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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SALA DAS PERGUNTAS - p.2 / Fernando Campos
A SALA DAS PERGUNTAS - p.2 / Fernando Campos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Seria o caminho por Basileia, Constança, Kempten e Brenner, se na companhia de João Bebei, mas outros dizem-no mais curto por Lucerna. Escolho este, com desvio a Constança para saudar Tomás Blaurer da parte de Erasmo. Comunico-o a Amerbach:

Culpa dos correios não teres recebido de pronto resposta à tua última carta. Quando queremos não estão prestes, aparecem quando não precisamos.

A data da partida? Com a ajuda de Deus, pouco antes da festa da Assunção da Virgem. Por Basileia, como aconselhas.

De Bebei nada adianto. A ele ser-lhe-á incómodo esperar tanto tempo, a mim apressar-me...

 

 

 

 

Na manhã de dezoito de Agosto preparo-me para partir. Erasmo entrega-me a carta de recomendação para Bembo:

- Alvorada a anunciar dia ameno para a viagem - diz-me. Chegou a hora de o deixar. Acompanha-me à porta, seguido de Gilberto. Margarida beija-me chorosa:

- Cuida de ti.

Erasmo abraça-me como pai. Sinto que esconde o sentimento. Esforço-me por fazer o mesmo, mas no último segundo não me contenho e beijo-lhe as mãos. Não sei se o verei nunca mais...

A caminho de Basileia com os meus. Na calçada a costumada estropiada de cavalos, mulas, carroças. Temos à nossa frente cerca de quatro jornadas e meia, que a subida para a Suíça não se pode fazer pelo rio, no arrepio da corrente. Ao contrário, ao sabor da levada, é a andadura muito mais lesta. Agora, a montanha espera-nos sinuosa e agreste de ventos gelados, noites em pousadas afogadas nas primeiras neves mas lume de lareira esperta e bom vinho do Reno ou borbulhante cerveja quente.

Dois dias depois de partirmos, quando nos preparávamos para nova jornada um dos moços veio dar o alarme:

- Senhor, senhor! O Mateus...

- Que aconteceu ao Mateus?

- Muito doente, senhor. Quase não dá acordo de si. Um febrão! Corri a vê-lo. Torpor, languidez, perda de vista, úlceras, reconheci a terrível moléstia contagiosa. Não era a primeira vez... morbus gallicus... em Portugal sabia de casos de amigos meus, recolhidos às enfermarias do Hospital de Todos-os-Santos... buba lhe chamavam à espanhola... scabies gallica, lues venérea ou doença serpentina... na índia doença portuguesa, em Portugal espanhola, em Itália francesa... e com estes nomes ela por todo o lado ia matando. Não perdi tempo. Ordenei que alguns da companhia o levassem de regresso a Friburgo e procurassem de pronto os cuidados de um físico. Escrevi a Erasmo a pedir-lhe auxílio. Preocupado, prossegui viagem com os outros e em Basileia, mau grado a solicitude de Amerbach e dos amigos, não me deixava o cuidado. Poucos dias andados, chega-me resposta de Erasmo:

Lamento suceder-te essa viagem ao contrário do que havias disposto.

Na tua situação com o maior empenho se haverá Erasmo. Sei o que te devo. Se o teu Mateus não tem o mal francês, de que eu tal como da morte tenho pavor, esta casa está à inteira disposição dele; caso contrário nem lhe valeria estar aqui sem criado especial. Melhor será que até convalescer esteja junto do cirurgião. Não deixarei que lhe falte dinheiro. Como quer que seja, tudo se fará para que se cure bem.

Devem ter levado Mateus ao hospital, pensei. É mais seguro. Continuei a leitura da carta:

Estas duas cartas enviou-mas Tomás Blaurer, a quem saudarás em Constança, se por aí fizerdes rota. É homem probo e membro do senado. : O terem-se tanto atardado no caminho, a culpa foi desse a quem as cometeu Melâncton. Chegaram-me em vinte e dois de Agosto, havias partido quatro dias antes. Andaram a esvoaçar por mãos de muitos, talvez desseladas, como acontece. A mim foram-me entregues pelo mensageiro público de Schaffuse.

Olho as cartas que me são remetidas. Estão violadas. De Melâncton uma, outra de frei Roque de Almeida. Querem ver que o frade...

De casa a arranjar em Pádua ninguém melhor te aconselhará que Anselmo Eforino, talvez até lhe não seja custoso ir contigo a Pádua... Em Bolonha pergunta se ainda é vivo Paulo Bombásio...

Erasmo disse-me que o conhecera em Bolonha em quinhentos e sete. Já lá vai muito tempo...

É de toda a prudência que acerca das seitas não fales nem bem nem mal, como se dessas coisas não cuides nem entendas. Várias são as simulações dos homens. Não é muito do teu interesse se forem trocadas cartas frequentes entre ti e Melâncton ou Grineu. Passa bem, patrono e amigo incomparável.

«Várias são as simulações dos homens», repeti. Erasmo tem razão. É preciso dissimular... meu irmão!

Vai-me cansando de alinhar estas memórias. Deitado no catre, peguei hoje no meu esqueleto. Meti as mãos pelos hipocôndrios e senti-me a arcada das costelas. Com as pontas dos dedos palpei a minha queixada, sob a barba descuidada. Sei agora como há-de rir um dia, debaixo da terra, a minha caveira, depois de arrotado o banquete dos vermes...

No refeitório, a que já me permitem descer, torno a ver o fradezinho que me deu papel e pena para escrever. Sei que é ele por não saber quem ele seja, paradoxo que pareça. Aos outros, com o tempo, vou-lhes conhecendo os rostos, os nomes, frei Inácio do Sagrado Umbigo, frei Rufino Lacrimae Christi, frei Vicente da Santa Preguiça... Este é o único que esconde a cara no capuz. Traz às mesas as caçoilas com feijão e couves. No silêncio geral e no leve roçar das colheres nas malgas da sopa, os estômagos dos frades vão digerindo os piedosos pensamentos que, do púlpito, o leitor recita em toada enfadonha. Na concentração das fomes, ninguém dá conta do sinal que aceno ao irmão, com o indicador um remendar de rabiscos no tampo da mesa. Entenderá ele a mensagem de que preciso de mais penas, tinta, papel?...

Dali a horas, já me sento a escrever à luz do janelo, reboava lá em baixo pelas abóbadas o coro gregoriano...

Em Basileia, voltava-se-me o pensamento ao meu pajem Mateus. Sempre seria o morbus gallicusl Se era, em casa de Erasmo não estava ele de certeza, pela prevenção que o mestre fez na carta. Andava eu tão apreensivo que me decido a arrepiar caminho até Friburgo.

- Voltaste? - admira-se Erasmo.

- Cuidoso de Mateus.

- Não podia ser mais bem entregue. No melhor hospital da cidade, na albergaria da catedral, em cama apartada. Físicos e cirurgiões da Universidade rodeiam-no...

- Posso visitá-lo?

- Não to permitirão. O contágio.

Ainda assim fui até lá. O médico que me atendeu não me sossegou:

- Purgas, clisteres, unguento de calomelanos, fricções e fumigações de mercúrio, salsaparrilha, suadouros de cinábrio, tudo ineficaz.

Ora os senhores doutores! Com tanta medicina, ainda me matavam o moço. A curá-lo como sifllítico e o que ele tinha era um tremendo galicanço.

Lutou dias e noites com a morte o pobre do Mateus.

- Ainda era virgem - lamentava-se um companheiro, receando o pior. - Porque o levámos ao bordel?

Um dia pela manhã Mateus abria os olhos e sorria. Durante a convalescença, não o largavam os companheiros com chufas:

- Eh, Mateus! Por pouco fanavam-te a grila. O cirurgião talhava e retalhava...

- Pronto e repronto para outra me ando eu - respondia.

- Tomaste-lhe o gosto?

- Não será a última vez.

Após o recobrar de forças, partimos de novo para Basileia, meados de Setembro.

Pelo caminho o nosso jogral cantava:

Morbo estranho e desusado pestilência sem igual gafeceu o humano gado por pecado original.

- Eva também pregou a Adão o mal francês? - comentava um da companhia.

- Então o barro de Jeová já vinha sujo.

- Sabe-se lá! .

O virginal Mateus de Vénus no templo entrou, sofreu castigo de Deus e da pissa engalicou.

- Por isso fomos expulsos do Paraíso.

- Aonde foste buscar isso, amigo? - perguntei. - Ao Syphilidis de Fracastório?

- Não, meu senhor. Mais atrás, a um romance trovado de Villalobos, escolar de Salamanca, Tratado sobre las pestíferas bubas...

- Todas as misérias da prosápia humana te caem na alçada.

- Assim é, senhor - respondeu e rematava cantando:

Um mijar turvo sem par cocegão e dor extremos no mais velhaco lugar que no nosso corpo temos...

Seguíamos quanto possível pelas ribas do Reno. Uivava lendas o vento nos abetos e cedros. Pelos tesos e portelas agasalhávamos as orelhas da nortada gélida.

- Que barbeiro!

Descíamos para Constança, de uma clareirl avistámos o lago, comprida folha de prata com negrumes de medo nas sombras das margens que se alongavam da vista. O rio, aliviado dos despenhadeiros alpinos, remansa e desliza para o pélago profundamente cavado. Um pequeno mar que se fez ninho no seio de altas florestas e na coroa distante de serras azul e neve. Em comparação com isto, ia eu pensando, que outra medida do mundo e de Deus devem trazer dos largos oceanos os olhos dos nossos marinheiros?

Ao abandoná-lo festivamente, forma o Reno uma ilha onde se ergue a cidade murada.

Acode multidão de pensamentos. Ontem como hoje? Aqui, há mais de cem anos, se congregou celebrado concílio para terminar com a desunião, extirpar a heresia e reformar a Igreja. Esta é a secular Kaufhaus onde se reuniu o conclave que depôs João vinte e três, levou Gregório doze a abdicar, excomungou e correu com Bento treze e elegeu Martinho quinto. Proscrita a doutrina de Wiclef, João Huss é convocado perante assembleia dos cardeais e condenado. Na praça em frente da catedral não se extinguiram ainda na memória dos homens as chamas que o queimaram vivo. A fogueira pode enfervescer o sangue e tornar cinzas a carne e os ossos de um ser humano. Não lhe queima o pensamento. Um século depois, aqui estão os irmãos Blaurer, Ambrósio e Tomás, seguidores das ideias de Melâncton.

Aluno de Zazius em Friburgo, Tomás estudara teologia em Vitemberga, acompanhou Lutero à Dieta de Worms. Regressado a Constança, ajuda o irmão, prior da abadia beneditina de Alpirsbach, a instituir a reforma. Mais novo que Ambrósio, tinha aí uns quarenta anos quando o visitei. Acolheu-me com polida atenção, logo acalorada ao saber que eu vinha da parte de Erasmo:

- E como está o mestre? Sempre vai escrever contra Lutero?

- Não, quanto sei, mas...

- ... mas...?

-... continuará a criticar a Igreja de Roma, que deseja mais cristã, mais despojada de rituais e dogmas que Cristo não criou...

- Se viesse agora ao mundo, Cristo por certo não seria católico.

- Queres dizer que seria luterano?

- Julgo que estamos mais perto de Cristo.

- Aí, amigo, incide a dúvida de Erasmo e a minha. Desviou o rumo da fala:

- Ouço que Erasmo está muito doente...

Informei-o do estado de saúde do amigo comum. Lamentou que engenho tão poderoso e magnífico tivesse de viver em invólucro tão débil. Depois virou-se para mim:

- E tu? Que faz um cavaleiro português na cova destas montanhas? Industriei-o sobre a minha jornada e, apesar de ser curta a paragem em

Constança, nos dois dias que ali estive hospedou-me em sua casa e levou-me junto de Anselmo Eforino. Mal saímos pela calçada, colocou-se à minha esquerda.

- Que costume é esse? - perguntei.

- Para se honrar um homem tomamos-lhe o lado esquerdo, deixando-lhe o direito livre para sacar do punhal ou da espada se for o caso. Com as mulheres é ao contrário: damos-lhe a nossa esquerda, ficando com a direita livre, a fim de as podermos defender.

Junto de Eforino informei-me da possibilidade de arranjar casa em Pádua e se estava disposto a ser até lá meu companheiro de viagem. Que de momento, respondia, não podia ausentar-se, mas eu não teria dificuldade de alugar casa conveniente, em qualquer pousada me dariam a informação desejada.

Tomás Blaurer acompanha-me a visitar a cidade, o lago animado de barcas com passageiros e carga de toda a espécie, as margens ricas de vinhedos e hortas. Cá de baixo senti no espírito o peso da serrania talhada a pique, o fechamento desses claustros naturais que não deixariam de influir na limitação das paisagens interiores, nos longes e nos pertos que compõem a perspectiva das terras e da vida. Que libertação de seguida, quando, despedidos do amigo, partimos ladeira acima, atingíamos lombas e cumes, os altos das catraias geladas dos Alpes... Estes pensamentos iam-se fortalecendo do passo que, progredindo em nossa caminhada, entrávamos na região dos lagos, poças de água que as chuvas, o degelo e os mil regatinhos nervosos, engrossados em ribeiras e avantajados em rios, alimentam. E vê-los cá do alto, dos picos de Zurique, da portela de São Gotardo, alturas onde se entende e experimenta havermos sido criados para destinos mais sublimes! E que súbito desânimo e angústia por verificarmos que temos pés pregados ao chão e nos faltam as asas!... Não há como a noite, contemplada de hospedaria situada junto das estrelas, para se nos acordar a ideia de que não passamos de seres homiziados, perdidos na poeira do cosmos...

Lentamente, porém, se recupera a condição humana e a alegria de viver, com descermos dos gelos da metafísica e das serras, a encher o peito de ar ainda fresco mas mais ameno.

Vale de Leventina, cavado pelo rio Ticino...

- Que torre é aquela à nossa esquerda? - pergunto ao guia.

- Biasca, signor.

Só lá vão empoleirar-se as aves e os meus pensamentos.

... Belinzona, cidade dos três castelos, encruzilhada de estradas dos Alpes, no alto da colina o pequeno Castello de Sasso Corbaro, vale e montanhas... pousamos aqui, perto da Chiesa di Santa Maria delle Grazie e eu dou graças pelo bom vinho que me aquece o sangue...

... Cadenazzo... e dez léguas de pinheiros, rododendros, ciprestes, robles, céu azul e azaleas até Lugano com seu lago... Para sul, atravessa-se o espelho de água numa ponte, deixa-se à esquerda Campião, arribamos a Chiasso e três milhas adiante, fins de Setembro, estamos em Como.

Tencionava dirigir-me a Pavia a entregar a André Alciato as cartas de Amerbach e de Erasmo, mas a notícia da morte de Clemente sétimo, que nos chegava por núncio alvoroçado, tornava pouco seguro andar por ali, o que me fez atalhar caminho para Pádua.

Quem Vem com os olhos afeiçoados às linhas verticais, agudíssimas, dos telhados, torres, píncaros, flechas, abóbadas, pórticos, fachadas das cidades do Norte, nota de pronto como o românico e o gótico vão dando lugar a novas formas repousadas desta nova maneira de construir, em que as linhas se deitam humanizadas. Em Bérgamo, cintada de muralhas assentes na colina, o gótico do Palazzo delia Ragione - como gosto deste nome! - pode opor-se a novidade da Capella Coleoni, erigida pelo condottiere veneziano Bartolomeu Coleoni para lhe guardar o túmulo, mármores policromos de rara pureza. Passado o lago de Iseo, após quatro léguas surge Bréscia. Rica em monumentos, chama-me a atenção o contraste entre as ruínas do Templo de Vespasiano, no cimo do monte, e, na Piazza delia Loggia, um palácio em construção, onde trabalham Sansovino e Paládio. Dos espadões do castelo arrepiam-se os olhos na agrura dos Alpes e descansam no mimo da planície. Costeando o lago de Garda, a península de Sirmião, terra de Catulo, o castelo, as ruínas romanas e, lá mais para a frente, ao sopé dos montes, Verona, nas margens do Ádige, que a atravessa. Beleza de cores, o verde dos ciparissos, o vermelho-escuro dos tijolos, o marfim das pedras, os mármores brancos, a harmonia das artes de diversas épocas, a arena e o teatro romanos, a ponte e as muralhas escalígeras de onde se avista, na planície, aí a sete léguas, a cidade de Mântua, quem poderá esquecer Verona? Ademais poetizada pela lenda que Luigi da Porto escreveu dos amores de dois jovens que o ódio das famílias rivais estorvou até à morte. Ou exornada pelos brancos jesuatos de São Jerónimo, que não dizem missa, não pregam, são ignorantes, mas excelentes destiladores. O povo chama-lhes «os irmãos da água-ardente».

Flaqueando o Ádige, um dia de manhã cedo saímos de Verona e, ao cabo de dez léguas, entrámos com chuva em Vicência. Aproveitámos o mau tempo para o habitual descanso das montadas, antes de, por fins de Outubro, nos pormos de novo à estrada, caminho de Pádua, aonde chegámos à tardinha.

Está a cidade assentada em formosa chã de trigais, vinhedos e pomares, regados pelas águas do Brenta, do Baciglione e do Ádige. Tosam bucólicos rebanhos de ovelhas e cabras a eterna fome, ao som da melopeia eterna da flauta do pastor refastelado à sombra da faia, brincam cavalos e potros ao longe na campina, sob os montes Eugâneos...

- Boas águas termais - dizia-me o guia.

Para lá da muralha, cúpulas, campanários, domos, ciprestes a erguerem-se acima dos telhados. Metemos por uma das portas, ruas apertadas, tortuosas, praças largas... a catedral, mosteiros, igrejas... um canal com quatro pontes... comércio de tecidos, telas, couros, licores, louça e vidros, cordoaria... ah! instrumentos de música! o atractivo dos madeiros, o primor dos adornos e do polimento, o brilho dos metais... a Universidade... a basílica de // Santo...

- ... nosso conterrâneo, sabias? Admirado o meu guia.

Esta é Pádua, cidade que muito preza a sua independência e liberdade. Aqui nasceu Tito Lívio, não posso deixar de pensar, eu que desse passo a uns anos deveria ser cronista do reino.

- Para ti só se for um palácio - disse Splinter.

Sorte a minha! Acenou-nos albergue a tabuleta e, ao entrar, enquanto os meus pajens tratavam da acomodação, dirigia-me eu, átrio dentro, à procura do estalajadeiro. De dois homens que aí conversavam destaca-se-me Splinter van Hargen de braços abertos:

- Mas tu aqui? Caro Damião!

- Splinter!

- Santo Deus! Gois amigo! - abraçava-me.

- Que longe eu era...

- Os nossos tempos de Lovaina!... Que te traz a Pádua?

- O estudo, amigo.

- Julgava-te em Friburgo, hóspede de Erasmo.

- Eu te contarei. Agora, acabado de chegar, vou albergar-me aqui até... Preciso de arranjar casa. Sabes de alguma?

- Para ti só se for um palácio - ria Splinter.

- Qual palácio! Uma casa modesta, própria de estudantes.

- O tonel de Diógenes - gracejava Splinter.

- Não digo tão pouco, mas contentar-me-ia com uma pequena casa cheia de verdadeiros amigos.

- Como a de Sócrates.

- Isso. Uma casa «filosófica».

- Também eu ando à procura de uma.

- E já encontraste?

- Disso falava com o nosso hospedeiro.

- Gabriele, signor, per servirte - faz vénia o homenzinho gordo, baixo, face untuosa, numa fiada de arreganho branquíssimo.

Erasmo, ao despedir-se de mim, mais uma vez me recomendava que escolhesse casa conveniente ou, melhor, um contubérnio, morada e mesa comuns com escolares franceses e alemães de estirpe nobre. Que isso mesmo era o que, na carta, pedia a Bembo me ajudasse a procurar. E eis que logo se me depara um amigo tal com quem poderei escolher coabitação condigna. Não o via desde Lovaina, haviam dobado bem dois anos. Aqui está. Abraço-o. Alto, espadaúdo, cara quadrada sardenta, cabelo cor de cenoura, sorriso cândido, católico firme como toda a família.

- E tua irmã?

- Uma mulherzinha. Se a visses!

- E tu? Vens...

- ... completar minhas humanidades e a teologia. Digamos que preferi uma universidade menos conturbada - explicava. - Além de que estou mais perto de meu mestre Cristóvão Madruzzi.

Informados pelo signor Gabriel, caminhávamos dias depois sob as arcadas de uma rua estreita em direcção à Igreja decanta Sofia, a visitar moradias, encontrámos Joaquim Polites, também nosso antigo companheiro de estudo e, como nós, à procura de casa. Joaquim Burgher, isto é Burguês ou, à grega, Polites, natural de Ter-Goes na Zelândia. «Somos irmãos», gostava ele de advertir. «Eu sou de Góes e tu também!» Eu respondia-lhe que Góes e Gois, além da distância das duas terras, eram nomes de tão distantes pronúncias. Depois de Lovaina havia frequentado em Paris a Sorbona e agora vem para Pádua cursar Medicina. Não ficará por aqui, já que acrescenta ao seu interesse pelas leis, pela cirurgia e a teologia o ser poeta e músico. O nosso grupo não coincide nos sentimentos religiosos, mas isso não bulha com a amizade. Splinter é católico sem dúvidas, Polites interpreta Erasmo de modo alargado e simpatiza com os reformadores, eu, cheio de dúvidas, não sei o que sou. As artes, o latim, a música e até o discutir as nossas discrepâncias cimentam-nos a harmonia.

Sem me apressar a procurar a quem vinha recomendado, aluguei casa que, não sendo palácio, é muito boa. Arcadas ao rés da rua, como em muitas da cidade, loggia no primeiro andar e por cima mais dois pisos e sótão. Durante as primeiras semanas não houve senão tempo para o arranjo e foi todo um rebuliço de carpinteiros e outros mesteirais e fornecedores, o aparelhá-la de mesas, cadeiras, camas, armários, aparadores, contadores, martelar de estantes para os livros, o acomodar a sala da música e a disposição dos quadros nas paredes, o estender dos tapetes a enternecer o chão. Num intervalo de descanso, com o mensageiro à espera, escrevo dois bilhetes, um para Erasmo, outro para Amerbach: cheguei bem; o arranjo da casa não me deixa tempo para pôr em dia a correspondência; desculpem os amigos, escreverei depois com mais sossego e mais espaço... E volto ao trabalho com a ajuda dos companheiros. Dos serviços, pessoal, copa, cozinha, lenha, o amanho das roupas, o estábulo e tudo o mais, se encarregaram os meus rapazes.

Fins de Outubro, acabadas estas tarefas, com a arrumação e método a que me habituara nas funções da feitoria, dispus o meu calendário, não sem antes meditar como é perda de tempo para um humanista ter de deixar o mediato pelas ninharias do imediato. Curiosos e vários os tempos da nossa vida! Quando agora lanço atrás a memória e dou comigo a fazer o cômputo dos tratos de minhas peregrinações, surge-me concreta essa realidade. Cerca de quatro meses e meio que passei em Friburgo com Erasmo e obra de quatro anos da minha estada em Itália, que diferente medida e alcance! Aquele pouco, se assim posso crer, modelou-me e tornou-me mais seguro e claro o pensamento; este muito, vieram aí ao meu encontro factos externos que me assaltaram, uns a golpear-me o ser de feridas não esperadas, a avisar-me de que a juventude é frágil, outros a preparar-me para alguma futura glória e outros ainda a anunciar-me esta desgraça final em que me encontro. E até a morte, para nada me faltar ao tempero da alma, começou de requebrar a sua ronda macabra.

Os receios de que o falecimento do papa Clemente viesse a causar perturbações pelas cidades de Itália esvaneceram-se. Alexandre Farnèse subiu ao trono papal com o nome de Paulo terceiro, a treze de Outubro. Pádua é alegre, palradora, cantante. De início sentia-me agradado do que me rodeava. A minha casa enchera-se, tal como desejara, de amigos. Além de Splinter e de Polites, outros vieram. Willinger de Schoenenberg, o filho daquele Jacob Willinger que havia construído em Friburgo a casa destinada ao imperador Maximiliano segundo, que dela nunca chegou a servir-se, e afinal veio a ser ocupada por Erasmo. Christoph von Stadion, o admirador de Erasmo, descendente de família da nobreza alemã emigrada para Bolonha. Há-de chegar a bispo de Augsburgo e ser favorável à Reforma. Dedicou-lhe Erasmo o Ecclesiastes. Joannes Paludanus de Calais, que estudou Direito em Lovaina em vinte e cinco e agora vem terminar seus estudos. Primeiro vêem em mim o discípulo de Erasmo; depois tomam-me por quem sou: um nobre português, rico, viajado, com amigos importantes por toda a Europa, de ambas as facções, católicos e protestantes, um humanista, um músico, um embaixador, e in immo pectore, na frágua do coração, elegem-me seu anfitrião.

Com a minha natural aptidão para me relacionar, não tardou muito que fizesse aqui novos conhecimentos e duradouras amizades. Entrava Novembro de céus embrulhados e ventos soprados das neves dos Alpes, dirijo enfim os meus passos para a Universidade. Dois fitos. Visitar Bembo, a entregar-lhe a carta de Erasmo, e inscrever-me como escolar.

De um lado e outro, sob o arco da entrada, dois archeiros, o conto das alabardas junto aos pés, a lança um pouco afastada dos ombros. Librés com galões dourados, calças tufadas até aos joelhos, meias brancas a tornear a bochecha da perna, sapatos de fivela prateada, na cabeça o gorro veneziano. Hieráticos, deixam passar entre si os escolares.

- Desejava falar com o Reverendíssimo Pietro Bembo - dirigi-me a um deles.

Perfilou-se:

- O bedel. Aí dentro. Primeira porta à esquerda.

Caminhei, saí a uma grande claustra que circundava um pátio interior, virei à esquerda e parei em frente da porta. Entreaberta, bati.

- Avanti.

Sentado à escrivaninha um homem dos seus cinquenta anos:

- Que desejas? - olhou-me dos pés à cabeça, estranhando a vestimenta.

Disse-lhe ao que vinha.

- A bondade de me seguir - levantou-se.

Alto, cabelo grisalho quase rapado a coroar a calva, nariz adunco, cara adiposa, papada sobre a gola de folhos. Costas direitas como tábua, a constrastar com a curva que do peito disparava pela barriga proeminente e ia morrer no baixo-ventre, de perfil parecia um arco de tiro. Labita agaloada nas bandas e punhos, calça de cetim pelo joelho, meia justa, chapins de fibula de ouro.

Metemos por uma comprida galeria de abóbada de sarapanel, de arcos entrecruzados, as paredes ornadas de medalhões com os nomes de mestres e alunos ilustres e nichos com estátuas de mlrmore que simbolizam as ciências e as artes. Passamos um portal lavrado, a que se sobe por quatro degraus, encimado pelos dizeres AULA MAGNA, e ao fundo paramos junto de uma porta.

- Espera aqui - diz o bedel. - Eu levo a carta a Sua Reverência. Entrego-lhe a carta. Ele entra e fecha a porta. Fico à espera. Daí a nada a porta abre-se:

- Mas, senhor cavaleiro, que grata surpresa! Entra, entra. Carta de Erasmo, trazida por tão nobre mensageiro...

Atrás, por cima do ombro de Bembo, o rosto gordo do bedel sorria. Um homem feliz o bedel signor Cruce. Vejo com olhos benignos a pequena vanglória de quem conseguiu na vida um delgado poleiro e se sente feliz por roçar as vestes dos grandes e ter abaixo de si uns quantos pobres subordinados. Esta minha disposição de espírito destina-se, ao cabo, a encobrir-me. Também eu alimento vaidadezinhas. Mas naquele tempo era muito novo para meditar em prosápias que tinham lastro vindo de mais longe e de mais fundo.

Pedro Bembo é homem dos sessenta anos, extremamente desvelado de sua pessoa, no pentear, no esmero do vestir, no polido das unhas. Alto e magro, sorriso fagueiro no rosto comprido de nariz afilado, sob a barba que embranquece, fala vigiada na forma e no conteúdo. Tenho diante de mim um palaciano, vivido e cortês, agradado das mulheres e por elas amado. Não me admira ter tido, na força dos trinta anos, ajuntamento galante com Lucrécia Bórgia no intermezzo de dois casamentos da célebre dona. De outras aventuras do género, ficaram-lhe três filhos que traz à sua guarda, sem no entanto os reconhecer, para não criar embaraço à pessoal ascensão eclesiástica. Terá ainda de esperar cerca de um lustro para ser proclamado cardeal.

- Conheço - dizia-me - alguns teus conterrâneos. Em Nápoles, já lá vai um tempo, no palácio do marquês de Pescara, encontrei o vosso poeta Sá de Miranda. Estávamos eu, Ariosto, Castiglione e outros quando nos foi apresentado pela senhora marquesa. Falámos do soneto e da canção de Petrarca, dos tercetos de Dante, das éclogas de Sanazzaro, da oitava-rima de Bocácio e Policiano, que sei eu. Dá-me a honra de ser meu amigo André de Resende... E agora tu...

E agora eu... se bem desejava conhecer a ideia com que de mim Bembo ficara, não demorou muito a sabê-lo. Dias depois, recordo com nitidez a data, onze de Novembro desse ano de trinta e quatro, batia-lhe eu à porta do scriptorium, mandou-me entrar. Encontrava-se acompanhado de um outro professor da Universidade. Sentado à secretária, acabava de polvilhar de areia uma lauda recém-escrita.

Entra, entra, Damião. Apresento-te um dos mais doutos humanistas da nossa era, Lázaro Bonamico.

Cumprimentámo-nos.

- Bembo já me confiou quem tu és - disse o professor.

- Acabo de escrever a Erasmo - atalhou Bembo - em resposta à carta que tu me trouxeste. Falo de ti. Queixo-me de que tu...

- Cometi algum erro?

- Erro? Não, por Deus!... - e vendo a minha perplexidade e sorrindo: - Pus à tua disposição o que em mim houvesse que te fosse útil e tu, até agora...

- Não queria incomodar-te.

- Incomodar-me! Oh, Damião! Vamos corrigir esse excesso de modéstia, sim?

Matriculado na Universidade, comecei a assistir às lições de Lázaro Bonamico e iniciava um período de intenso labor, quando, por meio de Dezembro, com a vinda de correio de Portugal me chega o prometido relato do embaixador Zagazabo sobre a fé e os costumes dos Abexins, a fim de, como havíamos combinado, eu os trasladar em língua latina. Papéis assinados de Abril, imagino que tenham andado errantes à minha procura pela Flandres, Friburgo, Basileia, até darem comigo em Pádua. Mas, a enegrecer estas agradáveis notícias, chega-me também um pequeno bilhete de amigos a informar-me do falecimento, a sete de Novembro, do infante Fernando. Ainda hoje me dói a mágoa que então senti. Nessa altura não podia adivinhar a medida de tão funesta tragédia, mas não tardou muito que, adiante, viesse ao meu conhecimento ter sucedido a morte do príncipe entre a dos filhos e a da mulher, putrefazendo-se na tumba, em curto espaço de um mês, casa tão nobre. Arrepiado de pavor, murmurava o povo que fora castigo do Céu, por ser aquele um casamento maldito. Guiomar Coutinho não devera ter casado, que a furto o havia já feito com João de Lancastre, marquês de Torres Novas, o neto por bastardia de el-rei João segundo.

Servia o desgosto para me dedicar mais ao estudo, que ocupava a maior parte dos meus dias, embora eu e os companheiros o temperássemos com sessões de música e canto, a que não raro Bembo e Bonamico vinham assistir e o bispo de Trento, Cristóvão Madruzzi, que, sempre que descia a Pádua, não se inibia de nos acompanhar. Haviam-se tornado meus amigos e, vendo-me trasladar para latim o relato de Zagazabo, encorajavam-me a que divulgasse pela Europa os feitos dos Portugueses no Oriente, de que lhes chegavam ecos de épica ressonância. Sobretudo Bonamico. Tínhamos estudado a oratória de Cícero, entrámos a ler Horácio, Virgílio e outros poetas. Por fim levou-nos ao estudo de Salústio e Tito Lívio.

- A história - explicava - já Marco Túlio a encarecia. Mestra da vida. És português. Mergulha as mãos nos feitos dos teus patrícios. Sairão cheias de matéria nova tão grandiosa como a dos antepassados.

Calava em mim conselho e estímulo, que vinham ao encontro de uma como tácita intenção de há muito em meu pensamento agitada. As obras da nossa gente, a grandeza e variedade das gestas, o achamento de ilhas desconhecidas, de mares, climas, estrelas não suspeitados, ah! se de novo desabrolhasse um Homero, sem empeço poderia das coisas lusitanas tirar argumento, não fabuloso mas real, de uma Ilíada e Odisseia. Mal sabia eu então que esse Homero português por esse tempo já era nascido e haveria de ser meu amigo em muito particulares sucesso^ da minha vida e dar-me-ia a ler o seu poema.

- Seguirei o caminho que me apontais - garantia eu a Bembo e a Bonamico. - Deixai que junto de vós apure mais o meu latim. Não posso desperdiçar a lição de mestres da mais castiça latinidade.

- Eu bem me esforço - virava-se Bonamico rindo para Bembo -, por limpar o latim deste bárbaro, como músico afina o instrumento. Tem sido tarefa difícil, mas creio que o vou conseguindo. Vê-se que foi discípulo de Erasmo.

Cante! Utinam Quem me dera chegar-lhe aos calcanhares.

Eu compreendia o remoque. Havia muitos anos que Erasmo sustentava controvérsia com os chamados ciceronianos. Ali estavam dois dos mais ilustres. Bonamico, cinquentão entrado, humanista de renome, autor de clássicos carmina, antigo aluno de Pomponazzi, tinha chegado, quatro anos [passados, de Bolonha, onde erguera a bandeira filológica contra o meu (amigo de Friburgo. Bembo era um fino poeta de terso estilo e apurado i gosto e a sua fama não era menor que a de Bonamico. Eu tinha vindo cair no próprio seio do ciceronianismo e começava a tomar-lhe o gosto. Já via até defeitos de barbarismos e solecismos em Erasmo. No meu espírito todavia chocavam-se a elegância de uns com a fria e séria argumentação do outro, que ambas eu conhecia. Lembrava-me muito bem das conversas havidas em Friburgo entre mim e Erasmo sobre o assunto: - Dizem que escrevo latim bárbaro. Castiglione, por exemplo. Respondo-lhes e chamo pedantes aos italianos, como quem diz pedagogos baratos, mestres-escolas, que pretendem limitar o latim ao estilo e ao vocabulário de Cícero. - Não gostaram.

- É bem de ver. E muito menos que os acoimasse de pagãos. A língua tem de acomodar-se às necessidades da vida moderna. Como te poderias haver em teus tratos de feitor e embaixador por essa Europa, Damião, se tivesses de usar apenas o latim de Cícero? Procuro que o latim seja a língua franca da Europa. Para tanto, terá que se ensinar uma dicção comum, uma gramática alargada a toda a literatura latina pelos tempos fora, autores da idade argêntea, da patrística, humanistas actuais, que não rejeitem introduzir-lhe neologismos segundo as novas realidades do saber e das artes, - Escreveste sobre isso.

- Um latim vivo, que venha remediar o desentendimento humano de Babel. Eles falam e escrevem um latim morto.

E, com aquele seu jeito zombador e brincão ao canto da boca, punha-se a caricaturar:

-Já deste conta do que poderá acontecer? As verdades cristãs expressas em termos pagãos! E de rir. Deus Pai será Júpiter Optimus Maximus; Deus Filho, Apoio; a Virgem Maria, Diana... ah, ah, ah!... o papa, flamen; os cardeais, patres conscripti, os bispos, procônsules... e as cartas não podiam datar-se do ano do Senhor, anno Domini... Ouvi em Roma um sermão do género.

Mas eu conhecia também a réplica dos ciceronianos e sabia que o meu Erasmo não tinha inteira razão.

- O latim deve restringir-se à Igreja e, quando muito, ao Direito dizia Bembo.

- E às humanidades - avançava Bonamico.

Estávamos em casa de Lázaro e encontrava-se aí connosco o sacerdote inglês, exilado por causa do rei Henrique oitavo, Reginaldo Polé.

- O dia-a-dia - explicava Bembo - deixemo-lo às línguas nacionais de cada povo, que estão cada vez mais a reclamar o seu estatuto.

- Até na Igreja e em coisas de religião, não sei se... - meditava Lázaro. - Não avançou Lutero com a tradução alemã da Bíblia?

- Terás razão - disse Bembo.

- Olha como cresce e se alarga o uso da língua florentina na imitação de Dante, Petrarca, Bocácio...

- Talvez venha um dia, não sei quando - acrescentava com tristeza Bonamico... mas Polé interrompia-o, adivinhando-lhe o pensamento:

- ... a própria Igreja tenha de permitir que os fregueses entendam as palavras que o ministro diz na missa.

E eu sentia que, de certo modo, Erasmo estava a perder a batalha.

Recebo notícias de Friburgo. Segismundo Gelensky dedica-me as suas Anotações a Plínio. Grande honra. O próprio Erasmo mo dá a saber. Escrevo a um e a outro. A Erasmo informo-o da minha intenção de tomar Bonamico a meu serviço pessoal e do desejo de amigos seus e meus verem publicado o compêndio de retórica que ele para meu uso apontou. Não demorou a responder-me e a sua carta veio entristecer-me o início do ano de trinta e cinco. O meu amigo está doente. Sinto-lhe a febre na letra incerta e a respiração custosa no arfar curto das frases. Não concorda com a minha ideia de contratar Bonamico para lições ao domicílio e me secretariar:

Não sei se será conveniente onerar a Lázaro, de tanta idade e autoridade, com tarefas domésticas. Mais te quadraria pessoa jovem que te exercitasse em casa e te corrigisse os escritos. Deves honrar os estudos para que por sua vez eles te honrem. Em Itália não é vergonhoso até os mais velhos assistirem às lições públicas.

Se fosses meu inimigo mortal, nada de mais hostil poderias fazer que consentires na impressão das folhas que só para ti anotei. Vela por que isso não aconteça, em grande desdouro do meu nome.

Dá mil saudações a Pedro Bembo. Apraz-me que seja teu amigo.

Desde o Natal que estou gravemente de cama. A inclemência do clima não me deixa respirar. Esta carta no leito a escrevi penosamente, semivivo.

Semivivo! - pensei, com a carta na mão. É de pai ter-se esforçado a escrever-me, estando de cama. Receio que isto seja o prenúncio do fim-

Em meados de Abril, o desvelo do estudo resulta como da primeira vez em Lovaina. Voltam a embrulhar-me exalações saturninas e a melancolia apodera-se de mim. Tenho vertigens, latejam-me as fontes, choram-me os olhos. De noite, dolorosas crises de erecção, solução, sonhos molhados. Fruto, também, do prolongado jejum da carne? De parecer que sim, o médico:

- Arranja mulher que te amanhe, rapaz. Se não quiseres casar, tu és rico, nobre, frequentas os serões dos senhores. Não te faltarão formosas donas. Vós os estudiosos perdeis o tempo com teorias. O amor foi a melhor coisa que Deus criou. Um capo lavoro. Eu, se não tivesse de ganhar a vida, não fazia outra coisa...

Verdade é que sinto necessidade de refastelar o animal do corpo, mas, desde o caso do meu pajem Mateus, tenho repulsa pelas mulheres vulgares que se alugam nos bordéis. Terá razão o médico. Na minha posição não me seria difícil aspirar a tálamos mais isentos de doença e alcovas perfumadas com a picante mandrágora da galantaria de damas casadas, que aproveitam estarem os maridos ausentes nas guerras. Impedia-mo a saudade da frescura e amor intrínseco de MagdaLena, que eu então não sabia se alguma vez tornaria a encontrar. Resolvo sair a viajar. Desolação dos amigos:

- Aonde vais?

- Vais deixar-nos?

- Ficamos órfãos!

- Vou a Veneza andar de gôndola. Vou a Roma visitar o papa. Vou a Nápoles ver fumegar o Vesúvio como Plínio...

Nos princípios de Maio ponho-me a caminho. Uma segunda-feira formosa, quente, caminhei com a minha comitiva ao longo do Brenta, na planície de seara e vinhedo, pela sombra de salgueiros e olmeiros, buxos, vidoeiros e faias. Era a estrada ladeada de lindas vilas dos senhores, como a dos Contarini, que por ali as mandavam construir para vilegiatura. Cerca de nove léguas adiante chegámos a Fusina, ao canal que impede que as areias do rio se depositem na laguna de Veneza. Os barcos acostam ao cais, são erguidos por meio de guindastes e cadernais girados à força de cavalos, colocam-nos sobre rodas numa prancha de madeira de onde deslizam para a água limpa de sedimentos. Foram duas léguas de gôndola ondulante como o próprio nome, até aportar a Veneza. O ar da maresia parece que me fez bem, que as dores de cabeça desapareceram.

Anda-nos a imaginação adiante da fama, de jeito que, de tanto nos apregoarem a toda a hora maravilhas de uma coisa, ao chegarmos a vê-la com nossos próprios olhos sofremos desilusão. Assim me aconteceu com Veneza. O Grande Canal, o Rialto, o Arsenal, São Marcos, o Paço do Doge visitei-os como se já lá tivesse estado, sem surpresa. A afamada beleza das mulheres não a encontrei. Comércio, de amor, isso sim, para alegria dos meus rapazes e dos senhores que as sustentam, de modo que podem comprar seus arreios de princesas. Vida cara. Andar de gôndola é agradável. Cavalos não são aí precisos. Mais interessante foi o travar conhecimento com o editor Paulo Ramúsio que está publicando Juvenal, Pérsio, Plínio, Sanazzaro... A cidade da água é húmida e insalubre, é de ver. As vertigens voltaram-me. Não demorei aí muito tempo e parti caminho de Ravena.

Seria longo, e não viria a meu propósito, descrever com minúcia a minha peregrinação a Roma, por Siena, Viterbo, Ronciglione e entrada pela Porta dei Popolo, e depois a minha descida a Nápoles, por Frosinone, Cassino e Cápua. Não me sinto já com forças para isso e chamam-me sucessos mais concernentes ao fundo mistério que rodeia a minha vida. Naquele tempo, em minha juventude e prosápia, mal atinei em factos de que agora, neste balanço, tiro exacção. Direi de raspão que, por toda esta Itália por onde passei, o luxo dos poderosos, nobres e eclesiásticos, esplendoroso de certo, contrasta com a miséria do povo. Pelas ruelas daquelas cidades e aldeias cruzei muitas vezes com a velha chupada e andrajosa da comédia antiga, que regressa das compras resmungando a magreza das moedas, ou com o avarento de Plauto que rezinga a careza da vida...

Vento aã macellum rogito pisces...

Venho ao mercado. A quanto o peixe? Indicam,

caro. O borrego, caro; cara a vaca; vitela, atum, porco, tudo caro.

E tanto mais caro quanto eu não tinha cheta.

Saio dali irritado, que nada há que eu possa comprar.

Mas àqueles imundos todos fiz um manguito...

... com o lavrador, à porta da cabana, desencantado da colheita que quase toda vai para o dono das terras. Já não era a questão religiosa do luxo da Igreja de Cristo, criticado por Erasmo e muitos outros e tantas vezes matéria de conversas entre mim e os meus inúmeros amigos de toda a Europa. Era realidade mais angustiosa que não sei se alguma vez os homens acabarão por resolver. A pompa do papa é tanto mais chocante quantos mais mendigos remelem indigência nos portais dos templos.

Valha entanto a verdade que se me apegaram aos olhos aqueles longes azulados de neblina, aquele véu de cinza e sol que amacia a paisagem, os fusos verdes dos ciprestes, as umbelas acolhedoras dos pinheiros mansos que tutelam com a sombra ruínas antigas à beira dos caminhos.

Em Bolonha soube que Paulo Bombásio tinha morrido já lá vão anos, em Maio de vinte e sete. Hei-de informar Erasmo, que me pediu soubesse do amigo, de quem não havia notícia desde que saíra de Itália.

Em Roma solicitei audiência ao pontífice. O cardeal secretário leva-me a visitar o papa.

- Sua Santidade - vai-me ele dizendo enquanto caminhamos por aquelas espaçosas galerias do Vaticano -, deseja, antes de abrir concílio ecuménico, que se façam todas as tentativas para promover a unificação da Igreja, lançar uma ponte de concórdia entre as diferenças de dogma.

Paulo terceiro estava sentado em seu cadeirão de braços, a murça de arminhos sobre os ombros curvos, a cabeça calva inclinada, olhos vivos, rosto e nariz compridos, nuvem de barbas brancas sobre o peito, as mãos esguias nos joelhos, sobre a batina branca, a jóia do anel a faiscar no anelar direito. Ajoelhei a beijar-lho.

e o seu rei

- Um ilustre português, dizem-me. Prezo muito Portugal e o seu rei João. Nação fidelíssima.

A fala derivou para outras nações...

- ... tão transviadas! - lamentava-se o papa.

- Tenho viajado algum tanto pela Europa - disse eu, contando-lhe das minhas viagens como legado do rei de Portugal. - Conheço Lutero e Melâncton e outros protestantes...

- Mas és católico - interrompeu-me vivamente, a dúvida no olhar e no acento.

O cardeal murmurou qualquer coisa ao ouvido do pontífice, que olhou para mim, enquanto ciciava ao bispo:

- Sim, será boa ideia - e virando-se para mim... mas eu já estava a responder:

- Sou católico tal como o meu mestre e amigo Erasmo de Roterdão.

- Erasmo, hem? Escrevi-lhe em Março a oferecer-lhe o capelo cardinalício. Levou-lhe daqui a carta o padre teólogo Luís Bar. Ainda não tive resposta.

- Não terá havido ainda tempo de chegar correio de tão longe ponderou o secretário.

O papa Paulo fez leve aceno de cabeça e continuou a dirigirse-me:

- Um católico muito censor, estou a ver.

Sorri-lhe. Falei-lhe dos Abexins, da Legatio, da tradução que tinha em mãos do relato do embaixador Zagazabo e rematei:

- Julgo que necessita de ajuda essa gente cristã rodeada de nações infiéis.

Voltou à colação a desejada união do povo de Deus e a audiência terminou.

No Vaticano encontrei-me ainda com Aleandro. Lembrava-se de mim, pela má ideia com que ficara em Bruxelas aquando da representação do Jubileu de Amores. Ficou admirado por me ver sair com o cardeal secretário de uma audiência com Sua Santidade:

- Mas afinal, Damião...

