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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SEDUÇÃO DE PETERS / Lawrence Sanders
A SEDUÇÃO DE PETERS / Lawrence Sanders

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Amor e sensualidade, acção e aventura juntam-se neste romance explosivo de Lawrence Sanders, um dos autores mais vendidos em todo o mundo. Peter Scuro é um obscuro candidato a actor. Farto de tentar vencer no implacável mundo do espectáculo, resolve dedicar-se à mais antiga profissão do mundo. Mas o negócio corre bem de mais e a Máfia também quer a sua parte...

 


 


1

Chamo-me Peter Scuro. Sou o tipo de pessoa que vive toda a vida a perguntar: "A vida é só isto?" Eu disse:
- Sabes qual é a resposta a todas as perguntas difíceis que têm intrigado o mundo desde Adão? Eu tenho a resposta. Pensa em Deus como se fosse um palhaço, o Palhaço Divino. Isso resolve tudo. O sofrimento imerecido. A injustiça. A dor. De repente, se pensarmos que Deus é um palhaço, tudo faz sentido. Um terramoto mata mil pessoas? Uma palhaçada. Uma ponte cai na Bolívia e trinta pessoas inocentes morrem afogadas? Uma comédia. Estás a perceber? Um bebé nasce com leucemia? Uma actuação difícil de superar. O Palhaço Divino. Pensa nisso. Quando compreendemos a ideia, podemos recostar-nos na cadeira e aplaudir o espectáculo.
O enorme rosto de Sol Hoffheimer descaiu-se num sorriso.
- Peter, se acreditasses em metade do que dizes, acharias graça. Mas tu não achas graça nenhuma; estás indignado. Existe uma boa diferença. Não és um verdadeiro cínico; só estás irritado.
- É isso mesmo - disse eu. - Eu tento ser duro como uma pedra mas, por dentro, sou mole como papa.
Estávamos no escritório desarrumado do meu agente na 45.a Avenida Oeste. Lá fora, o vento soprava forte e caía neve. Dentro do escritório, um irradiador barulhento e o cheiro a charutos há muito apagados.
- Então - disse Hoffheimer -, suponho que a audição não correu muito bem.
- Audição? - disse eu. - Que audição? Olharam para mim e fui logo excluído. Estão à procura de um rapaz mais novo.
- Acontece - disse o meu agente filosoficamente. - O director tem uma imagem mental do tipo que quer e ...
Fiz um gesto a mandar o mundo à merda.
- Há doze anos que estou a tentar corresponder à imagem mental de alguém de qualquer pessoa! Tenho trabalhado muito. Corri os locais todos. Bati a todas as portas. Agarrei tudo o que apareceu. E que tenho para mostrar? Alguns elogios de merda na imprensa e cerca
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de oito mil dólares em doze anos. Essa é a soma total da minha carreira como actor.
- Há gente a mais - disse Hoffheimer, encolhendo os ombros. - e não há empregos suficientes.
- Não precisas de me dizer isso a mim. O que dói é que todos os anos aparece uma nova remessa de miúdos. Vi rapazes hoje na chamada audição. Juro por Deus que podia ser pai deles. E muitos deles belos, vigorosos, cheios de genica. Em Janeiro, faço trinta e seis anos. Onde é que isso me deixa, Sol, a fazer testes para mordomo inglês de bigodes? Sim, meu senhor. Não, meu senhor. Estou a atingir o meu limite.
- Escuta - disse o agente. - Eu não estou melhor. Tenho quarenta e oito anos. Há quase vinte cinco anos neste negócio. Sonhei com negócios de um milhão de dólares. Sabes, a telefonar para a Costa: "Olá, querida, daqui é Sol. Tenho uma coisa óptima para ti!" Artistas de cinema lindíssimas. Jantares com champanhe. Foi assim que eu pensei que seria. Peter, eu nem sequer conheço ninguém na Costa. E as únicas estrelas que eu conheço são prostitutas.
Soltei uma gargalhada.
- Somos dois falhados, Sol.
- Não - disse o agente. - Aquela porta pode abrir-se amanhã e por ela pode entrar um novo Clark Gable ou uma nova Marilyn Monroe.
- Por outro lado, pode ser o teu senhorio com a conta da renda atrasada.
- É - disse Hoffheimer num tom sombrio. - Também pode.
O agente tirou o celofane de um charuto barato. Acendeu-o com um isqueiro amolgado, soprou uma pena de fumo para o tecto. Colocou os pés em cima da secretária. Olhou através da janela suja, a única que havia, para as rajadas de neve.
O rosto de Sol Hoffheimer tinha-se composto com a idade. Anos antes, a cabeça parecera demasiado grande, as feições grosseiras. Mas, à medida que envelhecera, o tempo tinha-lhe conferido autoridade, uma certa elegância pesada.
- Um dos imperadores menores - tinha Jenny Tolliver comentado. - Imagina-o com uma toga e vê se não tenho razão.
- Pensas que és um falhado, Peter? - perguntou o agente, de repente.
- Estou lá perto - disse eu. - Estou encurralado. Que mais sei eu fazer? Vender cuecas de homem em boutiques ou fazer demonstrações de descascadores de batatas em supermercados? Não sei fazer nada fora do teatro. E, pelos vistos, nem sequer me querem dentro do teatro.
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- Se desistires - disse Hoffheimer -, vais arrepender-te para o resto da tua vida.
- É possível que tenha de viver com esse arrependimento-disse eu. - Se quiser comer.
O agente tirou os pés de cima da secretária, debruçou-se sobre ela e olhou para mim.
- Posso dar-te dez - disse ele.
Pus-me de pé e comecei a pegar no chapéu, no casaco, no cachecol e nas luvas.
- Obrigado, Sol - disse eu-, mas não, obrigado. Já tenho dívidas a mais. - Dirigi-me à porta, depois voltei-me e olhei para ele. - A propósito, se não te vir antes, Feliz Natal.
- E - disse Hoffheimer. - Um Feliz Natal para ti também. Já tinha a mão na maçaneta da porta quando me voltei outra vez.
- Aceito os dez, Sol - disse eu, tentando sorrir.
2
A Primavera pode pertencer ao mundo inteiro, mas o Inverno é pertença de Manhattan. Ao subir a Quinta Avenida através da luz de aço, pensei, que apesar das minhas tristezas, naquele momento era ali que eu queria estar.
O céu era de um azul frágil, e o vento cortante. A neve soprava dos telhados, e os parapeitos faiscavam no ar penetrante como o éter. Os que faziam compras acotovelavam-se, os semáforos caíam. As buzinas berravam e os cânticos de Natal saíam, clamorosos, de altifalantes. Estava tudo vivo, ninguém nesse quadro haveria alguma vez de morrer.
Segui com o meu sobretudo de xadrez Burberry (um tanto puído nos punhos e no colarinho) desabotoado e a esvoaçar. Ao pescoço tinha um cachecol de caxemira (comprado com desconto ao meu último patrão) atado casualmente. E, na cabeça, colocada jovialmente à banda, uma boina irlandesa de lã. (E fácil roubar um chapéu. Entra-se de cabeça descoberta numa loja movimentada e emerge-se com um chapéu na cabeça.)
Eu tinha um rosto tenso, aquilino, todo feito de ângulos e arestas. O cabelo era tão preto que parecia cor de púrpura. Uma pele cor de azeitona, e dentes brancos e quadrados como cubos de açúcar. Um sorriso ligeiro com uma ponta de ironia. Para ser sincero, mais parecido com lago do que com Hamlet.
Eu era alto, magro, com uma andar enérgico e uma postura arrogante.
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Havia uma investida para a frente contra a multidão, contra o vento cortante, contra a vida.
Ao passar pelas montras das lojas, olhava ocasionalmente para a minha imagem reflectida nelas: noutro tempo, eu podia ter sido um pirata, um cortesão, um dandy com um título de nobreza. Eu considerava-me vistoso - excepto, por vezes, às três da manhã, quando perguntava a mim próprio se se notava a minha dificuldade em andar.
O meu passo passou a ser mais lento na 48ª Avenida, onde começavam as lojas de luxo. Cabedal e seda. Prata trabalhada e ouro moldado. As riquezas do mundo graciosamente ornamentadas e artisticamente exibidas, com a atracção adicional da inutilidade.
Eu gostaria de ter o poder de entrar, apontar, rir e dizer: "Levo aquela!" Que alegria, comprar sem qualquer motivo e deitar fora por capricho. Mostrar desdenhosamente a superioridade em relação a bugigangas vistosas.
Parei para olhar para dentro de uma loja que vendia apenas comida importada; caviar e trufas, pâté e palmitos. Uma multidão de fregueses acenava mãos-cheias de notas aos atarefados empregados.
Afastei-me, desejando ardentemente fazer parte deste mundo endinheirado.
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Na 54ª Avenida Oeste, perto da Oitava Avenida, havia o Losers Place1, um bar com muito movimento e um restaurante moribundo, frequentado, na sua maior parte, por actores desempregados e polícias de folga.
Era um local sombrio, bafiento, com um recanto para o jogo de setas e um enorme aparelho de televisão suspenso com correntes do telhado de zinco, e cerveja Bass a copo. As paredes estavam cobertas com fotografias autografadas de actores famosos, nenhum dos quais alguma vez quereria ser visto nesta espelunca.
O bar riscado ficava junto da parede, no outro extremo. Entrei, acenando com ar negligente a dois conhecidos que jogavam aos dardos e dirigi-me directamente ao bar. Pousando o pé com firmeza no varão de bronze, empurrei a boina para trás da cabeça.
1. Bar dos Falhados. (N. da T.)
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Jimmy, o barman, aproximou-se de mim e limpou as cinzas e as migalhas de pretzels1 espalhadas no balcão à minha frente.
- Peter - disse ele. - Um feliz Natal de merda.
- Ah, claro - disse eu, com um sotaque irlandês. - E desejo o mesmo para ti e para os teus. Dá-nos um pequenino Dickens, sim, meu rapaz?
E se o leitor, um novato, tivesse a coragem de perguntar a Jimmy o que era um Dickens, ele teria murmurado: "Oliver Twist, um martini com uma azeitona e casca de limão."
- Como vai a vida? - Jimmy colocou o copo com pé numa pequena base de cartão que anunciava um salão de massagens na Oitava Avenida.
- É tudo uma merda! - disse eu, num tom agradável.
- Oh, chegaste a essa conclusão, foi? - O barman mostrou o seu dente de ouro num sorriso e afastou-se. Bebi um pequeno golo da minha bebida e olhei casualmente em redor, como se estivesse à espera de que ela descesse e me aquecesse. Algumas pessoas conhecidas acenaram-me. Sacudi uma mão no ar na sua direcção. Polícias e actores: todos uns falhados.
Havia pessoas sozinhas sentadas no bar, debruçadas sobre as bebidas ou olhando para as suas imagens reflectidas no espelho de trás. Dois bancos à minha esquerda, havia algo de notável: uma mulher, de pé, com um casaco de vison escuro até aos tornozelos e um chapéu de abas largas a condizer. Perguntei a mim próprio quantos animaizinhos teriam sido executados para produzir aquele traje.
Observei-a através do espelho. Mala de pele de crocodilo, isqueiro Dunhill de ouro, cigarros com filtro dourado. Anéis, pulseiras e uma gargantilha grossa de ouro. Unhas que nunca mais acabavam. O rosto estava escondido pela aba do chapéu, e ela tinha uns enormes óculos de sol.
Eu ainda estava a tentar calcular a sua idade quando ela colocou uma nota em cima do bar, fechou a mala com um estalido e se dirigiu a mim.
- Cinquenta - disse ela numa voz rouca.
- O quê? - disse eu, sobressaltado.
- Cinquenta - repetiu ela num tom paciente. - Cinquenta dólares.
Achei graça e perguntei a mim próprio o que estaria uma prostituta da Park Avenue a fazer na Oitava Avenida.
- Sinto-me lisonjeado - disse eu, a sorrir. - Eu tenho aspecto de um homem que pode pagar cinquenta dólares?
1. Pretzel - tipo de bolacha salgada. (N. da T.)
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- Tolo - disse ela. - Eu tenho aspecto de uma mulher que precisa de cinquenta dólares?
Olhámos um para o outro.
- Você paga cinquenta? - perguntei em voz baixa. Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Sim ou não?
Durante o resto da minha vida, eu iria interrogar-me por que motivo nem hesitei.
- Onde? - perguntei eu.
- Na tua casa - disse ela.
- Vou ter de fazer uma chamada.
- Então fá-la - disse ela. - Eu acabo a tua bebida. Adoro azeitonas.
Utilizei o telefone perto da cozinha gordurosa. Alguém tinha escrito na parede: "Eu chupo!", seguido de um número de telefone. Liguei para o meu apartamento. O amigo com quem o partilhava, Arthur Enders, atendeu ao quinto toque.
- Art? - disse eu. - Daqui Peter, podes sair imediatamente de casa?
- O quê? - disse Enders na sua voz fininha. - Peter, não compreendo.
- Preciso do apartamento por uma hora - disse eu. - Só isso. Agora mesmo. É muito importante.
- Que é que se passa?
-Art, fazes-me esse favor? Eu devia encontrar-me com Jenny no Blotto às seis. Importas-te de sair agora e de esperar por ela lá? Está bem?
- Bem... se é importante.
- É importante. Mais tarde eu explico. Vou ter contigo e com Jenny ao Blotto cerca das seis e meia. Pago o jantar.
- Conseguiste o emprego? - perguntou Enders, num tom entusiasmado.
- Consegui um trabalho-disse eu. - Sais imediatamente? Prometes?
- Posso cagar primeiro?
- Só se fores rápido - disse eu, e desliguei.
De regresso ao bar, ela tinha terminado a minha bebida, comido a azeitona e estava a mordiscar a casca de limão. Paguei a conta com a nota de Sol Hoffheimer e saímos. As pessoas olharam para nós com curiosidade. Não me importei.
No táxi, a caminho da cidade, falámos duas vezes. Na 61ª Avenida, perguntei:
- Que estavas a fazer no Losers? Ela disse:
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- A correr as espeluncas. Na 72ª Avenida, perguntei:
- Porquê eu? Ela respondeu:
- Tens um ar razoavelmente limpo.
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Era uma casa convertida de tijolos castanhos, de seis andares, na 75ª Avenida Oeste. A entrada ficava três degraus abaixo do passeio. Havia baldes do lixo de plástico verde na zona da entrada pavimentada. Doze apartamentos: as janelas a norte davam para a rua, as janelas a sul davam para um pátio rugoso com um corajoso ailanto.
Eu e Arthur Enders partilhávamos o apartamento traseiro de duas assoalhadas do primeiro andar. Só tinha sido assaltado duas vezes. Agora, tínhamos três fechaduras e uma corrente na porta da frente. Grades nas janelas que ficavam ao nível do rés-do-chão, claro.
Alternávamos todos os meses. Um dormia no quarto, o outro no sofá-cama da sala, e depois trocávamos. A cozinha era minúscula, a casa de banho (chuveiro, sem banheira) ainda mais pequena. Pagávamos quatrocentos e cinquenta dólares por mês por esta preciosidade e considerávamo-nos muito afortunados.
Durante quase cinco anos tínhamo-lo considerado uma habitação temporária - até eu ter conseguido um bom papel e Arthur ter completado a Grande Peça de Teatro Americana. A mobília velha tinha sido oferecida por amigos, comprada no armazém do Exército de Salvação, ou apanhada do lixo.
Caixotes de laranjas serviam de estantes. Uma bobina de fio Con Ed, deitada de lado, era uma mesa de café. As lâmpadas eram reflectores de fotógrafo seguros com grampos, e a mesa de jantar era uma porta de casa de banho apoiada em blocos de cimento. A casa tresandava a insecticida para baratas e a hamburgers cremados. Havia roupa pendurada e, varões de cortinas e nas ombreiras de portas. Tapetes rasgados, contribuição de um amante de gatos, cobriam bocados do oleado, tão gasto que se via o revestimento inferior, de cor castanha.
Quando consegui abrir as três fechaduras e mandei entrar a mulher para esta desarrumação, ela olhou em volta e disse:
- Deus do céu!
- Não é lá grande coisa - admiti.
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- Grande coisa? - disse ela. - Não é nada.
Mas despiu o casaco, tirou o chapéu e colocou-os cuidadosamente em cima de uma poltrona que tinha uma mola a sair da almofada. Depois tirou os óculos escuros. Foi a primeira vez que a vi bem.
Perto dos cinquenta anos, supus. Pouca beleza natural, mas cabeleireiros e peritos de maquilhagem tinham tirado o maior partido possível da que tinha. Eu tinha esperança de que dança aeróbica e uma boa massagista tivessem feito o mesmo pelo corpo, escondido debaixo de um vestido largo de lã, cor de champanhe.
O rosto certamente que tinha força. Talvez demasiada. Olhos duros, queixo quadrado. Lábios finos, ampliados com bâton e brilho. Cabelo pintado de vermelho, ripado de modo a suavizar a testa alta. O pescoço era firme. Ombros largos. Peito grande. Ela suportou o meu olhar perscrutador com segurança.
- Está bem? - disse ela.
- Óptimo - disse eu.
-És um amor-disse ela, passando-me a mão pelo rosto.-Tens alguma coisa para beber?
- Vinho tinto.
- Numa tempestade, qualquer porto serve.
- Na realidade - disse eu, no meu melhor sotaque inglês -, é Chianti.
Ela riu-se. Quando lhe trouxe o vinho, ela estava a sair do quarto.
- Roupa de homem - observou ela. - Nem todas do teu estilo
ou tamanho. Suponho que partilhas o apartamento com um homem.
- Exactamente.
- Não és homossexual, pois não?
- Não - disse eu. Como queres que te chame?
- Martha - disse ela. - E o meu nome. Como te chamas?
- Peter.
Ela não fez nenhum gracejo, e fiquei-lhe grato.
Terminou o vinho em dois goles; em seguida, levei-a para o quarto que, felizmente, era meu nesse mês.
O corpo dela era, afinal de contas, rijo e forte. Mamilos como rebuçados vermelhos. Peluda, mas isso não me repugnava. Um tronco maciço, mas tinha cintura e as coxas de um avançado. Era um arcabouço grande e forte, mas não me senti intimidado.
- Tu és belo - disse ela, inspeccionando-me.
- Obrigado.
- Nada de esquisito. Apenas uma boa queca, vigorosa. Fiz o que ela queria.
Depois, quando a nossa respiração regressou à normalidade, eu disse:
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- Não tenho nada a ver com isso, Martha, e podes mandar-me passear, mas fazes isto muitas vezes?
- Foder? - disse ela. - Constantemente.
-Tu sabes o que eu quero dizer, abordar desconhecidos em bares.
- Quando me apetece - disse ela, num tom jovial. - Isso repugna-te?
- Claro que não. Mas não é perigoso?
- Metade do gozo está no risco. Ouve, meu caro, há todo um novo jogo por aí. Todos os anos há cada vez mais mulheres como eu. Independentes, com dinheiro suficiente para poderem escolher os seus prazeres. Quantas mulheres podiam fazer isso no passado?
- Tens razão - disse eu, num tom pensativo. - Estou satisfeito por me teres escolhido a mim.
Ela beijou-me o rosto, depois pegou na roupa e na mala e dirigiu-se à casa de banho.
- Depois de puxares o autoclismo - gritei-lhe -, tens de abanar o manipulo.
- Claro - disse ela. - Num lugar destes, é natural. Vesti-me rapidamente, fui até à sala, e revistei-lhe o casaco. Uma
carteira de fósforos do Four Seasons num dos bolsos. No forro, iniciais bordadas: M. T. A etiqueta era da Boutique Barcarole. Eu conhecia o lugar. Caro como o diabo.
Ela saiu da casa de banho e estendeu-me algumas notas dobradas. Meti-as no bolso do casaco sem sequer olhar para elas.
- Como posso contactar contigo, Peter? - perguntou, enquanto eu a ajudava a vestir o casaco de vison.
Escrevi o número do meu serviço telefónico e disse-lhe o meu apelido. Ela meteu o papel na mala.
- Eu arranjo-te um táxi - disse eu, e ela beijou-me de novo o rosto.
Saí com ela, não me dando ao trabalho de pôr um chapéu ou de vestir um casaco. Na entrada escura do prédio encontrámos Mrs. Fultz que vivia no apartamento do rés-do-chão da frente. Ela lançou-nos um olhar cortante.
Consegui arranjar para Martha um táxi que ia para Amsterdam. Sorrimos e despedimo-nos com um aceno de cabeça. Depois, começando a sentir frio, regressei ao apartamento a correr. O meu relógio, uma imitação Cartier feita em Hong-Kong, disse-me que tinha cerca de vinte minutos para me encontrar com Arthur e Jenny Tolliver no Blotto.
Não era a primeira vez que era infiel a uma mulher que me amava; eu sabia a rotina. Lavava-se os dentes. Duas vezes. Tomava-se um chuveiro. Duas vezes. Muito importante, lavava-se a cabeça. Os perfumes perduravam. O mesmo acontecia com o cheiro a sexo.
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LAWREdo de fresco, urinei na casa de banho, não me dando ao trabalho de abanar o maldito manipulo. Depois, espalhei água de colónia no queixo e no pescoço e fiz votos para que tudo corresse bem.
Olhei para as notas no meu bolso do casaco. Três notas de vinte. Ela tinha-me dado uma gorjeta de dez dólares. Simpático. Antes de sair, olhei para a minha imagem reflectida no espelho da casa de banho. Eu não tinha mudado.
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O Renascimento do West Side que tinha trazido lojas de antiguidades, boutiques e salões de beleza unissexo para a Avenida Columbus tinha também trazido o Blotto, um restaurante dirigido aos que equacionavam a quantidade de alho com a qualidade da cozinha italiana.
Quando entrei, o barulho do restaurante apinhado já tinha atingido níveis demoníacos. O ar húmido estava impregnado com uma fina névoa de alho, azeite e o molho de tomate especial de Blotto, suficientemente ácido para remover a placa dentária. Um dístico por cima do bar dizia: Feliz Natal e próspero 1986!
Empregados de mesa a transpirar andavam de um lado para o outro, equilibrando as bandejas por cima da cabeça. Um agitado chefe de mesa gritava aos que estavam de pé que aguardassem no bar. O velho Wurlitzer soprava, ofegante, "Arriverdeci, Roma". Algures, uma bandeja caiu, com estrépito, uma mulher gritou, e um barman tocou um sino que significava uma gorjeta generosa.
Olhei em volta, vi Jenny Tolliver, Arthur Enders e King Hayes, um modelo negro, sentados a uma mesa para quatro, a um canto. Consegui esgueirar-me por entre a multidão, apertando a mão do chefe de mesa, dando palmadas nos ombros dos empregados, acenando a algumas pessoas conhecidas.
Debrucei-me sobre Jenny e beijei-lhe a testa que se ergueu para mim.
- E como está a minha concordante adulta? - disse eu.
- Cheiras bem - disse ela. - Onde estiveste?
- Arthur - disse eu, sorrindo. - King. - Sentei-me na cadeira vaga, enchi um copo de vinho da garrafa que já tinham encomendado. - Hoje pago eu - participei a todos eles.
- Que aconteceu? - perguntou Arthur Enders, pestanejando os olhos claros.
- Morreu-me um tio rico - disse eu, depois mudei de assunto.
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Estudámos a ementa, sabendo que iríamos todos comer o jantar mais barato: esparguete com almôndegas, salada mista e outra garrafa de vinho da casa que, costumava eu dizer, era utilizado de madrugada pelo proprietário do Blotto para gravar chapas de moeda falsa.
Conseguimos, finalmente, persuadir um empregado a tomar nota da nossa encomenda, depois começámos a contar uns aos outros as histórias das nossas actividades do dia.
Disse-lhes que não tinha tido sorte na audição, mas que me tinha sido prometida uma locução e que Sol Hoffheimer me adiantara dinheiro suficiente para pagar o jantar.
Arthur Enders anunciou, com o sotaque agudo do Nebraska, que, no dia seguinte, ia começar a trabalhar temporariamente, três dias por semana, no Macys, a vender luvas de homem durante a época de Natal.
King Hayes ainda estava no seu estimulante emprego de férias nos Correios, a colocar as cartas de primeira classe com o endereço para cima, para poderem entrar na máquina de franquiar.
Jenny Tolliver, desenhadora de tecidos, era a única que tinha um emprego a tempo inteiro. Ela descreveu os seus esforços para copiar um padrão dos Burlington Mills para roupa de cama, em cumprimento das ordens do patrão.
- Tem de ser igual-disse ela, a rir -, mas não tão igual que possamos ser processados.
Depois, a nossa comida foi posta bruscamente em cima da mesa e atarefámo-nos a passar uns aos outros o sal e a pimenta, o azeite e o vinagre, o queijo ralado, os copos e a garrafa de vinho.
Comemos depressa, com apetite, alegria e uma terceira garrafa de vinho. Eu tinha trinta e cinco anos. Arthur Enders e King Hayes tinham trinta e dois. Jenny Tolliver vinte e oito. Estava tudo à nossa espera; ainda estávamos convencidos disso. Tudo o que queríamos, tudo aquilo com que sonhávamos - era tudo possível.
Naquele lugar apinhado, cheio de fumo e de odores, afastámo-nos da mesa que continha os restos da refeição, sentindo-nos felizes com o vinho áspero, a comida simples, a conversa agradável e a amizade.
Pensávamos que a vida era nossa, bastava agarrá-la; haveria contrariedades ocasionais, claro, mas, no fim, não podíamos falhar. Quando nos levantámos, atirei dinheiro para cima da mesa com a atitude negligente de um grande senhor, o senhor do universo.
Q.L.S.l-2
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Jenny Tolliver queria ir até ao Central Park Oeste apanhar um autocarro. Mas eu detestava esperar, por qualquer coisa que fosse, e insisti em apanhar um táxi para casa dela, na 95ª Avenida Oeste.
Ela era, eu achava, uma mulher curiosa. Tinha períodos de reflexão calma, pensativa, por vezes melancólica, alternados com ataques de actividade extravagante e alegre, em que era toda riso e azáfama. Éramos íntimos há quatro anos, e eram as suas misteriosas contradições que me prendiam.
No táxi, a caminho da parte alta da cidade, ela encostou-se mais a mim.
- Vais detestar-me - disse ela.
- Provavelmente, disse eu. - Porquê?
- É aquela altura do mês. Pensei: "Obrigado, meu Deus."
- Ah! - disse eu num tom melancólico -, uma desilusão. Ela aninhou-se mais.
- Mas podemos fazer outras coisas. Pelo menos, eu posso. A ti.
- Oh, não - disse eu. - Que espécie de homem seria eu se aceitasse prazer sem ser capaz de retribuir em espécie?
Ela afastou-se para me lançar um olhar de admiração.
- Tu és tão cheio de trampa - disse ela - que te sai pelos ouvidos.
Eu soltei uma gargalhada e abracei-a.
- Mas aceito um golo desse horroroso brande que tens para fins medicinais. Depois vou-me embora. Amanhã trabalho o dia todo.
Ela vivia num estúdio de tecto alto, num prédio de apartamentos com um átrio em art deco e murais de estilo Watteau nos elevadores. Na porta dela estava colado um aviso: Estas instalações estão
PROTEGIDAS POR CÃES DE GUARDA.
O apartamento reflectia a dicotomia da sua personalidade: mobília moderna sueca, alegre e leve, e cortinados e estofos verdes e azul-escuros. Gravuras abstractas nas paredes, um boneco Snoopy no sofá. Uma garrafa de cristal ao lado de um cinzeiro de alumínio com a legenda recordação de Atlantic City.
Ela deitou uma medida de brande para mim e foi à casa de banho mudar de roupa. Tirei um cigarro de uma caixa esmaltada que estava em cima da mesa de café. Sentei-me, descontraído, de pernas cruzadas. Bebi um golo, fumei e reflecti em como era um homem de sorte. (Eu era actor; podia fazer papel de humilde.)
Ela saiu da casa de banho, com o cabelo solto, descalça, vestida com o velho e coçado roupão de flanela, com um cordão desfiado. Aninhou-se
no sofá, muito perto de mim. Coloquei um braço em redor dos seus ombros e ficámos abraçados.
- Brande? - perguntei.
- Um pouco - disse ela.
Bebi um golo de brande, mantive-o na boca e beijei-a com firmeza, passando a bebida para a boca dela. Ela afastou-se, engoliu e tossiu.
- Os meus beijos são intoxicantes - declamei, um amante francês a jurar a sua paixão, num sotaque mais de Minsky que de Molière.
- E queimam quando deslizam pela garganta abaixo - disse ela. Jenny Tolliver era uma mulher alta e elegante, com um abundante cabelo castanho. Eu estava tão enamorado daquele cabelo que a fizera prometer que, se eu morresse, ela o teceria numa mortalha para mim.
Nenhuma das suas feições era dominante no seu rosto, mas tudo se harmonizava numa encantadora serenidade. Era um rosto comprido, límpido como o seu corpo. Tudo nela tinha um aspecto suave e calmo.
O que eu mais admirava nela era a sua perfeição física. Ela era total e absoluta. Não havia um único matiz falso nem uma linha torta. Essa perfeição excluía a beleza.
"Classe" era a palavra que eu utilizava quando pensava nela, e perguntava a mim próprio se a minha admiração derivava do medo de que essa fosse uma qualidade que me faltava.
- É bom estarmos abraçados-disse ela, aninhando-se mais contra mim.
- Por alguma razão me chamam O Abraçador Louco de Manhattan.
- Que nos vai acontecer, Peter? - perguntou ela de repente, e eu bebi rapidamente um golo de brande. - Que nos vai acontecer aos dois?
Baixei os olhos para ela.
- Estás a ficar farta de mim, Jenny? - disse eu em voz baixa.
- Não.
- Então, porquê essa preocupação?
- Não sei. Parece tão... tão casual.
- Eu pensei que era assim que querias - protestei.
- Talvez tivesse sido... antes. Agora, já não tenho a certeza. Peter, nós não podíamos viver juntos?
Onde? - perguntei. - No meu apartamento, não; preciso de Arthur para me ajudar a pagar a renda. Aqui, numa só divisão? Estaríamos a discutir em menos de uma semana.
- Tu podias - começou ela, depois parou. Tirei o braço de cima dos ombros dela.
-Arranjar um emprego certo? - disse eu com uma pequena gargalhada.-Das nove às cinco? A fazer o quê? E, mesmo que conseguisse, eu não quero. Jenny, queres que desista de ser actor?
- Não - disse ela lentamente -, se tu não quiseres. Mas... Fiquei calado durante um momento. Não queria perdê-la. Depois:
- Eu disse hoje a Sol que estava a atingir o meu limite, e estou. Faço um acordo contigo. Está bem? Dá-me mais um ano. Certo? Já gastei doze; mais um não me vai matar. Se eu não tiver conseguido na da dentro de um ano, desisto de tudo. Junto-me à burguesia. Arranjo um emprego certo. Dás-me um ano?
Ela ergueu a mão para puxar o meu rosto para baixo. Beijámo-nos. Os lábios dela eram macios, dóceis e doces.
- Está bem - disse ela. - No próximo ano, no Natal. Prometes?
- Claro - disse eu. - Alguma vez te menti?
- Provavelmente - disse ela, suspirando.- Mas desde que eu não saiba...
À porta, enfiei uma mão no roupão de flanela e toquei-lhe num dos seus seios macios. Ela fechou os olhos.
- Peter - disse ela num tom débil.
- Quando é que o período acaba? - perguntei-lhe.
- No sábado.
- No sábado, recebo. Vamos comer um jantar maravilhoso em qualquer lado e depois voltamos para cá e fazemos uma orgia. Será que duas pessoas podem fazer uma orgia?
- Podemos tentar - disse ela.
No táxi a caminho de casa, meditei na triste sorte dos actores. Um romancista pode escrever livros, mesmo que eles nunca sejam publicados. Um pintor pode criar voos de fantasia na tela e guardar tudo. Um poeta pode escrever os maiores sonetos do mundo e mandá-los pela retrete abaixo se quiser. Mas, para ser actor, um actor tem de ter espectadores.
Perguntei a mim próprio se a minha relação com Jenny Tolliver - ou mesmo com todos os meus amigos - se baseava mais na necessidade de ter espectadores do que na necessidade de amor e compreensão.
Inclinei-me para a frente para falar com o motorista através da divisória perfurada.
- Sou o que sou - disse eu, imitando o Popeye.
- Como queira, amigo - disse o motorista.
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Tal como a maior parte dos actores desempregados, eu tinha arranjado um emprego temporário durante a época do Natal. Trabalhava como vendedor, às terças e quintas-feiras, das 10.00 às 20.00 numa elegante boutique de roupa para homem na 57ª Avenida Leste, a Kings Arms. (- Kings Arms1, onde é que isso fica? - A volta do cu da rainha, seu tolo idiota!)
Eu achava o meu trabalho muito deprimente. Sobretudo, suponho, por causa dos artigos maravilhosamente belos e caros que vendia: carteiras de pele de porco macia, coletes de camurça sedosa com botões de pérolas, gravatas de seda. Coisas que eu não podia comprar.
E, por causa de um gerente de olho vivo, coisas que não podia roubar.
Para o poder suportar, eu fazia uma série de rotinas teatrais. Fazia de homossexual bajulador, de empertigado empregado de balcão inglês, de agitado imigrante recente, e até mesmo de bailarino russo desertor.
Os clientes ficavam intrigados e convencidos. Consegui sobreviver não sendo eu próprio.
Na quinta-feira, ofereci-me para almoçar mais cedo, ao meio-dia. Atirei o Burberry por cima dos ombros como uma capa aberta, deixando as mangas e a roda a esvoaçar. Enrolei o cachecol à volta da garganta e inclinei a minha boina irlandesa. Levado por um impulso que não consegui compreender, dirigi-me em passo rápido para norte, ao longo da Madison Avenue.
Estava um dia sombrio, cinzento e enrugado como uma pele velha. O ar cheirava a cinzas, e as pessoas andavam apressadas de um lado para o outro.
A Boutique Barcarole ficava no meio de um bloco entre a 67ª e 68ª Avenidas. Uma bela mansão tinha sido vandalizada e transformada numa loja de luxo que vendia casacos, fatos, vestidos, roupa desportiva, acessórios e jóias de senhora. Na sua maior parte, provenientes de Milão e Roma. Na Barcarole não havia saldos, nem descontos.
O guarda de olhar cortante que estava à porta deixou-me entrar. Passeei pelo primeiro andar, na esperança, talvez, de encontrar a misteriosa M. T.? Não seria capaz de dizer. Fiz de comprador indeciso e vi que não podia comprar quase nada para Jenny, como prenda de Natal.
1. Trocadilho: Kings Arms do rei. (N. da T.)
- As armas do rei, podendo também significar os braços
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Compreendi, com um choque, que o dinheiro que ganhava num dia de dez horas na Kings Arms era inferior ao que Martha me dera pela sua "boa queca, vigorosa". Era uma comparação inquietante.
Saí da loja e passei alguns minutos a olhar para a montra. Era uma cena de noite de Fim do Ano: papelinhos, serpentinas, cornetas de lata - e dois belíssimos vestidos com lantejoulas, um preto e um branco, com boas de penas e luvas de pelica acetinada até ao cotovelo. Até os manequins de gesso desdenharam do meu olhar.
Atravessei a Madison Avenue e fiquei parado na esquina, a observar o desfile de mulheres do East Side, chiques, bem vestidas, a entrarem e saírem da Barcarole.
Todas elas, novas e velhas, tinham a altivez erecta, de cabeça erguida, dos ricos. Reparei, com inveja e com uma espécie de reverência, no seu andar empertigado, e reflecti sobre como o dinheiro confere a sua própria beleza.
Fiquei ali durante quase dez minutos, incapaz de renunciar à visão daquela procissão afluente. Finalmente, fui-me embora. Comi um cachorro quente e uma cáustica bebida de laranja num balcão de comida rápida. Antes de regressar à Kings Arms, liguei para o meu serviço telefónico. Mais por hábito que por qualquer esperança de uma mensagem que transformasse a minha vida.
A telefonista disse-me que uma mulher chamada Martha tinha deixado um número e que queria que eu lhe telefonasse.
Disquei o número dela.
Ela disse que gostaria de me ver no dia seguinte.
Eu disse que achava que estava disponível.
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Martha fez-me realmente trabalhar. Ela empinava-se e agitava-se como um potro selvagem. Aguentei-me, fiz o melhor que pude e fiz votos para que as suas unhas não deixassem marcas no meu rabo em que Jenny Tolliver pudesse reparar.
Depois de algum tempo, claro, pequenas preocupações como esta evaporaram-se. Fiquei preso no meu próprio ímpeto e tive vontade de a castigar por me utilizar. Por isso, dei-lhe com força e ela, a gemer, adorou.
Esgotado, desfaleci e levei os lábios aos seus imponentes seios. Ela não me largava e ficou abraçada a mim, ofegante.
- Ah, meu Deus! - disse ela.
- Peter - lembrei-lhe.
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-Ouve - disse ela. - Tenho de ir fazer chichi. Mas não saias da cama. Há uma coisa sobre a qual quero falar contigo e este é o melhor lugar para o fazer.
Quando ela se dirigiu à casa de banho, não levou a mala consigo. Assim que a porta se fechou atrás dela, saí da cama e remexi a mala. Carteira, carta de condução, cartões de crédito, maquilhagem, preservativos, lenços de papel, chaves, várias coisas.
O nome dela era Martha Twombly. Mais importante, uma caixinha de prata com cartões de visita identificava-a como a gerente da Boutique Barcarole. Agerente, por amor de Deus! Eu estava de novo na cama, a fumar um cigarro, quando ela voltou para ao pé de mim.
Ficou deitada de lado e enfiou suavemente um dedo no meu umbigo.
- Esta foi boa - disse ela.
- Satisfação garantida ou devolvemos o seu dinheiro.
- É. - disse ela, a sorrir. - Bem,... Peter tens alguns amigos? Voltei a cabeça para olhar para ela.
- Claro que tenho amigos.
- Podes-me arranjar um tipo? Olhei-a atentamente, depois compreendi.
- Ahh, Chollie - disse eu num tom triste, numa imitação sofrível de Marlon Brando em Há Lodo no Cais. - Eu podia ser um dos oponentes.
Ela riu-se.
- Não é nada pessoal, Peter. Tu és óptimo, essa é a verdade. Mas eu gosto de variedade... tu compreendes?
- Tu disseste-me. A mulher nova. Escolhendo os seus prazeres.
- Exactamente.
- Com certeza - disse eu. - Eu arranjo-te um tipo. Razoavelmente limpo.
- Óptimo - disse ela rapidamente. - Tu organizas isso. Depois telefona-me. Dou-te vinte pelo teu incómodo.
- É um preço justo - disse eu. Ela lançou-me um olhar perspicaz.
-Mas não tão bom como sessenta, não é? Não te preocupes, Peter. Uma amiga minha gostava de te conhecer. Cinquenta. Interessado?
- Claro - disse eu sem hesitar.
- Segunda-feira, está bem? Três horas? O marido dela vai fazer uma viagem de negócios.
- Perfeito.
- Então fica assim - disse ela, dando-me uma palmada na anca. - Agora tenho de ir.
- Eu arranjo-te um táxi.
- Tu tens boas maneiras - disse ela.
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Arthur Enders era tão pálido que uma vez já me tinha referido a ele como "um albino levemente corado". Tinha uma pele pálida, o cabelo louro, quase branco, e olhos de um azul-desbotado. O aspirante a dramaturgo usava geralmente fatos bege ou esbranquiçados, que o faziam parecer um fantasma bamboleante.
Partilhávamos o apartamento há dois anos quando, sem aviso prévio, Enders anunciou que tinha decidido tornar-se homossexual.
-Não devido a qualquer necessidade física ou emocional-tinha ele explicado com um ar sério. - Esta é uma decisão puramente emocional da minha parte. Se vou escrever peças, tenho de saber como todos os tipos de pessoas pensam, sentem e reagem. Tenho de viver tudo.
- Maravilhoso! - disse eu. - Tal como assassinar a mãe, fornicar a irmã e sodomizar um peru selvagem?
Enders tornou-se o homossexual mais desajeitado da comunidade homossexual de Manhattan, onde em breve obteve a alcunha de "Senor Klutz." Passou uma noite com um sado-masoquista, perdeu a chave das algemas, e foi preciso chamar um serralheiro para libertar o pobre homem amarrado à cama.
Noutra altura, dizia-se, apareceu para um encontro com um tubo de cola em vez de vaselina. Os homossexuais suplicaram-lhe que se retirasse de cena.
Esta fase da vida de Enders durou quase um ano, e ele afirmou ter aprendido muita coisa que lhe seria útil na sua escrita.
- Óptimo - disse eu. Agora vais deitar fora essa horrorosa roupa interior com "Casa do colosso" escrito na braguilha?
Na sexta-feira à noite convidei o meu companheiro de apartamento para jantar. Fomos a um restaurante de grelhados, mas con tentámo-nos com um Hamburger Jumbo. Bebemos vodka e demos cabo de meio pão de alho antes de a nossa comida ser servida.
- Como vai a peça? - perguntei. Era um épico de sensibilidade sobre um rapaz a atingir a maturidade no Nebraska, e durava quatro horas.
- Eu acho que agora acertei - disse Enders num tom esperançoso. - É a quinta vez que a reescrevo. A única coisa que me preocupa é que a infância do rapaz possa ser demasiado deprimente.
- Se as pessoas tivessem infâncias felizes, a América não teria dramaturgos.
-Talvez - disse Arthur. - Peter, tu nunca falas sobre a tua
infância.
-Mais ou menos média - disse eu, encolhendo os ombros. -
Nem muito boa, nem muito má.
- Tens família?
-Claro que tenho família. Os meus pais já morreram, mas tenho
uma irmã casada em Spokane. Casou com um tipo que tem uma oficina de lavagem de automóveis, e eles têm oito filhos. Ela manda-me sempre um cartão de parabéns pelos meus anos, com um mês de atraso. E uma boa relação.
- Eu tenho uma família grande - disse Enders, com um suspiro. -Mãe do céu, nunca ninguém morre. Eu gostaria que eles não me mandassem dinheiro. Eu sei que eles têm muito pouco.
- Se não tivessem o suficiente, não to enviariam. Além disso, quando a tua peça for um grande êxito na Broadway, vais-lhes pagar.
- Sim - disse Enders, mais animado -, isso é verdade.
Os nossos hamburgers mal passados chegaram, com batatas fritas e rodelas de tomate e cebola. Arthur pediu mais pão de alho, e dividimos entre nós uma garrafa de Heineken.
- Ei - disse eu. - Ontem, aconteceu-me uma coisa estranha na boutique. Esta mulher que já lá foi, pelo menos, três vezes. Tresanda a dinheiro. Compra coisas caras. Só do melhor. Mas tudo em tamanhos diferentes. Por isso, calculo que esteja a comprar prendas para vários tipos... certo?
- Para os filhos? - perguntou Arthur Enders ingenuamente.
- Ela não é assim tão velha - disse eu, ocupado com a minha comida.
- Ela é bonita?
- Ela trata de si. De qualquer modo, eu tinha a ideia que ela se estava a atirar a mim. Sempre que vem à loja, quer que seja eu a servi-la. Então, ontem, ela comprou uma camisola de caxemira e, enquanto eu preenchia o talão, ela perguntou se eu gostaria de lhe saltar em cima.
- Estás a brincar!
- Juro-disse eu, levantando a palma da mão. - Eu também mal podia acreditar, mas era o que ela queria. E aqui vai o mais interessante: ela está disposta a pagar.
- Meu Deus. Quanto?
- Cinquenta.
- Ena pá!
-Senti-me tentado-disse eu. - Cinquenta dólares por uma pequena cambalhota.
Enders, que estava loucamente apaixonado por Jenny Tolliver, disse num tom indignado:
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- Tu não podias fazer isso a Jenny.
- Claro que não. Por isso, disse à fulana que amava a minha mulher. Ela riu-se e perguntou se eu conhecia mais alguém que pudesse estar interessado.
- Peter, ela parece maluca.
- Não - disse eu num tom sério. - Apenas uma mulher com dinheiro que está a envelhecer e que sabe o que quer e está disposta a pagar por isso.
-Meu Deus, onde é que o mundo vai parar? - disse Enders, com ar pensativo.
- Que tal café e brande?
Arthur tinha recentemente começado a fumar cachimbo. Agora encheu-o cuidadosamente, utilizou três fósforos, não conseguiu acendê-lo e pô-lo de lado. Bebeu um golo de brande e cerrou os dentes.
- Cinquenta dólares? - perguntou.
Fiquei admirado, não pela primeira vez, com a facilidade com que os ingénuos podem ser manipulados.
- Interessado? - perguntei num tom casual.
- Não sei - disse Enders, franzindo a testa. - Onde é que o faríamos?
- Oh, que diabo, leva-a para o nosso apartamento. Eu estou fora o dia inteiro. Escuta, tu és o tipo que disse que queria experimentar tudo.
-Pois é-disse Enders, riu-se com nervosismo. - Achas que ela vai aparecer outra vez na loja?
- Tenho a certeza - disse eu. - Queres que organize as coisas?!
- Uh ... Quanto tempo teria de, uh, estar com ela?
- Isso é contigo, mas não lhe dês mais de uma hora.
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Eu não sabia se havia uma palavra para prostituição masculina. "Gigolô" ficava próximo, supunha, mas isso fazia-me vir à mente a imagem de um tipo elegante com cabelo cheio de brilhantina e bigode de escova de dentes, que estava sempre a dançar o tango.
Não havia, de facto, uma palavra que definisse o que eu fizera com Martha Twombly. Mas havia uma palavra para o que estava a fazer com Arthur Enders. Chulo. Uma pessoa que recebia dinheiro por fornecer o corpo de outra.
Ocorreu-me o pensamento de que, se eu estava a servir de alcoviteiro, Martha Twombly também estava. Eu fornecia o homem, ela a
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mulher. O mundo de pernas para o ar. Perguntei a mim próprio se, tal como eu, ela estava a ser paga pelos seus serviços.
Estava a pensar nestes assuntos enquanto esperava por Jenny Tolliver no bar de um pequeno restaurante francês na 51ª Avenida, logo a Oeste da Oitava Avenida.
Tinha vindo directamente da Kings Arms e ainda trazia vestido o meu "uniforme" da boutique: um blazer azul-escuro com botões dourados, calças cinzentas de flanela, sapatos pretos com atacadores, uma camisa branca (colarinho com botões) e uma gravata com as riscas de um regimento britânico a que, obviamente, eu não pertencia.
No espelho do bar, a minha imagem parecia-me ser a de um belo homem moreno com um sorriso sardónico. Algo diabólico nesse sorriso, decidi. Algo do tentador eterno. E, na minha anca, a pressão reconfortante de uma carteira relativamente recheada: o meu salário da Kings Arms e o que sobrara do pagamento de Martha.
Jenny Tolliver chegou, apressada, um pouco depois das oito e meia, ofegante e resplandecente. O pessoal do teatro já se tinha ido embora, e fomos conduzidos a uma mesa de canto, onde nos sentámos em ângulo recto. Mandámos vir Gibsons de gin, ficámos de mãos dadas e sorrimos.
Jenny estava um espanto com calças de seda pretas e uma túnica de um fino tecido de lã cor de mel. A maquilhagem era mínima. Aquela maravilhosa cabeleira castanha estava solta. Era a criatura mais bela do restaurante, e eu disse-lho.
- Peter - disse ela, rindo -, só há mais três mulheres aqui.
- Eu sei - disse eu -, mas alguns dos empregados também não são maus. Que fizeste hoje?
Ela tinha limpo o apartamento, levado a roupa para a lavandaria, feito compras, e depois tinha passado o resto do dia a trabalhar em casa no desenho de tecidos. Estava decidida a, um dia, ter o seu próprio estúdio.
- A minha carteira está a ficar maior - contou ela, num tom feliz. -Algumas coisas são realmente muito boas. É um trabalho muito melhor do que o que faço no meu emprego. Não é horrível?
Que há de horrível nisso?-perguntei. - Tu queres ser empresária. Chefe de ti própria. É o grande sonho americano. E o que fizeres para o conseguir é justificado.
- Achas que os fins justificam os meios? Sorri.
- Como alguém disse: "Se o fim não justifica os meios, que diabo se há-de fazer?" Vamos mandar vir o jantar.
Comemos ambos coxas de rã, com tanto alho que, quando 28
terminámos, partilhámos um pires de salsa picada para tirar o cheiro do nosso hálito. Acabámos o jantar com café expresso e Strega.
- Foi delicioso - disse Jenny, beijando-me as costas da mão. - Obrigada.
- Que queres fazer agora? - perguntei, num tom condescendente.
Ela reflectiu, com os olhos semicerrados. Tinha o cotovelo em cima da mesa, a face apoiada na palma da mão. O cabelo caía, brilhante, por cima de um ombro. Na suave semiobscuridade, ela era tão desejável que me senti desfalecer de desejo.
- O que eu gostava de fazer-disse ela lentamente -, é... Peter, estás a ouvir?
- Claro que estou a ouvir.
- Bem, a primeira coisa que eu gostava que fizéssemos era comprar uma garrafa de vinho branco gelado.
- E depois?
- Comprar um Sunday Times.
- E depois?
- Ir para o meu apartamento, instalar-nos confortavelmente, beber o vinho e ler o Sunday Times. Tu podes ter a revista primeiro.
- E depois?
- Depois, quando o vinho acabar, ir para a cama.
- Não vejo nada a que possa levantar objecções - disse eu num tom grave. - Vamos fazer isso.
E fizemos.
Ela tinha-me comprado um roupão para os meus anos: um roupão de flanela de lã creme com um capuz de monge e um cinto de cordão grosso. Eu deixava-o no apartamento dela para ocasiões destas. Ela vestiu uma camisa de noite amarela de nylon com um robe a condizer.
À uma da manhã, o vinho tinha-se acabado, mas não o Times. Pus de lado a secção desportiva.
- Vamos para a cama - disse eu.
Ela fez um sinal de assentimento com a cabeça.
- Estás bem? - perguntei-lhe. - A loucura mensal acabou?
- Acho que sim - disse ela cautelosamente. - Mas talvez seja melhor esperarmos até amanhã. Peter? Importas-te?
- Claro que não.
- Eu adoro fazer amor de manhã - disse ela num tom sonhador. - Parece muito mais íntimo e... e apaixonado. E tão bom acordar e estar na cama com alguém.
- Alguém!
- Contigo - disse ela rapidamente. - Tu percebes o que eu quero dizer. Peter, tens a certeza de que não te importas?
- Eu posso perder a cabeça e morder-te o ombro.
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- Foste tão meigo e gentil esta noite - disse ela, com um suspiro. -Até puseste manteiga no meu pão. Nunca tinhas feito isso antes. -De repente, olhou atentamente para mim. - Peter, tu não fizeste qualquer coisa horrível e estás a ser simpático para comigo por te sentires culpado?
Eu protestei.
- Isto é o que eu recebo em troca de ser um amante meigo e atencioso. Não, não fiz nada horrível.
- Juras?
Ri-me e beijei-a.
Abrimos o sofá, apagámos as luzes e despimo-nos. Ajustei as persianas da janela da frente, de modo a que a luz de um candeeiro da rua penetrasse na sala. Deitei-me ao lado dela. Afastei o lençol e o cobertor.
Eu nunca me cansava de a olhar. Seios pequenos. Cintura minúscula. Pernas que nunca mais acabavam. O corpo dela fluía suavemente, com as curvas habilmente unidas. Não havia parte nenhuma dela que não me encantasse os olhos e me atraísse o tacto.
Durante um momento corrosivo pensei que esta mulher merecia mais do que Peter Scuro. Mas este estado de espírito passou, e adormecemos nos braços um do outro, a murmurar.
E, de manhã, unimo-nos numa paixão lânguida, movendo-nos como sonâmbulos. Houve beijos, arquejos roucos, abraços apaixonados e crus. A carne febril acordou; usámo-nos um ao outro com força, emaranhados no cabelo dela e gritando.
Dez minutos depois, ela estava de novo a dormir. Separei-me dela o mais suavemente que pude; vesti-me, tirei as chaves da sua mala e saí. Fechando a porta à chave atrás de mim, desci no elevador e dirigi-me para oeste, para a Broadway. O ar frio picava. A cidade inteira parecia estar a hibernar.
Na Broadway, comprei pão fresco, queijo fresco, salmão fumado, duas carpas fumadas, uma cebola grande e um pacote de sumo de laranja. Jenny ainda estava a dormir quando regressei. Pus o café ao lume, pus a pequena mesa de jantar e comecei a fazer sanduíches de queijo, salmão fumado e cebola.
Estava a desembrulhar as carpas fumadas quando ergui a vista e vi que ela estava a olhar para mim, da cama.
- Sua cachorra-disse eu.-Tens estado acordada, a deixar-me fazer o trabalho todo.
Sentei-me à beira da cama, abracei-a, acariciei-lhe as costas sem ossos. Ela afastou-se e segurou o meu rosto entre as palmas das mãos, olhando-me bem nos olhos.
- Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso! - disse ela.
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-Abusei de ti - disse eu. - Enquanto estavas a dormir profundamente.
- Ah! - disse ela.
Dirigiu-se rapidamente à casa de banho e saiu de lá, com o robe vestido, quando eu estava a deitar o café nas chávenas. O seu rosto tinha um aspecto limpo. Segurei na cadeira para ela se sentar, inclinei-me para lhe beijar o pescoço. Ela ergueu o braço e puxou-me para ela.
- Querido - murmurou.
- Quem é Herbert? - perguntei.
- Quem?
- Herbert. Esta manhã, quando estávamos a fazer amor, tu fartaste-te de gemer Herbert! Herbert, oh, Herbert!
- Seu filho da mãe! - disse ela. - Eu nunca te fui infiel, e tu sabes.
De facto, eu sabia.
Deixei-a arrumar a mesa, voltei para a casa de banho e tomei um duche quente. Usei a máquina de barbear dela para diminuir a sombra azul no meu queixo. Depois, voltei a vestir-me.
Enquanto Jenny tomava um duche e se vestia, sentei-me confortavelmente na cadeira a que ela chamava "a cadeira de Peter". Dando uma vista de olhos pelos anúncios de emprego do Times, fiquei surpreendido pelo grande número de empregos para os quais eu não possuía as qualificações necessárias. Pus o jornal de lado e olhei em volta do agradável apartamento.
Domesticidade segura e afectuosa. Para saborear, como as coxas de rã com alho da noite anterior. Mas como alimentação permanente?
Jenny saiu da casa de banho, vestida, calçada com botas e pronta para sair.
- Agasalha-te bem - disse eu. - Está frio lá fora.
Mas quando saímos para a rua, o sol tinha aquecido e o vento tinha abrandado; os homens e as mulheres passeavam com os casacos abertos.
A caminho do Central Park, passámos por uma igreja em que a missa tinha terminado momentos antes.
Jenny Tolliver disse:
- Vens comigo à Missa do Galo na noite de Natal?
- Não, obrigado - respondi. - Já vi esse espectáculo. A música é óptima; a letra é péssima.
- Eu pensava que tinhas recebido uma educação católica.
- Recebi - disse eu. - Mas desisti quando compreendi que os santos estão tão mortos como os pecadores.
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Na segunda-feira de manhã tive uma "chamada de gado": entrevista preliminar para uma série de anúncios de televisão com um cow-boy vestido com calças de ganga Bronco.
- Achas que pareço um cowboy? - perguntei a Jenny Tolliver.
- Cowboy italiano, talvez - disse ela.
Arthur Enders estava a trabalhar nesse dia, por isso partilhámos um táxi para a Sétima e 36ª Avenidas. Enders dirigiu-se para o Macys e eu segui para a Madison Avenue.
O escritório da produtora estava cheia de pretendentes a cowboys. alguns vestidos com jeans gastas, blusões de pele com franjas e chapéus de aba larga. Um até tinha esporas afiveladas às botas de cano alto.
As idades iam dos dezoito aos quarenta anos. Eram belos, de feições bem definidas e vincadas. Na sua maior parte, estavam bronzeados (natural ou artificialmente), e eram altos e musculosos. Imaginei como Martha Twombly se divertiria com aquele bando.
Esperei duas horas, a maior parte do tempo de pé, antes de ser chamado ao gabinete interior. Lá dentro estava uma mulher, uma loura alta e fria. Olhou para mim, sem retribuir o meu sorriso.
- Desculpe - disse ela num tom inexpressivo -, estamos à procura de um tipo mais novo. Se quiser deixar o seu currículo com a rapariga lá fora...- A voz dela foi deixando de se ouvir.
Recusei-lhe a satisfação de a mandar à merda.
Na rua, encontrei finalmente um telefone público a funcionar e telefonei a Martha Twombly para o número que ela deixara ao meu serviço telefónico (que não era o dela - ela não vinha na lista telefónica - e não era da Boutique Barcarole).
Ou o número de telefone da casa dela não vinha na lista telefónica ou tinha uma linha particular na Barcarole que não passava pela central telefónica da boutique.
Ela atendeu ao terceiro toque.
- Aqui fala Peter - disse eu.
-Eu espero - disse ela, num tom ríspido - que não decepciones a minha amiga.
A atitude dela era toda profissional.
- Estarei lá - disse eu. - Três horas?
- Certo.
- Como se chama ela?
Houve uma pequena pausa. Depois:
- Glenda.
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- Glenda-repeti.-Agora, sobre aquele jovem que querias entrevistar...
Eu não sabia exactamente o motivo por que estava a falar com tantos rodeios, mas parecia prudente.
- ... amanhã está bem? - terminei.
- Deixa-me ver a minha agenda - disse ela num tom decidido. - Sim, amanhã estará bem. Ao meio-dia.
- Óptimo - disse eu. - Vamos... Mas ela já tinha desligado.
Estava frio no quiosque, por isso entrei numa pastelaria para tomar uma chávena de café e uma torrada. Enquanto comia, reflecti que, durante a última semana, tinha ganho 120 de Twombly, com a promessa de mais vinte por organizar o seu encontro com Arthur Enders, e cinquenta (mais, possivelmente, uma gorjeta) de Glenda.
Não só era mais do que ganhara nos últimos três meses com a minha carreira de actor, como era dinheiro que as Finanças nunca veriam. Um bom negócio. Eu não queria que ele acabasse.
Voltei ao telefone e telefonei a Sol Hoffheimer para lhe dizer que não tinha sido aceite na entrevista das jeans Bronco.
- Sou demasiado velho - disse eu. - Eles estão à procura de um rapaz de nove anos.
- É - disse Hoffheimer num tom pesaroso. - Eu sei o que queres dizer.
- Sol, conheces alguém no negócio dos trapos?
- Tenho um primo na Sétima Avenida.
- Queria pedir-te um favor.
Disse-lhe que uma amiga minha, uma modelo, tinha feito algum trabalho para a Boutique Barcarole, não conseguia receber o dinheiro e queria pedir ao seu advogado que contactasse com os donos.
- Sol, consegues descobrir quem são os donos da Barcarole?
- Eu pergunto ao meu primo - prometeu Hoffheimer. - Se não souber, ele descobre. Telefona-me daqui a um dia ou dois.
Uma vez que estava na vizinhança, subi a Madison Avenue, levando a minha pasta e deixando o meu currículo em três agências de publicidade, duas produtoras de filmes de televisão e uma firma que se especializava em espectáculos comerciais para grandes empresas.
Eu já tinha feito este tipo de trabalho de rotina umas cem vezes. Eu sabia que as possibilidades de alguém olhar para o currículo e de me chamar para um emprego eram praticamente nulas.
Mas hoje isto não me deprimiu. Eu sabia de onde viria o meu próximo dinheiro.
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Glenda chegou atrasada quase vinte minutos. Era uma morena pequenina com um capacete de cabelo preto-brilhante. Não feia, mas vulgar. Inegavelmente vulgar. Vestida com roupas caras. Uma figurinha elegante.
Ela olhou para tudo, excepto para mim. Apontei para o apartamento dilapidado.
- Nós chamamos-lhe o Taj Mahal - disse eu.
- Eu acho - disse ela numa voz estrangulada - que é... é muito, uh, original.
Subitamente, ela estava a chorar.
- Ei - disse. - Não é assim tão mau. Ela abanou a cabeça, agitando o cabelo.
- Quer beber alguma coisa? - perguntei, solícito.
- Água - disse ela em voz baixa. - Por favor.
Quando trouxe o copo, ela estava sentada no sofá, com a cabeça apoiada nas mãos. Tive de lhe tocar no ombro para a fazer levantar a cabeça. Bebeu em goles apressados, depois deixou-me pôr o copo de lado e sentar-me junto dela.
- Que se passa? - perguntei com suavidade.
Ela remexeu a mala à procura de um lenço de papel.
- Eu nunca fiz nada disto - disse ela, fungando.
- Escute - disse eu, sorrindo-lhe -, se quiser, pode pôr o chapéu, vestir o casaco e ir-se já embora. Não vale a pena ficar aborrecida.
- Não - disse ela num tom de desafio. - Vou até ao fim.
- Tem a certeza?
- Tenho.
- Está bem. Mas lembre-se de que pode mudar de ideias em qualquer altura.
Peguei-lhe na mão e levei-a para o quarto. Quando se sentou na cama amarrotada, começou outra vez a chorar. Sentei-me a seu lado e coloquei-lhe um braço à volta dos ombros.
- Por que estás a fazer isto, Glenda? - perguntei suavemente.
- É o meu marido. Ele passa a vida a enganar-me. Eu sei que ele o faz. Que é que eu sou... lixo?
- Não - disse eu num tom solene -, não és lixo. Ela respirou fundo e lançou-me um olhar tímido, com os olhos rasos de lágrimas.
- Eu não sei, uh, o que fazer - confessou ela numa voz trémula. Quero dizer, despimo-nos, ou quê?
- É contigo - disse eu.
Ela considerou.
-Acho que nos devíamos despir. Não quero amarrotar o vestido,
Os dedos tremiam-lhe tanto que tive de a ajudar. Quando ficou nua, enfiou-se na cama e puxou o lençol até ao pescoço. Quando me despi, virou a cabeça.
Deitei-me a seu lado, sem tocar no corpo dela com o meu. Comecei a acariciar-lhe o ombro nu e o braço.
- És tão bela - murmurei. - Tão bela. Ela rodou e olhou-me.
- Sou - disse num tom ansioso. - Sou mesmo?
Precisei de quase meia hora de beijos e de murmurar como era bela para ela ganhar vida sob as minhas mãos. Com os mamilos túr gidos, a carne ruborizada, agarrou-se a mim, com a respiração ofegante, as unhas fincadas.
- Oh, meu Deus! - repetia ela. - Oh, meu Deus!
Quando terminámos (ela antes, durante e depois de mim), não me largou e agarrou-se desesperadamente a mim. Quando olhei para ela, estava outra vez a chorar.
- E agora o que é? - perguntei.
- Sinto-me tão feliz - disse ela, chorosa.
Enquanto nos vestíamos, ela perguntou se poderia voltar a ver-me. Disse-lhe que ficaria encantado e escrevi o número do meu serviço telefónico. Perguntei a mim próprio se devia mandar imprimir cartões de visita. Vice-presidente talvez fosse um título apropriado!
Ela deu-me o pagamento num envelope branco fechado, o que, pensei, manifestava grande delicadeza.
Acompanhei-a a um táxi. ("És um verdadeiro cavalheiro", diss ela.) Mrs. Fultz estava a pôr o lixo na rua e lançou-nos um olhar estranho quando passámos. Nem sequer olhei para a velhota.
Nessa noite, Arthur Enders, KingHayes e eu fomos jantar ao Blotj to. Eles comeram esparguete com almôndegas. Eu comi bife tártaro.
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Houve uma altura em que eu acreditava que tinha o talento de um grande actor trágico, mas um professor de teatro teve uma ideia diferente:
- Scuro-disse ele -, tu tens um talento inato para a farsa. Dentro e fora do palco. Para ti, é tudo farsa.
Tive de admitir que essa opinião não estava completamente errada. Demasiados incidentes na minha vida podiam ser considerados dignos de uma farsa.
Incidente: Os meus pais, que não bebiam álcool, tinham morrido num incêndio de um clube nocturno. Foi a primeira (e a última) vez que eles foram a um lugar desses.
Incidente: Eu tinha sido expulso da Universidade de Notre Dame no meu segundo ano, após a queixa dos pais de uma rapariga de quinze anos. Eu podia jurar que ela tinha dezoito anos, mas não perguntara.
Incidente: No Verão, fiz uma tournée como palhaço, num pequeno circo. Tive um enorme êxito junto das crianças.
Incidente: Deliciei os espectadores de um pequeno cabaret de Chicago com o meu sketch de um actor embriagado a tentar recitar monólogos de Lear e Macbeth.
Incidente: Um ano depois de ter vindo para Nova Iorque, conheci e casei-me com Sally Lee Soorby, uma ex-majorette de Macon, Geórgia.
Casei com ela porque estava apaixonado pela sua beleza loura e o seu entusiasmo na cama. Divorciámo-nos cerca de um ano depois. Ela regressou a Macon e casou-se com um dono de uma incubadora de peixes.
Há muito que eu tinha desistido de perguntar por que razão a minha vida parecia ser uma sucessão de encontros ao acaso, coincidências ridículas e acidentes bizarros.
Nenhum homem era senhor do seu destino. Era puramente uma questão de sorte. Pagava-se e corria-se o risco.
- Desliza com a corrente - gostava eu de dizer. - Desliza com a corrente!
O encontro não planeado com Martha Twombly e tudo o que se seguiu eram, disse a mim próprio, apenas outra peça neste teatro do absurdo. Mas eu estava mais do que curioso em saber que papel o destino tinha escolhido para eu desempenhar.
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Telefonei a Hoffheimer na terça-feira de manhã. Sol respirou fundo e começou a falar:
- Os donos da Boutique Barcarole são as Roman Enterprises. Têm os escritórios no Empire State Building. Até há um ano, pertencia a um grande conglomerado italiano que negoceia em tecidos, moda, artigos de cabedal, edição de livros e azeite. Toda a gente ficou
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surpreendida quando a venderam à Roman Enterprises, porque aquilo é uma mina de ouro. A Roman não é o verdadeiro dono. Esta é uma empresa que pertence a outra empresa que, por sua vez, pertence a outra empresa. De qualquer modo, o meu primo diz que, quando se chega ao topo, excepto que ninguém sabe se é o topo, há dinheiro da Máfia envolvido.
- Dinheiro da Máfia? - perguntei, espantado.
- Claro. Tu sabes quem faz mais dinheiro no mundo, não sabes? A General Motors, a Máfia e o Vaticano. A Máfia tem os rendimentos mais pequenos dos três mas, no que diz respeito a lucro líquido... mamma mia!
- Pronto, Sol - disse eu. Obrigado. Deste uma grande ajuda. Desliguei, não sabendo exactamente o motivo por que tinha sequer perguntado. Mesmo assim, esta pequena informação podia vir, a ser útil.
Fiquei fora do apartamento o dia inteiro, deixando o campo livre para Arthur Enders com Martha Twombly. Tinha percorrido os produtores teatrais na Times Square, deixando o meu novo currículo e namoriscando as secretárias.
Na terça-feira à noite encontrei-me com Jenny Tolliver.
Não dormi no apartamento dela e voltei para casa um pouco depois da meia-noite. Enders estava acordado, a trabalhar na sua peça. Levantou os olhos e sorriu quando entrei.
- Comprei uma garrafa de vodka - disse ele.- Está na cozinha. Prepara uma bebida para ti.
-A bebida que se lixe - disse eu. - Como te saíste com Martha? -Saí-me bem-disse Enders, ainda a sorrir.-Ela deu-me uma gorjeta de dez dólares. É uma senhora simpática.
- Parece ser.
- Ela disse que talvez queira voltar a encontrar-se comigo e, se isso acontecer, ela telefona. Deste-lhe o nosso número, Peter?
- O número do meu serviço telefónico. Ela ficou, ah, satisfeita? -Acho que sim; ela não parava de rir. Meu Deus, Peter, ela é forte. Fartei-me de trabalhar.
- Não ficaste com complexos por receberes dinheiro duma mulher?
Enders franziu a testa e pestanejou algumas vezes.
- Eu achava que ia ficar, mas posso dizer honestamente que não sinto nada de especial quanto a isso. Martha diz que muitas mulheres economicamente independentes estão preocupadas com as suas carreiras e não querem ter as perturbações de uma relação emocional. Não estão interessadas em ter marido e filhos, nem mesmo um namorado firme, pelo menos nesta fase da sua vida, por isso há uma verdadeira necessidade de tipos que podem fornecer serviços sexuais
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a um nível profissional, a um preço razoável. Meu Deus, Peter, isto é interessante, não achas? Daria uma peça óptima.
- Que lhe chamarias? As You Like It! já foi utilizado. Arthur pôs-se de pé e tirou a carteira do bolso de trás.
- Escuta, tu organizaste isto. Quero dar-te dez do que ganhei.
- Oh, não - disse eu. - Eu não posso aceitar.
- É só a gorjeta que ela me deu. Tu disseste cinquenta, e eu recebi cinquenta. Tu deves receber qualquer coisa por teres organizado as coisas.
- Está bem - disse eu, tirando a nota dos dedos de Enders. - Obrigado.
Liguei para o meu serviço telefónico na quarta-feira de manhã. Havia uma mensagem de Martha pedindo que telefonasse. Ela atendeu ao primeiro toque e foi brusca.
- Quero falar contigo esta noite às dez horas, naquele lugar em que nos conhecemos.
- O Losers? Estarei lá. Que...?
- Dez horas - repetiu ela, num tom seco, e desligou.
Passei o dia inteiro a pensar que talvez o encontro dela com Enders não tivesse sido tão satisfatório como ele o descrevera. Se ela se queixasse, bem, dir-lhe-ia que ela não podia estar à espera de ganhar sempre.
Cheguei ao Losers alguns minutos antes das dez. Martha Twombly já lá estava, sentada a uma mesa ao fundo, debruçada sobre uma bebida. Havia algumas pessoas no bar e nas mesas, mas, felizmente, ninguém conhecido.
Sentei-me à sua frente e, quando a empregada apareceu, pedi um cocktail com vodka. Martha acabou a bebida e pediu outro uísque simples. Como habitualmente, estava muito bem vestida, com um fato clássico de flanela de lã escura às riscas e uma blusa com folhos.
-Boa noite-disse eu afavelmente.-Estás com óptimo aspecto.
Ela não respondeu.
- Que é que...?
- Ouve - disse ela, numa voz dura. - Quando eu te marco um encontro com uma amiga minha, não quero que lhe dês o número do teu telefone nem que marques encontros sem eu saber.
Nessa altura, tive a certeza de que ela recebia uma percentagem.
-Glenda?-disse eu suavemente.-Ela perguntou se podia voltar a encontrar-se comigo, por isso, dei-lhe o meu número. Que mal há nisso?
Ela debruçou-se sobre a mesa, aproximando o rosto irado do meu.
- Não quero que o faças.
1. Peça de Shakespeare, à letra: "Ao Gosto de Cada Um." (N. da T.)
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- Escuta - disse eu. - Eu sou um novato neste jogo. Se existem regras, devias ter-me dito antes. Mas não te venhas zangar comigo só porque fui educado para com a tua amiga.
Ela acalmou-se gradualmente, tirou um cigarro e esperou que eu o acendesse.
- Suponho que tens razão - disse ela num resmungo. - Mas agora já sabes.
- Agora já sei - concordei.
-Eu também sou uma novata neste jogo-confessou, embora nenhum de nós tivesse dado um nome ao "jogo". -Vamos avançar com calma e resolver os problemas à medida que eles surjam.
Fiz um aceno de cabeça, concordando.
- Glenda ficou satisfeita com o serviço?
- Eu acho que ela está apaixonada por ti. Dei uma gargalhada.
- Nem pensar. Já tenho uma namorada, e ela é tudo o que eu quero.
Ela olhou para mim com curiosidade.
- Não sei muito sobre ti, Peter. Trabalhas?
- Actor desempregado.
- Calculei isso. Tens aspecto disso.
- Esfomeado, queres tu dizer? Na época de Natal, trabalho dois dias por semana no Kings Arms, uma boutique de roupa de homem. Conheces?
- Bom material - disse ela. - Que acontece depois do Natal?
- Nada. E quero dizer mesmo nada.
- Óptimo-disse ela inesperadamente. - Isso tornará as coisas mais fáceis. Vamos beber outra rodada.
Decidi que, se tentasse acompanhar esta mulher, bebida a bebida, acabaria nos Cuidados Intensivos do Roosevelt Hospital. Mudei para vodka com água, determinado a bebê-la devagar.
- Estás livre na sexta-feira à noite? - perguntou ela.
- Apenas para os meus amigos - disse eu a sorrir. - Se queres saber se estou ocupado, não, não estou ocupado na sexta-feira à noite.
-Estupendo. Uma velha amiga minha veio da Costa na segunda-feira. Para fazer compras e ver uns espectáculos. Está hospedada no Beddington on Park. Tem saído todas as noites. Jantar em casa de amigos. Teatro. Discotecas novas. Vai-se embora no sábado, de manhã cedo, por isso não marcou nada para sexta-feira à noite. Só quer um jantar calmo, umas bebidas.
- Parece razoável.
- Ela quer um acompanhante. Paga cem e tudo o mais: táxis, jantar, etc. Só quer companhia para essa noite. Interessado?
- Claro. Ela não quer mais nada além da companhia?
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Martha Twombly encolheu os ombros.
- Isso é contigo. Aviso-te já, ela está perto dos sessenta. Mas tem um ar muito imponente. Já se divorciou duas vezes. Muito inteligente e muito rica. E consultora de investimentos e ganha bem.
- Como se chama?
-Grace Stewart. Vai buscá-la ao Bedlington às oito horas de sexta-feira. Não me deixes ficar mal, Peter.
- Alguma vez o fiz? O que me faz lembrar... como é que te deste com Arthur?
Ela soltou uma gargalhada e bebeu o resto da bebida.
- Ele é simpático, mas um pouco ineficaz. Não é o meu género. Mas conheço algumas mulheres que o vão adorar. Vamos tomar outra bebida.
- Bebe tu. Esta chega-me.
Ela estava a beber uísque como se o amanhã não existisse, mas eu via que não estava a ter muito efeito. O seu rosto talvez estivesse um pouco corado, mas sentava-se direita, e a voz continuava perfeitamente distinta.
- Não conheces nenhuns negros, pois não? - perguntou ela subitamente.
- Conheço - disse eu prontamente. - Conheço um negro. Um homem grande. Actor a tempo parcial, modelo a tempo parcial, isto e aquilo a tempo parcial.
- Achas que ele estaria interessado?
- Posso tentar.
- Ele aceitará trinta? Lancei-lhe um olhar duro.
- Desculpa. Eu sou apologista de salário igual para trabalho igual.
- Está bem - disse ela a rir. - Cinquenta para ele e vinte para ti por organizares as coisas.
Ela terminou a bebida e remexeu na mala.
- Põe a mão debaixo da mesa - disse ela. Estendi o braço, e ela colocou notas na minha mão.
- Cinquenta - disse ela. - Vinte por Arthur, vinte pelo negro e o resto para esta porcaria de bebidas.
- Por alguma razão lhe chamam o Losers Place. Eu telefono-te sobre o negro. Chama-se King.
- King? - disse ela. - E eu serei a rainha de Maio. Gosto de ti, Peter.
- Também gosto de ti.
- A minha vida não tem sido exactamente um mar de rosas - disse ela num tom casual. - Muitos maus bocados. Mas desenvolvi gradualmente um instinto que me faz reconhecer as melhores oportunidades.
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Eu acho que temos um bom negócio entre mãos. Vamos avançar devagar e com cuidado. Podes fazer uns patacos e divertires-te.
Esbocei um sorriso, com a sensação familiar de estar a ser empurrado para um futuro sobre o qual não tinha qualquer controlo.
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Martha ia apanhar um táxi para o East Side Superior e ofereceu-se para me levar. Seguimos para norte ao longo da Oitava, passámos pela Broadway, por Amsterdam e saí a um bloco do Blotto.
King Hayes não estava lá. O barman disse que ele já lá tinha estado, mas que se tinha ido embora. Comprei uma garrafa de vinho Manischewitz Concord, que King preferia a Dom Perignon, e dirigi--me para oeste.
Hayes vivia num hotel velho para pessoas sós, perto da Broadway. Tinha um apertado apartamento de uma divisão que partilhava com uma colónia de enérgicas baratas. A casa de banho ao fundo do corredor só poderia ser melhorada se fosse completamente deitada abaixo. As paredes estavam todas escritas, e os visitantes respiravam pela boca porque o cheiro lhes fazia tremer os joelhos.
- Quem é?
- Peter Scuro.
Ouviu-se o som de fechaduras e correntes a serem abertas. King espreitou, depois sorriu. Depois de eu entrar, ele voltou a fechar tudo. Olhei em redor.
- Por mais humilde que seja... - disse eu.
Era cem vezes pior que o meu apartamento. Uma cama de metal riscada. A um canto, um lava-loiças manchado. Uma janela selada com tinta e coberta com uma persiana verde rasgada. Um prato de fogão com uma crosta de sujidade. Uma mesa frágil e duas cadeiras desengonçadas. Uma cómoda tatuada com queimaduras de cigarro.
Uma das paredes tinha coladas fotografias 24 x 30 dos trabalhos de modelo de King Hayes. Com roupas desportivas, calções de banho, erguendo um copo de cerveja. E muitos nus. Ele tinha o corpo do David de Miguel Ângelo, mas projectava-se um pouco melhor.
Estendi-lhe o cartuxo de papel castanho.
- Os gregos a trazerem presentes - disse eu. King espreitou para dentro, depois ergueu os olhos.
-Agradeço-te, Senhor-disse ele.-Deixa-me passar uns copos por água.
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- Para mim, não - disse ele. - Bebe tu.
Sentei-me cautelosamente numa das desengonçadas cadeiras de madeira, vendo-o sacudir o pó de um frasco vazio de manteiga de amendoim e enchê-lo de vinho. Ergueu-o na minha direcção.
- Deus te abençoe, patrão - disse ele, bebendo o vinho e voltando a encher o frasco.
Ele era grande, grande, grande. E negro, negro, negro. Os clientes que achavam que tinham de incluir um negro nos seus anúncios de revistas ou para a televisão, geralmente preferiam negros que parecessem caucasianos muito bronzeados. Hayes era inegavelmente africano, com um nariz achatado e lábios grossos. Por isso, os trabalhos de modelo eram poucos, e quanto a papéis de actor... Quantas vezes é que podem fazer o Othello?
Ele tinha sido estivador, camionista, motorista de táxi, lutador de luta livre, guarda-costas, cozinheiro, empregado de mesa, massagista, marinheiro, vendera bíblias.
Sentou-se à minha frente, beberricou o vinho e sorriu cordialmente. Não perdi tempo e fui directo ao assunto.
- Conheço uma mulher que quer ser fornicada - disse eu.
- Sortudo.
- Ela quer um negro.
- Oh-oh-disse Hayes, com o sorriso ainda no lugar.-E um caso de caridade?
- Não. Ela paga cinquenta. O sorriso desapareceu.
- Não sabia que estavas agora nesse ramo, Peter.
- Comecei agora - disse eu. - Uma carreira completamente nova.
- Estou a ver - disse Hayes. - Onde iríamos?
- Para o meu apartamento. Na sexta-feira, quando Arthur trabalha todo o dia; eu mantenho-me afastado. Está bem?
- Por cinquenta? Está bem.
- Vem ter comigo ao Blotto amanhã à noite por volta das dez para acertarmos pormenores.
- Recebes uma percentagem dos meus cinquenta?
- Não. A dama toma conta de mim.
- Deus do céu! - disse ele abanando a cabeça. - Se a minha mãe alguma vez descobrir, mata-me.
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O Bedlington era um hotel antigo, com pessoal que andava em bicos de pés e falava em murmúrios. Tapetes orientais desbotados cobriam o chão de parquet. Na sua adaptação ao mundo moderno, o Beddington tinha convertido a sala de bilhar num salão. Só havia senhoras a servir às mesas.
Cheguei pontualmente às oito horas. Fiquei encantado com o único telefone interno, uma engenhoca de madrepérola e dourada que parecia uma sobrevivente da Belle Époque. Perguntei por Miss Grace Stewart.
- Aqui é Peter Scuro - disse eu.
- Ah, sim - disse uma voz musical. - É muito pontual. Por favor, espere por mim no salão. Mande vir o que quiser para si e gim e bitters. Diga ao barman, ele chama-se Harry, que é para mim; ele sabe como eu gosto.
O salão, escuro como uma caverna, estava vazio, com excepção do barman. Pedi um kir para mim e um gim e bitters para Miss Stewart. Observei, fascinado, Harry medir exactamente três gotas de bitters num copo, fazê-las girar, percorrendo o interior do copo, e deitar fora o restante.
Depois ele acrescentou dois cubos de gelo, nem mais, nem menos, e encheu o copo até acima com gim Tanqueray. Mexeu suavemente com uma colher comprida e, por fim, acrescentou uma azeitona recheada com pimento.
-Interessante-disse eu.-Tenho de experimentar isso um dia.
- Bem perto da cama - aconselhou respeitosamente Harry. Levei as bebidas para uma mesa num canto. Eu estava a meio do
kir quando uma mulher entrou no salão, olhou em volta da semi-obscuridão e começou a dirigir-se a mim. Pus-me de pé, sorrindo.
- Miss Stewart? - perguntei eu.
- Grace - disse ela. E você é Peter. Que simpático.
O aperto de mão dela era firme. Ela trazia um casaco de pele de foca no braço. Tirei-lho e ajudei-a a sentar-se. Ela movia-se com agilidade, mas Martha tinha sido honesta; tinha cerca de sessenta anos.
Estava muito elegante, com um vestido que brilhava. Mas o que atraiu a minha atenção foi um solidéu de lantejoulas.
- Adoro o seu solidéu - disse eu. Ela riu-se e apertou-me a mão.
- Eu acho que nos vamos dar muito bem. Demos.
Ela tinha alugado uma limusina para a noite. Com aparelho de televisão, bar, estofos de pele. Recostei-me.
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- Gostava de saber o que estão os pobres a fazer - disse eu.
- Isso preocupa-te? - disse ela. - Não exactamente.
Jantámos na baixa, no Windows of the World. Quando o chefe de mesa trouxe a lista, Grace Stewart perguntou-me.
- É bom conhecedor de vinhos?
- Só se as garrafas tiverem asas - respondi.
Ela mandou vir inteligentemente. Bebi o que ela bebeu, comi o que ela comeu. Estava muito longe do Losers Place e, olhando em volta, decidi que este era o meu lugar.
Eu tinha vindo preparado para a divertir com sketches teatrais, imitações, anedotas, pequenas histórias sobre a minha carreira de actor. Ela não me deu oportunidade.
- Não tens de me cativar - disse ela.
Ela regalou-me com histórias escandalosas sobre a vida na Costa: Beverly Hills, Bel Air, o pessoal do cinema e da televisão. Ela adorava mexericos e tinha um sentido de humor cruel.
- És má - disse-lhe eu.
- Sou, não sou? - perguntou ela, num tom alegre.
Outra mulher que eu não conseguia acompanhar na bebida. Depois do jantar, sentámo-nos no bar e ela bebeu dois vodkas enquanto eu bebi um. Olhámos para norte, por cima da ilha de Manhattan: colares de luzes, um brilho rosado e intenso.
- Tu és amoroso - disse ela, acariciando-me o rosto. - E belo, de um modo soturno?
- Soturno?
- Sinistro - disse ela. - Gosto disso.
Quando voltámos à limusina, ela disse ao motorista que nos levasse à 5.8ª avenida, entre a 47ª e a 48A
- Uma zona encantadora - comentei eu.
- Quero que conheças um lugar - disse ela. - Se ainda existir e eu o conseguir encontrar.
Ela tinha um rosto duro, sem rugas, com um nariz como uma cítara. Um corpo magro, flexível. As suas mãos eram jovens. O cabelo, debaixo do solidéu era de um cinzento-brilhante. As pernas estavam nuas, o que me intrigou. Ela surpreendeu-me a olhar. Soltou uma gargalhada, pegou na minha mão e colocou-a na coxa nua.
- Rapada - disse ela.
Encontrámos o lugar que ela procurava: um obsceno bar de marinheiros com serradura no chão e um cheiro tão forte a desinfectante que fazia chorar os olhos. Estavam todos a beber boilermakers. Havia um bêbado a ressonar a um canto.
- Espero que tenhas trazido o teu revólver - disse eu, nervoso, olhando em volta.
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Ela pediu gin ao barman barbudo.
- Traga uma garrafa nova - ordenou ela. - Quero vê-lo a abri-la.
- Como quiser, minha senhora - disse ele. Ela voltou-se para mim.
- Que pensas de mim? - perguntou, com os olhos azuis subitamente frios.
- Muito simpática, muito boa companhia.
- Deixa-te de merdas. Hás-de receber o teu dinheiro. Que é que realmente pensas?
- Está bem - disse eu. Eu penso que é uma mulher inteligente, bem sucedida e só. Todas estas histórias de Hollywood que me contou... Eu acho que a vida lá a diverte, mas não faz realmente parte dela. É uma observadora. Obviamente que tem classe. Mas talvez uma ou duas vezes por ano tenha de se afastar e vir a um lugar destes. Só para não se esquecer de como é o mundo real.
- Estás perto - disse ela -, mas nada de charutos. Tenho classe, não tenho? Há quarenta anos, eu era empregada de mesa nesta espelunca. Eu nasci e fui criada na Cozinha do Diabo. Agora, vamo-nos embora. Vamos voltar para a minha suite de quatrocentos dólares por dia na Park Avenue.
Era tudo veludo e gladíolos em jarras de cristal. Uma sala, quarto e casa de banho com uma banheira com pés em forma de garras. Opulência subtil. Nada de gritante.
- Talvez me mude para cá - disse eu.
- Gostava de te ter conhecido na segunda-feira - disse ela. - Ter-te-ia convidado. Podemos voltar a encontrar-nos na próxima vez que vier a Nova Iorque?
Pensei que Martha Twombly pudesse ter preparado a pergunta para me testar.
- Claro-disse eu.-Martha poderá entrar em contacto comigo. Ela acenou com a cabeça, em sinal de assentimento.
- Queres mandar vir alguma coisa do bar?
- Obrigado - disse eu -, mas acho que já bebi o suficiente para uma noite.
- Eu sei que bebi - disse ela -, mas tenho uma coisa melhor. Foi até ao quarto e saiu com uma pequena caixa de filigrana da
prata. Abriu-a e mostrou o conteúdo.
- Crack ? - disse eu. - Receio que seja desperdiçado em mim, Mas esteja à vontade.
Partiu uma ampola e aspirou profundamente.
- As mulheres também têm fantasias, sabes - disse ela.
-Nunca duvidei, nem por um minuto - disse eu. - Quais são as suas?
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- Oh - disse ela num tom vago -, várias coisas. Não te queres despir?
Comecei a despir-me. Estava a tirar as calças quando levantei os olhos e vi que ela ainda ali estava, completamente vestida. - Tu não? - perguntei.
- Acho que não - respondeu.
Mandou-me deitar nu numa espreguiçadeira da sala. Puxou a poltrona de brocado para junto desta e olhou para mim através dos olhos semicerrados.
- Lindo! - disse ela.
- Obrigado. Há alguma coisa que quer que eu faça?
- De momento, não.
Ela tocou-me suavemente com os dedos frios. Comecei a ficar excitado.
- É bom para a pele - disse ela.
Mais tarde, ela deu-me os cem dólares de honorários, mais uma gorjeta de cem dólares. Desejei-lhe uma boa viagem de regresso à Costa. Apertámos as mãos e despedimo-nos.
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Jenny Tolliver disse que ia passar a semana do Natal a casa. A casa era em Rutland, Vermont, onde o pai, um engenheiro ferroviário reformado, e a mãe viviam numa casa que parecia um bolo de noiva antigo. Jenny ia partir na manhã de 24 de Dezembro e regressaria ao meio-dia do dia 31.
- Não vamos passar o dia de Natal juntos? - perguntei. - Isso é porque me recusei a ir contigo à Missa do Galo?
- Não - disse Jenny. Os meus pais estão a ficar velhos e querem que eu passe o Natal com eles, e eu acho que devo ir. Peter, podes vir passar a semana connosco, se quiseres.
- Acho que não vou - disse eu. - Eles ficariam curiosos a meu respeito, far-te-iam perguntas, e isso estragaria a tua visita. Mas estarás de volta para o fim do ano. Vou falar com Arthur. Talvez façamos uma festa. Nada de extravagante. Cerveja e carne assada. Que tal?
- Vai ser divertido. Peter, tu vais-te portar bem enquanto eu estiver fora?
- Não me porto sempre bem?
- Mentiroso! - disse ela num tom triste.
O sábado antes do Natal era o meu último dia na Kings Arms.
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Recebi o salário, acenei friamente ao gerente carrancudo e decidi ir a pé pela Madison Avenue até à Boutique Barcarole. Queria ver se havia alguma coisa a um preço acessível para eu comprar a Jenny para o Natal.
Como antes, fiquei impressionado com o aspecto chique e rico dos clientes. Eu nunca tinha visto tanto vison na minha vida.
Encontrei um belo lenço Hermes para Jenny. Custou mais que tencionara gastar, mas consolei-me com o pensamento que ela talvez pudesse copiar o desenho para os seus próprios tecidos.
Dirigia-me para a saída quando, numa vitrina, vi um solidéu brilhante de lantejoulas de prata. Exactamente igual ao que Grace Stewart tinha usado. Demasiada coincidência para ser uma coincidência.
Martha Twombly não estava só a conseguir que as suas "amigas! fossem levadas para a cama; essas mulheres eram boas clientes que mereciam um pequeno serviço extra. Fiquei intrigado. A procura existia. A oferta é que talvez fosse um problema.
Jantei com Jenny na terça-feira à noite e dei-lhe o lenço. Ficou encantada. Deu-me uns botões de punho de ouro da Tiffany, com o desenho de um laço de amor. Beijámo-nos e desejámos um Feliz Natal um ao outro.
Comemos um bife no Old Homestead, voltámos para o apartamento dela e fomos apressadamente para a cama. Ela estava frenética agarrando-se a mim e mordendo-me.
- Ei - disse eu -, calma. Só vais estar fora uma semana.
- Quero esgotar-te-disse ela.-Espremer-te. Para que não haja nada para qualquer outra mulher enquanto eu estiver fora.
Gemi e tomei-a nos braços.
Teria sido agradável se houvesse uma tempestade lá fora-o vento a soprar forte, a neve a cair. Mas estava uma noite sem nuvens, embora fria. Mesmo assim, tivemos a sensação de estar num santuário! quente e seguro, um mundo só de nós dois.
Quando estávamos ambos saciados, ela começou a falar de amor. Concordei com tudo o que ela disse, pois não queria estragar aquela esplêndida noite.
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Foi uma sorte Jenny estar fora naquela semana; foi uma semana atarefada para mim, Arthur Enders e King Hayes. No sábado, estáH vamos a fazer as clientes entrar e sair do apartamento numa agenda cronometrada em fracções de segundo.
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Chamávamos-lhes "cenas".
"Como foi a tua cena?" "Tenho uma cena marcada para o meio-dia- uma cena louca." Nessa semana, Hayes teve três cenas e Enders e eu tivemos duas cada, por isso decidimos ter champanhe em vez de cerveja na nossa festa de Fim do Ano.
Na terça-feira, às três da tarde, tive uma cena com uma mulher chamada Joan. Era baixa e mais do que gorducha. Ela disse que o marido não lhe tocava desde que engordara. Ele dizia-lhe que a obesidade dela lhe tirava o desejo.
A mim não tirou. Joan pediu-me que lhe batesse antes do sexo, e eu fi-lo. Ela pagou-me os habituais cinquenta dólares mais uma gorjeta de dez dólares - tudo em notas amarrotadas de um e cinco dólares -, provavelmente poupadas do dinheiro para as despesas da casa.
Nessa altura, eu sabia que tinha um bom negócio, mas pus-me a pensar em como o podia melhorar. O problema essencial era de natureza física.
Uma puta experiente, supunha eu, podia facilmente ter dez clientes por noite. Nenhum prostituto poderia conseguir sequer chegar perto.
Mesmo se eu, Enders e Hayes conseguíssemos ter três cenas por semana, só chegava a cento e cinquenta dólares cada, mais gorjetas. Dinheiro fácil, livre de impostos, mas não era exactamente uma fortuna. Para o negócio crescer, a dificuldade, desconfiava eu, estava em recrutar talento novo.
Pensei em todos os meus amigos e conhecidos masculinos. Havia pelo menos três que concordariam: dois actores e um modelo, todos desesperados por ganharem uns tostões. O modelo estava com perto de cinquenta anos, era do tipo de executivo grisalho, e tinha a fama de ser um macho valente.
Concebi uma maneira de montar uma organização para maximizar o meu rendimento sem aumentar o meu trabalho pessoal. Planeei os pormenores para apresentar a Martha Twombly. Estava confiante de que ela concordaria.
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Foi uma festa tão boa que, pouco antes da meia-noite, um polícia apareceu e pediu-nos que fizéssemos menos barulho; tinha havido queixas.
- Deve ser Mrs. Fultz - disse eu. - A nossa vizinha do lado.
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Prometemos baixar os decibéis, demos uma taça de champanhe ao polícia e mandámo-lo embora. Assim que a porta se fechou, os charros apareceram outra vez.
Jenny Tolliver estava lá, bem como Enders e Hayes com as suas amigas. Eu tinha convidado três possíveis recrutas, que apareceram acompanhados de mulheres. Havia mais três casais e cinco pessoas sós, homens e mulheres.
Alguns deles tinham trazido garrafas, e duas das mulheres tinham trazido uma pizza pepperoni gigante. Assim, além da carne assada, salada de batata, pão sírio e champanhe, havia muita comida e bebida. Havia falta de uma coisa... lugares para as pessoas se sentarem.
O modelo masculino do tipo executivo, mal vestido, acompanhado da mulher de outro homem, tinha chegado meio-embriagado. Chamava-se Wolcott Sands, e tinha aparecido em anúncios impressos e de televisão como advogado, presidente de conselho de administração, almirante e proctologista.
- Como tens passado, Sandy? - perguntei-lhe.
- Vai-se sobrevivendo.
Estávamos apertados na minúscula cozinha onde Sands tinha ido buscar cubos de gelo para colocar no copo de uísque simples.
- Estás disponível?
O modelo olhou para mim.
- Para tudo, menos assassínio. E talvez até isso, se o preço estiver certo. Ouviste falar de alguma coisa?
- Uma mulher que conheço - disse eu num tom vago. - O marido está fora há algum tempo. Ela está à procura de uma queca rápida. Sem complicações. Paga cinquenta a alguém em quem confiar.
- Cinquenta? - exclamou Sands. - Diz-me só onde e quando. Sorri, dei-lhe uma palmada no ombro e voltei para a sala.
A festa tornou-se mais desordeira. Uma das mulheres vomitou por cima do seu acompanhante, Arthur Enders queria fazer luta livre com Jenny, e a mulher que estava com King Hayes teve de ser impedida de se despir. Mas não houve brigas nem derramamento de sangue.
Falei brevemente com dois actores desempregados que tinha seleccionado como recrutas potenciais, utilizando a mesma conversa que tinha usado com Wolcott Sands. Eles não só reagiram entusiasticamente, como um deles tinha um apartamento na 68ª Avenida Oeste, que se dispôs a utilizar para a sua cena.
