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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SALAMANDRA / Morris West
A SALAMANDRA / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Entre a meia-noite e o romper do dia, enquanto seus companheiros romanos estavam festejando o fim do Carnaval, Massimo Conde Pantaleone, General do Estado-Maior, morreu em sua cama. Solteirão de pouco mais de sessenta anos e soldado de hábitos espartanos, morreu só.
O seu criado, um sargento de cavalaria reformado, levou o café do General às sete da manhã como de costume e encontrou-o deitado de costas, inteiramente vestido, de boca aberta e olhos voltados para o teto decorado. O criado depositou cuidadosamente a bandeja do café, fez o sinal da Cruz, fechou os olhos do morto com duas moedas de cinquenta liras e depois telefonou para o ajudante de ordens do General, o Capitão Girolamo Carpi.
Carpi telefonou para o Diretor. O Diretor telefonou para mim. Podem encontrar meu nome no dossiê da Salamandra; Dante Alighieri Matucci, Coronel de Carabinieri, destacado para trabalho especial no Serviço de Informação da Defesa.
O Serviço é habitualmente chamado pela sua sigla em italiano, SID (Servizio Informazione Difesa). Como qualquer outro serviço secreto, o SID gasta polpuda soma do dinheiro dos contribuintes no esforço de perpetuar-se e um pouco menos na obtenção de informações capazes de proteger a República de invasores, traidores, espiões, sabotadores e terroristas políticos. Como podem ver, não creio muito na sua utilidade. É natural, pois trabalho lá e todos os que trabalham lá acabam desiludidos de uma maneira ou de outra. O Serviço estimula a perda da inocência e procura fazer de todos instrumentos dóceis da política. Mas estamos fugindo do assunto...
Massimo, Conde Pantaleone, General do Estado-Maior, estava morto. Fui designado para tomar providências sobre a retirada do corpo sem alarde. Precisava de ajuda.
O Exército forneceu-a na pessoa de um coronel-médico e de um advogado militar com a patente de um major. Fomos juntos de carro até o apartamento do General. Quem nos recebeu foi o Capitão Carpi.
O criado do General estava chorando na cozinha com um copo de grappa na mão. Até aí, tudo certo. Nenhuma confusão. Não havia vizinhos curiosos no corredor. Os parentes não tinham sido avisados. Nunca tivera grande respeito pelo Capitão Carpi, mas não podia deixar de admirar-lhe a discrição.
O coronel-médico fez um exame apressado e chegou à conclusão de que o General tinha morrido depois de tomar uma dose exagerada de barbitúricos. Redigiu um atestado, rubricado pelo advogado militar como testemunha, no qual se estabelecia que a causa mortis tinha sido um colapso cardíaco. Não era um documento falso; era apenas um documento conveniente. O coração do General havia parado. Era uma pena que não tivesse parado alguns anos antes. Um escândalo não daria resultado para ninguém e poderia prejudicar muita gente inocente.

 

 

 


 

 

 


Às oito e meia, uma ambulância militar chegou e removeu o corpo. Fiquei no apartamento com Carpi e o criado. Este nos fez café e, enquanto o tomávamos, interroguei-o.
As respostas que me deu estabeleceram uma série de fatos simples.
O General jantara fora. Tinha voltado para casa quando faltavam vinte minutos para a meia-noite e fora imediatamente para o quarto. O criado verificara se as portas
e as janelas estavam bem fechadas, ligara o alarme contra ladrões e fora para a cama. Acordara às seis e meia, preparando então o café da manhã... Visitas? Nenhuma...
Estranhos? Nenhum. Os alarmes não tinham sido tocados... Telefonemas de fora ou para fora? Não havia jeito de saber. O General poderia ter falado pelo telefone direto
do quarto. O telefone interno não tocara, sem dúvida alguma... A atitude do General? Normal. Era um homem muito calado e havia dificuldade em saber o que ele estava
pensando fosse a que hora fosse. Só isso... Dei-lhe uma palmadinha no ombro e mandei-o para a cozinha.
Carpi fechou a porta depois que ele saiu, serviu dois copos do uísque do General, entregou-me um deles e fez uma pergunta.
- Que é que vamos dizer aos amigos dele e à imprensa?
Era uma pergunta própria dele, trivial e insignificante.
- Não viu o atestado de óbito assinado e testemunhado? Morte natural, colapso cardíaco.
- E o laudo da autópsia?
- Capitão, o senhor parece-me ingênuo demais para ser ambicioso. Não vai haver autópsia. O corpo do General já foi levado para uma funerária, onde será preparado
para ficar em câmara ardente durante bem pouco tempo. Queremos que ele seja visto. Queremos que seja homenageado. Queremos que seja pranteado como um nobre servidor
da República, o que, aliás, ele não deixou de ser.
- E depois?
- Depois, queremos que seja esquecido. E nesse ponto o senhor poderá ajudar-nos.
- Como?
- Seu chefe morreu. O senhor trabalhou bem para nós e merece um posto melhor. Sugiro alguma coisa bem longe de Roma - o Alto Adige, talvez Tarcento ou mesmo a Sardenha.
Terá muito mais chances de promoção em lugares assim.
- Gostaria de pensar no assunto.
- Não há tempo pra isso, Capitão! Receberá os seus papéis de transferência esta manhã. Deverá entregá-los, preenchidos e assinados, hoje às cinco horas da tarde.
Asseguro-lhe que será designado para um novo posto logo depois do enterro... E, Capitão...?
- Sim?
- Não se esqueça de que a sua posição é muito delicada. Concordou em espionar um oficial superior. Nós, do SID, lhe somos muito gratos, mas os seus colegas poderão
levar a mal. A menor indiscrição poderá prejudicar a sua carreira e expô-lo a um grande perigo pessoal. Está compreendendo?
- Compreendo, sim.
- Muito bem. Pode retirar-se... Ah, sim.
- Que é?
- Tem uma chave deste apartamento. Quer fazer o favor de deixá-la aqui?
- Que vai acontecer agora?
- A mesma coisa de sempre. Vou examinar papéis e documentos. Depois, apresentarei um relatório. Procure mostrar-se triste na hora do enterro... Ciao!
Carpi saiu, tentando cobrir-se com os farrapos de sua dignidade. Era um desses camaradas fracos e simpáticos que precisam sempre de um protetor' e em geral o conseguem,
embora estejam sempre dispostos a traí-lo em benefício de um protetor mais poderoso. Eu me servira dele para espionar os movimentos, os contatos e as atividades
políticas de Pantaleone. Passara a ser um redundante estorvo. Preparei outro copo de uísque e tentei pôr os pensamentos em ordem.
O caso Pantaleone tinha todas as características de uma bomba-relógio política. O paradoxal no caso era que se poderia gritar o nome para cima e para baixo em pleno
Corso e um em mil cidadãos da República não seria capaz de reconhecê-lo. Os poucos que reconhecessem seriam incapazes numa proporção de noventa por cento de compreender
a sua importância ou a extensão da conspiração que se armara em tomo dele. Eu tinha dossiês de todos os principais participantes. Durante muito tempo, eu me impacientara
com a minha impotência diante deles. Não eram criminosos ou, pelo menos, ainda não eram. Todos eles homens de posição - ministros, deputados, industriais, militares
da ativa, burocratas - que esperavam um dia em que a confusão reinante na Itália, em vista de um governo instável, da inquietação industrial, da economia vacilante,
da burocracia inepta e de um povo muito frustrado, levasse o país à beira da revolução.
Nesse dia, que estava mais próximo do que muita gente imaginava, os conspiradores esperavam tomar o poder e apresentar-se à população atônita como os salvadores
da República e os mantenedores da ordem e dos direitos humanos. As suas esperanças eram toleravelmente fundamentadas. Se uma junta de coronéis gregos conseguira
isso, não havia motivo lógico para que um grupo muito maior e mais forte de italianos não pudesse fazer o mesmo e ainda melhor... especialmente contando com o apoio
do Exército e a cooperação ativa das Forças de Segurança Pública.
O nome de frente já estava escolhido havia muito tempo. Era o. nobre soldado, que servira como ajudante de ordens do Marechal Badoglio e era um patriota fervoroso
e amigo do povo, o General Massimo Pantaleone; Agora, o General saíra de cena. Por que fizera isso? Que pessoa ou que fato o havia, impulsionado para aquele ato
final e por quê? Havia algum novo homem à espera nos bastidores? Quem era ele? Quando e como iria revelar-se? E já estaria marcado o dia? Eu estava encarregado de
responder a todas essas perguntas, e a margem de erro era na verdade muito estreita.
A simples sugestão de que havia uma investigação em andamento bastaria para dividir o país de meio a meio. Se a imprensa soubesse que um documento duvidoso fora
emitido pelo Exército, o fato daria manchetes em todos os jornais do mundo.
A conspiração é endêmica na Itália e sempre foi desde o tempo em que Rômulo e Remo começaram a negociar com cavalos numa ilha do Tibre. Mas se as dimensões do plano
e as suas possibilidades de êxito fossem conhecidas... Dio! Haveria barricadas nas ruas e os trilhos dos bondes se cobririam de sangue no mesmo dia. Não se podia
excluir a hipótese de um choque dentro das forças armadas, cujas lealdades políticas estavam pro- fundamente divididas entre a direita e a esquerda. Eu não fizera
uma ameaça vazia ao Capitão Carpi. Se ele tentasse vender as informações que tinha a novos patrões, seria necessário providenciar um acidente especial para ele.
Enquanto isso, eu tinha o meu trabalho para fazer.
Acabei de tomar o uísque e comecei a vasculhar o apartamento à procura de papéis. Abri gavetas e armários e testei em tudo a possibilidade de esconderijos secretos.
Revistei os bolsos de todas as roupas penduradas no armário. Sacudi todos os livros da biblioteca e tirei o mata-borrão da pasta em cima da escrivaninha. Não fiz
qualquer esforço para examinar o que encontrava. Juntava tudo num lugar. Aquilo representaria muitas horas de trabalho para classificar e analisar e com toda a certeza
daria bem pouco resultado. O General tinha sido uma velha raposa e não deixaria documentos perigosos à toa pela casa.
Apesar disso, não me podia arriscar. Por isso, tirei do lugar quadros e tapetes à procura de algum cofre escondido. Fiz depois um circuito final, levantando bibelôs,
taças e vasos e levantando até o forro dos estojos de joias em que o General guardava as suas ordens e condecorações. Ainda assim, quase o cartão me passa desapercebido.
Estava colocado contra o rodapé da parede atrás da mesinha de cabeceira. Era um pequeno retângulo de cartolina rígida que tinha um desenho de Um lado e uma inscrição
do outro. Tanto o desenho quanto a inscrição tinham sido feitos à mão com tinta nanquim. O desenho fora executado num traço corrido com uma série de complicados
laços e floreios. Representava uma salamandra com uma coroa à cabeça e deitada num leito de chamas. A inscrição era vazada em quatro palavras de perfeita caligrafia:
“Un bel domani, fratello”.
“Um belo amanhã, irmão.” Era uma frase bem italiana que poderia servir de prefácio a uma porção de sentimentos: uma esperança vã, uma promessa de recompensa, uma
ameaça de vingança ou um brado de alerta. A palavra irmão era ambígua também e a salamandra era incompreensível a menos que fosse emblema de algum clube ou sociedade,
Entretanto, não havia nos meus fichários qualquer associação com esse nome ou esse emblema. Teria de entregar o caso ao estudo dos especialistas. Voltei para a sala,
peguei um envelope em branco, coloquei o cartão dentro dele e guardei-o no bolso do paletó.
Achei então que estava na hora de uma conversa particular com o sargento de cavalaria. Fui encontrá-lo na cozinha, dando a impressão de um velho deprimido em face
de um futuro incerto. Consolei-o com a ideia de que o General devia ter deixado alguma coisa no testamento para ele e que, de qualquer maneira, ele teria direito
a receber do espólio a indenização pela dispensa. Isso o animou um pouco e ele me ofereceu queijo e vinho. Enquanto bebíamos juntos, ele começou a falar e eu me
senti muito feliz em dar-lhe corda.
- Ele não precisava ser militar, sabe disso? Os Pantaleones sempre tiveram dinheiro a sair pelo ladrão. Não que fossem mão aberta, lá isso não! Sempre olharam para
os dois lados de uma nota e choraram de saudades antes de gastá-la. Com certeza por isso é que sempre foram ricos. Terras na Romagna, edifícios de apartamentos no
Lácio, a velha propriedade em Frascati, a vila em Ponza... mas esta deve estar agora com ela.
- Ela quem?
- A polonesa, sabe? A mulher com quem ele jantou ontem à noite. Como é o nome dela? Anders... É companheira dele há muitos anos, embora eu deva dizer que ele era
muito rigoroso quanto a isso. Nunca a trouxe aqui. Engraçado.... Não queria que se pensasse que ele estava gozando de qualquer maneira a vida. Como a gente dizia
no Exército, nascera com uma espada enfiada na espinha. É claro que eu a conhecia. Costumava atender o telefone quando ela ligava... Às vezes, ia até a casa dela
entregar alguma coisa que o General mandava. É uma mulher bem bonita e que ainda não mostra a idade. Isso me lembra uma coisa... Alguém devia dizer a ela o que aconteceu.
- Deixe isso comigo. Onde é que ela mora?
A pergunta era um subterfúgio. Eu sabia a resposta e muita coisa mais sobre Lili Anders,
- Parioli. O endereço está no caderninho do General.
- Vou procurá-lo.
- Espere aí! Não vai levar daqui nada do que pertencia ao General, vai? Eu sou o responsável por tudo e não quero encrencas comigo.
- Vou levar todos os papéis e preciso de uma valise para guardar tudo.
- Mas por quê?
- É uma questão de segurança. Não podemos deixar aqui à toa documentos confidenciais. Por isso, vamos levar tudo, separar os que pertencem ao Exército e entregar
os papéis particulares ao advogado dele. Você não terá qualquer problema porque eu lhe passarei um recibo antes de sair. Certo?
- Acho que sim... Espere um pouco! Quem é o senhor? Não sei nem seu nome.
- Matucci, dos Carabinieri.
- Carabinieri! Não há nada de anormal, há?
- Claro que não... É esse o procedimento normal quando se trata de um homem importante como o General.
- Quem é que vai tomar as providências, avisar os amigos dele e tudo mais?
- O Exército.
- E eu? Que é que eu vou fazer? Ficar aqui de braços cruzados?
- Vou lhe dizer uma coisa que você poderá fazer. Pode haver pessoas que telefonem para cá. Tome nota dos nomes e dos telefones e nós conseguiremos alguém para telefonar
para essas pessoas.
- Tem certeza de que me pagarão?
- Não se preocupe. Você tem de ser pago. É da lei... Ah! Tenho mais uma pergunta para lhe fazer. Onde foi que o General jantou ontem à noite?
- No Clube de Xadrez.
- Tem certeza?
- É claro que tenho certeza. Eu tinha de saber sempre onde ele estava. As vezes, tocavam o telefone para ele do Estado-Maior ou do Ministério... Mais um pouco de
vinho?
- Não, muito obrigado. Já vou chegando.
- Tem certeza do meu dinheiro?
- Certeza absoluta. Não se vai esquecer de tomar nota dos telefonemas?
- Fique descansado e confie em mim. O General confiava. E eu nunca lhe falhei. Sabe de uma coisa? Ele era frio como um pedaço de gelo, mas eu vou ter saudades do
velho. De verdade.
O homem estava ficando sentimental e eu tinha de livrar-me dele. Rabisquei um recibo, peguei a mala de documentos e saí para o magro sol de primavera. Passavam dez
minutos de uma hora da tarde. As lojas estavam fechando as portas e as ruas estavam cheias de gente que ia para casa almoçar e fazer a sesta.
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Falando com sinceridade, não gosto dos romanos. Sou da Toscana e essa gente aqui tem parentesco muito próximo com os hotentotes. A cidade é um monturo e o campo
em volta um vasto depósito de lixo. Têm a pior cozinha e os gastrônomos mais dispépticos de toda a Itália. São rudes, sujos, cínicos e despidos das qualidades mais
elementares. Têm o rosto fechado à compaixão e o espírito mesquinho e rancoroso. Já viram tudo e nada aprenderam, à exceção das artes mais baixas da sobrevivência.
Conheceram a grandeza imperial, a pompa do papado, a guerra, a fome, a peste e a pilhagem. Apesar disso, dobrarão o joelho diante de qualquer tirano que lhes dê
um pão a mais e entrada grátis para o circo.
Ontem, foi Benito Mussolini, embebedado de retórica, a falar para eles do balcão da Piazza Venezia. Amanhã, talvez seja outro. E onde estará esse outro agora neste
momento da Quarta-Feira de Cinzas deste ano de graça duvidosa? Uma coisa era certa. Não poderia estar como Dante Alighieri Matucci parado no meio do Campo Marzo.
Sacudi a cabeça para interromper meus devaneios e caminhei meia quadra até meu carro, joguei os documentos no banco de trás e tomei o caminho do escritório. Podia
ter-me poupado esse trabalho. Dois dos meus funcionários tinham saído para almoçar. O terceiro estava namorando com a datilografa e o arquivo estava sem luz porque
a energia tinha sido interrompida em consequência de uma greve de duas horas. Havia um recado telefônico do Ministério do Interior que solicitava “contato imediato
sobre um assunto urgentíssimo”. Quando telefonei, soube que a pessoa que queria falar comigo estava atendendo a alguns visitantes estrangeiros e quase certamente
não estaria de volta antes das quatro horas. Corpo de Baco! Que gente mais preguiçosa! O Juízo Final poderia chegar e acabar, os maoístas poderiam estar naquele
momento atacando a Porta Angélica da Cidade do Vaticano, mas os romanos tinham de acabar a sua sesta antes de tomarem qualquer providência.
Deixei a mala com os documentos em cima da mesa e chamei o terceiro funcionário para selecionar e conferir os papéis. Depois, desde que a greve tinha feito o elevador
parar, subi três lances de escadas até o laboratório, onde não podia deixar de haver alguém vivo, mesmo à hora do almoço. Como de costume, encontrei o velho Stefanelli
que, de acordo com a opinião corrente no escritório, dormia todas as noites dentro de um vidro de formol e saía de lá todas as manhãs ao romper do sol, vivo como
um sagui. Era um camarada magro e encarquilhado, de cabelos cor de palha, dentes amarelos e uma pele que parecia de couro velho. Já completara, dez anos antes, a
idade compulsória para a aposentadoria, mas conseguia continuar no serviço ativo graças a uma mistura de proteção e absoluta competência.
O que os outros técnicos queimavam os miolos para aprender, Stefanelli sabia. Se a gente jogava na palma da mão dele uma pitada de poeira, ele dizia a província,
a região e era capaz de dizer até a aldeia de onde tinha vindo aquela poeira. Bastava entregar-lhe um retalho de pano e ele o esfregava um momento entre os dedos,
dizendo então qual era a percentagem de algodão e qual a de poliéster e dando uma lista das fábricas que o poderiam ter feito. Com uma gota de sangue, duas lixas
de unhas e uma mecha de cabelos ele reconstituía a mulher que tinha usado tudo isso. Era um gênio na sua especialidade, embora rabugento e criador de problemas,
sem paciência com aqueles que o contrariavam e capaz de trabalhar vinte e quatro horas por dia para servir a quem confiava nele. Lia tremendamente e gostava de apostar
dinheiro nos seus conhecimentos técnicos. Só uma pessoa muito nova no serviço ou muito vaidosa seria capaz de apostar contra ele. Quando eu entrei, ofegante e de
cara fechada, ele me recebeu com exuberância.
- Olá, Coronel! Que é que tem hoje para o velho Steffi? Eu tenho um pequeno problema para o senhor... Morte por asfixia... alcaloides verdes no sangue... Não havia
lesões, nem contusões nem qualquer meio aparente de entrada na corrente sanguínea. Cinco mil liras se me disser o que foi.
- É claro que você falando assim, Steffi, eu vou perder meu dinheiro. O que foi?
- Um molusco do Pacífico Sul. É chamado de Pano de Ouro. Ao contato, injeta agulhas microscópicas cheias de alcaloides que paralisam o sistema nervoso central. A
vítima foi um biólogo especializado na fauna marinha que trabalhava com os americanos no Pacífico Sul... Se estiver interessado, eu lhe mandarei notas sobre o caso.
- Obrigado, Steffi, mas hoje não, que eu já estou cheio de problemas. - Tirei do bolso o cartão da salamandra e passei-o às mãos dele. - Quero que me diga tudo o
que puder sobre isto. Papel, o trabalho de pena, o sentido do símbolo e quaisquer impressões que encontrar. E estou com pressa.
Stefanelli examinou atentamente o cartão durante alguns momentos e começou a falar: - A cartolina é de fabricação japonesa. Muito boa qualidade feita à base de papel
de arroz. Posso dizer quem é o importador em menos de vinte e quatro horas. O trabalho de pena é fantástico! Tão belo que chega a emocionar! Nunca vi nada de parecido
desde que Aldo, o Calígrafo, morreu em 1935. Lembra-se dele? Não, não pode lembrar-se. Era muito moço. Aldo tinha um escritório perto da Cancelleria. Ganhou muito
dinheiro falsificando certificados de ações e fazendo patentes de nobreza para camaradas que se queriam casar com americanas ricas... Muito bem, Aldo morreu e não
pode ajudá-lo. Temos de recorrer aos arquivos para saber quem é o especialista agora... O desenho? Bem.... trata-se evidentemente de uma salamandra, o animal que
vive no fogo. O que significa, não sei. Pode ser a marca registrada de alguma coisa. Pode ser uma tessera, um cartão de sócio de algum clube. Pode ser adaptado de
algum brasão. Vou falar com Solimbene... Não o conhece, mas é um velho amigo meu. Trabalha na Consulta Araldica. Conhece todos os brasões da Europa. Pode lê-los
como um de nós leria um jornal.
- Boa ideia. Por que não tira algumas cópias antes que os outros voltem do almoço? Vou precisar de uma para as minhas investigações.
- Onde foi que achou isto, Coronel?
- O General Pantaleone morreu esta noite- Encontrei isso no quarto dele.
- Pantaleone? Aquele velho fascista! Que foi que houve com ele?
- Morte natural, Steffi... temos um atestado de óbito devidamente legalizado como prova.
- Muito conveniente!
- Muito necessário.
- Suicídio ou assassinato?
- Suicídio.
- Hum! Tudo é muito suspeito!
- Por enquanto, Steffi, isso fica entre mim, você e o Diretor. Conserve o cartão em seu poder. Nada de arquivo, nem de discussões no laboratório. Completo silêncio
até nova ordem minha.
Stefanelli sorriu e levou ao nariz o dedo ossudo, um gesto que indicava a compreensão e a aceitação do segredo.
- Gosto tanto de fascistas quanto você, Coronel. E olhe que tivemos um punhado deles aqui no departamento. Duvido às vezes de que haja ou tenha havido democratas
na Itália, além de nós dois. Se não tivermos um governo estável quanto antes, sofreremos um colpo di stato sob o comando de um fascista. Uma semana depois, haverá
guerra civil ou coisa muito parecida - Esquerda contra Direita, Norte contra Sul. Estou velho, mas posso sentir o cheiro do vento... E tenho medo, Coronel. Afinal
de contas, tenho filhos e netos e não quero que eles venham a sofrer como nós sofremos...
- Nem eu, Steffi. Por isso é que temos de saber quem vai ficar no lugar do General. Saiba tudo o que puder sobre esse cartão. Quando chegar a alguma conclusão, telefone-me
a qualquer hora do dia ou da noite.
- Boa sorte. Coronel.
- Vou precisar mesmo disso... Ciao, Steffi.
Estava no momento numa zona morta. Não podia fazer qualquer ideia dos documentos de Pantaleone enquanto eles não fossem selecionados e classificados, sendo então
cotejados com o nosso dossiê do General. O Diretor era o único homem com quem eu podia comentar abertamente o caso e ele não estava no escritório. Podia, sem dúvida,
telefonar para Francesca, a pequena modelo que estava sempre livre depois do meio-dia. Mas isso me deixaria como que dopado e sonolento pelo resto da tarde. Optei
por uma xícara de café num bar e, depois, tomei o carro para ir até Parioli e ver Lili Anders.
O apartamento dela ficava no terceiro andar de um edifício novo, todo de alumínio e vidro, com porteiro fardado e um elevador todo revestido de lambris de nogueira.
O apartamento havia custado, de acordo com o dossiê da moça, sessenta milhões de liras. As despesas de condomínio eram, de acordo com o contrato, de 120 mil liras
por mês. Os registros fiscais da Comune di Roma mostravam que Lili Anders era taxada na base de um padrão de vida visível de um milhão de liras por mês. Desde que
ela pagava os impostos sem reclamar, era evidente que devia estar vivendo num padrão que era o dobro da quantia lançada pela Prefeitura. Eu mantinha um apartamento,
um empregado, um Fiat de três anos e uma companheira ocasional com 600 mil liras por mês fora os impostos, e julgava Lili Anders uma mulher de muita sorte. Por isso,
quando toquei a campainha do apartamento, sentia-me mal-humorado e revoltado. Uma empregada de alguma idade, de vestido preto e avental branco engomado, me recebeu
com o laconismo e a hostilidade de uma verdadeira romana.
- Sim?
- Matucci. Carabinieri. Quero falar com a Signora Anders.
- Marcou hora?
- Não.
- Terá então de vir mais tarde. A Signora está dormindo.
- Tenho então de pedir-lhe que vá acordá-la. Meu assunto é urgente.
- Alguma identificação?
Apresentei-lhe minha carteira e ela a leu lentamente, linha por linha. Depois, varreu-me para o corredor como se eu fosse um punhado de lixo e me deixou.
Esperei, sombrio e dispéptico, mas tocado de uma admiração ácida por aquela velha matrona, cujos antepassados tinham jogado as telhas das casas em papas, cardeais
e pequenos príncipes. Por fim, Lili Anders fez a sua entrada. Era extremamente bem conservada para uma mulher de trinta e tantos anos. Talvez fosse um pouquinho
gorda para o meu gosto, mas ainda estava na ladeira de subida do tempo. Se estava mesmo dormindo, havia-se preparado com perfeição. Todos os cabelos louros estavam
no lugar certo, a maquilagem não parecia empastada e não se via uma só ruga na saia, na blusa ou nas meias. Cumprimentou-me com polidez mas frieza.
- Queria falar comigo?
- Particularmente, se possível.
Ela me fez passar para o salão e fechou a porta. Convidou-me a tomar uma cadeira e ficou de pé junto à lareira sob um retrato equestre de Pantaleone.
- É, segundo creio, dos Carabinieri.
- Sou o Coronel Matucci.
- Posso saber o motivo de sua visita?
- Infelizmente, o motivo é desagradável.
- Oh?
- Sinto ter de informar-lhe que o General Pantaleone morreu nesta madrugada.
Ela não chorou. Não teve uma exclamação. Encarou-me com os olhos arregalados e trêmula, procurando apoiar-se na lareira. Aproximei-me para ampará-la, mas ela me
dispensou a ajuda com um gesto. Fui até o bufê, servi um cálice de conhaque e levei-o para ela. Bebeu o conhaque de um gole, mas se engasgou e tossiu. Dei-lhe o
lenço limpo que levava no bolso do peito do paletó e ela enxugou os lábios e a frente da blusa. Disse-lhe então calmamente: - É sempre um choque, até para nós que
já estamos habituados. Se quiser chorar, não faça cerimônias.
- Não vou chorar. Ele foi bom comigo e gentil, mas não tenho lágrimas para ele.
- Há mais uma coisa que deve saber.
- Que é?
- Morreu pela própria mão.
Não fez o menor sinal de surpresa. Encolheu os ombros e abriu as mãos num gesto de derrota.
- Com ele isso era sempre possível.
- Por que diz isso?
- Havia muitos cantos escuros na vida dele, Coronel. Muitos segredos, muita gente escondida a esperá-lo.
- Ele lhe disse isso?
- Não. Eu sabia.
- Então talvez saiba por que ele escolheu esta noite para se matar. Por que não na semana passada ou no próximo mês?
- Não sei. Há muito tempo que ele me parecia deprimido, há um mês ou mais. Perguntei-lhe mais de uma vez o que o estava afligindo e ele sempre desconversou.
- E ontem à noite?
- Houve apenas uma coisa. Durante o jantar, um garçom lhe levou um recado. Não me pergunte o que foi. Sabe como é o Clube de Xadrez: apenas sussurros e incenso,
como numa igreja. Deixou-me sentada à mesa e saiu. Demorou cerca de cinco minutos. Quando voltou, disse-me que tinha falado pelo telefone com um colega. Nada mais.
Depois, quando ele me trouxe até aqui em casa, convidei-o a entrar. Às vezes, passava a noite aqui, às vezes não. Dessa vez, disse que tinha muito trabalho para
fazer em casa. Era normal ele me dizer isso e eu não discuti, até porque me sentia cansada.
Tirei do bolso a fotocópia do cartão da salamandra e entreguei-a a ela.
- Já viu alguma vez isso ou coisa parecida?
Ela olhou atentamente o cartão durante alguns momentos e então sacudiu a cabeça.
- Nunca.
- Reconhece o animal?
- Alguma espécie de lagarto... um dragão talvez.
- E a coroa?
- Nada.
- E as palavras?
- Dizem apenas: "Um belo amanhã, irmão”... Nada mais.
- Já as ouviu antes em algum lugar?
- Que eu me lembre, não. Sinto muito.
- Por favor, minha senhora! Não tem nada de que se censurar. Sofreu um choque terrível, com a perda de um amigo a quem prezava. E agora venho afligi-la ainda mais.
Mas é de meu dever avisá-la de que a partir deste momento a senhora está correndo um grave perigo pessoal.
- Não compreendo.
- Permita-me então explicar-lhe. Vem sendo há muito tempo a companheira de um homem importante, que foi considerado explosivo por alguns elementos. Presume-se sempre
que uma companheira é uma confidente, um repositório de segredos. Ainda que o General nada lhe tenha dito, outros podem acreditar que ele lhe dissesse tudo. É inevitável,
portanto, que fique sob vigilância, sofra pressões e até ameaças.
- De quem?
- De extremistas da esquerda e da direita, pessoas adestradas no uso da violência como arma política, de agentes estrangeiros que operam dentro das fronteiras da
República e até - embora eu me envergonhe de dizer isso - de autoridades da nossa Segurança Pública. Sendo estrangeira e vivendo aqui com uma licença de residência
permanente, é especialmente vulnerável.
- Mas eu nada tenho para dizer! Levei a vida de uma mulher com um homem que precisava de carinho e afeto. Na outra vida dele, fosse ela qual fosse, nunca tive a
menor participação. Quando fechávamos esta porta, o mundo ficava do lado de fora. Era assim que ele queria. Tem de acreditar nisso.
Estava realmente abalada. O rosto parecia descambar para os contornos da meia-idade. As mãos amassavam sem parar o lenço amarfanhado.
Recostei-me na cadeira e abri o jogo com ela.
- Gostaria de poder acreditar em você. Mas acontece que a conheço muito bem, Lili Anders. Conheço de cor e salteado. Desde o seu primeiro aniversário em Varsóvia
até seu último comunicado para um tal Columba, que é impressor e encadernador em Milão. Você se identificou, como de costume, pelo seu nome de código, Falcone. Todos
os participantes de sua rede têm nomes de aves, não é? Quem lhe paga o Canarino de uma conta que tem o número 68-Pilau no banco do cantão de Zurique... Como vê,
Lili, nós, italianos, não somos realmente tão broncos e ineficientes como parecemos. Somos muito bons conspiradores porque gostamos do jogo e fazemos as regras de
acordo com a nossa conveniência... Outro conhaque? Vou tomar um também, dá licença? Agora, descanse que não vou comê-la viva. Admiro uma boa profissional. Mas confesso
que você é um problema, um verdadeiro problema... Salute! Que a sua boa saúde continue.
Ela bebeu, agarrando o cálice com as duas mãos como se fosse um pilar a que se apoiasse.
- Que é que vai acontecer agora comigo?
- Eis aqui o que se pode chamar de questão aberta, Lili. Na minha opinião, há no momento duas alternativas. Posso prendê-la sob a acusação de conspiração e espionagem.
Isso significa longos interrogatórios, uma sentença pesada e nem mesmo esperança de livramento condicional. Ou posso deixá-la em liberdade mediante certas condições,
que lhe permitirão continuar a sua vida confortável em Roma. Que é que prefere?
- Estou cansada de tudo isso, Coronel. Gostaria de ficar de fora, até porque estou ficando velha.
- Ai é que está o problema, Lili. Você não pode sair. Pode apenas mudar de lado.
- Que quer dizer isso?
- Informações completas sobre sua rede e todas as suas atividades e um contrato conosco na qualidade de agente dupla.
- Pode proteger-me?
- Enquanto for útil, posso.
- Fui uma boa amante, Coronel Dei felicidade ao meu homem e um bom valor pelo dinheiro recebido.
- Vamos ver então mais algumas perguntas. Quem providenciou sobre o seu primeiro encontro com o General?
- A Marquesa Friuli.
- Qual o nome de código dela?
- Pappagallo.
- Muito apropriado. A velhota parece mesmo um papagaio. Quais eram suas instruções?
- Dar notícia antecipada de qualquer tentativa de golpe de estado da parte de grupos neofascistas e das ações destinadas a provocá-lo.
- Que ações, por exemplo?
- Atos de violência planejados contra a polícia ou os Carabinieri durante manifestações trabalhistas, atentados com bombas que pudessem ser atribuídos a grupos maoístas
e marxistas, estímulo ao descontentamento entre os recrutas das forças armadas, quaisquer contatos, secretos ou manifestos, entre o regime grego e as autoridades
da República da Itália, mudanças de influência ou modificações nos grupos políticos dentro do alto comando italiano.
- Têm havido modificações assim ultimamente?
- Não... Que eu saiba, não.
- Por que então o General estava deprimido?
- Não sei. Estava tentando descobrir.
- Problemas financeiros?
- Não creio... Nunca foi um homem perdulário... nem mesmo comigo.
- Pressões políticas? Chantagem?
- Eu tinha a impressão de que o caso era pessoal e não político.
- Que foi que lhe deu essa impressão?
- Coisas que ele disse quando estava descontraído aqui comigo.
- Por exemplo?
- Oh, várias coisas. Ele tinha o hábito de dizer alguma frase - como se diz? - críptica e, em seguida, passar sem transição para outro assunto. Se eu instava por
uma explicação, ele se fechava como uma ostra e não dizia mais nada. Aprendi sem demora a refrear a língua... Uma noite, por exemplo, ele me disse: “Não pode haver
um futuro simples para mim, Lili, porque meu passado foi muito complicado". Houve outra ocasião em que ele fez uma citação da Bíblia: "Os inimigos de um homem são
os que estão dentro de sua casa...” Coisas assim.
- Mais alguma coisa?
- Estou vendo se me lembro... Ah, sim, há cerca de três semanas estivemos juntos em Veneza. Ele me levou a um espetáculo de ópera no Teatro Fenix. Contou-me a história
do teatro e me explicou o nome. Disse-me que a fênix era uma ave fabulosa que renascia das próprias cinzas. Disse depois que havia outro animal mais fabuloso e mais
perigoso, a salamandra, que vivia no fogo e podia escapar ilesa às chamas mais violentas... Espere aí! O cartão que me mostrou... a salamandra!
- Exatamente, Lili. Vê como podemos ir longe falando como amigos? Que foi mais que ele disse sobre a salamandra?
- Nada. Nada mais. Alguns amigos se aproximaram e o assunto foi encerrado e esquecido.
- Está bem, fiquemos por aí. Haverá outras ocasiões e outras perguntas. De agora em diante, você estará sob constante vigilância. Aqui está o meu cartão com os telefones
pelos quais poderá falar comigo durante o dia e à noite. Será avisada do dia do enterro. Gostaria de que estivesse presente.
- Oh, não!
- Oh, sim! Quero lágrimas, Lili. Quero muita tristeza e luto fechado. Só voltará à sociedade quando eu lhe disser. Naturalmente, vai receber telefonemas de seus
chefes e dos amigos do General. Sua empregada vai querer saber qual foi o motivo de minha visita. Dirá a todos a mesma coisa. O General morreu de um colapso cardíaco.
Não faria mal algum confessar que ele tinha uma doença que às vezes lhe atrapalhava as atividades amorosas... Outra coisa: nada de novos amiguinhos até acabar o
período do luto. Isso causaria péssima impressão. Se, depois disso, encontrar algum vivo, eu gostaria de investigá-lo antes que você o adotasse.
Ela esboçou um sorriso fraco e diluído.
- Iria investigar a ele ou a mim, Coronel?
- Admiro-a muito, Lili, mas você está acima das minhas posses. Se você pôde fazer o que fez com um velho fóssil como Pantaleone, só Deus sabe o que aconteceria com
um camarada faminto como eu. Entretanto, é uma ideia que não deve ser esquecida. Um belo dia, talvez possamos executar algum trecho de música de câmara. Por enquanto,
seja boazinha e não se esqueça de que haverá uma gratificação por toda lágrima que derramar no funeral... Onde é seu telefone?
Meia hora depois, estava sentado num compartimento envidraçado na Via Veneto com um sanduíche e um cappuccino, passando os olhos pelas edições da tarde dos jornais
de Roma e de Milão. A morte do General só aparecia no noticiário de última hora. As notícias eram idênticas, numa transcrição direta do comunicado do Exército. Não
havia obituários, nem comentários editoriais. Podia haver alguma coisa nas edições finais, mas os mastins só estariam soltos de verdade na manhã seguinte. Já então,
o General estaria devidamente embalsamado e exposto em câmara ardente na capela da família em Frascati, com uma guarda de honra de cadetes do seu velho regimento.
3
Os funerais de Massimo, Conde Pantaleone, General de Estado-Maior, foram um esplêndido espetáculo teatral. A missa de réquiem foi cantada pelo bispo suburbicário
de Frascati, o Cardeal Amleto Paolo Dadone, assistido pelo coro do mosteiro de Sant’Antonio della Valle. A oração fúnebre foi proferida em estilo clássico e tons
ressoantes pelo Secretário Geral da Companhia de Jesus, que tinha sido colega de escola do morto. Assistiram à missa o Vice-Presidente da República, ministros do
Conselho, representantes de ambas as câmaras, prelados da Cúria Romana, altos oficiais das forças armadas, representantes da OTAN e do corpo diplomático, parentes
e amigos do morto, empregados da família, jornalistas, fotógrafos e uma coleção de romanos, camponeses e ocasionais turistas. Seis oficiais da ativa carregaram o
féretro até a cripta, onde o capelão do regimento o deixou encomendado até o dia da ressurreição, enquanto um destacamento de jovens oficiais disparava a última
salva de tiros e os Penitenciários de Sant’Ambrogio recitavam os Mistérios Dolorosos do Rosário. A porta da cripta foi fechada e trancada pelo Vice-Presidente, num
gesto de respeito, gratidão e solidariedade nacional que os representantes da imprensa anotaram devidamente. Lili Anders estava presente, coberta de pesados véus
e apoiada no braço do Capitão Girolamo Carpi, visivelmente comovido com o passamento de seu querido chefe.
Eu estava também presente, mas menos interessado nas cerimônias do que nos esforços de minha turma de fotógrafos para obter uma fotografia nítida de todas as pessoas
presentes aos funerais, do cardeal celebrante ao florista que cuidava das coroas.
Detesto enterros. Fazem com que me sinta velho, indesejado e predisposto à atividade sexual, que é uma espécie de desafio à minha própria mortalidade iminente. Fiquei
satisfeito quando os ritos terminaram e eu pude tomar meu carro para ir ver Francesca, enquanto meus colegas ainda estavam engolindo spumante e pastéis doces na
Villa Pantaleone.
Às três e meia da tarde, voltei ao laboratório para falar com Stefanelli. Encontrei-o a pular como um gafanhoto.
- Não lhe disse, Coronel? Aposte com o velho Steffi e não pode deixar de ganhar! Mostrei o cartão a Solimbene e ele o reconheceu logo de saída. A salamandra coroada
era o emblema de Francisco I, da França. Reaparece, com algumas modificações, em armas derivadas da Casa de Orléans, do Ducado de Angoulême e da família Farmer na
Inglaterra. Encomendei a Solimbene uma lista das famílias existentes que fazem uso do símbolo. Terá de autorizar o pagamento desse serviço. Quanto ao trabalho de
caligrafia, baseia-se no talho de Aldo, mas foi provavelmente executado por um tal Cario Metaponte, que era falsário, fez papéis falsos para os guerrilheiros durante
a guerra mas tem vivido honestamente depois disso. Em relação ao cartão, cometi um engano. A cartolina nada tem de japonesa. É uma imitação italiana bem aceitável
feita em Modena pelos Irmãos Casaroli. Vão nos fornecer uma relação dos seus principais fregueses na Europa. A inscrição ainda não faz sentido, mas vamos chegar
lá. Que tal? Nada mau para quarenta e oito horas, hem? Diga-me que está satisfeito. Coronel, senão vou me jogar dentro do vaso para morrer afogado!
- Estou satisfeito, Steffi. Mas precisamos de muito mais. Impressões digitais, por exemplo.
- Sinto muito. Coronel. As únicas que pudemos levantar pertenciam ao falecido General. Não esperava outra coisa, não é mesmo?
- Quero milagres, Steffi! E quero esses milagres para ontem!
- Tenha um pouco de pena da gente, Coronel. Dê-nos um pouco de tempo... Como correram os funerais?
- Uma beleza, Steffi! Cheguei até a chorar! E quanta eloquência... "Esse nobre espírito, roubado prematuramente do nosso convívio, esse dedicado servidor da República,
esse patriota cristão, esse herói de muitas batalhas...” Merda!
- Requiescat in aeternum - murmurou Stefanelli, cruzando as mãos sobre o peito ossudo e erguendo os olhos para o alto. - Se ele está no céu, espero nunca ir para
lá! Amém... Já leu os jornais de hoje?
- Quando foi que eu tive tempo de ler, Steffi?
- Estão todos em minha sala. Venha que vale apena dar uma olhada.
Os obituários eram, como tinham sido os funerais, um exercício de eloquência. A ala direita era repulsiva, o centro se mostrava respeitoso e se limitava a censurar
brandamente a fase fascista do General, ao passo que os jornais da esquerda realizavam uma espécie de poesia do insulto, chegando ao máximo com uma pasquinada, que
por simples formalidade era atribuída a algum romano anônimo. Dizia:
Extirpato oggi
L’ultimo della stirpe
Pantaleone
Mascalzone.
(Extirpado boje o último de sua raça, Pantaleone, o patife.)
Não fiquei muito aborrecido com a leitura dos jornais. As notícias eram boas críticas para uma partitura medíocre e um livro cheio de contradições. Nenhum jornal
punha em dúvida a versão oficial da morte do General, o que queria dizer não que acreditassem nela, mas que era conveniente a todos os partidos aceitá-la. A pasquinada
é que me preocupou. Tomada pelo seu valor, facial, era apenas um epigrama inofensivo. O General era o último membro da família Pantaleone e, ainda por cima, um velho
patife. Mas, lido nas entrelinhas, podia significar que a esquerda tivera parte ativa na sua extirpação e que, felizmente, não havia sucessor à vista. Se houvesse
um pouco de sutileza - e eu era justamente pago para descobrir o sentido das entrelinhas - aquilo poderia parecer o lance inicial de uma campanha para desmoralizar
o General e expor todas as sujeiras que deviam ter sido encerradas na cripta da família. Seria uma pena que isso acontecesse, mas nada havia que eu pudesse fazer.
Eu ainda estava meio sonolento e pouco disposto a fazer algum esforço e comecei a folhear os jornais enquanto Stefanelli falava.
- Aí está uma notícia “A Princesa Faubiani apresenta a sua coleção de verão”. Conhece-a, não? Veio da Argentina, casou-se com o jovem Príncipe Faubiani, instalou-o
com um amiguinho e então requereu separação de corpos sob alegação de impotência. Foi assim que conseguiu a liberdade, o título e o direito à pensão. Desde então,
tem um protetor novo de dois em dois anos - velhos agora e todos ricos. Eles financiam as coleções e melhoram o padrão de vida dela. O último foi o banqueiro Castellani...
Não sei quem pode ser este ano. O mais engraçado é que ela continua amiga de todos eles. Está vendo? Lá está Castellani, ao lado do modelo de biquíni. Ah! Lá está
o novo protetor, na primeira fila, entre a Faubiani e a diretora de Vogue. É o lugar de honra ritual, por assim dizer. Quando a sacerdotisa se cansa do protetor,
passa-o aos modelos. Mas, quando se tem sessenta anos ou mais, isso não interessa muito. Uma das pequenas é muito mais barata do que toda uma coleção de verão, não
acha? Tenho de descobrir quem é o novo protetor...
- Desde quando você se interessa por moda, Steffi?
- Minha mulher tem uma boutique na Via Sistina, alta moda para turistas ricas.
- Você é um sujeito surpreendente!
- Sou é um homem feliz, Coronel. Casei-me por amor e tenho dinheiro para minha velhice. Além disso, o pessoal da boutique é decorativo e as conversas são sempre
interessantes... Por falar em fofocas, sabia que Pantaleone tem um irmão que anda por aí?
- Não no meu dossiê, Steffi. O velho Conde Massimo só teve duas filhas nos três primeiros anos de seu casamento e um filho dez anos depois. Uma das filhas se casou
com um Contini e morreu de parto. A outra se casou com um diplomata espanhol e mora na Bolívia. Tem três filhos adultos, todos de nacionalidade espanhola. O filho,
nosso General, foi o único descendente masculino. Herdou o título e o grosso das propriedades. Essa é a verdade oficial, constante do Registro Central e dos livros
de batismo de Frascati.
- Bem, acho que ela não é tão oficial quanto o Registro Central, mas a velha Baronesa Sehwarzburg é freguesa de minha mulher há muitos anos. Está com um pé na sepultura,
mas ainda gasta lima fortuna em roupas. Diz ela que conheceu o pai do General, o que é bem possível porque o velho Conde sempre andou perseguindo as moças até o
dia em que caiu do cavalo no Pincio e quebrou o pescoço. Conforme o que ela diz, o Conde teve um filho bastardo com a governanta das filhas. Deu um bom dinheiro
à mulher e ela pôde casar-se com um homem, que deu um nome ao garoto, embora ela não se lembre mais de que nome foi esse. É claro que ela está ficando fraca do juízo
e isso talvez não seja mais que uma fofoca de interesse apenas histórico. Bem sabe como são essas velhas. Nunca se esquecem da primeira valsa e da ocasião em que
o Rei Umberto lhes mostrou a sua coleção de moedas... De qualquer maneira, é uma nota à margem que talvez lhe possa interessar.
- Na verdade, não me interessa, Steffi. Se você pudesse encontrar uma nota de suicídio ou uma carta de algum chantagista que explicassem por que Pantaleone se matou,
eu ficaria muito mais feliz... Dio! Quase cinco horas. As fotografias dos funerais já devem estar prontas. Se não estiverem, vou lhes mandar três cabeças para conservar
em formol. Até depois, Steffi. Havendo qualquer coisa, comunique-se comigo.
Como era natural, as fotografias não estavam prontas e o Chefe do Arquivo Fotográfico estava mal-humorado e nervoso. Todo mundo compreendia a urgência, mas eu devia
ter paciência. Os tanques estavam repletos de filme, os ampliadores estavam com serviço dobrado e ainda com dois fotógrafos e três técnicos do arquivo iriam levar
horas para identificar todos os personagens. Ainda assim, haveria falhas. Era como uma cena num filme épico da Cinecittà em que trabalhassem centenas de extras...
E como era que se poderia dar nome aos camponeses e aos passageiros de três ônibus de turismo?
Depois de dez minutos de áspero diálogo, desisti e voltei para minha sala. Ah, ao menos, havia uma aparência de ordem e eficiência. Os documentos que eu tinha apanhado
no apartamento do General estavam classificados e relacionados. O meu funcionário principal tinha feito algumas descobertas interessantes.
- Cartas dos corretores de títulos, Coronel. Todas elas relativas a vendas. O General vendeu nestas últimas quatro semanas oitenta milhões de liras de títulos de
primeira ordem. As cartas dos corretores contêm todas a mesma indicação: “Remetemos o montante líquido de acordo com suas instruções”. Pergunta-se: Para onde foi
esse líquido? Não foi para o banco dele, pois aqui está o extrato de sua conta bancária, datado de uma semana apenas. Depois, há uma carta da Agenzia Immobiliare
della Romagna. Comunicam que, embora a propriedade Pantaleone estivesse exposta à venda havia mais de dois meses, não se tinha verificado um interesse pronunciado
em vista do preço pedido. A carta recomendava que a propriedade deixasse de estar à venda até que a situação do crédito melhorasse um pouco e novos acordos agrícolas
fossem anunciados pelo Mercado Comum...
Veja agora esta cartinha escrita à mão por Emilio del Giudice, de Florença. Deve conhecê-lo. E um nome famoso como negociante de obras de arte. Aqui está o que ele
diz: "Aconselho-o com absoluto empenho a não se envolver em quaisquer transações que o façam assumir o compromisso pessoal de exportar peças da coleção Pantaleone.
Como vendedor, deve oferecer as obras à venda sujeitas às condições das leis em vigor. Depois disso, toda a responsabilidade pelas formalidades de exportação caberá
ao comprador...
- Quer dizer então que ele estava tentando vender. Há alguma indicação do motivo?
- Nestes papéis, não.
- Que é mais que temos?
- Canhotos de talões de cheques, extratos de contas bancárias, correspondência com gerentes de imóveis e agências de aluguel, uma agenda de mesa e um caderno de
endereços. Ainda estou conferindo os nomes do caderno com os que constam dos nossos dossiês, mas até agora não houve surpresas. Isto aqui é a argola de chaves do
General Uma delas é de um cofre de depósitos na casa-forte do Banco di Roma. Eu gostaria de ver o que há dentro desse cofre.
- É que vamos ver logo que o banco abrir amanhã de manhã.
- O advogado do General está insistindo na liberação pronta dos documentos.
- Vou-me preocupar com isso depois. Quero ter também uma conversa com os corretores do General Gostaria de saber para onde remeteram o dinheiro de venda dos títulos...
Se quiser falar comigo dentro de uma hora, estarei no Clube de Xadrez. Depois disso, procure-me em casa.
4
O Clube de Xadrez de Roma é uma instituição quase tão sagrada quanto o Clube de Caça. Entra-se ali como se espera um dia entrar no céu através de um nobre pórtico
e chega-se a um pátio de dimensões clássicas. Sobe-se um lance de escadas para uma série de antessalas, onde servos de libré recebem as pessoas com cautelosa deferência.
Pisa-se de leve e fala-se baixinho para não perturbar os fantasmas que ainda por ali habitam, reis e príncipes, duques, barões, condes e todas as suas consortes.
No salão, a pessoa sente-se diminuída pelas altíssimas pilastras, pelo teto pintado em afresco e pelas cadeiras douradas projetadas para as ancas de gente ilustre.
No salão de jantar, fica-se intimidado com uma aura de sussurros, que é a conversa dos homens que tratam dos grandes assuntos como dinheiro, casos de estado e esferas
de influência comercial. Sente-se o temor do olhar frio das velhas damas, ácido com a virtude que a idade confere. E fica-se acuado por garçons tão disciplinados
que até uma migalha de pão no peitilho da camisa parece um sacrilégio... É em vão que se procuram jogadores de xadrez, embora haja rumores de que eles existem, enclausurados
como carmelitas em alguma cela secreta.
Eu não estava ali para jogar xadrez. Tinha ido falar com o secretário, que poderia, por condescendência, pôr-me em contato com o maître, o qual, por vez, poderia,
se as estrelas estivessem em conjugação favorável, pôr-me em contato com o garçom que servira o General Pantaleone na véspera de sua morte.
Não me agradava a perspectiva. O Clube de Xadrez é um desses lugares que me fazem desesperar de meus patrícios. Nas montanhas da Sardenha, onde servi em outros tempos
como um jovem oficial, há pastores que vivem todo o inverno comendo broa de milho, azeitonas pretas e leite de cabra e têm de recorrer ao banditismo para sustentar
as famílias, enquanto os donos da terra pleiteiam favores tomando conhaque em companhia de senadores no Clube. No necrotério de Palermo, identifiquei o corpo de
um colega assassinado pela Máfia, enquanto o homem que o mandou matar estava almoçando com um banqueiro milanês no Clube de Xadrez, é claro. Os economistas choram
lágrimas de sangue em face da fuga do capital da Itália para a Suíça, mas os homens que dão asas ao dinheiro sentam-se com toda a circunspeção e respeito para almoçar
nas mesas do canto. Ali, os sobreviventes da velha ordem e os exploradores da nova concluem tréguas, tratados e casamentos de conveniência enquanto o povo, pobre,
pouco educado e impotente, se revolta com a chicana dos políticos e a tirania dos pequenos burocratas.
Houve um tempo em que eu brinquei com a ideia de juntar-me aos comunistas, que, ao menos, prometiam um nivelamento, um expurgo e uma só lei para todos. Meu entusiasmo
morreu no dia em que eu vi um grande nome do Partido a comer salmão defumado e bife de filé mignon em companhia do presidente de uma grande empresa de produtos químicos.
Quanto mais as coisas mudam na Itália, mais ficam na mesma. O herdeiro de uma velha família ingressa nos democrata-cristãos: o filho mais moço tem liberdade de flertar
com a direita ou com a esquerda. Não importa quem vá ganhar o último páreo. As apostas serão todas ainda feitas e pagas no Clube de Xadrez... Eh! Os filósofos são
neste país uma praga tão grande quanto os políticos e uma consciência confusa e um remédio contraindicado para um investigador. Vamos logo fazer o que é preciso
e ir para casa!
Eram apenas oito e meia da noite e não havia muita gente. O secretário foi excepcionalmente gentil e o maître se mostrou disposto a me ajudar. Levou-me para a sala
dos visitantes, serviu-me um aperitivo e, cinco minutos depois, reapareceu com o chefe da portaria e o garçom que tinha servido o último jantar do General. Expliquei
minha missão de maneira convenientemente vaga. Durante o jantar, o General fora chamado ao telefone. Por motivos relacionados com a segurança militar, eu desejava
averiguar a origem do telefonema e entrar em contato com a pessoa que o fizera. Tive então minha primeira surpresa.
- Não, Coronel - disse o chefe da portaria com muita firmeza. - Foi mal informado. O Coronel foi chamado do salão de jantar, mas não para falar ao telefone. Um sócio
do clube disse que queria falar em particular com ele. Ficou à espera na sala de cartas. O garçom levou o General até onde ele estava. Conversaram durante alguns
minutos. Depois, o General voltou para a sua mesa, o sócio pegou o sobretudo e saiu do clube. Eu o vi sair.
- E quem era esse sócio?
- Um senhor de Bolonha, o Cavaliere Bruno Manzini. Está no Clube neste momento. Chegou há cerca de vinte minutos com a Princesa Faubiani.
- La Faubiani, hem?
Permiti-me um breve sorriso de satisfação. Ao menos era um ponto a favor do velho Steffi.
O chefe da portaria tossiu eloquentemente.
- Coronel...?
- Pode-me dizer alguma coisa sobre o Cavaliere?
- Poder, eu posso mas, com o devido respeito, um pedido dessa ordem deve ser feito ao secretário.
- Compreendo. Cumprimento-o pela sua discrição. Quer levar o meu cartão ao Cavaliere e pedir-lhe que me conceda alguns minutos?
Em qualquer companhia, o Cavaliere Manzini teria sido uma figura impressionante. Devia ter quase setenta anos de idade. Os cabelos eram inteiramente brancos e caíam
para trás sobre a gola do paletó como uma juba de leão. Mas tinha as costas eretas como um pinheiro, a pele era limpa e os olhos se mostravam límpidos e luminosos.
As roupas eram modernas, a roupa branca imaculada e ele procedia como ar de um homem habituado a ser tratado com deferência. Não me estendeu a mão mas se apresentou
com calma formalidade.
- Sou Manzini. Soube que queria ver-me. Pode mostrar-me a sua identificação oficial?
Entreguei-lhe o documento. Ele o leu cuidadosamente, devolveu-o e sentou-se.
- Muito obrigado, Coronel. Qual é a sua pergunta?
- Era, segundo creio, amigo do General Pantaleone?
- Amigo não, Coronel. Conhecido. Tinha pouco respeito por ele e absolutamente nenhum pelas ideias políticas dele.
- Como definiria essas ideias?
- Fascistas e oportunistas.
- E as suas ideias políticas?
- São um assunto particular meu, Coronel.
- Na noite em que morreu, o General jantou aqui com uma senhora. Soube que o senhor teve uma conversa com ele.
- Tive.
- Passo saber qual foi o assunto tratado?
- Certamente. Sou cliente de um negociante de arte em Florença, chamado Del Giudice. Ele me disse que Pantaleone estava querendo vender a coleção de quadros da família.
Eu me interessava por alguns quadros da coleção, um Andrea dei Sarto e um Bosch. Disse a Pantaleone que gostaria de fazer um negócio diretamente com ele, pois assim
ambos economizaríamos dinheiro.
- E...?
- Ele me disse que ia pensar no caso e me escreveria dentro em breve.
- Não fez pressão para que ele marcasse uma data?
- Não. De qualquer maneira, poderia sempre comprar por intermédio de Del Giudice. Posso saber o motivo dessas indagações?
- Por enquanto, não posso revelar coisa alguma. Outra coisa. A coleção Pantaleone é velha e importante. Por que teria pensado o General em dispersá-la?
- Não faço a menor ideia.
- Posso pedir-lhe que guarde sigilo sobre esta nossa conversa?
- Não, não pode! Não fui eu que a provoquei. Não lhe dei promessa prévia de sigilo. Tenho todo o direito de discuti-la ou não, conforme me agradar e com quem eu
quiser!
- Conhece a organização que eu represento, Cavaliere?
- O Serviço de Informações da Defesa? Sei da sua existência, mas não estou a par de suas atividades.
- Mas sabe, pelo menos, que tratamos de assuntos políticos e militares muito delicados?
- Por favor, Coronel! Sou um homem velho. Mudei os dentes de leite há muito tempo. Não sinto o menor interesse por espiões, agentes provocadores ou aqueles que lidam
com eles. Sei que os serviços secretos podem tomar-se instrumentos de tirania. Sei que costumam corromper as pessoas que neles trabalham. Se não tem mais perguntas
a fazer, espero que me dê licença... Boa noite!
Saiu da sala empertigado como um granadeiro e eu dei um longo suspiro de alívio. Ah estava, para variar, um homem inflexível, difícil de persuadir, impossível de
amedrontar. Encarava a gente firmemente e dava respostas claras, sabendo que ninguém teria coragem de contradizê-lo. Mas havia questões importantes em aberto. Por
que iria Pantaleone, se estava pensando em suicídio, envolver-se nas longas e enfadonhas negociações para a venda da propriedade? Se as iniciara, por que não tratara
de completá-las? E por que iria prometer uma carta que sabia que nunca escreveria?
Ora! Chegava para um dia e sobrava. Eu sentia a cabeça cheia de algodão e o coração repleto de inveja por um Cavaliere de setenta anos que podia dar-se ao luxo de
ter animais de estimação dispendiosos como a Princesa Faubiani. Saí do Clube de Xadrez debaixo de uma chuva fina de primavera, peguei meu carro no pátio e segui
relutante para casa, onde me esperavam um jantar quente, uma hora morna de televisão e uma cama fria depois.
Mas aconteceu que tive uma noite muito perturbada. Logo depois das dez horas, um colega me telefonou de Milão com a noticia de que um jovem maoísta, quando era submetido
a interrogatório no caso da explosão de uma bomba, caíra da janela da sala de interrogatório e morrera. O caso seria noticiado com estardalhaço por todos os jornais
da manhã. A esquerda diria que ele tinha sido empurrado. A direita afirmaria que ele se tinha jogado. De qualquer maneira, tinham um mártir nas mãos. Meu colega
foi evasivo, mas quando mencionou o nome do interrogador, percebi a verdade. O homem era um sádico, um delirante idiota que não ligava muito aos meios pelos quais
conseguia as suas provas ou as fazia aceitáveis. Tinha amigos nas mais altas esferas e estes o borrifariam de água de rosas em qualquer inquérito. Era essa a espécie
de loucura que anarquizava todo o país e desmoralizava a polícia e a justiça. Haveria soldados em cada esquina durante uma semana e isso também agravaria as tensões,
polarizando as facções e fazendo uma gritar contra a tirania e a repressão e a outra clamar pela lei, pela ordem e pelo fim da anarquia. Dio! Que confusão de pesadelo!
Se eu tivesse um pingo de juízo na cabeça, arrumaria as malas e tomaria o primeiro vapor para a Austrália.
Às onze e meia, Lili Anders me telefonou em pânico. O contato que tinha na rede telefonara e a convocara para um encontro na Osteria dell’Orso. Ela precisava estar
lá à meia-noite. Que devia fazer? Disse-lhe que comparecesse ao encontro, repeti-lhe três vezes as coisas que ela teria de dizer e passei então quinze minutos ansiosos
tentando reagrupar a minha turma de vigilância.
Já ia meter-me na cama quando o telefone tornou a tocar.
Era o homem que acompanhava os passos do Capitão Carpi. Este estava bêbado e murmurava coisas sombrias para a moça do bar na Tour Hassan. Que era que eu queria que
ele fizesse? Pelo amor de Deus, deixasse o homem continuar a embebedar-se com mau champanha. De qualquer maneira, as pequenas da Tour Hassan não saíam antes das
quatro da madrugada. A essa hora, se Carpi ainda estivesse de pé - ou mesmo que não estivesse - ele devia metê-lo num táxi e levá-lo para casa... Despesas? Mandasse
o gerente do bar incluir a despesa dele na conta de Carpi. Iriam mesmo aumentá-la, fosse como fosse. Boa noite e diabos levem vocês dois!
Às nove e meia da manhã seguinte, eu estava em conferência com um dos diretores do Banco di Boma. Foi muito gentil e também muito firme. Não podia haver acesso ao
cofre de depósito do falecido General enquanto não fossem cumpridas todas as formalidades judiciárias. Compreendia perfeitamente a minha posição. Sabia que estavam
em jogo questões de segurança nacional Entretanto, elas estavam também em jogo no caso deles. O banco era uma instituição nacional. A confiança pública dependia
do cumprimento rígido dos contratos entre o banco e o cliente. A lei o exigia e os Carabinieri eram servidores da lei. Aliás - ele fez uma pausa antes de dar o golpe
de misericórdia - o cofre estava vazio. O advogado do General já tomara posse de seu conteúdo por força de uma autorização perfeitamente legal. Reconheci a derrota
e fui falar com os corretores do General.
Os corretores, que eram filiados a uma grande casa americana, foram muito mais cooperativos. Tinha de fato vendido grandes lotes de ações para o falecido General.
De acordo com as instruções, tinham remetido o liquido apurado ao representante do General, Dr. Sergio Bandinelli. No que lhes dizia respeito, a transação se encerrava
nesse ponto. Não tinham informações sobre o destino posterior dos fundos. Eram corretores apenas. Ofereciam sugestões de mercado com as reservas normais. Compravam
e vendiam de acordo com as instruções recebidas. Funcionavam rigorosamente dentro das leis vigentes. Fim de conversa.
De volta ao escritório, assinei um invito em que solicitava ao Dr. Sergio Bandinelli que me fosse fazer uma visita dentro de quarenta e oito horas. Espalhei então
em cima da mesa as fotografias do funeral e tratei de examiná-las minuciosamente, recorrendo à lista de conferência organizada. Não eram tanto os nomes ou os personagens
que me interessavam, mas, sim, com quem estavam falando e que grupo parecia mais compacto e íntimo. As vezes, numa reunião como aquela, os inimigos públicos se revelavam
como aliados secretos. Acontecia, numa vez em mil, ver-se um sinal dado ou uma mensagem passada de mão para outra. Ao fim de uma hora, consegui uma pequena surpresa.
A surpresa era o Cavaliere Manzini, o velho autocrata do Clube de Xadrez. Aparecia em três fotografias. Numa delas, falava com o Cardeal Dadone, em outra o seu interlocutor
era o Ministro da Fazenda e na terceira, um pouco afastado da cripta, conversava com um velho camponês que era relacionado como empregado da Vila Pantaleone. Para
um homem que tinha pouco respeito por Pantaleone, que o considerava fascista e oportunista, era um gesto muito estranho. Gostaria de saber o motivo. Telefonei para
um colega em Bolonha e pedi-lhe que me enviasse com urgência uma cópia do dossiê do Cavaliere. Telefonei então para o laboratório e chamei Stefanelli para uma conversa
particular.
O velho Steffi estava carregado de notícias e só bem poucas eram boas. Em primeiro lugar, a mulher lhe tinha dito que o novo protetor da Princesa Faubiani era um
tal Bruno Manzini, de Bolonha, que era mais rico do que qualquer pessoa tinha o direito de ser - grandes empresas, tecidos, eletricidade, siderurgia, produtos alimentícios.
Em qualquer despesa que se fizesse, uma fatia era de Manzini.
- Sei de tudo isso, Steffi.
- Sabe mesmo? Como?
Contei-lhe tudo com detalhes. Depois, espalhei as fotografias em cima da mesa.
- Agora, Steffi, o que eu quero saber é o seguinte: que estava ele fazendo nos funerais de um homem que detestava e desprezava?
- É fácil. O Clube. Os sócios podem não gostar uns dos outros, mas não se insultam. Por exemplo, Coronel, pode não gostar de mim, mas tenho certeza de que irá ao
meu enterro, não irá? Do contrário, como poderá saber que eu morri mesmo?
- Talvez... talvez... Que é mais que você tem para mim?
- Os Irmãos Casaroli só vendem papel de arroz a atacadistas, um em cada província da Itália. Esses atacadistas é que vendem às papelarias. Aqui está a lista dos
atacadistas. A dos retalhistas deve subir a algumas centenas.
- Corpo de Baco! Será que não tem uma notícia que preste, Steffi?
- Solimbene me telefonou da Consulta Araldica. Terá a lista pronta amanhã de manhã. Até agora, já encontrou quinze famílias atualmente existentes na Itália que usam
a salamandra em suas armas. Outra batalha perdida, Coronel... Leu os jornais desta manhã?
- Li.
- Estou alarmado, francamente... Quando os homens da polícia agem como bandidos...
- Ou parece que agiram como bandidos, Steffi.
- De qualquer maneira, vai haver agitação. Hoje de manhã, havia dois mil Carabinieri nas ruas de Milão. E há cerca de mil em serviço extra em Roma para não falarmos
de Turim e, mais para o sul, de Reggio. Neste momento, o país se acha em estado de absoluta tensão, mas nós não estamos fazendo coisa alguma, não estamos reorganizando
nada.
- Não é essa nossa tarefa, Steffi. Somos um ramo do governo, mas não somos o governo:
- Não temos governo, amigo. Temos partidos, facções, choques de interesses, a tal ponto que o homem da rua não sabe para quem se voltar. Quem representa o governo
para ele? O guarda que se omite quando há um engarrafamento de trânsito e o pequeno funcionário que lhe fecha o guichê na cara sem lhe dar a informação desejada.
Dentro em pouco, o homem da rua vai começar a clamar por um chefe... um novo Duce!
- Quem poderia ele ser, Steffi? Cite-me nomes. Pantaleone morreu e saiu de cena. Quem vai entrar agora? E de onde virá? Da esquerda, da direita ou do centro? É isso
que eu estou procurando saber...
- E quando souber?
- Diga, Steffi...
- Enterrou ontem um cadáver incômodo, Coronel, obedecendo a ordens. E se encontrar outra coisa incômoda, uma pessoa viva dessa vez? Vamos supor que seja um homem
de nosso serviço e que as ordens sejam para fechar os olhos e calar a boca. Que fará? Diga-me honestamente, de amigo para amigo.
- Palavra que não sei, Steffi. O velho Manzini disse que esta nossa ocupação corrompe as pessoas. Eu sei que já estou corrompido. Não gosto de fazer muitas perguntas.
- Mas pode ser que tenha de fazê-las muito em breve, Coronel. Escute! Na noite passada, em Milão, um suspeito que estava sendo interrogado jogou-se ou foi atirado
de uma janela. Está morto agora e não pode ser levado a julgamento. Ninguém pode, aliás. Somos ambos guardas da segurança pública. Que é que nós fazemos? Que é que
faz todo o serviço? Nós nos absolvemos. Por quê? Porque podemos botar nas ruas dez mil ou vinte mil homens armados para intimidar o povo e sufocar as perguntas.
Quem está governando verdadeiramente Milão neste momento? O governo? Nada disso! Somos nós, os Carabinieri, e nossos colegas da polícia. É uma manobra tentadora,
terrivelmente tentadora. Não é preciso mais oferecer pão e jogos de circo. Basta dar ordem pública, paz nas ruas e os ônibus trafegando no horário. Disse-lhe que
estava alarmado. Vou lhe dizer por quê. Sou judeu, Coronel. Não sabia disso, não é? Bem, de certo modo não convém fazer publicidade do fato. Mas moro por trás da
sinagoga no velho gueto. Temos na sinagoga uma lista de nomes, trezentos homens, oitocentas mulheres e crianças. Foram remetidos de Roma para Auschwitz no Sábado
Negro de 1943. Depois da guerra, quinze voltaram, quatorze homens e uma mulher. Sabe por que vim trabalhar no Serviço? Para saber com antecedência se isso acontecesse
de novo... Que idade tem, Coronel?
- Quarenta e dois anos. Por quê?
- Era um garoto quando essas coisas aconteceram. Mas eu tenho pesadelos sempre que vejo um cartaz de propaganda eleitoral. Desculpe se o ofendi.
- Não ofendeu, Steffi. Gostei de que me tivesse contado. Agora, por que é que não vai trabalhar com o seu microscópio?
Depois que o velho Steffi saiu, fiquei durante muito tempo olhando para a mesa cheia, as fotografias, os memorandos, as fitas gravadas naquela noite na Osteria dell’Orso.
De repente, tudo me pareceu insignificante, trivial até o absurdo. O que estava em jogo não era a política, não eram os jogos do poder, não eram os fatos sórdidos
da espionagem, mas eu mesmo, Dante Alighieri Matucci, quem eu era, em que eu acreditava e que preço aceitaria por minha alma, se, na verdade, tinha alma.
5
Ser um servidor do Estado era fácil. O Estado era como Deus. Não se podia defini-lo e, portanto, não se tinha de fazer perguntas a seu respeito. Não era preciso
nem acreditar na sua existência. Bastava agir como se se acreditasse. Era essa a diferença entre os anglo-saxões e os mediterrâneos. Para o anglo- saxão, o Estado
era o povo. O Parlamento era a sua voz. A burocracia era o seu pessoal executivo. Para o latino, o Estado era a res publica - que tinha pouca ou nenhuma relação
com o povo. Por isso, o latino estava sempre numa atitude de defesa diante do Estado, de oposição às suas diretrizes e de tolerância com as suas exigências. O polícia
não era seu servidor, mas um feitor do poder dominante. Na Inglaterra, os burocratas eram chamados de “servidores públicos”. Na Itália, eram funzionari, funcionários
do Estado impessoal.
Mas eu, Dante Alighieri Matucci, era uma pessoa ou esperava que fosse. Até que ponto o Estado me possuía? Até onde me poderia legitimamente levar? A atirar de uma
janela um homem vivo? A dar um tiro num manifestante? A asfixiar um cidadão com papéis de tal modo que não lhe seja possível nem urinar sem licença? E depois havia
o reverso da moeda: cinquenta milhões de pessoas comprimidas numa península estreita, pobre de recursos, rica apenas de seiva e energia, com uma gente de espírito
turbulento, presa fácil para demagogos e agitadores. Como era possível impedir que se despedaçassem uns aos outros sem quebrar algumas cabeças de vez em quando?
Era muito fácil viver debaixo da terra como uma toupeira mordiscando as raízes das vidas dos outros, sem jamais expor ao sol o sujo focinho...
Estava ainda remoendo esse pensamento azedo quando os homens da turma de vigilância se apresentaram para fazer relatório sobre Lili Anders. As gravações que tinham
feito do encontro na boate estavam quase ininteligíveis. Quis saber por quê.
- Não tivemos tempo de planejar nada de efetivo, Coronel. Uma boate repleta, mesas colocadas sem ordem, meia hora apenas de tempo disponível... não houve jeito.
De qualquer maneira, só ficaram lá durante meia hora. Nós os seguimos até o apartamento de Lili Anders. O contato deixou-a lá e continuou no seu carro. Giorgio seguiu-o.
Eu fiquei para falar com a moça.
- Quem foi o contato?
- Picchio, o Pica-pau.
- Que foi que a doce Lili teve para dizer?
- Está anotado aqui: Pica-pau perguntou de que tinha morrido o General. Ela respondeu que tinha sido de um ataque do coração. Ela sabia que ele estava doente? Não,
embora ele se queixasse de vez em quando de dores no peito que atribuía a gases.
- Muito bem. Continue.
- Quem levou a notícia a ela? Um coronel dos Carabinieri. Como se chamava? Matucci. Por que um coronel? Isso ela não sabia dizer. Tinha estranhado também. Quanto
tempo tinha demorado? De vinte minutos a meia hora. Ela ficara muito nervosa e o coronel a tratara com gentileza. Fez perguntas importantes? Só sobre os movimentos
e contatos de Pantaleone na noite de sua morte. Ela tinha dito a verdade, pois não havia nada para esconder. Pica-pau perguntou quem eram os herdeiros do General.
Ela disse que não sabia. Nunca tinha visto o testamento dele. Ela conhecia o advogado do General? Conhecia. Tinha amizade com ele? Muito moderadamente. Recebeu então
ordem de cultivar essa amizade e saber tudo o que fosse possível sobre os bens deixados pelo General. Perguntou ainda se ela conhecia o Major-General Leporello.
- Mas espere aí! Este é um dos nossos!
- Isso também me abalou um pouco, Coronel.
- Que foi que Lili disse?
- Que não o conhecia. Algum dia o General falara nele? Que ela se lembrasse, não. Qual era a sua próxima missão? Ficar quieta, concentrar-se no advogado, esperar
novo contato e novas instruções... Pronto, fim. Só isso, Coronel... Mas a verdade é que só fui para a cama às três da madrugada.
- Pobre companheiro! Espero que tenha dormido bem e castamente. Alguma coisa na escuta do telefone de Lili?
- Nada depois do telefonema para o senhor, Coronel.
- Muito bem... Agora, vamos saber das notícias sobre o pequeno Capitão Carpi.
- Nada demais, Coronel. Ficou desacordado de tanta bebida às três horas da manhã. Paguei a conta e a pequena com o dinheiro da carteira dele e levei-o para casa.
Ele é um bêbado difícil, Coronel.
- Está aí uma coisa que eu não sabia. Em todo caso, ele irá para a Sardenha amanhã e terá tempo de curar-se da bebedeira. Muito obrigado, amigos. Podem ir continuar
o sono. Procurem estar em condições às oito horas da noite. Ainda estão no turno da noite...
Saíram resmungando e de olhos vermelhos, enquanto eu sorria da decepção deles. Nosso jogo era aquele mesmo. Andava-se até cansar os pés. Batia-se em muitas portas.
Montava-se guarda a muitas esquinas e em muitas boates repletas de gente e de fumaça. Labutava-se com resmas e resmas de informações inúteis até que se deparava
com um fragmento de fato que iniciava ou completava todo um mosaico. Eu tinha no momento um fragmento assim nas mãos. Por que Pica-pau, um agente polonês, estava
interessado em Marcantonio Leporello, Major-General dos Carabinieri?
Como investigador, tenho muitas deficiências e duas qualidades especiais. Uma destas é uma memória fotográfica. A outra é saber esperar. Há em toda investigação
um momento em que nada se pode fazer senão esperar e deixar que a química do caso apareça por si mesma. Quando se tenta apressar o desenvolvimento natural, para
atender a si mesmo ou a um superior, cometem-se erros. Aceitam-se premissas falsas e cria-se uma lógica fictícia. Acossam-se os homens que trabalham conosco e eles
fazem observações míopes ou dão respostas incompletas para nos contentar. Agarram-se soluções fáceis e o que se tem nas mãos é um pouco de fumaça apenas.
Os italianos gostam de movimento e alarido. Esboce-se uma cena e eles arquitetarão toda uma ópera dentro de uma hora. São volúveis, dilatórios* e evasivos. Detestam
comprometer-se com uma opinião ou uma aliança para que amanhã não sejam considerados responsáveis pelas consequências. Preferem perder um dente a assinar um documento
que os obrigue. Sou coronel aos quarenta e dois anos porque aprendi a fazer uma virtude dos vícios de meus compatriotas.
O Ministro do Interior queria ação? Pois então a conseguia, acentuada por ordens e toques de campainha. A OTAN precisava de um alarme de espionagem para reforçar
a segurança? Bene! Havia vinte roteiros para escolher e vilões autênticos para incluir nos mesmos. Havia alguma coisa errada num contrato de fornecimento? Para isso
também havia uma fórmula mágica: sabotagem por agentes inimigos na fonte, em trânsito ou no local de entrega. Mas, quando uma coisa importante aparecia, o truque
era criar uma zona de silêncio e ficar bem no centro dela, visível mas enigmático, digerindo os fatos à mão, calmo como um Buda à espera de novo giro da roda da
vida. Era uma tática que desconcertava muitos dos meus colegas e irritava alguns dos meus superiores. Mas, na maior parte das vezes, resolvia... com um pequeno golpe
de prestidigitação para ajudar a ilusão.
Naquele momento, o caso Pantaleone estava em suspenso. O significado do cartão da salamandra ainda não fora descoberto. Os papéis e o dinheiro do General estavam
em poder do seu advogado, o qual esperaria provavelmente até o último momento para atender ao invito e, ainda assim, invocaria os seus privilégios legais. O homem
presente aos funerais podia não representar coisa alguma. O Cavaliere Manzini era apenas um comprador de quadros caros. Nada havia do lado do perito em heráldica.
Nada... nada... nada... A não ser que um agente polonês, cujo nome de código era Pica-pau, estava interessado no Major-General Leporello. A ocasião parecia indicada
para uma conversa com o Diretor.
O Diretor do Serviço Nacional de Defesa era um personagem por direito próprio. Era aparentado pelo lado materno com os Carraccioli de Nápoles e pelo lado paterno
com os Morosini de Veneza. Era chamado no Serviço de Volpone, a velha raposa. Eu tinha outro nome para ele, Cameleonte, o velho camaleão. Em dado momento, podia-se
vê-lo claramente; no momento seguinte estava escondido por trás da vegetação política. Tinha maneiras de príncipe e o espirito de um jogador de xadrez. Tinha a intuição
da História e a convicção de que sempre se repetia. Sabia ser irônico em oito línguas e tinha feito conquistas em todas elas. Jogava tênis, fazia iatismo, colecionava
arte primitiva e era apaixonado pela música de câmara, na qual às vezes tocava viola. Era extravagantemente rico, generoso com aqueles de quem gostava e implacável
como um carrasco público para aqueles que não lhe caíam nas simpatias. Insistia em dizer que eu, Dante Alighieri Matucci, era um daqueles de quem gostava e um dos
poucos a quem respeitava. Tínhamos entrado em choque muitas vezes. Tinha-me tentado em mais de uma ocasião, mas eu havia pressentido a isca e me desviara dela com
um sorriso e um encolher de ombros. Eu não fazia segredo de minhas fraquezas, mas não ia deixar que fizessem chantagem comigo por causa delas, fosse o Diretor ou
lá quem fosse. E se o Diretor queria empenhar-se em jogo comigo, eu dispunha de alguns bem pessoais e com regras um tanto complicadas.
Estava metido num deles no momento. O Major-General Leporello era um homem importante nos Carabinieri. Eu queria saber se o Diretor tinha força bastante para enfrentá-lo,
se houvesse necessidade disso. Por isso, fiz-lhe a pergunta sem rodeios:
- Pica-pau está interessado em Leporello, por quê?
O Diretor ficou no mesmo instante alertado, como uma velha raposa que fareja um ambiente hostil e respondeu calmamente:
- Não é a você que cabe dizer-me por quê?
- Não, ainda não. O dossiê de Leporello traz a anotação: “Reservado para o Diretor”.
- É verdade. Tinha-me esquecido. Perdoe. Vejamos. O General Leporello passou os últimos cinco meses no exterior.
- Onde?
- Japão, Vietnã, África do Sul, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Grécia, França.
- Quem pagou a viagem?
- A excursão foi oficial. O General estava numa missão de estudos.
- Para estudar o quê?
- Técnicas de repressão às desordens de rua e de contrarrevolução.
- Conhece o General pessoalmente, Diretor?
- Conheço. É um homem sólido.
- Vulnerável?
- É um patriota, um católico fervoroso, um democrata-cristão e um homem financeiramente independente. Não creio que possa ser comprado ou intimidado.
- Atacado? Assassinado?
- É possível.
- Seduzido?
- Como assim, Coronel?
- Pela extrema fraqueza, a ambição.
- Por exemplo?
- O homem que elabora a estratégia da contrarrevolução poderia resolver pô-la em prática por conta própria... ou por conta de uma minoria poderosa.
- Alguma prova?
- Indicações apenas. Pica-pau e sua rede de espionagem têm uma incumbência que vou citar: ”... dar aviso com antecedência de qualquer tentativa de golpe de estado
da parte de grupos neofascistas ou das ações destinadas a provocá-lo”. Se Pica-pau está interessado em Leporello, temos de estar interessados também.
- Está viajando pelo país dos unicórnios, Matucci.
- Lidamos com fábulas metade de nossas vidas. As vezes, as fábulas se tornam verdadeiras.
- No caso de Leporello, não creio. Em todo caso, deixe-me pensar no assunto. Conversaremos depois. Por enquanto, nenhuma ação.
- Muito bem, Diretor.
- Mais alguma coisa?
- Não, senhor.
- Permita-me então fazer-lhe um elogio. Aprecio muito a sua atitude diante de seu trabalho, vigilante e compreensiva. É uma coisa rara e muito necessária também
em tempos como estes.
- É muita gentileza sua dizer isso, Diretor. Muito obrigado.
- Até depois então.
Saí dali imerso em pensamentos. Se o Diretor ficasse alarmado, todo mundo mais trataria de correr em busca de refugio. Se o Diretor se empenhasse numa causa ou num
compromisso, só uma bala na cabeça poderia fazê-lo desviar-se. Era o perfeito homem do cinquecento, como um confessor à direita e um poeta à esquerda, enquanto seus
inimigos apodreciam rugindo nas masmorras sob seus pés. Eu tinha o nome de um poeta e precisava de um confessor, mas não tinha a menor vontade de terminar meus dias
nas masmorras do desfavor oficial. E entretanto... entretanto... Um homem capaz de dominar motins de manifestantes e guerrilheiros urbanos podia, um belo dia, dominar
o país, especialmente se fosse um patriota, um bom cristão e não tivesse de se preocupar com o dinheiro do aluguel ou do jantar.
Mal eu estava de volta à minha sala, minha secretária me avisou que o Dr. Sergio Bandinelli tinha atendido ao meu invito e estava à espera para falar comigo.
O advogado era baixo, irrequieto e muito irascível. Fiquei por um momento indeciso entre apresentar o burocrata ou o cavalheiro e resolvi então sufocá-lo em gentilezas.
Disse que lamentava a necessidade em que me vira de perturbar um homem atarefado. Muito lhe agradecia que me tivesse atendido com tanta presteza. Esperava resolver
prontamente os poucos assuntos de que tínhamos que tratar. Compreendia perfeitamente as relações existentes entre advogado e cliente. Era meu dever proteger essas
relações e impedir qualquer violação da ética profissional. Entretanto...
- Nos casos em que a segurança nacional está envolvida, Avvocato, nós ambos precisamos ser um pouco mais flexíveis. Tenho certeza de que me dá razão.
- Não, Coronel, não dou. Estou aqui para protestar contra a apreensão ilegal dos papéis de meu cliente e para requerer a sua imediata devolução.
- Isso não é problema. Quando sair daqui, poderá levar todos os papéis. Quanto ao protesto, que é que vai adiantar isso? O Serviço de Informação da Defesa trabalha
dentro de diretrizes presidenciais e se regula por determinadas disposições especiais. É claro que, se deseja apresentar uma queixa...
- Bem... em vista das circunstâncias...
- Ótimo! Sinto-me animado então a falar-lhe confidencialmente e reclamar a sua assistência num assunto da maior importância.
- Terei prazer em prestar-lhe assistência, Coronel, desde que eu possa reservar a minha posição no caso de um conflito de interesses.
- É claro. Prossigamos então. O General Pantaleone era um homem importante. A morte dele não pode deixar de ter consequências políticas. Estou interessado, portanto,
em todos os aspectos das atividades do General. Ele estava, por exemplo, empenhado em alienar as suas propriedades, vender as suas ações e dispersar a sua coleção
de pintura. Por quê?
