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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SALA DAS PERGUNTAS / Fernando Campos
A SALA DAS PERGUNTAS / Fernando Campos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

                     ENIGMA ALFA / 1501-1545

O que murmuram os canaviais

A cangosta de ao fundo da quinta leva ao rio sem ponte, pensou a aia. Acaba ali junto aos canaviais. Não chiam carros de bois carregados de gigas com cachos de uvas nem os muares dos lenhadores tiram carroças pejadas de madeiros. Não vêm para aqui embeber-se olhos nos olhos, arrenegando a morte, nem dar beijos furtivos os namorados de sangue impaciente. Escolherei um sítio ermo, onde ninguém passe, decidia-se Maria do Céu. Pôs o lenço preto pela cabeça, atou-o sob o queixo e ia a sair sem dizer nada...

- Aonde vais, Céu? - perguntou-lhe Ana de Macedo suspendendo o bordado no bastidor. Havia dias já que sentia na velha aia grande inquietação: às vezes ela aproximava-se, o olhar angustiado, a boca quase a abrir-se, e calava-se. - Que tens, mulher? Para quê esse sacho?

- Vou enterrar os gatinhos. Aninhada foi tamanha...

- Afoga-os no poço. Num saco com pedras.

- Têm sete fôlegos - disse desaparecendo porta fora.

Tinham sete fôlegos! Tanto tinham sete fôlegos debaixo de água como debaixo de terra. Pousou o trabalho, levantou-se do escabelo e foi-lhe na peugada. Viu-a esgueirar-se lá adiante pelo portão da cortinha. Seguiu-a de longe, topou-a a caminhar açodada vereda abaixo em direcção à ribeira. Aonde vai o dianho da mulher? Boa meia légua andada, o caminho estacava junto às águas, tão serenas que ao pé dos juncos nadavam alfaiates. Soava que em noites de ventania desferiam ali os pinhais o cântico de uma moira encantada. Nem vivalma, mas de detrás das canas vinha som de cavadas. Contornou a moita. Hei-de saber. A aia, de bruços, abria um buraco e, ao ouvir passos, virou-se, largou desolada o sacho:

- Ai, minha ama, que não devia ter vindo!

- Ninhada nenhuma. Para que é esse buraco?

- Não devia ter vindo, não devia ter vindo! - desabou Maria do Céu em soluços no ombro da patroa.

Moveu-se o coração de Ana, ameigou a voz:

- E assim tão mau? Abre-te comigo.

- Há quase vinte anos que me queima a alma um segredo muito grande. Ia abafá-lo na terra.

- Se não o podes contar, também não o deves enterrar. Com o vento dão as canas em murmurar e toda a gente o ficaria a saber. Partilha-o comigo. Sou cova sem fundo. Não o contarei a ninguém e tu ficas aliviada pelo menos de metade da carga - e Ana enxugava as lágrimas da pobre.

Dispunha-se esta a falar...

- Não! - tapou-lhe Ana a boca. - Não grites, não fales alto. Nem a agulha desses pinheiros nem as ervas do chão devem escutar. Diz-mo ao ouvido.

A aia segredou junto à orelha de Ana e os olhos de Ana iam-se abrindo, abrindo de tão medonha coisa.

 

 

 

 

Nos dias que se seguiram desfilaram no espírito de Ana imagens antigas. A irmã Inês a sair da casa de Santarém, corria a era de mil e quatrocentos e noventa e dois, a casar com Rui Dias, um jovem de Alenquer, descendente dos senhores de Gois. Senhoria secular, sim senhor, do tempo do conde Henrique. Rui Dias era neto de Gomes Dias, criado de el-rei Fernando e depois de el-rei João, o da boa memória. Esteve este seu avô nas cortes de Coimbra e foi com o infante Henrique à conquista de Ceuta. Pagou-lhe o infante os serviços e o valor com lhe dar as seis saboarias de Alenquer a Atouguia e o rei João a provedoria da gafaria de Coimbra. Casou com Brites Vaz de Lemos de quem teve Lopo Dias. Quando os infantes Henrique e Fernando partiram na trágica expedição a Tânger, Gomes Dias não permitiu que o filho fosse consigo. Lopo Dias amuou e jurou nunca mais usar o apelido de Gois nem o transmitir aos filhos, mas herdou as saboarias e a provedoria do pai, que lhe foram confirmadas por el-rei Afonso, ao serviço de cuja mãe, a rainha Leonor, viúva do rei Duarte, se conservou até à morte dela em Toledo. Ora pois, este Rui Dias que aí vai a casar com minha irmã é o primogénito de Lopo Dias, desfiava Ana em seu pensamento. Guapo rapaz, boa estatura de corpo, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa larga desanuviada deles, olhos de um verde-claro, alegres, alvo, bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos beiços, braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo, a voz um tanto enrouquecida. Herdou as saboarias paternas, mas não a provedoria, que o pai vendera para pagar dívidas. Casava assim a irmã Inês com um homem bem dotado e rico. Uma pontinha de inveja? Ana era mais velha que Inês e lá se quedava naquele casarão de Santarém, condenada a cuidar do pai viúvo e dos irmãos, sem a companhia da irmã nem da aia Maria do Céu que Inês levava consigo. Súbito veio o luto: Inês morria do parto do filho Francisco; o cunhado casava segunda vez, com uma prima dele, Filipa, de quem teve o filho Fruitos; falecida a segunda mulher, volta a contrair matrimónio, agora com Isabel Vieira que se finou de peste sem lhe dar geração; e pela quarta vez com Isabel Gomes de Limi que gerou cinco filhos: primeiro Rui como o pai, falecido ainda no berço, o segundo Manuel e depois Damião, Baltasar e Antónia. A aia ia ficando na casa a cuidar das crianças. Em mil e quinhentos e onze, Isabel viu-se viúva. Foi então que ao menino Damião - nascera em mil e quinhentos e dois como o príncipe João, recordava Ana -, após o saimento do pai levou-o para a corte, ainda na idade do eixo e do pião, o meio-irmão Fruitos, a sugestão de el-rei de quem era moço da guarda-roupa. Aí vão os dois rapazes a entrar nos Paços da Ribeira. Largo e comprido corredor de portadas de vidro viradas ao terreiro e, ao fundo, as naus varadas no Tejo. Grossos tocheiros em castiçais dourados. A espaços certos, pesadas portas de carvalho polido e nos intervalos, em frente das portadas, grandes espelhos a beberem a luz e a espalharem claridade. Soam-lhe os passos nas lajes de mármore, os de Fruitos mais largos, os do irmão miudinhos. Na última porta dois archeiros fardados de librés com galões de ouro fazem sentinela. Na antecâmara vem recebê-los o guarda-mor:

- Por aqui.

- Vais ver o senhor do mundo - segreda Fruitos ao ouvido do irmão.

O rei Emanuel estava sentado em cadeirão de espaldar, junto a uma mesa com papéis, a ditar suas cartas ao secretário. Ao vê-los, parou de ditar e ergueu o olhar para o menino. Damião arregalou os olhos subitamente alagados de água. O rei sorria-lhe:

- Aproxima-te.

- Beija a mão a Sua Alteza - disse-lhe Fruitos em voz baixa. Damião, num dobrar de joelhos, os olhos cheios de lágrimas, beijou a

mão do rei.

- Estás espantado, moço? Nunca viste um rei? Que se passa com teu irmão, Fruitos?

- Senhor, nosso pai foi a enterrar. E ver-te agora... a tua parecença com ele... Até eu, habituado a ti, estou torvado.

- Vá, meu filho - disse o rei afagando a cabeça do menino -, enxuga-me essas lágrimas. Serei para ti um pai, verás.

Ana de Macedo recordava estas coisas com o susto na alma e, quando Maria do Céu se preparava para ingressar num convento...

- Volta para Santarém - propõe-lhe. - A nossa casa continua a ser a tua.

Maria do Céu ripostava:

- Mas, menina...

- Céu, estou sozinha, meu paizinho Deus o chamou, meus irmãos na índia...

- Cá me soou que a menina vai casar...

- Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar?

-... e de ter filhos...

Mais uma razão para me fazeres companhia. Recordaremos os tempos felizes e tu ajudas-me a tratar das crianças que nascerem...

- Quem é ele?

- Um cavaleiro-fidalgo chamado Simão Vaz. Vem. Contar-te-ei tudo quando estiveres comigo.

Um dia, já casada, foram viver para Lisboa e por essa altura vira Ana o rei pela primeira vez e logo notara a extrema semelhança dele com o

Defunto marido da sua defunta irmã,

Que ambos Deus fosse      servido de ter em sua gloria, amém. Homem de boa estatura de corpo el-rei Emanuel, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa desanuviada deles, olhos alegres, de um verde quase branco, alvo, semblante bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos lábios, os braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo...

Tão enleada ficou Ana que nem atentava na pompa, atabales e trombetas, com que el-rei cavalgava a caminho do mosteiro dos frades jerónimos que andava a ser edificado. Adiante, a perder de vista, ladeada de mocetões negros com varapaus nas mãos, caminhava uma pesada ganga ou rinocerota. Seguiam-se cinco elefantes e, precedendo el-rei, um alazão, acobertado, em cujas ancas um caçador pérsio levava uma onça de montaria, que lhe mandara o senhor de Ormuz.

Não fosse o vestuário, a seda, o brocado, as telas de ouro, Ana diria que Rui Dias havia ressuscitado. Percebia agora a razão por que seu cunhado sempre tivera o cuidado minucioso de usar roupas não costumadas e sobretudo, quando casou com a senhora de Limi, vestimentas à maneira da Flandres. Queria estremar-se da figura real, quanto mais não fosse para calar as impertinentes chufas dos seus conhecidos, que chegavam ao ponto de lhe chamarem, na galhofa, el-rei Sabão.

A segunda vez que vira o rei fora num serão na corte. Música de charamelas, saca-buchas, cornetas, harpas, tamboris e rabecas tangiam cada um por seu giro músicos mandados vir de fora do reino, além de mouriscos que cantavam ao som de alaúdes e pandeiros. Dançavam damas e galantes, bailavam donzelas e moços fidalgos. El-rei vinha entrando, abriam alas damas e senhores, detinha-se às vezes a falar com uns e outros. Pára diante dela, depois de escutar o que ao ouvido lhe segredava o secretário.

- Conheço muito bem a tua casa em Santarém - disse - e ainda me lembro de teu pai, teria eu uns dez anos.

- Muita honra, senhor - balbuciou Ana muito corada.

Quando el-rei se afastou e ela sossegou da emoção, pôde apreciar, assim de perto, a mais ínfima semelhança do rei com o cunhado, as mesmas feições, a mesma estatura, tamanho de braços e pernas, cor do cabelo e dos olhos, o sorriso, a não ser... não, aquela voz clara e bem entoada não era a voz de Rui Dias. Mas havia uma outra coisa em que eram parecidos: ambos haviam casado uma porção de vezes e, se bem que o cunhado fosse ligeiramente mais velho que el-rei, casamentos e nascimentos de filhos seguiram quase a par.

Magna caterva de filhos tivera o rei Emanuel. Depois de subir ao trono, propôs aos reis da vizinha Castela casar com a princesa Isabel. Aplaudiram-no os conselheiros, aceitaram com júbilo Fernando e Isabel, pais da princesa. Continuação da política do sábio rei anterior de consolidar a paz entre os dois povos. Mas não faltaram vozes que acrescentavam de outro jeito a resolução real:

- Então não era de esperar? Já vos não lembrais dos olhos que em Évora ele deitava à princesa quando ela veio a Portugal a casar com o príncipe Afonso que Deus haja?

- Amor que vinha de trás, de menino e moço, aquando das terçarias.

- O ingerido.

- Juntou o útil ao agradável, que ela é bem bonita.

- E má. Olha as condições que ela impôs a el-rei para aceitar o casamento.

- Perseguir os judeus.

Realizaram-se as bodas em Outubro de mil e quatrocentos e noventa e sete, o rei teve ajuntamento com a rainha e estavam ambos em Toledo em Agosto do ano seguinte quando Isabel sucumbiu ao parto do filho Miguel. Casou dois anos depois o rei Emanuel com a princesa Maria, irmã de Isabel, que lhe deu e ao reino nove filhos. Viuvou a sete de Março de mil e quinhentos e dezassete e em Novembro de dezoito, tinha o rei quarenta e nove anos, tomava por mulher a noiva do príncipe herdeiro, a linda infanta Leonor, de vinte anos, irmã de Carlos quinto. O príncipe João embezerrou, dizem que para toda a vida, o povo falava. Deste terceiro casamento nasceu o infante Carlos, que não viveu mais de um ano, e, em Junho de vinte e um, uma menina a que puseram nome Maria. Mais filhos certo teriam nascido se não fosse, seis meses depois do nascimento desta infanta, o gadanho da peste apanhar o rei pelo gasganete.

Pousava Emanuel em Lisboa, nos Paços da Ribeira, no mais alto e próspero estado que a um rei se podia desejar, descobertas, conquistas e subjugadas todas as províncias marítimas desde o estreito de Gibraltar, da Pérsia, da índia, ilhas Ceilão, Samatra, Java, Maluco, até à China e Lequeus. À corte vinham-lhe embaixadores dos demais reis, príncipes e senhorias da Europa, do Sumo Pontífice e de muitos reis e senhores de África e Ásia, uns seus vassalos e outros confederados e amigos. Abundante riqueza de ouro, prata, especiarias cada ano lhe chegava das conquistas. Benquisto e amado dos seus e das mais das nações onde a fama de sua real pessoa alcançava, o reino pacífico e em sossego com vizinhos e vassalos, casado a terceira vez com uma das mais belas princesas da cristandade, irmã do maior senhor da Europa, com seis filhos e três filhas vivos, do segundo e terceiro matrimónio, todos formosos e de boa disposição e virtudes, que mais se poderia acumular em rei tão venturoso senão o bem da corte do Céu? Assim, houve Deus por Seu serviço levá-lo desta vida, para o que lhe enviou por seus anjos uma febre, espécie de modorra, doença que naquele tempo em Lisboa ceifava muita gente. Sentindo-se morrer, mandou a Salvaterra chamar o príncipe João, que logo acorreu, e ficaram os dois longo tempo a falar à puridade.

Até ao sétimo dia da doença permaneciam junto do seu leito a rainha Leonor, a infanta Isabel e o príncipe João. Desesperaram os físicos da vida de el-rei, e então o guarda-mor Nuno Manuel fez recolher a rainha e a infanta para uma câmara próxima e pediu ao príncipe que se retirasse para um aposento que vai sobre o armazém.

- Tu - disse ao jovem Damião, com silencioso espanto de todos os clérigos e senhores que aguardavam na antecâmara - ficarás à cabeceira de el-rei e terás o cuidado de o chamar aos acidentes que lhe dão por intervalos.

Assim o fez o jovem por três vezes, a que de todas el-rei acudiu, e querendo-o chamar a quarta, que era já no noveno dia, foi-lhe defeso pelos senhores que estavam na câmara. Quatro horas depois do meio-dia surgiram os verdadeiros sinais da morte, tão perfeita a memória que em alta e clara voz dizia os versículos dos salmos com os religiosos que ao redor da cama rezavam. Desgarrou-se-lhe a alma da carne às nove horas da noite, aos treze dias de Dezembro do ano de mil e quinhentos e vinte e um, dia da bem-aventurada Santa Luzia, em idade de cinquenta e dois anos, seis meses e treze dias, dos quais reinou os vinte e seis, um mês e dezanove dias.

Seis dias depois do passamento, o príncipe João era alçado rei segundo as costumadas praxes. No ano seguinte, o jovem Damião é mandado pelo novo rei para a Flandres. Parte do Tejo na armada de Pedro Afonso de Aguiar.

Muitos dias enrolou o tempo em seu fuso, Maria do Céu morreu e Ana de Macedo começou a sentir-se cansada, a doença a bater-lhe à porta, sem forças para aguentar o peso daquele segredo. Conheceu que também ela iria em breve prestar contas ao Criador. O marido ausente na corte, chegava-lhe de Coimbra o filho Luís Vaz, levado a cabo junto do tio frei Bento, chanceler da Universidade, o seu curso de escolar. Viviam agora numa herdade junto ao Zêzere, na confluência com o Tejo, em Punhete. Tendo encontrado a mãe de cama, o olhar a arder em febre, olheiras roxas, a voz sumida, o rapaz alarmou-se:

- Vou chamar o físico.

- Não. Espera. Não saias agora de ao pé de mim.

Luís sentou-se na beira da cama com a mão de Ana entre as suas:

- Como escaldas, minha mãe! Sorriu-lhe a mãe:

- Assim estou bem. Vai fechar aquela porta, que tenho de falar-te. Luís levantou-se e fechou a porta.

- Cola o teu ouvido à minha boca. O que te vou dizer nem o ar o pode ouvir... - e Ana de Macedo confiou o segredo ao filho, fazendo-o jurar que o não comunicaria a ninguém, e não tardou a desfalecer.

Correu o filho a buscar os socorros do médico e, de caminho, os do padre. E tanto as mezinhas como o sagrado viático tiveram a virtude de curar a senhora, que havia de percorrer ainda muita vicissitude da vida.

 

                       ENIGMA ÓMEGA / 1941

Uma janela no crânio

Quem era ele? Não era aquela a grande interrogação? respondia o doutor Luciano. Quem somos nós, a identidade de cada um, a consciência do eu? Desde o fundo dos tempos. Sim. Sabia-se muito pouco da vida e da morte dele. Só mistério.

O pavor da morte não é mais que o do aniquilamento da identidade - concordava Hipólito Cabaço.

- A mesmidade, amigo, a mesmidade - insistia Luciano -, ser uma pessoa si mesma e não outra, ter consciência de si, individualidade, entidade...

- Concordo que são alguns os pontos obscuros da vida de Damião. Mas saber-se pouco, como dizes... - estranhava Hipólito olhando o companheiro enquanto o grupo descia a calçada.

- Alguns? Muitos.

- Acaso hesitou ele quanto a ser Fulano de Tal, filho de Sicrano e de Beltrana? Tenho aqui a cópia do processo - e Hipólito sacava de debaixo do braço um grosso caderno de papel almaço, de folhas tintas de uma letra miudinha, folheava nervosamente como diurno conhecedor do texto, as lunetas na mão, os olhos de míope muito chegados à escrita e lia: «Aos cinco dias do mês de Abril de mil e quinhentos e setenta e um, em Lisboa, nos Estaus...»

Isso pensava ele! interrompia o doutor. Ter vivido com um nome, como quem diz com um eu que não era o seu...

- Que queres dizer?

Não era não saber um homem quem é. Era não saber que não sabe quem é. A suprema tragédia.

- Ou saber homem que sabe quem é e não o poder dizer... A suprema comédia.

Uma vida inteira enganado, logrado, errada a letra do epitáfio que mandara lavrar no mármore...

Seguiram calados em seus pensamentos, os tacões dos sapatos martelando nas pedras segundos de eternidade... Hipólito ia remordendo que não fora de bom gosto a sua referência a comédia.

E onde o acharam morto? Aí tinha o amigo outro mistério.

- Em casa, a cabeça caída sobre a lareira.

Não esquecesse o amigo o testemunho do desembargador Vieira de Sousa. Morrera indo da Batalha para o mosteiro de Alcobaça. Pernoitara no caminho em uma venda. Era de invernada. Depois de cear mandara deitar os criados. Ele, por mor do frio, ficara-se ali à lareira, com uma manta pelos joelhos, a ler, a escrever. Os donos da hospedaria deram as boas-noites e retiraram-se. Pela manhã encontraram-no deitado de borco, as barbas queimadas das brasas, sem vida.

- Sono? Um ar que lhe deu?... Alguns falam de icto apopléctico, estrangulado por criados...

Sim, sim, conhecia. Nos Hispaniae illustratae de Andreas Schott: sive apopléctico correptus morbo, sive a furacibus suffocatus famulis incertus... Camilo fazia-o desancado a sacos de areia pelos esbirros do conde de Castanheira... Fosse como fosse, entre os dedos segurava ainda o mesmo papel...

- Que papel?

Sabia-se lá. O mesmo, palavras do desembargador.

- Mas outros asseveram que assim tal e qual apareceu morto na sua casa de Alenquer em trinta de Janeiro de mil quinhentos e setenta e quatro.

O doutor fazia um trejeito de dúvida. Hipólito rebatia:

- O padre Luís Velho, ao tempo prior de Santa Maria da Várzea, lavrou-lhe o assento de óbito e o corpo foi sepultado na capela-mor, no jazigo que o próprio Damião mandara fazer para si, sua mulher e descendentes. Com o rodar dos séculos... Estranha função esta nossa! Estamos a vinte e sete de Agosto de mil novecentos e quarenta e um...

- Trezentos e setenta e um anos!

- ... aqui vamos nós a caminho da velha Igreja de Santa Maria da Várzea...

Os pedreiros, o coveiro, já lá estariam? Desmontar o túmulo, trasladar para a Igreja de São Pedro as pesadas lápides, a do brasão, a que é encimada pela cabeça de Damião, não ia ser fácil. Não estava o amigo incumbido da trasladação pela Direcção-Geral?

- Meu caro doutor, providenciei tudo.

Alcobaça? Alenquer? Mistério!... E esse papel, esse papel... ou papéis, que ainda conservava na mão? Talvez o diário a que ele próprio se referia no processo...

- Talvez.

Os inquisidores fizeram-no sumir.

- Não me admiraria nada.

E não estava ele preso na Batalha? A sentença dos inquisidores condenara-o a cárcere penitenciario perpétuo em lugar que Sua Alteza designaria...

- O rei Sebastião ou o cardeal Henrique?

Luciano estava em crer que havia sido o inquisidor-geral, o cardeal, a indicar o mosteiro da Batalha. O superior de Santa Maria da Vitória, frei Francisco Pereira, frei António Nogueira e outros dominicanos receberam o preso das mãos de Rui Fernandes, solicitador do Santo Ofício, a dezasseis de Dezembro de mil e quinhentos e setenta e dois, e do acto lavraram certidão. Como havia aparecido então ali, no caminho ou em casa? Quem teria a coragem de, em tempos de tanto medo e perigo, se abalançar a soltar o condenado? O superior e os frades do mosteiro? Não, certamente. Cairiam nas garras do Santo Ofício e isso constaria...

- Então quem? Oficialmente ninguém. Seria desacreditar tão feroz poder. Mas oficiosamente...

- Mesmo assim...

Mesmo assim, só quem tivesse poder para isso: o inquisidor-geral em pessoa. O rei era jovem e visionário. Dava lá atenção a isso... Há quem admita ainda a comutação da pena...

Não pode ser. Estaria no processo e, que eu saiba... - e Hipólito fazia menção de folhear de novo os papéis.

Também lhe parecia a Luciano. Dessem então por certo que Damião havia falecido na sua casa de Alenquer. Porque não supor que aí estivesse sob custódia?

- Por mor de quê?

Se o amigo atentasse mais uma vez no texto do processo, acharia que, quando os inquisidores lavraram o acórdão de condenação a cárcere perpétuo, tiveram o cuidado de estabelecer que não fosse recebido à reconciliação e união da Igreja em público, mas somente na Mesa diante dos inquisidores, vista a qualidade da pessoa do réu.

- É certo.

Velho e doente, tê-lo-iam deixado ir morrer a casa ou tratar de qualquer assunto a que a sua presença fosse necessária.

- Que assunto? Da sua fazenda.

- Mas não lhe tinham confiscado os bens?

Como via o amigo não eram só alguns os pontos obscuros...

- Lugar da morte, papel na mão, possível libertação do preso são alguns dos pontos controversos que indicaste.

Mas havia mais, o doutor Luciano impunha a sua autoridade. Porquê, dissesse-lhe o caro Hipólito, porquê preso e julgado e condenado só vinte e tal anos...

- quase vinte e seis...

depois dos factos de que o incriminavam?... Além das murmurações que ao tempo corriam à boca pequena e ainda correm...

- Psiu! Não fales nisso.

Sim. Se nem os cronistas da época nem os historiadores de agora ousam referi-lo...

- matéria proibida, falta de provas, silenciamento imposto... ou por pudor...

- Para que mancharem em vão o nome de... Chegavam à porta da Igreja de Nossa Senhora da Várzea.

- Bons dias, meus senhores - vinha o prior ao encontro deles, chegavam-se os outros.

Cumprimentaram-se em silêncio, com o ar compenetrado de quem caminha o sagrado e a morte, e dirigiram-se para o túmulo do humanista. Mas o doutor Luciano parava um pouco a olhar ao alto, em redor, abaixo, ruínas, templo só paredes a esboroar-se a céu aberto, galinhas e pássaros a debicar em cima dos muros, portais sem batentes, pedras e lixo sobre as lajes tumulares, no supedâneo do altar inexistente, capela-mor nua, nus os nichos dos santos, escancarada a sacristia nua, desolação, vento na campina deserta... Jerónimo Bosch, pensou lembrando-se de Damião.

- Do velho templo de Santa Maria da Várzea - acudia a explicar Hipólito Cabaço - em que Damião foi sepultado, quase nada existe. Arruinou-se de tal modo que a freguesia foi anexada à de Nossa Senhora da Assunção, de Triana. Em fins do século passado deu-se em Alenquer um movimento para o reedificar. Moisés Carmo, inconformado com as ruínas da igreja em que fora baptizado, encabeçou-o. Estava ali sepultado o «mártir da liberdade de pensamento», a «vítima do jesuitismo». Diligências, donativos, o maior o da rainha Amélia de Orleães, e a dois de Outubro de mil oitocentos e noventa e sete, foguetes, beberete e tilintar de brindes, a inauguração das obras. Apesar de avançadas aí por mil novecentos e um, nunca chegaram a concluir-se. Republicanos os mais partidários da iniciativa, haveriam de esquecer a generosidade do empreendimento. Deixaram os trabalhos por terminar e transformaram em oficina de serralharia a igreja paroquial de Triana. E aqui tem, amigo Luciano. O sítio retirado e ermo fez o resto.

- Incúria e abandono - suspirou o padre.

- Mas a memória do humanista e cronista teve mais força. Não estamos aqui nós para levar a bom termo a trasladação desses ossos sagrados? A antiga capela-mor gótica, que tinha sido deslocada do primitivo lugar para a sacristia de Santa Maria da Várzea, com seu artesoado e seu chão de mosaico de duas cores, já foi desmontada, sob minha direcção, e reconstruída na paroquial de São Pedro. É para lá que vamos transferir agora as lápides do túmulo mais a ossada de Damião.

Aguardavam de pé os pedreiros com as alavancas de ferro nas mãos e dois coveiros arrimados aos cabos dos instrumentos. Ao longo das paredes da capela, um bom número de assistentes, representantes das forças vivas da vila, presidentes da Câmara e das juntas de freguesia e membros dos Amigos de Alenquer de que Luciano era o cabeça, o médico, professores, o boticário, curiosos.

Luciano olhava com atenção para as pedras do sepulcro, a do brasão de armas, a encimada pelo busto de Damião, e lia os dizeres do epitáfio:

 

O

DEO OPT MAXIM

DAMIANS . GÓES . EQVES.

LVSITANVS. OLIM. F VI.

AGENDIS . PER . AGRAVI.

EVROPAM . VNIVERSAM . REBVS.

MARTIS. VÁRIOS. CASVS. LABORESQ . SVBIVI.

MVSAE . PRÍNCIPES . DOCTIQ. VIRI . MÉRITO . ME . AMARUNT. MODO . ALANOKERCAE .

VBI . NATVS . HOC. SEPULCHRO . CONDOR. DONEC . PVLVEREM . HUNC. EXCITET . DIES . ILLA . . OBIIT . ANNO . SALVTIS .

  1. D. L. X.

 

- O meu latim é fraco - pediu Hipólito. - Poderias traduzir? Luciano foi seguindo com o indicador a versão:

- «A Deus Óptimo Máximo.» É fórmula epigráfica dos Romanos comentou. Nós diríamos «A Deus Todo-Poderoso» e prosseguiu: «Damião de Gois cavaleiro português outrora fui. Em negócios peregrinei por toda a Europa. Dei-me a várias actividades guerreiras e aos labores da musa. Príncipes e homens doutos foram meus amigos. Agora em Alenquer, onde nasci, estou sepultado nesta campa até que aquele terrível dia faça que este pó se erga. Faleceu no ano da salvação de mil quinhentos e sessenta»...

Olhou os circunstantes:

- Esta data - disse - é evidentemente a data da feitura da lápide e não a do óbito de Damião, que ocorreu em setenta e quatro - e apontava agora a máquina fotográfica, que trazia a tiracolo, e disparava algumas vezes.

O delegado Hipólito falava em voz baixa com os pedreiros e os coveiros. Ao lado, o padre esperava calado. Luciano trocou com eles olhares de acordo e, dada a ordem, os oficiais, depois de a desafrontarem dos degraus do supedâneo do altar-mor, procederam ao levantar da lápide tumular.

Exalou um hálito de morte a terra bafienta e mostrou ossadas esbranquiçadas a descansarem no berço de negrume. Brilhavam fivelas prateadas, botões dourados, há muito desapegados de sedas e carneiras apodrecidas. Ajoelhado à borda do coval, Hipólito tomava-os na palma da mão:

- Peças do século dezoito. Vê, doutor.

- Não haja dúvida. Estes ossos não são de quem esperávamos - e o desapontamento entristecia o semblante de Luciano. - Que fazer?

Algum descendente por certo foi aqui sepultado... - sugeriu o pároco.

- Devem estar mais fundo...

- Cave-se então mais abaixo.

Escavaram os homens e iam tirando pazadas de terra sem que aparecessem despojos e, quando o desânimo começava a tingir de malogro as expectativas, aí a um metro de profundidade surgiu cal. Cuspiam os coveiros nas mãos a amaciar cabos de enxada e pá e, também eles contagiados pelo entusiasmo geral, se entregaram com mais gana ao trabalho. Cal e mais cal, o ruído da cava e das pazadas, no silêncio de cabeças inclinadas, esganiçadas por trás de ombros, de olhos no tremendo buraco. Ao fim de mais um metro, branquejou um osso, um esqueleto de homem na quietação do comprimento do jazigo, na sepultura intocada. No oco do que havia sido o ventre, uma moeda. O azebre e a cal tinham-na colado a um farrapo de mortalha de linho.

- Mostra - estendeu o doutor a mão.

- Parece do rei Sebastião - disse Hipólito entregando a moeda.

- Três reais de cobre... cunhados em Lisboa - ia dizendo Luciano

- ... sim... do rei Sebastião. Hipólito, é a ossada do nosso homem!

Desvelaram-se em atentar nos pormenores da jazida. Pregos de ferro batido pareciam atestar esquife de madeira comida por mais de trezentos e cinquenta anos de terra. Inteiros e bem conservados os ossos dos membros superiores e inferiores, as vértebras, as costelas...

- Lá se vai a hipótese do desancamento com sacos de areia - disse Hipólito.

O doutor nem o ouvia. Segurava emocionado a caveira do defunto, examinava-a miudamente. A caveira estava partida, os ossos do rosto separados da caixa craniana, ausência de maxilar inferior...

- Desdentado, os poucos dentes que restam bastante cariados... apontava. - Trata-se de um velho, não há que duvidar.

- Damião morreu com setenta e dois anos - disse Hipólito.

O doutor revirava o crânio e, de repente, de olhos esbugalhados, com

voz cava:

- Este homem foi assassinado - exclamou - Este homem... Damião foi assassinado!

Levantou-se Hipólito, já outros rodeavam Luciano.

- Vede. Aqui. Aqui, no occipital, reparai.

- Santo Deus! - benzeu-se o padre.

- Forte pancada! - considerava Hipólito.

- Com objecto de ferro.

Atrás, no lado esquerdo, alastrava a mossa arredondada, côncava, e no centro dela a fenda da fractura.

- A percussão foi tão grande que os parietais estalaram, olhai, em toda a periferia do crânio quase de ouvido a ouvido. A cal, com o sangue derramado, aderiu ao longo da brecha e com o tempo operou a soldagem.

- Damião foi atacado por detrás...

- ... alguém sorrateiro...

- Damião... Tinha de ser... Uma janela no crânio...

Seguiu-se burburinho de vozes, algumas excitadas, a quererem fazer-se ouvir ao mesmo tempo, quando um dos coveiros se aproximou de Hipólito:

- Senhor delegado, ainda estava isto na terra debaixo do sítio da cabeça - e mostrava o que figurava ser uma caixa de chumbo.

Foi necessário o fogo de maçarico para a dessoldar. Com sofreguidão a abriram. Dentro encontrava-se uma resma de papéis manuscritos. Na capa podia ler-se: «Memória de meu pai, que Deus tenha, mandado aqui depositar por sua expressa vontade. Maria, sua filha.»

 

             O relato de Damião / Às portas do mundo

Tinha-se passado meia hora desde que para aqui me trouxeram e eu ouvi a pesada chave guinchar no trinco, tilintar nas argolas e os passos deles a afastarem-se lá fora no eco do claustro. As portas da eternidade... lascidte ogni speranza... Não tinha sido eu condenado a cárcere perpétuo? Aqui estou, com a minha velhice, doente, preso e despojado de tudo. Rogara me deixassem escrever ao cardeal-infante, negaram; me emprestassem um livro em latim, qualquer um à escolha deles, negaram. A mesma roupa do corpo me tiraram, vestido com a estamenha da penitência. Encostado à porta, olho o pequeno espaço da cela, o janelo estreito, o buraco da sentina, o catre escasso, a mesa e o mocho de pinho, em cima da mesa um pão tosco e uma púcara com água, o crucifixo na parede... Meu Senhor, meu Senhor, vê onde te penduraram aqui, ó Cristo: sobre o buraco do vomitório. Por todo o lado te crucificam, sobre o leito da fornicação na câmara do rei, nos muros das aulas dos rapazes que cheiram a mijo e a masturbação... O poema do meu mestre Schrijver, que o nosso comum amigo Erasmo chamava à maneira grega Grapheus e os latinistas Scribonius, esse insigne escritor... quantas vezes te olhávamos pregado na cruz e, com o espírito balouçado pelos ventos novos que varrem o mundo, lamentávamos a tua sorte... este poeta punha então, na minha boca, em verso latino muito magoado, este sentir:

 

Sinto vergonha, ó Cristo, ah sinto vergonha

é minha, é minha a culpa, eu sei,

assim de todos abandonado

tão ensanguentado por todo o corpo

erguido alto aos ares

pendes pregado nesta cruz...

 

Meu amigo Erasmo, meu amigo Lutero ensinavam: tu não eras um Deus arrogante, juiz severo, mas um filho de Deus descido à Terra à condição do homem a sofrer com ele... Sobre o buraco do vomitório! Não anda o mundo cristão a vomitar o que fizeram de ti durante séculos?... Perdoa o fel das minhas palavras. Já não consigo senão ser a esponja de vinagre do soldado romano. Lacrimejam-te sangue os cravos das mãos e dos pés, a laceração do peito, o suor da coroa de espinhos. Mas a tua face de madeira não tem a expressão daquela outra Crucifixão que eu possuía no meu escritório pintada em tábua de cedro por Quentin de Metsys... Stabat mater dolorosa... por ti, pobrezinha, o homem suplicante implora com palavras piedosas...

Silêncio e frio que julguei serem os que haveriam de anteceder a minha morte... Ressoa o cantochão dos irmãos pelas abóbadas e quando se extingue é como se este templo já não existisse, este templo que já foi mausoléu real. Lá em baixo repousam ainda os despojos dos reis de Avis, que, felizmente para si, não conheceram esse monstro perseguidor, torturador e chacinador das consciências dos homens. Os novos senhores, desde que morreu o rei João, o segundo deste nome, filho invicto de Afonso quinto, vão passados setenta e sete anos, já aqui não querem descansar o derradeiro sono. Agora aqui só habitam os frades de São Domingos e este infeliz que o Santo Ofício condenou a penitência até ao fim dos dias. Porque me enviaram para aqui? não deixo de pensar. Porquê este Mosteiro de Santa Maria da Vitória, a Batalha? Um condenado como eu... serei digno deste lugar sagrado? Seria para o meu castigo se tornar mais completo... mandarem-me para junto de onde dorme esse rei João, de quem acabo de falar? Muito me tenho confessado seu admirador, porque foi ele quem pela guerra fez vingar o reino para os seus, pela paz restituiu para si a herança do reino de tanto jeito turbada e com infatigável ânimo resolveu explorar com navios nossos os mares até às plagas indicas, desde a costa da Etiópia oriental e também por terra as enviou demandar... Como eu gostaria, pobre rei que tão infeliz foste, de ir agora lá abaixo ajoelhar e rezar ao pé do teu túmulo, mas sei que a porta desta cela só se abrirá para me trazerem o pão e a água e me levarem de escolta a rezar no coro. Por isso me espantei de que a chave tão cedo se voltasse a ouvir no trinco e entrasse aquele fradezinho magro. Não se lhe via o rosto, mas a voz inculcava jovem:

- Psiu! - indicador exangue na boca do capuz. - Não fales - da manga do hábito retirava um embrulho -, esconde bem.

- Porque fazes isto? Por muito menos podes ser queimado vivo.

- ... ninguém saiba quem to deu... - e desaparecia fechando a porta. Meus olhos nem acreditam no que vêem. Será possível? Em cima da

mesa há papel, penas, tinta!... A minha resolução é rápida. Escreverei as razões de tudo. Perante Deus. Não pretendo destinar estas linhas a leitura de quem quer que seja. Darei instruções a minha filha Maria para que coloque os meus escritos, acondicionados em chumbo, sob a minha cabeceira fúnebre. Se alguém um dia, por o destino assim o fadar, vier a ter deles conhecimento, encontrará aqui a história da estranha viagem que em vida me foi dado fazer e que eles julgam que terminou neste cárcere. Como estão enganados. O que lhes dei foi a casca das minhas palavras sem os deixar perscrutar o meu pensamento.

Há um ano e nove meses, com precisão a quatro de Abril do ano passado de mil e quinhentos e setenta e um, estava eu em casa, no Paço da Alcáçova, com minha paz, depois de um dia de trabalho no tombo de que

era o guarda-mor. Tivera à mesa comigo os meus habituais convidados: o abade Pêro Gil e seu sobrinho, o flamengo Erasmo e mestre Jacques, o que faz os óculos na oficina da Rua Nova. Tínhamos acabado de cear e preparámo-nos para o serão.

- Que vamos cantar?

Erasmo fora pelas pautas a uma gaveta.

Aquele teu motete de amor sobre a letra do salmo de Salomão Sur-

agarnica mea... - disse o abade.

... a cinco vozes, bem bonito... - e eu punha-me a entoá-lo.

Amaciámos a garganta com um licorzinho de murta que a boa Maria do Carmo tão bem sabia amanhar. A de Erasmo, que estava a colocar as pautas nas estantes, erguia-se muito límpida, voz de adolescente, quase de donzela, enquanto nós afinávamos os instrumentos, o abade o alaúde, mestre Jacques a harpa, eu o clavicórdio. Este clavicórdio como eu o amo! Comprei-o a um fabricante de Cracóvia.

- Surge, propera, arnica... - experimentava a voz grave mestre Jacques num harpejo dos dedos.

- Lá está o vizinho João de Carvalho de orelha à escuta escondido no vão da janela - espreitava Erasmo uma casa em frente, na calçada.

Eis que me fala o meu amado: levanta-te, apressa-te, minha amiga, minha pomba, formosura minha, e vem...

- Ao ouvir este madrigal, salteia-lhe o coração entre o amor divino e o profano...

- Orelhas habituadas ao cantochão, deve soar-lhe como heresia a toada nova. Os ditames do Concílio de Trento, que aprovam com reservas a polifonia, ainda lhe não entraram no bestunto.

Afinados os instrumentos, todos se calaram e esperaram que eu desse sinal de entrada. Olhavam-me nos olhos, eu batia o tempo com o pé, um, dois, três, e lá íamos nós na melodia como se tivéssemos asas para voar. Cantávamos em concerto de vozes, melodia mais comovedora que o cantochão:

 

Brotou em frutos a figueira

as vinhas em flor perfumam o ar.

Levanta-te, minha amiga, formosa minha,

e vem, minha pomba,

mostra-me a tua face

soe-te a voz nos meus ouvidos

a tua doce voz, a tua face linda...

 

Estrondoso bater à porta da rua, seguido de altercação de falas. Suspendemos o canto. A voz de Maria do Carmo gritava:

- Mas que vem a ser isto? Não podem entrar... Ai, não me empum... Aqui d’el-rei!...


Levantámo-nos alarmados, dirigi-me para a porta da sala, matraqueava dureza de botas no passadiço e logo entrava o corregedor do crime seguido de guardas:

- O senhor Damião de Gois?

- Que quer isto dizer?

- Terá de acompanhar-nos.

- Acompanhar? Aonde? Bem te conheço, senhor. És o doutor Diogo da Fonseca da casa de el-rei e do seu desembargo...

- Eu aqui e agora não tenho cara, senhor. Cumpro ordens.

- Que ordens? Desenrolou um papel e leu-o:

- «Os inquisidores apostólicos contra a herética pravidade e apostasia neste arcebispado de Lisboa e sua comarca...»

Tomei-lhe o papel das mãos e li:

... fazemos saber ao muito magnífico senhor doutor Diogo da Fonseca... corregedor do crime nesta cidade... que, por neste Santo Ofício haver culpas obrigatórias a prisão contra Damião de Góes...

- Esta agora!!

... com todo o resguardo e quietação prenda ao dito Damião de Góes...

- Meu Deus! Não pode ser!...

... e o entregue ao alcaide do cárcere...

- Grave equívoco por certo - disse eu ao corregedor. - Deixa-me escrever a Sua Alteza que logo virá em meu favor.

- Tenho ordens para te levar. Terás de fazer esse pedido aos senhores inquisidores.

Por demais conhecia eu o teor destes procedimentos. Reconheci pois que estava preso. Outros como eu haviam já passado pela mesma provação. O meu antecessor no tombo, Fernão de Pina, filho do cronista Rui de Pina, o gramático Fernão de Oliveira, os bordaleses do Colégio das Artes... Ainda pedi que me deixassem dispor algumas coisas do governo meu e de minha casa. Não mo permitiram. Com grande angústia dos meus amigos que ali especados em nada me podiam valer, assim como me encontrava me levaram aquela noite, pelas alfurjas escuras da Mouraria, embuçados e silenciosos, aos Estaus, onde me entregaram a Gregório Veloso, alcaide do cárcere.

Recuo no tempo para pôr ordem no meu relato. Seis dias depois que o rei Emanuel morreu, no fim do ano de mil e quinhentos e vinte e um, subiu ao trono o príncipe João, o terceiro rei deste nome. Corria o ano seguinte, um dia de manhã mandou-me chamar. Se bem que eu já o conhecesse havia muito - com ele fui criado que éramos da mesma idade - nesta primeira vez que o encontrava depois do falecimento do pai o seu olhar fixava-me com um brilho muito particular que nunca lhe tinha visto, de maneira que eu já não sabia o que pensar.

Mandaste-me chamar, senhor? - quebrava eu o enguiço, que enguiço era o que aquilo me parecia, embora em meu íntimo rebuscasse qualquer coisa malfeita que eu houvesse cometido e merecesse reparo. Mas o jovem rei, com um sorriso que eu não sabia explicar, disse-me:

- Dias antes de falecer, el-rei meu pai falou-me miudamente de ti e pediu-me que te protegesse como ele te havia protegido.

- Dispusera que eu fosse tratar de seus negócios em Antuérpia, mas a sua morte...

- Isso farei agora, em cumprimento da vontade de meu pai. Com o que de ti me contou, também eu te tenho em muita e especial estima.

- E quando parto?

- Está para largar daqui a dias uma armada.

- Dá-me licença, senhor, de ir a Alenquer despedir-me de minha mãe e de meus irmãos.

- Vai, sim.

Esse mesmo dia cavalguei para Alenquer aonde cheguei ao anoitecer. É de ver como minha mãe me recebeu com as lágrimas nos olhos e meus irmãos mais novos me abraçavam como se eu fosse um deus. Mas o pranto de minha mãe redobrou quando lhe dei a novidade da minha partida dentro de dias para a Bélgica.

- Meu querido filho. Nunca mais estes olhos te verão.

- Oh, mãe! Eu voltarei um dia e ficaremos então juntos para sempre.

- Tu tens a tua vida e eu sinto-me tão doente...

É a mocidade de sua natureza esperançosa e eu nem me vinha à mente que o que lhe estava adivinhando o coração podia ser verdade. Como ela estava certa! Nunca mais a vi. Trago nos olhos o seu rosto de flamenga, o olhar velado de merencória, e hoje, ao lembrar-me dela e em tudo o que lhe aconteceu, entra-me no peito uma ternura tão saudosa que se me aguam os olhos.

Regressei ao paço no dia seguinte e dispus o meu tempo em ordenar as minhas coisas para a partida. Penso agora que, se tivesse permanecido no paço o resto dos meus dias, teria enlanguescido na corrupção e preguiça dos demais. A ida para fora do reino foi um privilégio que, não obstante ter, ao cabo, gerado o meu emprisionamento, me salvou de me conservar um homem comum. Chegado o prazo da partida, quando acabava de fechar o meu baú, que o carregador tomou às costas, entrou em minha câmara o guarda-mor Nuno Manuel, que o novo rei ainda mantinha em seu serviço:

- Estás pronto?

- Ia agora sair.

- Incumbe-me o rei João de te acompanhar ao cais.

Fiquei admirado com tamanha cortesia e igualmente meu irmão Fruitos, que ali estava comigo, de modo que perguntámos ao mesmo tempo:

- Porquê?

- Não será preciso tanto incómodo - disse eu.

- Eu vou com ele - disse Fruitos.

- Não discutais ordens de Sua Alteza. El-rei assim o dispôs e deseja satisfazer um desejo que seu pai lhe comunicou na hora da morte e de que me havia também dado conhecimento.

- E que desejo é esse? - perguntei. Hesitou Nuno Manuel:

- Dir-to-ei de caminho - e olhou-me olhos nos olhos em silêncio, enquanto me compunha a gola da camisa.

Fruitos fazia menção de me acompanhar até ao embarcadouro, mas o mordomo atalhou-o:

- Eu acompanho teu irmão. El-rei chama-te, precisa de ti. Vai ter

com ele.

- Agora? -Já.

Deveras atónito com o tom seco desta ordem e com tudo o que se passava, contudo a mudança que se operava na minha vida, a novidade da partida logo me apagaram todo o cuidado. Abracei meu irmão.

- Manda-me notícias tuas assim que chegares - recomendou Fruitos. - Dá-me parte do que necessitares. Adeus.

- Adeus - abraçámo-nos.

Foi assim que em Julho de mil e quinhentos e vinte e dois - estas viagens para o Norte fazem-se comummente a partir do começo da Primavera e pelo Verão adiante, nunca na invernia por mor da braveza daqueles mares e pelo rigor dos frios - saía do Paço da Ribeira a caminho do cais em que me havia de embarcar, a bolsa de couro bem recheada de cruzados e dobrões de ouro. Aqui vou eu todo galante. Como el-rei Emanuel, que também o era, bem vestido e muito limpo de sua pessoa, tinha tantos vestidos que quase todos os dias usava alguma coisa nova e duas vezes por ano mandava repartir com os fidalgos, cavaleiros, escudeiros e moços da sua câmara roupas de seda e pano. Por seu falecimento poucos dos moradores ficaram sem alguma peça do que sobejou da sua guarda-roupa e muitas foram as igrejas e ordens religiosas que dela beneficiaram. Enfim, todo ataviado de ricas vestimentas, caminhei pelo terreiro seguido de um carregador que levava às costas o meu baú encoirado. Vaidoso de mim, que só tinha desculpa na verdura da idade. Andava nos meus vinte e um anos. Garbo, força, esperança na vida. Que jovem estremecimento de alma! Formigueiro de gentes, a cidade, o porto coalhado de naus, caravelas, galeões, carracas e toda a espécie de pequenos barcos, batéis, barinéis... A meu lado, solene na preeminência do ofício e dos seus cinquenta anos, Nuno Manuel falou em voz baixa de confidência, passavam por nós senhores fidalgos que se desbarretavam e nos faziam mesura... Tão espantosa coisa me contava que julguei estar a sonhar. Recomendava-me o guarda-mor que eu aferrolhasse tal notícia no escrínio mais secreto do meu ser e não a referisse a ninguém nunca jamais em nenhuma circunstância.

Subiu-me do peito uma onda de raiva:

Então porque mo contam? Não seria mais caridoso deixarem-me na ignorância?

Com minúcia confiou-me ele os motivos ponderosos tanto de me darem a conhecer o segredo como da necessidade do sigilo. Se a primeira razão me não convencia, a segunda, pelo contrário, era de tal ordem que ninguém mais do que eu daria corpo e alma por calar tão magoada coisa.

Conhecendo que eu acalmava, Nuno Manuel disse:

- Estás agora ciente?

- Estou.

- Jura que calarás.

E preciso de jurar? Eu? - respondi como atordoado.

Embarquei na armada de Pedrafonso de Aguiar, o Moço, da ilha da Madeira, que partia para a Flandres com um rico carregamento de couros, madeiras raras, especiarias, tecidos de seda e algodão, marfim, jóias, porcelanas orientais, que sei eu. Recebeu-me na nau capitaina com tal deferência que logo imaginei ter ele conhecimento de quem eu era e ao que ia. Confirmou-o nas palavras que me dirigiu:

- Bem-vindo a bordo, Damião. El-rei encomenda-me que olhe por ti durante a viagem e te trate como quem és. Aqui o senhor mordomo-mor pode ir descansado que a vontade de el-rei será cumprida.

Nuno Manuel despediu-se de mim com um abraço e olhar humedecido, saudou o capitão-mor e desceu a escada do portaló.

- Senhor - virei-me para Pedrafonso -, subi a saudar-te e a pedir-te que me deixes seguir na nau de Diogo Fernandes de Faria, que é meu amigo.

- E eu não sou, apesar de te conhecer só agora?

- Oh, senhor! Escusa-me se te ofendi. Não era meu intento. Terei muito gosto em ir contigo, mas pensei que nem sempre haverá tempo, sendo capitão-mor da armada, de atenderes aos meus humores e curiosidades.

- Assim é, Damião, assim é. Embarca então com o teu Diogo. Dar-lhe-ei instruções para te tratar melhor do que como simples amigo.

Este Diogo Fernandes fora adail e, além das boas mostras que na mocidade deu por mares e terras de África debaixo da bandeira de João de Meneses, obrou na índia muitos e assinalados feitos, por respeito dos quais el-rei Emanuel lhe fez mercês dignas de seus serviços, confirmadas e acrescentadas por el-rei João. Do valor de tal cavaleiro haveria eu de poder, daí a dias, dar testemunho.

- Damiane, amice - recebeu-me ele de braços abertos, que, além daquelas boas partes, se prezava de latinista.

- Largar o pano! - ouvia-se a ordem do mestre. - Apanhar o ferro! Corriam os moços à lida.

- Caça!

Desferrar de velas, caçar as escotas, respiro de vento pelos mastros, griIhar dos elos no levantar da âncora, desamarravam os navios do porto num ranger de madeiros. Acenam lenços no cais.

Eriçavam-se-me os olhos, os ouvidos, a flor da pele, todos os sentidos se me ortigavam.

- Nunca tinhas navegado antes, estou a ver.

- É a primeira vez.

Passava por nós, no Restelo, com suas bombardeiras ao lume da água, o baluarte oitavado de S. Vicente, a erguer-se já garbosa a torre de varandins, e, lá mais atrás, as obras do mosteiro dos frades jerónimos. Transpúnhamos a barra, vinha-nos do largo o acre da salsugem.

- Sinto em mim, amigo, o bulir de ânimo dos nossos mareantes ao saírem para o desconhecido.

- Não penses assim. De seu natural incansáveis ou urgidos pela auri sacra fames, fazem o caminho da imensa peregrinação com tanta frequência que lhe não dão maior importância do que irem de Portugal a Inglaterra ou à Bélgica, como nós.

À nossa direita alto monte avançava pelo mar.

- Que monte é este?

- Sintra. Os antigos chamavam-lhe monte Agro e este é o promontório da Lua, hoje nomeado da Rocha.

Na falda deste monte, num outeiro virado ao mar, branqueja uma aldeia. Não habituado a olhar do mar para terra, não a reconheci.

- Colares - acudiu o Diogo Fernandes. - Adiante, debaixo dum rochedo iminente sobre o pélago, há uma gruta. Na maré enchente engole as águas, que, entrechocando-se, cachoam lá dentro num ferver de sal e espuma, e vomita-as em seguida com espantoso estrépito. Julga o povo que ali foi visto outrora um tritão a soar o seu búzio.

- Lendas - disse eu.

- Não me atreveria a afirmar tanto.

- O litoral pode ser visto e examinado pelos que o vão costeando.

- Sim. Nunca testemunhei nada, apesar de por aqui ter passado muitas vezes. Mas... Nunca leste Plínio?

- O meu latim não chega a tanto.

- Já Plínio informava. Uma embaixada de olissiponenses, adrede enviada a Roma por razão do temor, contava a Tibério César: numa caverna aqui na Lusitânia avistara-se um tritão, o aspecto conhecido, a ressoar concha.

- Tão recuada assim a lenda?

- A confirmar o caso, sempre te digo: nos nossos dias encontram-se, em lugares vizinhos desta praia, uns como homens que os habitantes deram em chamar homens marinhos. Asperezas parecidas com escamas em quase todo o corpo, à superfície da pele, como relíquias da antiga raça. Crêem os habitantes que devem origem e natureza aos tritões. É tradição...

- Tradição, ouvi-o no paço ao velho mestre Cataldo Sículo, é coisa que devemos ter como quase sagrada.

- Atraídos pela doçura da fruta que os naturais lhes estendiam, os tritões saltavam por vezes do mar para a praia e pouco a pouco habituavam-se a brincar com eles e aí voltavam com frequência e alguns foram apanhados por astúcia e depois com carinho trazidos a género de vida menos selvagem e de sustento fácil.

. Tudo isso parece fabuloso: chegarem, pela familiaridade doméstica, a emitir vozes humanas e, além disso, a ter trato com os lusitanos...

Parece. Mas ainda mais fantástico é que, no paul Tritónide, um deles, selvagem, tenha saltado das ondas e, pondo-se a brincar com os gregos, disse a jasão a trípode que este levava a Delfos para com ela afastar os perigos das sirtes.

Estranho! Estamos com um pé no mito e outro no futuro. Sereias, tritões, homens marinhos... mundos novos...

. Sim. Mas, se não estás convencido, ouve este caso. Não há muitos dias, andava um homem à pesca, com linha e anzol, entre as rochas do promontório Bárbaro, perto da Capela de Nossa Senhora. Salta-lhe das águas para um rochedo um tritão macho, a barba comprida, longos os cabelos, peito crespo, rosto não muito disforme, de acabado aspecto humano. Refastela-se ao sol e por detrás observava o pescador, que também lhe lançava a mirada pelo canto do olho. De repente, uma tensão da linha, a ponta da cana a vergar para a água, gesto vigoroso de braços a puxar a presa, que logo aí vem no ar a espadanar prata. Tomado de medo, num brado quase humano, mergulha o tritão nas ondas do abismo. Ainda hoje o pescador conta isto, em jeito salgado e saborosas palavras, a todos os que o desejem ouvir.

Tocava a sineta de bordo.

- E meio-dia - disse o capitão -, horas de jantar. Durante a viagem comerás comigo à minha mesa - e afastava-se descendo ao tombadilho.

Ainda algum tempo me demorei ali sonhando, a ver a terra a desaparecer, a desmaiar em sombra e a fundir-se enfim na indecisão de mar e céu... Sozinho na amurada, no seio daquela imensa solidão, ferveu em mim o cachão da tremenda notícia que Nuno Manuel me comunicara e, quando a primeira noite caiu, enrodilhado em minha manta longas horas de olhos abertos olhava a escuridão e ouvia as ondas a marulharem-me na alma...

Podia eu agora ir adiante direito ao assunto e entrar na brumosa viagem que, sem o eu saber então, também o meu espírito encetava, não fossem os estrondosos sucessos - estrondosos, por minha fé! - que me desviaram do sonho e agora igualmente me obrigam a escrevê-los aqui. Navegávamos ao quinto dia no canal que corre entre a Inglaterra e a França, quando ao longe vimos relâmpagos de fogo e o troar de canhões chegava até nós. Julgando ser um dos assaltos de corsários, frequentes naquela movimentada rota de naus, caravelas e galeões carregados de ricas mercancias, deu sinal a capitania que em toda a armada os artilheiros estivessem prestes. Mas quando distinguimos as bandeiras das frotas, verificámos tratar-se de franceses e ingleses a uma banda, e da outra naus do imperador.

- Que combate é este? - perguntei.

- Tempo de guerra entre Carlos quinto e el-rei Francisco primeiro de França.

- E os Ingleses?

- Henrique oitavo ora está de um lado ora do outro. A França tem pretensões às antigas terras da Borgonha, que pertencem ao imperador. Procura por todos os meios dificultar a passagem no canal às naus que vêm de Itália, Espanha e Portugal para a Flandres. Por sua vez, a Inglaterra não quer perder o domínio da navegação nestas águas.

- Mas é nossa aliada?

- Fecha os olhos.

- Mas estão a atacar-nos.

- Já levarão resposta adequada, verás.

Eram umas seis embarcações de cada bandeira, bem aparelhadas de artilharia. Quase nos achávamos entre elas, dá ordem o capitão-mor de operações de ataque.

- Todo a estibordo! - gritou o capitão.

Carregou o timoneiro o leme a estibordo, de modo que a nau se aproximou das inimigas mostrando as bocas de fogo de bombordo a visarem bem o alvo. Passou veloz por uma contrária, que, antes de ter tempo de se furtar...

- Fogo! - brada Diogo Fernandes

... caem-lhe britados pelo meio dos mastros e cava-se-lhe um enorme rombo no costado. As restantes nossas embarcações também abriam fogo e a armada do imperador, em outra extremidade, obrava danos e um seu galeão lançava-se à abordagem de um francês. De onde estávamos e por causa do troar dos canhões e do marulhar das ondas não ouvíamos a gritaria, mas podíamos adivinhá-la pela violência do ataque, gestos de braços que empunhavam espadas, punhais, machados, maças-de-armas, o envolvimento confuso dos inimigos em luta de morte. Uma galera francesa já ardia, uma nau inglesa afundava-se amortalhada nas velas descaídas... Bom capitão, mostrou-se Diogo Fernandes tão animoso e esforçado soldado e os demais tão valorosos que os inimigos só encontraram remédio em fugir e afastar-se cada vez mais e embrulhar-se no nevoeiro, que enfim, continuando nossa rota, o vulto das duas armadas se esbatia até que as deixámos de ver.

Nunca esqueci esse primeiro combate naval, que presenciei no canal da Mancha no Julho de mil e quinhentos e vinte e três, a cerca de dois dias da minha chegada a Antuérpia. Durante o combate conservara-me calado, absorto nas acções guerreiras. Agora, porém, que prosseguíamos viagem na calmaria de mar e céu, disse ao capitão Diogo:

- Esta nova invenção da artilharia está a alterar toda a arte bélica.