Os convidados começaram a ir-se embora cerca das duas da manhã e, uma hora depois, o apartamento ficou vazio. Jenny ficou, e Enders tinha adormecido no sofá.
Eu e Jenny fizemos alguns esforços pouco entusiastas para guardar
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comida, deitar fora o lixo e limpar a maior sujidade. Depois fomos para o qUarto e fechámos a porta, deixando para trás Enders a ressonar.
- De que é que tu e Sandy estavam a falar? - perguntou ela
casualmente ao começar a despir-se.
-Sandy? - perguntei. - Quando?
-Na cozinha. Vocês pareciam estar a contar segredos um ao
outro.
-Oh-disse eu. - Isso. Ele estava a contar-me uma história engraçada sobre uma mulher que lhe pagou para ter sexo com ela.
-Eu não acho que isso seja engraçado. Eu acho que é repugnante.
-E quando um homem paga a uma mulher, isso também é repugnante?
- Claro que é. Independentemente de quem o fizer, é vender o
corpo.
A minha reacção foi moderada.
- Talvez não tenham mais nada para vender.
- Peter, alguma vez pagaste a uma mulher?
- Não.
- Espero bem que não. É... é...
- Eu sei - disse eu. - Repugnante. Jenny, as coisas não são assim tão simples. Já conheci homens, verdadeiros machões, que dizem que não têm de pagar pelo sexo. Mas esses mesmos tipos compram prendas para a mulher, levam-nas ao teatro e a restaurantes caros, ou talvez a passar uma semana nas termas em St. Croix. E juram, o tempo todo, que não têm de pagar pelo sexo. Isso é hipocrisia, não é?
- Se se amarem, não.
- Estou a falar de sexo, não de amor. Se um homem se sente excitado por uma mulher, ou uma mulher por um homem, que mal há em pagar pelo prazer?
-Isso é reduzir o sexo a "Vamos beber outro martini ou vamos fornicar?" Transformar uma coisa maravilhosa em algo casual e insignificante.
- És uma romântica! - disse eu, a rir.
- Quem me dera que também fosses - disse ela num tom pesaroso.
- Eu sou romântico - disse-lhe eu. - Mas nós queremos coisas diferentes.
- Que é que tu queres?
- Quero-te a ti.
Mais tarde, voltei ao mesmo assunto. De repente, era importante convencê-la.
-Escuta-disse eu. - Suponhamos que uma mulher se casa com um homem que não ama. Por qualquer razão. Talvez ele seja rico, 50
ou talvez seja apenas um tipo bom, sólido, trabalhador, fiel. A mulher está a pensar no seu futuro. Mas se ela realmente não o amar, está a vender o seu corpo?
- Bem.... - respondeu Jenny num tom cauteloso -, não exactamente.
- Ela não o ama, mas vai para a cama com ele porque ele a sustenta. Isso faz dela uma puta, não faz?
- Não, se ela se esforçar para lhe proporcionar um lar agradável e tomar conta dos filhos. As putas não fazem isso.
Fiquei calado.
- E, além disso - prosseguiu ela -, talvez, com os anos, ela venha a amá-lo.
- Talvez - disse eu. - Mas não tenhas tanta certeza. Pode acontecer o contrário. E estou só a dizer que, duma maneira ou doutra, todos nós nos vendemos. Olha para ti; tu vendes o teu talento artístico, não vendes?
- Claro. Mas isso é o meu trabalho. Não tem nada a ver com a minha vida pessoal. Não pensas que eu me estou a vender a ti, pois não?
- Estás sim - disse eu. - Pela utilização deste luxuoso apartamento e por todos os diamantes que eu te dou.
- Porco! - disse ela, dando-me um soco no braço. - Agora, vamos dormir.
Abracei-a até a sua respiração se tornar mais profunda. Depois retirei suavemente o braço e, com uma carícia, afastei-lhe o cabelo do rosto. Ela soltou um murmúrio de felicidade.
Fiquei acordado durante muito tempo, pensando que não tinhamos chegado à verdade. Ela estava a vender algo: amor. E eu estava a fornecer um objecto para esse amor. Por isso, eu também estava a vender algo, não estava?
Desisti da complexidade e adormeci a pensar como o preço de cinquenta dólares simplificava maravilhosamente a existência.
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Sol Hoffheimer disse que a mulher estava a ter problemas com a canalização e talvez precisasse de ser operada. A filha mais nova tinha ido a um médico ortodôntico que queria três mil dólares pelo tratamento. ("Provavelmente um aparelho de platina", disse o agente com ar pesaroso.) E dois dias antes, a transmissão da sua chocolateira de 78 tinha empacotado na auto-estrada de Long Island.
- Sol - disse eu -, talvez o homem lá em cima não goste de ti.
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-Estou a começar a desconfiar disso. Na semana passada ganhei
a impressionante quantia de cinco dólares. Sabes como? Encontrei uma nota de cinco dólares num táxi. Fiquei tão contente.
Eu tinha trazido o almoço para o escritório do agente: dois cafés, duas sanduíches e dois folhados de maçã, comprados no café situado no átrio do edifício do escritório de Hoffheimer. Comemos de sobretudo vestido; tinha acontecido alguma coisa à caldeira e não havia aquecimento.
- Então os negócios estão maus? - perguntei.
- Não, maus não. Não existem.
Tirei a carteira e coloquei três notas de dez dólares em cima da secretária.
- Parte do que te devo. Muito obrigado. Sol olhou para o dinheiro.
- Tens a certeza que consegues dispensar o dinheiro?
- Tenho. Bebe o café antes que congele.
- Tenho algumas coisas pequenas a que devias dar uma vista de olhos - disse Sol. Empurrou dois pedaços de papel por cima da mesa. - Uma é para "Serviços de Urgência", a telenovela. Há um rumor de que estão à procura de um fulano com tipo de médico. O outro é para locução de um documentário imbecil sobre o Bronx Sul. Cuidado com esse; o director é um verdadeiro filho da mãe.
-Parece óptimo - disse eu, metendo os bocados de papel no bolso do impermeável. - Obrigado, Sol; eu faço o meu acto de universitário. Diz-me, sou eu o único cliente que tens que nunca consegue nada?
- Não - disse o agente num tom desgostoso. - Não és tu; é o tipo de profissão. Há seis milhões para cada trabalho.
- Quantos clientes tens?-perguntei casualmente, olhando para o arquivador de madeira.
- Quem é que se dá ao trabalho de os contar?-disse Hoffheimer. - Telefonam-me todos os dias e depois desaparecem. Talvez voltem para casa, para o Iowa ou para onde quer que seja. Diria que agora talvez tenha quarenta regulares, metade rapazes, metade raparigas. Cerca disso.
- Algum deles está a ganhar bem?
- Eu estaria aqui sentado num escritório gelado a preocupar-me com os tubos da minha mulher se a minha gente estivesse a ganhar bem?
- Vinte tipos? - disse eu num tom pensativo. - Na sua maior parte jovens?
- A maior parte. Porquê?
- Apenas curiosidade.
Vinte minutos depois, já na rua, tirei os dois pedaços de papel do
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bolso do impermeável. Sem sequer olhar para eles, rasguei-os em quadradinhos e deixei os pedacinhos esvoaçar ao vento.
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King Hayes tinha uma cena marcada mas a mulher, quando chegou, tinha uma caixa de pó-de-arroz cheia de coca e queria que ele cheirasse com ela. Quando ele recusou, ela cuspiu-lhe no rosto, chamou-lhe "um monte de merda preta" e foi-se embora.
Tive uma cena com uma mulher que, quando a queca acabou triunfalmente, disse: "Foi óptimo. Vamos fazer outra vez." Tive de explicar, o mais diplomaticamente possível, que o preço de cinquenta dólares não incluía repetições. Ela não ficou uma cliente satisfeita.
Decidi que tinha chegado a altura do encontro com Martha Twombly.
Telefonei e disse que precisava de falar com ela. Ela perguntou se era importante. Eu disse que era. Ela sugeriu que eu fosse ao seu apartamento nessa noite, às nove horas.
- Posso oferecer-te uma bebida - disse ela -, mas não de jantar.
- Óptimo - garanti-lhe eu. - Onde?
Ela deu-me o endereço e acrescentou num tom casual:
- A propósito, o meu apelido é Twombly.
Ela vivia na 83ª Avenida Leste, perto de York. Era uma mansão modificada, e o apartamento dela, de duas assoalhadas, tinha tectos altos e era confortável, mas não tão esplêndido como eu imaginara que seria. Ela coleccionava miniaturas de elefantes de esmalte, bronze, madeira, latão, etc. Havia elefantes por todo o lado, a maior parte deles de tromba no ar.
- As trombas têm de estar voltadas para a porta - explicou ela - Para dar sorte.
- Gostava de saber o que o Dr. Freud pensaria disso - disse eu. Ela tinha vestido uma túnica e calças de veludo cor de laranja.
uma escolha estranha para uma mulher ruiva. Estava descalça e fiquei encantado ao ver que as unhas dos pés estavam pintadas de preto.
- De luto? - perguntei, apontando para elas.
- É - disse ela. - Pelos meus três. Tenho um bom Armagnac. Queres provar?
Disse que sim, e ela serviu-o em pequenos copos Baccarat, tão frágeis que tive medo de apertar o copo nos meus dedos. Quando 53
nos instalámos em extremidades opostas do sofá, ela perguntou-me o que me ia na mente.
- Temos problemas - disse eu. Contei-lhe o que acontecera a King Hayes e como o negro tinha sido insultado.
-Que diabo-disse ela, furiosa. - Aquele rapaz tão meigo. A melhor queca que eu já tive.
- Com excepção dos presentes? - disse eu num tom irónico.
- O quê? Oh, sim, claro.
-A questão é, temos de manter a droga fora disto. Mesmo assim, nós já estamos a pisar o risco da ilegalidade.
- Concordo em absoluto - disse ela acaloradamente -, e peço desculpa por aquela imbecil. Não vais voltar a vê-la. E certificar-me-ei de que todas as amigas que te mandar daqui em diante sabem as regras: nada de droga.
- Óptimo - disse eu. - Agora, há outra coisa...
Descrevi a minha cena com a mulher que queria repetir, tendo pago apenas os cinquenta dólares.
- Não pode ser - disse com firmeza. - Não pode. Começamos com isso, e elas vão querer ficar o dia todo. Tem de ficar combinado que é só um tiro, Martha.
- Compreendo o teu ponto de vista - disse ela devagar. - Concordo com isso. Mas vejamos outra coisa. E se o homem não conseguir?
- Bem, isso ainda não aconteceu, e não penso que venha a acontecer. Mas, se suceder, a mulher não paga nada.
- É justo - disse ela, inclinando a cabeça. - Peter, é por isso que eu queria que as coisas andassem devagar. Eu sabia que teríamos problemas, à medida que fôssemos avançando. Mais alguma coisa?
Nesta altura, eu tencionara dizer-lhe que sabia que o nome dela era Twombly antes de ela me dizer, que sabia que ela era gerente da Boutique Barcarole e que calculava que as mulheres que ela arranjava eram provavelmente suas clientes e não "amigas".
Mas agora ocorreu-me que seria tolice revelar tudo isso. Eu pensava que o seu sigilo talvez tivesse algo a ver com o amor-próprio. Proporcionar uma hora de prazer a amigas era uma coisa. Angariar clientes era outra coisa. Ela não queria enfrentar a realidade.
- Este brande é óptimo - disse eu. - Posso beber mais um pouquinho?
- Serve-te, e, já agora, dá-me uma gota.
Falei enquanto me pus de pé para deitar mais Armagnac no copo.
- Já deixei de trabalhar na Kings Arms e neste momento não há muito trabalho para actores. O dinheiro que tenho ganho com as tuas amigas é bom, isso é verdade, e estou-te muito grato, mas umas duas centenas por semana, e isso inclui gorjetas, não é muito. Achas que as tuas amigas pagariam cem?
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- Talvez - disse ela. - Deus sabe que elas têm muita massa.
- O que eu estava a pensar era isto... - disse eu.
As clientes pagariam cem, adiantados, directamente a Martha. Dessa quantia, ela ficaria com vinte cinco, vinte cinco seriam para mim e cinquenta para o homem. Havia um acerto de contas semanal.
- Assim - expliquei -, a mulher não tem de dar dinheiro ao tipo, o que não conduz exactamente ao romance. Se ela lhe quiser dar uma gorjeta, isso é com ela.
- De facto-disse Martha astutamente -, as gorjetas podem ser maiores se ela não tiver já pago ao fulano cinquenta em dinheiro.
- Exactamente.
- Achas que os teus rapazes concordarão em receber à semana?!
- Arthur e King hão-de concordar; eles confiam em mim. O que me leva a outra coisa...
Descrevi os três potenciais recrutas que tinha em vista.
- O modelo-disse a Martha -, é um tipo do género maduro. Cabelo grisalho, mas bem-parecido. Tem cerca de cinquenta anos mas, ao que consta, é uma bomba na cama.
-Está bem-disse ela.-Tenho algumas amigas que talvez gostem da imagem paternal.
-Além disso - disse eu -, um dos actores ofereceu-nos o seu estúdio na 67ª Avenida Oeste. Terei de verificar primeiro, mas, se servir, evitará que o meu apartamento fique demasiado congestionado. De qualquer modo, estes três novos garanhões duplicarão a nossa força de trabalho e, esperemos, o nosso dinheiro. Com a nova divisão do dinheiro, devemos ficar a ganhar bem... desde que tenhas amigas suficientes.
- Com respeito a isso não haverá qualquer problema - disse ela após uma pausa. - Tenho muitas amigas, e as minhas amigas têm amigas. Posso manter o teu pessoal ocupado. Está bem, vamos tentar o teu plano. Só uma coisa: quero experimentar esses três rapazes novos antes de os aceitarmos.
- O que é isso - disse eu, a rir -, a versão feminista do direito de senhor?
- Não - disse ela num tom sério. - Só quero ter a certeza de que não estamos a contratar tipos desleixados ou esquisitos.
- Os novos rapazes vão receber os seus cinquenta pelas audições?
- Claro.
- Então vou organizar as coisas para a próxima semana. Entretanto, vou verificar aquele apartamento na 68ª Avenida Oeste para ver se serve. Martha, se isto funcionar, eu acho que ganharemos ambos uns bons trocos. Deus sabe como bem preciso.
- Eu também - admitiu ela. - Tenho um filho na Academia Militar na Virginia, e está-me a custar os olhos da cara.
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- Oh? Não sabia que eras casada...
- Fui. Ele partiu para paradeiro desconhecido há muitos anos. Boa -viagem.
-Bem...-disse eu. - A nossa sociedade deve ajudar o nosso problema de fluxo de dinheiro.
Ela fez um movimento com a cabeça em direcção à porta do quarto.
- Queres selar o acordo, sócio?
- Por que não? - disse eu.
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Descobri, com surpresa, que tinha talento para administrador. Nas semanas seguintes, consegui fazer o seguinte:
Organizei audições bem sucedidas com Martha Twombly para os três recrutas. Ela foi especialmente entusiástica a respeito de Wolcott Sands, o modelo maduro.
- Uma bomba - afirmou ela.
Inspeccionei o estúdio na 68ª Avenida Oeste. Achei-o adequado, mas insisti em que fossem retiradas das paredes as páginas centrais do Playboy.
Telefonava diariamente a Martha para marcar encontros, preparar agendas para mim e para os meus cinco coortes, e utilizava os dois apartamentos para evitar demasiado movimento em qualquer deles.
Ia ao apartamento de Martha todas as quintas-feiras à noite para verificar as contas, receber a minha parte e buscar o dinheiro para os garanhões. Todas as transacções eram em dinheiro.
Pagava à minha equipa todas as sextas-feiras à noite em sobrescritos de pagamento de vencimentos comprados numa papelaria.
Observava, fascinado, o meu rendimento a aumentar regularmente. Na primeira semana de Fevereiro, eu e a minha equipa tivemos dezasseis cenas. Recebi mais de quatrocentos dólares, incluindo gorjetas. Comprei uma nova gabardina na Burberrys e um casaco desportivo de camurça na Paul Stuart.
Também levei Jenny Tolliver a jantar no Four Seasons. Ela ficou espantada.
- Peter, onde é que foste buscar o dinheiro?
- Eu não te disse? - disse eu desembaraçadamente. - Fiz a locução de um documentário imbecil que fizeram sobre o Bronx Sul. O raio do filme talvez nunca seja transmitido, mas o produtor quer que eu faça outros trabalhos.
- Oh, Peter, que estupendo!
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Eu pensava que, com a adição de novos corpos, eu não teria que fazer cenas. Então, poderia dedicar-me apenas à gestão, ganhar bem e ser fiel a Jenny.
Se quisesse...
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A mulher chamava-se Betsy e, assim que entrou no meu apartamento, começou:
- Espero que não penses que eu faço isto habitualmente, porque não faço. Eu não estaria aqui se uma amiga minha não tivesse insistido comigo. Mas certamente que não preciso de pagar a um homem para ir para a cama comigo, garanto-te. Não só tenho um casamento feliz e estou muito satisfeita com a parte sexual, como, além do meu marido, há outros homens que, digamos, não me acham desinteressante.
- Não queres tirar o chapéu e o casaco? - perguntei.
Ela tinha o cabelo mais curto que eu já vira numa mulher. Era um cabelo à escovinha cor de trigo; via-se um couro cabeludo cor-de-rosa. As sobrancelhas tinham sido rapadas, depois desenhadas em arcos finos.
- Mas depois parece que toda a gente anda a fazer isto, por isso pensei, por que não? Todas as minhas amigas me dizem: "Betsy não tem medo de tentar nada", e é verdade. Se te contasse algumas das coisas que já fiz, ficarias espantado. Mas eu acho que faz parte da vida e, se uma pessoa...
- Queres beber alguma coisa? - perguntei. - Vinho branco, Vodka?
- Não, obrigada. E, temos de admitir, é uma experiência nova Com uma pessoa completamente desconhecida. Nunca tive medo de tentar experiências novas, embora algumas possam ser mais perigosas que...
Eu estava a começar a ficar entediado com a conversa, por isso conduzi-a suavemente até ao quarto, na esperança de que, ao ver a cama, a sua diarreia verbal parasse ou, pelo menos, abrandasse. Mas isso não aconteceu.
-Eu acho que a coisa mais importante é a absoluta e completa honestidade para com nós próprios, não achas? Conhecer exactamente o espaço que ocupamos e a nossa própria realidade. Temos de conhecer o nosso próprio ego, não é verdade, para nos conhecermos totalmente. A resposta é interioridade, não exterioridade, e só quando
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procuramos no cosmo interior que está dentro de cada um de nós é que conseguimos obter alguma unidade.
Desesperado, comecei a despi-la, desabotoando, desapertando colchetes, abrindo fechos. Ela era um manequim e deixou-me fazer o que quis.
-O ser - prosseguiu ela. - Todos nós procuramos o ser que está dentro de nós, não é verdade? É isso que é a vida, penso, e apenas nessa busca podemos... arranjas-me um copo de água, por favor? Com gelo. Muito gelo e muito pouca água.
Quando voltei com o copo, ela estava deitada na cama, em cima do cobertor. Tinha os braços levantados, as mãos cruzadas por detrás da cabeça.
Eu nunca tinha visto uma mulher tão nua. Axilas, pernas e os pêlos púbicos rapados. Era lisa como um cubo de gelo.
- Queres beber? - perguntei, oferecendo-lhe o copo. Despi-me rapidamente. Quando voltei para junto dela, ela tinha
tirado um cubo de gelo do copo e estava a esfregá-lo na testa, nas costas, etc.
-Sentes-te bem?-disse eu, ansiosamente. - Não vais desmaiar, pois não?
- Faz tu - disse ela, estendendo o copo na minha direcção. Peguei no copo, pesquei outro cubo de gelo, comecei a movê-lo por cima das suas sobrancelhas.
- Mais abaixo - disse ela.
Depois percebi. Fiz o que ela me pediu. A sua pele sem pêlos ficou a luzir como um película de gelo derretido. Fechou os olhos.
- Por toda a parte - disse ela com uma voz ofegante.
Era isso que ela queria. Era tudo o que ela queria. A pele ficou vermelha, a respiração mais rápida. Gastei os cubos todos e fui à cozinha buscar mais.
Mais tarde, trouxe-lhe uma toalha para se secar. Vesti-me, perguntando a mim próprio por que motivo me despira, afinal.
- Eu acho - disse ela, vestindo a saia - que apenas se explorarmos os nossos sentimentos e desejos mais recônditos podemos atingir, em alguma medida, a serenidade da alma. Mas temos de descer, descer, descer, até ao ego essencial, explorar as trevas e, através do conhecimento de nós próprios, trazê-las para a luz.
Ela ainda estava a falar quando a meti num táxi. Não me deu gorjeta, mas suponho que essa experiência não tinha nada a ver com a unidade cósmica.
Sorri para mim próprio e voltei para o apartamento. Havia um homem bem vestido no átrio, a estudar as caixas do correio. Ergueu os olhos quando entrei e sorriu.
- Mr. Peter Scuro? - perguntou.
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- Sim. Quem é o senhor?
O homem tirou uma carteira do bolso interior do casaco e abriu-a de modo a mostrar um emblema dourado e um bilhete de identidade.
- Detective Luke Futter - disse ele, ainda a sorrir. - Posso falar consigo um momento?
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Peguei-lhe no chapéu e no casaco, depois indiquei-lhe a cadeira melhor. Mas o detective empoleirou-se na beira do sofá.
- Importa-se que fume? - perguntou.
- Absolutamente nada. Esteja à vontade.
Era um homem alto com um corpo flexível e um andar desengonçado. Reparei nas unhas arranjadas e no cabelo louro que caía em ondas precisas, como se tivesse sido ondulado. A sua pele era de um cor-de-rosa surpreendente, os olhos de um azul-claro duro. Seria belo se não fossem os lábios finos e um sorriso ardiloso. Os ombros eram bastante largos, o estômago liso. Não era um homem brando.
- É o primeiro detective que vejo com um fato italiano-disse eu. O visitante baixou os olhos, alisou as rugas de um joelho.
- Giorgio Armani - disse ele. - Gosta?
- Muito. Com a sua altura, devia experimentar usar um casaco trespassado, com a lapela até ao botão inferior. Bebe alguma coisa?
- Não, nada, obrigado. - O detective olhou em volta do apartamento cheio de tralha. - Não parece muito um antro de vício.
Soltei uma gargalhada.
- Era disso que estava à espera? Futter acenou a mão no ar.
- Sabe como é. Recebemos uma queixa; temos de verificar.
- Isso deve ter sido Mrs. Fultz, a doce velhinha que vive aqui ao lado.
- Não interessa quem tenha sido - disse o detective. - De qualquer modo, eu recebi-a, isso foi há algumas semanas, e vim até cá dar uma vista de olhos. Para lhe dizer a verdade, não pensei que fosse nada.
- Folgo em ouvi-lo.
O sorriso de Flutter alargou-se sem alegria.
- Mas tenho de admitir - prosseguiu - que fiquei interessado! Não lhe vou dizer que estive estacionado no outro lado da rua oito horas por dia; não o fiz. Mas, sempre que tinha tempo livre, parava e observava. Não conseguia descobrir o que era.
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-Conseguia descobrir o quê?
-Bem, havia o senhor e o outro tipo que mora aqui. Arthur
Renders, não é? Mas depois havia também um escurinho a utilizar o apartamento, e dois outros tipos pelo menos, a entrar e sair. E, depois, claro, havia as mulheres. Casacos de vison e tudo isso. Eles ficavam, digamos, uma hora, e depois o tipo que estava no apartamento saía com elas e metia-as num táxi.
-É simples - disse eu. - Esses outros homens são amigos meus e de Enders. Emprestamo-lhes o apartamento de vez em quando para terem um lugar privado onde se possam encontrar com as namoradas.
- Claro. Mas só por uma hora, uh? Encolhi os ombros.
- O tempo que quiserem. Eu não controlo isso.
- Sabe o que eu pensei que fosse? - disse o detective, acendendo outro cigarro na beata do primeiro. -Vai-se rir. Pensei que fosse droga. Pensei que as senhoras viessem cá para apanharem uma dose, ou para cheirarem um pouco. Pensei que o senhor e os seus amigos andassem a vender droga. Mas depois disse para os meus botões, que vendedor de droga acompanha os clientes a um táxi? E as mulheres andavam direitas e com um passo firme, no fim da sua hora. E o senhor não parecia nada um traficante.
- Obrigado - disse eu num tom sardónico.
- Por isso, fiquei a saber que não era droga. Só podia ser uma outra coisa a não ser que vocês estivessem a dar lições de bridge.
- Está a acusar-me de alguma coisa? - disse eu, num tom duro. O detective levantou as palmas das mãos.
- Oh, não estou a acusar ninguém de nada. Estamos só a ter uma pequena conversa amigável... certo?
- É o senhor quem o diz.
- Vocês têm aqui um bom negócio - disse Futter, estudando a ponta do cigarro a arder. - Limpo, sossegado, educado. Entram e saem numa hora, sem confusão. Calculo que vocês estejam a fazer umas duas centenas por semana. Talvez mais. Livres de impostos. Na quinta-feira passada, isto parecia a Estação Central. Lindo.
- Escute - disse eu, começando a ferver. - Eu não estou a fazer nada de ilegal.
- Não se excite, rapaz - disse o detective suavemente. - Tudo é ilegal se eu disser que é. Como explorar o que eles chamam uma casa imoral. Vagabundagem para efeitos de prostituição. Coisas dessas. Eu sei que é ridículo, mas está nos livros, à minha espera, se eu quiser utilizá-las.
- Continue.
O detective olhou-me atentamente.
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- Você é arrogante, não é? Vamos os dois dar um passeio, está bem?
- Estou preso? Luke Futter riu-se. -Não. Eu gosto de conversar ao ar livre e é difícil como o diabo pôr o Central Park sob escuta.
Pusemos os chapéus e vestimos os casacos.
-Gosto da sua gabardina-disse o detective. - É uma Burberry não é?
- Exactamente. -Eu gostava de comprar uma igual, mas, se fosse trabalhar de gabardina, riam-se de mim.
Sentámo-nos num banco do Central Park e observámos os loucos a passarem, trôpegos, falando consigo próprios.
- Há maneiras de tratar do assunto - disse Futter num tom casual. - Posso informar que está a ser investigado e, se a velhota, voltar a telefonar, posso dizer-lhe o mesmo. Ou posso dizer que investiguei e que não há provas suficientes para levantar um processo. O que eu quero dizer é que posso abafar o caso, enterrá-lo, perdê-lo. E posso fazer as coisas de modo a ninguém mais vir meter o nariz.
Suspirei.
- Quanto? - perguntei.
- Estava a ver que nunca mais perguntava - disse Futter, sorrindo. - Só cem. Por mês.
Fiquei silencioso por um momento.
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- Exactamente.
-Protecção garantida?
-Não há garantia. Mas farei tudo o que puder.
-Não lhe posso dar já uma resposta-disse eu. - Há outras pessoas envolvidas.
-Claro. Leve o tempo que for preciso. Que tal eu passar pelo seu apartamento na sexta-feira à noite?
- Está bem. Nessa altura já terei uma resposta para lhe dar.
- O detective pôs-se de pé, endireitando o sobretudo preto, com colarinho de veludo.
- Oiça, onde é que arranjou essa boina? Tem muita classe.
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E se não pagar? - perguntei, finalmente. - O que acontece? Prisão?
- É possível - disse o detective, acenando com a cabeça. - Detenção por imoralidade. Nunca poderia ser provada. Mas seria, ah, um contratempo. Você compreende, tirar fotografias e impressões digitais, advogados, fiança, publicidade, e toda essa merda. Talvez se fizer uma chamada. Serve-te de uma bebida, se fizéssemos uma rusga enquanto uma mulher estivesse lá dentro.
Ela dirigiu-se ao quarto e fechou a porta. Olhei para a garrafa de **61
- Filho da mãe! - disse Martha Twombly num tom amargo. Ela andava de um lado para o outro, a fumar um cigarro, estalando os lábios e soprando o fumo em baforadas iradas, fazendo uma cena à Bette Davis.
- Tens a certeza de que é um detective? - perguntou ela.
- Eu vi o emblema e o bilhete de identidade dele. Pareciam verdadeiros.
- Ele teve uma atitude dura?
- Nem por isso - admiti. - Na verdade, um tanto educado. Mas é um filho da mãe frio. Martha, até agora, tem corrido tudo de vento em popa. Mas este tipo fez-me sentir como se fosse lixo.
- Conheço o género - disse ela num tom carrancudo. - Vou fa- **61
- Isso é muito simpático - disse eu.
- De facto - disse Futter -, podíamos acabar consigo de um modo muito mais fácil. Bastava estacionar um automóvel ocupado à porta do seu apartamento vinte e quatro horas por dia. Acho que as suas clientes não iriam gostar muito.
- Não, não iriam.
- Bem - disse o detective -, parece-me que as suas opções são limitadas. Pode arriscar e esperar que tudo corra pelo melhor. Pode acabar com o negócio voluntariamente. Pode mudar-se para um novo local. Eu encontrá-lo-ia, claro. Ou pode mudar-se para outra cidade e montar novo negócio.
- Ou posso pagar-lhe cem por mês.
O encontro com Futter tinha-me deprimido. Tinha-me feito sentir impuro.
Martha saiu do quarto cerca de cinco minutos depois.
- Telefonei a um advogado meu amigo que tem experiência neste tipo de coisas. Ele vai verificar algumas fontes de informação e telefona-me daqui a uma hora. Entretanto, façamos a nossa contabilidade.
Verificámos as contas da semana. O rendimento tinha voltado a subir. A minha parte era quase de 600 dólares, e Martha tinha feito 450 dólares. O nosso melhor trabalhador era, surpreendentemente, o cinquentão Wolcott Sands, que tinha feito cinco cenas.
- Eu disse-te que ele era uma bomba-disse Martha. As raparigas
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adoram-no. Peter, se continuarmos com o negócio, podes arranjar mais rapazes?
- Alguma preferência?
- Talvez outro negro. E, oh, não sei, uma coisa diferente. Um oriental? Alguém com um tipo rude, de camionista?
- Achas que as tuas amigas andam à procura de algo diferente - Depois soltei uma gargalhada.-Essa foi uma pergunta estúpida. Eu sei que estão. - Contei-lhe sobre Betsy e os cubos de gelo.
Martha sorriu-me de um modo estranho.
- Peter, eu gosto de ti, e tenho confiança em ti. Bem, quando eu tinha metade da idade que tenho agora, passei três anos numa casa de Chicago. Compreendes? E se achas que as mulheres têm umas ideias esquisitas, devias ver o que os homens imaginam. Fazem as mulheres parecer umas santinhas.
- Acredito - disse eu.
- O sexo é uma coisa maluca. Há manuais e livros de instruções, e depois há o que, de facto, acontece. Pergunta a qualquer puta; ela dir-te-á.
- São tudo fantasias. -A maior parte - concordou Martha. - Lembro-me de um tipo que vinha todas as semanas e contratava quatro raparigas que...
Ela não tinha ainda terminado a sua história quando o telefone tocou e ela correu para o quarto, fechando a porta atrás de si. Reapareceu alguns minutos depois.
- Futter é legítimo - informou ela. - Trabalha numa esquadra, mas é membro de uma brigada especial. Dos costumes, principalmente, ou o que quer que lhe chamam agora. De qualquer modo, o meu amigo diz que a melhor coisa a fazer, de momento, é pagar-lhe, mas que ele provavelmente vai subir a parada à medida que nos expandirmos.
- Está bem - disse eu, suspirando. - Os cem de Futter sairão metade da minha parte e metade da tua. Está bem assim?
- Claro.
-Mas talvez devêssemos transferir mais umas cenas para o apartamento da 68ª Avenida Oeste. Não sei se Futter já o conhece. Se ele vir o meu apartamento com mais movimento, vai querer uma percentagem maior.
- Bem pensado - disse Martha. - Fala com o rapaz que aluga o apartamento. Talvez possamos deixá-lo viver lá sem pagar renda se o utilizarmos durante o dia.
- Ele diz que o porteiro do prédio começou a fazer perguntas.
- Então dá ao porteiro vinte por mês.
- Está bem. Eu tomo conta disso. Mais alguma coisa?
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- Sim - disse ela. - Tenho uma amiga que quer dois rapazes nUma cena. Paga trezentos.
- Ambos brancos? - perguntei. - Ou baunilha e chocolate?
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O encontro com o detective Luke Futter tinha-me feito tomar consciência da maneira casual como eu estava a conduzir o meu empreendimento. Agora, percebi que era mais que uma diversão lucrativa; era um negócio que merecia ser tratado com respeito.
Eu costumava registar as minhas contas numa pequena agenda diária. Numa página, por exemplo, podia ter anotado: "Arthur, meio-dia, 75.ê Av., Jean" ou "King, 15.00,68.s Av., Harriet." Agora vi que uns apontamentos assim poderiam, talvez, de futuro, ser perigosos.
Por isso, arranjei um código simples: A para mim, B para Enders, C para Hayes, e assim por diante. O meu apartamento era 1, o da 68.â Avenida era 2. Os nomes das mulheres nunca eram apontados, e os encontros eram anotados em código como B-12-1 ou C-3-2. No fim de cada semana, depois do acerto de contas, todas as provas escritas eram destruídas.
Outro problema era o que fazer com o meu dinheiro. Eu gastava à vontade, claro. A maior parte, para reabastecer o meu guarda-roupa. E eu e Arthur tínhamos agora uma empregada de limpeza que vinha duas vezes por semana tornar o nosso apartamento um pouco mais apresentável.
Mesmo assim, o meu dinheiro acumulava-se. Eu tinha uma conta de poupança minúscula num banco da Avenida Columbus, mas não tinha qualquer desejo de fazer depósitos que poderia, mais tarde, ter de explicar às Finanças. O mesmo se aplicava a abrir uma conta corrente ou a fazer investimentos. Não queria nada escrito em papel.
Acabei por alugar um cofre num banco e comecei a guardar lá o dinheiro que sobrava. Não era, eu sabia, uma solução perfeita, mas era melhor que andar com grandes quantias de dinheiro ou escondê-las no apartamento.
Um terceiro problema derivava de ter de explicar a minha inesperada afluência a Jenny Tolliver. A resposta óbvia era, claro, continuar a fazer de actor pobre, desempregado.
Mas parecia mesquinho não lhe permitir que partilhasse da minha boa sorte. Por isso, limitei-me a mentir, contando com o meu encanto e bom humor para a convencer que a minha prosperidade era ganha honestamente.
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Insisti em ir de táxi para o restaurante.
- Oh, Peter - disse Jenny num tom de censura -, contigo é chapa ganha, chapa gasta.
Soltei uma enorme gargalhada, mas obviamente que ela não compreendeu o motivo do meu riso.
Eu tinha feito uma reserva no Gian Marino, um confortável restaurante italiano na 58ª Avenida Leste. Mandei vir o jantar com modos secos e autoritários: um copo de Soave para começar, uma travessa de pasta aVolio para os dois, uma enorme lagosta com molhl diabo, zuchinni frito aos palitos, salada de arugula. Uma garrafa grande de Valpocinella e um Galliano com café para terminar.
- Meu Deus! - disse Jenny, num tom nervoso. - Tens dinheiro para pagar tudo isto?
- Não - disse eu, tocando-lhe meigamente no rosto. - Vamos ter de ficar a lavar pratos.
Depois, de novo de táxi para a Times Square, onde nos sentámos na oitava fila, ao centro, mesmo quando a cortina subia numa reposição de The Iceman Cometh.
Eu tinha estado brincalhão durante o jantar, rindo e dizendo piadas, encantando o empregado de mesa com a minha imitação de conversa italiana com segundo sentido.
E no táxi a caminho do teatro, cantei cantigas de Gilbert e Sullivan com uma vivacidade que até o motorista aplaudiu.
Mas, à medida que The Iceman Cometh se desenrolava no palco o meu estado de espírito foi-se tornando sombrio. O actor que desempenhava o papel de Hickey não era muito mais velho que eu e dava ao papel uma suave vulnerabilidade, e, no fim, uma tal intensidade que emocionou os espectadores e os deixou sem fala, para depois se porem de pé, a aplaudir freneticamente.
- Vamo-nos embora daqui - disse eu gravemente. Recusei-me a ir para casa e insisti em ir ao Blotto tomar uma bebida. Não estava lá ninguém, por isso sentámo-nos no bar e mandámos vir dois brandes.
Bebi como um louco: um, dois, três - assim mesmo. Jenny, com a mão no meu braço, tentou acalmar-me, mas eu estava frenético e recusava-me a controlar-me.
Rugi, gritei, cantei disparates, insisti em oferecer bebidas a 65
estranhos e só concordei em me ir embora depois de cair do banco e de me espalhar no chão juncado de lixo.
Ela queria levar-me de volta para o meu apartamento, que ficava apenas a um bloco de distância. Mas insisti em acompanhá-la a casa e conseguimos finalmente que um táxi parasse para nos levar.
No apartamento dela, atirei dinheiro ao motorista de táxi e cambaleei até ao átrio, à frente dela. Lá em cima, pedi mais brande e bebi imoderadamente sem tirar o chapéu nem o casaco.
Jenny ficou a ver-me, com o rosto a reflectir preocupação.
-Peter? - disse ela. - O que é?
-A peça desta noite - disse eu numa voz que era um murmúrio.
-O tipo que fazia o papel de Hickey. Eu era capaz... eu podia....
Depois desatei a chorar.
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King Hayes recrutou outro negro, um jovem dançarino mestiço de um grupo de Harlem. Tinha o corpo de um jogador de basquetebol e usava o cabelo entrançado. Martha Twombly fez-lhe uma audição e aprovou-o.
Ela não manifestou grande entusiasmo a respeito do oriental, um encenador teatral que, informou ela, tinha uma perturbadora propensão para desatar a rir durante o exercício.
Depois, através de Wolcott Sands, entrei em contacto com um indiano. Era pequeno, enérgico e da cor demeerschaum. Martha comentou a sua sinuosidade.
- Só tem um osso no corpo - disse ela -, e é um bom osso. Foi mais difícil encontrar o camionista. Entrevistei alguns levantadores de pesos e peritos de karaté, mas faltavam-lhes as proporções exactas de educação e força física bruta.
Finalmente, telefonei ao meu agente, disse-lhe que me tinha inscrito numa workshop de leitura de peças no West Side, e que estávamos à procura de alguém para desempenhar o papel de Stanley Kowalski em Um Eléctrico Chamado Desejo.
Tenho um miúdo chamado Seth Hawkins - disse Hoffheimer.
É de Amarillo e, com aquele sotaque, nunca há-de fazer de Hamlet. Mas é grande, musculoso e bonito. Talvez consiga fazer de Kowalski. Ele tem uma mania do teatro tão grande, que é capaz de tentar qualquer coisa.
- Telefona-lhe, está bem, Sol? Se ele estiver interessado, dá-lhe o meu número, que eu organizo um encontro.
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Reconheci Seth Hawkins assim que ele entrou no Losers Place. Fiz-lhe sinal que viesse para a minha mesa e descobri que o rapaz tinha o sotaque do Texas mais cerrado que jamais ouvira.
- Uh! - disse Seth. - Estou seco.
Bebemos cerveja, enquanto Hawkins me contou que frequentara uma Faculdade de Administração e Gestão, planeando ajudar no negócio do papá depois de acabar o curso. Mas, no segundo ano, uma namorada tinha-o convencido a entrar para um pequeno grupo teatral. Ele tinha desempenhado um pequeno papel e apaixonara-se totalmente pelo teatro. O papá só o sustentaria em Nova Iorque durante dois anos, e só lhe faltavam cinco meses.
- É tudo tão caro - queixou-se Hawkins. - Tenho tido aulas de dicção para me livrar deste sotaque. Sabe quanto tenho gasto com isso?
- Acha que lhe tem feito algum bem?
-Meeerda, não!-disse o rapaz, num tom acalorado. - Acha que fez?
- Meeerda, não! Hawkins sorriu.
-Bem, de qualquer modo, você é sincero. Escute, o que é esta coisa do Kowalski de que falou a Sol? Eu sei essa peça de cor. Vi o filme três vezes.
-Seth, eu não quero insultar-te, mas tenho de ser sincero; eu não acho que possas desempenhar esse papel. É o sotaque.
- É - disse o rapaz com um suspiro. - Já ouvi isso antes. Muitas, muitas vezes.
- Já pensaste em trabalhar como modelo?
- Não, isso não. A única coisa que quero fazer é ser actor. Tu és modelo?
- Não exactamente.
-Então tens emprego? Não quero meter o nariz onde não sou chamado, mas não consigo imaginar como é que tantos actores desempregados em Nova Iorque conseguem sobreviver.
- Eu descobri uma maneira - disse eu, com um ar sério. - Não é bonito e não me sinto particularmente orgulhoso dele. Mas só ocupa três ou quatro horas por semana e paga o suficiente para ir vivendo.
- E? - disse Hawkins, interessado. - Como fazes isso? Então, disse-lhe.
-Não-disse ele, olhando-me com ar espantado.-Eu nunca seria capaz de fazer uma coisa dessas.
- Depende do quanto quiseres ser actor - disse-lhe eu num tom severo. -A tua grande oportunidade pode estar mesmo ao virar da esquina. É uma questão de tempo. Se conseguirmos aguentar, a oportunidade tem de surgir.
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-Suponho que tens razão.
-Ser actor tem de ser a coisa mais importante da vida. A única
coisa. Se não nos sacrificarmos para conseguirmos o que queremos, então, não chegamos lá.
-É possível.
- Se quiseres tentar-disse eu -, posso organizar-te um encontro com uma dessas mulheres. Cinquenta dólares por uma hora. Dinheiro fácil.
- Bem... Suponho que posso experimentar. Uma vez.
Martha disse que Seth Hawkins servia muito bem.
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Eu mandava todos os meus rapazes acompanhar as clientes a um táxi depois da cena, acentuando que não custava nada e criava boa vontade.
Também insistia em que fosse oferecida uma bebida a todas as clientes. De preferência, vinho branco.
- Descontrai-as - disse eu. - Fá-las pensar que estamos interessados no seu conforto. Produz melhores gorjetas; vocês vão ver. Mas nada de drogas. Nem sequer um charro.
À medida que o negócio aumentava e prosperava, tiveram de ser feitas novas regras. Nada de cenas antes do meio-dia nem depois da meia-noite. Se uma mulher queria uma "dupla" (dois rapazes), o preço subia para quatrocentos dólares, mas eram permitidas três horas.
Uma mulher pagou mil por uma múltipla: quatro homens numa cena que durou toda a tarde. Ela foi-se embora muito fresca. Os quatro rapazes ficaram exaustos.
Algumas mulheres tornaram-se clientes regulares e, embora a maior parte aceitasse quem estivesse disponível, algumas insistiam sempre no mesmo rapaz. Estas clientes eram chamadas "esposas".
A maior parte dos homens tinha pelo menos uma esposa. King ayes tinha duas, e Woolcott Sands tinha três. Seth Hawkins, da maneira que ia, em breve só teria esposas, e as clientes teriam de marcar os seus serviços com dias de antecedência.
Contando comigo, eu tinha agora nove garanhões activos. Na última Semana de Março, ganhei oitocentos e cinquenta e cinco dólares. Martha Twombly recebeu seiscentos e setenta e cinco dólares. Ela disse que estava a começar a ter muitas clientes enviadas por outras.
Clientes de ocasião", chamava-lhes ela.
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-Vamos precisar de mais rapazes, Peter - avisou ela. - E outra coisa, certifica-te de que os rapazes se mantêm limpos.
- Estás a falar em doenças venéreas? - perguntei. - Que Deus não permita que uma das nossas clientes apanhe gonorreia. Pergunta a esse advogado teu amigo. Podemos ser processados por negligência?
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O meu rendimento tinha aumentado bastante, de modo que eu podia facilmente dedicar todo o meu tempo a organizar e administrar, Mas continuei a aceitar duas ou três cenas por semana. Disse a mim próprio que o dinheiro era tão fácil, que seria tolice desistir dele.
A mulher chamava-se Amy. A princípio, pensei que ela tinha pouco mais de trinta anos, com cabelo dourado até ao meio das costas. Depois, vi que o ouro tinha laivos de cinzento-prateado e que havia rugas finas aos cantos dos olhos e da boca. Ela tinha, calculei, pelo menos trinta anos. Talvez mais. Tinha uma aliança de casamento.
Ajudei-a a tirar o casaco antiquado de caraculo. Por baixo, ela tinha um vestido de flanela, às flores, com folhos de renda no pescoço e na bainha. Feio. Demasiado juvenil para ela.
Trouxe-lhe um copo de vinho branco. Ergueu-o até ao nível dos olhos e olhou em redor do apartamento através do líquido.
- Faz que o mundo inteiro brilhe - disse ela.
- És poetiza - disse eu. Ela esboçou um pequeno sorriso.
- Sou - disse ela. - Poetiza. Dois livros publicados.
- Isso é maravilhoso! É um bom modo de vida?
- Para mim, é. É a única maneira que eu quero viver. No quarto, ela pediu-me que me despisse primeiro. Despi-me e
deitei-me nu em cima da cama. Ela deitou-se a meu lado, colocou a palma de uma das mãos no meu peito nu e olhou para mim.
- Que belo - disse ela.
- Não te vais despir?
Inclinou-se sobre mim, tão perto que o seu cabelo comprido me to cou o rosto.
- Há uma coisa que te quero dizer - disse ela. - Só tenho um seio. Isso causar-te-á repugnância?
- Nada a teu respeito me poderia causar repugnância. Ela tocou-me levemente nos lábios com o indicador.
- És um homem muito querido.
O corpo dela era pálido, macio: uma sombra branca. Beijei a
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cicatriz onde o seio tinha estado. Ela susteve a respiração com um som que era meio-soluço, meio-gargalhada.
- Doce - disse ela. - Tão doce.
Ela não quis que eu a penetrasse; em vez disso, devorou-me, com pequenos balidos de prazer. Era lenta e experiente, e perguntei a mim próprio onde teria ela adquirido tamanha perícia.
Mais tarde, pedi-lhe que recitasse um dos seus poemas, e ela concordou prontamente. Não consegui compreendê-lo, mas gostei do som. As palavras eram todas sinos e tinidos.
-Foi óptimo - disse-lhe eu.
Ela rodou e beijou-me com força, apertando-me contra o seu peito ferido, cheirando levemente a alfazema.
Depois de se vestir, ela começou a tirar a aliança do dedo. Quando a tirou, entregou-ma.
- Aqui - disse ela. - Toma. Fiquei horrorizado.
- Não posso.
-Por favor. Quero que fiques com ela. Fui uma tola em tê-la conservado.
Não compreendi o que ela queria dizer, e disse-lhe. Mas ela não respondeu às minhas perguntas.
- Não tens de a usar, claro - disse ela com um pequeno sorriso. - Mas fica com ela. Uma recordação.
Acompanhei-a a um táxi na Columbus Avenue. Quando voltei a casa, encontrei Luke Futter encostado ao guarda-lamas de um automóvel estacionado.
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O detective tinha vestido um casaco de lã verde até ao joelho, abotoado com botões de madeira. Empoleirado na cabeça tinha um chapéu tirolês branco com o que parecia ser um pincel da barba preso à aba.
- Tem Lederhosen1 vestidas? - perguntei.
Futter olhou para mim, sem compreender.
Voltei o rosto para o céu de aço. Caía uma chuva miúda, direita como linhas feitas com uma régua. O ar estava frio, e até o rosto cor-de-rosa do detective parecia cinzento naquela luz de ostras.
1. Calções de cabedal, presos por suspensórios, usados no Tirol e na Bavária. (N. da T.)
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-Há um bar simpático na Columbus-disse eu. OBlotto. Quente e seco.
- Um pequeno passeio - insistiu Futter. - Não vai demorar muito.
Suspirei e dirigimo-nos para o Central Park, de cabeça baixa. - Vocês têm outro sítio na 68ª Oeste - disse o detective. - Não me disse.
- Exactamente; não lhe disse. Como é que descobriu?
- Eu gosto de passar por cá de vez em quando. Só para manter o meu investimento debaixo de olho, compreende. O seu companheiro, aquele tipo Enders, sai a correr como um gato escaldado. Está com pressa de chegar a qualquer lado. Por isso, segui-o. Só por graça sabe. Ele acaba neste sítio na 68ª Avenida, entra imediatamente! alguns minutos depois, surpresa das surpresas, aparece uma dal bimbas de casaco de peles. Que diabo, você tem uma cadeia de sítios, como o MacDonalds?
- Não. Só os dois.
- Está bem. Eu não quero descobrir que me anda a enganar. Digamos, cem por mês por cada apartamento.
- Está bem - disse eu tranquilamente. - Não estou em condições de poder discutir.
- Exactamente - disse Futter, olhando de soslaio com o seu sorriso enigmático.
Demos lentamente a volta ao quarteirão, caminhando com dificuldade. Tínhamos os ombros curvados, os punhos enfiados nos bolsos dos casacos. Acumularam-se gotas de água nos chapéus e nos ombros.
- Agora, as más notícias - disse Futter.
- Oh-oh - disse eu.
-Aquela cabra velha, a vossa vizinha. Ela ainda persiste. Foi ter com o meu chefe, e agora anda a ameaçar telefonar ao presidente da Câmara.
- Merda! - disse eu, num tom zangado.
- É. Ela disse que pertence a um desses grupos de cidadãos, ou lá o que é, e que vai lançar o advogado deles sobre vós.
- Que maravilha! É isso mesmo que preciso.
- Bem... - disse Futter, levantando a cabeça. - Eu planeei um esquema para a fazer desistir. Não há garantia, mas penso que vai funcionar.
Fiquei calado.
- Não quer saber o que é? - perguntou o detective.
- Não.
- Isso é inteligente - disse Futter. - Vai custar-lhe mais cinquenta.
-Não lhe vai fazer mal, pois não?
-Que acha?-disse o detective num tom indignado. - Eu sou algum tipo mau? Ninguém vai fazer mal a ninguém.
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E houve problemas pessoais.
Um dos actores chegava habitualmente tarde aos encontros. Infelizmente, tivemos de o despedir. Levei quase uma semana a encontrar um substituto.
Quando o dançarino mestiço partiu para uma digressão com o seu grupo, King Hayes recrutou outro amigo receptivo, um músico de jazz. Mas ele adormeceu durante a sua audição com Martha Twombly. A procura de um negro adequado prosseguiu.
O próprio King Hayes foi um problema. Ele disse-me que uma das suas "esposas" lhe queria montar um apartamento, comprar-lhe roupa e pagar-lhe duzentos dólares por semana para ter o monopólio dos seus serviços. King achou que a proposta era atraente.
Eu disse que talvez parecesse atraente, mas que King seria um tolo se colocasse todo o seu rendimento e futuro na dependência do capricho de uma mulher. Ele podia ganhar mais se tirasse partido da sua carreira actual.
Hayes reconheceu a verdade desse comentário, mas queixou-se de que estava a ser obrigado a ter cenas com algumas mulheres que lhe eram fisicamente pouco apetitosas.
Eu disse que compreendia essa queixa; era frequentemente repetida pela maior parte dos garanhões. Eu estava a fazer todos os esforços para preparar os encontros de modo a que nenhum dos rapazes ficasse com uma cliente que lhe fosse, por qualquer razão, desagradável.
Pedi a King que pensasse cuidadosamente antes de decidir tornar-se um homem sustentado por uma mulher. Ele prometeu pensar no assunto. Nas semanas seguintes, certifiquei-me de que as cenas dele fossem só com as clientes mais jovens e mais bonitas. Nunca mais o ouvi falar no assunto.
O caso de Arthur Enders foi mais complexo. Quando ele disse que queria desistir e lhe perguntei porquê, ele respondeu simplesmente.
- Não é correcto.
Perguntei-lhe se isso era um juízo moral. Ele disse finalmente que não era exactamente a moralidade do trabalho que o perturbava, era a sua - uh - ah - sordidez.
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Isto enfureceu-me. Não era tudo organizado de modo a que não houvesse qualquer troca de dinheiro entre a cliente e o garanhão a não ser que a mulher oferecesse uma prenda? E o copo de vinho e a companhia até ao táxi?
- Esta é uma operação com classe - afirmei. - É tudo feito com gosto. Além disso - insisti -, estava a ser cometido algum crime? Quem era a vítima? Quem estava a ficar magoado? E não estava aH a encontrar, neste novo empreendimento, inspiração para escrever! E o horário e o rendimento não eram perfeitos para um homem com as suas ambições artísticas?
Quando Arthur pareceu insensível a estes argumentos, fiz-lhe notar que, sem o emprego actual, ele voltaria a ficar dependente dos cheques mensais enviados pela sua família pobre.
- Durante quanto tempo vais viver à custa deles? - perguntei com crueldade.
Enders pestanejou. Depois de hesitar durante alguns momentos, concordou em continuar como membro da minha equipa até encontrar um emprego "decente".
Depois, Arthur, que considerava Jenny Tolliver a mulher mais bela e mais bem formada do mundo inteiro, perguntou-me se eu tinha revelado a Jenny o tipo de trabalho que estava a fazer.
- Eu não sei como é que consegues viver contigo próprio - disse Enders com tristeza.
- Eu não vivo comigo próprio - disse eu, rindo. - Vivo contigo.
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Reflectindo que todos os mentirosos são actores e todos os actores são mentirosos, disse a Jenny que tinha voltado a ser contratado pela Kmgs Arms.
- Não a tempo inteiro - disse eu num tom casual. - Só para substituir os empregados nos dias de folga e nas férias, etc. E vou passar a trabalhar às quintas-feiras à noite, quando estamos abertos até tarde.
A última mentira, claro, era para justificar a minha ausência durante os encontros semanais com Martha Twombly. Jenny aceitou as minhas mentiras sem duvidar, e pensei que a nossa relação nunca tinha sido mais doce, nem mais íntima.
Tive a sensação de que as minhas cenas com outras mulheres eStavam relacionadas com a minha maior ternura para com ela, maS não
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conseguia compreender de que modo nem por que motivo. Certamente que não tinha nada a ver com o prazer físico. Será que os prazeres sexuais que partilhava com Jenny eram mais ternos que os que tinha com as clientes? Para ser sincero, a diferença era pequena. Por isso, raciocinei, o que me atraía em relação a Jeny tinha de ser algo mais: uma afinidade para além da carne.
Mas, então, por que razão eu me tinha tornado mais amoroso em relação a ela desde que iniciara a minha nova carreira?
Passámos uma noite maravilhosa juntos. Um jantar no Café des Artistes, durante o qual lhe garanti que ela era mais bela do que qualquer das mulheres nos quadros das paredes, embora talvez não tão extravagante.
-E não tão jovem - lembrou-me ela.
-Eu -jurei - hei-de ver-te sempre de top e calções de ginástica.
- Maluco - disse ela a rir. - Tu devias escrever para Arthur. A propósito, como está ele?
- Loucamente apaixonado por ti. Como sempre.
-Eu sei-disse ela, baixando a vista.-Tenho de encontrar uma boa rapariga para Arthur.
- Oh... - disse eu num tom ligeiro. - Arthur safa-se bem. Fomos ao ballet no Lincoln Centre, pois, desde aquela noite dolceman Cometh, eu me recusava a ir ao teatro. Assistimos apenas a um conjunto de danças breves que tinham a intenção de ser cómicas.
- Mais embaraçoso que o humor no ballet - disse eu - só o humor na ópera.
Não ficámos até ao fim, mas abrimos caminho até à saída e fomos a pé até ao Topo do Parque. Ali, sentámo-nos junto de uma janela, bebemos vinho branco e piscámos o olho um ao outro.
Depois, de mãos dadas e sem necessidade de falar, fomos para o apartamento de Jenny.
Na cama, ela levantou o lençol, olhou para baixo e perguntou:
- Que estás a fazer aí debaixo?
- A esconder-me - disse eu.
Ela riu-se, enfiou o lençol debaixo dos braços e deixou-me à vontade.
Eu estava a esconder-me. Naquela tenda de algodão, a respirar o seu odor quente e almiscarado. Completamente envolvido nele, não queria emergir nunca. Poderia viver até ao resto dos meus dias naquele lugar escuro e secreto.
- Anda cá acima - chamou ela.
Mas eu não consegui, e nunca saberia por que motivo me ardiam os olhos. Abracei-a com desespero.
- Que estás a fazer? - disse ela. Depois: - Oh, oh, meu Deus!
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Aninhei-me, procurando calor húmido e segurança. Era difícil respirar, era difícil viver.
- Amante - disse ela.
E eu era. Procurando tornar-me indispensável, segurá-la para sempre por meios abjectos, tornar-me uma infecção da qual ela tal vez nunca recuperasse.
- Monstro! - disse ela.
Eu não queria, não conseguia parar. Era a expiação e a salvação; Se não a conquistasse, era melhor deixar de existir.
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Um "Mr. Burberry" tinha ligado para o meu serviço telefónico e deixado um número através do qual poderia ser contactado. Burberry? Luke Futter. Telefonei-lhe.
- Onde está? - perguntou ele.
- Em casa.
-Tem outro número para eu não ter de passar por esse serviço telefónico?
Dei-lhe o meu número particular que não vinha na lista.
- Deixe-se estar aí - ordenou Futter. - Eu telefono-lhe daqui a exactamente cinco minutos.
Telefonou.
- Agora estou a falar de uma cabina telefónica - disse ele.
- Está a ficar paranóico?
- Não. Apenas cuidadoso. Amanhã, quarta-feira, não esteja em casa entre o meio-dia e as três da tarde. Nem Enders, nem qualquer outra pessoa. O seu apartamento tem de estar vazio do meio-dia às três. Percebeu?
- Que se passa?
- Pensei que não queria saber.
- Não quero - disse eu apressadamente.
Tinha marcado uma cena para Enders para quarta-feira ao meio-dia. Mudei-a para o estúdio da 68ª Avenida e disse-lhe que não regressasse ao apartamento da 75ª Avenida antes das três horas. Arthur não ficou muito satisfeito, mas acedeu. Ele acedia sempre.
Eu sabia que não podia lidar tão facilmente com Sol Hoffheimer Antes de ir ao escritório dele na quarta-feira de manhã, tinha decidido contar-lhe a verdade - quase; Sol era demasiado sabido para ser enganado.
Hoffheimer e o escritório estavam mais lúgubres do que nunca.
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Ele ergueu os olhos, esperançoso, quando entrei, depois vendo que era eu afundou-se na cadeira e ocupou-se, com uma tesoura, a cortar a ponta gasta de um charuto seco. Quando lhe perguntei pela saúde da mulher, mudou de assunto.
- Vejo que estás a viver bem - disse ele num tom azedo. - Boa gabardina. Bom casaco desportivo.
-Vou-me safando - disse eu alegremente.
Tirei a minha carteira nova de pele de porco e coloquei cento e dez dólares em cima da secretária de Hoffheimer.
- Isso paga a minha dívida-disse eu.-Muito obrigada, Sol. Foi uma grande ajuda quando precisei.
Hoffheimer olhou para o dinheiro. Estendeu a mão e meteu as notas no bolso com um indicador gordo.
- Óptimo? - murmurou ele. - Não te faz diferença?
- Não.
- Dinheiro honesto? - disse Sol, olhando bem para mim.
- Ganhei-o.
- E como é que o ganhaste?
-Foi uma mulher que me deu - disse eu, enfrentando o olhar do outro homem. - Por serviços prestados.
Hoffheimer inspirou profundamente e expirou, com os lábios grossos a borborejar. Acendeu a beata curta do charuto, inclinando a cabeça para não queimar o nariz.
- Não te vou dizer como deves viver - disse ele. - Acaso estou a conseguir fazê-lo? Mas, Peter...
- Estou a ganhar o suficiente para me sustentar. Para comer em bons restaurantes e comprar roupa nova.
- Há um ditado que diz: - disse Sol: - "Ninguém consegue ver a sua própria marreca." Talvez eu, se estivesse no teu lugar, fizesse o mesmo. Foste àqueles dois lugares que eu te disse?
- Não - disse eu. - Esquece, Sol. Desisti.
-Lamento ouvir isso-disse o agente, suspirando.-Tu tens talento.
- Talento? - disse eu num tom acalorado. - Que diabo é o talento? Toda a gente tem talento. O mundo está a transbordar de talento. Mas, se não dá dinheiro, de que serve? O talento que se lixe. Nunca me serviu de nada.
- Não vou discutir contigo - disse Hoffheimer, num tom triste. Eu sei as desilusões que tens tido. Tudo o que eu posso fazer, do fundo do coração, é desejar-te sorte. Portanto, isto é o adeus?
- Isso depende de ti - disse eu.
O agente colocou a pequena beata de charuto num cinzeiro de aço inoxidável descolorido.
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- Está molhado - disse ele. - Uma porcaria gasta. Que queres dizer, depende de mim?
- Tenho recebido dinheiro de mais de uma mulher. Ela tem amigas, e as amigas têm amigas. Sol, há muitas mulheres nesta cidade com dinheiro suficiente para pagarem pelos seus prazeres.
- Então?
- Então eu recebo cinquenta por uma hora de trabalho... se é que se pode chamar trabalho. Consigo fazer três, talvez quatro cenas por semana. Livres de impostos.
- Por que me estás a dizer tudo isto?
- Estas mulheres andam sempre à procura de homens novos. Jovens, bem-parecidos, razoavelmente limpos. Eu pensei que alguns tipos da tua lista...
- Não - disse Sol Hoffheimer imediatamente.
Recostei-me na cadeira, cruzei as pernas e olhei atentamente para ele.
- Tu dizes "não" muito depressa.
- Eu não sou um chulo.
- Ninguém te está a pedir que sejas chulo. Tu mandas-me homens. E um possível trabalho de que ouviste falar; tu não sabes do que se trata. Depois, eu tento. Se eles concordarem, óptimo. A decisão é deles. Se não quiserem, o assunto morre aí. Não és tu que és o chulo, sou eu.
- Peter, Peter - disse Hoffheimer, num gemido. - Que estás a fazer?
- A fazer dinheiro. A viver. E tu também o podes fazer. Por cada um dos rapazes aceitáveis que concordar, recebes cem dólares. E eu preciso de todos os homens que me mandares.
- Deus do céu! - exclamou Hoffheimer. - Que negócio é o teu.. de encomenda por catálogo?
- Isso é uma piada? Bem, estas minhas amigas preferem essencialmente actores e modelos. E queixam-se de que os rapazes estão sempre a ir-se embora da cidade para trabalhar noutro sítio, a casar, a tornarem-se homossexuais, etc. Por isso, há sempre uma grande procura de talento novo. Podias fazer uns bons trocos.
- Não quero ter nada a ver com isso, disse o agente num tom firme. - E devias ter vergonha de o sugerir.
- Como quiseres-disse eu, encolhendo os ombros. Pus-me de pé e comecei a vestir a minha gabardina nova. - Mas pensa nisso, Sol. Tudo o que tens a fazer é mandares homens virem falar comigo.
Sol Hoffheimer disse, num tom indignado:
- Sai já do meu escritório!
Subi a Quinta Avenida a sorrir. A rejeição imediata de Hoffheimer não me desiludira. Mais tarde, quando ele tivesse tempo para pensar na
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proposta, talvez visse as vantagens. E, se não Sol, então qualquer outro agente teatral. Era a resposta ao nosso problema de oferta. Martha Twombly forneceria a procura.
Tinha chovido durante a manhã, mas agora o céu estava mais limpo; um sol fresco de Abril brilhava através das nuvens. As ruas tinham ficado limpas; um ar tinha o brilho do início da Primavera.
Andei com um passo leve. Estava a trabalhar e era generosamente recompensado. O meu futuro, embora não estivesse garantido, era, pelo menos, promissor. O meu lugar era nesta avenida. Estava finalmente a ganhar um lugar nesta sociedade afluente.
Num impulso, entrei na loja de especialidades culinárias por que tinha passado em tempos mais pobres. Comprei uma embalagem pequena de caviar Beluga, um frasco de trufas pretas, uma lata de foie gras. O preço foi um choque, mas como se pode atribuir um preço a um desejo? Apanhei um táxi para casa, rindo.
Havia um carro da polícia estacionado em frente da minha casa. Um grupo de vizinhos e transeuntes tinha-se aglomerado no passeio, a olhar para ela. Sammy, o porteiro do prédio, estava encostado ao guarda-lamas do carro.
- Que aconteceu, Sammy? - perguntei.
- Mrs. Schultz, a velhota, foi assaltada - disse o porteiro.
- Meu Deus do céu! Fizeram-lhe mal?
-Não. Graças a Deus, ela não estava em casa. Como sabe, ela vai às compras todos os dias por volta do meio-dia, e foi nessa altura que a assaltaram. Abriram a porta com um pé de cabra e deram cabo do apartamento. Partiram os pratos e os copos todos, rasgaram o sofá e as cadeiras. Coisas assim. Até rasgaram o colchão. Talvez pensassem que ela tinha dinheiro escondido.
- Talvez. Que é que levaram... ela disse?
- Apenas umas jóias velhas. O rádio. Tudo sem valor. Acho que ficaram zangados; cagaram-lhe em cima do tapete da sala. A velhota ficou histérica.
Fui para casa. Olhei para o apartamento de Mrs. Schultz através da porta aberta, mas afastei rapidamente o olhar da desolação. Entrei na minha cozinha e guardei a comida que comprara.
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Seguíamos pelo Central Park Oeste, com os casacos desabotoados a esvoaçarem na brisa, os rostos voltados para um sol brando.
- O raio da velha é teimosa - disse eu. - Não muda de casa. Pôs fechaduras novas na porta.
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- Paciência - aconselhou o detective Futter. - Roma não se fez num dia.
- E agora ela arranjou um cão de guarda - prossegui. - Um terrier pequeno. Passa a vida a ladrar.
- Oh? - disse Futter. - Bem, vamos tentar de novo.
- Pensa que isto vai mesmo dar resultado? - perguntei. O detective fez um dos seus sorrisos matreiros.
- Sempre funcionou - disse ele.
E funcionou. O apartamento de Mrs. Fultz foi novamente assaltado, uma semana depois do primeiro assalto. Nada foi roubado, nem destruído, mas o pequeno fox terrier foi encontrado estendido no oleado da cozinha, estripado.
Foi isso que a decidiu. Mrs. Fultz anunciou, chorosa, a sua intenção de se ir embora, para ir viver com a filha e o genro em Ben-sonhurst.
Assim que soube da decisão dela, fui ter com Sammy, o porteiro. As queixas de Enders estavam a tornar-se insuportáveis, e esta oportunidade parecia ser a solução.
- Sammy-disse eu. - Eu e Enders decidimos que queremos viver em apartamentos separados. Que tal alugares a casa de Mrs. Fultz a Arthur? Ele tem sempre a renda em dia. É sossegado.
- Não sei... - disse Sammy, olhando por cima da minha cabeça. - Passaram por cá umas pessoas, prometeram-me cinquenta se eu conseguisse arranjar-lhes um apartamento.
-As promessas não dão de comer a ninguém - disse eu, tirando a carteira do bolso. - Aqui estão cinquenta, quer ganhemos, perdamos ou empatemos. Se conseguirmos o apartamento, há mais cinquenta para ti.
Conseguimos o apartamento. Arthur aceitou, satisfeito, o novo arranjo, e mudou as suas coisas para o apartamento ao lado. Ele acordou que a sua casa poderia ser utilizada para cenas, desde que concordasse previamente com o horário. Prometi-lhe dez dólares por cena pela utilização da casa.
Não disse ao detective Luke Futter que tínhamos acrescentado um terceiro local à minha cadeia.
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Martha Twombly aprovou as decisões que eu tomara, mas estava preocupada com um possível problema de liquidez.
- Não estamos a crescer demasiado depressa? - perguntou.
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Estávamos na nossa reunião de negócios usual de quinta-feira à noite. Estávamos sentados lado a lado a uma secretária com tampo de cabedal, a verificar as contas e a beber café. Os elefantes de tromba erguida observavam-nos.
-Poderemos ter uma falta temporária - reconheci -, mas apenas até conseguirmos aumentar a produção. Temos tido uma média de vinte cinco cenas por semana. Digamos cem por mês, no mínimo. Isso perfaz um total ilíquido de dez mil dólares. Metade disso vai para custos de mão-de-obra. Isso deixa-nos com cinco mil por mês, ou seja dois mil e quinhentos para cada um.
-Está certo - concordou ela. - Mas as despesas estão a começar a dar cabo de nós. Duzentos por mês para Futter, a renda do apartamento da 68ª avenida, o pagamento a Enders pela utilização da casa dele, gorjetas aos porteiros, e tudo mais. Temos sorte se ficarmos com quatrocentos por semana cada um, não contando com as tuas cenas pessoais. Talvez devêssemos cortar a parte dos garanhões.
- Isso não - disse eu, atirando o lápis para cima da mesa. - Martha, este é um negócio de mão-de-obra intensiva, e temos de atrair empregados qualificados. A única solução é aumentar a produção.
Recostámo-nos nas cadeiras, bebemos o café e reflectimos.
Ela tinha vestidas umas calças de odalisca de seda preta e uma camisa de homem de algodão, aberta no colarinho, de mangas arregaçadas. Não tinha qualquer maquilhagem no rosto e, estranhamente, as suas feições duras pareciam mais suaves. Parecia mais jovem, mais vulnerável.
- Mais produção significa mais rapazes - recordou-me ela. Relatei-lhe o meu encontro com o meu agente teatral sem lhe revelar o nome.
-Eu acho que, eventualmente, ele vai acabar por colaborar-disse eu. - Mas, se não o fizer, hei-de encontrar um agente que o faça. Isso dar-nos-á uma fonte segura de talento novo. Consegues arranjar mais clientes?
- Penso que isso não será problema - disse Martha. - Setenta por cento da lista do mês passado eram clientes repetentes.
- Devemos estar a fazer alguma coisa certa - disse eu.
- Com certeza, mas gostava de aumentar as novas clientes. Elas contam às amigas e as amigas contam às amigas. A única maneira de este negócio prosperar é passando a palavra. Agora, há mais duas coisas. Primeiro: a maior parte das nossas clientes vai para fora em Junho, Julho e Agosto. Isso irá provavelmente fazer baixar o negócio.
- Hum - disse eu. - Existe alguma maneira de podermos contactar as turistas... todas as mulheres que virão a Nova Iorque nas férias de Verão?
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Martha não respondeu.
- Qual é a outra coisa? - perguntei-lhe.
- A maior parte das minhas amigas vive em East Side, e muitas delas torcem o nariz quando lhes sugiro uma cena no West Side. Ou têm medo do crime nas ruas, ou estão apenas a serem snobs. Eu acho que devíamos pensar em abrir um local no East Side.
- Sem dúvida - disse eu, acenando a cabeça. - Mas, para isso vamos precisar de muito dinheiro. Entretanto, devemos concentrar-nos em aumentar a nossa clientela.
- O que significa mais garanhões.
- Exactamente. Bem, é tudo. Queres que me vá embora?
- Não tenho quaisquer planos - disse ela num tom preguiçoso,
- Descalça os sapatos e toma um brande.
Mudámo-nos para o sofá de cabedal. Pareceu natural que ela se aninhasse a meu lado e que eu lhe pusesse um braço à volta dos ombros.
- Tens algum tipo? - perguntei-lhe.
- Ocasionalmente - disse ela. - Quando ele consegue vir.
- É casado?
-Se é! Com um par de filhos. É uma pessoa graúda. Política, negócios, obras de caridade, faz de tudo. Por isso não consegue vir ver-me com frequência.
- Ele sabe o que andas a fazer? O teu negócio comigo?
- Não.
- Se descobrisse, ele deixava-te? Ela ergueu os olhos para mim.
- Ele não consegue fazer isso. Eu sei fazer disparar o gatilho dele. A mulher não sabe.
- Ena - disse eu. - Parece perigoso.
- Eu sei tratar das coisas - disse ela, encolhendo os ombros. -Não existe a possibilidade de ele aparecer enquanto eu cá estou?
- Não te preocupes. Ele telefona sempre antes de vir. Inclinei-me, levantei-lhe o queixo, beijei-a.
- Esta foi a primeira vez que me beijaste nos lábios - disse ela. - Isso significa que estamos noivos?
- Não - disse eu, com uma gargalhada. - Significa apenas que gosto de ti.
Ela esticou o pescoço para me beijar outra vez.
- Eu também gosto de ti - disse ela.
Desabotoei-lhe a camisa e descobri que ela não tinha um soutien vestido. Coloquei um dos seus seios carnudos na palma da minha mão.
- Estás apenas a inspeccionar a mercadoria - perguntou ela. -j Ou tens algum objectivo maléfico em mente?
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- Oh,... - disse eu - ...por que não deixamos a natureza seguir seu curso. Não tens pressa, pois não? -Eu tenho a noite toda.
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Claro que nem tudo era isento de problemas. Houve crises que puseram à prova a minha capacidade de gestão.
Numa tarde, eu estava no meu apartamento a preparar a agenda para a semana seguinte quando recebi uma chamada aflita de Seth Hawkins. Ele estava no apartamento da 68ª Avenida, supostamente a servir uma mulher chamada Lois. Ao fundo, eu ouvia gritos, coisas a bater e o som de vidro a estilhaçar-se.
Dirigi-me apressadamente à 68ª Avenida e vi que já lá estava um polícia, chamado pelos vizinhos. Seth, nu até à cintura, parecia simultaneamente furioso e assustado, enquanto um outro homem tentava estancar um nariz a sangrar. Lois, completamente vestida, estava toda encolhida em cima da cama. O polícia esforçava-se por parecer que não estava a achar graça à situação.
Conforme a história me foi contada, Lois tinha chegado a horas. Cinco minutos depois, um homem que dizia ser seu marido apareceu, ameaçando arrombar a porta se não a abrissem. Quando Hawkins abriu a porta, um homem pequeno e gordo entrou rapidamente, esbofeteou Lois e atacou Seth, que tinha mais vinte quilos e menos trinta anos.
Por enquanto, disse-me o polícia, o homem queria processar Seth por "fornicação ilícita". ("O que quer que isso seja", disse o polícia.) Hawkins queria acusar o marido de agressão física, e Lois estava a acusar todos de humilhação e danos emocionais.
Levei o polícia para um canto e fiquei de costas para os combatentes, enquanto o persuadia a fazer com que Mr. e Mrs. Lois não apresentassem queixa. Um acordo com as três notas de vinte dobradas que lhe pus na mão.
- Vou ver o que posso fazer - disse ele.
Meia hora depois, com o estúdio limpo e posto em ordem, levei Seth Hawkins a tomar uma bebida ao Blotto.
- Que diabo! - disse o texano. - Tanto barulho por uma merda de nada. Juro que aquela simpática mulher só queria um pouco de carinnho. Não há nada de mal nisso... estou correcto?
- Absolutamente - garanti-lhe.
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O segundo incidente não foi exactamente uma crise, mas deixou-me perturbado e apreensivo.
Tive uma cena com uma mulher chamada Lucille. Tinha o cabelo louro e um corpo ágil. O seu hálito cheirava vagamente a alcaçuj e os olhos dela vagueavam.
- Não é grande coisa, o teu apartamento - disse ela, olhando ao redor.
- Não, não é - concordei.
Quando lhe trouxe um copo de vinho branco, provou-o e disse:
- Não tens nada melhor que esta porcaria?
- Infelizmente, não - disse eu num tom inexpressivo.
- Como é que entraste para este negócio? - perguntou ela.
- Tu queres dizer - disse eu, tentando manter um tom ligeiro -, o que está um bom rapaz como eu a fazer num sítio destes?
- Quanto recebes do que eu paguei? - quis ela saber.
- Terás de perguntar a Martha.
- Quantos garanhões tem ela?
Continuou a fazer pergunta após pergunta. Quantas cenas eu fazia por semana? Este era o único lugar ou havia mais? Algum problema com a polícia? Eu respondia educada, mas evasivamente.
A curiosidade dela desagradou-me e não funcionei muito bem, Mas ela não se queixou.
- Fazes homossexuais? - perguntou ela enquanto se vestia. - Fazes sado-masoquismo? Estás interessado em fazer filmes? Estás disponível para cenas em grupo?
Fiquei satisfeito por me ver livre dela. Acompanhei-a a um táxi. ("Um belo toque", disse ela) e ao voltar para casa, perguntei a mim próprio se ela seria uma polícia disfarçada.
Telefonei a Martha Twombly e contei-lhe o que acontecera. Ela disse que não conhecia Lucille pessoalmente; era amiga de uma amiga.
- Ela tinha um duche vaginal na mala? - perguntou ela.
- Não sei. Ela foi à casa de banho. Por que perguntas?
- É uma ideia. Ao que parece, ela também anda na vida.
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Sol Hoffheimer telefonou e disse que queria falar comigo. Apanhei um táxi para o escritório do agente teatral. Ele estava sentado de lado, a olhar para a janela encrustada de sujidade. Vi-o de perfil: feições flácidas, maxilares descaídos, o rosto gasto e derrotado. Toda a força e elegância tinham desaparecido.
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-Diz-me outra vez como é que isto vai funcionar - disse Hoffheimer num tom inexpressivo.
Repeti tudo de novo, pacientemente. Concordámos que Sol receberia cem dólares por cada rapaz adequado que me enviasse.
-Quantos tipos me podes mandar?
O agente pensou durante um momento.
- Cinco ou seis imediatamente. Mas estamos sempre a arranjar
novos. E com o Verão a aproximar-se e as faculdades a fecharem, haverá mais.
-Óptimo - disse eu. - Posso utilizar todos os que me enviares.
Pus-me de pé para me ir embora.
- Eu costumava gostar de ti - disse Hoffheimer num tom triste. - Mas já não gosto.
Acenei com a cabeça e fui-me embora. Dirigi-me a pé para a Oitava Avenida, calculando que seria mais fácil arranjar um táxi lá.
Fiquei triste com as últimas palavras de Sol, mas não envergonhado. Ele tinha tomado a decisão por si só, tal como Arthur Enders, King Hayes, Seth Hawkins e todos os outros garanhões. Ninguém os obrigara a fazer nada; a escolha fora deles.
Mas reconheci que tinha feito papel de diabo em tudo isto. É verdade que os outros tinham escolhido livremente, mas eu oferecera a tentação. Sem a minha instigação insidiosa, eles talvez nunca tivessem cedido. Eu tinha explorado as suas necessidades e tomara partido das suas fraquezas.
Vi o meu papel em termos teatrais. Tal como a maior parte dos actores, eu tinha dificuldade em distinguir a ilusão da realidade, por isso estava a actuar numa ópera bufa, à espreita na sombra, com uma capa vermelha a esconder-me o rosto, dando energia a toda a acção.
Os outros actores desempenhavam alegremente os seus papéis, sem saberem que o homem no escuro que lhes dava as deixas e decidia o seu destino era o diabo. Isso era divertido.
Era, decidi, o melhor papel que já desempenhara e talvez me fizesse uma estrela.
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No início de Junho aluguei um automóvel, e eu e Jenny Tolliver Preparámos um almoço de piquenique e fomos até à praia de Jacob. O mar ainda estava demasiado frio para nadar, mas o sol estava uma delícia.
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Levámos o cesto com o piquenique para a praia. Galinha frita, salada de batata num recipiente de plástico, pickles e rabanetes (não nos esquecemos do sal), e duas garrafas de vinho com elegantes copos de pé alto.
Sentámo-nos num local abrigado do passeio de tábuas ao longo da praia e espalhámos o almoço numa toalha de papel, segura nos cantos com punhados de areia. O vento soprava à volta das nossas cabeças, mas o sol, reflectido da parede de cimento, brilhava o suficiente para podermos despir as camisolas.
Era um dia cinzelado, tão límpido que podia jurar que conseguia ver Portugal. Um céu azul-celeste estendia-se até ao infinito, com pequenas plumas de nuvens que pareciam marcas de giz. A luz brilhava nas asas de aviões a aterrarem, e vimos um cargueiro preto avançar em direcção ao Canal Ambrose.
Comemos galinha e bebemos vinho. Depois, encostámo-nos à parede e fumámos um cigarro. Virámos os rostos pálidos para o sol bebemos a segunda garrafa de vinho e suspirámos, satisfeitos.
- Fica comigo, miúda - disse eu -, e podes vir a fazer isto todoa os dias do ano.
- Adorava fazê-lo em Janeiro - gracejou ela.
- Em Janeiro? As Caraíbas. Ou as Ilhas Gregas.
- Sonhador - disse ela, sorrindo.
- É possível - disse eu, num tom pensativo. - Eu nunca fui ao estrangeiro. Há muitas partes do mundo que gostaria de conhecer antes de ser demasiado velho. Tudo o que é preciso é dinheiro.
Ela deitou mais vinho nos copos.
- Talvez - disse ela. - Um dia. A complacência dela irritou-me.
- Não há coisas que queiras ter? Agora? Eu sei que há. Tu queres um apartamento maior, um estúdio teu, roupa de boas marcas, um automóvel, certo?
- Sim, mas não sou tão impaciente como tu. Se trabalhar e tiver sorte, essas coisas virão. Se não vierem, não vou morrer por isso.
- A ideia de te limitares a viver, dia após dia, ano após ano, sem que nada de dramático aconteça ou tenha a probabilidade de acontecer... - disse eu, abanando a cabeça. - Não consigo viver feliz a cha furdar na mediocridade.
-Achas que ando a chafurdar na mediocridade? - perguntou ele em voz baixa.
- Claro que não. Mas tu conheces-me. Quando ganho, quero ganhar em grande. E se perco, quero cair com um grande estoiro.
- Peter, às vezes assustas-me. És tão louco!
- Eu acho que não sou suficientemente louco. Tenho de aprender a apostar a sério. Dinheiro, não; não o tenho para poder apostar.
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Quero dizer o meu futuro. A minha vida. Tenho de estar disposto a arriscá-la.
- Para quê?
-Oh... viagens, roupa, uma casa, restaurantes caros, antiguidades, arte, tudo isso.
-Por outras palavras, dinheiro - disse ela.
- Dinheiro - concordei. - Mais uma sensação de realização. Existe um lugar à minha espera algures neste mundo. Tenho que o encontrar.
- Até ao fim do ano - lembrou-me ela.
- O quê?-disse eu, só me lembrando um momento depois da minha promessa de deixar o palco se não tivesse conseguido nada até ao Natal. - Isso ainda está de pé.
- Manténs a tua palavra?
- Claro. Tenho seis meses, não tenho?
Dei uma gargalhada, agarrei-a, beijei-lhe os lábios frios. Estendemo-nos na areia e abraçámo-nos com força. Acariciei-lhe o cabelo lindo, fitei-a nos seus belos olhos.
- E se eu assaltasse um banco? - disse eu subitamente. - Isso contaria?
- Não - disse ela com firmeza. - Tu tens de ter êxito no palco, que é onde deves estar.
- Mais ninguém, em especial os produtores e os directores, pensa que é onde devo estar.
- Bem - declarou ela. - Eu acho que é o único lugar em que serás feliz.
- Se eu assaltasse um banco - disse eu - ou qualquer coisa igualmente estúpida, ainda me amarias?
Ela pensou durante bastante tempo.
- Eu ainda te amaria, mas seria o fim de nós dois.
- Tu deixavas-me?
- Se fizesses um disparate para conseguires dinheiro? Sim, deixava.
- Mas continuarias a amar-me?
- Havia de conseguir viver com isso.
- Gostava de ter a tua força - disse-lhe. - Oh, meu Deus, como eu gostava!
- Peter - disse ela -, os teus olhos estão a brilhar.
- É do vento - disse eu.
Pus-me de pé e afastei-me dela. De costas viradas, fiquei de pé com as pernas afastadas, as mãos enfiadas nos bolsos, olhando para o oceano ondulante.
Agora a beleza do dia feria-me. Desejei um céu cinzento, vento forte, chuva. Queria a excitação de ameaça.
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Do mesmo modo, a bondade simples de Jenny Tolliver incomodava-me. A sua nobreza! Aquela segurança calma era uma censura reduzindo tudo a sim ou não, um simplismo que zombava dos meus sonhos e depreciava as minhas ambições.
Voltei para junto dela. Estava de joelhos, apanhando os restos do almoço. Vi a curvatura fina das costas dela, os cabelos castanhos a brilharem como chamas à luz do sol. Fiquei sem respiração. Perguntei a mim próprio o que estaria disposto a sacrificar por esta mulher.
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O Verão acabou por ser mais movimentado e lucrativo do que eu e Martha Twombly tínhamos esperado. Em Agosto estávamos a fazer cerca de mil dólares por semana-graças aos homens recrutados por Sol Hoffheimer. Eu tinha agora entre quinze e vinte garanhões no meu estábulo, embora alguns não estivessem ocasionalmente disponíveis devido a compromissos de trabalho ou viagens, e outros tivessem desistido por vários motivos, tendo sido substituídos por novos recrutas.
-Vamos ter de nos habituar às mudanças - disse eu. -A maior parte dos meus rapazes considera este emprego como temporário.
- Isso pode ser bom. A maior parte das mulheres está interessada em talento novo.
Como ela previra, muitas das nossas clientes saíram da cidade para casas de Verão em Hampton, Ilha do Fogo, Montauk, as Berks-hires, Catskills e até mesmo as Poconos, Cape May, Kennebunkport e Nantucket.
O que eu e Martha não tínhamos antecipado era que, em muitos dos casos, as clientes casadas estavam sozinhas durante toda a semana nas suas casas de campo. Havia uma procura constante de serviços, de segunda a quinta-feira.
O preço não aumentou por se enviarem os garanhões para fora da cidade, mas eram cobradas às clientes despesas de viagem. Em dois casos, estas incluíram viagens aéreas - para Bar Harbor, Maine e Hyannis. Interroguei-me sobre a legalidade de mandar os prostitutos atravessar as fronteiras para outros estados.
- Eu sei - disse-me Martha - que a Lei Mann ilegaliza o transporte interestadual de mulheres para fins imorais. Eu acho que não diz nada sobre homens. Queres que pergunte ao meu amigo advogado?
- Esquece - disse eu. - Perdido por um, perdido por mil.
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Nas sextas-feiras à meia-noite, quando todos os garanhões se encontravam no Blotto para beber uns copos e conversar sobre o trabalho (durante estas reuniões informais eu distribuía sub-repticiamente os envelopes de pagamento), a conversa incidia invariavelmente sobre excentricidades das clientes.
Wolcott Sands tinha uma cliente regular que insistia em usar uma barba e um bigode falsos durante a cena.
Seth Hawkins teve uma cliente que pediu para usar as suas botas de cowboy na cama.
King Hayes tinha uma "esposa" que só queria untar-lhe o corpo com óleo de bebé Johnson. Quando ele ficava escorregadio e a brilhar, ela vestia-se e ia para casa.
Estas excentricidades inofensivas podiam ser facilmente acomodadas mas, quando o movimento aumentou nesse Verão, houve vários casos de comportamento mais estranho por parte de clientes. De tal forma que eu e Martha tivemos de pensar em aumentar as regras para proteger a nossa reputação.
A regra "nada de drogas" tinha de ser rigidamente aplicada. Embriaguez óbvia, da cliente ou do garanhão, era proibida, tal como barulho excessivo (gritos), e a utilização de obscenidades, a não ser que especificamente pedidas pela cliente. Marcar um encontro com uma cliente era motivo para despedimento imediato.
As seguintes relações eram permitidas, a serem especificadas pela cliente: relações sexuais, fellatio, sodomia, cunninlingus e anilingus. Uma vez que nem todos os garanhões estavam dispostos a fornecer a gama de serviços completa, o problema tornou-se simplesmente uma questão de organização de horários.
O sadismo e o masoquismo foram a causa da maior parte dos nossos problemas, uma vez que, nesta área, era difícil definir padrões de comportamento aceitáveis. Geralmente, os garanhões tinham instruções para satisfazer os desejos das clientes, desde que a saúde e segurança física de nenhum dos parceiros não corressem perigo.
A violência física devia ser evitada, particularmente se deixasse marcas. "Jogos de água" eram permitidos se fosse tomado o cuidado necessário, e o beijo na boca tinha de ser iniciado pela cliente. Eram distribuídos preservativos que eram utilizados a pedido das clientes, o mesmo sucedendo com aparelhos mecânicos como vibradores.
Tínhamos pensado que este Código de Conduta cobriria todas as
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eventualidades, mas em breve se tornou aparente que nenhum conjunto de regras poderia englobar a gama completa da imaginação nas excentricidades sexuais humanas. Por exemplo, quando Martha disse que tinha um pedido para uma cena entre duas mulheres e um rapaz, fiquei intrigado e ofereci-me como voluntário. Suposemos que uma mulher seria participante, a outra espectadora.
Elas acabaram por se revelar um par estranho. A mais nova Janet, era pequena, morena, com o corpo cheio e uma pele que não podia ser mais cremosa. A mais velha, Gertrude, era alta, magra, com feições de cavalo e o cabelo muito curto. Tinha a voz grossa, com um tom masculino.
As duas mulheres tagarelaram facilmente sobre a época teatral de Verão da Broadway enquanto bebiam o vinho branco. Gertrude fumou uma cigarrilha castanha. Janet, com olhos brilhantes e lábios carnudos, pediu um segundo copo de vinho.
Depois, fomos os três para o quarto para nos despirmos. Eu acreditava que a roupa interior de uma mulher era uma indicação da sua personalidade. Não fiquei surpreendido ao ver que o soutien e as cal cinhas de Janet eram de seda debruada com renda Alençon. A roupa interior de Gertrude mal merecia esse nome: algodão branco grosseiro com calcinhas quase suficientemente compridas para serem bermudas.
Quando estávamos todos nus na cama, Janet disse:
- Fá-la primeiro.
Gertrude estava deitada de costas, com os braços rígidos ao lado do corpo. O seu corpo era um desafio: pesado, musculoso, com ancas e ombros largos.
Utilizei todos os meus truques e ela adquiriu vida. As palmas das minhas mãos deslisaram levemente pelos seios enormes, pela cintura grossa, pelas coxas colunares. Eu sentia a pele dela a inflamar-se.
Janet, deitada de lado, com o queixo apoiado numa mão, observava atentamente.
A respiração de Gertrude tornou-se mais rápida. Os seus dedos elevaram-se até ao meu pescoço para me puxar para baixo. Baixei-me para beijar um dos seus mamilos erectos - e a minha cabeça chocou com a de Janet que estava a começar a trabalhar no outro seio excitado de Gertrude.
Levantei a vista, espantado. Janet estava frenética, com a boca e as mãos a moverem-se avidamente pelo corpo da mulher mais velha.
- Querida, querida, querida - murmurava ela. - Finalmente! finalmente... Por que me fizeste esperar tanto tempo?
Janet ergueu os olhos e viu-me a olhar para ela.
- Já não vamos precisar de ti - disse secamente.
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Fui para a sala, bebi um copo de vinho e reflecti tristemente como não sabia nada sobre as mulheres.
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Durante aquele Verão do nosso contentamento, Martha pôde proporcionar uma diversão de férias a um número surpreendente de visitantes, todas as quais queriam, aparentemente, levar para casa uma recordação duradoura da sua estada em Nova Iorque.
Muitas das americanas eram professoras, ansiosas por explorarem as diversões culturais da Grande Maçã1. Outras eram mulheres de carreira, de partida ou de regresso de viagens pela Europa e ansiosas por uma última extravagância antes de voltarem à rotina diária.
Havia também algumas mulheres endinheiradas de Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Arábia Saudita, Argentina e, especialmente, Japão. Davam, quase invariavelmente, gorjetas pequenas, mas a sua vinda era bem acolhida pelos garanhões cansados das clientes habituais.
Seth Hawkins teve gémeas suecas de cabelo louro numa cena louca de que ele falou durante semanas.
Arthur Enders prestou alegremente assistência a uma matrona coreana que parecia uma boneca e que, ele garantiu, cheirava a cânfora.
Uma senhora francesa, Claire, fez, durante a sua estada de duas semanas, um acto acrobático com quase todos os garanhões, pelo que obteve a alcunha de Claire de Loony2.
Um dos garanhões negros, não King Hayes, apaixonou-se por uma beleza de ébano de um metro e oitenta e teve de ser impedido de ir atrás dela até ao Senegal.
À medida que o Verão avançava, muitas das turistas insistiam em que os garanhões fossem aos seus quartos de hotel. De início, Martha teve dúvidas sobre isto, receando possíveis interferências por parte do pessoal de segurança. Mas, à medida que cada vez mais encontros se realizavam com segurança em hotéis, motéis e estalagens à beira estrada, ela começou a ver novas possibilidades para nós.
- Eu penso que devíamos tentar aumentar o ramo de acompanhantes - disse ela. - A maior parte dos nossos rapazes veste-se
1. The Big Apple - nome por que Nova Iorque é conhecido (N. da T.)
2. Claire, a Maluquinha - trocadilho com "Claire de Lune" (N. da T.)
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bem e é apresentável. Muitas mulheres poderão querer um acompanhante apenas para jantar, ir ao teatro, a uma festa, ou seja o que for. O dinheiro é bom, e é legal. De facto - acrescentou ela -, lembras-te de eu te dizer que tenho amigas que não vão ao West Side para uma cena? Bem, que tal enviar garanhões aos apartamentos delas?
- Um serviço de pedido por telefone?
- Exactamente. Que achas? Reflecti durante um momento.
- Não vejo por que não. Mas apenas para mulheres solteiras e, de preferência, à noite. Se um belo garanhão chegar a meio da tarde ao apartamento duma mulher casada, os vizinhos hão-de comentar.
- Acho que tens razão. Temos de proteger a cliente. Dei um estalo com os dedos.
- Já sei! - disse eu, entusiasmado. - Vou comprar uns daqueles livros grandes de amostras de papel de parede. Se uma mulher quiser uma cena no seu apartamento, o garanhão em causa leva alguns desses livros. Se alguém o mandar parar ou fizer perguntas, ela é decoradora.
- Peter - disse Martha Twombly, olhando-me com admiração -, tu foste feito para este negócio.
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O serviço de pedido por telefone começou depois do Dia do Trabalhador. Embora nunca tivesse tido o volume de negócios dos três bordéis, contribuiu significativamente para os lucros. Foi também necessário aumentar a nossa força de trabalho, por isso Sol Hoffheimer teve de duplicar os seus esforços.
No princípio de Outubro, encontrei-me com um dos "possíveis" da Sol numa mesa ao fundo do Losers Place. O rapaz era belo como um Tyrone Power jovem, e tentei ser especialmente persuasivo a tentar convencê-lo. Tudo o que obtive foi um indignado olhar de desdém.
Depois de ameaçar dar-me um murro, ele pôs-se de pé e foi-se embora. Aceitei filosoficamente a minha rejeição - não era a primeira. Sentia admiração por actores esfomeados que rejeitavam tão imediata e instintivamente a oportunidade de ganharem dinheiro fácil.
Peguei na minha caneca de cerveja e levei-a para o bar. Apareceu, imediatamente um homem a meu lado, dizendo numa voz trocista:
- Bem, não se pode ganhar sempre.
Voltei-me para olhar para ele. Um homem muito baixo e franzino vestido com uma gabardina suja. Rosto cavernoso com maçãs
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salienteS. Olhos pequenos e arqueados, e um bigode preto que não era maior que uma escova de dentes. Lábios azulados e orelhas de abano.
-Perdão? - disse eu secamente.
-Continue a pedir - disse o desconhecido com um sorriso cruel.
Eu adoro. Vi-o atacar o rapaz bonito lá atrás. - Não sei do que está a falar.
- Claro que sabe-disse o outro homem.-Você chama-se Peter Scuro e estava a tentar recrutar um novo garanhão para o seu bordel na 75ª Avenida. Eu acho que devíamos ter uma conversa. Vamos...
