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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SEGUNDA VEZ / Mary Higgins Clark
A SEGUNDA VEZ / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

                               CAPÍTULO UM

A reunião dos accionistas, ou talvez a revolta dos accionistas seja uma forma melhor de descrever o evento, foi a 21 de Abril, no Grand Hyatt Hotel, em Manhattan. Estava um dia absurdamente frio e invernoso, mas adequadamente lúgubre, dadas as circunstâncias. Duas semanas antes, a noticia de que Nicholas Spencer, presidente e director-executivo da Gen-stone, morrera no acidente sofrido pelo seu avião particular durante uma viagem a San Juan, fora recebida com genuíno e profundo pesar. A sua empresa esperava receber o aval da Food and Administration para uma vacina que eliminaria a possibilidade de crescimento de células cancerígenas e, ao mesmo tempo, poria termo ao avanço da doença naqueles já atingidos por ela: uma prevenção e uma cura, cuja responsabilidade cabia inteiramente a Spencer.

O título jornalístico que dava conta do desaparecimento de Spencer foi em breve seguido por um comunicado do director-geral da Gen-stone, no qual anunciava que se tinham verificado vários contratempos nas experiências com a vacina, pelo que ela não poderia ser submetida à aprovação do FDA num futuro previsível. Anunciava ainda que dezenas de milhões de dólares tinham sido desviados da empresa, aparentemente por Nicholas Spencer.

O meu nome é Marcia DeCarlo, mais conhecida por Carley, e quando me sentei na zona reservada aos media, na reunião de accionistas, ao observar os rostos furiosos, aturdidos ou chorosos à minha volta, continuava a não acreditar no que ouvia. Ao que parecia, Nicholas Spencer, Nick, era um ladrão e uma fraude. A vacina não passava do resultado da sua imaginação gananciosa e da sua astúcia de negociante. Enganara todas as pessoas que tanto dinheiro tinham investido na sua empresa, muitas vezes as economias de uma vida inteira, ou todo o dinheiro que tinham. Claro que procuravam o lucro, mas muitas acreditavam também que o seu investimento ajudaria a tornar a vacina uma realidade. E os investidores não tinham sido os únicos lesados, a dívida tornara também inúteis os descontos para a reforma feitos pelos empregados da Gen-stone, mais de mil pessoas. Parecia impossível de acreditar!

Dado que o corpo de Nicholas Spencer não dera à costa juntamente com os pedaços carbonizados do seu desafortunado avião, metade das pessoas presentes no auditório não acreditava que ele estivesse morto. A outra metade ter-lhe-ia cravado de bom grado uma estaca no coração, caso os seus restos mortais tivessem sido descobertos.

Charles Wallingford, director-geral da Gen-stone, com o rosto da cor da cinza, mas com a elegância natural resultante de gerações criadas entre abundância e privilégios, procurava pôr ordem na reunião. Outros membros do conselho de administração, de semblante carregado, ocupavam os seus lugares na mesa, junto dele. Eram todos figuras proeminentes dos negócios e da sociedade. Na segunda fila havia pessoas que reconheci como sendo executivos da empresa de conta bilidade da Gen-stone. Algumas delas eram entrevistadas, de tempos a tempos, no IYleely Broser, o suplemento publicado ao domingo, no qual escrevo uma coluna de análise financeira.

Sentada à direita de Wallingford, o rosto pálido como alabastro, o cabelo louro apanhado num carrapito, e envergando um fato preto que, estou certa, custara uma fortuna, estava Lynn Hamilton Spencer. É a mulher de Nick - ou melhor, a viúva - e, por coincidência, minha meia-irmã, com quem me encontrei precisamente três vezes e de quem, devo confessar, não gosto. Deixem-me explicar. Há dois anos, a minha mãe, viúva, casou com o pai de Lynn, também viúvo, depois de tê-lo conhecido em Boca Raton, onde viviam em condomínios vizinhos.

 

 

 

 

No jantar da noite anterior ao casamento, fiquei tão aborrecida com a atitude condescendente de Lynn Spencer como encantada com Nicholas Spencer. As histórias sobre ele na Time davam a conhecer todos os pormenores. Era filho de um médico de Connecticut, um clínico geral cuja paixão era a investigação no campo da Biologia. Tinha um laboratório em casa, e desde criança que Nick passava nele a maior parte do seu tempo livre, a ajudar o pai com as experiências.

- Os outros miúdos tinham cães - explicara aos autores dessas entrevistas. - Eu tinha ratinhos. Na altura não sabia, mas estava a ser orientado no estudo da microbiologia por um génio.

Seguira o caminho dos negócios, com um mestrado em Economia e Gestão, na intenção de um dia vir a ser dono de uma empresa de aprovisionamento médico. Começou a trabalhar num pequeno negócio do ramo e depressa chegou ao topo, tornando-se sócio. Depois, quando a microbiologia se tornou a onda do futuro, começou a perceber que era esse o rumo que pretendia tomar. Começou a reorganizar os apontamentos do pai e descobriu que, pouco antes da sua morte súbita, o pai estivera prestes a fazer uma descoberta revolucionária e da maior importância. Usando a sua empresa de aprovisionamento médico como base, preparou-se para criar uma grande unidade de investigação.

O capital de risco ajudara-o a lançar a Gen-stone e a notícia da descoberta da vacina contra o cancro fizera disparar as acções da empresa, em Wall Street. Com um preço inicial de 3 dólares por acção, tinham chegado a atingir os 160 dólares e, dependendo da aprovação pelo FDA, a Garner Pharmaceutical comprometeu-se a pagar um bilião de dólares pelos direitos de distribuição da nova vacina.

Eu sabia que a primeira mulher de Nick Spencer morrera de cancro há cinco anos, que ele tinha um filho de dez anos e que estava casado com Lynn, a sua segunda mulher, há quatro. Mas todo o tempo que passei a vasculhar o seu percurso de vida não me serviu de nada quando o conheci, naquele jantar "de família". A verdade é que não estava preparada para o magnetismo absoluto da personalidade de Nick Spencer. Era uma daquelas pessoas dotadas de um encanto pessoal inato e de uma mente indubitavelmente brilhante. Com mais de um metro e oitenta de altura, cabelo louro escuro, olhos de um azul intenso e um corpo atlético e bem cuidado, era fisicamente muito atraente. No entanto, foi a sua enorme capacidade de interacção com as pessoas que se revelou a sua maior vantagem. Enquanto a minha mãe procurava manter uma conversa com Lynn, dei por mim a contar a Nick mais sobre a minha pessoa do que alguma vez revelara a alguém num primeiro encontro.

Em cinco minutos ficou a saber a minha idade, onde eu vivia, onde trabalhava e onde fora criada.

- Trinta e dois - disse ele, sorrindo. - Oito anos mais nova do que eu.

Depois, não só lhe contei que me divorciara após um breve casamento com um colega da Universidade de Nova Iorque, como até lhe falei do bebé que viveu apenas alguns dias porque o buraco que tinha no coração era demasiado grande para fechar. Nem parecia eu. Nunca falo do bebé. Fez-me sofrer demasiado. E, contudo, foi fácil falar dele a Nicholas Spencer.

- Esse é o tipo de tragédia que a nossa investigação conseguirá evitar, um dia - disse ele, com simpatia. - É por isso que vou mover céu e terra para salvar as pessoas do tipo de sofrimento que você viveu, Carley.

Os meus pensamentos voltaram rapidamente à realidade quando Charles Wallingford bateu com o martelo na mesa até se fazer silêncio. Um silêncio irado, obstinado.

- O meu nome é Charles Wallingford, e sou o presidente do conselho de administração da Gen-stone - disse ele.

Foi cumprimentado por um coro ensurdecedor de apupos. Sabia que Wallingford tinha quarenta e oito ou quarenta e nove anos de idade e vira-o nos noticiários, no dia seguinte àquele em que o avião de Spencer se despenhara. Tinha agora um ar muito mais velho. A tensão das últimas semanas acrescentara anos à sua aparên cia. Ninguém podia pôr em dúvida que o homem estava a sofrer.

- Trabalhei com Nicholas Spencer durante os últimos oito anos

- disse ele. - Tinha acabado de vender o nosso negócio de família, do qual era presidente, e andava em busca de uma oportunidade para investir numa companhia promissora. Conheci Nick Spencer e ele convenceu-me de que a companhia que acabara de fundar faria descobertas extraordinárias no desenvolvimento de novas drogas. A pedido dele, investi quase todos os lucros que conseguira com a venda do nosso negócio de familia, e juntei-me à Gen-stone. Por isso, estou tão destroçado como todos vós, pelo facto de a vacina não estar pronta para ser submetida à aprovação da FDA, mas isso não significa que, se forem conseguidos novos fundos, novas investigações não venham resolver o problema...

Dezenas de perguntas lançadas aos gritos interromperam-no:

- E o dinheiro que ele roubou? Porque não admite que você e essa cambada nos enganaram?

Lynn levantou-se abruptamente e, num gesto inesperado, puxou o microfone que estava na frente de Wallingford:

- O meu marido morreu a caminho de uma reunião de negócios, para conseguir mais fundos para que a investigação prosseguisse. Tenho a certeza que o dinheiro em falta pode ser explicado...

Apareceu um homem a correr pelo corredor de uma das coxias, brandindo páginas que pareciam ter sido arrancadas de revistas e jornais.

- Os Spencer na sua propriedade de Bedford - gritou ele.

- Os Spencer dão um baile de caridade. Nicholas Spencer sorri enquanto passa um cheque aos "Pobres de Nova Iorque".

Os seguranças agarraram os braços do homem quando ele chegou ao estrado.

- De onde pensa que vinha o dinheiro, minha senhora? Eu digo-lhe. Hipotequei a minha casa duas vezes para investir na porcaria da vossa empresa. Quer saber porquê? Porque a minha filha tem cancro e eu acreditei na promessa do seu marido sobre a vacina!

A zona reservada à comunicação social era a das primeiras filas. Eu estava numa das pontas e, se estendesse o braço, conseguiria tocar no homem. Era um tipo com ar robusto e cerca de trinta anos, de camisola ejeans. Vi o rosto crispar-se-lhe subitamente e o homem còmeçou a chorar.

- Nem sequer vou poder continuar a dar-lhe esta casa para viver - disse ele. - Vou ter que vendê-la.

Levantei os olhos na direcção de Lynn, e os nossos olhares cruzaram-se. Sabia que lhe era impossível ver o desprezo nos meus olhos, mas tudo o que consegui pensar foi que o diamante que ela trazia no dedo seria provavelmente suf Iciente para liquidar a segunda hipoteca, que iria roubar a casa a uma criança mortalmente doente.

A reunião não durou mais de quarenta minutos e consistiu, quase na totalidade, numa série de relatos dramáticos de pessoas que tinham perdido tudo ao investir na Gen-stone. Muitas delas disseram que tinham sido convencidas a comprar as acções, porque uma criança ou outro membro da família tinha uma doença que a vacina seria capaz de travar.

Enquanto as pessoas faziam fila em direcção à saída, tomei nota de nomes, moradas e números de telefone. Graças à minha coluna, muitas delas sabiam quem eu era e estavam ansiosas por falar comigo sobre a sua perda financeira. Perguntavam se eu achava que havia alguma possibilidade de virem a recuperar algum ou todo o seu investimento.

Lynn saíra da reunião por uma das portas laterais. Fiquei contente. Escrevera-lhe depois de o avião de Nick se ter despenhado, a dizer-lhe que iria ao serviço fúnebre. Ainda não se realizara: estavam à espera, para ver se o corpo aparecia. Agora, como quase toda a gente, interrogava-me sobre se Nick estaria mesmo no avião quando ele se despenhou, ou se forjara o seu próprio desaparecimento.

Senti uma mão no meu braço. Era Sam Michaelson, repórter veterano da revista Wal Street.

- Anda, pago-te uma bebida - ofereceu ele.

- Meu Deus, bem preciso de uma.

Descemos até ao bar, no rés-do-chão, e sentámo-nos a uma mesa. Eram quatro e meia.

- Tenho uma regra muito rígida que diz que não devo beber vodka antes das cinco horas - disse-me Sam -, mas, como sabes perfeitamente, algures no mundo são cinco horas.

Pedi uma taça de Chianti. Habitualmente, no final de Abril já teria optado por Chardonnay, a minha escolha vinícola em tempo quente, mas, emocionalmente arrepiada como me sentia depois daquela reunião, queria qualquer coisa que me aquecesse.

Sam fez o pedido e depois, de súbito, perguntou:

- Então, o que achas, Carley? Nesta altura, o filho da mãe está a apanhar sol no Brasil?

Dei-lhe a única resposta honesta que podia oferecer-Lhe:

- Não sei.

- Estive com o Spencer uma vez - disse Sam. -Juro que se ele me tivesse querido vender a ponte de Brooklyn, eu teria caído. Que vendedor de banha da cobra! Alguma vez te encontraste com ele?

Ponderei por um momento a pergunta que Sam me fazia, tentando decidir o que responder. O facto de Lynn Hamilton Spencer ser minha meia-irmã, o que fazia de Nick Spencer meu cunhado por afinidade, era algo de que eu nunca falava. Contudo, esse facto impedia-me de comentar, em público ou em privado, a Gen-stone como investimento, porque sentia que isso podia ser considerado conflito de interesses. Infelizmente, isso não me impediu de comprar 25 mil dólares de acções da Gen-stone porque, tal como Nicholas Spencer dissera naquela noite, ao jantar, depois de a sua vacina eliminar o cancro, um dia haveria outra vacina capaz de eliminar todas as anomalias genéticas.

O meu bebé foi baptizado no dia em que nasceu. Chamei-lhe Patrick, o nome do meu avô materno. Comprei aquelas acções numa espécie de homenagem à memória do meu filho. Naquela noite, há dois anos, Nick dissera que quanto mais dinheiro conseguisse angariar, mais rapidamente seriam feitos os testes à vacina e mais depressa ela estaria disponível.

- E, claro, talvez os teus vinte e cinco mil dólares venham a valer muito mais - acrescentara.

Esse dinheiro representava as minhas economias para amortizar o empréstimo do apartamento.

Olhei para Sam e sorri, ainda à procura de resposta. O cabelo de Sam é grisalho. A sua única vaidade é pentear longas madeixas sobre a parte de cima da cabeça, careca. Reparei que essas madeixas estavam muitas vezes um pouco desalinhadas, tal como agora, e, como velha amiga que era, tive que resistir a dizer:

- Desiste, perdeste a batalha do cabelo.

Sam vai a caminho dos setenta, mas os seus olhos azuis de bebé são brilhantes e vivos. Contudo, não há nada de infantil naquele rosto enrugado. É inteligente e perspicaz. Percebi que não seria justo não lhe falar da minha algo ténue ligação aos Spencer, mas deixaria claro que só estivera com Nick uma vez e três vezes com Lynn.

Vi as sobrancelhas dele erguerem-se enquanto se inteirava da relação.

- Ela parece-me uma fulana um pouco fria - disse ele. - E o

Spencer?

- Eu também lhe teria comprado a ponte de Brooklyn. Achei que era um tipo extraordinário.

- E o que achas agora?

- Queres dizer, se está morto ou forjou o acidente? Não sei.

- E a mulher, a tua meia-irmã?

Sei que fiz uma careta.

- Sam, a minha mãe é verdadeiramente feliz com o pai de Lynn, ou então é uma grande actriz. Deus nos valha, aqueles dois até têm aulas de piano juntos. Devias ter ouvido o concerto com que fui presenteada quando fui passar o fim-de- semana a Buca, o mês passado. Admito que não gostei de Lynn quando a conheci. Acho que beija o espelho todas as manhãs. Mas só a vi na noite anterior au casamento, no casamento e uma outra vez, quando cheguei a Boca, o ano passado, precisamente quando ela estava de partida. Por isso, faz-me um favor e não te refiras a ela como a minha meia-irmã.

- Pedido registado.

A empregada trouxe-nos as bebidas. Sam bebericou a sua, com ar satisfeito, e depois pigarreou:

- Carley, acabei de saber que te candidataste ao lugar vago na revista.

- Sim.

- Porquê?

- Quero escrever para uma revista financeira séria e não limitar-me a ter uma coluna que serve essencialmente para encher um espaço financeiro num suplemento generalista de domingo. A minha meta é escrever para a Wall Street. Como ficaste a saber que me candidatei?

- O chefão, Will Kirby, fez perguntas sobre ti.

- E o que lhe disseste?

- Disse-lhe que tens miolos e que és muito melhor do que o tipo que se foi embora.

Meia hora depois, Sam deixou-me à porta de casa. Vivia num apartamento, no segundo andar de um edifício de grés avermelhado, em East 37th Street, Manhattan. Ignorei o elevador, que bem merece ser ignorado, e subi o lanço de escadas a pé. Foi um alívio abrir a minha porta e entrar. Sentia-me em baixo, por várias razões. A situação financeira daqueles investidores mexera comigo, mas era mais do que isso. Muitos deles tinham feito o investimento pela mesma razão que eu, porque queriam travar o avanço de uma doença em alguém que amavam. Era demasiado tarde para mim, mas sei que comprar aquelas acções em memória do Patrick era também a minha maneira de tentar fechar o buraco que havia no meu coração, e que era ainda maior do que aquele que matara o meu filho.

O meu apartamento está mobilado com coisas que os meus pais tinham na casa de Ridgewood, Nova Jérsia, onde fui criada. Como sou filha única, pude escolher o que quis, quando eles se mudaram para Boca Raton. Forrei o sofá com um tecido azul forte, para realçar o azul do tapete persa antigo que descobri numa venda de garagem. As mesas e os candeeiros e a cadeira de repouso são mais ou menos do tempo em que eu era a miúda mais pequena e mais rápida da equipa universitária de basquetebol, no Colégio Arte Imaculada.

Tenho uma fotografia da equipa na parede do quarto, e estou a segurar a bola de basquete. Olho para a fotografia e vejo que, em muitos aspectos, não mudei. O cabelo curto escuro e os olhos azuis que herdei do meu pai continuam iguais. Nunca tive aquele crescimento súbito que a minha mãe me assegurou. Tinha pouco mais do que um metro e sessenta nessa altura, e tenho um metro e sessenta agora. Infelizmente, o sorriso de vitória desapareceu, pelo menos da forma como estava na fotografia, quando eu achava que o mundo era a minha ostra. Escrever a coluna pode ter qualquer coisa a ver com isso. Estou sempre em contacto com pessoas reais, com problemas financeiros reais.

Mas sabia que havia outra razão para me sentir esgotada e deprimida, esta noite.

Nick. Nicholas Spencer. Por mais esmagadoras que fossem as provas aparentes, não conseguia aceitar o que diziam sobre ele.

Haveria outra resposta para o fracasso da vacina, o desaparecimento do dinheiro, o desastre de avião? Ou haveria qualquer coisa em mim que me deixava levar por farsantes de falinhas mansas, que não se ralam com ninguém, a não ser com eles próprios? Como me deixei levar por Greg, o Sr. Errado com quem casei há quase onze anos.

Quando o Patrick morreu, depois de quatro dias de vida, Greg não precisou de dizer-me que estava aliviado. Era evidente que estava. Já não teria de ficar preso a uma criança que necessitava de cuidados constantes.

Não chegámos a falar realmente sobre o assunto. Não havia muito a dizer. Informou-me que o emprego que lhe tinham oferecido na Califórnia era demasiado bom para ele recusar.

Eu disse:

- Não sou eu quem te vai impedir de o aceitares.

E pronto.

Todos estes pensamentos não fizeram senão deprimir-me ainda mais, por isso fui para a cama cedo, decidida a descansar a cabeça e a acordar fresca no dia seguinte.

Às sete da manhã fui despertada por um telefonema de Sam:

- Carley, liga a televisão. Estão a dar notícias. Lynn Spencer foi para a casa de Bedford, ontem à noite. Alguém deitou fogo a tudo. Os bombeiros conseguiram tirá-la lá de dentro, mas ela inalou muito fumo. Está no St. Ann's Hospital, em estado grave.

Quando Sam desligou, agarrei no comando que estava em cima da mesa-de-cabeceira. Mal tinha ligado a televisão o telefone tocou. Era de St. Ann Hospital.

- Sr. DeCarlo, a sua meia-irmã Spencer, está internada neste hospital. Deseja vê-la. Pode visitá-la hoje? - A voz da mulher assumiu um tom de urgência. - Está terrivelmente perturbada e tem muitas dores. É muito importante para ela que venha.

 

                           CAPÍTULO DOIS

Durante os quarenta minutos que demorei a chegar ao St. Ann's Hospital, mantive o rádio na CBS, para saber novidades sobre o incêndio. Segundo os relatos, Lynn Spencer chegara à sua casa de Bedford por volta das onze horas da noite. Os caseiros, Manuel e Rosa Gomez, vivem numa residência separada, dentro da propriedade. Aparentemente, não estavam à espera que ela aparecesse ontem à noite e não sabiam que ela estava em casa.

O que fez Lynn decidir ir até Bedford, ontem à noite? Pensei no assunto enquanto decidia arriscar o Cross Bronx Expressway, o caminho mais rápido para ir da zona este de Manhattan até Westchester County, se não houver um acidente a atrapalhar o trânsito. O problema é que há quase sempre um acidente, o que faz com que se diga que Cross Bronx é a pior estrada do país.

O apartamento dos Spencer em Nova Iorque fica na Fifth Avenue, perto do edifício onde Jackie Kennedy viveu. Pensei nos meus 270 metros quadrados de domínio e nos 25 mil dólares que perdi, dinheiro que estava destinado a um depósito numa cooperativa de habitação. Pensei no homem da reunião de ontem, cuja filha está a morrer, e que vai perder a casa porque investiu na Gen-stone. Pensei se Lynn teria sentido um pingo de culpa ao voltar àquele apartamento opulento, depois da reunião. Pensei se quereria falar comigo sobre isso.

Abril voltara a ser Abril. Quando percorri os três quarteirões até chegar à garagem onde deixo o carro, aspirei o ar e apreciei o facto de estar viva. O sol brilhava e o céu era de um azul intenso. As poucas nuvens pareciam pequenas almofadas brancas, movendo-se ao acaso. É assim que a minha amiga Eve, designerde interiores, diz que costuma atirar as almofadas quando decora um espaço qualquer. As almofadas devem ter um ar de improviso, espalhadas ao acaso quando tudo o resto está no seu lugar.

O termómetro no painel de instrumentos marcava dezoito graus. Estaria um dia maravilhoso para ir até ao campo, se a razão da viagem fosse diferente. Apesar de tudo, estava curiosa. Ia visitar uma meia- irmã que era praticamente uma estranha e que, por qualquer razão, mandara chamar-me em vez de a um dos seus amigos famosos, quando fora levada para o hospital.

Acabei por fazer Cross Bronx em cerca de quinze minutos, quase um recorde, e virei para norte, em direcção a Hutchinson River Parkway. O jornalista começou a actualizar a história sobre Lynn. Às 3h15 o alarme de incêndio tocara na mansão de Bedford. Quando os bombeiros lá chegaram, uns minutos depois, todo o andar de baixo estava envolto em chamas. Rosa Gomez assegurou-lhes que não havia ninguém lá dentro. Felizmente, um dos bombeiros reconheceu no Fiat que se encontrava na garagem o carro que Lynn trazia sempre, e perguntou a Rosa há quanto tempo o carro estava ali. Perante a surpresa de Rosa, fizeram chegar uma escada até ao quarto que Rosa lhes apontou, partiram uma janela e entraram. Encontraram uma Lynn aturdida e desorientada, tentando encontrar caminho por entre o fumo denso. Os pés tinham bolhas devido ao calor do chão, e nas mãos havia queimaduras de 2. o grau, por ter tacteado as paredes, à procura da porta. Segundo o hospital, o seu estado passara de reservado a estável.

Um relatório preliminar indicava que se tratava de fogo posto. Alguém espalhara gasolina no alpendre da entrada, que se estendia ao longo de toda a frente da residência. Depois de incendiada, resultara numa bola de fogo que, em segundos, envolvera em chamas o piso térreo.

Quem teria incendiado a casa? interroguei-me. Alguém saberia ou suspeitaria da presença de Lynn lá dentro? O meu pensamento voou até à reunião de accionistas e ao homem que vociferara contra Lynn. Referira- se especificamente à mansão de Bedford. Estava certa de que, quando a polícia ouvisse falar dele, lhe faria uma visita.

Lynn estava num cubículo, no serviço de cuidados intensivos do St. Anna's Hospital. Tinha tubos de oxigénio nas narinas e os braços envoltos em ligaduras. O seu semblante, contudo, não estava tão pálido como no dia anterior, quando a vira na reunião de accionistas. Depois, lembrei-me de que a inalação de fumos pode dar à pele um tom rosado.

Tinha o cabelo louro penteado para trás e parecia mole, até mesmo mal cortado. Pensei se teriam tido necessidade de apará-lo um pouco na sala de urgências. Tinha as palmas das mãos envoltas em ligaduras, mas as pontas dos dedos estavam livres. Senti vergonha de, por momentos, ter pensado se o diamante solitário que ela ostentava na reunião teria ficado algures na casa incendiada.

Tinha os olhos fechados e não tive a certeza se estaria a dormir. Olhei para a enfermeira que me trouxera até ela.

- Estava acordada há um minuto - disse ela, em voz baixa. Fale com ela.

- Lynn - disse eu, hesitante.

Ela abriu os olhos.

- Carley. - Tentou sorrir. - Obrigada por teres vindo. Respondi com um aceno de cabeça. Normalmente, não sou de ficar muito calada, mas não sabia o que dizer-lhe. Estava sinceramente grata por ela não ter ficado com queimaduras graves nem ter sufocado, mas não conseguia imaginar porque estava ali a fazer de família. Se há coisa de que tenho a certeza neste mundo é que Lynn Hamilton Spencer tem tão pouca consideração por mim como eu tenho por ela.

- Carley... - A voz dela soou desafinada e, ao percebê-lo, cerrou os lábios. - Carley - recomeçou, num tom mais calmo -, eu não fazia ideia de que o Nick andava a desviar dinheiro da empresa. Ainda não consigo acreditar. Não sei nada sobre os negócios dele. Carley, ele já tinha a casa de Bedford e o apartamento em Nova Iorque antes de casarmos.

Tinha os lábios gretados e secos. Levantou a mão direita. Percebi que tentava chegar ao copo de água. Peguei nele e estendi-Lho. A enfermeira saíra assim que Lynn abrira os olhos. Eu não tinha a certeza se havia de carregar no botão que levantava a cama. Em vez disso, pus-Lhe o braço em volta do pescoço e apoiei-a enquanto ela bebia água em pequenos goles.

Bebeu apenas um pouco, depois voltou a deitar-se e fechou os olhos, como se aquele pequeno esforço a tivesse deixado exausta. Nesse momento, senti verdadeira pena dela. Havia nela qualquer coisa de magoado e destroçado. A Lynn impecavelmente vestida e penteada que eu conhecera em Boca Raton estava a anos-luz desta mulher vulnerável que precisava de ajuda para beber umas gotas de água.

Deitei-a na almofada, enquanto as lágrimas lhe caíam pela face.

- Carley - disse ela, numa voz cansada e gasta -, perdi tudo. O Nick está morto. Pediram-me que me demitisse da empresa de relações públicas. Apresentei o Nick a muitos clientes novos. Mais de metade deles fez grandes investimentos na empresa. Aconteceu o mesmo em Southampton, no clube. Pessoas que eram minhas amigas há anos estão furiosas porque conheceram o Nick através de mim, e agora perderam muito dinheiro.

Pensei em Sam e em como ele descrevera Nick como um vendedor de banha de cobra.

- Os advogados dos accionistas vão processar-me. - Na sua ansiedade, Lynn começara a falar muito depressa. Pôs-me a mão no braço e depois fez uma careta e mordeu o lábio. Tenho a certeza de que o contacto lhe provocou uma dor dilacerante na palma da mão ferida.

- Tenho algum dinheiro na minha conta bancária - disse ela -, e é tudo. Em breve não terei casa. Já não tenho emprego. Carley, preciso da tua ajuda.

Como poderia eu ajudá-la? pensei. Não sabia o que dizer, por isso limitei-me a olhar para ela.

- Se o Nick roubou esse dinheiro, a minha única esperança é que as pessoas acreditem que eu também sou uma vítima inocente. Carley, fala-se em indiciar-me. Por favor, não deixes que isso aconteça. As pessoas respeitam-te. Vão dar-te ouvidos. Fá-las compreender que se houve um logro, eu não participei nele.

- Acreditas que o Nick está morto? - Era uma pergunta que eu tinha de fazer.

- Sim. Sei que o Nick acreditava totalmente na legitimidade da Gen-stone. Ia a caminho de uma reunião de negócios em Puerto Rico, e foi apanhado numa tempestade terrível.

A sua voz tornou-se tensa e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

- O Nick gostava de ti, Carley. Gostava muito de ti. Admirava-te. Contou-me do teu bebé. O Jack, o filho do Nick, fez dez anos há pouco tempo. Os avós vivem em Greenwich. Agora, nem me vão deixar vê-lo. Nunca gostaram de mim, porque me pareço com a filha deles, e eu estou viva e ela está morta. Tenho saudades do Jack. Quero

poder, pelo menos, visitá-lo.

Conseguia percebê-la perfeitamente.

- Lynn, lamento, lamento imenso.

- Carley, preciso de mais do que a tua compreensão. Preciso que ajudes as pessoas a compreender que não entrei em nenhum esquema para defraudá-las. O Nick disse que se via que és uma pessoa forte e cnrajosa. Podes ser uma pessoa forte e corajosa por mim? - Fechou os olhos. - E por ele - murmurou. - Ele gostava muito de ti.

 

                               CAPÍTULO TRÊS

Ned estava sentado na entrada do hospital, com um jornal aberto à sua frente. Viera até ali mantendo-se atrás de uma mulher que levava flores, na esperança de que quem quer que estivesse a vê-lo julgasse que eles estavam juntos. Depois de entrar, sentou-se no hall.

Enfiado na cadeira, de forma a que o jornal Lhe escondesse o rosto. Estava tudo a acontecer muito depressa. Precisava de pensar.

Ontem quase dava um murro na mulher de Spencer, quando ela agarrou o microfone, na reunião de accionistas, para dizer que tinha a certeza de que tudo não passava de um erro contabilístico. Tivera sorte por. o outro tipo ter começado a gritar com ela.

Mas depois, quando saíram do hotel e a vira entrar numa limusina reluzente, a raiva explodira dentro dele.

Apanhara imediatamente um táxi e dera ao motorista a morada do apartamento dela em Nova Iorque, naquele edifício pretensioso diante do Central Park. Chegara precisamente no momento em que o porteiro segurava a porta para ela entrar.

Enquanto pagava o táxi e saía, imaginava Lynn Spencer a subir no elevador até ao lugar pretensioso comprado com o dinheiro que ela e o marido lhe tinham roubado.

Resistira ao desejo de correr atrás dela e começara a descer Fifth Avenue. Durante todo o caminho vira desprezo nos olhos das pessoas com quem se cruzava. Elas sabiam que ele não pertencia ali. Pertencia a um mundo onde as pessoas compravam apenas as coisas de que tinham absoluta necessidade, pagando-as com cartões de crédito e fazendo depois o pagamento mensal mais pequeno que podiam.

Na televisão, Spencer dissera que toda a gente que investira na IBM ou na Xerox há cinquenta anos se tornara milionária.

- Ao comprar acções da Gen-stone, não estarão apenas a ajudar os outros, mas a fazer também uma fortuna.

Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso! - A palavra explodiu na cabeça de Ned.

Quando saiu da Fifth Avenue caminhou até ao local onde poderia apanhar o autocarro para Yonkers. A casa onde vivia era um velho edifício de dois andares. Ele e Annie tinham alugado o andar de baixo há vinte anos, logo depois de terem casado.

A sala estava numa desarrumação total. Tinha cortado todos os artigos sobre o desastre de avião e a porcaria da vacina e tinha-os espalhado em cima da mesa. O resto dos papéis estava atirado para o chão. Quando chegou a casa, voltou a ler os artigos, um por um.

Quando anoiteceu, não se preocupou com o jantar. Não estava com muita fome. Às dez horas tirou um cobertor e uma almofada do armário e deitou-se no sofá.

Tinha deixado de dormir no quarto. Tinha demasiadas saudades de Annie. Depois do funeral, o padre tinha-Lhe dado uma Bíblia.

- Marquei algumas passagens para leres, Ned - tinha-lhe dito.

- Talvez te ajudem.

Ned não estava interessado nos Salmos, mas, enquanto folheava a Bíblia, tinha encontrado qualquer coisa no 1. livro de Ezequiel. "Porque afligis o coração do justo com mentiras, quando eu não o queria afligir" Era como se o profeta estivesse a falar de Spencer e dele. Mostrava que Deus ficava zangado com as pessoas que magoavam outras pessoas e que queria que elas fossem castigadas.

Ned adormeceu, mas acordou depois da meia-noite, com uma imagem nítida da mansão de Bedford a preencher-lhe o pensamento. Aos domingos à tarde costumava passar várias vezes por ela, com Annie, depois de ter comprado as acções. Ela ficara muito zangada por ele ter vendido a casa de Greenwood Lake que a mãe lhe deixara, e usado o dinheiro da venda para comprar acções da Gen-stone. Não estava tão convencida como ele de que as acções fossem torná-los ricos.

- Era a nossa casa de descanso - tinha-lhe ela gritado. Outras vezes, chorava. - Não quero uma mansão. Adorava aquela casa! Trabalhei tanto nela para torná-la bonita, e tu nem sequer me disseste que ias vendê-la! Ned, como pudeste fazer-me uma coisa destas?

- O Sr. Spencer disse-me que, comprando estas acções, eu não estava só a ajudar as pessoas; um dia, poderia ter uma casa como esta.

Mas Annie não se convenceu. E havia duas semanas, quando o avião de Spencer caíra e se começara a ouvir dizer que havia problemas com a vacina, ela ficara furiosa.

- Passo oito horas de pé, no hospital. Deixaste aquele crápula convencer-te a comprar aquelas acções da treta, e o que ganhei com isso é que vou ter que trabalhar o resto da vida! - Chorava tanto que mal conseguia falar. - Não tens emenda, Ned. Perdes emprego atrás de emprego por causa desse teu mau feitio. E quando finalmente consegues alguma coisa de jeito, deixas alguém tirar-ta! Annie, com as chaves do carro na mão, saíra. Os pneus tinham chiado no arranque.

O momento seguinte repetia-se incessantemente na cabeça de Ned. A imagem do camião do lixo a recuar. O chiar dos travões. A visão do carro descontrolado, a embater no camião. O depósito de gasolina a explodir e as chamas a engolir o carro.

Annie. Desaparecera.

Tinham-se conhecido naquele hospital há mais de vinte anos, quando ele ali tinha dado entrada. Tinha-se metido numa briga com outro tipo, num bar, e acabado com uma concussão. Annie tinha entrado com um tabuleiro e ralhado com ele por não saber controlar-se. Era enérgica, baixa e mandona, mas de uma forma engraçada. Tinham a mesma idade, trinta e oito.

Saíram juntos; depois, ela foi viver com ele.

Ned tinha ali ido naquela manhã porque isso fazia-o sentir-se mais próximo de Annie. Imaginava que, a qualquer momento, ela ia entrar a correr, pedindo desculpa pelo atraso, mas uma das outras raparigas não tinha aparecido e ela tinha ficado na hora de jantar. Mas ele sabia que isso não passava de uma fantasia. Ela nunca mais iria regressar.

Com um gesto brusco, Ned amarrotou o jornal, levantou-se, foi até um caixote do lixo próximo e meteu-o lá dentro. Encaminhou-se para a porta, mas um dos médicos que estava a atravessar o hallchamou-o:

- Ned, não o via desde o acidente. Lamento muito. A Annie. Era uma pessoa maravilhosa.

- Obrigado. - Nesse instante, lembrou-se do nome do médico.

- Obrigado, Dr. Ryan.

- Posso fazer alguma coisa por si?

- Não. - Tinha que dizer alguma coisa. Os olhos do Dr. Ryan observavam-no com ar curioso. Talvez o Dr. Ryan soubesse que, por insistência de Annie, ele vinha aqui, às consultas de psiquiatria do Dr. Greene. Mas o Dr. Greene tinha-o enervado ao dizer: "Não acha que devia ter falado com a Annie, antes de ter vendido a casa? "

A queimadura que tinha na mão doía- lhe bastante. Ao acender o fósforo para pegar fogo à gasolina, a chama tinha recuado e tinha-lhe queimado a mão. Era por isso que estava ali. Estendeu a mão ao Dr. Ryan, para ele poder vê-la.

- Queimei-me ontem à noite, quando estava a fazer o jantar. Não sou lá grande cozinheiro. Mas a urgência está cheia de gente. E eu tenho de ir trabalhar. Seja como for, não é grave.

O Dr. Ryan olhou para a mão.

- É grave, sim, Ned. Pode infectar. - Tirou do bolso um bloco para receitas e escrevinhou qualquer coisa na folha de cima. Arranje este creme, e depois vá aplicando. Venha cá mostrar a mão daqui a um dia ou dois.

Ned agradeceu-lhe e deu meia- volta. Não queria encontrar mais ninguém conhecido. Voltou a encaminhar- se para a porta, mas parou. Havia câmaras na saída principal.

Pôs os óculos escuros antes de entrar na porta giratória, atrás de uma mulher jovem. Depois percebeu que as câmaras estavam ali por causa dela.

Desviou-se rapidamente e esgueirou-se para trás das pessoas que iam a entrar no hospital, mas que tinham parado ao ver as câmaras. Os que não tinham nada que fazer. Os curiosos.

A mulher que estava a ser entrevistada tinha o cabelo escuro e pouco menos de trinta anos. Pareceu-lhe familiar. Foi então que se lembrou de onde a tinha visto. Estava na reunião de accionistas, ontem. Tinha feito perguntas às pessoas que iam saindo do auditório.

Tinha tentado falar com ele, mas ele tinha-se esquivado. Não gostava que as pessoas lhe fizessem perguntas.

Um dos repórteres estendeu-lhe um microfone:

- Menina DeCarlo, Lynn Spencer é sua irmã, não é verdade?

- Minha meia-irmã.

- Como está ela?

- Tem dores, claro. Teve uma experiência terrível. Quase perdeu a vida, naquele incêndio.

- Ela faz ideia de quem terá posto o fogo? Recebeu ameaças?

- Não falámos sobre isso.

- Acha que foi alguém que perdeu dinheiro por ter investido na Gen- stone, Menina DeCarlo?

- Não posso especular sobre isso. O que posso dizer é que alguém que deita fogo deliberadamente a uma residência quando alguém pode estar lá dentro, a dormir, ou é psicótico, ou age por maldade.

Os olhos de Ned semicerraram-se à medida que a raiva ia tomando conta dele. Annie tinha morrido, fechada num carro a arder. Se ele não tivesse vendido a casa de Greenwood Lake, teriam lá estado há duas semanas, no dia em que ela morreu. Ela teria plantado flores, ajoelhada na terra, em vez de ter saído desvairada da casa de Yonkers, a chorar tanto que não tinha prestado atenção ao trânsito quando entrava de marcha atrás na estrada principal.

Por um breve instante fechou os olhos, retendo a imagem da mulher que estava a ser entrevistada. O nome dela era DeCarlo, e era irmã de Lynn Spencer. Vou mostrar-te quem é louco, pensou. Que pena a tua irmã não ter sido apanhada pelo fogo como a minha mulher, no carro. Que pena não estares em casa, com ela. Hei-de apanhá-las, Annie, prometeu. Vou atrás delas, por ti.

 

                             CAPÍTULO QUATRO

Regressei a casa, nada satisfeita com a minha actuação durante a inesperada conferência de imprensa. Gostava bem mais de ser eu a fazer as perguntas. Contudo, percebi que, gostasse ou não, ia ser vista como porta-voz e defensora de Lynn. Não era papel que eu quisesse, nem sequer era honesto. Ainda não estava convencida de que ela fosse uma esposa ingénua e confiante, que nunca suspeitara de que o marido fosse um vigarista.

E cê-lo-áa mesmo? Quando o avião se despenhou, ia supostamente a caminho de uma reunião de negócios. Quando se meteu naquele avião, continuava a acreditar na Gen-stone? Foi ao encontro da morte sem deixar de acreditar na Gen-stone?

Desta vez, a Cross Bronx Expressway estava como era de costume. Um acidente provocara um engarrafamento de três quilómetros, o que me deu muito tempo para pensar. Talvez demasiado tempo, porque me apercebi de que, apesar de tudo o que fora descoberto sobre Nick Spencer e a sua empresa nas últimas semanas, faltava qualquer coisa, havia qualquer coisa de errado. Eram demasiadas coincidências. O avião de Nick despenha-se. É declarado que a vacina é problemática, ou mesmo inútil. E desaparecem milhões de dólares.

Teria o acidente sido forjado e estaria Nick a apanhar sol no Brasil, como Sam sugerira? Ou teria o seu avião caído, apanhado pela tempestade, com ele no cocpit? E, nesse caso, onde estava todo aquele dinheiro, do qual faziam parte os seus vinte e cinco mil dólares?

"Ele gostava de ti", dissera Lynn.

Bem, eu também gostava dele. Por isso, gostaria de acreditar noutra explicação.

Passei pelo acidente que reduzira Cross Bronx a uma estrada com apenas uma faixa. Um camião virara-se. Caixas partidas de laranjas e de toranjas tinham sido desviadas para o lado, para libertar a faixa. A cabina do camião parecia intacta. Desejei que o condutor estivesse bem.

Virei para Harlem River Drive. Estava ansiosa por chegar a casa. Queria rever a coluna do próximo domingo antes de a enviar por e-mail para o escritório. Queria telefonar ao pai de Lynn e tranquilizá-lo, dizendo-lhe que ela ia ficar bem. Queria ver se havia mensagens no atendedor, nomeadamente do editor da WYlallStreet. Meu Deus, como gostaria de poder escrever para lá, pensei.

O resto da viagem foi bastante rápido. O problema era que eu continuava a recordar-me da sinceridade nos olhos de Nick quando ele falava sobre a vacina. Continuava a lembrar-me da minha reacção: Que tipo extraordinário!

Estaria completamente enganada, seria estúpida e ingénua, tudo o que uma jornalista não devia ser? Ou talvez houvesse outra resposta. Quando entrei na garagem, percebi que outra coisa estava a incomodar-me. Qualquer coisa cá dentro me dizia que Lynn estava muito mais interessada em limpar o nome dela do que em saber a verdade sobre se o marido estava vivo ou não.

Havia uma mensagem no atendedor, e era exactamente a que eu esperava. Pediam-me para contactar Will Kirby, da Wall Street.

Will Kirby é o director-geral. Os meus dedos marcaram apressadamente os números. Já vira Kirby algumas vezes, em grandes reuniões, mas nunca chegáramos a falar. Quando a secretária estabeleceu a ligação e ele atendeu o telefone, o meu primeiro pensamento foi que a voz dele condizia com o corpo. É um homem corpulento, na casa dos cinquenta, com uma voz profunda e cordial. Tem um tom agradável, quente, embora seja conhecido como um tipo que não gosta de brincadeiras:

Não perdeu tempo com conversas e foi directo ao assunto:

- Carley, pode vir ter comigo amanhã de manhã?

Mas claro que posso!

- Perfeitamente, Sr. Kirby.

- Às dez horas está bem?

- Muito bem.

- Certo. Até amanhã.

Clique.

Já passara pelo crivo de duas pessoas da revista, por isso a entrevista ia ser definitiva. Comecei a pensar no que havia de vestir. Um fato de calças e casaco devia ser melhor escolha para a entrevista do que uma saia. O cinzento às riscas que eu comprara num saldo da Escada, no fim do Verão passado, seria óptimo. Mas, se estivesse frio, como estava ontem, seria demasiado leve. Nesse caso, vestiria o azul-escuro.

Havia muito tempo que não sentia este misto de apreensão e ansiedade. Sabia que, embora adorasse escrever a coluna, isso não era suficiente para me manter ocupada. Se fosse uma coluna diária, seria diferente, mas um suplemento semanal, com prazos muito alargados, não é um grande desafio depois de se conhecer a rotina. Embora conseguisse trabalhos ocasionais comofree-lancer para escrever biografias de pessoas importantes no mundo financeiro para várias revistas, não era suficiente.

Telefonei para Boca. A mãe mudara- se para o apartamento de Robert depois do casamento, porque tinha uma bela vista para o oceano e era maior do que o dela. A única coisa de que eu não gostava era que agora, quando a visitava, dormia no quarto da Lynn".

Não que alguma vez ela tivesse realmente ficado lá. Ela e Nick alugavam uma suite no Boca Raton Resort, quando iam de visita. o facto de a mãe ter mudado de apartamento significou que, quando fui lá passar um fim-de-semana, fiquei plenamente ciente de que Lynn mobilara o quarto para ela antes de ter casado com Nick. Por conseguinte, eu dormi na cama dela, usei os lençóis cor-de-rosa beges dela e as almofadas com rendas dela e, depois do duche, embrulhei-me na toalha cara e com o monograma dela. Teria gostado muito mais de dormir no sofá-cama do velho apartamento da mãe. O lado bom, claro, era que a mãe estava feliz e eu gostava sinceramente de Rob Hamilton. É um homem calmo e agradável, que não se revelou, de maneira nenhuma, arrogante como Lynn, naquele primeiro encontro. A mãe disse-me que Lynn andava a tentar juntá-lo com uma das viúvas ricas da vizinha Palm Beach, mas que ele não estava interessado.

Peguei no auscultador, carreguei no número um, e o marcador automático de chamadas fez o que tinha a fazer. Robert atendeu. Claro que estava terrivelmente preocupado com Lynn, e fiquei contente por poder assegurar-lhe que ela iria ficar bem e sairia do hospital daí a alguns dias.

Apesar de naturalmente preocupado com a filha, senti que havia qualquer coisa de errado. Até que ele tocou no assunto:

- Carley, você conheceu o Nick. Não posso acreditar que ele fosse uma fraude. Meu Deus, convenceu-me a pôr quase todas as minhas poupanças na Gen-stone! Não teria feito uma coisa dessas ao pai da mulher dele, se soubesse que tudo não passava de uma farsa, pois não?

Na entrevista da manhã seguinte, sentei-me à frente de Will Kirby e senti o coração cair-me aos pés quando ele disse:

- Ouvi dizer que é meia-irmã de Lynn Spencer.

- Sim, sou.

- Vi-a no noticiário de ontem à noite, à porta do hospital. Francamente, fiquei preocupado e pensei que talvez fosse impossível para si fazer o trabalho que eu tinha em mente, mas o Sam disse-me que não é muito chegada a ela.

- Não, não sou. Fiquei francamente surpreendida por ela me ter querido ver, ontem. Mas tem um motivo: quer que as pessoas compreendam que, o que quer que Nick Spencer tenha feito, foi sem a participação dela.

Disse-lhe que Nick convencera o pai de Lynn a investir quase todas as suas economias na Gen-stone.

- Teria que ser um verdadeiro crápula para enganar deliberadamente o próprio sogro - concordou Kirby.

Depois, disse-me que o emprego era meu e que o meu primeiro trabalho era fazer um artigo de fundo sobre Nicholas Spencer. Eu enviara álguns excertos de outros, que já fizera antes, e ele gostara.

- Vai fazer parte da equipa. Don Carter trata dos negócios. Ken Page é o nosso perito médico. Você vai encarregar-se da história pessoal. Depois, articularam tudo - disse-me ele. - Don está a marcar entrevistas na Gen-stone, com o presidente do conselho de administração e alguns dos directores. Devia ir também.

Havia alguns exemplares da minha coluna na secretária de Kirby. Apontou para eles:

- A propósito, não vejo qualquer problema se quiser continuar a manter a coluna. Agora vá apresentar-se a Carter e ao Dr. Page, e depois passe pelo Pessoal, para preencher a documentação habitual.

Terminada a entrevista, pegou no telefone, mas quando me levantei da cadeira, sorriu brevemente:

- Estou contente por tê-la connosco, Carley - disse ele, e acrescentou:

- Pense em ir ao Connecticut, ao sítio onde Spencer nasceu, seja lá onde for. Gostei do trabalho que fez nos excertos que me mandou, da ideia de ir à terra-natal, falar com as pessoas sobre o assunto da sua reportagem.

- É Caspien - disse eu -, uma cidadezinha perto de Bridgeport.

Pensei nas histórias que lera sobre Nick Spencer a trabalhar ao lado do pai, no laboratório de sua casa. Esperava que, ao chegar a Caspien, pudesse pelo menos conf Irmar que isso era verdade. E depois pensei por que motivo não conseguia acreditar que ele estava morto.

A resposta não foi difícil de encontrar. Lynn parecera mais preocupada com a sua própria imagem do que com Nicholas Spencer, não dando qualquer sinal de viúva sofredora. Ou sabia que ele não estava morto, ou não se importava com isso. E eu tencionava descobrir qual das duas hipóteses era verdadeira.

 

                         CAPÍTULO CINCO

Vi logo que ia gostar de trabalhar com Ken Page e Don Carter. Ken é um tipo grande, com cabelo escuro e queixo de buldogue. Foi ele que encontrei primeiro, e comecei a pensar se os homens na Wal Street teriam que satisfazer alguma exigência de altura e peso mínimos. Mas nesse momento chegou Don Carter; é uma versão de homem em tamanho reduzido, de cabelo castanho claro e olhos intensos, de avelã. Aparentavam ambos cerca de quarenta anos.

Mal dissera olá a Ken e ele já se desculpava, correndo para apanhar Carter, que tinha visto a passar no corredor. Aproveitei o momento para ver os diplomas na parede e fiquei impressionada. Ken é médico e tem também um doutoramento em biologia molecular.

Voltou, com Don atrás. Tinham combinado estar na Gen-stone, às onze horas da manhã seguinte. O encontro teria lugar em Pleasantville, a sede da companhia.

- Têm um escritório luxuoso no Edifício Chrysler - disse-me Don - mas o verdadeiro trabalho é feito em Pleasantville.

Iríamos encontrar-nos com Charles Wallingford, o director-geral, e com o Dr. Milo Celtavini, o cientista investigador responsável pelo laboratório da Gen-stone. Como tanto Ken como Don viviam em estchester County, decidimos que eu iria ter com eles.

Abençoado Sam Michaelson. Obviamente, interviera a meu favor. Não há dúvida de que quando se trabalha num projecto colectivo prioritário há que ter a certeza de que tudo irá correr sem percalços. Graças a Sam, tinha a sensação de que estes tipos não iriam dizer-me "fica quieta e deixa-nos tratar do assunto". Fundamentalmente, estava a receber outro "bem-vinda a bordo".

Assim que saí do edifício telefonei a Sam, do meu telemóvel, e convidei-o e à mulher dele para um jantar de comemoração no Il Molino, na Village. Depois, apressei-me a chegar a casa, na intenção de preparar uma sandes e uma chávena de chá, e almoçar sentada ao computador. Recebera uma nova leva de perguntas de leitores da minha coluna e precisava de fazer uma selecção. Quando se recebe correio a propósito de uma coluna como a minha, as perguntas tendem a repetir-se. Isso significa, claro, que muitas pessoas estão interessadas na mesma coisa, o que constitui um indicador das perguntas a que eu devo procurar responder.

Ocasionalmente, faço as minhas próprias pesquisas, quando quero que os meus leitores tenham informação específica. É importante que as pessoas que não estão dentro das questões financeiras tenham acesso a informações actualizadas sobre assuntos como a renegociação de hipotecas quando as taxas de juro estão muito baixas, ou a armadilha de alguns empréstimos "sem juros".

Quando faço isso, uso as iniciais dos meus amigos nas cartas com as perguntas e refiro cidades a que eles estão ligados. Gwen Harkins é a minha melhor amiga. O pai cresceu no Idaho. A semana passada, a questão central da minha coluna era o que fazer antes de renegociar uma hipoteca. Assinei G. H. Boise, Idaho.

Ao chegar a casa, percebi que iria ter que deixar de lado, por algum tempo, a intenção de trabalhar na coluna. Tinha uma mensagem no atendedor, do Ministério Público. Jason Owles, investigador; precisava de falar comigo urgentemente. Deixara o contacto e eu liguei.

Passei os quarenta minutos seguintes a pensar que informações teria eu que pudessem ser úteis a um investigador do Gabinete Ministério Público, e com tal urgência. Quando ouvi a campainha tocar na entrada, peguei no intercomunicador, confirmei que era sr. Knowles, recomendei-lhe que subisse pela escada e destranquei a porta.

Alguns minutos depois, Knowles estava à minha porta, um homem de cabelo prateado e de modos educados, mas directos. Convidei-o a entrar e ele sentou-se no sofá. Eu optei pela cadeira de costas direitas que estava diante do sofá, e esperei que ele dissesse qualquer coisa.

Ele agradeceu-me tê-lo recebido assim, tão de repente, e depois foi directo ao assunto:

- Menina DeCarlo, esteve na reunião de accionistas da Gen-stone, segunda-feira.

Era uma afirmação, não uma pergunta. Confirmei, com um aceno de cabeça.

- Sabemos que muitas das pessoas que estiveram presentes na reunião exprimiram o seu forte ressentimento contra a direcção, e houve um homem que ficou particularmente furioso com a declaração de Lynn Spencer.

- É verdade. - Estava certa de que a próxima confirmação seria a de que eu era meia-irmã de Lynn. Enganei-me.

- Ouvimos dizer que esteve sentada na fila reservada à comunicação social, perto do homem que gritou com a Sr. a Spencer.

- É verdade.

- Também ouvimos dizer que falou com alguns accionistas descontentes, depois da reunião, e que anotou os nomes deles.

- Sim.

- Por acaso, o homem que falou em perder a casa por causa do investimento na Gen-stone falou consigo?

- Não.

- Tem os nomes dos accionistas que falaram consigo?

- Sim, tenho. - Senti que Jason Knowles estava à espera de uma explicação. - Como deve saber, tenho uma coluna de aconselhamento financeiro, dirigida ao consumidor ou ao investidor comum. Ocasionalmente, escrevo também artigos comofreelancer, para revistas. Na reunião ocorreu-me que poderia querer fazer um artigo de fundo a ilustrar a forma como o colapso da Gen-Stone destruiu o futuro de tantos pequenos investidores.

- Sei disso e é por isso que estou aqui. Gostaríamos de ter acesso aos nomes das pessoas que falaram consigo.

Olhei para ele. Parecia um pedido razoável, mas acho que tive a primeira reacção que qualquer jornalista tem quando lhe pedem para revelar as suas fontes.

Foi como se Jason Knowles me lesse o pensamento.

- Menina Decarlo, estou certo de que compreende us mutivos do meu pedido. A sua irmã, Lynn Spencer...

Interrompi-o:

- Meia-irmã.

Ele assentiu, com um aceno de cabeça:

- Meia-irmã. A sua meia-irmã podia ter morrido quandu a casa dela ardeu, na outra noite. Nesta altura, não fazemos ideia se a pessoa que pôs o fogo sabia que ela estava em casa. Mas também parece razoável pensar que um desses accionistas furiosos, e até financeiramente desesperados, possa ter feito isso.

- Têm noção de que há centenas de outras pessoas, accionistas ou empregados, que podem ter sido responsáveis pelo incêndio? salientei.

- Estamos conscientes disso. Por acaso, sabe o nome do homem que teve aquela reacção intempestiva?

- Não. - Pensei no pobre homem, que passara da raiva às lágrimas de desespero. - Não foi ele que ateou o fogo. Tenho a certeza.

As sobrancelhas de Jason Knowles ergueram-se:

- Tem a certeza de que não foi ele. Porquê?

Dei-me conta de como seria estúpido dizer "Porque sei". Em vez disso, disse:

- O homem estava desesperado, mas de uma forma diferente. Está afundado em preocupações. Diz que a filha está a morrer e que vai perder a casa.

Tornou-se evidente que Jason Knowles ficou desapontado por eu não conseguir identificar o homem que se mostrara tão transtornado na reunião, mas não desistiu.

- Mas tem os nomes das pessoas que falaram consigo, Menina DeCarlo?

Hesitei.

- Menina DeCarlo, vi a sua entrevista no hospital. Condenou, e bem, considerando-a má ou psicótica, a pessoa capaz de deitar fogo a uma casa.

Ele tinha razão. Concordei em dar-Lhe os nomes e os números de telefone que recolhera na reunião.

Uma vez mais, pareceu ler-me o pensamento:

- Menina DeCarlo, quando telefonarmos a estas pessoas tencionamos apenas dizer-Lhes que estiveram presentes na reunião de accionistas, o que, asseguro-lhe, é verdade. Muitos dos que estiveram presentes tinham devolvido o postal que a empresa lhes enviou, indicando que tinham a intenção de ir à reunião. Todos os que devolveram o postal serão visitados. O problema é que nem todos os que estiveram presentes se deram ao trabalho de devolver o postal.

- Compreendo.

- O que achou da sua irmã, Menina deCarlo?

Esperava que o meu momento de hesitação tivesse passado despercebido a este homem calmo e observador.

- O senhor viu a entrevista - disse eu. - Fui encontrar Lynn

cheia de dores e perplexa com tudo o que aconteceu. Disse-me que não fazia ideia que o marido andava a fazer qualquer coisa ilegal. Jura

que, tanto quanto sabe, ele estava absolutamente convencido de que a vacina da Gen-stone era uma droga milagrosa.

- Ela acha que o acidente de avião foi encenado? -Jason Knowles disparou a pergunta.

- De maneira nenhuma. - E agora, ao dar eco às palavras de Lynn, pensei se pareceria convencida e convincente. - Insiste em querer saber toda a verdade.

 

                            CAPÍTULO SEIS

Na manhã seguinte, às onze horas, entrei no parque de estacionamento destinado aos visitantes da Gen- Stone, em Pleasantville, Nova Iorque. Pleasantville é uma agradável cidadezinha de Westchester, que foi posta no mapa há alguns anos, quando o Reader's Digest lá instalou os seus serviços internacionais.

A Gen-stone fica a cerca de oitocentos metros da propriedade do Digest. Estava mais um lindo dia de Abril. Enquanto seguia pelo caminho que conduzia ao edifício, veio-me à ideia um verso de um poema que adorava quando era criança: "Oh, estar em Inglaterra agora, que Abril chegou". Mas não consegui recordar o nome do poeta. Provavelmente, acordaria às três da manhã e lembrar-me-ia.

Havia um segurança na entrada principal. Mesmo assim, tive de carregar num botão e anunciar a minha presença antes de a recepcionista me deixar entrar.

Estava um bom quarto de hora adiantada, o que me deixou satisfeita. É muito melhor ter tempo para acalmar e recuperar o fôlego antes de uma reunião do que chegar atrasada, afogueada e a pedir desculpa. Disse à recepcionista que estava à espera dos meus colegas de trabalho e sentei-me.

Na véspera, à noite, depois de jantar, tinha feito alguma pesquisa na Internet sobre os dois homens com quem iríamos reunir-nos, Charles Wallingford e o dr. Milo Celtavini. Fiquei a saber que Charles Walling Ford fora o sexto membro da sua família a chefiar a cadeia de lojas de mobiliário Wallingford. Iniciada pelo seu tetravô, o primeiro armazém, em Delancey Street, crescera, mudara-se para a Quinta Avenida e expandira-se até Wallingford se ter tornado um nome conhecido de toda a gente.

O ataque das grandes cadeias de venda de mobiliário e o recuo da economia não foram enfrentados com sucesso por Charles quando tomou as rédeas da empresa. Acrescentou ao seu stoc uma linha de mobiliário muito mais barato, mudando assim a imagem de Wallingford, fechou algumas lojas, reconverteu as restantes e acabou por aceitar a compra por parte de uma empresa britânica. Isto aconteceu há dez anos.

Dois anos mais tarde, Wallingford conheceu Nicholas Spencer que, na altura, estava a tentar abrir uma nova empresa, a Gen-stone. Wallingford investiu uma soma considerável na Gen-stone e aceitou o cargo de director-geral.

Pensei se ele alguma vez se teria arrependido de não ter ficado com a mobília.

O Dr. Milo Celtavini frequentou a Universidade em Itália, fez investigação no campo da imunobiologia praticamente durante todo o tempo em que lá esteve, e depois aceitou um convite para se juntar à equipa de investigadores em Sloan-Kettering, em Nova Iorque. Pouco depois, saiu para chefiar o laboratório da Gen-stone, porque estava convencido de que se encontravam no encalço de uma descoberta potencialmente revolucionária para a medicina.

Ken e Don entraram quando eu estava a guardar os meus apontamentos. A recepcionista tomou nota dos nomes deles e, alguns minutos depois, fomos conduzidos ao gabinete de Charles Wallingford.

Estava sentado a uma secretária do século xviiI, em mogno. A carpete persa que tinha debaixo dos pés estava suficientemente desbotada para dar apenas um ligeiro realce aos tons vermelhos, azuis e dourados do seu padrão. Um sofá de couro à esquerda da porta. As paredes estavam cobertas de painéis de madeira de nogueira. As cortinas eram de um azul profundo, mais a enquadrar as janelas do que a abri-las. Como resultado disso, a luz natural enchia a sala e os belos

jardins exteriores eram uma obra de arte viva. Era o gabinete de um omem com um gosto impecável.

Isto veio confirmar a impressão que tive de Wallingford na reunião de accionistas, na segunda-feira. Embora estivesse claramente sob grande pressão, comportara-se com dignidade quando fora visado pelos gritos. Levantou-se e saiu de trás da secretária para nos cumprimentar com um sorriso de cortesia.

Depois de nos termos apresentado, disse, indicando a zona onde se encontravam as cadeiras e o sofá:

- Acho que estarão mais confortáveis ali.

Sentei-me no sofá e Don Carter sentou-se ao meu lado. Ken sentou-se numa das cadeiras e Wallingford empoleirou-se na beira do assento de uma outra, com os cotovelos ligeiramente apoiados nos braços e com as pontas dos dedos das mãos unidas.

Sendo o especialista em negócios do grupo, Don agradeceu a Wallingford por ter aceite fazer a entrevista e depois começou a fazer algumas perguntas difíceis, incluindo como era possível que tivesse desaparecido tanto dinheiro sem que Wallingford e o conselho de administração dessem por isso.

Segundo Walingford, tudo se resumia ao facto de, depois de a Garner Pharmaceuticals se ter comprometido a investir na Gen-stone, terem ficado alarmados face aos continuos resultados negativos das experiências em curso. Spencer desviara os lucros do departamento de aprovisionamento médico durante anos. Ao perceber que a FDA nunca aprovaria a vacina e que já não conseguia encobrir o roubo por mais tempo, teria provavelmente decidido desaparecer.

- Obviamente, encarregou-se da situação - disse Wallingford.

- A caminho de Puerto Rico, o avião de Nick despenhou-se naquela súbita tempestade.

- Sr. Wallingford, acha que foi convidado por Nicholas Spencer para se juntar a ele na empresa e ser director-geral devido à sua experiência em investimentos ou à sua perspicácia para os negócios?

- perguntou Dan.

- Acho que a resposta é que Nick me convidou por ambos os motivos.

- Peço desculpa, mas nem toda a gente ficou impressionada com a gestão dos seus negócios anteriores. - Don começou a ler excertos de alguns artigos de publicações ligadas aos negócios, que pareciam sugerir que Wallingford arruinara por completo a empresa da família.

Wallingford reagiu dizendo que as vendas de mobiliário a retalho tinham sofrido sérias baixas, os problemas laborais tinham aumentado drasticamente, e que se ele tivesse esperado, a empresa teria certamente acabado na falência. Apontou para um dos artigos que Carter tinha na mão:

- Posso citar uma dúzia de outros artigos escritos por esse tipo que mostram o grande guru que ele é - disse sarcasticamente.

Wallingford parecia imperturbável diante da insinuação de que não se portara bem na gestão do negócio familiar. Através da minha pesquisa, ficara a saber que ele tinha quarenta e nove anos, dois filhos adultos, e que se divorciara havia dez anos. Só quando Carter perguntou se era verdade que os filhos o tinham afastado é que a sua expressão endureceu.

- Por muito que o lamente, tem havido algumas dificuldades - disse ele. - E, para evitar qualquer mal-entendido, vou dizer-lhe a razão delas. Os meus filhos não queriam que eu vendesse a empresa. Foram completamente irrealistas sobre o seu futuro potencial. Nem queriam que eu investisse a maior parte dos lucros da venda nesta empresa. Infelizmente, ficou provado que eles tinham razão neste ponto.

