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Mrs. Perrifield asseverou, com grande veemência, que gostaria muito de ajudá-los, mas que, infelizmente, não podia fazê-lo. A tarde de sexta-feira era dedicada ao seu brídege. No dia anterior, estivera a jogar com uns amigos, em South Kensington, e depois do chá ficara ainda mais algum tempo para tomar um xerez. Chegara a casa um quarto de hora antes da atroz agressão. Piers e Kate tiveram de ouvir todos os pormenores relativos à forma fortuita como Mrs. Perrifield pudera salvar a vida do major, graças, no entanto, à sua pronta intervenção. Esperava que o seu vizinho se desse conta agora de que ninguém deve ser demasiado confiante nem demasiado compreensivo. Ryan Archer não era o tipo de hóspede desejável numa casa séria. Reiterou como lamentava não poder ser mais prestável, e Kate acreditou nela. Não duvidava que Mrs. Perrifield adoraria poder contar-lhes que Ryan havia entrado em casa a tresandar a gasolina, vindo directamente do local do crime.
Enquanto se encaminhavam para o carro, Kate comentou:
Quer dizer que, tanto quanto sabemos até agora, o Ryan não dispõe de um álibi. Apesar disso, parece-me difícil acreditar...
Por amor de Deus, Kate! Também tu? atalhou Piers. Nenhum deles é um provável assassino. O rapaz é tão suspeito como os outros. E quanto mais tempo andar a monte, pior será para ele.
A casa de Mrs. Faraday era a oitava de uma fileira de edifícios dos meados do século xix, na parte sul de uma praça de Islington. Sem dúvida construídos para o estrato mais elevado da classe trabalhadora, as casas haviam passado decerto pelas usuais metamorfoses do aumento das rendas, do desmazelo, dos estragos provocados pela guerra e da sucessão dos ocupantes, mas, de há muito, tinham passado a ser habitadas pela classe média, que ali se instalara atraída pela proximidade da City, dos bons restaurantes e do Teatro Almeida, bem como pela satisfação de poder proclamar que vivia numa comunidade étnica e socialmente diversificada e interessante. Pelo número de grades e de sistemas de alarme contra assaltos, era patente que os residentes se haviam protegido contra as manifestações menos desejáveis dessa mesma diversidade. O bloco de casas exibia uma atraente unidade arquitectural. A uniformidade das fachadas, de estuque creme, com varandas de ferro preto, era quebrada pela pintura brilhante das portas de cores diferentes e pela diversidade das aldrabas de bronze. Na Primavera, esta conformidade arquitectural devia ser alegrada pelos botões das cerejeiras, cujos troncos estavam protegidos por gradeamentos circulares, mas, naquele momento, o sol outonal irradiava sobre uma rua apenas decorada por ramos sem folhas, pondo tons dourados nos troncos das árvores. Em algumas janelas, brilhavam aqui e ali vasos com heras e com os amores-perfeitos amarelos do Inverno..
Kate fez bater a aldraba contra a base de bronze e a sua chamada foi prontamente atendida. Foram cortesmente recebidos por um homem de idade, cabelo branco cuidadosamente penteado para trás e rosto impassível. O seu traje revelava uma certa ambiguidade excêntrica: calças pretas listradas, colete de linho castanho que parecia recentemente passado a ferro e laço às pintas.
Comandante Dalgliesh e inspectora Miskin? perguntou. Mistress Faraday está à vossa espera. Encontra-se no jardim, mas talvez não se importem de ir até lá. O meu nome é Perkins acrescentou, como se isso, de alguma forma, servisse para explicar a sua presença na casa.
Não era, de modo algum, nem a casa nem a recepção que Kate esperava. Não havia, nos tempos que corriam, muitas casas em que a porta era aberta por um mordomo, nem o homem que seguiam tinha a aparência de um mordomo. Pelo seu porte e à-vontade parecia mais um velho servidor ou seria um amigo da família que havia decidido desempenhar aquele papel por perverso divertimento próprio?
O vestíbulo era estreito e mais estreito parecia em virtude do alto relógio de pêndulo, em mogno, situado à direita da porta. As paredes estavam cobertas por aguarelas colocadas tão perto umas das outras que pouco se via do papel de parede estampado em tons verdes. A esquerda, uma porta permitiu a Kate ver de relance estantes cheias de livros, uma lareira elegante e, sobre esta, um retrato a óleo. Não era o género de casa em que alguém pudesse contar com gravuras de cavalos selvagens a galopar numa praia ou exibindo o rosto esverdeado de uma mulher oriental. Uma escada com corrimão de mogno, artisticamente talhado, conduzia ao piso superior. Ao fundo do corredor, Perkins abriu uma porta pintada de branco, que dava acesso a uma estufa que abarcava toda a largura da casa. A atmosfera que ali reinava dava uma sensação de intimidade informal; viam-se casacos arremessados sobre cadeiras baixas de vime, revistas sobre uma mesa também de vime, uma profusão de plantas que obscurecia a luminosidade ambiente e lhe conferia uma ligeira tonalidade verde, como se o local estivesse debaixo de água. Um pequeno lanço de degraus dava acesso ao jardim e um carreiro empedrado conduzia à estufa. Através dos vidros, puderam ver a silhueta de uma mulher que se agachava e erguia em sequência rítmica com a precisão de quem executava uma dança formal. Essa movimentação não cessou quando Dalgliesh e Kate alcançaram a porta e viram que a mulher estava a lavar e a desinfectar vasos. Havia um alguidar com água e espuma de sabão, colocado sobre uma prateleira baixa, e a mulher tirava os vasos, inclinava-se para os submergir num balde com desinfectante e, em seguida, os colocar numa prateleira mais alta, por ordem dos respectivos tamanhos. Passados alguns segundos, decidiu-se a ir ter com os visitantes e abriu a porta, por onde se escapou um forte cheiro a Jeyes Fluid, um desinfectante para plantas.
Era alta, quase com um metro e oitenta, e vestia umas calças sujas de veludo cotelê, uma camisola azul-escura, botas de borracha e luvas vermelhas de jardinagem. O seu cabelo grisalho, penteado para trás e deixando a descoberto a testa alta, estava quase coberto por um chapéu de feltro, colocado displicentemente; do rosto, com nariz e faces salientes, desprendia-se uma expressão inteligente. Os olhos eram escuros e vivos, por baixo de pálpebras caídas e, se bem que a pele por cima do nariz e das faces se mostrasse curtida pelo ar livre, quase não tinha rugas. No entanto, quando descalçou as luvas, Kate pôde ver, pelas veias azuis e proeminentes e pela pele fina e enrugada das mãos, que a mulher era mais velha do que ela esperava. Decerto devia passar dos quarenta quando o filho nascera. Kate olhou para Dalgliesh; o rosto dele mantinha-se inexpressivo, mas ela sabia que o seu chefe devia compartilhar a sua impressão. Estavam em frente de uma mulher de respeito.
Mistress Faraday? disse Dalgliesh.
A mulher tinha uma voz autoritária e articulou cuidadosamente as palavras:
Claro. Quem mais queria que fosse? Esta é a minha casa, esta, a minha estufa, e foi o meu empregado que os deixou entrar.
Kate pensou que a mulher adoptara um tom propositadamente suave para retirar às palavras qualquer significado ofensivo.
E o senhor, claro está, deve ser o comandante Dalgliesh prosseguiu. Não se incomode a mostrar-me o seu cartão ou seja lá o que for que o identifique. Como é óbvio, estava à sua espera, mas, não sei porquê, julguei que viria sozinho. Afinal, não se trata de uma visita de cortesia.
O rápido olhar que lançou a Kate, embora não fosse hostil, era tão avaliador como se Mrs. Faraday estivesse a analisar as virtudes e qualidades de uma nova serviçal. Dalgliesh fez as apresentações e Mrs. Faraday surpreendeu-os ao apertar as mãos de ambos antes de voltar a calçar as luvas.
Queiram desculpar-me por continuar com o meu trabalho disse. Não é coisa do meu particular agrado e, quando o faço, gosto de o acabar tão depressa quanto possível. Esta cadeira de vime está razoavelmente limpa, Miss Miskin, mas receio bem que só possa oferecer-lhe a si, Mister Dalgliesh, este caixote revirado. Penso, no entanto, que lhe servirá de assento e é suficientemente seguro.
Kate sentou-se, mas Dalgliesh manteve-se de pé. Antes que pudesse abrir a boca, Mrs. Faraday continuou:
Vieram falar comigo acerca da morte do doutor Dupayne, como é evidente. A vossa presença leva-me a crer que não acreditam que fosse causada por acidente.
Dalgliesh decidiu ser frontal.
Nem por acidente nem por suicídio. Lastimo informá-la, Mistress Faraday, que andamos a investigar um homicídio.
Já suspeitava disso, mas não estão a atribuir-lhe demasiada importância? Perdoem-me, mas a morte do doutor Dupayne, por muito lamentável que seja, implica o envolvimento de um comandante e de uma detective? Como não obtivesse resposta, acrescentou: Façam as perguntas, por favor. Se puder ajudar, é óbvio que terei muito gosto em fazê-lo. É claro que conheço alguns pormenores. Notícias como essa espalham-se muito rapidamente. Foi uma morte horrível.
Mrs. Faraday continuou o seu trabalho. Enquanto a via tirar os vasos do alguidar de água para, depois, os desinfectar e dispor nas prateleiras, aflorou à memória de Dalgliesh uma recordação da sua infância na barraca que havia no jardim da reitoria. Fora uma das suas ocupações da juventude: ajudar o jardineiro a proceder à limpeza anual dos vasos. Podia lembrar-se do cheiro a madeira aquecida pelo sol que se desprendia da barraca e das histórias que lhe contava o velho Sampson acerca das suas façanhas na Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, apercebera-se de que na sua maioria eram fictícias mas, quando as ouvira, haviam cativado o espírito de um menino de dez anos, transformando o seu trabalho num apetecido entretenimento. O velhote fora um fantasista dotado de grande inventiva. Agora, achava-se em frente daquela mulher e estava convencido de que, se ela lhe mentisse, saberia ser ainda mais convincente.
Pode dizer-nos qual a natureza da sua intervenção no museu? perguntou. Sabemos que a senhora é uma das voluntárias. Há quanto tempo desempenha as suas funções e em que consistem ao certo? Sei que esta pergunta talvez não lhe pareça relevante, mas, neste momento, precisamos de saber o mais possível acerca da vida do doutor Dupayne, tanto no aspecto profissional, como no que se relaciona com o museu.
Então, deverá ir falar com os membros da sua família e com as pessoas que trabalhavam no hospital com o doutor Dupayne. Uma delas, como julgo que sabe, é a minha nora. O meu relacionamento com a família remonta há doze anos. O meu marido era amigo do Max Dupayne, fundador do museu, e sempre o apoiámos. Quando o Max era vivo, tinha um jardineiro já velho e não muito competente, e foi o próprio Max que me pediu para o ajudar, indo até lá uma vez por semana ou, pelo menos, com certa regularidade, para lhe dar conselhos. Actualmente, como devem saber, é o Ryan Archer que se ocupa do jardim a tempo parcial, além de desempenhar tarefas de limpeza e de servente. O rapaz é ignorante mas demonstra ter boa vontade, e as minhas visitas processam-se como anteriormente. Depois da morte do Max Dupayne, o James Calder-Hale, na altura o arquivista, pediu-me que continuasse quando chamou a si a tarefa de seleccionar os voluntários.
Foi necessário seleccionar os voluntários? interveio Kate.
” Aí está uma pergunta pertinente. Segundo parece, Mister Calder-Hale pensava que havia voluntários em demasia e que a maior parte deles traziam mais problemas do que vantagens. Os museus tendem a atrair entusiastas com poucos dotes práticos aproveitáveis. Assim, reduziu a três o número de voluntários: eu própria, Miss Babbington, que ajudava a Muriel Godby na recepção, e Mistress Strickland, que trabalha na biblioteca. Miss Babbington teve de se afastar há cerca de um ano por causa da sua artrite, e agora só ficámos duas. Bom seria que fôssemos mais.
Segundo nos contou Mistress Glutton disse Dalgliesh, foi a senhora que forneceu a lata de gasolina para o cortador de relva. Quando o fez?
Em Setembro, quando cortámos a relva pela última vez. O Ryan informou-me de que já não havia gasolina e eu prontifiquei-me a levar uma lata, para poupar a despesa da entrega. Nunca chegou a ser utilizada. O cortador de relva já andava a funcionar mal havia algum tempo, e o rapaz não demonstrou qualquer jeito para tratar da sua manutenção e, muito menos, para o consertar. Cheguei à conclusão de que era preciso substituí-lo. Entretanto, o Ryan serviu-se do cortador de relva manual. Quanto à lata de gasolina, ficou guardada na barraca.
Quem sabia que a lata estava ali?
O Ryan, como é óbvio, Mistress Glutton, porque guarda a sua bicicleta na barraca e, provavelmente, Miss Godby. Tenho a certeza de lhe haver dito que era preciso substituir o velho cortador de relva. Ficou preocupada com o custo de uma máquina nova, mas, como compreende, não havia qualquer pressa em comprá-la; com toda a probabilidade, não seria necessário voltar a cortar a relva até à próxima Primavera. Agora que penso nisso, devo ter-lhe falado da gasolina, porque ela deu-me o dinheiro que me custara e eu assinei o respectivo recibo. É possível que os Dupayne e Mister Calder-Hale também soubessem. Terão de lhes perguntar.
E, uma vez que a gasolina já não era necessária, não pensou em trazer a lata para sua casa? quis saber Kate.
Mrs. Faraday lançou-lhe um olhar dando a entender que tal pergunta nunca ocorreria a um investigador inteligente.
Não, não pensei replicou. Acha que devia ter pensado nisso? Já me haviam reembolsado o preço da lata.
Kate, recusando deixar que a intimidassem, mudou de assunto.
Há já doze anos que visita o museu regularmente. Considera-o um lugar feliz? Estou a referir-me às pessoas que ali trabalham.
Mrs. Faraday pegou no vaso seguinte, examinou-o com atenção, mergulhou-o no desinfectante e colocou-o, virado para baixo, na prateleira.
Não tenho maneira de o saber. Nenhum membro do pessoal veio ter comigo para se queixar da sua infelicidade e, se algum o houvesse feito, não lhe teria dado ouvidos. Como se temesse que o tom da sua resposta pudesse ser considerado ameaçador, acrescentou: Depois da morte do Max Dupayne, instalou-se uma certa falta de controlo em muitos aspectos. A Caroline Dupayne ficou nominalmente com o museu a seu cargo, mas tem as suas obrigações para com a escola em que trabalha. Como já disse, Mister Calder-Hale ocupa-se dos voluntários e o rapaz trata do jardim, ou, pelo menos, tenta mantê-lo em condições. Depois da chegada da Muriel Godby, as coisas melhoraram. É uma mulher competente e parece gostar muito das responsabilidades que assumiu.
Dalgliesh perguntou a si próprio como abordar a melindrosa questão do relacionamento da nora de Mrs. Faraday com Neville Dupayne. Precisava de saber se o romance era tão secreto como Angela Faraday proclamara; em especial, até que ponto Mrs. Faraday podia ter adivinhado ou ouvido algo acerca do caso.
Já falámos com a sua nora, na qualidade de secretária particular do doutor Dupayne, e sei que era pessoalmente responsável pelos pacientes da consulta externa. Trata-se, manifestamente, de uma pessoa cuja opinião a respeito do estado de espírito do doutor Dupayne, naquela sexta-feira, é muito importante.
E esse estado de espírito tem alguma relevância para o facto de ele ter sido assassinado? Presumo não estar a insinuar que pode ter-se tratado de um suicídio?
Sou eu que tenho de decidir o que é ou não relevante, Mistress Faraday ripostou Dalgliesh.
E a relação da minha nora com o Neville Dupayne é relevante? Com certeza, ela contou-lhe tudo. Claro que sim... O amor, a satisfação de se ser desejada constitui sempre uma espécie de triunfo. Poucas pessoas haverá que se importem de confessar que atraíram o desejo de outrem. Segundo os costumes sexuais desta época, não é o adultério que é considerado um acto condenável.
Creio que, para ela, a relação era mais angustiada do que gratificante, atendendo à necessidade de a manter secreta e à preocupação de que o seu filho pudesse descobri-la e sentir-se magoado.
Sim admitiu Mrs. Faraday, com azedume. A Angela não é destituída de consciência.
Foi Kate que formulou a pergunta seguinte:
O seu filho sabe que a mulher dele tinha uma relação com outro homem, Mistress Faraday?
Fez-se silêncio. Mrs. Faraday era demasiado inteligente para não se aperceber do alcance daquela pergunta. Devia estar já à espera dela, pensou Kate. Em certa medida, fora ela própria que a provocara, por ser a primeira a mencionar o adultério da nora. Teria sido por estar convencida de que a verdade, mais cedo ou mais tarde, seria descoberta e que teria de explicar o seu silêncio? Fez rodar o vaso entre as mãos, examinando-o cuidadosamente e, em seguida, debruçou-se e mergulhou-o no desinfectante. Dalgliesh e Kate ficaram à espera da sua resposta, mas Mrs. Faraday só falou depois de voltar a endireitar-se.
Não, não sabe, e o meu dever é fazer com que nunca venha a sabê-lo. Espero poder contar com a sua colaboração, comandante. Presumo que nenhum de vós haja escolhido essa profissão para infligir dor, de forma deliberada, a quem quer que seja.
Dalgliesh apercebeu-se de que Kate respirou fundo para, logo e disciplinadamente, reprimir essa reacção instintiva.
A minha profissão é, apenas, investigar homicídios como este, Mistress Faraday. Não posso dar-lhe qualquer garantia excepto a de que os factos considerados irrelevantes não serão tornados públicos. Receio que a investigação de um assassínio venha sempre a fazer sofrer alguém. Gostaria que fosse só o criminoso. Fez uma pausa e concluiu: Como ficou a saber do caso?
Quando os vi juntos. Foi há três meses, quando um dos menos destacados membros da família real foi ao hospital para inaugurar o novo bloco operatório. O Neville Dupayne e a Angela não estavam juntos, por razões profissionais. Ele encontrava-se na lista dos médicos que iam ser apresentados enquanto ela colaborava nos preparativos da cerimónia, encaminhando os visitantes, acompanhando os VIPs e desempenhando outras funções similares. Foi então que se encontraram fortuitamente e ficaram juntos durante alguns minutos. Vi o rosto dela e a forma como apertaram as mãos quando se separaram. Para mim, foi o bastante. Não é possível ocultar o amor, sobretudo quando não nos apercebemos de que estamos a ser observados.
Se a senhora reparou nisso, não terá sucedido o mesmo com outras pessoas? inquiriu Kate.
Talvez tenha sucedido a algumas das pessoas que trabalhavam com eles mais de perto. No entanto a Angela e o Neville Dupayne mantinham independentes as suas vidas privadas. Duvido que alguém revelasse esse segredo, a mim ou ao meu filho, mesmo que suspeitasse de tal relação. Talvez tenha dado origem a mexericos entre o pessoal do hospital, mas não era motivo para alguém interferir ou tentar prejudicar qualquer um deles. Eu vi-os num momento em que ambos estavam distraídos. Não tenho dúvidas de que haviam aprendido a dissimular o que sentiam um pelo outro.
A sua nora afirmou que a relação entre ambos chegara ao fim adiantou Dalgliesh. Haviam decidido que a possibilidade de ferir outras pessoas não justificava que a relação se prolongasse.
E o senhor acreditou?
Não vejo razão para não acreditar.
Pois bem, ela mentiu-lhe. Haviam planeado passar juntos o próximo fim-de-semana. O meu filho telefonou-me sugerindo que fosse passar o fim-de-semana com ele porque a Angela ia visitar uma antiga colega de escola em Norwich. Ela nunca havia falado da escola nem das colegas. Iam partir em viagem, juntos, pela primeira vez.
Não pode ter a certeza disso, Mistress Faraday observou Kate.
Tenho, sim.
Novo silêncio. Mrs. Faraday continuou o seu trabalho. Por fim, Kate perguntou:
Ficou feliz com o casamento do seu filho?
Fiquei muito feliz. Tinha de aceitar que não lhe seria fácil encontrar esposa. Muitas mulheres teriam gostado de ir para a cama com ele, mas não de passar o resto da sua vida a seu lado. A Angela pareceu-me gostar genuinamente dele. Creio que ainda gosta. A propósito, eles conheceram-se no museu. Aconteceu numa tarde, há três anos. O Selwyn tinha a tarde livre e viera ajudar-me a cuidar do jardim. Havia uma reunião de fiduciários depois do almoço, e o Neville Dupayne esquecera-se da sua agenda e de outros documentos. Telefonou para o hospital e foi a Angela que lhos levou. Depois, quis ver o que estávamos a plantar e conversámos durante algum tempo. Foi então que o Selwyn e ela se conheceram. Senti-me muito contente e aliviada quando começaram a sair juntos e, mais tarde, ficaram noivos. Parecia-me a esposa ideal para ele: amável, sensível e com um instinto maternal. Claro que o que ganhavam, posto em comum, não era grande coisa, mas eu consegui oferecer-lhes uma pequena casa e um automóvel. Era manifesto o quanto ela significava para ele... e ainda significa.
Vi o seu filho observou Dalgliesh. Estava na sala de espera do St. Oswald quando acabei de interrogar a sua nora.
E com que impressão ficou, comandante?
Achei que tinha um rosto perfeito. Pode dizer-se que é um belo homem.
O meu marido também o era, mas não tão notoriamente. Bem-parecido talvez seja a palavra mais adequada. Pareceu reflectir durante alguns segundos e depois o seu rosto abriu-se num sorriso nostálgico. Muito bem-parecido. Belo é uma palavra desapropriada para descrever um homem.
Parece-me apropriada.
Os últimos vasos haviam sido inspeccionados e desinfectados, encontrando-se agora arrumados em fileiras, consoante o seu tamanho. Depois de olhar para eles com a satisfação de haver concluído um trabalho bem feito, Mrs. Faraday voltou a falar:
Creio que é melhor explicar-vos uma coisa a propósito do Selwyn. Não é inteligente. Podia dizer que sempre teve dificuldades na aprendizagem, mas, como diagnóstico, essa frase deixou de fazer sentido. Consegue sobreviver na implacável sociedade de hoje, mas não tem capacidade competitiva. Foi educado com outras crianças ditas normais, mas não conseguiu obter nenhum diploma; aliás, nem sequer tentou fazê-lo, salvo em duas matérias não académicas. A universidade estava obviamente fora de questão, mesmo qualquer uma do fundo da lista, dessas que estão tão desesperadas em manter o número de alunos que, segundo me contaram, aceitam jovens que mal sabem ler e escrever. Mesmo essas não aceitariam o Selwyn. O pai era muito inteligente e o Selwyn foi o nosso único filho. Como é natural, logo que as limitações do Selwyn se tornaram aparentes, constituíram para o meu marido um grande desapontamento... A palavra desgosto talvez não seja forte de mais. No entanto, amava o filho tanto quanto eu. Tudo o que ambos queríamos era que Selwyn fosse feliz e encontrasse um emprego dentro das suas capacidades, que pudesse ser útil aos outros e satisfatório para ele. Quanto à felicidade, não houve problemas. Nasceu com a capacidade de ser alegre. Trabalha como porteiro do Hospital St. Agatha. Gosta do que faz e é um bom profissional. Um ou dois dos porteiros mais velhos interessam-se por ele e, por isso, fez amigos. Tem igualmente uma esposa que ama, e é minha intenção que continue a tê-la a seu lado.
O que fez ontem, Mistress Faraday inquiriu Dalgliesh, entre as cinco e meia e as seis e meia da tarde?
A pergunta era brutalmente directa, mas Mrs. Faraday já devia esperá-la. Acabara de lhe oferecer um móbil, sem que ninguém a tivesse levado a fazê-lo. E agora iria apresentar um álibi?
Quando ouvi a notícia de que o Neville Dupayne tinha morrido esclareceu, compreendi de imediato que iriam investigar a sua vida privada e que, mais tarde ou mais cedo, viriam a saber do seu relacionamento íntimo com a minha nora. Os colegas do hospital não trairiam o seu segredo, revelando-o a mim ou ao marido da Angela. Porque o fariam? No entanto, quando soubessem que o Dupayne fora assassinado, a sua atitude decerto seria diferente. Também me apercebi, claro, de que podia ser considerada como suspeita. A verdade é que planeei ir ao museu ontem, para me encontrar com o Neville Dupayne quando ele ali chegasse. Sabia que ia até lá todas as sextas-feiras, para ir buscar o Jaguar. Penso que, no museu, toda a gente estava a par disso. Pareceu-me a melhor forma de poder vê-lo com absoluta privacidade. Não faria sentido marcar um encontro no hospital; poderia sempre dar um pretexto, alegando não ter tempo. Além disso, a presença da Angela naquele lugar representava um embaraço adicional. Ora, eu queria falar com ele a sós, para tentar convencê-lo a acabar com a relação.
Tinha alguma ideia de como poderia fazê-lo? perguntou Kate. Quero dizer: que argumentos pretendia utilizar, além do mal que ele causava ao seu filho?
Não. Não dispunha de nada específico com que pudesse ameaçá-lo, se é isso que quer insinuar. O Selwyn não era seu paciente e não creio que a Ordem dos Médicos se interessasse pelo caso. A minha única arma, se assim quiser chamar-lhe, era a de apelar ao seu sentido de decência. Afinal, havia sempre a possibilidade de ele se haver arrependido daquela relação e de desejar pôr-lhe termo. Saí de casa às cinco em ponto. Tinha planeado chegar ao museu pelas cinco e meia, para o caso de ele aparecer mais cedo do que habitualmente. Como o museu encerra às cinco, o pessoal já teria saído. Mistress Glutton poderia ver-me, mas considerei essa hipótese como pouco provável, já que a casa dela fica nas traseiras do museu. Mas, mesmo que ela me visse, eu tinha o direito de estar ali.
E viu o doutor Dupayne?
Não, porque desisti do meu plano. O trânsito estava congestionado, como acontece habitualmente às sextas-feiras, e muitas vezes nem sequer conseguia avançar quando o sinal verde se acendia. Tive tempo para pensar e cheguei à conclusão de que o meu plano fora mal concebido. O Neville Dupayne estaria ansioso por partir, a fim de desfrutar do seu tão almejado fim-de-semana. Seria a pior altura para o abordar, e só disporia dessa única oportunidade. Se falhasse, todos os meus esforços teriam sido em vão. Disse a mim mesma que teria mais hipóteses se conversasse, primeiro, com a Angela. Afinal, nunca falara com ela acerca do seu caso com o doutor Dupayne. Ela não fazia ideia de que eu sabia da relação. Quando se desse conta de que eu estava a par do que se passava, isso talvez a levasse a reconsiderar. Ela gosta muito do meu filho e está longe de ser uma... uma predadora impiedosa. Provavelmente, teria mais hipóteses de êxito falando com ela do que com o Dupayne. O Selwyn quer ter um filho. Falei com vários médicos e todos me disseram não haver qualquer razão para temer que um filho da Angela e do Selwyn não seja normal. Além disso, creio que a minha nora também quer ser mãe e não me parece que esperasse ter um filho do Dupayne. Claro que iriam precisar de auxílio financeiro. Quando cheguei a Hampstead Pond, decidi voltar para casa. Não olhei para o relógio; porque havia de fazê-lo? No entanto, estou certa de que estava em casa às seis e vinte e o Perkins pode corroborá-lo.
E ninguém a viu? Ninguém que pudesse reconhecê-la, a si ou ao seu carro?
Não, que eu saiba. E agora, a menos que tenham outras perguntas a fazer, desejava ir para dentro de casa. A propósito, comandante, ficar-lhe-ia muito grata se não falasse directamente com o meu filho. Estava ao serviço no Hospital St. Agatha quando o Dupayne foi assassinado. O hospital poderá confirmá-lo, sem que vos seja necessário falar com o Selwyn.
A entrevista terminara e Kate pensou que havia sido muito mais frutuosa do que ela esperava.
Mrs. Faraday não os acompanhou até à porta da frente, deixando esse encargo a Perkins, que permanecera na estufa durante a entrevista. Antes de sair, Dalgliesh virou-se para ele e perguntou:
Por favor, pode dizer-me a que horas Mistress Faraday regressou a casa na tarde de ontem?
Às seis e vinte e dois, comandante. Lembro-me de ter olhado para o relógio nesse momento.
Abriu a porta de par em par, de uma forma que era mais uma ordem do que um convite.
Mantiveram-se em silêncio até entrar no carro. Depois de apertar o cinto de segurança, a irritação de Kate explodiu.
Felizmente que ela não é minha sogra! Só há uma pessoa de quem gosta: o seu querido filho. Aposto que ele não se teria casado com a Angela se não tivesse obtido a aprovação da mamã. Foi a mamã que lhes comprou a casa e o automóvel. Ele gostava de ter um filho, não é verdade? Pois também lho compraria, se tal fosse possível. E se isso implicar que a Angela tenha de deixar o emprego, então, a mamã subsidiará toda a família. Não importa que a Angela possa ter outra opinião, não queira ter filhos... pelo menos, por enquanto... e até goste do seu trabalho no hospital ou preze a sua independência. Aquela mulher é impiedosa.
Ficou surpreendida com a intensidade da sua cólera contra Mrs. Faraday, pela arrogância que demonstrara e pela superioridade que não tentara esconder, e contra si mesma, por revelar as suas emoções de modo tão pouco profissional. A cólera no caso de um crime era natural e podia ser até um louvável estímulo para entrar em acção. Um detective que se tornasse tão insensível e duro que a piedade e a ira já não fizessem parte da sua reacção à angústia e à dor resultantes de um crime faria melhor se procurasse outro modo de vida. A indignação contra um suspeito, contudo, era uma condescendência que podia perverter perigosamente a capacidade de discernimento. Misturada com essa cólera, que tentava dominar, havia ainda uma outra emoção igualmente repreensível. Honesta por natureza, verificou com certa vergonha que era um ressentimento por ter sido posta em causa a classe a que pertencia.
Vira sempre a luta de classes como o recurso dos falhados, inseguros e invejosos. Ela não se incluía no número de tais pessoas. Então, porque sentia tal cólera? Levara anos a despender energias até lançar o seu passado para trás das costas. O facto de ser filha ilegítima, a aceitação de que jamais viria a saber o nome do pai e a vida que levara naquele degradado bloco de apartamentos dum bairro social da cidade, com a avó rabugenta, o cheiro, o barulho, o desespero que impregnava tudo e todos. No entanto, quando conseguira um emprego que a havia afastado do Edifício Ellison Fairweather mais eficazmente do que qualquer outro, teria deixado nele uma parte de si própria, uma lealdade residual para com os pobres e os carenciados? Alterara o seu estilo de vida, estabelecera outras amizades e até mesmo, gradual e imperceptivelmente, modificara a sua maneira de falar. Tornara-se um membro da classe média, mas, chegada a hora da verdade, não continuava ao lado dos antigos e quase esquecidos vizinhos? Não eram aquelas criaturas como Mrs. Faraday, membros da próspera classe média, cultivada e liberal, que ao fim e ao cabo controlavam as suas vidas? Pensou: Criticam-nos pelas nossas reacções mesquinhas que eles nunca tiveram necessidade de adoptar. Nunca foram obrigados a viver num bloco dum bairro social degradado, com o elevador vandalizado e uma violência insipiente mas constante. Não tiveram de enviar os filhos para escolas em que as salas de aulas são autênticos campos de batalha e em que oitenta por cento dos alunos não sabe falar inglês. Se os filhos deles são delinquentes, levam-nos a um psiquiatra e não a um tribunal de menores. Se precisam de tratamento médico urgente, podem sempre recorrer a consultórios particulares. Não admira que consigam dar-se ao luxo de ser tão liberais.
Ficou sentada em silêncio a observar os dedos longos de AD, que seguravam o volante. O ar dentro do carro devia vibrar com a turbulência dos seus pensamentos.
Não é assim tão simples, Kate comentou Dalgliesh. Não, nada o é nunca, mas para mim, no entanto, é bastante simples, pensou Kate.
Acha que ela disse a verdade perguntou ao afirmar que a relação da nora com o Neville Dupayne ainda se mantinha? Só temos a sua palavra. Acredita que a Angela lhe mentiu, chefe, quando falou com ela?
Não; creio que foi sincera, pelo menos na maior parte do tempo. Agora, com o Dupayne morto, talvez se tenha convencido de que a relação já havia realmente terminado e que um fim-de-semana passado com ele lhe poria um ponto final. A dor pode pregar partidas estranhas à percepção da verdade por parte das pessoas que atinge. No entanto, no que toca a Mistress Faraday, não importa saber se os amantes andavam ou não a planear esse fim-de-semana. Ela acredita que sim e isso é o bastante para lhe dar um móbil para cometer o homicídio.
E dispunha dos meios e da oportunidade para o cometer acrescentou Kate. Sabia onde estava a gasolina, porque foi ela que a comprou. Sabia que o Neville Dupayne entraria na garagem às seis horas e que, nessa altura, o pessoal do museu já teria ido para casa. Foi ela própria que afirmou tudo isso, não é verdade?
Foi notável a sua franqueza, talvez mesmo surpreendentemente franca comentou Dalgliesh. No que respeita à relação amorosa da nora, todavia, só nos contou o que sabia que acabaríamos por descobrir. Não a vejo a pedir ao seu empregado para mentir. E se na verdade planeou matar o Dupayne, teria o cuidado de fazê-lo quando tivesse a certeza de que o filho não poderia ser incluído no rol dos suspeitos. Verificaremos o álibi do Selwyn Faraday, mas, se a mãe dele nos disse que estava de serviço no hospital, creio que acabaremos por apurar que assim era de facto.
Acha necessário que ele venha a saber da infidelidade da mulher? perguntou Kate.
Não, a menos que a mãe seja acusada de homicídio. E acrescentou: Foi um acto de uma crueldade horripilante.
Kate não respondeu. O chefe não queria dizer decerto que Mrs. Faraday era incapaz de cometer tal crime, mas a verdade é que ele também pertencia à mesma classe social. Sentir-se-ia à vontade naquela casa, na companhia de Mrs. Faraday, por ser um mundo que compreendia bem. Contudo, estava a ser ridícula. Dalgliesh sabia, ainda melhor do que ela, que nunca se pode prever nem tão-pouco compreender inteiramente o que um ser humano é capaz de fazer. Perante uma tentação irresistível, tudo se desmorona: as sanções morais e legais, a educação privilegiada e até as crenças religiosas. O acto de matar alguém pode surpreender mesmo o próprio assassino. Tinha visto, estampado nos rostos de homens e de mulheres, o assombro pelo que haviam feito. Dalgliesh voltou a falar.
É sempre mais fácil quando o assassino não tem de presenciar a morte da vítima. Os sádicos podem tirar prazer da crueldade, mas os homicidas, na sua maioria, preferem convencer-se a si próprios de que não cometeram o crime ou, então, que não causaram grande sofrimento à vítima, que a morte foi rápida e serena ou até que a vítima desejava morrer.
Só que nada disso se aplica a este caso redarguiu Kate.
Não concordou Dalgliesh. A este caso, não.
O gabinete de James Calder-Hale ficava situado nas traseiras do primeiro andar do museu, entre a Sala do Crime e a galeria dedicada à Indústria e Emprego, Aquando da sua primeira visita, Dalgliesh havia reparado nas palavras dissuasórias inscritas numa placa de latão, à esquerda da porta: CONSERVADOR. ESTRITAMENTE PRIVADO. Agora, contudo, a sua visita era aguardada. Calder-Hale abriu a porta assim que o comandante bateu.
Dalgliesh ficou surpreendido com as dimensões do gabinete. O Dupayne sofria menos de falta de espaço do que os museus mais pretensiosos ou célebres, limitado como estava, na sua ambição e objectivo, ao período entre as duas guerras mundiais. Mesmo assim, era surpreendente que Calder-Hale tivesse sido privilegiado com uma divisão consideravelmente mais ampla do que o gabinete do piso térreo.
O conservador havia-se rodeado de comodidades. Uma grande escrivaninha, dotada de uma estrutura vertical com gavetas e pequenas prateleiras, achava-se colocada perpendicularmente à única janela por onde podia ver-se a copa de uma faia alta, agora em todo o esplendor do seu dourado outonal, e, atrás, o telhado da vivenda em que vivia Mrs. Glutton e o arvoredo que bordejava o Heath. A lareira, notoriamente da época vitoriana, mas menos pomposa do que as das galerias, estava equipada com uma estufa de gás, que simulava carvão em brasa. Achava-se acesa e as chamas azuis e encarnadas davam ao gabinete um acolhedor ambiente doméstico, realçado por dois cadeirões com encostos altos, cada um deles instalado de cada lado da lareira. Por cima, fora pendurado o único quadro existente no gabinete, uma aguarela de uma rua de aldeia que parecia ter sido pintada por Edward Bawden. Estantes feitas por medida cobriam as paredes, salvo por cima da lareira e à esquerda da porta, onde se encontrava um guarda-louça pintado de branco, com uma bancada de vinil sobre a qual se viam um microondas, uma chaleira eléctrica e uma cafeteira. Ao lado do guarda-louça, havia um pequeno frigorífico e, por cima deste, um armário de parede. A direita, uma porta entreaberta permitia vislumbrar o que devia ser a casa de banho. Dalgliesh, com efeito, pôde ver de relance, num dos cantos, uma armação de vidro para duche e um lavatório. Se o quisesse, pensou, Calder-Hale nunca teria necessidade de sair daquele gabinete.
Havia papéis por todo o lado capas de plástico com recortes de jornais, alguns já amarelecidos pelo tempo; arquivadores nas prateleiras mais baixas; folhas manuscritas empilhadas que transbordavam dos compartimentos da estrutura elevada da escrivaninha; pacotes de textos dactilografados atados com fita adesiva, no chão. Aquela superabundância podia resultar de décadas acumuladas de trabalho administrativo, embora, na sua maioria, as folhas manuscritas parecessem ser recentes. No entanto, o cargo de conservador do Museu Dupayne não podia implicar tão grande volume de papelada. Calder-Hale, presumivelmente, estava empenhado num projecto pessoal que o levava a escrever, ou era um daqueles diletantes que se sentem muito felizes quando se dedicam a um exercício académico que não têm intenção ou que, na verdade, sejam psicologicamente incapazes de completar. Calder-Hale parecia um candidato pouco provável a esta última categoria, se bem que pessoalmente se mostrasse tão misterioso e complexo como algumas das actividades que exercia. E, por muito valiosas que fossem as suas façanhas, era tão suspeito como qualquer outra pessoa mais de perto ligada ao Museu Dupayne. Como os demais, dispunha de meios e de oportunidade para cometer o crime. Se tinha ou não motivos para o fazer, era o que faltava apurar, embora fosse possível que, mais do que todos os outros, tivesse a necessária crueldade para tanto.
Na cafeteira, havia um resto de café. Calder-Hale indicou-a com a mão.
Querem tomar café? perguntou. Posso obter facilmente uma cafeteira cheia.
Depois de Dalgliesh e Piers declinarem a proposta, sentou-se na cadeira giratória da escrivaninha e fitou-os.
É melhor sentarem-se nos cadeirões, se bem que não creia que a nossa conversa seja muito prolongada.
Dalgliesh sentiu-se tentado a dizer que o interrogatório duraria o tempo que fosse necessário. O gabinete achava-se desconfortavelmente quente pela conjunção do aquecimento central e da estufa e Dalgliesh pediu que Calder-Hale desligasse esta última. Sem se apressar, o conservador levantou-se e fechou a torneira do gás. Foi então que Dalgliesh se apercebeu de que o homem parecia doente. Aquando do primeiro encontro, corado pela indignação, real ou fingida, Calder-Hale dera-lhe a impressão de um homem vigoroso e de boa saúde. Agora, porém, pôde aperceber-se da sua palidez por baixo dos olhos, da pele flácida que lhe cobria as faces e de um momentâneo tremor das mãos quando fechara a torneira.
Antes de voltar a sentar-se, Calder-Hale encaminhou-se para a janela e deu um puxão à fita a que estava presa a persiana, e que levou esta a descer com estrépito, por pouco não atingindo um vaso com violetas-africanas.
Detesto esta penumbra. O melhor é fechar a persiana.
Em seguida, colocou a planta sobre o tampo da escrivaninha e adiantou, como se considerasse necessário um pedido de desculpa ou uma explicação:
Foi a Tally Glutton que me deu isto, a três de Outubro. Alguém lhe disse que, nesse dia, eu fazia cinquenta e cinco anos. É a planta de que menos gosto, mas mostra uma irritante relutância em morrer.
Instalou-se na cadeira e fê-la rodar, a fim de poder olhar para os dois polícias, o que fez com alguma complacência. Afinal, fisicamente era ele que se encontrava em posição dominante.
A morte do doutor Dupayne está a ser investigada como homicídio esclareceu Dalgliesh. Um acidente está fora de questão e há indícios que refutam a hipótese de suicídio. Viemos solicitar a sua colaboração. Se sabe ou suspeita de alguma coisa susceptível de nos ajudar, queira dizê-la.
Calder-Hale pegou num lápis e começou a fazer rabiscos na folha de mata-borrão que tinha à sua frente.
Seria útil que nos fornecessem algumas informações. Tudo o que sei, tudo o que cada um de nós sabe, foi o que conseguimos apurar junto uns dos outros. Alguém atirou para cima do Neville a gasolina de uma lata que estava guardada na barraca do jardim, e depois ateou-lhe fogo. Sendo assim, têm a certeza de que não foi um suicídio?
As provas físicas que possuímos são contrárias a tal hipótese.
E quanto às provas psicológicas? Vi o Neville na sexta-feira da semana passada, quando o senhor veio até cá na companhia do Conrad Ackroyd, e pude notar que se encontrava sob grande stresse. Não sei que problemas tinha, para além do excesso de trabalho que podemos considerar como um dado adquirido. E estava a exercer a profissão errada. Se alguém quer ocupar-se da mais intratável de todas as doenças humanas, convém que se certifique, primeiro, de que possui resistência mental para tanto e pode manter o necessário distanciamento. O suicídio é compreensível; o assassínio, não. E ainda mais um assassínio tão hediondo! Tanto quanto sei, ele não tinha inimigos, mas em boa verdade, como podia eu sabê-lo? Conhecia-o mal. Raramente nos encontrávamos. Ele guardava aqui o carro desde a morte do pai e, todas as sextas-feiras, vinha buscá-lo às seis horas, e ia-se embora de imediato. Ocasionalmente, eu ia a sair quando ele chegava. Nunca me disse para onde ia e eu também nunca lho perguntei. Sou conservador deste museu há quatro anos e, durante esse tempo, não creio ter visto o Neville aqui mais do que uma dúzia de vezes.
Porque veio ele ao museu na sexta-feira da outra semana?
Calder-Hale pareceu desinteressar-se dos desenhos que havia traçado no mata-borrão. Naquele momento, tentava equilibrar o lápis no tampo da escrivaninha.
Queria saber a minha opinião acerca do futuro do museu. Como os Dupayne provavelmente lhe contaram, o novo contrato de arrendamento tinha de ser assinado até ao dia quinze deste mês. Pareceu-me que ele tinha algumas dúvidas quanto à hipótese de o museu encerrar. Fiz-lhe notar que era inútil pedir o meu auxílio; não sou fiduciário e não estaria presente na reunião. De qualquer forma, ele já conhecia a minha opinião. Os museus honram o passado numa época que venera a modernidade quase tanto como o dinheiro ou a fama. Não espanta ninguém que os museus passem por tantas dificuldades. Seria uma grande perda se o Dupayne fechasse, mas só para aqueles que dão o devido valor àquilo que ele tem para oferecer. Os Dupayne estão incluídos nesse número? Se não quiserem salvar esta instituição, mais ninguém poderá fazê-lo.
Creio que agora a sua continuidade está garantida opinou Dalgliesh. Era importante para si que o contrato de arrendamento fosse assinado?
Se não o fosse, isso seria inconveniente para mim e para algumas pessoas que estão interessadas no que faço aqui. Como pode ver, instalei-me confortavelmente nos últimos anos, mas tenho o meu próprio apartamento e uma vida fora destas paredes. Duvido que, chegada a hora da verdade, o Neville se houvesse oposto ao novo arrendamento. Afinal, era um Dupayne, e creio que acabaria por alinhar com os irmãos.
Piers falou pela primeira vez.
Onde estava, Mister Calder-Hale perguntou, em tom inflexível, entre... digamos, as cinco e as sete horas da tarde na sexta-feira?
Quer saber se tenho um álibi? Não estão a esticar o período crucial? A hora que lhes interessa, é decerto, é a das seis da tarde. Muito bem, sejamos meticulosos. As cinco menos um quarto, saí do meu apartamento, em Bedford Square, e fui de moto ao meu dentista em Weymouth Street. Ele tinha de completar o trabalho iniciado na coroa de um dente. Habitualmente, deixo a moto em Marylebone Street, mas não encontrei espaço vago e, por isso, dirigi-me a Cross Keys Close, em Marylebone Lane, e estacionei-a aí. Saí da Weymouth Street por volta das cinco e vinte e cinco, mas creio que a assistente do dentista e a recepcionista poderão confirmar a hora exacta. Descobri que me haviam roubado a moto e, por isso, vim a pé para casa, cortando caminho por ruelas, a norte de Oxford Street e sem me apressar. No entanto, julgo ter chegado ao apartamento por volta das seis. Telefonei então para a esquadra mais próxima, onde decerto terá ficado registada a hora da chamada. Fiquei com a impressão de que pouco ligaram à minha queixa e, até hoje, não entraram em contacto comigo. Com a presente vaga de crimes à mão armada e a ameaça do terrorismo, o furto de uma moto dificilmente será considerado uma prioridade. Vou esperar durante mais dois dias, depois, darei a mota como perdida e reclamarei o seu valor à companhia de seguros. Devem tê-la atirado para alguma vala algures. E uma Norton... já não as fabricam... e eu gostava muito dela, mas não da mesma forma obsessiva que o Neville gostava do seu Jaguar E-type. Piers anotara as horas.
E não há mais nada que possa dizer-nos? perguntou Dalgliesh.
Não. Lamento não vos ser de maior préstimo, mas, como já disse, eu mal conhecia o Neville.
Ouviu falar do encontro de Mistress Glutton com o condutor misterioso?
O que ouvi a propósito da morte do Neville já é certamente do vosso conhecimento. O Marcus e a Caroline relataram-me a entrevista que tiveram com os senhores na sexta-feira, e falei também com a Tally Glutton. A propósito, devo dizer que ela é uma mulher honesta. Podem fazer fé no que vos narrou.
Quando lhe perguntaram se a descrição feita por Mrs. Glutton lhe fizera lembrar alguém, Calder-Hale respondeu:
Corresponde à descrição dos habituais visitantes do Dupayne. Duvido que ele seja uma personagem importante neste caso. Não me parece que um assassino em fuga, em particular, alguém que acaba de deitar fogo à sua vítima, vá parar para ver se uma velhota precisa de auxílio. Sobretudo, porque se arriscava a que ela tomasse nota da matrícula do carro.
Já emitimos um anúncio disse Piers. Pode ser que ele apareça.
Eu não acalentaria grandes esperanças. Pode ser uma daquelas pessoas sensíveis que não consideram a inocência como protecção bastante contra as maquinações casuísticas da polícia.
Mister Calder-Hale interveio Dalgliesh, parece-me possível que saiba por que razão o Neville Dupayne foi morto. Se assim for, pouparia tempo e incómodos, tanto a mim como a si, se o revelasse desde já.
Não sei. Quem me dera sabê-lo. Se o soubesse, di-lo-ia. Posso admitir a ocasional necessidade de cometer um homicídio, mas não neste caso nem pela forma como foi perpetrado. Posso ter as minhas suspeitas, dar-lhes até quatro nomes, por ordem decrescente de probabilidade, mas suponho que possuam a mesma lista e pela mesma ordem.
Parecia não haver de momento mais nada a perguntar ao conservador e Dalgliesh preparava-se para se levantar quando Calder-Hale acrescentou:
Já falaram com a Marie Strickland?
Oficialmente, ainda não. Tivemos um breve encontro quando visitei o museu, há pouco mais de uma semana. Pelo menos, creio que a pessoa em questão era Mistress Strickland, porque estava a trabalhar na biblioteca.
E uma mulher espantosa. Já fizeram investigações a seu respeito?
Devíamos tê-lo feito?
Perguntava a mim próprio se porventura se haviam interessado em conhecer o seu passado. Durante a guerra, foi uma das agentes femininas que o Serviço de Operações Especiais lançou, de pára-quedas, em França, nas vésperas do dia D. O propósito era o de reconstruir uma rede da resistência na zona ocupada, no Norte, que havia sido desmantelada na sequência de uma alta traição no ano anterior. O grupo dela sofreu idêntica sorte; no seu seio, houve um traidor que, segundo se dizia, era amante da Marie Strickland. Foram, aliás, os dois únicos membros do grupo que não foram cercados, torturados e mortos.
Como o sabe? perguntou Dalgliesh.
O meu pai trabalhava com o Maurice Buckmaster no quartel-general do Serviço de Operações Especiais, em Baker Street. Teve a sua quota-parte de responsabilidade no fracasso da missão. Ele e Buckmaster foram avisados, mas recusaram-se a acreditar que as mensagens que recebiam, via rádio, eram emitidas pela Gestapo. Claro que nessa altura eu não era nascido, mas o meu pai contou-me o ocorrido pouco antes de morrer. Nas suas últimas semanas de vida, antes que começasse a receber morfina, quis compensar vinte e cinco anos de falta de comunicação entre nós. A maior parte do que me disse não é segredo para ninguém. De qualquer modo, com a posterior divulgação dos documentos oficiais, tudo veio a cair no domínio público.
Alguma vez falou com Mistress Strickland a propósito desse caso?
Não creio que ela suspeite, sequer, que o conheço. Deve ter-se apercebido de que sou filho do Henry Calder-Hale ou, pelo menos, seu parente, mas isso não era razão para que viesse ter comigo a fim de manter uma conversa sobre o passado, sobretudo daquele passado e tendo eu o apelido que tenho. Apesar de tudo, julguei que estariam interessados em sabê-lo. Sinto-me sempre pouco à vontade quando me encontro com a Marie Strickland, embora não o suficiente para desejar que não estivesse aqui. É que a sua valentia é incompreensível para mim: faz-me sentir inferiorizado. Tomar parte numa batalha é uma coisa, mas arriscar-se à traição, à tortura e a uma morte solitária é outra, totalmente diferente. Quando jovem, deve ter sido uma mulher extraordinária, um misto de delicada beleza britânica e de crueldade. Já fora apanhada numa missão anterior, mas conseguiu escapar ilesa. Creio que os alemães não conseguiam acreditar que ela não era o que parecia. E agora lá fica sentada na biblioteca, horas a fio, uma velhota com artrite nas mãos e de olhos mortiços, a escrever etiquetas com letra elegante, mas que produziriam o mesmo efeito se a Muriel Godby as escrevesse no computador e, depois, as imprimisse.
Ficaram sentados em silêncio. O último comentário irónico de Calder-Hale, pontuado por um certo azedume, parecia tê-lo deixado exausto. O seu olhar estava fixo numa pilha de papéis sobre a escrivaninha, mais com um ar de cansada resignação do que de interesse por eles. Não havia mais nada a sacar daquele homem; chegara o momento de partir.
Enquanto se dirigiam para o automóvel, nenhum deles falou de Mrs. Strickland.
O álibi do Calder-Hale não me parece muito sólido comentou Piers. Estacionar a mota numa rua movimentada! Quem poderá dizer a que horas a deixou lá ou a que horas foi roubada? Ele devia usar capacete, o que é um disfarce perfeito. Se a mota foi abandonada algures, é bem possível que esteja escondida entre o arvoredo de Hampstead Heath.
Temos a hora em que saiu do dentista retorquiu Dalgliesh, e provavelmente apuraremos que é exacta. A recepcionista devia verificar as horas das marcações. Se, como ele diz, saiu do consultório às cinco e vinte e cinco, conseguiria chegar ao museu antes das seis? Talvez, se tivesse sorte com o trânsito e com os semáforos, mas precisaria de mais tempo. Será melhor o Benton-Smith fazer o mesmo trajecto, de preferência com uma Norton. Talvez a Garagem Duncan nos possa ajudar.
Vamos precisar de mais do que uma moto. Já estou a imaginar uma corrida de Nortons...
Uma bastará. Já andam demasiados malucos à solta nas estradas. O Benton-Smith deve repetir o percurso várias vezes, utilizando itinerários alternativos. O Calder-Hale podia ter ensaiado o trajecto previamente por caminhos diferentes. E o Benton não precisa de fazer loucuras; o Calder-Hale não se arriscaria a passar sinais vermelhos.
Não quer que eu assista à autópsia?
Não. A Kate levará o Benton consigo, para que ele adquira experiência. A causa da morte é óbvia, mas será interessante determinar o estado geral de saúde da vítima e o grau de alcoolemia.
Pensa que ele podia estar embriagado? admirou-se Piers.
Não ao ponto de ficar incapaz de conduzir, mas, se andava a tomar bebidas em demasia, isso pode conferir credibilidade à hipótese de um suicídio.
Julguei que havíamos descartado já essa hipótese.
E descartámos. Estou a pensar no que a defesa pode alegar; o júri talvez considerasse razoável esse argumento. A família está ansiosa por que lhe entreguemos o corpo para ser cremado. Segundo parece, conseguiram fazer uma reserva no crematório para quinta-feira.
Foram rápidos comentou Piers. Devem ter feito a reserva pouco tempo depois da morte do Neville. Revela uma certa dose de insensibilidade, como se estivessem com pressa de completar o trabalho já iniciado por outrem. Ao menos, não fizeram a reserva antes que fosse morto...
Dalgliesh não replicou e foi em silêncio que ambos apertaram os cintos de segurança no interior do Jaguar.
Marcus Dupayne havia convocado uma reunião do pessoal do museu para as dez horas de segunda-feira, quatro de Novembro. O bilhete fora redigido tão formalmente como se fosse dirigido a um organismo governamental e não a apenas quatro pessoas.
Embora o museu estivesse encerrado e as suas limpezas de rotina dificilmente fossem necessárias, Tally dirigiu-se ao museu para efectuá-las, como, aliás, o fizera durante o fim-de-semana, uma vez que aquele ritual lhe conferia segurança.
De regresso à vivenda, despiu a bata, lavou-se e, depois de meditar algum tempo, vestiu uma blusa lavada e regressou ao museu, pouco antes das dez. A reunião devia realizar-se na biblioteca e Muriel já ali se encontrava, dispondo sobre a mesa as chávenas para o café. Tally pôde ver que, como de costume, Muriel havia feito biscoitos. Naquela manhã, pareciam de aveia; Muriel devia ter pensado que os biscoitos de chocolate eram demasiado festivos para a ocasião.
Os dois Dupayne foram pontuais e Mr. Calder-Hale chegou poucos minutos depois. Demoraram-se alguns momentos a beber café numa pequena mesa em frente da janela virada para norte, como se pretendessem demarcar qualquer acto de natureza social do assunto grave a abordar; em seguida, dirigiram-se para os respectivos lugares na mesa central.
Pedi-vos que comparecessem aqui por três razões começou Marcus Dupayne. A primeira é para agradecer a si, James, a si, Muriel, e a si, Tally, pelas condolências que nos apresentaram pela morte do nosso irmão. Numa altura como esta, a dor é absorvida pelo estado de choque e este pelo horror. Teremos tempo... talvez, não o bastante... para chorar a morte do Neville e dar-nos conta da falta que vai fazer, tanto a nós como aos seus doentes. A segunda razão é para vos informar o que eu e a minha irmã decidimos acerca do futuro do Museu Dupayne. A terceira, para vos falar da nossa reacção, no âmbito da investigação policial, àquilo que foi estabelecido... e que temos de aceitar, como sendo um homicídio e, também, de como devemos lidar com a publicidade que o caso despertou, como já era de esperar. Decidi só promover hoje esta reunião, porque me pareceu que, durante o fím-de-semana, todos estaríamos ainda demasiado chocados para raciocinar com clareza.
Assim sendo, presumo que será assinado o novo contrato de arrendamento e que o Museu Dupayne vai continuar? adiantou James Calder-Hale.