- No mar e em terra. O cavaleiro andante morreu. Só vive nos romances do rei Artur, no Amadis, no Palmeirim. Mirrou o braço do herói, esvaziou-se-lhe o peito e todo ele está a extinguir-se.

- O herói não morre - contrariei. - Olha os feitos dos nossos no Oriente.

- São os últimos heróis, em estertor de morte.

Chegara-se a nós o capelão, que se ficara ali em silêncio a ouvir o que dizíamos. Por fim falou:

- O demónio, foi o demónio quem inventou esta arma destruidora do valor e do esforço...

- Ora, padre! - disse o capitão. ... invenção diabólica e odienta...

Quem primeiro em Portugal teve a ideia de munir naus e caravelas de artilharia foi o rei João segundo, tão eficaz invenção que mal podem connosco inimigos e corsários.

- Concordo contigo, capitão, quando dizes que o herói está a morrer. já não há homens como os passados, é Garcia de Resende quem o escreve. Os valentes são chacinados antes de serem afamados, antes que deles se fale como dantes. A arte mecânica destrói a cavalaria. Escureceu-se a glória da valentia, o valor e o primor do cavaleiro. Atingiu um supremo grau a crueldade humana.

- Exageras, capelão. A guerra sempre foi cruel.

- Engenho diabólico, crede-me. Assenta na cobardia e na traição. O forte guerreiro procura o encontro com o inimigo. O bombardeiro, o espingardeiro, o artilheiro fogem dele.

- O herói não morre - teimei eu. - São diferentes as armas. O heroísmo está na alma, em jogar a vida, o bem supremo, por um alto fito. Os novos cavaleiros são os navegantes.

Ficámos calados por momentos, cada um revolvendo os pensamentos. Veio-me à lembrança e como deviam ser tremendos os combates sustentados pelos Portugueses nos mares da índia, e senti orgulho. Hoje, aqui nesta cela, soam-me nos ouvidos aqueles versos que, uns dias antes da minha prisão, o meu amigo Luís Vaz me recitou:

Albuquerque terríbil, Castro forte e outros em quem poder não teve a morte...

- Terra à vista - acordou-me no recuo da idade a voz do moço da gávea.

Uma sombra escurecia a linha do horizonte.

Partir, chegar - dizia o capitão Diogo Fernandes. Estávamos de pé, no alto do castelo da popa, singrava mansa a armada entre as duas ribas do Escalda. - Tema para poetas. Só cuidam e suspiram saudades do que já lá vai, saudades do que ainda lá virá.

Reparasse, contrapunha eu, que a minha posição não era nem a um lado nem a outro, in médio me situava como naquele momento o barco em que navegávamos. Partira pela primeira vez, olhasse de onde, do porto de Lisboa. E pela primeira vez estava a chegar, aonde?, a este porto de AntuérPia. Não tinha razões, pela disposição e pela idade, ambas curiosas dos novos caminhos da vida, de sentir saudades da cidade que deixara nem da que estava aí à vista.

- Certo que não és poeta, Damião.

A desembocadura do rio Escalda, Schelde escrevem eles, é tão larga que, com a neblina, se não vêem as margens e quem é novo no arribar nem se dá conta de que já entrou a barra. Depois aparecem os mouchões e bancos de areia, a terra começa a aproximar-se, o rio a estreitar, à nossa direita serpenteia um caminho entre campos e a água, há rebanhos, casas isoladas e pequenas, rústicas, carroças com feno, passam senhores em cavalos corpulentos. Mas é para o outro lado que os nossos olhos são atraídos quando a cidade surge à nossa esquerda, na planície que se vai perder ao fundo, por cima dos telhados, num horizonte azulado onde, sob um céu de nuvenzinhas de ouro, se espetam agulhas de torres, se espalmam velas de moinhos. Antuérpia! A cidade plana, flamenga, eriçada de grimpas, cúpulas, pináculos, altas as torres em lança, encimadas por leve bizantino zimbório, torreões de castelos e palácios senhoriais e, a dominar todo este arriçamento, a espetar os ares, a torre brilhante, rendilhada, da catedral gótica, esguias as casas de telhados escorregadios, próprios a lançar de si o peso das neves, as cimalhas recortadas em escadaria de merlões, cidade vertical no repouso da planície, ao contrário das cidades do meridião, horizontais, deitadas pelas encostas das colinas, fenícias, mouriscas, de casas que são cubos, caixas de adobe. Que diferença entre as açoteias do Sul mediterrânico e os píncaros nórdicos! Escuras estas, a absorver um sol pálido, tépido, cidades de fadas e duendes e gnomos. Brancas as lá de baixo, terrinhas de cal a repelir a violência do calor, de mouras encantadas, pitonisas e magos. Não era a primeira vez que dava comigo a apreciar a novidade, a achá-la gostosa. Se havia cidade em que ela se encontrava em cada rua, a cada esquina, em cada praça, dentro e fora de casa, essa era Lisboa. Não me ocorria, no entanto, pudesse acontecer que ainda não sabia tudo e me faltava ver muitas terras e povos, e sobretudo dar o grande salto. Só estava a contemplar a diferença das formas exteriores. Haveria de, pouco a pouco, meter-me no cerne dos espíritos, das ideias, das crenças, das convicções e sentir a existência das verdades. Agora, no momento em que escrevo, sinto que estas são palavras de velho de setenta anos, inquinadas por toda a sabedoria e conhecimento e amargura que acumulei ao longo da jornada, com tudo o que passei, o que aprendi em minhas viagens pela Europa. Então, ao chegar a Antuérpia, com vinte anos apenas, encetava a caminhada sem regresso que me haveria de atirar com os ossos para este cárcere. Não que eu fosse ignorante. Penso até que tive o privilégio de uma educação invulgar. Devo-o a el-rei Emanuel. Para além das disciplinas do trivium e do quadrivium, aprendi a história, pela leitura que el-rei fomentava, dos velhos livros dos nossos cronistas junto do príncipe e os infantes. Creio que ele-rei me preparava para aquilo que depois fui, administrador, negociador de fazenda e embaixador. Abriu-se-me o espírito com as zargunchadas de mestre Gil Vicente. Com ele iniciei-me na música profana, na música sacra com a capela do rei. Pinturas e ícones dos melhores artistas de toda a Europa habituei-me a apreciá-los no paço e nas igrejas, e as novidades da índia, da África, do Brasil. Ensinou-me a olhá-las meu mestre Garcia de Resende. A destreza do corpo não ficara esquecida, que me foi dado cavalgar junto do príncipe e desse seu companheiro, João de Alancastre, neto por bastardia do rei João segundo, caçar e montear com eles, exercitar o braço nas artes guerreiras... Mas não adiantemos o razoamento das coisas.

Fundeámos a meio do rio, em fila, atrás da nau capitaina. Com as operações da chegada a ocuparem todo o pessoal de bordo, vi-me sozinho no castelo da popa. Pude assim em meu sossego rudo observar à minha volta. A animação do porto é intensa, mas para quem chega com os olhos cheios do Tejo não surpreende, a não ser pela menor quantidade de embarcações nossas e de Itália e maior número das do Norte. Agitam-se à frescura do vento pendões da Alemanha, da Noruega, da Dinamarca, da Polónia, da Rússia. Vogam batéis a remos por entre galeões e naus, ferve de mercadores o cais no ruído e azáfama da portagem, guindagem e embarcamento e descarga de mercadorias, tamanho estrondo de gritas, brados, apupos, tanger de sinos, cornos, búzios e toda a maneira de dissonâncias. Num vazadouro, barcos acostados, floresta de mastros aferrados. A todo o correr da terra, para cá dos muros da cidade, escancaradas as portas de armazéns aonde entram e donde saem a todo o momento carroças pejadas de fardos.

Preparava-me para embarcar com o capitão Diogo num batel, já chegava junto da nossa nau o do capitão-mor Predrafonso que debaixo gritou que me vinha buscar.

- Alvo de tal acatamento - segreda-me Diogo ao ouvido quando descíamos -, pessoa grada és de certo, amigo.

Que lhe havia eu de responder?... Largou o batel e em poucas remadas, por entre a multidão dos barcos de toda a espécie que varavam no rio, vogámos em direcção ao cais e acostámos ao desembarcadouro. Esperavam-nos o feitor e cônsul João Brandão, natural do Porto, comendador da Ordem de Cristo, e o tesoureiro Rui Fernandes de Almada. Logo neles notei a maneira e honestidade e limpeza do vestir, os modos discretos. O capitão-mor e Diogo cumprimentaram-nos como quem de há muito se conhecia. Foi para mim que se viraram as atenções:

- Sê bem-vindo à nação portuguesa de Antuérpia, Damião - disse o cônsul.

- Sangue novo é o de que a nossa feitoria necessita - considerou Rui Fernandes.

- Senhores - respondi -, grande honra a minha poder aqui servir a el-rei e aprender convosco sabedoria e experiência que a minha pouca idade não possui.

Tomei da algibeira as cartas que el-rei me dera para o cônsul e entreguei-lhas.

- Lê-las-ei assim que chegarmos a casa - disse ele. - Conversemos de caminho.

- Não será difícil - interveio o capitão-mor - adivinhar uma das recomendações de el-rei.

olhos, ouvidos, todo o meu sentir... o cais ficou para trás... abre-se larga praça, não tão espaçosa como o nosso terreiro do paço... de perto agora as fachadas das casas de tijolo, de alvenaria, elevadas as fendas das janelas...

- Claro, claro - tomava João Brandão. - El-rei há-de por certo pedir que lhe enviemos mais trigo. Os cofres a abarrotar de ouro e os celeiros sem pão. Triste sina. Tenho já pronta a fardagem que da outra vez pediu. Logo que descarregueis a mercadoria, podereis embarcar esta.

- Posso-o confirmar - disse eu. - Em Lisboa, na Casa da Contratação da índia os oficiais não têm tempo de contar o ouro que lhes devem dos tratos, mas o povo...

- O pior é que o rei João, apesar dos avisos que lhe fazem alguns conselheiros mais avisados, parece querer seguir a maneira do pai e tapar o grande sorvedoiro com fazer moeda nova.

multidão de gente, dia de feira... os homens chapéus de copa alta, à moda de Castela... algumas mulheres também os usam... outras, coifas e toucas... mesinhas a toda a roda da praça e meio encostadas às casas... ao longo de uma rua até lá adiante a um cruzeiro de pedra com a imagem do Crucificado tendas de vendedeiras como no nosso Rocio e pelo chão cesteiros de fruta, legumes, ovos, doçaria...

- Aonde iremos parar?

- Pergunta antes onde já nos atolámos. Tanto alarde de riqueza pelo mundo, a embaixada ao papa Leão, elefantes, rinocerotas, onças pérsias, pontificais de ouro... Olhai. Está quase pronto o pontifical que el-rei Emanuel me encomendou para a capela do Tosão de Ouro. Pobre rei. Tão vaidoso da sua riqueza! Não será ele a colher os louros da oferta, mas o filho...

- Que pontifical? - perguntei.

- Tomou el-rei a ordem do Tosão, que lhe deu seu primo o imperador - disse João Brandão. - Escreveu-me que providenciasse a feitura de um pontifical para ser oferecido à capela daquela ordem. Estão a acabar de lavrá-lo os melhores tecelães e bordadeiras que encontrámos em toda esta província, e em breve se apresentará na capela do Tosão, que está na Igreja do Sablon na vila de Bruxelas. Peça acabada, sim senhora! Rico pano de ouro com seus sabastros borlados, as armas e insígnias do reino de Portugal, o mais bem obrado pontifical de quantos tenho visto, excepto o que el-rei mandou ao papa Leão por Tristão da Cunha... mulheres, mais altas que as portuguesas, brancas, rosadas, corpo bem torneado, saias bege, vermelhas, castanhas, listradas, em pregas, lisas, touca pela nuca, cabelo louro, testa brunida, corpete de veludo preto a delinear os seios formosos, esta, mangas arregaçadas, traz um cesto braceiro... camisa branca, aquela jovem as mangas saem-lhe do colete apertadas nos punhos, as saias descem até aos pés pequenos, calçados de botins de pelica, esta já matrona capuz preto com carrapicho cobre-lhe a cabeça pegado ao manto que desce quase até ao chão, deixando ver a fímbria da saia rodada...

- E entretanto... - insistia o capitão-mor.

- entretanto o povo morre de fome, de peste, de doenças.

- A terra encontra-se abandonada. A pouca que é amanhada, mouros o fazem. Tudo quer é ir às índias encher-se de ouro. Tirando alguns que ainda dão a vida pela pátria e outros que se consomem na pregação..

A mor fidalguia vive ociosa e o clero em grande soltura de viver.

Queres ver o que é trabalhar, Damião? Olha em tua volta. Dentro de dias te aperceberás da diferença. Aqui não se vive de ar e vento.

Como se explicará então que, com tanta riqueza que nos vem do trato das especiarias e demais mercancias, haja no reino tanta penúria?

Cunhar moeda.

Eu o vi de facto. A casa da moeda em Lisboa trabalha sem cessar para satisfazer as novas cunhagens de portugueses, de ouro e de prata, índios, cruzados, quartos de cruzados, tostões, meios tostões, reais de cobre...

Cunho novo - disse o capitão Diogo -- faz sempre movimento.

Sobem os preços, surge a míngua e a miséria. E fatal.

Recordo-me... tinha eu quinze anos... em quinhentos e dezassete acabara el-rei Emanuel de mandar cunhar os meios tostões de prata. Era a hora da sesta, a casa estava despejada e o duque Jaime de Bragança, seu sobrinho, veio falar-lhe. Não estava ali mais ninguém senão meu irmão Fruitos que o penteava e eu que segurava o bacio do penteador. «Que te parece desta moeda, duque?», perguntou el-rei. «Muito mal», respondeu-lhe Jaime. «Moedas novas fazem mudança e carestia no preço de todas as coisas. Com esta que mandaste cunhar, por umas luvas que se vendiam por trinta réis pedem já meio tostão...»

- Se fossem só luvas. E o pão?

- que a maior peste e perdição de um reino, dizia ele, era fazer moedas novas. E tomai exemplo nas que fez el-rei Fernando. Com elas destruiu o reino de maneira que nunca mais nele houve os tesouros que dantes os reis costumavam deixar a seus descendentes.

um moço, avental, jubão pelas ancas, chapéu, barba, empurra um carro de mão de uma roda carregado com três canastras de pão... e isto que será? banca de jogador? cartas? aqui o vendedor fala da qualidade da cerveja que serve e, de uma caneca, enche os copos dos fregueses, olha aquele como ele, goela ao alto, esvazia o seu de uma golada... este cambiador, pelo ar deve ser judeu agiota... um homem a cavalo conversa com outro a pé... um cavaleiro calça listrada pelo joelho, tufada, meia até aos borzeguins, espada, capa, descaído sobre a direita o chapéu de aba dobrada para cima a um lado, gola, patilhas, bigode e pêra... homens de golilha branca sobre gibãos pretos, vermelhos, chapéus de feltro escuro, claros... de costas um senhor de braço dado com a mulher, capa dele até meia coxa, véu dela caindo pelos ombros, mantão até quase aos pés...

- E agora o rei manda aos feitores da Flandres que comprem cá cereal Para encher os estômagos e esvaziar as bolsas. A nossa miséria é muitas vezes tão grande como dias antes a riqueza.

- Como se entenderão estas marés de tesouro? As grandes despesas com as naus da índia?

- As raízes do mal cavam mais fundo.

As frequentes frotas custam muito dinheiro, mas a carga de um ou dois navios cobre o preço de uma expedição inteira.

- As causas são outras. El-rei Emanuel, para satisfazer a vontade da tua mulher, a princesa Isabel, filha dos reis de Castela...

- Estava namorado.

- Haviam expulsados os judeus e pediam a el-rei que fizesse o mesmo...

- ... que se arruinasse...

- É isso mesmo: que se arruinasse. Foi esse o resultado da expulsão de mais de duzentos mil judeus. Saíram do reino e levaram consigo, além do muito dinheiro que possuíam, o saber e a experiência dos ofícios.

- Pode suprir-se o metal, mas a tradição das artes mecânicas, o apego ao trabalho, os engenhos sutis e delicados, essas são coisas que não há nada que se coloque em seu lugar...

- Não contente com isso, na Pascoela de quatrocentos e noventa e sete mandou roubar-lhes os filhos...

- A maiorem Dei gloriam - disse Diogo.

- Os judeus, mudados em cristãos-novos, com direitos que até aí não tinham, deram em usureiros e, com a especial manha para o negócio que lhes é própria, exploraram a nossa preguiça e insuficiência...

- Olhai como arrendam os dízimos das igrejas e as novidades dos campos.

- As riquezas chegadas a Lisboa nas naus da índia e do Brasil passam-nas eles aos portos da Europa.

- Muitas destas coisas aconteciam, Damião, mal tu eras nascido.

- De muito longe vem então o mal.

- De muito longe.

- O povo revoltava-se. A matança de cerca de dois mil cristãos-novos em quinhentos e seis...

- Quatro mil, contam outros.

- Não faltaram a el-rei Emanuel bons conselhos, o remédio contra a carestia resultante do abandono dos campos em baldio, contra a usura vinda da nossa largueza e desperdício...

- Compra-se de mais. A mais vária casta de objectos, dos mais vulgares aos mais custosos.

- ... contra a corrupção do clero...

- No pontificado de Alexandre sexto havia na corte de Roma toda a licença e género de vício. Grandes pecados reputavam-se por veniais. Os reis Fernando e Emanuel quiseram acudir às proezas com que o clero imitava os exemplos do pontífice, dos cardeais, dos bispos... O Bórgia agradecia o fervor real, enviando a el-rei a costumada espada e carapuça forrada...

- Que carapuça?

- Eram benzidas na noite de Natal e oferecidas aos imperadores, reis e príncipes que mais se distinguiam contra os infiéis.

- Mas não se emendou.

- Emendou agora! crianças, cães a saltitar atrás delas... um menino, calções, camisa, chapéu como de homem, persegue uma menina, saia clara pelos pés, corpete vermelho, touca... cestos, gigas, cântaros, garrafões bojudos, gaiolas com galinhas e frangos, passarinheiro com pavão... coteife com posponto calças velhas de branqueta... ali aquele veste calções de escarlata... um senhor rico desabotoa a manga do jubão de cetim roxo... mesinhas com ovos, pão, cestas, fruta, queijo... um pipo de azeite assente num tripé, a mulher de colete vermelho e saia preta de roda mede o azeite e curva-se a vertê-lo na vazilha que a freguesa tem na mão... carroça comprida de quatro rodas com barricas grandes puxada por um muar em que monta um moço de mercador de gibanete e avental de couro...

El-rei deu os mesmos conselhos a Leão décimo. O papa pagou-lhe com o pálio de sabidos louvores... e continuou na mesma.

Por seu lado a corte corrompia-se na ociosidade e sede do ouro.

Urgia tomar medidas quanto à carne, à caça, à pesca, à criação de mesteres mecânicos...

Foi o vizo-rei Francisco de Almeida que teve a coragem de dizer a el-rei Emanuel que nunca seria bem servido enquanto capitães e oficiais não deixassem de comprar e vender...

- Vozes proféticas que toparam com orelhas moucas.

- Não contente com os rios de ouro, el-rei agravava os impostos. O reino protestava em vão.

- El-rei levava o mesmo modo que levam todos os governantes: sugarem os sujeitos e vassalos quanto podem.

Chegávamos a casa, na Rua Kipdorp, a Via Kipdorpia do meu roteiro latino.

- Cansado da viagem - disse João Brandão -, deves querer recolher-te um pouco. O mordomo acompanha-te aos teus aposentos.

Subimos a escada até ao segundo andar, seguidos do carregador com o meu baú, eis-me na câmara que havia de ser minha por longo tempo. Acomodava-me em meus aposentos, batem-me à porta. Fui abrir. Era uma jovem servente risonha e bem cheirosa com uma braçada de toalhas.

Ficou especada à entrada do quarto a olhar para mim.

- Bom dia - saudei.

- Bom dia, meu senhor... trazer toalhas...

Dei-lhe passagem. Colocou-as junto ao lavatório e dispunha-se a sair:

- Se o senhor precisar de mais alguma coisa, é só dizer.

- Como te chamas?

- Madga, senhor.

- És de cá?

- De Bruges, senhor.

- Mas falas português.

- Tenho aprendido com os senhores da casa.

- és muito nova.

Dezanove anos, senhor. Também o senhor é muito novo.

- Admirada? Notei Que chegava o novo secretário... mandaram-me preparar a câmara.

trata-se aí de pessoa de meia-idade... - Sorriu, depois ficou enleada: -

com licença, meu senhor - e saiu.

-Até logo, Magda.

Até logo, senhor.

 

A ceia, numa rica sala com mesa e aparador de pau-brasil, cheio de porcelanas e faianças portuguesas e salvas e gomis de ouro e prata, baixela sobre toalha de linho, foi servida, sob as ordens de uma governanta, por duas criadas de aventais brancos, rendados, que se curvavam numa vénia quando entrámos. Nos castiçais de prata ardiam velas de cera a iluminar a quadra. Ao passar, sorri a Magda que levantava os olhos para mim. O cônsul João Brandão tomou lugar à cabeceira e deu a direita ao tesoureiro Rui Fernandes e indicou-me a esquerda. Seguiam-se de um e outro lado o capitão-mor e os outros capitães da frota. Canja de galinha era a sopa. Fatias de lombo de porco assado, cebolinhas alouradas, legumes cozidos, vinho tinto de Colares.

O cônsul inteirou-me sobre os hábitos e horários da casa:

- Levantar cedo, trabalhar até meio da tarde - dizia. - Calendário para ser cumprido à risca por todos nós. Depois, a partir daí, haverá tempo para visitares a vila e as muitas maravilhas que há para ver.

- Amanhã - disse Rui Fernandes - é dia particularmente atarefado. Há que ir ao porto proceder à descarga dos navios, anotar a mercadoria, providenciar o seu transporte para os armazéns, cuidar do embarque do trigo e demais fazenda para Portugal. Baptismo de fogo para Damião.

- Não. Amanhã o nosso alfaiate far-lhe-á novo vestuário - e virou-se para mim: - Deixarás esse, demasiado régio, para ocasiões de grande cerimónia. Convém agora vestires-te como um feitor português em Antuérpia.

- De boa vontade deixarei estas sedas e telas de serão do paço. Herdei-as de meu senhor el-rei Emanuel. Mas, enquanto o alfaiate me talha a nova roupa, eu poderei ir ao porto. Trago em meu baú vestes mais discretas: gibão de montear, calças de cavalgar, e outras mais que são honestas roupas de trabalho.

Todos riram.

- Gosto de te ouvir falar assim, Damião - disse o cônsul. - Faça-se como dizes.

Que bem cheira esta formosa Madga a servir-me uma fatia de carne, braços roliços, seios perto de mim, a boca rosada quase junto à minha, dentes muito certos e brancos:

- Molho, senhor?

- Se fazes favor. Meus pecados!...

Agora, à distância de tantos anos, como eu gostaria de modificar tanta coisa que se passou! Creio que isso acontece com todo aquele que é capaz de olhar para trás. Não, não era só apagar erros cometidos, evitar contrariedades. Eu nunca deveria ter consentido em regressar a Portugal. Estava em boa posição de me negar à ordem de el-rei João, que me mandava partir para o reino. Talvez eu o único português que o podia fazer. E eu queria ficar na Flandres, onde criara raízes... mulher, filhos. Porque obedeci?.- Mas não adiantemos o relato dos factos.

Cerca de cinco anos levei naquela vida trabalhosa da feitoria. Levantava-me com o dia. Se havia cargas e descargas no porto, lá estava eu a anotar as mercadorias que chegavam, as que partiam, no afã incansável de carregadores, guinchos dos guindastes, movimento de carroças a caminho dos armazéns ou em direcção a eles. É claro que apenas um trabalho de visor, pois tinha os meus subordinados. Toda a feitoria se enformava numa escala de precedências desde o cônsul até aos oficiais, ao moço servente. Era no entanto a nação portuguesa de Antuérpia uma comunidade unida pelos laços de sangue, da língua, dos costumes e religião da mesma pátria, que tanto mais se sentem quanto mais longe dela ou quando ela corre perigo. Alguns dos nossos empregados, contudo, eram de nação belga ou haviam vindo com a mudança de Bruges para Antuérpia e achavam-se a nós ligados pela nossa afabilidade e pela segurança de vida que lhes oferecíamos. O que todavia em toda a cidade acentuava o insólito eram os servos negros, que trouxéramos de África, que baptizáramos e instruíramos. Nunca aquela gente de Antuérpia, de pele cor de leite e cabelos escorridos e loiros, vira ser humano de pele negra e carapinha crespa. Não sendo um povo de curiosos da vida alheia - cada qual vivia a sua vida e deixava a do vizinho em paz -, os Antuerpienses paravam na rua a ver a novidade quando alguma negra passava, ancas dengosas, de trouxa à cabeça ou os moços possantes exibiam os músculos de ébano na descarga das naus. Com o tempo a curiosidade morria, como aconteceu com o primeiro rinocerota a pisar o chão daquelas ruas, que Diirer se apressou a desenhar, ou os primeiros elefantes ali desembarcados, que Jan Mollijns fixara numa gravura em madeira colorida.

Por mil e quinhentos e vinte e seis o cônsul João Brandão morreu e, com a subida de Rui Fernandes a feitor, eu tomei o posto de tesoureiro. Horas e horas sentado à banca com papéis de áridas contas, nauseado com câmbios, com taxas de juros, com o cálculo do lucro... duzentos e cinquenta mil e quinhentos molhos de canela... e o transporte das mercadorias, senhor? dois e meio por cento ou três de comissão... pagar parte em mercadoria e o restante em dinheiro? as especiarias só se compram a dinheiro... e as casas Fugger, Welser e Hochstetter?... temos com elas trato especial... quarenta mil ducados para escravos... sessenta mil ducados de peças de pano, bordados, brocados de ouro e seda, peças de algodão... noventa e cinco mil de açúcar... a meio da tarde o cessar do trabalho aliviava-me e eu podia então sair a passear. Descia a Rua Kipdorp, passava a Igreja de Santiago, visitava a catedral, o largo do mercado, seguia pela Lange Nieuwstraat, Via Nova quam vacant Longam, entrava nas corporações dos Mesteirais, nas casas de instrumentos de música, nos livreiros, nas oficinas e tipógrafos, nas fábricas das tapeçarias, nas ourivesarias. Cidade próspera Antuérpia e activa, os negócios a atraírem de toda a parte pessoas influentes desde a Itália até à Rússia, à Polónia, à Suécia, não se encontravam aí apenas os grandes homens dos tratos comerciais, mas, com a Universidade al1 perto, em Lovaina, toda a casta de homens doutos. A muitos podia eu encontrar, e Deus sabe como vinha da minha terra não apenas aparelhado Para tratar dos negócios do rei, mas ainda com a bagagem do meu saber e prática da música, o meu gosto pelas coisas das artes. Com pendor para comunicar com as pessoas, depressa fazia novos conhecimentos e amigos, para além dos que o mester me proporcionava. Uma lacuna, no entanto, de dia para dia se ia avolumando em minha consciência: eu não sabia a língua local e o latim que aprendera na corte não me chegava senão escassamente para conversação das coisas correntes e, ao ouvir falar dos grandes homens que havia pouco tempo por ali tinham passado, entrou em mim o desejo de estudar.

- Vês este quadro? - perguntava-me Rui Fernandes.

- É o teu vulto - respondi. - Quem o pintou?

- Aqui mesmo nesta sala. Eu sentava-me ali à luz da janela, como ele me instruía, e ele colocava o cavalete com a tela além e punha-se a pintar enquanto falava comigo. Albrecht Dúrer. Em mil quinhentos e vinte e um. Dele o retrato da serva negra, na sala de entrada.

- Catarina, a serva de João Brandão, ainda ao nosso serviço?

- E esse São Jerónimo que aí vês. Ofereceu-mo em paga da ajuda pecuniária com que lhe paguei o trabalho de me pintar. De que hão-de viver os artistas se os não compensarmos sem regateio? Crê em mim, Damião. A arte não tem preço de especiaria.

Caía eu das nuvens - o grande Dúrer ali!

Chegara de Nuremberga, ia contando Rui Fernandes, a três de Agosto de mil e quinhentos e vinte, bem lhe lembrava, com a mulher Agnes Frey e a criada Susana... E olhava-me nos olhos a adivinhar-me o sentimento:

- Ainda tu não tinhas vindo.

- Ainda meu... ainda el-rei Emanuel era vivo.

Desejava obter de Carlos quinto a confirmação da pensão de cem florins que Maximiliano primeiro lhe concedera em Setembro de quinhentos e quinze. Imaginasse eu as honrarias com que o acolheram!

- Calculo.

Boas cartas de recomendação para os grandes senhores do Brabante e da Flandres, nem o deixaram descansar de viagem tão longa e trabalhosa. Logo Bernhard Stecher, feitor dos Fugger, o vinha solicitar à hospedaria de Jobs Plankfelt para a ceia. Quid multa? Não teve remédio senão aceitar. Depois, pela festa da prisão de São Pedro, foi a via-sacra das visitas oficiais. Ao palácio, na Prinse-Straat, de Arnold van Liere, burgomestre da cidade. O banquete na guilda dos pintores, em que Adrian Herbouts, síndico de Antuérpia, em nome de todo o senado municipal, lhe veio oferecer, com discurso florido de cortesia, quatro canadas de vinho. Agradecia o pintor, irrompia sala adentro Meister Peter, carpinteiro da urbe, a brindá-lo com mais duas canadas e a oferecer-lhe os préstimos. No fim todos os convivas alumiaram com brandões o pintor e a esposa até à hospedaria. Nos dias que se seguiram, encetara Dúrer a procissão das visitas particulares...

- O nosso feitor e eu fomos dos primeiros a cumprimentá-lo. Ceou connosco por duas vezes e muitas mais visitou a nossa casa... - e Rui Fernandes, o olhar alongado ao passado, evocava: - Estou a vê-lo entrar nesta casa. Alto, a face comprida moldada pelos cabelos ondulados que lhe caíam pelos ombros, pela gola de peles, os olhos claros, nariz longo, lábios recortados sob o bigode fino que se ia unir à barba pouco espessa, o esguio AOS dedos nas mãos de artista, muito brancas... Muito desejava eu tê-lo conhecido.

- Podes conhecê-lo se fores a Nuremberga ou se acontecer que ele venha de novo até nós.

Como eu gostava que ele me desenhasse ou pintasse o vulto!

Não será coisa impossível. A cada passo saem daqui mercadorias nossas em autênticas caravanas de carroças e muares, protegidas dos ladrões por gente armada, a cavalo. Seguem pelos vales do Reno, caminho da Baviera. Poderias aproveitar.

- Não desperdiçarei a próxima ocasião.

- Entretanto há outros mestres que podes conhecer desde já. Sabes quem vive na cidade?

Como os meus olhos o interrogassem, respondeu:

- Outro grande pintor. Quentin Metsys. Um destes dias levo-te à presença dele. Assombrado?

- Se estou!

- Também entre nós, pouco tempo antes de tu chegares, foi até nosso hóspede, o ilustre Tomás Morus. E o excelso Erasmo de Roterdão? Ajudou a criar em Lovaina o Colégio Trilingue onde foi professor. Muitas vezes o vi.

Eu já trazia de Portugal o nome de Erasmo no ouvido - quantas vezes o ouvira a Gil Vicente, a João de Barros... - e agora ali estava a respirar o ar que ele respirara e tantos outros homens excelentes. Mal podia então imaginar que me encontrava no limiar da minha estranha peregrinação.

 

               Utopia

A primeira oportunidade de viajar até Nuremberga a visitar Dúrer perdi-a. Começava o ano de mil e quinhentos e vinte e oito, quis o destino favorecer-me com o conhecimento desse grande espírito que foi Tomás Morus. O destino ou a Providência divina, já nem sei. Como aliar, nestes dias em que tudo está posto em causa, coisas na aparência tão díspares como fortuna, astrologia, livre arbítrio, graça? Como congraçar a vontade do homem, necessária condição do mérito moral, e os desígnios de Deus que arrastam consigo a ideia da incerteza de recompensa?...

No ano anterior, havia o feitor Rui Fernandes demandado junto da corte inglesa a restituição da carga da nau de António Pacheco naufragada nas costas daquele reino. Baldada esta demanda, recebi ordem de el-rei para me deslocar a Inglaterra a fim de tratar desse negócio e da segurança da navegação no canal da Mancha. Deveria abordar também, com prudência, outras matérias delicadas relativas ao trato entre as duas nações. Casado havia dezoito anos com Catarina de Aragão, tia de Carlos quinto, Henrique oitavo desde Maio de quinhentos e vinte e sete determinara divorciar-se dela para casar com a bela e jovem Ana Bolena. A Europa católica escandalizava-se, apoiando o papa, que não consentia em sancionar tal desejo do rei inglês. El-rei João terceiro, catolicíssimo, não concordava com o passo que o primo queria dar, mas como rei não queria fazer perigar a aliança com a Inglaterra. Deveriam as minhas palavras ser sages o bastante para que Henrique sossegasse o espírito quanto à postura de Portugal.

Um dia de Janeiro, de muita chuva e vento desabrido e gelado, cavalguei de jornada até à possessão inglesa de Calais, onde me embarquei rumo a Londres. Não o fiz directamente de Antuérpia por ser mais segura a travessia e menos distante. Tormentosa viagem nas cambalhotas da alma, que eu, nesse transe de agonia, julguei situada nas tripas... vacila-me o ser, o querer, o pensar... não sou mais que vísceras alteradas, dolentes, revoltas..- vai alta a maré no mundo na vida abalados... onde estão as crenças? Deus, onde estás? o anel do meu dedo dado por minha mãe? a janela do meu quarto? as minhas mãos? aí vai a vida toda a sair-me em vascas pela boca fora, com o meu pensamento a consciência de mim... senhor senhor chegámos... paragem, sossego, silêncio... as pálpebras que se abrem... uma nesga de luz que volta... que cheiro é este?... um trapo de água na testa... a consciência de mim... onde estou?...

Então? Temos homem, Damião?

Já está a voltar ao normal.

estou a voltar ao normal... já começo a ser eu outra vez... então que era eu há pouco há séculos se não era eu?... bastará a náusea para nos apagar a memória de quem somos?... o outro lado de mim algures respondia: mas tu nunca perdeste o tento de que estavas enjoado, senão, como recordarias o que se passou?... Hoje penso que foi essa náusea que me inquietou o espírito para sempre. Ao me recompor em Cantuária, antes de me meter a caminho de Londres, considerei que afinal um nada podia desencadear outras visões do mundo e era essa a razão por que os dogmas vacilavam em seus fundamentos. Escrevo aqui estas bagatelas por naquele tempo não poder imaginar estarem as considerações provocadas pelo anojo de mar ligadas ao que depois se seguiria.

Em Londres procurei John Wallop, fidalgo inglês que conheci no ano de dezassete em Lisboa, onde nos tornáramos amigos. Viera a Portugal oferecer-se para servir em África, estivera dois anos na cidade de Tânger, em que despendeu muito do seu. Em recompensa, fê-lo el-rei Emanuel cavaleiro da Ordem de Cristo e concedeu-lhe outras mercês com que se tornou contente para sua terra. Em tanto caso o tinha o seu rei Henrique oitavo que lhe deu a capitania da Calais, uma das coisas de maior confiança da sua qualidade. Esperava eu agora, ali em Londres, que a amizade dele me aproveitasse para os negócios de el-rei João terceiro, como de feito aproveitou. Recebeu-me com alegria e levou-me à corte, onde apresentei ao rei as cartas de credencia que comigo tinha. Henrique oitavo estava acompanhado pelo chanceler-mor, o cardeal Wolsey, e pelo jurisconsulto Tomás Morus. Foi com grande espanto e respeito que ouvi o nome deste homem ilustre e lhe olhei a cara cheia e bondosa, o olhar vivo. O cardeal, ao contrário, alto e esguio, magro na batina de púrpura, anel a faiscar chama. O rei, esse, era imponente, alto e largo, de bom parecer, barba e cabelos loiros, sorriso afável. Entregando as credencias que eu lhe apresentara nas mãos do chanceler-mor, olhou-me com curiosidade:

- El-rei de Portingal não me envia uma qualquer pessoa. Bem-vindo, Damião.

Embora este acatamento me incomodasse por me dar a entender que o rei sabia de mim mais do que o conveniente, augurou-me no entanto o fim da minha embaixada. Com simplicidade expus ao que ia:

-- El-rei João, teu primo, deseja-te muito saudar e rogar-te que levemos a bom cabo o assunto suscitado pelo naufrágio nas costas de Inglaterra da nau de António Pacheco.

O chanceler expôs os pormenores do caso ao ouvido do rei, que o escutou com atenção e disse:

Estou inteirado - e voltando-se para mim: - E que mais envia dizer o rei de Portingal.

El-rei meu senhor recorda-te que Portugal e Inglaterra são velhos
aliados desde o tempo do rei Fernando, aliança sempre confirmada pelos reis de ambas as nações. Estranha que os teus navios ponham grandes dificuldades à passagem no canal das naus portuguesas.

- Dizem-me que Portingal tem tenção de atacar a Inglaterra.

- Rumores falsos, senhor. Nunca passou pela ideia de el-rei meu senhor tal insensatez. Bastará lembrar-te como as suas atenções são todas viradas para a África, a índia e o Brasil. Cometeria tal sem-razão? Nestas paragens apenas faz comércio, que também contigo quer estreitar e privilegiar. Quanto ao mais, ainda que seja assunto sobremodo mimoso, como o divórcio que desejas e o papa teima em não te conceder, meu senhor acautela-te a mais estrita neutralidade. Não verás da parte de el-rei João qualquer entremetimento em teus assuntos de foro íntimo.

El-rei Henrique oitavo sorriu e levantou-se como a dar por terminada a audiência:

- Muito me apraz, Damião, resolver a contento do rei João os casos pendentes que aqui te trouxeram. More acompanhar-te-á e far-te-á cortesia. Ficarei a falar com o meu chanceler.

Foi enquanto eu seguia por longo corredor conversando ao lado do jurisconsulto que me surgiu toda a longura que separava o meu latim do desse humanista excelente. Confessava-lhe eu a minha admiração por estar na presença de tão egrégia personagem, autor desse livro raro que é o De óptimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, interrompeu-me Morus:

- E como achaste essa fantasia?

- Ainda não a li - confessei e, como lhe sentisse no olhar espanto por me ver a falar de si sem o ter lido, acrescentei: - Pobre do meu latim!

- Há que estudá-lo manii diurna ac nocturna.

- Quando regressar a Antuérpia, tenciono procurar mestre que me ensine. à tua nomeada espalha-se pela Europa e os meus amigos a cada passo me falam de ti. Mas prometo-te que em breve estarei em condições de te ler.

Levou-me à sua livraria, tomou da estante um livrinho e entregando-mo:

- Quando partes? - perguntou.

- Amanhã retomarei a jornada.

 

- A Utopia. Foi o meu amigo Erasmo de Roterdão quem mo publicou em Lovaina. Levarás esta recordação minha...

- Vou lê-lo com veneração.

- ... para quando puderes pensar em latim.

Um toque mágico! Ele não dissera «... quando fores bom latinista...», mas «... quando puderes pensar em latim...». A língua nada mais era que veículo do pensamento. Aí se revelava o humanista autêntico...

Acreditava eu, ao despedirmo-nos, que ali havia começado uma admirável amizade, mas assim Deus não quis. Nunca mais o vi e depois foi a tragédia que adiante se viu, mas a partir daí a minha vida nunca mais foi a mesma.

Pessoa de decisões e de forte vontade, regressado a Antuérpia, não me

esquecia do meu projecto de viajar até Nuremberga, a casa de Diirer, mas aqueles eram meses de neves, chuvas e muito frio, não propícios às viagens, que por via de regra só se encetavam com o aproximar do Verão. Como lhe disse, porém, o desejo de aperfeiçoamento na língua latina, decidi procurar mestre competente. Um dia, na tipografia de João Schrijver, vim com ele à colação:

- Amigo Schrijver, em teu ofício deves conhecer muitos mestres de latinidade.

- Conheço, sim. Fazem-me a honra de serem meus amigos os melhores humanistas da Europa. Porque perguntas?

- Latim canhestro o meu, deves ter reparado...

- Não me permitiria julgar-te.

- Mas ao meu latim podes julgar. Falta que me é prejudicial nas relações comerciais e me dificulta o trato com a corte de Bruxelas e com os homens doutos.

- E resolveste portanto...

-... aperfeiçoar-me no latim, estudá-lo a fundo.

- Tens razão. O latim é hoje indispensável aos que ocupam altos cargos como o teu...

- ... e aos que pretendem manter ligações de ordem cultural.

- Assim é.

- Lembrei-me de que tu talvez...

- Eu? ou mestre que me possas indicar...

- E curioso - disse João Schrijver tirando os óculos.

- Pagarei bem, como é justo.

- Vieste bater à porta certa, amigo Damião. Tenho aqui à mão a pessoa calhada. Bom latinista, douto, poeta...

- Aqui à mão?

- ... além de músico notável...

- Músico?

- Ouves esta melodia aí na sala ao lado? Vem. Farás com ele conhecimento e depois os dois se entenderão.

Logo da porta os meus ouvidos guiaram os meus olhos: da harpa que os dedos pareciam apenas afagar alastravam os sons melodiosos, só depois atentei na barba grisalha dos quarenta e poucos anos, no rosto inefável, as pálpebras cerradas, os olhos a verem dentro a alma da música. Ficáramos em silêncio eu e João especados à entrada como em êxtase. Só quando terminou é que o executante deu conta de nós.

- Irmão - disse João -, trago-te aqui Damião de Gois, secretário da nação portuguesa de Antuérpia.

Ergueu-se Cornélio com um sorriso e os braços abertos:

- Ouvira já falar de ti, Damião... - e afastava-me a medir-me o ser ... que és bom músico...

- Bom músico és tu que ainda agora te ouvi da porta a tanger a harpa como os anjos.

 

Levou-me junto de um clavicórdio que aí estava:

- Toca alguma coisa para nós ouvirmos.

- Mas eu vim... - ia a protestar.

- Já dirás ao que vieste. Toca um pouco para nós.

Sentei-me no banco e comecei um motete, acompanhando-o de canto. Era nesse tempo a minha voz uma voz timbrada de tenor com uma espécie de veludo que amaciava as asperezas.

columba mea, in fomminibus petme

in caverna, maceriae ostende mihi fanem tuam sonet vox tua in auribus méis ..........

vox enim tua dulcis est

et fácies tua decora...

 

minha pomba, pelas frinchas da pedra

pelas fendas do muro

mostra-me a tua face :

soe a tua voz nos meus ouvidos ,

a tua voz é doce

a tua face graciosa...

 

Interropi-me:

- Desculpai. Isto é para ser cantado a cinco vozes.

- Do Eclesiástico, sem dúvida.

- É certo.

- Podíamos ensaiá-lo aqui, eu, tu e outros amigos que comigo costumam cantar.

- Terei muito gosto.

- Damião - interrompeu João Schrijver - veio por outro motivo, Cornélio. Ele to explicará. Deixo-vos sós. Vou ao meu trabalho.

Sentámo-nos a uma mesa e Cornélio Schrijver escutou o que eu lhe expus. Quando acabei, ele disse:

- Deus conhece, Deus é testemunha de como eu gostaria de te ajudar sem qualquer satisfação pecuniária. Mas neste momento não me encontro em conjuntura de poder desperdiçar a oportunidade que me ofereces. Condenado por luteranismo sete anos atrás...

- Tu?

- Longa história, longa história. Vais desprezar-me.

- Porque te haveria de desprezar?

- Representas um rei muito católico. Como hás-de ter comércio com um homem que presenteou Diirer, quando ele deixava Antuérpia, com essa diatribe cruel redigida por Lutero contra a Igreja Católica, O Cativeiro da Babilónia? Dura crítica, indulgências, culto das imagens, luxúria do clero, e por aí fora, tu sabes... Lutero aprovou...

- Es amigo de Diirer?

- Como? Estou a dar-te motivos para não mais me quereres ver nem falar e tu perguntas se sou amigo de Diirer? Angélica criatura!

-És?

- Sou.

- Logo que tenha ensejo, tenciono ir a Nuremberga visitá-lo e encomendar-lhe que me pinte o vulto.

- Posso-to apresentar.

- Queres vir comigo?

Gostaria muito mas não tenho dinheiro para tal despesa. Acabei de

chegar de Bruxelas onde estive preso um ano. Abjurei das ideias que sustentava. Com isso perdi o cargo de secretário do Conselho Privado de Antuérpia. Não tenho outros proventos a não ser os de ajudante de meu irmão na tipografia.

- Não te dê isso cuidado. Aceitas então ser meu mestre de latinidade e vires comigo a Nuremberga ao encontro de Dúrer?

Abriu-me os braços com as lágrimas nos olhos:

- Aceito, sim. Grande honra, grande honra... tanto mais que te precede a fama de músico excelente.

Gratidão a princípio, breve a amizade petiscou e firmou-se, do passo que a minha aplicação ao estudo frutificava e eu lhe dava a conhecer alguns motetos de minha composição. Insistiu comigo para que lhe chamasse, como todos os seus amigos humanistas, Grapheus - ele gostava de assinar pleonasticamente Cornelius Scribonius Grapheus. Todos os dias, depois do trabalho, ia eu a sua casa onde tinha as minhas lições de latim. Levava-lhe sempre alguma iguaria das muitas que à feitoria vinham nas naus portuguesas. Ele ficava desvanecido com o gosto das bananas, dos ananases, com o vinho da Madeira... Fazíamos serões musicais depois das lições, tocávamos e cantávamos a várias vozes com outros amigos que se nos juntavam. Eu e Grapheus tocávamos mais do que um instrumento: a harpa, o alaúde, o clavicórdio...

À noite, de volta a casa, quando já todos se haviam recolhido, Magda esperava-me. Andávamos enamorados e amávamo-nos a furto. Doces beijos e abraços que nunca mais se me foram da memória...

Desandava o tempo, em fins de Abril chegou a notícia de que Dúrer...

- Como foi? - perguntava eu a Rui Fernandes.

- Pestilência, segundo dizem. A seis deste mês.

Corri a casa de Grapheus. Olhou-me com os olhos magoados.

- Estás desolado, vejo.

- Se não fosses tu, encontrava-me agora mais órfão, que quase já me não restaria senão o amigo Erasmo.

Era a primeira vez que o ouvia falar de Erasmo de Roterdão, mas deixe para outra ocasião fazer-lhe perguntas sobre tão celebrado humanista. Terás de ter ânimo cristão, meu amigo. Desolada está toda a cidade. Não se esquece de o ter tido como hóspede de honra. Tentei desviar-lhe o pensamento:

- O meu projecto de ir a Nuremberga fica sem efeito. Rui Fernandes pede-me que fale com Quentin Metsys. - E boa ideia. Ou Mabuse.

Por vezes sentia-o angustiado. Estávamos uma tarde a estudar aquele passe de Terêncio homo sum, nihil a me humani alienum puto, quando ele se suspendeu e, sem qualquer ligação aparente, disse como ensimesmado:

- Procura o pensamento ser sincero consigo mesmo, vem o poder omnisciente e prende um homem de bem. Abjura-se do que chamam erro Para salvar a pele.

- Não entendo. Que dizes?

- Sou um cobarde. Neste momento toda a fé remexe em cachão. No meu íntimo continuo a pensar que a Igreja precisa de reforma, mas acho que Lutero deixa de ter razão quando se torna violento e tão cioso da sua verdade como aqueles contra quem combate. Mas não o posso gritar. Sou um homem livre ou não?

- És um homem livre.

- Não sou, não. Prenderam-me quando pretendi sê-lo. Nem tu és. Súbdito do senhor de um reino que se confessa católico, tens cerceada a tua fé, o teu sentir, o teu pensamento, os teus costumes, a maneira de vestir e de andar, de comer...

- Exageras.

- Julgas que não vejo? Também tu, também tu trazes dentro de ti alguma inquietação. É a inquietação que faz grandes os homens.

- Escuta...

- Porque é que se discute tanto o livre arbítrio, não me dizes?

- Já pensei nisso. Será onda que passa.

- É maré que não cansa... pelos tempos fora. Sabes uma coisa? Fui preso pela Inquisição acabada de ser instituída aqui na Flandres. Por luterano. Abjurei para salvar a pele. Sei que fui longe de mais, dentro de mim rugia a forja de Vulcano. Devia ter seguido com cuidado os passos do meu amigo Erasmo. Mas recuso-me a que a minha vida, ouves?, o meu destino sejam guiados por um arúspice, por uma pitonisa, por um bruxo. Quereria ser eu a traçá-lo.

- Mas tu és profundamente religioso.

- E que tem isso a ver com a consciência de cada um? Quero ter livre a minha fé e não imposta. Só a ti digo isto, no esconderijo destas quatro paredes. Lá fora não o posso dizer senão com perigo da vida.

- Referiste o nome de Erasmo como teu amigo... - do coração...

- Que tem a ver a tua inquietação com a admiração que em ti sinto por ele?

- E palavras para o exprimir? Erasmo é... Tu estás em especial conjunção para o entenderes melhor que ninguém. És português. Vós, os Portugueses e Castelhanos, destes a conhecer ao mundo as verdadeiras dimensões da Terra, outros povos, outros céus, outros climas, outros credos e costumes. Alia isto à redescoberta do mundo antigo de gregos e romanos...

-... e a todas as novidades que pintores, escultores, músicos desde a Itália, à Alemanha, à Flandres...

- Isso, isso. Todos os edifícios da escolástica tremeram, as verdades, os cânones, as infalibilidades vacilaram. Que hora extraordinária esta em que vivemos! Era de choques, de paixões, que por instantes são só de palavras mas não tardarão a chegar à violência, ao ódio, à chacina...

Falaste da tua prisão. É só o começo. E os outros também hão-de fazer o mesmo.

Também o creio. Mas deixa-me retomar o fio da meada. Tu vieste até mim para adquirir com o latim aquela linguagem que te fizesse entender e ser entendido universalmente. Mas o humanismo é muito mais que

Eu sei. Aprendi-o com Tomás Morus. A língua é o invólucro do pensamento.

- E pensar é...

-... a serena disposição do meu espírito para a justiça, a tolerância...

- Então compreenderás o que possa dizer de Erasmo: um modo peculiar de olhar a natureza e o homem... - Grapheus suspendeu-se, pousou o livro em cima da mesa e o seu olhar parecia atravessar-me a alma:

- Sabias que ele era filho natural?

Antes de responder, o meu pensamento deu uma cambalhota dentro de mim. Depois, vinda por dentro, a minha voz ressoou-me nos ouvidos:

- Não. E que tem isso de importante?

- Órfão de mãe, fica ao cuidado de tutores, após a morte do pai. É o primeiro e violento quebrar das amarras do coração. Consumiram-lhe a pouca fazenda e meteram-no a religioso, coisa para que não sentia chamamento. Em breve abandonou o hábito. Preceptor de meninos nobres, as relações com a fidalguia levam-no a Paris, à Inglaterra, publica os Adagia, torna-se conhecido... Roterdão a sua pátria, mas ele é caminheiro, livre, cidadão do mundo. Não é isso que quer dizer cosmopolita* Aí tens. Numa Terra totalmente descoberta no tempo e no espaço, Erasmo é o homo universalis. Não é por acaso que publica a Utopia de Morus, que escreve a Laus Dementiae... Compreendes agora?... Idealização de um mundo melhor, dignificação moral e intelectual do homem, uma Igreja tornada humana, liberdade de consciência, a força reformadora da cultura, condenação da superstição, da fé teatral, da cegueira, das guerras, pela concórdia dos homens na justiça. Isto é Erasmo, o homem que a nossa idade está longe de merecer...

- Dizes que, por ser português, estou em boa conjunção para entender tudo isso? Como te enganas. A Portugal, lá tão distante no cabo da Europa e de costas para ela, virado ao mar, à África, à índia, ao Brasil, mal chegam ou são abafados os ecos do que se passa na Alemanha, aqui. Lá está-se mais preocupado com o messianismo, com a pregação, com a conversão dos povos ao grémio de Deus, com fazer dos judeus cristãos-novos...

-... nem que seja à força...

- Ouve-se falar de Lutero, de Erasmo, e mistura-se e confunde-se tudo. Por mim, agora, aqui, no teatro dos acontecimentos, sinto o estrondo a abalar as consciências...

- Sim. Cumpre não confundir Erasmo com Lutero. Sabes o que diziam por aí? Erasmo pôs o ovo e Lutero chocou-o.

- E capaz de ser verdade.

- Em parte talvez. Mas queres conhecer o comentário do próprio Erasmo? Disse: «Sim. Mas o ovo era de galinha e afinal saiu um galo de luta.»

- Marcava as distâncias.

- «O doutor Lutero», disse ele um dia ao eleitor do Saxe, Frederico, protector do frade protestante, «é muito acerbo nos ataques ao papa e às barrigas monásticas. Tem razão quando reclama a reforma de tantos abusos, mas peca pela violência. A defesa do Evangelho demanda moderação e mansuetude.»

- Homem excelente!

- Erasmo é a serenidade numa época de terramotos e vulcões. Humanista, não teólogo, até quando estuda e publica o Novo Testamento em grego. Os Evangelhos são para ele fonte do cristianismo. É crítico severo de erros e abusos do clero, mas não põe em causa a unidade da Igreja. Nunca deixou de ser católico, mesmo quando e precisamente quando zurze nos desmandos do clero. Critica o barro humano, não o que é divino. Critica os homens, doa a quem doer... Lutero é o contrário: humano, ninguém o nega, não humanista, franco, rude, violento, contemplativo, esquadrinhador da Bíblia, destruidor, desde os fundamentos, do existente...

- Segundo estou depreendendo, ele trava luta contra os seus irmãos cristãos. Estranho o que se passa. Nós, naquele cabo da Europa, enfrentamos o cerco e o perigo do Islão e damos-lhe combate desde o Norte de África até às índias. Aqui, no centro da Europa, com a ameaça do Turco aí às portas, fazem-se com ele tratados e conluios para se levar avante ambição de poder e há guerra de morte para repartir Cristo.

- Não é pergunta que não tenha feito a mim mesmo. Não poucas vezes. Desde que me deste a conhecer a gesta dos Portugueses e depois que revi a minha simpatia por Lutero. Porque nunca atacou ele os infiéis mouros e turcos? Mas devo confessar-te que acredito na sinceridade dele e gosto dele quando penso que é meu irmão... e teu, repara...

- Meu?

- ... no amor que tem à música e ao canto.

- Só nisso? E as indulgências?

- Pois é. Já nem sei que digo. Pregava João Tetzel as indulgências. O papa desejava obter dinheiro para as despesas da guerra contra os Turcos. Era a versão oficial. À boca pequena falava-se que era para o recheio do Palácio do Vaticano e para a Basílica de São Pedro. Sai Lutero a afixar, em quinhentos e dezassete, as noventa e cinco teses na porta da igreja do castelo de Vitemberga...

- Falam que é coisa portentosa essa do Vaticano.

- Uma luxúria escandalosa. Daí o renascer da polémica secular contra o culto das imagens... Tudo vacila...

- O edifício da Igreja abre brechas...

- ... mas as brechas mais angustiantes são as que se rasgam dentro de nós. Procuro a clarividência, contudo, por vezes, desconfio de que andamos apenas a invectivar o superficial: os desmandos do clero, as formas dos ritos, o culto das imagens, a confissão... A essência é muito outra. E se estamos, com tantos dogmas humanos, a encurralar a divindade e as nossas consciências. Não achas?

Ouve, amigo. Começo a dar-me conta do que se passa à minha volta Repousava-me tranquilo em minha crença herdada de meus pais, julgava-a intocável, perfeita, eterna... e agora... Tudo vacila, dizes bem, tudo balança, em redor de nós, em redor de mim...

Tudo balança em redor de mim, os sentimentos, as ideias, todo o ser. No fim do dia, pelas horas dentro tento resguardar-me nos braços de Magda, que não exige de mim nem empenho eterno, nem recompensa e segurança material, nem sacrifício do meu tempo. Não reclama exclusividade, propriedade ciumenta. Apenas amizade, amor nos beijos fugazes das nossas noites.

- És pura dádiva, Magda. E eu um egoísta. A consciência está a acusar-me.

- Duas vontades, o amor - responde -: a tua e a minha. Cumulo-a de beijos e de prendas.

De madrugada, quando me julga a dormir, esgueira-se para os seus aposentos. Mas eu estou acordado. Assaltam-me vertigens, pesadelos. Vejo-me guiado pela bondosa figura de Tomás Morus, como Dante por Virgílio. Tomamos embarcação para a ilha da Utopia ao encontro de Rafael Hitlodeu, lusitanus, vir eximius. Segue-nos a sombra de Erasmo de mãos dadas com a Loucura. Mas o porto é um lugar confuso que me lembra... difícil agora reentrar no sonho vivido há tantos anos, de que apenas resta a reminiscência daquele vibrar de alma e corpo ainda jovens e não feridos de desilusões. Sinto, neste meu fim de vida, que, sem o cuidar sequer, não mais poderia então voltar ao que era de antes. Não serenara ainda o sentimento gerado pela leitura da Utopia de Morus, logo a da Laus Insaniae, o Louvor da Loucura, de Erasmo, me redobrou a agitação. Mas, como envolto em névoa, aparece-me nos olhos da memória a imagem de don Beltrán, o truão da corte de el-rei Emanuel. Estou a vê-lo, estou a vê-lo. É meu guia Tomás Morus, a Loucura leva pela mão a Erasmo e, lá à frente, vergado sob a deformação da corcova, bamboleando os braços, o meu especial amigo, o chocarreiro da corte. Meu amigo, pois então. Desde aquela noite, havia serão no paço, tenho bem presente, cerca de quinhentos e treze e por ai fora até quase à minha partida para a Flandres. Como ríamos sem piedade das dramatis personae que mestre Gil Vicente punha em cena em seus autos: frades relapsos, namorados, barregãos e espadachins, a enlouquecerem de amores, clérigos nigromantes, caçadores e sacrílegos, ambiciosos de subirem na hierarquia, freiras que protestam contra a clausura, fidalgos preguiçosos, cheios de sua prosápia oca, sábios inchados de presunção, alcoviteiras... que todos presumiam de embarcadiços no batel da Glória e Por fim se tinham de resignar a entrar no do Purgatório ou até no do Inferno.

Nesse tempo de imatura idade, ria-me com os outros, como se aquilo não fosse mais do que a aparência de caricatura e brincadeira inócua, não obstante uma incómoda reserva interior que eu não sabia bem explicar. Até que essa noite, estando a rir tanto que apertava a barriga com as mãos com vontade de correr a verter águas a algum canto, senti que Don Beltrán me puxava pela manga àquela puridade que vai de boca a orelha. Inclinei-me para o ouvir:

- Te reis? Antes Harasses. Aquello no es Io que pensas.

