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A SEGUNDA VITÓRIA / Morris West
A SEGUNDA VITÓRIA / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                               Capítulo 1

O jipe já havia deixado a planície para trás e subia agora, com certa dificuldade, a estreita e perigosa estrada, que descrevia curva após curva pela encosta da montanha. Lá embaixo, para além do íngreme precipício e dos pedaços de gelo que pendiam dos rochedos, avistava-se um tumul­tuoso rio por entre os troncos nus de algumas árvores soli­tárias. Mais para cima, onde a montanha começava a curvar-se como que formando uma corcunda, uma aglomeração de pinheiros separava a estrada de uma vasta pista de neve, que subia até o ponto culminante da encosta e o azul do céu do meio-dia.

A superfície gelada da estrada ia se tornando mais pe­rigosa e o jipe começava a derrapar, o que dificultava gran­demente a tarefa do seu condutor — o Sargento Willis. Ele decidiu deter-se à beira do precipício, a fim de adaptar às rodas as correntes que trouxera para essa eventualidade. En­quanto Willis as colocava, resmungando e praguejando con­tra o, intenso frio, o Major Mark Hanlon — o outro ocupan­te do jipe — avançou até o meio da estrada e levantou o olhar para o alto da montanha.

Uma clareira entre os pinheiros, os seus troncos erguendo-se majestosamente como pilares e abrindo-lhe uma perspectiva sem qualquer obstáculo, permitiu ao Major Hanlon distinguir nitidamente a linha de demarcação onde o céu e o cume da montanha se encontravam. A neve sob os pinheiros estava manchada de carumas caídas no solo, porém, mais adiante, a brancura do gelo e da neve só era interrompida pelo cinzento de um ou outro rochedo e o si­lêncio só era cortado pela queda surda de grandes porções de neve nas inúmeras ravinas que ladeavam a estrada.

Foi então que o Major Mark Hanlon viu o esquiador.

Este encontrava-se no cimo da montanha, uma figura negra e insignificante na distância, com a cabeça no azul do céu e os pés sobre o branco da neve. Hanlon tirou um bi­nóculo do estojo que trazia a tiracolo e apontou-o na dire­ção daquela imóvel figura.

Passados poucos segundos, o esquiador começou a mo­ver-se, devagar de início e adquirindo maior velocidade à medida que se ia aproximando do declive mais acentuado. Hanlon soltou uma exclamação de espanto ao vê-lo contor­nar, depois de uma manobra que parecia impossível, os primeiros rochedos que lhe apareceram pela frente. O binó­culo mostrara-lhe perfeitamente a poeira de neve que se levantara e o ângulo precário do corpo dó esquiador. O ho­mem, fosse ele quem fosse, não tardou a recuperar o equi­líbrio e a avançar rapidamente, em diagonal, para a clareira entre os pinheiros. Quando os alcançasse, calculou o major, o esquiador já deveria estar a uma velocidade de setenta quilômetros por hora.

 

 

 

 

A exclamação de Hanlon trouxera Willis para junto dele, e os dois homens ficaram a admirar a arrojada e verti­ginosa descida do desconhecido. O esquiador não abrandava a velocidade nem se desviava ao alcançar quaisquer desníveis ou acidentes naturais do terreno, limitando-se a saltar sobre eles, voando como um pássaro, e a bater no ar com os braços a fim de conservar o equilíbrio.

O Major Hanlon e o Sargento Willis continuavam a observá-lo, literalmente boquiabertos, à espera da queda fatal que lhe despedaçaria o corpo e o lançaria inevitavel­mente no fundo do precipício que ladeava a estrada. O es­quiador continuava a deslizar sobre a neve, ganhando mais e mais velocidade, até que os dois homens conseguiram aperceber-se de que ele trajava o uniforme cinza-esverdeado de um regimento de Alpenjäger. A carabina a tiracolo e o reflexo da pistola que trazia no cinturão não deixaram dúvi­das sobre o fato de o esquiador ser um soldado.

Hanlon baixou o binóculo e voltou-se para Willis, o seu olhar revelando bem a surpresa que o assaltara. A guer­ra tinha terminado muitos meses antes. Todas as unidades militares austríacas haviam sido desarmadas ou então de­bandadas. As Forças de Ocupação dominavam todos os se­tores da região. O que estaria aquele esquiador fazendo ali, armado e em uniforme de combate, numa descida vertiginosa em direção aos dois homens?

O Major Hanlon voltou a levantar o binóculo. O es­quiador já se aproximava do fim da pista e era certo que, à velocidade em que ia, não se poderia deter na clareira e acabaria por alcançar as primeiras árvores. Um momento de­pois, quando os dois homens pensavam que a queda era iminente, o esquiador desapareceu entre os pinheiros e, pas­sados uns trinta segundos, voltou à aparecer, deslizando lenta e calmamente pelo rebordo situado por cima da estrada e trazendo a carabina numa das mãos. O soldado parou a alguma distância do ponto onde se encontrava o jipe e ficou olhando para os dois homens. Um raio de sol ilumi­nou-lhe o rosto, e o Major Hanlon notou as suas feições macilentas e uma cicatriz vermelha, certamente ainda re­cente, que lhe descia do olho ao queixo, pela face direita.

Hanlon levantou o braço e gritou-lhe em alemão:

— Grüss Gott! Venha cá! Queremos falar-lhe.

O esquiador, mesmo antes de o Major Hanlon acabar de falar, empunhara a carabina e, com o movimento rápido e quase intuitivo do soldado bem-treinado, apontara-a fir­memente na direção dos dois homens. Hanlon soltou um grito e deu um violento empurrão em Willis, a fim de fa­zê-lo perder o equilíbrio e arrastá-lo com ele para o chão, mas o tiro fez-se ouvir bem sonoramente por toda a mon­tanha antes de eles caírem por terra, e Hanlon, ao rolar, numa precipitação compreensível, para o abrigo que o jipe representava, viu mais uma série de balas quebrar o gelo à sua volta e ouviu o eco dos tiros percorrer todo o vale.

O Major Hanlon arrancou a pistola do coldre e, escon­dido sob o veículo, tentou descobrir a figura do caçador alpino. O eco ainda ressoava de colina em colina, mas o homem desaparecera e o Sargento Willis ficara estendido no meio da estrada com uma bala na cabeça. Hanlon saiu do esconderijo e aproximou-se dele, verificando que estava morto e que o sangue já congelara no seu rosto e manchara a neve debaixo dele.

Depois de alguns segundos de indecisão, o major aca­bou de colocar as correntes nas rodas e levou o corpo de Willis para dentro do jipe. Sentou-se ao volante e, pondo o motor a trabalhar, começou a subir a encosta em direção a Bad Quellenberg.

Bad Quellenberg — segundo dizem as lendas — foi fundada por um santo eremita chamado São Julião, que vivia nas montanhas na companhia dos veados, dos ursos, das águias e dos faisões dourados. São Julião era um homem muito gentil e bondoso, ao que parece, sendo mesmo uma espécie de São Francisco gótico, e a sua vida fora um pro­testo constante contra a violência que reinava no seu tempo. Sempre que um veado era ferido por um lobo, por exemplo, Julião dava uma pancada num rochedo e uma corrente de água água que tudo sarava lançava do interior da montanha um medicamento perene tanto para os homens como para os animais.

A lenda sofrera alterações devido à intervenção dos historiadores. Essas montanhas já eram habitadas pelo ho­mem na Idade do Bronze. Os romanos negociavam sal sobre as estradas montanhosas que conduziam a Salzburgo e ex­ploravam as suas minas de ouro, situadas nos pontos mais altos de Naasfeld. Os vândalos e muitas outras tribos e raças procuravam a atmosfera acolhedora da região e, por higiene ou conforto ou ainda pelo seu efeito salutar, ba­nhavam-se sempre nas águas tépidas que deram o nome à vila: Montanha de Nascentes.

Martinho Lutero também visitara aqueles picos, em­bora não exista qualquer prova de que ele se tenha banhado nas águas da montanha. Dizem os habitantes locais que Lutero passava os dias escondido nas casas e abrigos dos pontos mais elevados da serrania, onde as camurças iam pastar durante os duros rigores do inverno.

Um camponês, homem muito empreendedor, ergueu uma estalagem e um posto de abastecimento para as dili­gências na garganta da passagem, a fim de que os viajantes da Caríntia pudessem mudar de cavalos, comer bifes de veado e provocar as belas camponesas antes de entrarem nas perigosas terras de Salzburgo, onde Wolf Dietrich se instalara na sua fortaleza de pedra com uma cruz numa das mãos e uma espada desembainhada na outra.

Mais tarde, muito mais tarde, uma igreja e uma escola foram construídas perto da estalagem, e a vilazinha de Bad Quellenberg começou a nascer ao longo das margens do rio que jorrava da montanha e ia fertilizar a planície distante. A estalagem transformou-se num hotel, e alguns esperta­lhões de Viena e de Salzburgo mudaram-se para a recém- nascida povoação a fim de montar pensões e toda a espécie de estabelecimentos, sem esquecerem os balneários alimen­tados pelas águas minerais e tépidas que nasciam no coração da montanha.

Os novos edifícios não tardaram a formar um imenso anfiteatro em redor da garganta do vale, sob a presença do­minadora dos picos de Grauglokner e de Gamsberg.

Mais tarde foi construído um túnel sob a montanha para beneficiar a vila com uma ligação ferroviária com Klagenfurt, Villach, Trieste, Belgrado e Atenas. Thomas Cook e Baedecker depressa seguiram na trilha da estrada de ferro, e Bad Quellenberg desenvolveu-se muitíssimo sob o rico patrocínio do turismo.

Os turistas vinham veranear, sentando-se nos terraços para um cafezinho, passeando sob os pinheiros, namorando à tardinha, enquanto as orquestras tocavam valsas de Strauss e os ranchos de camponeses dançavam o Schuhplattler e to­cavam suas cítaras numa manifestação da atmosfera de ale­gria e de cor que reinava no vale. Vinham também no in­verno para esquiar e, entre as duas estações, para caçadas e explorações montanhosas. Os hoteleiros engordavam à custa dos abençoados turistas, os camponeses enriqueciam e os lenhadores tinham dificuldade em fornecer às serrarias os troncos de pinheiro suficientes para manter o nível e a intensidade da construção.

Bad Quellenberg desenvolvia-se rapidamente e tornou- se essencial construir uma central elétrica no cimo da mon­tanha a fim de iluminar a vila e de eletrificar a estrada de ferro. Quando a Áustria foi anexada, tornando-se parte da Alemanha, os adeptos do partido vinham passar as suas férias em Bad Quellenberg e grupos de jovens invadiram esses vales, a cantar e a marchar alegremente, enquanto o próprio Reichsmarschall Goering, tão vistoso como um pa­vão, vinha tomar sol e banhar-se nas águas tépidas da mon­tanha.

Veio então a guerra, primeiro com a Inglaterra e mais tarde com a Rússia, e a juventude de Bad Quellenberg foi alistada num regimento de Alpenjàger e enviada para a fren­te oriental. Os anos passaram e as cruzes de madeira no Cemitério de São Julião foram aumentando em número. Os hotéis foram transformados em Lazaretts' para os feridos e os estabelecimentos foram fechando as suas portas, um após outro, visto que já não existia coisa alguma para ven­der nem alguém que possuísse dinheiro para comprar.

O serviço ferroviário tornou-se irregular, já que Villach fora bombardeada e o mesmo sucedera a Salzburgo e a Schwarzach. Os vagões dos trens, quando por vezes chegavam a Bad Quellenberg, vinham cheios de soldados, feridos e exaustos, que haviam sido retirados da frente russa e da Grécia. Os comboios que atravessavam o vale transporta­vam também veículos usados é armas inúteis, por já não haver combustível para os veículos nem munição para as armas!

Um dia chegou, finalmente, em que o rádio anunciou que a Alemanha se rendera. A população de Bad Quellen­berg reuniu-se nas ruas e nas praças, e os feridos, instalados nos hotéis, sentaram-se nas suas camas, todos eles formu­lando a mesma pergunta assustada: "Que nos acontecerá agora?"

Ninguém se apressou a responder-lhes, visto que Bad Quellenberg era uma vila pequena, uma estância termal e um centro de esportes de inverno sem a menor impor­tância econômica ou militar. Os quelembergueses e os seus "hóspedes", os feridos de guerra, aguardaram receosa­mente durante um mês, dois meses, até o momento em que uma companhia de tropas do Quartel-General de Ocupação de Klagenfurt chegou ao prazenteiro vale. O capitão era um jovem de bigode e olhar frio; apresentando-se sem de­mora ao burgomestre, entregou-lhe as ordens que trazia.

O Hotel Sonnblick, o maior de Quellenberg, deveria ser evacuado imediatamente e preparado como Quartel-General do Comandante das Forças de Ocupação da Área de Quellenberg. O comandante chegaria dentro de quarenta e oito horas e o burgomestre teria de dar todos os preparativos como terminados antes da sua chegada.

As criadas ainda davam os últimos toques aos quar­tos e o primeiro guarda acabara de tomar a sua posição à porta do Hotel Sonnblick quando o Major Mark Hanlon subia lentamente a íngreme encosta com um morto a seu lado!

O Burgomestre Max Holzinger encontrava-se à janela da sua sala de estar e olhava para o panorama que se esten­dia lá embaixo: o vale, inteiramente coberto de neve, para além do cimo dos pinheiros.

O espetáculo nunca cessava de deliciar Max Holzinger: os campos em redor do rio que serpenteava por entre os cedros, as casas de madeira agachadas sob os seus telhados de colmo esbranquiçados pela neve, as linhas de demarcação das cercas, a aldeia dos camponeses em volta da velha igreja, os pinheiros alinhados como lanceiros ao longo das encos­tas, aquelas impenetráveis muralhas defendendo o vale do mundo exterior, os desfiladeiros com as suas névoas e escon­derijos sombrios. A guerra não tinha chegado àquele recan­to, e as águias, nos ninhos dos picos mais altos, não haviam sido importunadas. Era verdade que homens de Bad Quellenberg tinham morrido na guerra. Haviam caído na Rússia, na Romênia, na Hungria, em Creta. O seu próprio filho morrera com eles. As mortes, entretanto, haviam se dado a distância... muito, muito longe do vale. A tragédia fora diminuída, de certo modo, pela imponência majestosa das montanhas.

Os chefes do partido tinham visitado estas montanhas, a fim de descansar e de se distrair. Os feridos haviam vindo para convalescer e, se pudessem, para esquecer os horrores da guerra. O Reichsminister Goebbels dirigira o rádio e a imprensa até o último momento, escondendo a verdade nua e crua de todos os alemães e austríacos; os campos de con­centração e as câmaras de tortura não passavam de lendas, da mesma forma que as notícias das mortes, das derrotas e das cidades destruídas só alcançavam a montanha como sen­do rumores e boatos de uma situação que se desenrolava assustadoramente, era verdade, mas muito longe de Bad Quellenberg.

A vida no vale não mudara, seguindo os mesmos há­bitos de sempre, e a guerra não afetara grandemente o dia-a-dia dos camponeses. O inverno passara e os campos, de novo verdes e férteis, alimentavam o gado que pastava pelas en­costas. Os camponeses continuavam a trazer o leite, a carne e os ovos ao mercado da aldeia. Os convalescentes passeavam pelas avenidas, sob o intenso sol da serrania, e, à noite, se­duziam as moças da povoação sobre a relva das colinas. O som dos machados, a deceparem pinheiro após pinheiro, ecoava alegremente por todo o vale e ia se juntar à melodia das águas que corriam ligeiras pelo rio abaixo. O final do ve­rão trouxe consigo as habituais fainas agrícolas, as mulheres dos campos nos seus trajes vistosos ceifando e batendo a erva a fim de a secar e conservar para as necessidades do inverno. E, quando o ar das colinas começou a arrefecer, os lavrado­res recolheram o gado e cobriram as reses com as últimas flores da temporada, coroando gloriosamente a vaca que mais leite produzira.

Os ecos que percorriam a montanha também não ha­viam mudado muito. Eram parte integrante da vida do vale, parte da sua paz: os chocalhos das vacas e das cabras, de certo modo musicais; os guizos dos trenós no inverno; o ângelus que se fazia ouvir da torre da igreja, de manhã, à tarde e à noite; os pequenos sinos de prata que o Padre Albertus tocava quando trazia da igreja o Corpo de Cristo para abençoar as colheitas; o repicar dos sinos, que se tor­nava cada vez mais freqüente à medida que o fim da guerra se ia aproximando.

As montanhas recolhiam todos esses ruídos familiares nas suas encostas e desfiladeiros e não paravam de os trans­mitir de ravina em ravina, formando uma composição musi­cal incessante, umas vezes ameaçadora, outras vezes agradá­vel ao ouvido, muitas vezes ignorada mas nunca com­pletamente esquecida.

O burgomestre recordava-se de ter recebido ordens do partido, havia já bastante tempo, para silenciar os sinos e para os enviar como presente a uma fábrica metalúrgica, onde o seu metal seria empregado em espingardas ou ca­nhões. Recordava-se também de que se negara a fazê-lo, da mesma forma como se havia negado a satisfazer muitas outras exigências e acabara por levar a melhor. Tratava-se de uma vitória bem insignificante, em comparação com o enorme compromisso que ele e outros haviam tomado, mas, mesmo assim, alegrava-se de a ter obtido, já que os sinos tinham ajudado a manter, quase até o fim, a ilusão de paz que reinava no vale.

Essa ilusão desaparecera agora. As muralhas haviam sido ultrapassadas, os conquistadores já ocupavam toda a região. Um rapazote louro e um punhado de soldados en­contravam-se instalados no mesmo hotel em que o Reichsmarschall Goering havia pernoitado, e um homem desco­nhecido, um mero major, vinha nesse momento subindo a encosta que conduzia a Bad Quellenberg para se tornar o novo governador daquelas montanhas.

O Burgomestre Max Holzinger não sabia bem como havia de recebê-lo e como seria tratado pelo invasor. Só sabia uma única coisa: teria de conservar a sua dignida­de, já que a dignidade era tudo o que restava aos vencidos.

Max Holzinger já fora vencido uma vez e sabia quão importante era a dignidade.

Combatera num regimento de cavalaria, na Primeira Guerra, e ainda sofria os efeitos da bala que lhe entrara no joelho. O burgomestre sabia o que significava poder apenas falar das batalhas em que fora derrotado e ter sobrevivido ingloriamente à derrota. Vae victis! A história só absorve os vitoriosos!

Sabia também, melhor do que qualquer outro habitan­te de Bad Quellenberg, que dessa vez seria bem pior do que da última. Os espectros levantavam-se, agora, formulando uma acusação sem igual. Os sobreviventes, num esforço so­bre-humano, rastejavam para fora dos seus esconderijos e dos campos de concentração. Os juízes já estavam reunidos, impiedosos e castigadores. Os homens como ele, que haviam fechado os olhos ao que se passara, seriam considerados tão criminosos como os verdadeiros responsáveis. Os homens como ele, Max Holzinger, haviam saboreado os frutos da conquista e agora teriam de se espojar no lodo da derrota.

O burgomestre voltou a olhar para o vale coberto de neve e desejou que aquele difícil dia terminasse depressa.

Max Holzinger era um homem de estatura média, com o cabelo ainda negro, apesar dos seus cinqüenta anos, e um olhar intenso e inteligente. O seu rosto magiar era uma he­rança da mãe, que fora uma Harsanyi, de Budapeste, antes de se casar com Gerhardt Holzinger, de St. Veit. Max Hol­zinger casara-se com uma jovem alta e loura, de Hamburgo, e o filho que ela lhe dera morrera durante o primeiro ataque a Creta. O casal também tivera uma filha, uma moça mo­rena, cheia de vitalidade e muito esbelta. Chamava-se Irmtraud, em virtude de as Valquírias estarem na moda no ano em que nascera, mas o nome em nada condizia com a sua beleza quase cigana. Irmtraud tinha vinte e seis anos, estan­do portanto em boa idade de se casar, mas todos os homens com quem ela se poderia ter casado haviam morrido ou estavam prisioneiros, ou ainda andavam perdidos, sem eira nem beira, pelas vastas terras da Alemanha.

O burgomestre afastou-se da janela e viu as duas, sen­tadas nas suas cadeiras habituais, a observá-lo atentamente.

Sua esposa parecia estar trabalhando em qualquer peça de bordado, mas suas mãos tremiam ligeiramente e o olhar preocupado não se desviava do rosto do marido. A sua pre­sença física não aparentava ter sido afetada por todos aque­les anos de privações, e a idade só se fazia sentir pelo tom acinzentado que o cabelo adquirira. Max Holzinger olhou para ela, recordando a juventude que haviam passado juntos e tentando imaginar o que o futuro lhes traria.

Irmtraud fumava um cigarro, afundada numa poltrona. Vestia um traje de esqui que lhe ficava muito bem e lhe realçava a elegância do corpo, das longas pernas e dos seios firmes. Um sorriso ligeiramente malicioso iluminava-lhe a expressão do rosto e, apesar da evidente preocupação que a dominava, o seu olhar parecia divertido com qualquer coisa, e também, sem a menor dúvida, continha algo de hostil e desagradável.

Holzinger não sabia como explicar aos jovens estas coisas: derrota, desespero, traição e desilusão!

A sua mulher talvez compreendesse, mas e a sua fi­lha...? O burgomestre aproximou-se delas e, enfrentando-as corajosamente, falou-lhes numa voz calma e pausada, escolhendo as palavras com todo o cuidado, não fossem as duas mulheres dar qualquer outro significado ao que ele lhes queria fazer ver.

Creio que lhes devo explicar a situação em que nos encontramos.

Já sabemos que é uma situação muito difícil e in­grata, Max — respondeu-lhe a mulher, muito calma e se­nhora de si, num tom de voz em que talvez procurasse reafirmar a confiança que depositava no marido.

O burgomestre abanou a cabeça, desanimado e triste.

Tenho a certeza de que é pior do que vocês pen­sam, Liesl.

Pior? — perguntou a filha, os seus olhos inteli­gentes enchendo-se de uma súbita curiosidade.

O fato de eu ser um membro do partido me custará o cargo, com toda a certeza. É mesmo possível que nos con­fisquem o dinheiro e tudo o mais que possuímos.

Du lieber Gott!' — Liesl estremeceu e curvou-se rapidamente sobre o bordado a fim de esconder as lágrimas que lhe vieram aos olhos.

Não é possível que nos façam isso! — exclamou Traudl, a voz firme e ressentida revelando a ira que lhe ia na alma.

As Forças de Ocupação podem fazer exatamente o que lhes apetecer — respondeu a voz resignada de Max Holzinger —, e podemos dar graças a Deus por estarmos à mercê das forças britânicas e não das russas. Os ingleses respeitam a lei e os direitos do homem. Mais do que nós, devo dizer. Entretanto — continuou o burgomestre, pouco à vontade —, tentei tomar algumas precauções. Pedi a Kunzli que forjasse um documento que a torna dona desta casa, Liesl. Pusemos-lhe a data de 1938, e tenho esperanças de que o documento resista a qualquer investigação, até que Kunzli decida fazer chantagem... o que não será impossível. Todo o resto estará perdido, se eles assim o quiserem!

—- E nós? Que poderá nos acontecer? — Liesl for­mulara a pergunta num tom de voz frio e quase indiferente, como se a incógnita em nada a preocupasse.

Nada de muito mal, minha querida — respondeu- lhe o burgomestre, dando uma certa ironia às suas palavras.

Não morreremos de fome, fique descansada. Ainda sou homem para varrer a neve às portas dos hotéis ou para cuidar da limpeza das avenidas. Teremos de perder o nosso or­gulho e...

A campainha metálica e irritante do telefone interrom­peu subitamente a conversa e Holzinger apressou-se a res­ponder à chamada. As duas mulheres, muito tensas e preo­cupadas, ficaram na expectativa, sem desviar o olhar do marido e pai.

Alô! Aqui fala Holzinger...

Uma voz irada e ríspida respondeu ao burgomestre e este empalideceu, a expressão do rosto e do olhar indicando que algo de catastrófico se passara. As duas mulheres, no­tando a transformação, tentaram ouvir o que a outra voz dizia, sem o conseguir.

Quando?... Onde?... Meu Deus! Sim, sim! Vou aí imediatamente... Auf Wiedersehen!

Max Holzinger desligou o telefone e voltou-se para elas. Seu rosto estava pálido e transpirava abundantemente. Liesl fez menção de se levantar e ir reconfortá-lo, fosse qual fosse a razão do estado em que ele se encontrava, mas o bur­gomestre fez-lhe um gesto para que não se movesse do seu lugar.

Que foi, Max? Que se passou?

O pior, Liesl, o pior que poderia ter acontecido!

respondeu Holzinger, passando a mão pela testa e lim­pando o suor. — O comandante já chegou. O motorista que o acompanhava, um sargento, foi morto a tiro por um es­quiador trajando o uniforme austríaco, quando subiam a montanha a caminho de Bad Quellenberg! Tenho de ir à presença dele imediatamente.

O Burgomestre Max Holzinger olhou uma última vez para as duas mulheres e, sem voltar a falar, deu meia-volta e saiu da sala. A mulher e a filha o seguiram com olhares assustados e, em seguida, Liesl tapou a cara com as mãos e começou a soluçar. Traudl aproximou-se dela e ajoelhou-se à sua frente, passando-lhe a mão pelo cabelo quase grisalho e reconfortando-a com palavras simples e muito doces.

Lfesl conseguiu dominar-se; passado um momento, le­vantou a cabeça. Traudl limpou-lhe as lágrimas com um lenço de renda e, num gesto inesperado, a mãe agarrou-lhe os ombros e o seu olhar triste fixou-se no da filha. A sua voz, quando falou, continha uma amargura que lhe era trans­mitida pelo que de mais profundo havia no seu ser.

Já é a segunda vez que vejo isto acontecer, duran­te a minha vida, Traudl. Já é a segunda vez que os homens da minha terra, e o meu próprio marido, fazem a guerra e são derrotados. Já é a segunda vez que levam nossos maridos, nossos filhos, e os deixam morrer nas trincheiras e nas este­pes. Os sobreviventes voltam para casa, feridos ou inválidos como o seu pai, para se deitarem conosco e nos darem..., novos filhos para um novo sacrifício! Dão-nos também novas casas e cidades, para voltar a destruí-las mais tarde! Novas avenidas, novos jardins, dão-nos tudo novo... para voltar a ser destruído pelos exércitos. Tenho a impressão de que agora já estamos demasiado velhos e cansados para voltar a construir...

Não, Mutti[1].

Traudl libertou-se das mãos ansiosas da mãe e recuou.

Sim! — o tom de voz de Liesl tornou-se mais apai­xonado e insistente. — Sim! Os homens fazem a guerra e confiam em que, depois de tudo destruído, nos resignemos a voltar a pôr tudo no seu lugar! São eles que fazem as ruínas, e esperam que nós, as mulheres, lhes perdoemos o mal que fizeram. Acabamos sempre por pagar caro o que eles fizeram, e, apesar disso, tomam todas as decisões sem nos consultar. O mundo é sempre dos homens, enquanto há vitórias, mas, na derrota, as mulheres adquirem uma res­ponsabilidade muito maior... visto que grande parte dos homens morre em combate.

"Os lábios que desejaríamos beijar estão gelados", con­tinuou Liesl, falando lentamente, como se arrancasse cada palavra do recanto mais profundo da sua alma. "Os braços que nos poderiam abraçar estão enterrados na neve. Os cor­pos que nos podiam aquecer foram devorados pelos lobos. Depois de uma guerra, após a destruição, só nos restam os inválidos e os velhos para nos dar filhos que nunca pode­remos amar verdadeiramente. Filhos que nasceram da con­veniência e não da paixão. Os homens fortes e viris, que saberiam lidar com os conquistadores, morreram nos campos de batalha, nas frentes distantes. Os homens que nos poderiam dar nova fé, novas esperanças, caíram no cumpri­mento do que eles pensavam ser o seu dever. Hoje, após a derrota, só existem você e outras moças da sua idade... Es­tarei assustando-a, Traudl?"

Não — respondeu a filha, um sorriso irônico pairando-lhe nos lábios. — Os homens são todos iguais, e de­sejam todos a mesma coisa. Cabe à mulher marcar bem a sua posição e fazer-se valer. Eu não me posso queixar, go­verno-me tão bem como qualquer outra mulher!

Liesl Holzinger olhou para a filha, surpreendida pelas suas palavras, depois sorriu e assentiu lentamente com a cabeça.

Isso me alegra. A sua atitude facilitará a sua vi­da... e a nossa também. — Liesl estendeu a mão e bateu no corpo da filha, medindo-a com o olhar e voltando a sorrir. — Fique sabendo que, no ajuste de contas, é sempre a mu­lher quem vence... visto que as mulheres possuem a mais irresistível arma que existe. Os conquistadores chegam sem­pre como reis e acabam por portar-se como crianças, indefe­sos nos nossos braços e com as cabeças recostadas nos nossos seios. São sempre muito jovens e solitários e sentem a falta do conforto familiar. A vida que eles nos trazem é uma vida roubada às suas próprias mulheres, e essa é a única vingança que nos é concedida por tudo o que perdemos, pela loucura dos nossos homens, que foram atrás dos seus chefes enquan­to nós chorávamos nas nossas camas frias, sozinhas e deses­peradas por termos sido abandonadas impiedosamente. Per­cebe o que digo, Traudl?

Irmtraud Holzinger, muito admirada da inesperada eloqüência da mãe, assentiu lentamente.

Sim, compreendo. Mas... mas...

Mas o quê, minha filha?

Como sabe tudo isso? Como é possível que sinta o que acabou de me dizer?

Liesl Holzinger sorriu. Os seus olhos pareceram ver algo para além da filha, para além do vale e dos desfiladeiros... pareceram recordar um tempo que já passara, ver um país distante. Liesl puxou a filha para junto de si e acariciou-a durante um longo momento.

Só depois é que respondeu, muito simples e sincera­mente, à embaraçosa pergunta de Traudl.

Dois soldados britânicos e duas baionetas cruzadas im­pediram que Holzinger entrasse no Hotel Sonnblick, e o burgomestre, depois de se identificar e de explicar em mau inglês que era esperado, foi obrigado a ficar ao frio e ao vento até que fossem chamar o sargento da guarda.

O sargento formulou-lhe algumas perguntas e, final­mente, autorizou-o a entrar, conduzindo-o à presença do co­mandante. Holzinger viu, pelo caminho, os rostos familiares do gerente, Franz Mayer, e do porteiro, o velho Wilhelm. O burgomestre cumprimentou-os, mas ambos fingiram não o ver, voltando-lhe as costas como se não o conhecessem. Hol­zinger sorriu, percebendo bem as razões dos dois homens.

Helmut, o ascensorista, disse-lhe um "Grüss Gott" bas­tante envergonhado, e Holzinger falou-lhe amigavelmente enquanto subiam ao quinto andar, onde se encontravam si­tuados os quartos — o burgomestre lembrava-se bem — re­servados às personalidades mais em evidência.

O aquecimento central funcionava no máximo da for­ça, apesar da falta de combustível, e os nichos das salas e dos corredores estavam cheios de flores de estufa, muito di­fíceis de obter nesta época do ano. Mayer era um bom hote­leiro. Compreendia as exigências do serviço e não se poupava esforços para que tudo estivesse em ordem.

O sargento acompanhou Max Holzinger aos aposentos que haviam sido ocupados, meses antes, pelo Reichsmarschall Goering e tocou a campainha, tendo logo obtido a resposta de uma voz abafada: — Entre! — O sargento abriu a porta e deu um passo para o lado a fim de o deixar entrar, fechando-a depois e anunciando o visitante, em posição de sentido.

Este senhor é o burgomestre, senhor. Diz que re­cebeu uma convocação telefônica para se apresentar aqui.

Muito obrigado, Jennings. Pode ir embora.

O sargento fez uma continência muito formal, deu meia-volta e saiu da sala, voltando a fechar a porta atrás de si. O Burgomestre Max Holzinger ficara na presença da Força de Ocupação.

O comandante estava sentado a uma pesada secretária, as costas voltadas para a janela, de forma que as sombras realçavam-lhe as rugas e a expressão cansada do rosto. Hol­zinger calculou que o homem tivesse uns trinta anos, apesar de já mostrar o cabelo em parte grisalho.

Hanlon trajava um uniforme de combate, acabado de engomar, e o seu rosto indicava que se havia barbeado pouco antes. As insígnias de major, nos ombros do uniforme, ti­nham sido polidas e as suas mãos bem-tratadas repousavam sobre um dossiê que acabara de folhear.

O jovem capitão que viera com a guarda avançada encontrava-se a seu lado. Holzinger colocara-se em posição de sentido e aguardava que o major abrisse a conversa.

Sou o Major Hanlon, comandante das Forças de Ocupação nesta região disse ele, por fim. O senhor, se não me engano, é o Burgomestre Max Holzinger. Faça o favor de se sentar.

A voz era ríspida e autoritária. Hanlon falara num alemão fluente e muito puro, com uma ligeira pronúncia vienense a dar-lhe um certo tom local. Holzinger ficara sur­preso com isso, sem que a expressão do seu rosto o mos­trasse, e sentou-se na cadeira que o major lhe indicara. O burgomestre colocou o chapéu e as luvas sobre um dos can­tos da secretária e aguardou as restantes palavras do major. Hanlon abriu o dossiê e falou-lhe formalmente:

Espero que esteja ao corrente dos termos do armis­tício e dos poderes das Forças de Ocupação.

Ainda não recebi qualquer informação oficial sobre o assunto.

Não? Pois bem, a Áustria foi ocupada por unida­des de quatro exércitos aliados: britânico, francês, americano e russo. Bad Quellenberg encontra-se na Zona de Ocupação Britânica.

Felizmente para nós —- murmurou Holzinger se­camente.

Hanlon ignorou o comentário e continuou a falar no mesmo tom indiferente e repousado.

Todos os gastos gerais das Forças de Ocupação, a hospedagem de todo o seu pessoal, os alimentos, o trans­porte e outras despesas semelhantes estão a cargo do gover­no austríaco, através das autoridades locais. O representante das Forças de Ocupação tem o direito de requisitar quaisquer bens ou abastecimentos que considere necessários. Poderá também recrutar trabalhadores locais e fixar as suas remu­nerações. As administrações e polícias locais devem colabo­rar com as Forças de Ocupação na investigação ou perse­guição de criminosos de guerra e também manter a ordem em toda a região. Compreende o que estou dizendo?

Perfeitamente. O seu domínio do alemão é exce­lente.

Muito obrigado — respondeu-lhe Hanlon, sem o menor sorriso ou mudança de expressão. O represen­tante das Forças de Ocupação fará, por sua parte, todo o possível para restaurar a ordem, auxiliar os austríacos na reconstrução das indústrias locais e repatriar e dar trabalho a todos os antigos combatentes que não sejam criminosos de guerra... tudo isso, claro, está sujeito a quaisquer instru­ções contrárias que possam vir a ser recebidas do Quartel-General das Forças de Ocupação.

O Major Hanlon fechou o dossiê e curvou-se para a frente, os olhos castanhos examinando bem o rosto impas­sível do burgomestre.

Enviar-lhe-ei uma cópia destes documentos. Terá umas horas de leitura bastante densa, mas tudo o que aqui está escrito resume-se em poucas palavras: os termos são van­tajosos para nós tanto quanto para vocês. Os Aliados simpa­tizam com a Áustria. Portem-se bem, que só ganharão com isso, mas, se nos complicam a vida, terão de fazer frente a um nunca-acabar de desavenças!

Esqueceu-se de um pormenor, major. Max Hol- zinger falara pausada e distintamente, procurando conservar a sua dignidade sem faltar ao respeito devido aos novos senhores da terra.

O quê?

Dizem-me que os antigos membros do partido não podem ocupar posições oficiais e que são despedidos a fim de serem substituídos por pessoal não-nazista. Fui membro do partido durante muito, muito tempo. Creio que devo entregar-lhe a minha demissão.

O rosto de Hanlon iluminou-se ligeiramente, um sorri­so muito disfarçado dando-lhe uma expressão mais simpá­tica e agradável.

Os comandantes locais têm o direito temporário de tomar qualquer decisão sobre esses assuntos. Faço ten­ção de me servir desse direito e peço-lhe que permaneça no seu cargo... por enquanto.

E se eu não aceder ao seu pedido?

O senhor e a sua gente é que ficariam prejudicados.

Então, nesse caso, não tenho outro remédio senão aceitar.

Já sabia que concordaria comigo disse Mark Hanlon suavemente. Passemos a outro assunto... — Hanlon recostou-se na cadeira e o seu rosto adquiriu uma expressão mais dura e severa. A sua voz deu a perceber a ira e a fria amargura que o dominavam. — A nossa cola­boração começa com um caso de assassínio...

Holzinger assentiu gravemente:

Já fui informado do ocorrido. Peço-lhe que me acredite quando lhe digo que fiquei terrivelmente pesaroso e envergonhado pelo que sucedeu.

Esteja descansado, acredito no que me diz — res­pondeu Hanlon friamente. — Espero poder contar com a sua cooperação incondicional nas investigações para desco­brir o assassino e levá-lo à justiça.

Pode contar, sim. Agradecer-lhe-ia que me desse uma descrição do homem e me indicasse o local exato onde se deu o crime, a fim de eu ir falar imediatamente com o chefe da polícia e organizar buscas por toda a vila e pelas aldeias da montanha.

- Ótimo! — exclamou Hanlon energicamente. — O Capitão Johnson entregar-lhe-á a descrição completa do assas­sino, que acabei de lhe ditar. O ponto em que se deu o crime está marcado muito nitidamente no mapa que ele também lhe vai entregar. Já telefonei ao chefe da polícia e ordenei-lhe que mandasse fazer uma busca completa em toda a área. Ainda não voltou a nevar desde o momento em que o meu sargento foi assassinado, e as marcas dos esquis não devem ser difíceis de seguir. O homem em ques­tão é natural de Bad Quellenberg. Tem uma grande cicatriz no rosto e também não deverá ser difícil de encontrar.

Como sabe que se trata de um quelemberguês? — perguntou Holzinger, muito surpreso pela afirmação do major.

Vi as insígnias do seu uniforme, que condizem com as do regimento de Quellenberg, quase totalmente destruído na Ucrânia. O homem é um excelente esquiador e desceu por aquela pista como se a conhecesse desde criança. É na­tural de Quellenberg, não tenho a menor dúvida.

Vejo que é um oficial muito eficiente — disse Max Holzinger, não escondendo a ácida admiração que sentia por Hanlon.

Alegro-me por verificar que o reconhece. Espero que a sua polícia também compreenda isso. Quero que me apresentem relatórios duas vezes por dia, juntamente com mapas e localizações das buscas conforme vão sendo efe­tuadas. Parece-me melhor recrutar caçadores e lenhadores locais para os auxiliarem na busca. Quero que esse homem seja encontrado... e em menos de quarenta e oito horas.

Farei todo o possível, major.

Quero também fazer-lhe saber que o esperarei aqui todas as manhãs às nove e trinta para discutirmos os assun­tos da vila e os planos de reconstrução.

Deseja mais alguma coisa?

Sim. Peça a um padre que venha visitar-me esta tarde, à hora que mais lhe convier.

Um... padre? — Holzinger tentara esconder a sua curiosidade, mas não pudera evitar a pergunta.

Hanlon confirmou o que dissera.

Sim, um padre. O Sargento Willis era católico. Não conto com um capelão entre os meus homens aqui esta­cionados, o que não impede que eu insista em realizar um funeral conforme os seus princípios religiosos... e outra coisa... — Hanlon hesitou, não terminando a frase, e Holzinger procurou encorajá-lo a indicar o que ele queria:

Estou ao seu serviço para tudo o que for necessá­rio, major.

Precisamos de um caixão — disse Hanlon fria­mente. — Precisamos dele, aqui no hotel, esta noite, às oito horas. Quero também seis pessoas para levá-lo para o cemitério, e exijo que sejam escolhidas entre as personali­dades mais em evidência de Bad Quellenberg. Ordeno tam­bém que todos os estabelecimentos e escritórios fechem ama­nhã e que todos os habitantes da vila compareçam à avenida que vai desde o hotel à igreja. O funeral sairá do hotel às nove horas da manhã, e o caixão será então levado para a igreja, para a missa, seguindo depois para o Cemitério de São Julião. E nada mais, de momento.

Cada uma daquelas palavras fora uma verdadeira bo­fetada no rosto de Holzinger, e a seca despedida como uma estocada final. Holzinger levantou-se e olhou de frente para a Força de Ocupação. O austríaco não podia conter aquilo que as palavras de Hanlon lhe haviam trazido à alma e fa­lou-lhe numa voz trêmula e emocionada:

Estaremos todos lá, major, conforme me pede. Esta­ríamos todos presentes ao funeral mesmo que não me ti­vesse pedido. Ainda não nos conhece, major. Acabou de chegar, e é natural que não saiba que o funeral de um sol­dado é uma ocasião muito especial para todos nós. Muitos dos nossos rapazes morreram longe de Quellenberg e nem • sequer sabemos onde foram enterrados, ou mesmo se foram enterrados. O nosso coração está com os soldados, com todos eles... pobres-diabos! Gostamos de saber que são enterrados numa terra amiga e sob o repicar de sinos. Estaremos todos lá, major. Todos nós!

Holzinger fez uma ligeira reverência, deu meia-volta e saiu da sala. Mark Hanlon esperou que ele fechasse a porta e, em seguida, como se fosse atacado por qualquer senti­mento violento, deu um murro na mesa e começou a pra­guejar:

— Maldito seja! Malditos sejam todos eles! Raios os partam!

O jovem capitão observara-os com um sorriso quase imperceptível nos lábios. Tinha apenas vinte e três anos de idade e era demasiado jovem para odiar, demasiado jovem para sentir piedade ou amargura.

 

                                     Capítulo 2

O chefe da polícia de Bad Quellenberg era Karl Adal­bert Fischer, um homem corpulento, com uma cabeça pe­quena que não condizia com o resto do corpo. Fischer tinha as pernas muito curtas, um pescoço bastante longo e uns olhos inteligentes que nunca pestanejavam. O seu aspecto, quando passeava pelas ruas da vila com a sua longa capa, assemelhava-se ao de um pato.

Fischer era um homem agradável, bem-disposto e ale­gre, tendo um gosto muito marcado pelo bom Schnapps e pelas jovens camponesas. A polícia era comandada e organi­zada por ele com uma ineficiência benévola, que lhe ganhara a simpatia de todos os quelembergueses e o conservara no cargo durante mais de quinze anos. Karl Adalbert Fischer sobrevivera a várias investigações da parte da administração alemã e contava com a sua inteligência e experiência para se conservar no posto até o dia de ter direito à reforma.

Max Holzinger foi visitá-lo logo que saiu do quartel- general de Hanlon e encontrou-o aquecendo-se junto da la­reira, bebendo Schnapps e comendo um pedaço de bolo. O chefe de polícia cumprimentou Holzinger distraidamente e não se moveu da sua posição em frente da lareira.

Grüss Gott, Herr Bürgermeister. Sirva-se de uma bebida e venha sentar-se ao pé do fogo.

Holzinger colocou o chapéu e as luvas em cima da rrçésa, encheu um copo com a bebida branca e bebeu-a de um trago. O chefe da polícia observava-o com o seu olhar pene­trante e sorria ligeiramente, como se já tivesse adivinhado o que ia na mente do burgomestre.

Está preocupado, meu amigo disse ele, por fim. Depreendo que já se encontrou com o oficial britânico.

Já, sim respondeu Holzinger secamente. E ele disse-me que também já falou com você.

Falou... falou, sim! Não restam dúvidas disso.

Fischer riu-se e bebeu um trago da sua bebida. Pen­sei, de começo, que se tratava de uma brincadeira. O tipo fala o alemão com a pronúncia vienense.

Asseguro-lhe que não é uma brincadeira. O caso não é para brincadeiras...

Bem sei, e foi por isso que lhe garanti que podia contar com a nossa inteira cooperação e desejo de o auxiliar em tudo o que lhe fosse necessário.

Holzinger olhou rapidamente para o outro, ao notar que ele falara ironicamente e que parecia não dar muita importância ao assunto.

Não julgue que pode fazer dele o que quiser, Karl. O Major Hanlon é um homem inteligente e eficiente. Sabe muito bem o que quer, e estou convencido de que nada o impedirá de consegui-lo. Esse... assassínio... foi um mau começo para nós.

Não podia ter sido pior. Fischer pousou o copo e limpou a boca com as costas da mão. Já enviei alguns dos meus rapazes para o local onde se deu o crime a fim de investigarem as marcas deixadas pelos esquis. Espero que cheguem lá antes de anoitecer...

O quê? Holzinger não compreendera o que o chefe de polícia pretendia dizer com aquelas palavras. Ainda pouco passa do meio-dia e o local fica a menos de dez quilômetros da vila!

O carro é muito velho disse Fischer pensativa­mente. Os pneus estão gastos e a barra da direção ava­riou-se. A estrada está gelada. Se os rapazes sofressem um acidente e fossem obrigados a voltar a pé, as Forças de Ocupação teriam de nos dar outro carro, não é verdade? Sabe muito bem, meu caro burgomestre, que estamos preci­sando de um carro novo! Além disso... — Fischer levantou a cabeça e pareceu cheirar a- atmosfera —- creio que esta tarde vai nevar. As marcas dos esquis desaparecerão e... pronto!

Não! Holzinger ficara meio zangado, meio di­vertido com a insinuação do outro. Este caso é muito sério, Karl. Não podemos proceder dessa forma. Lembre-se de que somos ambos responsáveis perante o comandante das Forças de Ocupação.

Fischer tirou um cigarro da cigarreira e acendeu-o cuida­dosamente. O seu olhar tornou-se sombrio e preocupado e a voz indicava que pensara bem no assunto.

Tem havido um grande número de mortes nestes

últimos dez anos, Max. Ambos fomos também, de certo modo, responsáveis pelas carnificinas que se deram nesta guerra. Não compreendo por que um pobre-diabo qualquer tem de pagar por todos os males que fizemos.

Assassinou um soldado britânico.

Até há uns dois meses atrás esse homem era pago justamente para matar soldados britânicos... e seria jul­gado e castigado se se recusasse a fazê-lo. É mesmo possível que nem sequer saiba que a guerra terminou...

O tribunal aceitaria essa razão...?

Que tribunal?! O chefe de polícia fez um gesto brusco e a sua pequena cabeça sacudiu-se agitadamente so­bre o volumoso corpo. Um tribunal onde os juízes se sentariam a pensar nos campos de concentração e nos cre­matórios e a considerar-nos a todos como sádicos e tortu- radores!? Não me queixo nem os repreenderia por fazerem isso, mas não estou disposto a entregar-lhes esse rapaz assim tão facilmente...

Fischer voltou-se para uma parede onde havia um mapa das áreas de combate na Europa ainda decorado com um elevado número de bandeirinhas coloridas. O fato de ainda não o ter retirado da parede era típico dos seus hábitos de­sordenados e quase inconscientes. Fischer aproximara-se do mapa e começara a traçar linhas imaginárias com um dedo, enquanto o burgomestre o olhava, muito surpreso, sem com­preender o que ele fazia.