Voltou as costas e dirigiu-se a coxear à mesa que eu acabara de vagar. Depois vi a bota ortopédica, com uma sola de dez centímetros.
A minha primeira reacção de pânico foi de me pôr a andar, se não a correr. Mas isso não serviria de nada; o homem sabia o meu nome e onde me encontrar. Relutante, levei a minha bebida de novo para a mesa.
-Chamo-me Quink-disse o homem. - Sidney Quink. Não proponho que apertemos as mãos.
- Obrigado - disse eu com ironia.
- Suponho que está a perguntar a si próprio quanto é que eu sei - disse Quink com um sorriso feroz. - Praticamente tudo, acho eu. Você está a gerir vinte garanhões ou mais em dois sítios na 75.- e na 68ª Avenida. As clientes vêm daquela mulher da loj a de roupa na Madison. Ela recebe uma nota por queca. Estou correcto?
- Onde é que soube tudo isto? - perguntei.
- Foi um passarinho que me disse.
Lembrei-me da mulher esquelética que tinha feito muitas perguntas.
- O passarinho não se chama Lucille, por acaso?
- Se não quiser ouvir mentiras, não faça perguntas. Você tem um bom arranjinho, e a única coisa que eu quero é uma pequena parte.
Resolvi que, se manifestasse fraqueza, estava perdido.
- Você é demasiado baixo e feio para ser chui - disse eu. Quink sorriu.
- Então - disse ele. - Nada de ataques pessoais. Eu prefiro manter as coisas numa base comercial. Eu acho que cinco mil seria justo.
- Você é maluco! - explodi.
-Ainda lhes restaria uma boa maquia-disse o outro homem calmamente.
- E que é que eu recebo por cinco mil? - perguntei.
Sidney Quink debruçou-se sobre a mesa e soprou o seu hálito fedorento directamente no meu rosto. - Silêncio! - disse ele. Silêncio?
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- Exactamente - disse Quink recostando-se na cadeira e mostrando outra vez os dentes manchados. - E se não aparecer com a massa, não preciso de ir à polícia. Vou aos jornais e talvez à televisão local. Imagine o que eles podiam fazer com a história: "Damas da sociedade de East Side pagam por pénis de West Side." Um chamariz de primeira.
Respirei fundo. Este não era um rufia barato, era uma ameaça pondo em perigo tudo aquilo por que eu trabalhara tanto para conseguir. Ameaçando a minha segurança e, ao mesmo tempo, o meu futuro.
"Calma", disse a mim próprio. "Tem calma."
- Então? - disse Quink.
- Não lhe posso dar uma resposta agora - disse eu num tom sério. - Há outras pessoas envolvidas.
- Claro - disse o chantagista. - Eu compreendo. Encontro-me consigo de hoje a uma semana. Traga o dinheiro em notas usadas, não marcadas, nada maior que vinte, nem números de série consecutivos.
- Estou a ver que já fez isto antes - disse eu com desdém.
- Tenho alguma experiência-admitiu Quink. - Lembre-se, só tem uma semana, ou ponho-me a cantar. - Começou a arrastar-se para longe da mesa, depois parou. - Ei, você talvez me possa acrescentar à sua lista. Pode ser que algumas das suas clientes finaças gostem de um tipo com um pirilau de trinta centímetros.
Lancei-lhe um olhar de ódio.
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Martha Twombly escutou atentamente a minha história. Quando terminei, ela pôs-se de pé e começou a andar de um lado para o outro da sala.
- Parece um verdadeiro estafermo! - disse ela.
- Oh, ele é um amor! - disse eu. - Utiliza calão fora de moda e tem um hálito capaz de servir de decapante. Martha, que vamos fazer?
Ela não respondeu, deitou Armagnac em dois copos e estendeu-me um antes de continuar a andar.
- Ele mencionou o meu nome? - perguntou ela.
- Não. Ele só disse que as clientes provêm de uma mulher numa loja de roupa na Madison. É verdade?
- Loja de roupa? - repetiu Martha com um sorriso triste.
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Acontece que é uma das boutiques mais exclusivas que há na Avenida, a Barcarole. Conheces?
-Ouvi falar nela - disse eu num tom casual. - Trabalhas lá?
-Eu sou gerente da boutique - disse ela num tom duro. - Onde
é que achas que encontro todas aquelas mulheres cheias de massa?
Deixou-se finalmente cair numa poltrona, cruzou as pernas e respirou fundo. Ela tinha um vestido de veludo preto até aos pés com um fecho do pescoço até aos pés. Como de costume, os pés estavam descalços.
Sentada ali, pensativa, com a luz do candeeiro a formar sombras cruéis, ela parecia subitamente velha e cansada. Erguendo o copo, bebeu o brande de um golo, depois estremeceu.
- Filho da mãe! - disse ela num tom amargo. - Os tipos para quem trabalho são duros. Até agora, não sabem o que tenho andado a fazer.
- Que aconteceria se descobrissem? Despediam-te?
Ela soltou uma gargalhada alta e levantou-se para deitar mais Armagnac no copo.
-Despedir-me?-disse ela.-É pouco provável. Eles quereriam uma parte e, antes de nós termos noção do que estava a acontecer, estaríamos a trabalhar para eles por um salário semanal que podíamos pendurar nas orelhas.
- Parecem homens duros! - disse eu.
- Bastante duros. Tenho andado a pensar em sair de lá. Já não precisamos da minha ligação à Barcarole. A maior parte das nossas clientes novas são recomendadas por clientes antigas. Eu estava a pensar em trabalhar a partir deste apartamento e em procurar um sítio em East Side.
- Espera aí - disse eu. - Será que os homens para quem trabalhas podem tomar conta de Quink?
- Com uma chamada telefónica.
- Mas não lhes vais pedir?
- Significaria cortar a árvore das patacas.
- Então, que queres fazer, pagar a Quink?
Ela veio até junto de mim, fez-me uma festa no rosto e olhou-me com ternura.
-Tu és um rapaz muito querido - disse ela -, e eu sou louca por ti- Mas tu não pensas que um traste como Quink vai receber cinco mil, agradecer-nos delicadamente e desaparecer silenciosamente? Nunca! Ele vai voltar. Ele vai-nos sugar até ao fim.
- Então, vou ter de tomar conta dele - disse eu, num tom sombrio.
Ela olhou para mim, espantada. Tu vais tomar conta dele?
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-Vou. Vou só abaná-lo um pouco. Posso fazê-lo. Devo pesar mais uns vinte cinco quilos que ele. E ele é aleijado. Ela inspirou profundamente.
- Alguma vez fizeste uma coisa dessas?
- Não - disse eu. - Mas podia fazer.
- Não - disse ela -, não podias.
- Ei - disse eu -, espera aí!
- Não - disse ela, recomeçando a andar de um lado para o outro - Espera. Tu não conseguias lutar com ninguém, Peter. És um mole. Vamos lá, admite-o. Vê como olhas para o nosso negócio. Tens esta ideia romântica de que estás a gerir uma espécie de serviço de acon panhantes para fazer que mulheres ricas e homens novos, pobres! merecedores, se encontrem. Nós somos chulos, Peter. Não consegues meter isso na cabeça? Estamos a gerir casas de putas ilegais. Estamos a vender corpos.
Sentia o meu rosto corar. Tinha as duas mãos levantadas, com as palmas para fora, como se ela me estivesse a agredir.
- Eu disse-te que andei na vida em Chicago - prosseguiu ela. - É um negócio sujo. Atrai polícias corruptos e chantagistas como abosta de cavalo atrai as moscas. Não há nada de romântico nisso. A única coisa que oferece é muito e muito dinheiro. Esta é a única razão porque estou nele, e é esta a única razão por que tu estás nele.
- Maldita! - disse eu, numa voz abafada. Ela parou à minha frente.
- Queres sair? - desafiou. Baixei a cabeça.
- Não, não quero sair.
- Então, usa os miolos. Tu não és o tipo de homem para atemorizar Quink.
-Bem-disse eu, em tom de defesa, olhando para ela -, se achas que eu não o posso fazer, não lhe queres pagar e não queres pedir aos teus patrões que tomem conta dele, que diabo queres tu?
- Só há uma maneira. O polícia. Futter.
- Não - disse eu imediatamente. - Ele não.
- Por que não?
- Porque ele tomou conta de Mrs. Fultz. E agora estamos outra vez a pedir-lhe ajuda. Quando ele vir que não conseguimos funcionar sem ele, vai aumentar o preço e nunca mais nos veremos livre dele.
- Isso é um risco - concordou ela. - Mas não temos outra escolha. De qualquer modo, Futter lucra demasiado connosco para nos deixar afundar. E ele tem a experiência e o know-how suficientes pâra tratar de um miserável como Quink. Claro que nos vai custar dinheiro, mas não tanto quanto Quink custaria.
- Que achas que Futter vai fazer?
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-Oh. - disse ela num tom vago, afastando-se de mim-.. apenaS tomar conta de Quink. Para que ele não nos volte a incomodar. Servi-me de mais brande.
-Não gosto da ideia, mas não consigo pensar em nada melhor.
Martha instalou-se no sofá de cabedal e estendeu-me um braço. Sentei-me obedientemente a seu lado. Ela começou a acariciar-me a nuca.
- Fala-me de Futter - disse ela. - Tudo: como ele é, como se veste, como fala. É casado? Que idade tem? Tem alguma esquisitice?
Descrevi o sorriso matreiro do detective, os seus esforços inúteis para se vestir com elegância, a sua insistência para que todas as conversas e pagamentos tivessem lugar na rua.
- Uh-uh - disse ela.-Agora, quero que faças uma coisa... Contacta com ele o mais depressa possível. Conta-lhe exactamente o que aconteceu. Não deixes nada de fora. Diz-lhe que queremos um relatório sobre este Quink e que só temos uma semana antes do pagamento.
- Não há muito por onde ele possa avançar - disse eu em tom de dúvida.
-Não te preocupes com isso-aconselhou Martha. - Se este Futter prestar para alguma coisa como detective, ele encontra-o. Trabalha nos Costumes, não trabalha? Aposto que Quink tem cadastro. E diz-lhe que Quink é provavelmente o chulo de uma puta chamada Lucille. Isso talvez ajude.
- Quanto é que lhe vamos pagar? - perguntei.
- Não mais de quinhentos por um relatório. Mas sugere que poderá haver mais por nos vermos livres de Quink. Achas que podes tratar disso?
- Com certeza - disse eu, ofendido. - Afinal de contas, eu sou actor.
-Lá isso és, doçura. Mais uma coisa, quando Futter tiver o relatório pronto, ele que venha cá. Diz-lhe que a tua sócia quer conhecê-lo.
- Não tenho a certeza de conseguir isso - disse eu. - Ele é um tipo muito desconfiado. Tem amania das escutas e dos gravadores. Já te disse que conversamos sempre na rua.
- Ele vai deixar-se convencer - disse ela, confiante. - Diz-lhe que a tua sócia é uma mulher sensual que fornece todas as clientes. A curiosidade dele vai ser mais forte que o bom senso. E ele vai pensar que, quanto mais souber sobre a operação e as pessoas envolvidas, maior será o seu poder.
- Está bem - disse eu. - Farei o que dizes.
Ela premiu a palma da mão contra o meu rosto, voltou-me a cabeÇa de modo a ficarmos frente a frente. Senti o seu hálito quente nos meus lábios.
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- Não estás zangado comigo, pois não, Peter? - disse ela em voz baixa. - Por todas as coisas horríveis que disse sobre ti.
- Não foram assim tão horríveis - disse eu. - E, provavelmente, são verdadeiras.
- Continuamos amigos?
- Claro.
- Óptimo - disse ela. - Namorado eu tenho. Preciso é de um amigo.
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Quando tinha uma cena com uma mulher desconhecida, eu raramente tinha vontade de a conhecer por mais tempo que a hora marcada. Sexo tornara-se teatro, e aquelas "cenas" eram realmente peças de um só acto.
Mas com Jenny Tolliver, a cortina nunca caía. Eu pensava que talvez fosse o seu mistério que me atraía; eu simplesmente não conseguia chegar ao fundo dela.
Ela conseguia ser devassa na cama, tão lasciva como qualquer das minhas clientes. Mas, noutras alturas, só oferecia um corpo calmo a uma aquiescência silenciosa. Os seus estados de espírito intensos eram frenéticos; os seus períodos de calma ponderação, perturbadores, porque depois ela olhava pensativamente para mim, como se estivesse a estudar-me.
Dei comigo a sentir ressentimento da sua inconstância. Eu queria-a inteira, para a poder agarrar. Mas ela escapava-me.
- Tu nunca és a mesma mulher duas vezes - disse-lhe eu, aborrecido.
Tudo o que recebi em troca foi um sorriso secreto.
Perguntei a mim próprio se a amava, depois interroguei-me sobre o que seria o amor. Eu pensava que podia ser uma sintonia especial. Estive com ela na noite após o meu encontro com Martha quando tínhamos discutido o problema de Sidney Quink, e Jenny apercebeu-se imediatamente do meu estado de espírito.
- Que se passa, Peter? - perguntou ela.
- Não se passa nada.
- Deve haver alguma coisa. Estás tenso como as cordas de um violino.
- Estou óptimo - disse-lhe.
- Não, não estás. Estás aborrecido e pensativo. Eu sei ver. Ela apercebia-se dos meus estados de espírito.
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-Se não queres fornicar - disse eu, zangado -, diz-me. Não me
sentirei insultado. Tenho um ego enorme.
- Estás sempre a dizer isso - disse ela -, mas não é verdade. O teuego é uma coisa pobre e frágil. Eu quero fornicar sempre que queres- tu sabes isso. Embora, ultimamente - acrescentou ela pensativamente -, isso aconteça com pouca frequência, não é?
Invejava a sua inteireza, a sua certeza. Ela não tinha nenhumas das ilusões dos actores. Desempenhava um único papel-ela própria - e não tinha necessidade de deixas nem de espectadores. Eu não conseguia acreditar que ela alguma vez questionasse as suas motivações. Era enlouquecedor.
- Estás a vestir-te muito bem ultimamente - observou ela.
- Tenho desconto nas coisas da Kings Arms - menti rapidamente.
- Algum trabalho novo no teatro?
- Talvez - disse eu secamente. -Vamos ao Blotto ver se Arthur e Hayes lá estão.
Por vezes sentia-me tentado a confessar tudo e a pedir-lhe perdão. Mas sabia que não podia esperar misericórdia. Não porque lhe tivesse mentido; não porque ela se considerasse melhor que os outros; não por causa do que lhe tinha feito com a minha infidelidade comercializada. O seu horror seria motivado pelo que fizera a mim próprio. Ela ver-me-ia como um homem instável, apostado na autodestruição.
Ela nunca compreenderia as minhas tentações. Considerar-me-ia tão doente como um alcoólico que reconhece a sua doença fatal mas que não possui o desejo ou a força para parar.
Talvez tivesse pena de mim, mas nunca me perdoaria.
Por isso fiz amor com ela de uma forma desesperada, fiz o meu acto cómico de comissário russo, fiz de tolo e perguntei a mim próprio durante quanto tempo conseguiria continuar a traí-la.
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- Meu Deus, Martha! - recuei, cambaleante, numa imitação exagerada de Bert Lahr. - Deixa-me olhar para ti. Que se passa?
Ela tinha um vestido preto de seda brilhante, tão apertado que forçava rugas horizontais nas ancas sem cinta. Tão decotado que se lhe viam os seios, o decote parecia o vale dos malditos. Sapatos de salto muito alto e fino apertados nos tornozelos. Demasiada maquilhagem, demasiado perfume.
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- Tu não compraste essa roupa na Barcarole - disse eu.
- Claro que não - concordou ela. - Mas confia em mim; eu sei o que estou a fazer.
Olhei em redor da sala.
- Alguma coisa está diferente.
- Não muito - disse ela casualmente. - Só mudei os elefantes - Fez uma festa no lombo de um elefante de loiça coreano ao fundo do sofá de cabedal. - Decidi usar esta beldade como mesa. Gostas?
- Muito bonito - disse eu, olhando para ela com curiosidade. - Mas não explicaste o fato de palhaço.
- Sou uma prostituta - disse ela. - Tu sabias, não sabias?
- No fundo és uma prostituta?
-Exactamente-disse ela com um sorriso tenso.-Quando é que este polícia vai aparecer?
- Ele disse nove horas. Escuta, Martha, tive um trabalhão dos diabos para conseguir que ele viesse cá acima.
- Disseste-lhe que eu era uma mulher sensual?
- Isso não serviu nada. Por fim, consegui, convencê-lo de que era altura de conhecer a minha sócia e conhecer a operação. Ele concordou, mas não ficou muito satisfeito.
-A satisfação dele ocupa um lugar muito baixo na minha lista de prioridades - disse Martha. - Escuta, Peter, quando ele aparecer, deixa-me falar eu. Está bem?
Levantei as mãos num gesto à italiana:
- Tu és o chefe.
- Apenas esta noite. Eu já lidei com tipos como ele antes, podes crer.
- Acredito - disse eu. - Que tal uma bebida?
- Não - disse ela. - Só depois de ele chegar. Depois bebemos o que ele beber.
- Oh-oh - disse eu. - Vais psicanalisá-lo?
- Qualquer coisa parecida. Aposto que ele bebe bourbon. Queres apostar outra coisa?
- Ele está a tentar ser elegante. Aposto que bebe uísque escocês. Cinco dólares?
- Está apostado.
Sentámo-nos a conversar, até que a campainha tocou.
-Vai abrir-lhe a porta - disse Martha.- Depois manda-o sentar naquela poltrona à minha frente.
Fui até à porta e carreguei no botão. Quando voltei, vi Martha sentada numa das extremidades do sofá. Estava ligeiramente inclinada para a frente, com os seios a transbordar. Tinha as pernas cruzadas, com a saia justa subida acima dos joelhos nus.
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-Cruzes canhoto-disse eu, sorrindo. - Deseja-nos sorte, mãezinha.
Mandei Futter entrar para a sala, apresentei-os e mandei-o sentar na cadeira que Martha tinha indicado. Ela inclinou-se para ele.
-Quero agradecer-lhe - disse ela num tom sincero -, pela sua
ajuda no caso de Mrs. Fultz. Agiu como um perito.
Futter encolheu os ombros e agitou as mãos.
-Posso tratar-te por tu, Luke?-perguntou ela num tom alegre. Depois, não aguardando por uma resposta: - E que tal uma bebida antes de começarmos. Que preferes?
- Bebidas alcoólicas, não - disse Futter com um sorriso, olhando para o decote dela. - Mas, se não houver outra coisa, bebo um bourbon.
- Bourbon! - exclamou Martha. - A minha bebida preferida. Peter, importas-te de preparar as bebidas? Está tudo na cozinha.
Enquanto eu procurava a garrafa e os copos nos armários, ouvi-os rir na sala. Martha era uma mulher esperta. Subitamente, eu soube que ia dar tudo certo.
Depois de termos os nossos copos de bourbon, o detective tirou uma pequena agenda do bolso e começou a voltar as páginas. Era-lhe difícil tirar os olhos de Martha Twombly.
- Sidney Quink - disse ele. - Não foi difícil encontrá-lo. Nome verdadeiro: Samuel Quillan. É engraçado como estes rufias mantêm sempre as iniciais quando assumem um nome falso. Talvez tenha uma funda com o monograma, ou qualquer coisa assim.
- Luke - disse Martha, rindo -, tu és incrível!
- É - disse ele. - Bem, este Quink ou Quillan tem uma folha de cadastro do tamanho do teu braço. Coisas feias, como pornografia infantil. Neste momento, está a viver numa espelunca de hotel em East Village. Toma conta de três prostitutas já velhas. Uma delas é essa Lucille de que falaste. O gajo cumpriu pena na Florida e na Califórnia por várias coisas. Neste momento, não tem nenhum mandato de captura. Nem está em liberdade condicional.
Fechou a agenda com um estalido, bebeu um golo de bourbon, olhou para Martha e para mim, e de novo para Martha.
- É tudo o que tenho.
- Luke - disse Martha num tom sério -, eu e Peter somos inexperientes neste tipo de coisas. Estamos a contar com a tua experiência e conhecimentos. Diz-nos: que devemos fazer?
Luke Futter pôs-se de pé e, de bebida na mão, começou a passear Pela sala. À medida que falava, passava os dedos pelas pontas das meSas, pela parte de trás duma estante e pelas molduras de quadros.
Até pegou num candeeiro para olhar rapidamente para a sua baSe. Pegou na almofada da cadeira em que se tinha sentado. Deu um pontapé às orlas do tapete persa. Passou a mão pelas ombreiras das portas. Afastou um pouco as cortinas para espreitar por detrás delas.
Fez estas coisas tão casualmente que nem se lhe poderia chamar uma busca - era mais um procedimento paranóico.
-Vocês podem pagar-lhe-disse o detective.-Mas nunca mais se vão ver livres dele. Podem tentar amedrontá-lo, mas ele pode acabar convosco com uma chamada telefónica ou uma carta anónima. Só por maldade, percebem? Podem preparar-lhe uma armadilha, mas só têm dois dias para a montar, e ele pode pôr-se aos gritos.
- Está certo - disse Martha. - Disseste-nos o que não podemos fazer. Agora diz-nos o que podemos fazer.
Futter estendeu-me o seu copo vazio.
- Mais um pouco? - perguntou. - Se não te importas. Levei os três copos para a cozinha e regressei com mais bebidas.
O detective estava sentado novamente na poltrona numa atitude negligente, de pernas cruzadas. Estava a fumar lentamente um cigarro e a olhar para os joelhos de Martha com o seu sorriso de esguelha.
- Eu podia tratar do assunto - disse ele suavemente.-Mas vai-vos custar cinco mil. A mesma quantia que teriam de pagar a Quink, A única diferença é que seria só uma vez. Dou a minha palavra.
- Cinco mil dólares, Luke? - repetiu Martha.
- Em dinheiro. Do mesmo modo que ele queria. Notas pequenas, usadas. Nada de números de série consecutivos. Não é tudo para mim. Preciso de recorrer a um par de amigos. Assim, dividido por três, não é muito.
- Que vai fazer? - perguntei.
O detective lançou-me um olhar inexpressivo.
- Não vão voltar a vê-lo - disse ele. - É tudo quanto precisam de saber.
- E as prostitutas dele? - perguntou Martha. - Vamos ter notícias delas?
- Aí não há qualquer problema - disse Futter. - Bem? Sim ou não?
- Sim - disse Martha num tom firme. - Peter?
- Sim-disse eu em voz baixa, perturbado.-Não estou a ver que tenhamos outra escolha.
- Exactamente - disse Luke Futter. - Não têm escolha absolutamente nenhuma.
- Cinco mil para ti em dinheiro, Luke? - voltou Martha a repetir. - Pagamento único?
- Exactamente.
- E este gajo não tornará a incomodar-nos?
- É isso mesmo.
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- Está bem - disse ela. - Fá-lo. O detective voltou-se para mim. .-O que vamos fazer é o seguinte...
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Seguindo as instruções de Luke Futter, cheguei ao Losers Place com meia hora de antecedência. Sentei-me ao bar, de onde conseguia ver a entrada pelo espelho. Mandei vir uma caneca de cerveja, paguei e bebi-a lentamente.
Eu levava uma caixa de sapatos cheia de jornal cortado às tiras, embrulhada em papel castanho e bem atada com um cordel.
Futter tinha explicado que eu devia levar Sidney Quink para fora; não seria possível agarrá-lo dentro do bar. Havia demasiados polícias dentro do Losers Place.
Quink chegou pontualmente. Vi-o entrar, olhar em volta, depois coxear até ao bar. Olhou para o embrulho de papel castanho. Disse que estava satisfeito em ver que eu decidira agir com esperteza.
Eu disse que havia demasiadas pessoas conhecidas no Losers Place; não queria que me vissem entregar o embrulho. Virei-me e dirigi-me para a porta. Quink não teve outra opção senão seguir-me.
Lá fora, ainda no seguimento das instruções de Futter, comecei a andar em direcção à Oitava Avenida. Abrandei o passo, dando ao chantagista a oportunidade de me apanhar. Depois, meti a caixa embrulhada nas mãos de Quink. O aleijado olhou para ela, virando-a várias vezes.
Dois homens corpulentos saíram de um Plymouth azul, estacionado em dupla fila na 54ª Avenida Oeste. A sua aproximação foi controlada com exactidão: não demasiado apressada, nem demasiado lenta. Os poucos transeuntes não prestaram qualquer atenção.
Parei. Os homens aproximaram-se. Pegaram em Quink pelos braços e meio a carregá-lo, meio a arrastá-lo, levaram-no para o Plymouth estacionado. Vi Futter sentado ao volante.
Antes de desaparecer, Sidney Quink voltou para mim um rosto contorcido.
- Seu filho da mãe! - disse ele num tom amargo.
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- Senta-te - disse Martha Twombly. - Bebe um brande. Pareces abalado.
A mão com que segurei a bebida tremia ligeiramente. Contei-lhe o que tinha acontecido.
-Aconteceu tal como Futter disse que iria acontecer-terminei. - Em poucos segundos estava tudo acabado. Ninguém reparou em nada. Martha, que vai acontecer a Quink?
- Queres mesmo saber? - perguntou ela.
- Não. Tu queres?
- Não.
- Achas que Futter vai manter a sua palavra?
- Queres dizer se vamos voltar a ter notícias de Quink? Penso que não.
- Não era isso o que eu queria dizer-disse eu. - Futter não vai voltar a pedir mais cinco mil, pois não? Será que não trocámos um chantagista por outro?
Ela olhou para mim com um sorriso sardónico.
- Tenho uma coisa para ti - disse.
Foi até ao quarto e voltou com um pequeno gravador portátil e carregou no botão. Ouvi a parte final da nossa conversa com o detective Luke Futter.
Martha: - Cinco mil em dinheiro para ti, Luke? Um único pagamento? Futter: - Exactamente.
Martha: - E este tipo não volta a incomodar-nos? Futter: - É isso mesmo. Futter: - Está bem. Podes avançar. Futter: - O que vamos fazer é o seguinte...
Martha desligou o gravador.
- Deus do céu - exclamei. - Onde é que ele estava?
Ela acariciou a tromba do elefante de loiça coreano ao fundo do sofá.
- Ali dentro. É oco, mas bastante pesado, de modo a ele não poder espreitar sem dar muito nas vistas.
Respirei fundo.
- Se ele tivesse descoberto, não sei o que faria.
- Calculei que ele não faria uma busca minuciosa. Não comigo a fazer de Sadie Thompson. Peter, um homem pode ser o tipo mais esperto do mundo, mas assim que vê um par de mamas e um cu, os
miolos saem pela janela. Aquele chui estava tão ocupado a tentar ver-me as pernas que nem estava a pensar direito. Se te recordas, eu fi-lo repetir tudo duas vezes. Se alguma vez tentar fazer chantagem connosco, temos provas suficientes nesta fita para o destruir. Vou fazer duas cópias. Uma para ti. Guarda-a no teu cofre. - Tu és tão esperta que me assustas - disse-lhe.
- Não tão esperta - disse ela, sorrindo. - Eu penso que talvez ainda vá ter um problema com o detective Luke Futter. Nós, não, eu. Tenho um pressentimento que ele vai aparecer, à procura de uma borla.
- E como vais resolver isso?
-Dizendo-lhe que tenho herpes-disse ela prontamente -, e depois arranjo-lhe uma prostituta jovem e bela que conheço. Eu pago.
Soltei uma gargalhada e bebi o meu brande. Estava a sentir-me bastante melhor.
- E por falar em raparigas jovens e belas - disse Martha -, temos uma cliente nova que é um verdadeiro espanto. Chama-se Coral e foi recomendada por uma cliente usual. Peter, esta Coral é especial. Alta, elegante, pele que parece cetim, um corpo fantástico, e a cara mais bela que vi nos últimos anos. É melhor seres tu a tomar conta dela.
- Está bem - disse eu. - Ela parece ser óptima. Martha pôs-se de pé.
- Desculpa pôr-te na rua, meu querido, mas o meu namorado vai chegar daqui a cerca de uma hora.
- Qual dos namorados, o advogado ou o político importante?
- Eu só tenho um namorado. A relação com o advogado é estritamente comercial, mas o político é para os folguedos.
À porta, ela disse num tom firme:
- Deves-me cinco dólares. Futter bebeu bourbon. Dei-lhe o dinheiro, grato.
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Alguns dos outros garanhões tinham clientes regulares-as suas "esposas" -, mas eu não tinha nenhuma. Todas as clientes que forniquei me garantiram que tinham ficado completamente satisfeitas, mas poucas marcaram uma segunda cena comigo, e nenhuma uma terceira.
Uma mulher deu-me uma indicação do motivo.
- Tu és demasiado perfeito, querido - disse-me ela. - Sabes
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todos os movimentos que deves fazer e que botões carregar. Desempenhas o papel do grande amante. A única coisa que te falta é paixão. Não és capaz de suar um pouco?
Eu não conseguia acreditar. O meu orgulho de actor sentiu-se ferido.
Quando Coral entrou no meu apartamento da 75ª Avenida, decidi imediatamente que a queria para "esposa". Ela tinha tudo o que Martha dissera-e mais. Resolvi dar o maior desempenho da minha vida.
O cabelo fino, cor de trigo, caía-lhe até ao meio das costas. A pele era de porcelana mate e os seus olhos azuis dançavam alegremente. Achei que o nariz era divino, os lábios cheios adoráveis. Tive vontade de lhe comer as orelhas delicadas.
Ela vestia uma camisola de lã caxemira, de gola alta, um cinto largo de cabedal, uma saia de lã creme. A camisola revelava um busto perfeito, o cinto rodeava uma cinturinha de vespa, e a saia apertada delineava as ancas e um traseiro de deliciosas proporções.
Ela falava com um tom de voz à Tallulah Bankhead e riu-se com as minhas anedotas. Ela era, decidi, perfeita-com excepção, talvez, da escrava de ouro com um pequeno diamante. E as mãos e os pés eram um bocado grandes.
Mas só um imbecil ficaria desencantado com estes pequenos defeitos.
- Tu és actor, querido - disse ela -, não és?
- Era - respondi. - Como soubeste?
- Tens a presença dos actores - disse ela. - Adoro actores. Ela tinha o hábito de sorrir maliciosamente enquanto deitava a
língua de fora por um instante. Eu achei que era um hábito divino.
- Alguma vez foste actriz? - perguntei-lhe. - És suficientemente bela.
- Obrigada, querido. Sim, eu já tive ambições de ser actriz. Queria ser cantora. Tive alguns contratos em pequenos clubes, mas depois o meu marido obrigou-me a desistir.
- Que pena - lamentei. - Eu acho que serias um êxito. Que espécie de coisas cantavas.
- Oh... - disse Coral com o seu sorriso matreiro, deitando a língua de fora por um instante -, canções de amor, na maior parte.
Eu estava ansioso por ver aquele corpo flexível despido, mas isso não aconteceria. No quarto, ela pediu-me que me despisse, mas não fez qualquer movimento para tirar a roupa.
- Estou decepcionado - disse eu.
- Não vais ficar, querido - disse ela. - Prometo.
Quando fiquei nu, estendi um braço para ela, mas ela recuou. -Vamos lá - disse ela. - Fica aí quietinho e deixa-me amar-te.
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-Se é o que queres - disse eu, um tanto contrafeito.
Sentou-se à beira da cama e balouçou o cabelo leve como uma pena por cima do meu corpo. Os seus lábios cheios fecharam-se sobre os meus mamilos. Os dentes mordiscavam. Depois olhou para mim através dos olhos semicerrados.
-Gostas? - perguntou na sua voz profunda.
- Gosto de tudo o que fazes. Mas gostava que me deixasses...
-Chiu - disse Coral. - Deixa-te ficar quieto. Eu faço tudo.
E fez, com os dedos frescos e a boca quente. A sua perícia era espantosa e eu pensei, não pela primeira vez, que maravilhosa que era a minha profissão.
-Adoro o teu corpo - disse ela. - Um corpo de homem tão belo.
Aguentei o seu amor experiente o mais que pude. Mas depois soltei um grito e dei um pulo para cima. Ela mantinha-me cativo. Senti os seus dentes afiados e solucei.
Enlouquecido, meti-lhe uma mão por debaixo da saia e agarrei-a freneticamente. E, ali, dentro das calcinhas de seda, senti as formas inconfundíveis de um pénis e testículos.
- Surpresa! - exclamou Coral.
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O negócio foi bem em Novembro. Além dos três bordéis na 75ª Avenida Oeste e na 68ª, tínhamos um pequeno mas florescente serviço de pedidos por telefone. E o nosso ramo de acompanhantes parecia promissor.
O problema era o pessoal. Eu tinha uma força de trabalho de talvez quarenta garanhões. Mas destes, apenas metade eram "fixos", com quem podíamos contar. Havia brancos, negros, hispânicos, orientais e um verdadeiro índio cherokee.
Os restantes eram "flutuantes", que estavam em Nova Iorque no intervalo de dois trabalhos como actores, ou que se iam embora para se casarem, ou que partiam, cheios de esperança, para a Costa, para testes de televisão. Eles vinham geralmente ter comigo quando estavam disponíveis, mas havia uma procura constante de "talento novo".
Fui ter com Sol Hoffheimer.
Atirei um envelope castanho para cima da secretária do agente.
- Quatrocentos - disse eu. - Em dinheiro. Notas pequenas. Conta.
Hoffheimer não tocou no envelope. Limitou-se a olhar para ele.
- Que é que estou a fazer? - disse ele num tom pensativo.
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-A fazer dinheiro - disse eu. - O dinheiro não tem consciência, É apenas papel verde. Uma nota de vinte suja compra o mesmo que uma limpa.
- É o que dizes.
- Temos um problema - disse eu secamente. - Precisamos de mais rapazes. Temos demasiados temporários. Temos de montar o nosso núcleo de permanentes.
- Núcleo - disse Sol. - Ho-ho. Essa tem graça.
-Por isso, o que eu queria-prossegui, ignorando os comentários dele -, é que colocasses um anúncio pequeno e discreto nas revistas da especialidade. Eu pago.
- Precisam-se garanhões? Dispostos a fornicar a pedido?
-Deixa-te disso. Precisam-se jovens para carreira recompensadora. Qualquer coisa assim. Eu até to escrevo. O agente ficou silencioso.
- Sol - disse eu suavemente -, podes desligar-te disto quando quiseres. De acordo com os meus registos, já ganhaste perto de dois mil. Se tiveres um ataque de culpa terminal, eu arranjo outra pessoa.
Hoffheimer não respondeu.
- Dá-me uma folha de papel - disse eu. - Eu escrevo já o anúncio.
Outro problema era o das marcações. Estas tinham-se tornado tão complexas e ocupavam tanto tempo, que pensei seriamente em comprar um pequeno computador pessoal.
Muitas das nossas clientes pediam uma hora específica. Outras queriam um rapaz específico. Havia várias clientes regulares que reservavam a mesma hora, o mesmo garanhão, uma, duas ou três vezes por semana.
Discuti comMartha as dificuldades de agendagem, e concordámos que era finalmente altura de alugarmos um apartamento em East Side.
- Com três quartos - disse eu, tomando notas - disponíveis doze horas por dia. Isto dá-nos um máximo de trinta e seis cenas por dia. Eu não acho que consigamos atingir isso com o nosso pessoal actual, mas penso que é possível ter vinte cenas por dia, não achas?
- Com certeza - disse Martha. - Isso dá-nos um total ilíquido de sessenta mil por mês. Metade para os garanhões. Isso deixa trinta mil para a renda, despesas, e a nossa percentagem. Eu acho que podemos ir até cinco mil de renda por mês.
- É pesado - disse eu, abanando a cabeça. - Mas suponho que um sítio elegante ajudaria o negócio.
- Claro que ajudaria - disse ela. - Tentaremos arranjar uma coisa adequada por menos, mas devemos estar preparados para gas tar. O problema é que nenhum de nós tem tempo para andar à 107
procura de apartamentos. Eu sei que estás muito ocupado, e eu só vou sair da Barcarole a 1 de Janeiro. Peter, o meu amigo advogado negocia em bens imobiliários. E se lhe pedisse que visse se encontra qualquer coisa?
- Teremos de lhe pagar se ele encontrar alguma coisa, não?
-Não, necessariamente. Não há muita gente à procura de apartamentos de cinco mil por mês, e ele talvez consiga tirar a sua percentagem ao dono ou ao agente imobiliário.
-Óptimo. Três ou quatro quartos. E tem de ser mobilado.
- Eu digo-lhe.
-Mais uma coisa... - disse eu. - O detective Luke Futter gostava de se encontrar contigo. Um encontro social.
- Merda! - disse Martha.
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Quando Arthur Enders me convidou para jantar, desconfiei do que se iria passar, mas aceitei imediatamente. Comemos numa churrasqueira na 72ª Avenida Oeste, à mesma mesa em que Enders tinha sido recrutado. Mas desta vez comemos ostras, bifes do lombo mal passados e uma garrafa de Pommard, de quatro dólares.
Arthur estava, como habitualmente, pálido e perplexo. Deixou cair o garfo duas vezes e engasgou-se com tanta violência num pedaço de carne, que tive de lhe bater nas costas.
Acalmou-se com café creme Martin, mas, mesmo assim, não conseguiu fazê-lo. Por isso, falei por ele.
- Queres sair.
Enders acenou com a cabeça, concordando em silêncio.
- Importas-te de me dizer porquê? O dinheiro é bom.
- Não tem nada a ver com o dinheiro - disse Enders. - Não te Posso dar nenhuma razão sensata. Mas sinto que não é correcto.
- Culpa? Moralidade? Toda essa merda.
- Suponho que sim-disse Arthur com ar infeliz. - Pelo menos, em parte. Mas é principalmente o modo como me faz ver-me a mim Próprio. Um verme.
- Um verme? Que diabo significa isso? Que eu sou traste?
- - Escuta - disse Enders num tom sério. - Não tem nada a ver contigo.
- Como é que tu vais viver? À custa da tua família? Eu hei-de-me arranjar.
- Claro - disse eu. - Almôndegas com esparguete no Blotto,
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enquanto escreves a peça que nunca vais acabar. E, mesmo que o faças, as probabilidades de a venderes são uma num bilião.
- Se assim for, então, escrevo outra - disse Arthur com firmeza - Estou a melhorar, sei que estou.
Olhei para ele.
- És um mijão, tu. Achas que tens talento? Eu achava que tinha talento e vê lá onde isso me levou.
- Devias ter aguentado.
-Durante quanto tempo?-disse eu acaloradamente. -Até conseguir desempenhar o papel de fantasma de Hamlet sem maquilhagem? Meu Deus, Arthur, mais cedo ou mais tarde, e provavelmente mais cedo, vamos estar mortos. Eu, tu, toda a gente. A vida é curta e preciosa. Queres mesmo desperdiçá-la?
- Eu acho que estou a desperdiçá-la a fornicar mulheres desconhecidas por dinheiro. Se a vida é preciosa, não achas que lhl devias dar valor, fazendo algo com significado com os teus dias?
Eu não conseguia concordar, mas a deserção de Arthur perturbava-me. Quando todos são cobardes, ninguém é cobarde. Um único herói era um perigo.
- Que é que estamos a fazer que é assim tão terrível? - perguntei. - Quem está a ficar magoado?
-Eu estou-disse Enders num tom triste.-De certo modo, nem sequer consigo compreender. Só sei que acho que me sentirei mais confortável se sair.
- Suponho que isso significa que não queres que o teu apartamento continue a ser utilizado para cenas.
- Exactamente. Todo o apartamento cheira a sexo.
- Cheira a dinheiro, é a isso que cheira. Bem, será um problema, mas nós desenvencilhamo-nos.
Bebemos lentamente o nosso conhaque. Olhei para aquela criança pálida, irrequieta, sentindo uma onda de afecto e admiração por um homem que eu considerava um dos grandes falhados da vida.
-Arthur-disse eu -, isto não significa que tenhamos de deixar de ser amigos, pois não?
- Oh, meu Deus - disse Enders. - Claro que ainda podemos ser amigos. Eu quero ser teu amigo. Quero mesmo. Além disso, quero ver o que te vai acontecer.
- É - disse eu, com um sorriso amargo. - Eu também.
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Oscar Gotwold parecia um boneco com uma cabeça grande e
redonda que se estava à espera que começasse a abanar a qualquer momento e nunca mais parasse. Uma barriga confortável enchia o colete do fato às riscas. O pouco cabelo era uma ferradura de prata em redor da cabeça polida.
O advogado tinha umas mãos delicadas, unhas lindamente tratadas e pés pequenos calçados com sapatos de verniz. Olhos pequenos e astutos olhavam, divertidos, para um mundo corrupto. Havia um tom de gargalhada na sua voz sonora, como que zombando da sua própria solenidade.
- Na minha opinião... - disse ele, olhando várias vezes de Martha para mim.
Ele disse-nos que a natureza do nosso negócio, com o seu movimento, exigia um apartamento em East Side com entrada privativa.
-Vocês vão querer passar o mais despercebidos possível - disse ele-e minimizar a curiosidade dos vizinhos, a atenção dos porteiros, empregados de elevadores, etc.
Gotwold admitiu que tais apartamentos eram raros, especialmente do tamanho e na zona que queríamos. Uma vivenda seria a solução ideal, mas o custo seria proibitivo.
- Encontraste alguma coisa para nós, Oscar? - perguntou Martha.
Mas ele não tinha pressa. Depois de nos torturar com alguns candidatos pouco atraentes, disse-nos finalmente que o seu assistente tinha localizado uma penthouse1 de um edifício moderno, de vinte enove andares, da 81ª Avenida Leste, próximo da 3ª Avenida. Três quartos e um escritório que poderia ser facilmente convertido em mais um quarto. Completamente mobilada, incluindo roupas e equipamento de cozinha.
- Podiam mudar-se amanhã só com uma escova de dentes - garantiu-nos.
Apenthouse estava actualmente alugada, com um contrato de três anos, a um homem que se tinha mudado para Roma até os seus problemas com as Finanças ficarem resolvidos. Entretanto, ele estava a sub-alugá-la numa base mensal, na sua maior parte a grandes empresas para alojarem executivos vindos de fora, ou visitantes estrangeiros.
Havia trezentos apartamentos no edifício, o que fazia que o átrio
1. Apartamento de luxo que ocupa o último andar de um prédio. (N. da T.)
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fosse bastante movimentado. Havia dois porteiros de serviço durante o dia e um à noite. O sistema de segurança incluía sistemas de alarme em todos os apartamentos, e câmaras de televisão de circuito fechado em todos os andares, com monitores na mesa do porteiro.
- O melhor de tudo - disse ele -, é que a penthouse tem o seu próprio elevador, por isso aí têm a vossa entrada privativa. Só se pode entrar depois de o morador da penthouse ter identificado o visitante num intercomunicador e carregado no botão para accionar o elevador.
- Oscar - disse Martha -, tu foste ver a penthouse?
- Fui - respondeu ele. - Está muito bem mobilada, na minha opinião. Muito moderno. Muito vidro e aço inoxidável. A sala é enorme, decorada em tons de bege e areia. Bons tapetes. Os três quartos estão decorados em cores diferentes: cor-de-rosa, azul e verde. Três casas de banho e uma retrete. Terraço, escritório, despensa, cozinha e casa de jantar.
- Meu Deus! - disse eu. - Quanto custa essa penthouse? Oscar Gotwold olhou para nós com um sorriso maroto.
- Sete mil e quinhentos por mês. Ficamos calados.
- Não vos dão mais que um contrato por um ano-disse o advogado. - No caso de o dono resolver os seus problemas com os impostos e querer voltar. Se a alugarem por um ano, eu acho que eles descem até aos sete mil. Dois meses de depósito.
- É mais do que queríamos gastar - disse eu em voz baixa.
- Eu sei-disse Gotwold.-Mas, em minha opinião, devem, pelo menos ir ver.
- Está bem - disse Martha com firmeza.
- Óptimo. E, agora, posso dar-vos alguns conselhos?
- Com certeza.
- Por causa da, ah, natureza peculiar do vosso negócio, deviam, na minha opinião, se decidirem alugar apenthouse, tomar precauções para disfarçarem as vossas actividades. O gerente e os porteiros terão de ser pagos, claro. Mas, mesmo com o elevador privativo, os outros moradores do edifício podem reparar no movimento pouco usual.
- O que sugere? - perguntei.
- Oh... - disse o advogado com o seu sorriso matreiro. - Qualquer negócio ou associação que fornecesse uma fachada de respeitabilidade e justificasse as idas e vindas dos vossos, ah, empregados ou clientes.
- Uma boutique? - sugeriu Martha.
- Oh, não - disse Gotwold. - O prédio não está autorizado a ter nada desse género. Na minha opinião, seria melhor algum tipo de serviço. Eu estava a pensar mais numa escola que ensinasse ioga ou uma religião esotérica oriental.
- Uma escola? - disse eu. - Eu podia ensinar actores.
-Podia? - disse o advogado.-Uma escola de actores? Isso pode
servir. Justificaria o movimento do elevador privativo. Podiam colocar uma modesta tabuleta de bronze.
- Academia de Arte Dramática de Peter - disse eu.
- Esplêndido! - exclamou Oscar Gotwold, com um sorriso largo.
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Jenny Tolliver tinha ido passar o Dia de Acção de Graças a casa dos pais. Arthur Enders tinha um encontro. Martha Twombly estava com uma enorme constipação. King Hayes, Wolcott Sands e alguns dos outros garanhões estavam a planear um jantar no Blotto. Fui convidado, mas recusei. Queria passar a noite sozinho.
O que era estranho, pois eu não era um homem que gostasse da solidão. Mas, ultimamente, as pessoas sufocavam-me. Eu sentia necessidade de sossego, de paz, de um momento para reflectir.
Almocei tarde e depois, como não tinha cenas marcadas para o feriado, fui para casa e dormi o resto da tarde. Passei parte da noite a ver televisão e a beber vodkas nos meus novos e belos copos suecos.
Cerca das dez horas, como não tinha sono, tomei um duche, fiz a barba e vesti o meu novo smoking. Verificando os bolsos para me certificar de que tinha o meu novo isqueiro de ouro Dupont e um maço de Geuloise Bleues (muito em moda nesse ano), saí para a noite escura, rasgada por rajadas de chuva gelada.
Apanhei um táxi para um piano bar que conhecia em East Side, mas descobri que estava fechado no Dia de Acção de Graças. Por isso, disse ao motorista do táxi que prosseguisse para sul, para o Hotel Parker Meridien, na 57ª Avenida Oeste.
O elegante bar estava cheio de gente, e todas as mesas e bancos estavam ocupados, mas encontrei um lugar ao canto do bar e mandei vir meia garrafa de champanhe. Acendi um cigarro, bebi um golo e olhei magnanimamente em redor.
Eu era a única pessoa só na sala. Havia alguns grupos de homens e de mulheres, estas em menos quantidade, mas a maior parte eram casais, com o homem e a mulher ansiosamente debruçados Um sobre o outro. Não senti solidão, nem inveja. Olhei para estes amantes com simpatia, desejando-lhes sorte.
Quando Martha me acusara de ser "mole", de acreditar no romance da minha nova carreira, ela tinha tido razão, e o seu desdém, tinha-me obrigado a olhar mais atentamente para as minhas actividades.
Mas eu achava que o realismo dela era cinismo. Ao beber o champanhe e a olhar para todos aqueles casais sorridentes, compreendi subitamente que eu não era um mero vendedor de corpos.
O que eu vendia era sonhos.
As mulheres que pagavam cem dólares por uma cena - não estavam elas a tentar concretizar uma fantasia? E aquela cliente que insistia que o seu garanhão preferido, um bom mímico, imitasse Clark Gable na cama? E a cliente que trazia latas de natas, ou a que não conseguia ter um orgasmo a não ser que estivesse a ouvir um disco de Mário Lanza?
Disse a mim próprio que estava a dar a todas essas mulheres a oportunidade de realizarem os seus sonhos mais loucos e os seus desejos mais enigmáticos.
Nesse sentido, disse a mim próprio, eu não estava longe de desempenhar o papel de psicoterapeuta. Estava a possibilitar que as mulheres se sentissem realizadas.
Satisfeito com esta concepção de mim próprio, mandei vir outra meia garrafa de champanhe e acariciei com satisfação a lapela de seda do meu smoking.
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Quando contei a Martha a minha cena com Coral, estava à espera de que ela desatasse à gargalhada. Mas ficou de olhos arregalados.
- Não acredito! Peter, eu já vi muitos travestis, mas podia jurar que Coral era uma mulher.
- Bem, ela, ele, não é - disse eu, zangado. - Eu sei.
-Desculpa-disse Martha num tom humilde.-Mas tens de admitir que ela, ele, parecia uma garota e peras.
- Esquece - disse eu. - A culpa não foi tua. Ela suspirou.
- Tenho outro problema. Há esta mulher, chama-se Becky, que quer uma cena. Ela é viúva, cheia de massa, com muitas amigas ricas que nos podia mandar.
- Então? Qual é o problema?
- Becky tem oitenta e quatro anos.
- Meu Deus!
- Escuta, tens algum garanhão entradote que talvez goste de se gabar de ter fornicado uma octogenária?
- Tu bem sabes - disse eu - que não há tipos desses.
- Oh, sei lá-disse Martha, recordando. - Quando eu estava
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naquela casa em Chicago, tínhamos um cliente que dizia que tinha ido para a cama com uma mulher de cem anos, no Peru.
Peter, ficas com ela?
- Isso é grosseiro.
-Claro que é - disse ela alegremente. -
- Se ela tiver uma paragem cardíaca, a culpa é tua.
Becky era uma mulher pequena, gorducha e alegre, com o cabelo branco com tonalidades azuis. A pele era aveludada. Tinha olhos castanhos vivos e um sorriso maroto. Anéis enormes em todos os dedos, incluindo os polegares.
Ajudei-a a despir o casaco de chinchila.
- Um casaco belíssimo - disse eu.
-Gostas?-disse ela, satisfeita.-Filho, tu tens bom gosto. Comprei-o no ano passado e, imagina, uma das minhas noras disse: "Mãe, para que quer um casaco novo com a sua idade?" Estás a imaginar? Ela estava a querer dizer que eu não iria viver o tempo suficiente para o gozar.
- Bem, não te preocupes - disse-lhe eu. - Tu vais viver para sempre. Quantos filhos tens?
- Cinco filhos, catorze netos e três bisnetos. Todos vivos e de boa saúde, graças a Deus.
- Que maravilha! - disse eu, sorrindo. - Deves ter uma lista de presentes de Natal enorme.
- Eu dou dinheiro - disse Becky. - Serve sempre e nunca ninguém o devolve. És casado, filho?
- Divorciado. E não estou interessado em conhecer uma boa rapariga.
- Tu é que sabes - disse ela, encolhendo os ombros. - Mas vais-te arrepender. O meu casamento foi tão feliz, que eu quero que todos sejam felizes como eu fui. Tive cinquenta e oito anos maravilhosos.
- Como é que o teu marido morreu?
-Morreu engasgado numa espinha de peixe-disse Becky.-Numa festa. O engraçado é que Morris nunca gostou de peixe. Só estaVa a comê-lo por delicadeza.
No quarto, elogiei a combinação que ela tinha vestida. Era de seda crua enfeitada com renda. - De Paris, França-disse ela com orgulho.-Eu gosto de coisas belas. - Estudou o meu corpo nu. - Filho, tu tens um corpo bonito, mas estás muito magro. Eu acho que não andas a comer bem.
Claro que como - protestei. - Muita comida boa e nutritiva. Então, por que é que se te vêem as costelas? - Tomou o meu
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rosto nas suas mãos.-Escuta, filho, não tenhas medo de me magoar. Não vais partir nada. Eu sou uma velhota rija.
Ela era mais do que rija; era uma amante enérgica e turbulenta. por alguns momentos, tive de me agarrar à cabeceira da cama para não ser atirado para fora da cama.
O seu corpo era firme e fofo. Seios pequenos, rosados, coxas macias, um traseiro almofadado. Fiz votos para estar em tão bom estado como ela, quando tivesse oitenta e quatro anos.
Ela fez-me trabalhar e, após algum tempo, a sua paixão tornou-se um desafio e fez-me esquecer a sua idade. Ela sabia truques que me eram desconhecidos e foi-me difícil acompanhá-la.
Quando finalmente acabámos, eu estava a soluçar, a gritar e a resfolegar como um geyser. Becky deu-me palmadinhas de conforto no ombro, e eu decidi que Morris não tinha morrido engasgado numa espinha; tinha morrido de exaustão.
Becky tornou-se uma cliente regular, passando por todos os garanhões do meu estábulo. Os rapazes chamavam-lhe Avozinha Moisés e adoravam a sua energia, bom humor e disposição para escutar os seus problemas pessoais e dar conselhos.
Além disso, sempre que aparecia para uma cena, ela trazia uma bela caixa de biscoitos caseiros para o garanhão.
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Oscar Gotwold telefonou ao agente imobiliário, e este telefonou ao gerente do Delacroix que deu instruções a um dos porteiros para que permitisse que eu e Martha Twombly inspeccionássemos a penthouse.
O porteiro, que nos disse que se chamava Max, levou-nos para cima no elevador privativo. No décimo nono andar, ele abriu a porta do apartamento, disse-nos que levássemos o tempo que quiséssemos, que fechássemos a porta quando saíssemos e que falássemos com ele antes de nos irmos embora.
Percorremos lentamente o apartamento. A sala era, de facto, enorme, as outras divisões eram igualmente amplas, e a decoração não era demasiado brilhante.
Os quartos, as casas de banho e a cozinha estavam completamente mobiladas e equipadas com roupa e acessórios. Aparelhos de televisão na sala e no quarto principal. Um aparelho de alta fidelidade, gravador no escritório, com altifalantes controlados individualizados nas outras divisões.
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O terraço, em forma de L, tinha vista para sul e para oeste. Via-se parte do Central Park, o horizonte da parte inferior de Manhattan, o west Side e New Jersey, ao longe, na neblina.
No interior, planeámos como poderíamos utilizar a espaçosa entrada como recepção, e o escritório.
- No outro dia-disse Martha -, uma cliente perguntou se seria possível dar uma festa para as amigas, com os garanhões a servirem de empregados. A seguir, depois do almoço, iriam todos para a cama. Tive de lhe dizer que não tínhamos instalações adequadas. Com este lugar, poderíamos facilmente organizar festas. Viste o tamanho da cozinha?
Descemos, despedimo-nos de Max e fomos até ao apartamento de Martha. Tinha nevado e chovido na noite anterior, e os passeios estavam traiçoeiros. Martha pegou-me no braço. Não falámos até chegarmos a casa dela.
Depois, começámos a fazer contas. A grande despesa inicial seria de vinte e um mil dólares pela renda de um mês e depósito de dois meses. Depois disso, pagaríamos setecentos dólares por mês, mais telefone, luz, lavandaria, subornos ao gerente e aos porteiros, os honorários de Sol Hoffheimer, etc.
- Futter talvez suba o seu preço quando vir o apartamento - disse eu.
Martha acrescentou:
- Teremos de ter uma empregada pelo menos oito horas por dia. E pessoal de limpeza. Digamos mais trezentos por semana.
Pouparíamos alguma coisa ao deixarmos o estúdio na 68ª Avenida Oeste e o meu apartamento da 75ª. Mas este apartamento exigiria um enorme investimento - disso não havia dúvida.
Se estivéssemos abertos seis dias por semana, doze horas por dia, do meio-dia à meia-noite, poderíamos ter uma média de vinte cinco clientes por dia. Isso dar-nos-ia um rendimento ilíquido de cerca de sessenta e cinco mil dólares por mês, mas apenas trinta e dois mil e Quinhentos depois dos pagamentos aos garanhões.
Mesmo deduzindo a renda e as despesas, o que ficava ainda parecia bom. Pensámos que poderíamos ficar com vinte e dois mil por mês. A estimativa de Martha era de vinte mil.
"Dez mil por mês para cada um não é mau - disse ela. - Vamos em frente.
"Vamos - concordei.
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O meu único grande problema em me mudar era Jenny Tolliver. Que mentira poderia eu contar-lhe para explicar a mudança para um apartamento luxuoso em East Side? A minha imaginação febril inventou uma dúzia de explicações, todas elas fantásticas. Eu podia, claro, contar-lhe a verdade, mas não me atrevia.
Na realidade, não valia a pena ter-me preocupado.
Tínhamos planeado passar juntos uma véspera de Natal festiva. Vestir-nos-íamos a rigor, jantaríamos no Four Seasons, depois iríamos a uma boite grega dançar e atirar pratos.
Comprei a Jenny um colar de pérolas de cultura dentro de uma caixa comprida de veludo forrada de cetim branco. Mil dólares, mas não me importei. Estava muito bem disposto, com o meu smoking e botões de punho novos, de ónix, comprados na Tiffany, e uma orquídea em miniatura na lapela.
Mas, quando abriu a porta, ela tinha vestido o velho roupão de flanela com o cordão a desfiar-se e não tinha maquilhagem.
- Que se passa? - perguntei, num tom ansioso. - Doente?
- Entra - disse ela friamente. - Quero conversar contigo.
"Oh-oh", pensei.
- Já que estava perto do Kings Arms, ontem - disse ela, olhando-me fixamente -, pensei em entrar só para te cumprimentar.
- Ah - disse eu. - Eu não trabalhei lá ontem.
- O gerente disse-me que não trabalhas lá. Não trabalhas lá desde o ano passado. Peter, por que é que me tens andado a mentir?
- A mentir, não - disse eu. - Não exactamente. Posso beber
qualquer coisa?
- Não - disse ela. - Que é que tens andado afazer? Toda a tua roupa nova e os restaurantes caros onde temos ido.. de onde vem todo esse dinheiro?
- Uma herança - disse eu subitamente. - Um tio rico.
- Outro tio rico? Pareces ter uma fonte inesgotável. Peter, por favor, diz-me a verdade. Que tens andado a fazer?
- Bem.. ah.. é uma história comprida.
- Eu tenho todo o tempo do mundo. O chapéu atirado para trás.
Comecei a andar de um lado para o outro, para longe do seu olhar claro e directo, com o casaco desabotoado.
- Peter - disse ela, numa voz calma -, tens andado a fazer filmes pornográficos?
-O quê?-disse eu, com uma gargalhada.-Claro que não. Aléro
disso, eles não rendem nada.
Desisti. Dir-lhe-ia algo perto da verdade.
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- É esta mulher - disse eu em voz baixa, arrastando o pé na carpete. - Uma mulher velha e só. Ela dá-me dinheiro.
- Tu és um gigolo?
- Uma espécie.
- Fazes sexo com ela?
- Oh, não - disse eu rapidamente. - Nada disso. Eu já te disse que ela é velha. Setenta, pelo menos. Eu só a acompanho a restaurantes. E jogos de hóquei. Ela adora jogos de hóquei. Mas nada de sexo. Nada disso. Ela sente-se só, é tudo.
- Como é que ela se chama?
- Uh.. Martha Twombly.
- E onde mora?
- No East Side.
- E com que frequência a vês?
- Duas, talvez três vezes por semana.
- E ela paga-te?
- Paga.
- Quanto?
- Oh.. cinquenta, cem por noite.
- Então, tens recebido dela algumas centenas por semana?
-Bem.. cerca disso-disse eu cautelosamente. -Às vezes mais. -E com isso tu tens comprado casacos, fatos, camisas, sapatos novos, jóias?
- Bem, ah, às vezes, ela dá-me presentes.
- Maldito! - gritou ela. - Não consegues deixar de me mentir? Não compreendes que é um insulto à minha inteligência? Não vês como isso me faz sentir? Há mais de uma mulher, não há?
- Há - disse eu, suspirando.
- Sim - disse ela. - Há muitas mulheres. Muitas. Tu andas a foder por dinheiro, não andas?
- Não é nada disso - protestei.
- Não? - disse ela. - O que fazes? Leva-las todas a jogos de hóquei?
- Tu não compreendes - disse eu, e comecei eloquentemente a explicar o meu papel na libertação destas pobres mulheres perturbadas das suas inibições e frustrações.
Enquanto eu falava, Jenny Tolliver levantou-se e foi à cozinha. Voltou com um copo de brande para ela, mas sem nada para mim. Sentou-se na poltrona que outrora fora minha-e ouviu a minha retórica.
Por fim, quando acabei, ela disse calmamente:
- O pior, o pior de tudo, é que tu acreditas nisso tudo, não acreditas? Sempre conseguiste iludir-te a ti próprio. Sempre!
-Isso não é justo-disse eu.-E não é verdade. Tenho de ganhar
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a vida, não tenho? Eu sou realista. E não há empregos para actores, por isso, eu..
-Alguma vez pensaste - interrompeu ela - que talvez seja por seres um péssimo actor?
- Essa é a tua opinião - disse eu, inseguro.
Ela bebeu um golo de brande, depois respirou fundo.
- Acho que é melhor ires-te embora. - Os seus lábios tremiam. Pareceu-me que os olhos brilhavam, mas não tive a certeza.
Olhei para ela com desejo e saudade. Que mulher! Nunca encontraria outra como ela. Agora, na separação, vi o que estava a perder: como ela era completa, a elegância do seu corpo, a glória de fazer amor com ela.
Tentei o acto de charme que tinha funcionado tão bem com Arthur Enders.
- Podemos continuar a ser amigos-disse eu, com um sorriso cativante. - Não podemos?
Os olhos dela não estavam, de facto, a brilhar. Ela olhou-me atentamente.
- Não - disse ela. - Acho que não.
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Fui a pé até à Broadway, encontrei finalmente uma cabina telefónica a funcionar e telefonei a Martha.
- Ocupada esta noite? - perguntei-lhe. A voz dela parecia entaramelada.
- Que se passa? - disse ela. - Foste abandonado?
- Uma coisa parecida.
- Eu também. Vem até cá.
Levei vinte minutos a arranjar um táxi. E, ao longo de todo o caminho através do Central Park, o motorista queixou-se amargamente da pobreza das gorjetas na véspera da celebração do nascimento de Cristo.
- Que espécie de merda é esta? - perguntou ele.
- Todos nós temos problemas - disse-lhe eu.
Martha estava toda aperaltada com um vestido sem alças de lamé prateado. O cabelo vermelho tinha sido penteado por um cabeleireiro e a maquilhagem tinha sido aplicada por um profissional. Descalçou os chinelos de seda prateada.
Olhando para o meu smoking, sorriu ironicamente.
119
- Olha que dois - disse ela. - Todos bem vestidos e sem ter para onde ir.
- Queres uma festa? - sugeri. - Estou disposto.
-Agora é demasiado tarde - disse ela.- Estou meio embriagada. Aqui.. serve-te.
Ela estava a comer enguias fumadas e a beber slivovitz1. A lata e a garrafa estavam no chão a seu lado.
-Eu passo-disse eu, fazendo uma careta.-Posso beber um Armagnac?
- Serve-te. Que aconteceu à tua rapariga?
- Ela descobriu o que eu tenho andado a fazer. Por isso, acabou-se tudo.
- Lamento muito, Peter - disse ela.
-Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde. Mesmo assim, sinto-me como se tivesse apanhado um pontapé na virilha. Vou ter saudades dela. Que te aconteceu a ti?
Ela bebeu um golo do brande de ameixa.
- A mulher e os filhos do meu homem foram passar uma semana de férias a Tobago. Ele devia ir ter com eles daqui a uns dias, mas prometeu passar a Noite de Natal comigo. íamos jantar a um lugar pequeno e discreto, seria a primeira vez que estaria com ele em público, depois voltaríamos para aqui para uma noite de folguedos. Mas ele telefonou à última hora a cancelar. Um político importante qualquer convidou-o para jantar, e ele não pôde dizer que não. Ficou aborrecido, mas isso que importa?
- Lamento muito, Martha. Ela encolheu os ombros.
- Ele há-de pagar, duma maneira ou doutra.
- Importas-te que tire a gravata e o casaco?
- Põe-te à vontade. Coloca a corrente na porta e vem-te sentar aqui ao pé de mim.
Coloquei o meu braço à volta dos seus ombros nus e ela encostou-se a mim. Era uma estranha mistura de odores: o almiscarado da sua pele, um perfume leve, enguias fumadas e slivovitz.
- Fala-me sobre o teu tipo - disse eu. - Rico?
- É a mulher que tem o dinheiro. Ela é da alta sociedade e muito ambiciosa. Eu acho que ela gostaria de ser a Primeira Dama.
- Estás a brincar?
- Não. E não é impossível. O homem com quem ele vai jantar esta noite tem muita influência. Se ele decidir apoiar o meu amigo, a máquina vai fazê-lo avançar depressa. Ele pode ser o nosso próximo governador.
1. Aguardente de ameixa. (N. da T.)
120
- Ena, pá!
-Ele é o candidato perfeito: alto, belo de uma maneira vigorosa, casado, com filhos fotogénicos. Fica muito bem na televisão e a família da mulher tem dinheiro suficiente para fazer uma campanha em grande estilo.
- Não me vais dizer quem ele é, pois não?
- Não. Dá-me um beijo.
A boca dela sabia a enguias.
- Chega de preliminares - disse ela. - Vamos esquecer os nossos problemas na cama.
No quarto, despimo-nos lentamente, conversando sobre as coisas que tinham de ser feitas na semana seguinte: assinar o contrato da penthouse Delacroix, transferir dinheiro, contratar uma empregada doméstica, comprar uma pequena secretária e uma cadeira para a entrada, mandar ligar os telefones, telefonar a Con Ed, etc.
Estava nu, prestes a deitar-me a seu lado, quando parei e disse:
- Aguarda um momento.
Voltei à sala, tirei a caixa de veludo preto do bolso do casaco. Trouxe-o a Martha, inclinei-me para lhe beijar o rosto.
- Feliz Natal, querida - disse eu.
Ela sorriu, abriu a caixa e inspirou profundamente.
-Que lindo-disse ela. - Absolutamente lindo. Obrigada. A tua prenda está pendurada no guarda-vestidos. Na frente. Vai ver.
Olhei e encontrei um roupão grená de caxemira. Sorri. A minha ex-mulher, algumas mulheres que conhecera, Jenny e agora Martha, todas me deram roupões.
Vesti-o.
- Tamanho perfeito-disse. - Obrigado. Estou contente por ser
do tamanho do teu namorado.
- Maior - disse-me ela. - Onde interessa. E ainda bem que a tua garota correu contigo antes de lhe teres dado as pérolas. Feliz Natal, querido.
Eu estava a pendurar o roupão quando um objecto caiu do guarda-vestidos. Baixei-me para o apanhar.
- Para que é isto? - perguntei-lhe, segurando um chicote de montar, de cabedal entrançado. - Não sabia que caçavas a cavalo.
- É para os folguedos - disse ela num tom casual. - Guarda isso e vem para a cama.
Ela insistiu em usar as pérolas, e ajudei-a com o fecho. Depois fizemos amor. A nossa união foi um combate físico misturado com histeria. Não houve ternura. Apenas desespero. Chamámos nomes obscenos um ao outro.
Depois, esgotados, separámo-nos e olhámos, derrotados, para os olhos um do outro.
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- Meu Deus! - disse Martha, desatando subitamente a chorar. - Abraça-me.
Por isso abracei-a.
58
Na noite de Fim do Ano, eu ainda estava a meter nas malas as coisas de última hora. O meu apartamento tinha sido subalugado a Wolcott Sands e os meus objectos pessoais tais como roupa, discos, cassetes e peças de teatro tinham sido transferidos para a penthouse, em East Side.
Mas no último dia do ano eu estava ocupado a encher duas malas novas Mark Cross com camisas, gravatas, jóias, artigos de toilette, as minhas bebidas e os quase três mil dólares que ficaram depois de ter pago a minha parte da renda e do depósito do apartamento.
Quando ouvi os gritos e os foguetes à meia-noite, bebi um copo de champanhe, acabei de fazer as malas. Acordei fresco e bebi outro copo de champanhe misturado com sumo de laranja.
Tendo decidido sair do West Side em grande estilo, tinha alugado uma enorme limusina Cadillac, que chegou pontualmente às três da tarde. O motorista carregou a minha bagagem e fechei a porta do apartamento atrás de mim sem olhar para trás. Senti-me liberto e alegre.
Estava um dia frio, agreste e claro. Havia manchas de neve no Central Park, e o sol dançava nas janelas dos arranha-céus de East Side. Dentro da limusina estava quente, o ar cheirava a cabedal. Isto era, decidi, classe.
No Delacroix, Max, o porteiro, ajudou-me a levar a bagagem para cima. Dei-lhe dez dólares. Ficou impressionado e grato. Dentro do apartamento, encontrei, em cima do balcão da cozinha, uma garrafa de Armagnac com um bilhete de Martha.
Bem-vindo ao nosso novo apartamento.
Fui até uma churrasqueira comer um prego, batatas fritas e uma garrafa de Lõwenbrau preta. Depois regressei `à penthouse e comecei a arrumar as minhas coisas no escritório e no quarto principal.
Acabei um pouco antes da meia-noite, abri o brande de Martha e deitei uma dose num copo. Levei-o para o terraço e fiquei junto da balaustrada, com a cidade a meus pés.
Abaixo de mim brilhavam luzes cintilantes e colares de 122
diamantes, rubis e esmeraldas. A cidade parecia mais rica no escuro, a pestanejar e cintilar, infinitamente prometedora.
Olhei durante muito tempo para esta maravilha, maravilhando-me como eu tinha vindo tão longe e ansiando pelo futuro.
Mas estava um frio cortante. Tremi e voltei para dentro.
59
Janeiro esteve prestes a ser um desastre. O factor inesperado que quase acabou connosco foi o tempo.
O frio que me tinha feito sair do terraço do apartamento foi o percursor de uma massa de ar gélido vindo do Canadá, congelando a costa oriental, trazendo ventos fortes, neve e chuva. A cidade esteve fechada durante quase duas semanas.
Num dia horroroso, quando a temperatura desceu a vinte graus negativos, apenas quatro mulheres excitadas lutaram através da tempestade para chegar ao meu apartamento.
O que nos salvou foi o nosso serviço de pedido por telefone. Com a primeira grande queda de neve, o telefone começou a tocar, à medida que as clientes sentiam os primeiros sintomas de febre de enclausuramento.
Os garanhões leais, com livros de amostras de papel de parede bem apertados debaixo do braço, arrastavam-se pela lama gelada para levar alívio às clientes que os aguardavam ansiosamente. As gorjetas eram boas, e o negócio manteve-se suficientemente activo para nos fazer ultrapassar a nossa crise de dinheiro.
Lá mais para o meio do mês, à medida que o tempo melhorava, o mesmo aconteceu às nossas perspectivas. Demos uma festa no domingo à tarde para todos os garanhões, para os apresentar ao seu novo local de trabalho e explicar o sistema de compensação melhorado.
Martha Twombly fez de anfitriã, uma vez que ela conhecia intimamente, mesmo que por pouco tempo, todos os homens presentes, e eles escutaram atentamente o seu discurso de boas-vindas.
Ela disse-lhes que ficaria a trabalhar como recepcionista à secretária da entrada. As clientes pagar-lhe-iam em dinheiro antes da cena. Depois de a cliente - presumivelmente satisfeita - ter partido, os cinquenta dólares seriam pagos ao garanhão.
Este comunicado foi recebido com gritos de aplauso.
Foi dito aos garanhões que deviam ir-se embora o mais depressa possível depois da cena, para que o quarto pudesse ser arrumado. Se os moradores do Delacroix lhes fizessem perguntas, deviam responder
123
que eram estudantes da Academia de Arte Dramática de peter.
Esta comunicação foi recebida com alguma alegria.
A pontualidade, acentuou Martha, era fundamental; as clientes não gostavam de ficar à espera. Como incentivo adicional, um prémio mensal de cem dólares seria atribuído ao garanhão com o maior registo de produtividade satisfatória.
Este anúncio foi recebido com aplausos, e Wolcott Sands propôs um brinde ao êxito da nova casa.
60
Durante aquela terrível primeira semana, Martha Twombly atravessava esforçadamente as ruas todos os dias, no meio dos montes de neve cheios de lixo para chegar ao apartamento. Trouxera com ela uma fotocópia da lista de clientes da Boutique Barcarole que tinha inteligentemente tirado no seu último dia como gerente.
Também trouxe Nicole Radburn, que apresentou como "a senhora que me livrou de Luke Futter". Fiquei surpreendido. Martha tinha descrito a prostituta como jovem e bela, mas não achei que fosse nenhuma dessas coisas em especial. Vinte e seis anos, pelo menos, calculei, e mais vistosa que bonita.
Fiz um bule de café e sentámo-nos na sala cavernosa, falando sobre o tempo e o negócio. Vi que havia um laço forte entre as duas mulheres, apesar do alegre desdém de uma pela outra. Nikki chamava "Madame Defarge" a Martha, e Martha referia-se à prostituta como "Miss Mamilos".
Era ao fim da tarde, e a neve tinha começado a cair de novo. Estavam a prever vinte cinco a trinta centímetros. As mulheres tinham planeado jantar fora, mas insisti com elas para que ficassem a comer sopa enlatada, galinha de churrasco e salada.
Elas concordaram prontamente com o piquenique dentro de casa, descalçaram os sapatos e instalaram-se enquanto eu preparei um jarro de cocktails com vodka. Enquanto as mulheres comparavam os méritos e os problemas das suas profissões, eu escutei, sorrindo, e olhei melhor para Nicole Radburn.
Era quase tão alta como eu, constituída como um Eberhard Faber º - 2 Cabelo preto comprido com uma madeixa branca. Um rosto
1. Marca de lápis. (N. da T.)
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triangular que terminava num queixo pronunciado. Aboca era grande e curva; as suas gargalhadas eram estrondosas. Os olhos eram tremendos; podia-se nadar neles.
Estava tão embrulhada em camisolas que eu não conseguia avaliar-lhe o corpo, mas calculei que fosse magro, rijo e vigoroso. Não era suave e cheio como o de Jenny Tolliver, mas pressenti uma força cinética que Jenny não possuía.
Quando Martha explicou que estávamos a utilizar a Academia de Arte Dramática de Peter como um disfarce. Nicole sugeriu que a Academia constasse na lista telefónica em vez do meu nome. Perguntei-lhe se ela utilizava um disfarce.
- Apenas por causa dos impostos - disse ela num tom sério. - Eu sou professora. É legítimo; tenho uma licença. Quando quero, trabalho como temporária em escolas particulares de Manhattan. Sou, de facto, uma boa professora, e isso dá-me uma cobertura legal. Declaro o dinheiro até ao último tostão.
- Que é que ensinas?
- Inglês e composição. Tenho um mestrado em literatura inglesa. Eu costumava ensinar a tempo inteiro. Só ando na vida há dois anos.
- Dois anos maravilhosos! - disse Martha, sorrindo.
- Dois anos proveitosos - disse Nicole, sem sorrir.
Fomos para a cozinha e, enquanto preparávamos o jantar, fiz um bom estrago num jarro de vinho da Califórnia.
Depois, bebemos Armagnac no escritório e vimos a previsão meteorológica da televisão. Os autocarros tinham deixado de circular e a maior parte dos táxis tinha recolhido.
- Merda! - disse Martha. - Nikki, é melhor irmos andando, se quisermos chegar a casa.
- Escutem - disse eu. - Nós temos três quartos aqui. Por que não ficam cá a noite? Posso emprestar-vos pijamas.
- Martha? - disse Nikki.
- Por mim, tudo bem - disse a mulher mais velha.- Mas o pijama que se lixe. Eu durmo despida.
- Eu aceito o casaco - disse Nicole. - Obrigada, Peter.
Vimos um filme péssimo na televisão enquanto acabávamos o brande, fomos à cozinha comer pudim de chocolate enlatado e retirámo-nos para os nossos quartos separados.
Pouco depois da meia-noite, eu estava na cama a ler uma peça que não fora produzida, Lugares, Todos! Era horrível, mas tinha um papel maravilhoso para mim. Ao ler a peça pela milésima vez, sonhei o que eu faria com aquele papel.
A porta do quarto abriu-se, e a cabeça de Nicole Radburn apareceu.
- Olá - disse ela.
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- Olá - disse eu.
- Posso entrar?
- Com certeza.
Fechou a porta atrás de si. Tinha vestido um dos meus casacos de pijama. As suas pernas nuas eram longas e bem musculadas. Pernas de corredora. A pele era morena. Havia um pequeno sinal na coxa direita, um disco de veludo.
- Apenas uma visita - disse ela. - Nada de sexo. Está bem?
- Está bem - disse eu -, se me disseres por que é que Martha te chama Miss Mamilos.
Ela desabotoou o casaco e mostrou-me.
- Incrível - disse eu. - Quantos homens já cegaste?
- Tenho feito muitos homens felizes. Tens uma lima de unhas?
- Há algumas limas de cartão no armário da casa de banho - disse eu.
Ela saiu da casa de banho, a estudar a embalagem.
- Oitenta e nove cêntimos! - exclamou ela.-Um roubo. Paguei cinquenta e nove por uma igual, num supermercado.
Dei uma gargalhada.
- É assim tão importante para ti poupar trinta cêntimos?
- Podes crer que é. Sou muito cuidadosa com o dinheiro.
Sentou-se à beira da minha cama, com uma perna curvada. O casaco de pijama estava aberto, mas ela tinha um biquini branco vestido. O seu corpo era rijo e ossudo. Viam-se as costelas. E as ancas.
- Tens um óptimo aspecto - disse eu. - Como é que te manténs em forma?
- Faço ginástica três vezes por semana.
- É o que eu devia fazer.
Ela levantou o cobertor e o lençol e olhou para o meu corpo nu.
- Tu estás bem - disse ela. - Bom pirilau.
Tapou-me e, ainda a limar as unhas, olhou em redor do quarto.
- Este é um belo apartamento, Peter.
- Tem obrigação disso, pelo preço que pagamos.
-Martha contou-me-disse ela. - Não te preocupes, vocês conseguem.
- Se alguma vez parar de nevar. Como te correm as coisas?
- Não me posso queixar - disse ela. - No ano passado fiz cinquenta mil. Sem contar com o que ganhei como professora.
- Quanto levas?
- Mínimo cem. Mais por truques.
- Tens um papá? Ela olhou para mim.
- Não - disse. - Quando comecei, tive. Mas, comercialmente, não fazia sentido, por isso livrei-me dele.
126
- Como é que conseguiste fazer isso?
- Um dos meus regulares é um duro e ele tomou conta do assunto por mim. Deu um turbante ao chulo.
- Um turbante?
- Tu sabes - disse ela, gesticulando. - Uma ligadura. Partiu a cabeça do meu chulo. O tipo nunca mais me incomodou depois disso. Estou rigorosamente sozinha.
- Como é que arranjas clientes novos?
- A maior parte deles são enviados por outros. Muitos dos tipos de relações públicas têm o meu nome, por isso safo-me bem nos congressos. Raramente tenho de andar na rua. Calculo que trabalharei talvez mais dez anos. Mas, mesmo com cinquenta mil por ano, é difícil acumular capital para investir.
- Em dez anos fazes meio milhão.
- Não é suficiente - disse ela, abanando a cabeça. - Eu invisto em títulos municipais que estão livres de impostos mas, com os juros a uma média de dez por cento, só me darão cinquenta mil por ano quando me reformar.
- Só cinquenta mil! A mim, parece-me muito.
-Não, se a taxa de inflação for, em média, de dez por cento ao ano. Daqui a dez anos, cinquenta mil por ano não será nada, se um pão custar dez dólares.
Suspirei.
- Eu não percebo nada dessa alta finança.
- Queres dizer que não estás a poupar para o futuro?
- Nunca penso nisso.
- Mas devias pensar. Sabes alguma coisa sobre empresas de acções, sociedades por quotas, o plano Keogh, anuidades?
- Nada - confessei. - Mas gostava de começar a aprender. Disposta a ensinar-me?
- Claro, não sou nenhuma perita financeira, mas posso explicar as coisas básicas.
- Óptimo - disse eu. - Podemos ir jantar juntos?
- Por que não? Martha dar-te-á o meu número. Gostava de te voltar a ver. Mas nada de sexo. Está bem? Eu não dou o que posso vender. Compreendes isso, não compreendes?
- Com certeza - disse eu. - Nada de sexo. Mas isso não significa que não possamos ser amigos.
- Eu gostava de ter outra pessoa amiga. Martha é a minha única amiga.
- Como é que a conheceste?
- Ela costumava trabalhar na casa da minha mãe em Chicago, há alguns anos. Na realidade, Madame Defarge é minha madrinha.
127
Nicole foi à casa de banho pôr as limas. Quando voltou, inclinou-se sobre mim e beijou-me o rosto. Tinha um cheiro picante.
Ficou ao lado da cama, abriu o casaco de pijama e fez pose.
- Nada mau para uma velhota - disse ela. - Certo?
O seu corpo era ágil e tenso, nervoso. Calculei que, na cama, ela conseguia fazer os homens soluçar.
-Teriam de me descolar do tecto-disse-lhe eu. - Quantos anos tens, Nikki?
-Vinte e quatro - disse ela prontamente. - A caminho dos quarenta. Obrigada pela hospitalidade, Peter. Tu és boa gente. Adeuzinho.
Com um aceno de mão, saiu. Apaguei o candeeiro de cabeceira, puxei a coberta para cima e fechei os olhos. Mas continuava a ver aquele corpo moreno musculoso, as concavidades macias na cintura, aqueles incríveis mamilos pontiagudos.
Adormeci, mas o quarto ficou mais frio é dei voltas na cama, agitado. Mas depois, uma hora mais tarde, Martha entrou no meu quarto, na minha cama, e aqueceu-me.
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Para além do tempo, despesas inesperadas esvaziaram as nossas reservas naquele mês de Janeiro.
Por exemplo, ò nosso stock de roupa de cama, toalhas era manifestamente insuficiente, e tivemos de comprar dúzias de lençóis, fronhas, toalhas de mão e toalhas de banho. A roupa de cama e as toalhas eram, afinal de contas, mudadas depois de cada cena.
- Esta é uma operação com classe - insistia eu.
Quando o negócio melhorou, contratámos, através de uma agência, uma empregada doméstica a tempo inteiro. Era uma haitiana com pele de basalto chamada Patsy, que disse ter cinquenta e oito anos.
- E eu tenho vinte e três - disse Martha.
Calculámos que Patsy fosse uma imigrante ilegal e que ficaria encantada por trabalhar uma semana de quarenta e oito horas por duzentos limpos.
No final da hora que levou a compreender o que se passava, ela pediu trezentos.
Rendemo-nos. Ela era uma trabalhadora incansável e também uma cozinheira estupenda. Até lhe pagávamos extra para ficar mais tarde às sextas-feiras, para preparar a sua bouillabaisse especial.
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O choque financeiro seguinte veio através do detective Luke Futter. Ele agora queria mil por mês.
- Escutem - disse ele com o seu sorriso matreiro. - No East Side, é tudo mais caro. Além disso, no West Side eu trabalhava no meu próprio território. Mas aqui tenho de untar as mãos a três ou quatro tipos. Quero dizer, é o território deles. Vocês têm sorte em se safarem com mil por mês.
Resmungando, pagámos e fizemos votos para que garantisse protecção contra os polícias da ronda, etc.
Também tivemos de contar com subornos para os empregados do Delacroix. O gerente, um imbecil insultuoso que usava Chanel 5, pediu trezentos por mês, não negociáveis. Uma vez que não sabíamos como lidar com os três porteiros, decidimos finalmente pedir o conselho de Max, o tipo de dia mais velho.
Chamámo-lo lá acima, demos-lhe cerveja e dissemos-lhe o que fazíamos. Ele era um nativo de Brooklyn esperto, com um nome grego impossível de pronunciar e um bigode farfalhudo que ia de um lado ao outro do rosto. Escutou atentamente, depois perguntou:
- Não vai haver festas barulhentas?
- Certamente que não - garanti-lhe.
- Nem bêbados no átrio?
- Nunca - disse Martha. - E nada de droga. As nossas clientes são verdadeiras senhoras, e os rapazes portam-se bem.
- Vai-vos custar duzentos por mês - disse Max, enrolando o bigode. - Eu fico com cem. Setenta e cinco são para o outro tipo de dia e vinte cinco para o da noite.
- Eles vão aceitar? - perguntei.
- Que remédio! - disse Max num tom feroz.
Depois, havia o pessoal de limpeza duas vezes por semana, a enorme conta da lavandaria, as contas elevadas dos telefones e a pesada renda de sete mil dólares a aproximarem-se cada vez mais.
Mas, quando o tempo melhorou, as clientes começaram a aparecer e o nosso rendimento diário aumentou a bom ritmo. Sete clientes em 14 de Janeiro, vinte no dia 20, dezasseis a 23, vinte e um a 29. No último dia do mês atingimos o número mágico: vinte e cinco estudantes assistiram às aulas da Academia de Arte Dramática de Peter.
- Vamos conseguir - disse Martha num tom triunfante.
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Depois de me ter mudado para apenthouse, decidira eliminar as minhas cenas e dedicar-me à gestão a tempo inteiro. Mesmo com Martha de serviço do meio-dia às oito, surgiam problemas que necessitavam da minha atenção pessoal.
Por exemplo, tornou-se evidente que precisávamos de um substituto para os rapazes que se atrasavam ou não apareciam. Uma vez que isto acontecia duas ou três vezes por semana, eu não tinha outra opção senão substituir o garanhão em falta - ou perder a cliente.
Mas, perto do fim do mês, tive uma cena que não estava agendada, nem tinha precedentes.
Eu estava no escritório, a preparar a agenda da semana seguinte quando Martha entrou e se sentou na beira da secretária.
- Um problema - disse ela. - Há uma mulher na entrada que quer uma cena. Nunca a vi antes, nunca ouvi falar dela. Diz-me que lhe fomos recomendados por uma amiga. Eu conheço a mulher que ela mencionou, é uma cliente regular, e telefonei-lhe. Ela disse que sim, que nos tinha recomendado. Eu disse a esta mulher que está à espera, chama-se Connie, que é usual telefonar primeiro para marcar uma hora. Ela quase desatou a chorar. Está muito nervosa, Peter. Que queres fazer?
- Como é ela?
- Bastante apresentável. Podia ser atraente se fizesse alguma coisa ao cabelo e usasse maquilhagem. Queres ficar com ela? O quarto azul está disponível.
Pensei durante um momento.
- Está bem-disse, por fim.-Não gosto de clientes assim, mas, neste momento, não podemos dar-nos ao luxo de recusar ninguém. Manda-a entrar.
Connie estava mais que nervosa; estava perto da histeria. Tinha o rosto branco e as mãos mexiam-se descontroladamente. Os olhos pestanejavam, e, de vez em quando, tinha um tique facial que lhe repuxava um dos cantos da boca.
Conforme Martha dissera, uma ida ao cabeleireiro e maquilhagem teriam melhorado imensamente a sua aparência. E, tive vontade de lhe dizer, uma visita à Barcarole também ajudaria; tinha um vestido sem forma que lhe escondia o corpo.
Fui ter com ela ao quarto azul, levando dois copos de vinho branco. Apresentei-me, sorrindo, depois voltei-me para fechar a porta à chave.
- Não faças isso - disse ela, numa voz que esteve perigosamente perto de ser um grito.
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- Está bem-disse eu num tom inexpressivo. - Não está fechada à chave, estás a ver? Agora, por que não te sentas, bebes um copo de vinho e ficamos a conhecer-nos?
Eu falei a maior parte do tempo. Era difícil obter uma reacção dela. Sentou-se ali, rígida como uma tábua, apertando as mãos para elas não tremerem. Os dentes mordiam constantemente o lábio inferior. Tive medo de que, a qualquer momento, ela se quebrasse num milhão de pedaços.
- Ouve, Connie - disse eu, o mais suavemente que me foi possível. - Se quiseres desistir de tudo isto, a senhora da recepção devolve-te o dinheiro.
Ficou silenciosa durante muito tempo. Depois, disse:
- Não, quero continuar.
- Posso correr as cortinas, se quiseres.
- Deixa-as abertas - disse ela numa voz trémula. - Quero ver tudo.
- Queres despir-te?
- Vira-te.
Obediente, virei-me e despi-me rapidamente. Quando me deitei na cama a seu lado, ela estava deitada de costas, com os braços por cima dos seios e os olhos fechados; era uma pedra, tão rígida que tremia.
- Connie - disse eu suavemente -, não és virgem, pois não? A cabeça dela moveu-se rapidamente de um lado para o outro.
- Está bem - disse eu. - Não vou magoar-te. Quando quiseres que eu pare, diz-me, que eu paro. Confia em mim. Confias em mim?
Um aceno de cabeça.
Acariciei-lhe o cabelo emaranhado. Toquei-lhe levemente. Era um papel de compaixão, e desempenhei-o. Pontas dos dedos. Roçar de lábios. Murmúrios de ternura. Consegui que descruzasse os braços. Acariciei-a. Disse-lhe que era bela. Murmurei.
Os olhos dela continuaram fechados.
- Olha para mim - insisti. - Disseste que querias ver tudo. As pálpebras tremeram, entreabriram-se. Fitou-me nos olhos. Sorri.
- Só sou eu - disse eu. - Um tipo com tanto medo como tu. Levou algum tempo. Muito tempo. Mas, finalmente, penetrei-a.
Ela deixou-se ficar mole, a olhar para o tecto por cima da minha cabeça.
- Dói? - perguntava eu constantemente. - Queres que pare? Ela não disse nada, e eu comecei a sentir a minha energia a
dissipar-se. Mas depois, como se o sentisse, ela reagiu. O seu corpo
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descongelou, adquiriu vida. As pernas subiram, enrolaram-se. Agarrou-se a mim. A sua respiração tornou-se ofegante.
- Gostas de mim? - perguntou. - Gostas mesmo de mim?
- Adoro-te. És uma mulher desejável. Muito bela. Fantástica. O seu corpo tornou-se de seda. Penetrei mais fundo e ela arqueou
o corpo para vir ao meu encontro. Os seus olhos estavam húmidos e, no fim, estávamos ambos a gritar, a cantar uma canção estranha. Depois ela não me largou, e agarrou-se a mim com mais força.
- Connie - disse eu. - Que se passa?
- Fui violada - disse ela. Afastei-me e olhei para ela.
- Oh, meu Deus! - disse eu. - Quando?
- Há dois anos, três meses e catorze dias.
- E esta é a primeira..?
- É.
63
Peguei na chávena de café falhada que estava em cima da secretária de Sol Hoffheimer e cheirei-a.
- Desde quando é que bebes às dez da manhã?
- Desde que trabalho para ti.
- Tu não trabalhas para mim; trabalhas para ti próprio.
- Seja como for-disse o agente num tom cansado, acenando com a mão. - Que vens vender hoje.. cancro?
-Não estou a vender nada. Estou a dar. -Atirei um envelope para cima da secretária. - Oitocentos. Não é bom?
- Sinto-me orgulhoso - disse Hoffheimer.
- Escuta, Sol. Os anúncios estão a dar bons resultados, e estou a receber alguns bons rapazes por teu intermédio. Mas essas entrevistas preliminares fazem-me perder muito tempo. Mais de metade dos tipos rejeitam a minha proposta.
- E então?
-Então, seria uma grande ajuda se tu fizesses as entrevistas preliminares.
O agente ficou calado.
- Aumentará a tua percentagem - prossegui rapidamente. - Cento e cinquenta por cada garanhão que aceitarmos. Talvez mil por mês.
- E talvez um ano por aliciamento - disse Hoffheimer. Encolhi os ombros.
132
- Há risco em todos os negócios. E quanto maior é o lucro, maior é o risco.
O agente acabou de esvaziar a chávena de café. Depois tirou uma garrafa de meio litro de uísque barato da gaveta da secretária e deitou mais na chávena com uma mão trémula.
-E qual é a minha próxima promoção?-perguntou ele. - A empregado de lavabos?
-Estás a tratar isto como se fosse um negócio sórdido-disse eu, zangado. - Não é nada disso. Temos este belo apartamento. As nossas clientes são mulheres ricas, bem vestidas. Muitas vêm nas colunas sociais. Algumas são executivas em grandes empresas. Mulheres dessas nunca tocariam em nada que não fosse da melhor qualidade. Sol, nós estamos a fornecer um serviço profissional num ambiente limpo e atraente.
Hoffheimer lançou-me um olhar curioso.
- Tu acreditas mesmo nessa trampa?
-Acredito, porque é verdade. Eu não teria nada a ver com ela se não fosse uma operação com classe.
Antes de regressar ao apartamento, parei numa farmácia da Times Square e comprei uma grosa de perservativos Fourex.
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Tendo estudado as leis aplicáveis ao estabelecimento de uma escola particular no Estado de Nova Iorque, Oscar Gotwold aconselhou-nos a formar uma empresa. Sugeriu também que abríssemos uma conta bancária para a Academia de Arte Dramática de Peter, da qual pagaríamos todas as nossas despesas legítimas-telefone, renda, etc. Ele sugeriu que o primo da mulher, um contabilista jovem e inteligente, nos ajudasse a organizar os livros.
- Querem funcionar com prejuízo, claro - prosseguiu o advogado. - Mas isso seria fácil de arranjar, com as vossas despesas. O importante é terem um papel para mostrar às Finanças no próximo ano. Teremos muito tempo para montar uma operação falsa.
Gotwold aconselhou a que eu e Martha não recebêssemos a nossa em cheques da Academia. O seu raciocínio era que a Academia não mostraria rendimento suficiente para justificar tão grandes salários. Ele sugeriu que, em vez disso, nós recebêssemos um salário simbólico de cem por semana, por cheque, sobre o qual pagaríamos impostos. O primo da mulher calcularia quanto deveríamos depositar no banco para cobrir as despesas legítimas.
Por isso abrimos uma conta para a Academia de Arte Dramática de Peter. Ao mesmo tempo, começámos a aceitar cheques ao portador de clientes regulares.
Outra inovação, que começou como uma graça, mostrou ser tão rendível que continuámos com ela.
Quando uma boa cliente comprou uma cena para uma amiga como presente de aniversário, eu sugeri, por brincadeira, que mandássemos fazer cheques-brinde de cem dólares.
A ideia divertiu-nos, por isso mandámos imprimir um número limitado de cheques-brinde em pergaminho falso, dando ao portador o direito a "uma lição da Academia de Arte Dramática de Peter". A ideia tornou-se tão popular que tivemos de mandar imprimir mais.
- O nosso passo seguinte será aceitar cartões de crédito - disse Martha.
O estabelecimento da Academia teve um resultado inesperado: vários miúdos apareceram a fazer perguntas sobre curriculos, duração e preços.
Martha livrou-se da maior parte deles, explicando que só aceitávamos estudantes com cinco anos de experiência profissional. Quando isso não funcionava, ela mencionava um pagamento de cem dólares por hora, o que era suficiente para desencorajar o mais interessado futuro actor.
Entretanto, o negócio continuou a melhorar e, na primeira semana de Fevereiro, tínhamos frequentemente os três quartos a funcionar simultaneamente. Pensámos em transformar o escritório num espaço de trabalho, mas decidimos adiar isso até podermos aumentar as nossas reservas em dinheiro.
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Discutimos todos esses desenvolvimentos financeiros com Nicole Radburn, que percebia de assuntos de dinheiro e era astuta a resolver problemas específicos do nosso negócio.
- É uma indústria de serviços - disse-me ela. - E, sempre que lidares com o público, vais ter problemas.
Ela passava geralmente pelo apartamento várias vezes por semana, ao fim da manhã ou por vezes à noite, depois de ter trabalhado. Ela telefonava sempre primeiro.
Ocasionalmente, eu e ela jantávamos juntos no apartamento depois de a última cliente e garanhão se terem ido embora. Ela trazia sempre bife, uma garrafa de vinho e bolos.