O contrato de arrendamento já foi assinado por mim e pela minha irmã disse Marcus. Para o efeito e mediante marcação prévia, deslocámo-nos hoje a Lincoln’s Inn, às oito e meia.
Antes de o Neville ter sido cremado? admirou-se Calder-Hale. Será que devia cheirar-me a carne assada, no forno crematório, e não me apercebi disso?
Caroline replicou, em tom frio:
Já haviam sido efectuadas todas as diligências preliminares. Só faltavam as assinaturas de dois dos fiduciários sobrevivos. Teria sido prematuro convocar esta reunião sem, antes, vos podermos garantir que o museu vai continuar aberto.
Não teria sido mais correcto deixar passar mais alguns dias?
Marcus manteve-se impassível.
E para quê, em concreto? Está a deixar-se influenciar pela opinião pública ou há alguma objecção de natureza ética ou teológica que me tenha escapado?
O rosto de James Calder-Hale crispou-se num sorriso irónico, que mais pareceu um esgar, mas ele não respondeu.
O inquérito preliminar será aberto, amanhã de manhã, mas deve ser suspenso para continuar em data anterior. Se o corpo nos for entregue, a cremação terá lugar na quinta-feira. O meu irmão não professava nenhuma religião e, por isso, a cerimónia será laica e privada. Só estarão presentes os parentes mais chegados. Ao que parece, o hospital pretende efectuar mais tarde um serviço religioso na capela, em sua memória, e, como é óbvio, estaremos presentes. Suponho que todos aqueles que quiserem participar nessa homenagem serão bem-vindos. Só tive uma breve conversa, por telefone, com o administrador e nada de concreto está ainda decidido.
Passemos agora ao futuro do museu. Eu serei o administrador-geral. A Caroline continuará a trabalhar a tempo parcial e será a responsável por aquilo que podemos considerar a parte visível do museu: admissão dos visitantes, gestão, financiamento e manutenção. Você, Muriel, também continuará sob as suas ordens. Sei que tem um acordo particular em relação à limpeza do apartamento dela, que também será mantido. Gostaríamos que você, James, continuasse a desempenhar o cargo de conservador, tendo sob sua responsabilidade a aquisição e conservação das peças, a organização de exposições, o relacionamento com os investigadores e o recrutamento de voluntários. Você, Tally, manterá as funções que já desempenha, continuando a habitar na vivenda, respondendo perante a minha irmã pela limpeza geral do museu e ajudando a Muriel na recepção, sempre que necessário. Vou escrever às nossas duas actuais voluntárias, Mistress Faraday e Mistress Strickland, para lhes pedir que, se quiserem, continuem também a efectuar as tarefas de que se têm incumbido. Se o museu vier a expandir-se, como espero que aconteça, talvez tenhamos de admitir mais pessoal e receberemos, de braços abertos, outros voluntários. O James, como até aqui, encarregar-se-á de seleccioná-los. O jardineiro, o Ryan, também pode continuar a exercer as suas funções, se porventura se dignar aparecer.
Tally falou pela primeira vez.
Estou preocupada com o Ryan. Marcus desdramatizou o assunto.
Não creio que a polícia suspeite do Ryan Archer. Mesmo que tivesse inteligência bastante para o fazer, por que motivo iria o rapaz planear este assassínio?
Não há razões para se inquietar, Tally explicou James com afabilidade. O Dalgliesh contou-nos o que se passou. O rapaz fugiu porque agrediu o major Arkwright e, provavelmente, julga que o matou. Há-de aparecer quando souber que isso não aconteceu. Seja como for, a polícia anda à procura dele. Não há nada que possamos fazer.
Como é evidente, os agentes pretendem falar com ele. Esperemos que seja discreto no que lhes contar opinou Marcus.
Mas que pode ele dizer-lhes? perguntou Caroline. Seguiu-se um silêncio, quebrado por Marcus.
Talvez seja melhor abordarmos agora a investigação em curso. O que me parece deveras surpreendente é o grau de empenhamento demonstrado pela polícia. Porque foi escolhido o comandante Dalgliesh? Julguei que a sua brigada havia sido constituída para investigar casos de homicídio particularmente delicados ou difíceis. Não me parece que a morte do Neville preencha esses requisitos.
James inclinou-se na cadeira, arriscando-se a fazê-la tombar.
Posso adiantar um certo número de hipóteses disse ele. O Neville era psiquiatra. Talvez andasse a tratar de alguém suficientemente poderoso, cuja reputação necessite de uma protecção superior à habitual. Não seria agradável, por exemplo, se viesse a saber-se que o ministro das Finanças é um cleptómano, que um bispo é um bígamo assumido ou que um cantor de música pop tem grande predilecção por raparigas de tenra idade. Por outro lado, a polícia pode suspeitar de que o museu haja sido utilizado para fins criminosos, como, por exemplo, aceitando artigos roubados, escondendo-os entre as peças expostas ao público, ou organizando uma rede de espionagem ao serviço do terrorismo internacional.
Acho que o sentido de humor é um tanto inoportuno num momento como o que vivemos, James comentou Marcus, franzindo as sobrancelhas. No entanto, pode tratar-se de algo relacionado com a profissão do Neville. Decerto ficou a conhecer, ao longo da carreira, um grande número de segredos perigosos. O seu trabalho levou-o a entrar em contacto com uma enorme diversidade de pessoas, na sua maioria com perturbações psicológicas. Nada sabemos acerca da sua vida privada. Não sabemos, sequer, para onde ia às sextas-feiras e com quem se encontrava. Não sabemos tão-pouco se veio acompanhado ou se ele se encontrou, aqui, com outra pessoa. Foi ele que mandou fazer as chaves da garagem. Não temos maneira de apurar quantos duplicados havia ou quem tinha acesso a eles. A chave sobresselente que se encontra no armário do gabinete do piso térreo, provavelmente, não é a única existente.
A inspectora Miskin fez-me uma pergunta a esse respeito adiantou Muriel, quando ela e o sargento foram ter comigo e com a Tally na sexta-feira, depois de o comandante Dalgliesh se ir embora. Pôs a hipótese de alguém haver tirado a chave da garagem, substituindo-a por outra, do mesmo tipo, Yale, antes de voltar a pôr a autêntica no sítio habitual. Fiz notar que não me aperceberia da diferença, se alguém houvesse feito tal coisa. Uma chave Yale parece igual a qualquer outra do mesmo tipo, a menos que a examinemos com toda a atenção.
E há o condutor misterioso interveio Caroline. Parece óbvio que, até ao momento, é o principal suspeito. Resta esperar que a polícia consiga descobrir quem é.
James estava a fazer um rabisco de notável complexidade. Sem parar, acrescentou:
Se não o conseguir, vai ser difícil atribuir o crime a outra pessoa. Deve haver alguém a rezar para que ele continue a monte, em mais do que um sentido.
Muriel decidiu intervir.
E aquelas estranhas palavras que disse à Tally... Parece que alguém ateou uma fogueira. Foram exactamente as mesmas palavras que o Rouse pronunciou. Não estaremos perante um daqueles homicídios cometidos exactamente da mesma forma que outro, anterior?
Marcus voltou a franzir o sobrolho.
284 Não me parece que devamos dar largas à fantasia. O mais provável é que não passe de uma simples coincidência. Não obstante, o tal condutor deve ser encontrado; até lá, a nossa obrigação é a de prestar a maior ajuda possível à polícia. Não me refiro a fornecer informações que não nos sejam pedidas. E extremamente imprudente fazer especulações, seja entre nós, seja com outrem. Proponho que nenhum de nós preste declarações à imprensa nem responda aos telefonemas dos jornalistas. Se um jornalista se mostrar demasiado insistente, remetam-no para o Departamento de Relações Públicas da Polícia Metropolitana ou para o comandante Dalgliesh. Devem ter-se apercebido de que foi colocada uma barreira na estrada de acesso ao museu. Deram-me chaves suficientes para todos vós. Como é evidente, só precisarão delas aqueles que se sirvam de um automóvel. Por exemplo, a Tally pode muito bem contornar a barreira com a sua bicicleta ou fazê-la passar por baixo dela. O museu estará encerrado durante toda esta semana, mas espero poder reabri-lo ao público na próxima segunda-feira. Há, contudo, uma excepção. O Conrad Ackroyd convidou um pequeno grupo de académicos canadianos, que devem chegar na quarta-feira, e vou dizer-lhe que abriremos o museu, excepcionalmente, para que eles possam visitá-lo. É de esperar que o homicídio provoque a afluência de visitantes adicionais, facto que, de início, pode provocar algumas dificuldades. Vou passar tanto tempo quanto me for possível no museu e espero encarregar-me pessoalmente de acompanhar os grupos de visitantes. No entanto, não poderei estar aqui na quarta-feira, porque tenho uma reunião com o banco nesse dia. Alguém tem mais alguma pergunta a fazer?
Olhou à sua volta, mas, a princípio, ninguém quis falar. Depois, Muriel declarou:
Creio falar por todos para exprimir a nossa satisfação pelo facto de o Museu Dupayne continuar aberto. O senhor e Miss Caroline podem contar com todo o nosso apoio para que a vossa decisão nesse sentido tenha o maior êxito.
Não se ouviu qualquer murmúrio de apoio. Se calhar, pensou Tally, Mr. Calder-Hale partilhava da sua opinião de que tanto as palavras de Muriel como a ocasião escolhida para as proferir não eram as mais apropriadas.
285 Foi então que o telefone tocou. Haviam ligado todas as extensões para a biblioteca e Muriel apressou-se a atender a chamada. Ouviu o que lhe diziam, voltou-se e informou:
E o comandante Dalgliesh. Pretende identificar um dos visitantes do museu e conta com a minha ajuda.
Então, será melhor continuar a conversa telefónica no gabinete da recepção interveio secamente Caroline Dupayne, porque eu e o meu irmão precisamos de ficar aqui durante mais algum tempo.
Muriel tirou a mão do bocal e proferiu:
Não desligue, comandante. Vou atender a chamada lá em baixo, no gabinete da recepção.
Tally seguiu-a, escada abaixo, e saiu pela porta da frente. No gabinete da recepção, Muriel levantou o auscultador.
Quando fui aí com Mister Ackroyd, na sexta-feira da outra semana retomou Dalgliesh, vi um jovem na galeria de quadros. Estava interessado no Nash. Encontrava-se sozinho, tinha rosto magro, usava calças de ganga já bastante gastas nos joelhos, um anoraque grosso, um gorro de lã enterrado até às orelhas e uns sapatos de ténis azuis e brancos. Disse-me que já havia visitado o museu anteriormente. Gostava de saber se, por acaso, se recorda dele.
Sim, creio lembrar-me. Não se enquadra no tipo habitual de visitantes e, por isso, chamou-me a atenção. Da primeira vez que cá esteve, não veio sozinho, mas sim acompanhado por uma jovem. Ela trazia consigo um bebé numa daquelas mochilas para transportar bebés. Sabe o que é? O bebé fica encostado ao peito da mãe, com as pernas pendentes. Recordo-me de ter pensado que parecia um macaquinho agarrado à mãe. Não se demoraram muito tempo. Creio que só visitaram a galeria de quadros.
E foram acompanhados por alguém?
Não me pareceu necessário. Lembro-me de que a rapariga trazia um saco de algodão decorado com flores e apertado com um cordão. Penso que seria para guardar fraldas e o biberão do bebé. Aliás, deixou-o no vestiário. Não me pareceu que pudessem roubar qualquer peça e, como Mistress Strickland estava a trabalhar na biblioteca, também não podiam deitar a mão a nenhum livro.
Tem algum motivo para pensar que eles pretendiam roubar um livro?
Não, mas muitos dos volumes são primeiras edições valiosas. Todo o cuidado é pouco, mas, como já disse, Mistress Strickland encontrava-se na biblioteca. E a voluntária que se encarrega de escrever as etiquetas. Talvez ela possa recordar-se se eles entraram na biblioteca.
Tem uma memória espantosa, Miss Godby.
Bom, como já referi, comandante, aqueles jovens não pertenciam ao tipo habitual de visitantes que recebemos.
E que é?
Na sua maioria, tendem a ser pessoas de meia-idade. Alguns são muito mais velhos. Suponho que sejam os únicos que se recordam dos anos entre as duas guerras. Há também os investigadores, os escritores e os historiadores. Os visitantes de Mister Calder-Hale são, em regra, estudantes aplicados. Segundo creio, ele mostra-lhes o museu mediante prévia marcação, depois das horas normais de funcionamento. Como é natural, esses não assinam o livro de registo.
Por acaso, não tomou nota do nome do tal jovem? Ele não assinou o livro?
Não. Só é assinado pelos que pertencem aos Amigos do Museu Dupayne, que não pagam entrada Então, alterou o tom de voz e afirmou com súbita satisfação: Acabo de lembrar-me de uma coisa que é capaz de ajudá-lo, comandante. Há três meses... posso fornecer-lhe a data exacta, se for necessário... planeámos efectuar uma conferência com diapositivos acerca da pintura e da execução de gravuras nos anos vinte; teria lugar na galeria de quadros e seria dirigida por um distinto amigo de Mister Ackroyd. Cada inscrição custava dez libras e esperávamos que fosse a primeira de uma série de iniciativas idênticas. O programa ainda não estava pronto; alguns dos conferencistas que deviam participar no evento haviam prometido colaborar connosco, mas tive problemas em marcar as datas convenientes. Preparei um livro para registar os nomes e moradas dos visitantes que estivessem interessados em assistir a essa conferência.
E o rapaz deu-lhe o seu nome e morada?
Foi a mulher dele que o fez, quando vieram juntos da primeira vez. Presumo que seja a mulher do rapaz, porque notei que usava aliança. O visitante que saíra antes deles tinha assinado o livro e, por isso, pareceu-me natural convidar o casal a fazer o mesmo. Teria sido desagradável, se não o fizesse. Foi ela que escreveu o nome e a morada no livro. Quando se afastaram do balcão em direcção à porta, vi-o a falar com ela. Deu-me a impressão de que estava irritado e lhe disse que não devia ter feito tal coisa. Claro que nenhum deles apareceu na conferência, o que não me espantou, dado que, como disse, o preço da inscrição era de dez libras.
Pode consultar o livro e ver o que a tal jovem escreveu? Eu fico à espera.
Seguiu-se um silêncio e, menos de um minuto depois, Muriel voltou a falar.
Creio que encontrei o jovem que procura. A rapariga registou ambos como marido e mulher. Mister David Wilkins e Mistress Michelle Wilkins. Quinze A, Goldthorpe Road, Ladbroke Grove.
Quando Muriel regressou depois da conversa telefónica que tivera com o comandante Dalgliesh, Marcus deu a reunião por concluída. Faltavam quinze minutos para as onze.
O telefone de Tally tocou, mal ela entrou na vivenda. Era Jennifer.
Es tu, mãe? perguntou. Não posso demorar muito tempo. Estou a telefonar do emprego. Tentei falar contigo mais cedo, esta manhã. Estás bem?
Estou muito bem, obrigada, Jennifer. Não te preocupes comigo.
Tens a certeza de que não queres vir passar uns tempos connosco? De que estás em segurança nessa vivenda? O Roger podia ir buscar-te.
Agora que a notícia do crime andava nos jornais, pensou Tally, os colegas de Jennifer deviam ter começado a falar. Talvez tivessem insinuado que ela devia ir buscar a mãe, para a afastar das garras do ainda desconhecido assassino e a levar consigo para a sua casa de Basingstoke. Tally sentiu um espasmo de culpa. Talvez estivesse a fazer um juízo errado; talvez Jennifer tivesse ficado realmente preocupada, até porque lhe havia telefonado todos os dias mal soubera do ocorrido. Fosse como fosse, tinha de evitar que Roger se deslocasse a sua casa. Para tanto, serviu-se do único argumento que sabia capaz de convencer a filha.
Por favor, não te inquietes, minha querida. Garanto que não há razões para isso. Não quero sair da vivenda, o que poderia levar os Dupayne a admitir alguém para me substituir, nem que fosse temporariamente. Tenho ferrolhos nas portas e em todas as janelas e sinto-me perfeitamente segura. Se começar a sentir-me nervosa, ligo-te imediatamente, mas estou certa de que isso não irá acontecer.
Quase pôde sentir a sensação de alívio de Jennifer no tom da sua voz.
Mas o que está a passar-se? perguntou ela. O que anda a fazer a polícia? Tens sido incomodada pelos polícias ou pela imprensa?
Os polícias têm sido muito corteses para comigo. Como é óbvio, já todos fomos submetidos a interrogatórios e creio que voltaremos a sê-lo.
Mas, com certeza, eles não pensam que...
Não atalhou Tally. Tenho a certeza de que não suspeitam de nenhuma das pessoas que trabalham no museu. No entanto, querem saber o mais possível acerca do doutor Neville. Os jornalistas não nos incomodaram. Este número de telefone não vem na lista e colocaram uma barreira para impedir que os carros entrem na propriedade. Os polícias têm sido muito eficazes no que respeita a tudo isso e também a conferências de imprensa. O museu encontra-se encerrado, por ora, mas esperamos poder abri-lo ao público de novo, na próxima semana. O funeral do doutor Neville está marcado para quinta-feira.
E, segundo penso, vais estar presente, não é assim, mãe?
Tally perguntou a si própria se a filha ia dar-lhe conselhos quanto à roupa que devia vestir.
Não, não vou, porque vai ser uma cremação muito simples a que só assistirão os parentes mais chegados.
Sendo assim e se, na verdade, te sentes bem...
Muito bem, obrigada, Jennifer. Foi muito gentil da tua parte teres telefonado. Dá beijos meus ao Roger e às crianças.
Desligou com tal prontidão que Jennifer devia ter ficado a pensar que a mãe fora pouco delicada. Logo a seguir, o telefone voltou a tocar. Ao pegar no auscultador, ouviu a voz de Ryan. Falava baixinho, enquanto, em fundo, se ouvia uma confusão de outros sons.
Mistress Tally, daqui é o Ryan.
Tally soltou um suspiro de alívio e transferiu o auscultador para o ouvido esquerdo, dado ser aquele por que ouvia melhor.
Oh, Ryan, fico contente por teres telefonado. Estamos todos preocupados a teu respeito. Estás bem? Onde estás?
Na estação de metro de Oxford Circus. Mistress Tally, não tenho dinheiro. Pode telefonar-me?
Parecia desesperado. Procurando manter a voz muito calma, Tally replicou:
Claro que sim. Dá-me o número. E fala mais alto, Ryan, porque quase não consigo ouvir-te.
Ainda bem, pensou, que tinha sempre à mão um bloco e uma caneta. Tomou nota dos algarismos e obrigou-o a repeti-los.
Fica onde estás ordenou, por fim. Vou ligar imediatamente.
O rapaz pousou o auscultador no gancho e, quando ela lhe ligou, atendeu e perguntou de imediato:
Eu matei-o, não é verdade? O major. Está morto, não está?
Não, não está morto, Ryan. Não ficou ferido com gravidade e não vai apresentar queixa. No entanto, como é óbvio, a polícia quer interrogar-te. Sabes que o doutor Neville foi assassinado?
Vem nos jornais. Vão pensar que fui eu. Parecia mais aborrecido do que preocupado.
Claro que não, Ryan. Tenta ser sensato e raciocinar como deve ser. O pior que podes fazer é fugir. Onde tens dormido?
Encontrei uma casa com as janelas e a porta entaipadas, perto de King’s Cross, mas que tem uma cave na parte da frente. Tenho andado a vaguear desde que amanheceu. Não quero voltar para aquele esconderijo porque sei que a polícia iria procurar-me lá. Tem a certeza de que o major está bem? Não está a mentir-me, pois não, Mistress Tally?
Não, não estou a mentir, Ryan. Se o tivesses morto, a notícia viria nos jornais. Agora, o que é preciso é que voltes para casa. Tens dinheiro?
Não, e não posso servir-me do telemóvel porque está descarregado.
Eu vou aí buscar-te.
Esforçou-se por pensar rapidamente. Encontrá-lo em Oxford Circus não ia ser fácil e, além disso, levar-lhe-ia muito tempo a lá chegar. A polícia andava no encalço do rapaz e podia apanhá-lo a qualquer momento. Parecia-lhe importante encontrar-se com Ryan antes que tal acontecesse. Por isso, acrescentou:
Ouve, Ryan. Há uma igreja, a Igreja de Todos-os-Santos, em Margaret Street. E perto de Oxford Circus. Sobe por Great Portland Street em direcção à BBC; Margaret Street fica à direita. Senta-te calmamente e permanece na igreja até eu chegar. Ninguém irá incomodar-te lá, nem interferir contigo. Se alguém te dirigir a palavra, é por pensar que precisas de ajuda. Nesse caso, diz que estás à espera de uma pessoa amiga. Também podes ajoelhar-te. Se o fizeres, ninguém irá interpelar-te.
Como se estivesse a rezar? Deus vai fulminar-me com um raio!
Claro que Ele não fará tal coisa, Ryan. Ele não é assim!
Faz, sim, senhora! O Terry, o último amante da minha mãe, contou-me que vem na Bíblia.
Quero dizer que Ele não faz tal coisa, agora.
Oh, céus!, pensou. Dei-lhe a impressão de que Deus aprendeu a controlar-se melhor! Como é que fomos envolver-nos nesta ridícula discussão teológica?
Vai correr tudo bem acrescentou com firmeza. Vai para a igreja, como já disse. Aparecerei lá, tão depressa quanto me seja possível. Lembras-te das indicações que te dei?
Pôde detectar um certo mau humor na voz do rapaz, quando este recitou:
Subo em direcção à BBC e Margaret Street fica à direita.
Muito bem. Vou já sair.
Pousou o auscultador. A deslocação ia sair-lhe cara e talvez levasse mais tempo do que desejava. Não estava habituada a chamar táxis pelo telefone e teve de consultar a lista. Acentuou que se tratava de um caso urgente, e a rapariga que a atendeu garantiu-lhe que ia fazer o possível para que o táxi fosse buscá-la no quarto de hora seguinte, espaço de tempo superior ao que Tally esperava. Havia terminado já o seu serviço matinal no museu; no entanto, perguntou a si própria se devia lá voltar para prevenir Muriel de que ia ausentar-se durante cerca de uma hora. Mr. Marcus e Miss Caroline ainda se encontravam no museu e um deles podia precisar dela e perguntar onde estava. Depois de reflectir durante alguns minutos, sentou-se à secretária e escreveu um bilhete: Muriel, tive de ir ao West End. Vou estar ausente durante uma hora, mais ou menos, mas regressarei antes da uma da tarde. Pensei que devia avisá-la para o caso de querer saber porque saí. Está tudo bem. Tally.
Decidiu-se a deixar o bilhete na porta do museu antes de partir. Muriel ia achar que era uma estranha forma de comunicar com ela, mas Tally não podia arriscar-se a perguntas. E que fazer em relação à polícia? Devia avisá-la de imediato, para que fizesse cessar as buscas? Esse acto, porém, seria visto por Ryan como uma traição, se a polícia chegasse à igreja antes dela. Isso não aconteceria, contudo, se não dissesse onde podiam encontrá-lo. Vestiu o casaco, pôs o chapéu na cabeça, verificou que tinha dinheiro suficiente na mala de mão para ir a Margaret Street e voltar e, em seguida, marcou o número que lhe fora dado pela inspectora Miskin. Foi uma voz masculina que atendeu.
Daqui fala Tally Glutton. O Ryan Archer acaba de telefonar-me. Encontra-se bem e vou ter com ele a fim de o trazer para aqui.
Pousou o auscultador logo de seguida. O telefone tocou antes de ela alcançar a porta, mas não atendeu a chamada; saiu à pressa e fechou à chave a porta da vivenda. Depois de meter o bilhete na caixa do correio do museu, desceu o caminho de entrada para esperar pelo táxi do lado de lá da barreira. Os minutos pareceram-lhe intermináveis e não conseguiu resistir a consultar continuamente o relógio de pulso. Passaram-se quase vinte minutos antes que o táxi aparecesse.
Para a Igreja de Todos-os-Santos, em Margaret Street, por favor, e o mais rapidamente que lhe for possível pediu assim que entrou no carro. O motorista, já de idade avançada, não respondeu. Talvez estivesse farto de passageiros que o exortassem a conduzir de pressa, quando tal era impossível.
Os semáforos não jogaram a seu favor e, em Hampstead, incorporaram-se numa longa fila de carrinhas e de táxis que seguia lentamente para sul, em direcção ao West End. Tally ia sentada muito direita, agarrada à mala, procurando manter-se calma e paciente, uma vez que de nada lhe servia enervar-se. O motorista fazia o melhor que podia.
Quando chegaram a Marylebone Road, Tally inclinou-se para a frente e disse:
Como a rua só tem um sentido, talvez lhe seja difícil chegar à igreja. Pode deixar-me ao fundo de Margaret Street.
Posso levá-la até à igreja, não se preocupe foi a resposta que obteve.
Cinco minutos mais tarde, o homem cumpria a promessa.
Vou só buscar alguém que se encontra no interior da igreja. Pode esperar um momento, por favor, ou quer que lhe pague já?
Não há problema respondeu o motorista. Eu espero.
Tally ficara horrorizada com o montante que marcava o taxímetro. Se o regresso custasse o mesmo preço, teria de ir ao banco no dia seguinte.
Atravessou o pequeno pátio, pouco convidativo, e empurrou a porta. Fora àquela igreja pela primeira vez no ano anterior, quando Jennifer lhe oferecera um cheque-livro pelo Natal e ela havia comprado As Mil Melhores Igrejas de Inglaterra, da autoria de Simon Jenkins. Decidira então visitar todas as igrejas de Londres que vinham mencionadas no livro, mas, por causa da distância a que vivia, esse projecto levara algum tempo a concretizar-se; no entanto, a busca abrira-lhe os olhos para uma nova perspectiva da vida londrina, bem como para uma herança arquitectura e histórica que até então nunca conhecera.
Mesmo sob o efeito daquela ansiedade concentrada, com o taxímetro a contar inexoravelmente e a possibilidade de que Ryan não houvesse esperado por ela, o interior do templo, gloriosamente ornamentado, impôs-lhe um momento de quietude deslumbrada. Do chão até ao tecto nenhum ponto havia sido deixado sem decoração. As paredes brilhavam com mosaicos e murais, e o enorme retábulo, com a sua fileira de pinturas de santos, atraía o olhar para a magnificência do altar-mor. Aquando da primeira visita, a sua reacção a tanto artifício ornamental fora estranha, mais de espanto do que de veneração. Só numa segunda visita se sentira como se estivesse em casa. Costumava ver a igreja durante a celebração da missa solene, com os padres envergando os seus paramentos, a mover-se cerimoniosamente em frente do altar-mor, e os cânticos do coro a elevar-se para o céu, de mistura com as volutas acres do incenso. Naquele momento, quando a porta se fechou, rangendo, atrás de si, o ambiente tranquilo e silencioso e as filas de bancos vazios impuseram-se-lhe como um mistério mais subtil. Algures, devia haver um guarda, pensou Tally, mas não vislumbrou nenhum. Duas freiras estavam sentadas na fila da frente perante a imagem da Virgem e algumas velas ardiam ininterruptamente, sem sequer bruxulear quando ela fechou a porta.
Viu Ryan quase de imediato. Estava sentado numa das filas de trás e, mal a descortinou, levantou-se e foi ao seu encontro. O coração de Tally palpitou de alívio.
Tenho um táxi à espera. Vamos directos para casa.
Mas tenho fome, Mistress Tally, e sinto-me prestes a desmaiar. Não podemos ir comer um hambúrguer?
O tom de voz do rapaz tornara-se infantil, fazendo lembrar o queixume de um garoto.
Deus do céu, aqueles repugnantes hambúrgueres!, pensou Tally. De vez em quando, ele levava alguns para o almoço e aquecia-os no forno. O forte cheiro a cebola levava tempo a desvanecer-se. No entanto, Ryan parecia efectivamente debilitado e a omeleta que Tally pensava preparar para ele provavelmente não era a comida de que necessitava.
A perspectiva de uma refeição rápida reanimou Ryan de imediato. Ao abrir a porta do táxi para que ela entrasse, disse ao motorista com petulante determinação:
Para a casa de hambúrgueres mais próxima, camarada, e depressa!
Passados alguns minutos, chegaram ao lugar pretendido e Tally pagou a corrida, dando ao motorista uma libra de gorjeta. No interior do restaurante, entregou a Ryan uma nota de cinco libras para que ele ocupasse o seu lugar na fila e comprasse o que quisesse, além de um café para ela. Ryan regressou com um hambúrguer duplo com queijo e um grande batido de leite, para, depois, ir buscar o café. Instalaram-se numa mesa, tão longe da janela quanto possível. O rapaz pegou no hambúrguer e começou a comê-lo vorazmente, com grandes dentadas.
Sentiste-te bem na igreja? Gostaste? perguntou Tally.
Não foi mau de todo respondeu Ryan com um encolher de ombros. A igreja é um bocado esquisita. Tem uns paus aromáticos iguais aos que havia na casa ocupada em que fiquei.
Referes-te ao incenso?
Uma das raparigas da casa, a Mamie, costumava acender esses paus. Ficávamos sentados no escuro e ela comunicava com os mortos.
Não pode ser, Ryan. Não podemos falar com os mortos.
Bom, ela podia. Falou com o meu pai. Disse-me coisas que não poderia saber se não tivesse falado com o meu pai.
Mas ela vivia contigo na tal casa, Ryan. Deve ter sabido coisas a teu respeito e a respeito da tua família. E, quanto ao resto que te contou, talvez tenha adivinhado por mero acaso.
Não insistiu o rapaz. Ela falou com o meu pai. Posso ir comprar outro batido de leite?
Não tiveram problemas em chamar um táxi para a viagem de regresso. Só então Ryan fez perguntas a propósito do assassínio. Tally narrou-lhe os factos tão resumidamente quanto pôde, não insistindo no horror da descoberta do corpo e não entrando em pormenores.
Há uma equipa da Scotland Yard a proceder às investigações referiu, composta pelo comandante Dalgliesh e três assistentes. Querem falar contigo, Ryan. Como é óbvio, deves responder honestamente às perguntas que fizerem. Todos nós queremos que este terrível mistério seja esclarecido.
E o major? Disse-me que ele está bem, não é assim?
Sim. A ferida na cabeça sangrou bastante mas não é grave. No entanto, podia ter sido. Por que razão perdeste as estribeiras daquela maneira, Ryan?
Ele provocou-me, não foi?
Ryan voltou a cabeça para olhar fixamente pela janela do táxi e Tally julgou ser prudente não dizer mais nada acerca do caso. Surpreendeu-a o facto de Ryan demonstrar tão pouca curiosidade acerca da morte do Dr. Neville, embora as notícias nos jornais até então houvessem sido curtas e ambíguas. Provavelmente, estava por de mais preocupado com a sua agressão ao major para dar importância ao assassínio do Dr. Neville.
Pagou a corrida e, se bem que horrorizada pelo custo total da deslocação, voltou a dar uma libra de gorjeta ao motorista, que pareceu ficar satisfeito com tal gratificação. Depois, ela e Ryan passaram por baixo da barreira e encaminharam-se para a vivenda, em silêncio.
O inspector Tarrant e o sargento Benton-Smith iam a sair do museu.
Sempre conseguiu encontrar o Ryan, Mistress Glutton comentou o inspector. Óptimo. Temos algumas perguntas para te fazer, rapaz. Eu e o sargento vamos para a esquadra e, por isso, é melhor vires connosco. Não vai ser coisa demorada.
Não podem falar com o Ryan na vivenda? interveio rapidamente Tally. Posso deixá-los a sós na sala de estar.
Como aliciante, esteve prestes a cometer a loucura de lhes oferecer café.
Ryan deixou de olhar para ela e fitou o inspector.
Vão prender-me?
Não, vamos levar-te à esquadra para termos uma conversa. Há coisas que têm de ser esclarecidas. Podes chamar-lhe auxiliar a polícia nas suas investigações.
Ryan resolveu levar a situação para a brincadeira.
Ah, sim? Sei o que isso quer dizer. Quero a presença de um advogado.
A voz do inspector de súbito tornou-se áspera.
Ouve lá, não és menor, pois não?
Tally disse para consigo que, para a polícia, lidar com delinquentes juvenis era sempre difícil e obrigava a perder muito tempo. Sem dúvida, não era uma perspectiva do agrado do inspector.
Não, tenho quase dezoito anos.
Que alívio! Claro que podes chamar um advogado, se quiseres. Temos alguns que estão sempre ao dispor. Ou, então, podes falar a um amigo.
Bom, nesse caso, vou telefonar ao major.
Aquele tipo que te perdoou? Está bem, podes telefonar-Ihe da esquadra.
Ryan partiu com os polícias sem recalcitrar, antes exibindo um certo ar fanfarrão. Tally desconfiava que o rapaz estava preparado para gozar aquele momento de notoriedade. Podia compreender a razão que levara os polícias a não quererem interrogá-lo na vivenda. Mesmo que ela os deixasse a sós, estaria demasiado perto para que eles pudessem fazer o seu trabalho à vontade. Além do mais, ela também estava envolvida naquele enigma, possivelmente até como suspeita. O que eles queriam era falar com Ryan em total privacidade. Com um aperto no coração, não teve dúvidas de que iam conseguir extrair dele tudo quanto pretendiam.
Kate não ficou surpreendida por Dalgliesh ir com ela interrogar David Wilkins. Afinal, era necessário, uma vez que só AD podia identificá-lo. Wilkins estivera no museu na semana anterior ao assassínio de Dupayne e admitira ter razões de queixa contra a instituição. Embora fosse um suspeito pouco provável, tinha de ser interrogado e nunca ninguém sabia em que parte de uma investigação AD podia decidir intervir em pessoa. Ou não fosse ele sobretudo um poeta, literariamente interessado em conhecer a tessitura das vidas dos outros. A poesia do chefe era um mistério para ela. O homem que escrevera Um Caso para Responder e Outros Poemas não tinha qualquer ponto de contacto com o detective graduado, sob cujas ordens cumpria o seu serviço com apaixonado empenho. Podia reconhecer alguns dos seus estados de espírito, receava as suas ocasionais críticas, ainda que sempre brandas, e sentia-se feliz por saber que ele a considerava um membro valioso da sua equipa... mas não o conhecia. Há muito aprendera a disciplinar, primeiro, e, por fim, a pôr de parte qualquer esperança de obter o seu amor. Suspeitava de que, agora, outra mulher conseguira esse feito. Ela, Kate, sempre acreditara que devia limitar as suas ambições ao que lhe era acessível. Disse para consigo própria que, se AD fosse afortunado no amor, se mostraria contente por ele, mas, mesmo assim, admirava-se e sentia-se até perturbada pelo intenso ressentimento que experimentava em relação a Emma Lavenham. Aquela mulher não era capaz de se dar conta do que estava a fazer a AD?
Caminharam, em silêncio, durante os últimos oitenta metros, debaixo duma chuva fina. Goldthorpe Road era constituída por uma fileira de casas com paredes de estuque, dos finais da época vitoriana, que se prolongava para lá do extremo norte de Ladbroke Grove. Não restavam dúvidas de que aqueles sólidos monumentos às aspirações domésticas do século xix um dia seriam adquiridos, remodelados e convertidos em blocos de apartamentos caros e fora do alcance de dois profissionais assalariados, salvo se tivessem boas perspectivas de futuro. Por enquanto, porém, décadas e décadas de negligência haviam mergulhado todas aquelas casas em total decrepitude. Nas paredes gretadas haviam-se acumulado anos da poluição e do lixo de Londres, o estuque dos pórticos caíra aos pedaços, deixando à vista os tijolos por baixo, e a pintura das portas de entrada estalara e estava a escamar-se. Não era necessário atentar nos numerosos botões de campainha para compreender que naquela rua morava muita gente, mas, apesar disso, apresentava um ambiente estranhamente silencioso e calmo, quase sinistro, como se os habitantes, conscientes de uma qualquer contaminação iminente, se tivessem escapulido a coberto da noite.
O apartamento de Wilkins, no número quinze A, ficava na cave. Cortinas frágeis, descaídas a meio, tapavam a única janela. O trinco estava partido e o portão de ferro só se achava fechado graças a um cabide de arame que alguém torcera para fazer uma espécie de laço. Dalgliesh levantou-o, e ele e Kate desceram os degraus de pedra que conduziam à cave. Alguém se esforçara para a manter limpa, mas, mesmo assim, havia um húmido amontoado de lixo que fora impelido pelo vento para um canto e de que sobressaíam maços de cigarros, folhas de jornais, sacos castanhos amarfanhados e um lenço com aspecto repugnante. A porta ficava à esquerda, numa zona em que o pavimento se arqueava e tornava a entrada invisível da rua. O número quinze A achava-se toscamente pintado a branco na parede, e Kate pôde verificar que havia duas fechaduras: uma Yale e por baixo outra, de segurança. Ao lado da porta fora colocado um vaso de plástico verde, com um gerânio. A haste da planta apresentava-se lenhosa, as poucas folhas secas e acastanhadas e a única flor cor-de-rosa, de caule frágil, era tão pequena como um malmequer. Kate perguntou a si própria como pudera alguém esperar que a planta florisse sem apanhar sol.
A sua chegada não passara despercebida. Olhando para a direita, Kate viu uma das pontas da cortina ondular. Premiu o botão da campainha e esperaram. Desviando os olhos para Dalgliesh, Kate reparou que ele observava o gradeamento metálico, acima das sua cabeças, com rosto inexpressivo. O candeeiro da rua, brilhando por entre a chuva fina, deixava ver o contorno marcado do seu queixo e algumas zonas do rosto. Oh, meu Deus... Parece mortalmente cansado, pensou.
Não obtendo resposta, voltou a tocar passado um minuto. Desta vez, a porta foi aberta com toda a cautela. Por cima da corrente de segurança, um par de olhos amedrontados fixaram-se nos dela.
Mister David Wilkins está em casa? perguntou Kate. Somos da polícia e queremos falar com ele.
Tentara não se mostrar ameaçadora, embora se desse conta de que esse esforço era inútil. Uma visita da polícia raramente traz uma boa notícia e, naquela rua, seria provavelmente presságio de catástrofe.
A corrente mantinha-se no seu lugar. A voz de uma rapariga fez-se ouvir:
É por causa da renda? O Davie está a tratar disso. Não se encontra aqui neste momento. Foi à farmácia para ir buscar os seus medicamentos.
Não tem nada a ver com a renda explicou Kate. Estamos a investigar um caso e pensamos que Mister Wilkins pode prestar-nos algumas informações úteis.
Aquelas palavras não eram muito mais tranquilizadoras. Toda a gente sabia o que significava ajudar a polícia numa investigação. A frincha da porta alargou-se até ao limite permitido pela corrente.
Dalgliesh voltou-se e perguntou:
Estou a falar com Mistress Michelle Wilkins? A rapariga acenou afirmativamente e ele acrescentou: Não vamos fazer perder muito tempo ao seu marido. Nem sequer 301
sabemos se ele pode ajudar-nos, mas o nosso dever é tentar obter o seu auxílio. Se ele não vai demorar-se, talvez pudéssemos esperar.
Claro que podiam esperar, pensou Kate. Podiam esperar, dentro ou fora de casa, mas porquê toda aquela hesitação?
Foi então que a rapariga retirou a corrente. Puderam ver uma jovem magra e que parecia ter pouco mais do que dezasseis anos. O cabelo castanho-claro caía-lhe, em madeixas, de cada lado dum rosto fino e os seus olhos ansiosos fixaram-se por um instante em Kate, com uma expressão de súplica. Estava vestida com as ubíquas calças de ganga, sapatos de ténis sujos e uma camisola de homem. Em silêncio, seguiram atrás dela, através de um corredor estreito, comprimindo-se para não derrubar um carrinho de bebé desdobrável. À sua frente, a porta da casa de banho estava aberta, deixando à vista uma sanita antiquada com um autoclismo alto do qual pendia uma corrente. Junto à base do lavatório, empilhado contra a parede, encontrava-se um monte de toalhas e de roupa de cama.
Michelle Wilkins colocou-se de lado e indicou-lhes uma porta à direita. A sala estreita corria a toda a largura da casa. Na parede traseira abriam-se duas portas, ambas escancaradas. Uma delas dava acesso a uma cozinha atravancada e a outra ao que, manifestamente, era o quarto de dormir. Neste, uma cama de bebé gradeada e um divã duplo ocupavam quase todo o espaço por baixo da única janela. A cama estava por fazer, as almofadas amarfanhadas e o edredão, puxado para trás, deixava a descoberto lençóis amarrotados.
A sala achava-se mobilada apenas com uma mesa quadrada e quatro cadeiras de madeira, um sofá muito velho, coberto por uma manta de algodão indiano, uma cómoda de pinho e um grande televisor ao lado do aquecedor a gás. Durante os anos em que prestara serviço na Polícia Metropolitana, Kate entrara em salas mais imundas e deprimentes. Raramente a impressionavam, mas, naquele momento, experimentou, o que era raro nela, uma sensação de desconforto, se não mesmo de embaraço. Como se sentiria se a polícia irrompesse pelo seu apartamento, sem avisar ou sem haver pedido e obtido permissão prévia? Estaria imaculado. Porque não havia de estar?
Não havia mais ninguém além dela própria para o pôr em desalinho. Mesmo assim, a intromissão ser-lhe-ia insuportável. Ela e Dalgliesh precisavam de estar naquela casa, mas a sua presença continuava a ser uma intrusão.
Michelle Wilkins fechou a porta do quarto e depois fez um gesto que podia ser tomado como convite para que se sentassem no sofá, Dalgliesh sentou-se mas Kate dirigiu-se à mesa. No centro desta encontrava-se um berço portátil, dentro do qual estava deitado um bebé rechonchudo de faces rosadas. Kate supôs que era uma menina, por causa do vestido curto, com folhos, de algodão cor-de-rosa, do babeiro bordado com malmequeres e do casaquinho de malha branco. Em contraste com o resto da sala, tudo o que dizia respeito ao bebé achava-se limpo. A sua cabeça, com uma penugem de um branco leitoso, repousava sobre uma almofada limpa; o pequeno cobertor, afastado para um dos lados, não apresentava qualquer nódoa e o vestido parecia ter sido recentemente passado a ferro. Afigurava-se quase impossível que aquela rapariga tão frágil tivesse dado à luz uma bebé tão alegremente robusta, que não parava de agitar as suas fortes pernas, separadas pela fralda, como se estivesse a dar vigorosos pontapés. Logo a seguir, a criança aquietou-se, ergueu as mãos, que mais pareciam estrelas-do-mar, e concentrou-se nos movimentos dos dedos como se, de súbito, se desse conta de que lhe pertenciam. Depois de algumas tentativas, conseguiu inserir na boca um polegar e começou a chupá-lo.
Michelle Wilkins aproximou-se de Kate e ficaram juntas a observar a bebé.
Que idade tem? perguntou Kate.
Quatro meses. Chama-se Rebecca, mas eu e o Davie tratamo-la por Becky.
Não sei grande coisa acerca de bebés, mas parece-me bastante avançada para a idade comentou Kate.
E está. Já consegue arquear as costas e endireitar-se. Se o Davie ou eu lhe pegarmos, parece que quer pôr-se de pé.
Na mente de Kate instalou-se uma suave confusão emocional. Que deveria sentir? O amargo reconhecimento do tão apregoado e inexorável passar dos anos, cada um dos quais, além dos trinta primeiros, tornava cada vez mais improvável a possibilidade de vir alguma vez a ser mãe? Não era esse mesmo dilema que enfrentavam todas as mulheres com uma bem-sucedida carreira profissional? Então, porque se sentia assim? Seria apenas uma reticência temporária? Alguma vez chegaria o dia em que se visse dominada pela necessidade, física ou psicológica, de ter um filho, de saber que uma parte de si própria sobreviveria à sua morte, um anseio que se tornasse de tal maneira imperativo e dominador que a levasse a recorrer a algum humilhante expediente moderno para satisfazer esse desejo? Ficou horrorizada só de pensar em tal hipótese. Claro que não. Filha ilegítima, criada pela avó idosa, nunca conhecera a sua mãe. Não saberia por onde começar, pensou. Sentir-me-ia desesperada. Ninguém pode dar o que nunca teve. Apesar disso, que representavam as responsabilidades do seu trabalho, mesmo as que mais exigiam dela, quando comparadas com aquilo: trazer ao mundo um outro ser humano, ser responsável por ele até fazer dezoito anos, nunca poder deixar de tratar e de se preocupar com ele, enquanto fosse viva? E, no entanto, a rapariga que se achava a seu lado conseguira esse feito e sentia-se feliz por isso. Há todo um mundo de experiências que me são totalmente desconhecidas, concluiu mentalmente. De repente, com tristeza, sentiu-se diminuída.
O seu marido visitava a galeria do Museu Dupayne com regularidade, não é assim? perguntou Dalgliesh. Encontrámo-nos lá, há dez dias. Estivemos a contemplar o mesmo quadro juntos. Acompanhava-o frequentemente nessas visitas?
A rapariga inclinou-se de súbito sobre o berço e começou a ajustar o cobertor. O cabelo liso caiu para a frente, obscurecendo-lhe o rosto. Parecia não ter ouvido Dalgliesh, mas, por fim, retorquiu:
Só lá fui uma vez... há cerca de seis meses. O Davie estava desempregado nessa altura e, por isso, deixaram que ele entrasse sem pagar. A mulher que estava ao balcão, contudo, disse-me que eu tinha de pagar porque recebia um subsídio de desemprego. Eram cinco libras e não podíamos dar-nos a esse luxo. Disse ao Davie que entrasse sozinho, mas ele não quis.
Nessa altura, um homem aproximou-se do balcão e perguntou o que se passava. A mulher tratou-o por doutor Dupayne, o que me levou a supor que estivesse ligado ao museu. O certo é que lhe disse que ela devia deixar-me entrar. O que espera que esta visitante faça? perguntou ele à mulher. Que espere lá fora, à chuva, com o bebé? Depois, pediu-me que deixasse o carrinho no local onde se arrumavam os casacos, logo à entrada, e que levasse a Becky ao colo, comigo.
Não creio que isso tenha deixado muito satisfeita a mulher que estava ao balcão comentou Kate.
O rosto de Michelle iluminou-se.
Não, não deixou. Corou e lançou um olhar fulminante ao doutor Dupayne. Ficámos contentes por nos livrarmos dela e podermos ir ver os quadros.
Algum em particular? quis saber Dalgliesh.
Sim. Um que pertenceu ao avô do Davie. E por isso que o Davie gosta de ir ao museu.
Nesse momento, ouviram ranger o portão e o ruído de passos nos degraus. Michelle Wilkins esgueirou-se silenciosamente através da porta. Chegou até eles uma troca de palavras murmurada no corredor. David Wilkins apareceu e durante um momento permaneceu, irresoluto, à porta da sala, como se fosse ele o visitante. A esposa encostou-se ao rapaz e Kate pôde ver que as mãos de ambos se tocaram e depois se apertaram uma na outra.
Dalgliesh levantou-se e esclareceu:
Sou o comandante Dalgliesh e trago comigo a inspectora Miskin da Polícia Metropolitana. Lamentamos ter vindo sem os avisar previamente. Não vamos tomar-lhe muito tempo. Não seria melhor que nos sentássemos?
Ainda de mãos dadas, marido e mulher dirigiram-se para o sofá, enquanto Dalgliesh e Kate se sentaram junto da mesa. A bebé, que até então se limitara a emitir suaves ruídos, de repente começou a chorar. Michelle precipitou-se para a mesa e pegou nela. Mantendo-a encostada ao ombro, regressou ao sofá. O casal concentrou toda a sua atenção em Rebecca.
Terá fome? perguntou o pai.
Vai buscar o biberão, Davie.
Kate compreendeu que nada podia fazer-se enquanto Rebecca não fosse alimentada. O biberão chegou com extraordinária presteza. Michelle Wilkins embalou a filha que começou a sugar avidamente a tetina do biberão. Não se ouvia outro barulho além daquele vigoroso chupar. A sala, de súbito, tornara-se caseira e sossegada. Parecia ridículo iniciar qualquer conversa sobre um homicídio.
No entanto, Dalgliesh adiantou: Provavelmente já percebeu que queremos falar consigo acerca do Museu Dupayne. Deve ter sabido que o doutor Neville Dupayne foi assassinado. O jovem assentiu com a cabeça, mas nada disse. Tinha-se encostado à mulher e ambos mantinham os olhos fixos na bebé.
Andamos a falar, tanto quanto possível, com as pessoas, que ou trabalhavam no museu ou o visitavam com regularidade continuou Dalgliesh. Tenho a certeza de que compreenderá porquê. Primeiro, sou forçado a perguntar-lhe onde se encontrava e o que fez na passada sexta-feira entre, digamos, as cinco e as sete da tarde.
Michelle Wilkins ergueu o olhar.
Tinhas ido ao médico, Davie lembrou ela. Voltou-se para Dalgliesh e acrescentou: A consulta da tarde começa às cinco e um quarto e a marcação do Davie era para as seis menos um quarto. Não que seja atendido sempre a essa hora, mas ele é sempre pontual, não é verdade, Davie?
A que horas foi consultado? perguntou Kate.
Por volta das seis e vinte respondeu Davie. Não; tive que esperar muito.
O consultório é perto daqui?
É em Saint Charles Square, não muito longe daqui, na verdade.
A mulher acrescentou acorrendo em seu auxílio:
Tens o cartão das marcações, não é verdade, Davie? Mostra-lhes.
David Wilkins remexeu no bolso das calças, tirou um cartão e entregou-o a. Kate. Estava amarrotado e registava uma longa lista de marcações. Não restavam dúvidas de que o 306 rapaz tivera consulta marcada para a tarde da sexta-feira anterior. Seria uma questão de minutos apurar se, de facto, comparecera e fora atendido. Kate tomou nota dos pormenores necessários e devolveu-lhe o cartão.
O Davie sofre muito de asma e tem um coração frágil explicou Michelle. É por isso que nem sempre pode trabalhar. Às vezes, está de baixa por doença e, outras vezes, recebe subsídio de desemprego. Começou a trabalhar num novo emprego na segunda-feira passada, não é verdade, Davie? Agora que arranjámos esta casa, as coisas vão melhorar.
Fale-me do quadro pediu Dalgliesh. Disse-me que pertenceu ao seu avô. Como foi parar ao Museu Dupayne?
Kate perguntou a si mesma por que razão Dalgliesh insistia em prolongar aquele interrogatório. Já tinham o que queriam. Nunca acreditara que David Wilkins fosse um possível suspeito e Dalgliesh tão-pouco; assim sendo, porquê continuar? No entanto, longe de se sentir ofendido pela pergunta, o rapaz pareceu ansioso por falar.
Pertenceu ao meu avô. Tinha uma modesta loja em Cheddington, no Suffolk, perto de Halesworth. O negócio correu bem até à chegada dos supermercados, que provocaram a sua ruína. No entanto, antes disso, já ele comprara o quadro do Nash. Foi posto à venda numa casa local, e ele e a minha avó foram ao leilão, para licitar em relação a um par de poltronas. O meu avô gostou do quadro e comprou-o. Durante o leilão, não despertou grande interesse por parte dos assistentes, que o consideraram demasiado lúgubre. Além disso, não havia outros quadros entre os bens leiloados e não creio que os presentes soubessem o valor que tinha. O Max Dupayne sabia-o bem, mas chegou tarde de mais. Tentou persuadir o meu avô a vender-lhe o quadro, mas sem êxito. Então disse-lhe: Se alguma vez quiser vender o quadro, estou interessado nele, mas não será pelo preço que agora lhe ofereço. Não é de grande valor mas gosto dele. Só que o meu avô também gostava do quadro, até por outras razões. Sabe, o pai dele... ou seja, o meu bisavô... foi morto em Passchendaele, durante a guerra de catorze-dezoito, e creio que ele pretendia guardar o quadro como uma espécie de homenagem ao pai. Esteve pendurado na sala de estar dos meus avós até a loja falir e se mudarem para uma casa em Lowestoft. Depois, as coisas pioraram para eles ainda mais. Seja como for, o Max Dupayne deve ter mantido contacto com o meu avô, porque foi visitá-los certo dia. Perguntou pelo quadro e disse de novo que queria comprá-lo. O meu avô estava crivado de dívidas e, por isso, aceitou a proposta.
Sabe por que preço o Max Dupayne o comprou? perguntou Dalgliesh.
Disse que estava disposto a pagar ao meu avô o preço por que ele comprara o quadro, ou seja, pouco mais de trezentas libras. Claro que fora uma soma bastante avultada para o meu avô quando o adquirira, e creio que, por isso, chegou a ter uma discussão com a minha avó. No entanto, foi obrigado a desfazer-se do quadro.
O seu avô não se lembrou de recorrer a uma casa de leilões, em Londres ou na província, para avaliar o quadro? A Sotheby’s, a Christie’s ou outra do género? perguntou Kate.
Não, creio que não. Não sabia da existência de casas de leilões e Mister Dupayne, segundo ele me contou, disse-lhe que não conseguiria o mesmo preço se recorresse a essas casas, porque lhe levariam uma grande comissão e, além disso, teria o fisco à perna. Algo a ver com um imposto sobre a mais-valia.
Pois posso assegurar-lhe que não explicou Kate. De qualquer forma, não obteve qualquer mais-valia, pois não?
Sei disso, mas creio que Mister Dupayne deu a volta ao meu avô, porque ele acabou por vender-lhe o quadro. Depois da morte do meu avô, o meu pai contou-me o que se passara. Quando soube onde estava o quadro, fui vê-lo.
Tinha alguma esperança de o reaver?
Fez-se silêncio. Nos últimos minutos, David esquecera-se de que estava a falar com um elemento da polícia. Olhou então para a mulher, que mudou a posição da bebé no seu colo e aconselhou:
É melhor dizer-lhe, Davie. Fala-lhe do homem mascarado. Não fizeste nada de mal.
Dalgliesh ficou à espera. Sabia sempre, pensou Kate, quando devia fazê-lo. No minuto seguinte, o rapaz contou:
Está bem. Pensei em roubá-lo. Sabia que não conseguiria comprá-lo. Li relatos de roubos em galerias de arte, em que se referia como a tela era cortada, tirada da moldura, enrolada e levada para o exterior. Não tinha intenção de fazer tal coisa, mas gostava de pensar nessa possibilidade. Sabia que haveria qualquer espécie de alarme na porta, mas julgava possível entrar pela janela e deitar a mão ao quadro antes que aparecesse alguém. Calculei que a polícia nunca levaria menos de dez minutos a chegar ao local e não havia ninguém suficientemente perto do museu para ouvir o alarme. Era uma ideia estúpida, sei-o bem, mas entretinha-me a remoer no modo como poderia levá-la a cabo.
Mas não o fizeste, Davie. Apenas pensaste nessa hipótese. Tu próprio disseste que não tinhas intenção de pôr em prática a ideia que te ocorreu. Não podem prender-te por pensar numa coisa que não chegaste a fazer. E o que diz a lei.
Bom, não exactamente, pensou Kate, mas Wilkins afinal não se envolvera em nenhuma conspiração para provocar um atentado com explosivos.
Seja como for, tentou ou não roubar o quadro? inquiriu Dalgliesh.
Certa noite dirigi-me lá, pensando que podia roubá-lo, mas foi então que chegou alguém. Isso passou-se no dia catorze de Fevereiro. Fui na minha bicicleta e escondi-a entre os arbustos, junto do caminho que conduz ao museu. Tinha levado comigo um grande saco de plástico, daqueles que servem para o lixo, com a intenção de o enrolar à volta da tela. Não sei se teria chegado a tentar cometer o roubo. Quando lá cheguei, apercebi-me de que não dispunha de nada suficientemente forte para partir a janela do piso térreo e que essa janela estava a maior distância do solo do que eu julgara. Na verdade, não planeei devidamente o roubo. Foi então que ouvi um carro que se aproximava. Escondi-me entre os arbustos e espreitei. Era um automóvel potente e o condutor estacionou-o no parque que fica por trás dos loureiros. Vi-o apear-se e, nesse momento, fugi do meu esconderijo a correr. Estava assustado. 309 Deixara a bicicleta à entrada do caminho de acesso ao museu e, correndo por entre os arbustos, alcancei o local onde se encontrava a bicicleta. Sei que o homem não me viu.
Mas você viu-o a ele comentou Kate.
Não de forma a que pudesse reconhecê-lo, se voltasse a encontrar-me com ele. Não lhe vi o rosto. Quando saiu do carro, usava uma máscara.