- Não lhe posso dizer.
- Os corretores dele me informaram que o produto da venda das ações do General lhe foi entregue. Quais foram as instruções que recebeu relativamente ao dinheiro?
- Não lhe posso dizer isso também.
- Na minha opinião, deve dizer.
- Não, Coronel. Tenho privilégios legais.
- Antes que os invoque, devo dizer-lhe mais uma coisa. O seu falecido cliente mantinha relações com uma pessoa que fazia parte de uma rede de espionagem estrangeira.
- Não acredito nisso.
- Mas é verdade. A sua pessoa, Avvocato, está sob vigilância dessa mesma rede.
- Está fazendo alguma espécie de ameaça, Coronel?
- Não. Estou apenas expondo-lhe um fato. Desse modo... quando o senhor se nega a revelar o que aconteceu a grandes quantias, coloca-se por isso mesmo numa posição
perigosa. Há crime no caso, uma ameaça à segurança do Estado. O seu cliente está morto. O senhor é responsável pela sua participação nos assuntos dele. Por conseguinte,
tomo a perguntar-lhe, que foi que aconteceu com o dinheiro?
- Recebi instruções para reinvesti-lo.
- Onde?
- No exterior. Principalmente na Suíça e no Brasil.
- E se os quadros e as terras fossem vendidos?
- As instruções eram as mesmas.
- Uma exportação de fundos assim exige aprovação do Ministério da Fazenda. Conseguiu a licença necessária?
- Não... mas a natureza da transação...
- Não me diga, Avvocato, pois eu sei. A transação implicaria a ação de intermediários que dispõem de canais seguros para a exportação de valores. Cobram uma comissão
de 5% pelos seus serviços. Em troca disso, asseguram imunidade ao cliente. É uma velha história, como sabe. A transação é inteiramente sem base legal e o senhor
pode ser acusado de conspiração para violação das leis fiscais. A sua sorte é que eu sou um investigador do serviço secreto e não um policial... mas posso mudar
de função a qualquer momento. Fale portanto, Avvocato! Deixemos de brincadeiras de criança! Por que Pantaleone estava exportando fundos?
- Em resumo, estava com medo. Tinha-se aliado aos neofascistas, como assessor militar e comandante-chefe na hipótese de um golpe de estado. As táticas de provocação
o preocupavam. Julgava que eles ainda não eram suficientemente fortes para arriscarem-se a um golpe de estado e que, se o tentassem, desencadeariam a guerra civil.
Toda a força do Movimento está no Sul. O Norte é controlado pela esquerda, que é muito mais bem organizada. O Movimento começou então a perder a fé em Pantaleone.
Queriam substituí-lo por um homem mais arrojado.
- Quem?
- Não sei.
- Pantaleone sabia quem era?
- Não. Sabia apenas que era alguém que não estava no Movimento mas que podia ser atraído para ele na ocasião propícia.
- Um militar?
- Evidentemente. Se provocassem uma agitação, teriam de empregar ação militar para dominá-la.
- Quer dizer então que o General estava com receio. De um rival ou de alguma outra coisa?
- De uma ação contra ele próprio.
- Que espécie de ação?
- Não sei.
- Faça uma hipótese.
- Algum dano para a sua reputação. Alguma espécie de revelação de fatos de seu passado.
- Recebeu ele alguma ameaça direta?
- Bem... no sentido legal, não.
- E no sentido comum, Avvocato?
- Há cerca de uma semana, recebeu uma comunicação por mensageiro.
- Que espécie de comunicação?
- Constava de uma biografia muito completa. Tão exata que, se fosse dada a público, seria uma desmoralização irremediável para ele e o afastaria para sempre da vida
pública.
- Ele lhe mostrou isso?
- Mostrou. Queria saber se havia qualquer recurso legal para impedir a publicação ou qualquer meio de apurar quem tinha sido o autor. Disse-lhe que, infelizmente,
nada seria possível fazer, a não ser correndo o risco de espalhar perigosamente as informações ali contidas.
- E havia uma ameaça de publicação?
- Sim, eu a li.
- Onde?
- Num cartão anexado à comunicação datilografada e que só podia ser interpretado assim.
Coloquei o cartão da salamandra em cima da mesa diante dele.
- Este cartão?
O advogado apanhou-o com interesse, examinou-o e disse: - Sim, este mesmo. Onde o encontrou?
- No quarto do General. Que fim levou a biografia?
- Ele a guardou no seu cofre no banco.
- Que o senhor esvaziou ontem.
- É verdade.
- Eu a quero. Quero todos os seus documentos.
- Estou disposto a entregá-los e com prazer... mas em face de um mandado do juiz. Fora daí, não, Coronel.
- Que significa esse cartão, Avvocato?
- Para mim, nada.
- Que significou para o General?
- Só lhe posso dizer o que ele me disse.
- Que foi?
- Ele era um homem taciturno, dado a aforismos. Disse: “Bem, o dia de S. Martinho chegou afinal”.
- Que foi que ele quis dizer com isso?
- Não me explicou, como de hábito. Isso me intrigou durante muito tempo até que eu descobri a referência. Está no Dom Quixote e diz: “Para todo porco chega o dia
de S. Martinho”. Na Espanha, costumam matar porcos no dia de S. Martinho.
- Dr. Bandinelli, tenho certeza de que o senhor é muito bom advogado. Nunca diz uma mentira. Limita-se a omitir a parte da verdade que realmente importa e a lei
o protege nessa ação. Mas saiu do domínio da lei e colocou o seu privilégio em perigo. É claro que pode lutar contra mim. Pode retardar-me com táticas e chicanas,
mas o seu dia de S. Martinho acabará chegando. Se quiser evitá-lo, estou disposto a. fazer um trato com o senhor. Esquecerei a questão da transferência ilegal de
fundos. Mandarei um de meus homens neste momento acompanhá-lo para juntar todos os papéis da família Pantaleone que estão em seu poder. Depois de relacionar todos
os documentos, vai guardá-los no seu cofre. Amanhã, irei ao seu escritório e examinaremos juntos os papéis. Dessa maneira, poderá manter os seus privilégios e eu
conseguirei a informação que desejo. De acordo?
- Parece que não tenho outro jeito.
- De fato.
- Concordo então.
- Ótimo. Pode passar um recibo dos papéis que estão em nosso poder e levá-los. Quando for para casa esta noite, deixe a chave de seu escritório com o homem que eu
mandar acompanhá-lo. Ele passará a noite lá.
- Para quê?
- Proteção, Avvocato. A política é uma coisa muito arriscada hoje em dia.
Era uma ironia de minha parte. Eu era o velho profissional a mistificar um civil. Mas eu devia saber melhor. Neste meu ofício, neste país em que vivo, nunca se deixa
de estar em cima de um alçapão, com um laço de carrasco ao pescoço.
6
Depois de dizer isso, acho que há necessidade de uma explicação. A chamada República da Itália, povoada por nós, os chamados italianos, não é absolutamente uma nação.
Somos províncias, cidades, regiões rurais, tribos, facções, famílias, indivíduos, tudo o que se quiser, mas sem qualquer unidade. Pergunte àquele camarada ali, o
gari no meio da rua, o que ele é. Dirá que é sardo, calabrês, napolitano, romanholo. Nunca, nunca dirá que é italiano. Aquela moça da Ferrari pode ser veneziana,
veronesa ou paduana. Esposa, amante, mãe ou raramente virgem, identifica-se por um lugar, um canto separado de terra. Eu, como já tive ocasião de dizer, sou toscano.
Sirvo à coisa nebulosa a que se chama o Estado porque me pagam para servir, mas não é a isso que pertenço e, sim, a Florença, aos Médici, ao Amo e aos pinheiros
plantados sobre as sepulturas de meus antepassados. Qual é o resultado? Uma espécie de anarquia que os anglo-saxões nunca poderão compreender e uma espécie de ordem
que compreendem ainda menos. Sabemos quem somos, homem a homem, mulher a mulher. Desprezamos o forasteiro porque é diferente. Mas respeitamo-lo porque ele sabe e
nós sabemos quem é. Era esse o meu dilema. Nunca posso dizer: “É esse o inimigo; destruam-no!” Devo dizer: “Esse é o inimigo do momento, mas é do meu país, tem uma
irmã casada com meu primo e talvez amanhã tenhamos de ser amigos. Como devo comportar-me a fim de que os elos não sejam quebrados, embora a corrente sofra uma tensão
até o ponto de ruptura?"
Há muita gente que diz que neste sistema não há lugar para patriotas, mas apenas para pragmáticos e oportunistas. São palavras amargas essas... ou não são? Temos
de sobreviver e isso é um problema prático. Temos uma vida e uma oportunidade de entrar em entendimento com ela. Enquanto as condições do entendimento são passíveis
de negociações, tentamos negociar. Se nos vemos forçados a uma transigência baixa, temos de aceitá-la e esperar outro dia em que o contrato possa ser anulado ou
modificado por mútuo consentimento. Como veem, estou a par de tudo. Não há, portanto, qualquer justificativa para as loucuras que comecei a cometer naquela tarde.
A primeira foi o trato cheio de desprezo que fiz com o Dr. Sergio Bandinelli. Considerei-o um homem amedrontado e dócil. Entreguei-o a um jovem agente, Giampiero
Calvi, a quem dei um conjunto de instruções simples. Calvi acompanharia Bandinelli até o escritório dele. Tomaria posse dos papéis de Pantaleone, faria uma relação
dos mesmos, trancá-los-ia no cofre do advogado, selaria o cofre e ficaria no escritório até a minha chegada às nove horas da manhã seguinte. Durante a noite, telefonaria
para o oficial de plantão na sede de hora em hora. Calvi era um moço promissor. Não lhe fiz recomendações especiais. Confiei no treinamento que lhe tinha pessoalmente
dado.
Depois, porque estava cansado, resolvi misturar negócios com prazer. Desde que era e sou arrogante demais para meu bem, adiei fazer o meu joguinho contra o Diretor.
Telefonei para minha empregada e disse-lhe que não iria jantar em casa e que talvez tivesse de passar a noite fora de Roma. Em seguida, telefonei para Lili Anders
e disse-lhe que, no interesse do serviço, eu iria procurá-la às oito e meia para um coquetel, depois do que a levaria para jantar. Onde? Num lugar discreto mas elegante
onde ela pudesse esquecer as mágoas e descontrair os nervos. Minhas intenções? Minha cara senhora, as de um colega e colaborador; nem mais, nem menos.
Desci o corredor para falar com meu companheiro Rigoli, que se preocupa com a segurança das autoridades e de outros funcionários. Rigoli é um camarada grisalho e
calmo, que tem um verdadeiro fichário na cabeça. O que ele não sabe pode calcular com 70% de exatidão. É capaz de dizer onde o Ministro da Fazenda pode ser encontrado
às três horas da manhã da sexta-feira, qual o Primeiro-Secretário que tomou tal voo para Veneza e quem se sentou ao lado dele no avião. Disse-me que o Major-General
Leporello estava no momento em Roma, hospedado no Hassler e empenhado numa série de conferências com diversas autoridades. Telefonei para o hotel e depois de uma
breve escaramuça com um jovem ajudante, pude falar com o General. A conversa foi breve e lacônica.
- General, quem fala é o Coronel Matucci, do SID.
- Sim?
- Gostaria de falar-lhe sobre um assunto urgente.
- Urgente como?
- Muito urgente.
- Estou ocupado até as seis horas. Posso conceder-lhe meia hora a partir de então. Telefone-me da portaria. Apartamento 10.
- Muito obrigado, General.
- Quer repetir seu nome?
- Matucci. Seção E.
Desliguei o telefone e esperei. De acordo com o meu julgamento do homem, ele procuraria certificar-se telefonando para mim ou para o Diretor. Se telefonasse para
o Diretor, eu poderia preparar-me para uma hora bem desagradável com o Diretor. Estava, porém, jogando no fato de que o Diretor era um homem muito sigiloso, que
se negava a contatos casuais mesmo com as mais altas autoridades. Estava certo. Daí a três minutos, meu telefone tocou e Leporello entrou na linha.
- Quem está falando?
- Matucci, Seção E.
- Aqui é Leporello. Temos encontro marcado, não temos?
- Temos, General. Apartamento dez, às 8 horas.
- Faça o favor de ser pontual. Passe bem.
Ora! Eu bem poderia precisar de um pouco de distração depois de meia hora com aquele homem ríspido. Dei mais um telefonema, dessa vez para um curioso escritório
na Via Bissolati que abastece a imprensa e alguns assinantes particulares com notícias sobre as idas e vindas das pessoas famosas. Eu não era assinante, mas uso
o escritório de vez em quando e retribuo isso incentivando os meus colegas da Questura a fecharem os olhos a certas irregularidades - telefonistas alemãs com autorizações
de permanência vencidas, datilografas inglesas que não pagam contribuições de previdência social e coisa assim. É uma espécie de corrupção, mas há um nome mais histórico
para isso. É tolleranza, viver e deixar viver, mas sem deixar esquecer nunca que a lei tem memória comprida e bota pesada. Meu contato é uma dinamarquesa de busto
farto que vive, infelizmente, com um jornalista espanhol acreditado junto à Santa Sé. O estado civil dela é muito dúbio, mas as informações que dá são sempre exatas.
- A Faubiani? Bem, o velho Manzini está na cidade, de modo que ela está circulando com ele... Ontem, Valério exibiu roupas de malha. Esta noite, Fosco vai apresentar
uma coleção de joias em combinação com Lavesi, que está lançando um livro sobre a ourivesaria da Renascença. A Faubiani estará provavelmente por lá. Fosco dará um
bufê às oito e meia até o champanha acabar. Se quiser uma entrada, poderei dar-lhe o meu convite. Claudio está trabalhando esta noite e eu fico cheia de inveja quando
olho para joias caras.
- Você é um anjo, Inger.
- Não diga nada a Claudio. Voltou a ser muito implicante comigo... Quando é que vou ver você, Dante?
- Quando eu for pegar o convite às sete e meia. Ciao, bambina!
E assim, com a noite programada hora a hora, restava uma pequena decisão: que número de telefone eu devia deixar com o oficial de plantão? Dei-lhe dois: o de Lili
Anders e o de minha casa. Estava livre então para preparar-me: trocar de roupa, banho, barba, massagem para melhorar os músculos faciais flácidos e meia hora de
instrutivas fofocas com minha manicure predileta.
Precisamente às 8 horas, telefonei para o Major-General Leporello da portaria do Hassler. Ele me ordenou que esperasse até que seu ajudante fosse buscar-me. O ajudante
era um homem moço e forte, de rosto vermelho e sardento de um sotaque do Trentino. Mostrou-se respeitoso mas lacônico e quis ver meu cartão antes de sairmos da portaria.
Suspeitei de que, depois de deixar-me com o General, se postou diante da porta do apartamento. Leporello foi uma surpresa. Era um homem alto, louro e corado, mais
alemão do que latino. Tinha peito largo e barriga sumida. Os gestos eram contidos e as maneiras, bruscas e objetivas. Não tinha o menor senso de humor.
- Sua identificação, sim?
Entreguei-a. Ele a examinou linha por linha e devolveu-a.
- De que deseja falar, Coronel?
- De assuntos relacionados com a morte do General Pantaleone.
- Tais como?
- Este cartão, General. Foi encontrado no quarto do General depois da morte dele.
- Que é que significa?
- É o que estou tentando apurar. Estava anexado a uma série de papéis que foram entregues a Pantaleone antes de sua morte.
- Que espécie de papéis?
- Documentos comprometedores sobre o passado do General.
- Chantagem então?
- É o que pensamos.
- Onde estão esses papéis?
- No escritório do advogado, sob a guarda de um homem do SID.
- E o cartão?
- É o único indício que temos da identidade do chantagista.
- E o símbolo?
- É uma salamandra.
- É estranho.
- Por que, General?
- Durante a guerra, um dos grupos mais importantes de guerrilheiros no Valpadana era chefiado por um homem que tinha o nome de Salamandra.
- Qual era seu verdadeiro nome?
- Não sei. Desapareceu por volta de 1943. Houve boatos de que tinha sido capturado pelos alemães.
- Usava um cartão assim?
- A lembrança que me ficou de tudo isso é muito vaga porque todas as informações que eu recebia eram de segunda mão. Mas, se não estou enganado, ouvi falar de um
cartão de visita pregado ao peito das vítimas do grupo.
- Era um grupo marxista?
- Quase todos os grupos do Norte tinham ligações reais ou supostas com os marxistas.
- Trabalhou alguma vez com tais grupos, General?
- Nunca! Sempre fui leal à Coroa. Nunca mudei, nem mesmo quando isso me seria mais conveniente. Antipatizava com os fascistas e detestava os alemães. Por isso mesmo,
não me era possível mudar de lado. Hoje, posso ser ao mesmo tempo honesto e orgulhoso.
- Não tenho dúvida disso. General, mas é também um alvo naturalmente visado pelos terroristas da esquerda.
- É de se presumir que seja.
- Isso então me leva ao verdadeiro objetivo de minha visita que é informar-lhe que se acha sob a vigilância de uma rede pelo menos de agentes estrangeiros.
Ele teve um breve sorriso sem humor.
- Isso não é propriamente novidade, Coronel. Presumi sempre que houvesse vigilância de todos os grupos, estrangeiros ou locais.
- A novidade, General, é que esse grupo o considera como um possível sucessor do General Pantaleone.
- Em que posição?
- Como chefe militar e político na hipótese de um golpe da extrema-direita.
- O que é um absurdo, sem dúvida...
- Sem dúvida, General. Mas isso o toma vulnerável.
- A quê?
- A chantagem e assassinato.
Eu tinha esperado abalá-lo ou, pelo menos, interessá-lo. Impossível. Ele era tão compacto e liso como o granito de um cemitério.
- Chantagem, Coronel? É absolutamente impossível, posso assegurar-lhe. Minha vida é um livro aberto. Não estou envergonhado de nada do que me aconteceu. Quanto aos
atentados contra a minha vida, foram previstos, sendo tomadas as medidas de segurança indicadas para proteger-me e a minha família. Preocupa-me mais a sugestão,
ainda que partida de elementos hostis, de que eu pudesse ter ambições políticas. Não as tenho de modo algum e acredito na hierarquia e na ordem. Vejo a mim mesmo
apenas como um servidor da autoridade legalmente constituída.
- Compreendo perfeitamente.
- Uma pergunta, Coronel.
- Sim, General?
- Discutiu esse assunto com seu Diretor?
- Discuti, sim.
- Qual foi a opinião dele?
- Que não havia necessidade de ação da parte do SID. Para dizer a verdade, exorbitei de minhas atribuições ao pedir-lhe este encontro.
- Por que o pediu então?
- Somos colegas, como elementos do mesmo corpo, General. Julguei que havia no caso um dever de honra para mim. Resolvi agir por minha conta e risco.
- Que risco, Coronel?
- Ora... sem carregar muito a mão na tinta, acho meu Diretor um homem temível.
- Quer dizer que tem medo dele?
- Medo, não. Mas tenho um sadio respeito.
- Prefere então que eu nada diga do nosso encontro a ele?
- Não disse isso, General, e não seria capaz de dizer. Cumpri o meu dever, de acordo com as minhas luzes. Estava e estou preparado a arrostar as consequências.
Pela primeira vez, Leporello se descontraiu. Ofereceu-me um cigarro de uma cigarreira de ouro e levou a sua condescendência ao ponto de acendê-lo para mim. Recostou-se
em sua cadeira e me olhou com sombria aprovação.
- Devo dizer que me impressiona, Coronel. Se precisar de um amigo no Serviço, terá esse amigo em mim. Darei instruções ao meu pessoal para que tenha acesso a mim
a qualquer tempo.
- É muita generosidade sua, Coronel.
- De modo algum. Temos um objetivo comum, a segurança e a estabilidade da República. Devemos cooperar sempre que pudermos. Pantaleone foi um idiota perigoso e, ainda
por cima, meio patife. Precisamos hoje em dia de homens fortes que estejam dispostos a assumir riscos no serviço público. Julgo-o um desses. A sua atual experiência
é sem dúvida muito valiosa. Se quiser algum dia fazer parte do meu grupo pessoal, isso me dará muito prazer.
- Um grande elogio me faz com essas palavras.
- Creio que o merece. E, Coronel...?
- Sim, General.
- Não pretendo comentar este encontro com o seu Diretor.
- Muito obrigado, General.
Apertou-me a mão e me levou até a porta, onde me entregou aos cuidados de seu atlético ajudante, o qual me escoltou até a portaria com um pouco mais de gentileza
e me brindou com uma continência ao despedir-se de mim.
Nos jardins do Pincio, parei o carro e levei uns vinte minutos tentando firmar um conceito a respeito do Major-General Leporello. Tenho um medo instintivo de tipos
que agem como se fossem primos em primeiro grau de Deus Onipotente. Têm uma virtude que me ofusca e uma inflexibilidade que nunca deixa de assombrar-me. A paixão
que sentem pela ordem coloca-os acima da razão ou da compaixão. Mostram toda a retidão de um grande inquisidor e a perícia casuística de um jesuíta. São todos dogmáticos
e não sentem a menor hesitação em reformar o código da maneira que mais lhe convenha. Atraem sabujos, satélites e subornadores que lhes alimentam a ambição e lhes
inflam a virtude consciente numa lenda de impecabilidade. Em resumo, detesto-os e tenho mais medo deles do que de todos os vilões venais que já encontrei no meu
ofício. Fazem-me ter medo de mim também porque provocam raiva, erros de julgamento e uma selvagem reação.
Havia, entretanto, um tênue lucro. Leporello estava me tentando a uma aliança com ele, primeiro com um farrapo de informação, verdadeira ou falsa, sobre a Salamandra
e, depois, com uma promessa de amizade e proteção. Uma aliança implicava uma estratégia e uma estratégia implicava um objetivo. Que objetivo? Qual era a próxima
ambição de um homem incumbido de controlar formigueiros das cidades e os seus milhões de seres humanos voláteis? Ainda que ele não a tivesse definido por si mesmo,
havia outros prontos a prescrevê-la para ele. Calma! Era já muito tarde e ainda muito cedo para que Dante Alighieri Matucci pudesse ler o futuro. Dei partida no
carro e segui pelas alamedas ensombradas dos jardins a fim de ir tomar coquetéis com Lili Anders.
7
O apartamento tinha sofrido algumas modificações desde a minha última visita. O retrato equestre de Pantaleone desaparecera da prateleira da lareira. Fora substituído
por um vistoso quadro surrealista de Spiro, uma paisagem de flores com rostos humanos sorridentes e uma série de instrumentos musicais que tocavam para fazê-lo dançar.
Os móveis tinham tido nova arrumação e os enfeites mostravam uma seleção destinada a produzir uma atmosfera de absoluta feminilidade. Lili estava também mudada,
mas de uma maneira sutil que eu só podia definir pelos detalhes. Os cabelos estavam com um penteado mais suave, o vestido era mais moderno e extravagante e as maneiras,
mais tranquilas e confiantes. A própria empregada estava um pouco menos brusca, embora ainda desconfiada e pouco acolhedora. Quando comentei as mudanças, Lili sorriu
e encolheu os ombros.
- Sou mais eu mesma. Não tanto quanto desejaria, mas um pouco mais. Que é que vai beber?
- Uísque, sim?
- Está mudado também.
- Como assim?
- Mais humano, talvez. Menos profissional. Como é que vou chamá-lo? Coronel?
- Meu nome é Dante Alighieri.
- Dante foi um homem muito sombrio. Também é assim?
- Às vezes. Esta noite, não.
- Que é que esta noite tem de diferente?
- Temos o que fazer, mas, apesar disso, gostaria de que nos divertíssemos.
- Isso é muito difícil, não acha?
- Por quê?
- Porque você me controla, Dante Alighieri. Maneja-me como se eu fosse um fantoche. Não posso escolher o que me diverte, nem como.... Aqui está o seu uísque, meu
senhor.
- À sua saúde, Lili.
- Onde é que vamos jantar?
- Somos convidados para uma exposição seguida de um bufê com champanha. Fosco vai apresentar a sua nova coleção de joias da temporada.
- Deve ser interessante. Gosta de joias, Dante?
- Gosto... embora estejam acima de minhas posses.
- Gostaria de ver as minhas?
- Se me quiser mostrar.
- Mostrarei quando voltarmos. Presumo que vai me trazer até em casa depois da exposição.
- Você está sendo grosseira comigo, Lili.
- Não. Quero que saiba que eu compreendo nosso relacionamento. Prometi valor em troca de dinheiro e proteção.
- Não sou cáften, Lili.
- Que é então?
- Acreditaria em mim se eu lhe dissesse?
- É bem possível.
- É muito simples. Sou um sujeito que tem o vicio de gostar de mulheres bonitas.
- Que mais?
- Estou cansado e quero rir. Estou confuso e quero parar de pensar. Estou assustado e não quero na verdade saber por quê.
- Você? Assustado?
- Sim. Isto é a idade dos assassinos, Lili, a idade dos fanáticos e destruidores. Querem um mundo novo. Despedaçam vinte séculos de civilização para consegui-lo.
O que não veem é que, quando estiverem sentados entre as ruínas, a velha turma voltará todinha, os tecnocratas para construir as fábricas, os financistas para criar
uma nova ilusão de dinheiro, e a polícia para manter o povo em ordem e até os velhos caçadores de ratos como eu. É uma loucura, Lili, e eu estou no centro de tudo.
Você também. Não há escapatória para qualquer de nós, mas eu pensei que, talvez por uma hora apenas, pudesse haver uma zona de paz no centro do furacão. Fui um louco.
Não pense mais nisso. Não sou um sádico e, portanto, pelo amor de Deus, não se sinta insultada! Agora, por favor, pode dar-me outro uísque?
Ela me tomou o copo das mãos, tomou a enchê-lo e trouxe-o de novo para mim. Pousou então a mão fria em meu rosto e disse:
- Ainda que sua intenção tenha sido apenas pela metade, acredito em você. E não me sinto insultada.
Eu não tinha muita certeza de acreditar em mim mesmo, mas queria sentir-me menos um explorador de mulheres e mais, muito mais, um homem capaz de olhar sem medo a
luz do sol. Levei a mão dela aos lábios e beijei-a levemente.
- Agora, vamos recomeçar a cena. Entra Dante Alighieri Matucci, que é recebido por Lili Anders. A acolhida dela é cerimoniosa, mas não inamistosa...
- Correção. A acolhida dela é amistosa, embora ainda não seja íntima.
Ela se curvou e me beijou na testa e, em seguida, afastou-se a fim de preparar um drinque para ela. Vinte minutos depois, estávamos no carro a caminho de Fosco e
chegamos à reunião de mãos dadas como namorados.
Não o tinha dito a Lili, mas eu sabia alguma coisa a respeito de Fosco, o joalheiro. Ele era - e ainda é, sem dúvida - um fenômeno. Tratava-se de um jovem e talentoso
homossexual que, em cinco anos, tinha pulado de uma obscura posição de aprendiz em Florença para ser um dos melhores ourives particulares de Roma; Apareceu uma vez
em nossos arquivos como amigo de um funcionário de uma embaixada árabe, mas a ligação terminou e nós perdemos o interesse. Somos muito tolerantes em matéria de moral,
mas muito sensíveis no que se refere à política do Oriente Médio. Às vezes, desde que as suas exposições atraíam um grupo variado de personalidades ilustres e de
nulidades com dinheiro, eu colocava um observador entre os seus convidados ou os seus guardas de segurança. Mas, embora essa providência tivesse dado alguns resultados
medíocres, o próprio Fosco apresentou sempre ficha limpa. Era um bom artesão, de excelentes maneiras e um egotismo férreo que lhe permitiam impor o seu gosto e os
seus preços exorbitantes a um largo espectro de matronas romanas, mulheres de diplomatas, estrelas de cinema em ascensão e notáveis em trânsito.
A apresentação de sua coleção da primavera era uma festa completa. Os melhores titulares de Roma dançavam uma pavana lenta em tomo de suas vitrines. Os modelos mais
caros procuravam posições estratégicas na galeria. Um chef renomado presidia o bufê. Um exército de garçons jovens e elegantes distribuía champanha e canapés. Até
os guardas de segurança davam um jeito de parecer capitães de indústria milaneses. Era um balé social sofisticado e Fosco o dirigia com considerável graça e uma
leve ponta de desprezo pelos participantes.
Chegamos no meio do primeiro movimento, quando os primeiros convivas chegavam, eram vistos, tomavam um ou dois coquetéis e saíam. Os sérios, os amigos do Mestre,
chegariam mais tarde, demorar-se-iam no bufê e partiriam por volta da meia-noite. Fosco nos recebeu com vaga cortesia e nos encaminhou à exposição com um gesto gentil.
Pegamos dois copos de champanha e um par de catálogos e iniciamos o nosso -circuito das vitrines. Um fato foi imediatamente claro: Fosco alcançara um sucesso absoluto.
Metade dos artigos já estava colocada. Alguns tinham a marca de “Vendido” e outros de “Reservado”, escolhidos antecipadamente para as grandes casas - Bulgari, Cartier,
Buccellati, Tiffany. O sucesso não era imerecido. Fosco era um mestre em todos os estilos, no barroco, no antigo, no vanguardista. Os desenhos eram originais e o
trabalho artesanal, soberbo. As pedras mais pobres ficavam parecendo gemas de primeira água. As peças melhores eram como relíquias sagradas que ganhavam vida sob
as luzes artisticamente dispostas.
E Fosco nada tinha de modesto. Rotulava cada joia como se fosse uma peça de museu. Descrevia a gênese do desenho, as particularidades das pedras e de seu engaste
e, sempre que era o caso, o nome é os títulos da pessoa que a havia encomendado. As casas mais velhas resmungavam diante de tanta vulgaridade, mas Fosco lhes demolia
o esnobismo com uma declaração franca.
- Quero que minhas joias sejam faladas. Como pode uma mulher falar daquilo que desconhece? Explico meu trabalho e assim lhe acentuo o valor. Certo ou errado? Vejam
o resultado! Não tenho estoques mortos. Fico com a casa vazia depois de cada exposição...
Era de esperar que depois daquela tivesse dinheiro saindo pelo ladrão. Estavam na metade do circuito quando Lili me puxou pela manga e apontou para o catálogo. A
seção era intitulada "Uma Fantasia de Animais Raros” e se referia a uma coleção de borboletas, aves e outros animais cravejados de pedras para serem usados como
broches, pendentes, fechos, fivelas, brincos e guardiões simbólicos da castidade feminina. Lili apontava para o número 63, cuja descrição era a seguinte:
Salamandra. Broche na forma de um animal heráldico. Esmeraldas em pavé. Coroada com brilhantes e ornamentada com rubis da Birmânia. Adaptado de um desenho caligráfico.
Encomendado pelo Cav. Bruno Manzini, Bolonha.
A peça estava a seis metros de distância, colocada sobre um leito de veludo preto, numa pequena vitrine acima de uma coluna de alabastro. Não era uma joia espalhafatosa,
mas conservava o tipo e o talhado da caligrafia original, a tal ponto que, quando a comparei com o cartão, não tive a menor dúvida de que os desenhos fossem idênticos.
Afastei Lili da vitrine e levei-a para o ajuntamento de gente que havia em torno do bufê. Nesse mesmo instante, o Cavaliere Bruno Manzini entrou na galeria com a
Princesa Faubiani ao seu lado e um pequeno séquito de amigos e servidores. Fosco recebeu-os efusivamente, estalou os dedos para os garçons a fim de que trouxessem
champanha e catálogos, conduzindo-os então para uma visita às obras-primas sob sua direção pessoal.
O meu problema imediato era enfrenar Manzini antes que ele saísse da galeria. Eu o tinha ao alcance das mãos ali. Depois que ele saísse, poderia ter de procurá-lo
por toda a península. Por outro lado, não podia me arriscar a um escândalo na presença de jornalistas e de todos os fofoqueiros da cidade. Deixando Lili junto ao
bufê, fui até a entrada onde um homem moço e simpático substituía Fosco na recepção aos convidados. Apresentei-lhe o meu cartão.
- Carabinieri. Quem é o chefe dos guardas de segurança da casa?
- É aquele ali perto da escada. Um homem alto, de cabeça branca. Algum problema?'
- Não; simples rotina.
Levei o homem alto para um canto e mostrei-lhe o meu cartão, fazendo questão, porém, de que ele o lesse cuidadosamente antes de dar-lhe instruções.
- O caso é muito importante e não pode haver qualquer engano. Leve-me para o escritório particular de Fosco. Vou lhe dar um bilhete para o Cavaliere Bruno Manzini.
Leve-o até o escritório e depois se retire. Mas fique diante da porta e não deixe entrar ninguém enquanto estivermos conversando. Compreendeu?
- Compreendi. Não vai haver problema, vai?
- Nenhum. Observei os seus dispositivos de segurança. Tudo de primeira ordem.
Ficou todo feliz e me levou ao escritório de Fosco, um abrigo de invertido feito em vermelho Pompeia. Redigi um bilhete para Manzini no papel timbrado da casa. O
texto era respeitoso mas críptico e dizia:
Desculpe ser importuno mas tenho uma comunicação urgente e oficial. Tenha a bondade de acompanhar o portador até o escritório.
Matucci, 8ID.
Daí a três minutos, estava diante de mim, frio e condescendente como sempre. Não quis sentar-se. Alegou que tinha convidados à espera. Pediu que eu dissesse o que
queria o mais depressa possível.
- O que eu quero ainda se relaciona com o falecido General Pantaleone.
- E então?
- Pouco antes de morrer, ele recebeu uma comunicação que era na realidade um dossiê de toda a sua vida passada.
- E o que é que eu tenho com isso?
- Anexado ao dossiê veio este cartão. Tenha a bondade de notar o desenho, uma salamandra coroada. Verificamos que o desenho corresponde exatamente ao da peça n°
63 da exposição de Fosco, encomendada pelo senhor. Temos certeza de que vai querer explicar a relação.
- Por que haveria de querer isso, Coronel?
- Há uma questão de segurança nacional envolvida no caso.
- Trata-se de um fato ou de uma opinião?
- De um fato.
- E poderá explicá-lo de modo a me satisfazer?
- Creio que sim.
- Há qualquer sugestão de atividade criminal neste caso?
- Até agora, nenhuma.
- Que quer então de mim, Coronel?
- A esta altura, um debate particular.
- Quando?
- Agora, Cavaliere.
- Impossível. Estou ocupado com pessoas amigas.
- Depois então. No seu hotel, talvez.
- Meu caro Coronel, sou um homem de setenta anos. À meia-noite, estarei caindo de sono. Não conseguirá de mim sequer uma resposta lógica. Vamos transferir isso para
as nove da manhã no Grande Hotel e eu me esforçarei ao máximo por esclarecê-lo. Agora, dê-me licença.
- Algumas perguntas ainda antes que saia, Cavaliere.
- Sim?
- Que significa a salamandra?
- Sobrevivência. Foi meu nome de código durante a guerra. O resto é longo demais para que eu lhe conte agora.
- E a inscrição?
- É também uma história muito comprida.
- O começo então, faça o favor?
- O começo e o fim era que Pantaleone era meu irmão por parte de pai. Só que ele era legítimo e eu não.
Olhei-o boquiaberto como um idiota. Ele sorriu diante da minha confusão e fez um breve gesto conciliatório.
- Compreenda! Não estou querendo fazer teatro, mas apenas mostrando que precisamos de tempo para entender-nos. De acordo?
- De acordo.
- Agora, Coronel, quer responder a uma pergunta minha?
- Se estiver ao meu alcance.
- Quem matou Pantaleone?
- O atestado de óbito diz que ele morreu de uma parada cardíaca.
- Mas é isso que nos mata a todos, Coronel.
- Exatamente.
- Não há outro comentário?
- Nenhum. Até amanhã, Cavaliere.
- Meus cumprimentos, Coronel. Boa noite.
8
Por que não o fiz ficar? Por que não o bombardeei de perguntas enquanto ele estava meio desorientado? Já disse antes que ele era um homem muito especial, o melhor
de sua raça. Desorientado? Nem por um instante. Eu era o noviço inseguro que tentava firmar os pés e as mãos no paredão liso de uma montanha. Além disso, é preciso
deixar bem claro que estávamos na Itália, onde as leis datam do tempo de Justiniano e em mais da metade há séculos que não são espanadas, e onde as regras do jogo
são escritas na areia. Três pessoas no séquito de Manzini podiam imobilizar-me durante um mês, bastando para isso que pegasse um telefone. Vinte pessoas na festa
de Fosco poderiam despachar-me para sempre para o limbo dos aposentados. Quem já tentou receber um dinheiro ou fazer valer um direito contra a República deve compreender
o que eu estou dizendo. Na China, os inimigos eram afogados num banho de penas. Aqui, na Itália, os inimigos são asfixiados pelo silêncio e enterrados sob um mausoléu
de carta bollata.
Eram ainda dez e meia apenas. Salvei Lili da confusão do bufê e levei-a para jantar num lugar que eu conheço no Trastevere, onde a comida é honestamente toscana,
o vinho é honroso, os garçons têm orgulho em bem servir e há uma lareira de fogo aberto no inverno e caramanchão coberto de trepadeiras para as noites de verão.
Havia música também. Um sujeito magro e choroso com uma guitarra vinha à nossa mesa, quando se queria, e comovia a gente com as velhas canções do Sul. Eu era conhecido
ali, não em virtude de minha profissão, mas porque elogiava muito o cozinheiro e, de vez em quando, estava tão cheio de vinho que pegava a guitarra e cantava enquanto
o homem de cara triste comia o seu jantar.
Tinha amigos ali: Castiglione, que tinha sido um grande serralheiro até que a artrite o dominara; Monsenhor Arnolfo Ardizzone, da Secretaria de Estado do Vaticano,
um eclesiástico entendido e discreto, que renunciara ao casamento a fim de servir a Deus e adotara a garrafa como a única amante aceitável à Madre Igreja; Giuffredi,
o poeta, que escrevia sátiras em romanesco, que ninguém mais lia, e Maddalena, que vendia rosas colhidas na véspera a quinhentas liras por flor e de quem se dizia
que era dona de todo um bloco de apartamentos na Tuscolana. Verdade ou mentira? Nunca me dei ao trabalho de investigar. Aquele era um lugar onde ou podia ser eu
mesmo, fosse lá quem fosse. Aceitava a todos pelo seu valor facial. Não usava ninguém. Pagava a minha conta e era bem recebido na casa. Bastava! Todo mundo precisa
de um refúgio. Aquele era o meu.
Tentei explicar tudo isso a Lili enquanto percorríamos os últimos cem metros por entre ruas cheias de roupas penduradas e saímos num pequeno largo sob a guarda de
uma imagem empoeirada da Virgem numa caixa de vidro. Eu queria explicar, o que na minha profissão é uma fraqueza. Ela pareceu feliz em escutar-me, achegando-se a
mim enquanto passávamos sobre sarjetas e nos desviávamos de montões de lixo e os gatos do bairro iam esconder-se nas sombras. Às vezes, quando uma das raras luzes
lhe batia no rosto, ela parecia uma mocinha. Quando se benzeu diante do nicho da Virgem, pareceu uma camponesa cansada de um longo dia de trabalho nos campos. Podem
não acreditar, mas isso não me importava. Eu não estava mais procurando. Sentia-me apenas feliz de não estar sozinho.
Quando nos sentamos à mesa, com pão, vinho e uma vela acesa, Lili curvou-se para mim e pousou as mãos na minha.
- Você está tão diferente agora, Dante Alighieri!
- Diferente como?
- Na exposição de Fosco, você estava tenso e cauteloso como uma raposa. Agora, está descontraído e livre. Cumprimentou as pessoas que estavam aqui como seres humanos.
E elas tiveram alegria em vê-lo.
- Isto aqui é o Trastevere, meu bem. O outro lado do rio. Sabe como é que a gente daqui chama a si mesma? Noantri - nós outros. Negam-se a pertencer a alguém senão
a eles mesmos.
- Gosto disso. Por enquanto, nós também somos noantri. Posso tomar um pouco de vinho?
- Posso ficar bêbado e começar a cantar.
- Cantarei com você.
- E quem vai dirigir o carro para o outro lado do rio?
- Talvez não seja preciso mais voltarmos. Podemos ficar aqui para sempre.
Era um pensamento feliz e nós o alimentamos com toda a espécie de fantasias através da zuppa, da pasta, da griglia e dos dolci. Enfeitamos tudo com a música do homem
de voz chorosa, que se sentou num tamborete ao lado de Lili e cantou para ela as curiosidades de seu repertório, “Canção das Lavadeiras de Vomero”, “Não Confie nas
Solteironas, Amigo”, “Canção de Tirar a Roupa” e “História do Vendedor de Tamancos Devasso”.
Bateu meia-noite e ainda estávamos cantando. À uma e meia da madrugada, estávamos um pouco tontos e os garçons começaram a dar sinais de impaciência. Saímos então
para o larguinho, demos boa noite à imagem solitária e nos encaminhamos para o lugar onde havíamos deixado o carro, à beira do rio.
Lili murmurou com voz pastosa: - Sabe de uma coisa?
- Que é?
- Quero ir para a cama com você, mas não em minha casa.
- Por quê?
- Porque minha casa é o dia de ontem, que eu quero esquecer.
- E o dia de amanha?
- O dia de amanhã só vai começar quando o sol nascer e isto aqui estiver feio, malcheiroso e cheio de gente triste e com medo, e você se mostrar de novo esperto
e cauteloso.
- Vamos seguir então pela estrada de contorno. Há um lugar que eu conheço...
- Onde quiser, caro mio. Onde quiser...
- Tenho de dar um telefonema antes.
- Por quê?
- Deixei seu telefone com o oficial de plantão. Tenho de saber se há alguma coisa e dar um novo telefone.
- Não há jeito mesmo de se fugir, não é?
- Já fugimos esta noite.
- É verdade, mas você tem de telefonar...
- Por favor, Lili.
- Por favor, dê-me um beijo...
Caso estejam esperando - como eu estava - por uma feliz história de amor e sexo, podem deixar de pensar nisso! À minha noite de liberdade terminou com aquele beijo.
Telefonei para a sede da cabine telefônica da esquina. Eram 2h10 da manhã. O oficial de plantão me disse que meu agente Calvi não havia telefonado às duas horas.
O que eu queria que se fizesse? Ordenei duas viaturas de nossa unidade móvel; uma para ir pegar o velho Stefanelli em casa e outra para encontrar-se comigo no escritório
do advogado. Chamei um táxi que passava, fiz Lili embarcar nele e mandei-a para casa. Tomei então meu carro e saí como um louco através da cidade adormecida.
O escritório do Dr. Sergio Bandinelli ficava no quinto andar de um edifício grande e moderno na Via Sicília, a apenas duzentos metros da agitação da Via Veneto.
Quando cheguei, o carro de nossa unidade móvel já estava parado perto da porta. O segundo, que trazia Steffi e sua mala preta, dobrou a esquina alguns instantes
depois. Antes de entrarmos no edifício, dei algumas instruções precisas aos homens. O caso era da maior importância para a segurança. Nada de policia, nem de repórteres
ou de curiosos. Dois homens tinham de ficar de guarda aos carros, um vigiaria o porteiro do edifício e três subiriam com Steffi e comigo até o quinto andar. Em seguida,
tocamos a campainha.
O porteiro, com os olhos vermelhos de sono e resmungando, abriu a porta e começou imediatamente a fazer uma porção de perguntas, Mostramos as carteiras e o deixamos
ainda a fazer perguntas enquanto tomávamos o elevador para o quinto andar. O escritório de Bandinelli estava às escuras e a porta, fechada, mas sem o trinco. Entrei
na frente e acendi as luzes.
A cena estava curiosamente tranquila. O Dr. Bandinelli estava estendido num sofá de couro. O agente Giampiero Calvi estava sentado na cadeira da mesa, com a cabeça
pousada nos braços. Na mesa, no lado dele, havia um romance de Moravia, uma pistola carregada, dois sanduíches de presunto, um ovo cozido e uma garrafa térmica de
café. Os dois homens estavam imóveis. O velho Steffi cheirou o ar, fez um breve exame nos dois homens e disse: - Mortos. Gás de ácido cianídrico. Aplicado por pistola
ou compressão.
Examinei o cofre. Os selos estavam quebrados, a porta, aberta, e os papéis de Pantaleone, desaparecidos. A tentação era entrar imediatamente em ação: processo legal
com inquirição de testemunhas e tudo mais. Era uma tentação difícil de resistir para quem, como eu, tivera treinamento policial, mas que na minha espécie de trabalho
podia ser fatal. Peguei o telefone e liguei para a casa do Diretor. Ele atendeu com surpreendente presteza.
- Estamos com um grave problema - disse-lhe eu. - Documentos desaparecidos e duas trouxas de roupa suja que devem ser removidas imediatamente. Uma delas é um dos
nossos homens.
- E então?
- Logo que der um jeito na situação, irei fazer um relatório pessoal.
- Quando lhe vai ser possível?
- Antes do café da manhã, talvez.
- Vou esperá-lo então para o café. Quanto mais cedo, melhor.
Steffi levantou a cabeça e cacarejou para mim, como um velho papagaio eriçado:
- Logo que der um jeito na situação, hem? Quer dizer que agora está no ramo dos milagres, não é?
Os homens da unidade móvel estavam visivelmente nervosos à espera de minhas decisões. O problema era que qualquer decisão acarretaria consequências altamente explosivas.
Se pusesse a polícia em ação com interrogatórios e o mais que se segue, os repórteres apareceriam como vespas em tomo de um vidro de mel. Logo que soubessem do desaparecimento
dos papéis de Pantaleone, começariam a fazer perguntas sobre a morte e o apressado enterro de Pantaleone. Por outro lado, se não pudéssemos interrogar livremente,
teríamos sérias dificuldades em reconstituir os fatos daquela noite e, portanto, em recuperar os documentos de Pantaleone. Além disso, tínhamos nas mãos dois corpos,
aos quais era preciso dar um destino de maneira, convincente, ainda que não muito legal. Como de costume, Steffi tinha razão. Estávamos, quer quiséssemos, quer não,
no ramo dos milagres. Estava, portanto, na hora de dar início ao ritual.
O primeiro problema era removei' os corpos do edifício sem confusão, nem comentários. Mandei Steffi descer para interrogar o porteiro no seu cubículo, de onde não
se via a entrada. A conversa de Steffi era capaz de hipnotizar um galo de briga. Eu esperava assim distrair o porteiro de tal modo que ele deixasse de ver uma manada
de elefantes a dois metros de seu nariz.
Em seguida, esvaziamos os bolsos de Bandinelli e os de Calvi também. Os homens da unidade móvel levaram os corpos para o elevador e desceram com eles para o térreo,
levando-os então para os carros estacionados como se fossem dois bêbados retardatários. Um carro levou os restos de Bandinelli para o departamento de acidentados
do Policlínico. O outro depositou Calvi no Hospital das Irmãs Azuis. Em ambos os casos, a história contada foi a mesma. A unidade móvel tinha encontrado o homem
inconsciente num canto de rua. Queriam confiá-lo ao hospital enquanto faziam investigações para apurar a identidade. Já estava morto? Que pena! Deem-nos então um
recibo e guardem-no no necrotério enquanto completamos as investigações!
Parece ingênuo? Devo explicar então que ainda que a avó de alguém, com todos os seus documentos na bolsa, se sinta mal em plena rua e seja levada para um hospital
por algum bom samaritano, pode-se passar bem uma semana antes que a família a encontre. Não temos na maior parte do tempo muito jeito para a administração, mas o
nosso serviço de saúde pública é uma confusão indescritível. A menos que se vá para uma clínica de luxo, pode-se descobrir que o exame de sangue com o nosso nome
pertence na realidade a uma dançarina de balé e que a urina foi colhida de um camarada que pegou uma doença venérea em Fregene. Desse modo, de acordo com todas as
regras do jogo, dois corpos não identificados ficariam sem que ninguém os reclamasse até que estivéssemos em condições de tratar deles.
Enquanto Stefanelli estava conversando com o porteiro, bebi o café de Calvi, comi um de seus sanduíches de presunto e examinei as anotações em seu caderno.
20:00 horas: O pessoal de Bandinelli saiu.
20:30 Completei a relação de todos os papéis de Pantaleone. Tranquei e selei o cofre na presença de Bandinelli. Assinei o recibo dos papéis e das chaves. Bandinelli
saiu.
21:00 Telefonei para o oficial de plantão na sede.
21:25 Chegaram as encarregadas da limpeza.
21:55 As encarregadas da limpeza saíram.
22:00 Telefonei para o oficial de plantão na sede.
23:00 Telefonei para o oficial de plantão na sede.
23:36 Fiz uma inspeção final do quinto andar.
24:00 Telefonei para o oficial de plantão na sede.
00:37 Bandinelli telefonou. Queria vir ao escritório para uma conferência urgente com dois clientes. Explicou que se tratava de um caso policial e que não me incomodaria,
pois usaria a sala da frente para a conferência. Desde que minhas instruções só se referiam à guarda do cofre e do seu conteúdo, e não tinha autoridade para negar-lhe
acesso ao seu escritório, concordei.
01:00 Telefonei para o oficial de plantão. Pedi-lhe que anotasse o pedido de Bandinelli e a minha decisão.
Não havia mais anotações. Telefonei também para o oficial de plantão e ele me confirmou os telefonemas de Calvi, consultando os seus registros. Isso deixava em aberto
uma questão muito importante: Bandinelli fora até ali ao escritório sob coação ou como um cúmplice, que fora eliminado depois de terminada a sua utilidade? Ainda
estava empenhado nesse ponto quando Steffi voltou, mal-humorado e carrancudo.
O porteiro de nada sabia e não tinha visto ninguém. Agia rigorosamente dentro dos termos do seu contrato, o qual estipulava que ele ficaria acordado e em serviço
até meia-noite ou até que as encarregadas da limpeza saíssem. Depois disso, podia ir dormir. Todos os inquilinos tinham a chave da porta da frente e podiam ter livre
acesso a qualquer hora aos seus escritórios. Os estranhos não podiam entrar fora das horas de expediente dos escritórios, salvo se pudessem identificar-se como encarregados
de limpeza ou empreiteiros.
- Em resumo, Steffi, qualquer pessoa, de posse da chave da porta da frente, podia fazer entrar até um exército no edifício sem que ninguém soubesse?
- Mais ou menos isso, Coronel.
- Onde estaria Bandinelli quando telefonou para cá trinta e sete minutos depois da meia-noite?
- Só há um jeito de saber, Coronel. Telefone para a casa dele.
Tomei a pegar o telefone e liguei para a vila de Bandinelli no bairro de Cássia. O telefone tocou por muito tempo até que uma voz zangada de homem atendeu.
- Vila Bandinelli. Quem fala?
- Carabinieri. Queremos falar com o advogado.
- Não está.
- Com a senhora dele então.
- A Signora está em Nápoles.
- Quem está falando?
- De Muro, o mordomo.
- Onde posso encontrar o advogado?
- Como é que vou saber a estas horas?
- A que horas ele saiu?
- Desde ontem de manhã não tem vindo em casa. Telefonou à tardinha para dizer que não viria jantar em casa.
- Não faz ideia de onde ele pode estar?
- De maneira alguma.
- Muito obrigado. Boa noite.
O homem não retribuiu o cumprimento e me bateu o telefone.
- Nada? - perguntou Steffi.
- Nada. A mulher dele está fora e ele não foi jantar em casa.
- Bem, isso ajuda a sua pequena ficção a respeito de um corpo não identificado.
- Mas nada me diz sobre quem cometeu o crime e levou os documentos.
- E isso tem importância, Coronel?
- Pelo amor de Deus, Steffi! Que espécie de pergunta é essa sua?
- Na minha opinião, uma pergunta muito certa, Coronel. Senão, vejamos. O crime foi um trabalho profissional, claro, tranquilo, simples como o andar. Quem é que o
senhor deseja pegar, os executantes ou a pessoa que os encarregou do crime? Não temos de fazer trabalho policial, meu caro, mas um esforço de análise, um exercício
de puro raciocínio. Comece de baixo e daqui a seis meses ainda estará dando voltas em torno das sarjetas. Comece do alto e não só reduzirá o seu trabalho à metade,
mas também duplicará suas chances. Creia em mim!
- Creio em você, Steffi. Mas acontece que dentro de poucas horas terei de enfrentar o Diretor. O que lhe vou oferecer?
- Sacrifícios humanos... - murmurou Steffi com uma cara patibular. - Vamos então tomar um pouco de café, Coronel, e selecionar os candidatos.
9
O apartamento do Diretor ficava no último andar de um palácio do século XVI perto da Via della Serofa. A renda do aluguel do resto do palácio - residências e lojas
elegantes - daria para que ele vivesse em condições principescas pelo resto da vida. Quadros, esculturas e objetos de valor eram por si só uma fortuna. A sua biblioteca
era um pequeno tesouro de edições raras, estudos especializados e poesia exótica em várias línguas. O Diretor era também uma peça exótica, resplandecente num robe
de brocado e servido por um musculoso siciliano que era ao mesmo tempo mordomo e guarda-costas. Às seis da manhã, desalinhado, de barba grande e inseguro, não me
sentia com disposição para apreciar o efeito dramático.
O Diretor me recebeu com uma acolhida fria e um breakfast inglês - chá, torradas, ovos e geleia. Pedi café e pastéis. O Diretor me atendeu nesse ponto e começou
então a marcar pontos a seu favor.
- Sabia que os papéis de Pantaleone eram importantes, Coronel. Por que não tomou posse imediatamente deles?
- Precisava de um mandado judicial. Para consegui-lo, teria de comparecer à presença de um juiz contra Bandinelli. Julguei isso desaconselhável.
- Entrou então num acordo, do qual resultou na morte do agente Calvi e do próprio Bandinelli?
- É verdade.
- Alguma justificativa?
- Nenhuma. Apenas uma explicação. Eu estava tentando assustar Bandinelli para forçá-lo a outras revelações. Julguei que o risco de segurança fosse mínimo. Nisso,
estava errado.
- Quem mais sabe dos fatos neste momento?
- Só o SID. Removemos os corpos e deixamos o escritório todo arrumado às quatro da manhã. Podemos manter uma situação de impasse durante alguns dias no mínimo.
- Mas não sabemos com quem estão os papéis de Pantaleone?
- Não.
- Vamos então fazer conjecturas, Coronel. Um grupo local ou estrangeiro?
- Na minha opinião, local.
- Da direita ou da esquerda?
- Da direita.
- Por quê?
- A esquerda tem muita sujeira que ainda não publicou. A direita tem muita sujeira que deseja ver enterrada.... Creio que o que aconteceu esta noite foi um trabalho
de sepultamento.
- Sabe que não me convenceu, Coronel?
- Não estou procurando convencê-lo, Diretor. Estou apenas dizendo o que penso. Se está pensando em Pica-pau e na sua rede, é melhor esquecê-lo. Mandei-o prender
hoje às quatro da madrugada e interroguei-o pessoalmente durante quase duas horas antes de vir para cá. Sei quais são as instruções dele e o assassinato não figura
entre elas. Além disso, tem estado sob constante vigilância e não possui os recursos, nem os controles necessários para realizar um trabalho assim em meio dia. Vejamos
agora o reverso da moeda. Bandinelli era da direita e servia a Pantaleone. Poderia ter-se passado para um sucessor...
- E foi morto por isso?
- É possível também.
- Indique-me um possível sucessor.
- O Major-General Marcantonio Leporello.
Pela primeira vez, o Diretor ficou abalado e deu uma demonstração disso. Deixou cair ruidosamente a xícara de chá e me encarou por algum tempo com olhos perturbados
e hostis. Disse por fim calmamente: - Tem alguma prova em apoio do que afirma, Coronel?
- Mais ou menos. Conversei com o General ontem no Hotel Hassler.
- Fez o quê?
- Conversei com Leporello.
- Apesar das minhas ordens de que nenhuma ação devia ser empreendida nesse sentido?
- Sim, Diretor.
- E que foi que disse a ele?
- Disse que ele estava sob vigilância de uma rede de espionagem estrangeira que via nele um possível candidato político da direita.
- Que foi mais que disse?
- Revelei onde estavam os papéis de Pantaleone.
- Oh...
- Disse-lhe também que estava agindo contra ordens expressas do senhor.
- E qual foi a reação dele?
- Prometeu guardar segredo sobre o nosso encontro e me ofereceu um lugar no serviço dele.
- Estou tentado a transferi-lo imediatamente, Matucci.
- Está no seu direito e, pensando bem, talvez não fosse má ideia do ponto de vista do Serviço.
- Está me provocando, Matucci, e eu não gosto disso.
- Está me ameaçando, Diretor, e eu também não gosto disso.
- Desobedece às ordens e isso é perigoso.
- Foi um risco que eu assumi. E creio que deu resultados.
- Que resultados? Isso só lhe deu um suspeito conveniente. Nada mais.
- Um pouco mais.
- Que foi?
- Identifiquei a Salamandra.
Isso o impressionou. Segurava um pedaço de torrada com manteiga e deixou-o parado entre o prato e os lábios finos. Por fim, meteu-o na boca e mastigou-o pensativamente.
Disse então: - E pretende dizer-me quem é?
- É claro. Se eu ainda estiver no Serviço às nove da manhã de hoje, vou ter um encontro com ele. É o Cavaliere Bruno Manzini. Disse-me ele, e espero confirmá-lo
com os registros, que era irmão bastardo do General Pantaleone.
- Primeiro, Leporello e agora, Manzini. Leporello é seu superior militar. Manzini é um dos mais importantes financistas da Itália. Os seus voos estão sendo muito
altos, meu caro.
- E pode derrubar-me na hora em que quiser.
- Talvez isso não me seja necessário. Quem matou Calvi poderia matá-lo com a mesma facilidade.
- Eu sei
- Vamos supor que eu o deixe prosseguir...
- Neste caso, quero carta branca e acesso ao dossiê de Leporello.
- Posso confiar em você, Matucci?
- Pode, mas prefere não confiar.
- Confia em mim?
- Com reservas, sim.
- Quais são as reservas?
- O senhor é o Diretor. Sei o que está incumbido de fazer. Não sei é como interpreta essa incumbência e para que fins secretos encaminha a atividade do SID.
- E tem algum direito de saber?
- Legalmente, creio que não. Sou um servidor e a mim só me cabe cumprir as ordens dadas e basta. Pessoalmente, a coisa muda de figura. Se me fizesse a mesma pergunta
há uma semana, eu lhe daria uma resposta agradável e complacente. Tome conta de mim, guie-me e cuide de meu direito à aposentadoria. Hoje de manhã, a coisa é outra.
Sou um homem de meia-idade, estou cansado, não fiz a barba e perdi um bom homem porque não pensei como devia. Por isso, não quero mais ser manobrado. Quero saber
aonde sou levado e por que motivo... Se não gostar, renunciarei ao meu cargo com o senhor e irei fazer trabalho de secretaria ou de polícia.
O Diretor acabou de tomar o chá e limpou os lábios com um guardanapo de linho. Empurrou para trás a cadeira, foi até a janela e ficou muito tempo olhando para os
telhados que rolavam de Roma e que se mostravam dourados, castanhos e avermelhados à luz matinal. Quando se voltou para mim, a luz estava às suas costas e os contornos
de seu rosto estavam em sombra. Começou a falar, a princípio calmamente mas com paixão e eloquência crescentes.
- É um homem presunçoso, Coronel. Contudo, posso perdoá-lo porque também sou presunçoso com frequência e em demasia. Sou presunçoso quanto à minha família, quanto
à minha fortuna e quanto a considerar-me um produto de todas as alianças felizes e infelizes de nossa história. De certo modo, sou um homem de ontem, mas também
a Itália é um país de ontem tanto quanto hoje. Construímos nossas casas sobre túmulos. Levantamos nossa prosperidade sobre ruínas, monumentos papais e o gênio dos
antigos mortos. Nossas leis são uma mistura disparatada de Justiniano, do Código de Direito Canônico, de Napoleão, de Mussolini e dos fundadores dos Estados Unidos.
Nossa nobreza é uma salada de velhas famílias e dos arrivistas posteriores enobrecidos pela Casa de Savoia. Em política, somos marxistas, monarquistas, socialistas,
liberais, fascistas e democratas-cristãos - oportunistas todos! Somos os melhores homens de negócios e os piores burocratas do mundo. Somos uma nação de anticlericais
e há séculos manobramos a Igreja Católica. Proclamamos uma democracia republicana federal e temos em cada província um continente à parte. O país de cada homem é
a miserável aldeia em que por acaso nasceu ... Agora, você, meu caro Coronel, quer que eu lhe diga os fins que tenho em vista e para onde estou encaminhando o Serviço
de Informações da Defesa... Deixe-me inverter a questão e perguntar o que era que você faria se estivesse no meu lugar, como um dia poderá estar se tiver frieza
e habilidade suficientes e estiver disposto a pagar o preço que terá de ser pago... Não tem resposta? Então aqui está a minha. Os nossos problemas não serão resolvidos
por uma eleição, por uma coligação de partidos ou pela vitória de um sistema sobre outro. Somos mediterrâneos, Coronel. Somos, quer isso nos agrade, quer não, uma
mistura mestiça de gregos, latinos, fenícios, árabes, celtiberos, vikings, visigodos e dos hunos de Átila. Vivemos, como há séculos estamos vivendo, num equilíbrio
precário de interesses de tribos e de famílias. Quando o equilíbrio se quebra ainda que ligeiramente, mergulhamos na desordem e na luta civil. Quando essa luta se
toma sangrenta para todos nós, pedimos trégua e um libertador, que pode ser a Igreja, um salvador pessoal ou, o que é o mais patético de tudo, políticos e burocratas
tão ensanguentados e confusos como todos nós. Os espanhóis, os gregos e os portugueses recorreram a ditadores. Os árabes se livraram das potências coloniais e as
substituíram por autocratas locais. Nós, italianos, experimentamos um ditador e reduzimos a democracia a cacos. Agora, não sabemos o que queremos. Eu? Não sei o
que o povo quer. Não posso nem julgar o que tolerará. Em vista disso, manejo informações e situações para manter as coisas em equilíbrio tanto quanto me for possível.
Não quero uma ditadura e não quero o marxismo. Tenho certeza de que a espécie de democracia que temos é instável demais para durar. Mas, aconteça o que acontecer,
tentarei fazer o que vier o mais tolerável possível. A política é a arte do possível. A política mediterrânea é a arte do impossível e eu compreendo isso mais do
que a maioria. Você está preocupado com Leporello, mas não tem provas contra ele e eu não vou antagonizá-lo no momento exato em que podemos precisar dele. Está preocupado
com a Salamandra que, confesso, não faz sentido ainda para mim. Quer fazer uma investigação livre? Concordo com isso, mas compreenda, Matucci. Quando eu começar
a me mover no tabuleiro, o rei serei eu e você passará a simples peão. Serve assim?
Respondi-lhe sem um segundo de hesitação.
- Serve. Aceito. Darei um relatório leal dos fatos. Se não gostar do que o senhor fizer, direi francamente e discutiremos o caso. Se não chegarmos a um acordo, eu
o combaterei mas em campo aberto.
- É uma promessa difícil a sua, Matucci, e eu não a quero. Se tiver de lutar comigo, mentirá como uma prostituta e fará trapaças como um ladrão de jogo só para salvar
a pele... Agora, escute, não pode apresentar-se diante de Manzini com essa aparência. Meu criado vai levá-lo ao quarto dos hóspedes e arranjar-lhe uma navalha e
uma camisa limpa.
10
Às oito horas naquela mesma manhã de primavera, com uma hora ainda de tempo antes do meu encontro com Manzini, encontrei-me com o velho Stefanelli quando ele descia
assobiando os degraus da Escadaria Espanhola. O sol estava brilhante e o ar, vivo; todos os degraus da escadaria refloriam de moças. Eu havia passado a noite em
claro, mas me sentia miraculosamente renovado e podia sentir a seiva subir até pelo tronco emurchecido de Steffi.
Era aquilo o que havia de melhor em Roma, aquele cheiro de pó, de mulheres, de pão fresco e violetas desabrochadas; a algazarra das comadres a caminho das compras,
o buzinar dos táxis, a solene parada dos turistas, pálidos das névoas da Dinamarca e do norte da Alemanha; o rolar dos zimbórios, das torres e dos telhados vermelhos,
coroados de cordas de roupa e de antenas de televisão. Era aquela a fonte da juventude, que enchia um homem de fantasias e lhe punha cantos de pássaros na cabeça
e asas nos pés com joanetes,
No fim dos degraus, paramos a fim de que Steffi pudesse comprar um cravo para botar na lapela. Depois, passamos pela Casa de Chá de Rabington, onde Steffi prometera
encontrar-se com Solimbene que ia comprar chá e muffins ingleses. Solimbene era um pedante amável que gostava de pequenas excentricidades - smoking jackets de veludo,
gravatas fin de siècle, selos de ouro para correntes de relógio e óculos presos por uma fita de seda clara. Alimentava ainda uma paixão por mulheres ruivas e costumes
ingleses, embora nunca em sua vida tivesse ido além de Paris.
Fomos encontrá-lo entronizado num canto da casa de chá segurando a mão de uma garçonete loura e extravasando a sua paixão num alemão execrável. Largou-lhe a mão
a contragosto e voltou para Steffi o fluxo de sua eloquência.
- Meu caro colega! Meu irmão de armas e de arte! Tenho revelações para você, meu Steffi! Revelações, mistérios e escândalos. Não ria! Seu ofício é horrível - sangue,
pó, excremento e roupas arrancadas dos mortos. E eu? Eu vivo entre contos de fada - grifos rampantes, leões agachados, delfins dançantes e espadas mágicas em mãos
incorpóreas... Mas, quando se precisa de um fato simples, quem é que o encontra? Eu, Solimbene, o heraldista!... Sim, meu amor, chá, muffins e marmalade inglesa.
Café é bebida para loucos. Produz dispepsia e resseca os rins... Agora, meus amigos, vamos começar por isto - disse ele, colocando o cartão da salamandra em cima
da mesa e espetando-o com um garfo de bolo. - Não se trata absolutamente de heráldica, mas de caligrafia, que é uma arte de monges. Até a coroa é corrompida. Entretanto,
mutatis mutandis, eu estava disposto a aceitar uma origem heráldica. Resultado? Comecei a caçar salamandras em todos os escudos de armas da Europa. Loucura! Loucura
total! Por fim, reduzi o número de possibilidades a cinco. Ainda loucura! - Estendeu na mesa algumas fotografias. - Estas duas famílias estão extintas. O único sobrevivente
desta é um monge na Certosa de Florença. O que nos leva, caros amigos, a esta última fotografia. Encontrei-a relacionada em nossos arquivos sob a rubrica Curiosidades
e Exotismos. Ali está a nossa salamandra no primeiro e no quarto quartéis; os suportes são leões rampantes. Como veem, é tudo muito bem executado. Só há um problema.
Não é absolutamente um brasão, mas uma concepção de artista. Não pertence a qualquer família conhecida.
Stefanelli encolheu os ombros e abriu os braços num gesto levantino.
- Tão belo e não significa nada. Por que nos está mostrando isso?
- Oh, significa alguma coisa, cara colega! Significa até muita coisa - fraude, falsificação e suculentos escândalos. Que idade tem você, Steffi?
- Não é de sua conta.
- Espere aí, deixe de ser tão sensível. Afinal, eu estou lhe fazendo um favor.
- Não se trata de favor algum. Você está sendo muito bem pago, desde que o Coronel aqui autorize a despesa.
A garçonete voltou com o chá e os muffins e Solimbene a deteve de novo com agradecimentos e galanteios. Depois, quando ela conseguiu desvencilhar-se, ele deu início
a outra comédia com o caderno de notas, os óculos e um novo florir de retórica.
- No ano da graça de Nosso Senhor de 1910, quando Pio X reinava gloriosamente e você, meu caro Steffi, ainda usava fraldas, vivia não muito longe daqui uma mulher
de muito alto coturno que se chamava Condessa Salamandra. Só recebia em casa os nobres e os ricos, entre os quais um certo cantor de ópera que, ao sair da casa bem
cedo uma manhã, foi morto a tiros, presumivelmente por um rival enciumado. Houve, naturalmente, escândalo. A dama, assistida por alguns dos seus clientes, fugiu
do país e foi viver em Nice. As investigações da polida apuraram que a Condessa Salamandra não era de modo algum uma condessa, mas uma jovem escocesa de nome Anne
Mackenzie que, tendo caído em desfavor numa cama nobre, decidira enriquecer pelos mesmos meios... Que tal este início, Coronel? Vai autorizar a despesa? Ou já está
farto da história?
- Continue, homem! Continue!
- Este brasão foi usado pela Condessa Salamandra. Ela mandou fabricá-lo com intuitos profissionais.
- Só isso?
- Só isso! - exclamou Solimbene, indignado. - Meu caro Coronel, quando eu faço um serviço, faço-o completo! Andei por toda esta cidade a seu serviço. Trabalhei como
uma toupeira nos arquivos do Registro Central. Passei horas preciosas de minha vida com velhas matronas murchas que me curaram quase, mas não de todo, dos pecados
da concupiscência. Ouça: a Srta. Anne Mackenzie serviu durante algum tempo na casa do Conde Massimo Pantaleone, como governanta das filhas dele. Ficou grávida do
velho conde e deixou a casa. Em agosto de 1900, casou-se com um tal Luca Salamandra, dado na certidão de casamento como artista de circo e que, dois dias depois
da cerimônia, caiu de um trapézio e quebrou o pescoço. A criança, um menino, nasceu uma semana depois e foi batizado como Massimo Salamandra na igreja dos capuchinhos
da Vila delle Zoccolette. Tenho aqui as certidões do casamento e do batismo, ambas datadas de 1900. Em outubro daquele mesmo ano, uma senhora que se chamava Condessa
Salamandra instalou-se no Palazzo Cherubini, pertinho daqui, e começou a preparar a sua entrada na sociedade romana. É uma hipótese lógica, reforçada pela conversa
de minhas velhas, que ela foi financiada nessa aventura por uma generosa mesada do velho Conde Pantaleone.
- E que foi que aconteceu ao garoto?
- A mãe levou-o com ela quando fugiu para Nice. Depois disso, não há notícia alguma até 1923, quando um jovem chamado Massimo Salamandra compareceu perante um tribunal
aqui em Roma e requereu a mudança de seu nome para Bruno Manzini. O tribunal aprovou o pedido e tudo foi consagrado nos livros do Registro Central de Roma, que foi
onde eu encontrei a informação ontem... Agora, senhores, recebo ou não o dinheiro?
Não lhe disse nada disso, mas naquele momento ele poderia ter até triplicado o preço sem que eu reclamasse. Quando se está jogando contra a casa, é sempre bom ter
um ás escondido na manga. É claro que nem isso adianta nada quando todo o resto do baralho está preparado contra a gente.
O Cavaliere Bruno Manzini me recebeu num apartamento que tinha espaço suficiente para alojar uma divisão de infantaria e mais o pessoal administrativo. Estava com
o rosto muito benigno naquela manhã As suas maneiras eram impecáveis e ele chegou ao ponto de indagar pela minha saúde.
- Está um pouco pálido hoje, Coronel. Foi dormir tarde?
- Não fui dormir ainda, Cavaliere!
- Não me diga! Se eu soubesse, poderíamos ter marcado o nosso encontro para depois.
- É muita bondade sua, mas eu preciso desesperadamente de todas as informações que o senhor puder me dar.
- Vamos então ganhar tempo. Que é que já sabe?
- Que sua mãe se chamava Anne Mackenzie e trabalhou como governanta na casa de Pantaleone. O senhor é filho da união dela com o velho conde. Foi batizado como Massimo
Salamandra, em Roma, no ano de 1900. Sua mãe, por questões de interesse pessoal, adotou um título de nobreza fictício e um brasão que correspondia a esse título.
A figura da salamandra aparece nesse brasão. Em 1923, o senhor conseguiu da justiça a mudança de seu nome para Bruno Manzini...
- Como conseguiu saber de tudo isso?
- Um pouco de sorte, um pouco de heráldica e o Registro Central.
- O que mais pode dizer?
- Isso depende de quanto estiver disposto a dizer a mim, Cavaliere.
- O que quiser saber.
- É verdade mesmo?
- Eu não diria se não fosse.
- Por que estava então fazendo chantagem com seu irmão?
- Chantagem? Meu caro Matucci, desde o fim da guerra, eu me tomei fabulosamente rico. Eu poderia ter comprado e vendido meu irmão por vinte vezes o que ele tinha.
Eu o estava ameaçando era de desmoralização pública! Se ele tivesse persistido naquela política demente dele, eu o teria desmascarado sem dó nem piedade.
- Em vez disso, matou-o.
- Que foi que disse?
- Ele morreu de uma dose excessiva de barbitúricos, que ele mesmo tomou.
- Esse fato não foi publicamente divulgado. Por quê?
- De modo geral, Cavaliere, pelo receio de um escândalo político que poderia provocar distúrbios civis.
- Eu poderia agora promover o escândalo.
- E vai fazer isso?
- Não. Isso prejudicaria os meus objetivos, que são iguais aos seus: evitar crises políticas e violência civil.
- Passemos então à pergunta seguinte. Se o documento que mandou a seu irmão caísse em outras mãos, que utilidade teria?
- Agora que ele está morto, bem pouca. Um jornal poderia publicar tudo e conseguir um sucesso de escândalo durante dez dias, depois do que tudo seria esquecido.
Por que pergunta?
- Porque todos os papéis de Pantaleone foram roubados esta noite dos escritórios do Dr. Sergio Bandinelli. O advogado e um de nossos agentes foram assassinados.
- A imprensa não noticiou nada disso.
- Nem vai noticiar, a não ser que o senhor prefira comunicar tudo aos jornais.
Ele me olhou numa incredulidade perplexa. Depois, sacudiu a cabeça como um homem que desperta de um sonho e ainda não sabe onde é que está. Falou então lenta e espaçadamente
como se as palavras fossem incapazes de traduzir-lhe os pensamentos.
- Não acredito, não posso acreditar que um homem inteligente possa entregar-se assim a um estranho... O senhor deixou-me uma bomba atômica nas mãos, Coronel... Eu
poderia incendiar o país com isso... Será possível que não veja? O senhor, um servidor público, falsificou o registro de um suicídio... e está ocultando dois crimes...
Como sabe que não vou pegar o telefone neste momento e contar tudo à imprensa, inclusive aos jornais de minha propriedade, e espalhar a notícia pelo inundo inteiro?
- Não sei, Cavaliere. Estou jogando.
- Neste caso, é um louco.
- Só o serei se o senhor pegar o telefone. Do contrário, se puser o conhecimento que tem a minha disposição, serei o homem mais sensato de Roma.
- Mas não tem garantias, não é mesmo?
- Neste mundo cão, Cavaliere, não há garantias e o senhor sabe muito bem disso. A lei não é mais que uma leve crosta sobre um formigueiro. A própria morte é agora
um grande negócio, um negócio internacional. Quem quer matar alguém em Israel manda os assassinos de avião do Japão. Quando se quer um crime de morte em Veneza,
telefona-se para Londres ou Munique e o assassino chega no dia seguinte. Sequestrar um avião? É simples, Assina-se o contrato em Nova York, os homens embarcam em
Estocolmo e o avião é levado para a Líbia, se assim se achar conveniente... Tenho de confiar em alguém. Vamos dizer que confio no senhor, porque despreza a profissão
que eu exerço e não faz segredo disso... Agora, podemos prosseguir?
- Vai verificar as minhas respostas?
- Como se eu fosse o próprio Grande Inquisidor.
- Assim é melhor. Pode começar.
- Cavaliere, que esperaria encontrar nos papéis de Pantaleone que valesse duas vidas e o próprio crime?
Pensou durante algum tempo antes de me responder: - Nos papéis de família propriamente ditos, muito pouca coisa. Haveria escrituras, documentos de transações comerciais,
testamentos, acordos, velhas cartas, algumas talvez escandalosas, mas de interesse apenas para o historiador social... Nos papéis pessoais de meu irmão? Bem, podemos
pensar nele como um soldado político que disputava um jogo de poder. Devia ter dossiês sobre amigos e inimigos. Alguns desses dossiês poderiam ser valiosos para
as próprias pessoas visadas ou para os seus rivais políticos. Mas por isso chegar ao crime? Não estou entendendo. O senhor é perito em dossiês. Eu também os uso
nos meus negócios. Mas que importância têm eles? Todos na Itália sabem as sujeiras - muitas ou poucas - dos vizinhos. Somos todos fofoqueiros e amigos de escândalos
e, quando não existem, nós os inventamos. É uma doença social, só tolerável porque é endêmica, como a sífilis entre os cossacos. Nossa moral sexual é especial, nossa
ética social é inexistente. Depois dos fascistas e da guerra, depois da ocupação e da luta pelo comércio mundial, da história recente do Vaticano e de toda a chicana
de nossa atual política, quem pode ter as mãos limpas? Não importa o que meu irmão tenha escrito em seus cadernos, pode apostar que vinte pessoas sabiam disso antes
dele. Não digo que o material não pudesse ser valioso... Mas a morte de um advogado e de um agente do governo por isso é incompreensível... Não, deve ser outra coisa...
- Por exemplo?
- Planos, é mais provável. A tática e a estratégia de um golpe de estado. À organização militar e política que deve estar pronta a entrar em ação a qualquer momento.
A lista de participantes ativos e passivos. A localização das armas, o dispositivo das forças disponíveis que simpatizam com os conspiradores. Até o seu serviço
poderia cometer um crime para conseguir essas coisas.
- Mas não fez isso neste caso.
- Bem, Matucci, chegamos ao coração da alcachofra. Temos de decidir se confiamos ou não um no outro. De quem é a vez?
- É sua, Cavaliere.
- Antes de sua chegada, o seu Diretor me telefonou.
Devem conhecer a estranha sensação de afastamento que nos acomete nos momentos de choque. Fica-se de repente fora de si mesmo, a observar as extravagâncias de um
corpo que não nos pertence. Foi o que senti naquele momento. Vi-me caindo pelo alçapão que se me abria sob os pés descuidados. Mas a alucinação passou e eu voltei
à minha pele, a estorcer-me sob a difícil situação paradoxal em que me via. Manzini me olhou gravemente sem sorrir e continuou.
- Está aborrecido. E com toda a razão. Conheço o seu Diretor muito bem. É às vezes mais hábil do que lhe convém e se mostra sempre tão vaidoso quanto Lúcifer. Queria
dar-me uma demonstração de sua habilidade e também, se não estou enganado, dar-lhe uma lição por algum deslize que cometeu.
- Isso é verdade, pelo menos. E agora, Cavaliere?
- Agora, vou dar-lhe uma informação que seu Diretor ainda não possui. Ontem, às oito horas da noite, assinei em nome de uma de minhas companhias um contrato de fornecimento
com o Governo. O contrato prevê a entrega urgente de grandes quantidades de equipamento para dominar desordem de rua. As especificações foram elaboradas pelo Major-General
Marcantonio Leporello e o equipamento será usado por tropas sob o comando dele... Tirei algumas conclusões desse fato. Talvez lhe interesse ouvi-las.
- Por favor...
- Se eu fosse um fascista, velho ou novo, e estivesse à procura de um novo líder, estaria pronto a entrar em entendimentos com Marcantonio Leporello.
- Talvez os entendimentos já tenham chegado a bom termo.
- Não, Coronel. Leporello estava à espera do contrato que lhe daria força e poder de negociar. Estava também à espera de mais alguma coisa.
- Que era?
- Não podia assumir compromissos enquanto os papéis de Pantaleone não estivessem seguramente em seu poder.
- E já estão?
- Na minha opinião, sim.
- Tenho a impressão, Cavaliere, de que o senhor é mais do que um homem de negócios.
- Sou uma salamandra, Coronel, uma criatura que sobrevive perenemente. E o senhor?
- Sou um servidor do Estado. O que acontece é que eu não tenho certeza do que o Estado seja hoje e tenho receio do que possa vir a ser amanhã.
- Isso nos toma aliados.
- Numa aliança meio desigual.
- Isso o amedronta?
- Sim, Cavaliere, isso me amedronta.
- Vou dar-lhe então uma pequena garantia. Vou escrever um nome e endereço. Se procurar essa pessoa, saberá parte da verdade a meu respeito. Se ficar satisfeito,
irá procurar-me em Bolonha. Se não ficar, ainda assim terá algum lucro.
Tirou um cartão da carteira, escreveu um nome e um endereço nas costas e entregou-me. O nome era Rachele Rabin. O endereço era uma rua perto do Teatro de Marcelo.
Não me deu explicações e eu não as pedi. Apertamo-nos as mãos e ele me levou à porta, conservando-a aberta.
- Outra coisa, Coronel...
- Sim?
- Um conselho de um velho soldado. Caminhe sempre colado às paredes e durma com um olho aberto. Espero vê-lo dentro em breve.
- Também espero, Cavaliere. Bom dia.
11
Quando cheguei à rua, eram dez horas em ponto. Os sinos de Santa Susana estavam dizendo justamente a hora. O barulho do trânsito era uma dissonância dramática. A
vasta indiferença da cidade era como um soco no rosto. De repente, senti-me tremendamente cansado, a balançar-me nos pés. Embarquei no meu carro e dirigi-me numa
perigosa sonolência no rumo de Parioli. Bati à porta de Lili e quase lhe caí nos braços quando ela mesma abriu. Não me fez perguntas. Levou-me pela mão até o quarto
e me ajudou a tirar a roupa. Não sei o que eu disse ou tentei dizer. Ela me fez calar como se eu fosse uma criança, estendeu as cobertas sobre mim e me deixou mergulhar
no sono.
Esse sono foi uma viagem ao inferno, tão profunda que não consegui livrar-me dos pesadelos que me assaltaram. Fui perseguido por caçadores sem rosto que me acuavam
através de escuros túneis e fiquei nu no meio de um deserto sob os olhos de centenas de acusadores. Fui denunciado pelos mortos dentro de uma sepultura. Fui pendurado
pelos polegares na minha sala de interrogatório, enquanto um carrasco mascarado me aproximava do nariz um vidro de veneno. Acordei aos gritos enquanto ele esmigalhava
o vidro entre os dedos gigantescos. Estava suarento e trêmulo, com os lençóis enrolados em tomo de mim como uma mortalha.
O cheiro que se desprendia do meu corpo era repulsivo. Era o cheiro do medo, represado durante muito tempo, azedando os sucos do corpo e espalhando-se como os excrementos
de um animal para que os predadores me seguissem. Eu estava marcado - como um intransigente pelo Diretor, como um homem que devia ser comprado ou seduzido por Leporello,
como um colaborador útil no momento, mas que podia ser dispensado num piscar de olhos, por Manzini. Eu corria perigo porque sabia demais. Era vulnerável porque bem
pouco podia fazer. Eu era a cabra amarrada para chamar o tigre e, se o tigre não aparecesse, o caçador à espera no alto da árvore poderia liquidar-me por simples
capricho.
Lili podia ser também atingida pela gente dela, quando não pela minha. Eu prendera Pica-pau e a rede dele estava em desordem. Lili estava comprometida. Pelo código
da espionagem, estava marcada para a liquidação. Se os assassinos não a atingissem, o Diretor mandaria prendê-la, quando nada para dar-me uma lição. Olhei para o
meu relógio. Três horas. Ainda era tempo de sesta. Peguei o telefone na mesinha de cabeceira e liguei para a casa de Stefanelli.
- Steffi? Matucci.
- Escute aqui, você nunca dorme?
- Steffi, a casa está caindo em cima de mim. Tem um quarto sobrando aí em sua casa?
- Para você?
- Não. Para guardar um volume muito sensível.
- Sensível até que ponto?
- Tem de ser conservado longe do calor e da luz até que se possa providenciar outro depósito.
- Porca miséria! Passei a noite acordado com você. Tomei café com você. Tive duas horas de sono agitado e ainda estou de pijama!
- Steffi, o volume pode explodir e arrancar-me a cabeça!
- Está bem! Onde vou buscá-lo?
- Eu é que vou levá-lo para você. Vá dormir.
- Obrigado de nada, caro amigo.
Mal eu havia desligado o telefone, Lili apareceu, carrancuda e solícita.
- Pensei que estivesse falando no sono. Ainda há pouco estava gritando e gemendo.
- Tive pesadelos, Lili.
- Está mesmo com cara disso. Que aconteceu depois que me deixou ontem à noite?
- Não faça perguntas. Escute.
- Mas...
- Lili, a situação não está nada boa para você. Quero fazê-la sair do país e mandá-la para a Suíça. Mas isso vai exigir tempo e algum planejamento. Por isso, vou
levá-la para uma casa de confiança. Você vai ficar lá até que eu possa removê-la. Sim ou não?
Senti a súbita tensão nas mãos dela e vi a suspeita em seus olhos.
- E se eu disser não?
- Poderá ser morta pela sua gente ou presa pela minha.