- Cala-te. Deixa-me continuar a ver. Não me importunes. Rebolava a corcunda quase a meus pés:

- Escuchame. Tienes que escucharme. Solo tu, yo te conozco, me puedes entender.

- Só eu?

-Lo miro en tus ojos. No eres como los otros. Desprendi-me do espectáculo. Ele notou-o:

- Viene. Nos vamos daqui.

Saímos da sala e, como fazia calor, fomos até ao claustro do pátio e sentámo-nos na borda de um tanque ao som da bica de água que aí murmurava - Chocarrerías, cabriolas... el rey se rei para que no Io juzgem néscio o, si no es néscio...

... se não era néscio, folgava com os motes e ditos e as dissimuladas repreensões que com chistes e palavras trocadas os truões davam aos moradores de sua casa. Faziam-lhe conhecer as manhas, vícios e modos que têm. Os cortesãos, se eram parvos, riam-se por aderência simplória ao seu rei: se o rei chorava, eles choravam; se o rei ria, eles riam. Classe amorfa. Desprezava-a. Se não eram parvos, riam-se primeiro com um riso amarelo e depois tiravam-se dos vícios e emendavam-se, tomando por espelho o que os truões diziam com graças...

- Solo tu hebillas un aire pensativo, después de Ia primeira risa.

- Amigo, ouve...

- Amigo. Que bueno para um pobre truhán escuchar essa palabra! Amigo! Eres Io único.

Não fora eu o único que o havia visitado quando el-rei lhe mandara açoitar os costados?

- El-rei foi injusto.

- Es eso. Nadie de compasión. Jamás.

Não gostava que se condoessem dele. Talvez aquela a minha primeira revolta contra a injustiça. Outras viriam, estava certo. Isso o consolara e me revelara a seus olhos.

- Es ahora más sábio. Truhán es mucho más que simple chocarrero.

- Tu mo ensinaste.

- Como?.

- Com o teu olhar. Vergastavas os vícios dos clérigos, dos senhores, da gentinha do mundo, elogiavas com exagero o rei, a rainha, os príncipes... e olhavas para mim à socapa e o teu olhar parecia querer advertir-me. A princípio não entendi, embora achasse estranho. Mas um dia...

- Me gusta mestre Gil. Tengo acá en Ia manga, como vosotros costum - tinha na manga em um daqueles serões meter o comediante, tambem a ele, a riso. Para ver o que ele lhe respondia em troca.

Um cómico deve calar-se ante outro cómico, se as chufas vão no mesmo sentido.

Que eu teria sem-razão - respondia. Iria des-pensar nisso.

Vejo que retomas o teu bom humor. Regressemos ao salão.

Nademos pacto de nuestra secreta amistad?

- Sem dúvida, amigo.

Fez uma cabriola e, trangalhadanças, manquejou disforme à minha frente. Assim o via eu caminhar adiante, no meu pesadelo acordado. É neste ponto que me entra a confusão. Sigo a Morus? a Erasmo e à Loucura? Sigo Don Beltrán? Ou todos estes caminhares dispersos, tortuosos, ondulantes, que vão e vêm, descem e sobem, atravessam rios, vales, montanhas, bosques escuros, pradarias claras, chegam a castelos em ruínas rodeados de pântanos infectos, são um e único caminho? Que é que me perturbou? Aquele sermão da Quaresma sobre os pecados mortais? Andava-me o espírito perturbado com as leituras da Utopia de Morus e o Louvor da Loucura de Erasmo, eis num tríptico de Bosh depara-se-me ^ a visão alucinante de toda a nossa miséria. - Que quadro? - pergunta-me Grapheus. -Vem a minha casa. Mostrar-to-ei. - Adquiriste-o?

- Por bom dinheiro. A um coleccionador. Ia por encomenda de el-rei, que me incumbia de comprar santos para as suas igrejas e tapeçarias para

os paços. A um canto da grande sala que também servia de biblioteca, nos intervalos dos livros, pinturas e mais pinturas. Entre outras peças, num desvão atravancado, os meus olhos deram com um tríptico a tomar-se da claridade da janela. À distância a que me encontrava, pareceu-me de minuciosa feitura. Adivinhou-me o dono o olhar:

- Jerónimo Bosh – disse-lhe, homem de poucas palavras, virava já as costas quando lhe repliquei:

- Fico com ele.

Voltou para mim um semblante hostil, vincado de rugas mal dispostas:

- Não está à venda. É da minha colecção particular.

- Quanto vale? - insisti.

- Não tem preço - respondeu mal encarado.

Eu andava havia tempos desejoso de possuir um quadro desse artista. Teimei:

- Tenho aqui, amigo...

- Não sou amigo.

- ... um saquinho de couro com bons ducados de ouro e prata.

De costas, olhou de soslaio. Eu abanava-lhe a bolsa o mais perto do rosto:

- Quanto?

- Não vendo.

- Quatro ducados.

- Não.

- Seis. Hesitou.

- Oito.

Soltou um suspiro:

- Dez.

Fechei o negócio. Com o apalpar da bolsa, o coleccionador mostrou outro parecer, dir-se-ia que aquele esgar, em face não habituada, era sorriso. Arredando estantes com quadros, chegou-se ao tríptico e, grande espanto meu! fechou-lhe as portadas.

- Porque o cerras?

- Pórticos. Pintados também. O tríptico começa aí. Providencial coisa foi essa. Olhar os pórticos, passar os umbrais antes de entrar na majestade do templo. Não podia eu calcular o que me esperava lá dentro e nem sonhava nesse momento a dimensão desse lá dentro. Fechadas, pelo lado de fora as pinturas das duas faces dos portais representavam cenas da Paixão, as figuras delineadas a uma tinta esbranquiçada sobre um fundo, como irreal, espiritual, de luz cinza azulada, cor de chumbo, com laivos de luar. Do meu lado esquerdo, beleguins armados haviam já prendido Cristo e fariseus, com encontrões e murros, entre chufas e escarninhos, deitavam-no por terra, já Judas, após o beijo da traição, se afastava com a bolsa dos dinheiros e os discípulos, passada a fanfarronada de Pedro, se tinham dispersado. Na outra banda, a caminhada para o Calvário: a Verónica ajoelha a enxugar a face do Filho de Deus que vacila e baqueia sob a cruz, acorre Simão Cireneu a aliviar o peso do madeiro. Dois frades relapsos procuram manter os ladrões no mau caminho. Um inclina-se a escutar, o outro tem os olhos e os ouvidos vendados ao mal. Multidão de povo vem atrás do grupo movida pela curiosidade. Na borda do caminho, a mãe traz um filho pela mão e outro às carrachuchas a ver o espectáculo da que foi, no mundo, a primeira procissão da Semana Santa...

- Abre - disse o homem e espiava em silêncio, com um assomo de sorriso que só compreendi depois, o rebentar do meu assombro.

Terei de relatar de passo para bem me compenetrar do que aconteceu então, desde que transpus os pórticos das Tentações de Santo Antão Abade. Dias antes, falando com Grapheus a propósito do Louvor da Loucura, ia-lhe eu dizendo:

- Quando Erasmo louva a loucura...

... ele, travando-me do braço, interrompeu:

- Não a loucura, mas a Loucura com letra grande, quer dizer, a deusa Loucura...

- Seja. Mas no livro é Erasmo que veste as roupas da Loucura, como os comediantes, como os truões...

- Sim. No fundo do artifício há um desígnio sério.

- Ita est, magister...

- Antes, porém, que vamos adiante, quero, como teu professor de latim, chamar-te a atenção para um importante particular gramatical a propósito do título Laus Dementiae, Louvor da Loucura. Tu disseste «Erasmo louva a loucura», eu corrigi «a Loucura». Diz-me, Damião amigo: se, como sabes, louvor é a acção de louvar, quem louva quê? Será Erasmo que louva a Loucura ou quererá antes ele apresentar a Loucura como sujeito do louvar e portanto do louvor? Em termos gramaticais: Dementiae, da Loucura, é genitivo subjectivo ou objectivo?

- Não tinha pensado nisso.

- Por outras palavras: é a Loucura que pratica a acção de louvar, que faz o louvor? ou, pelo contrário, alguém, neste caso Erasmo, faz o louvor dela?

- Ora deixa-me ver...

- Tu leste o livro. Quem é que fala?

- E isso, mestre. E a Loucura em pessoa que fala.

- Então é ela quem faz o louvor. E o louvor de quê?

- De si própria. Eureca! o genitivo subjectivo é aí também genitivo objectivo.

- Isso mesmo Damião.

- A Loucura faz o louvor de si própria - magicava eu.

- Aquilo a que se chama acção reflexa.

Virei-me pensativo para a janela. Além corriam para o mar as águas do Escalda sob um céu embrulhado de nuvens cinzentas que anunciavam chuva, mas eu olhava dentro do meu pensamento:

- E como se ela estivesse a ver-se ao espelho... - pensei...

E esta reflexividade, em meu pesadelo, desandou em espelho de vaidades e, de golpe, dou com a Loucura, contra vontade de Erasmo, rodeada de uma multidão de estultos, todos com espelhos nas mãos, a reverem-se e a vangloriarem-se, cheios de amor próprio, sem motivo. Os pesados batentes abriram-se de par em par e eu vi-me, com súbito terror e perplexidade, no limiar do Caos. Por onde entrar em tão espesso enigma? Vieram-me aos lábios os versos de Dante:

 

... una selva oscura :

che Ia dirita via era smarrita,

questa selva selvagia ed aspra e forte

che nel pensier rínova Ia paura...

 

A selva aqui era bosque de mistérios, floresta de enganos, mata de metáforas, brenhas e brejos de pauis e cloacas...

- Vês a tua ignorância? - corta-me o pensamento Don Beltrán. Agora é que tudo vacila - respondo-lhe estonteado.

- Qual vacila? Comeste mas é demasiado pão de centeio. Estás com o fogo-de-santo-antão, com alucinações. Eu sou uma delas.

Por mim continuava ali especado olhando o quadro. Quais as portas, o caminho, a entrada do labirinto?...

- Sigamos estes velhos que aí vão numa ponte, no painel da esquerda

- digo.

- Detém antes o olhar no centro do quadro - adverte-me Morus. Quando entras num templo, qual é a primeira coisa para que diriges o olhar?

- Ao correr da nave central, lá ao fundo o altar-mor - respondo.

- Vem comigo - diz pegando-me da mão e puxando-me para dentro do quadro, já Don Beltrán cabriolava lá adiante.

Não sei como, mas creio que sobrevoámos as águas de um pântano horrível povoado de monstros e logo nos encontrámos em cima duma espécie de palco. Em frente de nós a torre em ruínas de um castelo. Passeia pelos muros escalavrados uma gazela que traz às costas uma ferreirinha, na escuridão um avejão com asas sinistras e rabo de cobra vigia do alto o terreno e um monstro misto de lagarto e ave dependurado da beira das ruínas espia para baixo, onde se abre uma como gruta: um altar com o crucifixo e, ao lado do Evangelho, o próprio Cristo, saído das trevas, dá uma luminosa bênção.

Fiz menção de me adiantar, mas Don Beltrán:

- Quieto - suspendeu-me. - Por mais que queiras não podes tocar-lhe.

Só agora reparava. Antão está ali, nos degraus do pátio que o separa do altar, recebe a bênção de Cristo e vira-se para nós a talhar no ar, por sua vez, o sinal da Cruz. Benzo-me e beijo a mão, como desde pequeno estou habituado. Rodeiam o santo uns estranhos seres, por minha fé. Da esquerda veio um cortejo de donas bem arriadas e coifadas que à volta de mesa redonda servem extravagantes acepipes: uma delas, de tez morena, oferece com a direita um copo de não se sabe quê, a seu lado, muito branca, acolita outra e a seguir uma negra ergue ao alto uma salva com um pequeno macaco que por sua vez eleva um ovo acima da cabeça; atrás delas, no focinho-trombeta trombeteia um ser encapuchado de negro e da boca da gaita saem-lhe bolinhas de ar luminoso. À frente da mesa chegam outros monstros: um goliardo cabeça de javardo aproxima-se transportando uma coruja sobre o cabelo, viola debaixo do braço, a mão estendida para a poção que a mulher lhe estende. Segue-o, tirado por um cordel, vestido com corpete encarnado, um cãozinho que de cansado se senta. Manqueja-lhe à ilharga arrastando a cauda comprida de crocodilo, arrabil a tiracolo, um homem estropiado com uma muleta no joelho...

- Musiquias para a festa - segreda-me Don Beltrán.

- O primeiro ataque de demónios e bruxas - murmura Hitlodeu.

- Uma até se ajoelhou ao lado de Antão a confundir-lhe com lengalengas as orações.

- O santo vira-lhe a cara - explica Morus - e com a mão esquerda estende uma patena para Cristo. Procura o alimento celeste que lhe dê resistência à tentação.

- Mas na outra banda - intervenho, entrando no entendimento do que poderá estar a passar-se -, aquela freira sem corpo quer convencê-lo do contrário e, ao lado dela, esse aí com chapéu de doutor, sem tronco, dos ombros a saírem-lhe pernas em lugar de braços, parece querer oferecer-lhe um copo da mezinha ou lá que mexerufada é.

Um pouco atrás de nós, vinda da direita, chega-nos cantilena burlesca de três clérigos demoníacos: frei Donato cabeça de rato, de lunetas encavalitadas na cana do focinhato, o devocionário aberto nas mãos, irmão Gil embarretado com funil, bigodes de gatarril, fra Cancela bico de sovela a sair-lhe da capela um ninho com ovo em cima dela. Em voz de falsete entoam em cantochão brejeiras paródias de hinos e antífonas ao modo dos carmina burana:

 

Iam lucis orto sidere

statim oportet bibere:

bibamus num regie

et rebibamus bodie...

 

Mal o dia nascer

toca logo a beber:

bebamos regiamente

agora e hoje e sempre...

 

Acompanha-os dedilhando cítara, na outra ilharga, um ser corcunda, que tapa as fauces com a queixada de um chibo. Encapuçado, montado no corpo depenenado de uma galinha a que já haviam cortado a cabeça, do pescoço oco da montada, tombado por terra, a pele enforma-se em capuz de frade de onde espreita a cabeça de um peixe à beira do charco. Em roda uma série de animais infernais grunhe, uiva, grita, urra, chia, ou espreita e pára de olhos assustados. Atrás dele, berrando e brandindo com os dois braços uma adaga, balança-se um louco num cesteiro pendurado de um ramo de arbusto.

Dou comigo a recitar, a cantar versos longínquos que ouvi quando na corte de el-rei Emanuel assistia aos autos de mestre Gil:

Olhade que gente honrada que me trazia o cabrão! Um que foi amancebado alcoviteiro provado, e um frade rafião...

Sai-me da frente - diz atrás de mim uma voz desconhecida. Olho. Está ali sentado um senhor de barba comprida, chapéu alto preto, veste vermelha, boto de um pé.

Quem é? - pergunto a Morus.

Saturno ou um filho de Saturno. Não vês a muleta no chão a apontar o signo do Capricórnio? Há aqui, por todo o lado, o sopro da Melancolia e artes de alquimia e obra-ao-negro. Olha aquele ovo, o forno do alquimista a fumegar...

... venho da cova da Sibila onde se esmera e estila subtileza infernal ó chaves das profundezas, abri os poros da terra; príncipes da eterna treva pareçam tuas grandezas

Conjuro-te, Satanás

Até no meu sonho Grapheus não deixa de ser conceituoso e engenha argutas observações:

- É notável, Damião, quanto aqui acontece. Repara mais uma vez no quadro...

- Mas eu estou dentro dele com estes companheiros. Não me canso de olhar, de tentar desvendar tudo isto que me rodeia.

- Atenta nos seres disformes, mostruosos que o autor criou.

- Tenho-o esmiuçado.

- De um modo geral dir-se-ia que o pintor não se deixou cair na vulgaridade de repetir seres fabulosos da Antiguidade. Não há aqui grifos, sereias, esfinges, harpias, polifemos, unicórnios, basiliscos, cérberos...

- É verdade. Para compor estes seres demoníacos Bosch deve ter seguido método muito rigoroso.

- ... estas asas, estas garras, estes bicos...

- Parece que pegou em papel e lápis e foi por aí fora...

- ... voou ao ar, escavou a terra, mergulhou nos pântanos, poços e furnas da água, entrou nas fráguas do fogo...

- ... e tomou rápidos apontamentos...

- ... de bicos, garras, asas, espinhos, ossos, girinos, cascas, cepos retorcidos, focinhos, presas, fauces, dentes aguçados, caveiras, espetos, hélitros... Levantou pedras junto dos charcos e surpreendeu larvas, peçonhas, babas, cuspos...

Continuam a escorregar-me da lembrança as trovas antigas:

... bico de pego, asa de morcego bafo de drago, tudo vos trago, eu não juro nem esconjuro, mas galo negro suro cantou no meu monturo...

- ... penetrou nos antros do mar - continuava Grapheus - e salteou a ferocidade de membros de defesa e ataque, tenazes, navalhas, punhais, tesouras, o embuste, o engano, a frieza no matar, meteu-se cheio de náusea em troncos carcomidos de árvores seculares e sentiu na pele e na carne as comichões, picadas, mordeduras de chinches, baratas, vermes, mosquitos, lagartas...

... comer-vos-ão as cigarras e os sapos morre morre...

- ... pegou nos símbolos: as formas, as cores, os signos, o claro e o escuro, o nascimento e a morte, a sanidade e a podridão, a triste condição humana das misérias digestivas, do comer e beber e urinar e defecar...

- De que morreste, vilão?

- Samica de caganeira.

- De quê?

- De caga merdeira. Má ravugem que te dê!

- E que são os homens? Cloacas a defecarem, a urinarem, a vomitarem... Quantos tonéis de vinho bebeu durante a vida um velho de oitenta anos? Quantas searas comeu?

-... quantos mijou, quantas cagou? - chasqueou atrás de mim uma voz feminina. Até aí eu não havia dado conta da presença da Loucura pela mão de Erasmo. - Não tenhas receio de dizer as palavras cruas que da pintura acorrem.

- ... a lascívia, a ambição... - continuava obstinado Grapheus ... a gula, a luxúria, toda a teoria dos sete pecados capitais... Tudo lhe serviu para moldar em imagem o mundo cavernoso do mal e rir-se do pobre homem-cloaca, do homem-víscera-odre-gamela-prato-cântaro-tronco-de-árvore-sapo-suíno-rato-que-sei-eu... e apresentar-nos, assim, como meditação e tentação do eremita no deserto, a nossa fragilidade e pequenez, as misérias, a contingência e efemeridade humanas.

- Nada é seguro.

- Olha estes lagos, estes mares e precipícios, estes pegos, estes lodaçais. Tudo vacila. Tudo é ruína. O templo, o castelo, o palácio... pastam gazelas nos muros arruinados...

-... e misturou tudo em grandes metáforas, algumas das quais zurzidas há séculos do alto dos púlpitos.

- Grande século é o nosso - afirmou Hitlodeu. - Não pequeno contributo para esta nova visão das coisas, do mundo, da vida - costumes, crenças, diferenças de raças, cor da pele, pensar -, trouxeram os descobridores da Terra a esta nascente idade. Julgo que só se pode compreender este quadro com os olhos do mundo... no tempo e no espaço...

- E este gosto, este renascer do mundo antigo grego e romano? perguntei em minha ingenuidade. - Não. Não posso concordar contigo. Seria um paradoxo...

- Paradoxo aparente - interveio Erasmo. - Este renascimento significa o desejo de que nada ficará como estava e o homem há-de ocupar de novo o seu lugar de centro da cultura e da vida. Não é a isso que se chama humanismo?

- Queres dizer que o homem está a destronar Deus? Mas Bosch... Bosh, como Dante, sem destronar Deus, porque a sua visão é reiosa, está tentando alongar a vista mais ao largo - e Erasmo fixando-me ndo nos olhos murmurou: - ... como se ambos fossem deuses, o próprio Deus, a olhar o mundo dos homens...

- Mas isso soa a grande...

- ... blasfémia? heresia? Tens medo das palavras? Só o pode ser aos olhos desses espíritos fechados dos senhores da verdade... Ah, amigo! A verdade está aí tão clara e eles insistem nos dogmas criados por eles próprios. Entalaram Deus em formas humanas que constrangem e limitam a divindade. Lutero, pretendendo mudar as coisas e arejar a fé, está caindo nos mesmos erros. Não me admirarei nada, se um dia também eles, os luteranos e aderentes, resvalarem para a intolerância e a direcção de consciências e a perseguição em nome de Deus...

- ... sombra, luz e cor, o crer e o pensar, medos e pavores de um tempo que chegou ao fim. Eis o que está aqui nestas tábuas.

- Tudo em mudança, tudo posto em causa. Os dogmas vacilam. O homem novo repensa tudo...

- ... imagens inesperadas que escondem significado... -... alguma coisa que de início repele o espectador.

- Isto foge a todos os cânones da arte clássica, tão apreciada agora. Foi a vez de Grapheus, sempre apegado às normas de Gregos e Romanos, ditar as suas razões:

- Sim. Os preceitos de Horácio não se lhe aplicam. Lembras-te da Epístola aos Pisões?

Apressei-me a recitar:

«Humano capiti ceruicem pictor equinam l iungere si uelit...»

E Grapheus a verter:

«Se um pintor à cabeça humana der em unir pescoço de cavalo...»

- É isso mesmo. Bosh pinta ao arrepio de tudo. Procura o repugnante, o nojento, o nauseante, para nos dizer que o homem imortal não passa

de um bicho...

- ... e o insólito: o que nada voa, o que voa nada... Olha aqui sapos, peixes, barcos vogando o céu...

- Aí está o ponto. Tudo vacila. O homem descobriu outras terras, outros povos, costumes e verdades, outros céus e estrelas, outros animais e plantas. Um planeta novo... outros deuses...

- Roma vacila e estrebucha.

- Estão cegos os homens?

- Os intolerantes, repito - responde Erasmo -, os fanáticos, os que julgam possuir a verdade imutável.

- Não admira que a partir daqui - disse Morus - haja mas é de se começar a reconstruir. Na esteira de Platão. Uma república mais humana, mais sensata, mais justa...

- ... na ilha da Utopia... - sorriu Erasmo ao amigo.

- Os evangelistas procuram limpar a Igreja das teias de aranha...

- Como não há-de reagir Roma?

A novos rumos o leme da vida, sinto-o. Não sei ainda até que ponto. Abalam-se-me as convicções religiosas, torno-me severo crítico da conduta dos príncipes, caem-me escamas dos olhos. A ajudar esta viragem, recebo de el-rei encargo de ir em missão à Polónia. Meado Fevereiro, interrompidos os estudos de latim, preparo-me para a partida. Rui Fernandes industria-me nos assuntos a tratar:

... de grande melindre alguns - diz, enquanto ceamos.

Creio estar ciente.

Prudência e habilidade, já te conheço, é contigo. Dantzig é a porta por onde entram as nossas especiarias e outros géneros nos mercados da Polónia, da Hungria e da Rússia. El-rei João terceiro concedeu aos hanseáticos privilégios que pedem compensação no facilitar do tráfico das especiarias. É essa uma das tuas missões junto do rei da Polónia. A guerra por aquelas paragens tem-no dificultado.

Mercadores de longa rota. Levam a Portugal boa madeira, cereais e constante é o trato que connosco mantêm aqui na feitoria...

-... não esquecer...

- ... o trigo...

- ... e os mastros. Fiz o ano passado uma grande encomenda ao mercador de Dantzig, Heinrich de Rees.

- Ele está no porto a aprestar uma caravela com mercadoria nossa que partirá em breve para Dantzig.

- É preciso que vás com ele para regular a execução das coisas.

- Não será mais sensato fazer a viagem por terra?

- Não. Se está no porto a caravela do mercador Heinrich de Rees prestes a partir para Dantzig...

- Por terra - opunha eu - talhava-se caminho e tempo, os perigos seriam menores.

- Quem to garante? Na conjuntura, não parte de momento nenhuma caravana por terra. E tu sabes bem como é perigoso viajar desacompanhado. Ao passo que no barco tens gente conhecida, companheiros, o próprio Heinrich tem ido muitas vezes a Lisboa...

- Eu conheço-o.

- Aí tens. Além de que leva, como dizes, mercadoria nossa, o que certo há-de ajudar-te nas negociações a travar.

O feitor dá-me a honra da sua particular amizade. Desde há muito trocamos impressões a propósito dos nossos negócios e, agora que eu ia partir, aludimos àquela sua missão na Alemanha junto de Maximiliano e de Alberto da Baviera.

- Isso já foi há uns bons... ora deixa ver... em quinhentos e quinze... há catorze anos.

Especiarias, câmbio de mercadorias, veio a talho menção das coisas das índias...

- Um sorvedouro, amigo, um sorvedouro de fazenda e vidas. Além de nossos compatriotas, todos nós temos por lá parentes, não é verdade?

- Sim - disse eu. E recordava: - Meu tio materno, Pêro Gomes Lirni, natural de Alenquer como eu, distinguiu-se no cerco e assalto de Goa em quinhentos e dez. Sucumbiu mais quarenta dos nossos aos ferimentos recebidos. Outro parente, Rui Dias, achava-se alistado na armada de Albuquerque fundeada em Goa. Albuquerque apresara nos paços de Sabaia várias moças indianas que levava na armada para enviar para Portugal à rainha. Rui Dias tinha relações furtivas com uma delas, muito formosa. O capitão soube, mandou-o enforcar e pôs a ferros alguns capitães que pretendiam barrar o cumprimento da sentença.

- Conheço o caso - disse Rui Fernandes, - Albuquerque sempre foi um capitão duro. Terá suas razões... - suspendia-se a cortar do pão e embeber a sopa no molho do prato - ... lá longe em terras estranhas em que se não pode consentir mais leve falta de disciplina sob pena de deitar tudo a perder. Um construtor de império.

- Também o creio.

- O que ele fez quando foi da embaixada do Preste João a el-rei de Portugal...

- Que fez ele? Lembro-me dessa embaixada. Tinha eu doze anos...

- Eras pajem?

- Era. Servia de discóforo. Assim gostava mestre Cataldo de chamar ao pajem das iguarias que apresentava os pratos à mesa de el-rei. Nesse ofício servi a el-rei Emanuel durante dois anos.

- Nasceste em...

- ... quinhentos e dois...

- Então isso foi por volta de mil e quinhentos e catorze, o ano em que chegou à corte o embaixador do Preste João...

- Tenho disso ideia. Presenciei tudo, vi e ouvi tudo e, quanto a idade mo permitia, julgo que também o entendi.

- Guardo comigo traslado do que se passou, das cartas trocadas entre os dois reinos.

- Ah, como eu gostava de ver esses documentos! Como os adquiriste?

- Estava, como te disse, embaixador junto do imperador Maximiliano e do duque Alberto da Baviera, recebi carta de António Carneiro, secretário de el-rei, em que me remetia esses traslados que outrora, perante o rei, confiara à escrita.

- Então menino de tão pouca idade, é natural que os pormenores estejam delidos na minha memória, tanto tempo passado. Gostava de os recordar. Será pedir-te muito que mós emprestes?

- Com todo o gosto, Damião.

Sorte minha! Quando hoje viro atrás a memória, a esses tempos, é que considero quanto a tive. Ir para a Bélgica por mandado do rei Errjanuel, meu educator, mandado que seu filho, pela morte do pai, se apressou a cumprir; encontrar no feitor Rui Fernandes um homem não apenas nobre mas também sagaz, que se prestou sem delongas a confiar-me aqueles papéis... foi tudo isto o início do que eu nem a mim próprio ousava confessar, tão longe me encontrava de sequer o imaginar possível: o meu íntimo desejo de me tornar humanista e divulgar algumas das «novas novidades» que pelo mundo com estrondo se estavam praticando e mostrando. As viagens que ia encetar às partes de Oostelândia vieram favoráveis rematar os meus fados de então.

 

Com tão desencontrada paixão

Nublados os dias, os dias, os dias, mas na véspera de embarcar a noite abriu em estrelas e a lua tingiu de prata e diamante a torre da catedral de Nossa Senhora da Árvore.

- Vais ter bom tempo para a viagem - espreitava Magda pela janela, a indiscrição do luar a coar-lhe da camisa as formas soberbas. Corria para os meus braços, mergulhada em beijos:

- Vou sentir saudades tuas.

Quando de manhã saí para o porto, assaltou-me a chuva. Levava comigo alguns pajens para efeito dos encontros de protocolo. As arcas já haviam seguido para bordo com os criados, homens de confiança, armados e possantes a tolher intenções aos ladrões formigueiros de atalaia nos bosques e nas curvas dos caminhos. Capote revolto pela ventania, caminhei estugado ao longo da Rua Kipdorp, passei a praça do mercado arrimado às paredes das casas e, chegado à ribeira, a passadas largas subi a prancha do portaló. Às costumadas ordens, ergueu-se âncora, desferraram-se as velas, logo enfunadas, largámos e algumas horas adiante zarpávamos estuário fora pelas águas do mar do Norte, verde-cinzentas como o céu, crispadas, de ondulação acentuada. Os encontros dos sorviões tanto balançavam a nave que receei ter de mais uma vez brigar com o enjoo, não fosse um marinheiro haver-me dado a mascar uma mistura de folhas que eu ia roendo com relutância, apesar da angélica atenuar com o gosto perfumado o amargor do absíntio. Pelo meio-dia a chuva tinha parado, o céu abrira em clareiras de sol que a nortada gelava. Ainda assim, debruçado na amurada, eu desnava a fímbria da terra sentindo nos olhos as visões não costumadas. A paisagem é como as pessoas, pensava. A cor destas águas é a do meu oceano, este ar respira outro cheiro, além aquela fiada de ulmos não tem o mesmo verde dos choupos de Alenquer. Nem a estatura das pessoas, nem a língua, nem o pensamento, nem as crenças, nem a tez, nem a raça, nem a forma dos telhados, as torres das igrejas, as fachadas dos edifícios, o gosto do pão, a maneira de cozinhar. Até os cães, aves, cavalos. Só Deus nos Trazem elefantes, rinocerotas, macacos, papagaios a estas paragens!... Horas, horas, horas. Entrecruzavam-se-me as ideias. Acudia-me ao trato rapheus preocupado com o problema do livre arbítrio. Pregar, dizia ele inflamado, evangelizar, tentar convencer, afeiçoar vontades, sim. Para isso se criaram as ordens dos pregadores e se ergueram os púlpitos. Mas impor pela força a religião é violência não legítima. Eu apontava-lhe, então, a expulsão dos judeus em quatrocentos e noventa e sete ordenada por ele-rei Emanuel. Que procedimento tão pouco cristão! clamava ele. Obrigar a tomar vínculo de religião almas não adjuradas a isso, impeli-las pela força a crerem o que rejeitam, empeçar a liberdade do alvedrio...

Mar e céu e, quando a névoa deixa, a linha da terra a escurecer além a nossa direita. Absíntio. Losna é como lhe chamam no meu povoado e angélica. Boca de trapos. A ceia confortou-me. A noite cai. Embrulho-me nas mantas e no sono, e nos sonhos...

Muitas e muitas noites e dias semelhantes se foram desdobrando sem que nos salteasse tormenta. Tinha tempo para ir lendo algum livro de latim que levara comigo ou adiantando com Heinrich os negócios a tartar em Dantzig.

- Quando chegarmos - dizia-me ele -, já os mastros encomendados por Rui Fernandes devem estar aparelhados e prontos a serem embarcados.

- Esperemos que sim. Fretámos aos armadores Christofer Beyer, Johan Torbake e Simão Kerchhoren uma caravela...

- Está a ser construída nos estaleiros de Dantzig, dizem-me os meus homens que de lá chegaram há pouco. É barco de fazer inveja, verás.

- Esse açúcar que aí vai... A gente deste lado da Europa desconhece o açúcar, usa no lugar dele uma beberagem de mel e água, segundo ouvi. Seria boa altura de...

- Só verdade em parte. Lituanos, Livónios, Moscovitas, Russos, o mel, abundante nestas paragens, é de feito a sua bebida comum. Artigo importante da exportação polaca. Mas descansa. Não é a primeira vez que trago para aqui açúcar e caramelo português, para já não falar das especiarias, e o consumo está a aumentar. Mercadejo esses artigos, que vou buscar à vossa feitoria de Antuérpia quando não à própria Lisboa, por toda a costa desse Báltico.

- É bom?

- Queres provar? Jan, traz hidromel para o meu amigo Damião provar.

O grumete foi pela bebida.

- Temos interesse, como sabes - disse eu -, em adquirir trigo, o cobre da Alta Hungria e essa matéria tão necessária ao nosso empreendimento naval, madeiros e mastros para a construção de naus.

- O vosso interesse é o meu.

Jan trouxe numa bandeja um jarro de vidro com uma bebida alourada e dois copos. Pousou em cima de uma pipa que ali estava e serviu-nos.

- À tua saúde, Damião.

- À tua, comandante. Bebi devagar, a saborear:

- Suave de beber - apreciei.

- Jan, vai por outro mais acendrado.

Num instante o grumete trouxe outra infusa e encheu os copos. Proven

Oh! Tão forte como malvasia de Cândia... - e eu apaladava:

... e do mesmo sabor!

Muito são no corpo. Tanto que nestas partes quase não sabem que coisa é físico ou boticário.

Dunas da Jutlândia, o vento agreste a inclinar juncos da planície deserta logo retirada da minha visão pela chuva cerrada...

Afastamo-nos da costa, comandante? Já não bastava a cortina da chuva.

Passar de largo. Mar perigoso, pouco profundo, bancos de areias.

- Em que altura vamos?

- Contornamos a península da Dinamarca.

Águas do Skagerrak, do Kattegat, ilhas e ilhéus, a costa recortada de cabos e enseadas, o estreito de Sunda, de um lado a Zelândia, do outro a Suécia... enfim o Báltico. Entrámos pela foz do Vistula e aportámos a Dantzig, na margem esquerda, o porto muito activo e a cidade, encerrada por um cinto de muralhas guarnecidas por cinco bastiões, atravessada pelas ribeiras do Motlan e do Rodaume, que formam uma ilha com muitos celeiros onde guardam os cereais antes de os embarcarem para o estrangeiro. Tem estaleiro afanoso a modo da nossa Ribeira das Naus. E aqui o centro da Liga Hanseática que comerceia connosco e com outras nações da Europa. Por cima dos edifícios góticos, alteiam-se moinhos com as velas a dobrar ao vento. Todo este movimento me dá a ideia de que é gente de muito trabalho. A propósito, os meus companheiros da feitoria, sobretudo Rui Fernandes, em nossas conversas expendem opinião pessimista quando comparam os povos do Norte da Europa com nós outros os Portugueses.

- Somos madraços.

- A trabalhar a terra e a torná-la produtiva preferimos arruinarmo-nos comprando cá fora o pão da nossa fome.

- Talvez tenhais alguma razão - rebato-os. - Considerai, no entanto, o grande esforço em dinheiro, fazenda e vidas que estamos a fazer pelo mundo...

Atiram-se a mim:

- A terra está maninha.

- A fome aperta.

- E preciso cavar, lavrar...

- Andamos a lavrar naufrágios, morte, orfandade e viuvez... Oponho-me:

E a riqueza que nos vem do comércio das especiarias, da grã, de todos os produtos de África, Brasil, índia? Lá caímos nós outra vez, Damião, no que tanta vez temos conversado

E quem a vê a essa riqueza, não me dizes? Pagamos preço demasiado alto por isso.

- E a glória de que se cobrem os nossos heróis? Almeida, Castro, AlDuquerque...

- Valerá a pena? - pondera Rui Fernandes.

Pesava silêncio no esmoer dos pensamentos. Interrompo-o:

- Nem tudo são contas de feitoria, amigo. Ainda há-de vir um dia poeta ou poetas que te respondam a essa pergunta.

Nestas duas opiniões nos dividimos e agora, ao cabo de tantos anos de vida, olhando atrás e à condição a que a nação portuguesa está reduzida, não sei se não seriam eles a ter razão. Pobres, visionários... tingidos de glória...

Assim ia eu evocando essas práticas entre mim e os meus companheiros de Antuérpia, quando chegámos à cidade de Dantzig. Pela Porta de Ouro entrámos na Rua Longa, as fachadas das casas a fazer lembrar as da Flandres. Passámos a Confraria de São Jorge e desembocámos no Grande Mercado, vasta praça a ferver de actividade. As desvairadas línguas e trajos das pessoas que passam afadigadas logo mostram estarem aqui os maiores mercadores do mundo, holandeses, italianos, escoceses, suecos... de alemães nem se fala, que a população da cidade e arredores, por força da história passada, é meio alemã e polónia...

- ... e portugueses, não esqueças - lembra Heinrich. - É esta uma das principais feitorias da Hansa.

Leva-me a uma hospedaria, onde nos acomodamos, e convida-me a cear consigo na Casa de Artus, quase ao lado...

- Aqui se reúnem os mercadores, têm os seus banquetes e festejos. Acabo com Heinrich, enquanto comemos, da pendência que aqui me traz:

- Não te esqueça de me levares aos armadores Beyer, Torbake e Kerchhoren.

- Eles devem aparecer por aí. Não te dês pressa. Amanhã te levarei a eles, aos madeireiros, aos lenhadores que amanham os mastros, aos mercadores de especiarias, aos fornecedores de trigo...

- ... e cobre... e pez...

- Visitaremos os grandes armazéns do cais. Verás a abundância, Damião.

- Tenho incumbência do rei Emanuel para me encontrar com el-rei

Sigismundo...

- Deve estar longe, em Cracóvia.

- Neste tempo está em Vilna - diz o hospedeiro, que nos serve.

- Vilna?

- ... cidade metrópole e principal do ducado da Lituânia.

- Para lá terei de partir quanto antes. Ficarás a aviar as coisas, Heinrich. Quanto a mim fretarei cavalos e com os meus criados vou meter-me a caminho.

- Vais partir assim sem guia, por caminhos desconhecidos?

- Tenho as minhas cartas que me guiarão. E os meus mercadores, cobradores e depositários.

- Nada de imprudência. Terras perigosas...

- Salteadores? Lobos?

-lobos, sim. Nas matas cerradas. E ursos. E cerdos. E linces. Ladrões, pode calhar, se bem que a gente daqui seja temente a Deus, pobre mas pacífica, virada ao trabalho nas terras dos senhores, ao rebanho, ao gado, ao fiar do linho enquanto desfia a alma cantando. E ainda outro perigo.

- Qual?

Areais do fim do mundo, oh, oh, alguns movediços. Na desolação e silêncio eternos, ninguém te salvaria. Pântanos e terrenos incultos escondidos de mata selvagem, os lagos cobertos de floresta espessa, as águas pestilentas a abeberar a própria essência de febres e peçonhas.

- Onde tomarei guia?

Tenho uma coluna de mercadores que estará pronta a seguir para essas partes. Juntar-te-ás a eles. Podes confiar.

- Quando?

- Daqui a três dias, tempo para tratarmos de tudo.

No dia seguinte fui com Heinrich aos lugares anunciados e falei com os armadores, que me levaram aos estaleiros a ver a caravela em construção. Só se lhe via ainda a carcaça, mas já se adivinhava o belo navio que dali ia sair.

- Michel - disse Torbake com satisfação. - Michel. Assim se chamará este magnífico barco.

Parti para Vilna a meio de Março, ia o Vistula caudaloso e revolto. Do degelo, diziam-me os mercadores, que o engrossava e fazia transbordar nas planícies do centro alagando as povoações. Fizemos paragem em Mariemburgo e Conisberga por mor de um negócio de cobre e de âmbar, e prosseguimos caminho. Ventos, chuvas geladas, caminhos estreitos, a trabalhosa travessia do Niémen, sombra de florestas onde pastavam renas e gamos de olho e ouvido atentos, narina esperta... mas, ao fim da jornada, avistar na volta da estrada, entre arvoredo, o fumo da chaminé no telhado de colmo, entrar no albergue rústico e sentir o crepitar da lenha na lareira e, acompanhando o bom presunto do lugar com pão de centeio e trigo acabado de sair do forno, a golada do vinho que levávamos - ah, o hidromel, catixa!

- a aquecer-nos o sangue. Saíamos no dia seguinte de madrugada, pelo rrio, a ganhar tempo e caminho.

Avistámos Viena na tarde do quinto dia. Ao longe, na linha plana, uns quase apagados anilados riscos verticais de pinheiros esguios e, através, erguendo-se sobre umas pequenas colinas, flechas de torres de igrejas, bastiões de castelos, telhados de povoação. Pelas sendas, ladeadas de campos onde pastavam vacas, os pastores, parados no cosmos, deixavam aos cães vigiarem as ovelhas, iam chiando - ah! meu Portugal! - carros de bois, carroças tiradas por muares cheias de feno, trigo, centeio...

Passada a porta de um dos bastiões das muralhas, ruas estreitas, canais de ventos gelados, que se entrecruzam ziguezagueando, torres austeras de gotejas, fachadas severas de tijolo ou madeira, telha ou colmo a cobrir as casas, na praça um mercado, as mulheres por detrás das mesas pejadas a atender clientes, sorriso nas faces coradas do frio, lenços de cores garridas pela cabeça atirado para trás ou atado no soqueixo, algumas com coifas debruadas a vermelho e branco ou chapéu negro de copa alta, xailes sobre a camisa de golas e punhos rendados, saias rodadas, debruadas de vermelho sobre o preto, arrecadas de contas, os homens colete verde com botões de couro sobre camisa branca de colarinho largo aberto, chapéus pretos de copa baixa e achatada e tira vistosa colorida, gente livre, desembaraçada, atravessar uma ponte sobre o rio Néris, enfim, entre arvoredo, o palácio real. Esperava eu, ao ser levado à presença de Sigismundo, encontrar nos seus sessenta e dois anos um velho rei decrépito, mas quando da porta da grande quadra o avistei, a túnica cintada, a espada na bainha, de pé, virado para a porta, rodeado de conselheiros, fiquei maravilhado. O rei da Polónia, apesar da idade, era um Hércules de arcaboiço poderoso. Só de o verem os inimigos certo tremeriam. Aparentava saúde e robustez e o olhar vivo, de um azul-claro, penetrava-nos as almas. Ajoelhei diante dele a beijar-lhe a mão:

- Que ilustre embaixador vem até mim - disse com um sorriso afável. - Quem desconhece o valor dos Portugueses e o que eles têm obrado nos mares e nas terras combatendo contra o Mouro e o Turco?

- El-rei João terceiro, meu senhor, envia-me a muito saudar-te e pede-me que aceites estas lembranças como prova de paz e amizade - e, fazendo atrás um sinal a três pajens que comigo levava, mandei-os avançar. O primeiro apresentava uma rica almofada de veludo em que faiscava uma cruz cravejada de diamantes e rubis. O segundo trazia numa gaiola de ouro um garrido papagaio. O terceiro pela coleira passeava um jovem leopardo. Não havia Sigismundo e seus homens acabado a admiração, outros pagens entraram com açafates de figos pedrais, alfarrobas, amêndoas, passas do AlGharbe, bananas e ananases de São Tomé, especiarias de toda a sorte e garrafas de bons vinhos de Colares, da Madeira, que depositaram aos pés do rei.

- Encontras-te, Damião, diante de um guerreiro prestes a partir para a frente de batalha mais do que um rei preparado para formal audiência com a troca de presentes e honrarias. Tenho de um lado os Moscovitas, que preciso de manter em respeito, devastam-me a fronteira do Sul os Turcos tártaros de tal maneira que, tendo eu suprimido com mão de ferro os cavaleiros salteadores, por não respeitarem as leis, vejo-me agora obrigado a consentir em restabelecer a acção dos cossacos que correm como o vento a semear destroço no inimigo. Mas não partirás sem levar a teu rei presentes meus em sinal da amizade havida entre dois reis católicos, os únicos talvez em toda a Europa que se não guerreiam entre si.

- Senhor - disse eu -, não te dê isso cuidado. O que sobretudo me traz junto de ti são as dificuldades que ao tráfico das nossas mercadorias se deparam nos teus reinos devido ao estado de guerra.

- Irás a Cracóvia ao chanceler Cristóvão Szydlowieski, que na minha ausência governa as Duas Polónias. Ele tratará contigo desses assuntos e providenciará para que leves ao teu rei presentes meus.

Digno de admiração este filho de Casimiro quarto e de Isabel de Áustria. Grão-duque da Lituânia, príncipe de Glogau, governador da Silésia, margrave da Lusácia, rei da Polónia, protegeu as classes respeitadoras da lei, controlou a moeda, reanimou o comércio, amparou os direitos dos súbditos ortodoxos e protegeu os judeus. Esta particularidade entre todas me maravilha, agora que me encontro preso por ter ousado pensar livremente. Verdadeiro católico é este clarividente e prudentíssimo Sigismundo. Soube ser tolerante para com os cavaleiros teutónicos da Prussia, quando, com o gráo-mestre Alberto de Brandeburgo, eles abraçaram o protestantismo e, exortados por Lutero, renunciaram, são palavras deles, à falsa castidade e entregaram-se à verdadeira castidade no matrimónio. Não permitiu el-rei que padres e nobres fanáticos os perseguissem nem a quaisquer outros adjurados a credo diferente.

De Vilna tornei à cidade de Dantzig, a tomar conclusão das coisas que lá deixei, e daí desci a Poznan, importante entreposto com que a nossa feitoria de Antuérpia mantém activo trato. O burgo - e dizem-me que a nação polonesa - nasceu ali, na ilha Ostrów Tumski, rodeada do Warta e do Cybina, antes de transbordar para as terras em redor, sobretudo da margem esquerda, no cruzamento das rotas comerciais que correm de poente a levante. Cidade grande, bem cercada de muralhas, numa colina o castelo. Ruas estreitas. Casinhas de madeira. Algumas, mais ricas, de tijolo. A praça larga onde se ergue o edifício da Câmara, caves góticas que servem ao comércio. A meio da praça um ajuntamento de gente assiste à flagelação de um delinquente suspenso pelas mãos da argola do pelourinho. Arcadas bem abastecidas de alimentos. Atrás da Câmara, a Casa dos Pesos e Medidas, mais adiante a Igreja dos Dominicanos, portal gótico, e a de Santo Adalberto, o campanário de madeira separado do templo. A judiaria a norte do Rynek. Passam batinas pretas de judeus, solidéu branco no topo das cabeças. Depois, atravessando o rio para a ilha, a catedral, de duas torres, em frente da Igreja de Nossa Senhora e, atrás desta, a «psalteria» onde vivem os coristas da catedral, e ao lado o Collegium Lubranscianum, alfobre de mestres. Saindo pela ponte do Cybina, logo se avista a Igreja de Santa Margarida, no bairro dos mercadores, o Sródka, em que nos alojámos. A pouca distância, no arrabalde de Komandaria, a Igreja de São João de Jerusalém, portal românico na entrada principal, mais antigo que o resto gótico do edifício.

Não estive aqui senão um dia, que tanto bastou para tratar dos negócios que me trouxeram. No terceiro dia após a minha chegada, já estava de partida para Cracóvia, cidade principal e metrópole da Polónia Menor. Se a primeira vista de Antuérpia me deu a ideia de uma cidade vertical, esta agora é a cidade das flechas de igrejas e torreões a furar os céus. Ainda longe, quando descemos a montanha, a cidade arroja-se-nos aos olhos com o Vigor das muralhas, os seus quarenta e sete bastiões guarnecidos, o castelo roqueiro ao fundo alcandorado na colina, o largo fosso a circundá-la. Envolta de montes, cá do alto mais parece tratar-se de duas cidades, Cracóvia asirmrus. O fosso as envolve e as separa, pontes as unem. Formosura os monumentos! Pobre estudante de latim que ali chegava. Esta era uma outra Lovaina, uma outra Basileia ou Paris. Aqui o templo da cultura, terra de humanistas, de artistas... e de músicos. Em cima da montada, parava extasiado a olhar, sem me dar conta de que os companheiros já lá seguiam adiante. Uma corrida e juntava-me a eles. Na cidade o êxtase continuava tanto tempo que nem estranhei me dissessem:

- Pareces boi de nariz no ar a olhar palácio.

Não respondi, julgo que por não ter enquadrado o dito na conjuntura do meu sentir do momento. Só à noite, deitado na cama a olhar no tecto as emoções da chegada, é que, de súbito, a frase me soou nítida aos ouvidos. Pus-me a rir. Sim, por dentro eu era um homem feliz, mas visto de fora, com os olhos desencantados de quem passava na rotina das ruas da cidade, devia ter mesmo ar de ratinho chapado. Mas logo me fugia o pensamento e a mim próprio confessava que o ter-me sido dado viajar, apreciar usos e costumes dos outros, do trajar aos objectos do dia-a-dia, ver as pedras velhas de templos, palácios, castelos que nem os anos nem as guerras conseguiram destruir, gerou em mim um particular gosto por adquirir pequenos testemunhos do viver destas gentes, nem que fosse do modo como contavam o tempo que escorre ou o preenchiam com danças e cantos populares, com ouvir e executar música. Porque esta - não refiro só Cracóvia, mas todo reino da Polónia - é, repito-o a mim mesmo, terra de músicos e tive ocasião de aqui comprar um óptimo clavicórdio que não sei o sumiço dele depois que de minha casa em Lisboa me arrancaram preso para os calabouços da Inquisição dita santa. Vinha a talho então pensar naquele quadrante solar visto num canto de igreja. Se puder arranjar um... ou mandá-lo lavrar para a minha igreja de Alenquer...

Haveria de pensar nisso.

No dia seguinte, procurei o meu amigo João Tarnowski, capitão da cidade e fronteiro-mor dos confins de entre Polónia e Tartária, homem de muita autoridade. Tinha eu catorze anos quando o conheci, corria o ano de mil e quinhentos e dezasseis. Chegara a Lisboa acompanhado de outros dois gentis-homens polonos. Tenho presente a imagem deles a beijarem a mão de el-rei Emanuel que os recebe com cordialidade e manda aposentar, João Tarnowski a adiantar-se e a falar: «Senhor. Por todas as partes donde somos naturais e pelas nações nossas vizinhas grande nome é o teu por causa das navegações que fazes, províncias e reinos que subjugas e guerras que continuamente tratas contra mouros, turcos e inimigos da nossa santa fé.» E el-rei a perguntar: «Vindes pedir-me que vos deixe combater com os meus nessa cruzada?» E ele de responder: «Não, senhor. Nessa cruzada a nossa nação polona vos é companheira pela contínua guerra que contra os tártaros sustenta, na qual toda a nossa nobreza se exercita como o cá faz a vossa na de África e da índia.» «Qual então a causa da vossa vinda?» «Primeiro, ver um tão grande rei como vós, cuja só vista nos há-de alimentar a coragem e esforçar o valor. Em seguida pedir à tua benignidade que de tua mão nos armes cavaleiros, honra que desejamos haver de ti.» «E de tão longe viestes?» sorria el-rei. «Também eu me sentirei honrado por anuir à petição de tão valorosos gentis-homens e levarei disso contentamento.»

Este auto ordenou el-rei Emanuel se fizesse na Igreja de São Gião da cidade de Lisboa, ao qual foram presentes todos os senhores que andavam na corte e muitos fidalgos e cavaleiros. Quem lhes calçou as esporas, lembra-me bem, foi Nuno Manuel, guarda-mor de el-rei e almotacel-mor da corte. Posso afirmá-lo: tão contentes foram estes três gentis-homens das mercês e honra recebidas e do gasalhado e banquetes de senhores e fidalgos, que por este respeito fui eu agora bem acolhido e festejado. Quando me viu, ergueu-se. Creio que não me reconheceu logo, pela diferença de idade que eu da de então fazia.

Chamo-me Damião de Gois. Tinha catorze anos quando meu senhor el-rei Emanuel de Portugal... - os olhos que ele arregalou! -... te armou cavaleiro. Eu era pajem e ajudei à cerimónia na Igreja de São Gião.

Abriu-me os braços comovido:

- Portugal! Oh, meu amigo! Um pajenzinho imberbe nesse tempo! Que grande prazer! Enquanto aqui estiveres não te deixarei. Pousarás em minha casa... Mas diz-me, caro Damião, como te encontro aqui, assim tão sem contar? A que vens?

Palavras poupadas, pu-lo ao corrente da minha ida a Vilna e da prática havida com el-rei Sigismundo...

- ... razão por que preciso de me encontrar com o chanceler Cristóvão Szydlowieski.

- Eu próprio te levo à corte - disse-me abraçando-me mais uma vez. Daí a pouco, passada a gruta do dragão, subíamos a cavalo a íngreme ladeira que leva ao palácio, no alto do Wawel, e chegávamos à catedral...

- O panteão nacional - indicava-me Tarnowski - e santuário de toda a Polónia.

... entrávamos no palácio mandado construir por Sigismundo primeiro ao modo italiano, apeávamo-nos no grande pátio interior e sob as arcadas soaram os nossos passos.

O chanceler esperava-nos numa quadra pequena sentado a uma mesa de trabalho.

- Senhor - inclinei-me a saudá-lo e, quando fiz menção de como a vice-rei lhe beijar a mão, não o consentiu, gesto que muito me honrou.

Tarnowski falou-lhe em polaco e eu depreendi que a meu respeito. Depois de o ouvir com atenção, abraçou-me sorridente:

- Que aprazimento para um cavaleiro católico como eu, que neste momento por ausência de el-rei faz as suas vezes no governo das duas Polónias, receber um enviado do rei de Portugal. Portugal! Nome que retumba em todo o mundo. Mas senta-te aqui a meu lado, Damião. Senta-te, larnowski. Conversaremos mais à vontade - e apontava-nos as cadeiras a esquerda e direita. - Sabemos de vós, Portugueses, apenas o que soa e não é pouco. Compreenderás, pois, o desejo que temos de ouvir miunças dessas maravilhosas viagens e conquistas que empreendeis.

E fazia pergunta atrás de pergunta e eu de contar-lhe como foi o dobrar dos medos e das tormentas, o achamento do Índico, da índia, do Brasil, das estrelas novas e das novas gentes e dos ventos novos... e as grandes batalhas navais e os assaltos a fortalezas e o Preste João e aonde chegava já a cruz de Cristo...

Quis saber de el-rei Emanuel:

- Fala-me dos filhos que teve. E eu desfiava:

- El-rei João terceiro, que agora reina. Isabel, que há três anos casou com o imperador Carlos quinto. Beatriz, casada com o duque Carlos terceiro de Sabóia. O infante Luís...

- Esse, esse - exclamou vivamente. - Ainda é solteiro? Há algum casamento em vista?

- Solteiro. Não sei qual o pensamento de el-rei João a tal respeito.

- El-rei Sigismundo, se para isso fosse cometido, daria de boa vontade uma só filha que tem...

- Hedviges? Ouvi falar dela.

- Dona prendada, muito prudente e de bom alor... - disse Tarnowski.

- ... filha da rainha Bárbara, primeira mulher de el-rei...

- O pai da rainha era Estêvão Szapolyai da Hungria, já falecido. Ocupa agora o trono o irmão de Bárbara, João Szapolyai.

- Levaria o infante Luís um tal dote qual príncipe como ele merece...

- Mas dizem-me que el-rei Sigismundo casou segunda vez.

- ... com Bona, filha de Galeaço Sforza, duque de Milão, parenta do imperador, neta do rei de Aragão...

- Ela e o filho...

- Tem um filho?

- Tem. Não são a mãe nem o filho benquistos do povo nem dos nobres do reino. Bona, com talento para gerir dinheiro, tem-se, digamos, locupletado em seu benefício particular, corrompe a corte, degrada o clero...

- Mas o filho é herdeiro...

- O reino é de eleição. Depois da morte de el-rei... Não sei se me faço... Damião...

- Julgo que sim.

- Não quererás ventilar o assunto com o teu rei?

- E o vosso rei?

- Como te disse ao princípio, Sigismundo, se solicitado, verá com agrado tal casamento.

- Posso entender das vossas palavras que tendes comissão de el-rei Sigismundo para me falardes nisto?

- Escreverás a el-rei João?

- Porque não apresentá-lo à princesa? - sugeria Tarnowski. - Poderíamos ir os dois com Damião ao castelo onde ela pousa.

- Concordo - respondeu Szydlowieski.

Ficou combinado que o chanceler falaria com a princesa e que iríamos visitá-la no dia que ela assinasse. Era agora altura de tratar dos assuntos referentes ao nosso comércio em Polónia.

- Gostaria de poder garantir-te que tudo resultará a contento - disse Szydlowieski. - Mas não depende da nossa vontade. A guerra, vês?, está aí às nossas portas.

- Em Maio - disse Tarnowski - eu próprio subirei à fronteira dos Cárpatos à frente de minhas tropas.

Como quer que fosse, o chanceler prometeu remover o mais possível os obstáculos que estorvavam o nosso comércio e, com mostras de muito acatamento, despediu-se de mim até ao outro dia. Quando saímos, disse-me Tarnowski:

Compreenderás, amigo Damião, que, na questão húngara, o chanceler Szydlowieski, e eu, devo confessar, sustentamos a causa de Fernando primeiro contra João Szapolyai.

E que questão húngara é essa?

João Szapolyai pela morte da irmã Bárbara, rainha da Polónia, julga-se com direito a este reino. Por seu lado, o arquiduque de Áustria, Fernando, casado com a irmã do rei Luís da Hungria e da Boémia, pela morte deste na batalha de Mohacs, reclama os dois reinos. Szapolyai foi coroado rei da Hungria. Fernando não teve dificuldade em ser nomeado rei da Boémia. Aqui tens a questão húngara: ambos querem aquela coroa e Szapolyai também a da Polónia. Nós, os Polónios, temos o nosso partido e não aceitamos Szapolyai. Preferimos que a sobrinha dele, nossa princesa Hedviges, case com um príncipe que nos quadre. A aliança com uma dinastia tão ligada à dos Habsburgos e com um poder marítimo confrontado com os Otomanos, como é a de Portugal... enfim, será necessário dizer mais?

- Estou a entender. Aí tens. Se...

- Atenta - concluía. - A ideia de uma frente antiturca da Polónia com a Escócia e Portugal paira no ar. Pareceu a Szydlowieski, e eu sou da opinião dele, que tal seria próprio para reforçar aqui o partido pró-habsburguês.

Chegávamos a sua casa, onde ele insistia em me acomodar. Praticámos ainda longo tempo depois da ceia, até que ele insistiu comigo me recolhesse a descansar. Enquanto me deitava, não deixei de cuidar que, sendo a cotoa polaca electiva, o meu querido infante Luís poderia superar no trono dos Jagelões o filho do segundo casamento de Sigismundo. Sim, quando eu regressasse a Antuérpia escreveria a el-rei João a dar parte do assunto.

A visita à princesa Hedviges foi dois dias depois, à tarde. Vivia ela em seus paços, numa ala distinta do formoso castelo do morro onde havíamos já estado. Era jovem e recebeu-nos com simplicidade, vestida de cavaleira, um pouco afogueada, o que lhe alumiava o semblante:

- Desculpai receber-vos sem a costumada cerimónia, senhores. U chanceler Szydlowieski e o capitão Tarnowski não o notarão. Já me conhecem. Mas o cavaleiro português...

- Damião de Gois, Alteza - inclinei-me a beijar-lhe a mão.