Que espécie de máscara? quis saber Dalgliesh.
Não era do género daquelas que se vêem na televisão em programas sobre crimes. Não tinha nenhuma meia enfiada na cabeça. A máscara cobria-lhe apenas os olhos e o cabelo, mais ao jeito daquelas que aparecem em fotografias de foliões durante o Carnaval.
Quer dizer, então, que voltou para casa na sua bicicleta e desistiu da ideia de roubar o quadro? perguntou Dalgliesh.
Não creio que alguma vez tivesse a intenção de a pôr realmente em prática. Na altura, julguei que era esse o meu propósito, mas agora vejo que tudo aquilo não passava de fruto da minha imaginação. Se houvesse formulado um plano a sério, teria tomado mais precauções.
Mesmo que conseguisse roubar o quadro, nunca conseguiria vendê-lo adiantou Kate. Talvez não fosse considerado valioso na altura em que o seu avô o comprou, mas actualmente é uma obra de grande valor.
Não pretendia vendê-lo. Tencionava pendurá-lo numa parede desta casa. Talvez até nesta sala. Só queria apoderar-me dele porque o meu avô se lhe havia afeiçoado e, também, porque o levara a recordar-se do meu bisavô. Só pretendia tê-lo na minha posse por causa do passado.
De súbito, o rosto pálido do rapaz contorceu-se e Kate pôde ver duas lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Ergueu o punho e enxugou-as, como se fosse uma criança. Num gesto de consolo, a mulher entregou-lhe a bebé. David pegou-lhe ao colo e passou os lábios pelo cabelo de Rebecca.
Você não fez nada de censurável e ficamos-lhe muito gratos pela ajuda que nos prestou afirmou Dalgliesh. Talvez nos voltemos a encontrar, quando for ao museu para ver o quadro, novamente. Muita gente gosta dele. Eu sei que gosto. Se o seu avô não o tivesse comprado, não estaria agora no Museu Dupayne, e talvez ninguém tivesse possibilidade de o admirar.
Como se também ela se houvesse esquecido de que estava perante dois polícias, considerando-os antes como visitas, Michelle Wilkins perguntou:
Querem tomar chá? Peço desculpa por não me ter lembrado há mais tempo de vos oferecer. Ou também tenho Nescafe.
E muito amável da sua parte retorquiu Dalgliesh, mas julgo que é melhor não ficarmos mais tempo. Agradeço-lhe de novo, Mister Wilkins, pela sua colaboração. Se lhe ocorrer mais alguma coisa, pode contactar-nos na Scotland Yard. O número está neste cartão.
Foi Michelle Wilkins que os acompanhou até à porta.
Ele não está metido em apuros, pois não? perguntou ela. Não fez nada de mal. Na verdade, ele nunca roubaria fosse o que fosse.
Não respondeu Dalgliesh. O seu marido não está metido em apuros. Não fez nada de mal.
Dalgliesh e Kate entraram no automóvel e apertaram os cintos de segurança. Nenhum deles falou. Kate sentia um misto de depressão e de raiva. Pensou: Deus do céu, que casa tão miserável! Não passam de duas crianças grandes à mercê de qualquer um que considere valer a pena explorá-los. A bebé, no entanto, tem bom aspecto. Pergunto a mim própria quanto tiveram de pagar por aquele casebre e, no entanto, o facto de o terem não vai jogar a seu favor na lista de espera das autoridades locais que se ocupam do alojamento das famílias carenciadas. Já terão chegado à idade da reforma quando reunirem os requisitos necessários. Teriam feito melhor se optassem por dormir na rua, porque, desse modo, o seu caso seria considerado prioritário. O que não significa que fossem instalados numa casa decente. O mais provável seria que os enfiassem num albergue com direito a cama e a pequeno-almoço. Não há dúvida de que a Inglaterra é um país terrível para os pobres. Isto, se forem honestos, porque os parasitas e os espertalhaços safam-se sempre. Se alguém pretende apenas ser independente, bem pode esperar por auxílio: nunca o obterá.
Não foi muito proveitoso, pois não? disse ela em voz alta. O Wilkins viu o homem mascarado em Fevereiro, ou seja, oito meses antes da morte do Dupayne. Para mim, nem o Wilkins nem a mulher podem ser considerados como suspeitos a ter em conta. Ele podia ter razões de queixa contra a família, mas por que razão iria escolher o Neville para se vingar?
Verificaremos o álibi do rapaz, mas, segundo penso, chegaremos à conclusão de que na tarde de sexta-feira passada estava onde disse, ou seja, no consultório do médico. O David Wilkins limita-se a tentar comunicar.
Comunicar?
Sim, com o pai e o avô, com o passado, com a vida. Kate ficou em silêncio. Dois minutos mais tarde, Dalgliesh pediu:
Por favor, telefone para o museu, Kate, e veja se está lá alguém. Será interessante verificar o que os Dupayne têm a dizer acerca do visitante mascarado.
Foi Muriel Godby que respondeu. Pediu que Kate esperasse um pouco e voltou a falar segundos mais tarde. Tanto Caroline Dupayne como Mr. Calder-Hale encontravam-se no museu. Miss Caroline preparava-se para sair mas esperaria até o comandante Dalgliesh chegar. Foram encontrar Caroline Dupayne na recepção a examinar uma carta com Miss Godby e, de imediato, conduziu-os ao gabinete. Dalgliesh achou interessante o facto de ela se encontrar no museu numa segunda-feira, e perguntou a si próprio por quanto tempo Caroline Dupayne podia ausentar-se da escola. Provavelmente, a família havia pensado que, se os polícias iam infestar o museu, convinha que um Dupayne ali estivesse para ficar de olho neles. Se assim fora, compreendia tal procedimento. Em momentos de perigo, nada seria menos prudente do que manter-se distanciado do local de acção.
Um jovem que veio ao museu na noite de catorze de Fevereiro começou viu um homem chegar de carro. Trazia uma máscara no rosto. Tem alguma ideia de quem possa ser?
Nenhuma. Caroline reagiu à pergunta com o que, segundo Dalgliesh, era a cuidadosa demonstração de que não via qualquer interesse no caso e, logo a seguir, acrescentou: Que pergunta tão estranha, comandante. Desculpe... Quer saber se esse homem teria vindo visitar-me. Afinal, era catorze de Fevereiro, dia de São Valentim. Não, sou demasiado velha para esse tipo de brincadeiras. Para dizer a verdade, já era demasiado velha para isso quando tinha vinte e um anos. No entanto, talvez fosse alguém que se dirigia a uma festa. E um problema que ocasionalmente temos de enfrentar. Arranjar um lugar para estacionar o carro em Hampstead é praticamente impossível e, por isso, aqueles que conhecem este local sentem-se tentados a vir até cá, para aqui deixarem os automóveis. Felizmente, parece que essa prática agora é mais rara, embora não possamos ter a certeza. Este local, na verdade, não é muito conveniente, e percorrer a pé Spaniards Road constitui um trajecto bastante lúgubre de noite. A Tally está sempre aqui, claro, mas eu disse-lhe que, se ela ouvir ruídos depois do anoitecer, não deve sair da vivenda. Se porventura se sentir preocupada, pode telefonar-me. O museu é uma casa isolada e vivemos num mundo cheio de perigos, como o senhor sabe melhor do que eu.
Nunca pensaram em mandar instalar um portão? perguntou Dalgliesh.
Pensámos em fazê-lo, mas não seria prático. Além disso, quem ficaria de guarda ao portão? O acesso ao museu tem de ser franqueado o mais possível. Fez uma pausa e depois acrescentou: Não vejo o que tudo isso possa ter a ver com o assassínio do meu irmão.
Nem nós, por enquanto. Só demonstra, uma vez mais, como é fácil a qualquer pessoa entrar aqui sem ser vista.
Mas isso já nós sabíamos. Foi o que fez o assassino do Neville. Estou mais interessada no jovem que viu o misterioso mascarado. Que andava ele a fazer aqui, estacionando no recinto do museu sem autorização?
Não, não veio de automóvel. Só agiu assim por mera curiosidade. Não provocou qualquer dano nem tentou entrar no edifício.
E o visitante mascarado?
Presumivelmente, estacionou o carro e foi-se embora. O jovem assustou-se e não ficou à espera de ver o que ele fez.
Sim, devia ter-se sentido assim... Quero dizer: assustado. Este lugar é tenebroso de noite e já foi palco de outro assassínio. Sabia disso?
Não, nunca ouvi falar em tal coisa. Um assassínio Foi em mil oitocentos e noventa e sete, dois anos depois de a casa ter sido construída. Uma criada, Ivy Grimshaw, foi encontrada apunhalada e morta na orla do Heath. Estava grávida. As suspeitas recaíram sobre o dono da casa e os seus dois filhos, mas não se descobriram provas que ligassem qualquer um deles ao crime. Como não podia deixar de ser, tratava-se de homens prósperos que exerciam altos cargos na região e eram muito respeitados. Talvez mais importante ainda, eram donos de uma fábrica de botões de que as gentes locais dependiam para a sua subsistência. A polícia entendeu por conveniente acreditar que a tal Ivy, às escondidas, fora encontrar-se com o amante e que este, com um golpe de navalha, se livrara dela e ao mesmo tempo do inoportuno filho que trazia no ventre.
Encontraram-se provas da existência de algum amante fora da casa em que ela trabalhava?
Não foi apresentada qualquer prova nesse sentido. A cozinheira contou à polícia que a Ivy lhe confidenciara que não tinha intenção alguma de que a mandassem embora e, também, que podia complicar a vida dos patrões, mas acabou por retractar-se. Foi trabalhar para outra casa, algures na costa sul, depois de haver recebido, segundo creio, um substancial presente de despedida do seu agradecido patrão. Ao que parece, foi aceite a história de um amante alheio à casa e o processo foi arquivado. Foi pena que tudo isso não houvesse ocorrido nos anos trinta, porque poderíamos ter incluído o caso na Sala do Crime.
Só que, pensou Dalgliesh, mesmo nos anos 30, as coisas não poderiam ter sucedido exactamente assim. O assassínio brutal de uma jovem, imoral e sem amigos, tinha ficado impune e os membros da respeitável população local haviam conservado os seus empregos. A tese de Ackroyd talvez fosse simplista e a sua escolha de exemplos se revelasse convenientemente selectiva, mas baseava-se numa verdade: frequentemente, o homicídio é um paradigma da sua época.
No gabinete do andar de cima, deixando com visível relutância a sua escrita, Calder-Hale exclamou:
No dia catorze de Fevereiro? Provavelmente, era algum convidado para uma festa do dia de São Valentim. No entanto, é estranho que estivesse sozinho. Em regra, os convidados vão a essas festas acompanhados pelo respectivo par.
Mais estranho ainda é que já tivesse posto a máscara aqui comentou Dalgliesh. Porque não esperou até chegar à festa?
Bom, não foi dada no museu, a menos que a Caroline tivesse organizado alguma.
Ela afirma que não.
Não, não seria o género dela. Penso que o tal homem se serviu ilicitamente deste local para estacionar o carro. Há cerca de dois meses, eu próprio tive de mandar embora um carro cheio de jovens foliões. Tentei amedrontá-los com a fútil ameaça de que ia chamar a polícia. De qualquer forma, eles partiram sem grandes protestos, chegando mesmo a pedir desculpa pelo sucedido. O mais provável é que não quisessem deixar o seu Mercedes ao meu alcance. Por fim, perguntou: E no que toca ao jovem? Que razão deu para andar por aqui?
Limitava-se a explorar o local. Partiu um tanto à pressa, quando chegou o mascarado. É perfeitamente inofensivo.
Veio de carro?
Não.
É estranho comentou Calder-Hale, antes de regressar à sua papelada. O vosso visitante mascarado, se é que existe, não tem nada a ver comigo. Posso dedicar-me a certo tipo de brincadeiras, mas as máscaras, em regra, são demasiado histriónicas.
Era óbvio que a entrevista chegara ao fim. Ao voltar-se para sair, Dalgliesh pensou: Não anda longe de uma admissão das suas actividades secretas, mas porque não o faz? Já lhe devem ter dito que estou ao corrente dos serviços que presta. Estamos a jogar o mesmo jogo e, espero-o, do mesmo lado. O que ele anda a fazer, por muito trivial que seja e embora me pareça coisa de amador, faz parte de um plano bastante mais vasto. É importante e ele tem de ser protegido... protegido contra tudo, excepto contra uma acusação de homicídio.
Iria falar ainda com Marcus Dupayne, mas esperava dele a mesma explicação: alguém que conhecia aquele local e pretendera servir-se dele para estacionar o carro sem pagar durante algumas horas. Era uma hipótese assaz razoável, mas havia um pormenor que continuava a intrigá-lo: confrontados com dois visitantes misteriosos, tanto Caroline Dupayne como James Calder-Hale haviam-se mostrado mais preocupados com o misterioso jovem do que com o condutor mascarado. E perguntou a si próprio porquê.
Calder-Hale continuava no rol dos suspeitos. Poucas horas antes, naquela mesma tarde, Benton-Smith havia cronometrado o trajecto em mota de Marylebone ao museu. A segunda viagem fora a mais rápida, tirando quatro minutos à duração da primeira.
Tive sorte com os semáforos dissera o sargento. Se o Calder-Hale conseguiu igualar o meu melhor tempo, ficaria com três minutos e meio para preparar o homicídio. Pode tê-lo cometido, mas só com tanta ou mais sorte do que eu. Ora, ninguém vai fazer depender o êxito de um plano de assassínio da sorte com o trânsito durante o trajecto.
No entanto comentara Piers, pode ter pensado que valia a pena tentar a experiência. A consulta do dentista dava-lhe um álibi que não era de desprezar. Não podia ficar à espera indefinidamente, se o seu propósito fosse o de manter o museu em funcionamento. O que não consigo entender é por que razão havia de preocupar-se com tal assunto. Quero dizer: que lhe importava se o museu fosse ou não encerrado? É certo que dispõe de um gabinete confortável, mas, se quiser continuar a trabalhar em privado, há outros gabinetes em Londres.
Mas não gabinetes, pensou Dalgliesh, que oferecessem uma localização tão conveniente para as actividades secretas que Calder-Hale exercia para o MI5.
Quando Kate telefonou para marcar a entrevista, informou que Mrs. Strickland pedira para falar com o comandante Dalgliesh a sós. O pedido era estranho o encontro de ambos na biblioteca do museu, por ocasião da primeira visita de Dalgliesh, não estabelecera qualquer relacionamento particular entre eles, mas apressou-se a concordar. Até ao momento, Mrs. Strickland não podia considerar-se incluída no rol dos suspeitos mais importantes e, a menos que isso viesse a suceder, seria insensato arriscar-se a perder qualquer informação útil que lhe pudesse fornecer por insistir em manter o protocolo policial.
A morada, fornecida por Caroline Dupayne, conduziu-o até Barbican e correspondia a um apartamento num sétimo andar. Não era a morada que Dalgliesh esperava. Aquele impressionante bloco de cimento, com a sua profusão de janelas muito juntas umas das outras e de carreiros parecia mais apropriado para os jovens financeiros da City do que para albergar uma viúva idosa. No entanto, quando Mrs. Strickland lhe abriu a porta e o conduziu à sala de estar, pôde compreender a razão que a levara a escolher aquele local. Dava para um vasto pátio e, mais ao longe, avistava-se o lago e a igreja. Lá em baixo, passavam minúsculos casais e pequenos grupos, encaminhando-se para as cerimónias vespertinas no que parecia um estampado em que as cores mudassem constante e deliberadamente. O ruído da cidade, sempre menos intenso no fim de um dia de trabalho, era um zumbido rítmico mais relaxante do que perturbador. Mrs. Strickland habitava um pacífico ninho, em plena City, e o panorama de que desfrutava, com o céu em mutação e a constante actividade humana, levava-a a sentir que fazia parte da vida da City, embora muito acima da sua frenética actividade de compras e vendas. Apesar disso, era uma mulher realista e a Dalgliesh não passaram despercebidas as duas fechaduras de segurança na porta de entrada.
O interior do apartamento era igualmente surpreendente. Ao vê-lo, Dalgliesh teria julgado que o proprietário era uma pessoa próspera mas jovem, ainda alheia ao peso de anos mortos, aos haveres de família, às recordações sentimentais, aos objectos que, através de longas associações, ligavam o passado ao presente e criavam uma ilusão de permanência. Se um senhorio quisesse mobilar e decorar um apartamento para satisfazer um inquilino exigente, disposto a pagar renda elevada, a casa não seria diferente. A sala de estar achava-se mobilada com peças modernas e bem concebidas de madeira clara. À direita da janela, que ocupava quase toda a largura da parede, via-se a secretária de Mrs. Strickland com um candeeiro articulado e uma cadeira giratória. Era manifesto que, ocasionalmente, levava trabalho para casa. Havia uma mesa redonda em frente da janela, flanqueada por duas poltronas de couro cinzento. O único quadro visível era uma espécie de baixo-relevo abstracto, pintado a óleo, talvez por Ben Nicholson, segundo supôs Dalgliesh. Podia ter sido comprado para não revelar nada acerca da sua proprietária, excepto que tinha meios para o comprar. Dalgliesh achou curioso que uma mulher tão determinada a expurgar o passado tivesse escolhido trabalhar num museu. A única peça de mobiliário que atenuava o anonimato prático do apartamento era a estante, feita por medida, que ia do chão até ao tecto ao longo da parede da direita. Estava repleta de volumes encadernados em pele, tão apertados uns contra os outros que mais pareciam colados entre si. Ela considerara-os merecedores de serem preservados. Era óbvio que se tratava de uma biblioteca particular; Dalgliesh perguntou a si próprio a quem pertencia.
Mrs. Strickland indicou-lhe uma das poltronas.
- Habitualmente, bebo um copo de vinho a esta hora. Se quiser acompanhar-me, terei muito gosto. Prefere tinto ou branco? Também tenho clarete e nesting.
Dalgliesh aceitou um copo de clarete. A mulher, com ar um tanto rígido, saiu da sala para regressar, minutos depois, abrindo a porta com os ombros. O comandante levantou-se de imediato para ajudá-la; tomou-lhe das mãos o tabuleiro em que havia uma garrafa, um saca-rolhas e dois copos, e colocou-o sobre a mesa. Sentaram-se em frente um do outro e ela consentiu que fosse ele a extrair a rolha da garrafa e a encher os copos, ficando a vê-lo, pensou ele, com indulgente satisfação. Mesmo considerando a mudança da opinião pública sôbre o momento em que os últimos anos da meia-idade resvalam inexoravelmente para a velhice, Mrs. Strickland era, de facto, uma mulher velha, talvez de oitenta e cinco anos, calculou Dalgliesh. Atendendo à sua história, dificilmente podia ser mais nova. Na juventude, pensou, devia ter sido uma daquelas admiradas beldades tipicamente inglesas, louras e de olhos azuis, por vezes tão enganadoras. Dalgliesh vira bastantes fotografias e documentários sobre as mulheres durante a guerra, em uniformes ou com trajos civis, para saber que aquela delicadeza feminina podia estar associada a uma forte determinação e, ocasionalmente, até a uma certa crueldade. A sua beleza de outrora fora vulnerável, acusando particularmente a dilapidação causada pelo passar dos anos. Agora, a pele esponjosa achava-se coberta por um emaranhado de rugas finas e os lábios pareciam desprovidos de sangue. No entanto, havia ainda vestígios de dourado no cabelo fino e grisalho, penteado para trás e enrolado numa trança, na nuca; se bem que a cor da íris se houvesse desvanecido até um pálido azul, os olhos de Mrs. Strickland eram ainda grandes, por baixo das sobrancelhas delicadamente curvadas, e encontraram os de Dalgliesh com uma expressão inquisidora e alerta. Quando estendeu as mãos para pegar no copo de vinho, ele pôde verificar que estavam deformadas pela artrite; vendo os seus dedos à volta do copo, Dalgliesh perguntou a si próprio como conseguia ela produzir uma caligrafia tão magnífica.
Como se adivinhasse os seus pensamentos, Mrs. Strickland olhou para os dedos e declarou:
Ainda consigo escrever, mas não sei por quanto tempo mais poderei continuar a ser útil. É estranho; os meus dedos tremem, de vez em quando, mas nunca quando estou a fazer trabalhos de caligrafia. Não tirei nenhum curso; trata-se apenas de algo que sempre gostei de fazer.
O vinho era excelente e servido à temperatura certa.
Como começou a colaborar no Museu Dupayne? quis saber Dalgliesh.
Através do meu marido. Era professor de História na Universidade de Londres e conhecia o Max Dupayne. Depois da morte do Christopher, o Max perguntou-me se podia ajudá-lo a escrever as etiquetas. Quando a Caroline Dupayne passou a dirigir o museu, continuei a efectuar o mesmo trabalho. O James Calder-Hale encarregou-se dos voluntários e reduziu consideravelmente o seu número, de uma forma que muitos consideraram bastante impiedosa. Disse que havia gente a mais a correr pelo museu como coelhos. Na sua maioria, eram pessoas solitárias. Para ficar, era preciso que a tarefa de cada um fosse considerada necessária e proveitosa. A verdade é que agora seriam bem-vindos mais alguns voluntários, mas Mister Calder-Hale parece relutante em recrutá-los. A Muriel Godby agradeceria que alguém a ajudasse na recepção, desde que se conseguisse encontrar a pessoa certa. Por enquanto, sou eu que, ocasionalmente, a substituo quando me encontro no museu.
Ela parece ser muito eficiente comentou Dalgliesh.
É, sim. A organização do museu melhorou muito desde que ela começou a trabalhar ali, há dois anos. A Caroline Dupayne nunca tomou parte muito activa na gestão do dia-a-dia. Nem poderia fazê-lo por causa das suas obrigações na escola. Miss Godby encarrega-se da contabilidade, para satisfação do auditor, e agora tudo decorre muito mais tranquilamente. Mas o senhor não está aqui para que eu o mace com pormenores da vida administrativa do museu, pois não? O que deseja é falar acerca da morte de Neville.
Conhecia-o bem?
Mrs. Strickland fez uma pausa, bebeu um gole de vinho e pôs o copo sobre a mesa.
Creio que o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa que trabalha no museu. Não era de trato fácil e ia lá raramente, mas, no ano passado, por vezes chegava mais cedo às sextas-feiras e ia até à biblioteca. Não acontecia com frequência, talvez uma vez de três em três semanas, aproximadamente. Outras vezes, deambulava por entre as estantes e, logo de seguida, sentava-se para ler um velho número do Blackwood’s Magazine. Ou pedia-me que abrisse uma estante e pegava num livro. Quase sempre permanecia sentado, em silêncio, mas em raras ocasiões falou comigo.
Descrevê-lo-ia como um homem feliz?
Não, não o descreveria como um homem feliz. Não é fácil julgar o grau de felicidade de outrem, não é verdade? No entanto, trabalhava em excesso, preocupava-se por poder estar a desiludir os seus pacientes, não lhes consagrando todo o tempo de que precisavam, e indignava-o o estado em que se encontram os serviços de psiquiatria. Considerava que nem o governo nem a sociedade em geral se preocupavam suficientemente com os doentes mentais.
Dalgliesh perguntou a si próprio se Dupayne havia confidenciado a Mrs. Strickland o que fazia nos fins-de-semana, ou se Angela Faraday fora a única pessoa a quem o contara. Fez a pergunta e a velha senhora respondeu:
Não. Era muito reticente acerca do que lhe dizia respeito. Só uma vez falámos da sua vida privada. Creio que ia à biblioteca porque era de algum modo repousante para ele ver-me a trabalhar. Tenho pensado nisso e parece-me ser a explicação mais provável. Eu continuava sempre a executar a tarefa que tinha entre mãos, e ele gostava de ver como as letras iam tomando forma. Talvez o tranquilizasse...
Andamos a investigar este caso como sendo um homicídio. Parece improvável que ele se tenha suicidado, mas, mesmo assim, ficaria surpreendida se ele porventura quisesse pôr termo à vida?
A voz da velha senhora, que revelava um certo cansaço, retomou força. Foi com firmeza que declarou:
Ficaria perplexa. Ele não era pessoa para se suicidar. Pode pôr de lado essa hipótese. Talvez haja alguns membros da família a quem tal ideia pareça conveniente, mas o senhor deve afastá-la da sua mente. O Neville não se suicidou.
Está bem certa disso?
Estou. Em parte, por uma conversa que tivemos, duas semanas antes da sua morte, ou seja, na sexta-feira anterior à sua primeira ida ao museu, comandante. Disse-me que o carro dele ainda não estava pronto. Um mecânico da garagem... creio que se chama Stanley Cárter, prometera entregar-lho às seis e um quarto. Fiquei no museu depois de este encerrar, e passámos juntos cerca de uma hora. Falámos do futuro da biblioteca e ele disse-me que vivíamos por de mais no passado. Referia-se tanto ao passado de cada um de nós como à história do nosso país. Dei comigo a fazer-lhe confidências, coisa que é raro acontecer, comandante. Fazer confidências acerca da minha vida privada não se coaduna com a minha maneira de ser. Eu devia ter pensado que era impertinente, e até de mau gosto, servir-me dele como meu psiquiatra particular, sem pagar a consulta, mas o certo é que foi isso mesmo que aconteceu ou algo parecido. No entanto, também ele se serviu de mim, ou seja, acabámos por nos servir um do outro. Disse-lhe que, quando se chega a uma idade avançada, não é fácil esquecer o passado. Os velhos pecados regressam, agravados pelo peso dos anos, e os pesadelos, os rostos dos mortos que não deviam ter morrido voltam também e ficam a olhar-nos, não com amor mas para nos censurar. Para alguns, essa pequena morte pode ser, à noite, uma descida ao nosso inferno privado. Falámos de expiação e de perdão. Sou a única filha de uma mãe francesa, católica romana praticante, e de um pai ateu. Grande parte da minha infância foi passada em França. Disse-lhe que os crentes podem lidar com a sua culpa através da confissão, mas como poderão aqueles que não têm fé, como eu, encontrar a paz de espírito? Lembrei-me de uma frase escrita por um filósofo que eu havia lido e que, segundo creio, é de Roger Scrutton: O consolo das coisas imaginárias não é um consolo imaginário. Contei-lhe que, às vezes, chegava a ansiar por um consolo imaginário. O Neville declarou que devíamos aprender a absolver-nos a nós próprios. O passado não pode ser alterado e é preciso encará-lo com honestidade e sem procurar desculpas, para depois o pôr de lado; ficar obcecado pela culpa é uma indulgência destrutiva. Disse ainda que sentir culpa é próprio da natureza humana. Sou culpado, logo existo.
Parou de falar, mas Dalgliesh manteve-se em silêncio. Ficara à espera de saber qual a razão que a levara a ter a certeza de que Dupayne não se suicidara. Ela havia de lá chegar, na ocasião oportuna. Deu-se conta, compadecido, de que para Mrs. Strickland fora doloroso o relato daquela conversa com Neville Dupayne. Ela estendeu a mão para a garrafa de clarete e o comandante pôde notar que os dedos lhe tremiam. Adiantou-se-lhe e, pegando na garrafa, encheu os dois copos.
Passado um minuto, a velha senhora prosseguiu:
Quando chegamos a uma idade avançada, gostaríamos de recordar apenas os momentos felizes da nossa vida, mas as coisas não se passam desse modo, excepto para os mais afortunados. Tal como a poliomielite pode atacar de novo sob outra forma, o mesmo acontece com os erros, os fracassos e os pecados do passado. Ele disse-me que compreendia e comentou: O meu pior fracasso volta sempre envolto em labaredas.
O silêncio prolongou-se desta vez por mais tempo, e Dalgliesh viu-se obrigado a perguntar:
Ele explicou-lhe a que se referia?
Não, nem eu lho perguntei. Não me era possível fazê-lo. No entanto, ele disse outra coisa. Talvez pensando que eu fosse supor tratar-se de algo que tinha a ver com o seu desejo de que o museu não continuasse aberto, esclareceu que o seu desabafo não se relacionava com ninguém ligado ao Dupayne.
Tem a certeza disso, Mistress Strickland? O que ele lhe referiu, o tal fracasso que regressava envolto em labaredas, não tinha nada a ver com o museu?
Tenho a certeza absoluta. Foram essas as palavras que proferiu.
E quanto ao suicídio? Afirmou estar convencida de que ele nunca se mataria.
Também falámos acerca disso. Creio ter dito que, atingida uma idade avançada, qualquer pessoa podia estar certa de que o alívio não demoraria muito tempo. Afirmei sentir-me satisfeita por esperar esse alívio mas que, nem mesmo nos piores momentos, me passara pela cabeça ser eu própria a antecipá-lo. Foi então que ele declarou que o suicídio era uma solução indefensável, excepto para os muito velhos ou para aqueles que sofriam dores contínuas, sem qualquer esperança de cura. O suicídio deixava atrás de si um fardo muito pesado para aqueles que assim ficavam privados de um ente querido. Além dessa perda, sentiam sempre sentimentos de culpa e até o medo oculto de que o impulso para a autodestruição fosse hereditário. Comentei que achava aquela afirmação um tanto dura e injusta para aqueles cuja vida se tornara insuportável, e que o seu desespero final devia suscitar compaixão e não censura. Além do mais, ele era um psiquiatra, membro do sacerdócio moderno. Não era sua missão compreender e absolver? Não ficou aborrecido com as minhas palavras. Admitiu que talvez houvesse sido demasiado enfático, mas uma coisa era para ele certa: qualquer pessoa que, no pleno uso das suas faculdades mentais, decidisse suicidar-se devia sempre dar uma explicação das razões que o haviam levado a fazê-lo. A família e os amigos que o suicida deixa atrás de si têm o direito de saber porque lhes foi infligido tanto sofrimento. Não, comandante, o Neville Dupayne nunca se teria suicidado ou, melhor dizendo, não o faria sem deixar uma carta a explicar porque decidira matar-se. Fixou os olhos nos de Dalgliesh e acrescentou: Segundo me informaram, não escreveu nenhuma carta a explicar o seu acto.
Não encontrámos nenhuma.
O que não é bem a mesma coisa.
Desta vez, foi ela que pegou na garrafa. Dalgliesh meneou a cabeça em sinal negativo, e ela encheu apenas o seu próprio copo. Ao observá-la, Dalgliesh foi assaltado por uma revelação tão assombrosa que perguntou, em tom natural e quase sem pensar:
O Neville Dupayne foi adoptado?
Os olhos de Mrs. Strickland fixaram-se nos do comandante.
Porque me faz essa pergunta, Mister Dalgliesh?
Nem eu sei. Foi uma ideia que me passou pela cabeça. Peço desculpa.
Então, ela sorriu, e por breves instantes Dalgliesh pôde aperceber-se do radioso encanto que havia desconcertado a própria Gestapo.
Desculpa? De quê? admirou-se Mrs. Strickland. Tem toda a razão: ele foi adoptado. O Neville era meu filho, meu e do Max Dupayne. Saí de Londres cinco meses antes do parto e, quando nasceu, ficou confiado aos cuidados do Max e da Madeleine Dupayne e, mais tarde, foi adoptado por eles. Essas coisas eram feitas com muito maior facilidade naqueles tempos.
E esse facto é do conhecimento geral? perguntou Dalgliesh. A Caroline e o Marcus Dupayne sabem que o Neville era seu meio-irmão?
Sabem que ele foi adoptado. Quando se processou a adopção, o Marcus tinha três anos e a Caroline, claro, não era ainda nascida. Todos os três ficaram a sabê-lo desde pequenos, mas não que eu era a mãe e o Max, o pai do Neville. Cresceram aceitando sempre a adopção como um facto da vida mais ou menos normal.
Nenhum deles me falou disso referiu Dalgliesh.
O que não me surpreende minimamente. Porque iriam fazê-lo? Nenhum deles é dado a entrar em confidências sobre assuntos de família e o facto de o Neville ter sido adoptado é irrelevante no que respeita à sua morte.
E ele nunca recorreu aos tribunais, como agora é permitido, para averiguação da paternidade e da maternidade?
Nunca, tanto quanto sei. Não tinha a intenção de lhe falar deste assunto. Sei, no entanto, que posso confiar na sua discrição e que o senhor não irá divulgar a mais ninguém o que lhe contei, nem mesmo aos membros da sua equipa.
Depois de uma curta pausa, Dalgliesh declarou:
Não direi nada, a menos que a adopção venha a revelar-se relevante para as minhas investigações.
Chegara o momento de partir. Ela acompanhou-o até à porta e estendeu-lhe a mão. Ao apertá-la, Dalgliesh apercebeu-se de que aquele gesto era algo mais do que uma despedida inesperadamente formal; era também a confirmação da promessa que ele lhe fizera.
Tem o dom de encorajar as pessoas a fazerem-lhe confidências, Mister Dalgliesh. Deve ser muito útil para um detective. As pessoas contam-lhe coisas de que o senhor pode até servir-se contra elas. Suponho que, em sua opinião, o faz em defesa da justiça.
Não creio que usasse uma palavra tão forte. Diria antes, que o faço em defesa da verdade.
E acha que essa palavra é mais fraca? Pôncio Pilatos não foi da mesma opinião. No entanto, não creio que lhe tenha contado seja o que for de que venha a arrepender-me. O Neville era um homem bom e eu vou sentir a sua falta. Devotava-lhe grande afeição, mas não amor materno. Como poderia experimentar esse sentimento? E que direito tinha eu, que me afastei dele com tanta ligeireza, de proclamar agora que era meu filho? Estou demasiado velha para chorar por ele, mas não demasiado velha para sentir-me indignada. O senhor vai descobrir quem o matou e essa pessoa ficará presa pelo menos durante dez anos. Pessoalmente, preferia até que morresse.
De regresso ao seu carro, a mente de Dalgliesh remoeu tudo quanto acabara de saber. Mrs. Strickland pedira para falar a sós com ele, a fim de lhe revelar duas coisas: a sua absoluta convicção de que Neville Dupayne nunca se teria suicidado e a sua enigmática confissão acerca de um fracasso envolto em labaredas, que o atormentava. Não tivera o propósito de divulgar a verdade acerca da filiação de Neville e, provavelmente, fora sincera quando afirmara não acreditar que tal facto fosse relevante para a morte do filho. Dalgliesh, contudo, não estava tão certo disso. Ponderou o emaranhado de relacionamentos pessoais centrados no museu: o traidor do Serviço de Operações Especiais que havia atraiçoado os seus camaradas, e Henry Calder-Hale, cuja ingenuidade havia contribuído para essa traição, o amor secreto e o parto secreto, vidas vividas intensamente sob a ameaça da tortura e da morte. A agonia havia terminado; os mortos não regressavam, a não ser em sonhos. Era difícil vislumbrar como algum ponto daquela história podia constituir motivo para o assassínio de Neville Dupayne. Podia, contudo, imaginar a razão pela qual os Dupayne haviam julgado prudente não divulgar que Neville fora adoptado. Ser impedido por um irmão do mesmo sangue de fazer o que mais intensamente se deseja era já bastante difícil de suportar; se essa frustração fosse provocada por um irmão adoptado, então, era ainda mais imperdoável, e o remédio para pôr termo a tal situação talvez mais fácil de contemplar.
Quarta-feira, 6 de Novembro/quinta-feira, 7 de Novembro
Na quarta-feira, seis de Novembro, o dia amanheceu imperceptivelmente, com os primeiros raios de luz a passar pelo céu matinal que se estendia, tão espesso como um cobertor, sobre a cidade e o rio. Kate fez chá e, como era seu costume, levou o copo alto até à varanda. Naquele dia, contudo, não havia qualquer brisa fresca. A seus pés, o Tamisa corria tão lentamente como melaço, parecendo absorver as luzes que bailavam sobre o rio em vez de as reflectir. As primeiras barcaças do dia avançavam pesadamente, sem deixar rasto. Em geral, aquele momento era de uma profunda satisfação e até, por vezes, de felicidade, provocadas pelo bem-estar físico e pela promessa de um novo dia. A vista daquele rio e o apartamento de duas divisões, atrás de si, representavam tudo o que alcançara, o que lhe trazia em cada manhã uma renovada sensação de satisfação e segurança. Conseguira o emprego que quisera, o apartamento que desejara na parte da cidade que havia escolhido. Podia esperar por uma promoção que, segundo ouvira dizer, estava para breve. Trabalhava com pessoas de quem gostava e que respeitava. Naquela manhã, disse a si própria, como o fazia todos os dias, que ser solteira, com casa própria, um emprego estável e dinheiro suficiente para as suas necessidades era desfrutar de maior liberdade do que qualquer outro ser humano à face da terra.
Todavia, a obscuridade do dia que acabara de nascer contagiou-a. O caso que tinha entre mãos era muito recente, mas começava agora a entrar em declínio, essa fase tão deprimente de uma investigação de homicídio, quando o entusiasmo inicial dá lugar à rotina e a perspectiva do seu rápido deslindar vai diminuindo com o passar dos dias. A Brigada de Investigações Especiais não estava habituada ao fracasso; pelo contrário, era considerada como uma garantia contra o insucesso. No intuito de eliminar possíveis suspeitos, haviam recolhido as impressões digitais de todas as pessoas que podiam legitimamente haver tocado na lata de gasolina ou entrado na garagem, mas não foram detectadas quaisquer impressões digitais desconhecidas. Ninguém confessara haver removido a lâmpada. Ao que tudo indicava, Vulcano, por esperteza, por sorte ou talvez por uma mistura de ambas as coisas, não deixara quaisquer provas que o incriminassem. Era ridículo e prematuro preocupar-se com o resultado final num caso que ainda mal começara, mas, apesar disso, Kate não conseguiu dissipar um receio quase supersticioso de que não houvesse provas suficientes que justificassem uma detenção. Mesmo que as houvesse, permitiria o procurador da Coroa que o caso fosse a tribunal quando o misterioso condutor que atropelara Tally Glutton ainda não fora identificado? E existiria realmente? Tinham, como provas, a roda da bicicleta amolgada e a nódoa negra no braço de Tally, mas podiam ser facilmente fabricadas através de uma queda deliberada ou do embate da bicicleta contra uma árvore. A mulher parecia honesta e era difícil pensar nela como uma assassina impiedosa, em particular como autora daquele homicídio, mas já não era tão difícil pensar nela como cúmplice. Afinal, tinha mais de sessenta anos e era muito apegada ao seu trabalho e à segurança que a vivenda lhe proporcionava. Podia ser tão importante para ela, como para os Dupayne, que o museu se mantivesse aberto. Além do mais, a polícia nada sabia acerca da sua vida privada, dos seus temores, das suas necessidades psicológicas nem dos recursos que possuía para se proteger contra uma catástrofe. Mas se o misterioso condutor existia realmente e não passava de um inocente visitante, então, porque ainda não se apresentara? Ou estaria ela a ser ingénua? Porque haveria o misterioso condutor de aparecer? Porque se submeteria a um interrogatório policial, a expor a sua vida privada e a revelar possíveis segredos quando podia ficar quieto no seu canto? Mesmo sendo inocente, aquele homem sabia que a polícia o trataria como um suspeito, provavelmente, como o principal suspeito. E se o caso não fosse resolvido, ele seria considerado um assassino para o resto da vida.
O museu abriria naquela manhã às dez horas, para que Conrad Ackroyd o mostrasse aos seus quatro convidados canadianos. Dalgliesh dera instruções a Kate para que estivesse presente e se fizesse acompanhar por Benton-Smith. Não lhe fornecera qualquer explicação, mas Kate lembrou-se das palavras que o chefe pronunciara no decurso de uma investigação anterior: Num caso de homicídio, fiquem sempre tão perto quanto possível dos suspeitos e do local do crime. Mesmo assim, não conseguia perceber o que esperava o seu chefe alcançar com aquilo. Neville Dupayne não morrera no museu e Vulcano não tivera quaisquer motivos para ali entrar na sexta-feira anterior. Como poderia haver entrado no museu sem ter as chaves? Tanto Miss Godby como Mrs. Glutton haviam sido peremptórias ao afirmar que a porta do museu ficara fechada à chave quando haviam saído. Vulcano devia ter-se escondido entre as árvores, na barraca do jardim ou o que era a hipótese mais plausível num recanto da garagem às escuras com a lata de gasolina na mão, à espera de ouvir o som da porta a abrir-se e de ver o vulto da sua vítima estender a mão para o interruptor. O museu, em si, não estava contaminado pelo horror, mas, pela primeira vez, Kate sentiu uma certa relutância em lá voltar, porque começava já a estar infestado pelo cheiro do fracasso.
Quando se preparou para sair, o dia mal clareara mas não chovia, embora pudesse ver umas poucas gotas grossas que manchavam a calçada. Devia ter chovido às primeiras horas do dia, já que o piso das estradas estava escorregadio, mas os aguaceiros não haviam refrescado o ar. Nem mesmo quando Kate avistou a parte mais elevada de Hampstead e baixou os vidros do carro, se produziu qualquer alívio da opressão provocada pelo atmosfera poluída e pelas nuvens pesadas e sufocantes. Os candeeiros do caminho de entrada do museu ainda estavam acesos e, quando Kate dobrou a última esquina, viu que todas as janelas se achavam iluminadas, como se o museu se preparasse para uma grande festa. Consultou o relógio; faltavam cinco para as dez. O grupo de visitantes já devia estar ali.
Estacionou o carro, como de costume, por trás dos loureiros, pensando de novo como aquele local constituía um esconderijo conveniente para quem quisesse estacionar sem ser visto. Havia já uma fileira alinhada de automóveis. Reconheceu o Ford Fiesta de Muriel Godby e o Mercedes de Caroline Dupayne. A outra viatura era uma carrinha que devia ter transportado os canadianos, certamente alugada por eles para as suas excursões em Inglaterra. Benton-Smith, contudo, ainda não havia chegado.
Apesar do fulgor das luzes, a porta de acesso ao museu estava fechada e Kate teve de tocar à campainha. Muriel Godby veio à porta e cumprimentou Kate com a sua formalidade quase hostil, dando a entender que, muito embora aquela visitante não fosse nem distinta nem bem-vinda, devia tratá-la, à cautela, com o devido respeito.
Mister Ackroyd e os seus convidados já chegaram e estão a tomar café no gabinete de Mister Calder-Hale anunciou. Há uma chávena para si, se quiser.
Muito bem. Vou subir. O sargento Benton-Smith deve aparecer a qualquer momento. Peça-lhe, por favor, que se junte a nós.
A porta do gabinete de Calder-Hale estava fechada, mas Kate pôde ouvir um murmúrio de vozes. Bateu e, quando entrou, viu dois casais e Ackroyd sentados em várias cadeiras, que deviam ter sido trazidas de outras salas. Calder-Hale apoiara-se a um canto da sua escrivaninha, enquanto Caroline Dupayne ocupava a cadeira giratória do conservador. Todos tinham chávenas de café nas mãos. Os homens levantaram-se quando Kate entrou.
Ackroyd procedeu às apresentações. O professor Ballanryne e Mrs. Ballantyne, o professor Mclntyre e a Dr.a Mclntyre. Provinham de universidades de Toronto e nutriam um especial interesse pela história da sociedade inglesa durante o período entre as duas guerras. Ackroyd acrescentou, dirigindo-se a Kate:
Informei-os sobre a morte trágica do doutor Dupayne e expliquei-lhes que o museu se acha encerrado ao público enquanto a polícia continuar a investigação. Bom, podemos começar? A não ser que queira beber café, inspectora...
Aquela referência casual à tragédia foi acolhida em silêncio. Kate agradeceu, mas dispensou o café; não fora propriamente um convite que Ackroyd esperasse ser aceite por ela. Os quatro visitantes pareciam admitir a sua presença. Se porventura se interrogavam sobre o motivo por que, sendo eles estranhos ao museu, deviam ser acompanhados por um elemento da polícia no que era afinal uma visita privada, revelaram-se demasiado educados para tecer qualquer comentário. Mrs. Ballantyne, uma mulher de rosto bondoso e idade avançada, nem sequer pareceu dar-se conta de que Kate pertencia à polícia e, quando saíram do gabinete de Calder-Hale, perguntou-lhe se ela era visitante assídua do museu.
Sugiro que comecemos pela Sala de História, no piso térreo propôs Calder-Hale, e que depois passemos à sala dedicada ao Desporto e Entretenimento, antes de subirmos ao primeiro andar e visitarmos a Sala do Crime. Deixaremos a biblioteca para o fim. Será o Conrad Ackroyd que vos falará das peças expostas na Sala do Crime. É um assunto mais da sua competência do que da minha.
Nesse mesmo instante, foi interrompido pelo ruído de passos que subiam a escada a correr. Benton-Smith apareceu no topo da escada. Kate apresentou-o, por mera formalidade, e o grupo iniciou a visita. Estava irritada com o atraso do colega mas, depois de consultar o relógio, apercebeu-se de que não podia queixar-se da sua falta de pontualidade, porque havia chegado à hora combinada.
Desceram até à Sala de História, onde uma parede com uma fileira de vitrinas e estantes focava os acontecimentos principais da história britânica entre Novembro de 1918 e Julho de 1939. Em frente, uma colagem semelhante exibia o que acontecera no resto do mundo. As fotografias tinham uma qualidade extraordinária e algumas, supôs Kate, deviam ser raras e valiosas. Avançando lentamente, o grupo contemplou a chegada dos chefes de Estado à Conferência de Paz, a assinatura do Tratado de Versalhes, a fome e a queda da Alemanha, em contraste com as celebrações dos vitoriosos Aliados. Uma procissão de reis destronados desfilou à frente deles, com os seus rostos banais dignificados o que, por vezes, tinha o efeito contrário e os ridicularizava por uniformes sumptuosamente decorados e capacetes ridículos. Os novos detentores do poder preferiam um uniforme mais proletário e prático, com botas de montar feitas para caminhar por entre o sangue derramado. Muitas daquelas figuras políticas nada diziam a Kate, mas viu que Benton-Smith se lançara numa discussão acalorada com um dos professores canadianos acerca do significado da greve geral, em Maio de 1926, para o trabalho organizado. Só então se lembrou de que Piers lhe dissera que Benton era formado em História. Era de calcular. Por vezes, Kate reflectia, não sem algum cinismo, que em breve seria a única pessoa com menos de trinta e cinco anos a não ter um curso, o que talvez com o tempo lhe conferisse um prestígio particular. Os visitantes pareciam convencidos de que tanto ela como Benton estavam tão interessados como eles nas peças expostas e que tinham o mesmo direito de exprimir a sua opinião. Seguindo-os, disse a si própria, com ironia, que a investigação daquele homicídio estava a tornar-se de certo modo um evento social.
Seguiu o grupo até à sala dedicada ao desporto e ao entretenimento. Ali estavam as tenistas de outras eras, com as suas fitas no cabelo e as suas incómodas saias compridas, enquanto os homens usavam calças brancas de flanela, muito bem engomadas; pósteres de homens, em calções e com mochilas às costas, que faziam longos passeios em idealizadas zonas rurais de Inglaterra; a Liga Feminina da Saúde e da Beleza, com calções de cetim preto blusas brancas, executando em grupo os seus exercícios rítmicos. Havia também vários cartazes dos caminhos-de-ferro, com imagens de colinas azuis e praias amarelas, onde crianças com o cabelo comprido e cortado à pajem brincavam com baldes e pás reluzentes, ao lado dos pais nos seus fatos de banho discretos, aparentemente alheios ao clangor distante de uma Alemanha que se armava para a guerra. E ali também se achava o fosso, omnipresente e intransponível, entre os ricos e os pobres, os privilegiados e os desfavorecidos, realçado pelo inteligente agrupamento das fotografias, que permitiam comparar um grupo de pais e amigos num jogo de críquete entre a equipa de Eton e a de Harrow, em 1928, com os rostos inexpressivos de crianças subnutridas fotografadas aquando da excursão que a escola dominical organizava anualmente.
Subiram ao primeiro piso em direcção à Sala do Crime. Embora as luzes já estivessem acesas, a obscuridade do dia intensificara-se e pairava no ar um cheiro desagradável a mofo. Caroline Dupayne, que quase sempre se havia mantido em silêncio, falou pela primeira vez.
Cheira a bafio aqui. Não podemos abrir uma janela, James? Deixe entrar um pouco de ar fresco para dissipar este cheiro.
Calder-Hale dirigiu-se a uma janela de guilhotina e, com algum esforço, conseguiu baixá-la uns quinze centímetros.
Foi a vez de Ackroyd tomar a palavra. Que homenzinho extraordinário era, com o seu corpo anafado mas enérgico enfiado num fato de corte impecável, e um rosto tão inocente e excitado como o de uma criança, por cima daquele ridículo laço às bolas, pensou Kate. AD havia contado à equipa a sua primeira visita ao Dupayne. Sempre muito atarefado, prescindira de algumas horas preciosas para conduzir Ackroyd ao museu. Kate reflectiu, não pela primeira vez, na singularidade da amizade masculina que, aparentemente, não se apoiava nos sustentáculos da personalidade, nem numa visão partilhada do mundo, mas, na maior parte das vezes, num único interesse comum ou numa experiência mútua pouco exigente e expressiva. Que podiam ter em comum AD e Conrad Ackroyd? Este último parecia estar a gostar do seu papel de guia. Os seus conhecimentos sobre casos de assassínio era excepcional e nem precisou de recorrer a apontamentos. Alongou-se com o caso Wallace, e os visitantes examinaram o comunicado do Clube Central de Xadrez, que assegurava que Wallace devia jogar ali na noite anterior ao crime, assim como observaram em respeitoso silêncio o tabuleiro de xadrez de Wallace, exposto numa vitrina.
Esta barra de ferro não é a arma do crime explicou Ackroyd, porque nunca a encontraram. No entanto, o facto é que uma barra parecida, usada para remover as cinzas da parte inferior da lareira, desapareceu. Estas duas fotografias em grande plano do corpo da vítima, tiradas pela polícia com poucos minutos de intervalo, são muito interessantes. Na primeira, podem ver a gabardina amarrotada de Wallace, manchada de sangue, por baixo do ombro direito da vítima, enquanto, na segunda, a gabardina já fora retirada.
Mrs. Ballantyne examinou as fotografias com um misto de aversão e de pena. O seu marido e o professor Mclntyre trocavam impressões sobre o mobiliário e os quadros da sala de estar atulhada, esse santuário de respeitabilidade da classe média, raramente usado, que, na qualidade de sociólogos, achavam mais fascinante do que as manchas de sangue e um crânio esmagado.
Foi um caso único em três aspectos prosseguiu Ackroyd. O Tribunal de Ultima Instância anulou o veredicto com base em que era pouco firme, tendo em conta as provas. Na realidade, declarou que o júri se enganara, o que deve ter constituído uma humilhação para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Lorde Hewart, que se pronunciara sobre o recurso e cuja filosofia era a de que o sistema britânico, baseado num júri, era absolutamente infalível. Em segundo lugar, o sindicato de Wallace financiou o recurso, mas só depois de chamar todos os envolvidos no caso ao seu gabinete de Londres, onde procedeu a uma espécie de julgamento em pequena escala. Em terceiro lugar, foi o único caso para o qual a Igreja Anglicana autorizou uma oração especial que guiasse o Tribunal de Ultima Instância a tomar a decisão acertada. E uma oração magnífica... Naquela época, a Igreja ainda sabia escrever a liturgia... e podem vê-la, impressa num folheto destinado ao serviço religioso, nesta vitrina. Pessoalmente, gosto da última frase. E devereis orar para que os sábios conselhos do nosso senhor e soberano, o rei, possam ser fiéis às ordens cristãs do apóstolo Paulo. Nada deveis julgar até que Deus traga à luz coisas escondidas nas trevas e torne manifesto os conselhos do coração. O advogado de acusação, Edward Hemmerde, ficou furioso com esta prece e ainda mais exasperado quando ela se revelou eficaz.
Os conselhos do coração repetiu o professor Ballantyne, o mais velho dos dois visitantes masculinos. Pegou num bloco de apontamentos e o grupo aguardou pacientemente enquanto ele, consultando o folheto, anotava a última frase da oração.
Ackroyd tinha menos a dizer acerca do caso Rouse e concentrou-se nas provas técnicas relativas à possível causa do incêndio, omitindo a explicação de Rouse acerca de alguém haver ateado uma fogueira, evitando com grande tacto matéria tão delicada. Kate perguntou a si própria se o fizera por prudência ou por sensibilidade. Não que esperasse que Ackroyd efectuasse qualquer alusão à similaridade daquele caso com o assassínio de Neville Dupayne. Sabia que ninguém, para além das pessoas envolvidas, fora informado da existência do misterioso condutor ou de que as palavras por ele ditas a Tally Glutton eram idênticas às que Rouse proferira. Kate fitou discretamente Caroline Dupayne e James Calder-Hale durante a cuidadosa explicação de Ackroyd acerca do caso Rouse, mas nenhum dos dois deixara transparecer a menor centelha de interesse.
Passaram para o caso do Assassínio do Baú de Brighton. Era uma ocorrência menos interessante para Ackroyd, por lhe ser mais difícil caracterizá-lo como típico da época em que fora cometido. Assim, concentrou-se no baú.
Este era o típico baú de latão usado pelas pessoas pobres quando tinham de viajar. Podia ter contido praticamente todos os haveres de Violette Kaye, uma prostituta, mas no fim converteu-se no seu caixão. Tony Mancini, o seu amante, foi julgado no Tribunal do Condado de Lewes, em Dezembro de mil novecentos e trinta e quatro, e absolvido depois de uma brilhante alegação por parte de Mister Norman Birkett. Foi um dos poucos casos em que as provas apresentadas pelo patologista forense, Sir Bernard Spilsbury, foram postas em causa com êxito. Este caso é um exemplo do que realmente mais importa no julgamento de um homicídio: o talento e a reputação do advogado de defesa. Norman Birkett, que mais tarde se tornaria Lorde Birkett de Ulverston, era dono de uma voz particularmente melodiosa e persuasiva, o que constituiu uma arma poderosa. Mancini ficou a dever-lhe a vida e julga-se que terá sabido agradecer-lhe devidamente. Antes de morrer, Mancini confessou que assassinara Violette Kaye. Se premeditara matá-la, isso é outra coisa.
O pequeno grupo observou o baú, mais por cortesia do que levado por um interesse genuíno, pelo menos no entender de Kate. A atmosfera pesada parecia ter-se intensificado ainda mais e Kate deu consigo a desejar que o grupo passasse a outra sala. Todo o museu mas, em particular, a Sala do Crime havia-a oprimido desde a primeira vez que ali entrara. Tinha dificuldade em compreender aquela cuidadosa reconstituição do passado. Tentara esquecer-se da sua própria história durante anos, mas agora sentia um certo receio e algum rancor perante a clareza e a terrível inevitabilidade com que ela regressava, mês após mês. O passado estava morto e enterrado e não podia ser alterado. Não havia como compensá-lo e, ainda menos, como compreendê-lo. As fotografias a sépia que a rodeavam tinham tanta vida própria como o papel em que estavam impressas. Aqueles homens e mulheres, há muito falecidos, tinham sofrido ou provocado sofrimento, mas haviam desaparecido. Que impulso extraordinário levara o fundador do Dupayne a exibir assassinos e vítimas com tanto empenho? Não eram, certamente, mais relevantes para a sua época do que as fotografias de carros antigos, os trajes de outras eras, as cozinhas e outros artefactos do passado. Algumas daquelas pessoas estavam enterradas em cal viva, outras, nos átrios de igrejas, mas podiam ter sido atiradas para uma vala comum, porque isso agora pouco importava. Como posso viver com segurança senão no momento presente, um momento que, quando me dou conta dele, se torna passado?, pensou. A incómoda convicção que sentira ao sair de casa de Mrs. Faraday invadiu-a novamente. Não podia confrontar-se com os primeiros anos da sua carreira nem tão-pouco anular o poder que exerciam sem trair o seu próprio passado.
Iam passar a outro caso quando a porta se abriu e Muriel Godby apareceu. Caroline Dupayne achava-se junto ao baú e Muriel, algo esbaforida, avançou na sua direcção. Ackroyd fez uma pausa antes de apresentar o caso seguinte, e o grupo aguardou.
O silêncio deliberado e o círculo de rostos virados na direcção de Muriel desconcertaram-na. Era óbvio que esperara transmitir o recado discretamente.
Lady Swathling está ao telefone e quer falar consigo, Miss Dupayne, mas expliquei-lhe que estava ocupada informou.
Nesse caso, diga-lhe que ainda estou ocupada e que lhe telefonarei daqui a uma meia hora.