Vou dizer-lhe de onde veio esse caçador alpino e o . que lhe aconteceu pelo caminho. Começou a viagem aqui, em Mukachevo, na Ucrânia, onde se encontrava situado o hospital para onde os rapazes de Quellenberg foram levados. O rapaz era médico, muito jovem e sem experiência. Os nossos soldados eram todos jovens e sem experiência! O des­graçado não tardou a obter toda a experiência que lhe faltava, como médico, ao ser obrigado a amputar, a tratar os mais sérios ferimentos e a proteger os nossos soldados do tifo, do frio e de tudo o mais que aconteceu quando os russos nos obrigaram a nos retirar. Quando o regimento foi cercado e perdeu o contato com o resto das forças alemãs, já todas em retirada, esse rapaz foi obrigado a operar dia e noite, sem anestésicos ou drogas, até que caiu sem mais forças sobre o sangue de um morto. Foi isso que lhe salvou a vida, visto que os cossacos, quando chegaram, atacaram o Lazarett de baioneta em punho e mataram quase todos os presentes. O rapaz recebeu apenas um golpe, que lhe deixou aquela cicatriz de que falou o major, e também teria morrido se se encontrasse consciente e não deitado no chão, cansado que estava. Quando voltou a si, no meio de tantos compa­triotas horrivelmente mutilados e todos eles mortos, come­çou a gritar, mas ninguém o ouviu, visto que os cossacos já iam longe e a neve que caía abundantemente abafava todos os ruídos. Tinha o rosto aberto pelo golpe de uma baioneta, embora o frio já houvesse coagulado o sangue, e foi forçado a costurar a cara com uma agulha e um pequeno espelho, para enxergar o que ia fazendo! Passou uma busca rios bol­sos dos companheiros a fim de tentar encontrar alguns ci­garros e algo que pudesse comer. Vestiu todos os agasalhos que encontrou, a maioria deles cobertos de sangue, e, em seguida, pegou uma carabina e uma pistola e meteu-se a caminho! A caminho de casa, de Bad Quellenberg! Sabe quanto tempo ele levou para chegar aqui? Fischer apon­tou um dedo ameaçador ao seu amigo. Doze meses! Um ano! Foi capturado duas vezes e conseguiu fugir de ambas. Seguiu a pé de Mukachevo para Budapeste, que fica no cen­tro da Hungria. Os russos ocuparam Budapeste pouco de­pois, e ele teve de fugir para Salonta, na Romênia. Encaminhou-se depois para o sul da Iugoslávia e foi obrigado a voltar de novo para o norte, para a Caríntia. Matou três homens pelo caminho e teve de roubar para se alimentar. Dormiu com prostitutas e seduziu jovens camponesas para que lhe dessem de comer e o escondessem. Foi feito prisio­neiro na Iugoslávia e torturado de forma que nunca mais pudesse ter relações sexuais com uma mulher. Deu-se um verdadeiro milagre e ele conseguiu sobreviver e fugir. As feridas sararam e o rosto ficou marcado para sempre com uma cicatriz do olho ao queixo. O nosso rapaz foi atacado por uma ligeira loucura, como sempre sucede com os homens perseguidos e famintos, e começou a ver inimigos escondi­dos atrás de cada árvore. Seus sonhos eram cheios de mons­tros e o seu estado não se modificou, embora já se encontre aqui há um mês. A casa é, para ele, uma autêntica prisão. Sai freqüentemente, armádo com a carabina e a pistola, e percorre as montanhas sobre os seus velozes esquis. Já houve quem tentasse desarmá-lo, sem o menor resultado. Pensavam que ele já estava melhor, visto ter-se portado como um homem normal nestes últimos dias. Os pesadelos haviam começado a ser menos freqüentes. As divagações pela mon­tanha tinham passado de diárias a duas ou três vezes por semana... E, agora... aconteceu isso!

Fala como... — disse Holzinger, lenta e pausa­damente — como se o conhecesse bem.

Conheço, sim — respondeu Karl Adalbert Fischer. — O rapaz é o filho da minha irmã.

Meu Deus! Que desgraça!

Compreende agora o que me impede de entregá-lo ao major?

Sim... sim! Não creio é que possa protegê-lo du­rante muito tempo. A ocupação durará anos e anos, com toda a certeza.

O chefe de polícia concordou com um gesto da cabeça.

Farei o possível para escondê-lo, ora num vale ora noutro, ora numa casa de camponeses ora num abrigo de montanha. Levarei os ingleses a fazerem buscas por todas as aldeias e propriedades, menos por aquela onde ele se encontrar nesse momento. Conseguiria escondê-lo durante dez anos, se isso fosse preciso, sem que esse Hanlon che­gasse sequer a desconfiar do seu paradeiro.

O segredo não será unicamente seu. Outras pes­soas falarão. Os quelembergueses não sabem guardar segre­dos. O Major Hanlon virá a saber do que se passa, alguém lhe dirá ou insinuará, e então ajustará contas com você, Karl.

O chefe de polícia sorriu, de novo bem-disposto e des­preocupado, e abriu outra garrafa de Schnapps, despejando-a num copo e saboreando o líquido lentamente. Encaminhou- se, em seguida, para um cofre a um canto do escritório e, depois de o abrir, retirou dele um pesado livro forrado de couro. Fischer abriu-o em cima da mesa e Holzinger viu que cada uma das páginas estava coberta pela minúscula escrita gótica de Karl Adalbert.

Que livro é esse?

É um livro de apontamentos, nada mais do que isso! São os meus apontamentos pessoais sobre todos os ho­mens, mulheres e crianças de Quellenberg e de todo o vale. Fatos, intrigas, rumores, suspeitas, deduções. Os relatórios oficiais da polícia estão atrasados seis meses, mas este livro está em dia, e tenho-o escrito todas as noites desde que ocupo este cargo. É devido a este livro que um tipo tão ine­ficiente como eu sou se encontra há quinze anos numa po­sição de responsabilidade. Apontei aqui tudo o que tenho ouvido, o que me têm dito, o que tenho suspeitado ou de­duzido. Tudo! Tenho me servido muito raramente do livro e do que ele contém, mas está aqui tudo para quando for preciso!

E eu, também estou incluído aí? —- perguntou Holzinger, pouco à vontade.

Fischer assentiu.

Você, meu bom amigo, sua mulher e sua filha... e o seu filho também, que a sua alma repouse em paz. Está em boa companhia, sabe? A sua página está ao lado da do Padre Albertus.

E Kunzli? Também sabe alguma coisa sobre ele?

Kunzli! — Fischer cuspiu para o lado, num gesto evidente de desprezo. — Tenho um capítulo inteiro sobre ele. Por que pergunta?

É possível que venha a utilizar essas coisas que sabe sobre Kunzli — disse Holzinger suavemente.

Fischer fez um gesto enfático de recusa.

Nem sequer as diria, Herr Bürgermeister. Tenho toda uma vida de trabalho aqui neste livro. Nunca me servi dele para fazer chantagem e espero nunca ter de fazer isso, mas tenciono, entretanto, vir a lucrar bastante com ele, de uma ou de outra forma.

Já está lucrando com isso, Karl.

Eu?

Sim. Calcule que já me esqueci de tudo o que me disse sobre o seu sobrinho. Que eu saiba, ele morreu na Rússia.

Esplêndido! — Fischer soltou um suspiro de alí­vio e encheu mais dois copos de Schnapps. — Já sabia que compreenderia, Max... e se tiver algum aborrecimento com Kunzli, como parece esperar vir a ter, diga-me e eu tratarei do assunto.

Muito bem — disse Max Holzinger calmamente. — Prost!

Prost!

Os dois homens levantaram os copos e beberam os Schnapps, de pé, em frente do mapa onde as bandeirinhas ainda marcavam os campos de batalha em que os alemães e os austríacos haviam lutado.

"Merecemos tudo o que está nos acontecendo", pen­sou Holzinger amargamente. "Merecemos tudo o que existe de mau... os governantes que têm dirigido os nossos des­tinos... os filhos que perdemos na guerra... as mulheres que nos atraiçoam. Perdemos a guerra. Fomos derrotados... e já estamos de novo conspirando. Malditas sejam as nossas almas!"

Holzinger acabou de beber o conteúdo do copo, pegou o chapéu e as luvas e despediu-se. A sua tarefa seguinte se­ria discutir o funeral com o Padre Albertus.

A porta da paróquia foi aberta por uma desagradável viúva, mulher muito linguaruda. O padre não estava, disse ela a Holzinger. Encontrava-se no cemitério limpando a neve, como se fosse um trabalhador, e, antes que o burgomestre pudesse evitar, a mulher começou uma longa disser­tação sobre os hábitos do padre e as aflições por que ela própria passava.

O Padre Albertus está se matando! Já tinha idade de ter juízo. Quem é que tratará dele, se apanhar uma pneu­monia? Eu, é claro! Já tenho um trabalhão, mesmo sem ele adoecer... Só Deus sabe o que tenho de aturar. Come menos do que um pardal, quase não bebe vinho, e só dorme umas duas horas por noite! Isso não me incomodaria muito, garanto-lhe, se ele me deixasse dormir em paz. Calcule que, mesmo dormindo dois andares por baixo dele, eu o ouço andar de um lado para outro durante toda a noite! Fala consigo próprio e reza em voz alta... durante toda a noite! Às vezes até se bate ou arranha, ou sei lá o quê, e fica com as camisas de dormir sujas de sangue. E, depois, sou eu quem tem de lavá-las, é claro! É suficiente olhar para ele...

Basta! Basta! Nada tenho a ver com isso tudo.

A paciência de Holzinger atingira o limite. O burgo- mestre já tinha suficientes preocupações para ainda ter de ouvir aqueles comentários sobre os estranhos hábitos de um velho padre. Max Holzinger despediu-se da mulher e afastou-se rapidamente da casa do padre, ouvindo-a bater a porta com violência e calculando que a viúva voltara para a cozinha, resmungando contra os funcionários públicos, que se faziam muito importantes e se negavam a dar ouvidos a uma honesta e conscienciosa cidadã como ela.

Era mesmo possível que tivesse chegado a falar mal da sua mulher, já que os quelembergueses nunca tinham gostado muito daquela loura.que viera de Hamburgo, nem também das viagens e da independência de sua filha.

Holzinger ajeitou a gola de pele do casaco em volta do pescoço, meteu as mãos nos bolsos e começou a andar sobre o gelo que cobria as ruas de Bad Quellenberg. Alguns passantes tiraram-lhe o chapéu, cumprimentando-o com um "Grüss", mas Holzinger não os viu nem ouviu, o que os preocupou grandemente, visto que o burgomestre era um homem muito agradável e bem-educado, que nunca deixava de retribuir uma saudação.

Quando alcançou o muro que escondia o Cemitério de São Julião da estrada e se dirigia ao pesado portão de ferro, uma menina loura saltou-lhe no caminho e ofereceu-lhe um ramo de rosas de neve.

Schõnerosen, Herr Bürgermeisíer![2] Para os pobres!

A súbita e inesperada presença da menina surpreen­deu-o, mas o semblante risonho da criança era tão inocente e natural que Holzinger forçou um sorriso e procurou algu­mas moedas no bolso para lhe dar.

Ela fez uma reverência e agradeceu-lhe com efusão, metendo-lhe as rosas na mão e afastando-se, pulando corda, em direção ao vale. Holzinger olhou para as pequenas flo­res, sem saber o que faria com elas, mas, ao entrar no cemitério e ao ver um velho crucifixo, teve um impulso inexplicável e foi colocá-las aos pés do Cristo, fazendo o sinal-da-cruz rapidamente e dirigindo-se ao local onde aca­bava de ver a figura do Padre Albertus.

O velho padre estava quebrando e soltando o gelo que se formara sobre as escadas que conduziam à capela. O seu aspecto era igual ao de qualquer velho camponês das co­linas. O cabelo branco, a capa rota e puída, as pesadas botas rústicas, tudo nele, enfim, escondia à primeira vista que era um padre e um dos homens mais populares de Quellenberg. Quando ele se endireitou, ao ouvir o ruído dos passos de Holzinger, mostrou ser inteiramente diferente do que o seu aspecto, a distância, parecia indicar.

O primeiro motivo de admiração na sua pessoa era a extraordinária transparência do seu rosto. Tinha-se a sen­sação de que uma luz o iluminava do interior uma chama que lhe consumia a carne e lhe deixava apenas uma pele transluzente sobre os velhos e frágeis ossos.

Os olhos eram límpidos como os de uma criança, inspi­rados como os da criança que ama alguém e que fala dela a outra pessoa. A boca firme abria-se num sorriso que sua­vizava as rugas e todos os outros sinais de sofrimento que lhe marcavam o rosto. A voz era tão profunda e sonora como a de um sino.

As mãos do Padre Albertus nunca eram notadas logo de início, mas quem as vissè nunca mais se esqueceria delas. Essas mãos eram defeituosas e recurvadas como os pés de um abutre. O movimento dos dedos era limitado e as juntas eram desproporcionadas ao comprimento dos dedos. Anos antes, logo após o Anschlussquando ele era reitor do No­viciado Jesuíta, em Graz, havia sido levado para Mauthausen, a fim de receber um "tratamento corretivo". Um dos guardas era um seu antigo aluno que queria vingar-se da severidade espiritual do antigo mestre e que resolveu par­tir-lhe um dedo todas as semanas e atormentá-lo com a idéia de que, mais tarde, também lhe quebraria os dedos consa­grados para que ele nunca mais pudesse voltar a dizer missa.

O Padre Albertus era um homem que acreditava pia­mente no poder das orações, e em Mauthausen nada podia fazer além de rezar. O suplício durou cerca de seis semanas, e, finalmente, o cardeal de Viena conseguiu a sua libertação, dando-lhe a escolher entre sair da Áustria para sempre e aceitar um posto na montanha.

Era por isso que um homem como o Padre Albertus se encontrava ali, no Cemitério de São Julião, limpando a neve e quebrando o gelo, enquanto Holzinger lhe contava a conversa que tivera com Mark Hanlon. O Padre Albertus ouvira com toda a atenção o que o burgomestre lhe dissera e, manifestando uma delicadeza e uma bondade que não condiziam com o seu aspecto físico, falou-lhe lentamente, como se escolhesse as palavras com todo o cuidado:

Deve compreender, Max, que é muito difícil para qualquer de nós comportar-se bem numa situação como esta em que nos encontramos.

Essa constituía outra característica do velho padre. Nunca dizia o que seria de esperar. Nunca desperdiçava pa­lavras em prelúdios corteses ou convencionais. O Padre Albertus só tinha tempo para a verdade e para o que era essencial na vida.

Mais difícil para nós do que para esse major bri­tânico — disse Holzinger amargamente.

Não. A Força é como aquelas roupas invisíveis do rei: uma ilusão que deixa um homem nu e vulnerável ao escárnio e às punhaladas!

Tenciona ir visitá-lo?

Sem a menor dúvida.

Peço-lhe que tente explicar-lhe que, embora me seja possível dizer a toda a população que assista ao funeral, não posso garantir que compareçam todos nem forçar os meus colegas a ajudarem a levar o caixão.

Esqueça a sua vaidade, Herr Bürgermeister. — O sorriso do velho continha algo de uma ironia prazenteira, amigável. — Esqueça que essa ordem lhe foi dada pelas Forças de Ocupação. Transforme a ordem num pedido pes­soal seu, sugira aos outros que se trata apenas de uma cor­tesia e de pura caridade para com o homem assassinado. A nossa gente compreende essas coisas... na maioria das vezes.

Isso seria uma vitória muito fácil para Hanlon.

Hanlon...? — O Padre Albertus mudou o rumo da conversa, comentando a origem do nome do major. — Não se trata de um nome inglês, não é?

Não sei. Nada sei sobre os nomes ingleses. Por quê?

O Padre Albertus encolheu os ombros.

Foi um pensamento passageiro, algo que recordei. Não tem importância.

A propósito — disse Holzinger, olhando, à sua vol­ta, para os velhos jazigos de família e para a floresta de lápides que recordavam os nomes dos componentes do regi­mento que fora aniquilado na Rússia. — Onde é que vamos enterrar o soldado britânico?

Aí mesmo — disse o Padre Albertus, apontando para o enorme crucifixo que se encontrava entre as dezenas de lápides. — Aos pés do Cristo.

Entre os nossos rapazes? — perguntou Holzinger, alarmado e perplexo. — Os quelembergueses não gostarão disso.

Somos todos da mesma família, no nascimento e na morte — disse o velho, gravemente, como se repreendes­se Max Holzinger. — Somos todos, todos irmãos, aos olhos de Cristo. Quanto mais depressa os homens compreenderem isso, mais depressa teremos paz e sossego.

Holzinger olhou para as mãos torturadas do Padre Albertus e não encontrou palavras para contrariar aquela convicção.

O Major Mark Hanlon estava sentado no salão do Ho­tel Sonnblick e discutia o futuro com o Capitão Johnson. Os dois homens haviam acabado de almoçar e, confortavel­mente instalados, saboreavam agora o excelente café e um apetitoso licor austríaco. A refeição e o vinho haviam libertado os dois militares da tensão que os dominava e agora já se sentiam mais à vontade um com o outro.

Johnson ofereceu um cigarro ao major, servindo-se tam­bém e acendendo os dois com um isqueiro de ouro. Hanlon e Johnson fumaram durante alguns momentos, as espirais de fumaça subindo vagarosamente para o teto apainelado. Johnson sorriu, e a sua expressão inocente assemelhava-se à de um rapaz sem o menor problema. Murmurou, então, despreocupadamente:

Isto é que é viver, Mark... não quero mesmo outra vida!

Não sairemos daqui tão cedo, Johnny — respondeu Hanlon, bem-disposto. — A ocupação vai durar muitos anos. E os nossos rapazes? Estão bem instalados e aclima­tados?

Estão, sim. Instalei-os nos quartos do primeiro e do segundo andar. Os oficiais estão no rés-do-chão e comem no bar, ao passo que os soldados tomam as suas refeições na sala de jantar do hotel. Pensei transformar o salão de baile num teatro. A sala de estar e o salão de leitura ficarão como estão. Este andar de cima é muito agradável, e julgo que não desejará que eu o mande modificar, Mark. Será o nosso quartel-general, centro recreativo e sala de recepções.

Hanlon assentiu, pensativo e preocupado, e soltou uma baforada de fumaça.

Os rapazes começarão a sentir-se aborrecidos dentro de uma semana. Precisamos arranjar-lhes alguns divertimen­tos. Veja se Mayer nos consegue descobrir alguns músicos na vila. Vou escrever para Klagenfurt a fim de lhes pedir um projetor e um fornecimento de filmes. Talvez fosse boa idéia encontrar um professor de esqui para os que quiserem aprender. Será melhor fechar os bares às onze horas e man­dar apagar as luzes à meia-noite. Todos os soldados devem regressar ao hotel antes dessa hora.

E que me diz a respeito da ordem de não-reunião?

A ordem de nada servirá, Johnny. Terão de can­celá-la, mais cedo ou mais tarde. Talvez mais cedo... entre­tanto...

Mark Hanlon calara-se e olhara distraidamente para os painéis de madeira do teto. Johnson não se deu por satis­feito e a curiosidade obrigou-o a pedir uma explicação ao superior.

—- Entretanto?

Não queremos todas as criadas do hotel à espera

de criança, certo? Teremos de fazer os nossos próprios re­gulamentos. Os soldados ficam proibidos de visitar os bares e os Stüberls da vila. Não os impediremos, se eles quise­rem, de passear a pé ou de esqui com as moças e também não podemos proibi-los de visitar as casas dos quelembergueses, quando forem convidados. O que não quero é reunião pública, nem mulheres aqui no hotel, a não ser que orga­nizemos recepções, e espetáculos oficiais, o que não sucederá durante algum tempo.

Não lhe parece que está se arriscando muito, Mark? Não pense que o critico — acrescentou Johnson precipita­damente. — Sei que as suas medidas são acertadas, mas o que pensará delas o quartel-general?

— Não tenho a intenção de informá-los — respondeu Hanlon friamente. — Conto com você e com os outros ofi­ciais para falar com os soldados e convencê-los a não abusar dos privilégios e... das moças. Devo dizer que castigarei severamente todos aqueles que causarem qualquer tumulto.

Parece-me que tem razão, Mark. Vou tratar os ra­pazes com certa severidade durante uma ou duas semanas e, mais tarde, dar-lhes-ei maior liberdade. Creio que será me­lhor assim.

O problema é seu, Johnson. Eu já tenho muitas outras preocupações.

Hanlon falara sombriamente e seu rosto perplexo cha­mou a atenção de Johnson.

Que se passa? Parece incomodado por alguma coi­sa, Mark.

Hanlon levantou-se abruptamente e aproximou-se da ja­nela, ficando a observar as nuvens cinzentas sobre o desfi­ladeiro e os picos brancos do Grauglockner.

—- Vai nevar, com certeza — disse ele, absorto e abor­recido.

Isso não é resposta à minha pergunta, Mark.

É, sim. — Hanlon voltou-se e encarou o subordi­nado. — Todas as marcas dos esquis daquele caçador alpino desaparecerão dentro de vinte minutos. A polícia dirá que não encontrou a menor pista do homem que assassinou Willis.

Já esperava isso mesmo, não é assim?

Esperava, mas o fato não me consola.

Willis morreu — disse Johnson com aquela crueldade inconsciente da juventude. — Você não pode dar-lhe vida novamente. Morreu depois que o tratado de paz foi assinado, o que torna um ato de guerra um crime. Já deu as ordens necessárias para que o criminoso fosse capturado, Mark. Não vejo por que se preocupar tanto com o caso. Essas tragédias são parte da nossa vida militar. Só nos resta enterrar Willis decentemente e esquecê-lo, já quê não nos ficaria bem recordá-lo mais do que a qualquer um dos muitos milhões que morreram nestes últimos anos. Não pense mais nisso, Mark. Tome esta bebida!

Johnson levou uma garrafa e um copo a Hanlon e ficou ligeiramente surpreso ao ver que este enchera o copo e, piscando o olho ao subordinado, erguera-o e fizera um brinde.

À Nova Ordem! Prost!

Não existe qualquer Nova Ordem — disse Johnson alegremente —, já que os homens são sempre iguais e as mulheres sempre diferentes! Mas, apesar disso, não vejo ra­zão para não me juntar ao brinde e desperdiçar a bebida. Prost!

A campainha do telefone interrompeu os dois homens naquele momento, e, quando Hanlon atendeu a chamada, o sargento da guarda informou-o de que o Padre Albertus queria falar com ele.

Faça-o esperar durante três minutos e, em seguida, traga-o à minha presença — disse Mark Hanlon.

Muito bem, meu major.

Hanlon desligou o telefone e voltou-se para Johnson.

Temos uma visita, Johnny! O padrercura! Vamos arrumar esta mesa e abotoar os uniformes. Temos de recebê-lo formalmente!...

E se ele perceber que estivemos comendo bem e be­bendo ainda melhor? Se ele perceber que, no fundo, o que queremos é que não nos aborreçam e nos deixem em paz? — Johnson estava muito bem-disposto e reconfortado, li­geiramente embriagado e sentindo-se superior à própria vida. Mark Hanlon olhou-o bruscamente e falou-lhe num tom de voz áspero e severo.

Não quero que o cura perceba que tivemos um ver­dadeiro banquete! Depressa, Johnny! Despeje os cinzeiros e esconda as garrafas!

Os dois homens atarefaram-se pela sala como se fossem duas mulheres de limpeza, e quando o Padre Albertus foi conduzido à presença do comandante, passados minutos, o Major Hanlon estava sentado à secretária e o Capitão Johnson de pé a seu lado —- símbolos formais das Forças de Ocupação.

O sargento ficou no meio da sala, em posição de sen­tido, e o velho padre aproximou-se lentamente da secretária, levantando a mão num gesto de saudação e dizendo:

Grüss Gott, major!

Johnson estremeceu ao ouvir o tom profundo e resso­nante da voz, e Flanlon levantou o olhar para o padre, fi­cando muito espantado e mesmo assustado, como se tivesse acabado de ver um fantasma. O major não estendeu a mão ao Padre Albertus, mas levantou-se lentamente — os seus olhos fixos no rosto transparente e luminoso que o encarava. A sua voz, quando por. fim falou, foi como que um mur­múrio admirativo e maravilhado.

Meu Deus! Não pode ser!

Johnson e o sargento estranharam aquela reação do co­mandante, e este, com um gesto imperioso, indicou-lhes que se retirassem.

Deixem-nos sós. Não os quero aqui: Vão-se embora.

Os dois homens hesitaram e, logo a seguir, fizeram con­tinência e saíram da sala. Só então é que Mark Hanlon esten­deu a mão ao Padre Albertus. O contato estranho dos dedos quebrados obrigou-o a baixar o olhar surpreso e, depois, a fixar os olhos sorridentes do padre.

Não relacionei o nome à pessoa, padre. Não fazia a menor idéia de quem era o Padre Albertus. Ainda nem pos­so acreditar que seja o mesmo Padre Albertus!

Irmão Mark! A fera enjaulada! Recordei muito bem o nome quando Holzinger o mencionou. Mudou demais, meu filho.

O mesmo sucedeu com você, padre. Sente-se... instale-se confortavelmente.

Hanlon foi buscar a cadeira mais confortável da sala e levou-a até junto do velho padre, oferecendo-lhe também um cigarro e uma bebida. O Padre Albertus recusou ambos, e Hanlon sentou-se em outra cadeira na frente dele, como se tivesse vergonha de se instalar na poltrona do comandante das Forças de Ocupação na presença do velho professor de teologia.

Deus dá-nos destinos muito estranhos, meu filho. — Os olhos inteligentes do padre estudavam atentamente as feições de Mark Hanlon. — Vim aqui prestar obediência a César e encontro o meu antigo aluno, o meu aluno favo­rito, sob as águias da Vitória!

Eu, por mim, encontrava-me mais à vontade na sua sala de aulas — disse Elanlon secamente.

O velho padre sorriu e abanou a cabeça.

Nunca o considerei muito à vontade. O hábito da religião pesava-lhe muito. — O Padre Albertus olhou para as insígnias douradas nos ombros de Hanlon. — Sente-se melhor nesse hábito, não é verdade?

Assenta-me melhor, padre. Não fui feito para monge.

Sempre imaginei, mas nunca tive certeza. O que sei é que não estava lá muito feliz quando decidiu deixar-nos. Será feliz agora?

Estou mais velho — disse Hanlon, tentando evitar1 uma resposta direta. — Não sou feliz, pode ter certeza. — Mark Hanlon olhou uma vez mais para as mãos defeituosas do antigo professor. — Fale-me de você, padre. Que lhe aconteceu às mãos, por exemplo?

Mauthausen — disse o Padre Albertus secamente.

Um homem infeliz que pensava que o fato de me ator­mentar ahviaria o tormento da sua própria consciência. O homem fora um dos meus alunos antes de eu ser nomeado mestre dos seminaristas. Falhei completamente na educação desse pobre homem. Isto foi, com certeza, uma espécie de castigo por eu ter falhado.

Estão todos loucos! — exclamou Hanlon, e a sua voz adquiriu um tom suave e amargo. — Que terá aconte­cido a esta gente? Torturas, assassínios, execuções em mas­sa! Antigamente, quando eu estava em Graz com vocês, os austríacos não eram assim. Eram um povo gentil, acomo­dado, cheio de ternura. Que lhes terá acontecido?

— Nada — respondeu o Padre Albertus, gravemente.

Nada lhes aconteceu, além de o mal que já estava enrai­zado nos seus corações ter desabrochado. Nada que não lhe pudesse também acontecer, meu filho.

Não o- compreendo — disse Hanlon, ressentido e perturbado.

Parece-me que me compreendeu muito bem. Viveu entre nós durante bastante tempo. Gostava de nós ao ponto de conseguir falar a nossa língua como qualquer austríaco. E, se não me engano, foi por isso que voltou para cá... que­ria ver-nos de novo e talvez mesmo nos quisesse ajudar. Não é verdade?

É mais verdade do que pensa. Levei seis meses ten­tando ser nomeado para este cargo, padre. Depois da destruição sangrenta da guerra, destruição pela qual fomos em parte responsáveis, pareceu-me que tinha aqui uma possibi­lidade de construir em vez de destruir. —- Hanlon sorriu e estendeu as mãos num gesto ligeiramente irônico. — As suas lições influenciaram-me mais do que julga, padre-mestre dos seminaristas. Houve muitos beijos de que não gostei por sua causa, e tem-me sucedido também não saborear devidamente um vinho ou um licor por estar pensando em você. Ensinou- me este desejo de reconstruir o mundo, mas nunca me ensi­nou a arte de viver nele confortavelmente. Isso foi uma coisa que tive de aprender por mim próprio, à custa de muitos esforços. Enfim... tem toda a razão. Quis voltar aqui. Quis ajudar a Áustria. Gostava muito dos austríacos.

Até que um deles matou um amigo seu.

Exatamente.

Um assassino não representa todos os austríacos.

Mas toda a população de Bad Quellenberg o escon­derá, não é verdade?

— Não se ressinta do fato. Quase todos os nossos ra­pazes morreram na guerra. Existem muitas moças no vale que nunca terão um marido. Não lhes queira mal por procura­rem salvar esse desgraçado.

Não é dessa forma que o salvarão. Não compreen­derão eles que estão fazendo o pior que podiam para sal­vá-lo? A lei...

Há já muito tempo que a lei, na Europa, é uma autêntica fantasia. Já devia saber disso, Mark.

Temos uma nova lei, agora.

O velho padre sorriu com uma ironia gentil e abanou a cabeça.

A lei do conquistador. Uma lei que é suspeita e parcial, pelo menos aparentemente.

Reconheço que pode parecer assim, mas esta gente terá de lhe dar uma oportunidade de mostrar que é uma lei justa e imparcial. De outra forma não restam esperanças de salvação. Não acredito que não respeite a lei, Padre Albertus.

Respeito, sim, meu filho, mas nunca acreditei que o carrasco fosse o seu melhor intérprete.

Meu Deus! Eu não sou um carrasco! — A voz de Hanlon adquirira um tom irado e muito ressentido. — Estou aqui para que a justiça seja feita. E recordo suficientemente bem a Áustria para assegurar que essa justiça será a mais misericordiosa possível.

Não vejo como possa garantir-nos essa justiça disse o Padre Albertus. — Está sujeito à autoridade dos seus superiores e, se prender esse homem e sujeitá-lo a julgamento, não poderá mudar o código que o julgará.

Não me venha com dialética, padre! — explodiu Hanlon, impacientemente. — Trata-se de um problema con­creto. Esse homem cometeu um crime de morte. As pessoas que o esconderem também serão culpadas. Essas pessoas, a população de Bad Quellenberg, encontrar-se-ão em oposição à única autoridade que pode auxiliá-las a voltar a uma vida normal. Não terão paz e sossego até que esse homem seja encontrado.

É esse o amor que nos trazia, Mark? Como é que vai demonstrá-lo?

Vou dispensá-lo — disse Hanlon, furioso com a ati­tude do antigo professor —, visto que o amor não corres­pondido é estéril e amargo. Administraremos a justiça se­gundo o nosso código. Governaremos segundo mandam os regulamentos. Talvez isso seja melhor, afinal.

Tem certeza de que poderá esconder esse seu amor por nós?

Tenho certeza disso, padre. Não tenho outro re­médio.

O velho padre levantou-se e pôs a capa nas costas. Os seus olhos haviam-se tornado sombrios e tristes, e o fogo que sempre parecia iluminar-lhe o rosto era agora mais pá­lido. A voz também perdera algo da sonoridade.

O burgomestre indicou-me o que pretende. Já fiz todos os preparativos para a missa e para o funeral. Gostaria muito que me assistisse à missa, Mark. Seria como nos tem­pos antigos.

O olhar de Mark Hanlon perdeu a frieza que o domi­nara e notou de novo quão velho, cansado e frágil se havia tornado o Padre Albertus. O major hesitou e, em seguida, respondeu-lhe gentilmente:

É melhor que não o faça, padre. Há já muito tem­po que não entro numa igreja. E, além disso, tenho de pensar no aspecto político. Existem aqui tantos católicos quantos luteranos. As Forças de Ocupação não podem identificar-se demasiado com qualquer dos grupos religiosos. Irei assistir à missa e ao funeral. Mais não poderei fazer.

O velho padre olhou para ele fixamente durante um longo momento e só então é que voltou a falar, recuperando a profundidade e a firmeza da sua voz.

Disse-me há pouco que estávamos todos loucos, meu filho. Essas suas palavras acabaram de revelar as razões dessa loucura. Demasiada política e insuficiente amor!

E, concluindo:

Servus, major — disse o padre sem lhe estender a mão.

Auf Wiedersehen, padre — respondeu Mark Hanlon friamente.

 


                                           Capítulo 3

Uma casa fora construída no ponto mais alto da avenida que circundava Bad Quellenberg e que era uma espécie de mirante de onde se avistavam as mais belas paisagens da região. Os seus construtores haviam arrasado um acre de pi­nheiros, que tinham sido usados na construção da casa, e isso deixara uma clareira, protegida por uma gigantesca parede rochosa. Era nesse planalto artificial que se erguia agora uma casa de três andares, de pedra e madeira, cujas janelas se abriam para a vila e para a beleza do vale.

A casa estava isolada da estrada por uma densa fileira de pinheiros, e um sistema elétrico de alarme instalado no pesado portão impedia a entrada de visitas indesejáveis. O relvado que se estendia dos pinheiros até a casa estava cer­cado por canteiros que na primavera se enchiam das mais coloridas flores, numa profusão inigualável em Quellenberg. Um terraço de pedra recebia sol durante todo o dia, no verão e no inverno, e as montanhas protegiam do vento que soprava dos desfiladeiros quem nele se encontrasse tomando banho de sol.

A propriedade era chamada, bastante convencionalmen­te, Valhalla, embora a gente da região a conhecesse por outro nome. Chamavam-lhe Das Spinnenhaus, A Casa da Aranha. Uma placa metálica no portão indicava o nome do proprie­tário: "Dr. Sepp Kunzli, advogado".

Não havia quem à primeira vista se, parecesse menos com uma aranha do que esse elegante advogado. O cabelo negro e o tom escuro da sua pele lembravam os dos romanos, que muitos séculos antes se haviam instalado às márgens do Danúbio. A elegância disciplinada dos seus movimentos fazia-o mais jovem, não deixando antever os quarenta e cinco anos de idade que já tinha.

Os olhos é que o desmascaravam. Aqueles olhos eram tão negros e mortos como os de um inseto. Eram olhos que olhavam para todos os lados, de um sem-número de facetas, mas sem possuírem a menor luz, a menor expressão. Eram olhos que não davam a menor indicação dos pensamentos que nasciam por detrás deles. Eram os olhos de uma aranha - calculadores, impiedosos e frios.

A verdade sobre Sepp Kunzli era simples, embora sur­preendente: morrera há muito tempo!

A maioria dos homens morre lentamente, sob as preo­cupações e canseiras da vida de todos os dias. Sepp Kunzli morrera súbita e inesperadamente, num dia radioso de verão, e o homem que, a partir de então, existia como sendo Kunzli era um espectro frio com um cérebro de primeira grandeza - e com um pedaço de gelo onde deveria estar o coração.

Kunzli fora um jovem advogado de muito valor em Viena, alguns anos antes de começar a guerra. Saíra da uni­versidade com as melhores classificações do curso e ingres­sara imediatamente na firma de advogados de seu pai, uma velha firma familiar, com clientes na Baviera, na Hungria, na Suíça e por toda a Áustria. O escritório, próximo à Ringstrasse, estava sempre cheio de clientes, visto que nessa altura as terras mudavam de mãos rapidamente e muitos proprie­tários liquidavam os seus bens para transformá-los em fun­dos estrangeiros.

Kunzli casou com uma jovem judia, filha de um ban­queiro, que lhe trouxe um dote respeitável. O casal não tinha filhos, o que não impedia que fosse imensamente feliz durante aquela primavera antes do Anschluss.

Uma semana depois de as primeiras unidades alemãs entrarem em Viena, recebidas quase em triunfo pelos vienenses, Sepp Kunzli chegou a casa à tardinha e encontrou a mulher com a cabeça metida no forno do fogão a gás e um patético bilhete na mão:

"Amei-o demasiado para agora me tornar um incômodo para você. Desculpe-me".

Outro homem que não fosse Kunzli poderia ter-se sui­cidado ou enlouquecido, ou ainda dado início a uma deses­perada campanha de ódio e de vingança. Kunzli não fez nenhuma dessas coisas. Enterrou calmamente a sua mulher, vendeu a casa, instalou-se num apartamento em outro bairro e continuou a trabalhar com uma concentração fria que cho­cou profundamente sua família e os amigos.

O já famoso advogado desembaraçou-se dos antigos

clientes e começou a procurar outros — membros superio­res do Partido Nazista, funcionários da nova administração, financistas que investiam fundos na Alemanha.

Kunzli comprava e vendia propriedades em nome des­ses clientes. Aconselhava-os sobre investimentos na Áustria e facilitava-lhes as negociações para enviarem fundos para o estrangeiro. Tornou-se o confidente dos seus segredos de casamento e o negociador de divórcios diplomáticos. Quando lhe sugeriram que aderisse ao partido, Kunzli mostrou-lhes que lhes seria mais útil se não fosse um nazista aos olhos de todos. Isso não impediu que contribuísse generosamente para os fundos do partido, e o fato permitiu-lhe viajar livre­mente pelo estrangeiro com um passaporte especial.

Finalmente, quando o seu nome se tornou conhecido, Kunzli separou-se da firma do pai e levou todos os seus clien­tes consigo. Abandonou Viena e instalou-se em Bad Quellenberg, depois de convencer os clientes das vantagens de serem representados tão perto das fronteiras da Itália, Iugoslávia e Suíça, e tão longe das intrigas da capital.

O que ele não lhes disse foi que aquele era o seu passo final para abandonar um mundo que ele detestava, a primeira fase de uma campanha fria para castigar os homens que haviam causado a morte de sua mulher e assassinado a sua última centelha de amor.

Kunzli não sentia a menor alegria no que estava fa­zendo. Era incapaz de experimentar alegria, e tudo o que lhe restava era a fria paixão do jogador de xadrez, movendo os peões, avançando calculada e invencivelmente para o xeque-mate.

Os clientes que quisessem negociar na Suíça eram obri­gados a pagar-lhe comissões exorbitantes, e, quando Berlim emitiu novos regulamentos proibindo a saída de fundos para o estrangeiro, Kunzli abriu contas para eles em diversos paí­ses no seu próprio nome, servindo-se do dinheiro e dos bens dos clientes para realizar operações financeiras por sua conta e invocando a influência de funcionários superiores para ga­rantir a sua imunidade. Fazia uma chantagem muito sutil com os funcionários mais tímidos e encorajava os mais arro­jados a cometer excessos e a colocar-se mais e mais na po­sição de devedores. Kunzli estava sempre disposto a garantir uma hipoteca ou a assinar uma letra. Uma esposa gastadora podia contar com ele para um empréstimo, sem que ele for­çasse o pagamento da dívida.

Sepp Kunzli recebia sempre em grande estilo todas as personalidades de relevo que vinham a Bad Quellenberg. Quando tinham de se ausentar, durante curtos períodos, se­duzia suas amantes, esposas e filhas com uma paixão calcula­da, que as deixava perplexas no começo e estranhamente assustadas mais tarde.

Kunzli procedia da mesma forma em Bad Quellenberg. Possuía hipotecas sobre as melhores terras da região, era credor de quase todos os hotéis, os construtores estavam to­dos na sua mão e os funcionários públicos faziam tudo o que ele lhes dizia.

A teia tecida na Casa da Aranha estendera-se cada vez mais, à medida que os anos passavam e os seus fios haviam alcançado os mais inacreditáveis locais. Havia, por exemplo, um homem em Zurique, chamado John Winter, que Kunzli conseguira conhecer por meio de uma apresentação de um banqueiro suíço. Os dois homens costumavam encontrar-se no escritório do banqueiro sempre que Kunzli visitava a Suíça, e este prestava a Winter toda a espécie de informa­ções, desde o movimento de tropas da Linha Tauern até às indiscrições da esposa de um Reichsminister. Kunzli recusava qualquer pagamento por essas informações, afirmando que era um patriota que só pensava nos verdadeiros interesses dé sua nação. Os serviços de espionagem, em Londres, nunca encontravam a menor falha ou discrepância nessas informa­ções, e Kunzli era considerado um agente seguro, um homem que seria recordado e recompensado mais tarde.

Essa sua faceta de espião era a mais perigosa da sua vida, mas o triunfo completo do seu plano só assim poderia ser assegurado. De nada lhe valeria arruinar o inimigo se ele próprio fosse abatido pela derrocada final. O risco valera a pena, afinal de contas. Os Aliados haviam ganhado a guer­ra. Os homens que tinham causado o suicídio de sua mulher estavam aniquilados e seriam devidamente castigados. A sua persistência calculada e cruel amontoara-lhe uma fortuna con­siderável, e, após muitos anos de trabalho, as moscas tinham caído na teia e a aranha podia descansar e sorrir ao vê-las debater-se inútil e desesperadamente entre os fiòs que tecera.

Assim, naquela tarde de inverno, quando as primeiras neves cobriam as colinas e os pinheiros, Kunzli estudava a forma mais diplomática de estabelecer relações com as For­ças de Ocupação.

Kunzli sorriu ao pensar em Holzinger, chamado à pre­sença do Major Hanlon como se fosse um moço de recados; em Fischer, forçado a entrar numa atividade a que não estava habituado, e na própria Igreja, na pessoa do Padre Albertus, sob a disciplina dos ingleses!

Mayer telefonara-lhe do Hotel Sonnblick com uma sé­rie d.e comentários sobre as suas idas e vindas. Um homem muito útil, esse Mayer, pois estava admiravelmente colo­cado, como gerente do hotel, para lhe fornecer toda a espécie de informações sobre os seus hóspedes. Mayer encontrava-se a soldo de Kunzli e valia dez vezes o que ele lhe pagava, pois a sua importante colaboração auxiliara a aranha a tecer a teia.

O novo comandante representava um enigma. Falava um alemão perfeito. Agia como um homem que sabia bem o que pretendia. Kunzli teria de ser muito cuidadoso ao estabelecer relações com ele. A única forma seria cooperar, de igual para igual. A ocasião para isso não tardaria muito, com toda a certeza.

A morte do Sargento Willis era o assunto do momento em Bad Quellenberg. Holzinger e Fischer estavam metidos num verdadeiro dilema. A população nunca lhes perdoa­ria se eles prendessem o soldado, e a nova autoridade, se eles não o levassem a julgamento, nunca os deixaria em paz. Seria interessante verificar se os ingleses desejavam, de fato, prender o rapaz ou se esqueceriam o incidente após um intervalo razoável. Os ingleses eram muito sutis, tinham um grande respeito pela lei e uma habilidade especial para inter­pretá-la da forma que melhor lhes conviesse.

Kunzli gostaria muito de saber se o nome do soldado já fora revelado e se se tratava de um rapaz da vila ou das colinas. Esse fato era importantíssimo. Se o rapaz pertences­se a uma das mais antigas famílias de Bad Quellenberg, ou da região, os camponeses fariam decerto todo o possível para escondê-lo durante anos, se isso fosse preciso, opondo-se às investigações com uma teimosia quase animal. Se a família fosse nova na terra, imigrante talvez de Salzburgo ou de Viena, então talvez o entregassem, a fim de evitar aborreci­mentos com as Forças de Ocupação. O instinto de tribo ainda era muito forte naquelas terras montanhosas da Áustria.

Um fato era certo: Sepp Kunzli ganharia com o caso, acontecesse o que acontecesse! Ambos os lados, os ingleses e os austríacos, precisavam de um intermediário. Ambos te­riam de pagar, fosse como fosse, os seus serviços especiali­zados.

Kunzli ainda ponderava o assunto, deliciando-se com a idéia de se fazer pagar por ambos, quando sua sobrinha entrou na sala.

Trajava vestes de esqui, calçando pesadas botas de montanha e trazendo no braço um casacão com gola de pele. Seu cabelo louro estava trançado numa espécie de coroa sob um chapéu verde, à moda do Tirol, que trazia de banda, de forma a quase encobrir um rosto tão belo como o de uma boneca de porcelana.

Atravessou a sala e foi beijar o tio na testa. Este não fez o menor gesto para retribuir o beijo, limitando-se a per­guntar-lhe calmamente:

Vai sair?

Vou, mas primeiro preciso ir ao hospital. Temos uma hora de terapêutica com os amputados.

Como eles têm passado?

Kunzli não tinha o menor interesse pela resposta; ape­nas formulara a pergunta com aquela cortesia impessoal que era necessária para manter confortáveis as relações entre eles.

Alguns deles têm progredido muito. O jovem Die­trich começa hoje a experimentar as muletas e Heinzi Reitlinger já pode acender um cigarro com a mão artificial. Tenho muito orgulho por essa mão artificial. Tenho muito orgulho deles, tio.

Alegro-me em saber.

Tio, queria pedir-lhe um favor... — Anna hesitou e não terminou a frase.

Que espécie de favor, Anna?

Gostaria de convidar alguns deles para virem aqui uma noite dessas. A ambulância poderia trazê-los e...

Sinto muito, minha querida, mas não posso aten­der ao seu pedido. Já gastei muito dinheiro com divertimen­tos aqui na vila. Não vejo qualquer razão para que a intimidade da minha casa seja invadida por desconhecidos.

Está bem, tio. Anna não se mostrara muito de­sapontada; era como se já esperasse aquela resposta. A sua voz fora tão calma como a do tio, embora bastante amigável' e calorosa. É verdade, já me esquecia. Esta tarde não ve­nho lanchar.

Por que não?

O Padre Albertus telefonou-me. Pediu-me que fos­se ao ensaio do coro da igreja. O soldado inglês vai ser enterrado amanhã. Vamos cantar o réquiem.

Os olhos escuros e indiferentes de Kunzli mostraram um certo interesse pelo fato.

Os nossos próprios rapazes não têm o privilégio de réquiens. Por quê?

Talvez por serem em demasiado número.

Kunzli olhou para ela, muito surpreso,.sem notar mais nada do que a franca inocência que ela trouxera àquela casa, alvo que as suas ironias nunca pareciam atingir. Essa inocência aborrecera Kunzli de início, e ele tentara pro­vocá-la e fazer-lhe ver a dureza da vida, até que um dia a pequena Anna o enfrentou e lhe falou suavemente:

"Não deve ser cruel comigo, tio... isso só o magoará mais e me tornará infeliz. E, se isso acontecesse, não pode­ríamos continuar a viver juntos, não é?"

Foi então que Kunzli se dobrou pela primeira vez a uma inocência em que não acreditava. Agora, uma vez mais, foi obrigado a render-se, encolhendo os ombros e dizendo num tom de voz indiferente:

Não chegue tarde para o jantar.

Esteja descansado, tio. Auf Wiedersehen.

Wiedersehen, Anna.

Ela afastou-se rapidamente e Sepp Kunzli perguntou a si próprio, pela centésima vez, que loucura o obrigara a aceitá-la na sua vida.

Anna era filha de seu irmão, e, depois da sua partida de Viena, Kunzli nunca mais ouvira falar dela, até que lhe apareceu em Bad Quellenberg acompanhada por uma cam­ponesa de Burgenland.

Essa mulher parecia ter uma opinião muito ruim de Sepp Kunzli e vinha absolutamente disposta a obter justiça para a pequena Anna.

No seu dialeto carregado, próprio de Burgenland, a camponesa explicou-lhe que o pai de Anna morrera, abatido durante um vôo sobre a Inglaterra, e que a mãe estava doen­te num sanatório em Viena e não viveria mais do que algu­mas semanas. Os avós de Anna haviam morrido e Sepp Kunzli era o único parente que lhe restava. A camponesa nem sequer quis ouvir as primeiras evasivas de Kunzli, só dese­jando saber se ele ia ou não cumprir o seu dever. Como podia ele ser tão cruel? Como podia viver numa casa tão grande como aquela e abandonar a sobrinha à sua sorte? A camponesa até afirmou, quase aos gritos, que estaria dis­posta a levar Anna para sua casa e a educá-la conforme pu­desse. Mas, afinal, que direito tinha ela de o fazer? E, se o feine Mann não queria cuidar da sobrinha, deveria sentir-se muito envergonhado pela indignidade que isso representava para a menina.

Sepp Kunzli não conseguira resistir aos argumentos e à persistência da mulher e aceitou Anna que nessa altura tinha apenas quinze anos —, entregando-a aos cuidados da governanta e tentando esquecer a sua presença. A gover­nanta e Anna tornaram-se amigas e nunca incomodavam Kunzli com qualquer problema inerente à estada da sobrinha. Quando a mãe desta morreu, numa época em que Kunzli se encontrava na Suíça, foi a governanta quem a consolou, e o tio nunca chegou a perceber o que se passara e a grande dor de Anna.

Era também a governanta quem comprava todas as roupas de Anna e a encorajava a sair com outras meninas, e, mais tarde, fora ela quem pedira ao Padre Albertus que a incluísse no coro da igreja e no corpo auxiliar do hospital.

Certo dia, com um choque de surpresa, Kunzli verifi­cou que tinha em casa uma jovem e linda mulher, que pa­recia ter um certo afeto por ele e cujo olhar criticava as suas aventuras calculadas. Kunzli sentiu que não podia con­tinuar a ignorá-la, percebendo também que se habituara à sua presença e que já não podia passar sem ela. Quando Anna lhe pediu, uma vez, que lhe concedesse uma mesada para os seus gastos pessoais, Kunzli não hesitou em dar-lhe o dobro do que ela pedira e até cumprimentou-a pelo bom senso que ela sempre demonstrava em tudo. Anna costumava comprar-lhe pequenos presentes em dias de festa e no seu aniversário, e o tio via-se obrigado a retribuir a cortesia. Sepp Kunzli nunca a abraçara ou beijara, mas Anna não parecia ressentir-se com aquela falta de afeto da parte do único parente que tinha no mundo. A freqüente má dispo­sição de Kunzli nunca impressionava grandemente a sobri­nha, parecia apenas reprovar as suas ambições e aventuras passageiras. Ela, por sua vez, permanecia completamente indiferente aos galanteios dos homens que conhecia. Num mundo que enlouquecera, e em que todos eram afetados pe­los efeitos da guerra, Anna parecia levar consigo um paraíso primaveril, embora Kunzli não tivesse capacidade para reco­nhecer isso, justamente por ter perdido o seu próprio pa­raíso.

Enfim, Anna vivia em sua casa. Ficaria lá, com cer­teza, até que algum homem a pedisse em casamento e quanto mais depressa isso acontecesse melhor seria! A so­brinha, entretanto, lembrava-lhe constante e desagradavelmente que as meninas crescem para se tornarem mulheres, que os homens ricos envelhecem muito depressa e que a vingança e o dinheiro não são suficientes triunfos para justificar uma vida.

O som repentino do telefone despertou Kunzli da diva­gação em que se encontrava e aqueles pensamentos sobre a sobrinha desapareceram no mesmo instante em que res­pondeu à chamada e ouviu uma voz vienense desconhecida.

Dr. Kunzli?

Sou eu. Quem fala?

Fala Mark Hanlon, comandante das Forças de Ocupação.

A voz de Kunzli tornou-se cordial e muito veemente.

Meu caro Major Hanlon! Estou muito contente por ter me telefonado. Pensava em ir visitá-lo logo que o soubesse menos atarefado. Julguei que levasse alguns dias a aclimatar-se...

O Quartel-General das Forças de Ocupação enviou- me um relatório a seu respeito — interrompeu Hanlon fria­mente. — Gostaria de vê-lo tão cedo quanto possível.

Com certeza, major. Talvez lhe agrade jantar co­migo esta noite... posso mandar-lhe um carro e...

Agradeço-lhe muito, mas isso não é possível. De­sejaria vê-lo esta tarde, às cinco horas, no meu escritório. Pode fazê-lo?

Bem... avisa-me com muito pouca antecedência... mas...

Muito obrigado, doutor. Espero o senhor às cinco horas. Auf Wiedersehen.

O primeiro dia do seu comando ia passando e o Major Hanlon, à medida que as horas decorriam, tornava-se cada vez mais furioso. A visita do Padre Albertus trouxera-lhe recordações que ele não quisera desenterrar e criara uma si­tuação, pessoal e pública, que ameaçava originar novos pro­blemas na sua já difícil tarefa. A atitude das autoridades locais já se definia como sendo de resistência passiva, e o Capitão Johnson mostrara ser um cínico, embora simpático, que era perfeitamente competente em questões militares, mas demasiado jovem para prestar auxílio moral ou dar conse­lhos úteis ao seu superior.

Mairk Hanlon começava a compreender que as viagens sentimentais eram um erro e que os amores passados, como velhos beijos, deviam ser deixados em paz no cofre da me­mória. O amor era um sentimento que devia ser comparti­lhado e requeria uma igualdade, uma confissão de desejo mútuo. O amor unilateral depressa morria, à fome de retri­buição. A sua vida privada já lhe ensinara essa verdade, uma verdade que se fazia sentir agora na sua vida pública. A única forma de preencher as suas funções de comandante de ocupação seria esquecer o seu amor pela Áustria e pelos austríacos e comandar pela força das baionetas dos seus homens e pela autoridade que o posto lhe conferia. E, se alguém lhe aparecesse a falar a linguagem do amor e lhe oferecesse algo mais do que a moeda fria do tributo, fosse o que fosse, já decidira não confiar nesse alguém. Qualquer ne­gociação que levasse a cabo, fosse com quem fosse, seria feita em termos de igualdade: pagaria apenas o valor exato do que recebesse.

Essas considerações contribuíram para que o primeiro relatório verbal de Karl Adalbert Fischer fosse muito mal recebido. Hanlon obrigou o chefe de polícia a ficar de pé, como se ele fosse um funcionário insignificante, e interro­gou-o com uma exatidão fria.

Diz-me, então, que o carro se avariou?!

Foi o que sucedeu, major. As estradas encontram- se geladas, como deve saber. Os pneus estavam muito gas­tos e a barra da direção já há muito tempo que não funcionava bem. Um dos pneus rebentou e o carro derrapou para fora da estrada. Foi uma sorte nenhum dos meus ho­mens ter morrido!

Parece-me muito estranho que isso tenha aconte­cido a apenas oito quilômetros da vila.

Fischer encolheu os ombros e estendeu as mãos como para mostrar que a culpa não fora sua.

Quem é que sabe quando se vai dar um acidente? O comportamento dos meus homens foi exemplar. Um deles veio narrar-me o ocorrido, enquanto os outros dois foram a pé para o local do crime. A neve já caía abundantemente quando eles lá chegaram e a pista dos esquis havia desapa­recido. Interrogaram várias pessoas nas propriedades mais próximas e não conseguiram descobrir coisa "alguma sobre o assassino.

Muito conveniente.

Se o major está insinuando que... — Fischer he­sitou e abanou a cabeça numa indignação cômica.

Basta! — exclamou Hanlon, irritado com as expli­cações. — Como pensa poder continuar a funcionar sem ter um carro?

Não podemos.

Passe a servir-se do seu carro particular. A polícia lhe pagará a gasolina e a manutenção e eu lhe darei um dos meus soldados para guiá-lo. Terei o cuidado de escolher um homem que fale alemão e que possa ajudá-lo nas suas investigações.

Fischer engoliu em seco e começou a gaguejar.

Eu... nós... ficamos muito contentes com... toda a ajuda que nos der.

Tenho certeza disso. Pois bem, quero que envie diariamente patrulhas de esquiadores para interrogar todos os proprietários da região. Conto com quatro bons esquiado­res entre os meus soldados, e cada patrulha será acompanha­da por um deles.

Patrulhas de esquiadores! — Os olhos de Fischer abriram-se numa expressão de espanto. — Saberá o major de quantos homens disponho? Tenho de manter a ordem na vila apenas com seis policiais e ainda me pede que investigue no vale e nas colinas com esquiadores!

Existem quatro guias alpinos e uns dez guardas-florestais que têm muito pouco trabalho. Sirva-se deles para formar as suas patrulhas. Diga-lhes que venham aqui todas as manhãs para receber ordens sobre os locais a patrulhar em cada dia. Não me agradaria pensar que essas áreas fos­sem prevenidas da chegada dos nossos homens.

Major, não vim aqui para ser insultado! Tenho de lhe pedir que...

Hanlon pareceu não ter reparado que Fischer falara e continuou ele próprio a falar num tom de voz ligeiramente irônico.

Tenho certeza de que existe, aqui na vila, uma lista de todos os membros do Regimento Quellenberg. Tam­bém têm, com toda a certeza, uma lista dos mortos e dos desaparecidos e daqueles que já foram repatriados. O que tem a fazer é eliminar os mortos, que representam a maioria, e já ficará com uma primeira lista de famílias que talvez saibam alguma coisa sobre o soldado com a cicatriz no rosto. Não lhe parece razoável, Fischer?

Não! — exclamou o chefe da polícia, aparentemen­te zangado com o tom de voz do comandante. — Não me é possível trabalhar,com um homem que desconfia de mim!

Hanlon instalou-se melhor na poltrona e olhou para ele com uma expressão sarcástica no olhar.

Engana-se, meu amigo, eu não desconfio de você.

Confio mesmo... em que tenciona retardar a busca e as investigações tanto quanto lhe for possível! Não o critico, ou, pelo menos, não o critico muito. É possível que, se estivesse no seu lugar, fizesse o mesmo Mark Hanlon endireitou-se e, agora mais sério, começou a folhear o dossiê e a falar lenta e pausadamente. Posso despedi-lo muito facilmente, Fischer. Os motivos para isso seriam vários: colaboração com o Partido Nazista, incompetência, recusa de cooperar com as Forças de Ocupação, etc. Podia mesmo detê-lo para investigações do Departamento de Crimes de Guerra. Deixaria de receber o ordenado, Fischer, e perderia todo o direito à reforma. O seu nome entraria na lista negra de todas as áreas de ocupação. Ficaria sem trabalho e nem sequer conseguiria um lugar de varredor de ruas.

Para que quer, então, conservar-me no cargo?

Sou um homem prático. Hanlon sorriu ligeira­mente. Sei que uma vila ou uma cidade funcionam muito melhor com os seus administradores normais. Bad Quellenberg tem uma reputação bastante boa e, se assim continuar, todos os seus habitantes se beneficiarão com o fato. Bastará que as Forças de Ocupação estejam contentes com o estado de coisas aqui para nos mandarem rações de alimentos, carvão e penicilina para o hospital. Poderíamos mesmo con­vencer o quartel-general em Klagenfurt a fazer desta região uma zona oficial de repouso e convalescença para as nossas tropas, o que traria muito dinheiro a Bad Quellenberg e seria o começo de um futuro negócio turístico para os hotéis e estabelecimentos. Esta vila poderia transformar-se num exemplo, Fischer, num modelo para o resto da Áustria... se vocês cooperassem!

Se eu lhe entregasse um soldado austríaco para ser enforcado, não é isso?

Entenda como quiser.

Não vejo outra maneira de entender o que me disse, major.

Poderá escolher entre duas formas disse Hanlon friamente. Poderá, se quiser, chamar-lhe o reconheci­mento da lei comum, o reconhecimento de que um assas­sínio é um crime que merece ser punido para proteger a sociedade. Esse princípio não pode ser modificado só pelo fato de a vítima vestir um uniforme britânico. Se a lei não o preocupa, como parece acontecer, terá outra razão de peso disse Mark Hanlon, falando em alemão arcaico e citando uma frase da Bíblia. É conveniente que um ho­mem morra para o bem da população.

Já morreram dezenas de milhares de homens "para o bem da população" exclamou Fischer com uma amar­gura surpreendente. A população! A nação! Uma Ale­manha maior e mais unida! Morreram milhões de homens, e agora pede-me mais uma vítima!

Não quero vítimas —- disse Hanlon calmamente. Estava apenas tentando convencê-lo de que não é pos­sível viver em dois mundos diferentes. Para se viver legal­mente é necessário aceitar os códigos e os regulamentos. Se quiser viver numa selva caótica, como talvez prefira, terá de pagar caro pela escolha. Depende de você.

Já matou um homem alguma vez, major?

A pergunta surpreendeu Hanlon. O chefe de polícia continuava de pé, revestido de nova e curiosa dignidade. O major hesitou e demorou alguns segundos a responder-lhe:

Já. Matei vários homens durante cinco anos de guerra.

Como pode, então, falar como Deus Todo-Poderoso no Dia do Juízo Final?

Hanlon desfechou um murro na secretária:

Não tenho outro remédio! Alguém tem de se fazer de Deus e de trazer ordem a este caos!

Dê-nos a oportunidade de sermos nós próprios a fazê-lo.

Fischer sorrira ligeiramente. O major era humano, ape­sar de tudo. Zangava-se como qualquer outro, e um homem irado podia cometer erros como qualquer um. O chefe de polícia ficou, pois, muito surpreso ao verificar que Hanlon também sorrira e lhe redargüira no mesmo tom.

Tenho certeza de que vocês poderiam se organizar, Fischer, mas não posso tornar-me responsável pelos seus erros. Só temos duas soluções: trabalhamos juntos e coope­ra comigo em tudo, ou então irá esta noite mesmo, sob guarda, para o quartel-general em Klagenfurt. Que me diz a isto?

Pode contar com a minha cooperação respondeu Karl Adalbert Fischer, baixando o olhar, como se tivesse perdido os últimos farrapos de honra que ainda lhe resta­vam. Na realidade, Fischer encontrava-se imensamente sa­tisfeito. Supunha que Hanlon tinha rnedo, que receava a enorme tarefa que via à sua frente. O major tornar-se-ia mais razoável, com certeza, mesmo que procedesse agora tão severa e friamente. As palavras seguintes de Hanlon, contudo, despedaçaram essa sua ilusão.

Ótimo! Diga-me, então, o nome do assassino... e onde ele vive...

Fischer ficou literalmente boquiaberto:

Não... não o compreendo.

Creio que me compreendeu... e muito bem! Não acredito que arriscasse a sua posição por causa de um des­conhecido. Vamos, Fischer. Como se chama o assassino?

Engana-se, major — respondeu Fischer, com firme dignidade. — Não sei quem é o homem. Já o teria pren­dido se o soubesse.

Muito bem, aceito a sua palavra — disse Hanlon. — Mas tenha cuidado, Fischer, arruinarei a sua vida se vier a saber que me mentiu. Bem, vamos então planejar as investigações.

Mark Hanlon explicou cuidadosamente os pormenores estratégicos de uma busca completa pela região e por toda a montanha e, quando acabou de fazê-lo, ao cabo de trinta lon­gos minutos, Fischer transpirava por todos os poros e já não sabia se era ele ou o sobrinho quem corria mais perigo.

Logo que Fischer saiu, bastante vacilante e pertur­bado, Mark Hanlon telefonou para a Casa da Aranha a fim de convocar Sepp Kunzli.

Este chegou ao Hotel Sonnblick em grande estilo, como um homem rico, vindo no seu próprio carro conduzido por um motorista de uniforme. A sua entrada no quartel-general foi efetuada com todo o cuidado. O motorista saiu do carro e foi conferenciar com o sargento da guarda, e, quando Sepp Kunzli subiu finalmente os degraus que conduziam ao hotel, não foi obrigado a esperar ao frio e ao vento como sucedera com os outros.

Os soldados que se encontravam no saguão ficaram impressionados com a figura elegante de Kunzli, com o seu casaco de gola de astracã, as luvas de pele de porco e a bengala ricamente decorada. Mayer e o porteiro curvaram-se respeitosamente à sua passagem, mas Kunzli fez-lhes apenas um sinal com a cabeça e continuou a andar em direção ao elevador.

Johnson e o sargento da guarda ficaram muito admi­rados quando viram Hanlon levantar-se e apertar-lhe a mão, oferecendo-lhe uma cadeira e um cigarro e só voltando a sentar-se ao ver o visitante bem instalado.

Kunzli aceitou as cortesias com uma satisfação e uma alegria interior que afastaram os receios que sentira ante­riormente. A fria comunicação telefônica de Hanlon não passara da atitude brusca de um homem cheio de afazeres. Hanlon era inteligente e civilizado. Não lhe seria difícil estabelecer um certo entendimento com ele.

As primeiras palavras de Hanlon foram encorajadoras. O major abrira um sobrescrito e tirara dele uma carta que desdobrara em cima da secretária.

Recebi uma carta do quartel-general em Klagen- furt, Herr Doktor. Uma carta que veio de Londres, via Zurique.

Gostaria muito de saber o que lhe dizem sobre mim.

A carta é bastante curta. Vou lê-la: "O Dr. Sepp Kunzli, de Bad Quellenberg, é conhecido por nós como sendo um agente de toda a confiança desde 1943. Recomen­damos que lhe sejam facilitadas as imunidades usuais em casos semelhantes e sugerimos que a sua colaboração poderá ser valiosa para o comandante local". A carta está assinada por John Winter, tenente-coronel, adido militar britânico, Genebra, Suíça.

Estou muito sensibilizado e agradecido. Os ingleses são homens de palavra.

Não nos esquecemos facilmente dos nossos amigos disse Hanlon. Precisamos de toda a ajuda possível, e eu gostaria de saber se está interessado em colaborar conosco.

Naturalmente que sim, Herr major. Farei tudo o que me for possível. Os tempos que correm são muito difíceis... para todos nós.

O rosto de Kunzli sorrira ao dizer essas palavras, mas os seus olhos continuavam sem a menor expressão, mortos e indiferentes.

Esplêndido. Diga-me, Herr Doktor, como é que clas­sifica a força e a importância política do Partido Nazista em Bad Quellenberg?

Numericamente forte, mas sem a menor importân­cia, antes e agora. A resposta fora dada quase no mesmo instante em que Hanlon formulara a pergunta, e Kunzli falara com uma convicção que não admitia dúvida. É verdade que esta região foi visitada por figuras políticas muito importantes e que assuntos também importantes fo­ram discutidos aqui, mas os membros locais do partido não passam de funcionários insignificantes, policiais, professores e todos os outros cujas promoções dependiam do partido. O resto... — Kunzli encolheu os ombros num gesto de indiferença. — Já sabe como é esta gente da montanha: isolacionista, intolerante, independente e sem o menor res­peito pelos funcionários públicos ou gente de outras terras. O partido nunca penetrou além da superfície das suas vidas.

Hanlon assentiu. A resposta fora concisa e inteligente. Condizia com o que já sabia, e o fato tirava-lhe um grande peso do espírito.

—- Saberá dizer-me se os judeus e os membros da opo­sição ao nazismo foram perseguidos e castigados aqui na região?

Kunzli abanou a cabeça:

Nada se passou de anormal, major. Não se deram crimes violentos nem prisões no meio da noite. Esta provín­cia é predominantemente católica e o partido governou-a com muito cuidado. Houve discriminação, é certo. De co­meço, quando os alemães entraram em Viena, ainda pren­deram alguns judeus. Devo dizer, contudo, que a violência e o terror não passaram de lenda para o povo da província.

Está sendo muito justo, Herr Doktor, para um ho­mem com um passado tão trágico como o seu.

Kunzli encolheu os ombros.

— Novas mentiras não ressuscitarão os mortos. Novas perseguições não apagarão a memória das antigas. Estes austríacos da região... que são eles, afinal? Camponeses e gente da montanha, na sua maioria preocupados apenas com os problemas do dia-a-dia. Tenho a impressão de que poderemos ser generosos para com eles, major.

Sepp Kunzli falara na primeira pessoa do plural, su­gerindo uma identidade de interesses sem presumir afir­má-la. A frase calculada de Kunzli não passara despercebida a Hanlon, e este, tendo um gosto marcado por aquela espécie de sutileza, sorriu e passou à pergunta seguinte:

Nunca pertenceu ao Partido Nazista, não é?

Nunca!

Mas, mesmo assim, tinha negócios consideráveis com os membros do partido e trabalhava por conta deles, não é verdade?

Kunzli sentiu um vago receio, como se a ponta de uma faca lhe tivesse sido apontada ao coração, mas seus olhos continuaram imóveis e a expressão do rosto não mostrou qualquer inquietação.

Sou um profissional, major. Não me é possível fa­zer da política ou das religiões uma condição de serviço, e, se o fizesse, já há muito teria morrido de fome... como aconteceria a qualquer homem de negócios em qualquer parte do mundo.

Não era a isso que me referia — murmurou Hanlon, aborrecido com as desculpas de Kunzli. — Recebi da Suíça, juntamente com aquela carta que lhe li, um relatório que indicava a natureza das suas atividades, especialmente no que diz respeito às negociações de propriedades e ações que fez por conta de membros importantes do Partido Nazista.

Isso é o pão com manteiga de todos os advogados.

O relatório sugere que havia mais mel do que manteiga...

É verdade que ganhei muito dinheiro. Teria ganho ainda mais, se isso fosse possível. Foi uma parte da vin­gança pelo que essa gente fez à minha vida.

O êxito dos nossos amigos alegra-nos sempre — comentou Hanlon, rindo-se e forçando Kunzli a moderar a defesa. — Há uma questão que me preocupa. Tenho certe­za de que muitos desses bens negociados por você foram roubados a vítimas dos campos de concentração, por exem­plo. O que eu gostaria de saber é quantos desses bens poderão ser encontrados e devolvidos aos donos ou aos seus herdeiros.

Era então isso que preocupava Hanlon, pensou Kunzli, sentindo que um perigo terrível o rondava. O seu cauteloso cérebro, escondido para lá dos olhos de aranha, já calcula­va como uma máquina de somar, pesando bem os riscos contra os lucros. Sepp Kunzli hesitou e só depois respondeu com uma franqueza fingida.

Posso dizer-lhe que passaram pelas minhas mãos muitos bens roubados ou confiscados. Quantos, não sei dizer. A maioria das propriedades e ações já me chegou em ter­ceira ou quarta mão. A mim, seria completamente impossível fazer-lhe uma lista exata, a tarefa levaria anos a realizar e nunca seria cem por cento certa.

Estará disposto a auxiliar-nos a levar a cabo essa investigação?

Com toda a certeza.

Permitirá que examinemos os seus fichários pes­soais?

Sem a menor dúvida.

Incluindo os documentos que tem, guardados em bancos suíços?

Certamente, mas eu teria de ir lá em pessoa e retirá-los dos diversos bancos onde se encontram. Estão guardados sob nomes diferentes e seria demasiado compli­cado tratar do assunto pelo correio.

Dar-lhe-ei um passaporte especial para poder sair do país disse Hanlon, tudo no seu aspecto exterior apa­rentando uma gratidão que não sentia. Espero que auto­rize os meus investigadores a começar a examinar os seus fichários enquanto estiver na Suíça.

Duvido que compreendam os meus papéis res­pondeu Kunzli, uma certa irritação apossando-se da sua voz. — Lembre-se, Major Hanlon, de que os meus negócios eram muito arriscados, e fui obrigado a anotá-los de forma a que só eu pudesse decifrá-los.

O passaporte que lhe vou dar será válido para sete dias. Tenho a certeza de que desejará regressar a Quellenberg muito depressa.

Tem razão.

Quando poderá partir?

Isso depende do senhor, major respondeu Kunzli. Necessito de uma lista específica de instruções. Terei em seguida de comparar essa lista com os meus fichários e só então é que saberei o que terei de procurar na Suíça...

—- Enviar-lhe-ei as minhas instruções amanhã disse Hanlon. Digamos que partirá daqui a uma semana, pare­ce-lhe bem?

Uma semana me será suficiente, major.

Muito bem respondeu Hanlon, anotando o fato no seu diário. O seu passaporte lhe será entregue na véspera de partir. Um dos meus homens irá levá-lo a sua casa.

Como desejar, major.

Não creio que seja necessário tirar-lhe mais tempo, Herr Doktor. Muito obrigado por ter me visitado. Anf Wiedersehen.

Mark Hanlon levantou-se e estendeu a mão a Kunzli. Este despediu-se, e a expressão impassível do seu rosto não revelava o amargo pensamento que lhe ia na mente. Pela primeira vez em muitos anos, descobria agora Kunzli, enganara-se completamente sobre uma situação. Teria de proceder com muito cuidado ou acabaria por cair numa ratoeira sem saída. Seria forçado a vender tudo o que acumu­lara durante longos anos, teria de vender... e vender depressa!

 

                                         Capítulo 4

Depois de Sepp Kunzli sair da sua presença, Hanlon vestiu um traje de esqui e foi passear pela vila. O seu primeiro dia em Quellenberg já quase terminara, e agora sentia que precisava de tempo e de solidão para avaliar a experiência.

A neve ainda caía pesadamente, enchendo o ar de flocos brancos, gelando as árvores despidas de folhagem, cobrindo toda a vila desde o piso das avenidas até os telha­dos das casas. As montanhas estavam escondidas por uma névoa que vinha dos distantes desfiladeiros e cercava os cimos dos pinheiros. Já começara a escurecer e luzes amare­las iam aparecendo aqui e além no anfiteatro de casas que constituía Bad Quellenberg.

A avenida onde se encontrava situado o Hotel Sonnblick conduzia ao centro da vila velha, passando por um aglomerado de construções de pouca importância e desembocando no ponto onde o tumultuoso rio passava uma torrente silenciosa e gelada que descia da montanha e ia fertilizar as terras baixas do vale.

O frio era intenso e Hanlon fechou bem o casacão, tapando a cabeça com o capuz e caminhando rapidamente a fim de se aquecer. As primeiras casas que se lhe depararam estavam imersas numa escuridão quase completa, ten­do as janelas fechadas e os terraços tapados com painéis de madeira para protegê-los da neve. Tratava-se de edifícios enormes, agora abandonados, como era evidente, pelo fato de terem as portas fechadas e os degraus cobertos de neve.

Eram os hotéis uma série deles o orgulho da vila e a sua maior fonte de riqueza. Não passavam agora de elefantes brancos, envelhecendo, os juros amontoando-se nas hipotecas, a neve arruinando os telhados, a água gelando nos canos, a umidade fria do inverno percorrendo os longos corredores.

"É desta forma", pensou Hanlon, "que morrem as cidades e também os impérios. Não morrem geralmente de cataclismos esporádicos, como a guerra, os terremotos, o fo­go e as inundações, mas morrem, sim, do lento abandono vital dos membros em prol de uma intensificação da vida em redor do pequeno coração palpitante, cujos ventrículos são o mercado, os estabelecimentos, as tabernas, a igreja. O cora­ção acaba também por morrer, tempos depois, visto que, quando os membros morrem, o corpo fica imóvel e inútil e a vida torna-se numa repetição de palpitações sem razão de ser, uma verdadeira perda de energia e um movimento que não conduz a futuro algum!"

Hanlon recordou-se subitamente de que esse era, afinal, o propósito da sua presença na vila: dar nova vida ao cora­ção cansado, fazer circular o sangue para as extremidades frias, dar-lhes novo calor, articulação, e também uma nova direção. Em vez disso, pensava Hanlon amargamente, per­dera o dia inteiro numa manifestação cínica de poder, como se fosse possível dar nova vida a alguém por meio do medo, em lugar de auxiliar lentamente esse alguém a querer uma nova vida e, depois, a lutar por ela.

O pensamento da morte lembrou-lhe o Sargento Willis, que estava sendo nesse dia colocado no caixão de pinho e no dia seguinte seria enterrado no Cemitério de São Julião. Willis fora um homem sem importância durante a vida, mas a morte tornara-o importante para várias pessoas. Era sol­teiro, sem família, e poderia ter morrido de qualquer doença sem o menor significado para quem quer que fosse. Mas, como fora assassinado um pouco depois da temporada legal, toda a vila se encontrava sob a ameaça de interditos tão temíveis como aqueles que os antigos papas lançavam sobre as cidades pagãs. E ele, Mark Hanlon, que nos seus tempos de seminarista estudara com o Padre Albertus, era agora a eminência sinistra que poderia aplicar uma justiça rigorosa em vez de uma misericórdia rejuvenescedora.

Os interditos já não estavam na moda e a própria Igreja já os havia abandonado muitos anos antes. Os homens já não se vergavam, arrependidos e envergonhados, sob sacos de cinzas. A gente de Bad Quellenberg lamentava o crime, disso não restavam quaisquer dúvidas. A dificuldade era que não reconheciam a culpa do criminoso ou a responsabilidade de o capturarem. Moralmente — e Mark Hanlon tinha um sentido moral muito elevado —, os quelembergueses tinham razão. O crime nada significava para eles depois dos milhões que haviam morrido na guerra, e, além disso, não viam razão para sofrer por causa de um crime cometido por outrem.

A missão de Hanlon era muito difícil e ingrata. Agora, nesta sua segunda visita à Áustria, já não usava o hábito de seminarista. O seu uniforme mudara e dava-lhe poderes para exercer uma nova e sinistra legalidade: a culpa coletiva.

"Não existe um criminoso", diziam os juristas da Nova Ordem, "mas, sim, muitos criminosos. Não há apenas um homem escondido atrás de uma arma, existem, sim, todos os outros antes e depois dele; o pai que o gerou, a mãe que o criou, a mulher que com ele se casou, o padre que o batizou. Todos eles o formaram e todos eles terão de compartilhar da sua culpa e do seu castigo."

O Major Hanlon alcançou, assim, simultaneamente, uma parede branca de frustração e a entrada iluminada do último grande hotel da avenida.

Este, ao contrário dos outros, encontrava-se situado li­geiramente retirado da estrada, tendo um pequeno jardim a separá-lo do ponto onde Hanlon acabara de parar. Três ve­lhas ambulâncias, cinzentas e em muito mau estado de con­servação, ocupavam o espaço em frente do hotel, e a quanti­dade de neve que as cobria indicava que não haviam sido usadas naqueles últimos dias.

O letreiro que anunciava o Hotel Kaiserhof estava meio escondido por uma tabuleta de pinho que, por sua vez, tinha a inscrição: "121. Allgemeines Feldlazarett". Uma pálida luz amarela iluminava as portas de vidro e Hanlon viu um velho cabo, com o casaco desabotoado, sentado à secretária da recepção palitando os dentes.

Viu também, para além do cabo, um pequeno grupo de pessoas. Um homem empurrando uma mesa de rodas, uma enfermeira num uniforme sujo, um convalescente com um capote militar sobre as calças de um pijama listrado, uma mulher muito volumosa num longo casaco verde e com uma criança a seu lado.

Mark Hanlon lembrou-se, com um choque de surpresa, de que o local se encontrava também sob a sua responsa­bilidade e de que os seus ocupantes estavam a seu cargo.

O local, tal como o seu nome, pareceu-lhe sinistro: Lazarett — a casa dos pobres, o lar dos inválidos, dos vencidos, o refúgio dos pobres-diabos que haviam combatido por uma causa perdida e que tinham agora de se inclinar ante os novos príncipes.

Teria de visitá-los, de inspecionar as instalações, exa­minar os seus problemas e dar-lhes uma vida normal. Hanlon estremeceu ao pensar na vergonha que eles sentiriam, e ele também, quando passasse em revista as fileiras de camas e dominasse as enfermeiras com o seu uniforme vitorioso. Que pensariam eles? Que sentiriam? Que palavras poderia ele encontrar para restabelecer neles a dignidade perdida?

Todo o combatente tinha direito a sua dignidade já que perdera todos os outros direitos ao vestir o uniforme, até o de criticar a causa pela qual morria. Como seria pos­sível fazê-los sentir que os compreendia e respeitava? Como poderia ele, Mark Hanlon, passear o seu bem-engomado uniforme e os seus botões dourados pelo meio de terríveis ferimentos, de muletas, de mãos, braços e pernas artificiais?

Hanlon lembrou-se subitamente de que não usava o uniforme, de que saíra vestido como um homem da mon­tanha, em traje de esqui e num casacão espesso, como usavam todos os quelembergueses. Esse era o momento ideal para visitar o hospital. Hanlon não hesitou, encaminhou-se para a porta e entrou no saguão.

O cabo olhou-o e falou-lhe com uma indiferença hostil.

Que deseja? Quem é você?

Hanlon dominou a irritação e respondeu o mais calmamente que lhe foi possível:

Quero falar com o oficial médico superior.

Tem hora marcada?

Não preciso de hora marcada!

Como se chama?

Não creio que soubesse escrever o meu nome, se eu lhe dissesse respondeu Hanlon, sorrindo ironicamen­te. Vamos, diga-me onde poderei encontrar o médico.

O cabo abanou a cabeça teimosamente.

Regulamentos, meu amigo. Temos de escrever o nome de todas as visitas quando chegam e outra vez quando se vão embora. Não podemos incomodar os médicos sem uma razão de peso. Diga-me o seu nome.

Hanlon, H-a-n-l-o-n soletrou ele lentamente, em alemão, enquanto o cabo escrevia num impresso.

Assunto?

Pessoal.

O lápis parou a meio caminho e o cabo resmungou impacientemente.

Não! Mais um! Somos visitados a todas as horas por toda a espécie de pessoas com assuntos pessoais. Querem saber se o Heinzi está melhor ou se o Gerhardt vai desta para melhor. Não! Tem de arranjar um motivo mais convin­cente do que esse... se quer ver o chefe.

"Vá para o diabo", pensou Hanlon, irritado e ener­vado. "Estou tentando prestar-lhe um favor e está querendo divertir-se à minha custa!"

As suas palavras foram, contudo, mais regradas do que o pensamento.

Tenho um assunto pessoal a tratar com o oficial médico superior. Não tenciono averiguar o estado de saúde de qualquer paciente. Faça o favor de me anunciar e de lhe pedir que me receba.

Lamento muito, meu amigo. Tenho de cumprir os regulamentos. Diga-me o que deseja e eu verei o que posso fazer.

Já sabe o meu nome — exclamou Hanlon. — Tenho a patente de major e sou também o comandante bri­tânico de ocupação da área de Quellenberg. Então, leva-me ao oficial médico superior ou não?

O cabo saltou da cadeira como se o tivessem picado com um alfinete e colocou-se numa posição rígida de sentido, gaguejando desculpas e tornando-se muito corado. Hanlon interrompeu-o asperamente.

Onde se encontra o chefe?

Lá em cima, major. Primeiro andar, quarto 20. Permita-me que o5 conduza. — O cabo-porteiro abotoou pre­cipitadamente o casaco e indicou ao Major Hanlon que o seguisse.

O homem que se levantou para recebê-lo surpreendeu Hanlon. Tinha quase dois metros de altura, era tão rijo como o tronco de uma árvore, possuía cabelos louros e faces muito coradas com uns olhos límpidos e azuis e punhos como pequenos presuntos. O sorriso era agradável e natural, e notava-se que sua voz profunda revelava algo da pronúncia tirolesa. Chamava-se Reinhardt Huber, tinha a patente de coronel e trabalhara em Viena e em Pádua.

Sua boa disposição foi como um tônico para o pessi­mismo que antes invadira Flanlon. O Dr. Huber não era homem de meias palavras e, após as cortesias das apresenta­ções, começou logo a falar dos assuntos que lhe interessa­vam.

Temos problemas muito sérios a resolver, major. Ajude-me a resolver os meus, pois é possível que eu também possa auxiliá-lo.

Fale-me primeiramente das suas dificuldades, Herr Doktor...

Essas dificuldades são óbvias, meu amigo. Tenho quatrocentos homens neste hotel, sendo duzentos deles casos muito sérios. Temos de tudo, desde amputações até paraplegia. Como poderei eu curá-los sem rações para alimentá-los, sem equipamento apropriado, sem medicamentos e com uns escassos restos de anestésicos? Curas por meio da fé? Nem sequer já me posso servir desse método... estes ho­mens perderam a fé e não têm a menor esperança no futuro.

Julgo poder melhorar e aumentar as rações alimen­tícias disse Hanlon calmamente. Poderei coordenar os abastecimentos locais e requisitar auxílio de outras pro­víncias. O mercado pode ser organizado de forma que aos doentes e feridos sejam dados alimentos de melhor quali­dade. Medicamentos? Duvido poder ajudá-lo nesse proble­ma. Todos os fornecimentos que existem foram enviados para as vítimas dos campos de concentração. Talvez lhe con­siga arranjar anestésicos cirúrgicos. Vou tentar, prometo-lhe.

Huber baixara o olhar e parecia incomodado.

A era das hecatombes! A perseguição dos judeus! O assassínio de uma raça! O mundo recordará essas des­graças durante milhares de anos!

Duvido de que assim seja disse Hanlon secamen­te. Um homem morto é uma tragédia, mas um milhão de mortos representa um monte de esterco. Plantem pi­nheiros à sua volta e, dentro de vinte anos, os cemitérios terão desaparecido. Deixem os jornalistas escrever o que quiserem durante o mesmo período de tempo e a verdade será enterrada sob uma montanha de palavras. É por isso que ninguém aprende as lições dadas pela história. A his­tória, de resto, já não existe... não passa de colunas que­bradas e fragmentos dispersos pelo mundo. Todo o resto são comentários e opiniões facciosas.

Huber olhou para Hanlon, tentando vislumbrar algum sinal de ironia ou troça no seu rosto, e, em seguida, soltou uma gargalhada.

Meu Deus! Será possível que tenhamos, por fim, um homem honesto, com o sentido das proporções?! Tanto a honestidade como o sentido, das proporções são coisas que nos poderão ser muito úteis! Então, não podemos contar com medicamentos, talvez nos arranje anestésicos e promete nos mais e melhores alimentos. Já é um começo...

Precisa de mais alguma coisa?

Roupas novas, camas e colchões, cobertores e ins­trumentos cirúrgicos.

Hanlon abanou a cabeça.

Tudo isso é impossível até que as prioridades sejam resolvidas, o que levará muito tempo. Que mais?

Informação. O que acontecerá aos rapazes quando lhes der alta?

Mantenha-me informado sobre os casos de alta e eu lhes darei passagens de trem, autorizações para cruzar as outras zonas e rações alimentícias suficientes para chegarem às suas terras. Ficarão, então, sob a jurisdição das autoridades locais. Se tiver algum caso especial, como não deixará de suceder, ponha-me ao corrente e eu o resolverei da melhor forma que me for possível.

O gigantesco tirolês assentiu, recostando-se conforta­velmente na cadeira e cruzando as mãos atrás da cabeça.

Temos mais sorte do que eu esperava, major. Estou-lhe muito agradecido. Diga-me o que o preocupa e talvez eu também possa ajudá-lo.

Talvez me possa aconselhar, sim — disse Hanlon lentamente.

Huber atirou a cabeça para trás e soltou uma garga­lhada. Hanlon ficou desconcertado e ligeiramente irritado com aquela atitude.

Terei dito algo de divertido, Herr Doktor?

Não, não! O que disse foi algo de inesperado e mesmo maravilhoso. Um homem que está na sua posição e pede aos vencidos que o aconselhem! Tudo o que lhe posso prometer é uma resposta, honesta ao que me perguntar.

Não lhe peço mais do que isso.

Em seguida, sem saber bem porquê — a não ser que fosse devido àquele ato de fé que por vezes faz com que um homem confie num desconhecido —, Mark Hanlon con­tou-lhe tudo o que se passara desde a sua chegada a Bad Quellenberg e todas as dúvidas que dominavam o seu espí­rito. Huber ouviu-o com toda a atenção, tornando-se muito sério, e, quando Hanlon acabou de falar, curvou-se para a frente na sua direção e disse-lhe pausadamente:

Temos, antes de mais nada, a sua posição no caso. Não vejo como pudesse ter agido diferentemente. O assassí­nio do Sargento Willis é um crime que exige uma acusação

Temos problemas muito sérios a resolver, major. Ajude-me a resolver os meus, pois é possível que eu também possa auxiliá-lo.

Fale-me primeiramente das suas dificuldades, Herr Doktor...

Essas dificuldades são óbvias, meu amigo. Tenho quatrocentos homens neste hotel, sendo duzentos deles casos muito sérios. Temos de tudo, desde amputações até paraplegia. Como poderei eu curá-los sem rações para alimentá-los, sem equipamento apropriado, sem medicamentos e com uns escassos restos de anestésicos? Curas por meio da fé? Nem sequer já me posso servir desse método... estes ho­mens perderam a fé e não têm a menor esperança no futuro.

Julgo poder melhorar e aumentar as rações alimen­tícias disse Hanlon calmamente. Poderei coordenar os abastecimentos locais e requisitar auxílio de outras pro­víncias. O mercado pode ser organizado de forma que aos doentes e feridos sejam dados alimentos de melhor quali­dade. Medicamentos? Duvido poder ajudá-lo nesse proble­ma. Todos os fornecimentos que existem foram enviados para as vítimas dos campos de concentração. Talvez lhe con­siga arranjar anestésicos cirúrgicos. Vou tentar, prometo-lhe.

Huber baixara o olhar e parecia incomodado.

A era das hecatombes! A perseguição dos judeus! O assassínio de uma raça! O mundo recordará essas des­graças durante milhares de anos!

Duvido de que assim seja disse Hanlon secamen­te. Um homem morto é uma tragédia, mas um milhão de mortos representa um monte de esterco. Plantem pi­nheiros à sua volta e, dentro de vinte anos, os cemitérios terão desaparecido. Deixem os jornalistas escrever o que quiserem durante o mesmo período de tempo e a verdade será enterrada sob uma montanha de palavras. É por isso que ninguém aprende as lições dadas pela história. A his­tória, de resto, já não existe... não passa de colunas que­bradas e fragmentos dispersos pelo mundo. Todo o resto são comentários e opiniões facciosas.

Huber olhou para Hanlon, tentando vislumbrar algum sinal de ironia ou troça no seu rosto, e, em seguida, soltou uma gargalhada.

Meu Deus! Será possível que tenhamos, por fim, um homem honesto, com o sentido das proporções?! Tanto a honestidade como o sentido, das proporções são coisas que nos poderão ser muito úteis! Então, não podemos contar com medicamentos, talvez nos arranje anestésicos e promete nos mais e melhores alimentos. Já é um começo...

Precisa de mais alguma coisa?

Roupas, novas camas e colchões, cobertores e ins­trumentos cirúrgicos.

Hanlon abanou a cabeça.

Tudo isso é impossível até que as prioridades sejam resolvidas, o que levará muito tempo. Que mais?

Informação. O que acontecerá aos rapazes quando lhes der alta?

—- Mantenha-me informado sobre os casos de alta e eu lhes darei passagens de trem, autorizações para cruzar as outras zonas e rações alimentícias suficientes para che­garem às suas terras. Ficarão, então, sob a jurisdição das autoridades locais. Se tiver algum "caso especial, como não deixará de suceder, ponha-me ao corrente e eu o resolverei da melhor forma que me for possível.

O gigantesco tirolês assentiu, recostando-se conforta­velmente na cadeira e cruzando as mãos atrás da cabeça.

Temos mais sorte do que eu esperava, major. Estou-lhe muito agradecido. Diga-me o que o preocupa e talvez eu também possa ajudá-lo.

— Talvez me possa aconselhar, sim — disse Hanlon lentamente.

Huber atirou a cabeça para trás e soltou uma garga­lhada. Hanlon ficou desconcertado e ligeiramente irritado com aquela atitude.

Terei dito algo de divertido, Herr Doktor?

Não, não! O que disse foi algo de inesperado e mesmo maravilhoso. Um homem que está na sua posição e pede aos vencidos que o aconselhem! Tudo o que lhe posso prometer é uma resposta honesta ao que me perguntar.

-— Não lhe peço mais do que isso.

Em seguida, sem saber bem porquê — a não ser que fosse devido àquele ato de fé que por vezes faz com que um homem confie num desconhecido —, Mark Hanlon con­tou-lhe tudo o que se passara desde a sua chegada a Bad Quellenberg e todas as dúvidas que dominavam o seu espí­rito. Huber ouviu-o com toda a atenção, tornando-se muito sério, e, quando Hanlon acabou de falar, curvou-se para a frente na sua direção e disse-lhe pausadamente:

Temos, antes de mais nada, a sua posição no caso. Não vejo como pudesse ter agido diferentemente. O assassí­nio do Sargento "Willis é um crime que exige uma acusação e um processo legal. Quem esconder o assassino terá de sofrer as conseqüências. Existem, porém, outras considera­ções que também são importantes. Garanto-lhe que não te­nho quaisquer compromissos locais. Não sou desta província. Sou cirurgião, o que me dá um certo desprendimento e um grande respeito pelo bisturi. Tem de pensar no assassino, Major Hanlon, e na razão desse crime sem motivo.

Bem sei — disse Hanlon, muito interessado pelas palavras do médico. — Não sei que motivo possa tê-lo leva­do a cometer o crime. Por quê? Por quê?

Vou tentar adivinhar o motivo — disse Huber, muito sério e pensativo —, mas o que lhe vou dizer é baseado na minha experiência diária adquirida neste local. Existe um limite para o que o corpo e o espírito humano podem agüentar. Qualquer homem pode enlouquecer de ter­ror, de sofrimento ou mesmo devido ao súbito contato com os males do mundo. Esses são casos extremos. Existem, con­tudo, milhares de degraus que descem para o vale da morte ou para as cavernas da loucura. A menor ferida deixa uma cicatriz nos tecidos. O menor choque deixa um risco na memória. As faculdades mentais são freqüentemente afeta­das permanentemente. Eu, por exemplo, posso curar um in­válido, mas não posso fazê-lo andar direito e sem muletas. Da mesma forma, também me é impossível fazer com que uma mente inválida pense direito. O Major Hanlon é um militar. Deve saber o que a guerra pode fazer ao homem mais normal. Já sabe que há homens que perdem completa­mente a cabeça com o ruído dos canhões e outros que ficam paralisados, como se caíssem num estado cataléptico. Lembra-se, com certeza, de que alguns ficam excitados, e pertur­bados ao verem sangue e outros transpiram de terror ao se­rem fechados no compartimento de um vagão...

Hanlon aquiesceu, atento e pensativo. Aquele novo pensamento era vagamente reconfortante. Huber continuou a falar:

Pelo que me disse desse crime — a rapidez com que foi cometido e a aparente falta de motivo —, fiquei convencido de que o assassino está temporária ou permanen­temente num estado mental anormal.

Mais uma razão para me entregarem o homem — disse Hanlon secamente —, antes que cometa outro crime.

Concordo inteiramente com o senhor.

Qual será então a razão desta barreira que estão erguendo à minha volta? Para que estarão eles querendo transformar-me num carrasco e fazer do assassino um mártir?

Isso já é uma questão inteiramente diferente disse Huber, sorrindo e perdendo algo da seriedade que antes aparentara. Se... se me oferecesse um cigarro, major, eu não o recusaria.

Desculpe-me. Esqueci-me de que o tabaco estava racionado disse Hanlon, estendendo a cigarreira a Huber. Os dois homens permaneceram silenciosos durante alguns momentos, fumando e pensando nos problemas que os ator­mentavam, e em seguida Huber quebrou o silêncio e reto­mou o fio da meada.

Terá de tentar compreender esta gente, major. Pro­cure saber como vivem e o que pensam.

Julgava compreendê-los disse Hanlon, desani­mado e perplexo. Vivi com eles durante bastante tempo.

Onde? Quando?

Antes da guerra. Fui noviço jesuíta em Graz. Estive lá quatro longos anos.

Isso explica muita coisa.

O quê?

A perfeição com que fala a nossa língua. O fato de ser simpático e mais liberal do que eu poderia esperar.

Para o senhor, talvez... mas eles não pensam assim.

Dê-lhes tempo, meu amigo, dê-lhes tempo. Esta gen­te também está sofrendo o choque dos efeitos da guerra. Huber levantou-se e começou a andar lentamente pelo quarto, pondo os seus pensamentos em palavras, de início com uma certa dificuldade e, logo a seguir, com uma eloqüência enfática que surpreendeu Mark Hanlon. Os ha­bitantes das regiões montanhosas, tal como sucede no meu distante Tirol, estão a séculos de distância dos habitantes das cidades e da planície. A culpa é das montanhas, porque constituem uma barreira ao progresso, uma fronteira atrás da qual se esconde o melhor e o pior dos velhos hábitos e tradições. A própria linguagem é diferente nas montanhas. Os vales e os desfiladeiros mais para o interior ainda são dominados pela influência das antigas tribos: os celtas, os alemães, os cimbros, os godos e os vândalos! Estude as suas crenças e verá que adoram o Cristo à sombra dos velhos deuses. Os montanheses são desconfiados e temperamentais. Um homem que viva num outro vale é considerado um des- conhecido, um inimigo potencial. Um Ausländer, como vê, é tomado por eles como um homem de outro planeta. Eu, por exemplo, poderia ficar em Bad Quellenberg até o resto dos meus dias e esta gente continuaria a chamar-me de "imi­grante", tal como o fazem aos hoteleiros e comerciantes que vieram instalar-se aqui. Olhe para estas terras e talvez apren­da algo sobre a gente local, pois deve ser o que mais impor­tância tem para eles. Os prados são quase inexistentes, A última ceifa de pasto da temporada tem de alimentar todo o gado durante os meses de inverno. Essa escassez limita o número de reses; e cada uma delas é uma verdadeira pre­ciosidade. Os pinheiros abundam, e valem bastante dinheiro, mas os montanheses só podem cortá-los e vendê-los em redu­zido número, visto que os pinheiros é que detêm as ava­lanchas e impedem que o vale seja arrasado. A matança de um porco é um grande acontecimento, pois a família vive muitas semanas de pão preto, de porco salgado e do leite de uma vaca. Às sextas-feiras não comem carne e, por isso, não podem abusar da pesca no rio, para não sofrerem o risco de ficar sem peixe para os dias sagrados. Quando um filho morre, na guerra ou de morte natural, isso signi­fica que a família conta com menos um homem para manejar o machado ou ceifar o capim que servirá de pasto no inver­no. O filho que nasce é mais uma boca que tem de ser ali­mentada, mas que, por outro lado, assegura a continuidade da família. A vida desta gente é muito dura, como vê, e o seu futuro é extremamente incerto. Tudo o que possuem, que é bem pouco, é considerado uma riqueza que não podem perder. Todas as suas ações são uma homenagem à vida, o seu sentimento predominante é o de que não têm o direito de perder o que uma vez ganharam ou adquiriram... — Huber parou de falar, hesitando e sorrindo, como que a pedir desculpas da longa dissertação. — Não sei se tudo isto lhe diz alguma coisa, mas...

Interessa-me muito e tudo está certo, mas não me facilita a tarefa.

Tem razão. Espero, porém, que estas considerações o disponham melhor com os quelembergueses.

Hanlon levantou-se e estendeu a mão a Huber.

Não me esquecerei do que me disse, Doktor. E mui­to obrigado.

O prazer foi meu. Agrada-me saber que o auxiliei um pouco e só lamento não poder retribuir-lhe tudo o que prometeu fazer por nós. Deseja visitar o resto do hospital?

Não, obrigado. Fica para outro dia. Devo dizer-lhe que já estou bastante cansado.

Vou acompanhá-lo até a porta.

Os dois homens saíram do quarto, que era o consultório do Dr. Huber, e Hanlon esbarrou em uma jovem que passa­va apressadamente pelo corredor. O major afastou-se e mur­murou umas palavras de desculpa, mas Huber agarrou-a pelo braço e puxou-a para junto deles.

Mais devagar, Fräulein. Desejo apresentar-lhe este meu amigo — disse Huber, fazendo as apresentações com uma boa disposição um pouco formal. — Fräulein Anna Kunzli; Major Hanlon, comandante das Forças de Ocupa­ção. Fräulein Anna Kunzli é uma das minhas ajudantes vo­luntárias. O seu trabalho é auxiliar os amputados a se ser­virem dos membros artificiais.

Tenho muito prazer em conhecê-la, Fräulein... foi Kunzli que disse, não foi?

—- Isso mesmo — confirmou Huber, olhando rapida­mente para Hanlon com uma estranha expressão no olhar. — Herr Doktor Kunzli é uma das personalidades de maior relevo em Bad Quellenberg.

Já o conheci. Foi visitar-me esta tarde — informou Hanlon cuidadosamente.

Esta jovem é sobrinha dele.

Que coincidência...!

Huber não perdeu tempo e tentou mudar o rumo da conversa, a fim de desviar a atenção da moça da aparente hesitação de Hanlon.

Como vão os seus pacientes, Anna?

Bem... muito bem. Basta encorajá-los um pouco para que façam todo o possível. O pior é que se cansam muito depressa.

É possível que, graças ao Major Hanlon, possamos alimentá-los melhor brevemente. Passarão a ter mais forças e já não se cansarão como agora.

Isso seria maravilhoso, verdadeiramente maravilho­so! — O seu prazer era tão genuíno, o seu sorriso tão sincero, que Hanlon começou a observá-la com uma certa curiosidade. Hanlon já tinha idade suficiente para profes­sar um cinismo salutar relativamente às mulheres, mas a inocência refrescante da jovem tornava-se bastante surpreen­dente para ele.

Levará algum tempo, mas vou já começar a tratar da questão — disse Hanlon, com um sorriso gentil e bon­doso assomando-lhe ao rosto.

Aonde vai agora, Anna? — perguntou-lhe Huber.

Para a igreja. Estamos ensaiando o réquiem de ama­nhã. O crime foi... foi uma coisa terrível, major. Estamos todos muito perturbados com o que sucedeu. É por isso que fazemos todos os esforços para que o funeral seja uma ceri­mônia digna e formal. O coro estará todo presente e...

Talvez não se importe de que eu a acompanhe. Vou para o mesmo lado. — Hanlon dissera aquelas palavras sem pensar e como se não estivesse muito seguro de si, mas a moça aceitou-as com simplicidade e franqueza.

Muito obrigada. Tenho muito prazer nisso.

Hanlon e Anna despediram-se de Huber, e este ficou vendo-os afastar-se pelo corredor, pensando vagamente nas ligações que poderia haver entre o comandante e Sepp Kunzli e nas conseqüências desse encontro com a sobrinha de Kunzli. A jovem vestia a sua inocência como uma armadura e Hanlon estava demasiado preocupado com o complicado exercício do poder. O tempo, contudo, faria com que ambos se deitassem numa cama, juntos ou cada um deles com qual­quer outra pessoa, o que não importava, desde que novo sangue viesse a dar nova vida àquelas terras cujos jovens haviam perecido nos campos de batalha ou se encontravam, desesperados e impotentes, nos quartos do 121. Allgemeines Feldlazarett.

Os pensamentos de Hanlon estavam bem longe de uma aventura sexual ou da possibilidade de dar novos filhos a Bad Quellenberg.

Ao sair do hospital, com a moça a seu lado, Hanlon ia furioso consigo próprio. A sua cortesia fora um erro diplo­mático. Estabelecera um elemento pessoal em relações que, para obterem êxito, teriam de se manter impessoais.

Ela era agora uma ligação, ainda que muito ligeira, entre ele e Sepp Kunzli. Este, por causa dela, poderia insistir em estreitar as relações existentes entre eles. A inocência de Anna poderia também estabelecer um limite nos seus con­tatos com um homem que, como ele próprio, estava longe de ser um inocente. Era verdade que podia ignorar as even­tuais cortesias de Kunzli, mas isso significaria uma certa falta de educação que não condizia com a personalidade de Hanlon.

Mark Hanlon tapou a cabeça com o capuz e confiou em que ninguém o reconheceria quando passassem pelo setor mais iluminado da vila. Aquele insignificante incidente pode­ria dar início a uma série de rumores e intrigas que Hanlon queria evitar a todo custo. O fato transformá-lo-ia aos olhos dos quelembergueses num ser humano igual a todos os outros, e ele queria manter-se, embora apenas aparentemen­te, acima da sua condição humana, a fim de nada perder da sua autoridade moral.

Hanlon começou a andar mais depressa, quase incons­cientemente, e a moça foi forçada a dobrar o passo para poder acompanhá-lo. Anna não se queixou, mas, passados momentos, escorregou num pedaço de gelo solto e teria caído se o comandante não a tivesse agarrado com o seu braço possante. O gesto aproximara-a dele e Hanlon sentiu o calor do seu jovem corpo, percebendo ao mesmo tempo que os seus receios eram injustificados. Limitava-se a acom­panhar uma jovem com menos dez anos do que ele. Tratava-se de uma mera cortesia, de uma insignificância. Que as in­trigas fossem para o diabo! Que as diplomacias fossem para o inferno!

Mil desculpas pediu ele, dirigindo-se calorosa­mente a ela. Não tinha notado que andava tão depressa. Deixe-me dar-lhe o braço.

Muito obrigada.

Mark Hanlon e Anna Kunzli continuaram a andar, ago­ra lentamente, e alcançaram uma rua ladeada por colunas, com tabuletas de lojas inadequadas e vitrinas vazias e sem brilho. Bad Quellenberg não recebia qualquer espécie de mercadorias havia já algum tempo, e as lojas pouco tinham para vender, permanecendo abertas mais por hábito do que por utilidade. Nenhum dos passantes lhes prestou a menor atenção e os poucos que Hanlon viu pareciam indiferentes a tudo o que os rodeava.

A vila está muito triste, não acha?

A guerra é uma coisa muito triste — respondeu-lhe Mark Hanlon.

Não é a guerra, mas sim o fim da guerra. Nada lhes parece valer a pena, agora... Não sabem o que fazem, nem o que hão de fazer.

Também se encontra nesse estado, Anna?

Não... eu não.

Por quê? Que a faz diferente dos outros?

Deve ser por não ter nada a perder. A franqueza e a simplicidade dela desarmaram completamente Hanlon. — O meu pai morreu num avião abatido sobre a Inglaterra. A minha mãe morreu em Viena. Vim viver com o tio Sepp. Gosto muito dele, mas ele não me tem grande afeto. É por isso que não receio perdê-lo. Sou muito nova e preciso de pouca coisa. Tenho sorte, suponho...

Tem mais sorte do que julga. — Hanlon dissera aquelas palavras ao mesmo tempo que se perguntava quanto tempo duraria essa sorte e o que aconteceria quando o dese­jo despertasse em Anna e todo o seu ser quisesse algo que não pudesse alcançar.

A pergunta seguinte de Anna deixou-o perplexo e mo­mentaneamente sem fala.

É católico, major?

Bem... sim. Sou, sim. Por quê?

O Padre Albertus dizia que teríamos muita sorte se o comandante da ocupação fosse católico. Disse tam­bém que os católicos de todo o mundo acreditam nas mesmas coisas e por isso compreendem-se melhor uns aos outros e ajudam-se mutuamente.

Mark Hanlon alegrou-se por ter o rosto tapado, e ela não poder ver a ironia do seu sorriso.

Nem sempre é assim, Anna. É verdade que temos as mesmas crenças, a mesma fé, mas nem sempre é possível pôr em prática o que desejaríamos. Os católicos podem ser tão brutais entre eles como os budistas ou os luteranos. Po­dem mentir e portar-se tão mal como os homens de outras religiões. Foi um católico que quebrou os dedos do Padre Albertus.

Nunca consegui compreender a razão de brutalida­des como essa.

Leva muito tempo a compreender — disse Hanlon suavemente.

O resto do caminho até a porta da igreja foi feito em silêncio, e, quando Hanlon se despediu, Anna hesitou ligei­ramente e depois estendeu-lhe a mão e agradeceu-lhe a companhia.

Espero que nos venha visitar... um dia... breve­mente. Tenho certeza de que o tio terá muito prazer em vê-lo, major.

Talvez mais tarde, quando as coisas estiverem mais calmas.

Auf Wiedersehen, major.

Auf Wiedersehen, Fráulein Anna.

Mark Hanlon ficou alguns momentos a olhar para a silenciosa floresta de cruzes de madeira, no cemitério para além da igreja, e ainda ouviu os primeiros acordes do órgão e o som das vozes — tão jovens e límpidas como o ar fresco da montanha. A neve caía lentamente sobre a sua cabeça e sobre os seus ombros cansados. Hanlon continuava a ouvir o som melodioso das vozes, e nem o frio que lhe penetrava o sangue, como se fora uma morte lenta, parecia incomodá-lo.

 

                                         Capítulo 5

Quando a Mädchen retirou da mesa o último prato do jantar, Max Holzinger explodiu num ataque de fúria.

O tipo é um intriguista do pior calibre! É o pior homem que nos podiam ter mandado! Parecia ser simpático, de começo, e quase me fez confiar nele. Depois, de repente, tornou-se muito frio e sorriu como se gostasse de me tor­turar. Nunca fui tão humilhado e nunca me senti tão desa­pontado como hoje!

A mulher e a filha não desviavam os olhos dele, observando-o a andar de um lado para outro e ouvindo suas quei­xas sobre o seu primeiro encontro com as Forças de Ocupa­ção. Holzinger voltara para casa deprimido e silencioso. Comera pouco e bebera o dobro do vinho que bebia habi­tualmente. Gritara com a criada, e esta saíra da sala de jantar chorando logo que a refeição terminara. Depois, so­zinho com a família e ligeiramente embriagado, Max Hol­zinger desabafara a fúria que lhe enchia a alma.

...A sua atitude na cerimônia do funeral foi hor­rível, uma atitude não para honrar o morto, mas sim para humilhar a população e fazê-la sentir a força da nova autori­dade. Está organizando uma perseguição ao pobre rapaz, calculem vocês! Como se já não estivéssemos todos fartos de perseguições! Já agora também podia servir-se dos cães da polícia alemã! Tive uma longa conversa com Fischer e decidimos não cooperar com ele. Vamos dar-lhe uma li­ção e...

Você é um imbecil, Max! — exclamou Liesl Holzinger, o veneno da sua voz detendo o marido no meio da frase.

Quê? Que disse você?

Você é um imbecil e um louco por sé unir a esse Fischer e também por se opor ao Engländer. O comandante, se quiser, pode dar cabo da nossa vida!

Max Holzinger sentiu um vago receio daquela nova mulher que lhe falava tão asperamente. Estava habituado, como quase todos os seus compatriotas, a uma submissão incondicional da esposa e não compreendia o que se passava.

Você não percebe essas coisas, Liesl. Trata-se de política... coisa de homens. Temos de nos mostrar fortes ou acabaremos todos por ser verdadeiros escravos. Digo, Liesl, que...

Sou eu que digo, Max! Liesl levantara-se, os seus olhos a faiscarem de fúria, e aproximara-se dele. A filha ficou surpresa ao ver que o pai parecia um anão em frente da mãe e que ficara assustado com aquele súbito ataque ver­bal. Já passou o tempo em que você podia decidir impu­nemente o que dizia ou não respeito a mim. Não volte a afirmar que não entendo dessas coisas. Fique sabendo que mudei muito! Por quê? A minha vida está em perigo e, com ela, a de Traudl e também a de todas as outras mu­lheres como nós. Esse homem, o comandante, o destruirá se o combater... e a nós também! Já não é a primeira vez que você e outros sonhadores dão cabo da nossa vida. Você matou o meu filho...

Liesl, peço-lhe que...

—- Não, Max! Já é demasiado tarde. A guerra acabou! Você perdeu a guerra, você e os seus! Temos paz, agora, e não vamos permitir que a perca!

Liesl, não compreende o que ele quer de nós. Pre­tende que lhe entreguemos um rapaz... quer que sejamos delatores... como... como...

Entreguem-lhe o rapaz! exclamou a irada Liesl. — Entreguem-lhe quem ele quiser e vivámos em paz e sos­sego. Entregou-lhes o nosso filho, não é verdade? Não fez qualquer combinação com Fischer para escondê-lo quando o chamaram para a tropa, não é verdade? Para que quer salvar esse assassino?

Não compreende... — Holzinger hesitou e gague­jou, visto que o seu estado de espírito nascera do seu amor-próprio ferido e não de qualquer argumento razoável. É difícil de explicar, mas...

Eu é que vou explicar uma coisa a você, Max. Liesl falava mais calmamente agora, mas o tom da sua voz era frio e distante. Se persistir nessa sua atitude, Max, asseguro-lhe que o deixo para sempre. Eu e a sua filha. Ire­mos ambas ao Engländer e lhe explicaremos a nossa posi­ção. Diremos o que você fez a esta casa. Diremos também que não queremos nos meter em política ou combinações como aquela que você fez com Fischer, que só queremos estar sossegadas e refazer a nossa vida. Estou convencida de que ele nos dará ouvidos e de que não nos deixará morrer de fome.

Não se atreva a fazer-me uma coisa dessas!

Engano seu. Sou muito capaz de fazê-lo... e Traudl também.

Holzinger olhou para a filha, que estava deitada num sofá, fumando placidamente e observando os pais com a fria ironia de uma jovem desiludida.

Seria capaz de me fazer uma coisa dessas, Traudl?

— Sem a menor dúvida, pai — respondeu ela, sor­rindo. — Toda a nossa vida tem sido sempre decidida pelo senhor. Concordo inteiramente com a mãe. Já é tempo de as mulheres terem a palavra e de mudarem este estado de coisas.

Max Holzinger fora vencido e sabia-o bem. Um homem pode lutar contra todos os inimigos, menos com os que vivem na sua própria casa. Então, olhou longamente para a mulher e para a filha, e, ao perceber que nada podia fazer, o desânimo invadiu-lhe o rosto e, subitamente, pareceu ter envelhecido muitos anos. Levantou-se e dirigiu-se para a janela, ficando a olhar a paisagem durante outro longo momento. Quando voltou a falar, agora transformado num homem diferente, sua voz era hesitante e surda:

Não... não sei o que querem que eu faça...

Faça-se amigo desse Hanlon, pai. Coopere com ele. Combine o que lhe apetecer com Fischer, mas lembre-se sempre de que quem manda é o comandante da ocupação. O inglês sentir-se-á muito só e não tardará a querer fazer ami­gos. Todos os homens que estão longe da sua terra e das suas próprias mulheres se sentem sós e abandonados. Seja simpático com ele. Convide-o a vir aqui a casa, quando tiver uma ocasião para o fazer.

E depois?

A mãe e eu faremos o resto.

Max Holzinger não respondeu durante uns bons trinta segundos, e só então é que pareceu apreender o significado daquelas palavras. A sua voz, em resposta a essas palavras, baixara de tom e não passava de um murmúrio:

Percebe bem o que acabou de dizer? É... é qua­se obsceno.

Será, pai? — O rosto de Traudl abriu-se num sor­riso amargo e irônico. — Parece-me que toda a vida é uma espécie de obscenidade: a forma como as crianças são feitas, como nascem e como morrem mais tarde, destruídas no cam­po de batalha pelas balas dos inimigos; a forma como as mulheres voltam a ter filhos devido aos homens voltarem para casa e quererem o seu amor sem pensarem no que elas sofreram. O mundo é assim. Não vejo por que possa ter razão para se queixar.

Não quero ver a minha filha transformada numa mulher fácil.

Esse é um risco que um homem corre quando tem uma mulher e uma filha — disse Liesl Holzinger friamente. — Mas, com arte, é até possível que o inglês se case com a nossa filha.

Max Holzinger olhou para uma e para outra -— a mu­lher forte e loura que era sua esposa e a linda jovem mo­rena que era sua filha —, e uma velha dúvida voltou à superfície do seu espírito cansado. Max Holzinger desejaria muito saber se a história não estaria se repetindo naquela sua casa de Bad Quellenberg.

Karl Adalbert Fischer também tinha os seus problemas, mas de uma espécie muito diferente.

As linhas telefônicas que ligavam Quellenberg às al­deias da montanha estavam cobertas de neve e de gelo e as conversas eram levadas a cabo através de um ruído inces­sante, provocado por interferências e semelhante ao de ovos fritando. Fischer via-se obrigado a gritar para se fazer enten­der, e o seu cunhado, Franz Wikivill, era um homem obsti­nado que necessitava de que lhe repetissem constantemente as coisas para compreender o que lhe diziam.

Ouça, Franz, pelo amor de Deus! Não discuta co­migo. Diga-me o que se passa. O rapaz está em casa ou quê?

Está em casa, sim... mas...

Como está ele? Saberá o que fez?

— Não me diz coisa alguma com nexo. Não o com­preendo... Estava num estado terrível quando chegou a casa. Deitou-se na cama e fica a olhar para o teto permanen­temente!

Tirou-lhe as armas?

Quê?

Perguntei se você o desarmou!

Como poderia eu tê-lo feito? Não quer largá-las!

Gott in Himmell! Que espécie de loucos são vocês todos? Está bem! Ouça-me com atenção. Quero que o leve já para o abrigo de esqui no pico Gamsfeld.

Já é muito tarde, Karl. Está nevando. Bem sabe que, mesmo de dia, é muito difícil chegar lá.

Leve-o para lá esta noite se não quiser que ele durma na prisão amanhã! Fischer quase chorava de raiva e frustração. Os ingleses vão fazer uma busca pelas co­linas e o Gamsfeld é o sítio mais seguro, pelo menos por agora. Tentarei ir lá visitá-lo amanhã.

Não compreende, Karl. O rapaz não quererá ficar lá. Não pára quieto... Só pensa em sair para as colinas. Está muito bem e normal, mas, de vez em quando, fica num estado terrível, e ninguém consegue acalmá-lo. A única pes­soa com quem ele fala é a irmã, e mesmo ela...

Mande-a para o abrigo com ele. A sua filha é forte e saudável. Não terá medo da viagem. Diga-lhes que levem alimentos e água. Ainda há lá combustível suficiente para os primeiros dias.

Não podemos continuar assim, Karl. A voz do cunhado parecia amedrontada e quase em pânico, apesar da distância e da interferência nas linhas. Não poderá le­vá-lo para outra zona?

Que outra zona?! Os franceses e os americanos se­riam logo notificados de que o rapaz é fugitivo dos ingleses. E ele seria enviado para aqui assim que o identificassem. Os russos, esses, não estariam com meias medidas e o enviariam imediatamente para a Sibéria, se não o matassem no mesmo instante em que o apanhassem vivo. A única possibilidade de salvá-lo será conduzi-lo de colina para colina, de escon­derijo em esconderijo.

Não lhe poderia arranjar documentos falsos?

Posso, sim! O que não posso é dar-lhe outra cara. Se pudesse fazer isso... tudo seria diferente... — Fischer fizera uma pausa e ficara pensativo. Acabara de ter uma nova e surpreendente idéia. Talvez fosse possível. . . sim. Esta nova idéia fascinava-o e ia tomando forma no seu cérebro imaginativo.

Karl!... Karl!... Alô!... — disse a distante voz, em conseqüência do silêncio de Fischer.

Alô, sim. Estava pensando numa outra possibili­dade. Tenho de ir embora. Vou tentar...

Não ouço o que diz...

Não importa. Mande o rapaz para o Gamsfeld ainda esta noite. Sem falta, ouviu?

Mas, Karl, penso que...

Mande-o para lá! Se não o fizer... ouça-me bem... lavo as minhas mãos deste problema, e o rapaz será enfor­cado. Auf Wiedersehen, Franz.

Fischer desligou abruptamente e ficou imóvel durante alguns segundos, um sorriso triunfante bailando-lhe no rosto.

Uma nova cara! Bastaria dar um novo rosto ao rapaz e este seria um homem diferente, um novo homem! Nin­guém o perseguiria ou o castigaria. A descrição que Hanlon fizera do assassino referia-se a um homem magro, alto e com uma grande cicatriz ao longo da face direita. Um ci­rurgião plástico poderia eliminar a cicatriz muito facilmente, e o caso nunca iria adiante devido ao processo de identifi­cação.

Um novo rosto e novos documentos permitir-lhe-iam enviar o sobrinho para a Zona Americana, e ele depois que se cuidasse como pudesse. Fischer tinha amigos em Salzburgo que não se negariam a ajudá-lo. Quanto mais o chefe da po­lícia pensava nesta brilhante idéia, que lhe ocorrera tão subi­tamente, mais ela lhe agradava!

Fischer aproximou-se do cofre, abriu-o e tirou lá de dentro o seu importante e pesado livro de apontamentos, sentando-se à mesa e começando a folheá-lo. O chefe da polícia não tardou a encontrar o que procurava, e, com um sorriso satisfeito, começou a ler a história privada de Rudi Winkler.

Winkler visitara freqüentemente Bad Quellenberg du­rante o período áureo da vila. Vinha de férias, e parecia ter muitos amigos entre as mais ilustres personalidades do par­tido. Comprara depois um lote de terreno numa das avenidas menos concorridas de Quellenberg e construíra uma vivenda de madeira que decorara em estilo rústico, contratando ao mesmo tempo uma viúva ossuda e calada para cuidar da casa.

A vivenda encontrava-se sempre cheia de jovens louros durante as férias de verão, e estes rapazes passavam o tempo fazendo alpinismo, nadando nus nas lagoas da montanha, be­bendo muito vinho e cantando Lieder até as primeiras horas da manhã.

A alta sociedade de Bad Quellenberg pouco sabia dele, visto que Winkler era um homem bastante agradável e mui­to discreto, e também graças ao fato de a sua governanta não ser mulher de intrigas, embora não aprovasse muitas das coisas que se passavam na vivenda. Os documentos de Winkler pouco revelavam. Era médico, ao que parecia, encar­regado dos serviços clínicos de uma obscura unidade das SS na Bavária. Esta informação era suficiente para um turista, mas, quando Winkler se tornou proprietário em Bad Quellenberg, Fischer não descansou enquanto não investigou o seu passado e anotou algo de importante no seu dossiê.

A investigação levou certo tempo e paciência, mas Fis­cher conseguiu o que queria.

Winkler fora cirurgião em Munique — um homem de talento e de renome na prática da cirurgia plástica. Dera-se um escândalo entre um de seus filhos, um adolescente, e o filho de um alto funcionário do Partido Nazista. O rapaz fora espancado durante uma festa escandalosa e morrera de­vido aos ferimentos. O escândalo fora abafado rapidamente e Winkler resolvera sair de Munique e dedicar-se a outro trabalho. A unidade das SS era um campo de concentração da Baviera, e, pelo que Fischer descobriu, Winkler entretinha-se a fazer experiências plásticas com os presos políticos e judeus.

Fischer não descansou, também, enquanto não conse­guiu uma grande quantidade de pormenores — nomes, da­tas, moradas, etc. — e os escreveu cuidadosamente no seu livro.

Winkler viera instalar-se definitivamente em Bad Quellenberg logo que os Aliados começaram a invadir a Alema­nha. A Áustria ainda pertencia à Alemanha; ele estava vi­vendo em sua casa, possuía documentos em ordem: o seu estado legal não oferecia qualquer dúvida. Fischer nunca o incomodara, alegrando-se agora por poder beneficiar-se da­quilo que descobrira.

O chefe de polícia fechou o livro e voltou a guardá-lo no cofre. Saiu a seguir para a rua, sabendo o que teria de fazer. Já era tarde e ainda não jantara. Tinha, porém, a cer­teza de que Rudi Winkler o convidaria com todo o prazer.

Fischer ficou muito surpreso ao verificar que Winkler era um anfitrião muito generoso e que a antipática viúva era uma excelente cozinheira. O jantar foi agradável, e Fis­cher apreciou tanto a companhia de Winkler como a truta e a salada que lhe serviram. Os dois homens discutiam fria­mente o assunto em questão como se este não passasse de um negócio.

Fischer e Winkler beberam um litro de Gumpoldskirschener e terminaram o jantar com um Apfelstrudel, leve como as asas de um anjo. Fischer ainda saboreava as últi­mas migalhas quando Winkler lhe sorriu, muito satisfeito, e lhe falou num tom de voz amigável:

Devo dizer-lhe, meu caro amigo, que a sua idéia me agrada imensamente.

Fischer ficou olhando para ele, silencioso e incrédulo. O médico não parecia assustado. Parecia mesmo divertir-se com a proposta. Isso era encorajador, por um lado, mas, por outro, era muito estranho e mesmo sinistro. Fischer, sem saber bem o que havia de pensar, resolveu pôr os pingos nos ii.

Não estou brincando, Winkler, acredite-me. Ou faz o que lhe pedi ou, então, não hesitarei em denunciá-lo às Forças de Ocupação. Já sabe o que isso significa. Kaputt! Não teriam o menor dó de você!

Kaputt para nós dois! disse Rudi Winkler, sol­tando uma gargalhada.

Não esteja tão certo disso resmungou Fischer. Eu tenho circunstâncias atenuantes. O rapaz é da minha família. Você não tem qualquer desculpa pelo que fez... e o que fez é vergonhoso e horrível.

Winkler continuava a rir. Os seus olhos pareciam re­velar a inocência inconsciente de uma criança. A sua voz li­geiramente efeminada parecia falar de um assunto, trivial, de um mero acontecimento social.

O meu passado vai ser enterrado esta noite. Nunca mais pensaremos nele, nunca mais nos referiremos a ele. Vai arrancar a minha folha do seu livro. Vai me dar, meu caro amigo, novos papéis, um novo passado e também um novo futuro. Em troca, Fischer, eu darei um novo rosto ao seu sobrinho.

Poderá fazê-lo?

—- Não tenho a menor dúvida. Não sei se lhe darei uma cara melhor ou pior do que a que tem, já que isso de­pende dos meus nervos e de sentir ou não uma certa inspi­ração criadora. Asseguro-lhe, contudo, que lhe darei um rosto inteiramente diferente. Sem a menor dúvida!

Onde é que fará a operação?

Aqui, com certeza. Na intimidade e no conforto da minha casa. Espero que o seu sobrinho seja um rapaz agradável e simpático. Estou muito só. A companhia de pessoas simpáticas é imensamente reconfortante para mim.

O meu sobrinho é bom rapaz quando está normal - disse Fischer, irritado com o tom despreocupado do outro.

É médico, como você. É também muito inteligente, o que me admira, devido ao fato de o marido da minha irmã ser um perfeito imbecil. Mas quando é atacado por instin­tos violentos... — Fischer calou-se e foi assaltado por um novo pensamento. — Como é que conseguirá dominá-lo?

Por meio de sedativos — disse Winkler alegre­mente — que terá naturalmente de me arranjar. Vou dar-lhe uma lista de drogas, anestésicos e outras coisas de que pre­ciso. Deus sabe onde poderá encontrar tudo isso, mas nada posso fazer antes de ter todos os medicamentos e instru­mentos.

Esteja descansado, encontrarei tudo o que me indi­car. Deseja, mais alguma coisa?

— Preciso de alguém que me assista durante as ope­rações. O ideal seria uma enfermeira ou um estudante de medicina. Se isso não for possível, como talvez suceda de­vido ao aspecto confidencial do caso, contentar-me-ei com qualquer pessoa inteligente e de confiança.

Vou pensar nisso, mas desde já lhe digo que, nos dias que correm, não confio em quem quer que seja.

Está cheio de medo, ao que parece... — disse Winkler, rindo maliciosamente.

Estou, sim — respondeu Fischer com toda a sin­ceridade. — O medo obriga-me a ser cauteloso.

Eu nada receio.

Já percebi isso, mas não compreendo a sua atitude.

Winkler sorriu. Os olhos inocentes iluminaram-se es­tranhamente. As mãos delicadas agitaram-se, como borbo­letas, num gesto de indiferença.

Sou um epicurista, meu caro Fischer. Já provei todos os prazeres da vida, incluindo o mais sutil de todos... que foi ver um homem morrer lentamente sob as minhas mãos meticulosas. Tenciono prolongar a minha vida num conforto assaz modesto, graças a você, meu amigo. Se, con­tudo, a minha vida tiver de ser encurtada, não me importarei grandemente, e o fim não será ditado por outrem, mas sim por mim. — Winkler tirou do bolso uma pequena cápsula de gelatina e mostrou-a a Fischer. — Olhe para isto, meu amigo. A morte aqui entre os meus dedos. Posso aceitar ou rejeitar a morte conforme me apeteça. Que razões me poderiam obrigar a ter medo de você ou de qualquer outra pessoa? Ninguém me pode fazer mal, e até considero a minha eventual morte como uma espécie de último prazer. Compreende o que lhe digo e a razão de eu não ter medo?

Fischer aquiesceu com um gesto de cabeça, mantendo-se silencioso, mas estremecendo ao escutar aquelas palavras macabras. O chefe de polícia ouvira contar coisas terríveis sobre os campos de concentração; todavia encolhera os ombros, da mesma forma que os americanos ou os ingleses não dariam grande importância a rumores sobre algo de brutal ou injusto que se passasse nos seus países.

Os campos de concentração existiam, a fim de reunir todos os indesejáveis e pessoas deslocadas sob o domínio de uma autoridade legal. Não havia outro meio de fazer isso. A lei e a ordem tinham de ser asseguradas. Ninguém podia se opor às autoridades. Os habitantes de uma região tão remota como Bad Quellenberg podiam, contudo, es­quecer facilmente a existência dos campos de concentração. Só agora é que Fischer conhecia o gênero de homem que florescera no seio cruel desses campos e via quão pouco ho­mem ele era, na realidade. O chefe da polícia estremeceu de horror ao compreender que acabara de se associar a ele.

Sepp Kunzli saboreava o seu brandy e ouvia com apa­rente indiferença o que a sobrinha lhe contava sobre o seu encontro com Mark Hanlon. A narrativa excitava-a — um novo homem, um Ausländer, um oficial das Forças de Ocupação entrara no pequeno círculo da sua vida. Anna recordava todos os pormenores: o vestuário que ele trajava, a sua voz, o seu rosto. Repetia agora ao tio, quase literalmente, todos os comentários lacônicos que Hanlon fizera.

Kunzli fingia-se desinteressado e sorria de uma forma distante e indiferente, mas, para além dos seus olhos me­tálicos e mortos, o cérebro ia-lhe registrando tudo o que ela dizia, para futura referência; a soma daqueles fatos triviais juntava-se à sua própria experiência. O resultado final per- turbava-o. Homem sutil como era, depressa reconhecia o mesmo talento em outros, e ainda mais depressa via o peri­go que isso poderia representar.

Sepp Kunzli interrogou a sobrinha com um desinte­resse manifesto e como se tentasse apenas ser cortês para com ela.

Que teria ele ido fazer no hospital?

Já lhe disse, tio. Foi visitar o Dr. Huber. Prome­teu arranjar-nos mais comida para os doentes.

Isso talvez fosse precipitado — disse Kunzli sua­vemente —, uma vez que estamos no inverno, que os abas­tecimentos são reduzidos e que o mercado negro consegue apoderar-se da maioria deles antes de saírem das cidades.

O comandante não faria uma promessa sem poder cumpri-la, não é certo?

É provável que não. Tive a impressão de que é um homem muito cuidadoso. Acompanhou você até a igreja, não foi o que me disse?

Foi, por quê?

—- Não compreendo por que não entrou. Disse-me que ele era católico... é estranho que tenha ficado à porta.

Pensei em convidá-lo a entrar para nos ouvir can­tar, mas... depois... não tive coragem — disse Anna, acrescentando com uma expressão inocente: — Os homens não se interessam muito por coisas da igreja, não?

Nem tanto — respondeu Kunzli secamente. — A propósito...

O quê, tio?

Ainda não lhe disse, mas o Major Hanlon pediu-me que fosse à Suíça tratar de uns assuntos.

Isso é maravilhoso! Que assuntos?

Pediu-me que obtivesse informações sobre as pro­priedades de algumas vítimas dos campos de concentração e de outras pessoas. Estarei ausente durante uma semana. Te­nho certeza de que o major apreciaria muito que o convidas­se a vir aqui nesse período.

Parece-lhe que sim? Não me ficaria mal fazê-lo, com o senhor fora?

Que idéia! Você tem a Martha para lhe fazer com­panhia e preparar a casa. O major ficaria agradecido, com certeza. Um homem como ele, numa vila desconhecida... O seu convite seria uma cortesia absolutamente normal.

Como... como é que vou convidá-lo?

Mande-lhe um convite, está claro. Um bilhete cur­to e formal. "Frãulein Kunzli tem o prazer de convidar o Major Hanlon e os seus oficiais", qualquer coisa assim, mas não se esqueça de convidar também os oficiais. É habitual fazê-lo em situações como esta. Seria melhor convidá-lo para jantar. Uma refeição é a melhor forma de afastar o gelo da formalidade e de se conhecerem melhor.

Está bem, tio. Diga-me... — Anna hesitou, ga­guejou e, muito corada, formulou a pergunta: — Que pensa do major, tio?

É um homem encantador — disse Sepp Kunzli suavemente. — Muito inteligente, também.

Deve ter muito boa impressão a seu respeito, tio, pois de outra forma não lhe pediria que fosse à Suíça.

Não sei o que ele pensa de mim, querida Anna, e gostaria imensamente de saber.

Kunzli sorriu ao dizer isso, sabendo bem que a ironia passaria despercebida à sobrinha. O sorriso, porém, morreu-lhe imediatamente quando notou nos olhos de Anna um brilho que nunca esperava ver.

Ela está interessada pelo homem — pensou irritada­mente. Anna nunca se interessara por qualquer homem, mas algum havia de ser o primeiro. O Major Mark Hanlon! Talvez o interesse dela fosse passageiro. E se não fosse? Kunzli sentiu-se invadir por uma dúvida — uma nova ironia que desta vez o atingia. Mas logo encolheu os ombros. Não! Era impossível que algo pudesse nascer entre esta inocente garota e um homem com o dobro da sua idade, que ocupava o trono do vencedor e empunhava o machado do carrasco.

Nos mais luxuosos aposentos do Hotel Sonnblick, que haviam em tempos acomodado o Reichsmarschall Goering, o Major Hanlon preparava-se para se deitar. Jantara tarde com o Capitão Johnson, e, acompanhados por bom vinho e ainda melhor brandy, os dois homens haviam planejado os afazeres do dia seguinte, o programa do funeral, a polí­tica a seguir durante as primeiras semanas da ocupação.

A fadiga apoderara-se rapidamente do major após essa conversa, e, depois de se despedir do Capitão Johnson, cha­mara a criada para lhe preparar um banho e a cama. Mark Hanlon estava agora estendido na enorme banheira de már­more, sentindo o efeito salutar da água nos seus músculos cansados. O banho era para ele um luxo histórico, e os anos de campanha haviam-lhe aumentado esse prazer.

Um batismo diário em água quente dava-lhe a ilusão de reencontrar a inocência ou, pelo menos, de se achar de novo apto a enfrentar o mundo. O sabão e a água faziam milagres no que dizia respeito ao amor-próprio de um ho­mem, e as nuvens de vapor perfumado suavizavam os con­tornos duros da realidade. Fora talvez essa a razão que leva­ra os velhos patrícios a permanecer confortavelmente nos seus banhos de vapor enquanto os hunos atacavam as portas do Império Romano, e também o motivo que levava agora

Mark Hanlon a esquecer momentaneamente o morto que repousava no caixão e o assassino com a cicatriz no rosto que devia andar escondido entre os pinheiros e os picos brancos das montanhas.

Mark Hanlon foi assaltado por um novo pensamento quando já havia saído do banho e começara a enxugar-se na toalha aquecida que a criada pusera no toalheiro. Toda aquela profusão de vinho, comida e serviços era a recom­pensa do conquistador. Existiam crianças famintas nos po­rões de Berlim, e em Viena muitas meninas vendiam-se por uma lata de café americano. Centenas e mesmo milhares de famílias lutavam desesperadamente para não morrer de fome e viviam com uma magra refeição diária nas ruínas das cidades destruídas. E, por toda a Europa, homens como ele portavam-se como César, com o estômago cheio, o corpo quente e satisfeito, criados para servi-los e mulheres para reconfortá-los sempre que quisessem.

Alguns desses homens, comandantes da ocupação, como ele era, lançavam-se sobre aqueles luxos com uma avidez exagerada e tornavam-se doentes de corpo e alma. Outros aceitavam-nos com uma arrogância insensata, como se os considerassem o tributo mais natural deste mundo. Outros ainda, como ele, tinham a delicadeza de se sentir envergo­nhados. Mas todos eles, sentissem o que sentissem, gostavam de se encontrar naquela posição, e nenhum deles possuía a coragem suficiente para se negar esses luxos e confortos a fim de conservar a sua dignidade entre os desafortunados. Aquele era o começo da lenta corrupção da conquista, a qual acabaria com os vencidos e os vencedores unidos no lodo da derrota comum, na repetição desanimadora dos an­tigos pecados.

Hanlon acabou de se enxugar, vestiu o pijama e foi se deitar.

Era aquele o momento do dia que ele mais temia, essa última hora solitária, quando a memória se agitava, a consciência o perturbava e o desejo despertava irremediavelmente. Mark Hanlon tinha muito a recordar, mas muito que desejava esquecer também mais do que ele queria —, e sabia que nunca poderia consegui-lo!

O que mais o incomodava era a inevitabilidade de tudo aquilo.

Era verdade que havia uma ilusão de escolha, a ilusão de escolher a vida. Mas o destino era inevitável, e, quando se alcançava uma encruzilhada, descobria-se sempre que alguém já havia determinado o caminho a seguir, a decisão a tomar. Olhava-se então para trás e dizia-se: "Se eu tivesse feito isto... se eu tivesse escolhido aquilo..." Isso tudo não passava de uma fantasia histórica. Só existia um cami­nho, na realidade, e, apesar dos vários letreiros que indica­vam outras direções, o destino encarregava-se apenas de tornar praticável esse único caminho.

O Padre Albertus pregava que havia suficiente graça divina para cada momento da vida, acrescentando, porém, que em determinados momentos são necessários jejuns e orações para merecê-la e conservá-la.

"Não pense nisso, homem! Não pense! Tente se es­quecer de que é um padre fracassado, um marido cuja mu­lher não o ama, e de que está solteiro devido a circunstân­cias temporárias e não por assim o desejar.

"Você é a Força de Ocupação, o cônsul deitado na cama, com guardas à porta e criados à espera de qualquer ordem. Amanhã enterra os mortos e começa a governar os vivos. Quem sabe? A história está repleta de fatos curiosos. Têm existido reis que se unem a criadas de servir. Os ho­mens mais sóbrios embriagam-se de vez em quando. E alguns césares têm dormido sossegadamente, ainda que por pouco tempo."

Mark Hanlon apagou a luz, voltou-se para o outro lado e, passados cinco minutos, dormia pesadamente. Nessa noite não sonhou com coisa alguma.

 

                                             Capítulo 6

A cerimônia do funeral é uma das mais antigas na his­tória da humanidade. A única vez em que um homem parece ser maior do que a própria vida é após a sua morte. Todas as suas faltas já lhe foram perdoadas. Ninguém mais o odeia ou critica, só lhe restam amigos. A pantomima sentimental do cemitério é sempre representada, mesmo que se trate da mais odiada pessoa. O vadio mais humilde passa a ser respeitado quando está debaixo da terra.

O funeral do Sargento Willis constituiu um espetáculo impressionante.

A urna foi trazida do porão para o saguão de entrada do Hotel Sonnblick às oito horas da manhã, tendo sido coberta com uma bandeira inglesa e enquadrada por uma guarda de honra formada por um sargento e quatro sol­dados.

Eram oito e meia quando o burgomestre chegou, acom­panhado de quatro vereadores de Bad Quellenberg, todos eles trajando as indumentárias típicas da região: calças e casacos cinzentos, forrados e debruados em verde, as lapelas decoradas com ornamentos de osso trabalhado. A vestimen­ta dos cinco homens era completada por uma longa capa e um chapéu verde enfeitado com uma madeixa de pêlo de camurça.

O Padre Albertus chegou pouco depois, nas suas ves­tes sacerdotais, seguido por cinco ajudantes, um deles tra­zendo uma pesada cruz e os outros empunhando velas de cera.

O burgomestre, o Padre Albertus e os outros homens ficaram conversando impaciente e nervosamente durante meia hora, visto que Mark Hanlon estava ocupado, dando ins­truções às patrulhas de esquiadores que iriam efetuar a pri­meira busca nas aldeias da região. O Capitão Johnson dava também as suas ordens aos soldados que formariam o cortejo fúnebre, e alguns dos presentes que entendiam inglês com­preenderam que ele lhes explicava como deviam manter o passo e a formação sobre o gelo escorregadio da estrada.

Hanlon desceu ao saguão de entrada às nove horas exatas, vestindo o seu uniforme de combate sob o casaco cinzento regulamentar, e, depois de cumprimentar friamente os presentes, deu ordem para que o cortejo fúnebre se pu­sesse em marcha.

Os soldados formaram alas na estrada; os acólitos alinharam-se aos pares, com aquele que transportava a cruz à frente e o Padre Albertus atrás; os vereadores içaram len­tamente o caixão para os seus velhos ombros, e, a uma voz de comando do Capitão Johnson, o cortejo pôs-se em anda­mento, com Johnson e Hanlon na retaguarda.

Já não nevava, embora o céu ainda estivesse muito carregado e a chama das velas se agitasse incertamente no ar frio da manhã. Os únicos sons que se ouviam eram os passos surdos sobre o gelo, a voz profunda do Padre Alber­tus a recitar a antífona e as vozes dos rapazes do coro a responder-lhe.

As tão familiares cadências latinas trouxeram muitas recordações a Hanlon, e, durante um momento, o coman­dante chegou a pensar que se encontrava de novo na sere­nidade monástica de Graz, tomando parte nas cerimônias de despedida quando um dos monges mais idosos morria. A presença de Johnson, que caminhava a seu lado muito consciente dos seus deveres, trouxe-o, porém, à realidade.

Só depois daquele momento de distração é que Hanlon viu a multidão que se alinhava à beira da estrada.

Bad Quellenberg em peso encontrava-se presente: os muito jovens, os muito velhos, os feridos e inválidos do hospital militar; os guardas-florestais e os montanheses, com a dignidade da montanha sobre os seus ombros curvados; camponesas com as suas crianças agarradas às saias. Os co­merciantes mantinham-se em posição de sentido às portas dos seus estabelecimentos. O pessoal médico e as enfermei­ras encontravam-se à entrada do hospital, cujas janelas su­periores estavam apinhadas de pacientes, que limpavam os vidros embaciados para poderem ver melhor.

Os habitantes de Bad Quellenberg estavam silenciosos e muito sérios, e, à medida que o funeral ia passando, al­gumas das mulheres baixavam a cabeça e soluçavam como se recordassem os seus homens mortos na guerra. Os ma­ridos que tinham a sorte de ali estar com as suas mulheres davam-lhes o braço como se as protegessem, e os pais aper­tavam as mãos das filhas num gesto inconsciente de simpa­tia. Mark Hanlon percorreu com a vista aquela multidão de espectadores e, em seguida, olhou para a frente e continuou a marchar cuidadosamente sobre a traiçoeira superfície da estrada.