- Andava a cavalo. Vim numa corrida. Ah, como é bom cavalgar pelos prados neste tempo morno! Cavaleiro e português, certamente que o apreciarás, não é verdade?

- Infelizmente, senhora, as minhas últimas cavalgadas têm sido afadigadas e longas jornadas de muitos dias. Não vo-lo desejo.

- Sentemo-nos, pois, e falemos.

Como todos os outros, quis saber de Portugal os feitos que estrondeavam pelo mundo. Mostrou-se conhecedora da nossa história, da genealogia da família real portuguesa...

- ... de muito longe aparentada com a minha... - dizia.

- Sim - atalhei. - Já do rei Sancho, primeiro deste nome, reza uma crónica velha que foi casado com a rainha Doce, filha de el-rei de Aragão e da rainha Urraca, de quem houve quinze filhos e filhas que casaram com reis e rainhas e grandes príncipes, em tanto que a linhagem real da Cristandade foi tinta da sua geração.

- Assim é, Damião de Gois.

Szydlowieski entremetia-se e eu bem sentia que tentava puxar a conversa para a descendência de el-rei Emanuel e para o infante Luís. Tarnowski acolitava. Chegaram ao seu intento e tentavam por meias palavras tocar matéria de casamento, quando eu, sentindo algum constrangimento na princesa, me adiantei:

- Senhora, se me permite tua graça, trago-te lembranças do meu país

- e abria-lhe diante uma boceta de veludo carmesim com um rico colar...

- Pérolas! - exclamou tomando-o nas mãos.

- ... dos mares da índia, senhora.

- Estou-te muito grata - e, virando-se atrás, fez sinal ao camareiro, que se adiantou com uma almofada de rendas e sobre ela um formoso ícone.

- Santa Margarida - explicou.

Não demorou mais a visita. Ao despedirmo-nos, disse-me:

- Muito me aprouve, Damião de Gois, conhecer um representante de el-rei de Portugal, nação que entre todas, tirante a minha, trago no coração

- e estendia a mão a beijar.

Saímos e, mal montámos a cavalo, dispara Tarnowski acalorado:

- Viste? Percebeste o que ela quis dizer?

- «... trago no coração!...» - repetia Szydlowieski.

- ... a nação, Portugal - rectificava eu. - Não me parece que tivesse querido dizer senão aquilo mesmo.

- Não, não. Aquilo era mensagem cifrada. Para bom entendedor... -- teimava Tarnowski.

- Ficamos pois a saber que ela dá o seu acordo a tal enlace - concluía o chanceler.

- Não sei.

- Vá, querido Damião. Trata de escreveres a teu rei.

Por mim, a ideia que me ficava da senhora infante era a de mulher de bom parecer, airosa, alegre e muito discreta. Mais não me atreveria a adiantar. Os bons do chanceler e do capitão tanto desejavam casar Portugal com a Polónia que já viam linguagem cifrada na água transparente que era a princesa Hedviges.

O dia seguinte levei-o em despachar negócios da feitoria e logo me preparei para o regresso. Tarnowski, os olhos aguados, ao abraçar-me desabafou:

- Em ti, Damião, abraço Portugal, o meu país de adopção. Cheguei a Antuérpia ia Junho no fim. Os amigos receberam-me de braços abertos e festejaram o meu regresso.

- Então, Damião, conta-nos. Como correu a tua grande peregrinação?

Rui Fernandes, sempre atento e compreensivo, interveio:

- Deixai o rapaz. Logo conta, à ceia. Agora o de que precisa é de um bom banho e mudar de roupa.

Subi aos meus aposentos. Mandei preparar o banho e esperava que Magda aparecesse. Em vez dela vieram com os jarros de água quente e as toalhas duas mulherezinhas de meia-idade que eu desconhecia.

- Magda onde está?

- Quem, meu senhor? . . .

- Magda.

- Somos novas na casa, meu senhor.

- Procurai por ela.

Saíram. Fui-me lavando e já me enxugava, de pé sobre a selha, quando uma delas da porta disse:

- Senhor, Magda já cá não está.

- Que aconteceu? - perguntei, procurando dar à voz, ao parecer e aos gestos entoação indiferente.

- Não sei, meu senhor.

- Está bem. Fecha a porta.

Que teria acontecido? Vesti-me e desci à ceia. As serventes esperavam perfiladas quando entrámos, saudavam-nos com uma leve vénia. Olhei-as.

o vazio de Magda. Não queria perguntar por ela a nenhum dos companheiros. A quem então? Ah! Ali estava uma amiga. Esperaria ocasião. A ceia foi-me penosa, a responder a todas as curiosidades. Relatórios completos, discussão de negócios, de números, de lucros, só no dia seguinte na banca da feitoria. Quando nos retirámos, fui à copa. As mulheres ceavam conversando. Levantaram-se à minha entrada não esperada.

- Deixem-se estar à vontade - disse. - Só queria uma palavrinha à Lena.

Lena, uma moça da idade de Magda, a única sabedora dos nossos amores, veio até à porta.

- Lena - perguntei sem disfarçar a ansiedade -, que é feito da Magda?

- Ai, senhor. Morreu-lhe a mãe. Foi à terra. Tive notícia de que o pai não a deixou tornar e a obrigou a casar por lá.

- Isso foi há...

- ... logo que tu partiste, senhor. Lena viu a dor no meu rosto:

- Tenho pena. Por ti e por ela. Quando partiu ia a chorar, a coitada.

perder a mãe. perder-te.

a mãe, perder-te...

De súbito, meia légua andada, na brancura cinzou castelo e arvoredo. Era Gottorp, em que pousava, esse fim de Janeiro de trinta e um, o rei da Dinamarca. Tive de aguardar três dias que me recebesse. Fui agasalhado por mandado de el-rei em casa de um vereador da cidade de Schleswig, onde fui banqueteado. Aí encontrei dois conhecidos de Dantzig: o síndico Johann Dressier e o conselheiro Hermann Bremer. Esperavam, como eu, que Frederico primeiro os recebesse. Soube que vinham pelo mesmo motivo.

- Desde Julho do ano passado - disse Bremer -, uma data de contactos infrutuosos do Senado, dos representantes dos armadores de Dantzig.

- Queremos honrar os nossos compromissos com os clientes, compreendes, Damião? - acrescentou Dressier. - Somos pessoas de bem. As coisas não se têm resolvido. E tu? Falar ao rei?

- ... de mandado de el-rei João terceiro de Portugal.

Chegados antes de mim, foram recebidos primeiro e, quando à tardinha chegaram da audiência, deram parte da resposta que receberam: o rei da Dinamarca indemnizava os ex-proprietários do Michel...

- ... «ex-proprietários», repara, Damião - interpôs Bremer -, como o roubador de um trono rouba a propriedade de cada um...

... e, a fim de eles poderem satisfazer os compromissos com os clientes, ordenaria o encaminhamento do frete ao seu destino.

- Em Cracóvia acompanha-se o assunto - contava Dressier. Cavaleiros da Ordem Teutónica, inimigos do antigo grã-mestre, intrigam junto do imperador Carlos. Em carta que lhe enviaram asseveram que o Michel, construído a pedido de João terceiro com vista a operar contra os Turcos, foi apresado por indicação de Alberto de Brandeburgo, que se pôs de acordo com a Dinamarca, a Suécia e a Polónia para fornecer armas aos Otomanos.

- El-rei João - adiantei - só precisa da vossa madeira, não dos vossos estaleiros para construir naus e caravelas. Tem os seus carpinteiros, calafates e mestres.

- Sabemos isso - disse Bremer. - Mas a insinuação de que o apresamento tenha sido inspirado por Alberto de Brandeburgo é provável. O resto, habilidosa má-fé, na altura em que Carlos quinto se prepara para saltar sobre os Turcos.

- Alberto chegou ao cúmulo de propor que o imperador se assegurasse de Dantzig. Que os de Dantzig lhe eram favoráveis, vê tu. Sigismundo teme que as vindas de emissários de Dantzig ao Schleswig escondam negociações entre Dantzig e Carlos. Tivemos de enviar a Cracóvia a desfazer tais receios.

Aí estava eu a entender toda a teia do intrincado caso e a calcular o que o rei me iria dizer.

Os delegados de Dantzig partiram, quando eu me dirigia para o castelo real. Frederico é protestante e traz pendença com Carlos quinto, do partido de Cristiano. El-rei João havia-me apontado em pormenor o que sobre o assunto haveria de dizer e assim o fiz ipsis verbis:

- Nesse particular, que só a ti diz respeito, el-rei meu senhor garante a sua neutralidade e atribui primazia às boas relações entre os nossos dois países.

- Darás a el-rei João as minhas saudações e far-lhe-ás ver que esta questão do Michel é mais tecida do que parece. Ultrapassa e não pretende atingir o reino de Portugal. Tu sabes, certo, os interesses que estão em jogo. O apresamento do navio não é ofensa ao teu rei. Faz-lhe entender isto. O mais que posso prometer é que assegurarei o envio para Portugal de toda a carga e a indemnização de qualquer prejuízo.

Era a resposta que eu já esperava. No entanto não me dei por vencido:

- Senhor - disse -, vinha no Michel uma remessa de cobre destinada aos fundidores de Amesterdão para a feitura de sinos. Foi desviada por mor da guerra em que os luteranos andam com Cristiano...

- Já dei ordens para que seja pago o prejuízo, parte em sinos tirados às igrejas da Dinamarca, parte em sinos adrede fundidos...

- El-rei João terceiro certamente não folgará com a ideia de ver privadas de culto as igrejas da Dinamarca.

- A seu tempo, Damião de Gois, a seu tempo, também esse inconveniente será sanado.

Insatisfeito com as evasões e argúcias de Frederico, propus-me, a fim de me elucidar, ir ao cerne das coisas, Cracóvia, Sigismundo e, de caminho, de novo à cidade de Poznan, a tratar com mercadores e outras pessoas com que tinha que negociar. Partiria na manhã seguinte.

Foi memorável essa derradeira noite que passei em Schleswig. A ceia, o meu hóspede trouxe à mesa um cálice consagrado, cheio de vinho branco.

- Que fazes? - perguntei-lhe assombrado. Com o cálice na mão, respondeu-me:

- Vou bebê-lo. Neste vaso em que eu e meus antepassados fomos por muito tempo enganados.

- Peço-te que nesse vaso o não bebas.

- Porque não?

- Porque é consagrado e não há razão para que o faças. Tomou-o então o meu hóspede e o pôs diante de mim cheio de vinho.

Eli levantando as mãos e os olhos ao céu, por irrisão, bradou:

- Meu Deus, meu Deus. Converte este vinho branco em sangue e mostra nisso milagre.

Depois, como o conteúdo do cálice continuasse vinho branco e vendo que eu o não queria beber, tirou-mo de diante com gesto brusco:

- Es supersticioso - e de um trago enfiou o vinho pela goela abaixo. Tornando de ante el-rei Frederico, antes de me dirigir à Polónia vim ter à cidade de Lubeque, onde morava João Bugenhagen, mais conhecido por Pomerano, pregador da seita luterana. A casa onde me agasalhei era de um dos governadores da cidade, também, ao que julgo, luterano como quase toda ou mesmo toda a gente aqui. Pretendendo mostrar-se prestável ou então, malícia minha, levar a água ao seu moinho, perguntou-me:

- Queres conhecê-lo? Convido-o para jantar...

- Folgaria de o ver.

Era homem alto, cabelo todo branco, semblante agradável. Jantámos todos a uma mesa, eu, o capitão, João Bugenhagen e outras pessoas honradas da cidade.

- Ah! Português! - admirou-se Pomerano.

- .... ergo católico - respondi.

Quis saber coisa de Portugal, como é habitual, e às tantas desabafou:

- Que pena! Nós é que estamos ainda no começo. Se tivéssemos os nossos missionários, como vós, essa gente nova que descobris, pagã e virgem na fé como está, receberia a verdade da pura fonte. Haveria eu de ir por esse mundo a pregar a boa nova. Assim, prego-a aqui, na Pomerânia. Daí o meu apelido.

- Então julgas que a boa nova... - ia eu a rebatê-lo com vigor, cortou-me a fala o nosso hóspede:

- Pomerano é delegado em Lubeque do sínodo luterano. Dirige aqui o culto evangélico. Homem douto, professor da Universidade de Vitemberga. Escreveu um livro em língua alemã, Do Governo da Cidade, assim do secular como do mais, acerca de seus costumes e de como se há-de viver...

- Terás de escrever em latim, se queres que o mundo te entenda - disse-lhe eu.

- Tens razão. Ando a preparar um nessa língua, a Ordinatio ecclesiastica.

- Não sou clérigo - tornei - para julgar dessas questões. Mas neste momento não posso deixar de considerar, com curiosidade, que, depois de ter já percorrido as terras católicas do rei Sigismundo, me encontro agora no seio do luteranismo.

- Daniel na cova dos leões - riu-se o capitão dando sinal de nos levantarmos da mesa.

Parti dias depois para o reino da Polónia, desci por Luneburgo e parei em Ulzen a descansar os cavalos. Na hospedaria, quando me sentei à mesa, falava-se com calor diante de canecas de cerveja quente. Como não entendia a língua, perguntei em latim a um homem que me pareceu ser frade e se sentara a meu lado se teria acontecido alguma coisa de importante.

- O nosso Lutero - respondeu. - Prega Domingo de Ramos em Vitemberga... - e desatava a falar...

Eu já não o ouvia. Ali perto, a algumas milhas de mim, encontrava-se de morada Martinho Lutero!... O meu direito caminho, passadas Luneburgo e Ulzen, assim quis o destino, ou eu o forcei em meu íntimo, tinha de ser pela cidade de Vitemberga. Desviei a rota umas três ou quatro léguas e, sábado, dia um de Abril pela tarde, aí estava na extensa planície a cidade à vista, bem afortalezada, grimpas de torres, arvoredo, o rio Elba a banhar-lhe os pés. Eu ia conhecer o homem que abalava Roma. Isso era ele para mim, embora soubesse que, para a maioria das pessoas das terras de onde eu vinha, era ele o herege, o apóstata, o frade arrenegado que vivia em mancebia com uma freira e tinha dela filhos.

O hóspede da pousada em que me alojei, em eu descendo de manhã, disse-me:

- Queres ir ouvir Martinho Lutero? Desde a Quaresma que tem estado a pregar na igreja. Hoje, Domingo de Ramos, valerá a pena ouvi-lo.

Disse-lhe que sim e logo ele chamou um seu criado:

- Hans, vai mostrar a igreja a este senhor. Ele quer ouvir Lutero a pregar.

Saímos, andamos um pouco e, ao virar de uma rua, surge-nos aos olhos a catedral. Ao olhar a fachada, senti um vazio no coração: Que aconteceu, Hans? Roubaram as imagens dos nichos?

- Não, senhor, isto foi...

- E os sinos do campanário? .

- Fundiram-nos para fazer canhões.

- Não digas mais, já sei.

Gelo súbito na alma foi quando entrei no templo. Nem pia de água benta nem altares nem santos nem flores, nem o calor da lâmpada do sacrário nem sacrário... Que fizeram do meu Deus? da minha religião? Metia a mão na consciência. Então não concordava eu com tanta coisa que os luteranos propunham, não me vinham à ideia as chufas certeiras de meu amigo Don Beltrán, do meu amigo Gil Vicente? Se eles aqui entrassem, certo também se sentiriam desgostados. Considerei então que uma coisa é podermos aceitar como certa uma teoria e outra pô-la em acção depois de enraizada pela tradição de séculos.

A igreja estava cheia de gente de cabeça no ar. Do alto do púlpito o vulto dele, negro, avantajado, gesticulava, pregava com ardor. Não lhe entendia coisa alguma do que falava. Somente das autoridades que alegava em latim me pareceu ser a pregação de Ramos... Cum ramis palmamm..., descrevia ele certamente a entrada de Cristo em Jerusalém. Os fiéis não tinham raminhos de arbustos nas mãos. Estive a escutar um pedaço, até que me enfadei e me tornei para casa. Há quanto tempo não vou à missa? perguntava-me pelo caminho. Deus me perdoe. Com as viagens, domingos e dias santos amiúde estrada fora de longada, desabituei-me de ir à missa. Confessava muitas vezes comigo que mais vale um bom pensamento virado a Deus onde quer que nos encontremos do que mil missas de corpo presente na moleza do uso. Sorria: estaria eu a tornar-me luterano?

- Gostaste? - perguntou-me o estalajadeiro.

- Não entendi nada. Não sei alemão.

- Também aqui tem morada Filipe Melâncton, outro luterano - informou-me. - Queres vê-los?

- Muito me prazerá.

Convidou-me o estalajadeiro e no dia seguinte - nunca me há-de esquecer essa segunda-feira, dia três de Abril de trinta e um - vieram aí jantar comigo e com o capitão da fortaleza. Lutero era um homem alentado, meão, largo de ombros, trazia uma veste preta até aos pés, a gola da camisa branca apertada sob a barbela, no cabelo castanho um gorro também preto, rosto quadrado, pescoço grosso, testa curta, os lábios finos cerrados, sinal de decisão, nos olhos toda a gana de alma: negros, fundos, luzia neles rervor que se diria místico. Melâncton, pequeno, magro, rosto comprido,

cabelo revolto, testa alta, olhar muito vivo, nariz de águia, barba e bigode, sorriso franco, sobre o jubão de estamenha a camisa aberta no pescoço. Antes que a prática derivasse para o feito de eu ser português, o que não surpreenderia, procurei trazê-la a meu intento:

- Tenho um amigo que, por ter seguido a tua doutrina, foi incomodado pela Inquisição de Bruxelas.

- Martirizaram-no? Não me admiraria. Começamos a ter os nossos santos e mártires...

- ... que não poreis nos altares.

- Não, decerto.

- Não, não o martirizaram a não ser com perguntas e admoestações.

Voltou à fé católica.

- Ou obrigaram-no. Alma fraca. Como se chama?

- Cornélio Schrijver ou Grapheus.

- Sei quem é. Excelente latinista e músico. Gostas de música?

- Componho alguma coisa e toco alguns instrumentos. Polifonia.

Abriu-se em admiração:

- Ora bem, que alguma coisa temos de comum, o amor da música.

E cantarem-se hinos nas igrejas?

Eu conhecia o assunto e entendi aonde ele queria chegar. Respondi sem hesitar:

- O canto é manifestação espontânea da alma. Que melhor maneira haverá de louvar a divindade?

- Deus do Céu! - exclamou Melâncton. - Pareces um dos nossos a falar.

- Parecerei nisto e em alguma coisa mais, mas daí a seguir-vos vai muita distância.

- Que pensas das indulgências? - perguntou Lutero.

- Condeno-as. Mas não sois só vós a pensar assim.

- Vês? - disse Melâncton.

- Tudo o que eu faço e prego - disse Lutero - é a bom fim. Regressar à primitiva pureza cristã, reduzir este povo à verdade, para se salvarem as almas que andam airadas e perdidas.

- Que é a verdade? - interroguei. - Não foi esta a pergunta de Pilatos?

Martinho Lutero calou-se, metido em si. Filipe Melâncton alargava-se mais na prática:

- Que é a verdade? Olha. Queres saber porque sigo a doutrina de Lutero? Porque para mim não existem dúvidas: é a verdade o que ele ensina - e olhava-me e aos outros nos olhos.

Embrusquei-me:

- Belo argumento esse. É verdade porque é verdade. Ouvide, amigos. Será verdade alguma coisa do que pregais, mas com a mesma força e a mesma fé outros têm que são verdade outras verdades. Pelo mundo inteiro, como agora se mostra. Tive curiosidade em conhecer-vos e isso considero-o grande honra para mim. Mas não me sinto convertível. Conheço os pontos essenciais da vossa doutrina...

- Gosraria de tos ouvir - atalhou Melâncton.

- Diz lá quais são - desafiava Lutero. - Dir-te-ei se estás certo.

- Para além de condenardes a corrupção de Roma, um cristianismo desvirtuado pelos seus ritos, pelo tráfico de indulgências e o culto das imagens...

- Falas do particular, não do essencial...

.. particular que, aliado ao feito de Roma se preocupar demasiado com o temporal, foi a causa da vossa revolta.

- Assim é.

A partir daí, fostes bem longe. À transubstanciação opondes a consubstanciação...

... a imagem do ferro em brasa - lembrava Melâncton.

- Mudemos de assunto - tentou o capitão cortar o endurecimento das palavras.

- ... agustinianos contra dominicanos, guerra de escrita...

- A nova invenção da imprensa muito ajudou à propagação das ideias.

- Sabes? - disse Lutero. - Toda esta luta, no fundo, é o caminho lento e difícil do despotismo para a liberdade.

- E se déssemos um passeio pela beira do rio? - insistia o capitão.

No silêncio dos pensamentos interiores, todos nos levantámos aceitando de boamente a ideia. Saímos pelas ruas onde os rostos das gentes respiravam Primavera e Páscoa. Ao passarmos muitos faziam vénia, tirando chapéu e barretes a Lutero. Melâncton tratava comigo acerca da querela das imagens:

- Se a teoria está certa - rebatia o que chamava o sentimento de coração terno -, porque não ter a braveza de a aplicar?

- A fé, amigo - opunha eu -, é adesão da vontade, não do raciocínio.

- Ora que não, ora que não - arrebatava-se.

- Amigos - interrompia o capitão -, convido-vos a merendar comigo na fortaleza.

Estavam barcos acostados na margem do Elba, ao longo de um renque de álamos que seguia a linha das muralhas, e outros vogavam nas águas carregados de lenha, tonéis, fardos de feno. Por uma das portas entrámos à fortaleza e subimos a um terrado em que, sob faias frondosas, se alinhava com seus bancos uma mesa de pedra. Veio cerveja, ovos cozidos e uns pãezinhos com uvas passadas.

- Não precisamos de medianeiros - dizia-me Lutero que ouvira parte da minha conversa com Melâncton. - Com Deus, com Deus é que falamos. Nem santos nem intermediário da confissão.

- Por isso nas nossas igrejas - ajuntou o amigo - não vês essas caixas fúnebres que se chamam confessionários.

- Ainda há pouco falavas, a propósito de Grapheus, dos vossos santos e mártires.

- Chamemos-lhes antes pessoas virtuosas. Mas, repito, não as pomos em altares.

- Não vos faltarão também um dia os vossos carrascos, a que chamareis o braço de Deus. Haveis um dia de vos canonizar uns aos outros.

- Nunca. Santos não, nem altares nem papa. Só Cristo.

- Templos gelados - comentei.

- Templos aquecidos pelo fervor das almas. Paredes nuas como no tempo dos apóstolos. Sem a ganga de impurezas que os papistas acumularam durante séculos.

- Não troco - disse eu sem paixão - a minha capelinha da Senhora da Várzea, com sua imagem tosca, o altarzinho atoalhado de linho, o meu São José e a sua vara florida de açucenas, a acolitarem o Santíssimo no sacrário do altar-mor, em frente a lâmpada de azeite das minhas oliveiras a adorar o Senhor...

- Tudo isso poderá ser muito bonito - retorquiu Melâncton - mas não é teológico.

- Teológico?

- Sim. Dizeis no credo, tal como nós, que acreditais num Deus uno. Mas, ao contrário de nós, adorais muitos deuses. Eis como Roma de novo se paganiza.

- A veneração dos santos nem os diviniza nem é adoração devida só a Deus.

- A pureza da doutrina é coisa mais séria. Por isso nós deitámos mãos à tarefa do ensino, fomentamos a abertura de escolas...

- Não troco - teimava eu - o meu Cristo descido da cruz, esculpido pelo santeiro da minha terra em tamanho natural, tão ferido de chagas arroxeadas, descidas as folhas violeta dos olhos macerados, descaída a face no ombro da mãe lacrimosa...

Sorriu-me Lutero:

- Poderás fazer com isso formoso hino que comoverá as almas, mas não saltes do texto dos Evangelhos.

Calou-se e olhou o céu:

- A tarde avança. Vinde a minha casa - rogou-nos. - Gostaria de mostrar-vos a singeleza dela. Damião poderá então, quando regressar a Antuérpia, testemunhar aos amigos que Martinho Lutero não vive no luxo como o papa de Roma. Fui a Roma um dia. Sabias? Vim de lá horrorizado. A grandeza da basílica, a riqueza, o ouro, os mármores e basaltos, o despejo da nudez das imagens, Brabante, Rafael, Miguel Angelo... o Vaticano... Aquilo não era Cristo. Foi pago com o dinheiro das indulgências arrancadas à ignorância do povo ou à má consciência dos poderosos e ricos.

- Amigo... Posso chamar-te amigo?

Anuiu com um meneio, deitando-me o braço pelo ombro. Continuei:

- Crença, opinião, modo de vida, respeito-os se são sinceros e honestos.

Saímos de nosso vagar. O ar começava a esfriar. Lutero ia dizendo:

- Eu sou um lutador. Prego a minha cruzada.

- Não sem perigo - explicou Melâncton. - O papa Leão a princípio quis negociar, depois lançou o anátema. Recordas-te, Lutero? Ainda hoje me rio. O que tu disseste e escreveste: «Papazinho, papazelha, és um asno, és um aselha»...

- Palavras pouco cristãs, confessemos - disse eu.

- Por vezes excedo-me...

- ... e queimaste a bula da excomunhão, ali naquela praça... - Melâncton apontava e virando-se para mim: - Esse jovenzinho espanhol, Carlos quinto, imperador a partir de quinhentos e dezanove, convocou-o para a Dieta de Worms, em Janeiro de vinte e um. Compareceu. Recusou retratar-se. O imperador baniu-o do Império, mas a sentença não pôde ser executada. Frederico, eleitor do Saxe, fez que o levassem pela calada da noite e escondessem na fortaleza de Vartburgo...

- Ali me retiveram cerca de dez meses. De Maio de vinte e um a Março de vinte e dois...

-... escondido sob o nome de «cavaleiro Jorge» e sob umas façanhudas barbas e guedelhas. Ano proveitoso: traduziste a Bíblia...

- Uma luta - disse Lutero. - Mas não massacremos o nosso amigo. A casa de Lutero era uma casinha de rés-do-chão e um sobrado, muito arrumada e limpa. Catarina, a mulher dele, tinha bom semblante. Sem afectação convidou-nos a sentarmo-nos à mesa. Estendeu uma toalha, foi dentro e ela própria nos serviu as iguarias, avelãs e maçãs.

- É pobrezinho mas de boa vontade. Sei que não trazem muita fome. De feito não tínhamos vontade de comer, mas provámos das avelãs para não desfeitearmos a anfitriã.

Puxando-me do braço, Martinho Lutero levou-me a um canto da salinha onde se encontrava um clavicórdio.

- Toca alguma coisa para ouvirmos.

Não me fiz rogado e sentei-me. Depois de uns acordes a experimentar o instrumento, iniciei o moteto e entrei a cantar:

En dilectus meus loquitur mihi:

Surge, proper a, arnica meu...

Os outros aproximaram-se. Lutero procurava já seguir em segundo tom a melodia. Tinha uma voz clara e muito agradável:

... columba mea, formosa mea, et veni...

Muito belo, Damião. Tornemos ao começo.

Melâncton desta vez entrou também num terceiro tom. Voz poderosa de barítono a contrastar com o franzino do corpo.

 

En dilectus meus loquitur mibi:

Surge, propera, arnica mea,

columba mea, formosa mea, et veni...

 

Eis que me fala o meu amado: levanta-te, apressa-te, minha amiga, minha pomba, formosura minha, e vem...

- Belo, belo! - exclamava o capitão. Catarina de Bora sorria desvanecida.

Nunca me esquecerei dessa hora da minha vida. Quando nos retirávamos, ele disse:

- Fico-me por aqui. Tenho de preparar os meus sermões.

Eu, o capitão e Melâncton fomos caminhando todos os três e numa ruazinha estreita Melâncton, parando diante de uma porta, convidou:

- Dai-me a honra de também eu vos trazer a ver a minha pobreza. Entrámos. Numa quadra humilde estava sentada a mulher fiando, a roca na mão esquerda e fuso a girar na direita, muito magra, vestida com uma saia velha de bocaxim. Levantou-se quando nos viu.

- Não se incomode, senhora - acudiu o capitão.

- Trago-te um amigo português - disse Melântcon.

- Ah, português!

- ... Damião de Gois, da feitoria de Antuérpia.

- Deus te salve, senhor.

- Salve-te Deus, senhora.

- Que lhes hei-de servir, Filipe? - perguntou a mulher e pelo olhar que lançou ao marido se notava alguma angústia.

- Nada, nada - atalhava o capitão. - Acabámos de merendar na fortaleza...

- ... e das maçãs e avelãs, em casa de Lutero...

Era pobre Melâncton e esta pobreza ali tão patente constrangeu-me. Não demorámos. Saí com os outros depois de saudarmos a dona. Melâncton e o capitão, por cortesia, acompanharam-me à hospedaria onde eu pousava e de seguida foi cada um a sua vida.

O outro dia, que era terça-feira, estando eu a aprestar-me para partir, veio Melâncton visitar-me. Convidei-o a jantar comigo e depois de jantar fui com ele até à porta de Lutero a despedir-me.

- Desejo-te boa viagem e que Deus te acompanhe - disse Lutero.

- São também os meus votos - acrescentou Melâncton.

- Ficai muito embora, amigos.

E me fui meu caminho com o pensamento ainda em tumulto por ter conhecido e convivido com homens de que tanto se falava no mundo com tão desencontrada paixão.

 

O Preste João em Dantzig

Seguimos algumas milhas pelo trilho da margem do Elba, à sombra dos choupos, mas breve a nossa rota teve de deixar o rio na direitura de Berlim, Breslau, rumo a Cracóvia. Longada de dias, com paragens para o penso, a muda ou o descanso das montadas, dormidas em albergues solitários de descampados, encontro com pessoas de carrancas duvidosas que nos forçavam a constante vigilância. Receávamos ser assaltados a todo o momento na escuridão de arvoredos, na dobra de alguma colina. Mas o que primeiro nos salteou foi a majestade do que nos faz sentir vermes da terra.

- Chefe - chegou-se a mim o maioral, apontando ao alto -, parece que vamos ter borrasca.

Olhei o céu. Começava de se embrulhar, de soprar um ventozinho fresco a arrepiar-nos a cara. Aves de piar lúgubre recolhiam à folhagem.

- Manda resguardar a mercadoria, a bagagem...

- Será prudente vestires o jubão, senhor. Vem aí água da grossa. Os cavalos desinquietavam-se.

- Hou! Tem, tem, dum raio!

Entrávamos na espessura da floresta, quando súbito copas, troncos, ramos das árvores se alumiaram de um luar de chumbo e sobre as nossas cabeças o estalo seco do trovão abalou natureza e corações. Os animais, assustados, empinavam-se e relinchavam de olho desvairado, tresmalhavam-se, com grande trabalho dos montadores que nos esforçávamos por dominá-los, os de tiro disparavam à desfilada com as carretas aos solavancos.

- Hou! Hou!

- Louvor de Santa Bárbara!

- Cuidado aí!

Cintilos de relâmpagos, luzidos, meus olhos cegos, fulmina e corrusca

o raio, a rachar à nossa frente de alto a baixo um roble de cem anos feito archote gigante, e logo o rumor do monstro, fragor, ribombo, estalo de tábuas sobre as nossas cabeças, a rebolar, a ressoar, a roncar e a perder-se ao lQnge em negaças de fera, e do negrume das nuvens o firmamento a dessangrar-se em cordas de água e pedras de granizo que nos forçaram a determo-nos sob a ramagem. Durante muito tempo o dilúvio nos encharcou cabelos, nos lagrimava os olhos, entrava por orelhas e narizes e boca, escorria pelos peitos, barriga, bolsas, pernas, até às unhas dos pés atascados em lamaçal sulcado de milhemos riachos. Cavalos e mulas, parados, esternutavam, escoucinhavam, fumegando das narinas e dos lombos suados. Um escolar trovador que aí vinha despejou a guitarra alagada e pôs-se a chocalhar e a cantar:

Está-me a bolseira lavada de tanta água que caiu.

- Milagre! - disse-me a amada.

- Nunca tão limpa se viu!

E, como favorecera a jogralice com um gesto obsceno, digitum médium ostendens, parece que até alemães e polónios e demais estrangeiros que aí vinham entenderam o despejo. Toda a encharcada companhia se riu e, quanto é de crer, a mesma natureza se inficionou do bom humor, que a chuva deu em amainar até que parou, o céu abriu e o sol coou por entre as frondes. Adiante, numa clareira, o arco-íris coloriu-nos as almas.

Ajuntámos os animais e tentámos sossegá-los afagando-lhes pescoços e chegando-lhes das favas e torrões de açúcar às beiças nas mãos aconchegadas. No avaliar dos estragos, chegou-se o maioral:

- Grande desgraça, senhor! A carroça desarvorada. Um dos cavalos foi atingido pelo raio e arrastou o outro, carroça, tudo contra um tronco de árvore e pela ravina abaixo. Tudo, tudo esfrangalhado. O carroceiro morreu...

- Morreu? Desolados todos:

- Pobre Juão!

- Há algum padre na companhia? - perguntei.

- Vem aí um estudante de teologia. Diz que é anabaptista.

- Senhor. Nós cá nos arranjaremos. Aquilo não é católico.

- É mais homem de Deus do que nós. Ide por ele. E o resto?

- A carreta desfeita, a carga espalhada, um cavalo morto, o outro a perna partida.

- Acomodai a carga nos outros carros.

- E o cavalo? é preciso abatê-lo.

- Fazei isso longe de mim.

Os cavalos mortos deixá-mo-los aos abutres e a outras fomes da floresta. Quanto ao nosso companheiro, uma cova na clareira, algumas pazadas de terra, as encomendações da alma, uma cruz de paus, eis o fim de um pobre bicho da terra baptizado.

Havia todavia outros assaltos que, em lugar de vermes da terra, faziam com as feras escondidas em nossos peitos que se libertassem e se arreganhassem.

Apareceram de repente, de todos os lados. Cavalgavam o vento e a grita, as espadas nuas a fulgirem no ar. Puxámos do aço e preparámo-nos para o recontro. Entre os meus homens vinha um, de alcunha o Pinheiro das

Forças, um gigante de estatura, força bruta e destreza. Ao primeiro que avançou travou-lhe do braço, volteou-o no ar e atirou-o contra os que o seguiam. Estatelaram-se cavaleiros e cavalgaduras num destroço tal que se não podia distinguir quem relinchava. Noutros lados também os salteadores saíam malferidos e já no chão jaziam alguns mortos, alguns sangrando estropiados. Os que restavam, assim como apareceram, assim fugiram da nossa vista.

Meado de Maio chegávamos a Cracóvia. O encontro com Sigismundo, se bem que cordial como da primeira vez em Vilna, não trouxe qualquer adianto à questão do Michel e a ideia de um possível consórcio da princesa Hedviges com o infante Luís também não foi avante. Tarnowski, chegado de Przeworsk, acolheu-me com a mesma alegria e de novo me agasalhou em sua casa e me banqueteou. Falámos do casamento.

- Escrevi a el-rei, como me havias sugerido. Deu-me Sua Alteza graças do aviso que lhe mandara, mas não avançou mais nada. E por cá?

- Outras malhas se urdiram. Quanto ao Michel...

- Percebo. A única resposta é a de Frederico da Dinamarca.

- Possivelmente.

- E tu? Sei que vais de novo partir em campanha.

- À frente do exército, a vinte e sete do próximo mês. Contra os Moldávios, lá para os Cárpatos...

Quis saber de mim, de Portugal, perguntava como me iam os estudos...

- Pretendo, mais cedo ou mais tarde, abandonar a feitoria e dedicar-me só às humanidades.

- O guerreiro e o humanista - dizia, alardeando sabedoria clássica.

- Não são estes os dois tópicos na abordagem da perpetuação do nome? A glória pelas armas, a glória pelas letras...

- Assim é de feito. Tu, o guerreiro, acabas de chegar dos campos de batalha aureolado de glória. Mas eu...

- Ainda hás-de escrever, verás. Matéria não te falta. Quem te houve contar dos Portugueses no mundo não tem dúvidas.

Mal sabia eu estar prestes a chegar esse momento que Tarnowski me augurava. Foi o caso que, tendo deixado Cracóvia e subido a Poznan, onde me demorei até fins de Junho por motivo dos negócios, me deitei a caminho para Dantzig, aonde cheguei a tantos de Julho. Para lá do assunto relativo ao Michel e dos tratos que em mão levava, aconteceu um dia - um qualquer diria que por acaso, eu porém assevero que Deo baud dubie auctore, isto é, por disposição de Deus -, travar conhecimento com o prelado João Magnus Gothus.

Vinha eu com o síndico Johann Dressier, que de novo aqui encontrei, da ribeira de Motlawa, onde assistíramos à animação do cais, ao afã de cargas e descargas, os entrepostos das caves nas casas burguesas atulhados de mercadoria ou na ilha dos Celeiros cheios de trigo e centeio. Entráramos pela porta do Espírito Santo, onde se ergue aquele poderoso guindaste, o maior que eu nunca vi nem na minha Ribeira das Naus nem em Antuérpia.

Alta grua a que vem ligar-se o falcão e as travessas que o aguentam. Duas grandes rodas de mais de três braças de diâmetro, no bojo delas a caminharem incansáveis os pés dos homens, a grossa corda a enrolar e desenrolar nos eixos, a içar e a descer pesos de duas toneladas no ranger dos madeiros. Seguimos nosso caminho até à Igreja de Nossa Senhora, vinha o arcebispo a sair do portal.

- Aí tens, Damião - disse-me Dressier -, o legado pontifício para a Suécia e a Polónia, Jons Mansson, ou por outra, João Magnus Gothus.

- João Magnus? Ouvi falar.

- Deus esteja contigo, eminentíssimo arcebispo! - salvou-o o síndico.

Parou João Magnus a corresponder ao cumprimento do meu companheiro, que logo acrescentou:

- Permite-me que te apresente o meu amigo Damião de Gois...

- Eminência - fiz eu vénia.

- ... secretário da feitoria portuguesa em Antuérpia e embaixador do rei João terceiro de Portugal.

- Muito grato - disse o arcebispo - por conhecer o representante de um reino católico de que tanto se fala. E isso bom, nestes tempos de heresia.

Era homem ainda novo, dos seus quarenta e poucos anos, alto e magro, cabelo escorrido loiro-espiga, rosto branco, mãos brancas, a contrastarem com o roxo de chapéu, batina e capa, o anel de sangue. A fala, um tanto rude, inculcava braveza de vontade ou então a amargura por se ver escorraçado da sua sede metropolitana.

Johann Dressier dirigia-se a mim:

- Sua Eminência sente-se infeliz aqui no exílio de Dantzig...

... quando, vindo do templo, também magro e alto, também loiro e branco, andar vivo na batina preta cintada com faixa de seda, se chegou a nós...

- Meu irmão - disse o arcebispo.

Olof Mansson, ou Olaus Magnus como querem os latinistas, cumprimentou o síndico e olhou-me com um leve saudar de cabeça.

- Damião de Gois, eques Lusitanus - apresentou Dressier.

- Reverendo - cumprimentei.

- Português?

- ... da feitoria de Antuérpia - disse o síndico.

- Muito folgo. Quantas perguntas trazemos no espírito! Não é, irmão?

- Temos, de feito, alguma curiosidade - respondeu o arcebispo.

Quando partes?

- Não o largaremos - disse Olaus sorrindo e tomando-me do braço como se fôssemos familiares havia muito. - Antuérpia! Passei por lá há quatro anos, quando, em representação do rei Gustavo, fui à corte de Magarida de Áustria. Ao regressar, nunca me há-de esquecer, esse mesmo ano Gustavo Vasa havia-se tornado luterano... - calou-se por momentos, entristecido, suspirou, depois tornou-se-lhe a abrir o sorriso: - Mas não vais partir, já, pois não?

- Descansa - respondi. - Não irei por enquanto.

Quereis conhecê-lo e conversar? - disse o síndico. - Nada melhor que em minha casa, onde Damião pousa. Vinde cear connosco esta tarde. Estás de acordo, Damião?

A honra é toda minha.

Aceitaram os irmãos Magnus o convite e assim se encetou entre nós amizade. Encontrávamo-nos amiúde e falávamos horas a fio. Curiosos de conhecerem pormenores acerca dos Portugueses, achei eu no entanto que seria cortesia minha mostrar-lhes, por meu lado, quanto desejava saber particularidades do seu exílio.

- Primacialmente - explicou o arcebispo - o que subjaz é a questão religiosa. O nosso rei Gustavo propôs-me ao papa para o arcebispado de Upsala. O papa Adriano sexto contrapôs João Trolle. Recusei a proposta do rei, que insistia comigo. Só aceitaria se a Santa Sé concordasse e Gustavo restituísse os bens usurpados à Igreja. Os luteranos levantavam-me calúnias e o rei, para me afastar, envia-me junto de Sigismundo primeiro da Polónia, com a missão de negociar o seu casamento com a princesa Hedviges...

- Com a princesa Hedviges? Isso foi em...

- ... em vinte e seis. Missão mal sucedida. Sigismundo exigia, como arras do casamento de Hedviges, que a Suécia não caísse nas mãos dos luteranos. Em vinte e sete, o rei rompe com Roma. E eu não tornei mais à Suécia. Não renego da minha fé católica, da minha obediência ao pontífice de Roma. Não cesso de guardar contacto com a minha pátria, com o meu rei, mas sou adversário dos malditos lobos luteranos. Aí tens.

- A mim - acrescentou Olaus - Gustavo Vasa confiou-me várias missões diplomáticas antes de quinhentos e trinta, até me despojar de todos os bens. Vim viver com meu irmão.

- Mas fala-nos, Damião - pedia João Magnus Gothus -, conta-nos de rebus Lusitanicis.

E eu a alongar-me sobre as expedições à índia, à Arábia, à Pérsia, a falar de como são longos e difíceis os caminhos para essas paragens, dos riscos do vastíssimo mar Oceano, das lutas assíduas com Árabes, Persas, Indianos de aquém e além-Ganges, das incursões anuais dos Turcos, que pelo golfo Arábico descem até à índia Menor e duramente, mas sem êxito, atacam os nossos...

- Maravilhosa epopeia! - exclamava Olaus.

- Maravilhosa cruzada! - repunha o arcebispo. - E esse grande preste João das índias de que tanto e tão nebulosamente ouvimos soar, esse imperador dos Etíopes?

- Etíopes, creio ter visto alguns - lembrou-se Olaus -, em quinhentos e vinte, na Suécia. Dizimava-os o cativeiro.

- Na Suécia? - admirei-me.

- Entre os prisioneiros do batalhão francês enviado em dezanove ao rei da Dinamarca a ajudar a combater a Suécia e a Gótia. Era comandante Gaston de Brézé e os soldados haviam sido recrutados, em parte, na Normandia. Expedição infeliz, os mais deles foram feitos prisioneiros.

- Não entendo. Etíopes? Recrutados na Normandia? - estranhei.

- Julgo - disse João Magnus - que meu irmão faz confusão. Esses primeiros negros a. serem vistos na Suécia poderiam talvez ser naturais de outras partes da África. Tu nos elucidarás.

- Escravos - supus - tomados na costa da Guiné pelos navegantes

portugueses...

- Aí está. Não são os vossos navios alvo principal do corso normando?

- E costume - continuou Olaus - aplicar a ladrões, salteadores e quejandos malfeitores a terrível pena da água gelada instilada gota a gota pelas goelas, castigo que também é atestado na Samárcia. Todavia os de Moscóvia, os próprios Suecos e Godos aguentam-na. Só os Etíopes, por causa da extrema crueza do calor, a temem. Raro que seja virem etíopes às regiões do Aquilão, certo é que vieram entre os mercenários do rei de França. Mas não foi a água frígida que os dizimou. Foi o duro cativeiro e a inevitável sepultura.

- Na mesma altura, estava eu em Roma - disse o arcebispo - e copiava Marco Polo. Era no mês de Agosto, na casa de Santa Erigida dos Suecos.

- Pelo que vejo - disse eu - gostas de saber de viagens.

- Dizes bem. Viagens, costumes diferentes...

- Temos muito de comum.

- Procuro compreender o homem. Estudei humanidades no Colégio Trilingue em Lovaina. Deixada, com o meu exílio, a actividade diplomática, dedico-me aos estudos históricos. Encaro o cristianismo de um modo alargado, tal como Erasmo e os verdadeiros humanistas. Por isso te pedia, à instantes...

- Perguntavas pelos Etíopes do Preste João. Vou satisfazer-te a curiosidade.

- Poderei ter-me confundido acerca de etíopes na Suécia - interrompeu Olaus. - Mas em Roma, quando lá estive de vinte e quatro a vinte e seis, cruzava-me nas ruas com monges abexins. Disso não tenho dúvidas.

- São cristãos que se submetem a Roma - expliquei -, mas até há bem pouco tempo desconhecidos de nós. Com estes meus olhos os vi, com estes meus ouvidos os ouvi, quando o seu embaixador foi recebido na corte de meu senhor el-rei Emanuel.

- Estavas presente?

- Presenciei quanto, parte por parte, ele expôs ao rei e aos nobres ali assistentes a respeito da fé, cerimónias religiosas e estado do reino do Preste João.

- Conta, conta com miudeza.

- Vou contar-vos em poucas palavras como é que vi e ouvi todas essas coisas. No ano da graça de mil e quinhentos e catorze...

Lá vem a nau Catrineta que tem muito que contar Ouvide agora, senhores, uma história de pasmar...

... uma história de pasmar, havereis, amigos, de assentir... - isto escrevo eu agora, nesta prisão da velhice, a fim de me fixar na memória cansada a minúcia de acontecimentos que se vão apagando, mas foi muito mais parco e discreto o relato oral que fiz então ao arcebispo João Magnus e ao irmão - ... história de pasmar quem, naquela tarde de sexta-feira do dia vinte e cinco de Fevereiro de quinhentos e catorze, passeasse pelo cais do porto de Lisboa. Acabava de varar no Tejo, em frente ao Cais da Pedra, uma nau vinda da índia. A gente da cidade ali se ajuntava, uns por parentes, outros por amigos, e no desembarcar havia risos, abraços, lágrimas de alegria, soluços de dor...

- Deus seja louvado! - de mãos postas exclamava entre a multidão uma alminha desdentada. - É sempre uma festa a chegada de navios.

- Uma festa para uns, angústia e dor para outros - rabujava um velho ao lado dela. - Vêm do medo e da morte.

Daquela vez, ao espectáculo de sempre veio juntar-se o assombro.

- Que fazem ali os meirinhos? Não me digas, mulher, que vêm prender alguém.

- Quem será? E olha acolá. Estão também uns fidalgos... -... tão ricos e ataviados...

- Vem lá gente de algo.

- Já sobem os meirinhos...

No tombadilho, diante de todos e sem mais:

- Capitão Bernardim Ribeiro, em nome de el-rei estás preso - deu ordem o meirinho-mor com sua vara na mão.

Para que não haja confusão, devo dizer que este capitão nada tinha a ver com o meu amigo e infeliz poeta. Descia o capitão da nau no meio dos meirinhos, faziam os fidalgos vénia a um homem de tez clara, cabelos castanhos, grisalhos como a barba, pelas costas até aos pés uma túnica de veludo, e a um jovenzinho negro, vestido de seda, a carapuça de brocado no cabelo encrespado. Atrás destes, duas formosíssimas mulheres de tez negra e a seguir frades e criadagem. E logo os senhores acompanhavam, portaló abaixo, o estranho séquito.

- Que terá acontecido? - interrogava-se a gentinha.

Que havia acontecido pois, meus amigos? Eu vos direi. El-rei Emanuel gostava muito de Almeirim onde tinha os mais dos invernos, pela muita caça do lugar. Caminhando para Lisboa com a rainha Maria sua segunda mulher, lhe deram novas em Alverca, aos dezanove dias de Fevereiro desse ano de catorze, de serem chegadas às ilhas duas naus da índia.

- Quem são os capitães? - perguntou.

- Bernardim Freire e Francisco Pereira Pestana, senhor. Diz que vem nelas um embaixador do Preste João.

- Finalmente iremos ter dele notícias?

- Não sei se serão boas, meu senhor.

- Porque dizes isso?

- O embaixador e sua comitiva foram maltratados durante a viagem, ao arrepio do que havia ordenado o governador Afonso de Albuquerque.

- E quem os maltratou?

- Os próprios capitães das naus. Em Moçambique, onde invernaram, tiveram-no encarcerado, deram-lhe punhadas e bofetadas e arrepelaram-lhe as barbas.

- A que pretexto?

- Alegavam que ele era um espião turco.

- Que autoridade tinham para o supor, se o governador...

- A coisa começou em Cananor. João de Melo, o capitão da fortaleza, desavindo com Albuquerque. Sopra-lhe ressentimentos um tal Gaspar Pereira e também a Francisco Pestana e a Bernardim Freire. Emprenharam-se-lhes as orelhas, pariram ódio, vingam-se no pobre do embaixador. Tratam-no como tramposo e embaidor e a Albuquerque como louco e temerário que de leve o acreditava.

- Não digas mais. Sei alguma coisa dessas intrigas. Escreve-me João de Azevedo a instilar veneno...

Chega el-rei a Lisboa e aposenta-se nos paços de Santos-o-Velho e, quando entrou a barra Bernardim Freire, logo o manda prender. Vá também, dispunha, luzida companhia de nobres e cavaleiros para trazerem embaixador e demais gente. Dêem-lhes pousada em casa de Gonçalo Lopes, almoxarife dos escravos, e despachando os oficiais perguntava:

- E a outra nau?

- Ainda não é entrada, senhor. Apartou-se passadas as ilhas.

- Assomado e de grande opinião, esse Pestana. Conheço-o. Capaz, pelos erros que cometeu contra o embaixador e em Quíloa sendo capitão da fortaleza, de ir tomar porto fora destes reinos.

Armassem duas caravelas. As capitanias a Diogo Dias e a António Mendes, cavaleiros de sua casa. Fossem-no buscar e lho trouxessem preso.

Mas velas pandas lá singrava ele Tejo dentro nimbado de gaivotas... e da nau foi levado preso à torre de São Pedro.

Ora, amigos, louvor de São Damião, que, por me parecer conveniente dar razão do alvo e da causa desta embaixada, importa desatar o negócio de mais longe.

El-rei João segundo teve sempre desejos de descobrir a navegação da índia e de catar alguma notícia do Preste João, por entender que se poderia ajudar dessa aliança. Sucedeu no trono, por seu falecimento (eheul em que inesperadas e duvidosas circunstâncias, Deus meu!), o venturoso rei Emanuel. No ano de mil e quatrocentos e noventa e sete, parte Vasco da Gama a romper as barreiras do Oriente. Chegam os nossos à índia, vêm capitães fortíssimos e submetem cidades e províncias. Ressoa a fama pelas serranias da Lua até onde nasce o Nilo e requebra na Etiópia, onde governa a rainha Helena na menoridade do enteado-neto, o imperador David. Nada mais útil, pensa, que atar laços com príncipe cristão tão asssinalado.

Um certo arménio Mateus, mercador cristão residente no Cairo... outros diziam que muçulmano recém-convertido... outros ainda que irmão do patriarca copta... ou casado com uma parente do negus, como se julga o próprio Mateus afirmava... sujeito prudente, probo, industrioso, conhecedor de línguas, da árabe, da persiana, servia-se a rainha dele em negócios de qualidade e confiança. Quem melhor para seu embaixador ao rei Emanuel?

Decide mandá-lo à corte portuguesa e com ele, para maior autoridade, um mancebo abexim de linhagem nobre, de nome Jácome, «meu cunhado», explicava Mateus. A ambos encontrei por mais de uma vez no paço e familiarmente lhes dirigi a palavra.

Parte Mateus para Zeila com o moço e a esposa e uma criada ou também mulher ou lá que era, nos turbantes, nas jilabas e babuchas disfarçados de mercadores mouros, escondidas nas roupas as credencias, embrulhada num trapo velho uma cruz preciosa que levam para o rei Emanuel, «do lenho em que foi Cristo pregado» dizia a rainha em sua carta. Lenta caminhada de camelos pelo ardor dos desertos. Ordens de embarcarem para a índia a pedirem ao governador português passagem para Lisboa. Em Zeila é roubado e preso, mas, conseguindo libertar-se, navega para Dabul, no reino de Bijapor, de Ismael Hidalcão. Suspeita dele o capitão do sítio, manda-o arrestar e apodera-se-lhe dos haveres, enquanto envia ao Hidalcão mensageiro a perguntar que fazer do espião. Não havia muito, Bijapor perdera Goa e o Hidalcão teme inimigo fortalecido por nova aliança. A poucas léguas de Dabul, em Goa, está Afonso de Albuquerque, após ter tomado a fortaleza de Benastarim a Roçalcão. O governador ameaça Dabul. O capitão, sem esperar resposta do Cão, dá a liberdade a Mateus e restitui-lhe os bens.

E Mateus recebido em Goa com honra e largueza, procissão desde o desembarque até à igreja na companhia do governador e de outros senhores nobres, missa, sermão de um frade de São Domingos e, no fim, ele próprio dá a beijar a todos a Vera Cruz que consigo traz, e há quem se afadigue a tocar e roçar na relíquia anéis e outras jóias. Acabado o acto, acompanha o governador a Mateus e comitiva à pousada preparada no paço para os agasalhar, dá-lhe duas escravas para serviço dele e da mulher, e dois moços abexins que sabiam já falar português. Mas vem quase esfarrapada a embaixada. Perfumem-se os corpos de almíscar, vistam-se de brocado e damasco, de seda e de veludo, enfiem-se nos dedos escuros brilhos de ouro e de rubis, para Mateus e suas lindas mulheres um colchão de Portugal grande e fofo, cruzados para compra do que adregar, moedas de ouro. Recomponha-se o séquito: além das duas moças de bom parecer que Mateus traz e do moço abexim de nobre linhagem, acompanhem-nos frei Marcos e frei Marias e cinco servidores, António, João, Manuel, Paulo, Pedro e o pajem Francisco...

Vai Mateus para Cananor. Leva carta de Albuquerque com ordens de Sue o embaixador seja embarcado com todas as honras para Portugal. Larga Bernardim Freire em Janeiro de quinhentos e treze, levando de conserva Francisco Pestana por capitão de outra nau. Recomeçam aí, como tenho dito, os trabalhos da embaixada e não terminam senão um ano depois, quando as naus aportam a Lisboa e os dois capitães são presos.

Deixou el-rei que aqueles dias descansassem os emissários e se passeassem pela cidade e fossem banqueteados pelos senhores. Na segunda-feira logo seguinte, vinte e oito de Fevereiro de catorze, mandou que Pêro Vaz, bispo da Guarda, e Maninho de Castelo Branco, conde de Vila Nova, com outros muitos fidalgos e suas valias acompanhassem os embaixadores a Santos. Recebe-os el-rei a pé junto do estrado, ajoelham Mateus e o jovem a beijar-lhe a mão.

Depois de expor a el-rei as razões da sua embaixada e ter entregado as cartas de crença e a da rainha Helena, retira Mateus de dentro de uma boceta de veludo carmesim a santa relíquia:

- Excelente e magnífico senhor. No solene momento em que te entrego esta cruz feita do madeiro em que Jesus foi crucificado, gostaria de fazer apelo à tua magnanimidade e rogar-te uma especial mercê.

- Diz - respondeu el-rei Emanuel atónito, por não saber se lá vinha pedido que não pudesse satisfazer.

- ... que o teu coração se abra ao perdão cristão, como o nosso já se abriu, e mandes soltar os capitães dos navios - e estendia-lhe a cruz.

Em silêncio ajoelhou el-rei a beijar a cruz e, levantando-se, deu sinal ao desembargador do paço:

- Assim se faça - ordenou.

Vi e venerei muitas vezes essa relíquia enquanto meu irmão Fruitos de Gois, moço da real câmara, a teve à sua guarda. Era um lenho preto e tinha uma argola pequena de prata. A rainha Helena quereria mandar muito ouro, mas não o fez com receio de que o tomassem os mouros nos caminhos.

Entregou em seguida Mateus os presentes que o governador mandava a el-rei. E aqui, por minha fé, aconteceu singular coisa que naquele tempo não atingi, mas que hoje serei dos poucos a compreender em toda a sua significação, sem que no entanto o possa sequer contar ao vento. Mateus oferecia a el-rei a metade de um corno da cor quase como unha de um

cervo...

- De que animal? - pegava-lhe el-rei.

- Não sei, meu senhor. Deu-mo o vosso governador para o trazer a vós. «Diz a el-rei de meu mando», disse, «que é de uma rara alimária.» Que tem a mesma virtude ou mais que o do unicórnio...

- ... uma rara alimária - mastigava el-rei.

Por trás de Emanuel o mordomo-mor torceu um sorriso indizível, embrulhou-se-lhe por um momento o semblante, já Mateus lhe estendia outro presente:

- Uma pedra a que chamam bazar, senhor.

- Conheço.

- Que tem grande virtude contra a peçonha...

- ... contra a peçonha - repetiu el-rei. - Porque escolheu Albuquerque tais presentes? - não conseguia disfarçar o carrego do cenho.

- ... e umas ricas cobertas para cavalo feitas em Daquém, com sua cola - e Mateus mostrava -, testeira e sela, o que tudo houve do despojo do Benastarim.

- Ah! - desanuviou-se-lhe o rosto a el-rei.

Nesse mesmo dia Bernardim Freire, que estava na Cova da Moura, e Francisco Pestana, que se encontrava na torre de São Pedro, saíram em liberdade.

Poucos dias depois, em prazo assinado, veio Mateus com o jovem Jácome à presença de el-rei e dos prelados do reino que andavam na corte e de doutores de Teologia, com assistência da assembleia dos nobres, a responderem em consistório, através de uma língua, a algumas perguntas acerca da fé e ritos que os cristãos do abexim têm e usam, bem como do estado do reino etíope.

O secretário de el-rei, António Carneiro, tudo anotava e escrevia. Tinha eu então doze anos de idade e era um dos pajens régios. Vi e ouvi tudo.

Os embaixadores permaneceram na corte uns catorze meses, sempre tratados com grande acatamento e vivendo a expensas do rei Emanuel, até nos dizerem alegres o adeus do retorno à sua pátria.

Assim, tacitis tacendis, contava eu, em Dantzig, ao arcebispo João Magnus Gothus e a seu irmão Olaus, o que se passara com essa embaixada do Preste João a Portugal.

- Mas diz-me, Damião, essa carta da rainha Helena, esses papéis sobre a religião dos Etíopes...

- Providenciou Deus que me viesse às mãos traslado de tudo isso.

- Como? - exclamou Olaus. - Ah, irmão! Damião tem de nos mostrar esses papéis.

- Dez anos passados, el-rei mandava-me para a Bélgica a tratar dos seus negócios. Acontece que os artigos que o secretário António Carneiro havia reunido e o traslado da carta da rainha, enviou-os no ano de quinhentos e quinze a Rui Fernandes de Almada, residente em Antuérpia, no ducado de Brabante, onde depois foi feitor de el-rei João terceiro e agora é meu companheiro e amigo na feitoria. Um dia, falando nisso, mostrou-mos e emprestou-mos para eu recordar na minúcia aquilo que tão novo havia presenciado.