- Afinal, meu caro cardeal, eu sou mais católico do que tu.

Riram-se e os três fomos conversando palácio fora. Continua um espírito fechado que pretende acabar com os protestantes a ferro e fogo. É uma pena a cegueira destes sacerdotes.

Ia partir um núncio de Aleandro com correio caminho do Norte.

- Queres aproveitar? - perguntou-me.

Escrevi a Erasmo, a Amerbach, aos amigos de Pádua. No dia seguinte, manhã cedo, parti para Nápoles onde me demorei pouco por via do calor intenso que me atiçava as dores de cabeça. De qualquer maneira não deixarei de anotar o sentimento que me tomou ao ver da azulada baía, ao longe, na outra banda, a coroa do Vesúvio de onde se esfumava fino vaporzinho esbranquiçado. Recordei as palavras de Plínio, o Moço, a seu amigo Tácito:

Uma nuvem se erguia que semelhava na forma uma árvore como o pinheiro...

Recordando esse relato horrível, olhei em redor o sopé da montanha, que vinha morrendo em planície até ao mar. Por ali escorrera aquela lama incandescente que sepultara para sempre três cidades com seus habitantes vivos. Aí crescia agora arvoredo em que se acoitavam coelhos, lebres e perdizes, tosavam cabrinhas e ovelhas a ternura dos prados. Aqui e ali, camponeses humildes ergueram seus casebres.

Regresso. Em meados de Junho já me encontrava em Pádua. Embora não curado, os meus incómodos moderaram-se e posso continuar trabalho. Escrevo a Erasmo. Digo-lhe da minha doença. Falo-lhe dos meus projectos de escrita. E, imodéstia a minha!, julgando-me já um ciceroniano acabado, ouso aconselhá-lo a polir o latim dos seus escritos. Como tive o atrevimento? Um pigmeu a dirigir-se a um gigante! Imodéstia, sim, mas também verdadeira amizade. E que me custa ver tão criticado o meu grande amigo...

Nos princípios de Setembro recebo a resposta. A finura de um príncipe das letras. Depois de me anunciar que Lucas Rehm - o velho mercador que, em tempos idos, tratara em Lisboa os interesses dos Welser, meu amigo de Antuérpia, irmão do bispo de Chiemsee, e que cuidava muitas vezes do envio e recebimento do correio de Erasmo - sofrera um ataque de paralisia de um dos lados do corpo, mas recuperara da fala, entra no assunto da minha carta. Sinto-lhe uma pontinha de inveja perante as novas amizades que faço:

Compelido a saíres de Friburgo, não há razão para que te queixes, tu que trocaste a Alemanha pela Itália e Erasmo por Bembo e Bonamico, com mais felicidade que Diomedes o bronze pelo ouro...

E admira-se destas tonturas de cabeça num jovem. Tinha a Itália médicos insignes. Com o conselho deles podia eu expulsar tal incómodo. De acautelar a leitura atenta, sobretudo depois de jantar e ceia. Em vez disso, a conversa com homens literatos. Temia eu o Inverno na Itália tépida? Que faria se fosse entre os Lapões? Se o temia a sério, voltasse depressa para lá, para junto dos hipocaustos. Aquecer-me-ia quanto desejasse. Ou então dava-me de presente a sua casa de Friburgo. Estava ainda em Basileia, por causa da edição do seu Concionator e tinha muitas dúvidas se lhe seria conveniente regressar a Friburgo.

Aborda então - eu já o esperava - a matéria do ciceronianismo. Quanto a adverti-lo da polidura das suas lucubrações - dizia -, eu fazia-o como amigo mas em vão:

Sou por natureza improvisador e admiravelmente preguiçoso para emendas. Sabes quão difícil seja, sobretudo a um velho, lutar contra a natureza.

Não escrevia para italianos, mas para crassos batávios e rudes alemães, e isso num século tão infeliz como era este. Certos argumentos não consentiam a polidela cuidada da oração, nem os afamados myrotheda de Marco Túlio, os frasquinhos de perfume, convinham às matérias que se destinavam a ensinar ou tratavam de religião. Do primeiro género eram os Adágios, do segundo as Paráfrases, as Anotações e muitas outras. Se se lhes tentasse aplicar o brilho da frase tuliana, perdiam o viço, não sabia como, junto dos ’estudiosos da verdadeira piedade, que buscam o revigoramento do espírito, não os enfeites das palavras. Essa filosofia celeste assim como tinha a sua sabedoria, diversa da humana, possuía também a sua eloquência. Os escritos místicos postulavam particular género de dicção. O candor da frase tuliana deleitava-o nos outros, pessoalmente nem o desprezava nem se inquietava a procurá-lo. Se encontrava algum erro nos seus escritos, sobretudo concernente aos bons costumes ou à religião, aplicava-se a corrigi-lo. Da fama que houvesse de correr mundo e do julgamento da posteridade era com Deus. E rematava, com aquele ricto brincalhão - estou a vê-lo! - e amigavelmente irónico ao canto da boca:

Mas, como quer que seja, foi-me gratíssima a tua advertência, que sei vinda de coração muito amigo. Espero que tu no convívio de homens tão doutos venhas a conseguir com júbilo essa polícia a que me exortas. Se eu não visse que é de livre vontade que corres em louvor dela, não hesitaria em estimular-te: sobretudo a que acrescentasses, como gema egrégia, este ornamento aos teus colares e medalhas e levasses esta palma, se não o primeiro de certo entre os primeiros, ao teu Portugal de dia para dia mais florescente.

Passa depois a referir as cartas recebidas e as que, sabe-se lá em que circunstâncias trágicas, haviam ficado pelos perigos dos caminhos. A Lázaro Bonamico, escrevia, estimava-o dantes como homem de exímia erudição, agora tornou-se-lhe mais caro porque é meu amigo. Das coisas de África mesmo ali em Friburgo eram badalados muitos feitos, mas receava que África engendrasse mais depressa novidade que alegria. Com falsas fábulas pouco se movia.

Dava-me em seguida notícias que de todo o lado lhe chegavam: a Alemanha inferior devastada pelos anabaptistas, Munster expugnada, mortandade cabonde, se era verdadeira a fama. O rei de França chamara a si os nobres fugidos com medo. Meditava alguma moderação. Convocara Melâncton para um colóquio, mas este ainda não partira. Em Vitemberga e Augsburgo grassava a peste, em Estrasburgo começava a lavrar. O rei de Inglaterra sevava a ira em alguns religiosos, ao bispo rofense e a Tomás Morus já há muito os tinha em cárcere. Factos estes demasiado confirmados. Os que vinham de Brabância contavam que de um e outro fora ditada sentença de morte. Gostaria ele que tal rumor fosse vão.

Ai de mim! Não eram vãos os rumores. Na mesma altura em que eu lia esta carta, a terrível notícia abatera-se por toda a Europa e chegava a Pádua: John Fisher, bispo de Rochester, havia subido ao cadafalso a vinte e^dois de Junho e, catorze dias depois, a seis de Julho, sofria o mesmo martírio o meu amigo Tomás Morus. Com a alma em chaga escrevo a Erasmo a pedir-lhe erga a voz prestigiada a convocar o clamor das consciências bem formadas. Utopias dos meus trinta e três anos! O mundo, demasiado enfeudado aos grandes senhores, iria calar quase por completo o funesto sucesso. Erasmo, por prudência ou porque a doença se lhe agravara, apenas faz desmotivado elogio desses seus insignes amigos no prólogo do Concionator. Consigo de um inglês meu conhecido relato da condenação de John Fisher, feito cardeal por Paulo terceiro um mês antes do martírio. Igualmente obtenho do meu amigo Reginaldo Polé o original e a tradução italiana do relato da morte de Morus, que envio a Erasmo.

Pelo mundo entretanto estrondeiam outros feitos que abafam aqueles. Carlos quinto ataca e toma Tunes, de onde o corsário Khair Ed-din, o Barba Roxa, saía para as suas rapinas pelo Mediterrâneo. No galeão Botafogo, a ajudar ao combate, está com o infante Luís, entre outros portugueses, o meu amigo Afonso de Portugal. De regresso a Itália, o César entra em Nápoles vitorioso, celebrado por poetas.

No princípio de Janeiro de trinta e seis recebo carta de Erasmo. O meu amigo já não volta a Friburgo. Vendeu a casa e o recheio. O relato da morte de Morus? Não sabe italiano mas procurará trasladá-lo a latim do original inglês de Polé. Acompanha a carta um bilhetinho. A doença agrava-se:

Há mais de um mês que estou pregado num leito perpétuo, com sofrimento a custo crível e sem dúvida intolerável. E não há esperança de recobrar a saúde, por via do Inverno rigoroso. Não tenho medo da morte, pelo contrário mais a desejo, se o Senhor for servido. Ao mal antigo, que a intervalos costuma regressar, veio juntar-se a ulceração da extremidade da espinha, na qual sou obrigado a apoiar-me, esteja deitado ou sentado. Para esta crudelíssima dor não existe nenhum remédio, já que é necessário estar sempre em cima da própria ferida. Pudessem ser toleráveis os tormentos, mas existe o Senhor, dilacere ele e queime, contanto que acabe para sempre.

A mim, abalado por negros pressentimentos, parece-me que o mundo e a vida desaba. Antes que Erasmo morra, desejo levar a bom termo um projecto em que muito tenho lidado: promover, a minhas expensas, a imprimissão de todas as suas obras. Escrevo-lhe a propor a empresa com que o desejo honrar, embora não deixe de reconhecer o meu egoismozinho de guardar para mim a parcela de glória como seu editor. A anteceder a obra, um relato da vida do mestre, que escreverei - conheço as minhas limitações - com o auxílio de Bonamico, baseado nos dados que Erasmo me queira enviar ou eu próprio vá colher junto dele, em viagem a Basileia, lá para Maio ou Junho. Respondeu-me que sim, estava disposto a entregar-me o catálogo dos seus livros devidamente ordenado, mas se recusava a escrever a própria biografia. Cheio de satisfação, enviei-lhe um bilhete de agradecimento, lacónico por me acreditar prestes a visitá-lo. A vertigem regressa e sem descanso me punge. Quando aperta, não há frios nem calores a que me acomode. Pelo que vejo, terei de migrar sempre como os grous.

Em fins de Março parto de novo em viagem, a caminho da Alemanha. Serei sucinto e tomarei o assunto de voo. O que se seguiu foi tão súbito e doloroso que até no pensamento, a tanta distância do tempo, me sangra ainda agora a recordação. Nada mais duro de suportar do que, passados os perigos de jornada, não se alcançar o destino. Nas minhas viagens percorrera as demais cidades da Alemanha, tirante Nuremberga. Resolvi visitá-la antes de me dirigir a Basileia a casa de Erasmo, de onde, acabado o negócio que a ele me levava, tencionava regressar a Itália no princípio do Outono. Em Nuremberga, dizem-se da guerra da Suíça tantas coisas que andam cheios de terror não só os que desejam partir mas ainda os que não querem sair de casa. Rumores as mais das vezes são coisa incerta. Por isso, não teria eu hesitado em levar por diante o meu intento, se os que me avisavam não acrescentassem que Nicolau de Russ, meu conhecido, bailio de Buren, na Vestefália, ecónomo do imperador, reunira uma força de vinte mil homens em Worms e Ulm e com ela e com tropas borgonhesas tencionava sair sobre a Suíça, se os helvécios auxiliassem o francês. Afirmava-se que já o haviam feito. Imagino em Basileia as maiores turbulências. Mas teimava em levar avante a minha tenção, rogavam-me, suplicavam-me os amigos dali em nome de Deus o não fizesse: havia tropas na Borgonha, na Brisgóia, na Alsácia; por nenhum caminho ninguém, quem quer que fosse, podia seguir para Basileia senão com o maior risco, quanto mais um estrangeiro, sempre suspeito a todos, e os que levavam bens, tão cobiçados sobretudo pela soldadesca, gentinha a toda a hora esfomeada de dinheiro. Desisti de ir ter com Erasmo, por muito que me custasse e mesmo de Nuremberga compenso a perda com lhe escrever.

Pobre carta minha! O meu amigo, o meu querido mestre já a não leria, que falecera na noite de onze para doze desse mês de Julho, três dias antes de eu me sentar à secretária a escrever-lhe. Contava-lhe da minha contrariedade em não poder fazer jornada por Basileia, por mor da guerra, falava-lhe da sua recusa em fazer o relato da própria vida. Como eu lhe compreendia os escrúpulos! Não era preciso, aconselhava-o, tudo escrever em minúcia. Confiasse ao papel apenas o que o honrasse, vida, costumes. Calasse o restante, sobretudo o melindre da progenitura... Meu Deus! Como me calava tal escrúpulo e o compreendia!... Mudava eu de assunto. Passei dois dias em Ingolstadt. Alguns estudantes meus amigos, já antes meus íntimos conhecidos, confiavam-me andarem certos doutores inchados, João Eck, por exemplo, humanista e adversário de Lutero, a apregoar de Erasmo invenções diante do povo e dos estudiosos, nas tribunas, nos círculos, em privado: que emigrara para Basileia no fito de mais livre poder abraçar a seita de Zuínglio, a que sempre pertencera, e muitas coisas mais. E eu procurava mostrar-lhes a insensatez, quanto Erasmo era alheio a seitas e muito diferente do que publicavam. Não consegui. Começavam as férias e eles partiam para o campo...

Tudo isto eu lhe dizia na carta que ele já não pôde ler. Parti da Alemanha a vinte de Julho. Quando em fins de Agosto cheguei a Pádua, esperava-me, em cima da escrivaninha, notícia de Amerbach a anunciar-me o triste passamento.

Tal como viveu tão santamente, assim morreu dando mostras de peito verdadeiramente cristão no render da alma...

Nem a morte dos pais nem a de irmãos me causaram tão funda mágoa. Durante dias não dei conta de meu rumo e atino. O meu pendor pragmático, todavia, veio em breve ao de cima. Penso hoje que sempre me prevaleci de mais frio que apaixonado. Escrevi a Amerbach. Perante as atoardas que andavam no ar acerca da morte e do testamento de Erasmo, rogava-lhe me pusesse a par de tudo e confiava-lhe que entre mim e o mestre havia, pendente, combinação sobre certos assuntos, confirmada por carta, que me haveria de levar a Basileia a tratar pessoalmente com o doente. A morte inesperada dele fizera gorar tais planos, a menos que Amerbach, como testamenteiro, tivesse em sua posse o catálogo, que na última carta, escrita no começo de Abril, Erasmo prometia remeter-me. Examinasse bem os papéis deixados, a ver se ele levara a cabo o trabalho que começara. Mandasse-me resposta breve por Lucas Rem, mercador de Augsburgo.

Fugido de França, por simpatizante dos protestantes, passa por minha casa o poeta Marot. Vem de Veneza e pretende seguir para Basileia.

- Podias dar-me carta de recomendação para o teu amigo Amerbach ou para Froben ou Glareano? - pedia-me.

Não me fiz rogado. Presumia que a resposta de Amerbach à minha carta anterior já viria a caminho. Servia esta para lhe recomendar Clemente Marot, sobre quem Deus se dignou derramar tanto engenho e graça que excele a todos os poetas de França, quanto Roma, como diz o nosso Virgílio, às restantes cidades. Mostrasse-lhe tudo o que em Basileia era digno de ser visto e lhe não faltasse, no mais, com os costumados bons ofícios. Saudasse Froben e Segismundo.

Em Novembro chegam as esperadas notícias de Amerbach. Erasmo conservara-se tão lúcido até ao último momento que não permitiu junto de si, nessa hora extrema, ministros evangélicos e faleceu invocando o nome de Cristo. Foi sepultado na catedral de Basileia, com epitáfio de Amerbach, seu herdeiro universal. No espólio dele não existia nada do que eu referia nem sinais de trabalho encetado.

Pobre Erasmo! pensei. Se tinhas a meu respeito alguns projectos, como me havias anunciado acerca da minha proposta de te publicar as obras completas, a morte não te deu tempo de o dispores. Nem sequer me deixaste uma lembrança, como a Luís Ber, a quem legaste um relógio de ouro. As únicas coisas que de ti me restam são aquele teu retrato, que um dia me havias oferecido - se a Inquisição mo não fez sumir -, e a tua amizade, tesouro que guardo no escrínio do coração.

Por esse fim de ano, estava eu um dia em meu escritório entregue ao trabalho, ouço fora arruído de passos e vozes, uma delas a do meu pajem Mateus muito assanhada:

- Mas, senhor, já lhe disse...

- Qual é a porta?

- ... sem eu avisar meu amo...

Sai da minha frente.

A porta abriu-se e um homem alto, capa de viagem e botas altas enlameadas, cara chupada mas risonh^, entra por ali de braços estendidos:

- Damião amigo!

Reconheci-o, admirado. Levantei-me:

- Roque de Almeida!

Mas ele disse que era Jerónimo de Pavia! - dizia Mateus atónito.

Jerónimo de Pavia para te servir. Acabo de chegar da Alemanha.

Estou vendo. Que é feito de frei Roque de Almeida?

Já te conto. Para já preciso da tua ajuda. Estou sem dinheiro e esfomeado.

Virei-me para Mateus e dei as minhas ordens.

Eu próprio o acompanhei a uma quadra, junto à cozinha, onde lhe estavam já a preparar o banho.

- Trago-te cartas de Lutero e de Melâncton - ia dizendo e vasculhando numa bolsa de couro que lhe pendia a tiracolo.

Enquanto ele se dispunha para o banho, abri as cartas. A de Lutero, além das habituais saudações, falava-me de Erasmo e do seu recente falecimento, visto que sabia ter eu sido discípulo e hóspede dele. A de Melâncton, mais calorosa, dizia-me que, de princípio, havia acolhido Jerónimo com boa vontade para mostrar a disposição e afecto que me tinha, mas, depois de conhecer a singular prudência, sageza e bondade de costumes dele, louvava o meu critério em escolher amigos e agradecia-me ter-lhe enviado um hóspede tal, que não hesitou em admiti-lo à sua familiaridade. Só o não impediu ác partir por o ver desejoso de me vir visitar...

- Vejo que não te deste mal com os ares de Vitemberga. Como estão os meus amigos?

- Bem - respondia já dentro da selha, ensaboando-se. - Lutero um tanto envelhecido e adoentado. Melâncton, o espírito aguenta-lhe o corpo débil.

- Jerónimo de Pavia, hem? Total metamorfose.

- Frei Roque de Almeida morreu lá nos frios do Norte, numa brumosa tarde que passei em casa de Melâncton.

- Nunca morre totalmente o que há de velho em nós.

- Terás razão.

- Em vez de trazeres ao redil as ovelhas tresmalhadas...

- Não os converti? é isso que queres dizer?

- Era a tua intenção em Paris, quando pensavas partir. Afinal, foste tu o convertido.

- Se visses o fogo daqueles olhos, o calor daquelas palavras! Melâncton transuda verdade. Um iluminado! Aquilo não pode ser outra coisa senão a verdade. Melâncton é a verdade.

- Como Cristo? Que exagero!

- Escolheram a liberdade. Desoprimiram-se dos negrumes e escrúpulos de consciência. São pessoas alegres...

- São pessoas ressabiadas.

- ... limparam a religião do lixo das imagens, da idolatria...

- Templos frios, hás-de concordar. Nem sequer o símbolo de uma chama a arder, como a fé de uma alma, diante do sacrário...

- Ah! Não comeces.

Saía do banho, limpava-se e vestia roupas lavadas que eu mandara a Mateus lhe trouxesse, e ia falando:

- Não queiras ressuscitar Roque de Almeida. Dizem que o hábito não faz o monge. Pois é que faz. Tira o monge o hábito e eis que surge Jerónimo de Pavia.

- Pois é que não faz. Tu foste a Melâncton, mudaste de alma, tiraste o hábito e eis surge Jerónimo de Pavia. É bem ao contrário do que dizes. Torna a teu hábito, quero dizer a tua alma. Não te quero cá feito apóstata.

- Queres atormentar-me?

- Não tomes a sério as minhas palavras. Deus me livre de querer atormentar a tua consciência liberta. Isso aprendi com meu mestre Erasmo. Não me entremeter na liberdade e diferença de cada um. Não sou pregador. Mas tu eras.

Fez um gesto largo, como a significar que eram folhas idas com o vento, mas eu sentia-lhe a inquietação do espírito. Durante muito tempo conversámos enquanto ele comia.

Jerónimo de Pavia ficou alguns meses meu hóspede enquanto lhe não davam ganas de desandar para outras bandas, que ele era ave de arribação. Um dia abalou para Veneza onde o fui encontrar na pele de alquimista.

Escolares alemães chegados a Pádua trazem-me carta de Amerbach. Porque não participo monetariamente na edição das obras de Erasmo que as oficinas de Froben pretendem levar a cabo? Respondo-lhe lamentar que Erasmo não tivesse podido, antes de morrer, enviar-me, como me prometera por escrito, o catálogo das suas obras e os comentários sobre a sua vida, que eu tanto desejava. Se o tivesse feito, não era eu que faltaria às promessas: faria editar, à minha custa, todos os escritos que ele tivesse aprovado no catálogo. Mas, falecido sem o ter feito, julgo, como acabo de escrever a Froben, que me não viria a ser honroso imprimi-lo a expensas minhas.

E entrava o ano de trinta e sete e os meses puseram-se a dobar os dias até que me chegou ao conhecimento, com grande espanto e zanga, que Amerbach publicara dois Catálogos das obras de Erasmo. Não sei que hei-de pensar. Abstive-me de lhe escrever.

Floria Maio, cai-me em casa um estranho hóspede, levemente meu conhecido de Paris mas muito relacionado com frei Roque de Almeida, que assim me não desabituava eu de chamar Jerónimo de Pavia. Era um dos companheiros de Inácio de Loiola, o português Simão Rodrigues. Já atrás, neste relato, me referi a ele. Desejo aqui acrescentar que a estada dele na minha casa de Pádua constitui a origem das minhas desventuras actuais.

Homem meão, magro dos jejuns, o branco das mãos e da cara a sobressair da sotaina preta até aos pés, a caveira sem cabelo sobre o comprido, os olhos febris, negros, severos, a barbicha aparada a descer-lhe das orelhas a dar a volta pelo queixo, o bigodinho a escorrer-lhe do lábio e a enrugar-lhe ao canto esquerdo da boca desprezo e cinismo, Simão Rodrigues era a esfinge do fanatismo.

Não tardou que rebentasse discussão. Foi à mesa. Roque saboreava um naco de carne, interpelou-me Simão:

- Então não sabes que hoje é defeso comer carne?

Roque suspendeu junto à boca a perna de coelho e olhou-o:

- E quem és tu para mo defenderes?

- Não sou eu quem to defende, mas a Igreja.

- Qual Igreja?

- Ah! Temos aqui um protestante!

No nosso grupo, Simão, há católicos e há simpatizantes das diversas

seitas protestantes. E todos somos amigos.

- Eu não posso ser amigo de hereges.

Aí vem borrasca, pensei. Como dono da casa, julguei ser meu dever intervir:

- Escuta, Simão, e procura ter calma. Sou daqueles que tem buscado entender o que se passa no pensamento de homens doutos e honestos da cristandade dividida. Estive em Vitemberga, como Roque de Almeida...

-... que mudou de roupa, de nome, de ideias...

-... conversei, almocei e travei amizade com Lutero e Melâncton.

- Tens então autoridade entre os luteranos. Folgo em saber.

- Conheço muitos. Sou amigo de alguns. Se tenho autoridade, não sei. Fui discípulo e hóspede de Erasmo, conheço e sou amigo e correspondo-me com altas figuras do pensamento protestante, tal como conheço, sou amigo e me correspondo com as mais altas personalidades do pensamento e da hierarquia católica. Em Roma fui recebido pelo papa Paulo... Não te diz nada isto?

- Mas também comes carne, tu, em dia defeso.

- Quanto a isso, se queres a autoridade, cito-te a palavra de Cristo: «não é o que entra pela boca que mancha»...

- Arrogas-te o direito de interpretar a teu belprazer os santos Evangelhos? Es protestante acabado.

- É uma altercaçãozinha que pretendes? Discutirei de bom grado contigo também isso, se quiseres.

- Julgas-te teólogo?

- Está a preparar-se - disse Splinter - um concílio ecuménico para debater as divergências de dogma e de liturgia. Existe hoje na própria Roma clima favorável à compreensão.

- É isso - continuei. - Ouvi homens letrados afirmarem que grande bem se seguirá, se o concílio e o papa dispuserem que os leigos possam comungar sub utroque espécie...

- Nunca! Nunca!

- ... e se dispensar de delectu ciborum, o prazer da mesa, para que cada um coma à sua vontade...

- Um regabofe! Voltamos ao ágape romano, com os vomitória à mão? O corpo é servo e como servo deve ser tratado. Tem de ser mortificado.

- Ó menino, mortifica-te tu e deixa-nos a nós em paz - desta vez era mesmo Jerónimo de Pavia quem falava, além do mais com a boca cheia, exagerando o gosto que sentia em comer, com molhar sopas de pão no molho da carne ou lamber os dedos besuntados de queijo fresco e oferecendo a Simão com acintosa cortesia: - Vai uma fatiazinha deste cabrito? um bocadinho de queijo com pão?

Simão Rodrigues ficava enfurecido. Polites perdia-se de riso.

- O papa - continuava eu - deseja que se façam todos os esforços para a união do povo de Deus. Escreveu-me há dias o cardeal Jacob Sadoleto. Pretende os meus bons ofícios junto de Melâncton, a ver se trazemos ao aprisco a ovelha tresmalhada.

De facto, havia chegado de Roma Pedro Boemo, meu companheiro de estudos em Pádua. Estivera com Sadoleto, contara-lhe de mim, das minhas viagens à Alemanha, da minha amizade com Lutero e Melâncton. Sadoleto ficou a cismar. Estava-se a preparar concílio para Mântua, mas os protestantes da liga de Esmeralda, como pretexto para não irem, recusavam estar presentes em cidade italiana, exigiam cidade alemã. Sadoleto lembrou-se que talvez eu pudesse intervir junto de Melâncton. Falou com o papa, que se recordava de mim. Escreveu-me carta amável, mas confiou a Pedro Boemo, que era também portador de carta de Sadoleto para Melâncton, o dizer-me viva você o que de mim pretendia: ser eu o intermediário que faria chegar, com especial recomendação minha, a Melâncton a carta do cardeal de Roma. Honrado com a missão, diligenciei sem demora fosse levada por correio de confiança, mercadores alemães meus conhecidos residentes em Veneza, para Augsburgo, de onde com segurança a fariam chegar até Vitemberga. Isto mesmo me apressei a comunicar a Sadoleto por carta encaminhada para Roma por Pedro Caroldo, cônsul de Portugal em Veneza, incitando-o a que não deixasse de instigar o papa e o colégio dos cardeais, tal como já começara a fazer, à concórdia da Igreja.

Simão Rodrigues estava admirado, duvidou do empreendimento:

- Com panos quentes? Duvido. Só à trancada.

Tinha meia razão, que Lutero frustrou a iniciativa com zombaria e intransigência, Melâncton, com estupefacção minha que o não julgava capaz de tal, nem se honrou sequer responder ao solicitado.

Por mim, sentia-me orgulhoso de ter sido intermediário de tão importante iniciativa, conquanto fosse eu, por essa altura, muito crítico de certas disposições católicas, como mostrava sem reservas nas altercações havidas em Pádua com Simão Rodrigues. Falávamos de quase todos os assuntos teológicos que eram a suma das divergências entre católicos e protestantes: da graça, da predestinação, da excomunhão, do poder do papa, da confissão, das indulgências...

Um dia, Simão perguntou-me:

- Se tu, Damião, voltares a Portugal, que farás? Vais à missa? Cumprirás os outros preceitos como os mais cristãos fazem?

- Queres tirar nabos do púcaro? Fica sabendo que me considero mais católico do que tu.

- Tu, católico?

- Irei à missa, sim. Não como os outros, que vão bater no peito sem saber o que fazem. No coração me ficará e terei o que hei-de ter.

Certa manhã, encontrando-o no quintal, para lá e para cá, a rezar suas horas, disse-lhe Roque de Almeida:

- Não és obrigado a rezar, se despenderes o tempo em ler pela Sagrada Escritura ou em outras coisas.

Simão fechou o livro com sanha e puseram-se a desfiar as costumadas discussões e, anda que desanda, já estavam a falar dos votos monásticos. Roque afirmava com veemência:

- Ainda que um frade tenha feito voto de castidade, se sentir em si que o não pode guardar, nom est transgressor vi. São Paulo o diz: melior est nubere quam uri.

- Frade desfradado! Tresandas à pega com quem dormiste esta noite. És um herege, tu e Damião.

- Alto aí, Simão Rodrigues. Herege, eu?

- Deixa-o falar - dizia Roque.

- Deixa-o falar? - continuava Simão. - Hereges, sim.

- Hereges sois vós - atirou-lhe Roque -, tu, o Inácio e companheiros. Andais por aí a inventar Cristo a toda a hora, como se fôsseis o Espírito Santo.

- Queimados vivos é o que mereceis.

- Tu sabes o que estás a dizer? Em minha própria casa? Se não fosses meu compatriota, punha-te na rua. Estou habituado a debater ideias serenamente. Vê se te acalmas e não sejas fanático. Deixa os outros pensarem e sentirem diferente de ti.

- Repelentes luteranos! - saiu da nossa beira Simão, a espumejar arrenegos.

Quid multa*. Para me não desprazer mais da companhia de Simão Rodrigues e porque as minhas vertigens se agravavam, decidi ir de novo viajar.

Fugi do calor de Julho subindo até ’à Alemanha.

Por meados de Agosto, poucos dias depois de regressado a Pádua, estava eu em meu escritório a responder a duas cartas de amigos. Haviam-me chegado deterioradas dos caminhos e do estrépito de guerra que por toda a parte estrondeava. Uma de Clenardo, a dar-me a sua opinião sobre a minha tradução da obra de Cícero chamada Catão Maior, que eu me propunha dar à estampa. A outra de Jorge Coelho, poeta e humanista, a pedir-me parecer sobre o seu talento poético. Embaraçou-me um tanto ter de o aconselhar a que se dedicasse antes à prosa, em que era elegante em extremo. Mas para que servem os amigos?

- Pode-se entrar? - perguntam-me da porta.

Era Inácio de Loiola. Ele e seus companheiros haviam chegado dias antes e hospedaram-se em minha casa. Com Inácio vinha Simão Rodrigues, muito corado.

- Soube do destempera de palavras que meu companheiro te dirigiu.

- Inácio! - murmurou Simão.

- Cala-te. Lembra-te que a obediência é a primeira marca do nosso instituto - ralhou Inácio, a voz a cortar como aço toledano, e voltando-se para mim:

- Vim de propósito de Veneza para, na presença de Simão, me desaculpar de ti...

Senti-o contrafeito. Disse-me o bastante para eu compreender que estimava em mim o homem que tinha influência na roda da cúria romana, em volta da qual adejavam os seus actuais interesses. Compreendia, não era verdade? Veneza em guerra com os Turcos... ele e os companheiros não puderam levar avante o projecto de irem missionar na Palestina. Que iam então fazer? perguntava eu. Estavam à espera que Paulo terceiro aprovasse os institutos da Companhia de Jesus. Virariam a sua acção contra os protestantes e seriam uma instituição rigorosamente pedagógica. Veria!

Poucos dias depois, Simão Rodrigues partia para Bassano e outras cidades de Itália.

Meados de Dezembro recebo a triste notícia. Beatriz, duquesa de Sabóia, está gravemente doente. Ponho-me a caminho de Nice. O ducado agora é posse da França, que o anexou vai para dois anos.

Quando cheguei e. me fiz anunciar, não tardou que o duque Carlos em pessoa descesse a acolher-me. Abraçou-me consternado, sem palavras, e levou-me à câmara da duquesa. A criadagem reunia-se chorosa junto à porta e aos pés do leito encontravam-se os filhos com as aias. Beatriz estava deitada, muito branca, os olhos fechados, a respiração mal sentida. O marido inclinou-se a segredar-lhe ao ouvido. Abriu os olhos e olhou-me. Sorriu, estendeu-me a mão:

- Querido Damião, meu irmão.

Faleceu algumas horas depois. Daí a dias assisti às exéquias e regressei a Pádua.

 

                             Epitalâmio

Suspendo o meu relato. Levanto-me. Olho pelo janelo a chuva a cair, os pinheiros atormentados, a desolação do monte fronteiro. Não se enxerga vivalma, não se ouvem os frades a salmodiarem sob as abóbadas, sequer o sino do campanário. Só o silvo gélido uivava e gemia e aiava nas frinchas do vento. Até os animais, parece, a tocas e luras se acoitaram. Sinto-me doente e abandonado nesta cela de morte. A humidade que escorre das paredes colou-se-me ao corpo. A falta de banho está-me emporcalhando, os chinches e piolhos aferroam-me, começam a aparecer-me manchas e escaras pela carne. Semelho-me a gafo. Penso no que foi um dia a minha vida. Penso nos filhos dispersos, que os meus algozes me não deixam ver desde que fui preso. Que será deles depois de eu partir para a última jornada? Já escouceiam lá em baixo os negros cavalos impacientes e chamam por mim os sinistros pajens da Libitina em agoirentas vozes. Volto a sentar-me, pego da pena e escrevo:

Testamento Meus filhos

tudo o que foi de vossos pais agora é vosso.

Nunca brigueis por um torrão de terra por dinheiro ,

por um fio de água um grão de pão pela sombra da nogueira antiga. Se restar uma só laranja apetecível e se as vossas mãos a ela se estenderem suspendei o gesto deixai o fruto apodrecer na árvore ou, colhendo-o juntos, juntos saciai a vossa sede gomo a ti, gomo a mim, e, se o último for ímpar, num beijo de sorrisos o sorvei É ao meio.

Com a alma mais leve, retomo o meu trabalho.

Estávamos um dia em nossa casa, em Pádua, corria um Abril chuvoso como este que do janelo há momentos avistei. Splinter caíra doente com febre e eu, de partida para nova viagem, tinha ido despedir-me dele e dos companheiros, que, sentados em redor da cama, lhe faziam companhia no quarto, quando Polites entrou e desatou a trovejar em tom declamatório:

- Rasgou os céus embrulhados de nuvens um deslumbrante clarão, ziguezaguearam raios e coriscos como línguas de víboras e logo estrondeou o trovão e longamente foi regougando sobre a terra estremecida, cor de chumbo. Um ventozinho se ergueu em turbilhão e, célere rodeando sobre a cidade, deu em desgadelhar bosques e destelhar casas. Por entre o temor da natureza e dos homens, desceu dos ares nas sandálias aladas o mensageiro de Júpiter. Pairou um momento sobre a cidade perscrutando o seu destino e rápido se precipitou sobre a nossa morada e entrou por essa janela a te saudar, Damião.

Riram-se os companheiros com a tirada de Polites, que, de pé no meio da sala, os olhos dardejantes, nos fulminava agitando na mão tremebunda uma folha de papel. Eu, de saída, já perto da porta, vestido com os trajes de viageiro, estaquei interdito:

- Que nos vai dar agora a tua imaginação?

Até Splinter, no leito, embrulhado nas mantas, os olhos febris, o nariz vermelho, tentava sorrir. Os outros eram riso escancarado.

Polites pigarreou a afinar a goela e, como se fosse um deus invisível de quem apenas a voz cava se ouvisse, começou:

- Saudações te trago, Damião, e ordens. Não ordens humanas vindas pelas auras velozes das bandas da Hispéria, mas emanadas das alturas do Pólo sidéreo, da parte de Júpiter, que as tomou em concílio dos deuses. Sou o filho de Maia e de Jove, guardião dos homens e mensageiro dos céus. Como sempre me veneraste, também eu sempre às tuas coisas acrescentei proveitos.

Willinger, Paludano e Cristóvão von Stadion riam-se com gosto do clássico estilo e a Splinter a gargalhada transformou-se em acesso de tosse que procurou abafar nos cobertores. Circunspecto, Polites esperou que a tempestade passasse e continuou:

- Se não fosse ímpio olhos mortais contemplarem o semblante divino, eu próprio com a minha voz te exprimiria as saudações e os urgentes mandos que o omnipotente moderador do sumo Olimpo te envia. Mas a reverência devida à divindade veda afeiçoar na boca as palavras que melhor se expressam nesta missiva. Toma e lê.

Não tive remédio se não alijar do ombro o alforje, que coloquei no chão, pegar na carta e lê-la. Ia a fazê-lo em silêncio, «Em voz alta, em voz alta!» pediam todos.

- Mas é ímpio modular na voz o pensamento divino... - gracejei, entrando no jogo.

- Já sabemos - disse Paludano -, mas tu, que és ímpio em tantas outras coisas, sê por agora também nessa.

Discordando embora do rigor do termo «ímpio» dirigido à minha pessoa, aceitei e comecei a leitura. Eis o recado que me trazia a carta de Mercúrio:

Levado pelas preces assíduas dos teus amigos, em perda tua as ouviu Júpiter. Não deixes companheiros fiéis, que te têm como guia do caminho encetado. De contrário, se tu, insensato, desprezares a vontade dos deuses, terás desfeito os apertados laços da camaradagem. Pelo céu ele jura, pela terra, pelas águas pantanosas do Estígio, sobre que desfere com a dextra os sevos raios, pestíferas trevas à cabeça te há-de atiçar, com horrível vertigem e cruel babugem de imundas doenças. Isto diz e com o mero aceno do pensar fez tremer o Olimpo e os deuses etéreos.

- Ora aprende, Damião - disse Willinger pegando no pichei e enchendo as taças de vinho. - Vais deixar-nos? Aí tens o aviso.

- Pensa duas vezes, antes de o fazeres - ajudava Paludano, dedilhando dois acordes nas cordas da cítara.

Sorri-lhes, cordato, e continuei a leitura:

Não desprezes tu, portanto, as ordens do Tonante, em cuja vontade todas as coisas permanecem. O disperso rebanho conduz aos costumados apriscos e as ovelhas reunidas, pastor que és, não as abandones. Parte alegre, sem demora, para a velha Roma. Não te faltarão numes propícios. Daí dirige-te aos reinos Liburnos e revê, comigo por guia, as amenas muralhas da preclara Parténope. Nada duvides. Grandes triunfos te prometem, por teus méritos e piedade, fados felizes.

Abandonados, sem guarda, imploram-te os companheiros, regam as tristes faces de contínuos prantos.

Aqui puseram-se todos a mimar, entre risos, choro pegado.

Splinter, arrebatado por febres agudas, doente, exaustas as forças, no entanto consegue ainda, suplicante, erguer aos céus as mãos exangues e sem descanso ora aos deuses imortais por que tu voltes são e salvo.

E Splinter de erguer mãos postas de fora da roupa.

Willinger, tal como tu emulo de ancestral nobreza e orgulhoso da glória da pátria, três vezes taças espumantes esgotou de fecundo baço e de vinho puro encheu a boca.

Foi a vez de Willinger erguer a taça, saudação a que os outros corresponderam.

Cristóvão não cessa de solicitar as fauces de Érebo e os manes das sombras pelo teu regresso. Até Paludano com divina voz entoou cantares e da boca soltou harmoniosos sons. E que lembrar então do Polites sem-cuidados...

Olhei o amigo. Polites empertigava-se vaidoso, orelha atenta ao seufigfmentum.

... Polites, que sem tréguas tem sido cultor da tua amizade, a ponto de ter ousado interpelar as aónias camenas a que te fizessem chefe do nosso coro?

- Nosso? - estranhou Willinger, as bochechas rosadas do calor do acrato.

- Nosso - interpretou Cristóvão -, dele, Hermes ou Mercúrio, que de uma concha de tartaruga fez a lira ou de uma cana a siringe, que ambas tangia com mestria. Em redor, sob as oliveiras, dançava ao som melodioso o coro das musas.

- Nosso - foi a vez de Paludano -, de nós, que aqui Polites é o mesmo Mercúrio.

Tomados pelo amor da região, outros ainda anseiam o mesmo que tu, desejosos talvez de visitar a Itália.

Toma, pois, o caminho inicial e o bom ou mau da vida comum com os teus companheiros, como dantes. Nada te abalem as saídas do pontífice nem do senado purpúreo das sedes costumadas, nada te atinjam as maledicências de homens celerados, ou nada a tua honra imperecedora de si afaste.

Eu próprio junto dos grandes reis levarei a cabo todas as coisas a teu favor, eu próprio trarei aos maus pena e castigo. Tornar-te-ei grato aos príncipes, captarei o favor do povo e atrairei a ti os altos numes. Com a fama, para todo o sempre o teu nome será celebrado e viverás como esperança e salvação da tua pátria.

Dado do céu Empíreo a doze de Abril de mil e quinhentos e trinta e oito.

Estralejaram as palmas e eu, comovido, abraçando Polites:

- Sabeis bem - disse - que, se eu pudesse, nunca vos deixaria. Mas até vós tereis um dia de partir. Preciso é que nunca nos esqueçamos uns dos outros, aonde quer que a vida nos leve, e dos bons momentos aqui passados.

Ainda não era a partida definitiva de Itália, que vinha perto. Uma vez mais a visita a Veneza, desta vez a ver sair do prelo de Estêvão Sábio o meu Catão Maior, que eu dedico a Francisco de Portugal, conde de Vimioso. Guino em seguida até Vicência a deitar uma olhada ao concílio que, tendo falhado em Mântua e interrompido em Vicência no ano anterior, não havia meio de vingar. Aqui encontro inesperadamente a João e Olaus Magnus Gothus.

- Amigos! - abraço-os. - Como vos encontro aqui, vindos dos confins do mundo?

- Vindos de Roma, Damião - responde João, envelhecido e doente, com um sorriso triste.

Pelo vestuário um tanto desleixado, pela magreza das faces vejo que têm passado dificuldades. Com humildade contam-me da sua miséria, da esperança de que das resoluções do concílio lhes venha algum alívio.

- Calamidades. Calcula, Damião! Até os cavalos tivemos de vender!

- dizia Olaus com simplicidade.

- Falei com os cardeais legados - contava João -, Campeggio, Sirnoneta, Aleandro...

- Prometeram advertir o cardeal Farnésio para as condições em que nos encontramos.

- Entretanto, o concílio continua empecido. Estou a ver que ainda não é desta vez. Só compareceram uns poucos cardeais aqui do Norte.

- Na procissão de abertura - explicou Olaus - apenas cinco formaram cortejo com os cardeais legados.

- Eu não pude assistir. Doente como ando.

- Somos aqui os únicos estrangeiros. Estão surpreendidos com a nossa presença.

- Dir-se-ia que não nos querem cá. Isto começa mal. Convidei-os a cearem comigo, tinha cá a minha ideia:

- Falaremos com espaço. Da tua história dos reis godos, João. Dos teus projectos, Olaus.

- Tenho pronta uma carta dos países do Norte - disse Olaus.

- Muito gostaria de a ver.

- Mostro-ta à ceia.

À noite, antes de nos sentarmos a cear, em cima de uma mesa desimpedida ele folheava de seu vagar as nove grandes folhas desse atlas magnífico:

- É preciso - dizia, orgulhoso do seu trabalho - que a Sé apostólica e todos os homens de bem possam com clareza ver que uma tão grande parte do mundo cristão, com uma população inumerável, se separou da Santa Igreja de Roma.

Enquanto estive nessa cidade, não permiti que sofressem míngua e, quando chegou a hora de eu partir, deixei-lhes ajuda pecuniária.

- Es um bom amigo, Damião - disse João com a voz embargada.

Desço depois a Roma e a Nápoles. Em Roma estive com o cardeal Jacob Sadoleto. É homem de perto de sessenta anos, sábio humanista de renome. Ciceroniano como Bembo, foi com ele secretário de Leão décimo. Bispo de Carpentras, quando Roma esteve ameaçada pelo exército do duque de Bourbon, embarcou para França com a sua riquíssima livraria de códices raros e pergaminhos gregos. Naufragado o navio, voltou a Roma, onde agora Paulo terceiro o elevou a cardeal e o encarrega dos trabalhos da Contra-Reforma. Gostaria que me levasse junto do pontífice. Mas o papa por essa altura encontrava-se em Nice. Falámos de terem sido goradas as tentativas de trazer à concórdia os protestantes.

- Parece que não há nada a fazer com essa gente - desabafava o cardeal consternado. - Cumpre seguir avante com o concílio.

Vinha a calhar. Falei-lhe de como havia encontrado João Magnus Gothus e o irmão em Vicência, esses homens de bem já de todo faltos dos recursos com que, antes, quando ricos, muitas vezes lutaram pela Igreja Romana nessas regiões aquilonárias e continuariam ainda a lutar se tudo tivesse sucedido bem. Prometeu falar com o pontífice a esse respeito.

Punha eu grande esperança em que de um concílio ecuménico saísse uma Igreja menos dogmática e aberta. Os tempos que lá vinham haveriam de me dizer como estava enganado, por meu mal...

Os irmãos Gothus, adiado o concílio mais uma vez sine die, emigraram para Veneza em busca de sustento, ou por liberalidade alheia - Giberti, bispo de Verona, socorreu-os - ou pelo trabalho. Ensinavam, educavam e o arcebispo João Magnus exercia até algum ministério crismando crianças. De nenhuns outros subsídios podiam socorrer-se senão que toda a esperança haviam posto na Providência. Chegados aí, são por Jerónimo Quirino, patriarca de Veneza, humanissimamente acolhidos e hospedados no próprio patriarcado, onde aguardam a abertura efectiva do concílio.

Regressei a Pádua e retomava a minha vida de escolar quando, por fins de Outubro, entre as notícias que de Portugal me envia o amigo João de Barros recebo relação da guerra de Cambaia.

Sentado à mesa de trabalho, o meu escritório agora pacificado da desenvoltura de frei Roque de Almeida na pele de Jerónimo de Pavia, que ambos - pensava eu sorrindo interiormente - abalaram para a Veneza da aventura, e liberto do fanatismo de Simão Rodrigues, posso remansado ler aqueles papéis. Rasgam-se-me nevoeiros marinhos, nas narinas o acre da maresia, nos ouvidos os guinchos das gaivotas, nos olhos o verde-azul-doirado de sol e mar e as velas brancas enfunadas sangradas da cruz de Avis, quilhas a cortarem a espuma das ondas e a singrarem golfo Pérsico adentro até à foz do Tigre e do Eufrates, onde à sombra de palmeiras, na agrura do deserto, se ergue a fortaleza de Ormuz, açoteias, almenaras, minaretes e grimpas da cidade.

