danzer estaria tão interessada no que obviamente não tinha importância? Interessada a ponto de cultivar uma fonte secreta que queria um milhão de euros apenas como adiantamento pelas informações.

Que tipo de informações?

Uma sensação o atravessou. Uma sensação na qual havia aprendido a confiar. Que, em Atlanta, lhe dissera que Danzer estava na sua pista. Que lhe dizia agora que havia mais alguém na câmara.

Disse a si mesmo para manter os movimentos casuais. Uma virada súbita espantaria o visitante. Em vez disso, caminhou lentamente por toda a extensão do veículo e guiou a pessoa mais para longe da entrada, colocando-se no meio do caminho. Mas o intruso evitou intencionalmente as barras de luzes, não permitindo que qualquer som¬bra traísse o movimento. Knoll parou e se agachou, olhando sob os veículos à procura de pernas e pés.

Não havia nenhum.

 

Suzanne estava de pé, rígida, ao lado de uma das rodas amassadas. Tinha seguido Knoll mais para o fundo da câmara e ouviu quando os passos dele pararam. Ele não estava se esforçando para ocultar os sons, e isso a preocupava. Será que a havia sentido? Como em Atlanta? Talvez estivesse olhando por baixo dos caminhões, como ela fizera. Nesse caso, não haveria o que ver. Mas ele não hesitaria por muito tempo. Suzanne não estava acostumada a um adversário assim. A maioria de seus opositores não tinham a esperteza de Christian Knoll. E assim que ele se certificasse de que era ela, seria o inferno. Sem dúvida ele já ficara sabendo sobre Chapaev, percebido que a mina era uma armadilha e reduzido para um a lista de possíveis suspeitos que teriam feito aquela armadilha.

O caminho de Knoll pela câmara também era motivo de preocupação.

Ele a estava guiando. O sacana sabia.

Suzanne sacou a pistola, envolvendo o dedo instantaneamente no gatilho.

 

Knoll virou o braço direito e liberou o punhal. Segurou o cabo de jade lavanda e se preparou. Olhou de novo por baixo dos caminhões. Não havia pés. Quem quer que fosse, obviamente tinha usado as rodas como proteção. Decidiu agir. Girou o corpo para longe do capo enferrujado do veículo mais próximo e pousou do outro lado.

Suzanne Danzer estava a seis metros de distância, grudada a uma das rodas traseiras. O choque tomou o rosto dela ao vê-lo. Sua arma se ergueu e mirou. Knoll saltou para a frente do veículo ao lado. Dois tiros abafados saíram do cano e as balas ricochetearam na parede de rocha.

Ele se levantou e atirou o punhal.

 

Suzanne mergulhou no chão, prevendo a faca. Era a marca registrada de Knoll, e a ponta havia brilhado à luz quando ele pousou para o primeiro ataque. Ela percebeu que seus tiros só serviriam para distraí-lo momentaneamente. Por isso, quando Knoll saltou, girou o punho e lançou a faca, ela estava preparada.

O punhal passou assobiando, cortando a lona petrificada da carroceria mais próxima. Atravessando a fina camada de tecido rígido até o cabo. Haveria apenas um segundo antes que ele atacasse. Ela disparou outro tiro na direção de Knoll. Mais uma vez, a bala só danificou a rocha.

- Desta vez, não, Suzanne - disse Knoll lentamente. - Você é minha.

- Você está desarmado.

- Tem certeza?

Ela olhou para a própria arma, imaginando quantas balas restariam no pente. Quatro? Seus olhos examinaram a caverna, a mente acelerada. Knoll estava entre ela e a única saída. Precisava de algo para imobilizar o sacana por tempo suficiente para escapar dessa ratoeira. Seus olhos examinaram as paredes de rocha, os caminhões e as luzes.

As luzes.

A escuridão seria sua aliada.

Tirou depressa o pente da pistola e substituiu pelo que estava no bolso. Agora tinha sete tiros. Apontou para a barra de luz mais próxima e disparou. As lâmpadas explodiram num chuveiro de fagulhas elétricas e fumaça. Levantou-se e correu para a abertura, disparando contra a outra barra de luz. Outra explosão ofuscante, depois a câmara foi mergulhada numa escuridão total. Ela estabeleceu o rumo no instante em que os últimos pontos de luz se apagavam e esperou correr em linha reta.

Caso contrário, uma parede de rocha estaria aguardando-a.

 

Knoll correu para o punhal quando a primeira barra de luz explodiu. Percebeu que só haveria mais alguns segundos de visão, e Danzer estava certa: sem a faca, ele estava desarmado. Uma pistola seria ótimo. Idiotamente havia deixado a CZ-75B no quarto do hotel, achando que não seria necessária para essa expedição rápida. Na verdade, preferia a furtividade de uma lâmina a uma arma de fogo, mas um pente de quinze tiros cairia bem neste momento.

Arrancou o punhal da lona e se virou. Danzer estava correndo para a abertura do túnel. Ele se preparou para outro lançamento.

Uma barra de luz explodiu num clarão ofuscante.

A câmara se congelou na escuridão.

 

Suzanne correu direto em frente e passou pela abertura que dava na galeria. Adiante, o túnel principal era cheio de lâmpadas. Ela se concentrou na claridade mais próxima e foi até lá, depois seguiu correndo pelo túnel estreito, usando a arma para estourar as lâmpadas, extinguindo a trilha.

 

Knoll foi ofuscado pelo último clarão. Fechou os olhos e disse a si mesmo para ficar parado, calmo. O quê, mesmo, Monika tinha dito sobre Danzer?

Objeto de caridade.

Nem de longe. Perigosa como o diabo era uma descrição melhor.

O cheiro acre de algo elétrico queimando encheu suas narinas. A câmara começou a esfriar com a escuridão. Abriu os olhos. O preto se dissolveu, e formas ainda mais escuras apareceram. Para além da abertura, depois da galeria que dava no túnel principal, luzes espocavam à medida que as lâmpadas explodiam.

Correu para elas.

Suzanne correu em direção à luz do dia. Passos ecoavam atrás. Knoll estava chegando, tinha de ser rápida. Saiu numa tarde obscura e correu pela floresta densa, em direção a seu carro. Esperava ter vantagem suficiente sobre Knoll para ganhar tempo. Talvez ele não soubesse em que direção ela havia ido, depois de sair do túnel.

Ziguezagueou passando por pinheiros altos, através de densas moitas de samambaias, ofegando, obrigando as pernas a continuarem se movendo.

 

Knoll saiu do túnel e rapidamente avaliou o ambiente. À direita, um lampejo de roupas surgiu brevemente através das árvores, a cinqüenta metros. Captou a forma da pessoa que corria.

Uma mulher.

Danzer.

Correu na direção dela, segurando o punhal.

 

Suzanne chegou ao Porsche e saltou dentro. Ligou o motor, colocou em primeira e pisou o acelerador até o fundo. Os pneus patinaram, depois se grudaram ao chão, e o carro saltou para a frente. Pelo retrovisor, viu Knoll sair das árvores segurando a faca.

Acelerou até a estrada e parou. Inclinou a cabeça para fora da janela e fez uma saudação, antes de partir a toda.

 

Knoll quase sorriu do gesto. A resposta à sua zombaria no aeroporto de Atlanta. Danzer provavelmente estava orgulhosa, satisfeita com a fuga, tinha-o suplantado de novo.

Olhou o relógio: 16h30.

Não importava.

Sabia exatamente onde ela estaria dentro de seis horas.

 

16H45

Paul viu o último sócio sair do salão. Wayland McKoy tinha sorrido para cada um deles, apertado suas mãos e garantido que as coisas seriam fantásticas. A reunião havia corrido bem. Durante quase duas horas tinham rechaçado as perguntas, temperando as respostas com noções românticas de nazistas cobiçosos e tesouros esquecidos, usando a história como um narcótico para embotar a curiosidade dos investidores.

McKoy se aproximou.

- O desgraçado do Grumer foi bastante bom, hein? - Agora Paul, McKoy e Rachel estavam sozinhos. Todos os sócios tinham subido, acomodando-se nos quartos. Grumer havia saído há alguns minutos.

- Grumer realmente se saiu bem - disse Paul. - Mas não me sinto confortável com essa embromação.

- Quem está embromando? Pretendo escavar aquela outra entrada, e ela pode levar a outra câmara.

Rachel franziu a testa.

- Seu radar de solo indica isso?

- Não sei de merda nenhuma, meritíssima.

Rachel recebeu a reação com um sorriso. Parecia estar gostando de McKoy, já que a atitude rude e a língua afiada não eram muito diferentes das dela.

- Vamos levar o grupo de ônibus ao local, amanhã, e deixar que eles dêem uma olhada - disse McKoy. - Isso deve nos garantir mais uns dias. Talvez tenhamos sorte com a outra entrada.

- E Papai Noel existe - disse Paul. - Você tem um problema, McKoy. Precisamos pensar em sua situação jurídica. Que tal eu contatar minha empresa e mandar um fax com aquela carta de solicitação? O departamento de litígio poderia dar uma olhada.

McKoy suspirou.

- Quanto isso vai me custar?

- Dez mil de adiantamento. Nós trabalhamos com esse dinheiro, ao valor de 250 à hora. Depois, a cobrança é por hora, pagas por mês, despesas por sua conta.

McKoy respirou fundo.

- Lá se vão meus cinqüenta mil. Ainda bem que não gastei. Paul se perguntou se seria a hora de McKoy saber sobre Grumer.

Será que deveria lhe mostrar a carteira? Falar das letras na areia? Talvez ele soubesse o tempo todo que a câmara estava vazia e simplesmente tivesse escondido a informação. O quê, mesmo, Grumer tinha dito na véspera? Algo sobre suspeitar que o local era seco. Talvez pudessem culpá-lo de tudo, um cidadão estrangeiro, e usar o argumento de confiança justificável. Se não fosse por Grumer, McKoy não teria escavado. Desse modo, os sócios seriam obrigados a processar Grumer nos tribunais alemães. Os custos iriam para as nuvens, talvez tornando o litígio economicamente inviável. Talvez um problema suficiente para fazer os lobos recuarem. Falou:

- Há outra coisa que eu preciso...

- Herr McKoy - disse Grumer, entrando rapidamente. - Houve um incidente no local da escavação.

Rachel examinou a cabeça do trabalhador. Um calombo do tamanho de um ovo de galinha brotava por trás do cabelo castanho grosso. Ela, Paul e McKoy estavam na câmara subterrânea.

- Eu estava ali parado - o homem indicou a galeria externa - e, quando dei por mim, tudo estava preto.

- Você não viu nem ouviu ninguém? - perguntou McKoy.

- Nada.

Os trabalhadores estavam ocupados substituindo as lâmpadas estouradas nas barras de luzes. Uma já estava acesa de novo. Rachel examinou o local. Lâmpadas quebradas no corredor e na câmara principal, uma lona de caminhão cortada na lateral.

- O cara deve ter me acertado por trás - disse o sujeito, esfregando a nuca.

- Como você sabe que era um cara? - perguntou McKoy.

-           Eu o vi - disse outro trabalhador. - Eu estava no barracão lá fora, estudando as rotas de túneis da área. Vi uma mulher sair correndo do túnel com uma arma na mão. Um homem saiu logo depois. Tinha uma faca. Os dois desapareceram no mato.

- Você foi atrás deles? - perguntou McKoy.

- Merda, não.

- Por que, diabos, não?

- Você me paga para escavar, não para ser herói. Eu vim para cá. O lugar estava preto que nem breu. Voltei e peguei uma lanterna. Foi quando achei Danny caído na galeria.

- Como era a mulher? - perguntou Paul.

- Loura, acho. Baixa. Rápida como uma lebre.

Paul assentiu.

- Ela esteve no hotel mais cedo.

- Quando? - perguntou McKoy.

- Enquanto você e Grumer falavam. Entrou por um minuto e depois saiu.

McKoy entendeu.

- Só ficou o tempo suficiente para ver se estávamos todos lá, porra.

- É o que parece - disse Paul. - Acho que era a mesma mulher que foi ao meu escritório. Com aparência diferente, mas havia algo familiar nela.

- É essa merda de intuição de advogado?

- Algo assim.

- Você conseguiu ver o homem? - perguntou Rachel ao trabalhador.

- Alto. Cabelo claro. Com uma faca.

- Knoll - disse ela.

Visões da lâmina da faca na mina relampejaram em sua mente.

- Eles estão aqui, Paul. Os dois estão aqui.

Rachel estava inquieta quando ela e Paul subiram a escada do Garni até o quarto no segundo andar. Seu relógio marcava 20h10. Mais cedo, Paul havia ligado para Fritz Pannik, mas só conseguiu ser atendido por uma secretária eletrônica. Deixou um recado falando de Knoll e da mulher, de suas suspeitas, e pediu ao inspetor para ligar de volta. Mas não havia recado esperando-o na recepção.

McKoy tinha insistido que jantassem com os sócios. Para ela, tudo bem: quanto mais gente, melhor. Ela, Paul, McKoy e Grumer tinham dividido o grupo entre eles, e todo o assunto era sobre a escavação e o que poderia ser encontrado. Mas seus pensamentos permaneceram em Knoll e na mulher.

- Foi difícil - disse ela. - Eu tive de prestar atenção a cada palavra, de modo que ninguém mais tarde dissesse que eu os convenci de alguma coisa. Talvez esta não tenha sido uma idéia muito boa, não é?

Paul se virou para a porta do quarto.

- Olhe só quem deixou de ser aventureira!

- Você é um advogado respeitado. Eu sou juíza. McKoy se grudou em nós como velcro. Se ele realmente fez trambique com essas pessoas, nós podemos virar cúmplices. Seu pai costumava dizer o tempo todo: "Se não puder correr com os cachorros grandes, volte para baixo da varanda." Eu estou pronta para voltar.

Ele pegou a chave do quarto no bolso.

- Não acho que McKoy tenha enganado alguém. Quanto mais estudo aquela carta, mais a percebo como ambígua, e não falsa. Também acho que McKoy está genuinamente chocado com a descoberta. Já quanto ao Grumer... não tenho tanta certeza.

Destrancou a porta e acendeu a luz do teto.

O quarto estava uma bagunça completa. Gavetas arrancadas. Aporta do armário aberta. O colchão fora da cama, os lençóis puxados. Todas as roupas espalhadas no chão.

- O serviço de arrumadeira deste lugar é uma porcaria - disse Paul.

Ela não achou engraçado.

- Isso não incomoda você? Alguém revistou este lugar. Ah, merda. As cartas do papai. E aquela carteira que você encontrou.

Paul fechou a porta. Tirou o casaco e puxou a camisa para fora da calça. Uma bolsa de dinheiro envolvia seu abdome.

- Ia ser meio difícil alguém encontrar.

- Mãe de Deus. Nunca mais vou questionar suas obsessões. Isso foi muito inteligente, Paul Cutler.

Ele baixou a camisa.

- Há cópias das cartas do seu pai no cofre do escritório, só para garantir.

- Você esperava isso?

Ele deu de ombros.

- Não sabia o que esperar. Só queria estar preparado. Com Knoll e a mulher andando por aí, qualquer coisa pode acontecer.

- Talvez a gente devesse sair daqui. Aquela campanha para o cargo de juiz que me espera não parece mais uma coisa tão ruim. Marcus Nettles é moleza comparado com isto.

Paul estava calmo.

- Acho que temos de fazer outra coisa.

Ela entendeu instantaneamente.

- Concordo. Vamos falar com o McKoy.

 

Paul ficou olhando McKoy atacar a porta. Rachel estava atrás dele. Os efeitos de três enormes canecas de cerveja apareciam na intensidade dos golpes de McKoy.

- Grumer, destranque a droga desta porta - gritou McKoy.

A porta se abriu.

Grumer ainda vestia a camisa de manga comprida e as calças usadas no jantar.

- O que é, Herr McKoy? Houve outro incidente?

McKoy entrou no quarto, empurrando Grumer de lado. Paul e Rachel entraram atrás. Dois abajures ao lado da cama lançavam uma luz suave. Grumer obviamente estivera lendo. Um exemplar em inglês de A influência holandesa na pintura renascentista alemã, de Polk, estava aberto na cama. McKoy agarrou Grumer pela camisa e o jogou com força contra a parede, fazendo chacoalhar as molduras dos quadros.

- Eu sou um caipira da Carolina do Norte. Neste momento, um caipira da Carolina do Norte meio bêbado. Talvez você não saiba o que isso significa, mas vou lhe dizer, e não é bom. Não estou com clima, Grumer. Nenhum clima, porra. Cutler me disse que você apagou letras escritas na areia. Onde estão as fotos?

- Não sei de nada disso.

McKoy soltou Grumer e lhe deu um soco na barriga. O sujeito se dobrou, tentando respirar. McKoy puxou-o para cima.

- Vamos tentar de novo. Onde estão as fotos?

Grumer lutou para respirar, tossindo bile, mas conseguiu apontar para a cama. Rachel pegou o livro. Dentro, havia um punhado de fotos coloridas mostrando o esqueleto e as letras.

McKoy largou Grumer no carpete e examinou as fotos.

- Quero saber por quê, Grumer. Por quê, diabos?

Paul imaginou se deveria alertá-lo contra a violência, mas decidiu que Grumer merecia. Além disso, McKoy provavelmente não ouviria mesmo.

Grumer finalmente respondeu:

- Dinheiro, Herr McKoy.

- Os cinco mil dólares que eu paguei não bastavam?

Grumer ficou quieto.

- A não ser que você queira começar a tossir sangue, é melhor contar tudo.

Grumer pareceu captar a mensagem.

- Há cerca de um mês, fui abordado por um homem...

- Nome.

Grumer respirou fundo.

- Ele não disse.

McKoy preparou o punho.

- Por favor... é verdade. Não deu o nome, e só falou por telefone. Tinha lido sobre meu trabalho nesta escavação e ofereceu vinte mil euros em troca de informações. Não vi mal nisso. Disse que uma mulher chamada Margarethe viria me contatar.

- E?

- Eu me encontrei com ela ontem à noite.

- Ela, ou você, revistou nosso quarto? - perguntou Rachel.

- Nós dois. Ela estava interessada nas cartas do seu pai.

- Ela disse por quê? - perguntou McKoy.

- Nein. Mas acho que sei. - Grumer estava começando a respirar normalmente outra vez, mas o braço direito abraçava o estômago. Ele se encostou na parede. - Já ouviu falar no Retter der Verlorenen Antiquitaten?

- Não - respondeu McKoy. - Esclareça-me.

- É um grupo de nove pessoas. Suas identidades não são conhecidas, mas todos são ricos amantes da arte. Eles empregam localizadores, colecionadores pessoais, chamados de adquirentes. A parte engenhosa da associação é o que o nome dá a entender. "Recuperadores de Antigüidades Perdidas". Eles só roubam o que já estava roubado. O adquirente de cada membro luta por um prêmio. É um jogo sofisticado e caro, mas é um jogo.

- Vá direto ao ponto - disse McKoy.

- Essa tal de Margarethe, pelo que suspeito, é uma adquirente. Ela não disse, nem deu a entender, mas acho que minha suposição é correta.

- E quanto a Christian Knoll? - perguntou Rachel.

- A mesma coisa. Os dois estão competindo por algo.

- Estou sentindo uma ânsia de encher você de porrada outra vez - disse McKoy. - Para quem Margarethe trabalha?

- É só uma suposição, mas eu diria que é Ernst Loring.

O nome atraiu a atenção de Paul, e ele viu que Rachel também estava ligada.

- Pelo que me disseram, os membros do clube são muito competitivos. Há milhares de objetos perdidos a recuperar. A maioria da última guerra, mas muitos foram roubados de museus e coleções particulares em todo o mundo. Na verdade, o negócio é bem inteligente. Roubar o que já é roubado. Quem vai reclamar?

McKoy foi na direção de Grumer.

- Você está esgotando minha paciência. Vá direto ao ponto, porra.

- A Sala de Âmbar - disse Grumer, ofegante.

Rachel pôs a mão no peito de McKoy.

- Deixe-o explicar.

- De novo, é somente uma conjectura da minha parte. Mas a Sala de Âmbar deixou Königsberg em algum momento entre janeiro e abril de 1945. Ninguém tem certeza. Os registros não são claros. Erich Koch, o gauleiter da Prússia, evacuou os painéis sob ordens diretas de Hitler. Mas Koch era protegido de Herman Göring, na realidade muito mais leal a Göring do que a Hitler. A rivalidade entre Hitler e Göring pela arte é bem documentada. Göring justificava sua ânsia de colecionar com o desejo de criar um museu de arte em Karinhall, sua cidade natal. Hitler deveria ter a primeira opção de qualquer espólio, mas Göring chegou mais depressa que ele a muitas das melhores peças. À medida que a guerra progredia, Hitler assumiu um controle cada vez mais pessoal da luta, o que limitou o tempo que podia dedicar a outras questões. Mas Göring permaneceu em movimento e era feroz em sua ânsia de colecionar.

- Que porra isso tem a ver com alguma coisa? - perguntou McKoy.

- Göring queria que a Sala de Âmbar fizesse parte de sua coleção em Karinhall. Alguns argumentam que foi ele, e não Hitler, que ordenou a evacuação do âmbar de Königsberg. Ele queria que Koch mantivesse os painéis de âmbar a salvo dos russos, dos americanos e de Hitler. Mas acreditava-se que Hitler descobrira o plano e confiscara o tesouro antes que Göring pudesse ficar com ele.

- Papai estava certo - disse Rachel em voz baixa.

Paul a encarou.

- Como assim?

- Uma vez ele me contou sobre a Sala de Âmbar e disse que entrevistou Göring depois da guerra. Tudo que Göring informou foi que Hitler o venceu na disputa. - Então contou sobre Mauthausen e os quatro soldados alemães congelados até a morte.

- Onde você ficou sabendo dessas informações? - perguntou Paul a Grumer. - Meu sogro tinha um monte de artigos sobre a Sala de Âmbar e nenhum deles mencionava qualquer coisa do que o senhor acaba de dizer. - Ele havia propositadamente omitido a referência de ex ao sogro, e Rachel não o corrigiu, como costumava fazer.

- Não haveria qualquer menção - disse Grumer. - A mídia ocidental raramente fala da Sala de Âmbar. Poucas pessoas sequer sabem do que se trata. Mas estudiosos alemães e russos pesquisam há muito o assunto. Ouvi essa informação específica sobre Göring repetida com freqüência, mas jamais um relato de primeira mão como o de Frau Cutler.

- Como isso se encaixa em nossa escavação? - perguntou McKoy.

- Um dos relatos diz que três caminhões foram carregados com os painéis em algum lugar a leste de Königsberg, depois de Hitler assumir o controle. Os caminhões partiram para o oeste e jamais foram vistos de novo. Deviam ser veículos de transporte pesado...

- Como os NAG Büssings - disse McKoy.

Grumer assentiu.

McKoy sentou-se na beira da cama.

- Os três caminhões que encontramos? - O tom áspero havia suavizado.

- É coincidência demais, não acha?

- Mas os caminhões estão vazios - disse Paul.

- Exato - respondeu Grumer. - Talvez os Recuperadores de Antigüidades Perdidas saibam mais ainda sobre a história. Talvez isso explique o interesse bastante intenso de dois adquirentes.

- Mas o senhor nem sabe se Knoll e essa mulher têm alguma coisa a ver com o tal grupo - disse Rachel.

- Não, Frau Cutler, não sei. Mas Margarethe não me pareceu uma colecionadora independente. A senhora conheceu Herr Knoll. Diria o mesmo sobre ele?

- Knoll se recusou a dizer para quem trabalha.

- O que o torna ainda mais suspeito - disse McKoy.

Paul tirou do paletó a carteira encontrada no local da escavação e a entregou a Grumer.

- E isto? - E explicou onde a havia encontrado.

- O senhor descobriu o que eu estava procurando - disse Grumer. - A informação exigida por Margarethe, relativa a qualquer possível datação do local depois de 1945. Revistei os cinco esqueletos, mas não encontrei nada. Isto prova que o local foi violado depois da guerra.

- Há algo escrito num pedaço de papel dentro dela. O que é? Grumer olhou de perto.

- Parece algum tipo de permissão ou licença. Emitida em 15 de março de 1951. Expira em 15 de março de 1955.

- E essa tal de Margarethe queria saber isso? - perguntou McKoy.

Grumer assentiu.

- Ela estava disposta a pagar muito bem pela informação. McKoy passou a mão pelo cabelo. O grandalhão parecia exausto.

Grumer aproveitou o momento para explicar:

- Herr McKoy, eu não fazia idéia de que o local estava seco. Fiquei tão empolgado quanto o senhor quando atravessamos a rocha. Mas os sinais estavam se tornando mais claros. Nenhum explosivo, nem mesmo restos. Uma entrada estreita. Falta de qualquer porta ou reforço de aço para o túnel ou a câmara. E os caminhões. Veículos de transporte pesados não deveriam estar ali.

- A não ser que a porcaria da Sala de Âmbar tivesse estado ali.

- Correto.

- Conte mais sobre o que aconteceu - pediu Paul a Grumer.

- Há pouco a contar. Histórias atestam que a Sala de Âmbar foi posta em caixotes, depois carregada em três caminhões. Os caminhões supostamente estavam indo para o sul, até Berchtesgaden, na segurança dos Alpes. Mas os exércitos soviético e americano estavam espalhados por toda a Alemanha. Não havia aonde ir. Supostamente, os caminhões foram escondidos. Mas não existem registros do local. Talvez o esconderijo fosse nas minas de Harz.

- Você acha que, já que essa tal de Margarethe se mostrou tão interessada nas cartas de Borya e está aqui, a Sala de Âmbar devia ter algo a ver com tudo isso? - perguntou McKoy.

- Seria uma conclusão lógica.

- Por que acha que Loring é o patrão dela? - perguntou Paul.

- É só uma suposição, baseada no que li e ouvi ao longo dos anos. A família Loring era, e é, interessada na Sala de Âmbar. Rachel tinha uma pergunta.

- Por que apagar as letras? Margarethe pagou ao senhor para isso?

- Na verdade, não. Ela só deixou claro que não deveria restar coisa alguma datando a câmara depois de 1945.

- Por que ela estava preocupada com isso? - perguntou Rachel.

- Realmente não faço idéia.

- Qual é a aparência dela? - perguntou Paul.

- É a mesma mulher que o senhor descreveu esta tarde.

- Você sabe que ela pode ter matado Chapaev e o pai de Rachel, não sabe?

- E você não disse nada? - perguntou McCoy a Grumer. - Eu deveria matá-lo de porrada. Você sabe a merda em que estou, com um local seco. Agora isso. - O grandalhão esfregou os olhos, aparentemente tentando se acalmar. Depois perguntou em voz baixa: - Quando é o próximo contato, Grumer?

- Ela deu a entender que ligaria para mim.

- Quero ser informado no segundo em que a vaca fizer isso. Já estou cheio. Ficou claro?

- Perfeitamente - respondeu Grumer.

McKoy se levantou e foi para a porta.

- É melhor cumprir com a palavra, Grumer. Informe no instante em que tiver notícias da mulher.

- Claro. Como você quiser.

 

O telefone estava tocando no quarto quando Paul abriu a porta. Rachel o seguiu, entrando enquanto ele atendia. Era Fritz Pannik. Paul contou rapidamente o que havia acontecido, dizendo ao inspetor que a mulher e Knoll estavam por perto, ou pelo menos tinham estado há algumas horas.

-Vou despachar alguém da polícia local para pegar uma declaração de todo mundo, logo de manhã cedo.

- O senhor acha que aqueles dois ainda estão aqui?

- Se o que Alfred Grumer disse é verdade, eu diria que sim. Descanse, Herr Cutler, e eu irei vê-lo amanhã.

Paul desligou e sentou-se na cama.

- O que acha? - perguntou Rachel, sentando-se ao lado.

- Você é a juíza. Grumer pareceu digno de crédito?

- Não para mim. Mas McKoy pareceu engolir o que ele estava dizendo.

- Não sei. Tenho a sensação de que McKoy também está escondendo alguma coisa. Não consigo identificar exatamente, mas há algo que ele não está dizendo. Ele prestou muita atenção ao que Grumer falou sobre a Sala de Âmbar. Mas não podemos nos preocupar com isso agora. Estou preocupado com Knoll e a mulher. Eles estão por aí, e eu não gosto disso.

Seus olhos captaram o movimento dos seios de Rachel através do suéter justo. Rainha do Gelo? Não para ele. Tinha sentido o corpo dela durante toda a noite passada, desesperado com a proximidade. Periodicamente absorvia o perfume de Rachel enquanto ela dormia. Num determinado ponto, tentou se imaginar há três anos, ainda casado com ela, ainda capaz de fazer amor com ela. Tudo era surreal. Tesouro perdido. Assassinos à solta. Sua ex-mulher na cama com ele.

- Talvez você estivesse certo, no início - disse Rachel. - Estamos metidos numa coisa grande demais e deveríamos sair daqui. Temos de pensar em Maria e Brent. - Ela o fitou. - E em nós. - Sua mão chegou junto da dele.

- O que quer dizer?

Ela lhe deu um beijo suave nos lábios. Paul ficou perfeitamente imóvel. Então Rachel o envolveu com os braços e o beijou com intensidade.

- Tem certeza disso, Rachel? - perguntou ele quando se separaram.

- Não sei por que sou tão hostil algumas vezes. Você é um bom homem, Paul. Não merece a dor que lhe causei.

- Não foi tudo sua culpa.

- Lá vai você de novo. Sempre pondo a culpa nos próprios ombros. Não pode deixar que eu fique com a culpa ao menos uma vez?

- Claro. Esteja à vontade.

- Eu quero. E quero outra coisa.

Ele viu o olhar no rosto dela, entendeu, e se levantou instantaneamente da cama.

- Isto é realmente estranho. Há três anos não ficamos juntos. Eu me acostumei. Achei que havíamos terminado... nesse sentido.

- Paul, pela primeira vez siga seus instintos. Nem tudo tem de ser planejado. O que há de errado com o velho tesão de antigamente?

Ele sustentou o olhar dela.

- Quero mais do que isso, Rachel.

- Eu também.

Ele foi em direção à janela, colocando distância entre os dois, e abriu a cortina. Qualquer coisa para ganhar um pouco de tempo. Aquilo estava acontecendo depressa demais. Olhou para a rua, pensando em quanto tempo havia sonhado em ouvir essas palavras. Não tinha ido ao tribunal para a audiência do divórcio. Horas depois, o julgamento final havia saído da máquina de fax e sua secretária o colocou sobre a mesa, sem dizer uma palavra. Ele havia se recusado a olhar o papel, jogando-o numa lata de lixo. Como é que a assinatura de um juiz poderia silenciar o que o coração sabia ser certo?

Virou-se de novo.

Rachel estava linda, mesmo com os cortes e arranhões do domingo. Realmente eram um casal estranho desde o início. Mas ele a amava e ela o amava. Juntos tinham gerado dois filhos, que ambos adoravam. Será que agora teriam uma segunda chance?

Virou-se de novo para a janela e tentou encontrar respostas na noite. Já ia voltar para a cama e se render quando notou alguém aparecendo na rua.

Alfred Grumer.

O Doktor caminhava com passo firme e decidido, aparentemente tendo acabado de sair pela porta do Garni, dois andares abaixo.

- Grumer está saindo - disse ele.

Rachel pulou e se aproximou para olhar.

- Ele não disse que ia sair.

Paul pegou o paletó e correu para a porta.

- Talvez tenha recebido o telefonema de Margarethe. Eu sabia que ele estava mentindo.

- Aonde você vai?

- Precisa perguntar?

 

Paul saiu com Rachel pela portaria e se virou na direção tomada por Grumer. O alemão estava cem metros adiante, seguindo rapidamente pela rua calçada de pedras, por entre as lojas escuras e os cafés movimentados que ainda atraíam fregueses com cerveja, comida e música. As luzes dos postes iluminavam o caminho com um brilho mostarda.

- O que estamos fazendo? - perguntou Rachel.