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Quando ela dormia no apartamento, partilhávamos a cama grande do quarto principal, mas cumpríamos a sua instrução de "nada de sexo". A medida que nos tornávamos mais íntimos, isso parecia ser cada vez menos importante.
Eu estava na cama, a ler a Variety, quando Nicole saiu da casa de banho, nua. Tinha acabado de tomar um duche e trazia .o cabelo embrulhado numa toalha. Levantei os olhos quando ela se dirigiu para o espelho e se estudou com um olhar crítico.
- Parece-me bom - disse eu do outro extremo do quarto.
- Envelhecer, assusta-me - disse ela, olhando para a sua imagem. - Alguma vez pensas nisso?
- Só vinte e quatro horas por dia.
Falei-lhe sobre os empregos que perdera porque os produtores e directores estavam à procura de um "tipo mais jovem", e que, todos os anos, inúmeros jovens, belos e talentosos, apaixonados pelo teatro, invadiam a Broadway.
- O meu negócio não é assim tão diferente - disse ela.
Ela empoleirou-se de pernas cruzadas em cima da cama e começou a pintar as unhas com um verniz vermelho-vivo.
- Todos os anos há cada vez mais prostitutas - disse ela. - Tu lês os jornais; tu sabes. Raparigas de catorze, quinze anos. Talvez ainda mais novas. A competição é dura.
- Só um anormal se arriscaria com uma garota de catorze anos.
- O problema é que - disse ela-com maquilhagem e as roupas certas, elas parecem legais. Tudo o que os tipos vêem é uma garota jovem e rechonchuda. Por isso, arriscam-se. Um pénis não tem consciência.
- Tu manténs-te em muito boa forma - garanti-lhe eu.
- Claro, mas não sou nenhuma adolescente. É por isso que espero trabalhar apenas mais uns dez anos.
Observei-a pintar os dedos dos pés, de lábios franzidos, de expressão concentrada.
- Tenho um tipo que adora fazer-me isto - disse ela. - Mas ele está fora da cidade.
- Nikki, isto incomoda-te? O negócio em que estás?
- Nem um pouco - disse ela. - Talvez porque a minha mãe já estivesse no mesmo ramo. Ela tentou manter-me afastada dele, mas eu sabia o que se passava. Como te disse, tinha uma vida recta até há três anos. Entrei nisto deliberadamente, com os olhos abertos.
Admirei a segurança dela. Era tão segura de si como Jenny Tolliver era do dela.
- A princípio, não foi fácil - admitiu. - Conheci muitas raparigas que se tornaram alcoólicas ou se meteram na droga. Alguns suicídios. É precisa muito autodisciplina para manter a cabeça no lugar.
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- Acredito - disse eu. - Todos esses tipos estranhos.
- O problema não é esse. O grande problema é o inicial: decidir vender, ou alugar o corpo. Isso pode ser o grande destruidor de egos.
- Mas tu fizeste-o.
- Fi-lo. Tenho um bom cérebro; tratei o problema de uma maneira lógica. Até fiz listas de vantagens e desvantagens.
Ela terminou as unhas dos pés, tapou o frasco de verniz e colocou-o de lado. Deitou-se de costas e agitou os pés no ar.
- As vantagens - prosseguiu ela - eram muito dinheiro, independência, nada da merda das nove-às-cinco, e uma sensação de poder sobre a qual não vou falar agora. As desvantagens eram os riscos legais, o perigo de um cliente se tornar um homicida, e o problema do que acontecerá quando formos velhas, com cabelos brancos. Por fim, decidi fazê-lo, e nunca me arrependi. Mexe-te e dá-me um pouco de espaço.
Ela deslizou para dentro da cama a meu lado. Tinha tirado a toalha e o cabelo comprido preto fazia-me cócegas nos lábios. Cheirava a sabonete e ao seu próprio odor ácido. A coxa era sedosa junto da minha.
-Nikki, nós obtemos muitos garanhões de um tipo que costumava ser o meu agente teatral. Ele é pago, claro, e eu sei que precisa do dinheiro. E a única razão por que o faz Mas eu também sei que isso está a dar cabo dele. A, uh, a moralidade de tudo isto. Isso alguma vez te preocupa?
- Nunca - disse ela prontamente. - Que diabo é a moralidade? Não é nenhum valor absoluto. Eu li muito sobre história, e alguns dos estadistas, artistas e filósofos tinham escravos. Na época em que viviam, isso não era considerado imoral. Em várias épocas, as putas eram respeitadas e eram-lhes prestadas honras. Os soldados bebiam o sangue dos seus inimigos, irmãos da família real casavam com irmãs da mesma família real, e ainda existem haréns. Por isso, que é a moralidade? Vergonha, culpa, pecado, essas são palavras estranhas que não compreendo.
- Mas - contestei eu - ainda tens de viver numa sociedade em que essas palavras têm significado.
- Não tenhas tanta certeza. A moralidade é como a moda: um estilo novo todos os anos. E, neste momento, há muitas pessoas que acham que a moralidade não faz sentido num mundo em que o que conta são o poder e o dinheiro. A virtude é um bem supérfluo a que só os pobres se podem dar ao luxo.
Soltei uma gargalhada.
- Que cínica que és!
- Não. Limito-me a ver as coisas com clareza. Talvez daqui a
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cinquenta anos eu fosse queimada na fogueira. Mas, neste momento, tenho um lugar na sociedade. Vamos dormir.
Desliguei o candeeiro de cabeceira e instalei-me, deitando-me de lado, longe dela. Ela aproximou-se, premindo o seu corpo rijo contra o meu, como uma colher.
- Peter - disse ela na escuridão -, não vais acreditar, mas és o primeiro homem com quem já dormi. Eu quero mesmo dizer dormi. A noite toda.
- E que tal?
- Gosto- disse ela. - É confortável.
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Tivemos um dia maravilhoso: vinte e nove cenas sem problemas. Houve duas "duplas", por isso o rendimento bruto do dia foi de três mil e trezentos dólares.
Pelas onze da noite, o apartamento tinha sido arrumado. Estava no escritório a guardar o dinheiro do dia. Bateram à porta. Wolcott Sands espreitou. Ele tinha estado com a última cliente.
- Olá, Sandy - disse eu. - Entra.
Como de costume, o garanhão estava vestido como um cavalheiro rural inglês. Calças de lã castanho-claras. Casaco de xadrez com pedaços de cabedal nos cotovelos. Colete de camurça com botões de madrepérola. Lenço ao pescoço. Sapatos de cordovão entrançado.
- Devias ter uma espingarda - disse eu. - Para a caça, sabes.
- Se calhar - disse Sands. - Tens um minuto, Peter?
- Claro. Tu bebes uísque, certo? Tenho algum Chivas.
- Dois dedos, por favor.
Fui ao bar e deitei uma boa medida nos copos. Ergui o meu copo.
- Aos nossos pirilaus - disse eu. - Que acenem por muito tempo.
- Bebo a isso - disse Sands. Bebeu um golo e sentou-se na cadeira do outro lado da secretária.
-Foi um dia sensacional-disse eu.-Nem uma única crise. Toda a gente ficou feliz.
- Uh-uh - disse ele. - Cem cada, deves estar a safar-te bem. -- Não me posso queixar - disse eu, começando a sentir-me vagamente pouco à vontade. - Claro que temos imensa despesa.
- Com certeza. Mas, mesmo assim, deves estar a fazer cerca de quinze mil por semana.
- Depende - disse eu, tenso. - Mas tu também não estás muito
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mal. Duzentos por semana, mais gorjetas, por quatro horas de trabalho.
Wolcott Sands olhou para o tecto.
- Não me estou a queixar. É um bom acordo; admito isso. Mas decidi ir-me embora, Peter. Eu sei que já preparaste a agenda da próxima semana, por isso eu fico até lá.
- Meu Deus! - disse eu, inclinando-me na minha cadeira rotativa. - Isto é uma má notícia. Que aconteceu?
- Bem.. - disse o garanhão, olhando para a parede distante. - Tenho uma mulher. Não é uma cliente; ela não sabe o que tenho andado a fazer. Uma viúva rica. Quer casar comigo. É um bom negócio, Peter. Seria um tolo se não aceitasse.
- Sandy, já pensaste bem no assunto? O dinheiro pode ser bom, mas achas que ficas satisfeito com só uma mulher?
Nessa altura, Wolcott Sands olhou directamente para mim, e eu soube que ele estava a mentir.
- Quem diz que tem de ser só uma mulher? - perguntou.-Mas terei uma mulher para pagar as contas. O que os olhos não vêem, o coração não sente.
- Bem, se pensas isso, por que não continuas a trabalhar? Sands abanou a cabeça.
- Demasiado arriscado. Ela pode ter amigas que venham cá. Meu Deus, ela própria poderá cá vir. Não, Peter, é melhor afastar-me.
- Estás mesmo decidido?
- Absolutamente.
- Então, só posso desejar-te boa sorte. Teremos pena de te perder, Sandy.
Bebemos as nossas bebidas pensativamente. -Agradeço tudo o que fizeste por mim, Peter-disse Sands num tom sincero. - Não conseguiria sobreviver sem ti. Encolhi os ombros. -- Tu mereceste. Só espero que tudo te corra bem.
- Tenho a certeza de que vai correr - disse Sands, sorrindo.
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O primo da mulher de Oscar Gotwold, o "contabilista jovem e inteligente", chamava-se Ignatz Samuelson, mas ele disse-nos que lhe chamássemos "Iggy".
Era um homem pequeno, de ossos miúdos. As faces encovadas pareciam azuis da barba. Ele gesticulava com as mãos: apontando,
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apunhalando, cortando. Chupava um cigarro de porcelana, dando baforadas e soprando um fumo não existente, batendo a cinza inteligentemente desenhada. Até tinha uma tosse fingida.
Ele estudou as nossas contas correntes, dizendo-nos o que devíamos pagar por cheque da conta da Academia de Arte Dramática de Peter e o que manter em dinheiro.
- O truque é manter o papel no mínimo - disse-nos ele à saída. - Vejamos, então, o vosso rendimento actual. Acham que o resto do ano será igual aos dois primeiros meses?
- Esperemos que sim - disse Martha.
Iggy carregou rapidamente nos botões de uma calculadora de bolso.
- Estão a falar - disse ele - de um mínimo de setecentos e cinquenta mil. E um máximo de um milhão. Tirando os salários, despesas de funcionamento e outras pequenas despesas, terão, cada um, cem mil limpos no fim do ano.
- Estás a brincar! - disse Martha. - Cem mil cada?
- Provavelmente mais - disse o contabilista. - E que vão fazer com o dinheiro?
- Gastá-lo - disse eu.
- Em quê? - disse Iggy. - Estão a ganhar noventa e cinco mil mais do que estão a declarar. Se comprarem propriedades ou um Rolls Comiche, as Finanças aparecem a perguntar: "Ei, espere aí!" Se o vosso estilo de vida for muito para além do rendimento declarado, têm problemas.
- Merda - disse Martha. - Então, que fazemos, guardamo-lo debaixo do colchão?
O contabilista disse-nos que havia muitas maneiras. Um corretor da bolsa simpático que ele conhecia podia ajudar-nos com os investimentos. Podíamos "emprestar" dinheiro a um testa de ferro: um dono de um restaurante, um produtor teatral, qualquer homem de negócios que precisasse de dinheiro e estivesse disposto a encobrir a nossa contribuição.
- Pode ser feito - disse Iggy. - Neste momento, o vosso dinheiro não é problema. A partir de Julho, porém, vai ser. O conselho que vos dou neste momento é fazerem o que disseram: gastar, gastar, gastar. Mas não em coisas grandes. Roupa, jóias, cruzeiros, coisas assim. Coisas que se podem pagar em dinheiro sem que ninguém pergunte donde ele veio. Querem que eu venha todos os meses?
Fizemos ambos um sinal afirmativo com a cabeça.
- Está bem - disse ele. - Vai-vos custar mil por mês. - Lançou-nos um sorriso lupino. - Isso ajudará a reduzir o saldo em dinheiro.
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Depois de Iggy se ter ido embora, sentámo-nos no escritório e olhámos um para o outro.
-Martha - disse eu. - Está a tornar-se um negócio em grande.
- Estás com medo? - perguntou ela.
- Um pouco. Aconteceu tão depressa.
-Espera aí, garoto. Não é assim tão grande. Meu Deus, Nikki ganha cinquenta mil por ano sozinha.
- Que vamos fazer a seguir?-interroguei-me a mim próprio. - Estamos a aproximar-nos da nossa capacidade máxima. Três quartos durante doze horas por dia. Não podemos fazer melhor que isso.
- Podemos concentrar-nos no serviço de pedidos por telefone - disse ela. - Aumentar esse sector.
Por isso, discutimos como aumentar o rendimento do nosso serviço de acompanhantes. Nenhum de nós sugeriu que talvez fosse sensato contentarmo-nos com o que tínhamos.
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Desde que me mudara para o Delacroix que a minha vida social tinha diminuído até praticamente ao zero. Mas, nos finais de Fevereiro, quando o negócio corria tranquilamente, convidei Arthur Enders para vir jantar à penthouse.
Ele chegou pontualmente, espantado e a pestanejar, com uma garrafa de champanhe do Estado de Nova Iorque. Não tive coragem de lhe dizer que havia uma caixa de Krug no armário da cozinha.
O dramaturgo potencial ficou devidamente impressionado com o tamanho da sala, com o espaçoso terraço, com o luxo dos três quartos. Mas foi o escritório forrado com painéis de nogueira que suscitou realmente a sua admiração.
- Puxa - disse ele. - Adoraria ter um lugar assim. Vieste longe na vida, Peter.
- E - disse eu, rindo. - Do outro lado do Parque. Vamos comer.. e beber.
Fizemos bifes e comemos batatas assadas, uma salada de arugula e alface. Bebemos negronis antes do jantar, um Margaux 78 com o jantar e deitámos Cointreau em cima de ananás ao natural depois dojantar.
- Lembras-te do Blotto? - perguntou Enders. - Lembras-te das almôndegas com esparguete?
-Estou a tentar esquecer-disse eu. - Vamos para o escritório. Bebemos o teu champanhe lá, está bem?
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Sentámo-nos nas cadeiras, com os pés em cima da secretária.
- Não demora um bocado a habituar-nos a esta vida? - perguntou Arthur.
- Cerca de dois minutos-disse eu.-Queres voltar a trabalhar? Enders abanou a cabeça.
- Obrigado, de qualquer modo.
- Como quiseres. Mas é dinheiro fácil, Arthur. Então, como vai a tua peça?
- Meu Deus, estou mesmo animado com ela. Estou a reescrevê-la pela sétima vez. Conheci um tipo que tem uma oficina de teatro na Village. Está associado a um teatro experimental. Ele prometeu dar uma vista de olhos à peça quando estiver pronta. Eles fazem leituras informais, o que dá ao escritor a oportunidade de ouvir as suas palavras e de fazer alterações.
- Eu sei como funciona - disse eu, num tom um tanto zangado. - Este tipo da Village tem algum dinheiro?
- Não. Ele tem um orçamento muito pequeno. Mas é uma oportunidade de ouvir a minha peça. O dinheiro não é importante.
Abanei a cabeça, pesaroso.
- Arthur, isso é a coisa menos americana que já ouvi.
- Suponho que seja - disse Enders. - Quero dizer que não é importante para mim.
Inclinou-se para a frente para voltar e encher os copos. Enquanto o fazia, ele disse, corando:
- A propósito, tenho uma confissão a fazer.
- Confessa à vontade - disse eu num tom ligeiro, não estando à espera do que veio a seguir.
- Tenho saído com Jenny Tolliver. Encontrei-a na Avenida Columbus e convidei-a para tomar uma cerveja no Blotto. A sério, Peter, foi assim que aconteceu. Não lhe telefonei, nem nada.
- Acredito - disse eu, picado, mas sem o mostrar.
- Ela disse-me que vocês dois se tinham separado. É verdade?
- É.
- Bem, saí com ela algumas vezes. Espero que não fiques zangado.
- Por que havia de ficar zangado? Jenny tem todo o direito de sair com quem quiser.
Enders olhou para mim.
- Ela descobriu o que andas a fazer, não descobriu?
- Descobriu.
- Ela não me disse, mas calculei. Eu disse-lhe que também fizera a mesma coisa durante algum tempo. Ela disse que não fazia mal, desde que não voltasse a fazê-lo. Peter, ela é uma mulher maravilhosa.
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- Eu sei.
- E tão bela! Nunca saí com uma mulher tão bela. Tenho orgulho de ser visto com ela.
- Eu sei.
- E inteligente! Ela pensa muito e tem algumas ideias muito originais. Ela é muito..
-Acaba tu o champanhe, Arthur - disse eu. - Eu acho que vou passar para brande.
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O dinheiro era bom -- disso não havia dúvida -, mas não era a única atracção do "jogo". Eu via a minha profissão como teatro. Satisfazia o meu gosto pela arte dramática.
O risco legal envolvido - isso fornecia o suspense e a excitação. E os actores! Martha Twombly, Luke Futter, Nicole Radburn, Oscar Gotwold, Sol Hoffheimer - um óptimo conjunto de actores secundários. E, para coro, os garanhões e as clientes.
E o apartamento - que cenário!
A melhor coisa, claro, era que não havia guião. Era tudo improvisado. Eu actuava, improvisando o meu papel à medida que as circunstâncias se alteravam. Isso exigia reacções rápidas e uma centena de disfarces. Mas, por vezes, tinha de admitir, os actores secundários assumiam controlo.
Era tarde; Martha já tinha saído, e eu estava sentado à secretária da recepção. Era esperada mais uma cliente: uma mulher chamada Bertha, recomendada por uma cliente regular.
O garanhão designado, à espera no Quarto Verde, era um contorsionista letónio, cujo nome era uma mistura tão grande de consoantes que lhe chamávamos Mike. Eu sabia que ele se iria embora quando a época do Carnaval começasse, mas, entretanto, ele estava a trazer umas boas notas por semana de uma clientela fiel que, depois de uma cena com ele, se ia embora com as órbitas a girar.
O intercomunicador tocou, uma voz autoritária de mulher disse:
-Aqui é Berta! - Eu carreguei no botão para activar o elevador. Quando a porta de entrada se abriu, entraram duas mulheres, não uma. Levantei-me para as cumprimentar.
Vestiam casacos de vison iguais, com um corte um tanto antiquado, demasiado compridos e demasiado rodados. Eram ambas altas, mas a mais velha tinha também ombros e ancas largas: uma mulher enorme com um rosto duro, canino.
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A mulher autoritária usava um chapéu Minnie Pearl. A mulher mais nova não trazia chapéu, e tinha o cabelo acastanhado, obviamente comprido, atado num coque. Tinha, calculei, cerca de trinta anos, e feições delicadas e pálidas. Usava óculos com aros de metal.
- Boa noite, minhas senhoras - disse eu. - O meu nome é Peter. Estão juntas? Qual das senhoras é Bertha?
-Eu sou Bertha-disse a górgona em voz alta. Eu marquei o encontro. Mas é para a minha filha. Esta é Annie. Endireita-te, Annie.
- Sim, mamã-disse a filha, que não conseguiu levantar os olhos para olhar para mim.
- Bertha, vai esperar pela sua filha? - perguntei num tom casual, como se tivéssemos mães e filhas como clientes todos os dias.
- Claro que vou - disse ela bruscamente. - Vai com o homem, Annie.
- Sim, mamã - disse a filha numa voz sumida.
Conduzi Annie ao Quarto Verde. Ela seguiu lentamente atrás de mim, um preso a caminho do patíbulo. Quando regressei à recepção encontrei Bertha sentada ao lado da secretária. Tinha tirado o casaco. Tinha uma coisa castanha horrível vestida.
- Gostaria de beber um pouco de vinho enquanto espera? - perguntei educadamente.
- Não bebo álcool - disse ela. Acenei com a cabeça.
- Também não fumo - acrescentou ela.
Eu tinha um comentário para isso, mas não o fiz. Ela pagou com duas notas de cinquenta. Notas novas. Amarrotou-as, para se certificar de que não tinham uma terceira colada a elas.
- Quanto tempo demora isto? - perguntou ela.
-A marcação é por uma hora - disse eu, o mais suavemente que consegui.
Ela fez um barulho. Soou como Amp!
- A tola da rapariga - disse ela. - Tem a personalidade de um verme. E totalmente inexperiente, se me compreende.
Olhou para mim com ar de desafio e eu limitei-me a acenar com a cabeça.
- Só espero - disse Bertha - que o seu homem saiba o que faz.
- Todos os nossos empregados são muito experientes, minha senhora - garanti-lhe.
- Já tentei tudo - disse ela. - A criança é tão tímida, tão introvertida. Já organizei encontros para ela com muitos rapazes estupendos das melhores famílias, mas eles nunca aparecem uma segunda vez. Quem poderá culpá-los?
Não respondi. Eu sabia de que lado estava.
- Quero que ela aprenda alguma coisa sobre a vida - prosseguiu
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ela. - Fica sentada no quarto o dia todo a ler livros. Está a estragar a vista e a pele. Só tem vinte e cinco anos e parece dez anos mais velha. Não consegue sequer conversar, nem comigo, nem com homens, nem com ninguém. Não gosta de dançar. Não tem interesse por nada. Por vezes penso que a criança é.. bem, percebe, um pouco atrasada mentalmente. Ela simplesmente não tem nada para dizer.
Perguntei a mim próprio se a pobre Annie alguma vez tivera uma oportunidade.
- Parece tão apática - continuou ela, num tom quase irado. - Levei-a a uma dúzia de médicos, mas todos dizem que, fisicamente, não tem nada de mal. O último médico sugeriu passeios longos, exercício ao ar livre, mas, na única vez que a obriguei a sair de casa, encontrei-a duas horas mais tarde sentada num banco de jardim a ler um livro. Imagine! Espero que esta experiência a ajude a sair da concha. Ela é tão mosca morta.
As queixas dela continuaram, intermináveis, e eu compreendi o que se passava: Annie estava a enfurecer a mãe obedecendo às suas ordens em silêncio, nunca tomando qualquer iniciativa e refugiando-se no mundo dos livros. Provavelmente, para preservar a sanidade mental, pensei.
Esta foi seguramente uma das horas mais longas que alguma vez tive de suportar, ouvindo a indignação daquela megera antiquada. Mas, finalmente ouvi, dentro do apartamento, o som de gargalhadas e a porta do Quarto Verde a bater.
Annie chegou à entrada com um ar majestoso, trazendo o casaco de vison por cima dos ombros, como uma capa. A cabeça erguida, a coluna direita. Os óculos com aros de metal tinham desaparecido, e o cabelo comprido balouçava sobre os ombros.
-Annie! - gritou a mãe. - Que fizeste ao teu cabelo? E onde estão os teus óculos?
- Mamã - disse Annie, radiante de felicidade -, vá para o inferno!
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No início de Março houve um desenvolvimento que iria ter um efeito importante no nosso futuro.
Algumas clientes, tendo terminado as suas cenas, perguntavam se podiam ficar um pouco no apartamento a fazer tempo para o seu compromisso seguinte. Nós punhamo-las na casa de jantar, com a porta fechada para garantir a privacidade das outras clientes. Uma
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vez que elas pediam muitas vezes uma bebida enquanto esperavam, houve um grave desfalque no nosso stock de bebidas, e começámos a cobrar dois dólares por bebida. Ninguém objectou. Eu fazia de barman e Patsy servia, feliz com as gorjetas.
Quando várias mulheres nos pediram que organizássemos almoços ligeiros, começámos a servir grupos com não mais de quatro pessoas. Patsy servia refeições simples, geralmente saladas. Cobrávamos cinco dólares por pessoa, com a sobremesa e o vinho extra.
Eventualmente, a prima de Patsy, Maria, ficou com o trabalho de mudar os lençóis, enquanto Patsy tomou conta da comida e das bebidas. Ela fazia as compras, cozinhava, servia e pagava-nos vinte e cinco por cento dos lucros.
Nós não conseguíamos ver como ela poderia ganhar mais do que os cem dólares por semana que já ganhava, mas tínhamos subestimado a sua ambição e energia. Ela colocava toalhas de papel para doze pessoas na mesa da casa de jantar, ampliou a ementa e aumentou os preços. A suculência da sua cozinha deliciava as clientes que almoçavam antes ou depois das suas cenas.
Patsy trouxe outro primo, Luis, para trabalhar como empregado de mesa. Pouco tempo depois, ela estava também a fornecer jantares. Dentro de um mês, ela tinha estabelecido o seu próprio negócio rendível, e nós tínhamos uma nova fonte de rendimento.
Nos finais de Março, duas clientes regulares perguntaram-nos se poderiam alugar o apartamento por uma noite para uma despedida de solteira de uma terceira amiga. Incluiria jantar, bebidas e garanhões para quinze convidadas.
Calculámos os custos e acabámos por cobrar três mil dólares, incluindo decorações. Mal conseguimos cobrir as despesas, mas constituiu uma valiosa experiência na planificação e organização de uma festa grande.
O prato forte desta noite libertina foi Seth Hawkins a sair nu de um bolo gigante (de cartão), atirando papelinhos e serpentinas à noiva e oferecendo-lhe várias prendas eróticas para amenizar o sofrimento da noite de núpcias.
Os garanhões receberam boas gorjetas, e as convidadas garantiram-nos que foi a melhor festa a que alguma vez tinham ido. Na semana seguinte, tivemos marcações para almoços, jantares, despedidas de solteira, festas de aniversário e um velório.
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Depois de Wolcott Sands se ter demitido, pedi a Sol Hoffheimer alguém com um tipo executivo mais velho, de cabelos grisalhos. Ele enviou dois candidatos ao apartamento. Martha rejeitou os dois.
-Eles não têm a atitude paternal que Sands tinha - queixou-se ela. - Todas as meninas do papá adoravam aquele tipo. Tornava o incesto divertido.
Mas arranjar um substituto para Sands não foi o meu único problema com os garanhões.
Harry Bellinger, um aspirante a cómico que nos tinha dado quase um ano de serviço, anunciou que tinha tido uma oferta de Las Vegas. Eu não consegui acreditar. Eu tinha visto a rotina profissional de Harry, e certamente que não tinha calibre suficiente para Vegas. Para Punxsutawney, talvez.
Depois, uma das nossas estrelas negras disse que se ia embora para se casar. Eu sabia que ele já era casado.
E depois, pior que tudo, Seth Hawkins veio ter comigo, gaguejando e corando, e disse que tinha decidido voltar para Amarillo e tornar-se locutor de televisão.
Três dos garanhões mais populares e de maior confiança iam-se embora e, se o êxodo continuasse, teríamos problemas graves.
Quando King Hayes apareceu no escritório, receei o pior. Dei-lhe um copo de Manischewitz Concord de uma garrafa que eu guardava para ele, e preparei-me para o convencer a desistir de se ir embora. Mas não foi preciso.
- Deserção nas fileiras, Peter? - disse ele, sorrindo. - Ouvi dizer que perdeste alguns rapazes bons.
- Ouviste bem - disse eu. - Tu, também?
-Não. Eu fico. Mas estou aqui para te dizer que vais perder mais alguns.
Abanei a cabeça, intrigado.
- Que se passa, King? Ninguém se tem queixado; eles simplesmente chegam cá e despedem-se.
- Sempre foste recto comigo, Peter, por isso vou-te dizer. Mais cedo ou mais tarde vais saber, Peter. Wolcott Sands vai montar o seu próprio negócio. Ele está a oferecer uma divisão setenta-trinta e está a tentar convencer todos os teus garanhões.
- Aquele filho da mãe! - exclamei, indignado. - Ele vai pagar setenta aos garanhões?
- Exactamente.
- Onde fica a casa dele?
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- Não sei bem. Mas suponho que posso descobrir, se for importante.
- Importas-te de averiguar, King? É muito importante. Fiquei ali, furioso. A infâmia de Wolcott Sands punha-me fora de
mim.
- King, ele tentou convencer-te?
- Conforme te disse, Peter, tu sempre me trataste bem. Além disso, tu tens um negócio bem controlado aqui. Limpo. Toda a gente se comporta bem. Quanto a Sandy, tenho o pressentimento de que vai ser uma casa aberta.
- Droga?
- Talvez. Ele não o disse abertamente. Além disso, ele vai fazer homossexuais.
- Deus do céu! - disse eu.-Talvez possa fazer uma coisa ou outra, mas não ambas.
- Foi o que pensei.
Fui ao nosso cofre escondido, tirei cem dólares e entreguei-lhos.
- Pela tua lealdade - disse eu. Ele olhou para o dinheiro.
- Peter, não és obrigado a fazer isso.
- Eu sei, mas quero fazê-lo.
Percorreu as notas com os dedos, acariciando-as.
- É isto que conta, não é? Dinheiro.
- Conheces Água da Chuva?
- Aquele cherokee maluco? Claro que conheço.
-Ele chama-lhe wampum. É assim que penso no dinheiro, King. São só contas.
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Telefonei a Martha e perguntei se podia ir a casa dela.
- É importante? - disse ela.
- Que diabo, sim, é importante. Ela ficou silenciosa por um momento.
-Vem por volta da meia-noite, por favor, Peter. O meu namorado vem cá hoje, mas nessa altura já deve ter saído.
Quando lá cheguei, ela tinha um roupão vestido e parecia algo que o gato tivesse trazido do lixo. Trazia um copo de brande nas mãos trémulas.
- Deve ter sido uma sessão e peras! - disse eu. Martha não queria falar sobre o assunto.
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- Que grande emergência é essa? - perguntou ela. Repeti o que King Hayes me dissera.
- O filho da mãe do Sands! - disse ela, zangada - Bem, suponho que tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde. É melhor descobrirmos o tipo de berço que ele está a embalar.
-E como vamos fazer isso.. levamos-lhe uma coroa de flores com uma fita a dizer "Boa sorte"?
Ela pensou durante um momento.
- Mandamos Nikki Radburn. Sandy não a conhece.
- Achas que ela o fará?
- Nikki? Ela faz qualquer coisa por dinheiro.
Podia ter-me ido embora nessa altura, mas tive a sensação de que ela queria companhia. Servi-me de Armagnac e sentei-me numa poltrona donde podia olhar para ela.
- Então - disse eu. - Conta ao papá. Que se passa contigo? -Ah, merda-disse ela. - Sempre que tento ser nobre e altruísta, fico tramada. Eu já devia saber melhor, não achas?
- Que aconteceu?
- É o namorado. Quer candidatar-se a governador.
- Governador? Meu Deus! - disse eu.
- Tem muitos adversários. Mas, na maior parte, são pesos leves, e nenhum deles tem o dinheiro que ele tem.
- Achas que ele tem possibilidades? Ela assentiu com a cabeça.
- Uma boa possibilidade. Excepto por uma coisa. Eu.
- Ele deve saber isso.
- Oh, ele sabe, sim. Foi por isso que discutimos esta noite. Eu, armada em generosa, disse-lhe que não se preocupasse comigo. Disse-lhe que compreendo perfeitamente e que não lhe levo a mal se me mandar passear. Há muita coisa dependente da sua imagem de Sr. Limpo.
- Que é que ele disse a isso?
- Começou a chorar. Consegues acreditar? Disse que não me podia deixar. Fez uma tal fita, que parecia maluco.
Encolhi os ombros.
- Talvez o tipo esteja apaixonado por ti. Ela olhou para o copo de brande.
- Não, não é amor. Lembras-te do que te disse a respeito de Luke Futter? Quando o homem mais inteligente do mundo fica excitado, o cérebro desaparece. Foi o que aconteceu ao meu tipo. O poder da rata.
- Bem, Martha, ele é um homem crescido; a decisão é dele. A não ser que decidas cortar com ele.
- Nããão - disse ela lentamente. - Eu não quero fazer isso.
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Era difícil de acreditar, mas ela estava apaixonada. Eu pensava que ela conhecia demasiado bem os homens e a vida para se envolver profundamente com um tipo casado, que nunca abandonaria a mulher, a família e a carreira.
Mas talvez ela estivesse tão baralhada como todos nós. E talvez se sentisse tocada por este tipo. Talvez o amasse.
E, amando-o, ela estava disposta a desistir dele porque sabia que tinha de o fazer para que ele atingisse as suas ambições. Se isso não é telenovela pura, não sei o que será. Tudo o que lhe falta é a cena final em que ela encosta o nariz à mansão do governador para ver o baile inaugural, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.
- Então, vais continuar a encontrar-te com ele? - perguntei.
- Acho que sim - disse ela, suspirando. - E o funeral dele. Lembrei-me destas palavras mais tarde.
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Tivemos algumas semanas más após King Hayes nos ter revelado a perfídia de Wolcott Sands. Foram-se embora mais quatro garanhões, e o nosso rendimento baixou, pois fomos obrigados a recusar clientes.
Tomámos medidas para minimizar as nossas perdas. Só porque éramos um negócio só para adultos, isso não significava que não pudéssemos operar de acordo com princípios de gestão sãos e prudentes.
Numa profissão de mão-de-obra intensiva como a nossa, uma força de trabalho de confiança constituía a chave do sucesso. Mas, forçados pela necessidade, começámos a aceitar garanhões de qualidade inferior fornecidos por Sol Hoffheimer. Não quero dizer que fossem desmazelados ou loucos, mas estavam abaixo do nosso elevado nível habitual. Jurámos a nós próprios que este era apenas um recurso temporário.
Também convocámos uma reunião com Oscar Gotwold e Iggy para uma longa conversa sobre a reestruturação da nossa escala de salários.
Rejeitámos a opção de seguirmos a política de salários de Sands, subindo o pagamento dos nossos garanhões para setenta dólares por cena, receando que isso conduzisse a uma guerra de preços.
Iggy sugeriu um sistema de salário e comissão que garantiria aos garanhões um mínimo fixo, com uma compensação adicional dependente do número de clientes que tivessem todos os meses.
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Martha fez notar que um sistema desses talvez tentasse os garanhões a exagerar, o que poderia dar origem a clientes insatisfeitas.
Oscar disse então que poderíamos pensar em tornar a Academia de Arte Dramática de Peter numa empresa e contratar os garanhões como "instrutores" com um salário semanal fixo.
Iggy recusou essa ideia. Empregar garanhões assim, lembrou ele, requeriria coisas como retenção de impostos e deduções para a Segurança Social, seguro de desemprego, baixas por doença, etc.
Oscar disse que, a longo prazo, isso talvez fosse vantajoso. Sugeriu que podíamos poupar impostos se estabelecêssemos um fundo de reforma eou pensões para os garanhões. A participação nos lucros era outra opção que valia a pena explorar.
A reunião foi dada por terminada com todas as decisões adiadas até podermos analisar o relatório de Nicole Radburn sobre a operação de Wolcott Sands.
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Passava da meia-noite. Estávamos sentados a um dos extremos da comprida mesa de jantar. Eu e as duas mulheres bebíamos Armagnac. Luke Futter estava a beber bourbon. Eu tinha colocado uma taça de amêndoas salgadas em cima da mesa, e o detective estava a atirá-las ao ar, apanhando-as com a boca. Não falhava uma.
- Fica a sul da 58ª Avenida Leste - disse-nos Nicole Radburn. - Perto do Sutton Place. Todo o primeiro andar foi convertido num apartamento. Os outros inquilinos são empresas, e a maior parte sai às cinco horas.
- Como é a planta? - perguntou Martha.
- Uma dúzia de cubículos com divisórias de contraplacado. Não há porta, apenas cortinas em varões. Simplesmente sórdido. Quero dizer, ouve-se tudo.
- Quem recebe o dinheiro? - perguntei.
- Suponho que foi Sands. De qualquer modo, um tipo igual ao que descreveste. Perguntou-me o que eu queria: branco, negro, chinês, ou o que quer que fosse. Eu não tinha feito marcação, por isso suponho que ele tem uma equipa à mão. Paguei por um garanhão branco. Quando estávamos sós, perguntei-lhe se me podia arranjar erva. Ele disse que com certeza que sim, não havia problema. Cinco dólares por charro. "Bom material", disse ele. Depois, ele disse que, se eu quisesse uma coisa mais forte, também havia.
Luke Futter ficou interessado.
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- Ele disse exactamente o que havia?
-Não, mas quando lhe perguntei se podia cheirar, ele fez que sim com a cabeça.
- Viste alguns homossexuais lá? - perguntei.
-Quando eu ia a sair, vi um maricas velho entrar. De certeza que não era um garanhão. Sands tem ali uma operação bem sórdida. Mas, pelo que vi, com tanto movimento como a Times Square.
Luke Futter meteu uma última amêndoa salgada na boca e sacudiu os dedos.
-- Parece bom - disse ele. - Terei de fazer umas investigações para ver se ele tem alguma protecção influente. Se tiver, fechá-lo vai-vos custar dinheiro. Se ele estiver só a untar as mãos aos locais, podemos deitá-lo abaixo facilmente.
- E quanto é que isso vai custar? - perguntei.
- Nada - disse Futter com o seu sorriso torto. - E por conta da casa. Uma prisão limpa dá-me sempre jeito. Mando lá uns polícias à paisana. Talvez consigam comprar coca. Se for tão bom como dizes, talvez possamos pôr lá um microfone ou colocar o telefone sob escuta.
- Quanto tempo levará isso? - quis Martha saber.
- Umas semanas - disse ele. - Talvez um mês. Se querem que este tipo deixe o negócio de vez, tem de ser bem feito.
Ele olhou para Nicole. Nós tínhamos-lhe dito que lhe pagaríamos para manter o detective feliz.
- Não tens de te ir já embora - disse ela -, pois não, Luke?
- Acho que não - disse ele lentamente.
-Vamos contar as histórias das nossas vidas um ao outro - disse ela, pondo-se de pé.
Esperámos até ouvir a porta do Quarto Azul fechar-se. Deitei outra bebida no copo de Martha.
- Ele não pensa que ela está apaixonada por ele, pois não?-perguntei.
- Provavelmente - disse Martha encolhendo os ombros. - Presunção é coisa que não lhe falta.
Concordei, com um aceno de cabeça.
- Que tens? - disse ela, fitando-me bem. - Ciumento?
- Eu gosto de Nikki - disse eu.
- Também eu. E depois? Peter, isto é negócio. Tu sabes como a rapariga ganha a vida. Futter não significará nada para ela.
- Eu sei tudo isso - disse eu. - Mesmo assim.. Ela colocou uma mão sobre a minha.
- Tu tens mesmo um coração mole - disse ela suavemente. - Queres ir para o teu quarto fazer bem-bom?
- Acho que passo - disse eu. - De qualquer modo, obrigado. Por isso sentámo-nos ali, a beber lentamente o nosso brande.
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Após algum tempo, Nikki e Futter regressaram à sala; tomámos uma última bebida e os três foram-se embora. Fiquei sozinho.
Passeei pelo apartamento, desligando as luzes. Depois, fui até ao terraço. Era no início de Abril, mas ainda estava fresco. Andei de um lado para o outro durante alguns minutos, voltei para dentro e fiz uma coisa incrivelmente estúpida: telefonei a Jenny Tolliver.
O telefone dela tocou sete vezes. A sua voz sonolenta disse "Está?" Desliguei.
Devia ter feito bem-bom com Martha.
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Digo-vos uma coisa sobre o dinheiro: a não ser que se seja tão engenhoso como Arthur Enders, só é importante quando não se tem. Depois de o termos, perde a sua importância como dinheiro. Mas adquire um novo significado.
Por exemplo, conforme já disse, o dinheiro dá a possibilidade de agir sob impulso. Comprar roupa interior de seda, alugar uma limusina, ir almoçar a Paris. O dinheiro dá-nos a possibilidade de satisfazer um capricho. Isso é alegria.
Acontece outra coisa, quando se tem dinheiro (pelo menos aconteceu-me a mim). Podemos fazer exactamente o que queremos, sem nos preocuparmos com o que os outros possam pensar.
Depois de ter dinheiro, eu era perfeitamente capaz de pôr ketchup em cima do gelado ou de fazer estalar os dedos para chamar a atenção dum empregado de mesa. Estava-me simplesmente nas tintas. Cheguei à conclusão de que o snobismo era um refúgio dos pobres.
O dinheiro também nos liberta da servidão aos tolos. Calculo que noventa por cento das pessoas que trabalham para viver são obrigadas a receber ordens de alguém por quem não sentem respeito. Eu sei que isso sucedia comigo.
De facto, a riqueza dá-nos liberdade e, pela primeira vez na minha vida, tive-a.
Quando Arthur Enders me convidou para jantar no Blotto, aceitei com prazer. Eu não só gostava de Arthur, mas continuar com a nossa amizade provava que eu não era snob. Eu até era capaz de comer outra vez esparguete com almôndegas e de beber aquele vinho tinto corrosivo.
Apenas mais tarde me ocorreu que eu poderia ser um equivalente masculino moderno de Maria Antonieta a fazer de pastora.
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Encontrámo-nos para jantar no domingo à noite, quando a penthouse está fechada. O Blotto estava exactamente na mesma: o chefe de mesa, empregados e o barman reconheceram-me, mas ninguém perguntou onde tinha estado.
- Como vai a tua peça? - perguntei a Arthur.
Ele respondeu, com o seu entusiasmo habitual, que a versão mais recente tinha sido submetida ao teatro experimental em Greenwich Village e que estava à espera de saber se a tinham aceite para leitura na oficina de teatro. Não disse nada que lhe pudesse tirar a esperança.
Deixei-o falar, sorrindo e acenando com a cabeça enquanto ele contava as últimas alterações à peça. Quando fez uma pausa para deitar vinho da casa nos copos, de um jarro lascado, perguntei casualmente:
- Tens visto Jenny ultimamente?
- Claro que tenho - disse ele - pestanejando. - Encontro-me com ela duas ou três vezes por semana e telefono-lhe quase todos os dias.
- Oh - disse eu, enrolando o meu esparguete. - Como está ela?
- Óptima. Vai abrir o seu próprio estúdio depois do 1º de Maio e está muito entusiasmada.
- Que bom-disse eu. - Ela sempre sonhou com isso. Estou contente por ela ir trabalhar por conta própria. Ela tem talento.
- Sem dúvida que tem - disse ele fervorosamente. - Devias ver alguns dos seus desenhos.
- Já vi - disse eu.
- Oh-disse ele, corando. - Sim. Claro. Eu.. hum.. eu disse-lhé que vinha jantar contigo. Descrevi o teu apartamento. Ela ficou contente por as coisas te correrem tão bem.
- Uh-huh. Diz-me, Art, onde vais com ela? Que fazem?
- Bem, ah, eu não tenho muito dinheiro, como sabes, e Jenny está a poupar para montar o estúdio. Por isso, na maior parte das vezes, comemos no apartamento dela ou no meu. Comemos muitos hamburgers e atum. Somos ambos muito pobres.
Ele soltou uma gargalhada alegre e tive vontade de o matar.
- Mas nunca saem?
- Saímos, sim. Na semana passada fomos ao cinema. E já fomos ao Jardim Zoológico de Bronx, ao Metropolitan Museum ver a exposição de Turner. E uma vez demos um passeio de ferryboat até à Ilha Staten. Passeamos muito a pé. Na Village e no Soho. Domingo passado andámos por todo o Lower East Side. Gostamos de passear a pé pela cidade. E conversamos muito.
Eu queria perguntar-lhe, mas não consegui, se depois iam para casa foder.
- Bem.. - disse eu, no tom mais ligeiro que consegui. - Dá-lhe
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saudades minhas. E, se ela precisar de dinheiro para o estúdio.. - parei aí.
- Oh, Peter - disse ele, perturbado e pestanejando furiosamente. - Eu acho que ela não aceitaria dinheiro de ti.
- Não - disse eu -, não aceitaria. Foi uma sugestão estúpida. Não lhe digas nada.
Eu não estava a ter uma noite particularmente agradável mas, por razões que não conseguia compreender, não me queria ir embora.
Por isso, depois de acabarmos de comer, mudámo-nos para o bar e convenci Arthur a deixar-me pagar uns vodkas.
Acho que me embriaguei. Lembro-me de falar continuamente em Jenny Tolliver. Como estava ela de aspecto? Tinha comprado roupa nova? Como estavam os pais dela? Ela tinha perdido peso?
Após algum tempo, compreendi que Arthur estava a olhar para mim com compaixão e tristeza e não consegui suportar o seu olhar. Disse-lhe que ia ter uma segunda-feira muito ocupada e que tinha de me ir embora.
- Obrigada pelo jantar - disse eu.
- Obrigada pelas bebidas - disse ele. - Temos de voltar a fazer isto em breve.
- Claro - disse eu. Mas sabia que não o faríamos.
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Perder os nossos melhores garanhões para Wolcott Sands prejudicou-nos, não havia dúvida, mas sobrevivemos. Eu passei a colmatar mais as falhas e aceitávamos quase todos os rapazes que Sol Hoffheimer nos mandava. Houve algumas queixas da parte das clientes; até mesmo um reembolso com um garanhão sobrecarregado de trabalho que não conseguiu funcionar.
Telefonava frequentemente a Luke Futter para saber como iam as suas investigações, mas tudo o que ele dizia era: "Estas coisas levam tempo."
Em meados de Abril, marquei uma cena para mim com uma mulher chamada Sally que, disse-nos a amiga que a mandou, era de fora e tinha vindo passar uma semana a Manhattan para fazer compras.
Esperei por ela no Quarto Cor-de-rosa, o quarto principal em que eu dormia. Tinha os copos de vinho branco prontos e verifiquei a casa de banho para me certificar de que Maria tinha colocado toalhas lavadas.
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Bateram à porta do quarto. Abri-a, a sorrir. E ali estava Sally Lee Soorby, a minha ex-mulher.
Vi o queixo dela cair, como suponho que aconteceu ao meu. Depois desatámos os dois a rir. Puxei-a para dentro, fechei a porta e abracei-a. Cheirava a Estée Lauder e Jim Beam.
Ela afastou-se para olhar para mim, segurando-me os braços.
- Querido - disse ela -, que diabo estás tu a fazer aqui?
- Sou o dono desta espelunca - disse eu. - Que fazes tu aqui?
- Estava a contar provar um pirilau ianque - disse ela.
-Sally, se preferires provar outra pessoa, eu arranjo-te outro garanhão.
- Nem sonhar, querido - disse ela. - Será como nos velhos tempos.
Enquanto nos despíamos, ela disse-me que se tinha divorciado do homem que tinha a incubadora de peixes na Geórgia.
- Querido, até as partes privadas dele cheiravam a solha.
O nome dela agora era Sally Lee Randolph, e o seu marido actual tinha uma cadeia de lavandarias, era representante da Cadillac, e tinha os direitos de venda locais dos Gobble Burgers, hamburgers de peru servidos em pãezinhos salgados.
- Somos ricos, ricos, ricos - disse ela.
- Folgo em sabê-lo - disse eu. E depois, quando a vi nua, acrescentei.- Sally, tu tens andado a comer demasiados Gobble Burgers.
- É verdade - disse ela, dando umas palmadinhas nas ancas volumosas. - Mas Hank, é o meu marido, gosta de mim assim.
-Ainda estás com um óptimo aspecto - garanti-lhe.-Nem um pouco de flacidez. Hank é um homem de sorte.
- O irmão dele também - disse ela, rindo. Deitou-se na cama e estendeu-me os braços.
Era tão louca e acrobática na cama como quando estávamos casados. Para ela, o sexo era uma brincadeira, uma luta amorosa. Se não fosse divertido, não prestava.
Ficou encantada porque me lembrei de que ela gostava que lhe fizessem cócegas. Punha-a fora de si. Soprar-lhe os seios punha-a fora de si. Lamber-lhe as palmas das mãos punha-a fora de si. Morder-lhe as orelhas punha-a fora de si. Ela era sessenta quilos de nervos.
Tivemos uma cena divertida juntos, muito meiga e afectuosa. Pudemos brincar um com o outro, recordando-nos dos botões que podíamos carregar e dos gatilhos que podíamos puxar. Eu quase me tinha esquecido de como a intimidade física total pode ser agradável. Os corpos são bons.
Ultrapassámos a hora marcada, mas finalmente tive de parar, com a pulsação tão acelerada como se tivesse corrido a Maratona. Eu
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sabia que ela conseguia continuar infinitamente, até os paramédicos me virem buscar. Ela tinha sido sempre assim, mas nunca de mau humor quando eu tinha de parar. Uma mulher muito bem disposta. Fiz votos para que Hank, e o irmão, apreciassem o que tinham.
- Não tens filhos, Sally? - perguntei-lhe enquanto nos vestíamos.
- Não - disse ela. - Tenho qualquer coisa errada com a canalização. Eu e Hank já falámos em adopção. Que achas?
-Para ser completamente sincero, não consigo imaginar-te mãe.
- Suponho que tens razão, querido - disse ela, suspirando. - Eu vou passar a vida a criar tempestades.
Acompanhei-a até à porta da entrada, com o braço à volta da cintura dela. Martha lançou-nos um olhar estranho.
- Sally - disse eu. - Foi bom ver-te. Volta sempre.
- Quantos rapazes tens aqui? - perguntou ela.
- Oh, não sei exactamente. Trinta ou quarenta, suponho.
Eu podia imaginar visões de bombons passarem-lhe pela cabeça.
- Querido - disse ela -, quem me dera que abrisses uma sucursal em Atlanta.
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Trabalhámos muito para que o nosso negócio fosse um êxito. Todos os nossos garanhões eram limpos. Servíamos refeições boas e bebidas honestas a preços razoáveis. Dávamos roupa de cama e toalhas lavadas a todas as clientes. Até tínhamos flores nos quartos e na entrada. Era uma operação com classe, em todos os sentidos.
E, nessa altura, o tecto caiu-nos em cima. Recordo-me muito bem do dia: 22 de Abril. Nessa data, recebemos uma carta registada do agente imobiliário que nos tinha alugado o apartamento. Fomos informados de que o arrendatário original planeava regressar aos Estados Unidos no fim do ano, e que teríamos de desocupar a penthouse até 31 de Dezembro.
- Escuta - disse Martha. - Este negócio é demasiado bom para o deixarmos ir por água abaixo. Temos mais oito meses aqui. Vai-nos dar tempo para arranjarmos outro lugar. Entretanto, aumentaremos a nossa reserva de dinheiro para podermos financiar a mudança.
- Mas eu adoro este apartamento - lamentei-me.
- Eu sei, Peter - disse ela. - Eu também. Mas temos de enfrentar os factos. Começámos na tua espelunca de West Side e acabámos neste palácio. Podemos voltar a fazer o mesmo.
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Ela continuou a falar, e comecei a sentir-me menos deprimido. Admito que ela era a sócia mais forte e, após algum tempo, comecei a recuperar a segurança. Não era o fim do mundo. Podia até ser o princípio de algo verdadeiramente grandioso.
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Alguns dias depois de termos recebido as más notícias sobre o apartamento, aconteceu uma coisa estranha.
Martha veio ter comigo pouco depois do meio-dia e, num tom brusco, disse que tinha um pedido telefónico para um rapaz às três da tarde desse dia. Disse-lhe que faria algumas chamadas para arranjar um garanhão.
- Gostava que fosses tu, Peter - disse ela, sem olhar para mim. -Porquê eu?-protestei.-Estou no meio da agenda da próxima
semana.
-Bem, uh, é uma cliente nova. Supostamente muito rica. Influente. Eu acho que devíamos tentar causar uma boa impressão.
Ela parecia - bem, talvez não nervosa, mas perturbada. Era óbvio que algo a estava a incomodar.
- Está bem - disse eu. - Como se chama ela? Chamava-se Mrs. Wilson Bowker. A morada era na 82ª Avenida
Leste, no bloco entre a 5ª e a Madison Avenue. No espaço para comentários na nota de encomenda, Martha tinha escrito. "Discreto."
- Que é este "Discreto"? - perguntei-lhe.
- Ela faz grande empenho - disse Martha - em que o homem que lhe enviarmos seja discreto.
- Que pena - disse eu, suspirando. - Eu ia colocar uma grande tabuleta ao pescoço a dizer "garanhão".
Cheguei ao endereço alguns minutos antes das três da tarde, com um livro de amostras de papel de parede debaixo do braço. Era um bloco de apartamentos pequeno, elegante e moderno. (Soube mais tarde que só tinha dez apartamentos duplex). No átrio forrado de mármore, um empregado de uniforme estava sentado numa cabina envidraçada com o dístico Concierge1.
- Para Mrs. Bowker - disse-lhe eu. - Do decorador de interiores, tenho amostras de papel de parede para ela.
1. Porteiro, em francês. (N. da T.)
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Ele falou a um telefone branco, francês, numa voz respeitosa. Depois fez-me sinal em direcção ao elevador.
- Mrs. Bowker está à sua espera. Apartamento Cinco-B.
O apartamento fazia o meu parecer um armário cheio de tralha. No primeiro andar havia espaço suficiente para um jogo de basebol entre duas equipas. Uma escada graciosamente curva conduzia a um patamar no segundo andar e, presumivelmente, aos quartos.
O branco era tão brilhante que ofuscava a vista. Tudo era branco: paredes, tecto, carpete, mobília. Até um piano de cauda branco. Oh, havia alguns toques monocromáticos mas, de um modo geral, o apartamento parecia ter passado por uma tempestade de neve.
A mulher que me cumprimentou também era branca, branca, branca. Cabelo louro-prateado puxado num coque. Robe branco com um fecho até ao pescoço. Pompons brancos nos sapatos de quarto brancos. A pele era pálida, com um brilho translúcido. As feições era tão finas que se tornavam frágeis.
Calculei que tivesse cerca de quarenta e cinco anos.
- Mrs. Bowker? - perguntei.
- Sim - disse ela em voz baixa. - Como se chama?
- Peter.
Ela acenou a cabeça como se os seus piores receios tivessem sido confirmados.
- Tem uma casa linda - disse eu.
Ela olhou em volta, quase surpreendida, como se a visse pela primeira vez.
- Obrigada - disse ela com uma voz fraca. Viu-me olhar para o piano branco.
- Toca? - perguntou.
- Não, o piano não - disse eu, tentando uma pequena graça. Mas ela não entendeu.
Na realidade, eu não estava a olhar para o piano, mas sim para o que estava em cima dele: uma série do que eram obviamente fotografias com molduras de prata, todas viradas para baixo.
- Esta é uma experiência nova para mim - disse ela de um modo hesitante. - Que fazemos agora?
- Estamos sozinhos no apartamento, Mrs. Bowker? Ela disse que sim com a cabeça.
- Então podemos ir para o quarto?
Ficou calada um momento. Uma mulher magra, erecta. O rosto estava composto. Parecia cheia de confiança em si própria. O único indício que eu tive de um tumulto interior foi aquela voz trémula, quase rangente. Pensei que ela talvez estivesse a tentar desesperadamente controlar-se.
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- Muito bem - disse ela por fim, virando-se e subindo as escadas. Segui-a.
A tempestade de neve tinha atingido também o quarto. Uma divisão enorme, toda de branco-brilhante com uma parede forrada com um espelho. E, em cima da cómoda, da escrivaninha e da mesa-de-cabeceira, mais fotografias com molduras de prata voltadas para baixo.
Ela virou-se para olhar para mim.
- E agora? - disse ela num tom tenso.
- Que tal despirmo-nos?
Ela ficou novamente silenciosa. Isto era como arrancar dentes. Esperei um pouco, depois comecei a despir o casaco.
- Espere - disse ela, estendendo uma mão. Esperei.
Ela inspirou profundamente.
- Desculpe - disse com voz rouca -, mas isto não vai dar resultado. O senhor vai receber o seu pagamento, mas agora gostava que se fosse embora.
Voltou-se, deu alguns passos em direcção à parede espelhada e ficou a olhar para o seu próprio reflexo.
- Não é o senhor - disse ela numa voz sem vida. - E bastante atraente. Sou eu.
Calou-se e não disse mais nada. Eu não tinha muitas deixas, mas pensei em arriscar..
- Mrs. Bowker, há muitas maneiras de obter alívio sexual. Eu conheço várias, ah, técnicas, se quiser que eu tente.
- Eu sei que é repugnante - disse ela num tom inexpressivo, olhando para o seu reflexo. - Eu sei que não me devia sentir assim, mas sinto. Eu pensei que isto.. Mas não posso. Tenho muita pena. Por favor, vá-se embora.
Descemos as escadas, e ela deu-me o meu pagamento e uma gorjeta de cem dólares.
- Se mudar de ideias.. - disse eu.
- Não - disse ela. - Acho que não vou mudar. Nunca. Por favor esqueça tudo isto. Promete?
- Claro - disse eu. E foi tudo.
Assim que regressei ao apartamento, Martha queria saber como era o apartamento e tudo sobre Mrs. Bowker. Que tipo de mulher ela era, se eu a achava bonita, se era boa na cama.
Contei-lhe o que tinha acontecido.
Martha ficou silenciosa e pensativa.
- Porquê todas essas perguntas? - perguntei. - Qual é o teu interesse nisto?
Mas ela limitou-se a abanar a cabeça e foi-se embora. Um mês mais tarde, adivinhei o que se passava.
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Encontrámo-nos no apartamento de Martha. Luke Futter estava muito bem disposto.
- Está tudo preparado - disse ele. - Duas polícias disfarçadas fizeram compras no berço de Sands. Vamos fazer uma rusga na quarta-feira. Ele tem muitas clientes ricas e influentes; será estritamente um caso de droga.
- Quem vai ser acusado? - perguntou Martha.
-Apenas Wolcott Sands. Teremos um mandato. Os outros provavelmente serão presos, interrogados e libertados. E a casa será selada, claro.
Ficámos silenciosos. Eu sabia que tinha de ser feito, mas não me sentia particularmente feliz. Era verdade que Sandy nos tinha traído, mas parecia uma represália dura.
- Que achas que ele vai apanhar? - perguntei.
-Depende da inteligência do advogado que arranj ar e do dinheiro que estiver disposto a espalhar. Se ele jogar certo, pode negociar e ter apenas uma multa e pena suspensa. Ele não tem cadastro. Mas se tiver um advogado ranhoso, arrisca-se a cumprir pena.
- Quanto tempo? Futter encolheu os ombros.
-Talvez um ano. Dezoito meses. Isso não vos interessa, pois não?
- Quero que o filho da mãe apodreça! - disse Martha num tom irado.
- É - disse o detective, a rir. - Ele está a dar uma má reputação à prostituição. Mas há uma coisa sobre a qual vos quero avisar. Se ele adivinhar quem avisou os chuis sobre o negócio, pode denunciar-vos por despeito, ou entregar-vos ao Ministério Público como moeda de troca. Em qualquer dos casos, o vosso negócio corre perigo.
- Então, que fazemos? - perguntei, ansioso.
- Tomem o meu conselho - disse Futter, e fechem durante uma semana. Vamos fazer a rusga na quarta-feira. Fechem o vosso apartamento na terça à noite. Tirem uma semana de férias, de preferência fora da cidade. Se as coisas parecerem calmas uma semana depois, podem voltar a abrir.
- Deus do céu! - disse Martha. - Isso é o rendimento de uma semana perdido.
- As coisas devem ficar calmas dentro de uma semana - insistiu Futter. - Escutem, isto é coisa simples. Apenas rusga à droga.
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Porque há pessoas ricas envolvidas, não queremos publicidade. Nem sequer vai vir nos jornais. Mas joguem pelo seguro. Depois, se Sands se puser a falar, os tipos que forem enviados para investigar encontrarão um apartamento fechado, ninguém em casa, e o caso fica por aí.
Compreendemos a lógica do que Futter disse e concordámos em fechar o apartamento durante uma semana. Embora ele não tivesse pedido dinheiro extra para acabar com Sands, decidimos dar-lhe um bónus de quinhentos dólares.
- Obrigado - disse o detective, metendo o dinheiro no bolso sem olhar para ele. Acabou a bebida e pôs-se de pé para se ir embora. - O que facilitou as coisas - disse ele -, foi que este Wolcott Sands não estava a pagar a ninguém. Estão a imaginar? O gajo era um fora-de-lei de merda!
Depois de Futter se ter ido embora, descalçámo-nos e instalei-me no sofá de cabedal.
- Não gosto daquele homem! - disse eu.
- Mas ele faz o que é pago para fazer - disse Martha. - Não somos obrigados a gostar dele.
- É um mundo completamente novo para mim - disse eu, abanando a cabeça.
- Que é que é novo?
- Subornar pessoas. Comprar polícias. Livrar-nos de Sidney Quink. Acabar com o negócio de Sandy. E o que me disseste sobre o teu namorado, como uma meia dúzia de homens decide quem poderá ser o nosso próximo governador. Eu calculava que existisse um mundo assim, mas nunca fiz parte dele.
- Existe, sim-disse Martha num tom grave.-E acredita, é melhor estar dentro dele que fora dele. Eu chamo-lhe o sobremundo. O submundo é crime barato e violência desnecessária. Mas o sobremundo é riqueza e poder. Os crimes são crimes grandes e, quando é utilizada violência, há uma razão para ela.
- Os que movem e sacodem - disse eu.
- Podes crer. Da maior parte dos quais nunca se ouviu falar. Mas eles têm mais influência sobre o teu modo de vida do que imaginas. O objectivo é o poder, e o dinheiro é a maneira de o obter. A maior parte por meio da corrupção. A primeira lei do sobremundo é: toda a gente tem o seu preço. As únicas coisas que o dinheiro não consegue comprar são as que não vale a pena ter.
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- Não sabia que eras filósofa.
-Tenho alguns miolos-disse ela -, e, de vez em quando, ponho--os a funcionar. Sê um amor e arranja-nos uns brandes.
Quando trouxe as bebidas, ela bateu ao de leve nas almofadas a seu lado. Sentei-me junto dela e pus-lhe um braço por cima dos ombros. Ela aninhou-se em mim.
- Talvez vá até Virgínia ver o meu rapaz - disse ela. - Por três ou quatro dias. Depois volto para cá e verifico a situação junto de Futter. Para onde vais quando fecharmos?
- Ainda não pensei nisso. Nunca tive umas férias a sério. Nunca tive dinheiro para isso.
- Por que não experimentas a Florida? - sugeriu ela. - Não deve ter muita gente nesta altura do ano. Têm pistas de corridas de cavalos, pistas de corridas de cães. Se quiseres um casino, podes sempre apanhar um avião para Freeport.
- Eu não gosto muito de jogar com fichas.
- Então, fica na praia, descontrai-te e apanha sol. Nós temos trabalhado muito. Uns dias de folga far-nos-ão muito bem.
Ficámos em silêncio, a beber o nosso Armagnac.
- O que disseste - reflecti, pensativo - que as únicas coisas que o dinheiro não consegue comprar são as que não vale a pena ter.. e o amor?
- O amor o quê? - disse ela, levantando a vista para mim. - Pode-se comprar o amor, de uma maneira ou doutra.
- Eu não posso - disse eu, e falei-lhe de Jenny Tolliver.
- Merda - disse ela, num tom de desprezo. - Se realmente a amasses, terias desistido no negócio para ficar com ela. E se ela te amasse, teria ficado contigo, independentemente do que fizesses.
Suspirei.
- Suponho que tens razão. Mas tenho muitas saudades dela.
- Nem por isso - disse Martha. - Ela fascina-te porque foi provavelmente a primeira mulher da tua vida que te pôs a andar.
Ri-me e abracei-a.
-Pára de fazer funcionar os miolos - disse-lhe eu.-Estás a dar cabo de mim!
Era bom estar com ela. Toda a gente tem de ter alguém para quem se possa abrir o coração e dizer: "Olha para isto!" Apesar da nossa relação sem sexo, eu tinha mais intimidade física com Nicole Radburn do que com Martha, mas Martha era a mulher com quem podia falar sobre a escuridão.
- Amas o teu namorado? - perguntei-lhe subitamente.
Ela não respondeu. Vi-a olhar para a distância e compreendi que não era que ela não me quisesse dizer; ela simplesmente não sabia.
Antes de partirmos - disse eu. - Por que não telefonas a Oscar
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Gotwold a pedir-lhe que comece a procurar um lugar novo para nós.
- Já o fiz - disse ela. - Ele não foi muito optimista. Tomámos outra bebida e depois fomos para o quarto em silêncio.
Não sei porquê, mas a conversa com Futter sobre a rusga à casa de Wolcott Sands tinha-nos estragado a noite. Não estávamos exactamente deprimidos, mas sim pensativos.
- Olha para isto - disse Martha olhando para o seu corpo nu. - Estou a ficar uma desgraça.
- Pára de te lamentar - disse eu. - Estás em grande forma para.. - parei.
- Uma mulher da minha idade - terminou ela com um sorriso amargo. - Peter, fazes-me um favor?
- Claro. Qualquer coisa.
- Eu só quero ficar quieta e deixar-te fazer amor comigo. Está bem?
- É um prazer - disse eu, num tom viril, e ela nunca soube que estava prestes a pedir-lhe o mesmo.
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Apanhei um voo na quarta-feira de manhã para Palm Beách. Aluguei um vistoso Pontiac Grand Prix (a que o empregado insistia em chamar Grand Pricks. Será que a minha fama se tinha espalhado?1) e segui para sul ao longo da AIA, seguindo um mapa que comprara no aeroporto.
Encontrei o tipo de local de que andava à procura a cerca de quilómetro e meio a norte da Boyton Beach: um motel tão perto do oceano que estava quase submerso.
Meia hora mais tarde, estava com os meus novos calções de nylon Eminence, enfrentando as ondas mornas.
Depois de nadar, calcei-me, vesti umas calças brancas, uma camisa cor-de-rosa e encontrei uma enorme loja de bebidas que vendia, não só bebidas, como também copos, suportes para garrafas, saca-rolhas e tudo o mais que quem bebe precisa de ter.
Também descobri que, na Florida, muitas lojas de bebidas têm um bar anexo. Depois de guardar as minhas compras (vodka, gin, brande, água tónica, limões e limas) na mala do Grand Prix, voltei para o bar pouco iluminado e sentei-me num banco.
1. Trocadilho com Pricks, que pode significar, em calão, pénis. (N. da T.)
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A empregada do bar vestia calções muito curtos, um top fininho (sem soutien), e parecia uma chefe de claque da escola. Também pareceu espantada quando mandei vir um negroni, a bebida mais mortífera para o homem. Mas ela tinha todos os ingredientes, e ensinei-lhe a prepará-lo. Até lhe dei um golo.
- Pff! - disse ela, fazendo uma careta. - Sabe a remédio.
- É isso exactamente o que é - disse eu. - Cura tudo.
- Eu gosto de brande de alperce - disse ela.
Por isso, paguei-lhe um copo de brande de alperce e disse-lhe o que procurava: um restaurante típico da Florida onde pudesse encontrar marisco fresco. Ela recomendou um lugar chamado Crab Palace1 na auto-estrada federal, informal e razoável.
Bebi dois negronis e deixei-lhe uma boa gorjeta.
- Tem um bom dia, está bem? - disse ela quando eu ia a sair.
O Crab Palace era digno de ser visto. As mesas de cozinha, de madeira, estavam postas com jornais em vez de toalhas, a cerveja era servida em latas, e a ementa era colocada em cima da mesa pela empregada com toda a serenidade de um chefe de mesa de Manhattan a tirar a rolha de uma garrafa de dYquem.
Mas havia alguns toques sofisticados. Todas as mesas tinham uma garrafa de xerez para ser posta na sopa de camarão ou de lagosta. E a selecção de condimentos incluía, contei eu, sete qualidades de pimenta diferentes, flocos de pimenta, pimenta moída, pickles de pimentos e um frasco rotulado simplesmente: Pimenta para adultos.
Comi sopa de búzios e uma travessa enorme de patas de caranguejo do Alaska, que parti com um pedaço de vassoura preso à mesa com uma corrente comprida. Também comi batatas fritas, uma salada com molho com alho e duas latas de cerveja Rolling Rock. Terminei com uma fatia de tarte de lima. Foi uma refeição memorável.
A saída, quando estava a pagar a conta, vi que estavam a vender T-shirts com Comi caranguejo escrito na frente. Comprei duas, uma para Martha e uma para Nikki.
Por volta da meia-noite fui até à praia em frente do motel. Levei comigo um pequeno brande.
Uma lua inchada projectava um trilho de prata no mar suavemente ondulante. O ar era cálido e cheirava a sal. Ouvia-se o murmúrio das palmeiras e via-se, ao longe, as luzes cintilantes dos barcos que passavam.
Era belo mas, ao fim de cinco minutos, voltei para dentro e fui para a cama. Afinal de contas, sou um rapaz da cidade.
Na quinta-feira de manhã encontrei uma loja que vendia a edição
1. Palácio do Caranguejo. (N. da T.)
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nacional do The New York Times. Comprei um exemplar e levei-o para o McDonalds local, onde o folheei enquanto comia o meu pequeno-almoço e bebia duas chávenas de café simples.
Encontrei a notícia escondida no fim da página dezassete. Era um pequeno parágrafo e dizia apenas que a polícia de Nova Iorque tinha feito uma rusga a um "estabelecimento" da 58ª Avenida Leste onde, segundo a acusação, se procedia à venda ilegal de droga. Um indivíduo, Wolcott Sands, de endereço desconhecido, tinha sido preso.
Passei a manhã na praia, a nadar e a apanhar sol. Depois dormi uma soneca. Por volta das quatro horas vesti-me e voltei ao bar onde tinha estado no dia anterior.
A empregada chefe de claque estava de novo de serviço. Desta vez, tinha vestida uma camisola justa com a palavra Pat bordada sobre um dos seios.
- É o teu nome ou um convite1? - perguntei-lhe.
- Oh, és maroto! - disse ela, com uma risadinha. - Queres um daqueles niggeronis?
- Negroni - disse eu. - Sim, quero um.
Ela era jovem e tinha uma pele fresca. O cabelo loiro comprido, oxigenado, quase branco, tocava-lhe os ombros. Quando me trouxe a bebida, perguntei:
- Trabalhas esta noite?
- Saio às oito.
- Que tal jantares comigo do Crab Palace?
- Está bem - disse ela prontamente. - Eu tenho uma pequena carripana. Encontro-me contigo lá às oito e meia.
- Óptimo! - disse eu.
- Como te chamas?
- Peter.
- Ena pá - disse ela. - Um belo nome.
Nessa noite tentei lampreia, pela primeira vez na vida. Não desgostei, mas não é uma coisa que gostasse de comer todos os dias. Pat comeu duas doses de golfinho grelhado.
- Eu adoro este prato - disse ela -, e pode-se comer a quantidade que se quiser, que se paga o mesmo.
- Não queres mais batatas fritas e outra cerveja? - sugeri.
- Está bem - disse ela.
Quando íamos a sair do Crab Palace, eu disse:
- Que tal irmos até ao meu quarto tomar uma bebida?
- Está bem - disse ela. - Vai tu à frente que eu sigo-te no meu carro.
No meu quarto do motel, comecei a misturar jim e água tónica. 1. Pat - além de abreviatura de Patrícia, significa também fazer festas. (N. da T.)
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Ela andou de um lado para o outro, espreitando os armários, experimentando as camas para ver se eram duras, e olhando para dentro do pequeno forno.
-Eu gostava de ter um lugarzinho assim só para mim-disse ela. - Eu vivo numa casa de doidos, sabes? Tenho cinco irmãos, todos mais novos que eu, e não tenho privacidade nenhuma.
- Por que é que ainda não te casaste, Pat?
- Vou-me casar - disse ela. - O meu namorado, ele trabalha numa garagem, bem, nós estamos a poupar dinheiro e calculamos que, no ano que vem, já teremos o suficiente para uma casa nossa.
- Isso é óptimo - disse eu. - Desejo-te muitas felicidades.
- Obrigada-disse ela num tom formal. Depois:-Queres divertir-te um pouco?
Não há nada que substitua a juventude. Ela era firme, quente do sol, cheia de vida. A sua inexperiência era deliciosa.
- Oh, meu Deus! - disse ela a certo ponto. - Tu sabes mesmo fazer amor.
- Faço questão de saber - disse eu.
Ela era entusiástica, disposta a tudo, ansiosa por aprender.
Mais tarde, tomámos um duche juntos, o que lhe agradou muito. Depois de nos vestirmos, dei-lhe cem dólares, e ela ficou com os olhos esbugalhados.
- Tanto! - disse ela, mas aceitou sem rebuço. - És um amor - disse ela. - Um verdadeiro amor. Vem ver-me outra vez, está bem?
Passei algumas horas de sexta-feira de manhã a nadar. Mas a minha pele começou a picar e não me apeteceu ficar ao sol. Vesti um casaco e umas calças de flanela leve e fui até Palm Beach.
Foi uma revelação. Eu tinha a atitude provinciana típica de Nova Iorque de que a riqueza e a elegância só existem em Manhattan. A Avenida Worth fez-me mudar de opinião. A Via Mizner fazia a Avenida Madison parecer a Orchard Street.
Não era tanto as lojas e as boutiques com as suas espantosas montras de artigos fabulosos. O que mais me impressionou foram as mulheres, elegantemente vestidas, que passeavam de loja em loja, sem outro desejo aparente que não fosse gastar dinheiro.
Encontrei um café com esplanada e sentei-me a uma mesa debaixo de um guarda-sol, a beber um Campari com soda e a observar o desfile cintilante.
Estas mulheres da Florida eram, talvez, um pouco mais velhas que a clientela da Barcarole. Mas eram igualmente altivas, esplendidamente vestidas e penteadas, e pareciam ser um grupo mais atlético, com os corpos muito bronzeados e passadas firmes, e o aspecto de mulheres que levam o seu golfe e o seu ténis a sério.
Não direi que a minha Grande Ideia me tenha surgido nesse 166
preciso momento, acompanhada de um clarão. Não me pus de pé a gritar: "Eureka!". Mas nasceu um conceito.
A minha grande ideia era a seguinte: um clube privativo num apartamento, para mulheres endinheiradas. Exigiria uma jóia de inscrição elevada e cotas anuais. Seria tão luxuoso e elegante como o famoso bordel das irmãs Everleigh, de Chicago. Haveria comida, bebida e talvez um trio a tocar no bar.
Teria vários quartos no primeiro andar. Além de fornecer garanhões, o clube alugaria esses quartos aos membros (por um preço, claro) para encontros discretos com os seus amantes.
A minha imaginação disparou. Consegui imaginar um salão de beleza no clube. E um pequeno ginásio com sauna e massagista.
Nessa noite, jantei em Palm Beach num restaurante em que havia velas em cima das mesas e o pargo foi servido com amêndoas. De uma garrafa de um excelente muscadet deixei apenas um copo, e fiz votos para que o empregado da cozinha tivesse bom senso suficiente para a acabar.
Voltei para o meu motel e passei horas a passear descalço na praia, com o cérebro a fervilhar com a minha Grande Ideia. Decidi que Peters Place1 seria um nome lógico e fácil de lembrar. Imaginei-o a ocupar um esplêndido apartamento de East Side, o interior decorado com discreto bom gosto.
Mas se o Peters Place de Manhattan tivesse êxito, havia algum motivo para que não se expandisse por todo o país? Vi uma cadeia de Peters Places em Nova Iorque, Palm Beach, Atlanta, Los Angeles, Chicago, etc. - qualquer cidade tinha uma grande quantidade de mulheres ricas. Talvez até Londres, Paris, Roma!
No sábado de manhã comprei um bloco amarelo de tamanho normalizado e comecei a tirar apontamentos. Quando tinha preenchido folhas inteiras com ideias sobre como um bordel opulento devia ser organizado e mantido, debrucei-me finalmente - e com relutância - sobre o problema de como o estabelecimento poderia ser financiado.
Calculei que, no final do ano, eu e Martha talvez tivéssemos duzentos e cinquenta mil dólares em dinheiro. Se conseguíssemos convencer, digamos, mil clientes a pagarem uma jóia de quinhentos dólares - ou quinhentas clientes a pagarem mil cada - seria mais quinhentos mil. Isto era, eu sabia, muito inferior ao investimento necessário para abrir este tipo de clube privativo. Tive de chegar à conclusão de que o Peters Place requereria um enorme financiamento.
No domingo, por volta do meio-dia, telefonei a Martha Twombly, que tinha acabado de regressar de Virgínia. Ela tinha estado 1. A casa de Peter. (N. da T.)
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em contacto com o detective Luke Futter e informou-me sobre o que se passava.
Wolcott Sands tinha sido posto em liberdade com uma fiança de dez mil dólares. Ele tinha, de facto, falado de nós à polícia. Os detectives enviados para investigar encontraram um apartamento fechado e desocupado. Max, o porteiro-que Deus o abençoe -, tinha-lhes garantido que éramos mesmo uma escola de actores. E a questão fora encerrada.
Futter achava que podíamos voltar a abrir na terça-feira, a não ser que algo de inesperado acontecesse. Disse a Martha que me estava a divertir imenso, que voltaria o mais depressa possível e que tinha uma coisa para discutir com ela.
Fiz uma reserva na primeira classe para o voo que saía de Palm Beach na segunda-feira ao meio-dia, depois fui dar um último mergulho no oceano e um passeio ao longo da praia.
Por volta das cinco horas, voltei ao bar, pensando que talvez pudesse convidar Pat para jantar na minha última noite na Florida. O homem barbudo atrás do bar disse-me que ela não trabalhava aos domingos, mas que tinha deixado um bilhete para "Peter".
O bilhete tinha apenas "Pat" escrito numa caligrafia infantil e um número de telefone.
Assim, telefonei-lhe da casa de banho dos homens, de pé, ao lado dos urinóis, e a olhar para a máquina montada na parede que vendia perservativos coloridos.
O homem que atendeu parecia embriagado.
- Pat está? - perguntei.
- Quem fala? - quis ele saber.
- O meu nome é Peter. Pat está?
- Quem.. - começou ele a dizer.
Depois ouvi uma pancada, algo que soou como uma pequena bulha e, ao fundo, gritos e choros de crianças.
- Está - disse Pat, ofegante.
- Daqui é Peter. Eu estava..
- Oh, Peter - lamentou-se ela. - O meu pai está bêbado, a mãe está doente e tenho de fazer jantar para um bando de imbecis. Juro que dou em maluca.
- Lamento muito, Pat. Eu estava com esperança de que pudéssemos jantar juntos, mas..
- Ouve, querido - disse ela num murmúrio. - Neste momento, não posso sair, compreendes? Mas que tal eu ir ter ao teu quarto por volta das oito, oito e meia. Está bem?
- Com certeza - disse eu em voz baixa. - Óptimo. Tudo o que eu queria era jantar.
-Vai tu comer-disse ela rapidamente. -Até logo. - Desligou.
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Antes de sair da casa de banho comprei duas embalagens de perservativos coloridos para Martha e Nikki.
Fui novamente ao Crab Palace e comi uma travessa de caranguejos salteados com arroz e um prato de tomate e cebola. E também uma garrafa de vinho da casa.
Depois regressei ao motel, sentei-me cá fora numa cadeira de metal e vi a Lua nascer enquanto bebia Tanqueray com gelo.
Pat chegou como um ciclone um pouco depois das nove, com o cabelo a esvoaçar, a T-shirt e os calções sujos de nódoas, e uma expressão tensa e zangada.
- Raios partam a família! - disse ela, furiosa.
- Ei - disse eu. - Acalma-te.
- Dá-me uma bebida - disse ela. - Por favor. Qualquer coisa serve.
Preparei-lhe umgin tónico forte. Ela bebeu-o de um só golo. Preparei-lhe outro. Ela pegou nele e respirou fundo.
- Merda, merda, merda! - disse ela. - Desculpa a linguagem, Peter. Estou a cheirar mal. Posso tomar um chuveiro?
- A vontade - disse eu.
Quinze minutos mais tarde, ela saiu da casa de banho com o corpo brilhante a pingar, toda ela cremosa e rosada. Estava a secar o cabelo com uma toalha.
- Toalhas limpas e secas - disse ela, num tom alegre. - Meu Deus, é uma dádiva do céu. A minha mãe há uma semana que não pode lavar roupa e o meu pai não ajuda nada.
Observei-a enquanto secava o corpo. Era emocionante sem ser sensual. Não consigo explicar a sensação. Preparei um gin tónico fraco para mim e pus mais um pouco no dela.
- Que bom - disse ela. - Estou a começar a sentir-me humana outra vez. És um amor por teres-me deixado vir cá.
Deixou cair as toalhas molhadas no chão. Sentou-se de pernas cruzadas numa das camas, desembaraçando o cabelo com um pente enorme com dentes grossos.
- Donde és, Peter?
- Nova Iorque.
- Calculei. Quando te vais embora?
- Amanhã de manhã.
Ela olhou para mim, levantando os braços para pentear aquele cabelo comprido, oxigenado pelo sol. Depois:
- Levas-me contigo? Abanei lentamente a cabeça.
- És casado?
- Não, mas tenho uma amiga certa e acho que ela não compreenderia. Além disso, tu vais-te casar para o ano, lembras-te?
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- Sabes o que me vai acontecer?-perguntou ela. -Vou ter cinco filhos em cinco anos, e ficar gorda e doente como a minha mãe. O meu homem vai beber tanto como o meu pai, as minhas tetas vão descair até aos joelhos, vou ficar com pouco cabelo e nunca hei-de ir a lado nenhum.
Que podia eu dizer? Ela tinha razão.
- Ah, que diabo! - disse ela, com um sorriso alegre. - Isso é tudo amanhã, e hoje é hoje. - Abriu muito os braços, numa oferta. - Peter, dá-me mais umas lições.
Na realidade não me apetecia muito, mas estava em dívida para com ela.
Na manhã seguinte apanhei o avião de regresso a Nova Iorque, com os meus planos para o Peters Place.
Antes de eu e Martha termos saído de Nova Iorque, tínhamos deixado uma mensagem.no nosso gravador de chamadas, dizendo às clientes que estaríamos fechados temporariamente e que tentassem de novo na semana seguinte. Mal tínhamos reaberto, o telefone começou a tocar, e marcámos a nossa melhor semana de negócio até então.
Nunca seríamos capazes de atender as nossas clientes ansiosas se não fosse o regresso dos garanhões desertores. Quando eles voltaram, a rastejar, recebemo-los sem rancor e pusemo-los imediatamente a trabalhar.
Eu fiquei especialmente satisfeito por ter Seth Hawkins de novo connosco. Ocowboy era extraordinariamente popular, uma adição ao nosso pessoal tão rendível, que Martha lhe chamava A Moca de Ouro.
Nessa frenética semana aconteceu outro incidente significativo..
Eu estava a folhear o The New York Times quando vi uma fotografia que me chamou a atenção.
Era de uma atraente mulher loura e de um homem alto e belo, com as mãos dadas levantadas, a sorrir de um púlpito para uma assistência que presumivelmente os aplaudia. A legenda identificava-os como Mr. e Mrs. William Bowker.
Não havia absolutamente dúvida nenhuma de que a Mrs. Bowker da fotografia era a mulher frígida do duplex branco da 82ª Avenida Leste. Li o artigo todo.
Dizia que Wilson Bowker, um proeminente homem de negócios de Manhattan, tinha feito um discurso em que dissera que o crime 170
era o problema Nº 1 do país e que, até que a lei e a ordem fossem restabelecidas, a cidade, o estado e o país não tinham qualquer futuro.
O discurso tinha sido recebido com entusiástica aprovação, e a esposa de Mr. Bowker tinha-se juntado a ele no pódio para agradecer os aplausos dos presentes. Quando lhe foi perguntado se tinha ambições políticas, Mr. Bowker tinha sorrido e dito.
- Quem sabe?
Coloquei o jornal de lado, pensativo, compreendendo, finalmente o interesse de Martha por Alice Bowker. Wilson Bowker era o namorado de Martha e estava a ser preparado para se candidatar a governador - numa plataforma de lei-e-ordem.
Era tudo muito interessante.
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Quando o nosso negócio estava novamente a correr sobre rodas, organizei uma reunião com Martha, Oscar Gotwold e Ignatz Samuelson. Encontrámos-nos no domingo à noite, no escritório do apartamento.
Eu tinha planeado esta primeira apresentação do Peters Place com algum cuidado. Se estas pessoas não gostassem da minha Grande Ideia, esta morreria logo ali. Eu precisava do entusiasmo deles.
Eu tinha decidido apresentar o Peters Place como um único negócio, um único clube privativo em Manhattan. Se eu mencionasse uma cadeia a nível nacional, eles pensariam que eu estava completamente louco: o conceito de um bordel exclusivo para mulheres em Nova Iorque era suficientemente novo.
Durante quase meia hora, dei o que considerei uma representação eficaz. Eu sou, afinal de contas, actor, e bastante bom. Sério, sincero, persuasivo. Referi todas as objecções possíveis e dei-lhes respostas antes mesmo de serem expostas.
Atirei-lhes com números, baseados no nosso mais recente rendimento do apartamento. Mostrei-lhes qual seria o nosso rendimento proveniente de dez ou doze quartos, mais comida e bebidas, jóias de inscrição e quota anual.
Mencionei concessões tais como o salão de beleza, o ginásio, a loja, a boutique, etc. Eles escutaram atentamente, e eu podia ver que estavam a começar a compreender a minha visão e a ver o lucro potencial.
Quando terminei, houve um silêncio total. Voltei a encher o meu copo e disse, no tom mais ligeiro que consegui:
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- Então?
Martha foi a primeira a reagir. Ela disse com admiração:
- Peter, eu sempre te disse que foste feito para o negócio. Iggy Samuelson disse lentamente:
- Os números parecem bons.
- Não nos deixemos entusiasmar demasiado - disse Oscar Gotwold. - Estás a falar em comprar ou alugar um edifício de cinco ou seis andares no East Side, transformar todos os andares superiores em quartos, instalar uma cozinha grande, uma sala de jantar, bar, etc. Iggy, em quanto calculas que seria o investimento?
O contabilista reflectiu durante um momento:
- Pelo menos três ou quatro milhões.
- Não teria de ser assim tão luxuoso - protestei. - Pelo menos no princípio. E, se Martha estiver disposta, nós dois poderíamos, antes de abrirmos, entrar com duzentos e cinquenta mil, mais quinhentos mil das jóias de inscrição.
-Não chega-disse Iggy, abanando a cabeça.-Precisariam, pelo menos, de dois milhões para lançar isto. Peter, com os custos de construção e remodelação, licenças, etc, ficariam lisos antes de abrirem.
-E, se não abrissem-disse Gotwold-, as clientes que tivessem pago a jóia de inscrição cairiam sobre vocês.
- Está bem - disse eu. - Isso significa que temos de arranjar, digamos, dois milhões, certo?
- Sim, mas é um risco - avisou Oscar. - Um grande risco.
- Eu acho que não - disse eu num tom firme. - E talvez não constitua risco nenhum. Não, se for bem gerido. Se eu tivesse dois milhões, não hesitaria um minuto em enterrar até ao último cêntimo nisto.
- Mas não tens - fez notar Iggy. - Onde vais arranjá-los? Olhei para Martha. O namorado dela, William Bowker, tinha
acesso a esse tipo de dinheiro. Talvez Martha conseguisse fazer um acordo. Mas ela não se ofereceu.
Foi Oscar Gotwold que salvou o Peters Place.
- Querida - disse ele a Martha. - Aqueles teus ex-patrões, na Barcarole. Eles têm dois milhões, ou sabem onde os ir buscar.
Ela não respondeu imediatamente. Depois suspirou. Em seguida, disse:
- Eles são homens duros, Oscar. Como tu bem sabes. Se eles entrassem nisto, haviam de querer mandar, e eu e Peter acabaríamos por ficar a trabalhar para eles.
- Isso não - disse eu, num tom decidido. - Este bebé é nosso. Nós trabalhamos e temos controlo majoritário. Isso tem de ficar assente.
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- Está bem - disse Gotwold. - Com isso em mente, deixa-me falar com eles para ver se estão interessados. Se estiverem, Peter pode fazer o seu acto.
- Sim-disse Martha, acenando com a cabeça -, é a melhor maneira de tratar do assunto. Mas lembra-te, eu e Peter somos os donos.
- Absolutamente - disse Oscar.
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Eu telefonava a Sol Hoffheimer pelo menos uma vez por semana, e a minha mensagem era sempre a mesma: manda-nos corpos quentes. Entregava o pagamento de Sol uma vez por mês, e reparei que a bebida estava a tornar-se rapidamente um problema. Mas, na altura, eu tinha outras preocupações mais urgentes.
Eu continuava a insistir para que nos arranjasse uma cópia razoável de Wolcott Sands - uma figura paternal mais velha, do tipo executivo. No princípio de Junho, ele enviou-o. O nome do garanhão era Yancy Burnett (nós chamávamos-lhe Yance), e tinha feito o papel de psiquiatra numa série televisiva durante sete anos, até a personagem ter desaparecido do guião.
Ele era um homem um tanto quadrado que admitia ter cinquenta e dois anos e, se tivéssemos contactado um responsável pela distribuição de papéis, não teríamos arranjado melhor. Cabelo fino, grisalho, encimava um rosto rubicundo com os olhos azuis mais brilhantes que já vi. Martha fez-lhe o teste e ficou impressionada.
-Tão bom como Sands-relatou ela.-Talvez melhor. Não é tão jovial, mas é mais gentil e meigo.
Na realidade, ele tornou-se tremendamente popular junto das nossas clientes mais novas. E mesmo a nossa octogenária, Becky, afirmou que ele era "um verdadeiro homem".
Yance era maliciosamente sardónico, com uma graça mordaz, e sempre pronto para ajudar quando necessário. Por exemplo, ele ficava na recepção quando Martha tinha de sair, e começou a ajudar-me a preparar a agenda e noutras tarefas diárias. Era pago extra por este trabalho, claro.
Logo no início, ele disse-me: "Peter, tenho de te dizer uma coisa. Mais cedo ou mais tarde vais descobrir, de qualquer modo. Eu dou para os dois lados. Mas prometo-te que não vou tentar engatar nenhum dos garanhões."
- Está bem - disse eu. - O que fazes no teu tempo livre é contigo. És casado, Yance?
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- Fui - disse ele. - Duas vezes. Dois erros.
- Que aconteceu? - perguntei, curioso.
-A culpa foi minha-disse eu.-Cometi o erro de não compreender que as mulheres têm corpos macios e vontades de ferro. Eu não podia assumir essa obrigação emocional. Por isso, agora navego ao sabor do vento.
- Por outras palavras - disse eu -, este emprego é perfeito para ti.
- Perfeito - concordou ele.
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Telefonei outra vez a Jenny Tolliver. Desta vez estava sóbrio.
- Está? - disse ela.
- Daqui Peter - disse eu. - Por favor, não desligues. Silêncio.
- Eu só queria saber como estás - disse eu.
- Estou bem, obrigada - disse ela nom tom firme. - E tu?
- Sobrevivendo. Jantei com Arthur e ele disse-me que vais abrir o teu próprio estúdio.
- Vou. Depois do 1º de Maio.
- Onde é? - perguntei. O truque do vendedor de seguros: fazer o cliente falar sobre ele próprio.
- No Garment District - disse ela. - É apenas um pequeno sótão. Terei um ajudante para auxiliar com a parte mecânica.
- Desejo-te muita sorte - disse eu. - Tu sabes isso.
- Obrigada - disse ela em voz baixa.
Aquela voz perturbava-me. As vozes podem ter o mesmo efeito que as canções populares antigas. Em si próprias, não são nada. Pequenas melodias baratas. Mas, se as embrulharmos em recordações, elas adquirem significado.
- Os teus pais estão bem? - perguntei.
-Estão. A minha mãe tem problemas com a artrite, mas já se habituou.
- Tens ido visitá-los?
- A última vez que fui, foi na Páscoa.
Procurei desesperadamente qualquer outra coisa para fazer com que ela continuasse a falar. Depois decidi arriscar e despachar o assunto.
- Jenny - disse eu. - Eu gostava de te voltar a ver. - Engoli.
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- Só um almoço ou jantar - acrescentei à pressa. - Onde e quando quiseres. Só para conversarmos. Novo silêncio.
- Já passou tempo suficiente - disse eu. - Certamente que podemos ter um jantar amigável.
Pausa. Cerca de três batidas. - Vou pensar nisso - disse ela.
- Então, posso voltar a telefonar-te? - disse eu ansiosamente.
- Se quiseres.
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Nicole Radburn estava sentada numa poltrona pequena, forrada de cretone, no Quarto Cor-de-Rosa, a arranjar os pés. Ela dedicava a si própria a mesma atenção cuidada que um homem dedica ao seu Mercedes.
Tinha vestida a T-shirt Com caranguejos que eu lhe trouxera da Florida. O seu corpo era sensual, e ela movia-se com uma elegância fluida. Fiquei intrigado com o motivo por que não me sentia excitado por ela.
Cheguei finalmente à conclusão de que eu era como um homem que trabalha todo o dia numa pastelaria. Nas horas de folga, não suporta ver uma charlotte russa.
Eu tinha acabado de tomar um duche e tinha uma toalha à volta das ancas. Nikki ergueu a vista.
- Preparei umas bebidas com o teu borgonha branco - disse ela. - Não te importas?
- Tu sabes que te podes servir de tudo cá em casa - disse eu.
- Foi um jantar estupendo esta noite - disse ela. - Gosto da ideia de saltear vitela com alho francês. Tu és um bom cozinheiro.
- Devias ter deixado uma pequena gorjeta debaixo do prato - disse-lhe eu.
Sentei-me na cama, provei a minha bebida e fiquei a vê-la tratar cuidadosamente dos pés. Pensei que um escultor ficaria encantado com os seus músculos. Um pintor talvez não.
- Como vai o negócio? - perguntei-lhe.
- Bem - disse ela, sem levantar os olhos. - Na semana passada acrescentei seis nomes novos ao meu arquivo. Já tenho quase mil. Consegues acreditar? Quando mudar de vida, posso vender o arquivo a uma principiante por um bom preço.
- Queres dizer daqui a dez anos?
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Guardou a tesoura e as limas, pegou na bebida e veio sentar-se ao meu lado. Pôs um braço por cima dos meus ombros nus.
- Talvez mais cedo - disse ela. - Contei-te que há dois clientes que querem casar comigo?
- Não - disse eu. - Não me contaste isso.
- São uns tipos simpáticos, mas não têm dinheiro que chegue. Quando um gajo com dinheiro a sério me pedir, talvez me tente.
Voltei-me para olhar para ela.
- Ser-lhe-ias fiel?
Ela ficou espantada com a minha pergunta.
- Claro, Peter. O sexo não é muito importante para mim. Como bem sabes.
- Lá isso sei - disse eu pesarosamente. Mas ela não se deixou enganar pela minha tristeza fingida, supostamente causada pela nossa casta relação.
Foi até à casa de banho, baixou o tampo da retrete e começou a urinar. Eu conseguia ouvi-la. Continuou a falar comigo através da porta aberta. Na primeira vez que ela o fizera, eu tinha ficado chocado. Agora, parecia perfeitamente natural.
- De facto - dizia ela -, daria provavelmente uma boa esposa. Tenho cabeça para o negócio e conheço o valor do dinheiro. E o meu marido poderia andar com outras mulheres à vontade, desde que não colocasse o meu rendimento em perigo.
Descarregou o autoclismo e voltou para a cama.
- Eu ando na vida agora, Peter-disse ela. - E tu também. Mas o dinheiro é o mais importante na vida. E o mais divertido. Um dos meus clientes regulares é psiquiatra, e ele diz que toda a minha paixão sexual vai para a ganância.
-Tens um cliente psiquiatra?-disse eu. - Isso é louco. Que lhe fazes?
Ela soltou uma gargalhada.
- Açoito-o com uma raqueta de pingue-pongue.
- Estou pronto para outra bebida - disse eu, erguendo o meu copo vazio. - E tu?
- Está bem - disse ela, acabando o copo. - Mas não o mesmo, senão passo a noite levantada.
- Frangelico?
- Serve - disse ela.