Já lançam âncora e Nuno da Cunha sai em terra com a pompa de trombeteiros e lustrosa companhia. Chega de Portugal, nomeado governador da índia, e aqui inverna até Setembro. E o ano de quinhentos e vinte e nove. Em Outubro aporta a Goa, toma posse e manda para o reino, sob prisão, por sonegação do poder, o ex-governador Lopo Vaz de Sampaio.

Por todo o lado, dizem-lhe, Badur, sultão de Cambaia, acende a rebelião. Não perde tempo o governador. Percorre a costa do Malabar em expedições punitivas, em substituição de Ormuz, entretanto destruída, manda construir a fortaleza de Chalé. Em quinhentos e trinta e um, com esquadra de vinte mil homens, portugueses e indígenas, de Goa faz vela para norte. Toma a ilha de Bete, após duro combate, e surge em frente de Dio. O destemido Goge Sofar, ajudado por uma armada turca comandada por Mustafa Arrumi, dito Rumecão, rechaça os assaltos, com o ferro coado de bombardas, colubrinas e basiliscos.

Retira Nuno da Cunha e, em retaliação, destrói Gogá, deita por terra as fortificações de Baçaim e de Damão. Badur vê-se coagido a doar ao governador português a cidade de Baçaim, onde, em trinta e três se constrói a fortaleza.

Súbito descem do Norte hordas de Mongóis sobre o reino de Cambaia. Gritaria de espanto, incêndio, devastação de terras e de gentes. Badur refugia-se em Dio com a família.

- Pede auxílio aos Portugueses - aconselha-o Coge Sofar. - Em troca, cede-lhes terra para a fortaleza que tanto desejam.

Assim faz o sultão. Nuno da Cunha aceita. Martim Afonso da Cunha marcha com cinco mil homens escolhidos contra os Mongóis.

De novo na posse do reino, arrepende-se Badur da cedência feita e começa a urdir a traição. Descoberto foge numa trirreme e frente às muralhas de Dio é atirado à água e trespassado pela lança de um marinheiro português!

Por algum tempo se conservaram pacíficas sob o nosso domínio a fortaleza e a cidade de Dio.

Eram estas as notícias que Barros me enviara. Não medi, então, quanto isso iria modificar a meu teor de vida, mas aconteceu que, conversando com Bembo, que muitas vezes a mim e a Bonamico falava com entusiasmo da sua História de Veneza que andava escrevendo, lhe referi o que se havia passado na índia a vinte e seis de Junho atrás passado.

- Correm sons - digo-lhes - de que os Turcos preparam uma fortíssima armada para atacar Dio e expulsar os Portugueses.

Mostrou-se Bembo em extremo interessado:

- Os Turcos? - disse. - Por todo o lado os Turcos! Enquanto Francisco primeiro de França faz com eles amizade, quem se lhes opõe? Veneza, Portugal...

- ... e Carlos quinto - acrescentou Bonamico. Bembo virou-se para mim com vivacidade:

- Como eu gostaria de saber português para poder ler esses papéis!

- Queres que tos traduza para italiano?

- Far-me-ias esse favor?

- Ao ouvir-te agora falar, Damião - disse Bonamico -, lembrei-me de quantas vezes te tenho incitado a que entregues à memória dos homens esses factos admiráveis e os divulgues numa Europa tão adormecida.

- Matéria não te falta - disse Bembo.

- Mas não te esqueça - continuou Bonamico. - Não penses que os feitos actuais superam os antigos. Não. Cuida de ter sempre presente cotejá-los com os relatos dos historiadores da Antiguidade.

- Apresentá-los com viveza! O leitor como a ver aqueles rasgos, a ouvir aqueles brados e estrondos, quase a sentir na carne o retalhar daqueles golpes...

- Julgo que tens razão - ponderou Bembo. - Isso mesmo procuro eu em algumas das páginas que estou a escrever. Sobretudo os grandes combates navais apaixonam-me.

Ocupei os dias que se seguiram a trasladar ao italiano aquelas notas e, confesso-o, a compô-las um pouco à maneira de Lívio. Findo o trabalho, entreguei-as a Bembo.

Chegavam as férias escolares, dava eu por terminados os meus estudos na Universidade. Os meus amigos tinham razão. Era uma vida muito agitada a minha, em constantes viagens. Porque não parava? perguntavam. Porque não me aquietava? Também eu, também eu, em meu coração me sentia cansado. Quatro anos de escolaridade em Itália mais os anteriores estudos em Lovaina e junto de Erasmo, somava eu cerca de oito anos de humanidades e andava nos trinta e seis anos. Era altura de...

Um dia Splinter, arrumando as malas, disse-me:

- Vou para cima. Para a minha terra. Tenho saudades. Ver os irmãos, ver minha irmã, os pais, ouvir o pio dos albatrozes librando as largas asas sobre as salsugens do mar do Norte... Queres vir?

Dias depois partíamos, com grande desgosto dos companheiros e sobretudo de Bonamico que me tinha amizade de pai. Acabava Setembro, chegávamos aos arredores da Haia e avistávamos ao longe, na extensa campina, a casa acolhedora, a chaminé a fumegar por entre o arvoredo, os conhecidos álamos, os freixos, os arbustos de oloendros, os enormes plátanos. Entrados no bosque, rodeámos a casa por detrás para as cavalariças e apeámo-nos. Com o ruído da chegada, acorria criadagem. Caminhávamos eu e Splinter pelo parque em direcção à entrada, aproximava-se da porta, vinda do jardim, uma jovem senhora com uma braçada de túlipas e rosas. Parou a olhar e logo:

- Meu irmão! - exclamou pousando o ramo num balaústre do alpendre e correndo a abraçar Splinter. - Que surpresa!

- Joaninha querida! - ria Splinter levantando a irmã nos braços.

Espantado que eu estava. Não reconhecera de imediato Joana. Haviam-se passado quatro anos e quem ali agora eu via era uma galante donzelinha.

- Joana!

Só então se virou para mim:

- Damião! Man chevalier portugaloisl - e abraçava-me e beijava-me.

- Que alegria! Há tanto tempo! Só notícias pelo meu irmão... - e virava-se para Splinter: - Não avisaste que vinhas. Não vos esperávamos.

- De surpresa é mais agradável.

Assomava à porta a mãe, os serviçais, em alvoroço.

- Ora graças a Deus, meu filho!

Eu estava transtornado pela beleza de Joana e não tenho agora, à distância do tempo, palavras para a celebrar. Lembro-me dos versos em que, depois, o meio amigo Luís Vaz cantaria outra formosura semelhante:

... testa de neve e ouro

riso brando, suave, olhar sereno

um gesto delicado

que sempre na alma me estará pintado...

... que sempre na alma me estará pintado... sempre. Ainda trago nos olhos aquela amorosa visão, nos ouvidos a voz avelutada de oboé, nas mãos a delgadeza daquela cintura... Minha triste viuvez!...

A senhora Matilde vander Duin cumprimentou-me e deu-me as boas-vindas:

- Mas não fiquemos aqui parados. Venham, venham. Que alegria! e já entrava com o filho pelo braço.

- Pois tu és Joana? - estacava eu mais uma vez a olhá-la.

- Quem havia eu de ser?

- Meu Deus, que linda és! Uma mulherzinha feita! Deixa-me ver-te bem.

- Pensavas que eu iria ficar sempre uma criancinha? As pessoas crescem, lembra-te disso.

E eu estendia-lhe as mãos como para a apreciar melhor e ela oferecia-me as suas e deixava-se contemplar...

- Está satisfeito mi caballero português*.

Fascinado. Nem sei que diga. Assim tão bonita, tens noivo, claro.

Nem claro nem escuro - respondia-me rindo, pegando no ramo de flores, tomando-me o braço: - Entramos?

Entrámos e, enquanto caminhávamos no encalço dos outros:

Reatamos os nossos passeios ao bosque, à campina?

- A colher alcachofras?

- Sim?

- Sim.

Qual, quando, como foi esse segundo luminoso, esse milagre em que duas vontades recebem a revelação divina de os seus destinos serem comuns?

- Alcachofras? - dizia-me ela um dia enchendo a regaçada, saltavam os cães, alegres, à nossa volta... - Uma espécie de teimosia minha com as minhas queijeiras. A menina não sabe que já se não usa? avisam-me. Agora, para o coalho, é muito mais azado e abonda mais prantar no leite um pedaço do bucho de cabrito ou de cordeiro, tamaninho como uma cereja... Mas eu, por lhes fazer sanha... Acho que o queijo fica mais paladoso. Que queres? Birra minha.

- Lá na terra, em Portugal, além das alcachofras, há quem use leite de figueira e vinagre, sementes de açafrão-bastardo...

- Ai! Piquei-me!

- Deixa ver.

Peguei-lhe na mão. Na ponta do indicador uma gota de sangue. Levei-lho à boca a sugar-lha. Em silêncio os nossos olhos olharam-se com doçura.

- Vais ficar com o sangue coalhado - disse-me, a quebrar o enleio.

- Há muito já o fizeram os teus olhos - respondi-lhe. Caminhámos em silêncio e as nossas mãos entrelaçaram-se. Antes de

entrarmos, na sombra de um arbusto beijei-a na boca. Correu para a porta. Segurei-lhe na mão:

- Falarei com o teu irmão! Com...?

- Sim, sim - murmurou afogueada, fugindo casa dentro, derramando alcachofras pelo chão.

Corro a Lovaina no período de noivado, a preparar casa, do mesmo passo que escrevo a meu rei João terceiro a solicitar-lhe o prazo para o enlace. Não só o concedeu mas exprimiu el-rei júbilo por escolha tão pertencente a minha qualidade e, além de me acrescentar com um dote digno de príncipe, ordenou que o embaixador de Portugal na Flandres em seu nome assistisse às cerimónias nupciais.

Quando regressei, por decência e bons costumes aposentei-me em Delft, até ao dia do casamento, na hospitaleira casa de Cornélio Músio, amigo desde os primeiros tempos de Antuérpia e Lovaina e prior do covento de Santa Ágata, a três milhas da Haia. É músico exímio e combinou com Splinter ensaiar um coral com as freirinhas que tem à sua direcção espiritual.

Não são para se escreverem as páginas da intimidade, cujo infólio é a saudade no coração. Mas desejo deixar aqui, nesta almofada de minha cabeceira tumular, o que uns dias antes do casamento, ia Dezembro no fim, me aconteceu com Joana. Aquela manhã exalava-se da terra uma poalhazinha nimbada de sol que dava à paisagem - ao casario e arvoredo, ao vulto de um moinho, ao espelho do canal - o tom ideal dos sonhos.

Passeávamos sozinhos pela campina, tínhamos falado e rido muito sobre os nossos projectos de vida, de mãos dadas ou pegados em beijos e abraços infindos, que Joana talhava fugindo em revoada:

- Não me apanhas, não me apanhas!

Alcançava-a eu pela cintura, virava-a para mim, pegava-lhe na cabeça, os dedos embebidos no oiro dos cabelos, e beijava-a na boca, nos olhos luminosos, na alma...

Caímos ofegantes, à sombra de um ulmeiro, sob pífaros de melros e trilos de pintassilgos. Muito sérios, penetrava-se-nos o olhar, os corpos estreitaram-se e o cavaleiro e sua dona conheceram-se...

Depois, enlaçados, entontecidos - não se me há-de apagar nunca a resplandecente transfiguração de Joana, a quem o amor parecia ter divinizado -, caminhámos longo tempo ao acaso pelos campos, pela margem do canal. De vez em quando parávamos numa mútua contemplação calada e grave. O génio alegre dela emergiu enfim e o meu, que o não era menos, acompanhou-a.

- És feliz? - perguntou.

- Sou feliz. E tu? -Sabes? Foi melhor assim...

Parei a abafar-lhe a fala num beijo:

- Foi melhor assim?

- Foi.

Enfiou o braço no meu e prosseguimos o passeio.

- Uma coisa detesto nas cerimónias de casamento.

- Qual?

- E bom que Deus santifique a união de homem e mulher. Mas a verdadeira união de homem e mulher é o que nos sucedeu. Tu acabas de me receber por tua mulher e eu a ti por meu homem. Tu és o meu marido. E quando...

- ... quando daqui a dias formos ao altar...

- Isso, isso. Mas sobretudo... - suspendia-se um pouco na busca da expressão e logo perguntou: - Que significa himeneu.

- Bodas, esposório, núpcias...

- Muito mais. Hás-de reparar. Toda aquela gente vestida a preceito, sisudos... mas no pensamento...

- O holocausto da virgindade. Não é isso?

- É. A donzelinha, a vítima sacrificada aos deuses...

- Então agora...

- Estou couraçada.

- Couraçada dentro de ti. Mas não conseguirás evitar as secretas titilações lúbricas de todos aqueles paraninfos...

- Estou couraçada contra olhares e pensamentos reservados... -, e parava a colher uma flor silvestre. - Vou colocar esta primula no meu livro de horas, junto ao santo padroeiro deste dia.

Demasiado apaixonados nos encontrávamos então, para termos discernimento de teologizar sobre o pecado, para afirmarmos que os nubentes aguardam, ao pé do altar, que Deus lhes abençoe o acto da procriação ou, em termos rudes, do coito, da fornicação, como eu ousava no tempo em que convivia com Erasmo ou conversava com os protestantes. Mas essas escabrosidades e escrupularias não as conhecia a pureza de um amor como o nosso.

Começos de trinta e nove. O casamento foi festivo e pomposo como convinha à estirpe de ambos.

André van Hargen mostrava-se satisfeito por ver chegar, ricamente vestidos, alguns dos mais ilustres conselheiros do imperador, e Matilde vander Duin, com um vistoso chapéu de abas largas e luvas brancas até aos cotovelos, o colar de pérolas sob o peito, encarregava-se de receber as esposas. Os convidados foram-se acomodando na nave central da igreja, que em breve ficou cheia. Amigos de Antuérpia - o feitor não faltara -, amigos de Lovaina. Alardo de Amesterdão era agora um dos da casa da Haia. Tinha-o conhecido nos meus primeiros tempos de Lovaina, assim como a Cornélio Músio e Cornélio Croco. Eram amigos de Clenardo, de André de Gouveia, de Vives, Budé, Nânio, Goclénio, como eu. Erasmistas, todos. Alardo carteava-se com Nicolau Clenardo e, embora severo contrário dos protestantes, aceitara colaboração de Melâncton na sua biografia de Rudolfo Agrícola, o que parecia significar algum espírito de tolerância. Músio, cuja casa em Delft eu frequentava com Splinter e os outros, havia sido designado recentemente prior do convento de Santa Ágata nessa cidade. Ofereci-lhe um dia um cálice etíope de prata, que me mandara Zagazabo. Venerava tanto Erasmo, como tinha aversão à escolástica, a que Erasmo e o Colégio Trilingue de Busleiden opuseram uma sã pedagogia contra o ensino da Universidade. Tivera Resende como companheiro nessa aversão. Estudara Teologia e ordenara-se. Cornélio Croco presenceara as desordens dos anabaptistas em Amesterdão ia para quatro anos e, além de ser contra o anabaptismo, combatia a Reforma sem deixar de ser censor dos excessos do catolicismo. Aceitava comigo ser mais puro o cristianismo dos Etíopes. O humanismo influenciara estes católicos tradicionais, de jeito que eu me sentia à vontade na roda dos meus amigos holandeses, sem me ser necessário modificar o pensamento em matéria religiosa.

Na primeira fila, entre os pais de Joana, encontrava-se, muito alto e barrigudo, o conselheiro que a regente Maria da Hungria enviara em sua representação. Vinham também chegando o prefeito, professores e outros homens-bons da cidade e arredores, casais amigos mais os filhos, todos muito solenes nas suas roupas esmeradas.

Eu entrei ladeado pelo nosso embaixador e. pela esposa, que insistiram em ser meus padrinhos. Caminhámos pela coxia até ao altar e aguardámos a chegada da noiva. O celebrante já aí se encontrava com os acólitos, virados para a assistência. No silêncio geral, ouviu-se fora pateada de cavalos e o rodar de carruagem, o parar junto ao pórtico e, uns instantes depois o órgão desatou a lançar pelas abóbadas catadupas de sons e as vozes do coro elevaram-se aos céus:

Veni, propera, arnica mea...

A minha música! Queridos Splinter e Músio, lá em cima no coro a dirigir os cânticos!... Eu e os meus padrinhos voltámo-nos levemente para a entrada. Joana aproxima-se pelo braço do tio, Cornélio Suijs, irmão de Matilde. Traz um levíssimo vestido de seda branca e o véu de tule esbate-lhe sob o ouro do cabelo a luz do meio sorriso. Belíssima, os meus olhos não mais se despegaram dela até que chegou e com um olhar feliz se colocou a meu lado.

Depois do casamento e da missa, Splinder e Cornélio Músio juntaram-se a nós na sacristia a assistir à assinatura dos assentos matrimoniais. Seguiu-se na casa de meus sogros um excelente banquete em que cada um a seu modo manifestava alegria. No fim houve os costumados brindes, mas foi Alardo de Amesterdão quem a todos chamou a atenção com a leitura do seu Epitalâmio, em latim, ao nosso casamento. Alguns passos provocaram risonhos comentários brejeiros dos comensais. Vinham sobretudo de Músio e de Croco, que conheciam muito bem, tal como eu, o amigo. É que Alardo a todos espantou porque, fogoso pregador contra protestantes e anabaptistas, tendo levado vida de monge, eis se revela agora poeta pagão e sensual. Frémitos de velho? As pessoas sepultam em esconderijos do coração pequenas sordidezas e fragilidades da alma e do corpo. Aí estavam as tenras vides a abraçar os ulmos, o Leto a amar as águas e Mirto as praias como a lépida Joana a ligar-se ao marido, a morrer de amores pelo seu homem... o aroma dos cinamos a misturar-se com o nardo, o plátano e o choupo a alegrar-se com a linfa do rio...

- Homem, por que caminhos nos levas? Abraços, mescla de odores, líquidos humores...

Não se intimidou o bom do Alardo e atirou:

... a seu marido abraça Harga formosa e o cônjuge a sua Harga ergue nos braços tão bem como a palustre cana o gozo logra com a terra limosa...

- A canna palustris? - perguntou uma voz, logo secundada por risos mal contidos.

Na onda de Oceano, continuava impassível o inspirado aedo, se revia em formosura a estrela vespertina, assim ao cavaleiro apraz Joana... Saía ao céu com ramos felizes a árvore? Ponjoana o cavaleiro lusitano se reproduzia... Vencia Feba a estrelas e a Feba a luz do irmão? Assim Harga triunfava com os seus encantos. E vinha o elogio de Joana:

Dona digna dos que, filhos de reis, criou a idade de ouro, digna de um príncipe...

O príncipe és tu - disse-me ao ouvido a inocência de Joana. Eu estava varado com o que ouvia! Como é que Alardo...?

... de que por tal beleza ou Aquiles morresse ou da guerra de Príamo a cauda parecesse...

Mais florida que o prado e alta mais que o álamo, mais brilhante que o vidro e mais branca que a neve, luz-lhe branquinho o corpo pela seda coado, como os seixinhos se vêem pelas águas filtrados...

-Os seixinhos, hem? Seu lascivo!

Urge-nos a beleza só de a olhar

e amor a si próprio se alimenta.

Assim c’o simples ver se inflama e alenta

a donzela no recato do corar.

A abelha pelo prado suga flores

e de mel o loiro favo vai libando.

Assim de Harga a doçura dos amores

suave lhe o doce peito está arfando.

Dispõe Vénus ante toda a luminária

o Lucífero astro, tal como Harga a luz do seu amor a põe primária.

Alto ílice da hera estreita o laço, numa carne dois corpos une o abraço...

E como neste último verso toda a realidade estava desvelada, deu-se o facto singular de ninguém lhe ter feito glosa. A volúpia, para ser estimulada, necessita do véu da imaginação. O nosso poeta ainda fez reparo ao artífice que com a mão e o fogo afeiçoa a cera, à perenidade do amor como o louro cuja folha não é caduca - assim era a formosura de Joana, a velhice coisa que vinha muito longe...

À socapa, enquanto com risos Alardo era celebrado, eu e Joana saímos da sala. Só Splinter nos topara, que estava à nossa espera junto da carruagem:

- Não queria deixar de vos augurar, meus irmãos, os dias fastos. Também eu me vou casar - disse, com o seu sorriso calmo.

Olho-o surpreso:

- Não te conheço noiva nem pendor.

- A minha noiva espera-me - acorria. - É a Igreja. Sigo a vocação eclesiástica.

Amigo do cardeal Madruzzi, bispo de Trento, muitas vezes, quando estávamos em Pádua, com ele nos reuníamos por causa do nosso comum amor à música. Era profundamente católico e na letra do seu emblema, Improbe Deum fatigamus votis ut nostris serviat, pretendia dizer que na oração não devemos importunar a Deus com os nossos apertos. Assim pensava Erasmo, cujos ensinamentos pairavam nos espíritos tão naturalmente que até os adoptávamos como se nossos próprios fossem, saídos naquele dado momento dos nossos corações. O catolicismo de Madruzzi e Splinter juntou os dois amigos e Splinter pôde aperfeiçoar junto do cardeal as ciências sagradas e ter estreito comércio com os altos dignitários da Igreja.

- Venham visitar-nos muitas vezes! - ficou uns momentos a acenar-nos com a mão, quando partimos a caminho de Roterdão, onde planeáramos passar a noite.

Fomos viver para Lovaina, rua Namur, junto da Igreja de São Quintino. Joana gostou da casa. No átrio a senhora Waudru, a governanta, aguardava acompanhada das serviçais e dos pajens. Com muita discrição deu as boas-vindas e acrescentou:

- A minha senhora irá estranhar certamente que algumas coisas, como tapeçarias, roupas, jarras e miudezas não estejam acabadas de acomodar. Foram ordens do senhor: que deixasse o último toque para quando a senhora chegasse e desse as suas ordens. Sobretudo a salinha de estar da senhora, que há-de querer ao seu jeito.

Minha mulher olhou para mim:

- Damião! Que primor de delicadeza!

- A casa é tua, Joana.

Com que gosto se entrega minha mulher ao amanho da casa. A sua boa disposição e a lhaneza de trato logo conquistaram a amizade da governanta e dos serviçais e todo o ar que se respirava naquele lar era de concórdia e bondade, que me adoçaram alguma da amargura e aspereza que eu trazia no coração com a notícia, súbito chegada, do falecimento de Isabel. Se a Espanha, a Alemanha, a Flandres choravam a morte da imperatriz, se os poetas e os artistas o apagamento de um raio de beleza, eu sentia-me, após a perda tão próxima de Beatriz, órfão de duas irmãs...

Um lar de verdade o meu. Viessem os filhos. Quantas vezes me lembrava da minha infância, de minha mãe, de meus irmãos, da casa de Alenquer, dos cães a saltarem à nossa volta, dos patos a grasnarem, do tanque grande onde as moças, cantando sob o dossel da parreira, lavavam a roupa... Mas havia qualquer coisa que... Porque é que ele, tão amigo dos outros filhos, não gostava de mim? As crianças são como os cães: adivinham em pormenores subtis quem gosta ou não gosta de si. Minha mãe também o sabia, que procurando compensar-me, acabava por ser injusta com os outros filhos em meu benefício de beijos e abraços e palavras carinhosas e alguma goluseima escondida. Agora aqui, o sorriso tutelar de Joana é cautela e fiança de um lar feliz.

Nessa paz, dediquei algum tempo a escrever aos amigos de Itália, da Alemanha, de todo o lado, a dar-lhes a conhecer o meu novo paradeiro e a noticiar-lhes o meu casamento. Revejo os velhos amigos, Pedro Nânio, Rogério Réscio...

- E Goclénio? - pergunto ao ver que Nânio é agora professor de Latim em lugar dele.

A consternação que mostram diz-me tudo.

- Quando?

- Foi a enterrar há poucas semanas.

Afora esta nota triste, fazem-me grande festa e congratulam-se com o meu casamento.

Um dia, quando cansado dos olhos desci do escritório à sala, fui encontrar Joana e a senhora Waudru atarefadas a dobarem novelos de lã, ao calor da lareira, que o Abril ia de frios e ventos agrestes.

- Que está a minha senhora a fazer? - perguntei.

Olhou para mim e sorriu sem responder. A governanta, que era despachada de coração e língua, disse:

- Então não é bom de ver?

- Como é bom de ver? Isso são novelos de lã. E depois?

- E depois, meu senhor - disse Joana - ... e depois... - e desatou a rir com a governanta.

- Estais a esconder-me alguma coisa.

- Os homens são cá uns ingénuos! - comentou Waudru.

Os olhos de Joana fitaram-me... fitaram-me... fitaram-me até ao fundo da alma e foi como se o anjo do Senhor me visitasse:

- Joana, minha querida!

Essa noite, recostados no leito, conversámos longamente.

- Se for menina... - sonhava Joana.

- Se for menina - respondi -, há-de chamar-se Isabel.

- Isabel?

- ... do nome de minha mãe.

- E se for rapaz? - perguntou Joana.

- Emanuel.

Em Maio chegam-me de Portugal notícias que vão, enfim, decidir muito da minha vida. No passado ano de trinta e oito, nos fins de Agosto, a guerra de Cambaia reacendera-se. O sultão Mafamude, sucessor de Badur, auxiliado por Coge Sofar acometera a fortaleza de Dio com dezasseis mil homens. Poderosíssima armada turca, comandada por Solimão Pachá, vem juntar-se aos sitiantes. Cem galés e galeotas, sete mil soldados, artilhafia fortíssima: nove basiliscos de bronze, de carregar pela boca, que lançavam balas de ferro de cento e sessenta libras; cinco espalhafatos que semeavam morte em pedacinhos de metal a todo o lado dispersos; quinze leões e águias de longo alcance; quatro esguias colubrinas de mortíferos pequenos projécteis; um quartlo que cuspia mil pelouros de ferro coado que pesavam setenta arráteis; um sem-número de canhões de bater, oitenta bocas de fogo de vária espécie, entre esperas, selvagens, falcões pedreiros. Durante cerca de um mês despejam a destruição sobre as muralhas até abrirem brecha. Armazéns, arsenais, paiol da pólvora, a casa do capitão, a igreja e muitas habitações jazem por terra em destroços. O capitão António da Silveira, soldados e até as mulheres, em extremos de fadiga, fome e doença, repelem as vagas dos inimigos. Resistem mais de três meses, até que, por fim, cantam para não desesperarem, que de gente válida não lhes restavam mais que doze homens. E quando uma noite - eram cinco de Novembro - esperavam a morte mal raiasse o dia, ouvem no mar enorme gritaria e ribombo de canhões. Espreitam e na escuridão enxergam fachos de muitas naus e relâmpagos da artilharia que ataca a armada inimiga. E não tarda - Deus louvado! - que entrem na fortaleza, com júbilo de todos, soldados portugueses. O inimigo debandara e de manhã causava espanto ver os restos de tantos dias de luta, tanta cabeça com os cérebros derramados, tantos braços e pernas desmembrados, entranhas espojadas cobertas de mosquedo, a apodrecerem nos fossos da fortaleza.

Este o relato que, a mando do próprio rei João terceiro, me chegara do reino. Aguilhoava-me - recordei Bonamico - a que passasse eu a latim aquelas acções e as divulgasse. Soubessem os povos que, enquanto a Europa se perde em lutas de cristãos contra cristãos, os Portugueses expandem e defendem contra os Turcos e infiéis a fé de Cristo. Tentam romper definitivamente a tenaz em que o mundo árabe, desde há séculos, pretende esmagar o povo de Cristo. O próprio rei já assim o resumira no ano de trinta e seis em carta ao papa Paulo:

... desde os primórdios do reino lidaram os reis meus antepassados no dilatar a fé de Cristo segundo as suas forças, para dar testemunho de serem príncipes cristãos... Expulsaram da Hispânia os mouros, tomaram cidades e praças da Mauritania, para lá das Colunas de Hércules, que, defendidas por fortes guarnições, são hoje do nosso domínio. O rei Emanuel, na esteira dos maiores, tendo aberto com as suas armadas o Atlântico e rompido por um mar desconhecido e habitado das medonhas fábulas e lendas dos antigos, correu invicto a costa da Etiópia e ganhou a grande nação para o grémio cristão. Levou as suas frotas e exércitos até ao mar Vermelho, à Pérsia, à índia. Bem conhecidas são as façanhas lá obradas, os povos, cidades e reis submetidos...

- Tenaz? - impugnavam alguns amigos estas ideias, quando com eles sobre isso conversava.

- Tenaz, sim - respondia-lhes eu -, ou anel, ou garrote, ou nó de forca, como quiserdes. Estais esquecidos que eles chegaram a transpor os Pirenéus e a penetrar na França até Poitiers?

- Roncesvales... Covadonga... - recordava Nânio.

- ... de como o meu Portugal foi talhado a golpe de espada pelos descendentes dos condes da Botgonha? E que tentam ainda hoje os Turcos a oriente da Europa? Esquecestes Constantinopla? Olhai a Grécia sujeitada e a Albânia e a Sérvia e a Bulgária. Não estão a Valáquia, a Transilvânia, a Hungria ameaçadas?...

- Veneza, sente-se em perigo - acudia Réscio.

- ... e dá-lhes luta.

- No Mediterrâneo - tornava Nânio -, o imperador prepara-se para lhes estancar a expansão.

- Nós, perseguindo-os no Norte de África, dando a volta pelo mar |Oceano fomos-lhe no encalço e, pelas costas, desassossegamos-lhes os avanços no mar Roxo, no golfo Pérsico, nas águas da índia...

- Mas recorda-me que Paulo Jóvio... - acudiu Réscio.

- Eu sei - atalhei-o vivamente. - Acusou os Portugueses de mercantilistas, criticou-lhes o monopólio do comércio da índia...

- ... e o venderem por alto preço especiarias apodrecidas...

- É pena que saiba um tanto a despeito o que Jóvio tem contra nós. Não colheu de el-rei João as mercês cobiçadas. É verdade que não foi só cruzada a expansão portuguesa. Com tanta despesa, perda de homens e fabenda, era lícito que auferíssemos algum lucro. Ninguém pode é negar a ameaça que pende sobre os cristãos. Ao humanista genovês darei, a seu tempo, resposta acomodada.

Assim falávamos desse perigo real que uma Europa adormecida teimava. em não ver e no meu espírito ia tomando forma o relato das coisas passadas na índia, que o rei me instigava a divulgar. Em Maio deito-me à tarefa e começo a compor os meus Comentarios do cerco de Dio. A quatro de Junho, a fim de apurar e desemperrar ainda mais o meu latim, matricuBo-me na Universidade: «Damianus a Góes, Lusitanus, nobilis», reza o meu assento, número setenta e sete. Trabalho sem descanso. As vertigens parecem ter-me abandonado. Teria razão o médico aconselhando-me a casar?

Foram os meses passando até que em Setembro, das oficinas de Rogério Réscio O Cerco de Dio saiu à luz. No fim do volume fiz publicar a réplica a Paulo Jóvio com as minhas razões. Orgulhoso da obra, envio-a aos amigos um pouco por toda a Europa. Primeiro a Bembo, a quem naturalnente a dedico, pois a considerava continuidade daquelas notas que para pé eu traduzira em Pádua sobre os sucessos anteriores a estes. Depois, com piais critério, a el-rei João e aos príncipes, a João de Lancastre, duque de aveiro, ao conde de Vimioso e ao filho, a João de Barros, a André de Resende e outros amigos do reino. Lembrei-me do papa Paulo, do imperador, da Maria da Hungria, regente da Flandres, do duque de Sabóia; não esqueci os amigos de Antuérpia, de Itália, Bonamico, claro, Splinter e Polites Luís Vives e Clenardo, pois então, e Sadoleto e Reginald Pole e João Magnus Gothus e irmão, e outros mais perto ou mais longe do coração, Cristóvão Madruzzi, Cornélio Músio, Segismundo Gelensky, Paulo SperaFo, Joaquim Roulants, a quem me lembra ter escrito de minha mão uma Pedicatória, a Amerbach com quem ultimamente andava frio... longo rol Rue já se me esvai da lembrança, em que entravam John More, Tiedemann piese, Giovanni Palus, que logo a seguir saiu a lume com a tradução italiana, o meu querido Glareano, irmão no amor da latinidade e da música... Com a notícia do meu casamento e depois o envio do livro, não tardou que, no correr de semanas e meses, me fossem chegando respostas.

Epístolas prestimosas que muito calaram então em mim. Agora, preso como estou nesta cela, sem as ter presentes senão na memória, com a sageza da velhice não posso deixar de considerar como é industriosa a nossa maneira de escrever. Humanistas e ciceronianos não podem fazê-lo de outro jeito. Lá hão-de acertar todos os topos e expressões encontradas já feitas no grande modelo, só no último recurso a palavra nova por força dos novos inventos. Como dou neste momento razão ao meu Erasmo! Não é que seja fingida a amizade e a admiração, mas de tanto repetirem brincos de estilo, perdem na espontaneidade. As cartas de Pedro Bembo eram tais como eu as esperava, e as de Bonamico e as dos outros. Mas, quando a alma tinha mais calor que a forma, eu podia sentir a paternalidade de Bonamico, as saudades de Madruzzi, de Giese, a dor a sangrar de Glareano...

Pedro Bembo mostrou contentamento em receber novas minhas e dá-me o parabém de eu ter tomado mulher e me ter resolvido a cuidar da posteridade. Anuncia-me que Paulo terceiro o quer elevar a cardeal. Por isso está de partida de Veneza para Roma. Ficou grato pela fidalguia da dedicatória. Como os outros, confessa o prazer da leitura dos Comentários e incita-me a prosseguir para glória dos meus e do meu nome. O sensível Bonamico, venceu enfim aquilo a que chama a sua «sub-rústica» timidez. Elogia-me a esposa:

... recebeste mulher, segundo ouço, nobre, literalmente educada, formosa, digna de só a ti ser dada em casamento e a mais ninguém...

Dá-me conselhos de pai:

Que te nasçam filhos semelhantes a ti, que instruídos pelo teu cuidado sejam ornamento da sua idade e grande alegria dos teus. Prepara-te para isso. Este é o múnus do casamento, este para todos deve ser o propósito em se tomando mulher.

O meu livro, além de lhe satisfazer a curiosidade pela fama do reino lusitano e do meu nome, acrescia-lhe o relatar a derrota de um adversário da cristandade, das letras e boas artes e da própria virtude. E lá vinha o lembrar a discórdia, a estultícia, a indolência ou a como que cega perversidade dos cristãos, que deixaram crescer formidável um tal inimigo. Confiava em que Deus não havia de permitir fosse duradouro um império que parecia parido e amamentado nas tetas das más artes. De Jóvio nada dizia, ainda não lera os escritos dele.

Segismundo Gelensky agradece o ter-lhe enviado saudações por Froben e sobre os relatos históricos pondera:

Se qualquer história de sua natureza deleita, a peregrina tem ademais a admiração por condimento e a recente mais de perto nos toca, com que festivo aplauso esta tua não há-de ser acolhida, pois nos fala de um outro quase diria orbe?...

Como é precária a comunicação dos homens! De golpe ficámos sós como em ilha deserta, órfãos de amigos e parentes. No dobrar dos caminhos, nas sombras dos bosques, na solidês das montanhas, nas ondas dos mares, a rapina de assaltantes e corsários, os desvairos das tempestades, a ruína de naufrágios; o desabar de neves, a voragem das cachoeiras... e para sempre se perdeu a carta amiga, a notícia esperada... Ali estava uma carta vinda de Antigo Castro. Era o bispo de Culm, Tidemann Giese. Referia o nosso encontro em Dantzig e quanto lhe havia sido molesto nada saber de mim nem em que lugar morava. De opúsculos por todo o lado aparecidos em público com o meu nome e de epístolas de Erasmo a mim dirigidas conhecia que eu, mudado o instituto de vida, me entregava a musas mais fecundas. Por isso mais ardia por ter algum comércio literário com o seu Daniião, já um probo literato, e renovar em qualquer ocasião a nossa amizade caída em desuso, quando lhe é trazido o livro por mim escrito e ao mesmo tempo anunciado ter eu casado e posto casa em Lovaina. Nada mais apropriado para se haver de renovar a velha amizade. Não sendo possível juntarmo-nos em mais chegado convívio, ao menos ter-me-ia por permuta epistolar mais à mão do que se eu vivesse na longínqua Gades.

Se a leitura da obra a tivesses acompanhado de uma carta, seria como se te visse aqui presente a falares diante de mim...

Suspendia eu aqui a leitura. Esquecimento meu não ter feito acompanhar a oferta do livro de uma carta? Nunca cometera tal indelicadeza com quem quer que fosse... Mais uma carta que se perdia pelo caminho?... Leio de novo:

Agradava-lhe todavia o ver que eu ainda alimentava favorável memória de si. Deleitava-se com o argumento de feitos peregrinos e com uma história de rara valentia. De entre o rancho das musas via que eu escolhera de preferência a Clio. Era género de escrita em que os meus Lusitanos me forneciam com abundância matéria riquíssima.

Fazia em seguida reparo às designações de lugares desconhecidos por mim usadas. Corria o risco de não ser exacto nem entendido dos leitores. Aconselhava-me: existiam já, por indústria das Matemáticas, em cartas e globos graficamente impressos, exemplares desta ciência, não precisava eu de suar muito, bastava-me consultar, se me sentisse embaraçado. E advertia:

Escrevo-te isto não só como amigo a quem muito quero mas também desejando sejas tido como grande no sufrágio de todos.

Não fosse sem resposta, pensei. Os Portugueses andam pela primeira vez a visitar terras nunca vistas e a ouvir-lhes os nomes. Terão mas é os ditos autores da topografia de tomar em devida conta este contributo a tal ciência.

E continuo a leitura:

Perguntarás talvez também tu em que estado eu próprio me encontro.

Havia já dois anos que a fortuna o colocara no fastígio da hierarquia eclesiástica. À frente do seu próprio parecer, a autoridade do príncipe, o julgamento de muitos homens-bons e a majestade de Deus que o chamava. Esperava haver de honrar o nome de bispo. O resto eu próprio o conjecturaria. De tal sorte era que seria impudência pôr as vistas mais acima. Dos benefícios colhidos com aquela dignidade usasse eu deles, se alguma coisa julgasse depender de si em que me pudesse gratificar...

Se aquela minha carta para Giese se perdera, os pergaminhos e o globo com a descrição do mundo, que eu havia mandado de presente a Bonamico, chegaram felizmente inteiros ao seu destino. Já assim não aconteceu ao arco do meridiano, com sua graduação e os signos do Zodíaco. Chegou quebrado. Que maçada! brincava, mudando a ideia de arco para outro campo semântico. Como lhe acontecia uma coisa daquelas a ele que a ninguém alguma vez fizera injúria ou ferira avezinhas cheias de inocência?

A Cristóvão Madruzzi, se foi com prazer que leu os Comentários, maior alegria lhe deu a minha carta que lhe chegara pelo correio régio. Ficava a saber do meu paradeiro, que perdera de vista. Conhecedor agora de que eu com a esposa gozava de ócio literário, fazia votos por que todas as coisas me caíssem felizes segundo os meus desígnios. No que tocava a amigavelmente eu o felicitar pela ascensão à dignidade episcopal e o advertir das pesadas obrigações, considerava a grandeza do peso a si imposto e a fraqueza das suas forças e temia sossobrar. Por isso rogava a Deus suprisse com a graça a debilidade do servo. Aquela dignidade nada lhe retirava da amizade que me tinha.

Desejo-te saúde com tua esposa até aos anos nestóreos.

Está a vida cheia de imprevistos. Regra de ouro é acompanharmo-nos na alegria e na dor. Gostamos de partilhar as nossas horas felizes e que nos consolem nas infelizes. Enviava eu mensageiros para todo o lado a apregoar o meu casamento auspicioso, julgando em parte nenhuma seria a nova recebida senão com regozijo. Como me enganei! Sem querer fui, por contraste, magoar e acentuar a dor de um amigo. E que grandeza de alma Glareano manifesta na carta que me dirige em resposta à minha! Em meu egoísmo queixava-me eu de que ele não respondia às minhas inúmeras cartas e eis agora chega esta, enorme no abafar o sofrimento próprio para quinhoar da alegria alheia:

Com grande gáudio recebi a tua carta, nobilíssimo Damião...

Também ele me deseja um casamento feliz até à idade de Nestor... coisa que a si aconteceu bem ao contrário. Todo aquele ano a mulher, sofrendo de ictéria, por outras palavras, de morbo régio, nas Calendas de Setembro rendeu a alma a Deus e deixou-o ao pobre naquela mole de lágrimas. Em tão grande tristeza se lançou, que muitas vezes desejou morrer. Esta a causa de até aí responder tardia e brevemente às minhas cartas. Do coração lhe era eu caro e nunca me esqueceria:

Nem tudo as cartas contêm, muitos esplendidamente retoricam em frequentes epístolas que de modo algum são de coração amigo.

As suas-anotações a Lívio estavam para imprimir-se em Basileia, mas a discórdia dos bibliopolas impedira serem editadas. Igualmente a obra sobre a música, o Dodecacórdio, estava acabada. Mas guardava em casa o rebento, à espera de encontrar tipógrafo idóneo. Não a queria editada por um qualquer. Poucos sabem ocupar-se de notas musicais. O luto pela esposa perdida não pouco havia retardado a sua pressa. Obra imensa, em que trata matérias que não sabia se alguém desde havia oitocentos anos (passasse a imodéstia) alguma vez tentara. Alegrava-se de se lhe ter oferecido ocasião tão apropriada de celebrar o meu nome nessa obra. Seria para ele honroso e para mim de modo algum desdouro. Para o ano que vinha tinha a intenção de a dar à luz, se pudesse acordar com livreiro exímio alguma honesta condição e ele próprio vigiar a obra. Pretende editá-la com magnificência. Não espera lucro, basta-lhe o proveito público e dos músicos estudiosos. Mas não queria por mais tempo mortificar-me. João Brisgóico na véspera das Calendas desse mês de Novembro fechara o extremo dia, tendo estado doente alguns meses. Como enfeitar notícias destas? Desculpasse-o, não queria negligenciar o meu pedido... A ler os Comentários, mal percorrera algumas folhas, eis lhe chega João Wernherus de Rifchach, homem da antiga nobreza da casa teutónica, comendador ali em Friburgo, que à nobreza da família juntava muitas qualidades de alma, erudição não vulgar e juízo agudíssimo. E levara-lhe o livro por três dias. De maneira que ainda o não pudera ler, mas o que lera sumamente agradava.

Eia, para a frente, meu Damião, continua a tratar matéria tão digna.

Visse eu como agora se alongava, ele que eu acusara de brevidade. Perdoasse-lhe as inépcias.

O luto ainda me ocupava e as lágrimas pela esposa roubada perturbavam-me muito...

Durante algum tempo tive a carta de Glareano nas mãos considerando o infortúnio do amigo...

Minha mulher está cada vez mais cheia. Escreveu aos pais, aos irmãos, ao tio Cornélio Suijs. Viessem visitá-la, que o médico tinha-a proibido de se meter comigo ao caminho para a Haia naquele estado.

Desejos insólitos assaltavam-na:

- Waudru...

- Que capricho é desta feita, minha senhora?

- Bananas de São Tomé.

- Ih! Meu Deus, o que aí vai!

Acudia eu, conquanto fosse Inverno, com bananas maduras que mandara vir da nossa feitoria de Antuérpia.

Descansa muito, leva horas a desfiar canções e a fiar camisinhas para a criança que lá vem.

Por mim, quando me sinto cansado de escrever, para além dos serões de música que continuo a ter com os amigos, novos e velhos, saio a espairar.

Sub tegmine, pela sombra dos bosques de Herverlee nos arredores de Lovaina. Passeávamos aí um dia eu e Nânio, ouvimos atrás de nós a voz de Guy Morillon que nos chamava:

- Damião! Nânio! Esperai por mim, amigos. Juntou-se a nós:

- Deixai que goze convosco desta ameníssima manhã.

- Sê bem-vindo, Guy - disse eu. - íamos falando de humanismo e música.

- Tenho sobre isso opinião segura - afirmou Nânio. - Os métodos musicais dos antigos nada têm a ver com as composições de Damião, digo e redigo. No entanto ele rebate-me.

- Erasmo, como sabeis - lembrou Morillon -, embora a princípio tenha elogiado a polifonia, corrigiu posteriormente o parecer.

- Conheço bem o caso - disse eu.

- Considerava que essa música não deve ser ouvida nas igrejas...

- ... por não vir de gregos nem de romanos.

- Mas dizia eu - atalhou Nânio - que a música polifóníca nada deve ao humanismo...

- Não concordo totalmente contigo, Nânio - contestei. - A literatura latina exerce nesse domínio alguma influência. Tenho disso a consciência...

- Como assim? - perguntou Morillon.

- ... e a experiência. Conheceis melhor do que eu a Virgílio. Evocai a sua descrição das cenas pastoris, a imaginação do poeta a animar a natureza de ninfas, sátiros e tangeres de cítara...

- ... em versos já de si melodiosos...

Havíamos chegado junto de uma fonte. Cantava a água e, por cima, um coro de rouxinóis e pintassilgos.

- Escuta - disse Nânio estacando e levando o indicador aos lábios -, escuta como tudo aqui soa!

Estivemos calados por segundos e eu, quase sem me dar conta, pus-me a compassar gorjeios e trinos, gorgolejes e cristais de água.

- Mestre - pediu Morillon -, ensina-nos a ouvir estas toadas que vêm da água da fonte.

Peguei do chão pedrinhas e pequenos seixos e, debruçando-me sobre o tanque natural que as águas haviam afeiçoado nas rochas, pus-me a falar pausadamente, parando a cada palavra, num cicio:

- Referve a linfa em jorro... borbulha em cachão... pífaros... metais de flauta... agudos... graves... ondula e ri... gargalha... (deixo cair a primeira pedra)... tinir... (segundo e terceiro seixo)... de campanhias... harpas... vibrações de cordas... sob o jorrar da onda que espuma, as ninfas velam cautelosas... ouvimos-lhes as vozes no rebentar das bolhas...

Orelhas atentas, quase em êxtase, os amigos bebiam o ressoar da fonte.