- Descobrindo o que ele vai fazer.

- Isso é uma boa idéia?

- Talvez não. Mas vamos fazer assim mesmo.

Ele não disse que isso também o liberava de uma decisão difícil. Imaginou se Rachel estaria apenas solitária ou amedrontada. Incomodava-o o que ela dissera em Warthberg, defendendo Knoll mesmo depois de o sacana tê-la deixado para morrer. Não gostava de ser a segunda opção.

- Paul, há uma coisa que você precisa saber.

Grumer estava adiante, ainda andando depressa. Paul não diminuiu o passo.

- O quê?

- Logo antes da explosão na mina, eu me virei e vi que Knoll tinha uma faca.

Ele parou e a encarou.

- Ele tinha uma faca na mão. Então o teto do túnel cedeu.

- E você só está me dizendo isso agora?

- Sei. Eu deveria ter dito antes. Mas fiquei com medo que você não ficasse ou que contasse a Pannik e ele interferisse.

- Rachel, você é maluca? Essa merda é séria. E você está certa, eu não deveria ter ficado, nem deixado você ficar. E não diga que pode fazer o que quiser. - Sua atenção se voltou rapidamente para a direita. Grumer desapareceu numa esquina. - Droga. Venha.

Começou a correr, com o paletó balançando atrás. Rachel o acompanhou. A rua começou a se inclinar. Ele chegou à esquina onde Grumer tinha estado e parou. Um konditorei fechado ficava à esquerda, com um toldo que rodeava a esquina. Olhou cautelosamente do outro lado. Grumer continuava andando depressa, aparentemente não se preocupando em saber se alguém o seguia. O Doktor atravessou uma pracinha em cujo centro havia uma fonte cercada de gerânios. Tudo - as ruas, as lojas e as plantas - refletia a obsessão por limpeza, parte do orgulho cívico alemão.

- Precisamos ficar recuados - disse Paul. - Mas aqui é mais escuro, e isso vai ajudar.

- Aonde vamos?

- Parece que estamos indo para a abadia. - Ele olhou o relógio: 22h25.

Adiante, Grumer desapareceu subitamente à esquerda, entrando numa fileira de cercas-vivas negras. Os dois seguiram rapidamente e viram um caminho de concreto se dissolver na escuridão. Um cartaz adiante anunciava: ABADIA DAS SETE AFLIÇÕES DA VIRGEM. A seta apontava para a frente.

- Você está certo. Ele vai para a abadia - disse Rachel. Começaram a subir o caminho de pedras, cuja largura daria para quatro pessoas lado a lado. Era íngreme e serpenteava pela noite, subindo o penhasco pedregoso. Na metade do caminho, passaram por um casal andando de mãos dadas. Paul parou. Grumer continuava adiante, ainda subindo depressa.

- Venha cá - disse a Rachel, passando o braço pelo ombro dela e puxando-a para perto. - Se ele olhar para trás, só verá dois namorados passeando. Nunca verá nosso rosto a essa distância.

Seguiram devagar.

- Você não vai escapar tão facilmente - disse Rachel.

- Como assim?

- No quarto. Você sabia aonde estávamos indo.

- Não planejo escapar.

- Você só precisava de tempo para pensar, e esse servicinho lhe garante isso.

Paul não discutiu. Ela estava certa. Ele precisava pensar, mas não agora. Grumer era a preocupação principal no momento. A subida estava tirando seu fôlego, os tornozelos e as coxas ficando rígidas. Achava que estava em forma, mas as corridas de cinco quilômetros em Atlanta geralmente eram feitas em terreno plano, nada como aquela encosta assassina.

O caminho chegou ao cume adiante e Grumer desapareceu sobre o topo.

A abadia não era mais um edifício distante. Aqui a fachada ocupava o tamanho de dois campos de futebol, erguendo-se bruscamente do penhasco, as paredes elevadas por um alicerce de pedra abobadado. Fortes lâmpadas de vapor de sódio escondidas na base coberta de árvores inundavam a pedra colorida. Fileiras de altas janelas de caixilhos brilhavam em três andares.

Uma passagem iluminada se erguia adiante, com construções dos lados e em cima. Dois bastiões flanqueavam o portal principal. Logo adiante havia um pátio semi-escurecido. Cinqüenta metros à frente, Grumer desapareceu pela passagem aberta. As luzes fortes ao redor do portão preocuparam Paul. Pombos arrulhavam em algum lugar do outro lado da claridade. Não havia mais ninguém à vista.

Guiou Rachel adiante e olhou para as esculturas dos apóstolos Pedro e Paulo repousando em pedestais de pedra escurecida. De cada um dos lados, santos e anjos competiam com peixes e sereias. Um brasão emoldurava o centro do portal, duas chaves douradas sobre um fundo azul-real. Uma cruz enorme se erguia sobre a empena, com uma inscrição nítida sob as luzes fortes. ABSIT GLORIAM NISI IN CRUCE.

- Só existe glória na cruz - murmurou ele.

- O quê?

Paul apontou para cima.

- A inscrição. Só existe glória na cruz. De Gálatas, 6:14.

Passaram pelo portal. Um cartaz identificava o local adiante como PÁTIO DO PORTEIRO. Felizmente, o pátio estava escuro. Agora Grumer estava na outra extremidade, subindo uma ampla escadaria de pedra, entrando no que parecia uma igreja.

- Não podemos ir atrás dele - disse Rachel. - Quantas pessoas podem estar lá a essa hora?

- Concordo. Vamos achar outra entrada.

Ele examinou o pátio e as construções ao redor. Estruturas de três andares se erguiam de todos os lados, fachadas barrocas e adornadas com arcos romanos, cornijas elaboradas e estátuas que acrescentavam o necessário tom religioso. A maioria das janelas estava escura. Sombras dançavam atrás de cortinas fechadas nas poucas que se encontravam acesas.

A igreja onde Grumer entrou se projetava da extremidade oposta do pátio escuro, com torres gêmeas simétricas flanqueadas por uma cúpula octogonal muito iluminada. Parecia um apêndice da construção mais distante, que na verdade devia ser a frente da abadia, o lado voltado para Stod e o rio, dando para o ponto mais alto do penhasco.

Paul apontou para o lado mais distante do pátio, mais além da igreja, onde havia uma porta dupla de carvalho.

- Talvez ela leve a outro caminho.

Seguiram rapidamente pelo pátio calçado de pedras, passando por ilhas de árvores e arbustos. Um vento frio soprava, deixando um arrepio na pele. Paul experimentou a tranca. Aberta. Empurrou para dentro a porta pesada - devagar, para minimizar os guinchos. Uma passagem parecida com um beco se abriu diante deles, com quatro fracas lâmpadas incandescentes na outra extremidade. Eles entraram. Na metade do corredor, uma escada subia com balaustradas de madeira. Pinturas a óleo, de reis e imperadores, se enfileiravam nas paredes. Para além da escada, mais adiante no corredor com cheiro de mofo, havia outra porta fechada.

- A igreja deve estar neste nível. Aquela porta deve sair lá - sussurrou.

A tranca se abriu à primeira tentativa. Paul puxou um pouquinho a porta. O ar quente inundou o corredor frio. Uma pesada cortina de veludo se estendia nas duas direções, formando uma passagem estreita para a direita e a esquerda. A luz era filtrada através de fendas periódicas na cortina e por baixo dela. Paul sinalizou pedindo silêncio e guiou Rachel para dentro da igreja.

Através de uma das fendas na cortina, espiou o interior. Focos esparsos de luz laranja iluminavam a nave gigantesca. A arquitetura explosiva, os afrescos no teto e o rico estuque colorido se combinavam numa sinfonia visual, quase avassaladora em profundidade e forma. Vermelho-amarronzado, cinza e ouro predominavam. Colunas de mármore esfriadas se erguiam até o teto em abóbada, cada qual adornada com elaborados relevos dourados que sustentavam numerosas estátuas.

O olhar dele foi para a direita.

Uma coroa dourada emoldurava o centro de um enorme altar principal. Num gigantesco medalhão estava inscrito: NON CORONABITUR, NISI LEGITIME CERTAVERIT. Sem luta justa não há vitória, traduziu em silêncio. A Bíblia de novo. Timóteo, 2:5.

Havia duas pessoas de pé, à esquerda: Grumer e a loura vista de manhã. Paul olhou por cima do ombro e sussurrou para Rachel:

- Ela está aqui. Grumer está falando com ela de novo.

- Você consegue ouvir? - murmurou Rachel em seu ouvido.

Ele balançou a cabeça e apontou para a esquerda. O estreito corredor adiante os levaria para mais perto de onde os dois estavam, e a cortina de veludo descia até o chão de pedras, o bastante para evitarem ser vistos. Uma pequena escada de madeira subia na extremidade mais distante até o que provavelmente era o coro. Concluiu que a passagem isolada pela cortina era certamente usada por acólitos que serviam durante a missa. Seguiram na ponta dos pés. Outra fenda lhe permitia enxergar. Espiou cautelosamente. Grumer e a mulher estavam perto de um altar lateral. Paul tinha lido sobre esse acréscimo feito por muitas igrejas européias. O católico barroco da Idade Média sentava-se longe do altar principal, experimentando apenas passivamente a proximidade de Deus. Os fiéis contemporâneos, graças a reformas litúrgicas, exigiam uma participação mais ativa. Por isso, altares populares foram acrescentados às igrejas antigas, com a nogueira do tablado e do altar combinando com as fileiras de bancos atrás.

Paul e Rachel estavam agora a vinte metros de Grumer e da mulher, cujos sussurros eram difíceis de ouvir no vazio silencioso.

 

Suzanne olhou irritada para Alfred Grumer, que estava com uma atitude surpreendentemente carrancuda com relação a ela.

- O que aconteceu hoje no local da escavação? - perguntou ele em inglês.

- Um dos meus colegas apareceu e ficou impaciente.

- Você está atraindo atenção demais para a situação.

Ela não gostou do tom do alemão.

- Não foi opção minha. Tive de cuidar do assunto à medida que se apresentou.

- Está com o meu dinheiro?

- Você tem minha informação?

- Herr Cutler encontrou uma carteira no local. Data de 1951. A câmara foi aberta depois da guerra. Não era isso que você queria?

- Onde está essa carteira?

- Não pude pegá-la. Talvez amanhã.

- E as cartas de Borya?

- Também não tive como pegá-las. Depois do que aconteceu esta tarde, todos estão desconfiados.

- Dois fracassos, e mesmo assim você quer cinco milhões de euros?

- Você queria informações sobre o local e a data. Eu forneci isso. Também eliminei as provas na areia.

- Aquilo foi você mesmo que inventou. Um modo de aumentar o preço de seus serviços. A realidade é que não tenho prova de nada que você disse.

- Vamos falar de realidade, Margarethe. E a realidade é a Sala de Âmbar, não é?

Ela ficou quieta.

- Três veículos alemães de transporte pesado vazios. Uma câmara subterrânea lacrada. Cinco corpos, todos com tiros na cabeça. Uma data entre 1951 e 1955. Aquela é a câmara na qual Hitler escondeu a sala, e alguém a roubou. Creio que esse alguém era o seu patrão. Caso contrário, por que ficaria tão preocupada?

- Especulação, Herr Doktor.

- Você nem piscou quando insisti em cinco milhões de euros. - A voz de Grumer tinha um tom presunçoso do qual Suzanne estava gostando cada vez menos.

- Mais alguma coisa? - perguntou ela.

- Se me lembro corretamente, durante os anos sessenta circulou uma história de que Josef Loring era colaborador dos nazistas. Mal depois da guerra ele conseguiu se tornar bem conectado com os comunistas da Tchecoslováquia. Foi um belo truque. Presumo que as fábricas e fundições dele tenham sido poderosos indutores de amizades duradouras. Creio que o que se dizia é que Loring encontrou o esconderijo de Hitler para a Sala de Âmbar. O pessoal desta área jurou que Loring veio várias vezes com equipes e escavou discretamente as minas antes que o governo assumisse o controle. Numa delas, pelo que imagino, ele encontrou os painéis de âmbar e os mosaicos florentinos. Seria a nossa câmara, Margarethe?

- Herr Doktor, não admito nem nego nada do que está dizendo, ainda que a aula de história tenha algum fascínio. E quanto a Wayland McKoy? O empreendimento atual terminou?

- Ele pretende escavar a outra abertura, mas não haverá o que encontrar. Algo que você já sabe, correto? Eu diria que a escavação terminou. Agora, você trouxe o pagamento do qual falamos?

Ela estava cansada de Grumer. Loring estava certo. O sujeito era um sacana ganancioso. Outra ponta solta. Que precisava de atenção imediata.

- Tenho o seu dinheiro, Herr Grumer.

Enfiou a mão no bolso do casaco e a envolveu no cabo da Sauer, que já estava com o silenciador atarraxado ao cano. De repente, algo passou junto a seu ombro esquerdo e se cravou com um som oco no peito de Grumer. O alemão ofegou, cambaleou para trás e despencou no chão. À luz fraca do altar, ela notou imediatamente o cabo de jade lavanda com uma ametista na extremidade.

Arriscou um olhar rápido.

Knoll disparou um tiro abafado. A bala ricocheteou na plataforma do altar, a centímetros do rosto dela. Suzanne recuou depressa e se abaixou atrás da plataforma.

- Foi muito inventiva naquela mina, Suzanne - disse Knoll.

O coração dela disparou.

- Só estava fazendo meu trabalho, Christian.

- Por que foi necessário matar Chapaev?

- Desculpe, amigo, não posso entrar nesse assunto.

- Que pena! Eu esperava descobrir suas motivações antes de matá-la.

- Ainda não estou morta.

Deu para ouvir Knoll soltando um risinho. Um riso doentio que ecoou no silêncio.

- Desta vez, estou armado - disse ele. - Na verdade, o presente de Herr Loring. Uma arma muito precisa.

A CZ-75B. Pente de quinze tiros. E Knoll tinha usado apenas uma bala. Restavam quatorze chances de matá-la. Chances demais.

- Aqui não há barras de luz para apagar com tiros, Suzanne. De fato, não há para onde ir.

Com um pavor desesperado, ela percebeu que era verdade.

 

Paul tinha ouvido apenas fragmentos da conversa. Obviamente, suas dúvidas iniciais quanto a Grumer tinham se mostrado corretas. O Doktor aparentemente estava jogando dos dois lados e acabara de descobrir o preço que a mentira às vezes cobrava.

Tinha assistido com horror quando Grumer morreu e os dois combatentes se enfrentaram, com tiros abafados espocando na igreja como se alguém batesse em travesseiros. Rachel estava atrás dele, olhando por cima de seu ombro. Os dois ficaram rígidos, sem se mover, com medo de revelar sua presença. Ele sabia que tinham de deixar a igreja, mas a saída precisava ser absolutamente silenciosa. Diferentemente dos dois na nave, estavam desarmados.

- Aquele é o Knoll - sussurrou Rachel em seu ouvido.

Paul deduzira isso. E a mulher era definitivamente Jo Myers, ou Suzanne, como Knoll a chamara. Tinha reconhecido instantaneamente a voz. Agora não havia dúvida de que ela matara Chapaev, já que não tinha negado a alegação quando Knoll perguntou a respeito. Rachei se comprimiu contra ele. Estava tremendo. Paul levou a mão para trás e apertou a perna dela, puxando-a para perto, tentando acalmá-la, mas sua mão também tremia.

Knoll se agachou na segunda fileira de bancos. Gostava da situação. Ainda que sua oponente não fosse familiarizada com a igreja, estava claro que Danzer não tinha aonde ir sem que ele tivesse pelo menos alguns segundos para atirar.

- Diga uma coisa, Suzanne, por que a explosão na mina? Nós nunca ultrapassamos esse limite antes.

- O que eu fiz? Atrapalhei seu estilo com a tal de Cutler? Você provavelmente ia comê-la e depois matá-la, certo?

- Os dois pensamentos me passaram pela cabeça. De fato eu estava me preparando para a primeira coisa quando você interrompeu de modo tão grosseiro.

- Desculpe, Christian. Na verdade, a tal de Cutler devia me agradecer. Vi que ela sobreviveu à explosão. Não creio que ela tivesse tido tanta sorte com sua faca. Meio como o Grumer ali, não é?

- Como você diz, Suzanne, eu só estava fazendo o meu trabalho.

- Olhe, Christian, talvez a gente não precise levar isso ao extremo. Que tal uma trégua? Podemos voltar ao seu hotel e esgotar nossas frustrações com suor. Que tal?

Tentador. Mas isso era um negócio sério, e Danzer só estava tentando ganhar tempo.

- Ande, Christian, eu garanto que vai ser melhor do que o que aquela vaca mimada, a Monika, consegue fazer. Você nunca reclamou, no passado.

- Antes que eu considere isso, quero algumas respostas.

- Vou tentar.

- O que há de tão importante naquela câmara?

- Não posso falar disso. São regras, você sabe.

- Os caminhões estão vazios. Não há nada lá. Por que tanto interesse?

- A mesma resposta.

- O funcionário do arquivo em São Petersburgo está na folha de pagamentos, certo?

- Claro.

- O tempo todo você sabia que eu ia à Geórgia, certo?

- Achei que tinha feito um bom trabalho ficando fora do caminho. Obviamente não consegui.

- Você esteve na casa de Borya?

- Claro.

- Se eu não tivesse torcido o pescoço do velho, você teria feito isso?

- Você me conhece bem demais.

 

Paul estava encostado à cortina quando ouviu Knoll admitir ter matado Karol Borya. Rachel ofegou e deu um passo para trás, empurrando-o à frente, o que fez ondular o veludo. Paul percebeu que o movimento e o som produzido por ela teriam bastado para atrair a atenção dos dois combatentes. Num instante, empurrou Rachel para o chão, rolando no meio da queda e absorvendo a maior parte do impacto com o ombro direito.

 

Knoll ouviu um som ofegante e viu a cortina se mexer. Disparou três tiros contra o veludo, à altura do peito.

Suzanne viu a cortina se mexer, mas seu interesse estava em sair da igreja. Aproveitou o momento dos três tiros de Knoll para disparar uma vez na direção dele. A bala fez lascar um dos bancos. Viu Knoll se abaixar em busca de cobertura, por isso correu para as sombras do altar principal, saltando para dentro de uma arcada escura.

 

- Vamos - murmurou Paul. Em seguida, levantou Rachel e os dois correram para a porta. As balas tinham rasgado a cortina e encontrado pedra. Esperava que Knoll e a mulher estivessem preocupados demais um com o outro para se incomodarem com eles. Ou talvez tivessem se juntado contra o que poderia ser um inimigo comum. Não ficaria para descobrir a decisão deles. Chegaram à porta.

O ombro de Paul latejava de dor, mas a adrenalina correndo pelas veias funcionava como um anestésico. No corredor fora da igreja, ele disse:

- Não podemos voltar ao pátio, vamos ser alvos fáceis. Virou-se para a escada que subia.

- Venha.

 

Knoll viu Danzer saltar para uma arcada escura, mas as colunas, a plataforma e o altar impediam um tiro limpo, e as sombras compridas também não ajudavam. Mas, no momento, tinha mais interesse em saber quem estava atrás da cortina. Também havia entrado na igreja por ali e subido a escada de madeira que dava no coro, no fim da passagem.

Aproximou-se cautelosamente da cortina e olhou atrás, a arma preparada.

Não havia ninguém.

Ouviu uma porta se abrir e depois fechar. Foi rapidamente até o corpo de Grumer e recuperou o punhal. Limpou a lâmina e enfiou a faca na manga.

Depois abriu a cortina e foi atrás.

Paul subiu na frente, dando apenas um olhar de passagem às imagens fantasmagóricas de reis e imperadores em molduras pesadas que ladeavam o caminho. Rachel vinha logo atrás.

- Aquele sacana matou papai - disse ela.

- Eu sei, Rachel. Mas neste momento estamos encrencados.

Virou-se no patamar e quase pulou direto o último lance de escada. Outro corredor escuro esperava em cima. Ouviu uma porta se abrir atrás. Imobilizou-se, fazendo Rachel parar, cobrindo a boca da mulher com a mão. Passos vinham de baixo. Lentos. Firmes. Na direção deles. Sinalizou pedindo silêncio e os dois foram na ponta dos pés para a esquerda - a única direção possível - até uma porta fechada no fim do corredor.

Experimentou a maçaneta.

Aberta.

Empurrou a porta para dentro e os dois entraram.

 

Suzanne parou num cubículo escuro atrás do altar principal. O cheiro doce de incenso era forte, vindo de dois potes de metal encostados à parede. Coloridas vestimentas eclesiásticas estavam penduradas em duas fileiras de cabides de metal. Ela precisava terminar o que Knoll começara. O filho-da-puta certamente a havia pegado de jeito. Como a teria encontrado? Fora cuidadosa ao sair do hotel, verificando as costas repetidamente a caminho da abadia. Ninguém a seguira, disso tinha certeza. Não. Knoll estava na igreja, esperando. Mas como? Grumer? Possivelmente. Preocupava-a que, de algum modo, Knoll soubesse tão intimamente de seus negócios. Tinha imaginado por que não houvera uma perseguição intensa ao saírem da mina, mais cedo, e a demonstração de desapontamento por parte de Knoll enquanto ela acelerava nem de longe era tão satisfatória quanto o esperado. Olhou de novo pela arcada.

Knoll ainda estava na igreja, e ela precisava encontrá-lo e resolver essa questão. Loring queria isso. Chega de pontas soltas. Chega. Espiou e viu Knoll desaparecer passando por uma cortina.

Uma porta se abriu e depois se fechou.

Escutou passos subindo uma escada.

Com a Sauer na mão, foi cautelosamente em direção à fonte do ruído.

 

Knoll ouviu passos fracos acima. Quem quer que fosse, tinha subido a escada.

Foi atrás, com a arma a postos.

 

Paul e Rachel pararam num espaço gigantesco, com um cartaz num cavalete proclamando em alemão: MARMOREN KAMMER, e embaixo em inglês: SALÃO DE MÁRMORE. Enormes colunas de mármore, igualmente espaçadas por todas as quatro paredes, erguiam-se à pelo menos doze metros, todas decoradas em folha de ouro, e as cores ao redor eram de um pêssego suave e cinza-claro. Magníficos afrescos de carruagens, leões e Hércules decoravam o teto. Uma pintura arquitetônica tridimensional emoldurava o salão, criando uma ilusão de profundidade nas paredes. O tema poderia ser interessante, não fosse o fato de que alguém com uma arma provavelmente vinha atrás deles.

Paul foi na frente, andando depressa pelo piso de ladrilhos em xadrez, passando por uma grade de latão que soprava ar quente no cômodo. Outra porta ornamentada esperava na extremidade oposta. Pelo que podia ver, era a única outra saída.

A porta por onde tinham entrado estalou e se abriu de súbito.

No mesmo instante, Paul abriu a porta à sua frente e os dois saíram num terraço arredondado. Do outro lado de uma grossa balaustrada de pedra, a escuridão se estendia até o amplo emaranhado de Stod, abaixo. O teto de veludo acima estava coberto de estrelas. Abaixo deles, a iluminada fachada em âmbar e branco da abadia se projetava nítida contra a noite. Leões e dragões de pedra olhavam para baixo, aparentemente vigiando. Uma brisa gelada passou por eles. O amplo terraço onde caberiam dez pessoas lado a lado fazia uma curva, em formato de ferradura, até outra porta na extremidade oposta.

Paul conduziu Rachel pela curva até lá.

Estava trancada.

Do outro lado, a porta por onde haviam acabado de chegar começou a se abrir. Paul olhou rapidamente ao redor e viu que não havia saída. Por cima do parapeito havia apenas uma queda de centenas de metros até o rio.

Rachel pareceu também sentir a situação e olhou para ele, com o medo enchendo os olhos, certamente pensando a mesma coisa.

Será que iam morrer?

 

Knoll abriu a porta e viu que dava num terraço aberto. Ficou imóvel. Danzer ainda espreitava em algum lugar atrás. Mas talvez tivesse fugido da abadia. Não tinha importância. Assim que determinasse quem mais estivera na igreja, iria direto ao hotel dela. Se não a encontrasse lá, encontraria em outro local. Desta vez, ela não desapareceria.

Espiou ao redor da borda da grossa porta de carvalho e examinou o terraço. Não havia ninguém ali. Saiu e fechou a porta, depois atravessou a curva ampla. Na metade do caminho, olhou rapidamente por sobre a balaustrada. Stod estava acesa à esquerda, o rio à direita, com uma longa queda. Chegou à outra porta e viu que estava fechada.

De repente, a porta do salão de mármore, na outra extremidade, se abriu e Danzer saltou para a noite. Ele saltou para trás do parapeito de pedra e das grossas hastes da balaustrada.

Dois tiros abafados vieram na sua direção.

As balas erraram.

Ele disparou de volta.

Danzer atirou de novo. Lascas de pedra provocadas pelo ricochete o cegaram momentaneamente. Knoll se arrastou até a porta mais próxima. A fechadura de ferro estava enferrujada. Deu dois tiros na maçaneta e a tranca cedeu.

Abriu a porta e se arrastou rapidamente para dentro.

Suzanne decidiu que já bastava. Viu a porta na outra extremidade da ferradura se abrir. Ninguém entrou, de modo que Knoll devia ter se arrastado para dentro. O espaço era restrito e Knoll era perigoso demais para que ela o perseguisse abertamente. Agora sabia que ele estava nos andares superiores da abadia, de modo que o inteligente seria recuar e descer à cidade antes que ele descobrisse uma saída. Precisava sair da Alemanha, de preferência voltar ao castelo Loukov e à segurança de Ernst Loring. Seu trabalho aqui havia terminado. Grumer estava morto e, como acontecera com Karol Borya, Knoll lhe poupara o trabalho. O local da escavação parecia em segurança. Portanto, o que estava fazendo agora parecia idiotice.

Virou-se e voltou correndo pelo salão de mármore.

 

Rachel se agarrava à fria balaustrada de pedra. Paul estava pendurado ao lado, grudando-se desesperadamente em outro suporte. Fora idéia dela pular por cima do parapeito e se pendurar, no instante em que alguém saía pela porta mais distante. Abaixo de suas botas havia uma escuridão em cascata. Um vento forte golpeava o corpo dos dois. As mãos de Rachel iam enfraquecendo a cada segundo.

Tinham ouvido, horrorizados, as balas voando para fora do terraço, em direção à noite gelada, esperando que o perseguidor não olhasse por cima do parapeito. Paul conseguira olhar enquanto a porta mais próxima era aberta a tiros e alguém se arrastava para dentro.

- Knoll - tinha murmurado ele. Mas durante o último minuto houvera apenas silêncio. Nenhum som.

Os braços de Rachel doíam.

- Não consigo me segurar mais - sussurrou ela.

Paul se aventurou a olhar.

- Não há ninguém aí. Suba. - Ele ergueu a perna direita, depois puxou-se para cima e pulou por cima do parapeito. Em seguida, estendeu a mão e ajudou-a a subir. Assim que estavam em chão firme, os dois se encostaram à pedra fria e olharam para o rio lá embaixo.

- Não acredito que fizemos isso - disse ela.

- Eu devo ter pirado completamente para estar no meio dessa coisa.

- Pelo que me lembro, foi você que me arrastou para cá.

- Nem me lembre.

Paul entreabriu a porta meio fechada e ela o seguiu, entrando. A sala era uma biblioteca elegante, com estantes de nogueira lustrosas indo do chão ao teto, tudo dourado em estilo barroco. Seguiram por um portão de ferro fundido e atravessaram rapidamente o piso de parquete encerado. Dois gigantescos globos de madeira flanqueavam cada lado, postos em recessos entre as estantes. O ar quente cheirava a couro mofado. Um retângulo amarelo de luz se estendia de uma porta do outro lado, onde o topo de outra escada era visível.

Paul sinalizou adiante.

- Por ali.

- Knoll entrou aqui - lembrou ela.

- Eu sei. Mas ele certamente foi embora, depois de todo aquele tiroteio.

Ela seguiu Paul, saindo da biblioteca e descendo a escada. Embaixo, um corredor escuro virava imediatamente à direita. Ela esperava que em algum lugar houvesse uma porta que levasse de volta ao pátio interno. No andar de baixo, viu Paul se virar, depois uma sombra preta saltou da escuridão e o corpo de Paul desfaleceu no piso.

Uma mão enluvada envolveu o pescoço de Rachel.

Ela foi levantada do último degrau e jogada contra a parede. Sua visão ficou turva, depois focalizou outra vez, e estava olhando direto os olhos ferozes de Christian Knoll, com a lâmina de uma faca apertada contra a parte de baixo de seu queixo.

- Aquele é o seu ex-marido? - As palavras dele saíram num sussurro gutural, o hálito era quente. - Veio resgatar você?

Os olhos de Rachel espiaram rapidamente. Paul estava esparramado na pedra, imóvel. Ela olhou de volta para Knoll.

- Talvez ache isso difícil de acreditar, mas não tenho nada contra você, Frau Cutler. Matá-la certamente seria a coisa mais eficaz, mas não necessariamente a mais inteligente. Primeiro seu pai morre, depois você. E uma coisa tão perto da outra! Não. Por mais que eu pudesse querer me livrar de você, como um incômodo, não posso matá-la. Então, por favor, vá para casa.

- Você matou... meu pai.

- Seu pai entendia os riscos que corria na vida. Parecia até mesmo apreciá-los. Você deveria ter aceitado o conselho dele. Conheço bem a história de Faetonte. Uma narrativa fascinante sobre atitudes impulsivas. Sobre a incapacidade da geração mais antiga em ensinar a mais nova. O que, mesmo, o deus sol disse a Faetonte? "Olhe o meu rosto e, se puder, olhe o meu coração, veja lá o sangue e a paixão ansiosos de um pai." Ouça o conselho, Frau Cutler. Minha opinião pode mudar com facilidade. Gostaria que aqueles seus filhos preciosos chorassem lágrimas de âmbar caso um raio a matasse?

De repente, ela visualizou o pai no caixão. Tinha-o enterrado em seu paletó de tweed, o mesmo usado no tribunal no dia em que ela mudou o nome dele. Nunca tinha acreditado que ele caíra da escada. Agora o assassino estava aqui, encostado nela. Retorceu-se e tentou dar uma joelhada na virilha de Knoll, mas a mão em volta de seu pescoço apertou mais, e a ponta da faca rompeu a pele.

Ela ofegou e respirou fundo.

- Ora, ora, Frau Cutler. Nada disso.

Knoll tirou a mão da garganta dela, mas manteve a lâmina firme no queixo. Deixou a palma percorrer todo o corpo de Rachel até a virilha e a apertou com força.

- Pude perceber que você me achou intrigante. - A mão subiu e massageou os seios dela através do suéter. - Uma pena eu não ter mais tempo. - De repente, ele apertou com força o seio direito e torceu.

A dor fez com que ela se enrijecesse.

- Aceite meu conselho, Frau Cutler. Vá para casa. Tenha uma vida feliz. Crie seus filhos. - A cabeça dele indicou Paul. - Satisfaça seu ex-marido e esqueça tudo isto. Não tem a ver com você.

Ela conseguiu dizer de novo, através da dor.

- Você... matou meu... pai.

A mão direita soltou seu seio e apertou o pescoço.

- Na próxima vez em que nos encontrarmos, vou cortar sua garganta. Entendeu?

Ela ficou quieta. A ponta da faca penetrou mais. Rachel quis gritar, mas não conseguiu.

- Entendeu? - perguntou Knoll lentamente.

- Sim - murmurou ela.

Ele afastou a lâmina. O sangue escorria do ferimento no pescoço. Ela ficou rígida, encostada à parede. Estava preocupada com Paul. Ele ainda não tinha se mexido.

- Faça o que digo, Frau Cutler.

Ele se virou para ir embora.

Rachel saltou sobre ele.

A mão direita de Knoll subiu em arco e o cabo da faca a acertou na têmpora direita. Seus olhos viram um relâmpago branco. O corredor girou. A bile irrompeu na garganta. Então ela viu Marla e Brent correndo em sua direção, os braços estendidos, a boca se mexendo, mas as palavras inaudíveis enquanto a escuridão os envolvia.