Quando voltei com as bebidas, ela estava deitada de costas, com as mãos atrás da cabeça, a olhar para o tecto. Tinha tirado a T-shirt. Aqueles mamilos loucos sobressaíam. Pegou no copo.
- Obrigada, Sr. Enfermeiro-disse ela.-Tu és muito bom para mim.
- Sou mesmo - disse eu.
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Tirei a toalha e deitei-me na cama ao lado dela. As nossas coxas tocaram-se.
- Há alguma novidade sobre a nova casa? - perguntou ela.
- Vamos encontrar-nos com os homens do dinheiro na próxima semana.
- Eles vão entrar - disse ela. - Não pode falhar.
- Obrigado - disse eu.
- Se conseguires, como lhe vais chamar? Hesitei por um momento.
- Ainda não disse a ninguém, nem sequer a Martha, mas quero chamar-lhe Peters Place.
Ela não se riu.
- Um bom nome - disse ela, acenando a cabeça. - Um nome óptimo.
Terminámos as bebidas e pusemos os copos de lado. Desligámos os candeeiros de cabeceira. Como de costume, fui para o meu lado, para longe dela. Como de costume, ela dobrou o corpo para se encaixar no meu.
- Somos como um casal casado há muito tempo - disse eu na escuridão.
- O que quer que seja - disse ela, suspirando de contentamento.
Os seus nomes eram Michael Gelesco e Anthony Cannis. Pareciam ex-halterofilistas que tinham engordado. Vestiam ambos fatos com chumaços nos ombros, bem vincados, e com as mangas cortadas exactamente de modo a mostrarem dois centímetros do punho da camisa.
Vestiam-se de uma maneira que eu detesto: cabelo lavado e seco no cabeleireiro, os rostos corados por máscaras faciais, as unhas pintadas com verniz incolor. Sapatos Gucci a brilhar como espelhos e anéis com diamantes quadrados nos dedos mindinhos. Relógios Piaget de ouro, claro. E fumavam charutos apenas ligeiramente mais pequenos que metralhadoras.
Sentámo-nos todos à volta de uma mesa comprida de pau-rosa, numa sala de reuniões no último andar da Boutique Barcarole. Martha fez as apresentações. Gelesco e Cannis conheciam Oscar Gotwold, claro - ele tinha organizado a reunião, e eles acenaram com a cabeça na minha direcção e na de Ignatz Samuelson.
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Conversámos durante alguns minutos até que Gelesco olhou para o relógio de parede e disse:
- Bem, qual é a sua ideia?
Pus-me de pé e comecei a minha actuação.
Comecei por referir a natureza exacta do nosso negócio. Quanto estávamos a fazer. O número de clientes e a percentagem dos garanhões. Despesas gerais e outras.
- É uma mina de ouro - disse eu.
Depois descrevi o que queríamos: um clube privativo exclusivo para mulheres endinheiradas que estavam dispostas a pagar pelo prazer, num ambiente discreto.
Utilizando um mínimo de dez quartos, eu calculava um volume de negócios de dez mil dólares por dia. Com metade para os garanhões, ainda significava um rendimento mensal bruto de cento e trinta mil dólares. Sem contar com o lucro da comida e das bebidas, jóias de inscrição e quotas anuais.
Enquanto falava, observava Gelesco e Cannis. A sua única reacção óbvia foi quando mencionei os nossos lucros actuais e os previstos para o novo clube. Nessa altura, eles pestanejaram.
Terminei com um grandioso floreado oratório. Depois sentei-me. Olhámos os quatro para os donos da Barcarole. Por um momento, eles ficaram calados.
- Há quanto tempo estão no negócio? - perguntou, finalmente, Cannis.
Martha disse-lhes que estávamos a funcionar há cerca de dezoito meses e descreveu pormenorizada e exactamente a nossa maneira de trabalhar.
- Droga? - perguntou Gelesco.
Martha respondeu absolutamente que não, e resumiu o nosso código de conduta tanto para os garanhões como para as clientes. Também descreveu os serviços de pedidos pelo telefone e de acompanhantes que podiam, obviamente, continuar como acessórios do novo clube.
- Vocês pagam protecção - disse Cannis, mais uma afirmação que uma pergunta.
Nessa altura, Oscar Gotwold interveio com uma lista que incluía o rendimento actual do apartamento, subornos, despesas, lucros e um conjunto de números projectando os mesmos factores para o novo empreendimento.
-Estamos a falar numa sociedade por quotas, por acções, ou quê? - disse Gelesco.
Iggy disse que achava que uma estrutura por acções seria melhor, com o controlo majoritário partilhado por Martha e por mim.
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- Tem de ser - disse Martha friamente. - Se não, não há negócio.
- Nós estamos dispostos a entrar com o nosso dinheiro - acrescentei.
Iggy explicou ainda que os investidores seriam pagos, mensal ou anualmente, conforme fosse combinado, e de acordo com o rendimento. Oscar Gotwold fez notar que o restaurante, o bar e o salão de beleza serviriam de disfarce legal para o que se passaria nos andares de cima.
- Quem dirige a casa? - perguntou Cannis.
- Eu e Martha - disse eu -, com contratos de emprego trienais. Nós conhecemos os, ah, desejos das nossas clientes e como os satisfazer. Temos uma reputação de classe e uma clientela muito fiel. Trazemo-vos muito boa vontade.
Os dois Dons olharam um para o outro.
- Escutem - disse Cannis. - Vocês estão a pedir muito dinheiro. Temos de pensar no assunto.
- Com certeza - disse Oscar Gotwold num tom suave. - Nós compreendemos isso. Se os senhores acharem que não estão em posição de fazer todo o investimento, talvez alguns dos vossos amigos ou associados estejam interessados em entrar no negócio.
- Com uma sociedade por acções - disse Iggy -, podem ser vendidos blocos de acções a X dólares por acção. Ou podemos pensar numa sociedade limitada a X dólares por unidade mínima. Há várias maneiras de estruturar isto.
- Escutem-disse Gelesco a Gotwold e Iggy.-Por que é que vocês os dois não ficam para reverem os números connosco. Precisamos de os estudar melhor.-Depois virou-se para Martha e para mim. - Não vale a pena ficarem. Não vamos dizer sim ou não hoje. Por isso, é melhor irem-se embora.
Eu devia ter seguido a minha intuição e insistido em ficar. Mas não o fiz. Apertei as mãos aos dois. Os anéis deles magoaram-me. Beijaram ambos o rosto de Martha.
- Foi bom voltar a ver-te, garota - disse Cannis.
- Aparece - disse Gelesco.
No pequeno elevador, no caminho para baixo, disse a Martha:
- O que pensas?
- Estão interessados - disse ela.
- Como é que sabes?
- Deixaram que os charutos se apagassem.
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Martha queria falar com algumas velhas amigas da Barcarole, por isso voltei sozinho para o apartamento.
Estava uma tarde de Junho maravilhosa, um daqueles raros dias em que a cidade parece polida e perfumada. As ruas eram de novo coloridas, e toda a gente parecia mais nova e mais atraente.
Há algo sexualmente excitante em fazer uma boa actuação. Fica-se tão tenso que fornicar é a única maneira de gastar a energia em excesso.
Depois da apresentação a Cannis e Gelesco, eu estava cheio de genica. Por sorte, havia uma mulher à espera na recepção do apartamento. Olhei rapidamente para ela. Alta. Magra. Quase esquelética.
Yancy estava sentado à secretária da recepção. Fez-me sinal para que me aproximasse.
- Cliente ocasional - disse ele em voz baixa. - Mas verifiquei com a pessoa que a recomendou e é legítima. Não consigo encontrar um garanhão. Vontade não me falta, mas.. Importas-te de ficar com ela, Peter?
-Está bem-disse eu.-Dá-me cinco minutos, depois manda-a entrar.
Chamava-se Hetty e tinha o corpo de uma camponesa - toda músculo e tendões. Uma permanente transformara o cabelo cinza num milhão de caracóis apertados. Tinha um rosto comprido, de cavalo, mas não sem dignidade. Com uma verruga, parecer-se-ia com Lincoln.
Quando me viu nu, ela ergueu os olhos e gritou: "Oh, meu Deus!" Eu não soube se era expressão de desespero ou uma oração de graças.
Eu iria ouvir aquele "Oh, meu Deus!" várias vezes durante a hora seguinte, juntamente com "Perdoa-me, Jesus!" e "Meu Deus Todo-Poderoso!" Compreendi, finalmente, o que se passava: ela pensava que estava a cometer um pecado mortal.
Mas não lutou muito contra o diabo. Andava pela cama como um lutador de luta-livre, pulando e contorcendo-se, a cantar:
- Em frente, soldados cristãos!
Ela guiou-me as mãos, a boca, as pernas e até os dedos dos pés. Agarrou-me o corpo. Agora o hino era: "Como Jesus é nosso amigo."
Prosseguiu com "Alegra o canto em que estiveres", sentou-se no meu rosto, saltou, virou-me o corpo, lambeu-me o cóccix, fez-me rodar, mordeu-me os mamilos, enfiou um polegar na minha boca, puxou-me o cabelo, explorou o meu umbigo com a língua.
Depois girou, pôs-se de joelhos, colocou os braços estendidos na cama. Olhou para mim por cima do ombro.
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- Faz como os cães - disse, ofegante. - Tal como os cães.
E aí fomos nós, eu a tentar desesperadamente controlar-me enquanto ela cantava "Jesus Cristo". Nunca saberei como consegui sobreviver.
Lembro-me de que, quando explodi com um grito, ela caiu para a frente, levou as mãos atrás para me puxar mais para ela e perguntou se gostaria de cantar com ela em coro "Graça Maravilhosa".
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Eu tinha conhecido mulheres mais belas do que Jenny Tolliver. Mais apaixonadas. Mais inteligentes. Então, por que é que eu não conseguia esquecê-la?
Não penso que Martha tivesse razão - que eu estava fascinado com Jenny porque ela fora a primeira mulher a rejeitar-me. A rejeição não me era propriamente desconhecida; tinha sido o lema da minha carreira no palco. Eu podia suportar recusas.
Então, que me trazia de volta para Jenny, furtivamente como um cachorro espancado? Amor romântico? Penso que não. Talvez eu simplesmente gostasse de estar com ela. Também gostava de estar com Martha e com Nikki. E com uma dúzia de clientes. Gostava delas todas. )
Talvez tivesse a ver com a minha obsessão com "classe". Não era apenas a elegância de Jenny; era uma distinção que me atraía. Eu penso que, secretamente, a admirava, ou invejava.
Telefonei-lhe outra vez no princípio de Julho, fazendo-me reservado e sincero.
- Pensaste no assunto? - perguntei, ansioso.
- Bem.. - disse ela lentamente -, está bem.
- Maravilhoso! - disse eu. - Obrigado. Eu pensei em alugar uma limusina e podíamos ir ao Peter Luger em Brooklyn e..
- Não - interrompeu ela -, nada disso. Apenas um hamburger aqui perto está muito bem.
Por isso marcámos um encontro para mais tarde, nesse mês. Fiquei de lhe telefonar ao fim da tarde para saber onde ela decidira ir jantar. Encontrar-nos-íamos lá; ela não queria que eu fosse ao seu apartamento. Concordei com tudo.
Desliguei, sentindo-me como um miúdo que tivesse conseguido marcar um encontro com a rainha dos finalistas. Disse a mim próprio que tivesse calma e que não mencionasse o meu êxito, nem uma só vez. Se fosse necessário ser humilde para a reconquistar, eu faria
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papel de humilde, e fá-lo-ia de um modo tão convincente que ela não conseguiria resistir.
Depois do 4 de Julho, o movimento de Verão começou. Tínhamos aumentado o negócio do apartamento, a maior parte devido a visitantes de fora, e os nossos serviços de pedido por telefone e de acompanhantes estavam a ter dificuldade em atender a todos os pedidos das turistas.
Sem Yancy Burnett, eu não teria conseguido resolver os problemas de marcações. Uma vez que eu tratava das cenas no apartamento e ele organizava os encontros dos pedidos por telefone e acompanhantes, trabalhámos juntos para evitar esforços sobre-humanos por parte dos garanhões.
Yance detestava linguagem grosseira e, se pensasse que alguém ia contar uma anedota obscena, saía discretamente da sala. Para além dessa pequena idiossincrasia, era o assistente perfeito: de confiança e bem disposto.
Uma tarde, estávamos a trabalhar à minha secretária no escritório quando Martha entrou.
- Temos um problema - disse ela. - Recebi uma chamada de uma mulher chamada Louella que quer uma cena. Disse-lhe que lhe telefonaria. Depois verifiquei quem a tinha recomendado, e a mulher que o fizera disse que sim, que era de confiança. Mas depois ela acrescentou: "A propósito, Louella é negra." Que acham?
Yance e eu olhámos um para o outro.
-Já alguma vez tiveram uma cliente negra?-perguntou calmamente Yance.
- Uma africana - disse eu. - Uma turista. Um garanhão negro apaixonou-se por ela.
- Bem, esta Louella é local - disse Martha. - A questão é, será que queremos clientes negras? Isso não vai assustar algumas das clientes brancas regulares?
- Não temos outra opção - disse Yance no seu modo pensativo. - Se a recusarmos, ela pode pôr um processo contra a Academia de Arte Dramática de Peter por discriminação racial.
- Acho que tens razão - disse Martha. - Consegues encontrar um garanhão disposto a tomar conta dela?
- Eu tomo conta dela - dissemos eu e Yance ao mesmo tempo, e Martha riu-se.
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- A tentar mudar a tua sorte? - disse ela. - Está bem, vou fazer a marcação.
- Que tal uma cerveja? - perguntou Yance depois de ela sair.
- Uma ideia esplêndida.
Fomos até à cozinha e regressámos com duas garrafas de cerveja Kalbach e dois copos. Pusemos os pés em cima da secretária e bebemos a cerveja devagar.
- Não percebo - disse eu. - Por que há-de uma mulher negra querer vir a um bordel masculino?
- Por que é que as mulheres hão-de querer ser polícias, pilotos de ensaio ou mergulhadoras? Para provar ao mundo que não existe nenhum tipo de trabalho masculino que não possa ser feito com igual competência por uma mulher.
- E que tem isso, Yance? - perguntei eu.
- O princípio é o mesmo - afirmou ele. - Pagar por uma cena de uma hora com um homem desconhecido é um símbolo de verdadeira igualdade. Há séculos que os homens compram corpos de mulheres. Agora é a vez das mulheres. Peter, este sítio está a dar às mulheres emancipadas a oportunidade de alcançarem um tipo de igualdade que sempre lhes foi negado. Eu penso que muitas das nossas clientes são feministas, quer o saibam, quer não. Uma cena aqui faz maravilhas pela sua independência e orgulho feminino.
Soltei uma gargalhada.
- Falas como se estivéssemos a prestar um serviço público. Ele olhou para mim sem sorrir.
-Não estás muito enganado. Talvez não um serviço público, mas estamos a fazer avançar a revolução sexual.
- E tu pensas que Louella vem ter connosco porque é feminista? Mas, antes de ele ter oportunidade de responder, Martha entrou
de novo no escritório. Trazia um sorriso nos lábios.
- Vocês dois tesões podem ficar descansados - disse ela. - Louella pediu especificamente um garanhão negro.
Yance e eu emborcámos rapidamente as nossas cervejas.
- Eu marco-lhe King Hayes - disse eu. - Ele é o melhor. E vou-lhe pedir que descubra por que é que ela cá veio. Martha, Yance pensa que a maior parte das nossas clientes são feministas. Que achas?
- Isso que importa? - disse ela, encolhendo os ombros. - Desde que tragam os dólares.
- Aí tens - disse-me Yance. - A igualdade final.. o dólar.
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Enquanto Martha estava fora a organizar a estada do filho num acampamento de Verão, Oscar Gotwold telefonou-me. Michael Gelesco tinha telefonado para preparar outro encontro com Martha e comigo, desta vez na Roman Enterprises, no Empire State Building. Recordei-me do que Sol Hoffheimer me dissera um ano antes.
-As Roman Enterprises são os verdadeiros donos da Barcarole? - perguntei a Oscar.
- É possível - disse ele cautelosamente. - O principal executivo, Octavius Caesar, é o homem do poder. E ele que diz sim ou não. Ele quer encontrar-se convosco pessoalmente.
Expliquei que Martha estava fora da cidade e perguntei se o encontro podia ser adiado até ela regressar.
- Talvez pudesse - disse Gotwold -, mas não penso que seja sensato pedir. Os adiamentos são um mau modo de iniciar uma relação de negócios. Podes encontrar-te tu com eles?
- Tu e Iggy estarão lá?
- Não. Octavius Caesar disse especificamente que queria encontrar-se apenas com os principais.
- Está bem - disse eu. - Eu falo com ele.
-Não assumas nenhum compromisso-avisou Oscar.-Não fales de dinheiro, se o conseguires evitar. Eles têm os números. Se quiserem mais pormenores, eles que falem com Iggy ou comigo. Eles só querem conhecer-vos.
Para minha surpresa, a recepção da Roman Enterprises, sem cadeiras, não era muito maior que uma cabina telefónica. A recepcionista, uma senhora severa que parecia uma enfermeira, fez deslizar um painel de vidro e perguntou friamente:
- Sim?
Quando lhe disse o meu nome, ela carregou num botão do seu telefone de secretária e falou em voz baixa. Depois, voltou-se para mim.
- Por aquela porta - disse ela, apontando. - Siga ao longo do corredor até à porta de carvalho ao fundo.
- Obrigado - disse eu. Acrescentei. - O seu camafeu é lindo. É uma antiguidade?
- Italiano de século xvII - disse ela, amolecendo. - É madrepérola, não marfim.
- É lindo! - garanti-lhe, e recebi um sorriso caloroso. Não custa nada fazer amigos.
Ela deve ter carregado num botão porque uma fechadura eléctrica da porta interior fez um zumbido e eu entrei. A porta fechou-se com estrondo atrás de mim, e compreendi que era de aço.
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O corredor era comprido, estreito e alcatifado. Também estava a ser vigiado por uma pequena câmara de televisão suspensa do tecto. A porta ao fundo parecia ser de tábuas de carvalho maciço ligadas por faixas de ferro.
Bati duas vezes, magoando os nós dos dedos e fiz rodar a ornamentada maçaneta. Foi como se estivesse a empurrar a porta do cofre forte de um banco. Mas entrei na biblioteca de um cavalheiro vitoriano.
Chão de tijoleira. Um macio tapete oriental. Estantes de nogueira. Cortinados espessos de veludo. Quadros escuros a óleo em molduras douradas. Cristais e pratas em cima de um armário com tampo de mármore. Uma lareira com azulejos e uma cornija de madeira. Todos os livros à vista estavam em conjuntos encadernados a couro.
Havia uma secretária barroca que podia ter sido herdada do presidente Rutherford B. Hayes. O sofá e as duas poltronas eram estofadas com pele de vitela grená com tachas de bronze. A única iluminação provinha de um candeeiro com dois braços e abat-jours verdes em cima da secretária.
Michael Gelesco e Anthony Cannis estavam sentados no sofá, um ao lado do outro. Eles acenaram com a cabeça quando entrei no escritório, mas não fizeram qualquer tentativa para se levantarem. O cavalheiro idoso sentado à secretária levantou-se lentamente de uma cadeira rotativa de costas altas e estendeu-me uma mão mole.
- Mr. Caesar? - disse eu, apertando suavemente a mão branca e macia. - É um prazer conhecê-lo.
- Mr. Scuro - disse ele com um sorriso gelado -, obrigado por tirar tempo da sua ocupada agenda para.. Penso que já conhece Mr. Gelesco e Mr. Cannis. Por favor, sente-se aqui. Penso que vai achar aquela cadeira..
Esperei enquanto ele voltava a sentar-se na cadeira rotativa. Levou algum tempo.
- Peço desculpa por a minha sócia não poder estar presente, Mr. Caesar - disse eu. - Miss Twombly teve de se ausentar para tratar de problemas familiares inadiáveis.
Ele fez um gesto vago.
- Compreendo perfeitamente, Mr. Scuro. A família tem de estar sempre.. Sempre. Agora, deixe-me falar-lhe um pouco sobre a Roman Enterprises. Embora eu seja o principal executivo.. A nossa organização é uma associação de vários cavalheiros que desejam diversificar os seus interesses.. Temos muito capital de risco disponível e estamos constantemente à procura de.. Uma coisa que quero deixar clara é que nós somos uma entidade investidora, e a gerência dos vários empreendimentos é deixada a.. A Boutique Barcarole é
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um bom.. Fazemos questão de nunca interferirmos no dia-a-dia.. Está-me a seguir, jovem?
Eu não só estava a segui-lo como tinha estado, na minha mente, a terminar as suas frases incompletas. O que era provavelmente do que ele estava à espera.
- Agora - prosseguiu ele, balouçando suavemente para a frente e para trás na cadeira rotativa. - Estive a estudar a proposta que apresentou a Mr. Gelesco e Mr. Cannis e acho-a absorvente..
Enquanto ele falava numa voz fina e rangente, eu observava-o atentamente. Ele tinha, supus, perto de oitenta anos. Uma madeixa espessa de cabelo de um branco puro atravessava-lhe a cabeça, colada ao enorme crânio. O rosto era avermelhado e havia um mapa de estradas de vasos capilares nas faces carnudas e nariz bulboso.
Com uma barba e um fato vermelho, pensei, no Natal seguinte podia estar no Macy, a dizer ho-hoho!
Mas o fato que ele tinha vestido era de cheviote cor de ferrugem, com colete e casaco trespassado, com botões numa fila vertical. Eu tinha vestido uma vez um fato assim em A Importância de Se Chamar Ernesto. A camisa branca tinha um colarinho com muita goma, e ele tinha uma gravata larga, roxa, com um padrão jacquard.
Era um velho extremamente limpo, quase luminoso. Mantinha-se muito direito. Tinha, como dizemos no teatro, presença. E, olhando para Gelesco e Cannis, vi subitamente que, comparados com Octavius Caesar, eles não passavam de rufiões.
- .. sempre achei melhor - estava ele a dizer -, antes de se tomar uma decisão.. gosto de conhecer pessoalmente aqueles com quem.. Por favor, desculpe fazer-lhe perguntas que pode achar inconsequentes ou impertinentes mas.. Diga-me, jovem, que quer da vida?
A pergunta surgiu tão abruptamente, que eu não estava preparado para ela. Respondi automaticamente, sem pensar na questão. - Quero dinheiro - disse eu. Ele lançou-me um olhar grave.
- .. honesto. Creio que já esteve no teatro.
Não soube onde ele tinha ido buscar essa informação, mas fiz-lhe um resumo da minha carreira teatral. Não levou muito tempo.
- Compreendo - disse Octavius Caesar. - Imagino que a sua formação e experiência estejam a ser muito valiosas na sua presente..
- São sim - disse eu. - Há um elemento teatral muito forte no nosso negócio. Num certo sentido, nós estamos a vender ilusões.
- Vender ilusões - repetiu ele, molhando delicadamente os lábios. Girou a cadeira e olhou para Gelesco e Cannis. - Os senhores ouviram? Vender ilusões. Não é estupendo? - Eles acenaram vigorosamente
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a cabeça. Depois, voltou-se de novo para mim. - Mas espero, Mr. Scuro, que não tenha ilusões quanto à quantidade de trabalho necessária para fazer o seu conceito..
- Não, senhor - disse eu -, nenhuma. Eu e Miss Twombly não temos medo do trabalho. Com sorte, nós podemos..
Ele ergueu uma mão branca para me interromper.
- Por favor, não me venha palrar de sorte, jovem. A sorte é o álibi dos falhados. Se a sua ambição for suficientemente forte, não precisa de.. Bem, Mr. Scuro, obrigado por ter vindo satisfazer a curiosidade de um velho. Será informado da nossa decisão.. Qualquer que ela seja..
Pôs-se de pé, com bastante esforço, e eu estendi a mão por cima da secretária para apertar de novo aquela mão macia. Eu estava já perto da porta quando ele chamou:
- Jovem - e eu voltei-me.
- Uma pergunta - disse ele. - Como tenciona chamar a este..? Hesitei um segundo, depois disse:
- Peters Place.
- Apropriado - disse ele, e eu fui-me embora.
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Eu devia encontrar-me com Jenny Tolliver numa casa de Hamburgers chamada The Dirty Shame, na Amsterdam, perto da 84ª Avenida. Apanhei um táxi uma hora antes e andei a fazer horas a passear pela zona.
Custava-me a crer que o West Side tivesse mudado tão rapidamente. Estava a começar a parecer-se com Greenwich Village, cheio de lojas de antiguidades, galerias de arte, boutiques e lojas de especialidades culinárias. As pessoas na rua eram jovens, os preços subiam astronomicamente.
Lembrei-me da lojeca em que costumava comprar a minha Variety; o botequim familiar em que eu arranjava cerveja mexicana, o velho italiano que punha solas nos sapatos, e uma loja em que liam a sina e roubavam a carteira. Tudo isso tinha desaparecido. Progresso. Ah, que diabo..
Sentei-me a uma mesa ao fundo da The Dirty Shame e bebi um vodka enquanto esperava por Jenny. Era um sítio do tipo artesanal-Todas as empregadas usavam saias de ganga e aposto que vendiam sumo de cenoura.
Vi-a entrar, e formou-se um nó na minha garganta. Que mulher
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tão completa; ela simplesmente deslizava. Fui invadido pelas recordações e quase chorei.
Ela tinha vestido algo belo que lhe ficava muito bem. Tinha o cabelo solto e o queixo erguido. Olhou em volta, viu-me e dirigiu-se a mim por entre as mesas. Pus-me de pé. Tive vontade de a abraçar, mas apertámos as mãos.
- Peter - disse ela, olhando-me com um olho crítico. - Engordaste.
- Ganhei o que tu perdeste - disse eu. - Estás com um aspecto maravilhoso, Jenny!
- Obrigada - disse ela com uma voz sumida.
Ela quis vinho branco e eu bebi outro vodka. Mandámos vir ambos cheeseburgers1, batatas fritas e uma salada mista. A ocupação com mandar vir a comida cobriu o nosso embaraço inicial.
- Fala-me sobre o teu novo estúdio-disse eu. - Parece óptimo. Ela falou sobre o que queria desenhar e como tinha esperança de eventualmente vender os seus próprios tecidos modernos. Talvez começar a desenhar roupa de cama. Cortinados. Tudo.
Enquanto ela falava, eu olhava para ela. Era como eu me recordava: cabelo castanho grosso em volta de um rosto comprido. As feições imóveis, claras, compunham uma expressão calma. Tudo suave, tudo sereno.
- Não concordas? - disse ela.
- O quê? Oh, Absolutamente! Ela soltou uma gargalhada.
- Não tens estado a ouvir, Peter.
- Não tenho - confessei. - Apenas a admirar-te. Ela baixou a vista e brincou com uma côdea de pão.
- Arthur manda-te cumprimentos.
- Disseste-lhe que te vinhas encontrar comigo?
- Disse.
- Como está ele?
Ela ergueu os olhos e olhou-me directamente.
- Arthur é muito querido - disse ela.
- Sim, é.
A comida chegou, graças a Deus, e estivemos ocupados durante alguns minutos.
-E como vai o teu negócio, Peter?-perguntou ela, mordiscando uma batata frita.
- Oh, não vamos falar sobre isso.
- Vamos - disse ela. - Vai bem?
- Muito bem.
1. Hamburger com uma fatia de queijo. (N. da T.)
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Ela abanou a cabeça.
- Não consigo acreditar.
Senti um pouco do ódio de lago pela inocência de Othello.
- Que é que não consegues acreditar?-perguntei, mostrando os dentes. - Que há mulheres dispostas a pagar pelo prazer? É assim tão extraordinário? Por que é que as mulheres querem ir para a polícia ou tornar-se pilotos de ensaio? Para provar ao mundo que são iguais aos homens.
- Que é que isso tem a ver com pagar para ir para a cama com um homem?
- O princípio é o mesmo - disse eu. - Pagar por sexo com um homem desconhecido é um degrau em direcção à verdadeira igualdade. Dá-lhes uma sensação de independência e orgulho feminino.
Jenny mastigou o seu cheeseburger.
- Está a fazer avançar a revolução sexual-disse eu num tom sério. - Como um serviço público.
Ela acabou de comer e limpou os lábios com o guardanapo de papel. Depois olhou para mim.
- Peter-disse ela suavemente - Eu não sei realmente quem tu és e acho que tu também não sabes. Estás sempre a desempenhar um papel.
- Shakespeare expressou-se melhor - no tom mais alegre que consegui. - Todo o mundo é um palco..
- Há uma diferença - disse ela. - Um actor desempenha o mesmo papel durante semanas, meses, anos. Outro actor pode substituí-lo, mas o papel permanece essencialmente o mesmo. Quando vamos ver Hamlet, nós sabemos que vamos ver Hamlet. Mas eu nunca sei quem vou ver quando te vejo.
- Estás a dizer que não sou sincero?
- Claro que não. Só que gostava de te ver um dia sem a maquilhagem e a peruca.
Tentei não mostrar como me senti infeliz.
- Mesmo que assim fosse, Jenny, e não estou a admitir que seja, não é mais intrigante não saber quem eu sou? Tu sabes que Arthur é uma jóia, mas quem sou eu? Se eu for o Homem das Mil Caras, não tens curiosidade em descobrir o homem atrás da máscara?
Ela ficou a olhar fixamente para mim em silêncio durante um longo momento.
- Sim - disse finalmente. - Estou intrigada. A não ser que.. Não terminou a frase. Não foi preciso. Eu sabia o que ela queria dizer: a não ser que a máscara caísse e não houvesse nada por detrás.
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Eu estava a sair da cozinha quando vi uma cliente dirigir-se para o Quarto Azul. Dei meia volta. Não parecia uma mulher; parecia uma garota.
- Ei - disse eu a Martha. -Aquela cliente que vai para o Quarto Azul, é uma escuteira?
- Eu pensei o mesmo - disse Martha. - Verifiquei as referências: a miúda está legal. Só para ter a certeza, pedi para ver a carta de condução. Diz que tem dezanove anos, Peter.
- A caminho dos doze - disse eu. - Como se chama ela?
- Susan Forgrove. Interessado?
- Eu não violo crianças - disse eu, e rimos.
Vimos Susan muitas vezes durante as semanas seguintes. Ela fazia marcações frequentes, pedindo sempre um garanhão que não tivesse tido antes. Não tivemos quaisquer problemas com ela, excepto que os garanhões disseram que ela não cheirava muito bem.
Era gorducha, com cabelo comprido, oleoso e alaranjado a precisar de ser lavado. Usava óculos à avozinha e ria-se muito. Vestia roupas caras mas demasiado elegantes para ela. Tinha um ar desmazelado.
Aceitámos o seu dinheiro, claro, e ficámos satisfeitos por a acrescentarmos à lista de clientes a que chamávamos "viajantes": mulheres que pareciam determinadas a percorrer o estábulo de garanhões inteiro.
- Por que o fazem? - perguntei a Martha.
- Pelo mesmo motivo que os homens sobem às montanhas - disse ela. - Porque elas estão lá.
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Aquele Verão prometia. Não tivemos notícias de Octavius Caesar, mas tomámos isso como um bom sinal; certamente que uma rejeição teria vindo imediatamente. Entretanto, o dinheiro continuava a entrar a jorros.
Yancy Burnett mostrou ser tão eficiente, que Martha e eu pudemos tirar um dia de folga cada um. Ela escolheu as terças-feiras; eu tirava as quintas. Passei a minha primeira folga a abastecer o meu guarda-roupa de Verão nas boutiques de roupa de homem da 3ª Avenida e na 75ª Avenida Leste.
Vi, com um choque, que tinha agora uma cintura de um metro; um
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par de calças de pele de tubarão branca tiveram de ser alargadas no traseiro. Eu sabia que tinha andado a viver bem, mas não assim tão bem. Decidi fazer dieta e consultei Nicole Radburn sobre um regime de exercícios.
Almocei sozinho no Le Perigord, medalhões de lagosta num molho de pimenta (magnífico), salada de espinafres (divina) e, para sobremesa, mousse de morangos com morangos inteiros (soberbo). Bebi uma garrafa inteira de Beaujolais primeur e decidi começar a dieta na segunda-feira de manhã.
Quando regressava a pé ao apartamento, passei duas vezes por clientes da Escola de Arte Dramática de Peter. Tive a certeza de que me reconheceram, mas não manifestaram qualquer sinal e eu, claro, nem sequer sorri. Era uma regra da casa. Eu compreendia esta necessidade de discrição, mas tenho de admitir que me irritou um pouco.
Eu não achava que o que eu fazia, o meu trabalho, a minha profissão, me tornassem automaticamente num pária. Eu estava simplesmente envolvido numa transacção financeira.
Eu sabia o que Jenny Tolliver pensava sobre o assunto, e suponho que haveria outras pessoas que considerariam o meu modo de vida repreensível. Mas juro que nem uma única vez senti que estava a pecar, a prejudicar alguém, ou a desafiar alguma lei universal.
Apesar do que Jenny pudesse pensar, não tinha nada a ver com o bem ou o mal; era apenas negócio. Era por isso que me irritava não poder cumprimentar as boas clientes por quem passava na rua.
Saí de cima dela e fiquei a respirar ofegantemente, como um buldogue cansado.
- Que se passa? - perguntei. Martha virou o rosto para o outro lado.
- Um pirilau rijo é o Valium da mulher pensante - disse ela.
Foi numa noite de terça-feira, no princípio de Agosto; o ar condicionado estava a funcionar no máximo. Martha tinha estado fora o dia inteiro. A última cliente e o garanhão tinham partido por volta das dez da noite. Depois, eu e Yance comemos uma caçarola de marisco que Patsy nos tinha deixado. Ele foi-se embora pouco depois das onze.
Eu queria trabalhar um pouco na contabilidade, mas Martha telefonou pouco depois de Yance se ter ido embora e disse-me que vinha aí. Chegou cerca de meia hora mais tarde, arrastou-me para o Quarto
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Cor-de-Rosa e fizemos amor. Foi praticamente uma violação; ela estava num estado de espírito violento.
Quando lhe perguntei o que se passava, ela disse num tom furioso:
- O namorado!
- Outra vez? - perguntei. Não lhe disse que sabia o nome dele. - Que é agora?
- A mesma coisa - disse ela. - Dás-me uma bebida? Qualquer coisa forte.
- Um brande?
- Duplo - mandou ela.
Mas quando preparei as bebidas na cozinha, fiz o dela mais fraco. Ela estava muito excitada, e eu não queria que se excedesse.
Levámos as bebidas para o terraço, sentámo-nos nus na escuridão.
- Então? - perguntei casualmente.
- Não quero falar no assunto - disse ela, num tom zangado.
E eu não queria ouvir falar no assunto. A relação de Martha com um político rico incomodava-me. O tipo tinha demasiado poder. Podia fechar-nos com uma chamada telefónica.
Por isso sentámo-nos em silêncio, a beber as nossas bebidas e a olhar para o céu da noite. O ar era aveludado. Um salpico de estrelas. O brilho da cidade tornava tudo mais suave.
- Uma noite linda! - disse eu.
Ela não respondeu, por isso voltei-me para olhar para ela. Na escuridão, era branca e grande. Pernas pesadas atiradas para a frente. Pêlos espessos e ásperos. Os seios grandes descaíam. Tal como eu, ela também tinha aumentado de peso. Mas o seu corpo tinha-se tornado flácido.
- Disse-lhe que desaparecesse! - disse ela por fim.
- E..?
- Ele começou outra vez a chorar.
- Então, vais continuar a encontrar-te com ele?
- Não sei. Se realmente correr com ele, receio que faça qualquer coisa estúpida. Como deixar a.. Peter, o telefone está a tocar.
Eu não tinha ouvido, mas fui lá dentro, fechando a porta de vidro de correr para o ar fresco não sair. Era Nicole Radburn. Ela tinha acabado um trabalho e queria fazer uma visita. Perguntei a Martha se estava bem e disse a Nikki que viesse.
Eu e Martha voltámos para o Quarto Cor-de-Rosa e deixámos a porta aberta para podermos ouvir o intercomunicador quando Nikki chegasse. Trouxe outra rodada de bebidas da cozinha. Martha queria brande simples e eu mudei para cerveja fraca.
Nikki trouxe uma pizza de anchovas. Levámo-la para o quarto
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principal. Martha ainda estava nua e ficara sentada na cama com um lençol puxado até à cintura. Eu tinha um roupão vestido.
- Preciso de um duche - disse Nikki. - O último gajo foi um horror.
Saiu da casa de banho nua, a esfregar vaselina nas marcas vermelhas que tinha nos pulsos.
- Um com a mania da servidão - disse ela. - Os dentes falsos do pobre cretino estavam sempre a cair.
Trouxe uma garrafa de vinho branco e sentámo-nos na cama junto de Martha, todos três a comer fatias de pizza de anchovas.
- Que se passa contigo, Madame Defarge?-perguntou Nikki. - As tuas mamas estão a descair.
-Vai para o diabo, Miss Mamilos! - disse Martha. - O tipo com quem ando .. Não me consigo livrar dele.
-Aguenta-o! - aconselhou Nikki. - Pode haver um dia em que precises de alguém com muito peso.
Eu não tinha pensado nisso, mas William Bowker poderia vir a ser um amigo precioso se alguma vez tivéssemos problemas graves.
- Faz sentido - disse eu a Martha.
- Suponho que sim - disse ela, mal-humorada. Acabámos a pizza e levei o lixo para a cozinha para o deitar fora.
Quando voltei para o Quarto Cor-de-Rosa, Nikki estava na cama, ao lado de Martha.
- Que é que faço? - disse eu. - Durmo no chão?
- Há muito espaço - disse Nikki levantando a ponta do lençol. - Sobe.
As duas mulheres afastaram-se um pouco para fazer espaço para mim.
- Eu acho que estás apaixonada pelo gajo - disse Nikki. - Mas não o admites nem a ti própria.
- É possível - admitiu Martha. - Mas ele é casado e vai continuar casado.
- Os amores impossíveis são os melhores - disse Nikki. - Nunca azedam.
- Alguma vez estiveste apaixonada? - perguntei-lhe.
- Eu não - disse ela. - Sou demasiado egoísta. Se um gajo alguma vez se apaixonasse por mim, seria como se fosse um triângulo.
- Hás-de ser apanhada um destes dias! - disse Martha.
- Nem pensar - disse Nikki. - Escuta, quando se é mau em aritmética, é melhor não tentar ser contabilista. Se alguma vez eu assentar, será um ricaço, e o amor não terá nada a ver com o assunto.
- És uma mulher dura - disse Martha.
- E tu estás a ficar flácida - disse Nikki.
Ela agarrou-a debaixo do lençol, e Martha disse:
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- Deus do céu! Cuidado!
- Vocês dois estão a ficar obesos - disse-nos Nikki.
- E tu trazes-nos pizza - disse eu. - Muito obrigado.
- Calem-se todos - disse Martha - e vamos dormir. E fomos dormir.
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King Hayes entrou no escritório e deixou-se cair numa poltrona.
- Uma bebida? - disse eu.
O enorme negro abanou a cabeça. Parecia triste.
- Que se passa contigo? - perguntei-lhe. - Além das clientes.
- Sabes aquela garota negra? Louella?
- Claro que sabia quem era. Ela vinha pelo menos duas vezes por semana, sempre para King, por isso calculei que fosse uma das "esposas" dele.
Louella era uma mulher pequena, viva, castanho-dourada com um penteado afro modificado. Vestia geralmente fatos de saia-casaco de flanela masculina e peitilho de renda. Muito segura e cheia de confiança em si própria. Calculei que tivesse cerca de trinta anos.
Hayes suspirou.
- Lembras-te de me pedir que descobrisse o que ela está a fazer num lugar destes?
- Lembro-me. Yance pensou que ela talvez fosse uma feminista.
- Não, não é nada disso. Ela tem outras razões. É uma dama esperta. Tem um mestrado em gestão. Um bom trabalho num banco da baixa. Bem, em primeiro lugar, ela tem dificuldade em encontrar tipos negros instruídos como ela e, quando encontra, eles só estão interessados em passar uma noite com ela, ou então andam à procura de uma garota branca. E a maior parte dos brancos não quer a perturbação de sair com uma mulher negra.
- Estás a brincar.
- Não estou a brincar - disse Hayes, abanando a cabeça. - Ela tem o seu próprio apartamento, um automóvel, muita roupa e tudo isso, mas sente-se muito só.
- Meu Deus! - disse eu. - Foi isso o que a trouxe aqui.. apenas a solidão?
- Isso mesmo - disse ele, acenando com a cabeça. - Eu acho que ela pensa que é melhor do que nada. Peter, muitas destas mulheres negras instruídas têm problemas.
Olhei bem para ele.
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- King, parece que estás a gostar dela.
- Acho que tenho pena dela - admitiu ele. - O que tem piada, porque eu nunca acabei o liceu, e certamente que não estou na classe dela. Quero dizer, ela utiliza palavras compridas de que eu nem sequer ouvi falar. E ela é tão limpa e delicada, faz-me sentir como se fosse o King-Kong.
- Ela deve gostar de ti - fiz-lhe notar. - Ela pede-te sempre a ti.
- E.. bem.. - disse ele pouco à vontade, mexendo a enorme carcaça -, há uma razão para isso. Eu conto-te, se prometeres não a repetir.
- Tu sabes que não falo.
- É.. bem.. a primeira vez que ela apareceu, era virgem. Dei um assobio.
- Tens a certeza?
- Homem, eu sei. Em primeiro lugar, ela disse-me. Em segundo lugar, ela era muito apertada. Em terceiro, ela sujou o lençol todo. Lavei-o antes de o dar a Maria. Oh, foi a primeira queca dela, não há dúvida. Bem, tu sabes que uma mulher sente sempre uma certa ternura pelo homem que lhe tira os três. Até morrer. É por isso que Louella me pede sempre a mim.
-Uh-huh-disse eu, olhando para ele.-King, se isto te incomoda, na próxima vez que ela aparecer, Martha pode dizer-lhe que estás ocupado e tentar vender-lhe outro garanhão.
- Não - disse ele rapidamente. - Não faz mal. Eu fico com ela.
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O escritório de Hoffheimer estava tão soturno como de costume. Mais ainda. Estava coberto com uma camada de poeira, e o ar cheirava a charutos baratos e a malte azedo.
Sol estava sentado, de queixo descaído, à velha secretária. Eram cerca das onze da manhã, mas era óbvio que ele já tinha estado a beber o uísque que guardava na secretária. Os seus olhos eram inexpressivos e gomosos, e o rosto parecia uma almofada amassada.
- Dia de pagamento - disse eu em voz alta, atirando um envelope para cima da secretária. Ele não olhou para ele.
- Vi Maurice Evans no Hamlet - disse ele num tom sombrio. - Tu viste?
- Não.
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- E vi Gielgud em, em qualquer coisa - prosseguiu ele. - Tu viste?
- Sol, por amor de Deus, diz coisas com sentido, por favor. Conta o dinheiro.
Ele ergueu os olhos para mim com um sorriso.
- Está todo?
- Claro que está todo.
- Então, por que é que o hei-de contar?
Ele falava como um louco, e pensei que talvez tivéssemos que deixar de trabalhar com ele. Mas ele ainda funcionava bem; fornecia-nos uma fonte regular de garanhões, servindo de frente para a nossa operação de aliciamento. De certo modo, eu devia-lhe favores. Não conseguia decidir-me.
- Que se passa com a bebida? - disse eu, no tom de maior compaixão que consegui. - Tu nunca bebeste tanto. E tinhas dificuldades na altura; agora tens um rendimento regular.
- Para mordeduras de cobra - disse ele, repuxando os lábios no que ele pensou ser um sorriso. -Nunca se sabe quando podemos ser mordidos por uma cobra.
Eu não estava a gostar particularmente desta conversa e pus-me de pé para me ir embora. Mas, nessa altura, a porta do escritório abriu-se e uma mulher entrou. Ela olhou para mim e pestanejou; as pestanas pareciam espanadores.
- Oh - disse ela. - Desculpa. Estou a interromper?
- Clara - disse ele. - Meu amor. Apresento-te Peter Scuro, um cliente muito, muito, muito precioso. Peter, apresento-te Clara, a minha fiel mulher.
Ela estendeu uma garra com vinte e três anéis e unhas que tinham sido mergulhadas em sangue.
- Muito prazer - disse ela. - Sol fala muitas vezes de si.
- Muito gosto em conhecê-la, Mrs. Hoffheimer - disse eu.
- Clara - disse ela.
- Clara - disse eu.
- Clara - disse Sol. Ignorámo-lo.
- Tenho de me ir embora - disse eu. - Foi..
- Oh, agora fez-me sentir mesmo mal - disse ela, fazendo beicinho. - Estou a ver que interrompi mesmo uma coisa importante.
Ela era uma árvore de Natal ambulante. Pulseiras, contas, braceletes, anéis, colares, alfinetes. Quero dizer, estava toda enfeitada. O cabelo arroxeado estava colocado no topo da cabeça, batido, como leite creme congelado.
Ela era tão estridente. Pulmões grandes e traseiro maduro. Perfume que enchia a sala. Pobre Sol. Casado com ela e casado comigo.
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- Papá - disse ela num tom alegre. - Tenho de fazer umas compras e..
- Toma - disse ele empurrando o envelope por cima da secretária na direcção dela.
-Muito gosto em ter-te conhecido, Clara-disse eu, sorrindo determinadamente. - Espero voltar a ver-te.
- Peter-disse ela, mostrando os dentes -, aparece, não te comportes como um desconhecido.
- É o que ele é - disse Sol. - Um desconhecido. Saí dali.
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Por fim, inevitavelmente, foi a minha vez de servir Susan Forgrove. Ela era a rapariga de dezanove anos com um ar juvenil, cabelo oleoso e óculos de avozinho com aros de metal, e que estava a percorrer todos os garanhões a uma velocidade espantosa. Yance Burnett não a queria, porque ela tinha fama de ter um aroma pouco agradável. Uma vez que todos os garanhões tinham o direito de recusar, Yance recusou, e eu aceitei o caso.
Ela era, afinal, mais digna de pena que repugnante. Havia nela desespero. Ela estava a tentar tanto ser cínica, que parecia uma caricatura. Eu podia ter-lhe dito que não se pode exagerar a sofisticação; é mais uma questão de ausência que um chamativo. E necessário agir dolcemente, não vigoroso.
Calculei que qualquer mulher que passasse de garanhão em garanhão concordaria com algo diferente, por isso sugeri que começássemos por tomar um duche juntos, pensando que isso resolvesse o problema do odor. Susan concordou rapidamente, rindo, mas não tirou os óculos.
- Sou cega sem eles.. - confessou ela.
Ela podia ter dezanove anos, mas tinha o corpo cheio de uma criança. Gordura de bebé na cintura, nas ancas, nas coxas. Os seios eram grandes para uma mulher tão pequena. Ela parecia usada, com nódoas negras nos ombros e nas costas. Havia vergões sumidos nas nádegas gorduchas.
Susan ensaboou-me, depois ensaboou-se. Esfregou-nos a ambos com a escova de banho de cabo comprido. Trabalhou afanosamente, com a água a cair pelo cabelo alaranjado longo e a salpicar os óculos. E, durante todo o tempo, ela tinha um meio sorriso, a boca aberta e torcida e, de vez em quando, saía dela um gemido agudo.
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Ela não estava a magoar-me, por isso deixei-a fazer o que quis. Eu estava pronto a agarrá-la se se tornasse violenta. Eu acho que ela esteve próximo. Compreendi que ela não era simplesmente esquisita; era maluca. Acabámos comigo sentado no chão de azulejos do chuveiro e com ela empalada no meu pirilau.
E que aspecto ela tinha, com aquele sorriso vazio, de boca aberta. O cabelo molhado caía-lhe à volta dos ombros, e os óculos estavam opacos atrás da água a correr. Parecia que ela estava a chorar litros de lágrimas.
Ela inclinou-se para a frente e gritou ao meu ouvido.
- Faz-me! - gritou ela. Faz-me!
Eu pensava que a estava a fazer, mas, por vezes, sou de compreensão lenta. Depois lembrei-me das nódoas negras e vergões e compreendi o que ela queria. Não gosto de coisas violentas, mas posso fazer de conta. Foi um espectáculo mecânico, mas pareceu agradar-lhe. Ela acenava constantemente com a cabeça, como uma boneca chinesa.
Mais tarde, quando nos vestíamos, vi as marcas nos braços dela.
Depois de ela ter saído, fui à recepção dizer a Martha que tirasse Susan Forgrove da nossa lista. Martha concordou mas, viemos a saber pouco depois, era demasiado tarde.
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Telefonei a Arthur Enders e obtive o endereço do novo estúdio de desenho de tecidos de Jenny Tolliver na 36ª Avenida Oeste. Logo após o 1º de Maio, enviei cem dólares de flores e um cartão desejando-lhe êxito. Ela retribuiu com uma seca nota de agradecimento. Não me senti desencorajado.
Depois, na quarta-feira, recebemos uma chamada telefónica da secretária de Octavius Caesar, dizendo que o grande homem nos queria ver às três da tarde no dia seguinte. Fiquei radiante.
- Sinto boas vibrações a este respeito - disse a Martha. - Acho que ele vai concordar.
- Que é que hei-de vestir? - perguntou ela, num tom ansioso.
- Martha - disse eu -, acalma-te. Veste uma roupa clássica.
Ela vestiu um vestido de crepe preto, de mangas compridas, abotoado até ao pescoço, com um colar de pequenas pérolas. Unhas sem verniz e um mínimo de maquilhagem. Mas o vestido era justo e, se nos aproximássemos suficientemente dela, sentiríamos um ligeiro aroma a Opium.
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- Vais arrasá-lo! - garanti-lhe.
O escritório de Octavius Caesar tinha exactamente o mesmo aspecto que tivera quando do nosso primeiro encontro, excepto pela ausência de Cannis e Gelesco. Estávamos só os três, e eu fiquei grato por isso.
Apresentei Martha, e o velho tomou a mão estendida dela numa das suas mãos e acariciou-a com a outra.
- Um verdadeiro prazer, minha querida - disse ele, muito sorridente. - Tinha muita vontade de..
Arrastou uma das poltronas até ao lado da secretária e, com uma pequena vénia, indicou a Martha que se sentasse nela. Fez-me sinal para que me sentasse no outro lado da secretária, à sua frente.
Eu sabia que esta manobra não se perderia em Martha, e não se perdeu. Ela cruzou lentamente os joelhos. Ela usava collants de vidro e sapatos altos de verniz preto. As pernas de Martha eram pesadas mas bem torneadas. Tornozelos suculentos. Octavius Caesar reparou.
- Como sabem - disse ele na sua voz aguda - nós devemos todos estar gratos por vivermos num.. Em que outro país sem ser a América podíamos esperar.. O sistema de livre iniciativa .. Certamente que tem sido bom para mim. Eu acredito que o melhor sistema económico que a mente do homem tem.. Poderia o comunismo ateu oferecer um.. Como tive sorte por os meus pais terem procurado uma vida nova neste..
Ele começara este discurso olhando de mim para Martha. Depois o seu olhar desceu para os joelhos cruzados dela. Esta apercebeu-se do seu interesse.
- Não há limite - prosseguia o velhote, levantando finalmente os olhos para os de Martha. - Mas estou a aborrecê-la com as divagações de um velho.
- Absolutamente nada, Mr. Caesar - disse Martha acaloradamente. - Eu acho-as fascinantes.
- Acha, minha querida? - disse ele com o seu sorriso frio. - E muito amável.. Bem, já chega. Meus queridos amigos, tenho o prazer de vos comunicar que os meus associados concordam que a vossa proposta merece ser encorajada. E apoio financeiro, claro. Achamos que conceberam uma ideia imaginativa e pioneira que..
- Obrigado - disse eu com fervor.
- Obrigada, Mr. Caesar - disse Martha.
Ele esboçou um sorriso benigno e olhou para as pernas de Martha.
-Mr. Cannis e Mr. Gelesco.. que tu, Peter ..entrarão em contacto com o vosso advogado e contabilista - prosseguiu ele. - Haverá, como sempre, pequenas discordâncias quanto à estrutura financeira exacta deste.. Mas, com boa vontade e paciência de ambos os lados,
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eStou convencido de que.. E, garanto-vos, a gestão do dia-a-dia estará nas vossas..
-E teremos controlo majoritário, Mr. Caesar?-perguntou Martha ansiosamente.
- Eu não admitiria que fosse de outro modo. A ideia original é vossa, e vocês possuem a experiência necessária para.. Mas, agora, infelizmente, tenho de pôr fim a este encontro extremamente agradável.. Obrigado por tirarem tempo à vossa ocupada agenda para..
Ao descermos no elevador, exclamei, entusiasmado:
- Conseguimos! Não é estupendo, Martha? Temos de celebrar!
- Aquele tipo assusta-me! - disse ela.
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O detective Luke Futter entrou no apartamento sem o seu sorriso. Levámo-lo para o escritório. Não aceitou uma bebida, nem se quis sentar.
-Vocês têm uma cliente chamada Susan Forgrove?-perguntou.
Eu e Martha olhámos um para o outro.
- Tivemos - disse eu num tom cauteloso -, mas livrámo-nos dela.
- Ela tem quinze anos - disse Futter.
- Deus do céu! - disse eu.
- Merda! - disse Martha zangada. - Ela disse que tinha dezanove anos. Mostrou-me a carta de condução.
O sorriso do detective voltou.
- Dêem-me cinquenta dólares - disse ele. - Eu vou à rua e volto meia hora depois com uma carta de condução em qualquer nome à vossa escolha. É tão fácil como comprar selos. De qualquer modo, vocês têm aquilo a que se poderá chamar uma crise. O pai dela diz que vocês têm uma rede de escravatura branca ou qualquer coisa do género aqui, e que recrutam raparigas menores. Aparentemente, a mãe apanhou a miúda a tirar-lhe dinheiro da carteira e ela disse que estava a gastá-lo aqui. O pai está disposto a fazer a acusação.
- Que disparate! - disse eu. -Achas que a aceitaríamos se soubéssemos a idade dela?
Futter encolheu os ombros.
- Eu só vos estou a contar o que o pai dela diz. Ele chama-se Lester Forgrove e é um corretor de Wall Street muito, muito importante e muito influente.
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- Luke, querido - disse Martha, quase a ronronar -, tu podes fazer qualquer coisa, não podes?
- Nada - disse ele. - Absolutamente nada. Este tipo está envolvido na política de East Side, tem poder e está furioso. Não me quero meter no assunto.
- Muito obrigado - disse eu num tom amargo.
- Ouçam - disse ele. - Eu só sei disto porque o meu compincha apanhou a queixa e avisou-me. Se lhe quiserem untar as mãos, posso tentar que ele atrase as coisas até vocês decidirem o que vão fazer. Mas aviso-vos já, ele não vai poder perder os papéis, e Forgrove não vai desistir. O mais que eu posso fazer é ganhar tempo.
- Pagaremos o que o teu amigo quiser - disse eu imediatamente. - Pede-lhe que demore o mais tempo possível.
O meu cérebro estava a funcionar; eu estava a agir energicamente. Era, para mim, um papel novo que me agradava.
Depois de Futter sair, eu e Martha bebemos um brande.
-Aquela bimbazinha porca-disse ela, num tom irado. - Peter, que vamos fazer?
- Deixa-me pensar - disse eu, andando de um lado para o outro do escritório. - Uma coisa eu sei: ninguém nos vai fechar agora que temos o compromisso de Caesar. Temos muita coisa em jogo.
Fui até à secretária, tirei uma lista telefónica da última gaveta e comecei a folheá-la.
-Lester Forgrove-disse eu. - 79ª Avenida Leste. Perto da Madison.
- E depois? - perguntou ela. Olhei para ela, pensativo.
- Martha, o teu namorado vive no East Side? Ela lançou-me um olhar estranho.
- Vive.
-Bem, se ele está envolvido na política do East Side, e o pai de Susan também está envolvido na política do East Side, eles devem conhecer-se.
- Queres que o meu namorado nos safe disto? - disse Martha num tom duro. - Nem pensar. Ele nem sequer sabe que estou neste negócio, por amor de Deus!
-Não, não -- disse eu.-Nada disso. Tenta apenas saber algo sobre os Forgroves. Se quisermos lutar, temos de saber qualquer coisa sobre as pessoas com quem estamos a lidar.
- Posso perguntar - disse Martha, hesitante -, mas que razão lhe vou dar para querer saber?
- Ele sabe que tens um filho?
- Claro que sabe.
- E o teu rapaz tem cerca de dezasseis anos, certo? E isso. Diz ao
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teu namorado que o teu filho conheceu Susan Forgrove na última vez que esteve em Nova Iorque e está apaixonado por ela. Por isso, estás a tentar saber mais sobre esta rapariga para te certificares de que é a rapariga certa para o teu rapaz.
- Peter - disse ela com admiração -, tens o talento de um vigarista de primeira.
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Convenci Jenny Tolliver a jantar num local ligeiramente mais elegante do que The Dirty Shame. Ela não concordou com nenhum dos restaurantes a que eu costumava ir, por isso decidimo-nos por The Kerry House, um restaurante tipo bar na 44ª Avenida Leste, onde as lâmpadas Tiffany eram imitações, mas a carne assada era real.
Cheguei primeiro e escolhi um recanto recatado, com painéis escuros e estofos de cabedal gastos. Estava na minha segunda bebida quando Jenny entrou. Levantei-me e fiz-lhe sinal. Estava à espera de um amigável beijo no rosto, mas não tive sorte nenhuma.
Ela pediu desculpa pelo atraso e disse que tinha vindo directamente do estúdio, depois de trabalhar doze horas seguidas. Bebeu avidamente um gin de um só golo, depois falou-me do seu trabalho.
Interrompi-a apenas o tempo suficiente para mandar vir carne assada mal passada para os dois, batatas assadas e uma salada mista. Depois mandei vir outra rodada e fi-la continuar a falar.
Ela estava animada e excitada por ter o seu próprio negócio e por ter de tomar decisões importantes todos os dias.
Quando a comida foi servida, atacou-a ferozmente, depois parou, riu-se e confessou que tinha estado demasiado atarefada e que não tinha almoçado. Observei-a enquanto comia.
Ela brilhava na suave luz vermelha. A sua beleza tinha adquirido uma nova dimensão. Parecia mais confiante, mais decidida. Era difícil recordar os seus momentos de calma deliberação.
-Uh, estava tão bom - disse ela empurrando o prato e dando um suspiro de satisfação. - Obrigada, Peter.
- Sobremesa?
- Só café, por favor.
- Brande?
- Não, obrigada, Peter. Tenho estado tão ocupada a comer e a falar, que nem sequer perguntei como estás. Como vai o teu, uh, negócio?
- Óptimo.
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Ela baixou tanto a cabeça, que o cabelo castanho comprido lhe ensombrou o rosto. Depois ergueu a vista e olhou directamente para mim.
- Peter, sentes-te feliz com o que fazes?
- Sinto - disse eu. - Muito do trabalho é aborrecido, rotineiro, mas quando trabalhamos por conta própria é mais fácil. A única limitação é a nossa própria ambição. E um sistema de livre iniciativa.
- O quê? - disse ela.
- É como começares o teu próprio estúdio. Se pensares nisso, é maravilhoso. A oportunidade que isso significa! Todas as pessoas têm direito aos frutos do seu trabalho. E o espírito de pioneirismo que tornou este país no grande país que é.
- Acho que, afinal, vou beber esse brande - disse ela.
Depois de sairmos do restaurante, fomos a um cabaret na 72ª Avenida e ouvimos um grupo de jovens cantar Cole Porter. Bebemos uma garrafa de champanhe e Jenny deixou-me dar-lhe a mão.
Levei-a a casa de táxi, mas ela não me convidou a subir. Agradeceu-me pela noite estupenda e disse que me telefonaria.
A coisa estranha foi que esta corte lenta, tranquila, era imensamente agradável. Seria a inocência? Tudo o que eu sabia era que me contentava em estar ao pé dela.
Se isto continuasse durante anos a fio, não me importaria. Não sentia uma enorme vontade de a levar para a cama. Eu sabia que ela nunca, nunca aprovaria o que eu estava a fazer. Acho que à única coisa que queria dela era apenas aceitação.
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A voz de Martha trepidava de excitação.
-Vem cá imediatamente-mandou ela.-Tenho uma coisa para te dizer.
- Não me podes dizer agora?
- Ao telefone, não.
- Estás a ficar tão paranóica como Futter - disse-lhe. - Estou aí daqui a meia hora. Precisas de alguma coisa?
- Podes trazer um jarro de chablis? Gallo serve. Nikki está cá e estamos secas.
Estavam as duas sentadas no chão no meio da floresta de elefantes ornamentais. Estavam descalças. O ar estava cheio de fumo de cigarro. Mudei o ar condicionado de Martha para "Exaustor" e preparei chablis com gelo para todos nós.
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- Fiz o que me disseste - disse Martha-e fiz perguntas ao meu namorado sobre Susan Forgrove. A princípio, ele não queria dizer nada, para proteger os amigos, mas acabou por me contar. Os pais dela são muito ricos e muito influentes, mas há anos que têm problemas com a filha. Ela fez um tratamento de recuperação de droga algures, e ainda vai a um psiquiatra local.
- Eu disse-te que ela tem vergões antigos nos braços - disse eu.
- Isso é só parte - disse Martha. - Nikki conhece-a! Virei-me para olhar para Nicole Radburn.
- Estás a brincar?
- Eu disse-te que às vezes substituo professoras em escolas particulares de Manhattan. Bem, esta Susan Forgrove foi expulsa das melhores. Peter, a garota é uma prostituta. Numa das escolas, foi encontrada num armário com a professora de ballet, e noutra foi tirada da lavandaria, onde estava a fornicar com os tipos que ali trabalhavam. Digo-te, ela é doente.
-Oh, isso é óptimo-disse eu, num tom zangado.-Que fazemos agora?
- Nikki teve uma ideia - disse Martha. - Diz-lhe, Nikki.
- Bem.. - disse ela -, há cerca de um ano, tive um cliente regular, uma vez por semana. Um tipo simpático. A mulher começou a desconfiar do que ele andava a fazer e contratou um detective particular para descobrir. Este detective entrou no meu apartamento e colocou uma câmara de televisão no tubo de ventilação do quarto. Acredita, aquele filme encheria o Coliseu. O tipo gostava de vestir a minha roupa interior. O que aconteceu foi o seguinte: o detective, depois de obter as provas, não as levou à mulher; disse-lhe que o marido passava uma tarde por semana no Metropolitan Museum. Depois, levou o filme ao meu cliente e vendeu-o por cinco mil.
-Que bonito - disse eu. - E o tipo pagou?
- Claro que pagou. Sacudi a cabeça.
- Que loucura-disse eu. - Agora não me digas que o teu cliente ainda aparece.
- Não - disse Nikki com um sorriso secreto. - Mas tenho o detective particular. Vem-me ver umas duas vezes por mês.
- E veste a tua roupa interior? - perguntei.
-Não, este é normal. Mas, Peter, este tipo é bom no seu trabalho. Sugeri a Martha que vocês o contratassem para ver o que ele descobre sobre Susan Forgrove. Talvez possa filmá-la.
Comecei a ficar nervoso.
- Suponhamos que ele consegue um filme-disse eu.-E depois?
- Tolo - disse Martha. - Vamos ter com Lester Forgrove e
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dizemos-lhe que deve retirar as acusações, senão vendemos fotografias da filha a chupar um burro a todos os seus amigos.
- Ei - disse eu. - Isso é um bocado duro, não é? Martha olhou para mim.
- Queres ir para tribunal? - perguntou. - Ter de contratar um advogado caro e lutar em público?
- Não - disse eu lentamente.
- Porque, se quiseres - prosseguiu ela -, podemos dizer adeus ao negócio com Caesar. Teremos de fechar o negócio e podemos ir parar à choldra.
Fiquei calado.
-Peter-disse Nikki suavemente -, consegues pensar em qualquer outra maneira de pôr travão a Forgrove?
- Não - admiti -, não consigo.
- Então, podemos avançar com isto? - perguntou Martha. Concordei com a cabeça.
- Escuta - disse Martha. - Talvez não funcione. Mas é uma oportunidade, e é a única que temos.
- Está bem - disse eu.
- Nikki - disse Martha -, importas-te de servir de intermediária nisto? Nós pagamos-te.
- Claro - disse Nikki - Telefono-lhe amanhã. Então, Peter, não fiques tão deprimido. É só negócio.
- Eu disse-te que tens um coração mole - disse Martha.
- Tinha - disse eu, aborrecido.
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A sala de jantar estava completamente cheia nesse dia, e havia um grupo de quatro mulheres à espera na sala. Entretanto, estavam a beber imenso o que, a dois dólares o copo, me agradava imenso.
Fui até à cozinha, tentando não atrapalhar Patsy e Luis. Preparei uma sanduíche de fiambre e queijo com pão de centeio barrado com mostarda de Dijon, abri uma lata deHeineken e comi de pé a um canto. A porta de batentes da casa de jantar abriu-se. King Hayes entrou e dirigiu-se a mim.
- King - disse eu -, como estás? Tens fome? Queres uma sanduíche?
- Não - disse o negro enorme. - Obrigada, de qualquer modo. Tens um minuto?
- Claro.
205
- Quero a tua opinião sobre uma coisa - disse ele. Encostei-me à parede mais próxima. Esperei.
- Talvez beba uma cerveja - disse ele.
- No frigorífico - disse-lhe eu. - Serve-te.
Ele abriu a lata enquanto voltava para ao pé de mim. Bebeu um golo que provavelmente esvaziou a lata, depois encostou-se à parede e olhou em frente.
- É Louella - disse ele. - Ela quer que eu deixe de trabalhar e que vá viver com ela.
- Oh-oh - disse eu. - Parece-me que já tiveste uma oferta dessas antes.
-Foi, mas isso foi uma garota branca, e eu não gostava realmente dela.
- Mas com Louella é diferente?
- Mais ou menos.
- É melhor contares-me, King. Se não estiveres a trabalhar, quem é que paga as contas?
- Oh, ela paga; ela prometeu. Até eu encontrar qualquer coisa. --Que espécie de coisa? Trabalho como actor? Modelo? Já tentaste isso e não chegaste a lado nenhum.
- Eu sei, mas Louella, ela quer.. vais-te rir.
-Bem.. ela diz que eu tenho potencial. Foi a palavra que ela utilizou: potencial. Ela quer educar-me, dizer-me que livros devo ler, como me vestir, como falar. Cultura.. tu percebes?
- Sei. E que achas disso, King?
- Não sei o que fazer - disse ele, com um ar infeliz. Comecei a apertar a minha lata vazia de cerveja entre os dedos, fazendo mossas em toda a volta.
- Estás apaixonado por ela, King?
- Não sei bem - admitiu ele. - Admiro-a muito. Ela é inteligente e trata muito bem de si. Mas não sei bem se a amo.
- Ela ama-te?
-Ela diz que sim-disse ele, baixando o olhar para as suas mãos.
- Bem, se ela realmente te amasse, ela aceitar-te-ia tal como és, não é verdade? Quero dizer, ela não começava com toda esta trampa sobre educar-te para realizares o teu potencial, ou seja lá o que for.
Ele ficou calado, de cabeça baixa. Eu pensei que o convencera. Não queria perder este tipo. Era um dos nossos garanhões mais populares e rendíveis.
- Então, achas que devia esquecer o assunto, Peter? - disse ele numa voz que mal consegui ouvir.
Eu estava prestes a responder quando vi Martha fazer-me sinal da porta que dava para a recepção.
- Desculpa-me um segundo, King - disse eu. - Volto já.
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Martha levou-me até à recepção e inclinou-se para mim. -Nikki acabou de telefonar-disse ela. - O detective particular aceita o caso. Cem por dia mais despesas. Concordas?
- Temos alguma escolha?
- Não sejas tão rezingão - disse ela, fazendo-me uma festa no rosto. - Vais sair disto a cheirar a rosas. Tu vais ver.
Voltei para a cozinha.
- Que é que me perguntaste? - perguntei a King Hayes.
- Achas que eu devia esquecer o assunto? - disse ele.
- Não - disse eu -, não esqueças. Deixa este negócio e vai viver com Louella.
Ele lançou-me um olhar de surpresa.
- Vou pensar nisso - disse ele.
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Tivemos uma reunião com o detective particular, Casper Meer-jens, na casa de Martha, calculando que o apartamento estivesse a ser vigiado depois das acusações de Lester Forgrove.
Meerjens parecia um jogador de basquetebol de há muito, muito tempo. Era possível que já tivesse medido um metro e noventa e cinco, mas agora estava tão curvado que não era mais alto que eu. Tinha uma maneira desengonçada de andar, atirando os braços e as pernas em todas as direcções. Tinha as faces encovadas e os dedos amarelos, manchados de nicotina.
Usava óculos com aros escuros, e um aparelho auditivo seguro com adesivo sujo. Mas os seus olhos eram suficientemente vivos e, para um homem feio, o seu sorriso tinha um encanto inesperado. Gostei da voz: profunda, com uma boa ressonância. Durante a meia hora que estivemos com ele, meteu três comprimidos na boca.
Vimos que não era altura de fazer jogos e explicámos-lhe tudo: o negócio em que estávamos, o nome e o endereço de Susan Forgrove, o nome do pai e as acusações que ele tinha feito. Também lhe dissemos o que sabíamos sobre a rapariga e o que tínhamos sabido pelo namorado de Martha e por Nikki.
- Querem montar-lhe uma armadilha? - perguntou ele.
- Só se não tivermos outra alternativa - disse Martha rapidamente. -Temos esperança que o senhor desencante alguma coisa suja para levar ao pai, para o convencer a retirar as acusações.
-Pode começar a trabalhar nisto?-disse eu, nervoso.-Não sabemos durante quanto tempo poderemos protelar as investigações.
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- Eu vou já começar - prometeu o detective na sua voz rouca. - Não me telefonem; quando tiver qualquer coisa, eu telefono.
- E depois o que acontece? - perguntou Martha.
- Depois preparamos uma armadilha - disse Meerjens, encolhendo os ombros. - Com uma miúda tão louca, não deve ser difícil. Querem dar-me um depósito agora? Mil seria bom.
Pagámos-lhe e fizemos votos para que tudo corresse bem.
Isso foi na primeira semana de Outubro. Depois, como se não tivéssemos já problemas suficientes, recebi outro choque.
Martha tinha tirado umas horas de folga para fazer compras, e Yance Burnett estava a substituí-la na recepção. Entrou no escritório a abanar a cabeça.
- Peter - disse ele. - É melhor vires até à entrada. Temos um problema.
Quando lá cheguei, compreendi o que ele queria dizer. Havia um vagabundo encostado à secretária, apoiado nos nós dos dedos sujos. E era mesmo um vagabundo. Barba por fazer, olhos ramelentos, um sobretudo sujíssimo preso no pescoço com um alfinete de dama. O cabelo oleoso caía por cima do sobretudo, e sentia-se o cheiro a sete metros de distância.
Era um tipo jovem, não tinha mais de trinta anos, mas parecia que tinha vindo directamente da Bowery1.
- Que quer? - perguntei-lhe.
- Ser garanhão - disse ele numa voz entaramelada do álcool. - Um tipo disse-me que estão a contratar.
- Quem lhe disse isso? - inquiri.
- Um tipo que conheci num bar - disse ele com um sorriso lascivo. - Disse que pagavam bem para fornicar.
Eu estava a respirar pela boca, não querendo inalar o seu cheiro.
- Este tipo - disse eu - baixo, forte com um rosto abatido?
- É, sim. Ele disse que era seu amigo.
-Já não é - disse eu.-Não estamos a contratar ninguém. Obrigado por ter cá vindo.
Dei-lhe alguns dólares e certifiquei-me de que entrou no elevador, quase o empurrando. Yance falou para baixo para dizer ao porteiro que o levasse para fora do prédio. Voltei ao escritório e tirei algum dinheiro do cofre. Peguei no meu novo sobretudo impermeável e saí apressadamente de casa.
Quinze minutos mais tarde entrei no escritório de Sol Hoffheimer, e apanhei-o a deitar uísque de uma garrafa de meio litro para um copo de papel. Atirei o dinheiro para cima da secretária. Duas das notas escorregaram para o chão coberto de pó.
1. Rua de Nova Iorque em que vivem vagabundos e desalojados. (N. da T.)
208
-Está aí o que te devemos-disse eu, furioso.-Mais cem de despedida. Estás despedido.
Ele olhou para mim com ar de incompreensão.
- Que diabo? - disse ele.
- Conheci o teu amigo - disse-lhe. - O vagabundo. Muito obrigado.
- Não és capaz de aceitar uma brincadeira? - disse ele num tom de lamúria.
- Não - disse eu. - Não sou. Não uma estupidez como aquela. Ele pôs-se de pé, cambaleante.
-Eu tenho-disse ele, engasgando-se.-Preciso, Peter.. nós somos amigos.. tu não podes.. tu fizeste..
- Adeus, Sol - disse eu. - Simplesmente não serves para o papel.
Quando regressei ao apartamento, Martha já estava de volta e Yance tinha-lhe contado o que acontecera.
- Despedi Sol Hoffheimer-disse eu.-Desde que começou a beber, deixou de se poder confiar nele.
-Foi o melhor-disse ela, acenando com a cabeça. - Quem é que precisa desse merdas? Mas agora onde é que arranjamos os garanhões?
-Estamos muito bem fornecidos. Estamos a conseguir alguns por intermédio de outros; os garanhões que temos estão a contar aos amigos e assim por diante. E, na pior das hipóteses, hei-de encontrar outro agente teatral que trabalhe para nós.
Voltei para a minha agenda. Mas tive de beber um bom copo - eu e Sol tínhamos estado juntos durante muito tempo. Mas negócio é negócio.
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Com todos estes problemas, era delicioso passar uma noite sossegada com Nicole Radburn. Era a intimidade sem responsabilidade - que, afinal de contas, é o que interessa, não é verdade?
Ela apareceu no domingo à noite e, juntos, fizemos uma enorme salada com tudo o que havia à mão. Estava óptima (o segredo está no queijo esfarelado). Bebemos uma garrafa de mucadet e rimo-nos muito. Depois vimos televisão. Um interlúdio doméstico encantador.
Depois tomámos duche juntos, mas não foi nada parecido com a cena com Susan Forgrone. Foi apenas um prazer inocente.
Mais tarde, no quarto, disse a Nikki que era a primeira vez 209
que tinha uma relação tão íntima com uma mulher, sem ficar excitado sexualmente.
- Talvez seja eu - disse ela.
- Oh, por amor de Deus, não! - disse eu.
- Achas que estás a ficar saturado?
-Acho que não. Nikki, eu adoro mulheres. Adoro mesmo. Talvez precise apenas de férias. Não sei o que é. Mas sei que me sinto feliz ao pé de ti, contigo a andares nua por aí e sem ter de provar nada. Não queres dormir já, pois não?
- Ainda não.
- Tenho meia garrafa de Cordon Rouge no frigorífico.
- Exactamente o que é preciso - disse ela.
Quando voltei com a garrafa e os copos, ela estava sentada na cadeira, nua, com um joelho por cima do braço estofado. Comecei a desenrolhar a garrafa e a encher os copos.
- Não percebo - disse eu, abanando a cabeça. - Olhando para ti sentada assim, com tudo à mostra, eu devia estar pronto para fazer um salto à vara da janela. Mas, como vês, minha querida, não estou pronto. E também não me parece que estejas a sentir uma paixão incontrolável.
Ela encolheu os ombros.
- Não sou uma mulher muito sensual, Peter - disse ela. - Eu já te disse isso.
- Bem, considerando a tua profissão, deves ser uma actriz dos diabos!
- Sou, sim - disse ela, acenando com a cabeça.
- É tudo fita?
- Por vezes, deixo-me levar - admitiu ela. - Raramente. Não gosto de perder controlo.
Encontrei uma estação de rádio que tocava música country e ficámos sentados, nus, a beber champanhe e a ouvir aquelas canções sentimentais de amores perdidos.
- Eu acho - disse Nikki, pensativa - que, se alguma vez fizéssemos amor, seria um erro.
- Um fracasso? - perguntei.
- Não - disse ela -, podia ser óptimo. Mas mudaria as coisas.
- Compreendo o que queres dizer.
- Tu não queres, pois não?
- Estou satisfeito com as coisas como estão - disse eu, decidido a manifestar a mesma calma que ela.
- Eu também - disse ela. - Adoro dormir contigo. Gosto de ti, Peter, e sei que gostas de mim.
- E gosto.
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-Gosto da expectativa de me encontrar contigo-prosseguiu ela. - De estar contigo. Tu és muito generoso. Meditei sobre este comentário.
- Eu penso que, de um modo geral, sou generoso. Mas, por vezes, não sou bom. Usualmente, isso é ditado pelas circunstâncias. Se quiser sobreviver, não posso ser bom.
- Eu não sou uma pessoa muito boa - disse ela.
- Estás a brincar, Nikki. Isso não é verdade.
- Talvez seja boa para ti, mas devias ver como trato alguns dos meus clientes.
- Mas eles voltam sempre, não voltam?
- Voltam.
- Então..
- Peter, eu aproveito-me das suas fraquezas. Lucro com elas. Eu não chamaria bondade a isso.
- Não tenho tanta certeza - disse eu. - Se os fazes felizes..
- Tu estás a começar a pensar como uma prostituta - disse ela. Mais tarde, na cama, com as luzes apagadas, com ela aninhada
contra as minhas costas, ela disse:
- Peter, não tentes seduzir-me.
- Não tencionava fazê-lo.
- Óptimo - disse ela. - Vamos manter a nossa relação bem especial.
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O detective Luke Futter estava sentado na poltrona do escritório. Tinha um copo de Jack Daniels na mão e estava a olhar para mim com um ar sorumbático. Estava a pôr-me nervoso.
Disse-lhe que tínhamos contratado um detective particular para tratar do assunto de Susan Forgrove e expliquei o que tencionávamos conseguir.
- Talvez funcione - concordou ele. - Se este tipo conseguir arranjar alguma coisa. Como é que ele se chama?
- Casper Meerjens. Ele abanou a cabeça.
- Nunca ouvi falar dele. Mas isso não significa nada. Não demores muito com isto, rapaz.
- Quanto tempo temos? - perguntei, infeliz.
- Duas, três semanas. Um mês, no máximo. Depois vamos ter de vos fechar.
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Endireitou-se na cadeira e bebeu um golo de bourbon.
- Outra coisa - disse ele. - O que realmente vim cá tratar. Ouvi dizer que se vão expandir muito.
- Onde é que ouviu isso? - perguntei, curioso.
- Oh.. a palavra espalha-se. É verdade?
- Estamos na fase de planeamento - disse eu.
- Uh-uh. O que ouvi, é que vai ser um apartamento de luxo. Um clube privado para mulheres ricas. Muito bonito. Há muito dinheiro aí. Espero que o vosso orçamento inclua um bom aumento para mim e para os meus amigos. Para uma boa casa em East Side, é melhor contares com dez mil por mês, no mínimo.
- Dez? - exclamei. - Meu Deus, isso arruinar-nos-ia!
- Nah! - disse Futter com o seu sorriso matreiro. - Metes isso nas despesas de gerais de funcionamento. É dedutível dos impostos. Estão a pensar em pagar impostos, não estão?
- Claro.
- Então, estás a ver. Quando vão abrir?
- 1 de Janeiro - disse eu. - Esperamos.
-Eu apareço antes-prometeu ele - e nós conversamos. -Acabou de beber o bourbon e pôs-se de pé. - A propósito - disse ele num tom casual -, eu sei que estão a ganhar bem, mas não vejo que tenham dinheiro para financiar um apartamento assim tão grande. Quem é o anjo da guarda?
Eu não gostei muito de ter de lhe dizer, mas calculei que, mais cedo ou mais tarde, ele descobriria.
- Roman Enterprises - disse eu. - Já ouviu falar deles?
Os seus lábios formaram um assobio, mas não ouvi qualquer som.
- Agora entraste para a primeira divisão, rapaz - disse ele. - Deixa-me dar-te um conselho: quando se fazem negócios com tipos desses, durante os primeiros seis meses eles dizem, "contem o dinheiro e dêem-nos a nossa parte". Depois, nos seis meses seguintes, eles dizem, "vamos contar o dinheiro juntos". Depois disso, eles contam o dinheiro e dão apenas o que quiserem dar.
- Nós temos um bom advogado - disse eu, na defensiva.
- Claro que têm - disse Futter. - Boa sorte!
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Outubro foi um mês extremamente lucrativo. Se não fossem as acusações de Lester Forgrove, não teríamos nada com que nos preocupar - pelo menos nada que não pudéssemos resolver.
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Esse mês foi também memorável devido ao número de clientes esquisitas que apareceram. Eu, pelo menos, achei que a proporção era elevada; Martha disse que era baixa, comparada com a percentagem de homens estranhos que frequentam bordéis e prostitutas. Mas, sem dúvida, admitiu ela, também tínhamos as nossas clientes esquisitas.
Por exemplo:
.. Uma das nossas clientes, uma importante executiva numa agência de publicidade, adquiriu um gosto pela violação simulada. Ela trazia, para todas as cenas, um vestido barato dentro de uma pasta. No quarto, vestia-o, e queria que o garanhão o rasgasse com ameaças e insultos horríveis.
.. Em resposta a um pedido por telefone, enviámos um rapaz a uma casa muito fina na margem norte de Long Island. Quando regressou, um tanto abalado, ele contou que tinha chegado na véspera de um funeral. A cena tinha tido lugar num sofá de veludo, na sala em que o falecido marido da cliente repousava numa urna de bronze.
Uma das nossas experiências mais estranhas ocorreu nesse mês. Martha informou que uma cliente estava disposta a pagar quinhentos dólares por um homem virgem. A maior parte dos nossos garanhões tinha mais de vinte e trinta anos e nenhum deles tinha um aspecto particularmente virginal. Mas não queríamos perder o dinheiro.
Yance Burnett disse que talvez pudesse ajudar.
-Eu conheço um miúdo chamado Tommy Bosnian-disse ele. - Ele anda na escola de bailado, mas é melhor actor que dançarino. Tem vinte anos, mas podíamos jurar que não tem mais de dezasseis. Acho que ele o fará por metade dos quinhentos. Ele é como eu, dá para os dois lados.
- Tens a certeza de que tem vinte anos? - disse Martha, desconfiada. - Não queremos outra Susan Forgrove.
- Tenho a certeza - disse Yance, com um sorriso. - Vivi com Tommy durante uns meses, e tenho o cuidado de evitar situações que me levem à cadeia. Se quiserem verificar, eu peço-lhe que traga a certidão de nascimento.
Tommy Bostian era perfeito. Era baixo, de ossos miúdos, com pele clara e o cabelo tão louro que era quase branco. Parecia, de facto, ter quinze anos, mas a certidão de nascimento e a carta de condução diziam que tinha vinte. Decidimos arriscar.
Ensinámos-lhe o papel. Devia ser tímido, envergonhado, um tanto receoso, e talvez até deitar umas lágrimas. Felizmente, ele aprendia depressa e compreendeu exactamente o que o papel exigia.
Dissemos-lhe que usasse calças de ganga, sapatos de ténis e uma T-shirt limpa debaixo de um blusão de ganga. Acrescentámos alguns adereços: um pente grande no bolso de trás, uma boina de cabedal, e
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um fio barato dourado em volta do pescoço magro. Ele levaria consigo um pequeno rádio portátil.
A cena foi um grande êxito. A cliente até lhe deu uma gorjeta de cinquenta dólares. Depois perguntou se lhe podíamos encontrar outro virgem.
É tudo uma questão de fantasia, não é?
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Oscar Gotwold e Ignatz Samuelson delinearam um esboço de acordo com as Roman Enterprises. Nos finais de Outubro, eu e Martha encontrámo-nos com eles para rever os pormenores do acordo.
Resumidamente, Peters Place, Inc. seria uma empresa privada por acções. Eu e Martha teríamos 52 das mil acções. As restantes pertenceriam à Justice Development Corp., uma subsidiária da Roman Enterprises. Michael Gelesco e Anthony Cannis seriam os directores da Justice Development.
Eu e Martha investiríamos cento e quatro mil dólares cada no Peters Place Inc., pelo que deteríamos um total de quinhentas e vinte acções a quatrocentos dólares cada. A Justice Development entraria com cento e noventa e dois mil dólares, para quatrocentos e oitenta acções. O restante dinheiro de que necessitaríamos para comprar, mobilar e equipar uma casa viria sob a forma de um empréstimo de um milhão e duzentos mil dólares concedido pela Vigor Venture Capital, Inc., outra subsidiária da Roman Enterprises. O empréstimo teria um juro de dez por cento.
A casa seria comprada à Marble Properties, outra subsidiária da Roman Enterprises. Uma hipoteca de um milhão e setecentos e cinquenta mil seria proporcionada pela Daring Enterprises que era, como o leitor já terá calculado, outra subsidiária da Roman Enterprises.
Nesta altura, comecei a ficar incomodado. A primeira coisa que questionei foi o motivo pelo qual estavam envolvidas tantas subsidiárias da Roman Enterprises.
- É simplesmente uma questão de contabilidade-disse Iggy secamente. - Tira-se dinheiro de um bolso e coloca-se noutro. Vantajens na questão de impostos. São pessoas muito espertas.
- Faria alguma diferença se negociassem com empresas independentes? - perguntou Oscar. - E onde iriam arranjar um empréstimo a um juro de dez por cento e uma hipoteca de dez por cento?
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- O que realmente acontece - disse Martha - é que não temos outra escolha, não é verdade?
Oscar encolheu os ombros.
-Na minha opinião, este é o melhor negócio que podiam fazer. Se acham que conseguem melhor, tentem. Mas vão ficar muito decepcionados.
- O que eu quero saber - disse eu -, é como é que eu e Martha ficamos.
-Pelos vossos cento e quatro mil-disse Iggy-, cada um de vós possuirá vinte seis por cento das acções de Peters Place. Além disso, cada um terá um contrato de emprego de dois anos. Setenta e cinco mil por ano.
- Eles queriam dar-vos contratos anuais de cinquenta mil - disse Oscar. - Acordámos em dois anos e setenta e cinco mil.
Eu e Martha olhámos um para o outro.
- Ganhamos isso de qualquer modo? - perguntou ela.
- Exactamente - assegurou-lhe Iggy. - Mas é um salário verdadeiro. Com dedução de impostos. Absolutamente legal.
- Muito menos do que ganhamos agora - comentou ela. - Sem contar com os lucros.
- E os lucros? - perguntei eu. - Como é que eles são divididos?
- Antes de haver lucros - explicou Oscar -, tem de ser feita a amortização do empréstimo à Vigor Venture Capital e pagamento da hipoteca à Daring Financial. Depois, todo o dinheiro que sobrar, para além de um pequeno fundo de reserva, irá para os accionistas. O que significa que tu e Martha receberão cinquenta e,dois por cento do lucro limpo e a Justice Development recebe o resto.
Olhei, taciturno, para a pilha de documentos em frente de Gotwold e perguntei a mim próprio se alguma vez compreenderia aquilo de tudo. A única coisa que sabia era que era a nossa única oportunidade.
- Há mais uma coisa que devem saber - disse Iggy. - A Marble Properties tem duas casas. Qualquer delas é do agrado da Roman Enterprises. A escolha é vossa.
Isso eu compreendia.
- Onde são? - perguntei.
- Uma é em Murray Hill - disse Oscar. - A outra é na 54ª Oeste, à direita da Quinta. O preço é o mesmo para as duas: dois milhões e quinhentos mil. Vou-vos deixar os endereços. Dêem-lhes uma vista de olhos. Também vos vou deixar cópias de todos estes acordos. Sugiro que os leiam com muito cuidado.
Recostou-se na cadeira, com os dedos cruzados por cima da barriga envolvida pelo colete. Ele olhou-nos com um ar benigno, com os pequeninos olhos astutos a brilhar.
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- Na minha opinião - disse ele -, seria tolice perder esta oportunidade. Não concordas, Iggy?
Agitando o cigarro de porcelana, Samuelson começou a mexer-se, batendo nos documentos.
- Aceitem o meu conselho. Agarrem-na. E nós agarrámo-la.
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Agora que estávamos tão próximos da assinatura do acordo com a Roman, tornou-se mais urgente resolver o assunto de Susan Forgrove. Se ouvisse falar nele, Octavius Caesar não só desistiria do negócio, como espalharia a notícia de que nós constituíamos riscos financeiros inaceitáveis.
Por isso foi um alívio quando Casper Meerjens disse que estava pronto para se encontrar connosco. Ele não quis discutir pormenores ao telefone; quando chegou ao apartamento de Martha, não sabíamos se as notícias que trazia seriam boas ou más.
O detective particular dobrou o corpo ossudo, sentou-se numa poltrona e aceitou um copo de soda. Bebeu um golo, depois colocou cuidadosamente o copo no chão. Acendeu um cigarro. Pôs os óculos colados com adesivo. Tirou um bloco de notas velho do bolso do casaco. Nesta altura, já eu tinha as palmas das mãos a transpirar.
- Susan Forgrove - disse ele na sua voz sonora. - Não é nenhuma santa. Fugiu duas vezes de casa. Expulsa de meia dúzia de escolas. Aos treze anos já se tinha metido nas drogas duras. Dizem que agora está limpa.. mas quem sabe? Devia ir a um psiquiatra três vezes por semana, mas falta às consultas. Também não aparece em casa durante um, dois, três dias. Depois não diz onde esteve. Põe os pais malucos.
- Onde é que arranjou esta informação toda? - perguntei.
- Aqui e ali - disse ele num tom vago. - Ela não tem uma carta de condução legítima, mas pegou no carro da mãe e estampou-o. Também tira dinheiro da carteira da mãe. E rouba coisas de casa para vender. Candelabros de prata, pequenos quadros, peças de cerâmica, coisas que se podem transportar facilmente. De acordo com as minhas fontes, ainda fuma muita erva e provavelmente cheira. E tem a reputação de ser a Miss Prostituta Júnior de Manhattan, a queca mais fácil da cidade. É só pedir.
Procurou qualquer coisa no bolso do casaco e tirou de lá um 216
embrulho envolto em papel higiénico. Abriu-o cuidadosamente, depois entregou um molho de fotografias Polaroid a Martha.
-Ela meteu-se com um bando da 96ª Avenida Leste-disse o detective. -Ficou no clube deles, que fica numa cave, durante dois dias. Eles usaram-na à vez e chamaram todos os amigos da vizinhança.
Agradeci silenciosamente a Deus ter feito um teste de sífilis na semana anterior e decidi fazer outro no dia seguinte.
- De qualquer modo - prosseguiu Meerjens -, eles tinham estas fotografias coladas nas paredes do clube. Comprei o conjunto por duzentos. Eles não foram suficientemente espertos para fazer cópias.
Observei o rosto de Martha enquanto ela estudava as fotografias. Eu nunca vira tanta tristeza; envelheceu perante os meus olhos. Passou-mas sem dizer uma palavra.
Era Susan Forgrove; não havia qualquer dúvida. E o que tinham feito à pobre rapariga doente fazia-me desejar ser um cão, um gato ou um pássaro. Havia uma fotografia de três jovens rufiões a usarem-na de todos os ângulos. A única maneira como consegui reagir foi dizer uma piada.
- Um grande acto de vaudeville - disse eu.-- Qual é o nome artístico deles, os Aristocratas?
- Acham que estas fotografias servem? - perguntou Meerjens.
- Servem - disse Martha inexpressivamente. - Então, agora, vai levá-las ao pai dela para o convencer a retirar a queixa?
Casper Meerjens acabou a sua soda. Arrotou baixinho e limpou os lábios com os nós dos dedos.
- Eu não - disse ele acendendo outro cigarro. - Desculpem. Em circunstâncias normais eu iria, mas isto é diferente. Antes mesmo de eu sair da casa dele, Lester Forgrove poderia fazer com que me retirassem a licença.
- Ei - protestei. - Espere aí, você foi contratado para resolver esta embrulhada.
Meerjens abanou a cabeça.
- Não senhor. Fui contratado para arranjar provas. Foi o que fiz. Por isso, pagámos-lhe e ele foi-se embora. Deixou as fotografias Polaroid e o papel higiénico que lhes servia de embrulho.
- Achas que ele fez cópias? - perguntei a Martha.
- Não - disse ela. - Penso que ele não quer ter nada a ver com isto. Reparaste como ele pegou nelas pelos cantos? Nada de impressões digitais.
- Que fazemos agora?
- Vamos em frente - disse Martha. - Vamos levar as fotografias a Lester Forgrove.
- E quem faz isso? - perguntei. Ela olhou para mim.
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- Deus do céu, Martha. - Eu não posso. Não tenho tomates. Tu própria o disseste. Eu não saberia o que fazer.
- Eu pensei que fosses actor - disse ela em voz baixa.
- Bem.. - disse eu. - Dá-me um pouco de tempo. Terei de me preparar psicologicamente. Oh, meu Deus, vai ser tão horrível.
- Vais-te sair muito bem - garantiu-me ela. - Peter, por que é que não ficas cá esta noite?
- Achas que preciso de conforto?
- Não - disse ela. - Sou eu que preciso. Aquelas fotografias fizeram-me sentir tão vazia.
Ela tinha desligado o aquecimento do quarto e aberto a janela. Estava muito frio, mas era assim que ela gostava. Aninhámo-nos debaixo de um edredão de penas e ela não conseguia deixar de falar.
Falou-me da sua adolescência numa pequena cidade de Oaio e de como, depois de os pais morrerem, se tinha mudado para Chicago e tinha arranjado emprego como empregada de bar. Depois tinha entrado para a vida, fazendo bom dinheiro a trabalhar num bordel cuja dona era a mãe de Nikki Radburn.
Ela tinha-se interessado sempre por roupa e pela moda. Quando tinha dinheiro suficiente, foi-se embora, veio para Nova Iorque e arranjou um emprego como vendedora numa boutique. Fornicou os tipos certos e, cinco anos mais tarde, era gerente da Barcarole. Ao longo do caminho, casou-se com um homem que se tornou um jogador inveterado e um vagabundo. Ele desapareceu, deixando-a com um filho para criar.
Agora que as suas preocupações monetárias pareciam ter terminado, ela enfrentava o maior problema da sua vida: o que fazer com o namorado, o futuro governador.
-Gostava de saber o que realmente sinto por ele-disse ela, brincando comigo. Por vezes, penso que ele é apenas um tipo como os outros.
- Ele dá-te dinheiro? - perguntei.
- Coisas. Dá-me coisas. Jóias. Acções. Um elefante de bronze antigo que custou uma fortuna.
- E que é que tu lhe dás.. o pingalim?
- Fá-lo funcionar - disse ela, os seus dedos tornando-se mais tensos. -As pessoas são o que são. Todos nós temos as nossas idiossincrasias.
- Quais são as tuas?
- Elefantes. E as tuas?
- Nem sei - disse eu. - Quem me dera saber quem sou.
- Tu és um actor - disse ela. - Não saber quem és, é um risco profissional. Estás pronto?
- Nunca estive mais pronto.
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- Levas as fotografias a Lester Forgrove?
- Suponho que sim-disse eu, suspirando. - Oh, meu Deus, por vezes, gostava de me divorciar da raça humana.
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King Hayes disse-me que se ia embora. Tirei a garrafa de Manis-chewitz Concord do bar do escritório e enchi um copo para ele.
- Louella? - perguntei, e ele concordou com a cabeça.
Bebi um brande, não porque me apetecesse, mas porque achei que a ocasião exigia um brinde. Erguemos os copos. Um homem simpático. Eu gostava realmente dele. Não grande coisa a respeito de cérebro, mas simpático.