- Não acredito. Ontem à noite...
- Ontem à noite foi há um milhão de anos. Enquanto você e eu estávamos cantando a “Canção de Tirar a Roupa” dois homens foram assassinados - um deles um agente meu,
o outro o advogado de Pantaleone. Os jornais não noticiaram o fato porque tomei algumas providências. Prendi Pica-pau às quatro da manhã. A rede está desfeita. Você
está comprometida. Não posso protegê-la senão por alguns dias e, ainda assim, correndo risco.
- Por quê?
- Apenas para provar a mim mesmo que eu não sou um cáften. Chega? Você tem quinze minutos, que é mais ou menos o tempo que me é necessário para tomar um banho e
me vestir. Depois disso, você resolverá.
- Por favor, me abrace... Estou com medo.
- Quero que você fique com medo, Lili. Quero que faça exatamente o que eu lhe disser e, pelo amor de Deus, não tente adivinhar as coisas. Certo?
- Sim.
- Comece agora. Arrume uma pequena maleta. Leve suas joias, seus talões de cheque e todo o dinheiro que tiver em casa.
Nesse momento, a campainha da porta tocou. Quatro notas musicais que soaram sinistramente no silêncio. Levei o dedo aos lábios de Lili e perguntei num sussurro:
- A empregada?
- Não está. É o dia de folga dela.
Saí da cama, ridículo na minha nudez, atravessei o salão e cheguei ao hall. Tinham enfiado uma carta pela fenda de correspondência da porta. A carta estava caída
no chão a alguns centímetros da porta. Abaixei-me para apanhá-la e pensei melhor. Era tempo de sesta e nenhum carteiro que se prezasse andaria pela rua àquela hora
sagrada. Voltei para o quarto.
- Lili, você tem uma espátula de cozinha ou alguma coisa assim?
- Acho que sim. Por quê?
- Vá buscá-la para mim, sim?
Enquanto ela estava procurando na cozinha, tratei de vestir-me. Depois, incongruentemente armado com uma faca de peixe, voltei ao hall e levantei a carta fazendo
a faca deslizar sob ela, depois do que a carreguei para a mesa de café no salão. O endereço estava batido a máquina. O selo era italiano, mas não tinha sido carimbado
no correio. Deixei-a ali, voltei ao quarto, disse a Lili que andasse depressa com a arrumação da mala e telefonei a um amigo meu na seção de segurança dos Correios
e Telégrafos. Deu-me a boa notícia de que uma bomba de carta normalmente continha explosivo suficiente para matar a pessoa que a abria e ferir quem mais estivesse
numa sala de tamanho regular. Prometeu mandar um técnico ao apartamento em trinta minutos. Disse-lhe que não podia esperar tanto. Ele me aconselhou a telefonar para
a polícia e deixar um homem de guarda até que o técnico chegasse.
Apressei Lili. Trancamos o apartamento e então, evitando os elevadores, descemos quatro lances de escadas até a portaria. O porteiro estava sentado à sua mesa, mergulhado
na leitura do Corriere dello Sport. Havia carros parados dos dois lados da rua. Meu carro estava belamente imprensado entre uma Mercedes e uma Fiat 600.
Deixei Lili na portaria e saí. A rua estava deserta. Apenas uma mulher passeava com um cachorro, um velho gari empurrava laboriosamente a sua carrocinha e o florista
cochilava na sua barraca de esquina. Olhei para o edifício do outro lado da rua. Todas as janelas estavam fechadas, algumas com as persianas descidas. Não havia
lugar para um pistoleiro armado. Voltei ao edifício e disquei para o Pronto Socorro, o serviço policial de emergência dos Carabinieri.
Cinco minutos depois, um carro de patrulha parou à porta do edifício e dois homens chegaram correndo. O brigadiere foi frio e eficiente. Ia chamar a turma de explosivos
para tratar da carta e fazer uma vistoria em meu carro à procura de bombas. Enquanto isso, eu poderia prestar depoimento. Minha carteira convenceu-o de que isso
podia ficar para depois. Eu precisava do carro e do motorista dele para me levar com a senhora até o Hotel Excelsior.
Senz’altro! Saímos rapidamente e fomos deixados em frente ao hotel. Esperamos durante cinco minutos olhando as vitrines de Rizzoli e tomamos um táxi para o Teatro
de Marcelo. Depois, caminhamos a pé pelo labirinto de vielas onde ficava a casa de Steffi.
Ele nos recebeu com a sua característica exuberância. Rodou em torno de Lili, desmanchou-se em elogios, insistiu em instalá-la pessoalmente no quarto e desceu apressadamente
para dar-me o gume afiado de sua língua.
- Matucci, você é um verdadeiro louco! Aquela coisinha linda que está lá em cima é perigosa! Quando o Diretor souber disso - e ele vai saber mais cedo ou mais tarde
- você estará mais frito do que um ovo! Deus do Céu! É um caso feito de encomenda para fazê-lo pegar uma suspensão de vinte anos! “Um Coronel do SID Protege uma
Espiã Polonesa”. Posso ver todas as acusações de olhos fechados! E o resto do melodrama - cartas explosivas e os Carabinieri desarmando as bombas de seu carro! Espere
até tudo isso se espalhar I
- Você tem uísque aí, Steffi?
- Para você, tenho cicuta com soda!
- Então me veja uma dose dupla e cale essa boca!
- E ainda me manda calar a boca! Daqui a pouco, vai querer dormir com essa mulher debaixo de meu teto!
- Bem que podia querer isso, Steffi.
- Mas não vai não, ouviu? Isto é uma boa casa honesta de judeu. Se alguém vai profaná-la, não há de ser um goy idiota como você! Aqui está seu uísque.
- Tim-tim, Steffi.
- Espero que se engasgue! Agora, podemos ser sérios por um instante?
- Estou sendo sério! Estou suando sangue!
- Sue um pouco mais para mim.
- Escute aqui, quem é Rachele Rabin?
- Quer repetir a pergunta, Coronel?
- Quem é Rachele Rabin?
- Para que quer saber?
- Tenho uma apresentação. Gostaria de saber alguma coisa sobre ela antes de ir procurá-la.
Por um momento, ele me olhou, com o rosto fechado e hostil. Depois, deixou-se cair numa cadeira, fechou as mãos em torno do copo e olhou para o uísque. Parecia um
velho devastado pelo tempo e pela história.
~ Quinze pessoas voltaram de Auschwitz, Coronel. Rachele Rabin foi a única mulher do grupo que voltou. No gueto, o nome dela é pronunciado com respeito, com muito
respeito. Ela não precisava ir, pois tinha poderosos protetores. Mas, quando os caminhões chegaram, ela estava presente na praça, esperando como uma filha de Davi.
Era uma artista, Matucci. Tinha uma voz de anjo e foi uma das maiores cantoras de seu tempo. Quando você a vir, vai pensar que é mais velha do que eu, mas tem apenas
sessenta e seis anos. Tudo o que não deve acontecer a uma mulher aconteceu a ela. Mas ela ainda está serena e esplêndida como a estrela da tarde... Seja muito gentil
com ela. Acredite sem a menor hesitação em tudo o que ela lhe disser. E não a envolva nesse seu sujo caso. Não a envolva, ouviu bem?
- Calma, Steffi... Calma!
- Eu o levarei até ela, porque quero que você esteja limpo e humilde quando for falar com ela, com a grande mulher que ela é. Eu lhe fiz um favor, Coronel. Sua mulher
- ela é sua mulher, não é? - está debaixo de meu teto, por minha conta e risco. Agora, me diga quem lhe deu essa apresentação?
- Bruno Manzini.
- Por quê?
- Disse que, se Rachele Rabin falasse bem a seu respeito, eu poderia confiar nele. Preciso disso, Steffi. Você me advertiu um dia de que eu poderia acabar ficando
em leilão. Já fiquei, Steffi. Podem começar a fazer os lances amanhã ou depois. Serão altos e tentadores e eu não sei se serei capaz de resistir a eles ... Um amigo
sensato pode me ajudar. Um amigo forte pode me dar coragem. É o que me está faltando, Steffi, porque não sei mais em que devo acreditar. Não sei nem quem sou eu...
Ficou radiante com isso como se eu lhe tivesse dado a melhor notícia do mundo. Levantou a cabeça com um jeito de papagaio velho e me olhou com relutante aprovação.
- É assim? É a história em marcha, o Risorgimento de Dante Alighieri Matucci. Não sabe então quem você é? Quem é que sabe? Mas, sem dúvida alguma, você tem de ver
o que estão fazendo com você.
- Vejo, sim, mas não compreendo.
- É porque você se recusa a chegar a um acordo consigo mesmo. Você não quer decidir o que é, se um patriota, se um mercenário.
- Palavras duras essas de ouvir de um amigo!
- São palavras verdadeiras e só são ditas porque se trata de um amigo.
- Tenho visto muitos patifes ostentando rótulos vistosos, Steffi.
- Vou fazer então uma pergunta simples. Podem matá-lo hoje. Amanhã, o risco será ainda maior. Por que está fazendo tudo isso? Está arriscando a vida a favor de que
ou contra quê?
- Talvez por um sonho, Steffi... Não sei. Talvez por uma loucura que eu sinto todos os dias na rua. A terra é de algum modo o centro de tudo. As trepadeiras verdes
nos terraços, as montanhas brancas, o restolho pardacento dos campos ceifados, os caniços da beira do rio envoltos na neblina. Minha terra! Não quero viver nela
nem por tolerância, nem por privilégio. O povo? Aí já é outra coisa. Detesto as multidões que me acotovelam, os funcionários imbecis que me infernizam a vida de
manhã à noite. Mas então vejo uma mulher sumarenta de amor ou sou servido por um camponês que me diz "Salve!” e me oferece vinho, pão e sal como se eu fosse seu
irmão... São essas as boas coisas, Steffi, pintadas nos túmulos etruscos e celebradas nos cantos dos pescadores... Esta é a minha terra! E eu não a quero pisada
por botas rudes, nem profanada por turbas insensatas. Bem, vamos deixar isso...
- Eu posso deixar, meu amigo. Você não pode. Você é o homem que conhece o avesso da política, as engrenagens na máquina do poder. Você tem que decidir sobre o uso
desse conhecimento.
- Não sou pago para usá-lo, mas apenas para recebê-lo.
- Recebe-o, mas também o filtra. Suprime, sublinha, interpreta. Com que intuito?
- Pelo amor de Deus, que é que todos nós queremos? Uma vida calma. Um pouco de dignidade para viver e para morrer.
- Não basta! Absolutamente não basta! Veja...
- Silêncio, amigo! - exclamou Lili, friamente, chegando à porta. - Deixe-o encontrar as suas soluções pessoais no seu devido tempo.
- Ele não tem mais tempo - replicou Steffi. - Perdeu o que tinha para dá-lo a você.
- Estou aqui para que ele recupere esse tempo. Posso sentar-me?
Steffi apontou-lhe a cadeira e ela se sentou entre nós. Firmou as palmas das mãos na mesa para ficar ereta e em comando. Ficou em silêncio durante alguns momentos
concentrando-se e disse: - Vocês são amigos. Eu sou a estranha. Concordo em ficar aqui porque estou com medo. Não quero ser morta, nem quero passar o resto da vida
numa prisão romana. Mas não sou uma mendiga. E posso pagar pelo que me derem.
- Ninguém está pedindo que pague.
- Sei disso, mas vou pagar. - Voltou-se para mim e pousou as mãos na minha. - Vai ficar muito zangado comigo, Dante Alighieri.
- Vou? Por quê?
- Há uma coisa que eu não lhe disse. Poderia ter dito ontem à noite se as coisas tivessem corrido de maneira diferente. Ou talvez não dissesse... Ainda estávamos
em entendimentos. Esta manhã, você teve minha vida nas mãos. E não hesitou, nem estabeleceu condições. Seu amigo procedeu da mesma forma.
- E então?
- Massimo Pantaleone não deixou todos os seus documentos no banco.
- Onde está o resto?
- Na vila em Ponza.
- Que documentos são esses, Lili?
- Microfilmes e mapas.
- Há quanto tempo estão lá?
- Levou-os por ocasião de nossa última visita à vila, uma semana antes da morte dele.
- Não disse isso a Pica-pau ou a alguém de sua gente?
- Não.
- Por quê?
- Eu não sabia o que Pica-pau poderia fazer. Se ele roubasse o material, eu estaria perdida. Só Massimo e eu sabíamos do esconderijo,
- Pode descrevê-lo para mim?
- Não. Eu teria de levá-lo até lá.
- Isso exigirá novas providências. Terá de esperar aqui enquanto tratamos disso. Steffi, você e eu temos uma visita a fazer. Não saia de casa, Lili. Se houver alguma
visita, não abra a porta. Voltaremos dentro de uma hora mais ou menos.
- Talvez eu nunca mais volte - disse Steffi, tristemente. - Talvez eu me jogue no Tibre para morrer afogado. Não quero estar vivo quando você tentar explicar essa
loucura ao Diretor.
12
Não se afogou no Tibre. Retirou-se deliberadamente para o passado e me forçou a acompanhá-lo, como se fosse algum ritual a que eu tinha de me submeter antes de chegar
à presença de Rachele Rabin. Enquanto percorríamos lentamente - ele não deixava que eu me apressasse nas vielas do velho gueto, ele evocava fantasmas quase a cada
porta: o velho Marco, o marceneiro, que tinha esculpido um bloco de pinho com a forma de um temível bandido e gravara seu nome embaixo; Ruggiero, o farmacêutico,
que lhe revelara os seus mistérios - uma mão mumificada e águas que mudavam de cor quando eram misturadas; Blasio, o amieiro, que lhe mostrara pistolas que haviam
matado cinco homens em duelos de honra.
À medida que falava, sua narrativa se tomava mais vívida e os seus gestos eram mais amplos e exóticos. Removeu todos os traços do presente e me plantou firmemente
na cidade de sua infância. Ali, por exemplo, vivia Salamone, chamado pelo povo do bairro Salamone Vecchione. Era tão velho que parecia irmão gêmeo de Matusalém,
tão mirrado que era de esperar que com mais um ano de vida desaparecesse por completo. Usava um longo cafetã preto que era verde quando o sol batia nele, um pequeno
casquete preto no crânio com algumas falripas brancas e uma corrente de prata com uma estrela pendente sobre o peito asmático e cavo. Empurrava uma carrocinha na
qual vendia verduras e livros velhos com encadernações mofadas, tubos de metal com pergaminhos enrolados e placas de barro nas quais parecia que os passarinhos tinham
andado antes de serem levadas ao fogo.
A gente da feira tinha medo de Salamone e o tratava com o respeito exagerado que merece um mago ou feiticeiro. Quando ele passava, faziam o sinal que afasta o mau-olhado
e falavam rancorosamente do fogo que consumiria todos os judeus e pagãos. Mas para o jovem Stefanelli ele era como o gênio da garrafa, com uma maravilha em cada
bolso.
Nem todos os fantasmas de Steffi eram amigos. Alguns eram tristes traidores; outros eram aflitivos inimigos. Luca, o corcunda, por exemplo, que se sentava num tamborete
diante da barbearia e cobrava um tanto de quem quisesse tocar-lhe na corcunda, era espião da polícia e contava aos fascistas tudo o que acontecia no bairro. Balbo
era um guarda corrupto, que exigia um tributo de todos os negociantes do distrito para fechar os olhos, e Fra Patrizio era um franciscano de cabeça raspada que em
todos os seus sermões verberava os pérfidos judeus que crucificavam diariamente o Salvador...
- Às vezes - murmurou Steffi pensativamente - eu gostaria de me esquecer de todos eles. Mas Deus é um ironista que conserva nas mãos a chave da memória... Chegamos,
Coronel. Vou apresentá-lo a Rachele Rabin e então me retirarei. Entre diretamente no assunto e não se demore muito. Ela é muito frágil.
Era realmente frágil, de cabelos brancos, pálida como leite e quase transparente, a tal ponto que se tinha a impressão de que o primeiro scirocco poderia carregá-la.
Só os olhos eram negros, lustrosos e estranhamente compassivos. Ficou sentada, ereta e calma, escutando em silêncio enquanto eu explicava quem era e o que tinha
ido fazer. Quando acabei de falar, ela pareceu engolfada em meditação como uma antiga pitonisa à espera de que o espírito da profecia a animasse. Eu me sentia estranhamente
pequeno - um neófito ignorante na presença de uma mulher que tudo vira e sofrera. Mesmo quando ela falou - e foi muito gentil comigo - havia no seu tom uma qualidade
hierática que ainda mais me diminuía.
- Sabe por que Bruno o mandou falar comigo?
- Não, senhora.
- Fomos amantes durante muito tempo. Nem sempre amantes felizes porque eu era famosa e cortejada e Bruno tinha a obsessão de seu passado: uma mãe famosa cortesã
e um pai que gastou muito dinheiro com ele mas nunca se mostrou disposto a reconhecê-lo como filho. Mas havia amor. Ainda há.
- Ainda que a senhora tivesse sido presa e ele tivesse ficado.
- Nós nos tínhamos separado muito antes disso. Fui por vontade própria. Ele ficou para lutar contra os que me levaram. E ainda está lutando.
- Como?
- Ele é um homem estranho. Acredita em perdoar. Não acredita em esquecer.
- E há uma diferença?
- Ele assim pensa.
- E a senhora?
- Eu aceito a realidade tal como é. Estou viva e outros estão mortos. Isso é uma coisa que eu não posso modificar. E sei que há pessoas que devem esquecer porque
não podem suportar a lembrança das coisas.
- Posso confiar em Bruno Manzini?
- Pode confiar em que ele seja o que é.
- E o que é ele?
- Um homem que se fez, célula a célula, do nada... É muito forte e muito fiel. Cumpre o que promete, custe o que custar. Todos os anos, no dia do Sábado Negro, ele
me manda um cartão. Na gaveta do lado direito da mesa, encontrará uma pasta. Quer apanhá-la para mim?
A pasta era de couro lavrado feita por um artesão florentino. Na capa, gravada em ouro, via-se uma Estrela de Davi. Entreguei-lhe a pasta. Ela a abriu nos joelhos
tirou alguns cartões e passou-os às minhas mãos. Os cartões eram idênticos ao que eu havia encontrado no quarto de Pantaleone. Só as inscrições eram diferentes.
HANS HELMUT ZIEGLER
São Paulo, 3 de janeiro de 1968
EMMANUELE SALATRI
Londres, 18 de agosto de 1971
FRANZISKUS LOEFFLER
Oberalp, Áustria
- Que significam estes cartões, senhora?
- São os nomes dos homens relacionados, cada qual a seu modo, com o que aconteceu a mim e a outros em 1945. Tenho até agora quinze cartões. Ainda faltam nove. Bruno
Manzini descobriu-os a todos. Foi um trabalho que levou anos porque eles estavam espalhados pelo mundo inteiro. Mandava a cada homem descoberto um cartão e um dossiê
sobre o seu passado.
- Que significam as datas?
- Os dias em que eles morreram.
- Quem os matou?
- Mataram-se.
- Não há data neste.
- Ainda está vivo...
- Qual é a diferença?
- Bruno me disse que era esse o melhor de todos os dons - um homem que tinha encontrado um meio de viver honrosamente consigo mesmo. Fiquei muito contente em saber
disso.
- E está contente com Bruno Manzini - um homem que faz o papel de Deus?
- Não é assim que ele vê as coisas.
- Como é então?
- Diz ele que todo homem deve ter o direito de julgar a si mesmo, mas que não tem o direito de esconder as provas.
- E a senhora?
- Concordo com ele, Coronel. Prestei depoimento em Nuremberg, pró e contra os homens em julgamento. Não odeio ninguém agora. Mas o terror reapareceu - no Vietnã,
na América Latina, na África, aqui na Europa. Não foi por isso que veio me procurar, porque também está com medo?
- Sim, estou com muito medo.
- Confie então em meu Bruno, mas não cegamente, pois neste caso ele não o respeitaria. Discuta com ele, lute com ele, de amigo para amigo. Talvez não o convença.
Podem até acabar adversários, mas ele nunca, nunca o trairá
- Muito obrigado, senhora...
- Eu é que lhe agradeço ter vindo. Desejo que haja paz em sua casa e no seu coração.
Senti-me grato pelos votos finais, mas saí da casa como um homem muito pensativo. Uma nova convicção se cristalizava no fluido turvo de meus pensamentos. Não havia
cura para a condição humana porque todo homem interpretava o presente e planejava o futuro como uma extensão de seu passado. Não se podia apagar tudo para começar
de novo porque nunca se perdoava de verdade e nunca se esquecia por completo. No fim, a memória coletiva nos traía a todos. Os erros dos pais eram vingados nos filhos.
Eu compreendia Manzini e sua fria convicção de que, mesmo no exílio, os tiranos não deviam ter permissão para florescer. Compreendia o Diretor e a sua disposição
de procurar um equilíbrio, ainda que precário. Compreendia Leporello e a sua crença fanática de que a ordem a qualquer preço era mais barata do que o caos. A única
pessoa a quem eu não compreendia era a mim mesmo...
De volta à casa de Stefanelli, passei por um bar e telefonei para Manzini no Grande Hotel. Nossa conversa foi breve.
- Cavaliere, acabei de falar com Rachele Rabin.
- E...?
- Fiquei muito satisfeito. Gostaria de vê-lo o mais depressa possível.
- Vou partir para Bolonha dentro de meia hora. Terei prazer em recebê-lo lá a qualquer hora. Quando lhe será possível?
- Daqui a dois ou três dias, o mais tardar. Antes disso, se me for possível.
- Ótimo! E sua situação? Como está?
- Difícil. Mas pode melhorar em breve. Pelo menos, assim espero.
- Boa sorte então!
O desejo dele devia ter alguma força porque, quando telefonei para o Diretor, o assistente me disse que ele tinha sido chamado para uma conferência urgente no Ministério.
Havia alguma comunicação? Nenhuma que eu pudesse transmitir com segurança por um telefone público. Ele devia dizer ao Diretor que havia fatos novos na investigação
a que eu estava procedendo e que teria de ficar durante quarenta e oito horas sem poder entrar em contato com ele. Eu estava apenas adiando uma situação desagradável.
Mas se pudesse chegar a Ponza e pôr as mãos no resto dos papéis de Pantaleone, talvez ainda me saísse bem.
13
Estava diante de um problema de espaço e tempo. A ilha de Ponza - que não é o meu lugar favorito em todo o mundo - fica cerca de sessenta e cinco quilômetros a sudoeste
de Gaeta. Dizem as lendas que foi lá que nasceu Pôncio Pilatos. Os fascistas usaram a ilha como um centro de exílio para prisioneiros políticos. Depois da guerra,
desde que as ilhas eram raras e cada vez mais raras se tornavam no século XX, muita gente começou a comprar terrenos e a construir vilas nas encostas e à beira das
praias. A ilha é servida por barcas de Anzio, Formia e Nápoles, mas, seja qual for o caminho escolhido, é preciso fazer a viagem por terra de Roma até o porto e
uma travessia de mar de três ou quatro horas que, quando há mau tempo, vem a ser um verdadeiro purgatório. De qualquer maneira, eu queria evitar o uso de transportes
públicos e reduzir ao mínimo o tempo da operação. Se o Diretor resolvesse lançar um chamado em pânico para mim, eu chamaria tanto a atenção como uma verruga na Mona
Lisa.
Além disso, havia outra e mais sinistra possibilidade. Os papéis roubados do escritório de Bandinelli estavam no momento em poder de pessoas desconhecidas. Já então,
deviam ter visto que a colheita estava incompleta. Conclusão: os caçadores deviam estar em campo de novo e, pela lógica natural das coisas, deviam chegar mais cedo
ou mais tarde a Lili Anders e à vila em que ela tinha passado tempos com Pantaleone. PS para a conclusão: eu precisava urgentemente de ajuda.
Quando cheguei de novo à casa de Steffi, eram cinco e meia da tarde. Havia telefonado para um certo Coronel Carl Malinowski, na sede da OTAN em Nápoles. Malinowski
é um americano simpático, tão simpático que isso às vezes lhe dá mau resultado. Dois anos antes, eu tinha conseguido livrá-lo de uma situação embaraçosa que envolvia
sua pequena napolitana e um agente russo que operava nas áreas navais das docas. Malinowski me devia um favor. Eu precisava dele no momento, sob a forma da grande
lancha Baglietto, que ele usava para sessões de bebida e de companhia feminina e que podia fazer vinte e cinco nós com qualquer tempo razoável.
Malinowski mostrou-se muito satisfeito em poder me atender. Era fácil para ele conseguir uma licença do serviço. Tinha uma nova pequena que adoraria o passeio. Se
pudéssemos estar no cais em Mergellina ao amanhecer, ele mesmo nos levaria até a ilha. Melhor ainda, se quiséssemos ir para Nápoles naquela noite, ele aos daria
jantar e uma cama em seu apartamento. A cama era dupla e ele calculava que me seria conveniente. Se minhas intenções fossem outras, eu podia dormir no divã e ir
diretamente para o inferno. O resto foi fácil. Aluguei uma Fiat 130 numa agência e às sete da noite - com infinito alívio para Steffi - estávamos fora de Roma e
a caminho do sul pela autoestrada de Nápoles.
Apreciei a viagem. O súbito sentimento de alívio quando deixamos a cidade para trás, o crepúsculo que amaciava as montanhas do Lácio, as luzes das casas de fazenda
que pontilhavam as encostas, o desfile do trânsito pela estrada, a lua amarela que surgiu por trás dos picos dos Apeninos - tudo isso se combinou com a breve mas
grata intimidade de um homem e de uma mulher dentro de um pequeno mundo em movimento.
Lili mostrou-se a princípio reservada, visivelmente ressentida com as liberdades que eu estava tomando com a sua pessoa. Eu tinha contado demais com os perigos da
situação dela. Mas naquele momento, sem pouso, nem apoio, ela não podia ter qualquer esperança de um futuro e isso eu não estava em condições de prometer-lhe. Estava
sentada imóvel e afastada como se não tolerasse a ideia do aproximar-se de mim. Liguei o rádio num programa de música napolitana e fingi não tomar conhecimento dela.
Ao fim de algum tempo, ela começou a cabecear e, quando a puxei para mim, ela não resistiu mais. Descansou a cabeça no meu ombro e cochilou até passarmos Monte Cassino.
A essa altura, estava mais calma. Ficou perto de mim e falamos, calma e entrecortadamente, até que o espírito daquela primeira noite nos dominou de novo.
- Quer saber de uma coisa, Dante Alighieri?
- Que é?
- Neste momento, nós somos realmente noantri. Não posso ir para casa. E você não sabe para onde está indo.
- É verdade, meu amor. É verdade.
- Gosto de seu Steffi.
- Sim... É um homem de muita personalidade.
- Gosta muito de você.
- Bem, nós nos compreendemos.
Mas ele tem receio de que você tome decisões erradas, não é mesmo?
- Eu também tenho esse receio bambina,
- Espero que você não se venda a ninguém. No momento em que se faz isso, não há mais salvação. Eu sei...
- Como foi que você entrou no jogo, Lili?
- Isso não consta de seus dossiês?
- Bem, a maneira consta, mas não a razão.
- Há uma prostituta em cada mulher, caro mio, e você sabe disso. Um belo dia, chega o momento de depressão em que ela se sente sozinha e sem amor, enquanto as primeiras
rugas começam a aparecer. É então que ela se vende, desde que o preço pago pareça um presente, as palavras sejam delicadas e o amanhã não pareça muito perto. Não
me estou justificando, nem procurando compaixão. Muito obrigada.
- Se nós a fizermos sair do país, que fará você?
- Sou uma mulher solteira de poucos recursos e me oferecerei no mercado à procura de um homem.
- Que espécie de homem?
- Isso é um sonho particular meu e não quero que você zombe dele.
- Não vou zombar.
- Que espécie de mulher você quer, Dante Alighieri?
- Já tive mulheres de todas as espécies Lili... menos daquela com que eu me acomodaria para ter meus filhos.
- Nunca se sente sozinho?
- Quase sempre, mas é um estado tolerável. Pelo menos, tem sido até agora...
- E agora?
- Não gosto do camarada que está na minha pele.
- Eu gosto dele... às vezes.
- Você não gosta muito dele, Lili.
- Gosto o bastante para dar-lhe um nome.
- Qual é o nome?
- O búfalo solitário... o macho arredio.
- Que é pago para proteger o rebanho.
- De quê? Dos marxistas, dos fascistas, dos monarquistas? Não acredito nessa “proteção”, nem você. Não passa é de um instrumento político. Qualquer mão pode segurá-lo
e usá-lo para qualquer serviço.
- Vamos falar de outra coisa, sim?
- Como quiser. Que é que você faz quando não suporta mais ficar sozinho?
- Saio e me divirto.
- Como ontem à noite no Trastevere?
- Assim mesmo...
- Seria bom que não tivéssemos de ir a Ponza.
- Também acho.
- Que vai acontecer quando voltarmos?
- Isso vai depender do que encontrarmos e da maneira que pudermos escondê-lo... Ali está Capua, onde Spartacus iniciou a revolta dos escravos.
- Sei quem foi Spartacus, meu caro. Espero apenas que tenhamos mais sorte do que ele.
14
O Major Carl Malinowski, dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, foi um tônico para os nossos espíritos exaustos. Era um homem alto e forte, cheio de energia e
músculos, com uma risada fácil e um sotaque sulista que, muitas vezes, me era incompreensível, embora eu fale toleravelmente o inglês. Tinha a convicção inabalável
de que o mundo ainda era um Jardim do Éden, cheio de Evas bem dispostas e serpentes camaradas. O apartamento dele, mobiliado em estilo americano, era um paraíso
de solteiro, com uma bela vista do golfo, do Vesúvio até Capo di Sorrento, um assombroso armário de bebidas e alto-falante para levar música a todas as peças. A
sua nova pequena era uma sueca, colhida na safra de verão de turistas e que se dera muito bem com o transplante. Ele olhou para Lili e gritou sua aprovação para
ser ouvido em todo o bairro.
- Bella! Bellissima! Dante, meu querido, o seu gosto está melhorando! É uma verdadeira mulher em estilo meridional! Seja boazinha com esse homem, meu bem. É o melhor
italiano que eu conheço, só tem coração e sexo. E cabeça também, embora quem o vê assim não dê nada por ele. Helga, por que não leva Lili para arrumar-se enquanto
Dante e cu preparamos os drinques? - Pegou-me pelo ombro com a sua mão de ferro e me levou para o bar. - O que eu quero saber agora, Coronel, é se essa viagem é
de negócios ou de prazer.
- De negócios, Carl.
- E que é que você quer que eu faça?
- Que nos leve a Ponza e nos traga de volta o mais depressa possível.
- Com este tempo, são três horas de ida e três horas de volta. Um pouquinho mais, se o vento ficar mais forte. Quanto tempo pretende ficar na ilha?
- Duas horas chegam.
- Vamos sair às seis da manhã. Estaremos de volta no meio da tarde. Serve para você?
- Otimamente!
- Está esperando algum problema?
- Há uma possibilidade remota.
- Que há entre você e Lili?
- Um pouco de negócios e um pouco de prazer. Uma coisa em excesso e uma insuficiência da outra.
- Compreendo, Coronel! Compreendo com a maior clareza! Esta noite, vamos beber Lacrima Christi ao amor. Amanhã, aportaremos em Ponza!
Foi uma longa e alegre noite. Jantamos como reis caviar, bife e sorvete napolitano. Bebemos dois litros de Lacrima Christi e meia garrafa de Courvoisier, consertamos
o mundo com nossas conversas, contamos anedotas e cochilamos a ouvir música. Um pouco depois da meia-noite, dividimo-nos em pares e fomos para a cama. Devo dizer
que não há no mundo cama mais confortável e mais apropriada para o amor do que um grande letto matrimoniale napolitano de ferro.
Foi uma boa noite para nós dois. Fizemos aquilo que tínhamos vontade e ficamos contentes um com o outro. Sentimos alegria, gratidão e, durante algum tempo, a solidão
se afastou de nós. Estávamos acordados e gozando a companhia um do outro quando Malinowski esmurrou a porta e nos chamou para o breakfast.
Não me exprimi bem. Eu poderia ter usado as mesmas palavras para uma dezena de outros encontros porque sou - e digo isso com reconhecimento - um homem que tem sido
feliz com a maioria de suas mulheres. Mas dessa vez era diferente, pois havia um senão de consequências, embora ainda não de compromisso. Havia ainda outra diferença:
ao fim de tudo, eu me sentia disposto a ser sentimental, embora o mesmo não acontecesse com Lili.
Ela me disse isso sem rodeios quando estávamos na coberta de ré da lancha e víamos o cone verde de Ischia desvanecer-se à luz da manhã.
- Caro, você às vezes me trata como se eu não tivesse cabeça para pensar. Sei muito bem o que está em jogo. Se o material que está na vila for importante, isso lhe
conferirá poder e também me assegurará, segundo você espera, uma passagem livre para fora da Itália.
- É de fato o que espero.
- E com isso ficará de consciência tranquila a meu respeito.
- Já que você quer encarar as coisas dessa maneira...
- Mas não vai prometer nada?
- Não posso.
- Tolice! Não preciso de você para sair da Itália, Dante Alighieri!
- Acha que pode passar pelos guardas da fronteira sozinha? É melhor não tentar, Lili.
- Não seria preciso fazer isso. Qualquer pescador de Ponza me levaria até a Córsega amanhã mesmo.
- O que você está tentando dizer, Lili?
- Apenas que você precisa de mim, do mesmo modo que precisa dos papéis de Pantaleone, como um trunfo para negociações. Se você me deixar ir, perderá o seu poder,
ficará castrado. Compreendo e aceito esse fato. Mas você me insulta quando tenta disfarçar tudo como uma vigarice. Seu amigo Steffi tem razão. Você sempre se nega
a entrar em acordo consigo mesmo... Agora, vamos entrar, sim? Estou sentindo frio.
Estava fazendo frio. O vento do noroeste estava soprando com mais força, e encrespando o mar. Malinowski estava no leme, dirigindo a lancha com dificuldade. Nós
dois nos instalamos no salão e eu tentei, numa espécie de desespero, salvar a discussão e meu amor-próprio.
- Vamos falar com franqueza, Lili. Fiz um trato com você e estou cumprindo. Até agora, você está livre e protegida. Certo?
- Certo.
- Agora, você quer mudar tudo. Quer que eu feche os olhos enquanto você foge para a Córsega.
- Não! O que eu quero é saber que espécie de trato você está fazendo com outras pessoas e o que é que lhe vai acontecer ao fim de tudo.
- E em que é que isso lhe pode interessar?
- Pobre Dante Alighieri! Teve tantas mulheres e aprendeu tão pouco! Quanto desperdício!
- Pelo menos, não tenho ilusões.
- Ah! Não vamos discutir então. Você faz o script, você diz as falas, você puxa os cordéis. Quando a peça estiver terminada, Lili, o fantoche, será guardada na sua
caixa. Não vai ser assim, meu amor?
- E você disse que não haveria chantagem!
- A chantagem implica uma ameaça, não é mesmo? Como é que posso ameaçá-lo? Com os papéis de Pantaleone? Você os terá logo que chegarmos à vila. Com uma noite na
cama? É o normal nessas situações, não é? Com sua promessa de proteção? É normal também... É um truque de todos os policiais em todos os interrogatórios. Assim,
de que é que está com receio, meu bravo Coronel, a não ser de si mesmo?
- Se é essa sua opinião, está muito bem! Certa ou errada, não altera coisa alguma... Agora, vamos até a ponte.
- Eu gostaria de ficar sozinha durante algum tempo.
- É do interesse do serviço, Lili.
- Às suas ordens. Coronel.
Malinowski nos recebeu com um sorriso de seus olhos azuis, todo cheio de saúde e inocência. Na mesa das cartas, estava aberto um mapa em pequena escala de Ponza.
Nele, Lili apontou o local da vila, um pequeno promontório na costa leste da ilha. A vila era mencionada no Piloto como um ponto de referência para os marinheiros:
“Há um grande prédio quadrado de pedra cinzenta, a leste do qual estão as colunas e os arcos de ruínas romanas claramente visíveis. Com ventos de W a NW a enseada
do sul oferece bom abrigo para pequenos barcos. O fundo é de areia e pedra, com algumas madeiras”.
- Se entrarmos aí, poderemos ir da praia para a Vila? - perguntei a Lili.
- Claro. Há um caminho irregular que sobe para as ruínas.
Malinowski fez uma pergunta de marinheiro.
- Se ancorarmos na enseada, teremos de baixar o escaler e içá-lo depois. Vocês farão uma viagem incômoda até a praia e podem ficar molhados. Não seria melhor atracar
no porto da ilha, onde vocês poderão tomar um táxi para a vila?
- Não, por motivos estratégicos, Carl. No porto, chamaríamos muito a atenção. Não estamos na temporada e o povo do lugar comentaria. Prefiro que isso não aconteça.
- Perfeito, Coronel. Vamos ancorar na enseada.
- Há empregados na vila, Lili?
- Não. No intervalo entre as temporadas, fica fechada. Uma vez por semana, uma família da aldeia vai fazer a limpeza e ligar o aquecimento durante algumas horas.
Mas não chegaremos perto da vila. O que queremos está ali nas ruínas.
- Por que nas ruínas?
- Vai ver quando chegar lá.
- Da casa avistam-se as ruínas?
- Só a parte superior. Nossas terras são inteiramente cercadas de muros. As ruínas ficam em terras do Estado adjacentes à praia. A linha do demanio corre por aqui.
- Melhor ainda. Olhe para a carta, Carl. A que distância da terra você pode ancorar?
- Vamos ver... Sem risco... à distância de um cabo.
- Visível da casa?
- Quando chegarmos, sim. Depois de ancorarmos, é provável que não. Mas não estou entendendo o seu problema. Estas terras são públicas e o desembarque é livre. É
uma das leis italianas que eu conheço.
- Não estou preocupado com isso, Carl. De qualquer maneira, a vila é de propriedade de Lili. Vamos dizer que eu estou preocupado com intrusos hostis.
- Quanto a isso, pode-se dar um jeito, Coronel. - Abriu o armário sob a mesa das cartas e apanhou um fuzil automático. - Tenho esta coisinha aqui na hipótese de
que um tubarão resolva perseguir uma de minhas pequenas enquanto ela estiver nadando sem maiô. Desse modo, enquanto você e Lili estiverem em terra, eu ficarei aqui
montando guarda aos intrusos hostis... Está certo assim?
- Não! Não posso envolver um oficial americano num drama interno italiano. Se não se incomodar, o que eu vou fazer é levar o seu fuzil para terra.
- Como quiser. Quer fazer o favor de ligar o rádio? Está na hora do noticiário e eu quero ouvir o boletim meteorológico.
- Se não precisa mais de mim, - disse Lili, - acho que vou deitar-me um pouco no salão. Estou-me sentindo um tanto enjoada.
- Devia ter-me dito, Lili! Tenho uns comprimidos que...
- Não. Obrigada, Carl. Daqui a pouco, estarei boa. Com licença.
Quando ela saiu, Carl me olhou com um sorriso malicioso.
- Problemas, irmão? Precisa de um conselho pós-nupcial?
- Para dizer a verdade, preciso.
- OK. Pode se abrir com o Tio Carl.
- Que diria você se eu lhe dissesse que Lili é uma agente dupla que trabalha para mim e para os comunistas?
- Diria que você é um homem com cinquenta por cento de sorte e que se esquecesse de me ter dito alguma coisa,
- E se eu lhe dissesse que poderia ter de metê-la na cadeia para contentar minha gente?
- Eu diria que você está metido num verdadeiro enguiço.
- E se eu então lhe pedisse que continuasse com ela a bordo e a levasse para a Córsega fora da jurisdição italiana, o que diria você?
- Eu diria: “Coronel, sou muito seu amigo e lhe devo um grande favor que lhe estou pagando agora”. Mas também diria que eu sou um republicano nato, até a raiz dos
cabelos, que já vi meus camaradas morrerem na Coreia e no Vietnã e que não gosto muito de negros, embora tenha aprendido a viver com eles, mas não posso tolerar
comunistas de qualquer sexo ou raça. Por conseguinte, se você me pedisse uma coisa dessas - tenho certeza de que não vai pedir - eu diria não e não, de jeito nenhum.
Está entendendo. Coronel?
Eu estava entendendo tão bem que até pensei que ele estivesse brincando, pois brincava sobre quase tudo. A surpresa era que ele estava falando inteiramente a sério.
Acho que eu nunca havia realmente acreditado que um povo grande e vigoroso pudesse sobreviver com fórmulas tão simplistas de fé. Mas, pensando bem, nós, europeus,
temos tido uma experiência muito mais longa e sangrenta e não temos nem a metade do ceticismo que devíamos ter...
Carl Malinowski estendeu-me a mão.
- Não há ressentimentos, Dante?
- Não, Carl.
- Não estou dizendo que você seja vermelho, entenda bem isso.
- É claro.
- E, por outro lado, não estou julgando Lili. Estou apenas disposto a não me envolver no caso.
- Compreendo.
- Mas ainda estou com você contra os intrusos hostis.
- Obrigado.
- Agora, vamos ouvir o noticiário, sim?
As notícias, lidas no estilo brando e eufórico habitual, apresentavam a mistura de sempre: a guerra no Vietnã, as negociações de paz em Paris, as lutas tribais na
África, greves na Inglaterra, greves na Itália, outra declaração do Papa sobre a lei do divórcio na Itália, outra luta parlamentar italiana, dessa vez em tomo da
distribuição das subvenções provinciais e, por fim, um arremate de impacto: um funcionário árabe da embaixada da Líbia em Roma assassinado a tiros na porta de sua
casa na Colina do Aventino, em Roma. A vítima era o representante romano da organização guerrilheira palestina Al Fatah. A polícia estava tratando o caso como crime
político, provavelmente por agentes israelenses.
A notícia me arrepiou os cabelos da nuca. No SID, eu era considerado um especialista em atividades terroristas árabe-israelenses. Eu havia organizado os primeiros
arquivos de guerrilheiros palestinos, residentes ou em atividade na República. Tinha bons informantes entre os jordanianos e os egípcios. Eu conhecia o diretor da
organização contraterrorista judaica, um lituano de olhos frios, que era, na minha opinião, um dos melhores agentes secretos do mundo. Certa vez, numa reunião muito
fechada de técnicos, eu o ouvira discorrer sobre a verdadeira natureza do terror, tanto como arma política, quanto como infecção social. Dissera ele:
“Como arma, é quase irresistível. Infunde medo e dúvida. Destrói a confiança nos métodos democráticos. Imobiliza os serviços de polícia. Polariza as facções: os
jovens contra os velhos, os pobres contra os ricos, os ignorantes contra os cultos, os idealistas contra os pragmáticos. Como uma infecção social, é mais mortífera
do que a peste. Justifica o mais vil dos remédios, a suspensão dos direitos humanos, a prisão preventiva, as punições cruéis e excepcionais, o suborno, a tortura,
o homicídio legal. O mais moral dos homens, o mais equilibrado dos governos não está imune a essa infecção. A violência gera a violência. Os chantagistas são pagos
com o dinheiro dos cofres públicos... Vocês, italianos, fizeram um herói de um homem que sequestrou um avião de passageiros. Quando atingimos um árabe que faz explodir
uma bomba em Roma, temos de aceitar o fato de que isso despertará todos os antissemitas latentes da Itália e dará um bode expiatório aos neofascistas. Todo marxista
espancado numa célula da polícia mobiliza vinte recrutas para a revolução. Toda bomba lançada nas ruas suscita uma nova brigada de polícia de choque com gases lacrimogêneos
e mangueiras de água. Todas as grandes cidades têm a sua universidade do terror. E as lições circulam do Ulster para Udine, do Vietnã para a Venezuela, de Atenas
para Roma.”
Para mim, portanto, o crime do Aventino era, mais que uma má notícia, um desastre pessoal. Ali estava eu, transitando como um turista entre Nápoles e Ponza em companhia
muito mesclada, enquanto o Diretor estava apertando botões em pânico, à procura por todo o país de um especialista delinquente em assuntos semíticos. Se eu voltasse
com os papéis de Pantaleone e Lili Anders, poderia talvez escapar da câmara de tortura. Mas, se voltasse de mãos vazias, seria metodicamente esquartejado e lançado
aos leões do Zoológico.
Num momento alarmado, pensei em tentar me comunicar com ele pelo rádio de bordo, para ao menos apresentar-me ao serviço. Mas compreendi que isso só serviria para
agravar os erros daqueles últimos dois dias e para anunciar o que eu estava fazendo a todo o Mediterrâneo Ocidental. Que o caso fosse para o diabo, então. Ele havia
me dado carta branca. Pregaria as instruções na porta dele como os artigos de Lutero. Se ele não gostasse, podia comer tudo no jantar e eu esperava que se engasgasse.
Chegamos a Ponza sob ventania a sotavento da ilha para que pudéssemos identificar positivamente o promontório e a vila de Lili. Até o livro do Piloto não foi fiel
a sua promessa. O abrigo oferecido pela enseada era abaixo de aceitável e a ancoragem era, na melhor das hipóteses, duvidosa. Havia uma pequena vantagem. Se houvesse
observadores na vila, não poderiam ter melhor vantagem do que nós. Lili e eu vestimos capas de oleado e embarcamos no escaler que jogava. Carl me entregou o fuzil
e depois da luta de costume para fazer o motor de popa pegar, seguimos para a praia por um mar encapelado.
A praia estava deserta. No promontório, não havia sinal de vida. O caminho que levava às ruínas era íngreme e escorregadio e, em dado ponto, tivemos de subir quase
de joelhos e agarrando-nos a tufos de capim e moitas de alecrim. Quando chegamos ao alto, eu estava ofegante e irritado, convencido de que Pantaleone era louco ou
de que Lili me levara deliberadamente a fazer uma jornada inútil. Eu não podia de modo algum compreender como um homem que tinha a grande fortaleza da vila à disposição
esconderia documentos de valor em ruínas caindo aos pedaços e, ainda mais, em terras que não lhe pertenciam. Disse isso mesmo exasperadamente a Lili, que desatou
a rir.
- Você está tão engraçado como um palhaço de circo! E ainda mais com essa espingardinha. Em que vai atirar? Nas gaivotas?
Ela me tomou pela mão e me levou através de um arco para uma abóbada que havia de alguma maneira resistido aos estragos dos séculos. As paredes externas eram de
pedra talhada, mas as internas eram feitas de um arranjo reticular de tijolos projetados para o alto e para dentro numa cúpula rasa. O chão era pavimentado com lajes
de mármore, em alguns pontos rachado, descorado ou afundado, mas ainda em grande parte intacto. O lugar cheirava a excrementos velhos de animais e a água do mar
estagnada. Lili jogou para trás o capuz da sua capa de oleado e correu os olhos pelo interior sombrio, com as mãos nos quadris.
- Acha que Massimo era maluco? Eu também achei quando ele me trouxe aqui. Mas pense bem. A vila passa todo o inverno desabitada. Os criados mexem em tudo quando
o padrone está ausente. Olhe! Vamos, examine! O que está vendo?
O revestimento de tijolos das paredes nada revelava. Andei pelo chão à procura de espaços ocos. Nada encontrei também.
Lili me olhava com um sorriso de triunfo.
- Está vendo, Dante Alighieri? Você não é tão inteligente quanto julga! E Massimo não era tão sem inteligência quanto parecia. Agora, veja!
Encaminhou-se para um pequeno trecho afundado do pavimento onde a chuva, açoitada através do arco, tinha formado uma pequena poça de três ou quatro centímetros de
profundidade. Lili se ajoelhou e levantou com as mãos um pequeno pedaço triangular de mármore. Levantou-o para que eu o visse.
Era do tamanho da palma de minha mão e estava revestido embaixo com uma espessa camada de cimento.
- Como uma rolha de banheira, está vendo, Dante? Você não pisou na poça, mas se tivesse pisado, nada teria notado de anormal pelo som.
Mergulhou os dedos na abertura e trouxe um longo tubo de alumínio como os que os arquitetos usam para guardar plantas e especificações. Estava selado nas duas extremidades
com fita adesiva preta. Logo que ela retirou o tubo, a água da poça correu para dentro do buraco. Lili recolocou a tampa de mármore o me entregou o tubo.
- Está exatamente como nós deixamos. Os mapas estão enrolados aí dentro e os microfilmes estão guardados em pequenas cápsulas.
- Nada mais?
- Nada.
- Então vamos. Você levará isto.
- O fantoche Lili não ganha nem um muito obrigado?
- Muito obrigado, fantoche Lili. Agora, venha atrás de mim até chegarmos ao caminho da praia. Lá, você passará para a frente.
Abri a trava de segurança do fuzil e me dirigi para a entrada. A meio caminho, parei a fim de examinar a estreita vista emoldurada pelo arco. Via apenas a terra
do alto do promontório coberta de tufos de vegetação, pedras, arbustos enfezados e os trechos mais baixos dos muros que cercavam a vila. Até aí, tudo bem, Avancei
mais e a vista se alargou, mostrando a parte superior do muro, coroada por uma porção de cacos de vidro. Ouvi então uma voz ampliada e torcida por um megafone: -
Você aí! Saia com as mãos para o alto! São os Carabinieri! Repito. Os Carabinieri!
Virei-me para Lili e tomei o tubo das mãos dela.
- Escute e procure compreender. Fique junto de mim. Não faça nada, não diga nada, a menos que eu mande. Certo?
- Certo.
- Vamos sair agora.
Joguei para trás o capuz da capa e então, segurando o fuzil e o tubo bem acima de minha cabeça, saí pelo arco, seguido de Lili. A vinte metros da entrada, logo fora
do meu último campo de visão, estavam cinco homens, dois de um lado, três do outro.
Quatro estavam fardados e armados com metralhadoras portáteis. O quinto estava à paisana e tinha nas mãos o megafone. Reconheci-o imediatamente. Era o ruivo sardento,
que trabalhava como ajudante de ordens do General Leporello. Ele me reconheceu também e a expressão do seu rosto me deu um singular prazer.
Os homens se aproximaram com as armas em posição de tiro. O jovem homem seguiu-os com um pouco menos de confiança. Deixei que se avizinhassem até uns cinco metros
de mim, quando então os fiz parar no meu melhor estilo de campo de parada. Pararam, olhando incertamente para mim e para o ruivo. Disse-lhes então: - Vou-me identificar
de acordo com as regras. Quem estiver em comando poderá verificar meus documentos. Sou Matucci, Dante Alighieri, Coronel do Serviço de Informação da Defesa. A pessoa
que me acompanha é Anders, Lili, que está sob minha custódia e me ajuda nas minhas investigações. Agora, vamos baixar os braços e o oficial em comando terá a bondade
de aproximar-se para completar a identificação e explicar-me a situação.
O ruivo encontrou afinal voz e coragem. Aproximou-se, esboçou uma continência e apresentou-se: - Roditi, Matteo, Capitão, ajudante de ordens do Major-General Leporello.
Posso ver seus papéis, Coronel?
Procurei os documentos embaixo da capa e entreguei-os a ele. Fez uma grande ostentação ao lê-los e em seguida devolveu-os.
- Muito obrigado, Coronel. A situação é a seguinte: tenho ordens do General Leporello para manter vigilância em torno da Vila Pantaleone e seus arredores, sem permitir
qualquer tentativa de remover papéis ou objetos de qualquer natureza. Para cumprimento dessas ordens, recebi poderes para requisitar a assistência das forças locais.
Isso explica a presença deste destacamento.
- Posso ver essas ordens, Capitão?
- Sem dúvida.
Ele me entregou as ordens e eu levei mais tempo do que era preciso para estudá-las. Disse então em voz suficientemente alta para que os soldados locais ouvissem
e tomassem nota.
- Parece que não leu bem estas ordens, Capitão.
- Como assim?
- As ordens se referem especificamente à “vila e terrenos dependentes da propriedade chamada Vila Pantaleone”. É isso, não é?
- Sim, Coronel.
- Tenha a bondade de notar que a terra onde nós estamos neste momento e as ruínas às minhas costas estão fora dos domínios da Vila Pantaleone e constituem na verdade
terras de domínio público limitadas pelas marcas de demanio na terra e pela linha da baixa-mar na praia. Correto?
- Correto, Coronel
- Assim sendo, exorbitou das ordens recebidas. Impediu um oficial superior do Serviço de Informação da Defesa no exercício de atividades altamente secretas. Sujeitou
esse oficial e a pessoa sob sua custódia a considerável risco. Um movimento de descuido de qualquer dos seus homens poderia ter causado um acidente fatal. Deve compreender
isso.
- Asseguro respeitosamente que o perigo era mínimo.
- Sem dúvida, a sua afirmação será levada em conta no devido tempo e lugar. Mais alguma coisa, Capitão?
- Gostaria de uma palavra em particular com o senhor.
- No momento, não é possível, Capitão. Sugiro que retome os seus deveres e me deixe cumprir os meus.
- Aquele barco na enseada...
- Foi posto a minha disposição pelos nossos amigos e aliados da OTAN. Mais alguma pergunta?
- Não, Coronel.
- Minhas recomendações ao General Leporello. Telefonarei a ele logo que voltar para Roma. À vontade! Vamos, Srta. Anders! Tenha a bondade de seguir à minha frente.
É difícil fazer uma saída com muita dignidade quando há quatro metralhadoras portáteis pelas costas. É mais difícil ainda descer um caminho de cabras escorregadio
debaixo de chuva, carregando um fuzil e um comprido tubo cheio de documentos explosivos. Para dizer a verdade, escorregamos os últimos dez metros sentados no chão
e fomos cair no escaler bracejando como focas.
Quando chegamos à lancha, estávamos ambos em estado de choque. Eu suava por todos os poros e Lili vomitava da borda do escaler. Helga nos ajudou a subir para bordo
e amarrou o escaler. Carl - Deus salve os Fuzileiros! - tinha a âncora levantada e tomou o rumo do mar a vinte e cinco nós antes que eu tivesse servido o nosso primeiro
conhaque.
Lili, pálida e trêmula, deitou-se no sofá enquanto eu lhe forçava a bebida por entre os dentes que batiam. Ela me olhava como se eu fosse um desconhecido.
- Lá em cima... eles iam nos matar!
- Não iam, não, Lili. E não podem mais nos atingir.
- Agora, não. Mas amanhã, depois...
- Acabe de beber. Feche os olhos. Tente dormir...
- Quem era aquele homem, Roditi?
- Você ouviu.
- Ouvi, mas não entendi.
- Depois eu explico. Agora, descanse... descanse...
- Não posso conhecer você, Dante Alighieri. O seu rosto muda de instante a instante. Não posso saber qual é o verdadeiro.
- Sou um péssimo ator. É só isso, confie em mim, bambina.
- É preciso. Não tenho mais ninguém...
- Outro gole?
- Não posso.
- Feche os olhos... Assim... Lasciandare, bambina... Relaxe...
Ao fim de algum tempo, ela ficou calma e o balanço do mar a fez dormir. Servi-me de outro conhaque, tirei os selos do tubo de metal e examinei o conteúdo. Uma série
de mapas em papel transparente, cada qual rotulado com o nome de uma cidade e a referência ao mapa padronizado sobre o qual deveria ser colocado, e meia dúzia de
cápsulas de metal, cada qual com um rolo de microfilme. Os mapas eram fáceis de interpretar. Mostravam a posição dos postos policiais, das instalações militares,
dos centros de comunicações, dos pontos de controle do tráfego, dos aeroportos militares e civis. Os microfilmes não podiam ser decifrados sem equipamento de projeção.
Entretanto, com o ampliador de cartas da ponte, pude ver que constavam de documentos, cartas, listas de nomes e relações de números.
Eu não tinha a menor dúvida de que eram o melhor motivo para os crimes da Via Sicília e de que eram de fato as plantas de um golpe de estado. Havia necessidade de
uma turma de especialistas para interpretar tudo corretamente e um homem de estado muito bem avisado para saber como devia usá-lo. Tomei a guardar tudo no tubo e
fui para a ponte a fim de falar com Carl.
Encontrei-o olhando as cartas enquanto Helga se encarregava do leme.
- Ainda tem muita gasolina no tanque, Carl?
- Bastante. Por quê?
- Dá para irmos até Ostia?
- Ostia? Isso não estava em nossa combinação!
- Eu sei, Carl. Mas pode levar-nos lá?
- Poder, eu posso. Mas quer dizer-me por quê?
- Porque acabo de identificar um assassino e nós podemos ser assassinados também.
- Os comunistas?
- Não, Carl. Os outros.
- Está bem. Vamos então para Ostia, Vou traçar a rota.
- Pode me dar a hora aproximada de chegada?
- Sem dúvida alguma que posso.
- Gostaria então de falar pelo rádio de bordo para terra.
- É fácil. Espere um pouco, enquanto eu manejo a régua de cálculo.
Enquanto Carl fazia os seus cálculos, redigi a mensagem cifrada em que comunicaria ao Diretor as minhas necessidades imediatas: um carro com uma escolta armada para
me esperar em Ostia, uma conferência de emergência imediatamente depois da minha chegada a Roma, alojamentos seguros e um agente para guardar Lili Anders até que
houvesse uma decisão sobre o futuro dela. Quarenta minutos depois, tive a resposta do Diretor:
“Mensagem recebida. Providências aprovadas”.
15
Temos palavras de código para agradecimentos e elogios. Ele não as usou. Dadas as circunstâncias, eu dificilmente podia censurá-lo.
Na oportunidade, o Diretor foi extremamente polido. Mostrou-se a princípio um pouco frio, mas se derreteu como um cubo de gelo no uísque quando eu lhe entreguei
os mapas e os microfilmes e fiz o meu primeiro relatório verbal. Aprovou sem reservas a minha preocupação com Lili Anders e, como uma prova disso, revogou uma ordem
anterior e mandou alojá-la com todo luxo e sob nome falso no Grande Hotel. Trocou até o guarda por um tipo mais apresentável que não destoasse do ambiente.
Convidou-me para jantar no seu apartamento. Elogiou minha imaginação, minha perspicácia e minha coragem em arriscar minha carreira e talvez minha vida para realizar
uma investigação importante. Via bom senso as minhas suspeitas em torno de Leporello, embora ainda não estivesse em condições de chegar a uma conclusão. Assistiu
comigo a uma projeção particular dos microfilmes e solicitou persistentemente a minha opinião sobre os documentos e as pessoas neles referidos. Examinou os mapas
comigo e concordou com os pontos principais de minha interpretação. Ao fim da reunião, que se prolongou até depois da meia-noite, mandou fazer café, pegou o seu
melhor conhaque e me ofereceu as recompensas da virtude.
- Essa Lili Anders... Estou de acordo com você. Ela nos prestou um serviço e não é mais um risco de segurança. Poderá, porém, ser um embaraço. Vamos fazê-la sair
do país... Amanhã.
- Muito obrigado, Diretor.
- Falemos agora do seu futuro. Quanto tempo tem você de férias acumuladas?
- Cerca de quatro meses.
- Eu gostaria de que você gozasse todo esse período agora. Quando voltar das férias, pretendo designá-lo para realizar extensos estudos junto a organizações congêneres
e amigas no exterior. Terá as melhores apresentações possíveis, instruções muito flexíveis, ordenado integral, ajuda de custo e ainda uma generosa contribuição da
verba secreta de nosso Serviço. Que tal lhe parece isso?
- Um atestado de óbito.
O Diretor sorriu e abriu as elegantes mãos num gesto defensivo.
- Meu caro Matucci, você e eu estamos vivendo num mundo que está de cabeça para baixo. Você ficará fora de circulação durante algum tempo, mas não estará morto.
Estará gozando a vida à espera do dia da ressurreição.
- Não há alternativas?
- Há sempre alternativas, meu caro amigo, mas não creio que possam ser aceitas por um homem inteligente. Eu poderia, por exemplo conservá-lo na investigação do caso
Leporello. Isso o faria correr um risco permanente, como um elemento incômodo, que seria um alvo direto de assassinato. Poderia também, ao contrário, ceder à pressão
que será inevitavelmente exercida e transferi-lo para o seu corpo de Carabinieri, onde ficaria diretamente sob a autoridade do Major-General Leporello. Ele o conhece
como elemento incômodo. Poderá considerá-lo uma ameaça.
- Compreendo o que quer dizer.
- Compreende tudo menos o âmago da questão.
- Qual é ele?
- Você sabe demais. E não tem a autoridade e, desculpe, a experiência para fazer uso desse conhecimento.
- E daí?
- É evidente que não se contentaria em ser um instrumento passivo de uma política muito complexa e variável.
- Por outro lado, não me submeteria à pressão de um homem que considero suspeito de um crime de morte, por mais alta que seja a sua posição.
- E não estaria disposto a tratar com conspiradores políticos, por mais alta que fosse a posição deles.
- Exatamente.
- Assim sendo, desde que o respeito e desde que gostaria de estar em posição de poder chamá-lo de volta a qualquer momento, vou imobilizá-lo. Vou oferecê-lo como
uma vítima propiciatória a pessoas poderosas cujos nomes nós conhecemos. Desse modo, ganharei tempo para lidar com eles de acordo com a fórmula clássica: dividir
para reinar. Já lhe disse uma vez que é esse o caminho único possível para a Itália neste momento da História. Você polarizaria as facções, Matucci. Na verdade,
já fez isso.
- Essa é também uma fórmula clássica.
- E, como todas as fórmulas, é de aplicação limitada. Não o estou censurando, Matucci. Ao contrário, desde que não é meu hábito dar explicações de meus atos a ninguém,
estou-lhe conferindo uma distinção que creio que você merece... Então?
- Gostaria de conferir-lhe também uma distinção, Diretor, dizendo que o senhor é um homem muito civilizado. Eu não poderia querer funerais de mais classe.
- Excelente! Mais conhaque?
- Sim, muito obrigado.
- Agora, quanto aos detalhes. A partir deste momento, você está oficialmente no gozo de quatro meses de férias, isento de todos os deveres e encargos no Serviço,
salvo um. Deverá escoltar Lili Anders até Zurique amanhã de manhã. As passagens já estão compradas. A reserva do hotel foi feita no Baur au Lac. Eu lhe entregarei
as passagens e o dinheiro necessário antes que saia daqui esta noite. Ficará ausente da Itália pelo menos um mês. Depois disso, poderá tomar as providências que
quiser para passar o resto de suas férias. Se quiser distrair-se com a pessoa a quem vai escoltar e por quem tem evidentemente alguma atração, o problema é seu.
O Serviço não tem mais interesse nela, desde que ela não tente voltar à República. Estou um pouco endividado, mas creio que achará as disposições financeiras mais
que generosas... Alguma pergunta?
- Não. Apenas uma pequena preocupação. Não gostaria de passar tão longas férias à espera de um tiro pelas costas. Prefiro continuar no serviço ativo, no qual, ao
menos, tenho uma certa dose de proteção.
- Creio que cobrimos isso muito bem. Toda a finalidade de nossa tática é demonstrar que você não é mais uma ameaça para Leporello ou para qualquer outra pessoa e
que alguma ação contra você violaria o que eu poderia chamar de sua utilíssima neutralidade. Há, entretanto, uma fase de perigo, desde o momento em que sair desta
casa até embarcar no avião para Zurique.
- Estava pensando nisso...
- Por isso, designei dois homens para cobrirem todos os seus movimentos. Já arrumaram as suas malas e levaram-nas para o Grande Hotel. O seu quarto é vizinho ao
da Srta. Anders. Deixarão o hotel juntos às oito e meia de amanhã. Será muito mais simples do ponto de vista da segurança.
- É claro.
- Vejamos... Duas passagens de avião, dez mil francos suíços em notas de diversos valores e uma ordem no Banco União de Zurique de mais vinte mil. Trata-se de uma
gratificação com meus agradecimentos pessoais. O seu salário será creditado normalmente na sua conta de banco em Roma. Acho que é só. O carro está à sua espera a
fim de levá-lo ao hotel. Desejo-lhe boa viagem e férias realmente repousantes. Sogni d’oro, Matucci - sonhos de ouro!
Despedimo-nos com um aperto de mão firme e fraternal. O guarda-costas siciliano me levou até a rua e me confiou aos cuidados dos dois jovens colegas, que me levaram
para o Grande Hotel como se eu fosse um potentado em visita.
Era uma e meia da madrugada. O vestíbulo do hotel estava deserto. Os dois homens passaram comigo pelo balcão de recepção e pela portaria, subiram no elevador e foram
deixar-me no quarto. Um deles verificou tudo - armários, banheiro e até embaixo das camas - enquanto o outro me mostrou como as malas estavam bem arrumadas, com
todos os meus ternos passados e que, se eu quisesse falar com a Signorina Anders, a chave estava no meu lado da porta de comunicação... Como o Diretor tinha determinado
um máximo de precauções, eu podia dormir com a maior tranquilidade. Deram-me boa noite e se retiraram como lacaios diante da presença de um príncipe.
Talvez tivessem razão. Eu era o homem do Príncipe, comprado e cumulado de graças. O dinheiro dele estava em meu bolso. O presente dele estava dormindo no quarto
ao lado. O sinal dele estava na minha testa como uma marca de escravidão. Entretanto, era preciso reconhecer o mérito até do diabo e dizer que ele era um tipo muito
especial. Reconhecia o mérito. Apreciava a malícia, mas nunca a praticava à toa. Tinha sido escrupulosamente polido. Tinha conseguido o meu consentimento com a exata
dose de pressão e sutileza. Era o rei. Eu era o peão. Tinha me tirado do tabuleiro para esperar outro jogo. Não sugerira uma só vez que estava fazendo uma transação
que me tornaria um escravo. Mas sabia disso. E eu também sabia. Era por isso que, por mais que a quisesse, não podia abrir a porta e ir para onde estava Lili no
outro quarto. Em lugar disso, fiquei vestido e acordado até o dia amanhecer, planejando revoltas de escravo como a de Spartacus em Capua.
Ao amanhecer, abandonei o inútil esforço e fui falar com Lili Anders. Com requintada ironia, o Diretor a mantivera na ignorância de suas determinações, de modo que
às seis da manhã, insone e necessitado de amor, fui forçado a explicar-lhe lance a lance todo o complicado jogo. Quando lhe disse que ela ia ser posta em liberdade
na Suíça, ficou histericamente feliz. Quando lhe disse que eu iria com ela, o dia passou a ser Natal, Ano Novo e todos os seus aniversários misturados num só. Depois
disso, não tive ânimo nem coração para revelar-lhe o preço.
Desde o momento em que eu deixasse a Itália, seria, na realidade, um exilado. Desde o momento em que começasse a ser um exilado, estaria sujeito a uma transformação
clínica, habilmente calculada pelo Diretor. Para muitos europeus e para todos os anglo-saxões e americanos, a palavra exílio desperta apenas um eco de outras eras.
Sejam quais forem os crimes cometidos por um homem, ele nunca é privado de sua cidadania, de sua relação fundamental com a pátria. Pode ser preso, pode sofrer violências,
mas nunca é despojado desse demento essencial de sua identidade, o seu contato com a terra materna.
Entretanto, para nós, italianos, cuja identidade depende de um pequeno pedaço de terra, de um grupo tribal, de uma área dialetal, o exílio é uma realidade constante
e sinistra. Podemos ainda ser transportados e confinados numa província distante, numa ilha depressiva, numa comunidade cuja língua, cujos costumes e cuja história
nos sejam totalmente estranhos e onde seremos estranhos até morrermos. Não podemos nos locomover sem permissão da polícia. Não podemos prosperar porque somos um
corpo estranho. Existimos apenas por tolerância e sob vigilância.
As consequências pessoais são tão profundas e arrasadoras como se fôssemos levados para a Sibéria ou abandonados na mais árida das ilhas Tortugas.
O terror começa de maneira sutil com uma sensação de desorientação e descontinuidade. Pode terminar com um trauma de impotência, no qual todos os atos parecem sem
sentido, todos os passos terminam diante de uma porta fechada e toda a esperança se revela uma ilusão.
O Diretor sabia disso porque tinha usado muitas vezes o exílio como um meio de imobilizar homens que lhe eram hostis. Eu também sabia porque meu pai fora exilado
no tempo dos fascistas e eu o vira voltar para casa como um homem arrasado. Mas como eu ia explicar isso a Lili, que tinha sobrevivido ao seu próprio exílio e se
preparava no momento para viver em liberdade? Talvez fosse melhor ela não saber de nada. Do contrário, o amor não seria tão doce, nem a nossa saída da Itália tão
impressionante.
Às 8h25, nossa bagagem foi removida sob a supervisão de um agente. Às 8h30, sem ter contas para pagar e recebendo tantos salamaleques do pessoal do hotel como se
tivéssemos pago dobrado, fomos levados do vestíbulo para uma limusine oficial. Às 9h15, fomos levados para a sala das pessoas importantes no aeroporto de Fiumicino
e tratados com todo o conforto e respeito até quinze minutos antes da partida do avião. Em seguida, evitando o contato com os passageiros comuns, fomos escoltados
até o avião e depositados em dois lugares de primeira classe. O agente pairou em volta de nós até um momento antes de se fecharem as portas. Então, com uma saudação
final em nome de uma República reconhecida, deixou-nos. Cinco minutos depois - desde que o tempo estava bom e não era dia de greve em Fiumicino - estávamos no ar
e aos cuidados dos suíços. Ficamos de mãos dadas. Fizemos brincadeiras tolas. Brindamos um ao outro com champanha. Depois, peguei no sono e só fui acordar quando
já estávamos descendo para a pista do aeroporto de Kloten, em Zurique.
Quando chegamos ao Baur au Lac, descobrimos que o Diretor havia previsto todas as contingências. Fomos acomodados em quartos separados, cada qual em comunicação
com um grande salão no qual já havia flores, frutas, bebidas e um cartão de boas-vindas da gerência. Havia também um telegrama do Diretor que dizia: “Samuel Sete
Um”. Zurique é uma firme cidade calvinista e eu decifrei a gracinha consultando a Bíblia que estava na mesinha de cabeceira: “E o Senhor deu-lhe paz, livrando-o
de todos os inimigos que o cercavam”.
Naquele mesmo dia, chegou outro telegrama com duas palavras apenas: “Tekel Stefanelli”. Para isso não era preciso consultar a Bíblia. Eu me lembrava da educação
religiosa que havia recebido e interpretei: Tekel - “foste pesado na balança e achado abaixo do peso”. Tinha de responder e o fiz com o Deuteronômio, I, 16: “Julgai
com equidade as questões de cada um com seu irmão e com o estrangeiro que mora com ele”. Já então, a pilhéria estava cansada e amarga. Eu tinha de acabar com aquilo
e contei a verdade a Lili.
Esse momento de revelação teve uma curiosa qualidade. Eram sete horas da noite. Tínhamos resolvido jantar cedo no apartamento, para descansar dos alarmes e das agitações
daqueles últimos dias. Lili resplandecia depois de passar pela cabeleireira, pela massagista e pela manicure. Estava vestida com um robe que comprara para comemorar
a sua nova liberdade. Tinha me dado de presente uma camisa de seda e uma gravata um tanto exótica. Eu estava preparando drinques como um barman amador, sentindo-me
muito à vontade e muito doméstico, mas um pouco remoto e desapaixonado, como se estivesse convalescendo de uma prolongada doença. A história foi contada por si mesma
também de maneira remota e eu me ouvia falar como se estivesse escutando o relato de outro homem.
- ...Tudo o que o Diretor diz é verdade, Lili, mas em conjunto representa uma mentira difícil de contestar. Ele é um grande ator. Cria um mundo que não existe e
faz acreditar que cada folha é real. Mostra outra personalidade e faz acreditar que é a gente... Você não tem autoridade, Matucci. Você não tem experiência. Você
é um elemento incômodo. Você polariza as facções. Tudo isso é verdade, mas ao contrário. Você não está morto. Vai apenas esperar o dia da ressurreição... Mas eu
sabia que no momento em que embarquei naquele avião estava morto. Ele tem agora todos os documentos e registros e pode manejar a história do jeito que entender.
Diz ele que quer dividir para reinar. E se não fizer assim? Vamos supor que ele queira unir e conquistar para ser o Fouché do Napoleão que é Leporello. Neste caso,
eu lhe forneci os meios de assim proceder... E ele me pagou bem. Deu-me você, deu- me longas férias, deu-me uma sinecura que metade dos homens do Serviço daria a
vida para conseguir. E ele não faltará com o pagamento enquanto eu fizer o jogo de acordo com as regras dele e esperar a palavra do Senhor.
- Por que aceitou o pagamento, Dante Alighieri?
Não havia nem sombra de censura na pergunta. Não havia compaixão também. Estava calma e ponderada como um juiz que examinasse um caso. - Foi por minha causa?
- Não. Acredito que, ainda que eu discordasse dele, ele a deixaria partir, quando nada para demonstrar que eu estava sendo obstinado e ilógico. Ele poderia até ter
feito você voltar-se contra mim... As tramas dele são tão sutis que nem se veem os fios.
- Por que então consentiu? Para mim, isto é a liberdade; para você, é o exílio.
- É estranho, mas neste momento eu estou gostando.
- Se puder continuar a gostar, comigo ou sem mim, a coisa será muito diferente. Mas acha que é isso o que vai acontecer?
- Não sei... Espere aí, sei, sim! Na noite passada, jantei com ele e me senti bem. Depois do jantar, trabalhamos juntos nos documentos e eu o respeitei, porque ele
me respeitou. Assim, quando ele me pediu que saísse de cena e me explicou as suas razões, tive de respeitá-las também. Então, depois que eu tinha concordado, ele
teve de me mostrar como era hábil, como sabia de antemão que eu ia concordar. Ele estava tão certo de minha aquiescência que já havia tomado todas as providências,
até sobre esta bebida e sobre as rosas em seu quarto. De repente, eu não fui mais um homem, fui...
- Um fantoche, meu amor! Uma marionete, em tamanho natural e indefesa, um boneco despojado de toda a virilidade. É horrível, não é?
- Acho que é engraçado, muito engraçado!
- É mesmo?
- A pilhéria do século! Dante Alighieri Matucci, tenor castrado no coro dos fantoches!
- Por que não ri então?
- Sou um fantoche palhaço, Lili. Faço os outros rirem. Esse é o triunfo final dele, compreende? Espalhou a notícia por todo o Serviço. Do contrário, como Steffi
saberia e me passaria aquele telegrama para dizer que eu fui pesado e fiquei abaixo do peso? Mãe de Deus! Que comédia, que bela comédia!
- Eu gostaria de ver o fim dela.
- Este é o fim, Lili. Não compreende isso?
- É o fim que ele escreveu. Mas há um fim melhor.
- Eu gostaria de ouvi-lo.
- O fantoche volta a ser um homem, tira do rosto a máscara de palhaço e parte para enfrentar o inimigo.
- Isso é um conto de fadas, Lili.
- Não! É uma verdade, a minha verdade! E agora que estamos quites, eu posso lhe dizer isso. Sei que você é homem, muito homem, Dante Alighieri, e não apenas na cama!
- Obrigado. Isso ajuda um pouco.
- Mas não chega. Onde está sua carteira?
- No quarto. Por quê?
- Há um cartão nela, lembra-se? Uma salamandra com a inscrição: “Um belo amanhã, irmão”. Uma boa divisa, não acha? E um emblema muito apropriado, o do lagarto que
vive no fogo. Pegue o cartão, meu amor. E veja qual é o número do telefone do Cavaliere Bruno Manzini. Acho que deve telefonar para ele em Bolonha.
A ideia era sedutora. Mas eu ainda estava ressabiado e receoso de qualquer novo envolvimento. Bruno Manzini pertencia a outro mundo, regido por outras regras. Era
o mundo dos condottieri, dos flibusteiros, dos homens que haviam ocupado as ruínas de um império de papelão, construindo um novo de aço, concreto e ouro internacional.
Exerciam enorme poder, mas de uma qualidade bem diferente daquele a que eu estava habituado. Na verdade, Bruno Manzini me convidara a confiar nele. Tinha-me oferecido
por intermédio de Rachele Rabin uma prova de sua boa fé. Mas, se ele me traísse, eu estaria perdido sem possibilidade de redenção, pois a jurisdição do dinheiro
é universal e os seus servidores são despidos de piedade.
Discuti isso com Lili - a nova Lili que florescera de repente em outra mulher, serena, amadurecida e inteiramente cheia de confiança em si mesma. Ela me dissipou
as dúvidas com um simples desafio:
- Que é que você tem a perder? Nada. Que é que você tem a ganhar? No mínimo, um amigo poderoso. Será uma aliança de interesses que você poderá dissolver à vontade.
Mas o mais importante de tudo é que você terá começado a lutar. Por favor! Telefone para ele neste momento!
Fazer a ligação foi fácil. Falar com o Cavaliere foi apenas menos difícil do que se eu quisesse conversar num domingo com o Papa. Fui passado de uma telefonista
para uma secretária, da secretária para um assistente muito eficiente, muito alt’Italia, que me informou que o Cavaliere estava participando de uma importante conferência
e não podia de modo algum ser interrompido. Achei que devia assumir um risco e usei o nome mágico do Serviço, sugerindo todas as espécies de vagas crises se o Cavaliere
não fosse chamado imediatamente ao telefone. Esperei mais três minutos até que ele chegasse do outro lado do fio. Disse-lhe então: - Cavaliere, recuperei ontem certos
documentos em Ponza. Entreguei-os a meu superior, nosso amigo comum. Estou agora no gozo de quatro meses de férias, depois do que serei transferido para outras atividades
no Serviço. Tenho ordens de não voltar à Itália no prazo de um mês e estou hospedado no Baur au Lac, em Zurique.
Houve um momento de silêncio e então uma série de perguntas rápidas.
- Examinou os documentos?
- Sim.
- Importantes?
- Como o senhor sugeriu em Roma.
- Sabe o que acontecerá com eles agora?
- Só o que pode acontecer. Há várias possibilidades.
- Que você não pode mais controlar?
- Precisamente.
- Precisa de assistência, financeira ou qualquer outra?
- Preciso do homem a quem Rachele Rabin me recomendou, desde que ele ainda esteja disponível, é claro.
- Está, sim. Estará com você amanhã à noite... Por falar nisso, como está nosso amigo comum?
- Muito satisfeito consigo mesmo.
- Sem dúvida. E você?
- Mais feliz. Depois de ter falado com o senhor.
- Vai bem de saúde?
- Nosso amigo comum me assegura que eu nada tenho a temer.
- Ele deve saber, é claro.
- Mas nunca diz tudo o que sabe.
- Não se esqueça, meu amigo. Só ande pela rua bem encostado às paredes.
- Obrigado, Cavaliere... Boa noite.
Quando desliguei o telefone, estava trêmulo e com as palmas das mãos banhadas de suor. Estava realmente com medo. As palavras de despedida do velho tinham demolido
a última e frágil ilusão de segurança, revelando toda a requintada malícia do plano do Diretor. Eu era um estrangeiro numa terra cheia de dinheiro e indiferente
até a insensibilidade. Eu era uma figura de um submundo legal, suspeito em toda a parte e em lugar algum amado. Eu podia ser morto a tiros em qualquer esquina e
os suíços lavariam o sangue do chão com uma mangueira e restabeleceriam o trânsito antes que alguém tivesse tempo de dizer João Calvino. Como já disse, sou da Toscana
e naquele momento senti todo o sabor florentino da vingança do Diretor. Mas Lili chegou, enlaçou-me nos braços e assim ficamos enquanto ela me murmurava ao ouvido
como um sortilégio:
- Um belo amanhã, irmão... Um belo amanhã...
16
O amanhã foi um dom de Deus: sem vento, sem nuvens, o lago a cintilar sob o sol de primavera, neve nos cumes, os prados baixos recobertos pela relva primaveril que
cobria os tornozelos, os pastores a tocar o gado pelas encostas sob uma música de chocalhos. Aluguei um carro e seguimos para leste contornando o lago até os Graubünden
ou Grisons, sem destino e felizes como um casal em lua de mel. Lili estava em transportes de contentamento. Cantava, dizia graças, fazia jogos de palavras e jogos
de amor, construía casas de sonho que depois mobiliava e demolia, recolhia galinhas do nada e as dispersava como flocos de algodão ao vento.
E eu? Eu também estava feliz. Vivera por muito tempo alheado daquela espécie de simplicidade. Meu relacionamento com as mulheres fora sempre acossado pelo tempo,
sendo muito frágil e febril para conferir qualquer espécie de paz. Eu procurava e elas me desafiavam. Nós nos juntávamos e nos despedíamos. Amanhã era outro dia
e outra procura, que começava com um toque no chapéu e terminava com um ciao, ciao, bambina. Eu nada sabia da volta para casa, dos beijos na porta e da amorosa absolvição
diária de todos os pecados de meu ofício. Eu era o “búfalo solitário”, sempre na franja do rebanho, desviando-me das fêmeas errantes e deixando que outros machos
as tomassem e alegrassem. Costumava me vangloriar disso, porque nosso passatempo nacional é provar que somos de uma potência infinita. Mas, humilhado pelo medo,
diminuído em meu respeito próprio, eu me sentia pela primeira vez verdadeiramente grato a uma mulher.
Pela primeira vez também - e isso pode parecer estranho num homem treinado para observar e para ajustar todos os seres humanos a uma carta antropométrica - eu a
via para fixá-la na lembrança: os cabelos cor de mel que fugiam do lenço amarrado, os malares eslavos salientes enrubescidos pelo vento e pela excitação, as pintas
de ouro dos olhos, o sorriso nascente que lhe levantava os cantos da boca, o alçar do queixo, dos ombros e do peito, o esvoaçar das mãos enquanto ela falava e até
o leve toque do tempo na tessitura da pele. Não, não era menina aquela Lili. Tinha vivido estranhamente e por muito tempo. Mas eu também não era garoto e estava
cansado de mulheres que falavam com voz de criança, de mentiras de amantes e de todas as conversas do circuito-modelo.
Almoçamos numa hospedaria da montanha, debruçada sobre o vale. Comemos suflê de queijo e carne fondue, bebendo um vinho leve e pétilant, muito diferente do rico
produto das minhas montanhas da Toscana. A moça que nos serviu era loura, rósea e branca e estava vestida como uma boneca, uma dirndl e uma blusa bordada. Sentamo-nos
diante de um grande fogo de troncos, tomamos café e aguardente de pera e adoramos o sólido e agradável conforto suíço de tudo aquilo. Falamos do futuro e Lili se
referiu ao seu sem qualquer amargura.
- Estou fichada agora. Qualquer polícia a par de meus antecedentes poderá perseguir-me como uma vagabunda. Devo, portanto, ter cuidado. Se viver modesta e sobriamente,
os suíços me concederão uma autorização de residência temporária. Poderão prorrogá-la com alguma relutância. Mas com um bom advogado num pequeno cantão, poderei
viver por muito tempo em paz. Se eu me casasse, seria diferente. Eu teria um novo estado civil e uma vida nova. É uma coisa em que eu terei de pensar... mas por
enquanto não. O dinheiro que tenho comigo chega para dois anos de vida simples. Tenho a vila em Ponza, que pode ser vendida por um bom preço. Massimo disse que me
deixaria alguma coisa em seu testamento, mas foi roubado. De qualquer maneira, haveria luta nos tribunais e eu não conto com isso... especialmente porque não posso
jamais voltar à Itália... Apesar de tudo, sou muito feliz. Feliz por sua causa também, meu amor. Nunca pensei que tivesse tanta preocupação comigo.
- E eu nunca imaginei que viesse precisar de uma mulher do jeito que eu preciso de você... Da sua presença calma, sem ter de provar nada, sentindo a alegria de você
por perto. Que me diria você se eu lhe pedisse que passasse todo este mês comigo?
- Eu diria que sim. Mas diria também que você deveria me deixar antes de se cansar de mim. Não deve haver entre nós nem discussões, nem troca de palavras ásperas.
Tudo deve ser como é agora, simples e fácil, uma hora, um dia de cada vez.
- Um dia de cada vez.
- E quando você tiver de ir, deve ir. Quando se sentir muito sozinho, volte. Não temos de dizer muitas palavras um ao outro. Talvez não tenhamos nem de dizer coisa
alguma. Você tem de se sentir livre agora para arriscar-se ou gozar a vida, conforme preferir. Tem de começar a conhecer a homem que vive dentro de você.
- Tenho medo dele, Lili.
- Um dia terá de encará-lo frente a frente, no espelho. Depois disso, se Deus quiser, poderá ser feliz.
- Assim espero. Mas há alguma coisa que não posso deixar de lhe dizer, Lili.
- Que é?
- Se algum dia você tiver de escolher entre você e eu, ponha o seu interesse em primeiro lugar. É assim que eu quero.
- Não compreendo...
- Escute, bambina. Não estamos aqui por acaso. Não estamos hospedados num belo hotel porque os outros querem que sejamos felizes. Isso foi arquitetado pelo Diretor
para que ficássemos ligados um ao outro e, quanto mais estreitamente, melhor. Desse modo, uma ameaça a um poderia ser uma pressão sobre o outro. Ele pensou em me
comprar. Talvez esteja convencido de que me comprou. Mas tratou também de ter um seguro contra a possibilidade de que eu quebre o contrato. Compreendeu?