 

23H50

Suzanne desceu correndo a encosta de volta a Stod. No caminho, passou por três pessoas passeando tarde da noite e não prestou atenção a elas. Sua única preocupação no momento era voltar ao Gebler, pegar seus pertences e desaparecer. Precisava da segurança da fronteira tcheca e do castelo Loukov, pelo menos até que Loring e Fellner pudessem resolver o assunto - de um sócio do clube para outro.

O súbito aparecimento de Knoll a havia apanhado de novo com a guarda baixa. O sacana era determinado, isso ela precisava admitir. Decidiu não subestimá-lo pela terceira vez. Se Knoll estava em Stod, era preciso sair do país.

Chegou à rua embaixo e correu para o hotel.

Graças a Deus estava com a bagagem pronta. Tudo preparado para ir embora, já que o tempo todo seu plano fora partir depois de cuidar de Alfred Grumer. Um número menor de lâmpadas do que antes iluminava o caminho, mas a entrada do Gebler estava bem clara. Entrou no saguão. Um recepcionista noturno atrás do balcão estava batucando num teclado e nem levantou a cabeça. No quarto, pendurou a bolsa no ombro e jogou alguns euros na cama, mais do que o bastante para cobrir a conta. Não havia tempo para uma saída formal.

Demorou um momento para recuperar o fôlego. Talvez Knoll não soubesse onde ela estava hospedada. Stod era uma cidade grande, com muitos hotéis. Não, decidiu. Ele sabia e agora provavelmente vinha para cá. Pensou no que acontecera no terraço da abadia. Knoll estava atrás da outra pessoa que estivera na igreja. E essa outra presença também era preocupante para ela. Mas não fora Suzanne quem atirou a faca no peito de Grumer. Quem quer que tivesse visto, era mais problema de Knoll do que dela.

Na bolsa de viagem, encontrou um novo pente para a Sauer e colocou-o no lugar. Em seguida, pôs a arma na bolsa. Embaixo, passou rapidamente pelo saguão e saiu pela portaria. Olhou para a direita e depois para a esquerda. Knoll estava a cem metros de distância, vindo direto na sua direção. Quando a viu, começou a correr. Ela disparou adiante, seguindo por uma ruela deserta, e virou uma esquina. Continuou correndo e rapidamente virou mais duas esquinas. Talvez pudesse despistar Knoll no labirinto de prédios veneráveis, todos parecidos.

Parou. A respiração estava ofegante.

Passos ecoaram atrás.

Chegando perto.

Em sua direção.

 

A respiração de Knoll se condensava no ar seco. Sua noção de tempo fora quase perfeita. Mais alguns instantes e teria apanhado a vaca.

Virou uma esquina e parou.

Apenas silêncio.

Interessante.

Segurou a CZ e se adiantou cautelosamente. Tinha estudado o desenho da parte antiga da cidade na véspera, com um mapa obtido no escritório de turismo. Os prédios cobriam quarteirões interrompidos por ruas estreitas e becos ainda mais apertados. Tetos íngremes, janelas de águas-furtadas e arcos adornados por criaturas mitológicas erguiam-se em toda parte. Seria fácil se perder naquela mesmice. Mas sabia exatamente onde o Porsche cinza-ardósia de Danzer estava parado. Tinha descoberto na véspera, numa missão de reconhecimento, sabendo que ela certamente teria um rápido meio de transporte nas imediações.

Por isso foi naquela direção, a mesma para onde os passos se dirigiam correndo.

Parou depressa.

Ainda apenas silêncio.

Não havia mais solas batendo nas pedras do calçamento à distância.

Adiantou-se devagar e virou uma esquina. A rua adiante era reta, e o único brilho que rompia a escuridão ficava na outra extremidade. No meio do caminho, surgiu uma esquina. A rua à direita se estendia por cerca de trinta metros, terminando sem saída no que parecia a parte de trás de uma loja. Uma pequena lixeira preta ficava à direita, com um BMW estacionado à esquerda. Era mais um beco do que uma rua. Ele foi até o fim e verificou o carro. Trancado. Levantou a tampa da lixeira. Vazia, a não ser por jornais e alguns sacos de lixo que fediam a peixe podre. Experimentou as maçanetas do prédio. Trancadas.

Voltou à rua principal, com a arma na mão, e virou à direita.

 

 

Suzanne esperou cinco minutos antes de se arrastar de baixo do BMW. Tinha se enfiado sob o carro, sentindo-se grata por ser tão pequena. Mas, só para garantir, a 9mm estava pronta. Mas Knoll não tinha olhado embaixo, aparentemente satisfeito ao ver que as portas do carro estavam trancadas e o beco supostamente vazio.

Pegou a bolsa de viagem na lixeira, onde a havia posto sob alguns jornais. Um cheiro de peixe acompanhou a bolsa de couro. Guardou a Sauer no bolso e decidiu usar outra rota até o carro, talvez até mesmo deixando-o e alugando outro de manhã. Poderia voltar mais tarde e recuperar o Porsche depois de resolver a situação. O serviço de um adquirente era fazer o que o patrão desejava. Mesmo Loring tendo dito para cuidar das coisas como quisesse, a situação com Knoll e o risco de atrair atenção estavam piorando cada vez mais. Além disso, matar o oponente estava se mostrando muito mais difícil do que ela havia imaginado.

Parou no beco antes da esquina e prestou atenção durante mais alguns segundos.

Nenhum passo podia ser ouvido.

Saiu devagar e, em vez de virar à direita, como Knoll tinha feito, foi para a esquerda.

De um portal no escuro, um punho acertou sua testa. Seu pescoço foi rapidamente para trás e depois voltou. A dor a imobilizou momentaneamente, e uma mão envolveu sua garganta. Seu corpo foi levantado, depois jogado contra uma parede de pedra, úmida. Um sorriso doentio preencheu o rosto nórdico de Christian Knoll.

- Você acha que sou tão estúpido assim? - perguntou Knoll, a centímetros dela.

- Qual é, Christian. Não podemos resolver isso? Eu falei a sério, lá na abadia. Vamos para o seu quarto. Lembra-se da França? Foi divertido.

- O que há de tão importante para você ter de me matar? - O aperto dele ficou mais forte.

- Se eu disser, você me solta?

- Não estou no clima, Suzanne. Recebi ordens de fazer o que me agrada. E você sabe o que me agrada.

Tente ganhar tempo, pensou ela.

- Quem mais estava na igreja?

- Os Cutler. Parece que continuam interessados. Importa-se em me esclarecer?

- Como é que eu saberia?

- Acho que você sabe muito mais do que está disposta a dizer. - Ele apertou com mais força.

- Certo. Certo, Christian. É a Sala de Âmbar.

- O que é que tem?

- Aquela câmara foi onde Hitler a escondeu. Eu precisava ter certeza, por isso vim aqui.

- Certeza de quê?

- Você sabe do interesse de Loring. Ele está procurando a sala, assim como Fellner. Nós simplesmente temos informações que vocês não têm.

- O quê, por exemplo?

- Você sabe que não posso dizer. Isso não é justo.

- E me explodir é justo? O que está acontecendo, Suzanne? Isso não é uma busca comum.

- Vou fazer um trato com você. Vamos para o seu quarto. Conversamos depois. Prometo.

- Não estou me sentindo amoroso neste momento.

Mas as palavras tiveram o efeito desejado. A mão em volta do pescoço dela relaxou apenas o suficiente para Suzanne girar para longe da parede e lhe dar uma joelhada firme na virilha.

Knoll se dobrou de dor.

Ela o chutou de novo entre as pernas, chocando a ponta da bota contra as mãos em concha. O adversário caiu nas pedras do calçamento e ela saiu correndo.

 

Uma dor ofuscante rasgou os testículos de Knoll. Lágrimas cresceram nos olhos. A vaca tinha feito de novo. Rápida como um gato. Ele havia relaxado apenas um segundo, para mudar a posição. Mas isso bastou para o ataque.

Droga.

Levantou os olhos e viu Danzer desaparecer na rua. Os testículos doíam. Estava com dificuldade para respirar, mas provavelmente ainda poderia dar um tiro. Levou a mão à pistola no bolso. E parou.

Não precisava.

Cuidaria dela no dia seguinte.

 

QUARTA-FEIRA, 21 DE MAIO, 1H30

Rachel abriu os olhos. Sua cabeça latejava. O estômago borbulhava como se estivesse com enjôo marítimo. Um fedor de vômito subia do suéter. O queixo doía. Gentilmente traçou com o dedo a forma de uma espinha, depois se lembrou da ponta da faca penetrando.

Curvado sobre ela estava um homem vestido com batina marrom de monge. Seu rosto era velho e murcho, e ele a observava atentamente, com olhos ansiosos e aquosos. Ela estava encostada na parede, no corredor onde Knoll a atacara.

- O que aconteceu? - perguntou ela.

- Conte você - disse Wayland McKoy.

Ela olhou para além do monge e tentou focalizar.

- Não estou vendo você, McKoy.

O grandalhão chegou mais perto.

- Onde está o Paul? - perguntou ela.

- Ali, ainda apagado. Levou uma pancada feia na cabeça. Você está bem?

- Estou. Só com uma dor de cabeça monstruosa.

- Imagino que sim. Os monges ouviram alguns tiros vindo da igreja. Encontraram Grumer, depois vocês dois. Suas chaves do quarto os levaram ao Garni, e eu vim correndo.

- Precisamos de um médico.

- Esse monge é médico. Disse que sua cabeça está bem. Não foi rachada.

- E o Grumer?

- Enchendo o saco do diabo, provavelmente.

- Foram Knoll e aquela mulher. Grumer veio aqui se encontrar com ela, e Knoll o matou.

- O filho-da-puta teve o que merecia. Algum motivo para vocês dois não terem me convidado?

Ela massageou a cabeça.

- Você tem sorte por não termos feito isso.

Paul gemeu a alguns metros de distância. Ela se arrastou pelo chão de pedras. Seu estômago começou a se acalmar.

- Paul, você está bem?

Ele estava esfregando o lado esquerdo da cabeça.

- O que aconteceu?

- Knoll estava esperando por nós.

Rachel se arrastou para perto e verificou a cabeça dele.

- Como você arranjou esse corte no queixo? - perguntou McKoy.

- Não é importante.

- Olhe, meritíssima, há um alemão morto lá em cima e a polícia fazendo um monte de perguntas. Vocês dois foram encontrados desmaiados no chão e você diz que não é importante. Que porra está acontecendo?

- Precisamos ligar para o inspetor Pannik - disse Paul a ela.

- Concordo.

- Com licença. Olá? Lembram-se de mim? - perguntou McKoy.

O monge entregou um pano molhado a Rachel. Ela o encostou na lateral da cabeça de Paul. O sangue manchou o tecido.

- Acho que ele cortou você - disse ela.

Paul levou a mão ao queixo de Rachel.

- O que aconteceu aqui?

Ela decidiu ser honesta.

- Um aviso. Knoll disse para irmos para casa e ficarmos fora disto.

McKoy se inclinou para perto.

- Ficar fora de quê?

 

- Não sabemos. Só temos certeza de que essa mulher matou Chapaev e Knoll matou meu pai.

- Como sabe disso?

Ela contou o que aconteceu.

- Não pude ouvir tudo o que Grumer e a mulher estavam conversando na igreja - disse Paul. - Só alguns trechos. Mas acho que um deles, talvez Grumer, mencionou a Sala de Âmbar.

McKoy balançou a cabeça.

- Nunca sonhei que as coisas chegariam tão longe. Que merda eu fiz?

- O que você quer dizer com fez? - perguntou Paul.

McKoy ficou quieto.

- Responda - disse Rachel.

Mas McKoy permaneceu em silêncio.

 

McKoy estava na câmara subterrânea, a mente num redemoinho de apreensão, e olhava para os três veículos enferrujados. Virou o olhar lentamente para a antiga face de rocha, procurando uma mensagem. Um velho clichê, se as paredes pudessem falar, ficava ecoando em sua mente. Será que essas paredes poderiam lhe dizer mais do que ele já sabia? Ou mais do que já suspeitava? Será que explicariam por que os alemães levaram três veículos preciosos para o fundo de uma montanha e depois dinamitaram a única saída? Teriam sido mesmo os alemães que lacraram a saída? Será que elas poderiam descrever como um industrial tcheco abriu esta caverna anos depois, roubou o que havia aqui e depois explodiu a entrada? Ou talvez elas não soubessem de nada. Silenciosas como as vozes que durante anos tinham tentado forjar uma pista, descobrindo apenas um caminho para a morte.

Atrás dele, passos se aproximaram pela abertura da galeria externa. A outra saída da câmara continuava cheia de pedras e entulho, já que sua equipe ainda não tinha começado a escavação. Só fariam isso no mínimo no dia seguinte. Olhou o relógio e viu que eram quase onze da manhã. Virou-se e viu Paul e Rachel Cutler saírem das sombras.

- Não esperava vocês dois tão cedo. Como estão as cabeças?

- Queremos respostas, McKoy, e chega de embromar - disse Paul. - Nós estamos nisso, gostemos ou não. Ontem à noite você se perguntou o que tinha feito. O que quis dizer com isso?

- Vocês não planejam aceitar o conselho de Knoll e ir para casa?

- Devemos? - perguntou Rachel.

- Diga você, juíza.

- Pare de embromar - disse Paul. - O que está acontecendo?

- Venham aqui. - Ele os guiou pela câmara até um dos esqueletos meio enterrados na areia. - Não resta muito do que esses caras estavam usando, mas, pelos restos, os uniformes parecem ser da Segunda Guerra Mundial. O padrão de camuflagem é definitivamente dos fuzileiros americanos. - Ele se abaixou e apontou. - Essa bainha é de uma baioneta M4, americana, da guerra. Não tenho certeza, mas o coldre da pistola provavelmente é francês. Os alemães não usavam material americano nem equipamento francês. Mas depois da guerra, todo tipo de militares e paramilitares europeus usavam material americano. A Legião Estrangeira da França. O Exército Nacional Grego. A Infantaria Holandesa. - Ele sinalizou para o outro lado da câmara. - Um dos esqueletos ali está usando calças e botas sem bolsos. Os soviéticos húngaros se vestiam assim depois da guerra. As roupas. Os caminhões vazios. E a carteira que você achou explica as coisas.

- Explica o quê? - perguntou Paul.

- Este local foi roubado.

- Como sabe o que esses caras estavam usando? - perguntou Rachel.

- Contrariamente ao que vocês talvez pensem, não sou um caipira imbecil da Carolina do Norte. História militar é a minha paixão. Além disso, fez parte dos preparativos para essas escavações. Sei que estou certo. Senti isso na segunda-feira. Esta câmara foi aberta depois da guerra. Não há dúvida. Esses pobres coitados eram ex-militares, militares ou trabalhadores usando sobras da guerra. Foram mortos a tiros quando o serviço terminou.

- Então tudo o que você fez com Grumer era fingimento? - perguntou Rachel.

- Merda, não. Eu queria que este local estivesse cheio de obras de arte, mas depois da primeira olhada na segunda-feira, soube que tínhamos um local violado. Simplesmente não percebi o quanto era violado, até agora.

Paul apontou para a areia.

- Aquele é o cadáver que tinha as letras. - Ele se abaixou e traçou de novo O, I e C na areia, espaçando as letras do modo como se lembrava. - Estavam assim.

McKoy pegou as fotos de Grumer no bolso.

Então Paul acrescentou mais três letras - L, R, N - preenchendo os espaços em branco - e transformou o C num G. Agora estava escrito LORING.

- Filho-da-puta - disse McKoy, comparando a foto com o que estava no chão. - Acho que você está certo, Cutler.

- O que o fez pensar nisso? - perguntou Rachel a Paul.

- Era difícil ver com clareza. Poderia ter sido um G. De qualquer modo, esse nome vive aparecendo. Seu pai o mencionou numa das cartas. - Paul enfiou a mão no bolso e tirou uma folha dobrada. - Li de novo há pouco.

McKoy examinou o parágrafo escrito à mão. Na metade, o nome de Loring atraiu seu olhar.

 

Yancy telefonou na véspera do acidente. Ele pôde localizar o velho que você mencionou, cujo irmão trabalhou na propriedade de Loring. Você estava certo. Eu jamais deveria ter pedido para Yancy fazer indagações de novo enquanto estava na Itália.

 

McKoy atraiu o olhar de Paul.

- Você acha que seus pais eram o alvo daquela bomba?

- Não sei mais o que pensar. - Paul apontou para a areia. - Ontem à noite, Grumer falou sobre Loring. Karol falou sobre ele. Meu pai pode ter falado sobre ele. Talvez até este cara aqui na areia estivesse falando dele. Só sei que Knoll matou o pai de Rachel e que a mulher matou Chapaev.

- Deixe-me mostrar outra coisa - disse McKoy. Em seguida, levou-os até um mapa aberto junto a uma das barras de luz. - Fiz umas leituras de bússola esta manhã. O outro túnel, que está lacrado, vai para nordeste. - Ele se abaixou e apontou. - Este é um mapa da área em 1943. Havia uma estrada pavimentada seguindo paralela à base da montanha, na direção nordeste.

Paul e Rachel se agacharam perto do mapa.

- Aposto que esses caminhões vieram para cá através da outra entrada lacrada, por essa rodovia. Eles teriam precisado de uma superfície compacta. Os caminhões são pesados demais para lama e areia.

- Você acredita no que Grumer disse ontem à noite? - perguntou Rachel.

- Que a Sala de Âmbar estava aqui? Não tenho dúvida.

- Como pode ter tanta certeza? - indagou Paul.

- Acho que a câmara não foi lacrada pelos nazistas, e sim por quem a saqueou depois da guerra. Os alemães precisariam tirar de volta os painéis de âmbar. Não havia sentido em explodir a entrada. Mas o cara que veio aqui nos anos cinqüenta não ia querer que ninguém soubesse o que ele havia descoberto. Por isso, matou os trabalhadores e explodiu o túnel. Só descobrimos isso por acaso, graças ao radar de solo. O fato de termos entrado foi simplesmente outro acaso. Rachel pareceu entender.

- Sempre vale a pena ter sorte.

- Os alemães e o saqueador provavelmente nem sabiam que havia outro túnel passando tão perto da câmara. Como você disse, foi simplesmente sorte nossa, que procurávamos vagões de trem cheios de obras de arte.

- Eles tinham ferrovias vindo até as montanhas? - perguntou Paul.

- Sem dúvida. Era assim que transportavam munição.

Rachel se levantou e olhou os caminhões.

- Então pode ter sido este o local que papai falou em verificar?

- Poderia sim - disse McKoy.

- De volta à pergunta original, McKoy. O que você quis dizer quando se perguntou o que tinha feito? - perguntou Paul.

McKoy se levantou.

- Não conheço vocês nem um pouco. Mas por algum motivo confio nos dois. Vamos voltar ao barracão e eu conto tudo.

 

Paul observou o sol da manhã lançando um facho empoeirado através das janelas sujas do barracão.

- O que vocês sabem sobre Hermann Göring? - perguntou McKoy.

- Só o que passa no History Channel - respondeu Paul.

McKoy sorriu.

- Ele era o nazista número dois. Mas Hitler finalmente ordenou sua prisão em abril de 1945, graças a Martin Bormann. Bormann convenceu o Führer de que Göring pretendia dar um golpe de estado. Bormann e Göring nunca se deram. Por isso Hitler o rotulou de traidor, retirou seus títulos e o prendeu. Os americanos o encontraram assim que a guerra terminou, quando tomaram o controle do sul da Alemanha.

- Enquanto estava preso, esperando julgamento por seus crimes, Göring foi intensamente interrogado. As conversas acabaram se materializando no que passou a se chamar Relatórios de Interrogatório Consolidados. Foram considerados documentos secretos durante anos.

- Por quê? - perguntou Rachel. - Parece que eles seriam mais históricos do que secretos. A guerra havia acabado.

McKoy explicou que havia dois bons motivos para os Aliados esconderem os relatórios. O primeiro era por causa da avalanche de pedidos de restituição de obras de arte que foram feitos depois da guerra. Muitos eram especulativos e espúrios. Nenhum governo tinha tempo nem dinheiro para investigar totalmente e processar centenas de milhares de reivindicações. E os RIC não teriam feito nada além de ampliar essas reivindicações. O segundo motivo era mais pragmático. A su¬posição geral era que todo mundo - afora um punhado de corruptos - tinha resistido nobremente ao terror nazista. Mas os RIC revelaram como marchands franceses, holandeses e belgas lucraram com os invasores fornecendo arte para o projeto Sonderauftrag Linz, o Museu de Arte Mundial de Hitler. A supressão dos relatórios evitou o embaraço que os fatos teriam causado a muitas pessoas.

- Göring tentou pegar os espólios de arte antes que os ladrões de Hitler chegassem em qualquer país conquistado. Hitler queria expurgar o mundo do que considerava arte decadente. Picasso, van Gogh, Matisse, Nolde, Gauguin e Grosz. Göring reconhecia o valor dessas obras-primas.

- O que isso tem a ver com a Sala de Âmbar? - perguntou Paul.

- A primeira mulher de Göring era uma condessa sueca, Karin von Kantzow. Ela visitou o Palácio de Catarina em Leningrado antes da guerra e adorou a Sala de Âmbar. Quando ela morreu, em 1931, Göring a enterrou na Suécia, mas os comunistas violaram a sepultura, por isso ele construiu uma propriedade que chamou de Karinhall, a norte de Berlim, e pôs lá o corpo dela, num mausoléu enorme. Todo o local era espalhafatoso e vulgar. Quatro mil hectares, estendendo-se ao norte até o Mar Báltico e ao leste até a Polônia. Göring queria reproduzir a Sala de Âmbar em memória dela, por isso construiu um cômodo com exatamente dez metros por dez metros, pronto para receber os painéis.

- Como sabe disso? - perguntou Rachel.

- Os RIC contêm entrevistas com Alfred Rosenberg, chefe do ERR, o departamento criado por Hitler para supervisionar o saque da Europa. Rosenberg falou repetidamente sobre a obsessão de Göring pela Sala de Âmbar.

Então McKoy descreveu a competição feroz entre Göring e Hitler pelas obras de arte. O gosto de Hitler refletia a filosofia nazista. Quanto mais ao leste se originasse uma obra, menos valiosa era.

- Hitler não possuía qualquer interesse pela arte russa. Considerava todo o país sub-humano. Mas não considerava a Sala de Âmbar como sendo russa. Frederico Guilherme I, rei da Prússia, tinha dado o âmbar a Pedro, o Grande. Por isso a relíquia era alemã, e sua volta ao solo alemão era considerada culturalmente importante.

"O próprio Hitler ordenou que os painéis fossem evacuados de Königsberg, em 1945. Mas Erich Koch, governador provincial da Prússia, era leal a Göring. Bom, a complicação é a seguinte: Josef Loring e Koch eram ligados. Koch precisava desesperadamente de matéria-prima e fábricas eficientes para entregar as cotas impostas por Berlim a todos os governadores provinciais. Loring trabalhava para os nazistas, abrindo as minas, fundições e fábricas da família ao esforço de guerra alemão. Mas, dividindo as apostas, Loring também trabalhava com a inteligência soviética. Isso pode explicar por que foi tão fácil, para ele, prosperar sob o governo soviético na Tchecoslováquia depois da guerra.

- Como você sabe tudo isso? - perguntou Paul.

McKoy foi até uma pasta de couro em cima de uma mesa. Pegou um maço de papéis grampeados e entregou a Paul.

- Vá à quarta página. Eu marquei os parágrafos. Leia.

Paul folheou as páginas e encontrou os trechos marcados:

 

Entrevistas com vários contemporâneos de Koch e Josef Loring confirmam que os dois se encontravam com freqüência. Loring era grande colaborador financeiro de Koch e mantinha o governador alemão numa vida de luxo. Será que esse relacionamento levou a informações sobre a Sala de Âmbar ou talvez a sua aquisição? A resposta é difícil. Se Loring possuía conhecimento sobre os painéis ou os próprios painéis, os soviéticos aparentemente não sabiam de nada.

Rapidamente depois da guerra, em maio de 1945, o governo soviético montou uma busca aos painéis de âmbar. Alfred Rohde, diretor das coleções de arte de Königsberg sob o comando de Hitler, tornou-se a fonte inicial de informações para os soviéticos. Rohde era apaixonado por âmbar, e contou a investigadores soviéticos que os caixotes com os painéis ainda estavam no palácio de Königsberg quando deixou o prédio, em 5 de abril de 1945. Rohde mostrou aos investigadores a sala incendiada onde, segundo ele, os caixotes tinham sido guardados. Pedaços de madeira dourada e dobradiças de cobre (supostamente parte das portas originais da Sala de Âmbar) ainda permaneciam ali. A conclusão da destruição se tornou inevitável, e o assunto foi considerado encerrado. Então, em março de 1946, Anatoly Kuchumov, curador dos palácios em Pushkin, visitou Königsberg. Lá, nas mesmas ruínas, encontrou restos quebrados dos mosaicos florentinos da Sala de Âmbar. Kuchmov acreditava firmemente que, ainda que outras partes da sala pudessem ter sido queimadas, o âmbar não o fora, e ordenou uma nova busca.

Nessa época, Rohde estava morto, tinha morrido junto com a mulher no mesmo dia em que receberam ordem de se apresentar para uma nova rodada de interrogatórios feitos pelos soviéticos. De modo interessante, o médico que assinou os atestados de óbito doa Rohde também desapareceu no mesmo dia. Nesse ponto, o Ministério da Segurança do Estado Soviético assumiu a investigação junto com a Comissão Extraordinária de Estado, que continuou a busca até quase 1960.

Poucos aceitaram a conclusão de que os painéis de âmbar foram perdidos em Königsberg. Muitos especialistas questionam se os mosaicos foram mesmo destruídos. Os alemães eram muito inteligentes quando necessário e, dado o preço e as personalidades envolvidos, tudo é possível. Além disso, dados os intensos esforços de Josef Loring depois da guerra, sua paixão por âmbar e a quantidade ilimitada de dinheiro e recursos que recebia, talvez Loring tenha achado o âmbar. Entrevistas com descendentes de moradores da região confirmam que Loring visitava com freqüência a região de Harz, procurando nas minas, tudo isso com o conhecimento e a aprovação do governo soviético. Um homem chegou a declarar que Loring estava trabalhando com a suposição de que os painéis foram levados em caminhões de Königsberg para o oeste, entrando na Alemanha, e seu destino definitivo seria o sul, até as minas austríacas ou os Alpes, mas os caminhões foram desviados por causa da aproximação dos exércitos soviético e americano. As melhores estimativas dizem que havia três caminhões. Mas nada pode ser confirmado.

Josef Loring morreu em 1967. Seu filho, Ernst, herdou a fortuna da família. Nenhum dos dois jamais falou publicamente sobre o assunto da Sala de Âmbar.

- Você sabia? - perguntou Paul. - E tudo aquilo na segunda-feira e ontem foi uma representação? Você estava atrás da Sala de Âmbar o tempo todo?

- Por que acham que deixei vocês ficarem aqui? Dois estranhos aparecem do nada. Acham que eu teria perdido dois segundos com vocês se as primeiras coisas que saíram da sua boca não tivessem sido "Estamos procurando a Sala de Âmbar" e "Quem, diabos, é Loring?"

- Vá se foder, McKoy - disse Paul, surpreso com sua própria linguagem. Não conseguia se lembrar de ter xingado de modo tão grosseiro, ou na quantidade que xingara nos últimos dias. Aparentemente, esse caipira da Carolina do Norte o estava cansando.

- Quem escreveu isso? - perguntou Rachel, indicando o documento.

- Rafal Dolinski, um repórter polonês. Ele fez um bocado de trabalho sobre a Sala de Âmbar. Era meio obcecado pelo assunto, na minha opinião. Quando estive aqui há três anos, ele me abordou. Tinha feito muita pesquisa e estava escrevendo um artigo para uma revista européia. Esperava conseguir uma entrevista com Loring para levantar o interesse de um editor. Mandou uma cópia disso tudo para Loring, junto com um pedido para conversarem. O tcheco não respondeu, mas um mês depois Dolinski estava morto. - McKoy fez uma pausa, depois olhou direto para Rachel. - Numa explosão numa mina perto de Warthberg.

- Droga, McKoy - disse Paul. - Você sabia de tudo isso e não nos contou. Agora Grumer está morto.

- Dane-se o Grumer. Ele era um sacana ganancioso e mentiroso. Foi morto porque se vendeu. Isso não é problema meu. Não falei nada com ele sobre isso. Mas algo me dizia que esta era a câmara certa. Desde os resultados do radar. Poderia ser um vagão de ferrovia, mas, se não fosse, poderiam ser três caminhões com a Sala de Âmbar dentro. Quando vi aquelas coisas na segunda-feira, esperando no escuro, achei que tinha encontrado o baú do tesouro.

- Então você enganou os investidores pela oportunidade de descobrir se estava certo - disse Paul.

- Achei que de qualquer modo eles ganhariam. Pinturas ou âmbar. O que importa para eles?

- Você é um ator tremendamente bom - disse Rachel. - Me enganou.

- Minha reação quando vi os caminhões vazios não foi atuação. Esperava que minha aposta tivesse dado certo e que os investidores não se importariam com uma pequena mudança no botim. Apostei que Dolinski estava errado e que os painéis não tinham sido encontrados por Loring nem por mais ninguém. Mas, quando vi a outra entrada lacrada e as carrocerias vazias, soube que estava afundado em merda.

- Você ainda está afundado em merda - disse Paul.

McKoy balançou a cabeça.

- Pense bem, Cutler. Há alguma coisa acontecendo aqui. Este não é um buraco seco. Aquela câmara lá não deveria ser encontrada. Nós simplesmente tropeçamos nela, graças à velha tecnologia moderna. Agora, de repente, alguém tem um interesse tremendo pelo que estamos fazendo, e tem um interesse tremendo pelo que Karol Borya e Chapaev sabiam. Interesse bastante para matá-los. Talvez tivesse interesse suficiente para matar seus pais.

Paul olhou intensamente para McKoy.

- Dolinski me falou de um monte de pessoas que acabaram mortas procurando o âmbar. A coisa remonta até logo depois da guerra. É de arrepiar. Agora ele talvez faça parte delas.

Paul não questionou o argumento. McKoy estava certo. Algo definitivamente estava acontecendo e envolvia a Sala de Âmbar. O que mais poderia ser? Havia simplesmente coincidências demais.

- Presumindo que você esteja certo, o que faremos agora? - perguntou finalmente Rachel numa voz que indicava resignação.

A resposta de McKoy foi rápida:

- Vou à República Tcheca falar com Ernst Loring. Acho que está na hora de alguém fazer isso.

- Nós também vamos - disse Paul.

- Vamos? - perguntou Rachel.

- Você está certa. Seu pai e meus pais podem ter morrido por causa disso. Já que cheguei até aqui, planejo ir até o final.

A expressão de Rachel era curiosa. Será que estava descobrindo alguma coisa sobre ele? Algo que talvez nunca tivesse notado? Uma determinação que se escondia sob o grosso verniz de calma controlada Talvez estivesse. Ele certamente estava descobrindo algo sobre si mesmo. A experiência da noite anterior o havia provocado. A vibração quando ele e Rachel fugiam de Knoll. O terror ao ficar pendurado numa balaustrada dezenas de metros acima de um rio escuro na Alemanha. Tinham tido sorte ao escapar com apenas alguns galos na cabeça. Mas agora estava decidido a descobrir o que acontecera a Karol Borya, a seus pais e a Chapaev.

- Paul - disse Rachel. - Não quero que uma coisa como a de ontem aconteça outra vez. Isso é idiotice. Nós temos dois filhos. Lembre-se do que tentou me dizer na semana passada em Warthberg. Concordo com você agora. Vamos para casa.

O olhar dele se cravou nela.