Ela diz que é urgente, Miss Dupayne.
Está bem, eu vou atender.
Caroline Dupayne afastou-se com Muriel Godby, e o grupo concentrou de novo a sua atenção em Conrad Ackroyd. Foi nesse preciso instante que aconteceu. Um telemóvel começou a tocar, quebrando o silêncio, de uma forma tão assustadora e sinistra como um alarme de incêndio. Não havia quaisquer dúvidas quanto à proveniência daquele toque. Todos os olhares se fixaram no baú. Para Kate, os poucos segundos até que alguém se mexesse ou falasse pareceram transformar-se em minutos, uma suspensão do tempo durante a qual viu o grupo petrificado, como num quadro, com os braços e as pernas imóveis como se fossem manequins de uma loja, enquanto o som metálico continuava a ecoar.
Por fim, Calder-Hale comentou em tom jovial:
Parece que alguém resolveu pregar uma partida um tanto ou quanto infantil, mas nem por isso menos surpreendente e eficaz.
Foi, contudo, Muriel Godby quem agiu.
Que estupidez! exclamou com o rosto enrubescido. E antes que os outros pudessem fazer qualquer coisa, precipitou-se para o baú, ajoelhou-se e levantou a tampa. O cheiro pestilento espalhou-se pela sala, tão avassalador como se fosse gás. Kate, que se achava atrás do grupo, apenas vislumbrou um torso curvado e uma madeixa de cabelo louro, antes de Muriel largar a tampa, que caiu pesadamente com um estrondo. As pernas dela tremiam e os pés deslizavam no
no chão, como se quisesse levantar-se mas todas as forças houvessem abandonado o seu corpo. Tombou sobre o baú e emitiu ruídos abafados, gemidos e guinchos lancinantes, como se fosse um cachorrinho perdido. Entretanto, o telemóvel parara de tocar. Kate ouviu Muriel murmurar:
Não! Não!
Também ela se sentiu paralisada por breves segundos, mas, por fim, avançou para assumir o comando da situação fazer o seu trabalho.
Virou-se para o grupo e num tom de voz calmo ordenou:
Recuem, por favor.
Avançou então para o baú, colocou os braços em volta da cintura de Muriel e tentou erguê-la, mas a mulher tinha uma constituição forte e era, naquele momento, um peso morto. Benton-Smith veio em seu auxílio e, juntos, conseguiram que Muriel se pusesse de pé e fosse levada para uma das cadeiras.
Kate dirigiu-se a Caroline Dupayne.
Mistress Glutton está em casa?
Suponho que sim. E provável, mas a verdade é que não sei.
Nesse caso, leve Miss Godby para o gabinete da recepção e cuide dela, está bem? Alguém irá ter consigo logo que for possível.
Dirigiu-se então a Benton-Smith.
Peça a chave a Miss Dupayne, veja se a porta de entrada está fechada e certifique-se de que continua fechada. Ninguém pode sair do museu. Depois, ligue para o comandante Dalgliesh e regresse.
Calder-Hale permanecera calado. Mantinha-se um pouco afastado do resto do grupo, atento a tudo o que se passava. Kate virou-se para ele.
Pode levar Mister Ackroyd e o grupo para o seu gabinete, por favor? Vamos precisar dos seus nomes e dos seus endereços neste país, mas depois poderão partir.
O pequeno grupo de visitantes não se mexera. Perscrutando os seus rostos, Kate teve a impressão de que apenas um dos canadianos, o idoso professor Ballantyne, que se achava junto do baú com a mulher, vira o cadáver, porque a tez do seu rosto tornara-se esverdeada e, estendendo os braços, puxou a esposa para si.
O que é? Há um animal ali dentro? É um gato morto? perguntou Mrs. Ballantyne, visivelmente nervosa.
Acompanha-me, minha querida respondeu-lhe o marido e juntaram-se ao pequeno grupo que se dirigia para a porta.
Entretanto, Muriel Godby acalmara-se. Levantou-se e disse num tom que tentava mostrar alguma dignidade:
Desculpem. Desculpem... mas foi um choque... É horrível... Sei que parece um disparate, mas, por uma fracção de segundo, pensei que era Violette Kaye. Lançou um olhar que inspirava compaixão a Caroline Dupayne. Perdoe-me. Perdoe-me. Foi do choque...
Ignorando-a, Caroline Dupayne hesitou antes de se dirigir para o baú, mas Kate impediu-a de avançar.
Por favor, leve Miss Godby para o gabinete da recepção tornou a pedir, mas desta vez num tom de voz mais autoritário. Sugiro que prepare uma bebida quente, chá ou café. Vamos telefonar ao comandante Dalgliesh que virá juntar-se a nós assim que puder, se bem que talvez demore algum tempo.
Seguiu-se um breve silêncio e Kate julgou que Caroline ia protestar, mas ela limitou-se a acenar com a cabeça, para depois se virar para Benton-Smith.
As chaves da porta de entrada estão no armário. Se descer connosco, entrego-lhas.
Kate ficou sozinha. O silêncio era total. Não havia despido o casaco e procurou no bolso as suas luvas, mas só então se lembrou de que as deixara no porta-luvas do carro. No entanto, tinha um lenço limpo. Não havia pressa. AD chegaria dali a pouco tempo com o equipamento necessário, mas ela tinha de levantar, pelo menos, a tampa do baú, se bem que não naquele instante. Era importante ter uma testemunha e resolveu nada fazer antes de Benton-Smith regressar. De pé, sem se mexer, fitou o baú. Benton-Smith ausentou-se apenas por alguns minutos, mas para Kate pareceu uma eternidade, sozinha naquela sala em que nada parecia real à excepção daquele ameigado receptáculo de horror.
Por fim, o sargento regressou.
Miss Dupayne não ficou lá muito contente por ter recebido ordens para esperar no gabinete da recepção. A porta da entrada já estava trancada e tenho as chaves comigo. E quanto aos visitantes? Vale a pena mantê-los aqui?
Não. Quanto mais depressa saírem do museu, melhor. Vá ao gabinete do Calder-Hale, por favor, anote os nomes e os endereços deles e tranquilize-os, se conseguir pensar numa maneira de o fazer... Não refira que encontrámos um cadáver, se bem que me pareça que eles não têm grandes dúvidas quanto a isso...
Devo certificar-me de que eles não têm algo importante a revelar-nos? Quer que lhes pergunte se repararam em algo de estranho?
É pouco provável. A rapariga está morta há já algum tempo, e eles chegaram ao museu há cerca de uma hora. Livre-se deles com tanto tacto e discrição quanto lhe for possível. Interrogaremos Mister Calder-Hale mais tarde. Mister Ackroyd deverá partir com os canadianos, mas duvido que consiga mandar para casa Mister Calder-Hale. Volte para aqui depois de os acompanhar até à porta.
Desta vez, a espera foi mais demorada. Muito embora o baú estivesse fechado, Kate teve a sensação de que o fedor aumentava a cada segundo, o que a fez recordar-se de outros casos e de outros cadáveres; no entanto, era subtilmente diferente, como se aquele corpo proclamasse a sua singularidade mesmo na morte. Kate ouviu o murmúrio de vozes. Ao sair, Benton fechara a porta da Sala do Crime atrás de si, abafando todos os ruídos, excepto uma voz aguda, que devia ser a de Ackroyd e depois o som de passos na escada. Continuou à espera, sempre com os olhos postos no baú. Seria realmente o mesmo que contivera o corpo de Violette Kaye? Até àquele momento nunca lhe despertara grande interesse saber se era ou não genuíno, mas agora ali estava, preto e um pouco amolgado, parecendo querer desafiá-la com os seus terríveis segredos. Por cima, os olhos de Tony Mancini fitavam-na, numa expressão de desafio. Era um rosto brutal, de olhos negros e ferozes, boca grande e bigode hirsuto; a verdade, contudo, é que o fotógrafo não procurara torná-lo mais atraente. Tony Mancini morrera de causa natural porque Norman Birkett o defendera, da mesma forma que Alfred Arthur Rouse havia sido enforcado porque Norman Birkett representara a Coroa. Por fim, Benton-Smith regressou.
São pessoas muito simpáticas comentou. Não levantaram quaisquer objecções e nada tinham a contar, a não ser que repararam haver um cheiro estranho na sala. Só Deus sabe que histórias levarão com eles, quando regressarem a Toronto. Mister Ackroyd também partiu, mas não sem antes protestar. Está cheio de curiosidade... Receio que não haja grandes esperanças de que ele guarde segredo do que aconteceu... Não consegui despachar Mister Calder-Hale. Insistiu que tem muito trabalho a fazer no seu gabinete. O comandante Dalgliesh estava numa reunião, mas vai já sair. Deve chegar dentro de vinte minutos. Quer aguardar, inspectora?
Não, não quero aguardar replicou Kate.
Perguntou a si própria porque era tão importante que fosse ela a abrir o baú. Agachou-se e, com a mão direita envolta no lenço, levantou lentamente a tampa e lançou-a para trás. O braço pareceu-lhe mais pesado, mas o seu movimento ascendente foi tão gracioso e formal como se aquela acção fizesse parte da inauguração de uma cerimónia. O cheiro que se alastrou era tão nauseabundo que quase se sentiu sufocar. Como sempre, despertou-lhe emoções contraditórias, das quais só conseguia discernir o choque, a raiva e a triste constatação da mortalidade, emoções que foram substituídas pela determinação. Afinal, aquele era o seu trabalho e fora treinada para lidar com a morte.
A rapariga estava enfiada no baú de lado, como um feto grande, com os joelhos unidos quase a tocarem na cabeça inclinada, e os braços cruzados. Dava a impressão de que havia sido guardada com todo o cuidado, como um objecto, num espaço tão exíguo. Não se via o rosto, mas madeixas louras tombavam, tão delicadamente como a seda, sobre as suas pernas e os seus ombros. Usava casaco e calças cremes e botas curtas pretas de cabedal. Tinha o braço direito dobrado, com a mão pousada sobre o ombro esquerdo. Apesar das unhas compridas e pintadas de um encarnado garrido e do anel grosso, de ouro, no dedo anelar, aquela mão parecia tão pequena e vulnerável como a de uma criança.
Não tem carteira comentou Benton-Smith, nem consigo ver o telemóvel. Provavelmente, está num dos bolsos do casaco. Ao menos, ajudar-nos-á a descobrir quem é.
Não devemos tocar em mais nada replicou Kate. Esperaremos por Mister Dalgliesh.
Benton-Smith baixou-se mais.
Que flores murchas são estas... espalhadas pelo cabelo dela?
As pétalas pequenas ainda conservavam alguns vestígios de cor púrpura e Kate reconheceu a forma de duas folhas.
São, ou melhor, eram violetas-africanas respondeu.
Quando Dalgliesh telefonou para o hospital universitário, sentiu um grande alívio por saber que Miles Kynaston estava disponível e o haverem encontrado antes de dar início a uma aula que pudera adiar. Sendo um dos mais eminentes patologistas do mundo, podia estar debruçado sobre um cadáver em decomposição avançada num terreno distante, ou haver sido chamado para um caso no estrangeiro. Dalgliesh podia ter convocado outros patologistas do Ministério do Interior, porque eram todos eles muito competentes, mas Miles Kynaston era o seu patologista favorito. Não deixava de ser interessante, pensou, que dois homens que pouco sabiam da vida privada um do outro, que não tinham outros interesses em comum a não ser o seu trabalho e que raramente se viam, excepto num local onde houvesse um corpo putrefacto, sentissem a reconfortante segurança proporcionada pela compreensão e pelo respeito instintivos sempre que se encontravam. A fama e a reputação de alguns casos mais publicitados não haviam transformado Kynaston numa prima-dona. Quando o chamavam, acorria prontamente, abstinha-se de recorrer ao humor macabro que alguns patologistas e detectives empregavam como antídoto para o horror ou o nojo, elaborava relatórios de autópsias que eram um modelo de clareza e de boa prosa e, quando depunha no banco das testemunhas, escutavam-no com todo o respeito. Na realidade, corria o risco de ser considerado infalível. A memória do grande Bernard Spilsbury ainda estava muito viva e não era bom para o sistema de justiça criminal, quando uma testemunha avalizada apenas tinha de se sentar no lugar reservado às testemunhas para que todos acreditassem nela.
Corria o boato de que a ambição de Kynaston fora ser médico de clínica geral, mas que tivera de mudar de rumo antes de concluir o estágio, devido à sua relutância em testemunhar o sofrimento humano, e não restavam dúvidas de que era poupado a esse sofrimento enquanto patologista forense. Não seria ele que bateria à porta de casas desconhecidas, arranjando coragem para dar as más novas a um familiar ou a um amigo. No entanto, para Dalgliesh, aquele boato era infundado; Kynaston devia ter descoberto a sua aversão ao sofrimento alheio muito antes de entrar na faculdade de Medicina. Talvez o que movesse Kynaston fosse uma obsessão pela morte, as suas causas, as suas diversas manifestações, a sua universalidade e inevitabilidade, o seu mistério. Não tendo qualquer religião nem crença, tanto quanto Dalgliesh sabia, tratava, contudo, cada cadáver como se o seu sistema nervoso ainda pudesse sentir e os seus olhos vítreos ainda pudessem rogar-lhe um diagnóstico esperançoso. E, quando Dalgliesh observava aquelas mãos pequenas, anafadas e cobertas pelas luvas de látex a mover-se enquanto examinava um cadáver, por vezes tinha a irracional impressão de que Kynaston ministrava a sua própria e laica extrema-unção.
Mantivera o mesmo aspecto durante anos, mas havia visivelmente envelhecido desde a última vez que se haviam encontrado, como se houvesse descido de súbito a um nível inferior do contínuo declínio físico. O seu corpo tornara-se mais pesado, a linha de cabelo na testa sardenta avançara, mas mantinha os mesmos olhos vivos e as mesmas mãos firmes.
Passavam três minutos do meio-dia. As persianas haviam sido baixadas, parecendo desligar o tempo e expulsar a hostil penumbra do fim da manhã. Para Dalgliesh, a Sala do Crime parecia apinhada, e, no entanto, havia apenas seis pessoas para além dele, de Kate, de Piers e de Kynaston. Os dois fotógrafos haviam concluído o seu trabalho e começado a arrumar o equipamento, mas ainda havia uma lâmpada que, do alto, iluminava o corpo. Dois peritos em impressões digitais passavam pó pelo baú, enquanto Nobby Clark e um segundo agente inspeccionavam meticulosamente o chão que, segundo parecia, oferecia poucas esperanças de conter pistas físicas. Usando os fatos próprios do seu ofício, todos eles se movimentavam com confiança, falando em voz baixa mas não num murmurar artificial. Quem os visse podia julgar, pensou Dalgliesh, que estavam concentrados num ritual esotérico secreto. As fotografias alinhavam-se, numa parede, como uma fileira de testemunhas silenciosas, contaminando a sala com as tragédias e as desgraças do passado: Rouse, com o seu cabelo liso e o seu sorriso complacente de sedutor; Wallace, com o seu colarinho alto e os olhos dóceis por trás dos óculos de armação metálica; Edith Thompson, com um chapéu de abas largas, rindo ao lado do seu jovem amante, sob um sol de Verão.
Haviam removido o corpo, que agora jazia ao lado do baú, sobre um lençol de plástico. O brilho impiedoso da luz que se projectava directamente sobre a rapariga havia dissipado os últimos traços de humanidade, e ela parecia tão artificial como uma boneca pronta a ser embalada. O cabelo louro e brilhante apresentava raízes castanhas. Devia ter sido bonita em vida, com uma sensualidade felina, mas não havia nem beleza nem serenidade naquele rosto sem vida. Os seus olhos azul-claros e ligeiramente exoftálmicos estavam esbugalhados, dando ideia de que, com uma pressão na sua testa, saltariam e rolariam como berlindes pelas suas faces pálidas. Tinha a boca entreaberta e dentes perfeitos, pousados sobre o lábio inferior, como num esgar. Um fio de muco secara no lábio superior. Havia uma nódoa negra de cada lado do pescoço fino: as marcas de mãos fortes que lhe haviam tirado a vida.
Dalgliesh permaneceu de pé em silêncio a observar Kynaston, acocorado, enquanto se movia lentamente em volta do corpo, estendia os dedos lívidos da rapariga e lhe virava a cabeça da esquerda para a direita, a fim de poder perscrutar melhor as equimoses. Por fim, pegou na sua velha mala Gladstone, que trazia sempre consigo, e procurou o termómetro rectal. Passados alguns minutos, deu por concluído o seu exame preliminar e pôs-se de pé.
A causa da morte é óbvia. A rapariga foi estrangulada. O assassino usava luvas e era destro. Não detectei marcas de unhas, arranhões nem sinais de que a vítima se tenha tentado libertar das mãos que lhe apertaram o pescoço. Perdeu muito rapidamente os sentidos. A pressão mais forte foi feita pela mão direita, na parte da frente do pescoço. Pode ver-se a marca de um polegar por baixo do maxilar inferior, sobre o cornu da tiróide e, no lado esquerdo, as marcas resultantes da pressão feita pelos restantes dedos. Estão um pouco mais abaixo, alinhados na vertical, junto à cartilagem da tiróide.
Uma mulher podia ter feito isto? perguntou Dalgliesh.
Teria de ser forte, mas não de ser dotada de uma força descomunal. A vítima era magra e tinha um pescoço estreito. Sim, podia ter sido uma mulher a estrangulá-la, mas não, por exemplo, uma mulher frágil ou alguém com artrite nas mãos. A hora da morte? É complicado determiná-la em virtude de o baú ser praticamente hermético. Talvez lhe possa fornecer dados mais exactos após a autópsia. Por enquanto, a minha estimativa é a de que a rapariga foi assassinada, pelo menos, há quatro dias, provavelmente há cinco.
O Dupayne morreu por volta das dezoito horas da passada sexta-feira. E possível que esta morte tenha ocorrido aproximadamente à mesma hora? perguntou Dalgliesh.
É perfeitamente possível, mas, mesmo depois da autópsia, não poderei determiná-lo com tanta precisão. Amanhã de manhã, tenho algum tempo livre, às oito e meia. Tentarei enviar-lhe o meu relatório ao princípio da tarde.
Haviam encontrado o telemóvel no bolso do casaco da vítima. Era um dos modelos mais recentes. Dirigindo-se para a outra extremidade da sala, Piers premiu as teclas com os dedos enluvados, a fim de descobrir a origem do telefonema, e depois marcou o número.
Foi uma voz masculina que atendeu.
Garagem Mercer.
Penso que acabou de telefonar para este número, mas não nos foi possível atender...
Sim, é verdade. É só para dizer que o carro da Célia Mellock já está arranjado e para perguntar se ela quer vir buscá-lo ou se prefere que lho levemos a casa.
Ela disse que prefere que lho entreguem. Sabe qual é o endereço, não é assim?
Sim. É o número quarenta e sete de Manningtree Gardens, Earls Court Road.
Pensando melhor, esqueça. Ela acabou de sair e talvez prefira ir buscar o carro. De qualquer forma, dar-lhe-ei o recado. Obrigado.
Piers desligou.
Já temos o nome e a morada anunciou a Dalgliesh. E também sabemos porque foi que ela não veio até ao museu de carro. Estava a ser reparado numa garagem. O nome dela é Célia Mellock e o seu endereço é o número quarenta e sete de Manningtree Gardens, Earls Court Road.
Haviam colocado luvas de plástico nas mãos da rapariga e as suas unhas brilhavam como se tivessem sido mergulhadas em sangue. Erguendo-lhe as mãos com delicadeza, o Dr. Kynaston cruzou-as sobre o peito da morta. Depois, enfiou o corpo no saco de plástico e puxou o fecho de correr. O fotógrafo começou a desatarraxar a sua lâmpada enquanto o Dr. Kynaston, já sem luvas, despia a bata e a enfiava no seu saco Gladstone. Haviam pedido uma carrinha mortuária e Piers descera ao piso térreo para esperá-la. Foi então que a porta se abriu e uma mulher entrou com passos decididos.
O que está aqui a fazer, Mistress Strickland? exclamou Kate num tom de voz ríspido.
Hoje é quarta-feira respondeu Mrs. Strickland, calmamente. Presto voluntariado no museu às quartas-feiras, das nove e meia da manhã à uma da tarde, e, às sextas, das duas às cinco da tarde. Foram os horários que estabeleci. Pensei que o soubessem.
Quem a deixou entrar?
Miss Godby, claro. Sabe melhor do que ninguém que nós, os voluntários, temos de ser meticulosos com as nossas obrigações. Disse-me que o museu estava encerrado ao público, mas eu não sou um visitante.
Avançou, aparentemente sem qualquer repugnância, para o saco de plástico.
Vejo que têm um cadáver aí dentro. Detectei o cheiro inconfundível assim que abri a porta da biblioteca. Tenho um olfacto muito apurado. Perguntava a mim própria o que acontecera ao grupo de visitantes de Mister Ackroyd. Disseram-me que eles visitariam a biblioteca e tirei algumas das publicações mais interessantes para que pudessem vê-las. Agora, deduzo que já não virão...
Acabam de sair, Mistress Strickland replicou Dalgliesh, e lamento, mas tenho de lhe pedir que faça o mesmo.
Ir-me-ei embora daqui a dez minutos, mas antes preciso de arrumar a pequena exposição que tinha preparado. Pelos vistos, foi uma perda de tempo... Gostava que alguém me tivesse informado sobre o que se passou. Mas afinal o que aconteceu? Suponho que houve uma segunda morte suspeita, uma vez que se encontra aqui, comandante. Só espero que não seja nenhuma das pessoas que trabalha no museu.
Não, não é ninguém que trabalhasse para o museu, Mistress Strickland.
Dalgliesh, ansioso por se ver livre dela, mas não querendo contrariá-la, manteve a paciência.
Deduzo que seja um homem continuou Mrs. Strickland, porque não vejo nenhuma mala de mão. Ora nunca nenhuma mulher seria encontrada sem a sua mala de mão. E essas flores murchas? Parecem violetas-africanas. São violetas, não é verdade? É o corpo de uma mulher?
Sim, mas peco-lhe que não fale disto a ninguém. Temos de informar a família. Alguém pode ter dado pela sua ausência e estar preocupado com o seu paradeiro. Até informarmos a família mais próxima, qualquer fuga de informação poderá comprometer a investigação e causar-nos problemas. Estou certo de que compreende a nossa posição. Lamento não haver sabido que se encontrava no museu. Ainda bem que não chegou mais cedo...
Os mortos não me causam qualquer aflição replicou Mrs. Strickland. Só os vivos me causam problemas, de tempos a tempos. Suponho que a família já saiba... Refiro-me aos Dupayne, claro...
Miss Dupayne e Mister Calder-Hale achavam-se presentes quando descobrimos o corpo. Não tenho quaisquer dúvidas de que um deles ou até ambos já terão telefonado ao Marcus Dupayne.
Finalmente, Mrs. Strickland virou-se para a porta.
Ela estava dentro do baú, não é assim?
Sim, de facto admitiu Dalgliesh, ela estava no baú.
Com as violetas? Terá alguém tentado estabelecer um elo de ligação com Violette Kaye?
O olhar de Dalgliesh cruzou-se com o de Mrs. Strickland, mas nem um nem outro deixaram transparecer qualquer demonstração de reconhecimento. Era como se aquela hora no apartamento de Barbican, o vinho e a intimidade que haviam partilhado, as confidências que ela lhe fizera nunca houvessem existido. Para Dalgliesh, era como se falasse com uma desconhecida. Seria aquela a forma de Mrs. Strickland se distanciar de alguém a quem fizera perigosas confidências?
Devo insistir para que se retire, a fim de que possamos continuar o que estávamos a fazer tornou a pedir.
Com certeza. Não é minha intenção impedir que a polícia cumpra o seu dever. O seu tom de voz fora irónico. Avançou para a porta, mas voltou-se e anunciou: Se vos serve de alguma ajuda, ela não estava no baú às quatro horas da passada sexta-feira.
Fez-se silêncio. Se Mrs. Strickland quisera ter uma saída teatral, conseguira-o.
Como pode estar certa disso, Mistress Strickland? perguntou Dalgliesh, sempre num tom de voz calmo.
Porque eu estava aqui quando o Ryan Archer abriu o baú e suponho que queiram saber porquê...
Dalgliesh teve de refrear o ridículo impulso de dizer que não lhe passara pela cabeça fazer tal pergunta.
Foi por pura curiosidade continuou Mrs. Strickland. Talvez impura curiosidade fosse o termo mais apropriado... Penso que o rapaz sempre quis ver o interior do baú. Acabara de aspirar o corredor que comunica com a biblioteca. Não era o momento apropriado, como é óbvio, mas também nunca o é... Tenho dificuldade em concentrar-me com aquele desagradável ruído de fundo e, sempre que há visitantes, ele tem de desligar o aspirador. De qualquer forma, ele estava ali. Quando desligou o aspirador, entrou na biblioteca, mas, porquê, não sei... Talvez lhe apetecesse ter companhia... Eu acabara de fazer umas etiquetas novas para o caso Wallace e ele aproximou-se para as examinar. Disse-lhe que ia levá-las para a Sala do Crime e ele perguntou-me se podia acompanhar-me. Não vi motivo para lhe dizer que não.
E tem a certeza quanto à hora?
A certeza absoluta. Quando entrámos nesta sala ainda não eram quatro horas. Ficámos aqui cerca de cinco minutos. Depois, o Ryan foi receber o seu pagamento. Eu saí pouco depois das cinco. A Muriel Godby estava na recepção e, como já sabem, ofereceu-se para me dar boleia até à estação de metro de Hampstead. Esperei enquanto ela e a Tally Glutton inspeccionavam o museu. Deviam ser umas cinco e vinte quando finalmente partimos.
E o baú estava vazio? perguntou Kate. Mrs. Strickland fitou-a.
O Ryan não é o rapaz mais inteligente nem o mais digno de confiança, mas se tivesse encontrado um cadáver dentro do baú, acho que o teria dito. À parte isso, teria havido outros indícios, se a morta estivesse no baú há já algum tempo.
Lembram-se do que falaram nessa altura? Mencionaram algo importante?
Se bem me recordo, avisei o Ryan de que ele não devia tocar nas peças expostas. Não o recriminei. O seu gesto pareceu-me perfeitamente natural. Creio que ele disse que o baú estava vazio e que não vira manchas de sangue. Parecia desiludido.
Dalgliesh virou-se para Kate.
Veja se consegue encontrar o Ryan Archer. Hoje é quarta-feira, portanto, deve estar de serviço. Viu-o chegar?
Não, senhor. Provavelmente, encontra-se no jardim.
Pois veja se o descobre e se ele confirma esta informação. Não lhe explique o motivo das suas perguntas. Ele ficará a sabê-lo em breve, mas quanto mais tarde melhor. Duvido que conseguisse resistir à tentação de espalhar a notícia. Neste momento, a nossa prioridade é informar a família da rapariga.
Mrs. Strickland voltou-se de novo para a porta.
Façam favor de confirmar o que vos acabo de dizer, se bem que, se fosse eu, não assustaria o rapaz porque, se forem mais bruscos, ele negará tudo.
E saiu. Kate viu-a entrar na biblioteca quando desceu a escada.
Benton-Smith achava-se de guarda à porta de entrada. Ao vê-la, inclinou a cabeça na direcção do gabinete da recepção e comentou:
Começam a impacientar-se. Miss Dupayne já me perguntou duas vezes quando é que o comandante vai falar com elas. Aparentemente, precisam dela na escola, porque uma possível aluna vai visitar as instalações com os pais. Foi esse o motivo do telefonema de Lady Swathling.
Diga a Miss Dupayne que já falta pouco. Por acaso, viu o Ryan Archer?
Não, inspectora. O que se passa?
Mistress Strickland afirma que esteve na Sala do Crime com o Ryan às quatro horas da passada sexta-feira, e que ele levantou a tampa do o baú.
Benton já abrira a porta.
É uma informação útil. Ela tem a certeza da hora?
Ela diz que sim. Vou ver se encontro o Ryan. Hoje é quarta-feira. O rapaz deve andar por aí.
Apesar da obscuridade do dia, soube-lhe bem sair do museu e respirar ar fresco. Percorreu o caminho de entrada mas nem sinais de Ryan. A carrinha mortuária acabara de chegar e, voltando-se, viu que Benton-Smith saíra do seu posto para destrancar a barreira. Kate não aguardou. Não precisavam dela para transportar o corpo. A sua missão era encontrar Ryan. Passou pela garagem queimada em direcção às traseiras do museu, e foi então que avistou Ryan a trabalhar no jardim da casa de Mrs. Glutton. Usava um anoraque grosso, calças de ganga sujas e um gorro de lã com uma borla. Ajoelhado ao lado do canteiro que havia em frente de uma das janelas, afastava a terra com a sachola para plantar bolbos. Ergueu a cabeça quando ela se aproximou, e Kate detectou na expressão do rapaz um misto de desconfiança e de medo.
Precisas de enterrá-los mais fundo do que isso, Ryan disse-lhe. Mistress Faraday não te mostrou como se plantam os bolbos?
Ela não sabe que estou aqui e também não se importaria. Quando tenho algum tempo, gosto de trabalhar no jardim de Mistress Glutton. Estou a plantar estes bolbos para lhe fazer uma surpresa na próxima Primavera.
Tu também terás uma surpresa, Ryan, quando os bolbos não florescerem. Estás a plantá-los de cabeça para baixo...
E isso é importante? exclamou o rapaz olhando, desconsolado, para o último buraco que fizera.
Talvez os bolbos se endireitem e acabem por florescer, mas não sou uma especialista na matéria. Ryan, olhaste para o interior do baú da Sala do Crime na sexta-feira passada? Levantaste a tampa?
O rapaz cravou com mais força a sachola na terra.
Não. Nunca. Porque haveria de fazer isso? Não tenho permissão de ir à Sala do Crime.
Mas Mistress Strickland afirmou que estiveste lá com ela. Estás a dizer-me que ela mentiu?
Ryan fez uma pausa antes de responder.
Bom, se calhar, estive lá... Já não me lembrava... De qualquer forma, não fiz nada de errado. Não passa de um baú vazio.
Então é isso? Estava vazio?
Pelo menos, não havia nenhuma prostituta morta quando espreitei. Nem sequer manchas de sangue. Mistress Strickland estava comigo e poderá confirmar o que digo. Mas quem é que se queixou?
Ninguém, Ryan. Só queremos certificarmo-nos de certos factos. Então agora estás a dizer a verdade? Estiveste com Mistress Strickland pouco antes de saíres do museu e espreitaste para o interior do baú?
Já não lhe disse que sim? Então ergueu novamente a cabeça e Kate apercebeu-se do horror que bailava nos olhos do rapaz. Mas porque me faz essa pergunta? O que tem isso a ver com a polícia? Descobriram alguma coisa, não foi?
Seria desastroso se Ryan espalhasse a notícia antes de a polícia informar a família da rapariga. Era melhor não lhe contar nada, mas, na prática, isso revelava-se quase impossível, porque Ryan ficaria a par do que acontecera mais cedo ou mais tarde.
Encontrámos um cadáver no baú replicou Kate, mas não sabemos como foi lá parar. Até o descobrirmos, é importante que fiques calado. Saberemos, se abrires a boca, porque mais ninguém o fará. Compreendeste o que te disse, Ryan?
O rapaz fez que sim com a cabeça. Kate observou-o enquanto ele pegava em mais um bolbo com as mãos enlameadas e o inseria cuidadosamente no buraco. Parecia muito novo e vulnerável. Kate foi invadida por um sentimento incómodo e irracional de pena.
Prometes que nada dirás, Ryan? voltou a pedir.
Então... e Mistress Tally? replicou ele. Não lhe posso dizer? Ela deve estar de volta a qualquer momento. A bicicleta já está reparada e ela foi até Hampstead fazer compras.
Está descansado que falaremos com ela. Agora, porque não vais para casa?
Esta é a minha casa. Vou ficar aqui com Mistress Tally durante algum tempo, e só me irei embora quando estiver pronto.
Quando Mistress Tally regressar, diz-lhe que a polícia está aqui e pede-lhe que vá ao museu. Mas só ela, tu não.
Está bem, eu dou-lhe o recado. Não posso dizer-lhe porquê?
Ergueu a cabeça e fitou Kate com um olhar inocente e inexpressivo, mas ela não se deixou iludir.
Não lhe digas nada, Ryan. Limita-te a fazer o que te peço. Falaremos contigo mais tarde.
E sem dizer mais nada, Kate afastou-se. A carrinha mortuária, sinistra no seu negro anonimato, ainda se achava à entrada do museu. Kate acabara de chegar à porta quando ouviu o ruído de rodas a rolar no cascalho e, virando-se, viu Mrs. Glutton, que pedalava pelo caminho. O cesto da bicicleta estava apinhado de sacos de plástico. Apeou-se e conduziu a bicicleta para o relvado, contornando a barreira. Kate foi ao seu encontro.
Acabo de falar com o Ryan explicou. Receio ter más notícias. Encontrámos outro corpo, o de uma rapariga, na Sala do Crime.
Mrs. Glutton apertou com força o guiador da bicicleta.
Mas eu estive esta manhã, às nove horas, a limpar a Sala do Crime e não vi lá ninguém.
Não havia maneira de amenizar a brutalidade dos factos.
Ela estava dentro do baú, Mistress Glutton.
Que horror! Foi algo que sempre receei... Tinha medo de que uma criança se enfiasse no baú e ficasse lá fechada, se bem que esse medo fosse irracional.... As crianças não podem visitar a Sala do Crime e um adulto nunca ficaria lá preso. A tampa não se tranca automaticamente nem é muito pesada. Mas como foi que isso aconteceu?
Tinham começado a caminhar, lado a lado, em direcção à casa.
Lamento informá-la de que não se tratou de um acidente respondeu Kate. A rapariga foi estrangulada.
Mrs. Glutton sentiu uma súbita vertigem e, por segundos, Kate pensou que ela ia cair. Estendeu a mão para a amparar. Mrs. Glutton apoiou-se à bicicleta, com os olhos postos na carrinha mortuária, ao longe. Já a havia visto antes. Sabia o que representava, mas conseguiu recompor-se.
Outra morte, outro assassínio murmurou. Alguém sabe quem é a rapariga?
Pensamos que se chama Célia Mellock. O nome diz-lhe alguma coisa?
Não, nada. E como conseguiu ela entrar? Não havia ninguém no museu quando eu e a Muriel passámos todas as salas em revista, ontem à tarde.
O comandante Dalgliesh está cá, bem como Miss Dupayne e Mister Calder-Hale. Ficávamos-lhe gratos se fosse juntar-se a eles.
E o Ryan?
Não me parece que precisemos dele por enquanto. Se for necessário, mandaremos chamá-lo.
Tinham chegado ao museu.
Deixe-me guardar a bicicleta na barraca do jardim e já irei ter consigo anunciou Mrs. Glutton.
Kate, contudo, não a deixou sozinha. Dirigiram-se à barraca e ela esperou enquanto Mrs. Glutton levava os sacos de plástico para casa. Não havia sinais de Ryan, se bem que a sachola e o cesto ainda estivessem no canteiro. Depois, as duas, em silêncio, encaminharam-se para o museu.
Quando Kate voltou à Sala do Crime, o Dr. Kynaston já saíra.
Onde estão eles? perguntou Dalgliesh.
Passaram para a galeria de quadros, incluindo Mister Calder-Hale. A Tally Glutton já regressou e está com eles. Deseja vê-los todos ao mesmo tempo?
Seria um método conveniente de confrontar as diferentes histórias. Penso que se estabeleceu a hora da morte da rapariga, sem grande margem para dúvidas. De acordo com o testemunho de Mistress Strickland e com o exame preliminar do doutor Kynaston, sabemos que morreu na sexta-feira, mais ao princípio do que ao fim da noite. O bom senso sugere que morreu pouco antes ou pouco depois de Dupayne. Um duplo homicídio. Recuso-me a acreditar que tenhamos dois assassinos diferentes, no mesmo local, na mesma tarde, aproximadamente à mesma hora.
Deixando Benton-Smith na Sala do Crime, Dalgliesh, Kate e Piers desceram ao átrio de entrada deserto e entraram na galeria de quadros. Seis pares de olhos viraram-se, aparentemente em simultâneo, para fitá-los. Mrs. Strickland e Caroline ocupavam as duas poltronas que se encontravam em frente da lareira. Muriel Godby e Tally Glutton estavam sentadas no banco almofadado que se encontrava no centro da sala, enquanto Marcus Dupayne e James Calder-Hale se achavam de pé, junto a uma das janelas. Ao olhar para Muriel Godby e Tally Glutton, Kate lembrou-se dos pacientes que havia visto na sala de espera de um oncologista; ambas estavam cientes da presença uma da outra, mas não falavam ou se entreolhavam, uma vez que cada uma delas sabia que só conseguiria suportar a sua própria ansiedade. No entanto, também detectou uma atmosfera em que a excitação se misturava à apreensão e a que apenas Mrs. Strickland parecia imune.
Já que estão todos aqui anunciou Dalgliesh, parece-me ser o momento ideal para confirmar informações já fornecidas e descobrir o que sabem, se é que sabem alguma coisa sobre esta nova morte. O museu terá de permanecer encerrado, a fim de que os peritos em cenários de crime possam examinar todas as divisões. Vou precisar de todas as chaves. Quantos molhos existem e quem os tem?
Foi Caroline Dupayne que respondeu:
Eu e o meu irmão, bem como Mister Calder-Hale, Miss Godby, Mistress Glutton e as duas voluntárias, e ainda há um molho de reserva que fica guardado no gabinete.
Tenho andado a deixar entrar Mistress Strickland explicou Muriel Godby, porque, há dez dias, me disse que perdera as suas chaves. Repliquei que deveríamos esperar, pelo menos, uma semana antes de mandarmos fazer um duplicado do molho.
Mrs. Strickland não fez qualquer comentário. Dalgliesh dirigiu-se a Caroline.
Também terei de acompanhá-la, esta tarde, para ver as divisões do seu apartamento.
Caroline mostrava alguma dificuldade em manter a compostura.
Pensa realmente que é necessário, comandante? O único acesso às galerias a partir do meu apartamento está sempre trancado e só Miss Godby e eu possuímos as chaves da porta de entrada.
Se não fosse necessário, não lho pedia.
Não podemos sair do museu, assim sem mais nem menos protestou Calder-Hale. Tenho assuntos dos quais só posso tratar no meu gabinete e papéis a levar comigo, para os ler amanhã.
Não estamos a pedir-vos que saiam imediatamente do museu replicou Dalgliesh, embora agradecesse que nos entregassem as vossas chaves, ao fim da tarde. Entretanto, os peritos e o sargento Benton-Smith permanecerão aqui e, como é evidente, a Sala do Crime ficará interdita a todos.
A implicação contida naquele pedido era tão clara como desagradável: enquanto permanecessem no museu, seriam submetidos a uma discreta mas apertada vigilância.
Então, não foi um acidente? quis saber Marcus Dupayne. Pensava que a rapariga se tivesse enfiado no baú, talvez por curiosidade ou em resposta a um qualquer desafio, e que ficara fechada, quando a tampa lhe caiu em cima. Não é uma possibilidade a ter em conta? Morte por asfixia?
Não, neste caso respondeu Dalgliesh, mas, antes que continuemos, seria conveniente deixar o museu entregue aos peritos. Mistress Glutton, importa-se que usemos a sua sala de estar?
Tally Glutton e Mrs. Strickland haviam-se levantado, e Tally olhou, desconcertada, para Caroline Dupayne, que encolheu os ombros.
E a sua casa, enquanto ali viver. Se conseguir acolher-nos a todos, não me oponho.
Creio que há espaço suficiente retorquiu Tally. Posso trazer mais cadeiras da sala de jantar.
Então, é melhor sairmos daqui e acabarmos com isto o mais depressa possível rematou Caroline Dupayne.
O pequeno grupo saiu da galeria e esperou no corredor, enquanto Dalgliesh voltava a trancar a porta. Contornaram o museu, com passos arrastados e em silêncio, como se fizessem parte de um cortejo fúnebre acabado de sair do crematório. Seguindo Dalgliesh, quando este transpôs o pórtico da vivenda, Kate quase esperava encontrar sanduíches de presunto e uma garrafa de uma bebida revigorante na mesa da sala de estar.
Seguiu-se uma certa confusão quando Marcus Dupayne, com a ajuda de Kate, trouxe mais cadeiras e os outros se instalaram em volta da mesa. Somente Caroline Dupayne e Mrs. Strickland pareciam sentir-se à vontade. Ambas escolheram a cadeira que preferiam, sentaram-se e aguardaram, Caroline Dupayne com severa condescendência e Mrs. Strickland com uma expressão de expectativa controlada, como se estivesse preparada para permanecer ali enquanto se sentisse interessada pelo interrogatório.
A sala, com a sua alegre simplicidade e atmosfera caseira, era incompatível com uma reunião daquele género. A lareira já estava acesa no mínimo, provavelmente, pensou Kate, para beneficiar o grande gato de pêlo amarelo-torrado, enroscado na mais confortável das duas cadeiras que ladeavam a lareira. Piers, que queria observar o que se passava, afastado do grupo que se instalara em volta da mesa, deu um piparote no gato para o tirar da cadeira. Ofendido, o animal dirigiu-se à porta com a cauda a abanar para, depois, desatar a correr até à escada.
Meu Deus! O Tomcat vai enfiar-se na minha cama! exclamou Tally. Ele sabe que não pode fazer isso. Se me dão licença...
Correu atrás do animal, enquanto os outros esperavam com o mesmo mal-estar dos convidados que aparecem num momento inoportuno. Tally apareceu à porta da sala com um dócil Tomcat nos braços.
Vou pô-lo lá fora. Em geral, ele anda lá por fora até ao entardecer, mas, hoje de manhã, apoderou-se da cadeira, adormeceu e não tive coragem de o incomodar.
Ouviram-na ralhar com o gato e, depois, o ruído da porta a fechar-se. Caroline Dupayne olhou para o irmão, com as sobrancelhas erguidas e um sorriso sardónico. Finalmente, estavam instalados.
Dalgliesh manteve-se de pé ao lado da janela virada para sul.
O nome da rapariga é Célia Mellock. Alguém a conhece? Não lhe passou despercebido o olhar rápido que Muriel
Godby lançou a Caroline Dupayne, mas a secretária nada disse e foi Caroline que respondeu:
Tanto Miss Godby como eu a conhecemos ou, melhor dizendo, conhecíamos. Foi aluna em Swathling’s, no ano passado, mas saiu no final do segundo trimestre, que terminou na Primavera de dois mil e um. Miss Godby trabalhava como recepcionista na escola desde o trimestre anterior. Não vejo a Célia desde que saiu da escola. Nunca lhe dei aulas, mas fui eu que entrevistei a Célia e a mãe, antes de a admitir. Ficou connosco apenas durante dois trimestres e não se pode dizer que tenha sido uma boa escolha...
Os pais dela estão em Inglaterra? Sabemos que o endereço de Miss Mellock é o número quarenta e sete de Manningtree Gardens, Earls Court Road, e já telefonámos, mas ninguém atendeu.
Penso que é o endereço da casa dela e não da dos pais
replicou Caroline Dupayne. Posso falar-lhe da família, se bem que não saiba grande coisa. A mãe casou-se pela terceira vez, cerca de um mês antes de a Célia entrar na nossa escola. Não me lembro do nome do marido. Creio que é um industrial, e muito rico, claro, se bem que a própria Célia não fosse pobre. O pai dela deixou-lhe um fundo, em fideicomisso, e ela teve acesso ao capital quando completou dezoito anos. Era muito nova, mas estava estipulado desse modo. Agora me recordo que a mãe dela costumava passar grande parte do Inverno no estrangeiro. Se não se encontra em Londres, provavelmente estará nas Bermudas.
Que extraordinária memória comentou Dalgliesh.
Obrigado.
Caroline Dupayne encolheu os ombros.
Geralmente, não costumo enganar-me na selecção das alunas, mas, com a Célia, cometi um erro. Os fracassos são raros em Swathling’s e, por isso, lembro-me deles mais facilmente.
Foi Kate que prosseguiu, virando-se para Muriel Godby.
Conheceu bem Miss Mellock enquanto trabalhou na escola?
Não a conhecia. Tinha muito pouco contacto com as alunas e o pouco que tinha não era agradável. Algumas não gostavam de mim, mas nunca percebi porquê. Uma ou outra chegaram a ser hostis para comigo e lembro-me perfeitamente dos seus nomes, mas essa rapariga não era uma delas. Não me parece que passasse muito tempo na escola e duvido que tenhamos chegado a falar uma com a outra.
Mais alguém conhecia a rapariga? Ninguém respondeu, mas todos menearam negativamente a cabeça. Alguém faz ideia do motivo que a levou ao museu?
De novo, todos menearam a cabeça.
E de presumir que tenha ido ao museu como visitante sugeriu Marcus Dupayne, ou sozinha ou com o seu assassino. Parece pouco provável que se tenha encontrado com alguém por mero acaso. Talvez Miss Godby se lembre dela.
Todos os olhos se viraram para Muriel.
Duvido muito que a reconhecesse, se a tivesse visto entrar. Talvez ela me reconhecesse e me falasse, mas não o creio. Se não consigo lembrar-me dela, porque haveria ela de lembrar-se de mim? Só posso dizer que não entrou no museu enquanto eu estive na recepção.
Suponho que a escola possua o nome e o endereço da mãe de Miss Mellock interveio Dalgliesh. Miss Dupayne, não se importa de ligar para lá e obter essa informação, por favor?
Saltou à vista que aquele pedido não foi bem recebido.
Não parecerá um pouco estranho? exclamou Caroline. A rapariga saiu no ano passado e depois de ter estado connosco apenas durante dois trimestres.
Destroem assim tão rapidamente as fichas das vossas antigas alunas? Claro que não. Não precisa de falar com Lady Swathling. Basta que peça a uma das secretárias que procure a ficha. Afinal, não é a directora adjunta? Porque não haveria de pedir uma informação de que precisa?
Mesmo assim, Caroline Dupayne hesitou.
Não podem descobri-lo de outra forma? Não me parece que a morte da rapariga tenha qualquer relação com a Swathling’s.
Isso, ainda não o sabemos. A Célia Mellock foi aluna da escola, a senhora é a directora adjunta e ela foi encontrada no seu museu.
Se põe as coisas nesse pé...
Sim, ponho. Temos de informar a família dela. Existem outras formas de descobrir o endereço da família, mas esta é a mais rápida.
Caroline não levantou mais objecções e levantou o auscultador do telefone.
Miss Cosgrove? Preciso do endereço e do número de telefone da mãe da Célia Mellock. A ficha está no armário do lado esquerdo, na secção das antigas alunas.
A espera prolongou-se por um minuto, pelo menos. Por fim, Caroline anotou as informações e entregou-as a Dalgliesh, que lhe agradeceu e entregou o papel a Kate.
Veja se pode marcar um encontro, o mais depressa possível ordenou a Kate, que não precisou de mais instruções para saber que devia ligar à família através do seu telemóvel, fora da vivenda. A porta fechou-se atrás dela.
A obscuridade das primeiras horas da manhã dissipara-se mas o Sol ainda não começara a brilhar e o vento era frio. Kate resolveu fazer o telefonema no seu carro. O endereço ficava em Brook Street e quem atendeu tinha a voz melíflua de alguém que devia pertencer ao pessoal. Lady Holstead e o marido achavam-se na sua casa das Bermudas e não havia autorização para fornecer o número.
Daqui fala a inspectora Miskin, da Scotland Yard replicou Kate. Se desejar verificar a minha identidade, indicar-lhe-ei um número de telefone para onde poderá ligar, mas preferia que não perdêssemos mais tempo. Preciso de falar urgentemente com Sir Daniel.
Houve uma pausa. Não se importa de esperar? disse a voz.
Kate pôde ouvir o eco de passos. Volvidos trinta segundos, a voz indicou-lhe o número de telefone da casa das Bermudas, repetindo-o com todo o cuidado.
Kate desligou e reflectiu antes de fazer a segunda chamada, mas não lhe restava qualquer alternativa; a notícia teria de ser dada quanto antes e por telefone. Nas Bermudas, deviam ser umas quatro horas mais cedo. Talvez o telefonema fosse inconveniente porque seria recebido de madrugada, mas não era despropositado. Marcou o número e alguém atendeu quase de imediato.
Uma voz masculina exclamou, indignada:
Sim? Quem fala?
A inspectora Kate Miskin, da Scotland Yard. Preciso de falar com Sir Daniel Holstead.
É o próprio, e não são horas decentes para me telefonar. O que aconteceu? Foi uma nova tentativa de assalto ao nosso apartamento de Londres?
Está sozinho, Sir Daniel?
Sim, estou, e quero saber que raio se passa.
É acerca da sua enteada, Sir Daniel.
Antes que Kate pudesse continuar, ele interrompeu-a.
Em que sarilho se meteu ela desta vez? Ouça, a minha mulher já não é responsável por ela e eu nunca o fui. A rapariga tem dezanove anos, leva a vida como bem entende e tem o seu próprio apartamento. Por isso mesmo, que resolva sozinha os seus problemas. Só tem dado desgostos à mãe desde o dia em que começou a falar. O que foi, desta vez?
Era evidente que Sir Daniel tinha mau acordar, facto que apresentava as suas vantagens.
Receio ser portadora de uma má notícia, Sir Daniel. A Célia Mellock foi assassinada. O corpo dela foi encontrado, ao princípio desta manhã, no Museu Dupayne, em Hampstead Heath.
O silêncio foi tão absoluto que Kate perguntou a si própria se Sir Daniel a ouvira. Preparava-se para repetir a notícia quando Holstead exclamou:
Assassinada? Como?
Foi estrangulada, Sir Daniel.
Está a dizer-me que estrangularam a Célia e que a encontraram num museu? E alguma partida de mau gosto?
Receio que não. Pode verificar a informação telefonando para a Scotland Yard. Pensámos que seria melhor falar com o senhor, primeiro, para que pudesse dar a notícia à sua esposa. Lamento muito. Deve ser um choque terrível.
Meu Deus, se é! Regressaremos ainda hoje no avião da empresa. Não que possamos dizer algo que vos possa ajudar. Nem eu nem a minha mulher vimos a Célia nos últimos seis meses, e ela nunca telefona, nem tinha motivos para isso... Leva a vida como bem entende. Sempre deixou bem claro o que pensava sobre qualquer interferência da nossa parte. Agora, se me dá licença, vou comunicar a notícia a Lady Holstead. Assim que chegarmos a Londres, telefono-lhe. Suponho que ainda não tenham ideia de quem a matou?
Por enquanto, não, Sir Daniel.
Não há nenhum suspeito? Um namorado óbvio? Nada?
Por enquanto, não...
Quem está incumbido do caso? E alguém que eu conheço?
A investigação está a cargo do comandante Adam Dalgliesh. Irá falar com o senhor e com a sua esposa assim que regressarem. Talvez tenhamos então mais informações.
Dalgliesh? O nome não me é estranho. Depois de falar com a minha mulher, telefonarei ao comandante-chefe. Podia ter dado a notícia com um pouco mais de tacto. Adeus, inspectora.
Antes que Kate pudesse replicar, Sir Daniel desligou. Tinha alguma razão, pensou. Se houvesse dado a notícia de imediato, não teria ouvido aquela explosão de rancor. Sabia mais acerca de Sir Daniel Holstead do que ele teria desejado e essa’ ideia deu-lhe uma certa satisfação, mas perguntou a si própria porque também a fazia sentir-se um pouco envergonhada. De volta à vivenda, Kate ocupou o seu lugar depois de confirmar a Dalgliesh, com um aceno de cabeça, de que havia transmitido a notícia. Podiam discutir os pormenores mais tarde. Viu que Marcus Dupayne ainda se achava sentado à cabeceira da mesa, com as mãos entrelaçadas e uma máscara de impassibilidade no rosto.
Temos a liberdade perguntou a Dalgliesh de nos retirarmos desta reunião, se qualquer um de nós precisar ou quiser, não é verdade?
Total liberdade. Pedi-vos para virem até aqui para vos interrogar, porque era a forma mais rápida de obter as informações de que necessito. Se causar incómodo a qualquer um de vós, posso falar com essa pessoa mais tarde.
Obrigado agradeceu Marcus. Achei por bem estabelecer a nossa posição, a nível legal. Como é evidente, tanto eu como a minha irmã queremos colaborar convosco em tudo aquilo que nos for possível. Esta morte constituiu um terrível choque. E também uma tragédia para a rapariga, para a sua família e para o museu.
Dalgliesh não replicou. Intimamente, duvidava que o museu fosse afectado. Assim que voltasse a abrir, a Sala do Crime tornar-se-ia o centro das atenções. Ainda guardava uma imagem muito nítida de Mrs. Strickland, sentada na biblioteca e ladeada pelos Dupayne, a escrever, com as mãos deformadas pela artrite, uma nova etiqueta: O baú original em que foram escondidos os corpos de Violette Kaye e de Célia Mellock encontra-se, de momento, na posse da polícia. Este baú é parecido, em estilo e em antiguidade. Aquele seu devaneio revelou-se desagradável.
É possível, a cada um de vós, regressar até à passada sexta-feira? Sabemos o que fizeram depois de o museu encerrar. Agora, precisamos de obter um depoimento pormenorizado do que aconteceu durante o dia.
Caroline Dupayne olhou para Muriel Godby. Foi esta que começou e, gradualmente, os outros, à excepção de Calder-Hale, confirmaram o que ela ia dizendo ou acrescentaram outras informações. Estabeleceu-se um relato elaborado do dia, hora a hora, desde o momento em que Tally Glutton havia chegado ao museu, às oito da manhã em ponto, para fazer as suas habituais limpezas, até àquele em que Muriel Godby finalmente fechara à chave a porta principal e conduzira Mrs. Strickland à estação de metro de Hampstead Heath.
Terminada a reconstituição, Piers interveio:
Então, houve duas ocasiões em que a Célia Mellock e o seu assassino podiam ter entrado no museu sem serem vistos; às dez horas da manhã e à uma e meia da tarde, quando Miss Godby abandonou a recepção e se dirigiu à vivenda para ir chamar Mistress Glutton.
A recepção não ficou sem ninguém por mais de cinco minutos explicou Muriel Godby. Se tivéssemos um sistema telefónico adequado, ou se Mistress Glutton concordasse em ter um telemóvel, eu não precisaria de ir até à vivenda. É simplesmente ridículo tentar ser eficiente com um sistema antiquado que nem sequer possui gravador de mensagens.
Partindo do princípio de que Miss Mellock e o seu assassino entraram no museu sem que ninguém os visse, existe alguma sala onde pudessem esconder-se durante a noite? perguntou Piers. Qual é o procedimento para trancar as portas por dentro?
Foi Muriel Godby que respondeu. Depois de fecharmos a porta de entrada, às cinco da tarde, faço uma ronda com a Tally para verificar se não há ninguém no museu. Depois, fecho as duas únicas portas para as quais existe uma chave: a da galeria de quadros e a da biblioteca. São as salas que contêm as peças mais valiosas. Não fica fechada nenhuma outra sala, exceptuando o gabinete de Mister Calder-Hale, e isso não é da minha responsabilidade. Em geral, ele mantém a porta fechada à chave quando não se encontra no museu, e, por isso, não verifiquei se a porta do seu gabinete estava fechada.
Calder-Hale manifestou-se pela primeira vez.
Se o tivesse feito, teria descoberto que estava trancada.
E quanto à cave? quis saber Piers.
Abri a porta e vi que a luz ainda estava acesa. Do alto da escada de ferro, passei uma vista de olhos pela cave. Não havia ninguém na cave e apaguei as luzes. A porta não tem fechadura. Também verifiquei, juntamente com Mistress Glutton, se as janelas estavam fechadas. Saí às cinco e um quarto com Mistress Strickland e deixei-a na estação de metro de Hampstead. Depois, segui para casa, mas isso já o sabe, inspector, porque já fui interrogada a esse respeito na sexta-feira.
Piers ignorou aquele protesto.
Portanto, seria possível que alguém se escondesse na cave onde se encontra o arquivo, entre as estantes corrediças de aço? Não desceu a escada para verificar?
Foi então que Caroline Dupayne os interrompeu.