- Compreendi, sim. E quero que você quebre esse contrato. Diga-me uma coisa.
- Que é?
- Nunca o ouvi mencionar esse homem pelo nome. Só se refere a ele como o Diretor. Por quê?
- É uma regra do jogo que se tornou uma segunda natureza. Mas, agora que você pergunta, vejo outra razão. É um homem muito envolvente. Pode seduzir a pessoa, como
já me seduziu muitas vezes com um sorriso, um aperto de mão, uma demonstração de confiança e um infinito bom senso. Nasceu com esse talento, apurado nele através
de vinte gerações. É uma coisa que eu invejo e como! Mas, ao mesmo tempo, me sinto intimidado e cada vez mais amedrontado. Por isso, procuro pensar nele como se
fosse não um homem, mas uma função, como o Papa ou o Presidente. Dessa maneira, posso enfrentá-lo. Posso construir, inibir, desviar, como tenho feito tantas vezes
no passado. É estranho, mas nunca disse isso a ninguém.
- Talvez ainda chegue o dia em que você possa dizer o nome dos dois ao mesmo tempo - o homem que vive dentro de você e o outro de quem ainda tem medo.
- Sou assim tão covarde, Lili?
- Há sempre um medo que faz cada um de nós covarde.
- Qual é o seu?
- A pequena sala, a luz forte brilhando em meus olhos, os rostos que eu não vejo, as perguntas e as pancadas que vêm não se sabe de onde... Você me salvou disso
e eu seria capaz de fazer tudo para pagar esse grande bem...
- Estamos assim recompensados, cara. O bom dia é suficiente.
- E hoje à noite o seu Cavaliere Manzini vai chegar. Vai falar com ele a meu respeito?
- É difícil evitar. Está preocupada com isso?
- Não. Mas é uma situação estranha. Fui amante do irmão dele e agora ele me encontra com você. Não sei o que pensará ou dirá.
- E você se importa com isso?
- Sim, porque quero que ele seja seu amigo.
- Ele se dá o nome de Salamandra. Deve ter pago o seu próprio preço pela sobrevivência. Vamos partir da esperança de que compreenderá a nossa situação. Depois disso...
quem sabe? Não há sinais no céu e eu não sei ver numa bola de cristal. Temos de voltar agora. É uma hora e meia de viagem até Zurique.
Às oito e meia da noite, o Cavaliere Bruno Manzini me recebeu no seu apartamento no Dolder Grand. Mais uma vez, o cenário era opulento: o vasto salão, a vista da
floresta sombria, do lago banhado pelo luar e das luzes da cidade embaixo. Mas a figura do homem era por si mesma tão importante e austera que se sabia que, ainda
que o resto desaparecesse, ele continuaria ali, ereto como uma coluna, com os olhos altivos e o nariz patrício, com os cabelos brancos como a neve num pico dos Alpes.
Recebeu-me de maneira cordial e sorridente, mas desde o momento em que eu entrei, começou a examinar-me a postura, a atitude e a entonação de voz. O seu primeiro
comentário foi característico.
- Está mudado, Coronel.
- Em que, Cavaliere?
- Em tudo. Usa as suas roupas como se isso lhe desse prazer. Está mais relaxado, mais bem disposto. Sou capaz de apostar que encontrou uma mulher satisfatória e
um pouco mais de coragem do que tinha ontem.
- É verdade nos dois casos.
- Quer beber alguma coisa?
- Uísque, sim?
Serviu o uísque pessoalmente e eu notei que a dose dele era mínima. Levantou o copo num brinde.
-Saúde, amor e dinheiro...
- E tempo para gozar tudo isso, Cavaliere.
- Principalmente isso, Coronel... Pedi que o jantar nos fosse servido aqui dentro de meia hora. Julguei que confiaria em mim quanto à escolha dos pratos.
- Sem dúvida.
- Agora, conte-me tudo o que aconteceu desde que nos vimos em Roma.
Contei. Narrei todos os fatos sem ênfase, nem comentário, inclusive a minha chegada a Zurique com Lili Anders e o relacionamento que começara a amadurecer entre
nós. Enquanto eu falava, ele não pronunciou uma só palavra, mas não tirou os olhos de cima de mim e eu sabia que ele estava pesando cada frase e cada inflexão de
voz. Quando acabei, ficou durante algum tempo em silêncio e, em seguida, começou a interrogar-me, num tom seco e inquisitorial.
- Está convencido de que o Major-General Leporello se aliou aos neofascistas?
- Estou convencido de que ele era e é candidato a essa aliança. Não posso provar que a tenha concluído.
- É, portanto, de opinião que ele ordenou ou foi conivente com os assassinatos na Via Sicilia e com o roubo dos papéis de Pantaleone?
- A minha conclusão é de que esse é um caso que deve ser investigado.
- Há provas em apoio dessa conclusão?
- Leporello sabia, por meu intermédio, onde estavam os papéis e as providências tomadas para guardá-los. Se os papéis caíram em poder dele, deve ter visto no mesmo
instante que estavam incompletos. Tomou então medidas para descobrir os papéis restantes, isto é, os mapas e os microfilmes que estavam em Ponza. O ajudante de ordens
dele estava lá, com uma ordem assinada por Leporello.
- E por que iria ele ser tão irrefletido a ponto de assinar uma ordem que o incriminaria e ao seu ajudante?
- A ordem não o incriminaria necessariamente. Ele poderia justificá-la facilmente como uma medida de investigação dentro do seu programa anti-insurrecional. Sabe
como nossos serviços e agências são organizados. Às vezes, agem paralelamente; outras, invadem as atribuições uns dos outros ou seguem programas que se contrariam.
Há rivalidades entre eles e os ministérios a que estão subordinados.
- Há também conflitos internos, não é?
- Claro que há.
- Conflitos de orientação?
- Sempre.
- Qual é no fundo a divergência entre você e seu Diretor?
- Há várias divergências. Sugeri uma investigação sobre Leporello e ele não concordou. Desobedeci a uma ordem direta dele e fui procurar Leporello.
- Desse modo, você pode ser considerado responsável por dois homicídios e pelo roubo de importantes documentos.
- Creio que sou responsável.
- Sendo assim, o seu Diretor teve toda a razão em afastá-lo da investigação.
- Desde que tenha feito isso por motivos disciplinares.
- Sugere então que ele possa ter tido outras razões?
- Ele as expôs com muita clareza. Eu não tinha autoridade, nem experiência para enfrentar uma situação política muito complexa. Eu polarizaria as facções existentes,
que seria muito melhor que ficassem divididas. Eu era uma vítima conveniente que o faria ganhar tempo.
- Boas ou más essas razões?
- Absolutamente sólidas.
- E ele o tratou generosamente?
- Muito generosamente.
- Qual é, então, sua divergência com ele? Por que faz objeções à maneira pela qual ele agiu?
- Não tenho divergências. Não posso apresentar objeções que sejam válidas. Mas...
- Mas o que, Coronel?
- Disse isso cara a cara com ele e ainda digo. Não confio nele.
- Qual foi a resposta dele?
- Vou citá-la literalmente: "Não quero a ditadura. Não quero o marxismo. Tenho certeza de que a espécie de democracia que temos é instável demais para durar. Mas,
venha o que vier, estou disposto a torná-lo tão tolerável quanto me for possível’.
- Uma ambição muito louvável, não acha?
- Isso depende da interpretação. Ele mesmo fez uma glosa sobre isso, dizendo: “Eu sou rei no tabuleiro e você é um peão”.
- E não lhe agrada ser um peão, Coronel?
- Não. Não me agrada.
- Preferiria, sem dúvida, ser o rei?
- Cavaliere, meu pai foi um socialista da velha guarda que passou cinco anos exilado em Lipari no tempo dos fascistas. Só o deixaram voltar para casa quando estava
para morrer.
- Sinto muito. Não sabia disso.
- Não havia razão para que soubesse.
- Que gostaria de ser então?
- Servidor de uma sociedade aberta.
- Entretanto, ingressou num serviço fechado, mais sujeito do que qualquer outro à corrupção do segredo. Por quê?
- Fui recomendado, Cavaliere, e aproveitei a oportunidade.
- Por quê?
- Tenho inclinação para a investigação.
- E para a intriga?
- Para isso também, se quiser.
- E gosto pela influência sem responsabilidade.
- Não gosto. Gosto de assumir responsabilidades.
- E agora não se conforma com o fato de não poder mais assumi-las?
- De fato, não me conformo.
- E que é que o faz mais inconformado?
- Que um homem possa, por um capricho pessoal, fazer de mim menos do que sou e que esse mesmo homem possa, se quiser, arquivar, manobrar ou negociar informações
capazes de determinar o futuro político deste país, do meu país, Cavaliere... que é seu também.
- Que é que sabe sobre este nosso país, Coronel?
- Muito pouco. E, na maior parte, do lado errado. Conheço criminosos, agitadores, propagandistas, policiais, políticos. Mas o povo... tenho às vezes a impressão
de que sou um homem verde de Marte, com cérebro e antenas apenas e sem coração.
- Pode ser comprado, Coronel?
- Já o fui, Cavaliere, há quarenta e oito horas.
- Pode ser amedrontado?
- Estou amedrontado neste momento. Sei demais. Estou isolado e sou um alvo fácil.
- E quem havia de querer eliminá-lo?
- O Diretor, de um lado; Leporello, do outro.
- Ou ambos, agindo de comum acordo.
- Esse é realmente o grande perigo. E bem poderia acontecer. Veja o que houve na Grécia. E veja como logo os coronéis se tornaram respeitáveis. Seu irmão, Pantaleone,
tinha os planos de um golpe militar, que ainda são muito exequíveis. Se Leporello e o Diretor agissem de comum acordo, teriam dupla eficiência e rapidez.
- Quando me telefonou ontem, que foi que pensou que eu poderia fazer quanto a isso?
- Pensei que me poderia dar conselhos sobre a melhor maneira de continuar vivo e fazer uso do conhecimento que eu tenho para impedir um golpe de estado.
- Qual é o conhecimento que você tem, Matucci?
- Sei todos os nomes constantes dos microfilmes. Poderia reproduzir todos os documentos. Seria capaz de reconstituir todos os mapas. Tenho uma memória fotográfica
e asseguro noventa por cento de exatidão, Cavaliere.
- O Diretor sabe disso?
- Sabe.
- Ele então lhe disse a verdade. Você é uma vítima natural.
- E o senhor, Cavaliere?
- Eu também lhe disse a verdade. Somos aliados naturais. Mas você terá de aceitar o fato de que a aliança será, como você mesmo disse, desigual.
- Pendendo para que lado?
- Quase inteiramente para o meu. Eu o farei entrar num mundo novo, do qual terá que aprender a história, a linguagem e os símbolos. Tenho tudo o que lhe falta: influência,
dinheiro, amigos ou servidores em todos os países do mundo. Além disso, sou velho e obstinado. Tenho, portanto, de ficar na posição mais vantajosa.
- Compreendo e aceito.
- Há mais uma condição.
- Sim?
- Essa Lili Anders... Ela é um perigo para você e um embaraço para mim. Pague-a e esqueça-se dela.
- Não posso fazer isso, Cavaliere.
- É uma coisa em que eu insisto, para que possamos trabalhar juntos.
- Cavaliere, tenho certeza de que há trinta anos muitos amigos lhe deram o mesmo conselho em relação a Rachele Rabin. Como um judia famosa, ela era um perigo para
o senhor e um estorvo para eles. Que foi que fez?
- Segui o conselho deles.
- Rachele Rabin me contou coisa muito diferente.
- Eu sei, mas a versão verdadeira é a minha.
- E ainda me pede que proceda da mesma maneira com outra mulher?
- Mas por outra razão.
- Não. A razão é a mesma, Cavaliere.
- Está cometendo um grande erro.
- Talvez. Mas o senhor está me oferecendo o mesmo trato inaceitável do Diretor. Submeta-se e fique em segurança. Sinto muito. O mercado está fechado. Não há mais
transações.
- Outro uísque?
- Não, muito obrigado. E, se me der licença, vou desistir do jantar.
- Não vai desistir coisa nenhuma, Coronel. Vai ficar e me aturar, quando nada porque eu sou trinta anos mais velho e tenho desculpa pelas minhas más maneiras.
- Tenho também algumas desculpas, Cavaliere. Dentro em pouco, posso estar morto. Gostaria de gozar o pouco tempo que talvez me reste.
- Sente-se, pelo amor de Deus! A farsa já acabou!
- Como assim?
- Ofereci-lhe um contrato inferior, meu amigo. Se aceitasse, eu o teria entregue pessoalmente aos assassinos... Agora, tenha a bondade de tocar a campainha. Acho
que está na hora de jantarmos.
O homem que se sentou diante de mim durante o jantar naquela noite no Dolder Grand era um fenômeno, diferente de qualquer imagem que eu pudesse ter formado dele.
Tinha setenta anos, idade em que a maior parte dos homens se contenta em viver com conforto e pequenas manias. Aquele não. Fervilhava como champanha. Falou de livros,
mulheres, pintura, dinheiro, petróleo, cinema, moda, religião, parques de caça, vinhos e a cultura de rosas. Era tão variado que me deixava tonto e, apesar disso,
tão completo em tudo o que era e fazia que me fez ter vergonha do desperdício dos anos de minha mocidade. Não era simplesmente que ele fosse eloquente ou interessado.
Sabia das coisas e sabia profundamente. Gozava e saboreava tudo. Tinha dado um sentido próprio à matemática delirante da criação. Acima de tudo, ainda tinha respeito
pelo mistério e, embora emitisse conceitos definitivos, havia sempre um toque de reserva e compreensão nos seus julgamentos. Entre as frutas e o queijo, iniciou
uma nova linha de conversa.
- Somos todos herdeiros, Matucci, e não podemos desvencilhar-nos do nosso passado, do mesmo modo que não podemos livrar-nos de nossa pele. Temos liberdade apenas
para fazer o melhor uso possível daquilo que temos dentro do tempo à nossa disposição. Mandamos homens à Lua e acreditamos ter descoberto o amanhã. Mas o amanhã
ainda se está desenvolvendo de todos os nossos ontens e nós o deciframos em retalhos e fragmentos como a aritmética dos incas. Você e eu, por exemplo, partilhamos
pão, sal e vinho. Iniciamos uma amizade. Mas você nunca me compreenderá se não se lembrar de que eu nasci num sótão por cima de um bordel, na festa da. Assunção
de Nossa Senhora, no dia em que os acrobatas chegaram à cidade. Sente-se curioso? Fico satisfeito com isso. Quando você chegar à minha idade, Matucci, verá que restam
muito poucas pessoas com quem você possa falar do passado. Os velhos estão longe, os moços não se interessam. Fica-se como uma coluna quebrada num campo de trigo.
Os triunfos que se celebram estão há muito esquecidos, as mãos que levantaram a coluna rolaram para o pó e foram dispersadas. Vou falar-lhe de meu nascimento. Quase
tudo é verdade; uma parte é incerta; o resto talvez tenha sido sonhado por mim. Entretanto, tudo faz parte de mim. Por favor, sirva-se de um pouco mais de vinho.
Isso talvez o ajude a ter paciência com o meu conto de fadas.
E foi exatamente assim, como um conto de fadas, que ele contou tudo, numa linguagem fora de moda, com ampla gesticulação e evidente prazer. Estava fazendo o papel
do gigione, do canastrão, e olhava de vez em quando de soslaio para mim a fim de ver como eu estava reagindo à sua improvisação.
- O ano, meu caro Matucci, foi 1900. Victor Emmanuel III era rei da Itália e Leão XIII reinava gloriosamente como Sumo Pontífice da Santa Igreja Romana. O lugar
foi a Piazza delle Zoccolette, a Praça dos Tamanquinbos, em Roma...
“Não vi nada disso conscientemente, Matucci, mas posso reconstituir tudo porque depois tive oportunidade de ver muitas vezes os acrobatas na minha infância... Vinham
dançando, pulando e dando cambalhotas ao seu jeito vistoso e fragmentado enquanto os clarins tocavam, os bombos roncavam fazendo bum-bum-bum e rataplan e o diretor
jogava para o alto o seu bastão todo enfeitado de fitas e anunciava as maravilhas que iam ser apresentadas na Piazza delle Zoccolette.... Armavam um palco para as
pantomimas e uma barraca para vender lembranças e panaceias. Havia também um teatrinho para Polichinelo. Levantavam postes e escadas e estendiam um arame para que
o funâmbulo pudesse fazer a sua perigosa travessia pela corda bamba de um canto da praça para outro... Faziam um quadrado de cordas para conter a multidão e estendiam
os colchões para os cambalhoteiros, fazendo rolar depois os grandes halteres que só Cario, o Magnífico, era capaz de levantar, embora eles se propusessem a pagar
uma moeda de ouro a quem fosse capaz de igualar-lhe a proeza. Enquanto isso, todos os artistas da companhia distribuíam prospectos que exaltavam os seus talentos,
a eficácia de suas panaceias e a excepcional beleza de suas contorcionistas...
“Naquele tempo, Matucci, havia na praça um bordel chamado, de pura cortesia, uma casa de encontros e que era dirigido por uma caftina chamada Zia Rosa. Não era o
lugar mais elegante da cidade, mas, nem por isso, era o mais sórdido. Não me lembro dele, mas minha velha babá Ângela, que era irmã de Zia Rosa, contava às vezes
histórias às empregadas de olhos arregalados da casa de minha mãe... Para Zia Rosa, o dia santo e a chegada dos acrobatas significa dinheiro em caixa. O dia de festa
enchia a casa de gente para comer e beber, com passeios à beira do rio, e depois todos os jovens com sangue nas veias estavam prontos a algum divertimento na cama.
O espetáculo significa muita gente a comprimir-se na praça e a visão das mulheres acrobatas nos seus maiôs justos seria capaz de fazer Santo Antônio correr à procura
de alívio para o seu desejo de verão... Eu sei disso, Matucci, porque foi o que eu senti nos meus verdes anos...
“Bem, naquele dia minha mãe estava em trabalho de parto no sótão da casa de Zia Rosa. Como ela foi parar lá é fácil de imaginar. Uma mulher grávida, desamparada
e com pouco dinheiro, encontrava inevitavelmente Zia Rosa ou alguém como ela. Zia Rosa prestava um duplo serviço. Angela, irmã dela, era ao mesmo tempo parteira
e aborteira. E, depois, recrutava as mulheres mais prováveis para serviço na casa.
“Ouvi uma vez Angela descrever minha mãe como era naquele tempo. Dizia que ela era “uma original”, uma furbacchiona, esquiva e difícil de compreender. Tinha pele
pálida, olhos azuis e cabelos cor de mel. Falava italiano, inglês e romanesco. As roupas eram boas, mas um pouco modestas demais para alguém que evidentemente tinha
algum conhecimento do mundo. Tinha dinheiro no bolso também, ao menos o suficiente para fazer Angela assisti-la, porque Angela não fazia coisa alguma sem dinheiro
na mão...
“Ainda assim, aparentemente, minha mãe era arrogante e exigente, apesar da barriga grande e da necessidade de um abrigo tão modesto. Queria lençóis e toalhas limpas,
sabonete, duas boas refeições por dia da cozinha e uma porção de remédios da farmácia. Declarou categoricamente que só ficaria ali até uma semana depois do nascimento
da criança e que pagaria uma criada para cuidar dela durante a convalescença. E era muito resistente. Muitas mulheres, àquela altura, estariam gritando, agitando-se
e suplicando aos céus que as poupassem das dores do parto. Mas aquela não, dizia Angela. Todo gemido tinha de ser arrancado dela como se ela fosse uma mártir torturada.
Quando cada espasmo passava, ela procurava falar numa voz fria e ponderada que fazia até o italiano parecer estranho. O que ela dizia não fazia muito sentido, especialmente
partindo de uma mulher que estava com as dores do parto no sótão de uma casa de tolerância. Mas quase todas as mulheres ficam mais ou menos sem juízo numa hora assim
e Ângela procurou acalmá-la até que as dores foram mais agudas e frequentes e ela teve de gritar continuamente... Parece-lhe estranho, Matucci, que eu esteja tentando
contar o meu nascimento? Há um sentido ao fim de tudo. Ao menos, penso que há.
“Lá embaixo, na praça - e eu sei disso, Matucci, porque Angela estava olhando - Luca Salamandra, o homem da corda bamba, ia começar a sua peregrinação através do
céu. Estava todo vestido de preto, com os cabelos emplastrados e os bigodes retorcidos. No meio da escada, voltou-se e saudou a multidão que o aplaudia. Depois,
subiu à pequena plataforma no alto do poste e deu os primeiros passos no arame. A multidão ficou emocionada quando viu o arame vergar-se com o peso dele enquanto
ele se equilibrava perigosamente. Em seguida, o silêncio foi completo...
“Ele se moveu a princípio lentamente, testando a força do vento e a tensão do cabo sob as solas de seus pés. No centro da praça, parou e começou a pular em cima
do arame. Deu depois uma cambalhota e foi cair de pé no cabo que se balançava. Estava talvez a cinco metros do fim do fio quando parou e olhou diretamente para os
olhos de Angela. Ela se lembra de vê-lo sorrir para ela e encaminhar-se para ela. Nesse preciso momento, Matucci, minha mãe gritou, eu meti a cabeça relutante neste
mundo e Luca Salamandra rolou para a eternidade.
“Dez dias depois, uma mulher de luto fechado, em companhia de uma pessoa idosa, compareceu à sede do Registro Central para depositar uma série de documentos autenticados
pelo tabelião. O primeiro era uma certidão de casamento entre Anne Mary Mackenzie, solteira, da Inglaterra, e Luca Salamandra, solteiro, acrobata. O segundo era
o atestado de óbito de Luca Salamandra passado por um médico. O terceiro era a certidão de nascimento de Massimo Luca Salamandra, do sexo masculino, filho de Anne
Mary Salamandra e de Luca Salamandra, falecido.
“Essa extraordinária concentração de documentos era o resultado de uma longa discussão entre Anne Mary Mackenzie e Zia Rosa, seguida de três horas de difíceis negociações
entre Angela, a parteira, Zia Rosa, o diretor do circo e Aldo, o Calígrafo, um velho falsário que morava numa viela atrás da praça e que se especializava na produção
de manuscritos históricos. O fato de que o funcionário do Registro tivesse aceito os documentos sem o menor reparo é uma prova da perícia de Aldo.
“O resultado de toda essa transação foi que Anne Mary Mackenzie passou a ser uma respeitável viúva romana e eu fui dotado de uma legitimação espúria, mas que me
permitiria entrasse para o serviço da Coroa ou até tomar as Santas Ordens, na hipótese improvável de que eu algum dia aspirasse ao sacerdócio...
“E claro que eu nunca pensei em ser um padre, Coronel, mas às vezes penso que daria um esplêndido Cardeal do tempo dos Bórgias, é claro, quando o celibato não era
tão rigorosamente exigido... Quer que lhe diga em que está pensando neste momento? Está querendo saber por que lhe contei uma história tão comprida, sem saber ao
certo se me estou divertindo às suas custas ou se me estou aproveitando da presença de um bom ouvinte. Tanto uma coisa quanto outra. Mas também lhe mostrei uma parábola.
Fui gerado por um nobre e tive como pai um acrobata morto. Sou e sempre fui uma contradição. Para tratar comigo, você precisará de paciência e de tanta fé quanto
é necessária para acreditar no sangue de San Gennaro. Assim, você é o homem na corda bamba. Quer salvar a si mesmo e salvar um país muito dividido e um povo muito
rixento. Vai precisar de nervos firmes porque você também verá monstros que se queimam e se escorregar, uma vez que seja, estará perdido... Espero que compreenda
isso.
- Compreendo. Mas por onde vamos começar?
- Você tem ordem de passar um mês sem voltar à Itália. Vamos aproveitar esse mês para estabelecer a sua segurança e preparação. Amanhã, às nove horas da manhã, você
e Lili Anders pagarão a conta e sairão do Baur au Lac. Uma limusine estará à espera para levá-los por um itinerário cheio de rodeios para o Liechtenstein, onde ficará
hospedado numa casa que pertence a uma de minhas companhias. Trata-se na realidade de um pavilhão de caça reformado, gracioso mas confortável. Ali, você gravará
tudo o que sabe do caso Pantaleone, os microfilmes, os mapas... tudo. Esse material será transcrito em várias cópias e essas cópias serão depositadas numa série
de bancos dentro e fora da Itália. Nesse mesmo mês, você receberá outro material que eu lhe mandarei. Deverá estudar cuidadosamente esse material porque isso o preparará
para a nova etapa da operação, a sua volta à Itália. Permaneceremos sem dúvida em estreito contato pessoal. Terá dois homens de meu pessoal constantemente às suas
ordens como guardas e correios.
- E quando eu voltar à Itália?
- Estará ainda em férias, como um oficial de carreira com atribuições especializadas e muito mal pago. Eu o farei subir profissional e socialmente. Vou oferecer-lhe
um excelente ordenado como consultor de informações econômicas secretas. Será uma transação feita às claras e sancionada por um lamentável costume. Todo funcionário
público no país procura suplementar a sua renda exercendo alguma atividade privada. É claro que seu Diretor vai saber disso. Para ser exato, procurarei conseguir
a aprovação dele.
- Tem certeza de que ele vai concordar?
- Por que não? Isso dará a ele mais um meio de comprometer você, sempre que o desejar. O fato demonstrará que você é o que ele espera que você seja, um venal, fácil
de ser comprado e reduzido ao silêncio. Sob o disfarce de tal situação, você continuará as suas investigações sobre o movimento neofascista e suas ligações com Leporello.
Comunicará tudo o que apurar a mim e nós combinaremos um plano de ação. Isso faz sentido para você?
- Faz, mas com uma reserva.
- Qual é?
- O Diretor... Já o vi elaborar o script de comédias semelhantes. Não creio que vá aceitar essa.
- Nem eu. Mas ele tentará fazer-nos acreditar que aceitou e só isso é necessário. O verdadeiro problema é um pouco diferente: temos de manter você vivo.
17
O pavilhão de caça ficava dez quilômetros ao sul de Triesen, onde os picos do Rätikon se unem aos Alpes de Glamer e a floresta de pinheiros sobe, cerrada e sombria,
até a linha da neve. Era construído no colo de um alto vale, acessível apenas por uma pista simples de asfalto que ia terminar num grande portão de pinho maciço,
encimado por espigões de aço entre pilares de pedra lavrada. Dentro do portão, um caminho pavimentado para carros serpenteava entre altas árvores até chegar ao pavilhão,
uma longa construção de pedra de cantaria, entremeada de troncos e coberta de zinco sobre madeira que se situava extensa e sólida contra o fundo dos pinheirais e
o arquear dos picos nevoentos.
Do exterior, parecia frio e inóspito, pronto a resistir a invasões ou avalanchas. Por dentro, era simples e acolhedor, com a luz das lareiras a brilhar nas paredes
cobertas de lambris e nos objetos de cobre polido e cerâmica rústica. A casa era cuidada por um velho tirolês e sua mulher. Havia mais dois empregados: Heinz, um
grande camarada taciturno dos Grisons, e Domenico, italiano jovem e forte de Varese, que falava sem parar em inglês, francês, italiano e alemão da Suíça. Formavam
uma dupla estranha, mas notável. Heinz era um atirador certeiro com um fuzil na mão. Domenico era um artista de circo, exímio na pistola e no caratê. Havia sempre
um deles em serviço, patrulhando os terrenos, vigiando a estrada e observando os altos desfiladeiros à procura de pastores ou alpinistas. Todas as manhãs, Heinz
ia de carro até Triesen para fazer compras e pegar a correspondência. Todas as tardes, ao escurecer, o portão era fechado. Ligava-se uma complicada série de alarmes
e os dois homens se revezavam na vigilância noturna.
Havia um telefone na casa, mas fomos advertidos de que não devíamos falar nele. Podíamos andar livremente até os limites da propriedade, mas sempre e apenas seguidos
pelos dois. Quanto ao resto, havia uma máquina de escrever, papel, carbono e uma máquina de copiar. Se eu precisasse de mais alguma coisa, era só pedir e Heinz iria
buscá-la, nem que fosse preciso ir até Zurique.
Nos primeiros dias, senti-me engaiolado e inquieto. Mas Lili estava tão feliz quanto um pássaro em liberdade e me repreendeu até fazer-me entrar num período de calma
e de rotina de trabalho. Acordávamos cedo, tomávamos café e eu atacava a tarefa de reconstituir de memória o material dos microfilmes. Era um trabalho cansativo
que dependia de toda uma série de truques mnemônicos, cada um dos quais fazia disparar uma sequência de memórias visuais. Com interlocutores treinados e uma estenógrafa
para bater imediatamente o material, eu poderia ter feito o trabalho em metade do tempo. Tinha, porém, de interpor o trabalho mecânico de transcrever cada sequência
na máquina de escrever. Era preciso contar, portanto, com um fator de fadiga e cessar o trabalho imediatamente quando esse fator interferia com a equação da memória.
Na realidade, eu não podia trabalhar mais de quatro horas por dia na reconstituição. Passava o resto do tempo selecionando e anotando os despachos de Bruno Manzini
que recebia diariamente pelo correio.
Todos os despachos eram expedidos de Chiasso, que é a cidade de fronteira do cantão suíço do Ticino. As informações eram belamente cifradas e cobriam uma variedade
espantosa de assuntos: a organização e controle dos sindicatos; a localização das cédulas marxistas e o padrão de suas atividades; cartas que mostravam a estrutura
financeira e gerencial de grandes companhias com dossiês sobre os seus principais diretores; listas de doadores a partidos políticos e de alianças matrimoniais entre
as grandes famílias; investimentos de organizações estrangeiras, boletins de crédito, notas sobre a política editorial dos grandes jornais e casas editoras; as atividades
das embaixadas estrangeiras; os nomes e as biografias de altos funcionários e uma relação das visitas feitas por eles à Grécia e à Espanha; uma série completa de
documentos esclarecedores sobre as finanças do Vaticano e as atividades políticas da Secretaria de Estado do Vaticano.
Eu trabalhava no serviço secreto de informações havia muito tempo, mas grande parte daquele material era uma novidade até para mim e implicava a existência de uma
organização enorme e dispendiosa, destinada não apenas a colher as informações mas a classificá-las e processá-las para uso constante. Quanto mais lia, mais me impressionava
com a complexidade da vida italiana e com o problema de manter mesmo uma aparência de ordem numa nação industrial moderna. A tensão era tão alta, o equilíbrio de
forças tão precário que até os mais otimistas não podiam deixar de perceber a ameaça diária de uma catástrofe.
Compreendia perfeitamente a frustração do revolucionário que queria varrer toda essa confusão de lado e começar de novo. Compreendia o desespero do moço que queria
afastar-se, como o Poverello de Assis, e viver com fraternal simplicidade de cannabis e pão de milho. Compreendia a ilusão sedutora da ditadura no sentido de que
um homem messiânico, armado de plenos poderes, seria capaz de impor ordem e unidade com um toque do seu cetro. Mais lentamente, comecei a ver o sentido da crença
de Bruno Manzini de que somos todos prisioneiros de nossos genes e de nosso passado e de que nosso futuro foi escrito por escribas há muito mortos.
Havia dias - muito maus - em que a memória se mostrava preguiçosa e a razão vacilava e eu me sentia dominado por uma impressão de inutilidade total. Eu era um idiota
vaidoso, tentando deter com gritos a avalancha. Era um símio pulador, que tentava ser um rei da espécie humana. Que direito tinha eu de determinar, ainda que em
parte mínima e de maneira indireta, o texto de uma só linha da História? Vi-me atraído de novo com um pungente anseio para as crenças de minha infância: um Deus
pessoal a quem nem mesmo o passarinho abatido era indiferente ou insignificante e que um dia num grande e glorioso julgamento consertaria, estabilizaria e renovaria
tudo. Compreendi então que O havia retirado pela razão do meu universo e que Ele estaria para sempre além do meu apelo.
Naqueles dias de deserto, Lili era um oásis de conforto. Recusava-se a tomar conhecimento de minha irascibilidade e derramava sobre mim a sua ternura. Fazia-me sair
da casa e passeava comigo através dos pinheirais, forçando-me a prestar atenção a todas as pequenas maravilhas: o contorno dos cogumelos num galho de árvore, a música
da água das montanhas, a contextura das pedras e da casca das árvores, os jogos da luz do sol nos penhascos. Despertava e nutria com extraordinária paciência o que
ainda restava de sonho em meu coração ressequido. Repreendia-me também e me envergonhava, fazendo-me voltar à sensatez.
- Sei como se está sentindo, meu amor. Tudo passa. Você e eu passaremos também e o horror do mundo permanecerá. Mas pense que, enquanto ainda estivermos lutando,
bloquearemos o horror por algum tempo. Se todos abandonassem a luta, os bárbaros dominariam tudo por mais mil anos. Ainda que sejamos ignorantes e mal orientados,
a causa que defendemos é boa. Tem de acreditar nisso, nunca deve esquecer-se disso. Olhe... até eu sou ura pequeno triunfo para você. Por favor, ouça-me. Não posso
lembrar do tempo em que eu pertencia a mim mesma. Agora, é diferente e eu sei que me pertenço. Até quando me dou a você, dou-me como uma mulher livre. Se você não
tivesse se importado, eu estaria morta ou presa com as prostitutas na Maddalena. Tudo isto é muito bom - este dia, este lugar - não acha? Não estaríamos gozando
nada disso se você não tivesse feito a sua luta com os seus erros também... Agora, por que não me leva para casa para nos amarmos? Isto aqui está tão úmido!
O amor físico era sempre muito bom, mas era também perturbado pelo medo de que tudo muito em breve acabaria. Falávamos muito pouco sobre isso. Eu era um homem sem
recursos e já estava muito velho para iniciar outra carreira no exílio. Ela tinha de nascer de novo do ventre negro da espionagem para outra existência. Eu era o
cordão umbilical que a ligava ao passado. Só depois que o cordão fosse cortado ela poderia ser inteiramente livre. Não havia esperança para qualquer de nós nos devaneios
sobre o futuro, mas a ideia de um amanhã solitário nos oprimia pesadamente a ambos e, por isso mesmo, as nossas noites eram mais desesperadas e mais preciosas.
Já estávamos havia cerca de duas semanas no pavilhão quando Bruno Manzini apareceu para visitar-nos. Era um domingo. Chegou logo depois do almoço, cansado e um pouco
ríspido. Apossou-se de minhas notas e retirou-se para o seu quarto... Só o fomos ver quando ele se juntou a nós para um drinque às sete e meia da noite. Pediu desculpas
pelo mau humor da chegada e esforçou-se especialmente por deixar Lili à vontade.
- Você é boa para esse homem, Lili Anders. Tenho certeza de que foi boa também para Pantaleone. Por favor, não se sinta confusa comigo. A vida é muito curta e não
podemos trazer fantasmas para a mesa do jantar... e eu sou velho o bastante para dar valor a uma mulher bonita. Examinei as suas notas, Matucci. Excelentes! Mas
muito perturbadoras. Já conseguiu tomar pé do material que lhe mandei?
- Um pouco. Gostaria de falar sobre isso com o senhor depois do jantar.
- É por isso que estou aqui. Não vai estar presente, minha cara, e eu lhe peço perdão antecipadamente. Mas a verdade é que, quanto mais souber, maior será o perigo
que correrá, e seu amigo aqui tem uma singular preocupação com você. Contou a ela, Matucci?
- Contou o que, Cavaliere?
- Que eu lhe ordenei que a mandasse embora sob pena de negar meu apoio se ele recusasse. Ele me desafiou. Depois de conhecê-la agora, fico satisfeito de que tenha
procedido assim.
- Obrigada, Cavaliere. Ele não me disse nada.
- Matucci, você é um idiota!
- Isso não é novidade. Mas não espalhe, sim?
Manzini riu, passou o braço pelos ombros de Lili e brindou-a com uma galanteria de outros tempos. Em seguida, lançou-se numa conversa cascateante de bom humor e
reminiscências que nos levou da sopa ao café sem solução de continuidade perceptível. Depois, quando estávamos sozinhos e o conhaque se aquecia em nossas mãos, ele
me disse:
- As coisas vão mal, Matucci, muito mal. Primeiro, temos esse caso de Bessarione. A polícia diz que ele foi vítima de suas próprias bombas quando tentava sabotar
uma torre de energia. A esquerda diz que ele foi vítima de uma trama da direita que o assassinou. Conheci o homem. Era talvez um excêntrico, um rico romântico que
era também um excelente editor. Qual é a verdade? Quem sabe? Mas, ao menos, o caso devia ser aberto ao debate público. Que acontece? Uma série de prisões de jornalistas
e estudantes. A acusação? “Divulgação de notícias com a intenção de perturbar a ordem pública”. Pelo amor de Deus! A velha lei fascista das prisões em massa. Ainda
me lembro do dia em que foi promulgada. Resultado? Mais divisão. Mais inquietação. Amanhã vai haver outra greve na Fiat. Em Roma, os garis vão entrar em greve e
a cidade será um montão de lixo dentro de três dias. Depois disso, com a proximidade da Páscoa e da temporada turística, os empregados de hotel farão greve. Enquanto
isso, teremos uma ou duas bombas e talvez uma criança atingida por uma bala da polícia... Veja como isso funciona belamente. Os fascistas culpam os marxistas, os
marxistas culpam os fascistas. Cada qual provoca o outro. Cada qual atribui ao outro as consequências da violência. No meio fica o povo: os estudantes que não podem
aprender porque não construímos escolas em número suficiente, as donas de casa que não podem voltar para casa porque os ônibus estão parados, os doentes que estão
apertados em filas tríplices nas enfermarias dos hospitais. Vou lhe dizer uma coisa, Matucci. Recebi um pedido para acelerar as entregas de material de repressão
a motins. O que eu não puder fabricar, deverei comprar, tomar emprestado ou roubar, sem limite quanto às despesas em moeda estrangeira. Os mercados começam também
a ficar em pânico. Se eu lhe dissesse quanto dinheiro saiu do país na semana passada, você chegaria a chorar. Qual é então a soma de tudo isso? Os marxistas podem
convulsionar o país e talvez o façam, mas não estão em condições de governá-lo. Não tenho certeza de que querem governá-lo, ao menos do Quirinal. Contam com um apoio
em nível local nas cidades, nas prefeituras e nas províncias. Podem exercer o terror e a intimidação por intermédio de grupos de guerrilheiros urbanos, mas não podem
desfechar um golpe militar. A direita pode dar o golpe, como você sabe, desde que tenha apoio tácito suficiente do centro e do clero. Quanto a incentivo externo,
a direita o teria dos Estados Unidos, que têm grandes investimentos no país e conservam a Sexta Esquadra engarrafada no Mediterrâneo brincando de polícia e ladrão
com os russos. Seria apoiada também pela Espanha e pela Grécia, bem como, provavelmente, pela França. Depois disso, quem sabe? As suas notas confirmam tudo isso,
Matucci. E mostram ainda que meu irmão era menos insensato do que eu pensava. Planejou tudo muito melhor do que eu esperava. Com algumas modificações, a estratégia
dele ainda é válida hoje e poderá sê-lo amanhã... Deixei o pior para o fim. Leporello se decidiu. Tomou o lugar de Pantaleone.
- E o Diretor?
- Uniu-se a ele... Encontraram-se no último fim de semana numa reunião na Vila Baldassare.
- Como sabe disso?
- Eu estava lá também. Queriam que eu entrasse para o clube.
- E o senhor?
- Aceitei, é claro. Pensando bem, trata-se de uma união natural. Indústria pesada, tecidos, jornais, bancos e um governo estável empenhado na lei e na ordem.
- Por que não o convidaram antes?
- Porque Pantaleone se opunha terminantemente. E, naquele tempo, precisavam mais dele do que de mim.
- Por que o convidaram agora?
- Porque, graças à sua investigação e às informações nos papéis de meu irmão, o Diretor e o General Leporello ficaram a par do papel que desempenhei na morte de
Pantaleone. Assim sendo, a ocasião era propícia para um acordo civilizado. Não acha?
- O que eu acho, Cavaliere, é que estou ficando inteiramente maluco!
- Ainda não, Matucci, por favor. Preciso de você em seu juízo perfeito. Só me meti na conspiração para ficar por dentro e saber de tudo. Mas quero essa preciosa
junta abatida e vencida. Entre nós, creio que poderemos consegui-lo.
- Como, polo amor de Deus?
- Acusando Leporello de homicídio e o Diretor de cumplicidade com um assassino. Acha que pode fazer isso?
- Estou disposto a tentar.
- Os perigos são dobrados agora.
- Sei disso.
- Hesitações?
- Algumas. Creio que vamos precisar de um novo roteiro.
- Discutiremos isso agora mesmo. Tem alguma condição?
- Quero orientar o caso ao meu jeito, sem interferência de pessoa alguma.
- De acordo.
- Quero liberdade para pedir-lhe informações, dinheiro ou qualquer outra ajuda de que necessitar, de vez em quando.
- De acordo. E quanto a acordos financeiros?
- Nada de acordos financeiros, sim? Não sou um mercenário e dificilmente lhe posso pedir que me faça um seguro de vida por adiantamento. Tenho um pedido, apenas,
- Pode dizer.
- Desde o momento em que sairmos daqui, quero que Lili Anders seja protegida. Se eu tiver êxito em minha missão, quero uma anistia presidencial para que ela possa
voltar à Itália, se quiser. Pode assegurar-me essas coisas?
- A proteção, posso. A anistia, não. Mas faria até o impossível para consegui-la.
- Então é só. Falemos agora de nosso roteiro.
Ele tomou lentamente um gole de conhaque, colocou o copo em cima da mesa e armou uma catedral com as pontas dos dedos, enquanto sorria para mim do alto dela. Disse
então placidamente: - Meu amigo, já comuniquei esse roteiro ao Diretor.
Senti uma raiva súbita e irracional. A bílis me subiu à garganta e eu senti a cabeça cheia de vespas que zumbiam. Levantei-me da cadeira num repelão e fiquei diante
dele a vociferar desaforos.
- O senhor é um velho arrogante! Arrogante e perigoso! Trata-se de minha vida! De minha vida, entendeu? Não pode estar fazendo os seus joguinhos com ela! O que o
senhor faz é seu problema. É rico e bem protegido. Pode comprar à vontade advogados, guarda-costas, privilégios diplomáticos, imunidade de tudo menos de um colapso
cardíaco. Eu não posso. Tenho de ser meu próprio seguro, meu único risco! Não pode, portanto, fazer acordos a meu respeito sem a minha aprovação. Não pode fechar
contrato algum sem a minha ratificação. Não me comprou, Cavaliere! Compreenda bem isso! Não me comprou! Sei muito bem que é a Salamandra e que sobreviveu muito mais
tempo do que é provável que me aconteça. Mas escreveu a sua história sozinho. Eu também tenho de escrever a minha, ainda que ela conste de duas palavras apenas:
“Aqui jaz!”
Sem pensar no que estava fazendo, joguei o copo de conhaque no fogo da lareira, onde explodiu num rolo de chamas. Estas morreram em poucos segundos e eu me voltei
para ver Manzini ainda sorrindo sobre as pontas dos dedos juntas. Levantou-se então e falou comigo, com o rosto cheio de brandura e benignidade.
- Creio que me subestima, meu caro Coronel. Ou então sou críptico demais para um fim de noite. Quando conversamos há duas semanas em Zurique, não combinamos uma
estratégia?
- Combinamos. Mas as circunstâncias são diferentes. O senhor agora faz parte do clube. Isso influi em qualquer relação pública que eu possa ter com o senhor.
- Posso sugerir-lhe que isso é ainda uma camuflagem melhor do que a que tínhamos anteriormente?
- Pode sugerir o que quiser. Eu quero é prova.
- Vou tentar dá-las então. Quando falei com o seu Diretor e com Leporello na Vila Baldassare, seu nome foi mencionado várias vezes.
- Quem o mencionou?
- O Diretor, primeiro. Depois, Leporello. Como era natural, fiz comentários também.
- Que foi que disseram?
- O Diretor, com a sua habitual delicadeza, disse que você era um estorvo. Leporello usou a expressão “grave risco”. O Diretor disse que você estava imobilizado.
Leporello disse que exigia que o risco fosse eliminado por completo.
- E o senhor, Cavaliere?
- Lembrei que você era um oficial muito experiente e inteligente e que, se eu estivesse no seu lugar, tomaria certas precauções como, por exemplo, a de depositar
certos documentos num banco para publicação depois de sua morte. Fui de opinião que um acidente imprevisto poderia ter um efeito desastroso sobre os seus colegas
e amigos do Serviço. Aventurei-me então a produzir uma pequena peça de ficção. Disse que, depois de sua chegada à Suíça, você me telefonou pedindo um lugar na minha
organização. Disse que tinha sido tratado com muita injustiça e que estava disposto a pedir demissão do serviço público e a trabalhar com particulares. Disse ao
Diretor que o convidara para passar este fim de semana aqui a fim de discutirmos o assunto. Disse que pensava que seria uma boa ideia oferecer-lhe um emprego temporário
enquanto você continuaria à disposição do Diretor e subordinado ao Serviço. Em suma, consegui persuadir o Diretor de que era melhor que você estivesse vivo do que
morto, ao menos por enquanto.
- E Leporello?
- Não concordou. Mas o Diretor prevaleceu sobre ele.
- Por quanto tempo?
- Boa pergunta. E eu não sei o que lhe posso responder. Entretanto, como vê, o acordo para eles ainda não está concluído em vista da necessidade de seu consentimento.
Você pode ter mudado de ideia. Pode ainda preferir conduzir essa operação em segredo e sem qualquer ligação ostensiva comigo. Eu concordaria com isso também se isso
lhe desse mais liberdade e eficiência. Quanto ao resto, sou muitas vezes arrogante, mas não desejo sê-lo com você. Sou também velho e posso ser perigoso, mas nunca
o sou para meus amigos. Creia nisso, Matucci!
- Creio, sim, Cavaliere! Fui grosseiro. Mas compreenda que estou cansado de jogarem com minha vida.
- Costuma perder a calma assim?
- Só muito raramente.
- Fico satisfeito em saber disso. Esse conhaque é muito caro. Tome outro.
- Vamos acabar a discussão primeiro. Se eu trabalhar na clandestinidade, terei de estar constantemente fugindo. Precisarei usar documentos falsos, ter talvez duas
ou três identidades e muitas vezes endereços inconvenientes. Já fiz isso em outras ocasiões e posso voltar a fazer. Mas será uma desvantagem. Preferiria trabalhar
ostensivamente como seu empregado, mas sei que posso comprometer a sua situação e sujeitá-lo a um risco pessoal. Cabe-lhe, portanto, a decisão.
- Já está tomada. Você vai trabalhar comigo.
- Quando?
- Telefonarei para o Diretor amanhã e lhe direi que quero dar-lhe um emprego numa base experimental e que necessito da permissão dele para levá-lo de volta à Itália
comigo.
- Tão depressa assim?
- A resposta está nas suas notas. Dispomos de muito pouco tempo.
- Ainda não acabei as notas.
- Acabe-as em minha casa. Vou hospedá-lo lá até fazermos novos arranjos.
- Que é que eu vou dizer a Lili?
- O que for necessário para que ela se sinta feliz. Eu lhe darei instruções sobre os dispositivos de segurança antes de partirmos. Concentre-se na parte amorosa.
- Por falar em parte amorosa, Cavaliere...
- Sim?
- Quais são exatamente as suas relações com a Princesa Faubiani?
Foi a sua vez de perder a calma. Ficou vermelho como uma crista de galo. Ergueu a cabeça violentamente e as narinas de seu nariz patrício arfaram. Perguntou-me rispidamente:
- Quer me dizer o que é que tem com isso?
- Apenas o fato de que da minha experiência constam vários homens bons que perderam tudo numa cama ao lado de uma mulher.
Ele me olhou com hostilidade durante um longo momento. Tomou o resto do conhaque e jogou o copo na lareira como eu tinha feito. Depois, acalmou-se, sorriu e o sorriso
o fez parecer vinte anos mais moço.
- Digamos que eu sou um freguês rico que tem privilégios de visita sempre que está em Roma. Mas compreendo o seu ponto de vista, Matucci. O arranjo não é exclusivo
e ela me conta muitas coisas. Talvez eu o apresente a ela e o deixe julgar pessoalmente. Quem sabe se ela não lhe será útil? Tenho também outras relações, Matucci.
Pretende intrometer-se em todas elas?
- Se a minha vida estiver em jogo, sem dúvida.
- Dio! Estamos rosnando um para o outro, não é? Mas não me importo! Preciso de uma discussão de vez em quando para continuar a ser sincero e honesto. Mas não vamos
discutir com muita frequência. Vou lhe dar um pensamento para levar com você para a cama. Chega um momento na vida em que só nos resta energia para um bom amor e
coragem para uma boa luta. É preciso não gastar o amor com uma prostituta, nem a luta com um dragão de papel. Boa noite, meu amigo!
Foi uma saída teatral e eu, irritado, fiquei sem saber por que ele se dera ao trabalho de tornar tudo tão evidente. Ele não tinha de provar coisa alguma. Dispunha
de tanto poder, tinha sobrevivido a tantas tempestades que a provocação e a mistificação só podiam barateá-lo. Pensei então que talvez ele estivesse tentando baratear-me
para que eu fosse mais dócil aos seus planos. Transmiti esse pensamento a Lili, enquanto estávamos deitados no escuro, contando as horas da última noite que passávamos
juntos.
Ela discordou apaixonadamente.
- Você tem de confiar nele, meu amor. Eu o acho um velho admirável. Tão vivo e tão vigoroso! Mas a passagem do tempo é desagradável para ele. Sente-se sozinho, como
ele já lhe disse. Por isso, pavoneia-se um pouco para merecer seu interesse e respeito. Você pode ser um homem rude, Dante Alighieri. Tem levado uma vida muito aventurosa.
Manzini tem sido também um aventureiro. Ele vê em você um amigo, mas também um rival. Tenha um pouco de paciência com ele. No fim, você não vai sair perdendo.
Falei-lhe então das promessas que tinha conseguido, segurança primeiro e uma anistia depois.
Com surpresa para mim, ela rejeitou categoricamente a ideia.
- Não. Você quer ser bom para mim, mas o jeito não é esse. Não vê que assim está me amarrando ao passado? E que está me amarrando também a você de uma maneira que
não quero? Quando vier me ver de novo, se vier, você me visitará em minha casa, beberá meu vinho e comerá à minha mesa. Não estarei de mãos vazias como estou agora.
Preciso disso, meu amor. Quanto aos riscos, não me importo. Combinaremos endereços onde possamos escrever um ao outro. Há outro motivo também. Você vai empreender
um trabalho perigoso. Não pode tratar disso com o espírito dividido. Poderá precisar de outras mulheres. Deverá ter liberdade no fim para escolher entre mim e elas.
Eu também devo ter liberdade... Por favor, nada de tensão e desespero entre nós. Ame-me muito esta noite, com ternura, sem pressa... Gosto tanto de você...
De repente, nas horas da madrugada, quando dormíamos nos braços um do outro, o alarme tocou num ensurdecedor barulho de campainhas e sirenes. Saltei da cama e corri
para a janela. Todo o terreno estava iluminado com refletores e eu vi Heinz e Domenico correndo para os pinheirais através do espaço aberto. Vestimos os robes e
corremos para o salão, onde encontramos Manzini na janela, ereto e calmo. Era impossível falar. O barulho continuou a atacar os tímpanos. Vinte minutos depois, talvez,
Domenico voltou apressadamente, desligou o alarme e tornou a armá-lo. Pouco depois, apresentou-se a Manzini.
- Nós o pegamos, Cavaliere. Lá em cima, no muro do norte.
- Vivo ou morto?
- Morto. Heinz derrubou-o com o primeiro tiro.
- Quem era ele?
- Italiano, eu acho. Ninguém conhecido. Nem papéis, nem quaisquer marcas de identificação, nem ao menos etiquetas nas roupas.
- Armado?
- Granadas, explosivo plástico, estopins e uma pistola Walther.
- Com» foi que chegou até aqui?
- Deve ter vindo a pé pela montanha. Podemos descobrir o caminho que tomou logo que for dia claro.
- Não vale a pena.
- Devemos telefonar para a polida?
- Em Liechtenstein? Não! Enterrem o homem.
- Desculpe, Cavaleire, mas o alarme deve ter sido ouvido a quilômetros de distância.
- Tanto quanto sabemos, um animal tropeçou num dos fios.
- Está bem, Cavaliere.
- Enterre-o bem fundo, Domenico.
- Deixe comigo, Cavaliere... Boa noite.
Depois que ele saiu, Manzini serviu três copos de conhaque, um a cada um de nós. A mão não lhe tremia e ele levantou o copo numa espécie de triste saudação.
- Como nos velhos tempos dos guerrilheiros, que você é moço demais para ter conhecido.
Tinha a intenção de dizer isso como um velho grito de batalha. Pareceu mais um epitáfio.
LIVRO II
A prática da política no Oriente pode ser definida por uma palavra: dissimulação.
BENJAMIN DISRAELI, Contarini Fleming
18
Não fomos diretamente para a Itália, mas seguimos de carro via Salzburg, onde Manzini queria discutir um contrato de fornecimento de madeira com uma serraria austríaca.
Descemos então pelo Brenner até Mestre, onde uma das companhias dele estava construindo um dique seco para pequenos petroleiros. Foi uma viagem aborrecida porque
o tempo havia piorado, com pesadas nevadas ao norte e ao sul dos Alpes e as estradas estavam uma mistura de neve revolvida e gelo perigoso.
Manzini, porém, estava muito animado, disposto, segundo dizia, a que nos demorássemos o mais possível antes de entrarmos na jaula do leão. Apreciava a lenda e a
história local e compreendia a continuidade de tudo, apontando como as velhas famílias feudais ainda se misturavam na omelete da Europa moderna. Não abordava superficialmente
os assuntos como costumam fazer os velhos, mas desenvolvia inteiramente os seus temas. Era um teatrólogo inato e, mesmo quando inventava diálogos e situações, havia
sempre um, sentido de concordância e probabilidade.
De vez em quando, voltava à sua infância, como se a sua necessidade mais profunda fosse expurgar velhos rancores e lembrar alegrias esquecidas.
- Criei-me num largo tempo, Matucci, dentro de uma cidade tolerante e céptica. Morava num palácio atrás dos Condotti. Era uma casa cheia de mulheres afetuosas e
da qual os homens nunca estavam ausentes. Eu tinha todas as ilusões de que precisava e nenhum sentimento de culpa. Creio que nesse ponto fui uma criança muito feliz.
Por mais estranho que possa parecer, fui muito feliz com minha mãe. Ela era tão vária e diferente que eu tive quase uma mãe por dia.
“Lembro-me dela, nua na banheira, lisa e sumarenta como uma pera descascada, assobiando, cantando e tomando goles de champanha de uma taça colocada num banco ao
lado da banheira. Lembro-me dela de espartilho e camisola, toda cheia de fitas e rendas, a piruetar diante do espelho e tagarelar sobre meus tios... Ainda não houve
um menino no mundo que tivesse tantos tios quanto eu.
“Havia o Coronel Melchior, que tinha uma mão de madeira coberta com uma luva de couro preto, porque perdera a mão no massacre de Adua, na Abissínia. Havia o Tio
Burciardi, que usava uma corrente de ouro passada pela barriga, perdia o fôlego quando se inclinava e respirava forte quando falava. Era evidente que minha mãe se
aborrecia terrivelmente na companhia dele. Havia o Tio Freddie, que me comprou o meu primeiro trem de corda e me ensinou a jogar xadrez. Era inglês e se chamava
Holliot-Phillimore; as criadas chamavam-no o “Anjo do Papa” porque ele tinha uma voz aflautada e estridente como a do tenor eunuco do corpo papal. Muita gente o
odiava. Até Mamãe às vezes o odiava porque ele podia ser muito malicioso. Mas eu gostava dele...
“Abriu-me um mundo novo. Levava-me pelo Tibre num barco a remos. Leu comigo os meus primeiros textos de latim e grego. Ensinou-me a procurar fragmentos de cerâmica
e sinetes em escavações no Testaccio. Sentava-se comigo numa coluna caída do Forum e me fazia fechar os olhos e ver as vestais engrinaldadas de flores, os áugures
a predizer o futuro pelo voo das aves e Petrônio a passar, altivo e elegante, entre os oradores... Disse-me um dia: “Quando você crescer, meu amigo, deve ser um
homem elegante, pois do contrário me decepcionará profundamente. Veja aqui. Esta é sua cidade. Deve impor-se nela como Petrônio se impôs pela inteligência, pelo
bom gosto e pelo espírito. Deve aprender também muita coisa da cidade, a arte de sobreviver e renascer todos os dias. Quando tiver sua primeira mulher, deve ser
uma romana, cheia de fogo e fúria, de lágrimas e ternura. Isto é uma cidade de patifes. Aprenda a ser patife também, se for preciso, mas, pelo amor de Deus, seja
um patife com estilo”.
“Estranho! Lembro-me de tudo como se tivesse acontecido ontem. É claro que eu não sabia o que era estilo e pedi a ele que me explicasse. Ele apontou para o céu e
disse: "Está vendo as andorinhas? Voam cavalgando o vento como se fossem donas de todo o céu. Agora, olhe ali. Está vendo aquele pobre burro que vai puxando a carroça
de vinho? É um animal muito útil. Não poderíamos viver sem ele. Mas que é que você preferiria ser? Uma andorinha ou um burro? Claro que a andorinha, meu jovem, porque
tem estilo. Estilo é isso...”
“Meu pai? Bem, é difícil falar dele, Matucci. Durante muito tempo, acreditei que meu pai estivesse morto. Aceitava isso como as crianças aceitam as coisas, sem fazer
perguntas e na verdade sem muito pesar. Ainda depois de tê-lo conhecido em carne e osso, deixaram-me crer durante muito tempo que ele fosse apenas mais um de meus
bondosos tios. É uma das coisas que eu acho mais difíceis de perdoar. Você me disse que eu tenho muitos inimigos. Penso às vezes que talvez todos os meus inimigos
sejam um só homem, o Conde Massimo Pantaleone. Creio que era por isso que eu odiava meu irmão, porque ele tinha o nome que devia ter sido o meu. Entretanto, em vista
dos costumes daquele tempo e em vista das leis de legitimidade e de herança, eu não devia culpá-lo demais.
“A primeira vez em que o vi, eu estava passeando a cavalo com Mamãe no Pincio. Tio Melchior me dera um pônei e Mamãe me dera um paletó e calções de montaria de estilo
inglês. Aquele era o primeiro dia em que eu saía com ela. Você devia ter conhecido o Pincio naquele tempo, Matucci. Era o lugar onde se viam as mais belas carruagens
e os melhores cavalos de Roma. Os cardeais iam até lá nas suas carruagens e passeavam solenemente sob os pinheiros, enquanto os seus servidores, todos de libré,
trocavam boatos. Os nobres de Roma andavam a cavalo, cumprimentavam-se e flertavam, à moda do tempo. Nem todas as pessoas cumprimentavam Mamãe. Quase todas as senhoras
viravam a cabeça e olhavam para ela como se ela fosse uma vidraça transparente. Lembro-me de que Mamãe sacudia a cabeça e praguejava contra elas em romanaccio, dizendo:
“Velhas imundas! A única coisa que sempre vão ter debaixo das pernas é um cavalo!”
“Bem, naquela manhã, um senhor freou o cavalo e começou a conversar com Mamãe. Era um homem alto e forte, com um nariz de águia - provavelmente igual ao meu - e
uma vasta cabeleira grisalha. Montava um fogoso cavalo preto e parecia uma gigantesca estátua que tivesse sido animada de vida. Mamãe parecia uma boneca ao lado
dele, mas continuou firme e sorridente e estendeu-lhe a mão como se ele fosse o mais humilde dos homens. Conversaram durante muito tempo. De repente, ele me tirou
do meu pônei e me colocou na sua sela, levando-me então num vivo galope através do bosque. Cansou o cavalo e então desmontou numa alameda - que não existe mais -
onde havia um regato e uma estatueta de Pã. Colocou as mãos em meus ombros e me olhou em silêncio e com a testa franzida. Sorriu então e disse: “Bom menino. Você
tem boas maneiras e um coração firme - dons inestimáveis para qualquer homem nestes dias de outono. Eu gostaria de ter a coragem de reconhecê-lo.” Não compreendi
o que ele queria dizer, mas percebi que ficara contente comigo. Levou-me então de novo para onde estava minha mãe...
“Eh, Matucci, se está cansado dessas conversas, o culpado é você mesmo. Queria conhecer-me e aqui estou eu! Agora, falemos um pouco de negócios. Você passará alguns
dias na minha casa de campo, nos arredores de Bolonha. Depois, sugiro que vá estabelecer-se em Milão. Tenho lá um apartamento mobiliado, que posso colocar à sua
disposição com criados em quem pode confiar. Vai precisar de uma conta bancária, de facilidades de crédito e de uma cobertura para as suas atividades a meu serviço.
Depois disso, boa sorte e um anjo da guarda muito ativo.
- Não é só, Cavaliere. Preciso de uma lista de casas seguras e de dois ou três conjuntos de papéis. As melhores falsificações possíveis.
- Com certeza, sabe como pode obter esses papéis, não?
- Sei como, sei onde, sei quanto custa, mas não posso aparecer nas negociações.
- Conheço o melhor falsário em atividade.
- Conheço-o também... É Carlo Metaponte, discípulo de Aldo, o Calígrafo. Foi ele quem gravou o seu cartão da salamandra e deve estar em seus arquivos.
- Ainda pode ser usado?
- Se puder controlá-lo, sim.
- Posso controlá-lo... Quer ouvir um conselho meu, Matucci?
- Quero.
- Procure, por favor, ser generoso comigo. Tenho idade bastante para ser seu pai. Por mais estranho que pareça, ainda tenho uma consciência, porque procuro viver
dentro da lógica e a consciência é o último termo de um silogismo. Já tentei examinar essa consciência dentro do nosso relacionamento. Chego à conclusão, certa ou
errada, que o que nos separa não são os princípios, mas a história... a luta de classes, a imagem das classes. Seu pai foi um socialista da velha guarda, exilado
em Lipari. O meu foi um aristocrata da velha guarda que explorava os pobres e quebrou o pescoço quando corria atrás de mulheres no Pincio. Mas quando você tinha
treze anos, Matucci, eu estava fabricando bombas num galpão perto de Pedognana. Quando você tinha quatorze anos, fui pendurado pelos polegares numa célula da Gestapo
em Milão. Aquilo por que eu lutava naquele tempo é o mesmo que você está tentando proteger agora, uma liberdade, por mais precária e imperfeita que seja. Não posso
arriscar o que você arrisca porque tenho apenas a minha disposição a última ponta da vida. Mas esta ainda é doce e eu a saboreio segundo por segundo. Creia que não
estou fazendo uma censura. É mais que isso, é - como posso dizer? - uma súplica para que gozemos esta luta. Cairemos, se for preciso; mas, se sobrevivermos, será
cantando e gritando. Pode compreender isso?
- Posso. Compreendo e agradeço, Cavaliere!
- Por favor. Nada mais de Cavaliere. Eu sou Bruno. Você é Dante Alighieri. Bene?
- Bene, grazie!
- E quero que você ganhe algum estilo, meu Dante! Novos uniformes para ocasiões especiais. Um coronel deve ter aparência de coronel e não de um cabo recruta. Novos
tempos, na última moda, com um corte moderno. E não faça economia. Gaste dinheiro como se fosse molho de espaguete! Ótimo! É a primeira vez que o vejo rir como um
homem feliz I
Em seguida, desde que devia ainda fazer o papel de mágico, atirou-me uma nova surpresa no rosto. Ficaríamos não em Mestre, que era uma cidade bárbara, mas do outro
lado do mar, em Veneza, no Palácio Gritti, onde o Diretor nos faria companhia ao jantar. Depois de todo o encanto por ele derramado sobre mim, tive de aceitar isso
de boa vontade. Isso lhe agradou quase tanto quanto a sua habilidade e ele me explicou detalhadamente a razão.
- Você teria de encontrar-se com ele algum dia. É melhor que seja em minha companhia do que sozinho. É melhor que seja na cidade dele, onde ele se sente quase um
príncipe. Do outro lado da água, ele poderá ver algumas empresas que fazem de mim o que eu sou. Verá você também sob outra luz, como um homem comprado que goza os
frutos de uma judiciosa transigência. Estamos agora em casa, onde essas sutilezas têm valor. Isso não quer dizer que você se vá rebaixar. Nunca! Terá de se mostrar
cortês, um pouco reservado, mas não insensível diante da magnanimidade dele. Ele o provocará sem dúvida alguma. Você reagirá, embora não tão fortemente quanto dantes,
porque tem menos a perder. Ele lhe fará perguntas a respeito de Lili Anders. Deve responder com quase indiferença, como se ela fosse um pêssego que você provou e
jogou fora. Quando achar que chega, poderá sair, alegando que tem uma mulher à sua espera no Harry’s Bar. E a mulher estará realmente à sua espera. Chama-se Gisela
Pestalozzi. Estará na lista de suas casas seguras... O barman lhe mostrará quem é ela. Dirá a ela que foi a Salamandra que o mandou... Claro?
- Claro. Só não é claro para mim é como maneja tudo isso.
- É um jogo, meu Dante. Um dos poucos que eu ainda sei jogar.
19
Chegamos a Veneza ao escurecer. Havia neblina sobre os canais, uma névoa pestífera e densa, carregada de vapores de enxofre e das emanações da laguna. Domenico estacionou
o carro e nós tomamos uma gôndola para o hotel porque, segundo Manzini, os gondoleiros eram uns abutres e até os abutres tinham o direito de sobreviver. No Gritti,
fomos recebidos como cardeais medievais e alojados em apartamentos adjacentes que davam para o Grande Canal. Não havia muito o que ver pois a neblina estava baixa
sobre a água e as luzes do escasso tráfego faziam turvas manchas amarelas na escuridão. Fiz a barba e tomei banho descansadamente enquanto me passavam a roupa. Vesti-me
com mais cuidado do que de costume e consegui fazer a minha entrada exatamente no momento em que Manzini e o Diretor se sentavam à mesa.
O Diretor me recebeu como se eu fosse o filho pródigo.
- Meu caro Matucci! Quanta alegria em vê-lo! Que tempo horrível, hem?
Concordei em que o tempo estava horrível, mas que, apesar disso, Veneza ainda era Veneza.
- Está com um aspecto muito bom e repousado. Isso é muito bom. Fizeram boa viagem?
- Péssima! - exclamou Manzini. - Correntes nos pneus o tempo todo! Mas isso deve atrair os esquiadores. Investiu alguma coisa naquele pequeno projeto que lhe recomendei
em Bolzano?
- Infelizmente, não. Em vez disso, comprei um Picasso.
- Lixo! Há muitos quadros dele e muitos mais vão aparecer depois que ele morrer. Devia esperar até que a coleção Pantaleone fosse exposta à venda. Como sabe, isso
não pode deixar de acontecer.
- Ora, meu caro Bruno, que adianta comprar esses quadros se não é possível exportá-los quando nos cansamos deles? Interessa-se por quadros, Matucci?
- Interesso-me, sim, mas eles estão acima de minhas posses. Pelo menos, por enquanto.
- Tome então meu conselho. Comece pelos novos. Se tiver bom olho, não poderá deixar de encontrar um em dez. Com isso, ainda terá lucro. Não acha, Bruno?
- Quero que ele se interesse pelos meus lucros primeiro. Será para ele a maneira mais rápida de ter lucros também. Você faz alguma ideia de quantos bilhões de liras
perdemos todos os anos em consequência de desperdícios, roubos em grande escala, sabotagem industrial e contabilidade deficiente? Matucci já fez algumas sugestões
bem inteligentes. Se as conseguir pôr em prática, estarei disposto a recompensá-lo muito generosamente.
- Desde, meu caro Bruno, que o Serviço esteja disposto a abrir mão de seus valiosos talentos... Mas devo dizer que estou muito contente de que ela tenha tido essa
oportunidade, pois bem a merece. Devo-lhe agradecimentos, Matucci. Você agiu muito bem numa situação diplomaticamente difícil. Não o culpo por ter ficado aborrecido.
Estou feliz de que tenha tomado a iniciativa de entrar em contato com nosso amigo Bruno. É uma situação que poderá dar bom resultado para nós todos e até para o
Serviço porque, como você disse muitas vezes, somos fracos no setor da grande indústria. Mas isso fica para depois... Sabe que fizemos algumas alterações na sede
depois de sua saída?
- Ah, sim?
- Gonzaga passou para a seção do Oriente Médio e Rampolla passou a ocupar a carteira dos Balcãs. Ainda houve algumas alterações menores, a não ser que afastamos
Stefanelli do laboratório. Ele estava ficando muito velho e rabugento... Ah, o menu! Que é que você recomenda, Bruno?
- Meu caro amigo, você já devia saber que eu nunca recomendo a ninguém comida, cavalos ou mulheres. É uma maneira certa de perder amigos. O vinho é diferente. Creio
que você teve uma boa vindima no ano passado.
- Uma das melhores que tivemos nos últimos dez anos. É muito cedo ainda, mas quando o vinho estiver no ponto, eu lhe reservarei algumas caixas.
- Obrigado. É uma coisa que eu apreciaria muito. Por falar nisso, conseguiu recuperar o testamento de Pantaleone?
- Ainda não. E isso me lembra uma coisa, Matucci. Tivemos sorte no caso de Bandinelli. Parece que a mulher dele tinha um caso com um jovem cantor no San Carlo. Não
teve a menor dúvida em concordar com funerais quase em segredo e sem perguntas embaraçosas.
- Gosto muito de saber disso. Acho que não agi muito bem naquela situação.
- Todos nós erramos. E você estava sob grande tensão. Vamos pedir a comida? Detesto sentir os garçons respirando em minha nuca.
Fiquei contente com a interrupção e com a conversa esparsa que se seguiu, conversa de homens de alta posição que jogavam com o poder e com as pessoas como se fossem
fichas numa mesa de jogo. Estavam bem emparceirados aqueles dois. O Diretor se entrincheirava tão fortemente na história que bastava fazê-lo mudar de traje para
vê-lo como um dos participantes do Conselho dos Dez de Veneza. Manzini era o velho tecnocrata, que dominava o passado, o presente e o futuro como um colosso do terno.
Mas a linguagem era a mesma e o poder era o mesmo, como nos dias em que uma galera por dia era lançada nos estaleiros e metade do tesouro de Bizâncio se canalizava
para a Veneza dos Doges. Durante algum tempo, esqueceram-se da minha presença e eu fiquei muito contente de escutar e começar a aprender a linguagem estilizada daquele
outro mundo.
Ao fim de algum tempo, a conversa se tomou inevitavelmente condimentada e escandalosa: quem ia e quem não ia aproveitar-se das novas leis do divórcio e por que motivo.
De repente, o Diretor me fez uma pergunta.
- Por falar nisso, Matucci, que fim levou Lili Anders?
- Segui seu conselho.
- Oh, desculpe, Bruno. Esqueci que havia uma relação de família.
- De modo algum! Isso não me preocupa absolutamente. Só espero é que Matucci se tenha divertido.
- Divertiu-se, Matucci?
- Por pouco tempo, Diretor.
- Onde está ela agora?
- Quando a deixei, estava falando em ir para Klosters. Não lhe fiz muitas perguntas. Sabe como é...
- Acha que ela voltará a fazer espionagem?
- Não creio. Parece que está pensando é em casamento.
- Quais são as perspectivas?
- Comigo não será, posso assegurar-lhe. E isso me faz lembrar. Se me derem licença, dispensarei o café, pois tenho um encontro marcado com outra mulher.
- Claro, a não ser que Bruno...
- Não, não! Pode ir. Goze a vida enquanto é possível. Terá muito pouco tempo depois...
- Oh! Antes que se vá, Matucci...
- Sim, Diretor?
- Esse duplo emprego seu me alegra muito, como já disse. Tenho prazer em atender ao meu amigo Bruno. Mas você deve ser muito discreto a esse respeito, compreende?
Tudo isso é um pouco ilegal e eu não gostaria de provocar descontentamento entre os seus colegas do Serviço. Percebe o meu ponto de vista?
- Perfeitamente. E lhe agradeço muito. Boa noite, senhores.
- Felicidades no encontro.
- A noite está bem feia - disse Bruno Manzini com um sorriso. - Não vá cair no canal.
Era um bom conselho e eu o levei a sério. Subi até meu quarto, vesti um sobretudo e meti uma pistola no bolso. Passei pela portaria a fim de comprar alguns selos
do correio e saí para a viela entre o Palazzo Pisani e o Gritti. O local é bem conhecido. A viela desemboca numa praça em frente ao Zobenigo. Vira-se à direita,
atravessa-se uma pequena ponte e chega-se ao Largo Ventidue Marzo, bem diante da fachada da Basílica de San Moisè. Mesmo durante o dia, é uma rota sossegada. Há
poucas lojas e nada para ver exceto a basílica e a água estagnada sob a ponte, cheia de gôndolas e barcaças. Mas à noite, com nevoeiro e todas as janelas fechadas,
tinha-se a impressão de estar numa cidade de mortos.
Parei um momento sob um lampião e ouvi um murmúrio de vozes à esquerda. Eram decerto barqueiros que esperavam para levar de volta para casa algumas das pessoas que
jantavam no hotel. Não os via, mas podia ouvir os barcos que batiam de encontro ao cais. Comecei a caminhar não com pressa mas com um passo firme, encostado à parede
para orientar-me e prestando atenção para ver se ouvia o barulho de outros passos. Nada a não ser o rumor da água do canal, um som de música distante e o gemido
das sirenes de nevoeiro para os lados do porto de Mestre. Quando saí da Praça Zobenigo, parei e procurei escutar de novo. Dessa vez, ouvi ou julguei ouvir o leve
bater de solas de borracha a correr em pontas de pés pelas pedras da calçada. Mas o barulho era tão vago e tão amortecido pela cerração que podia ser uma ilusão.
Comecei a caminhar mais depressa na direção da vaga claridade amarela que marcava a corcova da ponte. Então, ouvi às minhas costas um longo assobio. Parei, colando
o corpo à parede, tirei a pistola do bolso e destravei-a. A situação já estava clara para mim. Atrás de mim, havia um homem. À frente, onde o canal cortava a rua,
devia haver dois homens, um de cada lado do traghetto. Antes que eu chegasse à ponte, eles fechariam a armadilha e me matariam.
Encostado às paredes, comecei a deslocar-me lentamente, procurando um portal ou qualquer projeção da parede que me desse algum abrigo, ainda que mínimo. Ouvi os
sapatos de borracha darem alguns passos rápidos. Vi um leve movimento perto da ponte, que poderia ser um homem, mas também podia ser uma espiral do nevoeiro. Nesse
momento, deixei de sentir sob os dedos a superfície áspera da parede e encontrei um vazio. Não era uma porta. Era um arco aberto, baixo e estreito, que devia levar
ao pátio de um palácio ou uma casa de cômodos. Graças a Deus! Os assassinos teriam de me procurar. Abaixei-me apoiado num joelho e olhei cautelosamente. Talvez dez
segundos depois, eles começaram a se mover. Dois vinham encostados à parede do lado em que eu estava e o terceiro caminhava pelo outro lado da viela. Era nesse que
eu devia atirar primeiro, se o visse suficientemente bem para fazer a pontaria.
Aproximavam-se irregularmente, numa série de pequenas carreiras, ora um, ora os outros, mas nunca na mesma sequência. Tinha de deixar que se aproximassem mais, mas
não muito, pois podiam estar armados de granadas ou bomba. Então, felizmente, o homem que estava do outro lado da rua deu uma carreira que o colocou ao alcance de
minha pistola. Não podia vê-lo claramente. Tive de calcular que estivesse entre uma janela gradeada e a sombra mais densa de uma porta. Fiz cuidadosamente a pontaria
e atirei. No estreito espaço, a detonação foi ensurdecedora. O homem não respondeu ao tiro. Voltou as costas e começou a correr. Os outros dois correram também.
Dei mais dois tiros a esmo, para dentro do nevoeiro. Em seguida, como vi que as janelas estavam se abrindo e cabeças curiosas começavam a aparecer nos espaços iluminados,
corri pela viela e atravessei a ponte. Só parei de correr quando cheguei ao abrigo do Harry’s Bar.
Felizmente, havia muitos fregueses e minha chegada precipitada não atraiu a menor atenção. Pedi uma dose dupla de bebida, levei o copo para a cabine telefônica e
liguei para Manzini no hotel. Quando ele chegou ao telefone, disse-lhe: - Obrigado pelo conselho. Quase caí no canal.
- Que foi que aconteceu?
- Uma armadilha bem preparada. Três homens. Dei alguns tiros e eles fugiram.
- Onde está agora?
- No lugar para onde me mandou. Ainda não vi a mulher.
- Vá até meu quarto quando voltar.
- Como vai nosso amigo?
- Contente como um gato. Vou dar-lhe umas espetadelas. Até já, sim?
Levei o copo para o balcão, acomodei-me num tamborete e esperei um momento de folga para falar com o barman. Perguntei-lhe por Gisela Pestalozzi e ele sorriu. -
Quer divertir-se um pouco, não é? Bem, ela é cara, mas tem as melhores pequenas da cidade.
- Cara como?
- Sessenta mil a cem mil liras por noite durante a temporada. Nesta época, talvez menos, mas será preciso discutir o preço. Mas todas elas têm seus apartamentos
e isso tem algum valor com um tempo destes. Onde está hospedado?
- Com uma família amiga. Gente muito rigorosa.
- Neste caso, Gisela é uma boa pedida.
- Como saber quem é ela?
- Costuma sentar-se ali naquele canto. É uma ruiva grande de seus quarenta e poucos anos. Usa uma porção de enfeites: broches, colares, brincos enormes, tudo isso.
É fácil reconhecê-la. É uma vaca velha, mas muito engraçada. Vou lhe dar um conselho, porém. Não se indisponha com ela, pois tem muitos amigos.
- Polícia?
- Um pouco. Mas principalmente gente mais alta.
- Obrigado... E aqui está alguma coisa pelas suas informações.
- Muito obrigado. Vai demorar-se em Veneza?
- Duvido muito. Por quê?
- Bem, como eu disse, não vale a pena brigar com Gisela. Mas, se estiver interessado, tenho alguns telefones aqui muito agradáveis...
- Obrigado. Não me esquecerei. Sirva-me outra dose e mande-a para aquele canto.
Acomodei-me na banqueta. O garçom me levou o drinque e eu comecei a bebê-lo devagar, pensando no Cavaliere Bruno Manzini, a Salamandra. Tudo o que ele dizia tinha
um toque mágico, mas eu não sabia o que era verdade e o que era imaginação. Bruno Manzini, herói guerrilheiro, se aliara aos fascistas e então chamara a mim, Coronel
Ninguém, para destruí-los. Eu me sentia como um dervixe dançarino, a girar até o esgotamento para provar que Deus era Deus e todas as Suas obras, uma esplêndida
inconsequência.
Foi então que Gisela Pestalozzi entrou espalhando cumprimentos e perfume e se sentou ao meu lado. Tinha os dedos cheios de anéis, sinos pendentes nas orelhas e correntes
que dariam para a atracação de um navio. Tinha braços de lutador de catch e um seio tão vasto que daria para alimentar um continente. Os cabelos eram de um vermelho-ticianesco,
os lábios eram cor de gerânio e a voz lembrava pedras roladas numa misturadora de concreto.
- Esse lugar é meu, jovem. Deve ser novo aqui.
- E seu nome é Gisela, não é?
- É, sim. Como sabe?
- Um amigo me disse.
- Que amigo foi esse?
- Não pode fazer o favor de baixar um pouco a voz?
- Por quê? Minha voz é esta, meu lugar é este, se quiser falar de negócios, a coisa é diferente.
- Quero falar de negócios.
- Sessenta mil por noite, jantar e bebidas por fora. Sim ou não?
- Não. Foi a Salamandra que me mandou.
- Eh! - Ela murchou como um vasto balão e a voz desceu dez decibéis. - Por que não disse logo? O que você quer?
- Uma casa segura.
- Por quanto tempo?
- Não sei ainda. Talvez semanas, talvez meses.
- Com ou sem?
- Com ou sem o quê?
- Mulher, é claro. Que mais podia ser?
- Sem.
- Dois quartos, cozinha e banheiro. Toda mobiliada. Luz, aquecimento e telefone. Duzentas mil liras por mês. Serve?
- O preço é bem alto.
- A casa é segura. Entrada particular. Não há porteiro e tem duas outras saídas.
- Onde?
- A cem metros de San Marco.
- Qualidade?
- Bem, não é o Ca’ d’Oro, mas é confortável.
- Onde é que eu pego a chave?
- Comigo. Um mês adiantado e um mês de depósito.
- Vou pensar. Onde posso encontrá-la quando não estiver aqui?
- Salamandra tem meu número de telefone.
- Muito bem. Um drinque?
- Qual é seu nome?
- Mudo de nome todos os dias. Chame-me Amante.
- Quer uma pequena?
- Esta noite, não.
- Vá andando então. Amante! Estou em minhas horas de trabalho.
- Ciao, Gisela. Até a vista.
E foi assim, sem jeito e sem objetivo, como tudo o que me estava acontecendo. Deixei meu drinque inacabado na mesa e paguei a um barqueiro sonolento mil liras para
deixar-me duzentos metros abaixo no canal na porta do Gritti que, sendo um hotel civilizado, tem um bom serviço telefônico e cabines onde não é preciso discutir
tudo com o resto do mundo e mais a sua pequena. Pedi uma ligação para Stefanelli em Roma e, dois minutos depois, ele estava na linha. Dentro de dez segundos, percebi
que meu telefonema não era bem recebido.
- Steffi, é Matucci quem fala.
- O nome não me é desconhecido. Que é que há?
- Estou em Veneza, Steffi.
- Que bom para você! Que bom para Veneza!
- Vamos deixar de palhaçadas, Steffi? Estou falando sério.
- Eu sei.. Estou sem emprego. Todos os fascistas do Serviço foram promovidos e você está comendo lagosta em Veneza. Pode haver algo mais sério?
- Quero ver você.
- Estou em casa todo o tempo - de meia-noite a meia-noite.
- Ouça, por favor!
- Não! Quem tem de ouvir é você! Irmãozinho, você se vendeu! Conseguiu longas férias e uma polpuda sinecura e agora está a soldo da indústria privada. Você é um
stronzo, Matucci. O pior que já conheci!
- Onde foi que ouviu tudo isso?
- Que importância tem isso?
- Tem muita! E se você desligar, Steffi, pode ter certeza de que cuspirei em sua sepultura! Agora, fale!
- Quem me disse foi o próprio cavalo que fala, nosso querido Diretor, no dia em que me afastou. Vou citar-lhe as palavras dele: “Ainda está em serviço ativo, Stefanelli.
Por que não segue o exemplo de seu colega Matucci e não encaminha a sua grande competência para alguma atividade civil?” Disse mais: “Poderá ganhar muito dinheiro
como o próprio Matucci lhe dirá. Tivemos nossas divergências, mas conseguimos resolvê-las e eu me aventuro a dizer que Matucci ainda vai acabar muito rico”. Foi
o que ele disse. Quer ouvir mais?
- Não, muito obrigado. Recebeu meu telegrama?
- Recebi.
- Mas não acreditou nele?
- Não.
- Quer-me fazer um favor?
- Quer que eu leve flores para o seu enterro?
- Isso pode ser mais rápido do que você pensa. Mas guarde o seu dinheiro. O que eu quero é que você vá procurar Rachele Rabin e lhe pergunte sobre que foi que conversamos
quando eu fui vê-la.
- E depois?
- Depois, eu lhe darei ainda um telefonema. Se você quiser então, poderá chamar-me de todos os nomes que souber. Boa noite, Steffi.
Em seguida, subi para falar com Bruno Manzini. Tive a surpresa de ver que o Diretor ainda estava com ele, mas a atmosfera tinha mudado. Havia tensão entre eles e
foram lacônicos comigo. Manzini começou diretamente a interrogar-me.
- Diga-nos o que aconteceu, Matucci.
Contei tudo. Tracei um mapa em papel do hotel para que tudo ficasse mais claro. Deixei ainda mais claro que alguém me marcara para servir de alvo às balas dos pistoleiros
e, se havia uma coisa que não me agradava, era isso. Manzini me interrompeu no meio desse tema e disse:
- Já contei ao seu Diretor o que aconteceu no pavilhão.
- Compreendo...
- E comuniquei-lhe a nossa suspeita de que ambos os atentados tiveram inspiração oficial.
- E eu estou indignado com a sugestão, Matucci - disse o Diretor.