- Qual o teor dessa carta de Helena?

- A dupla proposta de aliança militar contra os infiéis e matrimonial entre príncipes de ambas as nações.

- Essa rainha devia ser uma mulher de raras qualidades.

-- Sabedora dos negócios do Estado, ilustrada e piedosa, gozava de grande áurea entre os seus.

- Seria pedir-te muito que nos traduzisses para latim esses documentos?

- Fá-lo-ei assim que regressar à feitoria. Enviar-te-ei suma da fé, culto e estado dos Abexins.

- Deus to agradecerá. Ocupa-me o espírito a união da cristandade. Não bastava o anel em que os Muçulmanos pretendem esganar a Europa...

- ... andam os próprios cristãos em dissidência, vê tu... - acompanhava Olaus o pensamento do irmão.

- Portugueses e Castelhanos bem os rechaçaram da Hispânia e os mantêm quietos em Marrocos - ponderava o arcebispo.

- Na Polónia - disse Olaus -, Sigismundo procura não os deixar trasmontar os Cárpatos.

- É isso - continuava João Magnus. - Já se não trata de cruzada mas de defesa e sobrevivência. Carlos quinto prepara-se para insinuar uma lança contra o Turco através do Mediterrâneo. Vós torneastes a África, fostes de volta, com as vossas naus e caravelas, e por detrás deles combateis no mar Roxo, em Babelmândebe, em Ormuz, no golfo Arábico... Eis aí porque me parece importante dar-se a mão a esse Preste João e a sua nação. Roma e a comunidade católica da Europa devem acolhê-los ao seu grémio.

- O vosso Albuquerque via ao longe - disse Olaus.

- ... mas não foi compreendido - intervim. - Nem os nossos teólogos portugueses, quando o embaixador Mateus expôs em consistório os preceitos da fé e os rituais e costumes dos Etíopes, os compreenderam.

- Têm tanta diferença?

- Crêem na distinção de três pessoas distintas em uma só divindade e natureza, como nós, mas misturam usos da lei nova com ritos da velha. Circuncidam filhos e filhas. Baptizam-nos, os varões aos quarenta dias depois da circuncisão, as fêmeas aos oitenta. Repetem o baptismo cada ano no dia em que Cristo foi baptizado no Jordão. Não podem as mulheres entrar nos templos por quarenta dias se parem varões, por oitenta se dão à luz fêmeas. Os sacerdotes são casados, mas, se lhes morrem as mulheres, guardam celibato. Se cometem adultério ou se, falecida a mulher, caem em pecado, são privados do sacerdócio. Antes que digam missa, abstêm-se das esposas por alguns dias. É coisa ímpia frade casar-se. Tiram o calçado à porta da igreja e lá dentro é grave rir, conversar, passear, sequer pensar coisa que não seja sagrada. No jejum nada comem nem bebem antes que o Sol se ponha. Abstêm-se das bebidas que a antiga lei vedava. Confessam-se com frequência aos sacerdotes e comungam em ambas as espécies. Os monges têm por patrono Santo Antão egipcíaco, os bispos el-rei os nomeia, o patriarca elegem-no os monges e confirma-o o patriarca de Alexandria. Apesar das cerimónias judaicas, firmam-se somente na virtude e merecimentos de Jesus Cristo. São muitos os dias festivos, em que dão culto e honra aos que morreram em santidade. Tais são os usos do cristianismo dos Abexins.

- Isolados do resto da cristandade em montanhas e vales rodeados de mourama durante tantos lustres, já é milagre que se tenham conservado fiéis. Nem Roma nem o clero nem os príncipes católicos os devem discriminar. Exorto-te, Damião, a que ponhas em escrito o que nos contas. Tens em mãos um bom combate.

- Pobre de mim. Eu não sou padre.

- És humanista.

- Sou humanista? Utinam! E forças e talento para o fazer?

- Não sejas tão modesto. Não descansarei enquanto o não fizeres.

- Vamos, caro Damião! - secundou Olaus. - Ao trabalho! E não te esqueça - rogou-me mais uma vez - do que prometeste: que, regressado à Bélgica, me enviarás a descrição sumária, juntamente com os artigos de fé, do culto e do estado do império abexim.

No meu íntimo com quanto ardor desejava eu meter por aquela via. Por isso, prometi tudo diligentemente fazer.

Por muitos dias, enquanto me alongava em Dantzig, me reunia com os meus novos amigos, quer em minha pousada quer na deles, e a nossa assembleia era frequentemente acrescida de homens-bons da cidade que, sabendo do concílio, a nós se juntavam. Concorriam aí também, a conviver com o arcebispo, sacerdotes dos arredores, um dos quais se tornou para a vida meu amigo, o cónego de Frauenberg, Tiedemann Giese. Num serão em minha casa, a rogo do arcebispo eu toquei e cantei um daqueles meus motetes do Cântico dos Cânticos que mais parecem madrigais que hinos religiosos. Juntou-se a mim a voz e calor poderosos de Olaus Magnus, que, num intervalo em que eu mandei um meu pajem servir em taças de cristal vinho da Madeira, me abraçou e exclamou:

- Quando te fores embora, Damião, as nossas vidas ficam de novo mais pobres.

- Será a minha - respondi - que sentirá a falta da vossa conversação e estímulo, um arcebispo ilustre que estudou em Lovaina, teve por mestre Adriano de Utreque, futuro papa, e prepara a história da sua Igreja metropolitana e a dos Godos e Suecos, e este seu não menos sábio e erudito irmão, insigne diplomata e firme sacerdote católico... Essa tua história, amigo João Magnus... servir-te-á de alguma coisa aquilo que de Antuérpia te vou mandar sobre os Etíopes?

- Desejo saber mais a fundo acerca deles. Tudo muito nebuloso até agora. Há uma velha tradução em sueco de uma antiga carta dirigida pelo Preste João ao imperador Manuel de Bizâncio. Os Dinamarqueses propalam o mito da origem dinamarquesa... não quererás adivinhar de quem?

- De quem?

- Nem mais nem menos que do Preste João.

- Oh!

- Convém rebatê-los. Aliás, sou dado, desde muito cedo, a carrear conhecimentos novos. Foi assim que em Roma me pus a copiar Marco Polo. Mas há razões mais fundas que a simples curiosidade. Um historiador, que e ao mesmo tempo ’um metropolita, no exílio, de uma Igreja atacada da gafeira do luteranismo, tem de olhar a história de mais largo, como quem está no alto de uma serra, olhar de águia, em demanda de matéria de reflexão... - e o arcebispo desabafava: - Olha, exempli gratia. Na minha circunscrição metropolitana, ao norte da Suécia, sangra-me o coração de pastor ver parte do meu rebanho mantido na ignorância de Deus.

- De quem falas? - perguntei.

- Da nação dos Lapónios, na Círia.

- Como desconhecem Deus?

- Região vastíssima, nos gelos do Norte... Nem Deus nem Cristo nem lei nem qualquer padrão de vida humana acima da rudeza selvagem...

- Porque os não cristianizam?

- Projecto antigo, esse. Há cerca de duas centenas de anos a rainha Margareta já o anunciava...

- ... e Gustavo Vasa - ajudava Olaus -, há bem pouco tempo, em Setembro de vinte e três, propunha-se fazê-lo se o papa aceitasse consagrar os bispos que o rei escolhia na renovação da Igreja da Suécia libertada do jugo dinamarquês.

- Eu era um dos bispos escolhidos. Hesitações de Adriano sexto, recusa de Clemente sétimo em confirmar as nomeações do rei... recordo que o papa Clemente apenas me nomeou administrador do arcebispado de Upsala, não me sagrou arcebispo... o pendor de Gustavo para os luteranos, tudo isso me deixa desarmado... e os Lapões são esquecidos, abandonados...

- Grandes caçadores e pescadores - disse o síndico Dressier. - Peles de esquilos, belos salmões pescados nas águas geladas dos fiordes...

- ... e vêm os birkarl...

- Nobres?

- Mercadores suecos e finlandeses poderosos. Dão causa a que aquelas gentes se mantenham selvagens, se não façam cristãs, de modo a arrecadar para si boa soma do torpíssimo lucro.

- Rapinação e insaciável avareza... - assentiu um dos presentes.

- Esmagam gravissimamente aqueles míseros e inocentes - acentuava outro.

- Caso sem dúvida tristíssimo! - lamentava o arcebispo. - E eu sem poder fazer nada!

E aquela assembleia de homens-bons era um coro de lamentos:

- E verdade.

- Vergonha imensa!

- Infâmia!

Por mim, dei-me conta da triste condição em que estavam essas almas perdidas dos Lapões, numa Europa em que os cristãos se arrepelavam crinas de dogmas e feitios de ritos e orgulhos de teólogos detentores de verdades contraditórias, sem se darem conta que cada uma dessas gotas e borrifos faziam parte das ondas, das vagas, da mole imensa do mesmo mar do Criador.

Despeço-me dos amigos:

- Antes de regressar a Antuérpia, ainda tenho de ir a Marienwerder. - Fico à espera do prometido relato - disse João Magnus.

- Parto também - disse Giese. - Seria pedir-te muito que fizesses um pequeno desvio até Frauenberg? Aposentar-te-ás em minha casa.

Sabia-lhe eu dos conhecimentos de geografia, astronomia e matemática. Eram matérias que despertavam a minha curiosidade, sobretudo por estarem ligadas às navegações dos Portugueses e estudos por eles feitos do orbe da Terra, das estrelas, dos ventos, das marés, dos utensílios náuticos. Tinha-os ele adquirido em grande parte no convívio do parente, Nicolau Copérnico. Aceitei e pela orla do mar subimos a Frauenberg.

- Irás conhecer meu primo - dizia-me enquanto íamos de jornada.

É pessoa sábia e para além do comum. Iniciou-se em filosofia, medicina

e astronomia em Cracóvia, com dezoito anos. Desistindo de tomar ordens, foi para a Universidade de Pádua e depois para a de Bolonha, onde foi discípulo de Maria Novarra. Em Roma leccionou matemática. Tem um observatório em Frauenberg. Do resultado das suas pesquisas, acaba de concluir um livro que contém novidades de abalar o mundo.

- De abalar o mundo?

- É melhor eu não avançar mais nada. Ouvi-lo-ás em pessoa a expor-te as extraordinárias invenções.

Era homem de cinquenta e poucos anos, meão de estatura, magro, chupado de faces, cabelos castanhos a cobrir-lhe em farta madeixa nevada as orelhas, olhos vivos a furar a exactidão das coisas. Quando Giese me apresentou, olhou-me com curiosidade e disse, como se estivesse a concluir um pensamento longamente laborado:

- ... português, hem?... Se hoje já se provou que afinal os antípodas existem, o que ainda não há muito punha em causa a natureza da nossa fé, porque haverá de ser heresia a hipótese que sustento?

- Não me quererás explicar?

Foi uma longa conversa de muitas horas dispersas pelos três dias que ali passei. Levava-me à noite a perscrutar o céu, com paciência e precisão mostrava-me os seus cálculos, o resultado do estudo efectuado.

- De onde parti? Creio que dos princípios sustentados por Pitágoras e Platão da estrutura matemática do universo. Depois, Marciano Capela, ao admitir que Mercúrio e Vénus se movem em redor do Sol, leva-me à ideia de que o mesmo movimento se verifica nos restantes planetas e a trabalhar no meu espírito a hipótese pitagórica de ser o Sol o centro do Universo...

- Então a Terra - interveio Giese - é um planeta como os outros, não está no centro do sistema. Gira em volta do Sol como os mais e à sua volta roda a Lua.

- Mas isso... - ia eu a dizer.

- Heresia? - atalhou com desalento Copérnico. - Temo que o venham a acusar de tal. Mas não vejo maneira de explicar o movimento anual do Sol senão pelo movimento de translação da Terra, o movimento diurno pelo movimento de rotação. Possivelmente um terceiro movimento alumiará a desigualdade dos dias e das noites e a das sazões do ano...

- Se a Terra se move e o Sol é fixo - olhava-nos Giese, cheio de dúvidas erguendo as sobrancelhas -, como entender aquele passo bíblico em que Josué manda parar o Sol:

Sol, detém-te sobre Gábaon e tu, Lua, pára sobre o vale de Ájalão. E estacaram o Sol e a Lua... O Sol parou no meio do céu e pelo espaço de um dia não se apressou a pôr-se...

Não houve antes nem depois dia tão longo.

-- Receio - observei - que as mentes humanas ainda não estejam Preparadas para tão grande inovação. Que mais nos resta ver nesta nossa era? Baqueiam todas as certezas em redor de nós. Os dogmas religiosos são postos em causa. Os dogmas científicos na mesma. O mundo antigo alarga-se e dá lugar ao mundo moderno, com novas realidades. Em que haveremos de crer?

- Para onde fugiu Deus? - suspirou Giese.

- Pergunta antes para onde foge o homem - retorquiu-lhe o primo. E acrescentou, virando-se para mim: - Por isso, embora pense que as minhas investigações me levaram a um conhecimento experimentado, o meu livro sobre a revolução dos corpos celestes ficará na arca. Já estou a ouvir a grita que se levantará contra mim, serei pasto de riso, acusar-me-ão de contestar ideias tidas como certas sobre a situação e movimento da Terra de tentar subverter a Sagrada Escritura...

Como eram inanes - meditava eu dentro de mim dias depois, a caminho de Marienwerder - as questiúnculas de ciceronianos e não ciceronianos, luteranos e calvinistas e anabaptistas e católicos e anglicanos e papistas e antipapistas. Que era a verdade? Em nossa ignorância só nos restava sermos humildes e indulgentes.

Ia Setembro a caminho do meio, encontrava-me eu na margem direita do Vistula, naquele ducado da Prussia, a tentar ainda com Alberto de Brandeburgo desatar o negócio do Michel. Nada feito. É assunto frustrado.

Fiz aí mais uma amizade - meu Deus, salto de um prelado católico para um evangélico, ouço a voz da consciência a mexer com crenças de séculos! Quem sou eu? Que sou eu?... -, Paulo Sperato, bispo luterano da cidade, verdade se diga que o procurei a pedido dos amigos de Witemberga, mas, apesar de a visita ser breve, a amizade estabelecida foi duradoira.

Rapava a nortada orelhas, gelavam os pés. Dou-me conta de que a outonada seria rigorosa e cedo chegaria o Inverno. Apresso-me a partir. Havíamos tido um encontro de poucas horas. Senti-lhe a amizade, a sede de conversa:

- Já de abalada, Damião?

- Desabam-me em cima frios, neves, a que não estou habituado. O caminho é longo.

- Que pena!

Eram onze de Setembro. Parti. No dia seguinte apanhou-nos num albergue um mensageiro açodado. Um bilhete de Sperato, amável e sentido:

Beliscava-me ao cair da tarde de ontem não sei que génio a orelha, logo que te olhei, Damião de Gois, de entre os desconhecidos o mais caro, mas de quem mais conhecido eu desejaria ser. Cumpria no entanto acatar o tempo. Tu entregavas-te aos árduos negócios do teu rei, urgia partires. Assim nos apartámos um do outro. Console-me o facto de nesta terra bárbara ao menos uma vez ter eu visto um homem, alguém que merece nome de homem em confronto com bárbaros de tal espécie. Adeus, seja-me permitido ser teu amigo. Com mão apressada esta. Que o Senhor te guie e te reguie à tua pátria. De novo adeus. 12 de Setembro de 1531-Da Pomerânia, pelas terras baixas do Norte, eis-me retornado finalmente a Antuérpia. Laus Deo.

Outubro. Recebido em festa pelos amigos. Trago a cabeça tão ocupada que quase não sinto o calor de abraços e palavras. Nem os beijos de MagdaLena, saudade e paixão, alcançam divertir-me das tarefas urgentes. Essas excelentes criaturas mereciam que eu descesse até elas dos píncaros da minha prosápia e egoísmo. André de Resende chegara de Lovaina, onde era escolar, mal-avindo com os confrades dominicanos. Aceitou o convite do embaixador português, Pedro Mascarenhas, e recolheu-se a Bruxelas, ao paço dele, a ensinar-lhe a falar latim.

- Indispensável a diplomata ou orador acreditado junto do César e da Cúria, não é?... Mas conta-me. Como é que...?

- Proibiram os livros de Erasmo, vê tu. Na ocasião em que, em Setembro passado (vinhas no caminho do regresso), nas oficinas de Froben em Basileia era editado, sem eu o saber, o meu Elogio de Erasmo...

- Temes que isso tenha eco em Portugal?

- Temê-lo-ia se fosse impedimento de regressar à terra. Mas que me vejo súbito, sem o esperar, em confronto com os representantes da minha Ordem é facto.

- Tu, como Erasmo, és frade por a isso te haverem levado...

- Admiro o seu humanismo, a crítica à falsa religiosidade, ao fanatismo, ao nepotismo, mas numa coisa sou diferente. Ele não tem pátria, é daqui e dacolá, Roterdão, Paris, Oxford, Lovaina, Friburgo... Eu não abdico da minha pátria portuguesa e da minha Évora...

- Humanista é kosmopolítes, não é?

- Não eu. Limitação minha. Tu é que és cavaleiro andante. Acabas de chegar de ver mundo que poucos vêem.

Dedica-me uma ode em latim. Agradece aos deuses, a quem cabe o piedoso velar pelos homens, terem-me trazido incólume de entre mil perigos, da extrema nascente do Tánais, de entre os bárbaros Sármatas e o cruel Heníoco onde o Bóreas violento gela o mar e o Cita atravessa as águas dos rios feitas pedras pelos aquilões, de entre tantos povos que nem temem os deuses nem se abstêm de carnificina, levados pela bílis e pelo desenfreado furor do ferro...

Abraça-me o querido amigo e aconselha-me a que acrescente aos conhecimentos colhidos nas viagens o ir estudar para Lovaina e eu ponho-me a pensar se não será altura de lhe seguir o conselho.

Festa maior foi a do caro Grapheus. Agarrou-se a mim a chorar de alegria e até me beijou as mãos. Depois leu-me o poema que havia composto ao meu regresso:

Chegaste, Damião amigo, finalmente chegaste, sempre e sempre esperado dos teus. É-me dado ver de novo o teu rosto e ouvir, amigo, aquelas tuas palavras, para mim, acredita, duas, três vezes mais suaves que a doçura do néctar, do mel e do açúcar. Ah, que delongas te retiveram? Como pudeste tanto tempo estar ausente, entre gentes tão grosseiras e selvagens, entre Citas e Godos, tu todo finura e elegâncias?...

Temi, ansioso, que nessa longa peregrinação algum mal te sucedesse. De coração inteiro soltei súplicas, sem descanso atroando aos deuses te trouxessem ileso de regresso, a ti meu consolo, meu patrono e amigo. E ainda bem. Ouviram piedosos os meus rogos e deram-te de volta são e salvo. Já toco a tua direita, cinjo-te num abraço e fruo o gosto de contigo ter a fala desejada. Que dia feliz!

Nas horas que me vagam dos meus deveres na feitoria, não me esqueço do prometido, em Dantzig, a João Magnus Gothus e empenho-me na versão dos relatos do embaixador etíope Mateus e da carta da rainha Helena. Trabalhosas vigílias, à luz da lâmpada de azeite, olhos cansados, vermelhos. Lena ralhava-me da cama, esperando em vão por mim, e adormecia. Outubro todo se escoou, entrou Novembro, gemia nas janelas o vento, dedilhava a chuva, rufava o granizo ou afagavam pétalas de neve. Porque escrevi isto assim? Foi assim que me ficou, mais que a lembrança, o sentimento da mão de Deus naquelas rebeldias da natureza. Aí pelo dia vinte e quatro, uma notícia desviou-nos a todos as atenções.

- Senhor, senhor. Chegam naus portuguesas Já entram a barra.

- Ora que novidade, a chegada de naus de Lisboa!

- Com este temporal!

- Vamos lá - respondia eu levantando-me e vestindo o capote. Juntaram-se-nos Rui Fernandes e os companheiros André Vaz e Jorge Lopes. Numa aberta do céu, caminhámos de nosso vagar, habituados às demoras de atracagem e descarga. Falávamos de assuntos correntes, dos negócios, de alguns nadas da vida, de nugas. Ninguém esperava sair da norma, da trilha usual, mas era o inédito que aí vinha. A nau capitaina já acostava e, da amurada, acenava-nos adeuses estranha companhia. Era um grupo de cerca de vinte pessoas, entre homens, mulheres, moços e moças.

- Quem serão? Parecem conhecer-nos.

- Não faço ideia.

- Logo veremos.

Lançado o passadiço do portaló, subimos a bordo. Acolheu-nos o capitão João de Lima:

- Sê bem-vindo, capitão - dizia Rui Fernandes. - Não te esperávamos com tal sazão.

- Há semanas que devia estar a invernar em qualquer porto. A urgência...

- Urgência?

Ia o capitão a explicar, destaca-se do grupo de desconhecidos um homem de barbas brancas, cabelo revolto da ventania, bigode de fartas pontas alevantadas, que se me dirige de braços abertos:

- Damião de Gois, amigo!

Reconheci-o, apesar do avelhentado que, em quase cinco anos de apartamento, o encontrava. Não me espantei de barbas e bigodes. Não me aparecia ele amiúde de cara chamorra, de guedelhas façanhudas, de melenas maviosas de escudeiro adamado e cortesão?...

- Gil Vicente!

- Gil Vicente? - voltavam rostos Rui Fernandes e os demais. Algum alvoroço nos cumprimentos, no dizer dos nomes deste e daquele - «meu filho Luís»... «minha filha Paula»... -, viemos à razão da presença do poeta naquela nau. Foi o capitão quem nos elucidou, rodeados pelos outros, que nos espreitavam por cima dos ombros:

- Gil Vicente e o seu grupo de comediantes, uma delegação muito especial. Aqui está o emissário António Lopes com cartas de António Carneiro, secretário de el-rei, para ti, Rui Fernandes, e para o nosso embaixador em Bruxelas.

- Um destes dias - entremetia-se o dramaturgo -, nos paços de Alvito...

... a rainha Catarina - interrompeu o capitão - deu à luz, no dia primeiro deste mês, o príncipe Manuel...

- Um herdeiro da coroa!

- Pardês, senhor, disse eu a el-rei - continuou mestre Gil -, que é preciso fazer auto ao acontecimento, como foi de Tua Alteza e da princesa Isabel. «Pois que se faça», respondeu el-rei, «e essa armada que está no porto de Lisboa, ao chegar à Flandres, dê a nova a meu cunhado Carlos quinto, que por lá anda e é tio do menino...»

- Vimos incumbidos de o fazer - tornou António Lopes.

- Daí o atrevimento desta viagem em tal maré.

- Quando tal ouvi a el-rei, dei um salto... - e Gil Vicente deu um salto e todos os seus comediantes deram um salto: - E se fôramos a Bruxelas...?

E os actores puseram-se a arremedar o mestre:

- ... e houvesse lá comezelas...?

- ... e bailes até fartar...? -... e teatro para rir...?

- ... para tal príncipe honrar...?

- ... e o imperador divertir?

- «Muito me praz», disse el-rei João. «E haverá tempo?», perguntou. Fui à janela, abri-a, pus um dedo de fora - e Gil Vicente mimava - e disse: «Senhor, nanja preocupação, que o tempo está de feição.» E foi assim que...

- ... me entra pela nau dentro esta confraria - acabava rindo João de Lima.

- À barca, à barca, oulé! que temos gentil maré!... - continuava Gil.

- Pelo caminho, entre enjoo e engulho, nos fomos ensaiando no auto que eu trazia e a que dei nome Jubileu de Amores. Precisava de mais figuras, ajudaram-me estes valentes marinheiros, que de pajem de vassoura se faz um bom frade namorado e os moços de gávea belo bando de diabretes...

Saímos a terra e dirigimo-nos a casa. Acomodámos os comediantes numa aposentadoria ao lado de nossa casa e, enquanto de Bruxelas o embaixador fazia Carlos quinto sabedor dos festejos e recebia resposta de que o operador aí chegaria dentro de semanas, começavam na embaixada os preparativos, desde o arranjo da casa às tarefas da cozinha e ao demais. Gil Vicente não descansava:

- Trago a mente escaldada - confidenciava-me um dia. - Tão perto das fronteiras do luteranismo, tenho de aproveitar as circunstâncias. Há que mexer na causa desta perturbação. A ver se esta gente abre os olhos. Com tanta hipocrisia, dissolução, luxo e simonia, Roma deu azo a que isto acontecesse.

- Também assim penso. Escreveste auto novo?

- Não totalmente novo. Manta de retalhos que fui alinhavando durante a viagem sobre textos anteriores. No Auto da Feira eu já experimentara o jeito...

- Vais açoutar?

- Açoutar, malhar, zargunchar, estadulhar, doa a quem doer. Haverá maneira de me arranjares paramentos e um chapéu cardinalícios?

- Falarei com o embaixador. Ele conhece o legado. Cuidado com o núncio. Aleandro, dizem, é mais papista que o papa.

- Cagalando, borrifando... - fez uma momice e virou costas para junto dos actores.

Em fins de Novembro tenho acabada a versão da matéria dos Etíopes naquele pobre latim que é o meu. No falar julgo não vou mal e já me faço entender em qualquer parte do mundo. Na escrita socorro-me de meu douto Grapheus, que me corrige solecismos e ciceroniza o estilo. Dou-me então a ordenar o opúsculo, prefacio-o com uma carta ao arcebispo de Upsala, a quem tudo envio, vai a entrar Dezembro com chuva, neve e ventos afiados.

MagdaLena entra-me uma noite no quarto com uma bacia e um jarro de água quente. Anda sem cores, sinto-a mofina, tristonha.

- Venho lavar-te os pés como Madalena a Cristo.

- Que ideia a tua. Não mistures nisto o sagrado.

- Não, não estou a brincar. Vim falar-te.

- Com tanta cerimónia?

- Fui um destes dias à igreja...

- E bom isso.

- ... lavar a alma... tão arredia!... Ouvi missa, o sermão... e não sei que empurrão me deu o anjo-da-guarda, encontrei-me no confessionário... Saí de lá a chorar... Magda era o pecado... eu sou o arrependimento.

Maniqueísmo, passou-me pela ideia, mas ela não o entenderia.

- Damião amado, meu irmão, não podemos continuar a pecar como dantes...

- Queres dizer...

- Sim - meneou a cabeça, as faces alagadas.

Enxugou-me os pés, perfumou-mos com ungento de espicanardo, beijou-mos, tornou a enxugá-los das lágrimas, levantou-se e saiu com a selha da água na anca e o jarro na mão, os cabelos loiros soltos pelas costas, o corpo uma haste de vime a baloiçar lento porta fora. Então o amor era pecado?... Olho o meu tríptico. Ali está Jerónimo Bosch e as tentações de Santo Antão e Saturno e os diabos tenebrosos e os sete pecados mortais e todos os medos dos homens e as consciências massacradas e as metáforas dos pregadores do susto e da morte e da vida de cilícios e disciplina da carne, meu culpa, mea culpa, mea culpa, e fomes e jejuns e tristeza e mudo luto neste vale de lágrimas... Eu estive lá, em Hertogenbosch, a terra em que ele nasceu. Havia certamente comido do centeio da carroça de feno e bebido da cerveja feita da cravagem do grão e ficou entontecido a ponto de ter aquelas visões deformadas que não dizem com a beleza dos bosques do duque, que envolvem a esplêndida catedral de Sint Jan, de São João, e as casas da povoação. Ou então lhe meteram na alma aqueles pavores quando era pequenino. Estava um dia soalheiro e ameno. Trago ainda nas orelhas o soar do carrilhão e lembro-me da gente afável, sentada nas mesas sob as árvores a beber refrescos, enquanto as crianças corriam à volta a brincarem alegres. Onde estava ali o negrume e o fantasma do pecado?... MagdaLena, minha querida, em que antro escuro vais a entrar?...

Pela tarde do dia catorze, vindo de Tournay de celebrar o capítulo da Ordem do Tosão de Ouro, chega Carlos quinto a Bruxelas. Triunfo de cornetins e atabales, grossa cavalaria de nobres senhores da Flandres com seus pendões e pajens, alarido de povo. E logo o silêncio do acatamento no aproximar-se do imperador e, a par dele... Como ansiei por este momento! Mais nova que eu um ano, lembro-me de a ter encontrado no paço de el-rei Emanuel quando para lá fui com onze anos. Chegámos a brincar juntos nos hortos de Sintra. Crescemos ao mesmo tempo e ela, cada ano que passava, abria-se-lhe o resplandor da beleza. Em quinhentos e vinte e seis foi a casar com o primo, rei de Espanha e imperador do Santo Império Romano-Germânico. Nunca mais a vira e, com a minha vinda para a Flandres, estava longe de supor que alguma vez isso tornasse a acontecer. E agora... Isabel de Portugal, vinte e poucos anos, que a toda a gente espanta tal formosura disputada de pintores afamados! meus olhos molhados!... Ia voltar a vê-la. Lembrar-se-ia de mim? À direita do César... Já vejo as cabriolas do alazão branco... Vêm passando diante do nosso balcão. Ele, nos seus trinta e um anos, muito direito, magro, em cima do cavalo, gorro de veludo, cabelo e barba loiros, ondeados, bigode com guias lançadas, recurvas nas pontas, nariz um pouco adunco, extenso, afilado, rosto comprido, esguio, lábios bem recortados, o inferior mais saliente, testa lisa, sobrancelhas finas, olhos azuis, Tosão de Ouro pendente no peito, a veste de tela dourada sobre o colete escuro, a gola da camisa branca a sobressair no pescoço seco... Ela...

- Mas não é Isabel! - saiu-me a alma quase num grito.

- E Maria, rainha-viúva da Hungria e irmã do imperador, regente da Flandres - disse a meu lado Rui Fernandes. - A imperatriz ficou a tomar conta do reino de Espanha na ausência do marido.

Desfilam em corcéis ricamente ajaezados as formosas damas da regente...

No dia seguinte Pedro Mascarenhas convida o imperador para as festas. No júbilo que sente ao receber a boa nova, Carlos quinto quer apadrinhar o principezinho e para dar nota de familiar privança à sua visita, fica ordenado vir à embaixada com a rainha sua irmã, três sobrinhos e uns

quantos, poucos, senhores de sua corte, na noite de vinte. Fizessem recepção alargada na sua ausência, na noite de vinte e um. Grande afã no aprontar do banquete. Homem de gosto singular o embaixador, nestas coisas que contrastam com as rudezas bélicas. Todo o pessoal da embaixada e da feitoria se empenha. Aparatosa a recepção até à mais miúda das miudezas. O meu amigo André de Resende, que respira latim, humanidades, desfiou uma ode com oitocentos hexâmetros ao nascimento do herdeiro. Invoca o favor das musas, como é de norma. E eu, ao encetar o relato dessas horas festivais, neste meu escrito chão destinado a ser a última almofada da minha cabeça cansada, que farei? Que numes invocar quem já vive de memórias? Só tu, ó deusa Mnemósine. Nove noites contínuas teve contigo Zeus ajuntamento e, nove meses depois, no monte Piéria, pariste as nove musas. Convoca-as em redor de mim.

Bom lume de sobro e oliveira ardia na grande lareira a agasalhar dos frios de Novembro o príncipe recém-nascido. E nós agora, nas névoas e gelos da Bélgica, nem os rigores boreais nos esfriam o ardor da alegria. No dia aprazado, Pedro Mascarenhas acompanha do paço imperial à embaixada o César e família. Cavalga pela noitinha a luzida comitiva, o imperador e a rainha sua irmã e os sobrinhos: o príncipe João da Dinamarca, cinco lustros incompletos, e em dois cavalinhos anões, que pajens trazem pelas rédeas, as infantes Cristina, nove anos e meio, e Doroteia, que ainda não fizera sete. Olho-os curioso. Nunca os havia visto aos netos de Joana, a Louca, filhos de Isabel, mulher suavíssima, e de Cristiano segundo, o rei da Dinamarca e Noruega que se apoderara da coroa da Suécia, beneficiou o povo e os burgueses, mas mandou decapitar em Estocolmo noventa e quatro nobres revoltados, índole movediça, agora protestante logo católico, destemperado nos dramas de amor, malquistou as gentes e levou a que Gustavo Vasa se levantasse. Abandonado pelos nobres, é deposto. Foge para a Flandres com a família, promove revoltas e distúrbios que descontentam o imperador, corre que se prepara para invadir os reinos perdidos. Órfãos de mãe desde o ano de vinte e seis, as crianças têm sido criadas pelo tio e pelas tias da Flandres. O príncipe é um jovem muito belo. Ao vê-lo e às irmãs, não pude deixar de pensar que eles ainda eram sobrinhos da rainha de Portugal e primos da imperatriz Isabel e, portanto... O que é o destino! Agora que o tempo fugiu, sou como Cronos a olhar atrás o futuro. Não decorreria um ano, andava ele em campanha contra os Turcos, faleceria como o tonto das Barcas de mestre Gil... e recordo a expressão do próprio imperador em carta a sua irmã: ...prouve a Deus levá-lo anteontem domingo de manhã, depois de ter passado oito dias de fluxo de ventre... Não somos nada, com a diferença de que o príncipe ainda teve um André de Resende que lhe compôs o Epicédio ao Falecido Príncipe da Dácia, que o imperador não deixou de recompensar. Assim sobrevivem à fome os poetas imortais.

Nas ruas alumiadas de tochas e vasos de pez a arder bailam num rodopio ranchos juvenis bem treinados, ao som de música, adufes e cantares portugueses, cachopas braços no ar volta que volta saias a rodar, chinelas a dar a dar, os homens as mãos nas cavas das jalecas a matraquear a sola no chão.

Da janela da embaixada, vestido de púrpura aprecia o imperador os jogos de rapazes possantes que se disputam prémios, quem primeiro trepe ao cimo de pirâmides de madeira a inflamar o pó sulfúreo de girassóis de fogo que súbito volteiam, zimbram, estalam, estralam, estralejam e fuzilam foguetes lacrimejantes, quem do cavalo em corrida se incline ao chão a primeiro apanhar com a mão destra mais açafates de fruta raras que vá depor em mesa armada sob a sacada dos magníficos hóspedes.

Pelos desvãos das salas bustos marmóreos e das paredes, pendentes, ricas tapeçarias com figuras alegóricas, a justiça de olhos vendados, balança e espada, a contrapor-se à força bruta de um Hércules...

- E não haverá a liança dos dois opostos? - perguntava Carlos quinto. Senta-se enfim à mesa com a rainha sua irmã e os sobrinhos, ladeados de alguns grandes senhores da sua corte e do embaixador. Um pouco afastadas, noutra mesa, as damas da rainha.

Cinquenta jovens da nobreza portuguesa de Bruxelas e Lovaina, de Antuérpia, Bruges, Gand e Roterdão ministram o serviço. Eu sou o escolhido, só depois reconheceria porquê, para assistir a Sua Majestade imperial, acolitado por Jorge Lopes, André Vaz e João de Gusmão. À frente dos três, que vêm chegando com pratos de aves, aproximo-me a servir um Reno.

- És Damião de Gois? - volta-se um pouco o imperador Carlos.

- Sim, Majestade.

- Tinha curiosidade em conhecer-te. A imperatriz minha mulher falou-me de ti...

Julgando que ele iria avançar aquilo que não deveria ser avançado, dá-se-me o coração em bater açodado... mas o imperador calou-se. Ao afastar-me numa vénia, ouvi a rainha perguntar:

- Quem é?

Inclinou-se ele ao ouvido da irmã a segredar qualquer coisa. -... galante! - e a rainha Maria mirava-me com espanto. Mas a tomar as atenções começavam as surpresas. De um pastelão de carne solta-se um papagaio a salvar o imperador:

Papagaio imperial, quem passa? O César que vai à caça.

Todos se riam, súbito um periquito, surgido do ventre de um faisão, vai pousar nos ombros da rainha e depois salta-lhe para as mãos, arremeda falar-lhe ao ouvido e esvoaça a beijá-la.

Que encanto! - exclama Maria, batiam palmas o príncipe e as inrantes.

Acepipes, enchidos, figos burjassotes recheados de amêndoas, frutas, uoces, rebuçados, marmelada, folhas de rosa de maçapão, guloseimas da viadeira, e, enquanto isso, entra o duque Miguel de Velasco e o belo adónis Alfonso da Silva e mais vinte mancebos de feminina formosura a representar o entremez O Triunfo de Cupido em que as personagens envolvem as princesas e as damas, como se também elas pertencessem à função.

Regressava o imperador ao seu palácio da Caulemberga, continuavam nas ruas os festejos do povo, as mesas de iguarias ao longo das casas e não sei quantos pipos de bom vinho português. Habilidades de circo, jogos de cana e de argola, corridas de cavalo, aos que se distinguiam era-lhes dada recompensa.

Gil Vicente não estava satisfeito.

- Venho eu lá das berças com a minha gente para representar o meu auto perante o imperador...

- Terás ocasião de o representares amanhã.

- Mas o imperador não volta.

- Não te faltará a mais nobre assistência.

Não haviam acabado as horas prazenteiras. Ao cair da tarde de vinte e um, dia de São Tomé, os paços do embaixador encheram-se de convidados, nobres senhores da corte de Carlos quinto, castelhanos, italianos, portugueses, belgas, alemães, variedade de pessoas, de trajes, de línguas, se bem que dominasse o castelhano. Eu tinha estudado com o feitor e o embaixador o rol dos convidados e as precedências, conhecia nomes mas não a maior parte das caras. Mas Pedro Mascarenhas havia ordenado tudo de tal modo que mordomos industriados tudo sabiam do protocolo e eu ia perguntando, à capucha, quem era este e aquele. De uma liteira trazida por moços e acompanhada de um e outro lado por quatro pomposos clérigos, apeia-se um cardeal, oitenta anos a passar, as barbas alvíssimas sobre a púrpura da veste, alto, magro, seco, figura sem dúvida veneranda a julgar pelas vénias e acatamento que todos lhe fazem.

- Quem é?

- O núncio apostólico Lourenço Campeggi.

- E os outros?

- Quatro dos principais oradores dos príncipes.

Já entra também outro prelado. Procuro saber dele alguma coisa. E Grapheus, que também foi convidado, quem me elucida:

- O bispo Jerónimo Aleandro, legado de Clemente sétimo, enviado a evitar acordo entre católicos e protestantes, como é agora costume chamar aos luteranos. Eruditíssimo, incentivador do estudo do grego, adversário da cisão religiosa e dos luteranos. Foi amigo de Erasmo, com quem se carteava, depois tornou-se inimigo dele. Cave Aleandrum, Damião! Cuidado com ele.

Presente também Fabriel Merino, bispo de Jaen e arcebispo de Bari, esmoler de Carlos quinto. Também muitos anos admirador de Erasmo e de Alfonso de Valdés, o erasmista castelhano, Bari é agora advogado da Santa Sé junto de Carlos quinto e de Carlos quinto junto da Santa Sé. Acompanha-o um tal Sanga de quem se me esvaiu da memória quem era.

As mesas... olhá-las ao abeirar-se minha boca minha língua a aguar desejos fomes... onde estão os jejuns e abstinências?... o fausto e o primor da noite passada... Entram bacantes e sátiros coroados de louro, com tirsos nas mãos, Evoe, Bacche! Evoe!, bailando e pulando ao som de flautas e de címbalos. Servidas as iguarias, passa a ilustre assembleia ao vasto salão para assistir à representação do auto de Gil Vicente. Ao fundo haviam armado o palco. De uma sala ao lado, espreitam impacientes os actores, vestidos com as roupagens de suas personagens e as caras pintadas em conformidade.

- Já entram os senhores - vem a correr um diabrete dizer ao Tempo, que estava apertando um colchete nas asas de um anjo -, o núncio já tomou assento na cadeira de veludo.

- Já se acomodaram todos nos lugares - anuncia João Moleiro. Então o Tempo vira-se para Mercúrio:

- Vai. Entra e recita o Prólogo. E vós, cada um de orelha arrebitada, que a função vai começar...

E a função começou, a princípio com o profundo silêncio da assistência que se concentrava nos dizeres e no argumento da peça, depois, pouco e pouco, com os sorrisos, as gargalhadas, os aplausos...

Eu, que a esta distância do tempo conheço agora as consequências de certos factos, sinto embaraço em recordar com alegria aquilo que se passou nesse dia de São Tomé. E difícil contar as coisas de dois pontos e sóis diferentes, o de então e o de agora, ter de me abstrair do que sei por ter passado todos estes anos e confinar-me apenas ao que sabia então e deixar o que então desconhecia viria a acontecer. O mundo, a vida, as pessoas não nos aparecem iguais se vistas do campanário de uma torre, do cabeço de uma serra, ou se olhados cá em baixo à nossa volta. Mas como não deixar aqui, já e agora, exarado este meu sentimento de angústia por ver o que vai acontecer, já não falo por essa Europa fora nem de mim meus ossos gelados neste cárcere desconfortável, mas a este auto de Gil Vicente? E tudo isso porque estão ali, nesse salão, a assistir ao desenrolar da comédia, dois olhos que estreitam Deus. Já me não recordo de todos os pormenores das falas nem posso, com a comodidade de um simples gesto, tirar da estante o livro para o reler. O Jubileu de Amores levou tal sumiço que nem os filhos de Gil conseguiram conservá-lo na Compilação das obras do pai. Tenho a ideia de que era do género daquele saudável despejo satírico em que o poeta vergastava os vendilhões do templo. Assim o compreendia o público. Ah! Cristo, se viesse hoje ao mundo, seria queimado num auto-de-fé. Não é verdade que, já naquele tempo, o crucificaram?... Só o bispo Jerónimo Aleandro se escandalizava. Os outros riam a bom rir. E que valor tinha e que génio o bom Gil! Lembro-me do que Resende disse um dia, e mais tarde exprimiu por escrito no seu Genethliacon, estávamos os três a conversar sobre os autos dele:

- Se tu, amigo, em lugar de escreveres em língua de vulgo o fizesses antes em latim, nem a graça de Menandro nem o sal de Plauto nem a lepidez de Terêncio te levariam vantagem.

Mas tornemos à comédia. Às tantas, de pontifical, barrete e báculo, piedosa e santa a mão esquerda no peito, o anelar a chispar punhais de luz, dizia uma personagem que logo se viu ser Roma em pessoa:

 

Roma: - Assim que a paz não se dá

a troco de jubileus? Mercúrio: - Ó Roma, sempre vi lá

que matas pecados cá

e deixas viver os teus.

Tu não te corras de mi,

mas com teu poder facundo

absolves todo o mundo

e não te lembras de ti

nem vês que te vais ao fundo...

 

Rabeava em sua cadeira o bispo Aleandro e perscrutava o rosto do núncio e dos demais a ver se também acusavam o toque. Como porém os via rir e aplaudir, foi-se calando. No entanto, não se conteve que não dissesse entre dentes a Bari, sentado a seu lado:

- Questa é cosa brutta... in casa di catholici...

Estrondearam as palmas no fim do auto. Começava a música para as danças. Formavam-se os pares, animava-se o salão. O bispo, de pé a um canto com o núncio apostólico, barafustava, gesticulava:

- Julguei estar na Saxónia, Eminência, e ouvir Lutero...

- Ora, bispo, não exageres.

- ... no meio dos horrores do saque de Roma...

- Não ouviste os aplausos?

- Não entenderam, não entenderam, não quiseram ver o que era demasiado evidente.

O embaixador aproximava-se com Rui Fernandes.

- Venham cá, venham cá - chamava vivamente o prelado. - Então que desvergonha esta sátira di mala sorte, ataque manifesto contra Roma!

- Sátira, sim senhor - ria Pedro Mascarenhas entre a rudeza do militar e a cortesia do diplomata. - E não o merece Roma? Vender o perdão dos pecados, a entrada no Paraíso, como quem vai ao teatro! E os que não têm dinheiro?

- Então tu, embaixador, concordas com o autor deste Jubileu, «jubileu», repara no título, que de Roma e do papa não vêm senão...

- ... vendição de indulgências...

- ... e quem não dá dinheiro não só não é absolvido como até excomungado?

- E que quer dizer «indulgência»? Não sabes latim, bispo, tu que toda a gente sabe a autoridade que és em latim e grego?... O papa Leão feito echacorvos para a construção da Basílica de São Pedro...

- ... uma obra piedosa... não para ser pasto de chacota desbocada. O legado deitava água na fervura:

- O excesso próprio da sátira, senhor bispo. O autor procura zurzir pelo riso em alguns abusos que, convenhamos, tem havido nesta matéria.

Aleandro insistia:

- Assim começou, assim continuou, assim acabou a comédia.

- Trata-se de obra antiga - acudia Rui Fernandes -, não composta ao caso para este serão. Já foi representada na^corte portuguesa a el-rei João terceiro e a ninguém veio escândalo do que viu e ouviu.

- E esse bispo ou cardeal que entra no auto? Vestido com os paramentos autênticos e o barrete próprio?

- ... emprestados aqui pelo eminentíssimo delegado - riu o embaixador Pedro Mascarenhas.

O delegado fez um esgar de grande admiração:

- Sim. Falaram-me de emprestar o roquete e o barrete para a festa. Anuí, naturalmente. Não calculava que era para...

-... vestes sagradas para a farsa de si próprias! - ironizou o bispo. Eu havia-me chegado e ouvira em silêncio grande parte da conversa. Neste ponto intervim:

- Se me é permitido, Reverência, não se tratou de ultrajar nem Roma nem o papa nem a dignidade episcopal através de paramentos verdadeiros. Teatro é fingimento...

-... do real... - atirou o bispo Aleandro.

- Farsa, comédia, sátira são fingimento da vida de reais homens imperfeitos...

- Uma audácia nunca vista esta, inaudita!

- ... procurar corrigir pelo ridículo o que se afigura errado. é tão salutar como quando o pregador do alto do púlpito castiga os defeitos humanos...

- E como todos temos defeitos - rematou o peso dos cabelos brancos do núncio Lourenço Campeggi - cada um cai em si e ri-se de si próprio aplaudindo, como ainda há pouco se viu.

Alguns dias depois, o imperador, com o regozijo da nascença do sobrinho e para retribuir o convite do embaixador português, ordenou no palácio festas pomposas. Pedro Mascarenhas, como representante de el-rei de Portugal, guiou a dança. Fui também convidado, o que muito me honrou e recebi de Carlos quinto e da rainha Maria a expressão de empenhada estima. E, conquanto todos aqueles dias fossem riquíssimos de imagens insólitas que não mais se nos varreriam da memória, o que me os olhos viam à noite, na cama, era o assombro desse olhar da rainha Maria da Hungria a espiar-me do fundo da escuridão... e dava eu então comigo a voar ao passado, àquela manhã em que do guarda-mor Nuno Manuel ouvi o que não devera ter ouvido...

Palavra de rei...

Vieram montanhas de comida de Bruxelas. A nossa ecónoma, a senhora Maria da Luz, a Luz por antonomásia, é mulher avisada. Faz-nos servir à mesa, dias e dias a fio, os restos do festim.

- Luz - digo-lhe -, ando enjoado. E isto o paraíso?

- Festa de imperador, manjar de anjos. Os meninos - maternal que ela era! - têm de aprender que é pecado esbanjar o pão que Nosso Senhor nos dá.

- O que vós quereis é não terdes trabalho na copa.

- Aprende, meu filho.

O que eu aprendi, isso sim, foi que não se deve estar sempre a mastigar o passado. Dezembro, Fevereiro de trinta e dois, Antuérpia branca. Telhados, a minha Rua Kipdorp, o meu Gross Market, as rendas da catedral, os chapéus, os ombros, as sobrancelhas, os cílios de quem passa, tudo enfarinhado, vestido de arminho. O porto parado, dias mortos na feitoria, rotina requentada como a comida. Convido Grapheus, o irmão, amigos a virem jantar, merendar, cear comigo. Quantos mais melhor. Sei que é egoísmo, digo à minha consciência e procuro sossegá-la: ao menos o vinho não degenera e há sempre um bom fogo na lareira e serões de música. Quem jamais tornará a aparecer a estes convívios, ele que era, além de pintor primoroso, um amador e executante de música e canto polifónico, é Quentin Metsys. Deixou-nos vai para dois anos. Tenho no meu escritório obras dele, um Cristo Crucificado, pintado sobre cedro, um Stabat Mater. Grapheus, com quem continuo a estudar latim, não se cansa de compor poesias em meu louvor. Imagina-me de joelhos, mãos postas, desfeito em lágrimas, diante desse Cristo, dessa Virgem Dolorosa, a desfiar culpas e arrependimentos pelo sacrifício do Salvador, pelas dores da Mãe. Um dia dedicou-me um longo poema em latim em que fazia o meu retrato: Pictura illustris Damiani de Góes, equitis Lusitani... o sorriso suave no semblante corado, a fronte alegre e larga, soberba, uma como doçura a dar mostras da pureza do coração, brandos os olhos negros, cabelos negros um tanto crespos, negra a barba composta, maçãs do rosto magras, pescoço fino, graciosas as mãos nos dedos esguios... Assim era eu naquele tempo?... Ninguém, continuava Grapheus, mais simples, mais humano, mais cortês, mais delicado... de todos querido, de ninguém mal amado, aberto a todos, de todos amparo e glória sem par, longe de toda a fraude, duplicidade e dolo, constante, magnânimo, sempre afável e sorridente, observante da verdade, tenaz na fé... Querido amigo! Como, na sua amizade, me exagerava as virtudes! As minhas muitas composições musicais, tanto as apropriadas para a igreja como as dignas dos tálamos dos jovens ou as destinadas aos coros, eram saídas, afirmava, de autor acabado e poderiam julgar-se criadas pelo génio de Tosquin, nesse tempo o compositor mais celebrado. E, quanto aos meus esforços de me dedicar ao estudo do latim em idade tardia, comparava-me a Catão, já velho, a entregar-se à aprendizagem do grego. E orgulhava-se:

Quis duxit in alti

Pimplaei montis culmina sacra? Grapheus.

fora ele Grapheus quem me conduzira aos cumes sagrados do monte Pimpleu habitado das musas... Tinha razão em se orgulhar disso. Fora ele, de feito, de combinação com o irmão, quem, sem nada me dizer me atirou para o mundo da escrita.

- Será altura - insistia comigo - de ires completar os teus estudos a uma universidade.

- Como posso eu, aqui preso dos trabalhos da feitoria?

- Lovaina é perto. Talvez possas conciliar.

André de Resende apoia a ideia e propõe-se dar-me carta de recomendação para Rogério Réscio. Vendo-me nos olhos a interrogação, explica:

- Reeger Ressen, ou, à latina, Rogério Réscio, professor de grego, discípulo de Jerónimo Aleandro, que acabas de conhecer, e mestre, no Colégio das Três Línguas, de humanistas famosos como o nosso comum amigo Nicolau Clenardo, para não falar já do impressor e livreiro que é desde vinte e nove. Em casa dele me hospedava. Ainda lá deves encontrar livre o meu quarto. Verás que Réscio te acolhe como um pai.

Decido-me. Em fins de Agosto ponho-me a caminho, nove léguas puxadas. Sem pressas, que desejo parar em Lier e Mechelen, que não conheço. A partir daqui sigo até Lovaina pelos choupais do Dila, rio que abraça, enreda o burgo, cria ilhas que são édens, rodeado de bosques. Terra de mesteirais de tecelagem, a Universidade marcou-lhe outro estatuto, como a fazer a diferença entre mercancia e humanismo, além de ser inexpugnável reduto de catolicismo. Negotium e otium, a velha antinomia. Como a sinto eu, sempre tão mergulhado nos negócios da feitoria e desde há muito possuído de não sei que suma admiração das letras! Arredavam-me os afazeres áulicos em que, adestrado por assim dizer desde pequeno, me ocupava. Não esmorecia a paixão, dei comigo a magicar na maneira de a satisfazer. Veio à feitura o desígnio.

- Um pé cá e outro lá? - perguntava-me Rui Fernandes.

- Vagarosos e assegurados os negócios, que mais faz?... Além de que poderia eu tratar em Lovaina assuntos de nosso interesse... E, se preciso, não é assim tão longe...

- Terás razão. Cuida então do teu interesse. Quem sou eu para te contradizer, se el-rei a ti, tenho-o verificado, tudo te consente?

E aqui estou em Lovaina. Humanismo, saber, conceito de glória. Os mestres. Os alunos, leigos e clérigos, alguns portugueses. O afinco no estudo. Em que oceanos do passado se haviam submergido Magda e Lena? Tudo esquecido, morto, cinzas de um tempo que não volta... Mau grado os «cães do Senhor» (Deus me perdoe, que a zanga que lhes tenho, aos dominicanos, me não faz esquecer que de longa data lhes chamam domini canes, por andarem sempre a ladrar do alto dos púlpitos), que causaram a retirada de Resende, eu vou é entrar no círculo de erasmianos. Resende nomeou-me alguns, além de Réscio: Conrado Goclénio, excelente ciceroniano, Pedro Nânio... Conduzo a montada de vagar pelas ruas da cidade. Conversam jovens a uma esquina. Parecem-me escolares.

- Senhores, salve! Podereis dizer-me onde encontrar mestre Rogério Réscio?

- Nessa rua à tua direita acharás a oficina de tipógrafo - responde-me um deles, melena cor de cenoura, risonho. - Deve estar lá neste momento.

Agradeço com levar a mão ao chapéu e dirijo-me para o ponto indicado.

Réscio é um homem alto dos seus quarenta anos, cabelo loiro quase branco, faces rosadas, aperto de manápula doloroso se se não está prevenido. Entrego-lhe a carta de Resende. Chega-me um banco e senta-se também. Põe as lunetas e lê em silêncio. Olho em volta. Oficiais com as tabuinhas na esquerda diante das caixas de tipos vão compondo as palavras, as linhas do texto, à prensa trabalha um outro, de uma corda estão penduradas laudas a secar...

- Bem-vindo a esta tua casa, Damião - abre-se Réscio em sorriso e abraço.

Com simplicidade me acolhe e alberga no quarto que fora de Resende e daí em diante sempre se mostrou amigo. Com agrado vejo que um dos meus companheiros de pousada é o escolar que abordei na rua. Era quase da minha idade, rapaz alto, espadaúdo, cara quadrada sardenta, cabelo cor de cenoura, sorriso cândido, católico firme como toda a família. Chama-se Splinter e vem completar suas humanidades e a teologia. Tornamo-nos amigos.

Outuno ameno e morno já eu estou dado ao estudo com fervor. Réscio levou-me ao convívio de Goclénio e Nânio, que me festejaram quando, ao serão, me pus a tocar e a cantar. Eles próprios quiseram acompanhar-me.

- Escutai este hino - disse-lhes. - Acabo de o compor. E comecei, acompanhado do meu clavicórdio:

Adestes, fideles...

Exultaram.

- Outra vez, outra vez! - pedia Nânio e trauteava comigo:

Adestes, fideles, laeti, triumphantes...

Goclénio entrava também:

Venite, venite in Bethlem.

e Réscio:

Natum videte regem angelorum.

e não tardava, daí a dias, outros se nos juntavam e tínhamos coro de oito

vozes:

Venite, adoremus

venite, adoremus

venite, adoremus ’

Dominum

Por finais de Setembro, Réscio, que teve de ir a Antuérpia, chega-me de lá com sinais de grande júbilo e abraça-me:

- Querido Damião. Eu não sabia. Que maravilha! - e mostrava-me um livrinho acabado de sair.

- Legatio - ponho-me a ler o frontespício - Magni Indorum Impe... mas é o meu texto! Quem é que...? - ... per Damianum de Góes... Latine redita... Como é que...?... - Folheio o livro até ao colofão: - loan. Grapheus typis excudebat... João Grapheus?... - Volto ao princípo e na primeira página vejo uma carta de Cornélio Grapheus ao irmão, de treze de Agosto. Vou começar a lê-la, diz-me Réscio:

- Aí tens, Damião. Cornélio quis lançar-te entre os grandes escritores da nossa era...

- Mas...

-... e para te fazer a surpresa, ou não fosses tu impedi-lo de te editar, pede ao irmão que imprima o opúsculo quase sem tu o saberes.

- Mas é uma grande responsabilidade... e o meu latim...

- Mais um motivo para o apurares, daqui em diante... Ou eu me engano muito ou este livrinho vai dar que falar...

- Achas?

- Num mundo em que Roma é abalada por tanta confutação, como não? Ter a coragem de chamar a atenção para o catolicismo peculiar dos Etíopes ou para a ausência de evangelização dos LapÕes, verás, vai dar que falar.

- Juntei essa nota sobre os Lapões, de acordo com o que ouvi a Olaus Magnus. Pareceu-me que são dois casos dignos de atenção...

- Assim o vai entender o mundo dos que pensam sem de antemão terem fixado verdades.

Folheava o livro um pouco ao acaso, o pensamento a correr-me, a vê-lo a ser lido, já não só por João Magnus Gothus e pelo irmão, mas por

Morus, por Erasmo... quando dou com as poesias de Grapheus nas páginas finais: ... carmina aliquot in Damianum Goem Lusitanum... uma referente ao Cristo Crucificado, estas aqui ao quadro da Mater Dolorosa, ambos pintados por Quentin Metzys, outra ainda a descrição da minha pessoa... Querido amigo!...

Com que redobrado ardor me dedicava então ao estudo, horas e horas esquecido do tempo pelo dia adiante, à luz da candeia pela noite dentro, com dores nas costas, a cabeça a latejar, os olhos a arderem... A invernia passava, entrava o ano de trinta e três, chegava Março não pude mais dos olhos.

- Tens de parar - dizia-me o físico. - Nem de dia e muito menos de noite. Nada. Queres ficar doente?

- Mas, doutor...

- Parar. Pelo menos durante algum tempo. Até essa inflamação, esse cansaço sanarem.

- Que faço então?

- Olha. Espairece. Monta a cavalo e vai passear por essas margens do rio, pelos bosques que rodeiam a cidade...

Margens lentas do rio cavalgadas lassas rédeas, sombras dos bosques, ideias desgrenhadas, folhagens de árvores, fugidias como a corrente do Dila, meu cavalo, meu cavalinho, pudesses tu levar-me até... era isso, era isso... ir até Friburgo... até junto de Erasmo...

Acode Splinter a desviar-me, por então, daquele propósito, mas o destino lá sabia o que fazia que na minha vida esse passo daria muito particulares frutos.

- Estão aí as férias da Páscoa - disse-me. - Vem comigo até ao campo, nos arredores de Haia. Ficarás em minha casa e conhecerás os meus pais e meus irmãos.

Aceitei. Foi assim que conheci a irmã de Splinter...

Suspende-se-me aqui a pena, comovida. Escrever dos Splinter é revocar-me ao meu próprio sangue, pois eu viria a casar com Joana que me deu seis filhos e agora, desta minha prisão, viuvez e velhice, recordo com saudade. Eram seus pais Matilde vander Duin e André van Hargen, natural de Utreque, senhor de Oesterwijck, do conselho do imperador Carlos quinto, família dos condes de Haramberg de Hoorn de Oesterwijk Suiis e de Monfoort, da mais alta nobreza da Flandres e - como o destino dispõe as coisas! - aparentada com o próprio César.