Inspector, dirigimos um museu, não uma esquadra da polícia. O museu não foi assaltado nem roubado nos últimos vinte anos. Porque haveria Miss Godby de inspeccionar a sala de arquivo? Mesmo que alguém se tivesse escondido no museu depois de este encerrar, como conseguiria sair? As janelas do piso térreo ficam fechadas durante toda a noite. Miss Godby e Mistress Glutton cumpriram as tarefas de rotina.
O irmão permanecera calado até àquele momento, mas resolveu dar a sua opinião.
Encontramo-nos ainda todos em estado de choque. Penso não ser necessário dizer que estamos tão ansiosos como os senhores por que este mistério seja deslindado e é nossa intenção cooperar com a investigação. Não existem quaisquer motivos para se pensar que uma das pessoas que trabalha no museu teve algo a ver com a morte da rapariga. Talvez Miss Mellock e o seu assassino hajam vindo ao museu apenas como visitantes ou com um objectivo que só eles conheciam. Sabemos como poderiam ter entrado, sem serem vistos, e como poderiam esconder-se, mas existe um senão acerca da forma como um intruso sairia do museu sem dar nas vistas. Após a morte do nosso irmão, a minha irmã e eu esperámos pelos senhores na biblioteca. Deixámos a porta de entrada entreaberta por sabermos que os senhores não tardariam. Esperámos mais de uma hora, o que é tempo mais do que suficiente para que o assassino pudesse escapulir-se sem que ninguém o visse.
Nesse caso, correria um grande risco comentou Mrs. Strickland. Tanto o senhor como a Caroline podiam ter saído da biblioteca ou, então, o comandante Dalgliesh poderia ter entrado no mesmo instante em que o assassino se escapulia.
Marcus Dupayne ouviu aquele comentário com a mesma contida impaciência com que poderia ter acolhido a intervenção de um seu subordinado numa reunião departamental.
Sim, de facto, o assassino arriscou-se. Não tinha alternativa a não ser correr esse risco, se não queria ficar fechado no museu durante a noite. Bastar-lhe-ia espreitar pela porta da cave para ver que o átrio de entrada estava deserto e a porta, entreaberta. Não que esteja a sugerir que o homicídio tenha sido cometido na cave; a Sala do Crime parece ser o local mais provável. No entanto, a sala de arquivo oferecia o melhor, senão mesmo o único esconderijo seguro até o assassino conseguir escapar. Não estou a afirmar que foi isso que aconteceu, apenas que é uma possibilidade a ter em conta.
Mas a porta da biblioteca também estava entreaberta replicou Dalgliesh. E, certamente, o senhor e a sua irmã teriam ouvido alguém passar pelo átrio de entrada...
Uma vez que parece evidente alguém ter atravessado o átrio de entrada sem nós ouvirmos nada ripostou Marcus, a resposta é irrefutável. Se bem me lembro, estávamos sentados, com as nossas bebidas, em frente da lareira. Não nos achávamos perto da porta nem podíamos ver o átrio de entrada.
Caroline Dupayne fitou Dalgliesh, olhos nos olhos.
Não quero dar a ideia de que estou a fazer o seu trabalho, comandante, mas não existe um motivo plausível para a ida da Célia ao museu? Podia estar acompanhada por um namorado. Talvez fosse o tipo de rapariga que precisa de um factor de risco para tornar o sexo mais excitante. Talvez a Célia tenha sugerido o Museu Dupayne como um possível ponto de encontro. O facto de saber que eu era fiduciária do museu pode ter adicionado uma ponta de perigo à excitação sexual; depois, contudo, as coisas descontrolaram-se e ela acabou por morrer.
Kate não falara, havia algum tempo.
Pelo que conhecia de Miss Mellock perguntou a Caroline, acha que ela teria esse tipo de comportamento?
Fez-se uma pausa. A pergunta era delicada.
Como já afirmei, não lhe dei aulas e nada sei sobre a sua vida privada, mas era uma aluna infeliz, confusa e difícil. Também era facilmente influenciável. Nada do que pudesse fazer me surpreenderia.
Devíamos recrutar este grupo para a nossa brigada. É só dar-lhes mais meia hora e terão resolvido os dois homicídios, pensou Piers. Contudo, o pedante Marcus Dupayne tinha razão, em parte. O enredo que ele estabelecera podia ser improvável mas não de todo impossível. Seria uma dádiva para um advogado de defesa. No entanto, se tudo tivesse acontecido como sugerira, com um pouco de sorte Nobby Clark e os seus colaboradores descobririam algumas provas, talvez na sala de arquivo situada na cave. Só que as coisas não haviam acontecido daquela forma. Ultrapassava os limites da credibilidade que dois assassinos se achassem no museu, na mesma tarde, aproximadamente à mesma hora, com o propósito de matar duas vítimas muito diferentes uma da outra. Célia Mellock morrera na Sala do Crime, não na cave, e Piers começava a pensar que sabia porquê. Olhou de relance para o seu chefe. A expressão de Dalgliesh era grave e um pouco distante, quase contemplativa. Piers conhecia aquele olhar e perguntou a si próprio se os seus pensamentos se geriam pelas mesmas linhas dos do comandante.
Já temos as vossas impressões digitais disse Dalgliesh, que foram tiradas após o assassínio do doutor Dupayne. Lamento termos de selar a Sala do Crime e encerrar temporariamente o museu, o que certamente vos trará incómodos, mas espero que tudo esteja concluído na segunda-feira. Por ora, creio já havermos terminado o nosso trabalho com todos os senhores, à excepção de Mistress Glutton e Mistress Strickland. Se, entretanto, precisarmos de mais informações, dispomos dos vossos endereços.
Não podemos saber como foi que a rapariga morreu? perguntou Marcus Dupayne. Penso que a notícia chegará à imprensa muito depressa. Ora não temos o direito de sermos os primeiros a saber?
Não haverá qualquer fuga de informação replicou Dalgliesh, nem o caso será tornado público enquanto a família da rapariga não for informada. Ficava-vos grato se mantivessem segredo, a fim de evitar uma angústia desnecessária à família e aos amigos da Célia Mellock. Assim que o homicídio se tornar público suscitará, inevitavelmente, o interesse da imprensa. Esse aspecto será tratado pelo Departamento de Relações Públicas da Polícia Metropolitana. Talvez seja melhor tomarem algumas precauções para não serem perseguidos pelos jornalistas.
E a autópsia? quis saber Caroline. E o inquérito preliminar? Para quando serão marcados?
A autópsia está marcada para amanhã, de manhã, e o inquérito será marcado pelo gabinete do juiz encarregado da investigação, logo que for possível respondeu Dalgliesh. Tal como no caso da morte do seu irmão, iniciar-se-á o inquérito para, logo de seguida, ser adiado.
Os dois Dupayne e Calder-Hale levantaram-se. Piers pensou que os irmãos se sentiam ofendidos por haverem sido excluídos do resto da conversa e, aparentemente, Miss Godby sentia o mesmo. Levantou-se, a contragosto, e olhou para Tally Glutton com um misto de curiosidade e de ressentimento.
Depois de a porta se fechar, Dalgliesh ocupou uma das cadeiras espalhadas em volta da mesa.
Obrigado por não haver mencionado as violetas, Mistress Strickland.
O senhor pediu-me para guardar segredo e foi o que eu fiz.
Tally Glutton ergueu-se. O seu rosto empalidecera.
Que violetas? exclamou.
Havia quatro flores de violetas-africanas murchas sobre o cadáver, Mistress Glutton explicou gentilmente Kate.
De olhos esbugalhados pelo horror, Tally fitou os outros rostos.
Violette Kaye! murmurou. Então, foram homicídios copiados de outros.
Kate foi sentar-se a seu lado.
É uma possibilidade que devemos levar em conta. O que temos de descobrir é como foi que o assassino obteve as violetas.
Dalgliesh dirigiu-se-lhe com tacto.
Vimos pequenos vasos de terracota com essas violetas em dois locais. No gabinete de Mister Calder-Hale e na sua casa. Vi as plantas de Mister Calder-Hale no domingo, por volta das dez da manhã, quando fui interrogá-lo. Nessa altura, estavam intactas, se bem que eu pensasse que ele iria decapitá-las quando baixou bruscamente a persiana da janela. A inspectora Miskin julga que não havia nenhuma flor partida, quando esteve, juntamente com os visitantes canadianos, no gabinete de Mister Calder-Hale, esta manhã pouco antes das dez horas, e o sargento Benton-Smith reparou nas flores quando se dirigiu ao gabinete, pouco depois da descoberta do corpo da Célia Mellock. Não faltava qualquer caule ou flor, por volta das dez e meia da manhã. Já verificámos e continuam intactas. Uma das plantas que tem no peitoril da sua janela apresenta quatro caules partidos. Portanto, parece que as violetas vieram daqui, o que significa que a pessoa que as espalhou por cima do corpo da Célia Mellock deve ter acesso à vivenda.
Tally respondeu calmamente, como se não tivesse quaisquer dúvidas de que iam acreditar nela.
Mas as violetas que viram são as que estavam no gabinete de Mister Calder-Hale! Troquei o vaso dele por um dos meus no domingo de manhã.
Kate já tinha prática em ocultar o seu entusiasmo e perguntou, num tom de voz contido:
Como foi que isso aconteceu?
Tally, contudo, voltou-se para Dalgliesh, como se quisesse obrigá-lo a compreender.
Ofereci um vaso de violetas-africanas a Mister Calder-Hale, quando ele fez anos, a três de Outubro. Suponho que foi um disparate... Devia ter-lhe perguntado primeiro... Nunca teve plantas no gabinete ou talvez esteja demasiado atarefado para regá-las. Como eu sabia que ele estaria a trabalhar no seu gabinete no domingo, porque costuma vir ao museu quase todos os domingos, pensei em regar as violetas e arrancar as flores e folhas mortas antes de ele chegar. Foi então que vi que faltavam quatro flores. Pensei, tal como o senhor, que se haviam partido quando ele baixou a persiana. Além do mais, não regara a planta e as folhas não pareciam viçosas. Assim, trouxe o vaso para minha casa a fim de tratar da planta e de substituí-a por uma das minhas. Acho que ele nem reparou.
Quando foi que viu pela última vez intactas as violetas-africanas que se encontravam no gabinete de Mister Calder-Hale? perguntou Dalgliesh.
Tally Glutton reflectiu antes de responder.
Penso que foi na quinta-feira, na véspera do assassínio de Mister Dupayne, quando limpei o gabinete de Mister Calder-Hale. Fica sempre fechado à chave, mas há um duplicado no armário. Lembro-me de haver pensado na altura que as folhas não pareciam lá muito viçosas, mas que as flores estavam todas intactas.
E no domingo a que horas trocou os vasos?
Não sei precisar a hora exacta, mas foi de manhã cedo, pouco depois de eu chegar. Talvez entre as oito e meia e as nove horas.
Vou ter de lhe fazer esta pergunta, Mistress Glutton. Foi a senhora que arrancou as flores?
Sempre com os olhos fixos em Dalgliesh, Tally respondeu num tom de voz tão dócil como o de uma criança obediente:
Não, não fui eu que arranquei as flores.
E está certa quanto aos factos que acaba de nos contar? Que as violetas-africanas do gabinete de Mister Calder-Hale se achavam intactas, na quinta-feira, trinta e um de Outubro, mas que foi encontrá-las estragadas e as substituiu no domingo, três de Novembro? Não tem quaisquer dúvidas quanto a isso?
Não, Mister Dalgliesh, não tenho quaisquer dúvidas. Agradeceram-lhe por ela haver consentido que usassem a
sua casa e prepararam-se para sair. Fora útil manter Mrs. Strickland ali, como testemunha do interrogatório a Tally, e, naquele momento, a voluntária dava mostras de não ter qualquer intenção de se ir embora tão cedo. Tally parecia contente com aquela companhia e sugeriu timidamente que talvez pudessem comer uma sopa e uma omeleta antes de Ryan regressar. O rapaz não dera sinais de vida, desde que Kate falara com ele, e teriam de interrogá-lo novamente agora, acerca do que havia feito na sexta-feira durante o dia.
Na segunda-feira, depois de Tally o trazer de volta, fornecera uma pista útil ao referir o antagonismo entre Neville e os seus irmãos quanto ao futuro do museu. O rapaz dissera que, depois de receber o pagamento pelo seu dia de trabalho, se dirigira a uma casa abandonada que havia ocupado, em tempos, com vista a convidar os amigos a tomar um copo, mas descobrira que a casa havia sido reocupada pelos donos. Então, vagueara pela área de Leicester Square durante algum tempo antes de resolver voltar para Maida Vale. Julgava que chegara a casa por volta das sete horas, mas não tinha a certeza. Não haviam conseguido comprovar as suas andanças. Aversão que dera da agressão coincidia com a do major, muito embora Ryan não tivesse explicado porque ficara tão ofendido com o que o major lhe dissera. Era difícil ver Ryan Archer como principal suspeito, mas tudo se complicava ainda mais por poder ser um dos suspeitos. Dalgliesh esperava que, onde quer que Ryan se encontrasse naquele momento, se mantivesse calado.
Calder-Hale ainda estava no seu gabinete e Kate e Dalgliesh foram falar com ele. Não podiam alegar que ele se mostrava pouco disposto a colaborar, se bem que parecesse imerso numa enorme apatia. Quando entraram no gabinete, recolhia vagarosamente papéis que ia guardando numa pasta muito velha e estragada. Depois de saber que haviam encontrado quatro violetas-africanas murchas sobre o cadáver, revelou muito pouco interesse, como se esse facto fosse um pormenor sem importância que não lhe dizia respeito. Olhando, com expressão distraída para as violetas que repousavam no peitoril da janela, replicou que não havia dado pela troca dos vasos. Fora muito gentil da parte de Tally lembrar-se do seu aniversário, mas preferia não celebrar aquela data. Não gostava de violetas-africanas. Não havia nenhum motivo em particular para não gostar daquelas flores. Era, simplesmente, uma planta que não lhe dizia nada. Contudo, teria sido uma falta de educação dizer tal coisa a Tally e, por isso, não o fizera. Em geral, fechava à chave a porta do gabinete quando saía, mas não invariavelmente. Depois de Dalgliesh e de Piers o haverem interrogado no domingo, continuara a trabalhar até ao meio-dia e meia, altura em que fora para casa. Não se lembrava se tinha ou não fechado à chave a porta ao sair. Como o museu ficaria encerrado até ao funeral de Dupayne, era provável que não se houvesse dado ao trabalho de trancar o gabinete.
Enquanto Dalgliesh e Kate o interrogavam, continuou a recolher os seus papéis, arrumou a escrivaninha e foi até à casa de banho para lavar uma caneca. Agora que estava pronto para sair do museu, não revelava qualquer inclinação para continuar a sujeitar-se a mais perguntas. Entregou as suas chaves a Dalgliesh, não sem dizer que ficaria grato se lhas devolvessem o mais depressa possível, porque lhe causava grande incómodo não poder utilizar o gabinete.
Por fim, Dalgliesh e Kate chamaram Caroline Dupayne e Muriel Godby, que continuavam à espera no gabinete da recepção. Aparentemente, Miss Dupayne conformara-se com a inspecção ao seu apartamento. A porta situava-se na parte de trás da ala oeste do museu e passava despercebida. Miss Dupayne abriu-a e o grupo entrou para um pequeno vestíbulo, onde havia um elevador moderno cujo mecanismo era controlado por um painel. Enquanto digitava o código, Caroline Dupayne comentou:
Foi o meu pai que mandou instalar este elevador. Viveu aqui no fim da sua vida e era obcecado pela segurança. Eu também me sinto obcecada pela minha segurança, quando fico aqui sozinha. Prezo a minha privacidade como, sem dúvida, o senhor preza a sua, comandante. Por isso, considero esta diligência como uma intrusão.
Dalgliesh nada disse. Se houvesse indícios de que Célia Mellock estivera ali ou que pudesse haver entrado no museu pelo apartamento, então, Miss Dupayne teria de confrontar-se com uma busca e, nesse caso, sim, isso seria uma intrusão na sua vida. A visita guiada pelo apartamento, se lhe podiam chamar assim, foi rápida, mas Dalgliesh não se preocupou. Miss Dupayne mostrou-lhe os dois quartos de hóspedes, ambos com casa de banho própria e chuveiro e nenhum deles com indícios de haver sido usado recentemente, a cozinha, com um grande frigorífico, uma pequena área de serviço, onde havia uma máquina de lavar e outra de secar a roupa, e a sala de estar. Não podia ser mais diferente da sala de estar de Neville Dupayne. Ali, havia cadeiras confortáveis e um sofá forrado a linho verde-claro. A estante baixa corria ao longo de três paredes enquanto o chão polido estava coberto, quase na sua totalidade, por tapetes. Por cima da estante, as paredes ostentavam fotografias emolduradas, aguarelas, litografias e quadros a óleo. Apesar da luminosidade ténue do dia que era projectada pelas duas janelas que deixavam ver o céu, era uma sala acolhedora que, com o seu silêncio arejado, devia proporcionar um certo alívio do lado impessoal e da falta de privacidade do seu barulhento apartamento em Swathling’s, e Dalgliesh julgou compreender porque era tão importante para ela aquele refúgio.
Por último, Caroline Dupayne mostrou-lhes o seu quarto, que surpreendeu Kate por não corresponder ao que esperava encontrar. Era simples mas cómodo, até mesmo luxuoso e, apesar de uma certa nota de austeridade, também muito feminino. Tal como nos outros quartos, as janelas tinham persianas e cortinas. Não entraram no quarto. Limitaram-se a permanecer à soleira da porta que Caroline escancarara e à qual se recostara, olhando fixamente para Dalgliesh. Kate detectou naquele olhar uma expressão de desafio, quase lasciva, o que a intrigou. Ajudava em certa medida a explicar o comportamento de Caroline Dupayne durante a investigação. Então, em silêncio, Caroline Dupayne voltou a fechar a porta do seu quarto.
Contudo, o que interessava a Dalgliesh era o possível acesso ao museu. Uma porta pintada de branco abria-se para um lanço de degraus alcatifados que levavam a um pequeno corredor. A porta de mogno, à frente deles, tinha um trinco no topo e outro na parte inferior, e do lado direito via-se uma chave pendurada num gancho. Dalgliesh tirou as suas luvas de látex do bolso, calçou-as, puxou as linguetas dos dois ferrolhos e destrancou a fechadura. A chave girou facilmente na fechadura, mas a porta era pesada e, depois de aberta, Dalgliesh teve de servir-se do peso do seu corpo para evitar que se escancarasse.
E, ante os seus olhos, ali estava a Sala do Crime. Nobby Clark e um dos peritos em impressões digitais fitaram-nos, surpreendidos.
Quero que verifiquem se este lado da porta tem impressões digitais ordenou-lhes Dalgliesh. Depois, fechou-a e voltou a trancá-la.
Caroline Dupayne não tecera qualquer comentário nos últimos minutos, e Miss Godby não pronunciara uma só palavra desde que haviam entrado no apartamento. De volta à sala de estar, Dalgliesh perguntou:
Confirmam que só as duas possuem as chaves da porta de entrada do piso térreo do apartamento?
Já lhe disse que sim respondeu Caroline Dupayne. Não existem outras chaves. Ninguém pode entrar no apartamento pela Sala do Crime, porque não há puxador daquele lado, por ordens do meu pai.
Quando foi que estiveram pela primeira vez aqui, depois do homicídio do doutor Dupayne?
Finalmente, Muriel Godby respondeu:
Vim até cá no sábado de manhã, porque sabia que Miss Dupayne planeava passar o fim-de-semana no apartamento. Limpei o pó e verifiquei se estava tudo em ordem. Nessa altura, a porta que comunica com o museu estava trancada.
E é normal verificar se a porta está trancada? Porque haveria de fazê-lo?
Porque faz parte da minha rotina. Sempre que venho ao apartamento, verifico se está tudo em ordem.
Cheguei por volta das três da tarde explicou Caroline Dupayne e passei a noite de sábado aqui, sozinha. Saí por volta das dez e meia de domingo e, tanto quanto sei, ninguém esteve aqui depois disso.
E mesmo que alguém houvesse estado no apartamento, pensou Dalgliesh, a conscenciosa Muriel Godby teria já eliminado todo e qualquer vestígio. Foi em silêncio que os quatro desceram ao rés-do-chão do apartamento e também em silêncio que Miss Dupayne e Miss Godby entregaram os seus molhos das chaves do museu. Pouco passava da meia-noite quando Dalgliesh regressou ao seu apartamento na margem do rio, no último andar de um armazém remodelado do século xix, em Queenhithe. Dalgliesh tinha entrada própria e um elevador de segurança. Ali, exceptuando os dias de expediente durante a semana, vivia por cima de gabinetes silenciosos e vazios, na solidão de que tanto precisava. As oito da noite, até mesmo as empregadas de limpeza já haviam saído dos gabinetes. Sempre que regressava a casa, imaginava os andares inferiores com gabinetes vazios, computadores desligados, cestos de papéis esvaziados e telefones que não eram atendidos, num silêncio quase sobrenatural, apenas quebrado pelo ocasional toque do faxe. O edifício albergara, originalmente, um armazém de especiarias e um aroma pungente e evocativo infiltrara-se nas paredes, forradas com painéis de madeira, e que ainda era possível detectar apesar do forte cheiro a maresia do Tamisa. Como era seu costume, dirigiu-se a uma janela. O vento amainara. Uns poucos resquícios esfiapados de nuvens mostravam-se tingidos por um tom de vermelho cor de rubi, proveniente do brilho da cidade que pairava, imóvel, num céu quase roxo pontilhado por estrelas. Quinze metros abaixo da sua janela, a maré cheia afastava-se para, em seguida, bater contra os muros de tijolos; o deus castanho de T. S. Eliot assumira o seu negro mistério nocturno.
Havia recebido uma carta de Emma, em resposta à sua. Avançando para a secretária, releu-a. Era curta mas explícita. Emma estaria em Londres na sexta-feira, ao fim da tarde, e planeava apanhar o comboio das seis e um quarto que chegaria a King’s Cross às sete e três minutos. Perguntava-lhe se podia encontrar-se com ela junto à barreira. Sairia de Cambridge por volta das cinco e meia, e podia Adam telefonar-lhe antes, se não pudesse ir ao seu encontro? Assinara com um simples Emma. Voltou a ler as poucas linhas escritas numa caligrafia elegante com traços que se curvavam para cima, tentando decifrar o que se escondia por trás daquelas palavras. Aquela brevidade implicaria, mesmo que subtilmente, um ultimato? Não era o género de Emma, mas tinha o seu orgulho e, depois de ele haver cancelado o último encontro, podia estar a dizer-lhe agora que aquela era a sua última oportunidade, que seria a última oportunidade para os dois.
Mal se atrevia a nutrir qualquer esperança de que ela o amasse, mas mesmo que Emma se achasse a um passo do amor, podia sempre recuar. Ávida dela era em Cambridge, enquanto a dele era em Londres. Ele podia sempre pedir a demissão. Herdara de uma tia uma quantia suficiente para ser consideravelmente rico. Era um poeta respeitado. Desde a sua infância sempre soubera que a poesia seria a principal razão da sua existência, mas nunca quisera tornar-se um poeta profissional. Fora importante para ele encontrar um trabalho útil à sociedade afinal, saía ao pai, um emprego em que pudesse ser fisicamente activo e que, de preferência, o colocasse, de tempos a tempos, em perigo. Estendera a sua própria escada, senão no sujo ferro-velho do coração de W. B. Yeats, pelo menos num mundo muito distante da sedutora paz daquela reitoria de Norfolk e dos subsequentes e privilegiados anos em que estudara, primeiro, em escolas particulares e, depois, em Oxford. A carreira na polícia havia-lhe fornecido o que procurava e muito mais. O seu trabalho assegurara-lhe privacidade, protegera-o das obrigações inerentes ao êxito, das entrevistas, das palestras, das viagens ao estrangeiro, da publicidade implacável e, acima de tudo, de fazer parte do establishment literário de Londres. Além de que lhe dera inspiração para o melhor da sua poesia. Não podia desistir de tudo o que conquistara e sabia que Emma nunca lhe exigiria tal coisa, tal como ele nunca lhe pediria que sacrificasse a carreira por sua causa. Se, por algum milagre, ela o amava, haveria de arranjar maneira de terem uma vida em comum.
Estaria na estação de King’s Cross na sexta-feira, para a esperar. Mesmo que se produzissem desenvolvimentos importantes durante a tarde, Kate e Piers eram mais do que competentes para lidar com tudo o que pudesse acontecer no fim-de-semana. Somente uma detenção poderia retê-lo em Londres, e não havia nenhuma iminente. Já havia planeado como empregaria o tempo na sexta-feira à tarde. Chegaria mais cedo a King’s Cross e passaria uma meia hora na British Library, antes de o comboio concluir a viagem. Depois percorreria a pé a curta distância até à estação. Mesmo que chovesse, Emma vê-lo-ia à sua espera quando aparecesse.
O seu último acto consistia em escrever uma carta a Emma. Não sabia por que motivo, naquele momento de paz, precisava de encontrar as palavras que a convencessem do amor que sentia por ela. Talvez houvesse um momento em que ela não quisesse mais ouvir a sua voz ou em que, se o escutasse, sentisse que precisava de mais tempo para pensar antes de dar a sua resposta. Se esse momento se verificasse, a carta já estaria escrita.
Na quinta-feira, sete de Novembro, Mrs. Pickering chegou à loja de beneficência em Highgate às nove e meia em ponto, como era seu hábito. Aborreceu-a deparar com um saco preto de plástico em frente da porta. Estava aberto, revelando a usual roupa velha de lã e algodão. Destrancou a porta, arrastando o saco atrás de si, levemente irritada. Era realmente lamentável. Apesar do papel colado no lado interior da janela, avisando que os doadores não deviam deixar sacos na rua devido ao risco de serem roubados, o certo é que continuavam a fazê-lo. Dirigiu-se ao pequeno escritório das traseiras, para pendurar o casaco e o chapéu, sempre arrastando o saco atrás de si. Teria de esperar por Mrs. Eraser, que costumava chegar pouco antes das dez, pois era ela, enquanto responsável pela loja de beneficência e especialista na avaliação das peças doadas, que examinaria o conteúdo do saco e decidiria o que seria posto em exposição e qual o preço.
Mrs. Pickering não nutria grandes esperanças quanto ao seu achado. Todos os voluntários sabiam que os doadores de roupas que pudessem ser compradas em segunda mão gostavam de entregá-las pessoalmente e nunca as deixavam em plena rua, onde corriam o risco de ser roubadas. Contudo, não resistiu a fazer uma inspecção preliminar. Certamente não havia nada de interessante naquele fardo, composto por umas calças de ganga muito desbotadas, várias camisolas de lã cheias de borbotes devido às muitas lavagens, um casaco, tricotado à mão, que lhe parecera prometedor até descobrir, nas mangas, os buracos feitos pelas traças, e uma meia dúzia de pares de sapatos estalados e deformados. Tirando as peças, uma a uma, concluiu que o mais provável era Mrs. Fraser rejeitar aquele lote. Foi então que, enquanto remexia no interior do saco, as suas mãos tocaram num objecto de couro com uma corrente fina de metal, que se enrodilhara nos atacadores de um sapato de homem. Mrs. Pickering, mesmo assim, puxou a corrente e deu consigo a olhar para uma mala de mão que devia ter custado uma fortuna.
O estatuto de Mrs. Pickering na hierarquia da loja era baixo, facto que ela aceitava sem qualquer rancor. Demorava muito tempo a dar o troco, confundia-se quando lhe entregavam notas ou moedas de euros, tendia a perder tempo quando a loja estava cheia por ficar a conversar com os clientes, tentando ajudá-los a decidir que tipo de roupa era a indicada para o seu tamanho e aparência. Aliás, reconhecia aquelas suas falhas, mas elas não a perturbavam. Certa vez, Mrs. Fraser dissera a uma sua colega:
É uma desgraça com a caixa registadora, fala pelos cotovelos, mas é da mais total confiança e muito afável com os clientes. Por isso, temos muita sorte em tê-la a trabalhar connosco.
Mrs. Pickering ouvira apenas a última parte daquela frase, mas provavelmente não teria ficado desolada se a houvesse ouvido na totalidade. No entanto, apesar de a avaliação e a estipulação do preço das peças serem privilégios reservados a Mrs. Fraser, ela também sabia reconhecer couro de qualidade. Aquela mala de mão era, com certeza, valiosa e invulgar. Alisou-a com as mãos, sentindo a suavidade do couro, para depois voltar a colocá-la no saco de plástico.
Passou a meia hora seguinte como de costume. Limpou o pó das prateleiras, arrumou as peças pela ordem recomendada por Mrs. Fraser, voltou a pendurar as peças de roupa que mãos ansiosas haviam tirado dos seus cabides e dispôs as chávenas para o Nescafe que prepararia assim que Mrs. Fraser chegasse. Esta apareceu pontualmente, como era seu hábito. Fechando a porta da loja atrás de si, olhou com uma expressão de aprovação para o interior da loja e só depois se dirigiu para o escritório das traseiras, acompanhada por Mrs. Pickering.
Encontrei este fardo de roupa anunciou Mrs. Pickering. Foi deixado lá fora, como já é costume. A pessoas são realmente mesquinhas... O aviso é tão claro... O conteúdo não é grande coisa, exceptuando uma mala de mão.
Mrs. Eraser, como bem o sabia a sua companheira, nunca conseguia resistir a um novo donativo. Enquanto Mrs. Pickering ligava a chaleira eléctrica e vertia o Nescafe nas chávenas, Mrs. Eraser aproximou-se do saco. Seguiu-se um silêncio. Mrs. Pickering observou-a quando ela levantou a pega da mala, examinou atentamente o fecho e a virou. Por fim, abriu-a.
É uma mala Gucci e parece nova. Quem se lembraria de nos dar uma mala destas? Viu a pessoa que deixou o saco?
Não. O saco já cá estava quando cheguei. A mala não se achava no cimo do fardo. Estava enfiada de lado, no fundo. Eu é que vasculhei o interior, por curiosidade, e encontrei-a.
Tudo isto é muito estranho. É a mala de uma mulher rica. Ora, os ricos nunca nos dão as roupas que já não usam. Mandam as criadas vendê-las nessas lojas caras de peças em segunda mão. E por isso que continuam a ser ricos. Conhecem muito bem o valor do que possuem. Nunca tivemos uma mala com esta qualidade.
Havia um bolso lateral. Mrs. Eraser enfiou os dedos e tirou um cartão-de-visita. Esquecendo-se por completo do café, Mrs. Pickering aproximou-se e leram o cartão juntas. O texto era pequeno e a letra, simples e elegante. Na parte de cima, leram: CÉLIA MELLOCK e no canto inferior esquerdo: POLLYANNE PROMOTIONS, AGENTES TEATRAIS, COVENT GARDEN, WC2.
Não seria melhor entrarmos em contacto com a agência para tentar descobrir a dona da mala? perguntou Mrs. Pickering. Podíamos devolver-lha. Talvez a tenha doado por engano.
Mrs. Eraser, contudo, não compactuava com aquelas sensibilidades tão inconvenientes.
Se uma pessoa dá coisas suas por engano, cabe-lhe vir até cá e pedir que as devolvamos. Não podemos chegar a esse género de conclusão. Afinal, temos de lembrar-nos da nossa causa, o abrigo para animais velhos ou abandonados. Se os objectos são deixados na rua, temos todo o direito de vendê-los.
Podemos pô-la de parte para Mistress Roberts sugeriu Mrs. Pickering. Penso que nos oferecerá um bom preço. Ela não ficou de vir até cá esta tarde?
Mrs. Roberts, uma voluntária ocasional e não totalmente digna de confiança, tinha olho para uma boa pechincha, mas como oferecia sempre mais dez por cento do que Mrs. Fraser se atreveria a pedir aos clientes normais, nenhuma das senhoras via qualquer impedimento moral em agradar à colega.
Contudo, Mrs. Fraser não respondeu à sugestão da companheira. Estacara de tal forma que, por momentos, parecia incapaz de se mover. Por fim, replicou:
Agora me lembro. Conheço este nome. Célia Mellock. Ouvi-o na rádio local esta manhã. É a rapariga que foi encontrada morta naquele museu... o Dupayne, não é assim que se chama?
Mrs. Pickering nada disse. Sentia-se perturbada com a evidente, se bem que reprimida, excitação da colega, apesar de não compreender qual o significado daquela descoberta. Dando-se então conta de que devia tecer um qualquer comentário, replicou:
Nesse caso, ela deve ter resolvido dar a mala antes de ser morta.
Ser-lhe-ia muito, mas muito difícil dar a mala depois de estar morta, Grace! E olhe para as restantes peças. Não podem ser da Célia Mellock. É óbvio que alguém enfiou a mala de mão no saco de plástico para se livrar dela!
Mrs. Pickering, que sempre encarara a inteligência da colega com o maior respeito, ao ser confrontada com aquele espantoso poder de dedução, esforçou-se por encontrar um comentário adequado.
Em seu entender, o que devemos fazer? perguntou por fim.
A resposta é simples. Vamos deixar a placa ENCERRADO na porta e só abriremos a loja às dez horas. Agora, vamos telefonar à policia.
Quer dizer à Scotland Yard? exclamou Mrs. Pickering.
Exactamente. São eles que estão a investigar o homicídio da Célia Mellock e devemos sempre ir directamente ao topo.
As cerca de duas horas que se seguiram revelaram-se muito gratificantes para as duas senhoras. Mrs. Fraser telefonou enquanto, a seu lado, a colega admirava a clareza com que informava a polícia da sua descoberta. No final, ouviu-a dizer:
Sim, já o fizemos, e permaneceremos na sala das traseiras para que as pessoas não nos vejam e comecem a bater à porta. Há uma outra entrada, por trás, se quiserem chegar discretamente.
Pousou o auscultador e anunciou:
Vão enviar alguém. Pedem-nos para não abrirmos a loja e esperarmos por eles no escritório.
A espera não foi longa. Dois agentes masculinos chegaram, de carro, e entraram pela porta das traseiras. Um era baixo e corpulento e saltava à vista que tinha uma patente mais elevada, enquanto o outro era alto, moreno e tão bonito que Mrs. Pickering mal conseguiu desviar os olhos dele. O agente mais velho apresentou-se como sendo o inspector Tarrant e ao seu colega, como sendo o sargento Benton-Smith. Ao trocar um aperto de mãos com o sargento, Mrs. Fraser lançou-lhe um olhar sugestivo, dando a entender que não tinha a certeza de que os agentes da polícia devessem ser tão bonitos como aquele. Mrs. Pickering voltou a contar a sua história, enquanto Mrs. Fraser, revelando um considerável domínio sobre si própria, se mantinha a seu lado, pronta a corrigir qualquer pequeria inexactidão e a salvar a colega do assédio da polícia.
O inspector Tarrant calçou um par de luvas antes de pegar na mala e de a enfiar num grande envelope de plástico, que selou, escrevendo algo na aba.
Estamos-lhes muito gratos por nos haverem informado sobre a vossa descoberta. A mala pode revelar-se uma peça muito interessante. Se for necessário, teremos de descobrir quem lhe pegou. Crêem que podem acompanhar-nos, agora, para que possamos tirar as vossas impressões digitais? Precisamos delas, como é óbvio, para eliminá-las das outras que vamos encontrar. Desde já, quero dizer que as vossas impressões digitais serão destruídas se e quando não precisarmos mais delas.
Mrs. Pickering imaginou-se a chegar de carro, em todo o esplendor, à Scotland Yard, em Victoria Street, porque vira o sinal giratório várias vezes na televisão. Ao invés, e para seu grande desapontamento, foram conduzidas à esquadra da polícia mais próxima, onde lhes tiraram discretamente as impressões digitais. Enquanto um agente pegava com delicadeza em cada um dos dedos de Mrs. Pickering e os fazia rolar numa almofada de tinta, sentiu a excitação de uma experiência nova e começou a tagarelar alegremente sobre aquele proforma. Mrs. Fraser, mantendo a sua dignidade, limitou-se a perguntar que procedimento era efectuado para destruir as suas impressões digitais quando não fossem mais necessárias. Passada meia hora, estavam novamente de volta à loja. Sentaram-se e beberam café. Após toda aquela agitação, ambas sentiam que precisavam de uma bebida revigorante.
Mostraram-se muito calmos, não lhe pareceu? comentou Mrs. Pickering. Também não nos revelaram o que quer que fosse. Pensa que a mala é realmente importante?
Claro que é, Grace. Caso contrário, eles não se teriam dado a tanto trabalho nem nos teriam tirado as impressões digitais. Ainda pensou em acrescentar: Toda aquela aparente indiferença foi apenas para nos iludir, mas acabou por acrescentar: Pareceu-me algo desnecessário que o inspector Tarrant insinuasse que, se a descoberta viesse a público, a responsabilidade seria toda nossa. Afinal, assegurámos-lhe que não diríamos nada a ninguém. Além do mais, é evidente que somos duas mulheres responsáveis, o que lhe devia ter bastado.
Oh, Elinor, não me pareceu que ele quisesse insinuar tal coisa. Mas é uma pena, não concorda? Gosto sempre de contar ao John o que aconteceu, ao fim do dia, quando estou aqui. Creio que ele gosta de me ouvir falar das pessoas que conheci, em especial dos clientes. Alguns têm histórias tão interessantes assim que começamos a conversar com eles, não é verdade? É uma pena não poder partilhar com ele a coisa mais extraordinária que alguma vez me aconteceu.
Intimamente, Mrs. Fraser concordava com a colega. Quando haviam regressado à loja no carro da polícia, não se cansara de dizer a Mrs. Pickering quanto era necessário que ambas se mantivessem caladas, embora já planeasse uma perfídia. Fazia tenções de contar tudo ao marido. Cyril era magistrado e sabia como era importante manter um segredo.
Receio que o seu John vá ter de esperar retorquiu. Seria um desastre, se a notícia se espalhasse. Além de que deve lembrar-se, Grace, que foi você que encontrou a mala de mão e que talvez venha a ser chamada a testemunhar.
Valha-me Deus! Mrs. Pickering deteve-se no momento em que levava a chávena aos lábios e pousou-a sobre o pires. Quer dizer que eu teria de sentar-me no banco das testemunhas? Que teria de entrar num tribunal?
Bom, não creio que se façam julgamentos numa retrete pública!
Para nora de um antigo presidente da Câmara, Elinor por vezes podia ser muito vulgar, pensou Mrs. Pickering. Sir Daniel Holstead sugerira que se encontrassem às nove e meia quando telefonara a Dalgliesh, havia uma hora. Quase não daria tempo para que ele e a mulher se recompusessem da viagem de avião, mas a sua ansiedade em ouvir, antes de tudo o resto, o que tinha a polícia para lhes dizer era imperativa. Dalgliesh duvidava de que tanto um como o outro tivessem dormido, salvo durante alguns minutos, desde que haviam tomado conhecimento da notícia. Por isso, achou mais prudente ser ele a ir ver o casal, acompanhado por Kate. O edifício, situado num bloco moderno de apartamentos de Brook Street, tinha um porteiro na recepção, que examinou os cartões de identidade de Dalgliesh e de Kate, e os anunciou pelo telefone antes de lhes indicar um elevador controlado por um dispositivo de segurança. Digitou o código e explicou:
Só tem de premir este botão, comandante. É um elevador privado que sobe directamente até ao andar do apartamento de Sir Daniel.
As três paredes do elevador eram espelhadas e, numa delas, havia um assento almofadado. Dalgliesh viu a sua imagem e a de Kate reflectidas numa sucessão aparentemente infindável. Ambos permaneceram em silêncio. A subida foi rápida, o elevador parou suavemente e as portas abriram-se quase de imediato.
Encontravam-se num corredor largo, ladeado por uma série de portas. A parede em frente do elevador ostentava uma fila dupla de ilustrações de aves exóticas. Ao saírem, depararam-se-lhes duas mulheres que avançavam na direcção deles com passos silenciados pela alcatifa alta e macia. Uma das mulheres, com um fato de casaco e calças preto e uma presunção algo intimidante, revelava a eficácia de uma secretária particular. A outra, loura e mais nova, usava uma bata branca e transportava ao ombro uma mesa de massagem desdobrável.
Então, até amanhã, Miss Murchison despediu-se a mulher mais velha. Se conseguir acabar em menos de uma hora, talvez possa encaixá-la antes do cabeleireiro e da manicura, mas, para isso, terá de chegar quinze minutos mais cedo. Sei que Lady Holstead não gosta de massagens feitas à pressa.
A massagista entrou no elevador e as portas fecharam-se. Só então a mulher se voltou para Dalgliesh.
Comandante Dalgliesh? Sir Daniel e Lady Holstead estão à sua espera. Acompanhe-me, por favor.
Não prestara atenção a Kate nem sequer se apresentara. Seguiram-na pelo corredor até a uma porta que a mulher abriu com aparente segurança, para anunciar:
O comandante Dalgliesh e a sua colega, Lady Holstead.
Dito aquilo, fechou a porta atrás de si.
A sala, de tecto baixo mas ampla, tinha quatro janelas que deixavam ver Mayfair. A decoração era rica, mesmo luxuosa, ao estilo de uma suite de um hotel de cinco estrelas. Apesar das fotografias com as suas molduras de prata dispostas sobre uma mesa de chá, junto à lareira, pouco ou nada revelava, ali, um gosto pessoal. Era patente que a lareira ornamentada, de mármore, não fazia parte da estrutura original do apartamento. Sobre a alcatifa cinzenta com laivos de prateado, estendiam-se vários tapetes, cujas tonalidades eram mais claras do que a das almofadas de cetim, dos sofás e das poltronas. Por cima da lareira, havia um retrato de uma mulher loura envergando um vestido de baile escarlate.
A retratada achava-se sentada ao lado da lareira, mas, quando Dalgliesh e Kate entraram, levantou-se com elegância e avançou para eles estendendo uma mão trémula. O marido, que até àquele momento se achava de pé atrás do cadeirão, avançou e estendeu-lhe o braço. A impressão que ambos davam era a de uma delicada angústia feminina sustentada por uma impressionante força masculina. Depois de cumprimentar Dalgliesh e Kate, o marido conduziu a esposa novamente até ao cadeirão.
Sir Daniel era um homem forte, de ombros largos, feições pesadas e testa larga, emoldurada por cabelo grisalho penteado para trás. Tinha olhos pequenos, por cima dos papos duplos, que revelaram uma expressão absolutamente impassível quando se fixaram em Dalgliesh. Ao observar aquele rosto inexpressivo, uma memória de infância acorreu à mente de Dalgliesh. Um proprietário de terras da região, que era um dos ajudantes de seu pai, levara a jantar à reitoria um multimilionário numa altura em que um milhão de libras significava alguma coisa. Também era um homem forte, afável e revelara-se um convidado agradável. O jovem Adam, que tinha catorze anos, sentira-se desconcertado ao descobrir durante o jantar que aquele homem, tão rico, era estúpido. Fora nesse dia que ficara a saber que a capacidade em fazer fortuna de determinada maneira era um talento muito vantajoso para quem o possuía e possivelmente benéfico para os outros, mas não implicava qualquer virtude, sabedoria ou inteligência para lá de conhecimentos específicos no ramo dos negócios lucrativos. Dalgliesh concluiu que era fácil mas perigoso estereotipar os muito ricos, embora possuíssem qualidades comuns, entre elas o exercício do poder com grande confiança em si próprios. Era possível que Sir Daniel se deixasse impressionar por um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, mas nunca permitiria que um comandante e uma inspectora da Polícia Metropolitana o aborrecessem.
Obrigada por terem vindo tão depressa disse Lady Holstead. Mas é melhor sentarmo-nos... Olhou então para Kate. Peço desculpa... Não sabia que viria acompanhado...
Dalgliesh apresentou Kate e os quatro dirigiram-se para os dois sofás de cada lado da lareira, com a qual formavam um ângulo recto. Dalgliesh teria preferido qualquer outro assento da sala àquela sufocante opulência, e sentou-se no rebordo enquanto fitava o casal Holstead.
Lamento termos sido obrigados a comunicar-lhes por telefone uma notícia tão trágica. Ainda é muito cedo para fornecer informações mais pormenorizadas acerca da forma como morreu a Célia Mellock, mas direi tudo o que possa.
Lady Holstead inclinou-se para a frente.
Oh, por favor, conte-nos tudo o que sabe. Uma mãe sente-se tão impotente... Penso que ainda não me dei verdadeiramente conta... Quase esperava que me dissesse que tudo não passara de um engano. Por favor, perdoe-me se não me revelo mais coerente... O voo... Interrompeu-se.
Foi o marido que prosseguiu.
Podiam ter-nos dado a notícia com mais tacto, comandante. A pessoa que me telefonou, e creio que foi a senhora, inspectora Miskin, não revelou grande consideração. Não me foi dada qualquer indicação de que se tratava de um telefonema importante.
Não lhe teríamos telefonado e acordado àquela hora, se fosse um assunto de somenos importância replicou Dalgliesh. Peço desculpa por ter ficado com a impressão de que a minha colega não revelou qualquer sensibilidade quando lhe deu a notícia. No entanto, parece-me óbvio que a inspectora Miskin preferia falar com o senhor do que com Lady Holstead para que pudesse decidir a melhor maneira de lhe transmitir a má notícia.
Lady Holstead voltou-se para o marido.
É foste amoroso, meu querido. Fizeste o teu melhor, mas não se pode dar uma notícia destas com suficiente tacto ou delicadeza, pois não? Não me parece. Não existe qualquer fórmula para dizer a uma mãe que a sua filha foi assassinada. Nenhuma.
O desgosto era genuíno, pensou Dalgliesh. Como não poderia sê-lo? Era lamentável que tudo em Lady Holstead sugerisse uma certa teatralidade, quase a beirar a falsidade. Vestia na perfeição um fato preto, que fazia lembrar um uniforme militar, com uma saia curta e uma fileira de pequenos botões de latão nos punhos do casaco. O cabelo louro parecia ter sido arranjado recentemente e a maquilhagem, o sombreado cuidadoso das faces e o delinear meticuloso dos lábios só podiam ser conseguidos por mãos firmes. Devido ao facto de a saia lhe deixar os joelhos a descoberto, sentara-se com as pernas juntas, muito unidas, revelando as tíbias por baixo do brilho do náilon fino dos colãs. No entanto, era admissível encarar aquela perfeição como um acto de coragem por parte de uma mulher que preferia enfrentar as tragédias da vida, assim como as imperfeições menores, com uma aparência cuidada. Dalgliesh não lhe detectou qualquer parecença com a filha, mas isso não o espantou. A morte violenta eliminava mais do que a aparência da vida.
O marido, tal como Dalgliesh, sentara-se no rebordo do sofá com os braços tombados entre as pernas afastadas. O seu rosto era impassível, e os olhos, fixos durante a maior parte do tempo no rosto da esposa, mostravam-se vigilantes. Não podia esperar-se que aquele homem sentisse como uma perda pessoal a morte de uma rapariga que conhecera mal e que, provavelmente, se revelara um empecilho para a sua vida profissional, pensou Dalgliesh. Agora, era confrontado com aquela tragédia pública para a qual se esperava que demonstrasse os sentimentos adequados a uma tal situação. Provavelmente, não era diferente dos outros homens. Quisera obter paz no seu lar, com uma esposa feliz ou, pelo menos, contente, e não ao lado de uma mãe eternamente enlutada. Mas tudo aquilo passaria. Ela perdoar-se-ia por haver sido pouco afectuosa, talvez até se convencesse de que havia amado a filha, mesmo que não o tivesse conseguido, ou, quiçá, se revelasse mais racional e aceitasse que não se pode amar nem mesmo um filho por um acto de força de vontade. Naquele momento, parecia mais confusa do que abalada pela perda da filha, estendendo os braços na direcção de Dalgliesh, num gesto mais histriónico do que patético devido às suas unhas compridas e pintadas de um vermelho-vivo.
Ainda não consigo acreditar... murmurou. Apesar da vossa presença, não faz sentido. Durante a viagem de regresso no avião, imaginei que, quando aterrássemos, ela estaria à nossa espera para nos explicar que tudo não passara de um engano. Se a visse, acabaria por acreditar, mas não quero vê-la. Não creio que conseguisse aguentar. Não sou obrigada a vê-la, pois não? Não podem obrigar-me.
Fitou o marido com olhos suplicantes. Sir Daniel revelava alguma dificuldade em dissimular a impaciência na voz.
Claro que não. Se for necessário, eu irei identificá-la. Lady Holstead fixou os olhos em Dalgliesh.
Não é natural que um filho morra antes de nós. Não devia ser assim.
De facto, não devia ser assim replicou Dalgliesh. O seu único filho morrera com a mãe, logo ao nascer e, agora, ambos lhe vinham ao pensamento com mais frequência do que nos últimos anos, despertando memórias há muito adormecidas: a sua mulher, que morrera muito nova; aquele casamento impulsivo, quando dar-lhe o que ela tanto desejava ele lhe havia parecido uma coisa tão fácil; o rosto do filho, nado-morto, com uma expressão de quase pretensioso contentamento, como se ele, que nada conhecera nem haveria de conhecer, houvesse conhecido tudo. A dor provocada pela perda do filho fora abrangida pela grande agonia da morte da mulher e por uma sensação avassaladora de participar num pesar universal, de se tornar parte de algo que não compreendera previamente. Contudo, o passar dos anos, e já eram muitos, havia formado a pouco e pouco uma cicatriz misericordiosa. Ainda acendia uma vela em memória da mulher na data da sua morte, por ser o que ela haveria desejado, mas, passado tanto tempo, conseguia pensar nela com uma tristeza nostálgica e sem dor. E agora, se tudo corresse bem, talvez ainda tivesse outro filho, um filho dele e de Emma. Que uma tal ideia, composta pelo medo e por um infundado anseio, lhe viesse à mente naquele instante enervou-o.
Tinha consciência da intensidade do olhar de Lady Holstead. Algo passou entre eles que ela podia interpretar como um momento de compaixão partilhada.
Compreende-me, não é verdade? exclamou. Posso ver que sim. E descobrirá quem a matou? Prometa-mo!
Faremos tudo ao nosso alcance, mas precisamos da sua ajuda. Conhecemos muito pouco sobre a vida da sua filha, sobre os amigos dela, sobre os seus interesses. Sabem se havia alguém que lhe fosse próximo com quem pudesse encontrar-se no Museu Dupayne?
Lady Holstead, com expressão desamparada, fitou o marido, que replicou:
Não me parece que se tenha apercebido da situação, comandante. Julgava haver deixado bem claro que a minha enteada levava a vida de uma mulher independente. Herdou o dinheiro do pai quando completou dezoito anos, comprou um apartamento em Londres e praticamente desapareceu das nossas vidas.
Lady Holstead virou-se para ele.
Mas é o que todos os jovens fazem, meu querido. Querem ser independentes. E compreendo-os. Ambos os compreendemos.
Antes de se mudar, vivia aqui convosco? perguntou Dalgliesh.
Foi Sir Daniel que respondeu de novo:
Normalmente, sim, mas passava algum tempo na nossa casa em Berkshire. Mantemos um número reduzido de empregados lá, e ela aparecia, por vezes, com amigos. Usavam a casa para organizar festas, em geral para grande incómodo dos empregados.
Tanto o senhor como Lady Holstead chegaram a conhecer algum desses amigos? continuou Dalgliesh.
Não. Suponho que eram mais parasitas que se aproveitavam da fortuna dela do que amigos. Ela nunca falava deles e, mesmo quando estávamos em Inglaterra, raramente a víamos.
Penso que a minha filha sofreu quando me divorciei do pai dela explicou Lady Holstead, porque, quando ele morreu num desastre de avião, me culpou pela sua morte, dizendo que, se ainda vivêssemos juntos, ele não teria estado naquele avião. Ela adorava o Rupert.
Receio que tenhamos muito pouco para lhes dizer prosseguiu Sir Daniel. Sei que, a dada altura, ela tentou tornar-se uma pop star e que gastou uma pequena fortuna em lições de canto. Chegou a ter um agente, mas não deu em nada. Antes de atingir a maioridade, conseguimos persuadi-la a frequentar durante um ano uma escola privada para raparigas, e escolhemos Swathling’s. A educação da Célia havia sido muito negligenciada. Andara de escola em escola. Swathling’s tem muito boa reputação, mas, como já era de calcular, ela não concluiu os estudos.
Não sei se sabem que Miss Caroline, uma das fiduciárias do museu interveio Kate, é a directora adjunta de Swathling’s...
Quer dizer que Célia foi ao museu para se encontrar com ela?
Miss Dupayne diz que não, e parece pouco provável, mas Célia podia ter tomado conhecimento da existência do museu através de Miss Dupayne.
Mas alguém a deve ter visto entrar. Alguém deve ter reparado com quem ela estava.
O museu tem muito poucos empregados respondeu Dalgliesh, e é possível que a Célia e o seu assassino tenham entrado no museu sem que ninguém os visse. Como também é possível que o assassino tenha saído, naquela sexta-feira ao fim da tarde, sem ser visto. Por enquanto, ainda não o sabemos. O facto de o doutor Neville Dupayne também ter sido assassinado no mesmo dia indicia que pode haver um elo de ligação. Contudo, de momento, nada podemos adiantar. A investigação ainda mal começou. Como é evidente, mantê-los-emos informados dos nossos progressos. A autópsia será efectuada esta manhã, embora a causa da morte, estrangulamento, fosse visível a olho nu.
Por favor, diga-me que ela teve uma morte rápida... implorou Lady Holstead. Diga-me que ela não sofreu, por favor...
Creio que foi rápido.
Que mais podia ele dizer? Porque haveria de massacrar aquela mulher com o momento final de puro terror da filha?
Quando libertarão o corpo? quis saber Sir Daniel.
O inquérito preliminar vai ser aberto amanhã e adiado, e não sei quando o juiz da investigação dará ordem para que lhes entreguem o corpo.
Organizaremos um funeral discreto, uma cremação replicou Sir Daniel. Ficava-lhe muito agradecido por toda a ajuda que possa dar-nos para manter os curiosos à distância.
399 Faremos o que pudermos. A melhor forma de assegurar a privacidade é manter a hora e o local do funeral em segredo, se for possível.
Lady Holstead virou-se para o marido.
Mas, meu querido, não podemos enterrá-la como se fosse uma indigente! Os amigos irão querer despedir-se dela. Terá de haver, pelo menos, uma missa numa bonita igreja algures. Seria mais conveniente em Londres... Hinos, flores, algo de muito belo para celebrar a vida da Célia... uma cerimónia que as pessoas nunca esquecerão.
Olhou então para Dalgliesh, como se esperasse que ele pudesse encontrar, como que por magia, o local mais adequado, o padre, o organista, a congregação e os arranjos florais.
Foi o marido dela que replicou:
A Célia nunca se aproximou sequer de uma igreja enquanto foi viva. Se um homicídio é suficientemente notório ou trágico, pode encher-se uma catedral, mas duvido que seja esse o caso. Por mim, não tenho qualquer desejo de fornecer uma reportagem fotográfica aos jornalistas dos tablóides.
Não podia ter demonstrado o seu domínio de forma mais clara. A mulher fitou-o, mas, logo de seguida, baixou os olhos e num tom de voz dócil murmurou:
Se é isso que pensas, meu querido...
Kate e Dalgliesh saíram pouco depois. Sir Daniel pedira, ou melhor, exigira que o mantivessem a par do progresso da investigação e ambos haviam voltado a assegurar-lhe, não sem alguma reticência, que o informariam de tudo quanto descobrissem. Nada mais havia a saber nem a dizer. Sir Daniel acompanhou-os à porta do elevador e desceu com eles até à entrada. Dalgliesh ainda pensou se toda aquela cortesia não era um motivo para lhe dar oportunidade de falar com ele em privado, mas Sir Daniel nada disse.
Já no carro, Kate permaneceu calada durante alguns minutos, até observar:
Pergunto a mim própria quanto tempo demorou aquela mulher esta manhã para se maquilhar e pintar as unhas. Não corresponde exactamente à imagem de uma mãe chorosa e prostrada pela dor, pois não?
Dalgliesh manteve o olhar fixo na estrada.
Se é importante para o seu amor-próprio encarar o dia bem arranjada, se, para ela, é um acto de rotina tão usual como tomar duche, espera que o negligencie só para parecer devidamente abatida? Os ricos e famosos são tão capazes de perpetrar um homicídio como os outros; são mais privilegiados, mas isso não os imuniza contra os sete pecados mortais. E devíamos lembrar-nos de que também são capazes de experimentar outras emoções, incluindo a confusa devastação do desgosto.