- Não vale a pena tentar dissuadir-te - disse eu. - Fui eu que te disse que seguisses em frente. Mas espero que tenhas pensado bem no assunto.
- Pensei - disse ele. - Peter, é uma oportunidade, não é? Quero dizer, suponhamos que não dá resultado? Separamo-nos e pronto.
- Meu Deus, King, tu não vais viver com esta mulher a pensar, já à partida, que não vai dar resultado.
- Oh, eu tenciono fazer o melhor que puder - disse ele num tom ansioso. - Tenciono mesmo. Vou tentar fazer o que ela quer durante um mês para ver o que acontece.
- Já lhe disseste?
-A noite passada. Ela ficou muito feliz. Hoje foi comprar-me toalhas, escova de dentes, um roupão, coisas assim. Eu tenho isso tudo, mas se isso a faz feliz..
- King - disse eu -, não quero parecer desmancha-prazeres, mas nunca te considerei um tipo que seria feliz a viver à custa de uma mulher. Eu acho que é melhor arranjares um emprego a fazer qualquer coisa. Mesmo que ganhes muito menos que ela.
- Oh, tenciono fazer isso - disse ele num tom solene. - Ela diz que paga a comida e a renda, mas não quero que ela me dê dinheiro como se fosse uma mesada.
De certo modo, invejei-o. Ela estava a fazer um esforço para sair, fiz votos para que conseguisse. Quanto a mim, já estava demasiado envolvido. E não tinha a certeza de que quisesse mudar de vida.
- Se alguma vez quiseres voltar.. - disse eu.
- Obrigado, Peter, mas não vou contar com isso. Quando sair, é para sair de vez.
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-Bem, se alguma vez quiseres, sabes onde encontrar-me. Vamos ter saudades tuas, King. E as tuas clientes também.
- Divertimo-nos um bocado, não foi? - disse ele, sorrindo.
- Lá isso é verdade.
Ele terminou o vinho e pôs-se de pé. Apertámos as mãos.
- Tem cuidado, Peter. Por vezes preocupo-me contigo.
- Eu? - disse eu, sensibilizado. - Não te preocupes. Tenho o mundo na mão.
-E - disse ele, soltando uma gargalhada. - Sei o que queres dizer.
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Deixando Yance a tomar conta do apartamento, eu e Martha fomos inspeccionar possíveis locais para o Peters Place. Encontrámo-nos com a agente da Marble Properties numa casa entaipada na 36ª Avenida Leste, mesmo a oeste da Lexington, em Murray Hill.
A agente era uma mulher de dentes salientes vestida com um casaco de pele de foca com cinto. Parecia uma morsa magra. Não fez qualquer esforço para vender, por isso supus que ela soubesse que as nossas escolhas eram limitadas.
- Aqui está ela - disse, apontando um polegar de unha comprida para o edifício de cinco andares.
Era uma massa pesada, com folhas de zinco pregadas nas janelas. Talvez pudesse ser restaurada, mas nada disfarçaria aquela fachada feia.
- Não serve - disse Martha com firmeza.
- Querem ver o interior? - disse a agente sem interesse.
-Não vale a pena-disse-lhe eu. - Para já, fica demasiado perto do centro. E parece óptima para lhe pegarem fogo. Vamos tentar a outra.
Apanhámos um táxi para a 54ª Avenida e, a partir da Madison, seguimos a pé para oeste. Boa zona. Boa avenida. Gente bem vestida. Bons restaurantes e lojas caras. O ar cheirava a dinheiro.
Era uma tarde de Novembro clara, em que todos os contornos estavam bem delineados e nítidos. Um céu azul, limpo, e um sol que fora recortado com uma lâmina. Eu conseguia imaginar as nossas clientes a pararem para almoçar e uma queca rápida entre idas ao Bonwit e ao Sak.
O edifício em si era estreito e alto: seis andares com um sótão. Tinha janelas arredondadas apoiadas por ornamentadas gárgulas. A
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entrada, ao nível do chão, tinha colunas esculpidas e uma bandeira de vitral. A fachada era de calcário adornado com tijolos vermelhos à volta das janelas.
-Parece muito estreita-disse Martha em tom de dúvida. -Vamos dar uma vista de olhos lá dentro.
- O último dono foi uma fundação - disse a agente. - Todas as divisões foram convertidas em escritórios, por isso vai precisar de algum trabalho.
Era, de facto, bastante estreita, e apenas as janelas da frente davam para a rua; a janela de trás (norte) tinha vista para o pequeno pátio e para as paredes de tijolo dos edifícios comerciais da 55ª Avenida Oeste. Mas os tectos eram altos e os primeiros dois andares tinham chão de parquet.
Havia um pequeno elevador que não estava a funcionar, por isso subimos a pé. Havia muitas divisões que, conforme a agente dissera, tinham sido divididas em escritórios. Mas calculámos que, do espaço existente, conseguiríamos fazer onze ou doze quartos.
O melhor de tudo era que nas traseiras do andar principal havia uma cozinha completamente equipada que tinha sido instalada pelo dono anterior para os almoços dos empregados. E, na sala de jantar, podiam sentar-se trinta ou quarenta pessoas.
- Gostam? - perguntou a agente.
- Por dois milhões e meio - disse Martha num tom arrogante -, como é que podemos não gostar?
Fechámos o negócio uma semana depois, na sala de reuniões do andar superior da Boutique Barcarole. Havia advogados e contabilistas por todo o lado. Parecia uma reunião da Associação dos Contabilistas.
Eu e Martha tínhamos trazido o nosso investimento de duzentos e oito mil dólares em dinheiro e não fomos menosprezados por causa disso. (Mas exigimos recibos.) Michael Gelesco e Anthony Cannis entregaram a sua contribuição de cento e noventa e dois mil dólares sob a forma de um cheque de um banco de New Jersey, de que eu nunca ouvira falar. Não tive dúvidas de que fosse uma subsidiária da Roman Enterprises.
Fartámo-nos de assinar. Empresa, acções, empréstimo, hipoteca, contratos de emprego, seguro: os documentos nunca mais tinham fim-Estavam todos dentro de pastas de cartolina azuis. Sem borrões nem palavras riscadas. Muito reconfortante. Não li nada.
Foram precisas quase duas horas para que tudo fosse assinado, testemunhado, autenticado, reconhecido pelo notário. Os papéis voavam à volta da mesa como uma queda de neve, com Oscar Gotwold e o advogado principal da Justice Development Corporation a fazerem pequenas anotações nas suas listas.
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Finalmente, terminou, e Gelesco convidou-nos a todos a irmos para a sala ao lado, onde um bar completamente equipado e com um barman tinha sido montado. Bebi um vodka simples com gelo, apertei a mão a todos, beijei o rosto de Martha e estive-me nas tintas para tudo.
Lembro-me de falar com Anthony Cannis. Estávamos a discutir quanto deveríamos cobrar às clientes pela inscrição no Peters Place.
- Quinhentos - sugeri.
- Não - disse ele, mastigando o charuto. - Mil. Isso vai afastar as pés-descalço.
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Martha insistiu em que fizéssemos cópias das fotografias Forgrove antes de as levarmos ao papá.
- Supõe que ele as arranca da tua mão e as rasga? Ou promete retirar a queixa e depois não o faz? Peter, as fotografias são as únicas munições que temos.
Mandámos fazê-las e colocámos os negativos no cofre do apartamento.
Entretanto, eu tinha andado a planear a minha actuação. A minha primeira ideia foi agir como Sidney Quink, um chantagista barato. Mas depois pensei que, se o fizesse, provavelmente, nunca chegaria a falar com Forgrove.
A segunda versão foi vestir-me todo de preto e fazer um papel ameaçador, com uma autoridade calma, olhos duros e ameaças subentendidas. Eu era capaz de desempenhar um papel desses, provocando medo com uma postura que exprimia uma tensão mal contida e violência reprimida.
Por fim, decidi que o melhor era evitar que Forgrove entrasse em pânico, mas convencê-lo de que eu, um dos da sua classe social, lamentava dar-lhe conhecimento deste trágico assunto. Seria sincero. Como alguém disse uma vez, quando se trata de sinceridade, o estilo é tudo.
Telefonei-lhe para casa uma noite, em meados de Novembro. Falei num tom suave e educado. Disse-lhe o meu nome, disse-lhe que tinha um assunto muito urgente para discutir com ele e pedi que me concedesse uma breve audiência.
- Que se passa? - perguntou ele, desconfiado.
- Diz respeito à sua filha Susan - disse eu. Ouvi-o suspirar.
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- Não pode vir ao meu escritório? - disse ele. A sua voz era fina e lamurienta. Sem qualquer ressonância.
- Creio que não seria sensato. Isso pareceu abalá-lo.
- Muito bem - disse ele, num tom agitado. - Eu e a minha mulher vamos jantar fora mas, se puder vir imediatamente, posso conceder-lhe alguns minutos.
Dez minutos depois estava no apartamento dele, na 79ª Avenida Leste. Um prédio bonito, com bastante mármore e lâmpadas ArtDeco no átrio. Identifiquei-me ao intercomunicador e abriram-me a porta.
Lá em cima, no nono andar, a porta do apartamento 9-C foi aberta na corrente e um olho frio inspeccionou-me. Eu tinha vestido o meu traje mais respeitável: fato com colete, camisa branca, gravata. Os sapatos estavam engraxados e tinha um chapéu na mão. A corrente foi deslizada, a porta aberta.
O homem de smoking tinha, calculei, cerca de quarenta e cinco anos. Ombros estreitos e não muito alto. Um rosto cinzelado: feições miúdas demasiado juntas. O cabelo grisalho estava escovado para o lado. Uma pessoa muito fria.
- Mr. Lester Forgrove? - perguntei.
- Sim. Que se passa?
- Não vou demorar muito. Posso entrar?
Contrariado, ele afastou-se para o lado e deixou-me entrar. Foi então que reparei que ele tinha uma mão no bolso no casaco e perguntei a mim próprio se ele estaria armado. Um pensamento nada reconfortante.
Estávamos num átrio comprido, muito iluminado. Eu conseguia ver, ao fundo, uma sala agradavelmente mobilada, mas ele não fez qualquer menção de me mandar entrar. Ficámos frente a frente no corredor estreito.
- Mr. Forgrove - disse eu, começando o discurso que ensaiara cuidadosamente -, o meu nome é Peter Scuro, e sou co-proprietário de uma escola de arte dramática em que a sua filha..
Foi tudo o que consegui dizer. Ele compreendeu imediatamente. Ficou rígido.
-Não tenho nada para conversar consigo-interrompeu com violência. - Fale com o meu advogado.
- Não, senhor - disse eu. - Eu acho que não vai querer que fale com ele depois de ouvir o que tenho para lhe dizer.. e mostrar.
Disse-lhe que a filha tinha vindo ter connosco e fingira ser maior. Disse que geríamos uma escola de arte dramática legítima, e que não éramos responsáveis pelas ligações entre os nossos alunos. -Vocês têm uma casa de prostituição! - gritou ele. - Uma casa
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de prostituição masculina. E vou acabar com ela, nem que seja a última coisa que faça.
Respondi em voz baixa, toda cheia de suave sensatez, que ele estava mal informado. Reiterei que era uma academia de arte dramática.
Ele olhou-me com desprezo.
- Que está a tentar fazer?-perguntou ele.-Vou metê-lo na cadeia. Você não passa de um reles chulo. Deus sabe o que faz a raparigas inocentes.
- Inocente? - disse eu num tom irado, sentindo-me insultado e esquecendo o meu discurso ensaiado. - Como a sua filha Susan? - Tirei as fotografias do bolso e meti-as debaixo do nariz dele.-Estas fotografias foram tiradas numa cave, num clube de um bando, muito antes de Susan ter vindo ter connosco. Olhe bem para elas, Mr. Forgrove. Não se incomode em as rasgar. Há negativos.
Ele baixou a cabeça e olhou lentamente para as fotografias. Pareceu mirrar perante os meus olhos. O colarinho ficou demasiado largo, os ombros descaíram, todo o seu corpo pareceu encolher.
- Onde é que as arranjou? - perguntou ele numa voz tão baixa que mal consegui ouvir.
- Não interessa - disse eu. - O que interessa é que nós queremos que retire a sua queixa, Mr. Forgrove. Seria uma coisa feia e repugnante obrigar-nos a enviar cópias destas fotografias aos seus familiares, amigos e sócios.
Ele emitiu um som profundo e ofegante e, por um momento, receei que ficasse fisicamente doente. Mas, nesse momento, uma mulher com um vestido de noite preto, sem mangas, apareceu à porta da sala ao fundo do corredor e dirigiu-se a nós.
- Lester - chamou ela -, vamos chegar tarde.
Ele fez um movimento convulsivo, tentando enfiar as fotografias no bolso. Mas estava tão nervoso que três ou quatro lhe escorregaram dos dedos e caíram ao chão. Nessa altura, já a mulher estava junto de nós. Baixou-se rapidamente e apanhou as fotografias do tapete.
- O que são.. - começou ela, depois viu o que tinha na mão. Ela era mais forte que ele. Não se foi abaixo. Limitou-se a olhar para mim e perguntou.
- Quanto quer?
Ela era uma mulher de rosto comprido, suficientemente jovem para não ter aquelas rugas, rugas de preocupação. O cabelo, também, estava a ficar branco, puxado para trás, num coque.
- Não queremos nada, minha senhora. Isto é, não queremos dinheiro. Nós só pedimos que o seu marido retire a queixa contra a nossa escola.
Ela inspirou profundamente. Eu via as veias azuis dos seus braços.
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- Que garantia temos de podermos confiar em si? - perguntou ela, num tom de desdém.
- Que garantia temos de podermos confiar em vocês? - perguntei eu. - Se a queixa for retirada, o assunto morre aqui.
Eu penso que Lester Forgrove devia ter estado a chorar. Tinha os ombros curvados e a cabeça descaída. Os braços estavam caídos ao lado do corpo. A mulher abraçou-o, quase ferozmente, apertando-o bem contra ela.
-A queixa será retirada - disse ela secamente. - Por favor, vá-se embora.
Assenti com a cabeça e afastei-me, deixando-lhes as fotografias como lembrança. A porta, olhei para trás. Eu sabia que estava condenado, para o resto da vida, a recordar-me daqueles dois seres desfeitos, abraçados, apoiados um no outro para, juntos, afastarem a escuridão.
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Tornou-se evidente que a Justice Department Corp., embora accionista minoritária nas pessoas de Cannis e Gelesco, ia ter muito a dizer na renovação da nossa casa.
Eles contrataram o arquitecto e o decorador. Eles organizaram a renovação da cozinha. Eles decidiram a que empreiteiro foi entregue o trabalho. Era verdade que eles nos consultavam quase diariamente, a mim e a Martha, mas era geralmente para nos colocarem perante um facto consumado.
Naturalmente que ficávamos zangados. Mas Oscar Gotwold aconselhava paciência.
Passávamos pela casa duas ou três vezes por semana para ver como o trabalho progredia. Era óbvio que não ia ser o clube privativo elegante e luxuoso que eu tinha imaginado.
Cornijas e paredes que eu queria que ficassem com a cor da madeira, foram pintadas de creme. Quartos que eu queria mobilados com reproduções Luís XIV receberam imitações baratas de mobília sueca moderna, que parecia ter vindo de um motel falido.
Pelo menos, não era berrante, mas eu achei que era tudo enfadonho e sem imaginação. Mas, quando vi o custo elevado desta renovação mínima, calei os meus protestos.
Consegui insistir num quarto principal amplo no terceiro andar, que eu ocuparia e que poderia ser utilizado para cenas quando necessário. Havia também um escritório confortável no primeiro andar, e
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uma divisão, que tinha sido originalmente uma despensa, foi convertida num bar acolhedor.
Requeremos licenças para servir comida e bebidas e foi-nos garantido que, como clube privativo, não aberto ao público, não teríamos problemas. Noutros assuntos, tais como a entrega rápida de louças, talheres, roupas, aparelhos de ar condicionado, quadros, etc, o andamento pareceu magicamente oleado pela influência da Justice Development.
Decidimos fechar apenthouse no dia 30 de Dezembro e abrir a casa em 2 de Janeiro. Entretanto, distribuímos prospectos do novo clube a todas as nossas clientes, e a reacção foi encorajadora. A jóia de inscrição foi fixada em mil dólares. As quotas anuais eram de duzentos e cinquenta dólares. O preço das cenas permaneceu em cem dólares, com taxas adicionais para duplos e outras cenas especiais.
Uma pequena e dignificante placa de bronze foi afixada na pedra de um dos lados da porta. Dizia simplesmente: Peters Place: um CLUBE PRIVADO.
Não era bem o mesmo que ter o meu nome nas luzes da Broadway, mas tenho de admitir que constituiu uma fonte de orgulho e de satisfação.
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- Adivinha quem está cá? - perguntou Martha. E, a seguir, antes que tivesse a oportunidade de perguntar.
- Grace Stewart. Lembras-te dela?
-Claro que me lembro-disse eu. - A tua amiga da Costa. A consultora de investimentos.
- Ela vai estar em Nova Iorque durante duas ou três semanas e gostava de te ver.
- Por que é que ela não vem cá acima?
- Ela quer um acompanhante para o jantar. Está hospedada outra vez no Bedlington. Importas-te de lhe telefonar?
- Está bem.
- Não pareces muito entusiasmado, Peter. Ela é simpática.
- Ela é encantadora - disse eu. - Mas um pouco esquisita.
- Todos somos um pouco, não é verdade? - disse Martha. Duas noites depois, cumprimentei Grace no consagrado átrio do
Bedlington. Eu tinha vestido o meu smoking e levava um sobretudo novo, trespassado, no braço. Tinha uma orquídea miniatura na lapela, o que a divertiu.
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- Tão elegante!- disse ela, rindo e oferecendo o rosto para eu beijar.
Não tinha chapéu e vestia um casaco de vison com muita roda. O rosto duro não tinha uma única ruga, apesar dos seus sessenta anos. Mas o cabelo cinzento brilhante de que eu me recordava era agora de um ruivo-bronzeado.
- Gostas? - perguntou ela, virando a cabeça de um lado para o outro.
- Está lindo! - garanti-lhe.
Tal como antes, ela tinha alugado uma limusina para nós. Havia um restaurante novo na Village, o Chez Fleurette, que ela queria experimentar. Pusemo-nos a caminho, sentados muito juntos e de mãos dadas.
- Martha falou-me no novo clube - disse ela. - Parabéns!
- Obrigado - disse eu. - Vais fazer-te sócia?
-Não vou perder isso por nada deste mundo. As sócias podem utilizar o meu cartão?
-Hum-disse eu.-Uma boa pergunta. Eu sou a favor. Mais negócio.
- Quando é que vão fazer uma operação pública de venda?-perguntou ela, num tom meio sério. - Eu tenho muitas clientes que investiriam numa coisa dessas. Óptimo para deduzir nos impostos.
- Tu pareces uma amiga minha a falar - disse-lhe eu. - Ela investe em certificados de aforro, títulos e uma quantidade de coisas financeiras que eu não compreendo.
- Oh? - disse Grace Stewart. - Gostava de a conhecer. O grande amor da tua vida.
- Oh, não. É apenas uma amiga.
Ela ficou calada durante um momento. Depois:
- Peter, és feliz?
A pergunta apanhou-me de surpresa.
-Devo ser-disse eu -, senão não estaria a fazer o que faço, pois não?
- Isso é uma pergunta estúpida, como tu bem sabes. A maior parte das pessoas está metida em becos sem saída. É o teu caso?
Levei tanto tempo a responder que ela desistiu e começou a contar os últimos mexericos de Hollywood. Era uma exímia contadora de histórias, com uma língua afiada e o dom da mímica. Pensei que gostava mais dela em público que em privado.
O Chez Fleurette ainda não tinha sido "descoberto", e estavam ansiosos por agradar. Comemos um jantar excelente: peitos de pombo com molho de pimentos. Bebemos Mumms. Vi a conta antes de Grace pagar. Dois anos antes poderia ter vivido um mês inteiro com o dinheiro que a refeição custou.
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Com o champanhe e cRemy depois do jantar, eu estava num estado de espírito benevolente. Quando a limusina nos levou de regresso ao Bedlington, estendi a mão para lhe acariciar a coxa.
- Nua e rapada - disse eu. - É bom saber que algumas coisas nunca mudam.
- Tens muito boa memória - disse ela, afastando a minha mão. -Apenas para o que é importante-disse eu, sabendo que estava
a dizer disparates e perguntando a mim próprio se me tinha fortalecido com álcool porque sabia o que viria a seguir.
Deve ter sido isso porque, na sua suite, quando ela me perguntou se queria tomar alguma coisa, respondi que gostaria de outro brande. Ela pediu dois conhaques ao bar. Foram os dois para mim. Ela preferiu o seu crack. - Isso dá-te energia? - perguntei. - Não exactamente - disse ela. - É mais parecido com uma deliciosa indolência. Não te queres pôr à vontade? - Eu estou à vontade - disse eu. - Não te armes em esperto comigo, meu rapaz - disse ela, num tom que era quase uma ameaça. - Tu sabes o que eu quero. - Claro - disse eu. - Eu sei o que tu queres. Mas podemos conversar um minuto?
- Se quiseres.
- Eu gostava de te compreender, Grace.
- O motivo por que sou uma observadora?
- Uma voyeur - disse eu.
- Eu prefiro observadora-disse ela. - Voyeur soa como alguém que se põe à espreita. Peter, eu não me ponho à espreita. Eu apenas gosto de ver. Tenho a maior colecção de cassetes de vídeo pornográficas de Hollywood. Um passatempo inocente.
- E nunca tens vontade de, ah, participar activamente?
- Nunca. Também gosto de ver touradas, mas não quero ser toureiro.
Por isso despi-me e comecei a fazer o que ela queria que eu fizesse.
- Peter-disse calmamente Grace Stewart -, estás a engordar.
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Cannis e Gelesco insistiram persuasivamente que o tamanho da sala de jantar e do bar no Peters Place exigia empregados profissionais.
Por isso, contrataram um cozinheiro chefe e ajudantes, uma chefe
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de mesa e empregados. Trouxeram os seus próprios barmen e ajudantes, e um porteiro de nariz partido que parecia um antigo jogador de futebol americano que tinha jogado demasiadas vezes sem capacete. Era simpático, mas acho que não regulava muito bem da cabeça.
Conseguimos manter Patsy, Maria e Luis, mas a Justice Development organizou o serviço de roupas de casa, o fornecimento de comida e bebida, a limpeza e a manutenção.
-Eles vão fazer um bom dinheiro em comissões-comentou Martha num tom sombrio. - Mas nós receberemos o dinheiro das cenas e podemos roubá-los também, dólar por dólar.
O Peters Place estaria aberto do meio-dia às duas da manhã, seis dias por semana. Yancy e eu alternaríamos como anfitriões e prepararíamos as agendas. Martha atenderia as marcações por telefone e receberia o dinheiro.
Inaugurámos um sistema, de acordo com o qual haveria sempre dois garanhões livres para sócias que não tivessem feito marcação. Eram chamados os "sempre prontos" e recebiam cinquenta dólares por dia, quer trabalhassem, quer não.
Também organizámos um exame médico semanal dos nossos garanhões.
Vejamos que mais..
Bem, estabelecemos um serviço de quartos para que as nossas clientes pudessem ter bebidas nos quartos. No segundo andar, tínhamos uma sala ampla que poderia ser utilizada para festas privativas. E, claro, os nossos serviços de pedido por telefone e de acompanhantes estava disponível aos preços habituais.
Peters Place, a nossa morada e número de telefone foram gravados em carteiras de fósforos, guardanapos, cinzeiros e colheres de aperitivos. O nosso barman principal até inventou umEspecial do Peters Place, uma bebida doce de oxicoco, sumo de laranja e de toranja com rum, encimado com uma fatia de ananás fresco mergulhada em açúcar. Eu achava-a detestável.
A época festiva aproximava-se rapidamente, e andávamos atarefados a preparar tudo para a nossa grande inauguração. Estávamos a gastar o que me pareceu serem quantias enormes, mas ganhei alento com o número de pedidos de inscrição que recebi, todos eles incluindo a jóia de mil dólares e a quota de duzentos e cinquenta dólares respeitante ao primeiro ano.
A maior parte deles, claro, era de Nova Iorque, mas muitos provinham de lugares distantes tais como o Alaska, Wyoming, Arizona e vários países estrangeiros. Aparentemente, a nossa reputação tinha-se espalhado por via oral.
Uma das cartas (escrita com tinta roxa) era de uma mulher do Arkansas que se descreveu a si própria como "uma simples solteirona
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solitária a tentar fazer funcionar uma quinta". Ela disse que duvidava que alguma vez viesse a Nova Iorque para usufruir dos nossos serviços, mas "dá-me grande prazer saber que sou sócia".
Escrevi-lhe uma carta pessoal a acompanhar o cartão de sócia, sugerindo que, se alguma vez pudesse visitar o nosso clube, perguntasse por mim.
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- Quem? - perguntei ao telefone.
- Clara-repetiu, num tom petulante, a voz de mulher. - Clara Hoffheimer.
- Oh - disse eu. - Como estás, Clara?
- Suponho que soubeste o que aconteceu a Sol.
- Que aconteceu a Sol? - perguntei, sabendo que não seria nada de bom.
- Sol morreu - disse ela num tom quase alegre. - Que Deus tenha a sua alma em paz. Bateu contra um muro na Long Island Expressway. Suponho que deve ter adormecido. - Ela acrescentou com alguma satisfação. - Levaram três horas a tirá-lo do que restava do automóvel.
Senti-me vagamente agoniado. Adormecido.. ou embriagado. Ou - apenas um pensamento fugaz, tão doloroso que o rejeitei imediatamente - talvez o tenha feito deliberadamente.
- Quando, Clara?
- Na quarta-feira à noite. O funeral foi ontem. Foi bonito.
- Gostava que me tivesses comunicado.
-Tentei, mas o teu nome não vem na lista telefónica. Quando vim ao escritório, encontrei o teu número. Peter, gostava de falar contigo.
Eu tinha estado a preparar as coisas para me mudar para a nova casa. Mas pus tudo de lado e preparei uma bebida forte de vodka com água. Eram onze da manhã e eu estava a beber. Tal como Sol Hoffheimer. O falecido Sol Hoffheimer.
Não conseguia chorar por ele, mas a sua morte foi um verdadeiro choque. Não me sentia culpado: a escolha fora dele. Mesmo assim, ele só tinha começado a beber depois de eu o ter convencido a trabalhar para mim. Mas dizia a mim próprio: a única coisa que ele tinha de fazer era dizer não.
Eu não estava muito interessado em me encontrar com Clara. Mas não fugi ao que considerei ser um acto de caridade cristã.
O único sinal do seu luto era um vestido preto. Tinha um decote
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enorme. Continuava carregada de anéis, pulseiras, brincos e colares. O cabelo arroxeado estava penteado ao alto, e o seu perfume enchia o escritório bafiento.
- Clara - disse eu -, os meus sentimentos.
- Está bem - disse ela num tom ligeiro. - Escuta, Peter, tu eras um bom amigo de Sol..
-Ele foi meu agente durante muito tempo-disse num tom vago.
Ela estava sentada na cadeira rotativa atrás da secretária marcada. Esta estava coberta de livros de contabilidade, pilhas de facturas, notas de pagamento e recortes de papel amarelados.
-Não compreendo-disse ela.-Já vi todos os registos dele e não faz sentido. Sol nunca foi rico, tu sabes isso, mas ele sempre ganhou para viver. O ano passado foi melhor, e eu pensei que talvez, finalmente, ele tivesse tido sorte. Mas agora estou a verificar as contas, e elas mostram que ele não estava a ganhar nada. De onde vinha o dinheiro, Peter, tu sabes?
- Jogo? - sugeri. - Cavalos?
- Sol não distinguia uma sela do freio.
- Empréstimos? Talvez estivesse metido com agiotas.
- Não - disse ela. - Não há qualquer registo, e ninguém telefonou. De acordo com todos estes papéis, Sol foi um fracasso como agente. Mas ele aparecia com o dinheiro. Não estavas a emprestar-lhe dinheiro, pois não?
- Eu? Não.
- Sol disse-me que tinhas saído do mundo do espectáculo-disse ela, olhando-me fixamente. - Que fazes agora? Se não te importas que pergunte.
- Na realidade, não saí - disse eu. - Quero dizer que desisti de procurar trabalho como actor. Agora dirijo uma escola para actores. A Academia de Arte Dramática de Peter. Vem na lista telefónica.
- Uh-huh - disse ela. Pegou num livrinho pequeno que estava no meio da tralha em cima da secretária e folheou-o rapidamente. - Isto é um livro de recibos. Mostra datas e quantias. Vão desde dois dólares a dois mil. E depois de muitos desses números, Sol escreveu: P. S. És tu, não és? Peter Scuro?
Não respondi.
-Peter-disse ela em voz baixa -, a minha filhinha usa um aparelho nos dentes. Depois das despesas do funeral, não vai sobrar grande coisa do seguro de vida. Vou ter de trabalhar. Que é que estavas a pagar a Sol? Eu não poderia fazer o mesmo?
Olhei para ela. A minha primeira impressão fora a de uma desmiolada estridente. Agora vi que ela era mais dura que Sol, com uma determinação que ele nunca tivera. Ela não se incomodaria com problemas de moralidade.
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Decidi arriscar.
Disse-lhe exactamente o tipo de negócio em que estava e o papel que o seu falecido marido tinha desempenhado.
Enquanto falava, ela levantou-se da cadeira e saiu de detrás da secretária. Sentou uma coxa grossa no braço da minha cadeira e inclinou-se para mim. Eu conseguia sentir o seu corpo macio, quente e sólido. O seu perfume quase me fez espirrar.
Quando acabei, sentámo-nos em silêncio durante algum tempo. Depois, ela riu-se: uma pequena risada.
- Eu acho que é maravilhoso! - disse ela. - Uma casa de putas para mulheres. E tem êxito?
- Muito.
Começou a acariciar-me a nuca.
- Eu era capaz de o fazer - disse ela. - Pôr anúncios nas revistas profissionais. Entrevistar jovens. Mandar-te todos os garanhões de que precisares. Eu faria isso muito bem, não achas?
- Muitíssimo bem - disse eu, satisfeito por estar a fazer qualquer coisa pela viúva de Sol Hoffheimer.
Era uma espécie de penitência.
117
Não consegui acreditar na quantidade de roupa que tinha acumulado durante o meu ano napenthouse. (Também tinha feito um depósito num Datsun 280-ZX - mas isso é outra história.)
Por isso, a tarefa de me mudar para a nova casa foi mais pesada que a mudança do West Side no ano anterior. Yancy Burnett ajudou a fazer as malas e a transportá-las. Aquele homem estava rapidamente a tornar-se inestimável. Um verdadeiro amigo.
Os trabalhos de remodelação ainda estavam a ser feitos, mas eu insistira para que o meu quarto tivesse a máxima prioridade, por isso pude dormir a minha primeira noite na casa no dia 21 de Dezembro. Ainda estava tudo em alvoroço mas, pelo menos, eu estava dentro. O Peters Place era uma realidade.
Havia um telefone a funcionar e, nessa primeira noite, telefonei a Jenny Tolliver. Estava com esperança de jantar com ela na noite de Natal.
- Desculpa, Peter - disse ela secamente. - Estou a trabalhar como uma louca para poder ir a casa na semana entre o Natal e o Ano Novo.
232
- Oh.. - disse eu, decepcionado. - Isso significa que não te vou ver antes do próximo ano.
- É isso.
-Bem.. Um Feliz Natal e Ano Novo. Espero que seja um bom ano para ti.
- Obrigada - disse ela, e achei que a voz dela se tornou mais suave. - Espero que o novo ano te traga tudo o que desejas.
E foi tudo. O filho de Martha tinha vindo a casa, e ela estava ocupada com ele. Yance tinha uma festa de homossexuais aonde ir. Não me agradava a ideia de passar a noite de Natal sozinho, por isso telefonei a Nikki Radburn e marcámos um encontro para o jantar.
Entretanto, acabei de mudar os nossos ficheiros, registos e livros de contabilidade (falsos e verdadeiros) e o meu stock privativo de bebidas. Verifiquei a cómoda do Quarto Cor-de-Rosa pela terceira vez para ter a certeza de que não me esquecia de nada.
Encontrei algo em que não reparara: uma aliança. Lembrei-me de quem ma dera-a poetiza com apenas um seio. Não me recordava do seu nome, mas lembrava-me da sua ternura. Ela nunca tinha voltado, e eu interroguei-me sobre o que lhe teria acontecido.
Levei a aliança para o meu quarto da casa nova, para me dar sorte.
Estava a vestir-me para ir jantar com Nikki quando o telefone tocou no quarto da casa. Era Grace Stewart.
- Peter! - disse ela. - Feliz Natal!
- Igualmente! - disse eu. -Ainda cá estás? Pensei que a estas horas já estarias na terra da fruta e das nozes.
-Decidi ficar mais alguns dias-disse ela num tom alegre.-Há muito tempo que não tinha um Natal com neve.
- Vais ter um agora. Estão a prever dezoito centímetros. Ela riu de um modo lascivo.
- O meu número preferido - disse ela. - Eu sei que tens andado ocupado, mas tinha esperança de podermos jantar juntos esta noite. Fui convidada para uma festa de negócios muito enfadonha, quiche e fondue, percebes, mas eu despacho-me num instante, se estiveres livre esta noite.
- Ah - disse eu. - Que pena. De facto, tenho planos. Houve um momento de silêncio, depois:
- Pago bem.
233
- Oh, Grace-disse eu -, a véspera do nascimento de Cristo não é uma noite de trabalho para mim. É só um jantar com uma amiga.
Eu devia ter ficado por ali, mas não o fiz. Sugeri que viesse connosco, como minha convidada. Aceitou.
Não tinha bem a certeza de como isto resultaria, por isso fortifiquei-me com uns vodkas bem fortes antes de entrar na limusina que alugara. Eu tinha vestido um casaco de camurça castanha, calças de sarja cor de corça e sapatos de couro fino. Também tinha um lenço de pescoço de seda.
Fui buscar Nikki primeiro. Ela estava deslumbrante com uma blusa branca de seda e calças de seda preta. Aceitou a notícia sobre Grace sem levantar objecções.
Quando lhe disse que a nossa convidada era consultora de investimentos, o seu interesse aumentou. Depois fomos buscar Grace. Vi imediatamente que se iam dar bem e que a noite ia ser um êxito.
Nikki e eu tínhamos escolhido uma churrasqueira, um lugar alegre com contraplacado, toalhas aos quadrados e guardanapos de papel. O entrecosto estava óptimo, tal como as batatas fritas, as rodelas de cebola frita e a salada. Bebemos um jarro de cerveja.
Comemos e bebemos alegremente, não nos importando de nos sujarmos. Lá fora, a neve caía suave e regularmente. Mas, lá dentro, o ambiente era quente, aromático e feliz.
- Oh, meu Deus - disse Grace, com um ar satisfeito. - O melhor jantar de Natal que comi em toda a minha vida.
- Eu também - disse Nikki. - Peter, podemos mandar vir mais cerveja?
- Com certeza - disse eu. -Vocês estão com o último dos grandes gastadores.
A partir daí, começaram a falar de acções, títulos, certificados de aforro, fundos de investimento, etc. Eu fiquei ali sentado, o homem simbólico no meio de duas mulheres inteligentes e vivas, a beber cerveja, fazendo um esforço para não arrotar.
Eram quase onze horas quando nos fomos embora. Tinha parado de nevar. O céu estava negro, com milhões de estrelas. O ar era tão cortante que se tornava doloroso respirar.
- Perfume - disse Nikki.
- Crack - disse Grace.
Ela insistiu para que voltássemos com ela para o Bedlington. O rádio tocava "Noite Feliz". Ficámos sentados, descalços, a beberricar Rémy e a dizer adivinhas uns aos outros. A canção na rádio era agora O Little Town ofBethlehem1.
1 Oh, Pequena Cidade de Belém. (N. da T.)
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Depois, Grace foi ao quarto e regressou com uma caixa de filigrana de prata. Ofereceu crack, mas Nikki e eu recusámos. Grace cheirou, sorrindo para nós.
- Feliz Natal! - disse "ela.
- Feliz Natal! - dissemos em coro, erguendo os nossos copos de brande.
- Nikki - disse Grace, ainda a sorrir -, andas na vida?
- Exactamente - disse Nikki num tom inexpressivo.
- Calculei - disse Grace, ainda a sorrir.-Vocês os dois não gostariam de fazer um espectáculo privativo para mim? Quinhentos para os dois.
O rádio estava a tocar Rudolph the Red-Nose Reindeer1. Nikki voltou-se para mim.
- Peter? - disse ela.
Tudo mudou. Simplesmente ruiu. Até esse momento, a noite tinha sido feita de riso, de boa comida, de amizade. Agora tudo passou a ser diferente.
Mas não apenas a noite. Olhei para Nicole Radburn e vi o seu rosto a trabalhar e várias expressões a passarem-lhe pelos olhos. Adivinhei o que ela estava a pensar, tal como eu, na nossa relação "especial", e a calcular o que ela valia.
Oh, não há dúvida de que foi um ponto de viragem. Não apenas na minha relação com Nikki, mas na minha relação comigo próprio, quem eu era, o que era e para onde ia. O estranho é que este conhecimento não veio mais tarde, após reflexão. Eu soube logo, nesse momento.
- Então? - disse Grace Stewart.
- Por que não? - disse eu, e Nikki assentiu com a cabeça. Lembro-me de que o rádio estava a tocar White Christmas2.
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Tenho de fazer justiça ao Justice Development Corp.; em 31 de Dezembro, a nossa casa na 54ª Avenida Oeste estava completamente remodelada, pintada, mobilada, limpa e pronta para abrir. O pessoal tinha sido contratado, a cozinha equipada, o congelador cheio de comida, e o bar tinha um fornecimento adequado de bebidas.
1. Rudolfo, a rena de nariz vermelho. (N. da T.)
2. Natal Branco. (N. da T.)
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Na tarde do dia de Fim do Ano, demos uma festa para os nossos garanhões. Deixámo-los passear pela casa, inspeccionar os quartos redecorados e familiarizar-se com a disposição da sala de jantar, do bar e das casas de banho.
As reacções dos garanhões foram quase totalmente favoráveis. Eles gostaram particularmente do facto de toda a casa ter instalação de som, com botões em todos os quartos para controlar música ambiente de um gravador no bar. Também gostaram da ideia do serviço de quartos.
Mandámo-los embora às cinco horas. Das sete em diante, tínhamos planeado uma segunda festa para um grupo mais selecto.
Martha, Yance e eu próprio, claro. Michael Gelesco e Anthony Cannis, com as suas enfeitadas damas. O detective Luke Futter. Alguns dos desenhadores e empreiteiros que tinham trabalhado na remodelação. Clara Hoffheimer, Oscar Gotwold e Ignatz Samuelson. E, para surpresa de todos, Mr. Octavius Caesar.
Ele tinha sido convidado por delicadeza, mas ninguém estava à espera de que ele viesse. Mas ali estava ele, com um smoking antiquado, sorrindo e apertando a mão a todos os homens e beijando galantemente os rostos de todas as mulheres.
Foi um beberete agradável e decoroso. Ninguém bebeu demasiado, ninguém se comportou mal. E ninguém ficou demasiado tempo. Futter tomou uma bebida, desejou-nos muita sorte e desapareceu. Cannis e Gelesco deram-me palmadas nas costas, garantiram-me que íamos todos fazer uma fortuna e desapareceram.
Eu e Martha abraçámo-nos, desejámos um Feliz Ano Novo um ao outro e depois ela foi-se embora para se encontrar com o namorado, que lhe tinha prometido passar uma hora com ela antes de regressar para junto da família. Eu e Yancy apertámos as mãos e ele afastou-se.
Finalmente, às nove e meia, apenas restavam Clara Hoffheimer e Octavius Caesar, sentados juntos a uma das mesinhas do bar. Eu estava a supervisionar as tarefas de limpeza de Patsy, Luis e Maria, que tinham servido em ambas as festas.
Às onze horas, eles estavam despachados. Dei-lhes um bom bónus, desejei-lhes um Feliz Ano Novo, depois fechei a porta quando eles saíram e voltei para o bar.
Clara Hoffheimer e Octavius Caesar estavam muito juntos, inclinados um para o outro. Ela tinha um vestido sem alças de um tecido metálico vermelho. Os seios dela, protuberantes, pareciam um coração carnudo, e o nariz brilhante dele estava praticamente enfiado no decote.
Fui para trás do bar e preparei um uísque com soda com muito gelo, coloquei uma fita de My Fair Lady e baixei o volume. Bebi lentamente a minha bebida e observei sub-repticiamente Clara e Caesar.
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O velho e aquela desavergonhada.. achei graça. E, pensei, não nos faria mal nenhum se o nosso principal investidor fosse pescado pela mulher que fornecesse os nossos garanhões.
Ele acariciou-lhe a mão. Acariciou-lhe o ombro. Por fim, acariciou-lhe o joelho. Perguntei a mim próprio se o perfume almiscarado dela o estivesse a afectar.
Quando perguntei se queriam outra bebida, Octavius Caesar levantou os olhos, surpreendido. Olhou em volta da sala.
- Meu Deus! - disse ele. - Toda a gente..?
- Sim - disse eu. - Mas fique o tempo que quiser.
- Oh, não - disse ele apressadamente. - Tenho de.. A companhia desta encantadora senhora tem sido tão.. Eu realmente tenho de..
Saíram juntos. Clara piscou-me rapidamente o olho.
Voltei a fechar a porta e voltei para o bar para acabar a minha bebida. Depois bebi outra enquanto ouvia Why Cant a Woman Be More Like a Man1?
Estava cansado mas satisfeito. A ideia de passar a noite de Ano Novo sozinho não me entristecia. Na realidade, até me agradava. Far-me-ia bem ficar sozinho.
Quando ouvi a campainha da porta, pensei que fosse um dos nossos convidados que se tivesse esquecido de alguma coisa. Mas era uma mulher que eu nunca tinha visto antes. Pequena, gorducha, um pouco nervosa. Meteu-me um cartão de sócio debaixo do nariz.
- Eu sou sócia - disse ela abruptamente.
- É verdade - disse eu, sorrindo. - Mas só abrimos no dia dois de Janeiro.
- Oh-disse ela, com uma expressão de desânimo.-Eu pensei..
- A não ser - disse eu - que se contente comigo. Ela olhou para mim.
- Está bem - disse ela, ofegante. Procurou na mala. - Tenho aqui o dinheiro.
- Disparate - disse eu. - É a nossa primeira cliente. É oferta da casa.
1. Por que é que as mulheres não são mais parecidas com os homens, canção de My Fair Lady. (N. da T.)
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120
Na segunda semana de Janeiro, todos os que estavam ligados ao peters Place compreenderam o êxito que tínhamos nas mãos. As marcações para almoços e jantares tinham de ser feitas com vários dias de antecedência. O bar fazia bom negócio desde que abria até fechar.
Mas, claro, eram os quartos nos andares superiores que produziam os maiores lucros. Eles e os serviços de pedidos por telefone e de acompanhantes continuaram a crescer, lenta mas seguramente.
Durante as primeiras semanas tivemos várias visitas sem cartões de sócias. O gorila que guardava a porta tinha instruções para recusar a entrada a homens e casais, mas era permitido às mulheres inspeccionar as instalações. Muitas tornaram-se sócias.
Embora a maior parte das nossas clientes ainda preferisse pagar em dinheiro, nós agora aceitávamos os principais cartões de crédito. Para clientes que preferiam contas mensais, aceitávamos talões assinados. O custo de uma cena era referido como conta de almoço ou jantar, claro.
Convidados masculinos eram autorizados a utilizar o primeiro andar (sala de jantar e bar), mas apenas quando acompanhados por uma sócia.
A nossa clientela continuava a pertencer, de um modo geral, a duas classes: mulheres ricas entediadas (na sua maior parte, casadas) com muito tempo e dinheiro para gastar, e mulheres de profissões liberais (a maior parte delas solteiras), que estavam demasiado ocupadas com as suas carreiras para pensarem em casamento e em filhos. Para ambos os grupos, o Peters Place tornou-se um refúgio e uma solução.
Martha comentou acertadamente que nós estávamos no lugar certo, na hora certa, com o serviço certo. Um cínico talvez dissesse que geríamos uma espelunca de prostituição, mas eu achava sinceramente que estávamos a prestar um serviço.
121
Yancy Burnett e eu dávamos as boas-vindas às clientes depois de o simiesco porteiro as deixar entrar. Verificávamos as suas reservas, depois acompanhávamo-las à sala de jantar, ao bar ou ao pequeno elevador que as transportava aos quartos nos andares superiores.
238
Yance trabalhava do meio-dia às sete da noite, e eu das sete até às duas da manhã. Revezávamos as nossas horas de trabalho todas as semanas.
Uma tarde, durante aquela atarefada primeira semana de Janeiro, estava eu no escritório do primeiro andar, a tentar preparar as agendas de trabalho quando Yance me veio dizer que Nicole Radburn queria falar comigo.
Eu não tinha falado com ela desde a noite de Natal e, na realidade , não tinha grande vontade de o fazer. Yance deve ter reparado na minha indecisão, porque disse em voz baixa:
- Posso dizer-lhe que estás ocupado, Peter.
- Não - disse eu com um suspiro. - Não quero que faças o meu trabalho sujo. Eu falo com ela.
Ela estava muito elegante, vestida com um tailleur, e uma gabardina debruada a vison no braço. Eu nunca a tinha visto com o cabelo apanhado. O penteado tornava o rosto dela mais nítido e mais duro. Tentámos sorrir um ao outro.
- Queres beber alguma coisa? - perguntei. - Posso mandar vir do bar.
- Não, obrigada - disse ela. Silêncio.
- Tens aqui um clube muito bonito, Peter. A parte que vi.
- Obrigado. Posso mostrar-to todo.
- Não. Tenho pouco tempo. Silêncio.
- Grace Stewart vai voltar para a Costa amanhã - disse ela. - Ela quer que eu vá com ela.
- Oh?
-Trabalhar com ela. Ela diz que tenho uma boa cabeça para o negócio e que, dentro de um ano, estarei a ganhar cem mil.
- Parece bom.
- Se não der resultado, tenho sempre uma profissão em que me apoiar.
- Tu não achas que Grace talvez te queira apenas para espectáculos?
- Não - disse Nikki olhando directamente para mim. - Não para espectáculos.
Levei alguns segundos a compreender.
- Oh - disse eu. - Tu converteste-a de espectadora em participante.
- Qualquer coisa assim. Esta pode ser a minha grande oportunidade, Peter.
- Claro. Seria tolice não a aproveitares. Ela pôs-se subitamente de pé.
239
- Tenho de me ir embora, Peter. Eu..
- Sim - disse eu, levantando-me.
- Foi doce. Não achas que foi doce?
- Tu e eu? Sim, foi.
- Mas não podia ser mais nada, pois não?
- Suponho que não - disse eu. - Mas, mesmo assim, foi uma relação muito especial.
Depois olhámo-nos bem nos olhos. Subitamente, o seu rosto contorceu-se.
- Estragámos tudo, não foi? - disse ela.
- Que queres dizer com isso?
- Não sabes?
- Sim - disse eu, pesaroso. - Eu sei. Foi o brande, Nikki.
- Foi o dinheiro, Peter.
- Suponho que sim - disse eu.
De repente, abraçámo-nos. Não nos beijámos. Apenas nos abraçámos com força. Sem soluços, nem lágrimas.
- Se alguma vez fores à Costa - disse ela -, procura-me. - Com certeza - disse eu.
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Eu acordava sempre às oito da manhã. Descia à cozinha, ainda ensonado, de roupão, bebia sumo, café e, por vezes, comia uma fatia de pão integral sem manteiga. (Estava a fazer dieta, outra vez.)
Fumava dois cigarros, engolia uma mão-cheia de vitaminas em comprimidos, e planeava o trabalho do dia. Ocasionalmente - e apenas ocasionalmente -, quando tinha bebido muito na noite anterior, bebia um golo de conhaque. Apenas para assentar o estômago.
Eu estava geralmente no escritório às nove e meia, a telefonar aos meus rapazes para lhes lembrar os seus encontros. Depois trabalhava na agenda para a semana seguinte, utilizando os pedidos de marcação que Martha deixara em cima da minha secretária. Estes incluíam pedidos telefónicos para rapazes e acompanhantes, que Yance Burnett organizaria mais tarde.
Quando tinha o primeiro turno como anfitrião, estava cá em baixo ao meio-dia. Não almoçava e, por vezes, saía para jantar quando Yance entrava de serviço às sete. Ao fim da noite, voltava frequentemente ao escritório para trabalhar mais um pouco.
Quando estava no turno da noite, jantava cedo. Depois, substituía Yance e trabalhava até às duas da manhã. Não comia nada à noite,
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mas bebia mais do que devia. As clientes insistiam em oferecer-me bebidas, e era difícil recusar. Eu tentava ficar no Perrier ou vinho branco. Não conseguia.
Ocasionalmente, quando fechava a porta às duas da manhã, ia até à 6ª Avenida, a um café que estava aberto toda a noite. Comia uma torrada e bebia uma chávena de chá, ou qualquer coisa igualmente inócua, enquanto me descontraía.
Este lugar, o Friendship Deli1, era frequentado pelos noctívagos. Era um Loosers Place sem bebidas, e eu gostava dele. Gostava das conversas e ouvi lá umas boas histórias. Depois, por volta das duas e meia ou três da manhã, ia para a cama.
Esta rotina não me desanimava - eu não me importava de trabalhar muito -, mas tive uma grande decepção quando recebi o cheque do meu primeiro salário de Peters Place, Inc. A setenta e cinco mil dólares por ano, deduzidos todos os impostos, parecia que eu receberia cerca de setecentos dólares por semana.
Isso pode parecer muito, mas deve-se ter em conta que, nos últimos dois anos, eu tinha vivido de rendimentos não declarados e estava habituado a andar com vários milhares de dólares em dinheiro no bolso.
O meu Datsun 280-ZX tinha sido entregue, por isso tinha pagamentos a fazer. Com o seguro, garagem, manutenção, etc, as despesas eram enormes. Felizmente, não pagava renda e podia comer e beber no Peters Place.
Mesmo assim, não estava tão afluente como tinha sido em West Side nem na penthouse, de East Side. Martha admitiu que se encontrava na mesma situação; o dinheiro era bom, mas não tão bom como fora.
Convencemo-nos um ao outro de que o nosso novo clube estava florescente, que podíamos contar com a divisão dos despojos no final do ano. Nessa altura, talvez tirasse umas semanas de férias e fizesse um cruzeiro às ilhas gregas.
Sonhei que Jenny viria comigo-mas sabia que era apenas um sonho.
1. Café da Amizade. (N. da T.)
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Um dos erros que cometi com o clube foi subestimar o volume das cenas. Devia ter visto que, com o número de quartos quadruplicado, o número de garanhões também teria de ser aumentado.
Telefonava a Clara Hoffheimer quase todos os dias. Ela tinha intensificado a nossa campanha de publicidade e feito acordos com outros agentes teatrais e agências de emprego. Eu tinha a certeza de que, eventualmente, a nossa força de trabalho seria adequada.
Entretanto, eu e Yance Burnett colmatávamos as falhas o mais que podíamos. Nos finais de Janeiro, tive uma cena com uma mulher chamada Norma. Ela chegou a horas ao meu quarto e recusou uma bebida do bar.
Ela olhou em redor do quarto.
- Muito bonito. Foste tu que o decoraste?
- Fiz algumas sugestões - disse eu com modéstia.
- É muito feminino - disse ela, olhando melhor. - As cores, os tecidos.
- Para as nossas clientes - garanti-lhe eu. Ela continuou a olhar-me atentamente.
- Devo dizer-te - disse ela - que sou psicoterapeuta.
- Estás a gabar-te ou a queixar-te? - disse eu, sorrindo.
- Esse foi um comentário muito interessante - disse ela. - Que queres dizer com isso?
Eu sabia que ia ter problemas.
Tinha um corpo pálido, desajeitado. Tinha estrias no abdómen macio. Axilas e pernas rapadas. Extensos pêlos púbicos.
- Tens de compreender - disse ela, que esta não é exactamente uma profissão normal para um homem.
- Suponho que não.
- Pode ser um conflito de Édipo - disse ela -, ou talvez o síndroma de Don Juan. É óbvio que és inteligente. Deves ter consciência de teres um problema de personalidade por resolver.
-Para dizer a verdade-disse eu.-Nunca tive consciência dele. Ela começou a percorrer o meu corpo nu com as mãos.
- Tens um cu muito macio - disse ela. - Mais macio que o meu.
- Obrigado.
- A não ser - disse ela, pensativa - que tenha sido um trauma psíquico na infância. Lembras-te de alguma coisa horrível que te tenha acontecido quando eras pequeno?
- A minha rã de estimação morreu - disse eu.
Ela voltou-se para o espelho de corpo inteiro colado na porta 242
da minha casa de banho. Aproximou-se dele, pôsse -de gatas e virou a cabeça para olhar para a sua imagem reflectida.
- Que estás a fazer? - perguntei.
-Eu não te quero provocar qualquer ansiedade-disse ela. - Se fores capaz de viver com o teu problema, funcionar como um adulto razoavelmente bem ajustado sem sentimentos de culpa ou de remorso, então, não existe qualquer motivo para preocupação ou medo. Senta-te em cima de mim como se estivesses a montar um cavalo.
- Eu sou pesado.
- Não faz mal. Estou habituada.
Sentei-me em cima das suas costas nuas, tentando apoiar a maior parte do meu peso nas minhas pernas dobradas. Era muitíssimo desconfortável. Ela mantinha a cabeça virada, olhando para o nosso reflexo no espelho.
-Vamos brincar ao faz-de-conta - disse ela. - Eu vou ser o teu cavalinho.
Baloucei para trás e para a frente. Dei palmadas no traseiro dela.
- Upa - disse eu.
- Mais depressa - disse ela.
Eu continuei a balouçar, um dragão enlouquecido. Ela começou a mexer-se debaixo de mim, ainda a olhar para o nosso reflexo.
- O mais importante - disse ela, ofegante e a começar a transpirar - é fazer um esforço para compreender a razão pela qual optaste por esta profissão. Pode ser uma exploração dolorosa, mas pode resultar nalgum conhecimento de ti próprio e, se não felicidade, pelo menos satisfação. Mais depressa! Mais depressa!
Apertei-a com os joelhos. Agarrei-lhe no cabelo, puxei-lhe a cabeça. Dei-lhe, entusiasticamente, palmadas no traseiro. Ela escouceou e levantou as pernas, começando a resfolegar.
De repente, ela caiu de bruços no tapete. Eu fiquei de cócoras por cima dela, com os joelhos a tremer do esforço.
- Alguma vez pensaste em procurar auxílio de um profissional? - perguntou ela.
- Com frequência.
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Eu e Martha pensámos longamente numa maneira de tornar lucrativa a sala de banquetes do segundo andar. Era ampla e bem proporcionada e tinha espaço para trinta pessoas sentadas ou de setenta e cinco a cem numa festa volante.
243
Mandámos uma circular a todas as nossas clientes recordando-lhes que a nossa Sala Mardi Gras estava disponível, a um preço razoável, para almoços e jantares privados.
Enviámos uma circular semelhante a clubes, grupos, associações e organizações de mulheres na área de Nova Iorque, sugerindo a sala para reuniões de negócios, seminários, conferências, reuniões, etc.
A resposta inicial a ambas as circulares foi encorajante. Martha tratou das reservas e organizou também as flores, as lembranças, a música ao vivo, etc. Também instalámos um sistema de microfone e tínhamos disponíveis um estrado e um púlpito. Estes encontros traziam frequentemente novas clientes que nunca nos tinham visitado antes.
Nos finais de Janeiro, a Sala Mardi Gras foi alugada por uma associação profissional de cerca de cinquenta mulheres, agentes de imobiliário, para um beberete. Ajulgar pelo barulho que fizeram, a festa foi um êxito.
Quando entrei de serviço às sete horas, a festa estava a terminar, e as mulheres estavam a descer as escadas, vindas do segundo andar, a rir e a conversar alegremente. A maior parte foi-se embora mas, pelo menos uma dúzia, foi até ao bar.
Quando dei uma vista de olhos meia hora mais tarde, vi uma cena perturbadora. Todas as mesas estavam ocupadas por mulheres, e algumas estavam sentadas ao bar. Mas quatro bancos do bar estavam ocupadas por Anthony Cannis, Michael Gelesco e dois companheiros masculinos.
Observei da porta os rufiões a meterem conversa com as mulheres no bar. Dirigi-me a Cannis, bati-lhe no ombro.
- Posso falar contigo um momento? - perguntei. - Em particular.
Ele ergueu a vista, surpreendido, mas rodou o banco, desceu dele e seguiu-me até à entrada.
- Escuta - disse eu. - Isto é um clube privativo de mulheres. Só permitimos homens cá dentro se forem convidados de clientes.
Ele encolheu os ombros.
- Não havia qualquer má intenção - disse ele com voz rouca. - Nós só queríamos mostrá-lo aos dois amigos.
-Vocês estão a tentar engatar as mulheres-disse eu.-Isto não é um sítio para engates, nem um bar de pessoas sós. Se as mulheres quiserem uma queca, temos garanhões disponíveis. É assim que fazemos dinheiro.
- Está bem, está bem-disse ele mostrando as palmas das mãos. - Nós acabamos as nossas bebidas e vamo-nos embora.
Os quatro homens saíram do bar cerca de quinze minutos depois. Eram todos entroncados, vestidos demasiado a rigor, ostentosos 244
e espalhafatosos. Anéis nos dedos mindinhos e rostos rosados das máscaras faciais e de Chivas Regai.
Foram-se embora sem se darem ao trabalho de se despedirem. Fiquei perturbado. Tive más vibrações do confronto com Cannis. Eu podia ter-lhe dito que a sua presença baixava o nível de Peters Place - mas que é que ele sabia sobre classe?
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Encontrei-me com Jenny Tolliver. Ela tinha acabado de conseguir um novo cliente e apetecia-lhe celebrar. A noite foi deliciosa.
Fui buscá-la no meu novo Datsun. Era um modelo 2 + 2 descapotável. Interior muito luxuoso com todas as opções. Jenny ficou devidamente bem impressionada.
Fomos jantar ao Lello. Ostras e borrego assado, com meia garrafa de Chablis para Jenny e meia garrafa de um Beaujolais novo para mim. Soufflé Grand Marnier para terminar. Gastei dinheiro como se o amanhã não existisse.
- O importante - disse eu num tom magnânimo - é estarmo--nos nas tintas!
- Estás embriagado - disse Jenny.
- Estou a tentar - admiti. - Como te sentes?
- A flutuar - disse ela, com uma risada. - Vamos dançar. Fomos a uma discoteca na Greenwich Village. Há muito tempo
que eu não dançava mas, com a ajuda de uns vodkas, todo o meu velho jeito voltou.
Jenny movimentava-se na pista, mas limitava-se a fazer os passos, não dançava ao ritmo da música. Simplesmente, não se descontraía. Não lho disse. Voltámos para a mesa, comigo a soprar como uma baleia.
- E não me digas que engordei-disse eu. - Eu sei que engordei. Olhámos em redor da sala cheia de gente, para os trajes loucos, para a maquilhagem louca.
- Sabes uma coisa? - disse Jenny. - Somos as pessoas mais velhas que aqui estão.
Olhei de novo.
- Tens razão - disse eu. - Vamo-nos embora.
Seguimos lentamente ao longo da 6ª Avenida. Estava uma noite maravilhosa, fria mas límpida.
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Coloquei uma cassete de Noel Coward e ouvimos Someday TU find You1 que é talvez a melhor canção que jamais foi escrita.
- Seu malvado-disse Jenny.-Tu sabes que esta canção me faz sempre chorar.
- Chora à vontade - disse alegremente. - Não queres ir já para casa, pois não?
- Não - disse ela num tom de surpresa. - Na verdade, não quero.
- Sabes o que gostava de fazer?
- Sei.
- Não, não sabes - disse rapidamente. - Gostava de ir passear de carruagem no Parque.
- Estás maluco - disse ela, a rir. - Está bem, eu também gostava.
- Uma paragem - disse eu.
-Parei em frente da primeira loja que encontrei aberta, entrei rapidamente nela e comprei uma garrafa pequena de brande.
- Acho que vamos precisar - disse eu.
Mas a nossa carruagem estava equipada com um cobertor espesso de pele artificial que pusemos por cima dos joelhos, enrolando-o bem à volta das pernas. Estava bastante frio, mas o brande salvou-nos. Passámos a garrafa de um para o outro, bebendo pequenos golos.
- Não te disse ainda - disse Jenny. - É possível que a peça de Arthur seja produzida. No teatro experimental.
- Isso é óptimo - disse eu num tom entusiasta, uma actuação maravilhosa da minha parte.
- Se ele conseguir fazer as alterações que eles querem, podem produzi-la este Verão.
Eu não queria falar em Arthur. Arthur, um homem de sucesso.
- Foi uma noite estupenda, Jenny - disse eu. - Mas todas as nossas noites foram estupendas.
- Nem todas - disse ela em voz baixa.
- Quase todas - protestei. - Até à última.
- Foi - disse ela. - Peter, sentes-te feliz a fazer o que fazes?
- Não podemos falar sobre nós? - perguntei.
- Sobre nós o quê?
Não existe intimidade mais intensa do que viajar num veículo fechado à noite. Lá dentro, havia calor e proximidade. Lá fora, o mundo escuro e frio mantido à distância.
Quando a carruagem passou através da luz pálida dos candeeiros
1. Hei-de encontrar-te um dia. (N. da T.)
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da rua, conseguia ver, por breves instantes, o rosto de Jenny, as sombras a moverem-se como estados de espírito. Vi a serenidade de que bem me recordava, a plenitude. E o cabelo castanho que eu adorava caía como asas macias.
- O que é preciso para nos juntarmos outra vez? - disse eu. -
Quais são as tuas condições?
- Deixa de fazer o que estás a fazer - disse ela prontamente.
- E, depois, torno-me um actor falhado outra vez?
-Peter, tu és um homem inteligente. Há muitas coisas que podes
fazer.
Fazer demonstrações de descascadores de batatas no Woolworth, vender lenços de pescoço no Kings Arms, guiar um táxi, servir pastéis num restaurante, levar cães a passear.. muitas coisas.
- Sabes - disse eu num tom suave -, por favor, não fiques ofendida, Jenny, mas tenho de te dizer uma coisa: se te tornasses uma prostituta profissional, que Deus não o permita, eu continuaria a amar-te e a querer estar contigo. Ou se te tornasses drogada ou tivesses uma doença horrível, nunca te deixaria.
Ela voltou o rosto para olhar para mim e pegou-me na mão.
- Acredito, Peter. - Mas se és capaz de fazer todos esses sacrifícios, por que é que não deixas de fazer as coisas horríveis que fazes?
- Se me amasses verdadeiramente-disse eu, lembrando-me do que Martha me dissera -, não te importarias com o que faço. Eu podia ser um ladrão, um assassino, que ainda me amarias.
-Não - disse ela abanando a cabeça. - Não consigo separar um homem do que ele faz. Eu nunca amaria um ladrão ou um assassino.
- Ou um chulo - disse eu amargamente. Ela ficou calada.
- Eu ganho tanto dinheiro - disse eu num tom de lamentação,
tentando corrompê-la. Ela não respondeu.
- Ouve - disse eu. - Tu podes mudar.
- Eu acho que não, Peter.
- Podemos, ao menos, ver-nos de vez em quando? - disse eu, irritado. - Esta noite não foi assim tão má, pois não?
- Esta noite foi óptima - disse ela.
Ela inclinou-se e beijou-me o rosto. Isso era mais ao meu gosto.
Durante o resto do passeio de carruagem, contei-lhe histórias novas que tinha ouvido no Friendship Deli.
Isso fê-la rir a bandeiras despregadas.
Fui buscar o Datsun à entrada lateral do Plaza e levei Jenny a casa. Parámos em frente do apartamento dela, acabámos o brande e fumámos um cigarro.
- Que te vai acontecer, Peter? - perguntou ela.
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- Tu insistes em tentar fazer planos futuros - disse-lhe eu. - Não se pode fazer isso. Há dois anos, nunca sonharia que estaria a fazer o que estou agora a fazer hoje. É tudo uma incógnita. A única coisa que se pode fazer é ir com a onda.
- Tu dizes sempre isso - disse ela num tom triste. - Bem.. É melhor subir. Tenho um dia duro amanhã. Obrigada, Peter. Foi divertido, não foi?
- Foi.
De repente, ela disse:
- Por favor, não deixes de te encontrar comigo. Ainda não. Depois beijou-me nos lábios, voltou-se rapidamente e foi-se embora.
Fiquei alguns minutos sentado sozinho no meu vistoso automóvel novo. Pensei, de facto, que estava a aproximar-me dela.
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No princípio de Fevereiro, fizemos uma marcação de um grupo feminista para a Sala Mardi Gras, para um jantar e reunião de negócios. Pareceu ser uma reunião séria e sossegada. Quando terminou, várias participantes dirigiram-se ao bar.
Quando fui dar uma vista de olhos às 22.30, algumas clientes ainda lá estavam. Anthony Cannis e Michael Gelesco também estavam presentes, ambos de smoking, ambos obnóxios.
Desta vez, conduzi Gelesco ao átrio.
- Escuta - disse eu o mais moderadamente que consegui. - Eu já vos pedi que não fizessem isto. Estão a estragar a reputação de um lugar, seguro, agradável e bem gerido.
- Nós não estávamos a fazer nada - disse Gelesco.
- Estão a fazer figura de tolos - disse eu. - A última coisa no mundo que estas mulheres querem é ser incomodadas por dois tesões.
- Ouve, Pete - disse ele. - Nós..
- O meu nome é Peter - disse eu num tom duro.
-Está bem-disse ele.-Peter. Bem, nós somos os donos de uma boa parte desta espelunca, certo? E estás a dizer-me que nós não podemos vir cá inspeccionar a nossa propriedade?
Era impossível não compreender o tom de ameaça da sua voz. Eu não me considero um cobarde, mas admito que a violência física não é um dos meus passatempos preferidos. Martha tinha-me chamado um coração mole - isso ainda me magoava -, mas eu preferia considerar-me inteligentemente cauteloso.
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- Michael - disse eu. - Deixa-me explicar-te uma coisa. A maior parte das nossas sócias são mulheres solteiras que vêm aqui jantar, tomar uma bebida, ou fornicar, porque não querem ter o incómodo de ir a um lugar em que os tipos as tentam engatar. Se elas quiserem uma bebida, almoçar ou jantar e depois ir para casa, tudo bem. Se quiserem uma cena, também a podem ter. Pagam tudo e, em troca, esperam ser tratadas como clientes importantes, que é exactamente o modo como nós tentamos tratá-las. Não ajuda nada chegarem ao bar e encontrarem dois tipos a tentarem engatá-las. Como eu disse a Anthony, se as nossas sócias quiserem uma queca, há garanhões. A única coisa que vocês têm a fazer é receber a vossa parte dos lucros.
Gelesco olhou fixamente para mim.
- Vai levar no cu! - disse ele no tom mais simpático que se pode imaginar, depois deu meia volta e regressou ao bar.
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Eu não via Arthur Enders desde o nosso jantar no Blotto, e as últimas notícias que tivera dele fora a comunicação de Jenny de que a peça dele ia ser produzida. Não fiquei particularmente feliz quando ele telefonou; o êxito dos amigos não é a coisa mais fácil de suportar.
Mas fiz o meu papel e dei-lhe os parabéns.
-Jenny disse-me - disse eu, esperando que ele ficasse espantado por saber que me tinha encontrado com Jenny.
- Sim - disse ele calmamente -, ela disse-me. Não é ainda certo, Peter. Ainda estou a reescrevê-la. Mas, se ficar bem, os produtores dizem que a levam à cena este Verão.
- Desejo-te muita sorte - disse eu -, e não te esqueças de me mandar duas coxias. Como está Jenny?
- Oh, está óptima - disse ele acaloradamente. - Que mulher.
- Sim - disse eu.
- O motivo por que telefonei, Peter, tens visto King Hayes ultimamente?
- King? Não. Ele já não trabalha para nós. Há já alguns meses.
- Eu sei. Ele disse-me. Tiveste notícias dele?
- Não. Porquê? Passa-se alguma coisa?
- Bem.. - disse Arthur numa voz perturbada -, sabias que ele estava a viver com uma mulher chamada Louella?
- Ouvi falar nisso.
- Bem, ele apareceu no Blotto aqui há uma semana e disse que 249
se tinha separado dela. Ele estava com um aspecto horrível. Estava perdido de bêbado.
- Com Manischewitz?
- Não, ele tinha mudado para gira morno. Quero dizer, ele estava sujo, com a barba por fazer e a cambalear. Puseram-no na rua e disseram-lhe que não voltasse lá.
- Expulso do Blotto? Meu Deus, Arthur, isso é o mesmo que ser banido do McDonalds.
- Bem, levei-o para aquela espelunca de hotel na Broadway. Já lá voltei algumas vezes. Pensei que talvez lhe pudesse emprestar algum dinheiro.. sabes? Mas não consigo encontrá-lo. Não tiveste notícias dele?
- Nem uma palavra.
- Não sei o que fazer - disse Arthur. - Ele é um tipo tão formidável, não quero que se transforme num vagabundo.
- Arthur, ele não é responsabilidade tua.
- Peter - disse ele, chocado -, ele é nosso amigo. Nós não podemos simplesmente deixá-lo ir-se abaixo.
Respirei fundo.
- King tem problemas que tem de resolver sozinho.
- Mas, Peter, pelo menos podemos ajudá-lo com dinheiro. E fazê-lo saber que nos preocupamos. Isso é alguma coisa, não é?
- Suponho que é, Arthur.
- Bem, vou continuar a tentar encontrá-lo. Se ele contactar contigo, dizes-me?
- Claro. E muita sorte com a peça, Arthur. Como se chama?
- Pôr do Sol ao Nascer do Dia.
- Espero que seja um enorme êxito - disse eu, mentindo com quantos dentes tinha.
Aquele telefonema incomodou-me. O que me perturbou não foi o destino de King; foi a reacção de Arthur.
Perguntei a mim próprio se era incapaz de sentir algo tão simples como a compaixão. Não gostava de pensar isso. Resolvi, de então em diante, ser mais generoso, mais piedoso - para todos. Como Lewis Stone nos filmes de Andy Hardy.
Esse era um papel que eu podia desempenhar.
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O gabinete de Martha, no primeiro andar, era mais pequeno que o que eu e Yance utilizávamos, mas era mais alegre, com plantas e alguns elefantes de porcelana que ela trouxera do apartamento. Achei graça ao facto de ela os ter colocado com as trombas erguidas apontadas para a porta - para dar sorte.
Quando entrei, ela estava sentada à secretária a ler uma notícia na primeira página do The New York Times. Viu-me, dobrou rapidamente o jornal e pô-lo de lado. Não precisava de se ter dado a esse trabalho; eu já tinha lido o artigo que ela estava a tentar esconder.
Era sobre a comunicação que William Bowker fizera de que tencionava candidatar-se a governador numa plataforma de lei e ordem. Esta incluía a restauração da pena de morte, penas mais duras, mais cadeias, forças policiais locais e estaduais reforçadas e uma nova lei, de acordo com a qual os jovens acusados de delitos seriam julgados em tribunais para adultos.
A acompanhar o artigo, havia uma fotografia de Mr. e Mrs. Bowker. Não havia dúvida alguma de que ela era a mulher que eu tinha encontrado na 82.ª Avenida.
- Tens um minuto, miúda? - perguntei a Martha.
- Claro - disse ela. - Senta-te.
Sentei-me ao lado da secretária. Ela recostou-se na sua cadeira giratória.
- Martha, estou a ter problemas com o Bucha e Estica.
Nós referíamo-nos sempre a Cannis e Gelesco como Bucha e Estica.
- Qual é o problema?
Contei-lhe que os nossos sócios apareciam duas ou três noites por semana e tentavam engatar as nossas clientes.
- Nós não queremos que andem por aí - disse eu -, como os filhos da mãe conseguiram fazê-lo algumas vezes. Qualquer dia, eles vão querer utilizar os quartos lá em cima. Martha, isto não pode continuar.
- Concordo absolutamente - disse ela. - Pareceu-me que cheirava a fumo de charuto no bar no outro dia. Já lhes disseste alguma coisa sobre isso?
- Duas vezes - disse eu. - Mandaram-me à merda.
- Que queres fazer?
- Quero ir falar com Octavius Caesar, explicar-lhe a situação e pedir-lhe que lhes dê ordens para deixarem de tratar esta casa como um sítio para engates. Eles ouvem-no. Apoias-me?
- Em absoluto - disse ela imediatamente. - Nós dois temos a
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maioria das acções. O que dissermos, é o que conta. Queres que vá contigo falar com Caesar?
- Queres ir?
- Não.. mas se quiseres que vá, vou.
- Acho que posso tratar do assunto sozinho. Só queria ter a certeza de que tinha o teu apoio.
- Tens o meu apoio total - garantiu-me ela.
Comecei a levantar-me, mas ela estendeu uma das mãos para me impedir, depois abriu o Times da manhã.
- Viste isto, Peter? - perguntou em voz baixa, apontando para o artigo sobre Bowker.
- Vi - disse eu.
- Sabes quem ele é?
- O teu namorado dos folguedos? Ela suspirou.
- Calculei que tu visses a fotografia da mulher dele e adivinhasses. Há quanto tempo sabes?
- Desde o Verão passado.
- Por que não me disseste?
- Em primeiro lugar - disse eu -, não tenho nada a ver com isso. E pensei que, se tu soubesses que eu sabia, isso não contribuiria nada para a tua paz de espírito. Quanto menos pessoas souberem, melhor, Martha.
- Eu sei - disse ela. - Mas estou contente por teres descoberto. Tenho alguém com quem falar sobre o assunto. Eu pensava que era capaz de dominar a situação, mas não consigo.
- Já lhe propuseste deixá-lo?
- Se lhepropus? Eu disse-lhe que o ia deixar. Começou outra vez a chorar. Disse que, se o deixasse, ele deixava a mulher e os filhos. Ou então dava um tiro nos miolos.
- Deus do céu! - disse eu. - Achas que o faria?
-É possível-disse ela num tom triste.-Peter, eu gosto do tipo, ele tem-me dado umas boas coisas. Mas não quero arruinar a vida dele.
- Parece que ele está a fazer chantagem emocional contigo.
- É possível - disse ela. - Mas não consigo descobrir a razão por que não consigo cortar com ele. Deixar isto tudo? Voltar para Chicago e começar tudo de novo?
- Não o faças - disse eu, severo. - Por que é que hás-de ser tu a fazer o sacrifício? Tens de pensar em ti própria, em primeiro lugar, em último lugar, sempre. Escuta, eu não quero interferir nos teus assuntos pessoais, mas disseste-me uma vez que és a única pessoa que consegue fazê-lo funcionar. Talvez lhe devesses cortar a parte do sexo. Deitar fora aquele pingalim.
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Ela deitou-me um olhar estranho.
-Alguma vez te ocorreu - disse ela - que eu talvez também não possa passar sem isso?
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Tanto quanto eu saiba, o Peters Place foi o primeiro estabelecimento do seu género no mundo ocidental. Tivemos de aprender por tentativas mas, felizmente, a maior parte dos erros inevitáveis puderam ser corrigidos.
Por exemplo, o chefe e o pessoal da cozinha que a Justice Development tinha arranjado tinha experiência em restaurantes e bares. Inicialmente, a ementa oferecia comida orientada para o gosto masculino: peixe, bifes, costeletas, guisados-doses grandes com molhos espessos.
Após inúmeras queixas por parte das sócias, compreendemos que as nossas clientes eram quase exclusivamente mulheres preocupadas com a linha. Por isso, a nossa ementa foi alterada, passando a incluir sopas ligeiras, omeletas, saladas, tostas e sobremesas de baixo teor calórico. Por nós, tudo bem; os preços mantiveram-se altos, mas a nossa margem de lucro aumentou.
Mesmo assim, a maior parte do nosso rendimento provinha das cenas nos quartos dos andares superiores; agora, os quartos começavam a dar lucros periféricos; várias sócias precisavam de um local discreto para se encontrarem com os seus amantes ou para levar um homem que tivessem acabado de conhecer, para uma queca rápida.
Os quartos estavam disponíveis ao preço usual de cem dólares por hora. Yance chamava-nos o No-Tell Motel1.
Além disso, tínhamos frequentemente pedidos de sócias que viviam longe da cidade para passarem uma noite sozinhas. Se os quartos não fossem precisos para cenas ao fim da noite, alugávamo-los a cinquenta dólares por noite.
Tudo isto exigia autorizações, licenças especiais, inspecções, etc, uma vez que estávamos a operar como um hotel comercial. A Justice Development Corp. obteve todas as autorizações necessárias num tempo recorde. Os subornos exigidos pelos diversos departamentos municipais foram inscritos nos nossos livros como "despesas gerais de funcionamento".
1. Motel de Boca Fechada. (N. da T.)
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No início de Março, eu e Yance tínhamos um ficheiro de mais de cem garanhões, metade dos quais regulares. Os outros, na sua maior parte aspirantes a actores ou modelos, estavam disponíveis ocasionalmente quando vinham a Nova Iorque, ou quando estavam desempregados, sem dinheiro ou entediados.
Nós podíamos agora proporcionar uma variedade infinita de cores, raças, sotaques, gostos e excentricidades.
Tínhamos dois anões e uma estrela de basquetebol com dois metros e quinze de altura. Até tínhamos um tipo muito ágil, muito procurado, que conseguia fazer fellatio a si próprio. E, conforme seria de esperar, tínhamos um garanhão chamado o Homem-Elefante, e não por ter o nariz comprido.
Com este enorme aumento no nosso estábulo, Martha tinha deixado de testar todas as novas adições. Como ela dizia: "Não quero passar o dia inteiro a olhar para o tecto."
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A principal motivação dos nossos garanhões era, naturalmente, financeira. Mas eu desconfiava de que nós oferecíamos outro atractivo aos futuros actores. Frequentemente, o Peters Place proporcionava teatro puro. Era um palco onde os actores esperançosos podiam desenvolver e aperfeiçoar a sua técnica.
Este conceito de bordel como teatro não foi um original meu, claro. (Eu tinha feito um teste para um papel em A Varanda, de Genet, mas fora recusado; eles estavam à procura de um tipo mais novo.) Mas a teoria era provada quase todos os dias nos nossos quartos dos andares superiores.
Yancy Burnett concordou que o nosso negócio tinha tanto a ver com ilusão, máscaras e fantasia como o teatro. Ele contou-me a seguinte história:
Nós tínhamos uma cliente regular chamada Edith, que fazia uma marcação de uma vez por mês. Ela nunca pedia um determinado rapaz ou tipo. Era uma mulher tímida com olhos grandes, suplicantes, e vestia o que parecia ser roupa comprada em lojas modestas. Eu nunca a tinha atendido, mas todos os outros garanhões lhe chamavam Mrs. Gobble.
Yance disse que, quando ainda estávamos no apartamento anterior, tinha tido uma cena com Edith. O corpo dela era flácido, sem formas e, à falta de palavra melhor, debotado.
Quando estavam os dois nus, ela disse numa voz sumida.
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- Por favor, diz-me que me amas.
Yance é um homem meigo, gentil. Ele disse imediatamente.
- Amo-te, Edith.
- Muito?
Ele ficou então a saber o que ela queria e desempenhou o seu papel. -Amo-te mais que a qualquer mulher que já conheci -jurou ele.
- Sim! - disse ela. - Mais!
- És a mulher mais doce e mais encantadora do mundo! - disse ele.
- Querido - disse ela. - Eu também te amo.
- Quem me dera podermos passar o resto da nossa vida juntos - disse-lhe ele. - Só nós dois.
- Sozinhos - sussurrou ela. - Juntos. Para sempre. Oh, meu querido.
Eles não se tocaram enquanto trocaram palavras de ternura. Yance admitiu, pesaroso, que, ao fim de dez minutos, se tornou cada vez mais difícil pensar em novas e diferentes maneiras de dizer "Amo-te", mas esta mulher tímida, carente, não se importou que ele repetisse as palavras de paixão por ela.
Eventualmente, ela pediu-lhe que se sentasse numa poltrona e ajoelhou-se à sua frente.
- Amo-te - repetia ele. - Amo-te tanto.
Mais tarde, quando se vestiam, ela deu-lhe uma gorjeta de vinte dólares, agradeceu-lhe e disse-lhe que ele se tinha portado muito bem.
Yance, depois de me contar a história, comentou:
- Aí tens o teatro. É tudo ilusão e sonhos.
No início de Março, Mrs. Gobble telefonou a fazer uma marcação. Eu disse a Martha que ficaria com ela. Apenas por curiosidade, suponho. Encontrei-me com Edith no meu quarto no terceiro andar.
Quando ficámos os dois nus, ela disse na sua voz suave:
- Por favor, diz que me amas.
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Depois da minha conversa com Martha a respeito de Cannis e Gelesco no nosso bar, eu tinha telefonado a Octavius Caesar. A sua secretária-recepcionista solteirona tinha dito que o grande homem estaria ausente durante algumas semanas, a assistir a reuniões de negócios na Costa.
Disse-lhe que gostaria de lhe falar assim que regressasse. Ela
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informou-me friamente de que me telefonaria se Mr. Caesar desejasse receber-me. A convocatória só chegou nos idos de Março; tinha sido aprovada uma reunião para o dia seguinte às três da tarde.
Quando entrei no escritório de Caesar, senti um ligeiro odor no ar. Era pesado, almiscarado e eu tive a certeza de o ter cheirado antes, mas não conseguia identificá-lo.
- Bem, jovem - disse Octavius Caesar, sorrindo e estendendo uma mão branca. - Que prazer .. Está com um aspecto muito..
- O senhor também - disse eu, sentando-me na cadeira que ele me indicou. - Espero que tenha feito boa viagem.
- Bastante boa - disse ele. - Bastante. - Fez um gesto na direcção de uma pasta em cima da secretária. - Quando voltei, encontrei.. Contém os números para os primeiros dois meses de Peters Place. Encorajantes. Decididamente encorajantes.
-Obrigado. Esperamos melhorar à medida que adquirimos experiência.
- Com certeza-disse ele.-Trabalho e persistência. Não há nada que se lhe compare, não é verdade? Hem?
Eu não conseguia compreender o motivo por que ele metia medo a Martha. Para mim, ele era um velho, a resvalar para a senilidade. Certamente que não me metia medo a mim.
Houve silêncio enquanto eu me interrogava se deveria prosseguir imediatamente com a minha queixa. Entretanto, Caesar alisou as lapelas do fato às riscas e tocou no debrum branco do colete.
- Então? - disse ele subitamente.
-Mr. Caesar, nós temos um problema que eu e a minha sócia, Miss Twombly, pensamos que ameaça o futuro do nosso empreendimento. Vimos falar-lhe nele, porque achamos que é a única pessoa que o pode resolver.
- Ah?
Expliquei-lhe então os nossos problemas com Michael Gelesco e Anthony Cannis.
- Não é minha intenção insultá-los - acrescentei rapidamente. - Tenho a certeza de que são bons e prósperos homens de negócios de excelente carácter. Mas a sua aparência e os seus modos simplesmente não se coadunam com o nosso conceito de Peters Place, nem com a imagem que tentamos projectar para as nossas sócias e sócias potenciais.
Ele fitou-me com um olhar inexpressivo. Os seus dedos, pequenos e gordos, tamborilavam lenta, suavemente, o tampo da secretária.
- Quem são as vossas sócias? - disse ele, por fim.
-Mulheres com dinheiro-disse eu prontamente. - Fazem compras no Blendel e jantam no Lutèce. Cerca de metade são casadas, metade são solteiras, viúvas ou divorciadas. Muitas ocupam posições
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executivas de grande responsabilidade. São mulheres elegantes, e o que é vulgar e ordinário repele-as. Se frequentam um clube privado, querem que este reflita o seu próprio requinte. As nossas sócias têm classe e querem que o seu clube tenha classe.
Isto não era tudo exactamente verdade - mas estava próximo.
- Já transmitiram as vossas objecções aos..?
-Já o fiz, sim, Mr. Caesar. Ignoraram-me. É por isso que o venho informar directamente do assunto.
Ele não teve uma reacção imediata. Em vez disso, inclinou-se para a frente na secretária, puxou a pasta para si. Abriu-a, olhou para o primeiro documento. Depois levantou a cabeça e fitou-me com olhos de um azul-leitoso.
-Você é um homem esperto - disse ele com o seu sorriso frio. - Tem algumas sugestões para melhorar os lucros do Peters Place?
Ele tinha mudado o tom da conversa. Mas, como bom actor que sou, prossegui sem hesitação.
- Aumentar o rendimento da Sala Mardi Gras tem prioridade máxima - disse eu. - Tenho várias ideias sobre isso que espero implementar em breve. Além disso, devíamos ter um vestiário perto da entrada, onde as sócias possam deixar os casacos e os embrulhos. Com um empregado, claro. As gorjetas seriam acrescentadas ao nosso rendimento. Devíamos igualmente ter uma empregada na casa de banho das senhoras no rés-do-chão.
Ele fitou-me atentamente.
- Gosto da sua maneira de pensar - disse ele.
- Obrigado - disse eu modestamente.
- Que outros melhoramentos pode..?
- Bem - disse eu -, o tamanho e a disposição física do clube tornam extremamente difícil desenvolver o tipo de instalações que eu tinha em mente quando concebi o Peters Place.
- Oh? - disse ele.- E o que imaginara?
Aproveitei ao máximo esta oportunidade. Devo ter falado durante dez minutos, sem parar, e acho que ele me prestou toda a atenção.
Disse-lhe que, no meu conceito original, Peters Place seria um clube privado, exclusivo, com tapetes orientais, mobiliário antigo, candeeiros de cristal, objectos de arte e um serviço de nível semelhante aos dos melhores hotéis.
Disse que queria ter um salão de beleza, uma boutique, talvez uma florista e uma loja de doces. Talvez até um ginásio, sauna, uma massagista. Queria oferecer todas as comodidades que uma mulher rica possa desejar.
-E melhorar a qualidade dos nossos garanhões-acrescentei. - Seleccionar rapazes mais novos, mais atraentes, para podermos aumentar os nossos preços sem perdermos clientes.
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Uma vez que já fora tão longe, decidi ir até ao fim. Disse a Caesar que tinha tanta fé num clube com classe que conseguia prever uma cadeia internacional de Peters Places.
Estes poderiam ser totalmente controlados por nós ou sob licença ou acordo de franchise.
Quando acabei o monólogo, recostei-me na cadeira, cruzei as pernas e procurei ver a reacção de Caesar. Não houve nenhuma. Ergueu lentamente a vista até ficar a olhar para o ar por cima da minha cabeça.
- A respeito do assunto original - disse ele. - Mr. Cannis e Mr. Gelesco. Eu concordo com a sua opinião sobre.. Eu tratarei de.. Obrigado por me ter trazido à atenção.. E obrigado por ter dedicado o seu tempo..
Pôs-se de pé, estendeu a mão branca e mole. Apertei-a e foi tudo.
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Estava no meu gabinete quando Martha entrou. Foi pouco antes do meio-dia.
-Louella está ao telefone-disse ela. - Lembras-te dela? A mulher negra que gostava de King Hayes. Ela quer falar contigo.
Soltei um gemido. Hesitei.
- Está bem - disse eu. - Passa a chamada, por favor.
- Mr. Scuro? - disse Louella: uma voz baixa, trémula.
- Sim.
- Nunca nos conhecemos, mas sou amiga de King Hayes. Ele falava muitas vezes em si como o seu melhor amigo.
- Bem.. - disse eu cautelosamente. - Conheço King há vários anos.
- Tem-no visto ultimamente, Mr. Scuro? Ou tido notícias dele?
- Não - disse eu. - Há já alguns meses que não o vejo.
- Ando a tentar encontrá-lo - disse Louella, com a voz a começar a quebrar.-Ele parece ter desaparecido. Eu não posso.. não sei..
E, nessa altura, ela começou a soluçar. Foi horrível escutá-la. Fechei os olhos, mantive o auscultador junto do ouvido e esperei.
- Mr. Scuro - disse ela finalmente, fungando -, ainda está aí?
- Estou, sim.
- Desculpe-me, por favor. Eu não devia importuná-lo com os meus problemas.
- Todos nós temos problemas - disse eu. - E a vida. Discutiu com King?
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- Nós separámo-nos - disse ela, com a voz a quebrar-se de novo. - Ele não conseguia arranjar emprego e eu não queria que ele.. que ele..
- Trabalhasse para mim?
- Exactamente - disse ela. - Eu não queria. Mas eu amo tanto aquele homem, Mr. Scuro. Agora cheguei à conclusão de que não me importo com o que ele faça, desde que possa estar com ele.
Tive vontade de lhe dar o número de telefone de Jenny Tolliver e de dizer: "Por favor telefone a esta mulher e dê-lhe lições de amor."
Com uma enorme admiração por aquele amor, disse:
-Vou fazer uma coisa: vou tentar encontrar King. Vou mesmo. Se o encontrar, digo-lhe que o quer de volta. Está bem?
-Faz-me isso?-murmurou ela. - Oh, obrigada, obrigada. E diga-lhe que não imponho quaisquer condições. Ele pode trabalhar no que quiser. Eu só o quero de volta.
- Eu dir-lho-ei - prometi.
Tive de servir de anfitrião até às sete dessa noite. Quando Yance me substituiu, tirei o Datsun da garagem na 53ª Avenida. Fui até ao West Side e encontrei lugar para estacionar a cerca de um bloco do Blotto.
Era a mesma espelunca de esparguete apinhada, barulhenta e malcheirosa. Falei com o barman e com o chefe de mesa. Nenhum deles tinha visto King desde que ele fora posto na rua.
Deixei o Datsun onde estava e fui a pé até à Broadway. Começou a chuviscar, uma chuvinha antipática e fria. Era tudo o que eu precisava. Levantei o colarinho e segui para o ninho de pulgas que era o hotel de King.
O tipo gordo à secretária disse que King tinha saído do hotel. Não deixara endereço.
Virei-me para me ir embora, mas ele chamou:
- Ei! - E eu voltei atrás.
- Eu sei onde talvez o possa encontrar - disse o tipo gordo.
- Onde?
Ele olhou fixamente para mim. Tirei a carteira e dei-lhe uma nota de cinco dólares.
- Ele por vezes está no McDuff. Fica a dois blocos daqui, a oeste da Broadway. Talvez o encontre lá. Gaseado até aos olhos.
O McDuff era um bar barato, mas razoavelmente limpo. Bebi um vodka duplo que sabia a água - e provavelmente era.
O barman disse que King tinha lá estado à tarde, mas que ele acabara por o pôr na rua. Por cinco dólares, deu-me o nome de outro lugar para tentar. A mesma história. King tinha ficado sem dinheiro e tinha sido posto na rua. Por outros cinco, o barman sugeriu que tentasse um abrigo no Bowery.
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No caminho de regresso ao Datsun, parei numa loja de bebidas para comprar vodka. Fiquei sentado no carro, com o aquecimento ligado, até parar de tremer. Depois bebi um golo. As coisas iam bem: agora estava a beber de uma garrafa de litro. Dentro em pouco estaria a tomá-la por via intravenosa.
Guiei lentamente para a baixa, inclinando-me para a frente para ver através do pára-brisas embaciado. Naquele momento, eu podia estar no Peters Place, quente e seco, talvez a fazer uma cena alegre. Tentei imaginar como seria a mulher. Jenny Tolliver.
Numa noite chuvosa de Março, a Bowery não é exactamente Acapulco. Dei a volta à Terceira Avenida, mas tive de descer a Primeira para encontrar um lugar para estacionar. Não me senti muito confiante em deixar o meu Datsun novo ali. Não estava preocupado com os tampões, mas sim com as rodas.
O átrio daquele abrigo era um espanto. Num momento de humor negro, tive a noção louca de recrutar os nossos garanhões daquela colecção de párias e desajustados. Tive de fazer uma piada para conseguir sobreviver.
O homem que estava na gaiola deu uma vista de olhos pelos registos e disse que não tinha nenhum King. Enquanto conversávamos, alguns dos fantasmas destroçados aproximaram-se, arrastando os pés, e formaram um semicírculo respeitoso. Quando me voltei para me ir embora, um dos esqueletos estendeu a mão ossuda para me fazer parar.
- Um tipo negro grande? - disse ele numa voz silvante. Não tinha dentes nenhuns. Apenas gengivas inchadas.
- Viu-o? - perguntei, ansioso.
- Não sei se era ele - disse ele, dirigindo-me um sorriso horrível -, mas vi um tipo assim, há cerca de uma hora. Na rua. Entre a Bowery e a Houston.
Ele podia estar a aldrabar-me, mas tirei a quarta nota de cinco da noite e dei-lha. Olhou para ela com ar de espanto, alisando-a com os dedos sujos. Depois ergueu os olhos para mim.
- Que Deus o abençoe! - disse ele. Isso fez-me sentir melhor.
Bem, de qualquer modo, encontrei King. Deitado à porta de uma loja de penhores fechada, coberto com jornais molhados. Ao pé dele estava uma garrafa pequena de gin. Quando me inclinei para ele, abriu os olhos e reconheceu-me.
- Peter - gemeu.
- Não te mexas - disse eu. - Fica onde estás.
Voltei para junto do Datsun, trouxe o automóvel (com as rodas intactas) e parei junto do passeio ao lado de King. Consegui 260
finalmente pô-lo de pé. Meu Deus, ele pesava uma tonelada, e o fedor era indescritível.
Quando ele já estava dentro do automóvel, baixei as janelas, preferindo congelar a sufocar. Seguimos ao longo da Primeira. Ele estava mais coerente do que eu estava à espera.
- Consegui - disse ele. - Não consegui?
- Conseguiste mesmo.
Parei em dupla fila em frente do Peters Place e fui lá dentro. Não havia clientes no bar, nem na sala de jantar, e Yance disse que todos os quartos estavam livres.
Yance ajudou-me a levar King para dentro. Ele conseguia andar, ainda que pouco, e tivemos ambos de o apoiar. Levámo-lo para cima no elevador, para o meu quarto, e deixámo-lo cair na minha cama. Ele ou adormeceu imediatamente, ou então perdeu os sentidos.
Yance ficou de pé ao lado da cama, com as mãos nos bolsos, olhando com tristeza para King Hayes.
- Pobre tipo - disse ele. - Que vamos fazer com ele?
- Raios me partam se eu sei!
-Bem-disse ele-, não vale a pena limpá-lo esta noite. Deixa-o dormir e faz que ele coma alguma coisa sólida amanhã. Podes dormir num dos outros quartos, não podes?
- Claro-disse eu.-Não custa nada. Obrigado pela ajuda, Yance. Vou pôr o meu carro na garagem. Vais ter comigo ao Friendship Deli tomar um café e um bolo?
- Boa ideia - disse ele. - Daqui a cerca de vinte minutos. Conduzi até à garagem, revivendo a procura por King Hayes. Eu não sabia o que estava a fazer. Oh, eu sabia o que estava a fazer, mas qual era a minha motivação?
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Uma vez por mês, geralmente numa quinta-feira à noite, eu e Martha encontrávamo-nos na Sala Mardi Gras com Cannis e Gelesco, Gotwold e Iggy, e um advogado e um contabilista que representavam a Justice Development Corp.