Ha ramagem os melros desataram em gargalhadas mais álacres que as das águas...

Em princípios de Fevereiro de quarenta, finalmente o parto. Joana teve um rapaz. Dou-lhe o nome de Emanuel.

Nânio compõe um formoso gentílico em verso latino:

Eis enfim um dia alegre, digno de jóia eritreia. Es pai, Damião! Era

invernia desabrida, carregada de brumas, de imbríferos nimbos tudo alagado, sem hora serena de chuvas na terra náufraga de águas deucalióneas.

Nasceu o doce rapazinho, o rosto de Jove abriu-se em riso e a seva procela desfez-se ao longe. Do pólo maial sorri Vénus, lembrada de dar a onde chocasse os ovos com tempo sem chuvas. Injusto fora que atingisse o que cada ano concede à avezinha.

Um céu sem nuvens pressagia alegrias para que o menino está fadado.

Ajuda o bom augúrio o nome santo que lhe deste. Deus está connosco é o que quer dizer a palavra hebreia Emanuel. Cresce, meu pequenino, reproduz o teu pai, os numes sejam contigo, que tens nome comum a deuses e

a reis. Seja-te celeste sempre a mente e cheia de divina majestade, no grande coração guarda a magnanimidade real.

Lusitano, Batavo e Brabantino, estas terras são a tua pátria.

Têm os deuses inveja da felicidade dos humanos? Vivia eu em paz com o amor de Joana e do filho, com a fortuna dos meus livros e do meu ócio literário, com a minha música e a amizade dos amigos, quando desabou a primeira pedra da derrocada que ao longo de vinte e nove anos me havia de trazer à miséria presente. Desprevenidos nos apanham sempre estes avisos, embalados como nos deixamos levar em pequenas vitórias pessoais que nos afagam a vaidade e embotam a visão da realidade. Se o nascimento de um filho é marco na vida de um homem, não o é menos a saída à luz de um novo livro. Acabara eu a tradução do relato de Zagazabo sobre a fé, a religião e os costumes dos Etíopes. Trabalho absorvente que me fizera negligenciar a escrita de cartas a quem as devia e me retirava do convívio dos amigos. Com razão poderiam queixar-se da minha ausência e do meu silêncio. Estou a lembrar-me de Bonamico, de Sadoleto, de Bembo e tantos outros de longe. Mas eu sabia que, quando lhes escrevesse a enviar-lhes o livrinho, seria este mesmo o meu escudo contra os dardos que de direito me poderiam lançar. Os companheiros de Lovaina, estranhando, apareciam-me em casa:

- Que se passa contigo, Damião?

E eu, um momento recostado para trás no espaldar do cadeirão, cansado, esfregando os olhos, explicava-lhes o premente do caso. Zagazabo, um homem singular e de grande porte. Que lição ele trazia a esta Europa dividida e intolerante! Lembravam-se os amigos da minha Legatió! O embaixador etíope havia-me chamado a atenção para vários erros. Não culpa minha, atenuava. De Mateus, que era arménio e mal informado das coisas etíopes. Por isso agora eu introduzira correcções importantes. Não dissesse «Abissínia», avisava-me ele, mas «Etiópia». O negus preferia que assim se chamasse ao seu país. E o título do negus não era «Preste João das índias»...

- Como não? - admiravam-se.

Assim o haviam divulgado os escritores europeus. O título verdadeiro era «Precioso João da Etiópia», que acabava com a confusão que viajantes não esclarecidos faziam entre os cristãos da índia e os da Etiópia.

- Lana caprina - atirava Réscio. - Que importa isso?

Replicava eu que havia alterações de fundo. Em Legatio abordara a rama da questão religiosa. Agora, graças à lucidez de Zagazabo, a sustância mesma. Zagazabo expunha os princípios da Igreja Etíope, descrevia-lhe os ritos, as práticas religiosas, a circuncisão de homens e mulheres, o baptismo anual, o casamento dos sacerdotes e a observância do sábado com a do domingo no espírito da palavra de Cristo de que não viera para abolir a lei mas para a cumprir. Recordava à Igreja Católica as múltiplas heresias que a tinham abalado. Não seria possível, perguntava com ousadia, chegar a acordo com a Etiópia sobre a actual divergência de opiniões? Tanto a África como a Europa podiam ter razão nos seus respectivos princípios e procedimentos. As discussões eram inúteis. Não fora mandado ao papa de Roma e a Sua Alteza o rei de Portugal, declarava, pelo seu poderoso senhor, o imperador da Etiópia, para tomar parte em contendas, mas para estabelecer laços de amizade.

- Quer dizer: o âmago dessa mensagem...

... a tolerância religiosa: muito mais sensato, diz ele, acolher em espírito de caridade todos os cristãos, sejam gregos, arménios, etíopes ou quaisquer outros das sete Igrejas Cristãs. Deviam de viver irmanados, que todos somos filhos do baptismo e partilhamos a verdadeira fé...

- A tolerância religiosa.

Na corte do rei João terceiro, discutiam com ele os teólogos Diogo Ortiz de Vilhegas e Pedro Margalho, engordados da sua verdade absoluta. O embaixador, confrontado com a necessidade de se defender, lança os fundamentos de toda a busca de tolerância. Não estavam os meus amigos de acordo com ele e comigo? Olhassem. Uma só coisa bastava, a concordância em pontos fundamentais da fé, para unir grupos religiosos.

- Era bom que assim fosse.

O ritual? Coisa secundária, continuava eu.

- Tem coragem o teu homem, Damião.

- Mas ele sabe que nunca teria podido expor às autoridades católicas as suas opiniões sem o teu generoso apoio. Também tu estás a mostrar grande coragem usando da tua autoridade a favor da religião etíope.

Respondia-lhes eu que tinha bem a consciência da ousadia do passo que dava, mas que de outro modo aqueles aspectos da religião ficariam calados. Vissem os amigos como um povo primitivo considerava sagrada a religião cristã. Não sabiam da minha insatisfação quanto à vida religiosa do Ocidente?

- Muitos dos teus amigos humanistas - disse Nânio - concordam contigo nesse ponto e aplaudirão os Etíopes pela sua sinceridade. Mas a tua tolerância, Damião, creio que não alcança tão longe.

- Erasmo - lembrou Réscio - falou algures dos Turcos como

«meio-cristãos». Nicolau de Gusa defendia uma unidade religiosa que incluísse até os Turcos. Mais lançados*Postel e Bodin alargavam-na aos próprios Muçulmanos.

Na actual conjuntura, vissem os amigos, não me era possível aceitar estes últimos. Pela unificação de todas as Igrejas Cristas, sim senhora. Não refutava a cultura dos Árabes, mas não se esquecessem que, se eles por seu lado pretendem invadir a Europa sem qualquer sombra de tolerância religiosa, os Portugueses, pelo menos, vão combatê-los pelas costas nas paragens do Oriente. Compreendo que todas as religiões contribuam para o enriquecimento da vivença humana. Mas as nossas conquistas no ultramar são cruzada em terras de pagãos e de infiéis...

Assim resumia eu aos meus amigos o pensamento de Zagazabo e o meu próprio. Retiravam-se deixando-me ao meu trabalho e curiosos de verem o tratado cá fora. Quis Deus, no entanto, que, antes de sair à luz do dia este filho espiritual, tivesse eu a notícia de que a Joana faltaram de novo as costumadas luas.

- Estou outra vez prenhe, meu amor.

Beijei-a comovido e longo tempo de mãos dadas estivemos ali deitados, em silêncio, a olhar o futuro para além do tecto do quarto.

Dobaram os meses, não tardou que, acabadas as tarefas da tradução, eu passasse a ir com frequência à oficina de Rogério Réscio a acompanhar a impressão da obra, que finalmente vinha a lume no Setembro chuvoso. Foi com o livrinho ainda a cheirar a tinta que no Novembro seguinte, além de ir à Universidade matricular meu filho Emanuel, prestando em nome do menino juramento de obediência, a fim de ele ficar independente das autoridades excepto da do reitor, solicitei para o livro acabado de sair o nihil obstat. Demorou o parecer do censor e o ano terminou e veio outro ano com os meses a arrastarem-se com lentidão, de tal modo que nem já me lembrava do requerimento a despacho. A tomar-me a atenção, as cartas que me vinham chegando de todo o lado, dos amigos a congratular-se com a publicação do tratado. Era Adamo Carolus, era Sadoleto, Bembo, João Magnus Gothus. Todos unânimes em declarar prestimoso o trabalho e oportuno. O amigo João de Barros, a quem mandara um exemplar acompanhado de um quadro de Dúrer, agradecia-me com calor. Tive conhecimento de que Inácio de Loiola, cuja Ordem o papa recentemente aprovara, se quis informar sobre o meu livro. Não cheguei a saber qual o seu parecer, mas não me admiraria nada de que fosse igual ao dos seus colegas jesuítas e sobretudo do meu inimigo Simão Rodrigues.

A vinte e três de Abril nasceu o meu segundo filho.

- E a minha vez de escolher o nome ao menino - disse Joana. há-de ter o nome de um doutor da Igreja da minha devoção.

- Qual?

- Ambrósio.

Embora não fosse nome muito comum na minha terra, nem por sombras me opus à escolha. Ambrósio, meu filho, Deus te acumule de graças e te faça sage e prudente como o teu patrono.

Para meu gáudio, corria Julho de quarenta, a Faculdade de Teologia concedeu-me enfim o nihil obstat à minha obra:

... iterum testamur eunden ipsum librum talem esse qui sine aliqua 0 ppositione passim per totum orbem legi et deportari possit...

... demais atestamos que o referido livro é tal que pode ser lido e correr por todo o orbe...

A temperar em fel estas alegrias, com grande espanto e desprazer meu, datada de vinte e oito desse mesmo mês, recebo carta de Henrique, infante, inquisidor-mor e arcebispo de Évora:

Por ser cá ordenado que os livros novos chegados de fora, primeiro que se vendam, sejam vistos por um oficial da Santa Inquisição, a tua obra foi a isso submetida. O inquisidor achou nela muitas coisas boas, somente alguma o ofendeu: as razões que o embaixador do Preste nela dá sobre as coisas da fé contra o bispo Adaim e mestre Margalho vão muito fortes; ao passo que as deles contra o embaixador são mais fracas. Dando-me ele conta disto, sem embargo de eu saber seres tu tal pessoa e de tão boa consciência, contudo, assim pelo cargo que tenho como pela obrigação em que te sou, por não se dar ocasião a ninguém dizer mal, assentei que se sobrestivesse na venda dos ditos livros por me parecer que tu assim o haverias por bem.

E te rogo, pois sabes que gente é a portuguesa e quanto folga de repreender, que daqui em diante empreendas antes obra de outra qualidade. Sei que tu bem o saberás fazer. E te agradecerei muito me escreveres novas de Alemanha e da Dieta e particularmente dela porque folgarei de o saber por carta tua.

Que turbilhão de pensamentos desencontrados e de magoados sentimentos me tumultuam no coração e no pensamento? Meu pobre Portugal, que enveredas pela senda da escuridade e intolerância! Havia eu esquecido que a Inquisição, a Santa, tinha sido instituída no reino havia uns seis anos? Este, pelo andar, ainda há-de chegar a cardeal... Cautela, Damião. Como pôde permitir tal enormidade o rei João terceiro, de início tão tolerante? Que negrume de tempos vinham lá?... Não tive cautela. Zangado, irritado, respondi ao infante agravando-me dele por ter mandado que a minha obra não corresse no reino, mas, por descargo, sempre lhe fui dando notícia da Alemanha e da Dieta.

A acrescer a esta irritação, outra me ocupou também. Compus por essa altura um opúsculo de desagravo contra declarações de Sebastião Munster menos abonatórias das qualidades das terras e gentes de Hispânia. Não me sofria o vezo ficar calado perante algumas aleivosias e afirmações não fundamentadas daquele ilustre cosmógrafo e meu amigo sobre a nossa península: a esterilidade do solo, a ignorância latente sob a verborreia, luxo exterior, frugalidade em casa, gula nos banquetes, hospitalidade rude, hipocrisia, insociabilidade e barbárie de costumes, dependência comercial da França...

Ainda manuscrito, dediquei-o e mandei-o a Nânio que eu sabia curioso do que era ibérico:

Muitas vezes, meu caro Nânio, acertou entre nós falarmos de coisas hispânicas e eu percebi que tu, ainda não saciado, esperavas de escritos meus mais ampla notícia. Obedecendo ao teu desejo, apeteceu-me escrever isto para ti, com a ressalva de que, se agradar, o leias e comuniques aos amigos apreciadores do género, se não, o lances a Vulcano...

O inquisidor-mor infante torna a escrever-me:

Os dias passados recebi duas cartas tuas. Uma em resposta do que te escrevi e a outra mais comprida em que te agravavas de mim por ter mandado que a tua obra se não venda. E alegas muitas razões para se não dever tal coisa mandar. Do que recebi muito desgosto por ver quão mal informado estavas da verdade e quanta culpa e repreensão merece o que te fez tomar essa paixão e deu entendimento tão desviado do que houvera de dar ao que eu mandei.

Espantava-se crer eu que, por alguma má suspeita de minha consciência, mandara sobreestivessem os livreiros na venda da obra. Tinha-me agora na mesma conta de bom homem e bom cristão em que sempre me tivera. Por isso havia por escusado responder às razões que eu lhe dava. A primeira parte da obra, escrevia ele, era boa e essa não a proibira de ser vendida e lida. Mas na segunda, em que se tratava das coisas da fé e superstições dos Etiópios, por serem no meu livro aprovadas pelo embaixador do Preste com razões torcidas e autoridades da Sagrada Escritura mal entendidas, e por haver no reino tantos cristãos-novos, muito deles culpados de heresia, parecera-lhe e aos inquisidores que, em tempo que no reino se começava de usar a Santa Inquisição, se não devia ler tal obra. Uma coisa era relatar simplesmente os ritos de uma nação e outra querê-los corroborar com razões falsas. Não, eu não tinha nenhuma culpa, nem merecia repreensão. Somente nesta parte fora intérprete. Se eu estivesse lá e visse as coisas como andavam, eu mesmo houvera por bem se não lesse essa parte do livro, ao menos em Portugal. Ofendera lá dar eu tanta autoridade a esse embaixador: o que ele diz parece que é mais firme e autorizado. Eu escrevera aquilo, não tinha ele dúvidas, por não ser bem informado de quão mau homem Zagazabo era e na sua própria terra havido por herege. Se isto eu soubesse, tinha por certo que não dera tanto crédito às palavras dele. Vendo pelo mundo fora os louvores que eu lhe tecia e os queixumes que ele fazia de o tratarem mal, que honra nisso ganharia o reino? Por essas causas e não por outra nenhuma, mandara que, por agora, se não vendesse aquela parte da obra. Em nada ficava prejudicada a minha honra. Havia de folgar muito de fazer por mim e por minhas coisas quanto em si fosse e agradecia-me muito as novas que lhe eu mandara da Alemanha, da Dieta de Ratisbona, e encomendava-me que assim o fizesse sempre e também lhas mandasse de mim...

Assim terminava a carta. Que fazer perante isto? Encolho os ombros, ttiste, e dou por acabada a ocorrência.

Nânio não só gostou do opúsculo sobre a Hispânia como o entregou a Réscio para que o editasse. Saiu a lume no ano seguinte. Foi polémico. Fugger escreveu-me. Achava que eu tinha sido demasiado severo com Munster.

Com a carta na mão, levanto-me cansado e vou até à janela. Crepita um bom fogo na lareira e lá fora envisca-se um Março de morrinha cinzenta. O bom amigo João Diogo Fugger! Família de grandes mercadores alemães de Augsburgo que com os Welser e os Hochstetter tinham estreitas relações com Portugal nos tratos da índia. Católico, devotado ao César, como eu coleccionador de obras de arte. O seu escritório naquela cidade alemã. Eu gostava de o visitar. De pé, vestido de negro da cabeça aos pés, a testa longa a ir-se-lhe pela calva até ao gorro preto que descai sobre a nuca, apontava o dedo a dar ordens, em frente da escrivaninha comprida, o grosso tampo de castanheiro, tinteiro e penas, mapas, compasso, numa estante inclinada o volumoso livro dos assentos. À esquerda, encostado à parede um alto armário com gavetos assinalados pelos nomes das principais cidades com que negociava: Roma, Venedig, Mayland, Insprug, Konisberg, Lisbona... Sentado, cabeça descoberta o escrivão. Alonga veste por onde enfiava as mangas a cair-lhe até ao chão, as pernas longas de meias calças atadas por ligas azuis sob os joelhos. Sua cara redonda, rosada, barbela sobre o pescoço alentado.

Responderei sem demora à carta. A força que têm as palavras! Lançam-se os pensamentos e os outros recebem-nos como se fossem pedradas. Há sempre cabeças sensíveis atingidas. Será assim tão custoso aceitar a verdade?...

Que me atirei, dizes tu, pouco amigavelmente a Munster, homem afinal meu conhecido. Elejo-te juiz do caso. Ora pensa, se estivesses para escrever os louvores e uberdade da Alemanha, como eu da Hispânia, que havias de dizer contra aquele que sem causa chamasse aos Alemães famélicos, do alheio sempre engordados, para com os estrangeiros duros, ferozes e inumanos, e imperitos, limitados de engenho, arrogantes e vaidosos, notas com que Munster investiu a nossa gente?

Eu, ao contrário, enquanto defendo os nossos, que fiz ou cometi? Alemães e Franceses não os firo no geral, como ele aos Hispanos mas apenas em particular e só contra servos e parasitas, como brincando, emiti a minha defesazita. A Munster apregoo-o homem de bem, a quem somente aconselho a que de futuro escreva com mais cautela e apenas entregue aos prelos o que houver por certo. Se o tivesse feito, não teria publicado tanta mentira até também sobre a sua Alemanha...

Por uma tarde de fins de Junho de quarenta e dois Joana disse-me:

- Os nossos meninos crescidinhos, o Emanuel dois anos e meio, o Ambrósio já um aninho... O tempo tão bonito! Não será boa altura de irmos à Haia visitar a família? de voltar a correr aqueles campos a colher alcachofras, lembras-te?

Respondi-lhe rindo:

- Belas alcachofras são estas que nós colhemos desde as pradarias da Haia.

- Colheremos uma regaçada delas, se quiseres...

Partimos com alegre companhia de criados e a aia Waudru a ninar os pequeninos ou a nomear-lhes as coisas que passavam à vista, no vagaroso andar da carruagem:

- ... as nuvens brancas no céu - apontava -, um bando de gaivotas... olha patinhos a nadar no rio...

Subimos a Antuérpia, onde fizemos paragem. O velho Grapheus abraçou-me com as lágrimas nos olhos, abençoou as crianças e beijou chorando e rindo a mão de Joana:

- Que alegria para este velho já sessentão!

Mas, apesar dos sessenta anos, que bem tocou e cantou no serão musical que depois da ceia fizemos com outros amigos.

Daí a dois dias, quando estávamos para prosseguir viagem, chega-me mensageiro açodado:

- Cavaleiro Damião, um exército francês prepara-se para cercar Lovaina. A cidade está a reunir forças para o combater.

- Que se passa? - perguntou Joana.

O núncio explicava um tanto vagamente: parecia que, por razões religiosas ou outras desavenças, não sabia bem, um corpo de tropas francesas, comandadas por Martin van Rossen, senhor de Poederoyen, e Nicolau de Bossu, senhor de Longueval, vindas de Clèves e de Juliers, entraram pelo Brabante de caminho para o Luxemburgo a juntar-se ao exército do duque de Orleães. Evitavam fortalezas como Malinas e Bruxelas, que lhes podiam opor resistência, mas as mais pequenas ou desprotegidas e os lugarejos sem defesa eram impiedosamente assaltados, saqueados, incendiados...

- Voltamos para trás - disse eu num ímpeto.

- Como? - reagiu Joana: - Então já não...?

- Não me sofre o ânimo a covardia de deixar os outros sem a minha ajuda.

- Mas... E o perigo? Eos meninos!...

- Vamos. A caminho. Não há-de ser nada, mulher.

À tarde entrámos em Lovaina pela porta de Leste e, apenas a família recolheu a casa, dirigi-me à Universidade. Havia concentração de estudantes e civis da municipalidade que, exaltados, se propunham defender a cidade. Distinguia-se aí, pelo ardor com que falava aos estudantes, o cavaleiro castelhano, meu amigo, Pedro Lopez de Haro, que tinha o prestígio de se ter batido com glória ao serviço do rei da Dinamarca. Mas era visível que nada seria eficaz se a regente Maria não enviasse rapidamente tropas regulares que dissuadissem o atacante. Findava o mês de Julho, em reunião de universitários e munícipes fui designado para capitanear os estudantes. Deram-me como ajudante, vicegerens sive subcapitaneus, a Severino Feyten. Na terça-feira, dois de Agosto, o inimigo chegava-se às muralhas e acampava no arrabalde de Ter-Banck. A cidade entra em pânico. Os homens grados da municipalidade e da Universidade reúnem-se de novo a deliberar sobre que fazer.

- Propor tréguas, a ver o que eles pretendem e a dar tempo a que chegue auxílio - lembrou alguém.

- Tréguas, sem mais? Não estamos em posição de o exigir.

- Eles vão de passagem. Querem é vitualhas. Dêem-se-lhas...

- ... ou dinheiro...

Foi então resolvido enviar ao encontro dos comandantes inimigos uma pequena delegação. Por eu conhecer Longueval, fui indigitado para encabeçar as negociações. Acompanharam-me Lopez de Haro, o próprio maire de Lovaina, Adriano de Blehen, e um outro munícipe. Em breve os quatro chegávamos à fala, fora de portas, com van Rossen e Longueval. Após uma primeira troca de palavras, logo se viu que os inimigos, valendo-se da sua força e da nossa fraqueza, exigiam resgate demasiado elevado. O maire pediu licença para ir dentro com os outros expor às autoridades as condições impostas, enquanto eu ficava ainda a falar com os comandantes na tentativa de que não agravassem, entretanto, o estipulado. Regressava Blehen, eis insólito disparo irrompe das muralhas sobre tropas inimigas que se haviam aproximado dos muros. Van Rossen e de Bossu, furiosos, recolhem à tenda de campanha, ordenando aos soldados que nos trouxessem presos.

- Quebra de tréguas? Isto é traição - disse Longueval.

- Senhor - respondi-lhe -, nós só falámos na boa-fé. Devem ter sido certamente reforços enviados por Maria da Hungria e agora não te resta senão, em vez de um grupo de estudantes, enfrentar um exército do imperador Carlos. Será melhor retirares.

Tanto Martin van Rossen como Nicolau de Bossu acharam prudente levantar o assédio, mas infelizmente eu e Adriano de Blehen fomos levados reféns por Longueval e o genro, Jacques de Monchy, caminho da Picardia e, pelo desfiladeiro do Oise, subimos à alta colina de Laon, onde, à sombra da velha catedral gótica, nos lançaram nas masmorras do castelo dos Templários.

Com os ossos a doerem-me, enferrujados, nesta enxovia de minha velhice, e os longos dias e as vigílias longas da eternidade desta cela, recordo a angústia dessas primeiras horas, dias, semanas, meses de prisão na força dos meus quarenta anos na cidade roqueira, sem que me acudisse uma palavra, um papel, notícias de alguém, lá fora, estava cuidando do nosso destino.

- Acalma-te - consolava-me Adriano. - A cidade, a Universidade, a regente Maria... alguém estará a tratar de nós...

- Os dias passam...

- Então a tua mulher não se há-de mexer? Os teus amigos? Com a tua influência e o peso que eu sei que tens, até me esperanço de que também a mim me há-de atingir o que por ti fizerem.

- Porque não soa nada então?

- Com tal pressa como tu...

- Não sejas modesto. Não é todos os dias que se comete um assédio e se saca como refém o maire da cidade.

- ... súbdito de el-rei João terceiro de Portugal, amigo do César, para não dizer o que mais soa à boca pequena por toda a Flandres, vais ver que não tarda aí novidade. Mas não te estranhe se pedirem resgate chorudo.

Sem notícias embora, eu sabia que Joana não era mulher para se ficar a chorar a desventura e ausência do marido. Activa, haveria certamente de mover influências e procurar afastar obstáculos. Mas na minha solidão de Laon eu não conhecia então dois factos importantes: que a Universidade, por eu ter ficado a falar com Longueval e van Rossen, enquanto Blehen ia dentro de muros dar parte das negociações, me considerava pessoa feita com o inimigo; que Joana, por me terem por traidor, havia sido privada dos direitos e isenções de que gozávamos como súbditos da instituição universitária. Mais de admirar que, nessa conjuntura adversa, não esmorecesse. Querida mulherzinha! Concebeu o mais imaginoso, arrojado e ingénuo plano de me libertar.

Agosto escoara-se e Setembro passara mole e viscoso a gemer humidade pelas paredes frias da prisão. A outonada gelada começou de soprar encanada por todo aquele desfiladeiro penhascoso. Tempo de mortos, sem um livro para ler, conversa lassa, estanque. Ferrolho na porta, era a comida, abundante e não de todo má. O guarda, mudo. Pousava pratos, escudela, pão, canjirão de vinho em cima da mesa e saía autómato como entrara a rodar a fechadura. Uma hora por dia deixavam-nos passear para trás e para diante no eirado do albacar. De novo dentro, ou estendidos no catre verrumávamos com os olhos para além do tecto de tijolo abobadado ou estendíamos a vista através das grades pelo vale adiante até ao azul esbatido das montanhas, para lá delas, para norte, aonde nos voavam as saudades, aonde o conforto, a liberdade, a dignidade roubada... a minha querida Joana e os meus filhinhos...

Da janela gradeada via-se contornar o morro do castelo o carreiro que a ele trazia. Uma tarde...

- Vêm lá dois cavaleiros - disse Blehen...

Levantei-me e fui ver. Na conjuntura, dois que fossem, naquela solidão e pasmadoria era como assistir a procissão do Senhor dos Passos. Vinham ainda longe para que se lhes pudessem distinguir as faces. Desapareciam agora nas pregas pedragulhentas, apareciam em seguida mais acima, sumiam-se sob um souto de carvalhos, já se ouviam as pegadas das alimárias e súbito surgiram pela senda, mais perto de nós.

- Mas é Garchie - exclamou Adriano - o teu amigo de Lovaina! E, ao lado, semelha ser...

- É, é. Jean de Ia Vide. Que quer isto dizer? Prendemo-lo naquela refrega junto às muralhas...

- Mas porque vem Gabriel Garchie com Jean de Ia Vide?

Ao aproximarem-se do castelo deixámos de os ver e caímos de novo no poço do silêncio. Mais de uma hora se enlesmava arrastadiça, ou assim nos parecia, sem que houvéssemos sinais de Garchie, que certamente alguma coisa a sua presença ali tinha a ver connosco.

- Trará carta de Joana? - perguntava-me eu comigo mesmo. Passos fora nas escadas de pedra, mais que os do carcereiro. O trinco

da fechadura que gira, a porta que se abre. Dois guardas, fardados e armados, perfilados a um e outro lado da entrada. O capitão entra:

- O senhor Adriano de Blehen?

- Sou eu.

- Favor acompanhar-nos.

Adriano olhou interdito para mim e saiu seguido do capitão. O carcereiro entrega-me uma carta e sai trincalhando as chaves no fechar da porta. Era de Joana. Contava-me da postura hostil do senado da Universidade para comigo e para com ela. Dizia-me que Garchie, a pedido dela, havia libertado o refém francês Jean de k Vide e o trazia a Laon para ser trocado por mim. Esperava, com levar a bom termo este plano, ter-me em breve de volta a casa. Senti um aperto no peito, na apreensão de que alguma coisa não correra bem. Pus-me a espreitar das grades e daí a pouco vi, nas voltas do carreiro, Garchie, Blehen e um intendente das cadeias da Universidade de Lovaina, que eu bem conhecia, a cavalo a descerem o desfiladeiro. Numa curva da senda, Blehen voltou-se na montada e acenou-me adeus. Garchie, seguindo-lhe o olhar e enxergando-me, encolhia os ombros desolado.

Por todo um mês arrastei as lentas grilhetas do tempo, até que um dia me conduziram ao banho, me mandaram despir a fardeta de preso e lavar-me e me restituíram, limpas e brilhantes, as vestes da minha qualidade humana. No eirado esperava-me uma escolta de quatro homens a cavalo e o seu capitão. Um escudeiro aproximou-se com um belo animal baio:

- Monta - ordenou o capitão.

- Aonde me levam?

- Pelo caminho o saberás.

Os quatro cavaleiros colocaram-se à frente e começaram a cavalgar em boa brida. O capitão deu-me a sua direita. Parecia mais escolta de honra que de guarda a prisioneiro. Assim era, que o militar, jovem educado e bem-disposto, disse:

- Deves de ser, cavaleiro Damião, pessoa de importância, que o rei Francisco primeiro deseja ver-te.

- Vamos então...

- ... a Fontainebleau.

Naquela altura não sabia eu em que pensar. Foi caladura de muitas léguas andadas, a ruminar na ideia o que estaria a passar-se. Lembra-me de que às tantas fiz ao capitão uma pergunta como se ele estivesse a cuidar no mesmo que eu:

- Intercessão de el-rei João?

- Que el-rei João? - olhou-me atónito.

- O rei de Portugal - esclareci.

Permaneceu algum espaço em silêncio, como a entabular trebelhos de xadrez, e depois disse:

- Só recebi ordens...

Um tiro de pedra adiante, acrescentou:

- ... mas coisa taluda é de certo, para o rei Francisco te receber... Meia milha mais à frente:

-... e soou que até a rainha...

Decorreu-me a recordação a Leonor de Áustria. Quantos pormenores ma lembravam! Viúva do rei Emanuel, irmã do César e agora, por casamento em segundas núpcias com Francisco primeiro, rainha de França. Irma de Isabel, rainha da Dinamarca, e de Maria, rainha da Hungria e da Boémia e regente da Flandres, e de Catarina, mulher do rei João terceiro e rainha de Portugal. Nascida nessa Lovaina que aí me trouxe refém às masmorras de Laon... Gostaria de a rever. Mais quatro anos que eu, devia conservar ainda a sua extrema formosura. No tempo da corte, em Portugal, distinguia-me com especial amizade, andávamos eu e o príncipe João nos dezasseis anos. Os seus vinte, havia nove dias acabados de fazer quando chegou ao Crato a encontrar-se com o esposo a vinte e quatro de Novembro de quinhentos e dezoito, guardo-os nos olhos. E como não havia de guardar, que assisti a todas as cerimónias do recebimento? Soa-me às orelhas o espanto dos cortesãos pelos corredores do paço, perante um matrimónio destinado de havia muito ao filho e súbito anunciado como acabado com o pai: «Rei tão prudente não dar ao nojo pela rainha defunta mais tempo que seis meses, para tratar em segredo para si o enlace com a prometida noiva do filho e surpreender tudo e todos com o facto consumado!»... «Dar em casar-se quando as barbas lhe nevam e tem a casa cheia de herdeiros!»... Se os nobres se sentiam, tomou-o mal o príncipe. Entendendo el-rei o desagrado, mandou um dia chamar os senhores e fidalgos que se encontravam na corte e fez-lhes fala em que expôs suas razões. Todos se mostraram satisfeitos, salvo o príncipe, o que não obstou a que fosse o primeiro a beijar a mão de el-rei, seguindo-se-lhe os infantes Luís e Fernando, os duques de Bragança e de Coimbra e os outros nobres e prelados, pela ordem das precedências, em demorada sessão até chegar a vez de Fruitos de Gois, meu irmão e guarda-roupa de el-rei, e finalmente a de Pêro Carvalho e a minha, os únicos a quem se permitiu entrar em pelote neste acto do paço, que o porteiro da câmara, Gaspar Gonçalves de Riba Fria, tinha ordens para não deixar entrar mais ninguém. Murmurava o povo: «Velho lúbrico! Sem aliviar as vestiduras da viuvidade, buscar donzelinha formosa para madrasta dos filhos! Roubar a noiva, moça e asadinha, ao príncipe João!»...

Leonor também não ficara muito agradada com a troca de esposo. Quando de Saragoça, concluídos os contratos matrimoniais, descia com luzida companhia de fidalgos a caminho da raia portuguesa, alguns ministros procuravam convencê-la das excelsas qualidades do pai desprimorando o filho com deficiências de parecer, gentileza e entendimento: «Casas com um rei, senhora, e não com um bobo.» E Leonor, contava-se ao chegar ao Grato, vendo a distinção do príncipe João, segredou, espantada, ao ouvido de Brites de Mendonça, sua dama: «Pêro es este el bobo de quien me hablabari!»

Trago nos olhos aquele cabelo castanho, apartado ao meio e ondeando sobre as fontes, ornado de um entrançado de pérolas a terminar no lado esquerdo em grande pingente de topázio. Das orelhas, que se não viam, pendiam três rubis que a luz tingia de sangue. O gorro de veludo a descair sobre a direita. Rosto para o comprido, não magro, sobrancelhas finas, olhos escuros, nariz bem proporcionado, lábios corados polpudos, pescoço cheio mas esbelto, tez rosada, testa alta, expressão calma e recatada. Fino cordão de ouro com safira envolve-lhe a garganta. De ombro a ombro, um pouco acima do decote horizontal, atravessa o peito colar de carbúnculos engastados em prata e saem mais abaixo, ondulando com os seios, duas voltas de uma fiada de cornalinas apanhada a meio do peitilho de seda azul-escuro numa opala embutida em brocha de ouro. As mangas tufadas de brocado encarnado, golpeadas de cetim bege.

O pensamento - pelo menos assim o considerava eu então - aclarava-se-me. Em Leonor eu tinha uma boa aliada. Esta minha chamada à corte de Francisco primeiro talvez a ela se devesse, além da directa intervenção do meu rei...

Seguíamos pelas margens do Oise, junto aos álamos aprumados e aos choupos de folha prateada, bulideira. Entrávamos pelos bosques de Compiègne, onde fizemos a primeira paragem para pensão de pessoas e animais. No dia seguinte, atacávamos caminho até Chantily, depois até Paris. As treze léguas que vão de Paris a Fontainebleau corremo-las na terceira jornada e, por volta do meio-dia, penetrávamos pelos extensos soutos de castanheiros e carvalhos, pelo denso arvoredo de pinheiros, faias, salgueiros, freixos de verdura mimosa e frescas sombras.

- Forest giboyeuse - disse o capitão. - El-rei gosta de vir para aqui caçar.

- A rainha também?

- A rainha é triste. Enquanto o marido corre lebres e amantes, o porco-espinho, o gamo e as duquesas formosas, ela mete-se em seus aposentos, solitária, a rezar.

Súbito o arvoredo abriu-se em larga clareira e avistámos o palácio a avermelhar-se ao sol.

A audiência com o rei foi simples e sem a forma de protocolos. Presentes os generais Longueval e Monchy, o embaixador português e o secretário do rei e poucos mais.

Francisco primeiro era alto e elegante, quase formoso, não fosse o nariz um tanto alongado. Bom parecer, olhos perscrutadores, lábios estreitos, a boina de marta, com penacho, tombando à esquerda, cabelo e barba pretos, bigode delgado a embuçar-se-lhe pelo canto da boca até à barba corredia, gibão de cetim entreaberto no peito, sem gola, deixando ver o peitilho da camisa fechada na base do pescoço forte e, sobre ela, colar e medalhão de ouro; pelote de brocado golpeado nos ombros, por onde passavam as mangas compridas de que emergiam alvíssimos, em folhos, os punhos da camisa e as mãos de dedos afuselados.

Quando o camareiro me fez entrar, el-rei encontrava-se sentado a uma mesa rodeado por áulicos que se conservavam de pé. Ao sinal de que me aproximasse, adiantei-me em vénia a beijar-lhe a mão.

Então és tu o famoso Damião de Gois? - exclamou com boa disposição. - Humanista, escritor, nobre cavaleiro português e outras Apartes que me constam, mais segredadas... e defensor de Lovaina. O rei João terceiro, meu ilustre primo, envia-me sobre o teu caso o seu embaixador em Paris. Queres ouvi-lo?

O embaixador via-se-lhe pela falta de viveza que repetia o parecer de rei João: se o refém era prisioneiro de guerra, aplicasse-se o resgate, costumado em tais casos, de mil coroas de ouro. Se não era tal, libertasse-se pura e simplesmente.

- Não pensam assim os meus generais - comentou el-rei.

O resgate sempre estivera em proporção com a qualidade do refém opunha Longueval. E eu não era um refém qualquer, sire sabia-o bem... Além de que tentou evadir-se - rematava.

- Peço perdão - intervim vivamente. - Eu não tentei evadir-me. Propuseram, isso sim, que eu fosse trocado por um refém francês.

Francisco primeiro seguia o debate com atenção.

- E de feito - acrescentava Monchy - Jean de Ia Vide foi trocado, mas por um refém lovaniense da sua estatura, o maire Adriano de Blehen, e mesmo assim com uma caução de duas mil coroas de ouro.

- Mas, se bem entendo - disse el-rei -, a intenção era, com essa operação, libertar Damião.

- Para que fugir à verdade, sire? - respondi. - Era essa a intenção. Quem não faz tudo por adquirir a liberdade? Tu, sire, tens disso a experiência vivida em acção sem dúvida admirável...

Sorriu-se agradado com a alusão Francisco primeiro:

- Lembras bem, Damião, lembras bem... E então em que ficamos, meus senhores?

- O refém tem que satisfazer o preço do resgate, sire - teimava Longueval.

- ... resgate - adiantou Monchy - que já sofreu todos os abatimentos admissíveis.

Francisco primeiro levanta-se e passeia pela sala de um lado para o outro. Depois, pára diante de mim:

- O rei João, meu estimado primo, intervém a teu favor. A rainha minha mulher, lembrada da amizade antiga, intervém em teu favor. O teu nome, que ressoa por toda a Europa nos teus livros apreciáveis, depõe a teu favor. O rei de França reconhece que não foste culpado de traição e está disposto a ordenar as coisas em teu favor...

- Mas, sire... - ia a dizer Longueval.

- ... mas o rei de França também não pode, sem mais, preterir o parecer dos seus conselheiros. Espero que compreendas...

- O resgate... - dizia Monchy.

... exorbitante... - contrapunha o embaixador.

Reduzi-lo-emos. Deixo isso ao vosso cuidado, senhores generais e> virando-se para mim: - Estás livre, cavaleiro Damião de Gois - e caminhando para a saída deu uma ordem ao ouvido do mordomo-mor.

- Vem comigo, senhor - disse este numa vénia. Caminhámos por uma comprida galeria ornada de formosas esculturas

e festões de estuque que envolviam medalhões de pinturas a óleo.

- De quem é esta belíssima decoração? - perguntei.

- De Rosso e de Primatice, senhor - respondeu o mordomo -, dois artistas que sire mandou vir de Itália. Rosso já faleceu, mas Primatice ainda se encontra com os seus mesteirais a trabalhar no palácio.

Eram composições mitológicas e alegorias que eu vi apenas de relance sem lhes surpreender o assunto, mas noutras salas e galerias pude avistar a história de Hércules, a vida de Alexandre e belíssimas peças de ourivesaria de Benvenuto Cellini, segundo as informações que o bom homem não regateava, orgulhoso do seu saber e da magnificência do rei seu senhor.

Chegámos por fim à porta de um salão de onde vinha leve rumor de falas femininas. O mordomo deu-me passagem e entrou após mim. Era uma quadra ampla, antecâmara dos aposentos da rainha. As damas de companhia conversavam em voz baixa, enquanto iam tecendo suas telas de bastidor ou jogando jogos de mesa. A camareira veio ao nosso encontro.

- O cavaleiro português Damião de Gois - anunciou o mordomo.

- Ah, sim. A rainha espera-o.

Foi dentro à outra câmara e logo surgiu à entrada:

- Madame la reine vous attend, monsieur.

Entrámos. Leonor estava sentada a uma linda secretária cor-de-rosa, em cima da qual, num lutrin, tinha aberto o Livro de Horas finamente iluminado e ilustrado. Levantava-se a receber-me, pálida, as faces um tanto maceradas, alguma prata a brilhar nos cabelos castanhos.

- Senhora! - curvei-me a beijar-lhe a mão.

- Damião de Gois! Que prazer tão grande! Que saudades!... Falava em português. As damas paravam de seus cuidados, admiradas.

A rainha dá-se conta e, meio sorrindo, diz-lhes:

- Mais c’est mon portugalois Damião. II me fait sentir de doux souvenirs du Portugal... de ma filie Marie... - comove-se, uma lágrima a luzir-lhe ao canto do olho.

A filha Maria era aquela princesa cultíssima, filha do terceiro casamento de el-rei Emanuel e que, por morte deste, o rei João não deixou sair do reino com a mãe, para não perder a fortuna do dote que, se partisse, a princesa levaria consigo. Leonor não tinha filhos do casamento com o rei de França e vivia amargurada longe da única filha.

Mandou-me sentar ao pé de si e por mais de meia hora recordou comigo os anos que esteve em Portugal.

Acabada a recepção, encontrei-me com o embaixador português em Paris, com o qual tratei do pagamento de seis mil e trezentas coroas de ouro de minha alforria e demais despesas de danos sofridos e a viagem de regresso no mês de Abril, o que tudo montou a quase dez mil coroas. Havia escrito a minha mulher e ao irmão para a Haia a contar-lhes da minha libertação. Joana apressou-se a regressar a nossa casa em Lovaina, onde a pude abraçar após nove meses de separação dolorosa.

Soube então de toda a ignomínia sofrida pela pobre na minha ausência. Que fera se me pôs a rugir no osso da alma? Já não era a desconsideração a mim próprio, mas as represálias que exerceram em Joana quando eu me encontrava preso Esse é o pendor de muitos: deleitarem-se com difamar e não com agradecer Grande vício da natureza humana e intolerável o de esquecer favores com o agravo da laceração e da opressão da virtude alheia e o condimento da malícia. O ingrato rebaixa os serviços recebidos e corrói e apouca a fama dos outros, a fim de nada parecer dever-lhes ou quase nada. Escola de sageza seria não abusar de tais artes para lesar o nonie e a dignidade de homens bons merecedores de reconhecimento. Se isso não convém a nenhum mortal, menos ainda aos lovanienses. Em público e em privado constavam os muitos serviços a eles por mim prestados. Quando a cidade se encontrou em conjuntura gravíssima, eu, com risco da vida e da fazenda, dela afastei o perigo. Retribuíram-me o bem com o mal, o devotamento com o ódio, com a quase ruína a salvação da cidade a que sempre dei as maiores e mais abundantes provas de me ser do coração, cara e aprazível. Recordo o modo de vida que aí levava, a educação da família, as relações amigas com os excelsos académicos, com os senadores e a nobreza do município, a consideração dos estudantes e dos cidadãos. Tudo murchou. Aqueles, para quem antes do cerco eu era caríssimo, para esses mesmos depois da libertação da urbe comecei a tornar-me insuportável, não parecesse deverem-me fosse o que fosse. Espero todavia me não seja negado testemunho público da minha inocência e dedicação. Em Outubro proferi ante o senado universitário uma oração em que me queixava da ingratidão e exigia uma compensação pelo menos monetária dos prejuízos sofridos. Não me atenderam. Uma vergonha, apesar de saberem pelo próprio Longueval que o levantamento do cerco à cidade a mim se deveu. Mais humano o Conselho da cidade, que me exprimiu os agradecimentos em termos amplíssimos. Salvem-se também os amigos, que alguns deles me celebraram em verso. Pedro Nânio publicou, a pedido dos estudantes, que me reconheciam como salvador da cidade, um discurso em minha defesa contra os detractores. E salve-se sobretudo o imperador, que, para lá de outras mercês - escreveu-me, assinada de seu punho, uma carta em que condenava a acção de Longueval e de Monchy -, me fez o dom de um brasão com o qual compus minhas armas nas da minha geração. Cinco cadernas de quatro crescentes postas em aspa substituem as seis existentes postas em pala... Minha prosápia meio satisfeita...

El-rei João, com quem amiúde me carteava, sabendo do envolvedouro inamistoso em que eu vivia, com os bons ofícios da rainha veio em meu socorro, mandando-me chamar ao reino para exercer o cargo de mestre e guarda-roupa do príncipe herdeiro João, de oito anos de idade. Não me assistiram na conjuntura aurúspices que me dissuadissem de partir, que outro pior destino ao longe me esperava. Mas eu não soube atender a eles. A Joana repugnava a ideia da partida para tão longe da sua terra e dos seus costumes:

- Queres desarreigar-me?

- Não, minha querida.

- Sou salgueiro da ria, álamo que bebe a vida à borda dos canais da planície.

Procurava animá-la com a sugestão da amenidade do nosso clima:

- E mais azul o céu e a água da minha terra. O Tejo é rio mais vasto que o Escalda. O Inverno lá é mais brando que o teu Verão. As andorinhas chegam mais cedo...

- Dizes-me isso para me convenceres. Mas eu sei que é a ti próprio que estás a pretender persuadir. Não é um pouco do teu sangue a tinta que neste momento está a gemer nos prelos de Rogério Réscio, a imprimir obras tuas? Vais-te embora e deixas esses filhos abandonados?

Referia-se aos opúsculos vários que haviam de sair a lume no Dezembro seguinte. Como calavam em mim as suas razões!

- Também tu, sei-o bem, não queres ir. Deixemo-nos ficar. Podemos ir morar para Bruxelas, mais chegados à regente, ou para a Haia, para a nossa casa?

- Tenho de obedecer ao rei.

- És mais sujeito de Lovaina que do teu reino...

Nada me demoveu do meu dever. Em Julho de quarenta e quatro já me encontrava em Antuérpia com a família pronto a embarcar. Ainda assim os fados quiseram dar-me sinais que o não fizesse. Joana adoeceu e foram lentos os meses que ali ficámos à espera de que convalescesse. Escrevi a el-rei dizendo-lhe não poder partir por ora, por estar a mulher doente, e que, quando a Deus prouvesse tê-la bem, então iria. Mais dizia:

O Imperador, além das mercês que me fez e cartas de represálias que me deu contra os Franceses pelos serviços que lhe fiz em lhe com minha prisão salvar a vila de Lovaina, me tem dado umas armas pêra minha honra e dos que de mim vierem. Delas mando o brasão e pintura a meu irmão Fruitos de Gois. Beijarei as mãos de Tua Alteza me querer fazer a mercê de mas confirmar, que seja ocasião de minha mulher tomar maior ânimo de se ir a esses reinos e a seus parentes de a deixarem ir...