Parecia de fato indignado e pela primeira vez eu notava uma ponta de inquietação sob sua máscara sardônica. - Acha mesmo que, depois de chegarmos a um acordo amigável,
depois de eu ter concordado com a sua volta à Itália e a sua contratação por meu velho amigo, eu atentaria contra sua vida?
- Ou foi o senhor ou foi Leporello. Era constantemente informado pelo Cavaliere. Sabia que eu ia ter um encontro com ele no pavilhão. Sabia que eu vinha jantar aqui
esta noite. Conhecendo a nossa profissão como ambos conhecemos, vê alguma coisa de ilógico na suposição?
- Do meu ponto de vista, seria uma rematada loucura, Matucci. Eu o eliminaria sem a menor hesitação, se isso fosse necessário. Mas, nas circunstâncias atuais, tenho
todo o interesse em mantê-lo vivo,
- Não posso colaborar com idiotas! - disse Manzini rispidamente. - E não tolerarei ameaças ao meu pessoal. Trate de meter um pouco de juízo na cabeça do tal Leporello!
- Por favor! - disse o Diretor com voz suave. - Calma, Bruno! Você já está muito velho para se exasperar dessa maneira. Vou tratar do caso... Durma bem, Matucci.
Depois que ele saiu, Bruno Manzini deixou-se cair numa poltrona e me olhou com uma expressão de irônico interesse.
- Bem, meu Dante, qual é sua opinião?
- Acho que ele está dizendo a verdade.
- Sei que está. E sei também que ele está preocupado. Se não puder controlar Leporello agora, nunca poderá fazê-lo depois ... Tudo é lucro, meu Dante! Quando os
ladrões brigam, há ouro nos bolsos dos homens de bem.
Ri. Que mais podia fazer? Ri até que as lágrimas me correram pelo rosto, enquanto o velho ria em sua poltrona, satisfeito como uma aranha que tivesse capturado um
moscardo.
20
Havia leões no portão de entrada, dois animais de pedra coberta de líquen, tendo entre as patas levantadas um escudo em que nada se podia distinguir. O portão era
de ferro negro, trabalhado com muitos floreios e com o dobro da altura de um homem. O porteiro era um homenzinho enfezado que correu para a porta do carro a fim
de receber o patrão com uma efusão simiesca de dialeto. Depois do portão, uma aleia ensaibrada atravessava uma avenida de ciprestes e ia dar numa fantasia geométrica
de canteiros de flores e de sebes em miniatura. Ao fundo, uma escadaria de mármore branco levava à vila, uma joia no estilo de Palladio, graciosa e bela mesmo sob
um céu cinzento e uma chuva incessante.
Era Pedognana, a casa de campo do Cavaliere Bruno Manzini e ele a mostrou com um orgulho quase infantil.
- O lar, meu Dante! É o único lugar no mundo onde eu sei que sou eu mesmo. Minha mãe comprou-a nos bons tempos e vendeu-a nos tempos difíceis. Quando ganhei o primeiro
dinheiro grande, comprei-a e tem sido minha desde então As armas dos leões no portão são as que minha mãe inventou para si mesma. Ainda poderá ver a salamandra,
se olhar com muita atenção. Mandei apagá-la no tempo dos guerrilheiros, porque era aqui o meu quartel-general até que os alemães me prenderam e levaram para a prisão.
Há de tudo aqui: pomares, terras de lavoura, amoreiras para os bichos da seda, arroz nos brejos perto do rio, uvas e oliveiras no sopé da montanha. Um pouco da velha
vida, como verá por si mesmo. Vamos entrar...
Na entrada, cercada de colunas, com uma cúpula resplandecente de fantasias de Tiepolo, estava reunido o pessoal da casa: Gualtiero, o administrador, com quase dois
metros de altura e sólido como um carvalho; Lanfranco, mordomo da vila; Dom Egídio, capelão da propriedade; Donna Edda, a governanta, robusta mulher camponesa, cheia
de babados e dinamismo; e com eles uma pequena hierarquia de criadas, jardineiros e trabalhadores. Manzini cumprimentou-os, chamando-os um por um pelo nome e eu
tive de repetir os cumprimentos, de modo que, quando a cerimônia terminou, eu estava convencido de ter sido transportado para o século XIX.
Terminados os cumprimentos, fui entregue aos cuidados de Donna Edda, que me levou para cima com tal fervor de simpatia que eu cheguei a ficar tonto. O esplendor
do quarto me desarvorou - a cama com dossel, a vasta cômoda Boule, o fogo a crepitar atrás de uma cortina de metal, a estante que subia ao teto, cheia de livros
encadernados em couro. De repente, aquilo tudo foi demais e eu comecei a pensar irracionalmente que tudo talvez fizesse parte de uma tática: aniquilar-me com grandeza
e então prender outro servo às suas ordens. Entretanto, mais tarde, ele procurou explicar-se e expor o alcance de seus planos.
- Procure compreender, Dante Alighieri. Sou um homem livre. Entendo a liberdade no sentido anglo-saxônico, porque minha mãe era escocesa e uma mulher livre por seu
próprio direito. Ela batalhou com Pantaleone a fim de estabelecer um patrimônio para mim e ele acabou cedendo. Nunca ligou para a sociedade e nunca se queixou quando
a sociedade não ligava para ela. Mas a liberdade é um estado de espírito raro. O povo tem de aceitá-la, tem de ser preparado para ela. E este país está apenas meio
preparado e em alguns pontos não tem preparação alguma. Muitos preferem a tirania à liberdade porque os tiranos podem ser corrompidos ao passo que a liberdade exige
uma inocência rigorosa, uma batalha diária como a de Santo Antônio com os demônios... Eu não sou inocente, nem você. Mas não queremos ser prostituídos a vida inteira.
Lembra-se de Rachele Rabin? Bem, isso é uma história que diz tudo. Fomos amantes, como você sabe. Depois, separamo-nos... cada qual pela mesma razão. Cedi a pressões
sociais. Ela encontrou um protetor mais poderoso - um vice-presidente do Conselho Judaico, um homem proeminente nos círculos fascistas. Você é moço demais para se
lembrar, Dante Alighieri, mas até os judeus acreditavam no Duce e confiaram até o fim em que ele os livraria dos holocaustos nazistas... No fim, ficamos cientes
de que nos havíamos traído a nós mesmos. Rachele foi para Auschwitz, como uma vítima voluntária. Eu fui lutar no movimento subterrâneo... Lembra-se do que diz a
Bíblia: “Os inimigos de um homem são os de sua própria casa”. É ainda assim. Foi por isso que eu tive de testá-lo. E vou continuar a testá-lo porque você ainda não
foi suspenso pelos polegares e nunca levou choques com eletrodos presos aos testículos... Perdoe-me se sou um pouco veemente. Não sou ainda tão equilibrado quanto
gostaria de ser.
Mais tarde, naquela noite, com mapas e documentos estendidos em cima da mesa, esboçamos o primeiro plano de campanha. Mais uma vez, maravilhei-me de que um homem
tão velho pudesse ser tão preciso e implacável nos seus desígnios.
- Qual é o objetivo exatamente, Coronel?
- Acusar o Major-General Leporello de conspiração para assassinar o Avvocato Bandinelli e o Agente Calvi. Desmoralizar o Diretor mostrando que ele participou da
conspiração.
- Por onde vai começar?
- Por três fatos: Leporello sabia da localização dos papéis de Pantaleone e das minhas providências para guardá-los. O ajudante de ordens dele, Capitão Roditi, apareceu
em Ponza com ordem de apoderar-se dos documentos restantes. Mais tarde, o Diretor aliou-se a Leporello num complô para estabelecer um governo militar.
- Diante desses fatos, onde vai iniciar as investigações?
- No ponto mais fraco, o Capitão Roditi.
- Depois?
- Leporello.
- Por que não o Diretor? Você o conhece melhor.
- Na sua posição atual, ele é quase inexpugnável. Pode justificar todos os seus atos alegando as necessidades secretas do Serviço.
- Voltemos a Leporello então.
- Nunca vi o dossiê dele. Podemos organizar um com a maior facilidade, mas isso nos tomará algum tempo. A não ser isso, temos dois conceitos sobre ele: um dele próprio
e o outro, do Diretor.
- Quais são os conceitos?
- O do Diretor: “Um patriota, um católico fervoroso, um democrata-cristão e um homem financeiramente independente. Duvido de que possa ser comprado ou intimidado".
- E o de Leporello?
- É o seguinte: “Minha lealdade era à Coroa. Nunca mudei, sem mesmo quando isso era conveniente. Antipatizava com os fascistas. Detestava os alemães mas, por isso
mesmo, não podia mudar de lado. Hoje, posso ser honesto e orgulhoso”. Foi o que ele disse.
- Dio mio! Uma virgem prudente! Não acredito nisso.
- Nem eu. Qual é a sua impressão dele?
- Frio, ambicioso e mais do que um pouco paranoico. Mas, se aparecer naquele balcão da Piazza Venezia, muita gente delirará com ele. Gostaria de examiná-lo em circunstâncias
sociais. Vou convidá-lo para uma reunião apropriada em Milão. Ele tem sua base por lá, de modo que será fácil. Ele levará o seu ajudante, de modo que isso lhe dará
também um ponto de partida. Seria bom instalá-lo no apartamento o mais depressa possível. E isso levanta outra questão, Dante mio... mulheres!
- Oh?
- Como pretende arrumar-se em matéria de negócios e prazer?
- Estou organizado para uma coisa e para outra.
- Creio em você. Sugiro, entretanto, que se interesse pelo mercado matrimonial também.
- Com certeza está brincando!
- Ao contrário. Você é solteiro, coronel e com um bom futuro. É, portanto, um bom partido com lugar assegurado na lista de qualquer mulher. Utilize isso, meu amigo,
especialmente aqui no Norte, onde o dinheiro tem muita importância e aqueles que o têm fazem fofocas como comadres. E, já que as fofocas são importantes, vamos acertar
a história de sua cobertura. Você foi contratado como meu assessor especial em todos os assuntos relativos à segurança industrial. Entra em minhas empresas no nível
de gerente. Terá livre acesso a todas as minhas fábricas e a todos os meus escritórios. Terá um cartão de crédito da companhia e um carro para seu uso pessoal. Fará
o maior número possível de amigos dentro das minhas companhias e dissipará tanto quanto possível os ressentimentos e invejas que sua posição privilegiada provocar.
Quando eu estiver ausente do país, como me acontece estar frequentemente, você agirá dentro do seu critério e se comunicará comigo mediante um código que eu lhe
fornecerei. Minha secretária receberá instruções para informá-lo dos meus movimentos. Se ela não souber deles, pois às vezes são secretos, eu lhe informarei com
antecedência. Meu banqueiro virá amanhã às dez da manhã para abrir a sua conta e estabelecer um limite de crédito garantido por mim. Que é que há mais na lista?
- Pessoal.
- Contrate quem você quiser. Consulte-me, porém, antes de contratar alguém do meu pessoal. Depois?
- Escreveu aqui: Igreja.
- Ah, sim. É um problema muito delicado, Matucci. A Madre Igreja está metida até o pescoço na política italiana. Sabemos disso. A Igreja é muito antiga e muito esperta
e tem amigos na esquerda e na direita, bem como no centro. Às vezes, é difícil distingui-los porque a batina faz todos os padres parecidos e porque todos no Vaticano
usam a mesma linguagem, com subtons muito sutis que representam as maiores diferenças de sentido. Se, por acaso, pisar numa batina, pise muito de leve até saber
quem a está usando. Por falar nisso, você é religioso?
- Fui batizado, fiz primeira comunhão, fui crismado e os bons irmãos me castigaram tanto que eu perdi a crença. Por quê?
- Ajuda um pouco saber o que um homem pensa da morte, sua e dos outros.
- Penso o menos possível nisso, o que também ajuda. E o senhor?
- Eu estou velho. Comigo é diferente.
- Talvez seja.
- Tenho vivido em dissonância, mas creio que ouço uma harmonia. Ouço-a da maneira mais simples nas velhas palavras e nos velhos sinais da graça. Talvez seja uma
ilusão, mas prefiro morrer com isso a morrer sem isso... Mas esse assunto cada qual resolve por si mesmo. Meu Deus! Tenho mesmo de levá-lo a um bom alfaiate. Esse
terno parece ter sido talhado pela machadinha de um açougueiro.
Na manhã seguinte, o banqueiro apareceu e, à tarde, chamado de Milão, veio o alfaiate que tomou minhas medidas para mais ternos do que meu pai tinha usado em toda
a sua vida. No intervalo e depois até o escurecer, empenhei-me no meu jogo da memória com os microfilmes e suei sobre a montanha de material do banco de dados. À
noitinha, com um estranho sentimento de trepidação, telefonei para Stefanelli. Dessa vez, ele foi truculento como de costume.
- Muito bem, Matucci, peço desculpas. E agora?
- Agora, não se fala mais nisso?
- E depois?
- Depois, você gostaria de trabalhar para mim? Bom salário, despesas pagas, algumas viagens?
- Qual é a espécie de trabalho?
- Steffi, se eu fosse dizer qual era o trabalho numa linha telefônica aberta, você seria um imbecil se trabalhasse para mim.
- Oh! É essa espécie de trabalho, hem?
- Sim, Steffi. Que é que você diz?
- Tenho de falar com minha mulher.
- Ora, Steffi, você é um problema para sua mulher e sabe muito bem disso. Ela deve estar ansiosa por ver você fora de casa.
- Sabe que acabou de dizer uma grande verdade? Quando vou começar?
- Daqui a uma semana, dez dias no máximo.
- Por quanto tempo?
- Não faço ideia.
- Quanto?
- O seu salário no Serviço.
- Negócio feito.
- Ótimo. Falarei dentro em breve com você. E, por favor, Steffi.
- Eu sei. Não é preciso dizer. Era uma vez três macaquinhos sábios...
- Steffi, você é uma joia.
- Sou também louco varrido. Mas acabarei mais louco ainda se ficar dentro de casa muito mais tempo.
- Mais uma coisa. Ainda me restam alguns amigos?
- Uns poucos... Precisa de alguma coisa?
- Sim. Roditi Matteo, capitão Carabinieri, ajudante de ordens do Major-General Leporello. Todos os antecedentes que puder conseguir.
- Deve ser fácil.
- Obrigado, Steffi. Até breve!
- Shalom...
21
Fiquei mais feliz depois disso. Sentei-me e bati à máquina um breve bilhete para Lili, que estava hospedada num pequeno hotel no Oberland, perto de Berna. A carta
seria transportada para o outro lado da fronteira a fim de ser posta no correio da Suíça. Não há censura oficial da correspondência na Itália, mas as cartas são
abertas e muitas informações particulares são encaminhadas aos arquivos, Eu não devia dizer muita coisa na carta porque Lili podia ainda estar sob vigilância e alguém
talvez examinasse tudo o que a ela se referia. E é difícil ser apaixonado numa carta assinada pelo “Tio Pavel". Entretanto, ficaria sabendo que eu estava bem e poderia
me responder para o endereço em Chiasso, fornecido por Manzini.
Na semana seguinte, trabalhei como um escravo em notas e exercícios mnemônicos, conferências diárias com Manzini, interrompidas apenas pelas sessões com o alfaiate,
que chegava de dois em dois dias com uma nova partida de provas e que, por um milagre da indústria italiana, teria tudo pronto para entrega no dia em que eu tomasse
posse do apartamento. Eu estava inclinado a tratar o alfaiate com um pouco de desdém, mas Manzini não gostou e me fez um sermão de cinco minutos sobre o assunto.
- Não se trata de uma brincadeira, Matucci. E não deixe o seu esnobismo toscano perturbar seu julgamento. Estamos falando sobre algumas das pessoas mais importantes
do mundo atual - os criadores de imagens, os mercadores de sonhos, os ilusionistas. Vista oitocentos milhões de pessoas com túnicas pretas abotoadas até o pescoço
e o que é que você terá? A China de Mao e o mundo inteiro de olhos arregalados ante essa maravilha. Eu fabrico tecidos, Matucci, e eu sei o que a indústria da moda
significa... O turismo é a nossa segunda indústria e, se tirarmos o biquíni dos cartazes de viagem, o movimento se reduziria à metade da noite para o dia. Leu os
recortes que deixei em sua mesa hoje de manhã?
- Ainda não. Por quê?
- Porque os criadores de imagens estão trabalhando com Leporello neste momento. Há nos recortes duas reportagens ilustradas, quatro citações de discursos recentes
sobre a lei e a ordem e mais vinte e três referências sobre vários temas. É o começo de uma campanha, Matucci. Estão fazendo uma análise de mercado antes de lançarem
uma linha. Há uma grande agência promovendo tudo isso, a Publitalia, e se você consultar suas notas saberá o nome do homem que a detém... Agora, vamos tratar dos
nossos negócios!
Era um velho pirata rude, mas eu estava começando a gostar dele. Tinha tanto talento, tanto entusiasmo, e ânimo, que me fazia às vezes parecer um rústico. Nenhum
detalhe, por menor que fosse, lhe escapava à atenção: os nomes que eu usaria em meus documentos falsos, a decoração do apartamento em Milão, os clubes em que eu
poderia apresentar-me, se eu devia jogar tênis ou tomar algumas lições de golfe e até a marca de cairo que eu deveria usar. Deu-me informações sobre o funcionamento
da Bolsa para que eu pudesse falar inteligentemente de ações e títulos. Esboçou a história das grandes famílias, os Torlonia, os Pallavicini, os Doria e os Orsini.
Discorreu sobre a carreira dos aventureiros empresariais modernos e sobre as loucuras de suas mulheres e descendentes. Mostrou-me onde estava o dinheiro americano
e bem assim o alemão e o suíço, como se tratava a guerra do petróleo e como os tentáculos da Respeitável Sociedade se estendiam até o Norte. Não se cansava de repetir
a mesma lição:
- Pense sempre dentro dos quadros da História, Dante. São precisos mais de cento e cinquenta anos para construir uma nação e uma consciência nacional. Depois que
Mussolini foi derrubado, voltamos aos tempos dos ducados em guerra. Até os marxistas estão divididos. Estamos à procura de outro foco e essa é a grande atração do
neofascismo. O que o povo não vê é que temos de emergir da desunião, mas não para sermos brutalizados a fim de chegar a isso por novos camisas-negras. Se tentarem
isso... Oh, Deus! Nem quero pensar nas consequências ...
Em seguida, abruptamente, mudava de assunto e me levava para correr a propriedade, desfiando reminiscências sobre sua mocidade e as relações com seu pai.
- Ele era uma imagem perfeita de seu tempo, Dante. Era um pragmatista irredutível que estava convencido de que o dinheiro e um título podiam dominar tudo, até a
imortalidade. Acreditava em Deus, mas via-O ausente da maior parte das transações humanas. Acreditava na Igreja como uma das mais estáveis e úteis instituições humanas.
Acreditava no casamento como um contrato social, mas não como um meio de atender aos desejos de um homem normal. A diplomacia era uma arte para cavalheiros, mas
a política era uma ocupação para arrivistas e patifes. Não tinha dúvidas em aproveitar-se da política mas se recusava a empenhar-se nela, contentando-se com uma
afirmação pública de lealdade à Coroa e uma manipulação privada dos partidos em conflito em benefício único e exclusivo de Pantaleone....
“Vejo que está sorrindo, meu amigo. E tem muita razão. Sou muito parecido com ele. Era também um bom homem de negócios. Investia em aço, em eletricidade, em construções
navais, em seguros e em bancos, mas não empregou um centavo que fosse em aventuras coloniais. Como lhe disse, minha mãe batalhou com ele para fazer um patrimônio
para mim e esse patrimônio é a base do que eu tenho hoje. Depois daquele primeiro encontro no Pincio, ele começou a interessar-se por mim e eu o aceitei como o melhor
e mais curioso de todos os meus tios.
“Olhando as coisas agora, vejo as intenções dele com muita clareza. Queria tirar-me da atmosfera de harém da casa de minha mãe e levar-me para um mundo de homens.
Era então um mundo admirável, Matucci, especialmente quando não se viam as coisas que aconteciam abaixo da superfície e isso me foi poupado durante muitos anos.
Uma vez por semana, eu ia à salle d'armes, onde Pantaleone praticava sabre e espada com seu mestre de esgrima, Caducci. Às vezes, ao amanhecer, íamos de carro pela
Appia Antica até Tor Carbone, onde ele criava cavalos de corrida de sangue inglês e irlandês. Assistíamos aos galopes matinais, percorríamos as cocheiras e, depois,
nos sentávamos para tomar café na cozinha da velha casa da fazenda em companhia do administrador das cocheiras e do treinador.
“Em outras ocasiões, levava-me para ver os artesãos que floresciam sob o patrocínio dele e de seus amigos ricos. Eram homens admiráveis, Dante, todos já desaparecidos.
Havia Ascoli, o antiquário, que podia pegar um punhado de cacos de cerâmica e reconstruir com eles uma urna etrusca, sobre a qual tinha uma longa história que contar.
Havia Haro, um espanhol, que era armeiro, vivia no Prati e a quem até os ingleses equiparavam aos seus mestres. Ele tinha uma galeria de tiro no porão, gaiolas de
pombos e uma fila de alvos nos campos para os cavalheiros seus clientes que quisessem treinar a sua perícia. Foi ali que aprendi a manejar uma arma e a cuidar dela...
Oh, a memória é um dom traiçoeiro!
- Parece perturbado. Alguma coisa o está afligindo?
- Não. Lembrei-me apenas de um fato. Uma lição que Pantaleone me deu e que me fez odiá-lo. Agora, só Deus sabe por quê, tudo isso me dá vontade de chorar.
- Quer falar sobre isso?
- Por que não? Há bem pouco o que contar. Um dia, eu ia a galope quando o cavalo tropeçou e eu caí na lama. Um cavalariço riu e eu me atirei contra ele, batendo-lhe
e dizendo impropérios em romanaccio. Pantaleone me afastou do homem e me bateu até que as orelhas zumbiram e eu solucei de dor. Ele procedeu com muita frieza, violência
e determinação. Disse- me depois: “Nunca mais faça isso. O rapaz não lhe fez mal algum. Você pareceu um bobo e ele riu. Não pôde reagir porque é um pobre camponês
que depende de mim para ganhar a vida. Você é considerado um cavalheiro, mas procedeu como um animal descontrolado. Vá lá e peça desculpas”. Recusei-me. Ele me lançou
um olhar de tamanho desprezo que eu me senti aniquilado. Afastou-se então dali e me deixou sozinho. Mais tarde, pedi desculpas, mas já então ele estava longe e o
povo da fazenda teve de me levar para Roma numa carroça de vinho. Passei alguns meses sem vê-lo. Julguei que ele me havia repelido em vista de minha desobediência.
Só muito depois é que soube que a mulher lhe havia dado um filho legítimo e que eu fora relegado para as sombras. É só.
- Acho que não é só isso:
« Como assim?
- Creio que nunca se esqueceu dessa lição. Estive conversando-com Gualtiero, seu administrador. E sei que organizou esta propriedade numa cooperativa para que essa
gente possa ter alguma estabilidade depois de sua morte.
- Ah, isso... Talvez tenha algum valor. Cedi apenas à necessidade social. Mas... - vamos mudar de assunto. Veja essas flores, Dante. Toda a encosta está em flor.
Você dentro em breve vai-se ausentar daqui. Quero que saiba que as portas estarão abertas sempre que quiser voltar. Você tem sido bom para mim.
- E você para mim, Bruno. É com muita pena que vou sair daqui.
- Você tem alguma terra sua?
- Nenhuma.
- Deve então comprar um pedaço de terra por menor que seja. Uma terra que você lavre, plante e ame um pouco. Todo homem precisa de uma terra que possa chamar sua.
- Talvez, depois que tudo isso terminar...
O resto do pensamento não foi dito, mas nós ambos compreendíamos aquele talvez. Se as coisas não dessem certo, eu só iria precisar de. sete palmos de terra, numa
sepultura no Campo Santo.
22
O apartamento de Milão era de cobertura num novo edifício construído por Manzini perto do centro da cidade. Eu tinha dois quartos, dois banheiros, uma cozinha em
estilo americano, um grande salão, uma sala de jantar e um escritório, bem como dependências separadas para dois empregados. Havia um terraço de três lados, com
arbustos e flores em vasos. O único acesso se fazia por um elevador privativo, cuja entrada e cujo interior podiam ser observados do apartamento por meio de circuitos
fechados de televisão. Os empregados tinham uma chave do elevador e eu tinha outra. As portas do apartamento eram munidas de fechaduras duplas e correntes. As persianas
das janelas eram de aço. Havia dois sistemas de alarme independentes, cada qual ligado por um circuito telefônico à sede da unidade móvel.
Tudo era novo e se destinava a um homem solteiro, rico e sociável: profundos móveis de couro, um bar bem abastecido, um sistema de alta fidelidade, pilhas de disco,
vistosos quadros modernos, livros velhos e novos para as noites solitárias. Havia uma máquina de escrever, um copiador Xerox, um gravador de fita, papel com meu
nome impresso e duas espécies de cartões de visite, uma para ocasiões civis, outra para ocasiões militares. Atrás das estantes, oculto por um painel falso de madeira,
havia um cofre moderno com um dispositivo de aparência eletrônica e um alarme ligado ao sistema central. Até o caderno de telefones registrava todos os números de
que eu poderia precisar dentro da organização de Manzini e os endereços de fornecedores^ médico e dentista. Manzini me fez entrega de tudo com um sorriso de satisfação.
- Pronto, meu caro Dante. Tudo é seu. Agora, você só tem de trabalhar e se divertir proveitosamente. Vou apresentar-lhe os empregados.
Eram dois, irmãos gêmeos da Sardenha, homens baixos e morenos, taciturnos e cheios de dignidade como fidalgos. Chamavam-se Pietro e Paolo, de modo que podiam festejar
o seu santo no mesmo dia. Pietro era cozinheiro e mordomo. Paolo era encarregado da limpeza e criado de quarto. Havia sempre um deles em serviço dia e noite. Serviam
a Manzini havia dez anos e eu tinha a impressão, se o primeiro contato valia alguma coisa, de que tratariam de mim como se eu fosse um artista de cinema. Dez minutos
depois da minha chegada, todos os meus temos estavam pendurados no armário, meu material de toalete estava arrumado e as roupas sujas tinham desaparecido como por
encanto. Eram de Nuoro e, segundo me disse Manzini, tinham cumprido uma sentença de prisão por banditismo. Contratara-os por uma temporada no seu iate e então lhe
oferecera trabalho permanente. Eram intransigentemente leais e tão discretos que seriam incapazes de dizer a hora a uma pessoa estranha.
Bebemos ao sucesso de nossa empresa, batizamos o apartamento com uma taça de champanha e, antes de sair, Manzini teve um gesto que me comoveu. Colocou as mãos em
meus ombros e me beijou nas duas faces, como se fôssemos irmãos. Afrouxou depois a gravata e tirou do pescoço uma fina corrente de ouro com uma medalha. Passou-a
pela minha cabeça e disse:
- É um São Cristóvão. Usei essa medalha durante toda a guerra. Não é preciso acreditar. Basta usar para me fazer a vontade, está bem?
Um instante depois, a emoção passara e ele voltara a ser irônico e displicente. Despediu-se de mim, dizendo: - Vamos ter algum estilo agora, Dante Alighieri! Fregiamo
i noncredenti! (Vamos f... os descrentes!)
Era a primeira obscenidade que ouvia dele. Mas isso de algum modo me deu coragem e a vontade de lutar. Telefonei para Steffi e disse-lhe que levantasse o traseiro
da cadeira e viesse para Milão o mais depressa possível. Disse-me que tinha conseguido organizar um dossiê sobre o Capitão Matteo Roditi, mas que nada havia nele
capaz de fixar a atenção. Allora! Gostaria de começar a pesquisar por mim mesmo.
Há em Milão um clube chamado o Duca di Gallodoro. Foi fundado por um inglês que o vendeu sob pressão a alguns bandidos milaneses e depois, segundo me disseram, casou-se
com uma viúva americana e foi morar em Boston. Nunca me dei ao trabalho de verificar a história, mas utilizava o clube sempre que ia a Milão, porque ainda era um
dos poucos lugares onde se podia comer razoavelmente bem, dançar com conforto e não ser massacrado até a insensibilidade por grosseirões que gritavam com um amplificador
de um milhão de watts. As bebidas eram honestas, as mulheres um pouco acima da média e os preços suficientemente altos para afastar uma numerosa brigada. Era também
suficientemente perto da sede para que os oficiais dos Carabinieri passassem por lá de vez em quando para tomar um drinque e ver os cidadãos a quem tinham a obrigação
de proteger.
Eram cerca de dez e meia quando cheguei. O restaurante estava cheio, mas havia pouco movimento no bar, de modo que eu me sentei no meu lugar predileto e puxei conversa
com Gianni, o barman, que conhecia todo o mundo e dizia tudo com um espesso sotaque genovês. Teve a gentileza de notar minhas roupas e me fez o que julgava um elogio.
- Belíssimo! Casimira inglesa da mais pura lã! E o talhe é perfeito! Que foi que houve, Coronel? Uma herança ou uma viúva rica?
- Economias, Gianni. Estou em férias e achei que merecia um presente de mim mesmo. Que há de novo na cidade?
- O mesmo de sempre, apenas com um pouco mais de força. Greves quase dia sim, dia não. Manifestações de estudantes. Polícia em todas as esquinas. As receitas aqui
estão caindo também. Foram vinte por cento menos na semana passada. O povo está assustado. Todos preferem abotoar os bolsos e ir ver televisão em casa. Toda essa
violência! Houve outro assalto esta tarde. Fabbri, o joalheiro. Em plena luz do dia e nada aconteceu aos bandidos... Talvez a gente esteja precisando de um novo
Duce para as coisas entrarem nos eixos.
- Talvez.
- Há aí um sujeito que está dando uma sacudidela nas coisas. Como é mesmo o nome dele? Ah, Leporello! Devia ouvir os seus colegas falarem dele. Dizem que não se
importam de que algumas cabeças sejam quebradas, contanto que isto aqui volte a ser uma cidade tranquila. O homem está certo! E não é de ficar sentado no escritório,
não! Sai e anda por aí todas as noites com as patrulhas. Dizem que ele está preparando tropas de choque, como há na França. Chegam e limpam as ruas num instante
sem fazer perguntas. Deve conhecê-lo. É um camarada grande, parece um alemão. Os rapazes o chamam de Queixo de Ferro.
- Bom nome. Conhece alguém do pessoal dele?
- Claro. Alguns aparecem por aqui. Mas nunca quando estão em serviço. Ele acabou com isso. Quem cometer qualquer infração é posto na rua. É a regra agora, segundo
dizem. Ele procura saber até com que mulheres os homens se ligam. Pergunte a algumas das pequenas... Espere, aquele não é um amigo seu?
O homem se encaminhou para o bar, com os seus dois metros de altura e os seus cento e vinte quilos de peso. Era Giorgione, o Grande Giorgio, Major Marinello no registro
oficial do corpo. Parecia um cachorrão de olhos tristes e grandes papadas. Quando me viu, animou-se e levantou a mão enorme em saudação.
- Alô, Matucci. Muito prazer em vê-lo.
- O prazer é meu, Giorgione.
- Que é que está fazendo na cidade?
- Estou em férias.
- Atrás de uma mulher, sou capaz de apostar.
- Mais ou menos. Aceita um drinque?
- Estou mesmo precisando, sabe? O Queixo de Ferro me andou nos calcanhares o dia todo.
- Grandes mudanças, hem?
- Mudanças? Meu Deus! Ele nos está metendo as Nações Unidas todinhas pela garganta adentro! Como os gregos agem, os franceses, os brasileiros, os ingleses e os japoneses...
Salute!
- Tim-tim!
- Vou lhe dizer uma coisa, Matucci. Você se deve dar por muito feliz de ter sido transferido. O tal Leporello é um sujeito intolerável. E você devia ver os tipos
de que se está cercando. Mamma mia! Está contratando crânios, diz ele, técnicos em computadores, estatísticos e até - Deus me perdoe! - psiquiatras! Mas não é só
isso. Está organizando um pequeno grupo particular de homens de choque para serviços especiais. Acho que está acontecendo alguma coisa esquisita e eu bem que gostaria
de saber o que é... Faz aquele camarada chamado Roditi andar de um lado para outro como um vento dentro de uma garrafa. Conhece Roditi?
- De vista apenas. Não me dou com ele.
- Pois não perde nada. É um sujeito muito esquisito... Oh, como estou cansado!
- Tome outra dose.
- Sim, obrigado.
- Mas o tal Roditi é esquisito como?
- Sabe como é... Muita fachada, muitos segredos, o General lhe apresenta cumprimentos e... essas coisas. Não tem amigos a não ser com o pessoal novo. Não confio
nada nele.
- Ele costuma vir aqui?
- Não, não. Com essas pequenas todas? Sabe que eu tenho a impressão de que nosso amigo Roditi faz pipi sentado?
- Alguma prova?
- Prova? Claro que não! Estou andando em tal roda viva que nem sei mais se sou casado ou solteiro!
- Leporello é assim também?
- Acho que não. É casado e tem duas filhas. Vai almoçar com o Cardeal Arcebispo. Tudo muito correto!
- Por que então Roditi e os outros?
- Não sei. Acho que ele gosta da ideia de uma guarda de elite e tudo mais... Mas qual é o interesse que você tem nisso? Tem um bom lugar descansado no SID. Que lhe
interessa o que acontece a pobres diabos como nós... - Largou o copo e se virou a fim de olhar para mim. - Vamos, Matucci! Diga o que é que há?
- Quer dar um passeio, Giorgione?
- Aonde?
- Até minha casa. É muito sossegada e a bebida é de graça. Vamos. São apenas algumas quadras. Depois, você poderá descansar.
- Está bem, mas não pense que vou desistir, Matucci. Quero saber.
- Se não calar a boca, deixarei a despesa para você pagar...
A caminhada pela rua me deu tempo de pensar. Apesar de seu tamanho e de suas maneiras desajeitadas, Giorgione era vivo como azougue. Talvez nunca obtivesse promoção,
mas era um dos sustentáculos da divisão que tratava de fraudes e práticas desonestas. Se eu queria a ajuda dele, tinha de dizer-lhe o bastante da verdade para que
ele ficasse satisfeito e fosse discreto. Tinha verdadeiro faro pelo dinheiro e pelo poder, juntamente com um sadio respeito por ambas as coisas. Pietro ajudou um
pouco. Com a sua maneira fria e impassível de servir, teria intimidado um cardeal. Assim, quando julguei que Giorgione estava pronto e relaxado, comecei a falar.
- Eis os fatos ostensivos, Giorgione. Poderá dizê-los a qualquer gari no meio da rua, se quiser. Estou em férias por um período de quatro meses. Estou trabalhando
abertamente para uma grande companhia, como assessor de segurança. O apartamento faz parte do emprego. Tudo mais é reservado, tão reservado que não pode ser visto
nem com um telescópio.
- Escute, Matucci, não tive a intenção...
- Sei disso, Giorgione, e sei também que você me pode ajudar. Em primeiro lugar, ainda estou com o SID, ativamente, compreende? Tudo isso é um disfarce e eu não
quero os rapazes aparecendo para um drinque ou uma visita de inspeção.
- Compreendo.
- Segundo, estou empenhado numa missão de que não lhe posso falar. Há um máximo de segurança e de perigo. Certo?
- Certo.
- Estamos interessados em Roditi também. Pediram-me que fizesse investigações sobre ele enquanto estou aqui e com muito jeito para não aborrecer o General Leporello.
Se ele é um finocchio, um invertido, não o queremos num posto de responsabilidade. Se ele é uma influência perturbadora, isso é mais um bom motivo para afastá-lo.
Tenho, portanto, de agir com muito cuidado, mas, em vista desse outro assunto, não posso perder tempo. Se puder ajudar-me, ótimo! Se não puder, não há problema,
desde que você fique calado, como eu sei que vai ficar. É só isso, Giorgione...
- Muito obrigado por me ter contado. Que deseja saber a respeito desse camarada?
- Tudo, Giorgione. Ou tanto quanto você puder conseguir.
- Bem sabe que eu não posso ajudá-lo como testemunha de vista. Sou muito grande e chamo muito a atenção.
- Basta que você me diga onde e quando. Eu me encarregarei do resto. Há dois pontos capitais: quais sãos as relações dele com Leporello e se ele tem alguma coisa
que ver com os homens de choque. Tem desde já algumas noções sobre essas coisas?
- Algumas, tenho. Roditi é, por si mesmo, um homem de choque. Animador da turma de educação física. Treina diariamente no ginásio - levantamento de peso, judô, caratê.
Está presente a tudo - tiro ao alvo com pistolas, manejo de armas automáticas... Como ele arranja tempo para tudo isso é que Cu não sei. Além disso, está fazendo
uma espécie de serviço de recrutamento por todo o país, mas dentro do Corpo. Pelo que ouvi dizer, vão criar um grupo de comandos, como os que existem na França.
Como é que se chamam?
- Os barbouzes?
- Isso mesmo. São verdadeiros assassinos, segundo me disseram.
- Onde é que fazem treinamento?
- Esse é um dos grandes segredos. Parece que ninguém sabe e os próprios homens não dizem uma palavra. Mas eu lhe direi qualquer coisa que souber.
- Onde é que Roditi mora?
- É outra coisa que eu não sei, mas deve constar dos fichários. Vou pedir a Rita que dê uma espiada. Lembra-se de Nita? Uma morena de tipo cigano. Da última vez
em que esteve aqui, você e ela...
- Vamos deixar isso de lado, Giorgione. E, pelo amor de Deus, não diga a ela que eu estou na cidade... Bem, você pensa que Roditi é um finocchio. Tem alguma prova?
- A rigor, não. Mas não se interessa pelas pequenas e cuida muito de educação física. Isso parece uma boa indicação, não acha?
- É possível. Ele tem amigos íntimos na sede?
- Não. As mulheres o olham como raposas no cio. Há uma meia-dúzia delas que dão todos os sinais de que gostariam de ir para a cama com você. Portanto, não notaram
ainda nada de suspeito.
- Como é que Leporello o trata?
- Com muita cerimônia, mas também com absoluta confiança. Sabe como é. Diz constantemente: “Se precisar de novas instruções, elas lhe serão dadas pelo Capitão Roditi...
Ah, sim, o Capitão Roditi lhe telefonará para marcar a hora da conferência”. Eu sei que ele frequenta a casa de Leporello.
- Onde é isso?
- Na estrada para o aeroporto de Linate. É uma grande vila com um muro de pedra alto.
- Há mulheres no escritório de Leporello?
- Três. Uma secretária e duas datilógrafas. Nenhuma brecha para você, Matucci. A secretária é um verdadeiro dragão e as duas datilógrafas são recém-saídas do convento.
- E a mulher de Leporello?
- Nunca a vi. Tenho a impressão de que nunca foi à sede. Se tivesse ido, eu saberia naturalmente disso.
- Quando ele fez a viagem de estudos, estava acompanhado da mulher?
- Não. Mas Roditi foi com ele, sabe?
- Isso não prova nada, Giorgione.
- Tem razão. De fato, não prova nada.
- Qual é em geral o sentimento no Corpo a respeito de Leporello?
- Bem, andei fazendo umas sondagens no bar... É um sujeito horrível, obriga-nos a trabalhar como escravos e é mais fácil tirar leite de uma galinha do que arrancar
uma palavra de elogio dele... Mas é um bom sujeito, muito bom mesmo. E introduziu uma porção de melhoramentos. Que é que pensamos dele? Bem, você conhece o Corpo,
Matucci. O pessoal pode ser dividido como um baralho. Há o grande grupo das cartas do miolo. É um grupo que cumpre o seu dever, não faz perguntas e se aproveita
de tudo para afirmar os seus direitos. Há o grupo de baixo que eu chamo o pessoal da terra. São homens que servem sem reclamar em postos rurais, pequenas cidade
e províncias remotas. São bons mantenedores da ordem. Vivem em contato direto com o povo e gostam dele. Temos afinal o grupo do alto do baralho, os homens rígidos,
que agem rigorosamente dentro das regras, servem o Estado e acham que quem os atacar merece três anos de trabalhos forçados. Estes gostam de Leporello. O grupo do
meio sente-se inquieto com ele. O de baixo detesta-o. Nem sempre pelas melhores razões, pois alguns elementos do grupo são muito desleixados, como você sabe. Mas
a verdade é que não confiam instintivamente nele.
- E você, Giorgione?
- Não o tolero. Creio que é muito natural. Sou bastante bom no trabalho no meu serviço, mas olhe para mim. Não represento nenhum crédito para o Corpo. E Leporello
não se cansa de me fazer sentir isso. Ih! Como é tardei Minha mulher vai ficar furiosa comigo! Para quando você que esse material?
- Para ontem.
- Como é que posso falar com você?
- Telefone para cá, Se eu não estiver, deixe recado com os empregados. Marque hora e lugar e eu irei encontrar-me com você ou lhe telefonarei, se não puder ir. Obrigado,
Giorgione.
- Não tem nada que agradecer. Tive muita alegria em revê-lo. Escute, Matucci, se você mudar de ideia a respeito de Rita...
- Acha que ela se iria sentir bem num apartamento como este, Giorgione?
- Pensando bem, não... Apesar de tudo, ela é uma boa menina. Tome cuidado. Não há mais muita gente como nós no Corpo.
Saiu com o seu gentil gigantismo, como um homem que estava começando a achar o seu mundo de Gulliver complicado demais para ele. Deixou-me satisfeito e preocupado
ao mesmo tempo. Roditi, o primeiro objetivo de minhas investigações, era um homem antipatizado e de reputação duvidosa. Leporello era um chefe duro com um pessoal
descontente. Em vista disso, as investigações preliminares marchariam com presteza e haveria muita gente pronta a me ajudar com entusiasmo e a desenterrar todas
as sujeiras. Por outro lado, as notícias sobre as novas tropas de choque eram alarmantes. Eram um retrocesso, uma nova ameaça aos direitos individuais e civis. Implicava
uma sanção oficial para a intimidação e a brutalidade policial.
23
As leis italianas, de qualquer maneira, favoreciam fortemente o Estado e eram contra o indivíduo. Muitas das velhas disposições fascistas constavam ainda dos livros
e podiam ser invocadas à vontade. Nunca havíamos adotado, só Deus sabe por que, o instituto inglês do habeas corpus. Um homem podia ser mantido indefinidamente na
prisão por uma acusação foiçada e um juiz complacente poderia adiar os seus interrogatórios e botar uma pedra nos seus requerimentos até o dia de juízo. A nossa
justiça vivia sobrecarregada de trabalho e os nossos sistemas de documentação eram irremediavelmente antiquados. Nossos sistemas de interrogatório eram brutais na
melhor das hipóteses e nosso sistema de prisões era uma vergonha pública. Agravar tudo isso com ordens de terror francas ou tácitas e uma exploração do vício mediterrâneo
da crueldade era um salto de volta aos tempos medievais. Eu compreendia a ansiosa convicção de Manzini de que a vigésima terceira hora tinha passado e de que o ponteiro
dos minutos já estava subindo para a meia-noite.
Sentia-me inquieto no momento, ansioso por ação e companhia, de modo que folheei o meu caderno de endereços à procura de outros contatos entre os corujas da noite.
Decidi-me por Patrizia Pompa, uma lésbica de singular beleza e encanto metálico, que ganhava um bom dinheiro decorando os apartamentos dos milaneses ricos. Tanto
quanto eu sabia, Patrizia nunca ia para cama antes das três da madrugada. Em outros tempos, eu tentara consegui-la ali e passara muito tempo depois magoado da experiência.
Entretanto, acabamos pôr compreender-nos e mantivemos através dos anos uma espécie de amizade cheia de espinhos. Telefonei-lhe. Respondeu-me na sua voz profunda
e rouca que prometia toda a sorte de sensacionais aventuras. Havia um tom levemente hostil.
- Quem é?
- Dante Alighieri Matucci, minha querida. Interrompi alguma coisa?
- Nada de importante. Que é que você quer a estas horas?
- Informação e um pouco de companhia.
- Companhia você pode ter se trouxer uma garrafa de uísque... Que espécie de informação?
- Sobre clube de rapazes alegres. Conhece algum?
- Conheço alguns. Por quê?
- Estou à procura de um homem.
- É claro. Nunca pensei que estivesse à procura de uma mulher, querido. Não quer me dar uma explicação?
- É um sujeito perigoso. Acho que matou um amigo meu.
- Oh! Nesse caso, tente o Pavone e o Alcibiade. Ficam ambos abertos até as quatro da manhã.
- Deixam entrar mulheres?
- Só mulheres direitas... como eu.
- Quer ir comigo e segurar minha mão?
- Por que não? Estou tão chateada que posso até gostar de ver Matucci entre os rapazes que jogam plumas.
- Não tire conclusões malévolas, ouviu?
- Quem está tirando é você... Bem, estarei pronta dentro de vinte minutos. Traga condução, sim? A propósito, onde é que está hospedado?
- Num convento. Não podia ser noutro lugar. Até já.
- Fui buscá-la no meu carro, um modelo esporte Mercedes vermelho. Ela estava vestida para sair cora um costume de corte masculino com uma camisa branca e uma ondulante
gravata preta. Quando viu minhas roupas, riu.
- Que é que você anda fazendo, Matucci? Você não pode estar fazendo tudo isso com o seu ordenado de coronel. Quem é que o está sustentando?
- Você está-me embaraçando, querida.
- Vai ficar muito mais embaraçado nos lugares aonde vamos. Quer mesmo ir?
- Claro que quero. E escute, se alguém quiser saber, eu sou um velho amigo e você me está mostrando a cidade.
- E se encontrarmos alguém que você conheça?
- A história é a mesma. E se lhe telefonarem depois, não diga coisa diferente. Não faça brincadeiras, pois pode ser muito perigoso.
- Com um amigo como você, Matucci, vou precisar de um seguro de vida extra.
- Sou o melhor seguro que você pode ter, querida. Quem é que vai tocar em você ao lado de um homem jovem e bonito como eu?
Era uma pilhéria insossa e que ainda se tornou mais quando entramos no Pavone, um porão enfumaçado perto do Duomo. Os homens da porta marcavam o tom do lugar. Eram
dois Adônis atléticos, de calças justas, cintos floreados e suéteres de gola rulê. Murmuraram duas ou três gracinhas, cobraram quatro mil liras a título de taxa
de ingresso e nos deixaram passar. Dentro, havia outros como eles, grandes e pequenos, todos de macacão e blue jeans, sem uma só mulher à vista. A fumaça era tão
densa que se podia cortar à faca e, para dar cor local, um pavão empalhado se ostentava no alto de um pedestal, no centro da sala. Havia um pianista e um rapaz de
rosto marcado de bexigas com uma guitarra elétrica num ritmo de rock. O murmúrio secreto das conversas cessou à nossa entrada. Dirigimo-nos para o bar sob um coro
de vaias e Patrizia me murmurou ao ouvido: - Seja como for, querido, creio que entramos no lugar errado.
De qualquer maneira, aquilo ia nos custar dois drinques, de modo que os pedimos o tratamos de bebê-los até que os presentes acabassem de divertir-se e voltassem
às suas conversas secretas. Voltamo-nos então para ver a sala e eu procurei distinguir algum rosto conhecido através da penumbra. O barman me bateu no ombro com
a mão macia e gorda.
- Procurando alguém, querido?
- Um amigo.
- Como é ele?
- É um sujeito grande, ruivo e sardento. Parece alemão, mas é de Trento. Bom rapaz. Mas não o estou vendo aqui.
- Esse amigo tem nome?
- Disse-me que se chamava Matteo.
- Mas não deu o sobrenome.
- Não...
- Deve estar com muita vontade de vê-lo.
- Muita.
- De que tamanho é sua vontade?
Botei uma nota de dez mil liras em cima do balcão e disse: - Bem... desse tamanho, para começar.
- Ora, acho que já o vi algumas vezes. Mas não posso ter certeza. Há um grupo de três ou quatro pessoas que aparecem aqui de quinze em quinze dias. Não tive muito
contato com eles porque são muito calados... só se interessam por gente muito rude. Se ele aparecer de novo, o que deseja que eu faça?
- Telefone-me para este número - disse eu, escrevendo o número num guardanapo de papel. - Haverá mais dez mil se eu fizer contato com ele.
- Quando eu ligar, devo perguntar por quem?
- Por Dante. Como o poeta, sabe? Minha amiga aqui é poetisa, não é, querida?
- Eu me sinto é como um rabo de cavalo - murmurou Patrizia, muito infeliz.
- E até que parece - murmurou o barman suavemente. - Agora, escutem, por que não vão para o lugar de vocês e não nos deixam a nós, menina, para fazer o nosso tricô
aqui?
O Alcibiade era completamente diferente, muito mais luxuoso e com uma frequência de gente em boas condições financeiras de ambos os sexos. O salão era um círculo
completo, como o do Panteão, com um bar na extremidade de um diâmetro e um palco em curva, na outra. Tinha ar condicionado, o que era muito bom porque havia muita
fumaça no ar e nem toda ela era de cigarros. A decoração era engenhosa e tremendamente cara. As paredes eram forradas de veludo preto, interrompido a intervalos
regulares por nichos iluminados em cada um dos quais havia uma figura de gesso branco, de meio tamanho natural e com todos os atributos do sexo, que representava
algum herói masculino clássico da antiguidade. As mulheres só eram homenageadas na cúpula preta onde uma Leda muito branca estava sob um sinuoso cisne.
Os clientes formavam o grupo mais elegante que há muito tempo eu tivera ocasião de ver. Eram principalmente jovens, mas havia alguns homens grisalhos e mulheres
idosas, de maneiras masculinas e tendo nas mãos compridas piteiras. Dessa vez, a nossa entrada não atraiu qualquer atenção. O palco era ocupado por três jovens de
calças douradas bem frouxas e sandálias de pontas viradas para cima. Um deles tocava uma cítara, outro soprava vigorosamente numa flauta e o terceiro executava uma
espécie de dança lenta que me deixou tão frio quanto Narciso ao lado do seu lago de lírios.
O barman era um homem esplêndido, muito bem barbeado e inefavelmente polido. As bebidas custavam os olhos da cara, mas foram servidas em cálices de cristal com um
canapé fresco para ajudar a digestão.
Patrizia resplandecia de satisfação.
- Querido, estou muito contente de que me tenha trazido até aqui. Acho que tenho estado há muito fora de circulação. Se eu tiver sorte, pague a conta e deixe-me.
- Está muito bem, amor.
- Já viu o seu homem?
- Ainda não. Vou esperar até o número acabar e as luzes se acenderem.
Esperamos uma pequena eternidade até que as últimas notas esmaecessem e o dançarino arriasse no chão como uma pétala cansada, sob aplausos um tanto pálidos. As luzes
eram pálidas também, mas foram suficientes para que eu visse o Capitão Matteo Roditi, num smoking azul meia-noite em companhia de dois outros jovens, sentados a
uma mesa à beira do local de danças.
Virei-me para o bar e disse em voz baixa a Patrizia: - Já o vi.
- Que é que vai fazer?
- Quero falar com ele... sozinho,
- Ficarei à sua espera.
- É melhor você não ser vista comigo.
- Tudo isso é muito interessante.
- E perigoso também, ainda que não pareça. Peça outro drinque e proceda como quiser.
Deixei-lhe algumas notas na mão e, em seguida, passei por entre as mesas, como qualquer outro cliente que olhasse os presentes. Roditi e seus amigos estavam tão
ocupados entre si que só me viram quando me aproximei e disse:
- O Capitão Roditi, não é?
Ele não me reconheceu imediatamente, mas se levantou em seguida e balbuciou:
- Coronel Matucci! Desculpe, mas não o reconheci logo!
- Fique à vontade, Capitão. A ocasião nada tem de militar.
- Que está fazendo em Milão, Coronel?
- Procurando gozar as minhas férias.
- Perdão, mas ouvi dizer que se havia afastado do Serviço.
- É um assunto em debate, mas ainda não há nada assentado. Ainda estou em serviço ativo. Não me vai apresentar a seus amigos?
- Oh, desculpe! Franco Gozzoli, Giuseppe Balbo. O Coronel Matucci.
- Estão também no Corpo?
Roditi foi rápido, mas não o bastante para interceptar os olhares confusos dos outros dois.
- Não, senhor. Trabalham ambos aqui em Milão.
- Qual é a espécie de trabalho?
- Bem... são projetistas de arquitetura.
- Muito interessante. Tenham a bondade do sentar-se, senhores. Costuma vir muito aqui, Capitão?
- De vez em quando. Para variar dos clubes de outras espécies.
- Pois eu só entrei aqui para tomar um drinque...
- Vai demorar-se muito em Milão, Coronel?
- Talvez algumas semanas. Por que não aparece uma noite e não toma um drinque comigo, Capitão?
- Seria um prazer para mim.
- Ótimo! Eu lhe telefonarei para a sede. Apresente os meus cumprimentos ao General Leporello. Diga-lhe por favor que espero vê-lo dentro em breve.
- Farei isso com prazer.
- Boa noite, Roditi. Divirta-se.
Ao passar pelo bar, vi Patrizia Pompa numa animada conversa com uma loura de calças verdes que parecia uma boneca. Piscou-me os olhos e agitou os dedos num gesto
de adeus. Não precisava mais de mim. Tinha voltado à circulação.
24
Eram três horas da manhã quando cheguei ao apartamento. Estava terrivelmente cansado, mas não pude dormir antes de fazer um balanço dos encontros da noite. O saldo
era positivo em muitos pontos. Tinha em Giorgione um amigo e uma fonte de informação. Roditi era vulnerável em face de seus interesses sexuais. Leporello era antipatizado
pelos seus homens, alguns dos quais poderiam ser persuadidas a delatá-lo. A coluna dos débitos era, porém, alarmante. Leporello estava treinando um dispositivo de
terror que poderia funcionar à vontade dentro ou fora da lei. Um grupo assim atraía delinquentes sociais e enfeixava enorme poder nas mãos de um agitador político.
Se esse agitador tivesse êxito, o dispositivo seria um ramo permanente e justificado do governo, Havia também um débito na minha conta pessoal. Se os assassinatos
da Via Sicília tivessem sido cometidos por esse dispositivo, seria difícil o» até impassível provar as acusações contra Roditi e Leporello. Se este quisesse a minha
remoção da cena, teria toda uma quadrilha de homens bem treinados para armar-me uma emboscada.
Não era um pensamento agradável. Perseguiu-me através de todo um sono inquieto e ainda me acompanhava quando acordei, irritado e de olhos vermelhos, às dez horas
da manhã.
Steffi chegou ao meio-dia, animado como um grilo. Deu-me lembranças de sua mulher que, segundo alegou, estava contentíssima de ver-se livre dele. Deu-me também lembranças
de alguns dos nossos colegas de Roma e proferiu uma série de impropérios contra os bajuladores. Correu o apartamento todo e chegou à conclusão melancólica de que
só uma prostituta poderia desfrutar de tanto luxo sem remorsos. Expurgado afinal de sabedoria e de bílis, escutou em silêncio enquanto eu lhe contava tudo o que
tinha acontecido desde o nosso último encontro. Em seguida, ponderado e calmo, deu-me a sua versão dos acontecimentos em Roma.
- Nós, liberais, estamos fora de época, meu irmão. Todas as correntes fluem contra nós. Todos os ventos sopram em sentido contrário. Justamente quando pensamos que
temos um momento de sossego para regar as flores, os árabes sequestram outro avião ou os sionistas matam mais um agente ou alguns idiotas de vinte e poucos anos
assaltam um banco ou a polícia atira sobre os manifestantes em alguma província em crise. Quando isso não acontece no país, acontece nos nossos vizinhos. Veja, por
exemplo, uma coisa simples. Quando cheguei ao aeroporto hoje de manhã, o sistema de computadores não estava funcionando. Um simples defeito mecânico, mas de repente
tornou-se tudo um verdadeiro caos. Os encarregados das passagens não sabiam responder às perguntas. Os funcionários das companhias se esconderam. E cinco mil passageiros
dos voos internos e internacionais ficaram inteiramente desorientados. Não somos como os ingleses que, num caso assim, fazem fila e tratam de ler o Times. Gritamos
e reclamamos pelo simples prazer da coisa. Bastava que alguém gritasse mais um pouco ou tomasse alguma iniciativa, para que houvesse um distúrbio... Causado por
quê? Por um fusível queimado que poderia custar cem liras... É isso que apavora, Matucci. Ninguém culpa o fusível. Todos querem um bode expiatório que possa ser
massacrado porque o avião se atrasou. Estão aparecendo agora nas pontes de Roma frases que dizem: “Morte aos Fascistas!” e “Abaixo os Marxistas!” Onde eu moro, fala-se
nos “Porcos Sionistas”. Será que você sabe mesmo contra que é que está -lutando?
- E você sabe?
- Às vezes, preferiria não saber. Simia quam similis...
- Essa eu não conheço, Steffi.
- "O macaco, o mais horrendo dos animais, como se parece conosco”... Ecco. Não mudamos muito desde aquele tempo, não é mesmo?
- Não, mas hoje fazemos uso de computadores para multiplicar a ruindade. Agora, Steffi, quero que compreenda uma coisa. Estamos empenhados num trabalho terrivelmente
perigoso. Acho que não deve ficar muito perto de mim. Você ficará hospedado no Hotel Europa e nós nos encontraremos numa porção de lugares.
- Que é que você quer que eu faça?
- Estamos fazendo uma investigação criminal. É, portanto, um velho trabalho de detetive. Temos de trabalhar em primeiro lugar sobre Leporello e Roditi. Quero saber
qual é a marca da pasta de dentes que usam e o que é que comem de manhã. Se você tem amigos na sede de Milão, pode usá-los, mas, pelo amor de Deus, tenha muito cuidado.
- Eu gostaria de dar-lhe o mesmo conselho, meu irmão. O Diretor não morre mais de amores por você.
- Mas tem interesse pessoal em me conservar vivo, Steffi. Foi ele mesmo que disse!
- Disse por acaso em que consistia esse interesse?
- Não.
- Vou lhe dar então uma má noticia. Ele destacou um homem para trabalhar dia e noite no seu dossiê.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Rampolla. Contou-me isso como se fosse uma grande pilhéria. Que pilhéria! Você navegou muito contra o vento no seu tempo, Matucci. Precisaria de um biógrafo muito
simpático para que você fosse apresentado sob uma luz pelo menos cinquenta por cento respeitável. Neste momento, estão compilando um verdadeiro Livro Negro contra
você.
-Eu também estou organizando um Livro Negro, Steffi.
- A grande questão é saber qual dos livros será publicado em primeiro lugar... Mais uma coisa: Pica-pau tem sido submetido a interrogatórios diários desde que você
saiu de Roma. Já revelou tudo sobre a rede dele. E sua amiguinha Lili Anders ocupa um lugar de destaque em tudo o que ele disse.
- Não podem mais atingi-la. A Suíça não concede extradição por crimes políticos.
- Mas concede por crimes comuns.
- Ora essa, Steffi! Conheço perfeitamente o dossiê dela e não há nada assim nele.
- Não havia quando você o viu pela última vez. Pode ser que haja agora. Se você gosta daquela mulher, deve pensar nisso...
- Steffi, você faz com que eu me sinta como Jó em sua estrumeira.
- Neste caso, louve o Senhor pelas suas aflições, meu irmão, e reze com muita convicção pela misericórdia de Deus. E não subestime o Diretor. Ele quer você vivo,
mas enterrado até o pescoço na sua estrumeira... Não há bebidas nesta casa suspeita?
- Para pagar as notícias que me deu, eu lhe devia dar era veneno.
- Mude para uísque escocês e eu lhe direi algumas coisas boas para variar.
- Primeiro, as coisas boas, velho abutre!
- Lembra-se daquela carta com bomba que foram deixar no apartamento de Lili Anders?
- Claro que me lembro.
- A polícia nos mandou um relatório completo sobre o assunto. O relatório me foi encaminhado com impressões digitais encontradas na carta e correspondentes a uma
ficha existente nos arquivos da polícia. Trouxe uma cópia comigo.
- E daí?
As impressões pertencem a Marco Vitucci, de vinte e oito anos de idade, que foi camaroteiro da Flotta Bernardo e é procurado em Roma e em Nápoles por vários delitos
de furto e de assalto.
- Nunca ouvi falar nele.
- Nem eu. Mas é um ponto de partida, um elo da corrente. A polícia anda ativamente à procura dele. Usa também dois nomes supostos para os quais tem documentos falsos.
Os nomes são Turi Coldoni e Giuseppe Balbo...
- Repita esse último nome.
- Giuseppe. Balbo.
- Steffi, você é um gênio! Um mágico absoluto e transcendental!
- Eu sei disso, mas quando foi que você descobriu?
- Agora... Acabei de lhe dizer que me encontrei com Roditi ontem à noite no Clube Alcibiade. Um dos homens que estavam com ele se chamava Giuseppe Balbo!
- Se é o mesmo, isso é quase bastante para pôr a mão em Roditi também.
- Quase, mas não de todo com a proteção que ele tem. Mas é um belo começo e, desde que se trata de um relatório da polícia, o SID não pode botar uma pedra em cima.
A sopa está começando a ferver, Steffi!
- Pode me dar agora o meu uísque?
Falamos a torto e a direito de uma porção de coisas durante o almoço e até o meio da tarde. Combinamos códigos e pontos de encontro, além de horários para contatos
telefônicos. Depois, Steffi foi para o hotel a fim de dar um pouco de descanso aos ossos velhos e traçar os planos de sua investigação. Eu tinha acabado de gravar
em fita as novas informações quando o telefone tocou e o Major-General Leporello me falou do outro lado do fio. A voz era enérgica, mas surpreendentemente cordial.
- Seja bem-vindo a Milão, Coronel.
- Muito obrigado, General.
- O Capitão Roditi me transmitiu o seu recado. Terei muito prazer em vê-lo.
- Queria apenas apresentar-lhe meus cumprimentos, General. Sei muito bem como é ocupado.
- Jantar na quinta-feira. Está bem?
- Sem dúvida. Nada tenho para essa noite.
- Muito bem. Em minha casa entre oito e meia e nove. Vou mandar-lhe a confirmação juntamente com instruções sobre a maneira de chegar até lá. Um jantar absolutamente
íntimo de quatro pessoas. Há alguém a quem queira levar?
- Não, General.
- Deixe isso então com minha mulher... Ela é quem vai organizar o jantar. Por falar nisso, já pensou na proposta que lhe fiz?
- Já, sim.
- Bem, falaremos sobre isso depois. Até quinta-feira.
- Até quinta-feira, General. Obrigado.
25
Eu tinha esperado algum contato - uns drinques na cantina da sede, café no clube - mas aquilo estava fora de termo e de medida. Duas semanas antes, queria ver-me
morto; agora, queria que eu fosse jantar com ele. Não havia a rigor contradição entre os dois desejos - havia muitas tradições notáveis em tomo das mesas de jantar
da Itália -, mas eram certamente anômalos. Eu não podia usar armas na cintura num jantar íntimo, mas dispunha de quarenta e oito horas para encontrar uma colher
bem comprida.
As notícias de Steffi me haviam perturbado profundamente, não porque fossem inesperadas, mas porque, mais uma vez, eu incorrera numa perigosa desatenção, selecionando
um problema e deixando de lado todo o conjunto de ameaças e dificuldades que o cercavam. O Livro Negro era uma engenhosa perversão. Fora imaginado por um Diretor
como uma técnica de adestramento, mas acabara por transformar-se numa técnica de chantagem. O truque era tomar o dossiê de um homem e, por meio de modificações,
ênfase e interpretações, torná-lo uma caricatura criminal. Em lugar de “solteiro”, lia-se "sem interesse por mulheres”, quando havia a anotação “gosta de jogar cartas",
esta era substituída por “jogador inveterado”. Era essa a arte do Livro Negro. É um jogo sujo, pois não há homem que não tenha suas culpas, e a simples exibição
do dossiê à vítima é uma arrasadora manifestação de poder cínico.
Eu conhecia bem o jogo, pois já o havia praticado várias vezes. Sabia também que eu era a vítima mais fácil do mundo, sendo um agente secreto que agia sempre na
faixa extrema da lei e, às vezes, muito além dela. Lili Anders estava numa posição semelhante, sendo uma conhecida subversiva que agia num país neutro. Bastaria
um telefonema do Diretor para o seu colega no serviço congênere na Suíça e ela estaria também tão indefesa. quanto uma folha numa tempestade de inverno. Estava ainda
remoendo esses tristes pensamentos quando chegou o correio com duas cartas de Bruno Manzini.
Na primeira, pedindo desculpas pela exiguidade do prazo, Manzini me convidava para jantar naquela noite com ele no Clube dos Banqueiros e entrar em contato com o
dinheiro para ver se tinha “mau cheiro ou não”. Sugeria que nos encontrássemos na sala de jogo meia hora antes do jantar para instruções particulares. Com a outra,
encaminhava-me uma carta de Lili Anders.
“Querido:
Faz tanto tempo que não escrevo a um homem que nem sei como principiar. É de presumir que você, meu cauteloso enamorado, nunca tenha escrito a mulher alguma. Tio
Pavel não tem importância porque não existe, mas foi muito bom ter notícias suas, apesar de tudo.
Estou sentada na minha varanda cheia de sol, diante de uma vista maravilhosa de um vale verde e de picos cobertos de neve, com fazendas que parecem casinhas de boneca,
tudo a minha disposição. Estou apreciando tudo isso, meu querido, de uma maneira que nunca julguei possível. Faço muito pouca coisa. Passeio, leio, faço alguns bordados.
Converso com os outros hóspedes. À noite, jogo um pouco de bridge. Vou para a cama às dez horas e durmo até que a empregada me traga o café. É tudo tão simples e
bom que não sei como pude viver tanto tempo longe disso.
Preocupo-me às vezes porque as coisas ainda estão muito transitórias e inseguras. Mas o meu advogado, Herr Neumann, procura tranquilizar-me. É um velhinho de cabelos
brancos e pince-nez de ouro. Chama-me de “Minha jovem”, o que ajuda um pouco. Sabe tudo a meu respeito, salvo as coisas muito íntimas, e acha que eu talvez possa
pedir asilo político na Suíça. Tomou muitos depoimentos e está consultando alguns colegas de Zurique. A ideia de asilo muito me agrada. É quase como encontrar refúgio
numa igreja, onde tudo é confessado e tudo é perdoado e pode-se começar de novo sem medo.
O povo aqui é simples, moderado e bom. Os hóspedes são agradáveis também. Há duas senhoras idosas, uma das quais é minha parceira de bridge. Há um casal em lua-de-mel,
que às vezes me faz muita inveja. Há um professor americano de certa idade que está escrevendo um livro sobre as migrações germânicas. E há um homem muito simpático
de Lugano que conversa comigo em italiano, oferece-me sempre um coquetel antes do jantar e vive a me convidar para dar passeios na sua Maserati. Ainda não aceitei,
mas é bem possível que isso aconteça em breve. É muito atencioso e inteligente. Trabalha como engenheiro ou coisa equivalente num projeto de construção a quinze
quilômetros daqui.
E você, meu Dante Alighieri, como está? Não lhe pergunto o que está fazendo porque sei demais o que é e nada posso fazer para ajudá-lo. Amo-o e tenho saudades de
você. Mas não posso depender muito desse amor e tenho de habituar-me à saudade. Só lhe digo é que muitas vezes sonho com você e, quando acordo, tenho no primeiro
momento a impressão de que você está ao meu lado. Estou escrevendo com ciúmes de todas as mulheres que você vê ou venha a ver. Será que está com ciúmes de meu engenheiro?
Eu gostaria de pensar assim.
Tenha muito cuidado, querido. Pense em mim com a mesma ternura com que eu penso em você.
Um belo dia, talvez eu volte a ser,
Sua Lili”
Li a carta três vezes. Depois, rasguei-a e queimei os pedaços no cinzeiro. Estava com ciúmes sem ter o menor direito a isso. Se não estava apaixonado, estava tão
perto disso quanto jamais estivera em toda a minha vida. Mas não podia arriscar-me a essa distração, não podia dar-me a esse luxo. Era melhor esquecer aquilo! Havia
muitos dias perigosos em que eu tinha de lutar pela sobrevivência e talvez o dia luminoso da presença de Lili nunca chegasse.
26
O Clube dos Banqueiros de Milão é apenas um pouco menos venerável do que o Clube de Xadrez em Roma. É, entretanto, muito mais impressionante porque o foco do seu
poder é mais claro e todos os seus frequentadores falam fluentemente uma única língua internacional - a do dinheiro. É uma linguagem religiosa reservada aos sacerdotes
e seus acólitos como o latim da Igreja e os símbolos do tempo dos incas. É precisa, flexível, sutil e inteiramente ininteligível para a populaça profana. É uma prova
da natureza cíclica da História, porque os primeiros bancos do mundo foram os templos de Babilônia, da Grécia e de Roma, onde era possível levantar empréstimos,
fazer depósitos, conseguir crédito e mandar testar as moedas sob o olhar vigilante da divindade local.
Se quiserem saber por que um camarada como eu sabe dessas coisas ou se interessa por elas, devo lembrar mais uma vez que sou toscano e que me criei ouvindo a história
dos Bardi, dos Frescobaldi e dos Petruzzi, que foram banqueiros da coroa inglesa no século XIV, e que meu pai era um socialista da velha guarda que nunca se cansava
de me falar sobre a necessidade de nacionalizar os bancos e afastar os especuladores. Gosto de dinheiro. Quem não gosta? Sou também fascinado pela sua história,
pelas suas formas, pelo seu poder, pelos motivos que levam alguns homens a ganhá-lo e outros a perdê-lo e pelo fato de que até Caronte, o barqueiro infernal, exige
uma moeda para transportar os mortos através do Estige para a eternidade.
Achei, portanto, apropriado que a minha entrada no mundo de Bruno Manzini se fizesse através dos portais do Clube dos Banqueiros. Tinha também curiosidade de saber
por que ele escolhera um lugar tão sensível e sacrossanto para me apresentar. Fiz-lhe abertamente a pergunta enquanto tomávamos coquetéis na sala de jogos, privilégio
reservado aos altos sacerdotes. Respondeu com um sorriso.
- É um exercido de lógica, meu caro Dante. Aqui todos têm dinheiro. O dinheiro impõe discrição. Discrição permite a liberdade de palavra. Fala-se, portanto, com
muita liberdade aqui dentro. Somos um grupo de seis, que nos encontramos aqui para jantar uma vez por mês. Falamos sem a menor reserva sobre todos os assuntos debaixo
do Sol. Qualquer de nós pode trazer um convidado, desde que se responsabilize por ele como um homem capaz de guardar um segredo.
- Obrigado pelo elogio.
- Posso fazer-lhe elogios a qualquer momento, meu caro Dante. Há dois homens que eu quero que você fique conhecendo esta noite. Um deles é Ludovisi, do Banco Central.
O outro é Frantisek, do Opera Pontificia do Vaticano. É um dos banqueiros mais espertos do mundo. O fato de que ele seja americano e bispo é secundário. Esses dois
homens podem ser-lhe muito úteis.
- Como?
- Podem dizer com mais rapidez do que quaisquer outras pessoas para onde o grosso do dinheiro está indo e por quê. Há outro motivo também. Ludovisi é cunhado do
seu Diretor. - Riu e levantou a mão. - Não, não fique alarmado. Os dois vivem como cão e gato. Ludovisi está requerendo divórcio e culpa a família da mulher pelo
fracasso de sua vida conjugal. É muito eloquente e está muito bem instruído sobre o assunto. Frantisek é, ao contrário, um personagem muito complexo. Parece um jogador
de futebol americano, fala italiano com sotaque do Brooklyn, dá um partido de cinco no golfe e é muito estimado pelo Pontífice reinante. Ajudou a reorganizar as
finanças do Vaticano e dirigiu as negociações para o acordo fiscal com o governo italiano. Não é muito bom teólogo. A sua filosofia é pragmatismo puro. A sua virtude
mais nobre é uma lealdade fanática à Santa Sé. Ainda assim, sabe a fundo das coisas e, se gostar de você, pode ser um amigo muito poderoso. Os outros? Bem, são agradáveis
e bem informados. Um deles é liberal, os outros são democratas-cristãos de vários matizes. Paolini é um fascista fanático, mas é tão agradável pessoalmente que não
e difícil perdoá-lo.
- E que é que espera que eu faça?
- O que bem quiser. Fale, ouça, discuta. Se cometer uma gafe, não se preocupe, pois isso é um privilégio do Clube. Agora, quer-me dizer o que tem feito?
Ouviu-me em silêncio e depois de um longo assobio baixo de satisfação. - Ótimo! Como você diz, a sopa está começando a ferver. Que pretende fazer agora?
- Tenho de reunir provas em muito maior quantidade. É um risco. Deve compreender isso. Posso perder Giuseppe Balbo, que é o nosso único elo com o que aconteceu em
Roma. Mas, se eu o entregar agora à polícia, posso perder os mais importantes, Roditi e Leporello. Sabe como são essas coisas. Só se deve iniciar uma ação ostensiva
quando temos todos os elementos bem documentados na mão.
Manzini franziu a testa durante muito tempo e, por fim, concordou.
- É desagradável a ideia de perder uma testemunha importante^ mas o risco de uma ação prematura é ainda mais desagradável. Essas novas tropas de choque me preocupam.
São quase assassinos policiais. Vamos fazer algumas sondagens durante o jantar e saber se há alguma notícia no ar. Sei que Leporello está muito bem cotado agora
entre os homens de negócios- Fez uma palestra aqui na semana passada sobre o tema de Lei e Progresso. Foi muito interessante e muito bem recebido. Por que será que
ele o convidou para jantar e quem será a quarta pessoa? Uma isca feminina?
- Talvez. Mas isso não parece muito dentro do estilo dele.
- Se ele está recrutando ginastas homossexuais e criminosos, não creio que vá recuar diante da simples sedução. Vamos lá para dentro? Os outros já devem ter chegado.
Éramos oito pessoas em volta de uma mesa redonda, não havendo questão de precedência. O protocolo foi observado com uma oração de graças pelo Bispo Frantisek, que
parecia de fato um jogador de futebol americano. O sotaque era pavoroso, mas a gramática era impecável, a linguagem fluente e as maneiras afáveis. Ludovisi era o
espirituoso do grupo. Era um homem magro, elegante e de olhos claros, com um riso de fauno e um sortimento de histórias escandalosas. Os outros, com exceção de Paolini,
eram típicos de sua classe. Bem barbeados e bem nutridos, eram eloquentes em tudo o que se referia a dinheiro e simpaticamente cépticos diante de todos os outros
interesses humanos. Achei Paolini um enigma. Tinha maneiras impecáveis e irradiava simpatia, mas o seu espírito era fechado a toda lógica que não fosse a sua, e
devo confessar que a mesma era difícil de refutar. O seu assunto predileto eram as empresas multinacionais, as grandes companhias que se estendiam através das fronteiras
do mundo e operavam sob todas as jurisdições, sem se subordinar a qualquer delas-
- Quatro mil companhias que fazem quinze por cento do produto bruto do mundo. Disso é que estamos falando. Controlam um ativo muito maior do que o de qualquer dos
países onde operam. Vejam a General Motors! Vinte e oito bilhões de dólares de vendas anuais. A Royal Dutch Shell, doze bilhões e meio... Qual é o governo que pode
controlar empresas assim? Nenhuma democracia certamente. A advocacia administrativa é muito forte, a força de emprego e de capital é muito grande e nem vamos falar
das pressões exercidas por meio do comércio e da diplomacia... E essas empresas estão ficando cada vez maiores, como um homem gordo que não pode parar de comer.
Vocês riem de mim e me chamam de fascista, mas quero que me mostrem qualquer autoridade que seja tão forte e tão beligerante quanto a diretoria de uma companhia
gigante. De Gaulle percebeu isso. Os sindicatos veem isso e é o melhor argumento que têm em favor do marxismo... Até os americanos estão começando a ver as coisas
agora que os japoneses aplicam a lição e constroem companhias multinacionais próprias...
- Que é que você quer então? - perguntou Ludovisi. - Uma junta que pode ser comprada com mais rapidez do que um parlamento, porque não há mais ninguém para fazer
perguntas? Deixe isso! Seja realista.
- Estou sendo realista, meu caro amigo. Veja o que aconteceu na Grécia. Há alguns anos, mal se podia levantar ali um dólar para investimento. Agora, há um pouco
de lei e ordem no país e o dinheiro está sobrando. Até o capital expatriado está voltando. É o governo controla as condições. É uma condição muito melhor que a que
temos aqui neste momento.
- É preciso fazer uma correção, velho amigo - disse o bispo. - Os coronéis suspenderam a lei e impuseram a ordem na Grécia.
- A distinção tem a sua razão de ser, - disse Bruno Manzini calmamente, - mas não sei se isso realmente faz qualquer diferença para o homem da rua. Temos tantas
leis que é impossível fazer cumprir a todas e nós acabamos com o governo por meio de regulamentos. Temos tantos partidos que o povo não é absolutamente representado.
Só os interesses das facções é que o são.
Ludovisi lançou-lhe um rápido olhar de estranheza.
Paolini aplaudiu.
- Bravo! Se Bruno pode ver a luz, por que vocês não podem?
- Não é a luz - disse Manzini com um sorriso malicioso.
- Talvez seja uma cortina de fumaça com um demônio bem conhecido escondido por trás dela. Alguém aqui ouviu a palestra que o General Leporello fez no clube a semana
passada?
- Eu ouvi - disse Paolini. - Pareceu-me uma coisa muito sensata e equilibrada.
Houve um tépido acordo sobre isso de todos, menos de Ludovisi, que sacudiu as mãos em desespero e exclamou:
- Pelo amor de Deus! O homem empregou todos os chavões conhecidos: “Liberdade não é licença, o desejo popular de uma sociedade pacífica, elementos provocadores,
fortes medidas de segurança...” Que horror! Parecia até meu cunhado dizendo essas mesmas coisas sem um pingo de convicção. Já conversou mesmo com o homem, Paolini?
- Já. Parece-me justamente o homem de que precisamos: resoluto, lúcido e absolutamente incorruptível.
- Ainda estou para encontrar um homem incorruptível. Alguém mais já teve ocasião de conhecer esse modelo?
Vi ou julguei ver um leve sinal de Manzini e intervim na discussão.
- Eu o conheço.
O bispo ergueu as sobrancelhas e inclinou o corpo forte sobre a mesa a fim de interrogar-me.
- E qual é sua opinião dele, Matucci?
- Prefiro não fazer um julgamento dele como homem. Mas acho que ele se lançou numa política altamente perigosa.
- Que política é essa?
- Com toda a certeza sabem. É uma coisa corrente por toda a cidade. Sou novo aqui, mas tenho ouvido comentários em todos os bares. Ele está recrutando tropas de
choque do tipo dos barbouzes franceses. É uma operação secreta e isso me preocupa. Sei também a procedência dos elementos recrutados e isso me preocupa ainda mais.
- Qual é a procedência desses elementos, Matucci?
- De redutos de criminosos e delinquentes sociais.
- É uma afirmação muito grave - disse Paolini, evidentemente perturbado.
- Sei disso e só a estou fazendo aqui na intimidade deste grupo. Mas estarei apresentando algumas provas ao próprio General Leporello na próxima quinta-feira.
- Talvez ele já saiba disso - murmurou gravemente Ludovisi. - Se esses camaradas forem soltos nas ruas, começarão a quebrar cabeças com sanção legal. Caso a sua
informação seja correta, Matucci, acho que devemos estar preparados para uma tremenda e sangrenta confusão.
- Estou de acordo.
- Creio que estamos fazendo um prejulgamento mórbido - disse Paolini de maneira tão gentil e sorridente que era evidente a sua insinceridade. - Por que não mudamos
de assunto? Não quero ofendê-lo, Matucci, mas a verdade é que você não conhece os meus colegas tão bem quanto eu. Se você lançar pânico e alarme dessa maneira entre
eles, conseguirá abalar o mercado durante um mês. Não acha, Bruno?
- Espero que não - disse Manzini, rindo como uma criança feliz. - Vou entrar no mercado amanhã. Os ingleses acabam de conseguir um soldador eletrônico que pode juntar
duas chapas de aço de vinte centímetros numa só aplicação. Quero comprar os direitos do mesmo e financiar a sua fabricação local. Algum de vocês está interessado
ou terei de procurar o Vaticano? Isso lhe interessa, não é mesmo, meu caro Bispo? É do que Sua Santidade está precisando para reparar as brechas na Igreja.
Todos riram e a tensão se atenuou.
Quando saímos da sala de jantar para tomar café no salão, Ludovisi me pegou pelo braço e me levou para um canto. Estava grave e preocupado.
- Foi uma má notícia que nos deu, Matucci. Tem certeza?
- Absoluta.
- Sabe o que é que isso indica?
- Sei.
- Como é que sabe?
- Além de trabalhar para Manzini, trabalho para o SID.
- Conhece então meu cunhado
- Conheço.
- Qual é a posição dele nesse caso? Antes de responder, deve compreender, se ainda não o percebeu, que eu não gosto dele. Considero-o sinuoso e muito perigoso.
- Como funcionário, eu não poderia fazer comentários. Como um convidado de seu clube, direi que concordo com o senhor. Fica entendido que negarei publicamente ter
dito isso.
- Muito obrigado. Aqui está o meu cartão. Se algum dia lhe puder ser útil em alguma coisa, telefone-me.
- Muito obrigado, mas duvido muito de que me possa ajudar em toda essa confusão,
~ De qualquer maneira, abra o espírito para essa possibilidade e eu manterei a porta aberta para o senhor. Daccordo?
Às onze e meia, os convidados se dispersaram, mas Manzini me reteve para outro café na sala de jogo. Estava visivelmente cansado. Tinha olheiras e sua pele mostrava
um curioso tom amarelado. Até o seu espírito mordaz o havia abandonado. Quando lhe perguntei se não se estava sentindo bem, encolheu os ombros cansadamente.
- O jantar desta noite... Na verdade, eu poderia ir para uma banheira e cortar os pulsos... Você jogou uma granada viva bem debaixo do nariz deles e só dois foram
bastante sensatos para vê-la... Já pensou, meu amigo, que se você morrer uma noite numa rua escura, estará morrendo por gente assim?
- Deve ter pensado nisso também.
- Muitas vezes. Lembra-se do que lhe disse sobre meti Tio Freddie? Pensei nele esta noite quando você me falou nos tipos que Roditi está recrutando. Freddie podia
ser muito ordinário, principalmente quando estava sem dinheiro ou se sentia frustrado em algum caso amoroso, o que começou a acontecer com mais frequência à medida
que ele envelhecia. Costumava explorar minha mãe e, quando as lágrimas não a faziam abrir a bolsa, ele recorria a um pouco de chantagem... Foi assim que eu descobri
que Tio Pantaleone era meu pai. Eu devia ter dez anos e ganhara um brinquedo novo, uma caixa de onde pula um boneco quando se tira a tampa. Queria meter um susto
em Mamãe com o boneco. Entrei na sala sem que ninguém me visse e fui esconder-me atrás do sofá onde ela estava conversando com o Tio Freddie... Estavam no meio de
acirrada discussão. Freddie queria dinheiro. Mamãe recusava veementemente. Freddie ameaçou então espalhar por toda a cidade a história de quem era meu pai. Ele devia
estar desesperado porque até então não me mostrara senão bondade. Por fim, não pude suportar mais aquilo. Saí do meu esconderijo e pedi aos dois que deixassem de
brigar. Não me lembro do que foi dito, mas me lembro de um longo e estranho silêncio, durante o qual Freddie me pareceu arrasado e Mamãe ficou agitada e zangada
como eu nunca a tinha visto... Depois disso, nunca mais vi Freddie. Mas sei o que aconteceu a ele. Nessa época, eu já sabia ler e os jornais deram tudo. Uma noite,
pouco depois da discussão, ele vagueava bêbado e lamuriento por Lungotevere. Foi abordado por um jovem marinheiro, que o convidou a ir até uma barcaça do rio. Ali,
ele foi amarrado, amordaçado e espancado até morrer. Dez dias depois, um caçador encontrou o corpo entre os caniços já descendo para Ostia... Ele não era muito simpatizado.
Na verdade, nos seus últimos anos de vida, se desmoralizara muito. Mas era bem relacionado na Inglaterra e a polícia abriu um inquérito rigoroso, depois do que apresentou
um volumoso relatório ao cônsul inglês. Parece que chegaram à conclusão de que as pessoas que o mataram tinham sido pagas para isso...
- Por quem?