A casa dos Splinter, um misto de granja e palacete, rodeava-a um bosquezinho de faias e olmeiros, carvalhos e freixos. Velejavam na paisagem lentos moinhos altaneiros e nos longos canais vogavam barcas carregadas de lenha, sacas de trigo, tabuleiros de queijaria, cabazes de flores, canastradas de arenque e barricas de cerveja...

Joana teria nesse tempo uns catorze anos, menina sábia e prendada, que, além da própria língua, falava latim, francês e castelhano e havia viajado com o pai, algumas vezes que ele acompanhava o imperador. No campo, não ficava ociosa. Ia açodada pela imensa planície, a saia em balão de gomos vermelhos, a touca de abas brancas, gomadas, reviradas para cima, saltavam-lhe em redor ledos os cães, verti capoeira, ver as vacas, pretas malhadas de branco, a pastar na pradaria ou recolhidas nos estábulos asseados. Colhia das flores para o adorno da casa, alcachofras para o coalho do queijo, que gostava de ajudar a fazer. Cantava no coro da igreja, acompanhava a mãe e a criadagem nos cómodos domésticos.

Depressa me elegeu seu companheiro de passeios pelos bosques, pelas campinas. Chamava-me o seu cavaleiro português, expressão que gostava de usar nos vários idiomas, man chevalier portugalois, mi caballero português ou eques meus lusitanus. Ao serão, na reunião familiar, enquanto o pai bebia da cerveja lendo algum papel ou livro velho, eu tocava clavicórdio, Splinter dedilhava o alaúde e os irmãos cantavam casando as vozes com a de Joana, muito pura, sorria a mãe, em sua cadeira, dobando novelos de lã, que naquela casa, apesar da nobreza do sangue, ninguém ficava ocioso.

Foram dias felizes que ali passei e as minhas enxaquecas iam desaparecendo. Acabadas as férias, a família regressava à corte e Splinter e eu a Lovaina. Na véspera da partida, sentada numa raiz de carvalho, os olhos chorosos, Joana disse-me:

- Voltarás um dia?

- Mas certamente.

- Sei lá. Nunca mais te vejo.

Quatro pesados anos iriam desfiar antes que a tornasse a ver e a pequena Joana estava esquecida, quando em Lovaina os fados benignos vieram favorecer-me o velho propósito de visitar Erasmo. Foi o caso que ao chegar um dia a casa esperava-me carta do infante Fernando. Muito dado a letras e ao estudo de histórias verdadeiras, inimigo das fabulosas, para as haver pede-me alcance todas as crónicas que se possam achar, escritas de mão ou impressas, em qualquer língua que seja. Quer tirar a limpo a história dos reis de Espanha desde os tempos bíblicos até o seu. Despende para isso muito com homens doutos, a quem dá ordenados e tenças e faz outras mercês. Já uma vez, me enviou um debuxo da árvore e tronco de toda a progénia dos nossos reis a partir de Noé até el-rei Emanuel seu pai, para eu lho mandar fazer de iluminura pelo maior homem daquela arte que há em toda a Europa, por nome Simão, morador -em Bruges. Grão soma de dinheiro gastei por conta do infante nessa e noutras coisas de iluminura... e nos livros certamente será o mesmo. Ora, porque já atrás lhe havia feito serviço do género e porque também tenho pendor para esses estudos, eu sabia de registos e anais, para o efeito importantes, que estão nos cartórios da vila de Bolonha do Mar, sobre a Mancha, e da Sé e Câmara da cidade de Metz na Lorena. Como trazia na ideia visitar Erasmo, considerei que de Lovaina a Bolonha era um salto e para Friburgo podia muito bem descer por Metz.

Corro a procurar Réscio:

- Vou a Friburgo - digo-lhe de chofrada.

- A Friburgo?

- Quero conhecer Erasmo.

- Quem me dera ir contigo. Mas não estou livre. Há muito tempo não vejo esse grande amigo.

- Levar-lhe-ei a Legatio. Podes dar-me carta de recomendação?

Ponho-me a caminho. Em que data? Por que terras? Ora deixa ver, velho Damião desmemoriado... Este cantochão dos frades, lá em baixo a ressoar pelos claustros e a entrar-me pelas frinchas da porta e das orelhas...

... fans vivus, ignis, caritas, et spiritalis unctio...

... de Lovaina a Bruxelas, a Lila, não demorei muito e, pelas ribas do mar não tardou avistasse as muralhas de Bolonha e as torres da catedral de Nossa Senhora, lugar de peregrinação, na foz do Liana. Aí em poucos dias me desempenhei da minha missão com a ajuda de Nicolau Lecavão secretário da vila...

... tu rite promissum Patris sermone ditam guttura...

Arras, São Quintino, Luxemburgo, Metz, desta vez consigo os bons ofícios do cavaleiro de Sèvres, que, dado o argumento irrespondível de uma bolsa de ouro, me facilitou a consulta de documentos na catedral de Santo Estêvão e no tombo da cidade e os traslados e cópias e apontamentos solicitados...

... Hostem repelias lonrius...

... pelas margens do Mosela até Nancy, trasmontar a serrania, chegar ao vale do Reno... lendas de príncipes e princesas godas contadas no rumor das torrentes, nas vozes dos bosques e do vento, os Vosgos à direita e, quase a pique, der Schwarzwald, a Floresta Negra

... ductore sic te praevio...

... enfim, pelos últimos dias de Abril, andadas já não sei que horas da tarde, Friburgo de Brisgóia ou Brisgóvia, Freiburg im Breisgau, banhada pelo Dreisam, para além das muralhas os telhados do burgo aconchegado e a torre da catedral, o mosteiro dos agostinhos, o ar morno temperado pelo respiro da serrania. Aqui se havia ele acolhido pela Primavera de vinte e nove, fugido de Basileia onde vingara a revolução religiosa de Zuínglio.

Acodem estrabeiros a segurar as bridas das montadas a mim e aos meus companheiros. Entro na estalagem. Salamaleques do hospedeiro:

- Wilcomen, herr doctor. Minha preocupação primeira:

- Sabes onde mora Erasmo de Roterdão?

- ... zum Walfisch... Não é, Joseph?

- Nein. Ele mora agora em casa própria ali adiante... - e da porta apontava-me o caminho para lá.

Tomar banho, mudar de roupa, cear e descansar da viagem. De manhã, sair açodado à procura do mestre, com Legatio na mão, o coração a pulsar apressado da caminhada e do sentimento... Olho agora atrás, jio tempo que passou desde essa idade feliz. Até isso me roubou a Inquisição, o retrato de Erasmo pintado por Alberto Diirer, que eu tanta vez em minhas recordações, depois que vim para Portugal, olhava movido de saudade... Bato à porta. Vem abrir uma mulher de idade.

- Mestre Desidério Erasmo?

- Quem devo...? Entreguei a carta de Réscio.

- Entre, senhor, e faça favor de se sentar e aguardar um pouco. Era um pequeno átrio com portas para o interior e escadas que levavam a outro sobrado. A governante subiu-as a custo. Voltou daí a pouco:

- O meu patrão pede desculpa, mas é-lhe o tempo tão ocupado que só pode receber-te logo à tardinha. Convida-te para vires cear com ele.

- A que hora, senhora...?

- Margarida, meu senhor.

Enquanto me acompanha à porta, vai dizendo:

- Rodopio de casa! A toda a hora gente a entrar e a sair, a trazer e a levar cartas... Não sei como pode ele aguentar, cansado que anda...

Nunca senti tanto a grossura do tempo, rançoso, espesso, charco parado aquelas horas que meavam até ir cear com Erasmo. Expedito, habituado a não alimentar dentro de mim por muito tempo o que me possa magoar, engano a ansiedade com visitar a cidade. Trato com madeireiros e comerciantes, a justificar meus afazeres na feitoria, mas são os fabricantes de instrumentos que me atraem. Aqui estou eu agora no Munsterplatz, em frente da catedral. Que força é esta que leva o homem a pegar no ar e no vento, no metal e no fogo, na rocha e na árvore, no pó da terra e nas ervas e erguer aos deuses, a Deus e aos santos, ao Diabo e aos medos, ao amor, à vida e à morte hinos de palavras, de sons, de cores, de ouro e prata, de pedra, de vidro, de tijolo? Torre rosada grito de louvor, ogivas góticas mãos postas a rezarem, o cinzel humano vos lavrou. Ouve-se dentro o hálito de vozes a cantarem, acompanhadas pelo sopro das mil flautas do órgão, badalam cá fora os sinos do alto campanário a ressoarem vale adiante no sopé das harpas da floresta próxima, riem na cachorrada esgares de gárgulas escarninhas. Satã atalaia-se ali, à esquerda do pórtico, disfarçado de príncipe do mundo, aí vêm as dez virgens, as prudentes e as loucas, suas candeias nas mãos... aguardam o esposo e a esposa que tardam para as bodas... já começam a tosquenejar, adormecem... vigilate itaque, quia nescitis diem neque horam... depois do dia do juízo essa porta fechar-se-á... Santa Margarida e Santa Catarina, padroeiras da sabedoria cristã... o portal abre-se flanqueado por estátuas dos apóstolos e dos reis da velha lei em seus nichos postados... esta aqui à esquerda é a Igreja, aquela à direita a Sinagoga com os olhos cobertos... o mistério da Redenção... no tímpano cenas da vida terrena de Cristo e o Juízo Final... na penumbra e frescura do templo, luz coada por rosáceas, trepam-me os olhos altas colunas até aos trevos das arcadas, às abóbadas aéreas... o púlpito, um Santo Sepulcro em madeira policroma, uma Adoração dos Magos... traça românica do cruzeiro do transepto e seus dois lanternins octogonais... na capela-mor, ao fundo da ábside a cátedra do bispo, dos lados do deambulatório o presbitério com seus cadeirais de madeira, sobre o altar-mor um tríptico pintado por Grien, ao centro a coroação da Virgem... desço a nave central e, em baixo, à esquerda, uns degraus levam-me a uma galeria em forma de estrela de onde subo ao patamar superior da torre pelas escadinhas em espiral... encher o peito do ar da montanha, a vista a pousar sobre o telhadio íngreme da cidade e a perder-se ao longe no azul dos Vosgos, no Kaisertuhl, o «trono do imperador», pequeno maciço que se ergue na planície de Baden, viçoso vergel de pomares e vinhas - «deve lá ir», dizem-me - e, mais perto, no verde da Floresta Negra que sobe...

Angustiosa a descida da torre. Sinto vertigens, doem-me as barrigas das pernas, estou apavorado, estonteado...

- Coloca as tuas mãos nos meus ombros - põe-se-me à frente um visitante que vê a minha aflição. - Descer é sempre pior que subir.

Enfim a terra firme! Caminho ainda tonto pelas ruas estreitas. Passam escolares com suas vestes negras, visito distraído a Universidade, vou até ao bairro dos pescadores e curtidores de peles e saio a cerca da cidade pela Porta Suábia, das Schwabentor... Mas não preciso, neste relato, de retardar tanto a impaciência como me ela estava retardando aquele dia interminável antes do encontro desejado. Cheguei na altura conveniente e a governante levou-me a uma salinha de espera mais aconchegada que o átrio. Pouco depois sinto passos e a face pálida, os olhos profundos, veste preta, mão muito branca a estender-se para mim, a figura augusta do mestre, nariz afilado, estranho chapéu na cabeça pequena, semblante fechado a qualquer sorte de emoção... faço menção de lhe beijar a mão, resiste, ia a pedir-lhe desculpa por o vir incomodar, corta-me o discurso:

- Muito feliz, muito feliz, por ter novas de Réscio. Traz consigo a carta:

- Réscio recomenda-te. Senta-te. Como está ele?

Espero que se acomode primeiro, o que faz com vagar. Sinto-o doente.

- Salvo ter saudades tuas - digo -, está bem e cheio de trabalho, lente de grego na Universidade, impressor...

- Bom amigo. E a ti que te traz a esta terra e a esta casa?

- Um só motivo me trouxe. Em Antuérpia, em Lovaina, por toda a parte por onde tenho passado soa o teu nome... leio os teus livros... Desejava ardentemente conhecer-te...

Deita uma vista à carta:

-... que és escolar de latim...

- Tardio. Procuro cobrar o tempo perdido. Estudei tanto que se me cansaram os olhos e a cabeça. O físico aconselhou-me a passear, a andar a cavalo...

- És muito novo - comparava os meus trinta e um anos com os seus bem passantes de sessenta.

- ... aproveitei e vim até cá... - e de repente, um tanto canhestro, estendia-lhe o meu livro: - Desejava, se me»permites, mestre, oferecer-te em mão a minha primeira obra.

- Ah, escreves! - Erasmo pega nele: - Legatio... - lê e ergue a mim o olhar sem expressão.

- É o relato da embaixada...

Muito grato. Lê-lo-ei oportunamente - e logo o coloca em cima de uma mesinha que aí está ao lado. Levanta-se: - Vem, vamos cear - e encaminhava-me para a porta. - Teremos ocasião de falar mais de espaço...

Comia pouco e devagar com longas pausas, a comida a meio caminho da boca, a escutar-me. Tinha-me inquirido de Portugal, das navegações e conquistas, do comércio... e eu falava-lhe disso tudo com algum calor e juntava-lhe o alargar do conhecimento da Terra e da cruzada contra os Mouros que teimavam em cercar, desde a Ibéria até aos Cárpatos, até à índia, à Etiópia, a Europa, a cristandade distraída em guerrilhas entre cristãos. Mas ele lá teria algo a remorder-lhe, que me interrompia:

- Há seis anos pensava-me bem informado sobre o monopólio das especiarias portuguesas. No prefácio das minhas Crysostomi Lucubrationes que dediquei ao teu rei, cheguei até a criticá-lo porque nem sempre as especiarias chegam até nós, no centro da Europa, nas devidas condições e a preços razoáveis. Bolorentas e caras. Pareceria lógico que se não desprezasse, em nome da ganância, a saúde de quem as compra e consome e que quanto maior fosse o mercado menor o custo... Sei hoje, pelo teu conterrâneo Marcial de Gouveia, que o rei João terceiro não é culpado...

Negócios, negócios. «Mercadores», respondia-lhe, «nem sempre são honestos. Procuramos sanar esses males»... Queria mas era ouvi-lo falar de humanismo, do que pensava de certas malhas da questão religiosa, trazê-lo a falar dos Etíopes, dos Lapões. Como fazê-lo?... Após um segundo de silêncio, atrevo-me:

- Estive em Vitemberga. Ceei com Lutero e com Melâncton. Ergueu para mim os olhos com um lume de ironia. Ousei comentar:

- O olhar do autor do Louvor da Loucura.

- Não. Deus me livre. Curiositas tantum. Es luterano?

- Não. Deus me livre - respondia-lhe como em eco. - Sou erasmista.

Sorriu pela primeira vez. A ceia acabava.

- Quando partes?

- Amanhã. Gosto de viajar. Pretendo percorrer em França e Alemanha cidades que não conheço. Além de que estou interessado em testemunhar esta grande tormenta religiosa que se está a dar na Europa.

- Dizes bem, tormenta...

- Primeiro descerei a Basileia...

- De lá venho eu fugido por mor da viragem religiosa. Também eu sou erasmista, calcula...

- Quem com mais profunda razão o é senão tu, Erasmo?

- ... mas tenho lá bons amigos que o não são: Munster, Grineu... Bonifácio Amerbach mantém-se católico. Gostaria de aproveitar a tua ida para me levares carta para ele.

- Ao teu dispor - respondi-lhe. - É-me muito grato ser-te prestável.

Despedi-me com os protestos da minha admiração e a promessa de intervir junto do meu rei a seu favor na questão das críticas que lhe fizera. Agradeceu polidamente, com voz cansada.

Quando saí, caminhei pela rua um pouco confuso com o que me pareceu a frieza do acolhimento. Não prestou a mais pequena atenção ao livro que lhe ofereci. Pairava lá nos altos, olímpico, inatingível. Não lhe consegui falar do que tanto levava em ânimo... Mas que esperava eu? Tenho-me assim em conta de pessoa tão grada que um Erasmo deva descer à Terra, à terra, e abrir os braços a um qualquer que nunca viu nem sabe quem é? Ledo me andava com tanto elogio à minha pessoa! Grapheus, Resende... Havia que dar desconto, sinceros que fossem os amigos. Ô valor intrínseco não está no que os outros de nós inculquem mas nos actos e nas obras. A serenidade é a marca. Não, não era frieza de Erasmo, mas serenidade... E com estes pensamentos me consolava.

Desço a Basileia, burgo assentado em terra chã, pingue de vinho e pão. Mal rompe o dia, entram bem quatrocentas ou quinhentas carretas atulhadas de ovos, pão, carnes, pescado, legumes, vinho, lenha, palha e tudo o necessário, mercado avondoso. Pelo meio da cidade o Reno e a ponte de madeira, espaçosa de seis passadas, longa de duzentas e quinze, que tanto o rio é largo. Rija a torrente neste princípio de Maio. No Inverno só escorre, bem no fundo, a alma da água, ao contrário das ribeiras de Portugal. O restante volume coalhado, o regelo do espelho grosso de duas braçadas, que nele passam como se fosse chão as pesadas carroças tiradas por fortes muares e os carros dos bois possantes. Cândidos de neve em redor vales e montanhas, suspensos no ar em carambelos os desgrenhes de despenhadeiros e açudes. Fina a invernia, nos começos do Verão por fins de Março, os regatos acordam, gemem os riachos, as ribeiras rugem. Gotejam e escorrem e rumorejam e despenham-se cataratas e cachoeiras, estalam e quebram e descolam lajes enormes de gelo que vêm por aí abaixo na fúria do rio e dão tamanhas pancadas na ponte que com o estrondo e o abalo parecem querer derribá-la. Terra fria esta. Não fossem as estufas das casas e dos mosteiros e das pousadas e albergues, morrer-se-ia enregelado. Lugares há aí em que dois ou três meses não podem sair de casa pessoas e gados, que vivem do que se colheu no Estio e no Outono. Gente soberba e crua para com os estrangeiros. Os habitantes, segundo pude eu próprio comprovar, comilões e beberrões até não mais, mal vestidos os homens, que as mulheres arreiam-se com garridice. Dizem-me os moços e os pajens da minha comitiva que há aqui à volta de oitocentas putas, se não mais não menos, afora outras que, caladas embora, são bem gentis mulheres para o que todos sabemos, como eu em pessoa e meu proveito, Deus me perdoe, pude experimentar.

Basileia já não é católica como Friburgo, a luta pelo protestantismo recente é por vezes cruel. A alguns resistentes, como se fossem criminosos, ameaçam de morte ou até, não os conservando na cadeia mais de três dias, levam-nos de noite à ponte, onde existe um alçapão, atam-lhes pés e mãos e lançam-nos à torrente, que os engole para nunca mais serem vistos.

Não tenciono demorar-me aqui. Traz-me o desejo de ver terra ainda não conhecida e, confesso, de presenciar in loco algum aspecto mais do caso, do phenomenon religioso. Dirijo-me à Universidade à procura de Jerónimo Amerbach para lhe entregar a carta de Erasmo. Recebe-me no escritório. É homem dos seus trinta e oito anos, alto e esbelto, a barba e bigode escuros, sedosos, na face rosada, olhos negros, boina preta, larga sobre a cabeleira basta, altura proporcionada na quase magreza, mãos compridas, finas. Filho do impressor Bonifácio Amerbach, já falecido, dos cinco irmãos já só tem viva Margarethe, mais velha que ele cinco anos. Licenciado em artes aqui mesmo na cidade natal, cursou Direito em Friburgo de Brisgóvia, doutorou-se em Avinhão, sucedeu na Faculdade de Direito de Basileia a Cláudio Chansonnette, ou Cantiuncula como alatinamos nós os escolares. Discípulo de Ulrico Zasi, ou Zazius, em Friburgo e amigo de Alciato, perito em latim e em grego, a amizade com Erasmo vem de quando para ele ajudou Froben na edição das obras de São Jerónimo. Tudo isto eu sabia e guardava no registo da memória.

Bonifácio Amerbach quebrou o selo da carta de Erasmo e leu-a ali mesmo na minha frente.

- Vejo que és português - ergueu para mim o olhar -, mas não encontro menção do teu nome. Quando é que até o bom Erasmo dormita?

- Damião de Gois, cavaleiro português, ao teu serviço - respondo-lhe numa vénia.

- Onde estás hospedado?

- Na Estalagem da Cegonha.

-Está lá também o embaixador do duque da Sabóia... - Conheço-o.

- Excelente amigo. Joaquim Zazius é filho do meu velho professor de Direito em Friburgo, Ulrico Zazius.

- Se assim é, permite-me que te convide para cear com ele, a quem l também convidei para esta noite.

Amerbach mostrou-se muito agradado com o convite e, como a tarde caía, saímos pelas ruas estreitas em direcção à estalagem. Parávamos a conversar alguns passos antes da porta de um livreiro. Amerbach aponta e diz-me:

-Aquela porta ali... - Sim...

- ... a oficina e a loja de Froben, o editor de Erasmo e livreiro dos mais procurados...

Vinha de lá a sair um homem alto, sobraçando um senhor carrego de livros, o semblante concentrado, o gorro triangular enterrado até as orelhas, olhos claros muito vivos, rapada a cara, nariz comprido, lábios apertados, a renda da camisa branca a debruar-lhe o pescoço magro sob a veste castanha de gola de arminho...

- Sebastião - chamou Amerbach. Sebastião voltou-se:

- Ah! Doctor Amerbach!

Suspende-se-me aqui o espírito e acontece julgara eu que também se me suspenderia a pena. Mas não. Como se fora prolongamento do pensar, ela, quase sem eu o sentir, apontou aqui, vejo-o agora, todas as ideias que me acodem à cabeça. E que estou confrontando, em verdadeiro gáudio, o que deveras aconteceu neste encontro, e em outro que se seguiu, com o que eu declarei ao tribunal da Inquisição dita santa quando interrogado sobre o assunto. Mas não adiantemos o que eu disse aos que se arrogavam o direito de julgar da minha consciência. A seu tempo virá. Queria apenas registar que, mesmo aqui na triste condição de prisioneiro, ainda sou capaz de me rir...

- Sebastião Munster, velho amigo franciscano - abraçava-o Amerbach.

Como eu me afastara um pouco por cortesia, tomou-me da mão:

- Deixa-me apresentar-te o cavaleiro português Damião de Gois... Munster fez uma vénia, a que eu correspondi...

- ... que acaba de chegar de Friburgo e fez o favor de me trazer carta de Erasmo. Sebastião Munster - explicava-me - se há alguém sábio, ele o é, orientalista e cosmógrafo, matemático e cartógrafo, historiador e astrónomo, professor de hebraico da Universidade, filólogo e teólogo, quer dizer, ele abraça todas as ciências, humanas e divinas...

- Muita honra em conhecer-te - disse eu. Amerbach virava-se agora para Munster e apresentava-me:

- Damião... - e calou-se, súbito tolhido por se dar conta de que nada sabia de mim.

- Lusitanus - disse Munster, compreendendo o embaraço do amigo - quer dizer já alguma coisa. O insólito é que se encontre aqui em Basileia e não na índia, na África, no Brasil...

Apresso-me a referir, em poucas palavras para retirar o tom de auto-elogio ao que diga, o ser escolar de Lovaina e uma sorte de embaixador de el-rei João terceiro, o meu cargo de secretário da feitoria em Antuérpia...

- ... e, o que me mais quadra - acrescentava -, viajante incorrigível, observador do mundo, amante da música e das belas-artes...

- São essas - asseverava Amerbach abraçando-me - credencias mais que bastantes para nos honrares com a tua presença.

- Sê bem-vindo a esta terra - disse Munster.

Estivemos ali tempo sem conto, em muitas profanas e não profanas conversas. Munster e Amerbach, já o esperava, têm curiosidade em ouvir dos feitos portugueses por terras do Levante. Vem a talho falar da cruzada e, de salto, da convulsão religiosa.

- Sebastião Munster - informa Amerbach - é franciscano aderente dos reformadores...

- ... convicto... - disse Munster. - És papista?

- Sou cristão - respondi sem hesitar.

avisou Amerbach.

E perdemo-nos, mais uma vez, em aceso debate sobre as guerrilhas do povo de Deus entre si, que afastaram das preocupações a ameaça muçul-mana. E eu, em meu íntimo, não desculpava Roma de tanta paixão entre

cristãos.

A noite caía.

- Temos de nos apressar - avisou Amerbach.

Munster despedia-se:

- Ver-nos-emos amanhã?

- Convido-vos - diz Amerbach - para almoçarmos em minha casa.

Conversaremos de vagar.

À porta da estalagem Amerbach encontra outro amigo:

- Simão Grineu - apresenta.

Lembrei-me de que ouvira Erasmo falar dele. Sabia-o luterano, continuador religioso de Ecolampádio e professor de filosofia, perito em música antiga. Homem alto, o cabelo em madeixas enroladas sobre a testa, lume grave no olhar, nariz grosso, a barba grisalha nas faces e branca e abundante no queixo. Amerbach convidou-o também para o jantar do dia seguinte.

- Quero ouvir-te falar dos bravos navegadores portugueses - dizia-me Grineu, os olhos acendidos, os braços apoiados nos meus ombros.

- Ignorava-te interessado pelos nossos descobrimentos.

- Interessado? Maravilhado! Despedimo-nos dele e entrámos na estalagem.

- Joaquim Zazius - ia-me dizendo Amerbach - é filho do segundo matrimónio de Ulrico Zazius, cursou Direito na Universidade de Friburgo, foi secretário de Carlos terceiro, duque de Sabóia, ascendendo depois a chanceler e embaixador..

Eu quase o não escutava. O meu convite a Zazius não fora casual. O encontro destoldava-me da borra do adormecimento um ror de feitos passados e mais uma vez soavam aos meus ouvidos as palavras do guarda-mor Nuno Manuel e o segredo que tenho de guardar até à morte... Dias da infância, as horas desprendidas nos paços... Lisboa, Sintra, Almeirim, Évora... era-me dado estudar e brincar com as infantes filhas de el-rei Emanuel. Se Isabel, que veio a casar com Carlos quinto, revelava beleza senhoril, a irmã Beatriz, que seria duquesa de Sabóia, era a doce formosura que não podiam esquecer os poetas da corte. Meu terno amigo Bernardino Ribeiro! Tão manifestos os suspiros arrancados, perdido de amores por tua pastora Joana, deram as más línguas em badalar seriam por mor da senhora infante!...

Tinha Beatriz doze anos completos, em quinhentos e dezasseis enviava a corte de Portugal o duque de Sabóia, príncipe do Piemonte, seus embaixadores a requerer a el-rei com ela casamento.

- Que vais ser duquesa - disse-lhe eu um dia, cansados de correr, sentados com a irmã à borda do lago do jardim, ao coaxo das rãs.

Colhera um malmequer e pôs-se a desfolhá-lo:

- ... mal me quer, bem me quer... - Suspendeu-se e olhou-me: Não sei.

- Tu não tens que inquirir se te querem bem ou mal - ralhava Isabel muito compenetrada. - El-rei nosso pai é que dispõe.

Esmagou na mão a flor e desatou a correr, desafiando:

- Anda, vinde... quem chega primeiro à escadaria...

Foram-se os embaixadores sem que o requerimento tomasse conclusão. No princípio de Setembro nascido à rainha um infante que logo faleceu. Tão maltratada ficou do parto que nunca mais se achou bem. Gerara-se-lhe um apostema nas entranhas, sem que a medicina lhe pudesse tornar a saúde perdida. Acrescentavam-se-lhe de dia em dia agudíssimas dores e veio a morrer em Lisboa nos Paços da Ribeira aos sete dias do mês do Março seguinte, em idade de trinta e cinco anos...

Passado o nojo, casava el-rei, no Novembro de dezoito, em terceiras núpcias, com Leonor, irmã do César. Apertava o duque de Sabóia, por mensageiros e cartas, sobre casamento que em extremo desejava se levasse a cabo. Jóia preciosa, mais quatro anos engoliu o grande Esfomeado, veio a bom termo o contrato. Domingo de Pascoela, sete dias do mês de Abril de vinte e um, perante el-rei e a nova rainha, o príncipe e os infantes, damas, senhores e nobres fidalgos, presentes os ministros e os embaixadores, o arcebispo Martinho recebe a infante Beatriz com monseor de Balcisan em nome do duque de Sabóia por palavras de presente.

Logo do outro dia por diante mandou el-rei se ordenassem todas as coisas necessárias para a ida da senhora infante e fossem prestes para poderem embarcar até dia de Santiago, vinte e cinco de Julho. Atrasou a largada uma breve doença da duquesa, mas em quinze dias com os grandes remédios que lhe fizeram ficou sã. E domingo, quatro dias de Agosto, num espaçoso salão do paço, armado de tapeçaria de ouro e alcatifado, dorsel, cadeiras e almofadas de rico brocado, se começou um prolongado serão, em que el-rei dançou com a filha duquesa, a rainha com a infante Isabel, o príncipe e o infante Luís com damas que tomaram, e todos os galantes e damas que iam a Sabóia e muitos outros senhores. As danças acabadas, Gil Vicente e a sua companhia representaram uma comédia de muitas figuras em honra do casamento e partida da infante. Mandou Deus a Providência por mensageira a Júpiter, rei dos elementos. Fizesse cortes, que era mister se concertassem Planetas e Signos em favor da viagem da princesa. São convocados o Mar, os Ventos, o Sol e a Lua. Os infantes e a nobreza acompanham a frota até à foz do Tejo nadando, metamorfoseados em peixes. Vem do mar alto o canto de trinta mil sereias. Marte recebe ordem de proteger a armada contra adversários. A rematar, entra a moura Taís, tirada de seu encantamento de dois mil anos por um romance cantado por Planetas e Signos, e entrega à duquesa de Sabóia um terçado, um dedal e um anel de condão:

 

... este dedal.

senora, quanto box pedir

el fazer lugo venir.

este anel dá condon perguntald box ã el

y el dar a box razon de quantox xacretqs xon, tudo box xaber por el...

 

Logo ao outro dia, que foi segunda-feira dia de Nossa Senhora das Neves, à tarde, a senhora infante duquesa embarcou com toda a sua luzida comitiva. O povo da cidade e arredores acorria aos magotes a ver tão espantoso espectáculo e, em sua simplicidade maravilhada, não deixava de comentar, a seu jeito:

Nunca de Espanha saiu nem se viu gente tão rica, galante e atilada, filha.

- Vestidos borlados de perlas...

- ...e de aljôfar... Ai, madre! Que mui riquíssima pedraria!

- E os canotilhos? A chaparia?...

- Tanto ouro de martelo!

- ... e singulares entretalhos...

- Não há i homem, mana, que não leve colares de pedraria e ouro esmaltado e grandes cadeias de tiracolo...

- ricas espadas, estoques e adagas e punhais guarnecidos de ouro, de muitas feições e desvairadas invenções...

- ... e ricas cintas e tecidos e infindos botões e firmais e pontas de perlas, ouro e esmaltes...

- ... até os sapatos que todos calçam são de veludo, feitos à flamenga, com guarnições de ouro esmaltadas...

Mas um velho que aí estava, arrimado ao varapau, cabelos brancos, brancas as sobrancelhas revoltas, olhar de águia, nariz adunco, o ricto da boca de amargor descaído, rabujava entre dentes:

- E onde está aí a fome do nosso pão?

Lembra-me de que também eu sentia que tanto alarde de riqueza, que eu já nesses meus dezanove anos sabia ser fictícia, fazia doer quem era isento...

Com as delongas das cerimónias de despedida ou porque o mar andava um pouco alevantado, a princesa não partiu senão ao sábado pela manhã, dia de São Lourenço, dez dias do mês de Agosto de quinhentos e vinte e um, com toda a frota de sua armada e saiu de foz em fora e fez sua viagem.

Quatro meses depois, a treze de Dezembro, falecia el-rei Emanuel e eu preparava-me para partir para Antuérpia. Hoje recordo as lágrimas e saudade da despedida da princesa. Nem el-rei escapou. Que foi feito da vossa serenidade? Não são reis, príncipes, infantes educados a não mostrarem sentimento, partir sem dor, casar sem amor para procriar nobreza de sangue, sem lágrimas aceitar a morte?... Regresso ao tópico da serenidade que me suscitou uma vez o acolhimento frio que me fez Erasmo. Não é verdade que Tua Alteza, meu rei Emanuel, se diz sereníssima? Seres vegetais, ramos de árvore genealógica desde Adão, desde Jessé... Raiz, tronco não são as palavras usadas?... folhas, flores, frutos... prosápia é erva, é arbusto, é árvore, é floresta, é chão, é húmus, é terra como diz o meu amigo Bernardim que tudo o é... Serenidade, olímpica indiferença, quase como deuses... Adeus, Beatriz, infante duquesa, querida amiga, companheira de infância, quase irmã, boa viagem!...

A ceia com Zazius e Amerbach, disfarçado o sentimento, eu contava-lhes das cinco naus grossas, das quatro galés e dois galeões e duas caravelas e uma fusta, as melhores que podiam ser, muito escolheitas de novas, fortes e veleiras, tão rijamente armadas que era coisa de espanto. Além da artilharia costumada, levavam mais do armazém de el-rei quinhentos e trinta e sete tiros, todos de ferro coado, cento e duas peças de bombardas grandes, muito furiosas, e trinta e cinco de falcões e cinquenta de lagartixas, e trezentos e cinquenta berços, tudo de metal, repartidos por todos os navios quanto cada um podia...

- É obra! - admirava-se Amerbach

- E que se poderia esperar de el-rei de Portugal? - dizia Zazius.

E eu falava-lhes que a nau em que a senhora infante viajava era de oitocentos tonéis, a do arcebispo de seiscentos e cinquenta, a de Francisco de Castelbranco de trezentos e cinquenta, a de Francisco da Gama de trezentos, o galeão de Afonso de Albuquerque de duzentos e trinta, as galés eram reais e muito grandes... e contava-lhes do mar feito coalhada de batéis ataviados que rodeavam a frota, e dos toldos, estandartes e bandeiras de todos os navios, e da estrondosa salva que tirou o bastião do Restelo, e da soma de charamelas e saca-buchas e trombetas e atambores e outros instrumentos que tangiam...

- Se a partida de Lisboa foi rica e pomposa - disse Zazius com uma ponta de tristeza e inveja, enquanto levantava a taça - devo confessar que a duquesa deve ter sentido, por contraste, grande abalo à chegada da armada ao porto de Nice e ao dar-se conta da nossa pobreza. O recebimento que o duque Carlos em pessoa fez a sua mulher, conquanto seja homem feio e torto de ombros, foi correcto e amável... eu estive lá... Pese embora às damas, que na caminhada para o palácio se sentiram desconfortáveis nas pobres cavalgaduras que lhes couberam em sorte, a infante Beatriz, como pessoa real que era, a todos logo maravilhou com o seu sorriso e postura. Dir-se-ia que a Sabóia inteira se enamorou dela - e brindava-nos levando o vinho à boca.

Pequeno silêncio do passo que eu e Amerbach correspondíamos à saúde e libávamos aquele reno branco fresquíssimo.

- Há uma pergunta que trazia em mente fazer-te - disse eu a Zazius.

- Faz, amigo.

- Como vai de saúde a senhora duquesa? Sei que tem um filhinho...

- O primogénito, Emanuel Filisberto, cinco anitos muito ladinos e vivos... Mas a duquesa já nos deu mais três rebentos. Ela está bem e cada vez mais formosa nos seus vinte e nove anos.

- Muito me apraz sabê-lo. Se eu estivesse agora em Nice iria visitá-la.

- Paira contudo no ar uma ameaça à casa de Sabóia - disse Amerbach.

- Que ameaça? - perguntei, mas foi Zazius quem se apressou a responder:

- Francisco primeiro de França. Ou eu me engano muito ou algo aí virá mais próximo do que se poderá julgar...

E a conversa, pela ceia adiante, derivou para as lutas entre a França e Carlos quinto e daí para Henrique oitavo e o seu divórcio e o papado e as diversas formas e variadas reformas que o protestantismo estava assumindo e a Igreja cada vez mais dividida e assim se acabou o nosso encontro dessa noite.

No dia seguinte a meio da manhã saí da estalagem e dirigi-me a casa de Amerbach. Ia com muita curiosidade e antevia que a fala com Munster e Grineu ao jantar, dado que um, além de conhecedor de todos os saberes, era franciscano e luterano, o outro discípulo de Ecolampádio, se equilibraria entre a ciência e a religião. Pelo caminho juntei-me a Munster que também para lá caminhava.

- Estou interessado - disse-me, indo direito às suas preocupações -, em conhecer mais a miúdo o que fazeis em Portugal quanto a cartas e roteiros e portulanos...

- O que conseguir investigar a esse respeito - prometi - eu to enviarei.

Agradecia ele, quando chegámos à porta de Amerbach que logo desceu:

- Avete, amicil - a acolher-nos de braços abertos. - Tenho para vós hoje uma surpresa que espero vos agradará. Como o dia está bonito e quente, para desenfadamento vamos jantar num aprazível vergel que tenho, atrás da casa, ao fundo do jardim... - e encaminhava-nos para lá, depois de no vestiário depormos chapéus e capas.

Por estreito corredor saímos à horta, passámos o jardim e chegámos a um caramanchão com dossel de madressilvas e miradouro para o Reno, sobre as muralhas. Grineu chegava, pedindo desculpas pelo atraso. Sentámo-nos a uma comprida mesa de boa madeira sob a ramada de roseiras. Duas criadas moças e bonitas entraram a servir-nos acepipes e iguarias de frutas e saladas, e punham na mesa pratos de aves e cervo montês. A conversa não tardou a versar religião.

- Eu sou franciscano - dizia Munster -, -Lutero é agostinho, outros são dominicanos... se procurares bem todas as ordens se revoltaram contra Roma.

- Argumento que não colhe - opus eu. - Se procurares bem, como dizes, encontrarás membros de todas as ordens a lutar por Roma contra os reformadores.

- Não colhe? - acudia Grineu. - A própria constituição de ordens, ao seu nascimento assistiu sempre, numa como que revolta contra a postura da Igreja, uma ânsia de reforma, de purificação do ideal cristão.

- Cada ordem, cada estatuto de cada ordem - ajudava Munster - é já um protesto.

- Tereis razão - ponderava Amerbach -, mas será necessário dividir o povo de Cristo? Dividir, é sabido, não o enfraquece?

- Roma não cede uma unha...

- ... não se corrige de tanto luxo, de tanto comércio, de tanta...

- Como pode ceder, se vós os protestantes cavais até à essência mesma da religião?

- Da essência da religião se afastou Roma há muito tempo.

- E qual é essa essência - perguntava eu -, se vós próprios vos não entendeis? Se Cristo está ou não está ou como está nas espécies?... Esse é o cerne da questão.

- Discussão teológica - retomava Grineu - que considero saudável, vinho turvado que assentará. O que é preciso é não mais concordar com papas fornicadores, com Bórgias tiranos e prepotentes e assassinos e relapsos e corruptos. Cristo nunca teve um anel, nem usou tiara nem báculo, nem guarda suíça...

- ... nem nunca casou - não pude deixar de atirar, rindo. Suspendeu Grineu a fala, a olhar para mim, via-se-lhe nos olhos o pensamento a voar, e depois num gesto de mão e com voz acalmada:

- Isso... - e bebeu uma golada de vinho. Munster desviava a prática:

- O texto dos Evangelhos...

Amerbach compunha um ar doutoral, alto lá ! aqui é a minha coutada!... que todos ali eram doutores - quanto os admiro! - menos eu... Que fazer? Tenho, tenho que estudar cada vez mais...

Mas o nosso anfitrião, para não entrar em discussões académicas com o amigo, decidiu ir noutro rumo:

- Sabeis que Cristobal está outra vez entre nós?

- E não foi preso? - admirava-se Grineu. - Teimoso o homem.

- Quem é? - perguntei.

- Um padre espanhol que deu em altercar com a Igreja reformada respondia Amerbach.

- Em começos de Abril foi preso - ajudava Grineu -, logo solto e expulso da cidade, voltou e foi de novo encarcerado...

-... e de novo mandado em liberdade...

- ... e de novo expulso.

- Agora, quando menos se esperava, retorna a Basileia. Aqui tens.

- Contra as ordens do magistrado.

- Desta vez põe a vida em risco.

- Aquilo é demência.

- Muita sorte a dele - disse Munster - se não o atirarem ao rio pelo o alçapão da ponte.

Parti de Basileia e a oito de Maio já me encontrava em Lovaina a rever Réscio, Goclénio, Nânio, Vives, Splinter e a contar-lhes o meu encontro com Erasmo em Friburgo, com Amerbach e Munster e Grineu em Basileia...

- Mas diz, diz - pedia Goclénio. - Como encontraste o meu Erasmo?

- Sabeis - fitava-os eu, a voz sentida - o que é um neófito erguer um olhar tímido para o mestre lá em cima na cátedra?... O verme a fitar o Sol.

- Oh!

- Oh!

- Damião! Sorri-lhes:

- Pareceu-me um tanto cansado. Tanta gente a solicitá-lo... Creio que o fui tirar de seus cuidados e o molestei...

- Ora agora! Não, decerto.

- Levei carta dele para Bonifácio Amerbach. Não nomeava o portador. Até Amerbach estranhou... mas eu próprio interpretei a meu modo este cuidado do mestre.

- Ele não sabia quem tu eras - disse Réscio pesaroso. - Talvez culpa minha. Não soube, ao escrever a carta em que te recomendava, dizer o que cumpria.

- Tudo se remediará, vais ver - compunha Nânio.

- Porque não lhe escreves?

Pensem os outros o que pensarem, muitos julgarão ser vício meu e talvez me achem entremetido. Tenho pendor para atar laços com as pessoas e não deixar desbotarem-se os conhecimentos que vou fazendo pelo mundo. Erasmo é meu alvo, mas eu quero proceder com resguardo não vá ele enfastiar-se. Digamos que me proponho fazer o cerco de largo. Escreverei a Amerbach e naturalmente aproveitarei a ida do meu mensageiro para aqueles lados e enviarei também carta a Erasmo de Roterdão. E pretexto para escrever a Amerbach? Ah! Aquele padre católico espanhol que em Basileia foi preso e solto e expulso por duas vezes e retornou e corria perigo de vida. Que lhe terá acontecido? Aí está. Sento-me à mesa e escrevo:

Ao senhor, Bonifácio Amerbach, peritíssimo em ambos os Direitos, na ínclita Basileia. Damião de Gois Saudações

Pelas tuas atenções para comigo deveria eu começar por um serviço e não por uma carta, mas, tendo-se-me oferecido o ensejo de correio idóneo, não quis faltar em escrever-te, primeiro para saberes da minha saúde, que creio desejes boa, e depois por querer te não esqueça da amizade deste teu Damião.

Entre as muitas e não profanas conversas que tivemos em Basileia recordo-me de teres referido um espanhol que, por causa de altercações aí havidas com pregadores populares, foi expulso da cidade. Dizias-me, na véspera de eu me vir embora, que ele aparecera pela terceira vez e por isso devia recear pela vida. Peço-te, se te não for molesto, o favor de me informares do caso e do nome dele, o próprio e o de família, com o que te ficarei muito grato. Se quiseres responder-me, pelas mãos do senhor Erasmo poderás fazer com que me chegue a tua carta. Adeus.

Lovaina, 18 de Maio de 1533.

Rogo-te apresentes os meus cumprimentos ao senhor embaixador do sereníssimo duque de Sabóia, que pousa aí na Estalagem da Cegonha, onde ceou connosco, lembras-te?

Teu Damião de Gois, português.

Agora o selo e está feito, sagaz Damião. E dispunha-me a escrever a Erasmo, tive dele notícia. Chegara a Lovaina o seu criado Quirino Hágio que procurei convencer a dispor de mim à vontade, mas escusou-se e foi à sua vida. Ia eu a pensar nesse estranho acanhamento, encontrei no pátio do Colégio Trilingue os meus jovens colegas Baltasar, Gaspar e Melchior:

- Cá vêm os meus queridos três Reis Magos! Abraços e risos:

- Damião de Gois! - dizia Gaspar. - Beatus illel O homem feliz que acaba de chegar de Friburgo onde ceou com o ilustre Erasmo de Roterdão!

- Se lhe tocaste a mão - dizia Baltasar -, é um privilégio tocar a tua.

- ... ou procurar-te nos olhos a imagem dele - rematava Melchior.

- Ouvimos ainda agora uma conversa acerca dele de que muito duvidamos - disse Gaspar. - Tu é que nos poderás esclarecer.

- De que se trata?

- Soaram para aí vozes de que Erasmo apoia o divórcio do rei Henrique. Que achas? E verdade?

- De modo nenhum - respondi vivamente. - Erasmo não poderia nunca apoiar tal coisa. Perguntai ao professor Luís Vives, que esteve preso em Inglaterra por sustentar pela rainha Catarina. Perguntai a vosso pai, que conhece muito bem Erasmo...

- Sabes que ele está cá? - interrompeu Baltasar.

- Vosso pai está cá?

- Em negócios. E parte amanhã.

- Para onde?

- Precisamente para Friburgo.

- Preciso de lhe falar.

Eu conhecia Erasmo Scheto de há muito, da feitoria. Homem de negócios e banqueiro de Antuérpia, casado com Ida van Rechtergem, filha de outro grande mercador, era ao mesmo tempo pessoa ilustrada. Quando Erasmo de Roterdão em quinhentos e vinte e seis se encontrou em apuros de dinheiro, sugeriu-lhe Scheto que dedicasse obra sua a el-rei João terceiro de Portugal, que não deixaria de o recompensar. A princípio o humanista hesitou, mas em Março de vinte e sete saíam das oficinas de João Froben, em Basileia, as Chrysostomi Lucubrationes, com carta-dedicatória a el-rei. «Pensão de vulto para Erasmo», contava-me Scheto, «e, para mim, nas boas graças do rei português melhorar as condições de trato da especiaria com os alemães, meus clientes»...

Fui à estalagem onde ele pousava. Grande festa ao ver-me:

- Damião! Há que tempos! Fugiste de Antuérpia? Sei que te fizeste escolar. Os meus filhos contaram-me.

- Assim é, caro Scheto. Tenho ali três bons amigos. És um pai feliz. Disseram-me que estavas de partida...

- para a Alemanha, o curso do Reno até Friburgo...

- Poderei pedir-te que me leves duas fartas?

- Ao teu dispor, Damião.

- Uma delas é para Amerbach, que reside em Basileia. Mas talvez possas encaminhá-la pelos mensageiros de Erasmo.

- Assim farei.

- Como vai aquele negócio das Lucubrationes^. El-rei...?

- Nada. Nem Erasmo nem eu lucrámos coisa alguma com a oferta. El-rei fez total silêncio. Não sei a causa.

- A causa? Eu ta digo. Quando visitei Erasmo o mês passado falámos disso. Ele próprio reconheceu que estava mal informado e foi injusto naquilo que escreveu na dedicatória quanto ao monopólio das especiarias.

- Talvez por isso nem deixassem chegar a obra aos olhos do rei...

- Por outro lado, consta-me que sopram na península fortes ventos contra Erasmo e erasmistas...

- Eu sei. A partir de Valhadolid.

- Em vinte e sete houve lá uma assembleia nesse sentido. Queres ver os portugueses que estiveram presentes? Escolhidos a dedo. Diogo de Gouveia, um teólogo, principal do Colégio de Santa Bárbara, de Paris. Estêvão de Almeida, que acompanhou a Espanha a infante Isabel em quinhentos e vinte e seis, a casar com Carlos quinto. Pedro Margalho, doutor em Teologia e Filosofia por Paris e Salamanca, reitor do Colégio de São Bartolomeu em Espanha. Três portugueses que contestam Erasmo.

- Mas el-rei João... que era dele grande admirador afiançava-me André de Resende...

- É verdade. Mas certamente existem forças que o obrigam.

- Será isso.

- Quando partes?

- Amanhã.

- Hoje mesmo te mandarei as cartas. Muito obrigado pelos teus bons ofícios. Desejo-te boa viagem.

Foi assim que enviei pelo mesmo portador a carta para Amerbach e uma outra para Erasmo, a dar-lhe notícia do meu regresso a Lovaina e da chegada aí do seu criado Quirino Hágio, e a lamentar-me de que a este moço por razão nenhuma consegui levá-lo a dispor dos meus serviços, timidez nascida não sei se dele, se de ordens de seu senhor. Entretanto reiterava-lhe a minha inteira disposição em o servir.

As duas cartas partiram. Resta-me agora aguardar os resultados. Entretanto estudemos...

Fins de Maio leva-me Réscio a assistir com os amigos a um doutoramento na Universidade.

- Trata-se de um teu conterrâneo.

- Quem?

- O jerónimo Diogo de Murça.

- Chegou a Lovaina com a fama de bom escolar de Salamanca e de Paris...

- ... celebrado na defesa das teses menor e maior, nas sabatinas, nos actos da sorbona pequena e ordinária... Veio-se embora descontente com coisas que por lá se passam e no Colégio de Santa Bárbara. Decidiu completar aqui os estudos e agora doutora-se em Teologia. Vem. Um dos arguentes é Luís Vives.

Não me neguei. No dia aprazado, o martírio do doutorando começou logo de manhã. Os arguentes, quando se cansavam ou quando sentiam necessidade de sair ou tinham de ir jantar, eram substituídos por outros. Ao infeliz nada era permitido, quase o não deixavam respirar, havia que argumentar, discutir, sustentar, usar da ratiocination^ fazer a prolixae sententiae brevis collectionem, arrancar do imo peito totam vim argumentations e a firmitatem totius illationis... evitar o melindre da disputa, não sossobrar... toda a manhã, toda a tarde sem comer nem beber, nem urinar nem defecar... Para quê?... Quid petisl... Gradum doctoratus... e a entrega das insígnias... Por mim, enquanto o pobre sofria tudo isto, fui várias voluptuosas vagarosas vezes a uma apotheca minha conhecida a acompanhar de pão e vinho um bom chouriço assado. No fim, como toda a gente, começando pelo reitor e pelos arguentes, fui abraçar o novo doutor que arfava sorridente quase desfalecido de suor, sede, fome e outras urgências humanas.

Entrava Junho e dobravam os dias, chega-me recado com carta de el-rei. Regressasse ao reino. Ah! Quer nomear-me tesoureiro da Casa da índia!... E cargo de primazia. Não faltará quem me inveje. Que desencontro da vontade! Grande mercê é essa. Sinto-me honrado com a confiança e reconhecimento de el-rei... mas no fundo de mim rói surdo desprazer.

Despeço-me de Lovaina, dos amigos. Vou a casa de Luís Vives, eminente filósofo, pedagogo e humanista. Tinha partido para Bruges. Escrevo-lhe a dar-lhe conta do meu novo ofício e da minha partida. Pergunto-lhe se tem escrito a Gaspar Hédio, amigo comum que um dia nos visitou em Lovaina.

Réscio mostrou-se comovido:

- Nunca mais nos veremos?

- Só Deus sabe.

- Escreve - pedia Goclénio.

- Assim farei... e igualmente a Erasmo, a despedir-me dele e a enviar-lhe uma lembrança...

Abraçámo-nos sentidos.

Apresso-me a seguir para Antuérpia, a preparar o meu regresso a Portugal.

- Cargo de suma preminência e de muita fiança - comenta Rui Fernandes. - Eu sempre disse que el-rei tem para contigo cortesia especial.

Como eu o olhasse perplexo:

- Não faças caso... - disse... e mudou de tom: - Também eu terei de partir... Admirado? Embaixador em Paris...

- Eu sempre disse que el-rei tem para contigo cortesia especial. Riu-se:

- Não é a mesma coisa... Mas não falemos disso. Acabarei aqui alguns assuntos que requerem conclusão, mas no começo do novo ano partirei.

Uma noite, depois da ceia, preparadas as coisas para a viagem, sento-me a escrever a Erasmo. Fraqueza minha. Quero prevalecer-me aos olhos dele do alto cargo para que el-rei me chama, já que ele ainda não olha para os meus méritos pessoais. Quero aquecer-me ao calor desse Sol que certo ultrapassará a lei da morte. Terei por isso, também eu, um belisco de imortalidade. Começo por lembrar-lhe a carta que anteriormente lhe enviei e renovar os protestos de o servir...

Meu Erasmo, pois me és caríssimo, não quero deixar de revelar-te a minha boa sorte: o sereníssimo rei de Portugal, meu senhor muito excelso, depois de, por seu mando, eu ter percorrido em negócios, durante um quase contínuo decénio, províncias da Alemanha, da Sarmácia e da Dácia, regressado finalmente à Bélgica, chama-me por carta a Portugal para que eu seja seu tesoureiro-mor, sem que alguma vez eu tenha solicitado ou sequer sonhado isto ou coisa semelhante. Por tal mostra de amor do rei para comigo podem sem dúvida os amigos não sem razão felicitar-me. Deixada Lovaina, já cheguei a Antuérpia, de onde, dentro de dez dias, regressarei a Portugal. Se Deus me der que chegue lá incólume, a ti em primeiro lugar e também aos amigos poderei e de coração estou pronto a mais pinguemente servir.

Falava-lhe depois de suspeitas ouvidas em Basileia de que ele aprovava o divórcio de Henrique oitavo, o que eu vivamente impugnei, e pedia-lhe me instruísse sobre o que haveria de dizer, se em Portugal, como eu previa, surgissem perante o rei conversas acerca dele e da opinião que tinha sobre o assunto. Derivava depois para a matéria da Legatio e dos Lapões e rogava-lhe que escrevesse sobre isso alguma coisa ou acrescentasse à minha exortação uma epístola comendatória a favor desses infelizes, para com a sua autoridade acordar a negligência dos senhores daquelas paragens. Finalmente...

De partida, deixo-te um mnemosynon. Envio-te, por mãos de Erasmo Scheto, uma pequena oferta, demasiado modesta para a tua dignidade, um copo de prata dourada. Ao servires-te dele, lembrar-te-ás deste teu amigo íntegro. Por mim, onde quer que esteja farei o mesmo e sempre me lembrarei de ti. Por pouco que valha, considera-o valioso e, se ainda assim, não for capaz, recebe o peito aberto deste teu amigo, amigo, repito, que até ao último suspiro encontrarás firme na sua amizade.

Carta que me queiras escrever para Portugal, com segurança a enviarás por Erasmo Scheto. Falei com ele a esse respeito. Mal chegue, dar-te-ei notícias de mim e da minha condição.

Antuérpia, 20 de Junho de 1533.

Erasmo Scheto já regressara havia duas semanas a Antuérpia e preparava-se para se pôr de novo a caminho.

- Nunca paras, amigo.

- Uma roda-viva. Haja saúde.

- Posso abusar outra vez da tua paciência e amizade?

- Sempre. É carta?

- Para Erasmo e também, como recordação, uma dádiva.

- Eu lhas levarei.

Já dávamos costas, voltou atrás:

- Ia-me esquecendo de te dar uma notícia que por certo te será grata. Estive em Londres recentemente. A tua Legatio foi traduzida em inglês por John More...

- O filho de Tomás?

- Sim... e editada em Londres.

- Não calculas, meu bom Scheto, o prazer que isso me dá.

- Começas a ser um homem célebre.

Erasmo... Que pensaria se o soubesse?... Já selada a carta... Alguma coisa me estava mordiscando a consciência, a acusar-me de vaidoso.

Essa noite, arrumava eu uns livros, abriu-se a porta do quarto. É MagdaLena, as faces rociadas:

- Partes - diz chorosa. - Vão perder-te os meus olhos?... Quero que saibas... Ah, como sinto a luta que se tem travado dentro de mim! Não me purifiquei o bastante eu. Sempre te guardei no coração...

Olhei-a sem saber que dizer. Pegou-me nas mãos e beijou-as, fitou-me apaixonada no fundo da alma, pousou a boca na minha... e fugiu... Atordoado. Feitoria, vida, amigos, sonhos... tudo em mudança...

Meus etiam equus... até o meu cavalo, garboso, que trota pelas pradarias penteadas de pratas bolideiras de choupos, sombras de salgueiros e soutos de carvalhas da Picardia, meu cavalo murzelo... «nunca quadrúpede da minha estirpe», vai pensando, «agantou em seus lombos senhor tão... tão... tão...» Ora, Damião! Quanta exorbitância, senhor tesoureiro-mor... «Oh, precioso, dom Anrique! Vós aqui?» meu chocarreiro mestre Gil, diabo na barca infernal... para lá caminho... Que te deu? Vê se ganhas juízo...

Refrescou-me da tontura a brisa soprada das arribas do Soma, tangiam cantares brejeiros os meus pajens e moços.

Joaquim ama Constança Manuel a Joaninha

E guerra que só descansa com o punhal na bainha...

Oito dias andados, havíamos passado Lila, Arras, Ambiano... Uma tarde de Julho, dos campos da margem direita do Sena, onde acabam a faina do dia homens e mulheres do campo, Paris à vista, muralhas douradas pelo Sol que esfalece, as torres redondas e bicudas de ardósia do palácio do Louvre onde mora Francisco primeiro, além a terrível mole da Bastilha, a da Conciergeria, grimpas de igrejas góticas, junto à velha Lutécia a catedral de Nossa Senhora e o casario da margem esquerda. Atravessamos o rio por uma larga ponte ladeada de casas de madeira, no rés-do-chão as portadas abertas e bancas de comércio a abarrotar de legumes, fruta, carnes, pão, vestuário e tudo o mais necessário, não esquecendo livros, lojas muito frequentadas por escolares. Entramos na cidade, ruelas estreitas, sujas, barulhentas, multidão de gente, carroças, pregões, fidalgos e burgueses, povo, crianças a correrem, cães a saltarem e a ladrarem... tait toi, Tonem... gelosias que se abrem ah! quel mestier de con!... merde, bon Dieu... mas aqui está, com a sua Sorbona, não deixo de pensar, uma das fortalezas do catolicismo. Para lhe temperar o dogmatismo o rei Francisco primeiro fundou há anos o Colégio de França com o sábio Guilherme Budé ao leme. Aí não se esconde nada: a instituição docet omnia, ensina tudo... Vitemberga, Lovaina, Friburgo, Basileia, Paris... é-me dado auscultar o pensar e o crer dos homens... só me falta Roma...

Fora das muralhas, na planície à beira-rio, no viço de hortas e pomares, o convento de São Francisco. Toco a sineta da portaria. Um irmão vem abrir. Não fala. Interroga-me com o olhar.

- Frei Roque de Almeida? - e, como ele continua a olhar-me: Sou Damião de Gois, português, um amigo que vem de longe.

Abre-me passagem e, no locutório, indica-me uma bancada e desaparece atrás de uma porta. E uma quadra despida e fria, arrepio da pele no silêncio de mortalha. A porta range e frei Roque entra:

- Damião de Gois, meu amigo! Sê bem-vindo. Que fazes tu em Paris? Julgava-te em Antuérpia...

Irmão de Fernão Álvares de Almeida, cunhado de João de Barros, frei Roque. Pregador, fala pelos cotovelos. É homem alegre, risonho, cara chupada, voz forte no corpo franzino mas alto, cabelos esgrouviados, em coroa, muito douto no hebraico, grego e latim.