Só em finais de Julho do ano seguinte assistia eu no cais de Antuérpia ao levantar da âncora do barco que levava a minha casa e as aias com os meus filhos, Emanuel, de cinco anos, e Ambrósio, de três e meio, enquanto minha mulher, assistida de criadas e guardada por criados fiéis, seguia por lentas jornadas, devido a encontrar-se ainda combalida. Eu abalei pela posta, a mata-cavalos, para chegar primeiro e tudo prover e aprontar.

Entregues os filhos à frágil ventura dos mares, a mulher aos perigos dos caminhos, a pressa e a preocupação dos meus nem me deram para notar as minúcias e peculiaridades das terras e gentes peninsulares por onde passava. No lampejo de uma paragem em albergue de estrada, num momento de descanso em que o caldeirão borbulhante que eu era por dentro parecia acalmar, é que me dava conta do desleixo e lentidão das pessoas, dos casebres térreos, pobres, de telha vã e pedra insonsa, dos campos da miséria e incultura, e pensava se não tinha razão Munster em muito do que escrevera sobre a Hispânia. E surpreendia-me a ver as coisas circundantes, não com os meus olhos de mero português, mas com os do humanista viajado e agora sobretudo com os olhos de Joana habituados a casas bem construidas, a limpeza, arrumação e labor incansáveis. Mas é esta gentinha, este bicho da terra, perguntava Centro de mim o meu patriotismo, que anda por esse mundo de Deus obrando maravilhas? E contradizia-me, por sentir que preferiria hão ter partido da Flandres, o país em que se me patenteavam as portas do mundo culto dos humanistas, terra de pintores e músicos, de Ockeghem e Josquin que tanto amoldaram o meu pendor musical.

Na primeira semana de Agosto estava eu no cais da Ribeira ao desembarque da nau que trazia os meus filhos. Joana chegou, muito abalada, no fim do mês. Dirigi-me a Alenquer, onde tinha tudo acomodado para os receber e os deixei, e rumei em meados do mês a Évora a visitar el-rei e a corte, com vista à posse do meu cargo e a preparar casa para a família. Campinas sem fim, terras maninhas, sem braços que as cultivem, comprar lá fora o pão para a boca, rezar e bater no peito, ouvir sermões, queimar os hereges na fogueira, despovoar o reino... sinto amargos de boca... Venho de um jardim em que o povo rouba a terra ao mar para que ela dê trigo... estou num país que o mar alagou...

Esperava-me o veneno do padre-mestre Simão Rodrigues, da Congregação e Ordem de Jesus, meu assanhado contestador de Paris e Pádua, então confessor do infante. Encontrámo-nos certa vez naquela viela estreita nas traseiras da sé. Como sou pessoa de não guardar rancores, saudei-o comprazido:

- Estimado Simão Rodrigues! Há quanto tempo! Desde Pádua! Cara glabra a transudar fanatismo e ódio na sombra espessa da barba rapada, olhos febriloucos, sem um sorriso respondeu:

- Que faz por aqui o herege Damião de Gois?

Como também não sou pessoa para me ficar quando me mordem, retorqui com secura:

- Não sou herege.

- Discípulo de Erasmo...

- Erasmo não era herege.

- Tu o dizes - e desandou.

Passados tempos, tendo eu visitado André de Resende, recordámos os dias de Antuérpia e Bruxelas, as lides literárias...

- E a tua saúde, Damião? Tens de ter cuidado contigo. Quis eu fazer graça e disse-lhe:

- Parece que há agora aqui uma casta de peste mais mortífera que a peste negra.

- Falas da Inquisição? É verdade. E vem a talho referires isso. Tenho de que te sobreavisar.

- Que há?

- Tens um inimigo perigoso.

Apesar de estarmos no recato do seu escritório, olhou em redor como a medo de falar e segredou-me:

- Soube-o por inconfidência de um oficial do Santo Ofício. O padre Simão Rodrigues.

Não descansara o assanhado frade - moeu e remoeu, a cinco e logo a seguir a sete de Setembro - enquanto não inculcou à Inquisição, perante o inquisidor apostólico do arcebispado de Évora e sua comarca, o licenciado Pedro Alvares de Parede, ser eu pessoa não ortodoxa para o mester que el-rei se propunha confiar-me. O piedoso jesuíta, alumiado na defesa da fé, não hesitou em galgar a raia da morte e perseguir também a frei Roque de Almeida já sem remédio defunto. Quando o infante inquisidor-mor revelou o caso a el-rei, João terceiro mostrou muito desprazer:

- Que andais vós a fazer? Então eu chamo ao reino um humanista tal como Damião de Gois e esse padre-mestre ousa abocanhá-lo? Estão aí a chegar, para o meu Colégio das Artes, os sábios bordaleses André de Gouveia, Diogo de Teive, João da Costa, George Bucanano, homens de espírito aberto. Quereis morder-lhes também?

O infante Henrique despachou minha causa na Inquisição com o seu supersedendum nunc esse - por ora deve-se sobrestar o processo - e eu não fui molestado, mas a rainha, com algum grão que lhe ficara no ouvido, fez que o cargo me não fosse cometido. Deram-no ao doutor em teologia pela Sorbona e ex-regente do Colégio de Santa Bárbara, António Pinheiro.

Da fala com Resende uma palavra me ficou a zoar nas orelhas:

- Nunct Por agora?

- Também a mim fez espécie. Tem cuidado, Damião.

- E a segunda vez que o cardeal...

Com o sentimento de amargo arrependimento por ter deixado a minha Flandres, regressei a Alenquer a tratar da casa, de meus ócios e negócios. Dedico tempo a escrever o Cerco de Lovaina, a pedido de Carlos quinto. Foi editado em Lisboa a meio do ano seguinte, na casa de Luís Rodrigues.

 

                         Um auto em Alfama

Uma dor mais, meu velho corpo, carcaça infecta que fedes e exalas podridão às minhas próprias narinas?... Ou não passa da mesma dor mais espalhada? Onde agora? Nem consigo situar-te. Nesta ruína já não tenho para onde fugir, espreita-me a alma pelos buracos dos olhos ramelosos que as moscas teimam em sugar... Chama que bruxuleias os últimos lampejos. Recordas-te de quando eras novo e saudável? De quando o sangue te era gostoso a girar e ferver e cachoar, no caminhar, no cavalgar montes, florestas, rios, ventos e neves, no tocar teu alaúde, teu clavicórdio, no comer e no beber, no estrebuchar o desmaio deleitoso de sementar uma mulher?... O tempo, os meses, os dias, as horas urgem. Há que apressar este meu relato, para almofada de chumbo da minha tumba. Crê uma pessoa que tem resguardado o cofre de seus segredos e aqui e ali, ao longo do caminho, topa com sinais de que mais alguém é senhor deles... na Flandres, em Fontainebleau, em Friburgo, em Pádua, na Sabóia, algures no mundo perdido... Certo é que não passam de ténues insinuações, meias-palavras, olhares oblíquos, como não querendo revelar à luz do dia a verdade nua e crua. Sigilo é tal que nem no meu íntimo o deixo alumiar, sequer balbuciar... e de repente, para grande angústia e espanto meus, ali em Lisboa, naquele pátio, naquele teatro... Como foi possível?...

O Amphitruo de Plauto sempre mexera comigo quando o estudava em Antuérpia na companhia de Grapheus. Agora vejo a comédia trasladada, representada em vivo e aportuguesada, sobre as tábuas de um estrado, por um grupo de comediantes. Ouvi dizer que quem guarda um segredo, ao assistir a representações dramáticas se perturba vendo o arremedo dele em cena. Como me batia o coração!

Era Junho de quarenta e seis, lembra-me bem. Eu tinha vindo de Alenquer a Lisboa, por meus tratos. Fui à Casa da índia visitar o meu amigo João de Barros. Pôr a conversa em dia acerca de interesses afins da nossa lida de escritores dos feitos dos Portugueses no Oriente. Um ser admirável o João. Feitor da Casa da índia, criticado por não enriquecer à custa do cargo, outros valores o movem. Casado, com uma enfiada de catraios, dez, para eles e, da mesma assentada, para todos os filhos da gente lusa, compôs uma cartinha para aprender a ler, uma gramática da língua portuguesa, além de um diálogo em louvor da nossa linguagem. Todavia o seu afinco está em deixar testemunho da nossa acção nas índias Orientais. Anda a escrever essa história, que ficará, pelo que dele ouço e as laudas que me proporcionou ler, um monumento imorredouro. Faz-me grande festa ao ver-me entrar:

- Damião de Gois, o ilustre cosmopolites ecce venit ad me - disse, os olhos arregalados do espanto de me ver entrar. - Como vais, meu rapaz?

- abria-me os braços.

Sabia, pelos barcos que de lá chegavam, que eu regressara da Flandres mal-avindo com os Lovanienses...

- Com os Lovanienses, não - corrigia eu. - Com os do senado universitário.

- Ainda não tive tempo de ler o teu Cerco da Cidade de Lovaina. Daí a pouco, depois das costumadas palavras sobre a vida e a família

de cada um, sentados à sua mesa de trabalho, cheia de papéis, listas de mercadorias e preços, pautas aduaneiras, róis de marinhagem, já a conversa deitava a outras bandas.

- Que foste incomodado por essa víbora do mestre Simão Rodrigues. Tem cuidado, Damião. Os ventos aqui não vão de feição. Se for preciso, finge, bate no peito e põe um ar untuoso.

- Não está no meu jeito.

- Terás que te esforçar. Verás.

- E tu? Que estás a escrever? - mudei de assunto.

- Desde que, em trinta e um, faleceu Lourenço de Cáceres, atirei-me à rude empresa de compor a crónica das coisas do Oriente... Por décadas. Tenho quase pronta a primeira e muito alinhavadas as outras.

- Afiaste as unhas, para o grande estilo, com o teu Imperador Clarimundo. Durante algum tempo também eu tive essa ideia. Depois de sair o relato do primeiro cerco de Diu...

- Vigorosa narração.

-... instavam comigo os eruditos de toda a parte, Bembo, Bonamico, Tidemann Giese, Gelensky e Glareano, Madruzzi, Nânio, o nosso João Rodrigues de Sá de Meneses...

- Palavras de louvor e estímulo que merecias. Desististe?

- Nem tempo livre, nem sossego de espírito, nem favor de príncipes... Está em boas mãos a matéria. Tu, feitor desta Casa da índia, por ti passam todos os acontecimentos e miudezas do que lá se obra. Castanheda, que por lá tem andado... Que poderia eu fazer apenas com ecos chegados ténues, vagos, senão corrompidos, à Europa?

- O meu tempo também não é muito - e olhava desolado a papelada. - Não fossem os serões...

Fomos prandiar a uma tasquinha da Rua Nova, no fervilhar de gentes de todas as nações, já a prática virava ao revés da medalha:

- Tu mal sais do teu escritório - faço-lhe o reparo, volvendo o olhar pela sala. - Acredita no que te digo. O reino está deserto, todo ele é pousio, brejo, tremedal. A viuvez, a orfandade, o desamparo, o adultério, a fome e a miséria são o nosso império.

- E és tu, o inflamado patriota, que dizes isso.

- Por isso mesmo. A verdade não se deve esconder. Doa a quem doer. Nem que seja ao rei.

- Nem tudo está bem, eu sei... - Barros tinha agora o semblante preocupado.

- A desgraça da nação, é o que é. Necessário reconhecê-lo. El-rei adormecido na glória e na falsa riqueza.

- Tem seu preço a glória...

- Vidas? Era de esperar. Mas deitar o reino a perder-se... Por má visão, mau governo... Enquanto os negociantes judeus da Flandres, da Alemanha, enriquecem com os frutos do nosso suor.

- Dramatizas.

- A crua realidade. Aqui, aqui, meu amigo. Diante dos teus olhos. Nas tuas barbas. Não queres ver? Eu vi. Com estes. Mal cheguei. Ainda hoje.

- Quê?

- A cidade cheia de pão, importado que não dos nossos campos desarroteados. E não há lojas para o acomodarem. Apodrece no cais.

- Os oficiais andam a ver se remedeiam a conjuntura...

-... que nunca se devia ter dado. Falta de providência. E o preço? Um dia que estava em noventa réis o melhor trigo levantam-no para cento e cinquenta. Coisa de grande descuido do regimento da cidade.

- é verdade. De acordo.

- Pior ainda. Dois mercadores que trouxeram trigo de Berna foram mandados embora sem lhes terem comprado nada.

- A lei defende que para fora do reino se tire dinheiro.

- Mas devia-se dissimular com quem em tal tempo nos vem de tão longe matar a fome e não espantá-los e agravá-los para não tornarem mais nem deixar tornar a vir seus vizinhos.

- E quem poderá disso avisar el-rei? Tu estás em melhores condições que ninguém.

- Eu, acabo de ser escorraçado?

- Sabes o que eu quero dizer. Disfarçando a inculca, persisti:

- Nas leis há muitas excepções por que se hão-de usar mais para pôr espanto que não para fazer execução. Avisar el-rei para que proveja no bem do seu povo? Porque não? Fá-lo-ei.

Subíamos depois por Alfama, a caminho de nossas pousadas. Empenas de bico, cunhais, andares de ressalto, alfurjas tão apertadas que ao alto o céu mal se enxerga e só por uma nesga entre casas se avista uma tira do Tejo coalhado de naus. Fedor a despejos que escorrem peste nas calhas nojentas, monturos, varandas floridas de sardinheiras, de cravos, de manjericão.

- Agua vai!

Resguarda-te. O Chafariz de Dentro, as Portas do Sol. Aqui abre-se o Pátio da Murça. Grande a azáfama, o martelar de tabuamentos.

- Uma senha, meu senhor, para o auto de Santo António.

Era um garoto de pé descalço, cara suja. Outros andavam por ali na mesma tarefa. Alguns apregoavam:

- Ao teatro, ao teatro!

- Noite de Santo António.

- No pátio das comédias.

- Olha o Auto dos EnfatriÔes do poeta Luís Vaz. Caminhávamos sem fazer caso, acudia adiante outra miudagem:

- Uma senha, senhor.

- Os Enfatriões do poeta Luís Vaz!

- Quem é este Luís Vaz? - perguntei a Barros.

- Deves conhecer os seus parentes. Dos Camões de Alenquer. Um seu avô, Vasco Pires, de costela galega, foi partidário de el-rei Fernando, que o recompensou com a alcaidaria-mor da tua terra.

- De Alenquer?

- Além de galego, era também poeta de mérito o alcaide. Este Luís Vaz, escolar de Coimbra acabado de chegar, como vês tem a quem sair.

- Deixei muito novo a minha terra para conhecer essa gente.

- Está mais perto de ti do que possas imaginar. A mãe é Ana de Sá de Macedo. Uma irmã dela, Inês, foi a primeira mulher de teu pai Rui Dias.

- Ah! - assombro meu. - E este Luís...

- Não conheces de certeza. Cerca de vinte anos.

- Uma senha, meu senhor! Uma senha!

- Olha o Auto dos Enfatriões!

- Deve ser a comédia do Anfitrião - disse Barros.

- Flauto? Estou com curiosidade. Rapaz, dá cá duas senhas. Vens comigo, João.

- Não, não - recusou ele vivamente. - Tenho em mãos, quente do forno, um capítulo que urge acabar. Terás de vir sozinho.

O rapazito vendeu-me a senha e disse:

- Venha espreitar, senhor, ver como o pátio está a ficar jeitoso.

Depois de um portão de pilares de cantaria, subido um lance de escadas, abria-se espaçoso recinto, carpinteiros azafamavam-se em armar, ao centro, sobre estacaria, palanques com bancadas de tábua corrida, em ferradura que ia encontrar ao fundo, encostado a um vão onde se abria uma lógia, o estrado assente em selhas viradas de boca para baixo.

- Quando é a função? - pergunto.

- De sábado para domingo, senhor. Daqui a cinco dias, véspera do Santo.

Durante a semana, sempre que por lá passava, ia deitando olhadela, se apanhava os comediantes a ensaiarem - meu pobre Gil, falecido vai para dez anos! -, se topava o autor. Mas, enquanto estes se mantinham invisíveis, o pátio ia-se transformando e alindando. Mangas arregaçadas nos braços morenos, cintura delgada, cantando alegres, moças atarefadas, empoleiradas em escadotes, dependuravam festões de flores ao correr das paredes e por sobre as vergas das portas, varriam outras o serrim e as finas, enroladas falhas de madeira espalhadas pelo chão. Matronas esfregavam soleiras e aparelhavam junto às casas bancas com fogareiros de carvão prontos para a sardinhada de pimentos, o abanador ao lado, mensageiro do vento, à espera de acção. A um canto, afastado de um torreão da entrada, moços latagões empilhavam lenhos para a grande fogueira. Corria em grita garotada, cães à perna a ladrarem, a saltarem.

Na tarde de sábado, pelas ave-marias, dirigi-me para lá. Cedo ainda para o entremez. Lustroso o recinto, alumiado de archotes pelo alto dos muros a espaços, as labaredas enormes da fogueira a crepitar faúlhas, a rapaziada a tomar balanço e a voar através das chamas com aplauso de arredor. Hora de ceia, iam chegando as gentes, abancavam às mesas compridas, que se alinhavam encostadas às casas, e encomendavam da sardinha com pimentos assados, do pão e do vinho. Abanavam as donas as brasas, rechinava o peixe, gordo, pingando, ondulava o vento fumarada e cheiro.

- Eh, moça! Uma dúzia para aqui.

- Lá vai, freguês.

Cestos de pão, garrafões de vinho, doçaria, mesinhas com vasos de manjerico. Confusão de falas, gritos, mandos, risos e gargalhadas, chufas.

Procurei assento numa das pontas da bancada, perto do estrado. A cena deserta. Tripartida, distinguiam-se, pelas fendas das cortinas, entradas à direita, à esquerda, ao centro. Na frente, no proscénio, sobre o tabuado, ainda não acesa uma gambiarra de tigelos de barro com cera e pavio a modo de lucernas.

As bancadas iam-se enchendo. Chegavam homens embuçados, acompanhados de donas embiocadas. Outros, cara descoberta, vermelhos de acabarem de comer e beber, assentavam-se com ar feliz esgaravatando os dentes.

- Vamos para os lugares de cima, Márcia. De lá vê-se melhor - e subiam aos atropelos.

- Cuidado, senhor. Veja onde põe os pés.

- Só um jeitinho. Obrigado.

- Egoísta de uma figa!

- Haja relego!

Um moço apareceu no palco, na mão um acendedor de cana com pavio aceso na ponta.

- O sacristão já chegou - dizia um gracioso.

- Vai começar - agitava-se o público.

O moço acendia as tigelas da antecena. Cabelo loiro encaracolado, olhos grandes, ar faceto, falava à assistência:

- Ao lugar, ao lugar. A função vai começar. As pessoas açodavam-se.

- Olá, senhoras! - continuava ele, apagado o morrão da cana. pedem as figuras alfinetes para toucarem um criado.

Logo aí várias mulheres lhe estendiam alfinetes sacados das cabeleiras, dos corpetes.

- Ora, sus! - ria o moço. - Há i quem dê mais? Venham de mano em mano, de mana em mana.

- As figuras já chegaram? - inquiria alguém.

- Não tardam aí. Quando as deixei estavam a vestir-se.

Ao fundo do pátio ouviu-se murmurinho. De dentro, de um dos lados do estrado, surgiram comediantes meio vestidos, que acudiam correndo À frente, um jovem dos seus vinte anos comandava:

- A eles, rapazes. Não se deixam entrar.

De repente, tal como começou, a tempestade amainou e os cómicos alguns malferidos, regressavam e desapareciam para lá do palco.

- Que foi? - perguntava um espectador.

- Uns embuçadetes - respondeu o moço. - Quiseram entrar pela força. Veio o arrancamento às mãos. Deram uma pedrada na cabeça de Belferão, rasgaram uma meia calça a Aurélio e Sósia perdeu um pantufo

e o moço, subindo ao estrado, sumia-se para lá das cortinas a levar os alfinetes.

Daí a momentos tornou a aparecer, agora com uma grande trunfa na cabeça a modo de turbão, correu com ar solene a cortina do meio a dar passagem ao mordomo da festa, um jovem alto, airoso, barba aloirada, o cabelo anelado, blusa golpeada nas mangas, a camisa branca a rematar em goleira de folhos ao redor do pescoço, calça justa nas pernas elegantes, braguilha de couro, borzeguins revirados na ponta. Reconheço nele o capitão da refrega de há pouco.

- Eis, senhores, o autor - disse vindo à boca da cena. Luís Vaz! pensei eu.

- Por me honrar neste festival noite, me quis representar uma farsa à maneira de Isopete, que logo dela tirareis a moralidade. É seu argumento que Júpiter, enamorado de Alcmena, mulher do general tebano Anfitrião, toma a figura deste e Mercúrio a do escravo da casa, Sósia. Com este disfarce, alcançou o pai dos deuses ter ajuntamento com a esposa fiel, sem que ela se apercebesse. O regresso dos verdadeiros Anfitrião e Sósia dá ocasião a uma série de quiproquós e mal-entendidos, a que Júpiter põe fecho com retomar a forma divina. Quem se da farsa não contentar, querendo novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros da Rua Nova, a casa do boticário, e não lhe faltará que conte. Mas, tornando ao que importa; moço, Lançarote...

- Senhor.

- Estão já prestes as figuras?

- Prestes, senhor.

- Vossas mercês é necessário se acheguem uns aos outros para darem lugar a quem há-de vir. De outra maneira, se todo o corro se há-de gastar em palanques, nem outro Alvalade nos basta. E mais, que hão-de fazer a mercê de se desembuçarem, que eu não sei quem me quer bem nem quem me quer mal.

Olhei em redor. Os palanques abarrotavam. Janelas, jelosias de tabuinhas, abertas de par em par, galerias a modo de tribunas, varandas, patins, tudo apinhado de gente. Nos telhados, dos albóios abertos espreitavam cabeças, havia homens e rapazes sentados em cima de alpendres e empoleirados pelas árvores.

- Parece-me, senhor, que entram as primeiras figuras.

Saem duas figuras femininas, uma arreada de senhora outra de aia.

- É Alcmena, acompanhada de Brómia, sua criada. Vem saudosa do marido, que anda na guerra. Vejamos se são tão galantes na prática como nos vestidos. Moço, safemo-nos por este lado.

Alcmena: - Ah! Senhor Anfitrião,

onde está todo o meu bem!

Pois meus olhos não vos vem

falarei co’o coração,

que dentro n’alma vos tem.

Ausentes duas vontades,  

qual corre mores perigos,

qual sofre mais crueldades?

Se tu entre os inimigos,

se seu entre as saudades?

Do passo que se vai desenrolando a farsa, começa-me a voar o pensamento, a trazer ao de cima a borra que eu quisera para sempre aquietada. Era Junho de mil e quinhentos e um, um ano antes de eu ter nascido. Tambores, charamelas e trombetas. Chega el-rei a Alenquer. O povo acode às janelas, às ruas, a ver o aparato e a pompa. Longe do centro da vila, em sua quinta, a senhora Limi a emalhar uma camisola para o seu homem não dá mostras de desejar sair. A aia, Maria do Céu, não se contém:

- Minha ama, não queres vir?

- Está ausente o meu marido. Vai tu.

- El-rei é capaz de te notar a falta. Recebe-te na corte com tanto gosto!

- El-rei sabe que tenho o marido ausente. Não foi Sua Alteza que ordenou que ele fosse a Coimbra?

- Então se me dás licença...

- Vai, Céu, vai.

Saiu a aia e colocou-se na ladeira que sai da ponte, de maneira que quando el-rei passasse em seu cavalo o pudesse olhar de muito perto. Lá chegava o arroído. El-rei passava junto aos olhos da aia. Que parecença com o seu patrão! pensava ela. Não fossem os arreios, dele e da montada, salvo seja!... Atrás de el-rei o mordomo-mor Nuno Manuel (... tão formoso, meu coração! a aia sente), os senhores nobres, os cavaleiros... El-rei sorria e acenava ao povo. O mordomo dardejava os olhos da aia.

Brómia - Nós, mulheres de semente, somos sedenho tão tosco! Queremos forçadamente que os deuses vivam connosco...

Todo o resto da tarde e à ceia não se cansava Maria do Céu de contar à ama o que vira e, quando a senhora Limi se recolheu, a aia ficou muito tempo a relembrar a comitiva de el-rei e o seu belo mordomo. No dia seguinte, manhã cedo, mandava a aia às criadas prepararem o pão e o leite para o desjejum da senhora, sentiu bater à porta da copa. Foi abrir. Jesus! O mordomo-mor!

- Ah! Meu senhor! Que surpresa! Vens pela senhora? Ainda está recolhida.

- Não, não. Queria era falar contigo.

- Comigo? Uma pobre mulher.

- Uma linda e jovem mulher - galanteava o mordomo. A aia sentiu-se indisposta:

- Mas então... se é comigo...

- Vinha pedir-te um favor.

- Sim.

- Querida senhora, que dizes logo sim, ainda eu não fiz o pedido.

- Quer dizer... faz favor...

- É para el-rei.

- Ah!

- El-rei viu uns montados tão viçosos, tão maneirinhos... tão... que desejou ir à caça...

- Boa caça têm estes montes, sim senhora.

-... mas os marotos dos pagens esqueceram-se das roupas próprias para el-rei ir à caça.

- E então...

- E então... eu lembrei-me de que tu podias emprestar-me uma roupa do teu patrão...

- Do meu patrão?

- São da mesma estatura, da mesma...

- E, é. Eu bem vi. Duas gotas de água.

- ... e então acudiu-me à lembrança, quando ao passarmos te enxerguei hoje na ladeira...

- Ai, reparaste?

- Se reparei! Quem não repararia nesses olhos que riem, neste talhe airoso...

- Ih! Meu Deus, o que aí vai! Tira a mão.

- Emprestas?

- Ham? Ah, sim. Eu vou pelas roupas.

- Mas não digas nada à senhora, não a incomodes... - e tentava beijá-la. - É um segredo só entre nós dois.

- Não direi nada, fica descansado.

Essa noite, depois da ama se recolher, deitou-se a aia e ficou a sonhar de olhos abertos até altas horas. Às tantas sentiu ruído e o trinco da porta de baixo. Levantou-se a espreitar. Viu subir o patrão em trajo de caça, com passo cauteloso. Mas o patrão não estava para Coimbra? Que surpresa para a ama, com tantas saudades do marido!... Mas atrás do patrão subia outro vulto. Ah! Bem te conheço! bate-lhe o coração à pobre aia. É o seu namorado, o mordomo do rei!... Súbito, à alegria sentida sucede-se o pânico, a revolta. A aia compreende. Aquele não é o patrão. E o rei que se faz passar por ele. Param à porta do quarto da senhora Limi... A aia punha-se à escuta.

- A tua dona está deitada... - dizia o mordomo em voz baixa. Não te esqueça: coloca a candeia longe, de modo a que apenas sejas visto na penumbra...

- Assim farei... E se ela me fala?

- Disfarça a voz. Finge-te rouco, constipado...

- No que um rei se mete por amor!

Entra. Júpiter com Mercúrio e diz

Júpiter. - Oh, grande e alto destino!

Oh, potência tão profana!

Que a seta de um menino

faça que meu ser divino

se perca por coisa humana! Mercúrio: - Alto senhor, a teu poder

o difícil lhe é possível.

Júpiter. - Tu não vês que esta mulher

se preza de virtuosa?...

- Tu não vês que esta mulher se preza de virtuosa?

- E fica desvirtuosa a mulher que tem ajuntamento com o seu marido? Vá, entra.

- Cá vou.

Lá foi. A aia, airada, suspeitando o urdimento, sai ao encontro do mordomo, disposta a gritar, a desmanchar o terrível engano. Abafa-lhe Nuno Manuel o grito com um beijo, num abraço cada vez mais apertado, até palpar o corpo dela a deslassar, a ceder:

- Cala!

- Mas é el-rei! - diz ela sufocada em beijos.

- Por isso mesmo. Cala-te. Não digas nada. Tudo irá bem...

Mercúrio, sozinho em seu pensamento, disfarçado de Sósia:

Sósia: - Fantasia de donzela,

não há quem como eu as quebre, porque certo cuidam elas que com palavrinhas belas vos vendem gato por lebre...

Entre lágrimas e o desejo, enquanto o mordomo a levava para a alcova a aia olhou ainda atrás a porta da câmara da dona.

Sente Alcmena a chegada de Júpiter, em figura de Anfitrião e diz

Alcmena: - Vejo eu Anfitrião,

ou a vista me afigura

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o que está no coração?... Júpiter: - Olhos, diante dos quais

desejei mais este dia

que nenhuma outra alegria,

senhora, nunca creais

que lhes minta a fantasia. Alcmena: - Oh, presença mais querida

que quantas formou Amor!

Isto é verdade, senhor?

Acabe-se aqui a vida

por não ver prazer maior.

A senhora Limi sentiu a porta do quarto ranger, os passos amaciados, o pousar da candeia em cima da cómoda. Voltou-se:

- Es tu, Rui? Tornaste tão asinha! Fazia-te tão longe...

- Tornei.

Credo! Que tinha o marido na voz?

- Rouco... constipado... - respondia ele tossindo.

- O pobre! Não fales, meu querido. Anda. Mete-te aqui no quentinho com a tua mulherzinha.

Meteu-se no quente, o celerado!, com a mulherzinha que não era a dele. A noite foi ardente... Que fogoso estava o seu amor! Há tanto tempo não acontecia... Filhos de mais, desculpava-se ele...

- Chiu!

Prepara-se Júpiter para sair e diz

Júpiter: - Toda a pessoa discreta

terá, senhora, assentado que um bem tão desejado se há-de alcançar por dieta para sempre estimado...

E quem alcançado tem tamanho contentamento por conservá-lo convém que tome por mantimento a fome de tanto bem.

Por isso hei-de tomar este tempo tão ditoso para a frota visitar e depois, quando tornar, tornarei mais desejoso...

Alta madrugada a dona adormecia de cansaço, aproveitava o amante e escapule-se antes de luzir a alva. A aia, que também tivera a sua noite de Santa Valburga, de olhos brilhantes de paixão vê o mordomo sair com o outro.

De manhã, quando desceu, a senhora Limi perguntou:

- O senhor onde esttá?

À caça com el-rei, mentia a aia’. Por lá andariam todo o dia e iriam pousar a Santarém...

Alcmena estranha a saída tão pronta do marido e diz

Alcmena: - Ainda que se possa ir

mais asinha do que creio, como posso consentir :  

que se haja de partir

na mesma noite que veio?...

Que fado, que nascimento

de gente humana nascida,

que, de escasso e avarento,

nunca consentiu na vida

perfeito contentamento!

Anfitrião, que mostrou um prazer tão desejado a quem tanto o desejou, na noite que foi chegado nessa mesma se tornou...

Mas aconteceu que inesperadamente chega a casa o verdadeiro marido.

- Rui, tu aqui?

Chega o verdadeiro Anfitrião e diz

Alcmena: - Mas parece este que vem,

se não estou enganada,

se ele é, venha com bem,

pois que com sua tornada

tão transtornada me tem. Anfitrião: - Com que palavras, senhora,

poderei engrandecer

tão sublimado prazer

como é ver chegada a hora

em que te pudesse ver?

Certo grão contentamento tive de meu vencimento, mas maior o hei de mim, de me ver posto no fim de tão longo apartamento.

Alcmena: - Já eu disse o que sentia

de vinda tão desejada. Mas dize-me todavia:

como não foste à armada

que disseste hoje este dia? Anfitrião: - Dela venho eu inda agora

desejoso de te ver

muito mais que de vencer.

Mas que me dizes, senhora?

Que me ouviste hoje dizer? - Alcmena: - Se não estava remota,

certamente que te ouvi,

quando hoje foste daqui,

que tornavas para a frota,

que eras forçado assi...

Anfitrião: - Quando dizes que me ouviste? Alcmena: - Hoje, quando tu partiste. Anfitrião: - Donde? Alcmena: - Daqui, de me veres...

A senhora Limi está estranhando a súbita chegada do marido, que supunha na caça mais el-rei para as bandas de Santarém.

- Estás melhor?

- Melhor? Mas eu não estou doente. Nunca estive tão bem. Então agora que cheguei e estou contigo.

- Também eu tenho tido muitas saudades tuas.

- Sim?

- Foste tão amoroso a noite passada!

- A noite passada?

- ... e não querias que eu falasse... Mandão! Sempre a dizer chiu, chiu... com a tua voz rouca...

- A voz rouca?

- Como não podias falar...

- Rouco?

- Constipado.

- Mas eu não...

- Fingias, maroto?

- ... não estive constipado.

- Fingias. Era para não estares sempre a dizer chiu, chiu, com a voz rouca... agir e não falar...

- Não estou a perceber patavina.

- Está bem. Está bem. Estou a entender. Não se fala mais nisso.

- Nisso quê?

- Não te passa pela cabeça, meu burro querido, que eu posso ficar prenhe?

- Prenhe? Ah! É isso? Tenho evitado quanto possível, bem sabes. Não se fala mais nisso concordo... Mas... a noite passada?...

Atordoado dentro de mim, mal dava acordo das últimas cenas do auto. Júpiter, tornado à sua forma divina, justificava perante o verdadeiro Anfitrião e marido enganado o nascimento de um filho de ilustre destino. Um dito do mordomo Nuno Manuel martelava na minha cabeça: «Será desvirtuosa a esposa que tem ajuntamento com o marido?» Como eu me lembrava! Dissera-ma um dia, no Cais da Ribeira, quando, a caminho do meu embarque para Antuérpia, me revelou o terrível segredo. Isabel de Limi, minha mãe, estava inocente de adultério. Era virtuosa. O rei compreendera-o, remordera-se da sua má façanha e dispôs que se fizesse o mais rigoroso silêncio desse passo clandestino. Rui Dias, desconfiado de alguma coisa, quando a mulher ficou prenhe, aperta com a aia e obriga-a a confessar, compreende a honestidade da esposa e, por amor dela, cala também em si o que se passara e roga a Maria do Céu jure pela salvação da alma que também guardará segredo. Mas nunca fala do filho nascido dessa aventura, nem sequer o nomeia no seu testamento. A virtude e a honra da mulher e da mãe exigiam o silêncio. O resto, eu, era a dor da honra ferida. Foi com esse argumento imperioso que Nuno Manuel, incumbido por el-rei moribundo e arrependido de me pôr ao facto de quem sou, acabou por selar também os meus lábios.

Havia muito, porém, reconhecera eu que nem sempre o segredo ficara inviolado. Imaginava que uma primeira confidência teria sido da boca do próprio rei Emanuel ao herdeiro com o pedido de que me protegesse sempre na vida como quem eu era, mas sem ao mundo deixar chegar sinais disso. Eu lembrava-me de que ao bastardo do rei João segundo, que felizmente então era vivo, duque de Coimbra, mestre de Santiago, próspero em seus paços de Setúbal, tramaram um dia os inimigos abafar a existência enviando-o a criar junto de algum lavrador incógnito e rude para, sem dele haver rasto, o eliminarem finalmente. Salvou-o de tal destino el-rei vigilante contra quem urdia matar a ele e ao filho.

Em seguida teria el-rei Emanuel revelado o segredo à esposa, a rainha Leonor. De el-rei João terceiro, após a morte do pai, teria passado a sua irmã Isabel (e desta a Carlos quinto) e à irmã Maria de Sabóia.

Outras fugas? O bobo da corte Don Beltrán, que espreitava e escutava a todas as portas e alcovitava às orelhas de quem muito bem lhe dava na desavergonhada gana. E o próprio mordomo... sei cá?...

E Luís Vaz? Saberia ele? A escrita e representação deste auto seria inocente ou...?

Estava eu tão embrulhado em meus pensamentos que nem dera conta de que o teatro se ia esvaziando e que eu para ali ficara sentado. De dentro de casa, do lado do estrado, começavam a sair comediantes. Abancavam nas mesas, em que ainda se demoravam alguns assistentes, a conversar e a rir, em altas vozes, a comer caldo verde, sardinhas assadas e pão de milho com azeitonas. Ansioso por conhecer Luís Vaz e vir à fala com ele, não sabia como o havia de fazer. As circunstâncias todavia vieram em meu auxílio e facilitaram o caso. Espiava eu o momento de ver o autor sair com os comediantes, quando ouço a voz forte e amiga de Afonso de Portugal:

- Damião! Soube da tua chegada e esperava encontrar-te. Como estás? Vieste ver o auto do Luís?

Cerca de trinta anos, avantajado de corpo, afável de trato, afamado pai das armas e a erudição, primo de el-rei por bastardia. O pai sempre me honrara com particular afeição, que eu retribuí dedicando-lhe o meu Catão Maior publicado em Veneza. A amizade com o filho era extensão da do pai e sublinhada pela maior proximidade das idades. Abraçámo-nos cordiais. Dos bastidores vinha saindo Luís Vaz com dois actores despidos das vestes de Anfitrião e Alcmena.

- Olha. Aí vem o nosso poeta - disse Afonso. - Deixa-me apresentar-to.

- Sei quem é, mas ele não me conhece.

- Luís, vem cá.

Luís Vaz, reconhecendo o amigo, aproximou-se risonho:

- Os fados te sejam benignos, Afonso. Gostaste da peça?

- Já falaremos. Deixa-me apresentar-te um humanista ilustre, celebrado por toda a Europa, amigo de Erasmo de Roterdão, de Lutero e de Melâncton - cala-te, boca! -, do cardeal Bembo, de...

- Com esses atributos só pode ser...

Não foi só assombro que mostrou o semblante de Luís Vaz. Uma como sombra lhe passou rápida pelo olhar, que eu não sei se era angústia ou receio ou mal-estar, mas um como remoto incómodo. Fiquei quase com a certeza de que associava o meu nome à mais funda essência da minha vida e mais se me vincou o desejo de ter com ele uma conversa à puridade.

- ... Damião de Gois, meu excelente amigo - concluía Afonso lançando-me um braço pelos ombros.

- Grande privilégio - disse Luís com meio comovido acatamento conhecer pessoa tão ilustre.

- Privilégio o meu vir ao conhecimento de poeta tão jovem e promissor - respondi naquele pendor para o encómio gratuito tão acostumado da maioria dos latinistas.

- Se me não engano, temos parentes para as mesmas bandas.

- Sim. Ouvi-o dizer ao meu amigo João de Barros.

Afonso havia-se apartado solicitado por outros conhecidos e assentara-se com eles lá adiante a uma mesa. Luís olhava-me nos olhos, muito calado, como a pretender furar o meu íntimo. A ideia, clara, surgiu-me no espírito. Ele sabia, mas desconhecia que eu sabia. Mais: desconhecia que eu sabia que ele sabia. Seria assim? Eu tinha de tirar a limpo o caso. Estava em boa posição de lhe fazer perguntas sem que ele desconfiasse. Cair de véus com as respostas...

- Disseste, no prólogo do teu auto - comecei -, que o escreveste à maneira de Esopo.

- É verdade. Gostaste?

- Um alvo na mira?

- Digamos que sim.

- Calculei isso. Silêncio embaraçoso.

- E posso perguntar-te qual? Um esgar e disse: ferida?

te nu- ser apresentado e iogo c.

- Ferida? Desculpa se te molestei. Se é coisa íntima, secreta, livre-me Deus de bisbilhotar. Conheço a natureza humana.

- Não, mas... Decido-me a ir mais longe:

- É que me pareceu desejares atingir el-rei Emanuel.

El-rei Emanuel? - o espanto de Luís não podia ser maior. – Que sabes tu?

Soa que teve uma aventura amorosa. Como Júpiter na pele de Anfitrião. Nascera um bastardo que ele quis esconder... E isso?

Damião de Gois - disse com ar muito sério, quase doloroso -,

não te posso responder a essa pergunta.

Tinha eu agora a certeza de que ele conhecia o segredo:

- Portanto é isso - respondi. Buscou-me nos olhos o pensamento:

- Que sabes tu?

- E se também eu te não puder responder a essa pergunta?

- Deixemos então as coisas como estão e sejamos amigos.

- Deixemos... por ora... - respondi. - Sejamos amigos.

E fomos abancar junto aos outros. Dentro de mim ia revolvendo que as coisas não poderiam ficar por ali. Dar tempo ao tempo... Mas no grande assento das coisas futuras estava exarado que ainda não era o ponto final naquela noite. Afonso de Portugal fez sinal a Luís para que se sentasse a seu lado:

- Ouve cá. Não me contaste que estavas a escrever ou tencionavas escrever o auto de el-rei Seleuco? Tenho ideia disso.

- Trago-o na cabeça.

- E, se bem me recordo, é assunto que gira à volta do rei Emanuel...

- Quem sabe?

- ... à procura de eco daquele triste lanço de tirar el-rei a noiva a seu filho herdeiro...

- Eco um pouco distante...

- ... mas eco.

- Se assim o quiseres. Porque perguntas? - e Luís lançou-me um rápido olhar.

- El-rei Seleuco, hem? - viro-me para ele. - ... el-rei Emanuel... Então...

- Então, amigo Damião, vai uma sardinhinha com pimentos? A noite está a pedi-las e uma boa golada do odre.

Entendi que o assunto estava maduro para uma próxima fala com Luís. Deixei que morresse ali, tanto mais que Afonso já nem se lembrava de o ter levantado, boquicheio com as proezas de África:

- Um dia, saía eu a correr mouros à roda de Azamor...

Luís Vaz, além do estro, tinha o sangue bravio, esquentado para os amores e para a arruaça. Fidalgo servidor de el-rei, o paço abria-lhe as portas e aí rendia poéticas homenagens às damas. Lançava alto o objecto da sua adoração. Falava-se que se namorara de uma dama muito formosa de elevada condição, Catarina de Ataíde. Sopravam outros que alçara os olhares à própria infanta Maria, filha de el-rei Emanuel e da rainha Leonor. Tendo parecido inconvenientes estes amores, o transe obrigou o poeta, ou ele fê-lo de livre vontade, a desterrar-se para o Ribatejo por esse Inverno de quarenta e seis. Encontro-o um dia, de partida.

- Porque te vás, Luís? - pergunto reinando um pouco. Encolhe os ombros, conformado com o destino:

- Erros meus...

Depois, a condição de pobre leva-o a servir como militar e segue para o Norte de África. Deixei de o ver durante alguns anos.

Joana mostrou-se muito agradada com vir residir para Lisboa. A baixa da cidade, à beira-Tejo, lembra-lhe a sua Antuérpia.

- O rio é mais largo, como dizias. Há mais navios no porto...

- Estão aí para cima de quatrocentas naves. Olha a firmeza das naus, a força dos galeões, as caravelas ligeiras...

- E aquelas?

- Taforeias, além barcaças...

- ... e tantas gaivotas! O céu é mais limpo e azul. Esta largueza, este arejamento enche-me a alma. Sentia-me como encurralada em Alenquer, se bem gostasse da quinta.

- Vais gostar ainda mais quando subirmos ao castelo, onde vamos ter a nossa casa.

Viéramos à corte saudar el-rei, que me nomeara, no ano de quarenta e oito, guarda-mor do tombo real, por impedimento de Fernão de Pina preso nos Estaus pelo Santo Ofício por heresia. Atravessávamos o terreiro dos Paços da Ribeira. Um corpo de mil homens, calças, gibões e gorros de pano branco com cruzes vermelhas nos peitos e nas costas, seu coronel, seus alferes, cabos de esquadra e sargentos de campo vestidos de seda, antes do embarcar e do desferir das velas desfilavam perante el-rei, que assistia de uma varanda do palácio. Caracoleavam seus caracóis, figuravam cunhas, quadras e coroas em tão boa ordenança como se o usassem em todo o discurso das vidas, eles que, a contragosto, haviam sido arrancados do torrão e da enxada pelos senhores e industriados à pressa para passarem a África.

Quando caminhámos por Alfama, pela Sé, Joana, embora achasse gracioso o acastelamento do casario, desgostou-a sobremodo a sujidade que escorria pelas ruelas e o bafo podre exalado de toda a parte.

- Que descuido! A pestilência deve morar aqui - dizia tapando a respiração com a ponta da mantilha.

A aia Waudru também levava a mão aos narizes e ao lado dela as duas crianças faziam caretas.

- Catixa! - dizia Emanuel à moda da rapaziada da aldeia. Quem parecia não dar conta eram as criadas portuguesas que nos seguiam e a ama que levava ao colo o pequenino António, nascido no ano anterior. E eu, no desejo natural de dar a conhecer aos de fora as maravilhas da minha terra, verrumava dentro de mim, como se também fosse estrangeiro, o amargor do confronto com as cidades da Flandres. Consolava-me um pouco o pensar que encontrara situação semelhante em França e na Itália. Mas, quando chegámos ao cimo, o céu rasgado aos olhos e os ares varridos a entrar-nos no peito, os telhados cerrados a descerem o morro, o burgo lá em baixo a extravasar a cerca fernandina e a querer alastrar-se pelo arvoredo de vales e colinas, a vista a alcançar a vastidão do rio de montante a jusante e a margem da outra banda, Joana exclamou:

- Ah! Que beleza invulgar!

Com a amplidão dos aposentos numa ala dos paços da Alcáçova, agora desocupados pela mudança da corte para a Ribeira, Joana exultava. No rés-do-chão, átrio, salas, cozinha e copa amplas e arejadas, soalheiras, no sobrado superior as câmaras de dormir e outros cómodos igualmente espaçosos. Uma passagem levava a um desvão de onde se abria, sobre a capela, uma tribuna. Para as traseiras jardim e horta, aéreos sobre o casario que botava a São Vicente, à Graça. Joana esmerou-se, como em Lovaina, no amanho da casa e, por meu lado, no arranjo de meu escritório e estúdio pus o maior desvelo, de modo a ter sala de música em que receber os amigos para os costumados concertos, e expunha como em pinacotheca as peças de arte que havia trazido de fora comigo. O meu especial cuidado, todavia, foi o do meu novo ofício. Não era ainda efectivo o cargo, que Fernão de Pina não havia sido destituído, na presunção de que o tribunal da Inquisição o absolvesse. Mas eu levava-o a sério e não se julgue que me aqueciam o ânimo os cem mil réis que me el-rei pagava pelo cargo. Tinha natural pendor para vasculhar velhos arquivos, coisa que um pouco fiz por alguns tombos da Europa. O infante Fernando, que Deus tenha, e Luís recorreram aos meus serviços. Foi com emoção que, uma manhã, acompanhado do porteiro me dirigi à albarrã e, rodada a fechadura da pesada porta, entrei na quadra do rés-do-chão. Abobadada, empedrada de grandes lájeas, mal iluminada pelas frestas laterais, um sopro bafiento a bater-me na cara. Afeiçoados os olhos do deslumbramento exterior, mesa, cadeiras, armário alto com gavetas tomavam vulto na penumbra. Ali se recebiam os pedidos de cópias, traslados, certidões e demais serviços. Escada estreita de pedra levava ao andar de cima. Vasta quadra em que os escrivães e iluminadores copiam, trasladam, desenham e rendilham as grandes laudas dos infólios, suas escrivaninhas com estantes inclinadas, aparelhadas de réguas, compassos, tinteiros, caixas de penas com aparos de variadas finuras e grossuras. Uns seis homens a trabalhar. Pessoas caladas, meticulosas e pacientes, costas abauladas, alguns de olhos piscos quando os erguem a olhar em volta, aquele ali, com nariz de águia, parece estar sempre com frio, outros com lunetas encavalitadas na ponta da cana, apesar das frestas primitivas alargadas e do aposento bem alumiado. Falo com um que ilumina a lauda de um livro de horas:

- És tu que preparas as tintas?