- Vá. Não vou impedi-la.

O tom incisivo e a rapidez da resposta o deixou nervoso. Lembrou-se de ter falado palavras semelhantes há três anos, quando Rachel disse que ia pedir o divórcio. Na época, foi bravata. Palavras ditas apenas para irritá-la. Prova de que era capaz de enfrentar a situação. Desta vez, as palavras eram mais. Ele iria à República Tcheca. E ela podia ir com ele ou ir para casa. Paul realmente não se importava.

- Já pensou numa coisa, meritíssima? - perguntou McKoy de repente.

Rachel o encarou.

- Seu pai guardou as cartas de Chapaev e copiou as que tinha mandado. Por quê? E por que deixá-las para você encontrar? Se realmente não quisesse você envolvida, teria queimado tudo e levado o segredo para o túmulo. Não conheci o velho, mas acho que gosto dele. Tinha sido caçador de tesouros. Queria que o âmbar fosse encontrado, se houvesse alguma possibilidade. E você é a única pessoa a quem ele passou a informação. Certo, ele se virou pelo avesso para conter o apetite de passar a mensagem, mas o recado ainda soa alto e claro: "Vá encontrá-la, Rachel."

Ele estava certo, pensou Paul. Era exatamente o que Borya tinha feito. Nunca havia realmente pensado nisso até agora. Rachel sorriu.

- Acho que meu pai teria gostado de você, McKoy. Quando partimos?

- Amanhã. Neste momento, tenho de cuidar dos sócios para ganharmos um pouco mais de tempo.

 

NEBRA, ALEMANHA

14H10

Knoll estava sentado no silêncio de um minúsculo quarto de hotel, pensando nos Retter der Verlorenen Antiquitäten, os Recuperadores de Antigüidades Perdidas. Eram nove dos homens mais ricos da Europa. Na maioria, donos de indústrias, mas havia dois financistas, um dono de terras e um médico entre os sócios atuais. Homens com pouca coisa a fazer além de revirar o mundo em busca de tesouros roubados. A maioria era de conhecidos colecionadores particulares, e seus interesses variavam. Pintores antigos. Contemporâneos. Impressionistas. Arte africana. Vitoriana. Surrealista. Neolítica. A diversidade é que tornava o clube interessante. Também definia os territórios específicos em que o adquirente de um sócio concentrava seu trabalho de coleta. Na maioria das vezes, esses limites territoriais não eram atravessados. Ocasionalmente, os sócios competiam para ver quem poderia localizar mais rápido o mesmo objeto. Uma corrida pela aquisição, e o desafio estava em encontrar o que supostamente estava perdido para sempre. Resumindo: o clube era uma válvula de escape. Um modo de os ricos exercerem o espírito competitivo que raramente conhecia qualquer fronteira.

Mas, para ele, tudo bem. Knoll também não conhecia fronteiras, e gostava das coisas assim.

Pensou de novo na reunião do mês anterior.

As reuniões do clube eram feitas, rotativamente, nas propriedades tios sócios, locais que variavam de Copenhague a Nápoles, ao sul. Era costume que uma revelação ocorresse em cada encontro, de preferência uma descoberta feita pelo adquirente do anfitrião. Algumas vezes, isso não era possível e outros membros se ofereciam para apresentar algo, mas Knoll sabia o quanto cada membro ansiava por mostrar algo novo quando era sua vez de receber. Fellner, particularmente, gostava da atenção. Bem como Loring. Era apenas outro fato da intensa competição entre os dois.

No mês anterior, fora a vez de Fellner. Todos os nove membros haviam se reunido no Burg Herz, mas apenas seis adquirentes tinham estado livres para comparecer. Isso não era incomum, já que as bus¬cas tinham precedência sobre a cortesia de aparecer para a revelação feita por outro adquirente. Mas o ciúme também podia explicar a ausência. Exatamente, presumiu ele, o motivo para Suzanne Danzer não ter comparecido. O mês seguinte era a vez de Loring, na rotatividade, e Knoll havia planejado devolver a cortesia, boicotando o castelo Loukov. Era uma pena, já que ele e Loring se davam bem. Loring tinha-o recompensado várias vezes com presentes por aquisições que acabaram parando na coleção particular do tcheco. Os membros do clube rotineiramente faziam afagos ao adquirente do outro, multiplicando assim por nove os pares de olhos que reviravam o mundo em busca de tesouros que eles achassem particularmente fascinantes. Era comum, os membros fazerem trocas ou vendas entre si. Os leilões também eram comuns. Itens de interesse eram disputados nas reuniões mensais, um modo de um membro levantar fundos a partir de aquisições que não tivessem interesse pessoal, ao mesmo tempo em que mantinham os tesouros dentro do grupo.

Era tudo muito organizado, muito civilizado.

Então por que Suzanne estava tão ansiosa para mudar as regras?

Por que estava tentando matá-lo?

Uma batida à porta interrompeu seus pensamentos. Estivera esperando há quase duas horas, depois de ter vindo de Stod para Nebra, no oeste, um minúsculo povoado na metade do caminho para o Burg Herz. Levantou-se e abriu a porta. Monika entrou imediatamente. O cheiro de limões doces acompanhou sua entrada. Ele trancou a porta.

Monika o examinou de cima a baixo.

- Noite difícil, Christian?

- Não estou no clima para isso.

Ela se deixou cair na cama, levantando uma das pernas e expondo o gancho dos jeans.

- Nem para isso - disse ele. Seus testículos ainda doíam dos chutes de Danzer, mas não ia contar essa parte.

- Por que foi necessário que eu viesse aqui encontrá-lo? E por que papai não pode ser envolvido?

Knoll contou a Monika o que acontecera na abadia, sobre Grumer e a perseguição em Stod. Deixou de fora o confronto final na rua e disse:

- Danzer fugiu antes que eu pudesse alcançá-la, mas ela mencionou a Sala de Âmbar. Disse que a câmara naquela montanha foi onde Hitler escondeu os painéis em 1945.

- Você acredita nela?

Knoll tinha pensado nisso o dia inteiro.

- Acredito.

- Por que não foi atrás dela?

- Não precisava. Ela voltou ao castelo Loukov.

- Como sabe?

- Anos de disputas.

- Loring ligou ontem de manhã. Papai fez o que você pediu e disse que não tínhamos notícias suas.

- O que explica por que Danzer andava tão descaradamente em Stod.

Monika o estava examinando com atenção.

- O que está pensando em fazer?

- Quero permissão para invadir o castelo Loukov. Quero entrar na reserva de Loring.

- Você sabe o que papai diria.

É, ele sabia. As regras do clube proibiam expressamente que um membro invadisse a privacidade do outro. Depois de uma revelação, o paradeiro de qualquer aquisição não era da conta de ninguém. A cola que unia o segredo coletivo era o mero conhecimento das aquisições que um possuía sobre o outro. As regras do clube também proibiam revelações de fontes, a não ser que o membro adquirente quisesse dizer. Esse segredo protegia não somente o membro, mas também o adquirente, garantindo que as informações cultivadas pudessem ser colhidas de novo sem interferência. A privacidade era a chave da união entre eles, um modo de homens semelhantes, com interesses semelhantes, desfrutarem um prazer semelhante. A santidade de suas propriedades era uma regra inviolável, e qualquer rompimento da regra exigia expulsão imediata.

- Qual é o problema? - perguntou ele. - Não tem coragem? Não está no comando agora?

- Preciso saber por quê, Christian.

- Isso está muito além de uma simples aquisição. Loring já violou as regras do clube ao mandar Danzer me matar. Mais de uma vez, devo dizer. Quero saber o motivo, e acho que a resposta está em Volary.

Knoll esperava tê-la avaliado corretamente. Monika era orgulhosa e arrogante. Tinha claramente se ressentido da usurpação do pai na véspera. A raiva deveria nublar seu julgamento, e ela não o desapontou.

- Está certo, porra. Também quero saber o que aquela vaca e aquele velho escroto estão fazendo. Papai acha que estamos imaginando tudo isso, que houve algum tipo de equívoco. Ele queria falar com Loring, contar a verdade, mas eu o convenci do contrário. Concordo. Faça.

Knoll viu a expressão faminta nos olhos dela. Para Monika, a competição era um afrodisíaco.

- Vou para lá hoje. Sugiro que não façamos mais contato até que eu entre e saia. Estou até disposto a aceitar a culpa, se for apanhado. Direi que estava agindo por conta própria e que você não sabia de nada.

Monika riu.

- Que nobre, meu cavaleiro! Agora venha cá e me mostre o quanto sentiu minha falta.

 

Paul viu Fritz Pannik entrar na sala de jantar do Garni e vir direto à mesa que ele e Rachel ocupavam. O inspetor sentou-se e disse o que sabia até agora.

- Verificamos os hotéis e ficamos sabendo que um homem com a descrição de Knoll estava hospedado no Christinenhof, do outro lado da rua. Uma mulher combinando com a descrição dessa tal de Suzanne estava hospedada mais adiante, no Gebler.

- Sabe mais alguma coisa sobre Knoll? - perguntou Paul. Pannik balançou a cabeça.

- Infelizmente, ele é um enigma. A Interpol não tem nada nos arquivos, e sem identificação por digitais não há um modo realista de descobrir mais. Não sabemos nada sobre o passado dele, nem mesmo onde mora. A menção de um apartamento em Viena a Frau Cutler certamente foi falsa. Para garantir, verifiquei a informação. Mas nada sugere que Knoll more na Áustria.

- Ele deve ter um passaporte - disse Rachel.

- Vários, provavelmente, e todos com nomes falsos. Um homem assim não registraria a identidade verdadeira em qualquer governo.

- E a mulher? - perguntou Rachel.

- Sabemos menos ainda sobre ela. A cena do crime na casa de Chapaev estava limpa. Ele morreu de ferimentos de uma pistola de nove milímetros disparada à queima-roupa. Isso sugere uma certa frieza.

Paul contou a Pannik sobre os Recuperadores de Antigüidades Perdidas e a teoria de Grumer sobre Knoll e a mulher.

- Nunca ouvi falar dessa organização, mas vou fazer investigações. Porém o nome Loring é conhecido. Suas fundições produzem as melhores armas de pequeno porte da Europa. Além disso, é um grande produtor de aço. Um dos principais homens de indústria na Europa Oriental.

- Nós vamos procurar Ernst Loring - disse Rachel.

Pannik inclinou a cabeça na direção dela.

- E qual o propósito da visita?

Ela contou o que McKoy tinha dito sobre Rafal Dolinski e a Sala de Âmbar.

- McKoy acha que ele sabe alguma coisa sobre os painéis, talvez sobre meu pai, Chapaev e...

- Os pais de Herr Cutler? - perguntou Pannik.

- Talvez - respondeu Paul.

- Perdão, mas vocês não acham que esse assunto deve ser cuidado pelas autoridades competentes? O risco parece estar aumentando.

- A vida é cheia de riscos - disse Paul.

- Alguns valem a pena. Outros são idiotas.

- Achamos que esse vale - contrapôs Rachel.

- A polícia tcheca não é muito de cooperar - disse Pannik. - Presumo que Loring tenha contatos suficientes no Ministério da Justiça para tornar qualquer investigação no mínimo difícil. Ainda que a República Tcheca não seja mais comunista, continuam existindo segredos. Nosso departamento sabe que muitas vezes as informações oficiais são retardadas além do que consideramos razoável.

- Quer que sejamos seus olhos e ouvidos? - perguntou Rachel.

- A idéia me ocorreu. Vocês são cidadãos particulares, numa missão totalmente pessoal. Se por acaso ficarem sabendo o bastante para eu instituir uma ação oficial, tanto melhor.

Paul teve de dizer:

- Achei que estávamos correndo riscos demais.

Os olhos de Pannik ficaram frios.

- E estão, Herr Cutler.

 

Suzanne estava de pé na varanda que se projetava de seu quarto. Um sol de fim de tarde queimava em laranja sangrento, aquecendo suavemente sua pele. Sentia-se em segurança e viva no castelo Loukov. A propriedade se estendia por quilômetros, antigo domínio de príncipes da Boêmia. As florestas ao redor tinham sido reservas de caça, com todos os cervos e javalis exclusivamente para as classes dominantes. Antigamente, povoados também salpicavam a floresta, locais onde canteiros, pedreiros, carpinteiros e ferreiros moravam enquanto trabalhavam no castelo. Demorou duzentos anos para terminar as paredes e menos de uma hora para os aliados as bombardearem até os alicerces. Mas a família Loring o reconstruíra, e esta última encarnação, até os mínimos detalhes, era tão magnífica quanto o original.

Olhou as copas das árvores farfalhantes. A alta varanda era voltada para o sudeste, e uma brisa leve a refrescava. Todos os povoados tinham sumido, substituídos por casas e chalés isolados, residências onde gerações dos empregados dos Loring tinham vivido. A moradia sempre fora dada aos mordomos, jardineiros, arrumadeiras, cozinheiros e motoristas. Cerca de cinqüenta no total, as famílias moravam perpetuamente na propriedade, e os filhos simplesmente herdavam os empregos. Os Loring eram generosos e leais para com os funcionários - a vida fora do castelo Loukov costumava ser brutal, por isso era fácil ver por que os empregados trabalhavam ali durante toda a vida.

Seu pai tinha sido um deles, um dedicado historiador da arte com uma característica indomável. Tornou-se o segundo adquirente de Ernst Loring um ano antes de ela nascer. A mãe morreu subitamente quando Suzanne estava com 3 anos. Tanto Loring quanto seu pai falavam freqüentemente da mãe, e sempre em termos calorosos. Aparentemente havia sido uma mulher adorável. Enquanto o pai viajava pelo mundo fazendo aquisições, a mãe servia de tutora para os dois filhos de Loring. Eram muito mais velhos; Suzanne nunca fora muito próxima deles e, quando era adolescente, os dois tinham ido para a universidade. Nenhum voltava muito ao castelo Loukov. Nenhum sabia nada sobre o clube, ou o que o pai fazia. Esse era um segredo que apenas Suzanne e seu benfeitor compartilhavam.

Seu amor pela arte sempre a havia ligado a Loring. A oferta dele, de suceder o pai, veio no dia em que este foi enterrado. Ela ficara surpresa. Chocada. Insegura. Mas Loring não demonstrara qualquer dúvida quanto à sua inteligência ou sua capacidade de decisão, e a confiança inabalável era o que a inspirava constantemente a ter sucesso. Mas agora, parada sozinha ao sol, percebeu que tinha corrido riscos demais nos últimos dois dias. Christian Knoll não era um homem a ser desconsiderado. Tinha toda a consciência dos atentados contra sua vida. Ela o enganara por duas vezes. Uma na mina, outra com o chute nos testículos. Nunca antes suas disputas haviam chegado a esse nível. Suzanne se sentia desconfortável com a escalada, mas entendia a necessidade. Mesmo assim, esse assunto exigia solução. Loring precisava falar com Franz Fellner e chegar a algum acordo.

Uma leve batida soou dentro do quarto.

Ela entrou de novo no cômodo e abriu a porta. Um dos mordomos da casa disse:

- Pan Loring si preje vás vidêt. Ve studovnê.

Loring queria vê-la em seu escritório.

Ótimo, ela também precisava falar com ele.

O escritório ficava dois andares abaixo, na extremidade noroeste do térreo do castelo. Suzanne sempre o havia considerado uma sala de caça, já que as paredes eram cheias de galhadas e chifres, o teto decorado com os animais heráldicos dos reis boêmios. Uma gigantesca pintura a óleo do século XVII dominava uma das paredes, mostrando em termos espantosamente realistas mosquetes, bolsas de caça, dardos para caçar porcos e chifres de pólvora.

Loring já estava confortável no sofá quando ela entrou.

- Venha cá, minha filha - disse ele em tcheco.

Ela se sentou ao lado dele.

- Pensei muito, e intensamente, sobre o que me informou antes, e você está certa, algo precisa ser feito. A caverna em Stod certamente é o lugar. Pensei que ele jamais seria encontrado, mas agora parece que foi.

- Como pode ter certeza?

- Não posso. Mas dentre as poucas coisas que meu pai me disse antes de morrer, a localização certamente parece genuína. Os caminhões, os corpos, a entrada lacrada.

- Essa trilha está fria de novo - deixou claro Suzanne.

- É mesmo, minha cara?

A mente analítica de Suzanne assumiu o controle.

- Grumer, Borya e Chapaev estão mortos. Os Cutler são amadores. Mesmo que Rachel Cutler tenha sobrevivido à mina, o que isso importa? Ela não sabe nada além do que estava nas cartas do pai, o que não é muito. Vagas referências, facilmente desconsideráveis.

- Você disse que o marido dela estava em Stod, no hotel, com o grupo de McKoy.

- Ainda assim, não há pistas trazendo até aqui. Os amadores farão pouco progresso, como aconteceu no passado.

- Fellner, Monika e Christian não são amadores. Acho que atiçamos um pouco demais a curiosidade deles.

Ela sabia das conversas de Loring com Fellner nos últimos dias, conversas em que Fellner aparentemente mentira, dizendo que não sabia do paradeiro de Knoll.

- Concordo. Aqueles três certamente estão planejando alguma coisa. Mas você pode cuidar do assunto com Pan Fellner, cara a cara.

Loring se levantou do sofá.

- Isso é muito difícil, drahá. Restam-me tão poucos anos...

- Não quero ouvir isso - disse ela rapidamente. - Você tem boa saúde. Muitos anos produtivos pela frente.

- Estou com 77. Seja realista.

A idéia de ele morrer a incomodava. Sua mãe tinha morrido quando Suzanne era nova demais para sentir a perda. A dor de quando o pai havia morrido ainda era real demais, as memórias eram vívidas. Perder o outro pai seria mais do que difícil.

- Meus dois filhos são bons homens. Cuidam bem dos negócios da família. E quando eu me for, tudo pertencerá a eles. É o direito de nascença. - Loring a encarou. - O dinheiro é transparente demais. Há uma certa empolgação em ganhá-lo. Mas ele simplesmente se refaz se for investido e administrado com inteligência. É necessária pouca habilidade para perpetuar bilhões em moeda forte. Esta família é prova disso. O grosso de nossa fortuna foi ganho há duzentos anos, e simplesmente passado adiante.

- Acho que você subestima o valor da sua administração cuidadosa e da do seu pai, atravessando duas guerras mundiais.

- Algumas vezes, a política realmente interfere, mas sempre haverá refúgios onde o dinheiro pode ser investido em segurança. Para nós, foi a América.

Loring voltou e sentou-se na beira do sofá. Cheirava a tabaco amargo, assim como toda a sala.

"Mas a arte, drahá, é muito mais fluida. Ela muda junto conosco, adapta-se como nós nos adaptamos. Uma obra-prima de quinhentos anos pode ser considerada uma bobagem hoje.

"Mas, incrivelmente, algumas formas de arte resistem aos milênios. Isso, minha cara, é o que me empolga. Você entende essa empolgação. Aprecia. E por causa disso trouxe grandes alegrias à minha vida. Ainda que meu sangue não corra em suas veias, meu espírito corre. Não há dúvida de que você é minha filha no espírito.

Ela sempre sentira isso. A mulher de Loring tinha morrido há quase vinte anos. Nada súbito ou inesperado. Um contato doloroso com o câncer a havia reclamado lentamente. Os filhos tinham partido há décadas. Ele tinha poucos prazeres além da arte, da jardinagem e do trabalho em madeira. Mas as juntas cansadas e os músculos atrofiados restringiam seriamente essas atividades. Apesar de ser bilionário, morando num castelo-fortaleza e tendo um nome conhecido em toda a Europa, em muitos sentidos ela era tudo que esse velho possuía.

- Eu sempre pensei em mim mesma como sua filha.

- Quando eu me for, quero que você fique com o castelo Loukov.

Ela ficou quieta.

- Também estou lhe deixando 150 milhões de euros para você manter a propriedade, junto com toda a minha coleção de arte, pública e particular. Claro, só você e eu sabemos do tamanho da coleção particular. Também deixei instruções para que você herde meu título de sócio do clube. Ele é meu e posso fazer o que quiser. Quero que você fique no meu lugar.

As palavras dele eram demasiadas. Suzanne lutou para falar.

- E seus filhos? São seus herdeiros legítimos.

- E receberão o grosso da minha riqueza. Esta propriedade, minha arte e o dinheiro são quase nada, perto de tudo o que possuo. Já discuti isso com os dois e nenhum ofereceu qualquer objeção.

- Não sei o que dizer.

- Diga que vai me orgulhar e manter tudo isso vivo.

- Não há dúvida.

Loring sorriu e apertou levemente a mão dela.

- Você sempre me orgulhou. É uma filha boa demais. - Ele fez uma pausa. - Mas agora precisamos fazer uma última coisa para garantir a segurança do que trabalhamos tanto para alcançar.

Ela entendia. Tinha entendido o dia inteiro. Realmente havia apenas um modo de resolver o problema.

Loring se levantou, foi até a mesa e calmamente digitou o número no telefone. Quando a ligação com o Burg Herz foi completada, ele disse:

- Franz, você está livre esta noite?

Uma pausa enquanto Fellner falava do outro lado. O rosto de Loring estava tenso. Ela sabia que isso era difícil para ele. Fellner não era somente um competidor, mas também um amigo de longa data.

No entanto, aquilo precisava ser feito.

- Preciso muito falar com você, Franz. É de importância vital... Não, eu gostaria de mandar meu avião para você e conversar esta noite. Infelizmente não posso deixar a República. O jato pode chegar aí em uma hora e deixá-lo de volta em casa à meia-noite... Sim, por favor, traga Monika. Isso também tem a ver com ela. E Christian também... Ah, ainda não tem notícias dele? Que pena. O avião estará no seu campo de pouso às cinco e meia. Vejo você em breve.

Loring desligou e suspirou.

- Uma pena. Até o fim Franz continua a manter a charada.

 

PRAGA, REPÚBLICA TCHECA

18H50

O esguio jato corporativo dourado e cinza rolou pela pista e parou. O zumbido dos motores diminuiu. Suzanne estava esperando com Loring à luz fraca do fim da tarde, enquanto trabalhadores colocavam uma escada de metal perto da porta aberta. Franz Fellner saiu primeiro, vestindo terno escuro e gravata. Monika veio atrás, usando blusa de gola role branca, blazer azul-marinho justo e jeans apertados. Típico, pensou Suzanne. Uma mistura maligna de criação e sensualidade. E ainda que tivesse acabado de sair de um jato particular que custava muitos milhões de dólares num dos principais aeroportos metropolitanos da Europa, o rosto de Monika Fellner refletia o desdém de alguém que estivesse claramente visitando uma favela.

Apenas dois anos as separavam, e Monika era a mais velha. Monika começara a participar das reuniões do clube há alguns anos, não fazendo segredo de que algum dia sucederia ao pai. Tudo tinha sido fácil para ela. A vida de Suzanne fora radicalmente diferente. Apesar de ter crescido na propriedade de Loring, sempre fora esperado que ela trabalhasse duro, estudasse muito, adquirisse com intensidade. Muitas vezes tinha se perguntado se Knoll era um fator de divisão entre elas.

Monika mala de uma vez deixara claro que considerava Christian sua propriedade. Até algumas horas atrás, quando Loring dissera que um dia o castelo Loukov seria seu, ela jamais havia considerado ter uma vida como a de Monika Fellner. Mas agora essa realidade estava à mão, e ela não conseguia afastar da cabeça o que a querida Monika pensaria se soubesse que logo seriam iguais.

Loring se adiantou e apertou rapidamente a mão de Fellner. Em seguida, abraçou e beijou Monika de leve, na bochecha. Fellner cumprimentou Suzanne com um sorriso e um educado movimento de cabeça, de membro do clube para uma adquirente.

A viagem até o castelo Loukov no Mercedes de Loring foi agradável e relativamente calma, a conversa versando sobre política e negócios. A comida esperava no salão de jantar quando chegaram. Enquanto o prato principal era servido, Fellner perguntou em alemão:

- O que há de tão urgente, Ernst, para termos de conversar esta noite?

Suzanne notou que, até agora, Loring havia mantido o clima amigável, usando conversa amena para deixar os convidados à vontade. Agora ele suspirou.

- É o problema de Christian e Suzanne.

Monika lançou um olhar para Suzanne, um olhar que ela vira antes e passara a odiar.

- Sei que Christian não se machucou na explosão da mina - disse Loring. - Como tenho certeza que você sabe, Suzanne provocou a explosão.

Fellner pôs a faca e o garfo sobre a mesa e encarou o anfitrião.

- Sabemos das duas coisas.

- No entanto, continuou a me dizer, nos últimos dois dias, que não sabia do paradeiro de Christian.

- Francamente, não considerei que a informação fosse da sua conta. Ao mesmo tempo, fiquei imaginando o motivo de tanto interesse.

- O tom de Fellner tinha endurecido, aparentemente sem mais necessidade de manter as aparências.

- Sei da visita de Christian a São Petersburgo há duas semanas. De fato, foi ela que deu início a tudo isso.

- Presumimos que você estivesse pagando ao funcionário. - O tom de Monika foi brusco, mais do que o do pai.

- De novo, Ernst, qual é o motivo desta visita? - perguntou Fellner.

- A Sala de Âmbar - disse Loring lentamente.

- O que é que tem?

- Termine seu jantar. Depois conversaremos.

- Para dizer a verdade, não estou com fome. Você me faz viajar trezentos quilômetros, de uma hora para outra, para conversar. Então vamos conversar.

Loring dobrou seu guardanapo.

- Muito bem, Franz. Você e Monika, venham comigo.

 

Suzanne foi atrás enquanto Loring levava os convidados pelo labirinto do térreo do castelo. Os amplos corredores passavam por salas adornadas com obras de arte e antigüidades inestimáveis. Era a coleção pública de Loring, resultado de seis décadas de aquisição pessoal e outras dez décadas antes disso, obra do pai, do avô e do bisavô. Alguns dos objetos mais valiosos do mundo repousavam nas câmaras ao redor - a extensão completa da coleção pública de Loring só era conhecida por Suzanne e pelo patrão, tudo protegido atrás de grossas paredes de pedra e do anonimato de uma propriedade rural que um país do ex-bloco comunista proporcionavam.

E logo seria tudo dela.

- Estou para violar uma das nossas regras sagradas - disse Loring.

- Como demonstração de minha boa-fé, pretendo mostrar minha coleção particular.

- Isso é necessário? - perguntou Fellner.

- Creio que sim.

Passaram pelo escritório de Loring e continuaram por um longo corredor até uma sala solitária ao fundo. Era um retângulo apertado, com um teto de múltiplas abóbadas com murais que representavam o zodíaco e retratos dos apóstolos. Uma enorme lareira com ladrilhos de Delf e ocupava um dos cantos. Vitrines de nogueira cobriam as paredes, com a madeira do século XVII incrustada de marfim africano. As prateleiras de vidro estavam cheias de porcelana dos séculos XVI e XVII. Fellner e Monika passaram um tempo admirando algumas peças.

- A Sala Românica - disse Loring. - Não sei se vocês já estiveram aqui antes.

- Eu não - disse Fellner.

- Nem eu - completou Monika.

- Mantenho a maioria dos meus vidros preciosos aqui. - Loring sinalizou para a lareira de ladrilhos. - É só de aparência, o ar vem dali. - Ele apontou para uma grade no chão. - Sistema especial de ventilação, como tenho certeza que vocês utilizam.

Fellner assentiu.

- Suzanne - disse Loring.

Ela parou diante de uma das vitrines, a quarta numa fila de seis, e disse lentamente em voz baixa:

- Uma experiência comum resultando numa confusão comum.

O armário e uma parte da parede de pedra giraram num eixo central, parando na metade do caminho, criando uma entrada de cada lado.

- Ativado por minha voz e pela de Suzanne. Alguns empregados conhecem este salão. Claro, ele precisa ser limpo de tempos em tempos. Mas, como tenho certeza com relação aos seus empregados, Franz, os meus são absolutamente leais e nunca falaram isso fora da propriedade. Mesmo assim, por segurança, trocamos a senha toda semana.

- A desta semana é interessante - disse Fellner. - Kafka, acredito. A frase de abertura de Uma confusão comum. Que adequado!

Loring riu.

- Devemos ser leais aos nossos escritores boêmios.

Suzanne ficou de lado e permitiu que Fellner e Monika entrassem primeiro. Monika passou rapidamente, lançando-lhe um olhar de desprezo frio. Em seguida, Suzanne acompanhou Loring, entrando. A espaçosa câmara do outro lado tinha mais vitrines, pinturas e tapeçarias.

- Tenho certeza de que você possui um local semelhante - disse Loring a Fellner. - Isto é resultado de mais de duzentos anos de colecionamento. Os últimos quarenta com o clube.

Fellner e Monika circularam entre as vitrines.

- Coisas maravilhosas - disse Fellner. - Muito impressionante. Lembro-me de muitas, das apresentações mensais. Mas, Ernst, você andou escondendo coisas. - Fellner parou diante de um crânio escurecido, dentro de uma caixa de vidro. - O Homem de Pequim?

- Nossa família o possui desde a guerra.

- Pelo que me lembro, foi perdido na China durante o transporte para os Estados Unidos.

Loring assentiu.

- Papai o adquiriu do ladrão que o roubou dos fuzileiros encarregados.

- Incrível. Isso data nossos ancestrais a meio milhão de anos. Os chineses e americanos matariam para tê-lo de volta. No entanto, está aqui, no meio da Boêmia. Vivemos tempos estranhos, não é?

- Exato, velho amigo. Exato. - Loring sinalizou uma porta dupla na outra extremidade da câmara comprida.

- Ali, Franz.

- Vá em frente. Abra - disse Loring.

Suzanne notou que, pela primeira vez, Monika ficou de boca fechada. Fellner estendeu a mão para as maçanetas de latão, girou-as e empurrou as portas para dentro.

- Mãe de Deus - disse Felner, entrando na sala muito iluminada.

Era um quadrado perfeito, o teto alto, arqueado e coberto por um mural colorido. Peças de mosaico de âmbar cor de uísque dividiam três das quatro paredes em painéis claramente definidos. Pilastras de mármore separavam cada painel. Relevos em âmbar criavam um efeito de lambri entre altos painéis estreitos e outros baixos e retangulares, abaixo. Tulipas, rosas, cabeças esculpidas, estatuetas, conchas, flores, monogramas, arabescos e guirlandas de flores - tudo feito de âmbar - brotavam das paredes. O brasão dos Romanov, um baixo-relevo em âmbar com a águia de duas cabeças dos czares russos, enfeitava muitos dos painéis inferiores. Mais relevos dourados se espalhavam como trepadeiras nas partes mais altas e sobre três portas duplas brancas. Esculturas de querubins e bustos femininos ocupavam os espaços entre e acima dos painéis superiores, e também emolduravam as portas e janelas. As pilastras espelhadas tinham candelabros dourados de onde brotavam lâmpadas elétricas, todas acesas. O piso era de parquete brilhante, com desenho tão intricado quanto as paredes de âmbar, a superfície polida refletindo as lâmpadas como sóis distantes. Loring entrou.

- Está exatamente como no Palácio de Catarina. Um quadrado com dez metros de lado, o teto a sete metros e meio de altura.

Monika tinha mantido mais autocontrole do que o pai.

- É este o motivo de todos os jogos com Christian?

- Vocês estavam chegando um tanto perto. Isto é segredo há mais de cinqüenta anos. Eu não podia deixar a situação continuar piorando e me arriscar a ser descoberto pelos russos ou pelos alemães. Não preciso dizer qual seria a reação deles.

Fellner atravessou a sala até o canto mais distante, admirando a maravilhosa mesa de âmbar encaixada na junção de dois painéis inferiores. Depois foi até um dos mosaicos florentinos, a pedra colorida lustrosa e emoldurada em bronze dourado.

- Nunca acreditei nas histórias. Uma jurava que os soviéticos tinham salvado os mosaicos antes da chegada dos nazistas ao Palácio de Catarina. Outra dizia que foram encontrados restos deles nas ruínas de Königsberg depois que o bombardeio em 1945 transformou tudo em poeira.