Falara em voz baixa como que para si próprio, mas não fora dessa forma que Kate o escutara. Dalgliesh raramente tecia uma crítica, mas, quando o fazia, ela sabia que era melhor calar-se do que tentar justificar-se ou pedir desculpa. Com as faces ruborizadas, nada disse, consumida pela vergonha.
Dalgliesh prosseguiu, já num tom de voz mais afável, como se nunca houvesse pronunciado as palavras anteriores.
Quero que você e o Piers entrevistem Lady Swathling. Descubram se ela se mostra mais disposta a fornecer informações acerca da Célia Mellock do que a Caroline Dupayne. Tenho a certeza de que as duas sócias já falaram uma com a outra, mas nada podemos fazer quanto a isso.
Foi então que o telemóvel de Kate tocou e ela o atendeu.
Era o Benton-Smith anunciou. Acaba de receber um telefonema de uma loja de beneficência em Highgate. Parece que encontraram a mala de mão. O Piers e o Benton já vão a caminho.
Lady Swathling recebeu Kate e Piers no que era, obviamente, o seu gabinete. Indicou-lhes um sofá com um gesto tão afectado como um aceno de mão real.
Por favor, sentem-se. Posso oferecer-lhes algo de beber? Café? Chá? Sei que não podem beber em serviço.
Aos ouvidos de Kate, o tom implícito na voz de Lady Swathling deixava transparecer subtilmente que, fora das horas de serviço, os polícias mergulhavam num estupor alcoólico. Antes que Piers pudesse agradecer, replicou:
Não, obrigada, até porque não iremos empatá-la por muito tempo.
O gabinete tinha o aspecto discordante de uma sala com duas funções, mas sem que se soubesse, ao certo, qual delas era a principal. As duas secretárias, em frente da janela voltada para sul, o computador, o faxe e a fila de arquivadores de metal que forravam a parede do lado esquerdo da porta constituíam o escritório, enquanto o lado direito revelava o aconchego de uma sala de estar. Na elegante lareira antiga, as falsas chamas azuis, produzidas pela estufa a gás, proporcionavam uma temperatura amena que complementava o calor fornecido pelos radiadores. Sobre a prateleira da lareira, com as suas estatuetas de porcelana alinhadas, havia um quadro a óleo. Uma mulher do século xvm, com os lábios comprimidos e de olhos protuberantes, usando um vestido de cetim azul decotado, segurava entre os dedos estreitos uma laranja com tanta delicadeza como se esperasse que ela explodisse. Na parede ao fundo, achava-se uma cristaleira com uma variedade de chávenas e respectivos pires de porcelana em tons de rosa e verde. A direita da lareira, havia um sofá, e, à esquerda, uma única poltrona, com uma capa imaculada e almofadas cujas tonalidades condiziam com o rosa-pálido e o verde das chávenas expostas na cristaleira. O lado direito daquela sala fora cuidadosamente alterado para produzir um determinado efeito, do qual Lady Holstead fazia parte.
Foi ela que tomou a iniciativa. Antes que Kate ou Piers começassem a falar, declarou:
Estão aqui decerto por causa da tragédia que ocorreu no Museu Dupayne, ou seja, a morte da Célia Mellock. É evidente que o meu desejo é o de vos ajudar naquilo que puder, mas não vejo o que os leva a pensar que vos possa ser útil. Miss Dupayne já deve ter dito, sem dúvida, que a Célia deixou a escola na Primavera do ano transacto, ao fim de dois trimestres. Não possuo quaisquer informações sobre a vida que levou ou o que fez depois de sair de Swathling’s.
Num caso de homicídio, temos de saber o mais que pudermos sobre a vítima retorquiu Kate. Esperávamos que nos pudesse dizer algo acerca de Miss Mellock, dos seus amigos, de como se comportou enquanto aqui esteve ou, talvez até, se nutria particular interesse em visitar museus. Receio não poder responder a essas perguntas. Deverá fazê-las à família ou às pessoas que a conheciam. Essas duas terríveis mortes nada têm a ver com esta escola.
Piers olhava fixamente Lady Swathling com uma expressão ao mesmo tempo de admiração e de desprezo. Kate conhecia aquele olhar. O seu colega antipatizara com Lady Swathling.
Mas não lhe parece que há uma relação? perguntou Piers num tom quase melífluo. A Célia Mellock foi aluna desta escola. Miss Dupayne é a directora adjunta, a Muriel Godby trabalhou aqui e a Célia morreu no museu. Receio que, num caso de homicídio, Lady Swathling, tenhamos de fazer certas perguntas tão inconvenientes para os inocentes como inoportunas para os culpados...
Pensou na frase com antecedência. É mordaz e ele vai voltar a usá-la, pensou Kate.
E surtiu efeito em Lady Swathling.
A Célia não era uma boa aluna, em grande parte pelo facto de ser uma jovem infeliz, que não revelava qualquer interesse pelo que tínhamos para lhe oferecer. Miss Dupayne mostrou-se relutante em admiti-la, mas Lady Holstead, que conheço pessoalmente, foi muito persuasiva. A rapariga já havia sido expulsa anteriormente de duas ou três escolas e a mãe e o padrasto ansiavam por dar-lhe alguma educação. Infelizmente, a Célia veio para cá contra a sua vontade, o que nunca é um início prometedor. Como já disse, nada sei sobre a sua vida. Enquanto aqui esteve, raramente a via e não voltei a encontrá-la depois de ela sair da escola.
Conhecia bem o doutor Dupayne, Lady Swathling? perguntou Kate.
A resposta foi acolhida com um misto de incredulidade e de desagrado.
Nunca o conheci e, tanto quanto sei, ele nunca visitou a escola. Mister Marcus Dupayne esteve presente num dos concertos das alunas há cerca de dois anos, mas o irmão nunca cá pôs os pés. Nunca nos conhecemos nem tão-pouco falámos um com o outro pelo telefone.
Nunca o chamaram para tratar uma das vossas alunas, como, por exemplo, a Célia Mellock? insistiu Kate.
Claro que não. Mas porquê? Alguém sugeriu tal coisa?
Ninguém, Lady Swathling. Foi apenas uma hipótese que me passou pela cabeça.
Que relação existia entre a Célia e a Muriel Godby? interveio Piers.
Nenhuma. Porque haveria de existir? Miss Godby era a recepcionista. Não era popular junto de algumas das raparigas, mas, tanto quanto consigo lembrar-me, a Célia Mellock nunca se queixou dela. Fez uma pausa, para acrescentar de seguida: E para o caso de estarem a pensar em fazer essa pergunta, o que, devo dizer, seria uma grande ofensa para mim, estive aqui na sexta-feira passada a partir das três da tarde, quando regressei de um almoço, até ao fim do dia. Os meus compromissos relativos a esse dia estão anotados na minha agenda e as visitas que recebi, incluindo a do meu advogado que chegou às quatro e meia, poderão confirmar onde eu me encontrava. Lamento não poder ajudá-los mais. Se me lembrar de algo relevante, entrarei em contacto convosco.
Tem a certeza de que não voltou a ver a Célia, depois de ela haver deixado Swathling’s? perguntou Kate.
Já lhe disse que não, inspectora. E agora, se não têm mais perguntas a fazer, preciso de tratar de outros assuntos. Como é óbvio, escreverei uma carta a Lady Holdstead para lhe apresentar as minhas condolências.
Levantou-se apressadamente da cadeira que ocupava e dirigiu-se para a porta. No corredor, o porteiro uniformizado que os havia deixado entrar já os esperava. Não restava quaisquer dúvidas de que o homem permanecera ali, de guarda, enquanto eles haviam entrevistado Lady Swathling.
Ao chegaram ao carro, Piers comentou:
Uma encenação algo artificial, não te pareceu? Não é preciso muito para adivinhar as prioridades daquela mulher: a sua própria pessoa em primeiro lugar e a escola, em segundo. Reparaste na diferença entre as duas secretárias? Uma achava-se praticamente vazia, enquanto a outra estava cheia de papéis. Também não é preciso muito para saber quem ocupa a secretária com toda aquela papelada. Lady Swathling impressiona os pais das potenciais alunas com a sua elegância aristocrática, enquanto Caroline Dupayne se ocupa de tudo o resto.
Mas porque haveria ela de ter tanto trabalho? O que lucra com isso?
Talvez nutra a esperança de assumir a direcção da escola, se bem que nunca viesse a ficar com a casa, a não ser que lhe fosse deixada em herança. Talvez seja por isso que ela espere. Não creio que possa ter dinheiro para comprar a casa.
Imagino que deve ser muito bem paga pelo que faz replicou Kate. O que acho interessante não é o porquê da permanência da Caroline Dupayne nesta escola, mas sim o seu patente interesse em manter o museu aberto.
Tudo se resume ao orgulho familiar concluiu Piers. O apartamento é a sua casa e deve querer afastar-se da escola de tempos a tempos. Não simpatizaste com Lady Swathling, pois não?
Nem me impressionei com a escola. Tal como tu, aliás. E o tipo de local privilegiado para onde os malditos ricos enviam as filhas, na esperança de se verem livres delas. Ambas as partes sabem o que está em jogo. Os pais pagam mais do que deviam para que as suas queridas filhas não engravidem, não consumam drogas nem álcool e que venham a encontrar o homem certo.
Estás a ser um tudo-nada intolerante. Certa vez, saí com uma rapariga que estudara aqui e não me pareceu que lhe tivesse feito assim tanto mal. Não é propriamente a mesma coisa do que ser admitido em Oxbridge, mas, ao menos, sabia cozinhar. E não era esse o seu único talento...
E, claro está, tu eras o homem certo...
A mamã dela não parecia pensar assim. Queres conduzir?
E melhor seres tu até eu me acalmar. Então, devemos informar o AD que Lady Swathling provavelmente sabe alguma coisa que não nos disse?
Estás a insinuar que ela é uma possível suspeita?
Não. Ela nunca nos teria fornecido o seu álibi se não tivesse a certeza de que a ilibava, mas, se for preciso, podemos comprová-lo. Por ora, seria uma perda de tempo. Não é ela a assassina no que respeita aos dois homicídios, mas pode ter sido uma cúmplice.
Estás a ir longe de mais... replicou Piers. Analisa os factos. De momento, pressupomos que as duas mortes estão interligadas. Isso significa que, se Lady Swathling estiver envolvida na morte da Célia, também está envolvida na morte do Neville Dupayne. E, se houve algo, e tudo o que disse pareceu-me corresponder à verdade, foi a sua afirmação de que nunca o conheceu. Que lhe importa se o museu encerrar? Até podia ser-lhe favorável manter a Caroline mais ligada à escola. Não, Lady Swathling está posta de parte enquanto suspeita. Sim, há qualquer coisa acerca da qual ela mentiu ou de que não nos falou, mas que há de novo quanto a isso?
Eram três e um quarto de quinta-feira, sete de Novembro, e a equipa debatia os progressos da investigação na sala de interrogatórios. Benton-Smith trouxera sanduíches e a secretária particular de Dalgliesh fornecera uma grande cafeteira de café forte. Naquele momento, já haviam limpo todos os restos da refeição, acomodando-se com os seus papéis e blocos de apontamentos.
A descoberta da mala de mão fora interessante, mas não os levara a parte alguma. Qualquer um dos suspeitos podia tê-la enfiado no saco preto, independentemente de o haver planeado ou decidido por súbito impulso. Era uma ideia que ocorreria mais a uma mulher do que a um homem, mas isso não constituía uma prova concludente. Ainda estavam à espera de obter o relatório da central de telecomunicações dos serviços de rede móvel acerca da localização do telemóvel de Muriel Godby quando esta atendera a chamada de Tally Glutton, mas os pedidos eram muitos e havia outros de mais premente prioridade. As investigações acerca da vida profissional de Neville Dupayne antes de se mudar da zona central da Inglaterra para Londres, em 1987, haviam resultado apenas num silêncio por parte da polícia local. Não que o facto de a investigação não ter progredido os deixasse desanimados. Afinal, decorrera menos de uma semana desde o início do caso.
Kate e Piers deviam relatar a sua visita ao apartamento de Célia. Para surpresa de Dalgliesh, Kate manteve-se em silêncio e foi Piers que começou a falar. Passados os primeiros segundos tornou-se óbvio que Piers estava a divertir-se e, através de frases curtas, o cenário por ele descrito ganhou vida.
É um apartamento situado num rés-do-chão na margem de um jardim central. Árvores, canteiros e um relvado cuidado, do lado mais caro do bloco de apartamentos. Grades nas janelas e duas fechaduras de segurança na porta. Uma sala de estar espaçosa, à frente, e três quartos com cama de casal e casa de banho en suite. Provavelmente, ela comprou-o como um investimento, aconselhada pelo advogado do papá, e, no mercado actual, deve valer mais de um milhão de libras segundo os meus cálculos. Uma cozinha agressivamente moderna, mas nenhum sinal de que alguém se desse ao incómodo de cozinhar ali. O frigorífico tresandava, devido a um pacote de leite já azedo e a embalagens de ovos e refeições pré-cozinhadas fora de prazo. Deixou o apartamento desarrumado. Roupas espalhadas por cima das camas, para não falar já dos guarda-louças atulhados e dos roupeiros apinhados. Cerca de cinquenta pares de sapatos, vinte malas de mão, alguns vestidos provocantes, desenhados para que pudesse mostrar o mais possível as pernas sem se arriscar a ser presa. Na sua maioria, o resto é roupa cara, de estilista. Não tive grande sorte quando inspeccionei a escrivaninha. Não se dava ao trabalho de pagar as contas recebidas, nem de responder a cartas oficiais, mesmo as dos seus advogados. Uma empresa da City encarrega-se da sua carteira de investimentos, que se resume à mistura habitual de acções e de títulos do Estado. Estava a gastar dinheiro rapidamente.
Algum sinal de um amante? perguntou Dalgliesh. Finalmente, Kate tomou conta do relato.
Encontrámos no cesto de roupa suja um lençol de baixo com manchas. Pareciam ser manchas de sémen, mas não eram recentes. Nada mais. Tomava a pílula. Encontrámos a embalagem no armário da casa de banho. Não descobrimos drogas, mas havia bebidas alcoólicas de todos os tipos. Aparentemente, ela tentou uma carreira de modelo, porque havia um portefólio com fotografias. Também procurou tornar-se uma pop star. Sabemos que constava dos livros da tal agência e que pagava uma pequena fortuna pelas lições de canto.
Pessoalmente, acho que estava a ser explorada. O que é mais estranho, comandante, é que não encontrámos quaisquer convites nem outros indícios de que ela tivesse amigos. Era de pensar que, com um apartamento dotado de três quartos, quisesse partilhá-lo com outras pessoas, nem que fosse pela companhia e para dividir as despesas. Não encontrámos quaisquer vestígios de que alguém ali tenha estado a não ser ela, exceptuando o lençol manchado. Levámos os nossos sacos para os casos de homicídio connosco e, por isso, guardámos o lençol num saco de provas. Já o enviei para o laboratório.
E livros? Quadros? perguntou Dalgliesh.
Todas as revistas femininas à venda no mercado, incluindo as de moda respondeu Kate. Livros de bolso, na sua maioria de ficção popular. Havia também fotografias de pop stars. Mais nada. Não encontrámos sequer um diário ou uma agenda. Talvez os levasse na mala de mão, o que significa que o seu assassino os tem em seu poder, se não os destruiu. Havia uma mensagem no gravador; era da garagem a informar que podia ir buscar o carro. Se não foi ao museu acompanhada pelo assassino, então o mais provável é ter apanhado um táxi. Não estou a ver uma rapariga como ela a andar de autocarro. Estivemos no gabinete de transportes públicos, na esperança de que pudessem localizar o motorista. Não havia mais mensagens no gravador nem encontrámos tão-pouco cartas particulares, o que é estranho. Tanta tralha e nem uma só prova da sua vida pessoal ou social. Tive pena da rapariga. Creio que devia ser uma solitária.
Piers, contudo, revelou-se menos sentimental.
Não sei por que raio não haveria de ser solitária. Todos sabemos que a santíssima trindade moderna é o dinheiro, o sexo e a fama. Ela tinha já os dois primeiros e esperava alcançar a terceira.
Não é uma esperança realista comentou Kate.
Mas tinha dinheiro. Vimos os extractos bancários e a carteira de investimentos. O papá deixou-lhe dois milhões e meio. Não é uma imensa fortuna pelos padrões actuais, mas pode viver-se bem com uma quantia dessas. Uma jovem com todo aquele dinheiro e apartamento próprio, em Londres, não tem de ficar só durante muito tempo.
A não ser que fosse carente, do tipo que se apaixona, se agarra ao homem que ama e não o larga contrapôs Kate.
Com ou sem fortuna, os homens podiam encará-la como alguém insuportável.
Pelos vistos, foi isso que pensou um deles, porque passou à acção de forma muito eficaz rematou Piers. Fez-se silêncio, mas ele prosseguiu: Os homens da vida dela teriam de ser muito desleixados para conseguir viver naquela desarrumação toda. Havia um bilhete, debaixo da porta, da empregada da limpeza, a dizer-lhe que não podia ir trabalhar na quinta-feira porque tinha de levar o filho ao hospital. Só espero que fosse bem remunerada.
A voz calma e baixa de Dalgliesh fez-se ouvir.
Se um dia for assassinado, Piers, o que não é totalmente impossível, esperemos que o encarregado da investigação que tiver de remexer nos seus pertences pessoais não se revele tão crítico.
É uma possibilidade que tenho em conta, comandante - respondeu Piers, com ar grave. Ao menos, encontrará as minhas coisas devidamente arrumadas.
Mereci ouvir esta resposta, pensou Dalgliesh. A total falta de privacidade a que ficava exposta a vítima sempre fora a parte do seu trabalho que maior dificuldade tinha em compreender. O homicídio tirava mais do que a vida em si. O cadáver era empacotado, etiquetado, dissecado; as agendas, os diários, as cartas confidenciais, tudo o que fazia parte da vida da vítima era revistado e examinado. Mãos estranhas remexiam nas roupas, pegavam e analisavam pequenos objectos, registavam-nos e etiquetavam-nos para que os tristes detritos de vidas patéticas se tornassem públicos. E, apesar de haver sido privilegiada, também a vida de Célia Mellock fora patética. A imagem que tinham agora era a de uma rapariga rica mas vulnerável e sem amigos, que procurara entrar num mundo que nem sequer todo o seu dinheiro podia pagar.
Selaram o apartamento? perguntou.
Sim. E também entrevistámos o porteiro do prédio. Vive num apartamento, no lado norte. Exerce aquela função há apenas seis meses e nada sabe sobre ela.
O bilhete que estava debaixo da porta indica que a empregada da limpeza não tinha chave, a não ser que alguém haja enfiado o bilhete debaixo da porta a seu pedido continuou Dalgliesh. Talvez venha a ser necessário localizá-la. E quanto ao Brian Clark e à sua equipa?
Estarão cá amanhã de manhã cedo. O lençol é uma prova importante, mas duvido que eles descubram alguma coisa. Ela não foi assassinada ali; não foi aquele o local do crime.
No entanto, é melhor que os peritos dêem uma vista de olhos. Você e o Benton-Smith podem encontrar-se com eles no apartamento. Talvez alguns dos vizinhos possam dar-vos qualquer informação sobre possíveis visitantes.
Concentraram-se então no relatório da autópsia do doutor Kynaston, recebido uma hora antes. Pegando na sua cópia, Piers comentou:
Assistir a uma autópsia feita pelo Dr. Kynaston pode ser instrutivo, mas está longe de ser terapêutico... Não é tanto pela sua espantosa meticulosidade nem pela precisão com que retalha os cadáveres, mas, sim, pelas suas preferências musicais. Não estava propriamente à espera de um coro de The Yeoman of the Guard, de Gilbert & Sullivan, mas ouvir o Agnus Dei do Requiem de Fauré é um pouco pesado, tendo em conta as circunstâncias... Pensei que fosse desmaiar, sargento.
Olhando para Benton-Smith, Kate viu que o rosto deste se enrubesceu e que os seus olhos negros emitiram um brilho tão escuro como carvão; mas aceitou aquele comentário sarcástico sem sequer pestanejar e replicou calmamente:
Também eu o pensei, por breves instantes. Fez uma pausa e olhou então para Dalgliesh. Foi a minha primeira autópsia de uma jovem, comandante.
Dalgliesh tinha os olhos postos no relatório da autópsia.
Sim, as autópsias de crianças e de mulheres novas são sempre as piores retorquiu. Qualquer pessoa que consegue assistir a uma autópsia dessas sem sentir angústia devia questionar-se se está a exercer a profissão certa. Vejamos o que o doutor Kynaston tem a revelar-nos.
O relatório do patologista confirmava o que já havia descoberto durante o primeiro exame. A pressão mais forte fora exercida com a mão direita sobre a laringe, fracturando o cornu superior da tiróide, na sua base. Havia uma pequena equimose na nuca, o que sugeria que a rapariga fora empurrada contra a parede enquanto o assassino a estrangulava, mas não havia quaisquer indícios de contacto físico entre o agressor e a vítima, nem quaisquer vestígios por baixo das unhas que indicassem ter tentado defender-se do ataque com as mãos. A única descoberta interessante era a de que Célia Mellock estava grávida de dois meses.
Portanto, temos um possível móbil adicional declarou Piers. Talvez haja combinado encontrar-se com o amante para decidirem o que iriam fazer, ou para pressioná-lo a casar-se com ela. Mas porque escolheu o Museu Dupayne? Tinha apartamento próprio.
E no caso desta rapariga, rica e com experiência sexual, a gravidez é um motivo muito pouco provável para um homicídio. Não seria mais do que um pequeno problema de que ela podia livrar-se, passando uma noite numa clínica de luxo. E como engravidou ela, quando, segundo parece, andava a tomar a pílula? Ou foi uma gravidez planeada ou deixara de se preocupar com a contracepção. A embalagem que encontrámos ainda não havia sido aberta.
Não creio que ela tenha sido assassinada por estar grávida opinou Dalgliesh. Assassinaram-na por se achar no local onde estava. Temos um só assassino e a primeira e intencional vítima foi o Neville Dupayne.
A imagem, se bem que naquele momento pouco mais do que uma suposição, veio-lhe à mente com uma espantosa nitidez: aquela figura andrógina, cujo sexo ainda desconhecia, a abrir a torneira num canto da barraca do jardim. Um jacto forte de água a lavar todos os vestígios de gasolina das mãos cobertas por luvas de borracha. O rugido feroz do fogo. E então, ouvido ao de leve, o som de vidros a estilhaçarem-se e o primeiro estalido da madeira, quando as labaredas saltaram e atingiram a árvore mais próxima. E o que levara Vulcano a erguer o olhar para a casa? Uma premonição ou o medo de que o fogo se tornasse incontrolável? Devia ter sido nessa altura que vira, observando-o da janela da Sala do Crime, uma rapariga de grandes olhos e com o cabelo louro emoldurado pelas labaredas. Teria sido naquele momento e em razão daquele simples olhar que Célia Mellock fora condenada à morte? Ouviu Kate dizer:
Mas ainda nos falta saber como foi que a Célia entrou na Sala do Crime. Uma das maneiras seria pela porta do apartamento da Caroline Dupayne. Mas, se foi esse o caso, como conseguiu entrar no apartamento e que foi lá fazer? E como poderíamos prová-lo, quando é perfeitamente possível que a Célia Mellock e o seu assassino tenham entrado no museu numa altura em que não se encontrava ninguém na recepção?
Naquele mesmo instante, o telefone tocou. Kate levantou o auscultador, escutou o que alguém lhe disse e respondeu:
Certo. Vou já descer. Dirigiu-se então a Dalgliesh.
A Tally Glutton veio até cá, comandante. Afirma que tem urgência em falar consigo.
Deve ser coisa urgente para ela vir até cá pessoalmente
replicou Piers. Suponho que será demasiado optimista esperar que tenha reconhecido finalmente o condutor.
Kate já se achava à porta.
Faça-a entrar para a sala mais pequena de interrogatórios, está bem, Kate? Vou recebê-la consigo.
Quinta-feira, 7 de Novembro/sexta-feira, 8 de Novembro
A polícia havia informado que os peritos que operavam no local do crime iriam precisar do resto de quarta-feira e de parte de quinta-feira para concluir as investigações no museu. Esperavam devolver as chaves ao fim da tarde, na quinta-feira. O baú já fora removido e, depois de o comandante Dalgliesh e a inspectora Miskin haverem inspeccionado o apartamento de Caroline Dupayne, parecia ter sido aceite que não havia motivos para lhe confiscar as chaves e a manter afastada do que era a sua casa.
Nessa quinta-feira, depois de se levantar cedo como de costume, Tally sentiu-se agitada por lhe fazer falta a rotina matinal de limpar o pó nas salas do museu. Agora, o desenrolar do dia deixara de ter qualquer sentido para ela. Resumia-se apenas a uma confusa impressão de que nada era real e reconhecível e de que se movia, como um autómato, num mundo de aterradora fantasia. Até mesmo a vivenda deixara de proporcionar-lhe refúgio para a sensação que a dominava de alheamento total da realidade e de crescente tragédia. Apesar do seu estado, ainda pensava na vivenda como o calmo centro da sua vida, mas a presença de Ryan havia destruído a paz e a ordem. Não que o rapaz se mostrasse propositadamente difícil, mas sim a casa demasiado pequena para duas pessoas com personalidades tão diferentes. Uma só sanita, na casa de banho, revelara-se mais do que um simples inconveniente. Tally não conseguia servir-se dela sem a desconfortável impressão de que Ryan esperava impacientemente que ela saísse, enquanto ele ficava na casa de banho demasiado tempo e deixava toalhas húmidas pelo chão e restos de sabonete líquido colados ao lavatório. Era muito asseado quanto à sua higiene pessoal. Tomava banho duas vezes por dia, o que fazia com que Tally se preocupasse com a conta do gás, mas atirava a roupa suja para o chão para que ela a apanhasse e enfiasse na máquina de lavar. Alimentá-lo também se revelara um problema. Tally já contava que Ryan tivesse gostos diferentes do seu, mas nunca que o rapaz comesse tanto. Ryan não se oferecera para partilhar as despesas e ela não conseguia ganhar coragem para lho pedir. Deitava-se sempre cedo, mas apenas para ligar a sua aparelhagem de alta fidelidade. A música pop, no volume máximo, tornara intoleráveis as noites de Tally. Na noite anterior, ainda mal refeita do choque que havia sofrido com a descoberta do corpo de Célia Mellock, pedira a Ryan que baixasse o som e o rapaz obedecera sem protestar. Contudo, o ruído, apesar de mais abafado, ainda era suficientemente irritante para a deixar com os nervos em franja e Tally não conseguira deixar de ouvi-lo, mesmo depois de enfiar a cabeça debaixo da almofada.
Na quinta-feira, logo após o pequeno-almoço, enquanto Ryan ainda estava a dormir, Tally decidiu ir até ao West End. Sem saber quanto tempo se ausentaria, não levou a sua mochila, mas um saco grande onde enfiou uma banana e uma laranja para o seu almoço. Apanhou o autocarro em Hampstead, foi de metropolitano até à estação de Embankment, seguiu a pé por Northumberland Avenue e atravessou a movimentada Trafalgar Square, em direcção ao Mail e ao St. James’s Park. Era um dos seus passeios favoritos por Londres e, a pouco e pouco, enquanto contornava o lago, aquela caminhada foi-lhe trazendo alguma paz. O calor, invulgar para aquela época do ano, regressara, e Tally sentou-se num banco para comer o seu frugal almoço, sob um sol pálido, enquanto observava pais e filhos a lançar pão aos patos, turistas que tiravam fotografias uns aos outros em frente do lago de águas reluzentes, namorados que passeavam de mãos dadas e homens misteriosos, de sobretudos pretos, caminhando aos pares e que sempre lhe faziam lembrar espiões do mais alto nível a trocar perigosos segredos entre si...418
Por volta das duas e meia, já revigorada, sentiu, contudo, que ainda não estava pronta para regressar a casa e, depois de circundar o lago, decidiu caminhar até à margem do rio. Chegou à Praça do Parlamento e deu consigo à porta do Palácio de Westminster. Agindo sob um impulso, resolveu juntar-se à curta fila de pessoas que queriam entrar na Câmara dos Lordes. Tally visitara a Câmara dos Comuns, mas nunca a dos Lordes. Seria uma experiência nova e far-lhe-ia bem ficar sentada em paz durante cerca de meia hora. Não teve de esperar muito. Passou pelos rigorosos dispositivos de segurança e, depois de lhe revistarem o saco, deram-lhe um passe e indicaram-lhe que subisse a escadaria atapetada que conduzia à galeria destinada ao público.
Ao empurrar a porta de madeira, apercebeu-se de que se achava por cima da câmara, o que a fez olhar para baixo, movida pela perplexidade. Havia visto várias vezes a câmara na televisão, mas agora a sua sombria magnificência ganhava vida com todo o seu esplendor. Ninguém poderia criar, actualmente, uma câmara legislativa como aquela; o que admirava era que alguém houvesse pensado construí-la numa outra época. Era como se nenhuma ornamentação, nenhum conceito arquitectónico, nenhum trabalho de talha dourada nem nenhum vitral pudesse ser considerado demasiado opulento para aqueles duques, condes, marqueses e barões vitorianos. Não restavam dúvidas de que o haviam conseguido, talvez porque, concluiu Tally, os construtores confiassem em si próprios. Tanto o arquitecto como os artesãos conheciam o objectivo da sua obra e haviam acreditado no que sabiam. Afinal, nós também temos as nossas pretensões, porque construímos a Cúpula do Milénio, pensou. A câmara fazia-lhe recordar, em certa medida, uma catedral, muito embora aquele edifício fosse puramente laico. O trono de ouro, com o seu baldaquino e o seu candelabro, celebrava a realeza terrena, as estátuas, nos seus nichos por entre as janelas, representavam barões e não santos, e as janelas altas, com os seus vitrais, ostentavam brasões e não cenas da Bíblia.
O grande trono dourado achava-se à sua frente e dominou-lhe o pensamento tanto quanto a câmara em si. Se um dia a Grã-Bretanha se tornasse uma república, o que aconteceria àquele edifício? Até mesmo o governo mais antimonárquico, certamente, não o mandaria demolir. Mas que museu poderia ser tão grande para albergar a Câmara dos Lordes? Para que finalidade podia ser utilizada? Talvez um futuro presidente, envergando fato e gravata, se sentasse, algo nervosamente, por baixo do baldaquino. A experiência de Tally sobre o mundo e os assuntos estatais era limitada, mas notara que aqueles que haviam alcançado o poder e um determinado estatuto gostavam tanto dos seus benefícios como os que os tinham adquirido por direito, à nascença. Ficou contente por poder sentar-se e ter tanto com que distrair a mente e os olhos. Algumas das suas ansiedades daquele dia dissiparam-se.
Absorta nos seus pensamentos e obcecada com a câmara em si, a princípio mal reparou nas figuras que ocupavam em baixo os bancos vermelhos. Foi então que ouviu a voz dele, nítida e inconfundível. O seu coração deu um salto. Olhou para baixo. Lá estava ele, de pé, em frente de um dos bancos que se achavam entre os reservados ao governo e os reservados à oposição, de costas voltadas para ela. Dizia:
Distintos lordes, peço permissão para fazer uma pergunta, que aparece, com o meu nome, no registo das moções que serão apresentadas.
Tally quase agarrou o braço do rapaz que estava sentado a seu lado quando lhe sussurrou, ansiosa:
Quem é aquele homem? Sabe quem está a falar?
O rapaz franziu o sobrolho e mostrou-lhe um papel. Sem sequer a fitar respondeu:
O orador é Lorde Martlesham, um par do reino independente.
Sentada no seu lugar, Tally debruçou-se para a frente, com os olhos cravados na nuca do orador. Se ao menos ele se virasse! Como poderia ter a certeza, se não lhe visse o rosto? Ele devia sentir, por certo, a intensidade do seu olhar. Tally não ouviu a resposta do ministro nem as intervenções dos outros pares do reino. O tempo dedicado à formulação de perguntas terminara e anunciaram o assunto que se seguiria. Um grupo de membros preparava-se para abandonar a câmara-e, quando o homem se levantou para se juntar aos outros, Tally viu-o com toda a clareza.
Não voltou a olhar para Lorde Martlesham. Não precisava de confirmar aquele momento de reconhecimento instantâneo. Podia haver-se deixado enganar pela voz, mas a voz e o rosto juntos forneceram-lhe a convicção avassaladora que não deixava quaisquer resquícios de dúvida. Não acreditava; tinha a certeza.
Deu consigo na calçada, em frente da entrada de St. Stephen’s, sem se lembrar de como chegara ali. A rua revelava-se tão movimentada como no pico da época turística. Churchill, do alto da sua estátua, contemplava com uma solidez de bronze a sua querida Câmara dos Comuns, do outro lado da rua, atulhada de táxis, carros e autocarros que mal se moviam. Um polícia mandara parar os peões, para poder dirigir os automóveis dos pares do reino até ao pátio da Câmara dos Comuns, e um grupo de turistas, de máquinas fotográficas ao ombro, esperava que o sinal do semáforo ficasse verde para atravessar a rua em direcção à abadia. Tally juntou-se àquele grupo. Sentia uma necessidade premente de paz e de solidão. Precisava de se sentar e de reflectir, mas havia já uma longa fila de espera em frente da porta norte da abadia e ser-lhe-ia difícil encontrar paz ali. Optou por entrar na Igreja de St. Margaret, e sentou-se num banco, a meio da nave.
Havia poucos visitantes, que andavam e falavam em voz baixa quando se detinham em frente dos monumentos, mas Tally não reparou neles nem tão-pouco prestou atenção ao que diziam. Os vitrais da janela, a leste, feita como parte do dote de Catarina de Aragão, os dois nichos com o príncipe Artur e a princesa Catarina, ajoelhados, com os dois santos de pé por cima deles, haviam-na maravilhado quando visitara a igreja pela primeira vez, mas agora fitava-os sem os ver. Perguntou a si própria porque se sentia subjugada por aquele tumulto de emoções. Afinal, vira o corpo do Dr. Neville. A imagem do seu corpo calcinado voltaria a visitá-la, em sonhos, enquanto fosse viva. E agora houvera uma segunda morte, multiplicando o horror, um cadáver de contornos mais distintos na sua imaginação do que se houvesse sido ela a levantar a tampa do baú. Em nenhum dos dois casos, contudo, lhe haviam pedido que assumisse responsabilidades até àquele momento. Revelara tudo o que sabia à polícia, que não lhe havia feito mais perguntas. Agora, porém, estava envolvida intimamente num homicídio, como se a sua contaminação lhe circulasse já nas veias. Deparava-se com uma decisão pessoal; o facto de ter plena consciência de que era seu dever tomar aquela decisão não lhe servia de consolo. Sabia que tinha de actuar a Scotland Yard ficava apenas a oitocentos metros de Victoria Street, mas precisava de encarar as implicações do seu acto. Lorde Martlesham tornar-se-ia o principal suspeito. Não podia ser de outro modo. O depoimento dela não deixara margem para dúvidas. Não se sentia intimidada por ele ser membro da Câmara dos Lordes; esse facto mal lhe passara pela cabeça. Não era uma mulher que desse importância ao estatuto dos outros. O seu problema era não acreditar que o homem que se debruçara sobre ela com tanta preocupação fosse um assassino. Mas, se não conseguisse encontrar provas que o ilibassem, então corria o risco de ser julgado e até mesmo de ser dado como culpado. Não seria a primeira vez que se incriminaria um inocente. E se o caso nunca fosse resolvido, não ficaria aquele homem estigmatizado como um provável assassino para o resto da vida? Além do mais, sentia-se perturbada por uma convicção menos racional quanto à inocência daquele desconhecido. Algures, num canto recôndito da sua mente, a que não conseguia ter acesso mau grado os esforços que fazia para raciocinar e entregar-se a uma calma meditação, havia algo que ela sabia, um único facto de que se devia ter recordado, para o revelar à polícia.
Deu consigo a recorrer a um velho jogo da sua infância. Sempre que tinha de encarar um problema, entregava-se a um diálogo interior com uma voz muda que, por vezes, reconhecia como sendo a da sua consciência, mas, na maioria das vezes, como um bom senso céptico ou como um simples alter ego.
Sabes o que tens a fazer. O que acontecer, depois, não é da tua responsabilidade.
Mas sinto como se o fosse.
Então, se queres sentir-te responsável, aceita essa responsabilidade. Sabes bem o que aconteceu ao doutor Neville. Se Lorde Martlesham é culpado, queres que ele fique impune? Se está inocente, então, porque não se apresentou às autoridades? Se for inocente, talvez tenha informações que poderão levar ao assassino. O tempo é primordial. Porque hesitas?
Porque preciso de me sentar tranquilamente e de pensar.
Pensar em quê e durante quanto tempo? Se o comandante Dalgliesh perguntar onde estiveste desde que saíste da Câmara dos Lordes, o que vais dizer-lhe? Que estiveste numa igreja a rezar para que Deus te guie?
Não estou a rezar. Sei o que devo fazer.
Então, despacha-te. Este é o segundo homicídio. Quantas mais mortes terá de haver antes que arranjes coragem para dizeres o que sabes?
Tally levantou-se e, com passos mais firmes, transpôs a pesada porta da igreja e seguiu por Victoria Street, em direcção à Scotland Yard. Na sua visita anterior, fora conduzida até ali pelo sargento Benton-Smith, motivada pela esperança, mas saíra com a sensação de que tinha fracassado e os desapontara. Nenhuma das fotografias que lhe haviam mostrado nem tão-pouco os desenhos habilmente esboçados revelaram qualquer semelhança com o homem que procuravam. Agora, contudo, ia dar uma boa notícia ao comandante Dalgliesh. Então, porque se sentia tão triste?
Foi atendida na recepção. Pensara com cuidado no que iria dizer.
Posso falar com o comandante Dalgliesh, por favor? Sou Mistress Tallulah Glutton do Museu Dupayne. E acerca dos homicídios. Possuo informações importantes.
O agente de serviço não se mostrou surpreendido. Repetindo o nome dela, levantou o auscultador do telefone.
Está aqui uma tal Mistress Tallulah Glutton, que quer falar com o comandante Dalgliesh acerca dos homicídios no Dupayne. Diz que é importante. Volvidos poucos segundos, pousou o auscultador e dirigiu-se a Tally. A inspectora Miskin, uma das colaboradoras do comandante Dalgliesh vem buscá-la, conhece-a ?
Sim, conheço-a, mas preferia falar com Misrer Dalgliesh, por favor.
A inspectora Miskin irá conduzi-la à presença do comandante.
Tally sentou-se no lugar que o agente lhe indicou e apoiou as costas contra a parede. Como era seu hábito, carregava o seu saco ao ombro com a correia a passar-lhe sobre o peito. De repente, pensou que aquela sua precaução contra o roubo podia ser considerada estranha; afinal, achava-se na Scotland Yard. Passou a correia por cima da cabeça e, com ambas as mãos, apertou o saco, que pousou sobre o regaço. Sentia-se subitamente muito velha.
Para sua grande surpresa, a inspectora Miskin apareceu logo de seguida. Tally perguntou a si própria se eles receavam que mudasse de ideias e se fosse embora, caso a deixassem algum tempo à espera. No entanto, a inspectora Miskin cumprimentou-a calmamente com um sorriso e conduziu-a até aos elevadores. Era grande o movimento no corredor. Quando as portas de um dos elevadores se abriram, entraram com meia dúzia de homens altos e reservados, mas ficaram a sós quando o elevador parou. Tally nem sequer reparara que botão premira a inspectora.
A sala de interrogatórios onde entraram era pequena e intimidante, com pouca mobília. Viu uma mesa quadrada com duas cadeiras de espaldar direito, de cada lado, e uma espécie de equipamento de gravação num suporte.
Como se lhe tivesse lido o pensamento, a inspectora Miskin comentou:
Receio que não seja muito acolhedor, mas ninguém nos incomodará aqui. O comandante Dalgliesh vai falar pessoalmente consigo. A vista é esplêndida, não lhe parece? Já pedimos chá.
Tally aproximou-se da janela. Em baixo, podia ver as torres geminadas da abadia e, mais ao longe, o Big Ben e o Palácio de Westminster. Os carros circulavam como se fossem miniaturas e os peões como se fossem minúsculos bonecos. Observou o panorama sem qualquer emoção, ansiosa por ouvir a porta abrir-se.
O comandante entrou discretamente e aproximou-se dela. Tally sentiu-se tão aliviada ao vê-lo que teve de se conter para não correr na sua direcção. Dalgliesh conduziu-a até uma cadeira e depois sentou-se à sua frente, ao lado da inspectora Miskin.
Sem qualquer preâmbulo, Tally anunciou:
Acabo de ver o condutor que me atropelou. Estive, hoje, na Câmara dos Lordes. Ele estava lá, no banco dos pares do reino independentes. O seu nome é Lorde Martlesham.
Ouviu-o falar? perguntou Dalgliesh.
Sim. Assisti à sessão de perguntas referentes às moções e ele pediu a palavra. Reconheci-o de imediato.
Pode ser mais específica? O que foi que reconheceu primeiro? A voz ou o aspecto? Os pares do reino independentes estão de costas voltadas para a galeria destinada ao público. Chegou a ver-lhe o rosto?
Não enquanto falou, mas estavam no fim da sessão de perguntas e ele foi o último. Depois de lhe responderem e da intervenção de mais um ou dois pares do reino, passaram a outro assunto. Foi quando ele se levantou e se voltou para sair que lhe vi o rosto.
Foi a inspectora Miskin e não o comandante Dalgliesh que fez a pergunta esperada:
Tem a certeza, Mistress Glutton? Ao ponto de enfrentar um interrogatório no Tribunal da Coroa sem se deixar abalar?
Tally, contudo, olhou para Dalgliesh.
A certeza absoluta. Fez uma pausa e perguntou tentando não deixar transparecer a sua ansiedade. Vou ter de identificá-lo?
Por enquanto, não. Talvez nem venha a ser necessário respondeu Dalgliesh. Tudo dependerá do que ele tiver para nos dizer.
Sempre com os olhos postos no comandante, Tally perguntou:
Ele é bom homem, não é verdade? Mostrou-se preocupado comigo. Nunca me enganaria quanto a isso. Não posso crer que... Interrompeu-se.
Pode apresentar uma explicação perfeitamente plausível para o que estava a fazer no Dupayne na passada sexta-feira e para o facto de não se haver apresentado retorquiu Dalgliesh. Além do mais, talvez possua informações úteis que poderão ajudar-nos. Era muito importante descobri-lo e ficamos-lhe gratos por se haver lembrado, Mistress Glutton.
Foi uma sorte ter ido hoje até à Câmara dos Lordes acrescentou a inspectora Miskin. Planeou essa visita?
Calmamente, Tally relatou o seu dia, com os olhos sempre postos em Dalgliesh; a necessidade de se afastar, pelo menos temporariamente, do museu; o passeio e o almoço frugal no St. James’s Park; a decisão impulsiva de visitar a Câmara dos Lordes. Não havia uma nota de triunfo na sua voz. Enquanto a escutava, Dalgliesh teve a sensação de que Mrs. Glutton queria que ele lhe assegurasse de que aquela sua confissão não constituía um acto de traição. Depois de Tally acabar de beber o chá, que sorvera sofregamente, tentou persuadi-la gentilmente a aceitar que um carro da polícia a levasse a casa, depois de lhe garantir que não chegaria ao museu num carro-patrulha com as luzes azuis acesas. Ela recusou a oferta com a mesma gentileza mas firmemente. Regressaria a casa pelo caminho do costume. Talvez fosse melhor assim, concluiu Dalgliesh. Se Tally chegasse a casa num carro da polícia, isso suscitaria vários comentários por parte de todos os que estavam ligados ao museu. Havia-lhe pedido que nada dissesse e tinha a certeza de que ela cumpriria a sua promessa, mas não queria incomodá-la com mais perguntas. Era uma mulher honesta para quem a mentira seria repugnante.
Acompanhou-a até ao rés-do-chão e despediu-se dela fora do edifício. Quando trocaram um aperto de mão, Tally fitou-o e disse:
Isto vai causar problemas àquele homem, não é assim?
Talvez lhe cause alguns problemas, mas, se estiver inocente, sabe que nada terá a recear. Tomou a decisão acertada ao vir falar comigo, mas penso que já o sabe.
Sim, sei-o replicou Mrs. Glutton, voltando-se finalmente, se bem que isso não me sirva de consolo.
Dalgliesh regressou à sala de interrogatórios. Kate punha Piers e Benton-Smith a par daquela novidade, que escutaram em silêncio até Piers fazer a pergunta óbvia:
Até que ponto aquela mulher tem a certeza, comandante? E que se ela se tiver enganado, estaremos metidos num belo sarilho...
Afirmou que não tinha quaisquer dúvidas. Reconheceu Martlesham, assim que ele se levantou e começou a falar. Ver-lhe o rosto confirmou-lhe que havia reconhecido o misterioso condutor.
A voz antes do rosto? exclamou Piers. E muito estranho... E como pode ela estar tão certa? Viu-o apenas por breves instantes debruçado sobre ela e à luz ténue de um candeeiro.
Qualquer que haja sido a sequência dos seus pensamentos, se o reconheceu pela aparência, pela voz, ou pelas duas, tem a certeza de que foi Martlesham que a atropelou na passada sexta-feira.
Que sabemos acerca dele, comandante? perguntou Kate. E uma espécie de filantropo, não é assim? Li qualquer coisa sobre o facto de levar roupas, comida e medicamentos até aos locais onde são mais necessários. Não viajou até à Bosnia ao volante de um camião? Veio em todos os jornais. A Tally Glutton pode ter visto o retrato dele naquela altura.
Piers foi buscar o Who’s Who à estante e trouxe-o até à mesa.
É um título hereditário, não é? O que significa que ele foi um dos herdeiros desse título eleitos para permanecer na Câmara dos Lordes depois daquela primeira reforma mal alinhavada, o que significa que deverá ter demonstrado o seu valor. Não houve alguém que se referiu a ele como a consciência dos pares do reino independentes?
Não me parece replicou Dalgliesh. Não são os pares do reino independentes uma consciência em si própria? Não se enganou quanto à filantropia, Kate. O Martlesham estabeleceu um programa em que os ricos emprestam dinheiro a quem não consegue obter crédito. E um esquema muito parecido com as entidades de crédito locais, mas os empréstimos ficam isentos de juros.
Piers, entretanto, começara a ler o Who’s Who em voz alta:
Charles Montague Seagrove Martlesham. Um pariato, algo tardio, criado em mil oitocentos e trinta e seis. Nascido a
três de Outubro de mil novecentos e cinquenta e cinco, educado nas universidades do costume, herdou o título em mil novecentos e setenta e dois. Ao que tudo indica, o pai morreu novo. Casado com a filha de um general. Não tem filhos. Até aqui conforme ao género. Passatempos: música e viagens. Morada: a velha reitoria de Martlesham, no condado de Suffolk. Aparentemente, não há uma casa ancestral da família. Membro do conselho de administração de um número impressionante de instituições de caridade. E é este o homem que estamos prestes a considerar como responsável por um duplo homicídio. O caso promete...
Contenha o seu entusiasmo, Piers avisou Dalgliesh. Continuam a aplicar-se as mesmas objecções. Porque haveria um homem de fugir do local de um crime particularmente hediondo para parar, depois, com o propósito de se certificar que não atropelara uma mulher de idade que caíra da sua bicicleta?
Vai avisá-lo, comandante? quis saber Kate.
Vou informá-lo de que desejo vê-lo em relação à investigação de um homicídio. Se ele achar necessário fazer-se acompanhar pelo seu advogado, a decisão será dele. Dalgliesh sentou-se à sua secretária. Provavelmente, ainda se encontra na Câmara dos Lordes. Vou escrever um bilhete a pedir-lhe que venha ver-me assim que lhe for possível. O Benton-Smith pode entregar-lhe o bilhete e escoltá-lo até cá. O Martlesham deve dispor de uma morada em Londres e podermos ir até lá, se ele o preferir, mas penso que virá com o Benton.
Kate avançou para a janela e esperou, enquanto Dalgliesh escrevia o bilhete.
E pouco provável que seja ele o assassino, comandante...
Tal como todos os outros: o Marcus Dupayne, a Caroline Dupayne, a Muriel Godby, a Tally Glutton, Mistress Faraday, Mistress Strickland, o James Calder-Hale e o Ryan
No entanto, um deles é o assassino. Depois de havermos ouvido Lorde Martlesham, poderemos estar mais perto de descobrir quem cometeu dois homicídios. Kate voltou-se e fitou o chefe.
Mas já sabe quem foi, não é verdade, comandante?
Creio que todos o sabemos. Contudo, uma coisa é sabê-lo e outra é prová-lo.
Kate sabia que ele não pronunciaria o nome enquanto não estivessem preparados para efectuar uma detenção. Vulcano continuaria a ser Vulcano, e ela julgava saber porquê. No início da sua carreira de detective, Dalgliesh vira-se envolvido na investigação de um homicídio que correra mal. Um homem inocente havia sido preso e condenado. Por ser apenas um jovem detective, não fora responsabilizado pelo engano, mas aprendera a lição. Para AD, o maior perigo na investigação de um crime, especialmente de um homicídio, continuava a ser o mesmo: a fixação num principal suspeito e a concentração de todos os esforços para provar a sua culpabilidade em detrimento de outras linhas de investigação, e a inevitável falta de discernimento que fazia com que uma equipa não contemplasse sequer a hipótese de se haver equivocado. Um segundo princípio era a necessidade de evitar uma detenção prematura, que poderia prejudicar o êxito tanto da investigação como do subsequente julgamento. A excepção era a necessidade de proteger uma terceira pessoa. E não restavam dúvidas, pensou Kate, que, com aquele segundo homicídio, Vulcano deixara de constituir um perigo. Já faltava pouco. O fim estaria à vista mais cedo do que ela pensara ser possível.
Depois de Benton-Smith partir para a Câmara dos Lordes, Dalgliesh permaneceu em silêncio durante um minuto. Kate aguardou.
Quero que vá até Swathling’s já disse por fim o comandante, e regresse com a Caroline Dupayne. Ela não está detida, mas penso que virá, e à hora que nos convier a nós e não a ela. Então, ao reparar na expressão de espanto de Kate, acrescentou: Talvez esteja a arriscar-me, mas tenho a certeza de que a Tally Glutton identificou o homem certo.
E o que quer que seja que o Martlesham tenha para nos dizer, tenho o pressentimento de que estará relacionado com a Caroline Dupayne e com o seu apartamento no museu. Se me enganar e não existir qualquer elo de ligação, tentarei contactá-la pelo telemóvel antes que chegue a Richmond.
Volvidos trinta minutos, Lorde Martlesham chegou à Yard e foi conduzido ao gabinete de Dalgliesh. Entrou, calmo mas muito pálido, e a princípio parecia não saber se devia trocar um aperto de mão com o comandante. Sentaram-se, em frente um do outro, na mesa que se achava diante da janela. Contemplando os seus traços lívidos, Dalgliesh não teve dúvidas de que Lorde Martlesham sabia porque fora convocado. A formalidade com que recebera Benton-Smith, o facto de haver sido conduzido àquele gabinete, triste e funcional, a despojada mesa de madeira clara que os separava, falavam por si sós. Não se tratava de uma visita social e era evidente que ele nunca esperara que o fosse. Observando-o, Dalgliesh pôde compreender porque Tally Glutton o achara atraente. Tinha um desses raros rostos para o qual nem a palavra bem-parecido nem a palavra bonito são inteiramente apropriadas, mas que revelam, com uma sincera vulnerabilidade, a natureza essencial do homem.
Sem qualquer preâmbulo, Dalgliesh declarou: Mistress Tallulah Glutton, a governanta do Museu Dupayne, reconheceu-o esta tarde como sendo o condutor que a derrubou da bicicleta, por volta das seis horas e vinte e cinco, na sexta-feira, dia um de Novembro. Nessa noite, duas pessoas foram assassinadas no museu: o doutor Neville Dupayne e Miss Célia Mellock. Tenho de perguntar-lhe se estava lá e o que fazia.
Lorde Martlesham havia pousado as mãos sobre o regaço. Ergueu-as e cravou-as no tampo da mesa. As veias incharam como cordas escuras e os nós dos dedos brilharam com a alvura do mármore por baixo da pele esticada.
Mistress Glutton não se enganou replicou. Eu estava lá e quase a atropelei. Espero que não tenha ficado mais ferida do que me pareceu. Ela disse-me que se sentia bem...
Sofreu apenas algumas leves contusões. Porque não se apresentou até agora?
Porque esperava que este momento nunca viesse a acontecer. Não cometi nenhuma ilegalidade, mas não queria que se ficasse a conhecer a minha ida até lá. Foi por isso, aliás, que me apressei a sair dali.
Contudo, mais tarde, quando teve conhecimento do primeiro homicídio, deve ter-se dado conta de que o seu testemunho era muito importante e que era seu dever apresentar-se.
Sim, creio que sim, mas por outro lado sabia que nada tivera a ver com o homicídio. Ignorava sequer que se tratara de fogo posto. Se me chegou a passar alguma ideia pela mente, foi a de que alguém havia ateado uma fogueira que se descontrolara. Convenci-me de que se me apresentasse, só complicaria a investigação e provocaria uma situação embaraçosa, não só para mim como para outras pessoas. Contudo, quando tomei conhecimento esta manhã do segundo homicídio, tudo se complicou. Mesmo assim, resolvi manter o silêncio, mas, se fosse identificado, então contaria toda a verdade. Não pensei que a minha decisão constituísse uma obstrução à justiça, por saber que nada tinha a ver com os dois homicídios. Não estou a tentar defender-me, mas apenas a explicar como tudo aconteceu. Pareceu-me desnecessário apresentar-me após o homicídio do doutor Neville, e essa decisão afectou o que fiz posteriormente. A cada hora que passava tornava-se mais difícil fazer o que achava ser correcto.
Porque estava no museu naquele dia?
Se me tivesse feito essa pergunta logo após a morte do Dupayne, ter-lhe-ia respondido que me servira do museu para sair da estrada e descansar um pouco e que, ao acordar, me dera conta de que estava atrasado para um encontro e tinha de me apressar. Não sou um experiente mentiroso e duvido muito que houvesse sido convincente, mas pensei que valeria a pena tentar. Ou, como é óbvio, podia ter contestado a identificação de Mistress Glutton. Seria a palavra dela contra a minha, mas a segunda morte veio alterar tudo. Eu conhecia a Célia Mellock. Fui ao museu naquela noite para me encontrar com ela.
Fez-se silêncio até Dalgliesh perguntar:
E encontrou-se com ela?
Não. Ela não estava lá. Devíamos encontrar-nos no parque de estacionamento, por trás dos loureiros à direita da casa. A hora combinada havia sido as seis e um quarto, por ser o mais cedo que me era possível chegar ao museu. No entanto, atrasei-me e o carro dela não se achava lá. Tentei ligar-lhe para o telemóvel, mas ninguém atendeu. Concluí que não queria encontrar-se comigo ou que se cansara de esperar e, por isso, resolvi ir-me embora. Não contava cruzar-me com ninguém no caminho e conduzi mais depressa do que devia, o que provocou o acidente.
Qual era a sua relação com Miss Mellock”
Fomos amantes durante muito pouco tempo. Eu queria acabar com tudo e ela não. Era uma decisão brutal da minha parte, mas ela pareceu admitir que a nossa relação devia terminar. Aliás, nunca sequer devia ter começado. Pediu-me que fosse ter com ela uma última vez ao museu. O parque de estacionamento era o nosso ponto de encontro habitual, porque à noite fica completamente deserto. Nunca sentimos o risco de sermos descobertos e, mesmo que isso acontecesse, não estávamos a cometer qualquer ilegalidade.
De novo fez-se silêncio. Martlesham havia mantido o olhar posto nas mãos, que voltou a pousar sobre o regaço.
Disse que veio até cá para contar toda a verdade replicou, por fim, Dalgliesh, mas o que acaba de me dizer não corresponde à verdade, pois não? A Célia Mellock foi encontrada morta na Sala do Crime do museu e pensamos que foi assassinada ali. Tem alguma ideia de como foi que ela entrou no museu?