- Eu mesmo, senhor - responde com língua belfa.

- Doirados, prateados...

- Ouro ou prata em pó fino. Um poucachinho de vinho, bila de boi, goma ou clara de ovo...

- Os vermelhos...

- Os vermelhos com a púrpura, sangue-de-drago ou cinábrio...

- E o preto?

Recitou a cantilena um companheiro do lado, os dentes podres a rirem:

- Uma, duas, três e trinta fazem a boa tinta.

- Uma de quê?

O primeiro, que atirara ao intrometido um olhar de morte, apressou-se a responder:

- Uma de goma arábica, duas de vitríolo, três de galhas e trinta de água e aí tem o senhor um atramento e pêras.

A um canto a escada estreita, em caracol, leva-me ao piso do topo. Aqui o meu lugar, por muitos anos instalado na minha torre, investido no posto de guardador das escrituras do reino. Ao demo a prosápia de sangue, que esta tem mais valia, sentar-me na cadeira de Fernão Lopes, de Azurara, de Rui de Pina. Dizem-me que o terramoto de trinta e um quase destruiu edifício e recheio, a ponto de inutilizados muitos preciosos documentos e esvaída parte da nossa memória de séculos. Resistiram a outras inclemências de clima e desleixo, encostados às grossas paredes, os grandes cofres mandados forrar de ferro pela providência de el-rei João segundo, onde repousam os fundamentos escritos da nação. Dantes os reis andavam com este tesouro atrás de si, encerrado em arcas encouradas e pregueadas. Para onde quer que fossem iam as arcas, em pesadas carroças de grosso rodado a chiar nos eixos de nogueira ensebada. Acompanhavam-nos escrivães e notários e despachavam de caminho, nas pousadas precárias, em tendas de campanha, onde adregasse. Mau tempo, frios e calores, chuvas e secas, vicissitudes de jornadas, incertezas da guerra, eram causa de deterioração, ruína, perdas. Entendeu el-rei Fernando a conveniência de a chancelaria real e todo o arquivo da nação terem sede fixa e há três séculos ordenou recolhessem tais documentos a esta torre. El-rei João primeiro, da boa memória, entregou a guarda deles ao escrivão dos livros do infante Duarte, que mais tarde o encarrega de escrever as crónicas de todos os reis de Portugal até seu pai. Esta a carga do meu cargo, Deus me ajudasse.

Vinte e três anos de trabalho levei nesta casa. Aqui envelheci até à minha prisão. Vinte e dois havia eu levado de peregrinação pelas sete partidas da Europa e disso fiz alargado relato. Que relato poderei agora fazer desta outra jornada tão diferente e parada? Velhos manuscritos e alfarrábios, poeira e ratos, o mais do tempo sem me mexer do lugar a não ser para pegar de um infólio, de um rolo de papéis, as pernas a incharem-me, os joelhos a doerem-me, todo eu a enferrujar. Nada mais que a súmula dos cansaços, dos olhos a arderem, das vertigens a voltarem. Florestas de Lovaina, cataratas do Reno, neves dos Alpes, renas da Lituânia, ondas do mar do Norte... Grande metamorfose! Bosques de ideias antigas, rios de palavras, gelo da alma, naufrágios de esperanças, que o bicho vai roendo e pacientemente rendilhando e defecando. Quanta fadiga! O arquivo régio, era evidente, estava desordenado, a reforma dos livros da leitura nova por concluir, a rainha, o rei, os príncipes conservavam em suas câmaras privativas volumes que deviam aqui ser guardados, choviam os pedidos de certidões dos senhores nobres, dos mesteirais, dos povos, reclamavam os que acabavam de ascender à nobreza assento das linhagens novas, urgia chamar ao tombo os documentos originais em posse do secretário de el-rei, Pêro de Alcáçova Carneiro... Tudo isto - e muito mais que por decoro deixarei aos outros avaliar -, entre escrivães-múmias, iluminadores-fogos-fátuos, notários-almas-penadas levei a cabo no decurso desses anos.

Mas a vida também vinha entrelaçar-se neste labor de ossadas. A família ia crescendo. Pelos meus olhos espreitava-me a alma usufruindo a alegria. Primeiro fora meu filho António, nascido em Alenquer naquele tempo em que os professores bordaleses chegavam ao reino e iam ocupar as suas cadeiras em Coimbra, no Colégio das Artes. Lembro-me desta minúcia, não porque tenha ligação com o júbilo mas por ser, ao contrário, aviso de desgraças, como adiante se dirá. Porque os não deixaram estar em paz a Diogo de Teive, João da Costa e Jorge Bucanano no seu colégio da Guiena? Barros não se cansava de me avisar. A sorte de André de Gouveia foi ter falecido no ano seguinte ao da sua chegada. Fingisse, desse eu nas vistas ao ir à missa... E então era verem-me passar, aos domingos e dias santos de guarda, em grande estadão, acompanhado de pajem, lacaio e um escravo que me levava a cadeira, caminho da sé, de Santo Elói ou de Enxobregas. Inútil dizer o quanto me era penoso...

Pela mesma altura me remetia Réscio o Dodecacórdio, que Glareano, julgando-me ainda em Lovaina, para aí havia enviado. Gloria mundil Saído a lume em Setembro de quarenta e sete das oficinas de Henrique Petri em Basileia, é importante tratado de música polifónica, que amplia os oito tons gregorianos para doze. Como me tinha prometido, não deixou de me incluir no número dos compositores, na companhia de Josquin dês Près, de Ockeghem e outros. Aí vem o meu motete no modo eólico, a três vozes, Ne laeteris, inimica mea, com letra do capítulo sétimo de Miqueias. Elogia-me: uir nobilis et eximius nostrae tempestatis symphoneta, «varão nobre e exímio sinfoneta do nosso tempo», e diz que, enquanto viver não esquecerá aquele amigo que havia percorrido toda a Europa e ele conheceu hóspede de Erasmo, em Friburgo. Também eu, meu querido Glareano, trarei sempre comigo até ao fim da vida a grata memória de ti.

Os meus companheiros da música, o jovem Jacques, que era aprendiz de oculista na oficina de um velho flamengo na Rua Nova, o moço ostiário Pêro Gil e o holandês Erasmo - nome que eu lhe pusera, já se sabe porquê - que eu trouxera comigo da Flandres e me servia de secretário, rejubilaram. André de Resende, por esse tempo de visita a Lisboa, festejou-me em verso latino à sua maneira:

Elige utro mavis horum te nomine did

an Phoebi aut Orphei, dulcis Merque moais, aut (si non spernis genus) quo musica primum inventa este nobis sis, Damiane Tubal...

Escolhe qual preferes ser chamado se Febo, se Orfeu, nomes sonantes, se por aquele, à raça conformado, que a música primeiro a nós mostrou, ó Damião, o Túbal...

- Que demasia! - desabafei. - Como se eu fosse o inventor da música na minha terra!

- Não deste a conhecer entre nós o modo eólico? - respondia.

- Mas Túbal...

- Túbal foi o pai da raça ibérica. Tu és o pai da música entre nós.

- Grande cultor do género entre nós é o nosso Vicente Lusitano. A louvor tão sobejo, prefiro nos dediquemos mas é a passar o serão a cantar alguns madrigais e o moteto que Glareano publicou.

Como todos concordassem, viemos à execução, apuradas as vozes num licor de murta.

Chegava-me de França a nova do falecimento de Francisco primeiro e de que a rainha viúva partira para a Flandres a juntar-se ao irmão imperador e à irmã regente. Andava a Morte na sega de cabeças coroadas, que em Inglaterra dobaram a finados os bronzes de Westminster. Deus guarde em sua glória as almas de todos aqueles - comprido rol! - que Henrique oitavo mandou matar. Amém. De lá chegado, de servir o tirano, o sábio Fernão de Oliveira.

- Sábio e desfraldado - dizia-me Barros.

- Conhece-lo?

Mestre dos filhos. Bom mestre, mas homem inquieto.

- A meus olhos - digo - a inquietação só o encomenda.

Não se submetia ao rigor da Ordem e abandonava hábito e capuz domínicos em Évora, onde era noviço. Saíra para Castela...

- A que fazer?

Sabia lá? Talvez... em quinhentos e trinta e dois ainda Erasmo não caíra em desgraça na península, quem quer podia ler dele os Adágios, o Louvor da Loucura... André de Resende, seu mestre em Évora, e o Ecómio de Erasmo... as notícias da rebelião de Lutero...

- ... a tua Ropicapnefma... Por essa altura João terceiro pedia-me tentasse trazê-lo para cá, para professor em Coimbra...

... crise de fé... talvez medo da Inquisição acabada de instituir... Paulo terceiro consente que se secularize. Regressado ao reino, dedica-se a leccionar filhos e filhas de fidalgos: Antão de Almada, filho de Fernando de Almada...

- ... e os teus próprios filhos...

- É pessoa caminheira, buscadora, um aventureiro...

- Admiro essas pessoas. Insatisfeitas e clarividentes. Conheci um frade do mesmo jeito, frei Roque de Almeida, que foi à Alemanha para conhecer e converter Melâncton. Veio de lá convertido. Apareceu-me em Itália desvestido do hábito e com o nome de Jerónimo de Pavia...

- Ouvi falar.

- ... foi alquimista em Veneza...

Pois este Pé. Fernão de Oliveira também estivera em Itália, ao serviço de el-rei. Voltara de lá na companhia do núncio Luís Lipomano, vivera em seguida esquecido e ignorado algum tempo de penúria e alista-se na frota de Antoine Escalin, barão de La Garde, que varava no porto de Lisboa, com o nome de capitão Martinho...

-... Martinho, hem?...

... embarca na nau do comando de Saint-Blancard e aporta a Ruão. Numa outra viagem a sua galé é atacada e apresada pelos Ingleses. Como português é levado para Londres, onde serve sob Henrique oitavo. Com a morte do rei inglês, volta a Portugal. Traz para o rei João uma credencia mandada passar pelo jovem Eduardo. Valeu-lhe de alguma coisa? Irreverente, alvo do ressentimento dos dominicanos, insubmisso, audaz na admiração do rei anglicano, erasmista no zurzir os desmandos do clero, havia motivos cabonde para ser molestado pela Santa Inquisição. Aparecesse o pretexto e o delator. O pretexto foi ter cometido a imprudência de falar de mais, sobre a fé católica e o protestantismo, à porta de três livreiros com tenda na Rua Nova... Saibam quantos... dever do cronista nomear os heróis para a memória imorredoura: aqui está este que deu a vida para defender a sua grei, aquele preferiu a morte a vender liberdade, consciência e fé... dever do cronista deixar à posteridade o nome do traidor, do criminoso, do esbirro, do delator... Hou, hou, hou, ideias minhas endoudadas que tomastes o freio nos dentes. Porque vos encavalitais na cabeça, atropelais, empurrais? Lesto, lesto toca a escrever para as apanhar. Hou, hou! põe-lhes cobro a disciplina humanista e o pensamento estaca e repousa a impor ordenamento ao tropel da confusão... Mas quereis mais nomes para a poeira dos que foram carrascos de outros seres humanos? Assentai: os famigerados livreiros foram João de Borgonha, Francisco Fernandes e Pedro Álvares... erga-se-lhes a cada um seu nicho de santo e reserve-se-lhes lugar nos coros celestes junto a outros beatos que ajudaram a Santa Inquisição a velar pela fé... Meu bom Gil Vicente, que morreste a tempo! Bom velho Sá de Miranda, que em boa hora te retiraste para o Minho! Porque vim eu da Flandres?...

Com a notícia da prisão de Fernão de Oliveira, mais uma para a soma do Santo Ofício, apreensivos caminhávamos lado a lado eu e João de Barros pelo Campo das Cebolas.

- Escreveu uma gramática da nossa linguagem - lembrei.

- ... tão indisciplinada como a sua vida.

Velhos problemas que eu versara já no convívio com Erasmo e com os ciceronianos de Pádua. A emergência, por toda a Europa, das línguas vulgares a tomarem consciência nacional em perda do latim. Bembo e Bonamico ganhavam a Erasmo. Dante fora o primeiro a reflectir sobre o romanço.

- Com a invenção da arte de imprimir, o analfabetismo recua ponderava o amigo.

E eu punha-me a demarcar na memória passos e balizas. Lutero publicara em alemão a sua Bíblia, cada vez eram mais comuns as traduções de Cícero, de Lívio, de Virgílio...

- A língua de cada um também pode ser arte. Venham os gramáticos estabelecer os padrões.

Viessem os poetas e os prosadores dar-lhe forma artística - acrescentava eu.

Por outro lado, em França, na Itália, Inglaterra, Alemanha se edita em vulgar.

- É natural que Oliveira tenha conhecido Nebrija em Castela, mas em vez de escrever um livro nos moldes das gramáticas latinas...

- ... como tu...

- ... tal como na sua vida, homem da sua estofa só podia fugir o dogma.

Fui-lhe notando que também ele estava a escrever as suas Décadas em português. Vicente, Miranda, Ferreira e outros poetas apuravam a nossa língua na frágua dos seus engenhos.

- Entre as coisas materiais - sentenciou - é de maior excelência aquela que mais dura e nas de honra são de maior glória as que a memória mais retém. Tens disso exemplo no império romano. Perdeu-se com a variedade do tempo e da fortuna das cousas humanas, mas deixou a língua como sinal que durará eternamente. As armas e os padrões portugueses, postos em África e em Ásia e em tantas mil ilhas fora da repartição das três partes da Terra, são materiais e pode o tempo gastá-los. Mas não gastará doutrina, costumes, linguagem, que os Portugueses nestas terras deixarem...

- Só falta aparecer o Homero dos nossos feitos no mundo.

- Talvez, sem que o saibamos, ande já entre nós.

Rodízio a vida. Metáfora velha. Tudo serve para figurar Cronos: terra, água, ar, fogo; mar e céu; círculo, praça, betesca, pego... feira... uma branca no cabelo, o dente que apodrece... É escolher! E escolher, donas e cavaleiros! Muita coisa vai acontecendo à nossa volta e pelo mundo. Respigo apenas as que mais me tocam ou me enviam sinais do meu destino. Para além das pequeníssimas nugas de que me gosto de rodear. A vista do rio, as flores do jardim, o telhadio da cidade manchado de musgos, as quelhas floridas de arroz-dos-telhados. O retrato de Erasmo pendurado em frente da minha escrivaninha - ele mo ofereceu naquela manhã em que... Esta jarra azul de rosas vermelhas que Joana colocou ali sobre a coluna... Nascer e morrer. Mais um filho: nasce Rui. André de Gouveia falece em Coimbra e a desinteligência lavra no Colégio das Artes. Os bordaleses Diogo de Teive, João da Costa e Jorge Bucanano são presos pela Inquisição. No mesmo saco, por acinte e cega maldade, erasmistas e luteranos... Francisco Xavier provincial dos jesuítas morre na ilha de Sanchoão a caminho da China.

Em Lovaina sai a lume, dedicado ao infante Luís, o meu De bello Cambaico ultimo...

- Em latim? admirava-se Barros. - Então tu não dizias...

- Entendamo-nos, amigo. Se queremos que a nossa voz seja pregão pela Europa dos feitos portugueses no mundo, não vejo outra maneira...

- Eu sei.

- O latim ainda é o veículo universal do pensamento.

Vinte e quatro de Setembro de quinhentos e cinquenta. Mestre Simão Rodrigues não lhe deixa o ódio de esvurmar. Acusa-me de novo ao tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, e outra vez, creio que por influência de el-rei, o cardeal inquisidor-mor sobresteve a acusação e eu posso continuar em minha paz e labor. Espero que mais ninguém - pensava eu então veja interesse em me fazer mal. Como me enganava!

Amarga alegria me aguarda no ano seguinte. Na minha torre a contas com um traslado de Inquirições do reinado de el-rei Dinis, ouço passos nas escadas que a mim trepam. Levanto os olhos. Do alçapão cresce uma figura de homem. Parece abantesma erguendo-se da terra em dia de Juízo Final. Primeiro a cabeça, gola de folhos sob a barba - no contraluz não distingo feições -, depois uns ombros, corpo magro, meão, capa pendente do ombro, colete avelutado sobre camisa branca, espada cinta, calções tufados pela coxa até aos joelhos, meia a tornear a perna. Aproxima-se, alumia-se-lhe o rosto, aloira-se a barba...

- Meu príncipe! - dizia sorrindo e estendendo-me os braços.

- Céus, Luís Vaz! Que te aconteceu? Abraçou-me sem palavras, num abraço rude de militar.

- Ferido!

- O virotão de um perro vazou-me um olho - e erguia a pala negra a mostrar a ferida, a carne varada a destilar pus, enrodilhada no buraco...

- A marca do herói.

- A marca do descuido - sentava-se em frente de mim. - Estava eu recostado no alto da muralha na aberta de duas ameias. Tudo parecia sossegado e eu escrevia minhas redondilhas, quando as dunas adormecidas se levantam em chusma de mouros. E tempo de me resguardar?

Falou-me dos três anos de serviço na mourama, do seu insanável mal de amores...

- ... de amores? - pergunto. - Não te contentas só com um?

- E tu contentas-te?

Não encontrei que responder. Por esse tempo - meus pecados! -, ao arrepio do casamento, enredara-me com uma dona de quem nascera minha filha Maria, quase na mesma altura em que me nasce do casamento legítimo Catarina.

Na corte, a chaga recebida na refrega africana, a pala negra segura no olho por um nastro preto, nimbam o poeta de heroísmo aos olhos de damas e donzelas. Rodeiam-no alegres, em risadas de água, fazem-lhe perguntas pela centésima vez, à espera do improviso em verso:

- e como foi?

Luís dispara repentino:

Destrói guerra fazenda, vida, olhos

em meio de tormento desmedido,

mas as ervadas setas de Cupido

mor dor causa, destroço entre os escolhos.

No salão, em volta, olhares masculinos enciumados. Dardejam morte os de Simão Rodrigues e os de Pêro de Andrade Caminha, que cochicham verdete no vão de uma janela. Mas da roda das donas aproxima-se a formosa valida da rainha, Francisca de Aragão, que com frívolo menosprezo diz:

- Pois achai-lo um herói? A mim parece-me antes uma cara sem olhos... - e ia a dar costas, quando o poeta lhe,atira:

Sem olhos vi o mal claro

que dos olhos se seguiu,

pois cara sem olhos viu

olhos que lhe custam caro.

De olhos não faço menção,

pois quereis que olhos não sejam:

vendo-vos, olhos sobejam,

não vos vendo, olhos não são.

Ora este mesmo Luís que tão galante versejava nos serões da corte, uma quinta-feira de procissão do Corpo de Deus, a dezasseis de Junho, envolveu-se em desordem nas ruas da cidade e deu uma espadeirada a Gonçalo Borges, oficial dos arreios de el-rei. Preso, foi pelos meirinhos levado ao Tronco de Lisboa onde penou oito meses e meio, até que, comprovado estar o agredido são e sem disformidade nem aleijão, uma carta de perdão lhe devolveu a liberdade.

Desse entrementes, talvez porque já as desilusões, a doença, o cansaço da vida me vão enegrecendo os humores, quase só alcanço coligir memória de feitos tristes, raro dos que ainda me trazem algum prazer. Mais um humanista, Marcial de Gouveia, é levado pela Inquisição. O Santo Ofício condena os professores bordaleses passava de um ano a tratos com os inquisidores nos Estaus. Na sala das perguntas. Nessa altura ainda não conhecia eu a tortura desse inquirir teimoso e peganhento que não busca apurar a verdade, mas arrancar a confissão de culpas de antemão estabelecidas.

Chegavam nos barcos das índias notícias de naufrágios. Ganância os provocava, as naus em excesso carregadas. Ouro, espécies, pedras preciosas, pérolas, aljôfar, âmbar, porcelanas, arcas de cânfora, tapeçarias... por trapos e calhaus se perdiam vidas e haveres. Um deles deu brado. Emanuel de Sousa Sepúlveda, mulher, filhos e toda a sua casa deram à costa e morreram em lenta agonia por praias e florestas do sertão, mortos de fome e sede, comidos das bestas e dos cafres.

O meu querido Bernardim Ribeiro rendia a alma ao criador. João de Barros saía finalmente com a sua primeira Década da Ásia e, louvado Deus, nascia meu filho André.

Luís Vaz vem despedir-se de mim. Nunca o tinha visto com aquele ar de iluminado, o gesto mudado de estranha cor.

- Como dizeres adeus?

- Parto para a índia.

- Entusiasmado?

Ah, Damião! Vou fazer a viagem que Bartolomeu não completou,

que o Gama realizou.

- Outro no teu lugar...

- A leitura do nosso João de Barros...!

Mal podia eu então imaginar o que refervia já na forja daquela cabeça.

- Quanto tempo...?

- Não sei.

- Tem cuidado com o que por lá fizeres. Já estendeu as garras a Goa a Santa Inquisição.

- Terei cuidado.

- Partes então.

- Parto, mas antes...

Hesitava. Olhei-o, desconfiado. Seria agora? Entendendo o meu pensamento, disse:

- Não, não é isso em que estás a pensar.

- Então...?

- Queria pedir-te um favor.

- Diz. Tudo o que eu...

A mãe, Ana de Sá... Gostaria de me levar até ela, que eu a conhecesse...

- Foi ela que, julgando-se morrer, me confiou o segredo. Fomos. Casinha de andar térreo e um sobrado, na Mouraria. Modestos os cómodos, mas de extremo asseio. Nos seus quase cinquenta anos era ainda mulher formosa. Viúva, que lhe morrera o homem na índia. Quando o Luís lhe disse quem eu era, corou e encheram-se-lhe os olhos de água. Fez-me vénia e quis beijar-me a mão:

- Meu senhor.

- Senhora - repliquei -, sou um simples mortal. Virei-me para o Luís:

- Diz a tua mãe que me trate como amigo.

Mas nunca, enquanto convivemos, foi ela capaz de deixar aquela contida reverência que inculcava o fundo respeito de saber a minha estirpe. Com ela a meu lado a acenar adeus, assisti no Restelo à largada da nau que levava o Luís Vaz. Alguma vez nos veríamos ainda? Afinal, que mais era preciso falar com ele à puridade? Não sabia eu já que havia sido Ana de Sá a contar-lhe do segredo de el-rei Emanuel? O resto, conhecer como o soube Ana de Sá, curiosidade de comadres. Que importava?... Estava eu proposto a dar por acabado o negócio, quando ela própria, sem eu o requerer, um dia que a fui visitar veio a colação e revelou-me a história da aia Maria do Céu. Apenas alguma miudeza me surpreendeu em cotejo com o relato primeiro que o mordomo-mor Nuno Manuel me havia feito.

- O que eu peço a Deus - rematava a boa senhora - é que tu estejas em paz contigo e guardes muito pura no teu coração a memória de tua mãe. O mais deixemos ao julgamento supremo.

Joana anda outra vez de esperanças. Ampulheta do tempo este apertado prolificar. Os filhos mais pequenos não lhe desviam o cuidado dos mais velhos. Uma noite, diz-me:

- O nosso filho Emanuel vai fazer quinze anos. E se o mandássemos para a Flandres, para casa de meu irmão? Poderia encaminhar-se para Lovaina, onde já tem matrícula...

Dou-lhe razão. É hora de lhe pensar no futuro e também no de Ambrósio, que tem treze anos, a fim de que em Lovaina se dediquem às sagradas letras. Sem demora se dispõem as coisas para o embarque dos dois irmãos. Escrevo a meu cunhado Splinter e, enquanto se aguarda tempo propício à viagem, de súbito a vinte e sete de Janeiro de quinhentos e cinquenta e quatro, morre o príncipe João. Deixa um filho recém-nascido, Sebastião, que é baptizado sem festa vinte e cinco dias depois. Os mestres astrólogos mostram-se inquietos com os sinais dos signos e vaticinam tempos terríveis para o reino. El-rei João anda abatido. Em seu íntimo remói escrúpulos de consciência: que tão grande pecado terei eu cometido, para Deus me castigar com a perda sucessiva dos meus filhos? Cada vez se torna menos liberal e dá ouvidos aos abutres que o rodeiam. Tristeza minha! Vejo-o fechar-se na concha da intolerância. Permite que os mestres por si chamados de Bordéus sejam condenados e entrega o Colégio das Artes aos jesuítas. Onde vai o tempo em que me pedia para convencer Erasmo a vir para Portugal ensinar nesse Colégio?

Absorvo-me em meu trabalho. Outubro desse ano, das oficinas de André de Burgos, tipógrafo do cardeal infante, sai em Évora a minha Descrição da Cidade de Lisboa. Em latim, como de costume, pois, se bem a dedique ao cardeal, destino-a a humanistas, historiadores, geógrafos e cosmógrafos do mundo. Envio-a aos amigos de Lovaina, de Antuérpia, de Pádua, Veneza, Roma, Friburgo, Basileia, que sei eu... Envio-a para Trento ao cardeal Cristóvão Madruzzi...

O ano seguinte morre o infante Luís, quarto filho de el-rei Emanuel e Maria de Castela. Tanta recordação à beira da sua tumba! Duque de Beja, condestável do reino, grão-prior do Grato, cultor das letras, discípulo de Pedro Nunes, que lhe dedica o Tratado da Esfera, e de Lourenço de Cáceres... Sorriso dado, estou a vê-lo. Amigo de João de Castro, de Jerónimo Osório... Quantas noivas! Não te lembras, meu infante, de que para ti, em Cracóvia, tentei negociar casamento com Hedviges, filha de Segismundo? Nem com ela, nem com Maria de Escócia, nem com uma filha de Francisco primeiro de França, nem com Cristina da Dinamarca, nem com Maria, filha de Henrique oitavo de Inglaterra, nem com a infante Maria, tua sobrinha, nem com a infante Maria depois princesa de Parma houve recebimento. Dizem que o impediram intrigas várias. Tu entretanto andavas enamorado de Violante Gomes, dona muito ilustrada, como tu. Soava que tinhas casado a furto com ela. Com ela vivias como tal. Recebia-a a corte como tal. Pela sua formosura davam-lhe a alcunha de Pelicana. Dessa união fica-te um filho, António, que Deus guarde...

Pela amizade que me dedicavam estes infantes, desconfiava eu que também conheciam o segredo do meu nascimento. Ou seria a atracção do sangue? Mostraram-se comigo mais irmãos que superiores e, quando de mim solicitavam algum serviço, faziam-no como pedindo favor e não dando ordens.

A balançar esta tristeza, valia-me Joana, que me dava o sexto filho varão, de nome Fruitos como meu meio-irmão.

Quem também sente o tempo chegar ao fim é Carlos quinto. Porque não quis reconhecer o bastardo que toda a gente sabe ser seu filho? Abdica em seu filho Filipe e retira-se para o convento de S. Justo. Quer alijar a carga dos pecados, antes de entrar na barca da derradeira viagem. Irá atempo? Depressa, depressa, César! Ela vem aí... mas pelo caminho ceifa Inácio de Loiola e, a dezasseis de Janeiro de cinquenta e sete, passa de novo por Lisboa e arrebata, de repente, no gadanho de uma apoplexia, o rei João terceiro... Cinquenta e cinco anos, que os ias fazer, como eu, meu irmão. Assisto com lágrimas às tuas exéquias, o cantochão a reboar nas abóbadas e na minha alma. Grande parte egoísmo a dor que sentimos com a morte de quem amamos. Perdemos nós alguma coisa, ficámos mais pobres, mais sós, desamparados. Pena de nós próprios, autocomiseração, lembrança de que cada vez estamos mais pertos de que também a nós Ela nos venha buscar... No teu caso, rei João terceiro, eu fico doravante sem a protecção do teu escudo. Há muito já os inimigos esperam esta hora. Não tardarão... Regente do reino, na menoridade do príncipe Sebastião, a rainha Catarina, que no ano seguinte se veste de luto pelo falecimento do irmão. Também aqui chora a minha gratidão. Regressam a Castela as outras irmãs do imperador, as ex-rainhas Leonor e Maria. Corre Leonor de jornada a Badajoz ao encontro da filha que passava de trinta e sete anos não via. Imaginas tu, Damião, o que seja deixar mãe uma filha na mais tenra idade, decorrer tanto tempo sem a poder ver e encontrá-la ao fim uma dona de quase quarenta?...

Com licença da regente, caminha para a raia a princesa real. Acompanha-a pomposa comitiva encabeçada por Afonso de Portugal.

- Não quererás levar-me contigo? - desafio-o. - A rainha Leonor distingue-me com particular amizade e não sou certamente companhia do desagrado da princesa, minha amiga de meninice no paço de el-rei Emanuel...

Como poderia eu descobrir-lhe que ela era minha meia-irmã?

Ficou de feito agradada a infante com a minha presença e logo eu percebi que também ela conhecia cujo eu era. Melindre do assunto e mesura de estatuto impediam, todavia, que abertamente o enunciássemos, nem que fosse na puridade de algum momento.

Do encontro tão íntimo de mãe e filha mandava o recato que todos nos afastássemos. Presenceámos os primeiros abraços e beijos e, pelos dias adiante, o magoado sorriso, os olhos macerados. Maria queria ficar com a mãe em Castela, mas a razão de Estado, representada pelo embaixador Afonso de Portugal, a trouxeram de volta ao reino. Dolorosa despedida, ficava a mãe tão dilacerada que vinte dias depois falecia de desgosto.

Neste cortejo de mortes, chega-me que deu a alma ao Criador o bom Sá de Miranda, lá para o Minho. Morre de desgosto com este Portugal de contrastes. Em meio de glória, poder e riqueza, a extrema miséria, a fome, o comprar fora o pão para a boca, a mesquinhez, a usura, a corrupção. País de viúvas e órfãos, de adultérios...

- Queres dizer país de cornudos? - ri o João. - Síntese apressada.

- Olha o que aconteceu com Jaime, duque de Bragança...

Maninhos os campos, deixados a velhos, mulheres e crianças... abandonadas as praças de África, nomear-se com ostentação senhor disto e daquilo, senhor do mundo, chamar valor à crueldade... Meu pobre poeta! Veres correr pardaus por Cabeceiras de Basto!...

Fugia o tempo. A regente Catarina, reconhecendo que não era para as suas forças o governo do reino, deixa o encargo ao infante Henrique, que o aceita. E agora o senhor mais poderoso de Portugal: cardeal, inquisidor-mor e regente. Começa por aceitar solenemente os cânones do Concílio de Trento. A Igreja de Roma fecha-se na sua concha. Alguma vez a abrirá? Lisboa e todo o reino está nas mãos da verdade única. Com amargura o verifico. Só me sinto bem na minha torre, na intimidade de minha casa, no convívio musical de poucos amigos.

Um dia o cardeal-infante mandou-me chamar. Ia em quarenta anos, dizia agastado, que a vontade de el-rei seu irmão, que Deus tivesse em sua glória...

- Amém.

... de ver em crónica os feitos do reinado de seu pai de ambos, o rei Emanuel, não havia modos de tomar corpo...

Mais novo dez anos do que eu - minha voz interior. Mas avelhentado. O solidéu cobre-lhe a calva. A capa escarlate está polvilhada de caspa, como as suas ideias, Deus me perdoe.

... Rui de Pina ainda deixara umas notas que alcançavam até à conquista de Azamor mas a muita idade, coitado!... O filho, Fernão de Pina, que lhe sucedeu no Tombo, encomendado da tarefa, não mexera palha, nem sequer arrumara os papéis do pai. Dera em herege...

Herege! Herege és tu que constróis dentro de ti um Deus insensato.

... e encontrava-se preso pela Santa Inquisição. Peste dos tempos, Jesus nos acudisse a todos...

Menor dos filhos de el-rei Emanuel, de muito cedo arredio da corte por via de seus prematuros cargos eclesiásticos, este Henrique nem sonha que está a falar com o seu sangue. Procura apagar a prevenção em que fiquei de quando me proibiu que corresse em Portugal a obra sobre a religião e costumes dos Etíopes. Qualquer coisa dentro de mim me andava repugnando dele. Mal-avindo comigo, forcei-me e dediquei-lhe a minha Descrição de Lisboa. Quando vim trazer-lhe o exemplar ainda a cheirar a tinta, teve para comigo palavras de muita aceitação.

... O doutor António Pinheiro - continuava com a voz fanhosa e arrastada -, a quem o encargo transitara, escusou-se: que era mais inclinado a outros estudos e tinha o trabalho por excessivo para as suas forças. Desculpas de mau pagador. Viera a encomenda a João de Barros, mas tão ocupado com as suas Décadas... Houvera-o consigo cinco ou seis anos sem lhe pôr mão...

Desencostava-se o cardeal de seu espaldar de veludo carmesim, erguia-se e vinha até mim, nas feições duras o esboço de um sorriso:

- Pensei em ti.

- Em mim? - olhei-o espantado.

Se... se... se... perfilam-se as perplexidades. Se para quem quer que seja abalançar-se a obra tão avantajada como pôr em crónica tão estupendo século... Se para um cronista honesto, historiador probo que não queira ser instrumento de mero panegírico... Se para quem apenas esboçou opúsculos de pequeno calor... - ... que se havia de esperar de quem, para acúmulo daquelas circunstâncias, via acrescer o ser feitura de tal senhor rei? Poderia filho ser isento?...

Sentiu o cardeal em um combate íntimo e disse:

- Sei que estás preparado.

- Considera Tua Alteza que estas pessoas, de que tanto se esperava, não fizeram, em tempo de trinta e sete anos que há desde o falecimento de el-rei Emanuel, coisa que respondesse ao merecimento de tal negócio. E, sem te lembrares de quão fraco eu devo ser para tamanho peso, mandas-me agora que daquilo com que muitos, como em coisa desesperada, se não atreveram, tome eu cuidado...

- Já deste provas. Proverei que te sejam entregues os papéis. Creio que balbuciei algumas razões soltas: a verdade histórica... o cronista juiz sereno mas severo... nunca vergar a louvaminhas...

- Não quero desmerecer da tua confiança ao escolheres-me para a empresa da glorificação desse reinado...

- Assim o espero.

- ... mas terás de confiar de mim o mais substancial que no escrever das crónicas se requer...

- ... e que é...

- ... com a verdade dar a cada um o louvor ou a repreensão que merece.

- Repreensão?

- Monarcas, cortesãos, todos aqueles que caiam sob a alçada da história. Verdade, não mero encómio. Glória, valor, amor da pátria, sacrifício, serviço, muito bem. Mas igualmente erros, defeitos, ganância, egoísmo, traição...

Pareceu meditar um pouco no que ouvia. Parou junto à escrivaninha. Pegou numa pena e pôs-se-lhe a olhar o bico, a afagar a penugem... Enfim disse:

- Tens sido na Europa arauto dos feitos portugueses. Privaste com el-rei meu pai...

- ... el-rei meu pai... - repeti como em eco. - Colhi-lhe o último respiro... ofegante, ofegante, até que por fim, num derradeiro lanço, aquele bafo se apagou no descanso eterno.

- Deus tenha a sua alma. Vamos, Damião. Posso contar contigo? Como, em-mim-mesmado, eu não respondesse, rematou:

- Faz então o teu trabalho.

E que trabalho! Valerá a pena esmiuçar o que foram esses oito anos rudes e desvelados?

Joana queixava-se:

- Somes-te lá para a tua concha e ninguém te enxerga. És um deus inacessível.

O que eu era era um escravo, um monje, desde que luzia a alva até pela noite adentro. Esquecia-me de comer, descurava o meu corpo, o meu trajar, os meus amigos, os meus serões de música... Esquecia-me de ir à missa...

- Qualquer dia vais preso - advertia Joana, quando subia à torre (não queria confiar essa devoção a criadas) a trazer-me alguma iguaria. As pessoas reparam. A tua sobrinha outro dia perguntou-me: «O tio não é misseiro, pois não?»

O senhor de Sever, João Roiz de Sá de Meneses, alcaide-mor do Porto, sabendo do trabalho em que eu andava, escreve-me:

Folgo muito de te darem o cargo da crónica de el-rei Emanuel. Sei que o farás muito bem pela dedicação e amor que tiveste a seu serviço e a suas coisas. Parece a conta de andar de mão em mão esta crónica o que se escreve das rapsódias de Homero. Assim foram as crónicas dos reis passados de Portugal. Em poder de Frei Justo, bispo de Ceuta, italiano que el-rei Afonso mandou buscar para lhas escrever em latim, ele morreu de peste em Almada e aí se perderam...»

Mãos à obra. Primeiro a arquitectura geral. As crónicas do reino, tal como o concebeu o velho e sábio Fernão Lopes, são um todo, ligam-se umas nas outras, semelhando os feitos humanos e porque o tempo não para e o que passou traz luz ao presente. Enveredei então pelo caminho que me havia de trazer à miserável situação em que me encontro, mas em minha consciência eu não tinha outra senda a seguir. A crónica não se enovelará apenas em redor da figura do monarca. Pintará o quadro de toda a época, em que o rei não vive isolado mas na companhia de seus cortesãos e sujeitos, alguns deles homens maiores que o próprio senhor. Vim atras tomar balanço. De caminho, a afiar o estilo, escrevi a crónica do príncipe que depois foi rei João segundo. Rei admirável.

Como começar? Esse ano em que falecera el-rei João - de cuja vida, enquanto príncipe, eu traço breve crónica, como a afiar meu estilo -, subiu ao trono Emanuel. Aqui estava o fio da meada. Abri a crónica na morte de um e alçamento do outro. A meu propósito fiz o traslado de algumas cláusulas do testamento do primeiro e, porque ele falecera sem deixar filhos de legitimo matrimónio, eu acentuava quão licitamente esta herança pertencia ao primo e cunhado, tanto por força do direito como do sangue. Nem por certo foi sem causa permitir Deus que viesse a herança destes reinos a este felicíssimo rei por falecimento de oito pessoas que legitimamente o herdariam se houvessem vivido...

Quando, porém, a primeira parte da crónica saiu, foi achado estranho que eu tivesse tocado em que, por quatrocentos e noventa e cinco, houvesse parecer diverso acerca da sucessão da coroa. Vinha isto manchar, segundo alguns, a limpeza do alevantamento de el-rei Emanuel. E não lhe chamava eu somente felicíssimo, quando ao rei João dera o nome de invencível! Que descaro! - murmuravam. Esqueciam-se de que el-rei Emanuel nunca entrara em batalha, ao passo que João combatera em Arzila, vencera em Toro... E trazer à lembrança dos desmemoriados os muitos desgostos entre o rei João e a rainha Leonor pela teima de el-rei pretender no trono o bastardo Jorge, havido dos amores com Ana de Mendonça? E o desaforo de afirmar que a morte de João segundo não foi sem nela haver suspeita de lhe terem dado peçonha? Quantos hostis reparos da nobreza!

Ergueu a voz Francisco de Melo, segundo conde de Tentúgal. Perante o tribunal da história perdeu boa ocasião de estar calado. Vivendo refastelado nos paços de que fora espoliado o infeliz infante Pedro, era exemplo vivo de que a imensa tragédia vinda de longe ainda não estava sanada. Mostrou-se o conde afrontado com o que julgava desprimorar o monarca e, de caminho, achou que devia desagravar a casa de Bragança dos silêncios que eu sobre ela fizera. Não sofria que eu recordasse as traições dos seus parentes no ano de quatrocentos e oitenta e três. Veio a terreiro:

Põem mais no primeiro capítulo certas cláusulas do testamento de el-rei João que nenhuma coisa fazem ao propósito da crónica senão ao seu, que é dizer poucos bens de el-rei Emanuel e muitos males de todos os da casa de Bragança e encobrir-lhe seus grandíssimos serviços e merecimentos...

Sentia aonde eu queria atingir. El-rei Emanuel cumprira todas as últimas vontades do anterior monarca, menos uma; a de manter exilados os membros da casa ducal. Rezava assim essa cláusula:

Item porque eu tenho visto e sabido quanto mal e dano se segue nos reinos e senhorios com a vinda de alguns que cometem maus casos contra reis e senhores das terras, encomendo e mando ao dito duque meu primo que aqueles que nos semelhantes casos erraram contra mim nem seus filhos que fora destes reinos estão não sejam recebidos neles. Assim encomendo a todos os grandes e pessoas do meu Conselho e do dito duque meu primo que sempre lhe lembre muito que deve isto fazer.

E que faz el-rei Emanuel, mal sobe ao trono? Envia Gonçalo de Azevedo, do seu Conselho e desembargo, ao reino de Castela a dizer a Álvaro, irmão do duque Fernando, e a Jaime e Dinis, filhos do mesmo duque, que lá andavam desterrados pelo negócio das traições, que livremente se podiam tornar ao reino, o que fazendo havia por bem de os restituir nos bens que lhes el-rei João mandara confiscar para a coroa...

Onde eu apenas vincava o jeito justiceiro de um rei e a magnanimidade do outro, o conde de Tentúgal quis achar que eu diminuía a figura daquele a quem respeitava a crónica. Escudava-se com o monarca para defesa própria.

Foram ao paço, ao regente, aiar o despautério. Pretendiam que se não pusesse a público a parte do texto já impressa e que eu fosse obrigado a aceitar as emendas que nela eles houvessem por bem fazer.

O cardeal voltou a chamar-me.

- Acabei de ler esta primeira parte da tua crónica...

Rodeava muito, com cautela, até vir ao ponto. Excelente, excelente, não havia que ver. Mas eu era artista habituado a apreciar belas pinturas. Pois crónica era como uma pintura: necessário distanciarmo-nos para bem a apreendermos. E eu estava demasiado debruçado, demasiado dentro para lhe notar certas... como havia de dizer?... desproporções, certas ausências...

- Senhor, será bem-vinda a tua crítica para acerto de minha mão. E entrou no assunto. Tinham vindo a ele queixar-se de graves omissões

e malquerenças por mim cometidas. E desfiava todo o rosário. Quando lhe senti o cabo do discurso, disse:

- O conde Francisco Manuel não é a defesa de el-rei que o ocupa. A figura de el-rei Emanuel creio tê-la eu apresentado em toda a grandeza, como cumpria. E a dos seus. Fala com sentimento. Dá-se por ofendido, não compreendendo que a crónica é a de el-rei e não a da casa ducal. Quer que nela figurem os grandes do mundo e se calem os pequenos. Não é assim que eu entendo o ofício de cronista. Critica-me por eu me não haver dobrado a um panegírico despropositado, a majestade régia de permeio com o fausto da casa ducal e no mesmo pé.

- Não podes negar que foste parco no que lhe diz respeito. Até de mim quase não falas...

- Senhor, é a crónica de teu pai.

- Eu sei, eu sei.

- Alguma omissão que haja, a culpa pode dar-se ao duque Teotónio, que Deus tenha em sua glória. Entreguei-lhe duas ou três folhas de papel cheias de apontamentos de coisas que cumpriam a esta crónica. Sua senhoria teve-os alguns anos em sua mão antes que falecesse, sem nunca me responder. A mesma culpa tem o conde de Tentúgal. Há mais de seis anos sabe que eu faço esta crónica e, tendo ele muitos papéis e cartas e lembranças, me não comunicou nenhumas. E agora suas senhorias repreendem-me de eu não escrever algumas coisas que eles tinham tão bem guardadas em seus cartórios que porventura eles mesmos se não lembrariam delas se a crónica não desse a isso ocasião.

- Pois é, Damião, pois é. Mas nunca é tarde para emendar o que está errado, de mais ou de menos...

O resultado de todo este lamentável negócio foi que me vi coagido a aceitar no texto cortes e emendas de tudo o que não agradou aqueles senhores. A edição já impressa da primeira parte da crónica foi destruída. Chegaram ao ponto de me revistar a torre, não fosse eu ter por lá algum exemplar. Como se a história pudesse apagar-se!. Andei mais lesto que eles: por mensageiro secreto mandei de Alenquer para o Porto um exemplar do volume a meu amigo Sá de Meneses, contando-lhe o sucedido e pedindo-lhe sigilo. Talvez um dia se venha a descobrir tamanha vilania.

De meado de Julho de sessenta e seis e quase fins de Julho do ano seguinte, da oficina de Francisco Correia foram saindo as folhas emendadas da segunda edição dessa primeira parte e a conclusão da crónica já visionada por aqueles censores. Ajudou à censura Pêro de Andrade Caminha, camareiro e guarda-mor em Vila Viçosa de um irmão do duque Teodósio. Ave agoirenta. Lembrava-me de o ter visto uma vez na corte na companhia de Simão Rodrigues. Poeta invejoso do Luís Vaz, não será a última vez que se há-de entremeter na minha vida.

O João vem despedir-se de mim.

- Cansa-me o viver. Resignei do cargo de feitor e retiro-me.

- Para onde vais?

- Ribeira de Litém. Tenho lá uma quintinha. Perto de Pombal.

- Visitar-te-ei, se for para essas bandas - digo-lhe, mas nunca mais o veria, que ele faleceu daí a três anos mal contados, quando el-rei Sebastião, atingida a idade competente, assumia o poder.