Após a minha queixa a Octavius Caesar, Cannis e Gelesco tinham deixado de aparecer no bar de Peters Place. No entanto, na reunião de Março, os seus modos em relação a mim foram totalmente afáveis, mesmo amistosos. Caesar deve ter dado ordens para que se comportassem, e eles estavam a obedecer.
Verificámos as contas do mês e vimos que estávamos a receber
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milhares todas as semanas. Peters Place era uma máquina de fazer dinheiro; o rio de ouro parecia não ter fim. E os serviços de pedidos por telefone e de acompanhantes mostravam uma gratificante subida.
Apresentei as minhas sugestões para empregadas no vestiário da frente e na casa de banho das senhoras. Acordámos em tentar durante alguns meses, para ver se esse serviço era suficientemente lucrativo.
Depois debruçámo-nos sobre um assunto mais sério. Cerca de um mês antes, Peters Place, Inc. tinha recebido uma carta de um advogado a ameaçar com um processo em nome da sua cliente, uma mulher. Ela dizia ter contraído herpes depois de uma cena com um dos nossos garanhões. Seria uma queixa difícil de provar em tribunal - mas quem é que estava interessado em que o caso se tornasse público?
Chamámos Casper Meerjens, o detective particular que nos tinha ajudado a resolver o problema de Susan Forgrove. Pensámos que a queixosa, uma mulher casada, poderia ser tão promíscua que não teria possibilidade de provar que tinha apanhado uma doença venérea com um único contacto com um dos nossos rapazes.
O que aconteceu foi que a senhora em questão não era absolutamente nada promíscua.. mas o marido era. Aquele tipo era cá um Don Juan! De acordo com Meerjens, ele fornicava tudo quanto se mexia. Parecia-nos óbvio que a sua mulher tivesse contraído a doença do marido, que a transmitira de uma das suas conquistas.
Por isso, Oscar Gotwold teve uma reunião com o advogado da queixosa e apresentou as provas obtidas pelo nosso investigador. O resultado foi que a senhora retirou a queixa e nós pagámos-lhe mil dólares pelo seu incómodo e honorários do advogado.
- Na minha opinião - disse Gotwold -, não há absolutamente forma nenhuma de nos podermos proteger de processos aborrecidos como este.
- Eu andei a investigar - disse Iggy Samuelson. - Se estão a pensar num seguro, esqueçam. Nenhuma companhia de seguros o fará.
Mas o contabilista da Justice Development sugeriu sensatamente que, se éramos vulneráveis a acções contra nós, seria inteligente da nossa parte mantermos as nossas reservas em dinheiro no mínimo.
Assim, se perdêssemos uma acção, teríamos muito poucos bens. Havia uma maneira simples de fazer isso.
Nós tínhamos de fazer pagamentos anuais sobre os nossos empréstimos à Vigor Venture Capital e à Daring Financial Corp. Com a concordância de todos, estes poderiam ser convertidos em pagamentos mensais, mantendo, assim, o nosso saldo bancário baixo.
Gotwold e Samuelson garantiram-nos de que isto era a coisa mais inteligente que poderíamos fazer.
Deste modo, assinámos os papéis.
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Assim que entrei na sala, reconheci o perfume de Clara Hoffheimer como o que cheirara no gabinete de Caesar. Era um tanto ordinário, achei eu.
A minha segunda reacção foi ao escritório dela. Tinha sido completamente remodelado: fora todo pintado, alcatifado, e havia cortinados na janela brilhante. A velha mobília de madeira de Sol tinha sido substituída por vidro e aço inoxidável. Tudo luzia.
Nós estávamos a pagar uma boa maquia a Clara pelos garanhões que nos fornecia, mas não lhe era possível ter financiado a remodelação com o que ganhava connosco. Calculei que ela estivesse a dar clisteres de sumo de ameixa a Caesar-ou qualquer coisa igualmente extraordinária.
- Lindo! - disse eu, olhando em volta.
- Gostas mesmo a sério, Peter? - perguntou ela.
- A sério. Fizeste maravilhas, Clara.
- Sou capaz de contratar uma ajudante - disse ela num tom casual. - O negócio tem sido bom.
- Folgo em sabê-lo.
Ela parecia uma árvore de Natal, com jóias penduradas e um enfeite com penas enfiado no cabelo espumoso. E ainda transbordava do vestido justo. Era a única mulher que já conhecera que fazia a anorexia parecer atraente.
Entreguei-lhe a sua parte num sobrescrito.
Ela retirou o dinheiro e contou-o, depois tirou um pequeno bloco da gaveta da secretária e verificou o total. Sol nunca teria feito isso na minha presença. Ele tinha classe.
-Até ao último tostão-disse ela, guardando o dinheiro e o bloco.
- Folgo em sabê-lo.
- Como vai o negócio? - perguntou.
- Assim-assim - disse, virando uma palma da mão de um lado para o outro.
- Não foi isso o que ouvi dizer. Ouvi dizer que o negócio está florescente.
- Oh? - disse eu. - Onde é que ouviste isso?
- Por aí - disse ela. - Precisas de mais garanhões?
- Sempre - disse eu. - Tu sabes que não se pode ter confiança nestes rapazes. Precisaremos sempre de mais garanhões.
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- Peter - disse ela -, eu tenho uma ideia maluca que quero que ouças.
- Com certeza.
- Na semana passada, entrou aqui um miúdo. Um marinheiro, fardado. Ele sai daqui a um mês e decidiu que quer ser actor. Se ele é actor, eu sou a rainha de Sabá. De qualquer modo, ele quer ir para uma escola de arte dramática, mas não tem dinheiro. Ele queria saber se podia conseguir papéis pequenos, de figurante em multidões, trabalho extra, coisas assim, para se safar enquanto andar na escola. Eu expliquei-lhe os factos da vida.. a concorrência, os sindicatos e tudo isso, e depois falei-lhe no trabalho na tua casa. Ele concordou. Ele é garoto grande, simpático, com uma pele linda e um cabelo vermelho que eu dava a minha mama esquerda para ter um igual.
- Parece óptimo! - disse eu, acenando com a cabeça.
- E ele deu-me a minha ideia maluca-disse ela. - Os anúncios que estamos a fazer não nos trazem a quantidade de que precisamos. Mas que tal as forças armadas? Há uma dúzia de bases do Exército, da Marinha e da Guarda Costeira por estes lados. E barcos no porto com centenas de marinheiros. Se espalharmos a palavra de que eles podem ganhar uns tostões fáceis, podemos ter uma boa fonte de abastecimento.
- Clara, tu és um génio! - disse eu com admiração.
- E estes garotos são limpos - prosseguiu ela. - Se tiverem gonorreia, podem ir a Conselho de Guerra.
Havia algo que me incomodava.
- Eles andam fardados? - perguntei-lhe. - A última coisa de que precisamos é de cinquenta marinheiros a fazerem fila à porta do Peters Place.
- Não há problema - disse ela. - Eles podem andar à civil quando estão de folga.
Pensei durante um momento.
- Algumas mulheres gostam de uniformes.
-Então, eles podem levar os uniformes numa maleta - disse ela -, e vestem-nos antes de se encontrarem com uma cliente.
- E medalhas - disse eu. - Devem usar medalhas e galões. Clara, é uma óptima ideia. Teremos todos os garanhões de que precisarmos.
- E podes pôr um dístico no bar ou na sala de jantar - disse ela, sorrindo: - "A Armada está no porto."
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O detective Luke Futter veio ver-me na primeira semana de Abril. Chamei Martha e sentámo-nos os três no meu escritório. Ofereci um bourbon duplo a Futter. Eu e Martha não bebemos nada.
Desde que nos tínhamos mudado para esta casa, ele estava a receber dez mil dólares por mês. Pelo seu aspecto, era óbvio que o dinheiro tinha sido gasto na sua pessoa. Ele era uma sinfonia de cinzento e azul, com um relógio Concord novo e uma pulseira de prata suficientemente pesada para ancorar o QE21.
- Tenho notícias más e muito más - disse ele com o seu sorriso de esguelha. - Vai haver uma rusga.
- Ei - disse Martha. - Espere aí um pouco. Estamos a pagar-lhe dez mil por semana para evitar isso.
- Vêm de uma divisão diferente - disse ele, encolhendo os ombros. -Aparentemente, algumas das vossas senhoras estão a gastar muito dinheiro aqui, e os maridos estão a protestar. Querem que o local seja investigado.
- Nós temos todas as licenças e autorizações de que precisamos - disse eu a Futter. - E um exército de advogados para garantirem que nos mantenhamos limpos.
- Têm licença para explorar um bordel? - disse ele. - E isso de que vão tentar acusar-vos.
- Está bem - disse Martha. - Quanto nos vai custar?
- Não muito - disse o detective, passando a palma da mão pelo cabelo ondulado. - Não posso impedir a rusga mas, por uns míseros mil, posso talvez saber, com um dia de antecedência, quando ela vai ter lugar. Vão poder esvaziar os quartos lá em cima e fazer parecer que gerem um simpático e calmo clube privado.
- Para quem são os mil? - quis Martha saber.
-Para um tipo que trabalha na divisão que referi. Já o utilizei antes, e ele é sério.
- Não temos muito por onde escolher, pois não? - disse eu.
- A meu ver, não - disse Futter afavelmente. Dissemos-lhe que acrescentaríamos os mil extra ao seu dinheiro
de Abril, e ele ficou satisfeito. Depois de se ir embora, eu e Martha olhámos um para o outro.
- Estamos a ficar bem lixados! - disse ela, irada. - Provavelmente, ele próprio sugeriu a rusga.
- Mesmo se for legítima - disse eu -, tenho a certeza de que o
1. Paquete de luxo. (N. da T.)
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outro tipo não vai receber os mil inteiros. Algumas centenas, se tiver sorte.
- Futter está a ficar ganancioso - disse Martha, abanando a cabeça. - Estou a começar a ter más vibrações sobre aquele tipo.
- O que podemos nós fazer a respeito dele, Martha? Ele tem-nos na mão. E tens de admitir que, até agora, não temos tido muitos problemas com a lei.
- Até agora - disse ela num tom sombrio. - Mas se ele nos tentar extorquir dinheiro mais alguma vez, acho que é melhor ele tratar do assunto directamente com Cannis e Gelesco.
- Que é que eles podem fazer?
- Oh.. - disse ela, num tom vago -, hão-de pensar nalguma coisa.
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A crescente prosperidade de Peters Place provou serem verdadeiros todos os velhos ditados: "Nada tem tanto sucesso como o sucesso." "Dinheiro chama dinheiro." "Os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres mais pobres." Grande parte do nosso êxito deveu-se a muito trabalho e imaginação. Mas, parte dele, devo admiti-lo foi simplesmente sorte.
Por exemplo, algumas sócias perguntaram se se podiam reunir na Sala Mardi Gras para uma noite de bridge. Respondemos que certamente que podiam e até providenciámos as cartas, a mesa de bridge e cadeiras. As jogadoras mandavam constantemente vir bebidas do bar do piso inferior.
Isso começou em meados de Fevereiro. A meio de Abril, tínhamos seis mesas de bridge e três de póquer, bem como uma de gamão, na Sala Terça-Feira Gorda, todas as sextas-feiras à noite. Aparentemente, era a noite em que muitos maridos "saíam com os rapazes", e as mulheres gostavam de participar no que nós chamávamos a Noite de Jogo no Peters Place. Havia muitas apostas elevadas.
Continuámos a não cobrar por este serviço adicional, mas o número de bebidas consumido pelas jogadoras da Noite de Jogo aumentou tanto, que tivemos de montar um pequeno bar na Sala Terça-Feira Gorda. Também oferecíamos uma variedade limitada de sanduíches. E não era invulgar as jogadoras (geralmente as vencedoras) alugarem um garanhão a seguir ao jogo. Até tivemos uma sócia que correu lá acima para ter uma cena rápida enquanto servia de morto num jogo de bridge.
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Também aumentámos os lucros do bar principal, graças a um pequeno melhoramento que foi ideia minha.
- Precisamos de uma atracção ali dentro - disse eu a Yancy Burnett. - Algo para atrair as clientes antes e depois das cenas, ou mesmo quando se querem simplesmente descontrair.
- Como por exemplo?
- Um pianista - disse eu. - Um tipo que conheça todas as canções antigas e saiba cantar baladas românticas. Seria óptimo se fosse jovem e bonito, mas não queremos que faça concorrência aos nossos garanhões.
-Homossexual-disse imediatamente Yance. - Queres um pianista belo, talentoso e homossexual que saiba cantar.
- Consegues arranjar um tipo assim?
- Vou tentar.
Ele conseguiu encontrar uma pérola. O rapaz chamava-se David e tinha uma voz quente, sussurrante, que era óptima para os tons de Cole Porter. Tinha uma beleza juvenil, e as nossas clientes adoravam-no. Arranjámos-lhe um pequeno piano de cauda, e ele tocava todas as noites das nove da noite à uma da manhã.
Chamámos ao bar a Sala dos Sonhos, colocámos reposteiros pesados por cima das paredes pintadas e baixámos as luzes. David conseguiu um grande número de admiradoras fiéis, e as nossas vendas de bebidas quase duplicaram. As clientes sabiam que ele era homossexual, mas isso só aumentava a sua atracção. Pagávamos-lhe o salário mínimo, mas ele safava-se muito bem com as gorjetas e era frequentemente contratado para festas privadas.
- David é um êxito! - disse eu a Yance. - Onde é que o encontraste?
- No meu quarto - disse ele.
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A reabilitação de King Hayes levou mais tempo do que eu imaginara. Ele levou uma semana a deixar completamente de beber, e outra a deixar de tremer.
Entretanto, ele dormia no meu quarto. Depois, quando ficou sóbrio e razoavelmente apresentável, mudou-se para outro quarto. Dei-lhe dinheiro para comprar material da barba e roupa limpa; ele vendera tudo o que tinha para comprar bebida.
- Eu não quero a tua caridade - disse ele asperamente.
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- Caridade, um raio! - disse eu. - É um empréstimo e, se não o devolveres, eu faço-te trabalhar para pagares.
Louella telefonava todos os dias, mas ele recusava-se a falar com ela, e lamentava constantemente o facto de não ter conseguido arranjar um emprego.
Finalmente, eu disse:
- Queres um emprego? Eles precisam de ajuda na cozinha. A limpar o chão e a levar o lixo para fora. Salário mínimo, à hora.
Ele aceitou imediatamente.
Eu não sabia por que motivo o fazia. Gostava de King, claro, e tinha pena de Louella mas, no fundo, eu devia estar a pensar em o ter de novo como garanhão.
Quando eu trabalhava até tarde como anfitrião, ele ia geralmente comigo ao Friendship Deli tomar café. Passávamos muito tempo a conversar, e ele contou-me o que acontecera com Louella.
- Ela é muito mais inteligente e educada que eu - disse ele. - Após algum tempo, comecei a detestá-la por isso. Não que ela tentasse mostrar que éra superior. Ela era ela, e eu era eu, por isso vingava-me nela. Uma vez até lhe bati. Foi quando saí de casa. Porque tinha medo de a magoar a sério. Ela estava a fazer-me ter nojo de mim próprio. Ela pagava tudo e eu não conseguia ganhar um chavo.
- Ela quer-te de volta, King; já te disse isso. Sem nada em troca. Ela não se importa. Ela só te quer a ti.
Ele ficou calado.
- Tu ama-la?
- Acho que sim - disse ele em voz baixa. - Eu sei que a admiro muito. Mas foi por isso que me fui embora. Meu Deus, Peter, estou completamente baralhado!
- Não estamos todos?
De repente, ele olhou para mim.
- Tu queres que eu volte a fazer cenas, não queres?
- Isso depende inteiramente de ti. Ele gemeu.
- Não sei o que hei-de fazer.
- Deixa-te ir com a onda - disse-lhe.
Lembrei-me da época, não muito longínqua, em que pensava que a minha vida estava a ser determinada pelo acaso. Ou que estava a ser manipulado pelas pessoas com mais dinheiro, poder ou determinação.
Agora era eu que estava a empurrar.
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Quando terminavam as suas cenas, os garanhões passavam pelo meu escritório para receber o pagamento e saber quando tinham a próxima marcação. Ouvi deles algumas histórias estranhas sobre clientes, mas nenhuma tão invulgar como a de uma cliente que eu próprio atendi no final de Abril.
Começou quando Martha tocou ao intercomunicador e perguntou se eu podia ir ao seu gabinete por um momento. Quando entrei, vi uma mulher sentada ao lado da secretária. Martha apresentou-nos.
A visitante tinha, calculei, cerca de quarenta anos. Cabelo cinzento de aço apanhado. Uma testa alta, lisa. Feições tensas. Óculos grossos com aros de massa. Vestia um fato preto de corte tão severo que parecia um uniforme. Uma senhora severa, controlada.
- Importa-se de explicar a Mr. Scuro exactamente o que deseja? - disse Martha.
-Não é algo que eu deseje - disse a mulher secamente. Virou-se para mim. - Mr. Scuro, eu vivo e trabalho em Washington, D. C. e sou assistente executiva de.. bem, digamos que ela é uma das três mulheres mais importantes e influentes do governo. Se lhe dissesse o seu nome, o que não farei, reconhecê-la-ia imediatamente. Se a visse, identificá-la-ia. Eu estou aqui para explorar a possibilidade de me tornar sócia desta, ah, associação. Eu acho que os vossos preços são elevados.. mas isso não importa. O objectivo de me tornar sócia é emprestar o cartão à minha patroa. Isso é permitido?
- E - disse eu cautelosamente -, desde que não haja abusos.
- Não haverá - disse ela num tom severo. - E não tenho qualquer intenção de utilizar eu própria o cartão.
- Deixe-me ver se compreendo - disse eu. - Quer fazer-se sócia. Mas o único objectivo é emprestar o seu cartão à sua patroa. Estou correcto?
- Está.
- Por que é que ela não se torna sócia?
- Se eu lhe dissesse quem ela é, o senhor compreenderia. E absolutamente necessária uma discrição total.
- Eu já expliquei que não se pode garantir a discrição absoluta- disse Martha. - A senhora pode ser vista a entrar ou sair. E é provável que o rapaz que lhe for atribuído a reconheça; não podemos jurar que ele não falará.
Ficámos a olhar uns para os outros. Depois tive uma ideia.
- Acha que eu serviria? - perguntei-lhe. Ela inspeccionou-me friamente.
- Sim - disse ela. - Acho que será satisfatório.
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Falámos durante mais vinte minutos, e combinámos o seguinte: A VIP viria de Washington num automóvel modesto. Seria deixada no Peters Place às três da manhã, altura em que eu seria a única pessoa em casa. (Não me dei ao trabalho de mencionar King Hayes. De qualquer modo, ele estaria a dormir.)
Às quatro da manhã, depois de a cena ter terminado, o automóvel viria buscar a famosa mulher e levá-la de regresso à capital do país.
- O senhor consegue manter segredo? - perguntou a nossa visitante, lançando-me um olhar gélido.
- Se acha que não consigo - disse eu -, então, esqueçamos isto tudo.
- Muito bem. Mas insisto no direito de inspeccionar o.. ah.. quarto para ver se há câmaras ou gravadores escondidos antes de..
Garantimos-lhe que podia. Depois, ela pagou a jóia de inscrição, a quota, o preço da cena, tudo em dinheiro. Depois de ela partir, eu e Martha passámos algum tempo a especular quem seria a VIP e acabámos por fazer uma aposta de dez dólares.
Correu tudo muito bem. Martha recebeu uma comunicação de Washington:
- Daqui Cupido. Amanhã à noite.
O automóvel parou à nossa porta cerca das três e um quarto da manhã. Duas mulheres atravessaram rapidamente o passeio e o automóvel afastou-se. Abri a porta e, depois de elas entrarem, voltei a fechá-la.
A assistente executiva subiu ao meu quarto no terceiro andar para o inspeccionar. Cá em baixo, a VIP ficou absolutamente imóvel no pequeno átrio. Vestia um casaco comprido de vison, e usava um chapéu de abas largas e óculos escuros de sol.
- Chamo-me Peter-disse eu, sorrindo.-Posso oferecer-lhe alguma coisa do bar?
- Obrigada, Peter - disse ela com uma voz musical. - Gostaria de um conhaque.
Quando a VIP tirou o chapéu e os óculos escuros, reconheci-a imediatamente. Tanto Martha como eu nos tínhamos enganado. Ela era uma mulher muito importante.
Com cinquenta e poucos anos. Uma mulher grande, vigorosa. Um olhar directo; um rosto cansado, mais da fadiga que da idade.
Deitei Rémy em dois copos e ficámos sentados tranquilamente a conversar, até a assistente executiva reaparecer.
- Tudo bem - informou ela.
Disse-lhe que se servisse do que lhe apetecesse.
- Que tal levarmos a garrafa de brande connosco? - perguntei à mulher famosa.
- Uma ideia esplêndida - disse ela.
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Fechei a porta do quarto atrás de nós e ajudei-a a despir o casaco. Ela tinha um vestido com demasiados franzidos e folhos. Estendeu o copo.
- Acho que me apetecia outro conhaque.
Deitei uma boa dose no copo, e ela engoliu a bebida num só golo. Depois despimo-nos.
Olhou para o seu corpo estragado.
- Gostava que me tivesses visto há trinta anos - disse ela. - Eu não era nada má.
- Não és nada má agora - disse eu, e ela lançou-me um olhar oblíquo.
Mas o segundo brande animou-lhe o estado de espírito, se não o corpo, e divertimo-nos na cama. Pensei que ela seria do género "faz isto, faz aquilo", mas não foi. Suponho que os bons executivos aprendem a delegar a autoridade.
- Meu Deus! - disse ela a dada altura. - Lembro-me de fazer isso no Cabo, quando tinha dezoito anos. E nunca mais o fiz, raios me partam.
Tive uma boa actuação e fui meigo e amoroso quando pressenti que ela o queria, e brusco quando ela o desejava.
Quando terminámos, ela tomou o meu rosto nas mãos e disse:
- Obrigada, Sr. Doutor.
Quando descemos, a assistente executiva estava a beber um copo de Perrier. Pôs-se de pé quando entrámos.
- Sente-se bem? - perguntou ansiosamente à patroa.
- Divinamente-disse a senhora famosa.-É possível que adopte este jovem.
- Leva-me - disse eu. - Sou todo teu.
Rimo-nos, mas a assistente não achou graça. Quando o automóvel parou à porta, às quatro horas em ponto, desliguei o alarme e abri a porta.
- Boa viagem - disse eu. - Bom trabalho.
A senhora tinha voltado a pôr o chapéu e os óculos de sol. Aproximou-se de mim.
- Se eu te tivesse conhecido.. - disse ela. - As coisas talvez tivessem sido..
Depois deu uma gargalhada musical e inclinou-se para me beijar o rosto.
Ela não voltou a aparecer no Peters Place. Pensei que talvez tivesse ficado pouco satisfeita comigo, ou então tinha receio de correr o risco. Preferi a segunda hipótese.
Mas, cerca de uma semana depois, recebi um embrulho com um carimbo do correio de Washington, D. C. Sem remetente. Sem cartão. Era uma mola de ouro com a forma de um cifrão.
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Recebi uma chamada da górgona que guardava a porta do escritório de Octavius Caesar. O grande homem queria ver-me às três da tarde. Eu devia fazer de anfitrião nessa tarde, mas Yancy Burnett disse que trocava de turno comigo.
Por isso, parti para a baixa às duas e trinta, um pouco preocupado com a convocatória de Caesar. Tê-lo-ia ofendido?
Mas, quando entrei no escritório dele, vi logo que não ia ser castigado. Ele era todo sorrisos, com o queixo a tremer de boa disposição. Mandou-me puxar uma poltrona para junto da secretária, a seu lado.
Agradeci-lhe por ter resolvido o problema de Cannis e Gelesco tão rápida e eficientemente. Com um aceno de mão, ele disse que não era nada e garantiu-me que me devia sentir sempre à vontade para procurar os seus conselhos eou auxílio.
Depois, foi directo ao assunto. Disse que, no nosso encontro anterior, tinha ficado muito impressionado com a minha visão elegante de Peters Place. Disse que eu estava a sonhar muito alto, mas que não achava que os meus sonhos estivessem fora do alcance de uma possível fruição.
Foi essa a palavra que ele utilizou - "fruição".
Esta conversa prosseguiu durante vários minutos. Depois retirou uma pasta da primeira gaveta da secretária e pô-la à minha frente.
Ele disse que tinha posto as minhas ideias por escrito e que queria apresentar as minhas propostas aos seus sócios. Tinha esperança de que esta apresentação produzisse o investimento de fundos suficientes para que os meus sonhos se tornassem realidade.
Pediu-me que desse uma vista de olhos pelo que tinha escrito, para ter a certeza de que reflectia o meu pensamento com exactidão.
Octavius Caesar, ou alguém incumbido por ele, tinha feito um bom trabalho. Ele tinha encapsulado as minhas ideias em cinco páginas dactilografadas: como os locais iam ser decorados, as clientes procuradas, os serviços extra oferecidos.
Os sectores de garanhões, de pedidos por telefone e de acompanhantes iam constituir a base do empreendimento, mas comida e bebida, lojas, ginásios, etc, proporcionariam um rendimento adicional. Ele até incluiu a minha sugestão para uma massagista residente.
- Antes de avançarmos - disse ele -, quero que saiba.. Esta ideia é sua, e nada será feito.. Mas deve compreender que, sem 272
um financiamento suficiente, a melhor ideia não passará de apenas uma..
Ele disse que, no caso de haver capital de risco suficiente, e de Peters Place sofrer uma enorme expansão, eu e Martha teríamos asseguradas posições executivas elevadas, salários muito maiores e uma boa parte das acções na cadeia.
Disse-lhe que ele certamente que tinha a minha autorização para discutir a minha proposta com os sócios. Ele perguntou-me em seguida o que eu pensava do modo como a proposta era apresentada e se eu queria sugerir qualquer alteração ou se tinha algo a acrescentar.
Eu disse que me parecia tudo muito bem, mas que havia dois novos desenvolvimentos de que ele devia ter conhecimento.
Falei-lhe na popularidade de David, o nosso pianista na Sala dos Sonhos, e sugeri que o entretenimento poderia eventualmente incluir pequenas bandas, cantores e comediantes.
Depois falei-lhe sobre a Noite de Jogo na Sala Terça-Feira Gorda, e como esta tinha crescido rapidamente, com jogadoras de bridge, póquer e gamão a fazerem apostas elevadas.
- De momento - disse eu -, não estamos a cobrar entradas na Noite de Jogo. Eu não sei nada de jogo, mas a casa não podia ficar com uma percentagem dos ganhos, ou ter alguém a dar as cartas nos jogos de póquer, ou montar um sistema qualquer para lucrarmos com as apostas?
- Inteligente - disse ele. - Muito inteligente. Certamente que incluirei estas.. E mantê-lo-ei informado sobre.. E, por falar de tempo..
Tirou um belo relógio do bolso de colete, abriu a tampa, olhou para o mostrador, fechou-o com um estalido e voltou a colocá-lo no bolso, tudo com um movimento rápido e fluido.
Pôs-se de pé, estendeu uma mão mole e branca.
- Muito gentil da sua parte.. Agradeço-lhe a sua.. Por favor, mantenha-se em.. Temos de ter..
Fechei a porta do gabinete exterior e dirigi-me aos elevadores. Um elevador que subia parou, e dois homens saíram e começaram a andar em direcção a mim.
Um deles era baixo, atarracado, com um chapéu de coco e a mastigar um charuto. Tinha um rosto semelhante aos que se vêem em caricaturas de há cem anos, em que os retratos dos políticos são parecidos com cães e burros. Este parecia um chimpanzé triste.
O outro homem era alto, atlético e bem-parecido. Vestia com uma elegância casual e reconheci-o imediatamente. Era Wilson Bowker, aspirante a governador e companheiro de cama de Martha.
Quando passei por eles, olhei em frente. O chimpanzé estava a murmurar qualquer coisa, por isso não ouvi nada. Junto dos 273
elevadores, carreguei no botão para descer. Depois voltei-me para olhar para trás.
Os dois homens entraram no escritório de Octavius Caesar.
140
No dia 2 de Maio, o detective Luke Futter telefonou para dizer que a rusga teria lugar à uma e meia da tarde do dia 4 de Maio.
Martha e Yance puseram-se a trabalhar, cancelando todas as marcações para o dia 4 de Maio. Eu alertei o chefe de mesa, o barman, o cozinheiro e os ajudantes, dizendo-lhes que estávamos à espera de uma inspecção, por isso as instalações tinham que obedecer às normas de saúde e sanidade.
Depois eu e Martha procurámos todas as nossas licenças, alvarás e autorizações. Colocámo-las em ordem e afixámos as que deviam estar afixadas. Mandámos os nossos registos diários para Iggy e os ficheiros e a maior parte do dinheiro para Oscar Gotwold.
A uma e meia da tarde do dia 4 de Maio, Peters Place parecia um respeitável clube privado para mulheres. O almoço estava a ser servido em quatro ou cinco mesas, e havia uma meia dúzia de clientes a beber calmamente na Sala dos Sonhos. Cannis e Gelesco tinham sido avisados e foram suficientemente sensatos para se manterem afastados.
Yance entrou calmamente no meu gabinete para me dizer que tinham chegado.
Fui até ao átrio, seguido de Martha. O comandante da polícia mostrou-nos a sua identificação e entregou-me um mandato de busca.
Disse-lhe que não tínhamos nada a esconder mas, por favor, que tentassem não incomodar as nossas clientes.
Estiveram lá dentro durante quase uma hora. Os homens à paisana que chefiavam o grupo dirigiram-se primeiro para os quartos nos andares superiores, movendo-se depressa, e encontraram todos os quartos vazios e as camas feitas. Depois, foram à Sala Terça-Feira Gorda, aos gabinetes, à Sala dos Sonhos, à cozinha e à sala de jantar. Depois de terem visto os quartos vazios, a busca passou a ser mecânica.
Quando os polícias à paisana se foram embora, o comandante da polícia veio ao meu gabinete e pediu que lhe mostrássemos as nossas licenças e alvarás, o que fizemos.
- Porquê tantos quartos? - perguntou ele num tom casual.
- Por vezes, as nossas sócias gostam de passar cá a noite - 274
disse Martha.-Vêm dos arredores para assistirem a um espectáculo e depois jantam e tomam umas bebidas. É mais fácil dormir aqui do que ir a conduzir para casa às duas da manhã. Ou tentar apanhar um comboio ou um autocarro.
-Uh-huh-disse o comandante, pondo-se de pé. Era um homem grande, porcino, com um sorriso constante nos lábios. Ele verificou a nossa rima de licenças.
- Parece que está tudo em ordem - disse ele. - Desculpem ter-vos incomodado.
Começou a dirigir-se à porta, depois parou e voltou-se para trás.
- Quem vos avisou? - disse ele, sorrindo.
- Como? - disse eu.
- Se o descubro - disse o comandante da polícia, ainda a sorrir. - Corto-lhe os tomates!
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A Noite de Jogo ocupava a Sala Terça-Feira Gorda todas as sextas-feiras à noite, e Martha conseguia marcar duas ou três reuniões ou festas por semana. Mas, na maior parte das tardes e noites, a sala era um frustrante desperdício de espaço.
Depois, Martha teve a ideia brilhante de conseguir que a Boutique Barcarole patrocinasse um desfile de modas a ter lugar na Sala Terça-Feira Gorda, às onze da manhã. A entrada era livre para todas as sócias e clientes da Barcarole que tivessem recebido convites.
O desfile foi um êxito. Foi coberto por repórteres de moda e proporcionou publicidade grátis e mais vendas à Barcarole. E nós tivemos um aumento substancial de inscrições. Muito mais importante, foi termos beneficiado do facto de muitas das mulheres que assistiram ao desfile terem passado para a Sala dos Sonhos depois de ele ter terminado.
Inspirada por este sucesso, Martha começou a marcar mais desfiles de moda patrocinados por grandes lojas, boutiques e estilistas. Tivemos reservas para desfiles de peles, de jóias, mostras de perfumes. Uma empresa de cosméticos tentou uma combinação de apresentação de produtos e demonstração de maquilhagem. Teve tanto êxito, que ela fez uma reserva semanal para seis meses.
Pareceu-me a mim e a Martha que as possibilidades de comercialização eram quase infinitas. Estávamos a dirigir-nos a um segmento de consumidores que, aparentemente, nunca tinha sido tratado como um grupo demográfico distinto.
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Soubemos que estávamos no caminho certo quando fomos contactados por uma empresa que vendia roupa interior sensual por catálogo. Eles fizeram uma oferta generosa pela nossa lista de sócias. Estivemos tentados, mas acabámos por rejeitar a oferta, achando que estaríamos a sacrificar a discrição e a privacidade das nossas clientes.
Yance Burnett esteve presente a esta discussão e riu-se.
- Onde é que está a graça?
- Oh - disse ele -, toda esta conversa sobre possibilidades de comercialização, grupos demográficos e venda da nossa lista de clientes. Peters Place não passa de um bordel glorificado, pois não?
Mesmo que ele tivesse razão, não o devia ter dito. Quem é que consegue viver sem ilusões?
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Luke Futter voltou a telefonar.
- Ouvi dizer que estás a safar-te como um bandido - disse ele, com uma gargalhada.
Não gostei da comparação.
-Acho que talvez seja altura de termos uma conversa-disse ele.
Ele não queria ser visto a entrar no Peters Place com demasiada frequência, por isso teríamos de nos encontrar noutro local. Eu e Martha acabámos por decidir que seria no apartamento dela.
- Ele quer mais dinheiro - disse-me ela.
- Quanto é que achas que ele quer?
- Pelo menos, dois mil.
Encontrámo-nos às dez horas. Trouxe um copo de bourbon para Futter. Não precisávamos de o dispor bem, por isso eu e Martha bebemos vinho branco.
- Então - disse ele com o seu sorriso habitual. -Aquela pequena rusga correu muito bem, não foi?
- Por acaso, correu - concordou Martha.
- Claro - disse Futter, inspeccionando as unhas tratadas. - Bem - prosseguiu -, vocês têm um amigo muito bem colocado. Eu.
Olhou para nós como se esperasse que manifestássemos uma enorme gratidão. Quando viu que isso não ia acontecer, continuou..
- O problema é que eu não faço isto sozinho. Há os tipos da esquadra, há ainda os superiores, os chefes. Todos provam um pouco. Por isso, aqueles dez mil por mês não vão muito longe.
- Quanto? -- perguntou Martha friamente.
- Quanto? - disse ele. - Bem, agora que eu já demonstrei que
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cumpro o que prometo, calculo que vinte e cinco mil por mês seria mais ou menos a quantia certa.
- Você está louco! - explodi.
- Não - disse Futter, pensativo. - Faço uma boa ideia do que estão a ganhar com aquele vosso arranjinho, e vocês podem facilmente pagar isso.. se isso significar poderem continuar abertos. Que é o caso.
O seu sorriso matreiro tinha desaparecido subitamente. Agora o rosto era frio, exangue, a mesma pessoa que tinha organizado o desaparecimento de Sidney Quink.
- Escute - disse Martha. - Está á pedir de mais. Talvez mais uns dois mil. Mas está a falar em trezentos mil por ano.
- Bem.. - disse o detective, inspeccionando de novo as unhas luzidias. - Posso falar com a minha gente. Talvez possa descer até vinte mil por mês, mas posso garantir-vos que eles não irão abaixo disso.
- Vinte mil por mês? - disse Martha, furiosa. - Nem pensar! -Ei-disse ele.-Espere aí um pouco. Vocês têm sido simpáticos
para comigo e eu tenho sido simpático para vocês. Somos amigos.. certo? Detesto obrigar os amigos pela força. Por isso, quando vos digo que vinte mil é o preço para se manterem abertos, podem acreditar em mim. Escutem, há tipos envolvidos nisto de que vocês nem têm conhecimento. Quero dizer, vai até ao topo. Eu recebo apenas uma dentadinha. É tudo.. uma dentadinha.
- Quem recebe o resto? - perguntei.
O detective olhou para mim com ar de piedade.
- Está à espera de que eu revele nomes? Ouçam, vocês ainda não foram incomodados, pois não? Quero dizer, polícias de rua, inspectores de saúde e de incêndios, e toda essa merda. Por isso, o vosso suborno está a funcionar, certo? E vão querer que continue assim. Vinte mil por mês não vos vai deitar abaixo. Abatam-nos ao rendimento. Podem perdê-los algures na dedução de impostos. Pensem nesse dinheiro como um seguro.
A reacção de Martha foi inesperadamente branda.
- Dito desse modo - disse ela -, faz sentido. Mas não lhe podemos dizer sim ou não imediatamente.
- Claro - disse Futter, de novo com o seu sorriso torto. - Conversem com aqueles tipos fixes das Roman Enterprises. Aposto que eles vos dirão que devem concordar. Tal como diz o velho ditado, "não se pode remar contra a maré".
Pôs-se de pé, pegou num chapéu ridículo com uma pena e num sobretudo que parecia ter sido cortado de um cobertor de cavalos.
- Ciaozinho - disse ele. - Discutam o assunto. Levem o tempo
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que for preciso. Mas vinte mil é o mínimo. Entrarei em contacto convosco.
Depois de o detective se ter ido embora, Martha fez-me fechar a porta à chave e colocar a corrente.
- Então? - perguntei.
-- Peter, ainda tens uma cópia daquela fita que gravei quando Futter concordou em tomar conta de Quink?
-- Claro que tenho. No meu cofre.
-E eu tenho a minha. Penso que o melhor é encontr armo-nos com Oscar Gotwold e tocá-la para ele.
- Estás a pensar em tramar Futter?
- Tramá-lo? - disse ela, irada. - Lembras-te do que aquele comandante da polícia disse depois da rusga? Se ele encontrasse o tipo que os avisou, que lhe cortava os tomates. Vamos fazê-lo por ele.
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Eu estava a encontrar-me com Jenny Tolliver duas ou três vezes por mês. Eu convidava-a com mais frequência do que isso, mas ela estava a trabalhar doze horas por dia e algumas noites estava simplesmente demasiado cansada para sair.
Mas ela pedia-me sempre que tentasse de novo. Eu achava que ela estava definitivamente a amolecer.
Por volta de meados de Maio, ela concordou finalmente em jantar comigo. E num sábado à noite! Mas a minha felicidade esfriou quando ela explicou:
- Eu geralmente saio com Arthur aos sábados à noite, mas ele está ocupado com os ensaios.
- Oh - disse eu. - A peça dele está a ser produzida?
- Está, estreia em Julho. Não é maravilhoso?
- Maravilhoso! - disse eu.
Fomos ao Christ Cella, que eu considero - e sou muito exigente - a melhor churrasqueira de Manhattan. Comi um bife mal passado, e Jenny comeu um filete às fatias. Consumimos proteínas suficientes nessa noite para mantermos uma tribo de aborígenes a dançar durante um mês.
- A propósito - disse eu -, quando estiveres com Arthur, diz-lhe..
Depois expliquei que tinha encontrado King Hayes e que este tinha deixado de beber e que estava bem.
- Oh, estou tão contente por saber isso - disse Jenny. - Gosto
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muito de King, e sei que Arthur estava preocupado. Que está ele a fazer agora?
- A trabalhar na nossa cozinha. Jenny parou de comer e olhou para mim.
- Vocês têm uma cozinha?
- Claro. Com uma sala de jantar, naturalmente. E um bar com um pianista. Também organizamos desfiles de moda e temos uma Noite de Jogo para jogadoras de cartas.
- Oh - disse ela num tom confuso. - Eu pensei..
Por isso dei-lhe uma pequena lição sobre o que era o Peters Place e o que ia ser: uma rede internacional de clubes privados exclusivos para mulheres com dinheiro, oferecendo espectáculos, lojas e ginásio - tudo debaixo do mesmo tecto.
Ela escutou atentamente. Vi que estava fascinada.
- Que achas? - perguntei quando terminei.
- Não fazia ideia de que fosse assim.
-Queres ser sócia-perguntei, olhando para ela.-Posso arranjar-te maneira de não pagares a jóia de inscrição.
- Não - disse ela. - Obrigada.
- Bem, queres ir conhecê-lo? Talvez tomar uma bebida no bar?
- Não - disse ela. - Obrigada.
Por isso, fomos antes ao Stanhope, sentámo-nos numa mesa a um canto, partilhámos uma garrafa de Heidsiek e comemos amendoins com sal.
- Conta-me mais coisas sobre Peters Place - disse Jenny. E eu contei.
Ela suspirou.
- Peter, achas que alguma vez vais sair disso?
- Jenny, se todos os nossos planos correrem bem, vai ser uma organização muito, muito grande. Eu serei um executivo de topo. Eles precisam de mim. Nunca terei outra oportunidade como esta.
- E a tua carreira de actor?
-Desempenho mais papéis num dia no Peters Place que num ano de procura de trabalho como actor. Seria tolice desistir disto. Estou a ganhar dinheiro a fazer uma coisa que faço bem.
- E de que gostas - disse ela num tom inexpressivo.
- É verdade - disse eu, desafiador. - Gosto, de facto. Todos os dias são diferentes, com novos problemas e novas soluções. Tudo aquilo resultou realmente de uma ideia minha.. e é um êxito estrondoso.
Ela virou-se de lado para me fitar.
- Escuta - disse ela. - Não é um lugar em que as mulheres pagam a homens para irem para a cama com elas?
Primeiro, Yancy Burnett, e agora ela.
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- Isso é parte - admiti -, mas não é tudo.
- Estou a ficar com muito sono - disse ela. - Importas-te de me levar a casa agora?
Estacionei o Datsun em dupla fila à porta do apartamento dela e voltei-me para a fitar.
- Jenny - disse eu -, um dia destes, eu gostaria que me desenhasses um esquema do teu código moral.
- Não precisas de um esquema - disse ela. - E muito simples: algumas coisas estão certas e algumas estão erradas.
- Nós temos quase mil sócias - disse-lhe eu. - Vais-me dizer que tu tens razão e que todas aquelas mulheres estão erradas?
- Elas são elas - disse ela -, e eu sou eu.
- Diz-me só quem é que fica magoado - disse eu, voltando ao meu velho argumento. - Diz-me o que é assim tão terrível.
Na luz pálida do tablier, ela parecia infinitamente triste e infinitamente bela. Por vezes, ela enfurecia-me pelo simples facto de me fazer sentir tentado a deitar tudo fora para viver do modo que ela queria. Aquele sacrifício fascinava-me.
- O que é terrível - disse ela em voz baixa -, é a qualidade de vida. Estás a depreciá-la, a fazer uma anedota comercial de algo frágil e precioso.
- Não sei o que queres dizer.
- Sabes, sim. Tu sabes exactamente o que eu quero dizer. Obrigada pelo jantar, Peter.
Saiu do automóvel e correu para o átrio. Fiquei ali sentado e fumei dois cigarros seguidos. Depois, um carro da polícia parou a meu lado e os chuis mandaram-me seguir adiante.
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Na noite de segunda-feira a seguir ao meu jantar com Jenny, trabalhei até tarde e, depois de fecharmos, King Hayes foi até ao Friendship Deli comigo. Sentámo-nos a uma mesa junto da parede de azulejos. Eu estava com fome, e comemos ovos mexidos com cebolas, hash browns1, torradas e um bule de chá. King só tomou café.
- Peter, vou-me embora. Quero dizer, vou viver outra vez com Louella - disse ele, olhando para a chávena de café. - Já conversámos, finalmente, e eu concordei em voltar.
- Espero que estejas a agir correctamente.
1. Puré de batata misturado com cebolas e frito em pequenos pastéis. (N. da T.)
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- Eu sei que é um risco - disse ele, erguendo os olhos.
- Queres continuar a trabalhar na cozinha?
- Não - disse ele. - Posso começar a fazer cenas de novo?
- Claro. Fico muito satisfeito em ter-te de volta. Disseste a Louella?
- Ela diz que não se importa.
Eu continuei a meter comida na boca, e ele bebeu o café. Invejei-o, ter uma mulher que o amava assim tanto.. que não se importava com o que ele fazia.
Acabei a comida em tempo recorde, afastei o prato e bebi o meu chá.
- Escuta, King - disse eu. - Eu não quero ser desmancha-prazeres. Sou todo a favor. Tenho um garanhão muito conhecido a trabalhar de novo. Mais dinheiro no banco. Mas já pensaste que Louella pode mudar de ideias?
O enorme negro mexeu-se, inquieto.
- Achas que já não pensei nisso? Eu disse a Louella que é o que provavelmente vai acontecer.
- Que é que ela disse?
- Ela não disse que não, que isso era impossível. Ela diz que não podia garantir como se vai sentir daqui a seis meses, mas entretanto, diz que quer tentar. Só para ver se funciona.
- Espero que funcione, King.
- Eu também.
Paguei a conta e comprei dois charutos. Há anos que eu não fumava um. Eu e King acendemos os charutos e voltámos para o Peters Place envoltos na noite suave, a fumar com um ar importante.
- Sabes-disse King -, todos nós cometemos erros. Depois, dizemos, "Bem, se voltasse ao princípio, tenho a certeza de que não faria isso". Mas não existe uma segunda oportunidade, pois não? Quero dizer, aprendemos com o tempo.
- Somos todos amadores, King. Na vida, quero eu dizer.
- Louella diz que toda a sua vida tem sido planeada: como obter uma boa educação, ir para a universidade, um bom grau académico, arranjar um emprego e subir. Bem, ela fez tudo isso, e não está satisfeita. Agora quer viver o dia presente.
- Uma mulher inteligente - disse eu.
- Bem.. - disse ele num tom cauteloso -, talvez seja. Mas, por outro lado, pode ser que, na hora da morte, ela diga: "Cometi um erro terrível, para a próxima vez tenho de me lembrar de não fazer o mesmo." Mas não há próxima vez, pois não? Quero dizer, Peter, ninguém sabe realmente se o que está a fazer é o melhor para si.
- Eu de certeza que não sei - disse eu.
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Há muito tempo que eu não ia para a cama com Jenny Tolliver, e não parecia haver muita probabilidade de isso acontecer no futuro imediato. E depois de Nicole Radburn ter partido para a Costa, também fiquei privado da intimidade física-de que eu, de uma maneira louca, gostava muito.
Eu tinha apenas uma ou duas cenas por semana, pois estava a trabalhar muito e não sentia um grande apetite sexual. Mas não queria perder o contacto com essa parte - desculpem a expressão.
No início de Junho, um dos nossos garanhões não apareceu para a sua cena - uma ocorrência frequente - e eu disse a Martha que a faria. A cliente chamava-se Mabel, que está longe de ser o meu nome preferido.
Ela subiu ao meu quarto no terceiro andar. Parecia uma menina, com um vestido de chita com uma saia aos folhos e as mangas debruadas com renda. Era horrível. Mas ela era jovem e tinha um ar fresco. Por volta dos vinte e cinco anos, calculei.
Pediu uma coca-cola de dieta, que foi servida num copo sofisticado, com uma rodela de lima presa no bordo. Mabel ergueu-o à luz.
- Fabuloso! - disse ela, num tom de admiração.
Quando se despiu, confesso que fiquei a olhar. Não por o seu corpo ser belo, mas por ser tão bizarro.
Do umbigo para cima, ela era magra. Seios pequenos, ombros estreitos, braços finos. O cabelo era uma touca de caracóis pequenos numa cabeça em forma de ovo, em cima de um pescoço comprido. O efeito era de fragilidade jovem.
Do umbigo para baixo, ela era uma mulher completamente diferente: ancas largas, traseiro volumoso, coxas enormes e tornozelos grossos. As mãos dela eram pequenas e delicadas; os pés eram grandes e gordos como cascos.
Ela parecia, de facto, duas mulheres cortadas ao meio por um mágico depravado que seguidamente tinha unido as metades díspares. De frente e de trás, ela parecia uma cabaça enorme e dourada.
Depois de me ter despido, ela inspeccionou-me e disse:
- Tens um corpo maravilhoso!
Não era experiente na cama, mas era uma aluna interessada, "fabuloso!", dizia ela constantemente. Ou "maravilhoso!".
Ela tinha a força e a agilidade de uma adolescente. Mesmo aquelas ancas e coxas enormes e o traseiro volumoso eram firmes. Tal como Sally, a minha ex-mulher, era particularmente sensível às cócegas.
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Divertimo-nos muito juntos. Quando ela ficou excitada, o seu rosto, garganta, peito e tronco tornaram-se cada vez mais rosados. A metade inferior do corpo permaneceu creme, o que acentuou a dicotomia. Era um espectáculo incrível.
Foi preciso muito tempo para ela atingir o orgasmo, mas acabei por conseguir.
Quando conseguiu falar, ela disse:
- Foi óptimo!
- Para mim, também - disse eu. Que é a conversa habitual das putas.
- Vim-me mesmo, não foi?
- Foi, de facto - disse eu, depois olhei-a mais atentamente. - Nunca te aconteceu antes?
- Talvez. Não tenho a certeza. Mas nada como hoje. Enquanto nos vestíamos, ela disse:
- Eu tenho o meu próprio apartamento. Sou uma cozinheira maravilhosa.
-Mabel-disse eu-, não nos é permitido encontrarmo-nos com clientes lá fora. Eles são muito rígidos a esse respeito.
- Oh! - disse ela, desapontada.
- Podes sempre voltar em qualquer altura - fiz-lhe notar. - Pergunta por mim.
- Eu sei. Mas seria melhor se nós.. Posso dar-te o meu número de telefone? Só para o caso de poderes?
- Está bem - disse eu. - Se quiseres.
Ela tinha uma pequena agenda com um lápis dourado na mala. Escreveu o seu endereço, número de telefone e nome completo:
- Mabel Hetter.
- Não o percas - disse ela.
-Não perco-garanti-lhe, dobrando o papel e metendo-o na carteira.
- Nunca se sabe - disse ela.
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Encontrámo-nos com Oscar Gotwold no apartamento de Martha às nove da manhã. Mesmo tão cedo, o homenzinho estava enérgico e impecavelmente bem vestido, com a cabeça careca e os sapatos a brilhar.
Enquanto ele bebia café e comia um bolo, relatei-lhe como o detective Luke Futter tinha exigido que duplicássemos o dinheiro que lhe
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dávamos para vinte mil por mês. Oscar limitou-se a acenar com a cabeça.
Depois Martha entrou em cena. Ela contou-lhe como Sidney Quink tinha tentado fazer chantagem connosco quando estávamos no início. Disse-lhe que tínhamos pedido ajuda a Futter e que ele a tinha dado. Em seguida, ela tocou a cassete.
Aquelas vozes arranhadas vinham de outro mundo, de outra era. Escutámos todos atentamente. Quando a fita terminou e Martha desligou o gravador, Oscar acabou o café e levou o guardanapo de papel aos lábios.
- Corrijam-me se estou errado - disse ele -, mas suponho que querem utilizar a gravação para manter este homem na linha. Estou correcto?
- Estás - disse Martha num tom irado. - Futter não havia de querer que a fita se tornasse pública.
- Oh? - disse Gotwold. - E como pensam torná-la pública? Num tribunal? Noticiários de televisão?
Olhámos para ele.
-Na minha opinião-prosseguiu o advogado -, seria sensato da vossa parte queimar essa fita e todas as cópias. Implica-uos a vocês, e é perigosamente perto de aliciamento ao crime. Se este detective for tão esperto como o descrevem, ele sabe que vocês não se atreveriam a tornar pública essa cassete.
- Merda! - disse Martha. - Que significa isto? Que teremos de ceder àquele estafermo?
- Não, necessariamente - disse Gotwold. - Ele deu-vos algum motivo para duplicar o dinheiro que recebe?
- Ele disse que o partilhava com muitos outros tipos - disse eu. - Superiores que recebiam uma parte maior que ele. Deu a impressão de que era uma organização grande e que ele não era mais que um caixa subalterno.
- Pode ser que isso seja verdade - disse o advogado -, ou não. Em todo o caso, este não é um problema legal; é um problema de força. O meu conselho é apresentarem-no a Cannis e Gelesco.
- Temos de o fazer? - perguntei.
Gotwold olhou para mim com uma ligeira surpresa.
- Qual é a tua objecção?
- Eu simplesmente não gosto da ideia de admitir que temos um problema que não conseguimos resolver e que corremos a pedir-lhes ajuda.
- Amen - disse Martha.
- Uma reacção humana muito compreensível - disse o advogado. - Mas tens de compreender que Cannis e Gelesco têm um investimento muito significativo no Peters Place. Qualquer coisa que
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ponha a empresa em perigo coloca-os a eles em perigo. E eles são, vocês têm de admitir, muito mais bem, ah, qualificados para tratar de um assunto como este. Eu aconselho-vos vivamente a entregar-lhes a resolução deste problema.
Ele olhou para o relógio, pôs-se de pé, pegou no sobretudo preto e nas luvas cinzentas de camurça.
-Tenho de ir andando-disse ele.-Por favor, pensem no assunto. Os vossos sócios são homens de negócio experientes. Seriatolice da vossa parte não aproveitarem a experiência deles.
- Pensaremos nisso - disse Martha.
- Ou o fazem - disse ele. - Ou cumprem as exigências de Futter. Não posso sugerir nenhuma outra alternativa.
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Durante o nosso encontro com Oscar Gotwold, Martha estava de roupão turco e chinelos.
- Tenho de tomar um duche e de me vestir para ir até ao clube -disse ela. -Vem cá dentro comigo enquanto me despacho. Há mais café, se quiseres.
Foi até ao quarto enquanto eu levava os pratos para a cozinha, depois dirigi-me à casa de banho e sentei-me em cima da tampa da sanita.
- Que pensas? - gritei.
- Eu acho que vamos ter de ir falar com eles - respondeu ela em voz alta. - Não me agrada nada.
- A mim também não - disse eu.
Não voltámos a falar até ela sair a pingar do chuveiro. Agarrou numa toalha e começou a limpar-se.
- Estou a ficar gorda que nem um porco - disse ela. - Seca-me as costas.
Pus-me de pé, peguei noutra toalha e comecei a secar-lhe os ombros largos e as costas.
- Oscar tem razão - disse ela. - É um problema de força, e Cannis e Gelesco estão mais bem equipados para o resolver que nós.
- Suponho que tens razão - disse eu, continuando a secá-la. - Mas eles vão começar a querer intervir mais na gestão da casa.
- Esse é o tipo de homens que eles são! - concordou ela. Passámos para o quarto. Ela começou a vestir os collants. Eu sentei-me na beira da cama a fumar um cigarro.
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- Eu não gostaria de ter aqueles tipos como inimigos! - comentei.
- Todo o poder vem de Octavius Caesar. - Ela segurou em dois vestidos para me mostrar. - O cor-de-rosa ou o preto?
- Preto. O cor-de-rosa é demasiado juvenil.
- Se não fosse Caesar - prosseguiu ela -, eles seriam cordeirinhos.
Pensei durante um momento, depois decidi-me, finalmente. -Martha - disse eu -. lembras-te de, no mês passado, te ter dito que tinha tido uma reunião com Octavius Caesar?
- Claro que me lembro. Sobre o lançamento da cadeia.
- Certo. Bem, o que não te disse foi que, quando saí do escritório dele, vi o teu namorado, Wilson Bowker, a entrar.
Ela estava a pintar os lábios. Subitamente, parou e girou para olhar para mim. Os seus olhos ficaram arregalados.
- Wilson? - disse ela. - Tens a certeza?
- Absoluta. Estava com um homem baixo, de chapéu de coco e a mastigar um charuto.
- McMannis - disse ela num tom inexpressivo. - O mandatário da campanha dele. E entraram no escritório de Caesar?
- Não tenho qualquer dúvida.
-Filho da mãe! - disse ela amargamente. - E só isso que eu preciso.
Voltou para junto do espelho e tentou acabar a maquilhagem. Mas não conseguia.
- Caesar não vai dizer nada sobre ti - disse-lhe eu. - Ele não é o tipo de homem que fala dos seus negócios. E Bowker certamente que não vai falar sobre ti a ninguém.
- Eu sei, eu sei - disse ela. - Mas, mesmo assim, não gosto da ideia de esses dois tipos se juntarem. Peter, há tanta coisa em jogo. Se Wilson conseguir chegar a Albany, daqui a quatro ou oito anos ele pode ir até ao topo.. tal como a mulher sonha.
- Presidente Bowker? - disse eu. - Talvez ele te nomeie ministra do Interior.
- Filho da mãe! - disse ela, zangada, e eu não disse mais piadas sobre o assunto.
Eu tinha vindo no meuDatsun e, depois de Martha ter fechado cuidadosamente a porta à chave, descemos para a rua, onde encontrei uma multa de estacionamento colocada debaixo do limpa pára-brisas.
- Manda-a a Octavius Caesar-aconselhou Martha. - Ele consegue resolver qualquer coisa.
Seguimos para a baixa no meio do movimentado trânsito da Quinta Avenida. Martha disse:
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- Tens a certeza de que era Wilson? Suspirei.
- Não devia ter-te dito.
- Não - disse ela. - Não faz mal.
- Vais-lhe fazer perguntas sobre o assunto?
- a Wilson? Meu Deus, não! Teria de explicar como conheci o velho.
- Oh, a teia que nós tecemos..
- Deixa-te de disparates - disse ela -, e toma atenção aos semáforos.
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Estacionei o automóvel em frente do Peters Place e disse ao- nosso porteiro-guarda - conhecido pelo pessoal como Godzilla - que o mantivesse debaixo de olho. Martha foi para o seu gabinete e começou a fazer reservas para almoços, jantares e cenas.
Eu segui a minha rotina matinal habitual de verificar o bar, a cozinha, a sala de jantar e os quartos, para me certificar de que todo o pessoal estava ao serviço e de que o clube estava pronto para abrir as portas.
Yancy Burnett apareceu para fazer o primeiro turno como anfitrião. Trazia vestido um fato de três peças de flanela de lã macia, camisa às riscas com colarinho branco e um discreto lenço de pescoço. Tinha um cravo vermelho na lapela.
- Muito bem - disse eu acenando a cabeça em sinal de aprovação. -- Qual é a ocasião?
- Acho que estou apaixonado - disse ele.
- Quem é o felizardo? - disse eu, e ele soltou uma gargalhada. - Yance, vou entregar o dinheiro a Clara Hoffheimer. Volto daqui a uma hora. Guarda a loja.
A ideia de Clara, de suplementar o nosso fornecimento de garanhões com membros das Forças Armadas de folga estava a funcionar muito bem. O leitor ficaria surpreendido ao saber que também tínhamos vários polícias de Nova Iorque e um agente do FBI?
Nessa manhã, Clara tinha um colar de pérolas de três fiadas, e não eram Chiclets. Pérolas de cultura de boa qualidade. E reparei num anel de topázio, com uma pedra suficientemente grande para poder servir de soqueira.
Observei-a a contar cuidadosamente o dinheiro.
- Está todo? - perguntei.
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- Certíssimo-disse ela, não se dando ao trabalho de acrescentar "Obrigada".
- Estás com um ar muito próspero hoje em dia, Clara - disse eu num tom casual. - As coisas estão-te a correr bem?
- Não podiam ir melhor.
- Nota-se - disse eu.
Ela fez um sorriso lascivo.
Ela era forte como Martha, mas mais grosseira, com um preocupante traço predador. Perguntei a mim próprio como Octavius Caesar lidava com a sua rapacidade. Depois ocorreu-me que talvez fosse isso que o atraía.
Ela levantou-se, deu a volta à secretária e sentou uma nádega em cima do braço da minha cadeira. Colocou uma mão na minha nuca.
- Eu gosto de trabalhar contigo, Peter - disse ela com voz rouca. - Eu e tu somos muito parecidos.
Esta não foi a notícia mais reconfortante que ouvi nessa manhã.
- Gosto de trabalhar contigo, Clara-disse eu. - E lucrativo para nós dois.
- Eu podia fechar a porta do escritório à chave - sugeriu ela com uma risadinha.
Vi a imagem horrível dela, deitada, de pernas e braços abertos, em cima da secretária, a rolar em cima de lápis, dos elásticos e dos clips, enquanto eu me debruçava sobre ela a bufar e a gemer.
Mas não foi isso que me impediu. Eu não ia pôr em perigo o futuro do Peters Place pondo os cornos a Octavius Caesar. Pensei rapidamente.
- Clara - disse eu num tom de lamentação. - Eu gostava de ter uma relação mais íntima contigo. Mas eu e Sol sempre fomos muito bons amigos.. Quando penso em nós dois.. bem, eu vejo Sol a olhar para mim do Além. Como se o tivesse atraiçoado.. compreendes? Simplesmente, não podia fazer isso à memória de Sol.
Continuei com a conversa durante algum tempo. Ao fim de alguns minutos, ela saiu de cima do braço da cadeira, e voltou a sentar-se à secretária. Pareceu-me ver-lhe lágrimas nos olhos.
- Peter - disse ela, sufocando. - Quero que saibas que eu compreendo, e que te respeito por isso.
Foi uma das minhas melhores actuações.
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Havia uma lâmpada acesa a um canto da Sala Mardi Gras. No centro da sala, Cannis, Gelesco, Martha e eu estávamos sentados a uma mesa de jogo de cartas. O fumo do charuto era espesso. Na semiobscuridão, via-se ele aumentar como o nevoeiro a invadir a sala.
Expliquei aos dois que o detective Luke Futter estava agora a exigir um pagamento de vinte mil dólares por mês.
- Se quisermos continuar abertos - acrescentou Martha.
- O filho da mãe! - explodiu Gelesco.
- Não passa de ganância-disse Cannis, abanando a cabeça com um ar pesaroso. - Se há uma coisa que eu não suporto, é um tipo ganancioso. Quero dizer, nós temos aqui um bom negócio e ele está a receber bom dinheiro. Mas agora cheira-lhe a dinheiro e quer mais, mais e mais.
- Ele diz que não é para ele - disse eu. - Afirma que tem de dar a várias pessoas. Jura que a maior parte vai para os de cima.
- Ele diz - disse Gelesco, num tom enojado. - Ele afirma. Ele jura. Quem é que sabe? Talvez esteja a metê-lo todo ao bolso. Acho que é melhor sabermos alguma coisa sobre este tipo.
- É - disse Cannis. E a seguir, dirigindo-se ao sócio: - Podíamos pôr Lou a trabalhar nisso. Ele é um verdadeiro diplomata.
- Certo - disse o outro homem. - Vamos fazer isso. Vamos descobrir para onde vai o dinheiro. Já o devíamos ter feito há muito tempo.
Agindo contra os meus conselhos, Martha tinha insistido em trazer consigo o gravador portátil e a cassete que tinha gravado com Futter a concordar em tomar conta de Sidney Quink, mediante pagamento. Agora, ela explicou a Cannis e Gelesco como Quink tinha tentado fazer chantagem connosco e como tínhamos pedido auxílio ao detective.
Depois, ela tocou a cassete. As vozes ásperas ecoaram na sala escura, cheia de fumo. Ouvimos atentamente até a fita acabar.
- E depois este Quink simplesmente desapareceu? - disse Cannis.
- Nunca mais ouvimos falar dele.
- Deve estar a dar de comer aos peixes - disse Cannis.
-Talvez, neste momento, seja uma auto-estrada-disse Gelesco, e os dois homens deram uma gargalhada.
-A questão é a seguinte-disse eu rapidamente-, nós não podemos utilizar aquela gravação para pressionar Futter. Oscar Gotwold diz que, se a tornarmos pública, também nos prejudicará muito.
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Quero dizer, nós oferecermos um suborno a um agente da lei para nos livrarmos dum tipo.
- É - disse Cannis lentamente. - Metem-no em assados, mas ficam também metidos em problemas.
- Escutem - disse Gelesco. - Há mais de uma maneira de esfolar um gato. Por exemplo.. Este chui diz que está a pagar aos superiores, certo? É provável que esteja. O único contratempo que tivemos até agora foi aquela rusga, e ele avisou-nos dela. Mas estes tipos do topo não querem problemas. Podem acreditar em mim. Não querem histórias de primeira página no Post. Por isso, têm este caixeiro-viajante em quem confiam. Mas, se eles ouvirem a gravação e disserem: "Tínhamos um tipo que achávamos que era inteligente, mas ele é tão estúpido que aceita um contrato e deixa que lhe o gravem. Este cretino tem de desaparecer."
- É, Mike-murmurou Cannis. - Isso é óptimo. Vamos mandar Lou descobrir a quem Futter tem andado a pagar. Depois tocamos a cassete e deixamo-los agir a partir daí.
- Certo, Tony - disse Gelesco. - Deste modo, as nossas mãos ficam limpas. Escutem - acrescentou ele, voltando-se para mim e para Martha. - Vocês deviam ter vindo ter logo connosco, quero dizer, com Tony e comigo, nós conhecemos muita gente. Temos muitos amigos que nos devem favores. Por isso, sempre que tenham problemas destes, dêem-nos um telefonema. Nós queremos trabalhar mais com vocês dois. Estou certo, Tony?
- Certíssimo - disse Cannis.
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Eu tinha andado a pensar muito em Jenny Tolliver, tentando resolver o problema de como a conseguir de volta sem sacrificar setenta e cinco mil dólares por ano e vinte e seis por cento dos lucros. Veio-me à ideia o que eu pensei ser uma solução esplêndida.
Eu continuaria a trabalhar no Peters Place, mas restringiria o trabalho ao bar, à sala de jantar e aos acontecimentos sociais. Não lidaria com os garanhões. Não faria mais cenas.
Na realidade, tornar-me-ia um dono de um restaurante. Martha e Yance podiam ficar com as minhas tarefas como responsável pelos garanhões.
Certamente que esta decisão responderia a todas as objecções morais de Jenny. Seria como se eu fosse um chefe de mesa. Um chefe de
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mesa não pode ser considerado responsável pelo que os seus clientes fazem depois de saírem da sala de jantar, pois não?
Um outro factor que conduziu à minha decisão foi o encontro com Cannis e Gelesco. Eu tinha a desconfortável sensação de que estava a meter-me em algo sobre o qual não tinha controlo. Toda aquela conversa em tom despreocupado sobre subornos a gente do topo e os inimigos a tornarem-se parte duma auto-estrada. Enregelava-me os ossos.
Como já referi, a violência física não é coisa que me atraia. Não me importava nada de deixar a parte ilegal do nosso negócio a cargo dos mais ousados que eu. Bem.. Martha dissera que eu tinha um coração mole.
Planeei essa noite como uma produção de The Glass Menagerie1. Eu ia ser uma visita - só que não me iria embora. Fiz uma reserva no La Folie. Mandei flores ao estúdio dela. Comprei um anel de noivado. Uma pedra pequena, mas elegante.
Vesti-me com um cuidado especial, com um smoking branco e calças pretas, e uma faixa cor de vinho. Sentia-me flutuar, cheio de esperança e de Halston Z-14.
Mas quando fui buscar Jenny ao apartamento, vi imediatamente que não ia ser uma noite encantada. Ela tinha uma camisa de homem vestida com as mangas arregaçadas por cima dos cotovelos, uma saia de ganga e sandálias.
Não foi a roupa dela que me desanimou, mas sim o seu aspecto. O cabelo caía, húmido, sobre os ombros. Não tinha qualquer maquilhagem no rosto, e parecia não ter dormido nas últimas quarenta e oito horas. Ou, então, tinha estado a chorar; tinha olheiras escuras debaixo dos olhos.
- Algum problema? - perguntei quando ela entrou no automóvel.
Abanou a cabeça e não respondeu.
- Fiz uma reserva no La Folie - disse-lhe eu. - Está bem? -Desculpa-disse ela -, mas não posso ir. Era para te telefonar, mas depois pensei que não seria correcto. Tinha de dizer-te cara-a-cara.
- Dizer-me o quê?
- Podemos ir dar uma volta? - disse ela. - Pelo parque. Qualquer lado.
Pus o Datsun a trabalhar e segui em direcção à entrada da 72ª Avenida do Central Park.
- Tenho uma coisa importante para te dizer - disse eu.
1. Peça de Tenessee Williams. (N.da T.)
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- Não, Peter. Ouve-me primeiro. Vou casar com Arthur.
Não carreguei no travão nem atropelei um atleta, nem nada disso. Mas senti as minhas mãos a agarrarem no volante com tanta força que me ficaram a doer os cotovelos.
- Arthur? - disse eu num grito. - Porquê?
- Ele é um homem bom e honesto.
- Eu sei.. mas Arthur? Quero dizer, ele é simpático, meigo e tudo isso, mas não tem genica nenhuma. Não é homem para ti.
- Ele disse-me exactamente o que me estás a dizer - disse ela num tom inexpressivo. - Ele conhece-se a si próprio tão bem como tu o conheces. Mas diz que me ama e que se esforçará para que o nosso casamento seja um êxito, e eu acredito nele.
Soltei um gemido.
- Jenny, dentro de seis meses vais estar a morrer de tédio.
- Acho que não. Há um ano que nos encontramos regularmente e ele ainda não me fez sentir entediada. Sentimo-nos bem ao pé um do outro. Não temos obrigatoriamente de fazer qualquer coisa ou ir a algum lado. Simplesmente, gostamos de estar um com o outro.
Estávamos a percorrer o grande círculo através das estradas interiores do Parque: a sul no West Side até à 59ª Avenida, para leste, depois virando para norte. Eu guiava suficientemente devagar para apanhar os sinais vermelhos. Precisava de tempo.
- Escuta - disse eu. - Antes de tomares uma decisão..
- Já decidi - disse ela com firmeza.
- Deixa-me dizer o que eu queria dizer..
Em seguida, falei-lhe no meu plano para deixar os garanhões e as cenas.
- Nada de cama -jurei. - Estou a ser sincero, Jenny. Olha.. Guiando com uma mão, procurei no bolso, tirei a caixinha de veludo. Coloquei-a à sua frente.
- Toma - disse eu, mas ela recusou-se a pegar-lhe.
- É um anel de noivado - disse eu. - Eu quero casar-me contigo. Eu sei que tu me amas. Eu sei. E se eu desistir do tipo de trabalho com que não concordas, não vejo por que razão..
Mas, nessa altura, ela começou a chorar, voltando a cabeça para eu não lhe ver as lágrimas. Mas ouvi os soluços suaves.
-Tu não vais deixar-disse ela, com voz rouca.-Não consegues.
-De que é que estás a falar?-disse eu, zangado. - Eu posso deixar aquele negócio quando quiser. Seria tolice eu desistir do meu investimento. Mas não terei absolutamente nada a ver com a parte dos quartos.
- Tu voltarias - disse ela, fungando. - Eu sei que o farias. Dentro de um mês, seis meses, um ano.. estarias outra vez a fazê-lo.
-Não estaria, não!-gritei, continuando a tentar persuadi-la da
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minha firme resolução. Mas nada do que eu disse conseguiu convencê-la.
Por fim, não havia nada mais a dizer. Acabámos a viagem em silêncio. Levei-a de novo para o seu apartamento.
- Muita sorte para ti e para Arthur - disse eu num tom formal, olhando em frente através do pára-brisas.
Ela inclinou-se para mim e beijou-me o rosto.
- Tinhas razão, Peter - disse ela. - Eu, de facto, amo-te. Mas há coisas mais importantes.
E foi-se embora.
Meti violentamente a mudança e acelerei pela rua abaixo.
- Vai-te lixar! - gritei.
Estacionei em dupla fila em frente do Peters Place. Estava-me nas tintas para que me pregassem cem multas ou que me rebocassem o maldito carro.
Entrei no clube. Yancy Burnett olhou para mim sem qualquer expressão.
- Voltaste cedo - disse ele.
Fui para o meu gabinete e bati com a porta. Deixei-me cair na cadeira giratória, recostei-me, coloquei os pés em cima da secretária. Tirei a caixa de veludo do bolso, abri-a, olhei para o anel. Depois atirei-a contra a parede do outro extremo. O mundo que se lixasse! Yance entrou com um copo de brande.
-Toma-disse ele, metendo-monamão.-Parece estares a precisar.
- Obrigado - disse eu, agradecido. - Bem preciso. Bebi-o em dois golos e sustive a respiração.
- Melhor? - perguntou Yance.
- Nem por isso. Como estão as coisas esta noite?
-Esplêndidas. Seis cenas a decorrerem neste momento. Mais cinco marcadas para antes da meia-noite.
- Os garanhões apareceram todos?
- Pontualmente.
- Merda! - disse eu.
Ele lançou-me um sorriso de comiseração e saiu do gabinete. Pensei durante um momento, depois endireitei-me e tirei a carteira do bolso. A nota dobrada ainda lá estava: Mabel Hetter, número de telefone e endereço. A jovem que parecia uma cabaça.
Ela atendeu o telefone ao segundo toque.
- Olá - disse eu num tom alegre. - Daqui é Peter do..
- Eu sei quem é - disse ela. - Fabuloso. Vem até cá.
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Foi no dia 24 de Julho. Lembro-me muito bem. Desci cedo de roupão e chinelos. Estavam a preparar a cozinha, por isso tomei o meu café na Sala de Sonhos e sentei-me a uma das mesinhas.
Estava lá há poucos minutos quando Anthony Cannis e Michael Gelesco entraram, se aproximaram da minha mesa e ficaram de pé a meu lado. As suas expressões eram graves. Cannis colocou a edição da manhã do Daily News em cima da mesa.
- Página quatro.
Fiquei a olhar para ele durante um momento, depois folheei o jornal até à página quatro. Gelesco apontou. Segui-lhe o dedo gordo. Era uma notícia curta:
"Suicídio de um detective. O corpo do detective de primeira classe Luke Futter, um veterano de vinte anos do Departamento da Polícia de Nova Iorque, foi encontrado ontem à noite no banco da frente do seu automóvel estacionado perto da 77ª e 54ª - Avenidas. Futter tinha um tiro na cabeça. O seu revólver de serviço, do qual tinha sido disparado um tiro, foi encontrado a seu lado. Enquanto se aguarda a confirmação da autópsia, a morte foi provisoriamente considerada um suicídio. As autoridades afirmam que o detective tinha andado deprimido ultimamente, aparentemente devido a problemas pessoais."
Li a notícia duas vezes, depois ergui lentamente os olhos para Cannis e Gelesco.
- Isto é horrível! - disse eu em voz baixa.
- Horrível! - concordou Gelesco, abanando a cabeça.
- Ele não me parecia ser do tipo suicida - disse eu.
- Segundo diz o jornal - disse Cannis encolhendo os ombros - , ele andava deprimido.
- É - disse Gelesco -, ele tinha problemas pessoais. Ei, que tal uma chávena de café? Simples para os dois.
Fui à cozinha e pedi a um dos empregados de mesa que trouxesse dois cafés. Eu sabia que não os conseguiria levar; as minhas mãos tremiam demasiado.
Não falámos antes de o empregado sair. Os dois vilões sentaram-se, beberam o café, suspiraram e recostaram-se nas cadeiras.
- Mandámos o nosso tipo investigar o Futter - disse Cannis. - Ele estava a partilhar o dinheiro, isso é verdade, mas não tanto quanto disse. Estava a ficar com a maior parte.
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- Ganancioso! - disse Gelesco.
- Os dez mil extra iam-lhe directos para o bolso - disse Cannis. - Que pensas disso?
Gelesco tirou a cassete do bolso e fê-la deslizar na mesa, na minha direcção.
- Aqui está a gravação de Martha - disse ele. - Nem sequer tivemos oportunidade de a utilizar.
- O tipo matou-se primeiro! - disse Cannis. - Já viste a sorte?
- Então, que acontece agora? - perguntei, nervoso.
- Falámos com algumas pessoas - disse Gelesco. - Concordámos em doze mil e quinhentos, que é muitíssimo melhor que vinte, estou certo?
- E, de agora em diante - disse Cannis -, eu e Mike tratamos dessa parte do negócio. Está bem, Peter?
- Obrigado - disse eu numa voz sumida. - Por mim, está bem.
- Nós tomamos conta dos subornos - disse Gelesco, e quaisquer outros problemas difíceis, tais como problemas com o pessoal e de segurança. Por que é que hás-de ser tu a ficar com todas as preocupações? Tu tens bom café aqui.
Terminaram e puseram-se de pé, mas não se foram embora e ficaram a olhar para mim.
- Tu foste falar com Mr. Caesar - disse Anthony Cannis - sobre eu e Mike passarmos aqui pelo bar de vez em quando para mostrar o sítio aos nossos amigos.
- Eu.. - comecei a dizer.
-Não faz mal-disse Gelesco.-Nós não ficámos zangados, pois não, Tony?
- Não, senhor.
- Mas às vezes - disse Gelesco -, pensamos que tu não nos tratas com o devido respeito.
- É muito importante tratar as pessoas com respeito - disse Cannis num tom de homem honrado. - Nós tratamos Mr. Caesar com respeito. Ele deve ser tratado com respeito.
- E achamos que também nos devias tratar com algum -- disse Gelesco. - Afinal de contas, somos sócios, certo?
- Por isso.. - disse Cannis - ..trata-nos com respeito, que nós também te tratamos com respeito.
- Por mim, tudo bem - disse eu, com a maior coragem que consegui reunir.
- Assim é que é um bom rapaz! - disse Michael Gelesco, estendendo a mão e dando-me um beliscão no rosto.
Doeu.
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Na noite em que Jenny Tolliver me falou da sua intenção de se casar com Arthur Enders, eu telefonara a Mabel Hetter, dirigira-me apressadamente ao apartamento dela e esgotara a minha frustração e hostilidade numa cama de quatro colunas de carvalho, no seu quarto.
- Óptimo! - disse ela, feliz.
Eu estava de volta ao Peters Place antes da meia-noite mas, por gratidão para com a generosa submissão de Mabel, concordei em ir jantar com ela na sexta-feira seguinte. Insisti em levar o vinho: uma garrafa de Chablis e uma de Pommard 78.
Mabel vivia num desses prédios de apartamentos antigos na 57ª Avenida Oeste com setenta e cinco anos de sujidade da cidade incrustados em carrancas e querubins de pedra calcária esculpidos na fachada. Os elevadores eram gaiolas, e todas as banheiras se agachavam sobre quatro patas, prontas para se lançarem sobre as suas presas.
Era, na realidade, um prédio antigo maravilhoso, construído originalmente para servir de estúdios de artistas. Parquet na sala e chão de azulejos nas casas de banho. Tectos com quatro metros de altura e muitos painéis de nogueira. Portas de correr com maçanetas e fechaduras de bronze. Bancos com estofos de veludo embutidos sob as janelas, claro.
Mabel tinha um apartamento de duas assoalhadas e disse-me que pagava cento e vinte e cinco dólares de renda por mês.
Portanto, ali havia dinheiro - certo? E, uma vez que ela não trabalhava, calculei que tinha de vir da mamã e do papá no Kansas. Ela disse-me que o pai era dono de alguns silos de cereais ou qualquer coisa semelhante.
Ela tinha mobilado o apartamento na tradição do Exército de Salvação -cadeiras e sofásgrandes, quase tudo tão velho como o próprio edifício. Havia muitas almofadas de chintz e cretone. Alguns objectos bons, mas a maior parte era lixo. Muitas flores frescas, o que era agradável. Um piano velho. O único aparelho de ar condicionado estava colocado na janela do quarto.
Ela tinha-me dito que era uma cozinheira maravilhosa, mas calculei que fosse do tipo quiche e salada de espinafres: depois de dar uma vista de olhos à cozinha, vi que ela levava a comida a sério.
Era quase do tamanho da cozinha do Peters Place, e uma das prateleiras continha tachos e panelas suficientes para dar de comer a South Bronx inteiro. Um lava-louças duplo, uma superfície de
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trabalho comprida, frigorífico com congelador separado, um fogão a gás do tipo comercial, um fogão de micro-ondas.
- Adoro cozinhar! - disse ela.
- Eu adoro comer! - disse eu, dando-lhe o meu melhor sorriso lascivo à Groucho Marx. Mas ela não compreendeu.
Ela serviu metades de abacate fresco cheio de pedaços de caranguejo e bocadinhos de amêndoa tostada. A salada era uma mistura de arugula e agrião, com cogumelos japoneses e alguns pedaços de endivas. O molho tinha um sabor invulgar. Talvez pistachio?
O prato principal era bifes de vitela salteados em manteiga e cebolinho, com um toque de marsala. As lascas de feijão-verde foram servidas frias, com fatias de bacon canadiano do tamanho de uma moeda. Havia uma travessa de batata e batata doce misturadas, pouco maior que berlindes, cozidas e seguidamente mergulhadas em algo que lhes dava uma crosta depois de fritas.
Mabel tinha feito ela própria o pão-baguettes em miniatura, servidas com manteiga.
A sobremesa foi gelado de chocolate pecaminosamente saboroso, molhado com Kahlua, polvilhado com bocadinhos de chocolate negro e encimado com natas batidas.
Foi uma refeição memorável. Só havia uma coisa errada: estava tanto calor naquela sala cavernosa, que eu me senti tremendamente desconfortável. As janelas largas estavam todas abertas, mas Nova Iorque escaldava sob uma onda de calor de Junho, e era como jantar numa sauna.
Consegui, finalmente, convencer Mabel a apagar as velas; era calor de que não precisávamos. Acabámos o Chablis gelado primeiro e acabámos por meter cubos de gelo no Pommard, o que constituiu uma grave ofensa contra um vinho nobre.
Por isso, fiquei igualmente satisfeito quando o jantar terminou e eu me pude pôr de pé e descolar as calças do traseiro. Ajudei a levantar a mesa e, enquanto Mabel guardava a comida e empilhava os pratos, voltei para a sala.
A única coisa em que conseguia pensar era quanto tempo seria decente esperar até a poder atrair para o quarto. Não porque me sentisse particularmente excitado, mas sim porque sabia que havia ar condicionado lá dentro. Entretanto, andei de um lado para o outro, levantando os braços e torcendo o pescoço dentro de um colarinho ensopado.
O piano era velho e manchado mas, quando toquei algumas notas suaves, parecia perfeitamente afinado. Mabel entrou enquanto eu andava de um lado para o outro.
Ao lado do piano, havia um armário aberto cheio de pautas de música. Folheei-as. Ela parecia ter todas as canções escritas por Victor
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Herbert, George M. Cohan, Rudolf Friml, Sigmund Romberg e Jerome Kern.
- Que é tudo isto? - perguntei.
- Vim para Nova Iorque para estudar canto - disse ela. - Ainda não apareci profissionalmente, mas pertenço a este maravilhoso grupo amador que se especializa em operettas. Montamos espectáculos grátis em igrejas, casas de saúde, escolas, hospitais.. lugares desses. E muito divertido.
- Imagino que seja - disse eu, não muito interessado. - Mabel, importas-te que dispa o casaco?
Sem esperar por autorização, despi o casaco, desapertei a gravata e arregacei os punhos húmidos.
-Não sei como suportas estar aqui dentro sem ar condicionado - disse-lhe eu.
- Geralmente ando nua - disse ela, rindo. - E um hábito maluco que tenho.
- Não te inibas por minha causa - disse eu, dando a mecânica resposta masculina.
Nunca pensei que ela o fizesse, mas tirou toda a roupa num tempo- recorde, atirando o vestido, o soutien, os collants e os sapatos em todas as direcções. Depois fez pose, com as mãos nas ancas, colocou a cabeça de lado e deu-me um sorriso alegre.
- Não está melhor assim? - disse ela.
As janelas largas estavam abertas de par em par, as persianas estavam levantadas e as cortinas corridas para trás. No outro lado da rua, na 57ª Avenida, havia um edifício de escritórios às escuras mas, mesmo que houvesse um pelotão de tipos a observar através de binóculos, ela não se teria importado nada.
- Queres que cante alguma coisa para ti? - perguntou ela, num tom esperançoso.
- Claro - disse eu corajosamente. - Gostava de te ouvir. Sentei-me na beira do sofá, não me apetecendo pôr as minhas
costas molhadas contra o estofo. Ela inclinou-se e começou a procurar no meio das rimas de pautas.
- Está aqui uma de que gosto - disse ela.
Sentou-se ao piano, colocou a música ao alto. Vi a cabeça em forma de ovo equilibrada no pescoço comprido e encimado por uma touca de caracóis louros. Ombros estreitos, braços magros, cintura estreita. E, depois, aquelas nádegas enormes espalhadas por cima do banco do piano, como panquecas grossas.
Começou a cantar Ah! Sweet Mystery ofLife1.
1. Ah! Doce Mistério da Vida. (N. da T.)
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Não estou a dizer que fosse má cantora, não era. Mas era uma pequenina voz de soprano, estritamente uma voz de sala, nem sequer suficientemente poderosa para ópera ligeira. A professora devia ter sido processada por obter dinheiro sob falsos pretextos.
- Foi lindo! - disse eu, quando ela acabou.
Foi o comentário cavalheiresco apropriado, mas condenou-me. Tive de ficar ali sentado, a suar, a ouvir um concerto que incluiu Marys a Grand Old Name1, Indian Love Call2, One Alone3, e Lover Come Back to Me4.
Terminou o recital com Why Was I Born?5 - que reflectia exactamente o meu estado de espírito.
Quando voltou o rosto para mim, este estava corado do esforço.
- Vamos para o quarto refrescar - disse ela.
- Estava a ver que nunca mais dizias isso! - disse eu.
Como que a compensar pelo inferno da sala, ela tinha o ar condicionado do quarto tão frio que se podia pendurar metades de vaca nas paredes. Mas não me queixei.
Tomámos um duche juntos, de pé, naquela banheira louca, e borrifámo-nos à vez com um chuveiro de mão que parecia ter sido acrescentado a posteriori à extremidade da banheira. Depois, fomos para a cama e eu paguei pelo jantar.
Não foi um frete; ela era jovem, desejosa - e muito vocal. Não me importei com o "Fabuloso!" "Maravilhoso!" e "Soberbo!" Até podia apreciar os gritos, gemidos, latidos e murmúrios. Mas achei que ela foi demasiado longe quando, depois de termos terminado, insistiu em cantar um coro de Carít Help Loving Dat Man?.
Cerca das duas da manhã, acordei com uma sede enorme. Provavelmente, a comida muito apaladada, o vinho - o que quer que fosse. Saí furtivamente da cama e fui nu, em bicos de pés, até à cozinha. O calor foi uma bofetada no rosto.
Procurei no frigorífico. Por fim, encontrei, no congelador, uma taça com o que sobrara da nossa sobremesa: gelado de chocolate, Kahlua, pedacinhos de chocolate e natas batidas. Fiquei de pé junto do balcão da cozinha e devorei tudo.
Tal como a maior parte das pessoas, eu acreditava há muito no velho ditado que diz que o caminho para o coração de um homem passa pelo seu pirilau. Agora comecei a pensar se não seria antes pelo estômago. Seria isso verdade?
1. Mary é um bom nome antigo. (N. da T.)
2. Chamamento de amor índio. (N. da T.)
3. Um só. (N. da T.)
4. Amor regressa para mim. (N. da T.)
5. Por que nasci eu? (N. da T.)
6. Não consigo deixar de amar aquele homem. (N. da T.)
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Não fui convidado para o casamento. Não fez mal; compreendi o motivo pelo qual Jenny e Arthur pudessem considerar a minha presença embaraçosa. Mesmo assim..
King Hayes foi e contou-me tudo. Disse que a noiva estava muitíssimo bela e que o noivo parecia um coelho assustado. Tiveram uma pequena festa na sala traseira do Blotto, depois voltaram para o trabalho.
A peça de Arthur estreou-se na primeira semana de Agosto. A crítica do Times foi a única que li. Disse que Pôr do Sol de Madrugada estava desajeitadamente construída e era, nalgumas cenas, demasiado sentimental. Mas também disse que o dramaturgo era obviamente um escritor de grande talento com um futuro promissor.
Arthur lembrou-se de me enviar dois bilhetes para a peça. Convidei Mabel Hetter, mas ela estava a participar na peça Babes in Toyland, na Rockland State, e não pôde ir. Por isso, fui ver Pôr do Sol de Madrugada sozinho. Foi a primeira vez em dois anos que fui ao teatro.
Foi uma experiência dolorosa. A peça em si foi uma revelação. Era totalmente diferente do guião em que Arthur tinha trabalhado quando vivíamos no mesmo apartamento. Agora era sobre emoções desmesuradas. Devia ter sido uma ópera.
O crítico do Times tinha tido razão: a peça era desajeitadamente construída e sentimental, mas não se podia negar o seu poder e atracção plangente.
Era sobre um rapaz que vivia numa quinta e que se sentia insatisfeito com a vida limitada de uma pequena cidade do Nebraska. Sai de casa para explorar o mundo e conhecer-se a si próprio. Uma série de pequenos quadros apresenta as suas experiências no amor, na guerra, rico, pobre, atraiçoado, a trair, triunfante e derrotado.
Ele acaba por regressar a casa. A maior parte dos espectadores (em que eu estava incluído) esperava o fim convencional: o herói chega à conclusão de que tudo aquilo que ele procurava está contido naquela pequena cidade do Nebraska. "Lar, doce lar". Mas o dramaturgo tem ainda alguns recursos.
O herói, regressado da sua viagem pelo mundo, considera a sua pequena cidade tão insatisfatória como tudo o resto. Numa amarga cena final, ele renuncia à possibilidade de descobrir o seu graal
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pessoal e aceita a verdade de que estamos todos condenados ao descontentamento.
Era uma peça muito perturbadora-que é o que uma boa peça deve ser. Eu, não só me senti abalado pela percepção e pelo talento de Arthur, como ansiei ter a oportunidade de desempenhar o papel principal. Era um papel complexo que se prestava a uma dúzia de interpretações subtis.
Alguns anos antes, Sol Hoffheimer tinha-me dito que, se desistisse, estava destinado a passar o resto da vida a perguntar a mim próprio o que poderia ter sido se não o tivesse feito. Esta interrogação já estava a começar.
Tranquilizei-me a mim próprio com o pensamento de que tinha um bom emprego, um automóvel, um guarda-roupa esplêndido, uma companheira de cama que era também uma cozinheira maravilhosa, e um futuro brilhante. Então, porquê a insatisfação? Não sabia.
A única coisa que sabia era que sentia que a Primavera da minha vida tinha acabado e tudo o que tinha à minha frente era um Outono moribundo sem surpresas felizes.
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Algumas semanas antes, Seth Hawkins tinha entrado a cambalear no meu gabinete, com o aspecto de alguém que tivesse sido passado a ferro por um compressor.
As mãos tremiam-lhe, e tinha um tique na perna direita que não conseguia controlar. Além disso, tinha um olhar desvairado, como se tivesse acabado de ver algo monstruoso em que não conseguia acreditar.
- Que diabo te aconteceu? - perguntei, ansioso. Ele gemeu e contou-me a sua triste história.
A sua cliente tinha pouco mais de trinta anos. Chamava-se Sybil. Era alta, de ombros largos, com uma cintura estreita e ancas largas. Quando ela se despiu, tornou-se imediatamente óbvio a Seth que a mulher era uma fanática do exercício físico. Provavelmente, halterofilista.
-Peter-disse ele, num tom triste.-Ela até tinha músculos nas mamas.
A cliente fez pose para Seth, mostrando os bícepes e os trícepes-Depois, insistiu em fazer um braço de ferro, para mostrar a sua força-Ganhou.
- Quase me partiu o braço - lamentou-se Seth.
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Mas o pior estava para vir. Sybil insistiu em fazer luta livre, virou Seth de pernas para o ar, equilibrou o corpo dele na parte de trás do crânio e enlaçou-o.
Depois desta vitória, deu um salto e, antes que ele se conseguisse opor, agarrou-o por um ombro e, após alguns grunhidos, ergueu-o por cima da cabeça.
As acrobacias continuaram depois de terem ido para a cama.
- Dói-me o corpo todo - queixou-se ele. -Abriu-me as pernas como se fosse um osso do peito da galinha e quisesse fazer um desejo. Eu quase fiquei todo partido! Mas o pior, o pior mesmo, foi que, quando tudo acabou, ela apertou-me a mão, esmagou-me os nós dos dedos e disse: "Até breve." Peter - disse Seth Hawkins num tom que metia dó -, não me faças isso outra vez. Por favor.
Garanti-lhe que não o faria e mandei vir um brande do bar para lhe acalmar os nervos antes de se ir embora.
Em meados de Agosto, Sybil voltou. Mas não foi para outra cena. Tive conhecimento disso quando Martha entrou no meu gabinete.
- Há uma mulher no bar - disse ela. - Uma sócia. Quer falar com alguém da gerência.
- Não podes tratar tu disso? - perguntei.
- Eu não compreendo o que ela quer - disse Martha, confusa. Olhei para ela. Tanto Yance como eu tínhamos reparado que ela
não andava com muito bom aspecto ultimamente. Parecia ter perdido toda a energia. Ela costumava andar sempre bem vestida, mas, ultimamente, tinha-se tornado quase desleixada, usando vestidos com nódoas e meias com malhas caídas. E viam-se as raízes brancas do cabelo ruivo.
- Sentes-te bem, Martha? - perguntei. - Não andas com um ar muito feliz.
Ela conseguiu esboçar um ligeiro sorriso.
- Hei-de sobreviver - disse ela.
- O mesmo problema? - disse eu. - O próximo governador? Ela acenou com a cabeça, concordando.
- Sai dessa, querida - aconselhei.
- Como? - perguntou, e eu não soube o que lhe responder.
-Está bem-disse eu, com um suspiro. - A mulher no bar. Como se chama?
- Sybil Headley.
- Sybil? - exclamei. - Oh, meu Deus!
- Conhece-la?
- Nunca a vi, mas ela quase matou Seth Hawkins. Ela quer uma cena?
- Acho que não.
- Graças a Deus! - disse eu. - Vou viver mais algum tempo.
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Havia várias mulheres na Sala dos Sonhos, mas a maior parte em grupos de duas, três ou quatro. A única mulher que estava sozinha tinha cabelo castanho-claro comprido, caído sobre os ombros. Tinha uns óculos escuros amarelos enormes, de aviador. Havia um copo de coca-cola de dieta à sua frente.
- Miss Headley? - disse eu.
- Sou eu - disse ela. - O senhor quem é?
- Peter Scuro.
- É o patrão?
-Um dos patrões-disse eu, com um sorriso determinado.-Em que lhe posso ser útil?
- Para já, pode sentar-se - disse ela. Por isso, sentei-me. Ficamos a olhar um para o outro. Não sei o que ela viu, mas eu vi uma linda mulher com uma pele extremamente fina e macia. Tinha um vestido de Verão sem mangas e as pernas longas estavam nuas. A sua pele era absolutamente perfeita.
- Tem um bronzeado maravilhoso! - disse-lhe eu.
- Deixe-se de conversa fiada - disse ela secamente. Remexeu numa mala de pele de lagarto e de cobra e encontrou um
cartão. Passou-mo por cima da mesa. Sybil Headley. Editora-adjunta. Revista Madhatter.
- Conhece a Madhatter? - perguntou ela.
- Conheço, sim - respondi.
- Lê-a? - quis ela saber.
- De vez em quando - disse eu cautelosamente.
-Nós especializamo-nos em investigação jornalística-disse ela rapidamente. - A história atrás das histórias na área de Nova Iorque. Revelações, escândalos, onde estão escondidos os esqueletos, onde estão enterrados os corpos. Mais de um milhão de leitores por semana. Eles adoram-nos porque não temos papas na língua. Nada de paninhos quentes. Temos três processos por difamação contra nós neste momento, e vamos ganhá-los todos.
- Folgo em sabê-lo - disse eu.
- Agora as más notícias.. - disse ela. - Vocês têm uma casa de putas aqui.. só que as putas são homens e as clientes são mulheres. Uma história óptima. Em duas partes, pelo menos. Tenho todos os factos e números. Até tenho algumas fotografias que tirei com a minha pequena Minox quando ninguém estava a olhar. Vou dar-lhe a oportunidade de fazer uma declaração. Somos justos; publicaremos a sua defesa.