Martlesham parecia curvado na cadeira. Sem erguer o olhar, respondeu:
Não, nenhuma. Não podia ela ter chegado mais cedo para se encontrar com outra pessoa e depois esconder-se, por exemplo, na sala de arquivo da cave e ficar fechada ali, provavelmente com o seu assassino, quando o museu encerrou às cinco da tarde?
Como sabe que existe uma sala de arquivo e que o museu encerra às cinco horas?
Porque estive lá, ou melhor, porque visitei o museu.
Não é a primeira pessoa a fornecer uma explicação tão simples. Contudo, para mim é uma interessante coincidência, mas havia uma outra maneira de a Célia Mellock entrar na Sala do Crime, não é assim? Pela porta do apartamento da Caroline Dupayne. Não era ali que você e a Célia haviam combinado encontrar-se?
Lorde Martlesham ergueu então a cabeça e fitou Dalgliesh. Era um olhar de total desespero.
Não a matei murmurou. Não a amava nem nunca lhe disse tal coisa. A nossa relação foi uma loucura e sei que a magoei. Ela julgava haver encontrado em mim o que precisava... um pai, um amante, um amigo, apoio, segurança, mas não lhe dei nada disso. Não estaria morta se não fosse por culpa minha, mas não a matei e não sei quem o fez.
Porquê o Museu Dupayne? continuou Dalgliesh. Nem sequer faziam amor no carro, pois não? Por que motivo haveriam de ter relações sexuais num local tão desconfortável quando tinham o apartamento da Célia e toda a cidade de Londres à vossa disposição? Estou a sugerir que se encontravam no apartamento da Caroline Dupayne. Pedirei a Miss Dupayne que me forneça uma explicação, mas, por ora, gostaria de ouvir a sua. Esteve em contacto com Miss Dupayne depois da morte da Célia Mellock?
Sim, telefonei-lhe quando soube da notícia. Expliquei-lhe o que pensava dizer à polícia, se fosse identificado. Ela zombou de mim, afirmando que eu nunca conseguiria safar-me. Não parecia preocupada. O seu tom de voz era ríspido, quase cínico, como se toda a situação a divertisse, mas repliquei-lhe que, caso a polícia me pressionasse, teria de contar toda a verdade.
E que verdade é essa, Lorde Martlesham? perguntou Dalgliesh quase com delicadeza.
Suponho que é melhor contar-lhe tudo... De facto, a Célia e eu encontrávamo-nos ocasionalmente no apartamento do museu, porque a Caroline Dupayne nos havia dado dois duplicados das chaves.
Mesmo apesar de a Célia ter apartamento próprio?
Cheguei a lá ir a certa altura, mas uma única vez. Não me senti em segurança e Célia não gostava de servir-se do seu apartamento.
Há quanto tempo é amigo íntimo da Caroline Dupayne?
Não posso dizer que fôssemos amigos íntimos respondeu Lorde Martlesham num tom de voz triste.
Mas tinham de sê-lo. E uma mulher muito reservada e, no entanto, empresta-lhe o seu apartamento e entrega dois duplicados das chaves a si e à Célia Mellock. Miss Dupayne disse-me que nunca mais voltara a ver a Célia, desde que ela saíra de Swathling’s, em dois mil e um. Está a afirmar que ela mentiu?
Mais uma vez, Martlesham ergueu o olhar. Fez uma pausa e, com um sorriso constrangido, respondeu:
Não, ela não está a mentir. Não sou lá muito bom nisto, pois não? Não chego aos calcanhares de um detective experiente.
Isto não é um jogo, Lorde Martlesham. A Célia Mellock foi assassinada, assim como o Neville Dupayne. A propósito, conhecia-o intimamente ou não?
Não o conhecia, nem sequer havia ouvido falar dele até ler, nos jornais, que fora assassinado.
Portanto, voltamos à minha pergunta: qual é a verdade, Lorde Martlesham?
Por fim, o homem estava pronto a falar. Havia uma garrafa de água e um copo sobre a mesa. Tentou verter o líquido para o copo, mas as mãos tremiam-lhe. Piers debruçou-se e serviu-o. Esperaram enquanto Lorde Martlesham bebia lentamente a água, mas, quando começou a falar, a sua voz era firme.
Éramos ambos membros de um clube cujos encontros se efectuam no apartamento da Caroline Dupayne. Chama-se o Clube Noventa e Seis. Vamos até lá pelo sexo. Penso que foi fundado pelo marido dela, mas não tenho a certeza. Tudo o que envolve o clube é secreto, incluindo os seus membros. Podemos propor um outro membro, mas é a única pessoa cuja identidade conhecemos. Os encontros são marcados na Internet e o website está codificado, íamos até lá por um único motivo: para desfrutar do sexo que podia ser praticado com uma mulher, com duas ou em grupo. Pouco importava. Era ou, pelo menos, parecia tão divertido, tão livre da ansiedade que nos consome... Tudo o resto se dissipava. Os problemas que não podemos evitar, aqueles que nos impomos a nós próprios, as trevas ocasionais do desespero quando nos apercebemos de que a Inglaterra que o senhor conheceu, a Inglaterra pela qual o meu pai combateu, está a morrer e que estamos a morrer com ela, a tomada de consciência de que a nossa vida assenta numa grande mentira... Não creio que possa fazê-lo compreender... Ninguém era explorado ou usado no clube, nem o fazia a troco de dinheiro. Não havia ali menores de idade ou pessoas mais vulneráveis. Ninguém tinha de fingir.... Éramos como crianças atrevidas, se o preferir, mas crianças, porque havia uma espécie de inocência naqueles encontros...
Dalgliesh nada disse. O apartamento era o local ideal. A entrada do museu, recuada e escondida da estrada pelas árvores e pelos arbustos, o espaço para estacionar, a entrada separada para o apartamento, a total privacidade.
Como se tornou a Célia Mellock membro do clube? perguntou.
Não foi por meu intermédio. Não sei. Era o que estava a tentar explicar-lhe. Esse era o grande propósito do clube. Ninguém saberia dar-lhe essa resposta, excepto o membro que, pela primeira vez, a levou a um encontro.
E não faz ideia, ao menos, de quem era esse membro?
Não faço a menor ideia. A Célia e eu infringimos todas as regras. Ela apaixonou-se. O Clube Noventa e Seis não alimenta essa perigosa indulgência. Encontrámo-nos para manter relações sexuais fora do clube, o que era proibido. Usámos o museu para um encontro privado, o que também era contra as regras.
Acho estranho que a Célia Mellock tenha sido aceite no clube. Tinha apenas dezanove anos comentou Dalgliesh. Não se pode esperar discrição de uma rapariga dessa idade. Tinha ela a maturidade ou a experiência sexual para lidar com esse tipo de clube? Não a consideravam perigosa? E não terá sido precisamente por ela constituir uma ameaça que teve de morrer?
Desta vez, o protesto foi veemente.
Não! Não, não era esse género de clube. Nunca nenhum dos membros se sentiu em perigo!
Não, provavelmente não se sentiam em perigo, pensou Dalgliesh. Não era apenas a conveniente localização do apartamento, a sofisticação dos encontros e a confiança mútua que os fazia sentir em segurança. Os membros do clube eram homens e mulheres habituados a manipular o poder, que nunca acreditariam que podiam correr perigo.
A Célia estava grávida de dois meses. Terá ela pensado que o filho era seu?
É provável. Talvez tenha sido por isso que quisesse ver-me com tanta urgência, mas eu nunca poderia tê-la engravidado. Não posso dar filhos à minha mulher. Tive papeira quando era adolescente e nunca poderei ser pai.
O olhar que lançou a Dalgliesh estava repleto de sofrimento.
Penso que esse facto influenciou a minha atitude para com o sexo. Não quero desculpar-me de forma alguma, mas o propósito do sexo é a procriação. Se tal não é nem nunca será possível, então, de certa forma, o acto sexual deixa de ser importante, excepto como um alívio necessário. E era isso que eu pedia ao Clube Noventa e Seis: um alívio necessário.
Dalgliesh não respondeu. Permaneceram sentados, em silêncio durante algum tempo. Por fim, Lorde Martlesham prosseguiu:
Há certas palavras e certos actos que definem um homem. Uma vez proferidas essas palavras, uma vez cometidos esses actos, não existe qualquer desculpa ou justificação possível nem sequer uma explicação aceitável. Dizem-nos: É assim que tu és. Não podes continuar a fingir. Agora, já o sabes. São palavras e actos inalteráveis e inesquecíveis.
Mas não forçosamente imperdoáveis retorquiu Dalgliesh.
As outras pessoas que acabam por descobrir a nossa verdadeira natureza não conseguem perdoar-nos. Nem são tão-pouco perdoáveis aos nossos próprios olhos. Talvez o sejam para Deus, mas como alguém disse: C’est son metier. Passei por um desses momentos quando me afastei de carro daquele fogo. Sabia que não era uma fogueira. Como poderia sê-lo? Sabia que alguém podia estar em perigo, alguém que podia ter sido salvo, mas entrei em pânico e fugi.
No entanto, parou para se certificar de que Mistress Glutton não sofrera qualquer ferimento grave.
Está a sugerir que esse meu comportamento pode ser uma atenuante, comandante?
Não, limitei-me a mencionar um facto. Silêncio.
Antes de partir, chegou a entrar no apartamento de Miss Dupayne? quis saber Dalgliesh.
Apenas para abrir a porta. O vestíbulo estava às escuras e o elevador parado no rés-do-chão.
Tem a certeza de que o elevador estava parado no rés-do-chão?
A certeza absoluta. Aliás, foi isso que me convenceu de que a Célia não se encontrava no apartamento.
Após novo silêncio, Lorde Martlesham acrescentou:
Parece-me que segui um caminho que outros me prepararam, como se fosse um sonâmbulo... Fundei uma instituição de caridade porque descobri uma necessidade e a forma de a satisfazer. Na realidade, era demasiado óbvio. Milhares de pessoas levadas ao desespero financeiro, até mesmo ao suicídio, porque não conseguem obter crédito a não ser de agiotas prontos a explorá-los. Quem mais precisa de dinheiro são aqueles que não podem tê-lo. Por outro lado, existem milhares de pessoas com dinheiro para gastar... não muito, apenas alguns trocados para eles... que estão dispostas a fornecer os fundos de imediato sem juros, mas com a garantia de que recuperarão o seu capital. E funciona. Este sistema é organizado por voluntários. Raramente o dinheiro é gasto em despesas de gestão e, a pouco e pouco, porque as pessoas ficam gratas, começam a tratar-nos como se fôssemos uma espécie de santo secular. Precisam de acreditar que a bondade ainda é possível, que nem todos são motivados apenas pela ganância. Anseiam por um herói virtuoso. Nunca me considerei um homem bom; julguei, isso sim, que podia praticar o bem. Fiz os discursos e os apelos que esperavam que eu fizesse. Agora, contudo, foi-me mostrada toda a verdade acerca de mim próprio, aquilo que sou realmente, e isso horroriza-me. Não se pode ocultar essa verdade? Não por mim. Pensava nos pais da Célia. Nada pode ser pior do que a morte dela, mas gostaria que fossem poupados a uma parte da verdade. Terão de lhes falar do clube? E ainda há a minha mulher. Sei que é tarde de mais para pensar nela, mas está doente e queria poupar-lhe mais sofrimento.
Se porventura a existência do clube tiver de fazer parte das provas a apresentar em tribunal, então eles ficarão a saber toda a verdade comentou Dalgliesh.
Tal como todos os outros. Os tablóides encarregar-se-ão disso, mesmo que não seja eu a sentar-me no banco dos réus. Não a matei, mas sou responsável pela sua morte. Se ela não me tivesse conhecido, ainda estaria viva hoje. Suponho que não estou detido, pois não? Não me avisaram de que tudo o que eu dissesse poderia ser usado contra mim.
Não, não está detido. Precisamos do seu depoimento, que os meus colegas irão registar imediatamente. Terei de voltar a falar consigo. Essa segunda entrevista será gravada, de acordo com o disposto na lei processual quanto a depoimentos relativos a crimes.
Devo supor que vai aconselhar-me a arranjar um advogado?
Isso cabe-lhe a si decidir, mas em meu entender seria melhor replicou Dalgliesh.
Apesar do trânsito congestionado, Kate, acompanhada por Caroline Dupayne, regressou à Scotland Yard duas horas depois de haver saído. Caroline Dupayne passara a tarde a passear pelo campo a cavalo; regressara no seu automóvel e acabara de subir a álea de acesso a Swathling’s um minuto antes da chegada de Kate. Não esperara para trocar de roupa e ainda usava as calças de montar. Dalgliesh pensou que, se ela houvesse trazido o chicote consigo, a imagem da mulher dominadora não poderia ser mais completa.
Kate nada lhe havia dito durante a viagem e, quando Caroline soube que Tally reconhecera Lorde Martlesham, não revelou mais emoção do que um breve sorriso tímido.
O Charles Martlesham telefonou-me depois de se descobrir o corpo da Célia. Disse-me que, caso o reconhecessem, tentaria ocultar a verdade, mas que no fim seria forçado a contar tudo, tanto acerca do que estava a fazer no Dupayne na passada sexta-feira, como sobre o Clube Noventa e Seis. Para lhe ser sincera, nunca pensei que o encontrassem, mas, mesmo que o conseguissem, sabia que ele se revelaria um mentiroso ineficaz. É uma pena que a Tally Glutton não haja limitado a sua educação política à Câmara dos Comuns...
Como começou o Clube Noventa e Seis? perguntou Dalgliesh.
Há seis anos, com o meu marido. Foi ele que o fundou. Morreu ao volante do seu Mercedes há quatro anos, mas isso já o sabe, por certo, até porque não me parece que haja muito acerca de todos nós que vocês já não tenham descoberto. A ideia do clube foi dele. Dizia que se podia ganhar dinheiro, procurando uma necessidade que ainda não fora suprida. As pessoas são motivadas pelo dinheiro, pelo poder, pela fama e pelo sexo. Aqueles que alcançam o poder e a fama geralmente também têm dinheiro. Obter sexo seguro já não é tão fácil. Homens ambiciosos e bem-sucedidos precisam de sexo com regularidade e gostam de variar. Podem comprar sexo a uma prostituta, mas arriscam-se a ver a sua fotografia nos tablóides e a ter de apresentar queixa por difamação em tribunal. Podem consegui-lo circulando nos seus carros em volta de King’s Cross, se o factor risco os excita. Ou podem ir para a cama com as mulheres dos seus amigos, se estiverem preparados para complicações emocionais e matrimoniais. O Raymond dizia que aquilo de que um homem poderoso precisava era de sexo sem culpa com mulheres que gostassem, tanto como ele, de praticá-lo e nada tivessem a perder. Seriam, na sua maior parte, mulheres casadas, que valorizavam os seus matrimónios, mas que se sentiam entediadas ou insatisfeitas sexualmente ou que precisavam de algo envolto em mistério, ou até que implicasse um certo perigo. Foi por isso que fundou o clube. O meu pai já falecera e eu havia ocupado o apartamento.
E a Célia Mellock fazia parte desse grupo? Há quanto tempo?
Não sei. Nem sequer sabia que ela pertencia ao grupo. Era assim que o clube funcionava. Ninguém, incluindo eu própria, sabe quem são os membros do clube. Temos um site para que os membros possam verificar a data de um futuro encontro ou se o local é seguro, mas, como é evidente, é-o sempre. Depois da morte do Neville, tudo o que tive de fazer foi colocar uma mensagem no site a informar os membros de que todos os encontros haviam sido cancelados. De nada lhe servirá pedir-me uma lista dos membros, porque não existe nenhuma. A essência do clube residia na total privacidade.
A menos que os membros se reconhecessem entre eles fez notar Dalgliesh.
Usavam máscaras. Era uma medida teatral, mas o Raymond pensava que tornava o clube ainda mais atractivo.
Uma máscara não é disfarce suficiente para ocultar uma identidade quando as pessoas estão a ter relações sexuais.
Admito que talvez um ou dois dos membros suspeitassem de quem eram os seus parceiros ocasionais. Afinal, provinham do mesmo meio, mas não vai conseguir descobrir quem são.
Dalgliesh deixou-se ficar sentado, em silêncio, atitude que Caroline pareceu achar opressiva, porque de súbito exclamou:
Pelo amor de Deus, não é como se eu estivesse a falar com o vigário de uma paróquia! O senhor é um membro da polícia e já viu tudo isto antes. As pessoas juntam-se para praticar sexo em grupo e a Internet é um meio mais sofisticado de arranjar esses encontros do que atirar uma moeda ao ar para saber quem vai ficar com quem. Sexo consensual em grupo. Acontece e o que fazíamos não era ilegal. Não podemos manter o sentido das proporções? A polícia nem sequer dispõe ainda de recursos para combater a pedofilia na Internet. Quantos milhares, quantas dezenas de milhares de homens pagam para ver crianças serem sexualmente torturadas? E quanto às pessoas que fornecem essas imagens? Estão a pensar seriamente em perder o vosso tempo e dinheiro na caça aos membros de um clube privado para adultos responsáveis, que se reuniam para praticar sexo numa propriedade também privada?
O problema é que, neste caso, uma das participantes foi assassinada contrapôs Dalgliesh. Nada é privado quando se trata de um homicídio. Nada.
Ela revelara-lhe o que ele queria saber e, por fim, deixou-a partir. Não sentia qualquer sentimento de desaprovação. Que direito tinha de julgá-la? Não fora a sua própria vida sexual, conduzida sempre pela meticulosidade, uma cuidadosa separação entre o prazer físico e o amor até há pouco tempo?
Vai ficar bem, não é verdade, Mistress Tally? exclamou Ryan. Quero dizer: está habituada a viver aqui. Não pensa que eu deveria ficar?
Tally regressara a casa depois de uma viagem de metro em que não conseguira lugar para se sentar e em que apenas os corpos dos viajantes, esmagados uns contra os outros, a haviam mantido de pé. Fora encontrar Ryan na sala de estar com a mochila feita, pronto para se ir embora. Uma nota escrita em maiúsculas na parte de trás de um sobrescrito achava-se sobre a mesa.
Tally deixou-se cair na cadeira que se encontrava mais próxima.
Não, não penso que devas ficar, Ryan. Lamento que a tua estada aqui tenha sido desconfortável, mas a vivenda é muito pequena.
É isso! replicou o rapaz com veemência. É por tudo ser tão pequeno aqui, mas voltarei. Quero dizer: estarei de volta ao trabalho, como de costume, na segunda-feira. Vou para casa do major.
O alívio de Tally foi ensombrado pela ansiedade. Para onde iria realmente Ryan?, interrogou-se.
E o major está contente por te receber? Ryan não a fitou quando respondeu:
Ele diz que não se importa. Quero dizer: não será por muito tempo. E que tenho planos.
Não duvido que tenhas planos, Ryan, mas o Inverno aproxima-se. As noites podem ser terrivelmente frias e precisas de ter um abrigo.
Mas terei sempre um abrigo, se sabe ao que me refiro. Não se preocupe, Mistress Tally, que está tudo bem comigo.
Dito aquilo, pôs a pesada mochila aos ombros e dirigiu-se para a porta.
Como vais chegar a casa do major, Ryan? perguntou-lhe Tally. Se Miss Godby ainda cá estivesse, talvez te pudesse dar boleia até à estação de metro.
Tenho a minha bicicleta nova que o major me comprou. Fez uma pausa. Bom, vou andando. Adeus, Mistress Tally. Obrigado por me ter acolhido.
E saiu. Tally tentava reunir forças suficientes para se mexer quando alguém tocou à porta da frente. Era Muriel. Trazia um casaco vestido, o que tornava óbvio que se preparava para regressar a casa.
Já verifiquei se estava tudo trancado anunciou. Não podia esperar mais pelo seu regresso. Vi o Ryan a pedalar pelo caminho de entrada com a mochila às costas. Foi-se embora?
Sim, Muriel, ele voltou para casa do major, mas não há problema. Estou acostumada a viver sozinha. Aqui, nunca me sinto nervosa. Não há problema repetiu.
Miss Caroline é capaz de não pensar o mesmo. Devia telefonar-lhe para ouvir os seus conselhos. Talvez queira que fique com ela, Tally. Ou pode ficar em minha casa, se estiver realmente assustada.
Aquela proposta não podia ter sido menos amável. Acha ser sua obrigação fazer-me este convite, mas não me quer na sua casa. Podia ter-se oferecido para ficar aqui, mas nunca o faria, sobretudo depois do que aconteceu ontem, pensou Tally. Pareceu-lhe detectar uma expressão de medo nos olhos de Muriel, o que a fez sentir um certo prazer. Muriel estava mais assustada do que ela.
E muita bondade sua, Muriel respondeu, mas ficarei muito bem na vivenda. É aqui que vivo. Tenho ferrolhos nas janelas, uma fechadura dupla na porta e o telefone. Não creio que corra perigo. Porque haveria alguém de querer assassinar-me?
Porque quiseram assassinar o doutor Neville ou aquela rapariga? Quem quer que o tenha feito deve ser louco. É melhor telefonar a Miss Caroline e pedir-lhe que venha buscá-la. Pode arranjar-lhe uma cama em Swathling’s.
Se estás tão preocupada comigo, porque não insistes para que eu faça as malas e vá para tua casa?, perguntou Tally intimamente. Não que censurasse Muriel, que devia ter ponderado cuidadosamente todos os prós e contras. Assim que Tally se mudasse para sua casa, poderia lá ficar durante semanas, talvez até meses. Não haveria razão para regressar à vivenda enquanto não fossem solucionados os dois homicídios, e não se sabia quanto tempo isso iria levar. Talvez nunca viessem a ser solucionados. Tally nutria a convicção embora tivesse plena consciência de que pouco tinha de racional, não obstante, era demasiado intensa para ignorá-la de que, se saísse da vivenda, nunca mais regressaria. Já se imaginava a procurar, desesperada, um quarto mobilado ou a ser hóspede de um dos Dupayne ou de Muriel, transformando-se numa fonte contínua de ansiedade e de irritação para eles. Aquela vivenda era o seu lar e não permitiria que um assassino a tirasse dali.
Bom, a responsabilidade é sua rematou Muriel. Pela minha parte, sugeri-lhe o que me pareceu mais adequado... Vim até cá para lhe dar as suas chaves do museu. Foram-nos devolvidas por volta das duas horas e prometi ao sargento Benton-Smith que as entregaria aos outros. E melhor eu levar as chaves da vivenda que você emprestou ao Ryan, porque são as únicas que temos em duplicado e devem ficar guardadas no armário do gabinete.
Deus meu... Receio que o Ryan se tenha esquecido de mas devolver e eu não me lembrei de lhas pedir, mas ele estará de volta na segunda-feira.
Muriel expressou a sua usual reprimenda, mas sem o empenho habitual. Parecia ausente enquanto falava. Não havia dúvida de que ela mudara desde o segundo homicídio.
Nunca devia ter-lhe dado as chaves. Ele podia muito bem ter mantido um horário normal e confiado em si para lhe abrir a porta. Se o vir antes de mim na segunda-feira, certifique-se de que ele lhe devolve as chaves.
Por fim, partiu. Tally trancou a porta, para depois se ir sentar numa cadeira em frente da lareira. Estava exausta. O trauma por haver reconhecido Lorde Martlesham, a sua visita à Scotland Yard, a sua preocupação com o destino de Ryan e agora a pequena escaramuça com Muriel haviam intensificado o seu cansaço. Talvez tivesse sido mais sensato da sua parte aceitar a oferta do comandante Dalgliesh para que alguém a levasse a casa de carro. Contudo, a pouco e pouco, o cansaço tornou-se quase agradável e a paz que sentia sempre ao fim do dia, quando se sentava sozinha, regressou e teve o dom de acalmá-la. Deixou-se invadir por aquele estado de espírito durante alguns momentos; depois, mais recomposta, levantou-se e, começou a arrumar a casa.
Subiu ao primeiro andar. Ryan não se dera ao incómodo de desfazer a cama e, no quarto, pairava um cheiro a bafio. Tally tirou a chave da janela do pequeno gancho onde ficava pendurada e abriu as vidraças duplas. Uma brisa suave e outonal entrou. Ficou ali por instantes, a saborear aquela lufada de ar fresco, enquanto contemplava o vácuo obscuro que constituía o Heath, antes de voltar a fechar e a trancar a janela. Depois desfez a cama, enfiando os lençóis e as fronhas no cesto da roupa suja. Lavá-los-ia no dia seguinte, porque não conseguiria suportar o ruído da máquina de lavar roupa naquele momento. Em seguida, apanhou as toalhas húmidas que Ryan deixara no chão da casa de banho, limpou o lavatório e puxou o autoclismo. Experimentou um sentimento de culpa por eliminar os vestígios da desarrumação que o rapaz deixara, como se quisesse afastá-lo da sua vida. Onde dormiria ele naquela noite? Sentiu-se tentada a telefonar ao major para lhe perguntar se estava realmente à espera de Ryan, mas não sabia o número, porque o rapaz apenas lhe dera a morada de Maida Vale. Podia sempre procurar o número na lista telefónica, mas, se ligasse para casa do major, isso seria considerado certamente uma intromissão imperdoável da sua parte. Ryan tinha quase dezoito anos e ela não era nem sua avó nem sua tutora. Contudo, não conseguiu livrar-se de um ligeiro sentimento de culpa e de responsabilidade. De certa forma, havia desiludido o rapaz e revelara-se um desastre no que dizia respeito a tolerância e a amabilidade. A vivenda era o seu santuário e o seu adorado lar, mas talvez a sua vida solitária a houvesse tornado egoísta. Lembrou-se de como se sentira em Basingstoke. Teria sido o que levara Ryan a sentir também?
Começou a pensar no seu jantar, mas, muito embora não houvesse comido nada depois do almoço frugal, não tinha fome nem nenhuma das refeições pré-cozinhadas que havia no frigorífico lhe abriram o apetite. Decidiu preparar uma caneca com chá, deitando água a ferver sobre uma saqueia, abriu uma embalagem de biscoitos digestivos com sabor a chocolate e sentou-se à mesa da cozinha. Os biscoitos revigoraram-na. Depois, e quase sem se dar conta, vestiu o casaco, destrancou e abriu a porta e saiu para a escuridão. Afinal, era assim que os seus dias sempre acabavam e aquele fim de tarde não ia ser diferente. Precisava do curto passeio pelo Heath, de contemplar a reluzente vista sobre Londres, que se estendia mais abaixo, de sentir o ar fresco nas faces, de inalar o cheiro a terra e a relva, de um momento de solidão que nunca era completamente solitário, do mistério em que não havia medo nem arrependimento.
Algures, naquela imensa e silenciosa escuridão, pessoas solitárias podiam estar a passear naquele instante, algumas à procura de sexo, de companhia, ou até de amor. Havia cento e cinquenta anos, uma criada descera pelo mesmo caminho e transpusera o mesmo portão para ir ao encontro do namorado e de uma morte terrível. Aquele mistério nunca fora deslindado, e a vítima, tais como as vítimas dos assassinos cujos rostos a fitavam das paredes da Sala do Crime, havia-se juntado ao grande exército dos mortos amorfos. Tally podia pensar na criada com um sentimento passageiro de pena, mas a sua sombra nunca tivera o poder de perturbar a paz nocturna nem de levá-la a ter medo. Armara-se com a abençoada segurança de que não se deixaria dominar pelo terror e de que o horror dos dois homicídios não podia mantê-la cativa na sua própria casa nem estragar aquele passeio solitário sob o céu nocturno.
Foi depois de regressar do seu passeio pelo Heath e de fechar o portão atrás de si que, ao olhar para a massa escura que constituía o museu, viu a luz. Brilhava na janela sul da Sala do Crime, não com grande intensidade, como sucederia se todos os candeeiros de parede tivessem ficado acesos, mas com um fulgor ténue e difuso. Estacou por segundos, fitando-a, enquanto se interrogava se podia ser o reflexo das luzes da vivenda; mas era impossível. Tally deixara acesas apenas as luzes da sala de estar e do vestíbulo que, naquele momento, passavam pelas estreitas fendas que separavam as cortinas corridas. Nunca poderiam iluminar uma parte do museu. Dava ideia de que alguém deixara um único candeeiro aceso na Sala do Crime, provavelmente um dos candeeiros de leitura junto às poltronas que se achavam em frente da lareira. Talvez um dos Dupayne ou Mr. Calder-Hale houvesse estado na Sala do Crime para estudar algum documento e se tivesse esquecido de apagá-lo. Mesmo assim, era espantoso que Muriel, quando procedera à sua última inspecção, não o tivesse detectado.
Tally disse a si própria com firmeza que não havia motivo para ter medo e que devia agir com sensatez. Seria ridículo telefonar a Muriel que, por aquela altura, já devia estar em casa, ou a qualquer um dos Dupayne, sem verificar primeiro que aquela luz acesa não passava de um simples esquecimento. Telefonar à polícia seria ainda mais absurdo. O que tinha a fazer era verificar que a porta de entrada se achava trancada e o alarme ligado. Se tudo estivesse em ordem, então teria a certeza de que não se achava ninguém no museu e que poderia entrar. Se a porta não se encontrasse trancada, regressaria à vivenda de imediato, fechar-se-ia a sete chaves e telefonaria à polícia.
Voltou a sair, de lanterna em punho, e passou tão silenciosamente quanto lhe foi possível por entre os ramos enegrecidos das árvores carbonizadas em direcção à parte da frente da casa. A luz deixara de ser visível; aquele pálido fulgor só podia ser visto através das janelas voltadas para leste e sul. A porta de entrada achava-se devidamente trancada. Tally entrou, acendeu a luz à direita da porta e apressou-se a silenciar o alarme. Depois das trevas do exterior, o átrio pareceu resplandecer sob a luz eléctrica. Tally deteve-se enquanto pensava que aquele local lhe parecia, de súbito, estranho e desconhecido. Tal como todos os espaços geralmente apinhados de figuras humanas e dos sons e actividades que lhes são característicos, o átrio de entrada parecia aguardar misteriosamente. Tally hesitou antes de avançar, como se, ao quebrar aquele silêncio, pudesse libertar algo de sobrenatural e maligno. Porém, logo de seguida, o bom senso que a havia guiado durante os últimos dias tranquilizou-a. Nada tinha a temer; nada, naquele museu, era bizarro ou sobrenatural. Fora até ali movida por um objectivo simples: apagar uma única luz. Regressar à vivenda sem fazer mais nada, ir dormir sabendo que a luz continuava acesa seria ceder ao medo, seria perder talvez para sempre a confiança e a paz que aquele lugar e a vivenda lhe haviam proporcionado durante os últimos oito anos.
Atravessou, decidida, o átrio de entrada, ouvindo o eco dos seus passos no chão de mármore. Subiu a escada. A porta da Sala do Crime estava fechada mas não selada. A polícia devia ter concluído as investigações mais cedo do que pensava. Talvez Muriel, ainda traumatizada por haver descoberto o corpo de Célia, não se tivesse atrevido a abrir a porta. Não era característico dela, mas Muriel não parecia a mesma desde a terrível descoberta do conteúdo do baú. Podia não admitir que estava assustada, mas Tally vira o medo escurecer os olhos de Muriel. Era possível que tivesse receio de proceder à última inspecção do edifício, sobretudo por estar sozinha, e a houvesse efectuado com menor meticulosidade do que de costume.
Tally empurrou a porta e viu que não se enganara. O candeeiro de leitura junto da cadeira da direita ficara aceso e havia dois livros fechados e o que parecia ser um bloco de apontamentos sobre a mesa. Alguém estivera a ler. Avançando para a mesa, Tally percebeu que fora Mr. Calder-Hale, porque reconheceu a sua letra pequena, quase ilegível, e concluiu que o bloco de apontamentos lhe pertencia. Devia ter ido ao museu para recolher as chaves assim que a polícia pudera devolver-lhe. Como conseguira ele sentar-se ali e trabalhar calmamente depois de tudo o que acontecera?
Era a primeira vez que se achava na Sala do Crime, depois da descoberta do corpo de Célia e apercebeu-se logo de que algo mudara, que havia qualquer coisa estranha, até se dar conta de que faltava o baú. Ainda devia estar sob custódia da polícia ou talvez no laboratório para investigação. Sempre constituíra uma peça tão fundamental na sala, apesar de ser um objecto ao mesmo tempo comum e tão portentoso, que a sua ausência era mais sinistra do que a sua presença.
Não apagou de imediato a luz. Deixou-se ficar junto à porta durante meio minuto. As fotografias não a assustavam. Nunca a haviam assustado. Oito anos a limpar diariamente o pó, a fechar e abrir os armários, a limpar os vidros das vitrinas que continham os objectos em exposição haviam desprovido aqueles retratos de qualquer interesse para ela. Agora, contudo, a suave penumbra da sala provocou-lhe uma estranha sensação. Disse a si mesma que não era medo mas apenas um certo mal-estar. Teria de habituar-se a permanecer na Sala do Crime e mais valia começar quanto antes.
Dirigiu-se a uma das janelas voltadas para leste e contemplou a noite. Era ali que Célia Mellock se achava, naquela fatídica sexta-feira? Era por haver estado à janela, no momento errado, que tivera de morrer? Porque havia olhado para as árvores em chamas e vira o assassino debruçado sobre a torneira a lavar as mãos enluvadas? E que sentira o assassino quando erguera o olhar e a vira ali, com o rosto lívido, a contrastar com o seu cabelo louro e comprido, e os olhos esbugalhados pelo horror? Célia Mellock devia ter-se dado conta das implicações do que acabara de testemunhar. Então, porque esperara que aqueles passos decididos e apressados a apanhassem? Que aquelas mãos enluvadas lhe apertassem o pescoço? Ou tentara fugir, empurrando sem êxito a porta de acesso ao apartamento, ou descendo apressadamente a escada para cair nos braços do seu assassino, à sua espera? Fora assim que tudo acontecera? Tanto Dalgliesh como qualquer um dos seus subordinados não lhe tinham revelado grande coisa. Tally apenas sabia que, após o primeiro homicídio, haviam estado constantemente no museu, interrogando, examinando, procurando, falando entre eles, mas ninguém sabia o que lhes ia na mente. Era impossível que dois assassinos houvessem decidido cometer um homicídio no mesmo dia, à mesma hora e no mesmo local. Tinha de haver uma ligação entre os crimes e, se estivessem interligados, então Célia certamente morrera em consequência do que vira.
Tally manteve-se em frente da janela durante alguns momentos enquanto pensava na rapariga morta, no primeiro homicídio e em Lorde Martlesham debruçado sobre ela, com uma expressão de terror e de compaixão nos olhos. Foi então que algo lhe veio à memória. Dalgliesh havia-lhe pedido para reflectir cuidadosamente sobre cada momento daquela sexta-feira e contar-lhe tudo de que pudesse lembrar-se, por muito insignificante que lhe parecesse. Tentara fazê-lo, mas não lhe ocorrera nada que já não houvesse dito à polícia. Agora, contudo, num segundo de total certeza, lembrara-se. Era um facto e tinha de revelá-lo. Nem sequer se questionou se moralmente devia revelá-lo, nem tão-pouco se poderia ser mal interpretada. Não sentia nenhuma das dúvidas que a haviam atormentado na Igreja de St. Margaret, depois de reconhecer Lorde Martlesham. Afastou-se da janela e avançou bruscamente para apagar a luz do candeeiro. A porta da Sala do Crime ficara entreaberta e a claridade do átrio de entrada e da galeria superior projectava-se no chão de madeira como uma camada de verniz dourado. Fechou a porta atrás de si e desceu a escada.
Excitada pela sua descoberta, nem sequer pensou em esperar pelo regresso à vivenda para fazer a chamada. Levantou o auscultador do telefone que se achava sobre o balcão da recepção e marcou o número que a inspectora Miskin lhe dera e que ela havia decorado. Não foi, contudo, a inspectora Miskin que atendeu.
Sargento Benton-Smith anunciou a voz.
Tally não desejava dar o recado a outra pessoa que não fosse o comandante Dalgliesh.
Daqui fala a Tally Glutton, sargento replicou. Gostava de falar com Mister Dalgliesh. Ele está?
De momento encontra-se ocupado, Mistress Glutton, mas estará livre daqui a pouco tempo. Quer deixar recado?
De súbito, o que Tally tinha para dizer pareceu-lhe menos importante. A dúvida começou a infiltrar-se no seu cérebro cansado.
Não, obrigada. Lembrei-me de uma coisa que preciso de transmitir-lhe, mas pode esperar.
Tem a certeza? insistiu o sargento. Se for urgente, posso encarregar-me disso.
Não, não é urgente. Pode ficar para amanhã. Preferia falar com ele pessoalmente e não pelo telefone. Penso que estará no museu amanhã, não é assim?
Estou certo de que sim respondeu o sargento, mas ele pode vê-la esta noite.
Isso seria incomodá-lo. E apenas um pequeno pormenor e talvez esteja a dar-lhe demasiada importância. Falarei com ele amanhã. Estarei cá durante toda a manhã.
Pousou o auscultador. Nada mais tinha a fazer ali. Ligou o sistema de segurança, dirigiu-se com passos apressados para a porta da frente e fechou-a à chave depois de sair. Dois minutos mais tarde, estava de regresso à vivenda.
Depois de a porta de entrada se haver fechado, o museu ficou imerso no mais completo silêncio. Então, a porta do gabinete abriu-se devagar, sem barulho, e um vulto sombrio passou pela recepção em direcção ao átrio de entrada. As luzes não se acenderam, mas a figura moveu-se com passos delicados mas confiantes pelo átrio de entrada e subiu a escada. Uma mão enluvada pousou-se sobre o puxador da porta da Sala do Crime e abriu-a, de mansinho, como se receasse alertar os olhos vigilantes dos assassinos. O vulto dirigiu-se à exposição de William Wallace. Uma mão enluvada tacteou o buraco da fechadura, inseriu uma chave e levantou a tampa da vitrina. O vulto levava consigo um saco de plástico e, uma a uma, tirou as peças do tabuleiro de xadrez, que enfiou no fundo do saco. Então, a mão tacteou o fundo da vitrina até encontrar o que procurava: a barra de ferro.
Pouco passava das sete e meia. A equipa encontrava-se reunida na sala de interrogatórios.
Agora conhecemos o quem, o porquê e o como anunciou Dalgliesh, se bem que só disponhamos de provas circunstanciais. Não existe uma só prova física que associe directamente o Vulcano a qualquer uma das vítimas. O caso ainda não está resolvido. O promotor público pode mostrar-se disposto a tentar a sorte de obter uma condenação com base numa percentagem pouco superior a cinquenta por cento, mas pode falhar se a defesa for atribuída a um advogado competente.
Uma coisa é certa, comandante interveio Piers. Será um advogado de defesa mais do que competente. Pode transformar a morte de Dupayne num suicídio. Existem provas suficientes de que ele andava sob um grande stresse. E se o Dupayne não foi assassinado, então, o elo de ligação entre as duas mortes deixa de existir. A morte da Célia Mellock pode ser considerada um homicídio com um móbil sexual ou, quando muito, um homicídio involuntário. Isto porque subsiste o desconfortável facto de que ela possa ter entrado no museu ao fim da tarde de sexta-feira, sem que ninguém a visse, bem como o facto de o seu assassino poder ter saído sem ser visto. Ela podia ter chegado a qualquer hora durante o dia, tencionando encontrar-se com o Martlesham mais tarde.
Se ela chegou ao museu de táxi, então é uma pena que o motorista ainda não se tenha apresentado às autoridades comentou Benton-Smith. No entanto, ainda é cedo. Talvez o homem esteja de férias. Kate dirigiu-se a Dalgliesh:
Mas o caso é sustentável, comandante. A base pode ser circunstancial mas é forte. Pense nos factos mais relevantes. A mala de mão desaparecida e o motivo que levou o assassino a livrar-se dela. As impressões das palmas das mãos na porta do apartamento. O facto de o elevador se encontrar no rés-do-chão quando o Martlesham chegou. As violetas arrancadas. A tentativa de fazer com que os homicídios imitassem outros...
Benton-Smith deu a sua opinião:
A tentativa de imitar um outro homicídio só se aplica à segunda morte, porque se tratou, quase de certeza, de uma coincidência no primeiro caso. No entanto, o mais provável é que quem assassinou a Célia tivesse conhecimento do primeiro homicídio.
Então é ainda cedo para uma detenção, comandante?
Precisamos de prosseguir com os interrogatórios, agora de acordo com a lei sobre depoimentos relativos a crimes e na presença de um advogado. Se não obtivermos uma confissão, e não estou à espera disso, talvez consigamos com alguma paciência uma admissão ou possamos detectar contradições no mesmo relato. Entretanto, há a mensagem da Tally Glutton. O que foi que ela disse ao certo?
Que possuía uma informação e que queria revelar-lha, mas não pelo telefone explicou Benton-Smith. Parecia ansiosa por lhe falar pessoalmente, comandante, mas afirmou que não era urgente. Disse que podia ficar para amanhã. Tive a impressão de que se arrependera de haver telefonado.
E o Ryan Archer? Ainda está na vivenda?
Ela não mo disse.
Dalgliesh manteve-se em silêncio durante algum tempo até exclamar:
Amanhã, não; quero vê-la agora, e gostava que viesse comigo, Kate. Não quero que ela fique naquela vivenda esta noite, apenas com o rapaz para a proteger...
Pensa que ela corre perigo de vida? perguntou Piers. O Vulcano foi forçado a cometer o segundo homicídio. Não temos motivos para supor que venha a cometer um terceiro.
Dalgliesh não lhe respondeu e dirigiu-se a Kate.
Não se importa de passar a noite com Mistress Glutton? Presumo que o rapaz dorme no quarto de hóspedes, o que significa que provavelmente terá de passar a noite sentada numa poltrona.
Por mim não há problema, comandante.
Nesse caso, ouçamos o que Mistress Glutton tem para nos dizer. Telefone-lhe, por favor, Kate, para a informar de que vamos a caminho. Piers e Benton, a não ser que eu vos chame antes, encontramo-nos aqui amanhã cedo, às oito.
Em circunstâncias normais, Tally estaria a pensar no que iria fazer para o jantar; ou a preparar o tabuleiro, se tivesse planeado ver televisão enquanto comia ou, o que era mais usual, a pôr uma toalha na mesa da sala de estar. Preferia jantar com alguma formalidade, dado sentir um obscuro sentimento de culpa por julgar que demasiadas refeições na poltrona com o tabuleiro sobre os joelhos podiam levá-la à indolência e ao desmazelo. Era mais confortável sentar-se à mesa e o seu jantar, a que geralmente dedicava tempo e trabalho, tornava-se um prazer, primeiro antecipado, depois desfrutado, constituindo um dos rituais reconfortantes da sua vida solitária.
No entanto, naquela noite não conseguia sentir o menor interesse em preparar qualquer prato por mais simples que fosse. Talvez tivesse sido um erro beber o chá e comer aqueles biscoitos. Deu por si, muito agitada, a andar à volta da mesa, numa deambulação inútil, mas que parecia não conseguir controlar. A revelação que lhe ocorrera no museu era tão simples, mas, ao mesmo tempo, tão extraordinária devido às suas implicações, que não conseguia pensar noutra coisa excepto no espanto que lhe provocara. Numa das suas muitas anteriores visitas, o comandante Dalgliesh pedira-lhe para pensar bem em tudo o que acontecera no dia em que o Dr. Neville morrera e que anotasse todos os pormenores, por muito insignificantes que fossem, que ela se houvesse esquecido de lhe contar. Não se recordara de nada. Supunha que o que lhe viera à memória era apenas um pormenor, mas, mesmo assim, perguntou a si própria porque não se lembrara daquilo mais cedo. Não fora por falta de uma reconstituição mental cuidadosa. O que havia agido sobre a sua memória devia ter sido a fusão de ideias, de imagens, de sons e de pensamentos coexistentes. Sentada em frente da mesa com os braços estendidos sobre o tampo, mantinha-se tão imóvel e rígida como um manequim, ali colocado à espera que lhe servissem um imaginário prato de comida. Tentou raciocinar, esforçou-se por perguntar a si própria se podia ter-se enganado quanto ao momento, à sequência ou às implicações do que lhe ocorrera, mas sabia que não havia qualquer engano. Tinha a certeza absoluta.
O toque do telefone fê-la sobressaltar-se. Era raro alguém telefonar-lhe depois de o museu encerrar, e levantou o auscultador com alguma apreensão. Podia ser novamente Jennifer, mas sentia-se muito cansada para responder às perguntas da filha e lidar com a sua incómoda preocupação. Ao ouvir a voz do outro lado do fio, suspirou de alívio. Era a inspectora Miskin para lhe dizer que o comandante queria vê-la ainda naquela noite e que ambos iam a caminho.
Então, o seu coração deu um salto e Tally agarrou-se ao rebordo da mesa, aterrorizada. O ar havia sido rasgado por um grito sobrenatural. A princípio, pensou ser humano, mas depressa se apercebeu de que aquele grito agonizante vinha da garganta de um animal. Era TomcaA Cambaleante, Tally foi buscar as chaves à sua secretária e dirigiu-se para a porta. Pegou na lanterna que ficava sempre no umbral do pórtico e no primeiro agasalho que encontrou no bengaleiro, a sua gabardina, que pôs à pressa por cima dos ombros, enquanto tentava enfiar as chaves nas duas fechaduras fazendo com que deslizassem e embatessem nas placas metálicas. Foi só graças a uma grande força de vontade que conseguiu controlar as mãos trémulas e inserir as chaves nas ranhuras. Faltavam-lhe os ferrolhos. Por fim, a porta abriu-se e Tally correu para a escuridão.
O céu estava coberto por nuvens baixas; não se viam estrelas e as nuvens baixas apenas deixavam vislumbrar um resquício da Lua em quarto crescente. A única luz era a do feixe brilhante proveniente da porta que ela deixara entreaberta. O vento mal soprava, movendo-se por entre as árvores e a relva como uma criatura viva que lhe tocava no rosto com mãos pegajosas. O miar desesperado pareceu-lhe mais próximo e vinha da orla do Heath. Descendo a correr o carreiro, empurrou o portão de verga e fez incidir o feixe da lanterna sobre as árvores. Por fim, encontrou-o.
Tomcat estava dependurado de um dos ramos mais baixos. Alguém atara a extremidade de um cinto a uma das patas traseiras do animal e a outra, ao ramo. Sempre que miava, balouçava e tentava agarrar em vão o ar com as suas três outras patas. Instintivamente, Tally correu e esticou-se, mas o ramo era muito alto. Soltou um grito de dor quando as garras de Tomcat lhe rasgaram a pele das mãos e sentiu o sangue tépido a escorrer.
Eu volto já! Volto já! exclamou, correndo até à vivenda. Precisava de luvas, de uma cadeira e de uma faca. Felizmente, as cadeiras da sala de estar eram suficientemente sólidas para aguentar o seu peso! Agarrou numa, tirou uma faca de trinchar do faqueiro e, passados poucos segundos, achava-se novamente debaixo da árvore.
Demorou algum tempo a enterrar a cadeira na terra macia de forma a que não se desequilibrasse. Ia murmurando palavras de conforto e de ternura ao gato, mas Tomcat não a ouvia. Estendendo os braços, envolveu o animal na gabardina e, com um forte empurrão, conseguiu levantá-lo até ele poder empoleirar-se no ramo. O miar desesperado cessou imediatamente. Ia ser mais complicado cortar o cinto. A forma mais fácil de libertar Tomcat seria desapertar a fivela que lhe prendia a pata traseira, mas Tally não podia arriscar-se a que ele voltasse a arranhá-la. Inseriu a lâmina da faca por baixo do cinto e cortou-o. Demorou um minuto até o couro se rasgar e, envolvendo Tomcat por completo com a gabardina, conseguiu descer da cadeira. De imediato, libertou o animal, que correu como uma flecha em direcção ao Heath.
De súbito, Tally sentiu-se dominada por um terrível cansaço. A cadeira parecera tornar-se demasiado pesada para a transportar e, com a gabardina por cima dos ombros, arrastou-a atrás de si pelo carreiro do jardim. Apercebeu-se de que chorava em silêncio e, agora que as lágrimas haviam começado a rolar, empaparam-lhe as faces, tão geladas como a chuva de Inverno. Tudo o que queria era voltar para casa, fechar a porta e esperar pela polícia. Quem quer que houvesse feito aquilo a Tomcat era uma pessoa má e não restavam dúvidas de que havia apenas uma pessoa má que trabalhava no Museu Dupayne. Arrastou a cadeira até ao pórtico. A chave ainda se encontrava na fechadura. Girou-a e fez correr os ferrolhos. A porta do vestíbulo estava aberta e, sem sequer tentar fechá-la, dirigiu-se aos tropeções para a sala de estar. Conseguiu arrumar a cadeira no devido lugar e depois estacou, por momentos, debruçada sobre a cadeira e completamente exausta. Foi então mas já tarde de mais que ouviu passos a atravessar o vestíbulo. Tão cansada estava que demorou a aperceber-se do perigo que corria. Dera meia volta quando a barra de ferro a atingiu. Caiu sobre o tapete, com a cabeça a trinta centímetros da lareira a gás e com a gabardina ainda sobre os ombros. Viu, sem qualquer surpresa, o rosto da pessoa que a atacara, para logo de seguida não ver nem ouvir mais nada, no mesmo momento em que as peças de xadrez caíam em cascata sobre o seu corpo. Passaram-se alguns segundos até perder por completo os sentidos. Ainda teve tempo para pensar como era fácil e simples morrer, e para agradecer ao Deus em quem sempre acreditara e a quem pedira tão pouco.
Seguiram no carro de Dalgliesh, que conduziu sem pronunciar palavra. Era dado àqueles períodos de silêncio e Kate já o conhecia bem de mais para ousar quebrá-los. Ele era um condutor experiente e hábil e sabia que chegariam ao museu tão depressa quanto lhe fosse possível. De nada lhe serviria enervar-se com os inevitáveis atrasos, mas Kate apercebeu-se da crescente ansiedade do chefe.
Kate, telefone novamente a Mistress Glutton pediu Dalgliesh quando chegaram a Hampstead e diga-lhe que já falta pouco.
Desta vez, contudo, ninguém atendeu.
Enfiaram pelo caminho de entrada do Museu Dupayne. O Jaguar ganhou velocidade e os seus faróis pareceram dissipar a escuridão, conferindo um halo prateado aos rebordos de relva e aos arbustos. Quando Dalgliesh dobrou a última esquina, o edifício estava todo iluminado como se estivesse pronto para um espectáculo de son et lumière. Puderam ver que alguém havia levantado a barreira. O carro guinou ao contornar o flanco leste da casa, passou pelos escombros da garagem destruída pelo fogo e parou, de súbito, no carreiro de cascalho. Não havia luzes na vivenda, mas a porta estava aberta. Dalgliesh foi o primeiro a entrar e precipitou-se para a sala de estar. Tacteou a parede e encontrou o interruptor. A lareira a gás estava acesa no mínimo e Tally jazia sobre o tapete, com o rosto em frente das chamas. Uma gabardina cobria-lhe os ombros e o sangue que lhe corria da cabeça era ainda fresco, pelo tom vermelho-vivo. Sobre o seu corpo, achavam-se espalhadas peças de xadrez de mármore branco e preto, como num último gesto de desdém.
Foi então que ouviram um ruído ténue mas inconfundível para os seus ouvidos. Era o motor de um carro. Kate correu para a porta, mas Dalgliesh agarrou-a por um braço.
Agora não, Kate. Preciso de si aqui. Deixe que o Piers e o Benton-Smith procedam à detenção. Chame uma ambulância e depois telefone ao Piers.
Enquanto Kate marcava o número, Dalgliesh ajoelhou-se junto ao corpo de Tally Glutton. O sangue já não escorria, mas, ao colocar os dedos sobre a sua garganta, apercebeu-se de que a pulsação parara. Apressou-se a enrolar a gabardina e a colocá-la por baixo do pescoço de Tally. Depois, abriu-lhe a boca e verificou se não usava dentadura. Debruçou-se e, comprimindo os seus lábios sobre os de Tally, iniciou a respiração boca a boca. Não se apercebeu do aviso alarmado de Kate nem do silvar que saía da lareira a gás por estar concentrado apenas na sua respiração ritmada e no corpo que tentava reanimar. Então, como que por milagre, sentiu de novo a pulsação. Tally respirava. Minutos depois, ela abriu os olhos e fitou-o com um olhar vago. Em seguida, soltando um pequeno gemido como que de satisfação, virou a cabeça de lado e tornou a perder os sentidos.
A espera pela ambulância foi interminável, mas Dalgliesh sabia que era inútil voltar a telefonar. Haviam recebido a chamada e viriam o mais depressa possível. Foi com um suspiro de alívio que ouviu a ambulância chegar e viu os paramédicos entrarem na vivenda.
Peço desculpa pelo atraso, mas é que houve um acidente ao fundo do caminho de entrada para o museu explicou um dos paramédicos, e o trânsito está reduzido a uma só via.
Kate e Dalgliesh entreolharam-se, mas nenhum deles falou. De nada lhes serviria interrogar os paramédicos, que tinham de se preocupar com o seu trabalho. Nem havia pressa, porque não tinham de descobri-lo naquele instante. Quando voltassem à Scotland Yard, Piers informá-los-ia se havia procedido a uma detenção e seria o fim do caso, independentemente de Vulcano estar vivo ou não.
Dalgliesh e Kate observaram os enfermeiros quando estes, depois de envolver Tally em cobertores e de a atar à maca, a conduziram para a ambulância. Deram-lhes o nome dela e outros pormenores e foi-lhes dito o nome do hospital para onde ela ia ser transportada.
As chaves da porta da frente achavam-se na fechadura. Kate desligou a lareira a gás, verificou se as janelas do piso térreo e do primeiro andar estavam fechadas e, por fim, saíram da vivenda, depois de desligar as luzes e de trancar a porta da frente.
Guie você, Kate pediu Dalgliesh.
Sabia que ela ficava feliz por poder conduzir o seu Jaguar. Quando chegaram ao caminho da entrada, pediu-lhe que parasse e saiu, deixando-a à espera no carro. Sabia que Kate nunca o seguiria nem lhe perguntaria o que estava a fazer. Afastou-se um pouco do caminho e contemplou a massa negra que era o museu, perguntando a si próprio se alguma vez voltaria a visitá-lo. Sentia-se exausto e triste, muito embora não lhe fosse uma emoção estranha; era assim que se sentia, na maioria das vezes, quando um caso era encerrado. Pensou nas vidas que por tão pouco tempo se haviam cruzado com a sua, nos segredos que descobrira, nas mentiras e nas verdades, no horror e no sofrimento. Aquelas vidas tão intimamente afectadas pelo caso continuariam o seu percurso, tal como a dele. De volta ao carro, concentrou-se no fim-de-semana que se aproximava e sentiu-se invadido por uma precária alegria.
Trinta e cinco minutos antes, Toby Blake, de dezanove anos e dois meses de idade, entrara em Spaniards Road, na sua Kawasaki, no que era a última etapa da sua viagem de regresso a casa. Havia sido um trajecto frustrante, mas era sempre assim à quinta-feira à noite. Passar com perícia por entre os automóveis e os autocarros quase imobilizados e ultrapassar veículos de luxo, para grande desconsolo dos seus condutores, tinha as suas compensações, mas não era para isso que fora feita a sua Kawasaki. Então, viu pela primeira vez a estrada reluzente e vazia à sua frente. Chegara a altura de ver o que a sua moto podia fazer.
Acelerou. O motor rugiu e a moto saltou como um tigre. Os olhos de Toby estreitaram-se, por baixo da viseira do seu capacete e sorriu, feliz, ao sentir a investida do ar contra o seu corpo, a estonteante excitação da velocidade, o poder de deter o controlo. Mais à frente, um carro saiu a toda a velocidade de um caminho. O rapaz não teve tempo de travar, nem sequer de registar mentalmente a aparição da viatura. Apercebeu-se do inevitável, num segundo de puro terror. A Kawasaki embateu no lado direito do carro e atravessou a estrada, em piões sucessivos, até chocar contra uma árvore. O rapaz foi cuspido para o ar com os braços abertos, para depois cair num dos lados da estrada e ficar imóvel. O carro perdeu o controlo, guinou e imobilizou-se na berma.
Após dez segundos de silêncio absoluto, os faróis de um Mercedes iluminaram a estrada. O carro parou, assim como o que seguia atrás. Ouviram-se passos apressados, exclamações de horror e vozes angustiadas que falavam pelos telemóveis. Rostos ansiosos olharam para a pessoa que, debruçada sobre o volante, conduzia o automóvel envolvido no acidente. Vozes falaram entre si. Concordaram que deviam esperar pela ambulância. Outros carros pararam. Os primeiros socorros já vinham a caminho.