Não me bastava toda esta animosidade que contra mim se abatera com a publicação da crónica, outra maior fulminou de morte a minha vida, corria o ano de quinhentos e sessenta e nove. Ferida que ainda me dói e é sem cura até ao fim dos meus dias. Se o rebate tivesse chegado mais cedo... ou se eu não tivesse desestimado as notícias que me soavam do que ia pela cidade... Alcandorado em meu escritório no alto da alcáçova ou da torre albarrã, olhando em baixo o casario, nem o brado dos sinos impediram que me julgasse livre a mim e aos meus de que os ares podres subissem a tocar-nos. Mas a desgraça atingiu-nos inesperada como um raio, de mesmo jeito que havia tangido de seu dedo mortífero grande parte da gente de Lisboa.

O primeiro a dar com o perigo fora um mendigo que costumava dormir na ribeira entre fardagem de mercadoria. Era uma noite quente de Junho. Aquela nau ali no fundeadouro balouçava madorrenta no chape-chape das ondas. No topo de um mastro o pavilhão de Veneza mal respirava. Na proa, azul sobre o vermelho envernizado do madeiro, o letreiro Heraclea. Fortes cabos a amarravam a terra. O homem, meio encostado, dormitava com a garrafa vazia ao lado, no chão. Ouviu chiar e restolhada de bichos. Abriu os olhos e tacitae per arnica silentia lunae viu o inimigo descer a terra. Era uma fileira de murganhos que se recortavam , negros no rebrilhar laminado das águas, a correrem pelas amarras e logo a desaparecerem entre fardos e tonéis, a embrenharem-se nos esconderijos da escuridão. Soava que na manhã seguinte o ouviram dizer, na taverna da Rua dos Cordoeiros, enquanto bebia tragos de água-ardente e mandava encher o odre:

- Eles estão aí. E fugir enquanto é tempo. Ouvide o que vos digo. Não lhe deram atenção, por o considerarem bêbado, mas um velho, que aí estava, quando o viu sair à rua travou-lhe do braço:

- Fugir de quem?

Olhou-o o homem por momentos e disse:

- Ratos. Centenas. Milhares. Vi-os com estes... - e com os dedos arregalava os olhos avinhados. - Fugir. Fugir... - e desandou cambaleando.

Encolheu o velho, incrédulo, os ombros, não dando tento ao impulso dos seus cabelos brancos. Haveria de contar o sucedido com a vida a escoar-se-lhe em vómitos de sangue, dias depois. E que dias esses! De pesadelo. Ruas inteiras entaipadas, com os doentes lá dentro abandonados à triste sorte, gemendo, gritando, delirando. Largava o filho pai e mãe, os pais os filhos, e fugiam para longe dali levando no dorso da mula, do asno os alforjes carregados do que podiam. Archotes a arder às portas das casas, fogueiras a crepitar por todo o lado, passavam frades encapotados, um pano com vinagre nos narizes, a cruz alçada ao alto, a encomendar as almas. Carretas cheias de corpos mortos e moribundos a caminho das valas que se abriam nos pátios, no rossio, nos terreiros. Um jovem que abraça a namorada desmaiada e se deixa ir com ela na levada de morte. Homens lançavam barris de cal viva sobre os corpos, fugiam ratazanas enormes chiando lúgubres, zumbia o mosquedo a sinfonia fúnebre. Havia coveiros que, antes de arremessarem os corpos, os despojavam de anéis e brincos. Um deles, com as mãos cheias do ouro roubado, caiu ali mesmo fulminado de peste e rebolou com os cadáveres até ao fundo da cova.

Joana foi decidida. Mal ouviu os criados falarem do que ia pela cidade baixa:

- Vamos para Alenquer. Sem demora.

- Mas... o meu trabalho na Torre...

- Só uma coisa não pode esperar: a morte. Até a corte já partiu. Pôs as aias e a criadagem numa fona a arranjarem malas e tudo o que cumpria, mandou os pajens aparelhar carruagens e cavalgaduras e, finalmente, com os filhos e toda a gente já acomodados em seus lugares, deu por que faltava Waudru. Enviou por ela. Que se apressasse, estávamos de abalada.

O pajem voltou alarmado.

- Minha senhora! A aia...

- Que aconteceu?

- Em frente da porta, com as chaves na mão, caída no chão, cheia de arrepios...

Saltou Joana do carro:

- Pronto! A peste já aqui anda. Partam depressa, partam sem detença. Em meu cavalo ia eu lá adiante, correu um pajem a chamar-me:

- Senhor! Senhor!

Acorri:

- Que se passa? Que tem Waudru? - perguntei apeando-me.

- Atingida, receio. Vá! Leva-os todos daqui. Eu fico com ela.

- Não pode ser.

- Tem de ser. Ide-vos embora. Eu fico.

- Podes ser inficionada.

- Eu fico. Não deixarei Waudru morrer sozinha.

Ai de mim! Conhecia eu por demais a tenacidade de Joana. Ordenei a um pajem e uma aia que restassem com a senhora. Era a maré do egoísmo. Responderam que antes regressariam a suas terras e parentes do que deixar-se quedar ali no meio da pestilência.

- Ide-vos, ide-vos - repetia Joana desesperada. - Eu cá me arranjarei.

- Mas eu não posso abandonar-te assim... .

- Os nossos filhos... tens de ir com os nossos filhos...

- Joana!

- Há ocasiões, meu querido...

- Eu sei.

- Tu sabes. Não puseste vida e liberdade em risco pela tua Lovaina? Waudru para mim é mais que a tua Lovaina.

Nada a demoveu. Prometeu-me que iria logo que Waudru estivesse em condições de se pôr a caminho.

- Mas sozinha, aqui? Que dor de alma! *

- Vai.

Uma criada velha aproximou-se:

- Eu fico com a senhora, meu senhor.

Ficou com a senhora e com Waudru. Ficaram as três, que a grande Hospedeira esperava-as. Nunca mais vi Joana, nem sei para que vala comum foi atirada. Ninguém nunca jamais me soube dizer nada dela. Até à eternidade... Punge-me a dor de a ter perdido e lanceia-me o remorso de ter sido, também eu, egoísta e não ter sabido morrer com ela.

Quando a peste se debelou e eu pude retornar a minha casa, dei com a porta da casa entaipada com grossas tábuas cruzadas. Foi toda aberta, defumada, limpa... e, como o tempo enxuga as feridas mais cruentas, a minha alma foi cicatrizando, embora a casa estivesse cheia de vazio. Vazia a cama, aquele lugar à mesa, a mesinha da costura, vazio o eco da voz dela... O meu único atordoamento era à noite o serão de música e canto com os amigos.

Surge et prof era, arnica mea...

Mas ela não surgia nunca mais, nunca mais... e mesmo cantando enchiam-se-me os olhos de lágrimas.

Passou-se um ano, dois. Luís Vaz regressou. Traz com ele o grande poema. Finalmente chegou o Homero, o Virgílio da nossa grandeza... em tempo em que a pátria está metida, como ele diz,

No gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza...

E depois, uma noite, veio o doutor Diogo da Fonseca, da casa de el-rei e corregedor do crime, com seus meirinhos e levou-me preso...

 

                       A sala das perguntas

Quando saímos à rua, chovia e a escuridão era completa, não fossem as tochas que os dois moços, um atrás e outro à frente do grupo, empunhavam. O corregedor ia adiante, com passo estugado, embuçado na capa, o chapéu derrubado. Eu seguia-o ladeado por dois meirinhos. Rapidamente descemos ao Borratém, à Rua da Betesga. Corriam enxurros do monte de Santa Ana e do vale que se cava na Mouraria. Breve atingimos a cerca e as hortas do convento de São Domingos e, pela corredoura, passada a capela de São Mateus e a casa do conde de Monsanto, chegámos às portas de Santo Antão. Vinha do Rossio, da banda do Tejo, cheiro a maresia. Não sei porquê, se bem fosse de noite, cheirou-me a pios de gaivotas. Em que se me vinha engulhado o pensamento? Havia de ser engano certamente. Senhor corregedor, que crime cometi eu? Nem me respondeu. Senhor corregedor, excelência, quem me manda prender? Mudo que nem um calhau. Ao inferno o corregedor. Eu conhecia bem o paço dos Estaus do tempo em que era ainda pousada de reis e embaixadores. Nele tivera moradia algum tempo el-rei João terceiro, o regente cardeal infante Henrique, o príncipe Sebastião antes de tomar posse do governo do reino. Muitas vezes percorrera eu aquelas salas. Ali estava a fachada, massa a negrejar mau agouro, mal se lhe distinguia o portal com seus torreões nem se enxergavam as janelas, tão-pouco a muralha a que, a norte, se encostava o edifício, junto à torre e à porta das estrebarias de el-rei. Atrás de mim rasga-se o terreiro do Rossio, a oriente o hospital real, a poente o monte da pedreira e no cerro o convento do condestável, a sul ruelas estreitas de espingardeiros, escudeiros, oleiros, tavernas e bordéis de mulheres da má vida. Hora de rufiões e zaragateiros avinhados. Entrámos. O alcaide do cárcere, Gregório Veloso, homem de idade, aguardava-nos. Poucas palavras. O corregedor assina o auto de entrega do preso e sai com os meirinhos. Dois guardas levam-me por escadas escuras e fedor a bafio, corredor em que mal cabemos, portas de um lado e outro. De algures, das fundezas do antro, chegam-nos ruídos de mecanismos que rangem, gritos de dor imensa. Chegamos a uma porta. Pesado ferrolho guincha no trinco. Lufada de ar podre. Os brandões alumiam-me a quadra. Ao canto a cama de palhas sobre estrado.

- Farás bem em te deitar - diz-me um deles. Vão-se, abandonam-me no vazio e na escuridão.

Uns instantes de pé, tentando o equilíbrio, afeiçoar os olhos. Na espessura cega não sangra risco de luz. Tento apalpar o catre. Tropeço em alguma coisa e caio de joelhos com a cara a roçar a palha da cama. Deito-me olhos abertos para a minha desgraça. Não consigo dormir, a pensar na minha vida que toda de súbito desaba. Manhãzinha, entontecido e cansado, mordido de pulgas e chinches, vejo fender-se claridade escassa pela fresta gradeada. Levanto-me. Um rato desaparece por um buraco. Paredes nuas a escorrer humidade, de uma pedra o cadeado pendente. Não me prenderam a ele, noto. Porquê? Também me não raparam o cabelo nem me obrigaram a tirar as minhas roupas e a vestir a camisa dos encarcerados. Mesa e escabelo de pau, a um canto o balde para as necessidades. A degradação em que me puseram!... Passos de chancas lá fora. Aproximam-se. Tinir de chaves. A tranqueta a levantar-se. Entra um rapagão, jubão encardido, cabeça rapada, barba rala. Calado pousa sobre a mesa o caneco da água e um pão. Ia a sair, digo-lhe no tom de quem está habituado a mandar:

- Rapaz, vai chamar o alcaide. Quero falar com ele. Volta-se no limiar da porta, com ar fechado;

- Quem julgas tu que és para me dares ordens?

Ah! Temos príncipe, pensei. Só então lhe reparei nas mãos em extremo cuidadas. Soube mais tarde que era um noviço de São Domingos e estava ali para se mortificar dos pecados que uma crise de escrúpulos lhe fazia imaginar. Um deles, ainda não suficientemente domado, considero, devia ser de certo o do orgulho. Respondo-lhe como quem sou:

- Longe de mim querer fazer de ti meu criado. Não tenho outra autoridade senão a dos cabelos brancos... e agora nem essa, estou a ver.

Sem revelar qualquer movimento de alma no rosto, sai fechando a porta. Mas a meio da manhã o alcaide apareceu.

- Que me queres falar...

- Desejo saber porque me prendem.

- Não é comigo.

- Com quem então?

- Com os inquisidores. Terás de pedir audiência.

- Estou a pedir audiência.

À tarde vêm buscar-me dois oficiais. Silêncio, apenas cortado por rude «Segundos».

Tornei a subir as escadas de caracol e em breve, por larga galeria, chegámos à sala do cabo. Entrámos. Ampla quadra rectangular iluminada, à esquerda e à direita, de altos vitrais. Ao fundo, a toda a altura da parede, a cruz com um Cristo de tamanho natural. A meio, sobre estrado, mesa comprida rodeada de cadeirões almofadados, sobre o tampo toalha de brocado roxo, livros de assento, tinteiro, penas, areeiro, em frente da cabeceira o volume dos Evangelhos. Em frente da mesa, abaixo do estrado um escabelo de madeira nua. Indicaram-mo e eu ia a sentar-me, logo a voz cortante de um dos guardas:

De pé.

em que pé.

Vinham a entrar, batinas brancas, barretes quadrados, o doutor em cânones Simão de Sá Pereira e o licenciado Jorge Gonçalves Ribeiro. Seguia-os o notário apostólico João Velho, de cabeça descoberta.

Depois de o presidente se ter sentado à cabeceira da mesa, o outro inquisidor no lado direito e o notário à esquerda,

- Sente-se o réu - ordena-me este.

Os guardas retiram-se fechando os portais... aos cinco dias do mês de Abril de mil e quinhentos e setenta e um anos, no planeta Terra, na miséria da vida, na Europa, em Lisboa, nos Estaus, na sala das perguntas da Santa Inquisição, estando aí os senhores inquisidores e perante eles Damião de Gois, cristão velho, conteúdo nos autos, preso no cárcere...

- Pediste audiência - falou o presidente. - Diz o que pretendes.

- Venho ante Vossas Mercês solicitar me digam minhas culpas por que fui preso. Conhecendo-as saberei se fui preso em causa ou sem ela.

Entreolharam-se os inquisidores como atónitos. Simão de Sá disse:

- O estilo do Santo Ofício não é dizerem-se culpas a nenhuma pessoa, mas, primeiro que se prenda alguém, fazer-lhe saber que se lhe examinam bem as culpas. O mesmo se fez no teu caso.

- Parece então haver aqui contradição, visto que primeiro me prendestes e agora quereis examinar minhas culpas.

- Os inquisidores apostólicos contra a herética pravidade e heresia acharam-te culpas obrigatórias a prisão.

- Como assim, se não fui ouvido? Ou será que fui denunciado? Dais fé, sem mais, à alegação de um delator?

- Respeito por este santo tribunal, pelos senhores inquisidores e pelo acto - advertiu-me o secretário.

- Tem calma, irmão - acudiu o reverendo Simão de Sá, estendendo para ele os ossos da mão. - O réu ainda não se deu conta do lugar onde está.

- Mostra-se rebelde - anotou o licenciado Jorge Gonçalves. - Fica sabendo que há lá em baixo uma quadra em que se amansam os rebeldes. Ao princípio são todos assim. Depois, quando sentem o perigo na pele e o grave do caso...

- Admoestamos-te - continuou o presidente - que queiras encomendar-te a Nosso Senhor e fazer discurso contigo e de tua vida e confessar tudo quando sentires teres feito, dito e conversado contra nossa santa fé católica...

- ... contra...? - ia eu a contrapor indignado.

- O réu não interrompe Sua Reverência - cortou com aspereza Jorge Gonçalves.

- ... para que - prosseguiu Simão de Sá-, confessando a verdade de tudo com verdadeiro arrependimento, poderes ser merecedor da misericórdia que a Santa Madre Igreja usa com os verdadeiros confitentes e penitentes.

É redundante o estafermo. Mói e remói as palavras e as ideias - sussurrou-me a voz interior junto à orelha.

- Deve haver aqui um grande equívoco - insisti. - Deixai-me escrever um bilhete ao cardeal e vereis que logo me mandará soltar.

- Impossível o que pedes. Durante o processo não poderás comunicar com ninguém a não ser connosco. Tudo o que aqui se diz ou passa não atravessa estas paredes, até à conclusão. Começa pois a tua confissão.

- Só me confesso ao meu confessor.

- ... e diz a verdade. Andaste muitos anos por terras estrangeiras, de onde certamente vieste tocado de ideias luteranas...

- Tocado? - disse vivamente, num gesto de revolta.

- Lembre-se o réu - mais uma vez interveio Jorge Gonçalves - que está a depor perante o tribunal da Santa Inquisição, ao qual se deve dirigir com humildade e respeito. Se o réu continua assim, ser-lhe-á imputado o desrespeito como ofensa herética às instituições da Santa Madre Igreja.

- Coloca a tua mão direita sobre os Santos Evangelhos e jura dizer toda a verdade.

- Porquê o juramento?

- O réu tem de jurar - disse o secretário. - Tudo o que ele disser ficará exarado em auto. Jura...

Vieram-me à ideia as cenas horríveis - demasiado conhecidas, por mal da Humanidade! - do polé, do garrote, da fogueira. Um assomo de medo arrepiou-me a pele. Senti-me encurralado... Estendi a direita sobre os Evangelhos e disse:

- Juro dizer toda a verdade... - e levantei a mão respingando mal humorado: -... nem para outra coisa solicitei que me atendesse esta Mesa.

- Estamos à espera de que fales sem demora - dizia o inquisidor presidente.

Desalentado. Não havia então outro caminho? Pântanos, areias movediças, alçapões, boízes, assaltos de ladrões, tempestades e guerras, por demais os conhecia eu. Mas tão temível julgamento... Juizes dispostos a torturar e matar em nome de Deus. Essa noite eu ouvira gritos, gemidos, ais, roncos, uivos de dor que ressoaram pelas abóbadas da cave, para as bandas onde os esbirros se encarniçavam sobre os corpos dos desgraçados que haviam cometido o crime de pensarem por suas cabeças... Tinha eu então de começar a falar? Pensei que me era necessário conservar frio o coração, responder apenas àquilo que achasse indispensável, sem no entanto ferir o respeito que devo a mim mesmo. E que respeito devo a mim mesmo? Não sofri já, por via disso, sérios agravos com a publicação da crónica do rei que foi minha feitura? Não será este transe por que estou passando resultado ainda dessas mesmas perseguições? Cortara então a direito dizendo a verdade, elogiando quem merecia ser elogiado, castigando a quem, investido em obrigações, cumpridorias e deveres, não procedera bem, fosse quem fosse. Isto devo a mim mesmo: não abdicar do meu pensamento. Foi-me dado conhecer as outras faces das verdades. Deixei de ter palas nos olhos e agora, desgraça a minha!, sou interrogado por quem as tem e desconhece que as tem... Confessar-lhes a verdade? Sim, mas com cálculo e medida, mesmo que verifique que, com esta gente, há sempre risco. Coisa espantosa!

Definitiva e teimosa a minha voz interior aposenta-se-me no ombro a segredar à orelha o escólio do que vou dizendo:

(- Começa por contar-lhes - bichana-me - das tuas andanças pela Europa. Recorda-lhes que, no ano de trinta e um...)

E eu recordei que no ano de trinta e um fui mandado por el-rei João, o terceiro...

(- ISSO; isso! Não percas o azo: ao serviço de el-rei, que está em glória...)

... que está em glória, à corte do rei Frederico da Dinamarca e daí vim ter à cidade de Lubeque onde conheci João Pomerano...

-... que pregava a seita luterana - interrompia-me Simão de Sá, os olhos a luzirem sinistros atrás dos óculos de aros negros.

... e, agasalhando-me eu em casa de um dos governadores da cidade, me perguntou se eu queria ver o tal Pomerano que o convidaria a jantar. Folgaria de o ver, respondi-lhe.

(- Bem. Vê lá no que te vais meter.)

Como de feito veio aí jantar. E jantámos todos a uma mesa onde também vieram jantar outras pessoas honradas da cidade. Entre práticas havidas, de que não sou bem lembrado...

(- Sim. Passou já tanto tempo! Bem podes tu, quando houver melindre, malhar nessa da falta de lembrança.)

... o meu hóspede, que me pareceu não ser católico, disse-me que João Pomerano tinha feito um livro, em língua alemã, do governo da cidade, assim do secular como do mais, acerca dos costumes e de como haviam de viver...

- Viste e leste esse livro?

- Não o vi nem li. Alevantámo-nos da mesa e eu não sou lembrado de termos praticado nenhuma coisa, então nem depois, que fosse contra nossa santa fé católica.

- E em seguida?

Fora ter ao reino da Polónia, à cidade de Pósnia, a tratar com mercadores e outras pessoas com que tinha de negociar ao que ia. O meu direito caminho foi pela cidade de Vitemberga, onde conheci Martinho Lutero e Filipe Melâncton...

(- Pronto! Vais-te espalhar. Cala-te!...) i (- Sempre hei-de dizer alguma verdade, para que vejam que sou sincero.)

( É Já contigo, contanto que me não leves agarrado a ti quando caminhares para a fogueira...)

i ... Se os quiseres ver, disse-me o estalajadeiro, convido-os a jantar. Respondi que sim e ele convidou-os. Vieram aí jantar comigo e com o capitão da fortaleza...

-Também luterano o capitão?

- Todos eles eram luteranos.

que dizia Lutero?

la prática que tivemos à mesa veio a dizer que tudo o que fazia era a bom fim, trazer aquele povo à verdade e salvarem-se as almas que andavam eiradas e perdidas.

- Que lhe respondeste?

- Não sou lembrado, mas pareceu-me mal o que ele dizia.

- E Melâncton?

- Filipe Melâncton alargava-se mais na fala: que seguia a doutrina de Lutero por lhe parecer ser a verdade o que ele ensinava. E olhava para mim...

(- ... com os olhos grandes, limpos de maldade, lembras-te?) ... e para os outros. Não lhe respondi senão que lhe dei a entender não me comprazer de os ouvir. À tarde fomos merendar com o capitão da fortaleza e desde sábado à tarde os não vi mais senão à terça-feira, que me quis partir. Fui ver a igreja deles e da vinda passei pelas portas dos ditos luteranos a desejar-lhes que se ficassem muito embora. E me fui fazer carga que el-rei me mandara à cidade de Dantzig e me tornei à feitoria de Flandres de que era escrivão.

No ano de trinta e dois - prossegui meu relato -, me fui da dita feitoria a estudar a Lovaina onde estive oito ou nove meses. Aí adoeci dos olhos e parti por conselho de físicos e fui ter a Friburgo de Brisgóvia, onde estava Erasmo de assento. Levava-lhe uma carta de Rogério Réscio, meu hóspede de Lovaina. E Erasmo convidou-me para jantar.

- De que falaram?

- Coisas da humanidade.

E ao outro dia parti e fui ter a Basileia onde achei a Sebastião Munster com quem falei à porta de um livreiro.

- Sobre quê?

- Não em coisas contra a fé. Não o vi mais que essa vez, nem sabia então que ele tinha escrito tantas coisas, como depois soube. Também aí me encontrei, à porta da estalagem, sem ir a sua casa, com um Simão Grineu que lia filosofia. Não se falou de coisa alguma que tocasse a fé, nem com nenhuma outra pessoa da terra, posto que alguma parte dela estivesse tocada de luterana. Dali me fui meu caminho e me tornei a Lovaina a estudar latinidade. E não frequentei nenhuma outra faculdade. E, estando ali, fui chamado por Sua Alteza e me vim a este reino onde sempre vivi muito catolicamente, fazendo tudo o que fazem os bons cristãos. El-rei, que está em glória, quisera-me fazer tesoureiro da Casa da índia e para isso me mandou chamar. Escusei-me disso quanto pude. E, por Sua Alteza me não haver por escuso, para me despedir dele pedi-lhe licença para ir a Santiago e ele ma deu e de lá escrevi-lhe uma carta que me ia estudar. E me fui ter aonde Erasmo, que foi no ano de trinta e quatro. E ali pousei com ele por espaço de quatro meses, pouco mais ou menos. E depois fui a Flandres, a negociar minhas coisas e me tornei a casa de Erasmo. Neste caminho que fiz então a Flandres, passei por Argentina. Vivia aí, naquele tempo, Martinho Bucero e Gaspar Hédio, bispo dessa cidade, ambos luteranos. Também aí o meu hospedeiro os convidou a jantar e na prática que tivemos à mesa lhes vim eu a dizer que começava a trasladar um livro da língua portuguesa em latim, dos costumes e religião do imperador dos Abexins; e lhes fui dizendo algumas coisas dos ditos costumes: que eles tinham realmente que o príncipe romano era o Sumo Pontífice e todos os príncipes critãos lhe haviam de dar obediência. E que sobre isso mandaram uma embaixada a el-rei Emanuel, em que tinham os sacramentos assim como os tem a Igreja Católica e outras coisas que eram contra a opinião dos luteranos. Bucero, olhando para Hédio, respondeu: «Mais um motivo para estarmos certos nós.» Altercámos, eles contra mim, tendo eu a parte dos católicos. Estive aí um dia e meio e sem os tornar a ver depois. De Friburgo me parti de casa de Erasmo para Itália a acabar meu estudo a Pádua, onde residi seis anos e convivi com católicos em todo o tempo que lá estive. E me tornei a Flandres, onde casei por licença de Sua Alteza. E me vim, como tenho dito, a este reino.

- E esses luteranos? Viste-os mais vezes? Escrevias-lhes?

Nunca mais vira nenhum deles - respondia - nem lhes escrevera. Somente estando em Pádua, o cardeal Jacob Sodoleto, por ouvir a um gentil-homem boémio, chamado Pedro Bechim, que fora meu companheiro de estudo, que eu estivera em Vitemberga com Lutero e Melâncton, me escrevera enviando-me uma carta para Melâncton e rogando-me que a fizesse chegar ao destinatário. O que eu fiz por o cardeal me asseverar que era para o trazer à fé. Acompanhei a carta com palavras minhas a Filipe Melâncton em que lhe rogava quisesse seguir o conselho do cardeal. Dessas cartas não houve resposta. E não escrevera outra nenhuma carta a nenhum luterano...

(- E que escrevesses?...)

(- Cala-te. Não me apoquentes.)

(- Não fizeste mal nenhum. Mas enfim! Pede-lhes perdão e misericórdia, a ver se os amoleces... ou então manda-os àquilo que já foi pão.)

- De tudo peço perdão e misericórdia - disse-lhes eu com a voz mais humilde que pude arranjar e a revolta a estuar-me no peito.

Fui admoestado que examinasse bem minha consciência e viesse dizer tudo o que crera e praticara da seita luterana e doutros alguns hereges e de tudo fizesse inteira e verdadeira confissão para descargo de minha consciência e salvação de minha alma.

(Só agora reparo... Já tinhas dado conta, Damião?... O inquisidor Simão Pereira tem um tufo de pêlos a saírem das ventas!...)

- Andaste por Alemanha - continuavam monótono a falar aqueles pêlos asquerosos - e por um sem-número de outras terras de luteranos e por muito tempo, é forçoso te parecessem bem algumas coisas das que assim ouvias por lá, principalmente no convívio dos principais que tinham, seguiam e pregavam a seita luterana...

Respondi que assim o faria e o que mais me lembrasse o viria dizer de muito boa vontade.

E assinei com os senhores inquisidores o auto que o notário apostólico escrevera e fui tornado a meu cárcere.

Julgava eu em minha singeleza que este negócio se haveria de resolver prestes e que logo, reconhecido o equívoco, me soltariam. Animado desta esperança, no dia seguinte voltei a pedir audiência, que me concederam, e, dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pus a mão prometendo dizer a verdade, disse-lhes, decidido a resolver o assunto de uma vez por todas:

- Pedi audiência para dizer a Vossas Mercês me mandem escrever nestes autos de como eu me afirmo nunca ter crido nenhum dos erros luteranos, posto que praticasse com os hereges que atrás confessei. Sempre fui muito bom e católico cristão e o sou. E nesta fé protesto de viver e morrer.

Dizem que o silêncio é pesado como o chumbo. Quando ele passa dessa medida, a metáfora cai. Nem a carga do mundo sobre os ombros de São Cristóvão. Olharam para mim impassíveis aquelas máscaras medonhas, sem um pestanejar, um leve trejeito de beiços. Cara de pau que se podia pôr num altar o doutor Simão de Sá. Outros quejandos o foram.

Minha voz a cantar:

Santinho de pau de amieiro criado no meu lameiro quanto mais eu lhe cagava e mijava mais ele crescia e se enramava...

(-Julgavas-te safo? Deixa de ser creu - segredava-me. - Vai no adro a procissão.)

E começou o martírio das perguntas.

Meu Pai, ser-me-ão descontadas estas inquirições no vale de Josafá ao dia das trombetas angélicas? Miguel Angelo na Capela Sistina. Pinta como esculpe. Jeová não tinha pêlos nos narizes. O caldeirão de Pêro Botelho cheio de papas, bispos, clérigos - Dante sabia -, de Simões Rodrigues e Pereiras... sim, também de heróis e de santos que nessa hora terrível, dies ilia, dies irae, resvalam das peanhas e baqueiam dos altares... Mundo louco. Erasmo tinha razão.

Atiravam as perguntas uma e outra vez, um dia e outro dia, ao comprido dos meses, e faziam que não ouviam as respostas, apesar de o notário assentar tudo nos autos. Se não era eu a pedir audiência, espaçavam as sessões em longos intervalos de desesperação. Queriam-me amansar, afeiçoar, quebrantar a seus propósitos. Vinte e cinco vezes entrei naquela sala em quase dois anos, mais exactamente, em seiscentos e trinta e sete dias que eu, como ouvira dizer faziam todos os presos e não tardei em verificar ser necessário, ia anotando na parede da cela com um botão de metal arrancado ao gibão. Parede que atestava, por tantos riscos nela marcados, a imensa quantidade de pacientes que ali haviam penado igual tortura, dali saídos sabe-se lá se para arderem na praça pública em auto-de-fé.

Por companheiro apenas, inconveniente, incómoda e perigosa, a minha voz interior. Cheguei a ter receio de que, em audiência, ela falasse alto. Seria a minha perdição.

Era ela que, nas horas de vigília, silêncio e solidão, mantendo a clarividência, me ajudava a ordenar e a fazer no pensamento o escólio das perguntas. A primeira que me fizeram, naquele dia seis de Abril, denotou logo as manhas daqueles malditos. Fingindo desconhecer as minhas declarações iniciais, era delas que partiam, tomando como pressuposto adquirido ser eu luterano por ter andado por terras deles. O poder do papa. Não era esta uma questão que eu tanta vez ouvira a Erasmo? O doutor Simão consultou os papéis que tinha em frente sobre a mesa e perguntou:

- Pareceu-te e creste que o papa não tem mais poder que os outros bispos? E as indulgências não aproveitavam para nada?

- Não - respondi. - Antes sempre tive que o sumo pontífice tem as chaves de São Pedro cujo vigário é. Acreditava que, se dispensasse menos em algumas coisas, não parecia mal aos homens doutos.

- Em que coisas te parecia que o papa devia de dispensar menos para parecer bem aos homens doutos?

- Nas indulgências, em não serem tão largas. E nos benefícios e na résempta.

(- Claro, claro -, gritou-me a minha voz toda chocarreira. - Vais ver que a essa da venda das indulgências eles se vão calar.)

- E imagens de santos nas igrejas? Não havia de haver, pois não? Nem lhes havíamos de fazer veneração nem a suas relíquias?

- Nunca tal me pareceu.

- Não havíamos de rogar aos santos senão a Deus somente?

- Tenho que se há-de rogar aos santos, que rogarão a Deus por nós.

- E Purgatório? Não aí, senão Paraíso e Inferno? Às almas que estão no Purgatório os sufrágios que cá se fazem por elas não lhes aproveitam?

- Nunca tal me pareceu nem cri.

- Pareceu-te e creste que nos não havemos de confessar a sacerdotes senão a Deus somente?

- Nunca tal me pareceu nem cri.

- Pareceu-te e creste que não está Deus no Santíssimo Sacramento do altar?

- Nunca tal me pareceu nem nunca tive nisso dúvida.

- Disputaste com algumas pessoas sobre os erros luteranos, dando a entender parecerem-te bem e que eles estavam na verdade?

- Nunca disputei com ninguém coisa que fosse contra a fé nem sustentei nenhum erro dos luteranos. Somente disse...

(- Dá-lhes pouca trela. Quanto mais falares mais tropeças e te derrubas.) -... em algumas práticas, disse que os costumes dos luteranos acerca do criar dos pobres o faziam melhor do que nós. Passando por Genebra, no princípio que ela se fez luterana, no ano de trinta e quatro, pousei em uma pousada onde também pousava um herege chamado Guilherme Farei. A mesa, estando todos comendo, veio ele a dizer sobre o Santíssimo Sacramento do altar que estava nisso melhor que a Igreja Romana. Respondi-lhe com a autoridade de São Paulo que fala do Santíssimo Sacramento, contrariando-o. O herege, rindo-se do que eu dizia, retorquiu-me que naquele tempo havia homens que entendiam melhor a Escritura do que São Paulo a entendera.

(- Que conseguiste com isso, não me dizes? Olha para eles.)

Jorge Gonçalves olhou o outro inquisidor, que lhe correspondeu com leve aceno de cabeça, e disse:

- É já muito tarde. A audiência acaba por hoje. Admoestamos-te que cuides muito bem em tuas culpas e venhas dizer tudo o que fizeste, creste e praticaste dos erros luteranos e de quaisquer hereges. E de tudo faças inteira e verdadeira confissão, para contigo se poder usar da misericórdia da Santa Madre Igreja.

E fui tornado a meu cárcere, após a assinatura dos autos. Dois dias me deixei ficar, sem mais ânimo de pedir audiência, quando ao terceiro dia me vieram buscar e, depois do costumado juramento,

- Bom dia a Vossas Mercês - saudei quando os inquisidores entraram. Não me responderam nem sequer me olharam, enquanto se sentavam

nos veludos.

(- O que ali vai de trampa! Olha o cuidado com que assentam aqueles cus. Diz-lhes que também tu começas a cheirar mal, que precisas de tomar banho...)

- Cuidaste mais em tuas culpas? - começava Jorge Gonçalves com um olhar de aço. - Que é que te lembras delas?

- Nada tenho que confessar que tenha feito nem dito contra a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo.

- Creste ou tiveste para ti que se podia comer carne em todos os dias, sem fazer nenhuma diferença de manjares?

(- É o que eu supunha. Emprenharam de orelha.) Era evidente que tinham os ouvidos cheios. Algumas perguntas implicavam, pelo pormenor, terem escutado testemunhas que eu não sabia quem eram, tirante a marca, aqui e ali, de aleivosia de Simão Rodrigues.

- Fui licenciado em comer carne alguns dias defesos pela Igreja. Tenho uma bula do papa Paulo, em que se me dá faculdade para poder comer assim carne como ovos e toda coisa de leite.

- Quando usaste da dita faculdade, estavas são ou tinhas alguma necessidade corporal para poderes comer carne?

- Algumas vezes são e as mais doente.

- Parece-te que podes usar da carne nos dias defesos, por tua vontade, sem ter outra licença para isso?

- Sim, por respeito da minha saúde, ainda que não tenha dispensação.

- Estando doente ou com doença? Sem pedir para isso licença?

- Muitas vezes para conservar a saúde e muitas vezes por estar doente.

- Para ti as constituições da Igreja Romana não nos obrigam e a Igreja não pode fazer lei ou constituição positiva que obrigue a pecado...

- Tenho sermos obrigados a guardar as constituições da Igreja Romana. São Paulo o insinua: - omnis anima sublimiori potestati súbdita sit.

- Para ti a Igreja Romana não é universal e mãe de todas as outras Igrejas?

- Nunca fui dessa opinião. Se eu este não fora, não escrevera e trasladara o livro de Preste João da língua portuguesa na latina em que submeto todas as outras Igrejas à Igreja Romana.

- E livre arbítrio? Não temos, pois não? para bem, senão para mal e podemos estar certos da graça?

- Nessa parte tenho com a Igreja Romana. Fui sempre contrário dos que, confiando no livre arbítrio, julgam poder estar seguros da graça.

- Os erros luteranos acima apontados e outros por que já foste perguntado, podes guardá-los no coração, estejas embora em terra católica e assim neste reino, e nem por isso deixares de fazer o que os católicos fazem? Disseste a alguma pessoa que assim o havias de fazer?

(- Quem terá sido a testemunha que...)

- Não me lembra de alguma vez ter dito a alguém que me pareciam bem os ditos erros, antes sempre os tive por ruins e falsos.

- Disseste a alguma pessoa que a doutrina do maldito Martinho Lutero era boa e também a de Calvino?

- A seita de Lutero nunca me pareceu boa, a doutrina de Calvino nunca a vi nem conheci nem vi coisa sua nem a ele, nem me lembra que dissesse a alguém o conteúdo na pergunta.

E com isto fui muito admoestado etc., etc... esta era já a terceira sessão, não o fazendo seria necessário vir o promotor fiscal com libelo contra mim... não me pusesse em rigor de justiça...

- Se o fizeres, assim se usará contigo da misericórdia que... E fui tornado a meu cárcere...

Dez dias se passaram sem que deles houvesse sinais. De meditação me serviram. Não havia dúvida, dizia a minha voz, de que eu era refém da Santa Inquisição. Nobre cavaleiro português, nobilis eques Lusitanus, de ideais universalistas. E de que outro jeito podias tu ser? Cristão que não enjeita a acção apostólica dos seus compatriotas. Espírito ecuménico, pois então, aprendido nos roteiros do mundo, atento tanto às questões económicas e políticas, como aos problemas da teologia e da filosofia e não arredado da fruição das artes e da retórica. Embarquei em espírito nas caravelas dos meus, viajei as sete partidas, fiz-me cidadão do mundo. Não de um mundo estreito, mundozinho antigo, mediterrânico, mare nostrum, Deus noster, ventas nostra... Com suas navegações e viagens o homem alargou o mundo, a verdade, Deus... Bartolomeu, Gama, Cabral, Colombo, Magalhães... a Terra redonda... uma bola a girar no espaço na poeira dos astros, diz Copérnico no seu observatório de Frauenberg, a aclarar as névoas do céu... Baqueiam dogmas no inquieto espírito dos homens. Outras raças, línguas, religiões, costumes... onde está a verdade? Quem sou eu? Quem somos? Origem e destino...

E vêm estes cegos perguntar-me se pequei por ter comido carne em dias por eles, algures no tempo, tornados defesos... Inventar pecados... e perdões, indulgências, benefícios... e falar do poder do papa e do culto dos santos e das imagens e de...

(- Atira-lhes com a Fides às fuças. Conta-lhes do frio que te apanhou o coração ao entrares na igreja de Vitemberga... despida, nua, órfã...)

E está um homem preso por ter dúvidas em seu pensamento...

Cansado de não ser chamado, pedi de novo audiência e no dia dezanove fui ouvido. E disse:

- Cuidando em minhas culpas, lembrei-me... Entre os livros de minha livraria, um escrito de pena, em italiano, intitulado De Geomancia, sem autor...

- Que vem a ser isso?

(-Não respondas. Ainda te acusam de bruxaria...)

- Quando se estudam os costumes de latinos e gregos, damo-nos conta de que essas gentes acreditavam em poder adivinhar o futuro. Qualquer coisa lhes servia, as palmas das mãos, os sonhos, as entranhas de seres mortos, as linhas traçadas no pó da terra...

- Hum. E tu...?

-... tenho outro imprimido, de um tal Miguel Stifel, matemático...

- Não respondes?

- Às vezes lia por eles, porém dava-lhes pouca fé. Possuo dois livros de Erasmo, a Spongia contra Huteno e a Epistola aã Fratres Germaniae Inferiorís...

- De que tratam?

- De conhecer os hereges por seus errores e se guardar homem deles.

- E que mais?

- Nada mais. Peço a Vossas Mercês... na minha boeta ficou o meu testamento cerrado e selado com o meu sinete... o abram, nele verão se sou católico ou herege... e um apontamento do decurso de minha vida, um livro impresso com as obras que fiz em língua latina e quatro ou cinco cartas que Erasmo me escreveu. Por aí verão o que passou e com quem tratei e comuniquei.

- Quanto tempo te passeaste por Alemanha e por outros lugares de hereges?

- Três ou quatro vezes. Sempre caminhei, estando dois, três ou quatro dias em alguns sítios, para repouso das cavalgaduras. Somente em Friburgo, onde residia Erasmo, cidade católica, estive três ou quatro meses.

- Nesse tempo ouviste pregações dos luteranos?

- Não. Ouvisse-as, não as entenderia por não saber a língua.

- E ias às missas, confessavas-te, comungavas?

- Sempre me confessei e comunguei e ia à missa nos lugares católicos.

- Depois de vires para o reino, ias às missas e pregações? Confessavas-te? A quem? Tomavas o Santíssimo Sacramento nos tempos costumados?

- Aqui, ia ouvir missa a Santa Cruz, que é minha freguesia, aos domingos, e algumas vezes a São Bento, onde tenho dois filhos frades e a outras partes. Confessava-me, ora na Sé, ora em Santo Elói, ora em Enxobregas. Como se acertava. Esta Quaresma passada confessei-me a frei João do Casal, em Enxobregas. Em Alenquer, confessava-me a um padre do dito mosteiro, muito velho, frei Domingos. Também alguns dos meus criados se confessavam a esse padre. Aos domingos e santos, ia ouvir missa à ermida do Santo Espírito, de Alenquer, e ia tomar o Santíssimo Sacramento a São Pedro, que é a minha paróquia. Este ano tomei o Sacramento em Santa Cruz.

Com isto foram-me feitas as perguntas gerais:

296

l - Que idade tens? *

l - Setenta anos. Faço-os neste Fevereiro que vem.

l - De onde és natural?

l - De Alenquer.

I - Nome do pai?

I Hesitei. Depois respondi:

P - Rui Dias.

- ... e mãe?

- Isabel Gomes de Limi. Já defuntos, cristlos-velhos.

(- Não sejas peco. Diz-lhes que sabes a doutrina cristã.) Disse-lhes que sabia a doutrina cristã, me confessava e comungava os tempos que a Igreja manda e ia a missas e pregações, domingos e festas... E com isto fui admoestado etc., etc. e seguia a lengalenga... senão seria necessário vir o promotor fiscal com libelo contra mim, que esta era já a quarta sessão... e eu disse que assim faria e, antes de assinar os autos, declarei que era lembrado de no tempo em que andei em Itália...

- Praticando com alguns homens letrados lembro-me de dizer que se podia seguir grande bem se o concílio e o papa dispensassem que se comunicasse o venerável Sacramento sub utroque specie aos leigos e também se dispensasse de delectu ciborum. Daí se seguiria o grande proveito de muitos hereges se tornarem a reconciliar com a Igreja Católica.

- Quantas vezes disseste isso? E a quem? E no reino também disseste?

- Não me lembro de quantas vezes nem das pessoas nem se o disse também cá. Se o disse, poderá ter sido em prática com o padre Monsarrate, que o fui visitar no mês passado, ou a João de Camartim, que visitei antes de falecer o bispo de Targa. Porém não me afirmo dizer-lhes parecer-me bem comungarem os luteranos sub utroque specie.

- Parece-te não ser pecado comer carne na Quaresma e nos mais dias proibidos pela Santa Madre Igreja? Comeste por esse caso, alguma hora?

- Sei que é pecado. Quando me confesso, acuso-me disso se a como. Já o disse atrás. De tudo peço perdão e misericórdia.

Ia a sair, ouvi o doutor Simão de Sá cochichar a João Velho:

- ... necessário perguntar a Jerónimo Vaz e ao solicitador Rui Fernandes da diligência que mandei fazer... chamar António Pinheiro, tesoureiro da Tapeçaria, para o que sabe de o réu evitar ir à igreja...

E fui tornado a meu cárcere.

Não acabaria esse mês de Abril sem que mais uma vez, em minha desesperação, tornasse a pedir audiência. Mandaram-me buscar aos vinte e cinco dias do mês. Prestado o costumado juramento,

- Peço a Vossas Mercês - disse - me mandem ler as minhas confissões atrás, para melhor assentar na verdade.

E logo, dada a ordem, me leu o notário as confissões.

- Tudo o que aí se contém - declarei - é verdade e assim o afirmo e ratifico e de novo digo, se necessário. Demais sou lembrado que, no tempo em que viajei à Dinamarca, fui agasalhado por mandado de el-rei, em casa de um vereador na cidade de Schleswig, onde fui banqueteado. No derradeiro dia que me quis partir, estando ceando, o meu hóspede trouxe

um cálice consagrado à mesa, cheio de vinho branco...

(- Para que vens com essa miudeza? Arranjas lenha para a tua fogueira.) Contei todo o episódio do cálice consagrado até ao ponto em que, vendo o hóspede que eu não queria beber, mo tirou de diante apodando-me de supersticioso. E rematei:

- Se isto não foi assim, como eu tenho dito, caia fogo do Céu sobre mim e me queime.

E referi que o contei no reino e de lá o escrevi a el-rei João terceiro, que Deus tenha. Voltei a falar da minha visita a Vitemberga, e de merendar maçãs e avelãs em casa de Martinho Lutero, e de Melâncton me ter rogado que entrasse em sua casa a ver-lhe a pobreza e aí entrei e achei sua mulher vestida com uma saia velha de bocaxim e fiando lã.

E disse da minha ida a Paris a visitar no mosteiro de São Francisco a frei Roque de Almeida, cunhado de João de Barros, e da grande inveja que ele me tinha pelo que eu havia visto do mundo e ter conhecido esse grande homem Martinho Lutero, e de ele se me ter lançado aos pés a pedir lhe desse uma carta para Filipe Melâncton porque queria lá ir estudar e buscar armas para pregar contra os luteranos. E eu lhe dei essa carta. E tornei deste reino aonde estava Erasmo e fui seu hóspede e depois caminhei para Pádua e veio ter comigo frei Roque, mudado em Jerónimo de Pavia, e me trouxe duas cartas, uma de Filipe Melâncton e outra de Lutero, e o tive em minha casa alguns dias por pobre, e lhe disse que se tornasse a seu hábito ou se fosse para onde quisesse que eu não o queria ter em casa feito apóstata. E frei Roque se foi a Veneza, onde em lugar de pregador se fez alquimista, e depois se meteu outra vez na Ordem e sempre, nas práticas que com ele tive, me dizia que era católico e vinha armado contra os hereges e eu por tal o julgava e não sei o que é feito dele. E de outra coisa não era lembrado. E de tudo pedia perdão e misericórdia.

Mais uma vez me perguntaram se eu praticara com Lutero, Melâncton e outros hereges sobre os erros deles, se me pareceram bem.

- Não - respondi.

E as cartas que frei Roque me dera? Tinha-as em meu poder? Lera-as e mostrara-as a algumas pessoas?

- A de Lutero creio que a rompi logo. A de Melâncton não me lembra se a tenho, se a rompi. Porém não as mostrei a ninguém.

Por ser tarde cessou a audiência e fui admoestado em forma, mas antes de ser tornado a meu cárcere declarei que, para ver Martinho Lutero e o Melâncton, me desviei do meu caminho três ou quatro léguas.