- A primeira história é falsa. Os soviéticos não conseguiram esconder os quatro mosaicos. Porém tentaram desmontar um dos painéis de âmbar superiores, mas ele se desmantelou. Decidiram deixar o resto, inclusive os mosaicos. Mas a segunda história é verdadeira. Uma ilusão forjada por Hitler.

- Como assim?

- Hitler sabia que Göring queria os painéis de âmbar. Também sabia da lealdade de Erich Koch a Göring. Por isso o Führer ordenou pessoalmente que os painéis fossem retirados de Königsberg e mandou um destacamento especial das SS para fazer a transferência, só para o caso de Göring criar dificuldades. Completa desconfiança de um para com o outro, e ao mesmo tempo total dependência. Só no fim, quando Bormann finalmente pôde solapar a influência de Göring, Hitler se virou contra ele.

Monika foi até as janelas, que consistiam em três conjuntos de caixilhos com vinte placas de vidro, que iam do chão até a altura média, cada uma encimada por meias-luas, tendo três conjuntos de janelas em arco, com oito painéis, acima. Os caixilhos de baixo eram, na verdade, portas duplas feitas para parecerem janelas. Do outro lado dos painéis, havia luz e o que parecia uma cena de jardim.

Loring notou o interesse dela.

- Esta sala é totalmente fechada dentro de paredes de pedra, e o espaço nem mesmo é perceptível do lado de fora. Encomendei um mural pintado e a iluminação para dar a ilusão de área externa. A sala original se abria para o grande pátio do Palácio de Catarina, por isso escolhi uma paisagem do século XLX numa ocasião em que o pátio fora aumentado e tinha uma cerca. - Loring se aproximou de Monika. - O trabalho em ferro dos portões, lá, a distância, é exato. A grama, os arbustos e as flores foram feitos a partir de desenhos da época, a lápis. É bastante notável. Parece que estamos no segundo andar do palácio. Consegue imaginar os desfiles militares que aconteciam regularmente? Ou que está olhando os nobres dando seu passeio da tarde enquanto uma banda toca ao longe?

- Engenhoso. - Monika se virou de novo para a Sala de Âmbar. - Como conseguiu reproduzir os painéis de modo tão exato? Visitei São Petersburgo no verão passado e andei pelo Palácio de Catarina. A Sala de Âmbar restaurada estava quase pronta. Eles substituíram os relevos, os dourados, as janelas e portas e muitos dos painéis. Um trabalho muito bom, mas não como este.

Loring foi até o centro da sala.

- É simples, minha cara. A grande maioria do que você está vendo é original, e não reprodução. Conhece a história?

- Em parte - respondeu Monika.

- Então certamente sabe que os painéis estavam em condições deploráveis quando os nazistas os roubaram, em 1941. Os artesãos prussianos originais prenderam o âmbar em painéis de carvalho sólido usando uma cola grosseira feita de cera de abelha e seiva de árvore. Manter o âmbar intacto numa situação assim é como preservar um copo d'água por duzen¬tos anos. Não importa o quanto tenhamos cuidado, eventualmente a água vai se derramar ou evaporar. - Ele sinalizou ao redor. - O mesmo é ver¬dade aqui. Durante dois séculos, o carvalho se expandiu e se contraiu, e em alguns lugares apodreceu. O aquecimento seco de lareira, a má ventilação e o clima úmido em Tsarskoe Selo só fizeram piorar as coisas. O carvalho pulsava com as estações, a argamassa acabou rachando e pedaços de âmbar caíram. Quase trinta por cento havia se soltado quando os nazistas chegaram. Mais dez por cento se perderam durante o roubo. Quando papai encontrou os painéis, estavam num estado lamentável.

- Sempre acreditei que Josef sabia mais do que admitia - disse Fellner.

- Vocês não podem imaginar como papai ficou desapontado ao finalmente encontrá-los. Tinha procurado durante sete anos, imaginando a beleza deles, lembrando-se da majestade de quando os vira em São Petersburgo antes da Revolução Russa.

- Eles estavam naquela caverna perto de Stod, certo? - perguntou Monika.

- Correto, minha cara. Aqueles três veículos alemães continham os caixotes. Papai os encontrou ao fazer escavações no verão de 1952.

- Mas como? - perguntou Fellner. - Os russos estavam procurando com empenho, assim como colecionadores particulares. Na época, todo mundo queria a Sala de Âmbar e ninguém acreditava que tivesse sido destruída. Josef estava sob o domínio dos comunistas. Como conseguiu um feito desses? E, mais importante, como conseguiu mantê-la?

- Papai era muito próximo de Erich Koch. O gauleiter da Prússia confidenciou a ele que Hitler quis que os painéis fossem transporta¬dos para o sul, saindo da União Soviética ocupada antes que o Exército Vermelho chegasse. Koch era leal a Göring, mas não idiota. Quando Hitler ordenou a evacuação, ele cedeu, e inicialmente não disse nada a Göring. Mas os painéis só chegaram até a região de Harz, onde foram escondidos nas montanhas. Koch acabou contando a Göring, mas nem mesmo Koch sabia onde, exatamente, eles estavam escondidos. Göring localizou quatro soldados do destacamento que fez a evacuação. Dizem que os torturou, mas eles não contaram nada sobre o paradeiro dos painéis. - Loring balançou a cabeça. - No fim da guerra, Göring estava praticamente insano. Koch morria de medo dele, um dos motivos para ter espalhado pedaços da Sala de Âmbar - dobradiças, maçanetas de latão, pedras dos mosaicos - em Königsberg. Para mandar uma mensagem falsa da destruição não somente aos soviéticos, mas também a Göring. Mas aqueles mosaicos eram reproduções em que os alemães vinham trabalhando desde 1941.

- Nunca aceitei a história de que o âmbar havia se queimado nos bombardeios a Königsberg - disse Fellner. - Toda a cidade teria cheirado como um pote de incenso.

Loring deu um risinho.

- Verdade. Nunca entendi por que ninguém notou isso. Jamais houve menção de um odor em qualquer relatório do bombardeio. Imagine vinte toneladas de âmbar se queimando lentamente. O cheiro teria se espalhado por quilômetros e permanecido por dias.

Monika acariciou suavemente uma das paredes polidas.

- Nada da pomposidade fria da pedra. É quase quente ao toque. E muito mais escuro do que eu imaginava. Certamente mais escuro do que nos painéis restaurados no Palácio de Catarina.

- O âmbar escurece com o tempo - disse seu pai. - Mesmo fatiado, polido e colado, o âmbar continuará a envelhecer. A Sala de Âmbar do século XVIII deve ter sido um lugar muito mais luminoso do que esta sala, hoje.

Loring assentiu.

- E ainda que as peças deste painel tenham milhões de anos, são frágeis como cristal e igualmente delicadas. É o que torna este tesouro ainda mais incrível.

- Ela reluz - disse Fellner. - É como estar ao sol. Radiância, mas sem calor.

- Como nos painéis originais, o âmbar daqui tem folha de prata no fundo. A luz simplesmente retorna.

- O que quer dizer com como nos painéis originais? - perguntou Fellner.

- Como mencionei, papai ficou desapontado quando entrou na câmara e encontrou o âmbar. O carvalho tinha apodrecido, quase todas as peças tinham caído. Ele recuperou tudo cuidadosamente e obteve cópias das fotografias da sala, que os soviéticos tinham feito antes dl guerra. Como os atuais restauradores em Tsarskoe Selo, papai usou as fotos para reconstruir os painéis. A única diferença é que ele possuía o âmbar original.

- Onde ele encontrou os artesãos? - perguntou Monika. - Pelo que me lembro, o conhecimento de como trabalhar o âmbar foi perdido durante a guerra. A maioria dos velhos mestres foi morta.

Loring assentiu.

- Alguns sobreviveram, graças a Koch. Göring pretendia criar uma sala idêntica à original e instruiu Koch a prender os artesãos, por segurança. Papai pôde localizar muitos, antes do fim da guerra. Depois, ofereceu uma vida boa a eles e o que restasse de suas famílias. A maior parte aceitou a oferta e viveu aqui em reclusão, reconstruindo lentamente esta obra-prima, pedaço por pedaço. Vários descendentes ainda vivem aqui e mantêm esta sala.

- Isso não é arriscado? - perguntou Fellner.

- Nem um pouco. Esses homens e suas famílias são leais. A vida na antiga Tchecoslováquia era difícil. Muito brutal. Eles se sentiam gratos pela generosidade demonstrada pelos Loring. Nós só pedíamos que dessem o melhor de si no trabalho e mantivessem o segredo. Foram necessários quase dez anos para terminar o que vocês vêem aqui. Felizmente os soviéticos insistiram em treinar seus artistas como realistas, de modo que os restauradores eram competentes.

Fellner balançou as mãos em direção às paredes.

- Mesmo assim, deve ter custado uma fortuna para terminar. Loring assentiu.

- Papai comprou o âmbar necessário para substituir as peças no mercado aberto, o que era caro, mesmo nos anos cinqüenta. Além disso, empregou algumas técnicas modernas durante a reconstrução. Os novos painéis não são de carvalho. Em vez disso, peças de pinho, freixo e carvalho foram fundidas. As lâminas separadas permitem a expansão, e uma barreira contra umidade foi acrescentada entre o âmbar e a madeira. A Sala de Âmbar não somente está restaurada por completo, mas, além disso, vai durar.

Suzanne estava em silêncio perto da porta, observando Fellner atentamente. O velho alemão se mostrava declaradamente estarrecido. Ela se maravilhou ao ver o que era necessário para deixar pasmo um homem como Franz Fellner, um bilionário com uma coleção de arte capaz de rivalizar com a de qualquer museu do mundo. Mas entendia o choque, lembrando-se de como se sentiu na primeira vez em que Loring lhe mostrou.

Fellner apontou.

- Aonde as outras duas portas dão?

- Na verdade, esta sala é o centro de minha galeria particular. Nós emparedamos as laterais e pusemos as portas e janelas exatamente como no original. Em vez de aos cômodos do Palácio de Catarina, estas portas levam a outras áreas da coleção particular.

- Há quanto tempo a sala está aqui? - perguntou Fellner.

- Cinqüenta anos.

- É incrível como você conseguiu escondê-la - disse Monika. - É difícil enganar os soviéticos.

- Papai estabeleceu boas relações com os soviéticos e os alemães durante a guerra. A Tchecoslováquia era uma rota conveniente para os nazistas transportarem dinheiro e ouro até a Suíça. Nossa família ajudou a fazer muitas dessas transferências. Depois da guerra, os soviéticos desfrutaram a mesma cortesia. O preço desse favor era a liberdade de fazer o que quiséssemos.

Fellner riu.

- Dá para imaginar. Os soviéticos não podiam se dar ao luxo de vocês informarem aos americanos ou ingleses sobre o que estava acontecendo.

- Há um velho ditado russo: "Se não fosse o ruim, não haveria o bom". Refere-se à tendência irônica de como a arte russa parece brotar do tumulto. Mas também explica como isto foi possível.

Suzanne ficou olhando Fellner e Monika se aproximarem das vitrines que iam até a altura do peito, acompanhando duas das paredes de âmbar. Dentro havia uma variedade de objetos. Um tabuleiro de xadrez do século XVII com as peças, um samovar e um frasco do século XVIII, uma caixa de toalete feminina, uma ampulheta, colheres, medalhões e caixas ornamentadas. Tudo de âmbar, feito, segundo Loring explicou, por artesãos de Königsberg ou Gdansk.

- As peças são lindas - disse Monika.

- Como na kunstkammer da época de Pedro, o Grande, eu guardo meus objetos de âmbar em minha sala de curiosidade. A maior parte foi coletada por Suzanne ou o pai dela. Não é para apresentação pública. Botim de guerra.

O velho se virou para Suzanne e sorriu. Em seguida, olhou de novo para os convidados.

- Vamos nos retirar ao meu escritório, onde podemos nos sentar e conversar mais um pouco?

 

Suzanne ocupou um lugar separado de Monika, Fellner e Loring. Preferia observar de lado, permitindo ao chefe este momento de triunfo. Um mordomo tinha acabado de se retirar depois de servir café, conhaque e bolo.

- Sempre fui curioso com relação às lealdades de Josef - disse Fellner. - Ele sobreviveu notavelmente à guerra.

- Papai odiava os nazistas - respondeu Loring. - Suas fundições e fábricas foram postas à disposição deles, mas era fácil forjar metal fraco ou produzir balas que enferrujassem, ou armas que não gostassem do frio. Era um jogo perigoso: os nazistas eram fanáticos com relação à qualidade, mas o relacionamento dele com Koch ajudava. Raramente foi questionado com relação a qualquer coisa. Sabia que os alemães perderiam a guerra e previu que os soviéticos ocupariam a Europa Oriental, por isso trabalhou secretamente com a inteligência soviética o tempo todo.

- Eu nunca soube - disse Fellner.

Loring assentiu.

- Ele era um patriota boêmio. Simplesmente operava a seu modo. Depois da guerra, os soviéticos ficaram gratos. Precisavam dele, também, por isso meu pai foi deixado em paz. Eu pude continuar esse relacionamento. Esta família trabalhou intimamente com o regime tchecoslovaco desde 1945. Papai estava certo quanto aos soviéticos. E Hitler também, devo acrescentar.

- Como assim? - perguntou Monika.

Loring juntou os dedos das duas mãos sobre o colo.

- Hitler sempre acreditou que os americanos e ingleses se juntariam a ele numa guerra contra Stalin. Os soviéticos eram o verdadeiro inimigo da Alemanha, e ele acreditava que Churchill e Roosevelt achavam o mesmo. Por isso escondeu tanto dinheiro e obras de arte. Pretendia recuperar tudo assim que os Aliados se juntassem a ele numa nova aliança para derrotar a URSS. Era um louco, certamente, mas a história provou que boa parte da visão de Hitler estava correta. Quando Berlim foi isolada pelos soviéticos, em 1948, os Estados Unidos, a Inglaterra e a Alemanha se uniram imediatamente contra os soviéticos.

- Stalin apavorava todo mundo - disse Fellner. - Mais do que Hitler. Ele assassinou sessenta milhões de pessoas, contra os dez milhões de Hitler. Quando morreu, em 1953, todos nos sentimos mais seguros.

Depois de um momento, Loring disse:

- Presumo que Christian tenha informado sobre os esqueletos encontrados na caverna em Stod.

Fellner assentiu.

- Os homens trabalharam no local, eram estrangeiros contratados no Egito. Na época, havia um túnel gigantesco, e só a entrada externa fora dinamitada. Papai a encontrou, liberou a abertura e retirou os painéis arruinados. Depois lacrou a câmara com os corpos dentro.

- Josef os matou?

- Pessoalmente. Enquanto dormiam.

- E você vem matando pessoas desde então - disse Monika. Loring a encarou.

- Nossos adquirentes garantiram que o segredo permanecesse em segurança. Devo dizer que a ferocidade e a determinação com que as pessoas procuravam nos surpreenderam. Muitos ficaram obcecados por encontrar os painéis de âmbar. Periodicamente deixávamos vazar pistas falsas, boatos para manter os que procuravam indo em direção diferente. Talvez você se recorde de um artigo na Tabochaya Tribuna, de alguns anos atrás. Eles publicaram que o serviço de inteligência soviético havia localizado os painéis numa mina perto de uma antiga base de tanques na Alemanha Oriental, cerca de 250 quilômetros a sudeste de Berlim.

- Eu tenho esse artigo - disse Fellner.

- Tudo falso. Suzanne conseguiu que o assunto vazasse para as pessoas certas. Nossa esperança era que a maioria das pessoas usaria o bom senso e desistiria da busca.

Fellner balançou a cabeça.

- A sala é valiosa demais. Intrigante demais. A atração é quase inebriante.

- Entendo perfeitamente. Muitas vezes entro apenas para ficar sentado, olhando. O âmbar é quase terapêutico.

- E não tem preço - disse Monika.

- Certo, minha cara. Certa vez, li uma coisa sobre botins de guerra, artefatos feitos de pedras e metais preciosos. O escritor postulava que eles jamais teriam sobrevivido intactos à guerra, já que a soma de suas partes individuais era muito maior do que o todo. Um comentarista, acredito que no London Times, escreveu que o destino da Sala de Âmbar podia ser avaliado de modo semelhante. Concluiu que somente objetos como livros e pinturas, cuja configuração total era mais valiosa do que a matéria-prima usada na composição, sobreviveriam a uma guerra.

- Você ajudou nessa postulação? - perguntou Fellner.

Loring pegou seu café na mesinha de canto e sorriu.

- O escritor concebeu isso sozinho. Mas nós nos certificamos de que o artigo tivesse ampla circulação.

- Então o que aconteceu? - perguntou Monika. - Por que foi necessário matar todas aquelas pessoas?

- No início, não tivemos escolha. Alfred Rhode supervisionou o carregamento dos caixotes em Königsberg e sabia do destino deles. O idiota contou à esposa, de modo que papai eliminou os dois antes que contassem aos soviéticos. Nessa época, Stalin havia montado uma comissão para investigar. O ardil dos nazistas no palácio de Königsberg não deteve os soviéticos. Eles acreditavam que os painéis ainda existiam e procuraram com ímpeto redobrado.

- Mas Koch sobreviveu à guerra e falou com os soviéticos - disse Fellner.

- Verdade. Mas nós financiamos sua defesa até o dia em que ele morreu. Depois que os poloneses o condenaram por crimes de guerra, a única coisa que o mantinha longe do cadafalso era um veto soviético. Os soviéticos achavam que ele sabia onde a Sala de Âmbar estava escondida. A realidade era que Koch só sabia que os caminhões saíram de Königsberg e foram para o oeste e depois para o sul. Não sabia o que acontecera mais tarde. Foi nossa sugestão que ele provocasse os soviéticos com a perspectiva de encontrar os painéis. Só nos anos sessenta eles finalmente concordaram com os termos. Sua vida foi poupada em troca da informação, mas então foi fácil pôr a culpa de tudo no tempo. A Königsberg de hoje é muito diferente da que existia durante a guerra.

- Assim, pagando pela defesa jurídica de Koch, você garantiu a lealdade do sujeito. Ele nunca trairia sua única fonte de renda, nem usaria o trunfo, já que não havia motivo para confiar que os soviéticos manteriam a palavra.

Loring sorriu.

- Exato, velho amigo. Além disso, esse gesto nos manteve em contato constante com a única pessoa viva que poderia dar alguma infor¬mação significativa sobre a localização dos painéis.

- Uma pessoa que também seria difícil matar sem atrair atenção indevida.

Loring assentiu.

- Felizmente, Koch cooperou e nunca revelou nada.

- E os outros? - perguntou Monika.

- Ocasionalmente alguém chegava perto. E era necessário arranjar acidentes. Algumas vezes dispensávamos a cautela e simplesmente os matávamos, em particular quando o tempo era essencial. Papai concebeu a "maldição da Sala de Âmbar" e passou a história a um repórter. Como é típico da imprensa, por favor, perdoe a insolência, Franz, a expressão pegou rapidamente. Acho que produzia boas manchetes.

- E Karol Borya e Danya Chapaev? - perguntou Monika.

- Esses dois foram os mais problemáticos de todos, mas só recentemente percebi por completo. Eles estavam perto da verdade. De fato, podem ter tropeçado na mesma informação que encontramos depois da guerra. Por algum motivo, esconderam o que sabiam, guardando o que consideravam segredo. Parece que o ódio pelo sistema soviético pode ter contribuído para a atitude deles.

"Sabíamos de Borya devido a seu trabalho na Comissão Extraordinária Soviética. Ele acabou emigrando para os Estados Unidos e desaparecendo. O nome de Chapaev também era conhecido. Mas ele sumiu na Europa. Como não havia perigo aparente da parte dos dois, nós os deixamos em paz. Até, claro, a intervenção recente de Christian.

- Agora eles estão silenciados para sempre - disse Monika.

- O mesmo que você teria feito, querida.

Suzanne observou Monika se irritar diante da censura de Loring. Mas ele estava certo. A vaca certamente mataria o próprio pai para proteger seus interesses ocultos.

Loring interrompeu o momento e disse:

- Soubemos do paradeiro de Borya há cerca de sete anos, por acidente. A filha dele estava casada com um homem chamado Paul Cutler. O pai de Cutler era um americano entusiasta das artes. No decorrer de vários anos, Cutler pai fez indagações sobre a Sala de Âmbar por toda a Europa. De algum modo, conseguiu encontrar um parente de um dos homens que trabalhou na restauração, aqui na propriedade. Agora sabemos que Chapaev deu o nome a Borya e que Borya pediu a Cutler para fazer indagações. Há seis anos, essas indagações chegaram a um ponto que nos obrigou a agir. Por isso um avião foi explodido. Graças às frouxas autoridades policiais italianas e algumas contribuições bem feitas, o atentado foi atribuído a terroristas.

- Trabalho de Suzanne? - perguntou Monika.

Loring assentiu.

- Ela é bem talentosa nesse aspecto.

- O funcionário do arquivo de São Petersburgo trabalha para você? - perguntou Fellner.

- Claro. Apesar de toda a ineficiência, os soviéticos tinham uma tendência horrorosa a anotar tudo. Há literalmente milhões de páginas de registros, e não dá para dizer o que existe nelas, e nenhum modo eficiente de examiná-las. O único modo de garantir que mentes curiosas não tropeçassem em algo interessante era pagar pela atenção dos funcionários.

Loring terminou o café, depois colocou de lado a xícara e o pires de porcelana. Olhou direto para Fellner.

- Franz, estou contando tudo isso como demonstração de boa-fé. Lamentavelmente, deixei a situação atual se descontrolar. O atentado de Suzanne contra a vida de Christian e a batalha dos dois ontem em Stod é prova de como isso poderia continuar crescendo. O que poderia acabar trazendo atenção indesejada a nós dois, para não mencionar o clube. Achei que, se você soubesse da verdade, poderíamos parar com a luta. Não há nada a encontrar, com relação à Sala de Âmbar. Lamento o que aconteceu com Christian. Sei que Suzanne não queria fazer aquilo. Ela agiu segundo minhas ordens, fazendo o que achei necessário na ocasião.

- Também lamento o que aconteceu, Ernst. Não vou mentir e dizer que estou feliz por você ter os painéis. Eu os queria. Mas parte de mim sente júbilo por eles estarem em segurança e intactos. Sempre temi que os soviéticos os localizassem. Eles não eram melhores do que ciganos, quando se tratava de preservar tesouros.

- Papai e eu sentíamos o mesmo. Os soviéticos permitiram uma tal deterioração do âmbar que é quase uma bênção os alemães o terem roubado. Quem sabe o que teria acontecido se o futuro da Sala de Âmbar ficasse nas mãos de Stalin ou Khruschev? Os comunistas estavam muito mais preocupados em construir bombas do que em preservar sua herança.

- Você propõe algum tipo de trégua? - perguntou Monika.

Suzanne quase sorriu diante da impaciência da vaca. Coitadinha. Nenhuma apresentação da Sala de Âmbar aos sócios do clube estava em seu futuro.

- É exatamente o que desejo. - Loring se virou. - Suzanne, por favor.

Suzanne se levantou e foi até o canto mais distante do escritório. Havia duas caixas de pinho no chão de parquete. Ela as carregou segurando por alças de corda e levou até onde Franz Fellner estava sentado.

- Os dois bronzes que você tanto admirou durante todos esses anos - disse Loring.

Suzanne levantou a tampa de um dos caixotes. Fellner pescou o vaso num leito de aparas de cedro e o admirou à luz. Suzanne conhecia bem a peça. Século X. Liberada por ela de um homem em Nova Delhi que o havia roubado de um povoado no sul da índia. As peças continuavam entre os objetos perdidos mais desejados da Índia, mas tinham repousado em segurança no castelo Loukov durante os últimos cinco anos.

- Suzanne e Christian batalharam muito por esses vasos - disse Loring.

Fellner assentiu.

- Outra luta que perdemos.

- Agora são seus. Como um pedido de desculpas pelo que aconteceu.

- Herr Loring, desculpe-me - disse Monika em voz baixa. - Mas agora sou eu que tomo as decisões relativas ao clube. Bronzes antigos são intrigantes, mas não têm o mesmo interesse para mim. Estou imaginando como esta questão precisa ser tratada. Há muito tempo a Sala de Âmbar tem sido um dos prêmios mais procurados. Os outros membros devem ser informados?

Loring franziu a testa.

- Prefiro que a questão permaneça entre nós. O segredo ficou em segurança por muito tempo, e quanto menos pessoas souberem, melhor. Mas, nas circunstâncias, deixo a decisão por sua conta, minha cara. Confio que os outros membros mantenham a informação em segredo, assim como acontece com todas as aquisições.

Monika se recostou na cadeira e sorriu, aparentemente satisfeita com a concessão.       

- Há outra coisa que quero abordar - disse Loring, desta vez especificamente a Monika. - Como acontece com você e seu pai, as coisas certamente mudarão aqui também. Deixei em meu testamento instruções para que Suzanne fique com esta propriedade, minhas coleções e minha sociedade no clube, assim que eu me for. Também deixei dinheiro suficiente para ela cuidar de modo adequado de qualquer necessidade.

Suzanne adorou o olhar de choque e derrota que invadiu o rosto de Monika.

- Ela será a primeira adquirente a ser elevada a sócia do clube. Tremenda façanha, não acha?

Nem Fellner nem Monika disseram coisa alguma. Fellner parecia fascinado com o bronze. Monika ficou sentada em silêncio.

Fellner recolocou o bronze cuidadosamente no caixote.

- Ernst, considero o assunto encerrado. É uma infelicidade as coisas terem se deteriorado deste modo. Mas agora entendo. Acredito que teria feito a mesma coisa, nas circunstâncias. A você, Suzanne, parabéns.

Ela assentiu, recebendo o cumprimento.

- Quanto a contar aos sócios, deixe-me pensar na situação - disse Monika. - Darei minha resposta na reunião de junho.

- É só isso que um velho pode pedir, minha cara. Esperarei sua decisão. - Loring olhou para Fellner. - Agora, gostariam de passar a noite aqui?

- Acho que devemos voltar ao Burg Herz. Tenho negócios de manhã. Mas garanto que a viagem valeu a pena. No entanto, antes de irmos, será que posso ver a Sala de Âmbar uma última vez?

- Certamente, velho amigo. Certamente.

 

A volta ao aeroporto de Ruzynè, em Praga, foi silenciosa. Fellner e Monika estavam no banco de trás do Mercedes, Loring no lugar do carona, ao lado de Suzanne. Por várias vezes, Suzanne olhou Monika pelo retrovisor. O rosto da vaca permaneceu tenso. Obviamente não estava satisfeita de os dois mais velhos terem dominado a conversa, mais cedo. Sem dúvida, Franz Fellner não era um homem que abrisse mão do poder com facilidade, e Monika não era do tipo que compartilhava.

Mais ou menos na metade do caminho, Monika disse:

- Devo pedir seu perdão, Herr Loring.

Loring se virou para ela.

- Por quê, minha cara?

- Pela minha grosseria.

- De jeito nenhum. Lembro-me de quando meu pai me passou o título de sócio. Eu era muito mais velho que você e igualmente determinado. Ele, como seu pai, achava difícil abrir mão. Mas, se isso serve de consolo, ele acabou se aposentando por completo.

- Minha filha é impaciente. Parecida com a mãe - disse Fellner.

- Mais parecida com você, Franz.

Fellner deu um risinho.

- Talvez.

- Presumo que Christian será informado de tudo isso, não é? - perguntou Loring a Fellner.

- Imediatamente.

- Onde ele está?

- Realmente não sei. - Fellner se virou para Monika. - Você sabe, liebling?

- Não, pai. Não tive notícias dele.

Chegaram ao aeroporto pouco antes da meia-noite. O jato de Loring esperava na pista suja de óleo, abastecido, pronto para decolar. Suzanne parou ao lado da aeronave. Todos os quatro desceram e Suzanne abriu o porta-malas. O piloto do avião desceu a escada metálica do jato. Suzanne apontou para as duas caixas de pinho. O piloto pegou-as e foi para uma porta de carga que estava aberta.

- Mandei embalar muito bem os bronzes - disse Loring acima do zumbido dos motores. - Devem fazer a viagem sem problema.

Suzanne entregou um envelope a Loring.

- Aqui estão uns documentos que eu preparei e mandei o ministério em Praga certificar. Devem ajudar, caso algum funcionário da alfândega faça perguntas depois do pouso.

Fellner guardou o envelope.

- Raramente me fazem perguntas.

Loring sorriu.

- Foi o que presumi. - Em seguida, virou-se para Monika e a abraçou. - Foi ótimo vê-la, minha cara. Estou ansioso por nossas batalhas no futuro, e tenho certeza de que Suzanne também está.

Monika sorriu e beijou o ar acima das bochechas de Loring. Suzanne ficou quieta. Conhecia bem seu papel. O dever de um adquirente era agir, e não falar. Um dia seria sócia do clube e só podia esperar que seu adquirente se conduzisse de modo semelhante. Monika deu-lhe um rápido olhar desconcertante antes de subir a escada. Fellner e Loring se apertaram as mãos, depois Fellner desapareceu no jato. O piloto fechou a porta de carga e subiu a escada, fechando a escotilha depois de entrar.

Suzanne e Loring ficaram parados enquanto o jato taxiava para a pista, com o ar quente dos motores passando rapidamente. Depois subiram no Mercedes e partiram. Assim que saíram do aeroporto, Suzanne parou o carro no acostamento.

O jato esguio disparou pela pista escura e fez um arco subindo na noite límpida. A distância mascarava qualquer som. Três jatos comerciais rolaram pela pista, dois chegando e um partindo. Os dois ficaram no carro, os pescoços virados para a direita e para cima.

- Uma pena, drahá - sussurrou Loring.

- Pelo menos a noite deles foi agradável. Herr Fellner ficou estarrecido com a Sala de Âmbar.

- Fiquei feliz por ele ter podido vê-la.

O jato se desvaneceu no céu ocidental, com as luzes sumindo devido à altitude.

- Os bronzes foram postos de volta nas vitrines? - perguntou Loring.

Ela assentiu.

- O conteúdo dos caixotes foi bem embalado?

- Claro.

- Como o aparato funciona?

- Interruptor de pressão, sensível à altitude.

- E o material?

- Potente.

- Quando?

Ela olhou o relógio e calculou a velocidade e o tempo. Baseado no que acreditava ser a taxa de subida do jato, ele chegaria a cinco mil pés mais ou menos...

Ao longe, um forte clarão amarelo preencheu o céu por um instante, como uma estrela virando supernova, quando os explosivos que ela havia posto nos dois caixotes de pinho incendiaram o combustível do jato e obliteraram qualquer traço de Fellner, Monika e os dois pilotos.

A luz sumiu.

O olhar de Loring permaneceu na distância, onde ocorrera a explosão.

- Uma pena. Um jato de seis milhões de dólares perdido. - Virou-se lentamente para ela. - Mas é o preço a ser pago pelo seu futuro.

 

QUINTA-FEIRA, 22 DE MAIO, 8H50

Knoll parou na floresta, a cerca de meio quilômetro da estrada. O Peugeot preto era alugado, obtido na véspera em Nuremberg. Havia passado a noite a alguns quilômetros a oeste, numa pitoresca cidadezinha tcheca, certificando-se de ter uma boa noite de sono, sabendo que este dia e esta noite seriam árduos. Tinha tomado um café-da-manhã leve numa pequena lanchonete, depois partiu depressa para ninguém se lembrar de nada sobre ele. Certamente Loring possuía olhos e ouvidos em toda esta parte da Boêmia.

Conhecia o local geograficamente. Na verdade, já estava nas terras de Loring, já que a antiga propriedade da família se espalhava por quilômetros em todas as direções. O castelo era situado perto da extremidade noroeste, rodeado por densas florestas de bétulas, faias e choupos. A região de Sumava, no sudoeste da Tchecoslováquia, era uma importante fonte de madeira, mas os Loring nunca precisaram vender suas árvores.