- Fiquei sem saber durante muito tempo. Só depois que minha mãe morreu e eu tive de examinar os papéis e os bens dele, encontrei o anel de sinete de Freddie ao qual
estava preso um pedaço de cartolina com as palavras: "In memoriam... Pantaleone”. Como vê, meu pai era um homem muito eficiente e, como eu, tinha uma tendência à
ironia... Há uma continuação, meu Dante. Pode responder à pergunta que você foi gentil demais para fazer. Quando a Gestapo me prendeu e eu já estava sendo interrogado
havia uma semana e não estava em muito boa forma, meu irmão apareceu para ver-me. Já »a capitão, muito elegante, muito Estado-Maior. Fez-me uma proposta. Em troca
da relação completa da rede da Salamandra, a Gestapo me poria em liberdade e eu poderia ir viver longe da guerra em confortável afastamento de tudo na Vila Pantaleone
em Frascati. Não lhe cuspi no rosto como um herói. Estava muito nauseado e cansado. Mas contei a meu irmão a história que lhe acabei de contar. Pensei que estivesse
assinando a minha sentença de morte que, naquele momento, seria um alívio para mim. Mas meu irmão era apenas metade do homem que meu pai fora. Fui devolvido aos
interrogadores. Trabalharam comigo durante mais um mês. Um dia, sem aviso, fui libertado para ser submetido a prisão domiciliar. Fui colocado num carro fechado e
levado para Frascati. Os empregados da vila cuidaram de mim. Meu irmão estava ausente tratando de assunto do exército. Eu não podia sair da casa. E, de qualquer
maneira, não me sentia bem, não tinha para onde ir e não dispunha de papéis, Um dia, meu irmão foi ver-me. Disse-me que ele é que tinha providenciado para a minha
libertação. Disse-me o motivo: queria isentar o pai das obrigações que tinha para comigo! Creio que nessa ocasião lhe cuspi no rosto, embora, pensando bem agora,
creia que ele foi sincero ao menos pela metade. Foi essa metade que me fez comparecer ao enterro dele. A outra metade... Bem, está compreendendo o que eu lhe disse
sobre os motivos para o martírio? As vezes, são simples; outras vezes, são muito confusos...
27
Na manhã seguinte, quando eu ainda estava esfregando os olhos sonolentos, Giorgione me telefonou da casa dele. Tinha boas notícias. De uma palavra ouvida na cantina
e graças a cuidadosas pesquisas de Rita nos arquivos, ele havia descoberto a localização de um novo campo, que, na opinião dele, poderia ser um dos usados para o
treinamento das tropas de choque.
Deu-me um número e uma referência no mapa: Camerata, uma pequena cidade lombarda nas montanhas ao norte de Bergamo, a cerca de uma hora de viagem de Milão. Disse-me
que eu não teria dificuldade em encontrar o lugar; difícil seria entrar. O lugar era classificado como área de segurança máxima. Tinha outras informações também.
O Capitão Roditi vivia com algum luxo num edifício novo de apartamentos perto do Hotel Europa. O aluguel era bem mais alto do que ele poderia pagar com os seus vencimentos
de capitão. Assim sendo, tinha fontes de renda particulares ou alguém o estava subvencionando.
Invoquei bênçãos sobre a cabeça crespa de Giorgione e me sentei à mesa para um café, durante o qual pensei muito. Em seguida, telefonei para o apartamento de Roditi
a fim de marcar hora com ele para os nossos drinques. O sargento que atendeu o telefone disse que Roditi havia partido para Turim com o General Leporello e só voltaria
na quinta-feira à tarde. Às nove horas, Stefanelli telefonou. Disse-lhe que íamos fazer uma excursão pelo campo. Iria pegá-lo no seu hotel dentro de meia hora. Às
dez horas, estávamos na autoestrada, seguindo para oeste rumo a Bergamo.
Meu plano era simples mas arriscado. Como oficial do SID, eu ainda estava de posse do meu documento oficial de identidade, que me assegurava a entrada em qualquer
estabelecimento militar ou civil e acesso a todos os documentos por mais secretos que fossem. O risco era que o comandante do local insistisse no seu direito de
verificar a autenticidade do documento no seu local de origem antes de me permitir a entrada. Resolvi, portanto, deixar Steffi em Bergamo com instruções para telefonar
a Manzini se eu deixasse de reaparecer dentro do tempo que seria razoável.
Steffi não mostrava qualquer entusiasmo.
- Isso é uma verdadeira loucura, Matucci. Se quiserem verificar o seu documento, você estará metido em problemas até o pescoço.
- Sei disso, Steffi. Mas as perspectivas são boas hoje. Leporello e Roditi estão fora da cidade. Creio que poderei blefar todas as perguntas que me fizerem.
- Qual é o motivo que você vai apresentar para a visita, o motivo oficial?
- O melhor possível. Estou à procura de um homem chamado Marco Vitucci, acusado de subversão e homicídio. Pensamos que ele poderia ter passado pelo crivo de uma
organização excelente. Não encontrarei Vitucci, é claro. Mas, se encontrar Giuseppe Balbo, isso será um grande lucro para nós.
- Um lucro suficiente para comprar-lhe uma bela sepultura, meu irmão.
- Deixe de nervosismo, Steffi.... O dia está lindo. Voltarei dentro de duas horas e lhe pagarei o melhor almoço que houver em Bergamo.
- E que é que eu vou ficar fazendo durante duas horas em Bergamo?
- Vamos ver... Você poderia fazer uma peregrinação à casa do Papa Giovanni. Afinal de contas, ele tomou os judeus respeitáveis de novo e muita gente não gostava
dele por isso... Poderia ler um pouco de Tasso, ouvir alguma música de Donizetti. Poderia até dançar a bergamasca, se encontrasse alguma pequena bastante velha para
se lembrar da dança.
- Você é quase um guia de turismo, hem, Matucci?
- Talvez você não acredite, Steffi, mas fui isso mesmo nos meus tempos de estudante... até que fiz uma sugestão imprópria a uma cliente. Ela bem que queria, justiça
lhe seja feita, mas o marido dela nos surpreendeu de mãos dadas na Capela Colleoni e eu perdi o emprego. Você pode fazer uma visita à capela para me prestar uma
homenagem.
- Tenho uma ideia muito melhor. Vamos continuar até chegarmos à Suíça. Você ficará com sua pequena e eu venderei relógios de cuco aos turistas. Assim, teremos oportunidade
de viver mais um pouco.
De Bergamo, a estrada serpenteava pelo vale do Brembo acima, curvando-se pelos flancos das montanhas da Lombardia. Dirigi cuidadosamente, repassando o que devia
fazer nos primeiros momentos delicados de minha entrada no campo. Parei em Camerata para perguntar o caminho e esbarrei com o primeiro perímetro de segurança. As
três pessoas a quem perguntei sabiam vagamente da existência de um campo, mas não faziam ideia da sua localização. Em último recurso, tive de apelar para a polícia
local e apresentar meu cartão ao brigadiere que me desenhou um mapa numa folha de papel amarelo. Ainda assim, quase passei pelo desvio, um caminho estreito e irregular,
fechado ao fundo por uma estacada de troncos encimada por uma torre de vigia com um holofote e uma metralhadora.
Havia guardas também diante do portão. Eram dois sujeitos enormes que me fizeram parar a dez metros da entrada e me perguntaram o que eu queria. Apresentei-lhes
o meu cartão e disse que queria falar com o comandante. Um deles pegou o cartão e foi para a sua guarita e fim de telefonar. Esperei cinco minutos, depois do que
me fizeram sinal para passar e fecharam o portão logo que eu entrei.
Lá dentro, tudo tinha um aspecto sinistro e hostil. Duas filas de casas de madeira com um amplo terreno para desfiles entre elas e, ao fundo, uma vasta extensão
de terras, meio limpa, meio arborizada, que era evidentemente a área de treinamento. Parei o carro diante do escritório do comandante e entrei. Um sargento tomou
o meu cartão e desapareceu numa sala contígua. Esperei mais cinco minutos e fui levado à presença de um major de cabeça pontuda, que dava a impressão de ter força
suficiente para dobrar ferraduras e rasgar pelo meio catálogos de telefones. A mesa dele era uma incrível confusão de papéis e ele não se sentia bem com isso. Pegava
um papel e depois outro, como se não tivesse certeza do que estava escrito em qualquer deles. Cumprimentou-me com respeito e inquietação.
- Major Zenobio, às suas ordens, Coronel. Creio que não fui avisado de sua visita.
- Houve boas razões para isso, Major.
- Sim?
- O General Leporello partiu para Turim hoje cedo. Eu ainda estava esperando informações de Roma, que só me chegaram perto das dez horas. Parti imediatamente. Tenho
de apresentar-me ao General quando ele voltar. Na verdade, vamos jantar juntos amanhã. Se achar que é necessário verificar isso, faça o favor de telefonar para a
secretária dele imediatamente Gostaria de efetuar quanto antes meu trabalho.
Ele hesitou por um momento, tomou a olhar meu cartão e então devolveu-o. O seu tom era um pouquinho menos frigido.
- Não, não creio que isso seja necessário, Coronel. Pode- me dizer o que é que deseja?
- O assunto nesta altura tem de ser absolutamente reservado entre o senhor e mim. Tenho de insistir nisso desde o início.
- Compreendo.
Remexeu de novo nos papéis, jogando-os de um lado para outro como se fossem confetes. Para mim, um homem que fazia da papelada a base de sua vida cometia uma espécie
de sacrilégio.
- Estou à procura de um homem, Major. A polícia quer prendê-lo por tentativa de homicídio. Nós o procuramos porque se trata de um subversivo conhecido e nós precisamos
interrogá-lo antes dos outros.
- E espera encontrá-lo aqui, Coronel?
- Há na ideia uma certa lógica que impressionou o meu pessoal. Esses novos grupos constituem um projeto delicado, altamente político. Os processos de recrutamento
são, por assim dizer, pouco ortodoxos. Para falar com mais franqueza, decidiu-se como um ponto de orientação fundamental que até os delinquentes sociais eram aceitáveis,
desde que tivessem capacidade para o treinamento em determinadas especialidades. Certo?
- Sem dúvida.
- Ora, o projeto é secreto e as exigências são especiais. Um homem que quisesse esconder-se poderia muito bem apresentar-se para o alistamento. Se os seus antecedentes
não fossem muito feios, seria aceito.
- Um momento, Coronel. O projeto é secreto. Como é que seu homem saberia dele?
- Ah, esse é um dos pontos que eu tenho de debater com o General amanhã à noite. Isso não lhe diz respeito, Major, mas afeta outro oficial que não tem sido muito
discreto. Entretanto, tudo isso é confidencial enquanto o General não autorizar a sua divulgação. Vamos presumir, portanto, que o homem sabia e se apresentou. Muito
bem, não estamos interessados no lado político da vida dele, mas já pensou no que um subversivo conhecido, um agente marxista militante pode fazer dentro de um grupo
como este? Compreende o que eu quero dizer?
- Com a maior clareza, Coronel. Qual é o nome do homem a quem procura?
- Marco Vitucci.
~ Vamos procurar na relação nominal.
- Logo veremos isso. Quais são os outros registros que tem dos seus homens?
- Há uma ficha de cada homem com os seus detalhes pessoais e as observações do pessoal encarregado do treinamento.
- Fotografias?
- Cada ficha contém uma fotografia, a impressão digital do polegar direito e uma relação dos sinais característicos. Tudo isso é registrado também no documento de
identidade da pessoa, que o tem consigo permanentemente, além da sua identificação civil.
- Muito bem. Agora, vamos ver a relação nominal.
Levou três minutos para encontrá-la na confusão de sua mesa. Não foi preciso mais que um minuto para apurar que na lista de quatrocentos homens divididos em dois
grupos de treinamento não figurava o nome de Marco Vitucci.
- Bem, parece que ele usava ou usa alguns nomes supostos, - disse eu, folheando ostensivamente o meu caderno de notas. - Ah! Aqui está. Um desses nomes era Barone,
Turi.
Isso me levou à página dos BB. Não havia Barone também, mas deparei com Balbo, Giuseppe, e apontei o nome ao Major.
- Balbo, hem? Nada tem que ver com o caso, mas será que é algum filho ou parente do General Balbo, que marchou ao lado do Duce?
O Major sorriu pela primeira vez.
- Duvido muito. Mas podemos ver a ficha só de curiosidade. Seria interessante que fosse, porque Balbo foi um dos participantes do primeiro quadrunvirato fascista.
Nós poderíamos ser o novo começo... Aqui está.
Abriu um fichário, tirou uma ficha e passou-a às minhas mãos. Olhei-a cuidadosamente. A identificação era clara. Era o mesmo homem que eu tinha visto em companhia
de Roditi no Clube Alcibiade. Se a impressão digital correspondesse à existente nos arquivos da polícia, eu teria tudo de que precisava. Devolvi a ficha ao Major,
que a jogou em cima da mesa, meio escondida sob a relação nominal.
- Creio que não há nenhum parentesco. O velho general era de Ferrara. Este aqui é de Gaeta. Bem, em todo caso, foi uma fantasia agradável. Creio que é só, Major.
Tudo foi um pouco incômodo para o senhor, mas para mim foi uma decepção. Contudo, vamos continuar tentando. Será que lhe posso pedir um favor?
- À vontade, Coronel.
- Pode me dar uma xícara de café?
- Sem dúvida.
Gritou chamando o sargento, mas, como não houve resposta, saiu apressadamente pela porta, e eu o ouvi a chamar o sargento do lado de fora. Meti a ficha de Balbo
no bolso e fui para onde ele estava.
- Pode deixar, Major. Não é preciso ter trabalho que eu já vou indo. Só lhe quero fazer uma recomendação. Esta visita é rigorosamente sigilosa.
- É claro, Coronel. Boa viagem.
28
Ele teve prazer em ver-me pelas costas, mas não tanto quanto eu senti quando os portões do campo se fecharam depois que eu passei. No momento em que me vi fora do
alcance da torre de vigia, pisei firme no acelerador e dirigi rápida e perigosamente até Bergamo. Peguei o aborrecido Steffi na praça da Cidade Alta e fui diretamente
para Milão. As impressões digitais da ficha de Balbo conferiam com as que Steffi trouxera de Roma. Tiramos quatro cópias Xerox e guardamos o original no cofre. Chamamos
então Pietro, pedimos champanha e encomendamos um verdadeiro banquete para comemorar o primeiro verdadeiro revés dos adversários.
Era uma dessas horas de regozijo que só um profissional pode compreender e nelas se integrar. Era como ganhar na loteria ou ter a pequena mais bonita da sala a desfalecer
em nossos braços. Eu era o sujeito mais esperto do mundo, um jogador tão intrépido como qualquer que já jogou a virtude da mulher no virar de uma carta. Mas... post
coitum tristitia, post vinum capitis dolor! As quatro horas da tarde, em nosso juízo perfeito mas sonolentos, ainda não sabíamos o que iríamos fazer com a ficha
de Balbo. Steffi, que sentia a falta de sua sesta habitual, fez um sumário irritado da situação.
- Ebbene! Temos agora provas suficientes para meter um tal Giuseppe Balbo na prisão pelo resto da vida. Mas não é isso que você quer. Quer é vê-lo aqui nesta sala
cantando como um periquito, a dizer tudo o que sabe sobre Roditi, a carta com a bomba e os assassinatos da Via Sicília. Depois disso, você quer Roditi aqui também
com outra espécie de canto a respeito do General Leporello. Depois disso, quando tiver anotado toda a melodia, a quem é que você irá transmiti-la? Vai fazer como
o rabino que jogou golfe no sábado, conseguiu uma tacada fenomenal e não encontrou ninguém a quem pudesse contar o seu feito? E, quando contar, quem é que vai acreditar
em você? E, muito mais importante, quem é que vai tomar alguma providência? Matucci, meu irmão, meu querido cabeça-de-pau, você tem de achar uma solução para todas
essas questões.
- Dê-me um pouco de tempo, pelo amor de Deus, Steffi!
- Você não dispõe de tempo. Imagine que o tal Major Zenobio tenha dado por falta da ficha.
- Tenho a esperança de que não dê. Ele é muito descuidado com a papelada.
- E se ele telefonar para Leporello a fim de certificar-se a seu respeito?
- É um jogo que eu estou arriscando.
- Jogo, esperança... É com esses fios de irrealidade que uma pessoa acaba encontrando uma corda para se enforcar!
- Eu sei, eu sei! Mas vamos fazer uma coisa de cada vez. Quero dúvida, confusão e pânico. Que horas são?
- Três e meia. Por quê?
- Qual é a distância daqui a Chiasso?
- Menos de cinquenta quilômetros. E eu tomo a perguntar: por quê?
Peguei o telefone e disquei para o número particular de Bruno Manzini. Quando ele atendeu, disse-lhe o que queria.
- Um mensageiro, Bruno. Preciso dele imediatamente. Terá de ir a Chiasso e botar algumas cartas no correio. As cartas têm de ser entregues em Milão com a correspondência
de amanhã. E eu gostaria de vê-lo o mais breve possível aqui no apartamento. Desculpe incomodá-lo, mas é muito urgente.
Ele podia ser extravagante, mas nunca falhava. O mensageiro estaria comigo dentro de quinze minutos. Ele chegaria pessoalmente às seis horas.
Steffi me olhava como se eu fosse um louco manso. Abri o cofre, tirei a ficha de Balbo, limpei-a cuidadosamente com um lenço novo e coloquei-a em cima da mesa. Chamei
então Paolo e lhe pedi um par de luvas brancas limpas. Por fim, Steffi não pôde mais.
- Quer dizer alguma coisa, Matucci? Ou tenho de ficar aqui o tempo todo vendo você agir como um detetive de romance policial?
- Primeira etapa. Fazer duas cópias novas da ficha de Balbo. Dessa vez sem nossas impressões digitais espalhadas pelo papel da cópia. Segunda etapa. Tiramos de cada
cópia a impressão do polegar de Balbo. Terceira etapa. Bato duas notas idênticas para acompanhar as impressões do polegar. Quarta etapa. As notas e as impressões
serão postas no correio esta noite no sul da Suíça.
- E que dirão as notas?
- Dois nomes apenas: Bandinelli e Calvi. Um lugar: Via Sicília, Roma. E a data em que eles foram assassinados.
- Quem vai receber as notas?
- O Major-General Leporello e o Capitão Roditi, nos seus endereços particulares.
- Quanto tempo você acha que eles levarão para saber de quem é a impressão digital?
- Quarenta e oito horas no mínimo.
- E para identificar você como o homem que roubou a ficha de Balbo?
- Mais vinte e quatro horas. São os limites mínimos. Na prática, poderá ser um pouco melhor.
- E depois, irmãozinho?
- Depois, haverá uma bela cena, Steffi, tão bela que eu acho que deveria ser filmada por Fellini. Eu, Dante Alighieri Matucci, isolado e altivo no centro do Estádio
Olímpico. As arquibancadas repletas. Todos os espectadores têm exatamente a cara do Diretor e estão com pistolas apontadas para mim... Até aí eu sei. A partir desse
momento, não tenho certeza do que vai acontecer.
- De mim tenho certeza, Matucci. Vou voltar para casa, para a Mãe.
- Não vai nada! Pelo menos esta noite. Às dez horas, iremos fazer uma visita ao apartamento do Capitão Matteo Roditi, uma visita particular. Que tal lhe parece isso?
- Uma loucura, irmãozinho! Você está louco varrido!
Bruno Manzini chegou pontualmente às seis horas. Quando soube do que eu tinha feito durante o dia, não achou graça nenhuma e não me fez tolerantes elogios. Ficou
fria e eloquentemente aborrecido.
- Você me assombra, Matucci! Não lhe falta talento. Tem uma vasta experiência. Tem uma noção ao menos rudimentar da política. Assim, a sua infantilidade de hoje
foi uma incrível e indesculpável loucura!
- Escute, Cavaliere!
- Não! Você tem de me escutar primeiro. Você me comprometeu! Pôs em ação toda uma sequência de acontecimentos para os quais estamos inteiramente despreparados e
sem tempo para qualquer preparação. Pelo amor de Deus, homem! Será que ainda não aprendeu nada? Estamos metidos em alta política e a braços com a possibilidade de
uma revolução, com barricadas nas ruas, fuzilaria e bombas! E você procede como um detetive cretino de história em quadrinhos! Francamente, é de desesperar!
- Acho que se desespera com muita facilidade, Cavaliere.
- Acha mesmo? Mostre-me então uma gota de juízo nessa sua aventura louca e eu morrerei feliz.
- Está bem. Trancado dentro daquele cofre está um documento, que é talvez o único documento existente que pode implicar Roditi e Leporello como cúmplices de um homicídio.
Consegui-o graças a um ato que pode ter consequências arriscadas e desagradáveis, mas...
- Desagradáveis apenas? Santa Mãe de Deus!
- Mas, Cavaliere, quem não se arrisca na minha profissão fica de braços cruzados como um palhaço enquanto os outros lhe derramam baldes de água sobre a cabeça. Em
segundo lugar, combinamos criar dúvida e confusão. Foi o que comecei a fazer...
- Mas prematuramente! E sem nenhuma previsão!
- Com uma previsão retardada, então. Estamos tratando com conspiradores, Cavaliere, com gente que pode fazer arquivos desaparecerem, subornar testemunhas, silenciar
políticos e comprar perjuros - se lhe dermos tempo suficiente. Estou tentando, certa ou erradamente, privar esses homens de tempo suficiente. Sou um agente cretino
porque não me posso dar ao luxo de ser um Lorenzo de Mediei que tramava a queda de seus inimigos por graus lentos e principescos. Sou oportunista porque não posso
deixar de ser. Você pode sentar-se no Clube dos Banqueiros e planejar a campanha. Eu tenho de lutar as escaramuças, as brigas de rua... Mas, se eu for derrotado
nelas, a sua campanha irá também por água abaixo... Está bem! Tudo é uma loucura! Vamos desistir de tudo!
Bruno me olhou por muito tempo, carrancudo e hostil. Em seguida, moveu lentamente a cabeça como se estivesse concordando com alguma proposta íntima. Externou-a então
para mim.
- Ebbene! Você tem razão, eu tenho razão e estamos ambos igualmente errados. Vamos partir daí e ver o que é possível salvarmos.
- Não, Cavaliere! Vamos ver o que é possível construirmos!
Um breve sorriso relutante lhe franziu os cantos da boca.
- Você tem mesmo a cabeça dura, Matucci! Que é que eu posso fazer com você?
- Tem de usar-me, Cavaliere. Como se eu fosse um cilício, mas usar-me. E deve dar-me alguns conselhos também. Vamos basear-nos na prova que temos em nosso poder.
Podemos estabelecer uma acusação que implique Balbo como assassino e Roditi e Leporello como cúmplices. Onde e como poderemos apresentar a nossa acusação?E como
poderemos envolver o Diretor no caso? Diz que não estamos preparados. Eu sei que não estamos. É por isso que eu preciso de ajuda contra os homens em altas posições,
antes que eles cerrem fileiras. Pode dar-me essa ajuda?
- É o Diretor que o preocupa, não é?
- Sem dúvida. A posição dele é perfeita. Pode justificar tudo o que tem feito sob a alegação de que se estava infiltrando numa conspiração que ameaçava a segurança
do Estado. Ele sabe tantos segredos que todos têm medo dele, inclusive o seu ministro.
- Eu não tenho medo dele, Dante.
- Isso não basta. Você deve ter também a alavanca que o fará cair.
- A alavanca nós temos, meu Dante. Precisamos apenas do fulcro e você, sem o saber, proporcionou-o.
- Não compreendo.
- Sei que não compreende. E é por isso que estou zangado com você. No fervor de uma cruzada, no calor de uma nova situação, você muda de marcha e de lógico se toma
oportunista. Corre atrás de um fogo fátuo nos pântanos e deixa de ver as fogueiras que ardem no alto das montanhas às suas costas. Lembra-se do que aconteceu no
pavilhão e em Veneza? A mesma coisa está acontecendo agora. É por isso que você é vulnerável a um homem como o Diretor. Você tem todos os talentos que ele tem e
mais alguns de que ele carece, mas você não quer ou não pode pô-los em evidência. É por isso que sempre, até hoje, você tem sido um instrumento dos planos dos outros
homens... Desculpe se o estou ofendendo, mas tenho você em tão alta conta que não posso suportar o que você deixa que lhe aconteça... Vou mostrar o que estou querendo
dizer. Quando você saiu da casa de meu irmão na manhã em que ele foi encontrado morto, deixou lá um velho criado que chorava diante de um copo de bebida. Você lhe
havia pedido que tomasse nota de todos os telefonemas que fossem dados para a casa. Ele fez isso, mas você não apareceu mais para pegar a lista dos telefonemas.
Mas eu estive lá. Fui saber das necessidades de um velho que tinha conhecido meu pai. Ele estava com medo e me disse que tinha mentido para você. Não estava acordado
quando meu irmão voltou para casa do Clube de Xadrez. Estava bêbado e dormia a sono solto. Mentiu porque pensou que seria culpado pelo fato de não ter ligado o sistema
de alarme da casa Estava desligado quando ele acordou de manhã Não, não me interrompa. Deixe-me causar-lhe um pouco mais de embaraço. Na noite seguinte aos funerais
de meu irmão, mandei retirar o corpo da cripta. Realizou-se uma autópsia no necrotério de um grande hospital particular. Meu irmão tomou de fato barbitúricos. A
dose deve ter sido muito grande, mas não era suficiente para matá-lo. Foi morto por uma injeção visível sob os pelos púbicos. Está vendo o que aconteceu, Dante?
Você foi cúmplice do Diretor para encobrir um suicídio e, portanto, foi cúmplice também no assassinato.
- Por que não me disse há mais tempo?
Durante muito tempo, ele não disse absolutamente nada. Havia uma espécie de película sobre os olhos dele como numa ave, de modo que ele parecia estar olhando, não
para mim, mas para uma distância incomensurável. Estava sentado rigidamente, com os dedos juntos pelas pontas e comprimidos contra os lábios finos e franzidos. Quando
afinal falou, sua voz era cortante e remota como os primeiros ventos frios do outono.
- Quis dar-lhe uma lição, Matucci. Não confie em ninguém. Nem mesmo em mim. Não acredite na morte do velho Adão se você mesmo não fechou o caixão e não viu o coveiro
jogar terra em cima.
Ele estava evidentemente certo. Como sempre. Nós, latinos, somos o povo mais ilógico do mundo. Desconfiamos de nossas mães quando nos dão de mamar. Mas acreditamos
beatamente em coisas improváveis como madonas que choram, casas que voam e papas infalíveis.
29
Nossa visita ao apartamento de Roditi começou auspiciosamente. Havia uma festa no sexto andar. O vestíbulo estava cheio de gente a rigor e o porteiro tinha perdido
a conta das pessoas que tinham chegado. Steffi e eu subimos com os convidados até o quinto andar e desembarcamos num corredor deserto. Tocamos a campainha do apartamento
de Roditi e, desde que não houve resposta, fizemos uso de uma gazua e abrimos a porta dentro de trinta segundos. Foi tão fácil quanto abrir uma lata de ervilhas.
O interior do apartamento foi uma surpresa. Eu tinha esperado uma elegância epicena ou, talvez, uma confusão feminina. O que encontrei, porém, foi um apartamento
tão impessoal e asséptico quanto um quarto de hotel. Os móveis eram de estilo dinamarquês moderno. Os quadros, arrumados em severa simetria, eram todos de gravuras
de soldados em trajes históricos. Havia um armário de bebidas e um toca-discos estereofônico com uma coleção de canções populares, músicas de filmes e musicais americanos.
A mesa estava limpa à exceção de uma pasta de couro trabalhado e um vaso com canetas esferográficas e lápis de pontas feitas. Tudo estava impecavelmente limpo e
os móveis brilhavam de cera e polimento recente.
Começamos nossas pesquisas pela cozinha. Encontramos café, pão, manteiga, queijo e leite. A sala de jantar estava abastecida de toalhas, talheres, copos e louça
para seis pessoas. Tudo era de boa qualidade, embora sem nada de excepcional. No armário das bebidas, havia uma garrafa sobressalente de cada qualidade de bebida
e talvez uma dúzia de garrafas de águas minerais sortidas. Os livros no salão eram romances inócuos em brochuras ou biografias. Não havia livros pornográficos, nem
sinal de gravuras ou fotografias obscenas. As gavetas da mesa não estavam trancadas. Havia apenas papel em branco, envelopes e blocos de papel de desenho. O banheiro
nada revelou a não ser que os objetos de toalete do Capitão eram caros, mas sem nada de exótico.
O quarto deu mais resultado. Roditi possuía dez ternos e quatro uniformes, tudo feito por um alfaiate caro. As camisas eram feitas sob medida e com monograma. Tinha
uma abundância de sapatos, gravatas, cachecóis e acessórios caros. Era um homem muito arrumado ou tinha uma empregada perfeita, pois havia uma precisão matemática
em suas gavetas e a penteadeira podia ser colocada em exposição numa vitrine.
Na gaveta da direita da penteadeira, havia uma fotografia numa moldura de prata, virada para baixo. Era um retrato, evidentemente tirado por um profissional, de
uma mulher de pouco mais de trinta anos que tinha uma semelhança impressionante com a “Donna Velata”, de Rafael, na Galeria Pitti, em Florença. Eram os mesmos os
olhos negros, grandes e brilhantes, o mesmo nariz, um tanto grande para uma beleza perfeita, a mesma boca em repouso, suave e enigmática. Até o penteado era semelhante:
pequenas tranças negras e retas que passavam sobre as orelhas e se prendiam na parte de trás da cabeça. A fotografia mostrava a seguinte dedicatória numa caligrafia
arrojada e redonda: “Ao meu querido Matteo, como recordação e promessa, Elena”.
Ao lado da fotografia, encontrei um maço de mais de trinta cartas presas por um elástico. Eram escritas com a mesma caligrafia e assinadas com o mesmo nome. Li-as
e passei-as, uma por uma, para Steffi. Eram cartas de amor, líricas, temas, totalmente desinibidas na sua exaltação das noites e dos dias de uma ligação apaixonada.
Tenho lido muitas cartas no meu tempo, mas aquelas me comoveram e me fizeram sentir vergonha da minha invasão da intimidade de uma mulher desconhecida. As cartas
não eram datadas e não havia endereço. Do texto e das referências, era claro que tinham sido escritas num período de vários anos e que a última não devia ter mais
de uma semana. Elena era casada, infelizmente, com um homem mais velho do que ela. Roditi, fossem quais fossem seus outros vícios ou virtudes, era evidentemente
um amante apaixonado e gentil. Não havia censura naquelas cartas, mas apenas desejo, gratidão e uma ardente poesia sensual.
O próprio Steffi ficou impressionado. Restituiu-me a última carta e disse melancolicamente:
- Eu e você, Matucci, jamais conseguimos despertar uma mulher desse jeito...
- Isso não faz sentido, Steffi. Um camarada como Roditi
- Pois para mim faz sentido, o mais belo sentido do mundo!
- Um finocchio como ele? Nunca!
- Calma, Matucci. Você talvez esteja errado desde o princípio. Viu-o no Alcibiade. Disseram-lhe - note que lhe disseram apenas - que alguém como ele costuma procurar
parceiros no Pavone. E Giorgione lhe disse que ele é um apaixonado pela cultura física. É só isso o que você sabe. O resto é imaginação e inferência. Isto aqui lhe
parece o apartamento de um homossexual? Não, nem a mim. A mulher das cartas parece frustrada? Para mim, não. Talvez você tenha de modificar o seu conceito sobre
esse homem... Dê-me um instante essa fotografia.
Abriu o fecho de metal das costas da moldura e encontrou no verso da fotografia o endereço do fotógrafo e um número de arquivo. A. Donati, Bolonha, 673125. Tomou
nota em seu caderno e recolocou a fotografia na moldura.
- Amanhã, Matucci, vou dar um pulinho até Bolonha e fazer uma investigação sobre essa fotografia.
- Está bem, Steffi... Mas espere um pouco. Há aqui uma coisa estranha.
- Que é?
- Estamos olhando para meia casa, meio homem. O lugar é incompleto, como se não tivessem acontecido aqui coisas suficientemente importantes. Isto é tão neutro como
uma sala de exposição.
- Interprete-o como quiser, mas Roditi não é neutro.
- Exatamente.
- Por que então não pega uma dessas cartas do meio do maço e não vamos tratando de sair daqui? Sinto-me como um criminoso.
- E não é outra coisa, Steffi. Mas traga-me o nome da mulher amanhã e eu lhe darei uma medalha.
Deixamos o apartamento intacto como o havíamos encontrado e descemos para o térreo, inocentes como dois garotinhos. O porteiro estava trancado no seu compartimento,
vendo televisão. Poderíamos estar arrastando um cadáver pelo piso de mármore de Carrara e ele nem iria pestanejar.
Passava um pouco das onze. A noite estava suave e as ruas ainda estavam cheias de pedestres e carros. Steffi estava muito cansado e eu o deixei no seu hotel. Eu
estava nervoso demais para poder dormir. Bruno Manzini me dera uma rude lição. Meus atos eram precipitados e perigosos. O Diretor me havia julgado desde muito tempo
e me fizera figurar nos seus dramas sardônicos. A própria Lili sabia da minha fraqueza e não se comprometeria comigo enquanto eu não a tivesse dominado, se isso
me fosse possível.
A perspectiva de passar a noite sozinho no apartamento me apavorava e eu atravessei a cidade no carro rumo ao Duca di Gallodoro, onde ao menos eu dividiria a minha
solidão e a transportaria para a música.
Deram-me uma mesa num canto sem muita luz. Pedi um drinque e fiquei observando o movimento das pessoas que dançavam e das que circulavam em torno do bar. Duas pequenas
passaram por mim com sorrisos cheios de esperança, mas fiz sinal para que se afastassem. Estava muito desanimado para suportar suas conversas e a constante sede
que tinham por champanha ordinário. Já estava ali havia talvez vinte minutos quando vi dois homens entrarem e se sentarem à minha direita, a três mesas de onde eu
estava. Um deles era um sujeito grande e forte, com a cara amarrotada e cheia de protuberâncias de um pugilista. O outro era baixo, moreno e vivo, com olhos espertos
e um largo sorriso.
O baixinho eu conhecia. Todos no Corpo o conheciam ao menos de nome e reputação. Tinha o apelido de Cirurgião porque, segundo se dizia, era capaz de extrair o cérebro
de uma pessoa viva a fim de retirar-lhe o último farrapo de informação. Dizia-se até como um provérbio: “É melhor cair nas mãos de Deus que nas garras do Cirurgião”.
O suspeito que caísse ou fosse jogado de uma janela alta tinha estado certamente sob os seus diligentes cuidados. O grandão era sem dúvida o seu guarda- -costas
e provavelmente o seu assistente nas violências. Encolhi-me ainda mais nas sombras, receoso de que ele me visse, me cumprimentasse e eu fosse forçado a dar-lhe atenção.
Alguns momentos depois, a orquestra parou de tocar e os pares que dançavam voltaram para as suas mesas. Um microfone foi colocado no centro da sala e um apresentador
anunciou a presença da notável e querida Patti Pavese que ia cantar para nós. Todas as luzes se apagaram então e houve cinco segundos de total escuridão até que
a luz de um refletor brilhou no centro do local das danças e revelou a cantora num esplendor de gazes e lentejoulas. Era mais bonita do que a sua voz, mas o público
a amava e aplaudiu-a ruidosamente. Quando ela cantou o seu grande sucesso, Una Manata d’Amore, os espectadores deliraram e a obrigaram a repetir duas vezes o estribilho,
cantando junto com ela da última vez.
Quando as luzes tomaram a se acender, olhei de lado para o Cirurgião. Estava com o corpo caído por cima da mesa e sobre a bebida derramada. O seu guarda-costas estava
estendido de lado na banqueta. Tinham ambos levado tiros na cabeça de uma pistola de pequeno calibre. Joguei algumas notas em cima da mesa e me dirigi para a entrada.
Já estava perto da porta quando ouvi um grito de mulher e toda a agitação que se seguiu.
O assassinato do Cirurgião foi anunciado com sensacionalismo nos jornais da manhã e as agências estrangeiras também exploraram muito a notícia. A polícia proclamava
uma caçada dos assassinos por toda a nação e apelava por informações do público, especialmente sobre alguém que saíra do Duca di Gallodoro antes da chegada da polícia.
Manzini, que me telefonara na hora do café e me convidou para uma visita às suas fábricas de Milão, estava sombrio e desanimado.
- Um camarada como esse é melhor mesmo que esteja morto, mas há uns cinquenta à espera para tomar-lhe o lugar. Desse modo, nada está resolvido. As facções estão
ainda mais polarizadas- Os tiranos parecem muito mais simpáticos a um povo amedrontado e desanimado. Observe, Dante. Observe e escute! Note a tensão, as correntes
subterrâneas de inquietação e desconfiança. Verá que os grupos de operários se estão unindo, cada qual desconfiado dos outros e de sobreaviso quanto à presença de
espiões e agentes provocadores. São uma boa gente, Dante. Nós temos menos problemas trabalhistas do que a maioria, porque assinamos contratos razoáveis e procuramos
cumpri-los. Não sou odiado como padrone. Creio até que sou respeitado. Mas como homem sou tão remoto quanto a Lua. Personifico o poder e sou identificado com todos
os desmandos do poder neste país. Telefonaram-me de Roma hoje de manhã. O governo está pensando em baixar um novo regulamento que dê à polícia poderes mais amplos
de busca e captura. Estão falando em noventa horas de prisão preventiva por simples suspeita... Prisão preventiva! É uma verdadeira loucura! Representa Um retrocesso
de quarenta anos. O tal Cirurgião era o símbolo do terror necessário para controlar as massas inquietas. Antigamente, usaria uma máscara e andaria com um machado
de carrasco. Eu sou também culpado dele em parte. Tenho guardas nos portões de minhas fábricas e espalho detetives disfarçados para acabarem com os roubos. Mas perdoe-me,
que estou muito mórbido hoje. Almoçaremos com os gerentes e eu lhe mostrarei depois alguma coisa um pouco mais agradável.
Saímos da cidade de carro e viajamos quinze quilômetros até Como, onde saímos da estrada principal para um parque particular. Ali, vinte bangalôs, todos novos, se
agrupavam em torno de um edifício central, que parecia um clube e era todo rodeado de gramados e canteiros de flores. Manzini me explicou numa espécie de ironia
suplicante:
- Isto aqui é um bálsamo para aliviar a minha consciência de pirata, Dante. É uma das coisas que, segundo espero, poderão aliviar um pouco a minha condenação eterna.
É um lar para crianças mongoloides que não podem ser tratadas pelas famílias. Essas crianças não têm vida muito longa, como você talvez saiba. Se forem submetidas
a uma tensão inconveniente, como o eram nas velhas instituições, poderão tomar-se violentas e antissociais. For isso, procuramos reproduzir aqui uma situação de
família. Em cada casa moram de seis a dez crianças sob os cuidados de um casal. No edifício central, há salas de aula, uma clínica, um pátio de recreio e os alojamentos
do pessoal. Fazemos experiências incessantemente aqui e este lugar se tomou o protótipo de outros em diversos pontos da Itália. Neste país, a fonte da caridade sempre
foi a Igreja, mas muitas das velhas ordens de frades e freiras se tomaram esclerosadas e antiquadas. Quanto às instituições do Estado, é melhor não falar nelas.
Tenho visto orfanatos, meu amigo, onde as crianças não sabiam falar até os sete ou oito anos de idade porque ninguém jamais falara com elas... Aqui estamos ao mesmo
tempo ensinando e aprendendo e todas as semanas há uma pequena revelação que compensa tudo.
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Para mim, a maior de todas as revelações era o próprio Bruno Manzini. O pessoal do estabelecimento o adorava, tanto os homens quanto as mulheres. Cada qual tinha
uma coisa especial para mostrar-lhe: um projeto de terapia, um equipamento novo, uma carta de alimentação, um jogo que parecia ter uma fascinação especial para as
crianças. Com estas, Bruno parecia um avô feliz. Amimava-as, beijava-as, sentava-se no chão e brincava com os blocos e os modelos delas. Fazia desenhos cômicos no
quadro negro e até dedilhava algumas notas no piano. Carregava uma delas nos ombros, enquanto as outras o puxavam pelas abas do casaco pedindo-lhe a atenção. Nada
havia de organizado no coro de recepção e despedida que lhe era dispensado. Era o patriarca de uma família frágil que, se não fosse ele, ficaria dispersa e esquecida.
O mais estranho era a necessidade que ele sentia de justificar-se e principalmente a mim.'
- Conheço um padre em Roma, Dante, que só cuida de monstros, literalmente de monstros. Os homens ainda geram e as mulheres ainda dão à luz monstruosidades com um
olho, três braços, meio cérebro e dois corações. Alguns desses monstros sobrevivem e só Deus sabe por quê e nunca explica, embora fosse preferível que o fizesse,
para que pudéssemos acreditar na Sua misericórdia, no Seu amor e em tudo mais! Entretanto, esse homem me disse que era talvez o único no mundo que podia afirmar
a existência de milagres. Você tem de compreender, Dante, que tais criaturas são realmente sub-humanas, além da razão, além da imaginação, além até da compaixão.
Mas esse homem me disse que, às vezes e nos mais estranhos momentos, ele sentia, via, escutava uma reação que lhe abalava os alicerces mentais. Aqueles seres vegetativos,
aquelas monstruosas nulidades sabiam! Sabiam... Por quanto tempo e até que ponto? Era impossível dizer mas, por um breve instante, o relâmpago sé acendera no Tabor.
O que eu faço é mais fácil do que o que ele faz. Nada me custa senão dinheiro. O resto é pura alegria. Volto para o formigueiro mudado, ainda que seja pouco, sabendo
que nem tudo na vida é vendeta e crueldade para com os vencidos. O mistério é que ainda tenhamos de lutar para dar espaço até a tão pouco amor. Sé não fizéssemos
isso, os outros queimariam os monstros, esterilizariam estas minhas crianças e as entregariam aos brutos do mundo para experiências anatômicas.... Vai estar com
Leporello esta noite?
- Vou, sim.
- Preocupado?
- Um pouco. Se ele abrir uma porta, terei de passar sem saber o que está do outro lado. Talvez você não aprove o que eu fizer.
- E lhe interessa que eu aprove ou não?
- Claro que me interessa.
- Uma advertência, Dante Alighieri. Feche a porta sobre o dia de hoje. Esqueça-se de tudo até uma época mais calma. Vamos voltar para a selva e você não pode manter
ilusões.
- Que ilusões, Bruno?
- A de que a Salamandra sobreviverá sempre. Isso é um mito, uma lenda como a do Santo Graal e das Maçãs de Ouro das Hespérides. Já recebi o aviso, Dante. Tenho uma
estenose mitral que me vai matar, talvez mais cedo do que se espera. Se eu morrer antes que isso estiver acabado, você ficará sozinho. Que fará então?
- Outro teste, Bruno?
- Não. Uma simples pergunta.
- Resposta número um: acabo as minhas férias e volto para o SID como um funcionário obediente. Resposta número dois: aceito o lugar que Leporello me vai oferecer
no jantar desta noite.
- Resposta número três?
- Vou emigrar e viver feliz pelo resto da vida, fazendo mineração de bauxita na Austrália.
- É só?
- Não. Ainda há outra possibilidade. Contemple-me no seu testamento, deixando para mim a chapa com que manda imprimir os seus cartões e eu passarei a viver sob o
signo da Salamandra. Quem sabe? Poderei até escrever uma nova lenda antes que me expulsem com uma mangueira das minhas cinzas.
Não era uma grande pilhéria, mas ele riu. Ri também, mas do espetáculo notável de Dante Alighieri Matucci, erguido da sua estrumeira batendo as asas e murmurando
um desafio a potestades, tronos, dominações e todas as forças sombrias deste claro mundo latino.
Dei muita atenção à maneira pela qual devia vestir-me para o jantar de Leporello. O terno devia ser discreto, mas não discreto demais para que eu não parecesse algum
empregado insignificante convidado para jantar com o gerente do banco. Elegante? Sem dúvida. As mulheres gostam de um homem com algum colorido e o Coronel não havia
de querer outro pobre-diabo no seu pessoal. A camisa de cambraia de linho com abotoaduras de ouro, para sugerir uma boa situação financeira. O General devia saber
a base em que começaria a fazer os lances. Era tudo figura, fachada, a maneira pela qual vivemos aqui na Itália. O que está por dentro é coisa bem diferente. As
mulheres o revelam aos seus confessores. Nós, homens, fazemos a revelação aos nossos amigos e, quando temos a graça e o tempo no correr da idade, a Deus que, já
então, pode ter perdido o interesse por assuntos tão triviais.
Meu carro estava limpo e brilhante graças aos cuidados de Pietro. Não havia a menor mancha a empanar a carroçaria, nem a menor partícula de pó no interior. Havia
flores para a dona da casa, uma garrafa de conhaque velho para o dono da casa, em honra da minha primeira visita. Se a companheira que me arranjassem para o jantar
quisesse, havia champanha na geladeira, café no fogão e música suave ao simples toque de um botão. Todas as contas feitas, excluindo os estragos do tempo e da meia-idade,
a figura não era má. Pietro me escovou o último pó da gola do paletó e me lançou em plena noite.
Dirigi com muito cuidado porque havia polícia em todos os cruzamentos e caminhões cheios de Carabinieri postados nos pontos estratégicos. O assassinato do Cirurgião
não era um caso sem importância naquela cidade de um milhão e meio de habitantes, indócil sob a dupla ameaça da violência e da repressão. Fizeram-me parar duas vezes
durante o percurso e, pela terceira vez, diante da vila de Leporello, onde dois Carabinieri examinaram meus papéis, deram-me entrada e fecharam os portões depois
que eu passei. Leporello se estava levando e ao seu cargo muito a sério. Havia dois detetives no jardim. Um deles abriu a porta de meu carro e me levou intacto até
a porta da frente, onde uma criada se incumbiu de minha pessoa e me conduziu ao salão.
Leporello estava sozinho. Até em trajes civis era uma figura impressionante, alto, ereto e cerimonioso, quase ao ponto da rispidez. Mas me recebeu cordialmente e
com um aperto de mão bem firme. Pediu desculpas em nome das senhoras que ainda estavam conversando lá em cima. Mas não deviam tardar. Um garçom nos ofereceu bebida,
uísque ou champanha. Bebemos à saúde um do outro. Leporello fez uma referência pilhérica aos guardas e às medidas de segurança. Disse-lhe que achava necessário tomar
precauções. Perguntei-lhe em que pé andavam as investigações sobre o assassinato do Cirurgião. Ele franziu a testa e encolheu os ombros.
- Sabe como é, Coronel. O crime foi cometido dentro de um clube noturno lotado, enquanto a atenção dos presentes se concentrava no desempenho de uma cantora popular.
Quase toda a sala estava mergulhada na penumbra. Os assassinos usaram pistolas com silenciador de baixo calibre e pequena velocidade. Por onde poderemos começar?
Fui pródigo no meu interesse pelo seu problema Desejei ardentemente que pudesse oferecer alguma sugestão construtiva. Era uma felicidade para mim estar em férias
e livre daquela responsabilidade. Ele sorriu e disse que voltaríamos ao assunto depois, na hora do conhaque. Nesse momento, as senhoras chegaram e foi como se a
casa me tivesse caído sobre a cabeça desprotegida. A mulher da fotografia de Roditi era a esposa do General Leporello.
Murmurei, sabe Deus como, algumas palavras de saudação e me curvei sobre a mão dela tomado de verdadeiro pânico. Uma coisa é olhar para o colo decotado de uma mulher
quando se sabe que a exibição é feita para nós. Outra muito diferente é fixar os olhos de uma mulher quando já se leram todos os seus segredos num maço de cartas
de amor. Sente-se o pequeno triunfo envergonhado do indiscreto e fica-se com receio de que a mulher possa ler tudo em nosso rosto. Há o sentimento de culpa que faz
fugir do contato dela, o medo de que alguma palavra irrefletida possa revelar o conhecimento secreto que se possui.
Felizmente, minha companheira de mesa permitiu uma conveniente manobra diversionista. Laura Balestra era uma biondina cheia de vida, com grandes olhos sensuais,
um sorriso de menina e um verdadeiro talento para conversas divertidas. Gostava de homens elegantes. Não suportava soldados emproados. Tinha um tio na Bolívia que
possuía uma mina de esmeraldas e dava as pedras de presente a amantes em seis países. Ela chegara pouco antes da Áustria, onde quase se apaixonara, mas não de todo,
por um professor de esqui. Não gostava eu do vestido de Elena e não tinha achado a vila uma beleza? Ela só não podia imaginar era por que alguém haveria de morar
em Milão. As suas preferências eram por Florença, mas Mamãe estava muito doente e tinha de vigiar Papai, que estava gozando a sua segunda mocidade de maneira um
tanto embaraçosa. Oh! Como ela falava, não era mesmo?
Falava, sim, mas eu estava tão grato que tive vontade de beijá-la e achei que deixaria isso para depois. Ela se voltou então para Leporello e me deixou para seguir
tropegamente o meu caminho com a mulher das cartas de amor.
Vou dizer logo a verdade e acabar com isso. Era uma bela mulher e despertou o velho Adão em mim desde o momento em que a vi. O fotógrafo a favorecera um pouco, pois
a havia fixado num momento de repouso e contentamento. Não compreendi como um sujeito rígido como Leporello conseguira casar-se com ela. Ela devia estar também sem
me compreender. A sua primeira pergunta foi um desafio.
- É mais velho do que eu esperava, Coronel.
- Faço o possível para esconder isso, Madame.
- Não foi isso que eu quis dizer. Meu marido gosta de cercar-se de oficiais muito jovens.
- É assim? Só conheço um elemento do seu pessoal, o Capitão Roditi.
- Conhece-o bem?
- Quase não o conheço. Só nos vimos três vezes e pouco tivemos para dizer um ao outro.
- É um homem excepcional. Trabalha há quase sete anos com meu marido. É casado, Coronel?
- Não.
- Não está interessado?
- Tenho muitas dúvidas a respeito do casamento.
- Meu marido me disse que o convidou a trabalhar com ele.
- É verdade.
- Não lhe agrada a ideia?
- Tenho algumas reservas que pretendo debater com o General.
- O senhor tem muito tato.
- E a senhora muita beleza, Madame. Conhece a Mulher Velada?
- Creio que não. Devo conhecê-la?
- Rafael a pintou. Está na Galeria Pitti. A senhora é a imagem viva dela, até no penteado.
- Obrigada pelo elogio.
- Tenho certeza de que ouve muitos elogios, cercada de tantos oficiais jovens e elegantes.
- Bem poucos, Coronel. Sou uma mulher casada e respeitável, com filhos.
- Meninos ou meninas?
- Meninas. Duas gêmeas. Vão fazer seis anos em março.
- Filhas do verão! Isso é ótimo.
- Verão ou inverno faz alguma diferença?
- Há um provérbio que diz: “O amor da primavera é luminoso, mas o amor do verão é mais doce”.
- Não conhecia o provérbio. Tem experiência disso, Coronel?
- Bem, creio que sim.
- Terá de me falar sobre isso um dia.
- Será um prazer, mas eu nunca digo nomes, nem escrevo cartas.
- Muito cavalheiresco e muito discreto.
- Na minha profissão, aprende-se a ser discreto.
- Ah! Desempenha alguma função no serviço secreto, não é mesmo?
- Exatamente.
- Gosta de seu trabalho?
- Nem sempre. Destrói as ilusões com a maior facilidade.
- Ainda lhe restam ilusões, Coronel?
- Algumas... E à senhora?
- Faça-me essa pergunta em outra ocasião.
- Farei, sim. É uma promessa.
O jantar foi anunciado nesse momento, de modo que não houve tempo de concluir o lance. Mas, se eu estava avaliando bem aquela mulher, ela estava empenhada e com
muita imprudência no velho jogo de dar corda a outro homem, apesar da presença do marido. Leporello se mostrava, ao contrário, escrupulosamente polido, embora nunca
francamente ou com intimidade. Para um homem brusco e imperioso, a atitude dele para com a mulher era surpreendentemente atenciosa. Era como se ele tivesse adquirido
o hábito de contornar as divergências e evitar as mais simples discussões. Eu tinha a curiosa impressão de que ele tinha medo dela e de que ela, sabendo disso, estava
disposta a levá-lo ao limite máximo da tolerância. Na mesa, Leporello concentrou a principio toda a sua atenção em mim. Foi persuasivo e lisonjeiro. Desejava ardentemente
que eu fosse trabalhar com ele. Homens com o meu treinamento e a minha experiência eram preciosos. Esperava que as mulheres pudessem convencer-me caso a eloquência
dele falhasse. Laura Balestra ficou do lado dele, provocante e inconsequente. Elena Leporello agiu de acordo com as suas regras pessoais, elogiando-me e depreciando
o marido de uma dúzia de maneiras sutis. Quando acabamos a pasta, eu Já estava cansado daquela comédia e resolvi representar outra.
- Escute, General, sabe que tentaram matar-me quando estive em Veneza?
Ele era muito bom ator. Fingiu que se engasgava com o vinho e derramou um pouco do mesmo ao pousar o copo às pressas na toalha da mesa. As mulheres ficaram surpresas
e agitadas. Leporello as fez calarem-se com um gesto e me pediu uma narração completa do caso.
Resumi os fatos.
- Eu tinha acabado de jantar cora o meu Diretor e o Cavaliere Manzini. Dirigia-me para o Harry’s Bar, onde tinha encontro marcado com uma mulher. Fui assaltado por
três homens que tentaram me matar numa viela. Disparei alguns tiros e eles fugiram.
- Comunicou o fato ao Diretor, não foi?
- Sim... Ele me disse que mandaria investigar o caso e depois falaria comigo.
- E até hoje não lhe disse mais nada?
- Ainda não.
- Isso me preocupa muito, Coronel. Parece que esse tipo de violência está se tomando epidêmico. Soube do que aconteceu aqui em Milão ontem à noite?
- Eu estava lá, General.
Não estava mais fingindo. Olhou-me fixamente. Expliquei com elaborada discrição: - Não encontrará meu nome nos relatórios porque saí de lá antes que começasse o
pânico, a fim de evitar perguntas embaraçosas. Eu estava sentado a três mesas de distância.
- E não viu nada?
- Apenas os corpos quando as luzes se acenderam. Foi evidentemente um serviço realizado por profissionais. Não creio que o senhor possa ir muito longe com inquéritos
normais. Eu mesmo não insistiria muito neles.
- É uma afirmação muito estranha essa, Coronel.
- Nem tanto, General. Olhando as coisas com realismo, ambos os lados saem lucrando. A esquerda tem a sua vítima e o senhor se livrou de um elemento por todos os
títulos incômodo.
Elena Leporello compreendeu logo o meu ponto de vista e se voltou contra nós ambos.
- Essa afirmação parece tendenciosa, Coronel.
- De modo algum. É uma simples exposição de fatos reais
- A não ser que prefixa que eu diga que seu marido aprovava o emprego de métodos sádicos nos interrogatórios policiais. Entretanto, concordo em que isto é uma coisa
que não se deve proclamar em público.
Leporello ficou mais tranquilo ao ouvir isso e manifestou vigorosa aprovação.
- Muito bem, Matucci! Estou inteiramente de acordo! Nossa imagem perante o público é muito importante numa ocasião como esta.
- Que é que pensa dessa imagem, Coronel? - perguntou Elena Leporello, que era uma adversária muito persistente. - Tenho a impressão de que está um pouco turva atualmente.
- Em alguns sentidos, sim. Em outros, a reputação de seu marido está crescendo.
- Reputação de quê?
- De homem firme e de ação decisiva... Ainda anteontem estive no Clube dos Banqueiros. O seu discurso sobre o tema de Lei e Progresso causou uma impressão profunda,
General. E tenho ouvido outras conversas. Há grande interesse popular pelo seu programa. Essas tropas de choque que o senhor está treinando, ,
- Onde ouviu falar disso, Coronel?
- Em quase todos os bares e clubes da cidade, General.
- Mas trata-se de um projeto secreto.
- Posso assegurar-lhe que não é mais.
- Lembra-se de alguns dos lugares onde ouviu falar nisso?
- Certamente. O Duca di Gallodoro, o Bar do Hilton, o Alcibiade...
A menção do nome do Alcibiade produziu uma variedade de reações. Elena ficou imóvel. O General mostrou um súbito e intenso interesse pelo seu pudim de morango.
Laura Balestra não perdeu a oportunidade de me provocar.
- O Clube Alcibiade? Que era que estava fazendo lá, Coronel?
- Apenas procurando.
- E encontrou o que estava procurando?
- Sim, encontrei. Descobri um homem que procurava havia algumas semanas.
- Um homem no Alcibiade? Acho que é quase impossível à distância de um quilômetro!
- Acontece que o encontrei. Foi o Capitão Roditi...
- Matteo?
A pergunta partiu de Elena, que a dirigiu não a mim, mas a Leporello. Este sorriu como se tivesse conseguido a primeira vitória verdadeira daquela noite.
- Não pergunte a mim, minha cara, que eu não estava lá... Agora, Coronel, se não se incomoda, nós iremos tomar o café na biblioteca. Com licença. Voltaremos depois
que tivermos conversado um pouco.
Logo que nos sentamos e ficamos a sós na biblioteca, a atitude dele mudou dramaticamente. Passou a ser novamente o militar: lacônico, incisivo, dogmático, tal como
se estivesse falando numa reunião do Estado-Maior.
- Matucci, está na hora de sermos francos um com o outro.
- Isso só me daria satisfação, General.
- O seu Diretor pensa que você é um criador de casos. Eu acho que nós dois podemos entender-nos muito bem. Por que hesita em trabalhar comigo?
- Por dois motivos, para começar: quero terminar minhas férias e quero avaliar a capacidade que eu tenho para um emprego civil.
- Com Bruno Manzini.
- Exatamente.
- Ele é um velho patife... e muito perigoso.
- Perigoso?
- É um mau inimigo. Já fez chantagem com várias pessoas a quem levou ao suicídio. Antes que saia daqui esta noite, eu lhe darei cópias de dois dossiês. Gostaria
de que os estudasse cuidadosamente e em seguida os devolvesse. Não farei qualquer comentário. Chegará às suas próprias conclusões.
- Parece ter certeza de que elas combinarão com as suas.
- Isso veremos... Se decidir trabalhar comigo, poderá gozar tranquilamente as suas férias até o fim.
- Muito gentil.
- Agora, quanto ao seu cargo. Não há nada estabelecido ainda, nem título, nem tabela de organização. Teria de instalar uma seção inteiramente nova, subordinada apenas
a mim e às minhas instruções pessoais. Organizaria essa seção no modelo do Serviço de Informação da Defesa, com as alterações que a sua experiência apontar e que
nós dois combinarmos. Está interessado?
- Até aqui, muito. Qual seria a finalidade dessa seção?
- Informações políticas secretas no sentido mais amplo. Se certos acontecimentos se verificarem, se determinados projetos chegarem à maturidade, o raio de ação do
serviço poderá ser consideravelmente ampliado e sua posição será de grande poder.
- Pode especificar os acontecimentos e os projetos, General?
- Posso, mas não agora.
- Posso saber por quê?
- Porque primeiro tenho de ter certeza do lado para que pendem as suas lealdades, Coronel.
- Ora, General, creio que isso é evidente.
- É mesmo?
- De fato, somos ambos oficiais comissionados no mesmo Corpo. Prestamos o mesmo juramento. Creio que isso especifica tudo com muita clareza.
- Infelizmente, não. Não especifica, por exemplo, a sua filiação política.
- E é preciso que eu a tenha?
- Para ocupar esse posto, é.
- Deve dizer então o que deseja, General.
Preciso de um homem muito conservador.
- Isso poderia ser uma contradição em termos. O serviço secreto cuida tanto do real quanto do possível. Eu poderia citar demoradamente o meu Diretor sobre esse tema.
- Acha que o ajudaria saber que o seu Diretor se tomou um homem muito conservador?
- Eu já sabia, General.
- Sabia como?
- A reunião foi realizada na Vila Baldassare, não foi?
- Como é que sabe...?
- Jantei com o Diretor e com Bruno Manzini em Veneza.
- Que foi que lhe disseram?
- Não posso afirmar que me tivessem dito coisa alguma. Vamos dizer que eu tomei conhecimento de certas situações e acordos. Por exemplo, houve uma discussão para
decidir se eu devia ser eliminado. Houve dois votos contra e um a favor de minha morte. Esse voto foi seu, General. Como vê, tenho motivos para estar um tanto confuso
diante da sua proposta.
Eu tinha esperado abalá-lo. Decepcionei-me. Fosse ele o que fosse como marido, no seu papel de soldado e estrategista era inexpugnável. Censurou-me delicadamente:
- Confuso por quê? É competente no assunto. Todos nós corremos risco. Votei realmente assim, mas depois mudei de ideia.
- Por quê?
- Nunca pude confiar no seu Diretor. Sempre o considerei um aliado útil, mas inconstante. Por isso, depois da reunião na Vila Baldassare, fiquei pensando. Cheguei
à conclusão de que tinha necessidade de um rival e de um substituto eventual para o Diretor, que é você, meu caro Coronel. Simples, não é?
- Simples demais.
- Como assim?
- Todos têm seguro de vida, menos eu. Manzini tem dinheiro e prestígio. O Diretor tem um cargo de nomeação presidencial. O senhor tem o seu posto de general nos
Carabinieri. O único desamparado sou eu.
- Venha trabalhar comigo e terá a minha proteção pessoal. Não a subestime, Coronel.
- Não a subestimo. Mas estou pensando no Cirurgião.
- Que é que tem ele?
- Está morto.
- Eu não o estava protegendo...
- Compreendo...
- Você mesmo disse que se tratava de um elemento incômodo. Mais conhaque?
- Obrigado. Posso fazer-lhe algumas perguntas?
- À vontade!
- Esse ajudante seu, o Capitão Roditi... Quer explicá-lo a mim?
Eu havia tocado num nervo sensível. Levantou a cabeça bruscamente e se mostrou tenso e ameaçador. - Creio que você é que deve explicar-se, Matucci.
- Ebbene! Quer que eu trabalhe para o senhor. Estou interessado mas não estou nada disposto a caminhar às cegas para uma nova situação. Eu o tenho estudado, General,
como o senhor me tem estudado. Soube que Roditi é seu favorito. Ele está ressentido e, por causa dele, o senhor está ressentido também. Quero saber por quê?
Ele pensou na pergunta durante muito tempo. Virou-a de um lado para outro como se fosse um punhado de barro com o qual pudesse modelar uma resposta conveniente para
dar-me. Por fim, disse:
- Roditi é dispensável. Você entra, ele sai, se é isso o que você quer.
- Que estava ele fazendo no Clube Alcibiade?
- Procurando recrutas.
- E que faz no Pavone?
- A mesma coisa.
- Gostaria de saber por que está fazendo uso desses tipos.
- Precisamos de homens sem laços, sem outra ambição que não seja o dinheiro e a companhia de gente da sua espécie. Eles também, com o tempo, serão dispensáveis como
os mercenários do Congo.
- General, se estivesse sentado em minha cadeira, aceitaria essa resposta?
- Se eu estivesse sentado em sua cadeira, Matucci, não esperaria que tudo me fosse dito.
- Um comentário justo, General. Aceito. Entretanto, deverá ter paciência comigo. Oferece-me favores e proteção. Eu tenho de saber onde estão as forças e também as
fraquezas.
- Estou escutando.
- A sua vida conjugal é evidentemente infeliz.
- É uma coisa tão evidente assim?
- Para mim, é. Um homem como o senhor, com ambições como as suas, não pode ter uma inimiga dentro de casa. Deve levar uma vida muito solitária, Coronel.
- Levo, sim. Confesso que estes são para mim dias de deserto. Mas estou preparado para suportá-los por algum tempo ainda.
- Apoia-se então em Roditi?
- Mais do que devia talvez. Ele se tomou como que um filho para mim. Mas eu preciso de alguém muito mais forte, com muito maior experiência. De você, meu amigo.
- Mas ainda não está preparado para confiar em mim... Vamos botar as cartas na mesa, General. Há um dossiê a seu respeito no SID. O Diretor sabe o que consta dele.
Eu não sei, porque o mesmo sempre foi reservado para ele. Foi por isso que o senhor nada pôde fazer enquanto não o teve como aliado. Ainda não confia nele e quer
lançar-me contra ele. Mas eu nada poderei fazer enquanto não souber tanto quanto ele sabe. Não o posso proteger, General, enquanto não souber que armas ele poderá
usar contra o senhor... Por que não pensa nisso? Se ainda me quiser, poderemos encontrar-nos de novo e discutir as questões finais. Depois disso, poderemos assinar
os papéis de transferência.
- Você poderia, ao fim de tudo, decidir não trabalhar comigo.
- E o senhor poderia decidir retirar-me a sua proteção. Neste caso, eu poderia acabar como o Cirurgião, com uma bala na cabeça. Se isso acontecesse...
- Sim, Coronel.
- Há um banco de dados na Suíça que distribuiria imediatamente uma quantidade considerável de informações à imprensa e a outros grupos interessados.
- Chantagem, Coronel?
- Não, General. A chantagem só estaria configurada se eu tentasse extorquir dinheiro ou outras vantagens. Não fiz nada disso. Tomei apenas precauções como um seguro
sobre minha vida. Mas, por falar em chantagem, tem certeza de que não está sendo vitima dela?
- Já lhe disse uma vez, Coronel, e torno a dizer. Minha vida é um livro aberto.
- Isso é o que consta dos registros públicos, General. Mas podem atingi-lo com os registros secretos no dia em que for proclamado salvador do país... Escute aqui,
não lhe pedi o lugar. Foi o senhor que o ofereceu. Se minhas condições não agradam, vamos dar o assunto por encerrado.
- Por que não define as condições com mais clareza?
- Franqueza absoluta de ambos os lados?
- Muito bem. Procurarei entrar em contato com você dentro de alguns dias. Enquanto isso, pode estudar os dossiês de Manzini... Mais conhaque?
- Não, muito obrigado. Creio que vou chegando para casa. Foi um dia muito longo para mim.
- Mas não sem proveito, eu espero.
- Ao contrário, General. Creio que cobrimos uma longa distância no sentido de um entendimento.
- Ótimo... Ah, sim, seria muito incômodo para você levar Laura para a cidade? Senão, terei de usar um carro oficial. Não gosto de chamar táxis para esta casa.
- Não é incômodo algum. Será um prazer.
- Gosto dela. É um espírito alegre. Talvez não tenha muita inteligência, mas é rica e sem compromissos. Para bom entendedor...
Alegre ela era, estava um pouco alta e falava como uma cabeça de vento, mas se havia uma coisa que não lhe faltava era inteligência. Quando voltávamos no carro para
a cidade, fez um comentário zombeteiro mas revelador sobre o jantar.
- Você foi como um gato solto num pombal, Dante. Foi de uma perversidade incrível e sabe muito bem disso. Ainda está com a boca toda cheia de penas. Foi o primeiro
homem que já vi dominar Elena num dos acessos dela. Esta noite, ela já estava com as garras de fora para atacar Marcantonio... Veja bem que não a estou culpando.
Ele não deve ser uma alegria na cama, nem dar satisfação em qualquer outro lugar, tanto quanto posso ver... Você, na verdade, não quer trabalhar com ele, não é mesmo?
De qualquer maneira, não posso ver você no meio daqueles finocchi que o cercam. Mas, afinal de contas, não o conheço muito bem e você acabou sem dizer o que foi
fazer no Alcibiade. E que era que Matteo Roditi estava fazendo lá? Você não viu a cara de Elena quando você deixou cair aquele tijolo quente. Pensei que ela ia estourar
uma veia ou deixar aquele grande busto dela cair dentro do molho. Sabe que eles são amantes, não sabe? Ora, meu caro, todo o mundo sabe, inclusive o General. Se
minhas contas estão certas, o pai das gêmeas é Roditi... Por quê? Ora essa, Matucci! Por que você acha que o velho usa Matteo para fazer todas as suas sujeiras...
Eu? Eu sou a amiguinha de todo mundo. Mas sou primeiro amiga de Elena. E vou fazer uma aposta com você. Se ela não lhe telefonar dentro de vinte e quatro horas,
vou passar uma noite na cama com você...
- Não é preciso apostar. Já está convidada.
- Não gosto de que me apressem.
- Não há pressa nenhuma. Há champanha, caviar e música suave...
- Elena vai me odiar para sempre depois disso.
- Quem irá contar a ela, bambina?
- Tem razão. Quem irá contar? Mas pode ficar certo de que ela vai telefonar. Ficou louquinha por você, Matucci. Conheço bem Elena.
- Mas você não me disse que ela era louca por Matteo Roditi?
- Bem, ele é especial. Os outros - e tem havido muitos outros - são a vingança dela contra o marido. Se você for trabalhar para ele, ela o levará para a cama, nem
que tenha de acusá-lo de estupro e homicídio.
- Ela parece até candidata a um manicômio.
- E você não o seria também se fosse uma mulher casada com um finocchio de meia-idade com mania de grandeza?
- Deus me livre!
- Agora fale-me de sua vida amorosa, Coronel. Quero saber para onde estou marchando antes de tomar champanha demais.
Na verdade, três taças foram mais que suficientes. Perdeu os sentidos ao som da música de Henry Mancini. Despi-a, levei-a para a grande cama, pendurei as roupas
dela, deixei um bilhete para que não a perturbassem no espelho do banheiro, fechei a porta sobre ela e saí de casa.
31
Era uma hora da madrugada em Milão, cidade onde, conforme dizem os seus habitantes, o dinheiro compra tudo, dia e noite. Minhas necessidades eram essencialmente
simples: um vaporizador, e um notário de um olho só, surdo e mudo, insone e cobiçoso. Anoto, pelo interesse histórico do caso, que, mesmo com os meus contatos, gastei
uma hora para encontrá-lo, vinte minutos para ajustar as coisas com ele e cem mil liras em dinheiro para fazê-lo sair de casa.
Posso ser displicente sobre isso agora, mas naquele momento eu estava desesperado. Explicação: eu queria um depoimento legalmente válido de uma testemunha. Estava
disposto a fazer uso de coação, ameaça, intimidação e violência física, se fosse necessário. Precisava, portanto, de um notário com muita carta bollata (papel selado),
um carimbo de borracha e uma consciência flexível.
Às 3:15, armado e acompanhado pelo dito notário, cheguei ao apartamento do Capitão Matteo Roditi. O Capitão não estava, ausente a serviço de seu chefe ou de sua
amante, conforme fosse o caso. Entrei no apartamento, fechei o notário no quarto para tirar um cochilo, preparei uma xícara de café na cozinha e me sentei para esperar.
Às 3:45, de olhos vermelhos e quase em seu juízo perfeito, Roditi chegou em casa. Empurrei-o de encontro à parede, enquanto o apalpava à procura de armas escondidas.
Fi-lo sentar-se então na poltrona dinamarquesa e me encarapitei na mesa, com a pistola e o vaporizador ao meu lado. Depois disso, pude falar-lhe como um tio do interior.
- Não me conhece muito bem, Capitão. Pode, portanto, sentir a tentação de pensar que eu estou brincando. Não é nada disso. Se não me disser a verdade, vou matá-lo.
Vaporizarei ácido cianídrico em seu rosto e você morrerá em quatro segundos. Se cooperar comigo, posso oferecer-lhe uma saída da difícil situação em que se encontra.
Compreendeu?
- Sim.
- Em seu quarto há uma fotografia com dedicatória de uma mulher e um maço de cartas de amor de uma mulher chamada Elena. Quem é Elena?
- É a esposa do General Leporello.
- Há quanto tempo são amantes?
- Há seis anos, mais ou menos.
- É você o pai das filhas dela?
- Creio que sim.
- O General está a par dessa situação?
- Está.
- E concorda com ela?
- Concorda.
- Quer-me dizer por quê?
- Isso lhe dá poder sobre nós ambos.
- Explique isso melhor.
- Ele é o pai legal das meninas. O nome dele é que consta do registro de nascimento. Poderia a qualquer momento retirá-las dos cuidados e da guarda de Elena.
- E qual é o poder dele sobre você?
- Tenho-lhe prestado serviços que podem incriminar-me legalmente.
- Que serviços são esses?
- Arranjar pessoas para se deitarem com ele.
- Dentro ou fora do Serviço?
- Tanto uma coisa quanto outra. Tenho outro apartamento, perto do Duomo. Está alugado em meu nome. Ele o usa como um ponto de encontro. Pago às pessoas e tomo providências
para que não haja problemas depois.
- Como faz isso?
- Por meio de ameaças, quase sempre. Com ação, quando há necessidade.
- Manda espancá-las, por exemplo?
- Sim.
- Vou precisar de nomes, de datas e de lugares, mas isso pode ficar para depois. Conhece o Major Zenobio, o comandante de Camerata?
- Conheço.
- Teve alguma noticia dele hoje?
- Encontrei em minha mesa um recado para telefonar para ele, mas ainda não telefonei.
- Recebeu uma carta de Chiasso hoje?
- Recebi.
- O General recebeu uma também?
- Recebeu.
- Que fizeram com as cartas?
- Mandei-as para o laboratório a fim de verificar a impressão digital e a folha de papel datilografada.
- Já teve alguma resposta do laboratório?
- Ainda não.
- Quando é que espera uma resposta?
- Amanhã ou depois.
- Sabia de quem era a impressão digital?
- Fazia uma ideia. Mas não tinha certeza.
- A respeito de quem?
- Podia ser de Balbo,
- Foi ele que matou Bandinelli e Calvi?
- Foi.
- Foi ele quem colocou uma carta com bomba no aparta- mento de uma tal Lili Anders?
- Foi.
- Quem deu as ordens?
- Eu.
- E quem lhe deu essas ordens?
- O General.
- Onde estão os papéis de Pantaleone?
- Entreguei-os a Leporello.
- Onde estão agora?
- Não sei. Talvez estejam em casa dele.
- Onde está Giuseppe Balbo?
- Acho que está morto.
- Acha? Por quê?
- Tive ordem de levá-lo ao Clube Alcibiade esta noite e de sair com ele às 2:45.
- Quem lhe deu essa ordem?
- O General.
- A causa disso foram as cartas de Chiasso?
- Sim.
- Quem devia fazer o serviço?
- Não sei. Não me disseram.
- Faz alguma ideia?
- Leporello falou de matar dois coelhos de uma só cajadada - o Cirurgião e Balbo,
- Muito bom. Já lhe passou pela cabeça que ele poderia um dia querer livrar-se de você?
- Já.
- Nunca tomou qualquer medida de proteção?
- Tomei, sim. Mandei instalar microfones no outro apartamento. Há fitas gravadas e fotografias.
- Onde está esse material?
- Elena tem uma coleção. Depositei outra num cofre do Banco Central.
- Preciso da chave e de uma autorização de acesso.
- Muito bem.
- Que é que sente atualmente por Elena?
- Eu a amo! Que dúvida há disso? Se não fosse assim, como iria suportar toda essa sujeira?
- Talvez não quisesse afastar-se da sujeira... Quando Leporello desse o seu golpe, você seria um homem muito importante.
- Que vai fazer agora?
- Eu, não. Quem vai fazer é você, Roditi! Vai escrever um depoimento. Há em seu quarto um homem que autenticará o documento. Depois disso, falaremos sobre o que
ainda faltar... Ai está o papel selado e a caneta. Vou ditar e você escreverá.
Em meia hora, o documento foi redigido e em meio minuto foi carimbado e autenticado. Mandei embora então o notário tonto de sono, fiz Roditi escrever uma carta ao
banco, guardei todos os documentos no bolso e sentei-me para continuar a conversa. Roditi estava completamente arrasado, pálido e trêmulo. Deixei-o, portanto, tomar
um uísque para reanimar-se enquanto eu estabelecia as condições.
- O seu depoimento lhe salvou a vida, Roditi. Bastaria um telefonema meu a Leporello para que você fosse morto antes de amanhecer o dia. Assim sendo, você vai desertar.
Arrume uma mala. Eu o levarei no meu carro para um lugar seguro no interior, onde ficará até que eu acabe de elaborar o meu libelo contra Leporello. Você será interrogado.
Prestará mais depoimentos do que jamais pensou prestar em sua vida. Mas, pelo menos não estará na prisão e com o receio constante de que um companheiro de cela lhe
crave um punhal nas costas. Então, antes que o caso se tome público, terá vinte e quatro horas para sair do país em companhia de Elena e das crianças... É o melhor
que eu posso conseguir. É pegar ou largar.
- Não serve. Não vai dar resultado.
- Por que não?
- Porque sei.
- Tem alguma ideia melhor?
- Tenho. Vai me deixar em liberdade até acabar de reunir as suas provas. Posso blefar como se nada tivesse acontecido. É uma coisa em que sou muito bom. Poderei
dar-lhe informações, melhores do que você conseguiria de qualquer outra maneira. As coisas vão começar a acontecer, Matucci, e vão acontecer muito depressa...
- Que espécie de coisas?
- Não lhe posso dizer ainda. Mas direi logo que souber.
- Desculpe, mas isso não me agrada. Vá arrumar a mala.
- Não vou sair daqui.
- Quer-me dizer por quê?
- Está bem. Você tem sido seguido a noite toda. Enquanto seu carro estava na casa do General, colocaram nele um dispositivo eletrônico de emissão de sinais.
- Quer dizer que sabem onde estou agora?
- Sabem.
- E estão à minha espera lá embaixo?
- Não sei.
- Vamos sair então para dar um passeio e descobrir. Se não estiverem lá, faremos uma pequena viagem, até a casa de Balbo primeiro e, depois, à do General... Se temos
de acabar isso agora, vamos acabar. Levante-se!
- Não vou. Pode matar-me aqui, se quiser, mas não vou.
- Ah! Então por isso é que tudo foi tão fácil, hem? Vão- me crivar de balas quando eu sair pela porta da frente. Ou então colocaram explosivo plástico no carro e
tudo irá pelos ares quando eu ligar o motor. Agora, rapaz, que é que vai ser?
- Não sei. Juro que não sei.
- Vamos tomar então outras providências.
Tirei o meu caderno do bolso e encontrei o número da agência do SID em Milão. Disquei e falei com o oficiai de plantão, a quem dei meu número de identificação.
- Estou interrogando um suspeito. Meu carro está parado à frente do edifício. É um Mercedes vermelho com placa de Milão. Sei que puseram dispositivos eletrônicos
nele. Podem ter colocado também uma carga de explosivo e pode haver uma tentativa de assassinar-me quando eu sair do edifício. O suspeito é um oficial dos Carabinieri,
de modo que não os quero metidos nisso. Podem resolver tudo sozinhos? E sem muito estardalhaço? O carro não tem importância. Pode mandá-lo de novo para mim quando
estiver limpo. Mas vou precisar de outra viatura à minha disposição quando eu sair. Quando tudo estiver pronto, mande um homem subir ao apartamento para me avisar.
A palavra de código será Dragão. Isso mesmo - Dragão. É melhor ele não esquecer, do contrário poderá ser recebido à bala... Muito obrigado. Ande depressa, sim? Por
medida de segurança, ligue-me para este número logo que eu desligar.
Ele telefonou e me disse que o pessoal estaria comigo dentro de meia hora. Era muito tempo para esperar e muita coisa poderia acontecer nesse intervalo. Apaguei
as luzes, fui até a janela, abri a cortina e olhei. Já estava acontecendo muita coisa. Três carros da polícia estavam parados diante do edifício e- outro estava
entrando na rua. Os homens estavam desembarcando e agrupando-se em torno do oficial que os comandava. O plano estava muito claro. Captura, busca e noventa e duas
horas de detenção por qualquer transgressão. Eu podia pensar em duas que me seriam atribuídas ~ entrada ilegal em casa alheia e sonegação de informações à polícia
no caso da morte do Cirurgião. Ao tempo em que saísse da cadeia, se chegasse a sair, o depoimento de Roditi teria desaparecido. Fiz Roditi levantar-se, meti-lhe
um lenço na boca, espetei-lhe a pistola nos rins e o obriguei a sair do apartamento.
Não havia meio de descer a não ser pelo elevador ou pela escada. De uma maneira ou de outra, iria cair nas mãos dos Carabinieri. Fomos para cima. Subimos quatro
andares até chegarmos a uma porta que dava acesso ao terraço e às caixas de água. A porta estava trancada. Precisei apenas de um minuto para abri-la. Empurrei Roditi
para o terraço e consegui trancar a porta. Obriguei-o então a voltar-se para a porta e dei-lhe uma coronhada firme na parte posterior da cabeça. Ele caiu como um
saco. Arrastei-o para junto das caixas de água e tirei-lhe a mordaça da boca. Ainda não queria que ele ficasse sufocado. Teria muito mais coisas para dizer se eu
conseguisse sair daquela armadilha.
Fiz um cauteloso circuito do terraço e descobri que havia dois edifícios vizinhos muito semelhantes em altura e em construção. Não me seria difícil galgar os parapeitos
e fugir pelo terceiro edifício. Isso me seria impossível se eu levasse Roditi comigo. Deixei-o e, alguns minutos depois, estava num edifício de escritórios deserto.
Fiquei esperando, com frio e desânimo, dentro de um banheiro, pensando no que teria acontecido a Roditi e sem saber por que ninguém se lembrara de verificar o terraço.
Quando os empregados dos escritórios começaram a chegar pela manhã, saí para as ruas cheias de gente e de sol e tomei um táxi para o hotel de Steffi.
Apesar de todas as suas rabugices e extravagâncias, Steffi era uma joia numa hora de crise. Enquanto eu fazia a barba e tomava banho, ele desceu e tirou cópias Xerox
dos depoimentos. Depois, foi à filial de Milão do seu banco, descontou um cheque e depositou o documento original para só ser entregue contra a assinatura dele e
minha. Em seguida, apareceu no escritório de Manzini e disse que queria falar com o velho. Apresentou meus comprimentos, uma cópia fotostática e um resumo dos acontecimentos
daquela noite. Os dois voltaram para o hotel conversando tão animadamente como se fossem velhos conhecidos.
32
Manzini telefonou do hotel para o diretor do seu jornal e soube de três notícias que sairiam nas edições da tarde. Uma delas se referia a um tiroteio no qual um
tal Giuseppe Balbo, suspeito dos assassinatos no Duca di Gallodoro, fora morto por agentes da polícia quando tentava resistir à prisão. Havia ainda a notícia de
uma ocorrência misteriosa num edifício de luxo. Atendendo a um telefonema anônimo cujos detalhes ainda não podiam ser revelados, a polícia estivera num apartamento
do quinto andar onde residia o Capitão Matteo Roditi, ajudante de ordens do Major-General Leporello. O apartamento estava deserto e em desordem. Não havia sinal
do Capitão, ainda desaparecido no momento em que a edição fora para as máquinas. A polícia já havia detido um homem que havia visitado o apartamento nas primeiras
horas da madrugada. Procurava-se também para interrogá-lo um certo Dante Alighieri Matucci, funcionário de uma agência do governo, cujo carro estava estacionado
à frente do edifício e cujas impressões digitais tinham sido encontradas no apartamento do homem desaparecido. Havia uma descrição completa e exata de minha pessoa
e uma fotografia, evidentemente fornecida pelos arquivos do SID.
- E essa a situação, senhores - disse Manzini. - Balbo está morto. Roditi morreu ou está preso para ser protegido. O notário está sendo interrogado e, quando a polícia
acabar, ele estará pronto a assinar tudo o que quiserem. O depoimento de Roditi não terá valor, pois poderão apresentar um contradepoimento em que se alegue que
o primeiro foi obtido sob coação. Você, meu Dante, é agora um fugitivo. Se o pegarem, buona notte! Será um novo caso Matteoti.
- Está esquecendo uma coisa, Bruno. Tenho uma chave e uma autorização para abrir o cofre de Roditi no banco. Se ele me disse a verdade, há no cofre material suficiente
para acabar com Leporello de um só golpe.
- Há várias hipóteses nessa afirmação, Dante. Pode ser que Roditi não tenha dito a verdade e pode ser também que Leporello tenha conseguido já uma ordem judicial
para a abertura do cofre. E é muito difícil você poder abri-lo pessoalmente. Lembre-se de que terá de apresentar a sua identificação e dentro de uma hora a sua descrição
estará circulando pelas ruas de Milão. E isso quer dizer que temos de tirar você quanto antes daqui.
- Quero responder-lhe primeiro. Acredito que Roditi tivesse dito a verdade. E, depois, não acredito que ele seja capaz de entregar a Leporello a sua garantia fundamental.
- Mesmo que fosse ameaçado de morte? Ele cedeu a você com muita facilidade.
- Apenas porque se julgava protegido. Se ele se entregasse a Leporello, teria certeza de estar deixando a mulher que ama e as filhas sem qualquer defesa. Creio que
ele se apegaria à última esperança de que eu, ou outra qualquer pessoa, consiga derrubar Leporello.
- De acordo - disse Steffi. - Um fio de esperança pode sustentar um homem durante muito tempo.
- Acesso ao cofre então - disse Manzini, ainda sombriamente. - Como vai conseguir isso?
- De que é que um banqueiro precisa - não no momento
- mas nos seus registros depois que o cliente se retira?
- De uma assinatura e de uma anotação sobre o documento de identificação.