- Ouviste publicar nas igrejas de Lisboa um monitório desta Mesa, em que se mandava a todas as pessoas possuidoras de livros defesos os trouxessem a este Santo Ofício, e isto sob pena de excomunhão ipso facto?

- Ouvi dizer que se publicou, mas parecia-me que não tinha livros defesos mais que os que tenho dito.

- Tens o rol dos livros defesos?

- Sim.

- Há em tua livraria livros defesos por esse catálogo?

- Tenho dois volumes de Estêvão Doleto, os Commentarii Linguae Latinae. São como vocabulários da língua latina. Ouvi ser este autor suspeito. Não me lembro de ter outros. Bem se pode ver por minha livraria. Há muito que os não vejo.

- Tens licença para possuir e ler livros defesos?

- Não tenho licença apostólica nem ordinária para ter livros defesos. Os livros ordinários por onde leio são livros históricos e outros que fazem a bem de meu ofício de cronista.

A dois de Maio os guardas vieram buscar-me, como de costume. Procissão a três pelos corredores húmidos, as escadas de caracol, o corredor amplo, até à sala das perguntas. Entraram os inquisidores cheios de caridade e unção divina e Simão de Sá disse-me em voz de múmia:

- Várias vezes vieste a esta casa e te admoestámos com benevolência confessasses tuas culpas e dissesses a verdade delas. E tu, até o presente, com mau conselho não o quiseste fazer. Tornamos agora a admoestar-te que te disponhas a cair na verdade e confessar tuas culpas e peças perdão delas. Senão o promotor fiscal vem com libelo criminal contra ti. Aproveitar-te-á muito mais confessares antes que depois.

- Já tenho confessado o que sinto em minha consciência. Não tenho mais que confessar. Sempre fui muito bom cristão.

Com sua cara de pau bichado, seu tufo de pêlos no nariz, seu resplendor de santidade a aureolar-lhe a caveira, Simão de Sá fez sinal ao secretário, que tomou da campainha e a fez tinir. E logo atrás de mim se abriram as portas, passos avançaram pelo lajedo e aí apareceu o promotor fiscal que apresentou o libelo criminal contra mim.

(- Os safados tinham a cena preparada!)

- Terei o direito - perguntei - de ouvir o de que me acusam?

Deu o inquisidor presidente ordem ao promotor de ler o libelo e aquele pobre bicho da terra pigarreou antes de vociferar contra mim em nome da justiça de Deus. Tenho-as para sempre, às principais dessas palavras, gravadas no tutano do meu ser como a fogo:

... cristão baptizado e por tal havido e conhecido e obrigado a ter e crer tudo o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, fê-lo muito pelo contrário, afirmando proposições heréticas e luteranas... ... em diversas vezes, praticou com certa companhia nos erros de Martinho Lutero - do poder do papa, da confissão e da graça -, torcendo para isso algumas autoridades...

... louvava a maldita seita e se comprazia nela, trabalhando por trazer a ela uma pessoa dessa companhia...

(- Estás a reconhecê-la, Damião, a essa pessoa? Esse mesmo. São Simão Rodrigues... Ora pró nobis...)

... o ir à missa e fazer os mais actos dos católicos, faria como eles fizessem e em seu coração guardaria o que havia de guardar.

... muita amizade com grandes hereges e cabeças deles e heresiarcas, com eles comunicava, comia e bebia... viajando, desviava-se do seu caminho direito muitas léguas para ir ter com eles, recebia deles cartas e lhes respondia, era entre eles muito conhecido e tinha com eles tanta conversação que certa pessoa de grande dignidade lhe escrevera uma carta como a homem que podia acabar muito com os hereges luteranos... ... inclinado à maldita seita e pouca afeição à Igreja Romana e suas constituições, tais como de delectu ciborum e outras, desfazendo nelas por autoridades que para isso alegava... comia carne, indiferente, sem licença nem necessidade urgente...

... papas tiranos houvera muitos e da tirania dos eclesiásticos viera muito mal à Igreja, muitos deles hipócritas e comummente mais tiranos que os leigos... havia muitas seitas e Deus era sobre todas elas... ... estrangeiros, gente bem inclinada e não tão atraiçoados como os espanhóis... a dar a entender que eles andavam na verdade e nós não... ... afeiçoado aos erros luteranos e a seus sequazes, já que em pessoa os não podia conversar e comunicar, por estarem ausentes ou serem já mortos, os conversava por lição dos seus livros que possuía, proibidos pelo catálogo do Sagrado Concílio Tridentino... e essa lição argúi o réu de suspeito no crime de heresia por que é acusado, acrescenta e ajuda a prova que contra ele há desse crime, mormente sendo-lhe achados depois da publicação do rol nesta cidade... tendo-se mandado a toda a pessoa senhora de livros improbatae lectionis revisse sua livraria e os enviasse ao Santo Ofício, inobediente, pertinazmente os conservou até agora...

... muitas vezes admoestado confessasse suas culpas e pedisse delas perdão, usando de mau conselho o não quis fazer, antes, acinte e maliciosamente, oculta os erros e por tal deve ser declarado herege contumaz e negativo e condenado nas penas de direito...

Que contrariasse o libelo e o contestasse, mandaram-me os inquisidores, acabado de ler o documento.

- Confesso o primeiro artigo. Sou cristão baptizado e crismado. Já tenho confessado do comer da carne e das cartas. Do mais não sei parte e tudo é falso. Nunca o fiz nem disse, que me lembre. Bem pode ser dissesse, lá por onde andei, alguma coisa mais. Mas nunca me apartei da fé.

- A contrariedade deve ser feita no termo costumado. Terás para isso de escolher procurador.

Escolhi o licenciado Aires Fernandes Freire, pessoa douta e sagrada, e lhe dei todos os poderes de direito habituais. Os inquisidores ordenaram que se lhe desse recado para vir estar comigo e aceitar a procuração e formar minha contrariedade.

Algumas palavras do libelo acusatório não me saíam do pensamento. Já tinha eu assinado os autos, lembrou-me ainda de acrescentar:

- Não sei se foi a João Decamarty se ao padre Monserrate ou a quem... Falávamos sobre os luteranos. Perguntando-me que opinião fazia eu deles acerca da salvação, respondi o que um rabi tornado cristão escrevera a um amigo judeu. Mostrava-lhe, por autoridades da Sagrada Escritura como era vindo o Messias. E, no cabo de cada capítulo repetia: tamen, mi frater, quidquid sumus Dei sumus. Isto dizem os luteranos quando os apertam. Não me lembro de o meu interlocutor me vir por isto à mão.

- E que te parece têm os luteranos para si quando a,giríf quidquid sumus Dei sumus>.

- Que nos salvamos todos, assim os católicos como eles. Mas eu tenho que, apartados da Igreja Católica Romana, se não salvam.

(- Deus te perdoe, Damião. Não podes estar a falar a sério. Ao que tu estás a descer! Só falta ouvir-te pedir disso perdão e misericórdia.) ... e, se nisto cometi erro, peço perdão e misericórdia.

Ia o tempo passando, acabava o ano de setenta e um, dobava o de setenta e dois, um mês, outro mês. Eles ouviam testemunhas que lhes enchiam os ouvidos de particularidades logo alçadas a provas de heresia... Alguns papas foram tiranos - afirmara eu - e usaram mal de suas dignidades. Eu defendia-me. Disse isto por um legado do papa Clemente sétimo, que residia em o Norte de França, não querer consentir que fosse a Alemanha um corpo de homens por parte de el-rei João de Portugal, terceiro deste nome, que está em glória, para serviço do rei Luís segundo, Jagelão. Neste tempo o Turco entrara em Hungria e na batalha de Mohacs matara este rei, marido de Maria de Áustria. Doutros papas contava Platina, que escreveu as vidas dos pontífices. Não por outra via nenhuma a minha intenção. Disse eu mal de prelados, clérigos e religiosos e irmãos da Companhia? E verdade. Mas não foi senão dos que vivem mal e não guardam suas regras e institutos, como alguns jesuítas que não seguem a pobreza que lhes deixou o seu primeiro instituidor, que eu conhecera e conversara e fora um padre muito santo e virtuoso. Falei de eclesiásticos tiranos, quando usam mal de seus ofícios, principalmente os prelados alemães que têm jurisdição religiosa e secular e por causa deles viera muito mal à Cristandade... Uma coisa - rematava - era a índole sagrada da dignidade eclesiástica, outra o ser honesto ou desonesto o seu titular. Não pretendera eu atingir a primeira.

(- De que te presta, Damião, defenderes-te? Eles não se miram ao espelho. Insistem e insistem. Querem ver-te por terra, aniquilado...)

Mas eu continuava a defender-me. Sobre a igreja dos Paços do Castelo estendia-se um lanço da minha casa que se abria em tribuna para a capela, em direito do cruzeiro, do lado do Evangelho. Nem sempre aí se dizia missa, mas quando a havia era-me possível e aos meus assistirmos ao ofício. O mais do tempo o pequeno templo estava fechado ao culto e, como o vão era grande sob o telhado, servia-me de dispensa, onde se guardava cevada e outros despejos, toucinho, chacinas, salmouras da Flandres, sardinha salgada. Por baixo da tribuna, em cima da grade da capela-mor, erguia-se um crucifixo de vulto e corpo inteiro muito formoso. Soprava vento travessão ali nos altos, destelhava a telha-vã e, com a chuva, alguma goteira se infiltrava. Não pelo sobrado, que era ladrilhado. Por brecha que aí havia. E ia cair na capela, arrastando consigo grosso e salmoura de uma canastra de sardinha misturados de pó da cevada que os ratos derrubavam. João Carvalho, meu vizinho, e seus criados deram conta de que pelo rosto do Cristo choravam aquelas lágrimas imundas e, escandalizados, vieram dizer-mo. Logo mandei a An tão Lampreia, que Deus haja, providenciasse a limpeza do crucifixo e nunca mais acontecesse cair sobre ele qualquer sujidade. Pois na sua malícia os safados vieram acusar-me ao Santo Ofício de que eu deixava escorrer urina pelo rosto e corpo de Jesus e que, avisado, nunca me emendara.

(-Mijo! Demasia! Enormidade! Nem ao diabo lembraria... Maldade, prova da existência do Inferno... e da justiça de Deus... de Deus... Santo Anselmo: o insensato disse em seu coração «.Deus non est». Estêvão Doleto a arder na fogueira em Paris por negar a existência de Deus...)

Mas daí por diante ninguém mais viu gotejar salmoura pelo crucifixo. Não obstante, teimavam em perguntar-me sobre o culto dos santos e suas imagens. Não tivessem dúvidas. Sempre gostei de imagens religiosas de rara novidade, perfeição e engenho. E atirava-lhes com o extenso rol de ícones e outros objectos pios que eu coligira nas minhas andanças pelo mundo ou que adrede encomendara para doar a el-rei João e à rainha Catarina, a igrejas e capelas, a confrarias... Recobrava, com isto, a minha voz seu bom feitio. Ao jovem rei Sebastião dei um santo do seu nome, de vulto, coral fino com seu assento de calcedónia, quase um palmo de altura, uma só peça, atado com vergas de ouro a um tronco também de coral, as setas de ouro a lacerar-lhe o corpo. Peça muito rica, el-rei pegou nela, mirou-a e remirou-a à volta, olhou-me nos olhos e disse: «Muito grato, Damião, muito grato. Terei nela toda a estima.» Um abano da Noruega de penas de pavão, muito grande e bem feito, para o altar do bem-aventurado São Bento, no mosteiro de Enxobregas, para com ele, à missa, o sacristão enxotar as moscas ao padre. Aquele tríptico das tentações de Santo Antão, que te custou com o outro painel de São Job perto de duzentos cruzados, pintados da mão do excelso Jerónimo Bosch! Porque o deste ao núncio Monte Pulesano? Prometeu-te em troca muitos benefícios para os teus filhos e até agora tens visto alguns? O retábulo oferecido ao secretário Pêro de Alcáçova Carneiro, por respeito das boas obras dele recebidas. Grande, com três portas, nascença, os três reis magos e circuncisão, de muita valia... De mármore de Génova - lembras-te? - o relógio doado ao convento de São Francisco de Alenquer, a risca da sombra do gnómon de cobre a apontar as horas. De nada te serviria agora, na escuridão da cela... Meu irmão Fruitos! Que saudade! Quando vim da Flandres, em quarenta e cinco, ofereci-lhe um retábulo grande com portas, a imagem da Virgem pintada com o Filho ao colo. Creio que o deu à Igreja de Nossa Senhora do Castelo, de Almada, onde tem a sepultura... Deus o guarde em sua glória!...

Em um dia de pescado - continuavam os inquisidores -, por ser proibido comer carne, uma pessoa, de entre as que se sentavam à minha mesa, pediu uma pequena de carne de porco por ela sentir necessidade... (- Vaga reminiscência, Damião. A sobrinha Briolanja, prenhe. Estranhos desejos súbitos. Não convém contrariar. Será a isto que se referem? Quantos anos já lá vão!)

Vinda à mesa linguiça e carne guisada, eu dissera:

- «Não hás-de tu só de comer dela, que também eu te ajudarei.»

Estranhou o que assim me via dizer e fazer, por eu estar são e bem disposto e não ter necessidade. Então eu, querendo desculpar-me da- repreensão, respondera:

- «O que entra pela boca não suja a alma.»

Autoridade de São Paulo, asseveravam os inquisidores, que alegam comummente os luteranos.

(- Erasmo. Lembras-te de falares com ele sobre isso?) Erasmo também se não dava bem com o pescado. Mais razão que eu. Friburgo, terras interiores, longe do mar. Salmões do Reno? Trutas dos riachos da Floresta Negra? Percas, carpas, barbos? O menos possível. Lisboa não. Rio largo a cheirar a maresia. Povoado. Lotas da Ribeira, de Cascais, de Setúbal, de Sesimbra... a abarrotar: espadartes, sardinhas, besugos, salmonetes, rodovalhos, chernes, pescadas, sardas, tainhas... Meu estômago fraco. Deus mo deu, os padres mo querem obrigar. Peixe não é carne? Galinha, ovos não são carne? A polpa de frutos e legumes? Mãe natureza. Pecado da gula. Não é a carne ou o peixe que é o pecado. O excesso. Distúrbio do ventre, das tripas, dos hipocôndrios...

Eu negava. Nunca em Portugal tal coisa passara por mim e quem quer que o dissera falsamente e no rosto eu lho lançaria se pudesse. Insistiam: pelos autos constava o contrário. E ameaçavam com a publicação de um artigo acumulativo de acusação. Eu tornava a negar. Jurava pelos Santos Evangelhos: tudo era falso e não fizera tal e a testemunha era falsa. Insistiam. Eu dizia que não me lembrava. Pedia me declarassem o lugar e tempo em que foi, para recorrer minha memória... E me era respondido: lugar onde acontecera? algures na cidade ou no termo dela, havia já muitos, muitos dias... Eu dizia que não podia lembrar-me de o ter feito ou dito... Insistiam e o promotor fiscal aparecia e lia o tal artigo acumulativo. Eu teimava: se me lembrasse... Embrulhavam de nuvens o cenho: apelasse à memória e viesse confessar, senão...

Senão!... A ameaça. Que mais viria lá? Por muita fantasia, a uma pessoa nunca lhe ocorreria aquilo que se seguiu. Uma madrugada, com grande arroído fizeram-me levantar da cama, vestir estamenha negra, enfiar na cabeça uma loba aguçada, apenas dois buracos para espreitarem os olhos, e obrigaram-me a sair da cela descalço. Em breve pelo estreito corredor um cordão de penitentes, igualmente vestidos, aí uns dez, saídos das outras celas. Em silêncio o cortejo de fantasmas segue os guardas... Aonde me levam? Pés gelados no chão viscoso. Labareda de archotes. Escuridão e luz. Bailam duendes as sombras pelas paredes. Saudades do conforto da minha casa. Vizinha jovem, corpo afeiçoado. Volúpias. Pecado no pensamento e na polpa dos meus dedos. Mesa farta, escolhida, iguarias... Que gritos, que uivos são aqueles? A casa das torturas. Uma galeria corria por cima. Dali se podia ver sem ser visto. Aí parámos. Meus olhos, meus ouvidos, minha alma para sempre maculados. A fera humana. Único animal que põe a imaginação ao serviço do mal. Invenções diabólicas. No potro, deitado, in eculeum coniectus, tortura antiga, um paciente despojado das roupas. Apenas uma tanga lhe esconde as vergonhas que o são desde que Eva e Adão... Grossas cordas em argola lhe atam os tornozelos, as coxas, pulsos e braços, ligadas a tornos que os algozes vão torcendo a mando do inquisidor sentado em seu estrado diante de uma mesinha, notário ao lado, protecção do crucifixo.

- Confessa.

- Ui, meu pai!... Nada tenho que confessar.

Aceno aos algozes. Mais um esperto nos torniquetes. Começam a alargar-se as tábuas do cavalete, a estender-se e, com elas, se vão desconjuntando os ossos daquele corpo, esticando a espinha, deslocando do encaixe dos ombros os braços, da bacia as pernas...

- Ai, ai, ai, eu morro!...

- Confessa.

- Parai. Eu confesso, padre, i - Diz.

- Até agora - arfava esgares - eu acreditava...

- Ah!

-... mas agora sei... vejo... ele não existe...

- Que dizes desgraçado?

- ... Deus não existe... que te não vem fulminar, cão... não vem castigar tanta maldade...

Aceno e mais aceno O esqueleto desune-se. O paciente desmaia. Um dos algozes escuta-lhe o coração:

- Está morto.

Sangra-me a alma. A meu lado um companheiro desfalece e derrama-se no chão.

Adiante arrastam-nos mais gritos a outra cena. Cravada na abóbada uma roldana de que pende uma corda, de que pende um desgraçado pelas mãos atadas atrás das costas. Vem a corda a um eixo seguro em dois madeiros. A manivela solta o peso humano, o corpo cai de esticão quase até ao solo, ossos partidos, rompidas as carnes, os braços desmembrados... A um canto queimam as solas dos pés com ferro em brasa a outro infeliz, espetam-lhe farpas de pau no sabugo das unhas. Como estátua, sentado imóvel, encostado ao tronco do garrote, aquele parece dormir ou rezar, a cruz entre as mãos pousadas no regaço, há muito a dor extrema lhe calou os gritos...

Desânimo e medo. Eis como me tornei a meu cárcere. Até me a voz interior tem já pouco alor de ripostar. Os inquisidores vieram com o relato das testemunhas de acusação, calados os nomes. Que as contraditasse. As aleivosias de Simões Rodrigues topei-as facilmente. Não me avexassem mais, defendia-me eu, sobre setenta anos de idade, certa criação e serviços feitos à coroa do reino, sempre com nome de homem que viveu bem e com honra. Não dessem crédito às falsidades de quem me acusa e me fez vir a este cárcere e no que testemunhou mostra a grande peçonha que concebeu contra mim para alongar o tempo de minha prisão. Que sou herege? Vissem o que tenho escrito assim em latim como em português, e logo se saberia se havia nisso alguma coisa que cheirasse a heresia... Se iam estrangeiros a minha casa? Retribuía a hospitalidade com que sempre e por toda a parte, lá fora, havia sido acolhido, com igual espírito hospitaleiro.- A,minha casa era estalagem de estrangeiros, tanto dos que vinham a esta cidade como dos que cá viviam, e os banqueteava e lhes fazia bonachira...

De outra testemunha vinha a acusação de que eu afirmara que os estrangeiros era gente bem inclinada, não tão atraiçoados como os Espanhóis e os Portugueses e que havia aí muitas seitas e que Deus era sobre todas e que as seitas de que eu falava eram as dos luteranos e que, por derradeiro, eu afirmava: «Que cegueira têm estes homens, estando tão clara a verdade!»... Eu respondia, em minha defesa, que já havia esclarecido esse ponto, mas quem eu suspeitava que dera esse testemunho era tal que, se ele mesmo o não desse, não lhe faltaria quem por amor dele o fizesse, porque companhias comunicava ele que, por pouco preço, diriam muitas falsidades. E do que essa testemunha dizia entenderiam Suas Mercês ser eu, pelo contrário, inimigo dessas seitas, pois havia afirmado por derradeiro: «Que cegueira a destes homens estando a verdade tão clara!...» Onde a testemunha achava referir-me eu aos teólogos da Igreja, eu afirmava agora querer atingir os protestantes.

(- Pau de dois bicos, meu caro Damião! Anfibologia, ambiguidade, equívoco! Joga-me com estes malandros!)

(- Ah! Estavas aí, minha voz? Tão amachucada tens andado.) (- E não te esqueça. Quando abjurares, faz-lhes figas atrás das costas.) Repetiam e repetiam as mesmas acusações já rebatidas mais de uma vez... e o tempo passava. Que fazer? Escrevi aos inquisidores.

Senhores, pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! Despachai o meu negócio, que está concluso. Passa de ano e meio estou preso, com muita perda e detrimento de minha honra e fazenda. Havei respeito à idade e qualidade de minha pessoa e ao desamparo de minha casa e filhos. Tão menoscabado estou que, sobre setenta anos de idade, muito maldisposto, em tanto que quase não tenho forças para me suster sobre as pernas, tão cheio de vertigo, usagre e sarna que em todo o corpo não há coisa sã. Qualquer pessoa que me vir, se for próximo, se moverá a piedade e pouco faltará para me julgarem por leproso. Deixai-me falar com meu filho Ambrósio para saber de minha família, negócios e fazenda, de que não tenho notícias, do que estou muito triste, sobretudo por ser requerido, por caso de uma demanda que depois de eu ser preso, ele traz com meu genro Luís de Castro. Coisa muito fora da minha arte. Mandai emprestar-me um livro em latim para ler, qual vos parecer, porque estou apodrecendo de ociosidade e com ler se me passam muitos pensamentos. Dai-me licença de escrever uma carta ao cardeal e a mandar a meu sobrinho Damião Borges para que lha entregue. Que, se de mim tem algum rancor, precedido de más informações, saiba que sou eu muito alheio do que porventura lhe têm dito. Sua Alteza não há-de querer que morra eu nesta prisão e deve respeitar a meus serviços e idade, o que está em vossas mãos e no reporte que vós lhe disso fizerdes, a quem a Senhor Deus tenha sempre em sua guarda, lembrando-vos quod universae viae Domini misericórdia et veritas, misericórdia que me tendes prometido tantas vezes e tanto estou esperando. Venham embora de sobreposse com artigos e mais artigos, libelos e mais libelos acumulativos, não tenho mais que dizer nem confessar que o que tenho declarado nos autos. Lembrai-vos da grande misericórdia com que Cristo perdoou a Madalena, e do filho pródigo a quem o pai recebeu com grande festa mandando matar uma vitela gorda para o banquetear, e do perdão de São Pedro que o negou, e dos Apóstolos que o abandonaram... Nosso Senhor inspire em vós sua graça para que com ela vos lembre de mim. Tendes-me aqui preso há já dezassete meses, com vos ter de minha livre vontade confessado os erros em que, sendo mancebo, andei, e dito como me deles tirei há trinta a quarenta anos. Não foram eles tamanhos que, ainda se neles perseverara até o dia que me prenderam, me não concederiam deles perdão, se me arrependesse depois de preso. Errado foi Santo Agostinho na heresia de Pelágio e Celestino. Repreendido São Jerónimo por origenista. Ambos se arrependeram com dizerem que, se então foram tais, eram já outros. Pressuposto andasse eu naquele tempo nos erros declarados, sempre fui católico cristão e obediente filho à Sé Apostólica de Roma, sempre usando e guardando, com toda minha família, seus ritos e costumes. Se me quereis contar por erro haver sido amigo de Erasmo roterodamo e seu hóspede quatro meses pouco mais ou menos em Friburgo de Brisgóvia, cidade católica e Universidade célebre de Áustria, não vejo causa por que sua amizade me deva de ser prejudicial. Nunca foi reputado nem condenado por herege. Da boca dele nunca ouvi, juro, palavra em que nele pudesse sentir senão que era muito católico cristão e inimicíssimo de Lutero e de sua heresia e de quejandos. O que tudo visto, peço-vos me despacheis, para a pouca de vida que me resta ir acabar em serviço de Deus, em hábito eclesiástico, como o tenho em minha vontade, na qual espero em sua clemência me conserve. Desta carta rogo-vos deis relação ao cardeal para que Sua Alteza com olhos de caridade proveja em minha soltura, ou por via de despacho ou por via de fiadores carcereiros, para que me vá curar a minha casa, o que aqui não posso fazer. Nosso Senhor tenha vossas ilustres pessoas em sua guarda. Hoje, segunda-feira, catorze de Julho de mil e quinhentos e setenta e dois. Vosso servidor...

Desfiaram-se mais três meses e dois dias, noventa e cinco riscos do meu botão dourado na parede do cárcere. A dezasseis de Outubro, quando o carcereiro me entrou na cela com o pão e a água, olhou-me meio sorrindo. Espanto meu:

- A Deus graças, irmão! O sol desponta do carrego do teu rosto. Que aconteceu?

- Sou eu que dou graças por tu vires de novo ao rebanho da Santa Madre Igreja.

- Que se passa? - soergui-me da palha.

- Em breve te virão buscar e saberás - e saiu sem mais palavras. Nesse mesmo dia fui presente à sala das perguntas. Arrimado a um pau

que por caridade me deu o carcereiro para me servir de muleta. Fedia tanto que até os guardas se mantinham a distância. A longa mesa a que se sentavam inquisidores, notários e oficiais talvez não fosse bastante comprida para evitar lhes chegasse aos narizes algum pivete da minha podridão. Mas na alma luzia-me a esperança de que em breve estaria dali para fora e poderia acolher-me ao conforto de minha casa. Mas desde as primeiras palavras da sentença, lida em voz monocórdica pelo notário, até ao veredicto final foi-se rapidamente desmoronando essa esperança. Levante-se o réu. Lá vinha o rosário da minha visita a Lutero e a Melâncton, de me ter desviado umas léguas de meu direito caminho para os ir ver, de lhes escrever e deles receber cartas, de comer e beber com eles, de escutar os seus sermões, a lengalenga do poder do papa e das indulgências, de a confissão auricular ser para mim escusada, com o mais que nos autos constava, o que tudo visto declaravam:

... o réu foi herege luterano, apartado da fé católica e por isso incorria em excomunhão maior e nas outras penas estabelecidas contra semelhantes infiéis e na confiscação de todos os seus bens para o fisco e a câmara real...

Embora, durante a audição, a minha postura fosse de contido baixar de cabeça, sem os exageros teatrais que eu sabia alguns assumirem de bater nos peitos, chorar, erguer súplices ad sidera palmas, a minha alma sangrava, revoltada, quando súbito ouvi o mudar de discurso:

... porém, visto como o réu, usando de melhor conselho, confessou suas culpas e pediu delas perdão e misericórdia, com sinais de arrependimento, e, como foram cometidos fora deste reino, sendo ainda mancebo de idade de vinte e um anos... e se tirou deles e se alumiou e viu a verdade... recebem o réu à reconciliação e união da Santa Madre Igreja e lhe mandam que abjure seus heréticos errores em forma e que seja nesta Mesa, somente diante dos inquisidores e oficiais... e em pena e penitência deles o condenam a cárcere penitencial perpétuo naquela parte que lhe for assinada por Sua Alteza... e das mais penas públicas o relevam, visto a qualidade do caso e de sua pessoa, com outras considerações que nisso se houveram, e mandam que seja absolute» in forma ecclesiae da excomunhão maior em que incorreu...

Como eram contraditórios os pensamentos que em mim se entrechocavam, quando regressei à cela! Estava-me a vida acabada. Não mais veria a minha casa, os meus filhos, as minhas coisas, a minha terra... Perpétuo, cárcere penitencial perpétuo. Suas excelências absolviam-me condenando-me. Uma no cravo, outra na ferradura... Não fosse em público, vistos os inconvenientes que se consideraram da qualidade da minha pessoa... Que queria isto dizer? - ... e de ser muito conhecido nos reinos estranhos pervertidos por hereges, que disso se podiam gloriar, e dado o que convém à limpeza e reputação deste reino... Mas confiscavam-me os bens. Que estaria por detrás de tudo isto?... Perpétuo... afastavam-me... faziam-me desaparecer... Para onde me enviarão?...

Apesar de lida a sentença, estive ali encarcerado mais cinquenta e dois dias, até na manhã de cinco de Dezembro me levaram a tomar banho e mudar de roupa. No dia seguinte, vestido de túnica e capa até aos pés, fui conduzido pelo porteiro do Santo Ofício perante os senhores inquisidores. À entrada puseram-me nas mãos uma vela amarela, acesa, e eu avancei até ao estrado onde me ajoelhei aos pés do inquisidor presidente, que, paramentado, me aguardava sentado em um cadeiral dourado. O secretário, ao pé de mim, depois de pôr nas mãos um missal e me ter feito beijar a cruz, disse-me em voz baixa:

- Vou ler-te a fórmula da tua abjuração. Repetirás comigo em voz bem audível.

E leu alto em tom compungido:

Eu, Damião de Gois, cristão-velho...

-^-Eu, Damião de Gois, cristão-velho...

... morador nesta cidade de Lisboa, perante vós, reverendos senhores inquisidores, contra a herética pravidade e apostasia, juro nestes Santos Evangelhos em que tenho minhas mãos... que, de minha própria e livre vontade, anatematizo e aparto de mim toda a espécie de heresia e apostasia que for ou se levantar contra a santa fé católica e Sé Apostólica, especialmente estas em que caí, que tenho confessado a Vossas Mercês, que aqui agora, em minha sentença, me foram lidas, as quais aqui hei por repetidas e declaradas.

- ... as quais hei por repetidas e declaradas...

Prosseguia o formulatório, a expressão formal da contrição, repúdio das heresias, reiterado compromisso com a Igreja Católica e Apostólica de Roma... de mãos postas, prostrado aos pés do inquisidor... levanta-se o juiz de Deus e, enquanto os outros padres rezam o miserere, tange-me ele com a vara da justiça nas costas, gado do Senhor. Cantaram todos então o Veni, creator spirítus, um acólito desvelou uma cruz verde que aí estava tapada e, no fim do hino, o sacerdote deu-me a absolvição ad cautelam e, com ar de júbilo, esperou com os outros que eu saísse da sala... não, não por aí, meu filho, mas pelo nosso lado direito... Mas o filho pródigo não regressaria à casa paterna. Prestes! Trazei o vestido mais precioso e vesti-lho, enfiai-lhe um anel no dedo, calçai-lhe sapatos, venha o mais pingue vitelo da manada e matai-o, que a jornada é de festa. O dia, porém, era sábado, defeso de se comer carne pela Santa Madre Igreja. Cristo, ao contar a parábola, havia-se esquecido...

Que mais há para dizer? para desabafar? Dez dias depois o meirinho Rui Fernandes, com seus guardas, entregava-me no mosteiro da Batalha ao superior frei Francisco Pereira e a frei António Nogueira na presença dos demais padres. E para aqui estou, à espera de que Deus se amerceie e me acuda com a paz da morte.

Vinte e cinco de Março de mil e quinhentos e setenta e três. A Deus graças! Com alvoroço me sento à mesa da cela e volto a escrever nestes papéis em que julgava nunca mais pegaria. Não posso calar o invulgar sucesso que aqui hoje se deu e vem encher-me de esperança. A meio da manhã ouviu-se lá fora, no pátio, grande estropeada de cavalos. Espreitei e vi que chegava luzida comitiva. Pelo viçoso da figura, a nobreza do porte, as ricas vestes e o acatamento de que era rodeado reconheci el-rei Sebastião. Entrava e, do meu ângulo, perdi-o de vista. Caiu sobre mim todo o peso da solidão e desespero. Se eu lhe pudesse falar... sequer fazer-lhe chegar uma mensagem... Atirei-me desolado para cima da cama a chorar, quando sinto a porta abrir-se e assomar o vulto do fradinho do capuz:

- Depressa! Depressa! El-rei quer ver-te.

Pelos ombros minha capa de penitente, desci ao claustro, à igreja. No silêncio do templo, sob as altas abóbadas que até a asa de um respiro fazia ressoar, ajoelhado em genuflexório de veludo azul, el-rei rezava. Aguardei cá atrás. Junto a el-rei reconheci amigos que, pelo falecimento dos pais haviam assumido o título, Jorge de Alancastre, duque de Aveiro, Afonso de Portugal, conde de Vimioso, conselheiro e provedor de el-rei. Também aí estava António, ex-prior do Grato, que el-rei, ao tomar o poder, arrancou ao ódio do cardeal, militar chegado glorioso dos campos de África, filho que dizem bastardo do infante Luís que Deus haja...

(- A bastardia - cochichou-me ao ouvido a minha voz - está aqui bem representada.)

... e outros superiores fidalgos e senhores de lustrosos atavios e arreios. Afonso de Portugal havia relançado o olhar ao sentir-me chegar. Levantava-se o rei, o conde dirigiu-lhe algumas palavras e seguiu-o quando, guiado por frei Francisco Pereira, descia pelo meio da nave. El-rei Sebastião! Minha alma alvoroçada! Dezanove anos. Alto, loiro, rosto alongado bem-parecido, olhar inquieto, boca polpuda, expressão de forte vontade, a capa curta de brocado com gola de arminho, calça justa às pernas esguias, espada cinta, o gorro de plumas na mão, descoberto ao entrar do templo. Perto de mim, parou:

- Damião de Gois.

- Meu senhor - fiz vénia, beijando-lhe a mão.

Passou rápida vista pela minha miséria, que o olhava num meio sorriso conformado. Sem palavra, nos olhos lhe descobri o desagrado.

- Venho em romagem - disse. - Ouço da maravilha que é o corpo santo de el-rei João segundo...

- ... milagrosamente incorrupto, meu senhor - disse o superior. Fácil de ver, que está ainda sem moimento de pedra.

- Quero vê-lo e desejo que me faças companhia. Inclinei-me em gesto de pronto servidor:

- A que devo a honra, senhor?

- Não foste cronista desse príncipe?

- Às tuas ordens, senhor.

Ia eu esperar que a comitiva passasse, deu-me el-rei sinal de que me colocasse à sua direita, com grande espanto dos nobres da comitiva.

- Quererá Tua Alteza visitar primeiro a capela do fundador? - perguntava frei Francisco.

- El-rei da boa memória. Pois então, padre. Vamos. Não é lá que estão avô, filhos, neto e bisneto?

Enquanto descíamos a nave central, o superior foi explicando que el-rei Duarte descansava no transepto da capela-mor, junto ao degrau, el-rei Afonso repousava em essa colocada na casa do capítulo, el-rei João segundo na cabeceira da igreja, na capela da Senhora da Piedade também chamada do Pranto... Só os outros infantes, Pedro, João, Henrique e o infeliz Fernando dormiam ao pé dos pais...

Escutava el-rei frei Francisco, disse-me ao ouvido o conde de Vimioso:

- Venho tocado pela infante Maria e pelo nosso Luís Vaz. Havemos de tirar-te daqui. El-rei é já sabedor do...

Entrávamos na capela tumular. Fez-se silêncio. O moço rei ajoelhava ante as tumbas de João primeiro e de Filipa de Alancastre. Todos se ajoelharam menos eu, que me não permitiam os joelhos perros. Persignei-me e benzi-me em sentida oração.

Pela nave lateral subimos depois à capela à direita da ousia, onde dois círios velavam o sepulcro de el-rei João segundo. Era uma arca simples, de madeira tosca, agora, com o anúncio da visita de el-rei, à pressa coberta de um manto negro das cerimónias da Semana Santa. Silenciaram os da companhia ante a visível emoção do rei, que a todos se pegava. Também a mim se me calou o sentimento no coração e na garganta, que dois frades domínicos a um sinal do superior já retiravam o manto e destapavam o túmulo. Aproximou-se Sebastião e, em redor, todos os outros. Ali estava o rei João. O corpo inteiro, como se tivesse acabado de falecer. A colcha e lençol, em que fora envolto na trasladação, com a alvura inicial. Rosto pálido, a barba muito crescida, desaparada pois então, e embranquecida, apenas a ponta do nariz um tanto roída. Olhos fechados. A serenidade de uma estátua de portal gótico... Ajoelhou-se el-rei a fazer-lhe reverência como a santo. Em seguida, levantando-se, a um gesto seu com extremo cuidado alçaram os frades a múmia e encostaram-na, tesa, de pé, à parede da tumba. Um domínico abeirou-se do jovem monarca apresentando-lhe, em cima de almofada de veludo debruada de ouro, a espada do rei defunto, que se guardava no convento. Sebastião pegou da espada e, de joelhos, colocou-a nas mãos do morto. Com as lágrimas nos olhos, voltou-se e disse ao duque de Aveiro:

- Jorge de Alancastre, beija a mão de teu bisavô. Ajoelhando-se, beijou o duque primeiro a mão do rei vivo e logo a do rei morto.

- Este foi - acrescentou el-rei - o melhor oficial que houve de nosso ofício. Assim ele me inspire, na empresa que tenho em mente.

Depositado de novo o corpo em seu leito, foi a tumba fechada e selada e coberta com o manto de luto. Reboou pelas abóbadas o requiem dos frades. No fim, todos acompanhámos el-rei até à porta do templo. Na despedida, quando lhe beijei a mão, Sua Alteza disse-me:

- Já dei as minhas ordens, Damião. Frei Francisco sabe o que há-de fazer.

- Assim se fará, senhor - respondeu o superior. Um pouco atrás, Afonso de Portugal sorria.

Alcobaça, quatro de Abril de quinhentos e setenta e três. Faz dois anos que fui preso em Lisboa. Torno a pegar destes apontamentos para registar a minha jornada da Batalha para minha casa, enfim libertado.

Após a partida de el-rei Sebastião, permaneci ainda alguns dias no mosteiro, à espera chegassem de Alenquer os meus criados a buscar-me com cavalgaduras e um carro tirado a mulas, dado que eu não estava em condições de cavalgar. No caminho, pousei numa venda cerca desta vila. Como sofro de insónias, à noite mandei deitar os criados e fiquei em baixo, a aquecer-me a uns restos de lareira, que o tempo arrefece ainda muito e a casa é de pedra insonsa. O estalajadeiro e a mulher também se retiraram. Sozinho, completo estas linhas. Virado para o lume, sinto atrás de mim alguém a tentar abrir a porta que dá para fora e passos abafados, cautelosos. Medo nunca foi comigo. Levanto-me e chego-me à entrada:

- Quem vem lá?

Ninguém responde, senão que me pareceu ouvir restolho de quem se afasta.

- Alguma coisa, senhor? - o estalajadeiro assomando no topo das escadas, candeia na mão, touca de dormir na cabeça.

- Pareceu-me ouvir alguém à porta.

- Não tenha cuidado, senhor. é o vento. Ou raposa ou doninha. Já tem acontecido - e retirou-se: - Boa noite.

- Boa noite.

Que aperto de premonição me arrepia a pele?...

Amanhã de manhã seguiremos nosso caminho rumo a Alenquer.

Alenquer, vinte e nove de Janeiro de setenta e quatro. Como as águas da ribeira se foram escoando os meses, desde a minha chegada. Todo entregue ao prover da fazenda, havia quase esquecido estes apontamentos. A invernia brama lá fora na noite regelada. Sento-me à lareira a escrever. Esperei que todos se fossem deitar para ficar em meu sossego.

- Boa noite - despeço-me de Maria e dos filhos. - Fico ainda um pouco a aquecer-me ao lume.

Há muito tempo que me não sentia tão bem. Sozinho, no silêncio da noite, a lenha a crepitar... Ponho-me a escrever por longo tempo. Retomo o fio de onde o tinha deixado.

A caminhada de Alcobaça para Alenquer fez-se sem alvoroço. Sentimento de posse exacerbado, no aproximar da vila, das minhas terras, da casa. Então não me tinha eu já despojado de tudo?

(- Tinham-te despojado, não tu.)

Como as irei encontrar? Tocarem nas minhas coisas outras mãos. Desleixadas, as gavetas, os livros, os instrumentos de música remexidos. Meu filho Ambrósio promovera que, com a minha prisão, o recheio da Alcáçova do castelo viesse para Alenquer. Os meus quadros, as imagens... o retrato de Erasmo... Como estarão? O retrato de Erasmo deve tê-lo feito sumir a Inquisição... E quantas coisas mais... É como se eu tivesse morrido... E agora, talvez com arrelia de alguns, ressuscitei e aqui estou para ver como terá sido. Agora se vão conhecer os verdadeiros amigos. Mesmo entre os meus... (- Mas os filhos, uns longe, casados, entregues a religião... às suas vidas...)

Nunca sentira tanto apego às coisas de que me rodeara pela vida fora. Cheio de raiva, pedia ao cocheiro que fustigasse as mulas...

Além vicejava a minha chã da várzea. Aproximámo-nos. Ah! Milho mimoso! Na vinha da encosta, a faina da vindima... Até parece que andei eu por aqui a cuidar de tudo!... Eis a quinta. A rampa empedrada que leva à entrada. A porta da cocheira... Saúdam-me festivos, cauda a abanar, os cães amigos. O regresso de Ulisses... As janelas do meu quarto no sobrado de cima com cortinas como quando Joana... Já o não espera, tecendo sua teia, a fiel Penélope...

Minha filha Maria tem a casa cuidada. É bom ver à porta o vermelho das sardinheiras abertas. Ela aparece à entrada, risonha, corada, braços robustos, com o filho mais pequeno ao colo. Três anitos.

- Quem é? - pergunta o menino.

- E o avô.

- Outro avô?

- Nós temos dois avôs, duas avós... Minha pobre Joana já era ida!...

- É, meu menino - digo beijando-o na testa. - A vida começa com perguntas...

(- E acaba sem obtermos resposta para todas... - rezingava a minha voz interior.)

Uma agulha de gelo pareceu-me vir da porta espetar-se-me nas costas. Frinchas largas, pensei. O vento assobia, uiva, parece até pôr surdos passos no lajedo da quadra, como se alguém sorrateiro se aproximasse por detrás... Súbito temor. O coração a bater-me apressado... De novo o pressent

 

                         Epílogo

- ... o pressentimento... - repetiu em voz alta, com a folha na mão, levantando os olhos para os companheiros, o doutor Luciano. - Repara, Hipólito... veja, padre. Ele nem acabou de escrever a palavra. Ao receber a pancada na cabeça, a pena esmagou-se-lhe num borrão contra o papel...

Encontravam-se na sacristia da Igreja de São Pedro, onde haviam acabado de ler o relato de Damião.

- Impressionante documento, esse. -... e comovente.

- Deus o tenha em descanso.

- Até as pernas me tremem de sentir a cena, aqui, palpitante, neste papel... as passadas do criminoso a retirar-se tão sorrateiro como chegou, depois de desferir o golpe... escutais, não as ouvis?...

- Credo, doutor! Que arrepio! E o vento.

- E tem cara esse criminoso? Está a vê-la? - perguntava o prior. O doutor Luciano deu fio à imaginação:

- Vestiu-se de noite e sombra. Quem pode lá saber?

- Que o foram achar de manhã morto, caído de borco, sobre o brasido da lareira... - o delegado, ajustando as lunetas, procurava arrumação metódica: - Depois do que lemos e sabemos, talvez seja possível algumas hipóteses que respondam às perguntas fundamentais: quem? porquê?...

- Quis? quid? cur? quando? quomodo?... - acudia a escolástica do prior.

- Inútil seguir por aí - rebateu Luciano, levantando-se e chegando-se à janela...

- Nada me desconvence - teimava o delegado - de que quiseram disfarçar o crime, dar-lhe a aparência de acidente. Mataram-no e, em seguida colocaram-lhe o corpo de bruços com os queixos sobre as brasas... congestão, apoplexia, haviam de dizer os familiares e criados quando deram com ele...

- Inútil enveredar por aí - repetia o doutor. - ... volvidos tantos séculos...

- Para mim - dizia Hipólito -, foi o genro, esse biltre do Luís de Castro. Depôs contra ele no processo da Inquisição com ódio que não conseguiu disfarçar. Andava em litígio com o cunhado Ambrósio, por mor da herança da falecida Joana. Não lhe quadrava o regresso do sogro...

- Mas esse Luís de Castro não vivia em Évora com a mulher Catarina? - perguntou o prior.

- Em Lisboa, julgo. Era secretário do cardeal.

- Isso, isso. A coisa deve fiar mais fino. O cardeal não deve ter ficado satisfeito com a soltura de Gois. Deve ter recebido a notícia com a estrondosa revelação de que o seu réu era seu... irmão! Que tal, hem?

- Está a sonhar, padre - rebateu o delegado.

- Não, não. Não se esqueça de que a libertação de Gois e o saber-se quem era atiçava ódios poderosos, que se haviam já acendido com a publicação da crónica daquele rei de quem o próprio autor, como que deixando na obra sinal de sua geração, se dizia feitura...

O olhar de Luciano descia a encosta íngreme, por sobre a cinza das oliveiras, e parava lá em baixo no rio:

- Perguntas? Respostas? Segredo? E que foi a vida dele senão, nesta imensa sala das perguntas que é o universo, procurar respostas, calar respostas, fingir respostas?... - mirou dentro os amigos e, tornando a volver os olhos às águas da ribeira: - O tempo... - disse - ... a humanidade... O rio, desde Heraclito, é a imagem do tempo, das gerações que passam...

Tornou a sentar-se:

- Estes papéis, aqui na minha mão - e tomava do manuscrito e erguia-o aos amigos -, mostram a tentativa de uma época rever os seus fantasmas. Este homem... assentemos o negócio, como ele diria, apenas no toro da nossa consciência... este homem foi perseguido por ser quem era, pela afoiteza de pensar livremente e dizer as verdades. No tribunal do tempo a condenação da cegueira, da intolerância... Estamos em novecentos e quarenta e um, meus senhores. Uma guerra terrível abala o mundo inteiro. E que nos é dado ver?... Até hoje não foi a tolerância, a fraternidade que venceu...

Levantava-se agitado. Os outros, especados, calados no tumulto das ideias interiores, a olhar o amigo.

- Sabeis o que vos digo? Gostaria de chegar até ao fim deste século... mas sei que é impossível.

- Você ainda é novo... a nós é que...

- Não me engano, padre. Quando findar o século teria eu mais de cem anos... Será para os meus netos. Ensinar-lhes-ei...

- Que lhes vai ensinar?

- A ter olhar de montanha que vê passar as águas do rio... a buscar se a humanidade corrigiu erros de séculos...

 

                                                                                Fernando Campos  

 

 

                      

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