Pegou a mochila no porta-malas e começou a caminhada para o norte. Vinte minutos depois surgiu o castelo Loukov. A fortificação era empoleirada num afloramento rochoso, bem acima das copas das árvores, a menos de um quilômetro de distância. À oeste, o lamacento riacho Orlík se arrastava para o sul. Seu ponto de observação oferecia uma visão clara da entrada leste do castelo - a usada por veículos - e do portão oeste, usado exclusivamente por empregados e caminhões de entregas.

O castelo era uma visão impressionante. Uma variedade de torres e construções erguiam-se para o céu atrás de um muro retangular. Ele conhecia bem a disposição geral. Os andares inferiores eram principalmente salões cerimoniais e salas públicas exoticamente decoradas, e os superiores eram cheios de quartos e aposentos pessoais. Em algum lugar, escondida entre as amplas estruturas de pedra, havia uma câmara para a coleção particular, semelhante às que Fellner e os outros sete sócios possuíam. O truque seria encontrá-la e descobrir um modo de entrar. Ele fazia uma boa idéia de onde poderia estar esse espaço, uma conclusão a que havia chegado numa das reuniões do clube, baseado na arquitetura, mas mesmo assim teria de procurar. E rápido. Antes da manhã.

A decisão de Monika, de permitir a invasão, não era surpreendente. Ela faria qualquer coisa para garantir o controle. Fellner fora bom para ele, mas Monika seria melhor. O velho não viveria para sempre. E mesmo que Knoll fosse sentir falta dele, as possibilidades que Monika apresentava eram quase inebriantes. Ela era forte, mas vulnerável. Ele poderia dominá-la, disso tinha certeza. E, ao fazer isso, poderia dominar a fortuna que ela herdaria. Certo, era um jogo perigoso, mas que valia os riscos. O fato de Monika ser incapaz de amar ajudava. Mas ele também era. Os dois combinavam perfeitamente: luxúria e poder formavam a argamassa necessária para ligá-los permanentemente.

Tirou a mochila das costas e encontrou o binóculo. Da segurança de um denso agrupamento de choupos, examinou toda a extensão do castelo. O céu azul envolvia a silhueta. Seu olhar foi em direção ao leste. Dois carros apareceram na estrada pavimentada, ambos subindo a encosta íngreme.

Carros da polícia.

Interessante.

Suzanne pôs um bolinho de canela recém-assado no prato de louça e acrescentou um pouquinho de geléia de framboesa. Ocupou um lugar à mesa. Loring já estava empoleirado na outra extremidade. A sala era uma das menores áreas de jantar do castelo, reservada à família. Cristaleiras de carvalho cheias de copos renascentistas cobriam uma das paredes de alabastro. Outra parede tinha incrustações de pedras boêmias semipreciosas que delineavam ícones dourados de patronos tchecos. Suzanne e Loring estavam comendo sozinhos, como faziam todas as manhãs quando ela estava ali.

- O jornal de Praga pôs a explosão na manchete principal - disse Loring. Em seguida, dobrou o jornal e o colocou na mesa. - O repórter não propõe teorias. Apenas declara que o avião explodiu pouco depois da decolagem e todos a bordo foram mortos. Citam Fellner, Monika e os pilotos.

Ela tomou um gole de café.

- Lamento pelo Pan Fellner. Era um homem respeitável. Mas Monika já foi tarde. Com o tempo, ela seria um incômodo para todos nós. Seu jeito imprudente acabaria virando problema.

- Acho que está certa, drahá.

Ela saboreou um pedaço de bolinho quente.

- Será que as mortes vão terminar, agora?

- É o que espero.

- É uma parte do meu trabalho da qual não gosto.

- Eu não esperaria que você gostasse.

- Meu pai gostava?

Loring a encarou.

- De onde veio isso?

 

- Estive pensando nele ontem à noite. Papai era muito gentil comigo. Nunca soube que ele possuísse essa habilidade.

- Querida, seu pai fazia o que fosse necessário. Como você. Você é muito parecida com ele. Ele teria orgulho.

Mas Suzanne não estava particularmente orgulhosa de si mesma no momento. Assassinar Chapaev e todos os outros. Será que a imagem deles permaneceria em seu pensamento para sempre? Temia que sim. E quanto a ser mãe, também? Antigamente pensava nisso como parte do futuro. Mas, depois da noite anterior, essa ambição precisava de ajuste. Agora as possibilidades eram intermináveis e empolgantes. O fato de que pessoas morriam para tornar tudo isso possível era lamentável, mas ela não podia ficar pensando a respeito. Não mais. Era tempo de ir em frente. E dane-se a consciência.

Um mordomo apareceu e atravessou o terraço, parando junto à mesa.

Loring ergueu os olhos.

- Senhor, a polícia está aí para lhe falar.

Suzanne olhou para o patrão e sorriu.

- Eu lhe devo cem coroas.

Na noite passada, enquanto voltavam de Praga, ele havia apostado que a polícia apareceria no castelo antes das dez horas. Eram 9h40.

- Faça-os entrar - disse Loring.

Alguns instantes depois, quatro homens uniformizados entraram rapidamente na sala de jantar.

- Pan Loring - disse o chefe do grupo, em tcheco. - Ficamos muito felizes em saber que o senhor está bem. A tragédia com seu jato foi terrível.

Loring se levantou da mesa e foi em direção aos policiais.

- Estamos todos chocados. Herr Fellner e sua filha foram convidados para o jantar aqui, ontem à noite. Os dois pilotos trabalhavam para mim há anos. As famílias deles moram na propriedade. Eu já ia visitar as esposas. É trágico.

- Perdoe a intrusão. Mas precisamos fazer algumas perguntas. Em particular, sobre o possível motivo para isso ter acontecido.

Loring deu de ombros.

- Não faço idéia. Só que meus escritórios falaram sobre várias ameaças feitas contra mim nas últimas semanas. Uma das minhas indústrias está avaliando uma expansão para o Oriente Médio. Estivemos envolvidos em algumas negociações públicas lá. Aparentemente, as pessoas que telefonaram não queriam minha presença corporativa no país. Nós informamos as ameaças aos sauditas e só posso presumir que o atentado possa ter alguma relação. Afora isso, não faço idéia. Nunca percebi que tivesse algum inimigo tão violento.

- O senhor tem alguma informação sobre esses telefonemas?

Loring assentiu.

- Meu secretário pessoal os conhece bem. Eu o instruí a estar disponível hoje em Praga.

- Meus superiores queriam que eu garantisse que chegaremos ao fundo do que aconteceu. Enquanto isso, o senhor acha que é sensato ficar morando aqui, sem proteção?

- Estas paredes me garantem ampla segurança, e agora os empregados foram alertados. Eu ficarei bem.

- Muito bem, Pan Loring. Por favor, saiba que estaremos à disposição, caso precise de nós.

Os policiais se retiraram.

Loring voltou à mesa.

- Suas impressões?

- Não há motivo para não aceitar o que foi dito. Suas conexões no Ministério da Justiça também deverão ajudar.

- Vou telefonar mais tarde, agradecendo pela visita, e prometer toda a cooperação.

- Os membros do clube devem receber um telefonema pessoal. Sua tristeza deve estar clara.

- Certo, pretendo fazer isso agora.

 

Paul dirigia o Land Rover. Rachel estava sentada no banco da frente, McKoy atrás. O grandalhão tinha ficado em silêncio a maior parte do caminho, desde Stod. A autobahn tinha-os levado até Nuremberg, depois uma série de estradas de duas pistas serpenteou pela fronteira da Alemanha entrando no sudoeste da República Tcheca.

O terreno havia se tornado progressivamente montanhoso e coberto de florestas, alternando campos de grãos e lagos salpicando a paisagem ondulada. Antes, quando pegou o mapa rodoviário para determinar a rota mais rápida para o leste, tinha notado Ceské Budejovice, a maior cidade da região, e lembrado de uma matéria da CNN sobre sua cerveja Budvar, mais conhecida pelo nome alemão, Budweiser. A empresa americana de mesmo nome havia tentado em vão comprar a homônima, mas os moradores da cidade tinham recusado os milhões oferecidos, observando com orgulho que estavam produzindo cerveja séculos antes de os Estados Unidos sequer existirem.

O caminho para a República Tcheca tinha-os levado por uma série de curiosas cidades medievais, a maioria adornada com um castelo no alto ou grossas muralhas de pedra. As orientações de um amigável dono de loja ajustou a rota, e passava pouco das quatorze horas quando Rachel viu o castelo Loukov.

A fortaleza aristocrática era empoleirada num monte escarpado acima de uma floresta densa. Duas torres poligonais e três redondas erguiam-se altas, acima de uma fachada de pedra incrustada com brilhantes janelas de caixilhos e estreitas seteiras. Ameias e bastiões semicirculares envolviam a silhueta cinza-esbranquiçada, e chaminés se erguiam a toda volta. Uma bandeira vermelha, branca e azul tremulava à brisa suave da tarde, com duas faixas largas e um triângulo. Paul a reconheceu como a bandeira tcheca.

- A gente quase espera cavaleiros com armaduras saindo a toda - disse Rachel.

- O filho-da-puta sabe viver - disse McKoy. - Já gosto desse tal de Loring.

Paul levou o Rover por uma estrada íngreme até o que parecia ser o portão principal. Uma gigantesca porta dupla de carvalho reforçada com tiras de ferro estava aberta, revelando um pátio pavimentado. Roseiras coloridas e flores de primavera acompanhavam as construções. Paul parou e eles saíram. Um Porsche cinza-metálico estava ao lado de um Mercedes creme.

- Além disso, o escroto sabe escolher carros.

- Onde será que fica a porta de entrada? - perguntou Paul.

Seis portas separadas se abriam das várias construções para o pátio. Paul demorou um tempo estudando as águas-furtadas, as empenas em cristas e o belo padrão dos enxaiméis. Uma interessante combinação arquitetônica de gótico e barroco, prova, presumiu ele, de uma construção prolongada e múltiplas influências humanas.

McKoy apontou e disse:

- Acho que é aquela porta ali.

A porta de carvalho em arco era rodeada por colunas de cantaria, com um elaborado brasão em relevo acima. McKoy se aproximou e bateu com uma aldrava de metal. Um mordomo atendeu e McKoy explicou educadamente quem eram e por que estavam ali. Cinco minutos depois, estavam sentados num salão luxuoso. Cabeças de cervos, javalis e galhadas brotavam das paredes. Um fogo rugia numa enorme lareira de granito e o longo espaço era fracamente iluminado por luminárias de vitral. Enormes pilares de madeira sustentavam um ornamentado teto de estuque, e parte das paredes era adornada com pesadas pinturas a óleo. Paul examinou as telas. Dois Rubens, um Dührer e um Van Dick. Incrível. O que o museu High daria para expor apenas um deles!

O homem que entrou silenciosamente pela porta dupla tinha quase 80 anos. Era alto, o cabelo de um grisalho opaco, o cavanhaque desbotado cobrindo o pescoço e o queixo enrugados pela idade. Tinha um rosto bonito que, para alguém de riqueza e posição tão elevadas, causava pouca impressão. Talvez, pensou Paul, a máscara fosse intencionalmente mantida isenta de emoção.

- Boa tarde. Sou Ernst Loring. Normalmente não recebo pessoas sem serem convidadas, em particular as que simplesmente entram pelo portão, mas meu mordomo explicou a situação de vocês e devo dizer que estou intrigado. - O velho falava um inglês claro.

McKoy se apresentou e estendeu a mão, que Loring apertou.

- Estou feliz em finalmente conhecê-lo. Leio sobre o senhor há anos.

Loring sorriu. O gesto pareceu gentil e esperado.

- O senhor não deve acreditar no que lê ou ouve. Acho que a imprensa gosta de me tornar muito mais interessante do que sou.

Paul se adiantou. Apresentou-se e apresentou Rachel.

- É um prazer conhecer os dois - disse Loring. - Por que não nos sentamos? Mandei trazer algo para beber.

Todos ocuparam as poltronas neogóticas e o sofá virados para a lareira. Loring se voltou para McKoy.

- O mordomo mencionou uma escavação na Alemanha. Li uma matéria a respeito um dia desses, acho. Sem dúvida o trabalho exige sua atenção constante. Por que está aqui, e não lá?

- Lá não havia porcaria nenhuma a ser encontrada.

O rosto de Loring demonstrou curiosidade, nada mais. McKoy contou sobre a escavação, os três caminhões, os cinco corpos e as letras na areia. Mostrou a Loring as fotos que Alfred Grumer havia tirado, junto com mais uma tirada na manhã da véspera, depois de Paul ter traçado as letras restantes para formar o nome LORING.

- Alguma explicação para o morto ter rabiscado seu nome naquela areia? - perguntou McKoy.

- Não há indicação de que ele tenha feito isso. Como o senhor diz, isso é especulação de sua parte.

Paul ficou quieto, contente em deixar McKoy liderar o ataque, e avaliou as reações do tcheco. Rachel parecia estar avaliando o velho também, com o olhar semelhante a quando observava o júri durante um julgamento.

- No entanto - disse Loring - dá para ver por que vocês pensariam isso. As poucas letras originais são um tanto consistentes.

McKoy sustentou o olhar de Loring.

- Pan Loring, deixe-me ir ao ponto. A Sala de Âmbar estava naquela câmara e acho que seu pai esteve lá. Não sei se o senhor ainda tem os painéis. Mas acho que já teve.

- Mesmo que eu possuísse esse tesouro, por que admitiria isso abertamente a vocês?

- Não admitiria. Mas talvez o senhor não queira que eu repasse essa informação à imprensa. Assinei vários contratos de produção com agências de notícias em todo o mundo. A escavação definitivamente fracassou, mas esse é o tipo de dinamite que poderia me permitir recuperar pelo menos parte do que meus investidores querem de volta. Acho que os russos ficarão realmente interessados. Pelo que eu soube, eles podem ser, digamos, persistentes na recuperação do botim perdido, não é?

- E achou que eu estaria disposto a pagar pelo silêncio?

Paul não conseguia acreditar no que estava escutando. Uma extorsão? Não fazia idéia de que McKoy viera à Tchecoslováquia chantagear Loring. Rachel aparentemente também não sabia.

- Espere aí, McKoy - disse Rachel, erguendo a voz. - Você não disse uma palavra sobre extorsão.

Paul ecoou o sentimento dela.

- Não queremos fazer parte disso.

McKoy não se abalou.

- Vocês dois precisam continuar com o programa. Esse cara não vai deixar a gente visitar a Sala de Âmbar, mesmo que ele a tenha. Mas Grumer está morto. Cinco outros homens estão mortos em Stod. Seu pai, os pais de Paul e Chapaev estão todos mortos. Corpos espalhados em toda a parte. - McKoy olhou furioso para Loring. - E acho que este filho-da-puta sabe muito mais coisas do que quer nos fazer acreditar.

Uma veia pulsou na têmpora do velho.

- Grosseria extraordinária para um visitante, Pan McKoy. O senhor vem à minha casa e me acusa de assassinato e roubo? - A voz era firme, porém calma.

- Não o acusei. Mas o senhor sabe mais do que está disposto a contar. Seu nome vem sendo mencionado junto com a Sala de Âmbar há anos.

- Boatos.

- Rafal Dolinski - disse McKoy.

Loring ficou quieto.

- Era um repórter polonês que o contatou há três anos. Mandou uma narrativa sobre um artigo em que estava trabalhando. Sujeito legal. Muito agradável. Muito determinado. Morreu numa explosão numa mina algumas semanas depois. Lembra?

- Não sei nada disso.

- Uma mina perto de onde a juíza Cutler, aqui, viu a morte bem de perto. Talvez a mesma.

- Li sobre essa explosão há alguns dias. Não tinha percebido a ligação, até este momento.

- Aposto que sim - disse McKoy. - Acho que a imprensa vai adorar essa especulação. Pense nisso, Loring. Tem todo o aroma de uma grande história. Financista internacional, tesouro perdido, nazistas, assassinato. Para não mencionar os alemães. Se o senhor encontrou o âmbar no território deles, vão querê-lo de volta também. Seria uma excelente moeda de troca com os russos.

Paul sentiu que precisava falar.

- Sr. Loring, quero que saiba que Rachel e eu não sabíamos nada disso quando concordamos em vir aqui. Nossa preocupação é descobrir sobre a Sala de Âmbar, satisfazer uma curiosidade gerada pelo pai de Rachel, nada mais. Sou advogado. Rachel é juíza. Jamais faríamos parte de uma chantagem.

- Não precisa explicar - disse Loring. Em seguida, virou-se para McKoy. - Talvez o senhor esteja correto. A especulação pode ser um problema. Vivemos num mundo onde a percepção é muito mais importante que a realidade. Tomarei essas falas mais como uma forma de garantia do que chantagem. - Um sorriso curvou os lábios finos do velho.

- Tome como quiser. Eu só quero ser pago. Tenho um sério problema de fluxo de caixa, e um monte de coisas a dizer a muita gente. O preço do silêncio está crescendo a cada minuto.

O rosto de Rachel ficou tenso. Paul achou que ela estava em vias de explodir. Ela não gostara de McKoy desde o início. Suspeitara de seus modos exagerados, tinha se preocupado com a idéia de os dois se misturarem às atividades dele. Paul podia ouvi-la agora. Era culpa dele estarem tão envolvidos naquilo. Era problema dele tirá-los de lá.

- Será que posso dar uma sugestão? - disse Loring.

- Por favor - respondeu Paul, esperando alguma sanidade.

- Eu gostaria de ter tempo para pensar na situação. Sem dúvida vocês não planejam viajar de volta a Stod. Passem a noite aqui. Jantaremos e conversaremos mais.

- Seria maravilhoso - disse McKoy rapidamente. - Estávamos planejando encontrar quartos em algum lugar, mesmo.

- Excelente, mandarei os mordomos trazerem suas coisas para dentro.

 

Suzanne abriu a porta do quarto. Um mordomo disse em tcheco:

- Pan Loring quer vê-la na Sala dos Ancestrais. Disse para usar as passagens dos fundos. Ficar fora dos salões principais.

- Ele disse por quê?

- Temos hóspedes para passar a noite. Pode ter a ver com eles.

- Obrigada. Vou descer imediatamente.

Ela fechou a porta. Estranho. Usar as passagens dos fundos. O castelo tinha uma série de corredores secretos antigamente usados pela aristocracia como meios de fuga, agora utilizados pelos funcionários que mantinham a infra-estrutura do castelo. Seu quarto ficava perto dos fundos do complexo, para além dos salões principais e dos aposentos da família, na metade do caminho para a cozinha e as áreas de trabalho, passando do ponto onde começavam as passagens ocultas.

Saiu do quarto e desceu dois andares. A entrada mais próxima para os corredores ocultos era uma pequena sala de estar, no térreo. Aproximou-se de uma parede forrada de madeira. Relevos intricados emolduravam painéis de nogueira sem veios, de cor intensa. Acima da lareira gótica, encontrou um interruptor camuflado como parte dos relevos. Uma parte da parede ao lado da lareira se abriu. Ela entrou na passagem e fechou o painel.

O caminho labiríntico seguia em ângulos retos por um corredor estreito, que daria apenas para uma pessoa de cada vez. Silhuetas de portas na pedra apareciam periodicamente, levando a corredores ou cômodos. Ela havia brincado ali na infância, imaginando-se uma princesa boêmia fugindo de invasores infiéis que haviam penetrado nos muros do castelo e, assim, conhecia bem o caminho.

A Sala dos Ancestrais não tinha entrada para o labirinto, e o ponto de saída mais próximo era a Sala Azul. Loring deu esse nome ao espaço devido aos painéis de couro azul nas paredes, com acabamentos em ouro. Ela saiu e prestou atenção junto à porta, tentando ouvir algum som emanando do corredor do lado de fora. Não escutando nada, saiu rapidamente para o corredor e entrou na Sala dos Ancestrais, fechando a porta em seguida.

Loring estava parado numa área em semicírculo, parecendo um balcão envidraçado, diante de uma janela de vitral. Na parede, acima de dois leões esculpidos em pedra, estava o brasão da família. Retratos de Josef Loring e do resto dos ancestrais adornavam as paredes.

- Parece que a providência nos deu um presente - disse ele. Em seguida, contou sobre Wayland McKoy e os Cutler.

Suzanne ergueu uma sobrancelha.

- Esse McKoy tem coragem.

- Mais do que você imagina. Ele não pretende fazer extorsão. Imagino que estava testando, para ver como eu reagia. É mais astuto do que quer que a gente perceba. Não veio atrás de dinheiro. Veio descobrir a Sala de Âmbar, provavelmente querendo que eu os convidasse a ficar.

- Então por que fez isso?

Loring cruzou as mãos às costas e se aproximou do quadro a óleo do pai. O olhar calmo e complexo do sujeito espiava de cima para baixo. Na imagem, tufos de cabelos brancos caíam sobre a testa franzida, e a expressão era de um homem enigmático que dominou sua época e de algum modo esperava o mesmo dos filhos.

- Minhas irmãs e meu irmão não sobreviveram à guerra - disse Loring em voz baixa. - Eu sempre achei isso um sinal. Não fui o primogênito. Nada disto se destinava a ser meu.

Ela sabia, por isso se perguntou se Loring estaria falando para o quadro, talvez terminando uma conversa que ele e o pai tinham começado há décadas. Seu pai lhe havia contado sobre o velho Josef. Como podia ser exigente, inflexível e difícil. Tinha esperado muito do filho que sobrevivera.

- Meu irmão ia herdar tudo. Em vez disso, eu fiquei com a responsabilidade. Os últimos trinta anos foram difíceis. Muito difíceis mesmo.

- Mas você sobreviveu. Na verdade, prosperou.

Ele se virou para encará-la.

- Outro sinal da providência? - Aproximou-se dela. - Papai me deixou com um dilema. Por um lado, me entregou um tesouro de beleza inimaginável. A Sala de Âmbar. Por outro, sou obrigado a constantemente afastar os desafios à propriedade. As coisas eram muito diferentes no tempo dele. Viver atrás da Cortina de Ferro trazia a vantagem de poder matar quem a gente quisesse. - Loring fez uma pausa. - O único desejo de papai era que isto fosse mantido na família. Era particularmente enfático nesse sentido. Você é da família, drahá, tanto quanto minha carne e meu sangue. Na verdade, é minha filha em espírito.

O velho a encarou por alguns segundos e, em seguida, passou a mão lentamente em sua bochecha.

- De agora até a noite, fique em seu quarto, fora das vistas. Mais tarde, você sabe o que deve fazer.

 

Knoll se esgueirou pela floresta densa, mas não intransponível. Minimizou a aproximação escolhendo um caminho aberto sob as copas que o envolviam, seguindo trilhas definidas, desviando-se apenas no final para fazer a abordagem sem ser notado.

O fim da tarde estava frio e seco, e a noite adiante certamente seria muito fria. O sol poente se inclinava a oeste, os raios rasgando as folhas de primavera e deixando apenas um brilho fraco. Pardais piavam no alto. Pensou na Itália, há duas semanas, quando atravessara outra floresta em direção a outro castelo, em outra busca. Aquela jornada terminara com duas mortes. Imaginava o que a visita desta noite traria.

O caminho o levou a uma encosta, com o afloramento de rocha terminando na base dos muros do castelo. Fora paciente durante toda a tarde, esperando num bosque de faias cerca de um quilômetro ao sul. Tinha visto os dois carros da polícia chegarem e partirem de manhã cedo, imaginando o que teriam a resolver com Loring. Então, no meio da tarde, um Land Rover entrou pelo portão principal e não saiu. Talvez o veículo trouxesse convidados. Distrações que poderiam ocupar Loring e Suzanne por tempo suficiente para mascarar sua breve visita, como ele esperara da prostituta italiana que tinha visitado Pietro Caproni. Até agora, não sabia sequer se Danzer estava na propriedade, já que seu Porsche não havia entrado nem saído, mas ele presumia que sim.

Onde mais ela estaria?

Parou a trinta metros da entrada oeste. Uma porta surgiu abaixo de uma enorme torre redonda. A parede de pedra crua subia vinte metros, lisa e sem aberturas a não ser por alguma seteira ocasional. Taludes na base se inclinavam para fora, uma inovação medieval para aumentar a força e um modo de as pedras e mísseis largados de cima ricochetearem na direção dos atacantes. Knoll pensou na utilidade deles para os invasores modernos. Muita coisa havia mudado em quatrocentos anos.

Acompanhou com o olhar as paredes em direção ao céu. Janelas retangulares com grades de ferro se alinhavam nos andares superiores. Sem dúvida, nos tempos medievais, a função da torre era defender a entrada posterior. Mas sua altura e seu tamanho também pareciam oferecer uma transição fácil entre os vários telhados das alas adjacentes. Ele conhecia bem aquela entrada, das reuniões do clube. Era usada principalmente pelos funcionários, um cul-de-sac pavimentado do lado de fora dos muros permitia que os veículos dessem a volta.

Precisava entrar depressa e em silêncio. Examinou a pesada porta de madeira reforçada com ferro enegrecido. Era quase certo que estaria fechada, mas não protegida por qualquer alarme. Ele sabia que Loring, como Fellner, mantinha uma segurança frouxa. A vastidão do castelo, junto com sua localização remota, era muito mais eficaz que qualquer sistema explícito. Além disso, ninguém além dos sócios e adquirentes do clube sabiam o que realmente existia guardado nos confins da residência de cada sócio.

Espiou através dos arbustos densos e notou uma fenda preta na borda da porta. Correu depressa até lá e viu que estava realmente aberta. Chegou a uma passagem ampla, em abóbada. Há trezentos anos, ela teria sido usada para puxar canhões para dentro ou permitir que os defensores do castelo saíssem rapidamente. Agora o caminho tinha marcas de pneus de borracha. A passagem escura se dobrava duas vezes. Uma para a esquerda e uma para a direita. Ele sabia que isso era um mecanismo de defesa para retardar os invasores. Duas pontes levadiças, uma na metade do caminho inclinado, a outra perto do final, podiam ser usadas para desviar os invasores.

Outra obrigação do anfitrião mensal dos encontros do clube era fornecer acomodações para os sócios e adquirentes passarem a noite, se isso fosse requisitado. A propriedade de Loring continha camas mais do que suficientes para todos dormirem. A ambientação histórica provavelmente era o motivo para a maioria dos sócios aceitar a hospitalidade de Loring. Knoll tinha ficado muitas vezes na propriedade e se lembrava de uma vez em que Loring explicara a história do castelo, como sua família defendia as muralhas há quase quinhentos anos. Batalhas mortais tinham sido travadas nesta mesma passagem. Também se lembrou de discussões sobre a quantidade de corredores secretos. Depois dos bombardeios, durante a reconstrução, passagens escondidas permitiam um modo fácil de aquecer e resfriar os muitos cômodos, além de levar água e eletricidade a aposentos que antes eram aquecidos apenas por chamas. Ele se lembrava particularmente de uma das portas secretas, que dava no escritório de Loring. O velho tinha mostrado essa novidade aos hóspedes, uma noite. O castelo possuía um labirinto de passagens assim. O Burg Herz, de Fellner, era semelhante. Essa inovação era um acréscimo arquitetônico comum às fortalezas dos séculos XV e XVI.

Esgueirou-se pelo caminho à meia-luz, parando no fim de uma passagem inclinada. Adiante, havia uma pequena ala interna. Construções de cinco épocas o rodeavam. Um dos fortins circulares do castelo erguia-se alto na extremidade mais distante. Sons de panelas batendo e vozes vinham do térreo. O aroma de carne grelhando se misturava a um potente miasma de lixeiras num dos lados. Velhos caixotes de legumes e frutas, além de caixas de papelão molhadas, estavam empilhados como blocos de construção. O pátio estava limpo, mas era definitivamente as entranhas dessa imensa peça de exposição - cozinhas, estábulos, salão da guarda, despensa e casa de salga dos velhos tempos - onde agora os empregados ajudavam a garantir que o resto do local permanecesse imaculado.

Demorou-se nas sombras.

Abundavam janelas nos andares de cima, e qualquer uma poderia permitir que um par de olhos o visse e desse o alarme. Precisava entrar sem levantar suspeitas. O punhal estava aninhado no braço direito, sob uma jaqueta de algodão. O presente de Loring, a CZ-75B, estava preso num coldre de ombro, além de dois pentes de reserva no bolso. Quarenta e cinco tiros no total. Mas a última coisa que ele queria era esse tipo de encrenca.

Agachou-se e se esgueirou pelos últimos metros, grudando-se a uma parede de pedras. Passou pela quina da parede, chegando a um caminho estreito, e correu para uma porta a dez metros de distância, Experimentou a tranca. Estava aberta. Entrou. Cheiros de alimentos frescos e ar rançoso o receberam imediatamente.

Parou num corredor pequeno que dava numa sala escura. Um gigantesco suporte octogonal de carvalho sustentava um baixo teto de traves. Uma lareira enegrecida dominava uma das paredes. O ar estava gelado. Caixas e caixotes se empilhavam até o alto. Aparentemente, era uma velha copa, atualmente usada como depósito. Havia duas outras portas. Uma diretamente em frente, a outra à esquerda. Lembrando-se dos sons e cheiros do lado de fora, concluiu que a saída da esquerda certamente dava na cozinha. Precisava ir para o leste, por isso escolheu a porta adiante e chegou a outro corredor.

Já ia prosseguir quando escutou vozes e movimento do outro lado da esquina, adiante. Recuou depressa até o depósito. Decidiu, em vez de ir embora, assumir posição atrás de uma das paredes de caixotes. A única luz artificial era uma lâmpada nua suspensa na trave central. Esperava que as vozes que se aproximavam estivessem meramente de passagem. Não queria matar nem mutilar nenhum empregado. Já era muito ruim o que estava fazendo, não precisava complicar o embaraço de Fellner usando de violência.

Mas faria o que tivesse de fazer.

Espremeu-se atrás de uma pilha de caixotes, as costas rígidas contra a parede áspera. Podia espiar para fora graças à irregularidade da pilha. O silêncio só era rompido por uma mosca presa, que zumbia de encontro às janelas sujas.

A porta se abriu.

- Precisamos de pepinos e salsa. E veja se os pêssegos em lata também estão aí - disse uma voz masculina em tcheco.

Por sorte, nenhum dos dois puxou a corrente da lâmpada no teto; em vez disso, aproveitaram o sol da tarde filtrado pelos vidros opacos.

- Aqui - disse o outro sujeito.

Ambos foram para o outro lado do cômodo. Uma caixa de papelão foi posta no chão, uma tampa foi aberta.

- Pan Loring ainda está chateado?

Knoll espiou para fora. Um dos homens usava o uniforme exigido para todos os empregados de Loring. Calça marrom, camisa branca, gravata preta fina. O outro usava o terno de mordomo, usado pelos que serviam diretamente ao patrão. Loring costumava alardear que ele próprio havia desenhado os uniformes.

- Ele e a Pani Danzer ficaram quietos o dia inteiro. A polícia veio hoje cedo fazer perguntas e dar os pêsames. Pobre Pan Fellner e sua filha. Você a viu ontem à noite? Uma tremenda beldade.

- Servi bebidas e bolo no escritório, depois do jantar. Ela era exótica. E rica. Que desperdício! A polícia tem alguma idéia do que aconteceu?

- Ne. O avião simplesmente explodiu na volta para a Alemanha, todos a bordo foram mortos.

As palavras foram um tapa no rosto de Knoll. Teria ouvido direito? Fellner e Monika estavam mortos? A fúria o atravessou.

Um avião tinha explodido com Monika e Fellner a bordo. Só uma explicação fazia sentido. Ernst Loring havia ordenado a ação, tendo Suzanne como mecanismo. Danzer e Loring tinham tentado matá-lo e falharam. Por isso mataram o velho e Monika. Mas por quê? O que estava acontecendo? Queria pôr o punhal na mão, empurrar os caixotes e fazer picadinho dos dois empregados, vingando com o sangue deles o sangue dos ex-patrões. Mas de que isso adiantaria? Disse a si mesmo para ficar calmo. Respirar lentamente. Precisava de respostas. Precisava saber por quê. Agora estava satisfeito por ter vindo. A fonte de tudo o que tinha acontecido e de tudo o que poderia acontecer estava em algum lugar das paredes antigas que o envolviam.