- Você tem o meu documento de identificação. Tem um excelente calígrafo na pessoa de Cario Metaponte, que fez o seu cartão da salamandra. E tem o seu amigo Ludovisi
no Banco Central que prometeu ajuda se algum dia precisássemos dele. Então, Bruno?
- Depende de Ludovisi, não acha?
- Sem dúvida.
- Vou tentar. Entregue-me os documentos e a chave... E agora, Matucci, que vamos fazer com você?
- Terei de viver clandestinamente. Preciso para isso dos papéis falsos que estão no cofre de meu apartamento.
- Irei buscá-los. Enquanto isso, onde devemos deixar você?
- Onde está seu carro?
- Estacionado em frente ao hotel. Paguei ao porteiro para isso.
- Poderia levar-me para Pedognana e deixar-me ficar lá por dois dias?
- Na casa, não, pois pode haver uma visita dos Carabinieri. Na propriedade, sem dúvida alguma, desde que não se importe de viver um pouco ao jeito dos camponeses.
E Stefanelli?
- Vou ficar na cidade, Cavaliere. Esse marmanjão precisa mais de mim do que quer reconhecer.
- Isso não me agrada, Steffi. As coisas agora se tornaram muito perigosas.
- Por isso mesmo, você precisa de alguém que entenda das coisas. Além disso, quem se vai interessar por um velho rabugento em férias que não pode gozar?
- Obrigado, Steffi. Quando eu telefonar, direi que sou Rabin. Deve ser um nome de sorte para todos nós.
Manzini não tomou conhecimento da referência. Ainda estava a debater um problema particular e perguntou abruptamente:
- E se Ludovisi não nos atender, que faremos?
- Neste caso, só restará uma esperança... a mulher de Leporello.
- Quando ela ler a noticia, pensará que você matou ou raptou Roditi.
- A noticia foi dada pelo marido. Adio que ela não acredita nele nem em relação ao dia da semana.
- É um jogo horrível.
- Conheço um pior - disse Steffi sombriamente. - Leporello como o Duce e os seus rapazes impondo a ordem em cassetetes e óleo de rícino.
Passei quatro dias em Pedognana, três deles alojados no sótão da casa do administrador. Os Carabinieri apareceram uma vez e passaram toda uma tarde dando uma busca
por toda a propriedade. Passei toda essa tarde no alto de um galpão de feno e saí de lá com uma violenta alergia. No quarto dia, Manzini chegou com meus documentos
e uma mala de roupas feitas correspondentes à minha nova identidade como Aldo Camera. Completo como sempre, havia providenciado sobre um emprego antedatado como
viajante comercial numa de suas companhias subsidiárias. Eu não teria necessidade de aparecer, mas se alguém fosse verificar, meu nome falso e os detalhes pessoais
constariam dos arquivos.
Levou-me também notícias desanimadoras. Ludovisi tinha ido a Nova York para uma conferência. De Nova York iria à Cidade do México e daí a Buenos Aires. Só< estaria
de volta daí a dez dias. Manzini estava inquieto. Todos os seus cuidadosos planos para me introduzir na sociedade e elevar-me à condição de um agente diplomático
tinham ido por água abaixo. Eu estava de volta ao submundo de onde ele me tirara. Eu estava, por presunção, desmoralizado e, por minha causa, ele caíra também em
algum descrédito junto ao Movimento. Não fora mais chamado para os seus conselhos secretos. O Diretor, lhe mandara um bilhete cáustico sugerindo que, até que o crédito
dele fosse restaurado, Manzini devia limitar as suas atividades às contribuições financeiras, de que o Movimento estava em constante necessidade.
Jantamos juntos naquela noite e eu tentei fazê-lo conversar sem resultado, até que mencionei os dois dossiês que Leporello me entregara mas que eu ainda não tivera
tempo de ler. Só me lembrava dos nomes: Hans Helmut Ziegler e Emmanuele Salatri. Manzini pensou durante alguns momentos e, então, abriu as mãos, desfazendo-se do
mau humor como de um manto.
- Por que não? De que serve o passado, senão para renovar a nossa esperança no futuro? Hans Helmut Ziegler... Isso vem de longo tempo. Começou, deixe ver, em 1980.
Eu estava em São Paulo nessa época, gastando o meu primeiro dinheiro grande e fazendo o meu primeiro investimento no Novo Mundo. Naquele tempo, meu Dante, a impressão
que se tinha era de que havia mais italianos do que brasileiros em São Paulo. A grande maioria era de imigrantes, mas havia também alguns investidores como eu -
em terras de açúcar e de café, em tecidos e produtos farmacêutico», pequenas companhias a princípio, mas imensamente lucrativas. Eram dias rudes aqueles. Eu estava
ganhando dinheiro, gastando e ganhando mais... E as mulheres, Dio! caíam-nos nas mãos como mamões maduros.
“Numa noite, eu estava num clube de jogo ao lado de um moço mais ou menos da minha idade. Era brasileiro e estava jogando na roleta mais alto do que eu. Eu estava
com um pouco de sorte. Ele estava perdendo e procurava cobrir os prejuízos. No fim, perto da meia-noite, perdeu tudo. Pareceu-me tão desconsolado, tão inteiramente
desesperado que eu não pude mais. Peguei-o pelo braço e convidei-o a ficar e ser sócio de uma parada comigo - apenas para tentar a sorte, a minha sorte, e não a
dele. Por um momento, pensei que fosse me agredir. Depois, riu e disse: "Por que não? É dinheiro dos outros”. Para encurtar à história, joguei uma ficha alta, verde,
no 35. Não deu outra coisa. Dividimos o dinheiro e saímos da mesa de braço dado, amigos pelo resto da vida. O nome dele era Paulo Pereira Pinto e hoje é um dos grandes
banqueiros no Brasil. Quando foi escolhido como diretor pela primeira vez, mandou-me uma esmeralda quadrada de cinco quilates, como uma recordação daquela noite.
Mandei fazer com a esmeralda um broche para Rachele Rabin.
“Essa é a primeira parte da história. A segunda é muito posterior. Hans Helmut Ziegler foi o homem da Gestapo em cujas mãos fui cair na prisão. Gostava do trabalho
que fazia e era perito nele. Um diálogo com ele na célula de interrogatório era como um encontro com o próprio diabo. Ainda agora, velho como sou, é com terror e
ódio que me lembro dele. Depois da guerra, ele desapareceu, tragado pelo caos. Em 1965, a filha de meu velho amigo Pinto ficou viúva com dois filhos pequenos. Um
ano depois, tomou a se casar e Pinto me mandou uma fotografia do casamento. O homem com quem ela se casara era Hans Helmut Ziegler... Trabalhei durante dois anos
e gastei vinte mil dólares para organizar um dossiê sobre ele. Enviei-lhe por fim o dossiê com um cartão da salamandra. Ele não pôde nem ter uma saída decente. Deixou-se
cair num precipício num carro que guiava a 150 quilômetros por hora. O velho Pinto leu o dossiê e ficou certo de que os israelenses é que o haviam matado. Ficou
satisfeito de se ver livre de Ziegler depois de saber quem era ele, mas não queria os sionistas em ação no seu distrito. Chamou a policia que remeteu o dossiê para
a Interpol. Por fim, a Interpol chegou até mim por intermédio das autoridades italianas... Creio que foi assim que o dossiê caiu nas mãos de Leporello. Você pode
não acreditar, mas Pinto e eu ainda somos amigos...
‘‘Esse devia ser o fim da história, meu Dante, mas não é. Nos tempos que antecederam o Sábado Negro, os judeus de Roma acreditaram que tinham um trato com os alemães
para que continuassem em liberdade mediante o pagamento de um elevado resgate. Foi então organizado um fundo para o qual todos contribuíram com ouro e joias. Houve
mulheres que deram até suas alianças de casamento. Não adiantou nada. Os alemães se apoderaram do ouro e levaram as pessoas também... Entretanto, um dos coletores
foi um homem chamado Emmanuele Salatri. Foi a ele que Rachele entregou seu broche de esmeraldas. Salatri nunca entregou o que havia arrecadado. Limitou-se a desaparecer
com tudo. Em 1969, houve um grande leilão de joias em Zurique. Entre as peças anunciadas no catálogo estava o broche de esmeralda. Eu estava, portanto, em condições
de apurar a sua procedência. Encontrei, antes de dois outros possuidores, Emmanuele Salatri, que era nessa época um próspero joalheiro em Hatton Garden, Londres.
Mandei-lhe um dossiê e um cartão. Ele deu um tiro nos miolos. Mais uma vez, a origem do dossiê foi traçada até minha pessoa. Mais uma vez, nada se pôde fazer porque
eu não cometera crime algum. Dei o broche de novo a Rachele. Ela não quis aceitar. Disse que havia sangue na joia e que ela não podia dar alegria a ninguém. Vendi
o broche à Bulgari, que dividiu a pedra e tomou a engastá-la em outras joias.
“História antiga! Estarei errado em reviver essas coisas? Tenho pensado muitas vezes nelas, mas sempre volto à mesma questão: por que os vilões florescem enquanto
as vítimas ainda sofrem os efeitos de suas vilanias? É você que tem de responder agora a essa questão, Matucci. Seria uma das ironias da vida que Leporello atravessasse
todo um oceano de crimes e fosse um governante poderoso e mesmo bom. Mas, ainda que isso acontecesse, poderíamos tolerá-lo? Ainda que ele aparecesse agora com roupas
de penitente e uma corda ao pescoço, poderíamos, no mesmo fôlego, perdoá-lo e consagrá-lo no poder? Não posso ver isso, não posso...
“Mais uma história, meu Dante, e depois disso temos de ir dormir. Chegue aqui à janela. Está vendo aquelas montanhas ao longe com algumas luzes no alto? É Vincolata.
Não é nada de muito importante. Apenas uma pequena aldeia das montanhas com cerca de quinhentos habitantes dentro de suas velhas muralhas. Nos meus tempos de guerrilheiro,
usei-a como um ponto de observação e às vezes dormi lá, na casa de uma viúva chamada Bassi.
“Um dia, atacamos de emboscada um pequeno destacamento alemão a um quilômetro da aldeia e matamos dois homens. As represálias foram imediatas. Os alemães prenderam
vinte homens, moços e velhos, como reféns e ordenaram que os mesmos fossem fuzilados na praça de Vincolata. O oficial que comandava o pelotão de fuzilamento era
um jovem tenente austríaco chamado Loeffler... É fácil imaginar o horror de um fato como esse num lugar pequeno como Vincolata. Vinte homens... É uma perda e um
traumatismo que nunca podem ser reparados. Aquela gente era minha gente e estava sofrendo em consequência de uma ordem que eu havia dado. Por isso, prometi que um
dia se faria justiça.
“Loeffler sobreviveu à guerra, voltou para a Áustria e entrou no seminário. Cada um toma caminhos diferentes, como vê. Eu me tomei um instrumento de vingança; ele
passou a ser um apóstolo. Já então, eu havia perdido a pista de Loeffler e, quando voltei para cá e vi a paz deste lugar, menos vontade tive de perturbá-la.
“Muito depois, na década de 60, eu estava na Áustria em negociações para um contrato de compra de minério de ferro quando li na imprensa local que o Reverendo Franziskus
Loeffler, vigário de uma paróquia no Oberalp, tinha sido nomeado bispo e ia ser consagrado em Roma pelo Santo Padre. Não tinha certeza de que fosse o mesmo homem
e fui procurá-lo. Era o mesmo Franziskus Loeffler e eu não gostei dele. Achei-o vazio, obstinado, vaidoso, o tipo de padre que eu sempre antipatizei, meio tirânico,
meio paternal. Disse-lhe o motivo de minha visita e perguntei se ele não considerava a sua elevação à dignidade episcopal uma afronta aos fiéis de Vincolata.
“Não deixou que eu me aproximasse dele. Estava absolutamente seguro e parecia ter instruções particulares do Altíssimo. Sai dali aborrecido e amargurado. Escrevi
ao Vaticano. Iniciei uma campanha de imprensa contra a nomeação e sugeri que Loeffler fosse extraditado para a Itália a fim de ser julgado como criminoso de guerra.
Loeffler recusou a nomeação, renunciou à sua paróquia e retirou-se para a obscuridade.
“Mas esta história tem um epílogo. Há cerca de dezoito meses, o pároco de Vincolata veio procurar-me e me pediu como um favor muito especial que eu não deixasse
de comparecer à missa do domingo seguinte. Loeffler estava lá. Vestia o cinza eclesiástico, colarinho branco e gravata preta. Estava ajoelhado no banco da frente.
Depois do Confiteor, levantou-se, voltou-se para os fiéis e disse com simplicidade: “Meu nome é Franziskus Loeffler. Ajudei a execução de vossos parentes e amigos
durante a guerra. Fui eu que dei a ordem de fogo. Estou aqui para pedir vosso perdão se sentirdes que é possível dá-lo. Do contrário, estou à vossa disposição para
a retribuição que julgardes necessária. Não posso dar vida aos mortos, como gostaria de fazer. Mas peço perdão”. Tomou a ajoelhar-se e a missa continuou. Esperei
depois para ver o que, o povo de Vincolata faria... Nada, meu Dante! Absolutamente nada! Ninguém tomou conhecimento dele. Todos saíram da igreja e o deixaram na
que deve ter sido a solidão mais cruel da vida dele.
“Que era que eu podia fazer? Convidei-o para almoçar em minha casa. Ainda não gostava dele, mas julgava-o maior do que eu, para quem um simples pedido de desculpas
é o mesmo que extrair um dente. Depois disso, pensei muitas vezes que ele poderia ter sido um bom bispo... É uma pena que você não o tenha encontrado. Eu gostaria
de saber a sua opinião.... Bem, até amanhã, meu Dante. Durma bem!
33
Não dormi. Fiquei acordado até tarde e, desesperadamente só, escrevi uma carta a Lili, não do Tio Pavel dessa vez, mas de Dante Alighieri Matucci, fugitivo, que
no dia seguinte teria de voltar ao submundo dos que não se conformam, nem se submetem à disciplina do formigueiro.
Querida Lili:
Esta carta é do seu fantoche que descobriu, tardia e penosamente, como pode controlar pouco o seu destino.
É muito tarde. A lua cheia está alta no céu e a terra toda está prateada. O silêncio é completo, tão completo que quase posso ouvir a respiração dos ratos atrás
dos lambris das paredes de meu quarto. O fogo está quase apagado e estou começando a sentir frio. Mas não quero ir para a cama porque você não está lá e eu não posso
evocá-la nos meus sonhos. Rasguei a sua última carta porque queria afastar você de meus pensamentos até que tudo isso estivesse acabado. Não adiantou. Não posso
esquecê-la. Não posso suportar o espaço vazio em meu coração. Sinto ciúmes, de que você possa ter achado alguém para tomar meu lugar no seu coração.
Amo você, Lili. Pronto! Está dito. Amo você! Tenho dito isso muitas vezes sem sinceridade, mentindo e brincando. Esta é a primeira vez que o digo com inteira verdade.
Quer se casar comigo, Lili? Se eu chegar um dia a um lugar tão pequeno que quase não tenha nome nos mapas, você virá e juntará as mãos, os lábios e o corpo comigo
para sempre e um dia além de sempre? Não responda enquanto não tiver certeza, porque quando você tiver certeza e eu estiver livre, eu a seguirei até as últimas fronteiras
para então voltarmos para casa.
Casa? Não tenho casa agora, Lili. Sou um fugitivo. As coisas têm corrido mal para nós, mas ainda há esperança de um bom resultado. Amanhã, vou deixar este ameno
refúgio e voltar para o submundo onde os mendigos conspiram contra os tiranos e os tiranos usam mendigos como espiões. Estou procurando um legado deixado por um
homem que eu penso que está morto. Se eu o encontrar, tudo será muito simples. Do contrário,' você poderá ver-me na Suíça mais cedo do que espera.
Tenho medo, mas não demais, porque estou aprendendo pouco a pouco a conviver com o homem que está por baixo de minha pele. Ainda não o vi frente a frente, mas isso
também virá com o tempo. A Salamandra ainda floresce e me está ensinando também as artes da sobrevivência.... Você talvez sorria, mas nunca pensei que pudesse sobreviver
tanto sem a companhia de uma mulher. Talvez a verdade seja que minha mulher nunca está tão ausente de mim que eu fique completamente sem ela.
É estranho como me lembro agora das palavras: "quella che m'paradisa la mia mente" - aquela que faz de meu espirito um paraíso. Meu homônimo escreveu muitas coisas
admiráveis. Foi uma pena que não tivesse escrito mais sobre o corpo. Este está muito solitário neste momento.
Sempre seu,
Dante Alighieri
Ainda tenho essa carta, pois ela me foi devolvida em circunstâncias que aqui serão posteriormente contadas.
Voltei para Milão no princípio da tarde e me instalei numa modesta pensione perto da Biblioteca Ambrosiana. Era limpa, confortável e econômica, o alojamento justamente
indicado para um viajante comercial cujos únicos bens visíveis eram uma maleta de fibra e uma pasta de couro com um fecho de segredo só para impressionar os fregueses.
Depois que tirei as roupas da mala, saí para ver o Castelo Sforza, a vasta fortaleza de tijolos vermelhos construída por Francesco, quarto Duque de Milão e fundador
da dinastia Sforza. Começara como um simples condottiere com um cavalo, uma espada e três conselhos do pai: nunca bater num servo, nunca montar num cavalo de queixo
duro e nunca dormir com a mulher de outro homem. Tomou-se o braço armado de Filippo Visconti, último de sua linha, gerou vinte e dois filhos ilegítimos, casou-se
com a filha de Filippo e, quando o Visconti morreu, entrou na cidade faminta com todos os seus homens de armas carregados de pão. Morrera de hidropisia em 1466,
mas o baluarte que ele construíra era ainda o orgulho de Milão.
Eram homens impetuosos os daqueles tempos, mas o seu gênio e os seus vícios se perpetuam nos italianos atuais e todos os que lidam conosco deveriam compreender isso.
Parecemos aos estrangeiros personagens de ópera, exagerados e fora da realidade. À recíproca é verdadeira. A ópera é apenas uma sombra pálida de nossa história e
esta se repete em ciclos mais breves. Filippo Visconti, por exemplo, foi exatamente como o Cirurgião. Jogava também gente pelas janelas. Suprimia planos e espiões
e enchia a cidade de aventureiros a fim de protegê-lo. Galeazzo Maria foi assassinado na igreja de Santo Estêvão por três jovens que ouviram missa primeiro para
pedir desculpas a Santo Estêvão da profanação de sua igreja. Onde Leonardo escreveu o Codex Atlanticus, levanta-se hoje o Edifício Pirelli como um monumento aos
sucessores de Leonardo.
Pensamentos sem objetivo talvez de um homem muito desprendido da segurança numa cidade onde todos os homens da polícia tinham o seu nome. Mas não era assim tão sem
objetivo e tão sem importância os pensamentos. O Major-General Leporello estava pulando mais alto do que o Visconti e o Sforza jamais tinham sonhado. Contentavam-se
estes com ducados e províncias. Leporello queria toda a Itália sob o seu punho. Dispunha de armas e comunicação além de toda a imaginação deles e não tinha Imperador
ou Papa a tolher-lhe os movimentos.
Enquanto eu percorria as galerias e corredores da fortaleza, pensava na melhor maneira de aproximar-me de Elena Leporello. Era minha última chance, o último animal
no último páreo. Se eu perdesse com ela, poderia tomar desde logo o caminho dos Alpes. Eu poderia escrever-lhe uma carta, que talvez fosse interceptada pelo marido
ou por um espião doméstico. Poderia abordá-la no meio da rua. Ela talvez gritasse e chamasse um guarda. Poderia telefonar. Era muito provável que ela me batesse
o telefone. Mas resolvi telefonar. Gratifiquei um dos guardas do castelo para que me deixasse usar o telefone de sua sala. Uma empregada atendeu e eu disse:
- Por favor, quero falar com o General.
- O General não está em casa. Por que não telefona para o Quartel-General?
- É o Quartel-General que está falando. A Signora está em casa?
Esperei durante algum tempo e, quando Elena Leporello chegou ao telefone, falei com rapidez e veemência.
- Por favor, Madame, diga eu o que disser, não desligue antes de eu acabar de falar. Quem fala é Dante Alighieri Matucci. Há uma ordem de prisão contra mim. Estou
escondido há vários dias. Leio os jornais. Não sei se o Capitão Roditi está vivo, morto ou exercendo as suas atividades normais. Pode-me dizer, sim?
- Posso, mas não neste momento.
- As notícias dão a impressão de que eu o raptei ou assassinei. Nada disso é verdade. Se ele está vivo, tenho de encontrá-lo. Está disposta a falar comigo, Madame?
- Estou.
- Quando?
- Qualquer dia entre dez e seis horas.
- Muito obrigado. Agora, escute com atenção. Às dez e meia da manhã, amanhã, vá à Biblioteca Ambrosiana. Peça o Virgílio de Petrarca. O funcionário o levará e ficará
ao seu lado enquanto estiver examinando o volume. Um amigo meu a procurará nessa ocasião e a levará para onde eu estou. Tudo entendido?
- Sim e muito obrigada.
- Está sendo vigiada?
- Não sei.
- Se achar que está, não compareça ao encontro. A mesma combinação prevalecerá durante três dias. Se não tivermos entrado em contato até então, tomarei a telefonar
para combinarmos outra coisa.
- Entendido.
- Meu amigo lhe dará um sinal de reconhecimento. Perguntará: “Seu nome é Baqueia Rabin?” Deverá responder: “É sim”. Faça então o que ele lhe pedir. Espere uma ausência
da cidade de quatro ou cinco horas.
- Compreendo.
- Quero fazer-lhe outras perguntas. Basta responder-me sim ou não... Posso confiar em Laura Balestra?
- Não.
- Pode confiar em seus empregados?
- Não.
- Confia em mim?
- Até nos encontrarmos, sim.
- Muito obrigado. Vou repetir. Biblioteca Ambrosiana, às dez e meia durante três dias. O Virgílio de Petrarca. Seu nome é Rachele Rabin?
- Sim. Obrigada. Adeus.
Até aí, muito bem. Mas como se pode saber em que terreno se está pisando com uma mulher habituada a toda sorte de simulações? Disquei o número do hotel de Steffi.
- Steffi? É Rabin quem fala. Shalom.
- Shalom, velho amigo. Como vai?
- Sobrevivendo. Está livre para jantar?
- Quem tem a minha idade está sempre livre para jantar. Onde?
- Alugue um carro e pegue-me às seis horas na entrada do Castelo Sforza.
- Seis horas? Quem pode jantar a essa hora?
- Ninguém. Vamos andar de carro primeiro. Gosta de mulheres ruivas?
- Mesmo que tenham cabelos verdes.
- Alguma notícia?
- Não. Só que estou para morrer de tédio.
- Boa notícia. Sbrigati eh! Ande depressa, sim? A distância é grande e o trânsito está difícil.
Eram seis e meia quando ele me apareceu. Daí a quarenta minutos, estávamos na autoestrada correndo a 120 quilômetros por hora na direção de Veneza. Enquanto seguíamos
através do ar quente e suave e por uma paisagem nublada de álamos e pomares, falei-lhe da minha conversa com Elena Leporello e do que pretendia fazer.
- Se Roditi disse a verdade - voltamos sempre a isso em todos os nossos raciocínios - Elena Leporello está de posse de filmes e gravações que poderão servir para
enforcar Leporello sem apelação!
Steffi voltou-se um pouco do seu lugar no carro e me encarou com os olhos límpidos e compassivo. Sorriu e moveu a cabeça vigorosamente para cima e para baixo, como
se fosse um desses bonecos que representam um mandarim chinês. Disse-me então pacientemente:
- Matucci, irmãozinho, é uma coisa evidente como o nariz em minha cara que você nunca foi casado. Que é que você sabe a respeito dessa mulher? Ela escreve belas
cartas de amor para um sujeito assustado que arranja homens para o marido dela! Provocou o marido durante um jantar. Qual é a mulher que não faz isso? Você devia
ouvir a minha quando eu derramo o molho da came na gravata ou digo alguma coisa sobre uma das pequenas chatas e lindas que trabalham para ela. E a amiga dela acha
que ela está interessada em você! Humm! Acha que isso é bastante para você arriscar a vida? O mal com vocês, solteirões, é que vocês não ouvem uma só palavra que
se diz entre alô e adeus. Agora, escute, irmãozinho. Não tire os olhos da estrada e ouça o que um velho homem casado tem para dizer-lhe. Essa mulher é doente. Pior
ainda, ela sabe disso e gosta. Ela precisa de um marido a quem possa maltratar e humilhar. Se ele for importante na sua profissão, tanto melhor. É o tempero do prato.
Ela precisa de um amante do mesmo tipo. Sem dúvida, ela lhe escreve cartas de amor... mais belas até que as de Petrarca. Mas ela lhe atribui duas filhas depois de
um caso de amor no verão e o pobre coitado aceita isso, porque ele é um pobre coitado e um sujo alcoviteiro também...
- Sei de tudo isso, Steffi, mas...
- Não há mas, nem meio mas, Matucci. Não tire os olhos da estrada e deixe-me acabar. Agora, você chega valsando à festa dela, todo enfeitado como um bolo de casamento.
Você ainda é novo e é um homem. É claro que ela se interessa. Você é um desafio. Ela tem de provar que pode dominá-lo e fazê-lo comer na mão dela como os outros.
Ela tem alguma coisa que você quer - pouco importa que não seja aquilo que ela gostaria de que você quisesse - e ela vai fazer você sentar-se e pedir, pedir, pedir...
E, se você não pedir, ela o entregará só para lhe mostrar quem é que está empunhando o chicote... Portanto, se não é isso o que você quer, não se meta nisso. Mas
é assim que eu interpreto o caso de Elena Leporello.
- Ainda que você tenha razão, Steffi, isso não resolve o meu problema. Ela tem alguma coisa que eu quero. Como é que vou conseguir essa coisa?
- Primeira pergunta: Onde é que ela a tem?
- Não sei.
- Segunda pergunta: Com quem ela a partilha?
- Não compreendo.
- Uma mulher como ela é, de posse de documentos tão sujos e completos até com fotografias, iria guardar tudo em segredo consigo mesma? Nunca e nunca. Tem de dizer
a alguém. Do contrário, onde estaria a graça?
- Laura Balestra?
- Talvez... Que é que você sabe sobre essa outra?
- Pouca coisa. Disseram-me que é rica e eu sei que é solteira.
- Que idade tem ela?
- De trinta para trinta e cinco anos.
- Que mais?
- É divertida e gosta de flertar, mas acho que procura sempre embebedar-se para não ter de dizer sim e poder sempre acusar o homem quando acorda numa cama que não
é dela. Pode-se dizer que é uma pequena quase... Quase apaixonada, quase noiva e quase nunca perto de se casar.
- Parece uma boa candidata para a coluna de escândalos dos jornais... Escute, Matucci, você dirige sempre assim? Sou dispéptico. Deixe-me viver para apreciar o meu
jantar.
- Vamos supor que Laura saiba onde o material está oculto e que me diga. E daí?
- Daí, irmãozinho, quem empunha o chicote é você. Pode ameaçar a mulher. Se ela não lhe entregar o material, você contará ao marido que ela o tem.
- Isso nunca daria resultado, Steffi!
- Não estou dizendo que você jamais compreenderá as mulheres? A não ser que se case e então será tarde demais!
- Deixe-me pensar no caso.
- Enquanto você pensa, vamos fazer uma aposta. Aposto dez mil contra mil como a mulher não vai aparecer na Ambrosiana amanhã.
- Fechado! Agora, que é que você quer jantar?
- Gostaria de começar com um coquetel Bacardi em companhia de uma ruiva...
34
Ele teve o seu coquetel no Harry’s Bar. Teve também a sua ruiva, muito embora Gisela Pestalozzi fosse demais até para o gosto embotado de Steffi. A aparência dela
deixou-o estarrecido e a conversa estridente e desbocada reduziu-o a uma confusão idiota, de modo que esperei a qualquer momento vê-lo bater em retirada ou esconder-se
debaixo da mesa. Entretanto, a casa que ela nos mostrou era uma pequena joia. A porta da frente dava para um vale tranquilo. Pelos fundos, podia-se entrar diretamente
num barco. Havia ainda uma janela de sótão, da qual se poderia passar para os telhados vizinhos até quando as telhas aguentassem. O aquecimento era mais do que adequado,
o telefone funcionava, os móveis estavam livres de cupins e as roupas eram limpas e novas. No nosso primeiro encontro, ela falara em 200 mil liras por mês. Acertamos
o preço em 150 mil. Não haveria contrato, nem prazo de locação. O nome da Salamandra era uma garantia suficiente de ambos os lados. Paguei dois meses adiantados
em dinheiro. Ela me entregou a chave e me deu alguns conselhos a título de desconto:
- Se quiser algum barqueiro, telefone antes para mim. Se quiser subornar um polícia, fale comigo antes de largar o dinheiro na mão dele. Se tiver algum problema,
não pise no Bar do Harry. Use o telefone. Para documentos falsos, há um prazo de entrega de quarenta e oito horas. O serviço será mais barato se tivermos mais tempo.
Não faça orgias aqui dentro, nem se meta em brigas. Terá descontos especiais de inquilino com as minhas pequenas... Quanto a você, velhote, é preciso deixar de ser
tímido. Já vi aleijados de oitenta anos jogarem longe as muletas...
Deixou-nos com todas as suas joias baratas tilintando e com aquela extraordinária cabeleira jogada para trás.
Steffi deixou-se cair numa cadeira e murmurou: - Meu Deus! Ela saiu diretamente do Museu de Cera! Casa segura coisa nenhuma! Com um monstro devorador de homens como
esse, você teria mais segurança num pátio de execuções. Mas para que precisa você desta casa?
- Não ria, Steffi! Pode ser que a partir de amanhã você também seja um fugitivo.
Olhando para ele então, de olhos arregalados e mudo, lembrei-me de um dos fatos menos úteis da história. Pietro Aretino morreu em Veneza. Não era um pornógrafo mesquinho
e morreu de apoplexia, ao rir de uma pilhéria suja.
Às dez horas da manhã seguinte, vestido com um macacão e um gorro de mecânico, todo sujo de graxa, estava eu mexendo num Fiat, a sessenta metros da entrada da Biblioteca
Ambrosiana. Não havia defeito algum no motor, mas eu estava nervoso e inquieto, um pouco desejoso de que Steffi ganhasse a aposta e eu pudesse encerrar o assunto
de consciência tranquila. As dez e um quarto, Steffi desceu a rua, parecendo sem sombra de dúvida um velho professor capaz de decifrar manuscritos do século XV ou
decidir uma interpretação controvertida a um meneio de seu chapéu de feltro preto. Estava assobiando “As Colinas Estão em Flor”, que, quando se reconhece a música,
é um sinal de que, por enquanto pelo menos, não há poliziotti à vista.
Às 10h25, Elena Leporello apareceu dirigindo um Lancia branco. Estava só e isso era outro bom sinal. Trancou o carro guardou as chaves na bolsa e, sem um olhar para
trás, entrou na biblioteca, descansada e calma como qualquer dona de casa milanesa que fosse fazer as compras da manhã. Aprumei o corpo, limpei a graxa das mãos
num chumaço de estopa, acendi um cigarro e inspecionei a rua para cima e para baixo da entrada. Havia a passagem habitual de transeuntes. Mas não havia gente parada
em atitudes suspeitas, nem a convergência de homens ou de carros que indicasse a prisão iminente de um tipo perigoso. Ebbene! Não me restava nada a fazer senão esperar,
e a espera podia ser bem longa porque o exame do Virgílio de Petrarca é uma das cerimônias mais solenes da Ambrosiana.
O volume é grande. O próprio diretor tem de autorizar a consulta. Um funcionário, reverente e vigilante, fica ao lado enquanto se folheiam as páginas com iluminuras
de Simone Martini, de Siena. Quando não se consegue ler a inscrição, escrita pelo poeta, o funcionário presta esse serviço ao consulente.
Laura, com todas as suas excelsas virtudes e por tanto tempo exaltada em meus poemas, apareceu pela primeira vez ante meus olhos, na flor de minha mocidade, no sexto
dia de abril do ano de Nosso Senhor de 1327 no começo da manhã, na igreja de St. Claire em Avignon...
Sempre tive inclinação para as cerimônias. Nos tempos em que eu era guia de turista, descobrira que uma leitura de Petrarca no original tinha resultados maravilhosos
com mulheres jovens e impressionáveis... Naquele momento, impaciente e coberto de suor de tanto nervosismo, acusei-me entre pragas de ser um idiota. Joguei fora
o cigarro, fechei o capô do carro e me sentei ao volante, passando a observar a entrada pelo espelho.
Às 10h55, Steffi saiu em companhia de Elena Leporello. Embarcaram no Lancia e partiram. Segui-os com bastante distância para ver se outro carro qualquer se juntara
ao cortejo. Na confusão barulhenta do trânsito de Milão, era difícil ter certeza de alguma coisa, inclusive de minha sanidade mental. Vi ou julguei ver um ou dois
seguidores prováveis, mas eles ficaram para trás. Quando chegamos à autoestrada, fiquei bem para trás, deixando muitos carros entre o meu e o Lancia, mas, ao passarmos
pela entrada para Verona, eu tinha plena certeza de que ninguém nos seguia. À altura de Pádua, o fato já não me preocupava, mas deixei que continuassem bem à minha
frente. As instruções de Steffi eram atravessar para Veneza, pagar um sanduíche para a mulher na Praça de S. Marcos e sair quando eu aparecesse. Iria então esperar-me
na casa segura. Elena Leporello poderia voltar para Milão no seu carro sozinha. Esperei que essa estratégia pudesse incutir no espírito dela que eu tinha deixado
Milão e estava escondido em algum canto da cidade dos Doges.
Fui diretamente para a casa, lavei-me e penteei-me, vesti calças esporte e um pulôver verde e dei uma volta para chegar à Praça de S. Marcos. Steffi me viu e se
afastou antes que eu chegasse à mesa.
Elena Leporello me recebeu friamente.
- Espero, Coronel, que haja algum sentido em todo esse pequeno drama sórdido.
- E eu espero, Madame, que me ajude a dar algum sentido ao mesmo. Já teve notícias do Capitão Roditi?
- Nem uma palavra.
- Seu marido sabe onde ele está?
- Não. Faz uma turma de investigadores trabalhar dia e noite no caso. Diz ele que sabe o que aconteceu no apartamento de Matteo. Você o forçou a escrever um documento
falso e acusatório e depois matou-o ou raptou-o.
- Como é que ele sabe disso?
- Por intermédio do notário que autenticou o documento no apartamento de Matteo. Foi preso e assinou uma confissão.
- Seu marido viu o documento?
- Isso ele não me disse.
- Como sabe então que é falso ou acusatório?
- É evidente que foi o notário que lhe disse.
- O notário não leu o documento. Limitou-se a assiná-lo e carimbá-lo.
- Mas o documento existe?
- Claro que existe.
- É acusatório?
- Sim... mas não falso. Gostaria de vê-lo?
- Sim.
Passei-lhe às mãos uma cópia fotostática da confissão de Roditi e observei-a atentamente enquanto lia. A cor fugiu-lhe do rosto. Tremia violentamente e eu pensei
por um momento que fosse perder os sentidos. Estendi a mão para sustentá-la, mas ela me repeliu com um gesto e continuou a leitura. Quando chegou ao fim, já estava
de novo controlada e esse domínio súbito de suas emoções não era coisa muito agradável de ver. Dobrou o documento cuidadosamente e devolveu-o. Em seguida, olhou-me
com frieza e desprezo.
- Isso é um montão de mentiras, Coronel, de mentiras monstruosas e horríveis.
- A letra é de Roditi.
- Mas foi você que ditou. O notário ouviu tudo do quarto onde estava.
- Só ditei depois de interrogá-lo. Ouviu isso também?
- Ouviu as suas ameaças e deve ter ouvido o resto.
- Tem certeza de que tudo é falso?
- Tudo!
- Então você e Roditi não foram amantes?
- É claro que não!
- Pois saiba que eu li suas cartas. Vi a sua fotografia com dedicatória. Roditi guardava tudo na gaveta da penteadeira.
- Não, Coronel. Não há cartas.
- Foram então tiradas de lá por ordem de seu marido. Mas nem todas. Uma delas está em meu bolso neste momento. E posso dizer-lhe que a fotografia foi feita por Donati,
em Bolonha. Ele fez uma cópia extra para mim... Vou lhe dizer mais uma coisa. Roditi, seu amante, era amigo de Giuseppe Balbo, que foi morto pela polícia há poucas
noites. Encontrei-os juntos no Alcibiade. Não, Madame Leporello, a declaração não é mentirosa e eu não estou mentindo. A senhora é que está mentindo. Por quê? Tem
medo de seu marido? Ou do que ele possa fazer à senhora e às crianças?
- Não, Coronel.
- Então escute. Roditi me disse que a senhora tem em seu poder fotografias e gravações que provam contra seu marido todas as acusações constantes do documento.
- Não tenho esse material, Coronel.
- Se suas cartas queriam dizer alguma coisa, a senhora amava Roditi. Ele também a amava, pois assim me disse.
- Amor passado pouco adianta, Coronel.
- Disse-me também que as gravações e as fotografias eram o único seguro de que a senhora dispunha em relação a seu marido.
- Não tenho esse material. E não preciso de seguro.
- Por quê? Porque Roditi morreu?
- Quem está dizendo isso é você e não eu.
- Ou é porque o testemunho dele está desacreditado e seu marido vai desistir por enquanto de suas pequenas manobras? E a senhora? Que espécie de mulher é a senhora?
- Vou lhe dizer que espécie de mulher sou eu, Coronel. Se meu marido tiver habilidade suficiente para se livrar dessa confusão, terá habilidade também para subir
até o alto da árvore. E eu quero estar lá também com ele. Se meu marido não conseguir... Ora, sempre haverá outro dia para mim.
- Pode resolver esta questão agora mesmo, sabe? Há um polícia ali e dois Carabinieri na entrada de S. Marcos. Diga-lhes quem sou e mande-me prender.
- Não, meu caro Coronel, ainda não tenho juízo inteiramente formado a respeito de sua capacidade e não sei se está ou não à altura de meu marido. É um jogo, compreende?
Sou uma espectadora privilegiada. Vou ficar de lado a gozar tudo. Poderia até gozar uma hora na cama com você agora, se estiver interessado e se sua casa não for
muito longe.... Não? Fica então para outra vez, quem sabe? A verdade é que eu sou muito melhor do que Laura... A propósito, soube do que foi que houve com ela?
- Não. Que foi?
- Deu uma batida com o carro numa árvore na noite passada. Ele bebe demais, como sabe. Sempre lhe dei muitos conselhos. E meu marido também.
- Está muito machucada?
- Os médicos acham que vai escapar, mas poderá ter uma vida apenas vegetativa... É uma penal Era tão bonita! Bem, adeus, Coronel.
Ela me estendeu a mão. Mas não a pude apertar. Nem me levantei quando ela se afastou. Fiquei sentado, vendo-a atravessar a praça, de cabeça erguida, quadris ondulantes,
lépida como uma pequena à procura de alguém. Os pombos batiam asas em nuvens à passagem dela e o garçom que depositava o meu troco em cima da mesa suspirou melancolicamente
de ver tanta mulher desperdiçada assim. Era veneziano, mas tinha esquecido a sabedoria cínica de seus antepassados. Quando mandavam um embaixador ao estrangeiro,
deixavam-no levar o seu cozinheiro. Mas faziam-no deixar a mulher em casa.
Era tudo derrota e desastre e parecia não haver qualquer saída. Steffi resumiu tudo num conciso discurso de despedida.
- Xeque-mate! Você não tem mais para onde ir, irmãozinho. Sua última esperança - e bem pequena - é o cofre do banco. Gostaria de poder ajudá-lo, mas não posso. Vou
voltar para Roma. Se precisar de mim para alguma coisa, telefone-me. Mas vou lhe dar um pequeno conselho... Desligue-se de tudo agora e vá para junto de sua pequena
na Suíça. Manzini que se incumba do resto. Aqui, você está numa armadilha. Pior ainda, você está num vácuo, o que é deprimente. Você conhece bem o sistema. Os adversários
o imobilizaram. Só lhes resta agora esperar. Mais cedo ou mais tarde, você cometerá algum pequeno erro e eles deixarão cair a armadilha. Gosto de você, Matucci,
só Deus sabe por quê, pois você só me tem dado aborrecimentos e úlceras! Não o quero ver podado antes de ter tido uma chance de crescer...
Depois que ele saiu, telefonei para Manzini, que se mostrou igualmente sombrio. Disse-me que tinha pensado numa campanha de imprensa para turvar as águas, mas que
os riscos eram muito grandes: riscos de uma ação por crime de imprensa, riscos de que leis antigas fossem invocadas para impedir a publicação, riscos de que os amigos
tímidos no Quirinal pudessem ser prejudicados por uma ação inoportuna, riscos de fomentar desordens públicas. Sugeriu também que eu fosse para a Suíça. Parecia cansado
e desanimado e tive dúvidas sobre o seu estado de saúde.
Quando larguei o telefone, vi-me tomado subitamente de violenta reação. Praguejei, gritei e dei pontapés através do apartamento num frenesi de frustração. Era incrível
que com tantas provas na mão nada pudéssemos fazer. Era monstruoso que um homem pudesse manobrar um braço da lei a ponto de transformá-lo num elemento do crime.
Era uma vergonha que um canalha como Leporello pudesse transformar-me num fugitivo, enquanto a cadela da mulher dele troçava da mim e se oferecia para ir para a
cama comigo. E, para cúmulo, estava numa casa vazia, sem comida e sem bebida e com medo de botar o nariz fora de casa. Ora, com todos os diabos!, eu não era um criminoso.
Por que procederia como se fosse? Que fossem todos para o inferno! Eu ia ficar!
35
Como ia ficar era outra coisa. Precisava de pensar nisso diante de um jantar e de uma garrafa de vinho. Não me dei ao trabalho de mudar de roupa. Fui até a Calle
dei Fabbri e encontrei um restaurante simples onde a comida era cheirosa e o garçom, amável. A noite estava amena e eu me sentei do lado de fora onde podia ver as
mulheres de Veneza, que são melhores em carne e osso do que Ticiano as pintou. Pedi um risoto, um prato de peixe e uma garrafa de Barolo, preparando-me, então, para
gozar o meu jantar como qualquer cidadão honesto. Era um bom jantar e eu o saboreei de bocado a bocado. Estava descansado e feliz a tomar o meu café quando dois
Carabinieri me colheram como uma laranja num cesto e me levaram para a Questura.
Foram muito polidos. Dispensaram toda a rotina habitual e me levaram diretamente ao Comandante. Este olhou para os meus papéis e me perguntou se eu era a pessoa
ali descrita: Aldo Camera, viajante comercial. Assegurei-lhe que era e perguntei se era acusado de alguma transgressão. Disse-me que não. Tudo era por causa do pulôver
verde. Tinha eu estado na Praça de S. Marcos naquela tarde? Tinha, sim. Isso explicava tudo então.
Mas explicava para ele e não para mim e eu lhe perguntei se havia alguma coisa de especial a respeito de um pulôver verde. Ele reconheceu que nada havia de especial
senão o fato de que ele pessoalmente não gostava muito de verde. Entretanto... às três horas da tarde, uma mulher, que não quisera dar o nome, telefonara para a
Questura dizendo que identificara um homem vestido com um pulôver verde como um homem chamado Dante Alighieri Matucci, que estava sendo procurado para averiguações
em Milão. Ela vira o retrato dele nos jornais.
Bem, o Comandante tinha sido informado do caso Matucci, que era um assunto altamente político, no qual ele imo pretendia envolver-se. Compreendia que um agente de
um serviço secreto era muitas vezes portador de uma identificação falsa Assim, se eu fosse de fato o Coronel Matucci, o caso dos documentos falsificados podia ser
facilmente resolvido. Trouxe então uma fotografia minha e uma série de impressões digitais dos arquivos do SID. Sorri, ele sorriu e nós ambos concordamos que aquela
era a sorte do jogo.
Ofereceu-me uma xícara de café. Perguntei se podia dar um telefonema. Ele tomou a sorrir e me mostrou uma ordem de serviço, segundo a qual, se Dante Alighieri Matucci
fosse capturado, devia ser mantido incomunicável até novas ordens da sede de Milão. Ia telefonar para Milão naquele momento. Era com pesar que procedia assim com
um colega superior do Serviço, mas eu devia compreender que nada havia de pessoal. Pediu-me que ficasse à vontade até que ele voltasse.
Um piscar de olhos vale tanto quanto um sinal expresso de assentimento para um elefante cego. Usei o telefone na mesa dele, pedi uma linha e fiz uma ligação interurbana
para o apartamento de Manzini em Milão. Ele não estava, mas o criado recebeu o recado. Foi uma decepção, mas ao menos Manzini saberia o que me havia acontecido.
Havia outra migalha de conforto. O Cirurgião estava morto e eu estaria livre de suas genitais atenções.
O Comandante ficou ausente por muito tempo. Voltou, parecendo grave e preocupado. Disse-me que eu estava formalmente preso e que devia fazer entrega de todos os
meus objetos pessoais, pelos quais me seria passado um recibo. A ordem era deter-me durante a noite na Questura e mandar-me na manhã seguinte para Milão.
Um brigadiere me escoltou até a célula de detenção. Um carcereiro trancou a porta. Cerca de quinze minutos depois, o brigadiere voltou acompanhado de um guarda e
de um homem de casaco branco com tuna cuba coberta por uma toalha. Apresentou-se como o médico da polícia e me pediu que arregaçasse a manga, dizendo que ia dar-me
um sedativo. Protestei vigorosamente contra esse atentado aos meus direitos e à minha pessoa. O médico sugeriu que seria mais simples se eu concordasse, pois do
contrário ele seria forçado a recorrer à violência. Obedeci. Arregacei a manga da camisa e torcia-a como um torniquete. Senti a picada da agulha e comecei a contar
um-dois-três...
Então, todas as luzes se apagaram.
LIVRO III
“Mudamos tudo isso”.
- MOLIÈRE: Le Médecin Malgré Lui
36
Acordei - ou sonhei que tinha acordado - dentro de absoluta escuridão e de absoluto silêncio. Eu estava - ou sonhava que estava - flutuando no espaço indeterminado
num continuum intemporal. Não estava triste; não estava feliz; não sentia dor; existia apenas. A princípio,- isso foi bastante; a flutuação, o sonho e o simples
existir. Comecei então a sentir-me inquieto, a princípio levemente e depois cada vez mais agudamente. Alguma coisa estava ausente. Não podia definir o que era. Não
podia definir coisa alguma. Meu espírito era um turbilhão de névoa. Eu estava tateando sem mãos no nada.
A névoa se dispersou lentamente em fluxos e refluxos. Lenta e intermitentemente, comecei a recolher as partes esparsas de mim mesmo. O polegar encontrou as pontas
dos outros dedos. A língua encontrou a abóbada palatina. As pálpebras piscaram. Em algum ponto do nevoeiro, meus pés roçaram um no outro. Em seguida, as partes formaram
um tudo e eu tive consciência de que meu corpo e eu ainda estávamos juntos. Pude levantar a mão - as duas mãos - e passá-las pelo rosto, pelos ombros, pelo peito,
pela barriga e pelos órgãos genitais. Estava ali nu e deitado numa superfície dura e plana, quente ao meu contato.
Fui então dominado pelo pânico. Estava enterrado vivo. Estava cego. Estava surdo. Estava mudo. Quando gritei, nenhum som me saiu da garganta ressecada e apertada.
Fui coberto por um suor de terror e me encolhi numa bola fetal para assim fugir do horror do nada. O pânico subia e cala incessantemente, como ondas numa praia,
mas lentamente, lentamente se tomou um simples arfar, constante, ameaçador, mas não mais uma loucura. A névoa em meu espírito se transformou em filamentos e teias,
mas, ao menos, eu sabia que eu tinha um espírito e devia começar a usá-lo.
Primeiro, dei instruções a meu corpo para que se desenroscasse. Com relutância, o corpo obedeceu. Pedi então aos dedos que explorassem o ambiente imediato. A laje
na qual eu estava estendido parecia de mármore ou de pedra bem lisa. Terminava alguns centímetros além de qualquer dos lados de meu corpo e acima e ao redor dela
havia o espaço vazio. Embaixo, os dedos encontraram um chio não pavimentado, um tanto áspero e mais frio do que a laje. Não sabia até onde se estendia. Bastava-me
ter encontrado um ponto de apoio na realidade.
Tratei de fazer então uma pesquisa do meu íntimo, à procura de pontos de reparo no tempo e de sustentáculos na memória. Era mais difícil. Havia dentro de minha cabeça
um caleidoscópio que fazia certos desenhos, fragmentava-os, rearrumava-os e os dissolvia num fluido monocromo. Fui afastado numa onda de pânico, entrei em desespero,
rolei de um lado para outro batido por várias correntes e flutuei novamente livre.
Por fim, uma imagem se manteve e um ponto de reparo se firmou: uma mulher que caminhava por entre uma revoada de pombos e um homem de pulôver verde sentado a uma
mesa a olhá-la. Poderia partir daí para a frente ou para trás. Comecei a chorar calmamente na escuridão. Às lágrimas me faziam bem. Caíam como óleo em águas revoltas.
Quando se secaram, compreendi que ainda era um homem. Eu sabia disso e sabia também o que havia acontecido comigo e o que iria acontecer dentro em breve.
Quando se visitam os museus do mundo, encontram-se vários instrumentos de tortura: cavaletes, tomos para os polegares, chicotes farpados, donzelas de ferro, alicates,
ferros de marcar e máquinas de choques elétricos. Os mais poderosos instrumentos de tortura nunca são vistos. São trevas e silêncio. Cada um deles é uma ausência,
uma negação. As trevas são uma negação da luz. O silêncio é uma negação do som. O mal, para S. Tomás de Aquino, é uma negação do bem. Meu homônimo, Dante Alighieri,
escreveu um poema sobre o inferno que se tomou um dos grandes livros do mundo. Posso agora testemunhar que ele não sabia o que estava dizendo. O inferno não é mais
que um lugar escuro e silencioso. A condenação eterna significa estar trancado nesse lugar... sozinho.
Deixem-me explicar. Se vier o dia dos tiranos, pode ser que todos tenham também necessidade de compreender isso. Conhecem a palavra parâmetro? Muitas pessoas a usam,
mas poucas lhe compreendem o sentido ou a importância. O dicionário a define como “uma quantidade constante no caso considerado, mas variável em casos diferentes”.
Vamos reconhecer que essa definição pouco ou nada significa. Mas vamos supor que uma noite se vá dormir e, ao acordar na manha seguinte, não se veja mais a torre
de igreja ou a árvore que estavam sempre emolduradas pela janela. Vamos supor que se abra a porta da cozinha e se encontre, em lugar dela, um jardim de rosas. As
qualidades constantes da vida teriam desaparecido. A pessoa estaria perdida e diria: Não sei onde estou. Se as mudanças continuassem de dia para dia, a pessoa acabaria
uma vítima da inconstância das coisas e diria: Não sei quem sou.
Mas vamos supor... Vamos supor que, de repente, todas as constantes desaparecessem: a torre da igreja, a cozinha, o amanhecer e o anoitecer, o Sol, a Lua, as estrelas
e até a luz... Vamos supor também que as inconstantes sumissem: os carros na rua, as pombas na horta, a torneira que pinga, as nuvens que ' passam, o vento, o barulho
da chuva, as vozes humanas dispersas... Então a pessoa estaria condenada além de qualquer remissão.
É isso o que acontece quando se fecha um homem dentro de um lugar escuro e silencioso e ele é ali deixado. Nada tem contra que se possa medir exceto os limites do
chão e a monotonia dessa medida ajuda a levá-lo à loucura. Não tem noção de altura, nem de tempo. Está desligado do seu passado e não tem qualquer expectativa do
seu futuro. O seu presente é escuridão e silêncio. Não pode distrair o espírito com coisas mínimas - uma mosca a esvoaçar de encontro a uma vidraça, uma formiga
que se arrasta pelo chão, as partículas de pó num raio de sol. Os seus únicos pontos de referência são os contornos de seu corpo, os contornos fixos das paredes,
do chão e do lugar onde está deitado, bem como o pequeno mundo da memória dentro de sua caixa craniana. E tudo isso é menos, muito menos que suficiente para mantê-lo
em equilíbrio mental.
Posso dizer o que acontece porque aconteceu comigo. Foi planejado para acontecer assim. Foi concebido e executado como a mais cruel vingança que um homem pode exercer
contra outro.
... Fica-se sozinho naquele vazio escuro e silencioso. Diz-se consigo mesmo: eu sei quem sou. Sei o que estão tentando fazer comigo. Mas não deixarei que o consigam.
Vou retirar-me para dentro de meu cérebro e viver ali, nutrindo-me de lembranças, de esperanças, de fé e de amor, todo o capital de uma vida. Vou apegar-me aos fatos
que eu conheço: que aquele vazio é na realidade algum lugar e que fora dali há seres humanos e animais, coisas sólidas e tangíveis. Sei que terão de dar-me comida
ou, pelo menos, alguma coisa para beber. Essa ausência perpétua de movimento é tão impossível quanto o movimento perpétuo. Alguma coisa tem de acontecer em alguma
hora; do contrário, por que iriam ter tanto trabalho para me atormentar? Alguém virá, quando nada para rejubilar-se. Do contrário, teria sido muito mais simples
meter-me uma bala na cabeça e jogar-me numa vala.
...Ah! Tudo é ilusão. Ninguém aparece. O silêncio e a escuridão continuam inalteráveis. Descobre-se no primeiro circuito das paredes que deixaram três garrafões
de plástico de água, o bastante para prolongar a vida por muito, muito tempo. Descobrem-se outras coisas também. O mundo dentro da cabeça bem depressa se torna confuso.
Procura-se uma recordação e encontra-se outra. As imagens passam rapidamente sem que seja possível focalizá-las. Procura-se apoio na esperança e resvala-se por doloroso
desespero. Tenta-se rezar e acaba-se praguejando. Procura-se recitar poemas e balbuciam-se coisas desconexas. Ao fim de três dias, embora já se tenha desde muito
esquecido o tempo, as alucinações são constantes e, ainda que alguém entrasse, não se poderia saber se era real ou não.
É esse o truque, percebem? Eles vêm, mas a gente não sabe. Levantam-nos do chão e injetam barbitúricos a fim de que as alucinações continuem. Pingam bastante glicose
nas veias para manter a vida e enchem-nos de novos receios para que cada vez cheguemos mais perto da beira do precipício do desequilíbrio mental permanente.
Soube depois que passei quinze dias ali. Quando me tiraram, fiquei durante algum tempo cego, mudo e atáxico, trôpego como um animal, barbado e imundo com os meus
dejetos. Deram-me sedativos enérgicos durante quarenta e oito horas. Quando voltei a mim, estava certo de que tinha morrido e chegara, graças a algum erro cósmico,
ao Paraíso.
Havia tanta luz que eu só podia suportar por um breve espaço de tempo, depois do que tinha de fechar os olhos para afastá-la. Havia flores numa mesa. Lembro-me de
que eram irisadas, azuis, amarelas e purpúreas. Sempre que eu abria os olhos, havia uma bela enfermeira dentro do quarto, às vezes perto da cama, às vezes sentada
numa poltrona a ler. Durante algum tempo, pensei que fosse Lili. Mas, depois, quando pude concentrar-me um pouco, ela me disse que se chamava Cláudia e que eu tinha
estado muito mal, mas estava melhorando.
Sempre que a luz começava a declinar, eu ficava inquieto e nervoso com receio de que se fosse de todo. Mas isso nunca acontecia. Aparecia sempre outra enfermeira
e acendia as lâmpadas. Até quando eu dormia, havia sempre uma pequena lâmpada acesa. A enfermeira da noite, não era tão bonita quanto Cláudia, mas era muito gentil
e solícita. E muito paciente também. Às vezes, eu falava, falava até que não podia mais parar. Em outras ocasiões, ficava mal-humorado e calado, olhando para o pequeno
círculo de luz no teto, com raiva de mim mesmo, com raiva de tudo e incapaz de alterar a tendência fixa e horrível de meus pensamentos. Quando eu falava, ela escutava.
Quando eu ficava calado, ela é que falava, numa torrente firme de coisas tranquilas e insignificantes que acabavam embalando o meu sono.
Todos os dias, o médico aparecia, examinava-me e conversava um pouco sobre minha doença, que, segundo ele, era uma disfunção psíquica provocada pelo que me acontecera
na prisão. Disse-me que era uma coisa que se curaria por si. Só havia necessidade de um pouco de tempo e de paciência, alguns sedativos e a terapêutica simples da
comunicação humana. Mais uns dois dias de repouso absoluto e ele me deixaria passear no jardim. Quando lhe perguntei onde eu estava, disse-me que estava na clínica
dele e não adiantou mais nada.
Disse-lhe que estava sofrendo de pesadelos. Assentiu satisfeito e me informou que isso também era um processo de cura. O subconsciente agia sobre o intolerável a
fim de torná-lo tolerável. Disse-lhe que sentia dificuldade em lembrar-me das coisas, que não podia concentrar-me para ler coisa alguma e que raciocinar sobre a
proposição mais simples exigia um esforço enorme. Explicou-me que tudo isso era a reação natural de um organismo que fora exigido além da sua capacidade normal de
resistência. Recusava-se muito simplesmente a funcionar até que estivesse bem descansado e preparado. Quando lhe perguntei se ainda estava preso, sorriu e disse
que eu estava em liberdade, mas que tinha de ser preparado para que pudesse gozar a liberdade que tinha.
Tudo isso era agradavelmente vago. Mas, pouco a pouco, um por um, novos parâmetros se estabeleceram e eu comecei a me firmar de maneira mais confiante nas realidades
que me cercavam. As realidades distantes ainda eram vagas. Pensava muitas vezes em Lili, Manzini e Steffi, mas não podia apreendê-los como parte do presente, nem
podia sentir muito que estivessem ausentes. Apareceriam ou eu iria até eles em algum futuro próximo, que eu não tinha ainda necessidade de determinar era dias ou
semanas. Todo o meu conceito do tempo era ainda um pouco incerto. Nunca perguntava a data ou a hora. As realidades hostis, Leporello, a mulher dele, o Diretor, eram
tão vagas que se tornavam quase insignificantes. De alguma forma, que eu não podia ainda compreender, tinha sobrevivido a eles. Tinha passado através deles como
se fossem uma parede de papel e emergira do outro lado. Ao olhar para trás, via apenas imagens esfrangalhadas batidas pelo vento.
Quando me permitiram levantar-me da cama pela primeira vez, fiquei espantado de ver como estava fraco e inseguro. Meu senão de equilíbrio fora afetado e eu tinha
a impressão de que o corpo se balançava ora para um lado, ora para outro. Se virava a cabeça de repente, ficava tonto. E o primeiro passeio breve que dei até a janela
me deixou fraco e trémulo. Até a vista do exterior foi um choque para mim. Vi-a a princípio numa só dimensão. De repente, ela se solidificou e adquiriu perspectiva.
Havia um mirante, com cadeiras de bambu e guarda-sóis coloridos. Depois do mirante, havia um gramado com canteiros de flores e depois uma fila compacta de ciprestes,
negros contra um céu muito límpido. Tudo era muito agradável à vista, mas nada me dizia. Não havia gente, nem pontos de referência. Ao fim de alguns momentos, a
vista me cansou e foi com prazer que voltei para a cama. Cláudia me passou uma esponja pela testa úmida, ajeitou os travesseiros, fechou-me os olhos com as pontas
dos dedos e me disse que tratasse de dormir.
Quando acordei, a lâmpada da noite estava acesa e Bruno Manzini estava de pé ao lado de minha cama. Aproximou-se, tomou-me as mãos e assim ficou por muito tempo
num cumprimento sem palavras. De repente, sem qualquer razão, comecei a chorar. Manzini tirou o lenço do bolso e me enxugou as lágrimas. Depois, sentou-se na cama
e começou a falar para que eu me recuperasse.
- Foi uma estrada difícil, não foi, meu Dante? Mas você venceu. Mais dez dias e vai sair daqui. Vou levá-lo comigo para Pedognana. Vai gostar, não vai?
- Vou, sim. Sinto-me muito fraco e desorientado. Não sei o que há comigo.
- Você passou uma temporada no inferno, meu amigo. É uma coisa de que a gente leva tempo para se recuperar.
- É o que parece. Onde é que eu estou?
- Perto de Como. É uma pequena clínica psiquiátrica financiada por mim. Não, não se preocupe. O seu estado mental é perfeito. Mas não seria se tivessem levado mais
tempo com você.
- Como foi que vim para cá?
- Fui eu que o trouxe. Gastei dez dias e muito suborno para descobrir onde você estava. Depois, tive de obter uma ordem judicial para conseguir a sua libertação.
Isso foi mais difícil, mas afinal deu resultado. É claro que você está sob liberdade provisória. Ainda pesam as mesmas acusações contra você.
- Não posso compreender como foi que Leporello me deixou livre.
- Estava convencido de que você se achava irremediavelmente aniquilado. E, se não concordasse, o Movimento perderia um polpudo cheque meu. Ele pode ainda levá-lo
aos tribunais. Felizmente, temos agora testemunhos médicos do tratamento a que você foi submetido e eu não creio que ele queira que isso seja revelado neste momento.
- Não pode fazer uma ideia do que é...
- Isso passou. Está acabado e eu me orgulho de você, meu Dante
- Tudo está aos pedaços. E eu não posso juntá-los.
- Você juntou tudo antes que isso acontecesse. Temos tudo em nossas mãos. Suas notas sobre os microfilmes, as gravações e as fotografias do banco. Podemos destruir
Leporello agora e o Diretor com ele.
- Sabe o que foi que aconteceu a Roditi?
- Sei, sim. Foi submetido ao mesmo tratamento. Não representa mais perigo para Leporello e não tem utilidade para mais ninguém.
- Creio que também não vou ser de muita utilidade para você...
- Escute, Dante! Escute bem! Você é um homem de sorte, de tanta sorte que não pode ter compaixão de si mesmo. Você não se pode entregar agora. Se fizer isso, vai
dar a vitória a Leporello e tudo o que você sofreu terá sido inútil. Por outro lado, você me tem feito gastar uma soma fabulosa... Coragem, homem! Já passei pelo
que você está passando. Mas galguei a montanha sombria e cheguei à luz do sol do outro lado. Você tem de fazer isso também!
- Estou tão cansado...
- Experimente sentir um pouco de ódio, meu amigo. É o melhor estimulante do mundo.
- É tudo muito grande e muito complicado. Só me dá vontade é de largar tudo e ir embora.
- Calma, descanse. Falaremos sobre isso em outra ocasião. Virei vê-lo de novo daqui a alguns dias.
Tive prazer em vê-lo sair. Eu queria ter pena de mim mesmo. Merecia um pouco de piedade e aquele velho terrível não queria dá-la. Afastá-lo-ia dos meus pensamentos
e mais tarde, quando estivesse bom, afastá-lo-ia de minha vida.
No dia seguinte, senti-me mais forte e fiquei sentado durante uma hora no terraço olhando as revistas de escândalo. No outro dia depois deste, fiz o meu primeiro
circuito dos jardins com Cláudia e descobri que podia andar sem tropeçar e falar sem confusão e sem fadiga. À noite, assisti a um programa na televisão, ri das pilhérias
do cômico, marquei o compasso da música o estranhei que minha enfermeira não estivesse presente para partilhar o prazer comigo.
Naquela noite, não me foram dados sedativos pela primeira vez e eu fui sacudido por uma série de sonhos desconexos. Acordei de olhos vermelhos e irritado, mas consciente
de que ganhara muito terreno na subida pelo lado sombrio da montanha. Depois disso, passeei nos jardins todas as manhãs, andando como um monge em meditação de um
lado do gramado para o outro, impregnando-me de sol e do colorido das flores e sabendo que os parâmetros se mantinham firmes e que eu começava a ser de novo um homem.
Estava já lendo matéria impressa, revistas ilustradas e romances leves, que eu nunca acabava, pois o meu poder de concentração diminuía ao fim de uma hora. Levavam-me
jornais, mas eu não os abria. Os jornais eram o dia de hoje. Representavam uma responsabilidade que eu ainda não estava pronto a assumir.
37
Manzini foi então ver-me de novo. Levou-me uma garrafa de champanha e um pote de caviar fresco. Fizemos um piquenique no terraço e depois passeamos pelos jardins.
Ele elogiou as minhas melhoras, mas eu tinha receio dele. Não queria que perturbasse o meu conforto ainda precário. Não perturbou. Destruiu-o com um único golpe.
- Tenho más noticias para você, meu Dante. Lili Anders está de volta à Itália. Está presa na Maddalena, em Roma.
- Não... não pode ser verdade.
- É, sim. Seu Diretor me telefonou ontem para dar-me a grande noticia. Pediu-me que a transmitisse a você.
- Mas por quê? Como? Foi deportada pelos suíços?
- Veio espontaneamente. Entrou no país pelo Brenner e foi presa pela polícia da fronteira.
- Mas foi uma loucura dela! Não posso compreender!
- Parece que foi chamada por você por um telegrama I
- Como seria possível isso se eu estou fora de ação há quase quatro semanas?
- Bem, foi isso o que o Diretor me disse. O seu telegrama dizia que ela já podia voltar. Você iria esperá-la em Bolzano com todas as providências já tomadas para
o casamento. Ela levava o telegrama na bolsa e mostrou-o à policia da fronteira quando foi interrogada.
- Foi uma cilada!
- É claro. Mas ela caiu diretamente nela.
- Temos de salvá-la!
- Como, meu Dante? Você mesmo colheu as provas contra ela e preparou o dossiê. Dispersou a rede dela e prendeu o chefe, o Pica-pau. Será muito difícil você desmentir
o seu próprio testemunho, não acha?
- Mas o Diretor prometeu que a deixaria ir.
- E deixou. Ela voltou. Entrada ilegal, pelo menos.
- Mãe de Deus! Quanta traição, quanta sujeira! Tenho de sair daqui, Bruno!
- Não sei se seria uma coisa muito acertada.
- Pouco me importa que seja acertada ou não! Tenho de sair daqui! Vou tratar disso agora mesmo!
- Já que você quer, está bem.
Estávamos a meio caminho através do gramado quando um pensamento súbito me fez parar. Peguei-o rudemente pelo braço, sem ligar à sua idade, e fi-lo olhar para mim.
Perguntei então asperamente: -Foi você que fez tudo isso, Bruno?
Não houve nele um só tremor. Continuou firme e ereto como um pinheiro, a contemplar-me com os olhos frios e a boca cerrada sob o grande nariz de águia.
- Julga-me capaz de uma coisa dessas?
- Julgo, sim.
- Ótimo. Já aprendeu alguma coisa.
- Foi você?
- Poderia ser, se pensasse que seria útil. Mas não fui eu. Acho que foi você mesmo em algum momento daqueles quinze dias de disfunção e alucinação. Sei que você
disse coisas a meu respeito porque tive de mentir sobre elas depois. Sei que quase perdemos o depósito no banco porque Leporello conseguiu um mandado judicial para
abri-lo um dia depois de termos tirado tudo o que havia lá dentro.
- Oh! Perdão!
- Não é preciso pedir perdão. Pense naqueles que fizeram de você um traidor contra a sua vontade.
- Vou matar os canalhas!
- Desejam que você tente isso mesmo e estarão à sua espera. Se o agarrarem pela segunda vez, não haverá salvação para você... Não, Dante, agora as coisas serão feitas
à minha maneira.... Agora, vamos falar com o médico. Você não porá os pés fora daqui enquanto ele não me disser que está em condições.
O médico se mostrou muito hesitante. Só me deixaria ir se eu compreendesse bem os riscos. Eu ainda estava convalescente. Havia ainda disfunções que se poderiam tomar
agudas se houvesse alguma tensão. A memória me poderia falhar. Meu poder de concentração teria limitado ainda por muito tempo. Eu estaria sujeito a acessos de depressão
e ansiedade. Eu não poderia dispensar ainda por muito tempo as muletas dos sedativos e dos tranquilizantes. Quanto ao resto, eu devia confiar na natureza e não forçar
uma marcha muito rápida.
Isso era fácil de dizer e era impossível fazer com que a culpa da traição feita a Lili não doesse como um dente. No momento em que transpusemos os portões da clínica
e atingimos a paisagem cheia de sol da Lombardia, entreguei-me a profundo abatimento. Era Lili que devia estar em liberdade e não eu. Era Lili que devia estar viajando
com conforto e com o mundo inteiro a sorrir para ela. Em vez disso, estava presa com ladras, prostitutas' e infanticidas num covil medieval às margens do Tibre.
Manzini me deixou cismar à vontade e de repente me fez uma pergunta.
- Quais são realmente as suas intenções a respeito dessa sua’ mulher?
- Eu a amo.
- A ponto de se casar com ela?
- Já lhe propus casamento.
- Quando?
- Escrevi-lhe pouco antes de sair de Pedognana pela última vez. Eu lhe dei a carta para que fosse posta no correio em Chiasso.
- Julguei que você devia escrever-lhe como se fosse o Tio Pavel.
- Não o fui quando escrevi essa carta.
- Não foi um pouco irrefletido isso?
- Em face do que aconteceu, foi.
- Não sabe então se ela se quer casar com você ou não?
- Não... Por quê?
- Um pensamento vago. Deixei-o comigo por mais algum tempo... Há uma coisa mais importante. Acho que sabemos a data do golpe de estado.
- Quando, vai ser?
- No dia 31 de outubro, nos meados do outono. Os turistas já terão deixado o país e os diplomatas terão voltado das suas férias de verão. Os programas de adestramento
já terão terminado. Os transportes ainda estarão funcionando plenamente, o que não acontece durante o inverno. O mais importante é que a palavra está circulando
entre os iniciados... e está de acordo com as datas mencionadas nas suas notas sobre os microfilmes.
- Ainda temos cinco meses pela frente.
- Não conte muito com o tempo, Dante. Passa muito depressa. A opinião se está consolidando dos dois lados. Leporello é um esplêndido organizador e você não foi a
única pessoa que ele eliminou ou imobilizou. Os casos das bombas de Milão ainda não foram levados a julgamento. Várias testemunhas importantes desapareceram! Outras
têm sido sistematicamente intimidadas. Não, temos de agir antes do verão.
- Que é que quer que eu faça?
- Por enquanto, exatamente o que o médico mandou - repouso e recuperação. Há, entretanto, uma coisa que você poderá fazer sem prejuízo para a sua saúde.
- Que é?
- Receber seus amigos. Presumo que tenha amigos de sua categoria e posição no Corpo, não?
~ Tenho alguns. Mas estão espalhados pelo país e eu não sou muito de escrever cartas. É difícil manter contato.
- Terá tempo de sobra agora. Escreva algumas cartas. Dê alguns telefonemas diretos. Diga que tem estado doente e empenhado em grande esforço pessoal. Gostaria de
que fossem passar uns tempos com você em Pedognana. Temos muitos quartos de hóspedes. Poderão passear a cavalo e caçar... Não deixarão de vir.
- O que você tem em vista, Bruno?
- Uma guarda pretoriana. Dez homens seriam suficientes, desde que fossem determinados e compreendessem bem o que está em jogo. Segundo você mesmo disse, há muita
gente que não simpatiza com Leporello, nem com as suas atitudes.
- Se você me está pedindo que promova uma revolta das forças armadas, Bruno, nem pense nisso. Não estou ainda muito lúcido, mas posso-lhe dizer que isso é uma rematada
loucura.
- Quem foi que falou em revolta? Ao contrário, precisamos de homens que tenham orgulho das tradições do Corpo, zelosos de sua honra e do juramento que prestaram,
patriotas à antiga que não gostam de ver os seus concidadãos espezinhados e privados de justiça diante de testemunhas mentirosas.
- Compre-me um tonel e uma lâmpada, Bruno. Talvez assim eu tenha melhores chances.
- Está amargo hoje, hem, Dante? Mas eu concordo. Faça o papel de Diógenes e me consiga dez bons homens dispostos a botarem a cabeça no cepo por uma noite... Ah,
sim, trouxe as suas roupas do apartamento. Perdeu algum peso, mas ainda devem dar bem em você. Não posso nem ver essas coisas horríveis que você está usando.
Encerrou as conversas e ou estava tão cansado que não queria mais falar. Recostei-me no banco o cochilei devidamente até passarmos os portões de Pedognana.
Na hora dos coquetéis à noitinha, fiquei sabendo que havia outra pessoa hospedada na vila. Era a Princesa Pia Faubiani, prima doma da moda italiana e amante de Bruno
Manzini. Era esbelta, morena, alta, de busto pequeno e, para quem gostava de uma modella fina e glacial, muito bonita. À primeira vista, não simpatizei absolutamente
com ela. Sentia-me irritadiço, muito zeloso de minha intimidade e sem qualquer disposição a prodigalizar-lhe as atenções que ela evidentemente esperava. Estava também
desconfiado, em vista das referências equívocas de Manzini às suas relações com ela. Entretanto, a casa era dele e ele podia franqueá-la a quem bem quisesse. O mínimo
que eu podia fazer era esforçar-me por ser agradável.
Fui amplamente recompensado pelos meus esforços. Pia Faubiani era uma mulher espirituosa e inteligente, com suficiente malícia para sobreviver no mundo áspero que
explorava e com uma boa dose de afeição e bom humor para gastar com os amigos. Era bom não ser casado com ela - as suas garras eram alarmantemente afiadas. Mas para
ser uma companheira de divertimento... não haveria um segundo de hesitação.
Estava usando o broche da salamandra da exposição de Fosco e, quando falei nele, ela fez um comentário alegre, dizendo:
- É um presente de despedida. Esta é a minha primeira e última temporada com Bruno.
Manzini riu e levantou o copo num brinde.
- Você é muito jovem e eu sou muito velho, meu bem, e eu detesto ficar em segundo lugar seja lá em que for. Além disso, do jeito pelo qual você vive, vai precisar
de um banco seu, só para fazer a contagem dos juros. Essa mulher aí, D ante, é a pessoa de mais imaginação e de pior contabilidade na indústria da moda. Não me canso
de dizer a ela que se deve casar com uma mina de ouro, pois do contrário acabará na prisão por falência fraudulenta,
- Eu estava pensando era num convento agora que você me abandonou, querido.
- Nunca abandonei uma mulher em toda a minha vida e você sabe disso. Saí apenas com honra do campo de batalha.
- Com honra! Vejam só! Você é uma velha raposa, Bruno! Buon giorno... buona notte... ciao, bambina... e você já está bem longe, lambendo os beiços. Esse homem, Dante,
já teve mais amantes do que eu já tive aniversários e eu não acredito que tenha amado uma só vez na vida.... Já amou algum dia, Dante?
- Trate-o com cuidado, Pia. Está apaixonado e a amada dele está na prisão.
- Oh, sinto muito...
- Por isso, você vai dar-lhe um pouco de alegria para me fazer a vontade.
Era evidentemente uma surpresa chocante tanto para ela quanto para mim. Pia ficou com um pedaço de bolo com creme precariamente equilibrado na ponta do garfo e olhou
para Manzini.
- Vou mesmo? Fico contente de que me tenha dito, querido.
- Se você deixar cair esse bolo, vai estregar um vestido muito caro e bonito. Ponha-o na boca, assim, como uma boa menina..: Não admira que Deus se enfastie, Dante.
Ninguém lhe faz mais surpresas. Onde era que eu estava-? Ah, sim! Ia falar no que você, minha Pia, tem de fazer para mim. Quando vai fazer o seu desfile em Bolonha?
- Na quarta-feira que vem.
- E em Milão e em Turim?
- Em cada cidade dez dias depois da outra.
- Depois disso, estará livre? ¦
- Exatamente livre não, querido. Terei de voltar para Roma e...
- Eu sei, mas poderia vir aqui por dois ou três dias, não? É a temporada de despedida, sabe?
- É claro. Mas por quê?
- Quero que você seja a dona de casa para ir a uma reunião aqui em Pedognana. Venho prometendo apresentar Dante a algumas pessoas. Desde que ele chegou a Milão passou
por momentos difíceis, como eu já lhe disse, e precisa de alguma diversão.
- Por favor, Bruno! Uma reunião é a última coisa de que eu preciso.
- Pode ser a última antes de seu julgamento. Além disso, você tem um mês inteiro para ir se habituando à ideia. Divirta-se, homem! Divirta-se! Dentro em pouco, os
outros poderão estar fazendo brindes aos nossos funerais. Vai fazer isso por mim, não vai, Pia?
- Você sabe que sim.
- E se vir esse camarada aí embezerrado num canto como uma coruja, faça-o sair, apresente-o às suas pequenas, seduza-o pessoalmente, se quiser... Mas arranque-o
da depressão, ouviu?
- Às suas ordens, Cavaliere.
- Gostaria de que estivesse mesmo, meu bem. Talvez tivéssemos durado mais tempo. Apesar de tudo, foi divertido, não foi?
Ela estendeu a mão para a dele e disse gentilmente:
- Foi, sim, cara. E sinto muito que...
- Chega, sim? Tive uma boa vida e sou muito grato por ela. Sou mais resistente do que pensam... E vou lhe dizer uma coisa, minha Pia. Amei duas vezes em minha vida.
É mais que suficiente para qualquer homem.
- De Rachele eu sei, querido. É uma coisa a que só me refiro com respeito. Quem foi a outra?
- Minha esposa.
Arregalamos ambos os olhos para ele. Deu-nos um estranho e breve sorriso e um gesto de desculpa.
- Sinto muito. Não estava tentando surpreendê-los desta vez. Tenho pensado muito nela ultimamente, sem saber se ainda nos veremos e se poderemos reconhecer um ao
outro.... Casei-me com ela em Paris em 1934. Ela tinha dezenove anos e eu, trinta e cinco. Tinha viajado pelo mundo inteiro e pensei que ela era a criatura mais
bela que nele havia. Trouxe-a para cá, para Pedognana, e ela se tomou de amores por tudo à primeira vista. Perguntem a alguns dos velhos. Ainda devem lembrar-se
dela a andar por tudo a cavalo com o administrador e. ajoelhada na capela aos domingos, rodeada de crianças.
“Nascera no campo. A família dela tinha uma grande fazenda perto de Poitiers. Isto aqui floresceu sob as mãos dela naqueles dois anos estranhos... Você é muito moça
para se lembrar, minha Pia, mas foram anos de fatos muito estranhos. Naquele tempo, tínhamos um império. Tomamos Adis Abeba e anexamos a Etiópia. Ciano se tomou
Ministro do Exterior. Faruk subiu ao trono do Egito, a Alemanha ocupou a Renânia e Charlie Chaplin fez Tempos Modernos... Mas aqui em Pedognana quase podíamos esquecer
a loucura que se desenrolava em torno de nós. Éramos absurdamente felizes. Meus negócios prosperavam. Se as coisas não dessem certo na Europa, eu tinha capitais
colocados com bom rendimento no exterior. O melhor de tudo foi que Marfe Claire ficou grávida. Para um homem como eu, que nunca tinha conhecido a vida de família,
isso foi como o anúncio do Segundo Advento. Eu estava radiante de prazer. Fervilhava de planos a respeito do futuro de meu filho - porque não podia deixar de ser
um filho...
“No quarto mês de gravidez, Marie Claire adoeceu e morreu dentro de uma semana de meningite cérebro-espinhal... Está enterrada na capela da propriedade aqui. Sei
que você não é homem de rezar, Dante, mas teria visto a inscrição se tivesse baixado essa sua cabeça teimosa. Marie Claire, amada esposa de Bruno Manzini. Nascida
em Paris a 20 de abril de 1915. Falecida em Pedognana a 17 de junho de 1936... Ah! Foi há tanto tempo! Vamos tomar café no escritório que é mais confortável do que
isto aqui.
Quando o café foi servido, ele não o aceitou e anunciou de repente que ia se deitar. Pia Faubiani fez menção de acompanhá-lo, mas ele a segurou pelos ombros para
que continuasse sentada e beijou-lhe a testa. O seu tom era muito temo.
- Fique aqui, meu bem. Estou muito cansado esta noite.
- Mas, querido...
- Não se preocupe. Dormirei bem. Amanhã, conversaremos sobre a reunião... Boa noite, meu Dante. Pense na guarda pretoriana, sim? É muito importante. Bons sonhos
para vocês dois.
Depois que ele saiu, Pia Faubiani jogou longe os sapatos, encolheu-se na poltrona e deu um profundo suspiro de alívio e contentamento.
- Dio! Estou tão feliz de que tivesse acabado assim! É um homem a quem eu não gostaria por nada de magoar. Nunca pensei que algum dia iria deixar que um homem me
abandonasse, mas este - que Deus o abençoe - é muito especial.
- Sei o que quer dizer.
- Você é um tanto especial também, Dante Alighieri. Ainda não posso interpretá-lo corretamente.
- Nem tente, Pia. No momento, sou uma confusão que ninguém entende. Você faria uma interpretação toda errada.
- Bruno gosta de você.
- Eu sei. Já me disse.
- Que é que sente a respeito dele?
- Não sei. Admiro-o muito. Tenho às vezes vontade de ser como' ele. Discuto muitas vezes com ele e nunca chego a compreendê-lo bem... Será que ele está muito doente?
- Doente propriamente, não. Está é velho, Tem um coração cansado e que cada vez se gasta mais. Pode morrer de um momento para outro e sabe disso. Na minha opinião,
tem mais receio é de durar demais. A sua grande mágoa é não ter um filho... Não achou bem triste a história que ele contou da esposa?
- Muito. E foi a história mais breve que eu já o ouvi contar... E você? Que é que vai fazer agora?
- Eu? O mesmo com o dinheiro de outra pessoa. Sou uma planta muito resistente, sabe? Com um pouquinho de sol, posso crescer em qualquer lugar. Fale-me de você.
- Que é que eu posso dizer? Sou um homem do serviço secreto que pensou que poderia destruir o sistema. Mas foi o sistema que me destruiu.
- Não acredita nisso...
- Acredito, sim. Veja minhas mãos. Não posso nem segurar um copo com firmeza. Sabe por quê? Tenho medo de ir para a cama e de apagar a luz. Sei que isso vai passar,
mas ainda estou com medo.
- Machucaram-no muito na prisão?
- Não. Ninguém me tocou a mão. Quer mais um conhaque?
- Faça o favor. Não quero ir para a cama também.
- De que é que você tem medo?
- Se eu lhe dissesse, você não iria acreditar.
- Pode dizer.
- Tenho medo de ficar velha como Coco Chanel e de mandar algum moço brilhante escrever um musical a meu respeito.
- Prometo, Pia mia, que isso nunca vai acontecer.
-Jura?
- Pelos ossos de meus antepassados.
- Então, vou lhe fazer também uma promessa, Dante. Você vai dormir bem esta noite.
E, de fato, dormi bem. E não tive pesadelos. Na manhã seguinte, à hora do café, Bruno Manzini nos recebeu com um sorriso e um provérbio veneziano: “A cama é um remédio”.
Como sempre, o velho monstro tinha razão.
Descobri que não podia escrever cartas, de modo que dei telefonemas para todo o país, de um extremo a outro. Falei com homens que tinham sido meus amigos e não eram
mais. Falei com amigos que tiveram prazer em falar comigo, mas se declararam por demais ocupados para que pudessem fazer uma viagem de trem para um lugar remoto
como Pedognana. Outros disseram que teriam muito prazer em vir, mas achavam difícil fixar uma data. Uns poucos, seis apenas, exprimiram o seu cuidado por um velho
amigo e a preocupação pelo que tinham sabido que fora feito com ele. Estes poderiam vir em vários dias para almoçar e conversar comigo. Estranhei, com crescente
desilusão, que fossem tão poucos. Enquanto estávamos sentados no escritório a examinar papéis, fotografias e gravações, Manzini me deu a sua opinião.
- O gado sente o lado de que está soprando o vento, meu Dante. Dão as costas para ele e esperam que passe. Os caniços se vergam ao vento e cantam a música tocada
neles, A palha é levada pela ventania e só a boa semente cai na terra e germina. Fique satisfeito, porém, por menor que tenha sido a colheita. Falei com Frantisek
no Vaticano hoje. Se você quiser, ele irá visitar a sua Lili na Maddalena. Se ela se quiser casar com você, poderemos talvez tomar providências para que os dois
fiquem noivos na prisão. Os regulamentos o permitem, mas acho que você deve ter muita certeza do que quer. Não pode passar o resto da vida com sentimentos de culpa
e de piedade. Além disso, você tem de conscientizar o fato de que não vamos conseguir tirá-la de lá, A lei neste país é uma alucinação medieval. Uma pessoa pode
apodrecer durante anos numa prisão sem qualquer julgamento. E não há /nada que destrua tanto quanto uma esperança frustrada. Por conseguinte, pense bem antes de
impor novos problemas a Lili Anders...