Suspirei.
- Quanto? - perguntei.
- O quê? - disse ela. Foi um latido.
- Quanto quer para não publicar? - disse eu, num tom cansado.
303
- Seu bosta de vaca! - disse ela, furiosa. - Pensa que nos pode comprar?
- Penso - disse eu.
- Bem, meu rapaz, vai ter um choque. Não estamos à venda. Lançou-me um olhar irado e eu retribui-lhe com o meu melhor
sorriso calmo, divertido, à William Powell.
- Se estiver interessada no gorila grande que guarda a porta.. - sugeri.
Ela corou, pôs-se rapidamente de pé e pegou na mala.
- Suponho que aquele lavrador lhe contou a nossa cena - disse ela, em tom de acusação.
- Contou. Fascinante. Esquisito, mas fascinante.
- Seu filho da mãe! - disse ela, e foi-se embora.
Fui ao gabinete de Martha e comecei a contar-lhe o que tinha acontecido, mas ela interrompeu-me.
- Por favor, Peter - disse ela. - Eu não quero saber. Resolve tu. Por isso fui até ao meu gabinete e tentei telefonar a Anthony Cannis eou Michael Gelesco. A secretária deles disse-me que tinham ido ambos a Las Vegas e só regressariam na semana seguinte. Pedi-lhe que lhes dissesse que me telefonassem assim que estivessem de volta.
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Depois de Clara Hoffheimer me ter tentado seduzir, tentei fazer que as minhas visitas ao seu escritório fossem o mais breves possível. Eu entrava, cumprimentava-a, entregava-lhe o dinheiro, esperava até ela o verificar e depois saía o mais depressa possível.
Mas, nos finais de Agosto, não consegui escapar a tempo. Ela deteve-me.
- Peter - disse ela. - Tenho um problema.
- Bem-vinda à raça humana - disse eu alegremente.
- E penso que talvez me possas ajudar - prosseguiu ela. - Eu tenho um amigo. Chamemos-lhe Mr. C.
- Está bem - disse eu.
- Bem, ele tem uma mulher que não o compreende. Por isso, não temos nenhum lugar para onde possamos ir, percebes? Quero dizer, não pode ser onde ele mora, e eu moro longe, com uma filha e tudo. E ele não quer ir para um hotel onde possa ser reconhecido. Ele é uma pessoa muito importante.
- Com certeza - disse eu. - Eu compreendo isso.
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- Por isso, o que eu estava a pensar.. o clube fecha às duas da manhã?
Concordei com um movimento de cabeça.
- E não há lá ninguém excepto tu, certo? Por isso eu estava a pensar se talvez..
Ela estava a começar a não acabar as frases, como Octavius Caesar.
Não gostei do que ela estava a propor. Teria dito não imediatamente, se não me tivesse ocorrido que talvez fosse ideia de Caesar. Eu não queria desagradar-lhe. Não com o futuro de Peters Place dependente da sua benevolência.
-Talvez se pudesse arranj ar-disse eu lentamente.-Para toda
a noite?
Ela soltou uma gargalhada alegre.
- Oh, não. Uma hora deve ser mais que suficiente. Eu também achei.
- E o transporte? - disse eu. - Carro, estacionamento e tudo
isso?
- Eu tratarei disso. Se nos puderes deixar..
- E depois desaparecer de vista?
- Eu sabia que ias compreender - disse ela, dirigindo-me um sorriso ingénuo.
Por isso, ali estava eu, duas noites depois, nervosamente à espera no Peters Place, olhando através do pequeno óculo da porta fechada. Cerca das duas e meia da manhã, um Lincoln antigo, preto, apenas ligeiramente mais pequeno que um carro funerário, parou à porta. Clara Hoffheimer saiu primeiro, depois ajudou Octavius Caesar a apear-se.
Abri a porta, afastei-me para o lado quando entraram, depois voltei a fechar a porta atrás deles. Caesar não trazia chapéu. O seu cabelo revolto brilhava, branco, na semiobscuridão. Ele lançou-me um olhar penetrante.
- Boa noite, jovem - disse ele, estendendo uma mão pálida.
- Boa noite - disse eu, apertando-a. - Gostaria de beber alguma coisa?
- Veuve Clicquot?
-- Com certeza - disse eu. - É para já.
Tirei a garrafa de champanhe do bar, rodei-a num balde cheio de gelo e levei-o a Clara.
- Qualquer quarto, no quarto ou no quinto andar - murmurei-lhe. - Eu estarei cá em baixo quando estiverem prontos para se irem embora.
Ela acenou com a cabeça, e dirigiram-se os dois para o elevador. Passei uma hora melancólica sentado ao bar, a beber Perrier.
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Ouvi o elevador descer e pus-me de pé. Clara entrou a correr. Estava a rir histericamente: ria, resfolegava, soprava, tentando tapar o nariz e a boca com a mão. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto.
Consegui acalmá-la o suficiente para ouvir a história. Octavius Caesar estava a vestir-se, o fecho da braguilha das calças tinha ficado preso na braguilha das cuecas. Ao tentar soltá-lo, ele tinha encravado o fecho, e agora as calças estavam abertas, com as cuecas brancas à mostra.
- Está com um ar tão cómico - disse Clara ainda ofegante. - Peter, que vamos fazer? Ele não quer que o vejas assim, depois há o motorista, e que vai acontecer se a mulher acordar quando ele chegar a casa e o vir?
-Escuta-disse eu.-Eu tenho uma gabardina velha que ele pode levar. Não precisa de a vestir, pode levá-la no braço, a tapar a frente.
Foi o que fizemos. Cerca de cinco minutos mais tarde, Octavius Caesar apareceu com a minha gabardina bem apertada contra a frente das calças.
- Boa noite - disse eu, numa voz cuidadosamente inexpressiva. Ele nem sequer olhou para mim.
Clara esboçou um sorriso rápido e assustado. Depois foram-se embora, e eu fechei a porta atrás deles.
Eu tinha concordado em organizar este encontro, pensando em agradar a Mr. C. Mas fiquei com uma insidiosa suspeita de que os acontecimentos da noite não tinham marcado pontos a meu favor.
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Michael Gelesco telefonou a dizer que tinha recebido a minha mensagem. Disse-lhe que gostaria de falar com ele o mais depressa possível.
- Onde queres que nos encontremos? - disse ele friamente. Quando lhe disse que não me importava de ir à Boutique Barcarole, ele tornou-se imediatamente mais amável. Suponho que isso era o que eles consideravam "mostrar respeito". Marcámos um encontro para as desasseis horas do dia seguinte.
Sentámo-nos a um extremo da mesa comprida da sala de reuniões. Eles fumaram os seus charutos, e eu tentei não tossir. Contei-lhes sobre Sybil Headley e o projectado artigo na revistalMadhatter.
- Ela diz que tem fotografias - disse eu. - E, nas suas próprias
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palavras, "todos os factos e números". Não faço ideia onde ela os arranjou.
- Revista Madhatter? - disse Cannis. - Mike, nós temos publicidade nessa revista, não temos?
-Temos, pois-disse Gelesco.-Um pequeno anúncio de seis por seis todas as semanas. Apenas o nosso nome, endereço e número de telefone. Muito requintado.
- Eu acho que não soube lidar com esta Sybil Headley - confessei. - Perguntei-lhe quanto é que ela queria para esquecer a história, e ela ficou furiosa.
- Peter - disse Gelesco em tom de compaixão -, tens de aprender que, com coisas destas, se vai directamente ao topo. De outro modo, encravamos a meio do caminho e ficamos tramados.
- Bem.. - disse eu, desanimado -, que fazemos agora?
- Não te preocupes com o assunto - aconselhou Gelesco. - Tudo se vai resolver; vais ver.
- Obrigado - disse eu, grato, e levantei-me para me ir embora.
- Ei - disse Cannis. - Como está Martha?
- Óptima - respondi. - Ocupada como sempre.
- Óptima, hem? - disse Cannis. - Não foi isso o que ouvimos dizer. Ouvimos dizer que ela anda com um ar muito desleixado e que não está a prestar atenção ao trabalho.
Eles tinham contratado todo o pessoal da cozinha, o porteiro e os empregados de bar, por isso não tive dúvidas de que eles tivessem um número suficiente de espiões a dar-lhes informações.
- Martha está a fazer um óptimo trabalho! - protestei.
- É? - disse Gelesco. - Espero que tenhas razão.
- Ela é indispensável - acrescentei, mas nisso fui demasiado longe.
-Peter-disse Cannis gravemente -, ninguém é indispensável.
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Eu estava a encontrar-me com Mabel Hetter duas ou três vezes por semana, dormindo geralmente em casa dela. Ela insistia em servir jantares de cinco pratos sempre que a visitava. Eu não conseguia resistir àqueles molhos deliciosos e aos bolos acabados de sair do forno. Estava mesmo a ficar gordo.
- Devias abrir um restaurante - disse-lhe eu.
Olhou para mim, ofendida.
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- Oh, não - disse ela. - Tenho de me dedicar à minha carreira de cantora.
Eu podia ter-lhe dito a verdade sobre a sua voz - mas de que serviria isso? Ela não acreditaria em mim.
Finalmente, no primeiro fim-de-semana de Maio, convenci-a a ir jantar fora. Fomos a um restaurante que servia nouvelle cuisine. Os preços eram horríveis e a comida não era tão boa como a de Mabel. Foi a primeira e última vez que jantámos fora. Ela estava satisfeita e eu também.
Não quero ser mau em relação a Mabel - ela foi sempre boa e generosa para mim -, mas devo dizer que ela estava longe de ser bela. Não era feia, mas não era nada bonita.
Mesmo assim, tinha um sorriso agradável, e os seus modos eram tão ingénuos, que era difícil levá-la a sério. Parecia ter vivido os seus vinte e quatro anos a evitar a corrupção, e possuía uma fé inabalável nos seus sonhos. Talvez fosse a sua inocência que me faziam voltar.
Isso e o seu pato assado com gengibre.
Eu levava-lhe presentes. A maior parte deles, pequenas coisas porque eu simplesmente não tinha dinheiro para fazer o papel de grande gastador. Mas ela aceitava tudo com a mesma alegria infantil e gostou particularmente de um ursinho com uma caixa de música no rabo. Esta tocava Look for the Silver Lining.
Em Setembro, eu já tinha levado a máquina de barbear e os meus artigos de toilette para a casa de banho dela e guardava camisas, roupa interior e meias na sua cómoda. Ela comprou-me um roupão - que outra coisa havia de comprar?
As nossas noites juntos eram bastante domésticas. Depois do jantar, eu ajudava-a a levantar a mesa e a pôr a louça na máquina. Depois, enquanto bebia uma cerveja ou um copo de vinho, Mabel presenteava-me com um recital.
Eu nunca compreendi bem por que motivo uma mulher tão jovem estivesse tão fascinada por operetas escritas à sessenta anos.
A seguir ao concerto obrigatório, retirávamo-nos para o quarto. Para uma jovem inocente, ela adquiriu rapidamente algumas técnicas sexuais muito sofisticadas. Um beijo podia ser a sua balada preferida, mas aprendeu a esperar mais do que isso na cama.
A nossa união sexual era importante para mim, penso eu, porque não existia a necessidade de ter de agradar a uma cliente. Talvez fosse por isso que eu conseguia funcionar tão bem. E ela era grata por tudo.
Além disso, pela primeira vez desde que Nikki Radburn tinha partido para a Costa, eu podia sentir o prazer da intimidade com uma mulher. Parte era prazer físico, eu sabia, mas o conforto e a sensação de proximidade após o coito era igualmente preciosa. E se ela queria
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terminar o nosso combate sexual a cantar Homens de Coração Forte, uma capella, eu podia suportar isso.
- Mae - disse-lhe eu (não conseguia chamar-lhe Mabel) -, supõe que acontece o pior e que, devido a circunstâncias sobre as quais não tens controlo, não consegues seguir uma carreira profissional no palco?
- Oh, isso nunca vai acontecer - disse ela alegremente. - Um dia destes vou ser famosa.
A sua determinação era espantosa.
- Mas há tanto que depende da sorte - contrapus. - Tal como estar no local certo na altura certa.
- Eu acho que nós construímos a nossa própria sorte - disse ela. Disse a mim próprio que queria evitar que ela se magoasse - mas talvez estivesse a tentar justificar a minha própria vida.
Eu gostava de me considerar um homem generoso. Mas levantou-se de novo um problema que me tinha surgido antes: onde estava a generosidade? Deveria ser brutalmente sincero ou contribuir para perpetuar uma ilusão? A minha única consolação era que homens mais sábios que eu não tinham resolvido este dilema ético.
Eu suponho que sou um peso leve intelectual. Para mim, a introspecção é uma perda de tempo que raramente conduz a uma acção positiva. Por isso, deixei Mabel Hetter sonhar e apertei mais o seu corpo saboroso e mal feito. Era bom abraçá-la.
Se o lema dela era "fazer de conta", o meu era "todos os dias são dias das senhoras".
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Depois do 1º de Maio, o nosso negócio aumentou imenso. E, por volta dessa altura, Martha começou a tirar dias de folga, a telefonar a dizer que estava doente, ou simplesmente a não aparecer.
Era duro para Yance e para mim, porque tínhamos de fazer o trabalho dela, além do nosso.
- Escuta - disse-lhe eu. - Não sei o que se passa com Martha, mas temos de fazer qualquer coisa antes que esta casa se desfaça-
- Eu posso fazer as reservas quando Martha não está cá - disse Yance lentamente. - Mas não consigo fazer isso e fazer as marcações dos pedidos por telefone e de acompanhantes e trabalhar como anfitrião sete horas por dia.
- Claro que não podes-concordei.-Acho que podes tomar conta das reservas quando ela não aparece, e as marcações dos pedidos
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por telefone e dos acompanhantes, como habitualmente. Mas esquece o trabalho de anfitrião. Vamos contratar outro tipo.
- Quem?
- Que tal King Hayes?
Yance ergueu as sobrancelhas, mas depois pesou durante um momento.
- Sabes - disse ele -, ele é capaz de servir. É grande, bem-parecido, com boa apresentação. E tem experiência na cozinha. Achas que ele aceita?
- Terá um salário, não terá de fazer cenas a não ser que queira. Acho que vai aceitar logo.
- Vais ter de lhe comprar roupa.
- Vai ser fácil. Ele vai adorar!
Por isso, levei King à Brook Brothers e escolhemos dois fatos com colete - um de flanela cinzenta às riscas e o outro de sarja azul-escura. Camisas, gravatas e sapatos: tudo tradicionalmente elegante. King não conseguia parar de rir.
Ele foi um êxito instantâneo como anfitrião. Simpático sem ser servil, tinha uma boa memória para nomes e lidava com as queixas com um humor desarmante. Deixou de fazer cenas, e recebi uma gravata comprada no Sulka com um cartão que dizia: Obrigada. Louella.
Nos dias em que vinha trabalhar, Martha estava tão perturbada, que Yance tinha de ficar ao pé dela para conseguir fazer as marcações e as reservas. Com o seu sistema de espionagem, eu tinha a certeza de que Cannis e Gelesco tinham conhecimento de tudo isto.
Por volta de meados de Setembro, estava eu a fazer o turno da noite como anfitrião. Era uma noite de sexta-feira e tínhamos muito movimento. A certa altura da noite, todos os quartos dos andares superiores estavam a ser utilizados.. incluindo o meu.
Fiquei satisfeito quando, às duas e meia, toda a gente - clientes e pessoal - se tinha ido embora e pude desapertar a gravata e o cinto e descontrair-me. Decidi ir até ao Friendship Deli beber uma chávena de chá e comer uma torrada.
No caminho de regresso a casa, a cerca de meio bloco do clube, dois homens saíram das sombras e atravessaram-se no meu caminho. Pensei que fosse um assalto.
Mas um deles disse:
- Mr. Scuro? - E olhei melhor para eles.
Dois homens baixos, de tipo latino, com fatos pretos luzidios. Tinham ambos pequenos bigodes, mas um tinha uma cicatriz que ia da testa ao queixo. Nenhum deles tinha uma arma à vista, mas obviamente que não era o tipo de homens que convidaríamos para o baptizado do nosso sobrinho.
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- Sou - disse eu, perguntando a mim próprio se deveria começar a gritar.
- Conceda-nos um momento - disse o da cicatriz. - Por favor.
Fez um gesto em direcção ao Mercedes, enorme e brilhante, estacionado junto do passeio. A porta abriu-se, a luz interior acendeu-se, e um homem sentado no banco de trás inclinou-se na minha direcção, acenando com a cabeça e chamando-me com a mão.
Embora os dois homens baixinhos tivessem o cuidado de não me tocar, eu tive a convicção de que, se tentasse fugir, eles cortar-me-iam o coração às fatias antes de eu chegar ao passeio.
Por isso, subi para o banco de trás do Mercedes. O homem sentado era baixo, como os seus capangas. Com alguma dificuldade, consegui vê-lo à luz fraca de um candeeiro da rua próximo. Cerca de cinquenta anos. Muito bem vestido. Fato feito por medida. Cabelo cinzento de aço, ondulado. Um rosto triste, pensativo. A sua água de colónia enchia o automóvel. Com cheiro a fruta.
- Por favor, desculpe-me, Mr. Scuro - disse ele com uma voz aguda, aflautada -, por este método pouco convencional de me encontrar consigo. Mas pensei que era melhor que ir ao seu clube. O meu nome é Ivar Gutierrez - disse ele, não oferecendo a mão para eu a apertar. - Sou proprietário de várias coisas, incluindo a cadeia de lavandarias Kwik Kleen. Talvez tenha ouvido falar nelas. Mais de cem lavandarias na área de Nova Iorque.
- Mr. Gutierrez, Peters Place já tem um serviço de lavandaria. Temos um contrato.
- Eu sei - disse ele. Sei que o senhor é dono de vinte seis por cento das acções. Eu gostaria de comprar essas acções por um preço convidativo. Em dinheiro.
Fiquei sem respiração. Não fazia ideia de como ele tinha descoberto a quantidade exacta das minhas acções no Peters Place.
Mas o que mais me espantou foi a sua proposta de compra. Fez-me compreender o valor do que tinha e a minha determinação de não me desfazer do que possuía.
- Lamento muito, Mr. Gutierrez-disse eu -, mas as minhas acções não estão à venda.
- Não diga não tão depressa - repreendeu-me ele suavemente. -Pense no assunto. Eu creio que pagou, cento e quatro mil pelos seus vinte seis por cento. Estou disposto a oferecer duzentos e cinquenta mil. Não acha que é um bom lucro, Mr. Scuro?
E três anos antes eu andava a comer esparguete com almôndegas no Blotto! Eu teria assinado uma promessa de venda nesse mesmo instante, se não fosse a possibilidade de uma cadeia a nível mundial de Peters Places.
- Naturalmente - prosseguiu Gutierrez suavemente. - Não
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estou a contar que tome uma decisão neste momento. Mas pense no assunto. Um jovem como o senhor poderia fazer muitas coisas com tanto dinheiro. Não é verdade?
- Sim - disse eu com voz rouca -, é verdade.
- Então, posso contar ter a sua decisão em breve? - Ele tirou subitamente um cartão de visita do bolso das calças e meteu-o na minha mão. - Pode telefonar para este número a qualquer hora. Do dia ou da noite. Se eu não estiver, deixe uma mensagem. Sim ou não. Eu penso que, de facto, seria sensato da sua parte dizer sim.
- Pensarei bastante na sua generosa oferta - disse eu num tom formal.
- Okay - disse ele, sorrindo pela primeira vez e revelando um dente de ouro.
Saí do automóvel e os dois rufiões baixinhos deixaram-me ir embora. Afastei-me com um passo firme, sem olhar para trás, e apenas quando me encontrei dentro do Peters Place, com a porta fechada à chave, com a corrente e o cadeado postos, tive consciência de estar encharcado de suor.
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Quando Martha não compareceu ao trabalho na manhã seguinte, telefonei-lhe cerca das onze horas.
- Acho que não vou conseguir ir - disse ela numa voz inexpressiva.
-Eu calculei-disse eu.-Mas tenho uma coisa importante para te contar. Que tal eu aparecer aí?
- Eu não estou realmente em condições de receber visitas.
- Então, faço eu de anfitrião. Estás com apetite, querida? Eu podia levar um frasco de geleia de mão de vaca.
- Traz antes Armagnac - disse ela.
Eu penso que esperava encontrar uma mulher desmazelada, despenteada e com olhos ramelosos. Teria um roupão malcheiroso vestido e tentava curar as tremuras com um Bloody Mary1. O apartamento estaria coberto de pó, com beatas de cigarro por todo o lado.
Não aconteceu nada disso. Ela estava vestida com razoável elegância, tinha o cabelo arranjado e as mãos firmes. O apartamento estava arrumado e os cinzeiros vazios.
1. Bebida com vodka e sumo de tomate. (N. da T.)
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-Aperaltei-me e estava pronta para ir para o clube - confessou ela -, mas depois não consegui sair. Peter, que se passa comigo?
- Nada de especial - disse eu. - O que tu precisas é de um bocadinho disto.
Tirei a rolha ao Armagnac e deitei um pouco para cada um. Sentei-me a seu lado no sofá de couro preto e pus-lhe um braço por cima dos ombros. Eu gostava muito dela, e custava-me vê-la desfeita por causa de um cretino de um político.
Fiz um novo acto que tinha inventado: imitações de Anthony Cannis e Michael Gelesco a descobrirem as glórias da Vénus de Milo.
- Ei, Tony, aquela tipa não tem braços!
Nessa altura já ela estava a rir tanto, que as lágrimas lhe corriam pela cara abaixo.
-Meu Deus, Peter-disse ela, parando para respirar. - És mesmo o que o médico receitou!
- E faço visitas domiciliárias - disse eu.
Em seguida, descrevi o meu encontro na noite anterior com Ivar Gutierrez, incluindo quanto ele oferecera pela minha parte no Peters Place.
- Esquece - aconselhou ela. - Ele parece ser um vigarista de meia-tigela a tentar fazer dinheiro fácil pela força.
- Achas que sim? Para vigarista, ele safa-se bem. E viaja com uma boa escolta.
-Um par de rufiões de bairro que ele contratou por uma hora. Telefona-lhe, Peter, e diz-lhe que não estás interessado.
-Vou fazer isso - disse eu. - Agora, falemos sobre ti.. Martha, não estou a gostar de ver o que te tem sucedido ultimamente.
-Eu sei-disse ela. - Sinto-me sem qualquer energia. Também sei que não estou a cumprir os meus deveres no clube. Eles sabem quantos dias estive ausente?
- Eu não lhes disse - disse eu -, mas eles sabem.
- Claro - disse ela num tom amargo. - Claro que sabem. Bem, que se lixem.
- Mas com respeito a Yance e eu? - disse eu. - Mesmo com King a trabalhar como anfitrião, fartamo-nos de trabalhar. A fazer o teu trabalho. Não é justo.
- Dá-me outro brande - disse ela.
Bebemos lentamente os nossos brandes, pensativos, sem falar. Olhei em volta da sala, cheia de paquidermes de tromba erguida e pensei em todas as vezes que ali tinha estado, e em todas as alterações importantes na minha vida que ali tinham começado.
-Alguma novidade quanto a Mr. Bowker?-perguntei num tom casual.
- Há. Recordas-te de te dizer que ele ameaçara suicidar-se se 313
eu o deixasse? Bem, agora diz que, se o deixar, primeiro mata-me e depois suicida-se.
- Deus do céu! - exclamei. - Martha, esse tipo é maluco!
- E um político - disse ela encolhendo os ombros. - Achas que algum homem normal, que esteja bom da cabeça, se mete nesse ramo de actividade?
- Bem, tens de te livrar dele - disse eu num tom severo. - Isso de assassínio e suicídio pode ser só conversa, mas não vale a pena correr o risco.
Ela suspirou.
- Tens razão, Peter. Não é só em mim que tenho de pensar, há também o meu filho. O que decidi fazer é o seguinte: vou voltar para Chicago. Vou quebrar o meu contrato de trabalho, ninguém me vai processar, mas vou manter os meus vinte seis por cento do Peters Place. Isso deve dar-me dinheiro suficiente para poder talvez abrir uma pequena boutique em Chicago. Que achas?
- Bem.. - disse -, não me agrada nada que te vás embora, querida, mas não consigo sugerir outra alternativa. Quando estás a pensar em ir-te embora?
- Dia 1 de Janeiro. Isso dará oportunidade a Yance ou a qualquer outra pessoa de aprender o meu trabalho. Este apartamento é meu e obterei um bom preço por ele, por isso não estarei mal no que respeita a dinheiro. Acho que, de facto, é o melhor. Tenho de me ver livre deste tipo de qualquer modo, para conseguir ter paz de espírito, e esta parece ser a melhor maneira.
- Que se passa com ele, Martha? - perguntei. - Já agora, que se passa contigo? Quero dizer, que atracção é essa entre vocês? É amor, sexo, ou quê?
- Oh, meu querido - disse ela. - Só nos filmes, nos livros ou no teatro é que as pessoas têm um só motivo. Na vida real, todos nós temos uma dúzia de motivos, todos ao mesmo tempo, para agir como agimos, e quem é que é capaz de os destrinçar ou de dizer que fez isto por causa daquilo? Tu, por exemplo. Está no jogo da carne porque gostas de dinheiro fácil, gostas de sexo, gostas de mulheres, gostas de viver de expedientes, não suportas a ideia de um emprego regular das nove às cinco. Tens um milhão de motivos para fazeres o que fazes.
- É verdade - disse eu, pensativo. - Tens razão. Suponho que o que acontece é que todos nós pensamos que somos complicados e que todas as outras pessoas são simples.
- Sinto-me melhor agora - disse Martha. - Só de falar contigo. Obrigada por teres vindo. Sou capaz de voltar para o clube contigo. Dá-me um beijo.
Por isso beijámo-nos. Ela abraçou-me com muita força.
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- Tu és um homem muito amoroso! - murmurou ela. - Depravado, mas amoroso.
Quando regressámos ao Peters Place, fui imediatamente para o meu gabinete. Procurei o cartão de visita de Gutierrez e telefonei-lhe. Fui transferido de extensão para extensão, mas, finalmente, encontrei-o.
- Mr. Gutierrez - disse eu -, aqui fala Peter Scuro.
- Ah, sim - disse ele com a sua voz chilreante.
- Pensei na sua oferta, Mr. Gutierrez, e decidi que não é altura de vender as minhas acções do Peters Place.
-Não concordo - disse ele imediatamente. - Eu acho que agora é a melhor altura. O preço pode descer no futuro. E até possível que as suas acções deixem eventualmente de ter qualquer valor.
- Não acredito - disse eu com firmeza. - Pensei muito no assunto, e..
- Pense mais um pouco - interrompeu ele. - Pense longa e cuidadosamente. Talvez não tenha noção do que está envolvido nisto, Mr. Scuro. Recomendo-lhe vivamente que pense bem na minha generosa oferta.
-Lamento muito-disse eu, começando a ficar zangado. -Já decidi. Não há negócio, Mr. Gutierrez.
- Eu acho que talvez mude de ideias - disse ele. - Entrarei em contacto consigo. Terá notícias minhas.
A ameaça nas palavras e no tom da sua voz era real mas, pelo menos, tive a satisfação de desligar primeiro.
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Nos finais de Setembro tive uma ideia que rendeu ao clube pelo menos mais mil dólares por semana.
Era uma lotaria que funcionava assim: as sócias interessadas compravam bilhetes numerados a cinco dólares cada. Podiam comprar quantos quisessem. Todas as sextas-feiras à meia-noite, na Sala dos Sonhos, tínhamos uma extracção. A vencedora tinha direito a uma cena na semana seguinte com o garanhão que escolhesse.
Esta lotaria semanal (chamada Bango!) era apenas um dos factores que contribuíam para o fenomenal êxito financeiro de Peters Place. As reservas para a Sala Mardi Gras aumentavam, David e o seu piano atraíam multidões todas as noites, e os quartos dos pisos superiores tinham tanto movimento, que houve um sábado à noite em que tivemos, de facto, uma fila de espera.
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- É como numa loja - disse Yance, admirado. -Talvez devêssemos fazer as clientes tirar fichas.
Eu e Martha já não assistíamos às reuniões de negócios regulares, a não ser que nos fosse especificamente solicitado; achávamos que estávamos bem representados por Oscar Gotwold e Ignatz Samuelson. Mas eu via o total dos recibos de cada dia e sabia como estávamos a ir bem. Estava ansioso pela divisão dos lucros, no final do ano; o dinheiro estava a fazer-me falta.
Estava no meu gabinete no último dia de Setembro, a verificar as contas mensais do fornecimento da comida e das bebidas, quando a porta se abriu subitamente. Levantei a vista e ali estava Sybil Headley, a halterofilista. Ela olhava para mim com tanta ira, que me pus rapidamente de pé.
- Filho da mãe! - gritou ela.
- Ei - disse eu, erguendo as mãos. - Espere aí. Não sei o que se passa, mas não há necessidade de usar linguagem dessa.
Ela entrou no gabinete, batendo a porta atrás de si-
- Você lixou-me bem, não foi? - disse ela num tom feroz.
- Escute - disse eu. - Não faço a mínima ideia do que está a falar. Mas, se se acalmar e me disser, talvez possamos resolver o seu problema.
Ela olhou para mim, com o rosto contorcido.
- É verdade que não sabe? Ergui a palma da mão.
- Juro que não. Por que é que não se senta?
Deixou-se cair na poltrona ao lado da minha secretária e cruzou as pernas nuas e musculosas. Ela tinha, realmente, uma pele extraordinária. Eu acho que já referi que parecia de seda. Agora estava mais bronzeada, parecia a crosta de uma tarte. Suculenta.
- Gostaria de tomar uma bebida, Miss Headley? - perguntei educadamente. - Oferta da casa.
- Não - disse ela num tom cortante. - Não sabe mesmo o que aconteceu?
- Não sei mesmo.
- A quem falou sobre o meu artigo na Madhatter?
- Ah.. aos meus sócios.
- Eles são rapazes com poder?
- Uma espécie.
- Bem - disse ela amargamente -, eles acabaram com o artigo.
- Oh? - disse eu, interessado. - Como?
-Assinaram um contrato para seis meses de anúncios de página inteira a quatro cores. Para a Boutique Barcarole. Por isso, os editores cancelaram a história sobre o Peters Place.
- Eu pensava que você tinha dito que a sua revista não se..
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- Eu sei o que disse. Como estava errada!
Torceu-se na cadeira, esticando e dobrando os dedos, cerrando os punhos. Olhei-a com pena. Aprender sobre como o sobremundo funcionava tinha-a obviamente atingido com dureza.
- Fez barulho? - perguntei-lhe.
- Se fiz! - disse ela com um sorriso irónico. - Gritei que me fartei. Fiz uma fita tão grande, que eles acabaram por me dizer que era assim que ia ser e, se eu não gostasse, podia demitir-me.
- Demitiu-se?
- Não - disse ela em voz baixa. - Não o fiz. Preciso do emprego. Oh, meu Deus! - exclamou ela. - Que estafermo de mundo que este é!
- É o único que temos - lembrei-lhe.
Ficou silenciosa por um instante, depois suspirou.
- Acho que acabei de perder a minha aura.
- É mais humana sem ela - garanti-lhe. Olhou fixamente para mim.
- Não gosta muito de mim, pois não?
- Não gostava - disse eu. - Agora gosto.
- Escute - disse ela, olhando por cima da minha cabeça. - Faz cenas?
- De vez em quando - disse eu. - Mas nunca com Arnold Schwarznegger.
Ela riu-se.
- Prometo portar-me bem.
- Então, vamos - disse eu.
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Por causa do meu treino como actor, eu pensava na roupa como trajes. (Esta é, suponho, uma característica feminina.) O meu guarda-roupa era enorme, mas nunca tinha mudas de roupa suficientes. Eram, suponho, disfarces.
Numa manhã de Outubro tirei umas horas de folga do escritório para fazer compras na Quinta Avenida. Não tencionava gastar muito dinheiro - não tinha muito para gastar -, mas pensei que talvez comprasse algumas camisas, uma camisola e algo pequeno e engraçado para Mabel Hetter.
Era tempo de sobretudo, fresco e ventoso. As bandeiras esvoaçavam na Quinta Avenida, e todos os pedestres pareciam ter aquela azáfama adicional que aumenta à medida que o Natal se aproxima.
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O céu límpido era de um azul de postal, e vi o primeiro vendedor de castanhas da época.
Manhattan parecia um cenário de teatro. Alguém inteligente tinha-o desenhado, e a cortina tinha acabado de subir para receber os aplausos. Havia uma luminosidade clara e brilhante, e eu sentia-me indecentemente feliz.
Vagueei, olhando para as montras, comprando algumas coisas insignificantes. Pensei em cortar o cabelo, mas parecia uma decisão demasiado séria para ser tomada num dia tão agradável e indolente. Por isso, limitei-me a passear.
Comprei um piano de chocolate em miniatura para Mabel, completo com teclas brancas, e mandei entregá-lo. Juntei um dos meus cartões de visita. Apenas o meu nome em letras pequenas. Não é isto elegância?
Almocei no Plaza: ostras e uma garrafa pequena de Muscadet. Exagerei na gorjeta porque queria que todos se sentissem felizes. Depois voltei para o Peters Place.
King Hayes era o anfitrião nessa tarde. Vestia um fato cinzento de flanela às riscas, a que acrescentara um colete. Estava com óptimo aspecto, e eu disse-lho.
- Tal como tu dizes sempre - disse ele, sorrindo -, deve-se ir com a onda. Ei, chegou um embrulho para ti.
- Oh? - disse eu. - De quem?
- Não traz remetente. Foi entregue por um mensageiro que se foi logo embora. Nem sequer esperou por uma gorjeta. Está em cima da tua secretária.
King seguiu-me até ao meu gabinete. O embrulho em cima da secretária era do tamanho aproximado de uma caixa de sapatos. Embrulhado em papel castanho e atado com cordel. Fez-me lembrar o embrulho cheio de jornal cortado aos pedaços que eu tinha posto nas mãos de Sidney Quink.
Inclinei-me para o inspeccionar. Apenas o meu nome escrito em letra de imprensa. Peguei nele e segurei-o junto do ouvido.
- Não faz tique-taque - disse a King.
- Abana-o - disse ele. - Se fizer glu-glu, ajudo-te a bebê-lo. Rimo-nos enquanto eu tirava o cordel, desembrulhava o papel e
levantava a tampa. Debruçámo-nos para olhar.
A caixa tinha uma camada de batedura de algodão branco. No centro, estava um enorme pénis de plástico. Uma dessas coisas grotescas que se compram por aí. Não sei para que são usadas. Talvez como dildo ou para oferecer, por graça.
Mas esta tinha sido cuidadosamente cortada ao meio. Com uma lâmina, supus.
Olhámos ambos para baixo, para o pirilau cortado.
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- Brincadeira de mau gosto - disse King Hayes.
- De mau gosto - disse eu -, mas não é brincadeira nenhuma.
- Sabes quem o mandou?
- Calculo - disse eu, mal ouvindo a minha própria voz.
Não entrei em pânico, nem fiquei histérico, mas admito que me senti paralisado. King deve ter notado, porque me trouxe um brande duplo que fez que o coração voltasse a bater.
Mostrei o objecto a Martha.
- Deus do céu! - disse ela.
- O meu amigo da lavandaria - disse eu.
- Oh, meu Deus! É melhor telefonares imediatamente a Cannis e Gelesco. Eles saberão o que fazer. - Depois olhou mais atentamente para mim. - Senta-te um pouco, pareces abalado. Eu telefono-lhes.
Mas eles não estavam, e não foi possível contactar com eles. Martha foi muito firme com a secretária e disse-lhe que eu estaria na Boutique Barcarole no dia seguinte, logo de manhã; era extremamente importante que eu falasse com eles.
Depois de ela ter desligado, eu disse amargamente:
- Por que não lhe disseste que era uma questão de vida ou morte?
- Peter - disse Martha -, queres vir para casa comigo esta noite? Podes dormir lá.
- Não - disse eu, tentando sorrir. - Obrigado, mas estou bem.
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Mas descobri que não estava bem. Oh, fiz o meu trabalho, mas foi tudo automático. Não conseguia esquecer a ameaça implícita naquele pénis de plástico cortado ao meio.
Quando o clube ficou vazio, decidi não ir ao Friendship Deli. Gutierrez obviamente sabia que eu costumava lá ir, e eu não tinha qualquer vontade de me voltar a encontrar com ele. Por isso, fechei a porta da frente à chave e coloquei a corrente. Deixei a maior parte das luzes acesas e fui até ao bar beber um vodka. Os estalidos, rangidos e ruídos suaves da velha casa nunca me tinham incomodado, mas agora estes sons normais buliam-me com os nervos. Imaginei todo o tipo de coisas, nenhuma delas agradável.
Finalmente, por volta das três da manhã, telefonei a Mabel Hetter. Acordei-a, claro. Disse-lhe que me sentia muito só e que queria estar com ela. Podia ir a sua casa?
- Fabuloso! - disse ela. - Despacha-te.
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Telefonei à minha garagem e ofereci vinte dólares se me viessem trazer o automóvel. Este apareceu em menos de dez minutos e dez minutos depois, eu estava a estacionar a apenas meio bloco do apartamento de Mabel. Durante o caminho ao longo da Sexta Avenida, mantive-me atento ao retrovisor para me certificar de que não estava a ser seguido. Que maneira de viver!
Mabel tinha vestido um pijama curto, branco, bordado com pequeninas flores azuis. Cheirava bem, a sabonete e sono, e não estava nada aborrecida por eu ter aparecido inesperadamente. Parecia tão genuinamente satisfeita por me ver, que jurei imediatamente que passaria a ser mais amável e delicado para com ela.
Trouxe-me um copo com gelo, e enchi-o de vodka que tinha trazido do clube. Ela sentou-se no meu colo e começou a falar sobre o que tinha feito no dia anterior. Ao beber lentamente a minha bebida, escutando a sua tagarelice ingénua, senti-me descontrair.
Enquanto ela falava, perguntei a mim próprio o que seria uma vida inteira com esta inocente. Enfadonha, supus, mas teria as suas compensações. Ela era uma boa cozinheira, bem disposta, entusiástica na cama. Virtudes simples, é verdade, mas depois do que me acontecera, pareciam importantes.
- Peter, estás bem? - perguntou ela num tom ansioso.
- Óptimo - tranquilizei-a. - Talvez um pouco cansado. Foi um dia duro.
- Pareces um tanto deprimido.
- Nah - disse eu. - Só estou a descontrair-me. Foste amorosa em me deixar cá vir.
- Sabes-disse ela com uma risada -, quando telefonaste, eu estava a ter um sonho maravilhoso contigo. Era tão louco! - disse ela, corando. Depois aproximou-se para murmurar ao meu ouvido.-No meu sonho, tu tinhas duas coisas!
Acabei o vodka, bebendo-o todo de uma vez.
- Não é louco? - disse ela.
Mas não foi tão louco na cama. Eu queria que fosse. Eu queria encontrar um esquecimento total no seu corpo submisso. Mas descobri, com grande tristeza minha, que não conseguia funcionar. Não foi a primeira vez na minha vida mas, naquele momento, foi terrivelmente frustrante.
Não foi possível iludir-me a mim próprio. Era o medo que me estava a derrotar. Tive uma visão horrível da minha carreira arruinada, tudo por causa de um homenzinho estúpido que era suficientemente esperto para ameaçar a minha vaidade mais querida.
Por isso, para esconder a minha vergonha, fui invulgarmente meigo e terno, e tive a satisfação de ver a parte superior do seu corpo
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bifurcado começar a adquirir um tom rosado, indício seguro de que estava excitada.
Acabei, iniciando-a no que os garanhões chamavam "bater no púbis". Era obviamente uma prática nova e nunca imaginada, mas ela aceitou-a alegremente, exclamando:
- Super! Super! Super!
Uma vantagem da experiência no palco - aprende-se a improvisar.
A parte melhor, para mim, foi quando Mabel adormeceu nos meus braços e eu pude abraçar o seu calor macio e jovem, e sentir-me seguro. A sensação de paz que ela inconscientemente me proporcionava quase me fez chorar. Levei os lábios a um mamilo rosado e ela, adormecida, gemeu de satisfação.
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Estávamos na sala de reuniões da Barcarole, e a caixa com o pénis cortado estava em cima da mesa envernizada. Anthony Cannis apontou para ele com o charuto.
- Plástico - disse ele. - Um brinquedo. Ele bem podia ter mandado um verdadeiro.
- O tipo não tem classe - disse Michael Gelesco. - Toda a gente sabe isso.
Olhei para eles, admirado.
- Vocês conhecem Ivar Gutierrez? Cannis:
- Claro que o conhecemos. Gelesco:
- Um imbecil. Conta-nos outra vez o que ele disse. Descrevi mais uma vez o meu encontro com Gutierrez. Gelesco olhou atentamente para mim através de uma coluna de
fumo de charuto.
- Não estiveste tentado a vender?
- Que diabo, não! - disse eu numa voz firme. - Um dia destes, a minha parte no Peters Place vai valer mais que isso.
- Força - disse Cannis. - Se quisesses vender, eu e Mike compraríamos a tua parte por mais que isso. Não é verdade, Mike?
- Era logo - afirmou Gelesco. - Isto é uma mina de ouro.
- E, depois - prossegui -, quando lhe telefonei a rejeitar a oferta, ele não aceitou a recusa e disse que eu teria notícias suas.
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- Tony - disse Gelesco -, é melhor começar a fazer andar as coisas.
- Eu vou dar uma apitadela - disse Cannis, pondo-se de pé. - Peter, fica aqui durante uma meia hora. Nessa altura, já teremos tudo organizado e podes voltar para o clube.
Saiu da sala. Fiquei sozinho com Michael Gelesco. Ele recostou-se na cadeira, mastigando o charuto. Fez um movimento com a cabeça em direcção à caixa em cima da mesa.
-Aquilo assustou-te, hem, Peter? Deixa-me dizer-te uma coisa sobre os tipos duros. Tu não tens experiência nenhuma deles, por isso é natural que não saibas. Os tipos verdadeiramente duros não ameaçam: agem. São os frangotes que tentam assustar. A única coisa a fazer é fazer-lhes ver que não nos intimidam.
- Como é que fazemos isso com Gutierrez? - perguntei, nervoso.
- Bem, neste momento, Tony está a telefonar para o nosso serviço de segurança. Eles vão mandar uns tipos para o clube. Será guardado tanto no exterior como no interior, vinte e quatro horas por dia, só para o caso de aquele imbecil pensar em atacar.
- Guardas fardados? - perguntei, horrorizado.
-Não, estes rapazes serão jovens e bem vestidos. Muito educados e bem comportados. Nem sequer vão dar por eles.
- Espero que não tentem engatar as clientes-disse eu, tentando sorrir.
- Não o farão - disse Gelesco. - Eles têm as suas ordens.
- Quanto tempo estarão lá?
- Não muito tempo - prometeu. - Dois, três dias, talvez. Até convencermos Gutierrez que ele não quer entrar na sociedade.
- E como é que fazemos isso? Ele olhou-me friamente.
- Não queres mesmo saber, pois não?
- Não, não - disse eu apressadamente. - Eu concordo com o que decidirem.
- Não te preocupes - disse Gelesco com um bom humor pesado. - O teu pirilau está seguro.
Anthony Cannis regressou e fez um sinal de cabeça ao sócio. -Tudo arranjado -? disse ele. - Cinco tipos vinte e quatro horas. Disseste a Peter o que vamos fazer?
- Disse.
- Eles estarão lá quando voltares - disse Cannis, dirigindo-se a mim. - Eles vão comer na cozinha, um de cada vez. Se eu fosse a ti, não saía de casa durante uns dias. Não vai demorar muito; aquele cretino há-de receber a mensagem.. vais ver.
- Espero que tenhas razão - disse eu.
-Tens de confiar em nós, Peter-disse Cannis, aproximando-se
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de mim para me dar uma palmada no ombro. - Continua a gerir o clube e a fazer-nos ricos. Deixa estas coisas para nós.
- Certo - disse Gelesco. - Lembras-te de Timmy ONeil e de como ele tentou entrar?
- Lembro-me - disse Cannis, sorrindo com a recordação. - Onde estará Timmy agora?
- Conheces aquela nova pasta de fígado com sabor a cebola? - disse Gelesco. - Eu acho que ele está nela.
Riram-se a bandeiras despregadas.
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Cannis e Gelesco fizeram exactamente o que tinham prometido. Quando regressei ao Peters Place, os seguranças estavam lá. Eram jovens discretamente vestidos, alguns deles com muito boa apresentação. Um ficou à porta. Os outros andavam no interior. Supus que estivessem armados, mas não vi nenhuma protuberância.
Não houve um só momento, de dia ou de noite, em que Peters Place não estivesse protegido. Como me tinham dito, eram discretos, educados, e não fizeram qualquer tentativa de se aproximarem das clientes. Mas vi algumas clientes a tentarem engatá-los a eles.
Segui o conselho de Anthony Cannis e não pus o pé fora do clube durante três dias. No final de Outubro, estava a começar a sofrer de claustrofobia. Mas depois, uma manhã, estava a folhear o Daily News que King Hayes tinha trazido e vi-a: uma pequena notícia de que seis lavandarias Kwik Kleen tinham sido atacadas com bombas incendiárias na noite anterior.
Duas tinham sido totalmente destruídas e as outras tinham ficado muito danificadas. Não houvera mortes, nem ferimentos pessoais. O dono da cadeia, Mr. Ivar Gutierrez, afirmara que ultimamente estava a ter problemas com os trabalhadores.
Mostrei a notícia do jornal a Martha e ela sorriu.
No dia seguinte, li ansiosamente os matutinos. Tinham sido colocadas bombas incendiárias em mais cinco lavandarias Kwik Kleen; três delas ficaram completamente destruídas. Nessa tarde, os nossos guardas de segurança foram subitamente retirados, e recebi uma chamada de Michael Gelesco.
- Tudo bem - disse ele sucintamente. - Chegámos a um acordo amigável com quem tu sabes. Já podes sair de casa.
- Obrigado - disse eu num tom humilde.
Fui ao gabinete de Martha dar-lhe a boa notícia.
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- Ainda bem que me vou embora - disse ela. - Peter, o nosso problema é que o nosso êxito é demasiado grande. A maior parte, devido às tuas ideias. Era esperar demasiado que o sobremundo não se metesse. Os ricos, os políticos e os gangsters, eles cheiram o dinheiro a um quilómetro de distância, por isso, querem tomar conta.
- Achas que Cannis e Gelesco sãogangsters?
- Queres dizer se são da máfia? Não, mas tenho a certeza de que têm um acordo com eles. Talvez lhes paguem. E o mesmo sucede com Octavius Caesar.
- É difícil imaginar aquele velho senil como parte de uma conspiração criminosa - disse eu.
- É? - disse Martha num tom indiferente.
Sentei-me ao lado da secretária dela e acendi cigarros para os dois. Fumámos em silêncio durante um momento. Depois..
- Vou ter muitas saudades tuas, miúda - disse eu.
Ela inclinou-se para a frente para me fazer uma festa no rosto. - És o único motivo por que tenho pena de me ir embora - disse ela. - Tivemos uns tempos loucos juntos.
- Lá isso tivemos.
- Por vezes, tenho pena de não termos ficado pequenos - disse ela. - Só com aqueles dois apartamentos no West Side. Eram todos nossos e fazíamos bom dinheiro. Agora, vê o que aconteceu: temos uma empresa de um milhão de dólares e, de vez em quando, temos de ir correr para os tubarões para nos livrarem de problemas. E aviso-te já, Peter, as coisas vão piorar. Esses tipos hão-de arranjar maneira de tomar conta de tudo.
- Por cima do meu cadáver - disse eu. Ela olhou para mim.
- Se necessário - disse.
- Deus do céu, Martha, não fales assim.
- É a verdade. Essa é uma das razões por que me vou embora.
- Disseste a Wilson Bowker que te vais embora? Ela mexeu-se na cadeira, inquieta.
- Não, e não tenciono fazê-lo. Escrever-lhe-ei uma carta no dia em que partir. Sem morada.
- Ele há-de te encontrar, se quiser.
- Talvez-disse ela, suspirando -, mas tenho esperança de que, comigo longe e a campanha política a aquecer, ele caia em si. Peter, realmente acho que deves começar também a pensar em ir-te embora.
- E fazer o quê? - disse eu. - Vender cuecas na Kings Arms?
- Se mantiveres as tuas acções, pode ser que eles te mandem dinheiro suficiente para viveres confortavelmente.
Fiquei calado.
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Ela olhou para mim com um sorriso matreiro.
- Gostas mesmo deste negócio, não gostas? Acenei com a cabeça, concordando.
- Gosto da excitação. Da oportunidade de ganhar muito dinheiro e, talvez, de construir algo famoso. Além disso, lembra-te de que sou um actor falhado. Se eu largar isto, seria outro fracasso. Quantas vezes se pode falhar antes de se perder o amor-próprio?
- Bem.. - disse ela. - Eu tentei. Mas tem cuidado com o Bucha e Estica. Se tiverem a oportunidade, atiram-te aos lobos e chamam-te parvo por permitires que o façam.
- Eles não fariam isso - protestei. - Eles acham que estou a fazer um óptimo trabalho.
- Tu podes estar perto dos quarenta - disse ela -, mas és tão jovem que ainda tens covinhas no cu. Peter, acredita em mim, tu agora estás a jogar nas grandes equipas. Promete que vais pensar em sair.
Foi a minha vez de lhe acariciar o rosto.
- Prometo - disse eu.
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Na noite de 9 de Novembro, King Hayes estava a trabalhar como anfitrião e eu estava no meu escritório. Terminei o que estava a fazer antes da meia-noite e disse a King que me ia deitar. Ele disse que fecharia a porta e ligaria o nosso novo sistema de alarme antes de se ir embora.
O clube estava movimentado, mas eu sabia que o barulho não me incomodaria. Subi ao meu quarto, tomei um duche quente e meti-me na cama. Adormeci quase instantaneamente. O toque do telefone acordou-me. Julguei que estava a dormir há horas, mas o relógio de cabeceira mostrava que eram apenas uma e cinco da manhã.
- Peter? Yance. Acordei-te?
- Não faz mal.
- Más notícias, Peter. Eu estava a ouvir as notícias na rádio. Encontraram o corpo de uma mulher num apartamento em East Side. Identificada como Martha Twombly.
Silêncio.
- Peter? Estás aí?
- Estou - disse eu, numa voz sumida. - Yance, tens a certeza?
- Foi o que o locutor disse. Martha Twombly. 83ª Avenida Leste. Silêncio.
- Lamento muito, Peter.
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-Eles disseram o que aconteceu?-perguntei, limpando os olhos. Estavam secos.
- Não. Apenas que a porta dela estava aberta e que um vizinho encontrou o corpo.
- Oh, meu Deus! Silêncio.
- Yance, achas que devia lá ir?
- Não sei. Talvez devas manter-te afastado.
- Acho que vou. Acho que devo ir.
- Queres que me encontre contigo lá?
- Não, mas, de qualquer modo, obrigado.
- Tem cuidado - disse Yance, num tom ansioso. - Se quiseres, telefona-me. Estarei a pé mais algum tempo.
Vesti uma camisola, calças e um casaco desportivo. Levei um sobretudo. Desci. Ouviam-se risos e música provenientes da Sala dos Sonhos.
- Ah-ha - disse King Hayes. - Vais às gatas esta noite? Dirigi-lhe um sorriso triste.
Havia barricadas da polícia em frente do apartamento de Martha. Mas não havia uma cena de multidão; apenas alguns pedestres curiosos a tentarem espreitar para o átrio. Havia um polícia fardado lá dentro. Abriu a porta de vidro quando me dirigi ao prédio.
- O senhor mora aqui? - perguntou ele.
- Não, mas..
- Desculpe - disse ele. - Só os moradores é que podem entrar.
- Eu sou muito amigo da, uh, da mulher que foi..?
- Ai é? - disse ele. - E depois?
- Não sei - disse eu, confuso. - Eu pensava que talvez pudesse ajudar.
- Meu sargento - chamou ele por cima do ombro.
Outro polícia, de bigode, com divisas na manga, aproximou-se.
- O meu nome é Peter Scuro - disse eu. - Eu sou.. muito amigo da, uh, vítima e pensei que talvez pudesse ..
A minha voz deixou outra vez de se ouvir.
- Com certeza, Peter - disse o sargento afavelmente. - Venha comigo.
Subimos juntos no elevador.
- Cheira a neve - disse o polícia. - Reparou?
- Está frio - disse eu, acenando a cabeça.
A porta do apartamento de Martha estava aberta. O sargento fez-me sinal para que entrasse à sua frente. Olhei nervosamente em volta.
- Está tudo bem - disse o polícia. - Já a levaram. Entre para aqui.
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Agarrou-me levemente no braço e conduziu-me até ao quarto. O apartamento estava um caos: candeeiros caídos, gavetas abertas, elefantes de porcelana partidos.
Havia um homem alto, exausto, de faces encovadas, sentado à beira da cama de Martha. Estava vestido à paisana. Estava a remexer na mesa-de-cabeceira. Levantou os olhos para nós através de uns óculos com aros de metal.
- Este aqui é Peter Scuro - disse o sargento. - Diz que era muito amigo da senhora recentemente falecida.
O homem acenou com a cabeça, pôs-se de pé e estendeu uma mão. -Detective Jules Slotkin-disse ele. - Diga-me o seu nome outra vez.
- Peter Scuro - disse eu, apertando a mão ossuda.
- Conhecia Martha Twombly?
-Trabalhávamos juntos-disse eu.-No Peters Place, um clube privado para mulheres, na 54ª Avenida Oeste. Pode dizer-me o que aconteceu aqui?
- Sente-se um pouco - disse ele, fazendo um gesto em direcção à cama. - Isto deve ser um grande choque para si.
- É, sim - disse eu. Sentámos-nos na cama, lado a lado.
- Conhece-a há muito tempo? - perguntou ele num tom casual.
- Há cerca de três anos.
- Mas ela vivia aqui há mais tempo?
- Suponho que sim-disse eu.-Ela já cá vivia quando a conheci.
- Não é importante - disse ele. - O porteiro há-de saber.. se o encontrarmos. Sabe se o apartamento dela já tinha sido assaltado?
- Que eu saiba, não.
- Ela tinha o cuidado de fechar a porta da rua?
- Sempre - disse eu.
- Uh-huh-disse ele. - Alguém arrombou a fechadura com um pé de cabra. Lascou a ombreira da porta. O gancho da corrente partiu-se. Deve ter feito um barulho dos diabos.
- Ninguém ouviu nada? - perguntei.
- Nenhuma das pessoas com quem falámos ouviu alguma coisa - disse ele. - As que viviam mais perto dela tinham ido ao teatro. Foram eles que a encontraram..
- Como é que foi..? - perguntei, com a boca seca.
- Crânio esmagado - disse ele, olhando para mim. - Com um elefante de bronze. Ela gostava de elefantes, hem?
- Gostava. Coleccionava-os.
- Sabe se ela tinha muito dinheiro em casa?
- Não sei - disse eu. - Sei que tinha algumas jóias muito boas.
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- Uh-huh - disse ele, olhando para mim. - Era o namorado dela?
-Não-disse eu. - Apenas sócio. Pensa que o, uh, motivo tivesse sido o roubo?
Ele ignorou a minha pergunta.
- Ela alguma vez recebeu chamadas telefónicas obscenas?
- Não sei.
- Alguma vez recebeu ameaças de alguém?
- Que eu saiba, não.
- Inimigos? Pessoais ou profissionais?
- Não que eu saiba.
- Teve brigas com alguém? De negócios ou pessoais?
- Nunca falou nelas.
- Você é uma grande ajuda - disse ele, com um sorriso cansado a retirar a ferroada às palavras. - Ela abriria a porta a alguém que não conhecesse?
- Nunca! - disse eu.
- Foi o que calculei - disse ele, acenando com a cabeça. - Eu imagino que as coisas se tenham passado assim: o criminoso, possivelmente um drogado à procura de um dinheiro rápido, entra no edifício pela porta da frente ou de trás. As fechaduras de ambas dão vontade de rir; podem ser abertas com uma lima de unhas. Provavelmente, nunca saberemos a razão por que escolheu o apartamento dela. Bate à porta. Ninguém responde, por isso, ele calcula que não esteja ninguém em casa. Arromba a porta e começa a revistar tudo, pegando no que lhe seria possível vender. Ela chega a casa e encontra a porta aberta. Nessa altura, devia começar a gritar ou correr para o apartamento de um vizinho para chamar a polícia. Mas ela não está a pensar direito. Não há muitas pessoas que o façam numa situação destas. Por isso, entra. Ela e o criminoso lutam. É então que os candeeiros caem e se partem coisas. Ela era uma mulher grande, pesada?
- Era.
- Pareceu ser. Ela fez-lhe frente, e ele teve de lhe dar uma pancada na cabeça com um elefante. Talvez não tencionasse matá-la. Apenas fazê-la perder os sentidos. Mas ela cai e ele foge. E o que penso.
- Parece provável - disse eu lentamente.
- Acredita na parte de o criminoso estar no apartamento quando ela chegou a casa?
- Parece lógico.
- Ai é? - disse ele num tom cansado. - Então, por que é que a corrente está partida? Se ela não estivesse em casa quando o tipo entrou, a corrente não estaria posta e, por conseguinte, não estaria partida, pois não?
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-Algumas correntes podem ser postas do lado de fora-disse eu.
- Não as do tipo que ela tinha. Fiquei calado.
- E tudo trampa - disse o detective Slotkin, olhando para mim através dos seus óculos com aros e metal. - Eu não sei o que aconteceu aqui e provavelmente nunca saberemos, a não ser que tenhamos sorte. Temos muitos casos destes. A maior parte deles é arquivado. Quem eram os seus familiares mais próximos, sabe?
- Ela tem.. tinha um filho na Academia Militar em Virgínia.
- Encontrei o endereço dele na escrivaninha. E a tia de Chicago?
- Eu não sabia que ela tinha uma tia em Chicago - admiti.
- Eu pensava que era muito amigo dela.
- Era, mas ela nunca me falou na tia.
Ele tirou um pequeno livro de apontamentos do bolso e fez-me soletrar o meu nome. Também anotou o meu endereço e número de telefone.
- Uma mulher bonita-disse ele. - Alguns namorados? Ou isso foi outra coisa sobre a qual ela nunca lhe falou?
-Eu suponho que ela saía com alguém-disse.-Ela raramente falava na sua vida pessoal.
- Uh-huh - disse ele. - Era divorciada?
- Nunca soube bem - disse-lhe eu. - Eu acho que era separada. Foi essa a impressão que tive.. que o marido simplesmente desapareceu, e ela não sabia onde ele estava, nem queria saber.
- E é tudo - disse o detective, fechando o livro de apontamentos. - Se pensar em mais alguma coisa, telefono-lhe. Obrigado por ter vindo. A maior parte das pessoas não se quer envolver. Aqui tem o meu cartão, para o caso de pensar em alguma coisa que eu deva saber.
- Era uma mulher muito boa - disse eu, sentindo-me ridículo.
- Eu gostava de saber como é que a corrente se partiu, você não? Não respondi.
- É estranho - disse ele, abanando a cabeça. - Se ela estivesse dentro do apartamento e a corrente estivesse posta, seria lógico que gritasse quando alguém começasse a arrombar a porta. Não acha que ela o faria?
- Creio que sim.
- A não ser - prosseguiu ele, pensando em voz alta -, que fosse alguém conhecido. Ela deixa-o entrar. E, subitamente, antes que ela se pudesse defender, é morta. Então, o criminoso tenta fazer com que pareça um assalto. Percebe.. parte coisas, leva jóias, deita candeeiros ao chão e tudo isso. Depois, à saída, o criminoso arromba a porta. Só que vai demasiado longe e parte a corrente, não compreendendo que isso prova que ela estava dentro do apartamento quando ele chegou. É disparatado, não é?
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- É, sim - disse eu.
- Claro - disse ele. - Tenho andado a ver demasiados filmes policiais na televisão.
- Uh - disse eu -, ela estava.. foi, ah, ferida? Quero dizer, parecia ter lutado com o seu.. com o tipo?
Ele lançou-me um olhar de admiração.
-Você é um bom tipo-disse ele.-Não tem a cabeça só para usar chapéu. Não, ela não ficou ferida ao tentar defender-se. Nada disso. Apenas o buraco no crânio que a matou. É por isso que gosto da história de ela ter deixado entrar alguém que conhecia, alguém que lhe partiu a cabeça quando ela estava de costas e não esperava. Obrigado por ter aparecido.
Comecei a sair do quarto. Mas ele chamou-me:
- Mr. Scuro - e, quando eu me voltei, ele estava a chamar-me com um indicador. Foi até ao guarda-vestidos de Martha, pegou no pingalim. Começou a dirigir-se a mim, fazendo-o sibilar no ar. O pingalim assobiou.
- Já viu isto antes? - perguntou-me.
- O pingalim? Não, nunca vi.
- Alguma ideia por que ela o tinha ali?
- Não.
- Uh-huh. - Os olhos dele luziram através dos óculos de aros de metal. - Um caso interessante - disse o detective Slotkin. - É possível que lhe dedique algum tempo. Só para me distrair.. percebe?
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Mabel Hetter acabou de cantar, numa voz um tanto trémula, Wan-ting You1, e rodou no banco de piano para olhar para mim.
-Tenho uma ideia maravilhosa! - disse ela alegremente. - Por que é que não vens viver aqui comigo?
Em qualquer outra altura, eu teria recebido uma proposta destas com uma gargalhada. Mas foi no dia após o assassínio de Martha, e estava num estado de espírito sombrio. Não há nada como a morte súbita para concentrar o nosso pensamento nos dias desperdiçados e nas intenções nobres.
Por isso não rejeitei imediatamente a sugestão dela.
- Oh, Mae - disse eu. - Foi a coisa mais simpática que alguém
1. Querendo-te. (N. da T.)
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me disse desde há muito tempo, e agradeço o teu convite. A sério. Mas é um passo muito grande e importante, querida, e devemos pensar muito cuidadosamente nele.
- Não queres viver comigo? - disse ela num tom magoado.
- Claro que quero - disse eu.-Mas vê as coisas por este prisma: nós temo-nos encontrado duas ou três vezes por semana e damo-nos maravilhosamente bem. Mas isso não garante que possamos estar juntos todos os dias e que consigamos manter a mesma relação. Eu posso dar contigo em maluca.
- Nunca -jurou ela. - E tu podias ter a liberdade que quisesses. Podias sair com outras mulheres se te apetecesse, e eu podia sair com outros homens.
Isso surpreendeu-me. Eu era suficientemente egocêntrico para supor que ela só me queria exclusivamente a mim.
- Vamos pensar nisso - insisti. - Eu não quero que nos precipitemos numa relação firme e depois cheguemos à conclusão de que cometemos um erro.
- Está bem - disse ela, num tom amável.
Passei a noite com ela e fizemos amor com enorme êxito. Fiquei admirado com as minhas repetidas façanhas e, a julgar pelos latidos de satisfação de Mabel, ela também ficou.
Eu sabia a razão, claro. Do mesmo modo que a ameaça de Ivar Gutierrez - o pirilau cortado - me tinha tornado impotente de medo, agora o fim violento de Martha tinha provocado em mim um desejo frenético de agarrar a vida quente, abraçá-la bem, esgotá-la.
Depois de ela adormecer, a ressonar baixinho com pequenos sons borbulhantes, fui nu até à sala, afundei-me numa poltrona e bebi lentamente um pequeno brande. Pensei profundamente..
Mabel não era mulher para mim; isso eu sabia. Não tão bela como Jenny Tolliver, nem tão intrigante como Nikki Radburn. Isso não é menosprezá-la. Seria perfeita para outro homem - mas não para mim.
Fiquei sentado em silêncio na escuridão, a meditar. E a perguntar a mim próprio o que queria da vida.
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A tia de Martha veio de Chicago para tratar da transladação do corpo. Persuadi-a a deixar-nos encomendar uma cerimónia religiosa numa capela funerária da Madison Avenue. Quando lhe garanti que Peters Place pagaria tudo, ela concordou.
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Yancy Burnett, King Hayes e eu começámos a falar com os garanhões para garantir que fossem muitos. Também colocámos um aviso na Sala dos Sonhos, e muitas clientes prometeram ir. Clara Hoffheimer disse que estaria presente, bem como Oscar Gotwold e Iggy Samuelson. Fechámos o clube até às duas da tarde, para que o pessoal pudesse assistir.
Anthony Cannis, Michael Gelesco e Octavius Caesar disseram que infelizmente não poderiam estar presentes, mas todos eles enviaram enormes e dispendiosas coroas de flores. Os garanhões fizeram uma colecta para a sua própria coroa. Yance e eu mandámos entregar flores. A pequena capela parecia uma estufa, e cheirava como se fosse.
A tia de Chicago era uma mulher severa e esquelética, cujos dentes postiços faziam estalidos. Pendurava-se no braço do filho de Martha, um rapaz alto e magro vestido com o uniforme da Academia Militar. Ele estava pálido, e parecia perplexo e nervoso. Estavam os dois sentados à frente, voltados para o caixão.
A urna estava colocada num estrado coberto com tecido, em frente do pódio. Em cima da tampa fechada estava um ramo de rosas do filho de Martha. A cerimónia foi oficiada por um padre da capela funerária. A música de órgão vinha através de um altifalante. Penso que era gravada.
O padre, um homem jovem e enérgico, completamente careca, tinha-me perguntado pormenores sobre a vida de Martha que pudesse incluir na sua eulogia. Contei-lhe o que achei que ele devia saber - não era muito -, e ele fez uma prédica pesarosa aos presentes que foi misericordiosamente breve.
Eu tinha-me colocado de encontro à parede de trás, perto da porta. Foi pura cobardice; calculei que, se as coisas se tornassem demasiado dolorosas para mim, poderia sair rapidamente sem ser notado. Mas assisti à cerimónia toda.
Durante o seu monótono sermão, o padre disse que esta "mulher esplêndida e vital" tinha dito "colhida à vida" por alguém cuja "filosofia violenta e ímpia", rejeitava "tudo o que amamos" e ameaçava a existência de uma "cidade pacífica e cheia de amor".
Parecia que estava a ler partes de um dos discursos da campanha de Wilson Bowker, e perguntei a mim próprio qual seria a reacção dos presentes se eu gritasse subitamente que o apóstolo da lei e da ordem tinha colocado aquela "mulher esplêndida e vital" no caixão.
Eu acreditava realmente nisso. Estava convencido, tal como o detective Jules Slotkin obviamente estava, de que Martha não tinha sido vítima de um ladrão ocasional. Não, ela tinha conhecido o seu assassino e tinha-o deixado entrar. Ou a ela.
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Porque se não tivesse sido Wilson Bowker quem esmagara o crânio de Martha, então, fora a sua mulher Alice. Ela era capaz disso.
Ambos os Bowkers tinham motivo suficiente. Martha deixaria entrar qualquer um deles no seu apartamento. E tinham ambos inteligência suficiente para tentarem encobrir o crime, fazendo que ele parecesse um vulgar assalto-homicídio.
Assim que o serviço religioso terminou, saí e encontrei um telefone público perto de uma sala na cave que tinha uma porta de vidro. Viam-se duas longas filas de caixões à espera, os quais variavam entre caixões simples de pinho e os bronze ornamentado.
Tirei o cartão de visita da carteira e telefonei ao detective Slotkin. O homem que atendeu disse que Slotkin não estava, mas que seria possível encontrá-lo noutro número. Deu-mo, e eu disquei-o.
- Slotkin - atendeu uma voz cansada.
-Aqui fala Peter Scuro-disse eu. - Conheci-o há algumas noites no apartamento de Martha Twombly. A mulher que foi morta na 83ª Avenida Leste.
- Ah, sim - disse ele. - Claro que me lembro.
- Eu acabei de sair da cerimónia religiosa - disse eu. - Pensei que o senhor talvez viesse cá. Não é isso o que a polícia geralmente faz.. assistir aos funerais das vítimas de homicídio, para o caso de o assassino aparecer?
- Sim - disse ele -, por vezes fazemos isso. Mas eu fui tirado do caso.
- O quê?
- Fui tirado do caso - repetiu ele pacientemente. - Foi por isso que não fui à cerimónia. Fui transferido. Para relações da comunidade.
Eu não soube o que dizer.
-Em Harlem Oriental-prosseguiu ele. - Eu hablar muito bem a língua.
- Bem, quem está a tratar do caso agora? - perguntei.
- A morte Twombly? Realmente não sei, Mr. Scuro. Eles provavelmente dividiram os meus casos por três ou quatro tipos. Porquê? Tem alguma coisa nova?
- Não, nada de novo - disse eu lentamente. - Eu só estava interessado em saber como vão as investigações.
- Estas coisas levam tempo - disse ele. - Se se descobrir alguma coisa, vai ler nos jornais.
- Sim - disse eu. - Suponho que hei-de ler. Boa sorte no seu novo trabalho.
- Obrigado.
- Foi súbita? A transferência?
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- Bem.. - disse ele num tom cauteloso. - Eu não estava à espera. Foi uma surpresa.
- Uh-huh - disse eu.
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Yancy Burnett mudou-se para o gabinete de Martha e passou a fazer todo o trabalho dela. Eu deixei de fazer de anfitrião e dedicava todo o meu tempo a agendar garanhões, pedidos por telefone e acompanhantes. Yance recomendou um amigo para anfitrião e este serviu muito bem. Um tipo muito simpático. Instável, mas simpático.
Ao fim de aproximadamente uma semana, era como se Martha nunca tivesse existido. Yance retirou todos os objectos pessoais dela do gabinete e trouxe algumas reproduções de Aubrey Beardsley para decorar as paredes. As clientes passaram a contactá-lo pessoalmente para marcar as cenas, e não houve qualquer indicação de que o negócio tivesse piorado devido à morte de Martha.
Perguntei a Oscar Gotwold o que acontecera aos vinte e seis por cento das acções de Peters Place, Inc. que Martha detinha. Ela deixara-as ao filho? A tia? Oscar foi muito vago sobre o assunto; tive a sensação de que estava a tentar ganhar tempo.
Depois, no princípio de Dezembro, a secretária de Octavius Caesar telefonou a solicitar a minha presença no seu escritório às dez horas da manhã seguinte. Garanti-lhe alegremente que estaria lá. Juro que não tinha premonição absolutamente nenhuma do que iria acontecer.
Cheguei alguns minutos antes da hora marcada, mas o gabinete de Caesar já estava cheio de gente. Ele estava sentado à secretária como de costume, e Anthony Cannis e Michael Gelesco partilhavam o sofá. Tinham sido trazidas duas cadeiras de costas direitas para Ignatz Samuelson e Oscar Gotwold. A poltrona ao lado da secretária de Caesar tinha sido deixada vaga - aparentemente para mim.
Ninguém se levantou quando entrei, ninguém estendeu a mão para apertar a minha. Mas todos retribuíram as minhas saudações com razoável simpatia. Quando me sentei ao lado da secretária de Octavius Caesar, este começou sem qualquer preâmbulo:
- Pensámos que era melhor, meu jovem, ter esta reunião antes do final do ano para.. Devido aos tristes acontecimentos recentes.. Refiro-me em particular à morte inesperada de Miss Twombly. Mr. Samuelson, importa-se de começar?
Iggy tinha um dossier grosso no colo, mas não o abriu nem
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consultou qualquer documento. Falou rapidamente no seu estilo stacatto, olhando directamente para mim. Ouvi atentamente, tentando seguir os números que ele despejava.
Ele disse que o rendimento de Peters Place durante o ano corrente e projectado para o último mês era gratificante. No entanto, devido aos custos iniciais e a despesas imprevistas - tais como as recentes precauções extraordinárias de segurança - mais os pagamentos da hipoteca, empréstimo, custos de remodelação, etc, Peters Place terminaria o ano com um lucro muito modesto.
- Quanto? - perguntei com voz rouca. Ele respondeu imediatamente:
- O lucro total anual projectado é de onze mil, seiscentos e cinquenta e dois dólares e trinta e seis cêntimos. A sua parte será aproximadamente três mil e vinte sete dólares.
Fiquei a olhar para ele, incrédulo. Eu e Martha tínhamos calculado receber, pelo menos, cem mil.
- Isso é trampa! - explodi. - Nós temos visto os registos. O rendimento aumenta todos os meses. Eu vejo os recibos; eu sei.
- É verdade, Peter - disse Samuelson, acenando com a cabeça. Mas não está a ter em conta as despesas gerais de funcionamento, salários, outras despesas, etc. Durante os primeiros nove meses tivemos um fluxo de fundos negativo.
- É impossível! - exclamei.
-Está tudo aqui-disse ele, batendo no dossier que tinha no colo. - Há um exemplar para ti, claro. Tudo certo. Até ao último tostão.
- Eu sei - disse Octavius Caesar num tom suave -, que estava a contar com um maior.. É natural que.. No entanto, não se pode discutir com números. Peters Place, devo dizer, tem sido um êxito inesperado. Nós projectámos dois anos de prejuízos antes de.. Mas fizeram-no em nove meses! Dou-lhe os parabéns, meu jovem.
Dirigiu-me um sorriso rasgado, e os outros sorriram e balouçaram a cabeça como bonecos chineses. Três mil malfadados dólares, além do salário, pelo trabalho de um ano! Até os garanhões mais preguiçosos ganhavam mais que isso.
Lembrei-me do que o detective Luke Futter dissera quando lhe contei que a Roman Enterprises ia financiar o nosso clube novo. Ele disse que eventualmente eles me dariam apenas os lucros que quisessem dar-me. Estava a acontecer mais cedo que ele previra.
- Claro que - prosseguiu Caesar - podemos esperar maiores lucros nos próximos anos à medida que o clube.. E terá as suas acções e por isso partilhará.. O que me.. nos traz a outro assunto. Mr. Gotwold?
Voltei-me para olhar para Oscar. Este tinha um ar preocupado,
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quase de comiseração. Exactamente a atitude correcta para um assassino sério:
- Isto custa-me mais a mim que a ti.
- Peter - disse ele -, como tenho a certeza que sabes, o acordo original da empresa incluía uma cláusula segundo a qual, no caso de morte de um dos investidores originais, as suas acções tinham de ser oferecidas, em primeiro lugar, aos restantes sócios pelo seu valor teórico, antes de poderem ser oferecidas a investidores externos. Tinhas conhecimento dessa cláusula, não tinhas?
- Não tinha, não! - gritei.
-Peter-disse ele num tom de ligeira censura -, fazia parte, não uma, mas duas vezes, dos documentos que assinaste. Não leste o acordo?
Ele sabia perfeitamente que não tinha lido. Nem Martha. Porque pensávamos que ele estava a zelar pelos nossos interesses. Agora, era óbvio para mim que ele, assim como Ignatz Samuelson, aqueles vigaristas!, eram criaturas do diabólico Pai Natal sentado à secretária.
- Na minha opinião - prosseguiu Oscar Gotwold -, este é um acordo perfeitamente legítimo.
- Está preparado para exercer a sua opção? - perguntou Octavius Caesar, balouçando suavemente para trás e para a frente na sua cadeira giratória.
- Um momento - protestei. - Quer dizer que, se eu quiser comprar as acções de Martha, tenho de arranjar cento e quatro mil dólares?
- Exactamente - disse Gotwold.
Claro que eu não tinha esse dinheiro. E que banco me concederia um empréstimo para comprar vinte e seis por cento de um bordel? "Oh, Ivar Gutierrez, onde estás tu agora que preciso de ti?"
- Posso arranjar o dinheiro - disse eu, desesperado.
-A cláusula referida-continuou Gotwold-concede trinta dias a partir da morte de um dos sócios para que os restantes accionistas exerçam a sua opção de compra. Deseja exercer a sua opção agora?
Não respondi.
- Mr. Cannis - disse Gotwold, voltando-se para o sofá. - Mr. Gelesco, a Justice Development Corporation deseja exercer a sua opção de comprar os vinte seis por cento de Peters Place Incorporated, anteriormente detidos pela falecida Martha Twombly?
- Queremos - disseram eles em coro, como um casal imbecil a casar-se.
Assim, isto deixava a Justice Development Corp. (Cannis e Gelesco) - que era, eu tinha a certeza, uma subsidiária de Roman Enterprises - dona de setenta e quatro por cento de Peters Place.
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Suponho que devia ficar grato por me terem deixado os chumbos dos dentes.
- E agora - disse Octavius Caesar juntando as mãos macias -, avancemos para coisas mais alegres e.. Jovem, tenho o prazer de lhe dizer que os meus sócios concordaram em.. Peters Place tornar-se-á uma cadeia, tal como imaginou, com estabelecimentos em várias outras.. E você vai desempenhar um papel-chave nesta expansão, a começar com um segundo Peters Place, em Beverly Hills, Califórnia. Queremos que vá para lá a seguir ao primeiro.. Tomará completamente conta de.. Com um salário anual de cem mil dólares. Que acha..?
- Beverly Hills? - disse eu, espantado. - Califórnia? Eu?
- Yancy Burnett tomará conta do clube de Manhattan - disse Cannis rapidamente. - Ele será capaz de o fazer.
- E faremos uma remodelação completa depois dos feriados - disse Gelesco.-Torná-lo-emos numa casa com muita classe. Temos um desenhador que é dinamite.
-Vai ser muito elegante-garantiu-me Cannis. - Candelabros de cristal, jarras grandes.. tudo.
- E, claro - disse Octavius Caesar num tom suave -, como accionista, continuará a partilhar os lucros do clube de Nova Iorque, bem como os da casa de Beverly Hills, ou de qualquer outra sucursal aberta por Peters Place, Inc.
Partilhar os lucros - isso era uma anedota. Depois de desviarem o dinheiro para as subsidiárias, para o pagamento de hipotecas e empréstimos, atirar-me-iam um osso e far-me-iam uma festa na cabeça. Era tudo ideia minha, mas eu seria essencialmente um empregado assalariado e sabia-o.
Olhei para eles e perguntei a mim próprio por que não me beijavam. Quando se é fodido, merece-se um beijo.
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Entrei de rompante no gabinete de Yance e atirei o chapéu para cima da secretária.
- Seu filho da mãe! - gritei-lhe. - Tu sabias de tudo. Ele levantou os olhos.
- Há cerca de uma semana - admitiu.
- Então, por que diabo não me disseste? - perguntei. - Eu julgava que éramos amigos.
- Amigos? - disse ele com um sorriso torto. - Oh, Peter, as
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pessoas encontram-se e desencontram-se. A vida é toda feita de instantâneos e corta-caminhos.. não é? Nada dura. A única coisa importante é a gente não se ralar.
Não tive de forçar uma gargalhada.
- Tens toda a razão - disse eu. - Vamos tomar um copo, amigo. Yance abriu a última gaveta da secretária e tirou de lá um litro de vodka. Bebemo-la em copos de papel com a forma de orelhas de burro. Acrescentámos um pouco de água.
Estava afundado na poltrona ao lado da secretária dele, ainda com o meu novo sobretudo de xadrez Burberry vestido. Disse a Yance que eles queriam que eu fosse para a Costa abrir um Peters Place em Beverly Hills.
- Vais? - perguntou.
-Tenho outra opção?-perguntei com azedume.-Eles têm-me agarrado pelos tomates. Se deixar tudo, posso dizer adeus ao meu investimento; nunca verei um cêntimo de lucro.
- Vais adorar a Califórnia - disse-me ele. - Óptimo clima e todas as mulheres que conseguires comer.
- Talvez encontre Nikki Radburn por lá - disse eu. - Isso ajudaria. Do que consegui compreender, eles vão fechar o clube depois do dia 1 de Janeiro para fazer remodelações. Provavelmente, vou-me logo embora assim que fecharmos. Vais viver aqui?
- Provavelmente - disse ele. - O contrato do meu apartamento acaba em Abril, e mudo-me nessa altura.
Bebemos mais vodka e fomos conversando sobre alterações que talvez fossem feitas quando o clube fosse remodelado. Yance queria converter um dos quartos numa sala de jogo para apostas elevadas. Outro poderia ser convertido numa sala de projecções para filmes pornográficos.
Gostei de ambas as ideias e disse a Yance que talvez incorporasse essas duas coisas no novo Peters Place da Califórnia.
Bebemos mais vodka e começámos a recordar coisas malucas que tinham acontecido desde que tínhamos começado a trabalhar juntos. Já não estava magoado com ele. Ele não me tinha atraiçoado, e eu podia ficar satisfeito por ele, pelo menos, ir beneficiar de eu ter sido banido de Nova Iorque. Disse-lhe isso.
Ele sorriu o seu sorriso meigo e triste.
- Sabes, Peter - disse ele -, gostei de ti desde o início.
- Nunca o manifestaste, Yance.
- Sabia que não estarias interessado.
- Nunca se sabe - disse eu. Mas era a vodka a falar.
Eu acho.
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Foi a melhor época festiva de sempre. Tivemos tantas reservas para almoços e jantares que tivemos de colocar mesas na Sala Mardi Gras para acomodar o excesso. A Sala dos Sonhos estava cheia todas as noites, e tivemos tantos pedidos, que tivemos de deixar de vender bilhetes para a nossa projectada festa de Fim do Ano.
Os quartos tiveram um movimento fenomenal, não era invulgar marcar cem cenas por dia. Eu estava constantemente a telefonar a Clara Hoffheimer a pedir mais corpos quentes, mas tínhamos dificuldade em encontrar garanhões suficientes para satisfazer todos os pedidos.
Eu colmatava ocasionalmente as falhas, o mesmo sucedendo com Yance. Até consegui convencer King Hayes a fazê-lo algumas vezes, quando tínhamos uma emergência.
Uma das cenas que tive cerca de uma semana antes do Natal foi memorável. A mulher chamava-se Tammy e reconheci-a assim que ela entrou no meu quarto. Ela tinha tido a sua fotografia, biografia e entrevistas que dera publicadas em todos os jornais e revistas locais.
Tinha aparecido como actriz secundária numa comédia que se estreara na Broadway em Novembro e fora um êxito. Os críticos ficaram extáticos, aclamando-a como a comediante de maior talento desde Carole Lombard e Kay Kendall. Já tinha assinado um contrato para um filme importante e uma série televisiva. Tinha vinte e três anos,
Nunca saberei o que a levou a pagar por uma cena no Peters Place, mas desconfio que, neste ponto da sua carreira, ela não estava interessada na perturbação emocional de uma relação com alguém conhecido. E as mulheres como ela, com tanto êxito junto do público, têm um problema: Este tipo quer fornicar a estrela, ou quer fornicar-me a mim?
Ela começou a actuar assim que a conheci. Admito que era muitíssimo engraçada e que tinha um repertório óptimo de sorrisos matreiros, rosnadelas fingidas, caretas, gestos operáticos e movimentos de corpo desajeitados. Sabia-se que o encanto era só teatro, mas não era possível resistir-lhe.
- Olha para ti! - exclamou ela. - Tens um engordo! - E enchia as bochechas, fazia rolar os olhos e cambaleava até à cama.
- Não é possível martelar um prego grande com um martelinho pequenino - disse eu com um sorriso inexpressivo.
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- É mais como pregar um preguinho com um martelo enorme - disse ela, com uma expressão exagerada de desdém.
Não se calou por um instante, nem sequer na cama. As piadas sucediam-se. A maior parte eram frases curtas, mas fazia também sketches que era óbvio que tinham sido ensaiados. Alguns eram bastante bons; outros eram tão artificiais que tive vontade de a estrangular.
Para ser o mais generoso possível, ela era péssima na cama-mas nunca encontrei uma actriz que não o fosse. Eu penso que tem algo a ver com o narcisismo e o papel de actor. Muito poucos actores e actrizes conseguem, quer no palco quer na cama, atingir grande profundidade, para além da técnica deliberada e aperfeiçoada. Eles simplesmente não querem ou não são capazes de se entregar.
Aquela hora com Tammy foi para mim uma experiência castigadora. Vi-me a mim próprio nela: os sketches, as piadas, as palhaçadas; mas, mais perturbador ainda, o artifício constante, o desempenho teatral que substitui a vida.
Anthony Cannis e Michael Gelesco eram quem eram. Eram homens grosseiros, rudes e hipócritas, que não faziam qualquer esforço para fingir que não o eram. Eu considerava-os homens maus, mas eles não se davam ares de monsenhores. Isso incomodava-me; tornava-os superiores a mim.
Quantas vezes Arthur, Martha, Nikki, Mabel, Yance e todos os meus amigos e conhecidos se tinham sentido enfadados com o facto de eu estar continuamente a actuar? Era cansativo; a hora que passei com Tammy ensinou-me isso. Era como se nos batessem constantemente na cabeça com uma bexiga burlesca.
Mas, muito pior ainda, era o que fizera, o que estava a fazer a mim próprio. Quando toda a nossa vida é uma actuação, perde-se a capacidade de distinguir a ilusão da realidade. Quem, na realidade, era eu? Peter Scuro. Isso eu sabia. E era tudo o que sabia.
Por isso, tomei uma das minhas nobres decisões. Decidi que, de futuro, seria eu próprio, natural e sincero, e passaria a agir de acordo com o meu instinto, caldeado com reflexão.
Desconfiei que Octavius Caesar (e Gotwold e Samuelson) me consideravam um peso leve esperto, com ideias lucrativas e inovações que podiam ser utilizadas, mas não um homem sério. Não alguém merecedor de respeito.
Decidi que os meus dias de actor tinham terminado. Não o seria mais. As pessoas com quem lidaria na Costa conheceriam um homem de pose calma e segurança contida. Um homem com dignidade que pensava antes de falar, um homem distinto de sóbria determinação. Talvez até enfadonho.
Não haveria mais faz-de-conta.
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Na antevéspera do Natal, num domingo, os garanhões deram uma festa de despedida em minha honra. Foi organizada por Yancy Burnett e teve lugar no clube. Toda a comida e bebida foi fornecida por Peters Place, Inc., mas os rapazes deram-me uma variedade de presentes - alguns engraçados, alguns úteis, alguns elegantes e caros. Eu trabalhava com estes rapazes há quase três anos e, ao fazer um breve discurso de agradecimento, só fiz votos para poder organizar um estábulo assim tão bom na Costa. Durante as festividades da noite, alguns garanhões vieram dizer-me que tencionavam mudar-se para Hollywood, à procura de trabalho no cinema ou na televisão, e que entrariam em contacto comigo lá.
A minha despedida de Yance, KingHayes, Seth Hawkins e alguns outros foi mais pessoal. Prometemos manter-nos em contacto, sabendo que não o faríamos. Depois, embriagámo-nos todos. Alguns dos garanhões formaram pares e foram para os quartos de cima. Que mal tem isso?
Na noite de Natal, Mabel Hetter ia apanhar o avião da noite para o Kansas para passar a semana até ao Ano Novo com os pais. Eu ainda não lhe dissera que me ia embora e que, com toda a probabilidade, nunca mais a voltaria a ver.
A despedida não é apenas uma dor doce, é também uma maçada. Eu sabia que ela estava loucamente apaixonada por mim, e o problema era desiludi-la devagarinho, para ela poder manter o seu amor próprio. O que eu mais receava era que ela começasse a chorar descontroladamente. Lágrimas de mulheres arrasam-me; geralmente, acabo por chorar com elas.
Fiz elaborados preparativos para a despedida. Em primeiro lugar, comprei-lhe um alfinete vitoriano antigo como presente de Natal. Era uma rosa em filigrana com granadas - realmente deslumbrante - e custou-me quase mil dólares.
Depois, porque ela tinha de apanhar o voo das nove horas e não tinha tempo de cozinhar, encomendei um jantar especial à Brasserie e mandei entregá-lo ao apartamento dela. Quando apareci, levava duas garrafas frescas de Dom Perignon 71. Tinha-as retirado, admito, da garrafeira de Peters Place.
Mabel adorou o seu presente de Natal e pô-lo imediatamente, jurando que o usaria na viagem para casa. Deu-me uma mola para
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prender dinheiro, de ouro, com a forma de um dólar, exactamente igual à que a VIP me tinha enviado de Washington. Disse a Mabel que era exactamente o que eu queria, mas que não se devia ter incomodado.
Depois abrimos o champanhe e brindámos um ao outro. Rimo-nos muito e cantámos um dueto de Make Believe1. Mabel estava tão alegre e feliz que eu adiei dar-lhe a má notícia até depois do jantar.
Comemos endivias estufadas, medalhões de peito de pato, cogumelos grelhados, salada de alface e petitfours para sobremesa. Borrifámos estas com um pouco de Cointreau, só por graça.
Mas, finalmente, o momento da verdade chegou. Sentei Mabel no meu colo e disse-lhe que tinha sido transferido para a Costa e que esta seria a última vez que estaríamos juntos até daí a muito, muito tempo. Apertei-a contra mim, pronto para lhe beijar as lágrimas.
Ela ficou silenciosa por um momento. Depois:
- É uma promoção, Peter?
- Uma espécie.
- Vais ganhar mais dinheiro?
- Suponho que sim.
- Então tens de ir-disse ela com firmeza. - É fabuloso que eles tenham uma opinião tão boa de ti que te dêem uma oportunidade destas.
Não ia ser exactamente como eu antecipara.
-Mae, tenho mesmo muita pena de te deixar-disse eu num tom pesaroso.
-Nem sequer penses nisso - disse ela, com uma gargalhada alegre. - O meu pai diz sempre que devemos ir onde está o trabalho. Quando partes?
- Quando voltares a Nova Iorque já cá não estarei-disse eu num tom pouco firme. - Esta será a última vez que nos vemos.
Ela voltou o meu pulso para olhar para o relógio.
- Meu Deus - disse ela. - Já não há muito tempo. Podemos ter uma rápida?
- Com certeza, Mae - disse eu, viril. - Por que não?
Mais tarde, quando estávamos de novo vestidos e a reunir a bagagem dela para a levar para o carro, ela disse:
-Peter, uma rapariga que conheço e que é sócia do clube, bem, ela disse-me que tinha encontrado lá um rapaz formidável. Esta rapariga tem uma espécie de artrite na anca e disse que, depois de uma cena com o rapaz, ficou boa. Chama-se Seth. Conhece-lo?
- Seth? - disse eu. - Claro que o conheço.
1. Fazer de conta. (N. da T.)
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- Achas que vou gostar dele?
- Claro que vais - disse-lhe eu. - Ele é maravilhoso!
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Peters Place fechou para obras no dia 2 de Janeiro. Apareceram os decoradores, os pintores e os carpinteiros, e eu retirei-me para o meu quarto no terceiro andar para começar a fazer as malas para a minha mudança para a Costa. Só ia levar duas malas. Yance enviar-me-ia o resto das coisas quando eu estivesse instalado.
Eu tinha reflectido muito desde que fora maltratado naquela reunião no escritório de Octavius Caesar. Cheguei finalmente à conclusão do que acontecera. Penso que o cenário fora o seguinte:
Nem Alice, nem Wilson Bowker tinham assassinado Martha. A morte dela tinha sido planeada por Caesar e levada a cabo pelos seus capangas, provavelmente, até mesmo Cannis e Gelesco. Ela deixá-los-ia entrar no seu apartamento.
A Roman Enterprises tinha investido muito na campanha de Bowker para governador e tinha, de algum modo, sabido da relação dele com Martha. Por isso, ela tivera de ser removida antes que a carreira política da Grande Esperança Branca fosse destruída.
Ao mesmo tempo, Octavius Caesar sabia que a morte de Martha - e a minha estupidez - garantiria a posse majoritária de Peters Place, Inc. Esta estava a fazer bom dinheiro, e uma cadeia de Peters Places renderia milhões sem conta. Assim, Caesar queria ter controlo total, comigo como empregado, fazendo vénias sempre que me atirassem algumas moedas extra.
Havia mais uma razão pela qual ele decidira enviar-me para a Costa. Em primeiro lugar, ele sabia que eu era um rapaz esperto, que conseguia montar e gerir um estabelecimento lucrativo em Beverly Hills. E queria-me fora de Nova Iorque, onde pudesse sentir curiosidade e começar a fazer perguntas sobre o assassínio de Martha.
Um patife engenhoso como Octavius Caesar, que indubitavelmente conseguira a transferência do detective Jules Slotkin, preveria um perigo desses e tomaria medidas para o evitar.
Havia outro motivo para ele me querer longe - e o leitor poderá sorrir, mas eu acreditava realmente nele. Eu sabia do seu arranjinho com Clara Hoffheimer. Pior ainda, do seu ponto de vista, eu tinha testemunhado o seu embaraço quando as cuecas tinham ficado presas no fecho, durante a sua cena com Clara no clube.
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Octavius Caesar poderia, provavelmente, suportar muita coisa, mas ser julgado ridículo não era uma delas. Eu tinha-o visto sair apressadamente a segurar bem uma gabardina para esconder a sua vergonha. Depois disso, ele sabia que nunca podia esperar que eu mostrasse um respeito sincero para com ele.
Foi assim que acho que tudo aconteceu. Posso estar errado, claro, mas duvido. De qualquer modo, não faz qualquer diferença.
A pobre Martha tinha razão quando falava do sobremundo e como este funciona de maneiras misteriosas. Ela representava um problema para os donos do dinheiro e do poder, e tinha de morrer. Eu tinha mais sorte (julgava eu), era exilado para Beverly Hills. O que significava que eles achavam que ainda me podiam utilizar.
Na noite de 4 de Janeiro, eu tinha as malas feitas e estava pronto para partir. Tínhamos fechado as bebidas à chave antes de os decoradores chegarem, mas eu tinha cuidadosamente guardado algumas garrafas para os meus últimos dias no Peters Place.
Misturei um vodka com água e vagueei pelo rés-do-chão do clube. A maior parte da mobília tinha sido retirada para ser vendida, mas conservávamos algumas peças boas que tínhamos. Agora estas estavam cobertas com panos, a protegerem-nas da tinta.
Foi como andar no meio de um cemitério. A mobília coberta parecia campas, e as poucas luzes que ainda funcionavam empurravam as sombras para os cantos. Era um local fantasmagórico sem música, nem riso, sem a ganância nem as paixões que levavam as clientes e os garanhões para os andares superiores.
Deixei-me ficar junto do bar tapado com um lençol, da Sala dos Sonhos, e pensei no meu futuro.
Vi-me a mim próprio, um chulo gordo, de pé, na varanda de uma casa com vista para o Pacífico. Vestiria um casaco desportivo de caxemira grená, calças de seda crua, sapatos vela Gucci - sem meias, claro. Um Concord Mariner de ouro no pulso, um anel de diamantes no dedo mindinho, e um lenço ondulante ao pescoço.
E o meu braço rodearia a cintura macia de um brinquedo bronzeado e jovem com uma tanga. Cabelo louro, manchado do sol, até ao rabo. Teria um daqueles nomes californianos - Candy, Astra, Bliss.
- Papá - diria ela -, preciso de dinheiro para o meu guru. Mas essa imagem não me desanimava. Eu podia desempenhar esse papel.
A campainha da porta da frente tocou. Fui até ao átrio e espreitei pelo óculo. Uma mulher só. Abri a porta.
Era alta, calma, bastante bela. Embrulhada num vison.
- Eu sou sócia - disse ela secamente, mostrando o cartão. - Posso..?
- Lamento muito - interrompi -, mas estamos fechados para obras. Reabriremos daqui a duas semanas.
- Oh - disse ela. - É, de facto, uma decepção.
- No entanto - disse eu, ligando o charme, se puder ser útil..? Ela olhou para mim.
- Desculpe - disse ela, com um sorriso frio. - Estou à procura de um rapaz mais novo.

 

 

                                                                  Lawrence Sanders

 

 

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