- Traga as caixas e vamos - disse um dos homens.

Os dois saíram pela porta que dava na cozinha. De novo o cômodo ficou em silêncio. Knoll saiu de trás dos caixotes. Seus braços estavam tensos, as pernas pinicando. Seria emoção? Tristeza? Não se achava capaz disso. Ou seria mais a oportunidade perdida com Monika? Ou o fato de que estava subitamente desempregado, vendo a vida anteriormente organizada se transformar numa confusão? Forçou o sentimento a abandonar o cérebro e saiu do depósito, entrando de novo no corredor interno. Virou à esquerda e à direita até encontrar uma escada em espiral. Seu conhecimento da geografia do castelo lhe disse que precisava subir pelo menos dois andares antes de chegar ao que era considerado o nível principal.

Parou no topo da escada. Uma fileira de janelas com vitrais se abria para outro pátio. Do outro lado da parede externa do castelo, no andar de cima do fortim retangular distante, através de uma janela que aparentemente se abria para a noite, viu uma mulher. Seu corpo ia de um lado para o outro. A localização do cômodo não era muito diferente da localização do quarto dele no Burg Herz. Calmo. Isolado. Mas seguro. De repente, a mulher se acomodou no retângulo aberto, os braços se estendendo para fechar a janela.

Viu o rosto de menina e os olhos malignos.

Suzanne Danzer.

Ótimo.

 

Knoll conseguiu entrar nas passagens do fundo mais facilmente do que esperava, observando de uma porta entreaberta enquanto uma arrumadeira liberava um painel oculto num dos corredores do térreo. Achou que estava na ala sul do prédio oeste. Precisava atravessar até o bastião mais distante e seguir para nordeste, até onde sabia que ficavam os cômodos públicos.

Entrou na passagem e andou rapidamente, esperando não encontrar nenhum empregado. A hora tardia aparentemente diminuía as chances de isso acontecer. As únicas pessoas circulando agora seriam as arrumadeiras, garantindo que a necessidade de qualquer hóspede fosse atendida para a noite. O corredor úmido tinha tubos, canos d'água e um conduíte elétrico no alto. Lâmpadas nuas iluminavam o caminho.

Passou por três escadas em espiral e encontrou o que achava ser a ala norte. Havia minúsculos buracos de observação nas paredes, em nichos recuados e abrigados por enferrujadas tampas de chumbo. Ao longo do caminho, ele abriu algumas e espiou vários cômodos. Os buracos de espia eram outra sobra do passado, um anacronismo de quando os olhos e os ouvidos eram o único modo de obter informações. Agora não passavam de marcos de orientação. Ou uma oportunidade deliciosa para um voyeur.

Parou em outro local de observação e abriu uma tampa de chumbo. Reconheceu o Quarto Carlotta pela cama linda e a escrivaninha. Loring tinha dado esse nome ao quarto devido à amante do rei Ludovico I da Baviera, e seu retrato adornava a parede mais distante. Knoll se perguntou que decoração disfarçava o buraco de vigia. Provavelmente os relevos em madeira dos quais se recordava, da noite que havia passado no quarto.

Prosseguiu.

De repente, escutou vozes vibrando através da pedra. Procurou um lugar para observar. Encontrando um buraco, espiou e viu a figura de Rachel Cutler parada no meio de um quarto muito iluminado, com toalhas marrons enroladas no corpo nu e no cabelo molhado.

Parou.

 

- Eu avisei que o McKoy estava aprontando alguma - disse Rachel.

Paul estava sentado diante de uma lustrosa escrivaninha de pau-rosa. Ele e Rachel compartilhavam um aposento no quarto andar do castelo. McKoy recebera outro quarto mais adiante. O mordomo que trouxera a bolsa deles para cima tinha explicado que o local era conhecido como Câmara Nupcial, em honra ao retrato do século XVII de um casal em roupas alegóricas, pendurado sobre a cama trenó. O quarto era espaçoso e equipado com banheiro privativo, e Rachel tinha aproveitado a oportunidade para se encharcar na banheira durante alguns minutos, arrumando-se para o jantar que, segundo Loring, seria às seis horas.

- Estou me sentindo desconfortável com isso - disse ele. - Imagino que Loring seja um homem que não deve ser desconsiderado. Especialmente não deve admitir chantagem.

Rachel tirou a toalha da cabeça e voltou ao banheiro, enxugando o cabelo. Um secador de cabelos surgiu.

Paul examinou uma pintura na parede oposta. Era uma figura de meio-corpo de um São Pedro penitente. Obra de Da Cortona, ou talvez Reni. Italiano do século XVII, se ele recordava corretamente. Caro, desde que pudesse ser encontrado fora de um museu. A tela parecia original. Pelo pouco que sabia sobre porcelana, as estatuetas repousando em consoles presos à parede dos dois lados da pintura eram de Riemenschneider. Alemãs do século XV e de valor inestimável. Ao subir a escada para o quarto, tinham passado por mais quadros, tapeçarias e esculturas. O que o pessoal do museu de Atlanta não daria para expor apenas uma fração daquelas peças!

O secador de cabelos foi desligado. Rachel saiu do banheiro, com os dedos ajeitando o cabelo castanho-avermelhado.

- Parece um quarto de hotel - disse ela. - Sabonete, xampu e secador de cabelo.

- Só que o quarto é decorado com obras de arte que valem milhões.

- Essas coisas são originais?

- Parece que sim.

- Paul, temos de fazer alguma coisa com relação ao McKoy. Isso está indo longe demais.

- Concordo. Mas Loring me incomoda. Ele não é nem de longe o que eu esperava.

- Você andou assistindo a muitos filmes do James Bond. Ele não passa de um rico que gosta de arte.

- O velho aceitou a ameaça do McKoy com calma demais, para mim.

- Será que deveríamos ligar para o Pannik e dizer que vamos passar a noite aqui?

- Não acho. Por enquanto, vamos dançar conforme a música. Mas voto por sairmos daqui amanhã.

- Você não vai ouvir nenhuma reclamação minha quanto a isso. Rachel desenrolou a toalha e vestiu uma calcinha. Paul ficou olhando da poltrona, tentando permanecer impassível.

- Não é justo - disse ele.

- O quê?

- Você dançando nua por aí.

Ela pôs o sutiã, depois se aproximou e se sentou no colo dele.

- Falei sério, na terça à noite. Quero tentar de novo.

Paul ficou olhando a Rainha do Gelo seminua em seus braços. . - Nunca deixei de amar você, Paul. Não sei o que aconteceu. Acho que meu orgulho e minha raiva tomaram conta. Em algum ponto, eu enrijeci. Não foi nada que você tenha feito. Fui eu. Depois de entrar para a magistratura, algo aconteceu. Realmente não consigo explicar.

Rachel estava certa. Os problemas tinham aumentado depois de ela assumir o cargo. Talvez os paparicos de todo mundo falando "sim, senhora" e "meritíssima" o dia inteiro fossem difíceis de deixar para trás, na sala do tribunal. Mas para Paul ela era Rachel Bates, a mulher amada, e não um objeto de respeito ou um canal para a sabedoria de Salomão. Ele discutia com ela, lhe dizia o que fazer e reclamava quando ela não fazia. Talvez, depois de um tempo, o contraste nítido entre os mundos dos dois tivesse se tornado difícil de delinear. Tão difícil que ela acabou se livrando de um dos lados do conflito.

- A morte de papai e tudo isto colocaram as coisas no lugar, para mim. Todos da família de mamãe e papai foram mortos na guerra. Não tenho ninguém além de Maria e Brent... e você.

Ele a fitou.

- Falo sério. Você é minha família, Paul. Cometi um erro enorme há três anos. Estava equivocada.

Paul percebeu como era difícil, para ela, dizer essas palavras. Mas queria saber.

- Como assim?

- Na noite de terça-feira, quando estávamos correndo por aquela abadia, pendurados no balcão, isso bastou para colocar tudo no lugar. Você veio para cá quando pensou que eu estava correndo perigo e arriscou muita coisa por mim. Eu não deveria ser tão difícil. Você não merece isso. Você só pedia um pouco de paz, calma e coerência. E tudo o que eu fiz foi tornar as coisas difíceis.

Paul pensou em Christian Knoll. Ainda que Rachel não tivesse admitido, ela se sentira atraída. Dava para sentir. Mas Knoll a havia deixado para morrer. Talvez esse ato tivesse servido como lembrança, para sua mente analítica, de que nem tudo era o que parecia. Inclusive seu ex-marido. Que diabo. Ele a amava. Queria-a de volta. Estava na hora de assumir ou sumir.

Beijou-a.

 

Knoll ficou olhando os Cutler se abraçando, excitado pela visão de Rachel Cutler seminua. Durante a viagem de carro de Munique a Kehlheim, concluíra que ela ainda gostava do ex-marido. Provável motivo para ter repelido os avanços dele em Warthberg. Sem dúvida era atraente. Seios fartos, cintura fina, ventre convidativo. Quisera-a na mina e pretendia tê-la, até que Danzer se intrometeu com a explosão. Então por que não consertar a situação esta noite? O que importava? Fellner e Monika estavam mortos. Ele estava desempregado. E nenhum dos outros sócios do clube iria contratá-lo depois do que ele estava prestes a fazer.

Uma batida à porta do quarto atraiu sua atenção.

Forçou o olhar através do buraco.

- Quem é? - perguntou Paul.

- McKoy.

Rachel pulou e pegou suas roupas, desaparecendo no banheiro. Paul se levantou e abriu a porta. McKoy entrou, vestindo calça de veludo cotelê verde-escuro e camisa listrada, de marinheiro. Mocassins marrons cobriam os pés.

- Meio casual, McKoy - disse Paul.

- Meu smoking está na lavanderia.

Paul fechou a porta.

- O que você tentou fazer com o Loring?

McKoy o encarou.

- Calma, advogado. Eu não estava tentando chantagear o velho.

- Então o que estava fazendo?

- É, McKoy, que negócio é esse? - perguntou Rachel, saindo do banheiro, agora vestindo jeans pregueados e uma blusa justa, de gola rolê.

McKoy olhou-a de cima a baixo.

- Você se veste bem, meritíssima.

- Vá direto ao ponto - disse ela.

- O ponto era ver se o velho ficaria abalado, e ele ficou. Pressionei para ver do que ele era feito. Caiam na real. Se não houvesse nada envolvendo Loring, ele teria dito sayonara, dêem o fora. Do jeito que aconteceu, ele mal podia esperar para que a gente passasse a noite aqui.

- Você não estava falando sério? - perguntou Paul.

- Cutler, eu sei que vocês dois acham que eu não passo de lixo, mas tenho moral. Certo, na maior parte do tempo é uma moral meio frouxa. Mas, mesmo assim, tenho. Esse tal de Loring sabe alguma coisa ou quer saber alguma coisa. De qualquer modo, está suficientemente interessado para nos hospedar durante esta noite.

- Você acha que ele faz parte do tal clube, do qual Grumer falou? - perguntou Paul.

- Espero que não - disse Rachel. - Isso poderia significar que Knoll e aquela mulher estão por aí.

McKoy não parecia preocupado.

- Este é um risco que teremos de correr. Tenho uma intuição com relação a isso. E também tenho um punhado de investidores esperando na Alemanha. Por isso preciso de respostas. E acho que o velho sacana lá embaixo tem.

- Durante quanto tempo seu pessoal pode segurar a curiosidade dos sócios? - perguntou Rachel.

- Uns dois dias. Não mais. Eles vão começar a trabalhar no outro túnel de manhã, mas eu disse para ir com calma. Pessoalmente, acho perda de tempo.

- Como vamos agir no jantar? - perguntou Rachel.

- Fácil. Coma a comida do sujeito, beba a bebida dele e ligue o aspirador de informações. Precisamos pegar mais do que damos. Entendeu?

Rachel sorriu.

- É, entendi.

 

O jantar foi cordial, Loring mantendo com os hóspedes uma conversa agradável sobre arte e política. Paul ficou fascinado com a extensão do conhecimento do velho sobre arte. McKoy apresentou seu melhor comportamento, aceitando a hospitalidade de Loring, elogiando profusamente o anfitrião pela comida. Paul observava tudo com atenção, notando o intenso interesse de Rachel por McKoy. Parecia que estava esperando que ele ultrapassasse os limites.

Depois da sobremesa, Loring os acompanhou num passeio pelo caro andar térreo do castelo. A decoração parecia uma mistura de móveis holandeses, relógios franceses e lustres russos. Paul notou uma ênfase no classicismo, junto com imagens realisticamente claras em todos os relevos. Havia uma composição bem equilibrada em tudo, uma forma plástica quase perfeita. Certamente os artesãos conheciam o serviço.

Cada espaço tinha um nome. Câmara Walderdorff. Sala Molsberg. Sala Verde. Sala das Bruxas. Todas decoradas com mobília - na maioria originais, explicou Loring - e obras de arte antigas, tanto que Paul estava tendo problema para absorver tudo e queria que uns dois curadores do museu estivessem ali para explicar. No que Loring chamou de Sala dos Ancestrais, o velho se demorou diante de uma pintura a óleo de seu pai.

- Meu pai descendia de uma linhagem antiga. Espantosamente, tudo pelo lado paterno. De modo que sempre houve Lorings do sexo masculino para herdar. É um dos motivos para dominarmos esta área há quase quinhentos anos.

- E quando os comunistas governavam? - perguntou Rachel.

- Mesmo então, minha cara. Minha família aprendeu a se adaptar. Não havia escolha. Era mudar ou morrer.

- O que quer dizer que vocês trabalharam para os comunistas - disse McKoy.

- O que mais havia a fazer, Pan McKoy?

McKoy não respondeu e simplesmente voltou a atenção para a pintura de Josef Loring.

- Seu pai tinha interesse na Sala de Âmbar?

- Muito.

- Ele viu a original em Leningrado, antes da guerra?

- Na verdade, papai viu a sala antes da Revolução Russa. Era um grande admirador de âmbar, como tenho certeza que o senhor já sabe.

- Por que não paramos de embromar, Loring?

Paul se encolheu diante da súbita intensidade da voz de McKoy. Aquilo seria genuíno ou mais um jogo?

- Fiz um buraco numa montanha a 150 quilômetros a oeste daqui, e custou um milhão de dólares para escavar. Em troca do trabalho, só consegui três caminhões e cinco esqueletos. Deixe-me dizer o que acho.

Loring se deixou cair numa das poltronas de couro.

- Não se faça de rogado.

McKoy aceitou uma taça de clarete, de um mordomo que segurava uma bandeja.

- Há uma história que Dolinski me contou, sobre um trem que saiu da Rússia ocupada por volta de 1º. de maio de 1945. A Sala de Âmbar, encaixotada, supostamente estava a bordo. Testemunhas disseram que os caixotes foram descarregados na Tchecoslováquia, perto de Tynecnad-Sázavou. De lá, os caixotes teriam sido levados para o sul. Uma versão diz que foram guardados num bunker subterrâneo usado pelo marechal-de-campo von Schörner, comandante do exército alemão. Outra versão diz que foram para a Alemanha. Uma terceira versão diz que foram para o leste, até a Polônia. Qual está certa?

- Também ouvi essas histórias. Mas, pelo que lembro, aquele bunker foi amplamente escavado pelos soviéticos. Não havia nada lá, de modo que isso elimina a opção. Quanto à versão de que foi para leste, para a Polônia, duvido.

- Por quê? - perguntou McKoy, sentando-se também.

Paul continuou de pé, com Rachel ao lado. Era interessante ver os dois homens disputando. McKoy tinha cuidado dos sócios com habilidade, e estava se saindo igualmente bem agora, aparentemente intuitivo o bastante para saber quando avançar e quando recuar.

- Os poloneses não tinham cérebro nem recursos para abrigar um tesouro assim - disse Loring. - Alguém certamente já teria descoberto.

- Isso parece preconceito - observou McKoy.

- De jeito nenhum. É apenas fato. Durante toda a história, os poloneses jamais foram capazes de se fundir num país unificado durante muito tempo. Eles são liderados, e não líderes.

- Então diz que os caixotes foram para oeste, para a Alemanha?

- Não digo nada, Pan McKoy. Só que, das três opções que o senhor ofereceu, o oeste parece mais provável.

Rachel sentou-se.

- Sr. Loring...

- Por favor, minha cara. Pode me chamar de Ernst.

- Certo... Ernst. Grumer estava convencido de que Knoll e a mulher que matou Chapaev estavam trabalhando para os sócios de um clube. Ele os chamou de Recuperadores de Antigüidades Perdidas. Knoll e a mulher seriam adquirentes. Roubam obras de arte que já foram roubadas, e os membros competem entre si quanto ao que pode ser encontrado.

- Parece intrigante. Mas garanto que não faço parte de tal organização. Como pode ver, minha casa é cheia de obras de arte. Sou colecionador público e exponho meus tesouros às claras.

- E quanto ao âmbar? Não vi muito por aí - disse McKoy.

- Tenho várias peças belas. Gostaria de ver?

- Sem dúvida.

Loring os guiou para fora da Sala dos Ancestrais e seguiu por um corredor sinuoso que penetrava mais fundo no castelo. A sala onde finalmente entraram era um quadrado pequeno, sem janelas. Loring apertou um interruptor engastado na pedra e iluminou vitrines grudadas às paredes. Paul desfilou pelas vitrines, imediatamente reconhecendo vasos de Vermey, vidros da Boêmia e ourivesaria de Mair. Cada peça tinha mais de trezentos anos e se encontrava em ótimo estado. Duas vitrines eram totalmente cheias de âmbar. Na coleção, havia um porta-jóias, um tabuleiro de xadrez com as peças de jogo, um baú de duas camadas, caixa de rapé, uma bacia de barbear, uma saboneteira e um pincel de barba.

- A maioria é do século XVIII - disse Loring. - Tudo das oficinas de Tsarskoe Selo. Os mestres que fizeram essas belezas trabalharam nos painéis da Sala de Âmbar.

- São os melhores que já vi - disse Paul.

- Tenho bastante orgulho desta coleção. Cada peça me custou uma fortuna. Mas infelizmente não tenho nenhuma Sala de Âmbar para combinar, por mais que desejasse.

- Por que será que não acredito? - perguntou McKoy.

- Francamente, Pan McKoy, não importa se acredita ou não. A pergunta mais importante é como o senhor vai provar o contrário. O senhor entra na minha casa e faz acusações loucas, ameaça me expor à mídia mundial, mas não tem nada de substancial em que sustentar as acusações a não ser uma foto forjada, mostrando letras na areia, e as arengas de um acadêmico ganancioso.

- Não me lembro de ter dito que Grumer era acadêmico - disse McKoy.

- Não, não disse. Mas conheço bem Herr Doktor. Ele possuía uma reputação que eu não consideraria invejável.

Paul notou a mudança no tom de Loring. Não era mais afável e conciliador. Agora as palavras vinham lentas e deliberadas, com o significado claro. Aparentemente, a paciência do sujeito estava se esgotando.

McKoy não pareceu se impressionar.

- Eu achava, Pan Loring, que um homem de sua experiência e sua criação seria capaz de lidar com um grosseirão como eu.

Loring sorriu.

- Acho sua franqueza revigorante. Não é freqüente falarem comigo como o senhor falou.

- Pensou mais um pouco na minha oferta desta tarde?

- De fato, pensei. Será que um milhão de dólares americanos resolveria seu problema de investimento?

- Três milhões seria melhor.

- Então presumo que vá aceitar dois, sem necessidade de regateio?

- Sim.

Loring deu um risinho.

- Pan McKoy, o senhor é um homem que me agrada.

 

SEXTA-FEIRA, 23 DE MAIO, 2H15

Paul acordou. Tivera dificuldade para dormir, desde que ele e Rachel haviam retornado, pouco antes da meia-noite. Rachel dormia a sono solto a seu lado na cama, sem roncar, mas respirando pesado, como costumava fazer. Ele pensou de novo em Loring e McKoy. O velho concordara com dois milhões de dólares, sem reclamar. Talvez McKoy estivesse certo. Loring estava escondendo algo, e dois milhões de dólares eram uma pechincha para proteger o segredo. Mas o que seria? A Sala de Âmbar? Essa perspectiva era meio remota. Imaginou os nazistas arrancando os painéis de âmbar das paredes do palácio, depois transportando-os de caminhão pela União Soviética, só para desmontá-los de novo e levar de caminhão para a Alemanha, quatro anos depois. Em que condições estariam? Será que valeriam como alguma coisa além de matéria-prima para se transformar em outras obras de arte? O que era mesmo que tinha lido nos artigos de Borya? Os painéis continham cem mil peças de âmbar. Certamente valeriam algo no mercado aberto. Talvez fosse isso. Loring tinha achado o âmbar e vendido, juntando dinheiro suficiente a ponto de dois milhões de dólares serem uma pechincha em troca do silêncio.

Levantou-se da cama e se esgueirou até a camisa e a calça, penduradas numa cadeira. Vestiu-as, mas não calçou os sapatos - pés descalços fariam menos barulho. O sono não vinha fácil, e ele gostaria muito de investigar de novo os salões de exposição no térreo. A amplitude das obras que vira antes era quase avassaladora, difícil de absorver. Esperava que Loring não se importasse com um pouco de observação particular.

Olhou rapidamente para Rachel. Estava enrolada embaixo do edredom, o corpo nu coberto apenas por uma das camisas dele. Há duas horas tinha feito amor com ele pela primeira vez em quase quatro anos. Paul ainda podia sentir a intensidade entre os dois, o corpo esgotado por uma liberação de emoções que achara jamais ser possível outra vez. Será que poderiam acertar as coisas? Deus sabia como ele desejava. As últimas duas semanas certamente haviam sido agridoces. O pai dela se fora, mas talvez a família Cutler pudesse ser trazida de vol¬ta. Ele esperava que não fosse simplesmente algo para preencher um vazio. As palavras de Rachel mais cedo, dizendo que ele era a família que lhe restava, continuavam soando em seus ouvidos. Perguntou-se por que estava tão desconfiado. Talvez fosse o soco na barriga que havia levado há três anos - a cautela protegendo o coração de outro rompimento esmagador.

Entreabriu a porta e saiu silenciosamente para o corredor. As luminárias incandescentes emitiam uma luz suave. Nenhum som vinha pelo ar. Foi até um grosso corrimão de pedra e olhou para um saguão quatro andares abaixo, o espaço forrado de mármore iluminado por vários abajures. Um enorme lustre de cristal, apagado, pendia até o nível do terceiro andar.

Seguiu por uma passadeira, descendo por uma escada de pedra em ângulos retos, que ia até o térreo. Descalço e silencioso, penetrou mais no castelo, passando por amplos corredores, para além do salão de jantar em direção a uma série de salões espaçosos onde as obras de arte estavam expostas. Nenhuma porta de nenhuma sala estava fechada.

Entrou na Sala das Bruxas, que, como Loring havia explicado antes, era onde existira antigamente um tribunal para julgar feiticeiras. Aproximou-se de uma série de armários de ébano e acendeu as minúsculas luzes halógenas. Artefatos da Roma Antiga ocupavam as prateleiras. Estatuetas, estandartes, pratos, vasos, lâmpadas, sinos, ferramentas. Algumas deusas esculpidas de modo curioso, também. Reconheceu Vitória, o símbolo romano da vitória, com uma coroa e uma folha de palmeira nas mãos estendidas, pedindo para escolher.

De repente, um som veio do corredor. Não era grande coisa. Como um passo no tapete. Mas, no silêncio, soou alto.

Sua cabeça se virou rapidamente para a porta aberta e Paul ficou imóvel, mal respirando. Seria um passo ou apenas uma construção com séculos de idade se acomodando para a noite? Estendeu a mão e rapidamente apagou as luzes das vitrines, que ficaram escuras. Esgueirou-se até um sofá e se agachou atrás.

Outro som passou por ele. Um passo. Definitivamente. Havia alguém no corredor. Encolheu-se mais para trás do sofá e aguardou, esperando que a pessoa fosse em frente. Talvez fosse apenas um empregado fazendo a ronda.

Uma sombra se espalhou no portal iluminado. Paul espiou por cima do sofá.

Wayland McKoy passou.

Ele deveria ter sabido.

Foi na ponta dos pés até a porta. Agora McKoy estava a poucos metros, indo na direção de uma sala na outra extremidade. Mais cedo, Loring havia meramente apontado para o espaço escuro, chamando-o de Sala Românica, mas não tinha se oferecido para mostrá-la.

- Não conseguiu dormir? - sussurrou Paul.

McKoy parou com um susto e girou.

- Que droga, Cutler - murmurou ele. - Você quase me matou de susto, porra. - O grandalhão usava jeans e um suéter.

Paul apontou para os pés descalços de McKoy.

- Estamos começando a pensar do mesmo modo. Isso é apavorante.

- Um pouquinho de estilo caipira não lhe faria mal, advogado da cidade.

Entraram nas sombras da Sala das Bruxas e falaram em sussurros.

- Também está curioso? - perguntou Paul.

- Claro. Dois milhões, porra. Loring pulou em cima disso como mosca na merda.

- O que será que ele sabe?

- Não sei. Mas é alguma coisa. O problema é que este Louvre da Boêmia é tão cheio de merda que talvez a gente nunca descubra.

- Poderíamos nos perder nesse labirinto.

De repente, algo fez barulho no corredor. Como metal na pedra. Paul e McKoy puseram a cabeça para fora e olharam para a esquerda. Um fraco retângulo de luz amarela escapou da Sala Românica, na extremidade do corredor.

- Voto a favor de irmos ver - disse McKoy.

- Por que não? Já que chegamos tão longe...

McKoy foi na frente, sobre a passadeira. Diante da porta aberta da Sala Românica, os dois congelaram.

- Ah, merda - disse Paul.

 

Knoll tinha observado através do buraco de vigia enquanto Paul Cutler vestia as roupas e se esgueirava para fora. Rachel Cutler não tinha ouvido o esposo sair, e ainda estava dormindo sob as cobertas. Ele estivera esperando por horas antes de agir, permitindo bastante tempo para todo mundo se recolher. Planejava começar com os Cutler, passar para McKoy, depois Loring e Danzer, desfrutando particularmente os dois últimos - saboreando o momento da morte deles - tirando a compensação pelo assassinato de Fellner e Monika. Mas a saída inesperada de Paul Cutler tinha criado um problema. Pelo que Rachel descrevera, o ex-marido não era do tipo aventureiro. No entanto, ali estava ele, aventurando-se descalço no meio da noite. Certamente não ia à cozinha beliscar um petisco no meio da noite. Provavelmente estava xeretando. Teria de cuidar dele mais tarde. Depois de Rachel.

Esgueirou-se pela passagem, seguindo uma trilha de lâmpadas nuas. Encontrou a primeira saída e apertou o interruptor que acionava a mola. Uma laje de pedra se abriu e ele entrou num dos aposentos do quarto andar. Foi até a porta do corredor e voltou ao quarto onde Rachel Cutler dormia.

Entrou e trancou a porta.

Enquanto se aproximava da lareira renascentista, localizou o interruptor disfarçado como peça de relevo dourado. Não entrara pela passagem secreta por medo de fazer barulho demais, mas talvez precisasse sair depressa. Acionou o interruptor e deixou entreaberta a porta oculta.

Foi pé ante pé até a cama.

Rachel Cutler ainda dormia pacificamente.

Knoll torceu o braço direito e esperou o punhal deslizar para a palma da mão.

 

- É uma porra de uma porta secreta - disse McKoy.

Paul nunca tinha visto uma. Filmes e romances antigos proclamavam sua existência, mas bem diante de seus olhos, a dez metros de distância, um trecho da parede de pedra estava aberto sobre um pino central. Uma das estantes de madeira era afixada a ele, com um metro de cada lado permitindo a entrada num cômodo iluminado.

McKoy se adiantou.

Paul agarrou-o.

- Está maluco?

- Faça as contas, Cutler. A gente deve entrar.

- O que quer dizer?

- Quero dizer que nosso anfitrião não deixou isso aberto por acidente. Não vamos desapontá-lo.

Paul acreditava que ir em frente era idiotice. Para começar, havia forçado a barra ao descer, mas agora não tinha certeza quanto a deixar a situação ir até o fim. Talvez devesse simplesmente subir para perto de Rachel. Mas a curiosidade mandou prosseguir.

Por isso foi atrás de McKoy.

Na sala do outro lado, mais vitrines iluminadas se alinhavam junto às paredes e pelo centro. Paul caminhou estarrecido através do labirinto. Estátuas e bustos da antigüidade. Relevos egípcios e do Oriente Médio. Gravuras maias. Jóias antigas. Um Rembrandt do século XVII que ele sabia que fora roubado de um museu alemão há trinta anos e um Bellini tirado da Itália mais ou menos na mesma época. Ambos es¬tavam entre os tesouros mais procurados no mundo. Lembrou-se de um seminário sobre o assunto, no museu High.

- McKoy, tudo isso aqui é roubado.

- Como você sabe?

Ele parou diante de uma vitrine da altura do peito, na qual havia um crânio enegrecido sobre um pedestal de vidro.

- Este é o Homem de Pequim. Ninguém o vê desde a Segunda Guerra Mundial. E aquelas duas pinturas ali definitivamente são roubadas. Merda. O que Grumer disse era certo. Loring faz parte do tal clube.

- Calma, Cutler. Não sabemos disso. Esse cara pode ter apenas um pequeno lote particular que ele esconde dos outros. Não vamos sair da real.

Paul olhou adiante, para uma porta dupla, de esmalte branco, que estava aberta. Notou as paredes de mosaico, cor de uísque do outro lado. Adiantou-se. McKoy foi atrás. Junto à porta, os dois ficaram imóveis.

- Ah, porra - sussurrou McKoy.

Paul olhou para a Sala de Âmbar.

- É.

O espetáculo visual foi interrompido por duas pessoas que entraram por outra porta dupla à direita. Uma delas era Loring. A outra, a loura de Stod. Suzanne. Ambos seguravam pistolas.

- Vejo que aceitaram meu convite - disse Loring.

McKoy se enrijeceu.

- Não queria desapontá-lo.

Loring sinalizou com a arma.

- O que acha do meu tesouro?

McKoy entrou na sala. A mulher apertou mais a pistola, com o cano apontado para a frente.

- Fique fria, mocinha. Só vou admirar o trabalho artesanal. - McKoy se aproximou de uma das paredes de âmbar.

Paul se virou para a mulher que Knoll havia chamado de Suzanne.

- Você encontrou Chapaev através de mim, não foi?

- Sim, Sr. Cutler. A informação foi muito útil.

- E matou o velho por causa disto?

- Não, Pan Cutler - disse Loring. - Ela matou por mim.

Loring e a mulher ficaram na outra extremidade da sala de dez metros de largura. Portas duplas se abriam em três paredes, janelas se alinhavam na quarta, mas Paul presumiu que fossem falsas. Esta câmara era certamente interna. McKoy continuava a admirar o âmbar, massageando a superfície Usa. Se não fosse a seriedade da situação, Paul também estaria fascinado. Mas não eram muitos os advogados de sucessões que se pegavam num castelo tcheco com duas pistolas semi-automáticas apontadas para eles. Definitivamente não havia um curso sobre isso na faculdade de direito.

- Vá - disse Loring em voz baixa a Suzanne.

A mulher saiu. Loring ficou do outro lado da sala, mantendo a arma apontada. McKoy chegou perto de Paul.

- Vamos esperar aqui, senhores, até Suzanne pegar a Sra. Cutler.

McKoy se aproximou.

- Que merda faremos agora? - sussurrou Paul.

- Não tenho a mínima idéia.