Eu sabia disso. E sabia também que não podia decidir-me. a toda uma vida de fidelidade isolada. Não tinha orgulho disso
- Deus me livrasse de tal coisa! - mas não podia negar o fato, brutal e irremediável. Tentei tirar o problema do espírito e concentrar-me no trabalho que tinha à
minha frente, e que era a conferência de todo o material à nossa disposição para ver se com isso conseguiríamos armar uma acusação contra Leporello e contra o Diretor.
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Havia dois problemas. As minhas notas sobre os microfilmes de Ponza eram material de segunda mão reproduzidos de memória. Além disso, os papéis originais tinham
pertencido a Pantaleone e representavam os planos dele para um golpe militar e não os de Leporello. Do ponto de vista do serviço secreto, meu material era muito
valioso. Mas, para a justiça comum, não tinha quase validade. Só dispúnhamos, portanto, das fotografias e das gravações sobre as atividades sexuais de Leporello
no apartamento de Roditi em Milão. Com isso, poderíamos certamente armar um escândalo. Mas na Itália, pelo menos, o escândalo seria abafado porque a lei proíbe a
publicação de material obsceno. Poderíamos publicar o material fora do país mas, neste caso, seríamos vulneráveis às suspeitas de falsificação e às acusações de
exploração política. Entretanto, talvez ainda nos víssemos forçados a assumir esse risco.
Era ainda mais problemático que pudéssemos provar as nossas alegações com base no material obsceno. É muito fácil falsificar fotografias. Roditi poderia atestar,
a autenticidade das mesmas, mas Roditi havia sucumbido à lavagem de cérebro e não era mais uma testemunha fidedigna. As gravações eram provas ainda mais duvidosas.
Leporello poderia ser identificado mediante uma gravação de sua voz em juízo, mas a defesa poderia alegar que as gravações tinham sido editadas e constituíam, portanto,
uma falsificação.
Havia ainda outro problema. Os desmandos sexuais são a mais comum aberração humana e, embora todos adorem o escândalo, as simpatias estão em geral do lado do ofensor,
a menos que haja crianças envolvidas, quando então o caso muda de figura. Se pudéssemos identificar os parceiros de Leporello bom funcionários mais moços de seu
serviço, teríamos uma razão e sem dúvida bem forte para pleitear a sua expulsão das fileiras... Mas, como salientou Manzini, isso estava muito longe do homicídio
e da conspiração política e os seus cúmplices, inclusive o Diretor, escapariam ilesos. Roditi poderia ter provado o homicídio. Balbo o cometera. Mas Balbo estava
morto e Roditi era inútil e estava perdido para nós.
Ao fim de uma hora de discussão, resolvemos concentrar as nossas acusações nas fotografias. Pedi a Manzini uma lente de aumento e tratei de estudá-las minuciosamente.
Eram mais de trinta ao todo, algumas nítidas, outras fora de foco, outras apresentando poses tão contorcidas que era impossível identificar os participantes. O problema
era que tínhamos apenas cópias por contato de trinta e cinco milímetros de tamanho e cada uma tinha de ser minuciosamente examinada. Tudo teria sido mais fácil num
estúdio com todo o equipamento à nossa disposição, mas o material era tão explosivo que não tínhamos coragem ainda de confiá-lo a outras mãos.
Por fim, tive sorte. Numa das fotografias havia um homem a quem eu podia quase certamente identificar como Giuseppe Balbo. Noutra, havia um rosto que, embora menos
claro, me era conhecido. Procurei em vão o nome. Minha memória, abalada e atingida pelas provações a que fora submetido, falhou invariavelmente. Chamei Manzini e
mostrei-lhe o que havia encontrado. Ele ficou radiante.
- Se é Balbo, temos então tudo de que precisamos. Trata-se de um criminoso conhecido, provavelmente um assassino, a quem podemos identificar por uma impressão digital
e pelo seu testemunho e que foi morto pelos homens de Leporello dentro dá zona de comando de Leporello. Sim, daria resultado! O outro... Bem, você se lembrará dele...
Agora, escute! Não podemos deixar esse material fora de nossas mãos. Teremos de trazer para a vila todo o equipamento necessário. Pode fazer o serviço?
- Não. Só o que for bem elementar. Temos necessidade é de um técnico no qual possamos confiar.
- Vamos então trazer um do exterior. Vou telefonar para o meu pessoal em Zurique e pedir que me procurem um homem bem competente e o mandem de avião. Estamos chegando
perto, meu Dante, dois passos mais perto. Talvez a sua festa acabe sendo mesmo uma comemoração da vitória. Vou telefonar para Zurique. Tranque bem tudo isso. Não
devemos escandalizar os criados.
Faltava ainda uma hora para o almoço e eu saí para o terraço, onde comecei a passear de um lado para outro, tentando pensar com calma na situação de Lili. Para onde
quer que eu olhasse, não havia solução para ela. A fuga era impossível, A absolvição estava fora de cogitações. Havia bastante material nos meus dossiês para condená-la
mais de vinte vezes. O Diretor poderia propor a deportação ou a troca, se visse alguma vantagem política em qualquer dessas coisas. Para ele, havia todo o interesse
em conservá-la na Itália.
As consequências de tudo isso eram ainda menos tranquilizadoras para mim. Lili sabia a sua situação melhor do que eu. O que ela mais temia tinha passado a ser a
sua realidade presente: a salinha, as luzes, as perguntas de pessoas invisíveis. Ela não podia nem entrar em negociações para conseguir uma trégua. Eu lhe roubara
até os últimos trunfos do baralho. Como, depois de ter conhecido a liberdade e a esperança, iria ela tolerar o desespero?
Manzini apareceu no terraço, esfregando as mãos de satisfação. O equipamento de que precisávamos já estava sendo expedido de Milão. O técnico partiria de avião de
Zurique no dia seguinte. Vendo que essas notícias não me alegravam, ele franziu a testa e me disse: - Pare com isso, Matucci! Não estou mais disposto a dar-lhe comida
na boca. Sua Lili não é uma criança. Sobreviverá, se quiser. Enquanto ela sobreviver, haverá esperança. Você não está prestando serviço algum a ela, atormentando-se
e sacrificando-se. Já descobriu de quem é o outro rosto na fotografia?
- Ainda não.
- Continue a tentar. Já marquei a data da reunião para daqui a quatro semanas. Minha secretária está preparando a lista de convidados e fazendo os convites. Vai
ser uma festa de gala. Isto aqui precisa de um pouco de animação. Eu também preciso... e você.
- Sinceramente, Bruno, não vejo.
- Você não vê um palmo adiante do nariz, Dante Alighieri! Esse é que é o seu problema. Veja! Você acha que poderá voltar para o Serviço? Nunca, mesmo que seja lavado
no sangue do Cordeiro e ganhe um novo manto batismal. Terá, pois, de começar de novo. Mas começar como? Como spazzolino, varrendo as ruas? É claro que não. Terá
de começar tão no alto da escada quando for possível. Para isso, você precisa de amigos e de recomendações. Esse é o motivo da festa... E, desde que a festa é minha,
tem de ser alguma coisa a que todos vão querer estar presentes e de que todos se lembrarão... Che vale petere e poi culo stringere... Não adianta apertar-se, depois
de soltar-se... Deixei um livro em seu quarto. Você pode achá-lo muito instrutivo
O livro eram as memórias ou Ricordi de Francesco Guicciardini e eu o li depois do jantar no escritório porque Bruno foi deitar-se cedo e Pia Faubiani não tinha voltado
de Bolonha. Meu pai gostava muito de ler e eu adquirira o hábito com ele. Ultimamente, na minha caça a informações e na minha caça às mulheres, eu o havia descurado
um pouco. Naquele momento, como Satanás doente, eu estava disposto a ser contemplativo e achei a experiência bem agradável. Achei também que Messer Francesco Guicciardini
era muito interessante companhia.
Como eu, era um toscano, um florentino que, aos vinte e nove anos, fora nomeado pela República embaixador junto ao Rei da Espanha. O Papa Leão X, o Médici dos Mediei,
fez dele Governador de Reggio, Modena e Parma, e o Papa Clemente VII nomeou-o tenente-general dos exércitos papais. Era um homem completamente destituído de piedade,
mas sabia governar e amava mulheres de todas as espécies, idades e condições. O único homem capaz de manejá-lo era Cosimo de Médici, que subiu ao poder nos ombros
dele e depois o forçou a afastar-se de cena. Mas Guicciardini era um homem capaz de sobreviver naturalmente. Afastou-se com elegância, plantou vinhas, escreveu livros
e morreu pacificamente de apoplexia aos cinquenta e oito anos.
Os Ricordi eram as suas memórias secretas, uma espécie de diário de opinião e de experiência, que ele teve a prudência suficiente de nunca mostrar a ninguém enquanto
era vivo e que só foi publicado séculos depois de sua morte. Manzini marcara vários trechos e fizera anotações com a sua caligrafia muito certa.
“Ser sincero e franco é uma coisa nobre e generosa, mas quase sempre prejudicial. Ao contrário, é útil e muitas vezes indispensável dissimular e enganar, pois os
homens são maus de natureza”. (Sorria, portanto, meu Dante. Mostre que é um homem sem cuidados no mundo, pois ainda tem alguns ases escondidos na manga!)
“Não censuro aqueles que, inflamados pelo amor da pátria, enfrentam perigos para estabelecer a liberdade... embora julgue muito arriscado o que fazem. Poucas são
as revoluções bem sucedidas e, ainda assim, não dão os resultados esperados...” (É por isso que me afasto das desordens públicas e procuro antes seduzir os perversos
em segredo.)
“Quase todos os homens se preocupam mais dom o seu interesse pessoal do que com a glória e a honra”. (Lembre-se disso quando estiver diante do Diretor, que é um
patriota intolerável.)
“Creio que um bom cidadão... deve manter relações amistosas com o tirano, não só pela sua segurança pessoal, mas também pelo bem geral”. (É por isto que eu dou dinheiro
ao Movimento e convido o Diretor para jantar, ao mesmo tempo que faço planos com você para derrubá-los. Sei muito bem que você tem estranhado isso!)
"Não devem ser levados muito a sério os que discorrem sobre as vantagens da liberdade... Se pudessem ter um bom lugar num estado tirânico, iriam correndo ocupá-lo”.
(Eu diria mais. Se pudessem ser eles mesmos tiranos, galgariam uma montanha de crânios para lá chegar.)
“Minha posição sob vários pontífices me levou a procurar a glorificação deles em meu proveito”. (Talvez o Diretor tivesse isso em vista quando resolveu apoiar Leporello.
Pense nisso como um- motivo para o homicídio. O velho Guicciardini mandou executar muita gente no seu tempo.)
"O passado ilumina o futuro; o mundo sempre foi o mesmo. As mesmas coisas voltam com nomes diferentes e diferentes cores..." (Você e eu, meu caro Dante, estamos
tentando mudar o rumo da História. Mas não espere demais. O rio ainda é o mesmo.)
“Ninguém conhece os seus súditos tão pouco quanto quem os governa”. (É nisto que você e eu estamos apostando. Pensam que me compraram. Sabem que assustaram você.
Não compreendem que nem começamos ainda a lutar.)
Foi neste ponto que larguei o livro e subi para me deitar. Ainda não podia apagar a luz, mas fiquei muito tempo acordado a olhar para o teto, até que Pia Faubiani
voltasse de Bolonha.
No dia seguinte, muitas coisas começaram a acontecer em Pedognana. Os artífices da propriedade marcharam em grupo para a vila e, no espaço de algumas horas, transformaram
uma sala do último andar num estúdio fotográfico/bem aceitável. O técnico chegou de Zurique, recebeu instruções, comprometeu-se a guardar segredo e tratou de instalar
o novo equipamento que havia chegado de Milão. À noitinha, Corrado Buoncompagni, diretor do jornal de Manzini, chegou com um homem de Turim, a quem apresentou como
Milo de Salis, competente diretor de cinema.
Fomos cinco à mesa do jantar naquela noite - Manzini, Pia, Milo de Salis, Buoncompagni e eu. O fotógrafo jantou sozinho em sua sala e continuou a trabalhar pela
noite afora. O jantar se transformou num conselho de guerra, no qual Manzini explicou pela primeira vez o alcance de seus planos. Eu o tinha visto em muitos estados
de espírito e representando diversos papéis, mas nunca o havia observado realmente como o diretor de empreendimentos gigantescos, como um estrategista de grandes
e arriscadas campanhas. Naquele momento, porém, eu o via plenamente e me assombrava com a sutileza e a audácia de seu gênio. Era calmo, despreocupado, sem pressa
e nos empolgava mais do que qualquer orador.
- Não peço o juramento de nenhum dos amigos aqui presentes. A partir deste momento, somos todos conspiradores. Todos corremos riscos e compreendemos a natureza desses
riscos. Teremos de fazer uso de outras pessoas. Isso é inevitável. Mas só lhes daremos as informações necessárias para que cumpram as suas tarefas. Quanto ao resto,
teremos de mentir, dissimular, confundir e atrapalhar para que a verdade só seja conhecida por nós que estamos aqui nesta sala.
“Vou explicar o que está em jogo. Estamos tentando desmascarar e afastar do poder homens que desejam impor pela força ou a ameaça de força um governo ditatorial.
Acreditamos que essa forma de governo é inaceitável para a grande maioria do povo. Sabemos, porém, que pode ser imposta ramo o foi no passado e que, com todos os
mecanismos modernos de controle, poderia manter-se por muito tempo. Por isso, devemos fazer abortar o golpe de estado, que sabemos que já está planejado.
"Os meios à nossa disposição são limitados. São limitados por considerações de humanidade e de prudência comum, bem como pela própria natureza do processo democrático.
Temos em nosso poder informações explosivas que, se fossem impropriamente manejadas, poderiam lançar a confusão no espírito público e provocar desordens que forneceriam
o melhor pretexto para o povo, já dividido entre as várias facções. Temos de apelar para os que estão no poder na base de seu interesse próprio, seja esse interesse
cego ou esclarecido. Em outras palavras, trabalhamos dentro do contexto' da história deste país e não de qualquer outro. Aqui o povo fala, mas não é ouvido. Por
isso, não tentaremos influenciar o monstro de muitas cabeças. Ao invés disso, ameaçaremos aqueles que têm medo do monstro: ministros de estado, altos funcionários,
elementos da assembleia eleita, industriais como eu, todos os que têm interesse na ordem e na segurança pública.
“A ameaça não será direta, mas implícita. Não será prolongada, mas súbita e surpreendente. Exigirá ação imediata. A ação deve ser de molde a obter a aprovação de
todos os que se sentem em perigo. Devemos estar preparados para empreendê-la.
"Os preparativos têm de começar agora. Corrado, a partir da edição de quinta-feira, você terá de mudar a orientação dos editoriais e do noticiário do jornal. Deixaremos
de ser centristas e passaremos muito rapidamente para a direita. Sei que isso não lhe agrada e sei que os redatores não vão gostar disso. Você terá de enganá-los
com as melhores mentiras que puder inventar. Não creio que cheguem até a greve, mas, ainda assim, isso nos poderá ajudar. Quero artigos que os meus amigos fascistas
possam ler e aplaudir. Quero uma grande reportagem sobre a obra do Major-General Leporello. Deixemos que pareça uma guinada, atenuada por algumas observações e críticas
severas. Em outras palavras, não podemos ser servis, nem repulsivos. Não quero perder redatores, nem baixar a circulação, mas quero que se saiba que estou disposto
a apoiar a direita dentro de certas condições. Quero que eles me telefonem e me convidem para almoçar. Depois disso, poderei convidá-los para vir até aqui.
“Milo, sua tarefa é mais difícil, em vista da escassez do tempo e dos problemas técnicos implicados. La em cima, temos uma grande massa de documentos e notas selecionados
e conferidos por Matucci. Os mais importantes são os mapas militares e os planos de campanha. Além disso, temos uma série de fotografias obscenas e de gravações
feitas na mesma ocasião. Você tem acesso a outros materiais do arquivo de filmes e jornais cinematográficos. Terás três semanas para escrever, filmar e editar um
filme de dez minutos baseado em todo esse material. O filme dirá que o Major-General Leporello é um pederasta com seus soldados, um assassino e um conspirador contra
a segurança do Estado. Matucci o ajudará a editar o filme. Deverá aparecer ainda como comentarista e acusador final. Como ator, ele vai precisar de muita direção
e eu espero que você tenha êxito naquilo era que eu falhei.
“Você, Matucci, trabalhará com Milo no filme. Deverá recrutar e ter à minha disposição dentro do prazo de três semanas já mencionado uma guarda pretoriana de oficiais
de alta patente dispostos a comparecerem com você a uma reunião oficial e a agirem de acordo com você se uma certa crise inesperada ocorrer. É essa a parte mais
arriscada do plano porque implica a decisão delicada de como e quando a natureza da crise será revelada a esses homens. Não conheço seus amigos. Não posso decidir
coisa alguma sobre o seu tratamento deles. Só lhe posso dizer o seguinte: se eles nos falharem no último momento, estaremos perdidos e os perversos sairão de tudo
mais fortes do que nunca.
"Devo descrever agora o momento em que o nosso plano atingirá o sucesso ou a ruína. Acabei de completar os planos para um dos maiores empreendimentos de minha carreira,
uma rede de hotéis de turismo e de estâncias à beira-mar em tomo da costa sul da península. Esse empreendimento levará um afluxo de turistas e de indústrias turísticas
afins ao Sul empobrecido. É, portanto, de máximo interesse para o governo. Estou em condições de anunciar que um consórcio de bancos italianos e estrangeiros concordou
em financiar todo o projeto. Pretendo divulgar a notícia durante uma reunião que se realizará nesta casa daqui a pouco mais de três semanas. A reunião será particular.
A imprensa não será convidada, mas Corrado estará presente como meu convidado pessoal e como um agente de ligação com os meios de comunicação. Se falharmos aqui,
teremos de publicar, para nossa proteção, todo o material de que dispomos.
"A lista de convidados já está preparada. Abrange ministros e altos funcionários, todas as pessoas de quem já falei. O Major-General Leporello e sua esposa figuram
nessa lista, bem como o Diretor do SID. Acredito que a mudança de tom de nossos artigos e de nosso noticiário os anime a vir...
“Ainda não decidi o que vai acontecer nessa noite. Teremos de esperar que os convites sejam aceitos para então estabelecer um protocolo e uma ordem de cerimônias.
Consultarei a todos de quando em quando antes de tomar qualquer decisão. Quero, porém, deixar uma coisa bem clara para todos. Se tivermos êxito, ninguém nos agradecerá.
Se perdermos... bem, será preciso tomarmos o primeiro avião para o Rio!
No dia seguinte, identifiquei o segundo homem nas fotografias de Leporello. Era o Capitão Girolamo Carpi, que fora ajudante de ordens de Pantaleone. Foi uma surpresa
desconcertante. Estabelecia um laço direto entre Leporello e Pantaleone. Acusava também tuna falha enorme nas minhas informações sobre Carpi, desde que não havia
a menor sugestão de anormalidade sexual no dossiê militar dele. Eu o havia contratado. Desligara-o depois e providenciara sobre o seu exílio seguro numa base de
treinamento da Sardenha, Tinha de pensar de novo no assunto e, se fosse possível, conseguir a volta dele para o continente, o que não seria fácil. Eu não estava
mais em serviço ativo. Em vista disso, não tinha acesso aos arquivos e não podia fazer pedidos oficiais às autoridades militares.
Levei a notícia e o problema para Bruno Manzini. Ele pensou no caso durante algum tempo e por fim me disse: - Dante, esse homem pode ser a nossa mais importante
testemunha. Temos de trazê-lo até aqui, interrogá-lo, vencer- lhe as resistências e, se possível, incluí-lo no filme a tempo de figurar em nossa festa. Como poderemos
fazer isso, sem abrir nosso jogo com o Exército? ''
- Irei até a Sardenha com a fotografia e o assustarei tanto que ele acabará falando.
- Não, Dante. Não quero vê-lo fora dos portões de Pedognana.
- Se pudéssemos conseguir a transferência de Carpi para Bolonha, poderíamos ter acesso com facilidade a ele. Você deve ter amigos no Exército capazes de efetuarem
essa transferência.
- Amigos eu tenho. O problema é saber até onde posso confiar em qualquer deles numa ocasião como esta... Pode deixar isso comigo, Dante. Preciso pensar no caso com
calma. Como vão os seus pretorianos?
- Um deles deverá chegar amanhã. Dois chegarão no fim de semana e os outros na semana seguinte.
- Já resolveu o que vai dizer a eles?
- Nada posso dizer enquanto não falar com eles. O número deles tem grande importância?
- Muito menos do que a segurança. Dez oficiais fardados impressionariam muito, mas eu prefiro três, conscientes e resolutos, a correr o risco de um só vacilante.
- Falarei com você depois de ter conversado com cada um deles.
- Quero saber mais a respeito desse Carpi. Como foi que você veio a usá-lo no SID?
- Deixe ver... Ele foi designado como ajudante de ordens de seu irmão há cerca de dezoito meses. Mais ou menos seis meses depois disso, o Diretor me sugeriu que
alistássemos Carpi como um espião doméstico. Deu-me o dossiê de Carpi, que mostrava que ele estava gastando mais do que podia e devia muito a um agiota de Roma.
Abordei-o com a proposta de que, se de trabalhasse para o SID, nós lhe pagaríamos as dívidas e ainda daríamos uma remuneração mensal, Aceitou de olhos fechados...
- Mas o dossiê dele lhe foi entregue pelo Diretor. Você não o pediu diretamente ao Exército?
- Não.
- Sabendo como o Diretor procede em matéria de dossiês, que é que isso lhe sugere?
- Que o dossiê foi alterado antes de me chegar às mãos.
- Exatamente. E vou lhe dizer mais uma coisa, Dante. O Diretor conhecia muito bem meu irmão. Lembra-se de que Pantaleone estava procurando vender a sua coleção de
arte?
- Sim. Ele estava em entendimentos com Del Giudice.
- E o Diretor estava fazendo ofertas maiores que as minhas por certos quadros.
- Pensei que ele não se interessasse por quadros antigos.
- E não se interessa, salvo como uma mercadoria rendosa. Compra os quadros cuja exportação é proibida. Vende-os com grande lucro a outro negociante não tão honesto
quanto Del Giudice. Esse negociante manda então copiar os quadros por um perito, consegue uma licença de exportação para a cópia e faz o original sair do país. Três
dos quadros de meu pai já seguiram esse caminho. Foi sobre isso que conversei com Pantaleone na noite de sua morte.
- Pode provar isso?
- Posso, mas não se iluda. Isso é um bom ponto num dossiê. Mas não é bastante para derrubar o Diretor, que está numa posição rigorosamente legal. Temos de provar
o homicídio.
- Qual o motivo?
- Lucro em todos os sentidos. Pantaleone morre. Leporello o substitui como chefe militar. Desde que Leporello organizou o assassinato, o Diretor se apresenta como
chefe de estado, só para manter os registros intactos. Não está vendo?Esse é o método clássico. São como homens que saltam por cima dos chifres de um touro. O que
saltar sobre o último animal e lhe der uma palmadinha no lombo será o campeão. Precisamos sem dúvida do seu Capitão Carpi. Tenho de trazê-lo até aqui... Escute aqui,
como é que se está sentindo?
- Bem melhor. Você tinha razão. A cama é um bom remédio e o ódio ainda é melhor. Quais são nossas chances?
- Cosi-cosi... Meio a meio. Tudo depende do rumo que tomar a reunião. Se saírem, estaremos perdidos. Se ficarem, venceremos. Será uma ópera, Dante, encenada para
gente que gosta de ópera. Todos conhecem a partitura e o enredo. Tudo depende da maneira pela qual o espetáculo é encenado e cantado Sei que esse é sem dúvida o
meu último desempenho. Espero poder sustentar as notas mais altas até o último acorde e receber os aplausos finais. Espero que assim seja. Mas, se você me vir vacilar,
apoie-me até a hora de descer o pano. Escute, Dante, ainda que eu possa trazer Carpi até aqui, não haverá tempo para um interrogatório completo. Você talvez tenha
de blefar com ele-
- Isso não me agrada. Vamos esperar para ver se poderá trazê-lo até aqui e o que eu poderei fazer com ele. Há outra coisa que me está preocupando, Bruno.
- Que é?
- Você vai receber aqui de cem a cento e cinquenta pessoas altamente sofisticadas, que virão à sua casa para uma festa. Como vai conseguir que fiquem sentadas durante
dez minutos para assistir a um filme muito sórdido, que acusa alguns dos presentes, lança suspeitas sobre outros e fará com. que todos se sintam muito mal?
- Pode crer, meu Dante, que esse ponto me tem preocupado tanto que mandei chamar em Munique um certo Professor Mueller, que deverá chegar aqui amanhã de avião. É
um especialista de grande reputação em psicologia de massa e orientação de grupo. Quero expor-lhe o problema nos termos mais precisos e no próprio ambiente em que
surgirá. Eu teria preferido alguém mais a par do nosso temperamento latino, mas não posso usar nenhum de nossos homens. É a velha história, meu amigo. “Os inimigos
de um homem são os de sua própria casa”. Triste, não é?
- É estranho...
- O quê?
- Pantaleone disse essas mesmas palavras a Lili Anders.
- A respeito de quê?
- Deixe ver se me lembro... Quero reproduzir tudo com segurança, mas a memória ainda não está perfeita. Ah, sim. Pantaleone tinha o hábito de fazer observações crípticas,
que depois se negava a explicar. Lili ligou duas dessas observações. Uma foi a seguinte: “Não há futuro simples para mim, pois o meu passado é por demais complicado”.
A outra foi a frase que você acabou de usar.
- A respeito de que essas observações foram feitas?
- Segundo compreendi, a respeito da Salamandra.
- Estaria ele se referindo a Carpi, que era um espião doméstico?
- É bem possível.
- Pense nisso, Dante. Pense em Carpi como íntimo de Leporello, como um emissário do Diretor, como um homem com acesso livre ao apartamento de Pantaleone... como
o homem que matou meu irmão.
- E em mim mesmo como o homem que o contratou. Bela perspectiva!
- É bom que você perceba isso. Disse que o Diretor estava preparando um Livro Negro sobre você. Se incriminarmos Carpi, você poderá ver-se em dificuldades,
- Vamos enfrentar a realidade, Bruno. Você pode me sustentar com maçãs e romãs e me rodear de coros de anjos, mas eu estou enterrado até o pescoço na merda. Fui
o homem que começou tudo isso. Sou o homem que tem de acabar com tudo. É com essa intenção que estou fazendo o filme com Milo. Se as coisas não derem certo, você
terá de se afastar de mim.
Ele levantou a cabeça branca e me deu um breve sorriso enigmático. - Dante, filho do meu coração, não insista no que é evidente. Se perdermos, não poderei mantê-lo.
Se ganharmos - bata na madeira! - seremos homens muito ocupados, tão ocupados que não teremos tempo para gestos dramáticos...
Às três semanas seguintes foram um período de crescente pânico, dominado apenas pelo calmo comando de Manzini. O salão de baile da vila foi invadido por um exército
de pintores, decoradores e eletricistas. Um galpão foi transformado em estúdio, escritório e sala de corte para Milo e sua turma. Manzini trabalhava às vezes em
casa com um pelotão de secretárias, às vezes em Milão, de onde voltava, pálido e cansado, mas sempre com alguma palavra nova de incentivo. A sua lista de convidados
estava quase completa. A sua campanha de imprensa tinha sido bem recebida pela direita. Leporello e o Diretor tinham manifestado a sua decisão de comparecer. Este
ou aquele ministro lhe havia mandado cumprimentos pessoais.
Milo e eu discutíamos constantemente sobre o filme. Ele se preocupava com o impacto visual do seu trabalho, ao passo que o que me interessava era a lógica legal
da acusação que tínhamos de apresentar. Meus amigos vieram visitar-me um por um e eu os sondei como um confessor antes que me atrevesse a fazer qualquer sugestão
a respeito do projeto em que estávamos empenhados. Todos eles estavam inquietos com a situação da República e com as divisões dentro das forças armadas. Discordavam
extremamente quanto aos remédios possíveis. No fim, sobraram apenas quatro, nos quais senti que podia depositar toda a confiança. A estes propus o seguinte-.
- Serão convidados para uma cerimônia oficial aqui na vila. Será uma grande solenidade e terão de usar uniformes de gala. Asseguro a cada qual a companhia de uma
pequena bonita como par. A ocasião é esta. A casa vai ficar cheia de ministros, altos funcionários, essa espécie de gente. Haverá o contingente habitual de agentes
de segurança, más nós não queremos que eles tenham entrada no salão de jantar. É por isso que vocês estarão ali, como convidados iguais aos outros... Sabemos que
alguma coisa poderá acontecer nessa noite. Não lhes posso dizer o que é e não quero que perguntem; Quero que confiem em mim e venham por amizade... e também em vista
das coisas sobre as quais conversamos. Vocês não estão comprometidos a coisa alguma, salvo ao comparecimento. Receberão o mesmo cartão de todos os outros convidados.
Aceitam ou não? Se aceitarem, haverá ainda outra condição. Isso é um segredo de estado e é preciso que seja mantido assim.
Aceitaram e eu acreditei neles. Eram amigos do coração, íntimos como se fossem parentes, o que é uma coisa em que se pode confiar nesta minha terra agitada e disparatada.
Quando falei a Manzini, ele concordou brevemente e encerrou o assunto. Aquele setor era meu. A responsabilidade era toda minha. Quando lhe perguntei sobre Carpi,
ele sacudiu a cabeça.
- Nada ainda. Irei a Roma amanhã para falar com um amigo meu no Ministério da Defesa. Há um risco nisso e deve haver necessidade de muita papelada. Mas espero que
ele esteja aqui em tempo.
Neste caso, ele se sentiu decepcionado. A última semana passou dentro de um turbilhão de atividade frenética. Mas, no dia do grande jantar, o Capitão Carpi ainda
não havia chegado.
39
No conselho de guerra final, que se realizou às três horas da tarde, foi resolvido que eu não participaria absolutamente da reunião e só me apresentaria nos momentos
finais. A minha presença poderia ser embaraçosa para Leporello e para o Diretor, introduzindo uma perigosa nota de inquietação numa reunião cujo êxito dependia da
atmosfera que se procurara cuidadosamente criar.
Depois da reunião, Manzini saiu conosco para uma visita final de inspeção. No vestíbulo, os convidados seriam recebidos por quatro das pequenas de Pia e levados
à primeira sala de recepção para serem apresentados a Manzini e a Pia e circularem tomando coquetéis em tomo de uma grande projeção iluminada do projeto - um mapa
em relevo em grande escala da bota da Itália, mostrando as artérias turísticas e os locais das estâncias, com uma série de modelos para mostrar as instalações completadas.
Depois dos coquetéis, os convidados se encaminhariam para o salão de baile, transformado para a ocasião em salão de jantar. Havia flores em profusão e a iluminação
fora disposta de maneira a lisonjear até a menos bela das mulheres. A arrumação das cadeiras era fora do comum para uma reunião dessa espécie. Havia uma série de
pequenas mesas retangulares, a cada qual se sentavam três pessoas de cada lado, de modo que os convidados estariam defronte uns dos outros numa pequena comunidade.
Numa das extremidades de cada mesa haveria um balde de prata com seis pacotes chatos e retangulares embrulhados em papel dourado e amarrados com fitas, como um presente
para cada convidado. Na outra extremidade de cada mesa, haveria um pequeno aparelho de televisão do modelo mais avançado, ligado em circuito fechado a um controle
central numa sala contígua. A mesa do dono da casa no fundo do salão estava arrumada em forma de ferradura com o receptor de televisão entre ás suas pontas.
Cada convidado receberia um programa ilustrado pela pena de Carlos Metaponte e, numa ironia impertinente e final, os cartões que marcavam os lugares estariam colocados
em pequenos suportes de prata com a forma de uma salamandra. O programa seria simples: um brinde ao Presidente e à República, um discurso de abertura do Ministro
do Turismo, um discurso de resposta de Bruno Manzini e a apresentação de um pequeno filme de televisão sobre o novo projeto, produzido e dirigido por Milo de Salis.
Havia outros refinamentos ainda. Três câmaras de televisão estavam colocadas em vários pontos da sala. Duas estavam focalizadas nas mesas em que Leporello e o Diretor
iam sentar-se. A terceira cobria toda a sala, de modo que tudo o que acontecesse poderia ser gravado em videoteipe para evidência posterior. Leporello e o Diretor
estariam sentados em lados opostos da sala, fora do campo de visão um do outro. Haveria um dos meus pretorianos sentado a cada uma das mesas deles e outro na mesa
seguinte. O que Manzini gastara em matéria de dinheiro era inacreditável. O que gastam de imaginação e argúcia era fabuloso num homem de sua idade. Quando acabamos
de fazer a inspeção, ele me levou para o escritório, serviu conhaque para nós dois e fez um último brinde ao empreendimento.
- Não vou falar em boa sorte, meu Dante. O que nos fez chegar a este ponto foi fé, trabalho e audácia. O que vai acontecer esta noite dependerá da habilidade com
que tivermos calculado a interação de pequenos grupos submetidos a circunstâncias súbitas e chocantes. De acordo com Mueller, estamos jogando no fato de que a curiosidade
prevalecerá sobre a repugnância e fará com que todos fiquem sentados até o fim. O psicólogo julga, entretanto, que haverá um ponto de crise durante o qual Leporello
ou o Diretor poderão tentar retirar-se, calculando que um movimento súbito poderá perturbar o público presente. Você deverá impedir isso a todo custo. Estará armado,
sem dúvida, mas apenas para ameaçar. Não deve haver violência. O que vai acontecer ao fim de tudo está decerto nas mãos de Deus e, embora você talvez não acredite,
Dante, Ele não pode deixar de ter um interesse no que vai acontecer esta noite... Creio que o meu brinde deve ser uma prece para que Ele o proteja, meu Dante, e
o leve à paz e salvamento ao fim de tudo.
Eu disse mentalmente amém e foi essa a maior aproximação de uma prece a que eu chegava havia muito tempo. Bebemos o conhaque e Manzini lançou então a sua última
surpresa.
- Dante, meu amigo, já pensou no dia de amanhã?
- O dia de amanhã?
- Sim. Vai chegar, a não ser que nós dois acabemos morrendo enquanto dormimos.
- E daí?
- Daí, se nossa estratégia der resultado, você terá o Diretor e Leporello presos sob várias acusações. Que vai fazer a partir daí?
- Proceder de acordo com a lei. Interrogatório do oficial que efetuar a prisão, depoimento do acusado. Remessa dos documentos ao magistrado competente. Exame pelo
magistrado, despacho de pronúncia, apresentação de razões pela defesa e julgamento público.
- E isso provocará um escândalo internacional, não acha?
. - Acho.
- Com profundas consequências políticas?
- É inevitável.
- Nem o governo, nem o país estão preparados ainda para tais consequências.
- É verdade.
- Enumere-me então as consequências que você prevê.
- Teremos frustrado um golpe fascista, mas abalaremos a confiança do povo nos altos funcionários e daremos grande força à esquerda... Por outro lado, teremos afirmado
que o Estado é bem capaz de expurgar-se e reformar-se em benefício do povo.
- E o resultado final?
- Possivelmente benéfico.
- Possivelmente?
- Segundo os meus melhores cálculos.
~ Isso ainda nos faz correr riscos, graves riscos.
- Decerto.
- O primeiro risco é seu. Você passou o filme, efetuou as prisões, formulou as acusações e terá de apresentar o caso em juízo. Está com todas as provas completas?
- Contra Leporello, estou. Contra o Diretor, não. Um bom advogado poderá absolvê-lo com a maior facilidade.
- Você ficaria então em péssima situação.
- É evidente.
- Está pronto para isso?
- Assim espero.
~ Pode evitar isso.
- Como?
- Pode haver acidentes felizes.
- Eu sei... O prisioneiro foi abatido a tiros quando tentava fugir... O prisioneiro foi vitimado por um colapso cardíaco e o médico da polícia verificou uma antiga
lesão... O suspeito obtivera liberdade provisória a requerimento de seus advogados e deixou de comparecer à audiência... Não, Bruno! Desta vez, não! Nem para mim,
nem para você, nem para o Ministro ou o próprio Presidente.
- Nem para o povo, seu povo, meu Dante?
- O povo pertence a si mesmo. Só pertenço a um homem, que sou eu mesmo. Você me ensinou essa lição, Bruno, e eu não vou esquecê-la agora.
Olhou-me durante muito tempo, riu e encerrou o assunto, encolhendo os ombros. Abriu então uma gaveta da mesa e tirou um pequeno estojo de veludo, que me entregou.
- É um presente. Espero que lhe agrade.
Abri o estojo e encontrei um anel de sinete, no qual estava gravada uma salamandra coroada.
Minhas emoções eram ainda incertas e eu me senti profundamente comovido. Manzini não aceitaria, porém, quaisquer expressões de gratidão. Ficou de pé ao meu lado,
com a sua sabedoria irônica, e me fez a sua última preleção de cautela.
- Somos vítimas daqueles que nos amam, Dante. Sonham com os nossos destinos e nos mergulham em pesadelos. Planejam viagens fabulosas e nos censuram quando as viagens
terminam em naufrágio. Nada podemos fazer, porém, porque nós também nascemos como sonhadores e conspiradores.... Meu pai me privou do seu nome e da herança de sua
história e julgou recompensar-me com as bases da fortuna que tenho hoje. Seu pai teve sonhos nobres de um mundo novo e sua família sofreu em consequência deles.
No fim, Dante, você veio a usar o uniforme dos homens que o prenderam.
"Mas cada um de nós aprendeu a mesma lição: não há garantias, não há permanência. A vida é um enigma proposto por um comediante divino e tem uma solução tão simples
que só a vemos quando é tarde demais. Nunca lhe disse isso, mas depois da guerra, quando fomos por muito tempo uma nação de mendigos, vivendo dos fundos de reconstrução
dos Estados Unidos e concluindo toda espécie de negócios desvantajosos dos quais nos estamos procurando livrar agora, tive a ideia de deixar a Europa de vez e investir
o que me restava de vida e de fortuna no Novo Mundo. Aqui, eu estava emaranhado na história como um carneiro num espinheiro, ferido e totalmente assustado e confuso.
Lá, eu poderia ser outro homem, um construtor, de olhos voltados apenas para o futuro...
"Voltei aqui a Pedognana. Uma tarde, desci até a capela e fiquei muito tempo a olhar para a laje que cobria a sepultura de Marie Claire. Tentei falar com ela. Não
houve respostas, pois é essa a natureza do divino enigma: e eloquência daqueles que não o compreendem e o silêncio dos que afinal o resolveram. Chorei então e foram
as últimas lágrimas que derramei. O velho Dom Egídio apareceu nesse momento. Você o conhece. É um padre camponês típico, sem muita cultura, desleixado e rude. Gosta
de beber um pouco também, mas, apesar de tudo isso, é muito esperto.
“Não procurou consolar-me. Conhecia-me muito bem para saber que não devia fazer isso. Sabia que eu o teria repelido como um homem por demais ignorante para compreender
a complexidade do meu estado de espírito. Por isso, sentou-se ao meu lado e me contou a história do cachorrinho que tinha um rabo de palha... Nunca a ouviu? É muito
simples. Era uma vez um cachorrinho que nascera com o rabo muito curto. Tinha muita vergonha dessa deficiência e mandou fazer um rabo comprido e belo de palha dourada.
Passou então a ser muito orgulhoso. Sacudia o rabo muito mais vigorosamente do que qualquer outro cachorro da aldeia. Pavoneava-se vaidosamente pelas ruas e era
cortejado por todas as cadelas. Mas um dia, quando dormia perto da lareira na casa de seu dono, o rabo pegou fogo.... Não pôde livrar-se dele e saiu ganindo até
que o dono o atirou dentro do lago para apagar as chamas.
“Depois disso, teve ainda outro problema. O verdadeiro rabo ficara ainda mais curto, o traseiro estava queimado e os outros cachorros faziam troça dele. Que fez
ele então? Tinha sido muito feliz com o seu rabo de palha e mandou fazer outro, mas, depois, teve sempre o cuidado de ficar longe do fogo... Poderia, sem dúvida,
ter tomado outra decisão, desistindo do rabo postiço, habituando-se às queimaduras e dormindo durante o inverno tão perto do fogo quanto quisesse.
“A moral da história devia ser evidente. Mas não para Dom Egídio. A conclusão dele era bem diversa. O homem não é um cachorrinho; abrange todos os elementos que
o abrangem todos e aos quais pode sobreviver; pode ditar as condições do seu contrato com a vida; só não pode é regatear sobre o preço final: morte e solidão...
Você se sentirá muito só esta noite, Dante. Ficará só depois, porque ninguém acha mérito em ser visto na companhia do carrasco público. O anel que lhe dei é um símbolo
e não um talismã. Só há nele de mágico a amizade que acompanha o presente. Lembre-se disso quando eu o deixar, como deixarei, como devo deixar...
Tinha uma longa espera à minha frente. Os convidados não chegariam antes das oito e meia. Só se sentariam para jantar às nove e meia, quando eu desceria para. a
sala de controle e acompanharia tudo em circuito fechado com Milo e sua turma. No momento em que Manzini terminasse o seu discurso, as luzes se apagariam e os aparelhos
de televisão seriam ligados. Eu iria imediatamente paia o salão de baile, assumiria o meu posto lá dentro e trancaria a porta. Se alguém tentasse sair, a menos que
fosse uma mulher, seria barrado por mim. Faltavam ainda vinte minutos para as seis. Fui para meu quarto, liguei o despertador para as oito horas, li algumas páginas
de Guicciardini e mergulhei num sono profundo e sem sonhos.
Acordei descansado e estranhamente calmo. Fiz cuidadosamente a barba, tomei banho e vesti meu uniforme novo. Ao olhar-me no espelho, vi um homem que quase não reconheci
- um oficial de um corpo cujo juramento ainda tinha um tom de lealdade aos meus ouvidos e cuja tradição de serviço, por mais conspurcada que tivesse sido por alguns
indivíduos, ainda era cercada de uma aura de honra. As minhas divisas eu as ganhara por mim mesmo. Eu, filho de um exilado político, podia alegar alguns serviços
prestados ao país pelo qual, à sua maneira, ele se sacrificara. Apesar de todas as variações sórdidas de minha profissão, eu podia sentir ainda algum orgulho e uma
pequena e hesitante afeição pelo homem debaixo da minha pele. Era bastante! Estava na hora.
Enquanto eu descia a escada para o vestíbulo vazio, o mordomo abriu a porta e fez entrar o Capitão Carpi. No primeiro momento, ele não me reconheceu e, quando isso
aconteceu, não se mostrou muito satisfeito. Disse-me que fora mandado da Sardenha com despachos urgentes para serem entregues pessoalmente ao Major-General Leporello.
O avião dele se atrasara em Cagliari e ele fora forçado a alugar um carro para chegar a Pedognana. Eu lhe disse que o General iria jantar ali naquela noite e que
eu o levaria à presença dele logo que tudo estivesse terminado. Perguntou-me o que eu estava fazendo ali e eu lhe disse que estava em serviço especial. Pareceu ficar
satisfeito com isso... Estava inteiramente no escuro a respeito de todo o caso. Sabia apenas que o seu comandante o chamara, dissera que ele teria de servir de correio
numa missão especial e o fizera partir de maneira mais ou menos confusa. Eu não fazia ideia das manobras efetuadas para chegar àquele resultado. Levei-o para a sala
de controle, dei-lhe champanha e canapés e chamei Milo à parte para avisar-lhe que não devia fazer qualquer comentário indiscreto. Sentamo-nos então para apreciar
pela televisão o que estava acontecendo, enquanto eu procurava empenhada- mente pensar no que iria fazer diante daquela chegada intempestiva. Quando Manzini se levantou
para anunciar o brinde presidencial, eu já havia chegado a uma decisão.
O Ministro do Turismo fez um discurso elegante e espirituoso, talvez um pouco longo, mas a verdade era que ele tinha de impressionar 'uma porção de gente, inclusive
seu colega, o Ministro do Interior. Falou da variedade e da magnitude das empresas de Manzini. Louvou o arrojo de sua visão, que fazia uma porção de gente fechar
os olhos e ficar esperando o trovão. Cumprimentou os banqueiros pelo seu descortino e pela confiança demonstrada na economia do país e na sua estabilidade política.
Agradecia a generosa acolhida do Cavaliere aos seus convidados. Via nela um símbolo da acolhida da Itália aos milhões de turistas que a visitavam todos os anos.
Fez votos pelo êxito do projeto, assegurou a benevolência do governo a todos os participantes, acrescentou alguns floreios de metáforas e se sentou por entre discretos
aplausos.
Em seguida, Bruno Manzini se levantou e começou o seu discurso.
“Agradeço ao Ministro as suas gentis palavras. Agradeço-lhe a confiança em nosso empreendimento, que é por si mesmo um ato de fé no futuro deste nosso amado país.
Esse ato de fé é ainda mais sincero porque meus colegas e eu estamos destinando consideráveis quantias ao desenvolvimento italiano numa época em que, apesar do otimismo
do meu bom amigo, o país está dividido em relação a muitas questões. Posso falar assim nesta reunião porque a imprensa não está presente para divulgar as minhas
palavras e porque as pessoas inteligentes aqui reunidas sentem a mesma preocupação que eu sinto pelo futuro deste país e de seus filhos, As questões a que me refiro
são muito profundas. Algumas são históricas, outras são políticas e ainda outras, sociais. Somos um povo que vive sob uma só bandeira, mas somos também muitos povos
com muitas histórias diferentes. Temos muitos partidos e muito pouco acordo para que seja possível um governo do povo para o povo. Muita riqueza é concentrada em
poucas mãos, as minhas entre elas. Entretanto, a tentativa de conciliar essas diferenças, como alguns procuram fazer, por meios violentos e sinistros é uma loucura
perigosa, tão perigosa mesmo que poderia anular de um só golpe tudo o que já conseguimos desde a guerra, tudo o que esperamos construir nos anos vindouros...”
Aplaudiram-no então. O que ele dizia todos podiam aceitar desde que não examinassem de muito perto. Sabiam das divisões e sabiam da violência e todos tinham sinistros
e simbólicos bodes expiatórios para carregar os seus pecados para o deserto do esquecimento. Manzini fez cessar os aplausos com um sorriso e um gesto. A sua maneira
mudou. Passara a ser sorridente e brincalhão.
"Talvez não tivessem pensado nisso, meus amigos, mas através de nossa história os jantares sempre foram ocasiões importantes. E isso é estranho porque não somos
grandes comedores como os alemães, nem grandes bebedores como os franceses. Apreciamos sem dúvida a comida, apreciamos o vinho e apreciamos a companhia de belas
mulheres, que estão em tão grande número aqui esta noite. Mas o fato é que fazemos história na hora das refeições. Houve o festim de Trimalchio. Todos se lembram
dele como grosseiro e repulsivo, ainda que valorizado pela arte do grande Petrônio. Depois, houve o banquete fatal dos Tolomei e dos Salimbeni de que os presentes
que têm a honra de ser toscanos devem lembrar-se. Esse terminou em crime de morte. Mas posso assegurar-lhes, caros amigos, que não haverá crime de morte hoje aqui.
Houve também os cenacoli de Santa Catarina de Siena, nos quais as almas se elevavam com palavras espirituais e os corpos eram mortificados por uma alimentação muito
restrita. Com o devido respeito a Monsenhor Frantisek, que está hoje aqui conosco na qualidade de representante não oficial do Santo Padre, lamento que não tenhamos
chegado a esse grau de perfeição espiritual. Apesar disso, atrevo-me a pensar que esta é uma ocasião histórica.
"Nos baldes de prata que se veem em cada mesa encontrarão alguns embrulhos. Se os cavalheiros quiserem ter a bondade de distribuí-los pelas pessoas da mesa... Não,
não os abram ainda. Não terão sentido algum enquanto não tiverem visto o filme que não é, devo dizer, o que está anunciado no programa... Este que vão ver é um documento
privilegiado. A imprensa não sabe de sua existência. O público não o verá... Isso está reservado aos amigos e compatriotas aqui presentes. Será para muitos um fato
consideravelmente estranho. Algumas pessoas, especialmente as senhoras, poderão sentir-se desconcertadas e embaraçadas. Peço que sejam pacientes e tolerantes até
que o próprio filme se justifique... Agora, se quiserem virar as cadeiras um pouco, poderão ter uma boa visão dos aparelhos de televisão na ponta de cada mesa.
Era o sinal. No instante seguinte, dois dos meus pretorianos se levantaram e encostaram-se displicentemente à parede - bastaria um passo para que chegassem onde
estavam Leporello e o Diretor. Alguns dos outros homens fizeram o mesmo, de tal modo que tudo teve o ar de uma mudança de posições confortável e sem maior importância.
Manzini continuou:
- Se alguém hesita em continuar a participar desta reunião, peço-lhe que se retire agora... Vão ficar todos? Ótimo! Num momento, os aparelhos de televisão vão começar
a funcionar e a sala ficará mergulhada na escuridão. Creio que concordarão comigo em que os segredos devem ser contados no escuro e gozados em plena luz.
Era esse o meu sinal. Saí com Carpi da sala de controle e chegamos à sala no momento exato em que as luzes se apagavam e os aparelhos de televisão se iluminavam.
Tranquei a porta, guardei a chave no bolso e olhei para a televisão mais próxima.
Milo de Salis tinha adotado um método de filmar que era simples como o livro de leitura de uma criança e devastador como uma sentença de morte. Consistia numa série
de afirmações diretas e simples em imagens e comentários. As imagens estavam muito distantes, mas os comentários eu sabia de cor.
“Esta é uma fotografia do Major-General Massimo Pantaleone, que morreu em Roma neste ano, na noite de Carnaval”.
“Este é o atestado de óbito segundo o qual a morte foi natural. Na realidade, ele morreu de uma injeção de ar na artéria femoral. Foi assassinado”.
Houve uma exclamação de surpresa, um murmúrio de movimento, alguns sussurros e, por fim, silencio, quando o comentário continuou.
“Esta é uma fotografia do laudo de autópsia posterior, assinado por três eminentes médicos”.
“Esta é a fotografia de um edifício de escritórios na Via Sicília, onde os papéis do General foram guardados depois de sua morte. Os papéis foram roubados e nessa
ocasião dois homens foram assassinados - o advogado Bandinelli e o agente Calvi, do Serviço de Informação da Defesa”.
“Este é o cartão de identidade do homem que os assassinou: Giuseppe Balbo, um criminoso que usava uma porção de nomes falsos”.
“Entre os papéis do General estavam estes mapas: de Turim... de Milão... de Nápoles... de Tarento... São mapas militares que depois foram alterados nos detalhes
mas não em substância. Mostram como, no dia 31 de outubro deste ano, uma junta militar pretende derrubar o governo legal da Itália e estabelecer um governo ditatorial".
“As flechas em movimento mostram como o plano funcionaria”.
“Os mapas e os planos que acabaram de ver estão em poder deste homem, o Major-General Leporello, que é um dos homens aqui presentes esta noite”.
Quase todas as cabeças se voltaram para Leporello. Não era possível vê-lo na penumbra e todos se voltaram para as telas onde a imagem e o comentário voltavam a atrair
a atenção.
“Esta é uma fotografia recente do Capitão Matteo Roditi, ajudante de ordens do General Leporello. Está atualmente sob tratamento psiquiátrico, pois foi torturado
até a loucura para que não pudesse depor em juízo”.
“Esta é outra fotografia de Giuseppe Balbo, assassino, que foi morto quando tentava resistir à prisão pelos homens do General Leporello”.
“Este é o Clube Alcibiade, um ponto de encontro de homossexuais, onde o Capitão Roditi muitas vezes se reunia com Giuseppe Balbo, que era, por mais estranho que
pareça, um homem alistado nos Carabinieri, sob o comando do General Leporello”.
“Esta mulher, que está fazendo compras com as filhas em Milão, é a esposa do Major-General Leporello”.
“Esta é uma das trinta cartas de amor que ela escreveu ao Capitão Roditi, ajudante de ordens de seu marido e verdadeiro pai de suas filhas. Esse caso de amor era
aceito pelo General, que tinha para isso boas razões".
Aquele era o momento de crise que Mueller havia previsto. Leporello podia não se defender, mas certamente defenderia a mulher. Levantou-se no mesmo instante, a sua
alta estatura pareceu monstruosa na penumbra e ele gritou:
- Isso é uma infâmia contra uma mulher inocente! Exijo...
Mas não exigiu nada. Meu pretoriano já estava ao lado dele com uma pistola encostada às suas costelas.
A voz de Manzini soou do estrado com um toque de clarim.
- Sente-se, General! Senhoras e senhores, peço que se controlem. Não estamos aqui para insultar uma mulher, mas para impedir um derramamento de sangue iminente.
Houve uma exclamação de horror que eu senti fisicamente. Os presentes não se acomodaram imediatamente. Esperaram até que Leporello voltasse a sentar-se e, então,
perdidos e desorientados, submeteram-se em silêncio às últimas e brutais revelações.
“As fotografias seguintes irão escandalizar a todos, mas peço que as observem cuidadosamente. Esta mostra o Major-General Leporello empenhado num ato sexual com
o assassino Giuseppe Balbo”.
"Esta o mostra em outro ato com o homem identificado como o ajudante de ordens e provável assassino do Major-General Pantaleone. Chama-se ele o Capitão Girolamo
Carpi”.
“Este homem, o Major-General Leporello, senhoras e senhores, foi escolhido para chefiar o golpe de estado. Ele, porém, nunca teria assumido o poder. Havia outro
homem por trás dele...”
“Era este homem o Príncipe Filippo Baldassare, Diretor do Serviço de Informação da Defesa. Foi ele que planejou a morte de Pantaleone, contratou Carpi para matá-lo
e, depois, providenciou para que Leporello o substituísse”.
Os presentes tornaram a voltar-se na escuridão para identificar Baldassare. Eu era um dos poucos que podiam vê-lo. Estava calmo e indiferente, a tomar goles de conhaque
de um cálice de cristal.
“Quem sou eu? Sou o Coronel Dante Alighieri Matucci, do mesmo Serviço. Fui eu que colhi essas informações. Eu também fui preso e submetido a torturas psicológicas
para que não pudesse revelá-las. Assumo plena responsabilidade pelo conteúdo e pela apresentação deste filme. Afirmo que tudo é verdade e apresentarei às autoridades
competentes documentos que o comprovam”.
As televisões se apagaram. As luzes foram acesas e cento e cinquenta pessoas apareceram, mudas e com vergonha de olharem umas para as outras. Avancei então pela
sala silenciosa com Carpi ao meu lado, como se fosse um sonâmbulo. Tive um momento de pânico. For fim, encontrei minha voz.
- Os oficiais presentes devem efetuar a prisão do General Leporello e do Príncipe Baldassare.
Rezei então, baixinho. "Ó, Cristo, fazei com que se movam.” Moveram-se. Colocaram as mãos nos ombros dos dois homens. O ato era final e completo. Eu tinha de falar
de novo e disse: - Cavaliere, senhoras e senhores, tenho comigo sob voz de prisão o Capitão Girolamo Carpi, que deporá no momento oportuno sobre a sua participação
no caso.
Em seguida, de sua mesa, Bruno Manzini assumiu o comando.
- Meus patrícios! Foram insultados esta noite. Foram escandalizados e envergonhados. Talvez nunca me perdoem pelo sofrimento a que os submeti. Não me desculparei.
Direi apenas que pagaram um preço bem pequeno para evitar a carnificina e as desgraças de uma guerra civil e a opressão de uma nova tirania... Agora, convido todos
a passarem para o outro salão onde serão servidos café e licores.
Todos se levantaram lentamente e se moveram com o rosto parado como autômatos, cada qual levando o presente do jantar, um dossiê dos dois homens, com um cartão de
cumprimentos da Salamandra. Elena Leporello saiu também e passou por mim sem o mais leve sinal de reconhecimento. Por fim, ficamos na sala apenas os pretorianos,
os acusados, Manzini, o Ministro do Interior e eu.
Manzini e o Ministro saíram da mesa no estrado e atravessaram a sala na minha direção. Pararam diante de mim muito sérios e o Ministro disse:
- Muito obrigado, Coronel. Faça o que deve ser feito com esses cavalheiros. Esperarei aqui. Venha falar comigo antes de sair.
Bruno Manzini nada disse. Fez exatamente o que tinha prometido. Afastou-se.
Foi um momento fantástico. Três prisioneiros, cinco homens para guardá-los, em silêncio entre os restos de um banquete de rico. Éramos como atores parados num palco
vazio à espera de que o diretor ordenasse a ação. Compreendi então que o diretor era eu e que, sem mim, a peça não continuaria nem chegaria a uma conclusão. Tinha
de mover-me. Tinha de falar. Tinha de decidir. Ouvi as minhas palavras como se outro homem as houvesse pronunciado.
- Príncipe Baldassare, General Leporello, tenham a bondade de continuar sentados. Os senhores tenham a gentileza de levar o Capitão Carpi para a sala ao lado e esperar
até que eu os chame.
Dois dos pretorianos pegaram o Capitão Carpi pelos braços e levaram-no, ainda mudo e sem protestar, para fora da sala. Os que estavam montando guarda ao Diretor
e a Leporello deixaram os seus postos e saíram também, muito satisfeitos, se eu não estava enganado. Quando a porta se fechou depois que eles saíram, fiquei afinal
sozinho com os meus inimigos. Não experimentava qualquer sensação de triunfo, mas apenas uma estranha impressão de desilusão e de perda, bem como uma vaga humilhação
igual à de alguém que não faz sucesso com a história que conta. Os dois homens estavam sentados muito eretos nas suas cadeiras e com as mãos sobre as mesas, enquanto
os rostos se afastavam de mim. Estavam tão longe um do outro que, a menos que recuasse muito, não poderia falar-lhes nem sequer vê-los ao mesmo tempo. Tinha de enfrentá-los
separadamente.
Fui primeiro para onde estava Leporello. Sentei-me numa cadeira diante dele e me vi olhando para uma máscara de morte. Disse-lhe:
- General, tem direito a ser mantido em prisão num estabelecimento militar sob a guarda de oficiais de serviço e pode também preferir ser julgado de acordo com as
leis militares. Se abrir mão desse direito, ficará imediatamente sujeito ao processo civil. Qual é a sua decisão?
Ele não respondeu. Continuou sentado como uma estátua de pedra, frio e imóvel.
Tentei de novo.
- Há formalidades que têm de ser cumpridas, General. Quero tomá-las tão fáceis e simples quanto possível. Se quer falar com sua esposa, posso mandar chamá-la. Depois,
como sabe, talvez não seja tão fácil assim. Se não se está sentindo bem, posso chamar um médico. Para seu próprio bem. General, aconselho-o a responder-me.
Ele nem me ouviu. Os lábios estavam cerrados e os olhos parados. Estendi a mão e tomei-lhe o pulso. Havia pulso, mas nada mais. Os músculos estavam rígidos como
ferro e não havia o menor sinal de reconhecimento ou aversão. Ouvi então a voz do Diretor, irônica e fria como sempre.
- Uma fuga clássica da realidade, Matucci. Alheamento total. Nada obterá dele esta noite - ou talvez nunca. Para proteger-se, mande chamar um médico e faça a mulher
dele estar presente quando for feito o diagnóstico.
Voltei-me para olhá-lo, calmo e sorridente, ainda tomando conhaque e fumando um charuto. Ergueu o cálice num brinde: - Parabéns, Matucci! Julgamento pela televisão...
Não sei por que nunca pensei nisso. Não é um processo muito democrático, mas é bem eficiente.
Serviu um copo de vinho e empurrou-o por cima da mesa para mim.
- Sente-se. Descanse um pouco. Sou uma testemunha disposta a cooperar. Pode ser agradável comigo. Imagino que deve ter tido uma noite carregada de tensão. Ainda
assim, deve estar muito satisfeito. Que é que vai fazer agora?
- Conhece a lei tão bem quanto eu.
- E conheço a profissão ainda melhor, Matucci. Você conseguiu provas para as suas alegações contra Leporello, embora eu duvide muito de que possa fazê-lo responder
por elas. O homem sempre foi mentalmente desequilibrado. Você hoje o empurrou para o outro lado e é pouco provável que ele volte ao normal. Ainda que volte, um bom
advogado pleiteará falta de sanidade mental e o Estado, no seu próprio interesse, concordará. Contra mim, o que é que você tem? Carpi, um homem cheio de culpas,
que poderá ser intimidado ou eliminado antes que você consiga uma linha de testemunho válido dele. Mas o caso é seu e você tem de prosseguir nele para ganhar ou
perder. A menos...
- O quê?
- A menos que seja receptivo a uma pequena lição de política. Sempre lhe disse que você era fraco nesse particular. Foi isso que o prejudicou em sua carreira.
- Se está propondo um acordo, a resposta é negativa.
- Meu caro Matucci! Por que você sempre me subestima? Acha então que eu seria tão ingênuo a ponto de propor um acordo a um homem convencido e vitorioso? Ao contrário,
eu o estou convidando a um exame maduro das realidades... A política nada tem que ver com a moral ou com a justiça, relativa ou absoluta. É a arte e o ofício de
controlar grandes massas populares e mantê-las em equilíbrio precário umas com as outras e com os seus vizinhos. Todos os meios são válidos para o político e ele
deve estar preparado para usá-los todos na época própria, do machado do carrasco aos jogos de circo. Nunca deve sobrestimar os seus triunfos nem perder a coragem
diante de uma adversidade temporária. De vez em quando, precisa de uma vítima, para que possa impedir um holocausto. A demência não é para ele uma virtude, mas uma
estratégia.... Só é constante o objetivo que é manter sob controle o monstro de muitas cabeças, acalmá-lo quando ruge, domá-lo quando se torna muito rebelde, pasmar
diante de suas visões, mas fazê-lo sossegar antes que elas se transformem em pesadelos...Você, Matucci, ainda é um servidor do Estado... Ainda não é um político,
um estadista. Mas esta noite tem a oportunidade de vir a sê-lo.
Calou-se, tomou mais um gole de conhaque, tirou mais uma fumaça do charuto e me sorriu por entre as baforadas perfumadas. Eu nada disse e, ao fim de algum tempo,
ele voltou a discorrer em nova ordem de ideias.
- Neste momento, Matucci, você ocupa uma posição muito forte. Impediu um golpe militar e desmoralizou os que tencionavam perpetrá-lo. Dispõe de duas vítimas importantes
para lançar às feras: Leporello e eu. Em Manzini você tem um amigo poderoso. No Ministro, tem um chefe importante à espera de que você lhe dê as sugestões corretas.
Pense no Ministro, Matucci. Ele é um político - um caniço pensante, que se verga a todas as lufadas da grita popular, a todos os murmúrios nos corredores da Assembleia.
Que é que ele quer? Que desejaria você se estivesse no lugar dele? Um triunfo discreto e bem orientado ou uma bandeja cheia de cabeças ensanguentadas? Uma cabeça
é útil. Pode ser espetada na ponta de uma lança e exibida como uma advertência à população. Mais de uma é carnificina... Qual a cabeça que deve escolher para a ponta
da lança? Na minha opinião, que reconheço que é interessada, deve escolher a menos inteligente. Já a tem ali, ao lado... A minha terá muito mais valor para você
e para o Ministro se for deixada acima dos meus ombros. Estou desmoralizado e nada posso fazer, a menos que me submetam a julgamento, pois neste caso, meu caro Matucci,
prometo revelar escândalos que serão comentados de Moscou ao outro lado do Atlântico. Ao contrário, se usarem de clemência comigo, terei uma reação de reconhecimento.
Estou pronto a afastar-me da cena e a deixar um farto legado de informações para o meu sucessor... Estou sendo suficientemente claro?
Tive então vergonha por ele. Por um instante, tinha sido eloquente. Naquele momento, era apenas plausível. Disse-lhe sem rodeios:
- Tenho de ser igualmente claro. Não disponho de autoridade para prometer demência.
- Sei disso, meu caro amigo. E digo-lhe mais. Seria inútil e perigoso para você entender-se comigo. Deve entender-se exclusivamente com o Ministro.
- Que é então que me está pedindo?
- Quero falar em particular com o Ministro agora.
- Talvez ele não queira falar-lhe.
- Vai querer, sim. E depois falará com você.
- E daí?
- Só lhe peço é que dê uma resposta profissional e honesta a quaisquer perguntas que o Ministro lhe faça.
- Pode ter certeza de que eu farei isso?
- Certeza não tenho, mas espero que faça. Não tem motivos para gostar de mim. Não o censuraria se você procurasse estender ao máximo a vantagem de que dispõe agora.
Na verdade seria uma surpresa para mim que não o fizesse. Entretanto, já lhe mostrei o caminho. Você é livre de agir como quiser. Vai transmitir o meu pedido ao
Ministro?
- Ajude-me a levar Leporello para um quarto. Chamarei um médico e irei então falar com o Ministro.
A conversa entre o Príncipe Baldassare e o Ministro durou mais de três horas. Não estive presente. Estava em companhia do Professor Malpensa, do Serviço Psiquiátrico
do Exército em Bolonha, que fora levantado da cama e levado de helicóptero para Pedognana. Ao lado dele estava o Dr. Lambrusco, que era um dos convidados e o médico
assistente de Manzini. Pedi-lhes que examinassem Leporello separadamente depois me dessem um diagnóstico. Deram-no em conjunto por escrito, dizendo que se tratava
de “um estado catatônico ou pseudocatatônico, típico de um profundo impulso de fuga provocado pela culpa e pelo choque. Recomendamos que o paciente seja internado
numa instituição para a devida observação clínica. Em nossa opinião, o paciente é atualmente incapaz de comunicação racional, sendo, portanto, inútil e perigoso
submetê-lo a interrogatório ou prisão. Prognóstico: duvidoso”.
Aceitei o documento e confiei o General aos cuidados do Professor Malpensa, que o levou para Bolonha. Fui então procurar Manzini. Os convidados já tinham saído havia
muito tempo e ele estava sentado sozinho na sala. Estava um pouco pálido, mas ainda jovial e bem disposto. Recebeu-me com um sorriso, seguido de um riso seco.
- Bem, Matucci, vencemos!
- É verdade. Tudo está muito quieto agora.
- Que era que você esperava? Aplausos e uma coroa de louros?
- Bem-aventurado quem nada espera, pois é isso mesmo que vai receber Gostaria era de um conhaque.
- Sirva-se - disse ele, apontando na direção do escritório.
- Nosso amigo Baldassare está tentando chegar a um entendimento com o Ministro,
- Eu sei.
- Ficaria muito surpreso se eu lhe dissesse que fui favorável a esse entendimento?
- Em que condições, Bruno?
- Declarei que sem a cooperação e a conivência do Diretor nunca poderíamos levar à cena o drama desta noite.
- Não é verdade.
- Sei que não é. Você sabe e o Ministro sabe. Mas acontece que é uma ficção que se ajusta bem ao momento. Alguma objeção?
- Nenhuma.
- Aprova então?
- Não aprovo, mas penso que é útil.
- Você está aprendendo, meu Dante.
- Da maneira mais difícil. Até que ponto o caso desta noite chegará ao conhecimento dos jornais?
- Em virtude de comunicação direta, nada. For boatos e indiscrições, muita coisa. É desagradável, mas inevitável.
- Pode falar com o diretor de seu jornal agora?
- Claro que posso. Por quê?
- Gostaria de que ele se preparasse para transmitir uma notícia às agências telegráficas. Perdemos as edições matutinas, mas poderemos pegar as vespertinas e os
correspondentes internacionais transmitirão tudo pelo teletipo amanhã de manhã.
- Que é que você tem em vista?
- Só lhe poderei dizer depois de falar com o Ministro.
Ele me olhou longamente e teve um gesto de aprovação.
- Bene! Posso afinal aprová-lo, Dante Alighieri Durante muito tempo, pensei...
- Pensou o quê?
- Ora, não sabia até que ponto você era um homem ou um produto das circunstâncias. Perdoe-me! Não se pode saber se uma noz está boa enquanto não se quebra a casca.
Você é um homem cheio de contradições, meu Dante. É covarde e herói. É refletido e insensato. É mole como barro e duro como ferro. Um amigo pode comprá-lo com um
sorriso. Um montão de ouro não o corromperá. Só Deus sabe como você vai terminar. Mas eu estou contente de não ter perdido tempo com você... Agora, com licença,
que eu vou telefonar para o diretor do jornal.
Ele já havia saído talvez por três minutos quando a porta se abriu e o Ministro apareceu. Quando me viu sozinho, disse bruscamente:
- Tenho de lhe fazer umas perguntas, Coronel.
- Estou às suas ordens.
- Quero respostas diretas: sim ou não.
- Compreendo, Senhor Ministro.
- As acusações que tomou públicas esta noite são verdadeiras?
- São.
- É capaz de prová-las em juízo?
- Posso provar as que se referem ao General Leporello. As relativas ao Príncipe Baldassare serão mais difíceis de provar.
- Pode garantir uma condenação no caso dele?
- Garantir não posso.
- Mas estaria disposto a agir judicialmente?
- Como funcionário da Segurança Pública, estaria.
- Houve uma reserva nessa sua afirmação. Por quê?
Entreguei-lhe o laudo dos médicos sobre Leporello e esperei em silêncio enquanto ele o lia. Dobrou o papel e devolveu-o.
- Insisto na minha pergunta, Coronel. Por que fez uma reserva na sua afirmação?
- Porque sou obrigado a pensar e a agir como funcionário da Segurança Pública. Não fui solicitado a dar qualquer opinião de natureza política.
- Compreendo o seu ponto de vista. Peço-lhe agora que me dê sem quaisquer reservas uma opinião política. Graças aos seus esforços, evitamos uma crise nacional. Que
devemos fazer para evitar um escândalo nacional?
- Temos dois homens importantes presos, Senhor Ministro. Um deles está evidentemente incapacitado por grave deficiência psíquica. As acusações contra o outro estão
incompletas. Ainda que conseguíssemos completá-las, iríamos correr o risco de revelações embaraçosas e prejudiciais à segurança pública. Correríamos o risco de inimizades
profundas dentro da República e entre a República e os seus aliados. Com o devido respeito, sou de opinião que o Príncipe Baldassare deve ser autorizado a retirar-se
da vida pública e a afastar-se dentro de doze horas do território da República.
- Acha que isso poderia ser feito sem despertar clamor público?
- Haveria muitos comentários hostis. Haveria também complicações políticas. Mas, na minha opinião, isso ainda seria um mal menor do que um julgamento público escandaloso.
- Quais são os seus sentimentos pessoais em relação ao Príncipe Baldassare?
- Eu admiro muito nele o talento e a competência. Aprendi muito com ele. Mas reprovo a sua política e as suas ambições pessoais. E tenho motivos muito particulares
para vê-lo derrotado.
- Posso saber que motivos são esses?
- Prendeu uma mulher, que foi uma agente estrangeira e que eu amo. Arruinou a minha carreira. Conspirou para submeter-me a torturas psicológicas de que só recentemente
me recuperei.
- Ainda assim, recomenda que seja posto em liberdade?
- Como uma medida política, sim.
- Pode tomar providências nesse sentido e dirigir tudo?
- Está-me pedindo, Senhor Ministro, que eu assuma responsabilidade pessoal pelo caso?
- Estou.
- Devo, por conseguinte, eximir de culpa o Ministério e o Governo e assumir todos os riscos?
- É exatamente isso, Coronel.
- Isso poderia ser feito de outra maneira, Senhor Ministro.
- Como?
- O senhor me daria uma ordem ministerial e eu a cumpriria. É muito simples.
- Simples demais, Coronel, como sabe muito bem. Um político não pode ser patriota. No momento em que é eleito, renuncia a esse luxo. Sei que a sua decisão é difícil.
Gostaria de ter algum tempo para pensar no caso?
- Não há tempo, Senhor Ministro.
- Uma condição então? Algum presente para atenuar o risco?
- Não, senhor. Não estou à venda... não estou mais. Vou tratar disso. Farei com que passe a fronteira esta noite. O Cavaliere Manzini me ajudará a controlar a imprensa.
- Muito obrigado, Coronel.
- Mais alguma coisa?
- Sim. Gostaria de que fosse falar comigo o mais depressa possível em Roma. Temos de começar a limpar a casa.
- Permita-me lembrar, Senhor Ministro, que ainda estou em liberdade provisória sob acusações formuladas pelo General Leporello.
- As acusações serão arquivadas. A partir deste momento, está de volta ao serviço efetivo.
- Às ordens de quem?
- Sob as minhas, ordens, Coronel. Quando voltar para Roma, poderei confirmar a sua nomeação como Diretor do Serviço de Informação da Defesa.
A intenção dele era de um prêmio - de um maná no deserto de fome da vida de um burocrata. Mas o que senti foi o gosto dos frutos do Mar Morto, cinza e pó em minha
língua. Por um momento, eu me sentira um patriota. Para compensar, ele fizera de novo de mim um prostituído. Mas era a regra do jogo. Não me cabia senão aceitá-la
ou então jogar as cartas em cima da mesa. Sorri e disse:
- Muito obrigado, Senhor Ministro. É uma grande honra que me faz.
- Eu é que lhe agradeço. Boa noite, Coronel.
40
Era estranho estar sentado na cadeira do Diretor. Sendo um homem tão elegante como era, tinha um gabinete muito desleixado. Não havia ornamentos, nem quadros, nem
fotografias, nem sequer um machado de litor. Os únicos símbolos de poder eram os arquivos cinzentos, o telefone que baralhava as conversas e o aparelho de intercomunicação
que poderia fazer vinte pessoas virem me atender às pressas. O velho Steffi estava sentado diante de mim, do outro lado da mesa. Levantou a cabeça de papagaio, riu
e disse: - Venceu então, Matucci! Como é que se sente? Ajeita-se bem na cadeira dos poderosos? E agora, irmãozinho? Qual é a política? Esquerda, direita ou centros?
- Moderação, Steffi. Toleranza. Creio que todos nós precisamos respirar um pouco.
- A mesma coisa de sempre, hem? Até que alguém faça explodir uma bomba em Turim ou que a polícia atire em manifestantes em Catanzaro e, então, o pessoal ficará em
pânico e reclamará ação. Aí é que eu quero ver a sua tolerância... Bem, vamos esperar pelo melhor.
- Calma, Steffi! Dê-me um pouco de tempo.
- Claro que lhe darei tempo, todo o tempo que você quiser. E os outros? E você mesmo?
- Por favor, amigo velho
- Está bem. Estou ainda desempregado e de nariz torcido. Desculpe. Que é que você quer que eu faça?
- Telefonei para o comandante da Maddalena e ele está à sua espera. Você apresentará a carta do Ministro e a minha. Lili lhe será entregue e você a levará para o
apartamento dela. Estarei lá quando chegarem.
Ele me olhou como se eu fosse um animal curioso que tivesse saído de baixo de uma pedra. Havia nos seus olhos desprezo e uma ponta de tristeza.
- Meu Deus! Que espécie de homem é você, Matucci? Ela não é sua mulher? Por que você não vai buscá-la pessoalmente? O que você tem nas veias? Sangue ou água gelada?
Fiquei zangado então, amarga e desesperadamente zangado. Derramei sobre Steffi toda a raiva represada durante tantos meses.
- Vou lhe dizer que espécie de homem eu sou, Steffi! Tenho sangue como todo o mundo. Fico zangado como todo mundo. E já estou cansado de ser empurrado, puxado, usado
e abusado, julgado e mal interpretado por todo idiota que se julga de posse dos segredos do universo. Estou farto de todos os sujeitos como você que pensam que podem
resumir-me numa frase e livrar-se de mim como a uma prostituta a quem se paga depois de uma hora na cama. Estou cansado dos amigos que se arvoram em padres confessores
e esperam que eu desfile diante deles em camisola de penitente e com a cabeça coberta de cinzas. Quer saber por que é que não vou pessoalmente à prisão? Vou- lhe
dizer! E porque a primeira vez que eu vir Lili ela estará em companhia do comandante da prisão, de um escrivão e do carcereiro com uma pistola à cinta. Eu parecerei
exatamente um deles e não quero que ela me veja assim. Não é essa a espécie de homem que eu sou... ao menos para ela. Quero tomá-la nos braços, beijá-la e consolá-la
e não poderei fazer isso se todas as prostitutas e ladras da galeria estiverem fazendo brincadeiras sujas e todo funcionariozinho da prisão nos olhar com um sorriso
superior... Não quero sujeitá-la a isso. Pedi-lhe que fosse porque pensei que você era meu amigo. Mas você preferiu ficar aí me insultando e fazendo pilhérias de
gueto como se Deus lhe tivesse dado o direito de ser a consciência do mundo. Pode ir saindo daqui. Encontrarei alguém que faça isso!
Ele não se moveu. Continuou sentado e abatido, movendo os lábios como se não conseguisse articular uma só palavra. Por fim, encarou-me e em seus olhos havia compaixão
e uma nova espécie de respeito por mim. Disse calmamente: - Sou mesmo um velho idiota que fala demais e não tem um pingo de juízo na cabeça. Desculpe. Terei prazer
em fazer isso para você.
- Obrigado.
- Você está com medo, não está?
- Estou, sim, Steffi. Com muito medo.
- Piano, piano. Tenha calma.
Até para um diretor, as formalidades são longas em Roma. Funcionários saem e entram, mas a grande máquina de papel continua a girar, cuidando de centenas, de milhares
e milhões de resmas de papel selado, assinado, rubricado, carimbado, guardado em escaninhos e levado para depósitos subterrâneos até que um belo dia algum pobre-diabo
vai parar na cadeia e ali fica até que procurem ou digam que procuraram uma migalha de prova de que é inocente.
Enchi de flores o apartamento. Deixei uma garrafa de champanha a gelar num balde, enchi uma bandeja de prata de canapés e abarrotei de víveres a geladeira. Trouxe
fórmulas da Prefeitura para preencher com ás licenças do casamento. Tinha mesmo um anel de noivado de esmeraldas, especialmente feito por Bulgari. Tive de esperar
uma hora e meia até Lili voltar para casa.
A campainha da porta foi como o chocalho de camelos no deserto. Quando abri a porta, ela estava sozinha e muito tranquila. Tomei-a nos braços e fiquei surpreso de
ver como ela estava leve. Beijei-a e abracei-a, sem saber para onde tinha ido toda a paixão dela. Sentei-a na poltrona e servi-a como sé fosse uma princesa. Olhei-a
então... Estava tão pálida que parecia quase transparente. Estava reduzida a pele e ossos. As roupas lhe pendiam do corpo como se fossem roupas de espantalho. A
boca estava sumida e as mãos se agitavam nervosamente. Os olhos, aqueles olhos tão eloquentes, estavam vidrados e parados. Comia e bebia não com fome, mas mecanicamente,
e quando lhe acariciei a testa e as faces, ela se submeteu, mas não reagiu. Ajoelhei-me ao lado dela e perguntei:
- Que foi que houve, Lili? Que foi que fizeram com você?
- Pouca coisa. Às vezes, me interrogavam, mas a maior parte do tempo me deixavam sozinha.
- Lili, sabe que não fui eu que lhe mandei o telegrama?
- Que telegrama?
- Disseram que você voltou porque recebeu um telegrama meu.
- Não houve telegrama.
- Por que voltou então?
- Recebi sua carta. Costumava lê-la todas as noites antes de dormir. Uma noite, não a encontrei. Pensei que a tivesse posto em outro lugar de que não me lembrava.
No dia seguinte, eu estava passeando. Meu amigo de Lugano parou o carro e me convidou para dar uma volta. Entrei no carro e me puseram no rosto um chumaço de algodão.
Depois disso, só me lembro é de ter voltado a mim na Itália, perto de Bolzano. Apareceram então dois outros homens e me trouxeram de carro até Roma. Só isso. Mas
me disseram que você estava na prisão também.
- Oh, querida... Sinto tanto isso tudo.
- Não tem importância.
- Escute, meu bem. Vou lhe dizer tudo o que acontecerá agora. Vou me mudar para cá, junto de você. Vou cuidar de você e, quando ficar boa, nós nos casaremos. Amanhã
mesmo, darei entrada nos papéis. Depois disso, não haverá mais problemas. Você será minha mulher e estará sob a proteção pessoal do diretor do SID, para sempre,
amém! Que tal lhe parece isso?
- Parece a coisa mais bela do mundo, Dante Alighieri, Mas eu não quero.
Olhei-a sem compreender e vi-lhe nas faces o primeiro sinal de vida, ao mesmo tempo que a emoção lhe perturbava os olhos. Estendeu as mãos, que tinham deixado de
ser macias mas pareciam magras e crespas como seda crua, e me tomou o rosto entre elas. Disse-me então muito delicadamente:
- Sei que você me ama, Dante. Sua carta foi a mais comovente homenagem que já recebi em toda a minha vida. Mas vou devolvê-la a você. Não poderia ficar com ela e
não a quero destruir.
- Mas você não disse que a carta tinha desaparecido?
- Foi-me restituída na prisão. Não sei por que, mas foi. Fazem coisas estranhas, umas cruéis, outras boas, e nunca se sabe qual vai ser a próxima. Amo você também,
Dante. Creio que sempre o amarei... mas não para me casar com você e viver o resto da vida em sua companhia
- Por favor, Lili
- Escute, Dante! Tenho que lhe dizer... Não compreendo mais vocês, italianos. São muito simpáticos e bondosos. De repente, tomam-se sinuosos, tão frios e tão cruéis
que eu sinto o sangue gelar-se em minhas veias. Vocês sorriem uns para os outros de manhã e conspiram uns contra os outros à noite. Vocês, não têm lealdades, Dante,
a não ser para a família e para o dia de hoje. Fora da família e do dia de hoje, tudo é dúvida e cálculo. Sinto tanto ofendê-lo, Dante Alighieri, mas tenho de dizer
o que sinto. Vocês são o povo que sempre sobrevive, aconteça o que acontecer. Isso é uma coisa maravilhosa e cheia de esperança. Mas é também uma coisa terrível,
porque vocês são capazes de pisar uns por cima dos outros para colher a última gota de água que houver no mundo... Até você, meu Dante! Até seu amigo Bruno! Não
posso aguentar mais isso. Quero viver em segurança, com um livrinho que me diga tudo o que eu devo fazer. Quero ter certeza de que, sé obedecer às regras, as regras
me darão segurança, mais segurança do que o casamento, Dante Alighieri, mais segurança do que todas as promessas, mais segurança do que o amor. Na Suíça, eu posso
conseguir isso. Aqui não... Não posso mais me arriscar.
Que poderia eu dizer? Era tudo verdade. O anel em meu dedo simbolizava tudo, como o animal fabuloso que sobrevivia às chamas. E, ainda assim, não era verdade. Como
ela dizia, não. O livro de regras não era a solução. Não o era para nós, o povo do sol. A luz era muito clara. Lia-se tudo o que está escrito de través nos palimpsestos.
Como poderia acreditar em permanência quem ia para o trabalho cotidiano pisando sobre os corpos dos imperadores mortos? Não podíamos confiar no dia de amanhã. Só
podíamos fazer alguma coisa com o dia de hoje. Fiquei ali ajoelhado por muito tempo, com o rosto enterrado nas mãos dela, cujos poros ainda exalavam o cheiro azedo
da prisão. Tinha pena dela, amava-a e não podia encontrar palavras que a confortassem ou a mim. Ouvi-a então dizer: - Quer me ajudar a arrumar as malas, Dante? Quer
também ver se me consegue passagem num avião para Zurique? Gostaria de partir o mais depressa possível.
Foi então que eu descobri como era importante ser o Diretor. Pude conseguir uma passagem de primeira classe num avião já superlotado para Zurique. Pude estacionar
o carro num local proibido do aeroporto de Fiumicino. Ofereceram-me drinques gratuitos na sala dos visitantes ilustres. Acompanhei Lili até o avião, acomodei-a na
cadeira e recomendei-a aos cuidados do comissário-chefe. Tudo resultava de um pedaço de cartolina dentro de uma carteira de couro preto com as armas da República.
Não esperei que o avião levantasse voo. Voltei com o meu carro para Roma e telefonei para Pia Faubiani. Não estava em casa. Tinha ido a Veneza para realizar um desfile
lá. Telefonei para uma agência de imóveis e encarreguei-a de me conseguir um apartamento maior num bairro mais elegante. Precisava de melhor figura, pois estaria
tratando com homens e assuntos importantes.
Fui jantar no meu velho restaurante no Trastevere, mas ele me pareceu de repente acanhado e provinciano. Até o músico me pareceu ter perdido o seu encanto.
Voltei cedo para casa e procurei ler um pouco do meu homônimo antes de ir para a cama. Estava muito sonolento para concentrar-me nas suas poderosas imagens, além
do que eu não acreditava numa palavra do que ele dizia... Não, não era verdade. Havia três versos em que eu tinha de acreditar:
...Nessun maggior dolore..."
E ela me disse:
Não há dor maior
Do que lembrar os tempos felizes
Na desgraça; e o teu Mestre sabe disso.

 

 

                                                                  Morris West

 

 

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