Explicou como se associara a Nicholas Spencer:

- Soube-se que eu andava à procura de uma boa oportunidade de investimento. Uma firma de fusões e aquisições sugeriu-me que pensasse na hipótese de fazer um investimento modesto na Gen -stone. Conheci Nick Spencer e fiquei muito impressionado com ele, reacção que não é invulgar, como deve saber. Pediu-me que falasse com vários microbiólogos de topo, todos eles com credenciais impecáveis, que me disseram que, na sua opinião, Spencer estava prestes a descobrir algo capaz de prevenir o cancro e de limitar a sua disseminação. Reconheci as possibilidades daquilo em que a Gen-stone

poderia tornar-se. Depois, Nick perguntou-me se eu gostaria de juntar-me a ele como director-geral e como director-executivo associado. A minha função seria gerir a empresa. A dele seria chefiar a investigação e o rosto público da empresa.

- Angariar investidores - sugeriu Don.

Wallingford esboçou um sorriso sardónico:

- Era bom nisso. O meu modesto investimento tornou-se quase uma obrigação de canalizar para a empresa todos os meus ganhos. Nick ia regularmente à Itália e à Suíça. Não escondia que o seu conhecimento cientifico rivalizava ou excedia o de muitos biólogos moleculares.

- E há alguma verdade nisso? - perguntou Don.

Wallingford abanou a cabeça:

- Ele é inteligente, mas não tanto como se pensa.

A mim, enganara-me, sem sombra de dúvida, pensei, recordando como Nick Spencer transpirava confiança quando me falou da vacina que estava a desenvolver.

Percebi onde Don Carter queria chegar. Nick Spencer acreditava que Charles Wallingford estragara o negócio da família, mas decidira que ele era a imagem perfeita para a sua empresa. A sua imagem e o que dizia correspondia exactamente ao indivíduo WASP que era, e seria facilmente manipulado. A próxima pergunta de Don veio confirmar a minha análise.

- Sr. Wallingford, não acha que o seu conselho de administração tem uma composição um tanto desequilibrada?

- Não sei se compreendo exactamente o que está a dizer.

- Provêm todos de famílias extremamente ricas, mas nenhum deles tem experiência de negócios.

- São pessoas que eu conhecia bem e integram os conselhos directivos das suas Fundações.

- O que não prova necessariamente que tenham a perspicácia financeira para pertencer à direcção de uma empresa como esta.

- Não há, em parte nenhuma, um grupo de pessoas mais inteligente e mais honrado - disse Wallingford. O tom da sua voz tornou-se subitamente gélido e o rosto afogueou-se-lhe.

Penso realmente que ele estava prestes a pôr-nos na rua, mas nesse momento alguém bateu à porta e o Dr. Celtavini entrou.

Era um homem relativamente baixo, com ar conservador de sessenta e muitos anos, e um ligeiro sotaque italiano. Disse-nos que quando aceitou chefiar o laboratório da Gen-stone estava convicto de que era possível desenvolver uma vacina para prevenir o cancro.

A princípio, teve alguns resultados prometedores em ratos com células cancerígenas, mas depois surgiram problemas. Não conseguira repetir os primeiros resultados. Seriam necessários testes exaustivos e

muito mais trabalho antes de ser possível chegar a conclusões seguras.

Os resultados chegarão a seu tempo - disse ele. - Há muita

gente a trabalhar nesta questão.

- Qual é a sua opinião sobre Nicholas Spencer? - perguntou

Ken Page.

O rosto do dr. Celtavini empalideceu:

- Arrisquei uma reputação sem mácula, de quarenta anos, quando cheguei à Gen-stone. E agora sou suspeito de envolvimento na queda desta empresa. Em resposta à sua pergunta: desprezo Nicholas Spencer.

Quando Ken regressou ao laboratório com o Dr. Celtavini, Don e eu saímos. Don tinha encontro marcado com os auditores da Gen-stone, em Manhattan. Disse-lhe que iria ter com ele ao escritório, mais tarde, e que estava a pensar em ir de manhã até Caspien, a cidade de Connecticut onde Nicholas Spencer crescera. Ambos concordámos que, se queríamos publicar a notícia enquanto ainda estava quente, tínhamos de despacharmo-nos.

Tal facto não me impediu de fazer seguir o carro para norte e não para sul. Uma curiosidade avassaladora fez-me conduzir até Bedford, para ver com os meus próprios olhos a dimensão do fogo que quase tirara a vida a Lynn.

 

                           CAPÍTULO SETE

Ned sabia que o dr. Ryan tinha olhado para ele com um ar um tanto estranho quando chocou com ele no hospital. Era por isso que tinha medo de lá voltar. Mas tinha de voltar. Tinha de entrar no quarto onde estava Lynn Spencer.

Se fizesse isso, talvez não continuasse a ver o rosto de Annie enquanto o carro estava a arder e ela não conseguia sair. Precisava de ver o mesmo olhar no rosto de Lynn.

A entrevista com a irmã dela, ou meia-irmã, ou lá o que era, tinha sido transmitida no noticiário das seis e depois no das onze, dois dias antes.

- A Lynn está a sofrer muito - tinha ela dito, numa voz muito, muito triste. "Tenham pena dela", era o que ela queria dizer. Ela não tem culpa de a sua mulher ter morrido. Ela e o marido só queriam enganá-lo. Não queriam fazer mais do que isso.

Annie. Quando adormecia, sonhava sempre com ela. Às vezes, eram bons sonhos. Estavam em Greenwood Lake, há quinze anos. Nunca lá foram enquanto a mãe dele foi viva. A mãe não gostava que ninguém a visitasse. Mas quando ela morreu a casa ficou para ele e Annie tinha ficado muito entusiasmada:

- Nunca tive uma casa minha. Vou arranjá-la tão bem! Vais ver, Ned.

E tInha-a arranjado bem. Era pequena, só quatro divisões, mas com os anos até tinha poupado dinheiro suficiente para comprar armários novos para a cozinha e para contratar um homem para os colocar. No ano seguinte, tinha poupado dinheiro para uma casa de banho nova. Tinha-o feito tirar todo o papel de parede e, juntos, tinham pintado a casa por dentro e por fora. Tinham comprado as janelas àquele tipo que estava sempre a fazer publicidade na CBS e a dizer que as janelas dele eram baratas. E Annie tinha o seu jardim, o seu belo jardim!

Não conseguia deixar de pensar neles, juntos, a pintar. Sonhava com Annie a pendurar as cortinas, a recuar alguns passos e a dizer que ficavam muito bonitas.

Não conseguia deixar de pensar nos fins-de-semana. Tinham lá ido todos os fins-de-semana, desde Maio até ao fim de Outubro. Para o aquecimento só dispunham de uns aquecedores eléctricos, e acabava por ser muito caro usá-los, no Inverno. Annie tinha planeado que, quando se reformasse do hospital, mandariam instalar aquecimento central, para poderem lá viver o ano inteiro.

Tinha vendido a casa ao novo vizinho, em Outubro passado. O vizinho queria uma propriedade maior. Não tinha pago muito, porque, segundo o novo código municipal, o terreno não era considerado lote para construção, mas Ned não se importou. Sabia que tudo o que conseguisse pôr na Gen-stone ia trazer-lhe uma fortuna. Nicholas Spencer tinha-lhe prometido, quando falara com Ned sobre a vacina. Quando Ned estava a trabalhar para o jardineiro da propriedade de Bedford, tinha conhecido Spencer.

Não tinha dito a Annie que ia vender a casa. Não queria que ela o convencesse a não vender. Até que, num belo sábado de Fevereiro, enquanto ele estava a trabalhar, ela tinha decidido ir até Greenwood Lake, e a casa tinha desaparecido. Annie tinha regressado a casa e tinha-o esmurrado no peito, e embora ele a tivesse levado até Bedford para ela ver o tipo de mansão que ia comprar-Lhe, isso não acalmou a sua fúria.

Ned tinha pena que Nicholas Spencer tivesse morrido. Gostava de ter sido eu a matá-lo, pensou. Se eu não lhe tivesse dado ouvidos, a Annie ainda estaria aqui, comigo.

E, a noite passada, quando não conseguia dormir, tinha visto Annie. Ela dizia-Lhe para ir ao hospital, falar com o Dr. Greene.

- Precisas de medicamentos, Ned - dizia ela. - O Dr. Greene vai dar-te medicamentos.

Se ele marcasse uma consulta para o dr. Greene, podia ir ao hospital sem ninguém pensar que havia qualquer coisa anormal. Descobriria onde estava Lynn Spencer e entraria no quarto dela. E, antes de matá-la, ia falar-lhe de Annie.

 

                         CAPÍTULO OITO

Não pensei visitar Lynn naquele dia, mas depois de ter passado pelas ruínas do que fora a sua casa em Bedford percebi que estava a apenas dez minutos do hospital. Decidi ir até lá. Vou ser franca: tinha visto fotografias daquela bela casa e agora, ao ver os restos carboni zados, pensei em como Lynn tivera sorte em ter sobrevivido. Havia mais dois carros na garagem, naquela noite. Se o bombeiro não tivesse reparado no Fiat vermelho que ela conduzia habitualmente, ela estaria morta.

Tivera sorte. Mais do que o marido, pensei enquanto entrava no parque de estacionamento do hospital. Tinha a certeza de que hoje não teria de preocupar-me com operadores de câmara. Neste mundo apressado, o encontro de Lynn com a morte já era notícia antiga, e só voltaria a interessar se alguém fosse preso por ter incendiado a casa ou se viesse a descobrir-se que a própria Lynn também fizera parte da conspiração para saquear a Gen-stone.

Quando me deram o meu cartão de visitante do hospital, indicaram-me o último andar. Quando saí do elevador percebi que era para doentes com a carteira recheada. O hall estava alcatifado e o quarto desocupado por onde passei podia ser um quarto de um hotel de cinco estrelas.

Ocorreu-me que devia ter telefonado antes. A minha imagem mental era a da Lynn que vira há dois dias atrás, com tubos de oxigénio nas narinas, as mãos e os pés envoltos em ligaduras. e pateticamente grata por me ver.

A porta do quarto estava parcialmente aberta e quando olhei lá para dentro hesitei antes de entrar, porque ela estava ao telefone. Estava reclinada num divã à janela, e a alteração do seu aspecto era dramática. Os tubos de oxigénio tinham desaparecido. As ligaduras que tinha nas mãos eram muito mais pequenas. Um robe de cetim verde água substituíra a camisa de noite do hospital que usava na terça-feira. O cabelo já não estava solto, mas sim apanhado no habitual carrapito. Ouvi-a dizer:

- Também te adoro.

Deve ter dado pela minha presença, pois virou-se assim que desligou o telemóvel. E que vi no rosto dela? Surpresa? Ou terá, por um instante, parecido aborrecida, até mesmo alarmada?

Mas o sorriso era simpático e a voz, calorosa:

- Carley, que bom teres vindo. Estava a falar com o papá. Não consigo convencê-lo de que estou mesmo bem.

Aproximei-me dela e, na ideia de que provavelmente não devia tocar-lhe na mão, dei-lhe uma palmadinha desajeitada no ombro, e depois sentei-me no canapé, à sua frente. Havia flores na mesa ao lado dela, flores no armário, flores na mesa-de- cabeceira. Nenhum dos arranjos era do género dos que se compram à entrada dos hospitais. Como tudo o resto em Lynn, eram caros.

Fiquei imediatamente zangada comigo mesma por me sentir sempre apanhada desprevenida quando estava com ela, embora estivesse à espera que ela desse o mote. No nosso primeiro encontro, na Florida, fora condescendente. Dois dias antes, estava vulnerável. E hoje?

- Carley, não tenho palavras para agradecer-te pela forma como falaste de mim quando te entrevistaram, no outro dia - disse ela.

- Disse apenas que tinhas sorte em estar viva e que estavas com dores.

- Só sei que tive telefonemas de amigos que tinham deixado de me falar quando descobriram o que o Nick fez. Viram-te, e acho que perceberam que sou tão vítima como eles.

- Lynn, o que pensas do teu marido agora? - Era uma pergunta; que tinha que fazer. Para dizer a verdade, era para isso mesmo que ali estava.

Lynn desviou o olhar. A boca contraiu-se-Lhe. Apertou as mãos uma contra a outra, depois estremeceu e abriu-as.

- Carley, aconteceu tudo tão depressa. O acidente. Nem queria acreditar que o Nick tivesse desaparecido. Era a minha vida toda. Conheceste-o e acho que sentiste isso. Acreditava nele. Pensava nele como um homem com uma missão. Costumava dizer "Lynn, vou vencer o cancro, mas isso é só o começo. Quando vejo miúdos que nasceram surdos ou cegos, ou com atrasos mentais, ou com espinha bífida, e sei como estamos perto de prevenir esses defeitos de nascença, fico louco por ainda não termos posto esta vacina a circular por aí".

Encontrara Nicholas Spencer apenas uma vez, mas vira várias entrevistas dele na televisão. Consciente ou inconscientemente, Lynn apanhara qualquer coisa daquela voz de tenor, daquela paixão arrebatada que tanta impressão me causara.

Encolheu os ombros:

- Agora, não posso deixar de pensar se tudo na minha vida com ele não terá passado de uma mentira. Será que me procurou e casou comigo apenas porque eu lhe abria o caminho para pessoas que poderia não ter conseguido conhecer de outro modo?

- Como o conheceste? - perguntei.

- Foi na empresa de relações públicas onde eu trabalhava, há cerca de sete anos. Só temos clientes de topo. Queria começar a fazer publicidade à empresa dele, para que se soubesse que andavam a desenvolver uma vacina. Depois, começou a convidar-me para sair. Sei que me parecia com a primeira mulher dele. Não sei o que era. O meu próprio pai perdeu o dinheiro da reforma porque confiou no Nick. Se enganou deliberadamente o Papá e todas as outras pessoas, o homem que amei nunca existiu.

Hesitou e depois prosseguiu:

- Dois membros da Administração vieram ver-me, ontem. Quanto mais sei, mais acredito que o Nick foi sempre uma fraude, do princípio ao fim.

Decidi que tinha que falar-lhe do artigo de fundo que iria escrever sobre ele, na Yall Street

- Vai ser um artigo do tipo "doa a quem doer" - disse eu. - já está a doer.

O telefone que estava em cima da mesa-de-cabeceira tocou. Peguei no auscultador e estendi-o a Lynn. Ouviu, suspirou e disse:

- Sim, podem subir.

Devolveu-me o auscultador e disse:

- Dois polícias de Bedford querem falar comigo sobre o fogo. Não quero maçar-te mais.

Teria adorado sentar-me e ficar, mas era óbvio que a minha presença não era desejada. Pousei o auscultador, peguei na mala e depois ocorreu-me uma coisa:

- Lynn, amanhã vou a Caspien.

- Caspien?

- A cidadezinha onde o Nick cresceu. Queres sugerir-me que fale com alguém? Quero dizer, o Nick alguma vez falou em amigos chegados?

Pensou por um momento, e depois abanou a cabeça:

- Ninguém de que me lembre.

De súbito, desviou o olhar, em sobressalto. Virei-me para ver o que a perturbara.

Estava um homem à porta, com uma mão dentro do casaco e a outra no bolso. Era careca e tinha um ar pálido e doentio e as maçãs do rosto encovadas. Pensei se não estaria doente. Olhou para nós, espantado, e depois lançou um vislumbre ao corredor.

- Desculpem, acho que me enganei no andar. - E, murmurando esta desculpa, desapareceu.

Pouco depois, era substituído por dois polícias fardados, à entrada do quarto, e eu saí.

 

                           CAPÍTULO NOVE

No regresso a casa ouvi na rádio que a polícia estava a interrogar um suspeito de ter ateado fogo à casa em Bedford que pertencia a Nicholas Spencer, descrito, como sempre, como o desaparecido ou o falecido director da Gen-stone.

Para minha consternação, ouvi que o suspeito era o homem que se descontrolara na reunião de accionistas, segunda-feira à tarde, no Grand Hyatt Hotel em Manhattan. Tratava-se de Marty Bikorsky, de trinta e seis anos, residente em White Plains, Nova Iorque, que trabalhava numa bomba de gasolina em Mount Kisco, cidade vizinha de Bedford. Recebera tratamento no St. Ann's Hospital, terça-feira à tarde, devido a uma queimadura na mão direita.

Bikorsky afirmava que na noite do incêndio trabalhara até às onze horas, estivera com uns amigos a beber umas cervejas e, à meia-noite e meia, já estava em casa, metido na cama. Durante o interrogatório, admitiu que no bar se referira à casa de Bedford e dissera que por dois cêntimos lhe pegaria fogo.

A mulher de Bikorsky confirmou o testemunho do marido sobre a hora a que ele chegara a casa e fora para a cama, mas também admitiu que quando acordou, às três da manhã, ele não estava em casa. Disse também que a ausência dele não a surpreendera, porque ele sofria de insónias e, às vezes, a meio da noite vestia o casaco por cima do pijama e ia fumar para o alpendre das traseiras. Voltou a adormecer e só acordou às sete. Nessa altura, ele já estava na cozinha, com a mão queimada. Disse que tinha tocado com a mão na chama do fogão, enquanto limpava cacau entornado.

Dissera ao investigador do Gabinete do Ministério Público que não achava que o homem que agora sabia ser Marty Bikorsky tivesse algo a ver com o fogo; estava perturbado mas não disposto a uma vingança. Perguntei a mim própria se estaria a perder o instinto essencial a qualquer pessoa que se movimentasse no mundo das notícias. Respondi que, apesar do cenário que envolvia Bikorsky, continuava a pensar exactamente o mesmo.

Enquanto conduzia, apercebi-me de que qualquer coisa se acendia e apagava no meu subconsciente, de forma intermitente, até que compreendi o que era: o rosto do homem que vira, por breves instantes, à entrada do quarto de hospital onde a Lynn estava internada. Sabia que já o vira antes. Na terça-feira estava à porta do hospital, quando fui entrevistada.

Pobre diabo, pensei. Parecia tão em baixo. Talvez tivesse alguém da família internado no hospital.

Nessa noite jantei com Gwen Harkins no Neary's, em East 57th Street. Quando éramos miúdas, vivia perto de mim, em Ridgewood. Andámos na escola juntas, secundário incluído. Ela fez a Universidade no sul, em Georgetown, e eu no norte, no Boston College, mas fizemos cursos juntas em Londres e em Florença. Foi minha dama de honor quando casei com a nulidade do século, e foi ela que me fez continuar a sair depois de o bebé ter morrido e de a nulidade ter debandado para a Califórnia.

Gwen é uma mulher alta e esbelta, ruiva, que costuma usar saltos altos. Quando estamos juntas, tenho a certeza de que formamos uma dupla estranha. Eu sou resultado único de um decreto que diz que aquilo que Deus harmonizou o Estado de Nova Iorque pode desarticular. Ela conheceu alguns tipos com quem podia ter casado, mas nenhum deles, afirma, a fez querer andar de telemóvel colado ao ouvido; era mais comum não lhe apetecer atender as chamadas deles. A mãe dela, tal como a minha, diz que um dia ela vai encontrar "o homem certo". Gwen é advogada numa das maiores companhias farmacêuticas, e quando Lhe telefonei a sugerir que jantássemos no Neary's tinha dois motivos para querer vê-la.

O primeiro, claro, é que é sempre agradável estarmos juntas. O segundo é que queria que ela investigasse a Gen-stone e o que as pessoas da indústria farmacêutica diziam sobre a empresa.

Como habitualmente, o Neary estava movimentado. Para certas pessoas, é uma casa longe de casa. Nunca se sabe que celebridade ou que político poderá estar numa das mesas mais recatadas.

Jimmy Neary veio ter connosco à mesa por um instante, e enquanto eu e Gwen bebíamos pequenos goles de vinho falei-lhe do meu novo emprego.

- O Nick Spencer aparecia aqui de tempos a tempos - disse ele.

- Tomei-o por uma pessoa íntegra. O que mostra que nunca se pode ter certezas sobre ninguém. - Inclinou a cabeça na direcção de dois homens que estavam de pé, junto ao bar. - Aqueles tipos perderam dinheiro na Gen-stone, e por acaso sei como isso foi terrível para eles. Têm filhos a estudar na Faculdade.

Gwen pediu peixe. Eu escolhi o meu prato favorito, um bife no pão com batatas fritas. Voltámos à conversa.

- Este jantar é por minha conta - disse eu. - Preciso dos préstimos da tua inteligência. Como é que o Nick Spencer conseguiu fazer tanto alarido em volta da vacina, se era tudo treta?

Gwen encolheu os ombros. É uma boa advogada, o que significa que nunca responde a uma pergunta directamente.

- Carley, a descoberta de novas drogas acontece praticamente todos os dias. Compara-a aos transportes. Até ao século xix, as pessoas andavam de carruagem ou de diligência, ou então a cavalo. O comboio e o automóvel foram os grandes inventos que fizeram o mundo mover-se mais depressa. No século xx tivemos os aviões movidos a hélice, depois os jactos, depois os aviões supersónicos e depois as naves espaciais. Esse tipo de aceleração e progresso acon tece também nos laboratórios médicos. Pensa nisso. A aspirina só foi descoberta no final da década de 1890. Antes disso, faziam-se sangrias às pessoas para fazer baixar a febre. E a varíola. A vacina só tem oitenta anos e por onde passou erradicou a doença. Há cinquenta anos ainda houve uma epidemia de poliomielite.

- O DNA?

- Exactamente. E não te esqueças que o DNA revolucionou o sistema legal e também tornou possível a prevenção de doenças hereditárias.

Pensei nos prisioneiros libertados do corredor da morte por o seu DNA ter provado que eles não cometeram os crimes de que eram acusados.

Gwen estava ligada à corrente:

- Lembra-te de todos os livros em que uma criança era raptada e depois, trinta anos mais tarde, um adulto aparecia à porta e dizia: "Mãe, voltei". Hoje já não se trata de saber se alguém se parece com alguém ou não. Os testes de DNA fazem a diferença.

Chegou a nossa comida. Gwen comeu um pouco e depois continuou:

- Carley, não sei se o Nick Spencer era um charlatão ou um génio. Ouvi dizer que alguns dos primeiros resultados da sua vacina contra o cancro, conforme consta das revistas médicas, pareciam muito animadores, mas tens de encarar o seguinte: não chegou a ser feita uma verificação dos resultados. E então, claro, o Spencer desaparece e consta que roubou a empresa.

- Alguma vez o conheceste pessoalmente? - perguntei.

- Num grande grupo, em alguns dos seminários médicos. Um tipo muito impressionante, mas sabes uma coisa, Carley? Sabendo o que ele roubou a pessoas que não podem dar-se ao luxo de perder dinheiro e, pior ainda, sabendo que ele defraudou as esperanças de pessoas desesperadas pela vacina, não consigo sentir uma chispa de simpatia por ele. O avião dele caiu. Pela parte que me toca, teve o que merecia.

 

                             CAPÍTULO DEZ

O Connecticut é um estado lindíssimo. Os primos do meu pai viviam lá quando eu era pequena, e quando os visitávamos pensava que todo o Estado era como Darien. Mas, como todos os Estados, o Connecticut tem as suas cidades de trabalhadores modestos, e na manhã seguinte, quando cheguei a Caspien, uma povoação a dezasseis quilómetros de Bridgeport, foi o que encontrei.

A viagem não demorou muito, menos de uma hora e meia. Saí da minha garagem às nove horas e às dez e vinte estava a passar pelo letreiro que dizia "Bem-vindo a Caspien". O letreiro era uma tábua, ilustrada com a imagem de um soldado revolucionário, armado com um mosquete.

Percorri as ruas em vários sentidos, para sentir a atmosfera do local. Na sua maioria, as casas eram do género das que se construíam em meados da década de 1950. Muitas delas tinhatn sido aumentadas, e eram visíveis os casos em que uma nova geração substituíra os antigos donos, os veteranos da Segunda Guerra Mundial. nos abrigos das garagens ou junto a entradas laterais. grande percentagem de veículos estacionados nas entradas das casas ou nas ruas eram SUVs espaçosos.

Era uma cidadezinha habitada por famílias. Quase todas as casas estavam bem cuidadas. Como em todos os locais onde moram pessoas, havia uma zona onde as casas eram maiores e os lotes mais anplos. Mas não havia mansões enormes em Caspien. Pensei que, do as pessoas começaram a pensar em voos mais altos, tinham pendurado uma tabuleta a dizer "para venda" e se tinham mudado para um enclave mais rico e pouco distante, como Greenwich ou Westport, ou Darien.

Segui devagar pela Main Street, o centro de Caspien. Estendendo-se por quatro quarteirões, tinha a habitual mistura de estabelecimentos comerciais em pequenas cidades: Gap, J. Crew, Pottery Barn, uma loja de móveis, uma estação de correios, um salão de beleza, uma pizzaria, alguns restaurantes, uma seguradora. Em Elm Street passei por uma agência funerária e por um centro comercial, que incluía um supermercado, uma lavandaria, uma loja de bebidas e um cinema. Em Hickory Street descobri um snack-bar e, ao lado, um edifício de dois andares com um letreiro onde se lia JORNAL DE CASPIEN.

Pelo meu mapa, vi que a casa da família Spencer ficava no no 71 de Wislow Terrace, uma avenida que partia do fim de Main Street. Nessa morada, encontrei uma casa de madeira com um alpendre, o tipo de casa da viragem do século onde eu também cresci. À entrada, via-se uma placa de madeira onde podia ler-se PHILIP BRODERICK, DICo. Pensei se o Dr. Broderick viveria no andar de cima, onde a família Spencer vivera.

Numa entrevista, Nicholas Spencer pintara um quadro caloroso da sua infância: "Sabia que não podia interromper o meu pai quando ele tinha doentes, mas só de saber que ele estava lá em baixo, a um minuto de distância, sentia-me maravilhosamente bem. "

Tencionava fazer uma visita ao Dr. Philip Broderick, mas ainda não. Em vez disso, voltei ao edifício que albergava o Jornal de Caspien, estacionei junto ao passeio e entrei.

A mulher de ar pesado sentada à secretária estava tão absorta em qualquer coisa na Internet que se assustou quando a porta se abriu. Mas a sua expressão tornou-se, de imediato, agradável. Deu-me uns alegres "bons-dias" e perguntou em que podia ser-me útil. Os óculos grandes, sem aros, tornavam-lhe maiores os olhos azuis-claros. Tinha decidido que, em vez de me apresentar como repórter da Wal Street pediria apenas alguns números recentes do jornal. O avião de Spencer despenhara-se havia quase três semanas. O escândalo sobre o dinheiro desaparecido e a vacina tinha já duas semanas.

Tinha um palpite que este jornal local devia ter coberto ambas as his tórias com profundidade.

A mulher tinha uma espantosa falta de curiosidade sobre a minha presença ali. Desapareceu ao fundo do corredor e regressou com exemplares das edições das últimas semanas. Paguei - três dólares, no total -, meti-as debaixo do braço e dirigi-me ao snac-bardo lado. O pequeno-almoço fora metade de um muffin e uma chávena de café instantâneo. Achei que um donut e um café dariam um excelente "snack das onze", como os meus amigos chamam à pausa que fazem a meio da manhã para tomar chá ou café.

O snack-bar era pequeno e acolhedor, um desses lugares com cortinas vermelhas aos quadrados e pratos com desenhos de galinhas e pintos, alinhados na parede atrás do balcão. Dois homens na casa dos

setenta levantaram-se, preparando-se para sair. A empregada, um concentrado de energia, apressou-se a levantar da mesa as chávenas vazias.

Olhou para cima, quando a porta se abriu.

- Pode sentar-se onde quiser - disse, sorrindo. - Este, oeste, norte ou sul.

Na placa de identificação presa ao uniforme que trazia vestido lia- se "Chamo-me Milly". Achei que devia ter mais ou menos a idade da minha mãe mas, ao contrário da minha mãe, Milly tinha o cabelo pin tado de vermelho vivo.

Escolhi uma mesa de canto, onde podia espalhar os papéis à vontade. Ainda não me tinha instalado e já a Milly estava ao pé de mim, de bloco na mão, à espera do pedido. Momentos depois, o café e o donut estavam à minha frente.

O avião de Spencer caíra a 4 de Abril. O jornal mais antigo que eu comprara datava de 9 de Abril. A primeira página tinha uma fotografia dele. O título dizia "Nicholas Spencer Presumivelmente Morto".

A história era uma ode à memória de um rapaz nascido numa cidadezinha, que se tinha saído bem na vida. A fotografia era recente. Fora tirada a 15 de Fevereiro, quando Spencer recebera o primeiro "Prémio Cidadão" concedido pela cidade. Fiz algumas contas. De 15 de Fevereiro a 4 de Abril. Na altura do prémio restavam-lhe quarenta e sete dias neste planeta. Pergunto-me muitas vezes se as pessoas pressentirão que estão a chegar ao fim do seu tempo. Acho que o meu pai pressentiu. Saiu para dar um passeio naquela manhã, há oito anos, mas a minha mãe disse-me que ele hesitou à porta, depois voltou atrás e beijou- a no alto da cabeça. Três quarteirões mais à frente teve um ataque cardíaco. O médico disse que morreu antes de ter chegado ao chão.

Nicholas Spencer estava a sorrir nesta fotografia, mas os olhos pareciam pensativos, preocupados até.

As primeiras páginas do jornal eram inteiramente sobre ele. Havia fotografias dele, de quando tinha oito anos e estava nos Júniores. Era lançador dos Caspien Tigers. Noutra fotografia teria uns dez anos e estava com o pai no laboratório da casa da família. Pertencia à equipa de natação, no liceu: tinha posado para a fotografia com um troféu. Noutra, vestia uma roupa Shakespeariana e tinha na mão qualquer coisa que parecia um Óscar: fora nomeado melhor actor.

A fotografia com a primeira mulher, no dia do casamento, há doze anos atrás, deixou-me de boca aberta. Janet Barlowe Spencer of Greenwich era uma loura elegante e de feições delicadas. É exagero dizer que se tratava de uma dupla de Lynn, mas não há dúvida de que a semelhança era notável. Pensei se essa semelhança não teria alguma coisa a ver com o facto de ele se ter juntado a Lynn. Havia pequenas homenagens de meia dúzia de habitantes locais, incluindo um advogado que dizia que tinham sido amigos chegados no liceu, um professor que realçava com entusiasmo a sua sede de conhecimento, e uma vizinha que dizia que ele se oferecia sempre para lhe fazer as compras. Peguei no meu bloco de apontamentos e anotei os nomes. Pensei que podia encontrar as moradas na lista telefónica, se decidisse contactá-los.

O tema do jornal da semana seguinte era o facto de a vacina Gen-stone, que a empresa de Spencer afirmava constituir a cura definitiva para o cancro, ser um fracasso. O artigo salientava que o director executivo da Gen-stone admitira que talvez se tivessem precipitado na publicação dos primeiros resultados positivos. A fotografia de Nick Spencer que acompanhava a história parecia ter sido tirada na empresa.

O jornal de há cinco dias tinha a mesma fotografia de Spencer acompanhada de um título diferente: "Spencer Acusado de Desviar Milhões". Usavam a palavra "alegadamente" no artigo, mas um editorial sugeria que o prémio adequado para a cidade lhe ter atribuído seria o Óscar para Melhor Actor e não o Prémio Cidadão.

A Millie veio perguntar-me se eu queria mais café. Aceitei e apercebi-me de que os olhos dela olhavam com curiosidade para as fotografias de Spencer, que estavam em cima da mesa. Decidi dar-lhe uma oportunidade:

- Conheceu Nicholas Spencer? - perguntei.

Abanou a cabeça:

- Não. Há vinte anos, quando cheguei à cidade, ele já não morava cá. Mas deixe-me dizer-lhe que quando começaram a ouvir-se essas histórias de ele ter roubado a empresa e de a vacina ser um fiasco, muitas pessoas daqui sentiram-se bastante infelizes. Muitas delas compraram acções da empresa, depois de ele ter recebido a medalha. No discurso, ele disse que talvez fosse a descoberta mais importante desde a vacina contra a poliomielite.

Basófia não lhe faltara, pensei. Teria sido mais um conto do vigário, antes de desaparecer?

- O jantar foi um engodo - disse Milly - Quero dizer, o Spencer veio na capa de uma série de revistas nacionais. As pessoas queriam vê-lo de perto. Ele é a única coisa parecida com uma celebridade que esta cidade alguma vez produziu. O jantar serviu para angariar fundos, claro. Ouvi dizer que, depois de ter ouvido o discurso, a direcção comprou uma série de acções da Gen-stone para o hospital. Agora toda a gente está furiosa com toda a gente por se ter pensado no prémio e se ter trazido o Spencer até cá para recebê-lo. Não vão conseguir avançar com a nova ala pediátrica do hospital.

Tinha a cafeteira na mão direita e pôs a esquerda na anca:

- Deixe que lhe diga, nesta cidade o nome do Spencer é lama.

Mas que Deus o tenha em paz - acrescentou, com relutância. Depois, olhou para mim:

- Porque está tão interessada no Spencer? É jornalista, ou qual quer coisa do género?

Sim - admiti.

- Não é a primeira a vir aqui vasculhar sobre ele. Alguém do FBI andou a fazer perguntas sobre os amigos dele. Eu disse-lhes que ele não tinha deixado por cá nenhuns.

Chegada a este ponto, paguei a conta, dei o meu cartão a Mile e disse-lhe:

- Para o caso de alguma vez querer falar comigo.

E voltei para o carro. Desta vez, dirigi-me ao número 71 de Winslow Terrace.

 

                           CAPÍTULO ONZE

Às vezes tenho sorte. O Dr. Philip Broderick não tinha consultas na terça-feira à tarde. Quando cheguei, faltava um quarto para o meio- dia, e o seu último paciente estava de saída. Dei à recepcionista um dos meus cartões da Wal Street novinhos em folha. Hesitante, pediu-me que esperasse enquanto ia falar com o doutor. E eu esperei, com os dedos cruzados.

Quando ela regressou, disse:

- O doutor vai recebê-la. - Parecia surpreendida e, francamente, eu também estava. Quando fiz as pesquisas comofreelancer aprendi que, quando o assunto é controverso, as hipóteses de conseguir uma entrevista são as mesmas quer se toque à campainha ou se telefone a tentar fazer uma marcação. A minha teoria é que algumas pessoas ainda têm um sentido inato de cortesia e sentem que, se nos damos ao trabalho de ir ter com elas, merecemos ser tolerados ou até mesmo bem-vindos. O resto dessa teoria é que algumas pessoas temem que, se recusarem receber-nos, possamos escrever algo desagradável sobre elas.

De qualquer modo, quaisquer que fossem as razões do médico, íamos encontrar-nos. Deve ter ouvido os meus passos, porque se levantou da secretária assim que entrei no consultório. Era um homem esguio, alto, na casa dos cinquenta, com abundante cabelo grisalho: Cumprimentou-me com simpatia, mas num tom de negócios. - Menina DeCarlo, vou ser muito franco. Só concordei em falar consigo porque leio e respeito a revista que a senhora representa. No entanto, deve compreender que não é a primeira, nem a quinta, nem a décima jornalista a telefonar ou a aparecer por aqui.

Pensei em quantas histórias de primeira página iriam aparecer sobre Nicholas Spencer. Só esperava que o meu contributo para a nossa viesse a ser inovador e importante. Tinha uma ideia, que esperava que pudesse resultar. Apressei-me a agradecer ao médico por me receber sem aviso prévio da minha parte, sentei-me na cadeira que ele me indicou e fui directa ao assunto:

- Dr. Broderick, se lê a nossa revista regularmente, sabe que a política editorial é dizer a verdade absoluta, sem sensacionalismos, tal como os factos se apresentam. É minha intenção fazer exactamente isso neste trabalho para a revista, mas estou aqui também por um motivo pessoal. Há três anos, a minha mãe, então viúva, voltou a casar. A minha meia-irmã, que conheço mal, é a viúva de Nicholas Spencer. Está no hospital, a recuperar dos ferimentos que sofreu quando alguém lhe incendiou a casa, uma destas noites. Não sabe em que acreditar sobre o marido, mas quer e precisa de saber a verdade. Qualquer ajuda que possa dar será extremamente bem-vinda.

- Soube do incêndio pelos jornais.

Detectei a nota de simpatia que esperava dele, embora me detestasse a mim própria por estar a jogar aquela cartada.

- Conheceu Nicholas Spencer? - perguntei.

- Conheci o pai dele, o Dr. Edward Spencer, éramos amigos. Eu Partilhava o interesse dele pela microbiologia, e aparecia muitas vezes para observar as experiências dele. Para mim, era um passatempo fascinante. Nicholas Spencer já estava licenciado e tinha-se mudado para Nova Iorque quando me instalei aqui.

- Quando foi a última vez que viu Nichólas Spencer?

- A 16 de Fevereiro, no dia depois da angariação de fundos.

- Ele passou a noite na cidade?

- Não, regressou na manhã seguinte ao jantar. Não esperava vê-lo. Deixe-me explicar-lhe. Foi aqui que ele cresceu, mas presumo que saiba isso.

- Sim, sei.

- O pai de Nick morreu subitamente, de ataque cardíaco, doze anos, logo depois de Nick ter casado. Mostrei-me imediatamente interessado em comprar a casa. A minha mulher sempre a adorou, e eu já estava bastante apertado no meu primeiro consultório. Nessa altura, era minha intenção ficar com o laboratório e continuar

algumas das primeiras experiências que o Dr. Spencer considerara que não iriam conduzir a lado nenhum. Pedi a Nick para me deixar

copiar esses registos. Ele deixou-os aqui. Levou todos os ficheiros mais recentes do pai, que considerou promissores. Como estou certo de que também sabe, a mãe morreu de cancro, quando era jovem, e o grande objectivo da vida do pai foi encontrar uma cura para a doença.

Recordei a intensidade no rosto de Nick Spencer quando me contou a história.

- Usou os apontamentos do Dr. Spencer? - perguntei.

- Não. - O Dr. Broderick encolheu os ombros. - Estava sempre muito ocupado, e depois precisei da área do laboratório para criar duas novas salas de exames. Arrumei os ficheiros no sótão, para o caso de Spencer vir buscá-los. Nunca veio, até ao dia da angariação de fundos.

- Mas isso foi apenas um mês e meio antes de morrer! Porque acha que veio buscá-los? - perguntei.

Broderick hesitou:

- Não me deu qualquer explicação, por isso não posso ter a certeza. Estava visivelmente perturbado. Ou tenso, é um termo mais adequado. Depois disse-lhe que tinha feito a viagem para nada e ele perguntou-me o que eu queria dizer.

- E o que queria dizer?

- No Outono passado, alguém da empresa dele veio buscar os registos, e claro que eu lhos dei.

- Como é que Nick reagiu quando lhe disse isso? - perguntei, intrigada.

- Perguntou-me se podia dizer-lhe o nome da pessoa que aqui esteve, ou descrevê-la. Não consegui lembrar-me do nome do homem, mas descrevi-o. Estava bem vestido, tinha cabelo castanho arruivado, estatura média, e à volta dos quarenta anos.

- Nick reconheceu de quem se tratava?

- Não tenho a certeza, mas ficou visivelmente transtornado - disse "Tenho menos tempo do que pensava" e foi-se embora.

- Sabe se ele visitou mais alguém na cidade?

- Deve ter visitado. Uma hora mais tarde, quando ia a caminho do hospital, passou por mim de carro.

Tinha pensado em ir até ao liceu que Nick frequentara. Queria perceber que tipo de miúdo fora. Mas, depois de falar com o Dr. Broderick, mudei de ideias. Decidi ir directamente à Gen-stone, descobrir o tipo de cabelo castanho arruivado e fazer-lhe umas perguntas.

Se é que ele trabalhava, de facto, para a Gen-stone, coisa de que eu duvidava seriamente.

 

                               CAPÍTULO DOZE

Depois de ter saído do hospital, Ned foi para casa e deitou-se no sofá. Tinha feito o seu melhor, mas tinha decepcionado Annie. Tinha a gasolina num frasco, um fio comprido num dos bolsos e o isqueiro

no outro. Apenas mais um minuto e poderia ter feito àquele quarto o que fizera à mansão.

Mas tinha ouvido o clique da porta do elevador e visto os polícias de Bedford. Tinha a certeza de que não se tinham aproximado o suficiente para lhe ver o rosto, mas não queria que começassem a pensar

no que faria ele no hospital, agora que Annie estava morta. Claro que podia ter-lhes dito que estava lá porque tinha uma consulta com o Dr. Greene. De resto, isso era verdade. O Dr. Greene estava ocupado, mas Ned não o tinha deixado ir, à hora do almoço. Era um bom homem, embora concordasse com Annie e achasse que Nede devia ter discutido com ela a venda de Greenwood Lake.

Não tinha dito ao Dr. Greene que estava zangado. Só Lhe tinha dito que estava triste. Tinha dito:

- Tenho saudades da Annie. Amo-a.

O Dr. Greene desconhecia a verdadeira causa da morte de Annie, não sabia que ela tinha saído de casa a correr para se meter no carro e tinha sido atropelada pelo camião do lixo, tudo porque estava zangada com ele por causa das acções da Gen-stone. Não sabia que Ned tinha trabalhado para o jardineiro que tomava conta da mansão que tinha ardido no incêndio, e que por isso conhecia bem o Doutor. O Dr. Greene deu-lhe uns comprimidos para ele acalmar e também uns para dormir. Ned tomou dois para dormir quando chegou a casa, vindo do hospital, e adormeceu no sofá. Acordou catorze horas depois, às onze da manhã, quando a senhoria, a Sr. a Morgan, tocou à campainha. A mãe dela era a dona da casa quando ele e Annie se tinham mudado, mas desde o ano passado que era a Sr. a Morgan.

Ned não gostava dela. Era uma mulher enorme, com cara de quem procura sarilhos constantemente. Ned manteve-se à porta, barrando-Lhe o caminho, mas percebeu que ela estava a tentar espreitar para dentro da casa, em busca de um pretexto para discutir.

Quando falou, a voz dela não tinha o tom áspero e estridente habitual:

- Ned, julgava que já estava a caminho do trabalho. Ele não respondeu. Não era da conta dela o facto de ele ter voltado a ser despedido.

- Sabe que lamento imenso o que aconteceu à Annie.

- Sim, claro. - Estava tão cansado por causa do efeito dos comprimidos que lhe era difícil articular fosse o que fosse.

- Ned, há um problema. - O tom de simpatia mudou e ela transformou-se na Sr. a Grandes Negócios. - O seu contrato acaba a 1 de Junho. O meu fillho vai casar e precisa do seu apartamento. Lamento, mas sabe como é. Mas, por respeito à memória da sua mulher, pode ficar de graça durante o mês de Maio.

Uma hora depois foi até Greenwood Lake. Alguns dos antigos vizinhos estavam na rua, a tratar dos relvados. Parou diante da propriedade onde tinha estado a sua casa. Agora, estava tudo relvado. as flores que Annie tinha plantado com tanto amor tinham desaparecido. A velha Sr. a Schafley, que vivia do outro lado da casa, estava a cortar as mimosas no quintal. Olhou para cima, viu-o e convidou-o a entrar para tomar chá.

Serviu-lhe bolo de café caseiro e até se lembrou de que ele gostava de tomar o chá com muito açúcar. Sentou-se diante dele.

- Está com um ar terrível, Ned - disse ela, com os ollhos a encherem-se-lhe de lágrimas. - A Annie não ficaria feliz se o visse tão desgrenhado. Fazia-o andar sempre bem-arranjado.

- Tenho de mudar de casa - disse ele. - A senhoria quer o apartamento para o filho.

- Ned, e para onde vai?

- Não sei. - Ainda em luta contra o cansaço residual provocado pelos comprimidos, Ned teve uma ideia. - Sr. a Schafley, será que podia alugar-me o quarto que tem desocupado, só por algum tempo, até eu arranjar outra coisa?

Viu a recusa imediata nos olhos dela.

- Pela Annie - acrescentou. Sabia que a Sr. a Schafley adorava a Annie. Mas ela começou a abanar a cabeça.

- Ned, não iria resultar. Você não é propriamente a mais limpa e arrumada das pessoas. A Annie andava sempre atrás de si, a apanhar coisas. A casa é pequena, e íamos acabar por desentender-nos.

- Pensei que gostasse de mim. - Ned sentiu a fúria crescer-lhe na garganta.

- E gosto - disse ela com voz calma -, mas não é a mesma coisa quando se vive com alguém. - Olhou pela janela. - Olha, ali vem o Harry Harnik. - Correu para a porta e chamou-o. - O Ned está de visita - gritou.

Harry Harnik era o vizinho que quisera comprar-lhes a casa, para ter um quintal maior. Se Harry não Lhes tivesse feito aquela oferta, ele não teria vendido a casa e empatado o dinheiro naquela empresa.

Agora, a Annie tinha desaparecido, a casa deles tinha desaparecido e a senhoria queria pô-lo na rua. A Sr. a Schafley, que fora sempre tão simpática quando a Annie estava viva, nem sequer queria alugar-Lhe um quarto. E o Harry Harnik vinha na direcção da casa, com um sorriso de simpatia no rosto.

- Ned, só soube da Annie quando tudo já tinha passado.

Lamento imenso. Ela era uma pessoa encantadora.

-Encantadora - concordou a Sr. a Schafley.

A oferta de Harnik para lhe comprar a propriedade tinha sido o primeiro passo para a morte de Annie. A Sr. a Schafley tinha-o chamado porque não queria ficar sozinha com Ned. Tem medo de mim, pensou Ned. Até Harnik o olhava de forma estranha. Também tem medo de mim, concluiu.

A senhoria, com as suas falinhas mansas, tinha dito que ele podia fIcar de graça no apartamento durante o mês de Maio, porque também tinha medo dele. O filho não iria viver com ela; nem sequer se davam! Só quer ver-se livre de mim, disse Ned a si próprio.

Lynn Spencer tinha tido medo dele quando ele estava à porta do quarto dela, no hospital. A irmã dela, a tal DeCarlo, tinha desviado o olhar enquanto dava a entrevista, e ontem mal se tinha dado ao trabalho de virar a cabeça para olhar para ele. Mas as coisas iam mudar. Ela ia aprender a ter medo dele também.

A raiva e a dor que se acumulavam dentro dele estavam a aumentar. Sentia-o. Estavam a transformar-se num sentimento de poder do tipo daquele que tinha quando, em miúdo, atirava pastilhas elásti cas aos esquilos. Harnik, Schafley, Lynn Spencer, a irmã dela: eram todos esquilos. Era exactamente assim que tinha de tratá-los, como esquilos.

Depois, poderia ir-se embora, deixando-os esmagados e a chorar, como fazia com os esquilos, quando era criança.

Qual era a canção que costumava cantar no carro? "Vamos caçar! Era isso.

Começou a rir.

Harry Harnik e a Sr. a Schafley olhavam para ele, espantados.

- Ned - disse a Sr. a Schafley -, tem tomado o seu remédio desde que a Annie morreu?

Não levantes suspeitas, disse a si próprio, em tom de aviso.

Conseguiu parar de rir.

- Sim, claro - disse ele. - A Annie havia de querer que eu o tomasse. Estava a rir só porque me lembrei do dia em que ficou furioso, Harry, por eu ter comprado aquele carro velho, para arranjar.

- Eram dois carros velhos, Ned. Davam um ar horrível ao bairro, mas a Annie fez-te livrar deles.

- Sim, lembro-me disso. Foi por isso que compraste a casa, por que não querias que eu trouxesse para cá os carros velhos que terias de arranjar. Foi por isso que, quando a tua mulher quis telefonar a Annie para ter a certeza de que ela não se importava que comprasse a minha propriedade, não a deixaste telefonar. E, Sr.a Schafl, a senhora sabia que a Annie ia ficar destroçada se a casa desaparecesse e também não lhe telefonou. Não ajudou a salvar a casa dela, porque me queria fora daqui.

A culpa estava escrita em ambos os rostos, no rosto vermelho de Harnik e na face enrugada da Sr. a Schafley. Talvez gostassem da Annie, mas não o suficiente para não terem conspirado para roubar-lhe a casa.

Não lhes mostres o que realmente sentes, aconselhou a si próprio. Não te denuncies.

- Vou andando - disse. - Mas achei que deviam ficar a saber que eu sei o que vocês os dois andaram a tramar e que espero que ardam no inferno.

Virou-lhes as costas e saiu de casa, caminhando pelo carreiro até o carro. No momento em que abriu a porta, viu uma tulipa a despontar perto do sítio onde antes ficava o caminho de entrada para a casa deles. Conseguia ver Annie de joelhos, o ano passado, a plantar os bolbos.

Correu até lá, curvou-se, colheu a tulipa e ergueu-a em direcção ao céu. Era a sua promessa a Annie de que havia de vingá-la. Lynn Spencer, Carley DeCarlo, a senhoria, Harry Harnik, a Sr. a Schafley E a mulher de Harnik, Bess? Enquanto regressava ao carro e começava a afastar- se dali, Ned reflectiu um pouco, e depois acrescentou ess Harnik à lista. Podia bem ter aproveitado um momento em que estivesse sozinha para telefonar à Annie e avisá-la da venda iminente da casa. Também não merecia viver.

 

                           CAPÍTULO TREZE

Não sabia bem se estaria a intrometer-me no território do Dr. Ken Page, quando regressei aos escritórios da Gen-stone, em Pleasantville, mas tratava-se de algo que eu achava que devia fazer imediatamente. Enquanto seguia pela I-95 entre Connecticut e Vi tchester, não me saía da cabeça a possibilidade de quem quer que tivesse ido buscar os registos do Dr. Spencer pertencer a uma empresa de investigação, talvez até mesmo uma firma contratada pela própria empresa.

No seu discurso, na reunião de accionistas, Charles Wallingford afirmara, ou pelo menos insinuara, que o dinheiro desaparecido e o problema com a vacina eram ocorrências absolutamente chocantes e inesperadas. Mas, meses antes de o avião de Spencer se ter despenhado, alguém fora buscar esses antigos registos. Porquê?

"Tenho menos tempo do que pensava, ". Fora o que Nick dissera ao Dr. Broderick. Menos tempo para quê? Para não deixar rasto? Para assegurar um futuro num novo lugar, com um novo nome, talvez com um novo rosto, e milhões de dólares? Ou haveria uma ideia completamente diferente? E porque não conseguia eu eliminar esta possibilidade?

Desta vez, quando cheguei à sede da empresa, perguntei pelo Dr. Celtavini e disse que o assunto era urgente. A secretária pediu-me que esperasse. Decorreu um bom minuto e meio até dizer- me que podia entrar.

 

                         CAPÍTULO CATORZE

Não estou certa de quando comecei a apaixonar-me por Casey Dillon. Talvez há anos. O seu nome completo é Kevin Curtis Dillon, mas toda a vida lhe têm chamado Casey, tal como a mim, Márcia, me têm chamado Carley. É cirurgião ortopedista no Hospital de Cirurgias Especiais. Quando vivíamos em Ridgewood e eu andava no segundo ano do liceu, convidou-me para o baile de finalistas. Tinha uma paixão por ele que não havia meio de desaparecer, mas depois ele foi para a faculdade e não me disse quando voltaria para casa.

Quando Chocámos um com o outro, há uns seis meses atrás, à entrada de um teatro fora da Broadway Eu estava sozinha; ele estava acompanhado. Um mês depois telefonou-me. Duas semanas mais tarde voltou a telefonar-me. É bastante evidente que o Dr. Dillon, um cirurgião de trinta e seis anos, bem-parecido, não aprecia assim tanto a minha companhia. Agora, telefona-me regularmente, mas não muito regularmente.

Digamos que, embora receosa de voltar a ter um desgosto amoroso, adoro todos os momentos em que estou com Casey. Fiquei perturbadíssima quando acordei a meio da noite, há uns meses, e percebi que sonhara que ele e eu andávamos a comprar guardanapos para termos nas nossas festas. No sonho, até consegui ver os nossos nomes envoltos em arabescos: "Casey e Carley". Original, não?

A maioria dos nossos encontros é combinada com antecedência, mas quando cheguei a casa, depois do meu longuíssimo dia, havia uma mensagem no meu gravador: "Carley, queres ir trincar qualquer coisa? "

Pareceu-me uma bela ideia. Casey mora em West 85th Street, e costumamos encontrar-nos num restaurante no centro da cidade. Telefonei-lhe, deixei-Lhe uma mensagem a dizer está bem, tomei algumas notas cuidadosas sobre os acontecimentos do dia, e decidi que o melhor que tinha a fazer era tomar um duche.

O meu chuveiro foi mudado duas vezes, mas não serviu de nada. A água continua a sair em esguicho e depois a jorrar descontroladamente; a alteração de temperatura é bastante traumática e não pude deixar de pensar como seria bom meter-me num jacusi quente e borbulhante. Tinha decidido que, quando comprasse um apartamento, iria resolver a situação de uma vez por todas e mandar instalar uma dessas invenções celestiais. Agora, graças ao meu investimento na Gen-stone, o Jácusi estava a quilómetros de distância.

Casey telefonou quando eu estava a secar o cabelo. Combinámos que comida chinesa em Shun Lee West era uma óptima ideia e que nos encontraríamos às oito, para voltarmos cedo. Ele tinha uma cirurgia marcada para a manhã seguinte e eu precisava de preparar-me para o meu encontro com os rapazes, no escritório. Cheguei ao Shun Lee's às oito em ponto. Carley estava sentado a uma mesa, com ar de quem já ali estava há algum tempo. Meti-me com ele, dizendo que me fazia sentir atrasada, apesar de ele poder acertar o relógio por mim, se quisesse. Pedimos vinho, vimos a ementa, conversámos sobre ela, e concordámos em partilhar tempura de camarão e galinha em molho picante. Depois, concentrámo-nos nas últimas semanas.

Contei-lhe sobre o contrato com a Wall Street e ele ficou bastante impressionado. Depois, falei-lhe do artigo sobre Nicholas Spencer e comecei a pensar alto, coisa que tendo a fazer quando estou com Casey.

- O meu problema - disse eu, enquanto dava uma dentada num crepe - é que o tipo de raiva que vejo dirigida a Spencer é muito pessoal. Claro, é o dinheiro, e para alguns é apenas o dinheiro, mas para muitas pessoas é mais do que isso. Sentem-se perfeitamente traídas.

- Viram nele um deus, que os curaria com as suas mãos, devolvendo-lhes a saúde, a eles ou aos filhos - disse Casey. - Como médico, vejo como nos adoram como se fossemos heróis, quando conseguimos salvar um doente de uma situação crítica. Spencer prometeu libertar o mundo inteiro da ameaça do cancro. Quando a vacina falhou, pode ter chegado ao limite.

- O que é que queres dizer?

- Carley, fosse por que motivo fosse, ele roubou dinheiro. A vacina falhou. Está numa situação desesperada e não tem para onde ir, a não ser a prisão. Pergunto-me qual seria o montante do seguro dele. Alguém verificou isso?

- Tenho a certeza de que Don Carter, que está a escrever a parte da história ligada aos negócios, vai fazer isso, se é que não o fez já. Então, pensas que Nick Spencer pode ter resolvido fazer com que o avião se despenhasse?

- Não seria o primeiro a escolher essa saída.

- Pois, acho que não.

- Carley, posso dizer-te que os laboratórios de pesquisa são ninhos de mexericos. Falei com alguns dos tipos que conheço. Há meses que se ouve dizer que os resultados finais na Gen-stone não iam dar em nada.

- Achas que o Spencer sabia isso?

- Se toda a gente sabia, não sei como é que ele poderia não saber. Deixa-me dar-te uma achega: a indústria farmacêutica é um negócio de muitos milhões, e a Gen-stone não é a única empresa a tentar desesperadamente curar o cancro. A empresa que descobrir a pólvora terá uma patente que valerá milhares de milhões. Não te iludas. As outras empresas estão a torcer para que a vacina do Spencer não dê em nada. Não há uma única que não esteja a trabalhar freneticamente para chegar lá primeiro. O dinheiro e o prémio Nobel são belíssimos incentivos.

- Não estás a dar a melhor das imagens da profissão médica, doutor.

- Não estou a dar imagem nenhuma. Estou apenas a dizer-te como as coisas são. Acontece o mesmo com os hospitais. Competimos pelos doentes. Os pacientes trazem lucro. Lucro significa que os hospitais podem adquirir os equipamentos mais modernos. O que se faz para atrair doentes? Tendo médicos muito conhecidos. Por que é que achas que os médicos que têm nome dentro da sua especialidade estão constantemente a ser recrutados? Há uma disputa por eles e sempre houve. Tenho amigos nos laboratórios dos hospitais que me dizem que estão sempre alerta por causa dos espiões. O roubo de informação sobre novas drogas e novas vacinas está sempre a acontecer.

E, mesmo sem roubos descarados, a corrida para se ser o primeiro a descobrir a última maravilha em drogas ou vacinas dura vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Era com isso que Nick Spencer se confrontava.

Fiquei a pensar na palavra "espiões" e lembrei-me do desconhecido que fora buscar os registos ao consultório do Dr. Broderick.

Contei a Casey.

- Carley, estás a dizer que Nick Spencer ficou com os ficheiros do pai, há doze anos, e que alguém foi ilegitimamente à procura do que restava deles, no Outono passado. Isso não te diz que alguém pensou que eles podiam ter valor e que chegou a essa conclusão antes de o próprio Spencer ter pensado nisso?

- "Tenho menos tempo do que pensava"... Casey, esta foi a última coisa que Spencer disse ao Dr. Broderick, e apenas seis semanas antes do desastre de avião. Isto continua a intrigar-me.

- O que achas que ele quis dizer? - perguntou Casey.

- Não sei. Mas a quantas pessoas achas que ele terá dito que tinha deixado os primeiros registos das experiências do pai na velha casa da família? Quero dizer, quando mudamos de casa e há outra familia que vai morar para a casa onde morávamos, não é normal que queiram ficar com os nossos caixotes lá guardados. Foi um conjunto especial de circunstâncias. O médico esperava trabalhar no seu laboratório, como hobby. Mas depois diz que usou o espaço para salas de exames.

Chegaram os nossos pratos, fumegantes e a fervilhar, com um aspecto e um cheiro deliciosos. Apercebi-me de que não comera absolutamente nada desde o donut e o café no snac-bar. Apercebi-me também de que, depois de me encontrar com Ken Page e Don Carter no escritório, de manhã, teria de voltar a Caspien.

Ficara surpreendida com o facto de o Dr. Broderick me ter recebido tão prontamente, esta manhã. Era igualmente surpreendente que ele me tivesse comunicado tão depressa que estivera na posse de alguns dos registos do Dr. Spencer e que, havia apenas alguns meses, os entregara a um mensageiro, de cujo nome não conseguia recordar-se. Spencer sempre considerara as primeiras investigações do pai valiosas para o desenvolvimento da Gen-stone. Deixara esses registos com Broderick, a pedido do médico. Deveriam ter sido tratados com o maior dos cuidados.

Talvez tenham sido, pensei. Talvez não existisse nenhum homem de cabelo castanho arruivado.

- Casey, és um manancial de ideias - disse-lhe, quando já começava a concentrar-me nos camarões. - Talvez devesses ser psiquiatra.

- Todos os médicos são psiquiatras, Carley, mas alguns deles ainda não descobriram.

 

                         CAPÍTULO QUINZE

Sabia bem estar na Wall Street, ter um cubículo só para mim, uma secretária só para mim, um computador só para mim. Talvez haja pessoas para quem o que conta são as oportunidades para viajar, mas eu não sou uma delas. Não que não goste de viajar. Gosto, claro! Fiz pesquisa sobre pessoas famosas que me levaram à Europa e à América do Sul, até mesmo à Austrália, mas depois de andar fora durante umas semanas, fico com vontade de regressar a casa.

Casa, para mim, é a bela, maravilhosa, espectacular zona imobiliária chamada Ilha de Manhattan. A parte leste, a parte oeste, toda a cidade. Adoro percorrê-la a pé num domingo calmo e sentir a presença dos edifícios que os meus bisavós viram quando chegaram a Nova Iorque, uns vindos da Ilha Esmeralda, os outros da Toscana.

Ia pensando nisto enquanto colocava alguns objectos pessoais em cima da minha nova secretária e folheava os apontamentos que trouxera para a reunião que ia ter lugar no gabinete de Ken.

Num mundo de prazos curtos e de notícias sempre novas não há tempo a perder. Ken, Don e eu cumprimentámo-nos e fomos directos ao assunto. Ken sentou-se à secretária. Trazia uma camisola e uma camisa com o colarinho desabotoado, e parecia mesmo um jogador de futebol reformado.

- Começa tu, Don - disse ele.

Don, baixo e com um ar cuidado, folheou os seus apontamentos:

- O Spencer arrancou com aJackman Medical Supply Company há catorze anos, depois de se ter licenciado em medicina, na Cornell.

Nessa altura, era uma empresa familiar, que procurava sobreviver.

Com a ajuda do sogro, acabou por comprar a parte da familia Jackman. Há oito anos, quando fundou a Gen-stone, manteve nela o negócio de aprovisionamento médico e entrou no mercado de venda de acções para financiar a investigação. Foram esses fundos que ele desviou. Comprou a casa de Bedford e o apartamento de Nova Iorque. Bedford teve um custo inicial de três milhões, mas com as renovações e a escalada de preços no mercado imobiliário valia muito mais quando foi incendiada. O apartamento foi adquirido por quatro milhões e depois foi investido nele mais algum dinheiro. Não era um desses duplexes de preços astronómicos, ao contrário daquilo que dizem alguns artigos sobre ele. Por acaso, tanto a casa como o apartamento tinham hipotecas, que acabaram por vir a ser liquidadas.

Lembrei-me de que Lynn me dissera que tinha vivido na casa e no apartamento da primeira mulher de Nick.

- O desvio de fundos da secção de aprovisionamento médico começou há alguns anos. Há ano e meio começou a pedir empréstimos, dando como garantia as acções que tinha. Ninguém sabe porquê.

Sobre isso, quero acrescentar uma coisa - disse Ken. – Foi nessa altura que, segundo o Dr. Celtavini, começaram a surgir problemas no laboratório. Várias gerações de ratos que estavam a ser inoculados com a vacina começaram a desenvolver células cancerígenas.

Provavelmente, Nick Spencer percebeu que o castelo de cartas estava prestes a cair e começou a roubar a empresa descaradamente. A sensação que se tem é que a reunião em Puerto Rico era apenas um pretexto para ele fugir do país. Mas a sorte dele chegou ao fim.

- Disse ao médico que comprou a casa do pai que não tinha tanto tempo como pensava - disse eu. Depois, falei-lhes dos registos que o Dr. Broderick dizia ter dado a um homem de cabelo castanho arruivado, que se apresentara como alguém do escritório de Spencer. - O que acho difícil engolir - continuei - é que um médico pudesse ter cedido registos relativos a uma investigação sem verificar se o pedido era válido e sem, pelo menos, ficar com um recibo assinado como comprovativo.

- Será que alguém da empresa suspeitava de Spencer? - sugeriu Don.

- Não, segundo o que foi dito na reunião de accionistas - disse eu. - E é evidente que a existência dos ficheiros é absoluta novidade para o Dr. Celtavini. Acho que se alguém estivesse interessado nas primeiras experiências de um microbiólogo amador, seria alguém como ele.

- O Dr. Broderick contou a mais alguém que um homem foi buscar esses registos? - perguntou Ken.

- Disse qualquer coisa sobre ter falado com os investigadores. Bem, eu diria que não. - Apercebi-me de que não fizera essa pergunta de uma forma directa ao Dr. Broderick.

- Provavelmente, alguém do Ministério Público foi falar com ele. - Don fechou o bloco de apontamentos. - Andam a tentar localizar o dinheiro. Quanto a mim, está numa conta na Suíça.

- Segundo eles, era para lá que estava a planear fugir? - perguntei.

- É difícil dizer. Há outros sítios onde as pessoas com as carteiras recheadas são bem-vindas e ninguém lhes faz perguntas. Nick Spencer gostava da Europa e falava Francês e Alemão fluentemente, por isso não teria dificuldade em adaptar-se, onde quer que decidisse estabelecer- se.

Pensei no que Nick dissera sobre o filho, Jack: "Ele é tudo para mim. " Como conciliaria o facto de deixar para trás o filho, ao abandonar o país, com a consciência de que não poderia regressar, a não ser que quisesse acabar na prisão? Levantei a questão, mas nem Don, nem Ken viram isso como um conflito.

- Com a quantidade de dinheiro que ele roubou, o miúdo podia meter-se num avião particular e ir visitar o papá sempre que quisesse. Posso dar- lhe uma lista de pessoas que não podem regressar a este país, mas são verdadeiros pais de família. Além disso, quantas vezes veria o miúdo se estivesse na choça?

- Há ainda outra coisa por esclarecer - salientei. - Lynn. Se o que ela diz é verdade, não participou neste esquema. Será que ele estava a planear deixá-la, sem lhe dizer nada? Não sei porquê, mas não a vejo a viver no exílio. Mexeu bastantes cordelinhos para fazer parte da gente chique de Nova Iorque. E agora diz que ficou sem dinheiro nenhum.

- Provavelmente, para Lynn Spencer "não ter dinheiro nenhum" não é bem a mesma coisa do que para um de nós três - disse Don, secamente, enquanto se levantava.

- Só mais uma coisa - disse eu, rapidamente. - É exactamente o ponto que eu gostava de focar em toda esta história. Andei a folhear a cobertura que a imprensa fez sobre a falência, e a ênfase parece estar sempre na sumptuosidade da vida do tipo que roubava o dinheiro, com aviões e barcos e meia dúzia de casas. Nós não temos esse tipo de história. O que quer que Nick Spencer tenha feito ao dinheiro não é evidente para nós. Por mim, gostava de entrevistar as pessoas desconhecidas, incluindo o tipo acusado de ter incendiado a casa. Mesmo que seja culpado, o que eu duvido, estava fora de si porque a filha está a morrer de cancro e ele vai perder a casa.

- O que a leva a pensar que ele não é culpado? - perguntou

Don. - Parece-me um caso mais que encerrado.

- Vi-o na reunião de accionistas. Estava praticamente lado a lado com ele, quando teve aquela explosão de fúria.

- Que durou quanto tempo? - Don ergueu uma sobrancelha, um gesto que eu sempre invejei a quem consegue fazê-lo.

- Uns dois minutos, se tanto - admiti. - Mas quer tenha ou não ateado fogo à casa, é um exemplo do que acontece às vítimas da falênCia da Gen-stone.

- Fale com alguns deles. Veja o que consegue - concordou

Ken. - Muito bem, vamos ao trabalho!

Voltei ao meu cubículo e folheei o material que tinha sobre Nick Spencer. Depois do acidente, várias pessoas que Lhe estavam próximas na Gen-stone tinham falado aos jornais. Vivian Powers, secretária dele durante seis anos, pusera-o nos píncaros. Pedi uma chamada para ela, para o escritório em Pleasantville, e cruzei os dedos, à espera que ela atendesse.

Atendeu. Tinha uma voz jovem, mas disse-me, sem hesitar, que não estava disponível para qualquer entrevista, nem por telefone, nem pessoalmente. Interrompi-a antes de ela conseguir desligar.

- Faço parte de uma equipa da Wall Street a trabalhar

num artigo sobre Nicholas Spencer - disse eu. - Vou ser honesta consigo. Gostava de arranjar qualquer coisa de positivo sobre ele, mas as pessoas estão tão zangadas por terem perdido o dinheiro que o retrato vai ser muito negativo. Na altura em que ele morreu, a senhora falou muito bem dele. Se calhar, entretanto, também já mudou de opinião...

- Quanto a mim, Nicholas Spencer não tirou um cêntimo que fosse em benefício próprio - disse ela, com veemência. Depois, a voz quebrou-se-lhe. - Era uma pessoa maravilhosa - concluiu, quase num murmúrio -, não posso afirmar outra coisa.

Tive a sensação de que Vivian Powers receava que alguém estivesse a ouvi-la.

- Amanhã é sábado - apressei-me a dizer. - Podia ir ter consigo, a sua casa, ou encontrar-me consigo num lugar qualquer, onde a senhora queira.

- Não, amanhã não. Tenho que pensar no assunto. - Ouvi um clique e a linha emudeceu. Que queria ela dizer com "Nicholas Spencer nunca tirou um cêntimo que fosse em benefício próprio"?

Talvez não seja amanhã, mas vamos conversar, Sr. a Powers, prometi a mim mesma. Vamos conversar.

 

                       CAPÍTULO DEZASSEIS

Quando Annie era viva não o deixava beber, porque dizia que isso interferia com os medicamentos. Mas a caminho de Greenwood Lake, ontem, Ned parara numa loja de bebidas para comprar garrafas de bourbon, Whisk, e aguardente. Não tomava os medicamentos desde que Annie morrera, por isso talvez ela não se zangasse com ele por ele estar a beber.

- Preciso de dormir, Annie - explicou, quando abriu a primeira garrafa. - Isto vai ajudar-me a dormir.

E ajudou. Adormeceu sentado na cadeira, mas depois aconteceu uma coisa estranha. Ned não conseguia dizer se estava a sonhar ou a lembrar- se da noite do fogo. Estava de pé entre as árvores, com a lata da gasolina, quando uma sombra saiu de um dos lados da casa e correu pelo caminho que ia dar à entrada.

Estava muito vento e os ramos das árvores não paravam de agitar-se. Primeiro, pensara que fora isso que causara a sombra... Mas a sombra transformara-se na figura de um homem e, no sonho, às vezes até parecia que conseguia ver uma cara.

Seria como os sonhos que tinha com Annie, aqueles que eram tão reais que até conseguia cheirar a loção de pêssego que ela usava?

Devia ser isso, concluiu. Porque era apenas um sonho, não era? Às cinco horas, quando a luz do amanhecer começava a afastar a escuridão, Ned acordou. Doía-lhe o corpo, por ter adormecido na cadeira, mas pior ainda era a dor que sentia no coração. Queria a Annie. Precisava dela. Mas ela não estava ali. Atravessou a sala e pegou na espingarda. Durante todos estes anos mantivera-a escondida atrás de um monte de tralha, na garagem. Voltou a sentar-se, com as mãos apertadas em volta do cano da arma.

A espingarda ia levá-lo para junto de Annie. Depois de ter resolvido as coisas com aquelas pessoas, as que a tinham levado à morte, iria ter com ela. Iria juntar-se a ela.

De súbito, lembrou-se da noite anterior. A cara na estrada, em Bedford. Tê-la-ia visto ou teria sonhado?

Deitou-se e tentou voltar a adormecer, mas não conseguiu. A queimadura da mão estava a ficar infectada e doía muito. Não podia ir à urgência do hospital. Tinha ouvido na rádio que o tipo que tinham prendido por ter ateado o fogo tinha uma queimadura na mão.

Tivera sorte em ter encontrado o Dr. Ryan no átrio do hospital. Se tivesse ido à urgência, alguém poderia tê- lo denunciado à polícia. E teriam descoberto que, no Verão passado, ele tinha trabalhado para o jardineiro que tratava dos jardins da casa de Bedford. Mas entretanto perdera a receita que o Dr. Ryan Lhe tinha dado.

Talvez se sentisse melhor se pusesse manteiga na mão. A mãe dele tinha feito isso uma vez, quando se tinha queimado a acender um cigarro no fogão.

E se pedisse outra receita ao Dr. Ryan? Podia telefonar-lhe... Ou isso faria o Dr. Ryan lembrar-se de que, algumas horas depois do fogo em Bedford, Ned lhe mostrara uma mão queimada?

Não conseguia decidir o que havia de fazer.

 

                         CAPÍTULO DEZASSETE

Tinha recortado todas as histórias sobre Nick Spencer no Carpien Toten Journal. Depois de ter falado com Vivian Powers, fui dar uma vista de olhos pelos recortes e encontrei a fotografia do jantar da atribuição do "Prémio Cidadão", a 15 de Fevereiro, no qual Nick fora distinguido. A legenda listava todas as pessoas que estavam sentadas à mesa, com ele.

Incluíam o presidente da direcção do Caspien Hospital, o presidente da Câmara de Caspien, um senador, um representante da igreja e vários homens e mulheres, indubitavelmente cidadãos proeminentes na zona, o tipo de pessoas que aparece regularmente em jantares de angariação de fundos.

Anotei os nomes e procurei os números de telefone na lista telefónica. Queria especificamente encontrar a pessoa que Nick Spencer fora visitar em Caspien, depois de ter deixado o Dr. Broderick. Era uma possibilidade remota, mas, com sorte, talvez fosse uma das pessoas fotografadas à mesa com ele. Por agora, não ia telefonar ao presidente da Câmara, nem ao senador, nem ao presidente da direcção do hospital. Esperava antes conseguir falar com uma das mulheres que tinham estado naquele jantar.

Segundo o Dr. Broderick, Spencer voltara inesperadamente a Caspien, na manhã seguinte, e ficara perturbado ao saber que os registos do pai tinham desaparecido. Procuro sempre pôr-me no lugar de alguém que tento compreender. Se estivesse no lugar de Nick e não tivesse nada a esconder, teria ido directamente ao meu gabinete e começado a investigar.

A noite passada, depois de ter jantado com Casey, quando cheguei a casa vesti a minha camisa de noite preferida, meti-me na cama, encostei algumas almofadas à cabeceira e espalhei em cima da cama todos os artigos do volumoso processo que recolhera sobre Nick. Sou bastante boa a ler em diagonal mas, por mais artigos que lesse, não vi uma única referência ao facto de ele ter deixado os registos das primeiras experiências do pai ao cuidado do Dr. Broderick, em Caspien.

Era plausível que muito poucas pessoas tivessem essa informação. Mas, a acreditar no Dr. Celtavini e no Dr. Kendall, ambos desconheciam a existência dos velhos apontamentos, e o homem de cabelo castanho arruivado não era um estafeta da empresa.

Mas por que razão alguém que não pertencia à empresa saberia dos registos do Dr. Spencer e, mais intrigante ainda, por que motivo os quereria?

Fiz três telefonemas e deixei mensagens. A única pessoa com quem consegui falar foi o Reverendo Howell, o sacerdote presbiteriano que fizera a invocação no jantar de angariação de fundos. Foi cordial, mas disse que não tinha conversado muito com Nick Spencer, naquela noite.

- Dei-lhe os parabéns pelo prémio, evidentemente, Menina De Carlo. Depois, como todas as outras pessoas, fiquei triste e consternado quando soube das suas alegadas irregularidades, e também quando soube que o hospital tinha sofrido uma perda financeira considerável por ter investido tanto na empresa.

- Reverendo, nestes jantares, entre um prato e o seguinte, as pessoas levantam-se da mesa e andam pela sala - disse eu. - Por acaso, notou se Nicholas Spencer falou com alguém em particular?

- Não, mas posso perguntar, se quiser.

A minha investigação não ia longe. Telefonei para o hospital e disseram-me que Lynn tivera alta.

Segundo os jornais matutinos, Marty Bikorsky fora acusado de fogo posto e comportamento perigoso, e libertado sob fiança. Devia Vir na lista telefónica de White Plains. Marquei o número. Atendeu o gravador de chamadas e deixei uma mensagem:

- O meu nome é Carley DeCarlo, da Wal Street. Vi-o na reunião de accionistas e não consigo pensar em si como alguém capaz de deitar fogo à casa de alguém. Espero que me telefone. Gostaria de ajudá- lo.

O meu telefone tocou quase imediatamente depois de eu ter desligado:

- Sou Marty Bikorsky - A voz soou exausta e tensa. - Acho que ninguém pode ajudar-me, mas obrigado por tentar.

Hora e meia depois estacionava diante da casa dele, um edifício antigo de dois andares, bastante bem conservado. Uma bandeira Americana estava hasteada num mastro, no relvado. O tempo caprichoso de Abril continuava a fazer das suas. Ontem, a temperatura chegara aos 20 graus. Hoje, descera até aos 12 e o vento soprava. Sabia-me bem ter trazido uma camisola por baixo do meu casaco primaveril.

Bikorsky devia estar à espreita, a ver se me via chegar, porque a porta abriu-se antes de eu ter tocado à campainha. Olhei para a cara dele e a minha reacção imediata foi pensar: pobre tipo. A expressão dos seus olhos era de uma derrota e de um cansaço tais que me doeu. Mas ele fez um esforço para manter os ombros direitos e conseguiu esboçar um leve sorriso.

- Entre, Menina DeCarlo. Sou Marty Bikorsky. - Ia estender-me a mão, mas depois recuou. Estava completamente enfaixada. Eu sabia que ele dissera que a queimara no fogão.

O acanhado vestíbulo conduzia directamente à cozinha. A sala ficava à direita. Ele disse:

- A minha mulher acabou de fazer café. Se quiser, podemos sentar- nos à mesa.

- Claro, muito obrigada.

Segui-o até à cozinha, onde uma mulher de costas voltadas para nós tirava do forno um bolo de café.

- Rhoda, esta é a Menina DeCarlo.

- Por favor, chame-me Carley - disse eu. - Na verdade, é Márcia, mas na escola os miúdos começaram a chamar-me Carley e o nome ficou.

Rhoda Bikorsky era mais ou menos da minha idade, o número de roupa dela deveria ser um elegante 36, e tinha cabelo comprido, louro escuro, e olhos azuis brilhantes. Tinha o rosto afogueado, e pensei se seria natural ou se as perturbações emocionais na sua vida estariam a interferir na sua saúde.

Tal como o marido, vestiajeans e uma shirt. Sorriu ligeiramente e disse, enquanto me apertava a mão:

- Quem me dera que alguém tivesse descoberto um nome familiar para substituir Rhoda.

A cozinha estava impecavelmente limpa e era acolhedora. A mesa e as cadeiras eram de estilo americano antigo e o chão de tijoleira era do género do que tínhamos na cozinha quando eu era miúda.

A convite de Rhoda, sentei-me à mesa, disse "Obrigada" quando ela me serviu o café e tirei uma fatia de bolo. De onde estava sentada, via um pequeno quintal. Um baloiço e um vaivém evidenciavam a presença de uma criança na família.

Rhoda Bikorsky apercebeu-se do que eu estava a observar.

- Foi o Marty que o construiu para a Maggie. Sentou-se à minha frente:

- Carley, vou ser franca consigo. Não nos conhece. É jornalista. Está aqui porque disse ao Marty que gostava de ajudar-nos. Tenho uma pergunta muito simples a fazer-lhe: Por que haveria de querer ajudar-nos?

- Estive na reunião de accionistas. Achei que a explosão do seu marido foi a de um pai furioso e perturbado, não a de um homem sedento de vingança.

O rosto dela suavizou-se:

- Então, sabe mais sobre ele do que a brigada de incêndios. Se eu soubesse aquilo que eles queriam, nunca lhes teria dito que o Marty sofre de insónias e que se levanta a meio da noite para ir lá fora, fumar um cigarro.

- Andas sempre atrás de mim para eu deixar de fumar - disse Bikorsky, com um sorriso forçado. - Devia ter-te dado ouvidos.

- Pelo que li, foi directamente da reunião de accionistas para o trabalho, na estação de serviço, não é verdade? - perguntei.

Ele conf Irmou com um aceno de cabeça:

- Esta semana, o meu turno era das três às onze. Cheguei atrasado, mas um dos rapazes tinha ficado no meu lugar. Quando saí, ainda estava tão irritado que fui beber umas cervejas antes de voltar para casa.

- É verdade que no bar disse qualquer coisa sobre deitar fogo à casa de Nick Spencer?

Ele fez uma careta e abanou a cabeça:

- Ouça, não vou dizer-Lhe que não fiquei transtornado quando soube que tinha perdido todo aquele dinheiro. Ainda estou transtornado. Esta é a nossa casa e temos que pô-la à venda. Mas seria tão capaz de pegar fogo à casa de alguém como a esta. Foi só da boca para fora.

- E ninguém pode duvidar disso! - Rhoda Bikorsky apertou o braço do marido e depois pôs-lhe a mão sob o queixo. - Isto vai esclarecer-se tudo, Marty!

Ele estava a dizer a verdade. Estava certa disso. Todas as provas contra ele eram circunstanciais.

- Saiu para fumar um cigarro, por volta das duas da manhã de terça-feira?

- Sim. É um péssimo hábito, mas quando acordo e sei que não vou conseguir voltar a adormecer os cigarros acalmam-me.

Olhei pela janela e reparei que havia muito vento. O que me fez lembrar de uma coisa.

- Espere um pouco - disse eu. - A noite de segunda para terça esteve ventosa e fria. Ficou sentado lá fora?

Ele hesitou:

- Não. Sentei-me no carro.

- Na garagem?

- O carro estava na rua. Liguei o motor.

Ele e Rhoda trocaram olhares. Era evidente que ela estava a avisá-lo para não dizer mais nada. O telefone tocou. Vi que ele ficou contente por ter um pretexto para se levantar da mesa. Quando regressou, tinha um ar carregado:

- Carley, era o meu advogado. Foi aos arames quando soube que eu a tinha deixado vir até cá. Disse-me para não lhe contar nem mais uma palavra.

- Papá, estás zangado?

Arrastando uma mantinha atrás de si, uma menina com cerca de quatro anos acabara de entrar na cozinha. Tinha o cabelo comprido e louro da mãe, bem como os seus olhos azuis, mas tinha um ar pálido.

Tudo nela parecia tão frágil que não pude deixar de pensar nas delicadas bonecas de porcelana que vira uma vez, num museu.

Bikorsky baixou-se e pegou-lhe ao colo:

- Não estou zangado, querida. Fizeste um bom soninho?

- Ãã-ãã!

Virou-se para mim:

- Carley, esta é a nossa Maggie.

- Papá, devias dizer que eu sou a Maggie, o teu tesouro.

Ele fingiu ficar horrorizado:

- Como pude esquecer-me? Carley, esta é a Maggie, o nosso tesouro, e, Maggie, esta é a Carley.

Apertei a mão pequenina que ela me estendeu.

- Muito prazer em conhecer-te, Carley - disse ela. Tinha um sorriso melancólico.

Esperava conseguir que as lágrimas não me viessem aos olhos. Era óbvio que ela estava muito, muito doente.

- Olá, Maggie. Também tenho muito prazer em conhecer-te.

- E se eu te preparasse um chocolate, enquanto a mamã diz adeus à Carley? - sugeriu Marty.

Ela fez-lhe uma festa na mão enfaixada.

- Promete que não vais queimar a mão outra vez quando fizeres o chocolate, está bem, Papá?

- Prometo, princesa. - Olhou para mim. - Pode publicar esta história, se quiser, Carley.

- É o que tenciono fazer - respondi calmamente. Rhoda acompanhou-me até à porta.

- A Maggie tem um tumor cerebral. Sabe o que os médicos disseram há três meses? Disseram: leve- a para casa e goze a companhia dela. Não a submeta a quimioterapia nem a radiação, e não se deixe ir na conversa de charlatães que lhe ofereçam tratamentos impensáveis, porque não vão resultar. Disseram que a Maggie não vai cá estar no próximo Natal. - A cor das suas faces tornou-se duma palidez profunda. - Carley, vou dizer-lhe uma coisa. Quando se brada aos céus de manhã, à tarde e à noite, como eu e o Marty fazemos, rezando para que Deus poupe a nossa única filha, não se quer enfurecê-Lo, indo queimar a casa de alguém.

Mordeu o lábio para abafar um soluço.

- Fui eu que convenci o Marty a fazer a segunda hipoteca. O ano passado, fui à ala para doentes terminais, em St. Ann's, ver um amigo que estava a morrer. Nicholas Spencer fazia trabalho voluntário, lá. Foi aí que o conheci. Falou-me da vacina que estava a desenvolver e disse-me que tinha a certeza de que curaria o cancro. Foi assim que convenci o Marty a pôr todo o nosso dinheiro na empresa.

- Conheceu Nicholas Spencer numa ala para doentes terminais? Era voluntário numa ala para doentes terminais? - Estava tão surpreendida que quase dei por mim a gaguejar.

- Sim. O mês passado, quando soubemos da Maggie, fui lá ter com ele, outra vez. Ele disse que a vacina não estava pronta, que não podia ajudá-la. É tão difícil acreditar que alguém tão convincente possa ter enganado, possa ter posto em risco... - Abanou a cabeça e tapou a boca com a mão, soluçando. - A minha menina vai morrer!

- Mamã!

- Vou já, querida. - Rhoda enxugou impacientemente as lágrimas que lhe corriam agora pela face.

Abri a porta.

- Gostei de Marty instintivamente - disse eu. - Agora que vos conheço, se houver uma maneira de ajudar-vos, hei-de descobri-la. - Apertei-lhe a mão e saí.

De regresso a Nova Iorque, telefonei para verificar se tinha mensagens. A única que recebera deixou-me gelada: "Olá, Menina DeCarlo, fala a Milly Servi-a no snac-barem Caspien, ontem. Soube que ia falar com o Dr. Broderick, ontem, por isso pensei que gostaria de saber que esta manhã, enquanto fazia o seujogging habitual, foi atropelado por um condutor, que fugiu. Está em estado crítico.

 

                         CAPÍTULO DEZOITO

Acho que cheguei a casa em piloto automático. Não conseguia deixar de pensar no acidente que deixara o Dr. Broderick em estado de coma e em situação crítica. Teria sido um acidente? Não conseguia deixar de questionar-me sobre o assunto.

Ontem, depois de falar com o Dr. Broderick, dirigira-me de imediato para os escritórios da Gen-stone e começara a fazer perguntas para descobrir quem mandara buscar aqueles registos. Falei com o Dr. Celtavini e com o Dr. Kendall. Na recepção, perguntei se havia outros serviços de estafeta e descrevi o homem de cabelo castanho arruivado, tal como o Dr. Broderick mo descrevera. E agora, esta manhã, apenas algumas horas depois, o Dr. Broderick fora atacado por alguém, num carro. Uso deliberadamente "atacado" em vez de atropelado.

Do carro, telefonei para o snac-bar em Caspien, e falei com a empregada. Disse-me que o acidente ocorrera cerca das seis horas da manhã, no parque próximo da casa dele.

- Pelo que ouvi, a polícia pensa que o tipo devia estar bêbado, ou qualquer coisa do género - disse ela. - Saiu da estrada e foi embater no médico. Não é horrível? Reze por ele, Carley.

Evidentemente que vou rezar por ele.

Quando cheguei a casa, vesti uma camisola confortável, umas calças largas e calcei uns ténis. Às cinco horas servi-me de um copo de vinho e tirei do armário queijo e bolachas de água e sal, pus os apontamentos na banqueta e comecei a pensar no meu dia.

Ver Maggie, que tinha apenas mais alguns meses de vida, trouxera-me recordações intensas de Patrick. Pensei se, no caso de ter essa hipótese, seria pior ter o Patrick durante quatro anos e depois perdê-lo. Teria sido mais fácil deixá-lo partir apenas alguns dias depois, ou tê-lo visto tornar-se a alma e o coração da minha vida, como Maggie para Rhoda e Marty Bikorsky? Se... Se... Se... Se os cromossomas que formaram o coração do Patrick não fossem defeituosos... Se as célul as cancerígenas que invadiram o cérebro de Maggie tivessem sido destruídas...

Claro que todos estes "ses" não valem a pena, porque não há respostas. As coisas não aconteceram assim, por isso nunca será possível saber. O Patrick teria dez anos, agora. Na minha cabeça e no meu coração consigo ver como ele seria, se tivesse sobrevivido. Teria cabelo escuro, evidentemente. Greg, o pai, tem cabelo escuro. Seria provavelmente alto para a idade. Greg é alto e, a julgar pelos meus pais e avós, devo ter um gene recessivo no que toca à altura. Teria olhos azuis. Os meus são azuis, os de Greg são de um azul acinzen tado. Gosto de pensar que seria mais parecido comigo, porque me pareço com o meu pai e ele era o melhor homem - e o mais bem-parecido - que alguém poderia conhecer. É engraçado. O meu bebé, que viveu apenas alguns dias, permanece tão real para mim, enquanto Greg, com quem andei na Faculdade durante um ano e com quem fui casada durante um ano, se tornou tão vago e tão pouco importante. Quando muito, penso como pude ser idiota ao ponto de não ter notado logo até que ponto ele é superficial. Conhecem aquele velho cartaz: "Ele não me pesa, é meu irmão". E se fosse: "Ele não me pesa, é meu filho"? Um belo bebé com dois quilos e quatrocentas gramas, mas com um coração ferido demasiado pesado para o pai lhe pegar.

Espero que haja uma segunda vez. Gostava de ter uma família, um dia. Faço figas para não cometer outro erro. É uma característica que me preocupa. Faço juízos demasiado apressados. Gostei instintivamente de Marty Bikorsky e senti pena dele. Foi por isso que fui visitá-lo. É por isso que acredito que está inocente, que não foi ele que ateou o fogo.

Depois, comecei a pensar em Nicholas Spencer. Há dois anos, quando o conheci, gostei dele e senti admiração por ele instintivamente. Agora estou a ver a ponta do icebergue de tudo o que ele fez às vidas das pessoas, não só destruindo-lhes a segurança económica com as suas acções inflacionadas, mas destruindo-lhes também a esperança de que a vacina dele prevenisse e curasse o cancro naqueles que essas pessoas amam e que estão a morrer.

A não ser que haja outra resposta.

O homem de cabelo castanho arruivado, que levou os registos do Dr. Spencer, faz parte dessa resposta. Estou certa disso. Será possível que o Dr. Broderick tenha sido atacado por poder identificá-lo?

Pouco depois, saí, fui a pé até à Village e comi linuini com molho de amêijoas e uma salada, num restaurantezinho despretensioso. Ajudou a melhorar a dor de cabeça que começara a sentir mas, infelizmente, não fez nada pela dor de coração. Senti o peso da culpa, ao pensar que a minha visita podia ter custado a vida ao Dr. Broderick.

Mas, mais tarde, quando regressei a casa, consegui adormecer.

Quando acordei, senti-me melhor. Adoro as manhãs de domingo, ler os jornais na cama enquanto bebo um café. Mas depois liguei o rádio para ouvir as noticias das nove. Nessa manhã, em Puerto Rico, uns miúdos que estavam a pescar num barco próximo do local onde o avião de Nicholas Spencer foi encontrado, pescaram um pedaço, ensanguentado e queimado, de camisa desportiva de homem, azul.

O jornalista disse que Nicholas Spencer, o financeiro desaparecido e que teria alegadamente desviado milhões de dólares da sua empresa de investigação médica, usava uma camisa desportiva azul quando saiu do aeroporto de Westchester County, várias semanas antes.

O pedaço de tecido iria ser submetido a testes e comparado com camisas semelhantes de Paul Stuart, o camiseiro de Madison Avenue onde Spencer fazia as suas compras. Os mergulhadores iriam voltar ao local e mergulhar para procurar o corpo naquela zona restrita.

Telefonei para o apartamento de Lynn e tornou-se-me imediatamente evidente que a tinha acordado. A voz soou ensonada e aborrecida, mas mudou rapidamente quando percebeu que era eu. Faleido boletim noticioso e ela, durante um bom momento, não disse nada. Depois murmurou:

- Carley, eu estava tão certa de que eles iam encontrá-lo vivo, que tudo isto era um pesadelo e eu iria acordar e descobrir que ele ainda estava aqui, comigo...

- Estás sozinha? - perguntei.

- Claro que sim - disse ela, indignada. - Que tipo de pessoa achas tu que...

Interrompi-a:

- Lynn, o que eu quis dizer foi se tens aí a empregada ou alguém para te ajudar enquanto estás em recuperação. - Desta vez, foi a minha voz que soou ríspida. Por que motivo pensaria ela que eu estava a insinuar que ela estava com algum tipo, por amor de Deus?

- Carley, desculpa - disse ela. - A minha empregada costuma estar de folga ao domingo, mas hoje vem um pouco mais tarde.

- Queres companhia?

- Sim.

Combinámos que eu apareceria por volta das onze. Estava de saída quando Casey telefonou:

- Ouviste as últimas sobre o Spencer, Carley?

- Ouvi, sim.

- Agora, deve acabar a especulação sobre ele estar vivo.

- Acho que sim. - O rosto de Nicholas Spencer encheu-me o pensamento. Porque teria eu sentido a esperança de que ele iria regressar subitamente e esclarecer tudo, dizer que tudo não passara de um terrível engano? - Vou sair para ver a Lynn.

- Também estou com pressa. Não te empato mais. Falo contigo - mais logo, Carley.

Acho que ia à espera de me sentar calmamente com Lynn, mas não foi isso que aconteceu. Quando lá cheguei, encontrei Charles lingford a seu lado e mais dois homens, que eram advogados.

Lynn trazia umas calças bege, confortáveis mas de corte impecável, e uma blusa em tons pastel. O cabelo louro estava escovado de modo a permanecer afastado do rosto. A maquilhagem era leve, mas cuidada. As ligaduras que lhe envolviam as mãos estavam reduzidas a um único pedaço de gaze preso às palmas com um adesivo.

Beijei-a na face, um tanto incomodada, recebi um cumprimento frio de Wallingford e, quando me apresentei, recebi um gesto educado dos advogados, ambos com ar sério e vestidos de forma conservadora.

- Carley - disse Lynn, em tom de quem pedia desculpa -, estamos a preparar a declaração que vamos fazer à comunicação social. Não vai demorar muito. Temos a certeza de que vamos receber muitas chamadas.

Charles Wallingford e eu trocámos olhares. Podia ler-Lhe o pensamento. Que ia eu ficar a fazer ali, a observá-los, enquanto preparavam uma declaração à comunicação social? Eu era da comunicação social.

- Lynn - protestei -, eu não devia estar aqui. Volto noutra altura.

- Carley, eu quero-te aqui. - Por um momento, a compostura de rainha do gelo de Lynn quebrou-se. - Apesar do que possa ter acontecido e que o Nick não tenha conseguido enfrentar, tenho a certeza de que, quando arrancou com a empresa, acreditava na vacina e acreditava que estava a dar às pessoas uma oportunidade de partilharem o seu êxito financeiro. Quero que as pessoas compreendam que eu não fiz parte de esquema nenhum para defraudar quem quer que seja. Mas também quero que as pessoas compreendam que, pelo menos no início, o Nick não planeava defraudar ninguém. Isto não tem nada a ver com imagem pública. Confia em mim.

Continuava a não me agradar fazer parte desta sessão de planeamento mas, com relutância, sentei-me numa cadeira próxima da janela e observei a sala. As paredes eram de um amarelo-sol, o tecto e as cornijas eram brancos. Os dois sofás tinham uma cobertura de tecido amarelo, verde e branco. Condiziam com as cadeiras de assentos bordados, colocadas frente a frente, diante da lareira. A escrivaninha inglesa e as mesas de apoio eram antiguidades cuidadosamente tratadas. As janelas à esquerda ofereciam uma visão do Central Park.

Estava um dia quente e as árvores começavam a florir. O parque estava cheio de gente, que passeava e faziajogging, ou estava simplesmente sentada nos bancos, a gozar o dia.

Percebi que a sala fora decorada para dar uma sensação de comunhão com o exterior. Era vibrante e primaveril e, de certo modo menos formal do que eu esperava de Lynn. De facto, o apartamento não era nada como eu pensava, no sentido em que, embora fosse inegavelmente espaçoso, se assemelhava mais a uma confortável casa de família do que à de um presidente e director-geral de uma empresa.

Lembrei-me então que Lynn dissera que o apartamento fora comprado por Nick e pela sua primeira mulher, e que ela quisera vendê-lo e mudar-se. Lynn e Nick tinham estado casados apenas durante quatro anos. Seria possível que Lynn não o tivesse redecorado a seu gosto porque não era ali que queria ficar? Apostava que essa era a resposta.

Alguns instantes depois, a campainha tocou. Vi a empregada passar pela sala, para ir atender, mas acho que Lynn nem sequer tinha ouvido. Ela e Charles Wallingford estavam muito ocupados a comparar apontamentos, e ela começou a ler alto: "Pelo que sabemos, parece que o pedaço de tecido encontrado esta manhã, a duas milhas de Puerto Rico, pertencia à camisa que o meu marido usava quando saiu do aeroporto de Westchester. Nestas três semanas agarrei-me à esperança de que ele tivesse sobrevivido ao acidente e regressasse para se defender das acusações que lhe têm vindo a ser feitas. Acreditava apaixonadamente que estava prestes a descobrir uma vacina que preveniria e, ao mesmo tempo, curaria o cancro. Tenho a certeza de que qualquer dinheiro que ele tenha tirado, mesmo sem autorização, teria sido usado para esse fim, e apenas para esse fim. "

- Lynn, desculpa, mas tenho que dizer-te que a resposta a essa declaração vai ser "Com quem pensa que está a gozar? ".

O tom de voz era suave, mas o rosto de Lynn inflamou-se e ela largou o papel que tinha na mão.

- Adrian! - disse ela.

Para quem estava dentro do mundo financeiro, o recém-chegado dispensava apresentações, como os apresentadores de televisão cos tumam dizer quando anunciam os seus convidados célebres. Reconheci-o imediatamente. Era Adrian Nagel Garner, dono da Garner Pharmaceutical Company e filantropo conhecido em todo o mundo. Não era muito alto, estava na casa dos cinquenta, tinha cabelo grisalho e traços simples: o tipo de homem modesto, que provavelmente não notaríamos numa multidão. Ninguém sabia o valor da sua fortuna. Ele não permitia qualquer publicidade pessoal mas, claro, as notícias vão correndo. As pessoas falavam em tom de reverência sobre a sua casa em Connecticut, que possuía uma biblioteca espectacular, um teatro com oitenta lugares, um estúdio de gravação e um bar, para ficarmos por aqui. Divorciado duas vezes e com filhos crescidos, dizia- se que estava romanticamente ligado a uma britânica de sangue azul.

Era a sua empresa que pretendia pagar mil milhões de dólares pelo direito de distribuição da vacina da Gen-stone, se esta viesse a ser aprovada. Soube que um dos seus executivos fora eleito para o Conselho de Administração da Gen-stone, mas não se evidenciara na reunião de accionistas. Estou certa de que a última coisa que Adrian Nagel Garner queria era que a sua empresa ficasse permanentemente ligada, na mente do público, à malograda Gen- stone. Para dizer a verdade, fiquei chocada ao vê-lo na sala de Lynn.

Era evidente que a visita dele era uma surpresa total, também para ela. Não sabia bem o que havia de esperar.

- Adrian, que boa surpresa! - disse ela. Quase gaguejava.

- Vou almoçar com os Parkinson, que vivem aqui em cima. Quando percebi que era o prédio onde mora, não pude deixar de entrar. Ouvi as notícias, esta manhã.

Olhou para Wallingford:

- Charles! - Havia uma frieza inequívoca na sua saudação.

Cumprimentou os advogados com um aceno de cabeça e depois olhou para mim.

- Adrian, esta é a minha meia-irmã, Carley DeCarlo – disse Lynn. Ainda parecia bastante perturbada. - A Carley está a trabalhar num artigo sobre o Nick, para a Wal Street.

Permaneceu em silêncio e olhou para mim com ar inquiridor. Fiquei zangada comigo mesma por não ter saído dali no momento em que vi Wallingford e os advogados.

- Vim ver a Lynn pela mesma razão que o senhor, Sr. Garner - disse eu, secamente -, para lhe dizer que lamento imenso que pareça definitivo que o Nick não saiu com vida do acidente.

- Então, não estamos de acordo, Menina DeCarlo – disse Adrian Garner bruscamente. - Acho que não tem nada de definitivo. Para cada pessoa que acredita que este pedaço de tecido de uma camisa é prova da morte dele há dez que dizem que o Nick o deixou na zona do acidente, na esperança de ele vir a ser encontrado. Os accionistas e os empregados já estão suficientemente zangados e amargos, e acho que concordarão que a Lynn já foi suficientemente vitimizada por essa fúria. Até o corpo de Nick Spencer ser encontrado, ela não deveria dizer nada que pudesse ser interpretado como uma tentativa para convencer as pessoas desse facto. Creio que a reacÇão digna e adequada seria dizer simplesmente: "Não sei o que pensar".

Virou-se para ela:

- Lynn, tem que fazer o que achar certo, claro. Desejo que tudo corra pelo melhor e quis dizer-lho pessoalmente.

Cumprimentando-nos com um aceno de cabeça, saiu da sala um dos homens mais ricos e poderosos do país.

Wallingford esperou até ouvirmos o clique do fecho da porta da casa e depois disse, acaloradamente:

- Acho o Adrian Garner um enfatuado de primeira.

- Mas ele pode estar certo - disse Lynn. - De facto, Charles, acho que está.

Wallingford encolheu os ombros.

- Nada "está certo" nesta trapalhada toda - disse ele, e depois pareceu arrependido. - Lynn, desculpe, mas sabe o que quero dizer.

- Sim, sei.

- O pior é que eu gostava do Nick - disse Wallingford. - Trabalhei com ele durante oito anos e considerei isso um privilégio. Continuo sem conseguir acreditar!

Abanou a cabeça e olhou para os advogados. Depois, encolheu os ombros:

- Lynn, mantê-la-ei informada de tudo o que soubermos. Lynn levantou-se e, pelo esgar imediato que fez inconscientemente, era evidente que pôr-se de pé Lhe causava dores.

Era óbvio que estava exausta, mas pediu-me que Ficasse mais um pouco e tomasse um BloodMary com ela. Voltámos à nossa ténue relação familiar como assunto de conversa. Disse-Lhe que tinha falado com o pai dela na terça-feira, depois de ter regressado do hospital, para lhe dizer como ela estava, e que tinha telefonado à minha mãe na quarta-feira, para lhe falar do meu novo emprego.

- Falei com o pai no dia em que fui para o hospital e voltei a falar com ele na manhã seguinte - disse Lynn. - Depois, disse-lhe que ia deixar o telefone desligado para conseguir descansar e que Lhe telefonaria no fim-de-semana. Vou fazê-lo esta tarde, depois de descansar um pouco.

Levantei-me e pousei o copo vazio:

- Depois falamos.

O dia estava tão bonito que decidi percorrer a pé os três quilómetros até casa. Caminhar ajuda a esclarecer as ideias e pareceu-me que tinha muito para esclarecer. Os últimos dois minutos com Lynn requeriam especial atenção. Quando fui visitá-la ao hospital, da segunda vez, ela estava ao telefone. Quando desligou, disse: "Também te adoro". Depois, viu-me e disse que tinha estado a falar com o pai.

Estaria enganada sobre o dia em que falara com ele? Ou não era ele que estava do outro lado da linha? Podia ser uma amiga. Também digo "Adoro-te" quando falo com algumas das minhas. Mas há muitas maneiras de dizer "Também te adoro", e a voz de Lynn soara bastante quente, sexy.

Fiquei chocada com a hipótese que me passou pela cabeça: teria a Sr a Nicholas Spencer estado em amena conversa com o seu marido desaparecido?

 

                       CAPÍTULO DEZANOVE

Carley DeCarlo. Tinha que descobrir onde ela vivia. Era meia-irmã de Lynn Spencer, mas não sabia mais nada sobre ela. Mesmo assim, Ned parecia conhecer o nome de algum lado, parecia-lhe que Annie falara nela. Mas porquê? E como poderia tê-la conhecido? Talvez tivesse sido doente do hospital. Era possível, decidiu.

Agora que tinha um plano e que limpara e carregara a arma, Ned começava a sentir-se mais calmo. A Sr. a Morgan seria a primeira. Seria fácil: trancava sempre a porta, mas ele iria lá acima, dizer que tinha um presente para ela. Iria fazer isso em breve. Antes de lhe dar um tiro, queria dizer-lhe cara a cara que ela não devia ter-lhe mentido quando disse que precisava do apartamento para o filho.

Iria até Greenwood Lake enquanto ainda estivesse escuro. Faria ùma visita à Sr. a Schafley e aos Harnik. Seria mais fácil do que matar esquilos, porque estaria toda a gente deitada. Os Harnik deixavam sempre a janela do quarto aberta. Ele podia empurrá-la para cima, para a abrir um pouco mais, e pendurar-se no parapeito, antes de eles conseguirem sequer perceber o que se passava. E não teria que entrar em casa da Sr. a Schafley. Bastava chegar à janela do quarto e apontar-lhe uma lanterna à cara. Quando ela acordasse, viraria a luz para o seu próprio rosto, para que ela pudesse vê-lo e saber o que ele ia fazer. Depois, dava-lhe um tiro.

Tinha a certeza de que, quando a polícia começasse a investigar, ia à procura dele. Provavelmente, a Sr. a Schafley tinha dito a toda a gente de Greenwood Lake que ele queria que ela lhe alugasse um quarto. " Já viram o descaramento dele? " Era o que devia ter dito. Era assim que começava sempre que se queixava de alguém. " Já viu o descaramento dele? ", perguntara certa vez a Annie, quando o miúdo que lhe cortava o relvado tentara aumentar o preço. " Já viu o descaramento dele? ", quando o rapaz que distribuía os jornais lhe perguntou se ela se esquecera de dar-lhe uma gorjeta pelo Natal.

Pensaria nisso no segundo antes de ele a matar? Já viram o descaramento dele, matar-me?

Sabia onde Lynn Spencer morava. Mas teria de descobrir onde vivia a irmã dela. Carley DeCarlo. Por que motivo esse nome lhe soava tão familiar? Teria ouvido Annie falar nela? Ou teria lido alguma coisa sobre ela?

- É isso - murmurou Ned. - Carley DeCarlo tinha uma coluna naquela parte do jornal de domingo que a Annie adorava ler!

Hoje era domingo.

Foi até ao quarto. A colcha de algodão de que Annie tanto gostava continuava em cima da cama. Ele não lhe tocara. Conseguia vê-la naquela última manhã, puxando a colcha com as mãos, para que ambos os lados ficassem exactamente do mesmo tamanho, e depois metendo o que sobrava em cima debaixo das almofadas.

Viu o suplemento de domingo que Annie deixara dobrado em cima da mesa-de- cabeceira. Pegou nele e abriu-o. Folheou-o lentamente. Depois, viu o nome e a fotografia: Carley DeCarlo. Escrevia uma coluna de aconselhamento sobre dinheiros. Uma vez, Annie escrevera-lhe a fazer uma pergunta e, durante muito tempo, procurara a resposta na coluna. Carley DeCarlo nunca lhe respondera, mas ela continuava a gostar da coluna e às vezes lia-a em voz alta para ele ouvir. "Ned, ela concorda comigo. Diz que desperdiças muito dinheiro se usares o cartão de crédito e pagares apenas o mínimo todos os meses. "

O ano passado, Annie zangara-se com ele por ele ter comprado um novo conjunto de ferramentas. Comprara um carro velho e queria arranjá-lo. Dissera- Lhe que não importava que as ferramentas custassem muito dinheiro, ia pagá-las a pouco e pouco. Então, Annie lera-lhe aquela coluna.

Ned olhou para a fotografia de Carley DeCarlo. Um pensamento assaltou-o. Gostaria de incomodá-la e deixá-la nervosa. Desde Fevereiro, altura em que descobrira que a casa de Greenwood Lake já não estava lá, até ao dia em que o camião lhe batera no carro, Annie vivera preocupada e nervosa. Também chorava muito.

- Se a vacina não resultar, não temos nada, Ned, nada - repetia ela vezes sem conta.

Nas semanas antes de morrer, Annie sofrera muito. Ned queria que Carley DeCarlo também sofresse, ficasse preocupada, perturbada. E sabia exactamente como consegui-lo. Ia mandar-Lhe um aviso por e-mail: "Prepara-te para o Dia do Juízo Final. "

Tinha de sair de casa. Ia apanhar o autocarro até ao centro da cidade, decidiu, e passar pelo apartamento de Lynn Spencer, aquele todo elegante, em Fifth Avenue. A simples ideia de que ela pudesse estar lá dentro fê-lo sentir quase como se já a tivesse diante dele.

Uma hora depois, Ned estava diante da entrada do bloco de apartamentos onde ficava o de Lym. Estava ali havia menos de um minuto quando o porteiro abriu a porta e Carley DeCarlo saiu. A princípio pensou que estava a sonhar, como sonhara com o homem a sair da casa de Bedford antes de ele ter ateado o fogo.

Mesmo assim, começou a segui-la. Ela andou durante bastante tempo, até 37th Street, e depois virou para leste. Finalmente, subiu as escadas de uma das casas em banda e teve a certeza de que ela morava ali.

Agora, sei onde ela mora, pensou Ned, e quando eu decidir que chegou a hora será exactamente como os Harnik e a Sr. Schafley. Matá-la não vai ser mais difícil do que matar esquilos.

 

                   CAPÍTULO VINTE

- Foi assustador o sentido de oportunidade de Adrian Garner, ontem - disse eu a Don e a Ken, na manhã seguinte. Chegámos cedo, e durante um quarto de hora reunimo-nos no gabinete de Ken, com a nossa segunda chávena de café.

A previsão de Garner, de que as pessoas concluiriam imediatamente que o pedaço de tecido queimado e manchado de sangue fazia parte do elaborado plano de fuga de Spencer, era uma realidade. Os tablóides estavam numa grande azáfama com a história.

A fotografia de Lynn estava na primeira página do New York Post e na página três do The Daily News. Pareciam ter sido tiradas à porta do apartamento, na noite anterior. Em ambas, conseguia parecer simultaneamente belíssima e vulnerável. Tinha lágrimas nos olhos. A mão esquerda estava aberta, mostrando o curativo na palma queimada. A outra mão agarrava com força o braço da empregada.

O título do Post era ESPOSA INTERROGA-SE: MARIDO AFOGADO OU NÃO? enquanto o The News preferia ESPOSA LAVADA EM LÁGRIMAS; "NÃO SEI O QUE PENSAR".

Havia pouco tempo, telefonara para o hospital e ficara a saber que o Dr. Broderick continuava em estado crítico. Decidi dizer a Ken e a Don e dar-lhes também conta das minhas suspeitas.

- Acha que o acidente de Broderick pode ter alguma coisa a ver com o facto de ter falado com ele sobre os registos? - perguntou Ken. Conhecia-o havia poucos dias, mas já me apercebera de que quando Ken estava a pesar os prós e os contras de uma situação tirava os óculos e balançava-os na mão direita. Era isso que estava a fazer agora. A barba por fazer podia querer dizer que ele decidira deixá-la crescer, ou simplesmente que não tivera muito tempo de manhã. Vestia uma shirt vermelha mas, não sei porquê, quando olhei para ele imaginei-o de bata branca, com um bloco de receitas a sair-lhe do bolso e o estetoscópio pendurado ao pescoço. Seja o que for que traga vestido, e com ou sem a barba feita, Ken tem qualquer coisa que faz lembrar um médico.

- Pode ter razão - continuou. - Todos sabemos que o negócio farmacêutico é extremamente competitivo. A primeira empresa a conseguir registar a patente de uma droga capaz de prevenir ou de curar o cancro valerá muitos milhões.

- Ken, porque se daria alguém ao trabalho de roubar os antigos registos de um tipo que nem sequer era biólogo? - objectou Dan.

- Nicholas Spencer sempre disse que as últimas pesquisas do pai eram a base da vacina que ele estava a desenvolver. Talvez alguém tenha pensado que pudesse haver qualquer coisa importante nos primeiros registos - teorizou Ken.

Para mim, fazia sentido.

- O Dr. Broderick era o elo directo entre os registos e o homem que os levou - disse eu. - Seriam esses registos suficientemente importantes para que alguém preferisse matá-lo a correr o risco de que ele pudesse identificar o homem de cabelo castanho avermelhado? Isso não poderá sugerir que, seja quem for esse homem, é possível descobri-lo? Até pode ser da Gen-stone ou, pelo menos, conhecer alguém na Gen-stone que fosse suficientemente próximo de Nick Spencer para saber de Broderick e dos registos.

- Podemos estar a escamotear a hipótese de o próprio Nick Spencer ter mandado alguém buscar esses registos e depois se ter mostrado surpreendido por eles terem desaparecido - disse Don, devagar.

Olhei para ele.

- Porque faria ele isso? - perguntei.

- Carley, o Spencer é, ou era, um escroque com conhecimentos de microbiologia suficientes para arranjar financiamentos, para fazer presidente da direcção um tipo como o Wallingford, que até conseguiu mandar a empresa da família pelo cano, para o deixar encher um conselho de administração de tipos que não seriam capazes de distinguir a direita da esquerda, e depois afirmar que está na iminência de provar que tem a cura definitiva para o cancro. Safou-se durante oito anos. Vivia de forma relativamente modesta para um tipo na posição dele. Sabe porquê? Porque ele sabia que não iria dar em nada e que estava a desviar uma fortuna para a sua reforma, quando a sua pirâmide especulativa ruísse. Mas, para o Spencer, seria uma mais-valia criar a ilusão de que alguém tinha roubado dados importantes e que ele era vítima de um esquema qualquer. Acho que essa história de ele dizer que não sabia que alguém tinha ido buscar os registos foi montada a pensar em nós, que iríamos escrever sobre ele.

- E deixar o Dr. Broderick à morte faz parte desse cenário? perguntei.

- Aposto que vamos chegar à conclusão de que se tratou apenas de uma coincidência. Tenho a certeza de que todas as estações de serviço e todas as oficinas dessa área de Connecticut estão alerta, e que foi pedido que comunicassem à polícia a presença de qualquer veículo suspeito acidentado. Hão-de encontrar um tipo qualquer, que ia a caminho de casa depois de ter passado a noite nos copos, ou algum miúdo com o pé pesado.

- Isso pode acontecer se quem atropelou o Dr. Broderick for dessa zona - disse eu. - Mas, não sei porquê, acho que não.

Levantei-me:

- E agora vou ver se consigo convencer a secretária do Nick Spencer a falar comigo, e depois vou visitar a ala para doentes terminais onde o Spencer trabalhou como voluntário.

Disseram-me que Vivian Powers estava outra vez de folga. Telefonei-lhe para casa, e quando ela ouviu quem eu era, disse Não falar querer sobre Nicholas Spencer e desligou. Restava-me apenas uma solução: tocar-lhe à campainha.

Antes de sair do meu gabinete, verifiquei o meu e-mail.

pelo menos uma centena de perguntas para a minha coluna, de rotina, mas havia duas mensagens que me sobressaltaram. A primeira dizia: Prepara-te para o Dia do Juízo Final".

Não é uma ameaça, disse a mim própria. Provavelmente, é de algum fanático religioso, uma mensagem qualquer a antecipar o fim do mundo. Apaguei-a, talvez porque a outra mensagem me deixou com o coração no estômago: "Quem era o Homem na mansão de Lynn Spencer um minuto antes de ela ter começado a arder".

Quem poderia ter visto alguém a sair da casa antes de o fogo ter deflagrado? Não deveria ser a pessoa que o ateou? E, se assim era, porque estaria a escrever-me, a mim? Nesse momento, veio-me à ideia uma coisa: Os caseiros não esperavam Lynn naquela noite, mas teriam visto outra pessoa a sair da casa? E, se fosse esse o caso, porque não tinham dito nada? Só me ocorria um motivo: talvez estivessem no país ilegalmente e não quisessem ser expulsos.

Tinha agora três sítios onde ir, em Wechester County.

Pensei em começar pela casa de Vivian e Joel Powers, em Briarcliff Manor, uma das cidadezinhas que rodeia Pleasantville. Servindo-me do meu mapa de estradas, encontrei a casa, um belo edifício de dois andares, em pedra, que devia ter mais de cem anos. Havia uma placa de uma imobiliária no relvado. A casa estava à venda.

Mantendo mentalmente os dedos cruzados, como quando cheguei à porta do Dr. Broderick sem avisar, toquei à campainha e esperei. Havia um pequeno óculo na pesada porta de madeira, e senti que alguém me observava. Depois, a porta abriu-se, ainda com a corrente de segurança posta.

A mulher que veio abrir era bonita, tinha o cabelo escuro e pouco menos de trinta anos. Não usava maquilhagem e também não precisava. Os olhos castanhos eram realçados por longas pestanas. As suas maçãs do rosto, o nariz e a boca perfeitos fizeram-me pensar se ela não seria uma ex-modelo. Não havia dúvida de que tinha atributos para isso.

- O meu nome é Carley DeCarlo - disse eu. - Estou a falar com Vivian Powers?

- Sim, e já lhe disse que não quero ser entrevistada - retorquiu. Estava certa de que ela ia fechar a porta, por isso apressei-me a dizer:

- Estou a tentar escrever um artigo justo e equilibrado sobre Nicholas Spencer. Não aceito o facto de que não haja mais qualquer coisa envolvida no seu desaparecimento, para além do que tem vindo a público. Quando falámos, no sábado, fIquei com a sensação de que era uma defensora dele.

- E sou. Adeus, Menina DeCarlo. Por favor, não volte. Estava a arriscar- me, mas mergulhei de cabeça:

- Menina Powers, na sexta-feira fui até Caspien, a cidade onde Nick Spencer cresceu. Falei com um tal Dr. Broderick, que comprou a casa dos Spencer e que tinha consigo alguns dos registos do Dr. Spencer. Neste momento, está no hospital, vítima de um atropelamento, e provavelmente não vai conseguir sobreviver. Acho que o facto de ele ter falado comigo sobre as investigações do Dr. Spencer pode ter qualquer coisa a ver com o dito acidente.

Sustive a respiração, e nesse momento vi um olhar surpreendido assomar-lhe aos olhos. Pouco depois, a mão retirava a corrente de segurança.

- Entre - disse ela.

O interior da casa estava completamente desarrumado. Carpetes enroladas, pilhas de caixas cuidadosamente marcadas de forma a comunicar o seu conteúdo, mesas e paredes vazias atestavam o facto de Vivian Powers estar na iminência de se mudar. Reparei que usava aliança e pensei onde estaria o marido.

Conduziu-me a um pequeno alpendre batido pelo sol e que estava ainda intacto, com candeeiros nas mesas e um pequeno tapete sobre as tábuas do soalho. O mobiliário era de verga, com almofadas e encostos de chintcolorido. Ela sentou-se no canapé, o que me deixou a cadeira a condizer. Estava contente por ter insistido e forçado a minha entrada. Dizem os entendidos das agências imobiliárias que uma casa é muito mais agradável à vista quando tem pessoas a viver.

O que me fez pensar qual seria a pressa dela em sair. Decidi meter- me no assunto, para ver há quanto tempo a casa estava à venda. Apostei comigo mesma que não estava antes de o avião se ter despenhado.

- Este tem sido o meu refúgio desde que a mudança começou.

- Quando se vai embora? - perguntei.

- Sexta-feira.

- Vai fIcar por aqui? - perguntei, tentando não parecer demasiado interessada no assunto.

- Não. Os meus pais vivem em Boston. Vou ficar a viver com eles até encontrar um sítio para mim. Vou deixar a mobília à guarda de um armazém.

Começava a acreditar que Joel Powers não fazia parte dos planos da esposa para o futuro.

- Posso fazer-lhe umas perguntas?

- Não a teria deixado entrar se não tivesse decidido deixá-la fazer-me algumas perguntas - disse ela. - Mas, primeiro, tenho eu algumas para Lhe fazer.

-Eu respondo, se souber.

- O que a levou a ir ter com o Dr. Broderick?

- Queria apenas saber alguma coisa sobre a casa onde Nicholas Spencer cresceu e recolher informações que o Dr. Broderick pudesse ter sobre o laboratório do Dr. Spencer, que funcionava nessa casa.

- Sabia que ele tinha estado na posse dos primeiros registos do Dr. Spencer?

- Não. Foi o Dr. Broderick que me deu essa informação. Ficou obviamente perturbado quando percebeu que não foi Nicholas Spencer quem mandou buscar os registos. Ele disse-lhe que esses registos tinham desaparecido?

- Sim, disse. - Hesitou. - Aconteceu qualquer coisa naquele jantar da entrega do prémio, em Fevereiro, relacionada com uma carta que Nick recebeu perto do Dia de Acção de Graças. A mulher que a mandou dizia-lhe que queria falar com ele sobre um segredo que tinha partilhado com o pai dele, e declarava que este Lhe tinha curado a filha, que sofria de esclerose múltipla. Até escreveu na carta o número de telefone. Na altura, Nick deu-me a carta para eu Lhe dar a resposta habitual. Disse- me: "Cada um mais doido do que o outro. É completamente impossívell"

- E foi dada resposta à carta?

- Era dada resposta a todas as cartas. As pessoas escreviam constantemente, a dizer que queriam assinar qualquer coisa que lhes desse hipótese de ter acesso à vacina contra o cancro em que ele estava a trabalhar. Às vezes, as pessoas escreviam a dizer que tinham ficado curadas de um mal qualquer e que queriam que ele testasse os remédios caseiros que utilizavam e que os distribuísse no mercado. Tínhamos uns quantos modelos de resposta.

- Ficavam com cópias dessas cartas?

- Não, tínhamos apenas uma lista de nomes das pessoas a quem as enviávamos. Nenhum de nós se lembrava do nome daquela mulher. Há dois funcionários que tratam desse tipo de correio. Mas aconteceu qualquer coisa no jantar da entrega do prémio. Na manhã seguinte, Nick estava muito agitado e disse que tinha que regressar a Caspien imediatamente. Disse que tinha ficado a saber uma coisa terrivelmente importante. Disse que havia qualquer coisa que lhe recomendava que levasse a sério a carta da mulher que escrevera a dizer que o pai dele lhe curara a filha.

- E então foi a correr a Caspien, buscar os primeiros registos do pai, e descobriu que eles tinham desaparecido. Isto aconteceu por volta do Dia de Acção de Graças, mais ou menos na altura em que a carta chegou ao escritório - disse eu.

- Sim.

- Deixe-me ver se esclareço uma coisa, Vivian. Acha que há uma ligação entre essa carta e o facto de os primeiros registos do pai de Nick terem sido levados, alguns dias depois?

- Tenho a certeza que sim, e Nick ficou diferente depois desse dia.

- Ele chegou a dizer com quem foi falar depois de ter saído da casa do Dr. Broderick?

- Não.

- Pode verificar na agenda dele? O jantar de entrega do prémio foi a 15 de Fevereiro, por isso deve ter sido a 16. Talvez ele tenha anotado um nome ou um número.

Ela abanou a cabeça:

- Não anotou nada, nessa manhã, nem voltou a escrever nada na agenda desde esse dia. Quero dizer, nada sobre encontros fora do escritório. - E se precisasse de falar com ele, o que fazia? - Telefonava-lhe para o telemóvel. Mas deixe-me corrigir. Havi alguns eventos já marcados, como seminários médicos, jantares, reuniões da Direcção, esse tipo de coisas. Mas Nick esteve quase sempre fora do escritório naquelas últimas quatro ou cinco semanas. Quando os representantes do Ministério Público vieram ao escritório, disseram-nos que tinham ouvido dizer que ele viajara por duas vezes para a Europa. Mas não usou o avião da empresa e ninguém no escritório sabia dos planos dele, nem mesmo eu.

- As autoridades parecem pensar que ou ele estava a preparar-se para uma cirurgia plástica ao rosto, ou estava a preparar a futura resi dência, fora daqui. Qual é a sua opinião, Vivian?

- Acho que havia qualquer coisa de profundamente errado, e ele sabia-o. Acho que tinha medo que o telefone estivesse sob escuta. Eu estava presente quando ele telefonou ao Dr. Broderick e, pensando na conversa entre eles, pergunto-me por que razão ele não lhe disse que queria os registos do pai, e pronto. Tudo o que fez foi perguntar se podia passar lá por casa.

Tornou-se óbvio para mim que Vivian Powers queria acreditar desesperadamente que Nick Spencer fora vítima de uma conspiração.

- Vivian - perguntei -, acha que ele esperava sinceramente que a vacina resultasse? Ou sempre soube que ela iria fracassar?

- Não. O que o movia era a necessidade que sentia de encontrar uma cura para o cancro. Perdeu a mulher e a mãe por causa dessa doença terrível. De facto, conheci-o numa ala para doentes terminais há dois anos, quando o meu marido lá esteve internado. Nick era voluntário.

- Conheceu Nick numa ala para doentes terminais?

- Sim. St. Ann's. Foi uns dias antes do Joel ter morrido. Eu tinha deixado o emprego para tratar dele. Era secretária do presidente de uma empresa de corretores. Nick entrou no quarto do Joel e falou connosco. Depois, uma semana a seguir à morte do Joel, recebi um telefonema dele. Disse-me que, se quisesse trabalhar para a Gen-stone, fosse ter com ele. Havia de encontrar um lugar para mim. Seis meses mais tarde, aceitei a oferta. Nunca esperei ser contratada para trabalhar pessoalmente com ele, mas cheguei na altura certa. A secretária dele estava grávida e tencionava ficar em casa durante uns anos, por isso fiquei com o emprego. Caiu do céu.

- Como é que ele se dava com as outras pessoas, no escritório? Ela sorriu:

- Bem. Gostava muito de Charles Wallingford. Às vezes, dizia umas piadas sobre ele. Dizia que se voltasse a ouvir a história da sua árvore genealógica, mandava cortá-la. Mas acho que não gostava de Adrian Garner. Dizia que era insuportável, mas valia a pena suportá-lo por causa de todo o dinheiro que Garner podia pôr em cima da mesa.

Nessa altura, voltei a ouvir o tom apaixonado que notara da primeira vez que falara com ela, no sábado.

- Nick Spencer era um homem decidido. Teria engraxado as botas de Garner, se achasse que isso era necessário para conseguir que a sua empresa comercializasse a vacina e a tornasse acessível ao mundo inteiro.

- Mas, e se tiver percebido que a vacina não iria resultar, e se tiver tirado dinheiro que não conseguiu depois repor?

- Então, admito que tenha fugido. Estava nervoso e preocupado. Também me falou de uma coisa que aconteceu apenas uma semana antes do desastre de avião, uma coisa que podia ter levado a um acidente fatal. Quando regressava a Bedford, vindo de Nova Iorque, já era tarde, o acelerador do carro ficou preso.

- Contou isso a mais alguém?

- Não. Ele tinha uma explicação para o sucedido. Disse que teve sorte, porque havia muito pouco trânsito e ele conseguiu manobrar o carro até desligar o motor e o carro parar por si. Era um carro velho, e ele adorava- o, mas disse que era evidente que estava na altura de se livrar dele. - Hesitou. - Carley, agora pergunto-me se será possível alguém ter mexido no acelerador. O incidente com o carro aconteceu apenas uma semana antes de o avião se ter despenhado. Tentei manter uma expressão neutra e limitei-me a acenar com a cabeça, pensativa. Não queria que ela visse que eu concordava com ela em absoluto. Precisava de descobrir ainda outra coisa:

- O que sabe da relação dele com Lynn?

- Nada. Embora parecesse dado a grandes multidões, era pessoa muito reservada.

Vi uma dor genuína estampar-se-Lhe nos olhos.

- Gostava muito dele, não gostava?

Ela respondeu com um aceno de cabeça:

- Quem quer que tenha tido oportunidade de estar com Spencer regularmente gostava dele. Ele era muito especial. Era a alma da empresa. Que agora vai à falência. As pessoas estão a ser despedidas ou a despedir-se, e todos o culpam e o odeiam. Mas eu acredito que ele também pode ser uma vítima.

Passados alguns minutos, saí, depois de ter feito Vivian prometer que iria manter-se em contacto comigo. Ela ficou à porta, enquanto eu me afastava, e acenou-me quando entrei no carro.

Tinha a cabeça a ferver. Estava certa de que havia uma relação entre o atropelamento do Dr. Broderick, o acelerador de Nick e o acidente de avião. Três acidentes? Nem pensar! Depois, permiti a mim própria fazer a pergunta que sempre estivera latente na minha cabeça: teria Nicholas Spencer sido assassinado?

Mas enquanto falava com os caseiros da propriedade de Bedford desenrolou-se outro cenário, e este fez-me mudar de ideias por completo.

 

                       CAPÍTULO VINTE E UM

"A noite passada sonhei que regressava a Manderley". Não conseguia deixar de pensar nas primeiras linhas do romance Rebecca, de Daphne du Maurier, enquanto saía da estrada em Bedford, parava diante do portão da propriedade dos Spencer e anunciava a minha presença.

Pela segunda vez no mesmo dia, estava a fazer uma visita surpresa. Quando uma voz com sotaque hispânico perguntou delicadamente quem era, respondi que era a meia-irmã da Sr. a Spencer. Seguiu-se uma pequena pausa e depois foi-me dito que contornasse o lado do incêndio e estacionasse à direita.

Segui devagar, para ter a oportunidade de admirar os belos espaços que rodeavam o edifício em ruínas. Havia uma piscina nas traseiras e uma casa de apoio num terraço, mais acima. À esquerda via-se o que parecia ser um jardim inglês. Mas, ainda que tentasse, não conseguia visualizar Lynn de joelhos, a cavar a terra. Pensei se teriam sido Nick e a primeira mulher os responsáveis, ou talvez um dono anterior

tivesse realizado essa tarefa.

A casa onde Manuel e Rosa Gomez viviam era uma casa rústica e singular, feita de pedra, com um telhado bastante inclinado, revestido a telha. Uma barreira de arbustos de folhagem persistente interpunha-se entre a casa rústica e a mansão, dando privacidade a ambos os espaços. Era fácil perceber por que razão os caseiros não tinham dado pelo regresso de Lynn, a semana passada. Podia perfeitamente ter chegado de noite, introduzido o código para destrancar o portão e metido o carro na garagem, sem que eles tivessem dado por isso.

Pareceu-me bastante estranho que não houvesse câmaras de segurança no local, mas sabia que a casa tinha alarme.

Estacionei, fui até ao alpendre da entrada e toquei à campainha.

Manuel Gomez veio atender e convidou-me a entrar. Era um homem vigoroso, com cerca de um metro e setenta de altura, cabelo escuro e um rosto magro, inteligente. Entrei para o vestíbulo e agradeci-lhe que estivesse a receber-me apesar de eu não ter feito qualquer aviso prévio.

- Por pouco não nos apanhava em casa - disse ele, constrangido. - Tal como a sua irmã nos pediu, vamos embora por volta da uma hora. Já arrumámos as nossas coisas. A minha mulher fez as compras que a Sr. a Spencer pediu e agora está lá em cima, a fazer a última verificação. Gostaria de inspeccionar a casa agora?

- Vão-se embora? Mas, porquê? - Penso que ele percebeu que a minha surpresa era genuína.

- A Sr. Spencer diz que não precisa de uma ajuda a tempo inteiro e que tenciona ficar nesta casa, até decidir se vai ou não reconstruir a outra.

- Mas o fogo foi apenas há uma semana - protestei. – Têm para onde ir, assim, tão de repente?

- Não. Vamos fazer umas férias curtas em Puerto Rico e visitar a nossa família. Depois, ficamos com a nossa filha até termos outra situação.

Podia entender que Lynn quisesse ficar em Bedford, estava certa de que devia ter amigos ali, mas mandar embora estas pessoas com tão pouco tempo de aviso parecia-me quase desumano.

Manuel Gomez apercebeu-se de que eu ainda estava de pé no vestíbulo.

- Desculpe, Menina DeCarlo - disse ele. - Por favor, entre para a sala.

Enquanto o seguia, lancei um olhar rápido em volta. Havia uma escada bastante íngreme, que conduzia ao andar de cima, a partir da entrada. À esquerda, havia o que parecia ser um escritório, com estantes e um televisor. A sala era de dimensões generosas, com paredes rugosas, estucadas a creme, lareira, e janelas apaineladas. Estava confortavelmente mobilada, e um tecido com padrão de tapeçaria cobria o sofá espaçoso e as cadeiras. O ambiente era o de uma casa de campo inglesa.

Estava imaculadamente limpa e havia flores frescas numa jarra, em cima da mesinha.

- Sente-se, por favor - disse Gomez. Ele permaneceu de pé.

- Sr. Gomez, há quanto tempo trabalha aqui? - perguntei.

- Desde que o Sr. e a Sr. a Spencer, quero dizer, aprimeira Sr. a Spencer, casaram, há doze anos.

Doze anos, e menos de uma semana de aviso! Deus meu, pensei. Estava morta por saber quanto lhes dera Lynn de indemnização, mas não tinha coragem de perguntar... pelo menos por enquanto.

- Sr. Gomez - disse eu -, não vim aqui para inspeccionar a casa. Vim porque queria falar consigo e com a sua esposa. Sou jornalista e estou a ajudar a escrever uma história para a minha revista, a Wall Street Journal, sobre Nicholas Spencer. A Sr. a Spencer sabe que eu estou a escrever a história. Sei que as pessoas andam a dizer coisas muito más acerca de Nicholas, mas tenciono ser escrupulosamente justa. Posso fazer-vos algumas perguntas sobre ele?

- Vou chamar a minha mulher - disse ele calmamente. – Está lá em cima.

Enquanto esperava, lancei um breve olhar na direcção do arco, ao fundo da sala. Conduzia a uma zona de refeições, para lá da qual fIcava a cozinha. Pensei se originalmente não se teria pensado fazer desta casa uma casa para os hóspedes e não para os empregados. Tudo indicava que sim.

Ouvi passos nos degraus e recostei-me no sofá onde Gomez me deixara. Depois, levantei-me para cumprimentar Rosa Gomez, uma mulher bonita, ligeiramente roliça, cujos olhos inchados eram um sinal inequívoco de que estivera a chorar.

- Vamos todos sentar-nos - sugeri, sentindo-me imediatamente uma idiota. Afinal, esta era a casa deles.

Não foi difícil levá-los a falar sobre Nicholas e Janet Spencer.

- Eram tão felizes juntos - disse Rosa Gomez, e o rosto iluminou-se-lhe enquanto falava. - E quando nasceu o Jack, parecia que ele era a única criança do mundo. É tão impossível pensar que já não tem pai nem mãe! Eram pessoas tão maravilhosas!

As lágrimas que lhe bailavam nos olhos começaram a rolar-lhe pelo rosto. Impaciente, limpou-as com as costas da mão.

Disseram-me que os Spencer tinham comprado a casa alguns meses depois do casamento e que tinham sido contratados passado pouco tempo.

- Nessa altura, vivíamos na casa principal - disse Rosa. Havia um bom apartamento do outro lado da cozinha. Mas quando o Sr. Spencer voltou a casar, a sua irmã...

Meia-irmã, apeteceu-me gritar. Mas, em vez disso, disse:

- Desculpe interrompê-la, Sr. a Gomez, mas devo explicar que o pai da Sr. a Spencer e a minha mãe casaram há dois anos, na Florida. Tecnicamente, somos meias-irmãs, mas não somos chegadas. Estou aqui como jornalista, não como familiar.

Grande defensora de Lynn, realmente, pensei, mas precisava de ouvir a verdade da boca destas pessoas, não respostas educadas e cuidadosamente escolhidas.

Manuel Gomez olhou para Rosa e depois para mim:

- A Sr. a Spencer não nos quis a viver na casa. Preferiu, como fazem muitas pessoas, que os empregados tivessem uma residência separada. Sugeriu ao Sr. Spencer que, como havia cinco quartos de hóspedes na casa, eram mais do que suficientes para os hóspedes que eles quisessem ter. Ele foi bastante receptivo à ideia de nos mudarmos para aqui e nós ficámos encantados por ter esta casa maravilhosa só para nós. O Jack estava a viver com os avós, claro.

- Nicholas Spencer era próximo do filho? - perguntei.

- Sem dúvida - disse Manuel, prontamente. - Mas viajava muito e não queria deixar o Jack com uma ama.

- E depois de o pai ter voltado a casar, o Jack não quis viver com a Sr. Lynn Spencer - disse Rosa, com firmeza. - Uma vez disse-me que achava que ela não gostava dele.

- Disse-lhe isso?

- Sim, disse. Não se esqueça de que nós já cá estávamos quando ele nasceu. Sentia-se à vontade connosco. Para ele, éramos da família. Mas. ele e o pai... - Sorriu, envolta pelas recordações, e abanou a cabeça. - Eram verdadeiros companheiros. Isto é uma verdadeira tragédia para aquele menino. Primeiro a mãe, depois o pai. Falei com a avó. Disse-me que ele tem a certeza de que o pai está vivo.

- O que o faz pensar isso? - apressei- me a perguntar.

- O Sr. Nicholas foi piloto de testes quando estava na faculdade. O Jack está agarrado à esperança de que o pai tenha conseguido escapar do avião antes de ele se ter despenhado.

Da boca das crianças... Fiquei a pensar. Ouvi Manuel e Rosa, enquanto rivalizavam um com o outro para contar histórias diverti das dos primeiros anos que tinham passado com Nick, Janet eJack, e depois passei às perguntas que precisava de fazer.

- Rosa, Manuel, recebi um e-mail de alguém que afirma que um homem saiu da mansão um minuto antes de ela ter começado a arder. Algum de vocês sabe alguma coisa sobre isso?

Ambos se mostraram surpreendidos.

- Não temos e-mail, e se tivéssemos visto alguém a sair da mansão antes do fogo teríamos dito à polícia - disse Manuel, enfaticamente. - Acha que foi a pessoa que pôs o fogo que mandou o e-mail?

- Talvez - disse eu. - Há pessoas doentes que fazem esse tipo de coisas a toda a hora. Mas por que me terá sido enviado a mim e não à polícia, não sei.

- Sinto-me culpado por não termos ido à garagem ver se lá estava o carro da Sr. a Spencer - disse Manuel. - Ela não costuma vir para casa tão tarde, mas acontece.

- Com que frequência usava ela a casa? - perguntei. - Quero dizer, todos os fims- de-semana, durante a semana, ou raramente?

- A primeira Sr. a Spencer adorava a casa. Naquele tempo vinham todos os fins-de-semana e, antes de o Jack ir para a escola, costumava ficar uma semana ou duas, se o Sr. Spencer fosse de viagem. A Sr. a Lynn Spencer queria vender esta casa e o apartamento. Disse ao Sr. Spencer que queria começar tudo de novo e não viver com o gosto de outra mulher. Tinham discussões sobre isso.

- Rosa, acho que não devias falar da Sr. a Spencer - aconselhou Manuel.

Ela encolheu os ombros:

- Só estou a dizer a verdade. Esta casa não lhe agradava. O Sr. Spencer pediu-lhe que esperasse até a vacina ser aprovada, antes de se envolver num projecto de construção. Soube que nos últimos meses houve problemas com a vacina e ele andava terrivelmente preocupado. Viajava muito. Quando estava em casa, ia muitas vezes até Greenwich, ter com o Jack.

- Sei que o Jack vive com os avós, mas quando o Sr. Spencer estava em casa o Jack não vinha passar os fins-de-semana?

Rosa encolheu os ombros:

- Quase nunca. O Jack estava sempre muito quieto ao pé da Sr. Spencer. Ele não é uma pessoa que compreenda naturalmente as crianças. O Jack tinha cinco anos quando a mãe morreu. A Sr. a Lynn Spencer parece-se um pouco com ela, mas não é ela, claro. Isso torna tudo mais difícil e acho que o deixa perturbado.

- Diria que Lynn e o Sr. Spencer eram muito chegados? - Sabia que estava a ir um pouco longe, mas tinha que ter uma ideia de como era a relação deles.

- Quando casaram, há quatro anos, eu diria que sim - disse Rosa, devagar -, pelo menos durante algum tempo. Mas, a não ser que eu esteja errada, não durou muito. Era frequente ela ficar com os hóspedes e ele não vir até cá ou então estar em Greenwich, com o Jack.

- Disse que a Sr. a Spencer não tinha o hábito de chegar tarde, mas que isso acontecia de vez em quando. Costumava telefonar-lhe antes?

- Às vezes telefonava e dizia que queria qualquer coisa para comer ou uma refeição fria à espera dela, quando chegasse. Outras vezes recebíamos um telefonema da mansão, de manhã, a dizer que estava cá e depois iria avisar a que horas queria o pequeno-almoço. Senão, às nove horas íamos para lá, para começarmos a trabalhar. Era uma casa grande e precisava de manutenção constante, estivesse ou não ocupada.

Percebi que estava na altura de me ir embora. Sentia que Manuel e Rosa Gomez não queriam prolongar o momento doloroso que era para eles sair daquela casa. E, no entanto, senti que nem sequer arranhara a superfície das vidas das pessoas que tinham vivido aqui.

- Fiquei surpreendida ao ver que não há câmaras de vigilância na propriedade - disse.

- Os Spencer tinham um Labrador, e ele era um bom cão de guarda. Mas foi com o Jack para Greenwich, e a Sr. a Spencer não quis outro cão - contou-me Manuel. - Dizia que era alérgica a animais.

Isso não faz sentido, pensei. No apartamento de Boca Raton o pai tem fotografias dela com cães e cavalos.

- Onde ficava o cão? - perguntei.

- Ficava lá fora, à noite, a não ser quando o tempo estava muito frio.

- Ladrava, se pressentisse um intruso? Ambos sorriram.

- Sem dúvida - disse Manuel. - A Sr. a Spencer dizia que, além das alergias, o Shep fazia muito barulho.

Fazia muito barulho porque anunciava as suas chegadas nocturnas ou porque alertava toda a gente para as chegadas nocturnas de outros visitantes? pensei.

Levantei-me:

- Foram muito amáveis em partilhar o vosso tempo comigo, nesta altura. Só desejo que as coisas venham a melhorar para todos.

- Rezo por isso - disse-me Rosa. - Rezo para que o Jack esteja bem e para que o Sr. Spencer esteja vivo. Rezo para que a vacina resulte e que todos os problemas de dinheiro desapareçam. - As lágrimas voltaram a encher-lhe os olhos e começaram a correr-lhe pelas faces. - E também peço um milagre. A mãe do Jack não pode voltar, mas rezo para que o Sr. Spencer e aquela rapariga bonita que trabalha com ele fiquem juntos.

- Rosa, está calada - ordenou Manuel.

- Não, não estou - disse ela, desafiando-o. - Que mal pode haver em dizer isto agora? - Olhou para mim. - Uns dias antes de o avião ter caído, uma tarde o Sr. Spencer veio do trabalho buscar uma pasta de que se tinha esquecido. A rapariga estava com ele, Chama-se Vivian Powers. Não havia dúvida de que estavam apaixonados e eu fiquei muito contente por ele. Correram-lhe tantas coisas mal na vida! A Sr. a Lynn Spencer não é uma boa pessoa. Se o Sr. Spencer estiver morto, fico feliz por ele, antes do fim, ter encontrado alguém que o amava muito.

Dei-lhes o meu cartão e saí, tentando digerir tudo o que acabara de ouvir.

Vivian deixara o seu emprego, vendera a casa e deixara a mobília à guarda de um armazém. Falara em começar um novo capítulo na sua vida.

Mas, enquanto conduzia em direcção a casa, pensei que, tão certo como eu ir ali, esse capítulo não teria início em Boston. E a his tória da carta de alguém que dizia que o Dr. Spencer lhe tinha curado milagrosamente a filha? Fariam a carta, os registos desaparecidos e a história do acelerador parte de um plano, elaborado para criar a ilusão de que Nick Spencer era vítima de uma conspiração sinistra?

Pensei no título do Post: ESPOSA LAVADA EM LÁGRIMAS: NãO SEI O QUE PENSAR".

Podia arranjar-lhes outro título: CUNHADA POR AFINIDADE TAMBÉM NãO SABE O QUE PENSAR.

 

                         CAPÍTULO VINTE E DOIS

A entrada da ala do St. Ann's Hospital onde ficava a ala para doentes terminais estava alcatifada e a zona da recepção era confortável, com janelas que davam para um lago. Havia um ambiente de serenidade e paz. Completamente oposto ao do edifício central do hospital e ao da outra ala, onde eu visitara Lynn.

Os pacientes que aí chegavam sabiam que não voltariam a sair. Vinham para ser aliviados do seu sofrimento, até onde fosse humanamente possível, e para terem uma morte calma, rodeados pelos seus entes queridos e por pessoas dedicadas, que iam, também, confortar, que ficavam e viam os pacientes partir.

A recepcionista surpreendeu-se quando lhe pedi para falar com o director, sem ter marcado hora, mas concordou, e não há dúvida de que falar na Wal Street Journal abre portas. Fui prontamente acompanhada ao gabinete da Dr. a Katherine Clintworth, uma mulher atraente, na casa dos cinquenta, de cabelo cor de areia, comprido e liso. O que mais sobressaía nela eram os olhos: de um tom de azul de Inverno, da cor da água num dia de sol de Janeiro. Trazia um casaco de malha confortável e calças a condizer.

Por esta altura, as minhas desculpas pela visita não agendada; seguidas da minha explicação de que estava a ajudar a escrever uma história para a Wal Street já estavam bem ensaiadas. Ela dispensou-as, com um gesto da mão.

- Terei muito prazer em responder às suas perguntas sobre Nicholas Spencer - disse ela. - Admirava-o muito. Como compreenderá, nada nos faria mais felizes do que não precisar de alas para doentes terminais, por o cancro ter sido erradicado.

- Há quanto tempo era Nicholas Spencer voluntário aqui? perguntei.

- Desde que a mulher, Janet, morreu, há cinco anos. O nosso pessoal podia ter cuidado dela em casa, mas como tinha um filho de cinco anos pensou que seria melhor ficar connosco naqueles últimos dez dias. Nick ficou muito grato pela ajuda que pudemos dar, não só aJanet, mas também a ele, ao filho, e aos pais deJanet. Umas semanas depois, veio cá oferecer-nos os seus serviços.

- Deve ter sido muito difícil arranjar-lhe um horário de trabalho, dado que ele estava sempre a viajar - sugeri.

- Dava-nos uma lista das datas que tinha disponíveis, com uma certa antecedência. Conseguíamos sempre trabalhar nessa base. As pessoas gostavam muito de Nick.

- Quer dizer que ele ainda era voluntário na altura em que o avião se despenhou?

Ela hesitou:

Não. Na verdade, havia um mês que já não trabalhava connosco.

- E houve uma razão para isso?

- Sugeri-lhe que tirasse umas férias. Parecia estar sob uma pressão tremenda.

Percebi que ela pesava cuidadosamente as palavras.

- Que tihpo de pressão?

- Parecia nervoso e perturbado. Disse-lhe que trabalhar na vacina durante todo o dia e depois vir para aqui trabalhar com doentes que lhe pediam que a experimentasse neles era um fardo psicológico demasiado grande para ele.

- Ele concordou?

- Se não concordou, diria que pelo menos compreendeu. Foi para casa nessa noite e não voltei a vê-lo.

As implicações daquilo que ela não estava a dizer atingiram-me como uma tonelada de tijolos:

- Dr. a Gntworth, Nicholas Spencer alguma vez testou a vacina num paciente?

- Isso teria sido ilegal - retorquiu ela com firmeza.

- Não foi isso que perguntei. Dr. a Clintworth, estou a investigar a possibilidade de Nicholas Spencer ter sido vítima de um jogo sujo. Por favor, seja honesta comigo.

Ela hesitou e depois respondeu:

- Estou convencida de que ele deu a vacina a uma pessoa, aqui. De facto, tenho a certeza de que o fez, ainda que o paciente não queira admiti-lo. E há outra pessoa que eu acho que a tomou, mas que também o nega veementemente.

- O que aconteceu à pessoa que a Dr. a tem a certeza que tomou a vacina?

- Foi para casa.

- Está curada?

- Não, mas soube que teve uma regressão espontânea. A progressão da doença abrandou espectacularmente, o que acontece, mas é muito raro.

- Tem seguido a evolução?

- Como lhe disse, o paciente não admitiu que Nicholas Spencer Lhe deu a vacina, se é que deu.

- Pode dizer-me quem é?

- Não posso fazer isso. Seria uma violação de privacidade. Peguei noutro cartão e dei-lho:

- Importa-se de pedir a esse paciente que entre em contacto comigo?

- Não me importo, mas estou certa de que não vai ter notícias dele.

- E o outro paciente? - perguntei.

- Esse é apenas uma suspeita da minha parte. E agora, Sr a De Carlo, tenho uma reunião. Se quiser uma declaração minha sobre Nicholas Spencer, pode citar: "Era um bom homem, movido por um objectivo nobre. Se por acaso se perdeu pelo caminho, estou certa de que não foi por motivos egoístas. "

 

                     CAPÍTULO VINTE E TRÊS

A mão latejava-lhe tanto que Ned não conseguia pensar em mais nada, a não ser na dor. Tentou metê-la em água gelada e pôr-lhe manteiga, mas nenhuma das duas coisas ajudou. Então, às dez para as dez da noite de segunda-feira, mesmo antes da hora do fecho, Ned foi à farmácia que ficava ali perto e dirigiu-se à secção dos medicamentos para queimaduras. Pegou em alguns que lhe pareceram indicados. O velho Sr. Brown, o dono, estava a fechar a farmácia. A outra

pessoa presente era Peg, a empregada da caixa, uma mulher metediça que adorava mexericos. Ned não queria que ela visse como ele tinha a mão, por isso pôs as pomadas num dos pequenos cestos empilhados à entrada, pendurou-o no braço esquerdo e meteu o dinheiro na mão esquerda, pronto a pagar. Manteve a mão direita no bolso. A ligadura estava toda suja, embora ele já a tivesse mudado duas vezes naquele dia.

Havia algumas pessoas na fila, à frente dele e, enquanto esperava, não conseguia manter-se quieto. Maldita mão, pensou. Não estaria queimada e a Annie não estaria morta se ele não tivesse vendido a casa de Greenwood Lake e não tivesse empatado o dinheiro todo naquela maldita Gen-stone, disse para si próprio. Quando não estava a pensar em Annie e naqueles últimos minutos - ela a chorar e a bater-lhe no peito com os punhos, depois a sair de casa a correr, e a seguir o som do cárro a esmagar-se contra o camião do lixo -, pensava nas pessoas que odiava e no que iria fazer-lhes. Os Harnik e a Sr. a Schafley e Sr. Morgan e Lynn Spencer e Carley DeCarlo.

Os dedos não Lhe tinham doído muito quando o fogo os apanhara, mas agora estavam tão inchados que qualquer pressão lhe provocava dor. Se não melhorassem, ele não conseguiria segurar bem na espingarda, nem puxar o gatilho.

Ned viu o homem que estava à sua frente pegar no embrulho. Assim que o homem se foi embora, pôs o cesto e uma nota de vinte dólares em cima do balcão e desviou o olhar, enquanto Peg fazia a conta.

Pensou que sabia que devia ir às urgências para um médicu Lhe ver a queimadura, mas estava com medo de fazer isso. Podia ouvir o que o médico havia de perguntar-lhe: "O que aconteceu? Porque deixou isto chegar a este ponto? ". E eram perguntas a que ele não queria ter de responder.

Se lhes dissesse que o Dr. do St. Ann o tinha tratado, eles podiam perguntar porque é que ele não tinha voltado lá quando viu que não estava a melhorar. Talvez devesse ir à urgência a um lado qualquer, como Queens ou Nova Jérsia ou Connecticut, decidiu.

- Então, Ned, acorde!

Voltou a olhar para a caixa. Nunca gostara de Peg. Tinha os olhos demasiado juntos; tinha sobrancelhas pretas e grossas e cabelo preto com as raízes cinzentas: fazia-lhe lembrar um esquilo. Estava aborrecida só porque ele não tinha reparado que ela tinha pegado nas pomadas e as tinha metido num saco e tinha o troco pronto. Tinha o troco na mão e o saco na outra, e as sobrancelhas franzidas.

Ele pegou no saco com a mão esquerda e, sem pensar, tirou a mão direita do bolso e estendeu-a para receber o troco. Depois, viu como Peg olhava fixamente para a ligadura.

- Meu deus, Ned. O que andou a fazer, a brincar com fósforos?

Essa mão está uma desgraça! - disse ela. - Devia ir ao médico. Ned amaldiçoou-se a si próprio por tê-la deixado ver a mão. - Queimei-me no fogão - disse ele, carrancudo. - Nunca

fazia comida quando a Annie era viva. Fui ao médico, no hospital onde Annie trabalhava. Ele disse-me para ir lá dali a uma semana. Faz uma semana amanhã.

De repente, apercebeu-se do que tinha feito. Dissera a Peg que tinha ido ao médico na terça-feira passada, e isso era uma coisa que ele não queria dizer. Sabia que Annie costumava falar com Peg quando ia comprar alguma coisa à farmácia. Dizia que Peg não era realmente metediça; era apenas curiosa, e era simpática. Annie, que tinha sido criada numa cidadezinha perto de Albany, dizia que havia uma senhora na farmácia de lá que conhecia a vida de toda a gente e que Peg lhe fazia lembrar essa mulher.

Que mais teria Annie dito a Peg? Teria falado sobre a venda da casa de Greenwood Lake? Sobre todo o dinheiro que ele tinha enterrado na Gen-stone? Sobre como ele costumava levá-la a passar diante da mansão dos Spencer em Bedford e prometer-lhe que, um dia, teria uma casa como aquela?

Peg olhava fixamente para ele.

- Porque não mostra a mão ao Sr. Brown? - perguntou. Pode ser que ele tenha uma coisa melhor do que essas coisas que leva aí.

Ele aguentou o olhar que ela lhe dirigia:

-Já disse que vou ao médico amanhã de manhã!

Peg olhava para ele de uma forma esquisita. Fez-lhe lembrar a maneira como os Harnik e a Sr. a Schafley tinham olhado para ele. Era

um olhar de medo. Peg tinha medo dele. Teria medo dele por estar a pensar em todas as coisas que Annie lhe contara sobre a casa e o dinheiro e o passar diante da mansão dos Spencer, e, depois de juntar todas as peças ter percebido que ele é que tinha lançado fogo à casa?

Parecia perturbada:

- Oh, ainda bem que vai ao médico amanhã.

Depois, disse:

- Tenho saudades de ver a Annie entrar aqui, Ned. Sei que também deve sentir a falta dela.

Olhou por cima do ombro dele:

- Ned, desculpe, mas tenho que atender o Garret. Ned apercebeu-se de que, atrás de si, estava um miúdo.

- Claro, Peg - disse ele, afastando-se.

Tinha de ir-se embora. Não podia ficar ali especado. Mas tinha de fazer alguma coisa.

Saiu da farmácia e meteu-se no carro. Estendeu o braço na direcção do assento de trás e tirou a espingarda que estava debaixo do cobertor, no chão. Depois, ficou à espera. Do sítio onde estava estacionado conseguia ver perfeitamente o interior da loja. Assim que aquele tipo, o Garret, saiu, Peg esvaziou a caixa registadora e deu os recibos ao Sr. Brown. Depois, apressou-se a apagar as luzes no resto da loja.

Se ia chamar a polícia, aparentemente ia esperar até chegar a casa. Talvez vá falar do assunto com o marido, primeiro, pensou.

O Sr. Brown e Peg saíram juntos da loja. O Sr. Brown disse boa-noite e dobrou a esquina. Peg começou a caminhar apressadamente na direcção da paragem, que ficava ao fundo. Ned viu que o autocarro estava a chegar. Viu-a correr para apanhá-lo, mas chegou demasiado tarde à paragem. Estava sozinha na paragem quando ele chegou, parou e abriu a porta:

- Eu levo-a a casa, Peg - ofereceu- se.

Ele voltou a ver aquele olhar no rosto dela, só que desta vez ela estava realmente assustada.

- Oh, deixe lá, Ned. Eu espero. O próximo autocarro não demora. - Olhou em volta, mas não se via ninguém por ali.

Ele abriu a porta de rompante, saltou do carro e agarrou-a. A mão doeu-lhe quando lhe bateu na boca para impedi-la de gritar, mas conseguiu aguentar. Com a mão esquerda torceu- lhe o braço, arrastou-a até ao carro e enfiou-a no chão, aos pés do banco da frente. Trancou as portas e arrancou.

- Ned; o que se passa? Por favor, Ned, o que está a fazer? gemeu ela. Estava no chão do carro, a esfregar a cabeça no sítio onde tinha batido no tablier.

Ele segurava a espingarda com uma mão, mantendo-a apontada para ela.

- Não quero que diga a ninguém que eu andei a brincar com fósforos.

- Ned, porque é que eu havia de dizer a alguém? - Peg começou a chorar.

Ned dirigiu-se para a zona de piqueniques do parque municipal. Quarenta minutos depois estava em casa. Tinha-Lhe doído o dedo ao puxar o gatilho, mas não tinha falhado. Tinha razão. Era exactamente como matar esquilos.

 

                     CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Passei pelo escritório depois de ter saído da ala para doentes terminais, mas Don e Ken tinham saído. Tomei algumas notas de coisas que queria discutir com eles de manhã. Duas cabeças pensam melhor do que uma, e duas pensam melhor do que três: nem sempre é verdade, claro, mas aplica-se claramente quando na equação estão incluídos estes dois rapazes conhecedores e bem informados.

Havia uma série de questões que queria discutir com eles. Estaria Vivian Powers a planear juntar-se a Nicholas Spencer, algures? Teriam os registos do Dr. Spencer realmente desaparecido, ou teriam sido mencionados apenas para lançar a dúvida sobre a culpa de Spencer? Havia mais alguém na mansão, naquela noite, minutos antes de ela ter começado a arder? E, por último, um pormenor de tirar o fôlego: teria Nick Spencer testado a vacina num doente terminal que, pouco depois, melhorou ao ponto de sair da ala para doentes terminais?

Estava decidida a conseguir o nome desse paciente. Porque não gritaria aos quatro ventos que tinha melhorado? interroguei-me. Seria porque o paciente queria ver se as melhoras seriam duradouras, ou porque não queria estar sujeito ao cerco da comunicação social? já estava a imaginar os títulos, se viesse a constar-se que a vacina da Gen-stone resultava, afinal.

E quem era o outro paciente que a Dr. Clintworth dizia que também tinha tomado a vacina? Haveria alguma forma de eu convencê-la a dar- me o nome desse paciente?

Nicholas Spencer pertencera a uma equipa de natação, no liceu. O fIlho mantinha a esperança de que ele estivesse vivo, porque fora piloto de testes na Faculdade. Não era muito difícil imaginar que, com esse tipo de capacidades, Nick tivesse conseguido encenar a sua morte apenas a algumas miLhas da costa e depois nadar até se encontrar em segurança.

Gostava de discutir todos estes pontos com os rapazes, enquanto ainda estavam frescos na minha cabeça. Mas tomei notas, cuidadosamente, e depois, como eram seis horas e o dia tinha, sem dúvida, sido bem recheado, fui para casa.

Havia meia dúzia de mensagens no meu atendedor: amigos a sugerir que nos encontrássemos, uma chamada de Casey a pedir-lhe que lhe telefonasse às sete, se me apetecesse massa no Il Tinello. Apetecia, pensei, e tentei perceber se devia fIcar lisonjeada por ser convidada para jantar duas vezes numa semana, ou se deveria considerar-me "o último recurso, sempre pronto", porque as pessoas com quem realmente lhe apetecia jantar estavam ocupadas.

Fosse como fosse, parei o atendedor e telefonei a Casey, para o telemóvel. Tivemos a nossa breve conversa habitual.

O seu abrupto:

- Dr. Dillon.

- Casey, sou eu.

- Apetece-te massa, esta noite?

- Tudo bem.

- Às oito, no Il Tinello?

- Humm-humm.

- Óptimo.

Clique.

Uma vez perguntei-lhe se os seus modos à cabeceira dos doentes eram do mesmo calibre que a sua personalidade ao telefone, mas ele assegurou-me que não era esse o caso.

- Sabes quanto tempo as pessoas chegam a gastar ao

telefone? - perguntara. - Fiz um estudo sobre isso. Fiquei curiosa:

- Onde fizeste o estudo?

- Em casa, há vinte anos. A minha irmã, Trish. Algumas vezes, quando andávamos no liceu, cronometrei o tempo que ela passava ao telefone. Uma vez passou uma hora e cinquenta minutos a contar à melhor amiga que estava preocupadíssima porque tinha um teste no dia seguinte. De outra vez passou cinquenta minutos a contar a outra amiga que ainda nem sequer ia a meio de um projecto de Ciências que tinha de entregar dali a dois dias.

- Seja como for, ela conseguiu sair-se muito razoavelmente - lembrei- Lhe eu. Trish era cirurgiã pediátrica e vivia na Virginia.

Sorrindo ao recordar o episódio, e ligeiramente preocupada por entrar tão facilmente nos planos de Casey, carreguei no botão do atendedor para ouvir a última mensagem.

A voz era baixa e agitada. Não se identificou, mas reconheci-a: Vivian Powers.

- Carley, são quatro horas. Às vezes, trazia trabalho para casa. Estava a limpar a minha secretária. Acho que sei quem levou os registos de casa do Dr. Broderick. Telefone-me, por favor.

Escrevera o meu número de telefone no verso do cartão que lhe dera, mas o número do telemóvel estava impresso na parte da frente. Quem me dera que ela tivesse tentado contactar-me através dele! Às quatro horas eu estava a caminho do centro. Podia ter feito um desvio e ido ter com ela. Tirei o meu bloco de apontamentos da mala, encontrei o ntimero de Vivian e marquei-o.

O gravador atendeu ao quinto toque, o que me disse que Vivian tinha saído de casa havia pouco tempo. A maioria dos atendedores de chamadas deixa tocar o telefone quatro ou cinco vezes, para dar tempo a que a pessoa atenda, se estiver em casa, e depois de gravada a primeira mensagem atende ao segundo toque.

Deixei-lhe uma mensagem, escolhendo cuidadosamente as palavras:

- Fiquei contente por ter notícias suas, Vivian. Falta um quarto para as sete. Vou estar aqui até às sete e meia e depois volto cerca das nove e meia. Telefone-me, por favor.

Não sabia bem porque não tinha dito o meu nome. Se o telefone de Vivian identificasse os autores das chamadas, o meu número teria ficado gravado no monitor. Mas, para o caso de estar alguém com ela quando ela consultasse as mensagens, assim parecia mais discreto.

Um duche rápido antes de sair à noite ajuda sempre a aliviar as tensões que se acumulam enquanto estou a trabalhar. O chuveiro que tenho na minha casa de banho minúscula é um pouco acanhado, mas serve. Enquanto brincava com a torneira da água quente e a da água fria, pensei numa coisa que lera sobre a rainha Isabel I: "A rainha toma banho uma vez por mês, tenha ou não necessidade disso. " Talvez não tivesse mandado decapitar tanta gente se tivesse tido oportunidade de descontrair num duche quente, ao fim do dia, pensei.

Durante o dia, prefiro roupa prática, mas à noite sinto-me bem com uma blusa de seda, umas calças leves e saltos altos. Sinto-me agradavelmente mais alta quando me visto assim. A temperatura lá fora começava a descer quando eu chegara a casa mas, em vez de um casaco, agarrei numa écharpe de lã que a minha mãe me comprara numa viagem à Irlanda. É cor de amora escura, e adoro-a.

Olhei-me ao espelho e achei que não estava mal de todo. Contudo, o meu sorriso transformou-se num franzir de sobrolho quando pensei que não gostava do facto de estar a arranjar-me assim para Casey e de ter ficado tão satisfeita por ele me ter telefonado tão pouco tempo depois do último encontro.

Saí do apartamento com bastante antecedência em relação à hora combinada, mas não conseguia arranjar táxi. Às vezes penso que todos os motoristas de táxi de Nova Iorque comunicam por código e acendem o sinal de "fora de serviço" ao mesmo tempo, quando me vêem na rua, à procura de um.

O resultado foi que cheguei atrasada: quinze minutos atrasada. Mario, o dono do restaurante, conduziu-me até à mesa onde estava Casey e segurou a cadeira para eu me sentar. Casey tinha um ar sério e pensei: meu Deus, ele não vai fazer disto uma questão, ou vai? Levantou-se, deu-me um beijo leve na face e perguntou:

- Estás bem?

Percebi que estava tão habituado a que eu chegasse a horas que ficara preocupado comigo, o que me agradou muito. Um médico bem-parecido, inteligente, com sucesso, descomprometido, como o Dr. Kevin Curtis Dillon é muito requisitado entre as muitas mulheres livres de Nova Iorque, e preocupa-me que o meu papel possa ser o de amiga reconfortante. É uma situação amarga-doce. Quando andava no liceu, tinha um diário. Há seis meses, quando dei com Casey no teatro, desenterrei-o. Foi embaraçoso ler sobre como ficara arrebatada por ter ido ao baile com ele, mas foi ainda pior ler os parágrafos subsequentes sobre a desilusão sentida por ele não me ter telefonado depois disso.

Pensei que não podia esquecer-me de deitar fora aquele diário.

- Estou - disse eu. - Foi só um caso de taxite aguda. Ele não pareceu muito aliviado. Qualquer coisa estava obviamente a perturbá- lo.

- Passa-se qualquer coisa, Casey. O que é? - perguntei. Ele esperou até o vinho que pedira ser servido, e depois disse:

- Foi um dia duro, Carley. A cirurgia pode fazer tanto, e é tão frustrante saber que, façamos o que fizermos, podemos ajudar tão pouco! Operei um miúdo que embateu num camião enquanto andava de bicicleta. Tem sorte por ainda ter um pé, mas vai ficar com os movi mentos limitados.

Os olhos de Casey estavam ensombrados pela dor. Pensei em Nicholas Spencer, que tão desesperadamente queria salvar as vidas das pessoas que sofrem de cancro. Teria ele ultrapassado os limites da segurança ao tentar provar que era capaz? Não conseguia tirar esta pergunta da cabeça.

Instintivamente, pousei a mão na de Casey Ele olhou para mim e pareceu acalmar-se.

- É tão fácil estar contigo, Carley - disse ele. - Obrigado por teres aceite o convite tão em cima da hora.

- É um prazer.

- Embora tenhas chegado atrasada.

O momento de intimidade desapareceu.

- Taxite aguda.

- E como vai a história do Spencer?

Por entre cogumelos, salada de agrião e linguini com molho de amêijoas, falei-lhe dos meus encontros com Vivian Powers, Rosa e Manuel Gomez, e com a Dr. a Clintworth, na ala para doentes terminais.

Ele franziu o sobrolho quando aludi à hipótese de Nicholas Spen cer ter experimentado a vacina em pacientes na ala para doentes terminais.

- Se isso é verdade, não é só ilegal, mas também moralmente errado - disse ele, enfaticamente. - Basta pensar nos casos de algumas drogas que pareciam ser milagrosas mas que acabaram por revelar-se o contrário. A talidomida é um exemplo clássico. Foi aprovada na Europa há quarenta anos, para aliviar as náuseas nas mulheres grávidas. Felizmente, a Dr. a Frances Kelsey, da FDA, bateu o pé à aprovação. Hoje, especialmente na Alemanha, há pessoas na casa dos quarenta com deformações genéticas terríveis, como cotos em vez de braços. Porque as suas mães pensaram que se tratava de um medicamento seguro.

- Mas não li já que a talidomida é comprovadamente válida no tratamento de outros problemas? - perguntei.

- É absolutamente verdade. Mas não tem sido prescrita a mulheres grávidas. As novas drogas têm que ser testadas durante um período de tempo considerável antes de começarem a ser utilizadas, Carley.

- Casey, supõe que podes escolher entre teres apenas mais alguns meses de vida ou poderes viver correndo o risco de sofrer efeitos secundários terríveis. O que escolherias?

- Felizmente, é uma questão que nunca tive de enfrentar, Carley. O que sei é que, como médico, não violaria o meu juramento e não transformaria ninguém em rato de laboratório.

Mas Nicholas Spencer não era médico, pensei. A sua situação era diferente. E na ala para doentes terminais lidava com doentes em fase terminal, que não tinham outra alternativa senão ser ratos de laboratório ou morrer.

Enquanto tomávamos um café expresso, Casey convidou-me para ir com ele a um cocktailem Greenwich, no sábado à tarde.

- Vais gostar das pessoas - disse ele -, e elas vão gostar de ti. Aceitei, evidentemente. Quando saímos do restaurante, pedique me metesse num táxi, mas desta vez ele insistiu em ir comigo. Ofereci-me para arranjar a bebida que ambos recusáramos no restaurante, mas ele tinha deixado o táxi à espera enquanto me acompanhava à porta do meu apartamento.

- Ocorreu-me que devias viver num sítio com porteiro - disse ele. - Esta história de meteres a chave à porta já não é segura. pode aparecer alguém sem tu dares por isso.

Estava estupefacta:

- O que é que te fez meter isso na cabeça?

Ele olhou-me com ar grave. Casey tem mais de um metro e oitenta. Mesmo quando estou de saltos altos, ele parece um gigante ao pé de mim.

- Não sei, Carley - disse ele. - Só estou a pensar se não estarás a meter-te numa coisa maior do que pensas, com esta investigação sobre o Spencer.

Na altura não sabia como estas palavras eram proféticas. Faltava pouco para as dez e meia quando entrei no apartamento. Olhei para o atendedor de chamadas, mas não vi a luz a piscar. Vivian Powers não telefonara.

Voltei a tentar ligar-lhe, mas ninguém respondeu, por isso deixei outra mensagem.

Na manhã seguinte, o telefone tocou exactamente quando eu estava de saída para o trabalho. Era da polícia de Briarcliff Manor. Um vizinho que andava a passear o cão naquela manhã notara que a porta de Vivian Powers estava entreaberta. Tocara à campainha e, como não houvesse resposta, entrara. A casa estava vazia. Uma mesa e um candeeiro estavam derrubados e as luzes estavam acesas. O vizinho chamara a polícia. Tinham verificado o atendedor de chamadas e encontrado as minhas mensagens. Faria eu alguma ideia de onde Vivian Powers pudesse estar ou se tinha algum problema?

 

                         CAPÍTULO VINTE E CINCO

Ken e Don ouviram, concentrados e com ar sério, o que lhes contei acerca dos meus encontros em Wechester e do telefonema que recebera de manhã, da polícia de Briarcliff Manor.

- Reacção visceral, Carley? - perguntou Ken. - Será uma encenação elaborada para convencer toda a gente de que havia mais qualquer coisa? Os caseiros dizem que era óbvio que Nick Spencer e Vivian Powers estavam apaixonados. Será possível que se tenha aproximado demasiado da verdade? Acha que ela estava a planear ir para Boston e ficar algum tempo a viver com os pais, e depois começar uma vida nova na Austrália ou em Timbuktu ou em Marrocos, depois de tudo ter esfriado?

- É perfeitamente possível - disse eu. - De facto, a ser assim, devo dizer-lhe que acho que deixar a porta aberta e uma mesa e uma cadeira viradas ao contrário foi um bocado demais. - Depois, hesitei.

- O que é? - perguntou Ken.

- Pensando bem, acho que ela estava com medo. Quando Vivian me abriu a porta, manteve a corrente de segurança durante alguns minutos antes de me ter deixado entrar.

- Esteve lá por volta das onze e meia? - perguntou Ken.

- Sim.

- Ela deu-lhe alguma indicação sobre as razões desse medo?

- Directamente não, mas disse que alguém tinha mexido no acelerador do carro de Nicholas Spencer apenas uns dias antes do desastre de avião. Começava a pensar que em nenhuma das situações se tratou de um acidente.

Levantei-me.

- Vou até lá - disse eu. - E depois vou voltar a Caspien. A não ser que se trate de uma charada completa, o facto de Vivian Powers me ter telefonado a dizer que pensava que conhecia a identidade do homem de cabelo castanho arruivado pode significar que ela se tinha tornado uma ameaça para alguém.

Ken concordou, com um aceno de cabeça:

- Muito bem. E eu tenho alguns contactos. Não houve assim tanta gente a ir para a ala de doentes terminais de St. Ann's Hospital e a sair de lá por ter melhorado. Não deve ser assim tão difícil identificar este tipo.

Eu ainda era nova no emprego. Ken era o jornalista sénior nesta história de fundo. Mesmo assim, não consegui deixar de dizer-lhe:

- Ken, quando o encontrar, gostaria de ir consigo falar com ele. Ken reflectiu por um momento e depois disse:

- Parece-me justo.

Tenho um bom sentido de orientação. Desta vez não precisei do mapa de estradas para encontrar o caminho até à casa de Vivian. Havia um polícia à porta, que olhou para mim com ar desconfiado. Expliquei que tinha estado com Vivian Powers no dia anterior e que recebera um telefonema dela.

- Deixe-me ver - disse ele. Entrou na casa e voltou a sair quase de imediato. - O detective Shapiro disse que pode entrar.

O detective Shapiro era um homem de voz suave e ar inteligente, com olhos penetrantes de avelã e o cabelo a desenhar já algumas entradas. Explicou de imediato que a investigação estava apenas no início. Os pais de Vivian Powers tinham sido contactados e, dadas as circunstâncias, tinham permitido a entrada em casa dela. O facto de a porta estar aberta, o candeeiro e a mesa derrubados e o carro dela estar ainda estacionado junto à casa deixara-os seriamente preocupados com a hipótese de ela ter sido vítima de algum golpe menos claro.

- Esteve aqui ontem, Menina DeCarlo? - inquiriu Shapiro.

- Sim.

- Compreendo que, com a casa desarrumada e os caixotes da mudança, seja difícil ter certezas. Mas, nota alguma coisa diferente de quando esteve aqui, ontem?

Estávamos na sala. Olhei em volta, verificando que a confusão de caixas e mesas vazias era a mesma. Mas foi então que reparei que haa qualquer coisa diferente. Em cima da mesa de apoio estava uma caixa que não estava ali no dia anterior.

Apontei para ela.

- Essa caixa - disse eu. - Talvez ela a tivesse posto ali depois de eu sair, porque quando eu aqui estive não havia lá nada.

O detective Shapiro aproximou-se da caixa e pegou no dossierque estava em cima.

- Ela trabalhava para a Gen-stone, não trabalhava? - perguntou.

Dei por mim a fornecer apenas a informação de que tinha absoluta certeza e a não dizer nada sobre as minhas suspeitas. Já estava a imaginar a cara do detective se eu lhe dissesse: "Vivian Powers pode ter encenado este desaparecimento, porque vai encontrar-se com Nicholas Spencer, cujo avião se despenhou e está presumivelmente morto. Ou faria mais sentido para ele se eu dissesse: Estou a começar a pensar que Nicholas Spencer terá sido realmente vítima de uma conspiração, que um médico de Caspien foi vítima de um atropelamento e fuga por causa de alguns registos que tinha na sua posse, e que Vivian Powers desapareceu porque estava em condições de identificar o homem que levou esses registos. "

Em vez disso, limitei-me a dizer que entrevistara Vivian Powers porque estava a escrever uma história sobre o patrão dela, Nicholas Spencer.

- Ela telefonou-lhe depois de ter saído, Menina DeCarlo? Acho que o detective Shapiro estava a perceber que eu não estava a dizer-lhe tudo.

- Sim. Discuti com Vivian o facto de alguns relatórios de experiências em laboratório, que pertenciam a Nicholas Spencer, terem desaparecido. Tanto quanto ela sabia, o homem que os levou, dizendo que tinha sido enviado por Spencer, não estava autorizado a fazê-lo.

Pela curta mensagem que ela deixou no meu gravador, fiquei com a impressão de que ela poderia identificar essa pessoa.

O detective ainda tinha na mão o dossierda Gen-stone, mas estava vazio:

- Será possível que ela tenha estabelecido essa relação quando estava a folhear este dossier?

- Não sei, mas acho que é possível.

- Agora o dossierestá vazio e ela desapareceu. O que é que isso lhe diz, Menina DeCarlo?

- Acho que existe a possibilidade de ela ter sido vítima de um crime.

Ele lançou-me um olhar penetrante:

- Quando vinha da cidade, trazia o rádio ligado, Menina DeCarlo?

- Não - disse eu. Não contei ao detective Shapiro que, quando estou a trabalhar numa investigação como esta, o tempo em que estou no carro me é precioso para pensar e pesar os possíveis cenários alternativos que me são apresentados.

- Então, não sabe de rumores segundo os quais Nick Spencer terá sido avistado em Zurique por um homem que o vira diversas vezes em reuniões de accionistas?

Levei um longo instante a digerir a pergunta:

- Está a dizer que o homem que diz que o viu é credível?

- Não, apenas que há um dado novo no caso. Naturalmente, vão

verificar a história.

- Na minha opinião, se vier a concluir-se que a história é verdadeira, não vale a pena ter grandes preocupações com Vivian Powers - disse eu. - Se for verdade, acho que neste momento ela está a ir ao encontro dele, se é que não está já com ele.

- Eles tinham um caso? - apressou-se Shapiro a perguntar.

- Os caseiros de Nicholas Spencer acreditam que sim, o que pode significar que os tais registos desaparecidos não são mais do que parte de um plano para encobrir a fuga. Não ouvi dizer que a porta da casa estava aberta? - perguntei a Shapiro.

Ele confirmou com um aceno de cabeça.

- O que significa que deixar a porta aberta pode ter sido um esforço para fazer notar a ausência de Vivian - disse ele. - Vou ser franco, Miss DeCarlo. Há qualquer coisa estranha nesta situação toda, e acho que acabou de dizer-me o que é. Aposto que neste momento ela vai ao encontro de Spencer, onde quer que ele esteja.

 

                         CAPÍTULO VINTE E SEIS

Milly cumprimentou-me como se eu fosse uma velha amiga, quando cheguei ao snack-bar, mesmo a tempo de um almoço tardio.

- Tenho contado a toda a gente que está a escrever uma história sobre Nick Spencer - disse ela, radiante. - E as notícias de hoje, que ele está a viver na Suíça? Há dois dias, aqueles miúdos pescaram a camisa que dizem que ele tinha vestida, e toda a gente pensou que isso queria dizer que ele estava morto. Amanhã, há-de ser outra coisa qualquer. Eu sempre disse que alguém com esperteza suficiente para roubar aquele dinheiro havia de arranjar maneira de viver para gastá-lo.

- Pode ter razão, Milly - disse eu. - Que tal a salada de frango, hoje?

- Super!

Tomando isso como uma recomendação, pedi a salada e café. Como estava quase no fim da hora do almoço, o snac-bar estava cheio de gente. Ouvi o nome de Nicholas Spencer mencionado várias vezes, em diferentes mesas, mas não consegui perceber o que estavam a dizer sobre ele.

Quando Milly voltou com a salada, perguntei-lhe o que ouvira sobre o estado do Dr. Broderick.

- Está um bocadinho melhor - disse ela, arrastando a palavra, que soou "bo-e-ca-d-i-i-i-nho". - Quero dizer, a situação ainda é crítica, mas ouvi dizer que tentou falar com a mulher. Não são boas notícias?

- Sim, claro. Fico muito contente. - Enquanto comia a salada, que estava de facto com a quantidade de aipo que devia ter, mas um tanto vazia de galinha, o meu pensamento não parava. Se o Dr. Broderick recuperasse, seria capaz de identificar a pessoa que o atropelara, ou não teria qualquer memória do acidente?

Na altura em que me servia de um segundo café, o snack-bar estava a ficar rapidamente vazio. Esperei até Milly terminar de limpar as outras mesas e depois chamei-a. Trouxera comigo a fotografia tirada na noite em que Nick Spencer fora agraciado, e mostrei-lha.

- Milly, conhece estas pessoas?

Ela ajeitou os óculos e estudou o grupo reunido na mesa de honra.

- Claro! - E começou a apontar. - Esta é a Delia Gordon e o marido, Ralph. É simpática; ele é um bocado enfatuado. Esta é a Jackie Schlosser. É muito simpática. Aqui, temos o Reverendo Howell, o ministro presbiteriano. E aqui está o estupor, claro. Espero que o apanhem. É o director do hospital. Está marcado desde o dia em que convenceu a direcção a investir tanto dinheiro na Gen- stone. Pelo que ouvi dizer, vai ficar sem emprego nas próximas eleições para a direcção, se não for antes. Muita gente acha que ele devia demitir-se. Aposto que demite, se provarem que Nick Spencer está vivo. Por outro lado, se o prenderem, talvez consigam descobrir onde foi que ele escondeu o dinheiro. Esta é a Dora Whitman e o marido, Nils. São os dois de famílias muito antigas aqui na cidade. Com muito dinheiro. Com empregados residentes e tudo. Toda a gente gosta que eles nunca se tenham afastado de Caspien, mas ouvi dizer que também têm uma casa de Verão fabulosa em Martha's Vineyard. Ah, e ao fundo, à direita, está Key Fess. É a chefe dos voluntários do hospital.

Tomei notas, tentando acompanhar o comentário rápido de Milly. Quando ela terminou, disse-lhe:

- Milly, gostava de falar com algumas dessas pessoas, mas até agora só consegui chegar ao Reverendo Howell. Os outros ou não constam da lista telefónica, ou não responderam à minha chamada. Tem alguma sugestão de como eu possa encontrá-los?

- Não diga que fui eu que lhe disse, mas neste momento a Kay Fess deve estar na recepção do hospital. Mesmo que não tenha respondido ao telefonema que lhe fez, é fácil de reconhecer.

- Milly, você é um anjo - disse eu. Acabei o café, paguei a conta, deixei uma gorjeta generosa e, depois de consultar o meu mapa, percorri de carro os quatro quarteirões até ao hospital.

Acho que esperava encontrar um pequeno hospital local, mas o Caspien Hospital era uma instituição obviamente em crescimento, com vários edifícios de menores dimensões adjacentes à estrutura principal e uma nova área, vedada e com um letreiro que dizia FUTURAS INSTALAÇÕES DO CENTRO PEDIÁTRICO.

Fiquei certa de que se tratava da construção, agora parada, graças ao investimento do hospital na Gen-stone.

Estacionei e entrei no hospital. Estavam duas mulheres à secretária da recepção, mas consegui imediatamente ver qual delas era Kay Fess. Profundamente bronzeada, embora fosse Abril, com cabelo curto e ligeiramente grisalho, olhos castanho-escuros, óculos de avozinha, nariz bem desenhado e lábios finos, tinha um ar muito "responsável". Duvidei seriamente de que alguém conseguisse esgueirar-se sem um cartão de visitante, quando ela estivesse de guarda. Era ela quem estava mais próxima da entrada dos elevadores, o que sugeria que era quem mandava ali.

Quando entrei, havia quatro ou cinco pessoas à espera de cartões de visitante. Esperei que ela e a sua ajudante as atendessem e depois dirigi-me a ela.

- Menina Fess? - disse eu.

Ela ficou imediatamente em estado de alerta, como se suspeitasse que eu ia pedir-lhe para trazer dez crianças para visitarem uma pessoa doente.

- Menina Fess, o meu nome é Carley DeCarlo, da Wall Street. Gostaria muito de falar consigo sobre o jantar de homenagem a Nicholas Spencer, que teve lugar há uns meses. Soube que esteve na mesa de honra, sentada muito próxima dele.

- Foi a senhora que me telefonou, outro dia.

- Sim, fui eu.

A outra mulher que estava na recepção olhava para nós com curiosidade, mas depois teve de prestar atenção a algumas pessoas que chegavam.

- Menina DeCarlo, não respondi ao seu telefonema. Isso não lhe sugeriu que eu não tinha qualquer intenção de falar consigo? - O seu tom era agradável, mas firme.

- Menina Fess, disseram-me que é muito dedicada ao hospital. Também sei que o hospital teve de parar a construção do centro pediátrico devido ao investimento na Gen-stone. A razão pela qual quero falar consigo é que acredito que a verdadeira história do desaparecimento de Nicholas Spencer ainda não veio a lume e que, se vier, esse dinheiro pode ser recuperado.

Vi a hesitação e a dúvida na expressão dela.

- Nicholas Spencer foi visto na Suíça - disse ela. - Se calhar anda a comprar um chalet com o dinheiro que teria salvo a vida de várias gerações de crianças.

- O que parecia uma prova definitiva da morte dele era título dos jornais há apenas dois dias - recordei-lhe. - E agora, isto. A verdade é que ainda não conhecemos toda a história. Por favor, podemos falar apenas por alguns minutos?

O meio da tarde era claramente uma hora com pouco movimento de visitas no hospital. Kay Fess virou-se para a companheira de trabalho:

- Margie, eu volto já.

Sentámo-nos a um canto da entrada. Ela era obviamente do tipo "vamos directamente ao assunto" e estava decidida a que a nossa conversa fosse breve. Não ia mencionar a minha suspeita de que o que acontecera ao Dr. Broderick podia não ter sido um acidente. O que lhe contei foi que suspeitava que Nicholas Spencer ouvira qualquer coisa durante o jantar de homenagem que o fizera ir a correr, na manhã seguinte, buscar os relatórios do pai que estavam à guarda do Dr. Bro derick. Depois, decidi ir um pouco mais longe:

- Menina Fess, Nicholas Spencer ficou visivelmente transtornado quando descobriu que alguém já tinha ido buscar esses relatórios, dizendo que ia da parte dele. Acho que, se conseguir ficar a saber quem lhe deu as informações perturbadoras no jantar e também quem foi ele visitar depois de ter deixado a casa do Dr. Broderick, no dia seguinte, poderemos ter uma ideia daquilo que realmente lhe aconteceu e ao dinheiro desaparecido. Falou com ele durante o jantar?

Ela pareceu pensativa. Tive a sensação de que Kay Fess era uma daquelas pessoas a quem nada escapava.

- As pessoas que estavam na mesa de honra reuniram-se meia hora antes numa recepção privada, para tirar fotografias; foram servidos coctails. Nicholas Spencer foi o centro das atenções, claro - disse ela.

- Como descreveria a atitude dele ao início da noite? Parecia-lhe descontraído?

-Mostrou-se cordial, agradável... todas as coisas habituais que se esperam de alguém que vai ser homenageado. Entregou ao director do hospital um cheque de cem mil dólares, destinado ao fundo para a construção da ala pediátrica, mas não quis que isso fosse anunciado durante o jantar. Disse que, quando a vacina fosse aprovada, poderia fazer um donativo dez vezes maior.

Apertou os lábios:

- Era um patife bastante convincente.

- Mas, tanto quanto se apercebeu, ele falou com alguém em particular nessa altura?

- Não, mas posso dizer-lhe que antes do jantar estar servido esteve na conversa com Dora Whitman durante uns bons dez minutos, e pareceu bastante interessado no que ela dizia.

- Tem alguma ideia de qual foi o assunto da conversa?

- Eu estava sentada à direita do reverendo Howell que, na altura, se tinha levantado para ir cumprimentar uns amigos. Dora estava à esquerda do reverendo Howell, por isso eu conseguia ouvi-la perfei tamente. Estava a falar de alguém que tinha tecido grandes elogios ao Dr. Spencer, o pai de Nicholas. Disse a Nicholas que uma certa mulher afirmava que o Dr. Spencer lhe tinha curado a filha de um defeito genético que lhe teria destruído a vida.

Percebi imediatamente que estava ali a ligação que eu tentava encontrar. Lembrei-me também que não tinha conseguido falar com os Whitman, porque o número deles não vinha na lista.

- Menina Fess, se tem o número da Sr. a Whitman, não se importa de telefonar-lhe a perguntar se posso falar com ela o mais depressa possível, até mesmo imediatamente, se ela estiver disponível?

Vi uma expressão de dúvida assomar-lhe aos olhos, ao mesmo tempo que começava a abanar a cabeça. Não lhe dei oportunidade de me dizer que não.

- Menina Fess, sou jornalista. De uma forma ou de outra, hei-de descobrir onde mora a Sr. a Whitman e falar com ela. Mas, quanto mais depressa souber o que ela disse a Nicholas Spencer naquela noite, mais hipóteses temos de saber o que o fez realmente desaparecer e onde está o dinheiro.

Ela olhou para mim e vi que não a tinha feito vacilar, que, quando muito, a tinha feito recuar ao recordar-Lhe que era jornalista. Continuava a não querer falar no Dr. Broderick como possível vítima, mas joguei mais uma cartada:

- Menina Fess, encontrei-me com Vivian Powers, a secretária pessoal de Nicholas Spencer, ontem. Disse-me que aconteceu qualquer coisa no jantar de homenagem que o perturbou ou agitou terrivelmente. Ontem, algumas horas depois de termos falado, a jovem desapareceu, e desconfio que possa ter ocorrido um crime. É evidente que se passa aqui qualquer coisa; há alguém a tentar desesperadamente evitar que os registos desaparecidos cheguem às mãos das autoridades. Por favor, ajude-me a entrar em contacto com Dora Whitman.

Ela levantou-se.

- Por favor, espere enquanto vou telefonar à Dora - disse ela. Encaminhou-se para a secretária e vi-a pegar no telefone e marcar um número. Obviamente, não teve de procurá-lo. Começou a falar e contive a respiração enquanto a via anotar qualquer coisa num papel. Mais pessoas entraram e dirigiram-se à recepção. Ela fez-me sinal e apressei-me a ir ter com ela.

- A Sr. Whitman está em casa, mas vai até ao centro da cidade daqui a uma hora. Disse-lhe que ia já ter com ela, e ela está à sua espera. Anotei a morada e o número de telefone, e algumas indicações para que consiga chegar mais facilmente a casa dela.

Comecei a agradecer-lhe, mas ela já nem estava a olhar para mim.

- Boa-tarde, Sr. a Broderick - disse ela, solícita. - Como está o doutor, hoje? Continua a melhorar, espero!

 

                   CAPÍTULO VINTE E SETE

Agora que Annie estava morta, nunca mais ninguém tinha vindo vê-lo. Por isso, na terça-feira de manhã, quando a campainha tocou, Ned decidiu ignorá-la. Sabia que devia ser a Sr. a Morgan. O que quereria ela? pensou. Não tinha direito de incomodá-lo.

A campainha voltou a tocar, e outra vez ainda, só que desta feita, quem quer que fosse não tirou o dedo de lá. Ouviu passos pesados a descerem as escadas. Isso significava que não era a Sr. a Morgan quem tocava à campainha. Depois, ouviu a voz dela e uma voz de homem. Agora, teria de ir ver quem era; se não fosse, ela podia usar a chave dela para entrar.

Lembrou-se de meter a mão direita no bolso. Mesmo com as pomadas que tinha comprado na farmácia, a mão não estava melhor. Abriu a porta, apenas o suficiente para ver quem tinha tocado.

Lá fora estavam dois homens que lhe mostraram a identificação. Eram detectives. Não tenho nada com que me preocupar, disse Ned a si próprio. Provavelmente, o marido de Peg tinha avisado a polícia que ela tinha desaparecido, ou talvez já tivessem encontrado o corpo dela. Provavelmente, o Dr. Brown tinha dito à polícia que ele tinha sido uma das últimas pessoas a ir à farmácia, a noite passada. Segundo os cartões de identificação, o tipo alto era o detective Pierce; o negro era o detective Carson.

Carson perguntou se podiam falar com ele durante alguns minutos. Ned sabia que não podia recusar: pareceria estranho.

Viu que olhavam ambos para a sua mão direita, por ele não a tirar do bolso. Tinha que tirá-la. Podiam pensar que ele tinha uma pistola, ou qual quer coisa assim. A gaze que ele tinha enrolado à mão não os deixaria ver que a ferida era grave. Tirou a mão do bolso, devagar, tentando não mostrar como lhe doía quando roçava no tecido.

- Claro que falo convosco - balbuciou.

O detective Pierce agradeceu à Sr. a Morgan por ter descido. Ned viu que ela estava morta por saber o que se estava a passar e, antes de fechar a porta, deu por ela a tentar espreitar para dentro do apartamento. Sabia o que ela estava a pensar: que estava tudo desarrumado. Sabia que Annie andava sempre atrás dele para apanhar os papéis e trazer os pratos para a cozinha e pô-los na máquina de lavar e meter a roupa suja no cesto. Annie gostava de tudo limpo e arrumado. Agora que ela já ali não estava, ele não se importava em arrumar as coisas. Também não comia muito, mas quando comia metia a louça no lavalouça e passava-a por água quando precisava de um prato ou de uma chávena.

Viu que os detectives observavam a sala, reparando na almofada e no cobertor no sofá, nas pilhas de jornais no chão, na caixa de cereais e na tigela em cima da mesa, ao lado da gaze, das pomadas e do adesivo. A roupa que tinha usado ultimamente estava empilhada numa cadeira.

- Importa-se que nos sentemos? - perguntou Pierce.

- Não, claro. - Ned puxou o cobertor para o lado e sentou-se no sofá.

Havia uma cadeira de cada lado do televisor. Cada um dos detectives pegou numa e trouxe-a para mais perto do sofá. Sentados, ficavam tão perto dele que se sentia desconfortável. Estavam a tentar fazê-lo sentir-se encurralado. Tem cuidado com o que vais dizer, recomendou a si próprio.

- Sr. Cooper, esteve na farmácia do Dr. Brown ontem à noite, mesmo antes de fechar, não esteve? - perguntou Carson.

Ned percebeu que Carson era o chefe. Olhavam ambos para a mão dele. Conta-lhes, disse a si próprio. Faz com que sintam pena de ti.

- Sim, estive lá. A minha mulher morreu o mês passado. Eu nunca tinha cozinhado. Queimei a mão no fogão, há uns dias, e ainda me dói muito. Ontem à noite fui à farmácia, comprar umas coisas para lhe pôr.

Eles haviam de esperar que ele lhes perguntasse porque estavam ali, a fazer-lhe perguntas. Olhou para Carson:

- O que se passa?

- Conhecia a Sr. a Rice, a empregada da caixa da farmácia?

- A Peg? Claro! Há vinte anos que trabalha ali. É uma senhora simpática. Muito prestável. - Eles estavam a ser cautelosos. Não estavam a dizer-Lhe nada sobre Peg. Pensariam que ela tinha desaparecido, ou já teriam encontrado o corpo?

- Segundo o Sr. Brown, foi a penúltima pessoa que a Sr. a Rice atendeu, ontem. É verdade?

- Acho que sim. Lembro-me que havia alguém atrás de mim quando saí. Não sei se mais alguém entrou depois de eu ter saído. Meti-me no carro e vim para casa.

- Viu alguém a rondar a farmácia, quando saiu?

- Não. Como disse, meti-me no carro e vim para casa.

- Sabe quem estava atrás de si na fila, na farmácia?

- Não. Não reparei. Mas a Peg conhecia-o. Chamou-lhe... deixe-me pensar. Chamou-Lhe Garret.

Ned viu os detectives olharem um para o outro. Era isso que eles tinham vindo ali fazer. Brown não sabia quem tinha sido o último cliente. Por agora, iam concentrar-se a tentar encontrar aquele tipo.

Levantaram-se e prepararam-se para sair.

- Não queremos tomar-lhe mais tempo, sr. Cooper - disse Carson. - Muito obrigado pela ajuda.

- Essa mão parece estar inchada - disse Pierce. - Espero que tenha ido ao médico.

- Sim, sim. Já está a ficar muito melhor.

Olhavam para ele com um ar esquisito. Ele conhecia aquele olhar Mas só quando trancou a porta depois de eles terem saído é que se apercebeu de que eles não lhe tinham dito o que tinha acontecido a Peg. De certeza que iriam reparar que ele os tinha deixado ir sem ter perguntado.

Deviam ir a caminho da farmácia, para saberem do Garret. Ned esperou dez minutos e depois telefonou para a farmácia. Brown atendeu.

- Doutor, fala o Ned Cooper. Estou preocupado com a Peg. Estiveram aqui dois detectives a fazer perguntas sobre ela, mas não me disseram o que se passa. Aconteceu-lhe alguma coisa?

- Espera um minuto, Ned.

Sabia que Brown estava a tapar o telefone com a mão e a falar com alguém. Depois, o detective Carson avançou:

- Sr. Cooper, lamento dizer-lhe que a Sr. a Rice foi vítima de um homicídio.

Ned tinha a certeza de que a voz de Carson era mais amável, agora. Tinha razão: eles tinham notado que ele não lhes perguntara o que se passava com Peg. Disse a Carson que lamentava muito e pediu-lhe que o dissesse ao Dr. Brown, e Carson disse-lhe que, se lhe ocorresse alguma coisa, mesmo que não parecesse importante, o contactasse.

- Claro - afirmou Ned. Quando desligou, foi até à janela. Eles voltariam. Tinha a certeza disso. Mas, por agora, estava bem. Tudo o que tinha a fazer era esconder a espingarda. Não era seguro deixá-la no carro, nem sequer atrás daquela tralha toda, na garagem. Onde poderia escondê-la? Precisava de um sítio onde ninguém fosse procurá-la.

Olhou para baixo e viu o pequeno relvado raquítico diante da casa. Estava lamacento e sujo, e lembrou-lhe a sepultura de Annie. Estava enterrada no talhão da mãe, no velho cemitério da cidade. Já quase ninguém usava aquele cemitério. Não era arranjado e todas as campas pareciam abandonadas. Quando lá estivera, a semana passada, a sepultura de Annie era tão fresca que a terra ainda não tivera tempo de assentar. Estava solta e lamacenta e parecia que ela tinha sido enterrada debaixo de uma pilha de lixo.

Uma pilha de lixo... Foi como se tivesse recebido uma resposta. Ia embrulhar a espingarda e as balas em plástico num cobertor velho e enterrá-las na sepultura de Annie, até ser altura de voltar a utilizá- las. Depois, quando tudo terminasse, ia deitar-se na campa e acabar com ele também.

- Annie - chamou, da maneira como costumava chamá-la quando ela estava na cozinha. - Annie, já falta pouco para ir ter contigo, juro.

 

                       CAPÍTULO VINTE E OITO

Ken e Don tinham saído do escritório na altura em que eu ia a caminho de Caspien, por isso fui directamente para casa. Deixei mensagens a ambos, e eles telefonaram-me à noite. Combinámos encon trar-nos bem cedo de manhã, às oito horas, e falar com a cabeça fresca.

Trabalhei na minha coluna e voltei a ser confrontada com as lutas diárias de 99 por cento do mundo, a tentar equilibrar as despesas e as receitas. Verifiquei o correio electrónico, esperando saber mais alguma coisa do tipo que me escrevera a dizer que tinha visto alguém a sair da mansão de Bedford antes do fogo, mas não havia nada dele. Ou dela, acrescentei mentalmente.

Acabei a coluna e, às vinte para o meio-dia lavei a cara, vesti a camisa de dormir e o robe, encomendei uma pisa pequena e servi-me de um pouco de vinho. Não podia ser melhor. O restaurante fica mesmo ao virar da esquina, na Terceira Avenida, e a pisa chegou quando as notícias das onze estavam a começar.

A notícia de abertura era sobre Nick Spencer. A imprensa relacionara a hipótese de ele ter sido visto na Suíça com o desapareci mento de Vivian Powers. As suas fotografias foram mostradas lado a lado, e a perspectiva da notícia era "viragem bizarra no caso Spencer". A ideia geral era que a polícia de Briarcliff Manor duvidava que Vivian Powers tivesse sido raptada.

Achei que era demasiado tarde para telefonar a Lynn, mas concluí que esta história reforçava a sua afirmação de que não tinha nada a ver com os planos do marido. Mas se era verdade que alguém saíra da mansão uns minutos antes do incêndio, isso abria nitidamente a possibilidade de ela ter os seus planos muito pessoais, pensei.

Fui deitar-me cheia de emoções contraditórias, e demorei muito tempo a adormecer. Se Vivian Powers planeava juntar-se a Nick Spencer apenas algumas horas depois de eu ter falado com ela, só podia dizer que era uma actriz e tanto. Fiquei contente por não ter apagado a mensagem dela. Tencionava guardá-la e tencionava voltar à Gen-stone e falar com algumas das mulheres que respondiam ao correio enviado à empresa.

Na manhã seguinte, às oito, Don e eu estávamos no gabinete de Ken, apertando nas mãos as canecas cheias de café acabado de fazer. Ambos olhavam para mim, na expectativa.

- Por ordem cronológica? - sugeri.

Ken acenou com a cabeça.

Falei-lhes da casa de Vivian Powers, de como a porta aberta e o candeeiro e a mesa virados tinham um ar estranho, de encenação. Depois, acrescentei:

- Mas, mesmo assim, ela pareceu-me convincente quando me telefonou a dizer que achava que sabia quem tinha levado os registos do Dr. Spencer da casa do Dr. Broderick.

Olhei para eles.

- E agora acho que sei porque foram levados e o que podem conter - disse. - Todas as peças encaixaram, ontem. - Pus a fotografia da mesa de honra, no jantar de homenagem, em cima da secretária e apontei para Dora Whitman. - Fui visitá-la ontem, e ela disse-me que falou com Nick Spencer ao jantar. Disse-lhe que ela e o marido fIzeram um cruzeiro à América do Sul, em Novembro passado. Ficaram amigos de um casal do Ohio, que lhes disse que a sobrinha tinha vivido em Caspien durante algum tempo, há treze anos. Teve uma bebé no hospital de Caspien, à qual foi diagnosticado esclerose múltipla. Levou-a ao Dr. Spencer, para as vacinas habituais, e no dia antes de a família se ter mudado outra vez para o Ohio, o Dr. Spencer foi lá a casa e deu à bebé uma injecção de penicilina, porque estava com febre.

Bebi um gole de café. As implicações de tudo o que eu ficara a saber ainda me deixavam aturdida.

- Segundo a história deles, algumas semanas depois o Dr. Spencer telefonou à mãe da bebé. Estava num estado terrível. Disse que se apercebera de que tinha dado à bebé uma vacina em que tinha estado a trabalhar alguns anos antes, e que não tinha sido testada, e que assumia toda a responsabilidade pelos problemas que pudessem ter sido causados.

- Deu à bebé uma vacina não testada... uma velha vacina na qual tinha estado a trabalhar? É um milagre não a ter morto - disse Ken, secamente.

- Esperem até ouvir o resto. A mãe disse-lhe que a bebé não tinha tido qualquer reacção à vacina. E, coisa para admirar nos dias que correm, não foi a correr ter com um advogado e contar o que o Dr. Spencer lhe disse. Por outro lado, a bebé não dava sinais de ter qualquer problema. Alguns meses depois, o novo pediatra, no Ohio, disse que era evidente que tinha sido feito um diagnóstico errado à bebé, porque ela tinha um desenvolvimento absolutamente normal e não havia sinal da doença. A bebé tem hoje treze anos, e no Outono passado teve um acidente de automóvel. A médica que fez a ressonância magnética disse que, se não soubesse que era impossível, diria que o resultado mostrava ligeiros vestígios de esclerose em algumas células, uma indicação muito rara. A mãe decidiu mandar buscar os Raios originais a Caspien. Mostravam esclerose no cérebro e na espinal medula.

- Provavelmente, houve uma confusão com os Raios - disse Ken. - Acontece demasiadas vezes nos hospitais.

- Eu sei, e ninguém no Ohio acreditará que os Raios não foram trocados, excepto a mãe. Tentou escrever ao Dr. Spencer, para lhe dar conta disso mesmo, mas ele tinha morrido alguns anos antes, e a carta foi devolvida. Dora Whitman disse àquelas pessoas que Nicholas Spencer era filho do Dr. Spencer e que tinha a certeza de que ele gostaria de ter notícias da sobrinha deles. A Sr.a Whitman sugeriu-lhe que dissessem à sobrinha que escrevesse a Nicholas Spencer e enviasse a carta para a Gen-stone. Ao que parece, escreveu, mas nunca chegou a receber qualquer resposta.

- Foi essa a história que a Sr. a Whitman contou a Spencer no jantar de homenagem? - perguntou Don.

- Sim.

- E no dia seguinte ele apressou-se a voltar a Caspien para ir buscar os antigos registos do pai, e descobriu que tinham desaparecido - disse Ken, balouçando os óculos. Pensei em quantas vezes teria ele de substituir o parafuso da armação.

- Dora Whitman prometeu dar a Spencer a morada e o número de telefone das pessoas que lhe tinham falado da sobrinha. Claro que não o tinha consigo ao jantar. Ele foi ter com ela depois de ter saído de casa do Dr. Broderick e sabido do desaparecimento dos registos. Disse que ele estava visivelmente transtornado. Telefonou ao casal do Ohio, da casa dos Whitman, ficou a saber o número de telefone da sobrinha e falou com ela. Chama-se Caroline Summers. Dora Whitman ouviu-o perguntar a Caroline se ela tinha fax. Parece que tinha, porque ele disse que ia ao Caspien Hospital, ver se ainda lá estavam alguns Raios da filha e, se assim fosse, queria que ela lhe enviasse por fax a autorização para os levantar.

- Então foi lá depois de ter falado com o Broderick?

- Sim. E eu fui ao Caspien Hospital depois de ter saído de casa da Sr. Whitman. O funcionário lembrava-se de Nick Spencer ter lá ido, mas não tinha podido ajudá-lo. Os únicos Raios que estavam no hospital tinham sido enviados a Caroline Summers.

- Então, a sequência de acontecimentos parece indicar que a Sr. a Summers escreveu a tal carta a Spencer, algures em Novembro, e depois disso alguém se apressou a ir buscar os antigos registos do Dr. Spencer - disse Don.

Vi que ele estava a desenhar triângulos e pensei como interpretaria um psicólogo aquele tipo de rabiscos. Eu sei como interpretaria: uma terceira pessoa nos escritórios da Gen-stone levara aquela carta a sério e, ou agira na sequência dela, ou passara-a a outra pessoa.

- Há mais. Nick Spencer foi ao Ohio, encontrou-se com Caroline Summers e com a filha, examinou-a, pegou nos Raios que tinham sido tirados no hospital em Caspien e foi com ela ao hospital no Ohio, onde o médico afirmou poder ver vestigios de células com esclerose. O relatório da ressonância magnética tinha desaparecido.

Alguém, usando o nome de Caroline Summers, tinha-o levado na semana a seguir ao Dia de Acção de Graças. Nick pediu à Sr. a Summers que não falasse com ninguém sobre estas revelações e disse que voltaria a contactá-la. Claro que não chegou a fazê-lo.

- Ele tinha uma toupeira na empresa e, pouco mais de um mês depois, o avião despenha-se. - Ken voltou a pôr os óculos, sinal de que estávamos prestes a acabar a conversa. - Agora, é visto na Suíça e a sua amiga desapareceu.

- Quaisquer que sejam as voltas que demos à história, há milhões de dólares que desapareceram - disse Don.

- Carley, diz que falou com a mulher do Dr. Broderick. Ela deu-lhe alguma informação? - perguntou Ken.

- Falei com ela durante pouco tempo. Ela sabia que eu tinha estado no escritório dele a semana passada, e acho que ele lhe deu uma impressão favorável a meu respeito. Disse-lhe que havia alguns pontos que gostaria de discutir com ela, para a história que estou a escrever, e ela concordou em falar comigo, já que o marido estava fora de perigo. Só espero que ele venha a conseguir dizer-nos o que lhe aconteceu.

- O acidente de Broderick, um acidente de avião, registos roubados, o relatório de uma ressonância magnética roubado, uma mansão incendiada, uma secretária desaparecida, uma vacina contra o cancro fracassada e uma vacina que pode ter curado a esclerose múltipla, há treze anos - disse Don, enquanto se levantava. - E pensar que isto começou por ser a história de um patifório em fuga.

- Uma coisa vos digo - declarou Ken -, não há vacina antiga que alguma vez curasse esclerose múltipla.

O meu telefone tocou e corri a atendê-lo. Era Lynn. No seguimento dos relatos segundo os quais Nick fora visto na Suíça, juntamente com as notícias chocantes de que ele estava envolvido com a secretária, queria a minha ajuda na preparação de uma declaração à comunicação social. Charles Wallingford e Adrian Garner estavam a pressioná-la para que fizesse uma.

- Carley, mesmo que os relatos sobre Nick não venham a revelar-se verdadeiros, o facto de ele estar romanticamente ligado à secretária vai separar-me efectivamente das actividades dele, na cabeça das pessoas. Vão ver-me como uma esposa inocente. É isso que ambas queremos, não é?

- O que nós queremos é a verdade, Lynn - disse eu mas, com relutância, concordei em almoçar com ela mais tarde, no Fòur Seasons.

 

                         CAPÍTULO VINTE E NOVE

O Four Seasons estava, como sempre, bastante calmo à uma hora, a hora ideal para o almoço de pelo menos metade das pessoas que o frequentavam. Reconheci rostos familiares, do tipo daqueles que aparecem na secção de "Estilo" do Time. e também nas páginas dedicadas à política e aos negócios.

Julian e Alex, os donos, estavam ambos na recepção. Perguntei pela mesa da Sr. a Spencer e Alex disse:

- Ah, a reserva está feita em nome do Sr. Garner. Já chegaram todos. Estão na Sala da Piscina.

Com que então, isto não vai ser uma cimeira de meias-irmãs para salvar a reputação de uma delas, pensei, enquanto seguia o empregado ao longo do corredor de mármore que conduzia à sala de refeições. Perguntei-me por que razão Lynn não me dissera que Wallingford e Garner também estariam no almoço. Talvez tivesse pensado que eu não iria, se soubesse. Enganas-te, Lynn, pensei. Estou ansiosa por olhar bem para eles, especialmente para Wallingford. Mas preciso de resistir aos meus instintos de jornalista. Tencionava ser toda ouvidos e ter muito pouco para dizer.

Chegámos à Sala da Piscina, assim chamada por ter no meio uma grande piscina quadrada, maravilhosamente rodeada de árvores que se alteravam conforme a estação do ano. Sendo Primavera, elegantes macieiras, com ramos profusamente floridos, estavam em evidência. É uma sala bonita, com cores suaves, e aposto que são tantos os grandes negócios que se fazem aqui como os que têm lugar nos escritórios das empresas.

O empregado deixou-me com o chefe de mesa, e eu segui-o através da sala, até à mesa. Mesmo à distância, via como Lynn estava bonita. Trazia um fato preto, com gola e punhos brancos. Não conseguia ver-lhe os pés, mas as ligaduras tinham desaparecido das mãos. No domingo não tinha usado jóias, mas hoje uma grande aliança de casamento, em ouro, era visível no terceiro dedo da mão esquerda. À medida que as pessoas se dirigiam para as suas mesas, iam parando para cumprimentá-la.

Estaria ela a representar, ou estaria eu com uma tão grande predisposição para não gostar dela que dei por mim a desprezar aquele sorriso de coragem e o menear gaiato da cabeça, quando um homem, que reconheci ser o presidente e director-geral de uma empresa corretora, lhe apertou a mão?

- Ainda me dói - explicou-lhe ela, enquanto o chefe de mesa segurava a cadeira para eu me sentar. Ainda bem que ela tinha a cara virada para o outro lado. Poupou-me a necessidade de fazer o gesto de enviar-lhe um beijo pelo ar.

Adrian Garner e Charles Wallingford esboçaram a habitual intenção de se levantar, quando cheguei à mesa. Respondi com o habitual protesto e acomodámo-nos nos nossos lugares simultaneamente.

Devo dizer que ambos causavam uma forte impressão. Wallingford era um homem realmente atraente, com o tipo de feições refinadas que se conseguem em consequência da junção de várias gerações de sangue azul. Nariz aquilino, olhos de um azul frio, cabelo castanho-escuro, a ficar grisalho nas têmporas, um corpo bem cuidado e mãos impecáveis: era a essência do patrício. O seu fato cinzento-escuro com riscas quase imperceptíveis pareceu-me Armani. A gravata vermelho discreto e cinza, sobre uma camisa de crepe branco, completavam o quadro. Notei que várias mulheres lhe lançavam olhares apreciativos quando passavam pela mesa.

Adrian Garner devia ser mais ou menos da mesma idade que Wallingford, mas a semelhança terminava aqui. Era bastante mais baixo e, como eu havia notado no domingo, nem o seu corpo, nem o seu rosto mostravam o refinamento tão evidente em Wallingford. Tinha a pele tisnada, como se passasse muito tempo ao ar livre. Hoje, usava óculos sobre os seus olhos castanhos e profundos, e tinha um olhar penetrante. Quando olhou para mim, tive a sensação de que conseguia ler-me o pensamento. Havia uma aura de poder a envolvê-lo e transcendia o casaco desportivo e as calças castanhas bastante vulgares, que pareciam ter sido encomendados por catálogo.

Ele e Wallingford cumprimentaram-me. Estavam a beber champanhe e, ao meu sinal afirmativo, o empregado encheu o copo que estava à minha frente. Depois, vi Garner lançar um olhar irritado a Lynn, que continuava a falar com o tipo da corretora. Ela deve ter-se apercebido, porque terminou a conversa, virou-se para nós e pareceu entusiasmadíssima por eu estar ali.

- Carley, que bom teres vindo, apesar do aviso tão em cima da hora. Podes imaginar o turbilhão em que me encontro.

- Sim, claro.

- Não foi uma bênção, o Adrian ter-me avisado sobre a declaração de sábado, quando pensávamos que tinha sido encontrado um pedaço da camisa do Nick? E agora, depois de ouvir que o Nick terá sido visto na Suíça, e que a secretária dele desapareceu, não sei o que pensar.

- Mas não é isso que vai dizer - disse Wallingford em tom firme. Olhou para mim. - Tudo isto é confidencial - começou. Temos andado a fazer umas investigações lá no escritório. Era claríssimo, para muitos dos funcionários, que Nicholas Spencer e Vivian Powers estavam emocionalmente envolvidos. O sentimento é o de que Vivian permaneceu no emprego estas últimas semanas porque queria estar a par dos avanços da investigação sobre o acidente com o avião. O Ministério Público está a investigar, claro, mas nós contratámos a nossa própria agência de investigação. Obviamente, seria um grande alívio para Spencer se houvesse consenso sobre a sua morte. Mas, dado que foi visto na Europa, o jogo acabou. É agora considerado um fugitivo, e devemos presumir que essa tal Powers também fugiu. Para ela, já não havia necessidade de esperar mais a partir do momento em que se soube que ele sobreviveu ao acidente e, claro, se ela tivesse ficado por cá, as autoridades interrogá-la- iam.

-A única coisa boa que essa mulher fez por mim é que as pessoas já não me tratam como uma pária - disse Lynn. - Pelo menos, agora acreditam que fui tão enganada pelo Nick como elas. Quando penso...

- Menina DeCarlo, quando espera ver a sua história publicada?

- perguntou Adrian Garner.

Perguntei-me se eu seria a única pessoa à mesa a sentir-me irritada pela forma abrupta como ele interrompera Lynn. Tinha a certeza de que Garner fazia disso um hábito.

Deliberadamente, dei-lhe uma resposta do tipo "nem carne, nem peixe", esperando irritá-lo também.

- Sr. Garner, por vezes lidamos com dois elementos opostos. Um, é o tipo de notícia que se quer num artigo como este, e claro que Nicholas Spencer é um assunto quente. O outro aspecto é contar a história honestamente e não fazer dela uma mera compilação de rumores. Já teremos toda a história de Nicholas Spencer? Acho que não. De facto, a cada dia que passa estou mais convencida de que nem sequer arranhámos a superfície da história, por isso não posso responder à sua pergunta.

Vi que tinha conseguido enfurecê-lo, o que me agradou infinitamente. Adrian Nagel Garner pode ser um magnata bem-sucedido mas, segundo as minhas regras, isso não lhe dá o direito de ser mal-educado.

Era evidente que estávamos a definir as nossas linhas de batalha.

- Menina DeCarlo... - começou ele.

Interrompi-o.

- Os meus amigos chamam-me Carley - Não é só ele que pode interromper as pessoas quando elas estão a falar, pensei.

- Carley, as quatro pessoas sentadas a esta mesa, bem como os investidores e os funcionários da Gen-stone, são, todos eles vítimas de Nicholas Spencer. A Lynn disse-me que você investiu vinte e cinco mil dólares na empresa.

- Sim, investi. - Pensei em tudo o que ouvira sobre a mansão de Garner e a sua tecnologia e design de ponta, e decidi ver se conseguia deixá-lo pouco à vontade. - Era o dinheiro que estava a poupar para abater a hipoteca de um apartamento, Sr. Garner. Andei anos a sonhar com ele: um edifício com um elevador a funcionar, uma casa de banho com um manípulo do chuveiro a funcionar, talvez até um apartamento mais antigo, com lareira. Sempre gostei de lareiras.

Sabia que Garner era um selfmade man, mas ele não ia morder o isco e dizer qualquer coisa do género: "Sei o que é querer um chuveiro que funcione. " Ignorou os meus humildes sonhos de conseguir um lugar melhor para morar.

- Todos os que investiram na Gen-stone têm uma história para contar, um plano que foi destruído - disse ele, com voz suave.

- A minha empresa ficou na corda bamba por ter anunciado as suas intenções de comprar os direitos de distribuição da vacina da Gen- stone. Não fomos prejudicados financeiramente porque o nosso compromisso estava dependente da aprovação da FDA, depois de a vacina ser testada. Mesmo assim, a minha empresa foi seriamente atingida em termos morais, o que é um elemento essencial para o futuro de qualquer organização. As pessoas compraram acções da Gen- stone em parte devido à reputação sólida da Garner Pharma, ceutical. A culpa por associação é um factor psicológico de grande importância na comunidade negocial, Carley - Ia chamar-me Menina De Carlo, mas hesitou e disse "Carley". Acho que nunca tinha ouvido o meu nome ser pronunciado com tanto desprezo, e de súbito percebi que Adrian Garner, apesar de todo o seu poder, tinha medo de mim.

Não, pensei, "medo" é demasiado forte. Ele teme o facto de eu poder ajudar as pessoas a perceber que, não só Lynn, mas também a Garner Pharmaceutical Company, era vítima da colossal fraude de Spencer, a vacina contra o cancro.

Os três olhavam para mim, à espera da minha reacção. Decidi que era a minha vez de conseguir que eles me dessem alguma informação. Olhei para Wallingford:

- Conhece pessoalmente o accionista que afirma ter visto Nick Spencer na Suíça?

Garner levantou a mão antes que Wallingford pudesse responder:

- Talvez fosse melhor pedirmos.

Apercebi-me de que o maitre d'hôtel estava junto da nossa mesa. Pegámos nas ementas e fizemos as nossas escolhas. Adoro os pudins de caranguejo do Four Seasons e, por mais que olhe para o menu ou oiça o empregado recomendar-me o que quer que seja, esse prato e uma salada são a minha escolha quase inevitável.

Não há muitas pessoas a pedir bife tártaro, nos tempos que correm. Comer carne crua com ovos crus não é geralmente considerado o melhor método de chegar a uma provecta idade. Por isso, fiquei curiosa por ser essa a escolha de Adrian Garner.

Resolvidas as "necessidades alimentares", como Casey costuma dizer, repeti a minha pergunta a Wallingford:

- Conhece o accionista que diz que viu Nick Spencer na Suíça? Ele encolheu os ombros:

- Se o conheço? Sempre me interessou a semântica relativa a conhecer alguém. Para mim, "conhecer" significa que sabemos realmente coisas sobre a pessoa, não apenas que a vemos com regularidade em grandes reuniões, como as de accionistas, ou em coctails de caridade. O nome do accionista é Barry West. É segundo gerente de uma grande loja e, ao que parece, tem conduzido bem os seus investimentos. Veio às nossas reuniões quatro ou cinco vezes nos últimos oito anos, e sempre fez questão de falar comigo e com Nick. Há dois anos, quando a Garner Pharmaceutical concordou em juntar-se à distribuição da vacina depois de ela ser aprovada, Adrian colocou Lowell Drexel no nosso conselho de administração, como seu representante. Barry West tentou imediatamente insinuar-se junto dele.

Wallingford lançou um olhar a Adrian Garner:

- Ouvi-o perguntar a Lowell se você precisava de um gestor bom e sólido, Adrian.

- Se o Lowell for esperto, terá dito que não - disse Garner secamente.

Era evidente que Adrian Garner não tomava nenhum comprimido de simpatia de manhã mas, até certo ponto, apercebi-me de que estava a superar a minha irritação por causa das suas maneiras rudes. No campo da comunicação social ouvimos tanta evasiva que alguém que diz as coisas sem subterfúgios pode ser uma mudança refrescante.

- Seja como for - disse Wallingford -, acho sinceramente que Barry West teve oportunidade de ver Nick vezes suficientes e suficientemente de perto, de tal modo que quem ele viu ou era Nick ou alguém muito parecido com ele.

A minha primeira impressão no apartamento de Lynn, no domingo, fora a de que estes homens se detestavam cordialmente.

A guerra faz estranhas alianças e uma companhia falida também, pen sei. Mas também ficou claro para mim que eu não estava ali apenas para ajudar Lynn a explicar ao mundo que ela era uma vítima indefesa da infidelidade e das acções ilícitas do marido. Era importante, para todos eles, perceber qual o caminho que a história para a Wall Street estava a tomar.

- Sr. Wallingford - disse eu.

Ele levantou a mão. Sabia que ia pedir-me para tratá-lo pelo pri meiro nome. Pediu. E assim fiz.

- Charles, como sabe perfeitamente, estou apenas a escrever sobre o fracasso da Gen-stone e o desaparecimento de Nick Spencer do ponto de vista humano. Creio que tem falado bastante com o meu colega, Don Carter...

- Sim. Em cooperação com os nossos auditores, demos pleno acesso aos nossos livros a investigadores externos.

- Roubou todo aquele dinheiro e nem sequer quis ir comigo a Darien ver uma casa que era um excelente negócio - disse Lynn. Queria tanto que o nosso casamento resultasse, e ele não conseguiu compreender o quanto eu detestava viver na casa de outra mulher.

Para ser franca, tive que concordar com ela. Se eu casasse, não havia de querer viver em casa de outra mulher. Então, por breves instantes, apercebi-me de que se eu e Casey acabássemos juntos não teríamos esse problema.

- Demos ao seu colega, o Dr. Page, livre acesso ao nosso laboratório e aos resultados das nossas experiências - continuou Wallingford. - Infelizmente para nós, os primeiros resultados eram promissores, o que não é invulgar quando se procura uma droga ou uma vacina que previna ou atenue o crescimento das células cancerígenas. Foram muitas as vezes em que as esperanças foram desfeitas e as empresas se afundaram, simplesmente porque os resultados das pesquisas iniciais não vieram a confirmar-se. Foi o que aconteceu na Gen-stone. Porque roubaria ele tanto dinheiro? Nunca saberemos as razões que o levaram a começar a roubá-lo. Quando soube que a vacina não resultava e que as acções iam começar a cair, não houve maneira de encobrir o roubo, e foi provavelmente nessa altura que ele decidiu desaparecer.

Os jornalistas são ensinados a fazer cinco perguntas básicas: Quem? O quê? Porquê? Onde? Quando?

Escolhi a do meio.

- Porquê? - perguntei. - Porque faria ele isso?

- Inicialmente, talvez para poder pagar e ter mais tempo para tentar e provar que a vacina podia resultar - disse Wallingford. Depois, quando soube que a vacina não resultava e que tinha estado a falsificar dados, acho que concluiu que tinha apenas um caminho: roubar dinheiro suficiente para viver o resto da vida e fugir. A prisão federal não é o clube de campo que a comunicação social pinta.

Perguntei a mim própria se alguém teria alguma vez pensado a sério na prisão federal como um clube de campo. O que Wallingford e Garner estavam a dizer era essencialmente que eu provara ser de confiança, por estar ao lado de Lynn. Agora, poderíamos chegar a acordo sobre a forma de resumir a inocência dela e depois eu podia ajudar a reconstruir a credibilidade deles, pela forma como apresentasse a minha parte da investigação para a história que estava a escrever.

Estava na altura de eu voltar a dizer uma coisa que pensei que já tivesse dito vezes suficientes.

- Vou ter que repetir uma coisa que espero que compreendam - disse-lhes.

As nossas saladas estavam a ser servidas e eu esperei, para acabar de dizer o que tinha a dizer. O empregado perguntou se queríamos pimenta moída. Só Adrian Garner e eu aceitámos. Quando o empregado se afastou, disse-lhes que ia escrever a história conforme a visse mas, no intuito de escrevê-la bem e de forma certa, iria necessitar de marcar entrevistas com Charles Wallingford e com o Sr. Garner. Reparei, de súbito, que ele não me pedira que o tratasse por Adrian.

Ambos concordaram. Com relutância? Provavelmente, mas era difícil dizê-lo com certeza absoluta.

Com os nossos assuntos, por assim dizer, resolvidos, Lynn estendeu-me as mãos por cima da mesa. Vi-me forçada a responder ao gesto e toquei nas pontas dos dedos dela com as dos meus.

- Carley, tens sido tão boa para mim - disse ela, com um suspiro profundo. - Estou tão contente por achares que as minhas mãos, embora estejam queimadas, estão limpas.

As famosas palavras de Pôncio Pilatos varreram-me o pensamento: "Lavo as mãos do sangue deste homem inocente".

Mas Nick Spencer, pensei, por mais puros que os seus motivos possam ter sido originalmente, era certamente culpado de roubo e fraude, não era?

Era para isso que tudo apontava. Ou não?

 

                               CAPÍTULO TRINTA

Antes de sair do restaurante, combinámos as minhas entrevistas com Wallingford e Garner. Tentei tirar o máximo partido e sugeri encontrar-me com eles nas respectivas casas. Wallingford, que vive em Rye, um dos subúrbios mais elegantes de Wechester County, disse prontamente que podia telefonar-lhe no sábado ou no domingo à tarde, às três horas.

- Sábado é melhor para mim - respondi, pensando em Casey e no coctailonde ia com ele no domingo. Depois, cruzando os dedos, lancei a escada:

- Quero ir também aos vossos escritórios, falar com alguns dos vossos empregados para pedir-lhes que digam o que sentem sobre a perda dos seus planos de poupança e reforma e sobre a falência, e como tudo isto vai afectar as suas vidas.

Vi-o tentar pensar rapidamente numa forma educada de recusar, por isso acrescentei:

- Anotei os nomes de alguns accionistas, na reunião da semana passada e também vou falar com eles. - Claro que aquilo que queria perguntar aos empregados era se era do conhecimento geral que Nick Spencer e Vivian Powers estavam emocionalmente envolvidos.

Foi bastante claro que Wallingford não gostou nada do pedido, mas cedeu, porque estava a tentar que eu escrevesse a história da forma que lhe interessava.

- Acho que não há qualquer problema nisso - disse ele pouco depois, num tom gelado.

- Então, até amanhã à tarde, cerca das três horas - apressei-me a dizer. - Prometo ser breve. Quero apenas saber qual é a reacção geral, para escrever no artigo.

Ao contrário de Wallingford, Garner recusou prontamente ser entrevistado em casa.

- A casa de um homem é o seu castelo - disse. - Nunca trato de negócios em casa.

Gostaria de ter-lhe recordado que até o Palácio de Buckingham estava aberto aos turistas, mas contive-me. Quando terminámos o café expresso, estava mais que pronta a sair dali. Não é suposto um jornalista deixar que as emoções se misturem com uma história, mas enquanto permanecia ali sentada sentia crescer a minha fúria. Parecia-me que Lynn estava francamente contente por o marido ter um romance sério antes do seu desaparecimento. Fazia-a parecer melhor, até mesmo simpática, e isso era tudo o que lhe importava.

Wallingford e Garner estavam também em sintonia. Mostremos ao mundo que somos vítimas: era esse o sentido de tudo o que me disseram. De nós quatro, pensei, sou a única que parece vagamente interessada na possibilidade de, se Nicholas Spencer puder ser encontrado, haver forma de recuperar pelo menos algum do dinheiro. Isso seriam belíssimas noticias para os accionistas. Talvez eu conseguisse recuperar parte dos meus vinte e cinco mil dólares. Ou talvez Wallingford e Garner estivessem a partir do princípio que, mesmo que Nick fosse encontrado e extraditado, teria provavelmente enterrado o dinheiro tão fundo que nunca seria possível encontrá-lo.

Depois de ter recusado receber-me em sua casa, Garner disse que eu podia telefonar-lhe para o escritório no edifício Chrysler, e que poderia conceder-me uma entrevista rápida às 9h30 da manhã de séxta feira.

Sabendo que poucos jornalistas tinham conseguido chegar tão longe com Adrian Garner - era famoso por não dar entrevistas -, agradeci-lhe de forma razoavelmente calorosa.

Antes de sairmos, Lynn disse:

- Carley, comecei a dar uma volta pelos objectos pessoais do Nick. Encontrei o prémio que lhe atribuíram em Fevereiro, na cidade onde ele nasceu. Tinha-o metido numa gaveta. Foste a Caspien procurar informações sobre ele, não foste?

- Sim, fui. - Não quis admitir que tinha lá estado outra vez, há menos de vinte e quatro horas.

- O que é que as pessoas de lá pensam sobre ele?

- O mesmo que pensam todas as pessoas, no geral. Foi tão convincente que o Caspien Hospital investiu muito dinheiro na Gen-stone depois do jantar de homenagem. Por isso, tiveram que cancelar os planos de construção da ala pediátrica.

Wallingford abanou a cabeça. Garner tinha um ar carrancudo e percebi também que estava cada vez mais impaciente. O almoço terminara. Queria ir-se embora.

Lyn não deu resposta ao facto de o hospital ter perdido dinheiro destinado a benefIciar crianças doentes e, em vez disso, perguntou:

- Quero dizer, o que é que eles disseram sobre o Nick antes de o escândalo ter rebentado?

- Leram-se os mais rasgados elogios no jornal local, depois de o avião se ter despenhado - disse eu. - Ao que parece, o Nick foi um aluno excelente, um bom miúdo e excelente em desporto. Havia uma grande fotografIa dele quando tinha cerca de dezasseis anos, a segurar um troféu. Foi campeão de natação.

- O que pode significar que ele foi capaz de encenar o acidente e depois nadar até terra - sugeriu Wallingford.

Talvez, pensei. Mas se ele foi suficientemente esperto para fazer isso, parece-me bastante estranho que não tenha sido suficientemente esperto para não se deixar ver na Suíça.

Voltei ao escritório e verifiquei as minhas mensagens do correio electrónico. Algumas eram bastante desconcertantes. A primeira que li dizia: "Quando a minha mulher lhe escreveu, o ano passado, nem sequer se deu ao trabalho de responder, e agora ela está morta. AfInal, não é lá muito esperta. Já descobriu quem esteve em casa de Lynn Spencer antes do incêndio? "

Quem era este tipo? pensei. Obviamente, a não ser que tudo não passasse de uma brincadeira idiota, era um doente mental. Pelo endereço, vi que era o mesmo tipo que me tinha enviado uma mensagem estranha, havia alguns dias. Tinha-a guardado, e desejei ter guardado a outra que me parecera estranha, aquela, que dizia: "Prepara-te para o Dia do Juízo Final. " Apaguei-a, porque na altura pensei que era de um doido qualquer, de uma seita. Agora, interrogava-me sobre se teria sido o mesmo tipo a enviar as três.

Teria estado alguém naquela casa com Lynn? Pelo que o casal Gomez me dissera, era perfeitamente possível que ela tivesse visitas até tarde. Interroguei-me sobre se deveria mostrar-lhe esta mensagem e dizer: "Não achas ridículo? " Seria interessante ver a reacção dela.

A outra mensagem que me deixou nervosa estava no meu gravador de chamadas e era de uma supervisora do gabinete de Raios do Caspien Hospital. Dizia que tinha uma coisa importante para esclarecer comigo.

Telefonei-lhe imediatamente.

- Menina DeCarlo, esteve aqui ontem, a falar com a minha assistente? - disse ela.

- Sim.

- Sei que Lhe pediu uma cópia dos Raios do bebé Summers, dizendo que a Sr. a Summers estava disposta a enviar-lhe uma autorização, por fax, para poder levantá-la.

- É verdade.

- Acho que a minha assístente Lhe disse que não ficamos com cópias. Mas, tal como expliquei ao marido da Sr. a Summers quando ele as veio buscar, a 28 de Novembro do ano passado, ele ia levar consigo tudo o que tínhamos e por isso, se quisesse, poderíamos fazer duplicados para ele levar. Ele disse que não seria necessário.

- Compreendo. - Não sabia o que dizer. Sabia que o marido de Caroline Summers não levantara esses Raios X, tal como não levantara os resultados da ressonância magnética no Ohio. Quem quer que tivesse lido e levado a sério a carta que Caroline Summers escreveu a Nicholas Spencer não teria certamente deixado nada ao acaso. Usando o nome de Nick Spencer, roubara os registos do Dr. Spencer, que o Dr. Broderick tinha na sua posse, depois roubara os Raios do Caspien Hospital, que mostravam que a bebé tinha esclerose múltipla e, finalmente, roubara os resultados da ressonância magnética do hospital de Ohio. Tinha-se dado a muito trabalho, pelo que tinha que haver uma boa razão.

Don estava sozinho no seu gabinete. Entrei:

Tem um minuto?

- Claro.

Contei-lhe do almoço no Four Seasons.

- Muito bem - disse ele. - O Garner é um tipo difícil de fisgar. Depois, falei-lhe nos Raios que alguém, fazendo-se passar pelo marido de Caroline Summers, levara do Caspien Hospital.

- Não há dúvida de que não se esqueceram de nada, sejam lá quem forem - disse Carter, devagar -, o que certamente prova que a Gen-stone tem - ou teve - uma boa toupeira metida nos escritórios. Falou sobre alguma destas coisas ao almoço?

Olhei para ele.

- Desculpe - disse ele. - Claro que não falou. Mostrei-lhe a mensagem de correio electrónico.

- Não sei bem se este tipo é doido ou não - disse eu.

- Eu também não - disse-me Don Carter -, mas acho que devia avisar as autoridades. A polícia adoraria chegar até este tipo, porque ele pode ser uma testemunha importante por causa do fogo. Sabemos que a polícia de Bedford deteve um miúdo apanhado a conduzir sob a influência de drogas. A famIlia tem um advogado poderoso, que quer fazer um acordo. A moeda de troca é o testemunho do miudo contra Marty Bikorsky. O miúdo diz que vinha de uma outra festa, há uma semana, por volta das três da manhã de terça-feira, e passou pela casa dos Spencer. Jura que viu o Bikorsky a conduzir a carrinha, muito devagar, diante da casa.

- Como sabia ele que era a carrinha de Marty Bikorsky, por amor de Deus? - protestei.

- Porque o pára-choques do carro do miúdo soltou-se, em Mount Kisco, e ele acabou na estação de serviço onde Marty trabalha. Viu o carro dele e a matrícula chamou-lhe a atenção. É M. O. B. E o nome completo do Bikorsky é Martin Otis Bikorsky

- Porque é que ele não tinha dito nada até agora?

- O Bikorsky já tinha sido preso. O miúdo tinha ido à festa sem os pais saberem e já tinha problemas de sobra. Diz que se tivessem prendido o tipo errado ele teria dito qualquer coisa.

- Ora não temos aqui um verdadeiro cidadão-modelo? - disse eu, mas na verdade estava consternada com o que Don me tinha contado. Lembrava- me de ter perguntado a Marty se ele tinha ficado sentado no carro quando foi lá fora, fumar. Apercebi-me de que a mulher lhe lançou um olhar de aviso. Seria aquela a razão? Interrogava-me agora como me interrogara na altura. Teria ele ido dar uma volta, em vez de ter ficado no carro com o motor ligado? No bairro onde ele vivia, as casas eram todas muito próximas umas das outras. Um motor a trabalhar a meio da noite poderia ser notado por um vizinho a dormir com a janela aberta. Seria natural que, zangado, transtornado e com umas cervejas bebidas, Bikorsky tivesse passado pela antiga e bela mansão de Bedford e pensado que estava prestes a perder a sua casa. E depois talvez tenha passado à acção.

As mensagens de correio electrónico que eu estava a receber pareciam confirmar esta versão dos acontecimentos, coisa que achava muito perturbadora.

Vi que Don me observava.

- Está a pensar que os juízos que faço sobre as pessoas não são lá grande coisa? - perguntei-Lhe.

- Não, estava a pensar que tenho pena que não sejam grande coisa no caso deste tipo. Pelo que me disse, Marty Bikorsky tem muito com que se preocupar. Se ele se passou e deitou fogo àquela casa, vai

passar uns bons tempos na cadeia, isso garanto-lhe. Há demasiada gente com dinheiro em Bedford para ser admissível que alguém incendeie uma das casas e se safe. Vá por mim, se lhe deitam a mão, não tem hipótese.

- Espero que não deitem - disse eu. - Estou convencida de que ele não é culpado.

Fui até à minha secretária. Ainda lá estava o exemplar do Post. Abri-o na página três, onde vinha a história sobre alguém que dizia ter visto Spencer na Suíça e a notícia do desaparecimento de Vivian Powers. Só tinha lido os primeiros parágrafos. O resto era sobretudo uma variação sobre a história da Gen-stone, mas encontrei a informação que tinha esperança que lá estivesse: o nome da família de Vivian Powers, em Boston.

Allan Desmond, o pai, fizera uma declaração: "Não acredito, de forma nenhuma, que a minha fIlha se tenha juntado a Nicholas Spencer, na Europa. Nestas últimas semanas falou frequentemente ao telefone com a mãe, com as irmãs e comigo. Estava muito abalada com a morte dele e pensava voltar para Boston. Se ele está vivo, ela não sabia. Sei perfeitamente que ela nunca seria capaz de fazer passar a família por esta angústia. O que quer que lhe tenha acontecido ocorreu sem a colaboração e sem o consentimento dela. "

Eu também achava que sim. Vivian Powers estava realmente a sofrer por Nicholas Spencer. É preciso uma crueldade especial para desaparecer deliberadamente e deixar a família num desespero permanente, a pensar no que teria acontecido.

Sentei-me à secretária e olhei para as notas que tinha tomado sobre a minha visita a casa de Vivian. De repente, lembrei-me de uma coisa. Ela dissera que, em resposta à carta da mãe da criança que tinha sido curada de esclerose múltipla, fora enviada uma carta-tipo. Lembrei-me que Caroline Summers me tinha dito que nunca recebera qualquer resposta. Por isso, não só alguém tinha passado a carta a uma terceira pessoa, como também destruíra qualquer registo da sua existência.

Decidi que tinha obrigação de telefonar á polícia de Bedfor para informá-la sobre as mensagens de correio electrónico. O detective que me atendeu mostrou-se cordial, mas não pareceu particularmente impressionado. Pediu-me que Lhe enviasse uma cópia por fax.

- Vamos passar a informação à brigada de incêndios e ao Ministério Público - disse ele. - E vamos fazer a nossa própria investigação para tentar chegar a quem envia, mas tenho a sensação de que alguém que quer divertir-se à sua custa, menina DeCarlo. Temos a certeza absoluta de que temos o homem certo.

Não valia a pena dizer-lhe que, mesmo assim, eu tinha a certeza absoluta de que ele estava enganado. O meu telefonema seguinte foi para Marty Bikorsky. Respondeu-me outra vez o atendedor de cha madas.

- Marty, sei que tudo lhe parece perdido, mas eu ainda estou do seu lado. Gostaria muito de voltar a falar consigo.

Comecei a deixar o meu número de telemóvel, para o caso de Marty o ter perdido, mas ele atendeu antes de eu ter terminado. Aceitou encontrar-se comigo depois de eu sair do trabalho. Ia já a sair quando pensei numa coisa e voltei a ligar o computador. Sabia que

tinha lido um artigo da Beautiful, onde Lynn aparecia fotografada na casa de Bedford. Se a minha memória estava correcta, havia uma série de fotografias no exterior. Aquilo em que eu estava particularmente interessada era na descrição dos jardins e terrenos circundantes. Encontrei o artigo, fiz o download, e felicitei-me por ter uma memória tão boa. Depois, fui-me embora.

Desta vez, fiquei presa no trânsito das cinco horas para Wesches ter e quando cheguei a casa dos Bikorsky eram já vinte para as sete. Se ele e Rhoda tinham um ar debilitado quando estivera com eles, no sábado, hoje pareciam decididamente doentes. Sentámo-nos na sala. Ouvia o som da televisão que vinha do quartinho ao lado da cozinha, e presumi que Maggie estivesse lá.

Fui directa ao assunto.

- Marty, tenho a sensação de que há qualquer coisa de errado quando me diz que ficou sentado no carro ao frio, com o motor a trabalhar, naquela noite, e não acredito que tenha sido isso que aconteceu. Foi dar uma volta de carro, não foi?

Não foi difícil ver que Rhoda se opusera veementemente à minha vinda ali. O sangue subiu-lhe ao rosto e, em voz baixa, disse:

- Carley, parece ser boa pessoa, mas é jornalista e quer uma história. Aquele miúdo estava errado. Não viu o Marty. O nosso advogado vai descobrir pontos fracos na história que ele conta. O miúdo está a tentar livrar-se de sarilhos, tirando proveito da acusação contra o Mar. Vai dizer tudo o que for preciso para fazer um acordo. Recebi alguns telefonemas de pessoas, que nem sequer nos conhecem, a dizer que aquele miúdo é um mentiroso. O Marty não saiu da frente da nossa casa, naquela noite.

Olhei para Marty.

- Quero mostrar-lhe estas mensagens - disse. Observei-o enquanto ele as lia e depois as passava a Rhoda.

- Quem é este tipo? - perguntou-me ele.

- Não sei, mas neste momento a polícia está a tentar descobrir a origem das mensagens. Vão encontrá-lo. Parece- me um doido qualquer, mas pode ter andado a rondar a casa. Pode até ter sido ele a pôr o fogo. A questão é que, se continua a manter a história de que não passou pela casa dos Spencer dez minutos antes de ela ter sido incendiada, e estiver a mentir, pode haver mais algumas testemunhas a avançar. Então, será realmente o seu fim.

Rhoda começara a chorar. Ele dava-lhe pequenas palmadas no joelho e, por momentos, não disse nada. Finalmente, encolheu os ombros.

- Eu estive lá - disse ele, numa voz pesada -, exactamente como descreveu, Carley Bebi umas cervejas depois do trabalho, como lhe disse, e estava com dor de cabeça e pus-me a dar umas voltas. Ainda estava furioso, admito, furioso a valer. Nem sequer era só a casa. É o facto de a vacina contra o cancro não ser verdade. Não sabe como rezei para ficar pronta a tempo de ajudar a nossa Maggie.

Rhoda enterrou o rosto nas mãos. Marty pôs-lhe o braço sobre os ombros.

- Parou na casa? - perguntei.

- Parei apenas o tempo suficiente para abrir a janela da carrinha e cuspir na casa e em tudo o que ela representava. Depois, vim para casa.

Acreditei nele. Juraria que ele estava a dizer a verdade. Inclinei-me para a frente.

- Marty, esteve lá uns minutos antes de o fogo ter começado. Viu alguém a sair da casa, ou talvez outro carro a passar por lá? Se aquele miúdo está a dizer a verdade, e o viu, também o viu a ele?

- Veio um carro da direcção contrária e passou por mim. Pode ter sido o miúdo. A menos de um quilómetro, passou outro carro na direcção da casa.

- Notou qualquer coisa em particular?

Ele abanou a cabeça.

- Nem por isso. Pela forma dos faróis pensei que era um carro muito velho, mas não posso jurar.

- Viu alguém na estrada, vindo da direcção da casa?

- Não, mas se o tipo que mandou esta mensagem estava lá, ele pode ter razão. Lembro-me que havia um carro estacionado do lado de lá do portão.

- Viu um carro?

- Foi só de passagem. - Encolheu os ombros. - reparei quando parei e abri a janela, mas só lá estive durante uns segundos.

- Marty, como era esse carro?

- Era um sedan escuro, é tudo quanto posso dizer. Estava estacionado fora do caminho da entrada, atrás de um pilar, à esquerda do portão.

Tirei da mala o artigo que fora buscar à Internet e encontrei uma fotografia da propriedade; tirada da estrada.

- Mostre-me.

Ele inclinou-se para a frente e observou a fotografia.

- Veja, era aqui que o carro estava estacionado - disse ele, apontando para um local logo depois do portão.

A legenda da figura dizia: "Um encantador caminho empedrado conduz a um lago".

- O carro devia estar no empedrado. O pilar mal o esconde da estrada - disse Marty.

- Se o autor desta mensagem viu mesmo um homem no caminho, aquele podia ser o carro dele - disse eu.

- Porque não teria levado o carro até à casa? - perguntou Rhoda. - Porquê estacionar ali e ir a pé pelo caminho até à entrada?

- Porque quem quer que lá tenha estado não queria que o carro fosse visto - disse eu. - Marty, sei que tem que falar com o seu advogado sobre isto, mas li os relatórios sobre o fogo com todo o cuidado.

Nenhum deles mencionava um carro estacionado ao portão, por isso quem quer que lá tenha estado saiu antes de os bombeiros terem chegado.

- Talvez tenha sido ele quem ateou o fogo - disse Rhoda, com uma espécie de esperança na voz. - O que estava ele a fazer ali, se escondeu o carro?

- Há muitas perguntas sem resposta - disse eu, enquanto me levantava. - Os polícias hão-de descobrir quem enviou as mensagens. Isso pode ser bom para si, Marty. Eles prometeram dizer-me quem é. Volto a falar consigo assim que puder.

Assim que se pôs de pé, Marty fez a pergunta que também me bailava no espírito:

- A Sr. a Spencer disse que teve companhia nessa noite?

- Não, não disse.

Depois, por lealdade, acrescentei:

-Já viram o tamanho da propriedade. Alguém pode ter estado lá sem ela ter sabido.

- Mas não com um carro, a não ser que soubesse a combinação para abrir o portão, ou que alguém da casa o abrisse. Essas coisas funcionam assim. Os polícias investigaram quem trabalhava lá, ou estão apenas concentrados em mim?

- Não sei responder a isso. Mas posso dizer-lhe que vou descobrir. Vamos começar pela mensagem e ver até onde ela nos leva.

O antagonismo que Rhoda mostrara em relação a mim quando cheguei desaparecera. Disse:

- Carley, acha mesmo que há alguma hipótese de eles descobrirem o tipo que ateou o fogo?

- Sim, acho.

- Talvez os milagres ainda aconteçam...

Não estava a falar apenas do fogo.

- Eu acredito neles, Rhoda - disse eu, com firmeza e plenamente convicta.

Mas, enquanto regressava a casa, estava certa de que o milagre que ela mais queria ia ser-Lhe negado. Sabia que não conseguiria ajudá-la nesse aspecto, mas faria tudo o que me fosse possível para ajudar Marty a provar a sua inocência. Já seria suficientemente terrível para ela suportar a morte da filha, mas tudo seria ainda pior se não pudesse ter o marido ao lado.

Eu sei o que isso é, pensei.

 

                         CAPÍTULO TRINTA E UM

"Basta a cada dia o seu problema". Era assim que me sentia quando cheguei a casa, depois de ter estado com Marty e Rhoda Bikorsky. Eram quase nove horas. Estava cansada e com fome. Não me apetecia cozinhar. Não me apetecia pisa. Não me apetecia comida chinesa. Abri o frigorífico e fiquei completamente desolada. Fui saudada por uma mistura patética de queijo seco nas pontas, uns ovos, um tomate maduro, alface podre e um quarto de uma baguette de que me esquecera por completo.

Julia Child seria capaz de transformar isto num prato requintado, disse a mim própria. Vamos ver do que sou capaz.

Pensando naquela chefencantadora e excêntrica, meti mãos ao trabalho e não me saí nada mal. Primeiro, deitei numa tigela um copo de Chardonnay, Depois, tirei as folhas castanhas da alface, misturei alho, azeite e vinagre, e fiz uma salada. Cortei a baguette em fatias finas, polvilhei-as de queijo parmesão e meti-as no grelhador. O que consegui aproveitar do queijo e do tomate resultou numa saborosíssima omeleta.

Nem toda a gente sabe fazer uma omeleta, pensei, dando os parabéns a mim própria.

Comi num tabuleiro, sentada na cadeira que estava na sala de estar da casa onde cresci. Tinha os pés numa banqueta; era reconfortante estar em casa, descansada. Abri uma revista que andava a querer ler, mas descobri que não conseguia concentrar-me na leitura, porque os acontecimentos do dia continuavam a agitar-se na minha cabeça.

Vivian Powers. Podia vê-la à porta de casa, enquanto entrava no carro e me vinha embora. Consigo perceber por que razão Manuel Gomez comentou que estava feliz por Nick a ter conhecido. Fosse por que fosse, não conseguia imaginar estas duas pessoas, a quem o cancro levara pessoas que amavam, a viver na Europa com dinheiro que devia ter sido usado na luta contra o cancro.

O pai de Vivian jurara que a filha nunca deixaria a família angus tiada, a pensar no que poderia ter-lhe acontecido. O filho de Nick Spencer continuava agarrado à esperança de que o pai estivesse vivo. Seria Nick realmente capaz de deixar uma criança órfã de mãe viver todos os dias na esperança de voltar a ter notícias do pai?

O primeiro serviço noticioso local era emitido às dez horas, e eu liguei a televisão, ansiosa por ver se havia novos desenvolvimentos sobre Spencer ou Powers. Estava com sorte. Barry West, o accionista que dizia ter visto Nick, ia ser entrevistado. Mal podia esperar. Depois da habitual torrente de publicidade, veio a notícia do dia.

Era evidente que West estava longe de ser o Sherlock Holmes. Era um tipo de estatura média, rechonchudo, com bochechas semelhantes a pudins de maçã e com umas entradas pronunciadas. Estava sentado na esplanada do café onde dizia que vira Nicholas Spencer.

O correspondente da Fox News em Zurique foi directo ao assunto:

- Sr. West, era aqui que estava sentado quando pensou ter visto Nicholas Spencer?

- Eu nãopensei tê-lo visto. Eu vi-o - disse West enfaticamente. Não sei porquê, mas esperava que ele tivesse uma voz nasalada. Estava enganada: tinha uma voz forte, mas modulada.

- Eu e a minha mulher tivemos que tomar uma decisão sobre cancelar estas férias ou não - continuou ele. - Fazemos vinte e cinco anos de casados, e há muito tempo que planeámos a viagem, mas perdemos muito dinheiro na Gen-stone. Mas acabámos por chegar cá na sexta-feira, e na terça à tarde estávamos sentados aqui a conversar sobre como estávamos felizes por não termos ficado em casa, quando olhei para ali, por acaso.

Apontou para uma mesa que se encontrava na fila mais afastada do café.

- Estava ali mesmo. Nem queria acreditar. Fui a suficientes reuniões de accionistas da Gen-stone para conhecer o Spencer. Tinha mudado o cabelo (era louro escuro e agora está preto), mas eu reconhecê-lo-ia nem que tivesse um barrete de esqui enfiado na cabeça. Conheço-o bem.

- Tentou falar com ele, não foi, Sr. West?

- Falar com ele... Gritei-Lhe: "Ch, Spencer, quero falar consigo!"

- E o que aconteceu?

- Vou dizer-lhe exactamente o que aconteceu. Ele deu um salto, atirou algum dinheiro para cima da mesa e fugiu. Foi isso que aconteceu.

O repórter apontou para a mesa onde Spencer estivera alegadamente sentado:

- Deixamos o assunto à vossa consideração. No momento em que estamos a gravar esta reportagem, as condições atmosféricas e a altura du dia são as mesmas de terça-feira, quando Barry West acredita ter visto Nicholas Spencer sentado àquela mesa. Neste momento, temos um membro da nossa equipa, que tem aproximadamente o mesmo peso e a mesma estatura que o Sr. Spencer, sentado à mesma mesa. Conseguem vê-lo claramente?

Àquela distância, o membro da equipa escolhido podia, de facto, ser Nicholas Spencer. Até os traços fisionómicos eram do mesmo tipo. Mas não via como é que alguém que olhasse para ele conseguisse, àquela distância e daquele ângulo, fazer uma identificação inequívoca.

A câmara voltou a focar Barry West.

- Eu vi Nicholas Spencer - disse ele com firmeza. - Eu e a minha mulher pusemos cento e cinquenta mil dólares na empresa dele. Exijo que o nosso governo mande alguém atrás desse tipo e o obrigue a dizer onde pôs o dinheiro. Trabalhei muito para o conseguir e quero-o de volta!

O correspondente da Fox continuou:

- Segundo as informações que temos, várias equipas de investigação estão a seguir esta pista, ao mesmo tempo que investigam o desaparecimento de Vivian, a mulher que se diz ser amante de Nicholas Spencer.

O telefone tocou e desliguei a televisão. Mesmo que o telefone não tivesse tocado, estava prestes a desligá-la. Já estava mais do que farta de ouvir pessoas pretenderem transformar as suas invenções em factos.

Sei que a minha voz soou apressada e impaciente:

- Estou?

- Que aconteceu? Fizeram-te dar voltas no túmulo, ou quê? Pareces capaz de engolir alguém!

Era Casey.

Ri.

- Estou um bocado cansada - disse eu. - Talvez um bocado triste, também.

- Então, o que é que se passa?

- Doutor, parece que está a perguntar-me "Onde é que dói? ".

- Talvez esteja.

Fiz-lhe um resumo rápido do dia e terminei com:

- O pior de tudo é que acho que Marty Bikorsky está a ser usado e acho que aconteceu qualquer coisa muito má a Vivian Powers. O tipo que disse que viu Nick Spencer em Zurique pode ter razão, mas daí a ter uma certeza vai um caminho muito longo!

- A polícia consegue chegar ao autor das mensagens que recebeste.

- A não ser que o tipo seja um desses craques informáticos, con segue, ou pelo menos diz que sim.

- Então, a não ser que ele seja um desses fanáticos dos computadores, como tu dizes, podes ter qualquer coisa para ajudar o Bikorsky. Falando de outro assunto, no domingo se calhar não vamos a Greenwich, por isso, o que gostarias de fazer? Se o tempo estiver bom, uma sugestão pode ser ir por aí sem destino e jantar algures, à beira-mar.

- Os teus amigos cancelaram a festa? Pensei que fosse a comemoração de um aniversário...

Ouvi a hesitação na voz de Casey:

- Não, mas quando telefonei ao Vince para lhe dizer que ias comigo, fiz referência ao teu novo emprego e ao facto de estares a escrever uma história sobre Nicholas Spencer.

- E...

- E senti que havia qualquer coisa errada. Ele disse que estava a pensar em ti como a autora da coluna de aconselhamento financeiro, quando eu e ele tinhamos falado na possibilidade de tu ires. O problema é que os pais da primeira mulher do Nick Spencer, Reid e Susan Barlowe, são vizinhos dele, e vão à festa. O Vince diz que têm andado arrasados, com toda esta história sobre o Spencer.

- Têm o filho do Nick com eles, não têm?

- Sim. Aliás, o Jack Spencer é o melhor amigo do filho do Vince.

- Ouve, Casey - disse eu -, não vou ser eu a impedir-te de ires a esse jantar. Vais só tu e pronto!

- Nem pensar - disse ele, em tom decidido.

- Podemos sair no sábado, ou na segunda, ou noutro dia qualquer. Mas confesso que daria tudo para falar com os ex-sogros de Nick. Eles recusam-se a falar com a comunicação social, e acho que não estão a fazer bem nenhum ao neto. Dou-te a minha palavra de honra que não vou falar no nome de Nick Spencer, se for a essa festa, nem vou fazer-lhes uma única pergunta, nem directa, nem indirecta, mas talvez possam telefonar-me mais tarde, se souberem da minha existência.

Casey não respondeu, e eu ouvi a minha voz subir de tom e dizer:

- Que raio, Casey, os Barlowe não podem meter as cabeças na areia. Passa-se aqui qualquer coisa grave e eles deviam saber disso. Apostava a minha própria vida em como aquele idiota do Barry West, que diz que viu o Spencer em Zurique, viu apenas alguém parecido com ele! Casey, Vivian Powers, a secretária de Nick, desapareceu. Contei-te sobre o Dr. Broderick. Continua em estado crítico. A casa de Nick, em Bedford, foi incendiada. Nick estava muitas vezes com os ex-sogros. Confiou-lhes o filho. Não será possível que lhes tenha dito qualquer coisa que possa lançar alguma luz sobre isto tudo?

- O que dizes faz todo o sentido, Carley - disse Casey, francamente. - Vou falar com o Vince. Pelo que ele disse, acho que os Barlowe estão a chegar ao limite, com todas estas noticias contraditórias sobre Nick Spencer. O filho, o Jack, vai ficar numa situação terrível se isto tudo não se resolver. Talvez o Vince os convença a falar contigo.

- Vou fazer figas.

- OK. Mas, seja como for, estamos combinados para domingo.

- Óptimo, Doutor.

- Mais uma coisa, Carley.

- Sim...

- Telefona-me quando descobrires quem te mandou essas mensagens. Acho que tens razão. Aposto que vieram todas do mesmo sítio, e não gosto daquela que fala do dia do juízo final. O tipo parece doido, e talvez tenha uma fixação por ti, e isso preocupa-me. Tem cuidado.

Casey pareceu-me tão sério que me vi na necessidade de animá-lo.

- Não julgues, para que não sejas julgado - sugeri.

- Quem te avisa, teu amigo é - contrapôs. - Boa noite, Carley.

 

                         CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Agora que a espingarda estava guardada no túmulo de Anne, Ned sentiu-se em segurança. Sabia que os polícias haviam de voltar, por isso não ficou surpreendido quando lhe tocaram novamente à campainha. Desta vez, abriu a porta imediatamente. Sabia que estava com melhor ar do que na terça-feira. Depois de ter enterrado a espingarda, na terça-feira à tarde, ficara com as roupas e as mãos cheias de lama, mas não se importara. Quando chegara a casa, abrira a nova garrafa de whisky, instalara-se na sua cadeira e bebera até adormecer. Ao enterrar a espingarda, não conseguira deixar de pensar que, se continuasse a cavar, conseguiria chegar ao caixão de Annie, abri- lo e tocar-lhe.

Teve que fazer um grande esforço para voltar a pôr a terra no sítio e deixar a sepultura em paz. Sentia tanta falta dela!

No dia seguinte, acordou por volta das cinco horas da manhã, e apesar de a janela estar suja, conseguiu ver o Sol a nascer. A sala ficou tão clara que ele reparou nas mãos e viu como estavam sujas. A roupa também estava coberta de lama.

Se os polícias tivessem chegado naquela altura, teriam perguntado: "Alndaste a cavar, Ned? " Talvez tivessem pensado em ir ver ao túmulo de Annie e encontrado a espingarda.

Por isso, tinha-se metido debaixo do chuveiro, ontem, e ficado lá muito tempo, a esfregar-se com a escova de cabo comprido que Annie lhe tinha comprado. Depois, foi ao ponto de lavar o cabelo, barbear-se e cortar as unhas. Annie estava sempre a dizer-lhe que era importante ter um ar limpo e respeitável.

- Ned, quem vai dar-te emprego se não te barbeares, nem mudares de roupa, nem escovares o cabelo para não andares todo desgrenhado? - avisara ela. - Ned, às vezes tens um ar tão horrível que ninguém quer estar ao pé de ti.

Na segunda-feira, quando tinha ido até à biblioteca de Hastings, para mandar as primeiras duas mensagens a Carley DeCarlo, tinha reparado na bibliotecária a olhar para ele com um ar estranho, como se ele não pertencesse ali.

Depois, na quarta-feira, ontem, tinha ido a Croton mandar mais mensagens, e vestido roupa lavada. Ninguém Lhe tinha prestado a mais pequena atenção.

Por isso, apesar de ter dormido vestido a noite passada, sabia que tinha melhor ar hoje do que na terça-feira.

Eram os mesmos dois polícias, Pierce e Carson. Percebeu imediatamente que eles repararam que ele estava com melhor ar. Depois, viu-os olhar para a cadeira onde estava a roupa suja. Depois de eles terem saído, na terça-feira, tinha-a metido toda na máquina de lavar. Sabia que os polícias iam voltar e não queria que eles vissem a roupa toda coberta de lama.

Ned seguiu o olhar de Carson e viu que ele observava as botas enlameadas que estavam junto da cadeira. Raios! Tinha-se esquecido de as levar dali!

- Ned, podemos conversar por alguns minutos? – perguntou Carson.

Ned sabia que ele estava a tentar dar a impressão de ser um velho amigo que tinha passado por ali. Mas ele não se deixava enganar. Sabia como os polícias trabalhavam. Quando ele tinha sido preso, há uns cinco anos, por se ter metido numa briga com aquele estupor lá no bar, o jardineiro que trabalhava para os Spencer em Bedford e que disse que nunca mais voltava a contratá-lo, os polícias tinham sido todos simpatia, ao princípio. Depois, disseram que a briga era culpa dele.

- Claro, entrem - disse-lhes. Pegaram nas mesmas cadeiras onde tinham ficado sentados, na primeira visita. A almofada e o cobertor estavam onde ele os tinha deixado, no sofá, no outro dia. Tinha dormido na cadeira, nas últimas duas noites.

- Ned - disse o Detective Carson -, tinha razão sobre o tipo que estava atrás de si, na farmácia do Dr. Brown, na outra noite. Chama-se Garret.

E depois? apeteceu-lhe dizer. Mas limitou-se a ouvir.

- Garret diz que, quando saiu, acha que o viu estacionado diante da farmácia. É verdade?

Deverei admitir que o vi? Tinhas que tê- lo visto, disse Ned a si próprio. Peg queria apanhar o autocarro. Aviou- o depressa.

- Claro, ainda lá estava - disse. - O tipo saiu aí um minuto depois de mim. Meti-me no carro, liguei a chave, mudei a estação de rádio para ouvir as notícias das dez, e arranquei.

- Para onde foi o Garret, Ned?

- Não sei. Mas porque havia de querer saber onde ele foi? Saí do estacionamento, fiz inversão de marcha e vim para casa. Se calhar querem prender-me por eu ter feito inversão de marcha, hã?

- Quando não há trânsito, também já tenho feito isso – disse Carson.

Agora estamos a fingir que somos muito amiguinhos, pensou Ned. Estão a tentar apanhar-me. Olhou para Carson e não disse nada.

- Ned, tem alguma arma?

Não.

- Alguma vez disparou uma arma? Cuidado, avisou-se Ned.

- Quando era miúdo, uma vez. - Apostava que já sabiam isso.

- Alguma vez esteve preso, Ned?

Confessa, disse a si próprio.

- Uma vez. Foi tudo um mal-entendido.

- E passou algum tempo na cadeia?

Tinha ficado na prisão até Annie ter conseguido arranjar dinheiro para a fiança. Nessa altura é que tinha aprendido a mandar mensagens sem deixar rasto. O tipo que estava na cela ao lado disse que tudo o que tinha que fazer era ir a uma biblioteca, usar um dos computadores de lá, ligar à Internet e procurar o "Hotmail".

- É grátis - o tipo tinha-lhe explicado. - Podes pôr um nome inventado, que eles não dão pela diferença. Se alguém se chatear, podem chegar até à biblioteca, mas não conseguem chegar a ti.

- Foi só uma noite - disse ele, de mau humor.

- Ned, estou a ver que as suas botas, além, estão muito enlameadas. Por acaso, foi ao parque municipal, a outra noite, depois de ter saído da farmácia?

- Já lhe disse, vim directamente para casa. - Tinha largado a Peg no parque municipal.

Carson continuava a observar as botas.

Não saí do carro no parque, disse Ned a si próprio. Disse à Peg para ela sair e ir para casa, e depois ela começou a correr e eu dei-lhe um tiro. Não têm razão nenhuma para falar das minhas botas. Não deixei pegadas no parque.

- Ned, importa-se que demos uma vista de olhos à sua carrinha?

- perguntou Pierce, o detective alto.

Não tinham nada sobre ele.

- Sim, importo - disse Ned secamente. - Importo-me e muito. Vou à farmácia e compro umas coisas. Acontece não sei o quê a uma senhora muito simpática que teve o azar de perder o autocarro e vocês vêm dizer- me que eu lhe fiz alguma coisa. Saiam daqui!

Viu os olhos deles ensombrarem-se. Tinha falado demais. Como sabia ele que ela tinha perdido o autocarro? Era isso que eles estavam a pensar.

Resolveu arriscar. Tinha ouvido, ou tinha sonhado?

- Disseram no rádio que ela perdeu o autocarro. É verdade, não é? E Alguém a viu correr para tentar apanhá-lo. E, sim, importo-me que vejam a minha carrinha, e importo-me que venham aqui fazer-me essas perguntas todas. Vão-se embora. Estão a ouvir? Vão-se embora e não voltem!

Não tinha pensado em ameaçá-los com o punho, mas foi isso que fez. A ligadura que tinha na mão soltou-se e eles viram a ferida.

- Como se chama o médico que lhe tratou a mão, Ned? - apressou-se Carson a perguntar.

 

                 CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Uma noite bem dormida significa que todas as partes do meu cérebro acordam ao mesmo tempo. Não acontece muitas vezes, mas tive a bênção de, quando acordei no dia 1 de Maio, me sentir completamente desperta, coisa que, à medida que o dia foi passando, veio a revelar-se um belo golpe de sorte.

Tomei um duche, depois vesti um fato leve, cinzento com riscas minúsculas, que comprara no fim da última estação e que andava ansiosa por usar. Abri a janela para apanhar ar fresco e também para saber como estava a temperatura lá fora. Estava um dia perfeito de Primavera, agradavelmente quente e com uma brisa leve. Vi as flores que cresciam nos vasos do parapeito da janela do meu vizinho e, por cima delas, o céu azul povoado de nuvens fofas de algodão.

Quando era criança, no dia 1 de Maio costumávamos ir a cerimónia em honra de Nossa Senhora, em Ridgewood, em que coroávamos a Virgem Maria. As palavras do hino que cantávam vieram-me à memória, enquanto aplicava um pouco de sombra nos olhos e um pouco de baton.

Maria, nós te coroamos de flores, Rainha dos anjos, Rainha de Maio...

Sabia por que razão estava a lembrar-me da canção naquele momento. Quando tinha dez anos, fui escolhida para coroar a Virgem com uma grinalda de flores. Todos os anos, honra era alternada entre um rapaz de dez anos e uma rapariga de dez.

Patrick faria dez anos na próxima semana.

É engraçado que, mesmo muito depois de termos aceite a dor da perda de alguém que amamos e de termos continuado a nossa vida, de vez em quando há qualquer coisa que nos apanha em falso e, por um momento ou dois, a ferida volta a abrir-se em carne viva.

Já chega, disse a mim própria, fechando com firmeza a mente àquele tipo de pensamentos.

Fui a pé para o trabalho e cheguei à minha secretária às vinte para as nove, enchi uma chávena de café, e dirigi-me para o gabinete de Ken, onde Don Carter já estava sentado. Mal tinha começado a beber o meu primeiro gole de café quando as coisas começaram a aquecer.

O Detective Clifford, da Polícia de Bedford, telefonou, e o que tinha para dizer revelou-se um verdadeiro choque. Ken, Don e eu ouvimo-lo informar-nos que tinham localizado a origem das mensagens, incluindo aquela que eu não tinha gravado, mas de que lhes falara, aquela que dizia para eu me preparar para o Juízo Final.

Todas tinham sido enviadas de Westchester County. As primeiras tinham vindo de uma biblioteca em Hastings, a outra de uma biblio teca em Croton. O autor usara o "Hotmail", um serviço grátis da Internet, mas achavam que fizera um registo usando dados falsos.

- Que significa isso? - perguntou Ken.

- Quem enviou as mensagens deu o nome de Nicholas Spencer e usou a morada da casa dos Spencer em Bedfors, que ardeu a semana passada.

Nicholas Spencer! Ficámos todos de boca aberta, a olhar uns para os outros. Seria possível?

- Espere um momento - disse Ken. - Há toneladas de fotografias recentes de Nicholas Spencer nos jornais. Mostrou alguma aos bibliotecários?

- Sim. Nenhum deles reconheceu Spencer como alguém que tenha usado os computadores deles.

- Mas, mesmo no Hotmail tem que dar-se uma palavra-passe - disse Don. - Que tipo de palavra-passe é que este tipo usou? Usou o nome de uma mulher. Annie.

Corri a buscar as mensagens originais à minha secretária e li a última:

Quando a minha mulher lhe escreveu, o ano passado, nem se deu ao trabalho de lhe responder à pergunta que ela fez, e agora ela está morta. Não é lá muito inteligente. Já sabe quem esteve em casa de Lynn Spencer antes de ela ter começado a arder?

- Aposto seja o que for em como o nome da mulher deste tipo é Annie - disse eu.

- Há só mais uma coisa que achamos que pode ser interessante

- disse o Detective Clifford. - A bibliotecária de Hastings recorda-se perfeitamente que um tipo desgrenhado que usou o computador tinha uma queimadura grave na mão direita. Não tem a certeza se foi ele a mandar estas mensagens, mas não pôde deixar de reparar nele.

Antes de desligar, Clifford assegurou-nos que estava a alargar a rede e a avisar as bibliotecas de outras cidades de Westchester, para estarem atentas a alguém que use o computador e que esteja na casa dos cinquenta, tenha à volta de um metro e oitenta, esteja desgrenhado e tenha uma queimadura na mão direita.

Tinha uma queimadura na mão! Tinha a certeza de que o homem que me tinha mandado as mensagens nas quais afirmava ter visto alguém a sair de casa dos Spencer era o que tinha a queimadura na mão direita. Era uma notícia incrível.

Marty e Rhoda Bikorsky mereciam um pouco de esperança. Telefonei-lhes. Meu Deus, se conseguíssemos discernir o que é realmente importante nas nossas vidas!, pensei quando ouvi a reacção deles ao facto de o autor das mensagens estar possivelmente a usar o nome de Nick Spencer e ter uma mão queimada.

- Vão apanhá-lo, não vão, Carley? - perguntou Marty.

- Pode ser apenas um doido qualquer - disse eu, à cautela - Mas, sim, tenho a certeza que vão apanhá-lo. Estão certos quea algures, naquela zona.

- Tivemos outra boa notícia - disse Marty -, que nos deixou completamente nas nuvens. O crescimento do tumor da Maggie abrandou o mês passado. Ainda lá está, e continua a miná-la, mas se o crescimento não voltar a acelerar vamos ter mais um Natal com ela, de certeza! A Rhoda já está a começar a pensar nos presentes.

- Estou tão contente! - Engoli, tentando desfazer o nó da garganta. - Vou manter-me em contacto.

Queria sentar-me durante alguns minutos, para saborear a alegria que acabara de ouvir na voz de Marty Bikorsky, mas era necessário fazer um telefonema que eu sabia que iria dissipá-la rapidamente. O pai de Vivian Powers, Allan Desmond, vinha na lista de Cambridge, Massachusetts. Telefonei-lhe.

Tal como Marty Bikorsky, os Desmond deixavam o atendedor automático filtrar-lhes as mensagens. Tal como Marty, atenderam antes de eu desligar. Comecei por dizer:

- Sr. Desmond, o meu nome é Carley DeCarlo, da Wall Street. Entrevistei a Vivian na tarde do dia em que ela desapareceu. Gostaria muito de encontrar-me consigo ou, pelo menos, de falar consigo. Se quiser...

Ouvi alguém pegar no auscultador.

- Fala a irmã da Vivian, Jane - disse uma voz tensa, mas forte. - Sei que o meu pai gostaria muito de falar consigo. Está no Hilton Hotel, em White Plains. Pode apanhá-lo lá, agora. Acabei de falar com ele.

- E ele atenderá a minha chamada?

- Dê-me o seu número. Vou dizer-lhe para ele lhe telefonar. Menos de três minutos depois, o meu telefone tocou. Era Allan Desmond. Se havia um homem esgotado, era ele.

- Menina DeCarlo, vou dar uma conferência de imprensa daqui a instantes. Podemos falar mais tarde?

Fiz um cálculo rápido. Eram nove e meia. Tinha uns telefonemas para fazer e tinha ficado de passar nos escritórios da Gen-stone em Pleasantville, para falar com os funcionários, às três e meia.

- Se eu for até aí, podemos tomar um café por volta das onze? - perguntei.

- Sim.

Combinei telefonar-lhe da recepção do Hilton.

Voltei a fazer uma pausa para calcular o tempo que tinha. Estava certa de que não passaria com Allan Desmond mais de quarenta e cinco minutos, uma hora. Se acabasse ao meio-dia, podia estar em Caspien à uma. Sentia que estava na altura de tentar convencer a mulher do Dr. Broderick a falar comigo.

Marquei o número do consultório do Dr. Broderick, pensando que o pior que podia acontecer era ela recusar falar comigo.

A secretária, a Sr. a Ward, lembrava- se de mim e foi bastante cordial.

- Estou muito contente por poder dizer que o doutor está a melhorar um pouco a cada dia que passa - disse ela. - sempre se manteve em forma e é um homem forte, e isso está a ajudá-lo. Sei que a Sr. a Broderick sente que ele vai conseguir.

- Fico muito feliz. Sabe se ela está em casa?

- Não. Está no hospital, mas sei que tenciona estar aqui à tarde. Sempre trabalhou aqui, no escritório, e agora que o Doutor está melhor, fica cá durante algumas horas, todos os dias.

- Sr. a Ward, vou a Caspien, e é muito importante para mim falar com a Sr. a Broderick. É sobre o acidente do Doutor. Preferia não acrescentar mais nada agora, mas tenciono estar aí por volta das duas horas, e se ela puder dar-me quinze minutos acho que não se vai arrepender. Dei-lhe o número do meu telemóvel, quando falei com ela outro dia, mas vou dar-lho outra vez. Também agradecia que me telefonasse, no caso de a Sr. a Broderick se recusar a falar comigo.

Tinha mais um telefonema para fazer, para Manuel e Rosa Gomez. Apanhei-os em casa da filha, em Queens.

- Lemos sobre o desaparecimento da Menina Powers - disse Manuel. - Ficámos muito preocupados, com receio que lhe tivesse acontecido qualquer coisa.

- Então não acredita que ela tenha ido ter com o Sr. Spencer à Suíça?

- Não, não acredito, Menina DeCarlo. Mas quem sou eu para achar o que quer que seja?

- Manuel, conhece o caminho empedrado que vai dar mesmo atrás do pilar esquerdo do portão?

- Claro!

É sítio onde alguém possa estacionar um carro?

- O Sr. Spencer estacionava lá o carro quase sempre.

- O Sr. Spencer?

- Especialmente no Verão. Às vezes, quando a Sr. a Spencer tinha amigos na piscina e ele vinha de Nova Iorque para ver o Jack, estacionava ali, para ninguém dar pelo carro. Depois, esgueirava-se até ao

andar de cima, para mudar de roupa.

- Sem dizer à Sr. a Spencer?

- Talvez ela soubesse, mas ele dizia que se começasse a falar às pessoas nunca mais saía dali.

- Que carro tinha o Sr. Spencer?

- Um BMW preto.

- Algum dos amigos dos Spencer estacionava naquele empedrado, Manuel?

Ele fez uma pausa e depois disse, devagar:

- Durante o dia não, Menina DeCarlo.

 

                 CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Allan Desmond tinha ar de quem não dormia há três dias, e tenho a certeza de que o ar correspondia à verdade. No final da casa dos sessenta, a palidez condizia com o cabelo grisalho. Era um homem naturalmente magro, e naquela manhã parecia atormentado e exausto. No entanto, estava impecavelmente vestido, de fato e gravata, e tive a sensação de que era um daqueles homens que provavelmente nunca sai à rua sem gravata, excepto quando vai jogar golfe.

A cafetaria não tinha muita gente, e escolhemos uma mesa ao canto, onde ninguém podia ouvir a nossa conversa. Pedimos café. tinha a certeza de que ele não comera nada em toda a manhã e arrisquei:

- Comia um croissant, mas só se o senhor quiser um também.

- A senhora é muito subtil, mas tem razão: ainda não comi.

Seja então um croissant.

- Para mim, com queijo - disse eu à empregada. Ele acenou com a cabeça, num gesto de assentimento. Depois, olhou para mim:

- Viu a Vivian na segunda-feira à tarde?

- Sim, vi. Telefonei-lhe para ver se a convencia a falar comigo, mas ela recusou. Acho que estava convencida de que eu andava a fazer um trabalho para arrasar Nicholas Spencer e não queria ter parte nele.

- Porque não teria querido aproveitar a oportunidade para defendê-lo?

- Porque, infelizmente, as coisas nem sempre funcionam assim. É triste dizê-lo, mas há um segmento da comunicação social que, através da eliminação de parte de uma entrevista, pode transformar uma opinião positiva numa crítica fulminante. Acho que Vivian se sentia mortificada com as notícias terríveis sobre Nick que a imprensa andava a publicar e não queria, de forma nenhuma, poder contribuir para elas.

O pai de Vivian confirmou com um aceno de cabeça.

- Sempre foi intensamente leal. - depois, o rosto contorceu-se-lhe de dor. - Está a ouvir o que eu estou a dizer, Carley? Estou a falar da Vivian como se ela não estivesse viva. Isso aterroriza-me completamente.

Gostava de ter conseguido dizer uma mentira convincente, algo que o confortasse, mas não fui capaz.

- Sr. Desmond - disse eu -, li a declaração que fez à comunicação social, em que disse que falou frequentemente ao telefone com Vivian, nas três semanas que se seguiram ao desastre com o avião de Nicholas Spencer. Sabia que ela e Nicholas Spencer estavam romanticamente envolvidos?

Ele bebeu um gole de café antes de responder. Não tive a sensação de que ele estivesse a tentar encontrar uma forma de fugir à pergunta; acho que estava a analisar a situação para tentar dar uma resposta honesta.

- A minha mulher diz que eu nunca respondo a uma pergunta directamente - disse ele -, e talvez seja verdade. - Um breve sorriso aflorou-lhe os lábios e desapareceu tão rapidamente como surgira. - Por isso, deixe-me situá-la um pouco. A Vivian é a mais nova das nossas quatro filhas. Conheceu oJoel na Universidade, e casaram há nove anos, quando ela tinha vinte e dois. Infelizmente, como deve saber, oJoel morreu de cancro há pouco mais de dois anos. Nessa altura, tentámos convencê-la a regressar a Boston, mas ela foi trabalhar com Nicholas Spencer. Estava muito animada por fazer parte de empresa que ia produzir uma vacina contra o cancro. Nick Spencer casara com Lynn pouco mais de dois anos antes de Vivian ter começado a trabalhar para ele, pensei. Aposto que o casamento já estava mal na altura.

- Vou ser absolutamente franco consigo, Carley - disse Allan Desmond. - Se, e é um se muito forte, a Vivian se envolveu num romance com Nicholas Spencer, não foi imediatamente. Começou a trabalhar com ele seis meses depois de o Joel ter morrido. Vinha a casa aos fins-de-semana, pelo menos uma vez por mês. A mãe, ou eu, ou uma das irmãs fizemos questão de falar com ela todas as noites, durante esse período. Preocupava-nos também o facto de, ao que nos parecia, estar sempre em casa. Procurámos convencê-la a juntar-se a um grupo de luto, para fazer uma terapia, inscrever-se num curso, ou a estudar à noite para fazer o Mestrado, em resumo, a fazer qualquer coisa só para sair de casa.

Chegou o croissant. Escusado será dizer que tinha um ar absolutamente maravilhoso, e li na etiqueta que o acompanhava: mil calorias. Pobres veias entupidas. Já pensaste no teu nível de colesterol?

Cortei um pedaço e peguei-lhe. Divinal. Uma ameaça a que quase nunca me exponho. Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe.

- Acho que vai dizer-me que, a dada altura, o caso mudou - disse eu.

Allan Desmond confirmou com um aceno de cabeça. Fiquei satisfeita ao ver que, enquanto respondia às minhas perguntas, também ia comendo, quase sem dar por isso.

- Diria que, no final do Verão passado, a Vivian parecia diferente. Parecia mais feliz, embora estivesse muito preocupada com alguns problemas imprevistos que tinham surgido em relação à vacina, Mas não disse do que se tratava. Deviam ser informações confidenciais, mas disse que Nicholas Spencer estava profundamente preocupado.

- Alguma vez deu a entender que estava a desenvolver-se - sei que já havia, uma relação entre eles?

- Não, nunca. Mas a irmã dela, a Jane, aquela que falou consigo, suspeitou de qualquer coisa. Disse algo como: "A Vivian já sofreu o suficiente. Espero que seja inteligente e não se apaixone pelo patrão. Ele é casado. "

- Alguma vez perguntou directamente a Vivian se ela estava envolvida com Nick Spencer?

Costumava brincar com ela e perguntar-lhe se não havia nenhum homem interessante nos horizontes dela. Ela dizia-me que eu era um romântico incurável e que, se alguma vez aparecesse alguém, ela me diria.

Percebi que Allan Desmond começava a querer fazer-me perguntas, por isso apressei-me a fazer-lhe mais uma:

- Deixando de lado o factor romance, Vivian alguma vez lhe disse o que sentia em relação a Nicholas Spencer?

Allan Desmond franziu o sobrolho e depois olhou-me nos olhos.

- Nos últimos sete ou oito meses, quando a Vivian falava de Spencer, parecia que ele era Deus na terra. Por isso, se ela nos tivesse mandado um bilhete a dizer que ia ter com ele à Suíça, eu não teria aprovado, mas teria compreendido, de todo o coração.

Vi as lágrimas bailarem-lhe nos olhos:

- Carley, dava tudo para receber esse bilhete, mas sei que isso não vai acontecer. Esteja Vivian onde estiver, e rezo para que esteja viva, não consegue comunicar connosco, ou já o teria feito.

Sabia que ele tinha razão. Enquanto o nosso café arrefecia, contei- lhe o meu encontro com Vivian e como ela me tinha falado dos seus planos de ir viver com os pais até encontrar casa. Falei-Lhe do telefonema em que ela me dizia que achava poder identificar o homem que levara os registos do Dr. Spencer.

- E, pouco depois, desapareceu - disse ele.

Assenti com a cabeça.

Nenhum de nós acabou o respectivo croissant. Sei que ambos pensávamos naquela bela jovem que nem sequer em casa estivera protegida.

Aquele pensamento deu-me uma ideia:

- Tem estado muito vento, ultimamente. Vivian tinha algum problema com a porta da frente?

- Porque pergunta isso?

- Porque o facto de a porta estar aberta seria quase um convite a que um vizinho que passasse por ali ficasse curioso e tocasse à campainha, para ver se havia algum problema. De facto, foi isso que aconteceu. Mas se, por acaso, a porta se abria quando não estava trancada, poderia ter passado pelo menos mais um dia sem que o desaparecimento de Vivian fosse notado.

Recordei a imagem de Vivian à porta, enquanto eu me afastava.

- Pode ter razão. Sei que a porta dela precisava de ser empurrada com força para fechar bem - disse Allan Desmond.

- Vamos partir do princípio que a porta se abriu com o vento e não foi deixada aberta - disse eu. - O candeeiro e a mesa virados seriam uma tentativa de fazer parecer ter havido um roubo e um rapto?

- A polícia pensa que ela preparou tudo deliberadamente para fazer crer num crime. A Vivian falou consigo no sábado à noite, Menina DeCarlo. Como lhe pareceu ela?

- Agitada - admiti. - Preocupada.

Acho que pressenti a presença deles antes de vê-los entrar. O detective Shapiro era um dos homens de rosto sério. O outro era um polícia fardado. Dirigiram-se para a nossa mesa.

- Sr. Desmond - disse Shapiro. - Gostaríamos de falar consigo, em particular.

- Encontraram-na? - perguntou Allan Desmond.

- Digamos que a localizámos. A vizinha, Dorothy Bowes, que vive três portas à frente da Menina Powers, é muito amiga da sua filha. Tem estado de férias. A sua filha tinha a chave da casa dela. Dorothy Bowes chegou a casa esta manhã e descobriu que o carro não estava na garagem. Alguma vez a sua fIlha teve problemas psiquiátricos?

- Ela fugiu porque estava assustada - disse eu. - Sei que por foi isso!

- Mas, para onde foi? - perguntou Allan Desmond. - O que a teria assustado tanto que a fIzesse fugir?

Pensei que talvez soubesse a resposta àquela pergunta. Vivian suspeitava que o telefone de Nicholas Spencer estava sob escuta. Perguntei-me se alguma coisa a teria feito perceber, depois de me ter telefonado, que o telefone dela também estava sob escuta. Isso explicava uma fuga em pânico, mas não o facto de não ter contactado a família. E então, mentalmente, repeti a pergunta do pai: Para onde foi?

 

                 CAPÍTULO TRINTA E CINCO

A chegada dos agentes pôs termo à nossa conversa, por isso não fiquei muito mais tempo com Allan Desmond. O detective Shapiro e o agente Klein sentaram-se connosco durante alguns minutos, enquanto confirmávamos o que pensávamos ter acontecido. Vivian fora a casa de uma amiga e levara-lhe o carro. Fosse o que fosse que a tivesse assustado a ponto de sair da sua própria casa, pelo menos até ali estava a salvo. Sabia que, quando o pai de Vivian e eu tínhamos visto Shapiro e Klein aproximarem-se da mesa, ambos receáramos que eles trouxessem más notícias. Pelo menos agora havia alguma esperança.

Vivian telefonara-me por volta das quatro horas, na sexta-feira, a dizer que achava que sabia quem levara os registos da casa do Dr. Broderick. Segundo Allan Desmond, Jane, a irmã dela, tentara telefonar-lhe às dez horas dessa noite e ninguém respondera, mas ela partira do princípio - e tivera esperança - de que ela tivesse ido sair. No outro dia de manhã, o vizinho que andava a passear o cão reparara na porta aberta.

Perguntei-lhes se achavam possível que Vivian tivesse ouvido ou visto alguém nas traseiras da casa e fugido pela porta da frente, derrubando o candeeiro e a mesa com a pressa de sair.

A resposta de Shapiro foi que tudo era possível, incluindo a sua primeira reacção, a de que o desaparecimento fora encenado. Esse cenário não excluía o facto de Vivian ter levado o carro da vizinha.

Percebi que o comentário de Shapiro enfurecera Allan Desmond por completo, mas ele não disse nada. Tal como os Bikorsky, que estavam gratos pela possibilidade de a filha ver ainda outro Natal, ele estava grato pela possibilidade de Vivian poder ter-se volatilizado pelo seu próprio pé.

Achei que havia 90 por cento de hipóteses de receber um telefonema da Sr. a Broderick ou da Sr. a Ward, a recepcionista, a dizer-me que não fosse a Caspien mas, como não recebi, deixei Allan Desmond com os investigadores, depois de termos combinado que nos manteríamos em contacto.

Annette Broderick era uma mulher bonita, no fim da casa dos cinquenta, com os cabelos escuros misturados com uma grande quantidade de cabelos grisalhos. Quando cheguei, sugeriu que subíssemos até ao andar de cima, onde viviam, por cima do consultório médico.

Era realmente uma maravilhosa casa antiga, com divisões espaçosas, tectos altos, e chão de carvalho polido. Sentámo-nos no escritório. O sol entrava pela janela, juntando-se ao conforto suave da dependência, já aconchegante com todas as suas estantes e o sofá inglês, de costas altas."

Percebi que passara esta última semana na companhia de pessoas que viviam na corda bamba, temendo o que a vida estava a fazer-lhes. Os Bikorsky, Vivian Powers e o pai, os funcionários da Gen-stone, cujas vidas e esperanças estavam despedaçadas... todas estas pessoas viviam sob um enorme stress, e não conseguia tirá-las do meu pensamento.

Ocorreu-me que a pessoa que devia ter-me vindo à ideia, e não viera, era a minha meia-irmã Lynn.

Annette Broderick ofereceu-me café, que recusei, e um copo de água, que aceitei. Trouxe também um copo para ela.

- O Philip está melhor - disse ela. - Pode levar muito tempo, mas esperam que ele venha a recuperar totalmente.

Antes que eu pudesse dizer-lhe como estava satisfeita por aquilo, ela disse:

- Francamente, ao princípio pensei que a sua sugestão de aquilo que aconteceu ao Philip não ter sido um acidente era perfeitamente disparatada, mas agora começo a interrogar-me.

- Porquê? - apressei-me a perguntar.

- Oh, estou a ir demasiado depressa - disse ela. - É que, quando começou a sair do coma, tentou dizer-me qualquer coisa. O melhor que consegui entender do que ele disse foi "carro virou". Por causa de uma marca de derrapagem dos pneus, a polícia acha que o carro que o atropelou podia vir da direcção contrária e ter feito inversão de marcha.

- Então, a polícia concorda que o seu marido pode ter sido deli beradamente atropelado?

- Não, acham que o condutor estava bêbado. Têm tido muitos problemas com miúdos menores que bebem, ou que fumam erva. Acham que alguém devia ir na direcção errada, virou, e quando viu o Phil já era demasiado tarde. Porque continua a pensar que não foi um acidente, Carley?

Escutou-me enquanto lhe falei da carta desaparecida, escrita por Caroline Summers e dirigida a Nicholas Spencer, e do roubo dos registos e exames hospitalares da filha dela, não só de casa do Dr. Broderick, mas também do Caspien Hospital e do hospital no Ohio.

Quer dizer que alguém pode ter dado algum crédito ao que seria certamente considerado uma cura milagrosa? - perguntou, - Não sei - disse eu. - Mas suspeito que alguém pensou que as promessas contidas nos antigos registos do Dr. Spencer eram suficientes para roubá-los, e que o Dr. Broderick conseguia identificar essa pessoa. Com toda a publicidade que gira em volta de Nicholas Spencer, o seu marido pode ter-se tornado um problema.

- Diz que as cópias dos Raios foram levadas do Caspien Hospital e uma cópia da ressonância magnética de um hospital no Ohio. Foi a mesma pessoa que foi buscá-las?

- Procurei informar-me. Os empregados não se lembram, mas anbos têm a certeza de que não havia nada de extraordinário nem de especial no homem que se apresentou como marido de Caroline. Por outro lado, pelo que me apercebo, o Dr. Broderick recorda-se perfeitamente do homem que veio buscar os registos do Dr. Spencer.

- Eu estava em casa naquele dia e, por acaso, olhei pela janela quando o homem, fosse ele quem fosse, voltou para o carro.

- Não sabia que o tinha visto - disse eu. - O doutor não falou nisso. Seria capaz de reconhecê-lo?

- Não. Era Novembro e ele tinha a gola do casaco virada para cima. Pensando bem, diria que tive a impressão de que ele usava um daqueles champôs colorantes com tom arruivado no cabelo. Sabe, aqueles que ficam alaranjados, ao sol.

- O Dr. Broderick não falou nisso quando falei com ele.

- Não é o tipo de coisa que ele fosse dizer, especialmente sem ter a certeza.

- O Dr. Broderick já recomeçou a falar?

- Está sob o efeito de muitos sedativos mas, quando está lúcido, quer saber o que lhe aconteceu. Parece não ter qualquer memória de nada, a não ser do que tentou dizer-me quando saiu do coma.

- Por aquilo que o Dr. Broderick me disse, fez alguma investigação com o Dr. Spencer, e foi por essa razão que Nick Spencer deixou aqui os registos do pai. Até que ponto é que o Dr. Broderick trabalhou realmente com o pai de Nick?

- Carley, é provável que o meu marido tenha deixado de lado o trabalho com o Dr. Spencer, mas o facto é que estava profundamente interessado na pesquisa e pensava que o Dr. Spencer era um génio. Esse foi um dos motivos que levaram Nick a deixar os registos com ele. O Philip tencionava continuar a pesquisa, mas percebeu que isso lhe tomava muito tempo e que aquilo que era uma obsessão para o Dr. Spencer teria que ser um hobby, para ele. Não se esqueça que, nessa altura, Nick planeava uma carreira na área do fornecimento de medicamentos e de equipamento médico, e não da investigação, mas há dez anos, quando começou a estudar os registos do pai, percebeu que estava ali qualquer coisa importante, talvez tão importante como a cura para o cancro. E, pelo que o meu marido me disse sobre o assunto, os testes pré-clínicos foram muito promissores, e foi a primeira fase em que trabalharam com indivíduos sãos. Foi durante as últimas experiências que as coisas começaram de repente a correr mal. O que nos leva a pensar porque quereria alguém roubar os registos do Dr. Spencer.

Abanou a cabeça:

- Carley, estou apenas muito grata pelo meu marido ainda estar vivo.

- Eu também - disse eu, fervorosamente. Não queria dizer a esta senhora tão simpática que se o Dr. Broderick fora vítima deliberada de um atropelamento e fuga, me sentia responsável por isso. Mesmo que não houvesse qualquer relação, o facto de eu, depois de ter falado com ele, ter ido directamente aos escritórios da Gen-stone em Pleasantville e ter começado a perguntar por um homem de cabelo castanho arruivado, e no dia seguinte o Dr. Broderick ter dado entrada no hospital pareciam demasiado interligados para tudo não passar de uma coincidência.

Estava na altura de ir-me embora. Agradeci à Sr. a Broderick ter-me recebido e, mais uma vez, certifiquei-me de que ela tinha o meu cartão, com o meu número de telemóvel. Sei que, quando a deixei, ela não estava convencida que o marido tivesse sido alvo de um atropelamento deliberado, no que teria, provavelmente, razão. Ficaria no hospital pelo menos algumas semanas, e lá estaria certamente seguro.

E eu estava decidida a ter algumas respostas quando ele saísse.

Se o ambiente na Gen-stone era soturno quando lá estivera, a semana passada, desta vez a atmosfera era perfeitamente lúgubre. Era evidente que a recepcionista tinha estado a chorar. Disse que o Sr. Wallingford me tinha pedido que falasse com ele por um instante, antes de falar com qualquer dos funcionários. Depois, anunciou-me à secretária dele.

Quando pousou o telefone, disse-lhe:

- Vejo que está com algum problema. Espero que não seja nada que não se resolva.

- Recebi a carta esta manhã - disse ela. - Vão fechar as portas hoje à tarde.

- Tenho muita pena.

O telefone tocou e ela atendeu. Acho que devia ser um jornalista, porque ela disse que não estava autorizada a fazer qualquer comentário e remeteu todas as chamadas para o advogado da empresa.

Quando desligou o telefone, a secretária de Wallingford apareceu. Gostaria de ter falado um pouco mais com a recepcionista, mas não era possível. Lembrei-me do nome da secretária, do outro dia.

- Sr. a Rider, não é verdade? - perguntei.

Era o tipo de mulher a que a minha avó teria chamado "sem graça nenhuma,". O fato azul-marinho, os collants cor de pele e os sapatos de salto raso condiziam com o cabelo castanho curto e a ausência total de maquilhagem. Tinha um sorriso simpático, mas desinteressado.

- Sim, é, Menina DeCarlo.

As portas dos escritórios ao longo do corredor comprido estavam todas abertas e, enquanto a seguia, fui espreitando lá para dentro. Todos pareciam estar vazios. Todo o edifício parecia vazio e achei que se gritasse ouviria um eco. Tentei meter conversa com ela:

- Lamento imenso saber que a empresa vai fechar. Já sabe o que vai fazer?

- Não tenho a certeza - disse ela.

Percebi que Wallingford lhe dissera para não falar comigo, o que, claro, a tornava muito mais interessante.

- Há quanto tempo trabalha para o Sr. Wallingford? - perguntei, tentando que a pergunta não parecesse premeditada.

- Dez anos.

- Então estava com ele quando ele tinha a empresa de mobiliário?

- Sim, estava.

A porta do escritório estava fechada. Consegui dizer mais uma frase, tentando fisgar mais informação:

- Então, deve conhecer os filhos dele. Talvez tenham razão: não deviam ter vendido o negócio da família.

- Isso não lhes dá o direito de processá-lo - disse ela, indignada, enquanto batia à porta com uma mão e a abria com a outra.

Bela informação, pensei. Osfilhos processaram-no! O que os teria levado a fazer isso? interroguei-me.

Era evidente que Charles Wallingford não estava propriamente encantado por ver-me, mas tentou não demonstrá-lo. Levantou-se quando entrei, e vi que não estava sozinho. Havia um homem sentado diante dele, à secretária. O homem também se levantou e virou-se, enquanto Wallingford me cumprimentava. Tive a impressão de estar a ser minuciosamente observada. Estaria na casa dos quarenta, tinha cerca de um metro e setenta de altura, o cabelo grisalho e olhos de avelã. Tal como Wallingford e Adrian Garner, tinha um ar autoritário e não fiquei surpreendida quando me foi apresentado como sendo Lowell Drexel, membro da direcção da Gen-stone.

Lowell Drexel: ouvira o nome recentemente. Então, lembrei-me onde. Ao almoço, Wallingford brincara com Adrian Garner, dizendo que o accionista que dizia ter visto Nick Spencer na Suíça pedira emprego a Drexel.

A voz de Drexel era notoriamente desprovida de calor:

- Menina DeCarlo, soube que tem o trabalho nada invejável de escrever um artigo de fundo para a Wall Street, sobre a Gen.

- De contribuir para um artigo de fundo - corrigi-o. - Somosuma equipa de três. - Olhei para Wallingford. - Soube que vão fechar as portas hoje. Lamento imenso.

Ele respondeu com um aceno de cabeça.

- Desta vez, não vou ter de preocupar-me com um novo sítio onde investir o meu dinheiro - disse ele, secamente. - Tanto quanto lamento pelos nossos funcionários e accionistas, desejo que eles compreendam que, longe de sermos o inimigo, estivemos no campo de batalha ao lado deles.

- O nosso encontro de sábado continua marcado, espero - disse eu.

- Claro. - Pareceu considerar absurda a sugestão de que talvez quisesse cancelá-lo. - Queria explicar-lhe que, com algumas excepções, como a recepcionista e a Sr. Rider, demos aos nossos funcionários a possibilidade de escolherem entre ficar até ao fim do dia ou ir para casa. Muitos deles optaram por sair imediatamente.

- Compreendo. Bem, não é animador, mas talvez consiga alguns comentários daqueles que ainda cá estão. - Esperava que não transparecesse a minha dúvida de que o súbito encerramento pudesse dever-se ao meu pedido para entrevistar alguns funcionários, hoje.

- Talvez eu possa responder às suas perguntas, Menina DeCarlo - ofereceu-se Drexel.

- Talvez, Sr. Drexel. Sei que pertence à Garner Pharmaceuticals.

- Chefio o departamento legal. Como talvez já saiba, quando a minha empresa decidiu fazer um investimento de mil milhões de dólares na Gen-stone, dependente da aprovação da FDA, foi pedido ao Sr. Garner que se juntasse ao Conselho de Administração. Em casos como este, ele delega o cargo num dos seus colaboradores mais próximos.

- O Sr. Garner parece muito preocupado com o facto de a Garner Pharmaceuticals aparecer envolvida com a Gen-stone, nos meios de comunicação social.

- Está extremamente preocupado, e irá tomar medidas em breve, das quais não estou autorizado a falar hoje.

- E se não fizer nada?

- Os bens da Gen-stone serão vendidos em hasta pública e as receitas distribuídas pelos credores. - Fez um gesto com a mão, varrendo o espaço, que eu supus pretender indicar o edifício e o mobiliário.

- Seria esperar demasiado que, caso houvesse uma declaração, a minha revista ficasse com o exclusivo? - perguntei.

- Seria esperar demasiado, Menina DeCarlo. - O seu ligeiro sorriso teve o efeito de uma porta a ser fechada na minha cara. Low Drexel e Adrian Garner eram dois icebergues, concluí. Pelo menos Wallingford usava uma máscara de cordialidade.

Despedi-me de Drexel com um gesto de cabeça, agradeci a Wallingford e saí da sala, atrás da Sr. a Rider. Ela fechou a porta do escritório lentamente.

- Estão cá algumas telefonistas e algumas funcionárias da base de dados, e também algumas pessoas da manutenção - disse. - Por onde quer começar?

- Acho que talvez pela base de dados - disse eu.

Ela tentou ir à minha frente, mas eu apressei-me a pôr-me ao lado dela:

- Posso falar consigo, Sr. a Rider?

- Preferia não ser citada.

Nem sequer para comentar o desaparecimento de Vivian Powers?

- Desaparecimento ou fuga, Menina DeCarlo? Diria que a decisão dela, de ficar depois do acidente de avião, é suspeita. Eu própria a vi tirar ficheiros do escritório, a semana passada.

- Porque acha que ela terá levado ficheiros para casa, Sr. a Rider?

Porque queria ter a certeza absoluta de que não havia nada nos ficheiros que desse uma pista a quem quer que fosse sobre o destino do nosso dinheiro. - A recepcionista estava lavada em lágrimas, mas a Sr. a Rider estava furiosa. - Provavelmente, neste momento está na Suíça com o Spencer, a rir-se de todos nós. Não é só a minha pensão de reforma que perco, Menina DeCarlo. Sou mais uma de todos os idiotas que investiram a maioria das suas poupanças nas acções desta empresa. Quem me dera que o Nick Spencer tivesse realmente morrido naquele desastre de avião. A sua língua podre e peçonhenta arderia no inferno por toda a infelicidade que causou.

Se o meu objectivo era ter a reacção de um funcionário, que dissesse como se sentia, acabara de cumpri-lo. Então, o rosto dela ficou muito vermelho.

- Espero que não publique isto - disse ela. - O Jack, filho de Nick Spencer, costumava vir cá com ele. Passava sempre pela minha secretária para cumprimentar-me. Já tem que chegue, não precisa de ir pô-lo a ler o que eu disse sobre o pai desprezível que tem.

- O que pensava de Nicholas Spencer antes de tudo isto ter acon tecido? - perguntei.

- O que todos pensávamos, que era um deus.

Era o mesmo comentário que Allan Desmond fizera, ao descrever a reacção de Vivian a Nicholas Spencer. Era a mesma reacção que eu própria tivera.

- Só para nós, Sr. Rider, o que pensava de Vivian Powers?

- Não sou estúpida. Via bem que havia qualquer coisa entre ela e Nicholas Spencer. Acho que alguns de nós, no escritório, demos por isso antes dele. E o que viu ele naquela mulher com quem casou é coisa que eu nunca hei-de saber. Desculpe, Menina DeCarlo. Ouvi dizer que ela é sua meia-irmã, mas quando vinha aqui, coisa que não acontecia muitas vezes, tratava-nos como se não existíssemos.

Passava por mim e ia directamente ao gabinete do Sr. Wallingford, como se tivesse todo o direito a interromper o que quer que ele estivesse a fazer.

Eu sabia, pensei. Passava-se qualquer coisa entre eles.

- O Sr. Wallingford ficava aborrecido quando ela o interrompia? - perguntei.

- Acho que ficava embaraçado. Ele é um homem muito digno, e ela desmanchava-lhe o cabelo ou dava-lhe um beijo no alto da cabeça, e depois ria quando ele lhe dizia qualquer coisa como: "Não faça isso, Lynn". Digo-lhe, Menina DeCarlo, por um lado ela ignorava as pessoas, por outro agia como se pudesse dizer ou fazer tudo o que queria.

- Teve muitas oportunidades de observar a interacção entre Vivian e Nicholas Spencer?

Agora que começara a falar, a Sr. a Rider era o sonho de qualquer jornalista. Encolheu os ombros:

- O escritório dele fica na outra ala, por isso eu não os via muitas vezes juntos. Mas uma vez, quando eu ia para casa, ele ia à minha frente e acompanhou Vivian até ao carro. Pela maneira como as mãos deles se tocaram e pela maneira como olharam um para o outro vi que havia ali qualquer coisa de muito, muito especial, e na altura pensei: "Ainda bem para eles. Ele merece mais do que a rainha do gelo. "

Estávamos na recepção e vi que a recepcionista olhava para nós, com a cabeça inclinada como se tentasse perceber alguma coisa da nossa conversa.

- Não a maço mais, Sr. a Rider - disse eu. - E prometo que tudo isto foi uma conversa privada. Diga-me só mais uma coisa. Agora acredita que Vivian ficou no escritório para encobrir quaisquer pistas que pudessem levar até ao dinheiro. Logo depois do acidente com o avião, a dor dela pareceu-lhe genuína?

- Todos ficámos mortificados e eu nem queria acreditar que aquilo tivesse acontecido. Andávamos todos atordoados, a chorar e a dizer que Nick Spencer era uma pessoa maravilhosa, e todos olhá mos para ela, porque suspeitávamos que eles se tinham tornado amantes. Ela não disse nada. Levantou-se e foi para casa. Acho que pensou que não iria fazer o papel dela de forma convincente.

Abruptamente, a mulher afastou-se.

- De que serve tudo isto? - vociferou. - Falar de um bando de ladrões. - Apontou para a recepcionista. - A Betty mostra-lhe o caminho.

Naquela altura, já não estava interessada em falar com as pessoas que estivessem disponíveis. Tornou-se imediatamente claro para mim que nenhuma delas detinha uma posição que lhe permitisse saber da carta que Caroline Summers escrevera a Nicholas Spencer em Novembro passado. Perguntei à recepcionista sobre o laboratório:

- Também foi fechado de um dia para o outro, como tudo o resto?

- Não, não. O Dr. Celtavini, a Dr. a Kendall e os respectivos assistentes vão ficar cá por uns tempos.

- O Dr. Celtavini e a Dr a Kendall estão cá hoje? - perguntei.

- A Dr. a Kendall está. - Pareceu hesitante. Era óbvio que a Dr. a Kendall não fazia parte da lista das pessoas que eu deveria entrevistar, mas Betty marcou o número dela.

- Menina DeCarlo, faz ideia de como é difícil ver uma nova droga aprovada? - perguntou a Dr. a Kendall. - De facto, apenas um em cinquenta mil compostos químicos descobertos pelos cientistas chegou ao mercado. A procura de uma cura para o cancro tem sido incansável, e dura há décadas. Quando Nicholas Spencer começou esta empresa, o Dr. Celtavini ficou extremamente interessado e entusiasmado com os resultados registados nos ficheiros do Dr. Spencer, e desistiu de trabalhar com um dos mais prestigiados laboratórios de pesquisa do país para se juntar a Nicholas Spencer. Como eu própria fiz, acrescente-se.

Estávamos no gabinete dela, por cima do laboratório. Quando conheci a Dr. Kendall, a semana passada, pensei que ela não era particularmente atraente, mas agora, quando ela olhou directamente para mim, percebi que tinha um fogo irresistível, quase latente, que ainda não se me tornara evidente. Reparei no queixo determinado, mas o cabelo escuro estava entalado atrás das orelhas e eu ainda não tinha dado pela sombra curiosa dos seus olhos verdes acinzentados. A semana passada, pareceu-me uma mulher terrivelmente inteligente. Agora apercebia-me de que era também muito atraente.

- Trabalhava para um laboratório ou para uma farmacêutica, Doutora? - perguntei.

- Trabalhava para o Hartness Research Center. Fiquei impressionada. Em termos de qualidade, nada supera o Hartness. Perguntei-me porque teria ela deixado o emprego para trabalhar para uma empresa nova. Ela própria acabara de dizer que apenas uma em cinquenta mil drogas novas chega ao mercado.

Ela respondeu à pergunta que eu não cheguei a fazer:

- Nicholas Spencer era um homem muito persuasivo quando se tratava de recrutar pessoal, bem como de arranjar dinheiro.

- Há quanto tempo está cá?

- Há pouco mais de dois anos.

Tinha sido um dia comprido. Agradeci à Dr. a Kendall por ter-me recebido e saí. Antes de ir-me embora, parei para agradecer a Betty e desejar-lhe felicidades. Depois, perguntei-lhe se ia manter-se em contacto com alguma das raparigas que trabalhava na base de dados.

- A Pat vive perto de mim - disse ela. Foi-se embora há um ano. Da Edna e da Charlotte nunca fui muito próxima. Mas se quiser entrar em contacto com a Laura, peça à Dr. a Kendall. A Laura é sobrinha dela.

 

                 CAPÍTULO TRINTA E SEIS

A questão não era se os polícias iriam voltar. Era quando eles iriam voltar que incomodava Ned. Pensou nisso todo o dia. Tinha-se livrado da espingarda, mas se trouxessem um mandato de busca para a carrinha, iriam provavelmente encontrar lá vestígios de ADN da Peg. Tinha sangrado um bocadinho quando batera com a cabeça no tablier.

Depois, haviam de continuar a procurar até encontrarem a espingarda. A Sr a Morgan havia de dizer-lhes que sabia que ele ia muito à campa. E eles haviam de perceber tudo.

Às quatro horas decidiu não esperar mais.

O cemitério estava deserto. Perguntou-se se Annie sentiria a falta dele como ele sentia a dela. A terra ainda estava tão enlameada que foi fácil desenterrar a espingarda e as munições. Depois, sentou-se na campa durante alguns minutos. Não se importou por as suas roupas ficarem molhadas e sujas. Estar ali fazia-o sentir-se perto de Annie.

Ainda tinha que tratar de algumas coisas - e de algumas pessoas -, mas depois de acabar o que tinha a fazer, da próxima vez que viesse aqui já não sairia. Por um breve instante, Ned esteve tentado a fazê-lo na altura. Sabia como devia fazer. Tirar os sapatos. Pôr o cano da espingarda na boca e puxar o gatilho com o dedo do pé.

Começou a rir, lembrando-se de ter feito isso uma vez, quando a arma não estava carregada, só para se meter com Annie. Ela tinha gritado e desatado a chorar, e depois tinha-se atirado a ele e tinha-Lhe puxado o cabelo. Não tinha doído. Ao princípio, tinha desatado a rir, mas depois sentiu pena porque Annie estava muito aflita. Annie amava- o. Era a única pessoa que o tinha amado na vida.

Ned levantou-se devagar. Tinha a roupa outra vez tão suja que sabia que, fosse onde fosse, as pessoas olhariam para ele. Por isso, voltou à carrinha, embrulhou a espingarda no cobertor, e regressou ao apartamento.

A Sr. a Morgan seria a primeira.

Tomou um duche, barbeou-se e penteou o cabelo. Depois, tirou o fato azul-escuro do armário e estendeu-o em cima da cama. Annie tinha-lho comprado como presente de aniversário, há quatro anos. Tinha-o usado apenas algumas vezes. Detestava vestir-se assim. Mas agora vestiu-o, com uma camisa e uma gravata. Estava a fazer aquilo por ela.

Foi à cómoda, onde tudo estava como Annie tinha deixado. A caixa com as pérolas que ele lhe tinha dado no Natal estava na gaveta de cima. Annie adorava- as. Disse-lhe que ele não devia ter dado cem dólares por elas, mas adorava-as. Pegou na caixa.

Ouvia os passos da Sr. a Morgan no andar de cima. Estava sempre a queixar- se de que ele era um desarrumado. Tinha- se queixado a Annie por causa das coisas que ele tinha na sua parte da garagem. Tinha-se queixado da maneira como ele despejava o lixo, dizendo que ele não atava os sacos e que os atirava para os caixotes que havia ao lado da casa. Estava sempre a arreliar Annie e agora, que ela estava morta, queria pô-lo fora de casa.

Ned carregou a espingarda e subiu as escadas. Bateu à porta.

A Sr. a Morgan abriu-a, mas manteve a corrente posta. Ele sabia que ela tinha medo dele. Mas quando o viu, sorriu e disse:

- Ora, Ned, está com tão bom aspecto. Sente-se melhor?

- Sim, sinto. E daqui a pouco vou sentir-me ainda melhor. Manteve a espingarda ao seu lado, para ela não conseguir vê-la com a porta apenas entreaberta.

- Estou a começar a tirar as coisas do apartamento. A Annie gostava muito de si, e quero que fique com as pérolas dela. Posso entrar? Quero dar-lhas.

Viu o olhar desconfiado nos olhos da Sr a Morgan e, pela maneira como ela mordia o lábio, percebeu que estava nervosa. Mas ouviu a corrente ser puxada para o lado.

Ned abriu a porta com um pontapé e empurrou-a. Ela tropeçou e caiu. Quando fez pontaria com a espingarda, viu o olhar que queria no rosto dela: o olhar que dizia que ela sabia que ia morrer, o olhar que ele tinha visto no rosto de Annie quando correu para o carro, depois de o camião o ter esmagado.

Só teve pena de a Sr. a Morgan ter fechado os olhos antes de ele disparar.

Só iam encontrá-la amanhã, talvez até depois de amanhã. Isso dava- lhe tempo para tratar dos outros.

Encontrou a mala da Sr. a Morgan e tirou as chaves do carro e a carteira. Havia cento e vinte e seis dólares lá dentro.

- Obrigado, Sr. a Morgan - disse, olhando para ela. - Agora, o seu filho pode ficar com a casa toda.

Sentiu-se calmo e em paz. Na cabeça, ouvia uma voz que lhe dizia o que tinha a fazer: Ned, leva a carrinha e estaciona-a num sítio onde eles não a encontrem. Depois leva o carro da Sr a Morgan, o Toyota preto, todo bonito e limpo, para ninguém reparar.

Uma hora mais tarde ia ao volante do Toyota. Tinha estacionado a carrinha no parque do hospital, onde ninguém daria por ela. As pessoas iam e vinham das sete à meia-noite. Depois, tinha voltado para trás e olhado para cima, para o segundo andar da casa, e teve uma boa sensação quando pensou na Sr. a Morgan. Na esquina, parou por causa do semáforo. Pelo retrovisor, viu um carro abrandar diante da casa e depois viu os detectives saírem. Para falarem com ele outra vez, pensou Ned. Ou para o prenderem.

Tarde demais, pensou Ned, quando o sinal ficou verde e ele diri giu o carro para norte. Tudo o que estava a fazer era por Annie. Em memória dela queria visitar as ruínas da mansão que o fizera sonhar dar-lhe uma casa como aquela. Afinal, o sonho tinha-se transformado num pesadelo que lhe tinha roubado a vida, por isso ele também tinha tirado a vida à mansão. Enquanto guiava, era como se ela estivesse ali, sentada ao lado dele.

- Vês, Annie? - disse ele, quando parou diante da mansão em ruínas. - Vês? Estamos quites. A tua casa desapareceu. A casa deles desapareceu.

Depois, tomou a direcção de Greenwood Lake, onde ele e Annie iam despedir-se dos Harnik e da Sr. a Schafley.

 

                   CAPÍTULO TRINTA E SETE

Tinha o rádio ligado, enquanto regressava de Pleasantville e me dirigia para casa, mas não ouvia uma palavra do que estava a ser dito.

Não conseguia evitar a sensação de que a minha presença esperada nos escritórios da Gen-stone, hoje, contribuíra para a súbita decisão de fechar as portas da empresa. Tinha também a sensação de que, fossem quais fossem os assuntos que Lowell Drexel tinha para discutir com Charles Wallingford, estava lá também para observar-me atentamente.

Fora uma sorte Betty, a recepcionista, ter referido por acaso que uma das mulheres que separava o correio e enviava as respostas-tipo era Laura, sobrinha da Dr. a Kendall. Se lhe coubera a ela responder à carta de Caroline Summers, tê-la-ia achado suficientemente interessante para a referir à Dr. a Kendall? pensei.

Mas, mesmo que tivesse, porque não teria respondido à carta? De acordo com a política da empresa, todas as cartas recebiam resposta.

Vivian dissera que, depois de ele ter ficado a saber que os registos do pai tinham sido levados, Nick Spencer deixara de marcar os seus compromissos na agenda. Se ele e Vivian eram tão próximos como as pessoas pareciam pensar no escritório, perguntei-me porque não lhe teria dito as razões da sua preocupação.

Não confiaria nela?

Ora ali estava uma nova possibilidade, bastante interessante.

Ou estaria a protegê-la, através do seu silêncio?

- Vivian Powers foi...

De súbito, apercebi-me de que não estava apenas a pensar no nome dela, estava a ouvi-lo na rádio. Aumentei rapidamente o volume.

...encontrada, ainda viva mas inconsciente, no carro da vizinha. O carro estava estacionado fora da estrada, numa zona de arvoredo, apenas a um quilómetro e meio de casa, em Briarcliff Manor. Pensava-se que tentara o suicídio, com base no facto de haver um frasco de comprimidos vazio no assento ao lado dela.

Meu Deus, Pensei. Desapareceu entre sábado à noite e domingo de manhã. Teria estado no carro este tempo todo? Estava quase a entrar nos acessos à cidade. Debati o assunto comigo própria por uma fracção de segundo, e depois retomei o caminho para Westchester, assim que me foi possível.

Quarenta e cinco minutos depois estava sentada com o pai de Vivian na sala de espera da unidade de cuidados intensivos do hospital de Briarcliff Manor. Ele chorava, de alívio e de medo.

- Carley - disse -, ela está consciente de vez em quando, mas parece não se lembrar de nada. Perguntaram-lhe que idade tem e ela disse dezasseis. Pensa que tem dezasseis anos. O que é que ela fez a ela própria?

Ou, o que é que lhe fizeram? pensei, enquanto lhe apertava a mão. Tentei achar algumas palavras de conforto.

- Ela está viva - disse eu. - É um milagre que depois de cinco dias no carro ainda esteja viva.

O detective Shapiro estava à porta da sala de espera.

- Estivemos a falar com os médicos, Sr. Desmond. A sua filha não pode ter estado no carro durante cinco dias. Sabemos que há dois dias marcou o número do telemóvel de Nick Spencer. Acha que con segue que ela seja franca connosco?

 

                   CAPÍTULO TRINTA E OITO

Fiquei com Allan Desmond durante quatro horas, até Jane, outra filha, chegar ao hospital, vinda de Boston. Era um ano ou dois mais velha do que Vivian e parecia-se tanto com ela que senti um assomo de surpresa quando ela entrou na sala de espera.

Insistiram ambos para que eu estivesse presente quando Jane falasse, ou tentasse falar, com Vivian.

- Ouviu o que a polícia disse - disse Allan Desmond. - Você é jornalista, Carley. A decisão é sua.

Fiquei com ele aos pés da cama, enquanto Jane se curvava sobre Vivian e a beijava na testa.

- Então, Viv, o que é que andas a fazer? Temos estado preocupados contigo.

Vivian estava a soro. Os batimentos cardíacos e a pressão arterial estavam a ser monitorizados num equipamento que estava por cima da cama. Estava branca como a cal, e o cabelo escuro fazia um contraste enorme com a tez e a roupa da cama. Quando os abriu, ainda que enevoados, voltei a ver os seus olhos castanhos suaves.

-Jane? - O timbre da voz era diferente.

- Estou aqui, Viv.

Vivian olhou em volta e o seu olhar deteve-se no pai. Uma expressão confusa estampou-se-lhe no rosto: - Porque está o papá a chorar?

Parece tão nova, pensei.

- Não chores, papá - disse Vivian, enquanto os olhos começavam a fechar-se-lhe.

- Viv, sabes o que te aconteceu? - Jane Desmond passava o dedo pelo rosto da irmã, tentando mantê-la acordada.

- Me aconteceu - Era evidente que Vivian tentava concentrar-se. Uma vez mais, mostrou um ar confuso. - Não me aconteceu nada. Acabei de chegar da escola.

Quando saí, uns instantes depois, Jane Desmond e o pai acompanharam-me até ao elevador.

- A polícia tem o descaramento de achar que ela está a fingir isto? - perguntou Jane, indignada.

- Se acha, está enganada. Ela não está a fingir - disse eu, tristemente.

Eram nove horas quando, finalmente, abri a porta do meu apartamento. Casey deixara mensagens no meu atendedor às quatro, seis e oito horas. Eram todas iguais: "Telefona-me, seja a que horas for, Carley. É muito importante. "

Casey estava em casa.

- Acabei de chegar - disse eu, à laia de pedido de desculpa. Porque não me telefonaste para o telemóvel?

- Telefonei. Uma série de vezes.

Obedecera às indicações do hospital para desligá-lo e depois esquecera-me de voltar a ligá-lo e ver se tinha mensagens.

- Dei o teu recado ao Vince, sobre falar com os ex-sogros de Nick. Devo ter sido convincente. Ou foi isso, ou terem ouvido falar em Vivian Powers deixou- os na expectativa. Querem falar contigo em qualquer altura, quando te der jeito. Presumo que tenhas ouvido as notícias sobre Vivian Powers, Carley.

Contei-lhe que estivera no hospital.

- Casey, podia ter sabido muito mais coisas por ela – disse eu. - Não percebi que estava à beira das lágrimas até ouvi-las na minha voz.

- Acho que ela queria falar comigo, mas teve medo de confiar em mim. Depois, decidiu que podia confiar em mim. Deixou aquela mensagem. Quanto tempo esteve escondida na casa da vizinha? alguém a viu entrar lá?

Estava a falar tão depressa que atropelava as minhas próprias palavras.

- Porque não usou o telefone da vizinha para pedir ajuda? Terá conseguido chegar ao carro ou alguém a terá levado? Casey, acho que ela estava com medo. Onde quer que estivesse, tentou constantemente ligar para o telemóvel de Nick Spencer. Teria acreditado nas notícias que diziam que ele foi visto na Suíça? No outro dia, quando falei com ela, juro que ela acreditava que ele estava morto. Ela não podia ter ficado naquele carro durante cinco dias. Porque é que eu não a ajudei? Eu sabia que havia qualquer coisa de muito errado!

Casey interrompeu-me.

- Espera, espera - disse ele. - Estás a divagar. Estou aí dentro de vinte minutos.

Na realidade, demorou vinte e três. Quando abri a porta, pôs os braços à minha volta e, pelo menos naquele momento, até o fardo terrível de ter falhado a Vivian Powers me saiu dos ombros.

Acho que foi naquele instante que deixei de tentar lutar contra a paixão que sentia por Casey e decidi acreditar na hipótese de ele estar apaixonado por mim, também. Afinal, a maior prova de amor é estar presente quando alguém mais precisa, não é?

 

                 CAPÍTULO TRINTA E NOVE

- Isto é a piscina deles, Annie - disse Ned. - Agora está coberta, mas quando eu trabalhei aqui no Verão passado, para aquele jardineiro, estava aberta. Havia mesas naqueles terraços. Os jardins eram muito bonitos. Por isso é que eu quis que tu tivesses a mesma coisa para ti.

Annie sorriu. Começava a compreender que ele não tinha querido magoá-la ao vender a casa.

Ned olhou em volta. Estava a ficar escuro. Não tencionava entrar na propriedade, mas lembrou-se do código para abrir o portão de serviço, de tantas vezes ter visto o jardineiro usá-lo, no Verão passado. Era assim que tinha entrado para deitar fogo à casa. O portão dava para o lado esquerdo da propriedade, depois do jardim inglês. Os ricos não queriam estar a ver os criados. Não queriam os seus carros ou camiões a interromper os caminhos.

- É por isso que têm uma zona fronteiriça, Annie - disse Ned. - Plantam árvores só para terem a certeza de que não nos verão entrar ou sair. E nós pagamos-lhes da mesma moeda. Entrámos, saímos, e eles nem dão por isso.

Quando lá tinha estado, tinha trabalhado no relvado, adubado plantas e plantado flores em volta da piscina. Por isso, conhecia qualquer centímetro deste lugar.

Explicou tudo isto a Annie, enquanto ia avançando.

- Sabes, tínhamos que usar este portão, quando eu

trabalhava aqui. Vês, o letreiro diz ENTRADA DE SERVIÇO. Para quando havia entregas, ou quando vinha alguém fazer um trabalho, a governanta abria o portão. Mas o jardineiro, aquele tipo que me meteu em sarilhos por causa daquela luta, tinha o código. Todos os dias estacionávamos diante desta garagem. Só a usam para guardar o mobiliário de jardim e esse tipo de coisas. Acho que este ano não vão usá-la. Ninguém quer ficar num sítio como este, com a casa desfeita e tudo ainda numa confusão. Há uma casa de banho pequena, com uma sanita e um lavatório, nas traseiras da garagem. É para pessoas como eu. Achas que eles iam deixar-nos entrar em casa deles? Nem sequer na casa de apoio da piscina! Nem pensar, Annie! O tipo e a mulher que limpavam a casa eram gente simpática. Se déssemos de caras com eles, ia ter que dizer qualquer coisa como "Só parei para dizer que lamento imenso o fogo". Hoje estou com bom ar, por isso não havia problema. Mas havia qualquer coisa que me dizia que não íamos dar com eles. E parece que tinha razão. Na verdade, até parece que se foram embora. Não está ali o carro. A casa onde eles viviam está às escuras. As persianas estão corridas. Agora, já não há casa grande para limpar. Sabes, eles também tinham de usar o portão de serviço. Aquelas árvores estão todas ali para não se ver o portão nem a garagem. Annie, eu estava a trabalhar aqui, há uns anos, quando ouvi aquele tipo, o Spencer, a dizer a alguém ao telefone que sabia que a vacina funcionava, que ia mudar o mundo. O ano passado, quando trabalhei aqui durante aquelas semanas, não parava de ouvir os outros a dizer que tinham comprado as acções e que elas tinham duplicado de valor e continuavam a subir.

Ned olhou para Annie. Às vezes, conseguia vê-la muito claramente; outras, como agora, era como se visse a sombra dela.

- Seja como for, foi isso que aconteceu - disse ele. Quis pegar-lhe na mão, mas embora soubesse que ela estava ali, não conseguia senti-la. Ficou desiludido, mas não queria mostrá-lo. Possivelmente, ela ainda estava um bocadinho zangada com ele.

- Temos de ir embora - acabou por dizer.

Ned passou pela piscina, pelo jardim inglês, e pela zona arborizada até ao caminho de serviço onde tinha estacionado o carro, perto da garagem, que era onde eles guardavam o mobiliário de jardim e outras coisas do género.

- Queres dar uma espreitadela antes de irmos, Annie?

A porta da garagem não estava fechada à chave. Alguém se tinha esquecido, pensou ele. Mas não fazia mal. Teria sido fácil abrir uma janela. Ned entrou. O mobiliário de jardim estava lá, mas havia também um espaço onde os caseiros costumavam deixar o carro. Os almofadões da mobília estavam empilhados nas prateleiras, lá atrás.

- Olha, Annie. A garagem até nem está mal para os criados. Limpa e confortável.

Ele sorriu para ela. Ela sabia que ele estava a brincar.

- Muito bem, querida. Agora, vamos até Greenwood Lake, tratar daquelas pessoas que foram tão más para ti.

Greenwood Lake ficava em Nova Jérsia, e Ned demorou uma hora e dez minutos até lá. Não ouviu nada nas notícias sobre a Sr. a Morgan, por isso a polícia ainda não sabia de nada. Mas ouviu dizer várias vezes que tinham encontrado a namorada de Nicholas Spencer. Uma mulher e uma namorada, pensou Ned. Outra coisa não podia esperar-se dele.

- A namorada está muito doente, querida - disse ele a Amnie.

- Muito doente. Também está a pagar a parte dela. Não queria chegar a Greenwood Lake demasiado cedo. Os nik e a Sr. a Schafley iam para a cama depois do noticiário das dez, e não queria chegar antes disso. Parou num snack-bar e comeu um hamburguer.

Eram dez horas em ponto quando estacionou diante do jardim onde ficava a casa deles. A Sr. a Schafley tinha a luz acesa, mas a dos Harnik estava às escuras.

- Vamos dar umas voltas por aqui - disse ele a Annie.

Mas à meia-noite os Harnik ainda não tinham chegado a casa. Ned decidiu que não podia esperar mais. Se enfiasse a espingarda pela janela da Sr a Schafley, podia acabar com ela, mas depois não poderia regressar.

- Vamos ter de esperar, querida - disse a Annie. - Onde havemos de ir?

- Vamos voltar à mansão - ouviu-a dizer. - Põe o carro na garagem e arranja uma boa cama para dormires, num daqueles sofás. Ali, estás seguro.

 

                       CAPÍTULO QUARENTA

Fui a primeira a chegar aos escritórios da Wall Street, na sexta-feira de manhã. Ken, Don e eu combináramos encontrar-nos às oito horas, para estarmos despachados antes da minha reunião com Adrian Garner, às 9h30. Chegaram poucos minutos depois de mim e, cada um com seu café, dirigimo-nos para o gabinete de Ken e fomos directos ao assunto. Acho que todos sentíamos, pelo desenrolar da situação, que o ritmo dos acontecimentos tinha mudado, e não apenas porque a Gen-stone fechara as portas. Instintivamente, todos sabíamos que as coisas estavam a suceder-se rapidamente, e que precisávamos de controlá-las.

Comecei por falar-lhes da minha ida rápida ao hospital, quando ouvi dizer que Vivian Powers estava lá, e descrevi o estado em que a encontrei. Depois, chegámos à conclusão de que Ken e Don viam a investigação com novos olhos, mas com conclusões muito diferentes das minhas.

- Há um cenário que está a começar a tomar forma e que agora faz sentido - disse Ken -, mas não é lá muito agradável. O Dr. Celtavini telefonou-me ontem à tarde, a perguntar-me se podíamos encontrar-nos à noite, em casa dele. - Olhou para nós, fez uma pausa e depois continuou. - O Dr. Celtavini está bem relacionado com a comunidade científica, em Itália. Há dias, ouviu dizer que vários laboratórios de lá receberam fundos de uma fonte desconhecida, e que, ao que parece, estão a seguir as diferentes fases que a Gen-stone seguiu na investigação da vacina contra o cancro.

Olhei para ele, surpreendida:

- Que tipo de fonte desconhecida estará a fornecer esses fundos?

- Nicholas Spencer.

- Nicholas Spencer?

- Claro que não é esse o nome que ele está a usar. Se for verdade, significará provavelmente que Spencer estava a usar o dinheiro da Gen-stone para custear a investigação noutros laboratórios. Depois, forja o seu desaparecimento. A Gen-stone vai à falência. Nick arranja uma nova identidade, provavelmente um novo rosto, e fica a ser o único dono da vacina. Talvez a vacina seja prometedora, afinal, e ele tenha falsificado deliberadamente os resultados para destruir a empresa.

- Então, pode ter sido visto na Suíça? - perguntei, pensando em voz alta. Não posso acreditar, pensei, simplesmente não consigo acreditar.

- Começo a pensar que não só é possível como é também provável... - começou Ken.

- Mas, Ken - protestei, interrompendo-o -, tenho a certeza que Vivian Powers acredita que Nick Spencer está morto. E eu acredito que eles estavam seriamente envolvidos um com o outro.

- Carley, disse-me que ela esteve desaparecida durante cinco dias, mas os médicos dizem que ela não esteve no carro durante esse tempo todo, que não pode ter estado. Então, o que aconteceu? Há algumas respostas a tudo isso. Ou ela é uma grande actriz ou, por mais surrealista que pareça, tem uma personalidade dissociativa. Isso explicaria a ausência de memória e uma personagem com dezasseis annos de idade.

Começava a sentir-me a pregar no deserto.

- O cenário que me parece admissível é muito diferente - disse eu. - Vamos partir de outro ponto de vista, está bem? Alguém roubou os registos do Dr. Spencer, que estavam à guarda do Dr. Broderick. Alguém roubou os Raios e a ressonância magnética da filha de line-Summers. E, a acreditar em Vivian, a carta que Caroline Sumers escreveu a Nick desapareceu, e a resposta que Caroline devia ter recebido nunca foi enviada. Vivian disse-me que a deixou com uma das funcionárias. Foi peremptória nesse aspecto.

Começava a sentir-me animada.

- Vivian disse também que, após o desaparecimento dos registos do Dr. Spencer, Nick Spencer começou a fazer muito segredo das suas reuniões e, às vezes, não ia ao escritório durante vários dias seguidos.

- Carley, acho que estás a provar a minha perspectiva – disse Ken, delicadamente. - Sabe-se que ele fez duas ou três viagens à Europa, entre meados de Fevereiro e o dia 4 de Abril, quando o avião se despenhou.

- Mas talvez Nick Spencer suspeitasse de que algo se passava na sua empresa - disse eu. - Escutem. A sobrinha da Dr. a Kendall, Laura Cox, uma rapariga com vinte anos, era secretária na Gen-stone.

Betty, a recepcionista, disse-me isso ontem. Perguntei-lhe se o parentesco entre as duas era do conhecimento geral e ela disse-me que não.

Disse que um dia, por acaso, fez referência ao facto de Laura Cox ter o mesmo nome próprio que a Dr. Kendal, e que ela lhe respondeu:

"Deram-me o nome por causa dela. É minha tia. " Mas, mais tarde, ficou terrivelmente transtornada e implorou a Betty que não dissesse uma palavra a ninguém sobre o assunto. Aparentemente, a Dr. a Kendall não queria que a relação de parentesco entre elas fosse conhecida.

- Qual seria o problema? - perguntou Don, vivamente.

- Betty disse-me que era regra da empresa que os familiares dos empregados não podiam trabalhar lá também. A Dr. a Kendall sab disso, certamente.

- As empresas de investigação médica acham que não é bonì a mão esquerda saber o que a direita anda a fazer - disse Don, à laia de concordância. - Ao permitir que a sobrinha tivesse um lugar de secretária, que é um trabalho-chave, a Dr. Kendall estava a infringir as regras. Pessoalmente, tinha-a na conta de melhor profissional.

- Ela contou-me que trabalhava no Hartness Research

antes de vir para a Gen-stone - disse eu. - Que tipo de reputação teria ela lá?

- Vou verificar. - Ken tomou nota no seu bloco de apontamentos.

- E, quando fizer isso, não se esqueça de que tudo quanto ouvir dizer sobre a possibilidade de Nicholas Spencer ter tentado, comodamente, levar a sua empresa à falência e ficar com a vacina para si próprio pode aplicar-se também a outra pessoa.

- Quem?

- Charles Wallingford, para começar. O que sabe realmente sobre ele?

Ken encolheu os ombros.

- Tem sangue azul. Não lhe serve de muito, mas para todos os efeitos tem sangue azul e muito orgulho nisso. O pai fundou uma empresa de mobiliário como gesto filantrópico para dar emprego a imigrantes, mas era um homem de negócios e tanto! A fortuna da família conheceu reveses noutras áreas, como às vezes acontece, mas o negócio do mobiliário era muito forte. O pai de Wallingford ampliou-o; depois, quando morreu, Charles pegou nele e arrasou-o.

- Ontem, quando estive nos escritórios da Gen-stone, a secretária dele estava indignada com o facto de os filhos dele o terem processado, por causa da venda da empresa.

Don Carter gosta de parecer imperturbável, mas quando ouviu esta informação abriu muito os olhos:

- Interessante, Carley! Vamos ver o que consigo descobrir sobre isso.

Ken estava outra vez a rabiscar. Eu esperava que isso fosse sinal de que ele estava aberto a considerar a possibilidade de outro cenário para o que acontecera na Gen-stone.

- Conseguiu encontrar o nome do paciente que saiu da ala para doentes terminais em St. Ann's?

- A minha fonte continua a tentar descobrir. - Sorriu. O nome do homem já deve ter aparecido na coluna de óbitos.

Olhei para o relógio.

- Tenho de ir-me embora. Deus me livre de fazer esperar o poderoso Adrian Garner. Talvez ceda e me conte o plano de emergência a que Lowell Drexel estava a fazer alusão, ontem.

- Deixe-me adivinhar - sugeriu Don. - Com grande pompa e circunstância, o departamento de relações públicas da Garner vai anunciar que a Garner Pharmaceuticals vai comprar a Gen-stone e, num gesto de boa vontade para com funcionários e accionistas, anunciará oito a dez cêntimos por dólar de perda. Vão anunciar que a Garner Pharmaceuticals irá recomeçar a sua luta incansável para erradicar a praga do cancro de todo o universo. E por aí adiante...

Levantei-me.

- Depois conto-vos o que se passar. Até à vista, rapazes. Hesitei, mas retive as palavras que ainda não estava preparada para proferir: que Nick Spencer, morto ou vivo, pode ter sido vítima de uma conspiração dentro da sua própria empresa, e que duas outras pessoas foram também arrastadas com ele, o Dr. Philip Broderick e Vivian Powers.

A comissão executiva da Garner Pharmaceuticals está sediada no edifício Chrysler, um velho símbolo de Nova Iorque, entre a Avenida Lexington e a Rua 42. Cheguei dez minutos adiantada à reunião mas, mesmo assim, mal entrei na recepção fui conduzida ao grande santuário, o gabinete de Adrian Garner. Fosse por que fosse, não fiquei surpreendida por ver que Lowell Drexel já se encontrava lá. Contudo, fiquei surpreendida com a terceira pessoa que vi na sala: Charles Wallingford.

- Bom-dia, Carley - disse ele, num tom que soou pleno de disposição. - Sou o convidado surpresa. Tínhamos uma reunião marcada para mais tarde, por isso Adrian teve a amabilidade de convidar-me para estar consigo, agora.

De súbito, veio-me à ideia a imagem de Lynn a beijar o alto da cabeça de Wallingford e a despentear-lhe o cabelo, como a secretária me descrevera, ontem. Acho que, inconscientemente, pensei sempre que Charles Wallingford era um imbecil, mas aquela imagem veio reforçar isso. Se Lynn estava envolvida com ele, não havia dúvida que era porque queria controlá-lo.

Escusado será dizer que o gabinete de Adrian Garner era magnífico. Tinha uma vista que ia de East River a Hudson River, e apreendia quase toda a baixa de Nova Iorque. Tenho uma paixão por mobiliário bonito, e seria capaz de jurar que a secretária que dominava toda a sala era uma peça Thomas Chippendale autêntica.

Decidi arriscar e perguntar a Adrian Garner se estava certa. Pelo menos teve a delicadeza de não parecer surpreendido por eu saber qualquer coisa sobre mobiliário antigo, mas depois disse:

- Thomas Chippendale Filho, Menina DeCarlo.

Lowell Drexel sorriu:

- É muito observadora, Menina DeCarlo.

- Espero que sim. É o meu trabalho.

Como acontece actualmente em muitos gabinetes de executivos, havia alguns móveis dispostos de forma a proporcionarem uma pequena zona de estar, com um sofá e várias poltronas, no canto mais afastado da sala. Contudo, não fui convidada a sentar-me lá. Garner sentou-se atrás da sua secretária de Thomas Chippendale Filho. Drexel e Wallingford estavam sentados em cadeirões de couro, num semi- círculo, virados para Garner. Drexel indicou-me a cadeira entre ambos.

Adrian Garner foi imediatamente directo ao assunto, coisa que tenho a certeza que até fazia nos sonhos.

- Menina DeCarlo, não quis cancelar o nosso encontro, mas compreenderá que a nossa decisão de encerrar a Gen-stone ontem acelerou a necessidade de tomar várias outras decisões, face ao que temos vindo a debater.

Era evidente que esta não iria ser a entrevista de fundo que eu esperava:

- Posso perguntar que outro tipo de decisões irá tomar, Sr. Garner?

Ele olhou directamente para mim e, de súbito, tive consciência do

enorme poder que emanava de Adrian Garner. Charles Wallingford

era mil vezes mais bem-parecido, mas Garner era a verdadeira força dinâmica naquela sala. Já o sentira ao almoço, a semana passada, e voltava a senti-lo agora, só que muito mais intensamente.

Garner olhou para Lowell Drexel.

- Deixe-me responder a essa pergunta, Menina DeCarlo - disse Drexel. - O Sr. Garner sente-se profundamente responsável perante os milhares de investidores que puseram dinheiro na Gen-Stone, devido à decisão, anunciada pela Garner Pharmaceuticals, de investir mil milhões de dólares na empresa. O Sr. Garner não tem qualquer obrigação legal para com eles, mas fez uma oferta que, esperamos, venha a ser aceite com agrado. A Garner Pharmaceuticals dará a todos os funcionários e a todos os accionistas dez cêntimos por cada dólar que eles tenham perdido devido à fraude e ao roubo perpetrado na empresa por Nicholas Spencer.

Ali estava o discurso que Don Carter me dissera que eu devia esperar, com a ligeira diferença de que Garner delegara em Lowell Drexel a acção de proferi-lo.

Depois, foi a vez de Wallingford:

- A notícia será dada na segunda- feira, Carley. Por isso, compreenderá que lhe peça para adiar a visita a minha casa. Terei todo o prazer em encontrar-me consigo numa data posterior, claro.

Numa data posterior já não haverá história, pensei. O que vocês querem é arquivar esta história o mais depressa possível.

Não estava disposta a facilitar-lhes as coisas.

- Sr. Garner, estou certa de que a generosidade da sua empresa será muito apreciada. Falando por mim, acho que isso significa que posso esperar receber um cheque de dois mil e quinhentos dólares como compensação pelos vinte e cinco mil que perdi.

- É verdade, Menina DeCarlo - disse Drexel.

Ignorei-o e olhei fixamente para Adrian Garner. Ele aguentou o meu olhar e acenou com a cabeça afirmativamente. Depois, abriu a boca.

- Se é tudo, Menina DeCarlo...

Interrompi-o:

- Sr. Garner, gostaria de saber se, pessoalmente, acredita que Nicholas Spencer foi visto na Suíça.

- Nunca faço comentários sem um conhecimento factual da situação. Neste caso, como deve saber, não tenho qualquer conhecimento factual.

- Alguma vez teve ocasião de se encontrar com Vivian Powers, a secretária de Nicholas Spencer?

- Não. Os meus encontros com Nicholas Spencer tiveram sempre lugar neste gabinete e não em Pleasantville.

Virei-me para Drexel.

- Mas o senhor tinha assento na comissão executiva, Sr. Dresel - insisti. - Vivian Powers era secretária pessoal de Nicholas Spencer.

Com certeza, deve tê-la encontrado pelo menos uma vez ou duas. Não se deve ter esquecido. É uma mulher muito bonita.

- Menina DeCarlo, todos os executivos que conheço têm pelo menos uma secretária pessoal, e muitas delas são atraentes. Não tenho o hábito de desenvolver relações de familiaridade com elas.

Nem sequer tem curiosidade em saber o que lhe aconteceu?

- Ouvi dizer que tentou suicidar-se. Ouvi uns rumores de que estaria romanticamente envolvida com Spencer, por isso talvez o fim dessa relação, da forma como aconteceu, a tenha levado a uma forte depressão. Acontece. - Levantou-se. - Menina DeCarlo, vai ter de desculpar-nos. Temos uma reunião na sala de conferências daqui a menos de cinco minutos.

Acho que ele me teria tirado à força da cadeira, se eu tivesse tentado dizer mais uma só palavra. Garner não se incomodou a levantar o rabo da cadeira quando disse bruscamente:

- Adeus, Menina DeCarlo.

Wallingford pegou-me na mão e disse-me qualquer coisa sobre encontrar-me brevemente com Lynn, porque ela precisava de se ani mar; depois, Lowell Drexel acompanhou-me, fazendo-me sair do grande santuário.

Na parede maior da recepção via-se um mapa-mundo que testemunhava o impacto da Garner Pharmaceuticals. Países-chave e várias localizações eram simbolizadas por imagens familiares: as Twin Towers, a torre Eiffel, o Forum, o Taj Mahal, o Palácio de Bucking ham. Tinha uma fotografia esplêndida e passava a mensagem, a quem quer que olhasse para o mapa, de que a Garner Pharmaceuticals era uma empresa poderosa a nível mundial.

Parei para observá-lo.

- Ainda me custa olhar para uma fotografia das Twin Towers. Acho que nunca vai deixar de custar-me - disse eu a Lowell Drexel.

- Também acho.

Segurava-me no cotovelo com a mão. A mensagem era "Desaparece!

Na parede junto à porta havia uma fotografia daquilo que pensei serem os craques da Garner Pharmaceuticals. Mesmo que tivesse querido fazer mais do que olhá-la de passagem, não teria tido oportunidade. Como também não tive oportunidade de recolher alguns dos prospectos que estavam em cima da mesa. Drexel empurrou-me pelo corredor e até ficou comigo à espera do elevador, para ter a certeza de que eu entrava nele.

Carregou no botão e pareceu impaciente por nenhuma porta se ter aberto por magia. Dali a pouco o elevador chegou.

- Adeus, Menina DeCarlo.

- Adeus, Sr. Drexel.

Era um elevador expresso e mergulhei em direcção à entrada, esperei cinco minutos e depois voltei a apanhar o mesmo elevador.

Numa questão de segundos estava de regresso aos gabinetes dos executivos da Garner Pharmaceuticals.

- Desculpe - murmurei para a recepcionista. - O Sr. Garner pediu-me que não me esquecesse de levar alguns dos vossos prospectos, quando saísse. - Pisquei-lhe o olho com ar cúmplice, entre mulheres. - Não diga ao grande homem que me esqueci.

- Prometo - disse ela solenemente, enquanto eu me esgueirava para recolher os prospectos.

Queria observar bem a fotografia dos homens fortes da Garner, mas ouvi a voz de Charles Wallingford no corredor e afastei-me rapidamente. Contudo, desta vez não fui directamente para o elevador. apressei-me a dobrar a esquina e esperei.

Um minuto depois, espreitei cautelosamente e vi Wallingford carregar no botão de chamada do elevador, com ar impaciente. Lá vai a grande reunião na sala de conferências, Charles. Se está mesmo a haver uma, não foi convidado para ela.

O mínimo que podia dizer-se era que a manhã tinha sido interessante.

E a noite ia ser mais. No táxi, de regresso ao meu gabinete, tinha mensagens no telemóvel. Havia uma de Casey A noite passada, quando fora ao meu apartamento, achara que era muito tarde para telefonar aos ex-sogros de Nick Spencer, os Barlowe, em Greemwich Mas, entretanto, já falara com eles, esta manhã. Estariam em casa cerca das cinco horas, hoje, e ele perguntara-lhes se seria conveniente para eles eu ir lá a essa hora.

- Estou de folga esta tarde - concluiu Casey - Se quiseres, levo-te lá. Posso tomar um copo com o Vince, enquanto estiveres com os Barlowe. Depois, vamos jantar a qualquer sítio.

Gostei bastante da ideia. Há coisas que não precisam de ser ditas, mas tive a sensação de que, no momento em que abrira a porta a Casey, a noite passada, tudo mudara entre nós. Ambos sabíamos para onde íamos e ambos gostávamos do rumo que estávamos a tomar.

Fiz um telefonema breve para Casey, a confirmar que ele podia ir buscar-me às quatro horas, e voltei ao gabinete, para começar a fazer um esboço preliminar de um perfil de Nicholas Spencer.

Olhei para uma das fotografias mais recentes de Nick, tirada antes do acidente de avião, e gostei do que vi. Era um grande plano e mos trava uma expressão séria e prudente nos olhos e uma boca firme e igualmente séria. Era a fotografia de um homem que parecia profun damente preocupado, mas digno de confiança.

Era essa a expressão: digno de confiança. Não conseguia ver o homem que tanto me impressionara nessa noite, ao jantar, ou que me olhava agora tão firmemente nos olhos enquanto eu observava a sua fotografia, a mentir, a enganar e a forjar a sua morte num desastre de avião.

Esta ideia conduziu a uma outra que eu aceitara, sem levantar qualquer questão. O acidente com o avião. Sabia que Nick Spencer dera a sua posição ao controlador aéreo em Puerto Rico, minutos antes de as comunicações terem falhado. Devido à forte tempestade, as pessoas que acreditaram que ele estava morto partiram do princípio que o avião fora atingido por um raio ou apanhado pelas rajadas de vento. As pessoas que acreditaram que ele estava vivo pensaram que ele encontrara uma forma de sair do avião antes de ele se ter despenhado, e que o desastre fora engendrado por ele próprio. Haveria outra explicação? A manutenção do avião seria feita regularmente? Spencer evidenciara alguns sinais de doença antes de ter voado? Em situações de stress, até os homens de quarenta e poucos anos podem ter um ataque de coração.

Peguei no telefone. Estava na hora de fazer uma pequena visita à minha meia- irmã, Lynn. Telefonei-lhe e disse-lhe que gostaria de passar por casa dela, para conversarmos.

- Só nós duas, Lynn.

Ela estava de saída e a voz soou impaciente:

- Carley, vou passar o fim-de-semana na casa de hóspedes de Bedford. Não queres aparecer por lá no domingo à tarde? É um sítio calmo e temos muito tempo para conversar.

 

                   CAPÍTULO QUARENTA E UM

De regresso a Bedford, Ned parou para atestar o depósito de gasolina. Depois, comprou gasosa epretel. e pão e manteiga de amendoim, numa loja de conveniência próxima da estação de serviço. Era o tipo de comida que gostava de comer enquanto via televisão e enquanto Annie tratava disto ou daquilo no apartamento ou na casa de Greenwood Lake. Ela não gostava muito de ver televisão, excepto alguns programas, como a Roda da Fortuna. Normalmente, era boa a adivinhar as respostas antes dos concorrentes.

Devias escrever para lá. Devias ir ao programa – costumava Ned dizer-lhe. - Ganhavas os prémios todos.

- Ia ficar com ar de idiota, ali especada. Quando visse aquelas pessoas todas a olhar para mim, não conseguia dizer uma única palavra.

- Claro que conseguias!

Claro que não conseguia!

Ultimamente, costumava pensar nela e era como se ela estivesse a falar com ele. Por exemplo, quando estava a pousar a gasosa e o resto das coisas no balcão, ouviu Annie dizer-lhe para levar leite e cereais, para comer de manhã.

- Precisas de alimentar-te bem, Ned - disse ela.

Ele gostava que ela o repreendesse.

Ficou com ele enquanto ele meteu gasolina e comprou a comida. no resto do caminho até Bedford, Ned não conseguiu vê-la nem senti-la no carro. Nem sequer conseguia ver a sombra dela, mas talvez fosse por estar escuro.

Quando chegou à propriedade dos Spencer, foi suficientemente cuidadoso para certificar-se de que não havia mais ninguém na estrada, antes de curvar na direcção do portão de serviço e digitar o código. Quando incendiara a casa, tinha luvas para não deixar impressões digitais no painel. Agora, não interessava. Na altura em que ele desaparecesse de vez, toda a gente saberia quem ele era e o que tinha feito.

Estacionou o carro na garagem de serviço, exactamente como tinha planeado. Havia uma lâmpada no tecto, mas embora ele soubesse que a luz não podia ser vista da estrada, não correu o risco de acendê-la. Encontrou uma lanterna no porta-luvas do carro da Sr. a Morgan, mas quando desligou os faróis do carro descobriu que não precisava dela. O luar que entrava pela janela era suficiente. Foi até à pilha de cadeiras, pegou na primeira e colocou-a entre o carro e a parede com as prateleiras.

Este tipo de cadeiras tinha um nome, mas não era cadeira nem sofá.

- Como se chama esta coisa, Annie? - perguntou ele.

- Canapé.

Ouviu a voz dela na cabeça, a dizer- lhe aquilo.

As almofadas compridas estavam na prateleira de cima, e foi uma luta tirar uma delas cá para baixo. Era pesada e grossa, mas depois de tê-la posto em cima do canapé, experimentou- a. Era tão boa como a sua cadeira, no apartamento. Mas ainda não lhe apetecia ir para a cama. por isso abriu a garrafa de whisky.

Quando, finalmente, ficou com sono, estava fresco, por isso abriu a arca, desembrulhou a espingarda do cobertor, pegou nela e voltou a pousá-la. Sabia-lhe bem ter a espingarda junto de si, e o cobertor com ela.

Sabia que aGora estava seguro, por isso deixou-se adormecer.

- Precisas de dormir, Ned - sussurrou Annie. Quando acordou percebeu, pelas sombras, que era quase noite. Tinha dormido o dia todo. Levantou-se e, do lado direito da casa, abriu a porta que dava para uma espécie de armário onde estava a sanita e o lavatório.

Havia um espelho por cima do lavatório. Ned olhou para a sua imagem reflectida e viu os olhos vermelhos e a barba crescida. Ainda não tinha passado um dia desde a última vez que tinha feito a barba e já estava assim. Tinha desapertado o nó da gravata e o botão do colarinho da camisa antes de se deitar, ontem à noite, mas devia tê-las tirado. Tinham um ar amarrotado e desalinhado.

Mas que mal fazia? perguntou a si próprio.

Atirou água fria para a cara e voltou a olhar para o espelho. A imagem estava desfocada. Em vez da sua cara, via os olhos de Peg e os da Sr. Morgan, muito abertos, aterrados; exactamente como quando tinham percebido o que ia acontecer-Lhes.

Depois, as imagens da Sr. a Schafley e dos Harnik começaram a deslizar também no espelho. Também tinham olhos de medo. Sabiam que ia acontecer-lhes qualquer coisa. Sabiam que ele ia atrás deles.

Era demasiado cedo para ir até Greenwood Lake. Decidiu que não devia sair da garagem antes das dez horas: isso significava que chegaria lá por volta das onze menos um quarto. A noite passada, não tinha sido sensato fazer os mesmos dois ou três quilómetros, à espera que os Harnick chegassem. A polícia podia ter reparado.

A gasosa já não estava fresca, mas ele não se importou. Nem sequer precisou do pão com manteiga de amendoim, nem dos cereais. Ligou o rádio do carro e ouviu as noticias. Tanto na edição das nove como na das dez horas, não disseram nada sobre terem encontrado uma senhoria intrometida de Yonkers morta. Provavelmente, os polícias tinham-lhe tocado à campainha, visto que o carro dela não estava lá, e tinham pensado que ela fora visitar alguém, decidiu Ned.

Mas no dia seguinte podiam voltar à carga. E talvez o filho dela começasse a pensar porque é que ela não dera noticias. Mas isso era só no dia seguinte.

Faltava um quarto para as dez quando Ned levantou a porta da garagem. Estava frio lá fora, mas era aquele tipo de frio agradável que se sente ao fim de um dia de sol. Decidiu esticar as pernas durante alguns minutos.

Seguiu pelo caminho, ao longo da zona arborizada, até que chegou ao jardim inglês. A piscina ficava do outro lado.

De repente, parou. Que era aquilo? pensou.

As persianas estavam corridas, na casa de hóspedes, mas via-se luz por baixo delas. Estava alguém em casa.

Não podiam ser as pessoas que trabalhavam ali, pensou. Se fossem, tinham tentado pôr o carro na garagem. Escondido pelas sombras, passou pela piscina, deu a volta aos arbustos e encaminhou-se para a casa de hóspedes. Viu que uma das persianas, de uma janela lateral, estava ligeiramente levantada. Tão silencioso como quando ficava no bosque, à espera dos esquilos, foi até essa janela e baixou- se.

Lá dentro, viu Lynn Spencer, sentada no sofá, com uma bebida na mão. O mesmo tipo que ele tinha visto a fugir pelo caminho naquela noite estava sentado diante dela. Não conseguia ouvir o que eles diziam; mas pelas expressões dos seus rostos, Ned viu que estavam preocupados com alguma coisa.

Se estivessem com um ar feliz, teria ido buscar imediatamente a sua espingarda e acabava com eles ali e naquele preciso momento.

Mas gostou do facto de eles parecerem preocupados. Como gostaria de ouvir o que estavam a dizer um ao outro!

Parecia que Lynn estava a planear ficar por ali durante algum tempo. Tinha vestido umas calças largas e confortáveis e uma camisola, o tipo de roupas que os ricos usam quando vão para o campo.. Roupas informais": era essa a expressão. Annie costumava ler sobre esse tipo de roupas e rir:

- As minhas roupas são mesmo informais, Ned. Tenho uns uniformes muito informais para levar os tabuleiros. Tenho uns jeans e umas shirts muito informais para quando faço a limpeza. E quando cavo o jardim só tenho roupas informais.

Aquele pensamento fê-lo ficar triste, outra vez. Depois de a casa de Greenwood Lake ter desaparecido, Annie tinha atirado as luvas e as ferramentas de jardinagem para o lixo. Não quis ouvi-lo quando lhe prometeu que havia de ter uma casa nova. Tinha apenas continuado a chorar.

Ned desviou-se da janela. Era tarde. Lynn Spencer não ia deixar a casa. Ainda estaria ali amanhã. Ned tinha a certeza disso. Era hora de ir até Greenwood Lake e tratar dos assuntos desta noite.

A porta da garagem não fez o menor ruído quando ele a abriu, nem o portão da entrada de serviço. As pessoas que estavam na casa de hóspedes não faziam ideia de que ele estava ali.

Quando regressou, três horas mais tarde, escondeu o carro, fechou a garagem e deitou-se no canapé, com a espingarda junto de si. A espingarda cheirava a pólvora queimada, um cheiro bom, quase como o cheiro da lareira quando o lume está aceso. Pôs o braço à volta da espingarda e aconchegou-se a ela até se sentir seguro e quente.

 

                   CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Reid e Susan Barlowe viviam numa casa de tijolo branco, de estilo federal, situada numa bela propriedade encostada a Long Island Sound. Casey seguiu pela circular e deixou-me diante da casa, às cinco horas em ponto. Ia visitar o amigo, Vincent Alcott, enquanto eu ficava a falar com os Barlowe. Fiquei de ir ter com ele quando terminasse.

Reid Barlowe abriu-me a porta e cumprimentou-me com cortesia, e depois disse-me que a mulher estava no solário.

- Tem-se uma bela vista, sobre a água - explicou-me, enquanto eu o seguia e atravessávamos o hall.

Quando entrámos, Susan Barlowe estava a pousar um tabuleiro na mesa de apoio, com um jarro de chá gelado e três copos altos. Apresentámo-nos e pedi-lhes que me chamassem Carley. Fiquei surpreendida por serem tão novos: certamente não teriam ainda sessenmta anos. O cabelo dele era grisalho, o dela ainda de um louro escuro, picado de cinzento. Eram ambos relativamente altos, magros, com feições agradáveis em que se destacavam os olhos. Os dele eram castanhos, os dela azuis-acinzentados, mas ambos evidenciavam uma

espécie de tristeza. Pensei se os traços de dor que ali se viam eram por causa da filha, que morrera há oito anos, ou por causa do antigo genro, Nicholas Spencer.

O nome solário era adequado para a divisão. O sol da tarda entrava pelas janelas, realçando ainda mais o padrão de flores amarelas que revestia o vime entrançado do sofá e das cadeiras. As paredes e o chão de carvalho branco, e uma floreira baixa que acompanhava as grandes janelas, que iam até ao tecto, completavam a sensação de mistura entre o interior e o exterior.

Insistiram para que me sentasse no sofá, que oferecia uma vista panorâmica de Long Island Sound. Os dois cadeirões próximos completavam o conjunto, propício à conversa, e foi neles que se sentaram. Aceitei com agrado um copo de chá gelado e, por momentos, ficámos sentados em silêncio, medindo-nos reciprocamente.

Agradeci-Lhes por me terem recebido e pedi-lhes antecipadamente desculpa por quaisquer perguntas que pudessem parecer-lhes indiscretas ou insensíveis.

Por um instante, receei problemas. Trocaram olhares entre si, após o que Reid Barlowe se levantou e fechou a porta que dava para o hall.

- Só para o caso de o Jack entrar e não o ouvirmos. Preferia que ele não ouvisse nada da nossa conversa - disse ele, quando voltou a sentar-se.

- Não é que o Jack tenha o costume de escutar as conversas dos outros - apressou-se Susan Barlowe a dizer -, mas é que ele anda tão desorientado, coitado. Adorava o Nick. Estava a fazer o luto e as coisas estavam a correr bastante bem, e depois começaram estas histórias todas. Agora, quer acreditar que ele está vivo, mas isso é uma espada de dois gumes, porque levanta a questão de porque é que Nick ainda não o contactou.

Decidi começar com frontalidade.

- Como sabem, Lynn Spencer e eu somos meias-irmãs - disse eu. Ambos confirmaram com um aceno de cabeça. Juraria que um olhar de desdém lhes assolou os rostos quando ouviram pronunciar o nome dela, mas depois pensei que talvez o tivesse visto por estar a pensar que ia vê-lo.

- Na realidade, encontrei-me com Lynn apenas algumas vezes. Não sou advogada dela nem detractora - disse. - Estou aqui como jornalista, para ficar a saber o mais possível sobre o que pensam de Nick Spencer.

Tentei aliviar um pouco a tensão, descrevendo como conhecera Nick e a impressão que eu própria tivera dele.

Falámos durante mais de uma hora. Era óbvio que adoravam Nicholas Spencer. Os seis anos em que estivera casado com a filha deles, Janet, tinham sido irrepreensíveis. A notícia de que ela tinha cancro chegou exactamente na altura em que ele planeava transformar a sua empresa de aprovisionamento médico numa firma de pesquisa farmacêutica.

- Quando o Nick soube que a Jane estava doente e que não tinha muitas hipóteses, ficou quase obcecado - disse Susan Barlowe, quase num murmúrio.

Procurou os óculos de sol no bolso, dizendo qualquer coisa sobre o sol estar demasiado forte. Acho que não quis que eu lhe visse as lágrimas que ela procurava conter.

- O pai do Nick tinha tentado desenvolver uma vacina contra o cancro - prosseguiu. - Estou certa de que sabe disso. O Nick tinha pegado nos registos do pai e começado a estudá-los. O interesse que tinha pela microbiologia tinha feito dele uma pessoa com bastantes conhecimentos. Sentiu que o pai tinha estado à beira de uma cura e decidiu conseguir o dinheiro para fundar a Gen-stone.

- Os senhores investiram na Gen-stone?

- Sim, investimos. - Foi Reid Barlowe quem respondeu.

- E voltaria a fazer a mesma coisa. Seja o que for que tenha corrido mal, não foi porque o Nick nos tenha enganado, nem às outras pessoas.

- Depois da morte da vossa filha, continuaram próximos de Nick?

- Sem dúvida. Se houve alguma tensão, começou a aparecer depois de ele ter casado com Lynn. - Os lábios de Reid comprimiram-se. - Juro-lhe que foi a semelhança física de Lynn com aJanet que o levou a ficar atraído por ela. A primeira vez que ele a trouxe foi como se nos tivessem dado um murro, a mim e à minha mulher. E também não foi bom para o Jack.

- O Jack tinha seis anos, na altura?

- Sim, e recordava-se da mãe perfeitamente. Depois do casamento, quando o Jack vinha aqui de visita, começou a mostrar-se cada vez mais relutante em voltar para casa. E o Nick acabou por sugerir que o matriculássemos na escola, aqui.

- Porque é que Nick não se separou simplesmente de Lynn? perguntei.

- Acho que teria acabado por fazê-lo - disse Susan Barlowe -, mas o Nick estava tão empenhado no desenvolvimento da vacina que as preocupações com o casamento, ou a falta dele, ficaram para segundo plano. Durante algum tempo, andou muito preocupado com o Jack, mas depois de ele ter começado a viver connosco e de se mostrar obviamente mais feliz, o Nick concentrou-se apenas na Gen-stone.

- Conheceram Vivian Powers?

- Não - disse Reid Barlowe. - Claro que lemos coisas sobre ela, mas o Nick nunca nos falou nela.

- Alguma vez Nick vos deu a entender que sentia que havia um problema na Gen-stone, que ia para além do facto de muitas drogas promissoras falharem na última fase dos testes?

- Não há dúvida de que, no último ano, o Nick andou muito perturbado. - Reid Barlowe olhou para a mulher e ela concordou, com um aceno de cabeça. - Confidenciou-me que tinha contraído empréstimos, dando como garantia as acções da Gen-stone, porque sentia que era necessário investigar mais.

- Dando como garantia as acções dele, não os fundos da empresa? - apressei-me a perguntar.

- Sim. Nós temos uma certa segurança financeira, Menina DeCarlo, e no mês antes de o avião se ter despenhado, o Nick perguntou-nos se podíamos conceder-lhe um empréstimo para o avanço da pesquisa.

- E os senhores concederam-lho?

- Sim. Não vou dizer-lhe quanto lhe emprestámos, mas é por isso que acredito que se o Nick tirou todo aquele dinheiro da empresa foi para gastá-lo na pesquisa e não porque resolveu metê-lo ao bolso.

- Acha que ele está morto?

- Sim, acho. O Nick não tinha feitio para dissimulações e nunca teria abandonado o filho. - Reid Barlowe levantou a mão, num gesto de aviso. - Acho que o Jack acabou de entrar. Vieram trazê-lo. Esteve no treino de futebol.

Ouvi alguém a correr no hall. Os passos pararam junto à porta fechada. O rapaz espreitou pelas janelas e depois levantou a mão, para bater à porta. Reid Barlowe acenou-lhe, convidando- o a entrar, e levantou-se de um salto para abraçá-lo.

Era um miúdo bastante magro, com o cabelo espetado e uns enormes olhos azuis-acinzentados. Quando fomos apresentados, o sorriso largo que oferecera aos avós transformou-se num sorriso tímido e doce para mim.

- Muito prazer em conhecê-la, Menina DeCarlo - disse ele.

Senti um nó na garganta. Lembrei-me de ter ouvido Nick Spencer dizer: "O Jack é um miúdo maravilhoso. " Tinha razão. Via-se que era um miúdo maravilhoso. E tinha a idade que o meu Patrick teria, se tivesse sobrevivido.

- Vó, o Bobby e o Peter perguntaram-me se eu podia ficar a dormir em casa deles. Pode ser? Vão jantar pisa. A mamã deles diz que quer muito que eu vá.

Os Barlowe olharam um para o outro.

- Se prometerem não ficar acordados até muito tarde, a fazer disparates - disse Susan Barlowe. - Não te esqueças, amanhã cedo tens treino.

- Eu prometo, prometo mesmo - disse ele, com um ar muito sério. - Obrigado, vó. Disse-Lhes que telefonava já se tu dissesses que sim.

Virou-se para mim:

- Gostei muito de a conhecer, Menina DeCarlo.

Caminhou calmamente até à porta mas, quando chegou ao hal ouvi-o começar a correr. Olhei para os avós. Ambos sorriam. Reid Barlowe encolheu os ombros:

- Como pode ver, é a segunda vez para nós, Carley. O engraçado é que o Bobby e o Peter são gémeos, mas os pais deles são pouco mais novos do que nós.

Havia uma observação que eu sentia que tinha de fazer:

- Apesar de tudo o que lhe aconteceu, o Jack parece ser uma criança perfeitamente ajustada, o que certamente se deve a um excelente trabalho da vossa parte.

- Claro que tem dias maus - apressou-se Reid Barlowe a dizer.

- Mas como seria possível não tê-los? Era muito agarrado ao Nick. A incerteza de tudo isto é que pode destruí-lo. É um miúdo inteligente. Tem havido fotografias de Nick e histórias sobre ele em todos os jornais e televisões. Num dia, o Jack está a tentar aceitar a morte do pai, e no dia seguinte ouve dizer que ele foi visto na Suíça. Depois, começa a fantasiar e a dizer que o Nick pode ter saltado de pára-quedas antes de o avião se ter despenhado.

Continuámos a falar durante mais alguns minutos, e depois levantei-me para me ir embora.

- Foram muito amáveis - disse eu -, e prometo que quando vos vir no domingo serei apenas mais uma convidada, não uma jornalista.

- Ainda bem que pudemos conversar sossegadamente - disse Susan Barlowe. - Achámos que era absolutamente necessário que a nossa posição fosse conhecida publicamente. Nicholas Spencer era um homem honesto e um cientista dedicado. - Hesitou. - Sim, posso chamar-lhe cientista, mesmo que não tivesse nenhum doutoramento em microbiologia. Seja o que for que se tenha passado na Gen-stone, a culpa não foi dele.

Acompanharam-me ambos até à porta. Quando Reid Barlowe a abriu, Susan disse:

- Carley, apercebi-me agora de que ainda nem perguntei pela Lynn. Já está completamente recuperada?

- Quase.

- Eu devia ter-Lhe telefonado. Para ser franca, desde o início que não gostei dela, mas ficar-lhe-ei eternamente grata. Ela disse-lhe que o Nick queria levar o Jack na viagem a Puerto Rico e que foi ela que o convenceu a mudar de ideias? Na altura, oJack ficou muito desapontado, mas se tivesse ido com o Nick naquele dia estaria no avião quando ele caiu.

 

                   CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS

Os amigos de Casey, Vince e Julie Alcott, agradaram-me de imediato. Vine e Casey andaram juntos na Faculdade de Medicina John Hopkins.

- Como é que eu e a Julie tivemos coragem para nos casarmos quando eu ainda estava a estudar, é coisa que nunca hei-de saber - disse Vince, dando uma gargalhada. - Não acredito que o nosso décimo aniversário é já no domingo.

Juntei-me a eles para um copo de vinho. Sensatamente, coibiram-se de me fazer perguntas sobre a minha visita ao casal vizinho. Tudo quanto eu disse foi que os Barlowe eram muito simpáticos e que tinha gostado muito de conhecer o Jack.

No entanto, acho que Casey percebeu que eu estava bastante perturbada, porque, passados alguns minutos, levantou-se.

- Toca a ir embora - disse ele. - Sei que a Carley tem que trabalhar na coluna dela, e estamos ansiosos por voltarmos no domingo.

Regressámos a Manhattan, quase em silêncio. Mas, às sete e um quarto, quando nos aproximávamos do centro da cidade, Casey disse:

- Tens que comer, Carley. O que te apetece?

Embora não tivesse pensado nisso, de repente percebi que estava

cheia de fome.

- Um hamburguer. Pode ser?

O J. Clarke's, o famoso e antigo restaurante da Terceira Avenida, reabrira recentemente, depois de uma remodelação total. Fomos lá. Depois de termos feito os pedidos, Casey disse:

- Estás muito perturbada, Carley. Queres falar sobre isso?

- Ainda não - disse eu. - Ainda está tudo às voltas na minha cabeça.

- Conhecer o Jack mexeu contigo?

A voz de Casey era suave. Ele sabe que ver um rapaz com a mesma idade que o Patrick teria me partido o coração.

- Sim e não. É um miúdo muito simpático.

Quando os nossos hamburgueres chegaram, disse-lhe:

- Talvez seja melhor falarmos no assunto. Sabes, o problema é

que estou a somar dois e dois e o resultado é bastante grave e um tanto assustador.

 

             CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO

No sábado de manhã, Ned ligou o rádio do carro. As noticias das sete estavam a começar. Enquanto ouvia, ia sorrindo. Em Greenwood Lake, NovaJérsia, três pessoas que lá residiam há muito tempo tinham sido mortas enquanto dormiam. A polícia achava que as suas mortes estavam relacionadas com a morte da Sr. a Elva Morgan, de Yonkers, Nova Iorque. O inquilino dela, Ned Cooper, tinha uma casa em Greenwood Lake e sabia-se que tinha ameaçado as vítimas recentemente. A noticia continuava dizendo que Cooper era também suspeito da morte de Peg Rice, a empregada da farmácia morta há quatro noites. A balística estava a proceder a testes. Pensava-se que Cooper conduzia uma carrinha Ford, castanha, com oito anos, ou un Tóyota preto, de um modelo recente. Devia ser considerado armado e perigoso.

É isso que sou, pensou Ned: armado e perigoso. Deveria ir agora até à casa de hóspedes e acabar com Lynn e com o namorado, se ainda lá estivesse? pensou. Não, talvez não. Ali, estava seguro. Talvez devesse esperar. Ainda tinha de pensar numa maneira de apanhar a meia-irmã, Carley DeCarlo.

Depois, ele e Annie poderiam descansar e estaria tudo acabado. menos a coisa final, quando ele tirava os sapatos e as meias e se sentava na campa de Annie, com a espingarda ao pé de si.

Havia uma canção que Annie gostava de trautear: "Guarda-me a última dança... "

Ned tirou o pão e a manteiga de amendoim do carro e, enquanto preparava uma sanduíche, começou a trautear aquela canção. Depois sorriu, quando Annie começou a cantar com ele: "Guarda-me... a última. dança. ".

 

               CAPÍTULO QUARENTA E CINCO

No sábado de manhã dormi até às oito horas, e quando acordei senti-me melhor: a semana fora cansativa e muito emotiva e eu estava mesmo a precisar de descansar. Também sentia a cabeça mais tranquila, mas isso não me ajudava a sentir melhor sobre tudo quanto tinha ficado a saber. Estava a chegar a uma conclusão que desejava, de todo o meu coração, que estivesse errada.

Enquanto estava a fazer café, liguei a televisão para ouvir as notícias e ouvi mencionar a onda de violência que causara a morte a cinco pessoas nos últimos dias.

Depois ouvi a palavra "Gen-stone" e escutei, horrorizada, os pormenores da tragédia. Soube que Ned Cooper, residente em Yonkers, vendera a casa que tinha em Greenwood Lake, sem o consentimento da mulher, e investira depois o dinheiro na Gen-stone. Soube que ela morrera num acidente, no dia em que tinham ficado a saber que as acções da empresa não valiam nada.

Uma fotografia de Cooper encheu o ecrã. Eu conheço-o-o, pensei. Vi-o algures, não há muito tempo. Terá sido na reunião de accionistas? perguntei-me. Era possível, mas não tinha a certeza.

O jornalista disse que a falecida mulher de Cooper trabalhava no St. Ann Hospital, em Mount Kisco, e que ele recebera tratamento para problemas psiquiátricos na clínica do hospital, durante vários anos.

St. Ann's Hospital. Foi aí que o vi! Mas quando? Estive em St. Hospital três vezes: no dia a seguir ao fogo, alguns dias depois, e quando conversei com o director da ala para doentes terminais.

Surgiram imagens da cena do crime, em Greenwood Lake.

- A casa de Cooper ficava entre a casa dos Harnick e a da Sr. a Schafley - continuou o jornalista. - Segundo os vizinhos, Cooper esteve aqui há dois dias e acusou as vítimas de estarem envolvidas num conluio para se verem livres dele, por saberem que a sua mulher não teria permitido a venda da casa, se eles a tivessem avisado dos planos dele.

Seguiu-se a cena do crime em Yonkers.

- O filho de Elva Morgan, entre lágrimas, disse à polícia que a mãe Lhe contara que tinha medo de Ned Cooper, e que lhe dissera que ele teria que deixar o apartamento até ao dia 1 de Junho.

Entretanto, a fotografia de Cooper fora posta num canto do ecrã. Continuei a observá-la. Quando o teria visto em St. Anne's? pensei.

O pivot televisivo continuou:

- Há três noites, Cooper foi o penúltimo cliente da farmácia Brown, antes do fecho. Segundo William Garret, um estudante que estava atrás dele na caixa registadora, Cooper comprou várias pomadas e unguentos para a sua mão direita, que estava queimada, e ficou agitado quando a empregada, Peg Rice, lhe fez perguntas sobre o assunto. Garret tem a certeza de que Cooper estava sentado no carro quando ele saiu da farmácia, às dez em ponto.

A mão direita queimada! Cooper tinha a mão direita queimada! Vi Lynn no hospital pela primeira vez no dia a seguir ao do fogo. Fui entrevistada por um repórter do Canal 4, pensei. Foi aí que vi o Cooper. Estava à porta do hospital, a olhar para mim. Tenho a certeza!

A mão direita queimada!

Qualquer coisa me disse que o vira ainda outra vez, mas achei que isso não era importante agora. ConheciaJudy Miller, uma das produtoras do Canal 4, e telefonei-lhe.

-Judy, acho que me recordo de ter visto Ned Cooper à porta do Ann's Hospital, um dia depois de a mansão dos Spencer ter sido incendiada - contei-lhe. - Ainda têm as gravações da minha entrevista, a 22 de Abril? Pode ser que o Cooper lá esteja.

Depois, telefonei para o gabinete do Ministério Público de Westchester County e pedi para falar com o detective Crest, da brigada de incêndios. Quando Lhe contei porque estava a telefonar, ele disse:

- Fomos até às urgências de St. Ann's e o Cooper não recebeu qualquer tratamento lá, mas era conhecido no hospital. Talvez não tenha passado pelas urgências. Mantê-la-emos informada do que encontrarmos, Carley.

Continuei a mudar de canal para canal, apanhando informações variadas sobre Cooper e a sua mulher, Annie. Dizia-se que ela Ficara destroçada ao saber que o marido vendera a casa de Greenwood Lake. Pensei até que ponto as notícias de que as acções da Gen-stone não valiam nada tinham contribuído para o acidente dela. Teria sido coincidência, o anúncio do valor das acções no dia em que ela morrera?

Às nove e meia Judy telefonou-me:

- Tinhas razão, Carley. A nossa câmara apanhou o Ned Cooper à porta do hospital, no dia em que te entrevistámos.

Às dez horas o detective Crest telefonou-me:

- O Dr. Ryan, do St. Ann viu o Cooper na entrada do hospital, na terça- feira de manhã, dia vinte e dois, e reparou numa queimadura grave que ele tinha na mão. O Cooper disse que se tinha queimado no fogão. O Dr. Ryan passou-lhe uma receita.

Sentia-me mortificada, ao pensar nas vítimas de Cooper mas, ao mesmo tempo, tinha pena do próprio Cooper. À sua maneira trágica, ele e a mulher também tinham sido vítimas do fracasso da Gen- stone.

Mas havia alguém que, pelo menos numa vertente, não podia continuar a ser vitimizado.

- É mais do que evidente que Marty Bikorsky não incendiou a mansão dos Spencer - disse eu ao detective Crest.

- Oficiosamente, estamos a reabrir a investigação - disse ele. - Vai haver uma comunicação esta manhã, um pouco mais tarde.

- Diga-o oficialmente - sugeri. - Porque não dizê-lo sem quaisquer dúvidas? Martin Bikorsky não ateou aquele fogo.

No dia seguinte, telefonei a Marty. Tinha visto a reportagem de televisão e falado com o advogado. Ouvi a esperança e agitação dele:

- Carley, este doido tem uma queimadura na mão. Se for verdade, vou conseguir alegar dúvida razoável no meu julgamento. O meu advogado é que diz. Meu Deus, Carley, sabe o que isto significa?

- Sim, sei.

- Tem sido tão maravilhosa, mas devo dizer-Lhe que estou contente por não ter seguido o seu conselho de admitir à polícia que estive em Bedford na noite do fogo. O meu advogado continua a pensar que eu ia arranjar uma condenação se eles soubessem que estive lá.

- Também estou contente por não ter seguido o meu conselho, Marty - disse eu. O que não lhe disse foi que a minha razão para não divulgar a presença dele diante da mansão, naquela noite, era diferente da razão dele. Queria ter a minha conversa com Lynn antes de o assunto do carro estacionado dentro dos portões ser conhecido.

Concordámos voltar a falar brevemente e depois fiz a pergunta que estava com medo de fazer:

- Como está a Maggie?

- Anda a comer melhor, e isso dá-lhe alguma energia. Quem sabe, talvez possamos tê-la connosco um pouco mais do que aquilo que os médicos dizem. Continuamos a rezar por um milagre. Não se esqueça de rezar por ela também.

- Pode ter a certeza, Marty!

- Porque, talvez se ela conseguir aguentar-se o tempo suficiente, haja alguma cura, um dia.

- Acredito que sim, Marty!

Quando desliguei o telefone, fui até à janela e olhei lá para fora. Não tenho uma grande vista do meu apartamento. Dá para a fila de casas geminadas do outro lado da rua, mas neste momento não as via. Tinha a cabeça cheia com a imagem da pequena Maggie, de quatro anos, e com a ideia terrível de que, por motivos puramente gananciosos, algumas pessoas pudessem ter deliberadamente atrasado o desenvolvimento da vacina contra o cancro.

 

                 CAPÍTULO QUARENTA E SEIS

No sábado, Ned ouvia as notícias de hora a hora, no rádio do carro. Estava contente por Annie lhe ter dito para comprar a comida, na outra noite. Agora, não seria seguro ir a uma loja. Tinha a certeza de que a fotografia dele estava na televisão e na Internet.

Armado e perigoso. Era o que tinham dito.

Às vezes, depois de jantar, Annie estendia-se no sofá e adormecia, e ele aproximava-se dela e abraçava-a. Ela acordava e ficava assustada por um momento. Depois, ria e dizia: "Ned, tu és um perigo. "

Mas isso era diferente.

Sem refrigeração, o leite estava azedo, mas ele não se importou comer os cereais sem leite. Desde que tinha morto Peg, andava outra vez com apetite. Era como se uma grande pedra dentro dele tivesse começado a dissolver-se. Se não tivesse os cereais e o pão e a manteiga de amendoim, tinha ido até à casa de hóspedes e matado Lynn Spencer, e teria tirado comida da cozinha. Até podia ter saído dali com o carro dela, e ninguém daria por nada.

Mas se o namorado voltasse e a encontrasse, ficariam a saber que o carro dela tinha desaparecido. A polícia havia de procurá-lo por toda a parte. Dava nas vistas e tinha custado muito dinheiro. Era fácil de localizar.

- Espera, Ned - disse-lhe Annie. - Descansa um pouco. não há pressa.

- Eu sei - murmurou ele.

Às três horas, depois de ter passado pelo sono durante umas horas, decidiu sair. Havia pouco espaço na garagem e sentia as pernas e o pescoço entorpecidos. A garagem tinha uma porta lateral, perto do carro. Abriu-a muito devagar e ficou à escuta, para ver se dava por alguém lá fora. Mas estava tudo bem. Não havia ninguém deste lado da propriedade. Apostava até que Lynn Spencer nunca aqui tinha vindo. Mas, só para o caso de ter algum problema, levou a espingarda com ele.

Deu a volta à casa de apoio da piscina, até onde as árvores escon diam a piscina da casa de hóspedes. Agora que as árvores estavam cobertas de folhas, ninguém na casa de hóspedes conseguiria vê-lo, mesmo que olhasse naquela direcção.

Mas ele conseguia ver a casa de hóspedes, através dos ramos. As persianas na casa de hóspedes estavam levantadas e havia algumas janelas abertas. O descapotável prateado da Spencer estava no caminho de acesso. A capota estava descida. Ned sentou-se no chão, com as pernas cruzadas. Estava um pouco húmido, mas ele não se importou.

Como o tempo não significava nada para ele, não teve a certeza de há quanto tempo estaria ali quando a porta da casa se abriu e Lynn Spencer saiu. Ned viu-a fechar a porta e aproximar-se do carro. Usava calças prétas e uma blusa preta e branca. Parecia muito arranjada. Talvez fosse encontrar-se com alguém para uma bebida, ou para jantar. Meteu-se no carro e ligou o motor. O carro era tão silencioso que quase não fez ruído a arrancar, e depois deu a volta pelo outro lado da mansão.

Ned esperou três ou quatro minutos, até ter a certeza de que ela se tinha afastado; depois, atravessou rapidamente o campo aberto e encostou-se à parede lateral da casa. Caminhou de janela em janela. Todas as persianas estavam levantadas e, tanto quanto se apercebia, a casa estava vazia. Tentou abrir as janelas laterais, mas estavam trancadas. Se ia entrar, tinha de correr o risco de o fazer por uma janela da frente, onde qualquer pessoa que viesse pelo caminho de acesso à

casa poderia vê-lo.

Levou algum tempo a esfregar a sola dos sapatos, para a frente e para trás, no caminho de acesso, para não deixar marcas de lama no parapeito nem dentro de casa. Depois, num movimento rápido, empurrou a janela do lado esquerdo para cima e, encostando a espingarda à parede da casa, elevou-se. Quando conseguiu passar uma perna pelo parapeito, voltou a pegar na espingarda e, já lá dentro, baixou a janela até à posição em que estava antes de a ter aberto.

Certificou-se de que não havia marcas de lama no parapeito e que os sapatos não deixavam marcas no chão nem nas carpetes. Fez um breve reconhecimento da casa. Os dois quartos no andar de cima estavam vazios. Não havia dúvida de que estava sozinho, mas não podia ter a certeza de que Lynn iria ficar muito tempo fora, embora estivesse bem vestida quando saiu. Até podia ter-se esquecido de alguma coisa e voltar daí a um minuto.

Estava na cozinha quando o toque agudo do telefone o fez agarrar a espingarda com força e pôr o dedo no gatilho. O telefone tocou três vezes antes de o gravador de chamadas atender. Ned abriu e fechou gavetas enquanto ouvia a mensagem gravada. Ouviu uma voz de mulher dizer:

- Lynn, fala a Carley. Vou fazer um esboço da história esta noite e queria fazer-te uma pergunta rápida. Volto a tentar mais tarde. Se não conseguir falar contigo, vejo-te amanhã às três, em Bedford. Se mudaste de planos e vais regressar a Nova Iorque mais cedo, telefona-me. O meu telemóvel é o 9175558420. Carley DeCarlo vem aqui amanhã, pensou Ned. Por isso é que Annie lhe tinha dito para esperar e descansar hoje. Amanhã ia estar tudo acabado.

- Obrigado, Annie - disse Ned. Decidiu voltar à garagem, mas primeiro tinha de encontrar uma coisa.

A maioria das pessoas tem um conjunto de chaves extra em casa - pensou.

Acabou por encontrá-las, quase na última gaveta que abriu. Estavam num envelope. Sabia que haviam de estar ali, algures. Provavelmente, cada um dos caseiros tinha uma chave da casa. Havia conjuntos de chaves em dois envelopes diferentes. Um envelope dizia: "casa de hóspedes", o outro "casa da piscina,". Não queria saber da casa da piscina, por isso deixou esse envelope, levando apenas o outro, junto com as chaves da casa.

Abriu a porta das traseiras e certificou-se de que uma das chaves servia na fechadura. Havia apenas mais umas coisas que queria fazer antes de regressar à garagem. Havia seis latas de Coca-cola e gasosa, e seis garrafas de água no frigorífico, alinhadas duas a duas. Apeteceu- lhe levá-las, mas sabia que a Spencer havia de notar se elas desaparecessem. Mas descobriu que um dos armários de cima tinha caixas de bolachas, pacotes de batatas fritas, e latas de frutos secos: achou que ela não iria dar pela falta de nada daquilo.

O armário das bebidas também estava cheio. Havia quatro garrafas de whisky fechadas. Ned tirou uma das que estavam atrás. Só se notava a falta se alguém tirasse a gaveta completamente. Eram todas da mesma marca.

Nessa altura, sentiu que já estava dentro de casa há muito tempo, mesmo que só lá estivesse há alguns minutos. Mesmo assim, arranjou tempo para fazer outra coisa. Só para o caso de estar alguém na cozinha quando ele voltasse, ia deixar uma das janelas laterais destrancada, na sala da televisão.

Enquanto se apressava a atravessar o hall, os olhos de Ned varreram o chão e os degraus da escada, para ter a certeza de que não havia uma única marca dos seus sapatos em lado nenhum. Como Annie costumava dizer: "Sabes ser arrumado quando queres, Ned. " Depois de ter destrancado a janela do escritório, dirigiu-se para a cozinha com largas passadas, e depois, com a garrafa de whisky e a caixa das bolàchas debaixo do braço, abriu a porta das traseiras. Antes de a fechar, olhou para trás. A luz vermelha do atendedor de chamadas chamou- lhe a atenção.

- Até amanhã, Carley - disse suavemente.

 

                 CAPÍTULO QUARENTA E SETE

Mantive o som da televisão baixo durante toda a manhã, levantando-o apenas quando ouvia novas informações sobre Ned Cooper ou as suas vítimas. Havia uma parte particularmente dolorosa sobre a sua mulher, Annie. Vários dos seus colegas de trabalho, no hospital, recordavam a sua energia, a sua doçura para com os pacientes, a sua disponibilidade para fazer horas extraordinárias quando era preciso.

Sentindo cada vez mais pena, fui vendo o desenrolar da sua história. Transportava tabuleiros todo o dia, cinco ou seis dias por semana, e depois ia para casa, um apartamento alugado, num bairro pobre, onde vivia com um marido emocionalmente perturbado. A única grande alegria na sua vida parece ter sido a casa de Green wood Lake. Uma das enfermeiras falou sobre isso.

- Annie mal podia esperar pela Primavera, para começar a faina do jardim - disse ela. - Trazia fotografias e todos os anos o jardim estava diferente e muito bonito. Costumávamos meter- nos com ela e dizer-Lhe que estava a desperdiçar tempo aqui. Dizíamos-lhe que devia trabalhar numa estufa.

Nunca dissera a ninguém no hospital que Ned tinha vendido a casa. Mas uma das vizinhas que foi entrevistada disse que Ned se tinha gabado de ter acções da Gen-stone e que tinha dito que ia comprar a Annie uma mansão como a que o patrão da Gen-Stone tinha em Bedford.

Aquele comentário fez-me correr para o telefone, para falar com Judy e perguntar-lhe se podia mandar-me uma cópia daquela entrevista, bem como uma cópia da minha própria entrevista. Era mais uma relação directa entre Ned Cooper e o incêndio de Bedford.

Continuei a pensar em Annie enquanto enviava por e-mail a minha coluna para a revista. Tinha a certeza de que a polícia estava a verificar todas as bibliotecas, mostrando a fotografia de Ned Cooper, para ver se fora ele a mandar-me os e-mails. Se assim fosse, ele colocara-se a si próprio no meio do fogo. Decidi telefonar ao detective Clifford, da polícia de Bedford. Fora com ele que falara a semana passada, por causa dos e-mails.

- Ia mesmo telefonar-Lhe, Menina DeCarlo - disse ele. - As bibliotecárias confirmaram que Ned Cooper foi o homem que usou os computadores das bibliotecas, e estamos a levar muito a sério a mensagem que ele lhe mandou a dizer para se preparar para o dia do Juízo Final. Numa das outras duas, dizia qualquer coisa sobre a menina não ter respondido a uma pergunta da mulher dele, na sua coluna, por isso achamos que ele pode estar fixado em si.

Escusado será dizer que não era uma ideia agradável.

- Talvez devesse pedir a protecção da polícia até apanharmos este tipo - sugeriu o detective Clifford -, embora possa dizer-lhe que um Tóyota preto com um homem que pode ser o Cooper foi visto, há uma hora atrás, pelo motorista de um camião numa área de descanso em Massachusetts. Ele tem a certeza de que o carro tinha matrí cula de Nova Iorque, embora não tenha conseguido ver os números, por isso pode ser uma boa pista.

- Não preciso de protecção - disse eu, rapidamente. - Ned Cooper não sabe onde eu moro, e seja como for vou estar fora quase todo o dia, hoje e amanhã.

- Só para jogar pelo seguro, telefonámos à Sr. a Spencer, em Nova Iorque, e ela respondeu ao nosso telefonema. Vai ficar aqui, na casa de hóspedes, até o apanharmos. Dissemos-Lhe que não é provável que o Cooper volte aqui mas, mesmo assim, estamos a vigiar as estradas à volta da propriedade dela.

- Prometeu telefonar-me se ouvisse mais notícias conclusivas a respeito de Cooper.

Trouxera do escritório o meu enorme dossier sobre Nick Spencer, para revê-lo no fim-de-semana e, assim que desliguei o telefone, tirei-o do saco. Desta vez, estava interessada nas notícias sobre o desastre de avião, desde as grandes parangonas até às referências breves nos artigos sobre as acções e a vacina.

Fui sublinhando enquanto lia. Os factos eram simples e directos.

Sexta-feira, 4 de Abril, às duas horas da tarde, Nicholas Spencer, piloto experimentado, levantara voo no seu avião privado, do aeroporto de Westchester County, com destino a SanJuan, Puerto Rico.

Pretendia estar presente num seminário de negócios, durante o fim-de-semana, e regressar no domingo ao fim da tarde. As previsões meteorológicas eram de chuva moderada na área de San Juan.

A mulher de Spencer deixara-o no aeroportto.

Quinze minutos antes da aterragem em San Juan, o avião de Spencer desapareceu dos radares. Não havia qualquer indicação prévia de que houvesse problemas, mas a chuva transformara-se numa forte tempestade, com trovoadas na zona. Especulava-se no sentido de o avião ter sido atingido por um raio. No dia seguinte, destroços do avião começaram a dar à costa.

O nome do mecânico que fizera a manutenção do avião antes da descolagem era Dominick Salvio. Depois do acidente, disse que Nicholas Spencer era um piloto com experiência, que já voara em condições bastante adversas, mas que, se o avião tivesse sido atingido por um raio, poderia ter-se descontrolado.

Depois de o escândalo ter rebentado, começaram a surgir questões sobre o avião. Porque não tinha Spencer usado o avião da Gen-stone, coisa que fazia normalmente quando realizava viagens de negócios? Porque tinha o número de chamadas feitas e recebidas do seu telemóvel decrescido tão drasticamente nas semanas antes do acidente? Depois, como o corpo não foi recuperado, as questões

mudaram. Teria o acidente sido encenado? Estaria Spencer no avião quando ele caiu? Costumava ir sempre no seu carro até ao aeroporto.

No dia da partida para Puerto Rico, pedira à mulher que o levasse lá. Porquê?

Telefonei para o aeroporto de Westchester. Dominick

estava a trabalhar. Quando falei com ele, soube que sairia do trabalho às duas horas. Com relutância, concordou em encontrar-se comigo durante quinze minutos, no terminal.

- Só quinze minutos, Menina DeCarlo - disse ele. - O meu miúdo tem jogo hoje, e eu quero ir.

Olhei para o relógio. Era um quarto para o meio-dia e eu ainda estava de roupão. Para mim, um dos grandes luxos das manhãs de sábado, mesmo que esteja a trabalhar, sentada à secretária, é não ter de ir a correr tomar duche e vestir-me. Mas agora estava na altura de me despachar. Não fazia ideia do trânsito que ia apanhar, e queria ter pelo menos hora e meia para chegar ao aeroporto de Westchester.

Cinquenta minutos mais tarde, graças ao barulho do secador, quase não ouvia o telefone tocar. Corri para atender. Era Ken Page.

- Encontrei o nosso paciente com cancro, Carley - disse ele.

- Quem é?

- Dennis Holden, um engenheiro de trinta e oito anos, que vive em Armonk.

- Como está ele?

- Não quis dizer pelo telefone. Mostrou-se mesmo relutante em falar comigo, mas convenci-o, e acabou por convidar-me para ir a casa dele.

- E eu? - perguntei. - Ken, prometeste-me...

- Espera. Foi difícil, mas ele também está a contar contigo. Temos que escolher: hoje ou amanhã, às três horas. A antecedência não é muita, mas dá, para ti? A mim tanto me faz, decide tu. Tenho que telefonar-lhe a dar a resposta.

Amanhã tinha combinado ir ter com Lynn às três horas, e não queria alterar isso.

- Hoje está óptimo - disse a Ken.

- Deves ter estado a ver as notícias sobre o tal Cooper. Cinco pessoas mortas porque as acções da Gen-stone foram por água abaixo.

- Seis - corrigi. - A mulher dele também foi vítima disso.

- Sim, tens razão. OK, vou telefonar ao Holden, dizer-lhe que vamos lá logo, perguntar como é que lá chegamos, e depois volto a falar contigo.

Ken telefonou uns minutos depois. Anotei a morada e o telefone de Dennis Holden, acabei de secar o cabelo, pus um pouco de maquilhagem, escolhi um fato azul-aço - mais umas das minhas aquisições de fim de estação, o Verão passado - e saí.

Sabendo o que sabia sobre Ned Cooper, olhei em volta cuidadosamente quando abri a porta de casa. Estas casas têm umas entradas bastante estreitas, o que significa que se alguém estivesse a fazer pontaria eu seria um alvo fácil. Mas o trânsito seguia sem problemas. Havia muitas pessoas no passeio diante da minha casa, e não vi ninguém sentado em nenhum dos carros estacionados nas redondezas. Parecia seguro.

Mesmo assim, desci as escadas da entrada a correr e apressei-me a chegar à garagem, a três quarteirões de distância. Enquanto ia andando, ziguezagueava por entre as pessoas que caminhavam pelo mesmo passeio, sempre com um sentimento de culpa. Se Ned Cooper me tivesse mesmo como alvo, eu estava a expor estas pessoas ao perigo.

O aeroporto de Westchester County está situado nos limites de Greenwich, a cidade que eu visitara menos de vinte e quatro horas antes e onde voltaria amanhã com Casey, para jantar com os seus amigos. Sabia que o aeroporto começara por ser um pequeno aeródromo inicialmente criado para servir os residentes ricos da área circundante. Contudo, agora era um terminal gigante e a escolha preferida de muitos viajantes, não necessariamente incluídos entre os abastados da zona.

Dominick Salvio veio ter comigo ao terminal, às 2h04. Era homem bem constituído, com olhos castanhos e confiantes e um sorriso simples. Tinha o ar seguro de alguém que sabia exactamente quem era e para onde ia. Dei-lhe o meu cartão e expliquei-lhe que me chamavam Carley, e ele disse:

- Marcia DeCarlo e Dominick Salvio. Carly e Sal, está a ver?

Como sabia que o cronómetro estava a contar o tempo, não demorei um minuto a ir directa ao assunto. Fui totalmente franca com ele. Disse-Lhe que estava a escrever a história e que conhecia Nick Spencer pessoalmente. Depois, expliquei rapidamente a minha relação com Lynn. Disse que não acreditava nem queria acreditar que Nick Spencer tivesse sobrevivido ao acidente e estivesse escondido na Suíça, a troçar do mundo.

Nesse momento, Carley e Sal entraram em consonância.

- Nick Spencer era um príncipe - disse Sal, enfaticamente. -Já não há tipos como ele. Gostava de pôr as mãos nesses mentirosos todos que estão a transformá-lo num patife. Apetece-me arrancar-lhes as línguas.

- Estamos de acordo - disse eu -, mas o que preciso que me diga agora, Sal, é como estava Nick no dia em que embarcou naquele avião. Como sabe, ele tinha apenas quarenta e dois anos, mas tudo o que tenho descoberto, especialmente as coisas que aconteceram naqueles últimos meses, parecem sugerir que estava debaixo de um enorme stress. Até homens novos como ele têm ataques de coração, daqueles que matam uma pessoa antes de haver tempo para qualquer reacção.

- Estou a ouvi-la - disse ele -, e a pensar que é possível que isso tenha acontecido. O que me deixa furioso é que eles agem como se Nick Spencer fosse um piloto amador, daqueles que vão passar ùma noite de vez em quando a Brideport. Ele era bom, muito bom, e era inteligente. Já tinha voado em muitas tempestades e sabia como lidar com elas. A não ser que tenha sido atingido por um raio: isso é o cabo dos trabalhos para qualquer um.

- Viu-o ou falou com ele antes de ele ter descolado, naquele dia?

- Sou sempre eu que faço a manutenção do avião dele. Vi-o.

- Sei que Lynn veio trazê-lo. Viu-a?

- Vi. Estiveram sentados a uma mesa daquela cafetaria, próximo do sítio onde estão os aviões particulares. Depois, acompanhou-o até ao avião.

Pareceram afectuosos?

Hesitei e depois disse, bruscamente:

- Sal, é importante saber qual era o estado de espírito de Nick Spencer. Se estava perturbado ou distraído com alguma coisa que tivesse acontecido entre eles, isso pode ter pesado no seu estado de espírito ou na sua capacidade de concentração.

Ele desviou o olhar. Tive a sensação de que pesava as palavras, não tanto para ser cauteloso, mas para ser honesto. Olhou para o relógio. O tempo estava a passar demasiado depressa.

Acabou por dizer:

- Carley, aquelas duas pessoas nunca foram felizes juntas, é o que posso dizer-lhe.

- Houve alguma coisa especial no comportamento delas, naquele dia? - insisti.

- Porque não fala com a Marge? É a empregada da cafetaria onde eles estiveram.

- Ela está cá, hoje?

- Trabalha de sexta a segunda. Está ali agora.

Pegando-me no braço, Sal conduziu-me pelo terminal, até à cafetaria.

- Aquela é a Marge - disse, apontando para uma mulher na casa dos sessenta, com ar de matrona. Ele chamou a atenção dela e ela veio ter connosco, sorrindo.

O sorriso desapareceu, quando Sal lhe disse porque estávamos ali.

- O Sr. Spencer era o melhor homem do mundo - disse ela -, e a primeira mulher dele era uma pessoa encantadora. Mas a outra era uma aventesma. Naquele dia, deve ter-lhe dado conta do juízo. Posso dizer que ela estava a pedir desculpa, mas vi que ele estava furioso. Não consegui ouvir tudo o que diziam, mas era qualquer coisa sobre ela ter mudado de planos e já não ir a Puerto Rico com ele, e ele disse que se tivesse sabido mais cedo tinha levado o Jack. O Jack é o filho do Sr. Spencer.

- Comeram ou beberam alguma coisa? - perguntei.

- Beberam os dois Ice-tea. Ainda bem que nem ela nem o filho estavam naquele avião. Só é pena que o Sr. Spencer não tenha tido essa sorte.

Agradeci a Marge e voltei a atravessar o terminal na companhia de Sal.

- Ela deu-lhe um grande beijo à frente de toda a gente quando se foi embora - disse ele. - Até pensei que finalmente tudo estava bem com o casamento, mas depois a Marge contou-me o que acabou de contar-lhe a si. Talvez ele estivesse transtornado, e talvez isso lhe tenha afectado o discernimento. Pode acontecer ao melhor dos pilotos. Acho que é coisa que nunca viremos a saber.

 

                   CAPÍTULO QUARENTA E OITO

Cheguei cedo a Armonk e deixei-me ficar sentada no carro, diante da casa de Dennis Holden, à espera de Ken Page. Depois, quase como um autómato, liguei a Lynn, para o número de Bedford. Queria perguntar-Lhe, preto no branco, porque convencera Nick Spencer a não levar o filho a Puerto Rico e depois tinha, ela própria desistido de ir. Alguém lhe teria dado a entender que não era sensato embarcar naquele avião.

Ou não estava em casa, ou não quis atender o telefone. Pensando bem, decidi que assim era melhor. Seria preferível ver a reacção dela quando eu lhe fizesse aquela pergunta. Valera-se do casamento da minha mãe com o pai dela para fazer de mim porta-voz de borla. Ela era a viúva triste, a madrasta abandonada, a esposa confusa de um homem que afinal se revelara um patife. A verdade era que ela se estava nas tintas para Nick Spencer e para o filho, Jack, e que provavelmente sempre tinha feito panelinha com Charles Wallingford.

Ken parou e estacionou atrás de mim, e fomos juntos até à casa. Era uma bonita casa de tijolos e estuque, de estilo Tudor, ainda valorizada pelo local onde estava inserida. Arbustos caros, árvores em flor, e um relvado verde e aveludado atestavam que Dennis era um engenheiro de sucesso ou tinha uma família com dinheiro.

Ken tocou à campainha e a porta foi aberta por um homem magro, com cara de miúdo, cabelo castanho, muito curto e olhos quentes de avelã.

- Sou Dennis Holden - disse ele. - Entrem.

A casa era tão atractiva por dentro como parecia, vista da rua. Conduziu-nos até à sala, onde dois sofás de cor creme estavam colocados diante um do outro, separados pela lareira. O tapete antigo era uma belíssima amálgama de cores, sombras de vermelho e azul, dourado e carmim. Quando me sentei ao lado de Ken, num dos sofás, ocorreu-me que há alguns meses Dennis Holden deixara esta casa para entrar na ala para doentes terminais do hospital, de onde não esperava vir a sair. O que teria sentido quando regressou a casa? Podia imaginar as emoções que se agitavam dentro dele.

Ken deu o seu cartão a Holden. Eu procurei o meu na mala, encontrei-o e também lho entreguei. Ele observou-os cuidadosamente.

- Dr. Page - disse para Ken, - exerce?

- Não. Escrevo sobre investigação médica, a tempo inteiro. Holden virou-se para mim:

- Marcia DeCarlo. Não escreve também numa coluna financeira?

- Sim.

- A minha mulher costuma lê-la e gosta bastante.

- Fico contente. Olhou para Ken:

- Doutor, ao telefone disse-me que o senhor e a Menina De Carlo estão a escrever um artigo de fundo sobre Nicholas Spencer. Na sua opinião, ele ainda está vivo ou o homem que afirma tê-lo visto na Suíça está enganado?

Ken olhou para mim e depois para Holden:

- A Carley entrevistou a família de Spencer. Não será melhor ela responder-lhe?

Falei a Holden da visita aos Barlowe e de ter conhecido Jack, e acabei por dizer:

- De tudo o que ouvi sobre Nicholas Spencer, sei que ele nunca abandonaria o filho. Era um bom homem e totalmente dedicado à descoberta de uma cura para o cancro.

- É verdade. - Holden inclinou-se para a frente e entrelaçou os dedos. - Nick não era um homem capaz de forjar o seu desaparecimento. Por isso, acho que a morte dele me liberta de uma promessa que lhe fiz. Esperava que o seu corpo fosse encontrado antes de quebrá-la, mas já passou quase um mês desde o acidente de avião e o corpo pode nunca vir a ser encontrado.

- Que promessa foi essa, Sr. Holden? - perguntou Ken, calmamente.

- Que nunca revelaria a ninguém que ele me injectou a vacina contra o cancro enquanto eu estive na ala para doentes terminais.

Tanto Ken como eu esperávamos que Dennis Holden tivesse tomado a vacina e que o admitisse. Ouvi-lo da sua boca foi como descer o último troço de uma montanha russa. Olhámos fixamente para ele. Este homem era magro, mas não parecia frágil. A sua pele estava rosada e tinha um ar saudável. Percebi naquela altura porque tinha ele o cabelo tão curto: estava a voltar a crescer- lhe.

Holden pôs-se de pé, atravessou a sala e pegou numa fotografia emoldurada que estava pousada, virada para baixo, por cima da lareira. Trouxe-a e entregou-a a Ken, que a segurou de forma a que ambos pudéssemos vê-la:

- Esta é a fotografia que a minha mulher tirou naquilo que era, supostamente, o meu último jantar em casa.

Descarnado. Macilento. Careca. Na fotografia, Dennis Holden estava sentado à mesa. Com um sorriso fraco no rosto. A camisa pendia-lhe do corpo. Tinha as maçãs do rosto encovadas, as mãos esqueléticas.

- Cheguei a pesar trinta e cinco quilos - disse ele. – Agora peso sessenta e quatro. Tive cancro do cólon, que foi operado com sucesso, mas o cancro tinha-se espalhado. Estava no meu corpo inteiro.

É um milagre, mas veio de Deus através do seu enviado, Nick Spencer.

Ken não conseguia tirar os olhos da fotografia:

- Os seus médicos sabem que tomou a vacina?

- Não. Não tinham qualquer razão para suspeitar disso, Estão apenas abismados por eu não estar morto. A minha primeira reacção à vacina foi escapar à morte. Depois, comecei a sentir-me com um pouco de fome e voltei a comer. Nick visitava-me com regularidade, e mantinha um gráfico com os meus progressos. Tenho uma cópia e ele também tinha uma. Mas fez-me jurar segredo. Disse-me que nunca devia telefonar-lhe para o escritório, nem deixar-lhe qualquer mensagem, lá. A Dr. a Clintworth, do hospital, suspeitou que Nick andava a dar-me a vacina, mas eu neguei. Acho que ela não acreditou em mim.

- Os seus médicos têm-lhe feito Raios ou ressonâncias magnéticas? - perguntou Ken.

- Sim. Chamam-lhe uma regressão espontânea, que ocorre uma vez num bilião. Alguns deles estão a escrever artigos sobre mim. Quando hoje me telefonou, a minha primeira tendência foi recusar vê-lo. Mas leio todos os artigos da Wall Street. Estou tão farto de ver o nome de Nick arrastado pela lama que pensei que estava na hora de contar a verdade. Talvez a vacina não funcione com toda a gente, mas, a mim, devolveu-me a vida.

- Posso ver as notas que Nick tomou sobre os seus progressos?

- Já tenho uma cópia, para o caso de decidir dar-vos acesso a elas. Mostram que a vacina atacou as células cancerígenas isolando-as, primeiro, e depois destruindo-as. Imediatamente começaram a desenvolver- se células saudáveis, nessas zonas. Entrei na ala para doentes terminais a 10 de Fevereiro. Nick era voluntário lá. Eu lera tudo o que havia sobre tratamento e tratamento potencial do cancro. Sabia quem era Nick e lera sobre as suas investigações. Roguei-lhe que experimen tasse a vacina em mim. Injectou-me a 12 de Fevereiro e vim para casa a 20. Dóis meses e meio depois, não tenho cancro.

Quando estávamos de saída, uma hora depois, a porta abriu-se. Uma mulher muito bonita e duas raparigas, jovens adolescentes, entraram. Todas tinham um belíssimo cabelo ruivo. Obviamente, eram a mulher e as filhas de Holden, e foram imediatamente ter com ele.

- Olá - disse ele, sorrindo. - Chegaram cedo. Acabou-se-vos o dinheiro?

- Não, não se nos acabou o dinheiro - disse a mulher, dando-lhe o braço. - Só quisemos ter a certeza de que ainda estavas aqui.

Eu e Ken trocámos algumas impressões enquanto ele me acompanhava ao carro.

- Pode ter sido uma regressão espontânea, uma num bilião - disse ele.

- Sabes bem que não foi.

- Carley, as drogas e as vacinas têm efeitos diferentes em pessoas diferentes.

- Ele está curado, é tudo quanto sei.

- Então, porque correram mal os testes laboratoriais?

- Não estás a fazer essa pergunta a mim, Ken, estás a fazer essa pergunta a ti próprio. E chegaste à mesma resposta que eu te daria: alguém quis que a vacina parecesse ter falhado.

- Sim, já considerei essa hipótese, o que acho é que Nicholas Spencer desconfiou de que os testes estivessem a ser deliberadamente manipulados. Isso explicaria os testes que ele estava a pagar na Europa. Ouviste o Holden dizer que Nick o obrigou a jurar segredo, e que não devia, em quaisquer circunstâncias, telefonar a Nick ou deixar-lhe uma mensagem no escritório. Nick não confiava em ninguém.

- Confiava em Vivian Powers - disse eu. - Estava apaixonado por ela. Acho que não lhe contou nada sobre o Holden nem sobre as suspeitas que tinha, porque achou que saber disso poderia ser perigoso para ela, e veio a provar- se que ele tinha razão. Ken, quero que venhas comigo e vejas a Vivian Powers com os teus próprios olhos. Aquela rapariga não está a fingir, e tenho uma vaga ideia do que pode ter-lhe acontecido.

O pai de Vivian, Allan Desmond, estava na sala de espera, ao fundo da unidade de cuidados intensivos do hospital.

- A Jane e eu temos ficado aqui, por turnos - disse ele.

Não queremos que a Vivian fique sozinha quando está acordada. Está confusa e assustada, mas vai conseguir.

- A memória melhorou? - perguntei.

- Não. Continua a pensar que tem dezasseis anos. Os médicos dizem-nos que pode nunca vir a recuperar os últimos doze. Terá que aceitar esse facto quando estiver suficientemente bem para o compreender. Mas o importante é que está viva, e vamos poder Ir para casa em breve. Isso é tudo o que nos importa.

Expliquei-lhe que Ken estava a trabalhar comigo na história sobre Spencer e que era médico.

- É importante podermos ver a Vivian - disse eu. - Estamos a tentar compreender o que lhe aconteceu.

- Sendo assim, claro, pode vê-la, Dr. Page.

Apenas alguns minutos depois, uma enfermeira entrou na sala de espera.

- Ela está a acordar, Sr. Desmond - disse ela.

O pai de Vivian estava ao lado dela quando os seus olhos se abriram.

- Papá - disse ela, em voz muito baixa.

- Estou aqui, querida. - Pegou-lhe nas mãos.

- Aconteceu-me qualquer coisa, não foi? Tive um acidente.

- Sim, querida, mas vais ficar bem.

- O Mark está bem?

- Está.

- Ia demasiado depressa. Eu disse-Lhe.

Fechou os olhos outra vez. Allan Desmond olhou para Ken e para mim e sussurrou:

- A Vivian teve um acidente de automóvel aos dezasseis anos. Acordou na urgência.

Ken e eu saímos do hospital e fomos até ao parque de estacionamento.

- Tens alguém que possas consultar sobre drogas capazes dealterar a memória? - perguntei.

- Sei onde queres chegar com essa pergunta e, sim, tenho. há uma guerra entre as empresas farmacêuticas para ver quem encontra drogas que curem a doença de Alzheimer e devolvam a memória aos pacientes. O outro lado dessa pesquisa é que, neste processo, os laboratórios têm aprendido muito mais sobre como perceber a memória. Não é segredo que há sessenta anos que são usadas drogas capazes de alterar a mente humana, para conseguir informações de espiões capturados. Hoje em dia, esse tipo de drogas é infinitamente mais sofisticado. Pense naqueles comprimidos a que se chama rae. Não têm sabor nem cheiro.

Depois, dei voz à suspeita que havia algum tempo estava a formar-se no meu espírito.

- Ken, deixa-me ver o que achas disto. Acho que a Vivian correu para casa da vizinha, em pânico, e estava com medo de pedir ajuda, mesmo pelo telefone. Pegou no carro e foi seguida. Acho que lhe deram drogas que lhe alteraram a mente, para tentarem saber se era possível que Nick Spencer tivesse sobrevivido ao acidente. Nos escritórios, fiquei a saber que várias pessoas desconfiavam que ela e Nick estavam emocionalmente envolvidos. Quem quer que a tenha raptado poderá ter esperado que, se Nick estivesse vivo, respondesse ao telefonema dela. Quando isso não aconteceu, deram-lhe uma droga para lhe apagar a memória a curto prazo e deixaram-na no carro.

Cheguei a casa uma hora depois, e a primeira coisa que fiz foi ligar a televisão. Ned Cooper continuava desaparecido. Se chegou à zona de Boston, conforme se especulou, poderá ter conseguido encontrar um esconderijo. Parecia que todos os agentes da lei de Massachusetts estavam à procura dele.

A minha mãe telefonou. Parecia preocupada:

- Carley, mal tenho falado contigo nas últimas duas semanas, e isso nem parece teu. A Lynn raramente telefona ao pobre Robert, mas tu e eu nunca deixamos de dar noticias. Passa- se alguma coisa?

Passa-se muita coisa, Mãe, pensei, mas não é nada entre nós. Claro que não podia dizer-lhe o que andava a preocupar-me. AlEm disso, acalmei-a com a desculpa de que a história que estava a escrever me ocupava de manhã à noite, mas quase me engasguei quando ela sugeriu que eu e Lynn fôssemos até lá, juntas, para podermos passar algum tempo os quatro.

Quando desliguei, fiz uma sandes de manteiga de amendoim e um pouco de chá, pus tudo num tabuleiro e instalei-me à secretária, preparada para algumas horas de trabalho. Os ficheiros sobre Nicholas Spencer estavam empilhados em cima da mesa. Juntei-os, voltei a metê-los na pasta onde pertenciam, e depois peguei nos órgãos de gestão e outra literatura que trouxera da Garner Pharmaceuticals.

Achei que valia a pena dar-lhes uma vista de olhos, para ver se havia referências à Gen-stone. Quando cheguei ao prospecto que estava sensivelmente a meio, fiquei gelada. Era o mesmo que vira na recepção e que ficara registado no meu subconsciente.

Durante longos minutos, talvez durante meia hora, fiquei ali sen tada, a beber a segunda chávena de chá, mal notando que o chá já estava frio.

A chave de tudo o que acontecera estava na minha mão. Foi como abrir um cofre e encontrar lá dentro tudo aquilo que andava a procurar.

Ou como ter um baralho de cartas e conseguir colocá-las todas em sequência. Talvez este fosse um exemplo melhor, porque nas cartas o Jógo era livre e em alguns jogos pode ser jogado em qualquer ocasião. No baralho com que estávamos a jogar, Lynn era a carta livre, e a jogada ia afectar tanto a vida dela como a minha.

 

             CAPÍTULO QUARENTA E NOVE

Quando regressou à garagem, vindo da casa de hóspedes, Ned sentou-se no carro a beber e a ouvir de vez em quando o rádio do carro. Gostava de ouvir as notícias sobre si próprio mas, por outro lado, não queria descarregar a bateria do carro. Passado pouco tempo, sentiu-se sonolento e, lentamente, adormeceu. O som de um carro a subir pelo caminho da entrada de serviço e a passar pela garagem acordou-o abruptamente e fê-lo agarrar a espingarda. Se fosse a polícia e tentassem apanhá-lo, pelo menos havia de estourar os miolos a alguns antes de morrer.

Uma das janelas da garagem dava para a estrada, mas ele não conseguia ver nada através dela. Havia demasiadas cadeiras a atulhar o caminho. Mas isso era bom, porque significava também que eles não conseguiam espreitar da estrada e ver o carro.

Esperou durante quase meia hora, mas ninguém saiu. Depois pensou numa coisa: apostava que sabia quem tinha aparecido: o namorado, o tipo com quem ela estava na noite do incêndio.

Ned decidiu dar uma vista de olhos para saber se tinha razão. Com a espingarda debaixo do braço, abriu silenciosamente a porta lateral e foi até à casa de hóspedes, pelo caminho que agora já lhe era familiar. O sedan escuro estava estacionado no sítio onde os caseiros costumavam deixar o deles. As persianas da casa estavam corridas, à excepção da da janela do escritório, por onde ele tinha espreitado na outra noite. Essa estava outra vez levantada, a um palmo do peito. Deve estar perra, concluiu. A janela também estava aberta. Por isso, quando se baixou, conseguiu espreitar lá para dentro e ver a sala onde Lynn Spencer e o tal tipo estavam sentados nessa noite.

Estavam lá outra vez, mas agora estava mais alguém com eles. Ouvia outra voz, uma voz de homem, mas não conseguia ver-lhe a cara. Se o namorado da Spencer e o outro tipo estivessem aqui amanhã, quando a tal DeCarlo viesse de visita, azar o deles. Por ele, tudo bem. Nenhum deles merecia viver.

Enquanto tentava perceber o que diziam, ouviu Annie dizer-lhe para voltar para a garagem e dormir.

- E não bebas mais, Ned - disse ela.

- Mas...

Ned calou-se. Tinha começado a falar alto com Annie, como tinham o hábito de fazer. O homem que estava a falar, o namorado, não ouviu, mas Lynn Spencer levantou a mão e disse-lhe que estivesse calado.

Sabia que ela estava a dizer que achava que tinha ouvido qualquer coisa lá fora. Ned esgueirou-se dali e estava de volta à zona dos arbus tos antes de a porta da casa de hóspedes se abrir. Não conseguia ver a cara do tipo que saiu e deu uma vista de olhos pelas redondezas, mas era mais alto do que o namorado. Olhou em volta muito rapidamente e depois voltou para dentro. Antes de ele fechar a porta, Ned ouviu-o dizer:

- Estás doida, Lynn.

Não está doida, pensou Ned, mas desta vez manteve a boca fechada até estar de volta à segurança da garagem. Depois, quando abriu a garrafa de whisky, começou a rir. O que tinha começado a dizer a Annie era que não fazia mal beber whisky, desde que não ttomasse também os medicamentos.

- Tu esqueces-te disso, Annie - disse ele. - Estás sempre a esquecer-te disso.

 

                     CAPÍTULO CINQUENTA

No domingo de manhã levantei-me cedo. Não conseguia dormir. Não estava apenas ansiosa por encontrar-me cara a cara com Lynn; tinha também uma sensação estranha, de que ia acontecer qualquer coisa terrível. Tomei um café rápido, vesti umas calças confortáveis e uma camisola leve, e fui a pé até à catedral, na parte alta da cidade.

A missa das oito estava a começar e eu sentei-me num dos bancos da igreja.

Rezei pelas pessoas que tinham perdido a vida por Ned Cooper ter investido na Gen-stone. Rezei por todas as pessoas que iam morrer porque a vacina de Nick Spencer fora sabotada. Rezei pelo filho de Nick Spencer, cujo pai o amara tanto, e rezei pelo meu pequenino, Patrick que, Agora, é um anjo.

Ainda não eram nove horas quando a congregação começou a sair. Ainda inquieta, fui a pé até Central Park. Estava uma manhã perfeita de Abril, que prometia um dia cheio de sol e de árvores floridas. Àquela hora, já muitas pessoas caminhavam ou andavam de bicicleta pelo parque. Outras estavam estendidas em cobertores ou na relva, a preparar piqueniques ou a preparar-se para apanhar sol.

Pensei nas pessoas como aquelas de Greenwood Lake, que na semana passada estavam vivas e agora estavam mortas. Teriam alguma premonição de que o tempo delas chegara ao fim? O meu pai teve. Voltou atrás e beijou a minha mãe antes de sair para o seu habitual passeio matinal. Nunca fizera isso antes.

Porque estava eu a pensar naquilo? interroguei-me.

Queria que o dia passasse a correr, que o tempo desaparecesse rapidamente até chegar a noite. Estaria com Casey. Sentíamo-nos bem, juntos. Ambos sabíamos disso. Então, porque me invadia esta enorme tristeza quando pensava nele, como se fôssemos em direcções diferentes, como se os nossos caminhos estivessem a separar-se outra vez?

Iniciei o regresso a casa, e parei para tomar café e comer um bolo. Fiquei um pouco mais animada, e quando vi que Casey já me telefonara duas vezes fiquei ainda mais animada. Tinha ido a um jogo dos Yankees, ontem à noite, com um dos seus amigos, por isso não tínhamos falado.

Telefonei-lhe.

- Já estava a ficar preocupado - disse ele. - Carley, esse tal Cooper ainda anda por aí, à solta, e é perigoso. Não te esqueças que te contactou três vezes.

- Não te preocupes - disse eu. - Vou estar atenta. De certeza que não vai estar em Bedford, e duvido que esteja em Greenwich.

- Concordo. Também acho que não está em Bedford. É mais provável que procure Lynn Spencer em Nova Iorque. A polícia de Greenwich tem a casa dos Barlowe vigiada. Se ele culpa o Nick Spencer pelo fracasso da vacina, pode ser suficientemente louco para ir atrás do filho dele.

A vacina contra o cancro não é um fracasso. Queria tanto dizê-lo a Casey, mas não podia, não pelo telefone, nem naquele momento.

- Carley, estive a pensar. Podia levar-te a Bedford, esta tarde, e ficar à tua espera.

- Não - disse eu, muito depressa. - Não sei quanto tempo vou estar com Lynn, e tu tens de chegar a horas à festa. Eu vou lá ter contigo. Casey, não vou adiantar muito agora, mas ontem descobri umas coisas que signiFicam que isto tudo vai resultar em acusações graves, e só espero que a Lynn não esteja envolvida. Se ela sabe de alguma coisa, ou suspeita de alguma coisa, chegou a altura de ela avançar. Tenho que convencê-la disso.

- Tem cuidado.

Depois, repetiu as palavras que eu ouvira dos seus lábios pela primeira vez há algumas noites:

- Amo-te, Carley!

- Também te amo - murmurei.

Tomei um duche e lavei o cabelo, e dei mais atenção à maquilhagem do que habitualmente. Tirei do armário um fato de seda verde pálido. Era uma daquelas coisas com que me sentia sempre bem e que as pessoas diziam que me ficava bem. Decidi levar na mala o colar e os brincos que costumo usar com aquele fato. Eram demasiado festivos para a conversa que ia ter com a minha meia-irmã. Em vez deles, pus brincos simples de ouro.

À uma e quarenta e cinco meti-me no carro e comecei a viagem até Bedford. Às dez para as três toquei à campainha e Lynn abriu o portão. Tal como fizera a semana passada, quando fora entrevistar os caseiros, contornei as ruínas da mansão e estacionei diante da casa de hóspedes.

Saí do carro, encaminhei-me para a porta e toquei à campainha. Lynn veio abrir.

- Entra, Carley - disse ela. - Tenho estado à tua espera.

 

                   CAPÍTULO CINQUENTA E UM

Às duas horas Ned estava atrás das árvores, próximo da casa de hóspedes. Às duas e um quarto, um homem que ele nunca tinha visto antes subiu a pé o caminho que ia dar ao portão de serviço. Não parecia um polícia: as roupas que trazia vestidas eram demasiado caras. Usava um casaco azul-escuro e calças claras, e uma camisa sem gra vata. Tinha uma atitude reflectida na forma como caminhava, uma atitude que parecia indicar que se sentia como se fosse dono do mundo.

Se ainda aqui estiveres daqui a uma hora, não vais ser dono de nada, pensou Ned. Pensou se este tipo seria o mesmo que estava na casa a noite passada: não o namorado, o outro. Talvez, decidiu. Tinham a mesma altura.

Hoje Ned conseguia ver outra vez Annie a seu lado. Estendeu-lhe a mão. Sabia que, em breve, iria ter com ela.

- Já não falta muito - sussurrou. - Dá-me só mais umas horas, está bem?

Doía-lhe a cabeça, em parte porque tinha acabado a garrafa de whisky, mas algum do desconforto era devido ao facto de ainda não ter conseguido engendrar como iria até ao cemitério. Não podia levar o Tóyota. a polícia andava à procura dele. E o carro de Lynn Spencer dava muito nas vistas: as pessoas iam notar.

Viu o tipo ir até à casa e bater à porta. Lynn Spencer veio abrir. Ned achou que o tipo devia ser um vizinho que tinha ido ver como ela estava. Fosse como fosse, ou sabia o código para abrir o portão de serviço, ou ela tinha-lho aberto.

Vinte minutos depois, às dez para as três, um carro subiu o caminho principal e estacionou diante da casa de hóspedes.

Ned viu uma mulher jovem sair do carro. Reconheceu-a imediatamente: era Carley DeCarlo. Tinha chegado à hora marcada, talvez até um pouco mais cedo. Tudo ia acontecer exactamente como ele tinha planeado.

Mas aquele tipo ainda estava lá dentro. Pior para ele. DeCarlo estava vestida como se fosse para uma festa, pensou Ned. Trazia um fato bonito, como ele gostaria de ter comprado a Annie.

A DeCarlo tinha dinheiro para comprar roupas assim. Mas, claro, ela era como eles: burlões que roubam o dinheiro às pessoas, destroçam o coração de Annie e depois dizem ao mundo: "Não tive nada a ver com isso. Também sou vítima. "

Claro que sim! Por isso é que tens um Acura desportivo, verde-escuro, e usas roupas janotas que custam uma pipa de massa!

Annie sempre disse que se alguma vez pudessem comprar um carro novo queria que ele fosse verde-escuro:

- Pensa bem, Ned. O preto é um bocado triste, e muitos dos carros azuis-escuros parecem pretos, por isso, qual é a diferença? Mas o verde-escuro... tem muita classe e estilo. Por isso, quando ganhares a lotaria, Ned, vais a correr comprar-me um carro verde-escuro.

- Annie, querida, não cheguei a comprar-te nenhum, mas vou ter contigo num carro verde-escuro - disse Ned. - Está bem?

- Oh, Ned! - Ouviu-a rir. Estava junto dele. Sentiu-a beijá-lo.

Sentiu-a massajar-Lhe a nuca, como costumava fazer quando ele estava enervado com alguma coisa, como quando se chateava com alguém no emprego.

Tinha deixado a espingarda encostada a uma árvore. Foi buscá-la e começou a calcular a melhor forma de proceder. Queria entrar na casa. Assim, havia menos hipóteses de os tiros serem ouvidos da estrada.

De gatas, movimentou-se ao longo da fila de arbustos até estar junto da casa, por baixo da janela da sala da televisão. Hoje, a porta que dava para a sala estava quase fechada, por isso não conseguiu espreitar lá para dentro. Mas viu o tipo que tinha acabado de entrar na casa. Estava na sala da televisão, de pé, atrás da porta.

- Acho que a Carley DeCarlo não sabe que ele está aqui - disse Annie. - Porque será?

- Vamos descobrir - sugeriu Ned. - Tenho a chave da porta da cozinha. Vamos entrar.

 

                   CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS

Lynn é realmente uma mulher muito bonita. Costumava usar o cabelo preso num carrapito, mas hoje as madeixas emolduravam-lhe o rosto, em laivos de dourado que suavizavam o frio dos seus olhos azul-cobalto. Tinha vestidas calças brancas de seda, de corte irrepreensível, e uma blusa branca de seda. O meu receio de parecer demasiado festiva para uma conversa séria não era, evidentemente, partilhado por ela. As jóias que trazia incluíam um colar de ouro e diamantes, brincos de ouro e diamantes, e o diamante solitário que lhe notara no dedo na reunião de accionistas.

Felicitei-a pela sua aparência, e ela disse qualquer coisa sobre ir a um coctaila casa de um vizinho, mais tarde. Segui-a até à sala. Ainda a semana passada estivera nesta sala, mas não tinha intenção de lho dizer. Tinha a certeza de que ela não aprovaria a minha visita a Manuel e Rosa Gomez.

Sentou-se no sofá, reclinando-se o suficiente para sugerir que isto ia ser um encontro social descontraído, linguagem corporal que me indicou que a conversa não ia ser fácil. Não que eu quisesse tomar qualquer coisa, nem mesmo água, mas o facto de ela não esboçar um gesto de hospitalidade significava, pensei, que estava à espera que eu desse o meu recado e desaparecesse.

É a tua deixa, pensei, e respirei fundo:

- Lynn, isto não vai ser fácil e, francamente, a única razão por que estou aqui, a tentar ajudar-te, é a minha mãe estar casada com o teu pai.

Os olhos dela fixaram-se em mim e ela acenou com a cabeça. Estamos de acordo, pensei, e continuei:

- Sei que não gostamos muito uma da outra e, tudo bem, mas tu usaste a nossa relação familiar, se é que podemos chamar-lhe isso, para me fazeres passar por teu porta-voz. Eras a triste viúva que não fazia ideia do que o marido andava a tramar, eras a madrasta preocupada com o enteado. Não tinhas emprego, nem amigos, estavas quase na falência. Tudo mentira, não era?

- Era, Carley? - perguntou ela, delicadamente.

- Acho que sim. Estavas-te nas tintas para o Nicholas Spencer. A única coisa honesta que disseste foi que ele casou contigo porque és parecida com a primeira mulher dele. Acho que isso é verdade. Mas, Lynn, estou aqui para te avisar. Vai haver uma investigação criminal sobre a vacina e porque é que, de repente, começou a levantar problemas. Por acaso, sei que a vacina funciona: vi a prova viva disso ontem. Vi um homem que, há três meses, estava às portas da morte e que agora está cem por cento livre do cancro.

- Estás a mentir - vociferou ela.

- Não, não estou. Mas não estou aqui para falar desse homem, agora. Vim aqui dizer-te que sabemos que Vivian Powers foi raptada e que, provavelmente, lhe foram dadas drogas que lhe alteraram a mente.

- Isso é ridículo!

- Não, não é, como não é ridículo o facto de os ficheiros do pai de Nick terem sido roubados ao Dr. Broderick, que os tinha à sua guarda. Tenho quase a certeza de que sei quem os levou. Ontem, encontrei a fotografia dele na Garner Pharmaceuticals. Foi Lowell Drexel.

- O Lowell? - A voz soava agora nervosa.

- O Dr. Broderick disse que foi um homem de cabelo castanho arruivado quem levou os ficheiros. Acho que o trabalho de pintura estava tão bem feito que ele nem reparou. A fotografia foi tirada o ano passado, antes de Drexel ter deixado de pintar o cabelo. Tenciono telefonar aos investigadores e contar-lhes tudo. O Dr. Broderick quase foi morto por alguém que o atropelou e fugiu, e pode não ter sido um acidente. Pelo menos, não acredito que tenha sido. Ele está a recuperar e vão mostrar-lhe esta fotografia. Se, ou talvez melhor, quando ele identificar o Drexel, a coisa que os investigadores farão logo a seguir será começar a investigar o acidente de avião. Ouviram-te discutir com o Nick, na cafetaria do aeroporto, mesmo antes de ele ter levantado voo. A empregada ouviu-o perguntar-te porque tinhas mudado de ideias no último minuto e já não querias ir com ele. É bom que tenhas respostas prontas para quando a polícia vier falar contigo.

Lynn estava agora visivelmente nervosa:

- Esperava conseguir salvar o nosso casamento. Foi por isso que lhe disse que iria com ele. Disse isso ao Nick e pedi-lhe que levasse o Jack noutra viagem, noutra altura. Ele concordou, mas muito contrariado. Depois, foi brusco comigo durante todo o dia de sexta- feira, por isso, quando íamos a sair para o aeroporto, decidi deixar a minha mala em casa. Esperei até estarmos no carro para lhe dizer, e foi por isso que ele explodiu. Mas não me ocorreu que ele tivesse querido ir buscar o Jack no último minuto.

- É uma história pouco convincente - disse-lhe. - Estou a tentar ajudar-te, mas tu estás a dificultar as coisas. Sabes sobre o que vão começar a especular a seguir? Eu digo-te. Vão começar a pensar se não terás deitado qualquer coisa na bebida do Nick, naquela cafetaria. Eu própria estou a começar a pensar nisso.

- Isso é ridículo!

- Então, começa a pensar na gravidade da tua situação. Os investigadores têm estado concentrados no Nick, e para tua sorte ainda não encontraram o corpo. Assim que se souber da vacina e eles mudarem o alvo da investigação, as coisas vão começar a ficar feias para o teu lado. Por isso, se sabes alguma coisa sobre o que andava a passar- se no laboratório, ou se alguém te disse para não ires com o Nick naquela viagem, o melhor que tens a fazer é falar com o Ministério Público.

- Carley, eu amava muito o meu marido. Queria salvar o nosso casamento. Estás a inventar isto tudo.

- Não estou, não. Aquele maluco, Ned Cooper, que matou aquelas pessoas todas, é que incendiou a casa, aqui. Tenho a certeza.

Ele viu alguém a sair da casa, naquela noite. Mandou-me e-mails sobre isso, e eu entreguei-os à polícia. Acho que estás envolvida com Wallingford, e quando isso for revelado lá se vai o teu álibi.

- Achas que eu estou envolvida com o Charles? - Começou a rir, um som nervoso, agudo, forçado. - Carley, achei que eras mais esperta do que és. O Charles não passa de um patifório que rouba as empresas onde trabalha. Já o tinha feito, e é por isso que os filhos não lhe falam, e começou a fazê-lo na Gen-stone quando percebeu que o Nick estava a oferecer as suas próprias acções como garantia de empréstimo. Decidiu pilhar o departamento de aprovisionamento médico.

Olhei para ela com os olhos muito abertos:

- O Wallingford foi autorizado a roubar! Tu sabias que ele estava a roubar e não fizeste nada?

- O problema não era dela, Carley - disse uma voz profunda, de homem.

A voz vinha de trás de mim. Virei-me, sobressaltada. Lowell Drexel estava à porta. Tinha uma pistola na mão.

- Sente-se, Carley - A voz dele era tranquila, não revelando qualquer emoção.

De súbito, senti uma fraqueza nos joelhos e deixei-me cair na cadeira, olhando para Lynn à procura de uma explicação.

- Esperava que as coisas não chegassem tão longe, Carley - disse ela. - Lamento imenso, mas... - Subitamente, desviou o olhar em direcção ao fundo da sala, e a expressão de desprezo que tinha um segundo antes transformou-se em verdadeiro terror.

Num repente, virei a cabeça. Ned Cooper estava na zona de refei ções, o cabelo desgrenhado, a barba por fazer, as roupas sujas e amarrotadas, os olhos muito abertos, as pupilas dilatadas. Tinha uma espingarda na mão e, sem aviso, puxou o gatilho.

O estampido, o cheiro a fumo acre, o grito aterrorizado de Lynn e o som pesado do corpo de Drexel a cair no chão de madeira assaltaram-me os sentidos. Só conseguia pensar nisso. - Por favor - gemia Lynn -, por favor.

- Não! Porque havia de viver? - perguntou ele. - Ouvi tudo. Você não presta.

Voltou a apontar a espingarda. Enterrei o rosto nas mãos.

- Por fa...

Ouvi outra explosão e senti o cheiro a fumo e soube que Lynn estava morta. Agora, era a minha vez. Agora, ele vai matar-me, disse a mim própria, e esperei pelo impacto da bala.

- Levanta-te! - Abanou-me o ombro. - Anda. Vamos levar o teu carro. És uma rapariga de sorte. Vais ficar viva mais uma meia hora.

Levantei-me aos tropeções. Não consegui olhar para o sofá. Não quis ver o corpo de Lynn.

- Não te esqueças da mala - disse ele, com uma calma arrepiante.

Estava no chão, ao lado da cadeira onde eu estivera sentada. Baixei-me e apanhei-a. Depois, Ned Cooper agarrou- me no braço e empurrou-me, fazendo-me atravessar a zona de refeições e entrar na cozinha.

- Abre a porta, Carley - ordenou.

Fechou-a com força atrás de nós e empurrou-me até ao carro, do lado do condutor.

- Entra. Guias tu.

Parecia saber que eu não tinha trancado o carro. Teria estado a observar-me? Meu Deus, porque é que eu vim aqui? Por que é que não levei a sério as ameaças dele?

Ele deu a volta pela parte da frente do carro, sem nunca tirar os olhos de mim e mantendo a espingarda a postos. Sentou-se no assento ao lado do meu:

- Abre a mala e tira a chave.

Tacteei, à procura. Tinha os dedos entorpecidos. Todo o meu corpo tremia tanto que quando encontrei a chave e a tirei da mala foi difícil conseguir metê-la na ignição.

- Vai por esta rua abaixo. O número para abrires o portão é 2808. Carrega nos números, quando lá chegarmos. Quando o portão se abrir, vira à direita. Se houver polícias, nada de gracinhas.

- Está bem - murmurei. Mal conseguia articular as palavras.

Ele acocorou-se, de forma a que a sua cabeça não fosse visível da rua. Mas quando o portão se abriu e eu saí, não havia mais nenhum carro na estrada.

- Vira à esquerda, a seguir à curva.

Quando passámos pelas ruínas carbonizadas da mansão, vi um carro da polícia cruzar-se connosco, a baixa velocidade. Continuei a olhar em frente. Sabia que Ned Cooper não estava a brincar: se eles se aproximassem de nós, matava-os a eles e a mim.

Cooper continuou enterrado no assento, com a espingarda entre as pernas, falando apenas para me dar indicações.

- Vira aqui à direita. Agora à esquerda.

Depois disse, num tom de voz marcadamente diferente:

- Acabou-se Annie. Vou a caminho. Deves estar feliz, querida. Annie. A mulher dele, que tinha morrido, pensei. Ele estava a falar com ela como se ela estivesse no carro. Talvez se eu tentasse falar com ele sobre ela, se ele visse que eu tinha pena de ambos, talvez eu tivesse uma hipótese. Talvez ele não me matasse. Eu não queria morrer. Queria ter uma vida com Casey. Queria ter outro filho.

- Vira aqui à esquerda e depois vai sempre a direito. Evitava as estradas principais, em todas elas devia haver polícia à procura dele.

- Está bem, Ned - respondi. A minha voz tremia tanto que mordi o lábio para tentar controlá-lo. - Ouvi as pessoas falarem sobre a Annie na televisão, ontem. Toda a gente disse que a adorava.

- Não respondeste à carta dela.

- Ned, às vezes, quando recebo a mesma pergunta de várias pessoas, respondo à carta de todas elas, mas não uso um nome em particular, porque não seria justo para com as outras. Aposto que respondi à pergunta da Annie, mesmo que não tenha usado o nome dela.

- Não sei.

- Ned, eu também comprei acções da Gen-stone e perdi dinheiro, exactamente como vocês. É por isso que estou a escrever um artigo para a revista, para toda a gente ficar a saber sobre as pessoas como nós, que foram enganadas. Sei que queria muito dar uma casa grande e bonita à Annie. O dinheiro que usei para comprar as acções era dinheiro que estava a poupar para um apartamento. Vivo num sítio alugado, que é muito pequeno, exactamente como aquele onde o Ned vive.

Estaria a ouvir? perguntei-me. Impossível saber.

O meu telemóvel tocou. Estava na minha mala, que ainda tinha no colo.

- Estás à espera de algum telefonema?

- Deve ser o meu namorado. Fiquei de encontrar-me com ele.

- Atende. Diz-lhe que vais chegar atrasada.

Era Casey:

- Está tudo bem, Carley?

- Sim. Depois digo-te.

- Quanto tempo até chegares lá?

- Uns vinte minutos.

Vinte minutos?

- Comecei agora. - Como poderia dizer-lhe que precisava de ajuda? - Diz a toda a gente que vou a caminho - disse eu. - É bom saber que não falta muito para ver o Patrick.

Cooper tirou-me o telefone da mão. Carregou no botão para terminar a chamada e atirou o telemóvel para o assento:

- Não falta é muito para veres a Annie, não é o Patrick.

- Ned, onde vamos?

- Ao cemitério. Para nos encontrarmos com a Annie.

Onde fica o cemitério, Ned?

- Yonkers.

Yonkers ficava a menos de dez minutos do sítio onde estávamos. Teria Casey compreendido que eu precisava dele? Chamaria a polícia, a pedir-lhes que procurassem o meu carro? Mas, mesmo que o vissem e nos seguissem, isso só significaria que alguns deles iriam morrer também.

Não tinha a certeza se Ned Cooper estava a planear matar-se no cemitério, depois de me matar. A única esperança que tinha de sobreviver era que ele me poupasse. Para conseguir isso, tinha que cativá-lo.

- Ned, acho que é uma vergonha, todas as coisas terríveis que disseram sobre si na televisão, ontem. Não foi justo.

- Annie, estás a ouvir? Ela também acha que não é justo. Eles não sabem o que sentiste quando perdeste a casa, tudo porque eu acreditei nas mentiras deles. Eles não sabem o que eu senti quando te vi morrer, quando o camião do lixo bateu no teu carro. Eles não sabem que aquelas pessoas para quem tu foste sempre tão simpática não quiseram que tu soubesses que eu ia vender-lhes a casa. Eles não gostavam de mim, por isso quiseram que tu e eu desaparecêssemos.

- Gostava de escrever sobre isso tudo, Ned - disse eu. Tentei evitar parecer que estava a implorar. Não era fácil.

Atravessámos Yonkers. Havia muito trânsito, e Cooper afundou-se mais no assento.

- Gostava de escrever sobre os lindos jardins da Annie, sobre como ela arranjava tudo tão bem, todos os anos - continuei.

- Continua em frente. Estamos quase lá.

- E vou dizer a toda a gente que os doentes a adoravam, no hospital. E vou escrever sobre o quanto ela o amava, Ned.

O trânsito diminuíra. À direita, vi um cemitério.

- Vou chamar-lhe "A história de Annie", Ned.

- Mete por aquele caminho. Vai dar ao cemitério. Digo-te quando tiveres que parar. - Não havia qualquer emoção discernível na sua voz.

- Annie - disse eu. - Sei que consegue ouvir-me. Porque não diz ao Ned que é melhor ficarem os dois sozinhos, e que eu devo ir para casa e escrever sobre vocês e contar a toda a gente como vocês se amam? Não me quer no meio do caminho quando finalmente puder abraçar o Ned, pois não?

Ele parecia não ouvir:

- Pare aqui e saia do carro - ordenou.

Ned fez-me caminhar à sua frente até um túmulo com a terra ainda fresca e enlameado. O terreno começara a assentar e havia uma depressão a meio.

- Acho que o túmulo da Annie devia ter uma bela lápide, com flores gravadas à volta do nome dela - disse eu. - Prometo que faço isso, Ned.

- Senta-te. Ali - disse ele, apontando para uma zona a cerca de um metro e meio dos pés do túmulo.

Ele sentou-se no túmulo, com a espingarda apontada para mim. Com a mão esquerda, descalçou o sapato e a meia do pé direito.

- Vira-te - disse ele.

- Ned, prometo-lhe, a Annie quer ficar sozinha consigo.

- Eu disse vira-te!

Ia matar-me. Tentei rezar, mas só consegui murmurar a palavra que Lynn morrera a tentar dizer:

- Por favor.

- O que achas, Annie? - disse Ned. - O que hei-de fazer? Diz-me.

- Por favor. - Estava demasiado entorpecida pelo terror para mover os lábios. À distância, ouvi o som das sirenes. Demasiado tarde, pensei. Demasiado tarde.

- Está bem, Annie. Vamos fazer como tu quiseres. Ouvi o som do disparo e mergulhei na escuridão.

Lembro-me vagamente de ouvir um polícia dizer "Está em estado de choque", e de ver o corpo de Ned deitado no túmulo de Annie. Depois, acho que voltei a desfalecer.

Quando acordei, estava no hospital. Não tinha levado um tiro. Soube que estava viva, que Annie dissera a Ned para não me matar.

Acho que estava sob o efeito de muitos sedativos, porque voltei a adormecer. Quando acordei, ouvi alguém dizer:

- Ela está aqui, Doutor.

Dois segundos depois estava nos braços de Casey, e foi nesse momento que soube que estava a salvo.

 

                         EPÍLOGO

Confrontado com as afirmações que Lynn fizera antes de morrer, Charles Wallingford apressou-se a colaborar com os investigadores. Admitiu ter roubado todo o dinheiro que faltava, excepto o que Nick conseguira emprestado dando como garantia as suas próprias acções. O valor do roubo seria a compensação pela sua colaboração no esquema engendrado para levar a Gen-stone à falência. A declaração mais espantosa de Charles foi que Adrian Garner, o multimilionário à frente da Garner Pharmaceuticals, fora o autor de todo o plano e dirigira todas as acções ocorridas.

Fora Garner quem recomendara a Dr. a Kendall como assistente do Dr. Celtavini e a enviara para lá deliberadamente, na intenção de sabotar as experiências.

Garner era também amante de Lynn e o homem que Ned Cooper vira no caminho de acesso à mansão, na noite em que lhe deitara fogo. Depois de a mansão ter ardido, Lynn despedira os caseiros para continuar a ver Garner sem ser observada.

Quando Garner ficou a saber que a vacina contra o cancro funcionava realmente, não ficou satisfeito apenas com a sua distribuição: quis também possuí-la. Quando a vacina se afigurou um fracasso e a Gen-stone foi à falência, planeava registar a patente da vacina por tuta-e-meia. Depois, a Garner Pharmaceuticals possuiria uma vacina que seria, de facto, muito prometedora e se revelaria, com toda a probabilidade, muito lucrativa.

O erro fora mandar Lowell Drexel buscar os registos do Dr. Spencer pessoalmente. O telefone de Vivian Powers estava sob escuta. Quando me deixou uma mensagem a dizer que sabia quem levara os registos, foi raptada e drogada, para impedi-la de relacionar Drexel, agora grisalho, com o homem que o dr. Broderick descrevera.

Garner deu a Lynn o comprimido que ela deitou no chá gelado que Nick bebeu na cafetaria do aeroporto. Era uma droga nova, que só fazia efeito após algumas horas e que, quando fazia, deixava a vítima inconsciente sem pré-aviso. Nick Spencer não teve qualquer hipótese.

Garner foi indiciado por homicídio. Outra importante empresa farmacêutica avançou e conseguiu um acordo para absorver a Gen-stone numa operação da bolsa. Os investidores que pensavam ter sido defraudados têm agora acções que valem praticamente todo o dinheiro que investiram, mas que vão valer muito mais um dia, se a vacina continuar a produzir resultados sem complicações graves.

Tal como eu suspeitava, foi a sobrinha da Dr. a Kendall que desviou a carta de Caroline Summers, em que ela dizia que a filha estava curada da esclerose múltipla. Quando a carta chegou às mãos de Adrian Garner, ele mandou Drexel buscar os registos do Dr. Spencer a casa do Dr. Broderick. Agora, a nova empresa farmacêutica está a pedir aos melhores microbiólogos de todo o mundo que estudem esses registos e tentem descobrir que combinação de drogas pode ter produzido essa cura espantosa.

Ainda me custa acreditar que Lynn não só ajudou a matar o marido, como também teria deixado Lowell Drexel matar-me naquele dia terrível, na casa de hóspedes. O pai de Lynn tem de suportar não apenas a morte dela, mas também a dor e a humilhação das histórias da comunicação social. A minha mãe tem feito o melhor para ajudá-lo, mas não tem sido fácil. Ao mesmo tempo que o compreende, tem que lutar com a consciência do que Lynn me teria feito para impedir-me de contar a verdade.

Casey percebeu o que tentei dizer-lhe quando estava no carro com Ned, e contactou a polícia. Eles estavam a vigiar o cemitério. Sempre pensaram que Ned voltaria lá. Quando lhes explicou que o Patrick era o meu filho que morrera, e sabendo que Ned ia muitas vezes à campa de Annie, acorreram de imediato.

Hoje é dia 15 de Junho. Esta tarde houve uma homenagem a Nick Spencer, e eu e Casey estivemos presentes. Os funcionários e os accionistas da Gen-stone que tinham denunciado Spencer o mais alto que podiam, mantiveram-se num silêncio respeitoso e atento enquanto se sucediam as homenagens à sua dedicação e ao seu génio.

Dennis Holden foi electrizante quando falou. A fotografia dele, descarnado e à beira da morte, a mesma que me mostrara a mim e a Ken Page, foi mostrada num ecrã gigante.

- Estou aqui porque Nick Spencer correu o risco de injectar-me a vacina - declarou.

A última homenagem coube ao filho de Nick, Jack.

- O meu pai foi um grande pai - começou ele. As lágrimas encheram os olhos de todos. - Prometeu-me que, se conseguisse, não haveria mais nenhum menino a perder a mãe por causa do cancro.

Não há dúvida de que é o filho maravilhoso de um pai maravilhoso. ObserveiJack enquanto ele voltava ao seu lugar, entre os avós. Sabia que, apesar de tudo o que acontecera, era uma bênção ter pessoas assim a cuidar dele.

Depois, houve grande agitação quando Vince Alcott disse:

- Acredita-se que Nicholas Spencer tenha dado a vacina contra o cancro a outra pessoa. Essa pessoa está connosco, neste momento.

Marty e Rhoda Bikorsky subiram ao palco, com a filha, Maggie, no meio de ambos. Foi Rhoda quem se aproximou do microfone.

- Conheci Nicholas Spencer na ala para doentes terminais, em St. Ann's - disse ela, lutando para conter as lágrimas. - Tinha ido lá visitar uma amiga. Já ouvira falar na vacina. A minha filha estava a morrer. Implorei-lhe que lha desse. Levei-Lha no dia antes de ele ter morrido no desastre de avião. Nem o meu marido sabia. Quando ouvi dizer que a vacina não prestava, fiquei cheia de medo de a perdermos. ainda mais cedo. Isso foi há dois meses. Desde essa altura, o tumor no cérebro da Maggie tem-se tornado mais pequeno de dia para dia. Ainda não sabemos qual vai ser o resultado final, mas Nick Spencer deu-nos tanta esperança!

Marty pegou em Maggie ao colo para toda a gente poder vê-la. A criança tão frágil e pálida que eu vira havia seis semanas tinha agora cor nas faces e aumentara de peso.

- Prometeram-nos que ela vai ficar connosco até ao Natal - disse Marty - Agora começamos a acreditar que vamos vê-la crescer.

Enquanto as pessoas faziam fila para saírem do local da homenagem, ouvi alguém repetir o que a mãe de Maggie dissera:

- Nick Spencer deu-nos tanta esperança!

Nada mau como epitáfio, pensei.

  

                                                                  Mary Higgins Clark

 

 

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