 

Knoll puxou lentamente o edredom e se esgueirou para cima da cama. Aninhou-se perto de Rachel e massageou suavemente seus seios. Ela reagiu ao toque, suspirando baixinho, ainda meio dormindo. O alemão deixou a mão percorrer o corpo dela e descobriu que a mulher estava nua por baixo da camisa. Rachel deslizou e se aconchegou.

- Paul - sussurrou ela.

Knoll passou a mão na garganta de Rachel, rolou-a de barriga para cima e escorregou para cima dela. Os olhos de Rachel se arregalaram de medo. Ele trouxe o punhal à garganta dela, gentilmente cutucando com a ponta a casca de ferida resultante do encontro de terça-feira à noite.

- Você devia ter aceitado meu conselho.

- Onde está o Paul? - ela conseguiu murmurar.

- Eu cuidei dele.

Rachel começou a lutar. Knoll apertou a lâmina contra sua garganta.

- Fique parada, Frau Cutler, caso contrário vou passar o gume na sua pele. Entendeu?

Ela parou de se mexer.

Knoll sinalizou com a cabeça em direção ao painel aberto, relaxando o aperto ligeiramente para permitir que ela olhasse.

- Ele está ali. - Knoll apertou a garganta de novo e desceu a faca pela camisa de Rachel, arrancando cada botão. Depois abriu o tecido. O seio nu arfou. Ele acompanhou suavemente a forma de um dos mamilos com a ponta da faca. - Fiquei olhando antes, por trás da parede. Você faz amor com intensidade. Rachel cuspiu nele.

Knoll deu-lhe um tapa com as costas da mão.

- Vaca insolente. Seu pai fez a mesma coisa, e você viu o que aconteceu com ele.

Acertou-a no estômago com o cabo da faca e ouviu o ar sair dos pulmões. Em seguida, acertou o rosto, desta vez com o punho. A mão voltou à garganta dela. Os olhos de Rachel se reviraram, atordoados. Knoll beliscou suas bochechas e sacudiu sua cabeça de um lado para o outro.

- Você o ama? Por que arriscar a vida dele? Finja que é uma puta. O preço do meu prazer... é uma vida. Não será desagradável.

- Onde... está... Paul?

Ele balançou a cabeça.

- Que teimosia! Canalize toda essa raiva para a paixão e você verá Paul de manhã.

O membro de Knoll latejou, pronto para a ação. Ele levou a faca de novo ao queixo dela e apertou.

- Certo - disse Rachel finalmente.

Knoll hesitou.

- Estou afastando a faca. Mas se fizer um milímetro de movimento, eu mato você. Depois mato seu marido.

Lentamente soltou a mão e a faca. Abriu a fivela do cinto e estava prestes a tirar a calça quando Rachel gritou.

 

- Como conseguiu os painéis, Loring? - perguntou McKoy.

- Presente do céu.

McKoy deu um risinho. Paul ficou impressionado com a frieza do grandalhão. Ainda bem que alguém estava calmo. Ele estava morrendo de medo.

- Presumo que você planeje usar a arma em algum momento. Então satisfaça um condenado e responda a algumas perguntas.

- Você estava certo, mais cedo - disse Loring. - Os caminhões saíram de Königsberg, em 1945, com os painéis. Acabaram sendo postos num trem. O trem parou na Tchecoslováquia. Então meu pai tentou conseguir os painéis, mas não conseguiu. O marechal-de-campo von Schörner era leal a Hitler e não pôde ser comprado. Von Schörner ordenou que os caixotes fossem enviados de caminhão para o oeste, até a Alemanha. Deveriam ir para a Baviera, mas só conseguiram chegar a Stod.

- À minha caverna?

- Correto. Papai encontrou os painéis sete anos depois da guerra.

- E matou os ajudantes?

- Uma decisão empresarial necessária.

- Rafal Dolinski foi outra decisão empresarial necessária?

- Seu amigo repórter me contatou e me deu uma cópia da narrativa. Era informativa demais para o bem dele.

- E quanto a Karol Borya e Chapaev? - perguntou Paul.

- Muitos procuraram o que está vendo, Pan Cutler. Não concorda que é um tesouro pelo qual vale morrer?

- Inclusive meus pais?

- Soubemos das indagações de seus pais pela Europa, mas, quando encontraram aquele italiano, chegaram perto demais. Foi nossa primeira e única violação de sigilo. Suzanne cuidou do italiano e de seus pais. Uma infelicidade, mas outra decisão empresarial necessária.

Paul saltou na direção do velho. Ele ergueu a arma e mirou. McKoy o agarrou pelo ombro.

- Calma, esquentadinho. Levar um tiro não vai resolver nada.

Paul lutou para se libertar.

- Apertar o pescoço dele resolveria.

A raiva borbulhava por dentro. Paul nunca se imaginara capaz de tamanha fúria. Queria matar Loring, independentemente das conseqüências, e desfrutar cada instante do tormento do desgraçado. McKoy o levou à força para o outro lado da sala. Loring foi lentamente para a parede oposta. As costas de McKoy estavam viradas para Loring quando o grandalhão sussurrou:

- Fique frio. Faça o que eu mandar.

 

Suzanne acendeu um lustre de teto e inundou o saguão e a escada com luz. Não havia perigo de os empregados interferirem nas atividades noturnas; Loring tinha instruído especificamente que ninguém entrasse na ala principal naquela noite. Ela já havia pensado no fim que daria aos corpos, decidindo enterrar os três na floresta atrás do castelo, antes do amanhecer. Subiu lentamente a escada e chegou ao patamar do quarto andar, com a arma na mão. Um grito subitamente rompeu o silêncio, vindo da direção da Câmara Nupcial. Foi rapidamente pelo corredor, além da balaustrada, e chegou à porta de carvalho.

Experimentou a maçaneta. Trancada.

Outro grito veio de dentro.

Deu dois tiros na fechadura antiga. A madeira lascou. Chutou a porta. Uma. Duas vezes. Outro tiro. Um terceiro chute e a porta girou para dentro. No cômodo à meia-luz, viu Christian Knoll na cama, com Rachel Cutler lutando embaixo dele.

Knoll a viu, depois deu um soco forte no rosto de Rachel. Em seguida, estendeu a mão para alguma coisa na cama. Suzanne viu o punhal surgir na mão dele. Apontou e disparou, mas Knoll rolou para o lado mais distante da cama e a bala não o atingiu. Notou o painel aberto perto da lareira. O sacana estava usando as passagens secretas. Mergulhou no chão, abrigando-se atrás de uma poltrona, sabendo o que viria.

O punhal zumbiu pela escuridão e se cravou no estofamento, a centímetros dela. Suzanne disparou mais duas vezes na direção de Knoll. Quatro tiros abafados voltaram, destruindo o encosto da poltrona. Knoll estava armado. Essa fora por pouco. Atirou de novo contra ele e se arrastou até a porta aberta, rolando para o corredor.

Mais dois tiros disparados por Knoll ricochetearam no portal.

Do lado de fora, ela se levantou e começou a correr.

 

- Preciso ir até Rachel - sussurrou Paul, ainda fumegando. As costas de McKoy permaneciam viradas para Loring.

- Saia daqui quando eu agir.

- Ele está armado.

- Aposto que o sacana não vai atirar aqui dentro. Não vai se arriscar a fazer um buraco no âmbar.

- Não conte com is...

Antes que pudesse questionar melhor sobre o que McKoy pretendia, o grandalhão se virou para Loring.

- Meus dois milhões, então, nem pensar, não é?

- Infelizmente. Mas você foi ousado na tentativa.

- Herdei isso da minha mãe. Ela plantava pepinos no leste da Carolina do Norte. Não aceitava desaforos de ninguém.

- Que encantador!

McKoy chegou mais perto.

- O que o faz pensar que não há pessoas sabendo que estamos aqui?

Loring deu de ombros.

- É um risco que estou preparado para correr.

- Meu pessoal sabe onde estou.

Loring sorriu.

- Duvido, Pan McKoy.

- Que tal um acordo?

- Não estou interessado.

De repente, McKoy saltou para Loring, atravessando os três metros que os separavam o mais rápido que seu corpanzil permitia. Quando o velho disparou, McKoy se encolheu, depois gritou:

- Vá, Cutler!

Paul correu para a porta dupla que saía da Sala de Âmbar, olhou para trás momentaneamente e viu McKoy desmoronando no parquete e Loring reajustando a mira. Saltou da sala e rolou pelo chão de pedras. Depois se levantou e correu pela galeria escura, saindo na Sala Românica.

Esperava que Loring viesse atrás, dando mais tiros, mas o velho certamente não podia se mover depressa.

McKoy, na verdade, se permitira levar um tiro para que ele pudesse sair. Paul jamais conhecera alguém capaz disso. Era algo que só acontecia nos filmes. Mas a última coisa que viu antes de fugir da sala foi o gigante caído no chão.

Afastou esse pensamento e se concentrou em Rachel enquanto disparava pelo corredor em direção à escada.

 

Knoll ouviu Suzanne se arrastar depressa para o corredor. Atravessou o quarto e recuperou a faca. Marchou para a porta aberta e arriscou um olhar. Danzer estava correndo para a escada, a vinte metros de distância. Knoll ancorou os pés e fez o punhal perfeitamente equilibrado voar na direção dela, acertando a coxa esquerda, a lâmina afiada se cravando na carne até o cabo.

Ela gritou e se dobrou na passadeira, em agonia.

- Desta vez, não, Suzanne - disse ele calmamente.

E foi até lá.

Suzanne estava segurando a parte de trás da coxa, de onde o sangue escorria da lâmina cravada. Tentou se virar e apontar a pistola, mas ele instantaneamente chutou a CZ-75B para longe.

A arma deslizou fazendo barulho.

Knoll pisou no pescoço dela e grudou-a no chão. Apontou sua arma.

- Chega de diversão e jogos - disse ele.

Danzer levou a mão para trás e tentou agarrar o cabo do punhal, mas ele apertou a sola do sapato em seu rosto.

Em seguida, disparou duas vezes contra sua cabeça, e ela parou de se mexer.

- Por Monika - sussurrou ele.

Em seguida, arrancou a faca da coxa de Suzanne e limpou a lâmina nas roupas dela. Encontrou a arma de Danzer e voltou ao quarto, decidido a terminar o que havia começado.

 

McKoy tentou se levantar, mas não conseguiu. A Sala de Âmbar girava ao redor. As pernas estavam frouxas, a cabeça tonta. O sangue escorria de um ferimento a bala no ombro. Estava perdendo a consciência rapidamente. Nunca tinha imaginado morrer assim, rodeado por um tesouro que valia milhões, impotente para fazer qualquer coisa.

Estivera errado com relação a Loring. Não houve risco ao âmbar. A bala simplesmente foi cravada na carne. Esperava que Paul Cutler tivesse conseguido fugir. Começou a tentar se levantar. Passos se aproximaram da galeria externa, vindo em sua direção. Caiu de novo no parquete e ficou deitado de costas. Entreabriu o olho esquerdo e captou uma imagem turva de Ernst Loring entrando de novo na Sala de Âmbar, a arma ainda na mão. Ficou perfeitamente imóvel, tentando maximizar o pouco de força que restava.

Respirou fundo e esperou que Loring se aproximasse. O velho cutucou cautelosamente a perna esquerda de McKoy com a ponta do sapato, aparentemente tentando ver se a morte havia chegado. McKoy prendeu o fôlego e conseguiu manter o corpo rígido. A cabeça começou a girar, pela falta de oxigênio combinada à perda de sangue.

Precisava que o sacana chegasse mais perto.

Loring se adiantou dois passos.

De repente, McKoy puxou as pernas do velho. A dor rasgou seu ombro direito e o peito. O sangue jorrou do ferimento. Mas ele tentou ficar firme por tempo suficiente para terminar.

Loring bateu no chão, e o impacto o fez soltar a arma. A mão direita de McKoy se fechou no pescoço do velho. A imagem da expressão chocada de Loring surgia e sumia. Precisava se apressar.

- Diga olá ao diabo por mim - sussurrou.

Com o resto de forças, estrangulou Ernst Loring até a morte. Depois se rendeu à escuridão.

 

Paul seguiu pelo labirinto de salas do primeiro andar e subiu correndo a escada para o quarto andar. Logo antes de entrar no saguão muito iluminado, dois tiros soaram acima. Parou.

Isso era idiotice. A mulher estava armada. Ele não. Mas contra quem ela estaria disparando? Rachel? McKoy tinha recebido uma bala para ele fugir. Agora parecia que era sua vez.

Correu escada acima, de dois em dois degraus.

 

Knoll baixou a calça. Matar Danzer tinha sido uma preliminar satisfatória. Rachel estava esparramada na cama, ainda atordoada pelo soco. Ele jogou a arma no chão e segurou o punhal. Aproximou-se da cama, abriu gentilmente as pernas dela e passou a língua por toda a extensão da coxa. Ela não resistiu. Ia ser bom. Rachel, aparentemente ainda grogue, gemeu de leve e reagiu ao toque. Ele enfiou o punhal de volta na bainha sob a manga direita. Ela estava atordoada e dócil. Não haveria necessidade de faca. Knoll acariciou a bunda nua e voltou com a língua até o ventre.

- Ah, Paul - sussurrou ela.

- Eu disse que isso não seria desagradável - murmurou ele.

Levantou-se e se preparou para montar.

 

Paul se virou no patamar do quarto pavimento e correu pelo último lance de escada. Estava sem fôlego, as pernas doíam, mas Rachel estava lá em cima e precisava dele. No topo, viu o corpo de Suzanne, o rosto obliterado por dois buracos de bala. A visão era repulsiva, mas ele pensou em Chapaev e em seus pais e sentiu apenas satisfação. Depois um pensamento o eletrizou.

Quem, diabos, havia atirado nela?

Rachel?

Um gemido ressoou, vindo do corredor. Depois o nome dele.

Esgueirou-se até o quarto. A porta estava totalmente aberta, com a dobradiça superior arrancada. Olhou para a penumbra. Seus olhos se ajustaram. Havia um homem na cama e Rachel estava embaixo dele.

Christian Knoll.

Paul ficou louco e correu por toda a extensão do quarto, catapultando-se em cima de Knoll. O ímpeto fez os dois rolarem da cama e caírem no chão. Ele caiu sobre o ombro direito, o mesmo que fora machucado na noite de terça-feira em Stod. A dor atravessou o braço. Paul ergueu um punho e baixou. Knoll era maior e mais experiente, mas Paul estava numa loucura infernal. Bateu com o punho de novo e o nariz de Knoll cedeu. Knoll uivou, mas girou e usou as pernas para fazer Paul voar por cima dele. Knoll se enrolou e girou saindo do caminho, depois atacou, dando um soco no peito de Paul. Paul engasgou com a própria saliva e tentou respirar.

Knoll se levantou e o arrancou do chão. Um punho se chocou contra o queixo de Paul, fazendo-o girar até o centro do quarto. Estava atordoado, esforçando-separa focalizar a mobília que girava e o homem alto se aproximando. Era estranha, pensou, a sensação de levar um soco. De repente, a imagem da bunda nua de Knoll em cima de Rachel atravessou sua mente. Ele se controlou, respirou e saltou, mas foi recebido por outro soco na barriga.

Droga. Estava perdendo a luta.

Knoll o agarrou pelo cabelo.

- Você interrompeu meu prazer, e eu não gosto de ser interrompido. Notou Fraulein Danzer no caminho? Ela também interrompeu.

- Foda-se, Knoll.

- Tão desafiador! E corajoso. Mas fraco.

Knoll soltou-o e lhe deu um soco. O sangue jorrou do nariz de Paul. O ímpeto do soco o fez cambalear saindo pela porta para o corredor. Estava tendo dificuldade para enxergar com o olho direito.

Não agüentaria muito mais.

 

Rachel tinha a vaga consciência de que algo estava acontecendo, mas era tudo confuso demais. Num momento, parecia que Paul estava fazendo amor com ela; no outro, escutava luta e corpos sendo lançados pelo quarto. Em seguida, uma voz.

Levantou-se.

O rosto de Paul surgiu, depois outro.

Knoll.

Paul estava vestido, mas Knoll estava nu da cintura para baixo. Tentou assimilar a informação, entendendo o que a princípio parecera impossível.

Ouviu a voz de Knoll.

- Você interrompeu meu prazer, e eu não gosto de ser interrompido. Notou Fraulein Danzer no caminho? Ela também interrompeu.

- Foda-se, Knoll.

- Tão desafiador! E corajoso. Mas fraco.

Então Knoll deu um soco no rosto de Paul. O sangue espirrou e Paul rolou para o corredor. Knoll foi atrás. Ela tentou se levantar da cama, mas caiu no chão. Lentamente se arrastou pelo parquete até a porta. Pelo caminho, cruzou com uma calça, sapatos e uma coisa dura.

Baixou a mão. Havia duas armas. Ignorou-as e continuou se arrastando. Junto à porta, ficou de pé.

Knoll estava indo na direção de Paul.

 

Paul percebeu que era o fim. Mal conseguia respirar devido aos socos no peito. Os pulmões estavam apertados, provavelmente várias costelas estavam quebradas. Seu rosto doía mais do que era possível crer e ele estava tendo dificuldades para enxergar. Knoll apenas brincava com ele. Paul não era páreo para esse profissional. Cambaleou usando a balaustrada de pedra como apoio, não muito diferente da balaustrada da noite de terça-feira na abadia acima de Stod. Olhou para os quatro andares abaixo e sentiu vontade de vomitar. O brilho do lustre de cristal queimava, e ele franziu os olhos. De repente, seu corpo foi puxado para trás e girado. O rosto sorridente de Knoll o encarou.

- Já chega, Cutler?

Paul só conseguiu pensar em cuspir na cara de Knoll. O alemão pulou para trás e em seguida o atacou, acertando um soco em seu estômago. Cuspe e sangue jorraram quando ele tentou respirar. Knoll deu outro soco em seu pescoço, jogando-o no chão. O alemão se curvou e colocou-o de pé. Suas pernas pareciam de borracha. Ele o encostou no corrimão, depois recuou e torceu o braço direito.

Uma faca apareceu.

 

Rachel ficou espiando com os olhos turvos Knoll espancar Paul. Queria ajudar, mas mal tinha forças para ficar de pé. Seu rosto doía, o inchaço na bochecha direita começava a afetar sua visão. A cabeça latejava.

Tudo estava borrado e girando. O estômago oscilava como um barco em mar tempestuoso.

O corpo de Paul desmoronou no chão. Knoll se curvou e colocou-o de pé. De repente, ela pensou nas duas pistolas e voltou cambaleando ao centro do quarto. Tateou no chão até achar uma das armas, depois cambaleou de volta à porta.

Knoll tinha se afastado de Paul, de costas para ela. Uma faca surgiu no punho do alemão e ela soube que haveria apenas um segundo para reagir. Knoll foi na direção de Paul, a lâmina subindo. Ela apontou a arma e, pela primeira vez na vida, puxou um gatilho. A bala saiu do cano, não com um estrondo, mas com o estalo abafado de quando estouram balões numa festa infantil.

A bala se cravou nas costas de Knoll.

Ele cambaleou e virou, depois foi em direção a ela com a faca. Rachel atirou de novo. A arma deu um coice em sua mão, mas ela segurou firme. De novo. E de novo.

As balas rasgaram o peito de Knoll. Ela pensou no que devia ter acontecido na cama e baixou a mira, disparando mais três vezes contra o ventre exposto. Knoll gritou, mas de algum modo continuou de pé. Ele olhou o sangue jorrando dos ferimentos. Cambaleou em direção à balaustrada. Ela já ia disparar outra vez quando, de repente, Paul saltou para a frente, empurrando o alemão seminu por cima do corrimão, sobre o foyer com altura de quatro andares. Rachel tombou na direção do corrimão e olhou no instante em que o corpo de Knoll encontrou o lustre e arrancou do teto o enorme arranjo de cristal. Fagulhas azuis explodiram. Knoll e o vidro em queda livre até o mármore embaixo, o som oco do corpo acompanhado pelo cristal se despedaçando, voando para todo lado e tilintando no chão como os aplausos que permanecem depois do clímax de uma sinfonia.

Depois, silêncio. Nenhum som.

Lá embaixo, Knoll não se mexeu.

Ela olhou para Paul.

- Você está bem?

Ele não disse nada, mas envolveu-a com o braço. Rachel estendeu a mão e acariciou seu rosto gentilmente.

- Dói tanto quando parece?

- Sem dúvida.

- Onde está McKoy?

Paul arfou.

- Levou um tiro... para eu poder vir procurá-la. Na última vez em que vi, ele estava... sangrando na Sala de Âmbar.

- Na Sala de Âmbar?

- É uma longa história. Agora, não.

- Acho que terei de retirar todas as coisas ruins que falei daquele grande idiota.

- Acho que sim - disse uma voz subitamente vinda de baixo.

Ela olhou por cima do corrimão. McKoy tropeçou entrando no saguão escurecido, segurando o ombro sangrento.

- Quem é esse? - perguntou ele, apontando o corpo.

- O sacana que matou meu pai - gritou Rachel.

- Parece que estão quites. Onde está a mulher?

- Morta - respondeu Paul.

- Já foi tarde, porra.

- Onde está Loring? - perguntou Paul.

- Estrangulei o filho-da-puta.

Paul se encolheu devido à dor.

- Já foi tarde, porra. Você está bem?

- Nada que um cirurgião não conserte.

Paul conseguiu dar um sorriso débil. Olhou para Rachel.

- Acho que estou começando a gostar desse cara.

Ela sorriu de volta, o primeiro sorriso num bom tempo.

- Eu também.

 

SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA

2 DE SETEMBRO

Paul e Rachel estavam parados diante de uma capela lateral. Mármore italiano os rodeava em tons elegantes de amarelo de Siena com malaquita russa intercalada. Os raios oblíquos do sol matinal lançavam uma alta iconostase atrás do padre num tom brilhante de ouro luminoso.

Brent estava à esquerda do pai, Marla ao lado da mãe. O patriarca pronunciou os votos de casamento numa voz solene, e o clima era enfatizado por um coro cantando. A catedral de São Isaac estava vazia, a não ser pelo grupo do casamento e Wayland McKoy. Os olhos de Paul foram atraídos para uma janela de vitral no centro de uma parede cheia de ícones. Cristo de pé depois da Ressurreição. Um novo começo. Que adequado, pensou.

O padre terminou os votos e inclinou a cabeça quando o serviço terminou.

Paul deu um beijo suave em Rachel e sussurrou:

- Eu te amo.

- E eu te amo - disse ela.

- Ah, vá em frente, Cutler, dê um daqueles tipo desentupidor de pia - disse McKoy.

Paul sorriu e aceitou o conselho, beijando Rachel apaixonadamente.

- Papai - disse Marla, sinalizando que já bastava.

- Deixe os dois em paz - respondeu Brent.

McKoy se adiantou.

- Garoto esperto. Puxou a qual dos dois?

Paul sorriu. O grandalhão parecia estranho, de terno e gravata. O ferimento no ombro aparentemente estava curado. Ele e Rachel também estavam recuperados, e os últimos três meses tinham parecido um redemoinho ofuscante.

Uma hora depois da morte de Knoll, Rachel havia telefonado para Fritz Pannik. Foi o inspetor alemão que arranjou que a polícia tcheca interviesse imediatamente, e o próprio Pannik chegou ao castelo Loukov, com a Europol, ao amanhecer. O embaixador russo em Praga foi convocado no meio da manhã, e autoridades do Palácio de Catarina e do Hermitage apareceram na tarde seguinte. Uma equipe de Tsarskoe Selo chegou na outra manhã, e os russos não perderam tempo para desmontar os painéis de âmbar e transportá-los de volta a São Petersburgo. O governo tcheco não ofereceu resistência, depois de saber dos detalhes das atividades sórdidas de Ernst Loring.

Investigadores da Europol estabeleceram rapidamente uma ligação com Franz Fellner. Documentos no castelo Loukov e no Burg Herz confirmaram as atividades dos Recuperadores de Antigüidades Perdidas. Sem herdeiros para assumir o controle da propriedade de Fellner, o governo alemão interveio. A coleção particular de Fellner acabou sendo encontrada, e foram necessários apenas alguns dias para que os investigadores descobrissem a identidade dos outros sócios. Suas propriedades foram revistadas sob a orientação da divisão de roubo de artes da Europol.

O tesouro encontrado era enorme.

Esculturas, relevos, jóias, desenhos e pinturas, em particular de pintores antigos, obras consideradas perdidas para sempre. Bilhões de dólares em tesouros roubados foram recuperados praticamente da noite para o dia. Mas, como os adquirentes só saqueavam o que já era roubado, muitas reivindicações de propriedade, na melhor das hipóteses, eram turvas e, na pior, eram inexistentes. O número de reivindicações governamentais e particulares feitas em tribunais espalhados pela Europa cresceu rapidamente aos milhares. Tantas que acabou sendo criada uma solução política pelo Parlamento da CE utilizando o Tribunal Mundial como árbitro definitivo. Um jornalista que cobriu o espetáculo observou que provavelmente demoraria décadas até que todos os procedimentos legais fossem completados. "No fim, os advogados foram os únicos reais vencedores."

De modo interessante, a duplicação da Sala de Âmbar feita pela família Loring era tão precisa que os painéis reconstruídos se encaixaram perfeitamente de volta nas lacunas do Palácio de Catarina. A idéia original era expor em outro lugar o âmbar recuperado e permitir que a sala recém-restaurada permanecesse. Mas os puristas russos argumentaram enfaticamente que o âmbar deveria ser levado à seu lar de direito - o lar pretendido por Pedro, o Grande - ainda que, na verdade, Pedro se importasse pouco com os painéis. Sua filha, a imperatriz Elizabeth, foi quem encomendou a versão russa da sala. De modo que, noventa dias depois da descoberta, os painéis originais da Sala de Âmbar adornavam de novo o primeiro andar do Palácio de Catarina.

O governo russo ficou tão grato que Paul, Rachel, as crianças e McKoy foram convidados para a inauguração oficial, com despesas pagas. Enquanto estavam lá, Paul e Rachel decidiram se casar de novo na igreja ortodoxa. Houve uma pequena resistência inicial, já que eram divorciados. Mas assim que as circunstâncias foram explicadas, e tornado claro o fato de que estavam se casando de novo um com o outro, a Igreja concordou. Foi uma bela cerimônia, da qual Paul se lembraria pelo resto da vida.

Ele agradeceu ao padre e desceu do altar.

- Foi legal - disse McKoy. - Um bom modo de terminar essa mer... quero dizer, bosta.

Rachel sorriu.

- As crianças atrapalham seu estilo?

- Só o meu vocabulário.

Começaram a andar para a frente da catedral.

- A família Cutler vai para Minsk? - perguntou McKoy.

Paul assentiu.

- Temos uma última coisa a fazer, depois vamos para casa.

Paul sabia que McKoy viera pela publicidade, já que o governo russo se mostrava grato pela volta de um de seus tesouros mais preciosos. O grandalhão tinha sorrido e dado tapinhas nas costas de muita gente durante toda a inauguração, na véspera, adorando a atenção da imprensa. Até mesmo aparecera no programa de Larry King, ao vivo, na noite anterior, via satélite, respondendo a perguntas do mundo inteiro. A National Geographic estava conversando com ele sobre um especial de uma hora sobre a Sala de Âmbar, com distribuição mundial. O dinheiro mencionado era suficiente para satisfazer os investidores e resolver qualquer questão litigiosa devido à escavação em Stod.

Pararam junto à porta principal.

- Vocês dois: cuidem-se - disse McKoy. Em seguida, indicou as crianças. - E cuidem deles.

Rachel deu-lhe um beijo no rosto.

- Já agradeci pelo que você fez?

- Você provavelmente teria feito o mesmo por mim.

- Provavelmente, não.

McKoy sorriu.

- Às ordens, meritíssima.

Paul apertou a mão de McKoy.

- Mantenha contato, certo?

- Ah, provavelmente vou precisar dos seus serviços de novo em breve.

- Não é outra escavação, é?

McKoy deu de ombros.

- Quem sabe? Tem um monte de mer... coisas... por aí, para encontrar.

 

O trem partiu de São Petersburgo duas horas depois. A viagem para o sul até a Bielo-Rússia era de cinco horas através de florestas densas e campos ondulados cobertos de flores azuis de linho. O outono havia chegado, e as folhas tinham se rendido ao frio em jorros de vermelho, laranja e amarelo.

As autoridades intervieram com as autoridades da Bielo-Rússia para tornar tudo possível. Os caixões de Karol e Maya Borya tinham chegado na véspera, trazidos por um acordo especial. Rachel sabia que seu pai queria ser enterrado na pátria, mas ela desejava que os dois ficassem juntos. Agora estariam, em solo bielo-russo, para sempre.

Os caixões esperavam na estação de trem de Minsk. Então foram transportados de caminhão até um lindo cemitério a quarenta quilômetros a oeste da capital, o mais próximo possível de onde Karol e Maya Borya tinham nascido. A família Cutler seguiu num carro alugado, junto com um representante da embaixada dos Estados Unidos para garantir que tudo corresse bem.

O próprio patriarca da Bielo-Rússia presidiu o enterro particular. Rachel, Paul, Marla e Brent ficaram de pé, juntos, enquanto as palavras solenes eram ditas. Uma brisa suave balançava a grama marrom enquanto os caixões eram baixados.

- Digam adeus ao vovô e à vovó - disse Rachel às crianças.

Ela entregou a cada um deles um buquê de linho azul. As crianças foram até as covas abertas e jogaram as florezinhas. Paul se aproximou e abraçou-a. Os olhos de Rachel lacrimejaram. Ela notou que os dele também estavam molhados. Nunca haviam falado sobre o que acontecera naquela noite no castelo Loukov. Felizmente, Knoll jamais havia terminado o que começara. Paul arriscou a vida para impedi-lo. Ela amava o marido. Naquela manhã, o padre havia alertado aos dois que o casamento era para toda a vida, algo a ser levado a sério, em especial quando havia crianças envolvidas. E ele estava certo. Disso Rachel tinha certeza. Aproximou-se das sepulturas. Tinha dito adeus à mãe há vinte anos.

- Tchau, papai.

Paul ficou atrás dela.

- Adeus, Karol. Descanse em paz.

Ficaram parados por,um tempo em silêncio, depois agradeceram ao patriarca e foram para o carro. Um falcão pairava no alto da tarde clara. Uma brisa passou por eles, neutralizando o sol. As crianças correram na frente, em direção ao portão.

- De volta ao trabalho, hein? - disse ela a Paul.

- Hora de reencontrar a vida real.

Ela havia ganhado a reeleição em julho, apesar de não ter feito praticamente nenhuma campanha, já que a atenção recebida com a descoberta da Sala de Âmbar servira como trampolim para a vitória sobre os dois opositores. Marcus Nettles fora esmagado, mas ela fizera questão de visitar o advogado birrento para fazer as pazes, parte de sua nova atitude de reconciliação.

- Você acha que eu devo permanecer na magistratura? - perguntou ela.

- Isso é você que sabe.

- Estava pensando que talvez não fosse uma idéia tão boa assim. Ocupa demais minha atenção.

- Você tem de fazer o que a torna feliz.

- Eu achava que ser juíza me fazia feliz. Mas não tenho mais tanta certeza.

- Sei de uma empresa que adoraria ter uma ex-juíza de tribunal superior em seu departamento de litígios.

- E não seria a Pridgen & Woodworth, seria?

- Talvez. Eu tenho uma certa influência por lá, você sabe.

Rachel passou a mão pela cintura dele enquanto continuavam a andar. Era bom estar perto dele. Por alguns instantes, caminharam em silêncio e ela saboreou o contentamento. Pensou no futuro, nas crianças e em Paul. Exercer a advocacia de novo poderia ser a coisa certa para todos eles. A Pridgen & Woodworth seria um excelente local para trabalhar. Olhou para Paul e escutou de novo o que ele tinha acabado de dizer.

Eu tenho uma certa influência por lá, você sabe.

Então abraçou-o com força e, pela primeira vez, não discutiu.

 

                                                                                            Steve Berry

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades