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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SATÂNICA RIVAL / Anne e Serge Golon
A SATÂNICA RIVAL / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Os domínios da França no norte da América, em meados do século XVII, unificados por Luís XIV em 1663 sob a denominação geral de Nova França, compreendiam a Acádia (Nova Escócia e regiões vizinhas de Nova -Brunswick, ilha Príncipe Eduardo, partes de Quebec e do Maine) e o território conhecido do Canadá.

O estreitamento das relações entre a Acádia e o Canadá, porém, era dificultado pelas grandes distâncias a percorrer, não só na mata selvagem, como também nos rios congelados no inverno e no oceano infestado de piratas. Acrescente-se a hostilidade dos índios locais agravada pela presença inglesa ou de estrangeiros hostis.

Uma das modalidades de ataque praticada por piratas e saqueadores consistia na provocação de naufrágios. Os navios, atraídos por falsos sinais, naufragavam nos recifes, eram saqueados e seus tripulantes assassinados sem piedade.

Nessa região abandonada, à mercê de criminosos e loucos indesejáveis, muitas vezes mandados pelos responsáveis pelo povoamento da colónia, Angélica foi resgatar seu marido, o Conde de Peyrac, ameaçado pelos poderes de sedução de uma mulher infernal.

"Você é Kawa, a invencível", declara o grande chefe guerreiro. "Deixará o Mal triunfar?"

Na isolada clareira da floresta, de onde se avistava o mar por entre os troncos-avermelhados dos pinheiros, Angélica abandonou-se jips- braços tatuados do grande Piksarett, o chefe guerreiro dos narrangasetts. Afundando o rosto na- pele de urso negro com que ele se envolvia, rebentou em, soluços lancinantes.

O sofrimento lhe dilacerava o coração, mas ela não ousava confessar àquele índio, tão senhor de seus sentidos, a dúvida que a torturava. O desejado marido, o Conde Toffrey de Peyrac,Já não a amava. Senão, como pudera render-se aos encantos da Duquesa de Maudnbourg, uma sedutora irresistível, dotada de poderes satânicos?

Ao ouvir as palavras de consolo do poderoso selvagem, alçou para ele os olhos desorientados. Outrora, bem soubera combater em pé de igualdade com rivais ardilosas, como a temível Montespan, favorita de Luís XIV. Mas hoje estava em jogo o grande amor de sua vida, e a adversária era muito mais terrível!

Ao longe, as gaivotas sobrevoavam a praia perdida, as casas dispersas na orla da enseada, onde oscilava um navio ancorado. Aproximava-se a hora do confronto com aquela criatura diabólica, inimiga do amor.

Poderia recuar diante de alguém que queria a danaçâo de sua alma?

Acreditando ter-se desvencilhado da Duquesa Ambrosina de Maudribourg, embarcada para Boston com sua comitiva e as Moças do Rei, como prisioneiras do capitão inglês William Phipps, Angélica déixaca_a segurança de Port-Royal e seguira ao encontro do marido. O Conde Joffrey de Peyrac partira em missão pacificadora junto aos ingleses, tentando libertar o navio do Marquês de Ville-d'Avray, governador da Acádia. Angélica arriscava-se, atravessando as águas traiçoeiras da baía Francesa (atual baía Fundy, entre o Máine e a Nova Escócia), onde pululavam piratas e provocadores de naufrágios, comandados pelo misterioso "homem do bastão de chumbo". No entanto, a indomável Marquesa dos Anjos não pudera permanecer tranquilamente em Gouldsboro, como o marido lhe recomendara. Principalmente depois de todos aqueles acontecimentos e dramas das duas últimas semanas, quando sua amiga Abigail quase fora envenenada após um parto tumultuado, em meio a horrendos gritos na noite, e para culminar sua tortura, a carta incriminatoria do Padre de Vernon desaparecera misteriosamente. Enfim, a diabólica duquesa estendera sua teia de intriga e sedução até ela própria, sem esconder seu ódio quando a ameaçara ao partir: "Chegará o dia em que farei você chorar lágrimas de sangue!"

 

 

 

 

CAPÍTULO I

O trágico destino, da chalupa de Humberto d'Arpentigny

Quanto mais se avançava pela baía Francesa, mais as coisas pareciam acentuar-se, exagerar-se, surpreender, assustar, tudo se apresentava gigantesco','desmedido, imponente, fora do comum, a beleza das paisagens,'0 esplendor das árvores, a altura das marés, a violência e a selvagerià dos habitantes, a densidade dos nevoeiros, o sabor das lagostas e dos moluscos, a profundidade dos fiordes, a variedade e o número das aves aquáticas, a intensidade das cores minerais - o vermelho dos quartzos, o branco do sal, o preto da antracita -, a sinuosidade dos rios, incontáveis, a majestade das quedas-d'água e a multiplicidade de cascatas, a fertilidade das terras, a quantidade de animais de pêlo e a riqueza piscosa das águas.

E como que a caverna de tesouros insólitos, escondidos ali por algum bandoleiro louco, talvez pelo próprio deus Glooscap: uma variedade infinita de curiosidades-naturais, as águas reversíveis da embocadura do Saint-Jean, õ refluxo do Petit Codiac, as grutas de gelo, as árvores de pedra...

O mar atirava às praias pedaços de carvão, opalas, ametistas, cornalina, cobre...

Naquela noite uma grande chalupa de doze toneladas dançava sobre as ondas, margeando a costa norte" da baía de Chignecto.

Sentada à popa, Angélica olhava com apreensão o desfile de altas falésias avermelhadas, cujo pico desaparecia por trás de uma cortina de neblina de chuva.

A sensação que tinha era a de estar penetrando num país proibido, guardado por deuses hostis.

O barco, provido apenas de uma vela quadrada, às vezes era manobrado a remo. Avançava-se lentamente. A tripulação era composta de alguns acadianos e mic-macs, mais como companheiros de viagem do que como marujos. O proprietário da chalupa era Humberto d Arpentigny, o jovem senhor do cabo Sable, e o piloto, o intendenfe dele, Pacôme Grenier.

Angélica não se impacientava, pensando que em alguns dias encontraria o Conde de Peyrac, na costa leste, do outro lado do istmo. Talvez fosse uma loucura que ele lhe censuraria, pois mais ou menos implicitamente recomendara ao partir que o esperasse tranquilamente em Gouldsboro.

Mas àquela altura não se previa que em alguns dias - duas semanas no máximo - se desenrolariam todos aqueles acontecimentos e dramas, que tornavam aguda a necessidade de os dois se encontrarem. Era indispensável que Angélica o encontrasse para pô-lo a par do que sabia, adivinhava ou pressentia, e para informar se do que ele descobrira. Ora, ainda em Port-Royal, ela ficara sabendo que, em vez de retornar a Gouldsboro, ele rumava para o golfo de Saint-Laurent, contornando a península da Nova Escócia. Ela não podia esperar mais. Eles tinham que ser dois, para lutar, unir-se, juntar suas forças, comunicar um ao outro suas certezas ou apreensões.

Aquela história de Ambrosina de Maudribourg! Angélica não conseguia situá-la em relação ao combate deles. Era como que uma intrusão diabólica, intervindo numa hora em que, às voltas com hostilidades misteriosas, ambos encontravam dificuldade em enxergar com clareza, discernir de onde vinham as ameaças reais, quem exatamente era o inimigo.

Depois de conversar com o filho e ser informada por ele de certas manobras mentirosas da duquesa em Gouldsboro, Angélica já não podia iludir-se sobre o impulso malfazejo que levara a náufraga a semear a infelicidade e a discórdia entre aqueles que a haviam acolhido. E o tempo todo lhe voltavam à memória fatos, palavras, reaçòes imperceptíveis, que agora adquiriam novo sentido. Lembrava-se de uma observação de Ademar, aquele coitado ingénuo, num dia em que ela lhe dissera: "Cuidado para não acordar a Sra. de Maudribourg, e ele respondera: "Ah, essa eente não dorme. Só finge". Uma espantosa advertência contra a estranha atividade de Ambrosina, que, Angélica sabia agora, não parara de bisbilhotar em Gbuldsboró, uma advertência que lhe passara despercebida, tão bem-a outrí soubera convencê-la de sua inação: "Passei o dia inteiro rezando. Dormi por várias horas..."      

E a reação do índio Piksarçttl Parecia-lhe que agora entendia a brusca meia-volta que ele dera. "Tome cuidado, um perigo a

ameaça..." Ambrosina de Maudribourg estava a alguns passos. Ele sentira, enquanto índio tão sensível às intervenções obscuras dos espíritos invisíveis, o poder demoníaco que habitava aquela mulher...   

Angélica passou uma mão pela testa.

"Estou me dispersando!.. Tenho que voltar a realidades mais saudáveis. Uma mulher invejosa, perversa e que tenta destruir uma felicidade que ela não pode suportar --- isso permanece nos limites do normal;.." Oque no entanto, talvez não permanecesse nos limites da normalidade eram os extremos a que aquela mulher hábil conduzira sua obra de destruição... Estaria ela sob a janela de A.bigail na noite em que Angélica ouvira o grito inumano? Fora ela quem misturara veneno à tisana de Abigail? "Mas então", dizia Angélica consigo, "é uma mulher capaz de tudo!"

Não ousava prolongar a busca de uma verdade que ela não podia demonstrar com todas as provas. Parecia demasiado louco, monstruoso. Quando encontrasse Joffrey, haveria de mostrar-lhe a fronha escarlate. Então ousaria apresentar todos os fatos a ele e tentaria entender por que a Duquesa de Maudribourg fora levada a agir contra eles. Elaprópria não passava de uma náufraga, vítima de circunstâncias dramáticas e criminosas. Pois, afinal, aqueles causadores de naufrágios que haviam atraído o La Licorne para os recifes existiam!...

Angélica recordava as armadilhas que tinham sido preparadas para eles desde que saíram de Wapassu na primavera, esquecendo um pouco Ambrosina para retornar às origens de uma cilada mais evidente, ainda que igualmente oculta e tramada com astúcia. Mas chegaria a hora de rasgar o véu. Os misteriosos ocupantes do navio com galhardete alaranjado mostrariam o rosto.

Haveriam de transformar-se em homens a quem poderiam combater, vencer, enforcar por vilanias e traições. Eles falariam. Por intermédio deles, seria possível chegar à fonte, saber de onde vinham aqueles golpes, por quem tinham sido pagos para atacar. Agora que Joffrey estava no encalço deles, o desenlace não tardaria. Ela confiava no marido.

Era preciso esquecer Ambrosína. Estava Jonge agora e já não poderia causar danos. Os ingleses não soltam a presa facilmente.

Ambrosina era uma careta de Satã, uma farsa para aumentar a desorientação dos seres humanos.

Angélica não dissimulava para si mesma que conservava uma cicatriz daquele breve episódio em que sentira passar sobre ela o sopro de um ódio implacável, uma vontade de destruir como, parecia-lhe, nunca inspirara antes, nem à Sra. de Montespan - pois a Sra. de Montespan queria o rei, mas desta vez a coisa não se justificava -, uma cicatriz daquele encontro em que estivera bem perto de ser vencida. "Bem feito", dizia consigo, "isso a ensinará a não se deixar lograr em seu julgamento pelas suas próprias fraquezas!"

Ambrosina aparecera no momento em que ela duvidava de si mesma, em que se sentia vacilar, em que não conseguia emergir daquele turbilhão que lançara pelos ares sua personalidade, desesperara-a, espedaçara-a: aqueles choques sucessivos, a vertigem com Colin, o receio diante do Joffrey desconhecido que era preciso conservar, reconquistar, a descoberta de si mesma, a necessidade em que se vira de se olhar de frente, questionar tudo, reconhecer-se e até conhecer-se sob outro aspecto, aceitar-se, tomar consciência de certo despertar necessário, e também dos ferimentos que a vida lhe infligira, das enfermidades morais que sem saber contraíra em consequência deles, e que era preciso ter a coragem de tratar, apagar... Ele a ajudaria. Lembrava-se da ternura das palavras dele, tranqiiilizando-a, chamando-a de volta - ternura que fora como que um bálsamo para seu ser desamparado...

Mas num momento assim, a outra, a mulher invejosa, tivera condições propícias para aturdi-la e desnorteá-la. Felizmente o perigo passara. E Angélica, olhando as nuvens que dançavam acima das falésias avermelhadas, suspirou de alívio. Felicitava-se por ter conseguido afastar do caminho aquela criatura perigosa. Phipps fora enviado pelo céu. Do episódio só restaria uma experiência cuja lição' seria bom gravar.

Não era a primeira vez que ela constatava que, nessas refregas de astúcia e mentiras, ás únicas pessoas a "logo enxergar claramente o ioeo do inimigo eram indivíduos simples, ingénuos mesmo, tal como Ademar, ou, ao contrário, aqueles cujo conhecimento pessoal do vício e dá desonestidade' tórnava-os mais capazes de discerni-los nos outros. Fora o case! de Aristides e Juliana, que não tinham cessado de denunciar a duquesa com veemência. Mas quem lhes dava ouvidos? Em suma: pessoas que contavam com pouco crédito, nem serflpre sem motivos, junto aos grandes deste mundo e das ""pessoas de bem".

E essas pessoas de bem,pela sua soberba, eram.destinadas a tombar vítimas de uma malignidade que elas não tinham sido capazes de perceber a tempo.

Enfim! Isso ficara para trás.

Dentro de alguns dias Angélica reencontraria o marido. Haveria de refugiar-Se contra seu coração. De abandonar-se a sua força. Não teria mais orgulho. Durante a crise, aprendera como dependia dele.

A viagem até o fundo da„baía Francesa fora decidida de maneira bem repentina.

Depois da partida dos ingleses com seus reféns, Angélica indagara-se sobre o que fazer em Port-Royal. Retornar a Goulds-boro? E se nesse meio tempo o marido chegasse a Port-Royal, como predissera Ambrosina?... Acabara mandando o Rochelais para Gouldsboro com Cantor, em.busca de notícias. Mal o pequeno iate cruzara a barra da bacia, outro navio acostou. Desta vez era o Sr. dé la Roche-Posay retornando a seus domínios.

Humberto d'Arpentigny e sua chalupa cheia de mic-macs com gorros pontudos o acompanhavam. Fora capturado por Phipps, depois libertado devido ao aspecto insólito que tinha. O puritano de cabelos curtos não conseguia fazer uma ideia nítida sobre a verdadeira identidade da presa, que lhe diziam ser um senhor francês de alta estirpe. As tranças negras eriçadas de" plumas, o casaco de couro franjado, a pele cor de argila vermelha, os olhos escuros, tudo o desconcertava. Na dúvida, preferira renunciar à presa.

Os dois trouxeram a notícia de que, após pacificar os acessos ao rio Saint-Jean, Joffrey de Peyrac, a bordo do Gouldsboro, rumava para o golfo Saint-Laurent.

— O golfo Saint-Laurent! - exclamou Angélica, terrivelmente desapontada. - Mas o que ele vai fazer lá?... E sem sequer passar por aqui...

— Ele não suspeitava de que você estava aqui --- disse o marquês -, e creio haver entendido que ele também não faria escala em Gouldsboro. Parecia com pressa de atingir o mais rápido possível a costa meridional do golfo Saint-Laurent, para avistar-se com o velho Nicolau Parys, o concessionário da área que se estende de Shédiac até a extremidade de Causo, e também da ilha Royale e da ilha do Saint-Sacrement, logo em frente.

Fosse qual fosse o objetivo de Joffrey de Peyrac, o fato é que ele se distanciava.

Angélica mandou que trouxessem mapas. Não podia suportar a ideia de esperá-lo mais. Se o Rochelais ainda estivesse'ancorado na bacia, ela se teria lançado imediatamente atrás do Gouldsboro. Mas - que contratempo! - acabara de despachá-lo com Cantor. Estava prestes a romper em lágrimas. Humberto d Arpentigny a observava. Com a intuição dos muito jovens, que compreendem com mais facilidade as motivações afetivas das mulheres porque eles próprios ainda são governados pelos impulsos do sentimento, compartilhava de sua desventura e impaciência.

-        E se você chegasse lá antes dele? - propôs.

Ela o encarou sem entender. O jovem pousou um dedo sobre o mapa.

-        Levo-a até a extremidade da baía. Lá, um dos filhos de Marcelina ou um dos irmãos Défour a conduzirá a pé pelas poucas léguas que separam o fundo da baía Francesa do golfo Saint-Laurent. E pronto! Você estará entre Shédiac e Tatamagonge. Basta que o Conde de Peyrac tenha um pequeno atraso contornando a península da Nova Escócia com o navio e você chegará antes dele à casa de Nicolau Parys.

Angélica aceitara. A viagem seria curta. Ao anoitecer do segundo dia já se encontrava ao largo de Pénobsquid. Humberto d'Arpentigny dizia que fariam parada na casa de Cárter, um inglês de Massachusetts a quem haviam cortado as orelhas por cunhar moeda falsa. Ele pcss.mViíma senhoria no fundo de um daqueles fiordes de quartzo vermelho de que às vezes se distinguia a abertura estreita que,levava pelos meandros de um rio até os domínios do urso; e do alce.

-        Não deixe de notar a entrada - recomendou Humberto d'Arpentigny ao'piloto. -^ Vai sér fácil. Toda noite Cárter acende uma fogueira sobre o promontório e põe de guarda duas famílias de pescadores. Vêem-se asjuzes das cabanas deles um pouco à esquerda da fogueira.

As recomendações não eram inúteis. A escuridão tornava-se profunda. Angélica apertou contra o corpo o manto de lobo-marinho. A umidade-saturada de sal era penetrante. Pensava em Joffrey. Cada hora que passava a aproximava dele, e sentia agudamente a necessidade de encontrá-lo para poderem unir suas forças de defesa. Defesa contra quem?

Atirou a eabeça para trás, e á nuvem baixa, anunciando tempestade, de um preto movediço e atormentado por vapores infernais,-pareceu dar-lhe a resposta.

-        Satã!

Um medo logo sufocado contraiu-lhe a garganta. Era como se a chalupa dançasse ^ofre as" ondas com mais violência.

-        Ah, estou vendo luzes ali! - exclamou ela.

E voltou-lhe à memória a lembrança dos olhos do dragão que guardava a baía de Chignecto.

-        É o sítio de Cárter - bradou Humberto d'Arpentigny, alegre. - Ache logo o canal, Pacôme! Em menos de meia hora vamos comer um bom pedaço~de toucinho e secar as botas!

A título de resposta, o mar sacudiu-os. De início foi uma sequência de balanços profundos, cuja amplidão ia-se acentuando a cada vez, como sob o efeito de um impulso irresistível vindo das profundezas do mar. Até que o barco enorme pareceu proje-tado como um caniço sobre a crista-de ondas cada vez mais gigantescas.

-        Ache o canal, Pacôme - gritou de novo Humberto d'Arpentigny, agarrado à amurada.

Logo em seguida sentiram o choque, como uma cunha de aço que uma mão monstruosa tivesse atirado e cravado profundamente no flanco da embarcação. Quase que no mesmo instante Angélica se viu com água pela cintura.

-        Salve-se quem puder! - gritaram várias pessoas. - Batemos nos recifes de Saragouche!

Nas trevas, o barco pesado agora se chocava com uma rocha e outra. O bailado mortal era acompanhado de gritos dos náufragos e estalidos sinistros.

Acadianos e mic-macs chamavam-se em sua~língua selvagem. Em francês, Humberto d'Arpentigny gritou para a passageira:

-        A margem está perto, Angélica. Tente...

O resto perdeu-se em outro estrondo, e a espuma furiosa abateu-se sobre eles, cobrindo-os totalmente, antes de empurrá-los, gotejantes, na direção de outro escolho.

Angélica entendia que devia tentar abandonar o barco antes de este ser triturado. Permanecendo ali, corria o risco de ferimentos gravíssimos ou de levar uma pancada que a atordoaria e a abandonaria, inconsciente, à fúria dos vagalhões.

A recordação do naufrágio na costa de Monégan, quando o Padre de Vernon a salvara, deixara-lhe uma impressão tão horrorosa - sobretudo a de ser paralisada e arrastada para o fundo pelo peso da própria roupa - que, quase inconscientemente, encontrou forças para soltar a saia de cima e tirá-la, bem como para descalçar os sapatos. No mesmo instante, outro choque, de violência inaudita, dispersou-os a todos. Angélica, agarrada a um pedaço de amurada quebrada, foi levada para a frente. Ela conhecia bem esse impulso do mar na direção da praia. O importante era que soltasse o pedaço de madeira a tempo e se agarrasse a qualquer coisa, antes que o refluxo voltasse a apoderar-se dela. Sentiu a onda de cascalhos do rio envolvê-la, foi de encontro a um rochedo e segurou-se a ele.

Pouco depois estava se arrastando com cotovelos e joelhos sobre a areia, lembrando-se das recomendações de Jack Merwin: "Até a orla de algas secas... não antes... não parar... senão o mar a pega de novo".

Finalmente sentiu a secura da areia e deixou-se cair de costas, respirando com dificuldade, insensível às dores de seu corpo esfolado por toda parte.

Estava ao pé de uma falésia altíssima que, erguida diante deles, adensara a escuridão na qual eles se debatiam. Agora, olhando para a frente, na direção do golfe, avistara melhor o mar onde os recifes, entre os quais tinham soçobrado7 compunham manchas mais pretas rodeadas de espuma branca, pois o céu nublado era vagamente iluminado" pelos reflexos da lua, que transparecia de vez em quando, prójetando um clarão mais vivo antes de empalidecer novamente. Isso bastava, porém. Angélica quase podia ver os destroços da chalupa atirados de um lado para outro e até teve a impressão de distinguir algumas cabeças flutuando por entre os redemoinhos. Bem longe, um deles atingia a margem.

Teve vontade de chamar, mas não se sentiu com forças para tanto. Recuperou a confiança, porém. Todos se salvariam. Um naufrágio a mais! Aquela's eostas não eram avaras em naufrágios, era preciso acostumar-se com isso. Mas o que acontecera exata-mente? Por que aquelas luzes no alto da colina, se eles só estavam nas proximidades dos recifes de Saragouche?

Enquanto es"se pensa.meJnto lhe passava pela cabeça, Angélica soergueu-se e com umá acuidade particular correu os olhos à volta, tentando devassar o mistério daquele palor maculado de preto que banhava os arredores.

Tinha todos os sentidos alertas. Te.ve a.impressão de ouvir gritos horríveis misturados ao estrondo das ondas contra os recifes, mas era tudo muito confuso.

Por que aquelas luzes na falésia... como no momento do naufrágio do La Licorne?

De repente, destacando-se da sombra da falésia, surgiu a alguns passos de Angélica uma silhueta humana. Era alguém que vinha de terra. Um homem, que avançou, recortando uma silhueta negra contra o céu enluarado. Parecia examinar com atenção os redemoinhos furiosos na anseada oride fora arrebentar-se a chalupa de Humberto d'Arpentigny.

Em certo momento virou-se, e Angélica teve a impressão de que ele olhava em sua direção.    

Um grito estrangulou-se-lhe na garganta.

Pois, ao se delinear contra a lividez do luar aquela figura humana, ela podia ver que trazia ná mão uma espécie de bastão escuro.

"O homem do bastão de chumbo!..."

E tudo o que Colin lhe dissera a respeito daquele criminoso lhe voltou à memória. Então era mesmo ele! Não era um mito. O homem de que Colin falara. O assassino, o causador de naufrágios que atraía os navios para os recifes e liquidava os sobreviventes a porretadas. ". .

E ao mesmo tempo Angélica teve certeza de que aqueles fantasmas causadores de naufrágios existiam de fato e iam matá-la.

CAPÍTULO II

Feliz interferência do patsuikett Piksarett - O bilhete assustador

Lentamente o homem se pôs em marcha na direção de Angélica. Não se apressava. Ela estava a sua mercê.. Atirada pelo mar à praia, após uma luta desgastante, sémi-inconsciente, que vítima poderia def ender-se "dos golpes desferidos por assassinos à espreita?

Deitada, sem forças, Angélica dava-se conta de que a mancha esbranquiçada de seu corpo seminu destinava-a aos olhos do assassino. Ele se aproximava. Por um instante, engolido pela sombra da falésia, desapareceu. Mas ela começava a ouvir-lhe o ruído das botas esmagando é cascalho. As apalpadelas, a mão de Angélica procurou e achou uma pedra bem grande e atirou-a na direção do homem. A pedra caiu com um baque seco, errando o alvo. Ela atirou outra. Ouviu uma casquinada zombeteira. O homem se divertia com a irrisória defesa dela.

Mas a risadinha parou de repente. O homem soltou um soluço esquisito. Alguma coisa caiu-no chão, não longe de Angélica. O homem acabava de desabar.

Por um instante não houve movimento algum. Angélica permanecia ali, com os nervos retesados.

Depois, outra silhueta se destacou ao luar, no exato lugar onde há pouco surgira o assassino do porrete de chumbo. E agora era a silhueta de um índio. Distinguia-se-lhe o arco, ainda retesado pela flecha que acabava de matar. O coração de Angélica deu um pulo de alegria e alívio.

- Piksarett! - gritou com toda a força. - Piksarett, estou aqui!

Reconhecera, sem a menor dúvida, a sombra emplumada e de-sengonçada do chefe dos patsuiketts.

Retomando coragem, levantou-se e foi ao encontro dele. Mal dera alguns passos, tropeçou contra o corpo estendido no chão. Uma repulsa assustada fê-la retroceder. Por pouco não desmaiou. Ela tiritava, encharcada no saiote curto e na blusa que se lhe colava à pele. No naufrágio, perdera o manto e a bagagem, leve felizmente, na qual só incluíra a roupa-branca necessária, mas também o pente e a escova de tartaruga, de c[ue tanto gostava. Mas havia outra coisa a fazer além de chorar por esses objetos.

Piksarett estava ajoelhado diante do corpo. Ela mal o percebia, mas o odor selvagem que dele emanava tranqúilizou-a. Era ele mesmo.

Estava retirando a flecha que a vítima tinha cravada entre as . omoplatas. Despois desvirou o corpo. No escuro, o rosto do morto compunha uma mancha esbranquiçada com um ponto escuro na altura da boca aberta. Não era possível distinguir-lhe as feições.

— Para onde estava correndo agora, minha cativa? - disse a voz de Piksarett. - Acha que sempre conseguirá escapar de mim? Bem vê que a alcancei a tempo.

— Você me salvou - replicou Angélica com fervor. - Esse homem queria matar-me.

— Eu sei. Faz vários dias que estou à espreita "deles". São numerosos. Seis, sete...

— Quem são? Franceses, ingleses?

— Demónios - respondeu a voz de Piksarett.

O selvagem, supersticioso, na sua simplicidade nativa, formulava sem pejo o que ela já sabia. Só que agora "eles" estavam mais próximos. Em vez de agirem às ocultas, revelavam-se, e seria possível ver-lhes os rostos, embora rostos assim só se descubram no momento de atacar.

-        Você está com frio - observou Piksarett, que ouvia os dentes de Angélica batendo.

E ela estremeceu reconhecendo-lhe a voz familiar.

-        Vista a roupa deste homem.

Ele soltou o cinto, de onde pendia uma pistola, e despojou o cadáver do casaco, feito de couro e lã. Angélica enfiou a roupa e sentiu-se melhor. Estava ardendo de curiosidade por ver o rosto do inimigo invisível. Mas Piksarett não quis puxá-lo para a luz da lua.

-        Esperemos o amanhecer - propôs. - Estou sozinho aqui, e, se "eles" ainda estiverem rondando, podem surpreender-nos.

Quando o dia raiar, "eles" se afastarão.'

Angélica teve vontade de pergurttar-lhe o que ele escava fazendo ali, por que se encontrava _síJzirjh'o, el&um narrangasett, vagando pelo país dos malecitas, se sabia onde estavam Miguel e Jerónimo, e por que "fugira" de Gouldsboro. Mas a melhor maneira de não obter resposta de um índio é fazer-lhe perguntas. Por isso, calou-se. Estava atordoada de cansaço e começava a sentir as dores dos ferimentos tocados pelo.-sal. Um pouco antes da aurora, Piksarett ficou intrigado com uma fogueira que brilhava não longe deles, na enseada. Rastejou até lá e voltou anunciando que eram mic-macs; que tinham acendido o fogo para secar a roupa e assar peixes espetados numa vareta.

-        Eram os""que" estavam conpsco na chalupa. Você viu os brancos?     

Não, não vira.

Angélica esperava descobrir no morto os traços do homem pálido que uma noite a abordara em Gouldsboro, dizendo: "O Sr. de Peyrac quer vê-la na ilha do Velho Navio". Ficou desapontada e assustada ao vefque não era ele. Portanto o outro ainda vivia, mais perigoso <lo que este que jazia ali. Notava-se que este não passava de um auxiliar, um brutamontes treinado para atacar, matar sem escrúpulos nem piedade. Isso se percebia pela testa baixa do homem, seu maxilar duro e pesado, a guedelha hirsuta.

Antes de se afastar e abandoná-lo aos caranguejos, Piksarett se inclinou e, com uma ágil passàaela de faca, apropriou-se daquela cabeleira pouco atraente para pendurá-la à cintura.

-        Nossos ancestrais tinham que levar as cabeças - explicou a Angélica, transida. - Agora basta a cabeleira para testemunhar as nossas vitórias. Mas arrancar um escalpo com sílex, como antigamente, era uma operação difícil. Ainda bem que os brancos nos trouxeram facas de aço... Venha! Vamos ver esses mic-macs. Não são de modo algum como nós, mas sempre.são abenakis,

Filhos da Aurora.

Com o dia, a neblina se levantara. Já não estava densa e, com o calor, haveria de dissipar-se. Ao se aproximarem, Angélica e Piksarett ouviram uma melopeia melancólica a que outras vozes, num murmúrio monótono, davam as respostas.

-        O canto dos mortos! - sussurrou Piksarett.

Encontraram o grande chefe mic-mac Uniakê ajoelhado diante do' corpo de -Humberto d'Arpentigny, que tinha o crânio rachado.

-        Mataram meu irmão de sangue - disse ele a Piksarett, quando este, depois das formalidades habituais, identificou-se. -

Atacaram-no quando ele saía do mar. Eu os vi.

Piksarett comunicou-lhes o que sabia acerca daqueles homens, que, aproveitando-se da noite e da região hostil, haviam atraído a chalupa para os rochedos.

— Leve-me até eles, a fim de que eu me vingue deste crime. Ah, como lamento! - O rosto quadrado do mic-mac, de um moreno amarelado habitualmente, estava tão pálido e devastado pelo sofrimento impotente que parecia burilado em marfim. - Ah, como lamento não ter nascido iroquês ou alonquino, como aqueles huronianos do norte, para torturar esses malditos até a morte. Mas as cabeleiras deles ornarão minha wigwam, ou não retornarei para junto dos meus!

— Eu já tenho uma - disse Piksarett, triunfante.

Propôs uma aliança, que foi selada com alguns ritos, e depois se ofereceu para levá-los até um local onde poderiam fazer uma refeição. Em seguida realizariam um conselho.

Angélica continuava a bater os dentes, e agora era menos de frio do que de horror. O pesadelo prolongava-se, definia-se, encarnava-se. Das vítimas do La Licorne, atribuídas aos elementos e a um acaso nefasto, chegava-se à morte criminosa de dois acadianos e de três nativos. E desta vez se sabia que a morte fora provocada intencionalmente. O desaparecimento de Humberto d'Arpentigny, jovem senhor de renome, não deixaria de causar grande comoção na baía Francesa e mesmo em Quebec, pois, apesar dos conflitos que opunham as duas regiões, aos olhos do reino a Acádia continuava sendo parte integrante da Nova França, dependente do governo do Canadá.

Coitado do jovem Humberto d'Arpentigny, tão cheio de vida e paixões!... "A culpa é minha", pensava Angélica, "porque o impedi de retornar a sua propriedade no cabo Sable... Era a mim que queriam matar, e foi a ele que atingiram."

Invadia-a uma sensação gelada.' "Nosso nome - meu nome - será novamente associado aos infoFtúnios-£ausados aos franceses. Para começar, o navio- das Moças do Rei, que seguia para Quebec, soçobrando na costa de Gouldsboro; depois, hoje, este jovem francês de mérito assassinãdo^em minha companhia... Como provar que caímos numa armadilha? Ninguém acreditará em nós.... Não darão ouvidos ao testemunho dos mic-macs..."

Mais do que nunca, agora que o perigo se tornava premente e se definia melhor, ela precisava reunir-se ao marido.

O grupo de íridios-sobreviventes diyidiu-se em dois. Seis deles tratariam do sepultamento-provisório dos mortos, enquanto não se pudesse levá-los para casa. Seguiriam para a aldeia próxima de uma tribo aparêhfadji para pedirem pirogas e irem à península levar as más notícias.

Uniakê e seuTugar-tenente acompanhariam, o abenaki Piksarett, que prometia conduai-los pelo caminho da vingança. Angélica ficou satisfeita de ouvir Piksarett declarar que a primeira coisa a fazer era "encontrar o Homem do Trovão, ou seja, Joffrey, que possuía terras desde a entrada da baía Francesa até as nascentes do Kennebec.        

-        Os inimigos dele hoje são nossos inimigos. Ele está em seu encalço. Neste momento encontra-se diante de Shédiac, com Skudun e Mateconondo. Possui navios, armas, astúcia e saber. Aliemonos a ele e ouçamos-lhe os conselhos, antes de fazermos guerra contra os que acabaram de matar seu irmão de sangue, Uniakê, pois na verdade é preciso sermos prudentes, meus irmãos. Não sei a que espécie pertencem esses brancos que matam. Nem ingleses, nem franceses, nem piratas, nem málvinos... Eles têm um navio, talvez dois.

Baixou os olhos para concluir:

-        E também... Acho que estào possuídos por maus espíritos.

Angélica notou que os olhos investigadores de Piksarett estavam alertas o tempo todo. Ele, o selvagem místico, tinha o sentido inato das ameaças ocultas, dos perigos sorrateiros que avançavam protegidos por aparências inofensivas. Ela lembrava da brusca meia-volta que ele dera quando fora cobrar seu resgate em Gouldsboro, o modo como começara a olhar em torno, como se farejasse a aproximação de um animal maligno. "Tome cuidado", dissera-lhe ele. "Um perigo paira sobre você!" E "fugira!"... conforme as palavras de Jerónimo e Miguel. Em que pista se lançara? Parecia que essa pista o levara aonde fora preciso, pois ele aparecera bem na hora em que a armadilha que Angélica não notara a tempo se fechara sobre ela...

Agora ela se sentia tranquila na companhia dele e sob sua salvaguarda.

Foi com coragem que o seguiu quando ele se enfiou pela floresta com os mic-macs. Piksarett, o pele-vermelha, já sabia muita coisa, e se não podia transmiti-las a eles, devido a um sentido particular e indefinível que o advertia contra isso, ela pelo menos podia confiar nele. E na expectativa em que se encontrava, começava a perceber que era desses poderes que necessitava, pois a angústia que sentia, sobretudo depois de Port-Royal, era menos física - mesmo sabendo agora que queriam tirar-lhe a vida - do que moral, decorrente do sentimento de que tentavam atingir e destruir nela algo mais precioso do que a vida.

Seus inimigos tinham estado em Port-Royal, assim como tinham estado em Gouldsboro, contra toda a probabilidade?

Antes de se afastarem da praia, os índios examinaram mais uma vez, com prudência, por entre os rochedos. Encontraram obje-' tos que tinham pertencido aos passageiros da chalupa, entre outros a sacola de Angélica e seus sapatos. Isso a reconfortou. A sacola, exceto pelo pente e a escova de tartaruga, não continha nada de muito precioso, mas, quando se é uma náufraga numa praia perdida, tudo tem utilidade. Ela secou o que pôde. O resto secaria mais tarde. Na intenção de mostrá-la a Joffrey quando o encontrasse, trouxera a fronha escarlate de Abigail, manchada e perfurada. Ficou contente de não haver perdido aquele testemunho importante de fatos suspeitos.

Assim que se tomava distância da costa, a terra recobria-se de um ar imóvel e secreto. Um calor intenso, sem nenhuma brisa. Já estavam no fim do verão. Pouco antes do outono glorioso. Uma seca agressiva começava a fazer a vegetação rasteira crepitar. Logo começariam os incêndios, mesclando suas chamas púrpuras e vermelhas ao vermelho e à púrpura das árvores.

Por ora a floresta ainda conservava o revestimento esmeralda dos cedros e espinheiros, bem-tomo os perfumes exacerbados das resinas e das mil árvores frutíferas, selvagens.

Piksarett guiou os companheiros pará^fora das trilhas que levavam às aldeias. Nenhum dos,tres selvagens parecia desejoso de topar com os nativos, os maleçitas de olhos verdes, a quem a consanguinidade ancestral com os pescadores bretões, talvez até com os vikings, primeiros descobridores daquelas terras, tornava fanfarrões e venais, demasiado habituados a comerciar com os navios e a se entregar a bebedeiras assassinas. Por volta do meio-dia desembocaram-numa clareira cheia de mato e arbustos, que eles precisaram desbastar um" pouco a facadas antes de descobrirem três ou quatro grandes caldeirões de madeira, na orla das árvores.

— Eu disse que poderíamos festejar - disse Piksarett, muito satisfeito. • : . i- -

— Você, um patsuikettào rio Merrimac, conhece a região melhor do que nos, quelicrêntanto somos vizirihos dela - admitiram os mic-macsi

— Antigamente a terra inteira pertencia aos Filhos da Aurora - declarou Piksarett, que não tinha medo de exageros. - Guardamos a lembrança disso no-sangue. É essa lembrança que nos guia para os lugares onde nossos ancestrais festejavam outrora. Desde então, os brancos chegaram. Agora temos caldeirões de ferro para levar em nossas viagens, mas nossos territórios também encolheram como uma pele de cabrito mal curtida.

Antigamente os índios fabricavam, queimando os tocos de árvores abatidas, aquelas cubas para cozinharem a sagamite. Punha-se água dentro, pedras em brasa, a água fervia. Então juntavam o milho, o peixe ou as-carnes, a gordura, os frutinhos das matas. As tribos nómades conheciam á localização desses caldeirões de madeira através do território.

Ao longo do trajeto, os índios tinham matado um caribu. Cozeram-lhe os ossos para obter gordura branca, que levariam na viagem. Cozinharam à parte o estômago com o conteúdo, uma pasta amarelo-esverdeada. Era um prato de sabor um pouco amargo, devido às folhas dos brotos de salgueiro que o caribu come no verão.

Angélica preferiu não provar. Estava sentada, com as costas apoiadas a uma árvore. Sentia-se esgotada e, apesar da marcha e do calor, continuava com frio, um frio interior. Depois do naufrágio em Monégan, o Padre de Vernon a obrigara a tomar um prato de sopa quente. Parecia-lhe que nunca.comera nada tão bom. Agora também ele estava morto. De repente, brotando desse pensamento como aquelas pequenas víboras cruéis que agora não paravam de atacá-la, Angélica viu aquela morte sob outro ângulo.

"Quando ficarem sabendo, dirão: 'Sabe, em Gouldsboro assassinaram um jesuíta, o Padre de Vernon... Que coisa medonha! Esse Conde de Peyrac não recua diante de nada...' '

Que barreira levantar contra tais comentários maldosos sustentados pela verossimilhança?

Teve outro arrepio. Para se esquecer, deslizou as mãos para dentro dos bolsos do casaco que a cobria. Pertencera a um daqueles desconhecidos sem rosto que os perseguiam. No fundo de um dos bolsos, sentiu alguns objetos pequenos. Havia um ralador de tabaco, bugigangas para os índios; no outro, um papel dobrado, que ela puxou para íora. Uma folha de refinado pergaminho - Angélica juraria que até soltava um leve perfume -, onde havia algumas linhas escritas. A ortografia apenas já dava medo. Angélica não saberia dizer se a mão que a traçara fora a de um homem ou de uma mulher, de uma criatura culta ou vulgar, um louco ou um espírito equilibrado, pois dela emanava ao mesmo tempo uma impressão de pujança viril e de preciosismo feminino, os impulsos do orgulho como garras projetadas e as circunvoluções da astúcia, a gosma espessa da sensualidade aliada à graça mesma das cartas, traindo no missivista o hábito de manejar a pena.

Leu: "Semeie a infelicidade sobre seus passos, a fim de que a acusem".

Mais embaixo: "Esta noite-o esperarei, se se comportar..."

Dessas palavras se desprendia algo de malsão e assustador.

A assinatura era ilegível. As letras indecifráveis se entrelaçavam, parecendo esboçar a silhueta de um anima] medonho. Angélica teve a impressão de que já vira aquele sinal em algum lugar. Mas onde?

Segurava a folha com dois dedos, resistindo à vontade de atirá-la ao fogo para se purificar.

CAPÍTULO III

O providencial encontro com o Rochelais, com Cantor e os homens de Gouldsboro

Ainda caminharam mais um dia por atalhos e veredas. As trilhas que seguiam eram as dos. animais e as dos caçadores.

Por entre os troncos dos carvalhos e dos abetos viam-se cintilar inúmeras represas de castores. Os índios iam num ritmo que Angélica tinha dificuldade em acompanhar; sem ela teriam sido ainda mais rápidos. Teriam corrido até. Podiam correr horas seguidas sem parar e frequentemente podiam manter um ritmo de corrida que seria considerado o mais rápido para um homem branco. Angélica sabia que os seus companheiros se consideravam perseguidos por um perigo premente, mas não podiam deixá-la pelo caminho, pois também ela estava ameaçada e precisava chegar sã e salva junto ao Homem do Trovão, seu marido. Só então poderiam considerar-se a salvo dos espíritos maus. Para vadear os rios, Piksarett levava Angélica às costas. A amizade e a solidariedade que lhe testemunhavam esses selvagens, a compreensão intuitiva que eles tinham da situação - situação que até para ela continuava confusa - não tinha preço para Angélica naqueles dias incertos. Homens brancos, de espírito mais assentado e materialista, que rissem das dúvidas e temores informulados dela, não lhe teriam inspirado a mesma confiança nem lhe teriam trazido o mesmo conforto.

Ao anoitecer, enquanto comiam durante a parada que fizeram, ouviram ressoar os ecos de um canhonaço próximo.

- Há um navio por aí, chamando para o comércio - disse Uniakê.

Prudentes mas curiosos, insinuaram-se até a beira da falésia que dominava um rio largo de águas calmas. As falhas profundas, que recortavam todo o litoral, permitiam aos navios avançar bastante estuários acima.

Havia um pequeno iate ali, refletindo a tutelle vermelha no espelho de esmeralda do rio.        

-        O Rochelais! - exclamou Angélica, sem acreditar nos próprios olhos.

Já avistara sobre o convés'a cabeleira loura de Cantor, as silhuetas familiares de pessoas de Gouldsboro,.Vanneau e o lugar-tenente de Colin, Barsempuy.

Eles subiram pela encosta abrupta.

-        Ah, eu bem- sahia que a encontraria! - exclamou Cantor ao ver a mãe,

Pouco depois alcançou-a na prainha à beira d'água.

— Como você adivkiKou que eu estava por aqui?

— Pelo faro --- replicou Cantor, pousando um dedo no nariz.

— Ah, você" é bem filho deste país - observou Angélica, abraçando-o carorosaroente. - É digno dos índios!

Que bom rapaz aquele Cantor, com a sua juventude insolente e segura de si, cheia de saúde e paixão!

-        Voltei a Port-Royal para levar-lhe notícias de meu pai, recebidas em Gouldsboro,. Vocêiá nao"estava lá, mas disseram-me que se dirigia para leste. Segui a pista até a casa de Cárter, que não a viu mas que sabia que a sua embarcação naufragara, que você se salvara e que tinha partido para o interior com selvagens. Dali foi fácil calcular as suas paradas e o ponto onde eu poderia alcançá-la. Um pouco ao acaso das enseadas, mandei disparar o canhão, até que me ouvisse.

Angélica só prestou atenção numa coisa:

— Você tem notícias do seu pai?

— Sim, ele mandou uma carta a Colin para avisá-lo de que seguia para o golfo de Saint-Laurent contornando a península e que só poderia regressar depois de no mínrmo três semanas. Na carta ele também lhe dava instruções.

— Não havia nada para mim?

— Sim, havia um bilhete para você.

— Dê - disse Angélica, estendendo a mão com impaciência.

Cantor pareceu embaraçado, depois disse, confuso:

-        Mãe, perdoe-me, eu esqueci...

Angélica teve vontade de torcer-lhe o pescoço.- Mas era muito curto - insistiu Cantor, muito aflito diante do desolado rosto dela -, com certeza não continha nada de muito importante!

Õ que mais dizer?     

— Trouxe-lhe a sua bagagem - continuou Cantor, timidamente, compreendendo que pecara gravemente contra o código incompreensível que rege ã vida daqueles seres ainda pouco acessíveis para a adolescência, os adultos. - Foi Abigail que preparou tudo para você. Até incluiu algumas roupas mais quentes para o inverno. Disse que talvez você fosse obrigada a ir até Quebec...

— O teu pai falava de mim nessa carta para Colin?

— Não, mas Cohn decidiu que eu devia ir buscá-la em Port-Royal e levá-la ao golfo Saint-Laurent no Rochelais. Pois você devia ir ao encontro dele a qualquer preço.

Assim, Colin teria aprovado a decisão dela de partir para o istmo de Chignecto.

Enquanto trocavam essas palavras, índios malecitas tinham saído da mata, trazendo castores, peles de lontra, de martas, e algumas raposas azuis. Para não descontentá-los, Barsempuy autorizou o comércio. As ferragens de Gouldsboro eram de boa qualidade. Os nativos se deram por satisfeitos, embora não obtivessem álcool na quantidade que gostariam.

Depois que se afastaram, Angélica e os seus três índios embarcaram no Rochelais, cuja âncora foi levantada ao anoitecer. De comum acordo, resolveram não contornar a península, o que os teria feito recuar e os atrasaria em vários dias. Estavam demasiado para leste agora. Seguindo o projeto inicial de Angélica, ancorariam o Rochelais na extremidade da baía de Cobequy e atravessariam o istmo a pé. Seria coisa de três, quatro dias, no máximo. Angélica já sonhava com o momento em que desembocariam nas costas do vasto golfo, aberto na direção da Europa, reino, no verão, dos pescadores de bacalhau, que, ao longo das praias, pescavam, cortavam e salgavam o bacalhau. Nessa estação o odor era tão nauseabundo que dava para senti-lo a várias milhas para o interior. Mas isso não tinha muita importância.

Será que ela também avistaria o Gouldsboro, ancorado ao largo? O que será que joffrey fora fazer ali? Como ela lamentava aquela mensagem que Cantor achara supérfluo trazer-lhe! Para ela, neste momento, cada palavra dele a teria enchido de alegria. Teria pousado os lábios sobre as letras braçadas pela mão dele. Era a certeza, o calor da presença dele, que ela sentia uma necessidade ardente. Menos por medo dos perigos que pesavam sobre ela - atravessara sozinha 'muitos outros perigos - do que pela necessidade de saber que num mu-ndo vil, falso, submetido demasiado facilmente aos instintos mais baixos, ele pelo menos existia, um homem que a amava e que caminhava reto pela estrada.

Além do mais, ela não estava bem de saúde.

O Rochelais chegara bem a tempo de poupar-lhe dar-se por vencida. Sem contar as inúmeras contusões decorrentes do naufrágio, o ferimento, no pé também se agravara.

O ferimento lhe fora causado durante a primeira viagem do Rochelais a Poft-Royal,em meio à tempestade, quando dera uma topada na arca de Saint-Castine.

Aliás, a primeira colsàTrue notou ao entrarna cabina do castelo de popa naquela noite foi a famosa arca com trezentos e cinquenta escalpos ingleses.

— Será que estou sonhando? - exclamou. - Deixei essa carga em Port-Royal!      

— O Sr. de la Roche-Posay a entregou a mim - explicou Cantor. - Disse que era a oportunidade para encaminhá-la a Que-bec. Também acho que ele não fazia muita questão de guardá-la em casa...

Fosse como fosse, era de crer que aquele testemunho da boa vontade do Barão de Saint-Castinè pela causa do rei da França acabaria chegando ao destino.

Angélica resignou-se. Nas outras malas que Abigail lhe preparara, encontrou o que precisava para se tratar, vestir decentemente, recuperar uma aparência humana. Foi sem pesar algum que tirou o casaco do homem do bastão. Masteve o cuidado de tirar do bolso o papel misterioso, de ortografia inquietante, que dizia: "Semeie a infelicidade sobre os seus passos, a fim de que a acusem..."

CAPÍTULO IV

Nos domínios de Marcelina, a Bela - A presença do

Marquês de ViIle-d'Avray, governador da Acádia

De manhã, saindo pela esquerda da baía de Shepody, onde desagua o Petit Codiac, o Rochelais enveredou por um dos últimos recantos da baía Francesa, para os lados onde, sabia-se, estavam estabelecidos entre as garças azuis, os falcões peregrinos, os patos pretos e os gansos brancos, alguns daqueles espécimes humanos de que Angélica já ouvira falar, gente que não pertencia nem a Deus nem ao Diabo, vivendo para si mesma, escondida no fundo de sua toca, espiando o inimigo do alto das falésias vermelhas ou negras - e era tido como inimigo todo intruso que se infiltrasse pelos meandros dos fiordes cobertos de árvores. Marcelina, a Bela, os irmãos Défour, um eremita, alguns outros...

A mulher com onze ou doze filhos possuía um modesto solar com serraria, moinho de farinha, entrepostos e mercadorias de troca.

Alugando os direitos de caça e pesca que herdara do falecido marido, ela era senhora do feudo, protegendo alguns franceses, pescadores litorâneos ou modestos agricultores que se tinham instalado ali, com esposas, concubinas indígenas e todo um bando de pequenos mestiços. Ao todo, uma dezena de casas, de sessenta a setenta pessoas.

O Rochelais lançou Encora ao pé desse domínio de uma beleza selvagem.

Uma trilha ladeada de tremoços subia até a casa de madeira e pedra, solidamente construída.

A profusão de tremoços, de hastes gigantescas, azul-celeste, rosadas e brancas, dava aos arredores um aspecto de parque real.

No entanto, os recém-chegados.encontraram a casa vazia e o local abandonado, embora ainda houvesse brasas quentes na lareira e galinhas ciscando no -terreiro.

- Eles devem ter fugido com os utensílios de cozinha ao avistarem as nossas velas - disse Him dos tripulantes, que conhecia o lugar. - E um hábito das pessoas daqui, sobretudo nos sítios franceses isolados, que não têm defesa. Por.menos que os ingleses saqueiem, é melhor acampar na mata alguns dias do que ser levado como cativo para Boston. Os franceses têm uma verdadeira ojeriza ao mingau de cevada dos puritanos!

Os passageiros do"Rochelais resolveram tentar a sorte junto aos irmãos Défõur, que viviam a meia légua dali.

Tiveram a sorte~de encontrar o terceiro irmão, Amadeu, que não se fez de rogado em ofereeer-lhes uma generosa hospitalidade. Os irmãos mais velhos ainda não tinham regressado da expedição ao rio-Saint-JçanJ_Amadeú e o mais novo, na companhia do gato - pois tinha'm um gato que era a imagem deles: grande, gordo e taciturno -, guardavam a casa, caçavam, pescavam. Havia que preparar-se para o inverno, acumular e trocar as peles trazidas pelos índios, çplher um pouco de cereais, batatas, engordar o porco, defumar a carne de caça. Viviam ali como senhores rústicos, juntando dinheiro para o sonho longínquo de voltarem ricos para o reino da França, ou não voltarem mas simplesmente se sentirem bem de vida e prósperos até o último dos seus dias. Era compreensível que gente assim não desejasse ser perturbada. Nem por governantes, nem por jesuítas, menos ainda por coletores de impostos.

Em compensação, para os amigos a hospitalidade deles não tinha limites. O mais velho dos jrmãos já provara isso, capturando os soldados do Forte Santa Maria para colocá-los à disposição do Conde de Peyrac. Gostavam de mostrar-se generosos à custa do rei da França. Amadeu logo concordou em conduzir Angélica até o outro lado do istmo, sobre o golfo Saint-Laurent.

Levaria alguns dos seus homens para carregarem as bagagens. Seria coisa de dois dias de marcha, talvez menos, pois os charcos e turfeiras, nesse fim de verão, estavam quase secos e era fácil atravessá-los.

Apesar da sua impaciência, Angélica não pôde partir no dia seguinte. Sofria com o pé e tinha a perna inchada. A ferida que ela negligenciara em Port-Royal piorara em contato com a água do mar e ganhava agora um aspecto de úlcera, rebelde a qualquer remédio. Angélica decidiu que pelo menos durante um dia inteiro descansaria a perna ê tentaria uma aplicação de outro cataplasma de ervas, que talvez desse melhor resultado do que o que ela tentara até então.

A fim de poder partir o mais cedo possível, empenhou-se em repousar completamente. O local ficava tão perdido, o fim do mundo, o fundo da baía Francesa, o beco da baía que a cada vinte e quatro horas se enchia de água, a uma altura de doze metros, que a impressão que se tinha era de estar ao abrigo dos homens e que ninguém apareceria à procura de ninguém.

ilusão!

Durante a tarde, quando Angélica atravessava a sala principal da casa, topou, parecendo esperá-la, com o Marquês de Ville-d'Avray, o governador da Acádia, vestido de casaca rodada, colete florido e saltos altos, apoiado com uma das mãos a uma bengala de pomo de prata e segurando com a outra uma criancinha bochechuda de uns quatro anos de idade, de cachos louros sob um gorro de lã vermelha, e estranhamente parecida com o marquês.

-        Angélica! -- exclamou ele. - Que prazer em revê-la!

E acrescentou com ar pesaroso:

— Fui informado da sua presença aqui! Isso não está certo! Você não me avisou e por pouco teria partido sem vir me ver...

— Mas eu ignorava que o senhor estivesse aqui!

Os olhos de Angélica iam, hesitantes, do governador para a criança.

-        Pois sim - disse o marquês com orgulho -, é meu filho. Não é um encanto?

E logo disse, a título de melhor esclarecimento:

-        Também é o filho mais novo de Marcelina, a Bela. Você não a conhece? E pena! Há que vê-la quando abre moluscos... Diga bom-dia, Querubim... Ele se chama Querubim... Cai-lhe à perfeição, não é? Por que você veio se hospedar na casa destes

indivíduos ignóbeis, os irmãos Défour, em vez de parar na casa de Marcelina?

— Paramos lá, mas ela não estava.

— Ah! E verdade! Fomos nós esconder, na floresta com os nossos caldeirões. É um ve.lhò costumemos acadianos franceses. Assim que avistam um navio 'desconhecido, agarram as panelas e correm para junte-dos selyagehs por alguns dias... É muito divertido!... Mas agora eu tinha praticamente certeza de que reconhecera um dos navios do Sr. de Peyrac. Assim, insisti para voltarmos ao entardecer.

Correu os olhos à-volta, irritado..

— Como você pode entender-se com esses brutamontes insolentes? Não só zombam de mim, recusam-se á pagar seus impostos, como támbém, fique sabendo, desencaminharam meu pupilo navegador Alexandreh.rSim, desencaminharam-no. Contrataram-no para levarfas embarcações mercantes deles pelo Petit Codiac. E pronto! Alexandre perdeu-se para nós. Vai tornar-se um bruto à imagem deles, ÇonTer com as mãos, dormir com mulheres selvagens... É aflitivo! Mas escrevi a Quebec para me queixar deles... Leio a carta para você antes de despachá-la. Quanto tempo ficará,entre nós?

— Eu gostaria de partir já. amanhã - disse Angélica -, mas tenho um ferimento na perna que está demorando a sarar. Receio que não me permita fazer várias léguas sem cansaço.

O governador logo se emocionou.

-        E eu a mantenho em pé! Minha pobre criança! Pronto, sente-se aqui! Mostre-me o seu ferimento. Tenho algumas noções de farmacopeia.    

Na realidade ele era bem competente. Concordaram em que era preciso tratar da perna com erva-doce ou verbasco.

-        Encontro-lhe isso em menos de um dia. Conheço todo mundo aqui. Mantenho, mesmo,-excelentes relações com o feiticeiro-curandeiro da aldeia. Mas há que ser razoável, minha criança. Você terá que esperar vários dias antes de dar longas caminhadas, e sabe disso.

-        Sim, eu sei! - suspirou Angélica, baixando a cabeça.

Decidiu consigo mesma que pediria a Piksarett e aos mic-macs que partissem para a costa na qualidade de exploradores, levando uma mensagem para o seu marido. O marquês parecia muito feliz.

— Então havemos de vê-la por algum tempo! - regozijou-se. - Você verá! O lugar aqui é encantador. Volto todo ano. Mar-celina guarda algumas roupas minhas. Não preciso nem carregar bagagens. É um descanso no decorrer desta viagem de inspeção tão exaustiva. As minhas incumbências de governador são desgastantes, sobretudo quando são complicadas pela má vontade de uns e outros. Você viu esse caso do rio Saint-Jean!

— Sim, e a propósito do rio Saint-Jean, como foi que tudo aconteceu por lá? - indagou Angélica, que tinha vontade de ouvir sobre o marido.

O Sr. de Ville-d'Avray forneceu-lhe alguns detalhes:

-        O Sr. de Peyrac manobrou admiravelmente, e Skudun o auxiliou. Os ingleses só viram o fogo, tanto mais que havia uma neblina de cortar com faca. Recuperei o meu navio, o Asmodée, sem perdas, nem derramamento de sangue... Gostaria de ter podido agradecer-lhe melhor. Ele praticamente desapareceu sob as nossas barbas. Parecia com pressa de acabar com aquilo o mais rápido possível...

O marquês deu uma piscada cúmplice.

— Certamente para reencontrá-la o mais breve possível, bela condessa!

— Ainda não o reencontrei - disse Angélica. - Mas, como soube que ele singrava para o golfo Saint-Laurent, procuro alcançá-lo.

— Haverá de alcançá-lo, conserve a confiança, minha senhorinha! Enquanto isso, estará aqui para o dia de Santo Estêvão. É maravilhoso! Todo ano, nessa ocasião, dou uma festa no meu navio. É o meu dia de festa. Sim, eu me chamo Estêvão. Virá, não é? Angélica, sorria, a vida é bela!

— Nem tanto! - disse a voz de Amadeu Défour, que entrava na sua residência. - Principalmente para quem o encontra. Governador, o que veio fazer na minha casa?

— Vim cumprimentar amigos pessoais a quem você monopoliza de maneira ultrajante - replicou Ville-d'Avray, aprumando-se em toda a sua estatura. - De resto, você esquece que tenho o direito de inspecionar todos os territórios sob a minha jurisdição, inclusive a sua residência. É meu dever estar informado de quanto você-fouba ao Estado e a mim.

— E de quanto o senhor pode roubar a essas pessoas de valor que, conforme diz, estão sob.a sua jurisdição?

— Pessoas de valorL. Ah, ah, ah! É em vocês que pensa quando alude a "pessoas de valor"'! Vocês são dissolutos, ímpios, nunca assistem a uma missa. O Padre Damião Jeanrousse os denunciou como pagãos.

— Não temos capelães, e o próprio Padre Jeanrousse afirma que não está aqui para se ocupar dos brancos, mas somente para tratar da conversão dos selvagens.

— E o eremita da montanha? Vocês poderiam confessar-se com ele!   

— Está bem! Não nos confessamos, mas somos gente honesta.

— Gente honestai Pobres companheiros! Acham que podem iludir-me e.que não entendi nada sobre o seucomerciozinho no Petit Codiac!"~Num tempo recorde levam as suas peles e a sua madeira de carpintaria "para lá, até o golfo, e' as vendem aos navios que fazem escala na Pointe-du-Chêne ou em Sainte-Anne, antes de zarparem para a Europa. Mais mercadoria que deixa o Canadá sem pagar impostos. Vocês são uns trapaceiros! Sabe o que vai acontecer quando eu contar isso em Quebec?

Amadeu permaneceu em silêncio e foi servir-se de uma dose de álcool junto da lareira.

— Pague-me dez por cento sobre o seu lucro - disse Ville-d'Avray, que o seguia com um olhar de águia, um olhar onde já não havia ingenuidade ou jovialidade -, e não direi nada.

— Não é justo! Somos sempre nós que temos que pagar - protestou Amadeu. - O senhor exige o mesmo de Marcelina, e Deus sabe como ela está envolvida em negócios nada católicos.

— Marcelina é uma mulher cheia de filhos e tem poucos recursos - declarou o governador com solenidade. - Apesar de suas exigências, a lei sabe mostrar-se indulgente para com a viúva e o órfão.

— Pois sim. Para recursos e indulgência ela bem que soube se arranjar com o senhor, essa Marcelina! Só que nós não temos as mesmas armas, longe disso!

— Quebro-o a bastonadas, miserável! - bradou Ville-d'Avray, brandindo a bengala.

— Isso vai ser bonito de ver - replicou o colosso, pondo-se em guarda, com os punhos preparados.

O marquês controlou-se.

-        Não na frente da criança. É muito sensível. Você vai transtorná-lo. Controle-se, Amadeu!  

Fizeram uma trégua, emhora o Querubim de gorro vermelho não parecesse nada perturbado com a troca de,amabilidades. O marquês tomou-lhe a mão e fez um sinal cúmplice a Angélica.

-        Saiamos daqui - sussurrou.

A soleira, voltou-se.

-        Muito bem, ficarei satisfeito com cinco por cento, com a condição de que dêem prova de deferência para comigo. Não sou exigente. Venha com os seus irmãos assistir ao serviço religioso no dia de Santo Estêvão e compartilhar do meu bolo de aniversário a bordo do Asmodée. É preciso pelo menos que se diga que o governador da Acádia é recebido com consideração na sua província. Senão, com que cara fico eu?

Do lado de fora, protegidos por uma sebe de tremoços, explicou a Angélica:

-        O fundo da questão com essa gente é que eles são ciumentos. Compreenda, cada um dos quatro é o pai de pelo menos um dos filhos de Marcelina... São crianças muito bonitas, concordo, mas o meu filho ainda é o mais bonito de todos - concluiu, olhan do com satisfação o garoto de olhos azuis. - Mas é normal. Afinal, sou o governador... Bem, esqueçamos esse incidente. Vou mandar-lhe os remédios necessários. Assim que você estiver melhor, venha visitar-me. Marcelina quer conhecê-la. Você verá, é uma mulher espantosa.

CAPÍTULO V

Expectativa em Tantamare

Como aconteee quando se ouviu faiar muito de alguém, talvez até demasiado," Angélica não tinha assim tanta vontade de conhecer a famosa -Marcelina. Aquela personalidade feminina, cuja verbosidade e..rfetilidãde, ousadia e habilidade para abrir moluscos pareçiamíer atraído todas as simpatias masculinas da baía Francesa,__irritava-a um potíco por antecipação.

Mas Ville-d-Avray cumpriu a palavra. Mandou levar-lhe plantas e bálsamos, cuja eficácia ela pôde apreciar. Dois dias depois já estava passando melhor e decidiu fazer ao governador uma visita de boa vizinhança. Tomou o atalho que ligava as duas propriedades. Piksarett, o chefe dos patsuiketts, acompanhava-a. Ele se recusara a partir em exploração, conforme ela lhe pedira.

- Você está em perigo - declarara ele. - Não seria "interessante para mim perdê-la antes de receber o seu resgate. Uniakê e o irmão irão até a costa procurar o Homem do Trovão. Dê-lhes a mensagem para ele. CasrJ o encontrem, talvez ele venha ao seu encontro.

Mas, no momento de escrever essa mensagem, Angélica não soube o que dizer. Avisá-lo? ''Estou em Tantamare... Espero-o. Amo-o..." 

De súbito o elo que a unia a ele pírêcia não rompido, mas como que perdido numa profunda escuridão. O que acontecera?

Amarrotou o papel, atirou-o de lado.

- Que os mic-macs lhe contem o que aconteceu: que naufraguei, que mataram Humberto d'Arpentigny, que quiseram atentar contra a minha vida, que estou aqui...

E os dois selvagens partiram. Ela preferia nâo se separar da gente de Gouldsboro, nem de Cantor.

CAPÍTULO VI

Na casa de Marcelina - Navio à vista

A casa de Marce-lina era vasta, confortável, muito bem ajeitada.

Angélica encontrou o-Sr. de Ville-d'Avray empoleirado numa grande rede"de algodão!, pendurada em duas vigas. O filhinho brincava aos pés dele , com pedaços de madeira.

— E uma autêntica rede do Caribe - explicou o governador. - Que conforto! É preciso saber estender-se bem atravessado, de uma ponta à o-utr*, e então se descansa admiravelmente. Consegui-a por algumas tranças de fumo de um escravo caraíba que passava por aqui com o amo, um desertor de navio-pirata.

— O homem das especiarias! - exclamou Angélica. - Quando foi que o viu?

Fazia menos de uma semana. Dirigiam-se para a costa, a fim de encontrarem um navio e retornarem às ilhas. Pareciam em necessidade, e Ville-d'Avray não teve dificuldade em conseguir a rede do selvagem, "quase de graça", e além da rede o caracoli, uma jóia entalhada mira metal misterioso que o homem usava ao pescoço, engastada numa placa de madeira dura. O marquês exibiu o amuleto.

-        É muito difícil conseguir um. Os Caraíbas lhe dão uma importância enorme, e praticamente é o único objeto que eles deixam como herança. O Sr..de Peyrac lhe dirá que este metal, amarelo como o ouro e inalterável como o ouro, não é ouro ou sequer liga de prata dourada. Os cáraíbas o obtêm dos arouags da Guiana, inimigos jurados deles, quando vão visitá-los e levar-lhe s presentes antes dos combates... Estou encantado com a minha aquisição. Vai completar a minha coleção de curiosidades americanas... - O marquês continuou: - Parece que você possui porcelanas iroquesas, sim, um colar de wampum de grande beleza, e que foi o chefe das Cinco Nações que lhe deu de presente, a você pessoalmente...

— Utakê... sim, de fato... Mas não o venderei nunca... e tampouco o darei ao senhor "por nada", como está esperando.

— Você lhe dá tanto valor assim? Representa ajguma recordação feliz para você? - mdagou o marquês com vivacidade.

— Com certeza!

Angélica lembrou o momento em que segurava o colar de wampum, enquanto o forte se impregnava com o cheiro da sopa de feijões' trazidos pelos iroqueses para salvá-los da fome. Aquele instante permaneceria indelével para ela. "Estas porcelanas são para você, Kawa! A mulher branca que salvou a vida do nosso chefe Utakê..."

O marquês deu uma olhada no pátio, onde Piksarett, rodeado de crianças, contava suas inúmeras façanhas como Grande Guerreiro da Acádia.

-        Comenta-se em Quebec que você dorme com os selvagens - lançou ele, sorrindo. - Mas isso não passa de intriga, naturalmente - apressou-se a acrescentar, diante da reaçao de Angélica -, e nunca acreditei...

. - Então por que está me contando? - disse Angélica, encolerizada. - Que necessidade tenho eu de saber das vilanias que me atribuem na sua cidadezinha maledicente? Alguém já me viu fazendo isso?

— Mas os fatos surpreendem, minha car$! Utakê! Um inimigo tão irredutível dos franceses e de toda criatura de raça branca! E a você, uma mulher, uma honra assim...

— Salvei-lhe a vida. Ele salvou a nossa. O que há de estranho em que depois tenha havido uma troca de presentes?

— E aquele ali?

Ville-d'Avray fez um movimento com o queixo na direção de Piksarett.

-        E aquele ali... Piksarett, o abenaki. O contrário de Utakê.

O pior inimigo dos iroqueses, um irredutível também, no seu género, desenfreado no combate pelo seu deus e pelos seus amigos. E abandona a guerra apenas iniciada para segui-la como um cãozinho!... Os jesuítas devem ter feito uma cara! Ele sorriu com ar guloso.

— Admita que há motivo para bisbilhotices!... O que é que pode uni-la a essas cobras vermelhas e ligá-ías assim a sua pessoa?

— Não tenho a menor ideia, mas.não é o que está sugerindo. E, em todo caso, o senhor saberão bem quanto eu que os índios, sejam quais forem-, não tem sequer a ideia de que poderiam ter relações amorosas com uma mulher branca. A pele branca lhes repugna.

— Houve casos - disse Ville-d'Avray, sentencioso. - Raros, sim, mas sempre com personalidades femininas interessantes. Até entre as inglesas. Mulheres que abandonaram, tudo para acompanhar até offundo das-matas um belo índio fedorento. Há uma primitividade -eseoiidida em,toda mulher...

— No mómentáe ele que me segue --- disse Angélica, que começava a irritar-se --- E tome cuidado para não fazer alusões como essa na frente dele. A sua cabeleira acabaria pendurada na cintura dele no minuto seguinte, e seria bem feito para o senhor. É um intrigante, e teria feito melhor ficando na corte, em vez de vir nos perturbar nos confins da América... Além do mais, não sei se está completamente consciente de suas palavras, mas elas são insultantes para mim e para o meu marido... Por isso, é melhor para sua segurança que também ele não as ouça...

— Mas eu só estava brincando, ora!

— Suas brincadeiras são duvidosas...

— Como você é suscetível - queixou-se o marquês. - Mas vejamos, Angélica, o que foi que eu disse?... Nada de causar estardalhaço... Por que você levà"as coisas tão a sério? A vida é bela, minha criança! Sorria!

— Ah, é bem o seu estilo! Me põe fora de mim e depois se dá ao luxo de me consolar e me encorajar a ver a vida cor-de-rosa...

— Ele é assim. O que você quer? Há que suportá-lo - disse a grande Marcelina, entrando no aposento. - Exatamente como o filho. Mentiroso, delicado, é preciso mimar o pequerrucho! E uma criança. O que se há de fazer? Briguento, arteiro, inconsciente, como todas as crianças, mas divertido. A gente o perdoa porque ele não é medroso, embora seja mimado. E no fundo não é mau. Ele mente nas coisas pequenas, não nas grandes...

Ela ainda continuou por um momento, sem que se pudesse saber se falava do pai ou do filho.

Era uma mulher alta, de boa compleição, mas menos masculina do que Angélica imaginara. Mais distinta também. Os cabelos castanhos e bastos começavam a grisalhar nas têmporas. Contrastavam com o rosto bronzeado, um pouco rubicundo, impregnado de um reconfortante ar de juventude ,e saúde. Compreendia-se a tendência dos aventureiros nostálgicos de virem repousar sobre aquele seio generoso e recuperar, no conta-to com a contagiante disposição dela, o gosto pela vida, mesmo estando mais pobres do que Jó...

Marcelina, órfã, pobre, menosprezada, várias vezes casada e viúva, mãe e abandonada, -aprendera a sempre ver o lado positivo das coisas. Suas "infelicidades" justificariam que passasse a corda pelo pescoço. Ela, porém, só via sorte e acasos felizes na própria vida. Poderia vender alegria, da mesma forma como vendia moluscos ou carvão.

-        Os meus outros filhos são sérios e um pouco simples - explicou a Angélica. - Forçosamente! Os pais deles não podiam ser todos governadores... Com o último a gente é obrigada a dar tratos à bola. Isso faz bem... Se a cabeça não trabalha nunca, a gente fica boba. Quando o pai dele vem, é uma festa. No final do verão, você pode ter certeza de que todos aqui estão prestes a se matar uns "aos outros. Ele sabe pôr uma cidade de pernas para o ar, e como sabe! Quanto a mim, admiro isso. Não sei como ele faz para achar tantas coisas para embaraçar, ferir-se, perturbar... E uma verdadeira arte. Eu não poderia fazer isso. Eu, com maldades, não sei lidar, foi o que sempre me atrapalhou.

Enquanto falava, examinava Angélica com atenção. Até que disse:

-        Bom, está bem! Estou contente, você é digna dele. Quero dizer, você é bem a mulher de que ele precisa. Quem? O Conde de Peyrac, ora! Isso me atormentava. Falavam de você. Diziam que você era belíssima. Diziam isso até demais. Dava-me medo. As mulheres muito bonitas, e da nobreza, costumam ser umas ordinárias. É que ele esteve aqui nos primeiros tempos, quando fazia suas explorações, antes de falarem que a tinha trazido da Europa. E um homem... como dizer... diferente... de um tipo que não se encontra por aí. Supera todos os outros, inclusive este aqui - declarou, apontando Ville-d'Avray. sem cerimonia. - Ele tem alguma coisa que faz com que todas as mulheres, sejam elas quem forem, sintam vontadede que ele se interesse um pouco por elas, nem que seja somente com um simples olhar... E como ele sabe olhar! É'uma sensação curiosa! A gente sente que ele enxerga a gente, que se é alguma coisa, alguém, seja quando ele apenas sorri, seja quando diz uma frase como: "A sua casa é calorosa, Marcelina, você deu-lhe uma alma..." A gente se sente crescer e pensa: "Eu fiz isso, realmente, dei uma alma a minha casa e dá pará notar?" Eu pensava comigo:,não existe mulher à altura de úm homem como esse! Para ele uma mulher só pode ser um objeto de distração, algo passageiro, e ele não é homem de casar só para ter quem o sirva ou para exibir a mulher nos salões... E dizia a mim.mesma que não seria correndo mares e lugares selvagens que ele encontraria a sua ave rara... - Ela fez uma pausa é concluiu: - Foi então que fiquei sabendo que em Gouldsboró havia uma Condessa de Peyrac. Fiquei tão curiosa que, por pouco, não_ fui até lá para ver como você era. Agora a vejo. E estou contente.. Até que acontecem coisas boas na vida.

Desde as primeiras-'palavra"s, Angélica entendera que ela falava de Joffrey, e o franco entusiasmo com que Marcelina se exprimia causava-lhe tanta alegria que os olhos quase se lhe encheram de lágrimas. Praticamente o enxergava ali quando chegara, ainda solitário, banido do reino, rejeitado pelos seus apenas devido ao pecado da inteligência e da grandeza de alma, e o coração de Angélica dilatava-se de amor ehostalgia. Ela, tão longe, lá na França, um animal perseguido; ele aqui, sem esperança de revê-la um dia. Ambos sofrendo com uma dor que lhes parecia absolutamente inconsolável. De súbito o milagre que os reunira adquiria para ela proporções supraterrestres-. Vendo as lágrimas que repentinamente marejavam os olhos de Angélica, Marcelina interrompeu-se, inquieta.

- Perdoe-me - disse Angélica, enxugando as pálpebras. - O que você me diz vai-me direto ao coração! Você me toca mais do que sou capaz de exprimir. Depois, neste momento estou muito preocupada com ele.

-        Tudo há de arranjar-se - disse Marcelina bondosamente. -O senhor governador me contou. Você quer ir ao encontro dele na costa e não pode prosseguir viagem por causa do pé machucado... Tenha paciência! Talvez recebamos notícias dele em

breve. O meu filho Lactance está em Tcvmentine agora, levou mercadorias para lá. Deve voltar amanhã ou depois de amanhã.

Caso tenha visto "o Sr. de Peyrac, ele nos dirá.

Essa esperança serenou Angélica.

A presença de Marcelina realmente irradiava uma sensação revigorante e a certeza, como ela dizia, de que tudo se arranjaria.

Fizeram uma alegre refeição em torno de uma torta de caça regada a sidra.

Ville-d'Avray leu par„a Angélica a carta que estava mandando a Quebec para denunciar o mau comportamento dos irmãos Défour, e que começava assim:

"Excelência,

"Já não tenho motivos para me sentir satisfeito com os senhores Défour. O que acabou de retornar da França não me solicita mais do que os outros três. Todos têm o caráter completamente prejudicado pela longa liberdade e pelo hábito de dirigirem eles mesmos a própria conduta, aliás um costume lastimável das pessoas que visitam a Acádia das Províncias Marítimas, adquirido entre os índios... Portanto, é indispensável manter, em vista de pessoas tão perigosas, conforme já tive a honra de indicar-lhe no ano passado...", etc.

Alguns dos filhos de Marcelina apareceram. O mais velho era uma menina, Iolanda. Era tão alta quanto a mãe, mas sem a mesma feminilidade natural.

-        É um verdadeiro policial - disse Marcelina sobre a filha. -Com um murro, ela derruba um homem.

Angélica perguntou à parte ao marquês quais eram os filhos dos irmãos Défour.

-        Não sei ao certo - respondeu ele. - Só tenho certeza é de que há filhos dos Défour na tropa. Eu sinto isso.

De repente a atenção foi atraída por um ponto distante no horizonte: um navio. E todo mundo saiu da casa.

Iolanda perguntou se deviam.-começar a pegar os caldeirões para correrem para o mato. ..

-        Não - disse o marquês - ,'já espú vendo com quem vamos lidar. É a carraca flamenga-desses bêbados sanguinários, os irmãos Défour. Bom, os quatro estarão aqui para a festa de Santo Estêvão. Talvez Alexandre também!

Esfregou as mãos.    

-        Ah, ah! Vou mandar rezar missa para eles!

Angélica não dizia nada e o olhava fixamente.

— O que tem você? - perguntou o marquês. - Parece pensativa.  

— Procuro lembrar alguma coisa a seu respeito - disse ela. - Algo que lhe diz respeito e é muito importante, mas não consigo perceber o que e. Ah, é isso!... Claro!...

A cena que procurava brotóu-lhe ha memória.

-        Na primeira vez ém que,o vi, na praia de Gouldsboro, o senhor disse que não conseguia enxergar nada a dois passos sem os seus óculos. Ora, a olho nu o senhor acaba não apenas de avistar aquele navio distante, como também de identificá-lo.

O marquês pareceu embaraçado e começou a corar como uma criança surpreendida em falta. Mas logo se recompôs.

-- É verdade, eu lembro!... Na verdade tenho uma vista excelente e nunca precisei de óculos na vida... mas vi-me obrigado a representar aquela comediazinha.

Correu os olhos à volta e chamou-a para um canto a fim de falar-lhe confidencialmente...

CAPÍTULO VII

Confidências do Marquês de Ville-d'Avray

— Foi por causa daquela mulher que a acompanhava.

— A Duquesa de Maudribourg?

— Sim... Quando a avistei, o sangue gelou-me nas veias... Eu só temia uma coisa: que ela me reconhecesse ou que percebesse que eu a reconhecera... Para evitá-la, lancei mão da primeira improvisação que me veio ao espírito, e parece que não me saí muito mal, pois até você acreditou... Tenho algum talento para ator... O Sr. Moliére me dizia...

— Por que o senhor temia que ela percebesse que a tinha reconhecido?

— Mas aquela mulher é temível, minha cara! Fale da Duquesa de Maudribourg em determinados círculos parisienses ou de Versalhes e você verá rostos empalidecendo. De minha parte, encontrei-a algumas vezes, na corte, naturalmente, mas sobretudo naquelas sessões de magia negra, que é bom frequentar para se ser considerado. É a moda agora. Todo mundo acorre a elas para encontrar o Diabo. Quanto a mim, quase não aprecio esses passatempos. Já lhe disse, sou um homem simples, de boa índole. Gosto de viver em paz entre os meus amigos, os meus livros, belos objetos, belas paisagens. Quebec me convém!

— Por que não nos preveniu sobre a verdadeira personalidade dessa mulher que o acaso levou para o nosso povoado?

— E você acha que eu queria que ela me desse um dos seus preparadinhos? Ela é uma envenenadora, minha cara, e das mais competentes... Depois, a situação me pareceu excitante. Flertar com o diabo de olhos de anjo! Quando penso que ela teve a insolência de me dizer: "Você está confundido, cavalheiro, garanto-lhe que não tenho a morte de ninguém na consciência"! Ela, que enviou ad patres uma boa dúzia, de indivíduos, sem contar o velho marido, algumas criadas que lhe desagradaram, um confessor que não a absolvia...

Deu uma risadinha por trás da mão.

-        Ela é de origem bastardas Ê filha de uma grande dama luxuriosa, um pouco feiticeirá^quea teve com o capelão, com o criado, com o irmão ou com u'm joão;ninguérn qualquer... ninguém sabe. Apostam no capelão, pois ele era muito instruído em matemática, o que explicaria o inegável dom que ela tem para as ciências, embora em. certa época os teólogos achassem que ela o recebia do Diabo...        

Acrescentou, preocupado:

— Não cheguei.a saber exatamente quem era a mãe dela... A Sra. de Roquencourt a conhecia, mas não consegui extrair-lhe a verdade... Tudo cíqúe sei.é que era'um grande nome do Delfinado.

— Eu pensava qúeTSra. de Maudribourg fosse do Poitou...

— Ela conta qualquer coisa a esse respeito. Depende de a quem resolveu seduzir... A Sra. de Roquencourt interessou-se pela garotinha, não sei por quê... Talvez laços de amizade um tanto particulares a unissem á mãe..,. Talvez porque também ela tivesse as suas fraquezas pelo capelão... Não era nada desinteressante esse eclesiástico. Uma espécie de génio científico espontâneo. Mas as ordens lhe permitiram estudar. A filha saiu a ele, e no satanismo também! Ouviu falar no caso do convento de Norel?

— Não.

— Aconteceu há uns vinte_anôs. Ela estava lá. Devia ter umas quinze primaveras. Mas não foi o único convento onde o Diabo foi fazer das suas. Houve Loudun, Louviers, Avignon, Rouen, era moda na época... Em Norel a ação satânica foi conduzida por Ivo Jobert, o diretor do mosteiro, que fazia as freiras dançarem nuas e copular umas com as outras, até na igreja e no jardim. Ele ensinava que era preciso matar o pecado com o pecado e, para imitar a inocência dos nossos primeiros pais, estar nu como eles e seguir o impulso dos sentidos em vez de refreá-los... É uma teoria que não carece de sedução, mas não foi assim que a Inquisição a ouviu. Submeteu Ivo Jobert a torturas antes de queimá-lo vivo, bem como a algumas das freiras. Ela, Ambrosi-na, safou-se porque é esperta. O Duque de Maudribourg casou-se com ela. E Ambrosina finalmente pôde apor armas ao seu brasão de bastarda, um leão com quatro patas e fauces contra um fundo de areia. Ele achou que fazia bom negócio, pois tinha o hábito de regalar-se com jovens virgens e'depois livrar-se delas, quando se cansava. Encontrou uma mais forte do que-ele. Na verdade, no que tange a vícios e venenos, ele uão teve nada a ensinar-lhe. Claro que tudo isto não é sabido oficialmente, ou quase não é... Os envolvidos são gente muito graúda. Mas eu estou a par de tudo, é difícil enganar-me... Você entende por que fiquei perturbado ao encontrar na América essa Messalina voraz? Mas acho que me saí bem... Angélica, você parece aborrecida. Por que?

- O senhor não me avisou a tempo. Receber essa mulher entre nós representava um perigo mortal.

— Ora! Ela não matou ninguém, que eu saiba.

— Poderia ter matado.

Angélica tremia por dentro. Não havia como escapar à ideia, agora, de que Ambrosina pretendera envenenar Abigail.

— Angélica, você já não é a mesma - exclamou o marquês em tom desolado. - Parece realmente que me odeia!

— Eu o mataria de bom grado - disse Angélica, fitando-o friamente.

O olhar dela não devia ser nada tranquilizador, pois o governador recuou um passo.

— Não na frente da criança! - disse com precipitação. - Por favor! Vamos, Angélica, seja razoável. Dir-se-ia que realmente me censura algo de muito grave.

— Claro! O senhor sabia coisas medonhas sobre essa duquesa e não as comunicou a nós! É nisso que reside a sua culpa!

— Mas eu, pelo contrário, acho que agi com habilidade e sangue-frio. Denunciá-la talvez lhe tivesse despertado os instintos perversos. Quem sabe? Ela não veio para a América para emendar-se? A conversão! É muito comum entre as nossas belas criminosas. Quando se saciam de prazeres venenosos, lançam-se à devoção e tornam-se notáveis, creia-me!... A Srta. de La Valliére tomou o hábito. A Sra. de Noyon, que envenenou os filhos recém-nascidos e dois amantes, coisa que eu sou a única pessoa a saber, está em Fontevrault há alguns anos, e fala-se em nomeá-la abadessa...

-        Ah, pare de me falar sobre esse mundo ábjeto! - exclamou Angélica, preeipitando-se par a a porra;.

O Marquês de Ville-d'Avray seguiu-a, agitado.

-        Angélica! Como-você seernociooá,por pouco! Vamos! Não vamos brigar por bagatelas, vamos! Belp menos admita que eu quis agir para o melhor...

Ela atirou-lhe uma olhada furibunda. Não acreditava nos protestos de inocência dele..Se ele sé calara, talvez tivesse sido por medo de Ambrosina, de fato, mas também porque adorava enredar a vida dos outros e sentir-se importante.

— Você me julga mal -disse ele, realmente entristecido. - Não tem importânciaí-Um dia ine conhecerá melhor e lamentará a sua dureza. Enquanto isso, jião perturbemos as nossas excelentes relações gor umà pessoa tão, pouco interessante. Ela está longe agora e não pode prejudicar ninguém... Vamos! Angélica, sorria, a vida é- bela! Você virá ao meu aniversário, não é?

— Não, não. virei!

CAPITULO VIII

Preparativos para o aniversário do governador - Um chamado misterioso

Ele tamo fez no dia seguinte, indo visitá-la na casa dos irmãos Défour e cumulando-a de protestos de amizade e da pureza das suas intenções, nessa história com Ambrosina, que ela acabou cedendo. Muito bem, ela iria ao aniversário dele! Que seja, ela o perdoaria! Sim, ela reconhecia que era graças a ele que hoje o seu pé estava curado! Que ela faria mal em agastar-se com ele, em perder uma festa tão extraordinária no Asmodée e o espetá-culo pouco comum de Marcelina abrindo moluscos...

Além do mais, ele estava com o coração pesado, por causa de Alexandre. O rapaz retornara ao mesmo tempo que os dois irmãos Défour. Mas queria continuar a explorar rios e não falava em voltar para Quebec com o protetor... A discussão fora tempestuosa.

- Como a juventude é ingrata! - suspirava o marquês. - Angélica, não aumente a minha mágoa.

Bom! Ela prometeu que iria à recepção e foi ocupar-se um pouco da toalete para a ocasião.

Não conseguira dormir durante a noite, tinha as feições contraídas, estava com má cara. Censurava-se consigo mesma por haver reagido demasiado violentamente às revelações daquele maledicente do Ville-d' Avray. Angélica vivera na corte e não ficara sabendo nada de novo por intermédio dele.

Será que se esquecera das missas negras vislumbradas no segredo das noites de Versalhes, quando o anão Barcarola a guiava e a protegia das intenções criminosas da Marquesa de Montespan? "Naquela época eu era menos vulnerável, menos sensível à torpeza humana..."

Aqui, nesta terra virgem, na embriaguez de um amor autêntico e ofuscante, ela começara a esquecer. Sua vida tomara outro sentido, mais completo, mais sadio,-mais criativo, mais de acordo com a sua-natureza profunda; Será que "eles" viriam persegui-la até aqui para fazê-la pagar tantas iriconstâncias? Parecia um pesadelo. Até no fim do mundfíljOnde estava'a inocência? Pela janela aberta para a noite, ela avistava Piksarett, o índio, que velava por ela. Outro mundo, outra humanidade. Cantor, seu filho, dormia não longe dali. Angélica pensou em Honorina... em Severi-na, Laurier, na pequena Elisabete no berço rústico, em Abigail... E levantara-se agitada? para ir olhar as-estrelas e extrair da limpidez do céu npturno uma força indefinida de que necessitava.

- Não, "eles"-não levarão a melhor contra nós...

Pensava de novo e.'óíempo"todo em Joffrey de Peyrac, vendo-o destacar-se de _entre.l?mtos seres humanos que ela conhecera como o único c(c)m que tinha parentesco na face da Terra, o único com que pudera travar o pacto espiritual da amizade e do amor. Isso acentuava a solidão deles dois entre os homens, mas também os impedia de se extraviarem por estradas que não fossem as do seu destino.

"Como pude viver tanto tempo sem você?... Você, que é o único que me conhece e reconhece... Você, que sabe que sou semelhante a você, embora eu seja mulher e você, homem. Existe um passado na minha vida em que você não tenha estado? Não, pois foi a visão que conservei de você que me preservou, que me impediu, apesar da minha fraqueza de mulher, de juntar-me à tropa, de me confundir com ela, de"perder-me nela..."

Pelo final da tarde, acompanhada de Cantor e de Piksarett, Angélica dirigiu-se para a propriedade de Marcelina Raymondeau. Os irmãos Défour já estavam lá, endomingados em seus trajes de bom pano e sapatos "de fivela, que só tiravam do baú uma vez por ano. Estavam ali mais ou menorcontentes, mais ou menos a vontade, mas pelo menos desta vez tinham que agradar ao governador.

De manhã tinham sido vistos na capela do eremita, um recoleto encanecido, de batina cinzenta, assistindo ao ofício religioso. Com má vontade, mas numa voz tonitruante, entoaram os cânticos.

— Lamentável - comentou Ville-d'Avray ao sair. - Eles me furaram os tímpanos. Ah, minha cara! Você ouvirá ofícios em Quebec! O coral da catedral e o da casa dos jesuítas...

— O senhor parece ter muita certeza de que nos verá em Quebec... De minha parte, esse projeto não parece em vias de realizar-se. Estamos em setembro agora, não sei onde anda o meu marido... E, de qualquer maneira, não posso passar o inverno tão longe da minha filhinha, que deixei num forte isolado, nas fronteiras do Maine...

— Leve-a com você! - disse Ville-d' Avray, como se fosse coisa simplíssima. - As ursulinas lhe ensinarão o alfabeto, e ela patinará no Saint-Laurent...

Apesar dos atrativos da festa que se preparava, para onde acorriam todos os acadianos dos arredores, inclusive alguns colonos ingleses ou escoceses, bem como os "principais" das tribos vizinhas, Angélica sentia que não poderia participar dela com p coração leve.

Estava longe do estado de espírito em que se encontrava com Monégan, há dois meses. Que lembrança! Ela pulara a fogueira de São João para conjurar os maus espíritos e dançara loucamente com o capitão basco Hernâni d'Astiguerra, sob o olho reprovador de Jack Merwin, o jesuíta, e de Tomás Patridge, o pastor... Hoje estavam ambos mortos!... Quantos tormentos! Quando acabaria esse verão maldito, afinal?...

Lanternas coloridas pendiam dos ovéns do navio, refletindo-se na água calma do fiorde onde o Asmodée estava ancorado.

Cantor afinava a guitarra, refeito das emoções que vivera em Port-Royal.

Todos iriam até o navio em barcos, e lá festejariam, cantariam e dançariam.

Mas estava escrito que naquela noite Angélica não poderia dar esse prazer ao governador da Acádia.

No alvoroço dos preparativos e no momento em que a escuridão começava a cair, um jovem índio aproximou-se dela e disse-lhe em bom francês que o eremita da montanha queria vê-la no seu oratório, pois havia um homem lá que desejava falar com a Sra. de Peyrac, bem como ao seu filho Cantor. Angélica reagiu prontamente:

— Não gosto muito dessas mensagens.Hm homem... Isso é desmasiado vago! Ele que se identifique e eu irei.

- Disse que era da parte-de Clóvis...

CAPÍTULO IX

Revelações de Clóvis - A explosão do Asmodée

Clóvis... Era ele mesmo!

Quando Angélica e Cantor penetraram na gruta do eremita, reconheceram sem dificuldades, à luz de uma tocha fumegante, o mineiro atarracado, suas sobrancelhas de carvão, seus olhinhos penetrantes e hostis. Estava ali, com o gorro entre as mãos, numa atitude relativamente respeitosa. Tinha a camisa endurecida de sujeira, o queixo mal barbeado, os cabelos desgrenhados, um verdadeiro homem das matas.

-        Clóvis! Você aqui? - disse Angélica. - Não acreditávamos que o reveríamos!... Por que você desertou?

Ele fungou várias vezes, ostentando aquele ar amuado que lhe era familiar quando ela o admoestava.

— Eu não queria - disse -, mas "eles" me prometeram uma esmeralda de Caracas, e à primeira vista o que "eles" me pediam que fizesse não parecia muito mau. Depois fiquei atrapalhado, entendi que ia perder a pele em qualquer lugar para onde me voltasse. Então fugi...

— Quem são "eles"? - perguntou Angélica, que logo compreendera que Clóvis aludia aos seus inimigos misteriosos.

— E eu sei?... Gente de fora que quer causar-lhe problemas! Mas por quê? Por quem?... Não faço a menor ideia!

-        O que foi que lhe pediram que fizesse contra nós?

Clóvis fungou uma vez. Chegara o momento temido.

-        Foi em Houssnock - explicou. - Apareceu um sujeito que me deu um servicinho e me prometeu que, se tudo desse certo, eu ganharia uma esmeralda. Disse que havia um pirata na baía, com quem eles estavam combinados e que pilhara todo o tesouro dos espanhóis em Caracas, e que eles me conseguiriam uma esmeralda com esse pirata. E o que ele queria não parecia muito mau.

— O que. é que ele queria?

— Não queria muita coisa - disse Clóvis, balançando a cabeça.

— Mas o que era?     

— Queria que eu desse urrf jeito de fazê-la partir, senhora condessa, para o lado dos ingleses, sem que o senhor conde ficasse sabendo. Tinham comentado que' a pequena cativa seria levada até o outro lado do Kennebec. Então a coisa me pareceu simples: eu disse a Maupertuis cao filho dele que o senhor conde os incumbira-de acompanhá-la com o seu filho até o povoado inglês e que ele. a,esperana na embocadura. Eles não vacilaram. Os canadenses sempre agarram qualquer oportunidade de sair pelas matas,sem fazepperguntas! Eles informaram o jovem monseigneur aqui - e Clóvis apontou Cantor com o queixo -, que não viu nada-de erraão~ha situação. Os jovens, também, saem por aí a passeio sem se preocuparem muito...

— Muito obrigado - disse Cantor, entendendo que se haviam servido da sua impulsividade de adolescente para enganar-lhe o pai e para conduzir-lhe a mãe a uma armadilha.

Em Houssnock, Angélica, vendo-o chegar e dizer-lhe da parte de Joffrey que ela devia ir sozinha a Newehevanick, também se pusera em marcha sem querer saber mais sobre a procedência da ordem recebida.

O plano fora urdido de modo tão maquiavélico e com tamanho conhecimento da personalidade de cada um que Angélica duvidava que Clóvis o tivesse concebido.

-Como era o homem que foi procurá-lo em Houssnock?

Perguntava, mas já tinha certeza da resposta, e completava, diante do mutismo do mineiro:    

— Um homem pálido, não foi? Gajos olhos gelam a gente?

— Na primeira vez, sim - disse Clóvis. - Mas conheci outros. São inúmeros. São marinheiros. Acho que têm dois navios. Obedecem a um chefe que ninguém vê, que lhes dá ordens, mas que não está com eles. Só o encontram de vez em quando. Chamam-no de Belialith. E tudo o que eu sei.

Esboçou um gesto para pegar no chão um saco bem pouco recheado, que compunha a sua bagagem, como se tivesse acabado o que tinha a dizer;

— Você não ignora, Clóvis, que na aldeia inglesa caímos numa cilada em que por pouco não perdemos a liberdade, se não a vida...

— Fiquei sabendo - retrucou ele -, e foi exatamènte por isso que fugi. E depois eles me enganaram. Nem sombra de esmeralda para mim. O pirata que as possuía fez aliança com o senhor conde. Eu devia ter desconfiado de que, se o senhor conde estivesse por lá, seria ele quem tiraria as castanhas do fogo. Eu não fui tão burro no dia em que entrei para o serviço dele, e devia ter continuado.

— Sim - disse Angélica com severidade -, mas você sempre foi cabeça-dura, Clóvis, e, a permanecer fiel a um patrão de quem conhecia a bondade, mas também o poder, preferiu ceder a suas más. inclinações de inveja e rancor, em particular em relação a mim. Você estava bem contente de que eu me visse em apuros, não é? Pois bem, fique satisfeito: eu me vi em apuros, e o caso ainda não terminou. Mas não tenho certeza se tampouco você ganhou nessa jogada do Mal.

Clóvis baixou a cabeça e ao menos por uma vez pareceu vencido.

Apesar dos erros dele, Angélica teve piedade de sua acuada solidão. Era um indivíduo limitado, embora não fosse desprovido de inteligência e talento na sua profissão de ferreiro, mas demasiado primitivo para assumir sozinho o próprio destino num mundo de astúcia, cruel para os simples. Ela conhecia-lhe o segredo: uma paixão de homem habituado a fitar as labaredas dançantes, a vê-las refletir tesouros - o seu amor pelas gemas e pelas pedras preciosas, com que, um dia, desejava construir um relicário sun-tuoso na pequena Sainte-Foy de Conques, um renomado santuário da sua Rouergue natal. Disse-lhe:

-        Quando entendeu que havia agido mal, por que não falou francamente com o senhor conde?

Ele a encarou com ar furioso, indignado.

-        Mas por quem a senhora me toma? Já não bastava o que eu fizera? Eu quase a enviei para a morte, à senhora, condessa, e queria que eu lhe tivesse explicado isso, na cara... Acha que ele teria piedade por alguém que lhe quis fazer mal? Bem se vê que é mulher. Imagina que os homens podem ser de mel e açúcar por dentro, como vocês, mulheres... *Êu o conheço, melhor do que a senhora! Ele fhe mataria... ou pior! Teria me olhado de um jeito que depois eu-já não poderia ser um ser humano...

Não pude enfrentar isso. Preferi ir, embora... É que a senhora, para ele... é o tesouro dele... E, quando se possui um tesouro, é como ter uma coisa que queima aqui - disse, levantando a mão ao peito. - Ninguém jtem o direito de tocar-lhe nem de tentar roubá-lo... Eu sei como é... Também eu tenho um tesouro. E é porque não quero perdêlô que não vou me demorar por aqui...

Porque "eles" estão, na minha pista, "eles" são perigosos - acrescentou em voz-baixa--- É de uma espécie que faz gelar o sangue. Há o Brutamontes, o Caolho, o Tristonho, o Invisível, esse Invisível eles mandam ha frente; eje se parece tanto com alguém que todo mundo acha-quejá viu, que ninguém o nota. Uma equipe dessas... são os emissários de Satã na Terra. Talvez queiram saber onde foi que enterrei o meu tesouro, mas pois sim que eles me pegam!

Atirou o saco ao ombro e se__encaminhou para a saída da gruta. Mas, com um pulo',' Cantor se plantou na frente dele.

— Nada de pressa, Clóvis! Você não contou tudo!

— Como não contei tudo? - encrespou o outro.

— Não! Você está escondendo alguma coisa, estou sentindo!

— Você parece o seu pai - resmungou Clóvis, lançando-lhe um olhar de ódio. - Vamos, deixe:me passar, garoto. Eu já disse que não quero perder a pele nessa história. Já me basta ter tentando salvá-los...

— O que quer dizer? - insistiu Cantor. - De que perigo quis salvar-nos?

— Sim, fale - interveio Angélica, entendendo pela expressão do homem que Cantor adivinhara corretamente. - Clóvis, sempre fomos bons amigos, e você viveu conosco em Wapassu. Aja como um companheiro franco e ajude-nos até o fim.

— Não! Não! - teimou Clóvis, que olhava à volta como se o perseguissem. - Não posso. Se lhes frustro o golpe, "eles" me matam.

— Mas que golpe? - exclamou Cantor. - Clóvis? Você não pode permitir que eles triunfem sobre nós. Você é um dos nossos...

— Já lhe disse que acabo perdendo a pele nesta história - repetiu Clóvis, desesperado. - "Eles" vão me matar. Não recuam dknte de nada. São demónios... Esteio me seguindo, senti-os o tempo todo nas minhas pegadas...

— Clóvis, você é um dos nossos - repetiu Cantor, fitando-o com seus olhos verdes como a cobra que cfuer hipnotizar a presa. - Fale... senão... talvez escape deles, mas não escapará da justiça divina, nem da santinha da Auvergne.

O mineiro, encostado à parede, parecia um animal encurralado. Murmurou:

— Ah, senhora!,Um dia a.senhora me disse que eu precisava fazer penitência. Como sabia disso?

— Pelos seus olhos, Clóvis. Você é um homem que ainda não pôde decidir se está do lado do bem ou do lado do mal. Chegou a hora.

Ele baixou a cabeça. Depois soltou:

— Vão explodir o navio!

— Que navio?

— O do governador, que está ancorado perto daqui.

— O Asmodée?

— Isso mesmo.

— Quando?

— E eu sei? Agora, dentro de. uma hora... de duas. Mas será esta noite, durante a festa que estão dando lá...

E, diante da expressão horrorizada que invadia o rosto de Angélica e o de Cantor:

-        Foi por isso que mandei chamá-los aos dois... Quando, rondando por aqui, fiquei sabendo que assistiriam a essa festa, eu não quis que fossem pelos ares com... Pronto, disse tudo... Deixem-me partir agora...

Afastou-os com rudeza e se lançou para fora do oratório. Ouviram-no descer a ravina como um javali destroçando arbustos.

Bendito seja o Criador, que fez os índios tão velozes na corrida quanto o cervo no galope!

Piksarett, correndo pelo caminho que levava aos domínios de Marcelina, a Bela, saltando obstáculos, mal roçando o solo, por vezes literalmente voando, atravessando a noite como um relâmpago, como o vento, teria inspirado a estima dos deuses pela criatura humana.        

Avisado por Angélica do perigo que pairava sobre os convidados do governador a bordo do Asmodée, ele disparara na frente. Logo ultrapassou Cantor, que; também já estava correndo. Cantor corria com resistência, mas Piksarett tinha asas.

Angélica os seguia, tão rápido quanto podia, com aquele pé doente. Sua angústia era tamanha que, ao atingir a concessão dos irmãos Défour, estava sem fôlego. Ainda havia meia légua a percorrer.     

Parou. Pouco antes gritara, em vão, para reter Cantor. O jovem corajoso se precipitara em socorro de seus semelhantes, arriscando a própria vida, para preveni-los em tempo, e o nobre índio também.

E se o navioexplodisse quahdo,os dois estivessem a bordo, antes de conseguirem cpnVencer os convivas a evacuá-lo?

Angélica se.-sentia petrificada de apreensão, a ponto de ser incapaz de prever qualquer coisa, incapaz até de dirigir uma prece ao céu.

"Não é possível", repetia cqrisigo,""seria horrível demais. Isso não vai acontecer!"

A cada segundo o destino determinava a sorte de várias vidas humanas, talvez até a de seu filho, sacrificado in extremis. Nas entranhas do Asmodée algo de mortal corroía o tempo e avançava para a catástrofe. Em que momento ocorreria a conjunção entre a marcha inelutável daquela armadilha e a corrida desvairada de Piksarett e Cantor? Antes da chegada deles? Enquanto estivessem a bordo? Ou depois, quando, todos poderiam estar a salvo?

Angélica continuou mais lentamente. Estava a meio do caminho quando uma luz ofuscante pareceu jorrar do seio da floresta tenebrosa, enquanto um estrondo atordoante fazia ressoar os ecos da falésia.

Como foi que ela chegou à propriedade de Marcelina? Jamais saberia...

Avistou o navio que ardia, afundando na água negra. Depois o seu olhar voltou para a margem e percebeu ali, ao clarão das chamas, uma densa multidão e a silhueta do Marquês de Ville-d'Avray, que ia de um lado para o outro, agitado e vociferante. Piksarett e Cantor tinham chegado a tempo.

Piksarett surgira entre os convidados, no tombadilho.

-        Fujam! - gritara. - A'morte está nas entranhas deste navio!

O Marquês-de Ville-d'Avray foi o único a levá-lo a sério. Os demais estavam todos meio embriagados e não lhe ideram- ouvidos. Mas o pequeno governador sabia mostrar-se à altura de certas circunstâncias. Com o filho ao braço e com uma energia de ferro, auxiliado por Piksarett e por Cantor, conseguira empurrar todo mundo para o convés e fazê-los descer para as diversas embarcações que esperavam para levá-los de volta a terra.

Atingindo a praia, as pessoas se entreolharam sem entender nada.

-        O que está acontecendo? Onde está o meu copo?

Ville d'Avray sacudiu o pó dos punhos e levantou o nariz para o alto Piksarett.

-        E agora, explique-se, sagamore! - disse, solene. - O que significa...

Como resposta, um estrondo de trovão encheu a baía. Labaredas brotaram dos flancos do navio. Em alguns instantes a embarcação se incendiou, tombou e afundou, levando consigo todas as peles, cargas e riquezas do senhor governador da Acádia.

CAPÍTULO x

Sinais da conspiração diabólica

Podiam-se avaliar òs tesouros perdidos? Além das peles, milhares de libras em mercadorias para troca - inglesas, evidentemente -, ou jóias" e "dobrões espanhóis, recebidos pelo governador em troca de sua influencia ou de sua proteção, junto aos pequenos domínios--pereíícfos pela baía, que frequentemente eram os receptadores ikssas riquezas: armas, munições... Para vender a quem? Em troca de qáê? Os negócios do Marquês de Ville-d'Avray testemunhavam o vasto interesse que ele nutria por todas as coisas sob o céu e o sentido exato que ele possuía do valor comercial, artístico ou social dessas coisas. Vinhos, licores, rum das ilhas. Os presentes ganhos'de Peyrac em Gouldsboro estavam entre os bens cuja perda ele lamentava mais amargamente. Apenas as peças do fogão de porcelana holandesa se salvaram, pois recentemente o marquês mandara desembarcá-las a fim de que Marceli-na as admirasse, e também para protegê-las e empacotá-las melhor, antes da viagem de regresso a Quebec, seguindo a costa da Nova Escócia, que costumava ser 'multo tempestuosa.

Durante toda a noite e o dia seguinte, os arredores do local onde o Asmodée soçobrou pareceram um formigueiro perturbado. Como se pudera cometer tal atentado? Podia-se acusar a negligência, um incêndio natural, ateado por um marujo que fora embriagar-se e derrubara uma lanterna ou que fora chapinhar nos porões sem tomar cuidado com a atmosfera confinada, como às vezes acontecia durante os,calores secos de fim de verão. Algumas mercadorias empilhadas fermentavam, um rum muito forte e mal fechado num tonel destilava o seu álcool, impregnando o ar superaquecido. Bastava uma faísca...

Mas sabia-se que houvera premeditação, intenção criminosa. Levaram a Ville-d'Avray um resto de corda bem estranha, encontrada por um índio sobre a areia de uma enseada vizinha. O governador examinou-a, balançou a cabeça e disse, amargo:

-        Genial! Realmente- genial!

Era a sobra esquecida, ou abandonada como negligenciável, de um material'de sabotagem portátil, dos mais eficazes.-O governador explicou que os piratas dos mares do Sul que tinham contas a acertar com concorrentes desleais, maus pagadores ou demasiado descuidados acerca de suas promessas mostravam-se bastante inventivos na fabricação de pavios de queima retardada. Não produziam cheiro nem fumaça e podiam ser colocados não longe do paiol de pólvora por um cúmplice que disporia de todo o tempo do mundo para fugir. A mecha que lhe levaram era de um modelo particularmente "genial": consistia em um cordão de tripa de peixe, recheado, como pequenas linguiças, de grumos de isca, "colados" por uma matéria preta que Ville-d'Avray hesitava em definir, mas que Angélica reconheceu como calish do Chile, pois era o material mais utilizado nos trabalhos do Conde de Peyrac. O conjunto era impregnado de uma espécie de resina indígena.

— Essa resina permite que o conteúdo da tripa queime lentamente, sem soltar cheiro nem fumaça - conjecturou o governador. - Puseram esta mecha perto do nosso paiol de pólvora e acenderam-na ontem ou anteontem. Nada podia apagá-la ou revelá-la antes de ela alcançar o alvo...

— Mas o navio estava bem guardado, não estava?

— Guardado por quem? - rugiu Ville-d'Avray. - Preguiçosos que se embriagam, me exploram, correm atrás de índias... E com as idas e vindas e os preparativos para a festa, qualquer pessoa podia subir a bordo com este cordão enrolado dentro do chapéu...

Olhou desconfiado na direção dos irmãos Défour.

-        Calma! - disse o mais velho. - Vai acusar-nos?... O senhor está indo um pouco rápido demais, governador!... Esqueceu que estávamos a bordo com o senhor esta noite e que sem o narrangasett nós todos teríamos ido pelos ares juntos...

-        É verdade! Onde está o nap-angasett? Como foi que ele ficou sabendo? Ele falará, mesmo que eu precise mandar torturá-lo...

Angélica interveio para poupar Piksarett é disse que ela é que fora avisada a tempo sobre o atentado que se preparava e que somente a miraculosa rapidezído índio pudera salvá-los. Mas recusou-se a revelar o nome de Clóvis e a descrevê-lo, embora o marquês, trémulo e descomposto pela emoção, a crivasse de perguntas. O representante do governador da Nova França na Acádia estava prestes a lançar todos os selvagens da região no encalço do homem e mandar queimar-lhe a sola dos pés, para arrancar-lhe todas as informações possíveis sobre os verdadeiros autores do desastre. Angélica admitia que já fazia alguns meses que um bando de -malfeitores rondava a região, tentando, ao que parecia, prejudicar sobretudo o Conde de Peyrac e seus amigos. Mas ela garanti-ã que o indivíduo que arriscara a própria vida para vir preveni-la estava acima de Suspeita de cumplicidade com aqueles malfeitores,

-        Ainda assim eu o quero entre as minhas mãos! - gritava Ville-d'Avray. - Ele me contará tudo, tudo! Precisamos pôr esses bandidos fora de açao o mais rápido possível!

Nisso a população, e,ate os irmãos Défour, compartilhava da sua opinião. A indignação crescia entre os colonos da região e também entre os índios, a quem disseram que os ingleses tinham afundado um navio que lhes trazia presentes enviados pelo rei da França. Saíam da floresta prontos a travar combate com qualquer inimigo que o governador lhes apontasse.

A obstinação de Angélica errwião querer fornecer pormenores sobre o modo como fora informada enfureceu Ville-d'Avray. A perda de suas riquezas, sobretudo dos objetos que colecionava com tanto amor, certamente era mais importante para ele do que a salvação de sua própria vida^ Em seu sofrimento, pôs-se a digressionar.

-        Quem me garante que não foi você, Angélica, quem fomentou esta conspiração? Obra sua e dos seus!... Acredito muito que o Sr. de Peyrac é capaz de tudo par-a assegurar a sua hegemonia sobre os domínios franceses. Ele provou mais de uma vez que a astúcia lhe é familiar... E é conhecida a dedicação que você lhe tem. Eliminar o governador da Acádia e os que lhe continuam fiéis... Que belo golpe! Ei-lo senhor da região!... Ah, agora vejo com clareza!

— Está falando do meu marido e de mim? - exclamou Angélica, fora de si.

— Sim - disse ele, batendo com o pé é vermelho como um galo. - Isto o acusa!

Brandiu o pedaço de mecha.

-        Uma coisa excepcional como esta só pode sair das oficinas diabólicas dele. Seus operários e mineiros são os mais hábeis, os mais engenhosos que se podem encontrar sob o céu! Isso é coisa que já se sabe de um extremo a outro da América. Vai negá-lo?

Num átimo, Angélica entendeu que as patas sujas de Clóvis talvez não fossem estranhas ao notável fabrico daquela mecha de combustão lenta. A olhos menos avisados, obras complicadas e sofisticadas como aquela só podiam vir de Gouldsboro e Wa-passu. Certamente que a colaboração do mineiro com inimigos deles não se reduzira apenas a atraí-la para o caminho do povoado inglês...

Aterrada, examinou o pedaço de corda revelador. Ela mesma poderia ter morrido no atentado, mas como não se encontrava presente, bem como Cantor, a sua posição tornava-se suspeita. De chofre, a frase lída naquele pedaço de papel, encontrado no casaco do provocador de naufrágios, adquiria um sentido terrível: Semeie a infelicidade sob os seus passos, afim de que a acusem...

Vendo que ela se calava, Ville-d'Avray triunfou.

— Ah! Você está inquieta! Então haveria alguma verdade no que eu disse! Como é possível, Angélica, que apenas você e o seu filho estivessem ausentes no momento do festim?

— Já lhe expliquei isso - suspirou Angélica. - Mandaram chamar-nos... E pense, marquês, que, s,e eu quisesse matá-los a todos, não me teria dado ao trabalho de enviar-lhes justamente Piksarett e até o meu filho, para correr o risco de vê-los morrer com vocês.

— Comédia... ou remorso. As mulheres são sujeitas a esse tipo de mudança de ideia.

— Basta! O senhor está divagando! A culpa também é sua se tudo isto aconteceu.

— Como! É o cúmulo! - bradou-o marquês em voz de falsete. - Estou arruinado, desesperado, quase perdi a vida, e ainda por cima você me acusa!

— Sim, pois deveria ter-nos avisado em Gouldsboro, ter-nos posto em guarda contra os perigos que nos ameaçavam com a Duquesa de Maudrlbourg.

— Mas qual é a relação? Em que'o que eu sabia sobre a Duquesa de Maudribourg tem alguma relação com o bando de criminosos de que você me fala e com a destruição do meu navio?

Angélica passou a níão pela testa, desnorteada.

-        É verdade! Tem^razãp! No entanto, sinto .que há uma ligação entre éla e as infelicidades que se abatem sobre nós... porque tudo isso é obra "dé^Satã^ e ela está possuída pelo Diabo.

O governador olhou ao redor> assustado.

-        Você fala-come se ela. fosse voltar - gemeu. - Só faltava essa!

Sentou-se num escabelo e enxugou os olhos com o lenço de renda.

-        Perdõe-me, Angélica. Reconheço que fui longe demais. A minha impulsividade me fez cometeralgumas injustiças, mas o

meu instinto é bem seguro. Perdoe-me. Eu sei que você não tem nada a ver com isto e que, pelo contrário, salvou a vida de todos nós. Mas reconheça que a amizade que lhe tenho e ao seu marido custa-me bem caro. Você deveria pelo menos ajudar-nos a encontrar o homem.

-        Não posso, e de qualquer forma a esta altura ele está longe.

Era a primeira vez que lhe ocorria a possibilidade de existir um elo entre Ambrosina e Os desconhecidos que procuravam prejudicá-los. Parecia loucura, ilógico, mas algo de indefinível no encadeamento dos fatos sem dúvida lhe incutira aos poucos essa certeza, e sob o efeito da emoção o seu inconsciente se exprimira.

Tudo era ambíguo, incerto, os objetivos procurados escapavam à lógica. Mas por toda parte se topava com uma implacável vontade de destruir por todos os meios e de atingir o corpo ou a alma.

A rede se fechava com habilidade em torno dela, só lhe permitindo escapar da morte para sentir aproximar-se até a angustia

a provação que espreitava o seu ser espiritual. Estaria tão armada para enfrentar isso quanto estava para defender sua vida?

Os golpes tornavam-se cada vez mais violentos, mais cruéis, mais certos. E o que ela recebeu logo no dia que se seguiu à noite desastrosa do Asmodée fez vacilar-lhe a força da alma.

CAPÍTULOXI

Noticiais da costa leste - "Eles o pegaram?"

Angélica ficara na casa"de Marcelina Raymondeau para ajudá-la a acalmar é encorajar o"Marquês de Ville-d'Avray. A maré baixa expunha os destroços-, ê uma parte do pessoal dirigiu-se para lá, a tentar salvar o qucpoclia ser salvo. Simultaneamente os índios preparavam s"eus acampamentos de guerra, enquanto uma caravana procedente da çosra leste desembocava dos pântanos, trazendo mercadorias è notícias.

Marcelina mandou chamar Angélica. Levou-a para a casa e, depois, para o seu próprio quarto, a fim de poderem conversar à vontade, sem serem perturbadas por todo aquele alvoroço.

Corajosamente, a grande Marcelina se plantou diante de Angélica e encarou-a.

-        Entre mulheres, a gente tem que ajudar umas às outras - disse ela -, e geralmente o melhor a fazer é falar com franqueza.

Tenho más notícias.

Angélica fitou-a com ansiedade", mas não disse palavra.

— O meu filho mais velhovoltou de Tormentine - disse Marcelina.

— Ele não viu o meu marido?

— Viu, sim, mas...

Marcelina respirou fundo antes de continuar:

— Ele estava lá... mas com ele estava aquela mulher, você sabe, aquela mulher de que o governador falou... a duquesa de não sei o quê... você sabe... Maudribourg...

— Impossível! - exclamou Angélica numa voz agudíssima.

No entanto, o seu próprio grito de medo e desespero não lhe chegou aos ouvidos. A revelação atingiu-a como uma chicotada, e um terror sem nome correu-lhe pelo corpo, como se o sangue se lhe esvaziasse por toda parte.

Parecia-lhe que sempre tivera a certeza de que aquela coisa horrível aconteceria. Mas ainda não podia deter o espírito nisso... Não, rião podia... Repetiu numa voz átofla, que não lhe parecia estar saindo dos seus próprios lábios:

— É impossível! Eu mesma vi essa mulher partir para a Nova Inglaterra... prisioneira dos ingleses, que a levaram como refém.

— Você a viu partir... mas não a viu chegar.

r- Que importância tem isso? Ela partiu, estou dizendo... partiu, partiu...

Repetia essas palavras como que para eliminar, apagar Ambro-sina... realizar o milagre de que ela nunca tivesse existido. Depois tentou acalmar-se.

"Sou uma criança", disse consigo. "Uma criança que não quer sofrer, amadurecer... Alguma coisa se partiu dentro de mim no dia em que pegaram Joffrey, e desde então o medo que me atormenta é o de reviver aquelas horas uma segunda vez... ser traída uma segunda vez... O que é que ele dizia? Não se deve ter medo... de nada. Há que entrar francamente no problema, só se tem a ganhar com isso... Ter a coragem de recolocar os pés nas pegadas já feitas e os monstros se afastam... Não posso separar-me dele sem morrer... não posso... Então?... O que fazer... Ir ao encontro... Saber..."

Marcelina a observava. Angélica sabia que aos olhos dela a sua infelicidade não deixava margem a dúvidas. Intencionalmente, a aca-diana utilizara a expressão popular: ele está "com" aquela mulher...

Mas para Angélica isso não queria dizer nada. Só significava que Ambrosina estava lá, na costa leste, quando deveria estar em Salem ou em Boston, na Nova Inglaterra.

-        Fico surpresa com ele - pôs-se a monologar Marcelina, balançando a cabeça. - Não é homem a se deixar levar por uma ordinária. Mas, com os homens, nunca se sabe! Nós, mulheres, temos o coração aqui - disse, pousando a mão sobre o peito generoso -, mas o coração dos homens... fica mais abaixo...

De repente Angélica teve vontade de vomitar.

Revia Ambrosina, a sua sensualidade misteriosa... a sua sedução de anjo infernal mesclada a sua inteligência, ao saber, e da parte de Peyrac pelo menos a curiosidade de diletante por aquela mulher, a curiosidade sempçe desperta... Não, impossível!... Impossível! Ele! Elanãoo sentia falível...

-        Os homens escapam da gente de mike uma maneiras - continuava Marcelina. - Nós, mulheres,- não somos maliciosas o suficiente para entender sempreíç que os governa... Ah, vamos, nós não contamos 'muito na vida deles! Menos do que a aventura, a conquista e a ambição!

Ela estava certa... E também não estava---Ele era diferente.

De súbito, Angélica bendizia ao seu querido amor por ser tão diferente dos "outrosv, tão difícil de~ apreender, de compreender, secreto mesmo para ela, capaz de firmezas inacreditáveis, e de ternura e bondade -inimagináveis, e capaz também de confessar que somente ela, Angélica, vencera a profunda desconfiança que ele nutria pelo sentimento, que ela lhe forçara o coração, quase que contra o vontade dele, que só ela conseguira conquistá-lo realmente, acorrentá-lo, sem que" ele tivesse tido medo ou desprezado a si próprio.

Angélica bendizia a cólera que o dominara quando ele imaginara que ela fora infiel - manifestação tão rara para a sua natureza, que ele mesmo tivera uma revelação da força da paixão que nutria por ela.

"Antigamente, apesar do amor que sentia por você, eu podia viver sem você... Hoje, porém, eu não poderia..."

A despeito destas palavras, que ela recordava como se se agarrasse a uma bóia, a ideia da presença de Ambrosina lá punha-lhe no coração um medo tão ardente que Angélica tinha dificuldade para respirar. Como fora que.aquela sereia perigosa conseguira escapar de Phipps?.

— Tem certeza de que é ela mesma? - indagou.

— Sem sombra de dúvida. Ela está lá com todo um bando de Moças do Rei. Dizem que foi b Sr. de Peyrac que as levou para lá, e que talvez as escolte até Quebec.

Novamente Angélica sentiu que o chão lhe faltava sob os pes.

Joffrey de Peyrac fora avisado da captura de Ambrosina pelos ingleses... Quando passara ao largo de Port-Royal e de Gouldsboro, sem se deter, estaria tentando alcançá-la, libertá-la?

Diante de Marcelina, Angélica não quis deixar transparecer as suas dúvidas, nem protestar a sua confiança no marido. O que existia entre ela e ele era pessoal demais, delicado demais para ser mencionado em palavras, e nem a sua dor nem a sua inabalável confiança diziam respeito a ninguém.

— Bom - disse afinal -, veremos.

— Você vai partir assim mesmo?        

— Claro! É importantíssimo que eu o encontre, mais do que nunca agora, depois do que aconteceu aqui. E eu lhe pediria, Marcelina, que não dissesse aó Sr. de Ville-d'Avray que a Duquesa de Maudribourg se encontra na costa leste. Quero pedir-lhe que me acompanhe, pois necessito do testemunho dele. Caso soubesse que ela está lá, ele talvez se recusasse a vir comigo.

— Entendido - aprovou Marcelina.

Um ciarão de admiração atravessou-lhe os belos olhos castanhos, que se detinham em Angélica.

-        Você é uma grande dama! - disse baixinho.

Saíram ambas para o terreno diante da casa.

Lá embaixo os gritos dos homens misturados aos dos alcatrazes e das pegas marinhas pareciam ter adquirido outra tonalidade. A população inteira convergia para um ponto na praia. As pessoas interpelavam-se e apontavam alguma coisa na direção dos rochedos.

-        Parece que há um afogado na baía - disse Marcelina, pondo a mão acima dos olhos.

Alguns instantes mais tarde arrastaram um corpo inerte para a areia.

— Talvez se trate de um homem que ficou a bordo e cujo desaparecimento ninguém percebeu - sugeriu Angélica.

— Quem sabe?... Há tanta gente perambulando pela nossa região nesta .estação...

Cantor saiu dentre o grupo aglomerado em torno do cadáver e subiu a passos largos na direção das duas mulheres pelo atalho dos tremoços. Quando as alcançou, sem fôlego, Angélica adivinhou tudo pelo rosto transtornado dele.

-        "Eles" o pegaram - lançou o rapazinho. - E Clóvis!...

Capítulo XII

Angélica decide ir ao encontro do marido

Angélica não precisou convencer Ville-d'Avray a acompanhá-la. Foi ele que tomou a iniciativa, declarando hum tom que não admitia réplica:

-        Eu a levo. Não yamos-ficar aqui à espera de não sei o quê. Tenho que retornar o mais rápido possível a Quebec, para relatar ao Sr. de Frontenàc oque se trama na Acádia. O velho Nicolau Parys, o rei da costa leste, deve-me algumas obrigações. Ele me arranjará um navio e também mercadorias: peles, sal, carvão. Não quero voltar de mãos vazias para Quebec, seria inconcebível. E esse velho gatuno provocador de naufrágios tem alguns butins de piratas nos seus cofres. Desta vez ele terá que me mostrar o fundo da sua caixa ou mando retirar-lhe os privilégios sobre Canso e a ilha Royale...

Restava a dificuldade de transportar por terra - e terra frequentemente pantanosa - bagagens bem pesadas, pois o governador conseguira recuperar muita coisa. Havia também o fogão de louça holandesa e a arca de Saint-Castine.

Alexandre salvou a situação, propondo carregar tudo aquilo no "seu" navio comercial, a carraca flamenga dos irmãos De-four, e levar tudo com a velocidade de um cavalo a galope pelo Petit Codiac acima, até o ponto extremo de navegabilidade do rio. A partir dali haveria transporte bem organizado. Em menos de quatro dias o carregamento estaria ná praia de Shédiac, onde bastaria mandar apanhá-lo de Tormentine com uma chalupa.

O rosto do governador iluminou-se.

-        Genial! - exclamou. - Eu sempre disse, esse rapaz é genial! Deixe-mé abraçá-lo, Alexandre. Vejo que não foi em vão que procurei desenvolver-lhe a inteligência. É verdade que você é um pouco frívolo, um pouco leviano, mas se sabe pôr a sua paixão por subir as quedas-d'água e as corredeiras a serviço dos que o amam, perdôo-lhe muita coisa... Vá, meu amigo, vá, eu o abençoo...

Resolveu mais alguns detalhes. Queria que Alexandre lhe escoltasse a bagagem até Tormentine. Tinha medo de" que.lhe roubassem tudo na praia de Shédiac.

-        Com esses pescadores Je bacalhau de todas as nações que invadem a nossa costa no verão...