Disse-lhe da minha jornada caminho de Portugal... Paris, resolver visitar o amigo...

- E fizeste bem, tenho ouvido de ti... viagens por esse mundo de Deus... e do Diabo... - e dava uma gargalhada - ... do Diabo, não é verdade!... Vitemberga... que sei eu... Meu herege!

- Sim. Estive dois dias em Vitemberga, mas não fiquei herege.

- E viste-o?

- Não só o vi como o ouvi e ceei com ele e com Melâncton... Tomou-me do braço.

- Vem - disse -, quero que me contes. Não podemos aqui. Tenho um segredo a revelar-te... - e encaminhou-me por uma porta estreita e um pequeno túnel que logo desembocou no desafogo de pomar e horta.

E passeando por entre macieiras e pereiras, por carreiros bordejados de meloal e morangal, de couves e alfaces, primeiro levou-me a esmiuçar-lhe da minha visita a Vitemberga e logo me foi confiando do seu propósito de lá estudar dois ou três anos nessa Universidade para ouvir Lutero e Filipe Melâncton...

- ... sabes para quê?

- Estás a passar-te a luterano?

- Não, credo!... para depois poder com as próprias armas deles confruntar-lhes as opiniões e lhes fazer guerra.

- A ideia tem algum fundamento...

- ... vencê-los com os argumentos em que eles próprios se confundem. . .

- parava por instantes, o olhar no espaço, no nada, sem ver, iluminado. Súbito, como se descesse à terra: - Tu é que me podes ajudar

- Como?

- Escrevias-me uma carta de encomendação para Lutero...

- Estás tonto, homem?

- ... para ter com ele entrada.

- Posso lá fazer uma coisa dessas? Imagina que tu te perdes naquela sopa luterana.

- Perder-me, eu? Perdê-los mas é a eles.

- Que seria da minha consciência? Que diriam aqui os teus irmãos franciscanos? Que diria teu cunhado João de Barros? Quando o soubesse, que diria el-rei, que vos paga bolsas para estudardes e serdes esteios de catolicismo?

- Vá. Faz-me o que te peço.

- Não vês que não posso? Atirar-te para aquele vespeiro...

- Estou nisso resoluto. Nada me demoverá... Anda, vem à minha cela. Tenho lá papel e tinta... - e já me levava pelo braço...

Quid multa?. Tão importunado fui que acabei por lhe dar carta de encomenda, não para Lutero mas para Melâncton, por me parecer este mais brando e afável que o mestre.

- Quem sabe, meu caro frei Roque? Talvez isto seja serviço de Deus...

- É decerto.

- ... e com tuas pregações possas fazer muito fruto nas ovelhas tresmalhadas...

- Agora, sim - exclamava o frade com calor, agitando a carta na mão. - Vou aprestar já a minha ida. Eles verão, eles verão...

Preparava-me para sair, disse ele:

- Já te vais? Quando partes?

- Ainda demorarei uns dias em Paris. Quero aproveitar o descanso do pessoal e dos animais.

- Sairei contigo aí pela cidade. Passam-se coisas...

- Que coisas?

- ... no Colégio de Santa Bárbara. Quero contar-tas.

- É dele principal, julgo, Diogo de Gouveia.

- Já não. Foi chamado a reger a faculdade de Teologia na Sorbona e deixou o principalado ao sobrinho André.

- Conheço-o.

- Mão de ferro, tanto mais que herdou uma situação difícil... Queres ir visitá-lo?

- Vamos.

Saímos. Pelo caminho, Roque de Almeida ia-me pondo ao corrente:

- Nicolau Kopp. Conheces? Um convertido ao calvinismo. André de Gouveia admitiu-o como regente e isso tem gerado escândalo e descontentamento. O velho Diogo parece que ganhou ódio ao sobrinho, os professores católicos revoltam-se, os escolares andam inquietos...

- E nessa conjuntura como se avém o principal?

- Com firmeza. A competência tem de ser salvaguardada acima das querelas religiosas. Não se livra de que o Spodem de protestante.

- E é?

- Não. Um destes espíritos abertos, humanista, compreendes?, que vêem mais largo e mais sereno o que se passa.

- Como um Erasmo.

- Sim, como um Erasmo. Mas a semente anda no ar e pousa em todo o lado. Até em Santa Bárbara.

Não te esqueças de que a semente contrária também voa, se enterra e germina.

- É verdade. Olha. Em Santa Bárbara há um grupo de escolares muito especial. Quando os vejo arrepio-me. Não sei que encontro neles, mas...

- Católicos?

- Pois aí é que está. Querem sê-lo mais que os outros. Purificar a fé, mas no sentido inverso dos protestantes: apertando o escrúpulo, acentuando o pecado e as penas do Inferno. Temo daquilo, longe vá o agoiro. Terás ocasião de os conheceres. Sabes? Às vezes acho que, pelo que me passa pela cabeça, eu nunca deveria ser frade... ou então...

- Por isso queres ir a Vitemberga.

De repente parou, virou-se para mim que também estaquei e perguntou:

- E tu? És católico?

Subíamos agora a colina de Montmartre, o Mons Martyrum, respiro alado de velas de moinhos a girarem madornentas brancas, vinhedos pela encosta, em cima a velha abadia beneditina de São Pedro.

- Um dia, em Basileia, alguém me perguntou se eu era papista. Sabes que resposta me saiu da boca?

- Qual?

- Sou cristão.

- Não é má resposta.

- Não, não é. O pior é responder à pergunta que se segue: e que é ser cristão? Os protestantes já se dividem na resposta, os católicos dir-se-ia que não atinam na que dar e o papa há-de, não tarda muito, reunir concílio...

Pôs-se Roque a falar, mas o meu pensamento já ia longe. Habituado em minhas viagens a compilar e mandar copiar velhos manuscritos e a adquirir crónicas, por meu particular gosto e também porque o infante Fernando assim mo pede, a fim de poder reconstituir a árvore genealógica desde Afonso Henriques, conheço a história do martírio que deu o nome a esta colina. Que importa se este Dinis, primeiro bispo da cidade, é o mesmo Dinis Areopagita convertido por Paulo? Nasceu cedo a confusão nos Flores Sanctorum. O tempo, o esquecimento, o pouco que, em seu desleixo, cada geração transmite à seguinte, fazem que venha a fábula acudir à imaginação e, nisto de santos, à fome de maravilha. Lenda formosa. É o sangue dos mártires, no entanto, cimento das religiões... Aquela conversa em Vitemberga com Lutero e Melâncton. Porque eliminar essa argamassa da fé que é a existência e o culto dos santos?... Vem o prefeito Fescénio com suas legiões destruir a seita de malfeitores que se dizem cristãos e querem destruir os deuses de Roma. Incêndio que alastra pelo império, já atingiu as margens do Séquana onde vivem os Parísios, pobre tribo de pescadores. Dinis prega ao povo. Fala de outra riqueza e de outro alimento que não é o deste mundo, conta como era cego e súbito viu. Noventa anos, já percorreu muito mundo. A seu lado dois jovens que o seguem e acolitam, Rústico e Eleutério. Surge a soldadesca. São presos e diante da multidão esbofeteados, cuspidos, troçados:

- Feiticeiro!

- Bruxo! Liberta esses rapazes do teu jugo.

- Solta-te dessas cadeias.

- Pede ao teu Cristo que te venha salvar.

Doze soldados agarram-nos e flagelam-nos. Dinis é despido e colocado em uma enorme grelha de ferro sobre brava fogueira. Canta:

A tua palavra, Senhor, é fogo vivo, nela se compraz o teu servo...

Lançado a pasto de animais ferozes e esfaimados, traça no ar a cruz, as feras amansam. Em fornalha ardente, a brasa arrefece, o fogo extingue-se. A golpes de machada, diante do ídolo de Mercúrio, são degolados os três confessores da Trindade. Logo o corpo de Dinis se levanta e toma nas mãos a própria cabeça, um anjo corporiza-se a acompanhá-lo e, precedidos de halo celestial, caminham duas milhas desde o Monte dos Mártires até o lugar, fora de portas, que a providência divina lhe havia escolhido para repouso.

Aturdidos, receando os Romanos que os cristãos sepultem os corpos de Rústico e Eleutério, mandam lançá-los ao rio. Nobre dama em seu caramanchão de roseiras vê passar os soldados com os mortos.

- Tão esforçados ides, valentes soldados, por este sol? Quedai um puco a refrescar-vos. Entrai, comei e bebei. Mortos não fogem.

Entraram eles à adega a comer da corda fatias de presunto e a beber do pichel vinho espumoso, enquanto a dona enviava seus criados a furtar os corpos e a sepultá-los em segredo num campo de que era senhora. Um dia, terminada a perseguição, fê-los exumar e reunir no túmulo de Dinis...

- E tu sabes...? - dei-me conta de que frei Roque a meu lado me perguntava.

- Sei quê? - ia acordando do sonho.

- ... como nasce a fé?

Encontrávamo-nos no topo da colina. Lá em baixo, na planície, a cidade cinza e ouro dava mostras de querer alastrar-se para lá dos muros. Procurava-me o pensamento ajustar-se à pergunta que me fora feita. Sim. Como é que nascia a fé? Como se perdia? Vinde... e eles deixavam tudo e seguiam-no. Crucificai-o... e do sangue nascia o cristianismo e derramava-se por todo o mundo... Quando ele exalou o último suspiro, no alto da cruz, o céu embrulhou-se, um estranho eclipse anoiteceu a Terra inteira, viu-se em Heliópolis, em Roma, sentiu-se na Ásia Menor. Na Bitínia a horas que devia ser dia pestanejaram as estrelas no firmamento e em Niceia um tremor de terra fez ruir todas as casas e até pessoas fugiram para a rua a gritar: «Ou a natureza enlouqueceu ou o senhor do universo sofre e com ele os elementos»... e daquelas trevas nasceu a luz para muitos mortais. Na Grécia, os filósofos de Atenas, os epicuristas, para quem a felicidade eram as volúpias do corpo, e os estóicos, que a colocavam nas virtudes do espírito, saíram à agora de nariz no ar a observar o fenómeno e, não sabendo explicá-lo por causas naturais, edificaram um templo ao deus desconhecido... Caíram escamas dos olhos e os olhos logo viram... Como nasce a fé?... o paralítico andou, o cego viu, o gafo desengafeceu... como não hão-de ter fé?...

Certamente falava eu em voz alta, que frei Roque interpunha:

- Se por mor do milagre uns sentem a revelação, outros não.

- Os textos falam dos escolhidos...

- ... uns poucos... Porque não todos? É isso que me causa confusão.

Descíamos Montmartre, metíamos por ruas estreitas, passámos as Hales, atravessámos o Sena na Ilha da Cidade, descansámos em frente da catedral, à beira-rio, a ver os livreiros, os vendedores de pinturas e instrumentos musicais, as bancas de pão, legumes e doces, metemos pela Sorbona e chegámos enfim ao Colégio de Santa Bárbara, a que o velho Diogo de Gouveia, quando à frente do instituto, conseguiu fama em toda a Europa pela qualidade do ensino humanístico e pela autoridade dos mestres. Frei Roque apresentou-me ao principal, André de Gouveia, que, ao saber quem eu era, me deu mostras de bom acatamento e levou-me a visitar todo o colégio. Percorríamos uma claustra ladeada de aulas, passavam por nós escolares e mestres. O principal parava a falar com eles:

- Doutor Bucanano. Desce um pouco de tuas excogitações e fala a estes simples mortais.

- Oh, meu caro André, nem te via. Ando deveras incomodado com o que acontece com o professor Kopp.

- Não falemos agora desse triste caso. Quero apresentar-te este meu ilustre conterrâneo... À frei Roque já conheces.

- Ah, português!

- ... Damião de Gois. Tem estado na feitoria de Antuérpia e regressa a Portugal a tomar posse do cargo de tesoureiro da Casa da índia.

- Prazer.

- O professor Bucanano é escocês e veio leccionar latim, em que é perito.

- Muito gosto.

Apresentou-me a Gélida, experto em filosofia escolástica, a Fernel, mestre de matemática, astronomia e medicina, a Mathurin Cordier, a Strebée, a Nicolau Kopp.

- Vem. Quero que conheças também os mestres portugueses.

E levou-me junto dos irmãos António e Marcial de Gouveia, junto de Diogo de Teive, que me festejaram e eu a eles.

- Quereis recado para el-rei? - perguntava-lhes. - Em breve estarei com Sua Alteza.

Pediam mais atenção às pensões e bolsas a conceder aos escolares portugueses. Eu garantia-lhes que o recado seria dado e poria o que em mim houvesse para os favorecer.

Continuámos a deambulação. Frei Roque deixara-se ficar para trás a falar com Kopp. Não pude evitar pensar que ele tinha pendor para abordar protestantes, mas não tardou em juntar-se a nós.

- Frei Roque - disse André de Gouveia -, continua tu, peço-te, a fazer de anfitrião ao nosso amigo. Tenho de retirar-me.

Chegámos a um pátio em que conversavam, em grupos, muitos escolares.

- Frequentam este colégio, a quem el-rei presta ajuda, como sabes, inúmeros estudantes portugueses. Olha, ali está um, o Simão Rodrigues...

Agora que o tempo passou, recordo sem ódio a primeira vez que me encontrei com aquele que viria a ser um dos meus primeiros algozes.

- Simão, vem cá. Vinde também vós, Inácio, Francisco e os outros chamava Roque de Almeida. - São aqueles de que te falava há pouco.

Vestidos de negro, havia neles qualquer coisa que à primeira vista me arrepanhou a pele. Pareciam corvos. Inácio, testa grande encandecida de febre, olhar de louco, teria os seus quarenta anos. Xavier, um sorriso cândido nos lábios, passante dos vinte e cinco. Seguiam-nos, como acólitos, Lainez, Salmerón, Bobadilha, espanhóis, Fabro, da Sabóia, e o Simão, magro, baixo, um negrume indisposto nos seus vinte anos. Simão Rodrigues de Azevedo, quero aqui registar o seu nome inteiro, português de Vouzela. Vai esta apostila, como é de ver, inquinada da visão actual de quem sofreu aquilo que mais adiante se irá dizer e aqui está encarcerado neste mosteiro.

- Apresento-vos o português Damião de Gois, tesoureiro de el-rei João terceiro. Está de caminho para Portugal... - e nomeava-os um a um: Inácio de Loiola, Francisco Xavier, Simão Rodrigues de Azevedo, Pedro Fabro, Diogo Lainez, Afonso Salmerón, Nicolau Bobadilha.

- Tão novo - disse Simão - e já tesoureiro do rei?

- A duquesa de Sabóia, minha protectora, é portuguesa - disse Fabro.

- Eu sei.

- Tesoureiro? - falou Inácio como se estivesse apenas a pensar. O nosso caminho é para o desprezo das riquezas...

Cortou frei Roque o melindre da anotação:

- Inácio, põe um momento de parte o teu misticismo.

- Como se pode - interveio Simão - pôr de parte seja o que for, quando aqui mesmo, neste colégio...

- Pára, Simão. O caso de mestre Kopp não vem a colação, no momento em que te apresento um ilustre conterrâneo.

- Desculpa.

- És assomadiço? - perguntei.

- Há coisas que não posso admitir. Kopp pretende introduzir aqui em Santa Bárbara o calvinismo.

- E que tenho eu a ver com isso? - inquiri admirado.

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- Simão - advertiu Inácio de Loiola, num tom de severidade que abateu o ardor do amigo -, é pecado ser descortês. Frei Roque apenas te quis apresentar um teu patrício que está de passagem.

- Tu próprio... - acusou Simão refreando a voz...

- Penitencio-me - bateu no peito Inácio.

Frei Roque tocou-me no braço em sinal de seguirmos e eu despedi-me do grupo com uma vénia.

- ... tesoureiro de el-rei! - ouvi Simão por entre dentes.

- Reparaste? Parecem aves agoirentas.

- De feito. Causam mal-estar. Vivemos na Europa, por todo o lado, uma era difícil.

- Mesmo aqui. De jeito que André de Gouveia está decidido a ir-se embora.

- Embora?

- O seu prestígio chegou a Bordéus, ao Colégio da Guiena... Haveria eu de assistir depois, pelos anos fora, da Europa e de Portugal, ao seguimento de tão desafortunada história.

Figos! Que bem sabe deter-se a gente uns momentos, pela aridez do caminho, à sombra de uma figueira e colher deles e refrescar de sumo a secura da boca. Tínhamos transposto os Pirenéus e, pelos desfiladeiros de Roncesvales, seguíamos o trilho da estrada dos peregrinos.

- Senhor, uma fonte! - disse um pajem.

- Hou! Hou! - foi a ordem aos cavalos e mulas, no esticar de rédeas.

De uma fenda da rocha gemia a água e cantarolava. Uma figueira medrara na brecha da fraga e alargara-se em sombra e frutos negrainhos que me lembraram uns da minha meninice, alvarões por fora e vermelha a alma sumarenta, doce. Saciámo-nos e seguimos nossa jornada.

De Paris aos Pirenéus tinha sido correria, com as paragens apenas necessárias para descanso, municiamento e mudas, por Tours - Túrones, meu latim vernáculo a beliscar-me -, na Doce França, Poitiers - e agora? Pictavos? -, Angulema, Bordéus na Guiena, Baiona. Transpõe-se a serrania, na Navarra, estamos quase em casa. Não posso evitar o sentimento de que, com o aproximar da pátria, os espíritos se estreitam e a liberdade é pouco e pouco sufocada por garrote. Pela serra da Cantábria rumamos a Burgos e daí a Valhadolid, onde penso demorar mais de espaço. Quero ver a minha amiga de infância, a imperatriz Isabel. Mas, ao saber que havia partido para Monzón a encontrar-se com o imperador, decido prosseguir viagem.

Salamanca, Cidade Rodrigo, entro em Portugal por Castelo Rodrigo. Daí por diante, desço ao curso do Tejo, passo Santarém, paro em Alenquer a ver meus parentes e amigos. Casa vazia, embora habitada. Corriam até crianças pela cortinha, na eira, sob as árvores do pomar. Mas nunca tanto havia eu sentido como então a ausência irremeável de alguém, dessangrados objectos que as mãos dela algum dia tocaram, a frialdade da cama em que adormecera o último sono. Fui rezar junto à campa de minha mãe na Capela de Nossa Senhora da Várzea...

Dias depois caminhei para Lisboa a saudar el-rei e a tomar conta do meu novo cargo. Ai de mim! Maledicência e calúnia esperavam-me de línguas e dentes afiados. Em dezasseis anos, da força e flor da minha idade, quatro meses somente quis minha sorte que eu estivesse nestes reinos e corte, lugar da minha honra e criação, o que me invejando a fortuna logo me daí rechaçou... Não foi el-rei, não. Recebeu-me braços abertos e sorriso bondoso:

- Caro Damião! Enfim chegaste!

Um rei! Levantou-se da mesa de trabalho e veio ao meu encontro.

- Meu senhor - beijei-lhe a mão.

- Vem. Senta-te aqui ao meu lado, temos muito que falar.

Bem senti eu logo ali, em olhares de viés e cochichos ciciados, a inveja de alguns senhores que na corte estavam, por verem a familiaridade de el-rei para comigo, que me perguntava pela viagem, pela saúde, e depois quis ouvir dos negócios de Antuérpia, do ensino na Lovaina, em Paris, na Sorbona e em Santa Bárbara, interessado como estava em cimentar os estudos em Coimbra.

Ficava todavia para os serões, depois da ceia, o matar a curiosidade de todos em mais pormenor. El-rei e os infantes seus irmãos instavam-me, muito particularmente perguntando pelo discurso de minhas peregrinações, e outros senhores do reino e amigos, que faziam roda para me escutarem, Garcia de Resende e Gil Vicente, velhos e cansados, João de Barros... De súbito, como um arrepio de frio, senti a falta de Don Beltrán, o chocarreiro. Por demais sabia eu o que essa ausência significava.

- ... Mas conta, conta.

- ... nesse ponto - contava eu - a tempestade era tamanha de vento e balancear do barco, gemer das enxárcias, rasgar de velame, as ondas alterosas a saltarem ao tombadilho e a alagar-nos e a gelar-nos os ossos, que todos cuidámos seria aquela a nossa última hora. Um frade que aí ia connosco exortou-nos a ajoelhar e rezar. Assim fizemos e logo a borrasca de acalmar, o céu de abrir-se, o mar de alisar e o navio a retomar seu rumo e a enfiar pelo perigoso estreito de Sunda entre as arribas rochosas da Dinamarca e da Suécia...

- Falas - interrompeu Afonso de Portugal, filho do conde de Vimioso e meu amigo -, como quem realmente nunca tenha andado no mar. Os nossos mareantes estão habituados a isso e a muito mais.

- Tens razão, amigo - respondi -, mas eu prefiro viajar por terra.

- E não há perigos nas viagens por terra? - perguntava o infante Luís.

- Se há. Uma vez...

... e eu esmiuçava dos salteadores e das florestas e das feras e ravinas e desfiladeiros e pegos e travessias perigosas de rios caudalosos... Queriam saber das coisas da Alemanha, reis, príncipes dela...

- Que conheceste Lutero, soa por aí - dizia o infante Henrique, nos seus vinte e um anos o semblante a exprimir uma rigidez e desencanto de velho.

Na minha boa-fé, confiado na qualidade de quem com visível gosto me escutava, contei como foi o meu encontro com Lutero e Melâncton, e outros conhecidos protestantes, a ceia, o que eles diziam e eu opunha, e como vira Martinho Lutero a cavalo e Filipe Melâncton a pé, diante dele, esbarretado...

- Senhores, se os víreis ir!

- Disseste que ceaste com Erasmo de Roterdão - cortou el-rei virado às suas preocupações.

- Fui visitá-lo a Friburgo de Brisgóvia, onde ele reside para fugir ao protestantismo que alastra por toda a Alemanha e já entra na Suíça - e, levado por natural vaidade, exagerava: - Sou amigo dele.

- Friburgo mantém-se católica?

- Mantém-se católica, não sei por quanto tempo.

- Mas Erasmo...? - ia a perguntar o cardeal Afonso, irmão de el-rei, mas o conde de Castanheira, entendendo-lhe o pensamento, adiantou-se-Ihe:

- Um herege. A Sorbona condenou-lhe os livros.

- Não. Engano - contrapus vivamente. - Erasmo é católico.

- Luterano da pior espécie - teimava Ataíde.

- Mas ele... - insistia o príncipe.

-... critica desmandos - disse eu -, injustiças, simonias... El-rei atalhava:

- Poderias fazê-lo vir a este reino para eu me servir dele?

Não me hei-de esquecer nunca da cara que o conde fez. Mas el-rei continuava:

- Trago tenção de o ter em Coimbra onde já ordenei de fazer os estudos.

- Poderei escrever-lhe nesse sentido, mas presumo que antes terás, meu senhor, de... - e eu hesitava.

- ...de...?

- Ele dedicou-te o prefácio daquele livro...

- Ah! - riu-se el-rei. - As Crysostomi Disputationes. Scheto enviou-mas, eu sei, mas ainda as não tive à mão. Falaram-me disso...

- Talvez ele esperasse a mercê de alguma compensação...

- Criticas Sua Alteza? - abespinhou-se António de Ataíde, mas el-rei fez-lhe com a mão gesto de que se calasse, o que ele acatou disfarçando o semblante de despeito.

- Ele queixou-se-te? - perguntava-me el-rei.

- Falámos do caso. Está repeso do que escreveu sobre os monopólios das especiarias. Sente ter sido mal informado.

- Escreve, pois. Diz-lhe que tudo será remediado e que aceite vir para Portugal, onde terá bom abrigo e acatamento, já que, como dizes, anda a evitar os protestantes.

O infante cardeal, nos seus vinte anos, preferiu não contrariar o irmão e olhava-me com intensa curiosidade. O papa Leão décimo mandara-lhe o capelo cardinalício em quinhentos e dezasseis, tinha ele sete anos. Lembro-me bem de nessa altura assistir no Paço da Ribeira à cerimónia em que o principezinho, na presença do pai, el-rei Emanuel, recebeu a insígnia das mãos de Manuel de Noronha. Dizem-me que é homem douto em língua latina e muito piedoso. Um dia apresentou-me ao embaixador etíope do imperador David:

- O bispo Zagazabo, Damião. Está entre nós vai para seis anos. É muito versado na língua caldeia e arábia e experto nas coisas da Escritura.

Várias vezes falei com este prelado etíope. Feita entre nós amizade e bom conhecimento, mostrei-lhe a carta da rainha Helena, que trouxera Mateus, e os artigos a que respondera perante el-rei Emanuel.

- Alguns - disse depois de os examinar - diferem da verdade...

- Mas Mateus...

- Nem por isso se deve culpar Mateus. Arménio de nação, era homem secular e pouco conhecedor das coisas da teologia e das cerimónias da religião cristã dos Abexins.

- No entanto...

- Vejo que tens o desejo de saber a verdade destas coisas.

- É certo.

- Prometo-te compor um tratado de tudo o que a este negócio convém.

- Prometes? Obrigado.

- Vai levar certo tempo.

- Esperarei.

Era semente que adiante haveria de dar fruto, como se verá. Entretanto, no paço encontrava-me muitas vezes com ele e com os pajens de sua comitiva, com quem metia conversa. Falavam uma algaravia tão esfarrapada que o meu Gil Vicente, para mover ao riso, a não deixava escapar. Ouvíamo-la na boca de diabretes, feiticeiras, gente estrangeira. Desde o latim estropiado à imitação de francesia, picardia e crioulos. Não os entendendo, as próprias outras personagens em cena se revoltavam:

Que linguagem é essa tal? qui, e ele fala aravia. Olhade o nabo de Turquia! ; Falade aramá Portugal.

Por esse tempo dedicava-me eu ao trabalho e, logo nos primeiros dias em que procurei afeiçoar-me ao meu novo ofício, aconteceu aquilo que deveria dar rapidamente outro rumo à minha vida. Foi o caso que, desejando eu logo de início imprimir ao funcionamento da Casa da índia aquela pontualidade e disciplina que na feitoria de Antuérpia aprendera com João Brandão e Rui Fernandes, senti a resistência dos oficiais. Não só se encontravam mal acostumados como ainda, ao que depois vim a saber, julgavam ter de obedecer a outra autoridade que não a minha. Senti mesmo que, ao entrar ao cargo para que me nomeara el-rei, me havia precedido, semeou então saber qual a fonte, toda uma acção de semeadura de afamações.

- Vai roubar para a Bélgica, que está longe das vistas - rosnou entre dentes, que eu bem ouvi, um oficia! do despacho das drogas, velho e mal encarado, quando eu pretendia impor-lhe nova ordem, mais leve e lesta, de trabalho.

Nesse primeiro encontro, fiz que o não entendi. Mas idêntica disposição de espírito achei no despacho das pedras preciosas e tecidos, no assento das tripulações dos navios, na tesouraria. Aqui sobretudo. Tanta era a multidão dos que acorriam a pagar direitos, que não tinham tesoureiros nem escrivães tempo de contar o dinheiro. Queixavam-se as pessoas de que eram obrigadas a voltar nos dias seguintes. Porque me parecia ser necessário obviar a tão estranha situação, procurei tomar as medidas adequadas, mas a oposição ao que eu ordenava tornou-se clara.

- Não temos nada que te obedecer - disse um juiz da balança que parecia falar em nome de todos. - A quem prestamos contas é ao senhor vedor da fazenda.

Estávamos nisto, entra-me pela porta dentro o vedor da fazenda em pessoa, António de Ataíde, conde da Castanheira. Já pelas suas intromissões, quando eu contava a el-rei e aos príncipes das minhas deambulações pela Europa, lhe sentira a inimizade e o rancor. Contencioso antigo, que vinha da meninice, de quando ambos nos criávamos no paço. Agora acrescido, ao que julgo, da inveja do meu alto cargo, que, pela mostra, lhe faz sombra.

Pedras, as razões travadas. Acusei-o de se estar a entremeter aonde não era chamado.

- Ai isso é que sou! Os meus poderes...

- A tua alçada na esfera fiscal é apenas quando haja litígio e não quanto a modo de trabalho.

- As leis...

- Se vamos por aí - atalhava eu exagerando a argumentação - o teu ministério pouco menos é que fictício, dado que nas Ordenações Manuelinas deixou de figurar o regimento dos vedores da fazenda...

- Há indefinição entre a publicação e a entrada em vigor das leis... abrandava ele - e, além disso...

- ... além disso...?

E entrou numa estranha ofensa pessoal:

- ... isto não é cargo para um... um...

Vi-lhe na boca arredondar-se a palavra que não devia ser dita, mas ele conteve-se e concluiu:

- ... além disso eras mista e luterano.

Era de mais. Fui queixar-me a el-rei. Contei-lhe o que se tinha passado, que não podia aturar a maledicência e má-fé que sentia à minha volta, e falei-lhe do meu propósito de não aceitar o cargo:

- Senhor, de momento sou mais dado às letras que às contas. Desejo partir a acabar os meus estudos. Ser-te-ei mais útil se o fizer.

- Paixão pelas letras? Não esperavas vir encontrar um ambiente de intriga e cabala cortesã. Compreendo-te, mas não aceito que desistas do cargo.

Para pores a casa em ordem te chamei. Aliás, o conde da Castanheira bem podia ficar calado. Correm para aí umas trovas de murmuração acerca dele...

- Senhor, peço-te, tenho grande desejo de ir para Friburgo estudar com Erasmo.

- E se ele anuir em vir leccionar para cá?

- Virei com ele. Até pode ser esse o melhor caminho para o convencer. Ir pessoalmente a convidá-lo da tua parte e trazê-lo comigo.

- ... o que não obsta a que continues à frente do ofício para que te nomeei. Não estavas em Antuérpia e estudavas em Lovaina?

- Senhor...

- Não, Damião, não.

De insistir el-rei em não querer escusar-me do ofício de tesoureiro da Casa da índia boas testemunhas são a rainha e o cardeal. Os meus familiares e os amigos estavam com o rei e urgiam-me que aceitasse ofício de tanta honraria como proveito. Um desses dias encontrei-me na Rua da Padaria com João de Barros e Afonso de Portugal.

- Aqui está o homem - disse Barros - que vem mesmo ao caso. íamos a falar, caro Damião, da minha Ropicapnefma e de que tudo é mercadoria...

- Não tive ainda tempo de a ler, mas isso soa-me ao Auto da Feira do nosso Gil Vicente...

- ... e ao teu Erasmo, que eu muito admiro.

- O Louvor da Loucura.

- E não só.

Mas o filho do conde de Vimioso desviava a conversa:

- Que queres deixar a Casa da índia, diz-se.

- Penso fazê-lo e nada mais ardentemente desejo de momento. Não aguento as mordidelas de serpentes que por aí rastejam.

- Damião - dizia Barros -, ouve o parecer dos teus amigos. El-rei protege-te e faz-te mercê.

- E sabeis os dois o que se está a passar?

- Então não sabemos? Tens de esforçar e resistir.

- E que... é outra a minha ideia...

- Que ideia?

- Quero partir, continuar a estudar. Desta vez com...

- ... Erasmo? - perguntava Barros. - Homem feliz és tu. Conheces Morus, Erasmo e tantos outros excelentes humanistas...

- Estou decidido, mas el-rei...

- Segue o nosso conselho. Serás compensado. El-rei precisa de ti. Passava o tempo, Novembro ia rodando, andava eu nesta demanda com el-rei e os amigos e a minha tão fustigada vontade, chegam-me, na descarga dos barcos de Antuérpia que acabam de varar no porto, cartas de Luís Vives, de Amerbach e de Erasmo. Com que sofreguidão abri a de Erasmo! Era extensa e, pelo tom das primeiras palavras, cheia de contida amabilidade e cortesia. Ali no cais não era lugar para a ler. Precisava de ir para o sossego do meu escritório ou para o meu quarto deitar-me em cima da cama a saboreá-la... Pelo caminho abri a de Vives. Vinha de Bruges, dezassete de Junho, já eu tinha partido. A saúde abalada fora a causa de ainda não ter respondido à minha de despedida e, mesmo agora, com dores de corpo e alma, se forçava a responder para que eu não duvidasse da sua amizade. Congratulava-se com o meu novo cargo, desejava-me viagem próspera e pedia-me que em seu nome salvasse reverentemente a el-rei e lhe agradecesse o amplíssimo congiário que lhe oferecera o ano anterior. Saudasse o bispo de Viseu. A Hédio não escreveria por ora, dados os tempos e as suspeições que o rodeavam...

Hédio era luterano e Vives sentia à sua volta que devia ter cuidado com o demasiado comércio com ele. Este foi um dos primeiros sinais a alertar-me para uma necessária prudência, que eu não entendi então ou, em minha pouca idade e ansioso de novidade, não quis entender. Outros viriam não muito longe e eu não os ouviria. A minha descautela me haveria um dia de perder e a tenacidade dos homens que não se importam de esperar. Foram elas que mais tarde me conduziram a este cárcere...

A carta de Amerbach era muito pragmática e simples:

Nada há, claríssimo Damião, que contar ao presente. Como teria eu podido a quem não passou aqui senão um dia? Mas o assinalares-me na tua carta, com este título de ofício, entendo a tua benevolência a fazer um elefante de uma pulga, como dizem...

Ah! Lembro-me! Na minha carta eu chamava-lhe perito em ambos os direitos. Se na sua obra, confessava ele, alguma coisa ressaltava digna de um desses títulos, não o renegava, fazia o que estava dentro das suas forças. Passava a responder-me ao que eu lhe havia pedido acerca do padre espanhol que desafiava a paciência dos reformadores de Basileia. Referia o nome dele, não citando o gentilício por o desconhecer. Quando ele lhe escrevia, nas cartas, entre os braços de uma cruz desenhada, punha no lugar do aposfragísmata umas iniciais que nem ele nem eu sabíamos que queriam dizer. E terminava:

Claríssimo Damião, se alguma coisa mais houver em que te possa ser agradável, sabe que do coração, estou ao teu dispor. Passa bem, claríssimo varão.

Basileia, 1 de Setembro de 1533.

Não pude deixar de pensar ter a carta que de Lovaina eu lhe enviara cumprido a missão e estar encetada uma amizade que havia de perdurar por alguns anos. Chegado a casa, pus-me a ler a de Erasmo. Ainda hoje, nas pesadas horas de insónia desta cela, repasso dela na memória alguns lugares. Ao ler a que eu lhe mandara de Antuérpia na véspera da minha partida para Portugal, sentiu-me magoado com a contida discrição do seu criado para comigo em Lovaina e desculpava-se:

... eu não suspeitava regressasses tão cedo à Bélgica, acabada a tua tão longa jornada (dizias, se bem me lembro, quereres visitar a Alemanha e a França)...

Confessava em seguida como se sentia zangado consigo mesmo pelo modo descortês como me havia recebido em Friburgo daquela vez

... estar numa só conversa, numa única ceia, com hóspede tão amigo!...

e pela sua desatenção para com o meu livro. Graciosamente foi-se desculpando com a minha modéstia. Das palavras da ceia vira que eu era homem bom e amante da verdade e da piedade. Explicava o não ter feito menção de mim na carta que eu levara para Amerbach:

... tinha sido escrita e selada antes de tu aqui haveres chegado. Mais sagaz do que eu, logo reconheceu ele os dotes do teu engenho e mostrou-se grato por eu lhe ter mandado pessoa de tal qualidade...

Visitavam-no alguns que se apresentavam prazenteiros e depois se descobria não condizerem as caras com os corações. Essa a razão por que, às vezes, recebia com frieza os visitantes. Quanto a mim, envergonhava-se e censurava-se de o ter feito, tanto mais que lhe chegaram duas cartas minhas a reconciliá-lo consigo mesmo...

e, por singular polidez, a agradeceres-me, santo Deus!, a hospitalidade. Não contente com isto, ainda por cima deixaste com Erasmo Scheto um penhor e lembrança dessa magnanimidade, o que ainda não me foi dado ver, mas os que o viram apregoam ser digno de rei. Com tudo isto, quanto mais cortesmente declaras a tua delicadeza mais me punge a minha indelicadeza...

Prometia remediar tudo isso em posteriores serviços com todo o zelo e boa vontade e passava à matéria do divórcio de Henrique oitavo, esmiuçando a sua opinião quanto ao assunto e repudiando com vigor os detractores. Vinha em seguida ao que eu referira dos Lapões, defendia-os, como eu, e prometia fazer o que em si coubesse para publicar alguma coisa sobre a matéria, o que de momento receava não poder por dificuldades com tipógrafo e não ter à mão o seu criado, que ainda não voltara de Inglaterra aonde o mandara. E mais uma vez, como se espinho o pungisse, remexia o seu remorso:

... que o meu criado não pôde decidir-se a usar dos teus serviços e do teu dinheiro, nada lhe tinha eu ordenado a não ser que evitasse toda a espécie de pedinchice e se lembrasse daquele antigo provérbio auTE Tiavta OUTS Travtri GUIE Tiapa iravicov... Mas eu providenciara por que nada lhe viesse a faltar...

Depois, respondendo a uma solicitação que eu lhe fizera em carta enviada já de Portugal, contava-me da lenda que se formara com o incêndio do burgo alemão de Schiltach, a oito milhas germânicas bem puxadas de Friburgo, numa segunda-feira antes da Páscoa desse ano de trinta e três: de uma certa parte da casa ouviu-se um silvo. Suspeitou o estalajadeiro de ladrão, subiu as escadas e ninguém encontrou. Novo silvo lá de cima, dos quartos. Sobe o homem no encalço. Nada. Outro silvo, agora do alto da chaminé. Topou ser obra do mafarrico. Ordena aos seus estejam alerta. São chamados dois padres, é feito exorcismo. Perguntado, responde que é um demónio. Que fazia ali? Diz que quer incendiar a cidade. Ameaçam-no com tormentos. A resposta é que em nada tem as ameaças deles, que um é libertino e um e outro ladrões. Pegou então numa mulherzinha com quem durante catorze anos mantivera comércio amoroso e que se confessava e comungava todos os anos. Levou-a pelo ar, pendurou-a no cimo da chaminé, entregou-lhe uma panela e ordenou-lhe que a virasse para baixo. Virou-a a mulher e em uma hora a cidade inteira era consumida pelo fogo. Se foi por zelos do rival, o filho seduzido do estalajadeiro, que o diabo perdeu a cidade e castigou a mulher, ao certo não o ouvi contar...

Fala-me depois de Amerbach, que recebeu carta minha, e garante-me que ele é amigo constante e perpétuo, intermediário fiel e diligente, se eu desejar os seus serviços, ele é ouro e gema e tudo quanto de mais precioso tem a Alemanha. Mas não se lhe pode chamar alemão: Basileia é dos Rauracos e possui aquela viveza peculiar de certa civilidade, vestígios visíveis deixados pelo sínodo universal que durou dezasseis anos. Promete dar-me a conhecer a muitos amigos, o que fará com não pequeno proveito para o seu nome. Congratula-se pelo esplêndido cargo que me fora espontaneamente oferecido pelo rei de Portugal e roga-me, se eu tiver alguma oportunidade, o desculpe perante el-rei daquele prefácio do Crisóstomo:

... havia-me informado com boa cópia de palavras a diligência de um certo português, mas erradamente. Este caso para mim pouco feliz poderá ser emendado com outro serviço...

Acaba a carta informando que projectava o regresso à Bélgica, mas os muitos afazeres e ainda as intempéries hostis e a saúde, que não suporta clima tão áspero, obrigam-no a ficar ali até soprarem os zéfiros e voltarem as andorinhas...

Vezes sem conto reli aquela carta. Erasmo meu amigo! Não, não posso de modo algum aceitar o cargo a que el-rei insiste em me amarrar. Com aquela arma na mão, vou ter com Sua Alteza. Mostro-lha. De pé, a seu lado, em silêncio, aguardo que a leia. Sinto-o atento e tocado. No fim, estendendo-ma:

- Grande amigo, sim. Vejo que está agora disposto a prestar outro serviço. Vais comunicar-lhe o meu pedido?

- Viva você, senhor, será melhor.

Ia a negar mais uma vez, atalho antes que fale:

- Senhor, por mercê te rogo. Tenciono ir a Santiago da Galiza em peregrinação, para amadurecer dentro de mim este assunto. Deixa-me ir.

Entrelaçou os dedos das mãos postas sobre os lábios e olhou-me por segundos nos olhos - e no lume dos seus bem eu lia o segredo que ele também lia nos meus - e com um aceno pensativo de cabeça:

- Damião, Damião... - disse com simpatia e pareceria que ia a continuar, mas súbito despediu-me: - Pois bem, vai.

Olhei-o interdito:

- A Friburgo?

- Não disseste que ias a Compostela?

Ainda hoje cismo e lido no caso e, quanto mais cuido no que depois se passou, mais se me afirma a ideia de que o rei, que não pode voltar atrás com a palavra, de acinte cultivava a ambiguidade.

Vários são os fingimentos dos homens

Eu sei, eu sei. Sob color de peregrino me dei à fuga. Mas que outro modo tinha eu de fugir daquele enredado de intrigas e correr para onde o coração e a cabeça me chamavam? Há-de convir-se não ter sido mal escolhida a alegação. Era bom pretexto, tanto mais dados os privilégios, as ordenações canónicas e civis, de reis e papas, que protegem, desde os tempos mais remotos, o peregrino, de tal jeito que dificilmente se lhe poderia negar a pia intenção. Seria demasiado evidente se eu pedisse a el-rei me deixasse ir em romagem a Jerusalém ou a Roma. Mas aqui ao pé, junto de nós, na Galiza... Deus me perdoe a capa com que cobri um desígnio menos devoto.

Passado o Natal na corte, deito-me a caminho de Santiago de Galiza. Despeço-me de Alenquer, que eu levo na ideia não regressar, e por Romeira - qual romeiro me estou eu emascarado já se está pronosticando -, Alcanede, ventos de entre Candeeiros e Aires, Porto de Mós, paro na Batalha. E a primeira vez que aqui venho e não poderia então imaginar que dessa correnteza de janelas em que moravam os frades domínicos, de uma delas haveria de espreitar um dia, agora, a minha solitária desgraça.

Trabalham ainda aqui alguns pedreiros e canteiros, sob as ordens de João de Castilho, dos irmãos João e Miguel Arruda. Aproximo-me e venho à fala:

- Senhores, trago nos olhos as altíssimas flechas e píncaros das catedrais da Bélgica, da Alemanha, de outras partes da Europa, e choca-me, mau grado o rendilhado da pedra, que o templo, acaçapado numa cova, se não erga ousadamente no ar como prece que quisesse atingir Deus.

- Pensaram nisso decerto mestres Ouguet e Mateus Fernandes - disse Castilho. - Estas capelas que aqui vês levam fundamento para altíssima torre...

- inacabadas... - faço o reparo.

- Desde que el-rei Emanuel - diz Miguel Arruda - mandou construir o mosteiro dos jerónimos para panteão seu e de sua mulher e descendência, as obras afrouxaram.

- E dinheiro para acabar isto? - olhavam ao alto, como se estivessem vendo elegantíssima agulha de torre furando as nuvens, os olhos claros de João Arruda. - Nem toda a pimenta e canela da índia lhe cobriria as custas...

- A última pompa fúnebre que el-rei acompanhou até aqui foi a de seu antecessor, o rei João segundo...

- ... trazido de Silves no ano de quatrocentos e noventa e nove precisei. - Desde então nunca mais essas abóbadas ressoaram requiem por morte de rei ou príncipe...

Sigo jornada para Coimbra. Não tarda que na modorra do andar se erga a voz de um dos meus moços a bandurrear:

Nem todo o cravo e pimenta chegaria pra pagar alta torre da moimenta que não se ergue no ar...

Festejado pelos parceiros, comentei-lhe:

- Tens razão, Rodrigo. E esse o preço da nossa glória. Olha essas terras incultas, onde mal se vê campo de trigo amanhado, olival varejado, leira arroteada...

Desatou a cantar: Ó melro que estás em cima da campana inexistente toma um bago desta espiga que não viu chão nem semente...

Mas abreviemos o relato. Poderia alongar-me em referir as sendas, os mosteiros e pousadas, as igrejas e capelas e cruzeiros, os hospitais e as alminhas, que por todas as rotas de Santiago a piedade dos peregrinos foi edificando. Poderia falar das emboscadas, assaltos, roubos, desumanidades e burlas de falsos peregrinos sofridas por muitos dos verdadeiros, falar da doença e da morte. A minha fé é tíbia, outros pensamentos me tomam. Mas aqui está o rio Minho, grosso e caudaloso das chuvas recentes. Travessia perigosa, em barcaças, que não existe ponte por mor do afastado das margens. Do outro lado, Tui e daí subir, rumo a Compostela. Escrevo a el-rei, digo-lhe do meu ferventíssimo desejo dos estudos e que me vou daqui caminho de Alemanha, a ter com Erasmo de Roterdão, que mora onde a Universidade de Friburgo de Brisgóia, cidade católica do senhorio da casa de Áustria. Escrevo também a este amigo a contar-lhe da minha mudança de propósitos quanto ao cargo de tesoureiro. E fico a aguardar alguns dias a licença de el-rei, como quem diz que não pretende desobedecer-lhe mas sabe não ir ele contrariar a petição. Sua Alteza tomou-a bem. De acordo com o que eu esperava, não comprometeu a palavra. Nem uma linha escreveu nem mandou escrever. Apareceu-me um dia, em trajes de peregrino, um mensageiro qualificado, que eu bem o conhecia da corte, e à puridade me disse da boa vontade de el-rei para comigo.

- Vais partir então? - perguntou.

- Se assim é? Se el-rei...

- Não se fala mais de el-rei. Está muito esperançoso nos teus estudos. Sentia eu algum peso na consciência, entendeu-o o mensageiro:

- Aproveita o ensejo, Damião. Frutifica, rapaz. Desejo-te boa viagem. Havia eu tanta certeza no consentimento de el-rei, que tinha tudo prestes para a partida. Por isso, meava Fevereiro meti-me com minha companhia pelo caminho dos peregrinos ou caminho francês, afastando-me de Compostela. Abandonados os verdes campos, rápido se chega a Palas de Rei e começa-se a subir para Triacastela e as montanhas de Cebrero e depois, por ondulações e vales, Vila Franca do Berço, a extensa planície da muralhada Astorga e finalmente a grande Leão. Aqui abandonei a rota dos peregrinos e rumei a Valhadolid a visitar o imperador e sua mulher.

- Então o caro Damião de Gois - perguntou-me Carlos quinto viaja agora para onde?

- Para Friburgo, Majestade. A estudar junto de Erasmo.

- O grande Erasmo. E meu conselheiro.

Rodeada de áulicos e de protocolo, o acolhimento que Isabel me fez foi cerimonioso, frieza contrariada pelo jeito como me apertou a mão quando lha tomei para beijar ao despedir-me.

Ao sair dos paços imperiais caminhava eu pelo jardim, senti que me chamavam:

- Senhor! Senhor!

Era uma açafata de Isabel.

- Senhor, a imperatriz envia-me dizer-te da pena que teve de, na conjuntura, não poder receber-te doutra maneira. Deseja-te boa viagem e que tenhas êxitos nos estudos.

A semana seguinte, findava Fevereiro, já me encontrava de jornada para Andorra, por Saragoça e Monzón. Todo o Março levei, por etapas, com as necessárias paragens, a percorrer o Languedoc - Carcassona, Narbona; Mompilher, Nímes - e o Delfinado, por Étiennes até Lião, e daí, entrando na Suíça, até Genebra, rompia Abril florido. Aqui encontrei, na mesma estalagem em que me hospedei, o francês Guilherme Farei, que havia ajudado Ecolampádio a firmar a reforma em Basileia. Cavado vinco de rugas entre as sobrancelhas a assinalar espírito crítico no olhar fundo, nariz fino, comprido, faces chupadas, bigode e barba a escorrerem para a pêra pontiaguda, pescoço, que se adivinha seco, abafado nas golas da camisa branca e do jubão.

- é um movimento indomável - dizia ele uma noite à mesa, estando todos ceando. - Basileia, Genebra... Roma tem os dias contados.

- Exageração, amigo - refuto-o. - Julgas que a Igreja vai ficar parada a olhar para vós? Espera pela carga que aí há-de vir.

- Será tarde... Olhai. Nisso do sacramento do altar estou melhor que a reja Romana.

- Nessa matéria São Paulo.

retorqui-lhe - bastará citar-te a autoridade de

Ora, ora - ria-se. - Há neste tempo teólogos que entendem melhor o texto dos Evangelhos do que Paulo.

Pelas margens do lago Lemano, subi a Lausana, Montreux, e segui em direcção a Berna. A nove de Abril, uma Quinta-Feira da Paixão, pelo cair da tarde, entrava em Basileia.

Que não pareça a qualquer espírito simples ter sido a jornada tão azada como aqui vai exarado. Não despachei caminho tão facilmente como a escritura, nem os dias, as semanas, os meses escorrem em duas linhas. É nas portelas cimeiras de Guadarrama ou dos Pirenéus, nas alturas dos Alpes, nas neves do Jura, na solidão e silêncio de céu e nuvens e uivos de lobos, ou no estrondear da tempestade, no abrirem-se as torneiras do pólo e desabar em torrente a força das águas que descarnam as terras, desarreigam o carvalho gigante, arruinam a choupana e o palácio, ou ainda no lavrar das chamas que lambem e devoram a floresta, é nesses passos que, em sua pequenez, num subtil doer do tutano dos ossos e arrepanho de pele e alma, o bicho humano sente a angústia do possível vazio do seu destino transcendente. Todos os conflitos dos homens lhe parecem fúteis. Toda a paixão, Magda, Lena, fogo-fátuo. E não tem resposta a pergunta das perguntas: Que é a verdade?

Assim o entendia o meu trovador, que no alto da serra se pôs a cantar as coplas antigas do clérigo Airas Nunes:

Porque neste mundo minguou a verdade, punhei um dia de a ir buscar...

Ressoava o canto do menestrel por aqueles pegos solitários e medonhos e ecoava dentro de mim. Calavam também os companheiros, sem vontade agora das costumadas chufas e gargalhadas...

Em Santiago, estando albergado em minha pousada, chegaram romeus. Perguntei por ela, disseram: «Por Deus! Muito levas tu o caminho errado, que, se a verdade quiseres encontrar, por outro caminho convém a buscar, pois aqui não sabem já dela mandado.»

Mal entrei na rua estreita, brilhou aos meus olhos, no fundo negro da tabuleta, que balouçava pendurada dos cadeados de ferro, a figura branquíssima da cegonha. Era a minha estalagem, a hospedaria onde pousavam as pessoas de qualidade. O hospedeiro, se bem que eu havia ali estado somente de um dia para o outro um ano atrás, ainda se lembrava de mim:

- Hen doctorl - carregava ele nos erres.

Gritava ordens, acorriam moços a aviar bagagem, a cuidar da acomodação das cavalgaduras, a indicar quartos. Com isto a noite caiu.

- E a ceiazinha, meu senhor?

- Primeiro, Hen Kurz, um banho.

Bate as palmas à porta da copa e fala para dentro.

De tudo faço matéria de comparação. Há belos e bons banhos públicos na cidade, com a água do Reno à mercê. Gente sadia e limpa. De corpo e alma. Homens e mulheres, velhos e crianças, moços e moças, em alguns tanques quase não separados, podendo ver-se uns aos outros com singeleza, sem pruridos de má consciência tocar-se, rir-se cristal, derriçar madrigais, cantar ao som de arrabil e flauta. Corre a água quente, temperada com fria, ensaboam-se costas, sovacos, opulências de nádegas, leite de seios femininos, mármore de ventres que arroxeados pentes escurecem, os pudenda procriadores. Por cima, em redor, dos varandins vêm os rapazes, as donas, os cavalheiros ver a função. Há quem coma e beba durante o banho, num ritual pagão. Claro, claro, é mais agradável apreciar as formas daquela donzela, daquela mulher no espelhar da beleza, as proporções e harmonia daquele jovem atleta, do que a crepitude da anciã na trémula destreza de se desnudar, a degenerescência do velho gaiteiro que não mede a idade. Paisagem para crianças na inocência do olhar, para jovens no mordicar do desejo, para velhos na merencória do passado ou na calma aceitação da natural caminhada da vida. Às vezes algum resto de pudor: homens que tapam as vergonhas com uns tangueiros de pano, donas a que a leve camisa acicata a nudez apenas entrevista. Nem os anjinhos nas igrejas, as pinturas e esculturas de santos e santas nesta arte recente que vem de Itália... Que diferença dos negrumes escrupulosos das gentes de Espanha e de Portugal! Aqui não paira a ameaça do Inferno. Conquanto hábitos antigos, ajuda a nova teologia do pecado, mas não tardará algum pregador católico a fulminar do púlpito a falta de polícia de costumes e a escrever tratado sobre a vergonha, de servanda verecundia... Feitura de alguma doutrina incutida na infância, embora compreenda a libertada e saudável postura deste povo, sinto-me todavia ainda constrangido. Por isso o meu banho é privado. Na estalagem. Mas, com especiais cuidados. Em quadra ao lado da cozinha, enquanto umas criadas vão enchendo a cuba com água quente e fria, outras penduram num estendal as diversas toalhas e acomodam as roupas lavadas que vou vestir. A roupa suja, suada, que me ajudam a despir, é rapidamente atirada para um cesto de verga que as lavadeiras virão buscar. Entro no banho. Ensaboam-me, esfregam-me, despejam-me jarros de água pela cabeça abaixo, pelos ombros, pelo peito, costas, flancos, pelas naturas, envolvem-me em toalhas, enxugam-me, massajam-me, perfumam-me com unguentos, curam-me dos cabelos, das unhas de pés e mãos... riem e falam alegres Hen doctor deseja ser sangrado? está à mão o barbeiro... Deus me livre!... Hen doctor quer os cantores?... oh, sim!... Hen doctor prefere um reno fresquinho?... prefiro-te a ti... ah! ah! ah! Hen doctorl...

Depois da ceia acolho-me aos aposentos, mas antes de me deitar sento-me a escrever:

Óptimo amigo Bonifácio, o teu Damião ei-lo ao teu dispor na Estalagem da Cegonha. Deseja ir ter contigo, apenas saiba que estás em casa; ou, se te agrada, convida-te para a ceia. Saudinha.

Hesito em datar a carta. Como assim, ele só a receberá amanhã... Selo-a, endereço-a: A Bonifácio Amerbach, ilustríssimo amigo...

- Amanhã entrego-a ao estalajadeiro que logo despachará com ela um seu moço.

E agora... - com que prazer! - para Erasmo:

Si vales, bene est. Ego valeo

Cícero, Plínio... Não, neste século Plínio e Cícero são ele. Presunção da minha parte. Eu, pobre de mim!, entrar na disputa dos ciceronianos? Antes o meu latim canhestro mas ab immo pectore... Digo-lhe que cheguei a Basileia, que gostaria de ir para Friburgo a aprender junto dele alguma coisa do muito de que - aqui faço estilo, arrebicado

- ... de que ele é cofre. Pergunto-lhe se sabe de alojamento em que eu possa albergar-me... Carta breve, no receio de o molestar com a minha incipiência...

No dia seguinte Amerbach chega cedo:

- Caro Damião! Como aqui? Então...?

Compreendo-lhe o espanto. Começo a contar-lhe o que sucedeu. Passámos o dia na conversa, jantámos, continuámos a falar pela tarde adiante...

- É estranho e triste tudo isso - diz. Convido-o a cear...

- Ceia curta - olhava a tarde a declinar. - Tenho ainda de me desculpar com meu irmão Basílio. Fiquei de lhe enviar o De prepamtione ad mortem de Erasmo e, por tua causa, meu caro Damião, não o fiz... escrever-lhe ainda hoje...

No dia doze, carta de Erasmo. Deus meu, quanta alegria!

Que estava a almoçar quando chegaram as minhas notícias. O mensageiro a aviar-se, respondeu logo contra seu costume. Fazia votos por que a minha decisão de abandonar o cargo régio fosse acertada. Estava ao meu inteiro dispor, apesar da saúde aflita a que tinha de acomodar-se, e punha à minha disposição parte da sua casa, asseada e discreta, onde eu poderia levar vida anacorética. Se me não agradasse, os condes de Benneberg haviam deixado vaga uma ala da zum Walfisch que ele próprio antes habitara. A Erasmo, eu o encontraria preparado para tudo. Roupas, pouco importava renová-las lá ou cá. O mais, conversaríamos em pessoa. Chegasse eu quando chegasse, teria alojamento pronto e haveríamos de beber pela taça que eu lhe oferecera de um vinho que encomendara e chegaria daí a dois dias...

E eu lia, relia a carta, já a sabia de cor e voltava a lê-la, como se me o coração não quisesse acreditar que Erasmo me recebia como amigo, vir amicissimus. Onde estava a contida mesura daquele endereço da primeira carta que me escrevera: Erasmo de Roterdão a Damião de Gois, sem qualquer adjectivo revelador de acatamento? Muito outro agora o trato; ao claríssimo jovem Damião de Gois... E no entanto - malícia minha? - sentia eu algumas gotas de vinagre naquela dulceza. Afinal, quem era o homem que me abria as portas de casa? Na carta de Abril do ano anterior, já ele me aceitava porque me julgava pessoa importante e rica, que poderia influenciar a seu favor o rei João terceiro... E agora? Olhasse eu isto: oferece-me parte da sua casa onde eu possa viver vida anacorética... «ubi vivas vitam anachoreticam...». Não está mal esta. AnacoBsta eu, que gosto de viajar, do ar livre, de fazer amigos e com eles comunicar, de conhecer povos e costumes... Anacoreta! O de que ele me está, desde já, a prevenir é de que lhe não vá incomodar a sua vida anacorética... Tinha razão, devo reconhecer. Não passo de um intruso e, embora ele queira ser cortês, à socapa vai-me sugerindo que, sendo eu rico, talvez a casa me não agrade e, nesse caso extrema delicadeza! - informa-me que os condes de Benneberg vagaram o quase palácio em que habitavam e ele próprio também anteriormente pousara. Das necessidades aborrecidas da vida, vestuário e o mais, falar-se-ia depois... pois... pois... Ah! haveremos de beber do bom borgonha que chegará daqui a dois dias!... como quem diz: não venhas tão depressa... senão daqui a dois dias... e, após martelar no cravo, desanda na ferradura: chegues quando chegares... Cavalos meus, nem pensar. Tem estábulo conveniente... mas ocupado...

Assim cuidava eu, por momentos, naquela altura. Que conhecia dele, que tão poucas horas fui privança dessa polida delicadeza na passada ocasião em que o visitei? Porque então corro para ele? Admirava-o, como toda a Europa douta o admirava. Quantas vezes em Antuérpia com Grapheus e o irmão, com Resende, Glareano e amigos, em Bruxelas, por toda a Flandres e sobretudo em Lovaina no círculo dos admiradores, falávamos dele, das obras dele, que conhecíamos como se fosse cartilha... espiolhávamos-lhe a vida, o nascimento em Roterdão...

-... e era bastardo, não esqueçais - dizia Grapheus. - Filho de clérigo.

- Oh, amigo! - lamentava eu. - Que tem isso para o caso?

- Bastardia é coisa importante na vida de um homem livre. Não tem sequer que prender-se aos laços de sangue.

- E para mais - acudia André - teve a fortuna, Deus me perdoe, de ficar órfão cedo e de o tutor o mandar para a secura do internato em Deventer.

- Sois cruéis - comentava eu.

- Não - refutava Grapheus. - Assim se faz um homem. Assim se fez este homem excelso.

Sabíamos dos votos dele em Steyn na ordem dos agostinhos. Não me esquece do que ele mesmo me disse um dia, num momento de desarrimo de alma, como um eco da vida de então nesse mosteiro:

- Muitos fazem-se monges por desarrazoados motivos. Este porque a mulher se desquita, aquele por medo da doença... - olhava-me triste como se eu tivesse de o compreender de imediato -, ... outros, desejam os tutores ver-se livres deles... Um poço de que se não pode sair.

Eu conhecia quase tudo dele, as andanças, os livros, o mito, mas agora ia coabitar com o homem de carne e osso, privar com a sua grandeza e as pequenas mazelas de corpo e alma. Da outra vez, pela minha inibição e sentimento ante aquela quase divindade, não tinha reparado bem nele. Agora todo o tempo eu iria ter, dia a dia, para o observar. Desde a soleira da porta.

Veio abrir a velha Margarida. Devia estar industriada, que logo se desabotoou em riso:

- Boas tardes, senhor. A todo o momento te esperávamos.

A cavalgada restolhava na calçada e a chegada não podia passar despercebida. Assomava gente às ventanas, a espreitar pelas gelosias. Já Erasmo descia mais o secretário.

- Amicissime Damiand Jovial amigo! - abraçava-me. - Bem-vindo a esta tua casa - e virava-se para o secretário e para a senhora Margarida-

- Este é o homem mais feliz à face da Terra...

- Como estás, senhor?

- ... um homem verdadeiramente livre - tomava-me do braço a fazer-me entrar. - Quanto te invejo, caro Damião. Eu tenho de ser dependente dos meus mecenas para viver, da tença que me dá o imperador, da mercê que me faça um príncipe, das minhas lições de grego e de latim.. Jovem, saudável, rico, tu não precisas de ninguém. É-te livre a vontade e o pensamento, o sim e o não. Quanto te invejo!...

- Alguém neste mundo se atreve - respondo - a submeter o pensamento e a vontade de Erasmo?

- Vem, vem. Vou indicar-te os aposentos.

- Que incómodo te venho dar.

- Nada, nada. Vem.

A casa zum Kind Jesu, a Casa do Menino Jesus, como se chamava, era grande, alcatifada, aquecida, esmaltada de excelentes mobílias de castanho e cedro, ricas alfaias, as pinturas penduradas nas paredes a atraírem-me o olhar, quadros de Metsys, Dúrer, Holbein.

Deus imortal! Que hospitalidade, que anfitrião, que criados elegantes! Estavam alinhados no átrio, fazendo alas para nós passarmos, eles muito direitos em seu coletes bordados, golas e punhos rendados, calções vermelhos pelo joelho e meias de xadrez na perna gorda, sapatos de fivela de cobre brunido; elas, jovens e bonitas, alentadas, com suas toucas branquíssimas nos cabelos loiros, cor de cenoura, castanho-claros, o imaculado dos aventais, as saias de estamenhas listradas de feltros vermelhos, amarelos, azuis, em pregas até aos pés calçados de leves borseguins de couro.

Foi-me dada toda uma ala cabeira, de dois sobrados, afastada dos aposentos de Erasmo, noutro lado do edifício. Na parte cimeira ficariam os meus criados e pajens. Na de baixo, ao meu dispor amplas quadras, quarto de dormir, escritório, sala para os meus quadros e para a música e outros aposentos onde podia receber amigos e convidados.

O meu anfitrião excedia-se em cortesia e atenções.

- Estarás à tua vontade - disse, e já me ia remordendo o ter pensado o que pensei ao ler a carta dele. - Sei que gostas de tanger e de cantar. Podes fazê-lo, sem receio de me incomodar. No meu retiro não se ouvirá nada... - e, vendo que eu poderia interpretar à má parte os seus propósitos, corrigiu: - Eu também gosto de música, e se mo permitires, algumas vezes estimaria vir ouvir-te...

Que lhe havia eu de responder?

- É sabido que te reges por severa disciplina de trabalho...

- É verdade.

- ... longe de mim querer perturbar o teu regime...

- Não te apoquentes. Guardarei algum tempo para ti.

- ... os meus estudos, o meu latim...

- Falaremos disso logo, que hoje faço questão de que bebamos pela tua famosa e rica taça.

Eu bem queria realçar que ele exagerava com tais adjectivos como famosa e rica, mas ainda não se me abria a palavra no desembaraço da privança. Lá viria seu tempo.

À ceia, com singeleza falou das horas do seu dia-a-dia:

- Moro num corpo frágil e enfermo, moléstias que se têm agravado com o avançar da idade. A pedra nos rins punge-me e, quando a dor amansa, é, mesmo assim, moinheira constante. Estômago achacadiço, tenho a cada passo vómitos. O peito dói-me. Pés e mãos frios, pinga-me a todo o momento reima do nariz. Três, quatro horas é meu dormir, que a maior parte da noite é vigília que eu, embrulhado em meus capotes, engano a trabalhar de pé à escrivaninha. Manhã cedo já estou a dar lições aos pupilos, que, graças a Deus, me procuram numerosos. Disso vivo.

- Espero ser um deles.

- Para ti, que pousas aqui agora, fazendo companhia a esta ruína de velho, haverá sempre hora propícia... Como quer que seja, com tais achaques as mais das vezes não me terás à mesa. Espero que compreendas.

- Longe de mim...

- Mas para que estou aqui com miudezas? Com o trato conhecerás meus hábitos...

- ... que respeitarei como coisa sagrada.

- ... mas tu podes procurar-me a qualquer hora, que não me incomodas.

- Buscarei não estorvar o teu trabalho.

Os hábitos da casa eram colegiais, de comunidade conventual, como em moradias de clérigos e até albergues onde pousei era usança. Refeições a horas certas, certos os lugares à mesa. O da cabeceira, o de Erasmo, quase sempre vazio. À direita sentava-se o secretário Gilberto, à esquerda eu e depois, de uma e outra banda, os convivas, se os havia. Pagens e criadagem comiam noutra ocasião em refeitório, junto à copa. Com a minha presença, todavia, alguma coisa a vida da casa se alterou.

Margarida rondava pelos setenta mas parecia mais nova. Nem uma ruga na face. Alta, seca de carnes, cabelos castanhos com alfinetadas grisalhas, olhos claros por vezes tingidos de verde, boca fina e firme a inculcar austeridade. Mandona, exigente com as criadas, os serviçais. Um tanto ríspida nos modos e no falar. Predisposta a tomar como importunos quantos desconhecidos lhe entravam a visitar o amo, que defendia como a filho. Quem dele fosse amigo tinha a amizade dela. Logo topou a minha admiração pelo mestre e se tornou minha amiga, sentimento que cresceu quando eu lhe dei atenção a que não estava acostumada:

- Que lindas mãos tens, Margarida! Lembram-me as de minha mãe. Tomei-lhas e beijei-as. Sorriu comovida:

- Meu menino!

Um filho único, de uma paixão de rapariga, morreu-lhe cedo. Da minha idade, se fosse vivo.

O doméstico e secretário de Erasmo, Gilbert Cousin ou à latina Gilberto Cognato, natural de Nozeroy, no Franco Condado, era rapaz de trinta e dois anos, menos quatro que eu. Estudara em Dole onde se ordenara. Latinista seguro, como eu admirador de Erasmo, havia quatro anos que o servia. Alto e forte, olhos de águia, nariz afilado, cara cheia, barbela, voz clara que eu com outras havia de arrebanhar para as sessões de canto, índole alegre, mas falar regrado, trabalhador incansável e meticuloso, alma franca, sem esconderijos nem invejas. Pessoa para se nela confiar, sim senhora.

À socapa, com a cumplicidade de Margarida e de Gilberto, eu ordenava aos meus moços enchessem a capoeira de aves e caça, a copa de tudo o que Erasmo mais apreciava e das boas coisas da Madeira, do Brasil, do Oriente que Lisboa mandava para Antuérpia e eu, com minha oitavada, continuava a negociar.

- Como te hei-de agradecer, Damião? - disse-me o mestre um dia.

- Não tens parança?

- Queres agradecer-me?... - e eu hesitava ante o exagero do que me ia na cabeça.

- Diz.

- Gostaria de ter um retrato teu. Não vacilou:

- Tenho vários. Para que os quero? Com os amigos é que eles estão bem, para que se lembrem de nós. No meu quarto, na parede do lado direito, pendurei uma medalha, e na do lado esquerdo uma pintura a óleo. Willibald Pickheimer, retratos ambos executados por Dúrer. A escrever ou a andar de um lado para o outro, diante dos olhos o saudoso amigo já falecido e não o esqueço.

- Se eu um dia tiver de sair de ao pé de ti, se tiver de regressar a Portugal...

- ... sim, sim... ou se eu tiver morrido...

- Oh, Erasmo!

- Olha... - e apontava-me as paredes: - Holbein aquele ali, este de Diirer... aquele um Metsys... Queres este, mi filtí...

Era a primeira vez que me tratava por filho e eu dava fé de que, de dia para dia, ele me falava e aconselhava como se fosse um pai.

Diirer havia-lhe fixado a figura a carvão por duas vezes. Em Antuérpia no Julho de quinhentos e vinte...

- ... tinha eu cinquenta e quatro anos, Damião. No mês seguinte, em Bruxelas, ele começava outro esboço, chamaram-no da corte, não o terminou. Péssimo modelo era eu, mas muito pior com o vingar de gelhas e achaques, quando mais tarde ele me havia de gravar em metal, já eu tinha entrado nos meus sessenta.

Despendurava um da parede, olhava-o, tornava a pendurá-lo:

- Escolhe - dizia-me.

Escolhi o que me pareceu mais modesto, esse segundo apontamento de Diirer. Assim alcancei possuir esse retrato de Erasmo que, depois, pelos dias fora, em Portugal, tantas vezes me acolitava a recordação e a saudade... até chegarem estes dias tristes em que a Inquisição, não contente em lhe pôr as obras no rol dos livros proibidos, mo arrebatou, presumo que para o destruir.

A amizade brotara entre mim e aquele velho sábio e, embora eu respeitasse as suas horas de trabalho e a sua independência, se, por qualquer motivo o interrompia, recebia-me como um alívio do cansaço e um intervalo bem-vindo nas pesadas tarefas. Pousava então a pena, sentava-se e recostava-se um pouco na cadeira, assoava-se, macerava os olhos cansados e dizia como continuando o pensamento:

- ...e assim é que... Ah, Damião, enfado os problemas que os homens criaram a Deus e a si próprios!...

Conhecendo eu de Erasmo a obra e a suma do pensar, a postura ante as contendas da época, que certo a familiaridade diária com ele iria esmiuçar, às particularidades se me voltava o cuidar. Erasmo era pequeno, de compleição fraca, como ele próprio merencoriamente reconhecia. Tão embrulhado em roupa, aquela touca enxumaçada na cabeça, que dava a ideia de que tinha sempre frio. Na casa não se abria uma janela. Pingava do nariz comprido, incómodo que constantemente enxugava em grande lenço branco. Os pés agasalhava-os nuns pantufos de lã, ou, se tinha de sair à rua, com grossas meias de lã, metidos em forradas botas de couro. As mãos, a cada passo deixava de escrever, pousava a pena e esfregava-as uma na outra, levava-as à boca a bafejá-las. Feições enxutas, serenidade no semblante, latente lume de ironia a luzir-lhe no olhar, a riscar-lhe dois vincos trocistas nos cantos dos beiços finos. A cabeça... um dia que o procurei, manhã muito cedo, antes do começo da lida diária, fui encontrá-lo num pequeno quarto, em mangas de camisa, grande toalha pelos ombros até quase aos pés, a cabeça inclinada para o peito, o barbeiro a tosquiar-lhe a gadelha.

-... uma das que eu mais aprecio, meu senhor - apanhava o homem entre dois dedos a madeixa, tesouras a crepitarem no ar antes do corte das pontas -, é quando a Loucura refere as parvoíces de um homem para tirar prazer da mulher... Parvoíces, senhor! Está bem visto, eu que o diga.

- Muita experiência, é, Herr Gosch?

- Se eu te contasse...

Assim inclinado, via-se-lhe bem o pescoço e a raiz da cabeça, que seguia direita na mesma linha, como se lhe faltasse a parte de trás do crânio, e só nas fontes alargava. Não admirava que a escondesse sob aquela boina almofadada. Mais tarde compreendi que isso o deprimia, quando dei conta de que a cada passo, nos seus manuscritos, na margem do papel rabiscava a sua própria caricatura: uma cabeça sem nuca, pegada a um nariz imenso que pingava... Mas esta era o cofre de uma sabedoria sem par, de um pensamento alertado e censor, o mais que eu alguma vez conheci. Tudo coava naquela peneira, gestos, palavras, o comer e o beber, o dormir e o velar, acatamento e repúdio, a sua posição ante os grandes problemas da humanidade. A fraqueza do corpo pequeno e cheio de maleitas era certo que não inculcava um herói, e o carácter, nesse frágil invólucro, amoldava-se.

- Sinto - disse-me um dia -, e isso desvanece-me, que tens admiração por este teu velho mestre. Tão novo e saudável, escolheste mal o arquétipo, meu filho. Tu és um homem de acção, de movimento, combativo... Eu...

- Porque tentas diminuir-te?

- ... nunca Erasmo poderia ser um duca...

- E porque quererias ser tu um duca?. Não és tu, desde há muitos anos, condutor dos que nesta Europa se dão ao cuidado de pensar?

Parecia não me ouvir, ensimesmado:

- Não há em mim indício de arrojo. No tumulto, mudo de cidade, escondo-me no trabalho do escritório... Paris...

- ... o Colégio em Montaigu... - recordava eu.

- ... Inglaterra, outra vez Paris, outra vez em Inglaterra, Itália, de novo Inglaterra, Países Baixos...

-... Lovaina, o Colégio Trilingue... -... Estrasburgo, Basileia...

- ... e agora Friburgo. Olhou-me, como acordado do sonho:

- Que me fez correr tantas partidas do mundo, Damião?

- O convite de reis, universidades, príncipes da Igreja... Professor de Oxford, privando com altos senhores e dignitários, William Bount, lorde Mountoy, William Grocyn, John Colet, deão de São Paulo, Tomás More... O próprio papa Júlio...

- Não me fales do papa Júlio. O luxo e a impiedade de Roma desaquietaram-me.

E contava. Pelas cidades italianas, dera em visitar as igrejas. Os Cupidos e as Vénus haviam invadido o culto, anjinhos de pilas torneadas sorria-se naquele seu jeito escarninho -, santas mulheres púberes de seios guilhoados, carnes rosadas, os varões bíblicos e os santos mártires com as virilidades e suas bolsas ao relento...

- Outono, Damião, Outono para as folhas de parra! Queres ver o membrum virile de David? Vai a Florença e contempla esse nobre mármore esculpido por Miguel Angelo. O papa Júlio tem em seu museu muitos outros nus finamente cinzelados pelos gregos, o Apoio de Belvedere, Laocoonte e seus filhos enlaçados pelas serpentes... São modelo.

De ouro maciço as alfaias da pobreza de Cristo, cravejados de pedras preciosas os anéis, a tiara, o báculo, os sapatos, os pontificais do pescador... altas colunas de mármore erguem o templo edificado com o dinheiro extorquido à crendice dos fiéis, esculpidos pelos grandes escultores dos papas o Moisés, a Pietà, a Noite e a Morte de príncipes prepotentes e devassos... A Capela Sistina um luxo escandaloso, a história épica de Deus e do Homem, a criação, a queda original, a redenção, o julgamento derradeiro... Deus o perdoasse, mas lá obra de arte era, daí que alonga a imagem às fronteiras da idolatria... A Basílica de São Pedro, em construção, regrava-se pelo mesmo teor.

Fora convidado a assistir às celebrações da Sexta-Feira Santa. Embora, com a saúde abalada, quase sempre não comparecesse, Júlio segundo estava presente. Multidão de cardeais, bispos, senhores nobres e eruditos, e muitos fiéis.

- Grande festa me fez o papa, quando lhe fui beijar o anel: «Erasmo, meu filho!» e virava-se para os prelados que o rodeavam: «O Jerónimo da nossa era...»

Sermão da Paixão com pompa e cerimónia. O exórdio e a peroração, mais alongados que o corpo da prédica, dedicados ao louvor do papa aclamado como Júpiter Optimus Maximus que, de tridente e raio na dextra, com um aceno logra alcançar o que lhe der no pontifício goto: todos os sucessos relevantes dos anos recentes na França, Alemanha, Espanha, em Portugal e na África e na Grécia às suas ordens haviam ocorrido... E Erasmo, ali no meio do público, em seu pensamento se perguntava que tinha tudo aquilo a ver com o Júlio que era o chefe da religião cristã, o vice-rei de Cristo, o sucessor de Pedro e Paulo... E o pregador falava da crucifixão de Cristo em tom retumbante e triunfal, usando comparações com as mortes de Socrates, Epaminondas, Cipião e Aristides. Que oração poderia ser mais dessaborida e vazia?

Olhasse. No terreiro do paço de Júlio segundo, acontecia o insólito!

- Uma procissão?

Não, respondia-me. Haviam-no levado amigos a ver imaginasse que... nada menos que correr touros. Nunca apreciara desportos cruéis, restos do paganismo antigo, mas não estava nas suas mãos evitar presenciar aquele lastimoso divertimento. Uma paliçada de estacas abalizava a área do corro. Do lado de fora prendiam-se os cavalos de toureiros e assistentes e em bribunas apalancadas, veladas por loiros guardas suíços, sentavam-se o papa e seus cardeais, áulicos e convidados. Dentro, envoltos em nuvens de poeira, cavaleiros com seus estoques lidavam possantes animais de pontas afiadas, com que por vezes derrubavam montada e montador, corneando-os raivosos até que os capinhas acudissem distraindo-os com o volteio dos panos. Vinham depois os toureadores de pé com suas capas vermelhas e espadas brilhantes, lidar um touro enorme, que em vão investia com as hastes, enganado dos voos do capote, espumejava, urrava, escarvava o chão, suava e sangrava do cachaço ferido. Finalmente, no silêncio geral, fica sozinho com ele o matador, a muleta vermelha variando os lances, como amadornando a rera em sonolento torpor, aproximando-se mais e mais, quase lhe roçando o corpo, imobilizando o bicho, forçando-o a vergar a cerviz e súbito arundando-lhe o estoque nas cruzes até ao coração. Ajoelha o pobre nas patas dianteiras e descai por terra em desmaio e morte. Acorrem moços com uma atrelagem de mulas para arrastarem o corpo para fora, mas neste interlúdio, a cortar o estrondo dos aplausos e o sentimento revoltado de Erasmo, acertou surgir uma pantomima faceta. Capa revolta no braço esquerdo, a espada apunhada na direita, entra um homem a modo de toureador que quer dar cutilada no toutiço do boi. Começa de imitar os movimentos da tourada, avançando com cautela e segurança, mimando esperar o touro inexistente. Como se tivesse medo, foge para trás da estacada, regressa e, para desviar as investidas do touro, atira-lhe a capa, brande a espada, corre e cansa a fera que o persegue, volta a saltar para a área protegida. Distrai-se o animal e então o nosso homem vem sorrateiro por trás do touro, que resfolega, e salta-lhe para o dorso e exultante sai do corro em triunfo.

- Uma tourada que me irritou - rematava. - Gostei mais da pantomima que do espectáculo cruento. Mas foi o cúmulo quando, num outro dia, vi o papa Júlio a cavalo, vestido de guerreiro à frente das suas tropas, a caminho de ir tomar Bolonha, uma cidade de cristãos... Fugi de Itália, da sua corrupção, como havia fugido de uma Inglaterra em armas a favor de Júlio, da Bélgica, de Estrasburgo, de Basileia para me não confrontar com Lutero e seus partidários...

- Foste prudente e sábio.

- Fui cobarde.

- Oh!

- Não tenho bossa de mártir nem de herói. Não estava nem estou disposto a dar a vida pelos paradoxos de Lutero.

- Ao princípio apoiaste-o.

- Condeno agora os exageros dele e as truculências dos que julgam segui-lo.

Margarida afeiçoou-se ao amo e Erasmo, que não obedece a ninguém senão à própria vontade, acata-lhe os ralhos: se ele não cuida de si, se não se alimenta como deve ser... Tem-lhe sempre na mesa um adem, um frango estufado, um lombo assado, um peito de faisão... Não falte o bom vinho de Borgonha e a peça de fruta da sazão. Peixe, se bem que à cidade os mercadores tragam do Norte barricas de salga ou os pescadores da montanha desçam a vender truta dos riachos frios, é coisa que não entra nesta casa.

- E o jejum? - pergunto.

- Pensarás acaso que a minha dieta é empanturramento? Gargantoíce é vício de Roma.

- De Roma?

- Da Roma antiga e, se quiseres, de alguma Roma de agora. Engorgitavam-se os ricos nos festins de Trimalquião, com iguarias asiáticas de raros sabores, dessas que vós, Portugueses, estais agora espalhando pelo mundo...

- És contra as especiarias?

- Não, por Deus. Mas contra o atafulhar-se uma pessoa de misturas, o ácido com o doce, o subtil com o pesado, os molhos feitos de espécies indistintas. Digamos que sempre fui sóbrio apreciador dos sabores e cheiros simples. Tu, que és músico, sabes como é necessária arte para jogar com os sons, combiná-los sem ferir o ouvido..

- ... como o pintor joga com as cores...

- Com o degustar acontece o mesmo. Empanturrar-se é próprio de pobres em dias de festa, em hora de Saturnais. Não, não sou como os filósofos indianos, a que os Gregos chamavam gimnosofistas, que viviam na renúncia dos bens da vida. Aprecio o cheiro e o sabor da carne assada, o perfume e o paladar resinado de um bom vinho, que nas noites de Inverno me escorre calor pelos caminhos do sangue. Conheço as vantagens da abstinência, para o corpo e para o espírito, mas também lhe sei os perigos. Saudável para aqueles que têm constituição habituada. Se desejam sujeitar-se a penitência para afastar a cólera de Deus. Mas exigi-la aos jovens, aos idosos, aos enfermos é sentença de morte. Impor se coma peixe onde o peixe é raro é decretar fome. Regulamentos em desfavor dos pobres. Os ricos podem importar acepipes marinhos.

- Pode obter-se dispensa papal.

- Aborrecimentos e despesas para ricos suportarem... E diz-me: como se define exactamente peixe: Os caracóis são peixe?

- Não tinha pensado nisso.

- Se é para vergar a luxúria, certos legumes deveriam ser proibidos. Cristo disse: «Não é o que entra pela boca que mancha»... É preciso atender ao estômago dos fracos. As doenças matar-me-iam se eu não pudesse comer carne.

Recordo esta conversa com o mestre e como eu, mais tarde, em Lisboa, à mesa, gostava de repetir aos meus familiares aquelas palavras de Cristo, o que me trouxe graves dissabores nos interrogatórios da Inquisição.

- Vives comigo em minha casa - disse-me, em guisa de desculpa, poucos dias depois de eu chegar (a vinte e três de Abril, lembro-me bem por ser o aniversário de um amigo) - mas não nos juntamos senão raramente à mesa por causa da minha doença. Amanhã tenho um convidado especial que quero apresentar-te... - e, espreitando com o ricto brincalhão nos cantos dos beiços e no chispar dos olhos a minha curiosidade, acrescentava: - Glareano, humanista e poeta suíço, além de geógrafo e.. como vais gostar de conhecê-lo!...

- ...e?...

- ... musicólogo como há poucos.

- Vem cear connosco?

- Convidei-o. Vive na cidade. Henrique Loriti ou Glareano por ser natural do cantão de Glarus. Fugido, como eu, de Basileia por mor de Ecolampádio ter aí instaurado a reforma de Calvino.

- Ele canta bem?

- Canta e toca e compõe como tu. Depois da ceia poderemos fazer serão e vós enchereis a casa de harmonia de anjos.

Glareano, Gilberto e eu..., pensei. Faltam-me mais vozes. Falarei com Margarida. Ela deve saber quem na lida da casa costuma cantar.

Essa noite, sentindo a casa sossegada, desci à copa pela escada de serviço.

A velha Margarida estava sozinha a arrumar as contas do dia ou a ordenar a lista da mesa do dia seguinte.

- Venho incomodar?

- Faltou-te alguma coisa lá em cima? - perguntou. - Esta criadagem!

- Faltou-me, sim - sorri-lhe com jovialidade sentando-me ao lado dela.

- Quê?

- De repente senti-me só e desci a...

- Ai lari-ló-lé-la! As moças já se foram deitar. Aqui há costumes. Que te passou pela cabeça?

- ... procurar a tua companhia...

- Estou vendo.

- Vim falar contigo, conversar um pouco.

- Hum!

- Vejo que te anojo - levantei-me. - Até amanhã.

- ... se Deus quiser.

Caminhei para a porta, mas eu já sabia que ia voltar.

- Espera, arisco duma figa. Queres hidromel? Um bolinho de noz?

- Aceito - abanquei.

Pôs uma jarrinha de bebida em cima da mesa, um copo e um prato com bolos. Fui direito ao que vinha:

- Teu amo convidou para a ceia de amanhã Henrique Glareano.

- Eu sei.

- Gostaria de lhe cantar e tocar algumas das minhas composições, mas faltam-me pessoas para certas vozes. Alguns dos teus serviçais sabe música? das tuas criadinhas?

- Julgo que não. Ouço-os às vezes a assobiar, a trautear enquanto trabalham, mas sem regra, apenas levados pelo fio da alma... Mas não te dê isso cuidado.

- Não?

- O próprio Glareano te poderá resolver o caso: os pupilos da sua academia.

- Eu não o conheço.

- Deixa que eu digo ao Gilberto para lhe mandar recado. Confiante nos bons ofícios de Margarida e de Gilberto, fui deitar-me. No dia seguinte, pouco antes da ceia, Gilberto veio por mim ao meu escritório:

- Vem, Damião, Glareano já chegou.

Descemos. Erasmo estava com o amigo e um grupo de quatro jovens. Tomando-me pelo braço, disse:

- Este é o meu amigo Damião de Gois, cavaleiro português.

- Erasmo diz-me de ti maravilhas... - cumprimentou Glareano.

- ... e de ti maravilhas diz - retorqui. Púram-se.

- Sei que és perito em muitas disciplinas... - continuei.

- ... e eu sei que és homem de grande experiência em tratos e embaixadas, grande viajante e outras partes não menos dignas de apreço. Mas a mim basta que Erasmo seja teu amigo e tu dele, para ter muito gosto em conhecer-te.

- E a mim, além do mais, que tu sejas experto em música, para desde já te considerar meu mestre.

Glareano teria uns quarenta e cinco anos. Ombros largos, meão de estatura, cara redonda e bem-disposta, olhos escuros, o cabelo embranquecido a coroar-lhe o topo calvo do crânio. As mãos um tanto papudas escondiam a agilidade e arte com que pousavam e manobravam o teclado do clavicórdio ou tangiam as cordas do alaúde ou arrebatavam tórculos e porrectos aos sopros da flauta.

À ceia foi-se falando de música.

- Sou ouvinte, não executante - dizia Erasmo. - Não sei tocar nenhum instrumento como vós... E quem sou eu, com Glareano aqui presente, para falar de teoria musical? Pouco além vou da harmonia das esferas dos pitagóricos e de Platão.

- Erasmo, Erasmo, caro amigo - suspendia Glareano a copa. - Sei bem que tens opinião formada e és contra a polifonia.

- Sou contra o pretender-se agradar a Deus rugindo ou com relinchos modulados, órgãos a atroar as abóbadas dos templos. Que quereis? Humanista, sou pela contenção e o equilíbrio...

- ... e educado pelos Irmãos da Vida Comum, na Deventer da tua juventude - ajudou Gilberto -, recebeste deles a herança de pôr objecções ao uso do órgão.

- Assim tão mau? - perguntei.

- A monódia - respondeu o mestre -, o cantochão, a cada simples nota uma simples sílaba muito clara, aliciam o espírito, levam-no a enternecer-se para adorar, fazer penitência, louvar e decidir...

- E a polifonia? - acudia Glareano. - Não comove? não eleva a alma? não nos mexe as entranhas do que somos?

- Esse jorrar de música encorpada, além de abafar o sentido das palavras, a precisão conceptual, com o aturdir os ouvidos cria uma perigosa ausência do silêncio necessário à meditação consciente, tira o livre arbítrio.

- Mas pelo contrário! - rebatia Glareano. - Enriquece-o, ajuda-o, encaminha-o...

- Por isso deixa de ser livre. -... mais do que um sermão...

- O ribombar dos órgãos distrai o crente, e os guinchos da trompete, da saca-buxa, da flauta, da sambuca. Deus meu! Os anjos a fazerem trinados em voz de tiple e os diabos a berrarem imprecações em voz de baixo...

- Condenas pois a polifonia nas igrejas - concluía Glareano levando da comida à boca.

- Não radicalmente.

- Resistes à música polifónica tão florescente na tua pátria e na Bélgica...

- ... e por toda a Europa - acrescentei.

- Acho que se deve exigir simplicidade - insistia.

- A Igreja primitiva não tinha nada disso, bem sei, nem órgãos -. concordava Glareano -, mas...

- O tempo não pára - intervim. - Novas formas se intrometeram.

- A diferença que vai do octacórdio ao dodecacórdio, ao modo eólico!

- procurava Glareano argumentação na sua ciência.

- Árias dionisíacas licenciosas - vergastava Erasmo calmamente com o sorriso mordaz, enquanto nos brindava erguendo a copa de prata dourada que eu lhe havia oferecido, que levava aos lábios com elegância a libar o seu borgonha. Nós correspondíamos, ele pousava-a e prosseguia: - A juventude cresce incapaz de fazer outra coisa senão gorgear sentimentalmente e beber em excesso.

- Exageras.

Os quatro jovens cantores, que comiam em silêncio, não davam sinal de si.

- E necessário cantar na humildade da congregação. Agora, em algumas igrejas e mosteiros os cânticos em conjunto quase se calaram e o fradezinho gosta de se ouvir a própria voz a cantar em solo e envaidece-se... Mas que importa isso neste momento de confraternização? Aliás não estamos numa igreja...

- ... e é inefável cantar - rematei eu.

- E, sim. Vamos. Deixemo-nos de prelecções. Quero é ouvir-vos. A ceia terminada, disse Erasmo:

- Subamos então ao teu musaeum, Damião, onde as musas nos esperam.

O serão foi tão animado que Margarida, com licença do amo, trouxe os criados a assistirem e foi grande a surpresa quando, depois de dois refrões, ao terceiro se ergueu de entre as moças e se juntou ao coro uma voz feminina de tão pura água e tão clara dicção que todos sentimos invadir-nos a alma o enlevamento de que Erasmo à ceia nos falava, mas tornado agora o mais forte argumento contra a opinião dele.

E ali estava eu para sempre celebrado à sombra da imortalidade do mestre. Embora incontestável motivo de orgulho, desejava no entanto colocar-me, por mérito próprio, acima das bestas, que a natureza, segundo Salústio, esculpiu inclinadas e obedientes ao ventre. As gerações vindouras falarão de mim. Dirão dos meus amigos europeus, luteranos e católicos, das minhas peregrinações pelo mundo e de tudo o que eu fiz e escrevi. Alguma coisa de mim ficará, aere perenius, ainda que a Inquisição pretenda apagar vestígios meus. Penso agora que esta minha injusta prisão e condenação eram necessárias como coroa da isenção de meu pensamento e crer. Mas naquele tempo em que eu subira os degraus e transpunha a soleira da porta de Erasmo e por ele era recebido de braços abertos e com amizade, devo confiar ao papel que à admiração por ele eu juntava minha ponta de egoísmo: queria enfeitar-me um pouco com a sua glória. Pecados meus.

Guardei entanto a liberdade de opinião, verbi gratia no que respeita à música. No seu convívio, contudo, o meu espírito, que andava desorientado face às diferentes seitas de reformadores, foi-se esclarecendo e amadurecendo, não sem alguns percalços.

Que facetas imprevistas tinha o pensamento de Erasmo! A cada passo, ouvindo-o falar, nos admirávamos ou tínhamos de arregalar os olhos ou assaltava-nos a vontade de rir.

- Espantado? - perguntava. - Espantado eu, por nunca ninguém ter pegado a coisa por esta banda.

- Espreitas e surpreendes sempre o insólito - dizia-lhe eu. - Virgílio no Céu?

Era do Inferno que falávamos.

- Muitos cristãos cujas obras lemos - respondia - não me admiraria se estivessem no Inferno. Não meteu Dante no seu Inferno a papas e reis?... Mas para que discutir se os autores pagãos, de antes e depois de Cristo, foram condenados? Renegarmos tudo o que é pagão significa termos de abandonar alfabeto, língua latina, todas as artes e ofícios...

Havia muito se empenhava em defender a paz contra a guerra. Dizia-me a propósito, relembrando velhos escritos:

- Serpente envenena serpente? O leão faz presa de outro leão? Come o lobo outro lobo? Só os homens, levados pela raiva e a discórdia, se devoram uns aos outros...

Na Holanda conheceu o filólogo Lorenzo Valla de quem colheu ensinamentos:

- Antepunha a retórica, mão aberta que ordena e aclara a verdade, à dialéctica, o punho fechado como o raciocínio cerrado. Isto me quadra dizia com candura e sorria.

- Símbolos - comentava eu.

Construíra ao longo da vida, com tenaz mansidão, o seu castelo: com quase setenta anos, era um espírito livre. Rejeitava tudo o que pretendesse sujeitá-lo. Fizeram-no padre, desde cedo deixou de exercer o sacerdócio. Queria Lutero aliciá-lo para a sua causa, rejeitou. Acenava-lhe o papa com mercês, a chamá-lo ao partido da Igreja, não permitiu que o enredassem. Conservou-se neutro na questão do divórcio do rei inglês. Era contra a violência...

- Nem todos têm a força necessária para o martírio, mas aquele que, como eu, desconfia de si mesmo pode ser mais corajoso do que aquele que, como Pedro, se gaba de antemão... Não deixarei a Igreja de Roma. Não pertencerei a uma facção. Não atacarei Lutero.

Longe dele, afiançava, a ideia de privar as universidades dessa honra. Lutaria, isso sim, por acalmar aquela disputa.

- Quando eu residia na Bélgica - contava -, tinha esperança de assim fazer. Mas Aleandro estava em Bruxelas...

- O cardeal Jerónimo Aleandro?

- Em carne, osso e vesguice, Deus me perdoe.

- Lembro-me dele. Escandalizou-se com um auto de Gil Vicente, dramaturgo meu conterrâneo, nas festas de júbilo pelo nascimento de um infante português. Como estava furioso! Que ia escrever para Roma, ameaçava.

- Que havia de tão verrinoso nessa representação?

- Desancava na corrupção de Roma - e eu esmiuçava as cenas que tão indignado haviam deixado o legado pontifício. - Não descansou enquanto o próprio autor, para o acalmar mas com ironia, lhe não emprestou o texto dizendo: «Eminência, leia. Verá que tudo são verdades e não é a religião de Cristo a atingida.» Gil, que era meu amigo, escreveu-me de Lisboa a pedir que me esforçasse por reaver o manuscrito, mas eu nunca mais houve meio de o alcançar.

- Aleandro - disse Erasmo - incitava o imperador a queimar os livros de Lutero e a condenar à fogueira meia dúzia de luteranos. Em quinhentos e vinte, quatrocentos livros foram lançados às chamas em Antuérpia na presença das autoridades e de uma grande multidão que assistia das janelas. Não me admiraria se mais tarde, depois de tu lá teres estado, também o livro do teu amigo...

- Seria uma iniquidade.

- Queimar livros é sempre uma iniquidade. É pretender queimar um pensamento livre.

Descansava os olhos, fechava-os, amaciando os véus com as pontas do indicador e do polegar, e continuava:

- Abandonei Lovaina e fui para Basileia. Aí pensava poder ser medianeiro. Detesto discórdias, pelos preceitos de Cristo e por certa oculta força de minha natureza. Temo que qualquer das partes, a ser suprimida, acarrete perigo de aniquilação.

- O teu silêncio sobre Lutero é por alguns interpretado como anuência.

- Pelos papistas. Os luteranos dizem que, atemorizado, abandonei o Evangelho. O papa é o Anticristo, os bispos traiçoeiros, a Sé Romana uma abominação, afirmam os detractores.

- E tu concordas?

- Seria injusto, se o dissesse de um bom papa. Se de maus papas, irritá-los-ia. A todo o transe procuro a paz. Ouvidos bem abertos, escuto ambas as partes. Amo a liberdade. Não servirei, não posso, não quero, nenhuma facção. Nem todos os ensinamentos de Lutero podem ser rejeitados sem se rejeitar o Evangelho, mas, lá por ter protegido Lutero no princípio, terei de aprovar tudo o que ele disse depois? Nunca lhe chamei herege. Venho lamentando a discórdia e o tumulto. Ao mesmo tempo, critiquei a prepotência e erros da Igreja.

- E as indulgências?

- Não as condenei totalmente. Algum dia fui contra a lei canónica e as decretais dos papas? Dizem que interpreto mal o capítulo nono da epístola de Paulo aos Romanos. Desde Cristo se discute a predestinação. Melhor não nos afundarmos em abismos...

- ... insondáveis.

- Olha. De início a Igreja em Roma teve como chefes apenas Pedro e Paulo, mas haverá algum impedimento a se^ tornar igreja metropolitana? Nunca defendi o poder posteriormente instalado. Não tenha embora o papado surgido com Cristo, reconheço haver necessidade de chefe... Os paradoxos de Lutero? Não são artigos de fé, como vês, mas antes se a supremacia de Roma foi instituída por Cristo, se a ordem dos cardeais é necessária à Igreja, se foi Cristo quem criou a confissão, se os bispos com suas constituições podem obrigar alguém a cometer pecado mortal, se o livre arbítrio contribui para a salvação, se uma obra humana pode ser considerada boa, se a missa é um sacrifício, se a fé por si confere a salvação... assuntos para debate escolástico. Por eles não tiraria a vida a quem quer que fosse nem me proponho oferecer a minha própria. Teria esperança de ser mártir por Cristo, se tivesse coragem. Não estou disposto a ser mártir por Lutero. Em quinhentos e vinte e três, nos Países Baixos, dois frades agostinhos foram queimados pelas suas opiniões luteranas e, em Paris, um eremita, por manter que José era pai de Cristo. Há cinco anos, também em Paris, queimaram vivo na praça pública o meu amigo Luís de Berquin por defender a liberdade de consciência. Não nos devoremos uns aos outros como peixes. Porquê transtornar o mundo todo por mor de paradoxos, uns ininteligíveis, discutíveis outros, alguns sem utilidade? Ruge a Terra de raiva, de ódio, de guerras. E o remédio? bulas? anátemas? a fogueira? Que proeza queimar um desgraçado! Façanha, e grande, é persuadi-lo. Não posso ser diferente do que sou. Não posso senão abominar a discórdia. Não posso senão amar a paz e a concórdia. Vejo obscuridade em todas as coisas humanas e como é mais fácil começar um tumulto que pôr-lhe fim... Aqui tens, meu filho, a súmula da minha angústia.

Para lá da angústia, todavia, Erasmo não conseguia esconder o pendor verrinoso, quantas vezes surpreendente.

- Relia há dias o teu Encomium Morias - contava-lhe eu -, lembrei-me de nos meus quinze anos ter assistido na corte de Lisboa à representação de um auto de Gil Vicente.

- E que te fez neste texto lembrar o teu Gil Vicente?

- A semelhança de vis cómica, do génio satírico.

- Contas-me maravilhas.

- Imaginou o autor uma prefiguração sobre o rigoroso juízo que os inimigos fazem às almas no ponto de abandonarem os corpos terrestres. Figura então que, nesse passo, elas chegam a um braço de mar onde estão três barcas...

- Estou a ver: o Estígio, Caronte...

- ...a da Glória, a do Purgatório...

- ... e a do Inferno...

- Aí está. Abarca, o arrais e o barqueiro...

- ... diabos maiorais...

- ... e depois começam a chegar os passageiros. Aqui encontrei eu parecenças com um passo do discurso da Loucura. No terrível dia do juízo...

- Recordo-me: frades de panças engordadas...

- Nem mais. Ali chega um fidalgo, logo um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade com a namorada, uma alcoviteira, um judeu, o corregedor, o procurador, um enforcado...

- Presumo, pela amostra, que nem todos se destinam à barca infernal.

- Precisamente. Aqueles que se julgam santos têm nela assento. Mas o garvo e quatro cavaleiros da Ordem de Cristo que morreram nas partes de África espera-os a da Glória. Assim acaba essa primeira cena da trilogia.

- Se eu soubesse português, folgaria de o ler, ao teu poeta. Diz-lhe que escreva em latim.

Em turbilhão, nos sonhos, pedaços soltos de pensamentos de Erasmo lidos nos livros ou a voz dele a esvoaçar...

«Obrigada pelo ataque ao meu culto» - a carta da Virgem Maria a Zuínglio. «Tem-me libertado de petições incómodas: o mercador em viagem que lhe olhe pela castidade da namorada, o mercenário lhe conceda a graça do saque, a grávida lhe dê boa horinha, o bispo a mercê de um benefício, a bruxa a livre da tosse, um lavrador lhe mande chuva a regar as berças...» Não expulse o caro Ulrico todos os santos do Céu: se expulsa São Pedro, os batentes do Empíreo poderão cerrar-se-lhe nos queixos...

O santuário de São Tomás Becket, em Cantuária. Colet funga zombaria ao ver um osso do mártir ainda com carne em sangue, o lenço com ranho fresco, um chinelo à mostra para o beijo piedoso. «Mais apto morto que vivo está o santo a fazer milagres; um chinelo dá para sustentar um convento.»

«Os judeus têm mais liberdade que os cristãos: podem todo o ano comer carneiro, capões, perdizes e cabrito...»

Vogam no ar figuras estranhas: um padre levado preso por deixar crescer o cabelo na coroa... «ainda que se embriague no bordel, continuará a ser um pilar da Igreja... Um franciscano com o cinto desapertado.., um agostinho com o cinto de lã em lugar de couro... um carmelita sem cinto nenhum... alterosas vão com tais desmandos as ondas do mar de Tiro...»

Por esses dias, procurei conhecer o famoso mestre jurista Ulrico Zazuis, pai daquele embaixador do duque de Sabóia que eu tinha encontrado em Basileia. Baldados os bons ofícios de Erasmo. Muito trabalho, doente e cada vez mais surdo, respondeu o velho, não valia a pena a visita.

Com tristeza escrevo agora estas linhas. Desde que parti de Compostela até essa Pascoela em que entrei em Friburgo e depois por aí adiante, inimigos de cá e de lá andavam na sombra aferroando em mim de todo o jeito. Pensava eu que, fugindo de Lisboa, deixava para trás os maldizentes e os invejosos. Não. Cobrindo-se agora com a capa de zeladores da fé, conjuravam-se em minha ruína.

Os ares embrulhavam-se por toda a Europa. Aleandro e os seus, vendo o incêndio alastrar, tentavam que não atingisse a Espanha e Portugal. O cardeal ainda se não esquecera de alguma semente vicentina, tão irmã da de Erasmo. Cerravam-se as mentes na estreiteza do dogma. Não resistiriam muito tempo o imperador e a irmã Catarina. O próprio rei João terceiro e o infante cardeal cederiam à intolerância, esquecidos de terem rido às gargalhadas durante cerca de sete lustros com as facécias do histrião da corte. Não tardaria em soprar-lhes às orelhas a untuosidade de João Soares, porta-voz de Aleandro e de Oleastro. O meu Gil Vicente iria pousar a pena e abandonar o paço, antes que lhes viesse à ideia chamuscá-lo no fogo da Inquisição. Mas eu, imprudente, enquanto morei em Friburgo, não atendendo aos sinais anunciadores do que lá viria, continuei o meu trato com os protestantes e dava a conhecer as minhas opiniões de forma demasiado franca. De Portugal o amigo João de Barros escreve-me:

Soa cá que manténs descarado comércio com os protestantes. Não me agrada o que ouço. Eu e os teus amigos andamos receosos. Tem cuidado. A Alemanha é terra suspeita.

Erasmo, defensor da liberdade de cada um, não intervinha, mas um dia falou-me assim:

- Estive com o prelado e teólogos da Universidade. Como sabes, impera aqui rigoroso catolicismo. Estão acautelados contigo. Não te chamaram ainda a contas, dizem, por respeito a mim, de quem és hóspede.

- Desejo apenas esclarecer-me, responder às perguntas que andam no ar e, ao cabo, vão dar a uma só.

- é admirável, meu filho, a tua franqueza aberta, mas carece de prudência. Um deles disse-me até que ficariam tranquilos se tu saísses da cidade.

- Abandonar a cidade? Abandonar-te a ti?

Fins de Maio, eis-me de novo em viagem. Vou à Flandres tratar de meus negócios e ao mesmo tempo a ver se os espíritos se apaziguam.

- Leva-me cartas para os amigos - pede Erasmo.

Eu os irei rever, a Grapheus, a Goclénio, a Réscio, a Nânio e a tantos outros. Em Antuérpia a feitoria já não parece a minha casa, desde que Rui Fernandes a deixou, mas o novo feitor recebeu-me com rara distinção, a governante e a criadagem com alvoroço, perfiladas no átrio à minha chegada com seus aventais brancos e golas engomadas. Escondida atrás de Maria da Luz vejo Lena, os olhos muito brilhantes e as faces afogueadas. Desfaço o cerimonial com parar a cumprimentá-las:

- Maria da Luz, minha boa amiga!

- Tínhamos saudades tuas, senhor. Rodeiam-me com perguntas:

- Vens para ficar?

- Vais-te embora outra vez?

- Oh!

Uma das moças, enquanto as outras gralham, passa os dedos pela macieza do meu gibão.

- Vá, meninas - bate as palmas a governante -, ao trabalho. Dispersam.

Diante de mim, os olhos em lágrimas... - MagdaLena! - tomo-lhe as mãos.

- É bom tornar a ver-te - diz-me num fio de voz.

Também a mim se me enternece o coração há tanto tempo estéril. Nossa poderia ser essa noite, mas preferimos não fazer murchar com carnalidade o perfume da afeição. Na manhã seguinte parti para Lovaina, Bruges, Gand... Quando, em meados de Junho, regressei a Antuérpia com todos os meus negócios concluídos, MagdaLena tinha-se ido embora, não me souberam dizer para onde. Nunca mais a vi.

Desci a Bruxelas e não tardou muito ia de jornada pela Alsácia, a fraldejar os Vosgos rumo a Argentina, a que os Alemães chamam Estrasburgo, Strasse Burg a encruzilhada dos caminhos, conquistada pelos reformadores. Na planície, dentro das muralhas circundadas pelo rio 111, que um pouco adiante se junta a um Reno turbulento, acima dos telhados bicudos do casario cortado de ruas estreitas a agulha imensa da catedral. Não tive ocasião de visitá-la, que não ia de passeio e pouco lá demorei. Chegámos à tarde e, à ceia, na pousada, travei conhecimento com três teólogos evangélicos, de que Erasmo me havia falado, o dominicano Martinho Butzer, conhecido por Bucero, Wolfgang Koepfel, ou Capito, e Gaspar Heid, à latina dito Hédio. Esquecido já dos conselhos de Erasmo, entrei na conversa com a costumada lhaneza.

- Erasmo - dizia Capito - agora no fim da vida recobra a polémica contra os protestantes...

- ... e não tanto contra Lutero mas contra os sacramentários - atalhava Hédio.

- É - levava Bucero à boca a malga de caldo. - Depois das mortes de Zuínglio e de Ecolampádio, virou-se para Argentina, para este velho discípulo que, apoiado por vós, aqui dirige a nova Igreja.

Julguei dever intervir:

- Não é contra vós o combate dele. Sei bem que sois erasmistas. Mas contra a aplicação das suas ideias. Sois mais erasmistas que Erasmo. E, além disso, estais a pulverizar a Igreja.

- A Igreja é que se está a desmoronar.

- Sois vós que, em vez de a limpar, a destruís.

- A de Roma... a do papa...

- Que certezas de doutrina podeis ter? - ia eu usando argumentos que tinha ouvido a Erasmo. - Discordais entre vós: Zuínglio e Ecolampádio contra Lutero e Bugenhagen, Hubmaier contra eles, Farei contra Pellikan. Ou eu me engano ou a vossa divisão vai favorecer o restaurar de uma Igreja mais dogmática e feroz.

- Já não há senão lutar.

Não é que a conversa tivesse especial importância. O costume. Aduziam argumentos erasmistas, com que eu concordava, e zuinglianos, cheios de intolerância, que eu rebatia. Refiro o facto pelas consequências que teve na minha posterior saída de Friburgo e, mais tarde, no processo da Inquisição, pelo peso que trouxe à minha condenação.

A quatro de Julho, ao chegar a Friburgo, Gilberto veio acolher-me à porta de casa com a habitual alegria:

- Bem-vindo, Damião. Fizeste boa viagem? - e entregava-me uma carta de Amerbach: - Há um mês que chegou. Escrevi-lhe a dizer que estavas ausente.

- Obrigado, amigo.

Dispunha-me a subir a recompor-me da jornada, disse Gilberto:

- Está correio prestes a partir para Basileia. Se quiseres aproveitar... Abri-a imediatamente. Gilberto veio com papel e tinta. Sentei-me a escrever:

Gilberto entregou-me a tua carta. Antes mesmo de tirar as botas, peguei na pena a responder, para que esta siga de imediato.

Se ainda desejas duplos ducados, avisa-me. Conservo cerca de vinte, de que poderás dispor como dos meus préstimos. Desejo ser-te prestável dentro das minhas possibilidades.

A minha ida à Flandres, contra o que eu esperava, não veio apaziguar as más vontades a meu respeito em Friburgo, agravadas aliás por intrigas vindas de Portugal a acautelar as autoridades eclesiásticas. O ar era tão hostil que não perdi tempo a decidir-me, pois não só eu podia correr perigo mas alastrá-lo a Erasmo e a sua casa.

- Vou-me embora - anunciei ao meu amigo.

Falámos durante muito tempo sobre o assunto. Por fim ele concordou:

- Espalhar-se-á a notícia de que partirás em breve da cidade e não faltarão vozes, as mesmas certamente que te abocanhavam pela calada, a badalarem a nova por toda a Europa. Os ânimos acalmarão e tu poderás com sossego preparar-te. Agora é preciso traçar o teu destino.

- Voltar à Flandres? A Lovaina?

- Não, não. Afastares-te o mais possível de...

- E porque me dizes isso?

- Por duas razões. Julgarás da pertinência delas. A primeira...

- Não me vais repetir que devo cercear os meus contactos com os reformistas.

- Vou, sim. Sou teu amigo. Far-te-á bem ires para um pouco mais longe deles. Já te esqueceste das intrigas da corte portuguesa?

- O rei é meu...

-... protector? O que não impediu de, por causa delas, teres declinado cargo régio tão honroso.

- Aproveitei o pretexto. O meu desejo era fugir para junto de ti, ter-te como mestre.

- Isso leva-me à outra razão do meu conselho. é necessário agora completares os teus estudos numa universidade.

- ... e sugeres-me...

- ... Pádua. Não vejo outra que reúna os dois itens de que estamos a falar. Eu sei que tu já conheces muito mundo. Tens agora de conhecer a Itália. Escreve para o Colégio Trilingue, a Goclénio, nosso comum amigo. Ele deve conhecer muitos mestres de Pádua e poderá recomendar-te.

Apressei-me a escrever a Goclénio e no fim de Junho recebia dele resposta:

Assim foges de Friburgo, Damião, como do Nilo um cão? Que te poderá dar a Itália inteira que um só Erasmo com mais cúmulo te não fornecesse? Com pesar entendi eu a causa de mudares de morada a ti tão grata. Os deuses superlotes e inferiores percam com castigos exemplares esses crocodilos, hienas e áspides que com línguas peçonhentas te afastam de situação tão desejada e em meio de tantos perigos buscada.

Não tenho em Pádua ninguém a quem te recomende. Se julgas necessitar de recomendação, tens à mão o Lívio do nosso século, que pode facilmente tornar-te recomendadíssimo não só a Paduanos mas a quanto varão douto existe por todo o orbe...

... não duvido de que te hás-de adaptar aos estudos, para que não sem razão, junto do flotentíssimo rei, pareças servir a tua condição, felicíssima como julga o vulgo e por muitos tão apetecida, no amor da filologia e da sabedoria.

Se houver oportunidade, peço-te me dês parte do resto da tua jornada e, se souberes alguma coisa do nosso Resende, nada ouvirei com maior prazer...

Mostro esta carta a Erasmo.

- Não te apoquentes - responde. - Escreverei a Pietro Bembo.

- A Bembo! O amante de...

- ... Lucrécia Bórgia. É só isso que conheces dele?

- Soa por toda a Europa.

- Fraca recomendação seria. Bembo é grande humanista, poeta e historiador, ciceroniano no manejo do latim, pessoa muito influente, foi secretário de Leão décimo, dirige a Universidade de Pádua. Queres mais?

Tranquilizado, resolvo dar conhecimento a Amerbach da minha partida e pedir-lhe esclarecimentos sobre o melhor itinerário:

... A conselho de amigos sou constrangido a alongar-me de Erasmo, o que faço com a maior mágoa. Que a Alemanha por todo o lado é suspeita, escrevem... Irei para Pádua, para onde tenho de enviar bagagem ligeira. Aqui não há mercador que tenha relações com patavinos ou venezianos, nem daqui para lá jornadeiam cocheiros. Creio não faltar desta gente em Basileia. Peço-te me ajudes no caso e te empenhes em saber de algum mercador como se há-de proceder. Por isto te envio este correio, através do qual me poderias informar.

Se por teus bons ofícios eu achar meio de transporte, desejaria saber o dia e se será mais cómodo em mala ou em pacotes pequenos. Ouço que os carros largam a carga em Lucerna e daí é levada a dorso de mulas para Veneza...

Não demorou a resposta de Amerbach. Promete-me mapa com anotação do percurso. Já falou com Bebei e outros. Que é melhor uma pequena mala ou, quando muito, duas. Bebei parte dentro de cinco ou seis dias para Kenipten e terá prazer em ter-me como companheiro num trecho da viagem. É impressor em Basileia e homem culto. E quando é que me proponho partir, pergunta o amigo?

Seria o caminho por Basileia, Constança, Kempten e Brenner, se na companhia de João Bebei, mas outros dizem-no mais curto por Lucerna. Escolho este, com desvio a Constança para saudar Tomás Blaurer da parte de Erasmo. Comunico-o a Amerbach:

Culpa dos correios não teres recebido de pronto resposta à tua última carta. Quando queremos não estão prestes, aparecem quando não precisamos.

A data da partida? Com a ajuda de Deus, pouco antes da festa da Assunção da Virgem. Por Basileia, como aconselhas.

De Bebei nada adianto. A ele ser-lhe-á incómodo esperar tanto tempo, a mim apressar-me...

Na manhã de dezoito de Agosto preparo-me para partir. Erasmo entrega-me a carta de recomendação para Bembo:

- Alvorada a anunciar dia ameno para a viagem - diz-me. Chegou a hora de o deixar. Acompanha-me à porta, seguido de Gilberto. Margarida beija-me chorosa:

- Cuida de ti.

 

 

 

                                                              CONTINUA

 

 

 

Erasmo abraça-me como pai. Sinto que esconde o sentimento. Esforço-me por fazer o mesmo, mas no último segundo não me contenho e beijo-lhe as mãos. Não sei se o verei nunca mais...

A caminho de Basileia com os meus. Na calçada a costumada estropiada de cavalos, mulas, carroças. Temos à nossa frente cerca de quatro jornadas e meia, que a subida para a Suíça não se pode fazer pelo rio, no arrepio da corrente. Ao contrário, ao sabor da levada, é a andadura muito mais lesta. Agora, a montanha espera-nos sinuosa e agreste de ventos gelados, noites em pousadas afogadas nas primeiras neves mas lume de lareira esperta e bom vinho do Reno ou borbulhante cerveja quente.

Dois dias depois de partirmos, quando nos preparávamos para nova jornada um dos moços veio dar o alarme:

- Senhor, senhor! O Mateus...

- Que aconteceu ao Mateus?

- Muito doente, senhor. Quase não dá acordo de si. Um febrão! Corri a vê-lo. Torpor, languidez, perda de vista, úlceras, reconheci a terrível moléstia contagiosa. Não era a primeira vez... morbus gallicus... em Portugal sabia de casos de amigos meus, recolhidos às enfermarias do Hospital de Todos-os-Santos... buba lhe chamavam à espanhola... scabies gallica, lues venérea ou doença serpentina... na índia doença portuguesa, em Portugal espanhola, em Itália francesa... e com estes nomes ela por todo o lado ia matando. Não perdi tempo. Ordenei que alguns da companhia o levassem de regresso a Friburgo e procurassem de pronto os cuidados de um físico. Escrevi a Erasmo a pedir-lhe auxílio. Preocupado, prossegui viagem com os outros e em Basileia, mau grado a solicitude de Amerbach e dos amigos, não me deixava o cuidado. Poucos dias andados, chega-me resposta de Erasmo:

 

 

 

 

Lamento suceder-te essa viagem ao contrário do que havias disposto.

Na tua situação com o maior empenho se haverá Erasmo. Sei o que te devo. Se o teu Mateus não tem o mal francês, de que eu tal como da morte tenho pavor, esta casa está à inteira disposição dele; caso contrário nem lhe valeria estar aqui sem criado especial. Melhor será que até convalescer esteja junto do cirurgião. Não deixarei que lhe falte dinheiro. Como quer que seja, tudo se fará para que se cure bem.

Devem ter levado Mateus ao hospital, pensei. É mais seguro. Continuei a leitura da carta:

Estas duas cartas enviou-mas Tomás Blaurer, a quem saudarás em Constança, se por aí fizerdes rota. É homem probo e membro do senado. : O terem-se tanto atardado no caminho, a culpa foi desse a quem as cometeu Melâncton. Chegaram-me em vinte e dois de Agosto, havias partido quatro dias antes. Andaram a esvoaçar por mãos de muitos, talvez desseladas, como acontece. A mim foram-me entregues pelo mensageiro público de Schaffuse.

Olho as cartas que me são remetidas. Estão violadas. De Melâncton uma, outra de frei Roque de Almeida. Querem ver que o frade...

De casa a arranjar em Pádua ninguém melhor te aconselhará que Anselmo Eforino, talvez até lhe não seja custoso ir contigo a Pádua... Em Bolonha pergunta se ainda é vivo Paulo Bombásio...

Erasmo disse-me que o conhecera em Bolonha em quinhentos e sete. Já lá vai muito tempo...

 

 

                                                                  Fernando Campos

 

 

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