Na berma da estrada, o rapaz jazia, muito quieto. Não sangrava nem revelava sinais de estar ferido. Aos olhos das pessoas que o fitavam, parecia sorrir enquanto dormia. Desta vez, o hospital era moderno e revelava-se um território estranho para Dalgliesh. Foi conduzido à ala própria e, pouco depois, encontrava-se num corredor comprido sem janelas. Não pairava no ar o cheiro característico dos hospitais. Dava a ideia de que ali o ar era diferente de todos os outros, como se houvessem eliminado cientificamente todo e qualquer resquício de medo ou de doença. Não havia dúvidas de que era o quarto certo. Dois polícias uniformizados estavam sentados de cada lado da porta e, quando Dalgliesh se aproximou deles, levantaram-se e fizeram-lhe a continência. No interior, havia uma mulher-polícia, que também se levantou e o saudou em silêncio antes de sair e fechar a porta atrás de si. Dalgliesh e Vulcano ficaram a sós, cara a cara.
Muriel Godby estava sentada numa cadeira junto à cama. O único indício de que havia sofrido ferimentos era constituído pelo gesso que lhe cobria o braço e o pulso, e pela contusão lívida que lhe marcava a face esquerda. Usava um roupão aos quadrados de algodão, que parecia pertencer ao hospital, e mostrava-se muito calma. Penteara e prendera com um gancho de concha de tartaruga, com todo o cuidado, o cabelo brilhante de um tonalidade invulgar. Os seus olhos esverdeados com laivos amarelos fixaram-se nos de Dalgliesh com a mal dissimulada irritação de um paciente que recebe mais um visitante indesejado. Não continham quaisquer resquícios de medo.
Dalgliesh não se aproximou dela.
Como está? perguntou.
Viva, como pode ver.
Presumo que saiba que o rapaz da mota morreu. Partiu o pescoço.
Conduzia depressa de mais. Quantas vezes eu disse a Miss Caroline que devia haver uma melhor sinalização da entrada para o museu; mas não veio até aqui para me dizer isso. Já tem a minha confissão escrita pelo meu próprio punho, e nada mais tenho a dizer.
A confissão era extensa mas puramente factual, sem adiantar pretextos ou revelar quaisquer remorsos. O homicídio fora planeado com antecedência na quarta-feira, depois da reunião dos fiduciários. Na sexta-feira, Godby, antes de seguir para o museu, colocara na bagageira do seu carro o balde, o fato-macaco de protecção, as luvas, a touca de banho e os fósforos compridos, juntamente com um grande saco de plástico onde pudesse enfiar todas as provas do homicídio depois de o cometer. Não voltara a casa, mas regressara ao museu após deixar Mrs. Strickland na estação de metro de Hampstead. Sabia que Tally Glutton sairia da vivenda para ir assistir à sua aula das sextas-feiras. Tivera o cuidado de desligar o telefone de sua casa, de manhã antes de sair, para o caso de alguém lhe ligar. Esperara na escuridão da garagem até que Neville Dupayne estivesse sentado no Jaguar. Só depois avançara, chamando-o. Surpreendido, ele havia reconhecido a sua voz, virara-se para ela e recebera sobre si a gasolina atirada com toda a força. Poucos segundos haviam bastado para acender o fósforo. O último som humano que Neville Dupayne ouvira tinha sido a voz dela. Quando Tally lhe telefonara, ela havia acabado de chegar a casa. Tivera tempo de recolocar o auscultador no descanso, de enfiar o fato-macaco de protecção na máquina de lavar roupa, de lavar o balde e de tomar banho, antes de voltar novamente ao museu. Durante o fim-de-semana, havia torcido e arrancado a alça do balde, cortado em pedaços as luvas e a touca de banho e, protegida pela noite, atirara-os para o meio do lixo de um contentor que encontrara.
Pouco havia naquela confissão que constituísse uma novidade para Dalgliesh, à excepção de um facto. Quando estudara em Swathling’s, Célia Mellock havia-a insultado, escarnecido dela e tentara que fosse despedida. Naquela altura, a rapariga era ruiva e só mais tarde pintara o cabelo de louro, mas, desde o momento em que Godby entrara na Sala do Crime para se livrar dela, o reconhecimento havia sido absoluto de ambas as partes. Para Godby, aquele segundo homicídio fora um prazer, além de uma necessidade.
Não sei o que está aqui a fazer, comandante. Já dissemos tudo o que tínhamos a dizer um ao outro. Sei que passarei dez anos na cadeia, mas já cumpri uma pena muito maior... Além do mais, consegui o que queria, não é verdade? Os Dupayne não encerrarão o museu para honrar a memória do irmão. E cada dia que estiver aberto, cada visitante que chegar, cada êxito que alcançar, será graças a mim. Devem-me isso e eles sabem-no, mas deixe a minha vida pessoal em paz. Tem o direito de saber o que fiz e como o fiz. De qualquer forma, já o havia descoberto... É esse o seu dever e tem fama de ser um excelente profissional. Nem sequer tem o direito de saber porque o fiz, mas não me importei de fornecer um motivo, se isso pode servir para que todo o mundo fique contente. Anotei-o e é muito simples. O doutor Neville Dupayne matou a minha irmã devido à sua negligência. Ela telefonou-lhe ele não foi vê-la. Ela regou-se com petróleo e imolou-se pelo fogo. Por causa do Neville Dupayne, perdeu a vida, e eu não ia permitir que ele também me fizesse perder o emprego.
Averiguámos a vida do doutor Dupayne antes de se mudar para Londres adiantou Dalgliesh. A sua irmã morreu há quinze anos, doze anos depois de você sair de casa. Chegou a ver ou a conhecer o doutor Dupayne naquela época? Era muito chegada à sua irmã?
Muriel Godby fitou-o, e Dalgliesh pensou que nunca havia visto um tão grande encadeamento de ódio, de desdém e sim de triunfo. Quando ela falou, ficou admirado por a sua voz poder soar tão normal; a mesma voz que respondera calmamente às suas perguntas ao longo da semana anterior.
Como já lhe disse, tem o direito de saber o que fiz, mas não de saber quem sou. Não é nem um padre nem um psiquiatra. O meu passado pertence-me apenas a mim. Não me vou livrar dele, se lho oferecer. Sei quem é, comandante Dalgliesh. Miss Caroline falou-me de si quando o senhor visitou o museu pela primeira vez, porque é o género de coisas que ela sabe. É um escritor, um poeta, não é verdade? Não lhe basta intrometer-se na vida dos outros, fazer com que sejam detidos, vê-los na prisão, despedaçar-lhes o coração. Tem de compreendê-los, entrar nas suas mentes, usá-los como sua matéria-prima. Mas não pode usar-me a mim; não tem esse direito.
Não, de facto não tenho esse direito replicou Dalgliesh.
Então, o rosto dela pareceu suavizar-se e entristecer-se.
Eu e o senhor nunca poderemos realmente conhecer-nos, comandante Dalgliesh murmurou.
Já à porta, Dalgliesh voltou-se para encará-la.
Não, não podemos; mas isso torna-nos diferentes de outras duas pessoas quaisquer?
O quarto de Tally Glutton, situado numa outra ala do hospital, era muito diferente. Quando entrou, Dalgliesh foi invadido pelo perfume quase sufocante de flores. Tally achava-se na cama, com uma parte da cabeça rapada e coberta de forma muito pouco favorecedora por um gorro de gaze, por baixo do qual se via claramente uma ligadura. Estendeu-lhe a mão e recebeu-o com um sorriso.
Que bom ter vindo, comandante. Tinha a esperança de que viesse ver-me. Puxe uma cadeira, por favor. Sei que não pode demorar-se, mas queria falar-lhe.
Como se sente agora?
Muito melhor. O ferimento da cabeça não é grave. Ela não teve tempo de me matar, não foi? Os médicos dizem que o meu coração parou de bater durante alguns segundos, devido ao choque. Se o senhor não tivesse chegado naquele momento, eu estaria morta. Tempos houve em que pensei que não me importava de morrer. Agora, penso de maneira diferente. Nem me atrevo a imaginar que não voltaria a ver outra Primavera inglesa. Fez uma pausa e acrescentou: Já soube do que aconteceu ao motociclista. Pobre rapaz... Disseram-me que tinha apenas dezanove anos e era filho único. Não consigo deixar de pensar nos pais dele. Suponho que podemos considerá-lo a terceira vítima...
A terceira e a última rematou Dalgliesh.
Sabe que o Ryan voltou para casa do major Arkwright?
Sim, o major telefonou-nos para nos dizer isso. Pensou que gostássemos de saber onde estava o Ryan.
A vida é dele, quero dizer, do Ryan, e creio que é o que ele deseja, mas eu nutria a esperança de que consagrasse mais tempo a pensar no seu futuro. Se eles discutiram uma vez, podem voltar a discutir e, da próxima... Bom, poderá ser mais grave.
Não me parece que volte a acontecer. O major Arkwright gosta dele e não deixará que algo de mau lhe aconteça.
Como é evidente, sei que o Ryan é gay, mas não estaria ele melhor com alguém da sua idade, não tão rico, não com tanto para dar?
Não creio que ele e o major Arkwright sejam amantes, mas o Ryan está quase a atingir a maioridade e não podemos controlar a sua vida.
Talvez ele devesse ter ficado comigo mais tempo continuou Tally, como se falasse mais para si própria do que para Dalgliesh, até ter a certeza do que pretendia, mas apercebeu-se de que eu não o queria lá em casa. Estou tão habituada a viver sozinha, a ter a casa de banho só para mim... Sempre detestei ter de partilhar uma casa de banho com alguém, e ele sabia-o, porque não é estúpido. Mas não era só a casa de banho... Tinha medo de me afeiçoar demasiado a ele e de deixar que fizesse parte da minha vida. Não estou a dizer que o via como um filho, porque seria ridículo. Falo de bondade humana, de me preocupar com ele, de cuidar dele. Talvez seja a melhor forma de amor. Empregamos a mesma palavra para coisas tão diferentes... A Muriel amava a Caroline, não é verdade? Matou por ela. Deve ter sido um acto de amor.
Talvez fosse antes uma obsessão fez notar gentilmente Dalgliesh. Uma forma perigosa de amor.
Mas o amor é perigoso, não concorda? Creio que, durante toda a minha vida, tive medo do amor e do compromisso que implicava. Agora, contudo, começo a compreendê-lo. Tally fitou Dalgliesh, olhos nos olhos. Só estamos meio vivos, se receamos o amor.
Manteve o olhar fixo em Dalgliesh, como se procurasse que ele a tranquilizasse com a sua sabedoria, mas era impossível adivinhar o que ia na mente do comandante.
Mas tinha algo para me dizer... murmurou. Tally sorriu.
Agora já não interessa, mas, quando vos telefonei, pareceu-me importante. Foi algo de que me lembrei. Quando a Muriel chegou, pouco depois de o incêndio deflagrar, a primeira coisa que me disse foi que devíamos ter fechado à chave a barraca onde se achava a lata de gasolina. Ora, eu não lhe dissera que o doutor Neville fora regado com gasolina. Nunca lho poderia ter dito, porque naquela altura não o sabia. Então, como o sabia ela? A princípio, pensei que este pormenor de que me lembrara era importante, mas depois disse a mim própria que ela devia ter adivinhado. Não há notícias do Tomcatí
Não estive no museu esta manhã, mas, que eu saiba, ele não voltou.
Penso que um gato não é muito importante quando há tanta coisa com que a polícia tem de se preocupar. Se ele não voltar, espero que encontre alguém que o recolha. Não é um gato particularmente simpático, nem pode contar com o seu charme. O que a Muriel lhe fez foi terrivelmente cruel. E porquê? Podia ter-se limitado a bater à porta, porque eu tê-la-ia deixado entrar. Nem sequer tinha de se preocupar por eu a reconhecer. Afinal, eu estaria morta se o senhor não tivesse chegado pouco depois.
Ela tinha de matá-la na sala de estar para fazer com que parecesse um homicídio copiado de outro caso famoso replicou Dalgliesh. Além do mais, não tinha a certeza de que a deixasse entrar, se tocasse à sua porta. Penso que a ouviu quando nos telefonou do museu. Sabendo o que a senhora acabara de fazer, podia muito bem ter-se recusado a deixá-la entrar. Na esperança de fazer com que Tally pensasse noutras coisas, comentou: As flores são muito bonitas.
A voz de Tally animou-se ao retorquir:
Não são? As rosas amarelas são de Mister Marcus e de Miss Caroline, e a orquídea, de Mistress Strickland. Mistress Faraday e Mister Calder-Hale telefonaram e vêm visitar-me ao fim da tarde. A notícia espalhou-se rapidamente, não foi? Mistress Strickland enviou-me um bilhete. Pensa que devíamos pedir a um padre que fosse ao museu. Não sei muito bem para quê, mas talvez para fazer algumas orações, aspergir água benta ou proceder a um exorcismo. Acrescenta, no seu bilhete, que Mister Marcus e Miss Caroline não se importam, desde que não tenham de participar. Afirmam que de nada servirá, mas que mal também não fará. Foi uma sugestão surpreendente por parte de Mistress Strickland, não lhe parece?
Talvez apenas um pouco surpreendente. Tally de repente pareceu exausta.
Bom, tenho de ir andando anunciou Dalgliesh. Não pode cansar-se.
Oh, não me sinto cansada. E um alívio tão grande poder falar... Miss Caroline veio visitar-me esta manhã e foi muito bondosa, mas não creio ter percebido tudo o que ela me disse... Quer que eu permaneça na vivenda e que faça uma’ parte do trabalho da Muriel. Não na recepção, nem no que respeita à contabilidade, claro. Parece que já colocaram um anúncio para contratar alguém qualificado, porque agora vamos precisar de mais pessoas. Quer que eu limpe o apartamento dela. Disse-me que, de futuro, poderá ficar lá mais vezes. São tarefas leves, que consistem sobretudo em limpar o pó, em esvaziar o frigorífico e em enfiar os lençóis sujos na máquina de lavar roupa. Ela recebe alguns amigos, pessoas que precisam de uma cama por uma noite. Como é óbvio, fiquei feliz com a sua gentil proposta.
Nesse mesmo instante, a porta abriu-se e uma enfermeira entrou. Olhando para Dalgliesh, anunciou:
Bom, agora preciso de tratar de Mistress Glutton. Talvez o senhor queira esperar lá fora...
Eu já estava de saída...
Inclinou-se para pegar na mão que se achava pousada sem forças sobre o cobertor, mas que apertou a sua com firmeza. Por baixo da ligadura, os olhos que se cruzaram com os seus nada tinham da ansiedade inquisidora da velhice. Despediram-se e Dalgliesh regressou ao corredor anónimo e esterilizado. Nada havia que tivesse de dizer a Tally, nem nada em que pudesse ajudá-la. Revelar-lhe o que as suas novas funções implicavam significaria, quase de certeza, que ela as recusaria, arriscando-se a perder a casa e o emprego, e para quê? Já começara a sucumbir ao extraordinário poder de sedução de Caroline Dupayne, mas não era tão ingénua como Muriel Godby. Era uma mulher suficientemente segura da sua personalidade para se deixar influenciar. Talvez, com o decorrer do tempo, se apercebesse do que se passava no apartamento. Se tal acontecesse, tomaria a sua decisão sem ajuda de ninguém. No corredor, Dalgliesh deparou com Kate, que avançou na sua direcção. Sabia que ela estava ali para se encarregar da transferência de Muriel Godby.
O médico diz que ela pode ser transferida. Como é óbvio, querem livrar-se dela quanto antes. Recebi uma chamada do Departamento de Relações Públicas, comandante. Querem que dêmos uma conferência de imprensa, hoje ao fim da tarde.
Podemos emitir um comunicado, mas, se quiserem contar com a minha presença, então a conferência de imprensa poderá esperar até segunda-feira. Tenho coisas a fazer no meu gabinete e preciso de sair mais cedo esta tarde.
Kate desviou a cara, mas não sem antes Dalgliesh vislumbrar no seu olhar uma nuvem de tristeza.
Sim, claro, comandante, já mo tinha dito replicou. Eu sei que precisa de sair mais cedo esta tarde.
Por volta das onze e meia, Dalgliesh, depois de tratar de todos os assuntos urgentes que exigiam a sua atenção, preparou-se para redigir o seu relatório sobre a investigação, porque tanto o comissário como o ministro adjunto haviam pedido para lê-lo. Era a primeira vez que lhe pediam para apresentar ao ministro adjunto um relatório pormenorizado de uma investigação e esperava que aquele caso não fosse abrir um precedente. Primeiro, contudo, havia ainda um assunto que ficara pendente. Pediu a Kate que telefonasse para Swathling’s e dissesse a Caroline Dupayne que o comandante Dalgliesh queria vê-la com urgência na Scotland Yard.
Volvida uma hora, ela chegou. Estava vestida para um almoço formal. O casaco verde-escuro que usava, de seda pesada, caía em pregas largas, e a gola levantada emoldurava-lhe o rosto. O batom realçava-lhe a palidez. Sentou-se na cadeira que Dalgliesh lhe indicou e fitou-o, como se aquela fosse a primeira vez que se encontravam e ela estivesse a avaliá-lo sexualmente, enquanto ponderava diferentes possibilidades.
Suponho que devo dar-lhe os parabéns... comentou.
Não é necessário nem apropriado. Pedi-lhe que viesse até aqui porque tenho mais duas perguntas a fazer-lhe.
Ainda continua a trabalhar no caso, comandante? Pergunte e, se puder, responder-lhe-ei.
Disse à Muriel Godby na passada quarta-feira ou mais tarde que ia despedi-la e que não a queria mais no museu?
Esperou pela resposta.
O inquérito foi encerrado e a Muriel, presa. Longe de mim querer ofendê-lo ou não querer colaborar, mas isso ainda é da sua conta, comandante?
Responda, por favor.
Sim, disse-lhe na quarta-feira à tarde, depois de termos ido ao apartamento. Não exactamente por essas palavras, mas, sim, disse-lho. Estávamos no parque de estacionamento. Não consultei ninguém e a decisão foi só minha. Nem o meu irmão nem o James Calder-Hale achavam que ela fosse a pessoa indicada para estar na recepção. Até então, sempre insistira para que a Godby continuasse a trabalhar no museu. A eficiência e a lealdade contam para alguma coisa; mas, na quarta-feira, percebi que eles tinham razão.
Mais uma peça do puzzle que se encaixava no seu devido lugar. Então, fora por isso que Muriel Godby regressara ao museu na quinta-feira à noite e se achava no gabinete quando Tally havia telefonado para a polícia. Quando a interrogara, Muriel respondera que queria pôr em dia o seu trabalho; mas, se fosse verdade, porque saíra e voltara? Porque não tinha ficado no museu até mais tarde?
Fora buscar os seus haveres murmurou Dalgliesh. Não podia fazê-lo na presença dos outros, porque para ela seria uma intolerável humilhação.
Foi buscar os seus haveres e não só; deslocou-se ao museu para me deixar uma lista de tarefas que deviam ser feitas e para me dizer como deveria ser dirigido o gabinete acrescentou Caroline Dupayne. Conscienciosa até ao fim...
Falara sem piedade, quase com desdém.
O seu irmão e Mister Calder-Hale podiam pensar que ela não era a pessoa adequada para estar na recepção, mas não foi por esse motivo que a despediu, pois não? Na quarta-feira à noite já não tinha dúvidas de que fora ela que assassinara o seu irmão e a Célia, e não queria que ela fizesse parte do pessoal do museu quando eu procedesse à detenção. Além do mais, havia o elo de ligação com Swathling’s. Sempre foi importante para si manter a escola à distância de qualquer associação com um homicídio, não é verdade?
Isso eram considerações menores. Com alguma sorte, herdarei Swathling’s. Fui eu que consolidei a reputação da escola. Não quero que comece a perder prestígio antes de eu ter a oportunidade de assumir o controlo. E não se enganou no que diz respeito ao museu. Era conveniente livrar-me da Muriel Godby antes que fosse feita a detenção. Contudo, não foi esse o principal motivo que me levou a dizer-lhe que estava despedida. Quando a verdade for revelada ao público, nem Swathling’s nem o museu escaparão ao escândalo. A escola não será muito prejudicada, porque a Godby saíra de lá há muito tempo, e duvido que o museu sofra as consequências. As pessoas já começaram a perguntar quando pensamos reabrir. Finalmente, o Museu Dupayne consta do mapa...
E quando chegou à conclusão de que era ela a responsável pelos dois homicídios?
Suponho que pela mesma altura que o senhor... Quando soube que alguém havia trancado a porta do apartamento que comunica com a Sala do Crime. Só eu e a Godby tínhamos as chaves. A diferença entre nós os dois, comandante, é que eu não era obrigada a encontrar provas. Agora, sou eu que tenho uma pergunta a fazer-lhe: como ela confessou, seremos poupados a um julgamento, mas quais são as probabilidades de a minha vida privada ser exposta publicamente? Como deve calcular, estou a referir-me ao Clube Noventa e Seis. Não é relevante para a forma como cada uma das vítimas morreu. Ora, não é disso que trata o inquérito do juiz de investigação? Da causa da morte? Terão de mencionar o clube?
Fizera a pergunta calmamente, como se quisesse saber em que dia estavam. Não demonstrava a menor preocupação nem lhe fizera qualquer apelo.
Vai depender muito das perguntas que o juiz decidir formular respondeu Dalgliesh. Ainda há os dois inquéritos preliminares que foram adiados.
Ela sorriu.
Pois penso que descobrirá que o juiz será bastante discreto...
Disse à Muriel que descobrira a verdade? Desafiou-a?
Não. Ela estava a par da existência do Clube Noventa e Seis, claro; ou, pelo menos, desconfiava. Afinal, era ela que se ocupava da roupa de cama do apartamento e que deitava fora as garrafas de champanhe. Não a desafiei e, quando me livrei dela, não fiz qualquer alusão directa aos homicídios. Apenas lhe disse que queria que ela tirasse os seus pertences do gabinete e se fosse embora, assim que nos devolvessem as chaves. Entretanto, ela devia sair do meu caminho.
Quero saber o que ambas disseram ao certo. Como reagiu ela?
Como julga que reagiu? Olhou para mim, como se eu tivesse acabado de condená-la a prisão perpétua. E suponho que talvez tenha sido isso o que fiz.... Houve um momento em que pensei que ela ia desmaiar. Quando conseguiu falar, as palavras que proferiu pareciam mais um coaxar. E o museu? E o meu emprego?, perguntou. Disse-lhe que não se atormentasse, porque ela não era indispensável. Havia meses que o meu irmão e o James Calder-Hale a queriam despedir. Expliquei-lhe que a Tally se encarregaria da limpeza do meu apartamento.
E foi tudo?
Não exactamente. Ela gritou: O que vai acontecer comigo? Disse-lhe que a sua melhor esperança era a de que a polícia pensasse que os homicídios haviam sido copiados de outros. Foi a minha única referência aos homicídios. Depois, entrei no meu carro e parti.
E com aquelas últimas palavras, pensou Dalgliesh, Tally Glutton fora condenada à morte.
O homicídio do seu irmão foi a prenda dela para si comentou. Foi por si que ela quis salvar o museu. Talvez até esperasse que a senhora se mostrasse grata,
A voz de Caroline Dupayne tornou-se áspera.
Então, ela não me conhecia, nem tão-pouco o senhor. Julga que eu não amava o Neville, não é verdade?
Não, nunca pensei isso.
Nós, os Dupayne, não deixamos transparecer as nossas emoções. Fomos educados com severidade a não o fazer. Não nos revelamos sentimentais com a morte de um dos nossos nem com a de outra pessoa qualquer. Não sucumbimos à neurose dos soluços e dos abraços, a que as pessoas recorrem para substituir as responsabilidades da verdadeira compaixão. Eu amava o Neville. Era o melhor de nós todos. Na realidade, foi adoptado. Não creio que alguém soubesse quem era a mãe dele, à excepção do nosso pai. O Marcus e eu sempre pensámos que o Neville era filho dele. Se não o fosse, então porque o teria adoptado? O meu pai não era um homem dado a impulsos de generosidade e a minha mãe fazia o que ele queria; era essa a sua função na vida. O Neville foi adoptado antes de eu nascer. Discutíamos muito, eu não respeitava a sua carreira e ele desprezava a minha. Talvez me desprezasse também, mas eu não o desprezava. Estava sempre presente e, para mim, era o meu irmão mais velho, um Dupayne. Assim que descobri a verdade, não podia ter a Muriel Godby debaixo do mesmo tecto que eu. Fez uma pausa e perguntou: É tudo?
Tudo o que tenho o direito legítimo de saber retorquiu Dalgliesh. Estou a pensar na Tally Glutton. Disse-me que a senhora lhe propôs que substituísse a Muriel na limpeza do apartamento.
Caroline Dupayne levantou-se e baixou-se para pegar na mala. Só depois sorriu.
Não se preocupe. O trabalho limitar-se-á estritamente a limpar o pó e a aspirar o chão... Sei valorizar a bondade, mesmo que, pessoalmente não aspire a tal sentimento. E se o Clube Noventa e Seis for reconstituído, não haverá mais encontros no Dupayne. Não queremos a polícia local a arrombar as portas e a entrar de rompante, sob pretexto de que receberam uma denúncia de que consumimos drogas ou somos pedófilos. Adeus, comandante. É uma pena que não nos tenhamos conhecido em circunstâncias diferentes...
Kate, que havia permanecido em silêncio, acompanhou-a, e a porta fechou-se atrás dela. Passados poucos minutos, voltou a entrar.
Meu Deus, como aquela mulher é arrogante! exclamou. E ainda há o orgulho familiar. Valorizava o Neville porque era meio Dupayne. Julga que ela disse a verdade a respeito da adopção?
Sim, Kate, ela estava a dizer a verdade.
E quanto ao Clube Noventa e Seis? O que ganhava ela com aquilo?
Algum dinheiro, segundo creio. As pessoas deviam deixar ofertas, sob pretexto de que queriam participar nas despesas com a limpeza do apartamento e com o consumo das bebidas, mas, acima de tudo, do que ela gostava mais era do poder que o clube lhe conferia. Nisso, ela e a Godby eram parecidas.
Imaginou Godby, sentada atrás do balcão da recepção, a agarrar-se secretamente à ideia de que, se não fosse ela, o museu teria encerrado e talvez a perguntar a si própria se um dia poderia atrever-se a confessar a Caroline o que havia feito por ela, aquela exorbitante prenda que lhe havia dado por amor.
A Caroline Dupayne vai manter o clube a funcionar continuou Kate. Se herdar Swathling’s, os membros poderão encontrar-se ali com segurança, em especial durante as férias escolares. Julga que devemos avisar a Tally Glutton?
Não é assunto que nos diga respeito, Kate. Não podemos organizar as vidas das pessoas por elas. A Tally Glutton não é tola. Tomará as suas próprias decisões. Não nos cabe a nós pô-la frente a uma decisão moral com que pode nunca vir a confrontar-se. Além de ser óbvio que precisa do emprego e da casa.
Está a insinuar que ela poderá ceder?
Quando há tanta coisa em jogo, as pessoas costumam ceder, até mesmo as mais virtuosas. Eram cinco horas, e a última aula da semana terminara. A aluna que se achava sentada em frente de Emma, junto ao lume, viera sozinha. A sua colega faltara por estar com gripe, tornando-se a primeira vítima do novo trimestre. Emma esperava ardentemente que não fosse o princípio de uma epidemia. Shirley parecia relutante em sair. Emma olhou para a rapariga encolhida na sua cadeira, com os olhos fixos no chão, enquanto torcia as mãos pequenas e sujas que pousara sobre o regaço. Sabia reconhecer, bem de mais, a angústia para ignorá-la. Deu consigo a rezar em silêncio: Meu Deus, por favor, não permitas que ela exija demasiado de mim. Hoje, não. Faz com que seja rápido.
Tinha de apanhar o comboio das seis e um quarto e Adam ficara de encontrar-se com ela às sete horas e três minutos, em King’s Cross. Receara receber um telefonema seu a informá-la de que não podia encontrar-se com ela, mas Adam não telefonara. Havia pedido um táxi para as cinco e meia, o que lhe dava tempo suficiente para lidar com a possibilidade de o trânsito estar congestionado. Já tinha a mala pronta. Quando dobrara a sua camisa de dormir e o seu roupão, sorrira pensando que, se Clara a visse naquele momento, teria comentado que estava a fazer as malas para uma lua-de-mel. Afastou da mente a imagem da figura alta e morena de Adam, à sua espera junto à barreira, e perguntou:
Há alguma coisa que te preocupa?
Os olhos de Shirley procuraram os seus.
Os outros alunos pensam que estou aqui porque estudei numa escola pública. Julgam que o governo pagou a Cambridge para que aceitasse a minha candidatura. E por isso que estou aqui e não por ser inteligente, na opinião deles.
Alguém disse isso directamente? perguntou Emma com voz áspera.
Não, ninguém. Não o dizem, mas é o que pensam. Veio nos jornais e sabem que é isso que está a acontecer.
Emma inclinou-se para a frente.
Essa política não se aplica a esta universidade portanto, não foi o que sucedeu contigo. Isso não é verdade. Ouve-me com atenção, porque é importante. O governo não diz a Cambridge como há-de seleccionar os seus estudantes. Se este ou outro governo o fizesse, Cambridge nunca acataria tal ordem. Os nossos únicos critérios de selecção baseiam-se na inteligência e no potencial dos nossos alunos e, se estás aqui, é porque o mereces.
Não é isso que sinto.
Shirley falara num tom de voz tão baixo que Emma tivera de fazer um esforço para perceber o que dissera.
Pensa bem nisso, Shirley. A atribuição de bolsas de estudo em Cambridge é feita a nível internacional e, por conseguinte, é muito competitiva. Se Cambridge quiser manter o seu prestígio, tem de seleccionar os melhores. Estás aqui por mérito próprio. Queremos que fiques connosco e que sejas feliz.
Os outros parecem tão confiantes. Alguns já se conheciam antes de virem para cá ou têm amigos aqui, o que faz com que Cambridge não lhes seja um local estranho. Sabem o que fazer, porque estão juntos. Para mim, tudo é estranho. Sinto que não pertenço a esta universidade. Foi um erro ter vindo para Cambridge, conforme me disseram algumas das amigas da minha mãe lá em casa. Afirmaram que eu não me adaptaria.
Pois estavam enganadas. É verdade que sempre ajuda ir estudar para uma universidade nova com amigos. No entanto, alguns dos alunos que parecem tão confiantes têm as mesmas preocupações que tu. O primeiro trimestre numa universidade nunca é fácil. Por toda a Inglaterra, neste momento, novos estudantes passam pelas mesmas incertezas. Quando nos sentimos infelizes, pensamos sempre que mais ninguém pode experimentar a mesma sensação que nós, mas é um erro, porque esse estado faz parte da condição humana.
Não acredito que possa sentir-se assim, doutora Lavenham.
Porque não? Por vezes sinto o mesmo que tu. Palavra. Já te inscreveste numa das associações de estudantes?
Ainda não. São tantas e não sei em qual me adaptaria.
Porque não te inscreves numa em que estejas realmente interessada? Não o faças apenas com o intuito de conhecer outras pessoas e estabelecer novas amizades. Escolhe uma de que possas desfrutar, talvez uma associação nova. Então conhecerás outras pessoas e farás novas amizades.
A rapariga acenou afirmativamente com a cabeça e sussurrou algo como Vou tentar. Emma ficou preocupada. Era o tipo de problema que causava maior ansiedade aos estudantes segundo a sua experiência. Em que momento, se é que havia algum, devia ela aconselhá-los a pedir apoio profissional ou ajuda psiquiátrica? Não detectar os indícios de uma grande angústia podia revelar-se desastroso, mas ter uma reacção exagerada era capaz de destruir a confiança que ela tentava incutir. Estaria Shirley desesperada? Não lhe parecia e esperava não se enganar, mas podia auxiliá-la de outra forma e sabia que a rapariga precisava dessa ajuda.
Quando entramos numa universidade disse num tom de voz carinhoso, por vezes é difícil saber como trabalhar da forma mais eficaz ou como empregar o nosso tempo da melhor maneira. E fácil desperdiçá-lo a trabalhar arduamente em matérias que não são essenciais, negligenciando o que é realmente importante. Escrever ensaios académicos requer muita prática. Estarei ausente de Cambridge durante o fim-de-semana, mas podemos conversar sobre isso na segunda-feira, se achares que pode ajudar-te.
Creio que me ajudava muito, doutora Lavenham. Obrigada.
Então, vemo-nos às seis horas?
A rapariga assentiu com um aceno de cabeça e levantou-se. Já à porta, voltou-se para sussurrar um último obrigada e desapareceu. Emma consultou o relógio. Estava na altura de vestir o casaco, pegar na mala e descer para esperar o táxi. Achava-se já na estação de Cambridge quando se apercebeu de que deixara o telemóvel no seu quarto. Talvez, pensou, tivesse sido menos por esquecimento do que pelo temor inconsciente de ouvi-lo tocar durante a viagem. Agora podia viajar em paz.
Finalmente Dalgliesh estava pronto para sair. A sua secretária particular passou a cabeça pela porta.
Acabo de receber uma chamada do Ministério do Interior, Mister Dalgliesh. O ministro quer vê-lo. Telefonaram do seu gabinete particular. E urgente.
Quando recebia um telefonema numa tarde de sexta-feira, geralmente era um assunto urgente.
Disse-lhes que vou sair quase de imediato, para gozar o fim-de-semana?
Sim, disse-lhes, mas a pessoa que me telefonou respondeu que fora uma sorte tê-lo apanhado a tempo. E importante. Mister Harkness também foi chamado.
Então, Harkness também estaria presente. E quem mais? interrogou-se Dalgliesh. Enquanto vestia o casaco, consultou o relógio. Cinco minutos para cortar caminho pela estação de metropolitano de St. James’s Park e chegar a Queen Anne’s Gate. Provavelmente o atraso habitual com o elevador. Ao menos, os agentes da segurança conheciam-no e, com o seu passe, não o reteriam por muito tempo. Se tivesse sorte, levaria seis minutos no total antes de entrar no gabinete do ministro. Não perdeu tempo a verificar se Harkness já saíra e correu para o elevador.
Passaram-se exactamente sete minutos antes que fosse introduzido no gabinete particular do ministro. Viu que Harkness já lá estava, assim como o subsecretário do Ministério do Interior, Bruno Denholm, do MI6, e o subsecretário do 484minisstério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth, um oficial de meia-idade mas com aparência jovem, cujo ar de calmo distanciamento deixava bem claro que se achava ali apenas como espectador. Todos os presentes estavam habituados àquelas convocações urgentes e tinham prática em tornar o inesperado e indesejado em razoável e inócuo. Mesmo assim, Dalgliesh detectou um ambiente de mal-estar, quase de constrangimento.
O ministro saudou-os com um aceno de mão e procedeu às breves mas desnecessárias apresentações. Era um homem que adoptara as boas maneiras, em especial para com os graduados, como sua política de trabalho. Dalgliesh pensou que, de um modo geral, aquela tomada de atitude fora bem-sucedida. Pelo menos, tinha o mérito de ser original. No entanto, o seu convite para beberem um cálice de xerez, a não ser, cavalheiros, que pensem que ainda é muito cedo, mas também há chá e café se preferirem, e a sua atenção escrupulosa em relação ao lugar em que cada um dos presentes devia sentar-se assemelhavam-se a um táctica deliberada para retardar o início da reunião e, quando Harkness aceitou um cálice de xerez, aparentemente em representação dos restantes presentes, pareceu-lhe um capricho equivalente a um alcoolismo incipiente. Deus, quando começariam a reunião? O xerez excelente e muito seco foi servido, e sentaram-se em volta da mesa. Havia uma pasta em frente do lugar do ministro. Abriu-a e Dalgliesh viu que continha o seu relatório sobre os homicídios do Museu Dupayne.
Parabéns, comandante felicitou o ministro. Um caso delicado resolvido com rapidez e eficácia. Volta a suscitar a questão de saber se não deveríamos estender a Brigada de Investigações Especiais a todo o país. Estou a referir-me, em particular, aos recentes sequestros e homicídios de crianças. Uma brigada especializada a nível nacional poderia ser uma vantagem nesses casos tão notórios. Suponho que tem uma opinião pessoal a respeito desta minha sugestão...
Dalgliesh podia ter ripostado que aquela questão não era nova e que as opiniões, incluindo a sua, a propósito de uma brigada especializada a nível nacional já eram sobejamente conhecidas. No entanto, refreando a sua impaciência, replicou:
As vantagens são óbvias, se for necessário para certa investigação que ela abranja todo o país, em vez de se concentrar num crime localizado, mas existem também algumas objecções. Arriscamo-nos a perder o conhecimento que possuímos de um determinado local e os contactos com a sua comunidade, dois importantes componentes de qualquer investigação. Depois há o problema da relação e colaboração com as autoridades a quem o caso disser respeito, e que poderiam sentir-se desmoralizadas se os casos mais complicados fossem reservados a uma brigada que pode ser tida como privilegiada, tanto a nível do recrutamento dos seus membros como a nível dos recursos de que dispõe. Do que precisamos é de aperfeiçoar a formação de todos os detectives, incluindo os que se achem a meio da carreira. As pessoas começam a perder a confiança na capacidade da polícia para resolver crimes locais.
E isso, claro, é o que a sua comissão pondera actualmente. O recrutamento e a formação dos detectives retorquiu o ministro. Pergunto a mim próprio se haveria alguma vantagem em encarar seriamente a hipótese da criação de uma brigada nacional.
Dalgliesh absteve-se de salientar que não se tratava da sua comissão, mas apenas da comissão para a qual trabalhava.
O director da minha comissão provavelmente estaria de acordo com a expansão das competências da brigada, se for esse o propósito do secretário de Estado. Se essas competências houvessem sido incluídas desde o princípio nas atribuições da brigada, teríamos conseguido decerto uma adesão muito diferente. Temo-nos deparado com alguns problemas em relação ao recrutamento de agentes nesta última fase.
A minha sugestão poderá ser analisada de futuro?
Com certeza, se Sir Desmond concordar. Contudo, aquela reiteração de um velho problema fora apenas um preliminar, como Dalgliesh depressa se apercebeu. O ministro concentrou a sua atenção no relatório sobre os homicídios.
O seu relatório deixa bem claro que o clube privado comentou, ou talvez deva dizer as reuniões de amigos promovidas por Miss Caroline Dupayne não foram responsáveis tanto pela morte do doutor Neville Dupayne como pela da Célia Mellock.
Só houve uma pessoa responsável: a Muriel Godby.
Exactamente. Sendo assim, parece-me desnecessário atormentar ainda mais a mãe da rapariga com uma referência pública ao motivo por que se encontrava a Célia Mellock no museu.
A hábil capacidade de acreditar que todas as pessoas são menos inteligentes e ingénuas do que nós próprios era uma qualidade útil num político profissional, pensou Dalgliesh, mas não um atributo que ele estivesse preparado para aceitar.
Isso não tem nada a ver com Lady Holstead, não é verdade? perguntou. Tanto ela como o seu segundo marido conheciam bem o estilo de vida que a rapariga levava. Quem queremos proteger ao certo neste caso?
Sentiu a maliciosa tentação de sugerir alguns nomes, mas soube reprimi-la. O sentido de humor de Harkness era rudimentar e nunca testara o sentido de humor do ministro, que olhou para o subsecretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth.
Um cidadão estrangeiro, homem importante e grande amigo deste país, pediu que lhe garantíssemos que certos assuntos particulares permaneceriam em segredo explicou o subsecretário.
Mas não estará esse cidadão estrangeiro a preocupar-se desnecessariamente? exclamou Dalgliesh. Julgava que somente dois pecados eram susceptíveis de provocar a mais violenta reprovação do público quando publicados na imprensa nacional: a pedofilia e o racismo.
Não no país dele.
O ministro apressou-se a assumir o controlo da situação.
Antes que possamos assegurar-lhe seja o que for, existem certos pormenores acerca dos quais me quero certificar, sobretudo de que não haverá qualquer interferência com o decurso da justiça. Penso não ser necessário dizê-lo, mas por certo a justiça não exige a estigmatização de inocentes.
Espero que o meu relatório seja bem claro replicou Dalgliesh.
Não só claro como pormenorizado. Talvez me haja exprimido mal. Deveria ter dito que gostava que me esclarecesse em relação a certos aspectos. Por exemplo, esse clube dirigido por Miss Dupayne... Suponho que era um clube privado, que se reunia em propriedades privadas, e que nenhum dos seus membros tinha menos de dezasseis anos e, tão-pouco, que houvesse dinheiro envolvido. O que faziam pode ser reprovável para alguns, mas não era ilegal.
Miss Dupayne não dirigia um bordel nem nenhum membro do seu clube teve qualquer ligação com a morte do Neville Dupayne ou da Célia Mellock. A rapariga não teria morrido se não estivesse na Sala do Crime num dado momento e nunca se acharia no museu, se não fosse um membro do Clube Noventa e Seis, mas, como já o disse, só uma pessoa foi responsável pela sua morte: a Muriel Godby.
O ministro franziu as sobrancelhas; tivera o cuidado de omitir o nome do clube.
Não restam quaisquer dúvidas quanto a isso? perguntou.
Não. Temos a confissão dela. Fosse como fosse, tê-la-íamos detido esta manhã. A Tallulah Glutton reconheceu-a antes de perder os sentidos. Encontrámos a barra de ferro manchada com sangue no carro da Godby. Ainda não enviámos o sangue para ser analisado, mas não há duvidas de que é o sangue da Glutton.
Exactamente concordou o ministro. Mas regressemos às actividades no apartamento de Miss Dupayne. Sugere, no seu relatório, que a rapariga, que combinara encontrar-se com Lorde Martlesham nessa noite, chegou a ir ao apartamento e entrou na Sala do Crime depois de destrancar a porta e, talvez levada pela curiosidade e pelo facto de ser estritamente proibido entrar no museu por aquela porta, avistou da janela voltada para leste a Muriel Godby a lavar as mãos na barraca do jardim. A Godby ergueu o olhar, viu a rapariga à janela, entrou no museu, estrangulou a sua vítima, que não podia voltar para o apartamento porque a porta, além de estar fechada, não tinha puxador do lado da Sala do Crime, e enfiou o corpo no baú. Devia ter muita força para fazer o que fez. Depois, entrou no apartamento pela porta exterior, da qual tinha uma chave, desligou as luzes do apartamento, fez descer o elevador até ao rés-do-chão e saiu. Lorde Martlesham chegou logo de seguida. Verificando que o carro da Célia Mellock não se encontrava no parque de estacionamento, que todas as luzes do vestíbulo do apartamento estavam apagadas e que o elevador se achava no rés-do-chão, convenceu-se de que a rapariga faltara ao encontro. Foi então que viu as chamas do incêndio na garagem, entrou em pânico e partiu no seu carro. Na manhã seguinte, a Godby, que chegou cedo como era seu hábito, teve tempo e oportunidade de arrancar as flores do vaso de violetas-africanas do gabinete do Calder-Hale e de as espalhar sobre o cadáver. O seu intuito, claro está, era o de fazer com que o segundo homicídio parecesse haver seguido o método de um outro, já antigo. Também voltou a fechar e a trancar a porta do apartamento que comunicava com a Sala do Crime e verificou se a Mellock não deixara quaisquer vestígios que pudessem denunciar a sua presença ali, ou que pudessem incriminá-la. Não poderia ter feito isso nem recorrido ao truque das violetas-africanas logo após o homicídio. Assim que o incêndio se tornou visível, teve de fugir rapidamente antes que fosse dado o alarme. Posso ver por que motivo a Godby teve de levar a mala de mão. Era importante que não se descobrisse a chave do apartamento junto ao cadáver da Mellock. Era mais rápido apoderar-se da mala de mão do que perder tempo à procura da chave. Existem pormenores adicionais, mas, essencialmente, o caso resume-se a isto.
Ergueu o olhar com o sorriso de satisfação de um homem que mais uma vez demonstrara a sua habilidade em dominar a arte de resumir um relatório.
Pelo menos, é como o caso se me afigura replicou Dalgliesh. Desde o início, sempre acreditei que os dois homicídios estavam relacionados. A minha opinião confirmou-se quando obtivemos o depoimento, que consta do relatório, de que o baú se achava vazio às quatro da tarde de sexta-feira. Era praticamente impossível pensar que dois homicídios completamente diferentes tivessem sido cometidos ao mesmo tempo e no mesmo local.
489 No entanto, e desculpe-me contrapôs o ministro, a rapariga podia ter chegado ao museu mais cedo com outro amante, encontrar-se com ele na sala de arquivo na cave, e ficar ali escondida depois de o museu encerrar. E, se tivesse entrado no museu sem ser pelo apartamento, então o facto de ser membro do clube privado de Miss Dupayne seria completamente irrelevante para a sua morte. Por conseguinte, não há que fazer referência ao clube.
Pediram-me um relatório completo replicou Dalgliesh e foi o que fiz. Não estou disposto a alterá-lo nem a elaborar outro. Uma vez que a Godby já assinou uma confissão e tenciona declarar-se culpada, não haverá julgamento. Se for necessária uma versão abreviada da investigação para uso interno, tenho a certeza de que o departamento poderá fornecê-la. E agora, se me dá licença, gostava de ser dispensado. Tenho um encontro privado urgente.
Reparou na expressão de surpresa de Harkness e no semblante reprovador do ministro, que, contudo, disse em tom afável:
Muito bem; foi-me assegurado aquilo que eu pretendia. Nem a lei nem a justiça exigirão que factos relativos à vida privada de Miss Mellock sejam tornados públicos. Sendo assim, cavalheiros, creio que podemos dar este caso como encerrado.
Dalgliesh sentiu-se tentado a salientar que não havia assegurado nada ao ministro nem que ninguém, ali presente, incluindo ele próprio, tinha competência para o fazer.
Existe sempre a possibilidade de Lorde Martlesham falar... comentou Harkness.
Já conversei com ele. Tem uma consciência muito desenvolvida, o que lhe causa certos problemas, mas não deseja causar problemas a outras pessoas.
Os dois inquéritos foram adiados, senhor ministro, e agora haverá outro.
Oh retorquiu o ministro, num tom despreocupado. Penso que o juiz irá restringir as suas perguntas ao que é relevante para estabelecer a causa das duas mortes. Afinal, é essa a sua função. Obrigado, cavalheiros. Lamento tê-lo empatado, comandante. Tenha um bom fim-de-semana.
Precipitando-se para o elevador, Dalgliesh consultou o relógio. Tinha três quartos de hora para chegar a King’s Cross, o que era mais do que suficiente. Planeara com grande antecedência o seu trajecto. Ir de carro de Victoria Street até King’s Cross numa sexta-feira, à hora de ponta, seria correr o risco de sofrer um acidente, em particular, com a nova sincronização dos semáforos feita pelo presidente da Câmara de Londres; além disso, deixara o Jaguar no parque de estacionamento do costume, perto do seu apartamento. O percurso mais rápido e mais lógico era o de tomar a linha de Circle ou a de District, na estação de metro de St. James’s Park, e sair em Victoria a estação seguinte para depois fazer o transbordo para a linha de Victoria. Eram apenas cinco estações e, com alguma sorte, estaria em King’s Cross dali a quinze minutos. Teria de abdicar do seu plano de fazer um compasso de espera na British Library, porque a reunião com o ministro alterara os cálculos anteriores.
O trajecto começou bem; uma carruagem da linha de Circle chegou, ao fim de três minutos, e nem sequer teve de esperar na estação de Victoria. Uma vez no interior da carruagem da linha de Victoria, em direcção a norte, sentiu-se mais calmo e conseguiu apagar da mente as complicações do dia e começar a pensar noutras complicações, muito diferentes, e nas promessas da noite que se aproximava. Foi então que, depois de Green Park, surgiu o primeiro obstáculo: a carruagem abrandou até a uma velocidade quase imperceptível, ficou parada durante o que para Dalgliesh pareceu ser uma eternidade e recomeçou a andar, a passo de caracol, depois de arrancar aos solavancos. Passaram-se vários minutos, durante os quais Dalgliesh, de pé e apertado entre vários corpos quentes, parecia calmo, mas, intimamente, sentia um torvelinho de frustração, de raiva e de impotência. Por fim, chegaram à estação de Oxford Circus, em que as portas se abriram ao grito de «Mudança de linha!»
No caos dos passageiros que saíam da carruagem e se misturavam com os que esperavam para entrar, Dalgliesh ouviu um homem perguntar a um guarda que passava:
O que aconteceu?
A linha está bloqueada mais à frente. Uma composição avariou-se.
Dalgliesh não esperou para ouvir o resto. Pensou com rapidez: não havia outra linha directa para King’s Cross e tinha de tentar apanhar um táxi.
Teve sorte. Uma passageira saía de um táxi à esquina de Argyll Street. Correndo, Dalgliesh chegou à porta do veículo antes que a passageira tivesse tempo de se apear. Esperou impacientemente, enquanto a mulher procurava dinheiro trocado, e só depois exclamou:
Siga para King’s Cross, o mais depressa possível.
Sim, senhor. Será melhor tomarmos o percurso habitual, primeiro, por Mortimer Street, depois, por Goodge Strett, em direcção a Euston Road.
O táxi já havia arrancado. Dalgliesh tentou acomodar-se no assento traseiro e controlar a sua impaciência. Se chegasse atrasado, quanto tempo esperaria Emma? Dez minutos, vinte minutos? Porque haveria de esperar por ele? Tentou ligar-lhe para o telemóvel, mas não obteve resposta.
Como calculava, o trajecto foi insuportavelmente lento e, apesar de a velocidade melhorar quando chegaram a Euston Road, ainda continuou a ser pouco mais do que um trajecto arrastado. Foi então que se deu um desastre: mais à frente, uma carrinha chocou contra um automóvel. Não era um acidente grave, mas a carrinha ficara atravessada na estrada. O trânsito parou e haveria um atraso inevitável até chegar a polícia para fazer fluir o tráfego de novo. Dalgliesh deu uma nota de dez libras ao motorista, saiu do táxi e começou a correr. Quando entrou, esbaforido, na estação de King’s Cross, estava vinte minutos atrasado.
Além do pessoal uniformizado, a pequena plataforma que servia a linha de Cambridge encontrava-se deserta. Que teria feito Emma? Que teria ele feito no seu lugar? Não quereria ir para o apartamento de Clara, passando a noite a ouvir a amiga, furiosa, dar-lhe as condolências. Emma voltaria para Cambridge, onde se sentia em casa. E era para lá que ele ia. Tinha de vê-la naquela noite, tinha de saber o pior ou o melhor. Mesmo que ela não quisesse ouvi-lo, podia entregar-lhe a carta. No entanto, quando perguntou a um empregado da estação a que horas partia o próximo comboio, descobriu o motivo por que a plataforma se achava vazia; houvera problemas na via-férrea e ninguém fazia ideia de quando voltaria a estar operacional. O comboio que chegara às sete horas e três minutos havia sido o último a passar. Estariam porventura todos os deuses das viagens a conspirar para o impedir de alcançar o seu objectivo?
Há os comboios da linha normal com destino a Cambridge e que partem de Liverpool Street aconselhou o empregado. Será melhor tentar lá. E o que está a fazer a maior parte dos passageiros.
Não havia a menor possibilidade de apanhar um táxi à pressa, porque vira a longa fila quando entrara a correr na estação, mas havia um trajecto alternativo e, com alguma sorte, mais rápido. Tanto a linha de Circle como a de Metropolitan levá-lo-iam a Liverpool Street, em quatro paragens, se por algum milagre a carruagem não se avariasse. Atravessou a estação de comboio em direcção à do metropolitano e tentou abrir caminho por entre a multidão que descia a escada. Encontrar as moedas para a máquina automática de bilhetes pareceu-lhe um inconveniente insuportável, mas por fim alcançou a plataforma e, volvidos quatro minutos, chegava uma composição da linha de Circle. Em Liverpool Street, subiu a escada a quatro e quatro, passou pela moderna torre do relógio e, finalmente, deteve-se no topo da escada, enquanto consultava o amplo painel azul com os horários das partidas.
O comboio para Cambridge, com a lista das dez estações em que parava, sairia da plataforma número seis. Tinha menos de dez minutos para a encontrar.
Devido ao encerramento da linha de King’s Cross, uma pequena multidão acotovelava-se em frente da barreira que dava acesso à plataforma. Tentando abrir caminho, gritou à mulher que controlava as entradas dos passageiros:
Tenho de encontrar uma pessoa. É urgente!
A mulher nada fez para detê-lo. A plataforma estava a abarrotar de gente e, à sua frente, as pessoas avançavam para o comboio, empurravam-se ao entrar pelas portas das carruagens e procuravam desesperadamente um assento vazio.
Foi então que viu Emma. Pareceu-lhe que caminhava com ar desconsolado, com a mala na mão, em direcção às carruagens da frente. Dalgliesh tirou a carta do bolso e correu para ela. Emma voltou-se e ele só teve tempo de ver a sua expressão de surpresa e em seguida, como que por milagre, o seu rápido involuntário sorriso, antes de lhe colocar o sobrescrito nas mãos.
Não sou o capitão Wentworth disse, mas, por favor, lê isto agora. Esperarei por ti ao fundo da plataforma.
Ficou sozinho. Voltara-se porque não poderia suportar vê-la meter a carta na mala e entrar no comboio, mas depois forçou-se a olhar para ela: Emma afastara-se da multidão e lia a carta. Dalgliesh recordava-se de cada uma das palavras que havia escrito.
Disse a mim próprio que escrevo isto porque te dará tempo para pensares antes de me dares uma resposta, mas talvez haja sido apenas um acto de cobardia da minha parte. Ler que me rejeitarás será mais suportável do que vê-lo nos teus olhos. Não tenho motivos para nutrir esperanças Sabes que te amo, mas o meu amor não me confere qualquer direito Outros homens disseram-te estas palavras e voltarão a pronunciá-las. E não posso prometer-te que te farei feliz, seria arrogante se supusesse que possuo tal poder Se fase teu pai, teu irmão ou simplesmente um amigo, poderia encontrar um sem-número de motivos para argumentar contramim próprio, mas já os conheces Só os grandes poetas poderiam falar por mim, mas não é o momento para citar as palavras de outros homens Só posso escrever o que me vai no coração A minha única esperança é a de que gostes de mim o suficiente para quereres arriscar-te a iniciar esta aventura comigo. Quanto a mim, não corro quaisquer riscos, pois não posso aspirar a maior felicidade do que a de ser teu amante e teu marido.
Ali de pé, sozinho e à espera, pareceu-lhe que à sua volta a vida havia desaparecido misteriosamente, como se fizesse parte de um sonho. O eco irregular dos passos, os comboios que se preparavam para partir, os encontros e as despedidas, os gritos, as portas das carruagens que se fechavam, as lojas e os cafés da estação e o zumbido longínquo da cidade, tudo se desvanecera. Achava-se por baixo da magnífica cúpula do telhado, como se ali não houvesse mais ninguém a não ser ele, que aguardava, e a distante figura de Emma.
Então, o seu coração acelerou-se. Emma avançava para ele com passos decididos primeiro, e depois, a correr. Encontraram-se e ele pegou-lhe nas mãos. Ela procurou os olhos dele com os seus, rasos de lágrimas.
Minha querida, precisas de mais tempo? perguntou ele.
Não, não preciso de mais tempo. A resposta é sim, sim! Ele não a tomou nos braços nem se beijaram. Precisavam de estar a sós para aquelas primeiras e doces intimidades. Dalgliesh contentou-se em sentir as mãos dela nas suas e em deixar a maravilhosa torrente de felicidade irromper através das suas veias até brotar, como uma fonte, no seu coração. Lançou a cabeça para trás e celebrou a sua vitória com uma sonora gargalhada. Ela também começou a rir-se.
Que local mais estranho para um pedido de casamento! Bom, podia ter sido pior... Podia ter sido em King’s Cross... Emma consultou o relógio e acrescentou: Adam, o comboio parte dentro de três minutos. Poderíamos acordar ao som das fontes de Trinity Great Court.
Dalgliesh soltou-lhe as mãos, inclinou-se e pegou na mala dela.
Mas o Tamisa passa por baixo das minhas janelas... Ainda rindo, ela enfiou o braço no dele.
Então, vamos para casa.
P. D. James
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