Entregou a Alexandre uma vultosa soma em dinheiro, para que o rapaz encontrasse bons guardas por lá ou fretasse ele mesmo uma chalupa. Mas tomou o dinheiro de volta, concluindo que os jovens são loucos demais para terem dinheiro no bolso. Até que acabou dando-lhè o dinheiro outra vez, com inúmeras recomendações, que o garoto ouviu com o ar entediado habitual. Só esperava pela última palavra para saltar a bordo e fazer-se ao largo.

-        Vá-se entender essas crianças - suspirou Ville-d'Avray. - O verão as põe loucas. Tenho certeza de que no inverno virá aquecer os pés junto ao meu fogão de louça e comer maçãs ao caramelo... uma especialidade da minha criada... Você verá! Enfim, isso é outra história. No momento temos que achar um navio e salvar o que pode ser salvo... Ah, esta Acádia! Um espinho no meu pé! Um autêntico caldeirão de bruxa!... Não voltarei mais aqui... No entanto, gosto de Marcelina e do meu pequeno Querubim...

Angélica, de seu lado, despachou o Rochelais com o contramestre Vanneau e alguns tripulantes. Contornariam a Nova Escócia e os alcançariam em Tormentine ou em Shédiac, depois de fazerem uma escala em Gouldsboro para informar Colin Paturel sobre as peregrinações deles. Como escolta, Angélica conservou consigo o Tenente de Barsempuy e alguns homens.

Teria preferido que Cantor mantivesse suas prerrogativas de capitão à testa do Rochelais, mas o jovem se recusou a deixá-la.

-        Dentro de dois dias estarei com o seu pai - disse-lhe ela -, e em mais alguns dias você virá ao nosso encontro... O que teme por mim?

Mas ele insistiu, sem fornecer razões claras. Ela, por sua vez, precisou fazer um esforço para ocultar os próprios tormentos e não pô-lo a par do que soubera sobre a Duquesa de Maudribourg. Mas ele com certeza Intuíra tudo ou ouvira alguns comentários a respeito.

Não insistiu. No fundo, a presença dele era boa e a reconfortava.

Naturalmente Piksárett participaria da viagem, sempre glorioso e cheio de si. Eleparecia ris.onho. No entanto, Angélica, que começava a conhecê-lo, senfia qucele permanecia alerta, como se estivesse prestes a avançar em país inimigo.

- Esses malecitas são animais fedorentos - observou ele. - Os únicos aliados e amigos que têm-na face da Terra são o álcool e a mercadoria dos navios.- Afora -isso, mal distinguem um iro-quês de um irmão abenaki...

Os nativos da região "estavam agitados e efervescentes, falando de guerra, .de vingança, dos presentes que lhes haviam prometido e não lhes haviam^dado. Muitos acompanharam a caravana, sem que se pudesse determinar por quê. Ville-d'Avray convencia-se de que era para honrá-lo na qualidade dè governador da Acádia. Mas Piksarett não previa nada de bom daquela escolta turbulenta. Os índios da região já tinham coletado dos barcos pesqueiros inúmeras-doses de álcool. Aproximava-se a época em que, depois de reunirem erncada tribo as provisões de aguardan-te, eles se entregariam àquelas bebedeiras dementes do outono, que sempre culminavam em mortes e crimes atrozes e que entre eles já adquiriam a forma tradicional de cerimonias mágicas.

Fascinados com a aproximação desses transes a que os induzia o veneno dos brancos, "o leite do rei da França", conforme o chamavam, e sabendo o que ]hes custaria entregarem-se à orgia, sem que tivessem a força de resistir, eles se punham nervosos e desconfiados, descontentes de si mesmos e de todos, e perdiam o bom humor habitual.

Felizmente a presença de- dois dos irmãos Défour, bem como de alguns dos filhos de Marcelina, que eram da região e tinham parentes ou irmãos de sangue entre esses índios, garantia a segurança da caravana.

Assim, logo estariam do outro lado do istmo de Chignecto. Ao atingirem o golfo Saint-Laurent, deixariam um mundo fechado, protegido pelas suas marés, suas tempestades e nevoeiros, o mundo voltado sobre si mesmo da baía Francesa, para desembocarem num horizonte mais vasto. Da costa leste olhava-se na direção da Europa, não se lhe voltavam as costas.

A impaciência de Angélica, tanto para esclarecer a sua situação quanto para sair daquelas terras selvagens, abandonadas por Deus e pelos homens, era tamanha, que ela forçava todo mundo pelos caminhos de Chignecto num ritmo que apenas os selvagens mantinham sem dificuldade, e o tempo todo o marquês se queixava de que não conseguia acompanhá-los.'

Angélica, porém, seguia indiferente às queixas dele, bem como às paisagens que atravessavam.

Ela precisava chegar muito depressa. E andava imersa nos próprios pensamentos, que se lhe entrechocavam na cabeça, sendo que nem sempre tinha a coragem de concluí-los ou encará-los.

A possibilidade de Ambrosina atentar contra a vida de Joffrey deixava-a trémula. Ville-dAvray dissera: "E uma envenenadora..."

Matara várias vezes.

Mas Joffrey não era homem de se deixar matar assim tolamente, menos ainda de se deixar lograr por uma criatura, mesmo que se tratasse de uma mulher sedutora, que tivesse intenções homicidas para com ele... Ela o conhecia. Evocava-lhe a rara lucidez, a distância que mantinha entre ele e os demais, seu espírito astuto, superior, em que entrava certo teor de desprezo e desconfiança pela humanidade.

Aquelas coisas nele que às vezes a feriam, porque lhe davam a impressão de que jamais conseguiria atingi-lo de todo, hoje ela se felicitava de que ele as possuísse, pois eram a prova de que ele não se deixaria engodar por uma Ambrosina.

"Ele tem muita experiência", pensava ela. "Com as mulheres principalmente, sempre soube o que estava fazendo... Mesmo comigo. E verdade que algumas vezes não soube avaliar a profundidade dos meus sentimentos por ele... Mas eu também não sou fácil... E talvez eu mesma, na minha desconfiança da vida e dos homens, não conhecesse o suficiente a força da chama que dedico a ele... Ah, uma coisinha que lhe aconteça e eu morrerei!..."

Por instantes, assim como o condenado à morte, ela revia fragmentos de sua vida... A vida deles, separada mas comum, pois

tinham permanecido unidos pela recordação, pela nostalgia, todos os aspectos que adquirira para ela aquele amor de juventude, o Conde de Toulouse, e mais tarde a paixão secreta, louca que a Dame Angélica, em La.Rochelle, não queria admitir que nutria por aquele pirata que a comprara, o Rescator.

Mas sim! Também ela, na maturidade, apaixonara-se pelo homem em que ele se tornara.>E isso.sem sequer reconhecê-lo...

O Rescator, que para éla permanecia sempre um pouco enigmático, mas que a esperava, lá na costa leste, e que de repente, quando sorrisse ou tirasse a máscara, voltaria a ser o caloroso companheiro de Wapassu, o amigo dos momentos de dor ou de alegria vitais, de uma delicadeza, uma compreensão quase feminina. Quando ela finalmente poderia alcançá-lo, certificar-se da realidade dele, da vida.dele entre os vivos - ah, como um morto desaparece depressa do mundo dos vivos! -, apreendê-lo e reconhecê-lo por todos os seus gestos, suas expressões, o som da sua voz, cada coisa dele, revelando-o ao atento amor de Angélica, coisas a que, parecia-lhe, la não prestara atenção suficiente, mesmo àqueles momentos súbitos de introversão, àquelas cóleras ou ironias ou frieza, que tanto a assustaram, porque, ainda pueril, lhe pareciam uma ameaça a ela e não a manifestação de uma personalidade superior, mas ainda assim muito humana. Ele tentava pôr-se de acordo com o niundo, domá-lo, mas também tentava não se deixar esmagar por esse mundo nem se deixar arrastar à ruína.

Nesse universo que ele enfrentava, ela aos poucos se tornara - como o astro levado pelo movimento de uma galáxia e que aos poucos se aproxima do astro central -, ela se tornara a sua primeira preocupação. Ele lhexonfessara: "Apaixonei-me por você, pela mulher que você se tornou... Incerto de haver garantido a minha conquista sobre o seu coração, hoje, pela primeira vez, conheço o sofrimento de amor... Eu, Conde de Toulouse, devo confessar: perdê-la me destruiria.,."

Ainda que ele exagerasse um pouco, aquelas palavras, vindas dos lábios dele, tinham algo de demasiado forte para o receoso coração de Angélica. Não quereriam dizer que era tudo bonito demais, extraordinário demais para ser vivido, que ia acabar, que ela chegaria tarde demais?...

Ela caminhava, ia como o vento, levada pela necessidade de lançar-se na direção dele e de finalmente abraçá-lo, vivo, vivo... O que acontecesse depois, o que ela viesse a saber em seguida, já não teria importância alguma...

O GOLFO SAINT-LAURENT - OU OS CRIMES

CAPÍTULO XIII

Início da expedição contra a Diaba

O bretão de Quimiper, que, cansado de pescar o dia inteiro, sozinho em seu bote, resolvera ir dormir algumas horas numa enseada afastada, visitada apenas pelas gaivotas e petréis das margens, não acreditou-nos próprios olhos aò ver surgir da mata aquela loura elegante, de porte real, acompanhada de um cavalheiro de casaca bordada ernbcyra empoeirada, de um oficial, um belo lourinho à pajem, e uma tropa de índios emplumados. Era de crer que rfaqúele ano toda a corte de Versalhes passeava por aquelas regiões remotas da América setentrional, divertindo-se em percorrer aquele litoral malcheiroso, brumoso, exalando vapores infernais, infestado de mosquitos no calor opressivo do dia, enquanto as noites glaciais e umidas já anunciavam que logo faria um frio de tiritar com as lufadas polares do inverno.

Já em Tidmagouche havia aquela duquesa, e agora esta, que saía das florestas selvagens como de um passeio por um parque e vinha direto para ele.

Logo o grupo de recém-chegados rodeou o homem, ainda deitado na areia e atónito.

— De onde você é? - indagou Ville-d'Avray.

— De Quimper, monseigneur.

— Um veranista. Seu capitão paga impostos?

— Paga, sim, ao velho Parys.

— E ao governador da região?

— Ora, o governador que se f....- respondeu o homem, bocejando ruidosamente, sempre deitado. Afinal de contas, ele estava em casa naquela costa onde seu avô, seu bisavô e todos os seus ancestrais de há séculos iam pescar e salgar o bacalhau, todo ano.

— Veja a insolência desses gatunos! - exclamou Ville-d'Avray, cravando a bengala com fúria na areia. - O bacalhau é uma das riquezas da Acádia. É chamado de "o ouro verde". Mas todos esses bascos, portugueses, normandos e bretões acham normal virem forrar os bolsos à custa do Estado sem pagar-lhe um centavo.

— Forrar os bolsos é exagero - protestou o homem, dignando-se a sentar e tirando os calções para aliviar as pernas magras, esfoladas pelo sal. - A gente dá duro uns três ou quatro meses e nem por isso volta para casa mais rico. Mal se ganha o suficiente para tomar uns tragos antes de partir.

— Ele fala bem francês para um bretão de Quimper - comentou Ville-d'Avray, que se acalmava depressa. - De onde é o seu capitão?

— De Faouet.

— Um cómico também, mas do norte. Eles têm o mesmo dia-leto gaélico que a gente da Cornualha inglesa. Como se chama seu capitão?

— Se for perguntar-lhe, ele lhe dirá.

— Perfeitamente, e é o que faremos. Pois estamos sem bote e você vai levar-nos em seu barco até ele.

-        Toda essa gente? - espantou-se o homem.

Angélica interpôs-se.

-        Espere um pouco, marquês. É preciso saber onde está ancorado o navio deste marujo e se está na região que queremos atingir, Tidmagouche, perto de Tormentine...

Apurou-se que era de fato lá que os bretões da Cornualha haviam erguido seus tablados para o verão. Fazia "séculos" que eles tinham um contrato com o velho Parys, de quem Tidmagouche era a residência de verão e entreposto comercial.

— A praia é bonita e a baía é vasta. Há diversão para nós, sem perturbar o trabalho. Navios de piratas vêm se abastecer e vão embora. A gente se embriaga um pouco com eles.

— Por acaso não se encontra lá agora uma grande dama francesa, a Duquesa de Maudribourg? - perguntou Angélica, num tom que ela pretendia desinteressado.

-        Sim, uma bela rameira! Mas não é para nós, é para os piratas e para o velho. Ou melhor, não sei de nada. Talvez ela não seja para ninguém. A gente, da_pesca, não se mistura com esse povo. A gente até que namorava um pouco as moças que a acompanham, mas elas estão bem vigiadas, e depois, nesta época, trabalhamos tanto que ninguém está''em forma, ê o capitão traz a gente no cortado.

Angélica receava que o homem associasse o nome de Joffrey ao de Ambrosina, mas ele não disse nada. Ela foi um pouco covarde, preferiu não fazer perguntas. O Marquês de Ville-d'Avray arregalava os olhos.

— Como? O que foi que eu ouvi?.:. A duquesa está lá e você sabia? E não me disse nada?!.'..

— Achei que não tinha importância.

— Não tinha importânciaLPelo contrário, é gravíssimo! Se eu soubesse que essa devassa estava lá, não teria vindo, teria ido para Shédiac com Alexandre!

— Precisamente! Eu queria que o senhor viesse. Preciso do seu testemunho."

— Ah,-'encantador! E quem lhe avisou da presença dela no golfo?

— Marcelina!

— E também ela não me disse nada! É bem coisa de mulher - exclamou Ville-d'Avray, amargo e indignado. - Elas nos mimam, enchem-nos de cuidados, dão a entender que nos amam e, na primeira ocasião, fazem uma aliança entre si e nos mandam para a morte sem o menor escrúpulo.

A passo resoluto encaminhou-se para a orla da mata.

— Vou voltar!    

— Não - implorou Angélica, segurando-o pelas abas da casaca. - Não pode abandonar-me- assim.

— Quer que ela me assassine?

— Não, quero que-o senhor me ajude.

— Ela vai me desmascarar...

— Não, o senhor saberá anular-lhe as suspeitas. Tem talentos de ator, o senhor mesmo o disse. Utilize-os...

— Ela é mais forte do que todos os atores do mundo.

— Não tem importância! Preciso que me ajude - implorou Angélica em tom premente. - É agora que vai se resolver tudo... lá... naquela praia. E vai ser horrível... horrível... Estou sentindo... O senhor não pode abandonar-me...

A voz tremia-lhe, e ela teve a impressão de que ia rebentar em soluços.

-        Meu marido certamente estará lá... O senhor tem que falar com ele, dizer-lhe o que sabe sobre ela,'convencê-lo...

O marquês alçou a vista para fitar o olhar patético de Angélica e entendeu o que a torturava.

-        Que seja! Que não se diga que um dia deixei uma bela mulher em apuros sem ajudá-la da melhor maneira possível!

Apoiado na bengala de pomo de prata, ele se retesou e se empertigou em toda a sua altura.

-        Que seja! - repetiu. - Vamos enfrentar a Diaba!

CAPÍTULO XIV

O golfo Saint-Laurent

Um mundo imerso em mau cheiro durante todo o verão e, desde o promontório dç Gaspé, ao norte, comunicando o golfo Saint-Laurent com o rio do mesmo nome, um rosário de praias e baías invadidas dcbárcos, navios ancorados, cobertos de tablados, semelhanfes a mesas de madeira sobre colunas, destinados a limpar o bacalhau, uma franja monstruosa de detritos de peixe, e outra franja de aves chilreadoras, e até o sul, para além de Canso, léguas e léguas de peixes secando sobre grades de caniços. O reino do bacalhau, a baía Verde! Reinava o nevoeiro, frequentemente translúcido e amarelo como um vapor sulfuroso. Os cabos e os promontórios se esfumavam, isolando cada um em seu domínio maldito, entre o mar de cintilação metálica e a floresta plantada sobre as falésias. Não havia nada para além, aquém ou adiante. Os espruces, essa espécie de pinheiros do Canadá, eretos como rocas pretas e brancas, pareciam levantar uma grade intransponível, reunindo, aprisionando sob sua guarda as poucas casas, os poucos sítios, -um forte de madeira e sua paliçada, junto do qual índios malecitas, degenerados pelo álcool, haviam construído suas cabanas de casca de árvore.

Para além das brumas abria-,se o golfo. Como sua festa caía no dia em que o francês Jaçques Cartier plantou a cruz em Gaspé, Saint-Laurent fora bem servido. Um rfo com vários milhares de milhas de comprimento, um golfo vasto como a França, rodeado de ilhas gigantescas: Anticosti ao norte, Terra Nova a leste, ao sul a ilha Saint-Jean, sem uma árvore, falésias vermelhas, um rubi pousado sobre o mar, depois a ilha Royale, um anel de an-tracita à volta de um lago imenso.

No centro, o arquipélago de Madeleine: a ilha dos Démons, a ilha dos Oiseaux, as ilhas de Point-aux-Loups, Havre-aux-Maisons, Grosse...

Os prisioneiros das praias de cascalho ignoravam a vida do golfo, nunca participavam dela.

Todo ano, em junho, os tripulantes das flotilhas procedentes das costas-europeias ábatiam-se sobre o lugar como.uma irresistível migração de aves nidificando cada um no seu canto, de onde não saíam mais.

O primeiro a chegar era o "senhor da praia". Instalava-se ali com sua tripulação por longos meses, como num limbo particular.

Foi assim que apareceu aos olhos de Angélica a praia de Tormentine-Tidmagouche quando ela ali chegou no meio da tarde.

O cabo de Tormentine, que dava nome ao lugar, ficava muito mais longe, ao norte, e quase não dava para vê-lo. Na realidade aquela praia era um lugar sem nome, um local para pescar, cometer crimes, vender a alma ao Diabo...

Era ali que tudo aconteceria. Foi o que ela dissera a Ville-d'Avray. Ao ritmo lento dos remos manejados pelo bretão, Angélica via a costa aproximar-se. O sol ainda estava alto, uma mancha esbranquiçada e ofuscante por trás das brumas. O mar estava encrespado de ondinhas curtas e cintilantes. O bote, onde Angélica tomara lugar com o índio Piksarett, avançava com lentidão. A única vela não teria sido de grande valia, pois o vento amainava.

Piksarett, alto, desengonçado, envolto em sua pele de urso negro e carregando lança, arco e flecha, subira com Angélica na embarcação pequena demais para mais de duas pessoas, além do marinheiro e do material de pesca.

Os demais iriam por terra, o que exigiria várias horas. As pistas faziam um longo desvio para contornar os charcos e as tur-feiras a que o povoado dava as costas.

Angélica pulou para a areia sem receio de molhar as pernas até os joelhos.

O bretão indicou-lhe as casas que se espalhavam para oeste da praia, ao pé das falésias e escalando-as pouco a pouco.

As habitações cresciam sem ordem, como plantas selvagens, grandes ou pequenas, cobertas de ripas ou palha, até de musgo às vezes. O forte de madeira dominava tudo, fechado sobre si como um monstro atarracado e negro, e mais adiante, à beira de um promontório invadido pelo-exército;de abetos, junto à silhueta de uma cruz, erguia:se uma-capelinhacom um frágil campanário pintado de braríco.

Angélica avançou, às pressas, ignorando'a atividade da praia, onde lidavam os pescadores. Eles, aliás, não lhe prestaram a menor atenção. Na verdade, nem a viram.

De repente ela se viu entre as Moças do Rei. Seus rostos surgiam como que de um pesadelo: Delfina, Maria, a Meiga, Joana Michaud e o filho, Henriqueta, Antonieta, e até Petronilha Da-mourt. Contra a claridade do céu, aqueles rostos lhe pareciam gredosos e grotescos.

E de fato elas ficaram- pálidas como a morte ao reconheceram-na, subitamente ali, djanté delas.

- Onde está a sua benfeitora?,- lançou-lhes Angélica.

Uma delas esboçou um gesto na direção da casa mais próxima. Angélica disparou, para lá e de um salto cruzou a soleira.

E topou com Ambrosina de Maudribourg...

 

CAPITULO XV

Face a face com a duquesa diabólica - Emoção nos braços do índio Piksarett

A Diaba estava sentada perto da janela com as mãos postas sobre os joelhos, na atitude de meditação e prece que lhe era familiar.

Voltou a cabeça, e seus olhos encontraram os de Angélica. Um sorriso roçou-lhe os lábios, e ela disse simplesmente:

-        Você!

Não parecia surpresa. Seu sorriso muito suave estirava-lhe os lábios. E naquele sorriso transparecia a criatura malfazeja que se ocultava por trás de sua aparência graciosa.

— Não pensava que a reveria...

— Por quê? - lançou-lhe Angélica. - Porque deu a seus cúmplices ordem de me executarem?

As delicadas sobrancelhas da duquesa se ergueram com espanto.

-        Meus cúmplices?

Os olhos de Angélica percorriam todos os cantos do aposento. "Onde está ele?", pensava avidamente. Mas, sob o olhar irónico de Ambrosina, ela retinha as palavras que lhe queimavam os lábios.

— Está vendo? - disse a duquesa, meneando a cabeça. - Não é tão fácil manobrar-me. Achava que, entregando-me aos ingleses, se livraria de mim para sempre... Pois bem, aqui estou, livre e bem longe da Nova Inglaterra!

— Como você se arranjou com Phipps?

— Isso a intriga, não é?

Ela soltou sua arrulhante gargalhada.

-        Quando se é uma mulher hábil, sempre se encontra um jeito com um homem bem provido dos atributos que a natureza lhe outorgou. Examinou Angélica com zombeteira curiosidade.

-        Por que você veio?... Para procura-lo? Decididamente você não tem medo de sofrer...

Nesse momento os olhos de Angélica toparam com uma roupa pendurada à parede hum'capito. Era o gibão de Joffrey. O gibão de veludo verde escuro com alguns bordados em prata, que ele usava comumente.

Ambrõsina seguiu o olhar, e seu sorriso se acentou.

-        Pois é! - exclamou. - Pois é, minha cara! É isso...

Sem refletir, Angélica atravessou a sala de um salto. Ao ver aquela peça de vestuário, estremecera inteira. Tocou-a com as mãos. Teve vontade de afundar o rosto ali. Passou e repassou os dedos pelo tecido, tentando evocar a adorada e familiar presença dele."

-        Você melentenáeu? - insistiu Ambrõsina numa voz metálica. - Ele está aqui comigo: Ele é meu amante!

Angélica voltou-se jeoni vivacidade, e novamente seus olhos examinaram-o aposento.

-        Muito bem! Então, onde é que ele está? Que ele venha me dizer isso em pessoa! Onde está?

Uma hesitação passou pelo rosto da duquesa.

-        No momento está ausente - admitiu ela. - Partiu há dois dias, não posso dizer exatamente em que direção, Terra Nova, acho, mas deve regressar...

Angélica entendeu que Ambrõsina não estava mentindo e não soube se naquele instante estava sentindo uma amarga decepção ou um grande alívio por ver afãstar-se o momento do confronto com ele diante de Ambrõsina.

-        Pediu-me que o esperasse aqui - continuou a duquesa num tom adocicado -, afirmou-me que voltaria no máximo em uma semana e me implorou que não me afastasse daqui... Está louco por mim...

Angélica examinou-a como se ela fosse transparente e como se aquelas palavras não lhe chegassem aos ouvidos.

-        Ouviu? - repetiu a outra, com uma voz que traía impaciência e irritação. - Você me entendeu? Sou amante dele, estou dizendo!

— Não acredito.

— Por quê? Você é a única mulher no mundo a quem se pode amar? Afirmo-lhe que somos amantes!

— Não! Você está mentindo.

— Como pode ser tão categórica?      

— Eu o conheço demais. O instinto dele é seguro, e sua experiência, inclusive com as mulheres, é grande. Ele não é homem para se deixar seduzir por uma criatura tão vil quanto você.

A duquesa soltou uma exclamação de gracejo e fingiu uma surpresa irónica.

-        Mas o que é isso? Parece que você o ama! Louca! O amor não existe... Não passa de uma ilusão, uma lenda que os homens inventaram para se distrair-na Terra..; Só existe a carne, e as paixões devoradoras que ela inspira... Eu lhe disse, a propósito de Phipps: não existe um único homem que uma mulher hábil não consiga manobrar quando ela se dispõe a isso!

Angélica caiu na risada. Acabava de imaginar o coitado do Phipps às voltas com aquela mulher luxuriosa... O infeliz rapaz teria sucumbido ao ataque? Sem dúvida alguma! Os puritanos são mal armados para esse género de tentação. Na alma deles, o medo ao pecado só tem igual no fascínio que o poder do Mal exerce sobre eles.

Seu súbito acesso de hilaridade desconcertou Ambrosina, que a olhou sem entender nada, pasmada.

— Você ri! Está louca?... Não consegue entender que também ele é falível? Todos os homens o são, afirmo-lhe! Basta encontrar-lhes o ponto fraco.

— Ele não tem ponto fraco.

— E de crer que sim... pois... o que eu lhe disse convenceu-o muito facilmente de que ele faria bem mal em desdenhar os prazeres que eu lhe oferecia por uma mulher como você...

Angélica parou de rir.

-        Que foi que você lhe disse?

Ambrosina passou a língua pelos lábios com ar guloso. Um brilho de triunfo acendia-lhe nas pupilas de ouro escuro diante da ansiedade que Angélica traíra.

— Oh! muito simples... Quando ele foi ao meu encontro em La Héve, onde pedi a Phipps que me desembarcasse... revelei-lhe que seu primeiro gesto depois que ele partiu de Gouldsbo-ro... fora ir encontrar-se com Golin Paturel... e entregar-se a ele...

— Você fez isso?       

— Como você ficou pálida de: repente... - murmurou Am-brosina, examinando-a com uma atenção cruel. - Assim, não digressionei muita em minhas extrapolações a seu respeito com aquele belo normando taciturno. Você tem.uma queda por ele... E ele a ama... Assim como outros... Todos os homens a amam e desejam...

A expressão de Arrrbrosina mudou subitamente, e ela disse, rilhando os dentes:

-        Morta! Queria vê-la morta!

Depois, com um grito lancinante:

-        Não! Não! Morta, não! Se você morresse, a luz de minha vida se apagaria! Oh, deuses; como posso, ao mesmo tempo, desejar tanto svi-a morte ejicar tão'desesperada, ante a simples ideia de que vocêpoSsa desaparecer deste mundo?... Ah! Cheguei demasiado-tarde! Se você me tivesse amado, tudo se seria confundido. Eu teria soçobrado em você. Seria sua escrava, e você, a minha. Mas você está ligada ao homem, essa besta imunda!... O homem a acorrentou!....

Pôs-se a dizer obscenidades" tão perturbadoras que Angélica a fitou de olhos arregalados, como se positivamente visse serpentes a lhe sair dos lábios belíssimos.

Paradoxalmente, foi esse descontrole histérico da duquesa que salvou Angélica de crise análoga.-

Quando Ambrosina lhe reVelou a acusação levantada contra ela perante omarido, Angélica vislumbrava num átimo a devastação que essa acusação causaria em Joffrey de Peyrac. A reconciliação deles ainda era frágil. Fazia pouco tempo que ela vira o rosto de Joffrey transformado por uma cólera terrível ante a ideia de que ela pudera oferecer-se ao Barba de Ouro.

Lentamente, suavemente, com precauções infinitas, reunindo coragem, engolindo o orgulho, extraindo da profundeza de seu amor as forças para enfrentar tal provação, eles conseguiram tratar dos ferimentos atrozes que um causara ao outro naquele instante dramático.

Mas sobre a chaga ainda recente no coração de Peyrac, como deviam ter sido corrosivas as palavras de Ambrosina!

Angélica sentiu que desfalecia como diante de uma catástrofe que em vão se tentou prevenir e conjurar. Estava tudo perdido. Aflitíssima^ só pensava numa coisa: sair correndo às. cegas.

Foi então que Ambrosina, rebentando em imprecações dementes, de algum modo a recompusera. Sua reação mudou de -curso, e sua cólera contra Ambrosina queimou-a como ferro em brasa.

-        Basta! - gritou, batendo com o pé e gritando com mais força que a duquesa. - Você é odiosa, repugnante! Cale-se! Claro que os homens não são santos, mas são mulheres como você que os envilecem e os tornam estúpidos! Cale-se! Eu ordeno! Os homens têm direito a respeito!

Ambas fizeram silêncio ao mesmo tempo e se encararam, ofegantes.

— Decididamente você é estupefaciente - disse Ambrosina afinal, examinando-a como se de repente tivesse um monstro diante de si. - Ora! Acabo de desferir-lhe um golpe mortal... Não negue, eu vi... Acabo de demonstrar-lhe que seu amor, seu ídolo, seu deus, é falível... E você ainda é capaz de me dar uma lição!... E para defender os homens, todos os homens. Caramba! A que espécie você pertence, afinal?

— Isso não tem importância... Odeio a injustiça, e existem verdades que não permitirei, por mais sábia, inteligente e influente que você seja, não permitirei que enxovalhe em sua lama. Um homem é algo sério e importantíssimo, e se a génese do espírito deles às vezes nos é inacessível, isso não é motivo para nos vingarmos de nossa nulidade, de nossa incapacidade em acompanhá-los, diminuindo-os, reduzindo-os à escravidão... Abigail me dizia algo assim uma noite...

— Abigail!

Novamente a duquesa soltou um grito de ódio.

-        Ah!.,. Não pronuncie esse nome na minha frente... Eu a odeio! Aquela calvinista hipócrita! Tenho horror a ela... Você a olha com tamanha doçura... Sua conversa não tinha fim... Eu as vi pela janela. Você estava com a cabeça apoiada ao ombro dela. Dormiu ao lado dela... Segurava a filha dela nos braços e a cobria de beijos...

— O grito da noite... foi você...

— Como é que eu poderia suportar um espetáculo assim sem morrer de sofrimento? Você estava ali, fejfz, perto dela... ela, viva e feliz, quando deveria estar.,fnorta, cem vezes morta...

Angélica aproximou-se. Tinha a impressão de que seu coração ia parar de bater.

-        Você tentou envenená-la, não foi?

Falava a meia voz, de dentes cerrados.

-        Antes disso preparou a possível morte dela no parto... Quando adivinhou que p momento se aproximava, que sem dúvida o nascimento aconteceria naquela noite, foi p.ôr uma droga em meu café... Foi a Sra. Cawére que o tomou... por acaso... Senão eu teria dormido naquela noite, e você sabia que sem meus cuidados AbigaiLcorria risco de vida... e mandou levar álcool para a velha índiaf-para que "tampouco ela pudesse assistir Abigail... E mais tarde rhisturoja venenos na tisana que. eu lhe havia preparado... Você me ouviu dizer que ela devia bebê-la" várias vezes por dia..."Voltou à tarde, misturando-se aos visitantes, para executar seu crime... Felizmente Laurier colocou o cesto diante do púcaro e Severina esquereu-se da tisana. Eu, à noite, joguei o líquido pela janela... 0 porco de Bertille morreu...

Angélica falava como em sonho, horrorizada.

— Você queria que eu matasse Abigail com minhas próprias mãos!

— Você a amava - repetiu Ambrosina -, e a mim, não... você não parava de se apaixonar portodo tipo de coisa, menos por mim: por ela, as crianças, o seu gato...

— Meu gatinho... Foi você... Você o espancou, torturou... Ah, agora entendo! Era a você que ele enxergava na noite quando se eriçava de terror...

Angélica estava perto de Ambrosina e-se inclinava na direção dela, com os olhos faiscando.

— Queria que também ele morresse... Mas ele conseguiu escapar em tempo... das suas garras...

— A culpa é sua...

Uma expressão de menininha matreira passou pelas feições da duquesa.

— Você fez de tudo para que essas coisas acontecessem... Se me tivesse amado...

— Mas como quer que eu a ame, seja da maneira que for? - bradou Angélica, agarrando-a pelos cabelos e sacudindo-a brutalmente. - Você é um monstro!        

Estava dominada por tamanha fúria que teve a impressão de que poderia arrancar-lhe a cabeça. Mas conteve-se ao. perceber pela expressão de Ambrosina que esta sentia prazer com a violência de que era alvo.

Soltou-a bruscamente, e a duquesa quase caiu no chão de terra batida. Como na outra noite, em Port-Royal, quando tombara nua sobre o manto escarlate, uma espécie de luz extática espalhava-se-lhe pelo rosto de olhos semicerrados.

-        Sim - murmurou -, rnate-me... Mate-me, minha bem-amada...

Fora de si, Angélica pôs-se a andar em círculos pela sala.

-        Água benta! Que me tragam água benta! - gritou. - Água benta, pelo amor de Deus! Com criaturas como você, entendo a necessidade de aspersórios e exorcismos...

Ambrosina soltou uma gargalhada estridente. Ria tanto que lhe vieram lágrimas aos olhos.

-        Ah, você é a mulher mais divertida que já encontrei - exalou afinal. - A mais deliciosa... a mais inesperada... Água benta! O modo como você disse isso!... Você é irresistível... realmente, oh, Angélica, meu amor!

Exausta, ela se ergueu. Olhou-se num espelhinho de pé que estava sobre a mesa, umedeceu o indicador na ponta da língua e correu-o pelas finas sobrancelhas.

— Sim, é verdade, ri com você como nunca ri com ninguém... Você soube alegrar-me... Ah, aqueles dias em Gouldsboro... com sua presença, suas mudanças de humor, cheias de fantasia... Meu amor, fomos feitas para nos entendermos... Se você quisesse...

— Chega! - gritou Angélica.

E atirou-se para fora da casa. Corria como uma louca, torcendo os pés no solo pedregoso.

-        Senhora, o que tem?

As Moças do Rei vinham-lhe ao encontro, lívidas por haverem acompanhado as vociferaçôes e os gritos que escaparam da casa onde as duas mulheres se-enfrentavam.

— Onde está Piksarett?,- perguntou Angélica, ofegante.

— Seu selvagem?     

— Sim! Onde está ele? Piksarett! Piksarett!

— Aqui estou, minha cativa! - disse Piksarett, surgindo diante dela. - O que,você quer.-dè mim?

Ela o fitou, desorientada. Já não se lembrava por que o chamara. Ele a dominava com sua grande estatura. Em seu rosto de argila cozida, seus olhos negros e vivos brilhavam como azeviche.

-        Venha comigo para a floresta - disse ele em língua abenaki -, venha andar pelas yèredas da floresta... E o santuário do Grande Espírito... As dores se atenuam ali...

Ela o seguiu enquanto~ele se afastava rapidamente do povoado, rumando para à-orlída mata. Enfipu-se por entre os troncos densos dos pinheirosje-ábetos que a poeira resultante da seca intensa salpicava de cinzento. Mas começava a despontar entre a vegetação mais baixa -p cferãq de arbustos quê se avermelhavam, e por vezes eles atravessavam vastos espaços cobertos pela púrpura de moitas de mirtilos e airelas estendidas como tapetes sun-tuosos ao longo de toda a costa.

Em outros momentos-embrenhavam-se de novo pela sombra negra das árvores. Piksarett andava depressa, e Angélica o seguia sem dificuldade, levada pela necessidade cega de não parar de modo algum, pois se se detivesse o vagalhão ardente que sentia chocar-se contra as paredes de seu coração - em arremetidas terríveis que a impediam de respirar - se desencadearia, e ela arrebentaria.

Atingindo uma clareira de onde.sé avistava o mar, entre os troncos avermelhados dos pinheiros, Piksarett fez alto.

Sentou-se num toco de árvore e, levantando os olhos para Angélica, estudou-a de alto a baixo, com ar zombeteiro.

Foi quando o vagalhão ardente arremeteu dentro dela.

Como sob o choque de uma pancada, Angélica tombou de joelhos junto do índio e, enfiando o rosto na pele de urso negro, rebentou em soluços lancinantes.

CAPÍTULO XVI

Sábios conselhos do grande chefe segamore

-As mulheres têm direito às lágrimas - disse Piksarett com surpreendente generosidade. - Chore, minha cativa! Os venenos de seu coração se lavarão com as lágrimas.

Pousou a mão sobre os cabelos dela e esperou.

Ela chorava com uma entrega de todo o seu ser, sem sequer perceber, no fundo daquele abismo caótico, as causas exatas de sua dor. Era uma rendição total, os diques finalmente se rompiam, a coragem devolvia as armas a sua fraqueza humana, uma necessidade física que a salvava da loucura, e como acontece nesses raros instantes em que a gente se aceita como é, numa reconciliação interior entre aquilo que se conhece sobre si mesmo e aquilo que se ignora, Angélica acabou sentindo uma benfazeja volúpia com esse abandono. O sofrimento que lhe dilacerava o coração acalmou-se, cedeu lugar a algo suave, tranquilizante, que lhe embalava e adormecia o mal.

O eco da catástrofe diminuiu dentro dela, lentamente, pouco a pouco cedendo lugar a um silêncio tumular, mas no qual logo começou a se erguer um ser dolorido, machucado, enfraquecido... Esse ser, a sua imagem, olhava-a do fundo dela e lhe dizia: - E agora, Angélica, o que se faz?

Enxugou os olhos. Sozinha não teria resistido ao choque. Mas Piksarett estava ali. Ao longo de todos aqueles instantes terríveis, Angélica não parou de sentir que uma presença humana velava por ela. Nem tudo estava perdido. Piksarett conservava a fé.

-        Ele não está aqui! - disse ela, numa voz entrecortada. - Não esta aqui! Partiu de novo, não sei para onde. O que será de nós?

— É preciso esperar - respondeu Piksarett, fitando o horizonte esbranquiçado do mar entre as árvores. - Ele está no encalço do inimigo, mas voltará.

— Esperá-lo - repetiu Angélica-, aqui... perto daquela mulher? Encontrá-la todos os diaS, vê-la zombar de mim, triunfante... Não posso...

— Então quer fazer o que? - disse o abenaki. - Ceder-lhe a vitória?

Inclinou-se para ela, estendendo um dedo imperativo na direção do povoado.

-        Observar sua inimiga, não lhe deixar um instante de repouso, vigiar cada uma de suas galavras para extrair-lhes a mentira, tecer a trama que lhe.causará a perdição. Como quer fazer isso se não aceita viver no local onde ela está? Aquela mulher está cheia de demônios, eu sei? mas você ainda não está vencida.

Angélica escondeu o rosto entre e as mãos, e, contra a sua vontade, o tremor de um soluço a sacudiu. Como fazer Piksarett entenderão que mais a atingia?

— Numa ocasião dirigi-me ao vale das Cinco Nações - contou Piksarett. - Sozinho. Toda noite eu penetrava numa aldeia, depois numa das casas, compridas onde dormem mais de dez famílias, e colhia a cabeleira de um guerreiro adormecido... De dia vinham todos atrás de mim... A cada instante eu lhes superava as astúcias... Eu já não conhecia meu próprio fôlego, nem a sensação de minha própria vida, na atenção que eu dedicava a tornar-me invisível e a preparar minha façanha da noite seguinte. Eles sabiam que era eu, Piksarett, cxhefe dos narrangasetts, mas nunca me apanharam, nem sequer me viram. Quando tive vinte cabeleiras de iroqueses penduradas a minha cintura, deixei ã região. Agora, no vale das Cinco Nações, conta-se que posso me transformar em espírito à vontade. Assim, você vai ficar aqui, entre seus inimigos, mais forte e hábil do que todos eles, preparando a derrota deles e o seu triunfo.

— Estou com medo - murmurou Angélica.

— Eu a entendo. É mais fácil lutar contra os homens do que contra os demónios.

— Foi esse o perigo que você viu pairando sobre mim quando foi a Gouldsboro pedir meu resgate? - indagou ela.

— Sim! De repente a sombra estava ali, e eu ouvia os maus espíritos murmurando. A impressão emanava das pessoas reunidas naquela sala. Já a rodeava... Precisei me afastar a fim de escapar a e.ssa influência nefasta e recuperar clareza de espírito.

— Por que não me-avisou?        

— As mulheres não são fáceis de convencer, e você;-entre as mulheres, ainda menos do que as outras.

— Mas eu o teria ouvido, sagamore. Você sabe disso. Tenho fé em suas presciências...

— O que poderia eu dizer-lhe? Apontar-lhe aquela mulher que a acompanhava, sua convidada, sua amiga, e dizer-lhe: "Ela está cheia de demónios. Tome cuidado, ela deseja a sua morte. Pior ainda, ela deseja a ruína da sua alma..." Vocês, os brancos, riem de nós quando falamos assim... Tratam-nos como a crianças pequenas ou anciãos senis que estão perdendo o tino. Negam que às vezes o invisível pode ser claro aos nossos olhos...

— Você devia ter-me prevenido - repetiu Angélica. - Agora é tarde demais. Está tudo perdido.

— Eu a avisei. Disse: "Um perigo paira sobre você. Reze!" Você rezou?

— Sim... acho que sim.

— Então por que se desespera? Deus ouve a voz do justo quando ele chama nas trevas de sua angústia. Onde você está vendo que é tarde demais e que está tudo perdido?

Angélica não ousava explicar àquele nobre índio, tão senhor de seus sentidos, a exemplo dos seus semelhantes, por tradição e temperamento, a dúvida que a torturava acerca daquele a quem amava.

— Escute! Ela conta que meu marido se afeiçoou a ela e em seu coração me renegou!

— Ela mente! - afirmou Piksarett com veemência. - Como seria possível? Ele é o Homem do Trovão. Seus poderes são incontáveis. E você é Kawa, a Estrela Fixa. O que teria ele a fazer com uma mulher como aquela?

Piksarett falava de acordo com sua lógica, irrefutável para ele. A concupiscência depravada dos brancos ultrapassava-lhe o entendimento de selvagem.

— É verdade - admitiu ele - que os brancos são bem desconcertantes. O hábito de apertarem o gatilho para se defender desabituou-os de preservar a prçiprk vida por meio da resistência da alma e do corpo. Um nada os esgota, o.menor jejum os deprime e não podem passar sem mulher^mesmo na véspera de um combate, sem pensarem que correm o risco de se. apresentar perante o inimigo enfraquecidos e distraídos... Mas o Homem do Trovão não pertence a esía espécie. .

— Você fala dele como se o tivesse conhecido - comentou Angélica.   

Ouvia-o, alçando para ele olhos que brilhavam de esperança. Aquele rosto de argila-gretada, pontilhado de tatuagens, entre as duas tranças seguras por patas de raposa vermelha, sob o coque eriçado de plumas e entrelaçado com rosários e medalhas, parecia-lhe o mais adorável do mundo naquele momento.

— Eu o prêssinto'ãífayés de você - replicou Piksarett. - O homem a quem voeêfaraa não pode ser vil, baixo ou velhaco, ou você não poderia amá-lo e servido. Ora, você o ama. Portanto, ele não é baixo, víía, fiem velhaco... Não duvide de um homem que está no caminho da guerra, mulher!... É enfraquecê-lo a distância e como que abandoná-lo no perigo.

— Tem razão.

Ela queria acreditar nele, embora continuasse dolorida naquele lugar terrível em que Ambrosina a atingira. Aquela evocação do nome de Colin fora ao mesmo tempo como um pesadelo esquecido e como uma arma que conservava sobre ambos um poder temível. Joffrey poderia magoar-se de novo, enquanto para ela aquilo já não significava nada. Angélica perguntava a si mesma, atónita, como pudera ter um momento de tentação carnal por outro homem que não Joffrey. Que mulher era ela, afinal, ainda há poucas semanas?... Parecia-lhe que já fazia-anos, e ela não se reconhecia. Em que momento deixara de ser aquela criança incerta, dependente de seu passado e de suas insuficiências, para tornar-se aquela que hoje existia nela, depois de encontrar seu pólo, sua certeza? Talvez, porém, isso tivesse acontecido tarde demais...

Foi quando pulara a fogueira dos bascos, em Monégan?

Hernâni d'Astiguerra lhe gritara: "Quem atravessa a fogueira de São João fica imune ao Diabo pelo ano inteiro!"

A lembrança desse aviso a reconfortou. Piksarett tinha razão. O destino oferecia-lhe uma trégua. Aqueles poucos dias antes do retorno de Joffrey, ela devia aproveitá-los para desmascarar Ambrosina.

Outrora bem que soubera combater em pé de igualdade com a Sra. de Montespan. Claro que hoje não era o rei que estava em jogo, e a adversária era muito mais temível. Mas ela também adquirira outras armas. O êxito de sua vida e- a benevolência do destino para com ela haviam-lhe fortificado a alma. A quem nunca venceu, a-derrota é amarga. Mas ela, a quem foram possibilitados aqueles achados maravilhosos, relutaria em pagar-lhes o preço agora, talvez porque não tivesse sabido apreciar-lhes em tempo todo o valor miraculoso?

Anunciava-se o último ato, que selaria a predestinação de seu amor. Ela ia recuar? Piksarett viu-lhe os olhos, que cintilavam, e as narinas, que fremiam.

- Bom! -- disse ele. - O que faria eu de uma cativa sem coragem? Teria escrúpulo de pedir um resgate por ela, tão pequeno seria o seu mérito... Naturalmente que eu também não sinto prazer algum em estar aqui. Estou sozinho como quando rondava pelo vale sagrado dos iroqueses. Uniakê está escondido na floresta com o parente dele. Prometi-lhes entregar-lhes os assassinos do irmão de raça e de sangue deles, mas eles não podem auxiliar-me, pois são estranhos no lugar e temem os maus espíritos. Estou sozinho è meu mal-estar é maior do que quando eu andava sozinho pelo vale sagrado dos iroqueses, meus inimigos. Mas não tem importância! A astúcia é nossa aliada. Não se esqueça disso, e, aconteça o que acontecer, conserve suas forças.

Regressaram lentamente. De longe, o povoado se anunciava pelos gritos das gaivotas, pelos odores nauseabundos, e avistava-se a praia perdida, as casas dispersas. Os marujos labutavam em toda a extensão da praia, em torno dos tablados que avançavam até a beira da água para receber a pesca da tarde e sobre os quais trabalhavam homens incumbidos de cortar, salgar, extrair o óleo. Ao longe, na enseada, via-se oscilar o navio bretão ancorado, desaparelhado.

Ali, conforme dissera Piksarett, ela deveria manter-se atenta e sem fraqueza, bem no seio de seus inimigos.

E, para começar, iria tomar de volta a Ambrosina o gibão de Joffrey.

CAPITULO XVII

No antro de Messalina-e do rei Plutão

O gibão era o unico vestígio da suposta passagem de Joffrey de Peyrac por Tidmagouche.

Se fosse verdade, conforme afirmava Ambrósina, que ele zarpara na antevésperardepois de passar niais de uma semana naquele porto,- sua estada-, Vom: toda a desordem acarretada pelo descanso em te"rra de uma'tripulação, deixara pouquíssimos vestígios. Era de .crer que; efe nunca estivera ali.' Angélica teria de fazer algumas perguntas, conversar com os pescadores, com os poucos agricultores que vislumbrara por ali, e também com Nicolau Parys, o proprietário da praia, que os convidara a jantar naquela noite em sua mansão„fortificada sobre a falésia.

O resto da caravana chegara pelo final da tarde. As pessoas vinham esgotadas, devoradas por mosquitos e sanguessugas dos charcos.

O Marquês de Ville-d'Avray, na hora do jantar, foi bater à porta da cabana onde Angélica se instalara com o filho e a bagagem.

-        Você está pronta, cara amiga?

Angélica admirou-se de vê-lo muito elegante, numa casaca de seda cor de ameixa, aberta sobre um colete bordado com rosi-nhas e calçando sapatos de fivela.

-        Sempre trago uma muda-de roupa comigo - explicou ele.

Não sem razão, ele emoldurara o rosto coberto de picadas de mosquito com uma peruca empoada.

-        Conheço os hábitos do velho. Ele reclama um pouco de protocolo. Exceto por isso, e já a previno desde agora, estaremos em meio ao mais belo grupo de bandidos que se pode encontrar em cem léguas ao redor. Nicolau Parys tem o dom de cercar-se de crápulas sem glória. Parece que os atrai, a menos, é claro, que as pessoas se corrompam em contato com ele. Correu os olhos à volta, apreensivo.

— A ausência do conde torna nossa situação ainda mais difícil. Um verdadeiro azar! Que necessidade tinha ele de ir passear em Plaisance? Mas dizem que ele estari de volta em menos de duas semanas... Em todo caso, não nos separemos -'.sussurrou ele. - Pedi que me sentassem perto de você. Tenha cuidado com a comida. Sirva-se apenas do mesmo prato que os demais convidados e, antes de levar a comida à boca, espere que eles comecem a comer. Farei o mesmo, e a recomendação vale igualmente para seu filho Cantor.

— Se os outros convivas estiverem no mesmo estado de espírito e se todos nós esperarmos - disse Angélica, com um riso nervoso -, vai ser engraçado!

-        Não troce!

Ville-d'Avray estava sombrio.

— Estou muito preocupado. Aqui estamos no antro de Messalina e do rei Plutão.

— O senhor a viu? - indagou Angélica.

— A quem?

— A duquesa!

— Não, ainda não - respondeu o marquês, com um ar que provava que ele não tinha pressa alguma de encontrá-la. - E você?

— Sim, vi.

Os olhos do marquês iluminaram-se.

— E então?

— Trocamos algumas palavras, bastante acaloradas, admito, mas conforme pode ver estamos ambas ainda vivas.

O Marquês de Ville-d'Avray examinava-a.

-        Você está com os olhos vermelhos - disse -, mas não parece abatida. Bom! Prepare-se. Tenho um pressentimento de que a partida será dura.

Por uma vez, a língua ferina do Marquês de Ville-d'Avray pareceu a Angélica muito aquém da verdade: fizera de Nicolau Parys e convidados uma descrição indulgente.

Ao qualificá-los de um grupo de bandidos, o marquês não traduzira a impressão inquietante que se tinha na presença de Nicolau Parys, convidados e vizinhos. Pareciam todos ser, ao mesmo tempo, o resultado de uma vida rude, da devassidão sem freios, de uma avidez pela pilhagem de tudo o que lhes caísse nas mãos ou que pudesse ser transformado em dinheiro nos arredores daquele ninho de águias. Unia espécie de riobreza hereditária conferia àqueles homens exilados-nâs terras da América um gosto pelo fausto, grosseiro e corno.que degenerado, mas bem impressionante.

Não havia mulheres ali, naquela noite, exceto Angélica e Ambrosina, ou algumas índias concubinas, que vagavam pelos arredores da habitação, insolentes ou embrutecidas pelo álcool.

Nicolau Parys tivera uma filha de-uma índia com quem se casara. Mandara educa-la com as ursulinas de Québec e casara-a com o filho de um fidalgo da vizinhança, dando-lhè como feudo a península de Canso e a ilha Royale.

A luz fumacenta das grossas tochas de resina fincadas em argolas de ferro na parede e nos candelabros, a mesa parecia encher o aposento como paia um banquete, coberta de vitualhas de todo tipo, entre as quais se alinhavam, desordenadas, as escudelas de madeira destinadas aos convidados, bem como algumas colheres e facas díspares.

Percebia-se que ern muitos-casos os dedos deveriam servir de garfo.

Em compensação, para o vinho havia verdadeiras copas de ouro ou prata dourada que Ville-d'Avray na hora se pôs a cobiçar. Bem como aos copinhos de cristal lavrado, destinados à aguardente.

A bebida, ali, imperava. Enténdia-se isso por todo o aparato com que erarodeada e pelo nariz generosamente vermelho dos convivas. Havia barris pelos cantos, barriletes apoiados em suportes, púcaros cheios, e frascos de rum, de vidro preto e gargalo comprido.

O conjunto, naquele claro-escuro enfumaçado, lembrou a Angélica o ambiente que ela encontrara um dia, durante sua viagem pelo Mediterrâneo, num pequeno castelo sardo onde reinava, meio pirata, meio provocador de naufrágios, um senhor que tinha o mesmo olhar de lobo e a mesma soberba perigosa que seus convidados do momento.

Havia cinco ou seis, talvez mais - enxergava-se mal -, em torno da mesa; quando as senhoras entraram, todas aquelas carantonhas rubicundas seiluminaram com sorrisos joviais, e, a um sinal do Senhor Nicolau Parys, todos se inclinaram, numa reverência à francesa. Mas o movimento galante foi inttrrompido, mal fora esboçado, pela irrupção de dois monstros que, deitados, diante da lareira, deram um pulo com grunhidos medonhos .e arremeteram sobre o grupo que entrava.

O velho Parys pegou um chicote preso à parede e deu umas estaladas meio às cegas.

Conseguiu acalmar os dois monstros, que se revelaram cães enormes de uma raça desconhecida. Parece que eram encontrados na ilha da Terra, Nova, onde se contava que resultavam de um cruzamento de ursos com dogues abandonados na ilha por uma expedição colonial. E de fato os bichos se assemelhavam tanto a um quanto ao outro, com o porte gigantesco e maciço e os pêlos espessos como uma pele. O dono deles garantiu que os cães nadavam como marsuínos e que eram capazes de apanhar peixes.

A razão de sua súbita cólera fora o aparecimento de Wolverines, o glutão, que entrara sem muita timidez logo atrás de Cantor e dos convidados.

O glutão estacara sobre a soleira, com a ampla cauda levantada e a mandíbula malvada, de dentes pontudos, à mostra, pronto para enfrentar os colossos em combate individual.

— Ora, ora, ora! O que é isso? - exclamou um dos homens.

— Um glutão - constatou Nicolau Parys -, o animal mais feroz da floresta. Esse deve ter saído da mata por engano. Mas é curioso, ele não parece assustado.

Cantor interveio.

-        É domesticado. Fui eu que o criei.

Angélica percebeu que Ambrosina tremia inteira.

-        Seu filho trouxe novamente esse animal horrível consigo! É intolerável - disse, numa voz cuja tonalidade ela controlava com dificuldade para não esganiçar. - Olhe-o. Ele é perigoso, é preciso abatê-lo.

Havia tamanho ódio no olhar que ela cravou em Cantor, que foi quase como se falasse do rapaz, e Angélica tremeu de medo pelo filho.

-        Por que abatê-lo? Deixe esse animal tranquilo, gosto dele - disse o velho Parys.

E, voltando-se para Cantor.

-        Bravo, meu rapaz! Domesticar um 'glutão é coisa rara. Você é um autêntico explorador dâsinatas e belo como um deus, ainda por cima. Eh, eh, eh! G-Overríador,/ò senhor deve gostar desse garoto, hein? Coma, beba, meu filho! Senhoras, acomodem-se!

O proprietário das praias do golfo Saint-Laurent era um pouco corcunda, um pouco zarolho, mas sua personalidade enérgica, que fizera dele,-'àAcusta de! rapinas, audácia e tramas hábeis, o rei da costa, leste,- saía-lhe por todos os poros. Na presença dele, todos instintivamente" se colocavam sob sua dependência.

Um dos filhos dcMarcelinà ou um dos irmãos Défour não lhe pareceu ter caprichado muito nó traje, e-ele não hesitou em pedir-lhe que fosse "vestir "umtrajeidef corte", conforme disse. O outro protestou~~que estava saindo dos pântanos...

-        Está bem, que seja! - concedeu o anfitrião. - Vá então até meu quarto, pegue uma peruca e cole-a nesse seu crânio de brutamontes. Contento-me com isso por esta noite.

Ele mandara instalar as duas mulheres presentes em cada extremidade da longa mesa, enquanto ele se sentava ao centro, seus olhos remelentos indo de uma a outra com evidente satisfação e um sorriso repuxando-lhe a boca desdentada. Mas o que lhe restava de dentes não o impedia de fazer jus ao festim, que se compunha sobretudo de aves, acompanhadas de molhos fortemente temperados, e de três ou quatro leitões assados na brasa e com a pele bem torradinha." Durante alguns instantes só se ouviu o quebrar de Ossos, o ruído dos maxilares e o estalar de línguas. Dois pães grandes, de casca quase preta, permitiam aos apreciadores dos molhos raspar generosamente as escudelas de madeira, e ninguém sé privou disso. '

Através da penumbra enfumaçada^ Angélica distinguia a sua frente o rosto pálido e encantador de Ambrosina. O vapor exalado dos pratos e a fumaça dos cachimbos que alguns índios fumavam embaçavam as feições da jovem. Ela estava ali como uma aparição surgida do incenso de algumas oferendas maléficas, e no nácar de seu rosto suas pupilas escuras pareciam imensas. Angélica sentia aqueles olhos cravados nela, enquanto os lábios entreabertos sorriam, revelando o cintilar de seus dentes infantis. Reinava um mal-estar.

— Não se enxerga nada - cochichou Barsempuy, inclinado para o marquês, seu vizinho.     

— É sempre assim na casa dele - respondeu Ville-d'Avray no mesmo tom. - Não sei se ele acha que suas luminárias são excelentes ou se e!e o faz de propósito, mas isso não o incomoda. Ele enxerga no escuro como os gatos, espreita como os gatos.

E de fato os olhos do velho Parys, por cima das carcaças que se amontoavam a sua frente, não cessavam de examinar tudo a sua volta, enquanto os demais se debatiam com o que tinham nos pratos.

Os olhares de Nicolau Parys se demoravam em Angélica, em Piksarett, que se acomodara automaticamente à direita de sua "cativa", em Cantor, a sua esquerda. Depois, com o vinho servido nas taças de ouro, as línguas se soltaram e os convivas se puseram a contar histórias.

De início, enganada pela escuridão parcial, Angélica imaginara que todos os homens presentes lhe fossem desconhecidos, mas num deles reconheceu o capitão do La Licorne, Job Simon, o homem da mancha roxa. Sua barba espessa e a cabeleira hirusta tinham grisalhado ainda mais. Ele estava mais arqueado, e seus olhos globulosos sob as sobrancelhas eriçadas dirigiam-se fixamente para a frente.

Estava ali também o secretário Armand Dacaux, e Angélica se perguntou como pudera não reconhecê-lo de imediato, confundi-lo naquele "grupo de bandidos", pois ele sempre lhe parecera um homem de maneiras distintas, embora um tanto obsequiosas. Mas - efeito da penumbra ou de sua imaginação inquieta - o discreto volume abdominal do Sr. Armand lhe parecia uma obesidade malsâ, o queixo cheio e os lábios grossos abertos num sorriso que se pretendia sempre amável traindo uma repugnante sensualidade. Por trás das lentes de seus óculos brilhava o clarão de um olhar fixo, o aro dos óculos de repente parecia enorme, dava-lhe um ar de mocho cruel, um pouco louco.

Havia também o capelão de Nicolau Parys, um recoleto congestionado e transpirando, com a cara iluminada pelo álcool.

Não longe de Angélica estava o capitão do barco pesqueiro ancorado na baía, o homem de Faouet. Era um tipo diferente, mais para o esbelto, talhado em-granito.. Elstnotòu que ele bebia como uma esponja, mas permanecia lúcido: Suas libações se traíam pelos lados do nariz-magro, que ficavam cada vez mais vermelhos. A parte isso, ele continuava muito ereto sobre o banco, mal ria, e comia fartamente.

Ville-d'Avray salvava a atmosfera, contando, com espírito, histórias divertidas e acessíveis a-todos, quê deixavam os ouvintes bem-humorados.

-        Vou cantar o que me.aconteceu um dia - começava ele,

com sua yoz suave.

O marquês tinha o"dom de manter o auditório em suspenso até o momento énj que um dos que o ouviam boquiabertos resmungava:

— Governador, o senhor está zombando de nós!

— Pois bem, é verdade. - reconhecia :ele -, era tudo brincadeira. .

— Com ele nunca se sabe se está mentindo ou falando a verdade - dizia alguém.

— Sabe o que me-aconteceu-no meu último aniversário?

— Não.

— Pois, como todo ano, reuni todos os meus amigos a bordo do Asmodée, aquele navio maravilhoso, uma pequena Versalhes flutuante... Vocês todos o conhecem... A festa estava no auge quando, de repente...

— O quê?

— O navio explodiu.

— Ah, ah, ah! - gargalharam ruidosamente os convivas.

— Estão rindo - disse Ville-d'Avray, pesaroso -, mas é a pura verdade. Não é verdade, cara Angélica? E você, Défour, não é verdade? O navio explodiu, ardeu, foi ao fundo...

— Caramba! - disse Nicolau Parys, impressionado apesar de tudo. - Como foi que você se safou?

— Por intervenção celeste - disse Ville-d'Avray devotamente, alçando os olhos para o céu.

Angélica admirava Ville-d'Avray por se mostrar tão à vontade. Comia com apetite e já não parecia pensar nas recomendações que fizera a Angélica acerca de veneno. E verdade que naquela penumbra não havia outra coisa a fazer senão endereçar uma prece ao céu a cada bocado e pensar em outra coisa. Malgrado seu, Angélica hesitou quando o capitão bretão lhe estendeu uma tigela cheia de um líquido indistinto.

-       Prove este molho, senhora. Tudo do bacalhau é bom quando o peixe está fresco. A cabeça, a língua, o fígado. Sãó desmanchados em óleo e vinagre com pimentão... Prove.

Ela agradeceu e distraiu-o um pouco, a fim de que ele não notasse que ela não se servia do prato em questão. Perguntou-lhe se estava satisfeito com a temporada de pesca e há quantos anos visitava a região.

-        Eu quase nasci aqui. Já vinha com meu pai, quando não passava de um grumete. Mas não se pode deixar vencer pela América. Se eu tivesse dado ouvidos ao velho Parys, hoje não seria mais do que um farrapo. Quatro meses por ano é o que basta! Nas últimas semanas estamos todos meio malucos... E a seca, o trabalho de forçado... Ainda tenho bacalhau que não acaba para salgar, e porões a encher... Meu filho está doente, isso acontece todo ano, no fim da temporada, quando o pólen cai das árvores... Ele não consegue respirar. Tenho que deixá-lo no navio ancorado na enseada, ele tem mais ar lá...

Apesar da loquacidade do marquês, quando os olhos de Angélica encontravam os de Ambrosina, ela não conseguia superar a tensão que sentia. Às vezes, sem sequer ter consciência disso, voltava-se para a porta. Joffrey iria aparecer de repente? Se ele pudesse surgir na soleira da porta, sua alta silhueta de condottié-re dominando o grupo, seu olhar de águia pousando sobre aqueles rostos na penumbra, ah, que alívio! Talvez um sorriso cáustico lhe brotasse nos lábios ao vê-los, e a ela entre eles. Ele conhecia o seu mundo. Mas não temia a ninguém. Até aqueles homens ali, Angélica tinha certeza, deviam mudar a expressão e o tom da voz ao se dirigirem a ele. Ah, por que ele não estava ali?... Onde andaria ele?

Um medo horrível a invadia. E se o tivessem matado? Lá naquela praia perdida, no fim do mundo, impelidos pela Diaba, eles o haviam matado!

Sob o olhar de Nicolau Parys,-que Angélica sentia pousar sobre ela continuamente, ela.se forçava a engolir, receando que ele a considerasse pretensiosa. Felizmerite^Fiksarett estava ali a seu lado, retalhando alegremente a carne com seus dentes de doninha, e Cantor também, absorto em restaurar energias, com a consciência limpa de um jove'çn'que fez uma longa jornada durante o dia.

O velho limpou os lábios engordurados com uma ponta da peruca.

— Então, aquLestá, Sra. de Peyrac! - disse de súbito, como se respondesse a uma reflexão interior. - Foi uma boa ideia vir visitar-me. Isso me reforça o desejo de vê-la como a rainha desta região.

— O que quer dizer, cavalheiro?

— Estou farta deste lugar infame. Quero voltar ao reino de França para me distrair um pouco. Gostari-a de vender meus domínios a seu marido. Mas vendê-los contra o quê, eis a questão... Pedi-lhe que me desse em troca o segredo da fabricação do ouro. Ele está disposto a isso, mas a coisa me parece complicada...

— Qual nada, é rhuko simples! - interrompeu a voz enfeitiçante de Ambrosina. - Você, que tem o espírito tão agudo, caro Nicolau, surpreende-me que se assuste com tão pouco! O Sr. de Peyrac explicou-me tudo, não tem nada de mágico, trata-se apenas da ciência de química e não de alquimia...

Pôs-se a descrever um dos processos da fabricação do ouro que Joffrey de Peyrac elaborara particularmente para as minas da região. Angélica reconheceu" de passagem os termos familiares de que Joffrey se valia para explicar-lhe seus trabalhos.

-        Como você é instru!da,-minha cara senhora! - exclamou Ville-d'Avray, olhando Ambrosina, encantado. - Ouvi-la é um prazer, e como, de fato, tudo parece .simples! Agora me parece preferível juntar ouro do modo como descreveu, a utilizar métodos ultrapassados, como fazer forçados vomitar ou colecionar os botões da roupa ou do uniforme dos naufragados em nossas costas.

Nicolau Parys fungou e franziu o nariz várias vezes, olhando-o fixamente. O marquês sorria com ar inocente.

Angélica aproveitou o silêncio pesado que reinou por um instante para fazer uma pergunta.

-        Então viu meu marido recentemente - indagou, tentando dar à voz um tom firme e natural. - Ele veio? Aqui?

O outro voltou-se para ela, com uma expressão rude e desconcertada, e observou-a em silêncio.

-        Sim - "respondeu afinal. - Eu o vi... -- E acrescentou num tom um tanto esquisito: - Aqui...

CAPÍTULO XVIII

Reflexos da careta de Satã

— Então você não notou òs botões da roupa dele? - dizia Ville-d'Avray, acompanhando-a a casa. - De ouro puro, com armas gravadas. O nobre rjfiçial que adornava seu uniforme com eles foi digerido pelos caranguêjcJs na milito tempo. Eu já tinha ouvido dizer que Parys começou assim. Talvez não tenha sido aqui, mas este litoral não carece efe lugar onde pilhar náufragos. Desde que se tenha alguma organização, essa inaústria rende. Dizem que ele tem um cofre com mais de mil-botões de ouro, com as armas de toda a nobreza do mundo. Antes era só um boato, mas agora tenho certeza. Viu como ele reagiu quando fiz" alusão a certas maneiras de acumular ouro?

— O senhor está .selido prudente ò suficiente? Não deveria provocá-lo assim. Ele podeser perigoso.

— Qual nada! Ele e eu temos o hábito de trocar umas alfinetadas assim. No final das contas, somos bons amigos...

O marquês parecia satisfeito e descontraído.

-        Em suma, tudo transcorreu bem! Saímos ilesos desse ágape às escuras!... Estou contente com o meu sarau... Durma bem, cara Angélica. Tudo há de arranjar-se... Confiança...

Mas não acrescentou o seu habitual "A vida é bela, sorria!"

-        Estou instalado logo ao lado - cochichou ele. - Se precisar da menor coisa que seja, chame-me...

Quando ele lhe pegou a mão para heijar-lhe as pontas dos dedos, ela o reteve convulsivamente. Não conseguia controlar-se. Tinha que confiar-se a alguém.

-        O senhor acredita que ele tenha estado aqui? - disse numa voz entrecortada e trémula. - Tenho a impressão de estar num pesadelo... Onde está ele? É terrível persegui-lo assim. Parece que ele se esquiva, que foge de mim... Onde está? Será que o mataram?... Será que não vai voltar? O senhor, que sabe tudo, tenho certeza de que já se informou. Diga-me toda a verdade. Prefiro isso à incerteza.

— Ele esteve-aqui, é verdade - disse o marquês, comedidamente -, estava aqui ainda há dois dias.

— Com ela?      

— O que está querendo dizer, minha criança? - perguntou suavemente Ville-d'Avray.

E segurou-lhe as mãos, como que para ampará-la.

— O que é que falam dele... e da Duquesa de Maudribourg?

— Dele?... Bem, as pessoas o conhecem, têm medo dele ou o estimam. Ele é o Sr. de Peyrac, senhor de Gouldsboro, e corre o boato de que Nicolau Parys quer vender-lhe seus territórios no golfo Saint-Laurent, razão pela qual os dois se encontraram aqui na semana passada.

— E ela?

— O que você está sabendo? - indagou por sua vez o pequeno marquês.

Angélica entregou as armas.

-        Ela me disse que é amante dele - confessou, numa voz abafada.

Atabalhoadamente, relatou a entrevista que tivera com Ambrosina.

Ville-d'Avray manteve-se em silêncio. Ouvia Angélica, circunspecto, e ela sentiu que nele possuía um amigo sincero, e de mais valor do que parecia.

Quando ela se calou, ele meneou a cabeça com uma expressão dubitativa. Não parecia perturbado nem agitado.

— As opiniões sobre a nossa cara duquesa por aqui se dividem - disse. - Uns a têm nas nuvens, como uma santa de virtude irre-prochável, como é o caso do capitão bretão, que pretende converter-se para agradar a ela. Outros, menos tolos, não deixam de adivinhar-lhe a verdadeira natureza, mas parece que ela soube preservar sua reputação. Se ela não se priva de receber em seu leito alguns desses machos ávidos que a rodeiam, o segredo é bem guardado.

— Assim como em Gouldsboro, assim como em Port-Royal - observou Angélica com lassidão. - Uns mentem, os outros se calam por vergonha ou medo, outros ainda se iludem e a veneram.

Hesitou um pouco, depois resolveu não esconder nada de sua humilhação.

— Na casa dela, pendurada à parede, havia uma roupa de Joffrey.

— Comédia! - reagiu vivamente Ville-d'Avray. - Astúcia para desesperá-la. Ela sabia que você- viria. E é a você que quer atingir... Ela roubou essa roupa...

— Tem certeza? - .suplicou Angélica.

— Quase! É bem coisa dela..-E de uma astúcia! Não se deixe engodar. Por outro lado, mais inquietante éque ela também preparou para sua vinda os espíritos que poderiam, ao vê-la, sucumbir ao seu encanto. Alguns a tomam por uma perigosa intrigante, outros por uma criatura depravada que dorme com os índios, ou então por uma e"hcarnação; do Diabo a serviço dos hereges e decidida a expulsar os bons franceses católicos das possessões que Deus lhes deu. Na meHida em que o Sr. de Peyrac atrai simpatias, você é -a Messalina que lhe põe cornos, e, na medida em que ele é temido, você é sua alma danada.

— Mas a mim me pareceu que Nicolau Parys me dirigia a palavra se não com afabilidade^'pelo menos sem hostilidade declarada.

— O velho é outra coisa. Ele só acredita em si mesmo, e nem mesmo uma Ambrosina o impedirá de pensar o que quiser. Mas enfiou na cabeça que vai casar com ela, insiste na corte e não se sabe até onde pode deixar-se atordoar.por essa sereia de língua bifurcada.

Angélica não prestava muita atenção às calúnias que Ambrosina espalhara a seu respeito. Estava mais interessada em recuperar as esperanças no que se referia ao marido.

— Então, também acerca dê Joffrey ela estaria mentindo?

— Parece-me que sim... Você está me dizendo que ela grita de raiva contra os homens, que deseja exterminar Abigail, que rilha os dentes ao pensar que você - e não ela, subentende-se - atrai o amor e as homenagens... Não vejo nessas explosões o sinal de uma amante triunfante, segura de ser amada pelo homem que ela arrancou à rival... Eu-até apostaria que, se tentou apanhar nosso intratável conde e senhor de Peyrac na sua rede, ela não fracassou sem alguma humilhação picante. Seus protestos amargos pareceriam provar isso...

— Então não acredita que ele seja amante dela?

— Até segunda ordem, não - afirmou o marquês com veemência.

- Meu Deus, como gosto do senhor! - exclamou ela, abra-çando-o.

Munida de esperança, ela bem ou mal dormiria.

Cantor estava alojado num telheiro próximo. Ela o ouvia virar-se no leito "e às vezes roncar levemente do outro lado da divisória. Q que era um sinal de segurança, bem como a presença do sagamore Piksarett diante da casa, sentado, envolto numa manta, perto de uma fogueirinha que ele alimentava com-gravetos.

A noite estava úmida e fria. Parecia que o»sal e o cheiro de bacalhau penetrava em toda parte e se colavam à pele. Um nevoeiro denso pairava acima do povoado. Angélica desistira de acender a lareira e se enfiara imediatamente entre as cobertas colocadas sobre o estrado que servia de cama. As casas, fechadas uma boa parte do ano, dependendo das peregrinações dos pescadores, eram todas parecidas. Todas apresentavam a mesma mobília grosseira: camas, mesas, escabelos, um reservatório de lenha abastecido, algumas panelas, jarros e cabaças.

Esta, bem ampla, também exibia duas cadeiras de tora descascada, com braços, postas dos dois lados da lareira, e uma arca carunchada a um canto. Espigas de milho e peles pendiam das vigas.

Angélica tiritava. Seu espírito permanecia desperto, e às vezes ela recobrava a consciência bruscamente, com a sensação de ter tido um pesadelo horrível. Os enormes cães terra-nova de Nicolau Parys perambulavam em liberdade pelo vilarejo. Soltavam-nos à noite, e em várias ocasiões eles rosnaram ao se aproximarem de Piksarett, fungaram e sopraram contra os interstícios da cabana. A Angélica, isso lembrava o medo ao lobo, outrora, nos campos.

Em suma, a duquesa não negara quando ela a acusara de haver tentado envenenar Abigail e matar o gatinho. Quando Angélica pensava no animalzinho inocente entre as mãos daquela mulher cruel, o horror que Ambrosina lhe inspirava deixava-a doente. O mal que se faz contra os bichos ou contra as crianças pequenas sempre apresenta uma imagem particularmente horrorosa. Atacando criaturas que não- podem defender-se, privadas que são não somente da força física, mas dos meios de comunicação conferidos pela fala, essa covardia suprema permanece entre os homens como o próprio sinal de Satã. O homem atemorizado reconhece nisso o pior de si mesmo, o abismo insondável e vertiginoso de sua depravação, de sua ruína, de sua possível loucura, de sua possível danação eterna...

Satã vinha contemplar nesse espelho à imagem de Deus seu rosto careteiro, o reflexo de Satã. no coração dos homens...

"Quando eu era pequena", pensava Angélica, "tinha pena do Diabo, que era representado tão feio'nós portais de nossas igrejas..."

Sonhou um instante. As igrefas do, Poitou, de fachadas carregadas com personagens de'pe:dra, ct>m entrelaçamentos, cachos de uvas e maçãs, escuras como o interior das cavernas... o pão bento do domingo, o incenso... o perfume de gerações exorcizadas... Lá no Velho Mundo, entra ano, sai ano, século após século, Satã se aliáramos homens, se insinuara na vestimenta que lhe fora imposta, de feiúra bestial.

Mas aqui, ira virgíndadejia região, ele se impunha, temível, recuperava seu rosto-verdadeiro, o de um anjo...

"Estou delirando;'Ambrò"sina!...", pensou Angélica, firmando o pé na reaÇdade, éomo se:-tivesse saltado um' degrau de escada. O coração batia-lhe em disparada. Fechou os olhos, obstinada, tentando adormecer, .mãs o espírito não conseguia parar de virar e revirar pensamentos confusos.

"Por que ela me disse que era do Poitou se isso não era verdade?... Para me seduzir melhor, me enganar... Não disse uma palavra que não atingisse o objetivo, que hão tecesse a trama que devia cegar-me e despistar de mim o que ela queria que eu ignorasse."

Evitava pensar em Joffrey... Esperá-lo, mais nada. Ville-d'Avray confirmava que ele zarpara para a Terra Nova. Terra Nova? A grande ilha a leste era o fim do mundo... Ele voltaria? Voltaria em tempo?

Parecia a Angélica que estava revivendo, fora do tempo, a espera que conhecera no decorrer de-sua vida, e que o que ia passar-se era como que o símbolo do combate que ela precisava travar contra as forças do desespero para. merecer, sim, merecer o milagre de havê-lo reencontrado na Terra.

Eles tinham sabido apreciar; no devido tempo, a perturbadora felicidade?     

Quando, no Gouldsboro, o Rescator tirara a máscara, revelando as feições do Conde de Peyrac àquela que outrora fora sua esposa, eles se haviam hostilizado, ferindo-se demais para se reconhecerem na perenidade de seu primeiro amor.

Agora parecia que tudo acontecia de novo, mas em estado puro, com uma violência inaudita. Naqueles poucos dias ela deveria perdê-lo e reencontrá-lo ao mesmo tempo. E todas as dores seriam reavivadas, resumidas. E todas as alegrias também, talvez mais tarde.

Angélica despertou mais calma, mais segura de si. Era o primeiro dia.  

Antes de se levantar, continuou a pensar em cada fato, ainda sonolenta, do mesmo modo como se prepara, antecipadamente, cada ponto de uma batalha. De início havia aquela intuição, que não parava de atormentá-la, de que existia uma ligação entre Am-brosina de Maudribourg e os provocadores de naufrágios que os tinham seguido para causar-lhes mal.

"Eles têm um chefe", dissera Clóvis, "de quem recebem as ordens e que está em terra. Chamam-no de Belialith."

Belialith! Cheirava a nome satânico e desprendia uma espécie de feminilidade ambígua.

Angélica acendeu a mecha da lamparina de óleo de foca que pousara sobre um escabelo, procurou o envelope que enfiara sob o travesseiro e retirou o papel encontrado no bolso do homem do bastão.

Mais uma vez releu as palavras, aproximou o papel das narinas, fechou os olhos, procurando captar o perfume que dali emanava.

"Virei esta noite se se comportar..."

Ambrosina!

Uma visão ganhava corpo... O causador de naufrágios, com uma cabeleira de urso, um bastão ensanguentado. Ambrosina... Ambrosina estimulando o brutamontes com suas carícias perversas... Tudo era possível. E se fosse assim, então, de repente, as palavras de Lopes, o marujo de Colin no Coeur-de-Marie, ganhavam sentido: "Quando vir o grande capitão coma mancha roxa, saberá que seus inimigos não estão longe".

Job Simon, o capitão do La Lieorne, o navio fretado pela Duquesa de Maudribourg para-levar as Moças do Rei a Quebec... Mas era um bom homem e fora o primeiro a denunciar o atentado de que fora vítima.

Onde se situava o ponto que unia essas três incógnitas? O navio com o galhardete alaranjado e sua tripulação de bandidos, o

La Licorne levando Job Simon e a duquesa, e o Coeur-de-Marie, pertencente ao corsário Barba de Ouro, hoje Colin Paturel, pois também ele, ainda que de forma indireta e não participando conscientemente, parecia ter feito parte dó complô destinado a abater Peyrac e a destruir Gouldsboro.

Angélica fremia de excitação. Pareceu-lhe que estava a ponto de alcançar uma verdade-importante.

Mas de repente se desencorajou? Nãò, aquilo não era possível! Um detalhe, e não dos menores, demoliria sempre a estrutura das suas hipóteses. Aqueles mesmos provocadores de naufrágios a quem ela acusava de cumplicidade com a Duquesa de Maudribourg é que haviam atraído o La Licorne para os recifes e dizimado a tripulação. Portanto,-não podiam ter çecebido a ordem de Ambrosina de perpetrar-um crime assim, pois era o navio dela, ela estava a bordo e só fora salva do naufrágio por milagre.

Por milagre!... A qjenos que... que tivesse chegado a hora de se realizar a visão da religiosa de Quebec.

A Diaba cavalgando um unicórnio... saindo das águas, alcançando a costa de GouUsboro...

Uma mulher com uma criança nos braços pousara o pezinho calçado de couro precioso na areia... Sua perna, numa meia de seda vermelha, arqueava-se com elegância...

Suas roupas estavam rasgadas, sujas... A.Sra. Carrére, que as levara e remendara, dissera: "Há alguma coisa que não entendo nessa roupa... uma coisa esquisita... Parece que..."

Quisera dizer que a roupa tinha sido rasgada e suja intencionalmente!

Angélica, hoje, se censurava por não haver interrogado com mais cuidado a rochelesa, de não havê-la-obrigado a exprimir todo o seu pensamento.

CAPÍTULO XIX

No antro da Diaba

Angélica resolvera retomar de Ambrosina o gibão de Joffrey. Ficou à espreita do momento em que a inimiga partisse para a missa.        

Viu toda uma companhia, com a benfeitora à frente, dirigir-se para o promontório, de onde o sino da pequena capela chamava os fiéis.

Ali em Tidmagouche, a duquesa parecia manter uma corte, como uma rainha. Chegara primeiro e se instalara solidamente. Angélica teria dificuldade em desentronizá-la. Para escoltá-la, a duquesa precisava não apenas de suas moças, seu secretário e Job Simon, mas também de seus admiradores e suspirosos. Nicolau Parys estava ali, junto com alguns de seus convidados da véspera, inclusive o capitão do navio de pesca, um bom número de pescadores bretões e, naturalmente, Ville-d'Avray, muito descontraído, fazendo reverências e seguindo pelo caminho arenoso com muita graça e elegância, como se seguisse por uma alameda de Versalhes.

Assim que o cortejo desapareceu na curva da mata, Angélica correu para a casa de Ambrosina. Agarrou o gibão de Joffrey e estreitou-o contra o coração. Depois olhou ao redor.

Ocorreu-lhe a ideia de aproveitar o momento para tentar saber mais sobre a inimiga.. Começou a abrir as arcas, as sacolas, as gavetas dos móveis.

Revirava tecidos, roupas de baixo. De tudo aquilo emanava o perfume enfeitiçante que Angélica notara logo que a duquesa pusera os pés na praia.

Instante estranho, tora do tempo, sem dimensão. Ela estremecia ao pensar nisso. Qual seria o significado invisível daquele momento?

De onde é que aquela náufraga tirara todos aqueles vestidos?

As arcas estavam cheias. Presentes de seus admiradores? De Joffrey? Uma dor súbita a torturou, mas Angélica se proibiu de pensar mais além.   

Prosseguiu com suas investigações, mas não encontrou nada que pudesse esclarecê-la. De repente, do bolso de um vestido, caiu um papel. Era uma carta com várias folhas. Pegando-as, Angélica reconheceu-as logo: era a carta do Padre de Vernon.

CAPÍTULO XX

A carta do Padre Vernon - Reação da Diaba

 

Como fora aquela carta cair nas mãos da Duquesa de Maudri-bourg? Mandara perseguir e matar o menino sueco, o portador daquela mensagem de "além-túmulo do grande jesuíta? Por que ela quisera apoderar-se do papel a qualquer custo? Por que o conservava? Que segredo de importância extrema continham aquelas linhas que Angélica não pudera ler até o final?

As primeiras palavras, atingida pela grande emoção, ela não pudera continuar a leitura, pousara a missiva sobre a mesa e, naquele momento, Ambrosina entrara no quarto e o menino-mensageiro fugira. Quantas vezes, mais tarde, ela não se censurara a sensibilidade impulsiva, que a desviara de logo conhecer na íntegra o teor daquela carta de que talvez dependesse o destino deles todos!

Uma das razões que a levaram a tentar alcançar Peyrac o mais breve possível, em vez de aguardá-lo calmamente em Gouldsbo-ro, fora o fantasma daquela carta desaparecida, que parecia acusá-la de modo perigoso e irreparável, e que podia alcançar o implacável destinatário, o Padre d'Orgeval, antes que ela e o marido conseguissem estabelecer um plano de defesa contra calúnias tão terríveis.

Mas agora que a encontrava ali, no antro da Diaba, ela percebia que um lento trabalho s,e operara em seu espírito, guiando-a insensivelmente para entender o sentido oculto daquelas palavras escritas pelo jesuíta, palavras que, à primeira vista, lhe haviam dilacerado o coração, como se lhe revelassem a traição de um amigo certo... de um amigo querido...

Apertando contra o peito o butim precioso - o gibão de veludo verde e a carta do Padre de Vernon -, Angélica retornou furtivamente ao seu alojamento. Fechou-se ali e, pondo a roupa de Joffrey em cima da mesa, perto dela, desdobrou as folhas da grossa carta, que, ressecadas, estalaram no silêncio áâ cabana. Seus olhos logo reconheceram as palavras já lidas.

"Sim, meu padre, você tinha razão... A Diaba está em Gouldsboro... fazendo reinar uma átrnosfera de desordem, luxúria e crimes...

Desta vez, porém, a letra alta e elegante do jesuíta não lhe pareceu hostil e acusadora. O amigo estava ali, à sua frente. Daquelas linhas emanava a verdade da pessoa dele, ao mesmo tempo distante, fria e calorosa..Por meio daquela carta que ela novamente detinha entre-as mãos, entendeu que ele ia falar-lhe a meia voz, comunicâr-lhe çõfífidencialmente seu segredo terrível. Como a carta quejevaya^ua última mensagem não pudera chegar àquele a quem-estava destinada, o'Padre de Vernon a entregava a ela, Angélica-, Condessa de Peyrac, conforme tentara entregar-lha no momento da morte. "A carta... para o Padre d'Orgeval... ela não deve..."

Angélica entendia agora o sentido de suas últimas palavras. Reunindo as últimas forças; ele quisera pedir: "Ela não deve pegá-la... A Diaba... Providencie, Angélica. Só eu conheço a verdade, e, se ela pegar a carta, há de ocultá-la... E o mal e a mentira continuarão a desnortear os espíritos, a mergulhar os seres na infelicidade e no pecado... Nestes poucos dias em Gouldsboro, assustado com a intuição que me atormentava, dediquei toda a minha ciência mística e meu desejo do bem a descobrir essa verdade... E depois de descobri-la, desvendá-la, denunciá-la neste escrito, morro sem ter podido expô-la ao mundo... Tentai, senhora, ultrapassar esses demónios... Esta carta... para o Padre d'Orgeval... ela não deve...

Era como se ele lhe tivesse explicadcrtúdo isso, baixinho, sentado a seu lado. Então, reunindo as próprias forças, e quase devotamente, Angélica começou a ler as linhas que não tivera tempo de decifrar antes.

"Sim, meu padre, você tinha razão... A Diaba está em Gouldsboro... Mulher assustadora, na verdade... ocultando o instinto e a ciência de todos os vícios sob uma aparência de encanto, inteligência e até de devoção, utilizada para destruir aqueles que dela se aproximam, como- a flor carnívora das florestas americanas se adorna de cores e odores suaves para melhor atrair os in-setos ou. pássaros que ela deseja devorar. Não hesita diante do sacrilégio. Aproxima-se dos sacramentos em estado de_ pecado mortal, mente na confissão, chega a ponto de induzir à tentação os ministros de Deus vestidos com a batina sacerdotal. Não pude determinar se ela é vítima do que em teologia chamam de obsessão - ou seja, artes de demónios exteriores à alma e à pessoa e que a fazem agir quase inconscientemente, um estado que se aparenta e pode confundir-se com a loucura -, ou se se trata de um caso relativamente comum de possessão, em que os demónios entram no corpo e no espírito de um ser humano e se apoderam de sua personalidade, ou ainda, caso mais raro e temível, o da encarnação de um mau espírito, de um demónio emanado da árvore sefirótica, próximo de um dos sete príncipes negros da Gquliphah, súcubo que teria recebido o poder de se encarnar a fim de habitar algum tempo entre os homens e semear entre ' eles a destruição de o pecado.

"Embora, assim como eu, você saiba que este caso é raro, não se deve excluí-lo da questão que nos ocupa, pois corrobora mais exatamente sua própria opinião, meu padre, sobre este assunto que há quase dois anos é sua principal preocupação e que também corresponderia às revelações da visionária de Quebec, que o impressionaram naquela época.

"A ameaça do aparecimento próximo de um demónio súcubo nos territórios da Acádia. Sua vigilância por esse país que lhe é caro o obrigava a não negligenciar um aviso assim, a se apegar à interpretação dessa visão, a procurar-lhe os sinais premonitórios, a não renunciar, em suma, a seguir a pista, conforme somos obrigados a fazer na floresta, pelos vestígios do fenómeno, sua chegada, seu possível deslocamento.

"Essa pista o conduziu até Gouldsboro. Povoado novo, às margens do Pentagouet, mas criado de repente e quase sem o sabermos por um gentil-homem aventureiro que não agia sob bandeira alguma e que mais ou menos era aliado dos ingleses. Depois do

inquérito realizado por seus cuidados, apurou-se que ele era de origem francesa e de alta estirpe-, mas banido do reino por antigos crimes de feitiçaria. Tudo se adequava. Depois apareceu á seu lado uma mulher bela, sedutora. Já^ião havia possibilidade de dúvida...   

"Afastado alguns meses da região pela minha missão na Nova Inglaterra, não pude acompanhará evolução deste caso, e adivinho que foi sem dúvida justamente por causa de minha ignorância, talvez até pudesse dizer de minha indiferença pelo assunto, e que me deixava mais livre em meu julgamento, sem ideias preconcebidas nem opiniões apaixonadas, que você me incumbiu imediatamente,"quant!o cheguei com meu veleiro a águas acadia-nas, de verificar as suas conclusões de visu e de apresentar-lhe um relatório completOjjxatando não somente do exato alcance político dos fatos que se desenrolavam em Gouldsboro, mas também da verdadeira* identidade mística dos antagonistas. Aconselhou-rrre que fosse a Gouldsboro, conhecesse pessoalmente essas pessoas,' as observasse e sondasse e, depois de formar uma opinião, que a transmitisse a você em detalhes e sem rodeios.

"Eis-me, então, mais uma vez esta noite em Gouldsboro, onde me encontro há vários,dias, e após algumas semanas de investigações e observação atenta, orando ao Espírito Santo para que me ilumine em toda a lucidez e justiça, redigindo-lhe meu relatório e afirmando-lhe que, infelizmente, sim, meu padre, os avisos do céu e suas próprias apreensões não o enganaram. A Diaba está em Gouldsboro. Eu a vi. Abordei-a. Estremeci ao cruzar-lhe o olhar, onde brilhavam como que luzes fugidias de ódio quando encontrava o meu. Você conhece o instinto sutil e divinatório de criaturas assim em relação a nós, soldados de Cristo, que temos a missão de desemboscá-los e possuímos as armas necessárias para isso.     

"Isto posto, devo agora, caríssimo padre,.passar a uma espécie de restabelecimento da situação para a qual não o sinto preparado, o que me faz temer que, recebendo meu testemunho na sua crueza, possa descartá-lo, considerando-o resultado de um estado de desorientação passageira..."

- Oh, esses jesuítas com seus circunlóquios! - impacientou-se Angélica.

Continha-se para não pular linhas e não virar as páginas sem havê-las percorrido inteiramente para chegar mais rápido à conclusão. O coração batia-lhe desvairadamente.

Merwin exagerava, com todas as suas precauções oratórias. Não se dava conta de que Ambrosina logo voltaria da missa, com toda a sua comitiva, perceberia que lhe haviam remexido"nas coisas e que a carta lhe fora surrupiada.

Angélica controlou-se. Devia ler tudo, sem pular uma única palavra, já que tudo tinha importância extrema, nada podia permanecer impreciso, e ela compreendia, apesar de tudo, os preâmbulos do jesuíta, pois a ele coubera decidir sobre uma mistificação diabólica, sobre a inversão de aparências inatacáveis, e até um espírito superior dificilmente se deixa convencer de que foi logrado pelas suas próprias paixões quando as acredita justificadas pela necessidade do bem. Ora, conforme Angélica sentia, era exa-tamente isso o que empreendia o Padre de Vernon em relação ao interlocutor, aquele notável e temível Padre d'Orgeval, o irredutível inimigo dele, sobretudo dela, e que - Angélica não podia' esquecer - também estava presente neste diálogo, pois era a ele que Merwin se dirigia o tempo todo, enquanto sua pluma, incorruptível e prudente ao mesmo tempo, corria sobre o papel. Ele não devia ignorar certos aspectos do caráter do superior, visto que manifestava o receio de que aquele, ao receber-lhe o testemunho na sua crueza, "o descartasse, considerando-o resultado de um estado de desorientação passageira devida à fraqueza humana, de que todos nós'estamos sujeitos a ser vítimas um dia. Assim eu lhe pediria, caríssimo padre", prosseguia ele, "que se lembrasse da equidade de que sempre tentei dar prova nas diversas missões de que me incumbiu há vários anos, tanto entre os iroqueses quanto na Nova Inglaterra, tanto junto ao governo de Quebec quanto em Versalhes ou em Londres.

"Reprovando o excesso, ó entusiasmo, as premonições, sempre tentei apresentar os fatos em seu contexto real, baseando-me apenas em minhas observações pessoais e auxiliado, repito, pelo Espírito Santo, a quem não cesso de dirigir todo dia inúmeras

orações, rogando-lhe que me torne clarividente apenas para a verdade.

"Assim, hoje lhe revelarei o nome daquele que me apareceu como o instrumento de Satã entre nós, com a nítida consciência de que não tenho outro dever'para com^ôcê que não o de lhe revelar essa verdade nua e clara^.Çõnforme me pediu que a expressasse e conforme ela me pareceu segundo a evidência, embora eu não possa dfssimular-tíâra mim mesmo o distúrbio que minhas declarações vão acarretar. E-; para começar, suas próprias dúvidas a meu respeito. Não ignoro que espera determinado nome de minha pena, mas não será esse que lhe entregarei.

"Quando me enviou suas instruções a propósito desta nova missão, pediu-me que tentasse encontrar a Sra. de Peyrac, que lhe havia escapado em Nç_wehevanick mas que imaginava andar pela região de Casco. Eu não ignorava que sua convicção estava definida acerca da esposa do homem que é agora o senhor de Gouldsboró e.de unta boa parte das terras da Acádia, desde o Alto Kennebec até para além do monte Deserto.

"Tudo em torno dá Sra. de Peyrac, a reputação de beleza, de encanto, de espírito, de sedução, concorria para designá-la como aquela cujo domínio nefasto você temia com relação a sua obra. Eu mesmo estava disposto a inclinar-me nessa direção e, não sem curiosidade, confesso,;a"ganhar-lhe a confiança a fim de poder observá-la de perto e com calma. Auxiliado pelo acaso e por algumas cumplicidades, consegui encontrá-la logo. Tomei-a a bordo de meu navio. Ao longo dos poucos dias de viagem que se

seguiram, foi simples para mim estabelecer meu julgamento. Um barco, isolado no mar, é um lugar fechado onde não é fácil, para os que nele estão, fingir e não se revelarem como são de fato. Mais cedo ou mai.s tarde surge o clarão que desvenda o âmago das almas.        

"A Sra. de Peyrac pareceu-meuma personalidade feminina fora do comum, sim, mas vivaz, saudável, corajosa, independente sem bazófia, inteligente sem ostentação; Tem gestos e atitudes de uma liberdade estranha e sedutora. No entanto, na intenção que os dita só se pode descobrir a expressão de um sentimento natural para viver segundo seus gostos e seu temperamento pessoal, que é sociável, dado à alegria e à ação.

"Compreendi melhor, então, como ela retém a dedicação dos selvagens, entre outros o iroquês Utakê, essa fera intratável, e sobretudo o narrangasett Piksarett, cujos caprichos tanto penalizaram sua campanha guerreira. Nesses apegos insólitos não vi malefícios nem intenções depravadas. A Sra. de Peyrac diverte e atrai -os índios com sua vivacidade, sua habilidade com armas, seu conhecimento de plantas, seus raciocínios especiosos, que não perdem em nada em fantasia e imaginação para os dos nossos selvagens, a quem conhecemos muitíssimo bem.

"O fato de ela já falar algumas línguas indígenas, além de um pouco de inglês e de árabe, não me pareceu sinal de diabolismo^ conforme se poderia notar, mas o resultado de um espírito dotado para isso, curioso por comunicar-se com os semelhantes, preocupado em instruir-se e^ em despender nisso o esforço necessário. Coisa para a qual, há que se reconhecer, muito poucas mulheres têm inclinação, dados os efeitos de uma preguiça espiritual inerente ao seu sexo e também da materialidade de inúmeras das tarefas que lhes são atribuídas.

"Em suma, o fato de ela escapar à lei comum não me pareceu indicá-la como inimiga do bem e da virtude.

"Chegando a Pentagouet, não achei que devesse retê-la e deixei-a retornar a Gouldsboro. Na semana seguinte, também eu vim para cá. E foi quando encontrei a Diaba..."

Angélica fez uma pausa, o coração batia-lhe loucamente, virou a última página daquela longa missiva. Estava tão absorta e em suspenso que mal entendeu que era dela que o Padre de Vernon falava nas linhas que ela acabava de percorrer, nas quais transparecia como que um sopro de amor por ela. Algo de incerto, de informulado, de profundo e terno, que ganhava valor de confissão ao ser pronunciado por aquela voz de além-tumulo. E, perturbada, ela experimentava uma sensação de lancinante ternura.

- Oh, Jack Merwin! Pobre amigo! - murmurou.

Jamais deveria ter duvidado dele. Era indigno de sua parte. Agora era cruelmente punida pelo remorso que a invadia. Na outra vez, percorrendo as primeiras linhas desta carta, tivera medo de topar com uma afirmação demasiado cruel. Assustada, deixara-se emocionar. Sua hesitação e sua fraqueza causaram a ínfima margem de tempo que decidira quanto à vida ou à morte de uma criança inocente, o pobre mensageiro do padre falecido, e quanto à vitória do-espírito mau sobre o justiceiro que lhe vinha colado aos passos e que o denunciava naqueia'mesma carta que ela tivera de continuar lendo para não ver ali uma condenação a si própria.

Joffrey dizia com frequência: "Nunca se deve ter medo... de nada".       

Hoje o drama atingia o desfecho, desenrolava-se sob seus olhos.

"Quem é ela, dir-rrfe-á, se não a Sra. de Peyrac?

"Pois bem. Recentemente um naufrágio atirou à costa uma nobre dama benfeitora que se dirigia ao Canadá com algumas jovens por casar. É-a"ela que lhe denuncio como esse ser temível, suscitado do fundo dos"infernos, para nossa infelicidade e perdição.

"O seu nome? Yotê o conhece.

"E a Duquesa de Maudribourg.

"Não ignoro que eia é sua penitente há longos anos e até aparentada cem você, e ouvi dizer que a encorajou a vir para a Nova França e pôr a sua enorme fortuna à disposição das nossas obras de conversão e expansão da santíssima religião católica.

"Mas a surpresa foi descobrt-la aqui e, bem depressa, devassar-lhe a temível perversão. Ora, ela me disse que fora incumbida por você de abater a soberba e a insolência de seus inimigos personificados, o Conde e a Condessa de Peyrac, e que se encontrava aqui por ordem sua, para uma missão santa na qual eu devia ajudá-la..."

— Como? Como é isso? Temos novidade aqui! - exclamou Angélica, estupefata. E, percebendo simultaneamente que tamborilavam a sua porta há um bom momento, dobrou a carta e enfiou-a dentro da blusa. Maquinalmente, foi abrir e olhou pensativamente o Marquês de Ville-d'Avray:, que gesticulava a sua frente. Como um títere delirante.

— Passou desta para a melhor ou está brincando de me matar de susto? - fulminou ele. - Quase arrombei a porta...

— Eu estava descansando - disse ela.

Hesitava em falar-lhe imediatamente da carta reencontrada. A revelação que acabava de ter, subitamente, de uma possível aliança entre aquele Padre d'Orgeval, disposto a afastá-los a qualquer preço, e a grande dama corrupta, chegando da Europa sob a aparência de benemerência, lançava novas luzes sobre o papel da duquesa e sobre o acaso surpreendente que a levara para Gouldsboro...

Ville-d'Avray entrou seguido de dois dos seus homens, que traziam sua rede de algodão do Caribe. Mandou pendurá-la às vigas.

- Alojaram-me num espaço exíguo - explicou: - Não posso me virar e menos ainda pendurar minha rede. Virei fazer a sesta em sua casa. De todo modo, é melhor que não nos afastemos muito.

Angélica deixou-o instalar-se e saiu à procura de Cantor. Ali era como em Port-Royal. Tinha-se a impressão de viver com toda a naturalidade do mundo. Um povoado francês na costa, nos últimos dias de verão. Pescadores veranistas, índios trazendo peles, algumas fazendas, a floresta atrás, idas e vindas, gente que passava trazendo notícias e seguia viagem, outros que acampavam à espera de um navio, da possibilidade de partir para a Europa ou para Quebec. Comerciava-se, conversava-se, faziam-se planos, projetos, o meio-dia adormecia todo mundo, enquanto o anoitecer, pelo contrário, suscitava uma animação um pouco fictícia, numa reação destinada a fazer esquecer que estavam todos longe dos seus, num continente selvagem. Acendiam-se fogueiras na praia, enchiam-se os cachimbos, Nicolau Parys recebia qualquer um a sua mesa, enquanto o ritornelo de uma gaita bretã se elevava de algum ponto na escuridão. Tarde da noite se ouviriam marujos voltando bêbados da aldeia indígena.

Parecia um agrupamento de pessoas decentes, ligadas pela promiscuidade do exílio.

Assim como em Port-Royal, Angélica tinha a impressão de se haver isolado dos seus, de carregar sozinha o peso de um segredo incomunicável. Às vezes lhe parecia que sonhava, não fosse pela carta do jesuíta que trazia escondida na blusa e cujo estorvo lhe lembrava afirmações estranhas e categóricas: "Um espírito súcubo devotado ao mal... você lhe conhece o nome... É a Duquesa de Maudribourg... Ela se diz incumbida por você..."

Ambrosina encarregada pelo Padre d'Orgeval de cercar, "por dentro, os perigosos conquistadores das margens da Acádia, instalados em Gouldsboro"..; Mas não fora Ambrosina quem pudera atraí-la para Houssnock/iem enviá-la para o encontro na ilhota do Velho Navio. Então? Ela tinha cúmplices. E febrilmente Angélica reunia os elementos que lhe permitiam elaborar a tese de que Ambrosina não agia sozinha, que ela era apenas a alma, a instigadora daquela vasta cahala montada para abatê-los e liquidá-los sem piedade. Era preciso admitir então que tudo ou quase tudo o que acontecera naquele verão maldito fora intencionalmente preparado para atingir esse alvo. Até o La Licorne indo arrebentar-se intencionalmente nas costas de Gouldsboro. Loucura! Ambrosina esfava a bordo, ela não correria tal risco, por mais louca que fosse... As Moças dó Rei não se deixariam imolar assim... Havia que lembrar, afinal de contas, que as infelizes só tinham sido salvas nas últimas e que uma parte da tripulação fora aniquilada, a outra se afogara...

Quem eram os sobreviventes da tripulação? O grumete e o capitão Job Simon, o primeiro ã denunciar o atentado, gritando que provocadores de naufrágios os haviam atraído para os recifes e os-haviam liquidado a porretadas... O desespero dele, diante da perda do seu navio, não era fingido. Mas restava um fato inexplicável em relação a ele. É que aquele capitão de navio não pareceu perceber o„erro qtre cometera ao dar na baía Francesa quando devia estar se dirigindo para Quebec. Não seria louco também ele? Vendo-o perambular, de longe, balançando os braços compridos, desengonçado e curvado, a vigorosa cabeçorra inclinada para a frente, como se procurasse em vão alguma coisa, Angélica tinha as suas dúvidas. Todos aqueles coitados agora pareciam demasiado afetadospelas suas desgraças. E era falso, conforme ela tivera a impressão há pouco, que as aparências permaneciam serenas e normais. Os olhos, como que arregalados, notavam a expressão esgazeada ou desconfiada ou assustada de certos olhares, a palidez de certos rostos, feições fundas, rugas repentinas surgidas nos cantos de lábios amargos, um desejo de silêncio, um ar de assombração, ou então uma hostilidade surda que se traduzia por costas que se voltavam quando Angélica passava ou, ao contrário, olhares que a seguiam com uma insistência exagerada.

Angélica percorreu o povoado de ponta a ponta, consciente da atmosfera e ao mesmo-tempo indiferente, pois tinha o espírito ocupado com um problema mais aflitivo. Não achou Cantor. Depois de costear a praia, subiu de volta ao vilarejo. As casas agrupavam-se em torno de uma espécie de pracinha, de onde se enxergava mais longe no horizonte. Angélica parou ali, com a mão protegendo os olhos e a receosa esperança de avistar sobre a extensão salpicada de ouro do mar, um mar cor de mel i como que já tocado pela melancolia outonal, uma vela que cresceria dirigindo-se para a entrada da baía. Mas o horizonte estava vazio.

Voltando-se, deu com Ambrosina ali parada atrás dela.

Os olhos da duquesa faiscavam.

-        Você se permitiu remexer em minha bagagem - disse, numa voz metálica e fremente. - Bravo! Decididamente não são os escrúpulos que a tolhem!

Angélica deu de ombros.

-        Escrúpulos? Com você?... Está brincando!

Vendo franzir e fremir o delicado nariz da jovem viúva encolerizada, Angélica entendia que a enganara nas suas estimativas habituais. Costumando escolher suas vítimas entre gente de ca-. tegoria, espíritos elevados, dispostos a ver no próximo o melhor, ela contava com a delicadeza inata deles e com suas reações de boa educação para engodá-los impunemente, e baseava seus atos na incapacidade deles de usar para a própria defesa os meios vis que ela utilizava para o ataque: a mentira, a calúnia, a indiscrição...

Ora, ela começava a entender que em Angélica encontrara um arminho que não tinha medo das manchas de lama.

— Pegou aquela carta, não foi?

— Que carta?

— A do jesuíta, do Padre de Vernon!

Angélica observou-a em silêncio, como se quisesse dar aos próprios pensamentos tempo de reflexão.

-        Quer dizer que você estava de posse daquela carta? Como é possível? Então você não recua diante de nada! Mandou matar o menino que a trouxe para mim, não foi? Mandou seus cúmplices matá-lo? Agora me lembro: ele tentava fazer-se ouvir e dizia:

" 'Eles estão me seguindo, querem me matar, ajude-me, pelo amor de Deus..." E eu não lhe dei ouvidos! Pobre criança!... Jamais nie perdoarei... Você mandou assassiná-lo!...

— Mas você está louca! - exclamou Ambrosina num tom hi-peragudo. - Que história é essa dé eu ter cúmplices? É a segunda vez... Não tenho cúmplices.

— Como foi, então, que essa cana chegou a suas mãos?

-        A carta estava sobreã eiesa, entre nós. Peguei-a, foi tudo...

Era plausível.    

"Mas por que a criança fugiu? , pensou Angélica. "E fugiu quando ela entrou... Tinha medo dela assim como o gatinho... Sabia que ela estava dominada pelo mal.. Mas onde está ele agora?"

Pensava no pequeno Abbal, o menino sueco que fora pedir-

lhe socorro depois do. desaparecimento do seu benfeitor. Imper

doável!      .

-        Você está-com a cartartenho certeza - continuou Ambrosina -, mas tanto piórjpara você. Não acredite que lhe poderá servir contra mim. O jesuíta morreu. As.palavras de um morto estão sempre sujeitas a cautela. Direi que você o enfeitiçou, que lhe ditou essa carta paca causar minha ruína, porque eu estava a ponto de denunciar a's vilezas que reinavam em Gouldsboro, direi que você õ corrompeu, que ele era seu amante... E é verdade que ele a amava! Isso saltava à vista. Direi que, quando você se viu de posse dessa cartaiorjada e ficou certa de que seria absolvida por esse depoimento, mandou assassiná-lo em Gouldsboro, em seu antro de bandidos e hereges. Quem sabe de que maneira ele morreu? A que testemunha darão crédito entre os que se apresentarem? Claro que será a mim, que estava presente. Quem poderá contar em Quebec que vi um inglês horrível atirar-se sobre o infeliz eclesiástico e matá-lo selvagemente enquanto a multidão, e você mesma, na. primeira fila, o encorajava com seus gritos e risadas... Direi que fiquei chocada com o espetáculo e encontrei dificuldade para deixaf aquele lugar maldito, onde você reina, com risco de vida...

Fez um gesto com sua mão graciosa, que parecia convidar Angélica a reunir em torno delas os habitantes de Tidmagouche.

-       Vamos... Denuncie-me! Grite: aqui está a Diaba!... É a Duquesa de Maudribourg... Eu a denuncio expressamente... Quem acreditará em você? Quem a apoiará?... Sua lenda já está bem firmada entre os franceses do Canadá e de outros lugares, e desde que cheguei aqui não deixei de acrescentar alguns detalhes picantes... Aos olhos deles, você é ímpia, perigosa, maléfica, e até agora seu comportamento não me desmentiu de modo algum... Você saiu da mata acompanhada de seus selvagens, está toda afeiçoada a Ville-d'Avray, que é odiado e considerado o maior ladrão que já se viu como governador na região, e... virarn-na no santo sacrifício da missa esta manhã?... Eu estava lá... Meneou a cabeça, com um risinho.

— Não, Sra. de Peyrac... Desta vez sua beleza não a salvará. Minha posição é forte demais... Por mais longe que vá brandir sua carta, em Quebec ou em outro lugar... Entre você e mim, é em mim que Sebastião d'Orgeval acreditará.

— Então você conhece o Padre d'Orgeval? - perguntou Angélica.

Ambrosina bateu o pé, enfurecida.

-        Você sabe disso perfeitamente, pois leu na carta. Não tente fazer-se de astuta comigo, não ganharia nada com isso.

Estendeu a mão.

-        Devolva-me a carta.

Seus olhos cintilavam e soltavam labaredas. Angélica pensou que emanava de Ambrosina uma maldade tão imperiosa que as pessoas simples e emotivas deviam deixar-se subjugar com facilidade e assustar-se, também, quando a duquesa se dirigia assim a elas, e deviam obedecer-lhe como que hipnotizadas. Mas Angélica não se deixou desconcertar e disse a meia voz:

-        Acalme-se! Estão olhando-nos de longe, e sua reputação de virtude e generosidade pode macular-se com seus gestozinhos de mau humor.

Passou diante de Ambrosina e voltou para casa.

De noite, depois de se trancar, terminou de ler a carta do jesuíta à luz de uma candeia.

Nas últimas linhas da missiva, o Padre de Vernon parecia estar com pressa.

"Eu teria observações interessantes a comunicar-lhe acerca do povoado de Gouldsboro, mas aqui me faltam tempo e lugar para isso. Vou entregar minha carta ao mensageiro de Saint-Castine.

Vou-me embora daqui, pois já não estou em segurança. No entanto, não quero distanciar-me muito da região, pois me parece que minha presença pode de alguma maneira atenuar os malefícios que espreitam. O melhor seiaa que você tentasse vir ao meu encontro na aldeia X, onde devo.encontrar Q Padre Damião Jean-rousse. Acertaremos um plano de ação, e*4he transmitirei de viva voz as observações sobre as quais baseei meus julgamentos."

Seguiam-se fórmulas de polidez que, apesar de certo tom um tanto formal, revelavam a afeição é o respeito que os religiosos nutriam um pelo outro.      .

Angélica desistira de falar da carta ao filho e ao governador. Não escondia para si mesma que Ambrosina tinha razão ao dizer: "Quem lhe dará crédito? Quem acreditaria nela? Uma carta assim, habilmente comêstada, poderia voltar-se contra ela, Angélica. Não podia extrair-lhe indício algum que lhe comprovasse a tese de que Ambrosina tinha cúmplices, que não agia sozinha, que ela não era mais do que ã alma, o espírito dirigente de uma vasta trama, concebida_para destruí-los contra toda a razão. Fora de determinado contexto, as declarações do jesuíta pareciam loucas, inaceitáveis. Resultado de hipnose. Ele já não estava ali para revelar e provar os fatos e deduções que o tinham levado a suas conclusões. As acusações contra Ambrosina pareciam sem fundamento, tanto do ponto de vista teológico quanto do político. Eram levantadas contra uma pessoa de alta nobreza, de grande renome e que tinha alguma reputação nos altos círculos das ciências religiosas, e parecia que Ambrosina soubera, com muita habilidade, escolher seu terreno de ação, conservando uma reputação inatacável entre aqueles cujo amparo e aprovação ela desejava e assanhando-se quando tinha certeza de que poderia usar qualquer delação em vantagem própria.

Apesar da arma que segurava entre as mãos com aquele depoimento, Angélica continuava èm posição instável. Mas preferia não pensar muito nisso e ficar, naquela noite, com o reconforto de haver reencontrado, com a carta do-Padre de Vernon, um amigo que, para além da morte, ainda velaria por ela e a defenderia.

CAPÍTULO XXI

O adeus de Maria, a Meiga

No segundo dia de sua estada em Tidmagouche, o Subtenente de Barsempuy pediu uma entrevista com Angélica. Tinha uma solicitação a apresentar-lhe.

Apesar de ele lhe haver pregado uma peça na ponta Maquoit, visto que, na qualidade de lugar-tenente de Barba de Ouro, fora ele que a capturara, Angélica se entendia bem com aquele jovem senhor aventureiro, capaz, assim como os seus semelhantes, do melhor e do pior, mas não despido de qualidades. Era corajoso, cavalheiresco, empreendedor, provido de uma boa educação recebida no fundo de algum castelo onde crescera, sem dúvida como o quinto ou sexto filho de uma numerosa família de nobres arruinados. Agora que tudo se arranjara com os piratas do Coeur-de-Marie, que Barba de Ouro se tornara o governador de Gouds-boro, Barsempuy professava a mais absoluta dedicação ao Conde e à Condessa de Peyrac.

Fora ele que, por ocasião do naufrágio do La Licorne, encontrara Maria, a Meiga, ferida entre os rochedos. Carregara-a nos braços e se apaixonara perdidamente por ela. Infelizmente a partida da Sra. de Maudribourg com as protegidas para Port-Royal interrompera o idílio.

Angélica percebeu que ele estava com as feições fundas e já não exibia o ar de pirata sem.medo nem pecado, feliz por estar vivo e por se encontrar vivo a cada noite. Pediu-lhe uma audiência em particular, mas como Ville-d'Avray, descansando em sua rede, não parecia disposto a retirar-se, ele afirmou que falaria sem constrangimento diante do senhor governador. Tratava-se das palavras que Angélica e o Marquês de Ville-d'Avray haviam trocado na frente dele, na manhã do dia anterior, quando a caravana chegara à costa e os.dois conversavam sobre a Sra. de Maudribourg.

-        O próprio senhor marquês pareceu assustado com a ideia de encontrá-la. Compreendi, eritão,-que meu sentimento pessoal por essa mulher perigosa e perversa não era falso, e agora mais do que nunca temo pela minha Bera-amadá. A senhora se lembra de como essa jovem deliciosa inspirou meu amor. Foi desde o primeiro instante, quando a encontrei banhada em sangue. No entanto, sou um homem duro, e posso afirmar que até aquele dia eu não fazia senão r-ir ante a ideia de que um dia eu poderia sucumbir a uma'paixão tão profunda. Mas é assim! E nos primeiros tempos acreditei que essa jovem corresponderia à minha paixão. Trocamos algumas confidências. Ela é de excelente família, mas pobre e sem dote", de modo que foi confiada a um convento paraiomar o viu como irmã leiga. Foi lá que há uns dois anos a Sra Je Maudribourg ofereceu-lhe um lugar como dama

de companhia-. Em Géulísboro tive a impressão de que eu não lhe era indiferente^ Vendo o apego que ela nutria pela sua protetora, fui procurar por esta para participar-lhe meu desejo de casar com Maria e expus-lhe meus títulos e qualidades. A Sra. De Maudribourg me garantiu" que falaria"a respeito com Maria e pouco tempo depois me transmitiu uma resposta negativa, pedindo-me que não insistisse, que Maria era muito sensível, íntegra e honesta demais para ter a menor inclinação por um pirata que obviamente tinha sangue nas mãos,, que isso lhe dava horror, etc. O golpe foi terrível para mim, fiquei muito perturbado e tão abatido que, não sei como nem por quê, essa nobre dama quis me consolar e... me vi passando a noite com ela... com a duquesa...

O rapaz tinha um ar tão atónito ao fazer sua confissão que Ville-d'Avray se pôs a rir no seu canto.

-        Agora entendo que fui apenas uma de suas inúmeras vítimas e que Maria sem dúvida tambérrr_o_é, e gostaria de fazer todo o possível para arrancá-la de suas garras. Quis o acaso que, ao escoltá-la, eu encontrasse aqui aquela a quem amo, quando

já a supunha vagando sob outros céus e pensava que nunca mais a reveria... A ocasião me parece perfeita para salvá-la... Mas ela foge de mim. Talvez a senhora pudesse falar com ela, convencê-la do meu amor, do meu desejo de ajudá-la. - Tentarei.

Desde que descobrira o verdadeiro caráter de Ambrosina de Maudribourg, Angélica se indagava, não sem certo mal-estar, sobre as relações que uniam a benfeitora às jovens que a rodeavam. Eram jovens comportadas, piedosas, recrutadas nos orfanatos e na Santa Casa para se casarem na Nova França, tais como Maria, a Meiga, a razoável Henriqueta, a encantadora e tímida Mou-risc, Antonieta, algumas outras, apagadas, dóceis, gentis, uma viúva discreta, como Joana Michaud e o seu pequeno Pedro, senhoritas de pequena nobreza, pobres mas escolhidas pela correção de suas maneiras, seu espírito aberto e culto, e às vezes até uma personalidade que não carecia de malícia e caráter, como Delfina Barbier du Rosoy ou Margarida de Bourmont. Sem falar da velha aia Petronilha Damourt, boa e decente, embora um tanto simplória.

Algumas delas conheciam a duquesa há muito tempo. Petronilha quase parecia havê-la criado. Outras há somente alguns meses, quando ela as escolhera para a expedição à Nova França. Todas, sem exceção, a adoravam. Angélica só vira Juliana - uma moça das ruas, que destoava do conjunto e que devia ter-se insinuado entre as demais para escapar a uma partida para as ilhas - que a detestava, e, aliás, gritara isso sem rebuço.

Mas o devotamento das outras pela duquesa não tinha limites.

Não haveria mesmo, nas manifestações delas, algo de excessivo, de anormal? Angélica lembrava da delirante emoção delas quando se anunciara que a benfeitora fora salva das águas, como se haviam atirado aos pés dela, abraçando-a, beijando-lhe os joelhos, soluçando de alegria. Em outra ocasião, na primeira noite, quando temiam que a duquesa falecesse, o seu desespero exagerado, as súplicas para que Angélica permanecesse à cabeceira da doente, todas aquelas moças enlouquecidas, agarradas à saia de Angélica, insistindo de modo estranho... O que saberiam elas sobre a duquesa?

Seriam tolas, inconscientes, enfeitiçadas, aterrorizadas? O pedido do Subtenente de Barsempuy oferecia-lhe a oportunidade de informar-se mais.

Numa das casas do vilarejo, Angélica abordou Maria, a Meiga.

A jovem fora colher flores ria falésia e estava voltando por um caminho que passava por trás dessa cabana desocupada. Dali Angélica esperava que a duquesa não'a visse falando co.m uma das suas protegidas.      

Deteve o movimento de -retuo que Maria esboçou ao vê-la.

-        Não fuja, Maria. Preciso falar-lhe sem testemunhas. Dispomos de pouco tempo.

Segurando as flores, a jovem a olhava sem poder dissimular o susto. Era bem bonita, com uma expressão tímida, mas tão espontânea que intrigava. O seu maior encanto residia num colo deslumbrante,-olhos azuis-celeste, cabelos louros e leves, uma graça de flor simples e frágil. Mas emagrecera muito nos últimos tempos, certamente esgotada, mal refeita de tantas viagens e mudanças.

Estava pálida.. A pele e os lábios pareciam gretados pela seca e pelo sal. Tinha sobretudo uma' expressão de criatura acuada, traduzida pelas pupilas dilatadas, um pouco fixas, e a boca entreaberta, .como se lhe faltasse o fôlego. Também Angélica sentia como se tivesse dentro de si um cabo retesado, prestes a romper-se.

Nãô havia tempo para'rodeios entre elas.

-        Maria - disse Angélica -, você "os" viu? Quando a trouxeram a mim, você repetia: "Os demónios, estou vendo-os, eles me atacam de noite..." Viu os homens que saíram da noite com porretes para liquidar os náufragos... Agora, fale, conte-me tudo o que pensa saber, desconfiar... Esses crimes têm que cessar... E ela, é ela, não é, quem lhes dá-as ordens?

A jovem a ouvira com ar aterrorizado. Só conseguiu balançar a cabeça, numa negação aflita.

-        Você vive perto dela, na sua intimidade, há dois anos - insistiu Angélica, que tinha a impressão de ter os minutos contados -, não pode ignorar quem ela é. Agora tem que falar a fim de ajudar-me, antes de sermos todos mortos, destruídos... Fale.

Maria, Meiga, teve um sobressalto, como se se tivesse queimado.

-        Não, nunca! - exclamou, arisca.

Angélica agarrou-a com vivacidade pelo punho frágil.

— Por quê?

— Não posso esquecer o que ela fez por mim. Eu era sozinha no mundo, sem outro futuro além dos muros daquele convento. Ela se interessou por mim, permitiu-me ressuscitar, desabrochar, ser feliz-afinal...

Baixou os olhos.

-        É bom ser amada.- murmurou.

Até que ponto a amoralidade hábil de Ambrosina abusara da ingenuidade de uma jovem órfã, conservada num espírito infantil pela sua natureza sonhadora, pela solidão e pela ignorância da vida? Era difícil apurar.

— Se fosse apenas isso - disse Angélica, sopesando as palavras -, eu não a julgaria. Mas ela é pior do que isso, e você o sabe. Ela é capaz de tudo. Um abismo de perdição, o mal em estado puro. Amada, você diz? Barsemp.uy a amava. Queria casar com você. Ela pelo menos lhe pôs a par da intenção dele? Não, estou vendo pela sua expressão atónita. Talvez tenha até falado mal dele diante de você enquanto lhe informava que o recusava... e ela própria o seduzia. E é essa mulher, diabólica, assustadora, que lhe tomou seu bem-amado, que você quer defender, proteger de uma merecida punição!"Fale, rogo-lhe. Fale!

— Não! Não sei de nada - bradou a jovem, debatendo-se. - Garanto-lhe que não sei de nada...

— Sim, sabe. Você suspeita, adivinha, vive demasiado perto dela para não notar certas coisas... Ela tem cúmplices, não tem, aqueles causadores de naufrágios que quiseram matá-la na praia? Veja, ela a sacrificou, imolou como às outras...

— Não, a mim, não...

— O que você quer dizer? Por que não a você?

Mas, soltando o pulso da mão fechada de Angélica, Maria, a Meiga, fugiu correndo como uma louca perseguida...

Seria preciso tentar outra vez, disse Angélica consigo. Agora sabia que a comitiva da duquesa poderia fornecer-lhe informações preciosas. Mas acabava de entender que não seria fácil. Aquelas criaturas jovens, vulneráveis ou demasiado simples, eram mantidas no silêncio pelo terror, pela vergonha, a docilidade, o hábito inerente à gente do povo de não julgar pela medida do comum os assuntos dos grandes. A tolice, a ignorância, a ingenuidade, a inocência. Como Ambrosina soubera usar habilmente de tudo isso para atingir seus fins!

-        Você parece triste - disse-lhe Ville-d'Avray, que se balançava na sua rede mordiscando pipocas que .Cantor estourara sobre brasas. - Vamos, minha cara Angélica, não devemos deixar-nos anuviar nemrlevar muíto a sério a vilania da espécie humana. Encontrá-la, suportá-ía, isso faz parte das nossas obrigações terrestres. Há compensações. Você verá, quando estivermos em Quebec e degustarmos uirTcopinho de rossolis, junto ao fogo, ouvindo seu filho encantador, a tocar guitarra para nós. Você esquecerá tudo isso... Riremos juntos de tudo isso...

Mas, apesar desses encorajamentos, Angélica não se sentia disposta a rir fosse do. que fosse. Olhava o tempo todo pela porta ou pela janela. Não sabia-exatamente o que estava espiando assim. Talvez a silhueta de urruveleiro, crescendo no horizonte e adentrando a enseada?

Pelo final da tarde correu para fora de casa, pois teve a impressão de avistar um. ponto fnfimo no clarão metálico que vinha de leste. Com a rríão acima dos olhos, ficou ali, observando.

Ouviu Delfina du Rosoy, não muito longe, chamar Maria, a Meiga, e dizer:

-        A Sra. de Maudribourg foi colher airelas com Petronilha e com a Mourisca. Elas a espera"m perto da cruz bretã para ajudá-las a carregar os cestos...

A jovem se enfiou pelo caminho por onde, de manhã, os fiéis se haviam dirigido para a missa. Por um instante, Angélica hesitou, perguntando-se se não seria a ocasião de repetir a tentativa junto de Maria. Esta devia ter refletido. Mesmo de longe Angélica pudera perceber que a pobre" moça tinha os olhos vermelhos e o rosto desfeito. Mas, se tentasse segui-la e abordá-la no caminho da falésia, havia o risco de a Duquesa de Maudribourg vir ao encontro delas. Então, voltou para casa.

De sua rede, o marquês acompanhava as idas e vindas do povoado, tanto pela porta quanto pela-janela.

— A pesca será má hoje - comentou -, o bacalhau será mal salgado e haverá muitos dedos cortados entre os trinchantes...

— E por que isso?

— A Sra. de Maudribourg foi visitar aqueles cavalheiros. Estou vendo-a lá, entre os pescadores, como uma rainha entre seus vassalos, escoltada pelo nosso capitão bretão, que faz muitas reverências. Ele se diz duro como o aço, mas ela o deixa completamente transtornado...

Angélica seguiu a direção do olhar dele e, de fato, lá embaixo, à beira -da água e perto dos tablados onde os bretões se dedicavam a sua tarefa, avistou a silhueta de Ambrosina retendo a atenção geral.

Estava rodeada de uma autêntica corte, pois um navio de partida para a Europa fazia escala ali para se abastecer de água e estava ancorado na enseada. Alguns passageiros tinham desembarcado para esticar as pernas. 

-        Se aquele navio vai para a França - observou o marquês -, talvez seja a ocasião, de eu enviar uma mensagem para uma amiga muito querida que tenho em Paris. Vou ver.

Levantou-se da rede.

"Mas por que Ambrosina mandou que Maria, a Meiga, fosse ao seu encontro numa direção oposta à do lugar onde ela se encontra?", pensava Angélica.

Chegou até a porta, olhando para o promontório. A alguns passos da casa, Barsempuy, bastante melancólico e ocioso, entalhava um pedaço de madeira.

A vista do rapaz que amava Maria desencadeou em Angélica, por associação de ideias, um reflexo súbito, e ela se precipitou para ele.

-        Venha, depressa - disse-lhe em voz baixa -, venha comigo, rápido, Sr. de Barsempuy, Maria está em perigo!

Sem fazer perguntas, ele a seguiu, e os dois tomaram a vereda que levava até à cruz bretã.

— O que está acontecendo? O que a senhora teme? - indagou ele afinal, quando já não podiam avistar o vilarejo.

— Eles vão matá-la - replicou ela em voz entrecortada -, talvez eu esteja louca, mas tenho um pressentimento. Viram-me conversar com ela hoje de manhã, devem ter-lhe feito perguntas, tê-la feito confessar o assunto de nossa conversa.

Agora os dois corriam. Sem fôlego, chegaram ao promontório onde se erguiam a capela e a cruz de madeira.

— Ela não está aqui - disse Angélica. - Será que é aqui mesmo? Enviaram-na a cruz bretã...

— É mais adiante - disse Barsempuy. - Uma cruz de pedra erguida há dois séculos pelos pescadores bretões. Lá naquela outra extremidade... 

— A falésia mais alta - exclamou Angélica, desesperada. - Venha depressa, ela não pode "chegar lá. Não temos tempo de contornar a enseada, vamos descer pela praia. Nós a chamaremos de baixo...   

Deslizaram, não sem dificuldade, até a praia de seixos e pedregulhos, que não lhes facilitava a corrida. A falésia parecia afastar-se.

-        Ah, estou vendo Maria! - gritou Barsempuy.

Uma frágil silhueta'feminina acabava de se desenhar contra o céu esbranquiçado.

Avançava pelo. promontório na direção da cruz bretã, erguida qual um menir celta-bem na"extremidade.

-        Maria - gritou Angélica com toda a força -, Maria, pare! Fuja!

Longe demais! A vol não alcançava.

-        Maria! Maria! - gritou Barsempuy por sua vez. - Ah!...

O mesmo urro enlouquecido escapou do peito de ambos. Depois se calaram, com o coração paralisado de horror diante da queda turbilhonante do. jovem, corpo.

-        Empurraram-na - arquejou Barsempuy, desnorteado -, eu vi... alguém... chegar... por trás...

Puseram-se a correr de novo, tropeçando nas pedras, nas rochas e nos amontoados de sargaços, num verdadeiro pesadelo.

Encontraram Maria, a Meiga, no oco de um rochedo, como no dia em que Barsempuy a achará depois do naufrágio do La Licorne. O rapaz soltava estertores inconscientes, como se um golpe mortal acabasse de arrancar-lhe as entranhas.

— Faça alguma coisa, senhora, faça alguma coisa, rogo-lhe.

— Não posso fazer nada - disse Angélica, ajoelhada junto do corpo desmembrado.

E gemia, também inconscientemente, de tal modo lhe partia o coração ver aquela criatura jovem, graciosa e tímida, assim aniquilada.

Maria, a Meiga, abriu os olhos.

Angélica percebeu o espírito ainda lúcido por trás daqueles olhos azuis que pareciam refletir o céu.

-        Maria - disse, retendo as lágrimas -, Maria, pelo amor do Deus que vai recebê-la, diga-me alguma coisa... Você viu seu assassino? Quem foi?... Diga-me alguma coisa, peço-lhe para me ajudar..:

Os lábios pálidos mõveram-se. Angélica inclinou-se a fim de ouvir as palavras imperceptíveis que os atravessavam num sopro extenuado, o último.

-        Na hora do naufrágio... ela não estava... com as meias ver melhas...

CAPITULO XXII

Revelações de Delfina Barbier

— Explique-me tudo - suplicava Barsempuy. - Como soube que iam atentar contra a vida dela? Diga-me quem são esses criminosos. Eu os, perseguirei até o fim, hei de exterminá-los!

— Eu lhe contarer tudo se se acalmar.

Auxiliada pof Ville-d'Avray, Cantor e dois outros homens do Rochelais que tinham vindo com eles, ela precisou fazer de tudo para acalmar o desespero"do rapaz, convencê-lo a não praticar gestos extremados, dando caça ao assassino entre pessoas que já andavam hipernervosas, quando somente a paciência, a tenacidade e o sangue-frio podiam possibilitar a descoberta de um inimigo tão engenhoso e desmascará-lo", fosse quem fosse. Caso se soubesse acusado, suspeito, passaria a desconfiar e ficaria muito mais difícil e perigoso recolher indícios, achar uma pista. Ainda não chegara o momento de acusar a duquesa. Todos os homens presentes estavam influenciados pelo encanto dela. Barsempuy seria tratado como louco, e com certeza apareceria alguém para, sob um ou outro pretexto, liquidá-lo. Ele acabou acedendo aos argumentos e ficou sentado junto da lareira, tristonho e alquebrado.

No dia seguinte conduziram Maria, a Meiga, para a sua última morada. As Moças do Rei choravam. Falavam de Maria, sua irmã e companheira. Diziam que ela não era prudente, que sempre queria ir colher flores em lugares perigosos, que as achava mais bonitas... Ela caíra...

Durante a absolvição, no pequeno cemitério de pobres cruzes enviesadas, Angélica viu-se por acaso ao lado de Delfina Barbier du Rosoy. Essa jovem de família nobre lhe era simpática. Demonstrara muita coragem e sangue-frio durante o naufrágio do La Licorne, e sobressaía dentre as companheiras pela educação, pelos julgamentos que emitia, pela cultura. As outras se voltavam naturalmente para ela, e Angélica notara que Ambrosina lhe dirigia a palavra com certa nuança de consideração que não dispensava às demais,-como se quisesse cònquistá-la, cativar-lhe as boas graças ou baldar a perspicácia, que despertava facilmente, de Delfina.

Vendo-lhe o rosto coberto de lágrimas e ela a soluçar desesperadamente como uma criança, coisa que não estava em sua natureza comedida e comportada, Angélica sentiu pena.

-        Posso ajudá-la, Delfina? - perguntou baixinho.

A moça olhou-a, surpresa, depois enxugou os olhos e se assoou, meneando a cabeça negativamente.

— Não, senhora, infelizmente não pode ajudar-me.

— Então, ajude-me você - decidiu-se Angélica bruscamente. - Ajude-me a destruir o demónio que está aferrado aos nossos passos para a infelicidade de todos nós.

Delfina olhou-a sub-repticiamente e permaneceu em silêncio, de cabeça baixa. Mas no caminho de volta ao povoado, sussurrou, ao passar perto de Angélica:

— Irei a sua casa com algumas das moças um pouco antes da refeição do meio-dia. Diremos que seu filho Cantor se propôs a nos cantar algumas canções...

— Cantar - resmungou Cantor. - Essas beldades não têm muito senso. Enterra-se uma delas hoje e elas querem canções! Não me parece um protesto muito bom...

— Você tem razão, mas sem dúvida isso foi tudo o que lhe veio à cabeça, pobre Delfina! Há momentos em que a gente não sabe mais o que inventar.

— Bom, cantarei cânticosjpara elas - disse Cantor. - Parecerá mais sério!

Quando as moças apareceram, Angélica notou que era a hora em que Nicolau Parys ia cortejar a duquesa. Chamou Delfina à parte, enquanto Cantor entretinha as outras.

— Delfina - disse -, você sabe de onde vem o mal, não é Ela!...

— Sim - disse a moça, tristemente. - Também eu fui tola por muito tempo, mas tive que ceder à evidência. Na França ninguém podia dar-se conta, mas aqui "há algúhla coisa de... selvagem no ar, de primitivo, que força as personalidades a se mostrarem como são de fato. Rouco a pouco, em Gouldsboro, em Port-Royal, comecei a ver.-cóm>clarezaí, entendi a que espécie ela pertence. Claro, antes eu não aprovava que ela nos obrigasse a mentir frequentemente para dissimular as crises de que ela é acometida... Por modéstia, dizia ela, para que não soubessem que ela era visitada pelo espírito de Deus. Eu deveria ter compreendido mais eedo que crises assim- eram sinal de loucura ou possessão, e não de êxtase^niístico, conforme ela queria convencer-nos... Como fomos ingénuas! Somente Juliana enxergou tudo com clareza logo do comrço.~E nós, que a detestávamos e desprezávamos, pobre moça! E, agora que será de nós? Estamos desarmadas, abandonadas em poder-dela, no fim do mundo. Ontem, quando vi aquele navio na enseada partindo para a Europa, eu teria dadojquálqu&r coisa para poder embarcar e fugir para qualquer lugar. Que Deus tenha piedade de nós!

— Delfina, você acha-que a duquesa mantém contato com outro navio, com cúmplices a quem e"la poderia dar ordens para ajudá-la a executar seus desígnios criminosos?

Delfina olhou-a, espantada.

— N... não, não acho - balbuciou.

— Então, por que você está convencida, no íntimo, de que Maria foi assassinada? Por quem? Mesmo que isso tenha sido feito por ordem de sua benfeitora, njío foi ela que empurrou Maria da beira da falésia. Ela estava aqui, entre os pescadores, eu a vi.

— Eu... eu não sei... É difícil, impossível saber tudo sobre ela, às vezes parece que ela tem o dom da ubiquidade... e também mente tanto, e suas mentiras parecem tão verdadeiras, que nos desorienta, é difícil dizer exatamente se ela estava em determinado lugar ou não!...

— E as últimas palavras de Maria... você pode explicá-las? Ela murmurou: "Na hora do naufrágio, ela não estava com as meias vermelhas".

Delfina olhou-a fixamente.

— Sim, é verdade - disse, como se respondesse a uma pergunta que nunca ousara fazer a si mesma. - Aquelas meias vermelhas... que ela estava usando quando desembarcou em Gouldsboro, eu nunca as tinha visto antes... E acho que até posso afirmar que não estavam na bagagem dela a bordo do La Licorne, pois com frequência eu lhe fiz as malas. E se Maria, a Meiga, disse isso... ela sabia melhor do que qualquer outra, pois desceu.no barco com ela...

— O que quer dizer?

— Nunca tive muita certeza do que vi. Estava muito escuro, e afinal aquilo não significava nada! Depois do naufrágio, tudo se embaralhou na minha cabeça. Eu não conseguia ordenar os acontecimentos. Diziam que nossa benfeitora se afogara e depois que fora salva e que salvara o filho de Joana Michaud. Parecia-me que havia alguma coisa que não se encaixava. Mas agora tenho certeza: foi antes do choque do La Licorne nos recifes que vi a duquesa com Maria, a criança e o secretário tomando lugar num bote. Quase na mesma hora ouviram-se estalos medonhos e alguém gritou: "Salve-se quem puder, estamos afundando".

— Então tudo se explicaria. Ela deixou o navio antes do afundamento. Durante os dois dias em que a deram por perdida, ela se reunia com os seus cúmplices no navio, deles, certamente aquele veleiro dissimulado entre as ilhas que avistamos, e lá encontrou mudas de roupa, como essas meias vermelhas que, irrefletidamen-te, calçou antes de desembarcar como uma náufraga miserável em nossa costa.

— Mas e Maria? Ela também estava entre os afogados... Seria preciso imaginar que do bote eles a atiraram na água... Não, não, seria horrível demais.

— Por que não? Tudo é horrível nesta história, tudo é possível... tudo! Em todo caso, jamais saberemos... Maria morreu.

— Não! Não! - repetia Delfina, angustiada. - Não, não é possível. Eu é que devo estar enganada... Já havíamos batido nos recifes quando vi a cena... Já não tenho certeza de nada. Era noite. Ah, vou ficar louca!

Houve um alvoroço junto à porta da casinha.

-        É ela! - murmurou Delfina, empalidecendo de susto.

Felizmente era apenas Petronilha Damourt, que vinha reconduzir suas ovelhas à decência e à disciplina.

— Deveriam estar remendando suas roupas e dizendo o terço! Aproveitaram que dei uma cochilada para vir distrair-se. A senhora ficará muito descontente.

— Seja indulgente com a juventude, cara Petronilha - interveio Ville-d'Avray, utilizando de toda a sua galanteria para acalmar a aia. - A vida é tão triste nesta-praia, à espera não se sabe de quê! Como é que elas poderiam -permanecer insensíveis à graça de um belo rapaz armado de uma guitarra?

— E inadmissível!

— Vamos! Vamos! Você se faz de mais severa do que é. Também você merece um pouco de distração. Venha se sentar co-nosco. Gosta-de pipoca? Com um pouco de açúcar mascavo, são uma guloseima deliciosa...

— Petronilha - eoehlcholi Delfina ao ouvido de Angélica -, é a ela que devi fazenperguntas. Tente fazê-la falar. É um pouco simplória, mas faz váriosanos-que está a serviço da Sra. de Maudribourg e se gaba de que a duquesa deposita nela toda a confiança. Já disse algumas vezes que sabe muitas coisas que assustariam muita gente, mas que não pode viver intimamente com uma pessoa tão santa e que tem êxtases e visões sem compartilhar de segredos terríveis.

CAPITULO XXIII

Incidentes com Wolverines - Os acadianos se enfrentam

Fazia uns instantes que Cantor parara de arranhar a guitarra. Estava aguçando os ouvidos.

-        O que é isso? Esses barulhos?

Vindos do forte, chegavam-lhes latidos distantes e furiosos. O rapaz foi até a porta, tomado de um pressentimento.

-        Os cães terras-novas! A quem estão perseguindo?

Os latidos furiosos aumentavam. No seu paroxismo, evocavam o chamado de uma matilha na caça, lançada na pista da presa.

-        Soltaram os cães!

Os dois mastins apareceram, correndo colina abaixo, nas pegadas de uma espécie de bola escura que disparava na frente deles.

-        Wolverines!

Largando a guitarra, Cantor saiu correndo em socorro do protegido. Wolverines galopava rumo ao refúgio da casa de ambos, onde sabia que se encontrava o dono, mas sua velocidade era superada pelos pulos gigantescos que davam seus ferozes perseguidores.

Os três animais desembocaram quase juntos, numa nuvem de poeira, na pracinha do vilarejo. Sentindo-se alcançado, Wolverines voltou-se de repente, descobrindo presas ferozes, pronto para enfrentar o atacante e saltar-lhe ao pescoço. Um glutão de grande porte pode facilmente degolar um alce, um lince ou um puma. Mas ali ele estava lidando com dois adversários. Enquanto o primeiro, prudente, reteve o impulso, contentando-se em latir a plenos pulmões, mas a alguma distância, o segundo, chegando logo depois, pulou em cima de Wolverines por trás e cravou-lhe os dentes na espinha. Wolverines se virou e abriu-lhe a barriga com uma patada. O outro/cão, então, investiu. Mas Cantor chegava. Interpôs-se, com o facão levantado, entre o animal e o glutão ferido. Com a garganta rasgada, ó colosso caiu.

Tudo isso se passou em alguns segundos, numa nuvem de poeira, sangue, um ruído infernal de latícjos, grunhidos, estertores, dominados pelos gritos' agudos ~díís Móçás do .Rei e sua aia.

Como que por magia, logo se formou um círculo. Todos os habitantes de Tidmaugouche afluíam como que por encanto para o local do drama. Os pescadores bretões e seu capitão, os índios que vagavam por "ali, alguns dos acadianos sedentários. Nicolau Parys, seu séquito de concubinas e criados, de exploradores e fidalgos", seus companheiros de bebedeiras. Todos contemplavam os cães, "que ^expiravam num charco de sangue, enquanto o glutão, sangrando igualmente, continuava a dardejar com os olhoçiaiscarítes e a ameaçar os que se aproximassem com seus dentes-pontudos^Cantor se mantinha.em pé ao seu lado, com a faca em punho, os olhos tão faiscantes quanto os do animal. -

Houve um silêncio incerto, depois o proprietário do lugar, o velho'Parys, avançou um pouco na direção de Cantor.

— Você matou os meus;animai$, rapaz - disse, com ar malvado.

— Eles atacaram o meu - replicou Cantor ousadamente. - Você mesmo avisou que eram perigosos e que era preciso mante-los na corrente. Quem os soltou? Você ou ela? - perguntou, apontando a faca ensangúentada-na direção de Ambrosina.

A duquesa se encontrava na primeira fila, exibindo exatamen-te o necessário de uma expressã&"tiorrorizada, como convinha a uma dama bem-nascida, contemplando espetáculo tão repugnante. Apesar do seu autocontrole, o ataque de Cantor a pegou desprevenida, e ela lhe lançou um olhar de ódio implacável. Recompôs-se prontamente e recuperou â expressão meiga, serena, um pouco pueril, que dava vontade-de protegê-la.

— Mas o que foi que lhe deu? - exclamou ela, em tom assustado. - Essa criança está louca.

— Pare de me tratar de criança - replicou Cantor, encarando-a, encolerizado. - Não existem crianças para você, só existem machos para os seus prazeres. Você se acha hábil!... Mas eu denunciarei suas torpezas ao mundo...

-        Sim, ele está louco! - gritou alguém.

Angélica foi postar-se ao lado do filho e pousou a mão sobre o braço dele.

-        Acalme-se, Cantor - disse a meia voz -, acalme-se, peço-lhe, não é hora disso.

Tinha a impressão alarmante de que nenhum dos presentes, pelo menos entre os homens, estava disposto a ouvir tais acusações contra a Duquesa de Maudribourg. Ainda se encontravam no estágio do fascínio incondicional, cegos ou enfeitiçados. E de fato as palavras de Cantor provocaram uma onda de protestos furiosos.

— Sim, esse garoto está louco!

— Vou lhe fazer engolir as suas-palavras, fedelho - grunhiu o capitão de Faouet, avançando um passo.

- Sim, venha, estou a sua espera! - replicou Cantor, brandindo a longa faca de explorador das matas. - Será mais um animal selvagem que degolarei, por mais fedelho que eu seja!

Os pescadores bretões, indignados com a resposta ao seu capitão, resmungaram e se interpuseram.

— Não vá, capitão, ele é perigoso...

— Desconfiem... Ele é belo demais para ser humano... Talvez seja...

— É um arcanjo - lançou a voz suave de Ambrosina. E, no silêncio arfânte, arrematou:

— Mas um arcanjo defendido pelo Diabo. Olhem!

E apontou, aos pés de Cantor, o glutão, que continuava alerta, descobrindo a mandíbula branca num ricto cruel. A pelagem negra totalmente eriçada, a cauda levantada bem alto e batendo o ar, os olhos dilatados disparando raios fixos e terríveis só podiam impressionar os espectadores.

-        Não é a própria face de Satã? - repetiu Ambrosina, fingindo um arrepio.

Sobre aqueles espíritos supersticiosos, tais palavras pronunciadas por uma voz feminina e persuasiva acerca de um animal desconhecido e estranho, que era como que uma encarnação daqueles monstros de pedra mal-encarados, daquelas gárgulas de catedral vomitando água de chuva, daquela representação peluda do espírito do mal, que os homens da Europa estavam acostumados a contemplar desde a infância'nas fachadas de suas igrejas ou nas iluminuras de seus missais, tais palavras-;eoncretizavam o sentimento de medo místico que todos sentiam diante da beleza de Cantor, ereto na sua-cólera juvenil entre as feras ensanguentadas, e também diante da beleza de Angélica ao lado dele, com o índio emplumado e tatuado atrás dela, de lança na mão, pronto para defendê-la, o inexplicável guardião daqueles dois seres que tinham o mesmo olhar verde e insólito. E o que todos eles captavam, malgrado seu, em seus cérebros obscuros e com a sua intuição primitiva de camponeses e pescadores, do drama invisível que se desenrolava entre os diferentes antagonistas daquela cena, acabava de transtorná-las com um sentimento de transe, que só podia encontrar alívio num ato de violência.

— E preciso matar o animal...

— Olhem?

— É um demônio...

— Até os índios dizem que é maldito.

— Vai nos trazer azar.

— Matemo-lo!

— Abatamo-lo!

E por um instante Angélica teve a impressão de que aquela multidão de homens hiperexcitados, armados de facas, bastões ou pedras, ia lancar-se comum impulso irresistível sobre ela e o filho, a fim de apoderar-se do pobre Wolverines e fazê-lo em pedaços.

A atitude resoluta de Cantor, e também a sua, que levou a mão à pistola, a dos homens que tinham vindo com ela da baía Francesa e se mantinham atrás dela, os irmãos Défour armados de mosquetes, Barsempuy e o seu sabre de abordagem, o filho mais velho de Marcelina, de machado e borduna indígena na mão, e os dois homens do Rochelais, que haviam passado a mão em sólidos porretes, sem contar Piksarett e sua lança, tudo isso conteve por um instante a fúria histérica prestes á se desencadear. E Ville-d'Avray interveio.

-        Não nos enervemos - disse ele, avançando comedidamente até o centro do círculo fechado em torno de Angélica e dos seus. - E o fim do verão, meus amigos, e vocês todos estão com a cabeça quente. Mas isso não é motivo para que se matem uns aos outros por causa de dois cães e um glutão. Além do mais, esquecem que sou o governador da Acádia e que não admito rixas sangrentas nos domínios que dependem da minha jurisdição. Mil libras de multa, prisão e até o patíbulo, é a pena em que incorrerão os criadores de tumulto, se envio meu relatório a Quebec.

— Mas seria preciso que pudesse enviar esse relatório, governador - interveio um yigoroso acadiano, bem jovem, que se revelou ser o genro de Nicolau Parys. - Já perdeu seu navio e muito do fruto de suas rapinas. Não vai correr o risco de perder a vida por um glutão, conforme diz. O glutão é o pior animal da floresta, saqueia todas as armadilhas. Até os índios dizem que ele é habitado pelos demónios.

— Isso não é motivo, pois o glutão pertence a esse belo rapaz, e vocês querem agradar-lhe... - disse com ironia o capitão do barco de pesca.

Ele se calou sob o olhar gelado do marquês. Os olhos azuis-claro de Ville-d'Avray iam de um para o outro e tinham a dureza da pedra.

— Cuidado, vocês ambos! Posso ser mau!

— E verdade, ele pode ser - aprovou um dos irmãos Défour, dando um passo à frente. - Isso eu garanto. E de qualquer maneira, vocês, bretões - continuou ele, dardejando um dedo ameaçador na direçào do capitão e da tripulação do pesqueiro -, são estrangeiros aqui. Nossos assuntos com nosso governador ou com os animais de nossas florestas dizem respeito a nós, acadianos, e não a vocês. Desapareçam daqui e deixem-nos acertar nossas questões entre nós, senão os expulsaremos de nossas praias, e adeus bacalhau! Quanto a vós, acadianos da costa leste, se querem que as coisas esquentem, elas esquentarão, e vão esquentar mais do que o lixo de seu carvão cheio de enxofre que têm a audácia de vender dez vezes mais caro do que o nosso em Tantamare.

— O que está insinuando com o seu enxofre? - indagou o genro de Nicolau Parys, avançando de punhos cerrados.

— Paz! - exclamou o Marquês de Ville-d'Avray, interpondo-se, muito autoritário em sua casaca cor de ameixa e no colete flórido, entre os dois colossos. - Eu disse que não queria rixas e pretendo ser obedecido! Que todos retornem ao trabalho! O incidente está encerrado. Quanto a você, Gontran - dirigiu-se ele ao genro de Nicolau Parys, que o insultara -, pode preparar-se para esvaziar os bolsos na próxima coleta de impostos não pagos. Por Deus, não hei de esqúecê4o! E a voq| também não, Amadeu - continuou, batendo amigavélmentè*no braço de Défour. - Você é magnífico. Estou vendo que ano após ano aprendemos a nos apreciar. É uma.feliz-surpresa, jnas não há como a adversidade para a gente descobrir o fundo dos corações.

Sorrindo, ele olhou com satisfação á multidão se dispersar lentamente. Cantor inclinou-se sobre o. glutão, enquanto alguns criados vieram em silêncio recolher os cadáveres dos cães.

O Marquês de Vil]e-d'Avray estava, com os olhos úmidos.

- O gesto de Amadeu me emocionou muito - disse ele a Angélica. - Você viu o ânimo e a habilidade que aquele brutamontes usou para me defender?... Ah, a Acádia! Adoro-a! Decididamente, a vida é bela!

CAPÍTULO XXIV

Presságio de uma noite de horror

-Meu pobre Wolverines, eles o feriram - dizia Cantor, cuidando das chagas de -seu favorito. - Dizem que você é um demónio, mas é apenas um animal inoce.ite. Eles é que são demónios, os seres humanos.

Filosofava ajoelhado diante do glutão, que ele instalara diante do fogo para tratá-lo. ^olverines perdera muito sangue, mas seus ferimentos eram superficiais, e ele logo se recobraria. Ouvia Cantor, olhando-o com muita atenção, e suas pupilas, quando ele não estava dominado pela necessidade de de.ender-se e enfrentar um inimigo a que precisava inspirar terror, tinham profundos reflexos dourados, uma melancolia e como que a expressão ansiosa de uma criatura muda que não pode exprimir-se, mas que compreende.

— Sim, você entende - dizia Cantor, acariciando-o -, você sabe onde estão o mal e a loucura. Eu teria feito melhor se o deixasse na floresta em vez de trazê-lo para o meio destes animais selvagens, os homens.

— Também na floresta ele teria perecido - observou Angélica, oprimida pela amargura que vibrava nas palavras do filho. - Lembre-se de que quando o achou ele era pequeno demais para sobreviver... Você não podia ter feito outra coisa senão criá-lo. Uma das faculdades do homem é poder corrigir as leis intransigentes da natureza.

— As leis da natureza são diretas e simples - retorquiu Cantor, circunspecto.

— Mas cruéis, também, em suas exigências. Seu glutão sabe disso. Prefere estar conosco, humanos, a ter perecido miseravelmente na floresta, sem a mãe. Isso se vê nos olhos dele.

Cantor estudou pensativamentco grande animal peludo, que, apesar do peso, podia ser tão ágil e flexível.

— Então o seu destino terá -sido o de vir partilhar conosco nossa vida? - indagou, fitando Wolverines' rios olhos. - Com que finalidade? Qual será seu papel entre nós? Pois um glutão não é um animal como os outros, e é verdade que ele é habitado por um espírito particular, e é por isso qúe os índios o temem e o odeiam tanto. Os exploradores das. florestas dizem que ele é o animal que tem a inteligência mais próxima da do homem. Parece que pode julgá:los..peio seu yalor moral e que capta por instinto o âmago da verdadeira natureza deles. Um glutão sabe reconhecer um-homem maw e não lhe dá trégua. Perrot me contou que um canalha se J^a-via refugiado na floresta. Um glutão da vizinhança, cuja fêmea(c) homem havia-matado, passou a odiá-lo. Chegou a ponto-de furar-lhe os baldes e destruir-lhe todos os caldeirões. Oque fazerem um balde, sem. uma panela, no inverno, quando não se' pode sequer derreter uma bloco de neve sobre o fogo? O homem teve que levantar acampamento e retornar, cóm uma dificuldade imensa, para uma região habitada. O glutão não lhe dava um instante de„descanso. O homem estava como louco e dizia qúe um demónio invisível lhe estava no encalço.

— Que interessante! - comentou Ville-d'Avray. - Eu deveria levar um animal desses para Quebec. Seria muito divertido!

— O que não impede qué Piksarett nos tenha abandonado - disse Angélica. - Pretextou que precisava encontrar Uniakê, mas senti que o caso de Wolverines o perturbou. Será que ele voltará?

— Voltará, se nãofor tolo. O que há entre os índios e o glutão é uma rivalidade entre animais da mata dispostos a sobreviver a todo custo. O glutão destrói as armadilhas sem se deixar apanhar, porque sabe que a armadilha se destina a capturar o animal e a matá-lo. É uma máquina de morte, que ele precisa destruir, e, se ele torna inutilizável a presa que já se encontra na armadilha, é para punir o homem e desencorajá-lo a voltar ao seu território. Naturalmente isso enfurece os índios. Pois o glutão costuma ser mais forte, e certos lugares onde ele reina têm que ser abandonados. Dizem que são malditos, defendidos por um demónio...

Conversar assim distraía-os de preocupações mais trágicas. A noite, porém, trouxe uma trégua. Fechando-se nas cabanas e recomendando turnos de ronda aos vigias, divididos entre os homens de Ville-d'Avray e os de Angélica, eles podiam saborear uma relativa quietude até o dia seguinte. Mas o drama recente de Maria, a Meiga, e o incidente com Cantor e o glutão, que estivera a ponto de redundar em algo mais grave, retesavam os nervos e espantavam o sono. Eles atiraram na lareira um punhado de giestas e preferiram tagarelar até tarde, antes de se separarem para um sono curto e agitado.

Angélica mostrou ao marquês o lenço bordado com um grifo que ela encontrara na bagagem da duquesa, e ele confirmou que eram as armas dos Maudribourg, pegando do bolso do relógio uma pequena lupa para examinar o bordado.

— Este trabalho deve ter sido executado por uma operária flamenga. Ela tem o mesmo selo no forro do manto que usa, perto da gola. O bordado das armas é todo em ouro e prata. Uma maravilha, de uma. delicadeza de teia de aranha.

— O manto! - exclamou Angélica. - Foi no manto, de fato, que notei, sem prestar atenção, o símbolo do grifo... Mas então ela retornou a Gouldsboro com um manto marcado com as armas dos Maudribourg... Ela já não pode alegar que o manto lhe foi dado por um capitão desconhecido... Agora está tudo claro. São cúmplices mesmo que ela vai encontrar nas ilhas e a quem dá ordens.

Angélica estava toda excitada com sua descoberta. Puxara um fio e agora vinha toda a meada: o navio com o galhardete alaranjado rondando e começando a embaralhar as pistas, depois ela, Ambrosina, chegando da Europa no La Licorne, deixando o navio antes do naufrágio, reaparecendo em Gouldsboro como vítima infeliz, naufragada, despojada de tudo, para enganar melhor os espíritos, frustrar as desconfianças que podia despertar.

Angélica também estava certa de que havia uma relação entre o selo do grifo e a assinatura no bilhete encontrado na casaca do causador de naufrágios morto.

Em toda parte enxergava correspondências, coincidências flagrantes, evidências, mas às vezes o que ela desejava determinar lhe escapava, deslizava-lhe da compreensão como uma gota de mercúrio que se tenta pegar em yãorNa verdade nada se relacionava. Tudo não passava de detalhes ínfimos, leves como palha soprada pelo vento.       

Barsempuy e Cantor não pretendiam menos do que atear fogo a tudo e matar todos os bancados e a perigosa mulher. Angélica e o governador da Acádia recomendavam uma atitude mais paciente e como que indiferente, qiíeenganaria os inimigos. Cada dia que ganhassem os aproximaria do retorno do Conde de Peyrac.

— Mas por que ele não chega? - repetia Cantor. - Por que nos abandona assim?

— Ele nem sabe que estamos aqui - observou Angélica. - A culpa também é minha. Nunca permaneço no lugar onde ele imagina que estou. E entendo que às vezes ele se exaspere com isso. Daqui para a frente vou me corrigir...

O que Angélica vivia, nas proximidades daquela mulher que pretendia -haver seduzido Joffrey, e descobrindo a cada hora um aspecto mais inquietante e perigoso do seu poder e astúcia, parecia-lhe como a prova mais insuperável que já tivera que enfrentar.

Ela sentia a situação até no próprio corpo, e se seu espírito permanecia firme, repelindo a dúvida e procurando conservar o autodomínio, por vezes uma angústia incontrolável a dominava e vinha-lhe a impressão de que se derretia por dentro, dissolvia-se, e que ia desmaiar num espasmo de medo, numa espécie de pânico que lhe gritava loucamente: "Está tudo perdido... Tudo, tudo!... Você não vencerá desta;vèz... Ela é mais forte..."

Com um esforço .ela se recompunha, acalmava-se. Mas seu mal-estar era tal, que a punha gelada; banhada em suor. Em várias ocasiões, durante a noite, precisou levantar-se para ir ao banheiro.

Era um local bem rústico e desconfortável, situado a alguma distância. Angélica teria preferido atravessar sozinha o Atlântico ou léguas inteiras de deserto. A noite enevoada, com uma lua invisível, parecia carregada de malefícios careteiros, de armadilhas, de horrores sem nome. O cheiro úmido de salmoura e peixe subia da praia, como o ranço de um fosso aberto e pútrido que a rodeasse. Ela temia tropeçar, ser engolida pelo fosso. Onde estava o amor naquele pesadelo? Onde estavam a segurança da alegria, a felicidade de existir? Os monstros fervilhantes dos infernos tinham saído dos abismos e rastejavam pela areia na di-reção dela... A Diaba mataria Cantor... Joffrey não voltaria mais... Honorina ficaria órfã... Ninguém se responsabilizaria por ela. A menina seria menõs do que um gatinho perdido... E Florimond? Como pudera deixá-lo partir para o fundo das florestas inexploradas, rumo a tais perigos, sem entender que ele não poderia escapar, que nunca mais ela o veria de novo?...

Uma coruja piava, de modo irónico e sinistro.

Estava tudo perdido, tudo... E a morte ia chegar, e a derrota...

CAPITULO XXV

A caligrafia de Satã

E chegou o terceiro, dia dessa espera.

Um domingo. Oferecia:sé a ocasião de eles não permitirem que se criasse uma situação insustentável. Angélica e os seus, pouco numerosos, em face da»hõstilrdade geral, das desconfianças, medo da multidão £jue Ambrosina habilmente alimentava com seu encanto venenoso, não deviam isolar-se, precisavam proteger-se tanto quanto possível.

Sob a prateção de Ville-d'Avray, cuja habilidade naquela história era preciosa e que sabia mover-se com toda a desenvoltura, foram todos à missa, inclusive os dois homens do Rochelais, que eram protestantes, mas sabiam,adaprar-se às circunstâncias. Tinham assistido a outras em La Rochelle. Se era preciso, mais uma vez, lograr os malditos papistas, saberiam usar de astúcia!

Somente Cantor se recusou a ir. Disse que temia, caso deixasse sozinho o glutão ferido, que alguém viesse liquidá-lo na ausência de todos. Angélica o fez prometer que se manteria quieto.

O ofício durou duas horas. Toda à população branca e indígena do vilarejo assistiu à missa piamente, e ninguém pareceu sofrer com o sermão do recoleto que oficiava e que não parava de falar da necessidade de se pedir a-intervenção da Virgem Maria e de todos os santos do calendário bretão quando se está às voltas com as artes dos demónios, particularmente os demónios do ar, que nos impelem a escapar do trabalho, das nossas obrigações terrestres para vagabundear, descuidados das armadilhas que essas negligências acarretam, etc.

-. A homilia foi bem compridinha - disse Ville-d'Avray, enquanto a multidão se dispersava depois da última genuflexão. - Sempre me espanta ver as tripulações engolirem tão devotamente os intermináveis sermões de seus capelães. Mas um predicante que fale muito a marinheiros de anjos, de santos e do Diabo e que faça uma boa salada com eles todos sempre cumpre bem seu ofício. Todos os marujos, sobretudo os bretões, têm uma tendência enorme a cair de joelhos. Aliás' parece que o sermão os acalmou... Eles-andam inquietos. Sopram maus ventos na praia nesta temporada. Alguns começam a deserta/, um jovem desapareceu há dois dias. O capitão esbraveja e encarrega o capelão de chamá-los à ordem. Mas, também, por que esse homem foi se deixar apanhar na rede da nossa cara duquesa?... Ela lhe perturba o espírito, e a disciplina relaxa. Azar dele e de todos os que se deixam apanhar nas malhas dela. Não está esse casca-grossa do Parys falando em casar-se com ela?...

-        O senhor, que é versado em todo tipo de ciência - disse-lhe Angélica -, conhece a ciência que consiste em ler o caráter de alguém pela letra? Já faz algum tempo que quero mostrar-lhe um documento que me intriga.

Ville-d'Avray admitiu que tinha apenas algumas noções de grafologia, mas acabou confessando que era famoso pelos seus conhecimentos do assunto.

Voltaram para casa e, depois que o marquês se instalou outra vez em sua rede, Angélica entregou-lhe o papel que encontrara no bolso do provocador de naufrágios.

A expressão dele se animou, e foi com uma espécie de solicitude que ele pegou o pequeno pedaço de papel.

Mas, assim que bateu os olhos ali, mudou de cor.

— Onde conseguiu estes garranchos? - perguntou, dardejando na direção de Angélica um olhar penetrante.

— Encontrei o papel no bolso de uma roupa - respondeu ela.

— E o que mais?

— Mas o que esse criptograma tem de tão notável?

— Mas... é o que mais -se aproxima da letra de Satã!

— E alguma vez já se viu a letra de Satã?

— Oh, sim, claro, existem alguns exemplares. O mais notável, da fonte mais autêntica, data do século passado, do processo do Dr. Fausto, e foi escrito sob ditado satânico. Todos os peritos estão de acordo e identificam o espírito do mal nos caracte

res. Em geral Satã se assina com o nome de um de seus sete demónios principais. Assim, no documento faustiano, assinou Asmodeu. E este? ...

Examinou a assinatura confusa onde Alftgélica tivera a impressão de distinguir um animal mítico.

— Belial! - murmurou.

— Quem é Belial?

— Um dos sete príncipes negros em questão. É um demónio que aparece belíssimo e que é como que Q agente mais ativo de Lúcifer. Tem um caráter feroz e dissimulado, mas sua bela aparência, cheia de encantos, quase faz<rue se duvide disso. Ele desenvolve a força genésica, erótica, mas também destrutiva, e tem a reputação-de ser o mais perverso dos demónios do inferno. E também um dos mais poderosos, pois comanda oitenta legiões de demónios, ou Sefa, mais de meio milhão de maus espíritos.

Ville-d'Avray meneou a cabeça, pensativo.

— Oitenta.legiões! Estamos'bem arranjados!

— Acha, como eu, que essa letra poderia ser a dela?

— Esta letra se parece com aquela mulher...

— Belialith! - murmurou Angélica.

Permaneceram em'silêncio por um longo momento. Ele se estirou de novo na redé"e bocejou."

— Por que deu ao seu navio o nome de Asmodeu? - perguntou Angélica.

— Uma ideia assim, que me passou pela cabeça. Asmodeu é o superintendente das casas de jogo do inferno, foi ele que tentou Eva no paraíso terrestre, é a serpente!... Eu gostava dele. Gosto muito de brincar com os demónios. Afinal de contas, não passam de uns pobres-diabos. È ninguém os lamenta... Os teólogos se enganam ao acusá-los de todos os males. É o espírito do mal associado ao homem que é horrível.

Angélica olhou sem poder dissimular o espanto.

-        Está dizendo coisas muito profundas.

Ele corou ligeiramente.

-        Estudei teologia e até demonologia. Eu tinha um tio bispo que queria legar-me seus benefícios. Houve uma época em que lidei com as ciências sagradas para agradar a ele. Mas realmente não gosto de me restringir a um único domínio, de modo que renunciei à substancial renda abacial de meu caro tio. No entanto, gosto bastante de discutir essas coisas com algumas pessoas escolhidas. Em Quebec, hei de apresentar-lhe o Irmão Lucas, que lê o taro melhor do que ninguém, e à Sra. de Castel-Morgeat, que é mais sábia do que uma abadessa, e também à pequena Sra. d'Arreboust, desde que ela se digne a sair'de seu retiro em Montreal. Ela é muito interessante. Gosto dela como de uma irmã. Vem a Quebec apenas por minha causa. Não vem nem pelo marido, embora ele merecesse. E um excelente amigo meu. Mas estou sonhando! Você o conhece! Ele até a visitou no inverno no seu forte de Wapassu... Mais um que você pôs de ponta-cabeça... Assim como Loménie-Chambord. E vai perder a coragem por causa de oitenta legiões de espíritos e um único demónio encarnado!... E verdade que ele é um sucesso, mas... Vamos, para você, Angélica, isso é uma brincadeira!... Por que me olha com esse ar estranho, bela amiga?

- Será que nós dois não estamos ficando loucos? - murmurou Angélica.

CAPÍTULO XXVI

O fim da velha governanta de Ambrosina

— O que não entendo - disse Angélica, olhando com atenção para o rosto redondo, que lhe pareceu inchado e pálido, de Petronilha Damóurt, .sentada a sua frente perto da lareira -, o que não entendo é por que a Sra. de Maudribourg levou Maria, a Meiga, no-:bote e hão você. Claro que ela sabia que o La Licorne ia naufragar, mas, se a tivesse levado consigo, você não teria precisado atravessar aquela horrível provação.

— Sim, é o que eu repito comigo mesma o tempo todo - exclamou a governanta, com tanto arroubo, que por pouco não virou a xícara de tisana que tomava.

Angélica conseguira fazê-la entrar em sua casa. Sentada no banco, diante dela, a gorda aia aceitara um medicamento que Angélica lhe recomendara para as dores de estômago. Bebia o líquido ruidosamente. Também ela mudara. Em consequência de demasiados naufrágios esgotantes, de emoções e fadigas excessivas para uma mulher de idade e naturalmente esfalfada e sedentária, seu comportamento traía .arguns sinais de senilidade. As mãos e os lábios tremiam-lhe ligeiramente. Os grandes olhos claros tinham uma expressão fixa, com uma espécie de sorriso vago. O tempo todo ela parecia saborear a vaidosa satisfação de compartilhar de um segredo importante. Vendo-a assim vaga, Angélica entendeu que não ganharia nada se lhe fizesse perguntas precisas. Resolvendo jogar com tudo, pusera-se a falar como se estivesse a par das preocupações da governanta, e parecia que suas reflexões encontravam eco no cérebro confuso da pobre mulher.

-        Tem toda a razão ao dizer isso, senhora - aprovou Petronilha, balançando a touca amarrotada e um pouco fora de lugar. - Naufrágio é uma coisa que a gente não devia ter que enfrentar na vida. A água é muito fria. Entra pelos olhos, pelas orelhas, pela boca, e nunca se sabe quando vai acabar. Nunca mais vamos sair destas praias, destes navios. Meu coração não vai aguentar isso. Ela se agitava. Angélica pegou-lhe a xícara das mãos.

-        Devia ter descido com ela para. aquele bote - disse, numa voz apaziguadora. - Isso lhe teria evitado uma prova tão dura! Surpreende-me que ela não a tenha pedido que a acompanhasse, você que lhe é tão cara e sem quem ela não pode passar!

Angélica avançava a passos lentos, prudentes, retornando a uma cena com a qual, sentia ela, a governanta se atormentara muito.

-        É que ela sabe que não gosto do irmão dela - disse esta.

Irmão?... O coração de Angélica deu uma batida de alerta, mas ela se conteve de fazer uma pergunta... Sem dizer palavra, passou à interlocutora mais uma xícara de tisana. Petronilha Da-mourt tomou alguns goles, mas estava pensando em outra coisa.

-        Eu bem que tinha esperança de nos livrarmos dele, aqui na América. Mas qual! Ele estava à espera dela. Foi ele que enviou aquele barco para buscá-la. No entanto, eu lhe disse, e o Sr. Simon, o capitão, também dizia: "Não é prudente, está escuro, o mar não está bom, talvez haja recifes por aí, eu não conheço a região, e, depois, já estamos avistando a costa e as luzes; espere até que estejamos ancorados". Mas qual! Vá alguém fazê-la dar ouvidos à razão quando o irmão a chama!

Bebeu mais um pouco, gulosa.

-        Isto faz bem - suspirou.

Angélica retinha o fôlego, temendo distraí-la com uma palavra de seu rosário de pensamentos confusos.

— Não que ela lhe obedeça - continuou a gorda -, ela não obedece a ninguém, mas precisa vê-lo, parece que esse seu Zalil é o único ser no mundo com quem ela pode entender-se. Nunca entendi isso. Ele dá medo, aquele homem com aquela cara cavada, os olhos de peixe morto. Não sei o que ela vê nele. Aliás, bem se vê que a presença dele por aqui nos trouxe azar. Naufragamos, e muita gente boa morreu.

— Por que o irmão dela a esperava na baía Francesa?

O tom interrogativo pareceu despertar Petronilha do seu monólogo inconsciente, e Angélica entendeu que cometera um erro. A aia a encarou, desconfiada.

-        O que lhe estou contando? A senhora está me fazendo dizer tolices!    

Quis levantar-se, mas hãó conseguiu esboçar um gesto. Um terror repentino parecia prégi-la ao assento.

— Ela me havia proibido efe falar com a senhora - balbuciou. - O que foi que eu fiz? O que .foi que eu fiz?

— Ela a matará?

— Não, a mim não - disse a velha Petronilha, com um sobressalto de orgulho e fervor.

Tivera a mesma reação que Maria, a Meiga.

-        Então sabe que ela é capaz de matar - disse Angélica baixinho.

Petronilha Dameurt pôs-se a tremer. Angélica insistiu em que falasse, tentando .dêspertar4he a consciência, fazê-la entender que se redimiria da cumplicidade parcial com os atos criminosos da ama, atos que ela Hão* pudera ignorar inteiramente durante todos aqueles anos em que a servira dedicadamente. Foi em vão. Não conseguiu arrancar-lhe mais uma palavra, nem fazê-la confirmar que o navio-que tinham avistado várias vezes era o do irmão de Ambrosina7o homem" pálido.

Ela não sabia nada, dizia e repetia. Nada! Nada! E batia os dentes. Só sabia de uma coisa: se desse um passo para fora daquela casa, "eles" a matariam... E parecia decidida a permanecer ali até o fim dos tempos.

— Estamos bem arranjados com essa barrica às costas! - exclamou Cantor, quando Angélica o pôs a par da situação, bem como a Ville-d'Avray. - Em todo caso, não podemos botá-la para fora, ela está com medo, de ser assassinada.

— E talvez não esteja enganada - observou Ville-d'Avray.

A noite a Duquesa de Maudribourg mandou chamar a aia. Angélica avisou que a velha tivera urna indisposição e que passaria a noite em sua casa para que pudesse tratá-la. Teve medo de que Ambrosina viesse em pessoa, mas esta não apareceu.

A noite foi agitada. Petronilha só saía de sua prostração para gemer e chorar. Além do mais, estava com problemas intestinais, que o terror intensificava. Angélica teve que acompanhá-la várias vezes até lá fora, pois sozinha ela não teria conseguido dar dois passos. Em toda parte via monstros, assassinos escondidos. Afinal Petronilha se lembrou de que trazia no retículo um remédio eficaz para esses mal-estares. Angélica administrou-lhe o tal remédio, e elas finalmente puderam descansar.

De manhã, parecia melhor. Fizeram um conselho em torno da mesa, onde o cozinheiro de Ville-d'Avray e seu auxiliar lhes serviram a primeira refeição. Tentaram convencei a pobre governanta a conservar uma atitude natural e a voltar para junto das Moças do Rei. Era a melhor maneira de não atrair suspeitas. Logo o Sr. de Peyrac estaria ali e tudo se arranjaria.

Petronilha pareceu retomar coragem. Ville-d'Avray contribuiu para que ela se recobrasse de todo ao dizer que adivinhara, só de vê-la, que ela era do Dauphiné, é puseram-se ambos a conversar sobre a província natal.

A fim de não depender da hospitalidade de Nicolau Parys, Angélica organizara as coisas de modo a fazer as refeições em casa com Ville-d'Avray, Cantor, Barsempuy, Défour e o filho de Marcelina.

Apesar de tudo, eram momentos de descontração que o espírito de Ville-d'Avray tornava agradáveis. Um modo de se sentirem fortes, de não se sentirem demasiado isolados naquela atmosfera sinistra.

De repente a Duquesa de Maudribourg apareceu na soleira. Vinha acompanhada de seus cavalheiros habituais: o velho Parys, o capitão de Faouet, o proprietário de uma senhoria a algumas léguas de distância, que as percorria alegremente todos os dias para encontrar a bela duquesa.

Aparentemente toda aquela gente voltava da missa.

A duquesa usava um vestido de chamalote vermelho com reflexos afogueados. O traje dava-lhe à cabeleira escura reflexos um pouco arruivados. Assim, contra a luz, ficava ornada de uma espécie de auréola. Entrou, dizendo:

- Venho saber de você, Damourt. O que foi que lhe aconteceu, minha cara?

A gorda governanta empalideceu e se pôs a tremer com todos os membros. A expressão de pavor que lhe invadiu as feições inchadas a transformou a tal ponto que seu rosto ganhou ares de caricatura medonha, com olhos arregalados, bochechas tremulas e os lábios grossos pendendo, de onde caíam migalhas de bolo. O momento foi tão penoso que- neiíi; mesmo o mundano marquês encontrou uma "palavra- ou uma tirada espirituosa para romper o silêncio opressivo.-,

— Mas o que tem vocêafinál, Petronilha? - indagou Ambro-sina, com uma nuança de'surpresa ria voz angelical. - Parece que lhe dou medo!

— Não cuidei sempre bem da senhora? - gaguejou a velha, enquanto seus lábios .deformados esboçavam um sorriso lastimável. - Era como minha filha, não-é verdade?

Ambrosina correu os olhos aterrados pelo grupo.

— O que"está acontecendo com ela? Parece que não está bem...

— Eu a mimei, não foi? - continuava a infeliz. - Deixei que gozasse de todos os,, seus prazeres e áté a ajudei...

— Mas ela perdeu a cabeça - cochichou Ambrosina, olhando para Angélica. - Eu tinha notado que ela andava um pouco esquisita ultimamente. Recomponha-se, minha boa Petronilha - continuou em voz mais alta e aproximando-se da aia, que parecia um sapo grande fascinado por uma serpente. - Você está um pouco fatigada, não e, mas isso não é nada... Tem somente que se tratar. Tem com você aquele remédio que geralmente lhe faz bem? Ah, ei-lo aqui...

Com solicitude, pegou do retículo de tapeçaria bordada da governanta o frasco contendo as pastilhas que Angélica já lhe administrara durante a noite precedente, colocou duas na xícara que Petronilha tinha a sua frente," depois, com sua mão alva, pôs um pouco de água na xícara e levou-a aos lábios da doente.

— Beba, minha pobre amiga. Beba, isto lhe fará bem. Estou desolada de vê-la nesse estado. Vamos, beba...

— Sim, senhora - tartamudeou a outra -, a senhora é muito boa... sim, sempre foi boà comigo.

Suas mãos, que tentavam segurar o recipiente, tremiam tanto que o líquido se lhe derramou na blusa. Ambrosina ajudou-a de novo. Desajeitada, a mulher bebeu com ruído, como uma criança gorducha e assustada.

-        Que infelicidade! - comentou a duquesa a meia voz, dirigindo-se ao grupo. - As provações que não cessam de abater-se sobre nós acabaram perturbando-lhe o espírito. Ela é idosa demais para correr riscos assim. Tentei dissuadi-la de acompanhar-me até a América, mas ela não queria separar-se de mim.

Bruscamente Angélica captou a expressão de Cantor, que estava perto do glutão, diante da lareira. Os olhos do adolescente e os do animal, fixos em Ambrosina, brilhavam com a mesma chama de medo e ódio implacável.

-        Ah, como me dói! - gemeu Petronilha Damourt, levando as duas mãos ao estômago. - Ah, vou morrer!

E as lágrimas lhe jorraram dos olhos, inundando-lhe o rosto pálido como sebo. Angélica levàntou-se, decidindo-se a sacudir a estranha apatia que a mantinha pregada ao escabelo.

-        Venha, Petronilha! - disse. - Venha. Vou ampará-la até a retrete.

Aproximou-se da aia e se inclinou para ajudá-la a erguer-se. A duquesa soltou a meia voz:

— Essa velha não lhe dá nojo? Decididamente você é muito... generosa. Eu não poderia. Ah, a ruína humana, que coisa terrível!

— Ela vai me matar - gemia Petronilha Damourt enquanto Angélica a levava, não sem dificuldade, por um caminho árduo que elas já haviam percorrido inúmeras vezes desde a véspera. - Ela vai me matar, do mesmo modo como matou o duque, e o. abade, e Clara, e Teresa, e a abadessa, e o rapaz que a tinha visto pela janela, e o criado, era um bom sujeito, eu não queria... Não estava certo o que ela fez. Eu lhe disse isso, mas ela riu... Sempre ri vendo alguém morrer... E agora vai me matar também... A senhora disse, eu vou morrer, e ela rirá, vou morrer, estou sentindo, que Deus me perdoe por meus pecados...

— Fique aí - disse Angélica, a quem esse monólogo de pesadelo deixava toda arrepiada e que se sentia quase tão doente quanto a miserável criatura -, não saia daqui até se sentir melhor. - E a enfiou na retrete. - Volte somente quando tiver recuperado a calma. Vou tentar convencer a duquesa a deixá-la conosco. Direi que você tem uma doença contagiosa... Tenha coragem, não demonstre seu pavor na frente dela...

Na sala, Ambrosina continuava muito sedutora, uma rainha entre seus súditos. Ville-d'Avray lhe dizia:

-        O Dauphiné é uma bela região, falávamos dela há pouco. Você a conhece, duquesa?

Ele recuperara a desenvoltura, talvez ate demais. O tema do Dauphiné era delicado, pois Ambrosina ocultara quê era originária daquela região, dizendo-se natural do Poitou a fim de travar amizade com Angélica mais facilmente.

-        É uma região de revolta e de independência - explicava o marquês -, devido aos platôs perdidos, onde as populações vivem isoladas dos vales durante no mínimo dez meses no inverno. Os ursos, os lobos...

Conversaram assim de modo intermitente, e Angélica tinha a impressão, devido à presença de Ambrosina, -à sua beleza irradiante, aos sentimento dissimulados de todos, de que estavam banhados nurn-clima de comédia sinistra e irreal.

O eterno cheiro de maresia ede podridão vindo das praias onde secava o bacalhau, onde derretiam ao sol os fígados empilhados sobre estrados e largando seu óleo precioso mas malcheiroso, acentuava a sensação geral de náusea.

O tempo já não tinha dimensão.

— A velha Petronilha não volta - disse de repente o jovem Cantor, que até então permanecera silencioso.

— É verdade! Faz mais de uma hora que estamos falando - constatou Ville-d'Avray, consultando o relógio trabalhado a ouro -, e ela ainda não voltou.

— Vou ver o que aconteceu - precipitou-se Angélica, antecipando-se ao movimento de Ambrosina.

Mas todos a seguiram, movidos" por um pressentimento, que se acentuou quando, aproximando-se, avistaram o esboço de um ajuntamento.

Tombada, meio escorada entre as paredes do exíguo aposento, entre os miasmas do próprio vomito, a velha estava morta. Tinha a pele cinzenta e como que salpicada de preto.

-        E horrível! - murmurou o Marquês de Ville-d'Avray, levando o lenço de renda às narinas.

Gelada de horror, Angélica hesitava em entender, em acreditar naquele crime.

"Ela a envenenou agora, há pouco, na nossa frente!... Na nossa mesa? Quando placidamente lhe preparou o remédio. Sub-repticiamente pôs o veneno na beberagem! Fez que ela bebesse a morte sobros nossos olhos!"

Alçou para Ambrosina um olhar assustado, incerto. E viu luzir nos lábios da duquesa, no esboço de um sorriso fugidio dirigido a ela, o deleite do triunfo e a expressão de um desafio satânico.

CAPITULO XXVII

Aristides Beaumarchand chega com seu navio - A partida de Cantor

-Meu pai precisa voltar imediatamente - disse Cantor com voz de criança aflita"- jjsejião vamos todos morrer. O que é todo esse pesadelo? Será que eu estou sonhando?

Sua autoridade-pveme frágil cedia diante da profundidade do abismo entrevisto.

-        Venha, meu Cantdr - disse Angélica, estendendo-lhe os braços.

Ele se sentou perto dela,, apoiando.a testa no ombro da mãe.

— Você vai embora - - disse-lhe ela -, vai procurar seu pai, esteja ele onde estiver, vai dizer-lhe que se apresse.

— Ir embora - disse ele, amargo -, isso não é simples. Só raramente os navios vêm ancorar na enseada. O Rochelais não pode estar aqui antes de duas semanas. Com uma casca de noz eu seria capaz de atingir a Terra Nova ou de explorar todo o golfo, mas não temos nem isso.

Estavam reunidos diante do fogo, os poucos fiéis agrupados em torno de Angélica, seu filho e o Marquês de Ville-d'Avray na noite daquele dia em que já haviam sepultado o corpo da velha falecida de manhã.

O enterro não pudera esperar. Parecia que as carnes flácidas, fanadas e já inchadas da aia ainda em vida"se decompunham a olhos vistos. Às pressas, abriu-se um túmulo, murmurou-se uma absolvição, cobriu-se tudo de terra e plantou-se uma cruz. Um vento de pânico soprava sobre as Moças do Rei, lívidas e mudas, sobre os bretões supersticiosos, murmurando que o azar rondava sobre os habitantes, acadianos e índios, que temiam uma epidemia de peste ou varíola...

A atmosfera de hostilidade e desconfiança que reinava contra os recém-chegados, sobretudo desde a cena com o glutão, acentuava-se ainda mais.

— Você vai partir - repetiu Angélica para Cantor, a quem ela sentia como o mais ameaçado agora. ~- Se não pode ir por mar, irá por terra, cpmo fez quando estávamos na ponta Maquoit, e tentará atingir algum ponto da costa, um porto, Shédiac, por exemplo, onde poderá embarcar.

— Será que ainda posso fazer isso? Se os cúmplices de Ambro-sina estiverem rondando a floresta, não passarei.

Fazia alusão ao que Piksarett contara ao retornar da floresta. O índio notara dois veleiros ancorados numa angra vizinha e, entre os tripulantes, alguns rostos dos provocadores de naufrágios que tinham sido avistados na baía Francesa. Esses indivíduos que começavam a rondar pelos bosques adjacentes, comerciando um pouco de álcool com as índias, 'não seriam um anúncio dos reforços armados da diabólica duquesa?

Voltaram-se para Piksarett, que estava sentado diante da krei-ra e fumava seu cachimbo.

— Cantor pode partir pela mata sem risco? O índio meneou a cabeça negativamente.

— Então estamos cercados? - disse Cantor. Angélica continuou a dirigir-se a Piksarett.

— Acha realmente que esses marujos que rondam por aqui estão ligados à mulher cheia de demónios?   /

— O espírito me adverte que sim - respondeu Piksarett lentamente -, mas as certezas interiores não são suficientes, sobretudo quando se trata de brancos. Eu disse a Uniakê: "Tenha paciência, você não pode ir arrancar o escalpo de brancos nessa costa sem que seu gesto pareça louco, uma provocação de guerra..." Eles precisam revelar-se, mostrar-se como realmente são, para que o negror deles seja conhecido. Por enquanto, tudo o que estão fazendo é trocar um pouco de álcool para corromper as mulheres. Derretem pez na praia e reparam seus navios, conforme fazem todos os marinheiros que vêm para cá no verão. Não é o suficiente para exterminá-los. Há que esperar. Talvez um dia um deles venha ao encontro da mulher. Talvez seja ela quem tente encontrá-los. Ficaremos sabendo, a mata tem olhos.

-        Esperar - repetiu Cantor-E amanhã estaremos todos mortos.                 

Levantou-se, movido por um impulso.

— Vou matá-la! - disse, feroz- Deixar gente assim viver é um pecado. Devemosmatá-los antes que nos matem. Vou matá-la!

— Vamos - disse Barsempny, levantando-se também. - Estou com você, meu rapaz.

Angélica interveio.

-        Fiquem ambos tranquilos. A morte dela hoje, inexplicável aos olhos de testemunhas, acarretaria com quase toda a certeza nossa morte também: Temos que aguentar até que a verdade velha à luz. Então virá o castigo.

Sua mãe tem razão - aprovou Ville-d'Avray. - Se precipitarmos os acontecimentos, seu pai, o Conde de Peyrac, pode encontrar somente um-monte de cadáveres aqui. índios bêbados ia floresta, vadios dispostos a tudo sob as ordens de uma louca possessa, mulheres assustadas, homens extenuados, todos os ele-lentos estão-reunidos... Praias ensanguentadas nestas costas malditas no fim do verão são moeda corrente. E só o Diabo é capaz de descobrir por quê.."

-        Mas não posso deixá-la ela vai matá-la, mãe.

-        Não, a mim não - retrucou Angélica.

E, lembrando-se das palavras de Maria, a Meiga, e de Petronilha, retificou:

— A mim não, ainda não. Só me matará quando se sentir liquidada, anulada, perdida... Temos alguns dias pela frente.

— Vá, pequeno - insistiu Ville-dAvray. - Agora é você quem mais corre perigo,.porque é vulnerável. Ah, a juventude! Que inefável estado de graça! Como é tocante um rapaz encolerizado contra a vilania do mundo! Você tem que tentar achar um navio...

Angélica pensou em procurar junto aos pescadores bretões, a fim de arranjar um esquife no qual Cantor pudesse afastar-se. Abordou o Capitão Marieun Aldouch e, na esperança de convencê-lo, propôs cuidar do filho doente do capitão, que permanecia a bordo do navio ancorado na enseada. Mas o homem se mostrou hostil e desconfiado, e ela não conseguiu nada.

Quando Angélica passava, acompanhada de Piksarett, que não desgrudava dela, seguiam-se murmúrios ou risadinhas. Alguns cuspiam no chão, outros persignavam-se.

Mas, ao anoitecer do sexto dia, o céu veio-lhes em socorro na forma de um grande barco de vela quadrada, que entrou na baía e avançou até a margem antes de lançar âncora. Os ocupantes da embarcação tinham, visivelmente, a intenção de desembarcar para se abastecerem de água potável. O povo de Tidmagouche gritou-lhés que se afastassem, que não queriam -saber de estranhos por ali e que iam atirar. Mas o patrão da chalupa não se deixou convencer, e de longe, estupefata, Angélica reconheceu-lhe a voz de matraca.

-        Era de se ver uma costa no mundo onde um irmão não pudesse desembarcar!... Para trás, insolente, ou lhe estouro esses miolos de passarinho. Tenho exatamente o que é preciso para isso!

Aristides Beaumarchand, com uma pistola em cada mão, subia á praia seguido de Juliana e do negrinho Timóteo, ambos carregando barriletes e garrafões vazios.

Angélica correu ao encontro deles, que não pareceram demasiado surpresos.

— Estou contente em revé-la, senhora. O Sans-Peur ainda não chegou?

— O Sans-Peur?

— Essa gente por aqui é bem mal-encarada - continuou Aristides -, eu tenho um bocado de experiência com gente mal-encarada!

— É o acaso que o traz por aqui?

— Sim e não. Sabíamos que o Sr. de Peyrac viria encontrar o Sans-Peur aqui no começo do outono, e Jacinto ficou de me trazer minha provisão de rum.

— Ele deve chegar em breve? - indagou ela, assustada com a ideia de que Jacinto Boulanger pudesse vir somar-se àquela reunião de bandidos.

— Quem sabe? Depende do vento que soprar do Caribe. Mas, como eles ainda não chegaram, vou embora. Os nativos parecem não gostar muito de visitas.

— São bandidos declarados, cuidado para não deixar seu barco sem vigilância - aconselhou Angélica, olhando inquieta para o lado da margem onde o ajuntamento de gente aumentava.

-        Não há perigo - casquinou Aristides -, minha banheira está bem defendida.

Mister Willoagby estava empoleirado na proa e rosnava sem cordialidade alguma na direçao dos que tentavam chegar perto demais.

-        A gente fez um trato 'com o protestante de Connecticut - explicou o ex-pirata, enquanto se enchiam os barris na fonte que jorrava da falésia antes de sumir na areia..- Estamos fazendo cabotagem. Ele vende a sua merca'doria, e eu, a minha. Fizemos bons negócios em toda a Nova Escócia, mas aqui, nada. É o Canadá. As pessoas não intendem nada-de rum. Preferem a aguardente deles, de álcool de cereais. Enquanto esperamos que Jacinto venha para o encontro, a gente vai vivendo. Eu pensava ficar por aqui, mas isto cheira- mâl, e "não estou falando dessa imundície de bacalhau... É melhor não demorar.

- E o Sr. de Peyrac? - indagou Juliana. - Estou à espera cfeleTNão pode demorar-se. - Não deve serenada agradável para a senhora estar aqui sozinha - disse Juliana, farejando algo extraordinário, embora não fosse dada a espantar-se com nada.

— É terrível. Na realidade, £oi o céu que os enviou a ambos.

— Acha mesmo?

Aristides a olhou de viés, desconfiado. Era á primeira vez que lhe diziam isso, a ele e a Juliana.

-        Sim. Caímos numa armadilha da qual não podemos sair nem para ir procurar socorro. Levem Cantor com vocês.

Colocou-os rapidamente a par.do" que acontecia. Contou que, desde o começo do verão, gente mal-intencionada, talvez a soldo de governos que desejavam desencorajá-los de se instalar naquele canto da América, tentava-prejudicá-los de toda maneira e agora atentava contra suas vidas. Parecia que a Duquesa de Mau-dribourg era mais ou menos o chefe oculto deles.

Juliana empalideceu ao ouvir que a benfeitora não estava longe.

-       Então, será que nunca vamos nos livrar dessa ordinária?! - gemeu. - Mau-caráter, filha da puta, assassina... essa mulher e tudo. Não existe Deus para a gente boa!

— Então, numa palavra - disse Barriga Aberta -, as moças do La Licome eram mesmo para nós? Bem que eu lhe dizia! Não tomamos nada de ninguém... E a senhora, vamos deixá-la aqui, assim? Tenho obrigações para com sua pessoa. A senhora me costurou a pança, não foi?

— Salve Cantor e envie meu marido em meu socorro. Assim pagará suas dividas e compensará as peças que me pregou outrora.

O caso foi muito bem conduzido.

Para que ninguém tentasse interpor-se no momento da sua partida, Cantor, avisado pela mãe, despencou costa abaixo, com o glutão atrás de si, no momento em que a chalupa já zarpava.

Aristides segurava a vela, lançando uma enxurrada de insultos sobre os espectadores atónitos.

Cantor atravessou a multidão, entrou na água e, atirando Wolverines no barco, içou-se a bordo, auxiliado por Juliana e Elias Kempton.

-        Até a vista! - lançou a voz ciciante do pirata, enquanto a chalupa e sua carga heteróclita se afastavam na bruma do crepúsculo que subia.

Quem pensaria em persegui-los?

CAPÍTULO XXVIII

A duquesa lança suas farpas envenenadas

Sete dias. Maria, á Meiga, morrera. Petronilha, também. Cantor, ameaçado, frigira com o glutão... Os dias pareciam sem fim, ao mesmo tempo lentos e febris. O drama surgia com o relâmpago breve de urna trovõafla, e acreditava-se que se tinha sonhado.

Ambrosina entrou e se dirigiu-para a rede de Ville-d'Avray. O marquês estava-.ausente. A esta hora ia ao forte, para visitar Nicolau Parys. Já tinha- seus hábitos, a que se apegava tenazmente...

A duquesa estendeu-se na rede confortável com um prazer evidente e, com o braço sob"a nuca, lançou um olhar irónico na direção de Angélica.

-        Você se agitou muito nestes últimos dias, parece-me - disse com sua voz de sereia. - Reconheço que foi mais rápida do que eu. O belo arcanjo voou. Ora, era caça miúda! Tenho outras armas para atingi-la.

Angélica acabava de sentar-se diante da mesa, onde pousara o espelho de pé. O fato de saber que-Cantor estava fora de perigo a tranquilizava. Logo ele encontraria o pai, exatamente como fizera outrora, quando não passava de uma criança.

Assim, a intrusão de Ambrosina não a incomodou muito. Desatou o cabelo e pôs-se a escová-lo lentamente.

-        O que está esperando? - continuou a duquesa com sua voz açucarada, onde transparecia uma condoída ironia. - Reconquistá-lo. Ao seu Conde de Peyrac? Mas, minha cara, você o conhece mal, e quantas coisas lhe escaparam enquanto ainda estávamos em Gouldsboro! Eu quase tinha pena de você. Não queria que fosse lograda a tal ponto, pois somos ambas da nobreza do Poi-tou, e isso cria certo vínculo...

-        Não se dê ao trabalho - interrompeu Angélica friamente. - Já sei que você não é do Poitou. E, quanto à sua nobreza, suas armas são bem duvidosas, fortemente maculadas de bastardia.

Sua intuição feminina lhe soprara as únicas flechas capazes de atingir Ambrosina, e não se enganou. A duqutsa reagiu com vivacidade.

-        O que está insinuando? - exclamou, soerguendo-se. - As minhas armas de nobreza valem tanto quanto as suas!

Depois, mudando de repente de expressão, como fazia com frequência:

— Como sabe disso? Quem lhe contou? Ah, estou adivinhando. Foi aquele canalhinha do Ville-d'Avray. Eu bem sabia que ele me havia reconhecido. Suas comédias não me enganaram.

— O que tem Ville-d'Avray a ver com isto? - replicou Angélica, que temeu pelo pobre marquês e se arrependeu de haver provocado Ambrosina e despertado sua perigosa lucidez. - Confesso-lhe tudo. Um dia você se traiu em seu delírio, aludindo ao seu pai, o padre. Ser gerado por um eclesiástico nunca é para nós, católicos, um certificado de legitimidade. Quanto a saber que você nasceu no Dauphiné, foi Petronilha Damourt que me confiou isso.

Permitiu-se a mentira. A pobre governanta já não tinha nada a perder. 

— Aquele sapo velho! - silvou Ambrosina. - Fiz bem em...

— ...matá-la - concluiu Angélica, enquanto continuava a passar a escova pelos cabelos com sangue-frio. - Claro, tendo em vista tudo o que ela estava a ponto de me confiar a seu respeito, agiu com prudência.

Ambrosina ficou em silêncio por um longo momento. Respirava com dificuldade, e as suas narinas fremiam. Por entre as pálpebras semicerradas, seu olhar examinava Angélica com grande atenção.

-        Eu soube na hora - disse afinal -, assim que a avistei lá na praia, perto dele, soube que você não seria uma adversária fácil. Depois me tranquilizei. Você parecia terna e boa. As pessoas ternas e boas não têm defesas. Mas logo me desiludi. Você é coriácea, imprevisível... Como fazer para dobrá-la, enfeitiçá-la? E uma pergunta que ainda me faço. Em que reside o segredo de seu encanto e de sua sedução?. Acredito que você é realmente um ser humano sem artifícios. Eva devia se parecer com você.

-        Já me disseram isso.

Os dentinhos da duquesa faiscaram como os de uma loba prestes a morder.                 

— Ainda assim o demónio levou a melhor sobre ela - sibilou. E, após uma pausa:

— O que há entre o Conde de Peyrac e você, diga-me? Angélica fitou-a.

— O que há entre mim e ele, as criaturas de sua espécie não podem entender.

— É mesmo! E qual, é a minha espécie então?

— Diabólica!

Ambrosina se pôs-arrir, um riso zombeteiro, mas onde soava algo como orgulho.

— Mas é vejdade, eu não entendo - continuou. - Confesso. No entanto, sou muito instruída em todas as ciências. Mas você, logo de começo, constituiu um mistério para mim... Lá, na praia... e depois quando acordei... doente daquele sono horrível... Tinha visto monstros a minha espreita... um demónio com olhos nas nádegas, outro com biçcrde ganso..."Sei como se chamam... Eles me aterrorizavam... E quando, acordei vocês dois estavam a minha cabeceira... Eu sentia que ele estava ardendo para levá-la dali e fazer amor com você e que você estava impaciente por acompanhá-lo, que nada existia realmente para vocês, senão os instantes que iam seguir-se, somente para vocês, para seus corpos, e que, por não sei que graça desconhecida, seriam felizes como no paraíso. Para mim, a noite que tombava seria aterrorizante e amarga; para vocês seria divina,.. Que crueldade na sua pressa em deixar-me! Eu não passava de-um destroço rejeitado pelo mar. Quando vocês se afastaram, sofri de maneira atroz... Pareceu-me que minha alma se arrancava ao meircqrpo. Gritei... como um danado que despenca no inferno.

— Aquele grito! Eu me lembro! Mas eu voltei atrás, perguntei a Delfina e a Maria, a Meiga, que estavam à janela e que pareciam não saber de onde ele viera...

Ambrosina deu o seu sorriso execrável e maravilhoso.

-        O que você pensa? Que elas não sabem fingir? Eu treinei bem as minhas fiéis! Mentiriam ao próprio rei para me agradar. E àquela altura elas estavam apavoradas porque me haviam desgostado. Eu lhes dera a ordem de retê-la a qualquer preço durante a noite inteira a minha cabeceira. Eu não queria que ele a levasse embora! Mas elas falharam...

Ambrosina rilhou os dentes.

-        Ah, você frustrava meus planos o tempo todo! Às vezes você me dava medo, parecia prestes a adivinhar-me. Eu encontrava uma dificuldade enorme em desviar sua atenção. Até a sorte parecia estar do seu lado. Quando a Sra. Carrere entrou e tomou o seu café, quase pareceu como se você a tivesse chamado... Ah! Gouldsboro - murmurou ela, meneando a cabeça -, não sei o que existe lá... Eu não me sentia à vontade. O que eu realizava não avançava como de hábito... Por quê? Por quê?

Angélica suspendera os movimentos para ouvi-la com atenção.

"É a América", pensou, "talvez tenha sido o Novo Mundo que nos salvou dos malefícios dela. Aqui se é obrigado a viver exposto. Não se zomba da natureza. Depois, por força das circunstâncias, as pessoas são treinadas para desconfiar de tudo: dos índios, do mar, do vento que muda, dos piratas que podem surgir. Isso as torna mais atentas, menos fáceis de cair nesse mel envenenado."

Ambrosina continuava sonhadora, deitada com os braços sob a nuca.

-        Eu lembro... No começo...

E Angélica admitiu consigo e malgrado seu que havia naquele timbre um pouco velado, onde por vezes se traía como que uma hesitação, um encanto a que era difícil resistir, e que era impossível deixar de ouvi-la com fascínio.

-        No começo... Eu a via apaixonada por tantas coisas!... Era ao mesmo tempo um espanto e um susto. Não sabia como lhe cativar a atenção. Apaixonada-por aquele amor... Era o seu polo... Apaixonada pelos seus amigos... Abigail... e até por este país...

Sim, você amava este país... e a mim não enxergava. Aprendi a odiar o mar... As aves que passavam...

Fez uma pausa, pareceu refletir.

-        Ele! Eu tinha certeza de que um dia o arrancaria a você... Não queria saber o que existia entre vocês... Mas Abigail, que sofrimento!

Falava de dentes cerrados, com uma intensidade implacável que de repente lhe fazia os olhos' arregalados faiscar.

-        Aprendi a odiar o mãr porque você o amava, e também odiava os pássaros porque os achayá belos... e o vôo deles, extraordinário, quando passavam ao milhares, em nuvens que escureciam o céu... Quando você levantava jo rosto, eu tinha vontade de distraí-la do amor que sentia por eles...

Ergueu-se mais um pouco.

-        Mas hoje você ji não osvê - disse num tom de triunfo indizível -, nem sequer sabe que neste momento os gansos selva

gens do outono cobrerrro céu... Consegui pelo menos isso. Você já não enxerga as aves.

Voltou a-cair para frás. -Parecia esgotada.

-        Ah! Por que vjocê amava tantas'coisas, tanta gente, e não a mim? Menos a mim, somente!

Pareceu cuspir estas últimas palavras numa convulsão de raiva onde se .exalava todo o seu narcisismo exacerbado.

-        Foi então que jurei a mim mesma que a destruiria, a você, a ele, a ambos, pela traição, o envilecimento, a morte, enfim, e a danação de sua alma.

A paixão que vibrava naquela declaração horrível atingiu Angélica como um golpe, e por longo tempo o frémito que a invadiu pareceu descer em circunvoluções cada vez mais profundas até alcançar uma zona de puro medo, medo abjeto, a única sensação que Angélica era capaz de sentir naquele instante.

"Se ela fala assim, pensou Angélica como uma criança aterrorizada, "é porque tem certeza da vitória. Quais são os seus poderes? De quem os recebe?"

Uma execração assim Angélica já ouvira ressoar numa voz de mulher, a da Sra. de Montespan... Mas agora era pior! "A danação de sua alma." Quem podia pronunciar uma ameaça dessas sem estar dominado até a medula por um ódio sem remissão?

Para que lutar? Não escaparia de tamanha força de destruição dirigida contra ela!

Teve medo de que seus dedos sobre o cabo da escova e do pente começassem a tremer. Teve medo, sobretudo, de que, num reflexo de defesa e horror, se atirasse sobre a criminosa para pô-la fora de combate, matando-a. Com um animal selvagem que a atacasse, ela poderia fazer isso. "Mas tome cuidado", recomendava-lhe uma voz interior, "um ato como esse, por mais justificado que seja, lhe custará caro demais, principalmente a ele e aos seus filhos. O que e que se faz diante de um animal selvagem quando se está desarmado? Conserva-se o sangue-frio. Lembre-se! É a única chance... Se é que há uma chance!"

Lentamente recomeçou a passar a escova pelos cabelos. Depois sacudiu-os sobre os ombros. Ambrosina se calara e a observava. Tombava a noite.

Angélica levantou-se para pegar um candeeiro de estanho na beirada da lareira, colocou-o perto do espelho, sobre a mesa, e o acendeu. O espelho lhe devolveu a própria imagem, um rosto pálido, meio mergulhado numa penumbra submarina. Mas ficou atónita de ver nos próprios traços uma inesperada expressão de juventude. Sempre fora assim. A ansiedade, a angústia davam-lhe às feições uma expressão juvenil. Ambrosina reiniciou:

— Abigail e as crianças, seus favoritos, aqueles índios fedorentos que a faziam rir, os feridos de quem cuidava como uma mãe, e seu gato, e o urso! Tive ciúme do urso e tive ciúme até da velha Miss Pidgeon quando você foi consolá-la depois da morte daquele grande imbecil do Patridge.

— A esse também você matou?

— Eu? O que está dizendo?

A duquesa arregalava os olhos inocentes.

— Não se lembra de que ele se bateu em combate individual com Luís Paulo de Vernon?

— O jesuíta a havia desmascarado. Tinha que morrer. Mas como conseguir isso sem atrair muitas suspeitas? Um jesuíta não se deixa matar assim. Então, você ou alguém dos seus espalhou o boato entre os ingleses de que eles seriam levados como cativos para o Canadá. Você sabia que isso seria o bastante para tornar o pastor perigoso como um javali.

Ambrosina pareceu encantada.

-        Hábil, não foi?

A necessidade que Angélica sentia de estrangular Ambrosina, ou no mínimo esbofeteá-la, dava-lhe náusea.

Permanecia impassível, adivinhando que, caso cedesse, ultrapassaria os limites da prudência.

Ambrosina pareceu cansar de não conseguir fazê-la perder o controle. Levantou-se da rede e se aproximou de Angélica, que lhe vigiava os movimentos. A jovem agora lhe dava a impressão de um animal venenoso, e a mera percepção do perfume dela enchia-a de mal-estar. Ambrosina "parecia divertir-se de vê-la empalidecer.

Para manter a compostura, ela abriu sua sacola e arrumou seus acessórios. Ambrosina, maquinalmente, olhou dentro da sacola e soltou uma exclamação.

-        O que é isso?

Acabava de notar o bastão de chumbo que Angélica tomara das mãos do homem que Piksarett matara na praia de Sargouche.

— Como & que você possui tal objeto? - indagou a duquesa, dardejando S"ebre Ajigélica um olhar cruel, arregalado.

— Foi um bandido de Paris que me deu, um dia.

— Não é verdade!

-        E por que não seria verdade?

Os olhos de Angélica faiscaram.

-        O que você tema ver, afinal, com esta arma de provocador de naufrágios, Sra. de Maudribourg? Em que isso pode interessá-la? Como pode saber que eu só posso ter conseguido esta arma de um dos bandidos que liquidam os naufragados na baía Francesa nesta temporada? Ê você, não é, quem lhes ordena os crimes que cometem? É você o chefe misterioso deles?... Belialith!...

Agarrou Ambrosina pelos pulsos.

-        Hei de desmascará-la - disse, de dentes cerrados. - Farei que seja presa, encarcerada... será arrastada pela Place de Greve... Hei de denunciá-la à Inquisição, hei de fazer que seja queimada como feiticeira!   

Ás cóleras de Angélica haviam sempre desconcertado seus adversários. Nasciam no instante mesmo em que eles estavam iludidos pela sua distinção de grande dama, que não se permite as explosões vulgares do povo, iludidos pela revelação feita por ela da vulnerabilidade de seu coração facilmente emocionado com a vilania alheia.

Eram enganados pela perfeição de sua beleza, que com freqiiên-cia se associa no espírito das pessoas com a ideia de imbecilidade, e logrados pelo seu aparente alheamento, que era tomado como uma confissão de derrota, pelas suas estocadas verbais num estilo mundano cujas armadilhas não eram percebidas. Seus inimigos mais astutos, os mais cruéis, acabavam acreditando-se senhores da situação è da sensibilidade de uma mulher em quem haviam desferido todos os golpes.

A cólera de Angélica era a tempestade que surge em alguns segundos num horizonte limpo, antes que se tenha tempo de arriar as velas; o vagalhão imprevisto e traiçoeiro que vira o barco.

A intensidade dos sentimentos que ela exprimia era tamanha que a impressão era a de que o próprio destino falava por sua boca.

No instante em que, debruçada sobre a duquesa, pronunciou essas palavras terríveis, a labareda da fogueira da Inquisição pareceu erguer-se entre elas, gigante, crepitante, estrondosa, consumindo com convulsões cruéis aquele corpo da Diaba, e a própria Ambrosina não pôde escapar a essa evocação.

-        Mas... você é assustadora - gemeu. - Como é que você pode ser tão má?... Ai, ai! Solte-me, está me machucando.

Angélica largou-a com tanta brusquidão que a duquesa cambaleou e foi desabar sobre a rede. Ficou ali sentada, esfregando os pulsos doloridos.

— Você me enfiou as pulseiras na carne - queixou-se com voz chorosa.

— Eu queria é enfiar-lhe uma faca no coração - retrucou Angélica, feroz -, mas esse dia há de chegar! Você não perde por esperar.

Novamente Ambrosina a olhou espantada. Depois, atirando-se para trás na rede, pôs-se a rolar em todos os sentidos, torcendo os braços e soltando gritos inarticulados, palavras sem nexo que aos poucos se tornaram inteligíveis.

-        Oh, Satã! - gemia ela. - Oh, meu amo! Por que me obrigou a atacá-la? Ela é de uma crueldade inaudita... Não aguento mais. Por que ela?... Por que ele me forçou a atacá-la? Por que ele veio me açular com seu olho azul que trespassa como uma safira?... Por que permite que criaturas assim existam na Terra, você, que é o senhor do universo?... Ele é mais forte do que você?... Quando o liquidará afinal,?'Ele já lhe escapou uma vez... Oh, minha bela infância! Ele e seu olho azul e as mãos cheias de sangue! Ele e Zalil gotejando de sangue "humano. Estávamos todos em suas mãos, Satã! Mas elé fugiu de você... E agora me aterroriza... Entregou-me a estaíriatura medonha... Ela! Ela! Angélica! Ela se chama Angelical Terihá piedade! Tenha piedade!

Soltou mais um gemido desesperado, depois se esticou e ficou imóvel, enrijecida, num estado de semjcatalepsia. Angélica presenciara o delírio com susto mesclado de opressão. Aquela mulher era má, demoníaca" e, ainda por cima, louca rematada. Como escapar disso?

Quando o silêncio voltou a reinar, ela estava sem forças, em pé perto da mesa, escutando o sopro do vento em torno do casebre. Às vezes se ouviam os murmúrios dos homens, vagando da praia até o vilarejo, e um som muito distante que se assemelhava, nostálgica ao grito dos lobos-marinhos.

Limbos sinistros para os seres que tinham ofendido a Deus, urgatórie onde âs almas abandonadas deviam enfrentar espíri-os do mal e tormentos a fim de melhor apreciar o preço do bem, o dia em que lhes fosse dado rever a luz...

Ville-d'Avray, arranhando à-porta e entrando em sua casa, com eu sorriso amável, seus saltos vermelhos, seu colete florido e a casaca ameixa, pareceu a Angélica a criatura mais incongruente que se poderia encontrar naquele lugar maldito.

O sorriso do marquês apagou-se como que por encanto quando ele viu Ambrosina deitada em sua rede.

-        Ela pegou minha rede!

Tinha a expressão aborrecida de uma criança mimada de quem se tirou o brinquedo favorito. Muito descontente, foi sentar num dos bancos de tora, perto da lareira.

A meia voz, Angélica colocou-o a par de sua última conversa com a duquesa e das ameaças de que fora-alvo. Ele ficou fora de si.

-        Desta vez ela ultrapassou os limites! Tanto pior! Vou usar da minha autoridade de governador para mandar prendê-la e vigiá-la.

Depois, entendendo a utopia da declaração, balançou a cabeça.

-        Nada a fazer, infelizmente! Estamos encurralados. Ela foi mais rápida do que nós e agora está desenfreada, vendo a nós, um grupinho de indesejáveis, cada vez mais a sua mercê.

Baixou a voz mais ainda.

— O lugar está cheio de homens suspeitos. Comentei com Nicolau'Parys que os bretões fariam melhor de se ocuparem do seu bacalhau em vez de andarem por aí armados até os dentes. O que significa isso?, perguntei eu. E ele respondeu que não são homens do pesqueiro de Marieun Aldoch. Então quem são esses sujeitos de maus bofes que vêm a sua casa sem se anunciar?, indaguei eu. Ele pareceu aborrecido e respondeu que achava que eles vinham de dois navios ancorados ao sul, do outro lado do cabo...

— Entendi. Nossa duquesa está introduzindo seus cúmplices no local.

Ele deu uma piscadela e cochichou:

-        As oitenta legiões.

Depois, recompondo-se:

-        Tanto pior. Havemos de lutar. Nossa salvação, agora, reside em nosso sangue-frio, em nossa vigilância e na intervenção rápida do Sr. de Peyrac. Temos que agaentar até lá. Mas assim que sairmos deste vespeiro, hei de queixar-me a Quebec. Irei mais

adiante até: escreverei a Paris. Eles têm a mania, em Paris, de tomar as colónias como uma fossa e despachar para elas os inde sejáveis, os loucos e loucas em posição demasiado elevada para serem atirados em Bicêtre como um joão-ninguém. Você acha, minha cara, que foi puro azar viajar para o outro lado do mundo e topar com uma duquesa em toda a liberdade possuída pelo Diabo, mas está enganada! Isso é uma fatalidade calculada e cuidadosamente preparada por nossos funcionários reais. É do outro lado do mundo que a gente encontra essas loucas que nem os conventos querem mais, nem a corte, os exorcistas ou qual quer pessoa em estado decente. Azar dos que as herdam, deviam ter ficado em casa, pensam lá em Paris! Quando penso em todos os aborrecimentos que devo a essa Messalina! O meu Asmodée embaixo d'água, os festejos do meu aniversário interrompidos quando a comemoração estava no auge. E você nem viu Marcelina abrir mariscos! E muito aborrecido! Em suma, a temporada está perdida. E por culpa de quem? De funcionários mais cegos do que toupeiras, lá em Paris, que, com a pena de ganso atrás da orelha, decretam o povoamenío-das colónias. Mas isto não vai ficar assim! Vou escrever ao próprio Sr. Colbert. Eu o conheço; você também, suponho. É um homem muito diligente, muito capaz, mas demasiado ocupado, e depois, o que quer você, esses grandes burgueses a quern o rei-protege, há nuances que lhes escapam. Trabalham comodatos,'imaginam que se faz o mundo girar com um registro bem traçado no papel, que basta alinhar escudos para que o ser humano se mantenha equilibrado... Enfim, o que se quer, o mundo muda. Não podemos fazer nada!

— Não fale tão altohEla vai nos ouvir.

— Não! Encoritra-se em estado de catalepsia, completamente inconsciente. Uma maneira covarde de fugir à fadiga de viver e de enfrentar as consequências dos seus atos.

Pegou a tabáqueirá'cfe um bolso e inalou. Seus espirros sonoros não perturbaram em nada o sono de pedra de Ambrosina.

-        Loucura, .possessão, encarnação diabólica!... Parece que esta noite ela jogou conycohfissões, derrota, o medo que você lhe inspira, para amolecê-la, mas não se deixe engodar. Com criaturas assim, há que estar sempre alerta!

Depois, em voz alta é em outro tom:

-        Mas não fique aí plantada como um círio, Angélica! Está fresco esta noite. Venha sentar perto do fogo e conte-me exatamente suas transações com o Sr. Colbert nos velhos tempos! Afinal de contas, somos aliados, não?

A Duquesa de Maudribourg, emergindo aos poucos do sono letárgico que a prostrara, achou-os conversando tranquilamente diante da lareira sobre as cotações do cacau no mercado mundial.

-        Deseja que eu a acompanhe até sua. casa, cara amiga? - ofereceu-se pressuroso o galante marquês ao vê-la levantar-se.

Mas Ambrosina, lançando--lhe uma olhada sombria, encaminhou-se para a porta é saiu..

CAPÍTULO XXIX

Insónia entre tormentos demoníacos

Demonologia, possessão, loucura!

Assombrada por essas palavras, ela despertava do seu sono febril, e durante alguns instantes tudo parecia calmo.

Uma noite, no golfo, homens adormecidos que roncavam, um índio acocorado perto de um braseiro, roendo com seus dentes de doninha uma bolota de gordura de alce, a lua vogando atrás do nevoeiro translúcido...

Seus temores, suas suspeitas, tudo parecia loucura. Penosamente, tinha que lembrar que em alguns dias duas mulheres tinham morrido e que sobre eles pairavam ameaças latentes, nascidas das alucinações homicidas de uma criatura enlouquecida.

Do fundo da noite, algo tangia, cadenciado e martelante. Os tambores dos índios e suas flautas estridentes. "Estão começando a se embriagar", dissera Ville-d'Avray. Nas florestas que os cercavam, povos em delírio iam exceder-se, mergulhados na magia do álcool, da aguardente, a límpida, a ardente, a corrosiva fonte dos sonhos, que propiciava a união com os deuses invisíveis.

Atrás deles, aquelas matas perigosas; à frente, o mar salobro no horizonte fechado pela neblina, de onde parecia que recurso algum poderia surgir.

Ainda assim, o mar lhes trouxera a arca de Noé de Aristides. Era como se os demónios, ludibriados, deixando passar aqueles careteiros espécimes de humanidade, tivessem tomado como gente sua aqueles seres de parte alguma, vogando na crista das ondas sob o signo da Quinquilharia e do Rum adulterados, o Negrinho, o Urso, a Prostituta, o Mascate, o Tratante...

Qual máscaras de farsa antigas, tinham vindo imiscuir-se naquela tragédia muito bem regrada, sem que se pudesse saber de que coxias saíam, e isso talvez fosse osinal de que a Diaba começava a fraquejar diante da tagarelice dos homens e da inacreditável desordem deles para viver, embaralhando de repente, sem escrúpulo algum, as cartas do jogo. tão sabiamente distribuídas. Cantor escapara, Cantor encontraria o pai, como já o encontrara outrora...    

Os gritos de Ambrosina durante sua-crise, fingida ou real, tinha traído uma inquietação, uma perturbação. Algumas imagens perdiam a força contundente, murcliavam como uma bexiga sob a alfinetada de uma ingénua realidade terrestre. Debatendo-se num estado de vigília, Angélica via um olho de safira implantar-se na testa de Ambrosina, que caValgava o animal mítico, o unicórnio branco e cruel que vive no fundo das florestas.

CAPÍTULO XXX

Mosaico de tramas e maldades

O unicórnio com o chifre espiralado tentava penetrar na casa. Chocava-se contra a ombreira da porta, e os raios do sol faziam cintilar-lhe o dorso de ouro puro.

Finalmente conseguiu entrar na cabana de Angélica, e atrás dele surgiu a cabeça feíssima do Capitão Job Simon.

Ele aprumou o longo corpo desengonçado, e o topete da sua cabeleira grisalha quase tocou as vigas do teto.

— Confio-o à senhora - disse no seu vozeirão. - Vou embora, mas não posso levá-lo.

— Mas eu não quero saber desse animal em minha casa! - exclamou Angélica.

— Por quê? Ele não é mau!

Pousou a mão sobre a cabeça do unicórnio de madeira dourada.

-        E é bonito! - murmurou, com amor.

Angélica notou que ele estava com a sacola de marinheiro a tiracolo.

— Vai partir?

— Sim.

Tinha o rosto devastado, tomado pela barba grisalha. Desviou os olhos.

— No outro dia, a garota. Anteontem, Petronilha... Era uma boa mulher. Nós nos entendíamos bem. Não agiiento mais isso, vou embora! Chega! Vou embora com o grumete, é tudo o que resta...

— Não passará - disse Angélica a meia voz. - "Eles" estão na mata, estão aqui mesmo agora...

Job Simon não perguntou de quem ela estava falando.

— Sim... eu passarei... Só que meu unicórnio... confio-o à senhora. Voltarei para-buscá-lo quando puder...

— Não voltará - repetiu Angélica. - Ela não o deixará escapar, há de lançar seus homens em seu encalço, você sabe muito bem disso, os mesmos homens quê fizeram seu navio afundar e dizimaram sua tripulação.

O velho Simon fitbu-a cornar assustado, mas não disse palavra. Pesadamente se encaminhou para a porta, onde o aguardava o grumete na orla da floresta.

— Uma palavra, capitão... antes que leve seu segredo para o túmulo - deteve-o Angélica. - Você sempre soube que não estava indo para Qúebec; você, navegador de profissão, não é? Que era a Gouldsbõro, na baía Francesa, que devia ir. Como foi que pôde permitir assim- que sua reputação de piloto se maculasse, e até calar-se depois,'dó que aconteceu?

— Ela me pagou para isso replicou ele.

— Como foi-.que lhe pagou?

Novamente ele olhou receoso para Angélica. O lábio tremeu-lhe, e ela achou que ele fosse dizer algo. Mas conteve-se e, de cabeça baixa, afastou-se, seguido do grumete.

Pouco depois, Angélica, cansada, sentada face a face com o unicórnio, viu chegar o Marquês de Ville-dAvray. Muito excitado, ele fechou a porta, passou o trinco, foi verificar se a janela estava bem fechada e se ninguém podia surprender o que ele tinha a revelar.

-Sei de tudo - declarou, encantado -, de tudo mesmo.

Em meio a seu júbilo, nem pensou em se sentar e pôs-se a falar, andando de um lado paraoutro.

-        O velho Job Sjmon veio fazer-me confidências. Disse-me que lhe teria confessado tudo de bom grado, mas que sentia muita vergonha perante você, uma senhora, não é? Mas o fato de a gente se ter comportado como um idiota não é motivo para continuar a fazê-lo, segundo suas próprias palavras,, que eu transmito. Em suma, ele me contou tudo o que sabia, e somando isso às informações do Sr. Paturel e às suspeitas que concebemos acerca das ligações da Duquesa de Maudribourg com esses navios de provocadores de naufrágios, a história toda fica clara. Conforme eu duvidava, tudo parece ter saído de um daqueles antros malchei-rosos onde escrevinham os funcionários reais parisienses. Job Si-mon, à procura de carga, de frete, de comanditário para seu navio, viu-se envolvido no complô que já se organizava por lá no ano passado parã-fazer malograr as tentativas de colonização independentes do Sr. de Peyrac, seu marido, nas costas que consideramos, a justo título, diga-se de passagem', cara Angélica, e sem nenhuma cerimonia, que consideramos como pertencentes de direito à França... Sim, sim, eu sei, o Tratado de BredaL. Isso é um detalhe, vamos em frente, não quero entrar em detalhes. Então, como se tratava de desencorajar um intruso de instalar-se na baía Francesa, resolveram, e, para se determinar quem resolveu, digamos que os poderes resolveram organizar uma ação conjunta a fim de expulsar do território de Gouldsboro os importunos que se anunciavam um tanto empreendedores demais, um tanto seguros de si em demasia, um tanto ricos demais, um tanto fora do comum, um tanto... tudo. Perigosos, para concluir: seu marido e comitiva. - Ele continuou. - Concederam, então, cartas reais e cartas de corso ao navegador Barba de Ouro, que também andava à procura de terrenos para povoar, com a condição de que ele conquistasse o local que lhe seria indicado, local que até lhe venderiam, e que expulsasse o herege que ali se instalara indevidamente. Foi assim, suponho, que um homem de Colin que o acompanhava a Paris, aquele Lopes de que você me falou, numa antecâmara de Versalhes trocou algumas palavras com Job Simon, que também fora convocado. Job Simon lembra-se vagamente dele. Ambos teriam descoberto que estavam envolvidos na mesma história, incumbidos de desalojar certo Peyrac da costa do Maine. Isso explicaria a frase de Lopes: "Quando vir o grande capitão com a mancha roxa, saberá que seus inimigos não estão longe". Isto quanto à ação, digamos, exterior, guerreira. Barba de Ouro pode conquistar as terras de Gouldsboro, mas também pode fracassar... coisa, aliás, que aconteceu, pois os hereges infelizes que lhe haviam anunciado revelaram ser seus huguenotes duros de roer de La Rochelle. Receava-se também que, mesmo que Gouldsboro lhe caísse nas mãos, isso não bastasse para liquidar o homem que já possuía inúmeros entrepostos, minas, uma grande influência no país. E aí, então, que entra em jogo uma sutil maquinação que me faz desconfiar vagamente de onde veio a mais violenta vontade de repelir o Conde de Peyrac. Sim, com efeito - refletiu Ville-d'Avray,-pensativo -, um plano tão hábil, que estremeço de receio e admiração, pois adoro as combinações intelectuais, a habilidade de um cérebro para manejar criaturas como peões num tabuleiro, movê-las a distância apenas pelo conhecimento espontâneo de seu âmago. Resolvem, ouça-me bem, não somente terítatr'destruir a emergente força material do Conte de Peyrac, como também abater-lhe a força moral. Um homem desencorajado, que perca o sentido, daquilo que sua vontade fazia mover, já não se liga a um canto da terra que lhe traz amargas recordações.-Ele no mínimo vai embora; na melhor das recordações, suicidasse, deixâ-se matar. Seja como for, ficam todos livres dele. E dessa parte psicológica parece que foi a nossa duquesa diabólica-que se encarregou em particular. Ah, que habilidade! É desnortéãhte. Evidentemente não foi Job Simon que me explicou gessas surtilezas. Extrapolo a partir das confidências que me fez ejdo que ele teve a impressão de compreender, o coitado! Ele não foi maís cfb que um ingénuo para dar uma aparência inofensiva à chegada da sedutora ao local onde ela devia agir. Uma benfeitora rica, devota, exaltada, conduzindo a Quebec senhoritas para casar, Naufragando no litoral do Maine, apanhando em sua rede o senhor do-lugar... É bem uma história digna da ávida e maliciosa imaginação dela... A única dificuldade: obrigar Job Simon a acatar-lhe todos os caprichos e a calar-se... Não é fácil convencer um bretão. Bem, foi o que me contou sobre o La Licorne. Pelo menos quanto ao papel que esse navio foi levado a representar no complô...

-        Sente-se, Estêvão, peça-ihe, você me dá vertigem - interrompeu-o Angélica -, e abra a porta, está muito abafado aqui.

Ville-d'Avray foi abrir a porta.

-        É apaixonante, não é? - murmurou ele. - Você tem alguma coisa de beber? .

Angélica apontou-lhe uma moringa de água sobre a mesa. Ele matou a sede, enxugou delicadamente os lábios. Refletia com intensidade.

-        Presumo - continuou - que a Duquesa de Maudribourg tenha sido investida dessa delicada missão talvez por ser essa a oportunidade de a despacharem para longe, mas também porque tinha uma grande fortuna, meios com que pagar regiamente qualquer cumplicidade, e isso é importante.

Angélica resolveu falar-lhe daquela carta do Padre de Vernon que revelava uma espécie de coalizão entre o Padre d'Orgeval e a Sra. de Maudribourg.

- Então tudo se explica e ganha fundamento. Se ela é penitente dele, ele deve tê-la mandado para cá a fim de fazer penitência. Será que ele realmente tinha consciência de sua virulência e das devastações que poderia causar? Ou confessará que foi superado nas suas previsões? Manejar demónios, do modo como se manejam serpentes perigosas, não é arte das mais fáceis. O que mais me parece inadmissível é que todos esses cavalheiros de batina se tenham imiscuído nos assuntos da Acádia sem sequer me comunicar. Dividem o bolo antecipadamente, instalam-se, decretam, enviam-nos demónios ou brancos, e eu, o que faço no meio disso tudo? E uma insolência... Sem falar dos bandoleiros de estradas que têm a cabeça a premio e que vêm envenenar nossas costas. Há de tudo nesta história. Gente honesta, piratas um tanto suspeitos, mas de envergadura, como Barba de Ouro, malfeitores declarados e, conforme sabemos, mensageiros do inferno. - O marquês continuou: - Recapitulemos: Barba de Ouro parte primeiro. Depois de hibernar nas Caraíbas', onde faz uns traba-lhinhos com os espanhóis, zarpa nos primeiros dias da primavera para Gouldsboro, ataca, fracassa. Retira-se. Mas está bem decidido a vir enfrentar o Conde de Peyrac. E calha de capturar o chefe dos mercenários do conde, Curt Ritz. Depois é a você que captura, quando o acaso a conduz à baía de Casco. Pois, nesse meio tempo, você tinha entrado no jogo. No começo se tratava apenas dele, Peyrac, gentil-homem de aventuras, atribuindo-se o controle, a seu bel-prazer, sobre terra e mar. Depois, de repente, há uma mulher ao lado dele, uma mulher que, assim como ele, subjuga, fascina, soma a força de sua presença à força já pouco comum de que ele dá prova. E é demais! Lembre-se: abater-lhe a força moral. E vão atacar esse ponto sensível. O navio ou os navios dos cúmplices de Ambrosina chegaram à entrada da baía Francesa. Em Houssnock, tentam fazê-la cair nas mãos dos canadenses. Estando você morta ou cativa em Quebec, como o Sr. de Peyrac não se tornaria vulnerável para receber dos franceses as condições de rendição? Mas você lhes escapa. O acaso a leva até o navio de Barba de Ouro. -O Padre de Vernon vai buscá-la lá. Retornando de Nova York, foi prevenido de que devia apoderar-se de sua pessoa. Por quem? Jrfíeiativa dos cúmplices de Ambrosina ou daquele que, aposto, puxa os cordéis de toda esta história. Diante do jesuíta, Barha de Ouro inclina-se. Doravante você está entre as mãos dos que querem levar o Sr. de Peyrac a dar-se por vencido. Mas, novamente,, as coisas não vão se desenrolar "como de hábito", conforme se queixaria nossa encantadora duquesa. O Padre de Vernon, que sabe que'você é um peão importante na partida que está- sendo jogada, mas que não vê razões urgentes para fazê-la perecer ou atentar contra sua liberdade, deixa-a retornar sã e salva a Gouldsboro. A partir daí, confesso que me confundo um pouco. Parece que os homens do navio desconhecido intervieram para utilizar Barba de Ouro como ponto' de discÓFdia entre você e seu marido, a fim de levar toda a sua gente a se matar entre si... O que foi que aconteceu exatamente,- Angéliiéa,Tmnha amiga? Conte-me.

— Não -* disse Angélica. - Isso são problemas pessoais, e depois estou terrivelmente cansada.

— Você não é nada gentil - disse Ville-d'Avray, decepcionado. - Dou-me um trabalho inconcebível para desenredar-lhe essa meada, e você me recusa uma confidência...

— Prometo-lhe que um dia lhe contarei tudo, com pormenores...

— Quando estivermos em Quebec! - exclamou Ville-d'Avray, alegre.

— Sim, isso, quando estivetmos em Quebec - consentiu Angélica. - Por enquanto basta que saiba que adivinhou correta-mente. Eles calcularam tudo para que nos matássemos uns aos outros. Acha que Ambrosina já andava por aqui naquela altura?

— Não, mas o cúmplice dela, o.bandido que comanda os dois navios, sim. Ele pode muito bem terconcebido sozinho um plano maquiavélico. E tão diabólico quanto ela, falo-lhe dele daqui a pouco.

— Eu o vi. É o homem pálido, não é? Vi-o uma única vez, quando veio me dizer que o Sr. de Peyrac desejava ver-me na ilha do Velho Navio. Estranho! Eu estava exausta depois daquele longo dia de batalha que passei junto aos feridos, e admirei sua polidez, parecia um morto. Mas não me assustou. Segui-o sem apreensão.

-        E uma das propriedades dos seres infernais que se encarnam.

Se assustassem, ninguém cairia nas armadilhas deles. E em geral surgem quando a pessoa cansada relaxa a vigilância da intuição.

Angélica revia a cena. Seguira o homem através da baía desimpedida pela maré baixa. E na ilha aguardava-a Coiin... E Joffrey de Peyrac fora avisado por um bilhete anónimo de que ela se encontrava na ilha com o amante. Dirigira-se para lá e a vira na ilha com Colin... Uma noite inteira. Eles dois... E ele, espiando...

O marquês fez uma pausa, esperando que ela lhe comunicasse seu segredo, mas, vendo, que ela se calava:

-        Bom! - fez ele, com um suspiro. - Não vou insistir. Você haverá de contar-me tudo isso em Quebec, quando estivermos muito confortavelmente sentados diante de meu aquecedor holandês. Por ora limito-me a constatar que seu inimigo Barba de Ourp acabou como governador de Gouldsboro, e o Sr. de Peyrac continuou sendo o proprietário do feudo. Uma bela reviravolta; que não deve ter agradado muito aos nossos maquiavélicos conspiradores. Deve ter sido nesse momento que o La Licorne fez sua entrada em cena. Será que,Ambrosina teve desde o início a intenção de sacrificar o navio, á tripulação e até as moças por quem era responsável, a fim de desempenhar melhor sua comédia de chegada imprevista, ou será qlue tomou essa decisão ao constatar que, depois de tantos esforços despendidos, nem a força armada, nem a força moral do Sr. de Peyrac pareciam particularmente comprometidas? Eu apostaria como ela sempre teve a intenção de cometer esses crimes, levada pela obrigação de eliminar pessoas que não podiam ter sido informadas de tudo ou que sabiam demais. E depois, em dado momento, para certos espíritos, a loucura do crime pode tornar-se demente, desmedida. Somente a ampliação das catástrofes e o grande número de vítimas fazem vibrar o sentimento de poder desses espíritos e até de prazer erótico. Os cúmplices a esperavam no litoral, armados de lanternas. Job Simon, que nunca estivera por estas paragens, achou que atingira o seu destino. Eles mandaram um bote para resgatá-la antes que o navio fosse ao fundo...

— Por que ela quis salvar o filho de Joana Michaud?

— Mais comédia, que dava crédito à sua personagem de grandeza moral, personalidade feita de virtudes, de devotamento de abnegação. Ela tem que compor, em si mesma sua futura vida de Santa Ambrosina, segundo o, estilo das leituras de que ela se saturou nos conventos, Não foi emocionante a cena da chegada dela como náufraga?

— E como!

Mas, tão hábil, tão astuta, tão manhosa que era, não sacrificara algumas vezes a prudência à feminilidade? Reunira-se aos cúmplices e calçara as meias vermelhas, mesmo que pudesse despertar a surpresa,tlepois as dúvidas, as suspeitas até de uma moça ingénua como Maria;.a Meiga, que, na qualidade de camareira, sabia exatamente o que'a^ama trouxera da França no La Licorne. Outra vez fora o manto forrado de vermelho que ela trouxera de um passeiojio mar, e Angélica se espantara, e o perfume dela... Mas claro, o perfume~3ela! Alguém escapa de um naufrágio com a cabeleira luzidia e perfumada?

"E eu, uma mulher, deixei-me enganar nesse particular!", pensou Angélica.

Na verdade ela devia estar como cabelo encharcado, pegajoso de água do mar. Ora, o que de imediato chamara a atenção de Angélica fora o perfume e a beleza daquela cabeleira escura, como uma sedosa pelagem espalhada. Ela cuidava do cabelo com uma espécie de idolatria. Não conseguira negligenciá-lo, nem passar sem seu perfume, ainda que por alguns dias. Leviandade feminina também, quando dissera a Angélica: "O meu perfume... Você gosta? Hei de dar-lhe um pouco". E Angélica: "Mas eu supunha que tivesse perdido o vidro no naufrágio".

E se a Sra. Carrere se mostrara preocupada em relação à roupa da duquesa, repetindo várias vezes: "Essas manchas, esses rasgões, há alguma coisa de suspeito...", não fora porque, na qualidade de dona de casa atenta e experiente, as manchas e os rasgões lhe pareceram propositais? Disfarçar trajes de boa qualidade em andrajos de afogada, danificados pelo mar, pelos rochedos, pela areia e pelos sargaços, não era arte fácil e dada a todo mundo, e Ambrosina, que parecia gostar particularmente daquela toalete cintilante, não devia ter-se decidido de bom grado a estragá-la voluntariamente. Detalhes ínfimos, erros leves no conjunto do quadro tão magistralmente composto, mas que, despertando obscuramente o espanto das vítimas, haveria de permitir-lhes esclarecer aos-poucos a armadilha e desmontar-lhe as engrenagens.

— E ele, o chefe do bando, com o bastão de chumbo, o homem pálido, quem é? Petronilha me disse que é irmão dela.

— Job Simon me disse queé o amante dela, o amante titular. Bom! Digamos que seja irmão e amante. Incesto não é coisa de assustá-la. Sim, um filho de padre maldito, ou então da grande dama feiticeira que o gerou numa noite de sabá com Satã. Sabe, dizem que sémen satânico é glacial. Deve ser muito desagradável! O que acha?... Por que está rindo, cara Angélica?

— Você faz afirmações curiosas - respondeu ela às gargalhadas.

As horas do crepúsculo tinham chegado, de uma escura coloração alaranjada, o cheiro do bacalhau tornava-se mais opressivo, a angústia e a espera, mais dramáticas. Mas, no comportamento de Ambrosina, uma falha começava a vir à luz.

Ao passar, ouvira Angélica rindo, e essa espécie de alheamento e tranquilidade exibidos por ela e pelo Marquês de Ville-d'Avray despertavam as dúvidas e os receios de Ambrosina. Não podia adivinhar-lhe as causas e às vezes lhe vinha a suspeita de que estava lidando com uma espécie de gente desconhecida e mais forte do que ela. O espírito é ligeiro, mas a carne é fraca. O corpo da Diaba também cedia, atingido pela tensão daquelas horas intermináveis. A máscara cuidadosamente mantida se rachava, a ponto de marcar-lhe o rosto maravilhoso com sinais da idade, como se, sob o acúmulo de vilania, mentiras e crimes, um abscesso maduro começasse a rebentar e a purgar, gota a gota, trazendo à tona a expressão mais aterrorizante das loucuras.

Mas agora Angélica tossia, sentia a febre queimá-la, olheiras cercavam-lhe os olhos aumentados. Mais uma noite a passar.

-        Você não está bem - disse-lhe Ville-d'Avray no momento

de deixá-la. - Deixe-me ajudá-la a se desabotoar e pô-la na cama.

Angélica recusou, agradecendo muito. Aquilo não era nada. Uma tossinha que lhe dera. Ia dormir e no dia seguinte se sentiria melhor.

- Está errada não aceitando minha assistência - disse Ville-d'Avray, magoado. - Para meus amigos adoentados sou uma verdadeira irmã de caridade. Você é independente demais, Angélica, demasiado segura de si mesma para uma mulher... Enfim!... Pelo menos coloque na cama uma pedra quente para os pés.

Quando ele se foi naquela noite, ela teve que admitir para si que ele tinha razão. Ela estava'derreada e teve toda a dificuldade do mundo para se prepara para a noite. Nem teve forças para esquentar uma pedra na lareira, conforme ele lhe recomendara. De pés gelados e rosto ardendo, tentou conciliar o sono. O leito era duro, a coberta, pesada. Ela sufocava. Despertando de um sono agitado, que nãó conseguiu avaliar se fora longo ou breve, levantou-se para ir destrancar a janela. Piksarett velava do lado de fora, e os homens do.governador se revezavam na vigia, bem como Barsempuy e Défour... Angélica não tinha nada a temer, mas parecia-lhe que nenhuma guarda ou muro poderiam defendê-la realmente do que a ameaçava...

Queria deitar a candeia acesa,'mas o vento a apagou. Não conseguiu adormecer dê novo e agora estava com frio.

Na moldura da janela, a noite se diluía numa claridade cinzenta, ainda opaca, apenas contrastada com o preto tenebroso de uma folhagem contra ojeto, mas suficientemente cinza para que ela adivinhasse a sombra humana que passou rapidamente, ocultando por um breve instante o retângulo da janela. Angélica logo percebeu que alguém acabava de entrar em sua casa e se postava contra a parede, à direita.

Com a mão sobre a coronha da pistola, ficou à espreita, tentando surpreender o ruído de uma respiração. Nada. Mas ouviu um retinir de conchas e sentiu-um odor familiar. Piksarett! O índio!...

Angélica então desistiu de acender a vela. Se resolvera vigiá-la dentro de sua própria residência, é porque havia de ter suas razões! E, fato surpreendente, adormeceu quase em seguida, finalmente dormindo um sono descontraído.

Foi despertada por um ruído de luta. Era como se um animal pulasse pesadamente no soalho. O alvorecer ainda estava longe.

Desta vez Angélica acendeu a luz. E distinguiu Piksarett, que dominava alguém caído no chão.

— Ele entrou em sua casa.

— Quem é?

A chama revelou o rosto lívido e assustado de um jovem marinheiro, um bretão, parecia, que devia pertencer à tripulação do navio pesqueiro.

-        O que está fazendo em minha casa?.

Os lábios do rapaz tremiam, e ele não conseguia articular nenhuma palavra. Será que falava outra língua além do seu patoá gaélico?

— O que queria de mim? Finalmente ele conseguiu pronunciar:

— Pedir-lhe socorro... senhora.

— Por quê?

— "Eles" estão me seguindo - disse o jovem, que Piksarett mantinha ajoelhado diante de Angélica. - Faz quatro dias que tento escapar-lhes na floresta, mas não me saem da pista. O Pálido é o mais malvado, o mais hábil. Não sei quem "eles" são, mas sei que querem me matar.

— Por que quereriam matá-lo?

— Porque vi quem empurrou a moça do alto da falésia no outro dia. Mas ele também me viu... Desde^então tento escapar deles...

Angélica lembrou que o capitão bretão se queixara de que seus marujos começavam a desertar, que uni dos seus jovens desaparecera.

-- Você pertence à tripulação do navio pesqueiro, não é?

— Sim... Eu lido com a secagem. Tenho que correr o dia inteiro pela praia. Sou menos vigiado. Estava quente. Queria colher framboesas. Havia um navio que tinha vindo abastecer-se de água. O trabalho diminuía. Aproveitei. Subi até o alto. E... vi...

— Quem foi?

O infeliz rapaz olhou à volta com medo e sussurrou:

— O homem de óculos, o "que escreve para a duquesa.

— Armand Dacaux!...

Ele meneou a cabeça afirmativamente. E contou. Vira a moça chegar e o secretário falar com ela, apontar-lhe dois cestos que estavam perto da cruz. Ela se encaminhara naquela direção para apanhá-los, e então, nas pontas dos pés, o secretário se lançara atrás dela, que estava a pouquíssima distância da beira, e a' empurrara-'com violência.

-        Eu nem pensei em me esconder. Quando se virou, ele me viu... Então fugi para a mata... Queria tentar alcançar a praia, falar com meu capitão. Depois pensei que isso não resoiveria nada. Ele está louco por. essa duquesa. Perdeu a cabeça, embora seja durão. Mas ela... Pensei envchegar a outra praia, ao norte, e embarcar com uns malvinos que no final da temporada retornariam à França. Conheço o local, sei ir até lá. Venho aqui todo ano, desde que era grumete. Mas logo entendi que tinha homens no meu encalço. Eu me entoquei, escondi-me como pude, mas escapar deles, impossível! Então pensei em vir pedir-lhe socorro, à senhora, porquexompreendi que não faz parte dessa turma de bandidos. Uma noite eu estava em cima de uma árvore e eles não sabiam. Ouví-os conversando perto dó fogo. Falavam da duquesa, que é a chefe deles. Chamam-na de Belialith. Também falavam da senhora e dolirrde Peyrac. Diziam que ela precisava se decidir a matá-la antes que ele voltasse, porque ela é muito forte, mas a senhora talvez seja ainda mais forte. Foi isso o que me deu a ideia de tentar entrar no povoado, aproveitando-me da noite, para vir pedir-lhe ajuda e assistência.

Estendeu as duas mãos postas, trémulas.

-        Se realmente é mais forte do que ela, nobre dama,

socorra-me!

Piksarett, apesar do sotaque forte do bretão, parecia haver entendido o essencial do relato..

— O que se pode fazer? - indagou Angélica, dirigindo-se a ele.

— Vou levá-lo até.Uniakê - respondeu o selvagem. - Ele está entrincheirado num bom lugar, e agora temos reforços. Alguns mic-macs, parentes dele, subiram da grande aldeia de Truro. Os malecitas que se façam de descontentes. De todo modo, eles estão embriagados e já não sabem o que-dizem, nem o que querem. Um dia ouvem os homens dos dois navios ancorados atrás do cabo e que vêm trazer-lhes aguardente; noutro dia ouvem Uniakê, que é um grande chefe e que lhes diz que os gansos selvagens abandonarão os lagos de um povo que perde o espírito bem no outono, quando os gansos se preparam para visitá-los. Eles também se unirão a nós quando chegar o dia da vingança, e está próximo o dia em que os Filhos da Aurora sairão das matas para arrancar as cabeleiras de seus inimigos e dos que mataram nossos irmãos.

CAPITULO XXXI

Noite de vigília junto ao fogo do inferno

Para se distanciarem e ganharem o refúgio da mata, precisavam aproveitar a escuridão que ainda reinava. Piksarett levava o arco e as flechas. Sob a proteção do índio, o jovem poderia chegar são e salyo ao acampamento dos mic-macs. As duas silhuetas deslizaram para fora? logo se fundiram com a noite.

Angélica tiritava dejnal-estar. A febre não passava. Tossiu e, tentada a se enrodilha-f de novo sob as cobertas pouco confortáveis, censurou-se. Devia aproveitar o fato de estar de pe para administrar-sè alguns cuidados. Preparar uma bebida, por um curativo no pé, que infeccionava de novo, senão perderia as forças completamente e poderiam vir estrangulá-la na cama, como às rainhas malditas de antigamente, sem que ela pudesse sequer apertar o gatilho de sua arma.

Atirou um punhado de giestas sobre as brasas ainda ardentes e cambaleou através do aposento para ir pegar água na cuba. Encheu um caldeirãozinho, que pendurou à cremalheira. Rasgou algumas tiras de linho, preparos um bálsamo, escolheu ervas para fazer uma infusão e sentou-se na pedra da lareira, à espera de que a água começasse â ferver.

O esforço a esgotou. Ela estava encharcada de suor. Envolveu-se numa manta, apertando-a em torno, dos ombros, a maneira índia. Apoiou a testa na pedra, olhando as chamas dançar e deixando-se mergulhar num estado de vigília em que seus pensamentos vagavam, lúcidos, vivos, mas em que ela não tinha poder algum sobre os próprios atos; indolores, ela poderia dizer.

E a pessoa que entrou, aproveitando-se da porta entreaberta que Angélica nem pensara em trancar ou mesmo fechar, depois da partida de Piksarett, Angélica a sentiu menos como uma presença humana do que como um espírito que deslizava em sua direção, um fantasma, que teria podido igualmente atravessar ás paredes e perdia seu poder assustador de já não ser carnal.

Pensou rapidamente que Piksarett já não estava ali para defendê-la, que talvez precisass.e chamar alguém, armar-se. Mas seu instinto lhe confirmava que o perigo não visava - ainda não - à sua vida. E. não se moveu. O espírito a visitava. Era um jogo, haveria uma troca de golpes, correria um pouco de sangue, um arranhão, não era nada! A outra se retiraria lambendo os ferimentos. Era preciso aguentar. No outro dia, ou 10 seguinte, Jof-frey estaria ali...

-        Vi luz... - disse Ambrosina. - Então você não está dormindo?... Já não dorme "então"?

Queria revanche. Àpoiou-se à chaminé da lareira rústica, e o clarão das chamas modelou-lhe os traços de alto a baixo, dando esse relevo que atribuem às representações de Mefisto quando este surge aos olhos de Fausto vindo do braseiro do inferno. Sublinhados de preto, seus olhos amendoados tinham o brilho do ouro líquido, a curva de suas sobrancelhas parecia enorme, a ossatura salientada apagava a graça habitual da fisionomia e a transformava numa máscara feita de sombras e relevos de uma carne translúcida como alabastro.

A visão não era bonita nem feia. Era estranha. Parecia uma estátua de órbitas abertas pelas quais espiavam olhos humanos.

Angélica pensou que, sentada na pedra da lareira, beneficiava-se de uma outra iluminação e levava vantagem. Mas essa satisfação relativa foi efémera. Foi acometida de um acesso de tosse e precisou procurar o lenço.    

— Você está doente - constatou Ambrosina, com um júbilo intenso. - Veja qual é o meu poder. Em alguns dias você perdeu sua triunfante saúde.

— Todo mundo pode resfriar-se - disse Angélica -, são coisas que acontecem o tempo todo aos seres humanos sem que se precise convocar a legião dos infernos para isso.

— Você continua brincando - disse Ambrosina, rilhando os dentes -, é incorrigível! Não entende que vai morrer... Já deveria estar cem vezes morta... Se ainda não está, é porque eu não o quis de fato... Mas no dia em que eu assinar o decreto...

— Não, não é por isso. E porque, eu tenho "baraka".

— Baraka?

— É um destino. Os árabes diziam que eu tiirha "baraka". Mektub: é assim. Quer dizer que não morrerei da morte desejada pelos meus inimigos.   

— Tolices!

Mas a explicação de Angélica despertou uma inquietação na duquesa, que se pôs a andar de um lado para outro, envolta no seu grande manto negro. Tornava-se bela de novo, com os cabelos sobre os ombros, o rosto perfeito, ousado e animado, os lábios vermelhos revelando parcialmente ó brilho dos dentes.

— Diga-me - indagou Angélica, aproveitando a perturbação da outra, que ela adivinhava -, o que é o Padre d'Orgeval para você, afinal?   

— Conheço-o desde sempre - respondeu Ambrosina. - Éramos três crianças correndo pelos cafnpos, lá no Dauphiné. Nunca houve crianças tão fortes quanto nós! Éramos habitados pelo fogo, por mil espíritos ardentes. Nossos castelos ficavam próximos, eram residências sombrias e assombradas, e quem as habitava era mais esquisito e imprevisível do que os fantasmas. Havia o pai dele, feroz e aterrorizante, que o levava para matar protestantes; havia minha mãe, a maga, que conhecia a arte dos venenos; e meu pai, o padre que invocava o Diabo. Havia a minha ama, a mãe de Zalil, que era feiticeira e lhe ensinava a pregar morcegos nas cercas dos campos, a deixar sapos mortos nas soleiras das portas. Mas Sebastião era mais forte do que todos, com seus mágicos olhos azuis. Por que nes traiu? Por que se uniu a esse exército de homens negros com a cruz sobre o coração? Quis colocar-se do lado do bem. Ele é louco. Mas não se pode apagar o que se foi. Ele me conhece, sabe o que é preciso obter de mim, e às vezes me agrada servi-lo como antigamente. No limite do inferno, tornamo-nos cúmplices novamente... Entende?... No dia, por exemplo, em que você for vencida... estarei unida a ele outra vez... Talvez ele então se lembre de mim. Seu desprezo, sua ausência, sua superioridade, são para mim como um ferro em brasa. Um dia pedirei a Zalil que o mate.

-        Quem é Zalil?

Ambrosina não respondeu. Teve dois ou três arrepios convulsivos e fechou os olhos, como se revisse os dias passados.

As coisas se ligavam. Zalil devia ser o homem pálido, o irmão de que Petronilha Damourt falara. "Havia a minha ama, a mãe de Zalil. Uma aliança infernal, mas que se atenuava por assumir formas terrestres: uma dama nobre dedicando sua fortuna ao mesmo tempo ,às conquistas e às boas obras, em nome de Deus e do rei, e o amante dela, pirata, ajudando-a nessa obra. Uma trama terrestre. Três crianças "atravessadas" pelo fogo, e cada uma seguira seu caminho. Uma tornara-se jesríta, outra, a nobre Duquesa de Maudribourg, de inteligência cintilante, e a terceira, o homem do bastão de chumbo. Somente as paixões fanáticas, que não deixaram de consumi-los, ainda os uniam através de seus destinos díspares.

-        Está vendo - disse Ambrosina, reabrindo os olhos com um sorriso -, conto-lhe tudo, e você começa a saber de tudo. E por isso que tem que morrer agora. Hesitei por muito tempo. Deixava que a sorte decidisse. Divertia-me ver como você reaparecia após os perigos... Baraka?... Não, não acredito nisso. Era minha falta de decisão que a protegia. Agora minha missão já durou demais. É preciso encerrá-la. Você morrerá amanhã.

Falava numa voz monocórdia e afetada. O desacordo entre o tom mundano e o teor das palavras traduzia a desordem de seus pensamentos. Angélica respondeu no mesmo tom.

-        Agradeço-lhe por avisar-me. Hei de esforçar-me para tomar as disposições necessárias, de acordo com seus projetos.

Ambrosina encarou-a com ferocidade.

— Continua divertindo-se?

— Oh, não, de modo algum...

— De fato você está com má cara - continuou a Duquesa de Maudribourg, que o evidente mal-estar de Angélica pareceu tranquilizar. - Não é tão forte quanto quer parecer, mas gosto de saber que combate bem. Você tem a vitalidade de uma gaivota. Sabe quem lhe fez esse cumprimento falando comigo um dia? Um tal de Desgrez. Um homem muito curioso, curioso demais... Um policial, em suma. Confesso que em grande parte eu quis partir do reino para não ter que encontrá-lo com muita frequência. Ele se interessava um pouco demais pela minha amiga, a Sra. de Brinvilliers, sua vizinha em Paris. Não se lembra! Mas ela se lembrava de você, das festas que dava em sua Mansão de Beau-treillis. Aquele Francisco Desgrez, que monstro! Eu disse a Margarida que imitasse o meu exemplo, que fugisse'.. Há de custar-lhe caro... Azar dela. Mas foi -ele que, num dia em que falávamos da Sra. du Plessis-Belliere, a amante do rei, tão misteriosamente desaparecida, disse: "Tinha a vitalidade de uma gaivota..." Ele parecia conhecê-la bem... Estranho, não é? Você já me atraía pela sua lenda... E eis que a encontro ao lado do- homem que me haviam encarregado de destruir na América... O mundo é dominado por alguns seres... Os demais não passam de figurantes, poeira... Que exaltação por ter que enfrentá-la e vencê-la! Meu prazer já se decuplicava:.. Conhecê-la o suficiente para fazê-la tropeçar, a você, que resistiu aorei, tê-la a minha mercê. Todo ser humano possui uma falha póf finde sê infiltra o medo e por onde suas forças lhe fogem. Eu estarva decidida a descobri-la. Que mistério excitante sua personalidade! Não foi fácil. Sua perspicácia, seu instinto, que eu sentia alerta. Que medo no dia em que você disse: "Não foi.por acaso que você desembarcou aqui"! Já não sei como consegui desviar ã sua atenção!... Mas aí está você afinal, vencida, perdida... Foi por'isso que resolvi que você deve morrer.

-        Não, não é por isso..-Na realidade quer que eu desapareça porque sente que ele está se aproximando. Aquele com quem você teme o confronto, meu marido, o Conde de Peyrac. Amanhã ele talvez esteja aqui, e então suas mentiras virão à luz. Mais nada se manterá em pé de tudo o que arquitetou para engodar os que a rodeiam. Estará sozinha, sem recurso algum diante do castigo que a aguarda.   

Ambrosina não pareceu atingida por estas palavras. Apenas surpresa.

-        Você me surpreende - disse com desdém. - Então não consegue convencer-se de que. seu Conde de Peyrac já não lhe pertence? O que é preciso trazer-lhe como prova-para que se convença de que ele foi meu amante? Você é bem ingénua! Assim que ele me viu em Gouldsboro, ficou fascinado por mim e me disse...

Assim que Ambrosina mencionava Joffrey, Angélica" sentia como se o sangue lhe abandonasse as veias. Tinha a impressão de que o coração, apequenando-se, parava de bater. Era bem essa, nela, a falha de que há pouco a outra falara com uma intuição tão aguda e diabólica!... A falha que traz em si todo ser humano, por onde "se infiltra o medo e por onde suas forças lhe fogem". Manteve-se-calada, esforçando-se por não deixar transparecer nada. .

— Que sensação! - -murmurou a duquesa. - Provocar desde o primeiro instante a admiração e o desejo de um homem desses! Tihham-me dito dele: "Embora seja de costumes livres, não é homem fácil de seduzir. Parece que uma única mulher conseguiu reter-lhe o coração, se é que ele tem coração. A que vive com ele atualmente e que ele diz ser sua espos, . A partida será dura..." Oh, claro! Mas por isso mesmo mais exaltante. Você! Ele! E desde o primeiro instante, desde o primeiro olhar, uma vitória assim...

— Você está se confundindo, creio - observou Angélica friamente. - Não me confessou, não faz muito tempo, como sofreu quando, ao despertar, viu a nós ambos a sua cabeceira e compreendeu que nos amávamos?

— Ah, sim, mas fui bem tola de me atormentar... Já no dia seguinte ele me enviou uma mensagem de amor. E você agora se tranquiliza pensando nas palavras ardentes que ele lhe disse naquela noite... Mas ele já me tinha viste, queria evitar suas suspeitas, a fim de estar livre para me cortejar...

Joffrey! Joffrey! Em pé à cabeceira de Ambrosina, com o enigmático olhar fito naquele corpo de deusa, que, na sua comédia de doente perturbada pelo delírio, ela revelava impudicamente. E Ademar, aíetando ares de tragédia, pontuando a cena com suas reflexões: "Francamente, pode-se dizer que é uma mulher bem-feita, não é verdade, senhor conde?"

Infame! Era insustentável! Angélica sentia um riso nervoso invadi-la à simples evocação de Ademar. Tinha que controlar-se, não podia ceder. Apesar de tudo, porém, a cabeça de Ademar se sobrepunha, em sua visão, à cena insuportável. Era, irresistível! Oh, que dor! Por não saber o que Joffrey estava pensando naquele instante! Que sofrimento ele ainda lhe ser tão desconhecido! Será que ela estaria sempre sozinha no mundo?

-        Como você é difícil de atingir - sussurrou Ambrosina, que a observava com uma atenção cruel. - É tão bela e emocionante... que eu quase gostaria de... ceder-lhe a vitória... Mas é impossível... Quero que saiba de tudo... Sim, no dia seguinte, ele me contava em termos inesquecíveis a impressão que eu lhe causara, que ele conhecia meus títulos da Sdrbonpé^ que estava encantado por me ter em seus domínios, regozijando-se de finalmente poder discorrer com um autêntico espírito instruído, pois ele estava cruelmente privado dessesrpràzeres na América, mas que/ além dessa satisfação, a de conhecer uma-mulher tão bonita ain-1 da predominava, e tantos outros cumprimentos delicados que precisei reler aquelas linhas várias vezes para absorvê-las...

O braço de Angélica se-levantara quase, maquinalmente na direção de Ambrosina.

— O que quer? - perguntou esta, interrompendo-se e olhando sem entender para a mão aberta.

— Mostre-me esse bilhete.

Um clarão atravessou o olhar selvagem de sua inimiga.

— Decididamente vocêé espantesa! Não teme sofrer!

— Já vivi coisa pior --- retrucou Angélica com ar indiferente, mas pensando consigo que não era verdade, que nunca experimentara nada pior do que o que atravessava naquele momento, a angústia atenazante deter que duvidar dele, de estar prestes a receber a prova tangível de sua traição e de perdê-lo para sempre.

— E se eu lhe dissesse que não guardei o bilhete?

— Então eu lhe diria que mentiu e não acreditaria numa única palavra do que acaba de contar-me.

— Nesse caso... tanto pior para você.

Ambrosina levou a mão à bolsinha bordada de pérolas que sempre trazia à cintura.

-        Eu o guardei. Gosto de reler as palavras que ele me escreveu nos primeiros dias em que nos, conhecemos... Sei saborear o que vem dele. Os homens gostam de ser adulados. Talvez você não tenha sabido apreciar o bastante o que ele lhe concedia, já que cansou de você.

A vida de Angélica estava suspensa naqueles dedos femininos que procuravam entre os objetos na bolsinha. "Se ela não encontrar, é porque está mentindo, repetia consigo.

-        Ah, ei-lo aqui! - exclamou Ambrosina.

Angélica reconheceu o pergaminho que o Conde de Peyrac utilizava em Gouldsboro, e quando Ambrosina, desdobrando a folha, voltou-a para ela, reconheceu também, de longe, sua letra rápida de sábio.

-        Dê-mò! - repetiu.

Assim acocorada sobre a pedra da lareira, envolta friorenta-mente na manta e estendendo a mão, tinha plena consciência de sua atitude de pobreza.

Mas estava sem forças para levantar-se e enfrentar Ambrosina em nível de igualdade.

-        Você está lívida - observou esta com un sorriso malvado -, desfalece... Curioso, você é realmente a única pessoa a já me haver inspirado algo como um sentimento de piedade.

Depois, parecendo decidir-se:

-        Não, não quero que leia as palavras de amor que ele dirigiu a mim... Elas a liquidariam... Quero poupá-la.

E se inclinou, para queimar o bilhete que segurava. Mas, mais rápida do que ela, Angélica se esticou, agarrou-lhe a mão e arrancou-lhe o bilhete.

-        Tigresa! - gritou Ambrosina.

Assustada, viu porejar no próprio punho algumas gotas de sangue. As unhas de Angélica se lhe haviajn cravado na carne.

"Queimando esta carta ela queria condenar-me à dúvida", pensava Angélica, "a nunca ficar sabendo o que foi que ele realmente lhe escreveu."

Tremia tanto que precisou esperar antes de conseguir decifrar as palavras que lhe dançavam sob os olhos. Pelo gesto de Ambrosina, já sabia que leria apenas termos inofensivos.

De fato, aquilo não eram mais do que fórmulas matemáticas, acompanhadas de números.

Mas a prova fora tão dura que ela nem sentira alívio ao constatar a mentira de Ambrosina.

-        Assim, mais uma vez - disse, fitando a duquesa -, você quis ludibriar-me... Nunca recebeu uma carta de amor dele... Mais uma de suas comédias infames. Pediu a ele que lhe escrevesse estas palavras, sob um pretexto qualquer, ou então lhe roubou o pergaminho em Gouldsboro, do mesmo modo que roubou seu gibão. Você esmiuçava tudo, estava preparando suas armadilhas. Mas suas astúcias são grosseiras...

Um galo cantou lá.fora. O dia nascia.

Ambrosina massageava levemente sua delicada pele ferida.

-        Você é de uma maldade e de uma brutalidade inauditas - disse.  

Recuava para a porta, com aquele ar dissimulado e pueril que assumia toda vez que as coisas não transcorriam conforme ela planejara.

-        Não me olhe assim. Seus olhos me perseguem. Quando você estiver morta, eu os furarei.

CAPÍTULO XXXII

O espírito de Angélica vacila

Exausta, Angélica passou a tranca na porta e foi rneter-se na cama. Oh, aquelas aparições de Ambrosina! Cada uma delas vertia um fluido corrosivo que lhe minava a resistência. "Na próxima vez... não poderei... não poderei mais... suportá-la..."

Todo o espírito de Ville-d'Avray, com sua coragem tão francesa de marquesinho coberto de rendas, não conseguiria mais defendê-la contra a ascendência demoníaca que se intensificava.

Um demónio súcubo, de rosto maravilhoso, passando e tornando a passar nos turbilhões do vento. Um pesadelo! Um símbolo! O inimigo eterno rondando à sua cabeceira, tentando forçar-lhe a porta, a porta da fortaleza ao seu coração, onde ela guardava seu amor... As legiões malditas já tinham devastado tudo uma vez.

Angélica tremia de febre. Seu espírito vacilava. Dissera a Co-lin: "Não tema nada, não ficarei louca!"

E eis que a Diaba a levava até as fronteiras do perigo. E, num sobressalto: "Não, não lhe darei isso, criatura vil, espírito demoníaco, espírito impuro!" Manter apertada entre os dedos a folha amarrotada, coberta de sinais cabalísticos, não a aliviava. O medo fora demasiado profundo. Somava-se ao outro medo que a perseguira por longos anos e que despertava a curiosa evocação de nomes antigos, tão inesperados neste lugar, que lhe parecia que fora num sonho que eles tombaram dos lábios de Ambrosina: Desgrez, o policial, a Mansão do Beautreillis, a Marquesa du Plessis-Belliere... a bela marquesa tão misteriosamente desaparecida - ela -, metida hoje numa cabana na América, jogando mais uma vez o próprio destino, como se a vida não terminasse nunca de apontar a pena para inscrever diante dela, em termos cada vez mais exigentes um eterno desafio.

Tudo reunido num único ponto. Eram como bolas de espinhos que a tempestade joga na-praia, que^sê reuniam e rolavam na direção dela para esmagá-la. Havia como que uma avalancha de rostos que desabavam à sua volta: o Pálido, o Zarolho, o Melancólico, o Invisível, oitenta-legiões!...

CAPITULO XXXIII

Recado dos passarinhos - O retorno de Joffrey de Peyrac

-Sra. de Peyrac! Sra. de Peyrac!...

Batiam à porta, e.vozes de mulher chamavam. Angélica emergiu com dificuldade de um torpor doloroso e, cambaleando, foi retirar a barra que atravessara contra a porta depois que Ambro-sina fora embora.

O sol já estava alto e fazia muito calor. De início pareceu a seus olhos embaçados que, plantados à soleira da porta, havia dois troncos de árvores bem altos, emoldurando uma minúscula papoula. Depois a visão conturbada se precisou e lhe revelou aos poucos a grande Marcelina e a filha Iolânda, que segurava pela mão, entre elas, o Querubim de gorro vermelho.

-       Somos nós - disse alegremente Marcelina. - Estávamos preocupadas com vocês. Então resolvemos dar um passeio até a costa leste.

Entrou e, depois de fechar a porta, falou:

— Na verdade, recebi um recado de sua amiga de Gouldsboro, a Sra. Berne. Pediu-me que olhasse por você, disse que estava apreensiva por sua causa, que tinha certeza de que estava em perigo... A se julgar pela sua aparência, senhora condessa, parece que ela não se enganou muito.

— Estou doente - murmurou Angélica.

— E o que estou vendo, pobrezinha! Mas não tenha medo. Agora estou aqui, volte para a cama, que vou cuidar bem de você!

Cara Abigail! Angélica sentia-lhe a afeição através da presença de Marcelina, que se punha a descascar legumes para fazer-lhe um caldo.

-        Apanhou frio. É sempre assim na costa. É horrível! De dia a gente pega fogo e à noite é o nevoeiro gelado. Todo mundo tosse e pigarreia...

O marquês, avisado pela, notícia que correu, chegou e levantou os braços para o céu ao avistar íoUrída e Querubim.

— Infeliz! - exclamou, dirigindõ-se a Marcelina. - Como ousa trazer esta criança tão sensível e estajovem pura para uma saturnal como esta! Mal me atrevo a dizer, mas estamos literalmente às voltas com um ataque de demónios!

— Não há demónios que aguentem - retrucou Marcelina, empoleirando o seu Querubim sobre os joelhos. - Eu não podia deixá-lo sozinho, ele teria feito muitas tolices. E o garoto bem que pode tomar o seu lugar na ronda dos demónios! Quanto a Ioíanda, é capaz de derrubar o próprio Satã com um murro. Não é verdade, Iolanda.^.Nào se preocupe conosco, governador! Em compensação, não .'deveria ter abandonado assim sem cuidados a Sra. de Peyrãc, doente-como está. Não foi bonito de sua parte!

— Mas ofereci-me para tratá-la, ela não quis - gemeu Ville-d'Avray. - As granãeiTdamas não têm simplicidade...

Os veníos mudavam. Apenas com sua presença, a grande Marcelina, autoritária, não deixaria facilmente Ambrosina vir destilar seu veneno, repeliria o círculo das trevas.

A mudança se definiu ãinda-mais quando, ao anoitecer, um navio estranho entrou no porto e se viu o capitão arpoador basco, Hernâni d'Astiguerra, subir a praia seguido de uma parte de sua tripulação. Um filhote de baleia se enroscara em quarenta toesas de rede e desde a véspera os bretões tentavam soltá-lo. Os homens estavam muito excitados com o contratempo. Tomaram de assalto os bascos que vieraro-recuperar a presa, insultando-os, cobrindo-os de sopapos e até atirando-lhes pedras. A reação foi acalorada.

Hernâni não era homem de -se deixar dominar.

— Para trás, malvinos - gritou, brandindo seu terrível arpão -, ou sua praia fedorenta vai se transformar em praia sangrenta! Caramba, como sua salmoura lhes sobe à cabeça!

— Eles estão loucos - disse-lhe Angélica um pouco mais tarde, quando, depois de reconhecida por ele, convidou-o a refrescar-se em sua casa. Já não tinha o barrilete de armanhaque que ele lhe dera, mas falaram disso, e de Monégan, e da noite de São João.

Bem cuidada por Marcelina, ela já estava melhor.

A chegada do grande capitão basco, que fora tão amistoso com ela, pareciadhe um bom augúrio.

Ele a examinava atentamente com seus olhos ardentes e sem dúvida notava a tensão que lhe subsistia nos traços empalidecidos.

-        Sim, o vento do outono é satânico nestas costas - reconheceu ele. - Não se deixe atingir, minha cara. Lembre que pulou a fogueira de São João. Eu tinha jogado no fogo um punhado de artemísias, que afastam os maus espíritos. O E abo não pode nada, pelo ano inteiro, contra quem atravessa a fogueira.

Ela, então, contou-lhe brevemente o impasse em que se encontrava. Ele entendeu sem dificuldade. Era intuitivo, e uma história de diabos é uma história de bascos. É coisa que remonta a muitíssimo tempo nas tradições desse povo de origem desconhecida.

-        Tranquilize-se - disse ele -, não a abandonarei. De você conservei uma recordação muito vívida. Mais uma vez é preciso que eu a ajude a atravessar a fogueira, e farei isso. Ficarei por aqui até que o Sr. de Peyrac de Morens d'Irristru volte. Será uma oportunidade de eu saudar um irmão ilustre de meu país e de prestar-lhe um serviço.

Marcelina e sua jovialidade audaciosa, Hernâni e seus homens, dominando os bretões e vigiando de soslaio os comparsas de Ambrosina, que, armados de mosquete, se tinham infiltrado cada vez mais no local, representavam um reforço não só moral, como também material. Eram como que uma certeza de que Joffrey estava próximo, logo chegaria. Cantor devia tê-lo encontrado, ter-lhe dito que se apressasse.

E chegou o décimo dia.

Angélica ia rápido pelo caminho da cruz bretã, a fim de reter Piksarett, que, ao que se anunciara, avançava com sua tropa de índios com o intuito de escalpelar todo mundo em Tidmagouche.

Ora, não era o momento de desencadear uma carnificina.

De manhã, aparecera um homem no povoado, gritando que os índios estavam vindo. Já tinham ferido um de seus companheiros com uma flechada. O grande narrangasett os comandava. Mandaram chamar Angélica, que, graças aos cuidados de Marcelina e depois de uma noite tranquila, estava de pé.

As pessoas se reuniam e se armavairw Recomendava-se às mulheres e às poucas crianças que se pusessem no centro do vilarejo. Nicolau Parys postava suas colubrinas.

-        Faz anos que os nativos nãose.rnostram hostis - explicou a Angélica, que chegava, eles são indolentes, pouco dispostos a guerrear. Mas, excitados pela aguardente, podem seguir um grande chefe de renome, como o sagamore que a acompanha, senhora. O que será que ele lhes contou? Assunto dele. Mas agora temos um problema. Parece que são numerosos e muito decididos a vir escalpelar os brancos de Tidmagouche. Seremos obrigados a atirar, e a coisa vai ficar fera. Seria preciso acalmá-los e, principalmente, que você acalmasse-los e chefe dos patsuiketts. Como é o maior guerreiro da Acádia, ele acredita que tudo lhe é permitido.

— Por onde estão vindo?

— Pelo promontório da cruz bretã. Foram vistos deslocando-se pela orla da floresta e certamente vão tentar cercar em parte o povoado, antes de se «baterem sobre nós.

-        Vou ao-encontro deles - disse ela.

Ville-d'Avrayquis acompanhá-la, mas ela recusou, assim como a Hernâni e a Barsempuy, que também se ofereceram. A vista de um homem armado; fosse quem fosse, talvez indispusesse o selvagem. Ele não gostaria de submeter-se ao governador, nem a um basco, nem a um capitão de piratas qualquer, gente que não tinha nada a ver com os Filhos da Aurora. Angélica, sua cativa, talvez fosse mais bem-sucedida quanto a convencê-lo.

-        Isso não é nada - afirmou. - Tudo vai se arranjar logo.

No momento em que ia deixadas, Ambrosina soltou uma exclamação e se atirou para ela.

-        Não vá - gritou -, eles vão matá-la. Não vá... Não quero... Não quero que morra!

Segurava-a com força desesperada, e Angélica quase sufocava sob a violência daquele abraço. Naquele .dia, Ambrosina vestira a roupa que usava no dia em que chegara a Gouldsboro: a blusa vermelha, a saia amarela, o manto azul. E era como a repetição de um pesadelo aquele abraço que parecia encerrar, numa convulsão demente, o drama, o duelo mortal que as pusera face a face.

— Não você! - gritava ela. - Não você! Não quero que lhe tirem a vida! Oh, rogo-lhe, não vá para a morte!

— Largue-me - murmurou Angélica, de dentes cerrados, resistindo à vontade de repeli-la com violência, puxando-a pelos cabelos.

Em todo caso, ela não teria conseguido. A força de Ambrosi-na naquele instante tinha algo de sobrenatural. Era como a força de um polvo, de uma serpente enroscando-se à presa para sufocá-la.

Ville-d'Avray, Barsempuy e Défour tiveram que intervir para afastá-la. Ambrosina caiu de joelhos, toda encolhida, desfalecen-te, soltando gritos estridentes, contorcendo-se nuipa crise violenta.

"Uma louca histérica", repetia Angélica para si enquanto se apressava pelo caminho. "Deus nos livre dela antes que estejamos todos como ela! E-agora é Piksarett que perde a cabeça!"

Aquilo tudo precisava cessar logo, pois estava ficando cada vez mais difícil conter a explosão dos instintos exacerbados... Angélica fez uma pausa. Acabava de avistar a cruz bretã. Mais um desvio e desembocaria no altiplano. Mas alguma coisa a deteve no momento em que ia reiniciar a marcha. Não sabia exatamente o que era. Alguma coisa que não devia acontecer!

Pensou na cruz bretã. Fora por ali que viera o assassino de Maria, a Meiga... Era por ali também que vinham os homens suspeitos dos navios. Imobilizada, ela aguardava. Aguardava para saber o que lhe continha o impulso e a proibia de avançar.

Alguma coisa que não devia estar acontecendo...

E, na calma bucólica daquela vereda que margeava de um lado a falésia e do outro a mata emaranhada de espinheiros, a coisa - se tornou clara, patente.

Os pássaros estavam cantando...

E voltaram-lhe à mente certos relatos dos exploradores das florestas, falando de suas experiências com os índios: "Eles podem avançar numa tropa numerosa sem que um estalido de gravetos, um roçar de folhas os traia. -O único sinal que pode revelar a aproximação deles é que os pássaros se calam. Um silêncio repentino na floresta deve pôr a gente alerta: os índios estão por perto..."

Ora, os pássaros estavam cantando.

Portanto, não havia índios. Não havia tropa alguma dissimulando-se entre as ramagens próximas.

Não havia Piksarett por ali.

Piksarett! Os índios! Simplesmente um pretexto para atraí-la sozinha para fora do vilarejo.

Uma cilada! E uma cilada para a qual ela se encaminhava de cabeça baixa!

Angélica se atirou entre os arbustos. É ali, protegida, tentou refletir.

Nada de Piksarett, nada de índios. Mais uma fábula. Mas em lugar dos índios, com certeza, assassinos que a esperavam, lá adiante, perto da cruz bretã, para'matá-la. Ambrosina não dissera na outra noite: "Você vai morrer"?

E, tomando cuidado para se esconder e deslizando de um tronco para outro, Angélica avançou.

E avistou-os na orla da floresta.

Eram cinco.

Cinco bandidos armados de pistolas e facões. Mas cada um também empunhava, como urrfsinal de reconhecimento, a arma assassina, um curto bastão preto. Entre eles ela reconheceu o Pálido, o homem de que Colin falara, o homem do bastão de chumbo, o Demónio Branco, o irmão jnaldito da. Diaba.

Assim, chegando pelo atalho, ela'teria dado de cara com eles. Talvez nem os tivesse avistado senão depois de haver-se exposto completamente.

E seria o seu fim.

Se os pássaros não estivessem cantando!

Claro, ela tinha a pistola. Conseguiria armá-la em tempo?

Agora tinha que agir com a maior prudência, tentar bater em retirada para o povoado sem atrair a atenção deles. A vegetação . era muito esparsa, de modo que, para enfrentar qualquer eventualidade, ela devia armar-se.

Sacou a pistola para carregá-la. Mas seus dedos procuraram em vão, na cintura, pelo saco de balas e pela caixinha de iscas, que amda naquela manhã ela examinara.

Entendeu, horrorizada, que Ambrosina, no momento em que se agarrara a ela, com todos aqueles protestos desesperados, roubara-lhe as armas.

"Ela me pegou!", pensou, assustada. Seu estupor era inexprimível.

Embora prevenida, embora atenta, embora sabendo que eles todos viviam junto de uma das criaturas mais perigosas que já existiram entre a espécie humana, e sabendo que a cada segundo corriam todo o risco de perder a vida, mais uma vez ela se deixara ludibriar completamente.

Oh, Ambrosina! Ambrosina, a maldita, jogando com a impulsividade dos seres humanos, com os impulsos de seu coração, para enviá-los de livre vontade para suas armadilhas preparadas!

Se os passarinhos não a tivessem detido com o seu canto, ela se teria visto diante dos bandidos inteiramente desarmada.

Mas os demónios jamais contam com os passarinhos.

Ela os viu a distância, começando a agitar-se e a consultar-se. Sem dúvida se espantavam de não vê-la chegar. Um deles avançou cautelosamente na direção do atalho, outro entrou na mata, à esquerda.

Angélica se escondeu atrás de um arbusto. No momento não tinha outro recurso senão manter-se imóvel.

Nesse instante crítico, um canhonaço longínquo, seguido de vários outros, retiniu ao sul. Talvez fossem navios chamando os indígenas para o comércio, conforme ocorria frequentemente.

Mas o canhoneio prosseguiu, e os homens à sua espreita pareceram inquietar-se. Reuniram-se de novo, e, de longe, ela viu que discutiam violentamente. Depois, decidindo-se, deixaram o local e se afastaram rapidamente na direção de onde vinham as surdas detonações.

Angélica teve a impressão de que o perigo imediato passara. Por prudência ficou imóvel por mais alguns longos minutos.

Sentia que podia tentar retornar a Tidmagouche, mas o alvoroço distante, que trazia como que o eco de uma batalha, a intrigava.

Resolvia arriscar alguns passos para fora do esconderijo quando lhe pareceu perceber, vindo do sul, a silhueta de um índio que andava depressa, esgueirando-se entre as árvores, e pouco depois Piksarett surgiu a alguns passos dela. Viu-a.

- O que está fazendo aqui? - perguntou ele, descontente. - Você é imprudente ao se afastar assim das casas! Avisei-a de que a mata estava infestada de seus inimigos. Quer perder a vida, então? Angélica não tinha tempo para expKcar-lhe a armadilha em que caíra.

-        Piksarett, o que está acontecendo lá?

Um sorriso iluminou a fisionomia do índio. Estendeu o braço na direção de onde vinham os canhcmaços e tiros de mosquete.

— Ele está chegando?

— Quem?

— Seu marido! O Homem do Trovão! Não lhe reconhece a voz?

E Angélica, enlouquecida, disparou na corrida.

Piksarett deu um salto sobre as próprias pegadas, para precedê-la e mostrar-lhe o caminho.

Correram assim por alguns instantes, e o ruído da batalha se aproximava.    

De repente se viram à beira da falésia, além do cabo, onde se tinham abrigado os-dois navios dos bandidos. A furnaça e o cheiro de pólvora subiam" até as árVores, exalando da enseada, mas a barulheira parecia acalmâr-se, exceto por alguns tiros isolados e o som de vozes que lançavam ordens ou imploravam mercê. Os velhacos se rendiam...

Angélica avistou o Gouldsboro, emparelhado com um dos navios - o do galhardete alaranjado - que ele arpoara. No convés, amarravam os pulsos dos tripulantes. Quatro ou cinco veleiros de diferentes tonelagens ocupavam a baía, fechando todas as saídas e impedindo fosse quem fosse de escapar.

Avidamente Angélica procurava com.os olhos pelo Conde de Peyrac. Não o via.

Finalmente o percebeu, subindo a praia às carreiras, de pistolas em punho, seguido de alguns homens, a fim de dar conta de um grupo de bandidos entrincheirados atrás de uma chalupa emborcada.

Era ele!... Não, não era ele!... A alta silhueta se deslocava muito depressa, depressa demais por entre as cortinas de fumaça condensada. Era como num sonho... Uma visão... Ele... desaparecendo... reaparecendo... Ele, toda a vida dela!... Durante toda a sua vida ele fora assim. Passando e tornando a passar no nevoeiro da lembrança... nos sonhos dela... a imagem do amor... o paraíso... para ela... Angélica o enxergava, reconhecia... Era ele. Recolocava as armas à cintura, enquanto o Conde d'Urville se apoderava dos prisioneiros. Ele se voltava na direção dela... Era ele!

Angélica se pôs a gritar, chamando-qcom todas as suas forças, sem mesmo saber se lhe pronunciava o nome... Paralisada pelo paroxismo de sua alegria, nào conseguia mover-se. Depois, recuperando a faculdade do movimento, voandot sem ter a sensação de roçar o solo, lançou-se pela ladeira que a conduzia para ele, chamando-o sempre, com o receio medom o de que ele se apagasse de novo de sua vista, que voltasse a desaparecer, deixando-a sozinha no mundo...

Aos seus chamados, ele acorreu de braços abertos.

Alcançaram-se, atiraram-se um nos braços do outro.

E ali tudo se apagava, a dúvida, o medo, as ameaças, o poder do mal!

A força dos braços dele, aquela fortaleza, o peito dele como um escudo, para defendê-la, o calor dele contra o frio terrível da solidão, e, através do abraço louco e apaixonado, a sensação do amor dele por ela, incomensurável, sem limites, como um raio que a atravessava inteira, que a envolvia, cumulava-a de uma felicidade inexprimível.

— Oh! Viva!... Você está viva! - repetia ele com voz entrecortada. - Oh, que milagre! Sofri mil mortes!... Minha louca querida! Em que outra armadilha veio se atirar... Vamos, vamos, está acabado!... Não chore...-

— Mas não estou chorando - retrucou Angélica, que não se dava conta de que tinha o rosto inundado de lágrimas. - Oh, como foi longo - disse entre dois soluços - todo este tempo... todo esse tempo sem você... todo esse tempo longe de você!...

— Sim, terrivelmente longo!...

Ele a aninhava contra-si, e ela se permitia derramar todas as lágrimas que se proibira de verter nos últimos dias a fim de conservar as forças.

Não duvidar mais! Sabê-lo ali! Vivo! Amando-a sempre! Que felicidade sem medida! Ele a afastou um pouco, a fim de contemplá-la melhor. O céu de opala acima deles. E a felicidade isolando-os de todos.

-        O que dizem seus olhos! --- murmurou ele.

E beijou-lhe as pálpebras com fervor.

-        Conservaram o perturbador poder de confissão que sempre tiveram, mas estão todos rodeados de preto. O que foi que lhe aconteceu, meu tesouro? O. que foi que lhe fizeram, meu amor?

-        Não é nada! Agora vocjTestá aqui! Estou feliz!

Abraçaram-se outra vez. Sentia-sé" que Joffrey não conseguia

convencer-se do milagre de ter Angélica sã e salva entre os braços, depois do medo terrível que o acometera quando soubera por Cantor que ela se encontrava em Tidmagouche, enfrentando o ódio e a perseguição.demoníacos daquela.criatura louca e .perversa que íinha por nome Ambrosina de Maudribourg. Um nome temível.-Urna provação indescritível. Mas que para eles dois, naquele instante maravilhoso, parecia adquirir sentido. Com os lábios contra a cabeleira dela, ele prolongava o beijo.

-        O tempo-não existe disse, com sua voz profunda. - Veja, meu coração... as horas que temos que viver... sempre nos são dadas... quando Deus quer. O arrebatamento que não tivemos ao nos reencontrarmos depois de quinze anos de separação acabamos de tê-lo hoje. Oh, como a sinto minha, afinal!

CAPÍTULO XXXIV

Peyrac incrimina Ambrosina diante detodos

Angélica se postou atrás da casa, perto da janela aberta. Jof-frey de Peyrac lhe dissera que ficas.se ali.

Enquanto isso, contornando a cabana, ele chegou à soleira e entrou. Angélica sabia que ele estava surgindo na moldura da porta e que o olhar de Ambrosina de Maudribourg se alçava para ele.

E, sem nada ver da cena, adivinhou a expressão que passava por aquelas feições seráficas, o brilho dos magníficos olhos negros com reflexos dourados.

No mesmo instante, os homens de Peyrac, vindos por terra, cercavam o povoado, se faziam senhores do forte, enquanto os navios de sua frota, rebocando as duas presas de guerra, entravam na enseada.

O calor era intenso. Uma espécie de torpor, de encantamento aterrorizado, pairava sobre Tidmagouche.

A captura da praia e do vilarejo se fez quase sem ruído, sem tiros. Os homens a mando de Ambrosina viram-se de punhos atados, sem entender o que lhes acontecia. Ela, a Diaba, ainda não sabia de nada.

Olhava Peyrac em pé a sua frente. Angélica ouviu-lhe a voz de timbre suave, um tanto velado e frágil:

- Aqui está você!

E um arrepio a percorreu. A que ponto Ambrosina conseguira atingi-la, para que apenas o som daquela voz a enchesse de horror e medo!

"Era tempo de que ele chegasse", pensou, "ela me teria destruído... Oh, Joffrey, meu amor!"

Ouviu os passos dele, calmos, seguros, penetrando no aposento. Sabia que o olhar dele estava fixo no fascinante rosto da Diaba, mas que nada dos seus pensaTnéhtos transparecia.

-        Você demorou muito - disse Ambrosijia de Maudribourg.

Depois houve um silêncio. Angélica achou que ia desmaiar.

Cada segundo que passava era carregado de uma tensão insuportável, a cada segundo parecia qué*se decidiria a vitória ou a derrota de um combate gigantesco. Duas forças em jogo, ambas igualmente poderosas, igualmente armadas, igualmente seguras de si e do próprio poder.

Foi Ambrosina quem falou primeiro, E a voz dela traiu-lhe o nervosismo sob o..olhar indecifrável que a observava.

-        Sim, chegou tarde demais, Sr. de Peyrac.

E, num tom- de triunfo indizível, em que fremia uma alegria satânica:    

-        Chegou demasiado tarde! Ela morreu!

Devia estar sorrindo ao falar assim, e suas pupilas deviam cintilar.        

-        O caçador lhe trouxe o coração dela? - indagou Peyrac.

A irónica alusão ao conto popular, em que os maus intentos da rainha são frustrados, colocou-a fora de si.

-        Não... mas trouxeram-se os olhos. Exigi isso.

E a loucura fê-la desvairar.

-        São duas esmeraldas. Hei de mandar engastá-las em ouro e hei de usá-las sobre o coração.

Angélica entendia agora. Joffrey de Peyrac adivinhara sempre que Ambrosina de Maudribourg era uma criatura perversa, com o espírito já perturbado ou possesso. Ao olhá-la agora, ele devia estar com a mesma expressão que" exibia quando, à sua cabeceira, lhe ouvia pensativamente o delírio. A experiência dele, bem como um sentido particular do homem avesso a esse tipo de mulher, devia tê-lo prevenido.

-        Estou vendo que não acredita em mim - continuou Ambrosina, com aquela voz apressada e um pouco aguda que adotava diante de quem não parecia fazer muito caso de suas palavras.

- Você é como ela! Ela nunca quis acreditar em mim. Ria... sim, ria! Agora aquele riso se apagou! Ela não rirá mais! Nunca! A culpa é sua. Você é como ela, querem que se acredite que o amor existe, que ao seu amor ninguém pode atingir. Insensatos... O amor não existe... Tanto pior para vocês por haverem querido provar-me essa loucura... Seu amor, eu o destruí... Ela está morta, entende, morta, morta! Vai ver! Sob a falésia encontrará o corpo dela destroncado, e buracos negros no lugar dos olhos... Ah! Finalmente! Ela não me olhará mais... daquele jeito como só ela podia olhar um ser "humano. Nunca ninguém me olhou assim... Ela me olhava-e me via. Antes, via minha aparência humana; depois, via meu espírito. Mas nunca desviou-seu olhar e nunca fugiu de mim. Isso é que era intolerável. Sempre me olhou de frente e sempre me dirigiu a palavra. Sabia corr. quem estava falando, mas não tinha medo. Agora ninguém mais me olhará assim e me verá realmente... Oh, que sofrimento!

A crise se aproximava. Alguns gemidos entrecortavam o fluxo dessas palavras precipitadas.

Angélica, não aguentando mais, tinha vontade de tapar os ouvidos.

-        Ela está morta, ouviu? Morta! O que será de mim agora?!... E a culpa é sua, sua culpa, homem maldito! Por que me repeliu? Por que me tratou com desdém e troça? Como ousou! Você não é nada... Onde é que vai buscar sua força?... Se eu tivesse podido dominá-lo como aos outros, não a teria matado... Eu a teria visto sofrer, ienecer de dor, e isso me deliciaria... Minha missão perto de você teria sido completada. Enquanto agora!... Ela morreu e você triunfa! O que será de mim?! Como poderei permanecer nesta terra imunda? Mate-me! Acabemos com isso!... Mate-me! Por que não me mata? E assim tão indiferente à morte dela? Nem chora! Enquanto eu gostaria de chorar... diante de uma tragédia dessas... E não posso. Não posso!

Um gemido roufenho escapou da garganta da Diaba, parecido com aquele grito inumano que já por duas vezes ecoara na noite, um gemido em que, mesclado a uma raiva impotente, a um ódio implacável, exalava-se o eco de um desespero insondável.

-        Mate-me!

A voz de Peyrac elevou-se, uniforme e como que indiferente, e imediatamente a tensão insuportável arrefeceu.

-        Por que tem tanta pressa de morrer, senhora? E pela minha mão? Gostaria de acrescentar mais algum delito ao meu ativo? Uma última cilada? Não, não lhe oferecerei isso... Sua morte virá na sua hora. Agora soa a hora da revelação de seus crimes. Acompanhe-me a fim de que a vejam com seus cúmplices.

-        Meus cúmplices?

A Duquesa de Maudribourg pareceu recuperar a compostura de repente.     

— Não tenho cúmplices! Que, história é essa, outra vez?

— Acompanhe-mé - repethio conde. - Vou confrontá-la com eles.

Angélica ouviu a duquesa levantar-se. Ela eo conde saíram juntos da casa.

Ambrosina não percebeu Angélica de imediato. Olhava para a enseada, agora cheia de vejas e embarcações, depois para a praia, apinhada de gjénte. De longe era difícil distinguir entre as diferentes tripulações,-o>bretões_ e os bascos, os homens de Peyrac e os prisioneiros.

— Desçamos juntos até a praia - convidou o conde.

Ele se esmerava em cortesia.

Ela se voltou para ete e foi então que viu Angélica a alguns passos.

Nenhum tremor lhe alterou os traços. Desviou depressa os olhos, como se quisesse apagar a visão, anular o fato.

Passou as mãos pelos braços, com um arrepio.

-        Quer dar-me meu manto, Delfina? - disse alto, com naturalidade. - Faz tanto frio!

O sol queimava, mas o pedido não pareceu estranho. O momento era tão penoso que a própria Angélica se sentia gelada até a alma.

A duquesa envolveu-se na grande capa de cetim preto forrada de escarlate, bordada com o grifo negro dos Maudribourg, e começou a descer.    

Ao chegar à praia, parou, examinando a multidão voltada para ela. Misturados aos rostos anónimos de tripulantes e homens armados, de pescadores e prisioneiros, alguns rostos se destacavam. Estavam todos ali: Job Simon e o grumete, Cantor, Aristides, Juliana, Yann le Couennec, Jacques Vignot, o basco Hernâni d'Astiguerra, o Conde d'Urville, Barsempuy, o Marquês de Ville-d'Avray, Enrico Enzi, os quatro guardas espanhóis de Peyrac...

Angélica reconheceu de súbito o Irmão Marcos. Acompanhava um grupo de franceses, dentre os quais se destacava um homem vestido com esmero, ainda que sem ostentação, de ar autoritário e astuto, e que acompanhava a cena com um misto de interesse e ceticismo. Havia cumprimentado Ville-d'Avray e trocado' algumas palavras com ele. Mais t^rde Angélica saberia que se tratava do intendente Carlon, o alto funcionário canadense que Peyrac tirara de um apuro no rio Saint-Jean. Outro era o Sr. de Vauvenart, e havia também Grand Boiss ê um cartógrafo de Quebec, que Angélica conhecera em Katarunk.

Os olhos de Ambrosina se haviam demoradt sobre alguns conhecidos e desconhecidos, mas ela não se movia. Mal roçará com os olhos os homens na primeira fila do grupo de prisioneiros, entre os quais estava o Pálido de rosto marmóreo. Finalmente se voltou para Peyrac, afetando ser ele a única pessoa a quem via, e disse a meia voz, de modo a ser ouvida somente por ele:

-        Você é muito forte, Sr. de Peyrac. Começo a compreender por que tem tantos inimigos e por que seus inimigos tanto querem destruí-lo.

Depois, mais alto, com sua voz de sereia aliciante:

-        O que deseja de mim, caro conde, e qual é a finalidade deste ajuntamento? Estou a sua disposição, mas gostaria de saber...

Peyrac avançou alguns passos.

-        Senhora, aqui está o Sr. Carlon, intendente da Nova França. Conhece o Sr. de Ville-d'Avray, governador da Acádia. Na presença destes dois altos funcionários franceses, quero acusá-la, senhora, de inúmeros crimes e irregularidades cometidos nesta região, na região da baía Francesa, pela senhora e por estes homens aqui presentes, agindo sob ordens suas, crimes cuja violência e atrocidade exigem condenação e reparação diante do tribunal dos homens, se não de Deus. Acuso-a, entre outras coisas, de haver causado a destruição do navio La Licorne, fretado em grande parte à custa da coroa da França, e de haver, a sangue-frio, ordenado o massacre de sua tripulação, bem como o de moças destinadas ao povoamento do Canadá e que se encontravam a bordo, de haver igualmente causado a morte de um jovem senhor canadense, Humberto d'Arpentigny, no naufrágio de sua chalupa, em que se encontrava minha mulher, de haver posto a pique, por meio de explosão, o navio L'Asmodée, atentado de que o Sr. de Ville-d'Avray e inúmeras outras pessoas só escaparam por milagre, e de haver, aqui mesmo, -mandado executar uma jovem, e de haver envenenado uma velha com suas próprias mãos... - E concluiu: - Sem contar-inúmeras tentativas de assassinato em diferentes lugares, atos de pirataria em nossa costa, etc. A lista é longa... Limito-me a estas poucas declarações precisas.

O intendente Carlon ouvira com atenção. O olhar dele ia de Peyrac para a Duquesa de Maudribourg.

Era a primeira vez que ele a via, e embora prevenido, pois fora posto a par antecipadamente por Peyrac, percebia-se que não conseguia associar em seu próprio espírito a amplidão dos crimes sórdidos àquela jovem encantadora que acabavam de apresentar-lhe e que se erguia diante deles, sozinha, frágil, com seus longos cabelos negros fluly.afido ao vento, com ar de criança assustada. Ela fitava.Peyracde olhos arregalados, como se ele tivesse ficado louco de repente, e meneou a cabeça suavemente, murmurando:

-        Mas o que está-dizendo?... Não entendo...

E Angélica, que examinava Carlon, viu que ele estava a ponto de se deixar apanhar na armadilha daquela fragilidade de órfã. Ele avançou um passo e pigarreou.

— Está bem certo do que diz, conde? - falou com voz apressada. - Isso me parece uirfpouco demais!... Como? Uma única jovem fazer tudo isso?... Onde estão os cúmplices a que faz alusão?

— Ei-los - disse Peyrac, apontando o grupo de prisioneiros na frente dos quais se encontrava o Pálido, capitão deles. Entre eles também estava o homem das pérolas de Lambi, o Melancólico, o Zarolho, o Invisível, aquele que mandavam como batedor para se misturar à população ou à tripulação, porque se parecia com qualquer marujo e sempre se tinha a impressão de já tê-lo visto e de conhecê-lo um pouco. "Todos escolhidos a dedo", dissera Clóvis, pois tinham sido escolhidos por Ambrosina e pelo irmão, com o instinto seguro quanto às possibilidades malévolas deles, que fariam daqueles homens- afiados hábeis, todos secretamente ligados a ela pelo presente que lhes fizera, pelo menos uma vez, do seu corpo de deusa.

Eles não a trairiam. Nem pestanejaram quando Carlon, designando Ambrosina, lhes gritou:

-        Conhecem esta mulher?

O homem pálido pousou nela um olhar de pedra e balançou lentamente a cabeça, resmungando:

-        Nunca a vi antes.

Exprimiu-se de maneira tal que uma parte da multidão teve a impressão de ser vítima de um erro monstruoso. Carlon franziu o cenho e fitou Peyrac sem cordialidade.

— Preciso de confissões - disse - ou de testemunhas.

— Tenho" uma - disse o conde, sem se perturbar. - E de envergadura! E me deu um bom trabalho pôr-lhe a mão em cima! Tive que correr até a Terra Nova. Mas aqui está ela.

CAPÍTULO XXXV

A confrontação com as testemunhas

Fez um sinal, e um homem de uns cinquenta anos avançou de um grupo .atrás, dele e veio postar-se diante de Carlon. Usava grossos tamancos e roupas de lã grosseiras. O traje contrastava com seu rosto distinto, de expressão suave e benévola.

— Apresento-lhes o Sr. Quentin, oratoriano. Ele embarcou no La Licorne como capelão. Nâo tardou a descobrir o verdadeiro caráter da expedição e o da "benfeitora" que a conduzia. Ela pensava que o -seduziria facilmente, mas ele lhe repeliu os avanços e, como sabia demais, resolveram livrar-se dele. Foi atirado na água ao largo da Terrá Nova. Felizmente um barco de pesca o recolheu a tempo. As Moças do Rei aqui presentes, bem como o capitão do La Licorne, Job Simon, não podem negar que reconhecem nele o capelão que os acompanhou durante uma parte da viagem e sobre quem lhes informaram que se havia afogado por acidente.

— Eu sem dúvida pequei por ingenuidade - declarou o oratoriano, dirigindo-se a Carlon. - Percebendo desde o início a lamentável moralidade que reinava a bordo do La Licorne, por obra desta mulher, achei que bastaria chamar-lhe a atenção para que tudo voltasse à ordem. No entanto, eu estava lidando com gente muito forte. Vi-me às voltas cem as investidas dela, e todo dia era uma luta incessante ao mesmo tempo para conservar a honestidade religiosa que devo respeitar pelas minhas promessas eclesiásticas e para preservar as almas inocentes que haviam caído em poder dela. Aeredite, senhor intendente, que, quando coisas

assim acontecem num navio de algumas toesas e não se tem para onde fugir, é muito... embaraçoso.

-        Quer dizer que a Sra. de Maudribourg lhe propunha que fosse... amante dela? - perguntou Carlon em tom de dúvida.

Aparentemente a coisa o divertia, e ele não lhe dava crédito. Ambrosina então exclamou em tom desesperado:

— Senhor intendente, não sei se esse homem foi atirado ao mar ou se ele se atirou sozinho, mas o que percebi desde o começo foi que era louco, e, pelo contrário, era eu que tinha toda a dificuldade do mundo para escapar de suas tentativas lúbricas...

— Mentiras! - gritou uma voz.

E o Irmão Marcos pulou para o círculo.

— O Sr. Quentin não foi o único eclesiástico que a Sra. Maudribourg tentou induzir em tentação. Posso testemunhar isso, pois também fui uma de suas vítimas.

— Você, é mais compreensível - resmungou o intendente, olhando o belo rosto do jovem recoleto.

Ele começava a ficar confuso.

-        Se entendo bem, tripulantes do La Licorne atiraram o Sr. Quentin ao mar... Então o Capitão Job Simon também é cúmplice.

O velho Simon soltou um grito selvagem.

-        Não foram os meus homens! - berrou ele, lançando-se para a frente. - Foram os três patifes que ela me forçou a embarcar no Havre. Sim, sou um grande imbecil! Ela me dominava. Eu sabia que não íamos a Quebec, mas a Gouldsboro, sabia que não era para contar, sabia que ela era uma puta ordinária, e fiquei sabendo que tinham assassinado o capelão, mas o que eu não sabia...

Eriçado, gigantesco, ele se agitava tragicamente sob o céu branco de luz.

-        ...o que eu não sabia é que em Gouldsboro encontraríamos bandidos sob as ordens dela para pôr meu navio a pique e aniquilar meus homens...

Ele se movia em todos os sentidos, puxando a barba, arrancando os cabelos, levantando os braços, e parecia tão completamente fora de si que se percebia que Carlon começava a perguntar a si mesmo se não caíra entre um bando de loucos.

-Está perdendo a razão, capitão! Se a Sra. de Maudribourg estava a bordo, não pode ter desejado que seu navio fosse de encontro aos recifes. Arriscaria a própria vida.

-        Ela desembarcou antes... pouco antes. Eu não fazia perguntas. Depois, entendi... pouco a pouco,., em Qouldsboro. Continuei a fazer de conta que não entendia, porque sabia que se ela não me tomasse por idiota me mataria... como aos outros... matar não é coisa que embarace... Quando perno!... O meu La Licorne! O meu belo navio! E todos os meus homens, meus irmãos, dizimados...

Estendeu o punho para Ambrosina e foi ele quem lançou a acusação terrível:

CAPITULO XXXVI

A morte do Pálido

De repente alguém gritou:

-        Atenção, ele está fugindo!

Aproveitando que todos os olhares estavam fixos em Job Simon e se haviam desviado inteiramente dos cativos, o Pálido disparara na corrida. Correu para a beira da água e começou a pular sobre os rochedos que a maré baixa descobrira. A fuga era insensata. Mesmo que alcançasse o mar e se atirasse e nadasse durante horas, quais seriam suas chances de escapar, de sobreviver?

Mas a criatura era tão diabólica que, ao vê-lo distanciar-se através das frementes cortinas de calor e luz do nevoeiro, a própria imagem do Demónio Branco, todos tiveram a impressão de que ia desaparecer sob os olhos de todos, tragado pelo horizonte, do mesmo modo como uma noite aparecera nu por entre a planície cintilante de algas, e que nada o impediria dé reaparecer um dia para prosseguir com seus crimes na Terra.

-        Peguem-no! Peguem-no! - gritavam.

Ele agora parecia um elfo traquinas, dançando sobre as rochas, lá longe. Atingiu o mar, o mar que sempre fora cúmplice do assassino do bastão de chumbo, ia atirar-se, e a água o esconderia dos olhos dos homens. Foi então que Hernâni d'Astiguerra deu um pulo, surgido da direita. Suas longas pernas se deslocavam como as de um dançarino, aos saltos, de rocha em rocha. Estacou, sua silhueta negra contra o céu amarelado se arqueou, e seu braço que segurava o arpão se ergueu e depois se distendeu com a força de uma mola.

O dardo silvou, levando o fio, que se desenrolou, saltando e estremecendo como uma louca serpente, partido em pedaços.

Um grito atroz ecoou na baía.

Hernâni, o basco, retornou pela praia, com a corda passada sobre o ombro, puxando a presa atrás de si-.

Chegando diante do Conde de Peyràc e de Angélica, agarrou o arpão por uma extremidade e atirou aos pés deles, conforme teria feito com um tubarão, o eorpo db homem empalado. Depois o segurou pelos cabelos e o ergueu, a fim de que todos pudessem ver e reconhecer aquela face medonha de olhos fixos e vítreos, de boca aberta, e pouco mais pálido morto do que em vida.

Morta a besta...

CAPITULO XXXVII

A hora dos índios

E no silêncio alçou-se um grito tão inumano que ninguém atinou com sua origem.

Impossível atribuí-lo à graciosa criatura ali postada no seu manto escuro, vítima frágil com rosto de arcanjo.

Só entenderam quando a viram correr, sem parar de gritar, e desabar loucamente de atravessado sobre o corpo sem vida.

-        Zalil! - gritava ela. - Meu irmão, meu irmão!... Não, você não... Fique! Você é a minha força!... Não me deixe nesta terra imunda! Eles vão troçar de mim, Zalil!... Se você partir, não poderei resistir... Lembre-se do pacto!.. Seu sangue arrasta o meu sangue... Vai arrancar-mo do meu corpo.... Não quero, não quero... Não faça isso, maldito!... Volte! Volte!

O estupor petrificava as testemunhas desse desespero histérico, e de repente houve entre eles como que uma convulsão, como se, dominados pelo pânico, fossem dispersar-se para fugir. Ao contrário, porém, o movimento os fechou num grupo compacto, penetrado de horror, revolta e sede de vingança, e que se abateu com um único impulso sobre a mulher prostrada.

Puxada de sobre o cadáver a que se agarrava, atingida por murros e pontapés, os cabelos arrancados aos chumaços, a roupa feita em farrapos, logo ela não era mais que um corpo ensanguentado e desfigurado, de quem até os gritos lancinantes se extinguiram sob o efeito do sofrimento.

Movida por um reflexo incontrolável, Angélica se atirou sobre o grupo, tentando deter os furiosos e arrancar-lhes a presa.

-        Parem! Rogo-lhes... não se desonrem mais! Barsempuy, recue. Irmão Marcos, não você, é um homem de Deus... Job Simon, você é forte demais para abusar de sua força... Não seja covarde!... É uma mulher! E você', capitão, com que direito a agride?        

Fora de si, os homens gritavam, dando Vazão ao próprio desespero, a sua tragédia seéretaT irreparável:

— Ela me induziu em tentação...

— Ela fez meu navio naufragar...

— Ela matou meus irmãos...

— Ela assassinou minha noiva....

— Meu navio! Meus irmãos! Minha bem-amada morta por culpa dela! Ela! A Diaba! E uma serpente! É preciso esmagá-la! É um monstro! Um monstro!

— Marcelinal Iolanda! Acudam! - gritou Angélica.

As duas mulheronas foram-lhe em socorro com toda a sua força, e as três conseguiram arrastar para fora da multidão o corpo da duquesa, enquanto Peyrac, usando de sua autoridade, acalmava os mais desvairados, e, amoldados espanhóis, cruzando os chuços, retinham os hesitantes que também estavam a ponto de se atirar sobre a presa. Tudo se passara em poucos segundos, mas eram animados por uma raiva tão devastadora e cruel que ficaram todos ofegantes e como que extenuados.

Deixaram-nas passar. Eram mulheres. Era direito delas salvar aquela mulher entregue à violência dos homens.

Mas Angélica se recusava a julgar o desvario daqueles infelizes, assim como não se felicitava pelo seu gesto salvador, que fora mais um reflexo contra aquele desencadear de violência bestial do que um desejo de socorrer a inimiga.

Teria tido a virtude de realiza? tal gesto caso devesse àquelacriatura horrível a morte de Abigail ou a de Cantor ou a perda de Joffrey?... E caso, ao final de um combate extenuante em que ela medira todas as fraquezas que possuía, não permanecesse vitoriosa? 

Sim, era ela a vitoriosa.      

Ambrosina, a Diaba, não era mais do que um destroço humano, cega e desfigurada, denunciada por si mesma ao mundo, a quem nada poderia salvar da justiça dos homens, caso escapasse sobrevivendo à de Deus.

As provas dos seus crimes eram demasiado evidentes, os testemunhos, demasiado abundantes.

Era o fim de seu reino e dos seus poderes na Terra. O irmão maldito, o Demónio Branco, arrastava-a consigo na derrota e na morte.     

Ela abriu os olhos e disse num sopro:

-        Não me entreguei Inquisição.     

Atirada sobre o leito de sargaços na casa de Angélica, ensanguentada, machucada, os farrapos de sua roupa de cetim amarelo, azul e vermelho expondo aos olhares uma carne que agora não passava de chagas, ela poderia inspirar piedade, se o olhar que luzia entre suas pálpebras intumescidas não continuasse a fazer pesar sobre as três mulheres a sensação de serem vigiadas por uma criatura completamente comprometida com a destruição delas.

- Por que a salvou?- perguntou Marcelina a meia voz.

-        Sim, por quê? - repetiu atrás dela o Marquês de Ville-d'Avray, que entrava acompanhado do Conde de Peyrac e do intendente Carlon.

Mas, a contragosto, eles tinham arrepios diante do estado deplorável daquela infeliz, ainda há pouco cheia de vida e de uma beleza triunfante.

-        A última armadilha dela! - sussurrou Ville-d'Avray. A armadilha última de Satã: a piedade. O irwólucro humano entregue ao furor cego causa piedade. Amamos demais a imagem de nossa própria carne e choramos diante de sua miséria. Mas desconfiemos, amigos. Enquanto lhe restar um sopro de vida, estaremos em perigo. E, morta, a coisa não melhora muito. Ela se tornará um espírito maléfico a mais a vagar pela ilha dos Demônios, para fazer naufragar os navios.

Balançou a cabeça.

-        Ah, a alma imortal! Que triste invenção! Estamos bem arranjados! Tem uma solução a nos propor, senhor intendente, você que se gaba de enfrentar todos os problemas?

Carlon meneou a cabeça..Era visível que os acontecimentos ultrapassavam as preocupações habituais de seu espírito tranquilo e metódico. Seu olhar ia daquele corpo machucado, mas que ninguém se preocupava em tratar, para os rostos dos presentes. O significado da expressão deles lhe escapava, pois ainda não entendera o que representava para cada um a visão daquela mulher estendida e ferida. Estava pálido como a morte e notava-se que ele se perguntava o tempo toda-se-não estaria sonhando.

A grande Marcelina aprumou a cabeça subitamente, como se soasse um alerta repentino.

— Os índios - disse.

— índios! O que quer dizer?- gemeu Carlon.

— Estão chegando!  

O Conde de Peyrac deu um salto na direção da soleira da porta, e eles o seguiram.

Da floresta vizinha, que cercava o povoado, subia o rumor estrondeante de tambores de guerra que rufavam e dos gritos lançados a intervalos e em coro pelos guerreiros que avançavam.

-        Piksarett!

Tinham quase-se esquecido deles... Piksarett e seus irmãos! Piksarett e o seu povo! Pikarett,"que dissera "Tenha paciência! Unia-kê e a gente dele e toclãs as tribos dos Filhos da Aurora estão se reunindo najfloresta. Aguardam pela hora èm que darei o sinal da vingança contra os que assassinaram nossos irmãos de sangue, nossos aliados, e que quiseram humilhá-la e destruir, você minha cativa!"

Havia pouco os brancos tinham tentado resolver os conflitos segundo suas leis, mas agora soava â hora dos índios. A longa guarda paciente do grande abenaki ao lado de Angélica, com quem compartilhara de penas e perigos em que ela incorrera e que em momento algum se enganara sobre a gravidade e a dissimulação das ameaças, a irritação que ele concebera contra aqueles brancos estranhos e maus que tinham vindo perturbar a paz dos seus amigos, e contra aquela que lhe oferecera um manto cor da aurora para os despojos dos seus ancestrais, pois pervertiam os selvagens da costa, tudo isso devia culminar no dia certo com uma carnificina sem mercê.

-        Pronto! - murmurou Marcelina. - Começaram a correr!

O rufar cadenciado mudara de ritma Agora era um ruído de tempestade, de maremoto, de mar deixando seus limites e avançando sobre os homens.

Quase na mesma hora, a orla da mata se adornou de um franja avermelhada, que parecia estender-se até sumir de vista.

Estava claro que Angélica, o Conde de Peyrac e seus fiéis não tinham nada a perder, pois era por eles que Piksarett e as tribos suriquesas e malecitas avançavam sobre Tidmagouche, mas não se podia garantir que os habitantes do povoado e os pescadores bretões seriam poupados.

Na praia já tinham escutado o rumor captado pelos ouvidos treinados da grande Marcêlina, e viu-se Nicolau Parys passar empurrando gente a sua fre.nte.

— Depressa, corram para se proteger no forteU

— Fique aqui! Senhor intendente - disse o conde de Peyrac -, os índios não o conhecem, e poderia correr perigo. Não se separe do Sr. de Ville-d'Avray e da minha mulher. Na companhia deles, não tem nada a temer... Mas não arrede pé desta casa.

E acorreu na direção da praia,

-        Onde estão as Moças do Rei? -indagou Angélica.

. Avistou-as mais acima, do lado do forte, onde Nicolau Parys enfiava todos os que podia sob a proteção da paliçada. Dois soldados espanhóis de Peyrac postaram-se na torrinha. A presença deles, a quem Piksarett reconheceria, salvaguardaria os que estavam sob sua proteção.

Cantor e o Conde d'Urville corriam pela praia, gritando aos pescadores bretões:

— Cuidado! Os índios estão chegando! Querem escalpelar os estranhos! Subam nos botes... Venham abrigar-se no forte!... Apressem-se!

— 0 bascos! - chamava Peyrac. - Abriguem-se sob a minha bandeira e não atirem de maneira alguma!

A maré vermelha desencadeava-se, surgindo de toda parte, com aquela irresistível capacidade de alastrar-se que já surpreendera Angélica na tomada de Brunswick Falis e que submergia a tudo em poucos instantes.

Era de temer que, sob aquele vagalhão cego, inocentes fossem sacrificados, tanto dentre os homens de Peyrac quanto marujos da tripulação basca que ajudara o conde na captura dos bandidos.

Mas Piksarett, arcanjo vingador e veloz, pareceu voar de uma extremidade a outra da linha de frente do seu exército, apontando os culpados, que seu olho experiente aprendera a reconhecer sem hesitação no decorrer de sua longa espera.

Nenhum escapou. Uniakê e os seus mic-macs, vindos de Truro, escalpelaram com as próprias mãos vingadoras os comandados de Zalil, a equipe de provocadores de naufrágios que tinham no seu ativo a destruição do La Licorne, a da chalupa de Humberto d'Arpentigny, bem corno o atentado contra o iate L'Asmodée.       

Angélica, Marcelina e lolanda, asssim como o governador e o intendente, permaneceram à soleira da cabana.

-        E se eles quiserem capturar a duquesa? - disse o marquês.

- Não levarão muito tempo a saber, onde ela está escondida, a mulher cheia de demónios...

-        Não entrarão - disse Angélica. - Falarei com Piksarett.

Tensos, ouviam os gritos que cresciam a sua volta, gritos de vitória misturados com gritos de terror, de dor e, agonia. Espocaram alguns tiros de uma defesa desesperada.

Estranhamente, o espaço diante deles continuava vazio. Era como se o assalto das tropas indígenas tivesse voluntariamente evitado passar pelo centro do povoado abandonado.

Súbito apareceu na pracinha um homem só, vestido de preto e vagando de-;um lado para outro. Estava ali, insólito e como que ausente, bizarro, correndo à volta um olhar cintilante de cego, pois o sol, em seu zénite no céu em fusão, vinha refletir-se nas lentes dos seus grossos óculos. Reconheceram o secretário da duquesa, Armand Dacaux, o plumitivo de queixo pesado e sensual, o homem do eterno sorriso benévolo, o assassino de Maria, a Meiga.

Ele continuava a sorrir com ar desorientado. Avistando-os à soleira da porta, deu um passo hesitante naquela direção, ao mesmo tempo que eles instintivamente recuavam.

-       Não fique aí - gritou-lhe Marcelina, afastando-o com um gesto. - Corra para o forte, se dá valor à vida. Os índios o procuram...

Ele deu um sorriso presunçoso.

— Já deram alarme uma vez, e era falso!

— Desta vez é verdade! Ouça! Não está ouvindo? Se os índios o pegam, você é um homem morto!

— Por que me matariam?

— Porque você é um criminoso - lançou-lhe Angélica -, voce assassinou Mana, a Meiga, empurrando-a do alto da falésia, e não foi a primeira vez que você matou a serviço da sua ama diabólica... Ele se empertigou, corando de uma vaidade extática.

-        Sempre agi pelo bem, pela maior glória de Deus.

A loucura dele em absolver-se dos piores crimes, a sua complacência para consigo mesmo tinham algo de repelente. Ante a aproximação da morte e da punição, recusava-se a fugir, o que teria constituído uma confissão. Sua monstruosa vaidade o paralisava, negando os avisos de perigo, exatamente como ao longo de sua vida negara os avisos da própria consciência, enquanto pouco a pouco se deixava subjugar pela sua paixão por uma mulher perversa e demoníaca.

Quando os índios desembocaram na praça, ele se refugiou atrás de Angélica, atirando-se aos pés dela, agarrando-se a ela, suplicando-lhe que o salvasse.

-        Deixe-o para nós! - exclamou Piksarett, feroz.

Dois selvagens seguraram o homem pelos pulsos e o arrastaram mesmo de joelhos. O punho de Piksarett, armado de uma faca, levantou-se contra o céu, enquanto com o joelho ele bloqueava a nuca da vítima e com a outra mão empunhava os escassos cabelos do secretário assassino.

Ouviu-se-lhe o grito terrível.

Assim, poucos dos cúmplices da Diaba escaparam às facas dos índios. Todos os marujos das duas tripulações a serviço dela encontraram a morte.

Cinco bretões do navio pesqueiro também foram vítimas do massacre, que ganhou para Tidmagouche o nome de Praia Sangrenta.

O Conde de Peyrac salvou na última hora, com a sua intervenção, o Capitão de Faouet e Gontran le Jeune, que não tivera tempo de refugiar-se no forte com o pai.

Piksarett e seus índios desistiram de perseguir os que conseguiram fugir de bote para os navios ancorados ou que se esconderam entre os rochedos.

Reunindo as tropas, o grande guerreiro da Acádia tornou a passar pelo povoado e foi despedir-se de Angélica, que continuava à soleira da porta, ladeada por Marcelina e Iolanda, bem como pelo Marquês de Ville-d'Avray e o intendente Carlon, assombrado.

-        Devo acompanhar Uniakê e seus irmãos a Truro - declarou o abenaki, dirigindo-se a sua cativa -, mas a encontrarei em Quebec. Você ainda precisará de minha ajuda por lá.

Voltou-se para Peyrac, que o acompanhava:

-        Velei por ela em incontáveis perigos, fique sabendo, Teconderoga, mas não lamento meu esforço, pois os demónios não prevaleceram contra ela. É uma súplica que se. dirige a Deus nas preces

do sermão da missa. "Que os demónios não prevaleçam contra nós", e Deus nos escutou, pois os inimigos dela estão aniquilados.

Ele se erguia em toda a-sua soberba, colorido de pinturas de guerra, e das cabeleiras que lhe pendiam da cintura o sangue lhe escorria pelas pernas.

Diante dele, Angélica parecia frágil, uma mulher branca vinda de longe, de um mundcrestranhô, mas era a. ela que os iroqueses chamavam de Kawa, e Piksarett estava bem satisfeito de compartilhar com seus distantes e irredutíveis inimigos o privilégio de defendê-la. Desceu sobre ela um olhar malicioso e triunfante.

-        Lembra-se, minha cativa, de quando em Katarunk você se postou diante de uma porta? Eu sabia que Utakê, o Iroquês, meu inimigo, estava atrás daquela porta, mas consenti em deixar-lhe a vida dele. Lembra?

Ela meneou afirmativamente a cabeça.

-        Pois bem - continuou o selvagem -, também sei hoje quem está atrás dessa porta - e apontou o batente da casa onde se encontrava a Diaba ferida -, mas, assim como outrora, deixo-lhe a vida dela, pois é direito seu decidir sobre essa vida.

Simulou uma partida solene, e depois, voltando-se uma última vez antes de se distanciar, exclamou:

-        Ela era sua inimiga! A cabeleira dela lhe pertence!

A cabeleira de Ambrosina! Aquela pelagem suntuosa, de perfume enfeitiçante!... Uma coisa feminina, viva, uma coisa macia, uma expressão de beleza terrestre, criada para o gosto de viver, para o prazer e o amor, e, como toda coisa humana, criada para a felicidade, a alegria, a ternura, como a cabeleira de Angélica, sobre a qual ela sentia Joffrey passar a. mão, numa carícia possessiva e ardente.

-        A cabeleira dela! O que faria eu com ela?

O crepúsculo caía sobre uma praia ensanguentada, acima da qual se fechava rapidamente uma escura nuvem de pássaros.

Com os selvagens afastava-se o odor do crime e da acerba vingança. Teriam que ser rápidos para separar e enterrar os corpos, que no resignado abandono da morte adquiriam uma espécie de inocência. 

Entorpecida por uma súbita lassidão, Angélica imaginava pendurada a sua.cinturaa cabeleira de Ambrosina, escura e percorrida de reflexos de fogo, e talvez fosse sinal de amadurecimento seu, de crescimento até, de sabedoria, de consecução da serenidade, que de tantas torpezas, medo, ódio, indignação ardente e desejo de morte ela conservasse apenas um sentimento de piedade por uma cabeleira de mulher, lamentando que os demónios tivessem o poder de usar da beleza humana para envilecê-la e destiná-la, pelo mal, ao horror e à repulsa.

As noções comuns tinham sido ultrapassadas. Sentia-se isso nas palavras, no Comportamento daqueles que tinham vivido o drama em profundidade, na sua maneira particular de abordar com simplicidade assuntos que em outras circunstâncias teriam provocado espanto e murmúrio - uma atitude, aliás, que não deixava de chocar os "estranhos", os que só tinham entrado na história havia poucas horas.

— Esse Piksarett é maravilhoso! - comentou Ville d'Avray, satisfeito. - Agora estamos tranquilos. A limpeza foi feita com presteza. Está tudo em ordem. Nada de processo, de tribunal religioso ou secular. Não teremos que lidar com depoimentos sem fim, que nos levariam ao banco dos réus e, quem sabe, à fogueira da Inquisição. Perfeito! Perfeito! Esses índios às vezes são preciosos, reconheço, apesar do detestável hábito que têm de se untar com gorduras malcheirosas.

— Mas você é infame! - exclamou Carlon. - Não o reconheço. Você, um homem tão delicado! Tem um modo de tratar esta carnificina inumana e incompreensível que me deixa estupefato! Com um cinismo!

— Acredite, foi a melhor solução. A gente sabe a que levam os processos de envenenamento e magia...

— Mas eu me envolvi nessa escaramuça! - bradou o intendente, assustado. - Terei que comunicá-la ao grande conselho de Quebec.

— Nem pense nisso! E complicada demais. Apaguemos! Apaguemos tudo! Gomo o vento e os pássaros vão apagar todos os vestígios deste dia sobre a praia. Por alguns crânios escalpelados, não há por que mergulharmos voluntariamente num atoleiro que fede a enxofre. Fique quieto! Pará;recompensá-lo, conto-lhe a história do começo ao fim. Conheço todos os detalhes. Isso ocupará nossas noites de inverno.

— Mas... ainda resta essa Duquesa de Maudribourg.

— Tem razão. Morta ou viva, ela ainda não acabou de nos atormentar.

Ambrosina de Maudribourg continuava viva, embora parecesse a ponto de expirar.

Somente Marcelina devotada e corajosa, encontrou força moral para lhe dedicar alguns cuidados.

Enquanto isso] o velho Nicolau Parys convocava o grupo todo à sala do seu. fortim.        

— Bom! - declarou á Peyrac. - Tenho uma proposta a fazer-lhe para livrá-lo dessa mulher. Sabe que quero partir e deixar-lhe minhas terras. O preço ainda está por fixar, mas não serei ambicioso. O que quero é casar com essa Duquesa de Maudribourg. Gosto desse tipo de diaba e ainda lhe passo a mão na fortuna. E, quando já nada restar dela, terei o segredo da fabricação do ouro, coisa que ela conhece.

— Mas você está louco! - exclamou Ville-d'Avray. - Essa feiticeira acabará com você e o.envenenará como ao duque, seu marido, e inúmeros outros dos seus amantes.

— Isso é assunto meu - resmungou o velho rei da costa leste. - Estamos entendidos, então?

E, como a noite caísse, mandou acender suas tochas fumegantes, a fim de fazer o balanço e a avaliação dos seus bens, para entregá-los ao seu sucessor, o Conde de Peyrac.

CAPITULO XXXVIII

Depois da fuga de Ambrosina, a espera - As raízes do Mal - O fim da Diaba

Mas, ao anoitecer daquele dia, na escuridão já profunda, ouviu-se um grito:

-        Ela fugiu!

Soprou um vento de pânico, e Angélica não esteve longe de compartilhar do terror supersticioso de alguns.

Viva ou morta, a sombra de Ambrosina continuava a planar sobre o lugar. Tinham sofrido demais com sua malícia e astúcias para se acreditarem protegidos contra os malefícios dela tão depressa.

Encontraram a grande Marcelina meio caída contra a viga da lareira, o leito onde a Diaba fora deitada, vazio, e a janela que dava para a mata, aberta.

-        Eu estava atiçando o fogo - contou a acadiana -, de costas para ela. Como ia imaginar que ela ia se levantar, ela, que estava quase agonizando, não tinha mexido nem um dedo durante todas essas horas?... Veio por trás e me empurrou com uma força incrível. Acho que queria me fazer cair nas chamas. Lutei. Ao me virar, vislumbrei o rosto dela. Horrível! Os cabelos pareciam serpentes se contorcendo. No meio de todos aqueles ferimentos e das manchas pretas das pancadas, os olhos brilhavam como os do Diabo, e os dentes... os dentes, acreditem, havia dois mais compridos, mais pontudos do que os outros... dentes de vampiro. Meu coração parou. Acho que desmaiei e, ao cair, bati contra a lareira. Quando voltei a mim, vi que ela tinha pulado a janela.

Vejam se ela não me mordeu com aquelas presas!... Se tiver mordido, estou boa para o inferno!... Ah, pobre de mim!...

Corajosamente, ofereceu a exame o belo colo branco e sólido. Estava preparada para tudo: Mas Ville-d'Avray lhe garantiu da maneira mais instruída e teológica que elaTnâo apresentava vestígio algum de mordidas e-que não tinha nada a temer daquele ataque supremo de um enviado de Satã.

Apesar de tudo, a emoção'ia no auge. Joffrey de Peyrac serenou os espíritos, dizendo que era possível que uma pessoa dotada de propriedades físicas fora do comum, como a Duquesa de Maudribourg, recuperasse subitamente, apesar da gravidade de seus ferimentos, uma força sobre-humana, que lhe permitisse levantar-se, correr, fugir, num último sobressalto de vitalidade furiosa. Mas na floresta ele não iria longe.

Despacharam alguns ho.mejis no seu encalço, e eles voltaram sem descobrir nenhuma pista.

Logo a escuridão se fez profunda, a floresta, hostil, e uma pesada atmosferatombou sabre aquela praia onde tinham acabado de sepultar os mortos é onde, naquela noite, ninguém teve coragem de repousar.

Uma visão impunha-se a Angélica, e ela sentia percorrer-lhe a espinha um longo arrepio.

Estava vendo... sim, vendo...

Parecia que antes de romper-se definitivamente e libertá-la, o vínculo que a unira pela violência de uma luta surda e encarniçada à sua inimiga mais temível, enviada para destruí-la, esse vínculo voltava a ligá-la àquela que ela aprendera a conhecer a fim de defender-se, e Angélica a via...

Via aquela mulher demente, fugindo em suas saias de cetim esfarrapadas, fugindo loucamente através da floresta selvagem da América... E, lançada em seu encalço, uma bola escura e luzidia, vencendo ravinas cm sua perseguição, colando-se aos arbustos, aproximando-se, aproximando-se cada vez mais da fugitiva, saltando-lhe sobre os ombros, derrubando-a e rasgando-a com as garras, enquanto se revelavam os olhos de fogo e o ricto demoníaco arreganhado sobre os caninos pontiagudos do animal. O monstro!... O monstro de que falava a predição: ... e vi sair do mato uma espécie de monstro peludo que se atirou sobre a Diaba e a fez em pedaços, enquanto um jovem arcanjo com uma espada cintilante se alçava nas nuvens..."

-        Onde está Cantor? - gritou Angélica.

E se pôs a procurá-lo por toda parte, indo de um grupo a outro, tentando avistar-lhe a silhueta já esguia, a cabeleira loura. Se o encontrasse, perguntaria: "Cantor! Onde está o seu glutão? Onde está Wolverines?" Mas não viu nem Cantor nem b glutão. Marcelina, a quem a agitação de Angélica surpreendia e que se refizera de suas emoções, disse-lhe:

-        Por que se preocupa? O que quer que aconteça a seu Cantor? Já faz um bom tempo que esse rapazinho não é um bebe! Mas eu entendo! Nós, mães, somos todas iguais!

Ansiosa por sossego, Angélica sentou-se no banco que havia diante de sua casa. Apertou o manto à volta do corpo. Era a suprema ansiedade, a última espera, a última vez que se recolhia no isolamento daquela tragédia, perceptível apenas para ela, e que abandonaria, assim como a gente deixa um país visitado de passagem, um país a que certamente não se tem vontade de retornar, mas do qual se levam alguns tesouros preciosos.

O luar ergueu-se por trás das falésias. As fogueiras estavam acesas por toda parte na praia. As luzes dos navios dançavam, numerosas, sobre a água da enseada. Nos barcos atracados havia uma incessante animação. Os bretões sobreviventes, melancólicos e dolentes, começavam a levantar acampamento e içavam para bordo os últimos barris de bacalhau salgado.

O Conde de Peyrac surgiu do escuro.

Foi sentar-se perto de Angélica. Passou o braço em torno dos ombros dela e puxou-a para si. Ela teve vontade de falar-lhe sobre Cantor e a visão que a atormentava, mas calou-se.

Havia que saborear aqueles minutos, saber emergir do pesadelo, curar-se da crueldade enfrentada cara a cara.

Tinha a impressão de que estava diferente, ou melhor, de que adquirira algo que até então lhe fora inacessível e que a tornava diferente. Essa coisa ainda mal definida somava-se a sua personalidade, fortificando-a. Mas não sabia muito bem o que o futuro lhe reservava, e por isso sentia a necessidade de calar-se. Mais tarde descobriria que se tornara mais indulgente, mais terna para com a fraqueza humana, mas também mais distante, menos preocupada com o meio, mais livre de espírito e coração, mais amigável consigo mesma, mais apta a degustar o sabor da vida, mais intimamente ligada ao invisível, àquilo que nunca é pronunciado e que rege em profundidade os atos dos seres humanos. Riquezas sem preço, tesouro inestimável que, ao retirar-se, o vagalhão maléfico lhe deixava na alma.

A espera, nela, mudava aos'poucos de significado, desembocava na confiança, na felicidade na alegria das certezas.

Joffrey por vezes lhe beijava a testa, acariciava-lhe os cabelos.

Falaram pouco durante aquela noite, que ainda estava, entre o desconhecido do dia seguinte e o peso de um dia trágico, cheia de sangue e anátemas, .uma norte de espera.

O conde só explicou porque no mês anterior rumara para o golfo Saint-Laurent sem parar sequer em Gouldsboro.

Enquanto ainda se-encontrava no rio Saint-Jean, resolvendo o caso de Phipps e dos oficiais de Quebec", recebera uma mensagem da costa leste avisando que podiam fornecer-lhe informações da maior importâhcra sobre o La Licorne, a Duquesa de Maudribourg é uma conspiração urdida contra ele.

Foi por isso- que seguiu às pressas para o golfo. O aviso lhe corroborava a intuição de que a Duquesa de Maudribourg e o navio de galhardete alaranjado ..que ós espionava e lhes armava ciladas tinham alguma ligação entre si. A desconfiança lhe viera ao espírito desde o dia em que a duquesa desembarcara tão gloriosamente em Gouldsboro. Também ele fora sensível - mas de modo mais nítido do que Angélica - ao que soava falso na encenação da bela benfeitora. Além disso, examinando os destroços do La Licorne e os cadáveres "das vítimas do naufrágio, já extraíra a impressão de que a história era suspeita, e as reticências de Simon acerca do erro de pilotagem que cometera o intrigavam.

Depois da chegada espetacular da duquesa, tão milagrosa, e elegantemente, salva das águas, desmaiando aos pés deles, atraindo atenção e enternecimento, a inquietação dele aumentara. O que significava aquela convergência, para Gouldsboro, de criaturas e navios tão díspares e diversos? Seu instinto se recusava a ver naquilo tudo apenas a mão do acaso.

Assim, durante aquele dia mesmo em que Angélica velava no forte à cabeceira da duquesa, ele novamente tivera uma conversa com Colin Paturel, interrogando-o minuciosamente. Queria saber tudo sobre as condições nas quais Colin-Barba de Ouro adquirira suas cartas de corso para uma expedição à América do Norte, em que termos lhe haviam apresentado,o lugar a conquistar, Goúldsboro. "Um pirata e alguns cú/nplices a desalojar!", tinham-lhe dito. E Colin lembrou-se então de que em várias ocasiões, para encorajá-lo na aventura, tinham feito alusão ao fato de que "ele não estaria sozinho por lá", que seria assistido na ocasião, que havia um grande nome por trás daquilo tudo, uma das maiores fortunas do reino. Em suma: que s. beriam reconhecer o serviço prestado por ele, limpando o lugar e estabelecendo uma colónia bem francesa. A luz ainda um pouco vaga desse relato, Peyrac tomou mais consciência da coalizão de que era ob-jeto e que, sem dúvida, fora fomentada em Paris mediante instigações precisas, procedentes do Canadá. Sentia que se cristalizavam as ameaças vagas, a vontade oculta mas certa de destruí-los sem clemência, a ele e aos seus, e de repente...

-        De repente, não sei por quê, pareceu-me que o mais urgente a fazer era reconciliar-me com você... minha querida!... Mandei Enrico chamá-la...

Houvera as aparências, os fatos, e depois a trama invisível das ciladas armadas à boa vontade das almas e dos corações. Naquela noite, em Goúldsboro, a Diaba já estava no local. Mas o Amor fora mais rápido do que ela. Fora por isso, pressentindo a própria derrota, que ela soltara aquele grito do outro mundo que os gelara de susto.

— Quando penso nela - disse Angélica -, começo a compreender o medo e a desconfiança que tem a Igreja pelas mulheres...

— Se fosse somente uma mulher!...

O dia raiava com um brilho inusitado, e, aos primeiros clarões do sol cintilante, viram Cantor chegando pelo caminho que ladeava a costa, acima do povoado.

Vinha calmamente, olhando para o mar sobre o qual o sol nascente espalhava uma colcha de ouro.

Resultando daquela profusão gloriosa, a beleza juvenil do rapaz se realçava mais, com seus cabelos louros aureolados de luz, o olhar límpido e coruscante, o frescor de sua tez como que tocada pelo brilho do orvalho, a graça altiva e segura de seu andar, enquanto algo puro e incorruptível emanava de toda a sua pessoa. O arcanjo justiceiro! A própria Ambrosina não o chamara assim?...

-        De onde está vindo? - perguntou-lhe o pai quando ele parou diante do casal.

E Angélica:

— Onde dormiu?       

— Dormir? - respondeu Cantor, com certa altivez. - Quem foi que dormiu esta noite nesta praia?

— E Wolverines? Seu glutão, onde está?

— Aí pela mata. Afinal, não se deve esquecer que se trata de um animal selvagem.

Aproximou-se para cumprimentar o pai e beijar a mão da mãe. Depois, a uma idéia súbita, tornando-se criança de novo, disse com animação:  

-        O que são-esses boatos dç que vocês vão a Quebec e de que vamos passar o inverno já? Eu gostaria muito disso. Depois de Harvard e da teologia,-'e Wapassu e a fome, bem que sinto necessidade de um arzinho de corte. Minha guitarra está enferrujando por não vibrar para o prazer de belas moças. Pai, o que diz?

Acharam o corpo de Ambrosina de Maudribourg terrivelmente mutilado à beira de um charco. Pensou-se que fora atacada por um lobo ou gato selvagem. Somente os farrapos de sua roupa de cores vivas - amarelos, vermelhos e azuis - permitiram identificá-la.

O capelão de Tidmagouche, que tinha muito a fazer com toda aquela gente para enterrar e quer se esquecia de suas libações habituais, foi procurar Peyrac.

— Devo absolvê-la? - indagou, inquieto. - Contaram-me que essa mulher estava possuída pelo Demónio.

— Absolva-a! - respondeu Peyrac. - Afinal, não passa agora de um corpo sem vida, que tem direito, ao respeito dos homens.

CAPITULO XXXIX

Paz entre os homens de boa vontade - "Enfim, sós..."

- A volta de Honorina - Rumo a Quebec

Quando o capelão saiu, entrou Ville-d'Avray, que dissipou a impressão penosa, declarando de chofre:

— Decididamente, examinei os dois muito bem. É do menor que gosto.

— Do menor? - indagou Peyrac, com um meio sorriso.

— Dos seus dois navios, como butim... Pois não duvido, meu caro amigo, que vai presentear-me com uma de suas presas de guerra. A amizade que lhe dedico, bem cromo à Sra. de Peyrac, custou-me bem caro! Entre outras coisas, a perda do meu L'As-modée. Saiba que pela beleza dele eu havia pago uma fortuna. Sem contar as mil mortes que essa Diaba lançada em seu encalço me fez sofrer, porque eu me encontrava na região e porque, mais ou menos forçado pelas circunstâncias, eu era seu aliado. Assim, considero mera justiça que eu me torne proprietário de um dos navios desses piratas, para compensar minha perda... Não é verdade?

— Compartilho inteiramente de sua opinião - confirmou Peyrac -, e eu acrescentaria que gostaria de assumir as custas da reconstrução do castelo de popa e também a decoração da amurada. Estou pronto a mandar vir da Holanda um dos melhores pintores que existem para pintar na amurada um quadro a seu gosto. E isto ainda será pouco para reconhecer os inestimáveis serviços que nos prestou, marquês.

O governador da Acádia corou de prazer, e seu rosto redondo iluminou-se com seu sorriso infantil.

-        Então? Não me acha demasiado ávido? Como é amável, caro conde! Eu nãoesperava menos de você. Mas não teremos necessidade de amotinar a Holanda. Tenho à mão, em Quebec, um excelente artista, o Irmão Lucas... Havemos de criar uma maravilha...        

Aos pouquinhos, voltava-sé à vida normal. Depois de combater a Diaba com brio e dando o melhor de si, Ville-d'Avray tornava-se outra vez exigente, preocupado coni os próprios interesses e os próprios gozos.

Mas Angélica jamais esqueceria a personalidade valorosa que se ocultava sob os coletes bordados do marquesinho de rendas.

— Ele foi maravilhoso! -'disse a Peyrac. - Se você soubesse! Estes últimos dias.sm Tidmagouche foram terríveis. Ambrosina me torturava de mil maneiras. Tinha um. modo de aparecer e trazer a ameaça, ã dúvida e. o desespero, que acabavam por desgastar toda e qualquer resistência. Sem ele, o nosso Ville-d'Avray, não sei se eu teria aguentado, se teria enfrentado tanta maldade hábil! Ele dispersava a angústia, simplificava com suas tiradas as situações mais dramáticas... Ajudou-me a conservar a certeza de que você voltaria e então tudo se arranjaria. Foi para buscar essa testemunha decisiva, Sr. Qúentin, o capelão, que você foi à Terra Nova?

— Sim! A mensagem que recebi no Saint-Jean falava de informações importantes. Aqui, fiquei sabendo da história do capelão do La Licorne, que fora retirado da água na costa da Terra Nova e que parecia saber muita coisa sobre o navio e sua proprietária.

— Mas quem foi que lhe enviou a mensagem ao rio Saint-Jean?

— Nicolau Parys! Angélica arregalou os olhos.

— Ele? Eu o acreditava perigoso!...

-        E é... E astuto e sem escrúpulos e dissoluto e mau, mas não somos inimigos. A história do capelão atirado ao mar, que lhe trouxeram da Terra Nova e em que Gouldsboro estava envolvida, pareceu-lhe suspeita, e ele mandou avisar-me, a fim de que eu próprio viesse esclarecer o assunto. De qualquer maneira, ele abomina qualquer intrusão de recém-chegados nas questões da Acádia, onde ele se considera rei de uma boa parte, e, como contava entender-se comigo na questão das terras deles, preferiu jogar limpo e avisar-me de que estavam à espreita para me apanhar desprevenido. Isso não o impediu, quando conheceu a encantadora duquesa, de deixar-se envolver por sua sedução malévola.

— Mas como foi que "ela chegou até aqui?

— No Gouldsboro; Encontrei-a em La Heve, onde Phipps, aterrorizado, se livrara dela, preferindo privar-se de çeféns a continuar às voltas com uma tentadora como ela. Era difícil para mim deixar mulheres naquele lugar abandonado. Tive que trazê-las até aqui, onde tinham mais possibilidade de encontrar um navio para Quebec.

-        E foi a sua vez, então, de ver-se às voltas com a tentadora?

Peyrac sorriu, sem responder. Angélica continuou.

— E sem dúvida foi durante essa travessia que ela roubou seu gibão. Por que adivinhação diabólica ela sabia que um dia poderia utilizá-lo em Tidmagouche?... Ela pressentia tudo... Antes de deixar Gouldsboro, você marcou um encontro com ela em Port-Royal?

— Eu? Um encontro? Por que marcaria eu um encontro com aquela feiticeira?

— Foi o que ela quis me fazer crer.

— E você acreditou?

— Sim... por momentos...

— E se preocupou?

Ele sorria, fitando-a nos olhos.

— Você, a sedutora que jamais conheceu derrotas, nem sobre o coração dos maiores monarcas ou dos tiranos mais temíveis?

— Ela não era uma rival de envergadura? Terrivelmente hábil e armada? Mais bem armada do que eu em muitas coisas que podiam agradá-lo: o saber, por exemplo, e...

— Um saber artificial e com toques de loucura, que só podia me interessar, e não atrair-me. Como pôde duvidar, meu amor? Como pôde temer fosse o que fosse de minha parte? Ê assim tão pouco consciente de sua incomparável sedução e de seu enfeiti-çante poder sobre mim? Como poderia ter rivais em meu coração? Que loucura! Não sabe que uma personalidade de mulher autêntica, ao mesmo tempo misteriosa e sem artifícios, o que é um dom raro, atrai mais profundamente a paixão de um homem do que imaginam as astutas? Claro que a atração da carne sobre nós, homens, não é de se subestimar, e até os menos tolos podem deixar-se envolver pelos capitosos sabotes de um belo corpo, mas eu, já acorrentado ao jugo de,sua beleza e de seu encanto enfeitiçante, o que iria eu procurar junto dessa mulher, apesar dos incontestáveis trunfos dela?Tanto mais que desde o começo ela adivinhou minha desconfiança... E como não pôde usar dos ditos trunfos comigo, fingiu deixar Gouldsboro, adivinhando que era a suspeita que ela me inspirava que me retinha ali, e depois, assim que virei as costas, zarpando para o Saint-Jean, tranquilizado que estava com sua partida, ela retornou para apanhá-la em suas malhas, a você, meu amor, meu tesouro mais precioso. Veja que também eu, por desconfiado que seja, não frustrei todas as astúcias de uma criatura tão diabólica!

- Ela era assustadora! - murmurou Angélica com um arrepio.

Por muito tempo eles não parariam de relembrar as ciladas que Ambrosina lhes armará, ã? armadilhas em que'tinham caído, as que, por milagre e como que protegidos invisivelmente, tinham conseguido evitar... E como, impelida por seu ciúme e por seu ódio demoníaco, ela quisera matar Abigail, porque Angélica a amava, privando-a de socorros durante o parto - e mandou seus cúmplices levarem bebida para a velha índia e espalharem a notícia de que um grupo de iroqueses se aproximava, a fim de afastar Mestre Berne, e misturou um sonífero no café de Angélica, mas fora a Sra. Carrere que o tomara... Então Ambrosina fingiu que também ela fora drogada, a fim de evitar as suspeitas. E mais tarde, voltando para visitar Abigail, vertera veneno na tisana que sabia que Angélica preparara para a parturiente.

E eis que o homem das especiarias e o seu caraíba, desembocando da floresta na praia de Tidmagouche, esclareceram o caso da fronha escarlate. Fora ele que vendera à Duquesa de Maudri-bourg o violento veneno que ela misturara à tisana. O homem levava consigo um pouco de tudo! Joffrey de Peyrac concluiu que se tratava não de um extrato de plantas, mas de arseniato de ferro.

Ao ser informado de tudo isso, Ville-d'Avray quis prender o pirata. Mas parecia que também aquele nómade fora em parte vítima da Diaba e de seus satânicos cúmplices. Perseguido por eles porque sabia demais e entendendo que, assim como Clóvis, perderia a vida, ele vagara miseravelmente pela floresta para escapar-lhes. Estava esgotado agora.

- Muito bem! -. aceitou o governador da Acádia. - Fico com a rede do caraíba dele e com a sua pedra verde. Deixo-lhe a vida.

O pobre-diabo deitou-se na praia com os braços sob a nuca, seu escravo oliváceo acocorou-se ao lado dele, e ambos esperaram pelo Sans-Peur, que viria buscá-los no outono para levá-los de volta às ilhas.

' Foi Phipps quem chegou primeiro. O inglês se arriscava pelas perigosas águas francesas para tentar alcançar o Conde de Peyrac.

Ouvira dizer que o conde iria a Quebec para negociar a situação do Maine e trazia, da parte do governador de Massachusetts, diversas recomendações a esse respeito. Também estava incumbido de indagar sobre a morte do pastor inglês, que fora morto em Gouldsboro por um jesuíta.

Finalmente, trazia de volta o soldado francês Ademar. Os puritanos haviam-se declarado incompetentes para determinar o destino de tal personagem. Era tão difícil julgá-lo quanto enforcá-lo. Mais valia devolvê-lo discretamente aos franceses.

Ademar desembarcou como herói. Phipps, em compensação, perdera muito de sua causticidade. Temeroso, olhava para toda parte com apreensão, e as afirmações de que ali ele se encontrava em território neutro e não tinha nada a temer dos canadenses não bastavam para tranquilizá-lo. Só se acalmou quando veio a ser informado do fim da duquesa e de que já não corria risco algum de se ver face a face com uma mulher tão inquietante.

Esse fim trágico da duquesa afetara profundamente o proprietário do lugar, Nicolau Parys. O velho bandido recebera mal o golpe que o atingia em seus objetivos quanto à fortuna da Duquesa de Maudribourg e, quem sabe, na paixão senil que ela lhe inspirara.

Encaneceu em dois dias, arqueou-se, entregou suas terras ao Conde de Peyrac com alguns acordos apressados, e apesar dos protestos de Ville-d'Avray, que insistia em que o governo de Quebec devia ser posto a par da transação, e apesar dos gritos do genro, que falava de herança e de direitos de sucessão (- Canso já basta para você, moleirão! - lançou-lhe ele), Parys desceu uma última vez à praia de seu reino na Améripa,jiuma manhã de vento que anunciava o fim da estação, a fim de embarcar no pesqueiro bretão.

A brisa estava forte naquela manhã. E os presentes se impacientavam, diante do molhe, vendoo Marques de Ville-d'Avray e o velho Nicolau Parys cochichando sem parar, meio afastados, de cabeças juntas e nariz contra nark,-como no confessionário. Finalmente acabaram com a conversa, que, a julgar pela expressão de ambos, devia ser de extrema importância.

O velho senhor da costa leste, envolto em sua capa e apertando seu cofrinho embaixo do braço, subiu na chalupa que o aguardava. Pouco depois o-pesqueiro içava as velas e se distanciava. Ele não voltaria nunca mais a Tidmagouche.

Ville-d'Avray-subiu da praia esfregando as mãos.

-        Bom negócio! No momento da despedida, eu disse àquele velho gatuno: ---Desobrigo-o da dívida que tem comigo desde o ano passado. Mas com uma condição: que me dê a receita do leitão que saboreamos em seu antro mal-iluminado, na noite em que chegamos". Lembra, Angélica? Não? Evidentemente, estávamos todos um pouco preocupados naquela noite, mas o leitão torradinho estava delicioso. E eu sei que o biltre é um gourmet e que de vez em quando-vai ele-mesrrio pára a cozinha. Foi cozinheiro antes de virar provocador de naufrágios e proprietário de praias. Em suma, não conseguiu escapar e me confiou tudo, já que não tinha alternativa. Sei todo o seu segredo, nos menores detalhes... É uma receita das Caraíbas, ensinada a ele por um bucaneiro amigo seu, e que na verdade tem origem na China... Cava-se um grande buraco, enche.-se o buraco de brasas... Também é preciso uma laca especial, mas aqui temos resinas excelentes, vou mandar alguns selvagens procurar na floresta... Marcelina, Iolanda, Ademar, venham todos... Ao trabalho!...

Ele tirou o chapéu e a casaca e dobrou os punhos de renda.

-        Agora que estamos entre boa companhia, vamos nos preparar um banquete régio... E você, inglês, tire esse chapéu em forma de pão-de-açúcar e venha ajudar-me com o assado... Vai festejar à francesa. Para variar dos seus mingaus de aveia da Nova Inglaterra.

Teriam, afinal, a ocasião de admirar a grande Marcelina abrindo conchas com uma rapidez de relâmpago, enquanto os cavaletes erguidos na praia, na noite que caía, se cobririam de pratos aromáticos e tostados. Todos quiseram contribuir, e até o intendente Carlon se entregou à preparação de um molho.

Quando anoiteceu de todo, acenderam tocha e fogueiras por toda a volta.

-        Dancemos, ó bascos! --- exclamou Hernâni d'Astiguerra. - Uma última farândola antes de-voltarmos para a Europa!

Não obstante os esforços dos demónios para entristecer os homens de boa vontade, o verão terminava com beleza.

No dia seguinte, os bascos zarparam para a Europa, e logo depois Phipps seguiu para a Nova Inglaterra.

Estavam à espera de quê, sob aquele céu de opala? A chuva ainda não se anunciava. O pólen tombava das árvores, dos pinheiros, dos espruces em fileiras, eriçados ao longo das falésias. Do interior chegavam odores de incêndio.

A temporada que passara como cativo dos puritanos parecia ter desembaraçado muito a Ademar. Foi promovido pela comunidade a cozinheiro-chefe. E, usando uma touca branca que ele mesmo fizera e que combinava à maravilha com seu uniforme gasto, ele anunciou triunfante quando soou a hora do jantar:

— Iolanda e eu lhes preparamos uma lagosta e tanto! Venham provar.

— Esse rapaz é muito bom - avaliou Ville-d'Avray. - Estou com vontade de tomá-lo a meu serviço. E você, Angélica, deveria tomar a pequena Iolanda como camareira. A pequena é encantadora, por trás da aparência ríspida. Gosto muito dela e queria dar-lhe a oportunidade de sair de seu buraco selvagem. Tanto mais que ela parece entender-se bem com esse Ademar...

Angélica olhava a "pequena" Iolanda transportando cestos de mariscos gotejantes com a facilidade de um carregador turco. Não conseguia vê-la bem como criada.

— Pois então ela lhe servirá como guarda-costas - propôs Ville-d'Avray. - Em Quebec isso poderá ser-lhe útil...

— Mas, por favor - interveio Carlon, que também se encontrava ali, junto com alguns integrantes de sua comitiva -, confirme-me, conde - e voltou-se para Joffrey de Peyrac, igualmente presente -, confirme-me se se trata de uma brincadeira ou de um projeto sério. Ouço o tempo todo o marquês dirigir-se à Sra. de Peyrac como se não tivesse dúvida alguma de que você e sua esposa pretendem ir à Nova França, à capital mesmo, e passar o inverno lá.    

— Mas é claro que irão!:- afirmou Ville-d'Avray, levantando o nariz. - Convidei-os a ficar eín minha casa e não admitirei que alguém se mostre indelicado com meus hóspedes...

— Mas você está ultrapassando os limites! - exaltou-se o intendente da Nova França. - Fala como se se tratasse de ir andar pelo bairro do Marais de madrugada! Você, quando enfia uma coisa na cabeça, se recusa a olhar a realidade de frente! Não estamos no coração de Paris, mas a milhares de léguas, e somos responsáveis por territórios imensos, desertos e perigosos; A posição do Sr. de Peyrac é ardè-umjntruso a quem temos mais ou menos o dever de expulsar, e, caso ele- resolvesse ir a Quebec, deveríamos considerá-lo-um iíiiínigo atravessando águas territoriais. Além disso, você não ignora gue_a cidade'está muito dividida a propósito da condessa, sua eáposa. Por razões mais ou menos racionais, estão todos nervosos com ela, atribuem-lhe poderes obscuros, dizem horrores sobre ela. Se tiver a imprudência de ir a Quebec, será apedrejada!

— Tenho balas para responder às pedras - retrucou Peyrac.

— Perfeito! Registro sua declaração! - exultou Carlon, sarcástico. - Está ouvindo, marquês? A coisa começa bem!

— Paz! - disse Ville-d'Avray, imperioso. - Acabamos de degustar juntos uma lagosta excelente. Isso prova que tudo pode se arranjar. Falarei sua língua, senhor intendente. Politicamente, a visita do Sr. de Peyrac se impõe. Já que estamos longe do Sol, ou seja, dos caprichos de Versalhes e dos funcionários parisienses, aproveitemos para agir como gente razoável, ou seja, que tem a sabedoria de sentar-se a uma mesa de discussão antes de passar às vias de fato. É por isso, e não por simples leviandade, conforme sugere, que insisto tanto em -que se faça essa visita. E é indispensável que a Sra. de Peyrac acompanhe o marido, precisamente para dissipar, com a própria presença, e fazendo-se conhecer melhor, a inquietação e a hostilidade suscitadas por intrigas. Intrigas sem fundamento, mas sistematicamente espalhadas, com a única finalidade de levantar a opinião pública contra toda solução que não seja alguma violência para acirrar o conflito que nos opõe ao conde.

-        Espalhadas por quem? - indagou Carlon, agressivo.

Ville-d'Avray não insistiu. Sabia que Carlon, galicano inveterado, era todo dedicado aos jesuítas. Não era o momento de ativar o fogo que ardia sob as brasas.

— Admita que tenho razão - continuou, persuasivo. - Você pode constatar pessoalmente, tanto aqui quanto no rio Saint-Jean, que o Sr. de Peyrac, que fundou o porto de Gouldsboro e além disso se instalou ao longo do Kennebec, não é urh.irsante nem um homem que se deixará expulsar com facilidade. E você sabe que a sabedoria, repito, está no compromisso, se é que queremos a paz na Nova França em geral e na Acádia em particular.

— Estou vendo! Estou vendo! - observou Carlon, amargo. - Aposto como você já se arranjou com ele quanto a seus dividendos...

— E o que lhe impede de fazer o mesmo? - replicou Ville-d'Avray.

Diante daquela troca febril de palavras decisivas, Angélica tentara em vão manifestar-se. Achava que também tinha algo a dizer. Mas notou que Joffrey lhe fazia sinal^para não intervir.

Mais tarde, chamando-a de parte, ele lhe disse que já fazia algum tempo que compartilhava da opinião de Ville-d'Avray sobre a necessidade de irem pessoalmente se entender com o governo de Quebec. Apesar da audácia da atitude - perigosa para ele, não somente considerado um aliado dos ingleses, mas também um ex-condenado da Inquisição, e perigosa para ela, banida pelo rei da França -, apesar do risco de caírem numa cilada, de serem apanhados como numa ratoeira no centro de Quebec, a Francesa, a posição deles na América do Norte era tal, agora, que ele podia pretender falar de igual para igual com os representantes da autoridade real nas colónias remotas. Essa distância mesma alterava os dados do encontro. E o isolamento em que viviam os canadenses, esses franceses do Novo Mundo, longe da mâe-pátria, para não dizer o quase abandono em que os deixavam, tornava-os mais independentes, mais aptos a resolver, segundo os imperativos do presente e sem se preocuparem com o passado, as questões que lhes concerniam diretamente.

Peyrac já tinha garantias da simpatia do governador, um gascão como ele, o Sr. de Frontenac, o que representava um trunfo importante.  

Outro peão a considerar, no centro das paixões, e que ainda não se pronunciara sobre eles, era o bispo, Monsenhor Lavai, uma personalidade forte, cuja adesão ou reserva podia decidir muita coisa.

Restavam os jesuítas, francamente hostis, sobretudo o mais influente de todos, aquele Padre d'Orgeval, que parecia ser o instigador da trama diabólica de que eles quase tinham sido vítimas. Até então, ele se esquivara a um encontro face a face. A presença em Quebec de seus a'dversários o obrigaria a mostrar-se e a enfrentá-los de cara limpa, ou, caso continuasse a esquivar-se, a ver enfraquecer, com certeza, sua própria posição, pois não devia ignorar quê em encontros políticos assim os ausentes estão sempre errados.        

Tudo contribuía, então, para encorajar o Conde de Peyrac a essa expedição, e mesmo antes de partir de Gouldsboro para o rio Saint-Jean ele tomara essa decisão secretamente, reservando-se o direito de renunciar a ela, caso acontecimentos imprevistos, antes do outono, se opusessem a sua execução. No entanto, tendo em vista a visita à pequena e buliçosa capital da Nova França, marcara um encontro com o Sans-Peur no golfo Saint-Laurent, nos primeiros dias de outubro, depois de incumbir Vanereick de dirigir-se às ricas cidades espanholas, no golfo das Caraíbas, e adquirir presentes que ele ofereceria aos notáveis de Quebec.

E não ignorando que o principal obstáculo de Angélica ao pro-jeto dessa viagem certamente não seria o receio de enfrentar Quebec, mas o desgosto de se ver separada um inverno inteiro da filha e sem grande possibilidade de receber notícias frequentes da crianças, ele enviara uma mensagem ao italiano Porgani, chefe de seu entreposto de Wapassu. Encarregara-o de mandar escoltar a pequena Honorina até Gouldsboro, de onde, seguindo instruções posteriores que ele entregara a Colin, um navio a levaria ao golfo Saint-Laurent, onde os pais a esperariam. Ela já devia estar a caminho, contornando a península da Nova Escócia, a bordo do Rochelais. Agora era questão de poucos dias. Como os obstáculos de dissiparam, Angélica entregou-se à alegria de rever a filhinha em breve - parecia-lhe que a menina nunca lhe fora tão querida! - e à excitação que a invadia ante a ideia da expedição a Quebec. Prestou mais atenção às descrições diti-râmbicas de Ville-d'Avray, que preparava minuciosamente, quase hora a hora, para o seu inverno em Quebec, um programa de festividades e prazeres perto dos quais os melhores divertimentos de Versalhes empalideceriam.

-        Versalhes! Nem me fale nisso! É uma máquina grande demais para se pôr em movimento. E demais! A gente tem que estar num grupo pequeno para se divertir...

Dos navios esperados, o Sans-Peur. chegou primeiro. Teve a boa ideia de ir fundear nas enseadas avermelhadas da ilha Royale, e Vanereick, sozinho com seu imediato, veio visitar o Conde de Peyrac em Tidmagouche e levar as mercadorias que fora incumbido de comprar.

Não foi necessário aturarem as carantonhas da tripulação, e se Aristides Beaumarchand se encontrou com o amigo de memória fraca, Jacinto Boulanger, a fim de traficar resíduos de melaço para o fabrico de seu rum, isso não atrapalhou ninguém.

A escolha de Vanereick quanto aos presentes para as senhoras e as personalidades influentes de Quebec fora das melhores. Os conventos exultariam de receber como doação quadros religiosos de boa qualidade. Havia ornamentos de igreja e objetos de culto de ouro e prata dourada, e, no domínio profano dos bibelos e das jóias, havia um anjinho de ouro e esmalte, de um artista italiano renomado no século XV, uma taça de ouro maciço, igualmente de origem italiana, representando uma concha, e cujo pé era formado por uma tartaruga de ouro cinzelado, incrustada de autêntica casca de tartaruga, com um lagarto de jade verde sobre a carapaça.

Joffrey de Peyrac pôs de lado essa pequena maravilha, dizendo:

-        Para a Sra. de Castel-Morgat.

Os objetos mais preciosos eram dois agnus dei, uma espécie de pequenos relicários de ouro, contendo uma pastilha de cera. As condições em que essas pastilhas eram fabricadas, durante a missa pascal do papa em Roma, tornavam-nas amuletos muito procurados, porque eram muito raras e constava que traziam a proteção especial dos santos e da Virgem. Vanereick as obtivera de um bispo espanhol, não se sabia se em troça de algum serviço prestado ou mediante ameaça, mas eram absolutamente autênticas e sem nenhuma possibilidade de- falsificação.

Peyrac reservou umá para Mcíijsenhor Lavai e a outra, para alguma surpresa dos presentes/para aquela -mulher que possuía um café na Cidade Baixa e que por isso detinha certo poder subterrâneo sobre a população masculina da cidade: Janine Gonfarel.

Havia igualmente toda uma profusão de tecidos: veludos e sedas, fitas e vestidos, que"Angélica inventariou e arrumou, auxiliada pelas Moças do Rei. .

Estas, naturalmente, também participariam da viagem. E esperava-se que, ao seguirem o destino que lhes fora previsto, o de se casarem com bons canadenses, esquecessem a terrível aventura em que haviam estado envolvidas. Delfina assumira a responsabilidade por elas, çpm autoridade e competência. Conversava frequentemente com Angélica. Os acontecimentos que vivera tinham-na marcado profundamente. Pediu a Angélica que a aceitasse como dama de companhia enquanto estivesse em Quebec.

Angélica já aceitara Iolanda como camareira. Achou prematuro o projeto. Em sua opinião, Delfina se recobraria e ficaria contente de ser apresentada a jovens oficiais em Quebec, de acordo com os termos do trato para sua vinda para a América. Disse a Delfina que continuasse a ocupar-se das companheiras até que chegassem à capital da Nova França.

- Tanto mais que ignoramos a acolhida que nos será feita. Talvez você seja obrigada a dissocrar-se de nós.

Havia que resolver também acerca do destino do pobre Job Simon. o ex-capitão do La Licome naufragado, que vagava como um corpo sem alma, seguido do' grumete sobrevivente.

O Conde de Peyrac ofereceu-lhe o comando de um pesqueiro que pertencia à frota de Gouldsboro e jque a partir de então cruzaria pela região de Tidmagouche, assegurando mais ou menos a colonização do lugar por meio de um comércio de peixe seco, de acolhida e reabastecimento com água doce e víveres aos navios chegando da Europa e que fariam ali sua primeira escala depois da travessia do oceano. O transporte por terra, pelo istmo de Chignecto, manteria a ligação com a baía Francesa e com Gouldsboro.

Angélica ficara intrigada ao ver reaparecer são e salvo o velho capitão com a mancha avinhada. No corre-corre em que se encontravam todos no memento em que ele resolvera fugir com o grumete, ela não cogitara um único instante que o pobre homem pudesse escapar aos assassinos que percorriam a mata. Ele confiou-lhe sua astúcia:

— Não parti para a floresta. Sabia que eles lc^o me alcançariam. Fui me enfiar num buraco de rochedo, numa gruta que eu havia descoberto. Fiquei escondido lá com o garoto pelos poucos dias que o Sr. de Peyrac ainda levou para chegar.

— Mas como se alimentavam?

— Um dos bretões, um sujeito que eu havia conhecido e que é da ilha de Sein como eu, trazia-nos comida todos os dias. Passamos bem...

Também ele se recobraria da inverossímil aventura, e a vista do unicórnio dourado, com ponta de marfim, arrostando a es: puma do mar, haveria de consolá-lo aos poucos.

Antes de retornar ao seu domínio da baía Francesa, a grande Marcelina foi à procura de Angélica.

-        O Sr. de Ville-d'Avray gostaria de que eu lhe confiasse Querubim, a fim de educá-lo em Quebec - explicou. - Até agora, sempre recusei. Ele ainda é muito pequeno, e uma criança não é um brinquedo para ser exibido nos salões. Mas agora que você também vai para lá e que Iolanda a acompanha, é diferente. Se o pequeno estiver com a irmã e sob sua proteção, ficarei mais tranquila e, pelo menos por este ano, posso dar esse prazer ao senhor governador. Mas com a condição de que seja você a decidir tudo o que se referir ao menino...

Depois, a vela do Rochelais despontou no horizonte e houve um momento de grande regozijo.

Todo mundo estava na praia quando a chalupa trouxe os passageiros, entre os quais se distinguia a coifa branca de Elvira Ma-laprade e a pequena silhueta de Honorina, apertada em seu capuz.

Angélica entrou na água para ser a primeira a segurá-la e estreitá-la contra o coração. Não se cansou de beijá-la, contemplá-la, achá-la mudada e crescida e mais bonita do que nunca.

A vida retomava feições plácidas, familiares, com as cores da felicidade.      

Otávio Malaprade e a esposa, a gentil protestante rochelesa, Elvira, tinham feito questão de acompanhar Honorina até o final ua viagem. Traziam muitas'notícias detalhadas sobre a vida em Wapassu. Iam voltar para passar o inveno em Gouldsboro, onde tinham deixado os dois meninos, Tumás e Bartolomeu. Outubro avançava, e tornava-se arriscado empreender sem necessidade o retorno ao Alto Kennebec.

Tinham falado tanto em Tidmagouche de Honorina de Peyrac, que mesmo os quê não. a conheciam, particularmente as Moças do Rei, ficaram encantados com sua chegada. Ela passou de braço em braço, e admiravam-lhe a boa aparência e a cabeleira acobreada sobre os ombros. Cantor veio correndo, com Wolverines nos seus calcanhares.

-        Ah, aí está a ruivinha! - exclamou ele.,- Como está passando, senhorita?

Pegou-me ãs duas mãos e se pôs a dançar uma giga com ela, cantarolando:

-        Vamos a Quebec! Vamos a Quebec!

Quando o alarido darchegada se acalmou um pouco e Honorina recuperou o fôlego, foi plantar-se diante de Angélica e lhe anunciou, com solenidade:

-        O gatinho também veio! Trouxe-o para você. Ele queria revê-la.

Assim, tudo acabava bem.

O gatinho estava ali, aquele gatinho de navio, lastimável e atrevido, que surgira na frente de Angélica numa noite, que agora parecia longínqua, em que ela velava pela primeira vez pela Duquesa de Maudribourg - o gatinho, espírito travesso, inocente, encarnando-se para se misturar à vida dos humanos e desempenhar um papel de aviso e proteção.

Estava ali sobre a mesa, no salão do castelo de popa do Gouldsboro, e Honorina e Querubim, um de cada lado da mesa, olhavam-no enquanto ele conscienciosamente se entregava à própria toalete. Também o gatinho crescera. Tinha agora uma cauda bonita e espessa, um pescoço comprido, a cabeça fina. Mas conservara sua graça e seus sentimentos exclusivos por Angélica.

O Gouldsboro, belo navio, ia embalado pelas ondas, com todas as velas enfunadas, singrando para o norte, por entre as ilhas do golfo Saint-Laurent.

De passagem, fizeram alto em Shédiac, onde,Ville-d'Avray queria pegar sua bagagem, particularmente o aquecedor holandês. Caixas e fardas esperavam intactos, poupados por milagre, mas, naturalmente, já fazia muito tempo que Alexandre não estava por lá.

-       Não chore - disse ao governador da Acádiá o grande Défour, que os deixava ali -, havemos de mandar-lhe de volta seu lourinho... um dia... quando ele estiver cansado de saltar as corredeiras. O que quer, a juventude passa!

A frota que o Conde de Peyrac conduzia para Quebec compunha-se de cinco navios: o Gouldsboro, os dois navios capturados aos piratas de Ambrosina, cujo comando foi entregue ao Conde d'Urville e a Barsempuy, mais dois pequenos iates holandeses, um dos quais era o Rocbelais, cujo comando Cantor retomara, enquanto Vanneau dirigia o outro.

A bordo do Goudsboro viajavam como hóspedes Carlon, seu geógrafo e Ville-d'Avray.

-        Como hóspedes ou... reféns? - perguntava às vezes o intendente Carlon, entre sério e jocoso.

O marquês dava de ombros e gozava a vida. Tudo se arranjaria! Observava de longe o "seu" navio e meditava nos embelezamentos e no nome a dar-lhe.

— Que fim levou seu capelão? - perguntou-lhe Angélica um dia. - Foi ao seu encontro em Gouldsboro, mas depois parece que desapareceu na natureza.

— Aconteceu quase isso... Ele não quis acompanhar-me a Tantamare. Não gosta de Marcelina. Queria retornar a Quebec. Eu lhe disse: "Pois vá a pé!" Efoi o que ele fez: partiu... a pé! Existe alguma coisa no ar da Acádia que pode tornar despropositado o mais pacato dos oratorianos. Mas não tema nada. Aposto como ele será o primeiro que avistaremos no cais...

Cruzaram com um flotilha de índios do norte, que eram pequenos, enfezados, amarelos. Diziam que eram canibais e chamavam-nos de esquimós, o que significa "comedores de carne crua". Trocaram com eles um pouco de aguardente por uma magnífica pele de urso branco, com que o Conde de Peyrac mandou fazer um manto para Angélica. Sobrou peje para Honorina, que ficou lindíssima, uma autêntica princesinh.a das neves, com os cabelos de ouro vermelho sobre, aquele branco suntuoso.

-        Sua filha é linda, conde - disse Ville-d'Avray -, tem um porte de rainha e um rosto dos mais ihtéressantes. Mas de onde lhe veio essa cabeleira de um louro Veneziano?

Enternecia-se olhando Querubim.

-        Vou mandar fazer um trajezinho de veludo azul para ele... Ah, a vida em família! No fundo, é encantador!... E, se eu me casasse com Marcelina, o que diz?

Houve protestos. Marcelina em Quebec! Impensável! A baía Francesa perderia-unr de seus ornatos.

Uma outra criança se.Juntaya às brincadeiras de Honorina, Querubim e o gato: q-.joverrfAbbal, o órfão sueco recolhido no cais de Nova York pelo Padre de Verrfon.

Tinham-no visto descer da chalupa no dia da chegada de Honorina. E foi um alívio para todos saber que o estrangeirinho não fora mais uma vítima dos criminosos, cúmplices de Am-brosina.

Em Gouldsboro, tinham-no visto sair da floresta pouco depois de Ambrosina e Angélica terem partido para Port-Royal. Conduzido perante Colin Paturel, explicara que fugira de medo daquela mulher demoníaca contra a qual o Padre de Vernon o prevenira, recomendando-lhe que, caso lhe acontecesse uma infelicidade, levasse sua bagagem e a carta que ela continha à Sra. de Peyrac e apenas à Sra. de PeyraaO jesuíta, então, pressentira a morte próxima. Depois do desaparecimento do seu protetor, o menino tentara penetrar em Gouldsboro para ir ao encontro de Angélica. Mas um homem lhe aparecera pela frente, e, movido por um instinto secreto, o menino adivinhara que o homem queria fazer-lhe mal. Fugira. Durante alguns dias sentira desconhecidos ameaçadores no seu encalço. Finalmente, uma noite, conseguira introduzir-se no forte para esperar por Angélica. Mas, no momento em que entregava a carta a ela, Ambrosina surgira I novamente diante dele. Aterrorizado, fugira de novo, refugiando- se na floresta, onde vivia como um animal, rondando pela orla da mata, até o dia em que, entendendo que a mulher má partira, ousara reaparecer e se apresentara ao governador Colin Paturel.

Iam levá-lo para Quebec, pois era batizado, e o Padre de Ver-non teria desejado isso. E depois, seu frágil testemunho, sustentando que a carta fora escrita pelo eminente jesuíta, talvez não fosse inútil.

Os peões tomavam lugar sobre o tabuleiro da partida que fora jogada naquele verão. Cantor lembrava que, encarregado pelo pai de explorar as ilhas da baía do monte Deserto diante de Gouldsboro, achara, numa ilhota recentemente ibandonada por uma tripulação que ali fizera escala, um estandarte cujas armas eram um grifo. Devia ter sido ali que ancorara o navio de galhardete alaranjado. Devia ter sido ali que a Diaba fora ao encontro do irmão, a fim de apanhar o manto forrado de escarlate, as meias vermelhas...

— Por que não me comunicou isso? - indagou Angélica ao filho. - Tive uma dificuldade enorme para me certificar de que Ambrosina tinha cúmplices... Isso me teria ajudado. Teríamos ganho tempo.

— Isso talvez a alertasse contra mim. Você ainda não desconfiava dela, e minha posição era desconfortável.

Algumas coisas se esclareciam. Outras permaneciam obscuras e seria preciso tempo para desenredar a meada daquele espírito enganador, Ambrosina, e quais tinham sido, em diversas ocasiões, suas intenções precisas. Uma coisa parecia certa: a conspiração dirigida ao mesmo tempo contra Gouldsboro e contra a força moral dos que a haviam criado fora urdida há muito tempo, sem dúvida antes mesmo de Ambrosina ali desembarcar. Sua chegada, bem como a dos protestantes, só fizera aumentar a urgência de destruir um povoado que se arvorava em Estado independente, aliado dos ingleses. Em Paris já tinham vendido aquelas mesmas terras ao corsário Barba de Ouro, encarregado de estabelecer-se nelas, e a Dilquesa de Maudribourg fora solicitada, para remissão de seus pecados, a levar para lá um grupo de Moças do Rei. E devia ter recebido carta branca para radicar-se em Gouldsboro.

A escolha certamente fora boa. O que era aquele pobre Pont-Briand, enviado para abalar a fidelidade de Angélica, ao lado daquela obra-prima de sedução, Ambrosina, a Diaba? Uma tentadora em todos os géneros, dizia Ville-d'Avray, ironico.

O Padre d'Orgeval teria previsto o possível excesso criminoso da sua "penitente", ou esta, deparando-se çprii adversários de uma força imprevista, ultrapassara as instruções recebidas? Era coisa a esclarecer em Quebec, entre pessoas de bom senso e boa vontade.

E Angélica pensava às vezes ria cidade á conquistar, a cidade sobre o rochedo vermelho e que os esperava às margens do grande rio enquanto eles vogavam pelas águas turvas daquele mar já hibernal, na púrpura dos poentes e'no nácar das auroras polares.

Ao largo da grande ilha de Anticosti, povoada de ursos brancos monstruosos e de aves chilreadoras, Joffrey de Peyrac reuniu sua frota.

Enquanto os navios dispersos se aproximavam e se alinhavam, a pouca distância uns «dós outros, o Conde de Peyrac levou Angélica para o luxuoscvappsento no castelo de popa que era o refúgio de ambos naquele navio. .

Aquele compartimentei no Gouldsboro já evocava recordações para eles. Fora alique Angélica suplicara ao Rescator que salvasse seus amigos protestantes; ali, numa segunda vez, ajoelhada diante dele, ela pedira misericórdia para eles; ali, pela primeira vez, ele tirara a máscara, mpstrando-lhe"- oh, que alegria tão intensa! - o rosto ressuscitado; ali, pela primeira vez, após quinze anos de ausência, ele a tomara nos braços e a amara - e o aposento, com objetos preciosos, de um conforto oriental, iluminado por uma claridade esbranquiçada através da grande janela trabalhada em madeira dourada, contaria sempre as etapas dilacerantes e maravilhosas da renovação de seuarhor.

— Tenho um presente para você - disse Joffrey de Peyrac, apontando um estojo sobre a mesa. - Lembra o que dissemos um ao outro outro dia?... Que.nunca mais nos deixaríamos?...

— Talvez tenha sido presunção, mas eu sentia naquele instante que, mesmo que a vida, com sua realidade, nos forçasse mais uma vez a nos separarmos momentaneamente, os laços que nos unem nunca mais poderiam ser rompidos.

— Sim, esse foi exatamente o sentimento que tive. Então achei que chegara o momento de...

Ele se interrompeu e, pegando as duas mãos de Angélica, reteve-as nas suas por um instante, como se se recolhesse.

-        ...que chegara o momento de afirmar diante do mundo os laços sagrados que nos unem há tanto tempo e cujo símbolo nos foi arrancado tão cruelmente, um dia.

Abriu o estojo e ela viu, pousadas sobre um veludo negro, duas alianças de ouro. Ele passou uma pelo próprio anular esquerdo, conforme fizera outrora, sob a bênção do bispo de Toulouse, e a outra pelo dedo de Angélica. Depois beijou-lhe -as duas mãos, murmurando com fervor:

- Para a vida, para a morte e pela eternidade; não é, minha criança querida, meu amor, minha mulher bem-amada?

Os navios estavam alinhados a sotavento. Ao sinal dado, zarparam, prosseguindo -a marcha para noroeste.

No dia seguinte, segundo dia do mês de novembro, sob um céu claro e um frio puro de inverno, eles atravessavam o cabo de Gaspé e entravam na embocadura do Saint-Laurent.

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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