Já perto da igreja, quando os sinos começaram a re­picar pausada e funebremente, a vila e o vale encheram-se do seu som melodioso e o eco propagou-se por toda a mon­tanha.

Como que movidos por um instinto qualquer, inevi­tável e comum, todos os presentes iam invadindo a estrada depois de o cortejo passar por eles, formando uma imensa procissão atrás da urna. Mark Hanlon ouvia o ruído surdo e irregular dos passos da multidão como se fosse o contra­ponto da melodia dos sinos.

A procissão deteve-se no portão que conduzia à igreja e os soldados formaram alas, numa guarda de honra, para que os acólitos, o padre e todos os quelembergueses pudes­sem passar entre eles e entrar no edifício. Johnson ficou junto dos soldados, mas Hanlon entrou na igreja e foi con­duzido primeira fila. Viu os vereadores pousarem a urna , em frente do altar-mor e notou, com evidente surpresa, a grande quantidade de coroas de rama de pinheiro e azevinho, e de flores de neve e de estufa, tais como ciclamens, orquí­deas, lírios e azáleas, que deviam ter vindo de mais de uma dúzia de casas particulares.

O comandante sentiu uma angústia na alma e escon­deu o rosto numa atitude de prece. Quando voltou a erguer a cabeça e a abrir os olhos, passados poucos minutos, a igreja estava cheia de gente, a guarda já rodeava solenemente a urna e o Padre Albertus envergara a casula negra, estando prestes a dar início à missa. As primeiras notas do órgão faziam-se ouvir sombriamente e ressoavam pela velha abó­bada da igreja.

— "Requiem aeternam dona eis, Domine." — As vo­zes jovens do coro erguiam-se numa súplica. — "Et lux perpetua luceat eis."

Mark Hanlon observava a delicada figura do sacer­dote, que se movia com certa dificuldade nas incômodas vestes góticas enquanto preparava os ritos do Sacrifício, e, ao mesmo tempo, sentia-se envolvido pelo tom plangente do cântico.

A cerimônia continuava, e, agora, o coro fazia-se ouvir de novo, entoando o Dies irae de uma forma que lhe era familiar: o primeiro verso cantado em solo e os seguintes pelo coro.

"Dies irae, dies illa, Solvei saeclum in favilla, Teste David cum Sybilla..."

A voz límpida e fria da solista pareceu-lhe familiar; era seguramente a de Anna Kunzli — a moça que vivia sem amor na Casa da Aranha.

O hino acabara, o Padre Albertus atravessara o altar e, após as respostas do ritual, começara a ler com a sua voz profunda e ressonante a oração fúnebre — uma oração que ele bem conhecia e que, apesar disso, o impressionava sem­pre e lhe recordava o paraíso perdido, antes de ele ter pro­vado o fruto da árvore da sabedoria e iniciado o seu longo caminho como cidadão do mundo.

Mark Hanlon, como aliás todos os presentes, nascera no seio da Igreja e precisava do seu apoio, tal como uma planta necessita do contato com a terra-mãe ou um tronco da seiva que lhe dê vida. Apesar disso, e devido a diversas decisões e circunstâncias, Hanlon afastara-se da Igreja, e essa seiva deixara de alimentá-lo. Hanlon sentia a falta, desse apoio espiritual, mas não se convencia a confessá-lo. Era o filho pródigo, que séria aceito no seio da Igreja sempre que a ele quisesse regressar, mas já não compartilhava da intimi­dade inspiradora da vida religiosa.

Era a esse estado de espírito que os teólogos se refe­riam quando falavam do pecado como sendo uma espécie de morte ou um vazio de alma. Era esse o significado da mise­ricórdia divina e da necessidade que um homem tem dela... uma luz na escuridão, a mão estendida para conduzir o homem perdido e perplexo por novos caminhos não sonha­dos e para ele desconhecidos.

Os sinos de prata soaram para indicar a Consagração e a Elevação, e Mark Hanlon voltou a curvar a cabeça, em­bora não pudesse curvar o seu espírito.

Quando, por fim, a missa terminou, o Padre Albertus despiu a casula e desceu os degraus do altar para benzer a urna. Os acólitos alinharam-se, os vereadores voltaram a erguer a urna e levaram o Sargento Willis para o cemitério, para aquele buraco negro que se abria na neve aos pés da imagem de Cristo.

Os soldados já haviam formado em redor da sepultura, e as suas armas e uniformes de combate destacavam-se in­congruentemente entre as cruzes de madeira e a figura imó­vel do Crucificado. A bandeira foi retirada e a urna descida lentamente enquanto o Padre Albertus recitava as orações fúnebres e as respostas eram murmuradas pela multidão como se fossem um queixume do vento.

Quando as orações terminaram, um silêncio mortal in­vadiu o cemitério. O coveiro deu a Hanlon uma mancheia de terra e este lançou-a para dentro da cova. Uma mulher começou a chorar no meio da multidão e uma onda de pie­dade inundou a alma de todos os presentes.

O coveiro começou a encher a sepultura, a voz forte do Padre Albertus iniciou a recitação do terço e Hanlon juntou-se aos outros, quase sem perceber, na repetição da prece que quebrara o silêncio:

"Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecado­res, agora e na hora da nossa morte. Amém".

O coveiro deu por finda a tarefa e cobriu a sepultura com neve limpa, afastando-se depois para dar passagem a vários homens que depuseram nela montes de coroas de flores e ramos de variadíssimos tons. O sargento deu uma série de vozes de comando e uma salva de tiros fez-se ouvir, ecoando asperamente de colina em colina.

A cerimônia terminara. O Sargento Willis fora enter­rado numa terra estrangeira. Os soldados afastaram-se em formação cerrada e a multidão abriu alas para os deixar pas­sar, começando depois a dispersar, silenciosa e confrangida, enquanto Hanlon continuava imóvel junto do Cristo de madeira.

Uma velha camponesa empurrou uma menina na sua direção e esta entregou-lhe um pequeno ramo de flores, falando-lhe na sua voz infantil:

-— Für den Toten. Para o morto.

Hanlon aceitou as flores e baixou-se a fim de colocá-las junto das outras. O gesto enchera Hanlon de uma grande piedade e mesmo de um sentimento de vergonha, e, pela primeira vez em muitos anos, encontrou-se a soluçar. Os habitantes de Bad Quellenberg que ainda estavam presentes voltaram discretamente os rostos, e, após um momento, Mark Hanlon sentiu a mão do Padre Albertus pousar no seu ombro e ouviu a sua voz suave e reconfortante:

Há sempre esperança para um homem que é capaz de chorar. Vá para casa, meu filho, e eu rezarei por você.

Mark Hanlon saiu do cemitério e viu Anna Kunzli, sob os pinheiros, a alimentar os pássaros, que vinham co­mer as migalhas de sua mão. O major passou por ela sem esboçar um cumprimento, sendo seguido pelo seu olhar um olhar cheio da piedade e da inocência da juventude.

 

                                                 Capítulo 7

Karl Adalbert Fischer foi um dos poucos quelembergue- ses que não assistiram ao funeral.

O chefe de polícia tinha outras coisas a fazer, e, com a vida da vila paralisada e todos os seus habitantes entreti­dos na longa cerimônia, ninguém viria a saber o que ele próprio ia levar a cabo.

Fischer levantou-se cedo, barbeou-se e vestiu o seu traje de esqui, cobrindo-se com uma longa capa a fim de que ninguém estranhasse a aparência curiosa do chefe de polícia. Saiu muito cedo de casa, recusando mesmo o desje­jum que a criada lhe trouxera, para efetuar a primeira visita do dia enquanto as ruas ainda estavam desertas.

Essa primeira visita foi a Frau Gretl Metzger, a jovem matrona que dirigia uma das tabacarias da vila. Fischer tive­ra uma plácida e agradável aventura com ela, havia já algum tempo, uma aventura que terminara por vontade de ambos, quando ele descobrira uma amiga ainda mais nova do que Frau Gretl. Esta acabara por se casar com o capataz de uma empresa construtora um jovem pedante que falava demasiado e bebia mais do que ganhava.

Quando o marido foi chamado para o exército, Gretl pediu auxílio a Fischer, por ter ficado em má situação fi­nanceira, e o chefe de polícia recomendou-a para a obtenção de uma licença especial para comprar cigarros. Desde esse momento, como Frau Gretl era uma pessoa extremamente grata, Fischer nunca mais sentiu a falta do cigarro, que esta­va racionado, nem de uma cama durante os intervalos da sua vida amorosa.

A visita dessa manhã não tinha, contudo, qualquer relação com sua vida amorosa. O marido de Gretl já voltara a Bad Quellenberg, sendo um dos doentes do Feldlazarett. Fora atingido por um estilhaço de granada durante a reti­rada e tivera a sorte de sobreviver e de ser trazido para aquele purgatório que era o Lazarett. Gretl ia visitá-lo fiel­mente todas as tardes, e, de dois em dois dias, voltava para casa com um enfermeiro do hospital. Este fato, como tantos outros, fora registrado cuidadosamente no livro de Fischer e este tencionava servir-se agora dessa indiscrição.

Gretl abriu-lhe a porta e recebeu-o inteiramente de braços abertos. Fischer sorriu-lhe e beijou-a, sendo corres­pondido efusivamente e convidado a sentar-se no sofá da sala. Gretl sentou-se a seu lado e deu-lhe a mão.

Karl! Que surpresa tão agradável! O que o traz aqui a esta hora? perguntou ela na sua voz quase infantil. Não me diga que...

Não, Liebchen — garantiu-lhe Fischer. A sua companhia me agrada muito, como sabe, mas estou muito atarefado, tenho um dia cheio de afazeres. E sou obrigado a poupar as minhas forças. Queria pedir a você um favor.

Tudo o que quiser, Karl, você sabe que nunca lhe recusaria o que quer que fosse.

Ótimo. Esse seu amiguinho, Gretl...

Frau Gretl Metzger soltou uma gargalhada e fez uma

careta.

Esse homem! É um zero! Fala demais e age de menos. Às vezes até penso que ele é... você bem sabe o quê. Que há de fazer uma moça como eu? Todos os homens de valor estão mortos ou inválidos!

A vida é muito dura concordou Karl Adalbert Fischer. E esse tipo... gosta de você, ou quê?

Está louco por mim disse Gretl, num tom de voz que não admitia a menor dúvida. Diz que nunca conheceu uma mulher como eu! Diz que, se o meu marido, morresse, se casava comigo imediatamente. Talvez seja por eu lhe lembrar a mãe!...

Esplêndido! Quero que lhe peça que me obtenha umas coisas, em segredo absoluto, está claro. Não lhe diga que são para mim e não permita que ele lhe faça qualquer pergunta sobre o assunto.

Que coisas, Karl?

Fischer já tinha na mão a lista preparada por Rudi Winkler e entregou-a no mesmo momento em que ela for­mulou a pergunta.

Preciso de tudo isto... são tudo coisas que devem existir no hospital. O seu amigo não terá grande dificuldade em pegá-las. Diga-lhe que lhe entregue tudo isto aos poucos, se for necessário. Mas diga-lhe também que você tem algu­ma pressa.

Gretl não parecia compreender o que Fischer desejava dela.

Quer que ele roube estas coisas? — perguntou Gretl, imensamente surpresa.

Quero que ele as obtenha... Não falei em roubo, certo? — respondeu Fischer, sorrindo suavemente. — Se ele tiver alguma dúvida em fazê-lo, diga-lhe que poderá ganhar algum dinheiro. Estou disposto a pagar o que for razoável.

E se ele recusar?

Você disse que ele estava louco por você, Liebchen. Se ele recusar — Fischer encolheu os ombros, como se não receasse aquele perigo —, seria difícil, para mim, recomen­dar o seu nome outra vez quando a licença do cigarro ex­pirar...

Karl! Não me faria isso, não?!

Você sabe que não, Gretl. Só queria fazer você ver que isto é muito importante para mim. Nada mais.

Compreendo, Karl. — Gretl curvou-se sobre ele e voltou a beijá-lo. — Não poderia ficar aqui comigo um pou­co mais... só um pouco?

Só o tempo de tomar o café que me vai dar — disse Fischer alegremente. — Depois tenho de ir embora. Fica para a próxima vez.

Meia hora mais tarde, Fischer batia à porta do pequeno abrigo que estava situado na base do Gondelbahn, o longo cabo aéreo que conduzia as pequenas cabinas reluzentes até o cimo do Grauglockner. O homem que lhe abriu a porta era o técnico que cuidava da maquinaria e que a mantinha em bom estado de conservação fora da temporada. Fischer deu-lhe as suas instruções num tom breve e incisivo.

Assunto da polícia! Ninguém deverá saber que es­tive aqui. Quero que me arranje um par de esquis, que po­nha o motor a funcionar e me ice para o cimo da montanha. Se alguém procurar saber a razão de o Gondel estar fun­cionando, diga-lhe que está testando os motores. Ficarei lá em cima umas boas duas horas. Telefonar-lhe-ei de lá, quan­do quiser descer, mas não se esqueça de me avisar se houver gente por aqui. Compreendeu?

O técnico compreendeu muito bem, pois era suficiente­mente inteligente para saber de que lado o vento soprava, e foi buscar os seus próprios esquis para os emprestar ao chefe de polícia.

Ainda não haviam passado três minutos quando Fischer começou a balançar por cima dos pinheiros na primeira fase da sua viagem para o Gamsfeld.

Fischer alcançou o cimo em poucos minutos e, quando saiu da cabina, o vento gelado fez-lhe vir lágrimas aos olhos e obrigou-o a estremecer de frio. Então soltou uma exclamação de raiva e entrou precipitadamente no abrigo que era o terminal Superior do Gondelbahn. Já não estava habituado ao ambiente agressivo da montanha. Devia ter-se lembrado de que já não tinha idade para aquelas aventuras. Fischer tapou a cabeça com o capuz, abotoou, o casacão que trouxera sob a capa, fixou os esquis às botas com a mesma facilidade com que o fizera muitos anos atrás e saiu de novo para a neve e para o vento, olhando à sua volta como se quisesse orientar-se ou habituar-se às condições atmosféricas.

Aquele pico em que se encontrava estava rodeado por montanhas — um tumulto de ondas num mar petrificado. As suas encostas apresentavam-se manchadas de escuro, aqui e ali, com as florestas de pinheiros e os telhados das aldeias. Os picos estavam cobertos de neve — um branco espumoso que descia pelos desfiladeiros e formava uma corrente, in­terrompida apenas por sinistros e escarpados rochedos cin­zentos. A desolação da paisagem causava-lhe um complexo de inferioridade e o vento frio abalava as fundações da sua limitada coragem. Fischer foi obrigado a fazer um esforço enorme para se lançar na longa e tortuosa descida que con­duzia ao Gamsfeld.

O seu destino era um pequeno abrigo de madeira, si­tuado aproximadamente a duzentos metros da corcunda da montanha do outro lado de Bad Quellenberg. O abrigo fora, em tempos passados, a primeira etapa de uma descida para os esquiadores inexperientes: descida até o Gamsfeld, mais três quilômetros para o vale de Hunge, uma subida no Gon­delbahn e, depois, outra longa descida até alcançar Bad Quel­lenberg. Fischer fizera aquele trajeto mais de cem vezes na sua juventude, mas agora a descida era uma loucura, devido à sua idade, e só a fazia para o bem da família. Além disso — pensava Fischer —, não teria tempo para descer até o vale de Hunge e se veria obrigado a subir a pé até o local de onde partira.

Fischer via nitidamente o abrigo onde o sobrinho se encontrava. Uma espiral de fumaça subia da sua chaminé e era soprada por um vento forte na direção do vale. Não restavam dúvidas, pois, de que ele estava lá. A viagem não fora em vão. Fischer lançou-se pela pista, lentamente de início, e, passados poucos segundos, começou a sentir-se mais à vontade e a acelerar a velocidade. Os seus músculos des­treinados já reagiam melhor, correspondendo talvez a recor­dações de outros tempos, e, pela primeira vez em muitos anos, Fischer começou a divertir-se, a apreciar enormemente aquele desporto que abandonara havia tanto tempo.

Este prazer, como sempre sucede com todos os praze­res, terminou demasiado rapidamente.

Fischer depressa chegou ao abrigo e, depois de descal­çar os esquis, bateu firmemente à porta. Ninguém lhe res­pondeu, mas um ligeiro ruído confirmou-lhe a desconfiança de que havia alguém lá dentro.

Martha! Johann! — chamou ele, muito sonoramen­te. — Sou eu, o tio Karl. Abram a porta!

Uma voz de homem, rouca e dura, respondeu-lhe após uma curta pausa:

Se não for o tio Karl... leva um tiro na cabeça!

Que disparate, Johann! Olhe pela janela e verá logo que sou eu. Pelo amor de Deus, Martha, diga-lhe que sou eu!

Fischer ouviu Martha repreender iradamente o irmão.

Não seja estúpido, Johann! Deixe-me abrir a porta! Não reconhece a voz do tio?!

Fischer deu um passo atrás e viu correrem a cortina, notando logo o rosto preocupado da sobrinha. A porta abriu-se imediatamente e Martha, meio rindo meio chorando, deu- lhe o braço e levou-o para dentro do abrigo.

A primeira coisa que Fischer notou foi o sobrinho aga­chado a um canto, com a pistola apontada para a porta. O tio sorriu-lhe e falou-lhe calorosamente:

Olá, meu rapaz! Alegra-me vê-lo tão em forma! Desvie essa arma ou ainda matará um de nós!

Johann olhou-o durante um bom minuto, com uma expressão desconfiada no rosto, e, em seguida, colocou a pistola sobre a cama, embora a conservasse ao seu alcance e não parecesse disposto a confiar inteiramente fosse em quem fosse. Martha estava muito preocupada e angustiada interrogando o tio com uma ansiedade compreensível:

Que se passa, tio? Que vamos fazer? Que poderá acontecer a Johann... e a todos nós?

Nada — respondeu Fischer calmamente. — Nada acontecerá de mal. O tio Karl já arranjou tudo. Depois lhes direi o que planejei. Estou cheio de frio e de fome. O que eu queria agora era que me servisse o desjejum.

É um instante enquanto o arranjo. Estou conten­tíssima por nos trazer boas notícias. É um verdadeiro amor, tio!

Martha abraçou-o efusivamente e depois foi cuidar do desjejum. Fischer tirou a cigarreira do bolso e estendeu-a ao sobrinho.

Quer um cigarro?

—- Atire-me a cigarreira.

Como queira.

Fischer tirou dela um cigarro, acendeu-o e, em seguida, arremessou a cigarreira e o isqueiro para junto do sobrinho. Este tirou três cigarros, acendendo um e pondo os outros dois em cima da cama.

Pode guardá-los, se quiser disse Fischer, perce­bendo pela maneira ávida com que ele fumava o cigarro que já devia estar sem fumar há muito tempo.

Muito obrigado.

Johann esvaziou a cigarreira em cima da cama e atirou-a depois a Fischer, juntamente com o isqueiro, que caiu no chão a alguma distância do tio. Fischer deslocou-se para o apanhar e Johann pegou na pistola e apontou-lhe, não vol­tando a pousá-la antes de o tio ter recuperado o isqueiro e voltado à sua posição inicial. Fischer não fez qualquer co­mentário, limitando-se a fumar placidamente e a observar o sobrinho por entre a fumaça do cigarro.

"Parece um lobo da montanha", pensou Fischer. "Fe­rido, faminto, aterrorizado e com os nervos esgotados, mas pronto a saltar à garganta de quem se lhe oponha. Ainda me lembro dele quando era um menino, de faces rosadas e com os olhos iguais aos da mãe. Costumava sentá-lo nos meus joelhos e dar-lhe balas. Também me recordo dele quan­do era estudante, um rapaz simpático e inteligente, e, depois, de um momento muito importante na sua vida a univer­sidade —, só passando a vê-lo quando vinha de férias, muito sério e compenetrado, cheio de palavras difíceis e de sonhos de salvar o mundo por meio do bisturi e de medicamentos. E agora? Basta olhar para ele! O que não nos teria ele dito sobre o que lhe aconteceu na guerra! Ou esse estado será devido ao fato de um homem perseguido durante meses e meses ter forçosamente de se tornar num lobo selvagem? E que poderemos nós fazer de você, agora, meu rapaz? Como havemos de fazer você sair desse canto e transformá-lo de novo num homem?"

O sobrinho começou inesperadamente a falar, e Fischer sentiu-se dominado por uma estranha emoção. A voz muda­ra, embora o homem, ele próprio, não tivesse mudado de posição ou de atitude e os seus dedos nervosos ainda se apoiassem na coronha da pistola. A voz era calma, bem-medida, suave, quase acadêmica na sua frieza, como se outro homem estivesse a falar pela boca do lobo:

Lamento muito constituir uma preocupação para você, tio Karl. Existe um nome para o estado em que me en­contro e que qualquer médico reconheceria: traumatismo. Estou como que separado em duas partes, com a melhor parte de um lado e a pior do outro, e como se me fosse impossível alcançar o lado bom. Sei muito bem, por exemplo, que o mataria se tentasse desarmar-me. Sei que não deveria fazê-lo, mas também sei que não conseguiria evitá-lo. Ins­tinto de conservação acima da razão é o que isto significa. O meu mecanismo de raciocínio não está funcionando perfei­tamente. A família disse-me que matei um homem. Lembro-me muito vagamente de o ter feito. Recordo-me de ter visto um carro com dois homens e pensei que fossem russos à minha procura. Estava farto de fugir deles... senti que devia enfrentá-los e combatê-los. Penso que deveria entregar-me às autoridades. Mas não posso fazê-lo. Sei que, se o fizesse, acabaria por perder a razão que me resta, sem a menor possibilidade de voltar a recuperá-la. Sou médico e sei disso sem a menor sombra de dúvida. Talvez me pudesse curar se repousasse durante algum tempo, se não fosse obri­gado a continuar a fugir, se tivesse um bom médico para me ajudar. Julgo, porém, que nada disso é possível.

O seu anterior ar de louco já desaparecera quase completamente. Seus olhos tornaram-se mortos e indiferen­tes, e duas lágrimas umedeceram-nos ligeiramente e escor­reram-lhe pelo rosto cansado.

A irmã ouvira aquelas palavras com uma grande sur­presa e suspendera a preparação do desjejum, mas Fischer continuara a fumar e tudo na sua expressão indicava que esperava aquelas explicações do sobrinho.

-—- Era dissó mesmo que eu lhe queria falar — disse Fischer, após um curto silêncio. — Encontrei um médico e um local onde poderá repousar sem que ninguém o inco­mode.

Não irei... não sairei daqui! Não posso! — O brilho selvagem voltara ao olhar de Johann e os seus dedos cravaram-se na pistola.

Você é que decidirá — disse Fischer. — Os ingle­ses mandaram patrulhas à sua procura, farão buscas em toda a região, incluindo vales e montanhas. São muito capazes de procurá-lo durante meses e meses até encontrarem-no. Isso significa que terei de mudá-lo de abrigo para abrigo, de aldeia para aldeia. Umas poucas semanas dessas andanças por montes e vales acabarão com você de vez. A outra alternativa é fazer o que recomendo. Escolha.

Que local é esse de que me falou? Quem é o mé­dico?

Chama-se Winkler. É também um fugitivo. Ofe­reci-me para lhe conseguir uma nova identidade se ele o recolher em sua casa e tratar de você. Prometeu fazer uma operação plástica em seu rosto para que possamos mandá-lo para a Zona Americana quando estiver recuperado.

Onde é que ele vive?

Em Quellenberg. Possui uma casa do outro lado da Avenida Mozart. Fischer riu-se. — Tem uma gover­nanta com uma tromba de elefante, mas que cozinha admi­ravelmente. Jantei lá ontem. Winkler também tem bom vi­nho. Você poderia viver como um rei e esquecer todos os seus aborrecimentos. Pense bem no assunto enquanto eu como o que a sua irmã me preparou.

Martha já tinha o desjejum quase pronto, e Fischer sentou-se na outra cama e começou a folhear um número de quatro anos antes da revista Wiener Zeitung, cheio de fotografias de membros do Partido Nazista muito sorriden­tes, e de jovens a marchar como se fossem heróis. O chefe de polícia sentiu o desejo de atirar a revista para o meio da lenha que crepitava na lareira, mas a sua leitura proporcionava-lhe uma pequena distração e permitia que o rapaz ficas­se só com os seus pensamentos e chegasse a uma conclusão sobre o que devia fazer.

Como... como é que me levaria para Quellenberg sem que me vissem? — perguntou Johann, ao fim de alguns minutos, a sua voz incerta revelando a hesitação que lhe ia na mente.

O tio levantou o olhar da revista e respondeu-lhe ime­diatamente:

Isso me preocupou bastante de início, mas creio que já encontrei uma solução.

Qual?

Você teria de ficar aqui mais um ou dois dias. O fato não teria a menor importância. Os ingleses não virão aqui nesta próxima semana, com toda a certeza, e, se for necessário, poderei espalhar uns boatos que os levem a in­vestigar no outro lado da montanha. O dia 6 de dezembro é o dia de São Nicolau. O santo visitará todas as casas, seguido por um pajem e pelos Krampus, para assustarem as crianças mais traquinas. Os Krampus que virão à vila nessa noite serão em número de vinte ou trinta. O que faríamos seria vestir você com peles de cabra e tapar-lhe a cara com uma máscara Krampus. Ninguém o reconheceria e seria to­mado por um deles. Não lhe parece que essa idéia é muito razoável?

Tio! — Martha voltou-se excitadamente, quase en­tornando o café. — É uma idéia brilhante! Não pode falhar! Sabe bem que assim é Johann. — Lembre-se de que você nunca reconhecia as pessoas vestidas de Krampus! Não pode dizer que não! Aceite a proposta do tio!

Martha foi sentar-se na cama do irmão, e este largou a pistola pela primeira vez e mergulhou a cabeça no seu ombro, falando num tom de voz cansado e desanimado:

Não posso acreditar... não vejo como possa me salvar...!

Fischer voltou a' se concentrar na revista, enquanto Martha tentava convencer o irmão com palavras doces e compreensivas, até que o café começou a ferver e a moça teve de saltar da cama para acudir. Fischer e Johann toma­ram então o desjejum, que consistiu apenas em café, pão preto e queijo, e, quando terminaram, Johann deitou-se na cama, acendeu um cigarro e ficou olhando para as vigas do teto. Passados segundos, sem se mover da posição em que se encontrava, perguntou cautelosamente:

Tem certeza de que podemos fazer o que me dis­se, tio?

Estou arriscando a minha liberdade e mesmo a vida — disse Fischer, já ligeiramente irritado. — Se eu fosse apanhado, o que não acontecerá, sofreria muito mais do que você. Qualquer advogado poderia provar que você não se encontra no seu estado normal, e, digam o que disserem, os juízes teriam de reconhecer que as circunstâncias eram atenuantes. Um bom advogado salvaria você da pena de morte sem a menor sombra de dúvida. Eu, por outro lado, não teria a menor defesa. Nem sequer é meu filho!

Está bem, tio. Farei o que me disser.

Tenho uma condição a impor.

O quê?

O sobrinho olhou para ele nervosamente e sentou-se na cama.

Terá de me entregar as suas armas.

Não! As palavras de Fischer voltaram a tornar Johann um animal tenso e receoso.

Quando descer à vila explicou Fischer calma­mente você estará num estado de nervos impossível e terá medo de tudo e de todos. Receio que, se estiver armado, mate qualquer outra pessoa, como fez com o sargento inglês. Sabe muito bem que isso poderia acontecer. Ou me dá as armas agora, ou então desinteresso-me do caso. Poderá con­tinuar a fugir de montanha para montanha, perseguido, até que já não possa mais de cansado, ou até pode ser que dêem um tiro na sua cabeça. Estou arriscando a minha vida e a minha carreira, Johann, mas não posso arriscar-me a que cometa outro assassínio. É a minha decisão final.

As palavras de Fischer foram seguidas de um longo silêncio. Martha e o tio olharam ansiosamente para o rosto preocupado e para os olhos desesperados de Johann, espe­rando ver qualquer indício de que a razão penetrava a sua inteligência. O rapaz parecia tentar reagir ao estado em que se encontrava e, passado aquele primeiro pânico, formulou nova pergunta:

Confio em você, tio... mas... e os outros? Já sabe que Quellenberg é uma vila muito pequena, que to­dos se conhecem e que tudo se sabe. Não tardarão a descobrir onde estou e quem sou. Que acontecerá então?

O seu receio é compreensível, Johann. Vou res­ponder a isso muito sinceramente disse Fischer, sorrindo e percebendo que havia vencido a resistência do sobrinho. Conheço esta gente melhor do que você. Já têm dema­siados problemas para se meterem na vida dos outros e, mesmo que isso não sucedesse, não ganhariam muito em denunciá-lo... têm medo de mim e sabem que eu conheço os mais íntimos pormenores das suas vidas. Além disso, e este fato é o mais importante, embora talvez o surpreenda, não querem que seja apanhado! Querem vê-lo são e salvo! A maioria dos rapazes de Quellenberg morreu na guerra; os que restam são duplamente preciosos. Uma vez que tenha outro rosto, depois de Winkler operá-lo, receberá tantas pro­postas de casamento que nem saberá como se livrar delas.

Casamento! Johann soltou uma gargalhada forçada. — Casamento! Essa é muito boa! Há muitos anos que não ouço uma piada com tanta graça! Riam-se! Vamos... riam-se de mim!

Não vejo que graça encontra no que eu disse — respondeu Fischer.

Não?! — Johann levantara-se e gritava como se tivesse enlouquecido. — Então ouça o que lhe vou dizer, tio! Fui preso duas vezes pelos russos e consegui fugir de ambas. Os chetniks também me fizeram prisioneiro na Iu­goslávia, mas soltaram-me logo a seguir. Sabe por quê? Dis­seram-me que eu já não lhes servia para coisa alguma! Já não sirvo para coisa alguma, seja para um homem seja para uma mulher...!

Johann soltou um grito histérico e caiu subitamente sem sentidos. Martha correu para ele e sentou-se a seu lado, acariciando-o e falando-lhe em voz baixa, num tom deses­perado e angustiado. Fischer ficou imóvel; o seu rosto foi invadido por uma expressão de piedade e a sua voz perdeu a firmeza- e a calma anteriores:

Pobre rapaz!... — disse ele suavemente. — Po­bre desgraçado!...

O chefe de polícia dirigiu-se à cama, pegou a pistola e a carabina e depois caminhou para a porta. A voz da so­brinha deteve-o:

Não vai agora, não é, tio?

Tenho de ir andando — disse Fischer sombriamen­te. — Obrigue-o a deitar-se logo que volte a si. Dê-lhe de comer e não o deixe apanhar frio. Direi ao seu pai que venha aqui amanhã trazer o traje de Krampus e também as instru­ções sobre a forma de ele ir para"a vila. Você tem condições de dominá-lo até chegar o momento?

Martha olhou para a figura imóvel e angustiada, e, em seguida, voltou a fixar o tio.

Já não há muito a dominar, não acha?

Tem razão — disse Karl Adalbert Fischer, saindo do abrigo e fechando a porta atrás de si.

 

                                               Capítulo 8

Mark Hanlon já estava sentado à sua secretária, no Hotel Sonnblick, meia hora após o funeral. A crise de emo­ção passara-lhe depressa, deixando-o — o que as lágrimas e a paixão geralmente causam vazio de ira, de arrependi­mento ou indecisão, e pronto a meter mãos ao trabalho.

Uma verdadeira montanha de problemas aguardava-o naquele seu segundo dia em Quellenberg: abastecimento para as suas tropas e para a vila, uma investigação dos re­cursos econômicos locais, a busca de alguns criminosos de guerra ou fanáticos do partido que pudessem existir na região, o exame dos arquivos municipais e a apreensão de documentos importantes, a preparação de uma lista de pro­priedades e outros bens confiscados pelo Partido Nazista, a repatriação de soldados locais, a ligação e instalação de fron­teiras com a Zona Americana, o "controle" das estradas e ferrovias, uma reforma democrática da educação local, uma busca de depósitos de armas...

Hanlon e Johnson trabalharam durante horas, até que as letras e os algarismos lhes começaram a dançar em frente dos olhos. Detiveram-se então para um almoço ligeiro, que consistiu apenas num prato de sanduíches e muito café. Às três horas da tarde ainda lutavam com o seu mais sério pro­blema: como criar e manter um sistema completo de gover­no local, contando apenas com um número escasso de solda­dos e alguns funcionários que já se haviam tornado bastante suspeitos, e pouco dignos de confiança.

Não é possível disse Johnson, exausto e desani­mado. Não podemos fazer o impossível. A tarefa é dema­siado grande para nós.

Já sabe o que aconteceria se disséssemos isso a Klagenfurt. Os nossos serviços seriam dispensados...

O que não seria má idéia. A guerra foi muito longa.

E terá sido uma perda de tempo se nós não fizermos a paz tão bem como fizemos a guerra!

Já perdemos a paz — disse Johnson, com a sabe­doria da juventude. — A paz sempre foi e será perdida. Os políticos encarregam-se de perdê-la logo que as armas aca­bam de ganhar uma guerra! Olhe para lalta. Disseram-nos que entrávamos na guerra para salvar a Polônia! Olhe agora para a Polônia! Foi entregue à Rússia pelos políticos, e o mesmo sucedeu a metade da Europa. Não vejo razão para perdermos tempo com tudo isto! — Johnson indicou com um gesto impaciente os papéis que se amontoavam sobre a secretária. — O melhor seria queimar todos esses documen­tos e deixar as dores de cabeça aos políticos! O resultado final será exatamente o mesmo.

Lembre-se de que não existem políticos em Quellenberg — disse Hanlon calmamente.

Antes pelo contrário. A vila está cheia deles: Holzinger, Kunzli, o chefe de polícia e muitos outros que ainda não conhecemos.

Esses não têm a menor autoridade. Nós é que a temos, e quero provar que é possível utilizá-la com justiça e ordem, a fim de estabelecer algo de permanente.

Quê?

— Leia o que está aí! — exclamou Hanlon, rindo ante o rosto perplexo do subordinado e entregando-lhe um pesa­do relatório.

Não respondeu à minha pergunta — disse Johnson. — Não creio que saiba responder-me.

A resposta é simples, Johnny, muito mais simples do que o que está escrito nesse relatório. — Hanlon tor­nara-se muito sério, pesando bem as palavras e procurando fazer ver a Johnson o que lhe ia no pensamento. — Temos de reorganizar a vida de Bad Quellenberg para que os homens possam recomeçar a trabalhar e para que as crianças possam comer tudo o que lhes é necessário. Temos de pres­tar justiça a esta gente e lhe dar nova esperança no futuro. Temos de descobrir os assassinos e torturadores profissio­nais que possam ter vindo para Quellenberg disfarçados nos hábitos de honestidade e respeitabilidade. Temos de devolver os bens roubados aos seus donos legais, se estiverem vivos e puderem ser encontrados. Temos de expulsar dos seus car­gos todos aqueles funcionários que não mereçam a nossa confiança e substituí-los por homens honestos que nos ajudem a melhorar as condições de vida e o comércio de Bad Quellenberg.

Seria melhor comprar uma candeia e ir viver em uma caverna — disse Johnson ironicamente. — Lembre-se de que nunca conseguimos sequer que o nosso sargento en­carregado do abastecimento se mantivesse honesto!

Hanlon encolheu os ombros.

A culpa é da natureza animal que nós todos temos.

E será o animal diferente só por falar alemão?

Hanlon não lhe respondeu durante alguns segundos, pensando bem na resposta que o subordinado merecia, e, em seguida, curvou-se para a frente e falou-lhe com firmeza:

Já percebi que tenho de lhe falar muito seriamente, Johnny. Sou muito mais velho do que você, tenho também uma grande experiência da vida e muitas razões para duvidar do bem que existe nas pessoas. As dúvidas são de peso, é verdade, mas aprendi uma lição que considero muito impor­tante. O bem deste mundo começou em doses reduzidas e manteve-se pequeno durante um longo tempo. Quando começou a crescer, tão lentamente como uma árvore, as pes­soas nem sequer deram por isso, e, certo dia, atingiu então a maturidade e os seus troncos frondosos abrigaram uma grande quantidade de pobres-diabos como nós dois. É isso que espero obter da tarefa que nos foi confiada: dar início a um pequeno bem. Se eu não acreditasse na possibilidade de fazê-lo e seguisse os seus conselhos, limitar-me-ia a cum­prir as minhas obrigações oficiais e a encher os bolsos... ou talvez a dar um tiro na cabeça! Sei lá!

Talvez faça bem em escolher depressa, major — disse Johnson, piscando-lhe o olho. — É muito possível que tenha de decidir mais depressa do que pensa.

Vá para o diabo! — exclamou Hanlon, irritado com a insistência do subordinado. — Voltemos ao trabalho!

Os dois homens curvaram-se sobre um manual de ins­truções referente ao Estado e situação de pessoas dependen­tes de indivíduos sob prisão como suspeitos de crimes de guerra.

Mais tarde, quando o sol já começava a descer para além das montanhas, os chefes das patrulhas de esquiadores vieram à presença do comandante a fim de fazer seus rela­tórios. Eles lhe foram apresentados por intermédio de um dos cabos das tropas inglesas, que acompanhara uma das patrulhas.

O cabo fora professor e falava o alemão bastante bem, tendo uma grande admiração por Hanlon cuja inteligên­cia, no seu entender, era muito maior do que a daqueles que mandavam no Exército.

O homem ainda se encontra na região, Major Han­lon. Todos nós sentimos que assim é. Os camponeses e pro­prietários desejam protegê-lo. A polícia sabe disso muito bem e não nos ajudou muito.

Que razões tem para dizer isso?

Todos eles começaram por dizer que não compreen­diam o nosso alemão, o que é mentira. Os agentes de polícia nos compreendem perfeitamente, e as pessoas que interro­gamos também, com toda a certeza. Negaram-se a falar-nos em alemão puro, fazendo-o sempre em dialeto, o que tam­bém não passa de uma farsa. Não tive a menor dúvida de que estavam representando.

Hanlon tornou-se pensativo. Aquele método de os cam­poneses tentarem estabelecer a confusão por meio do seu dialeto carregado era muito conhecido. Faziam-se de estúpi­dos quando isso lhes era conveniente, mas mudavam inteiramente quando viam que alguém se beneficiava mais do que eles com essa atitude, e começavam a reclamar em alto e bom som.

E que mais tem a dizer-me, cabo?

O ambiente, senhor comandante. Tive a impressão de estar numa aula, com os alunos dando a sua lição ao mes­mo tempo em que faziam uma brincadeira com um dos co­legas, para logo a seguir aparentarem uma inocência exem­plar. É impossível obrigá-los a dizer a verdade, seria perder tempo, mesmo que lhes batêssemos com as cabeças numa parede.

Acabarão por ceder, com certeza disse Hanlon.

Não, senhor comandante.

Por que não?

Porque eles já estão à nossa espera quando chega­mos. Vêem-nos a quilômetros de distância, antes de chegar­mos a esta ou àquela aldeia ou propriedade. Mesmo que soubéssemos que o assassino deveria se encontrar num. local determinado, Major Hanlon, o homem teria tempo de fugir: o fato de sermos vistos a uma tal distância lhe daria bem uns três quilômetros de avanço sobre nós. Lembre-se de que temos de subir de esquis a montanha, e já sabe como isso pode ser vagaroso. Não podemos atravessar as passagens e os desfiladeiros, e, para alcançar os vales do outro lado da montanha, somos primeiramente forçados a subir as encostas deste lado e depois descê-las em direção às aldeias. Somos vistos a uma grande distância, e tudo o que eles têm a fazer, se o assassino se encontrar entre eles, é mandá-lo esconder-se nas florestas de pinheiros... e pronto! Nunca mais o en­contramos.

E os agentes de polícia? Cooperam com vocês?

Muito... — respondeu o cabo ironicamente. Não fazem o menor gesto sem que lhes digamos exatamente o que queremos deles. Esquecem-se do itinerário que lhes indicamos, fingem não saber ler uma referência num mapa e movem-se muito lentamente com os esquis, mesmo nas melhores pistas; mas, apesar disso, não podemos acusá-los de qualquer oposição concreta. Não! Não é dessa forma que caçaremos o nosso homem! Aposto o que quiser!

Não temos outro remédio senão continuar desta for­ma disse Hanlon com um sorriso amargo.

Importa-se de me dizer porquê, senhor coman­dante?

Ponha-se na posição do assassino. Que acontecerá se tivermos homens a patrulhar diversos pontos da monta­nha no mesmo dia? Terá de se mudar de local para local, terá de fazer longas caminhadas ou pôr os esquis para fugir à perseguição. Se ele está doente e enfraquecido, como eu suspeito, terá de se imobilizar mais cedo ou mais tarde, a fim de repousar. E depois?

Os camponeses escondê-lo-ão nas suas casas.

Onde? Já sabe que essas propriedades da montanha não passam de uma casa-grande para a família e de estábulos para os animais e para guardar a pastagem. Uma busca com­pleta não levaria mais de meia hora.

Tem razão, mas nada os impediria de escondê-lo na vila.

E é isso mesmo que nós queremos. A tarefa em Bad Quellenberg seria mil vezes mais fácil disse Mark Hanlon, com uma certeza que quase convenceu o perplexo cabo.

Hanlon ordenou aos chefes das patrulhas que se reti­rassem, e, em seguida, Johnson levantou a questão dos do­cumentos de saída de Sepp Kunzli.

Não percebo que intenções tem a respeito de Kunzli, Mark. As referências que recebemos não podiam ser melho­res, e, mesmo assim, pregou-lhe um susto. Por quê?

Propriedades roubadas, Johnny. O tipo foi um in­termediário de primeiríssima ordem. Não gostaria de vê-lo livrar-se tão facilmente, embora seja natural que consiga.

Que ligação tem isso com o relatório que rece­bemos?

Londres diz-nos que ele foi um bom agente durante a guerra. O que isso significa é que ele foi um jogador cau­teloso, prevenindo-se contra os riscos de um resultado da guerra desfavorável aos alemães.

Então para que o deixa sair do país?

Não posso deixar de fazê-lo — disse Hanlon amar­gamente. Os bancos suíços são muito rigorosos, e, de outra forma, nunca teríamos acesso aos documentos que ele possui.

E pensa que ele lhe trará os documentos?

Alguns deles.

E se fugir?

Não o fará... tem muitas propriedades na Áustria e também uma sobrinha que vive com ele. Tenho a impres­são de que nada fará e de que se contentará com servir-se de truques legais para conservar intactos todos os seus bens. É possível, como lhe disse há pouco, que ele escape a quais­quer represálias. Entretanto, como procurará ser-nos útil, entregar-nos-á alguns documentos de venda e ações, assim como nos dará muitas informações que nos auxiliarão imen­samente.

O Capitão Johnson olhou para o superior com um novo respeito no olhar. Não julgava que ele soubesse ser tão cínico e hipócrita.

Hanlon fez um gesto para indicar que aqueles processos não lhe agradavam.

Como posso lidar com um cínico como ele? Come­çou por querer vingar a mulher, roubando os membros do Partido Nazista e denunciando-os ao nosso serviço de espio­nagem, e, mais tarde, o gosto pela vingança transformou-se no gosto pelo dinheiro. Isso não impede que continue a jus­tificar-se como sendo uma espécie de Monte Cristo. Não é... e não passa de um explorador que enriqueceu à custa de bens roubados ou confiscados.

A sobrinha canta no coro da igreja comentou Johnson, com uma falta de respeito aparente. Uma garota bonita... de um gênero virginal que me agrada muito.

Não tinha reparado disse Hanlon friamente.

Está ficando velho, com certeza, Mark disse

Johnson, rindo-se. Eu reparo em todas as garotas que vejo.

Mark Hanlon não gostou do comentário e não hesitou em dizê-lo a Johnson:

Pense mais no trabalho e menos nas garotas! Não quero ouvir esse gênero de conversa aqui no gabinete.

Johnson ficou olhando para o seu superior, surpreso com aquela inesperada explosão.

Desculpe-me! Estava apenas brincando...

Uma pancada na porta interrompeu as desculpas de Johnson, e, a uma ordem de Hanlon, o Sargento Jennings entrou na sala com um grande envelope na mão.

Acaba de chegar, major. Foi trazido por um correio do quartel-general em Klagenfurt.

Obrigado, Jennings.

O sargento fez continência e saiu do gabinete. Hanlon quebrou o lacre vermelho do envelope e encontrou lá dentro dois outros envelopes também lacrados. Abriu um deles e começou a ler rapidamente o documento que continha. Aca­bada a leitura, passados dois ou três minutos, Hanlon soltou uma gargalhada e continuou a rir até as lágrimas lhe cor­rerem pelo rosto. Johnson observava-o com tão intensa curiosidade que, finalmente, não resistiu à pergunta:

Que se passa? Que lhe disseram de tão engraçado?

Hanlon recompôs-se e respondeu-lhe num tom sarcás­tico e veemente:

A vida está cheia de ironias, Tohnny. Começamos hoje a tentar organizar a vida de Quellenberg, verificamos que a tarefa era muito mais difícil do que pensávamos, e agora recebo estas instruções disse Hanlon, voltando a pegar no documento e agitando-o no ar. O Quartel-General das Forças Britânicas de Ocupação, em colaboração com o comando dos Estados Unidos em Salzburgo, vai nos enviar trezentas pessoas deslocadas de três campos de con­centração para ficarem aqui durante um tempo indetermi­nado! A Cruz Vermelha Internacional fornecerá todos os serviços médicos e víveres para alimentá-los. Nós, por nossa parte, teremos de lhes arranjar alojamentos e de cuidar de todo o resto. Chegam daqui a uma semana.

Meu Deus! Johnson apreendeu rapidamente o que aquilo representava. Vamos ter uma série de pro­blemas!

Maiores do que pensa. Hanlon voltou a rir. Que dirá Holzinger quando eu o informar?

Os dois homens jantaram juntos, e, quando termina­ram, Mark Hanlon decidiu que já estava farto da companhia de Johnson. A culpa não era do rapaz, O capitão mostrava-se até uma pessoa agradável e inteligente, era espirituoso e também bom conversador. Era verdade que não tomava o mundo muito a sério, mas isso era invejável e não constituía grande defeito.

Mark Hanlon estava inquieto. Sentia-se pouco à von­tade, abafado naquela atmosfera de onde não saíra durante todo o dia. Queria sair, espairecer. Aonde poderia ir? A vila não possuía um clube, e os bares estavam fechados por falta de clientes, Não tinha qualquer amigo a quem pudesse visi­tar. Não era aconselhável ir tomar uma bebida com os ofi­ciais subalternos ou com os soldados. Beber sozinho também não lhe agradava...

Huber teria, com certeza, muito prazer em vê-lo no hospital, mas nessa noite nada lhe desagradaria mais do que o éter e os anti-sépticos, do que a desconfortável evidência do sofrimento e da morte. O Padre Albertus também gosta­ria de vê-lo, mas do que poderiam eles falar senão de velhas recordações e de metafísica? Eram temas de conversa bas­tante despropositados...

Hanlon pensou então em Holzinger. Tinha de conver­sar com ele sobre vários assuntos, e não havia razão que o impedisse de visitá-lo. Holzinger portara-se muito bem no que dizia respeito ao funeral e merecia uma atenção da sua parte. Nada o impedia de lhe ir agradecer e mesmo de infor­má-lo da notícia que acabara de receber sobre os refugiados. Era verdade que não precisava de uma desculpa para visitar quem ele quisesse, mas não havia dúvida de que tinha uma desculpa muito razoável. Sim, iria visitar Holzinger, decidiu Mark Hanlon, procurando num mapa da vila o local exato da casa do burgomestre.

As nuvens haviam desaparecido. O céu estava límpido e o brilho das estrelas dava-lhe uma luminosidade muito agradável. A neve começara a cair e o frio era muito intenso. Os cristais sob os seus pés estalavam à medida que ele ia atravessando a vila para seguir depois pela avenida, ladeada por árvores, que conduzia à casa do burgomestre.

Uma criada vestida de preto e com um avental engo­mado muito branco veio abrir-lhe a porta, ficando muito sur­presa ao ver o seu uniforme e deixando-o à espera no átrio, depois de murmurar umas desculpas precipitadas, enquanto ia chamar Holzinger. Este também ficou bastante admirado ao ver Hanlon, mas recompôs-se depressa e estendeu-lhe a mão num gesto de cortesia.

Boa noite, major. Esta é uma surpresa muito agra­dável.

Hanlon sorriu e apertou-lhe a mão.

— Desculpe-me visitá-lo sem tê-lo avisado. Espero não vir incomodar...

Tenho imenso prazer em vê-lo. Estávamos em fa­mília. Minha mulher e minha filha terão muito gosto em conhecê-lo.

Fiquei muito sensibilizado com tudo o que fez para o funeral — disse Hanlon, que ensaiara essas palavras du­rante o caminho. — Queria dizer-lhe pessoalmente... sem formalidades.

Holzinger sorriu, agradecido, e baixou a cabeça numa curta reverência.

Eu é que estou sensibilizado pelas suas palavras.

Trata-se de uma atenção insignificante — murmu­rou Hanlon. — Temos demasiados assuntos desagradáveis durante o dia, e à noite não há razão para não os esquecer.

A curta conversa já causara os efeitos que Hanlon dese­jara, e pela ordem em que os planejara: as desculpas, o cumprimento e a precaução sutil. A dignidade de ambos fora mantida, e Holzinger, que devia ter percebido, sorriu-lhe e conduziu-o à sala de estar.

Mark Hanlon viu logo as duas mulheres, muito tensas, olhando para ele com uma grande curiosidade. A expressão no olhar da mãe era um misto de surpresa, incompreensão e medo. A filha estava muito calma e fria, observando-o como se o medisse, e parecendo depois mais interessada pela sua presença.

Holzinger fez as apresentações, e as duas mulheres fi­caram ainda mais surpresas quando ele lhes falou num ale­mão puríssimo e lhes beijou as mãos respeitosamente. Hol­zinger ofereceu-lhe uma cadeira, falando-lhe amavelmente.

— Sente-se, major. Esteja à vontade. Que deseja be­ber? Schnapps? Sliwowitz?

O que for mais conveniente.

Enquanto Holzinger preparava as bebidas e as duas mulheres procuravam um pretexto para principiar a conver­sa, Hanlon examinava cuidadosamente a sala: um sólido sofá, boas pinturas, ótimo tapete, cortinas de brocado, porcelanas yienenses, cavalos de Lipizzaner, um piano de cauda, lustres de Veneza, uma velha arca de enxoval, de Salzburgo... Em cima da lareira, uma fotografia de um jovem em uniforme de um regimento de Alpenjäger... o filho, provavelmente...

— Onde aprendeu o alemão, major? — perguntou su­bitamente Liesl Holzinger, numa voz profunda mas suave que o surpreendeu.

Estudei em Graz há muitos anos.

Então deve conhecer bem o nosso país e a nossa gente.

Gosto de pensar que assim é — Hanlon sorriu, tendo o cuidado de mostrar uma certa reserva nas suas pa­lavras. — A Áustria e os austríacos mudaram muito desde que estive aqui, está claro.

Os ingleses têm habitualmente uma certa dificul­dade em falar a nossa língua.

— Eu tenho sangue irlandês... talvez seja por isso que não sigo a norma.

É possível.

Mark Hanlon sentiu que a mulher de Holzinger o observava com todo o cuidado, medindo-lhe bem as reações, o tom da voz e o menor gesto que fazia. "As mulheres desta casa são fortes e inteligentes", pensou Hanlon, tentando adi­vinhar se Holzinger seria feliz tendo aquela loura valquíria como mulher e aquela filha tão morena.

Max Holzinger serviu as bebidas e o fato originou os brindes convencionais.

Prost! — disse Mark Hanlon.

Prost! — redargüiu Max Holzinger.

A moça nada disse, limitando-se a sorrir.

À paz! — saudou Liesl Holzinger.

O Major Hanlon disse-me que ficou muito sensibi­lizado com o funeral desta manhã, Liesl — informou Holzinger veementemente, como se estivesse ansioso por mostrar as suas boas relações com as Forças de Ocupação.

Não podíamos fazer menos — disse Liesl, a sua voz enfática e segura dominando a sala. — Um crime desses afeta-nos a todos. Já descobriram o assassino, major?

Não. Isso ainda levará algum tempo.

Espero que o encontrem depressa — disse Traudl com firmeza —, para podermos começar a levar uma vida normal.

Holzinger e Liesl olharam rapidamente para ela, mas o seu sorriso parecia estar isento de malícia. Hanlon também sorriu, e falou-lhe num tom de voz muito gentil:

Não há razão para que não comece já a fazer isso,

Fräulein. A guerra já acabou. O ritmo da vida não tardará a ser o mesmo de antes. Vai ver...

Isso é fácil de dizer... para os vencedores — redargüiu Traudl atrevidamente.

Traudl! — A mãe voltara-se para ela, o seu rosto revelando uma reprovação severa daquelas palavras.

Não faz mal — disse Hanlon, com um sorriso. — Trata-se de um comentário bastante justo. Os jovens é que têm de herdar a destruição causada pela guerra. — Mark Hanlon voltou-se de novo para a jovem. — Não se engane á nosso respeito, Fräulein. O que me fez vir aqui foi apenas a necessidade de trazer ordem à região e de tentar dar nova vida e esperança aos seus compatriotas. Voltarei para a mi­nha pátria logo que cumprir essa missão, e, creia, o que eu mais desejaria seria estar na minha terra, em vez de me encontrar na posição de vencedor num país que não é o meu.

Não compreendo, então, por que todos têm medo do senhor.

Medo?

Sabe muito bem que é assim! — Traudl voltou a sorrir, dessa vez como se o desafiasse para um duelo ami­gável. — Estão todos apavorados, incluindo aqui papai!

Holzinger, enrubescido, começou a protestar, mas Han­lon calou-o com um gesto e respondeu a Traudl com uma gentileza quase excessiva.

Todos nós receamos qualquer pessoa desconhecida que entre subitamente na nossa vida. Não gostamos de ver um policial acampado à nossa porta, observando o que fa­zemos e querendo nos organizar, mas depressa nos habitua­mos à sua presença, e, quando já quase nos acostumamos a vê-lo todos os dias, o policial verifica que está tudo em ordem e resolve ir embora.

Mark Hanlon levantou-se e foi sentar-se ao piano. Os Holzinger ficaram a olhá-lo, curiosos e vagamente preocupa­dos, e Hanlon começou a tocar, com grande suavidade, o Kärtner Heimatlied — que é a mais terna e popular canção da Áustria.

A música pareceu apoderar-se dele, suavizando as rugas do seu rosto cansado, afastando a tensão que o dominava e dando-lhe um novo brilho ao olhar. A melodia, fascinante e ardente, enchia a sala de uma atmosfera campestre muito viva e real; fazia lembrar a neve dos picos e as quedas d'água, as árvores em flor e os campos verdejantes, o trinar dos pássaros e o esvoaçar das borboletas, a saudade dos exilados da boa terra que os criara. Os Holzinger, fascinados pela arte de Mark, aproximaram-se dele, lentamente, sem o menor ruído, não fosse um movimento quebrar aquela es­tranha magia. Hanlon não os via nem ouvia. Rendera-se inteiramente às suas saudades, e os seus talentosos dedos iam tocando velhas baladas da gente austríaca e também frag­mentos de Schubert, extratos de Mozart e Haydn, um, cân­tico monástico, uma ária tirolesa — recordações de uma felicidade esquecida numa sinfonia melódica sem igual. Entre a sua vida de monge, e de militar, durante anos em busca do destino, Mark Hanlon havia sido um músico de valor, um homem com uma canção no coração e imenso talento nos dedos, mas esse músico fora enterrado durante o longo tem­po da guerra e só agora voltava de novo a surgir.

Holzinger mantinha-se a certa distância do piano, ten­tando combater a emoção que o assaltara, mas as duas mu­lheres estavam junto de Hanlon, o calor dos seus corpos e o seu perfume envolvendo-o, como a música também já fi­zera. As vozes das duas mulheres começaram a acompanhar suavemente a melodia, dando nova ênfase à música e fazendo com que Hanlon fechasse os olhos e se entregasse com toda a alma ao encanto dos sons, ao perfume delas e ao ritmo do seu sangue efervescente.

O prazer começou depois a diminuir lentamente, e a música morreu numa cadência menor, quase num murmúrio, que pairou na sala durante um longo momento. As mulheres afastaram-se do piano, relutantes e indecisas, e Hanlon voltou-se para elas — o seu sorriso embaraçado parecendo que­rer pedir-lhes desculpa por aquela repentina inspiração.

Acabou-se. Já não posso mais — declarou Hanlon, simples e modestamente.

Wunderschön![3] — disse Liesl Holzinger.

-— Agradeço-lhe muito — respondeu Hanlon, pouco à vontade.

Traudl nada dissera, limitando-se a acender um cigarro e a tentar esconder que o seu corpo fora completamente dominado pela música e pelo desejo do homem que a tocara.

— Como vê —- continuou Hanlon ironicamente —, nem todos somos monstros, Fräulein. Alguns de nós, quando nos damos a conhecer, somos até bastante simpáticos.

Não me esquecerei disso, major. Espero que volte aqui para tocar para nós.

E eu espero que me convidem breve — murmurou Hanlon, arrependendo-se logo daquela amabilidade, que pro­ferira sem pensar.

Venha sempre que quiser — disse-lhe Holzinger. -— Será sempre bem-vindo.

O major é um homem cheio de trabalho. Não de­vemos abusar da sua gentileza — comentou Liesl Holzinger, que era dos três quem certamente mais tato possuía.

Mark Hanlon despediu-se pouco depois. As mulheres ficaram à porta a observá-lo, enquanto Holzinger o acom­panhava até o portão do jardim.

— Fiquei muito contente pela sua visita, major — disse ele num tom de voz muito sincero e mesmo emocionado. —- Confio em que isto seja o começo de uma compreensão perfeita entre nós.

Eu também assim espero — disse Hanlon gentil­mente. — Gostaria que fosse me visitar amanhã de manhã. Temos de discutir vários assuntos.

Oxalá não sejam mais problemas!... — disse Holzinger, baixando o olhar e perdendo um pouco do seu oti­mismo.

Os mesmos de sempre. Não se preocupe, Herr Bürgermeister. Boa noite... e muito obrigado pela sua hos­pitalidade.

Boa noite, major.

Holzinger ficou algum tempo ainda no portão do jardim, observando a figura de Hanlon que se afastava lenta­mente, e depois voltou para casa, onde as duas mulheres discutiam uma questão muito importante: se Mark Hanlon seria casado ou não.

 

                                                     Capítulo 9

Max Holzinger apresentou-se no Hotel Sonnblick às nove e meia da manhã e ficou muito surpreso ao ver que Fischer e o Padre Albertus já se encontravam lá. Os três homens sentaram-se no gabinete, muito pouco à vontade, sob o olhar ríspido do Capitão Johnson cada um deles desejando saber a razão de os outros dois também terem sido convocados. Mark Hanlon, ao que parecia, estava ocupado com as instruções às patrulhas, e Johnson dissera-lhes apenas que esperassem, não lhes dando a menor explicação.

O Major Hanlon chegou depois de vinte minutos, des- culpando-se da demora e lançando-se imediatamente ao tra­balho. Começou por lhes ler, num tom de voz frio e indife­rente, as ordens que recebera sobre a chegada e a recepção dos refugiados que vinham dos campos de concentração, e, em seguida, examinando atentamente as expressões dos três homens, disse calmamente:

Já sabem o que se passa, meus senhores. Gostaria muito de ouvir o seu parecer sobre o assunto. Dou-lhes inteira liberdade de dizer o que sentirem.

É uma surpresa disse Holzinger cuidadosamente. E não se pode dizer que seja uma surpresa agradável...

Teremos muitos problemas disse Fischer firme­mente —, distúrbios como já se deram noutras regiões. De­sordem, tentativas de estupro e de assassinatos. Não tenho agentes suficientes para enfrentar a situação. As Forças de Ocupação terão de assumir essa responsabilidade.

Mark Hanlon não respondeu, limitando-se a aguardar outros comentários. O Padre Albertus falou a seguir. A sua voz profunda revelou a convicção que o dominava.

Temos uma dívida para com essa gente. Nunca po­deremos pagar-lhes o mal que fizemos. Tudo o que agora conseguirmos, tudo o que nos pedirem para bem desses desgraçados será muito pouco em comparação com o que eles sofreram.

Hanlon continuava à espera de mais argumentos e sorria ironicamente ante as expressões, tão diferentes, dos três homens.

Então, meus senhores?

Holzinger encolheu os ombros, não sabendo bem o que havia de dizer.

Não... nada tenho contra o princípio... Faremos tudo o que for possível.

Não concordo com isso — disse Fischer teimosa­mente.

Por quê? — perguntou Hanlon, num tom de voz suave e compreensivo.

Temos uma dívida para com eles, disso não restam dúvidas. Temos também a obrigação de reabilitá-los, reco­nheço inteiramente. O que afirmo é que o problema não será resolvido pelo fato de instalarem essa gente no meio de uma pequena comunidade como esta, que não tem qualquer pro­teção contra...

Contra o quê? — perguntou Hanlon, interrompen­do bruscamente o chefe de polícia.

Contra o ódio! — respondeu Fischer, numa explo­são violenta e enfática. — Contra o ódio e a vingança! Não me diga que os refugiados não nos odeiam e não querem se vingar! Já viu o que aconteceu quando as portas dos campos de concentração se abriram?! Um verdadeiro morticínio. Os desgraçados não mataram apenas os guardas e os carrascos, mas também os inocentes habitantes de todas as aldeias que se encontravam perto dos campos. Essas criaturas deslocadas, pobres infelizes, sabem que são protegidas pelas autoridades de ocupação. Ponha uma dessas pessoas num tribunal, contra um alemão ou um austríaco... Quem ganha o processo? Quem haveria de ganhar? Como nos seria possível manter a ordem numa situação dessas? Não interprete mal as mi­nhas palavras! Eu sei muito bem o que se passou nos cam­pos de concentração. Sei também que quem é brutalizado, como o foram essas pessoas, se torna um animal. Mas nem todos os homens internados nos campos eram mártires, nem todos eram judeus ou condenados políticos. Estes estavam misturados com assassinos, gatunos e toda a espécie de ho­mens condenados por crimes sexuais. Não acredito que ten­cione trazer esses homens para junto das nossas mulheres e dos nossos filhos! O aspecto moral da questão dos refugiados está muito acima de mim. Tenho vivido e trabalhado aqui durante toda a minha vida. Não compreendo a razão por que eu e outras pessoas como eu hão de ser forçadas a acei­tar toda essa corrupção.

—- A razão é simples: todos nós tomamos parte no que se passou, Karl — disse o Padre Albertus sombriamente. — Todos nós cooperamos, por meio do nosso silêncio, pela nossa covardia, ao saborearmos os frutos adubados por mi­lhões de mortos. Disse há pouco que sabe muito bem o que se passou nos campos de concentração. Não! Nunca poderia sabê-lo, a não ser que se encontrasse lá e sentisse o horror no seu próprio corpo. Falou-nos de ódio, vingança e assas­sínios. Espere até ver essa gente! Eles já nem sequer têm coração para odiar — ou mesmo para amar. A maioria até já perdeu a vontade de viver. Disse que receava a presença deles, não é verdade? Que podemos nós recear de esquele­tos vivos? Disse que receava que as nossas mulheres e crian­ças corressem perigo? Que perigo podem oferecer esses cor­pos famintos, escanzelados, cujas energias se esgotam ao menor movimento? Vou dizer-lhe aquilo que lhe mete medo, aquilo que nós todos receamos: a nossa culpa a olhar-nos através desses infelizes olhos mortos, a nossa vergonha a aquecer-se à luz do sol da nossa vila!

Seguiu-se um longo e difícil silêncio, e cada um dos presentes sentiu um nó na garganta, uma angústia insupor­tável ante a verdade que fora pronunciada. O próprio Hanlon, que convocara o Padre Albertus justamente para criar esse sentimento, ficara emocionado com aquela eloqüente condenação.

Parece-me que concordamos todos com a justiça da nova tarefa que temos entre mãos — disse ele, ao fim de alguns minutos de silêncio. -— Temos ainda de discutir al­guns assuntos de ordem prática, como, por exemplo, a re­quisição de um edifício apropriado. Gostaria que me fizesse as suas recomendações sobre esse ponto, Holzinger, para irmos ambos visitá-lo antes de eu passar a ordem de requisição.

Vou estudar o assunto e amanhã já lhe direi alguma coisa, major.

— Muito bem. O problema seguinte é o do pessoal. O corpo clínico será fornecido pela Cruz Vermelha Interna­cional: médicos, enfermeiros, pessoal hospitalar especializa­do. Precisaremos de criados, mulheres de limpeza, pessoal para as lavanderias, cozinha, caldeira, pessoal de escritório... Como é que vamos arranjá-los?

Terá de recrutá-los — disse Fischer amargamente. — Ninguém se oferecerá como voluntário para um trabalho dessa natureza.

Conhece mal a nossa gente, Karl — disse o velho padre. — Todos os austríacos possuem uma consciência cris­tã, embora esteja escondida lá no fundo. Muita de nossa gente responderá favoravelmente a qualquer apelo que lhe seja apresentado devidamente. Eu farei um sermão sobre o assunto, no domingo. Se todos aqueles que estão numa po­sição de relevo derem o exemplo... — o Padre Albertus fez uma breve pausa e olhou para Holzinger — se as suas famílias oferecerem os seus serviços voluntariamente, os ou­tros não tardarão a seguir-lhes o exemplo. Temos uma se­mana para prepará-los, e, com muita diplomacia e cuidado, conseguiremos todo o pessoal que for necessário.

Se isso fosse possível — disse Hanlon, sem qual­quer ênfase —, tornaria tudo mais fácil, tanto para mim como para vocês.

Holzinger assentiu, mas não fez qualquer comentário. Pensava no que Liesl diria, e a sua filha também, quando ele lhes insinuasse que teriam de dar o exemplo aos outros.

Vencido o primeiro obstáculo, Mark Hanlon dedicou-se a uma infinidade de pormenores: ordenados, transportes entre a estação e o hospital, divertimentos, métodos de re­crutamento, etc. A tensão foi diminuindo, e, ao cabo de uma boa hora de trabalho, Hanlon ordenou que lhe trouxessem café e ofereceu cigarros a todos os presentes. A manhã estava correndo bem, e ele queria aproveitar-se do fato.

O problema tratado a seguir era muito delicado: a si­tuação dos membros do Partido Nazista e o confisco dos seus bens. Holzinger e Fischer aparentaram grande nervosismo logo que Hanlon mencionou o assunto.

Quero que me compreendam bem, meus senhores. Eu tenho uma certa liberdade de tempo e ação no que diz respeito a este problema. O meu maior desejo, como será também o de vocês, é evitar quaisquer injustiças, que não beneficiarão a quem quer que seja! O equilíbrio social e político só será obtido verdadeiramente quando houver elei­ções livres e os desejos da população forem conhecidos. Terão de compreender, apesar disso, que a minha tarefa é dificultada por pressões políticas de caráter geral. Serei for­çado a justificar perante os meus superiores qualquer ação

minha... ou qualquer demora em levá-la a cabo. Estão en­tendendo?

Holzinger e Fischer aquiesceram. O Padre Albertus estava imóvel, os seus olhos inteligentes e carinhosos observando-o com curiosidade. Hanlon continuou a falar após uma breve pausa:

A primeira medida que proponho é embargar os documentos existentes: os arquivos do município, os fichá­rios do partido, os documentos eleitorais, os registros de nascimentos, de óbitos e de casamentos, todos os papéis re­ferentes às propriedades de toda a região de Bad Quellenberg, os arquivos da polícia, etc. O Capitão Johnson e os seus subalternos tomarão posse dos documentos imediatamente e passarão os respectivos recibos. Os documentos serão devolvidos depois de devidamente examinados e estu­dados.

Holzinger moveu-se na cadeira, pouco à vontade, sen­tindo-se corar e procurando mostrar que a velada ameaça em nada o incomodava. Fischgr ficara furioso, os seus olhos fals­eando de uma raiva contida, e era óbvio que procurava pa­lavras para indicar o ressentimento que sentia.

Terei de publicar uma proclamação, que já tenho preparada continuou Hanlon, apontando para um do­cumento que se encontrava em cima da secretária —, fazen­do ver a todos os habitantes da região que terão o direito de vir me comunicar quaisquer ilegalidades cometidas por membros do partido ou apreensões de bens que constituam abuso de autoridade. Essas informações poderão ser prestadas em forma de acusação ou simplesmente como pedido de investigação. Sobre a fonte de informação será guardado si­gilo, e nunca ordenaremos qualquer ação legal sem investi­gar bem o caso. Espero que compreendam a necessidade de estudarmos atentamente todos os documentos oficiais do mu­nicípio. Existem milhares e milhares de pessoas que têm vivido sob um verdadeiro terror durante todos estes anos. A justiça vem sendo pervertida desde há muito tempo. Con­fio em que todos os quelembergueses queiram auxiliar-me a estabelecer um equilíbrio justo.

Não é dessa forma que conseguirá disse Fischer, falando com aquela convicção enfática de sempre. A maioria da nossa gente já está condenada de antemão.

Talvez assim seja no que diz respeito à opinião pú­blica — redargüiu Hanlon —, mas não em face da lei. E a lei, no momento, sou eu. O fato de conservá-los nos cargos é uma prova da minha imparcialidade, não é verdade?

O Padre Albertus sorriu ligeiramente. O seu aluno de tempos idos estava se portando à altura dos ensinamentos e sabia bem o que queria.

A maior parte dos nossos arquivos desapareceu an­tes da rendição — informou Holzinger, bastante embaraça­do, pois fora ele quem destruíra os documentos.

Já esperávamos que isso acontecesse — disse Hanlon, e a sua voz adquiriu um tom natural e despreocupado.

Teremos de nos contentar com o que resta. Os arquivos militares, especialmente os referentes a depósitos de armas e munição, são muito importantes. O seu trabalho será mui­to facilitado, Fischer, se conseguir encontrar esses depósitos.

Fischer redargüiu irritadamente:

Seria melhor que proclamasse uma nova ordem so­bre a entrega de armas. Não tenho conseguido que me en­treguem; todos querem conservá-las para o que der e vier.

Está bem — disse Hanlon, sentando-se mais con­fortavelmente e sorrindo-lhes. — Já basta por hoje, meus senhores. Adiantamos muito o trabalho. O resto fica para a próxima sessão. Alguém deseja saber alguma coisa em es­pecial antes de eu dar esta sessão como encerrada?

Tenho uma dúvida, Major Hanlon — disse Fischer.

Trata-se de uma coisa insignificante, mas o povo gostaria de saber. Estamos em período de festas. O dia de São Ni­colau é depois de amanhã, e, logo a seguir, vem o Natal, o Ano Novo, o dia de Reis. Temos de pensar nos velhos cos­tumes, em São Nicolau e até nos Krampus que visitam as crianças... Já sabe a importância que o povo dá a essas coisas. Deseja permitir as celebrações ou quer que eu as proíba?

Quero que façam o que sempre fizeram. Não desejo interferir na vida local. Nós tínhamos pensado que... se a população quisesse... eu gostaria de convidar todas as crian­ças para uma festa de Natal aqui no Hotel Sonnblick. A comida e os presentes ficariam a nosso cargo, está claro.

O seu gesto será apreciado devidamente por todos nós, major — disse o Padre Albertus. — Há muito tempo que as crianças não se alimentam convenientemente.

Muito bem. Então, terei o maior prazer em fazer todos os preparativos para essa festa. — Hanlon levantou-se e despediu-se deles. — Muito obrigado, meus senhores.

O Capitão Johnson os acompanhará, para tratar do embargo dos documentos.

Os três homens levantaram-se e despediram-se, saindo atrás do Capitão Johnson. O Padre Albertus ficara para trás, e, ao chegar à porta, voltou-se e o seu rosto transparente abriu-se num sorriso.

— A autoridade assenta-lhe bem, Irmão Mark. Tenho certeza de que virá a fazer grandes coisas pela nossa gente.

A porta fechou-se atrás dele, e Mark Hanlon ficou só, às voltas com um novo e perturbador pensamento.

Fora Fischer quem dera ocasião àquele pensamento, àquela ligeira dúvida, que nascera de uma frase aparente­mente simples. Fischer quisera saber se ele ia impedir que as festas se realizassem. O chefe de polícia não era homem para se interessar por festas religiosas ou pelo povo. A per­gunta fora despropositada entre os assuntos tratados. Quem é que pensaria em impedir as atividades religiosas ou festi­vas do povo? Qual era o funcionário que, nesse momento de ansiedade, formularia uma pergunta daquelas? A resposta era simples. Fischer queria ter a certeza de que as festas se realizariam. Por quê?

Mark Hanlon pensou durante uma hora no assunto antes de encontrar a solução.

No dia 6 de dezembro, os montanheses, trazendo as suas máscaras de Krampus, desceriam à vila. As máscaras de madeira eram enormes e grotescas, pois haviam sido es­culpidas por artistas de tempos idos. Tinham seis chifres e dentes defeituosos, estranhas bocas e olhos assustadores — iluminados às vezes por pilhas, de forma a brilharem horro­rosamente na escuridão. Os Krampus trajavam unicamente uma pele de cabra e usavam correntes de ferro na cintura e às costas. Estas produziam um som metálico que, juntando- se ao seu cântico surdo, enchia os vales e ecoava mil vezes pelos desfiladeiros da montanha.

Os Krampus separavam-se em grupos de três e quatro logo que chegavam à vila, a fim de prestarem o seu con­curso às várias personificações de São Nicolau, que andavam de casa em casa com presentes para as crianças. O povo chamava-lhes Krampus por ser esse o nome do diabo que servira São Nicolau e que assustava os ladrões e as crianças traquinas. As máscaras eram, contudo, muito mais antigas do que Krampus — na realidade constituíam o rosto de Fréia, a mulher de Odin, rei do velho e sangrento Valhalla.

Quando o santo entrava nas casas, para distribuir os presentes, os Krampus ficavam na rua, gritando e batendo as correntes, e espreitando pelas janelas, visto que as crian­ças tinham muito medo deles e choravam na sua presença. Os adultos também os receavam, por mais que rissem e dis­farçassem o nervosismo, pois aquelas máscaras faziam revi­ver neles uma velha recordação de monstros horrorosos dançando em redor de fogueiras, entre os rochedos e nas clareiras dos pinhais.

Uma vez os presentes distribuídos, os Krampus deixa­vam o santo e iam para o centro da vila beber o vinho que lhes haviam dado à porta das casas. Passavam então pelas ruas, cantando e agarrando todas as moças que encontravam, prendendo-as com as correntes e obrigando-as a pagar pela sua libertação.

As moças também receavam os Krampus, mas eram do­minadas pela excitação do momento. Hanlon recordava-se bem daquelas festas religiosas, que eram mais pagãs do que outra coisa. Já descobrira a razão do interesse de Fischer pela festa do dia 6 de dezembro.

As máscaras e as peles de cabra pertenciam todas às velhas famílias das montanhas, por quem a tradição era man­tida. Um homem disfarçado de Krampus nunca seria sequer reconhecido pela própria mãe.

A solução era essa. Hanlon já não tinha a menor dúvida.

O assassino seria trazido para a vila no dia 6 de dezem­bro, a fim de se esconder numa das casas de qualquer rua obscura, e o arquiteto desse ousado plano era Karl Adalbert Fischer.

Vamos caçá-lo, Johnny! exclamou Hanlon. Um pouco de sorte e ele não nos escapa!

Era tarde e já escurecia, as cortinas estavam corridas e a sala encontrava-se banhada pela luz amarela dos lustres. Os dois oficiais curvavam-se sobre um mapa, traçando os caminhos por onde os Krampus poderiam convergir sobre a vila. Johnson assentia, aprovando as instruções de Hanlon. Esse era o gênero de trabalho que ele compreendia melhor, uma operação tática, apontada a um objetivo limitado. As suas perguntas eram muito diretas e pertinentes.

Disse-me que era melhor aguardar, Mark. Por quê? Não seria mais conveniente desmascará-los à medida que fossem entrando em Quellenberg?

Não. Os montanheses vêm aos poucos respondeu-lhe Hanlon. Vêm de uma dúzia de pontos diferentes de várias colinas. Chegam pelos atalhos e pelas pistas da montanha. Teríamos de espalhar as nossas forças, reduzindo as possibilidades de uma busca total.

Compreendo. Deseja que entrem todos na vila, não é isso?

Sim. Fecharemos depois todas as saídas e os solda­dos ocuparão o centro da vila. A operação será perfeita. Uma outra vantagem é que os Krampus estarão mais ou menos embriagados, visto que recebem vinho em cada casa onde param.

Será mais fácil disse Johnson, piscando o olho. Não me admirarei, no entanto, se tivermos uma ou outra cena de pancadaria entre eles e os nossos rapazes.

Duvido que isso aconteça.

A que horas se passará isso tudo, Mark?

Depois de escurecer. Começam a fazer a ronda das casas pelas cinco e meia da tarde. Só se concentrarão por volta das oito horas. Depois dessa hora é que as enfermeiras e as criadas podem sair para a rua. Teremos assim a certeza de que não desaparecerão antes talvez das nove horas.

Johnson olhou-o com respeito.

Tem tudo muito bem planejado, Mark.

Lembre-se de que já vivi na Áustria respondeu Hanlon, bem-disposto e alegre. Mas não julgue que vai ser tão fácil como parece. O primeiro perigo consiste em que o nosso homem pode não vir até o centro da vila, mas ficar numa casa dos arredores, o que seria desanimador.

Como pensa evitar essa eventualidade?

É tudo uma questão de sorte. Vou entregar-lhe o comando da operação central, Johnny. Eu, por minha vez, vestirei o meu traje de esqui e irei patrulhar os arredores da vila logo que escurecer. Pode ser que eu perca tempo, mas também pode acontecer que tenha sorte.

E qual é o outro problema?

Surpresa respondeu Hanlon. —- Como é que vamos infiltrar uma companhia de soldados armados no cen­tro de Quellenberg sem despertar a atenção de Fischer e dos outros habitantes?

É impossível disse Johnson, pensativo e preo­cupado —, mas poderíamos atenuar um pouco o choque...

Como?

A festa é depois de amanhã, não é verdade?

É, sim.

- Então ainda temos a noite de hoje e a de amanhã. O melhor será chamar o Sargento Jennings. Conte-lhe o que se passa e diga-lhe que mande os soldados para as ruas prin­cipais hoje e amanhã. Diga-lhe ainda que eles devem passear pelo centro e tomar uma bebida nos Stüberls. Que levem as armas, para a população se habituar a elas. Duas noites de­vem ser suficientes para que Fischer e os outros julguem que se trata de um procedimento normal.

Ótimo! — exclamou Hanlon. O plano deve dar resultado. Chame o Sargento Jennings e ponha-o ao corrente do que se passa.

E que faremos quanto a Fischer?

Fica por minha conta. Não se preocupe. Preciso dele, de momento, e vou dar-lhe toda a liberdade que ele quiser... Depois será castigado por abusar dela!

Karl Adalbert Fischer, entretanto, formava o seu pró­prio plano de campanha junto daquele mapa enfeitado com as derrotas dos exércitos alemães. Fazia-o à sua maneira ca­racterística, os pés em cima da mesa, uma garrafa de Schnapps perto, o telefone numa das mãos e um dos charu­tos de Gretl Metzger na outra. O chefe de polícia falava com Rudi Winkler.

Tenho um presente para você, meu amigo.

Esplêndido! Esplêndido! O riso infantil de Winkler fez-se ouvir por todo o gabinete de Fischer. Adoro presentes. Quando é que vai mandá-lo?

Depois de amanhã. São Nicolau irá visitá-lo, e os Krampus também, está claro.

Para me baterem? Gostaria muito disso, sabe?

Winkler voltou a rir, e Fischer, esperando pacientemen­te, franziu o sobrolho até que o outro se acalmou.

Conhece a cerimônia, com certeza. Dê uma bebida e uma pequena gratificação ao santo e a cada um dos Krampus, e depois mande-os embora. Um deles ficará aí com você.

Uma idéia genial! exclamou Winkler. Gosto muito de idéias geniais! Conseguiu arranjar aqueles... do­ces que eu lhe pedi?

Já os encomendei... devem estar chegando.

Muito bem...! — Winkler voltou a rir. E os documentos que me prometeu?

Está tudo pronto — disse Fischer, sorrindo. — Irei levá-los a sua casa no dia seguinte ao de São Nicolau.

Uma pessoa cuidadosa — comentou Winkler petu­lantemente.

Fischer riu-se:

Estamos vivendo num tempo muito difícil. Toda a cautela é pouca. Auf Wiedersehen.

Auf Wiedersehen.

Fischer desligou o telefone e logo a seguir discou outro número. Dessa vez foi Gretl Metzger quem respondeu, mas a sua voz parecia indicar que estava preocupada e nervosa. Fischer interrogou-a rapidamente.

— Gretl, aqui fala Karl. Está sozinha?

Não.

Seu amigo está aí?

Sim.

Trouxe o que eu pedi?

Quase tudo.

E o resto?

Mais tarde.

Tem certeza de que trará?

Tenho.

Disse-lhe que era para mim?

Não! — Gretl baixou o tom de voz e falou quase num murmúrio. — Ele quer saber quanto receberá.

Diga-lhe que direi o preço quando tiver tudo nas minhas mãos — respondeu Fischer secamente. — Faça o que pedi, Liebchen, e conservará a sua licença. Servus, minha querida.

Servus — respondeu Gretl.

Fischer voltou a desligar e serviu-se então da garrafa de Schnapps. Bebeu-a toda de um trago e sentiu o calor aquecer-lhe as entranhas. Um dos maiores prazeres da sua vida era sentar-se no seu desordenado gabinete e puxar os cordéis que moviam os fantoches. Gostava também de uma boa bebida, mas a abstinência de mulheres incomodava-o mais, embora nunca tivesse sido obrigado a passar sem elas durante muito tempo. Já começava a envelhecer, e as suas necessidades físicas eram menores, mas o uso do poder con­tinuava a ser para ele um prazer indescritível. A idade pare­cia fazer aumentar esse prazer, e o seu uso constante nunca o cansava. Só uma coisa poderia eliminá-lo: o capricho das Forças de Ocupação.

Fischer corria esse risco e não se livraria dele tão cedo.

Nada podia fazer para evitá-lo, a não ser preparar-se para o pior e confiar em que tudo acabaria bem. Entretanto, Fischer sentia um verdadeiro prazer em enganar Mark Hanlon e em salvar o desgraçado, que era seu sobrinho, das garras dos ingleses. Se obtivesse êxito, o que parecia agora possível, seria como se cuspisse no rosto de Hanlon, e constituiria também um triunfo para o seu orgulho.

O chefe de polícia acabou de fumar o charuto e depois foi buscar uma mala que se encontrava a um canto do gabi­nete, pondo-a em cima da mesa e abrindo-a. A mala conti­nha um traje completo de Krampus, que, duas horas antes, repousava, abandonado e poeirento, num armário de vidro do museu municipal.

Aquele traje era, segundo o museu, o mais antigo da província, pois já contava quatrocentos anos. A pele estava bastante gasta e mesmo pelada em alguns pontos. As cor­rentes tinham sido forjadas a mão por qualquer ferreiro da montanha há também mais de quatro séculos. Os chifres es­tavam rachados e amarelecidos, mas a máscara em si era uma verdadeira obra-prima — um diabo grotesco, aterrorizador e excitante.

Fischer examinou atentamente o conteúdo da mala, vol­tou a fechá-la e levou-a para o seu carro.

Passados cinco minutos, guiava lenta e cuidadosamente em direção à aldeia onde sua irmã e o marido viviam. A neve brilhava à luz das estrelas, mas, mais adiante, os pi­nheiros estendiam as suas sombras negras sobre a estrada. Cada uma dessas sombras era um demônio saltitante, e cada uma das árvores parecia abrigar um monstro de olhos ter­ríveis.

 

                                             Capítulo 10

Às cinco e meia da tarde do dia de São Nicolau, as crianças de Bad Quellenberg já estavam lavadas e vestiam as suas roupas domingueiras a fim de receberem o santo. Os pequenos quelembergueses sentavam-se, excitados e pouco à vontade, nas cozinhas e nas salas de estar, conversando em voz baixa uns com os outros e tentando ouvir todos aqueles sons característicos que anunciavam a chegada do santo e do seu saco cheio de presentes. Os pais não paravam quietos, preparando as bebidas, os bolos e as pequenas gratificações com que os visitantes deviam ser recebidos, e, quando as crianças se tornavam mais impacientes, falavam-lhes aspera­mente, avisando-as do que haviam de fazer enquanto aguar­davam:

Ensaiem as suas orações. O santo desejará ouvir vocês recitá-las. Vejam lá... se não as souberem, os Kram­pus darão uma surra em vocês com as correntes.

Todos eles, crianças e pais, sentiam uma espécie de pâ­nico ante a próxima chegada dos Krampus. Esse dia era um símbolo de todas as vidas. Era verdade que o santo trazia presentes, mas esses presentes teriam de ser ganhos. Por trás da figura sorridente de São Nicolau, com a sua coroa de flores, escondiam-se os demônios prontos a castigar os es­quecidos e os endiabrados.

Mark Hanlon também sentiu aquela estranha atmosfera ao sair do hotel e ao dirigir-se para o exterior da vila, en­quanto Johnson e os seus soldados faziam os planos finais para patrulhar o centro de Bad Quellenberg.

As avenidas estavam desertas e as luzes das casas bri­lhavam palidamente por entre as árvores. Mark Hanlon se encontrava num dos extremos da vila e já ouvia o barulho distante dos Krampus, vagamente misturado com o ruído das águas do rio e da folhagem dos pinheiros vergados sob o peso da neve.

A escuridão era quase completa. Hanlon meteu a mão no bolso para sentir o contato metálico e reconfortante da coronha da sua pistola.

O cântico dos Krampus aproximava-se, e o major viu, por entre árvores e rochedos, a primeira procissão da noite: dois rapazes, vestidos de pajens, cada um deles trazendo um saco às costas; o santo, com uma coroa de flores de papel na cabeça, e, atrás dele, três Krampus, saltando e gritando quase freneticamente.

Mark Hanlon escondeu-se na sombra e esperou a che­gada do grupo, ao mesmo tempo em que sacava do bolso a pistola e a destravava. Os homens já vinham perto, haviam passado as árvores e caminhavam na direção do ponto onde o major se encontrava. Quando o alcançaram, passados pou­cos segundos, Hanlon saiu do seu esconderijo e falou-lhes friamente:

Alto lá!

Os homens pararam imediatamente, voltando-se para Hanlon, sem tirar o olhar da pistola que ele empunhava. Hanlon identificou-se sem perda de tempo:

O meu nome é Hanlon. Sou o comandante das For­ças de Ocupação. Identifiquem-se. Retirem as máscaras.

Os homens hesitaram, olhando uns para os outros com expressões de espanto e de preocupação.

Retirem as máscaras! — repetiu Hanlon firme­mente.

Os Krampus desmascararam-se lentamente, e a trans­formação foi tal que Mark Hanlon teve de fazer um grande esforço para não rir. Os olhares perturbados dos homens contrastavam estranhamente com o horror que as suas más­caras causavam a todos. Nenhum deles tinha uma cicatriz ao longo do rosto.

Está bem. Podem voltar a pôr as máscaras.

Os Krampus voltaram a colocá-las sobre a cabeça e fi­caram olhando para Hanlon e para a pistola, não sabendo bem o que haviam de fazer. O major sorriu-lhes e fez-lhes um gesto de despedida.

Podem ir andando. Trata-se de uma mera formali­dade. Gute Reise[4].

Nenhum dos homens lhe respondeu ao cumprimento.

O santo fez um gesto com a cabeça e o grupo pôs-se de novo em marcha, dessa vez sem os pulos e os cânticos. Os montanheses haviam perdido a excitação anterior, não aparen­tando agora ser mais do que eram na realidade: um grupo de homens ignorantes representando uma farsa sem o menor sentido ou valor.

Hanlon voltou a guardar a pistola, encostou-se ao tron­co áspero de um pinheiro, acendeu um cigarro e começou a fumar placidamente. Sentia-se um tanto ou quanto ridículo. Quantas vezes mais teria de proceder de igual modo antes de decidir voltar para a vila?

O episódio repetiu-se mais quatro vezes, e, de cada uma delas, Hanlon sentia-se mais desconfortável e irritado por se haver entregue àquela aventura. O frio começara a entrar-lhe pelo corpo, e o insucesso ainda o esfriava mais. O reló­gio indicou-lhe que já eram sete e meia. Faltava mais de uma hora para Johnson e os seus homens darem início à operação no centro da vila. Mark Hanlon decidiu meter-se a caminho pelo atalho que circundava Bad Quellenberg e que o conduziria ao outro lado do vale, onde as duas encostas da mon­tanha se juntavam.

O comandante começou a caminhar rapidamente, com a cabeça coberta pelo capuz e as mãos nos bolsos, a fim de tentar afastar um pouco o frio que o invadia. Já andara uns dez minutos quando viu alguma coisa de insólito que o fez deter-se repentinamente a uns vinte metros de distância de um muro de pedra que era interrompido por um portão de ferro. Mais adiante, depois do portão e de um pequeno pi­nhal, viam-se as luzes acesas de uma casa bastante grande.

Hanlon notou três Krampus junto ao portão. Eles esta­vam de costas voltadas para ele e conversavam animadamen­te, não o vendo nem ouvindo os seus passos. O mais estra­nho é que estavam sós, sem o santo ou os pajens. Era estranho, estava claro, a não ser que já tivessem terminado o trabalho e que estivessem matando o tempo para se dirigir à vila. De qualquer modo, Hanlon teria de identificá-los.

O major empunhou a pistola e avançou na direção dos homens. Estes sentiram a sua aproximação e voltaram-se bruscamente, fazendo-lhe frente e recuando até o muro ao verem a pistola apontada. Hanlon olhou-os durante um mo­mento, notando com um certo interesse que um dos trajes era muito mais antigo do que os outros e que a máscara era a mais fantástica e decorada que jamais havia visto. O co­mandante falou-lhes da mesma forma que falara aos outros grupos:

— Identifiquem-se. Retirem as máscaras!

Uma voz rouca respondeu-lhe num dialeto carregado.

Por quê? Nem sequer podemos festejar os nossos santos à vontade?

É uma ordem — disse Hanlon suavemente. — Des­mascarem-se depressa e depois poderão fazer o que quise­rem. Vamos lá!

Nenhuma das figuras fez o menor gesto para obedecer à ordem. Os olhos das máscaras fixaram-se em Hanlon, inexpressivos e assustadores. As bocas disformes pareciam rir-se dele. "Devem estar embriagados", pensou Hanlon. "Mas são teimosos."

Não querem aborrecimentos, não é? Eu também não, mas sou muito capaz de aborrecê-los seriamente se não me obedecerem. Retirem as máscaras. Só lhes quero ver as caras. Depois disso poderão ir para Quellenberg e beber o que quiserem.

E se não lhe obedecermos?

Um homem cauteloso nunca discute com uma pis­tola — respondeu Hanlon secamente.

Outra voz falou, então, por trás da tal máscara muito antiga. Tratava-se de uma voz educada, notou Hanlon, e sem o tom rouco dos montanheses.

Façam o que ele diz. Não queremos problemas, não é verdade?

Mas...

Façam o que ele diz!

O primeiro homem levantou as mãos e, lenta e hesi­tantemente, começou a tirar a máscara. O gesto distraiu Hanlon, e isso não lhe permitiu ver o movimento rápido daquele que falara depois e que lhe desfechou uma forte pancada na cabeça com a corrente que trazia à cintura.

Mark Hanlon caiu sem sentidos e ficou estendido no chão, o rosto mergulhado nas folhas dos pinheiros e um fio de sangue manchando o branco da neve. Os pés dos Krampus pisaram impiedosamente o corpo inerte na sua fuga para a escuridão do pinhal.

O seu despertar foi um lento pesadelo de dor, de ce­gueira, de náusea e de estranha dúvida. A escuridão que o envolvia era como um teto de pedra contra o qual a sua cabeça batera repetidamente até quase rebentar. Parecia-lhe também um líquido negro que torturadores cruéis o obri­gavam a beber e, outras vezes, uma chama que o envolvia pesadamente. Era ainda um mar sobre o qual ele flutuava, um redemoinho que o fazia rodopiar sem descanso, um pântano em que se afundava sem salvação possível.

Mark Hanlon não tardou a perceber que tinha a cabe­ça envolta em ataduras e que não se sentia com forças para se mexer. Não podia falar e mal podia pensar. Ouvia vozes que falavam sem que ele as percebesse e nomes que ele conhecera e que não passavam agora de símbolos desconheci­dos. Estava vivo, era verdade, mas num mundo demasiado limitado para lhe permitir qualquer movimento. Pairava num espaço sem limites.

O pesadelo começou a diluir-se e uma espécie de morte reconfortante apoderou-se dele. A ressurreição deu-se muito lentamente. Já percebia que estava deitado numa cama, que vivia e que não corria grande perigo. Sabia que qualquer movimento o faria sofrer dores.

A primeira coisa que viu foi o rosto simpático do Doktor Huber, um rosto que de início era vago e sem contornos e que não tardou a ser reconhecido pelos seus olhos perple­xos. Hanlon percebeu que o médico lhe examinava a vista com uma pequena lapiseira de luz. Mark Hanlon pestanejou, e Huber soltou uma exclamação de contentamento, dando um passo atrás, o que permitiu que o major visse também o rosto pálido do Capitão Johnson e a cabeça loura de Anna Kunzli. Hanlon tentou mover-se. A dor era terrível, e teve de lutar para não voltar a perder os sentidos. Os olhos haviam-se fechado com a dor, e, quando voltou a abri-los, Mark Hanlon viu Huber, que lhe sorria. Tentou falar, mas a sua voz pareceu-lhe vir de outro homem — muito pequeno e longe de si.

Que aconteceu, Huber? Onde estou? Quem me trouxe para esta cama?

Isso agora é uma história muito comprida, major. Depois lhe explicaremos. Deixe-me examinar-lhe os olhos. Está me vendo bem?

Sim.

Esplêndido.

Huber curvou-se sobre ele e examinou-lhe as pupilas, procurando descobrir qualquer hemorragia. O exame foi rá­pido. Doktor Huber endireitou-se logo, satisfeito por não ter encontrado nada de anormal na vista de Hanlon.

Teve muita sorte, major. Poderia ter morrido. Che­guei a pensar que tivesse perdido a visão ou a audição.

Diga-me o que se passou.

Dê-me um espelho — disse Huber a Anna.

Ela entregou-lhe um pequeno espelho de bolsa quase no mesmo instante, e o médico colocou-o em frente de Hanlon. O comandante olhou para a sua própria imagem e verificou que, como já pensara, tinha a cabeça envolta em ataduras que estavam manchadas de sangue do lado es­querdo. Verificou ainda que tinha as mãos também enro­ladas, e o seu olhar incrédulo procurou o rosto de Huber.

Não compreendo.

—- A governanta de Herr Kunzli encontrou-o deitado na neve junto do portão da propriedade. Tinha a cabeça partida e cheia de sangue coagulado. O que não compreen­do é como se salvou de uma fratura de crânio ou de uma hemorragia interna. Tinha as mãos geladas também, e quase as perdeu. Morreria, sem a menor sombra de dúvida, se não o tivessem encontrado. A governanta foi chamar Herr Kunz­li, Anna e ele trouxeram-no para dentro de casa e, em segui­da, telefonaram-me, e nada mais lhe posso dizer sobre o que se passou.

— Há quanto tempo estou aqui?

Há trinta e seis horas — respondeu Huber. — Te­nho estado muito preocupado por sua causa.

Trinta e seis horas?! — Hanlon voltou a sentir-se dominado por uma terrível náusea, e, percebendo que ia perder os sentidos, tentou informá-los do que se passara antes que isso acontecesse: — Encontrei os... Krampus... o nosso homem... deram-me uma pancada com... com as correntes. — A escuridão apoderou-se dele e os olhos volta­ram a se fechar.

Huber observou-o durante alguns momentos e voltou-se depois para o Capitão Johnson.

— Percebeu alguma coisa do que ele disse, capitão?

Tentativa de assassínio — respondeu Johnson laconicamente.

Huber assentiu com um gesto de cabeça.

Compreendo. O major falou-me do assunto. Poderia muito bem ter sido um assassínio... e ainda poderá vir a sê-lo...

Johnson sobressaltou-se, chocado com aquela possibi­lidade.

Pensei que...

Não encontrei qualquer sinal de hemorragia, o que não impede que exista uma. Teremos de aguardar e ver como ele reage nos próximos dias.

Não seria melhor levá-lo para o Hotel Sonnblick?

Não — exclamou Huber enfaticamente. — O ma­jor não deve sair daqui. Frãulein Anna pode cuidar dele. Venha visitá-lo sempre que quiser. Eu virei vê-lo duas vezes por dia, até ter a certeza de que se encontra bem.

Agradeço-lhe muito — disse Johnson no seu mau alemão.

Anna falou então pela primeira vez.

Temos o maior prazer em fazer tudo o que nos seja possível. Prometo-lhe que nada lhe faltará, capitão. Que deseja que eu faça agora, Doktor?

O major ficará assim durante um ou dois dias. Terá períodos intermitentes de consciência e de inconsciência. Os períodos de consciência irão sendo mais longos à medida que for melhorando. Dê-lhe um caldo logo que vir que ele pode beber. Já sabe como deve contar as pulsações e tomar a temperatura. Chame-me imediatamente se houver alguma alteração no pulso ou febre. É possível que vomite ainda hoje, e, se os vômitos forem muito fortes ou os períodos de inconsciência demasiado longos, mande me chamar sem de­mora. Eu próprio mudarei as ataduras quando voltar aqui. O major não poderá receber visitas, além do capitão. E, mesmo assim, não quero que ele fale muito antes de come­çar realmente a melhorar.

Johnson concordou.

Compreendo perfeitamente, Doktor.

Frãulein?

Pode contar comigo, Doktor Huber.

Se precisar de medicamentos... — disse Johnson, pouco seguro de si.

Esteja descansado, irei visitá-lo se precisar de qual­quer coisa — disse Huber, sorrindo ante a atrapalhação de Johnson, e tornando-se subitamente muito sério ao ser assal­tado por um novo pensamento. — Temos um assassino na cidade, capitão. Que pensa fazer para descobri-lo?

Vou fazer uma busca em toda a vila, casa por casa... quarto por quarto! — exclamou Johnson iradamente. — Por quê?

Apenas um conselho de amigo — disse Huber len­tamente. — Aguarde um ou dois dias, até que possa falar com o major. Não perderá nada com isso, asseguro-lhe; é possível até que ganhe muito com a espera.

Vou pensar nisso.

Muito bem, capitão. Vamos, Anna, tenho mais ins­truções para você. — Huber e Anna saíram do quarto, e Johnson ficou olhando para a figura inerte do seu superior durante um longo momento.

Anna Kunzli encontrava-se junto de Hanlon sempre que ele recuperava os sentidos. A luz que entrava pelas janelas banhava os cabelos de Anna e dava-lhes o aspecto de uma coroa de ouro. Quando Hanlon acordava, queixando-se na escuridão e contorcendo-se com dores no rosto e nas mãos, Anna curvava-se sobre ele carinhosamente. As suas mãos suavizavam-lhe a dor e a sua voz inocente acalmava-o. Quan­do, ao contrário, voltava a perder os sentidos e ficava numa inconsciência que não sabia dominar, Hanlon tinha a impres­são de que ela o seguia para além das fronteiras da cons­ciência e da escuridão.

Mark Hanlon combatia os terríveis pesadelos com quan­tas forças lhe restavam, e a sua voz fraca chamava então desesperadamente: "Anna! Anna!", e ela estava sempre a seu lado quando ele vencia a batalha e abria os olhos. O coman­dante sujeitava-se, sem se sentir humilhado, a ser lavado por ela, e, quando o médico lhe arrancava as ataduras e ele gritava de dor, Anna consolava-o com palavras amigas e segurava-o com ânimo. Anna alimentava-o também, levando- lhe a colher à boca, como se ele fosse uma criança.

Hanlon já compreendera que estava dormindo no quar­to e na cama de Anna e que ela se mudara para um cubículo muito próximo do quarto, a fim de estar ao alcance da sua voz durante todo o dia e toda a noite.

Anna passava os dias sentada a seu lado, lendo e costu­rando, e também, às vezes, repousando de uma noite perdida ou interrompida pelos queixumes do paciente. O major so­frera uma grande desilusão por causa de uma mulher, e o carinho e solicitude da jovem representavam uma inesperada surpresa para um homem que já há muito deixara de confiar nas mulheres. Aceitava, porém, essa atitude de Anna sem qualquer comentário, visto ainda não ter forças para analisar o que se passava, mas a gratidão ia lhe penetrando no cora­ção ao mesmo tempo em que recuperava a consciência.

Hanlon passou as primeiras quarenta e oito horas entre períodos demasiado curtos de consciência e longos momen­tos de escuridão, mas, em seguida, o ritmo foi se alterando lentamente. O dia passou a ser maior do que a noite: dormia menos e sentia mais dores; o conforto das mãos e da voz da gentil enfermeira tornou-se mais presente, mais real.

Tem sido muito boa para mim, Anna — disse-lhe ele um dia, quando os perigos da inconsciência já quase haviam desaparecido.

Tenho imenso gosto em ajudá-lo, Mark — respon­deu Anna com uma serenidade muito doce. Ela habituara-se a tratá-lo pelo nome próprio durante todas aquelas horas que passara com ele e em que ambos combatiam o mal que o atacava.

Por quê? A doença não é uma coisa agradável, e ainda é pior para a enfermeira do que para o paciente.

Tenho estado sob o cuidado de várias pessoas du­rante toda a minha vida — disse ela, muito simplesmente. — Agora, pela primeira vez, tenho alguém de quem cuidar... Devo dizer-lhe que gosto muito de fazê-lo.

Hanlon concordou. Compreendera muito bem o que Anna dissera; aquele era um sentimento em que ele próprio acreditara antes de vestir a armadura do cinismo a fim de se proteger das desilusões da paixão. Agora, contudo, estava doente e despira essa armadura... E quem poderia descon­fiar de uma inocência tão patente?

Tem tido um trabalhão comigo, não é verdade?

Anna sorriu-lhe.

Nem tanto. Preocupava-me, às vezes, quando via que era atacado por um medo indescritível de qualquer coisa, Mark. E, outras vezes, quando tinha um pesadelo e prague­java ou gritava.

E que dizia eu? Teria usado uma linguagem muito forte?

A maior parte foi em inglês, e eu não compreendi. O que disse em alemão foi bastante forte. — Anna calou-se durante alguns segundos, observando-lhe o rosto, e depois formulou-lhe uma pergunta:

Mark, quem é Lynn?

O sorriso desapareceu dos olhos de Hanlon. A sua voz perdeu o anterior tom lânguido e tornou-se tensa.

Onde é que ouviu esse nome?

Gritava-o nos seus pesadelos, repetida e incessante­mente.

E que mais dizia eu nesses momentos?

Não entendi... falava em inglês.

Mark Hanlon fechou os olhos e acalmou-se. Os seus pensamentos foram interrompidos uma vez mais pela voz de Anna:

Desculpe... não lhe devia ter feito essa pergunta.

Não pense, que estava sendo apenas curiosa ou indiscreta. O nome parecia perturbá-lo, foi só por isso que perguntei,

Perturba-me, às vezes, sim.

Hanlon abriu os olhos e tentou sorrir-lhe de novo, mas, ao notar que Anna ficara preocupada, falou-lhe muito gentilmente:

Trata-se de uma velha história. Velha e infeliz. Lynn é a minha mulher.

Anna desviara o olhar do rosto de Hanlon, baixando-o para as mãos envoltas em ataduras e tocando-as com os seus jovens dedos.

Não fale nisso... a não ser que queira fazê-lo.

Mark Hanlon sentiu, pela primeira vez em muitos anos,

um súbito desejo de falar de sua mulher e do seu casamento fracassado. Ali, na intimidade daquele quarto, durante aque­le primeiro dia de convalescença, percebeu que podia fazê-lo sem se envergonhar. O paciente perde todo o orgulho quan­do a enfermeira o despe e o banha como se fosse uma crian­ça. Que razões poderiam impedi-lo de dizer o que lhe ia na alma depois de essa carinhosa enfermeira lhe ter falado dos pesadelos e quando ele próprio sentia um desejo enorme de desabafar? Mark Hanlon decidiu fazê-lo, começando a falar lenta e desanimadamente:

Eu era muito jovem e sentia-me faminto de amor e de carinho. Acabara de passar alguns anos num mosteiro, onde a paixão é suprimida pela disciplina e o amor se trans­figura num amor a Deus e naquilo a que chamamos caridade. É verdade que o amor é Deus e é caridade, mas só depois de envelhecermos e de perdermos a juventude do nosso cor­po e da nossa alma. Isso também acontece quando se é jovem, não restam dúvidas acerca disso, mas devido à inter­venção do Todo-Poderoso, que faz surgir um ou outro santo em cada século que passa. Eu? Nunca deveria, ter ido para o mosteiro. Para começar... fui... e tornei-me um homem com duas almas.

Por que é que decidiu entrar para o mosteiro?

Devido a um acidente. — Hanlon sorriu, uma ligei­ra ironia pairando-lhe nos lábios. — Meu pai morreu quando eu era muito novo. Era um irlandês de Liverpool que ficara na Alemanha depois da Primeira Guerra prestando serviço na guarnição de Hamburgo.

Como sucedeu com você, Mark.

Exatamente. Foi atropelado por um automóvel na semana em que devia voltar para a Inglaterra, e morreu. A nossa família passou um mau bocado, pois meu pai nada deixara, e eu, que era o mais novo, representava um encargo muito pesado para minha mãe. Sentia-me muito só e não fazia a menor idéia do que viria a ser a minha vida. Quando comecei a ouvir os sermões do padre sobre vocações e o valor espiritual da vida religiosa, voltei-me para a Igreja com toda a força do meu corpo e da minha alma!

E foi infeliz nesse mosteiro? perguntou Anna, os seus olhos inocentes fixos no rosto de Hanlon.

No começo, não. Fui mesmo bastante feliz durante algum tempo. Feliz é um modo de dizer... hoje sei que não era verdadeiramente feliz. Existe uma grande verdade, Anna... — Hanlon baixou a voz e continuou a falar como se tivesse uma certa dificuldade em explicar por palavras o que pensava. Nós somos feitos para ser felizes. . . nos mosteiros, no casamento, e mesmo no Cristo Crucificado. Se não somos felizes, algo se passa de mau em nós ou nas pessoas com quem vivemos... Geralmente as duas coisas! Saí do mosteiro alguns anos mais tarde. Já não agüentava mais. Senti-me forçado a abandoná-lo. O Padre Albertus fez-me o sinal-da-cruz sobre a cabeça e deixou-me ir para um mundo acerca do qual eu nada sabia, a não ser que nele existiam moças e que uma delas talvez viesse a me amar...

O Padre Albertus! exclamou Anna, sem poder acreditar que se tratasse do mesmo. Já o conhecia? Aqui, na Áustria?

Em Graz. O Padre Albertus era o mestre dos no­viços.

Anna abanou vagamente a cabeça, como se quisesse afastar qualquer confusão que nela tivesse entrado. O seu olhar tornou-se fixo. Parecia meditar sobre qualquer dúvida que não queria guardar só para si.

É tão estranho, Mark... tão estranho!

O quê?

Que estejam ambos aqui, agora, e que seja... o que é.

Não é muito estranho, Anna. Fiz tudo quanto me foi possível para alcançar este cargo.

Que razões o levaram a querê-lo?

Esse é o fim da história disse Hanlon, um sorriso despreocupado assomando-lhe ao rosto. O segredo que se adivinha quando se conhecem já todos os indícios. Conheci Lynn três meses depois de sair do mosteiro. Apaixonei-me por ela. Passaram-se mais três meses e nos casamos.

Gostava muito de Lynn?

Desesperadamente.

E que sucedeu, então?

Nada.

Não o compreendo, Mark.

Não aconteceu nada, Liebchen, absolutamente nada! Casamo-nos. Tivemos dois filhos, que me escrevem de vez em quando. Não tivemos mais... Lynn não os queria, e nem a mim também! Levei algum tempo para compreender que ela não me amava. Eu lhe era necessário, mas não como marido... nem como amante. Pensei que o tempo, a paciência e o carinho trariam um novo amor à nossa vida... mas enganei-me. Pensei também que a paixão traria o amor... mas já não havia paixão nela. Foi só depois que compreendi que o amor pode morrer, como todo o resto. Enfraquece como uma planta e murcha. Morre... como tudo o que nasce e vive. Nada pode ressuscitar o amor. Nada!

Ainda é casado?

Sou.

Por quê?

Por causa das crianças... por causa da religião. Trata-se de um casamento vazio... um zero. Eu estou aqui, ela na Inglaterra, e nenhum de nós sente a falta do outro.

Mas, mesmo assim, chamou por ela quando dormia.

Não por ela, Anna... mas sim pelo amor. O amor que gastei com ela e que de nada serviu. O amor que lhe pedi e que nunca recebi.

O amor nunca deve ser pedido disse ela grave­mente. Descobri isso com o tio Sepp. O amor ou existe ou, então, nada poderá criá-lo. Se não existe... — Anna encolheu os ombros ninguém conseguirá despertá-lo.

Essa disse Mark Hanlon amargamente é uma lição que o Padre Albertus nunca me ensinou. Tenho de lhe falar no assunto um dia desses.

A conversa esgotara-lhe as forças. Mark Hanlon desa­bafara o que lhe ia na alma e, agora, fechava os olhos e sentia o sono apoderar-se dele em ondas sucessivas de con­forto e de suavidade. Pareceu-lhe ver Anna curvar-se sobre ele e tocar-lhe ligeiramente na testa com os seus lábios ino­centes. Ilusão? Uma agradável realidade inconsciente? Não sabia... e estava demasiado cansado para se importar com o que quer que fosse.

 

                                                          Capítulo 11

Johnson visitou o seu superior, com uma lista de pro­blemas, logo que Hanlon se tornou capaz de manter uma conversa coerente. O jovem capitão estava disposto a acei­tar a responsabilidade desses problemas, mas era suficiente­mente inteligente para conhecer as suas próprias limitações. O conselho de Huber deixara-o perplexo quanto a decisões precipitadas, e percebera que Hanlon não aprovaria que ele informasse Klagenfurt do que havia acontecido. Mas Hanlon, para grande surpresa de Johnson, não concordava com Huber.

Tem de entrar já em ação, Johnny... sem perda de tempo. Não caçaremos o assassino tão depressa, mas preo­cuparemos esse diabo do Fischer.

Que deseja que eu faça, Mark?

Proceda a uma busca em todas as casas da vila, Johnny... simultaneamente por toda Quellenberg. Separe as áreas tanto quanto possível e combine as horas e os locais de forma a que não pareça haver um plano preconcebido. Quatro homens para cada busca: um na porta dos fundos, outro na porta da frente e dois para revistar toda a casa do porão ao telhado.

Quer o homem morto ou vivo? perguntou John­son, com um sorriso. O seu bom humor voltara, depois de ver que Hanlon já recuperara a autoridade anterior.

Vivo respondeu Hanlon firmemente —, mas não quero que os rapazes se arrisquem demasiado.

Como sucedeu com você...

— Exatamente.

Tem alguma coisa mais para me dizer?

Quero que censure o telefone de Fischer, e gostaria que ele fosse seguido durante as vinte e quatro horas do dia. A vila é muito pequena, e não sei se isso é possível.

Não temos homens suficientes para tal, e ele, de resto, não levaria mais de dez minutos para notar que é seguido.

Que tenciona fazer a respeito dele?

Deixá-lo suar e roer as unhas. Aposto como está mais preocupado neste momento. Tenho quase certeza de que virá visitar-me muito em breve. Logo veremos o que ele nos diz.

Que ligação terá ele com o assassino, Mark?

Hanlon franziu o sobrolho e abanou a cabeça, que co­meçava a latejar.

Ainda não tive tempo para pensar a sério no assun­to, Johnny. Existe qualquer ligação, com certeza, e não tar­daremos a descobri-la.

Mais uma dor de cabeça para você — comentou Johnson, rindo-se. — Quanto tempo pensa ficar aqui?

Vou embora logo que o Dr. Huber me permitir, ou talvez antes disso.

Para que tanta pressa? — perguntou Johnson, uma espécie de inveja pairando-lhe no olhar. — Nunca esteve tão confortável como agora — e o Capitão Johnson olhou à sua volta, aprovando o conforto do quarto e aspirando o aroma deixado por Anna. — Talvez pudéssemos passar a funcionar aqui...?

Deixe de brincadeiras, Johnny. — Hanlon não con­seguiu evitar uma gargalhada, sentindo ao mesmo tempo que já começava a ficar cansado e que a cabeça lhe doía bastante.

Outra pergunta, antes de eu ir embora.

Que é?

Que devo dizer a Klagenfurt sobre este assunto?

-— Nada — redargüiu Hanlon. — Eu farei o meu re­latório na altura devida. Se o quartel-general pensasse que estou fora de combate, o que não é á expressão da verdade, enviaria logo outro comandante e uma dúzia de investigadores especiais para desvendar o mistério do assassino.

Johnson soltou um suspiro de alívio.

Senti-me na obrigação de lhe perguntar. E a pro­pósito de obrigações... e de arquivos...

Sim...

Vamos precisar de uma grande quantidade de em­pregados de escritório para lidar com todos os documentos da vila. O problema não é apenas o que eles nos mandam, mas também o que nos pedem que devolvamos... montes de papéis de manhã e à tarde... e, pelo visto, os funcionários administrativos estão sempre recorrendo a eles.

Não se preocupe muito com isso — disse Hanlon, exausto e já ligeiramente irritado. — Despache como en­tender todos os papéis que sejam urgentes e arrume o resto em um canto. Pensarei na questão do pessoal quando me levantar.

Espero que me arranje umas datilógrafas jeitosas e novinhas... — disse Johnson com ar de troça. — Sou dema­siado jovem para esta vida de solteiro...!

Vá passear pela neve... Longos passeios! Vá agora mesmo. Estou cheio de dores de cabeça, e as minhas mãos ardem como se fossem brasas!

Tudo tem o seu preço — riu-se Johnson. — Até as enfermeiras bonitas. Adeus, Mark.

O Capitão Johnson saiu do quarto e Hanlon fechou os olhos, aguardando que a dor passasse para poder voltar a raciocinar claramente. Podia contar com Johnson para man­ter a situação, pelo menos por enquanto. O mais importante era que Klagenfurt não tomasse conhecimento do que se passava e não enviasse outro comandante para Bad Quellenberg. A perseguição do assassino assumira um significado pessoal. Mark Hanlon queria, ele próprio, encontrá-lo.

Huber veio visitá-lo nessa noite, a fim de lhe mudar os curativos, o que era uma operação dolorosa e seria quase insuportável, se as mãos reconfortantes e a voz carinhosa de Anna não existissem. Huber tirou as ataduras e deu-lhe um espelho para que ele visse, pela primeira vez, a extensão dos estragos.

Mark Hanlon ficou chocado quando observou a pele queimada pela ação da neve, bem como a crosta que se for­mara e que lhe cobria mais de metade do rosto, mas Huber tranqüilizou-o:

— A pele não tem importância. A infecção foi detida a tempo e a nova pele já começou a crescer. Mas isto — acrescentou Huber, apontando para uma longa cicatriz que lhe ia da orelha até o queixo — é outra história! Aquelas correntes cortaram-lhe os tecidos e os músculos. A cicatriz não será lá muito bonita...

Já somos dois com cicatrizes no rosto — disse Han­lon pensativamente. — O assassino tem uma cicatriz parecida com esta. Estamos empatados!

Huber não ficara muito impressionado com as palavras do comandante, e continuou a examinar a cicatriz. Servia-se de uma pinça com uma mecha de algodão para retirar qual­quer resto de sangue coagulado, e falava ao mesmo tempo.

Nada mais lhe posso fazer, por enquanto. Mais tar­de, quando os tecidos se ligarem melhor, será necessário realizar uma pequena operação plástica para disfarçar os estragos. Mas ficará sempre...

Diga isso outra vez!

O quê?

Uma operação plástica... não foi isso que disse?

Huber e Anna olharam para ele com verdadeira sur­presa.

Foi, sim — respondeu Huber. — Por quê?

Hanlon olhou também para ambos, sem saber bem se, poderia confiar naqueles dois novos amigos, mas, passados segundos, falou-lhes lentamente:

Quero que me prometam uma coisa. Tudo o que eu lhes disser ficará entre nós três.

Se assim quiser — respondeu Huber, muito sério e compenetrado.

Atina Kunzli corroborou.

Claro, Mark.

O homem que matou o Sargento Willis e que depois me atacou tem também uma cicatriz no rosto — disse Han­lon. — Já sabemos que foi trazido aqui para a vila. Sei também que a responsabilidade disso é do chefe de polícia, ou, pelo menos, assim acredito.

Fischer! — exclamaram os dois em coro, e os seus rostos manifestaram o espanto que aquela súbita revelação lhes causara.

Hanlon assentiu:

É uma longa história. Não tem grande interesse, o que importa é isto: Fischer tem suficiente experiência para saber que não poderá conservar o homem aqui durante muito tempo. Deve ter um plano. Doktor Huber, acabou de me dar uma idéia. Uma operação plástica... um novo rosto. Essa operação impossibilitaria desde logo a sua iden­tificação. O assassino, seja ele quem for, poderia então ficar na região ou mudar-se para a Zona Americana sem receio de ser reconhecido.

Huber tornou-se pensativo, comentando depois o que Hanlon dissera.

É possível. Mas as operações, pois teriam de ser várias se a cicatriz é profunda e feia, levariam tempo.

Quanto tempo?

Não me é possível dizê-lo sem ver o homem. Se for uma operação fácil, que não exija um talento especial do cirurgião, o trabalho todo levará uns três meses. Mas pode também levar muito mais tempo... depende da cicatriz.

Ora, vejamos a questão do cirurgião. Quem, em Quellenberg, poderia fazer uma operação dessas?

Eu, por exemplo — respondeu Huber —, e mais um outro cirurgião do meu pessoal.

Será ele amigo de Fischer?

Huber abanou a cabeça numa negativa firme.

Duvido. É vienense e não conta com amigos em Quellenberg. Tem mulher e filhos no Setor Britânico. Não acredito que estivesse disposto a participar duma coisa des­sas. Além disso, passa a vida no hospital e raramente dorme fora.

Não haverá outro médico... aqui residente?

Não creio. Só Holzinger ou o próprio Fischer é que lhe poderiam responder.

O que eles me dissessem não seria de muita con­fiança.

Os arquivos municipais talvez contenham alguma informação interessante.

Já estamos examinando.

Huber e Anna continuavam a tratar-lhe da ferida, e, passados poucos segundos, começaram a enrolar-lhe de novo a cabeça.

Poderia perguntar ao Padre Albertus — sugeriu Anna Kunzli inesperadamente. — O padre conhece toda a gente em Bad Quellenberg.

Huber olhou para ela e falou-lhe na sua voz calma e profunda:

De nada serviria, Anna. Os padres são como os médicos, guardam os segredos que a sua profissão lhes pro­porciona. Perguntar-lhe uma coisa dessas seria uma indiscrição.

Hanlon tentou assentir com a cabeça, mas o novo anti- séptico queimava-lhe o rosto, e ele mal podia se mexer com a dor. Anna percebeu o que se passava e tocou-o levemen­te. Huber notou o movimento e desviou o olhar, sem fazer o menor comentário.

Ofereça um cigarro ao doutor, sim, Anna? E, de­pois, gostaria que nos deixasse a sós durante alguns momen­tos — disse Hanlon, quando o médico deu o tratamento por terminado.

Muito bem, Mark.

Anna abriu uma gaveta da mesinha-de-cabeceira e tirou o maço de cigarros, oferecendo um ao Dr. Huber e metendo outro na boca de Hanlon. Olhou depois com alguma curio­sidade para os dois homens e saiu do quarto, fechando a a porta atrás de si. Huber acendeu os dois cigarros e ficaram ambos a fumar, silenciosamente, durante alguns momentos. Huber foi o primeiro a interromper o silêncio:

Anna virá a ser uma excelente enfermeira. Tem as mãos muito suaves e um coração generoso.

Hanlon ignorou a insinuação e disse simplesmente:

Estou numa situação muito difícil, Huber.

Como?

Sepp Kunzli. É muito possível que tenha de "apertá-lo", e, no entanto, estou aqui como seu hóspede.

Huber olhou-o, com admiração, por entre a fumaça do cigarro.

Kunzli já lhe disse alguma coisa?

Ainda nem sequer o vi. Envia-me os seus cumpri­mentos por intermédio de Anna, manda perguntar se desejo alguma coisa e nada mais.

É um homem muito discreto disse Huber placidamente. Compreende perfeitamente a situação. Prefere manter-se afastado. A culpa será sua se as relações de vocês se tornarem mais íntimas.

Que quer dizer com isso?

Huber apontou para a porta.

A moça... está apaixonada por você.

Que disparate! exclamou Hanlon.

Huber encolheu os ombros e teve um gesto eloqüente.

É sempre um disparate... no começo. Mas mais tarde... é a sério.

Quando poderei sair daqui?

Huber deu uma tragada, considerando bem a pergunta.

Gostaria de conservá-lo aqui mais uma semana, sob cuidados... mas em vista do que acabar de me dizer... — Huber fez uma pausa. Amanhã lhe enviarei uma ambu­lância e dois enfermeiros. Não gosto disso, mas parece que não tenho outro remédio senão deixá-lo ir para o Hotel Sonnblick. Terá de ficar na cama e fazer o tratamento que eu lhe indicar. Já sabe que pode piorar de repente, se não tiver cuidado.

Essa espécie de complicação não me preocupa respondeu Hanlon, sorrindo amargamente.

O melhor, no entanto, é evitar quaisquer complicações, sejam elas quais forem. Deseja falar-me de mais al­gum assunto?

Do assassino.

O quê?

—- Conheço-o, agora — acrescentou Hanlon. — Creio que teremos de mudar de opinião acerca dele.

Por quê?

Disse-me uma vez que ele devia encontrar-se num estado de espírito anormal. Sugeriu-me um choque traumá­tico... qualquer coisa desse gênero.

Sim...

Quando o encontrei, naquela malfadada noite, o assassino estava com mais dois homens. Pareceu-me absolu­tamente normal, e a sua voz era autoritária e educada. Os outros obedeceram-lhe, e ele agiu com rapidez e decisão.

Alguns dos mais loucos assassinos da história foram pessoas com toda a aparência de seres normais — disse Huber friamente. — A sua lógica, além disso, não é perfeita.

Por quê?

O homem que lhe deu a pancada pode muito bem não ser o assassino. Podia ter sido um homem com qualquer ressentimento ou que estivesse embriagado. Poderia ter sido o próprio Fischer. É muito possível que tenha razão, major, mas as suas deduções ainda não foram comprovadas.

Não posso fazer mais do que tentar adivinhar... faltam-me dados para qualquer comprovação exata. Deduzo os fatores prováveis e elimino os improváveis.

A sua atitude em relação a este assunto surpreende-me, major.

Hanlon olhou rapidamente para o médico, admirado do seu tom um tanto ou quanto brusco.

Não compreendo.

Está dando demasiada importância ao assassino, fala como se se tratasse de um assunto pessoal.

Hanlon sorriu ironicamente e levou a mão à cabeça.

Então não acha que isto é muito pessoal?

Huber abanou a cabeça.

Não! Tenho certeza de que é suficientemente inte­ligente para não pensar assim. É também demasiado sutil para desejar uma vingança a qualquer preço. Não sentiria grande prazer nisso, quer-me parecer. Sabe tão bem como eu o trabalho que tem a realizar em Quellenberg, e como é secundária a questão da captura. O assassino será apanha­do, com certeza. Se Fischer está metido no caso, como me disse, então o próprio Fischer será o primeiro a fazer tudo para que ele não represente um perigo para outras pessoas. Mas, apesar destas considerações, meu caro major, tem esse desejo constante de "caçá-lo". Por quê?

Chame-lhe um símbolo, se quiser — disse Hanlon, e a sua voz adquiriu um tom despreocupado.

Um símbolo de quê?

De tudo contra o que lutamos, daquilo que quere­mos eliminar: a violência, a ilegalidade, os assassínios sem julgamento.

O problema é que os símbolos — disse Huber cal­mamente — significam coisas diferentes para pessoas dife­rentes. O que é adorado por uns é também odiado por outros.

O interesse pela lei devia ser comum — redargüiu Hanlon irritadamente. — Nunca conseguiremos obter quais­quer benefícios se o povo austríaco não o compreender.

Já tem o seu símbolo comum — disse Huber, e o seu rosto abriu-se num sorriso agradável.

Que símbolo?

O Natal está próximo — respondeu o tirolês, com uma expressão curiosa no rosto. — Lembre-se daquela crian­ça que nasceu num estábulo. Este ano nascerão milhares de crianças por toda a Europa em muito piores circunstâncias. Pense nisso, major... para seu e, também, para nosso bem.

Karl Adalbert Fischer foi visitar Hanlon duas horas depois do seu regresso ao Hotel Sonnblick. O chefe de polícia trazia com ele uma velha mala e também outro homem, que apresentou como sendo Herr Rudolf Winkler, livreiro aposentado de Munique.

Ambos se mostraram muito chocados quando viram Hanlon com a cabeça toda enfaixada e recostado na enorme cama que em tempos idos acolhera as mais famosas persona­lidades do Partido Nazista. Mark Hanlon ouviu as suas pa­lavras corteses num silêncio irônico, e o Capitão Johnson observou-os com um olhar frio e pouco amigo.

Fischer vinha para contar uma história e trouxera Win­kler para corroborá-la. A história, nas palavras cuidadosas de Fischer, tinha toda a aparência de autêntica.

Parece-me que tivemos ambos a mesma idéia, ma­jor: que o assassino tentaria descer à vila na noite de São Nicolau. Recorda-se, com certeza, de que mencionei essa hi­pótese durante a nossa última reunião.

Lembro-me de uma vaga referência.

Não insisti muito no assunto... porque a minha idéia poderia parecer ridícula a quem não conhecesse bem os nossos costumes. Peço-lhe desculpa por não ter prestado a devida consideração à sua experiência.

Os enganos desse gênero podem ser fatais res­pondeu Hanlon secamente.

Compreendi isso mesmo logo que tomei conheci­mento do seu acidente e vi os preparativos das suas tropas no centro da vila. Planejou tudo muito bem, major. Quase conseguiu apanhá-lo.

Continue.

Herr Winkler telefonou-me quando a notícia se tor­nou conhecida em Quellenberg prosseguiu Fischer, apon­tando para o companheiro —, informando-me de que havia descoberto algo que talvez tivesse relação com o caso. Pare­ce-me melhor que seja ele a contar-lhe, e, depois, desejo fazer alguns comentários sobre o assunto.

O aparentemente simpático Winkler lançou-se à sua história, falando com uma voz um tanto ou quanto efemi­nada e fazendo gestos enfáticos com as mãos.

Eram umas nove horas quando o caso ocorrera, disse ele, embora explicasse também que, como na altura não dera grande importância ao sucedido, não podia estar certo da hora exata. Winkler encontrava-se em casa, na sua pe­quena vivenda da Mozartstrasse, e a essa hora ouvira uma discussão perto do portão do seu jardim. Eram vozes de homens, falando no dialeto das montanhas. Winkler era na­tural da Baviera, conforme explicou, e não os compreendeu bem tanto mais que pareciam estar embriagados. Fora então à porta para averiguar o que se passava, e vira três homens vestidos com os disfarces de Krampus. Dois deles pareciam discutir com o terceiro. O inocente Winkler disse então que lhes gritara que se calassem e fossem embora. Um deles soltara uma praga, e, em seguida, haviam-se separado: dois dirigiram-se para a vila e o outro para o denso pinhal por onde passava o atalho que conduzia à montanha. Nada mais ocorrera. Só depois da notícia do ataque ao major é que Winkler, segundo ele dizia, dera qualquer significado ao incidente. O major compreenderia, com certeza, que ele nada pudera fazer... que nada de mal pensara ao ver os três homens...

Winkler calou-se, e Fischer retomou o fio da meada, continuando a contar aquela fantasia que improvisara:

Herr Winkler telefonou-me para me contar o ocor­rido, e eu fui falar-lhe imediatamente. Segui a pista que o terceiro homem deixara na neve até uma pequena caba­na, a uns quinhentos metros de distância da base da encosta da montanha, e encontrei esta mala entre uma variedade de instrumentos e apetrechos de lenhadores.

O chefe de polícia abriu a mala e mostrou a Hanlon o traje que ele vira vestido num dos assaltantes. Os dois ofi­ciais ficaram observando o disfarce sem saber bem o que haviam de pensar.

Reconhece esté traje, major?

Sem a menor dúvida.

Fischer assentiu com uma gravidade profissional.

Este traje é muito especial. É o mais antigo de toda a região. Foi roubado do nosso museu poucos dias antes do dia de São Nicolau.

Johnson e Hanlon entreolharam-se. A história era tão circunstancial que poderia ser aceita muito facilmente como autêntica. Fischer devia saber que ninguém teria a menor possibilidade de desmenti-lo ou de provar o contrário do que ele dissera. O chefe de polícia continuava a falar, impá­vido e senhor de si:

Não encontrei uma única impressão digital na más­cara, no armário do museu ou na mala, e depreendo, com isso, que se deve tratar de pessoas inteligentes e que conhe­cem bem a vila.

Não restam quaisquer dúvidas acerca disso mur­murou Mark Hanlon.

Seria talvez conveniente cooperarmos numa busca imediata na área, começando pela casa de Herr Winkler e continuando num círculo em direção ao exterior.

Não percamos tempo — respondeu-lhe Hanlon. O Capitão Johnson terá um destacamento pronto a sair den­tro de dez minutos.

Fischer concordou, mostrando como se sentia contente por pensar que convencera o major da sua inocência.

Queria que soubesse, Major Hanlon, que lamento muito o ocorrido e que toda a população ficou consternada ao tomar conhecimento do atentado. Prometo-lhe toda a mi­nha cooperação.

-— Obrigado, Fischer... e também lhe estou muito reconhecido, Herr Winkler. O Capitão Johnson ficará em contato permanente com você até que eu possa voltar a levantar-me. Auf Wiedersehen.

Bom dia, major.

Os dois homens saíram do quarto e o Capitão Johnson acompanhou-os até perto do Sargento Jennings, voltando depois para junto de Hanlon.

Então, Mark? Que pensa daquele conto?

Hanlon encolheu os ombros impacientemente.

Fischer é um policial muito experiente. Sabe o que é um bom álibi e tratou de arranjá-lo. Precisamos investigar o assunto, está claro, mas pode ter certeza de que o assassino se encontra muito longe da área que Fischer nos indicou.

Também penso assim. E que me diz desse Winkler?

Talvez esteja inocente, mas também é possível que seja um dos associados de Fischer. Teremos de verificar os seus papéis, mas, conhecendo Fischer, parece-me que estarão em ordem. Veja o que consegue averiguar, Johnny, mas não acalente grandes esperanças de descobrir o assassino.

—- Quer que eu comece já?

Seria melhor. Diga a Jennings que venha me fazer companhia.

— Está bem. Como se sente, Mark?

Terrível — disse Hanlon tristemente. — Fischer fez troça de mim, e não descansarei enquanto ele não pagar pelo descaramento.

O Capitão Johnson e os seus soldados entraram na casa de Winkler quarenta minutos mais tarde e deram uma busca bastante completa, enquanto o homem que eles procuravam se encontrava, drogado e amordaçado, dentro de um malão debaixo da cama da governanta de Rudolf Winkler.

Mark Hanlon ditou ao Sargento Jennings uma carta de agradecimento que queria enviar a Sepp Kunzli juntamente com o passaporte e todas as suas instruções para a visita a Zurique.

Escreveu também uma carta a Anna, uma carta mais longa e pessoal, que o mensageiro devia entregar apenas a ela e a mais ninguém.

E os papéis e instruções do quartel-general, que se haviam amontoado, ocuparam-lhe todo o resto da tarde.

A quantidade e a complexidade de todos aqueles do­cumentos deixaram Hanlon desanimado de começo, mas, depois, foi compreendendo aos poucos que nada havia de mais natural: o governo da sociedade moderna era conduzido, em grande parte, por meio da papelada e da burocracia. O mundo moderno repousava sobre um monte de papéis. Sem esses papéis o caos era inevitável.

A política de uma nação era ditada por papéis: mani­festos, declarações, arquivos, documentos, etc.

A legislação, cujo prelúdio era o debate, ficava regis­trada em toneladas de papel, estantes e estantes de volumes, milhões de palavras, cujo fim era ainda mais papel — a lei: uma inovação de autoridade, uma definição de termos, uma sucessão de cláusulas, um rol de instruções e de sanções para os criminosos, uma assinatura e, finalmente, um selo sobre o papel.

A lei, em si, era o mais curto dos documentos. Era, porém, a lei que causava mais palavras, mais páginas, mais volumes: anotações, glossários, equivalências e interpre­tações.

Após a lei e a sua interpretação vinham as diretivas, passadas de escalão para escalão de administradores através das mãos dos funcionários, datilógrafos e mensageiros, até que finalmente chegavam às mãos do homem que devia aplicá-la — o funcionário superior local.

Este não precisava formular quaisquer perguntas. Tudo fora escrito para ele — em papel. Não importava se ele fosse obrigado a procurar durante toda a vida o documento que lhe interessava: do que não restavam dúvidas era de que esse documento existia. A ignorância não era desculpa. Todos os casos haviam sido previstos. Todas as variantes e exce­ções haviam sido anotadas... em qualquer parte.

Mark Hanlon compreendia tudo isso e também muitas coisas mais: como toda a máquina do governo podia se afo­gar em papelada; como muita coisa imoral e ilegal podia se esconder entre uma teia de palavras; como os administra­dores se protegiam atrás de muralhas de livros, e como os chefes eram isolados da verdade por montanhas de folhas de papel; como as vozes dos reformadores eram abafadas sob o vasto lixo das letras.

Era isso que lhe poderia agora acontecer se resolvesse sentar-se à secretária doze horas por dia e ler todas as pala­vras que lhe entravam pelo gabinete adentro, respondendo aos seus superiores com mais palavras, de forma que esses mesmos superiores o considerassem um oficial muito cuida­doso, que tinha sempre a papelada em ordem — embora existissem homens sem trabalho e crianças com fome, e a esperança de uma vida melhor fosse adiada de ano para ano.

A solução era só uma. Regressar à política original, aos princípios essenciais que haviam ditado a lei, e aplicá- los conforme as situações e as necessidades de momento. Isso era possível ali em Quellenberg, estava claro, mas o risco não era pequeno.

O homem que dispensasse essa papelada conseguiria resultados práticos. O pior é que teria também de dispensar a proteção dos superiores, se cometesse algum erro ou se tornasse ineficaz...

Às cinco e meia da tarde, como a cabeça lhe doesse e a náusea voltasse a atormentá-lo, Hanlon disse a Jennings que o deixasse só e não tardou a adormecer.

Quando acordou, umas duas horas mais tarde, o Capi­tão Johnson já regressara com um relatório negativo e com a notícia de que Max Holzinger viera visitá-lo.

O burgomestre ficou muito chocado com a aparência de Mark Hanlon, e as suas palavras e a sua expressão cons­ternada tinham algo de sincero que sensibilizou o comandan­te. Este não sabia e Holzinger nunca lhe diria que ele tivera uma longa e desagradável discussão com Fischer, a qual terminara sem qualquer solução, pois Fischer não estava disposto a entregar o sobrinho, e Holzinger receava a revelação da sua própria duplicidade.

Ambos, Mark Hanlon e Holzinger, pareceram aliviados quando os embaraçosos cumprimentos preliminares termi­naram, e então começaram a discutir os preparativos para a próxima chegada dos refugiados dos campos de concen­tração.

O edifício recomendado por Holzinger para alojá-los era o Hotel Bela Vista, bastante grande e moderno e que se encontrava situado entre a estação ferroviária e a igreja. O dono era um rico vienense de quem não se voltara a ouvir falar desde a invasão de Viena. O arrendamento estava em nome de um sindicato suíço, e a hipoteca nas mãos de Sepp Kunzli. Os meios usuais a empregar para a sua requisição deu-lhes motivo de conversa para outra meia hora.

Os dois homens discutiam as questões do pessoal, ali­mentos, combustível, roupas brancas, cobertores, talheres, e até a necessidade de automóveis particulares para trans­portar os refugiados da estação para o hotel.

Pode confiar-me todos os pormenores disse Hol­zinger muito sinceramente ao fim de meia hora. Acredite em mim. Terei o maior prazer em fazer alguma coisa para ajudá-lo, a fim de tentar suavizar o terrível atentado de que foi vítima.

Não se preocupe — disse Hanlon, sorrindo ante a expressão angustiada do outro. — São os ossos do ofício. Tive sorte em não ser pior.

A sorte foi também nossa — respondeu Holzinger fervorosamente.

Max Holzinger moveu-se na cadeira, pouco à vontade, tossindo e começando a gaguejar quando retomou a fala:

A minha... mulher e a... minha filha... estão lá embaixo.

Meu Deus! — exclamou Hanlon, bastante surpreso.

Já devia ter me dito! Devem estar cansadas de esperar!

Não tem importância — assegurou-lhe Holzinger.

Insistiram em vir comigo. Falamos com... Doktor Huber e ele nos disse que o major ainda precisava ser... tratado. E é verdade. Está com muito mau aspecto. A mi­nha família teria muito gosto em tratá-lo. Doktor Huber está sempre muito ocupado, e este trabalho é, de resto, mais próprio de mulheres.

Mark Hanlon corou, embaraçado e agradecido. A oferta fora evidentemente sincera e muito atraente em compara­ção com os cuidados que seriam ministrados por um ajudan­te militar. O problema, contudo, seria o mesmo que com Anna. Criar-lhe-ia uma obrigação e relações pessoais que, mais tarde, poderiam vir a ser evocadas. Hanlon decidiu dar-lhe uma resposta muito franca.

Estou-lhe muito reconhecido, Herr Bürgermeister. Pode acreditar que nada me daria mais prazer do que aceitar. Sou muito cioso do meu conforto e estou longe de casa e dos meus. A verdade, contudo, é que o amável gesto da sua família poderia tornar-se um problema para nós dois. Na posição em que me encontro, como comandante das For­ças de Ocupação, é muito, possível que venha a ter qualquer problema com o senhor. Não me interprete mal, por favor, mas até pode suceder que tenha de demiti-lo... e se estiver lhe devendo favores ou à sua família...

Mark Hanlon calou-se, não terminando a frase e fazen­do um gesto significativo. Holzinger assentiu e sorriu.

Fiquei muito contente por me ter dito, major. Já sabia que pensava assim, mesmo antes de me dizer. Quero que compreenda que não terá qualquer obrigação para comi­go ou a minha família. O trabalho é o trabalho. As relações pessoais nada têm a ver com as relações oficiais. Ambos o sabemos. Mas nem tudo é trabalho, e nós também somos humanos. Gostamos de saber que podemos fazer um pouco de bem e reparar um pouco do mal que foi praticado. Preci­samos fazê-lo, nem que seja para conservar a nossa dignidade. Far-nos-ia um grande favor se aceitasse a nossa oferta.

Hanlon fora vencido e sabia-o. Nenhum homem podia representar o papel de cínico durante muito tempo. Um homem que acreditasse na bondade humana não podia passar a vida a afogar esses impulsos nos outros. Não havia qual­quer vantagem em fazê-lo. Que razões poderiam levá-lo a negar-se um conforto que também seria um prazer para quem o oferecia? Já dissera a Holzinger o que tinha a dizer- lhe. Não tencionava desiludir o burgomestre, embora talvez se desiludisse a si próprio. Holzinger destruíra as razões que o haviam levado a recusar a oferta. Que mais poderia Hanlon fazer?

Holzinger observava-o ansiosamente, tentando interpre­tar a sua hesitação. Mark Hanlon sorriu e falou-lhe amiga­velmente, ao mesmo tempo em que lhe mostrava as mãos envoltas em ataduras.

— Estou em desvantagem, Herr Bürgermeister. Aceito a sua oferta, pois sei que nos compreendemos um ao outro e que ambos teremos prazer nisso.

Liesl Holzinger e a filha não tardaram a aparecer para banhá-lo e mudar-lhe os curativos. As primeiras defesas ha­viam caído por terra. As mulheres começavam a invadir a cidadela do conquistador.

 

                                                Capítulo 12

O primeiro contingente de vítimas dos campos de con­centração chegou a Bad Quellenberg três dias depois.

A população da vila apercebeu-se da sua vinda muito antes da chegada à pequena estação, pois o ruído da locomo­tiva era como uma trovoada entre as colinas e o seu apito estridente ecoava de pico em pico através dos tortuosos desfiladeiros.

Os quelembergueses entreolharam-se, dubitativos e re­ceosos. Recordavam ainda o sermão que o Padre Albertus pregara na última missa de domingo. Recordavam as suas mãos torturadas estendidas numa súplica, o som profundo da sua voz a desafiá-los para o arrependimento do pecado comum, para a reparação de uma injustiça comum, para a piedade em face daquela tragédia ignorada havia tanto tempo!

As palavras do Padre Albertus ficaram-lhes gravadas na alma, e a vergonha que os assaltava era uma coisa terrível, uma punhalada nos seus corações. A hesitação que os pren­dera ao ouvirem os primeiros sinais da chegada do comboio não tardou, porém, a desaparecer, e, pegando nos casacos e nos chapéus, os quelembergueses dirigiram-se, lenta e quase inconscientemente, para a pequena estação local.

A área da estação depressa se encheu de uma multidão silenciosa e deprimida, e as tropas viram-se obrigadas a abrir passagem às ambulâncias e a todos os outros veículos que conduziriam os doentes para o hospital. As personagens de maior destaque já estavam reunidas na plataforma: o burgomestre, os vereadores, Karl Adalbert Fischer, o Padre Albertus. Só Sepp Kunzli não se encontrava presente, visto que já ia a caminho da fronteira e de Zurique.

Os soldados haviam se alinhado ao longo da plataforma, desarmados e em posição de descanso, com os condutores dos veículos e os padioleiros à espera por detrás deles. Hanlon e o Capitão Johnson encontravam-se ligeiramente afastados dos outros, observando os últimos preparativos e olhando para o desfiladeiro onde os ruídos da locomotiva aumentavam de intensidade à medida que os minutos passavam.

Hanlon ainda tinha o rosto e a cabeça enfaixados. A sua aparência era ligeiramente cômica, mas ninguém se ria ante a comédia. Aquele momento de espera era o último ato de uma longa tragédia, o monumento final de reparação, de uma imensa piedade e de um terror sem igual.

O comboio entrou na estação, conduzido por uma loco­motiva verde, a neve a levantar-se em pequenas nuvens bran­cas sob as suas rodas. A multidão tentou ver os seus ocupan­tes, mas as janelas estavam embaciadas e escondiam o inte­rior dos compartimentos.

A porta do primeiro vagão abriu-se e um homem de elevada estatura desceu para a plataforma. Tratava-se de um homem de cabelo grisalho, muito magro e com um queixo proeminente. Calçava botas de montanha e trajava uma lon­ga capa, de modelo americano, trazendo o emblema da Cruz Vermelha Internacional cosido na manga. Hanlon avançou para cumprimentá-lo, e o homem apresentou-se:

Sou Miller, oficial médico superior.

Hanlon, comandante das Forças de Ocupação. Te­nho o maior prazer em recebê-lo.

Muito obrigado, major. — Miller olhou rapidamen­te para a multidão e para o pequeno grupo na plataforma.

Uma verdadeira recepção!

Será melhor que eu os apresente — disse Hanlon.

Todos eles tentaram ser úteis.

Hanlon conduziu Miller ao longo da plataforma e apre­sentou-o, primeiro, a Holzinger e, em seguida, a Fischer e aos vereadores. Miller não lhes estendeu a mão, limitando-se a cumprimentá-los friamente com um gesto de cabeça e fazendo com que Hanlon se sentisse incomodado pela sua frieza. Apresentou-o depois ao padre, confiando em que Mil­ler o tratasse melhor do que fizera aos outros.

Tenho muito prazer em apresentar-lhe o Padre Albertus, que também é uma vítima dos campos de con­centração.

O rosto cansado de Miller abriu-se logo num sorriso. Estendeu-lhe a mão calorosamente:

Alegro-me em conhecê-lo, padre. A sua presença será uma grande ajuda para todos nós.

Não interprete mal a nossa gente, Dr. Miller — respondeu o padre, no seu tom de voz suave e direto. Estão todos ansiosos por auxiliá-lo na sua ingrata missão.

Gostaria muito de saber se continuarão ansiosos depois de observarem o que lhes trouxe — disse Miller, apontando para o trem. — Trezentos homens, mulheres e crianças. Metade será enterrada dentro de um ou dois meses!

O Padre Albertus aquiesceu gravemente, sem lhe res­ponder. Miller voltou-se para Hanlon:

Venha, major. Temos de dar início à operação de desembarque!

Os dois homens avançaram para o comboio, e, a um sinal de Johnson, os soldados e os padioleiros seguiram-nos e entraram logo para o primeiro vagão. A multidão aguar­dava, tensa e preocupada, procurando adivinhar que mons­tros se escondiam por trás das janelas embaciadas.

As primeiras macas que foram descidas do trem cau­saram um surdo murmúrio de horror na multidão. Os invá­lidos estavam envoltos em cobertores, da cabeça aos pés, de forma à que só os rostos fossem visíveis: amarelecidos como velhos pergaminhos e não passando de pele e osso. Os olhos estavam mergulhados em negras cavidades, os lábios eram magros e brancos, contraídos num esgar de dor, e o seu aspecto geral era mais de cadáveres do que de seres vivos. Os seus corpos não tinham peso, e isso facilitava enor­memente a tarefa dos padioleiros. As macas foram levadas para as ambulâncias, as suas portas fecharam-se, e os veículos afastaram-se por entre o silêncio geral.

As macas não tardaram a esgotar-se, e os padioleiros começaram a trazer os corpos nos braços, permitindo à mul­tidão ver os seus membros esqueléticos e os magros pesco­ços, que não podiam suportar as caveiras ossudas e descar­nadas.

Uma vez sentados nos automóveis, já que as ambulân­cias eram em número reduzido, os seus corpos não conse­guiam manter-se direitos, caindo uns de encontro aos outros, e os ajudantes, nos bancos dianteiros, tinham de se curvar para trás a fim de segurá-los.

Àqueles que ainda podiam andar vieram depois, ho­mens e mulheres, enfiados em roupas que lhes pendiam dos esqueletos como se eles fossem espantalhos. Os seus movi­mentos eram desencontrados e grotescos. Alguns deles es­corregavam no gelo e caíam por terra. A multidão não con­seguiu conter uma exclamação de terror ao ver os seus rostos e mãos torturados, as cabeças raspadas e os olhos sem brilho -indiferentes, mortos.

As crianças foram as últimas a sair dos vagões, peque­nas figuras aflitivas com rostos velhos e gastos, dentes parti­dos e membros esqueléticos.

O povo começou a soluçar ante o impressionante as­pecto das criancinhas. As mulheres cobriam o rosto com as mãos, e os homens, mudos e horrorizados, ficaram a olhá-las - lágrimas de dó e de vergonha correndo-lhes pelos rostos. Quando Hanlon e Miller entraram em um jipe e saíram da estação seguidos pelos soldados, silenciosos e atormentados, a multidão abriu alas, de cabeça baixa, para esconder a ver­gonha que a invadia. Mais tarde, lenta e silenciosamente, os quelembergueses encaminharam-se para suas casas como pes­soas que tivessem acabado de ter uma visão da danação.

Hanlon e Miller estavam sentados no escritório do Hotel Bela Vista, conversando e tomando café. O americano perdera algo do seu nervosismo e frieza, elogiando os pre­parativos que haviam sido feitos para receber os seus pa­cientes.

Fez bom trabalho, major. Estou-lhe agradecido e não me esquecerei de mencioná-lo no meu primeiro rela­tório.

Hanlon encolheu os ombros.

Não é necessário.

Parece-me justo fazê-lo. — O seu rosto abriu-se num sorriso amargo. — Ficou chocado com o que viu, não é verdade?

Chocado é pouco...!

Tudo o que se diga ou pense é pouco, realmente - disse Miller. — O que viu não tem comparação possível com o que nós vimos nos campos de concentração. Estes que vieram para aqui são os felizardos. São uns atletas ao lado de muitos que lá encontramos.

Disse que metade deles morreria. Será isso verdade?

Miller assentiu.

O meu cálculo aproxima-se muito do que aconte­cerá. Estes desgraçados sofrem de tuberculose, de doenças do coração, do fígado, dos rins, de toda uma série de doenças e de ferimentos dificilmente curáveis. Passaram fome, foram espancados e torturados durante muitos anos e já nem sequer têm forças para lutar pela vida. Mesmo os que sobreviverem serão doentes ou inválidos durante o resto das suas vidas. Isso, está claro, não impede que façamos tudo quanto for possível para tentar salvá-los.

Hanlon acabou de beber o café e acendeu um cigarro.

Se houver alguma coisa que eu possa fazer, seja o que for, não hesite em dizer-me.

A primeira coisa a fazer, meu caro major, é falar ao pessoal.

Hanlon olhou para ele, muito surpreso com aquelas palavras.

Não compreendo.

O pessoal é que não compreenderá — redargüiu Miller. — Teremos de lhe dizer como vai ser a vida aqui... de lhe apontar alguns fatos...

O quê, por exemplo?

Miller curvou-se para a frente, começando a falar e gesticulando.

Dentro de vinte e quatro horas, major, este hotel se parecerá mais com uma casa de doidos do que com um hospital. Lembre-se de que esta gente passou muitos anos em campos de concentração. Viviam como animais, lutando para obter alguma coisa para comer, dormindo com os mor­tos e invejando os moribundos. A vida normal é, para eles, uma coisa muito estranha. Já não a compreendem. A maioria deles ainda come com as mãos, metendo a comida na boca às pressas, com medo de que alguém a roube. Urinam nos corredores, dormem em cima dos seus excrementos, gritam e debatem-se quando alguém lhes tira as roupas para lavar, atacam os enfermeiros que lhes dão injeções, visto que vi­ram antigos companheiros morrer dessa forma. Estamos li­dando com cérebros e corpos torturados. Precisamos de mui­ta paciência e compreensão. O meu pessoal já está habituado e, mesmo assim, luta com grandes dificuldades para conse­guir a eficiência necessária. O pessoal local... — Miller calou-se e encolheu os ombros, olhando para Hanlon com uma expressão ligeiramente irônica.

Quem lhes vai falar, o doutor ou eu?

Preferia que fosse o major — respondeu Miller sem a menor hesitação. — Foram recrutados pelo senhor. Conhece-os melhor do que eu.

Existe um homem que poderia fazê-lo melhor do que qualquer de nós.

Quem?

O Padre Albertus.

— Peça-lhe que venha aqui imediatamente — redargüiu Miller.

Hanlon, sem dizer mais nada, pegou no telefone.

Meia hora mais tarde, pois o padre acorrera logo que fora chamado, os dois homens encontravam-se sentados ao fundo do enorme salão do Hotel Bela Vista, por detrás de fileiras de mulheres dos campos e de homens de idade avan­çada, que ouviam silenciosamente tudo o que o padre lhes explicava acerca dos seus deveres como enfermeiros dos doentes e sobre as dificuldades que encontrariam no seu trabalho diário.

O Padre Albertus falou-lhes muito simplesmente, persuadindo-os com palavras bem escolhidas, e Hanlon sentiu uma vez mais aquela compaixão e compreensão que ele tinha pela sua gente. Contou-lhes o que fora a sua vida quando estivera internado num campo de concentração: como pas­sara fome e fora espancado, como as suas mãos haviam sido torturadas e como, devido ao incessante tormento, fora re­duzido ao estado subumano dos outros; como depois de cada sessão de tortura se deixava cair no chão e ficava imóvel durante horas e horas até que a mão esquelética de um com­panheiro o ajudasse a levantar-se; como a dignidade de um homem podia ser tão rebaixada que só a caridade e a pa­ciência poderiam restabelecê-la; como os doentes se torna­vam em crianças, petulantes, obstinados e ingratos; como o próprio Cristo fora rebaixado a ponto de ter de depender das suas criaturas para limpar-lhe o sangue e o cuspe do rosto, e lavá-lo para prepará-lo para o funeral. O Padre Albertus disse-lhes também como deviam reagir quando fos­sem insultados ou atacados, como os inválidos e os tortura­dos eram a própria imagem de Cristo, e que render-lhes um serviço seria o mesmo que render um serviço ao Criador...

A eloqüência do velho padre prendia-os a todos e até ao próprio Miller, que não perdia uma única palavra, os olhos fitos naquele rosto luminoso sob uma coroa de cabelos brancos.

A atenção de Hanlon foi, porém, subitamente desperta para uma pequena figura entre as fileiras de homens e mu­lheres.

No meio da sala, entre duas robustas camponesas, Anna Kunzli ouvia também com a maior atenção as palavras do padre.

A presença de Anna naquela sala chocou-o profunda­mente. Uma jovem de tão tenra idade num trabalho tão desagradável como aquele! Que lugar poderia ela ter naquela aterradora e cruel atmosfera? O que a teria trazido ali c quem permitira o seu acesso?

Mark Hanlon sentiu um súbito ressentimento contra o Padre Albertus, e a sua voz compassiva começou a irri­tá-lo. Ninguém tinha o direito de dar encargos desta natu­reza aos jovens. Os velhos é que eram responsáveis pelo passado, e, além disso, já tinham gozado a sua juventude e a alegria dos tempos idos. Os jovens ainda nem sequer sabiam o que era a alegria e a felicidade. Anna não era uma freira, uma irmã de caridade, cuja vida é dedicada a missões como essa. Anna não cometera pecados que justificassem aquela penitência. As outras que pagassem pelos seus peca­dos, as outras que haviam saboreado os frutos do triunfo passado: a mulher de Holzinger, Traudl...

Hanlon teve uma súbita lembrança e ficou envergo­nhado do pensamento que lhe cruzara o espírito. A mulher e a filha de Holzinger encontravam-se no Hotel Sonnblick... e estavam acima de qualqúer crítica. Continuavam a servi-lo e já se humilhavam em tarefas que geralmente eram levadas a cabo por pessoal assalariado. Podia dispensá-las, estava claro. Podia dizer-lhes que fossem embora, que existiam outros doentes que precisavam muito mais dos seus servi­ços, mas todos aqueles que se encontrâvam numa posição de autoridade e de responsabilidade, como sucedia com ele, tinham necessidade absoluta de conforto nos seus aposentos, que não podiam abandonar.

Miller foi ao encontro do Padre Albertus logo que este acabou de falar e levou-o a visitar o hospital. A pequena multidão dispersou-se, e Mark Hanlon correu atrás de Anna, seguindo-a por um corredor e chamando-a ao ver que ela ia entrar numa das enfermarias. A jovem voltou-se precipi­tadamente quando ouviu a voz amiga, e o seu rosto ilumi­nou-se de prazer.

Mark! Não esperava que tivesse me visto!

E eu não esperava vê-la aqui, Anna — disse-lhe ele, muito sério. Que está fazendo aqui? Para que veio?

O tom duro da voz de Hanlon surpreendeu-a.

Por que não, Mark? Viu aqueles desgraçados. Sabe, com certeza, o quanto precisam da ajuda de todos nós.

Existem muitas outras mulheres para fazer isso, Anna. O tom inocente de Anna irritara-o. — Esse tra­balho não é para moças da sua idade. Não compreende que...

Viu as crianças, Mark?

Vi, sim... mas...

As crianças precisam de uma mulher nova para cuidar delas. Não compreende que seja assim? Têm de aprender a sorrir, a brincar. É possível que eu não sirva para esfregar o chão, mas gosto muito de crianças. Elas também gostam de mim. Não percebo por que está tão zan­gado, Mark.

O fato de Hanlon não lhe saber responder irritou-o ainda mais.

Não .concordo com a sua presença aqui — disse ele firmemente. — Logo que seu tio chegar, vou lhe dizer que a proíba de trabalhar nesta horrível atmosfera.

Mark! — O espanto e a dor na sua voz e nos seus olhos eram tais que Hanlon se acalmou imediatamente e lhe tocou carinhosamente com a mão, ainda envolta em ataduras.

Desculpe-me, Anna. Não queria ser desagradável, mas tenho certeza de que não faz a menor idéia do que representa este trabalho. Não traríamos hoje o Padre Albertus aqui se não fosse preciso preparar o pessoal para algo de terrível. Eu ficaria muito mais contente se a soubesse longe desta atmosfera deprimente, Anna.

Ela não lhe respondeu durante um longo momento, limitando-se a baixar os olhos e a tocar levemente nas mãos feridas do comandante. Só depois é que o fez, falando num tom de voz muito suave e terno:

Se, por acaso, precisasse de mim, Mark, eu iria imediatamente para junto de você. Mas não precisa, não é? O que eu lhe disse no outro dia é verdade. Necessito absolutamente de cuidar de alguém. Não posso viver sem isso. Como não posso cuidar de você... só me restam as crian­ças. Não me negue essa felicidade. Diga-me que me com­preende, por favor, Mark.

Muito bem, Liebchen — respondeu Hanlon, bas­tante sensibilizado com aquelas palavras e olhando para Anna com amor e piedade. — Faça o que quiser. As crianças é que terão muita sorte, Anna.

Ele se afastou rapidamente e caminhou pelo corredor, saindo para o frio intenso da tarde.

 

                                                         Capítulo 13

O sol brilhava intensamente. Os ventos do norte haviam morrido numa última nevasca, numa derradeira geada do ano. O ar aquecera, o céu estava mais calmo e os dias eram maiores. As primeiras avalanchas trovejavam, rolando dos picos e precipitando-se numa espuma de neve nas barreiras de pinheiros.

O vento do sul não tardou a percorrer os desfiladeiros, e a neve desapareceu das partes mais baixas das encostas, revelando o tapete verde da nova relva. Os troncos nus ao longo do rio ressuscitaram, as plantas começaram a dar flor e os vales encheram-se do ruído da água a correr para as terras baixas da região.

O gado saiu dos esconderijos onde hibernara e espa­lhou-se pelos pastos verdejantes, os seus chocalhos compon­do uma música por onde as reses iam passando. Os habitan­tes de Bad Quellenberg despiram as roupas cinzentas do inverno; as mulheres começaram a ir às compras nas suas vestes alegres, com aventais muito brancos e engomados, e os homens puseram as Lederhosen, meias brancas e chapéus enfeitados com penas de faisão ou pêlo de camurça.

Os caminhos e os atalhos estavam cobertos pelas som­bras das árvores, agora frondosas. As moças andavam pelos campos, balançando as saias alegremente, e os inválidos, to­mando o sol nas avenidas, assobiavam ao vê-las passar.

A primavera despontava para lá da montanha, e todos abriam os seus corações e as suas janelas para lhe dar as boas-vindas.

Mark Hanlon olhava freqüentemente da janela do Hotel Sonnblick para aquele seu pequeno império, e alegrava-se com o que via.

O progresso obtido estava tão patente como os pequenos rebentos verdes que cobriam as terras. Já havia trabalho para os homens e comida para as crianças. O comércio co­meçava a ressuscitar e a tomar uma forma mais ou menos estável.

As árvores das montanhas estavam sendo abatidas. O ruído distante dos machados era incessante e tornava-se agra­dável ao ouvido. Os troncos rolavam pelas encostas até al­cançar as serrarias nos arredores da vila. E a madeira era rapidamente vendida,, a fim de ser utilizada na reconstrução de áreas bombardeadas nas cidades e vilas da Áustria. Hanlon criara um sistema de trocas entre as zonas de ocupação pelo qual metade do pagamento devia ser feito em mercado­rias: alimentos, tecidos, sapatos, medicamentos. A outra me­tade era paga em créditos de ocupação que ficavam bloquea­dos para necessidades futuras. O dinheiro austríaco nada valia, e Hanlon recusava-se a vender boa madeira por papel desvalorizado.

Parte daqueles créditos haviam servido para comprar duas trituradoras de pedra, que trabalhavam agora sem ces­sar nas pedreiras, a fim de que a vila tivesse cascalho para vender e para as reparações das estradas a serem efetuadas durante a primavera. Hanlon também mandara comprar no­vas cabeças de gado, por meio de um sistema de cooperação, a fim de dar nova vida às manadas locais. Um dos soldados ingleses era fazendeiro, e Hanlon promovera-o a sargento e pusera-o à frente de toda a agricultura da região.

Os primeiros especuladores não tardaram a aparecer com ofertas ridículas para comprar os hotéis e as pensões vazias. O comandante proibira todas as vendas até que os títulos de propriedade fossem investigados, e exigira um de­pósito de todos aqueles que faziam ofertas oficiais para a sua compra. Os depósitos eram efetuados num banco, e os juros davam-lhe mais alguns créditos para gastar nas indús­trias locais.

O hospital de Miller já estava funcionando perfeita­mente. Muitos dos primitivos doentes haviam morrido, e, à medida que foram morrendo, outros chegaram para to­mar o seu lugar. Os poucos que tinham melhorado começa­vam a passear pela vila, parecendo espectros, embora esti­vessem vivos — o que fora um triunfo naqueles anos de hecatombes.

Huber recebera algumas quantidades de novos medica­mentos e anestésicos, e essa vitória fizera aumentar a ami­zade entre os dois homens. Um funcionário da Cruz

Vermelha encontrava-se na vila tentando descobrir o que su cedera às centenas de desaparecidos do Regimento de Quellenberg.

O pessoal de Hanlon aumentara. Uma equipe do Ser­viço de Informação viera juntar-se ao seu comando a fim de investigar a situação dos membros do Partido Nazista e dos títulos de propriedade, e esse aumento representara promoções tanto para Hanlon como para Johnson.

Mark Hanlon requisitara um grande número de má­quinas de escrever e recrutara várias moças da vila para encarregar-se de todo o trabalho de escritório.

Um recém-chegado não notaria um décimo do progres­so que se dera em Bad Quellenberg nesses últimos meses. Teria apenas visto uma espécie de estância termal, habitada por gente da montanha, doentes e uma pequena colônia mi­litar, com um número elevado de hotéis abandonados e um racionamento bastante severo.

Mas, à janela do seu quarto, olhando para a vila em volta e para as manchas verdes do vale, o Tenente-Coronel Mark Hanlon sabia muito bem o que se passava. O progresso conseguido era indiscutível. A vila respirava uma nova vida. A chegada da primavera coincidia com o nascimento de uma nova esperança.

Só havia uma coisa que ainda o atormentava. O assas­sino não fora encontrado. Apesar de a tarefa não agradar a Johnson e dos protestos de Fischer, Hanlon insistia em con­tinuar as buscas nas casas de Bad Quellenberg. Essa tarefa estava agora entregue, em grande parte, à responsabilidade do Serviço de Informação. O homem, contudo, ainda não fora encontrado. Certos rumores e insinuações que corriam na vila indicavam que ele continuava em Bad Quellenberg. O seu nome e o seu esconderijo ainda eram, porém, um mistério que perturbava o comandante.

O fato deixara-lhe um gosto amargo, depois do doce vinho do êxito, e era como se fosse uma facada no seu or­gulho. A sua convicção era que falharia na sua missão se não conseguisse fazer com que os quelembergueses subme­tessem o assassino a um tribunal justo e imparcial. O prin­cípio da justiça estava em jogo.

Isso, claro, era o que Hanlon dizia a si próprio.

A verdade, contudo, era muito mais profunda. Huber adivinhara-a durante uma das conversas com ele. O tirolês sorrira com ironia e dissera lentamente:

Trabalha muito, meu amigo. É tão inteligente e, apesar disso, está completamente cego no que diz respeito a este assunto.

Por quê?

Não se contenta com ser o dirigente, o governador amigo. Quer também identificar-se com esta gente.

E que mal há nisso?

Huber gesticulou enfaticamente.

Identificar-se é quase como casar-se, e os casamen­tos mistos nunca dão bom resultado. A culpa disso é existir sempre uma certa reserva, uma área de incompreensão. As nações são como famílias. Têm a sua intimidade própria. Têm os seus problemas privados, e os outros não podem compartilhá-los nunca! Têm os seus padrões de justiça, que em nada condizem com a justiça absoluta, ou talvez tenham mesmo uma justiça mais humana do que a sua. Nunca con­seguirá vencê-los. Não se renderão e, pelo que vejo, até são capazes de lhe despedaçar o coração.

Os comentários de Huber eram razoáveis, mas Hanlon nunca poderia aceitá-los. A recordação da juventude em Graz continuava no seu espírito, ainda iluminado pelo brilho pas­sado do paraíso perdido. Os anos anteriores à guerra haviam decorrido sem conceder-lhe o menor conforto. Hanlon não tinha uma medida para avaliar a esperança ou a ilusão.

A porta do quarto abriu-se por detrás dele, e Traudl veio interromper-lhe aquelas considerações que o atormen­tavam.

Ela encontrava-se vestida à moda primaveril da região, uma saia rodada apertada por um cinto de couro trabalhado e uma blusa muito leve moldando-lhe os seios firmes. A pele do rosto e dos braços brilhava de juventude e de saúde. O seu perfume recordava-lhe aquela primeira noite em que toeara piano na casa do burgomestre.

Traudl era agora a sua secretária, e, embora nunca se tivessem tocado ou beijado, havia uma espécie de elo invisí­vel entre eles, um sentido de companhia e de compreensão mútua. Sua franca sensualidade provocava-o, mas Hanlon estava demasiado ocupado e cansado para se lançar numa aventura com ela. O comandante sabia muito bem que Traudl tentava seduzi-lo, cuidadosa e lentamente, e esse co­nhecimento era um vago conforto, um remédio diário para o seu orgulho ferido. Hanlon mostrava-se sempre contente nas horas em que trabalhava com ela, e, quando Traudl não estava presente, sentia-se irritado e maldisposto. Isso tudo não impedia que fossem bastante formais um com o outro.

Ele tratava-a por Fräulein, e ela servia-se do seu título militar. Hanlon recebia-a sempre com um sorriso, e Traudl organizava o trabalho com eficiência, dando especial atenção ao seu conforto pessoal.

Traudl viera chamar Hanlon à realidade a fim de ele responder a uma chamada telefônica do Dr. Huber. A voz do médico parecia mais excitada do que habitualmente, e Hanlon estranhou a sua vivacidade:

Tenho a impressão de que descobri uma coisa muito interessante, meu amigo!

Parece muito bem-disposto e otimista, Huber. De que se trata?

Roubo! — respondeu Huber. — Estamos sendo roubados já há algum tempo.

Hanlon franziu o sobrolho, surpreso.

Isso é um assunto que diz respeito a Fischer. Não tenho o direito de interferir nesse gênero de crimes locais.

Penso que deve tomar conhecimento do caso antes de Fischer.

— Por quê?

Não posso lhe dizer pelo telefone — respondeu Huber cautelosamente. — Daqui a quanto tempo poderá estar aqui?

O assunto é realmente tão importante?

Pode vir a ser muito importante... para você.

Estarei aí dentro de vinte minutos — redargüiu Hanlon. — Auf Wiedersehen.

Auf Wiedersehen.

Doktor Huber desligou o aparelho, mas Flanlon ficou imóvel com o telefone na mão durante algum tempo, en­quanto Traudl o observava pensativamente. A jovem não lhe fez qualquer pergunta. O tenente-coronel contar-lhe-ia o que se passava quando quisesse fazê-lo — como lhe contava tudo o mais desde que a tornara sua secretária.

Rudi Winkler encontrava-se deitado ao sol no pequeno jardim da sua casa da Mozartstrasse. A única peça de ves­tuário que trajava era um calção de banho, e os seus olhos vivos e inquietos estavam escondidos atrás de óculos escuros. O corpo, rosado e gordo, estendia-se sobre uma manta, e um almofadão de cabeça oferecia-lhe um conforto completo. As vagas nuvens que se moviam no céu, para além do cimo dos pinheiros, pareciam ser agora o seu único motivo de interes­se. O calor do sol era-lhe muito agradável, e a fragrância da relva fresca dava-lhe a sensação de uma nova vida. Os passarinhos que saltitavam de ramo em ramo proporciona­vam-lhe um concerto privado, e, como um perfeito diletante, Winkler gozava a delícia daqueles momentos calmos.

Era verdade que também tinha outros motivos de sa­tisfação. O seu paciente, ali dentro de casa, ainda se encon­trava sob o efeito da anestesia. A operação final acabara de ser realizada, o último tecido da cicatriz fora eliminado, e aquele resto de pele nova já fora também enxertado. Com um pouco de sorte, Johann seria outro homem em menos de um mês. Não seria talvez um homem completo, mas seria, com certeza, uma imitação perfeita. A cicatriz desaparecera. Johann alimentara-se bem e se acalmara, e agora as manchas azuladas dos enxertos de pele eram a única indicação do golpe que sofrera.

Os seus olhos também haviam mudado. O terror e o brilho animal do seu olhar já não tinham razão de ser e ha­viam-se transformado em indiferença e apatia.

Mais um mês e Rudi Winkler ver-se-ia livre da presen­ça de Johann Wikivill. Ele próprio passaria a ser um novo homem. Fischer cumprira a sua promessa: dera-lhe novos documentos, nova identidade. O passado fora enterrado para sempre, o futuro estava assegurado.

O fato, ainda que agradável, tinha a sua nota amarga. Winkler sentir-se-ia muito só logo que o paciente fosse em­bora. O cirurgião sentia um certo carinho por ele, como o que sente um artista pelas suas criações. E Rudi Winkler era, à sua maneira, um verdadeiro artista.

Havia também a questão da sensualidade. Winkler era um homem sensual, dedicando-se a perversões refinadas do prazer, já que a paixão normal nada significava para ele. Sentira uma certa satisfação em cuidar do infeliz Wikivill. Tratara-o com carinho e ternura, negando-se a todos os im­pulsos de crueldade que o haviam atacado, tal como a paixão poderia assaltar um homem mais normal do que ele. Esse sacrifício fora, de resto, um verdadeiro prazer, que afirmava a sua dignidade e parecia absolvê-lo dos excessos do passado.

O paciente não lhe agradecia esse carinho, e os seus olhos sombrios não revelavam a menor gratidão pelo que ele fizera, mas isso em nada incomodava Rudi Winkler. Os seus prazeres sempre haviam sido solitários. Requeriam companhia, mas não precisavam ser compartilhados.

O cirurgião sentia-se inquieto, nervoso. A excitação da primavera despertava-lhe todos os sentidos. A discrição e as exigências do seu paciente não lhe haviam permitido sair de casa durante esses últimos meses. Os seus curtos passeios limitavam-se aos atalhos e pinhais que existiam na retaguar­da da Mozartstrasse, e agora ele sentia a necessidade de algo mais: o movimento de uma cidade, novos rostos, a busca de um amigo que fosse agradável.

Quando voltou para dentro de casa, passada uma boa meia hora, Winkler verificou que Johann Wikivill já recupe­rara os sentidos, estando deitado de costas e olhando pensa­tivamente para as vigas de madeira do teto. Johann tinha ligaduras no rosto todo, e, ao sentir a presença do cirurgião, voltou-se para ele com certa dificuldade.

Como é que decorreu a operação?

Winkler curvou-se e tocou-lhe ligeiramente no rosto.

Muito bem. Não tive qualquer dificuldade. Está tudo terminado, se não sofrer uma infecção secundária.

É muito bom cirurgião disse Johann, mas as suas palavras afirmavam apenas um fato, não representando qualquer agradecimento a Winkler. Este riu-se e sentou-se na borda da cama.

Tem muita sorte. Eu costumava levar uma fortuna por uma operação assim.

Disseram-me que também lhe pagaram bem por esta.

O suficiente. Winkler continuava a sorrir. Nada lhe fazia perder a calma ou a boa disposição. Já pode começar a fazer planos para o futuro.

Que espécie de planos?

Terá de decidir para onde vai, a que gênero de trabalho vai se dedicar... a não ser que... — Winkler calou-se, para voltar a falar passados uns breves segundos. A não ser que... queira ficar aqui comigo. Damo-nos bem... compreendemo-nos...

Para sua surpresa, o paciente não rejeitou imediatamen­te a proposta. Johann assentiu lentamente e falou num tom de voz indiferente:

Já tinha pensado nessa possibilidade. Penso a todo momento em tudo o que poderá vir a fazer de mim um novo homem. Mesmo no que acabou de me propor. Mas não há coisa alguma que me interesse... nada!

Não vejo por quê. Existem tantas coisas...

Nada existe — redargüiu Johann Wikivill. A não ser que um homem acredite em...

Em quê?

Em Deus, talvez. Na alma.

O rosto de Winkler adquiriu uma expressão de des­prezo. A sua voz tornou-se trocista e incisiva:

Tenho tido muitos homens sob o meu bisturi, meu amigo. Tenho explorado a sua capacidade para experimentar sensações, para sofrer, até o máximo. Devo dizer que nunca encontrei sinal da existência de uma alma. Tenho ouvido muitos homens gritarem por Deus, mas nunca o ouvi res­ponder-lhes. Só existe uma realidade — disse Winkler, pas­sando a mão pelo rosto do paciente. — Isto! Este corpo com os seus milhões de nervos, cada um deles sensível ao prazer ou ao sofrimento. Quando os nervos morrem... todo o resto morre também. Para que, então, rejeitar o que lhe resta, mesmo depois de tudo o que lhe tem acontecido?

Johann permaneceu imóvel, parecendo feito de pedra. As suas palavras simples e indiferentes eram a prova indis­cutível da apatia que o dominava:

Porque nada me resta. Nada!

Rudi Winkler levantou-se bruscamente.

— Parece-me que perdi o meu tempo — disse ele numa voz rouca. — Não devia tê-lo salvo dos ingleses!

O cirurgião saiu do quarto, e Johann ficou só. Winkler vestiu-se rapidamente e foi passear pelas ruas de Bad Quellenberg para tomar ar.

Sepp Kunzli também tomava ar, mas fazia-o no enorme terraço da Casa da Aranha, passeando de um lado para outro, com as mãos atrás das costas, a cabeça baixa e uma série de longos e complicados pensamentos a cruzarem-lhe o espírito. As portas que se abriam para o terraço davam acesso ao seu escritório, onde um inglês de certa idade e dois ajudantes austríacos faziam investigações num monte de documentos.

Aqueles três homens visitavam a sua casa havia já vá­rias semanas, trabalhando das nove horas da manhã às seis da tarde classificando, selecionando e preparando, com uma paciência inesgotável, uma lista dos bens de Sepp Kunzli e dos homens, vivos ou mortos, que ele representara legal­mente. Aqueles indivíduos eram advogados, tão frios e me­ticulosos como ele, e haviam sido nomeados pelas Forças de Ocupação para investigar os bens expropriados e para devolvê-los aos seus verdadeiros donos, desde que estes se encontrassem vivos.

Esses investigadores falavam-lhe, por vezes, gentil e respeitosamente, como era habitual fazerem com colegas do mesmo ofício. Kunzli nunca lhes recusava qualquer auxílio que pedissem. Prestava-lhes esclarecimentos e fazia todo o possível para que o trabalho se realizasse eficazmente e não surgissem dúvidas na preparação das longas listas. Kunzli sabia que esse trabalho talvez viesse a constituir a base da sua condenação, mas, apesar disso, continuava calmo e mes­mo contente com o que sucedia.

Era como se houvesse atingido uma crise e, depois de sobreviver aos seus efeitos, passasse a viver num estado de síncope, numa suspensão de todo e qualquer esforço ou emoção.

A crise dera-se durante a sua viagem a Zurique. Kunzli partira bastante bem-disposto, convencido de que poderia tratar de todos os seus negócios na semana que lhe fora concedida e que, depois de efetuar as vendas que tencionava levar a cabo, ficaria rico e conseguiria preservar as suas boas relações com as autoridades aliadas. Já se preparara para aquela eventualidade havia muito tempo, e, mesmo na pior das hipóteses, os resultados das vendas seriam compensa­dores.

Sepp Kunzli conhecera uma mulher em Zurique. Tra­tava-se de uma mulher inteligente, encantadora e graciosa, que acabara de se divorciar de um exportador muito rico. A aventura fora bastante simples e não impressionara Kunzli. O seu fim, contudo, chocou-o profundamente.

A mulher deixara-o após a primeira noite, fria e des­consolada, e as suas últimas palavras de despedida nunca mais abandonaram o espírito de Kunzli:

"Foi como se tivesse dormido com um cadáver. Odeio-o por isso e também pela morte que me trouxe aos sentidos".

Sepp Kunzli sentira grande prazer, em tempos idos, em inspirar medo às mulheres de membros do partido e às filhas de generais. Tudo isso constituirá parte da sua vingan­ça. Essa aventura fora, porém, muito diferente. Não tivera a menor razão ou necessidade de se vingar dessa mulher. Vira-a mesmo como o começo de uma nova vida, o fruto re­compensador dos anos que perdera.

Foi só então que Kunzli compreendeu o que tinha su­cedido. O fruto deixara de existir. A árvore tornara-se esté­ril. A raiz deixara de produzir alimento. A seiva da paixão nunca mais voltaria a correr. Tudo o que lhe restava era um fio de vida, um símbolo morto, inútil e despido de todo e qualquer sentimento, que devia ser eliminado antes de se tornar numa coisa ridícula e digna de dó.

O desespero é um estranho pecado, e Sepp Kunzli ren­dera-se a ele nas tristes e frias horas da sua segunda manhã em Zurique. Percebera perfeitamente qual seria o seu fim, e, como era uma pessoa organizada, preparou-se para enfren­tá-lo da melhor forma possível.

Visitara os seus banqueiros e tratara da venda dos seus bens legítimos, colocando o dinheiro numa conta em nome de Anna Kunzli. Reunira depois todos os documentos res­tantes e levara-os para Bad Quellenberg. Os investigadores nomeados por Hanlon não o incomodavam, e era com uma calma completa que ele esperava o resultado das pesquisas. Sepp Kunzli disfarçava os seus sentimentos, ou a sua falta de sentimentos, através de uma máscara permanente de indi­ferença cortês, e nem sequer a retirava na presença da sua sobrinha. Kunzli não voltara a interferir na vida de Anna: não encorajara nem proibira o seu trabalho no hospital dos refugiados dos campos de concentração. O infeliz contenta­va-se em viver aqueles dias vazios que o conduziriam ao seu inevitável futuro.

O que mais o intrigava eram as razões que o haviam levado àquele estado em que se encontrara tão subitamente. Conhecera muitos homens que tinham mentido, roubado ou matado e que, apesar disso, haviam conservado os seus sen­timentos e o gosto pela vida. Esses homens continuavam a ter ambições, desejos a satisfazer. Alguns deles eram mesmo capazes de amar e de recear isto ou aquilo. Tinham os seus momentos de exaltação e sentiam-se agarrados à vida por toda a espécie de elos materiais ou sentimentais.

E, apesar disso, ele que era o que levava uma vida mais regrada perdera a chave da vida. Também era pos­sível que nunca a tivesse possuído, ou que ela houvesse se extraviado no dia em que sua mulher morrera. Talvez mesmo ela tivesse morrido por saber que ele já morrera. Haviam passado tantos anos, tanto tempo... Já não podia se re­cordar bem, e nada ganharia em tentar lembrar-se do pas­sado!

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som metálico da sineta, que anunciava um visitante ao portão de ferro. Sepp Kunzli olhou para o relvado que se estendia para lá do terraço e viu o burgomestre, Max Holzinger, subiu pelo caminho que conduzia à casa.

Kunzli acenou-lhe e indicou-lhe que viesse até o terraço, cumprimentando-o com um sorriso distante:

Grüss Gott, Herr Bürgermeister! A sua visita é uma surpresa muito agradável. O que o traz aqui?

Holzinger olhou nervosamente para as janelas abertas do escritório.

Gostaria de falar com o senhor em particular, Herr Doktor. Trata-se de um assunto pessoal.

Kunzli deu-lhe o braço e conduziu-o para o outro lado do terraço, convidando-o a sentar-se numa cadeira de vime enquanto também se sentava.

Sente-se, Herr Bürgermeister. Instale-se conforta­velmente. Então... de que se trata?

Holzinger tossiu e moveu-se na cadeira, pouco à von­tade. O burgomestre nunca fora um homem eloqüente, mas agora parecia não encontrar palavras para iniciar a conversa. Kunzli encorajou-o com uma ironia gentil:

Vamos lá, meu amigo! Desembuche! A vida está muito difícil para todos nós. Não há razão para não sermos francos uns para os outros.

Pois claro... — O burgomestre hesitou, respirou fundo e começou a falar. — Sabe que estão investigando acerca dos bens dos membros do partido, não é verdade?

Ninguém sabe disso melhor do que eu — respon­deu Kunzli secamente.

Sabe também que eu... enfim... que eu nunca abusei da minha autoridade... que nada fiz de mal.

Tem razão —- concordou Kunzli, sorrindo com algo da sua antiga malícia. — Um pouco de sorte e conseguirá conservar o seu cargo.

Isso interessa-me menos do que a minha reputação. Deve calcular que me encontro numa posição muito delica­da. As autoridades da Ocupação confiam em mim. O Tenente-Coronel Hanlon tem visitado a minha casa.

E a sua filha trabalha para ele.

É verdade.

Tem sorte... e ela também.

Sem dúvida. Mas... — Holzinger parecia estar agora menos à vontade do que quando chegara.

Parece-me que Hanlon não tem sido muito dis­creto. Será a isso que se refere?

Não... nem de longe! — assegurou-lhe Holzinger imediatamente. Não há qualquer questão de relações impróprias entre eles. É tudo muito correto e oficial.

Kunzli olhou para Holzinger com curiosidade, um sor­riso sarcástico bailando-lhe nos lábios.

Haverá qualquer esperança de casamento?

O assunto... não foi discutido. Mais tarde, sabe-se ...

O que o leva então a parecer tão preocupado e tris­te, Herr Bürgermeister? Tem mais razões do que qualquer de nós para estar contente.

Holzinger explicou-lhe o que o afligia, hesitando e ga­guejando:

É... por causa... daquela questão da minha... casa. O título de propriedade, se bem me lembro, foi trans­ferido para o nome da minha mulher. Se alguém viesse a saber...

Kunzli olhou-o friamente.

Acha possível que alguém venha a sabê-lo quando só nós dois é que o sabemos, e as testemunhas nem sequer leram o documento que assinaram?!...

Pensei... pensei que talvez pudesse me garantir que...

E isso torná-lo-ia mais tranqüilo? Acha que sim?

Holzinger começara a transpirar. Dissera o que o preo­cupava, mas não se havia mostrado muito diplomata. Kunzli far-se-ia pagar caro para conservar aquele segredo, com cer­teza. A pergunta seguinte deixou-o ainda mais perplexo.

Que razões teria eu para o atraiçoar, Herr Bür­germeister?

Por favor! Holzinger levantou as mãos num gesto implorativo. Não foi isso que eu disse.

Insinuou-o — redargüiu Kunzli gentilmente. E não devia envergonhar-se de confessá-lo. Houve tempo em que essa sua desconfiança teria até me lisonjeado.

Holzinger não respondeu. Tentava ler os pensamentos que se formavam para além daqueles olhos de aranha. Kunzli deixou-o transpirar durante mais alguns minutos e depois mostrou-se assaltado por uma idéia inesperada.

Farei uma combinação com você, Holzinger.

Holzinger pestanejou. Aquilo era justamente o que ele receava.

Que espécie de combinação?

Dar-lhe-ei a minha palavra de honra de que o segre- do nunca se tornará conhecido se me fizer um pequeno fa­vor... um favor pessoal.

Não compreendo.

É muito simples. Gostaria que convidasse, muito em breve, a minha sobrinha para jantar e que a convencesse a passar a noite em sua casa.

Só isso? Nem sequer se trata de um favor... eu teria o maior prazer em fazê-lo, de todas as maneiras, mas...

Este é, no momento, o maior favor que me poderia prestar.

Permite-me que lhe pergunte por quê?

Talvez seja melhor que não o faça, Herr Bürgermeister.

E, pela primeira vez em muitos anos, Holzinger sabia que Sepp Kunzli falara a verdade, alegrando-se muito com o fato.

A primavera trouxera uma nova missão ao Padre Albertus: a visita aos seus fiéis. Muitos deles haviam estado isolados da Igreja durante os meses de inverno. O padre sentia-se demasiado fraco e velho para visitar as propriedades mais distantes e as comunidades isoladas dos vales.

Mas, quando o sol brilhava e os caminhos secavam, o seu coração criava novas forças e o Padre Albertus movia-se mais livremente, umas vezes a pé, outras no carro de bois de qualquer camponês.

Os trabalhos do Padre Albertus nunca acabavam. Tinha de batizar crianças, ouvir confissões, reconfortar os doentes com os sacramentos, celebrar matrimônios. Quando visitava as aldeias mais afastadas, era obrigado a dormir na casa onde lhe ofereciam hospedagem e a dizer missa em salas onde as cebolas, os presuntos e os chouriços pendiam das vigas do teto.

Esta era a sua interpretação pessoal da alegria da prima­vera: a seiva das boas graças corria de novo da raiz, que era Cristo, através do tronco, que era a Igreja, para a folhagem que se estendia e que era a comunidade dispersa dos fiéis. Algumas das folhas pareciam ressequidas e prestes a cair, e isso era para ele um motivo de tristeza constante. O Padre Albertus, porém, nunca perdia a esperança de lhes dar nova fé, e nunca deixava de rezar. A primavera trazia milagres. Rebentos inesperados apareciam aqui e ali, e os mais idosos troncos davam vida à jovem e verdejante folhagem.

Nesta bela tarde de primavera, enquanto Rudi Winkler passeava pela vila e Mark Hanlon acorria à presença de Mei- nhardt Huber, o velho padre regressava a casa após uma visita de dois dias a uma longínqua aldeia da montanha.

Os lenhadores haviam lhe facilitado o transporte até a encosta que ficava em frente de Quellenberg, e, agora, cami­nhava em direção ao centro da vila pela sossegada Mozartstrasse, parando de vez em quando para observar as aves que cantavam no cimo das árvores ou os esquilos que saltavam de galho em galho. O sussurro agradável da água do rio e da aragem por entre a folhagem das árvores dava-lhe uma sen­sação de paz, um novo calor que lhe aquecia o velho sangue. A vida renovava-se... e a esperança também. Uma pequena casa amarela que ele não conhecia chamou-lhe a atenção. A casa e o jardim pareciam muito bem cuidados e o Padre Albertus, assaltado por uma súbita curiosidade, tirou da algi­beira um pequeno livro de apontamentos: o registro de todos os habitantes de Quellenberg. O padre leu as indicações acerca dessa residência "R. Winkler. Visitante. Religião desconhecida."e voltou a olhar para a casa, notando que a porta estava aberta e as cortinas da janela se encontravam corridas para os lados. O Padre Albertus guardou o livro no bolso e entrou sem a menor hesitação pelo portão do jardim.

O velho padre subiu os degraus e bateu à porta. Nin­guém lhe respondeu. Voltou a bater e esperou mais um momento. Depois, como ninguém aparecesse, entrou decidi­damente pela casa adentro.

A primeira coisa que descobriu foi a governanta, assus­tada e perplexa, de pé junto à porta que dava para a cozinha. Só depois é que viu o homem deitado na cama da sala. Estava dormindo, mas o seu rosto, voltado para a parede, permitiu que o padre lhe visse as ataduras e a nova pele que já lhe crescia no pescoço.

O Padre Albertus olhou para a governanta e falou-lhe em voz baixa:

Há quanto tempo ele está aqui?

A mulher ficara tão assustada que nem teve coragem para mentir.

Desde a noite de São Nicolau. Herr Doktor vem cuidando dele. Eu nada tenho a ver com o assunto, padre. Não passo de uma criada e...

Cale-se, mulher! Nada tem a recear de mim. Deixe-nos sós.

Mas, Herr Doktor...

Deixe-nos!

A mulher saiu da sala, fechando a porta atrás de si, e o padre foi sentar-se ao lado de Johann, rezando enquanto esperava que ele despertasse.

Rudi Winkler debruçou-se sobre o parapeito da ponte e ficou olhando para a catarata que alimentava o rio. As águas corriam velozes pelo centro da vila, aumentadas devido às enchentes causadas pelas neves derretidas, o troar da água enchendo as ruas. Havia algo de hipnótico naquele tumulto de água, e o cirurgião ficou ali durante mais de uma hora, observando a brancura da espuma e o embate da corrente nos rochedos. Foi então que teve a sensação desagradável de que alguém o examinava.

Esse alguém — averiguou logo Winkler — era um homem que se encontrava a uns dez metros de distância, apoiado ao parapeito e de costas para a água, a estudá-lo cuidadosamente.

O homem era muito magro, as vestes assentavam-lhe mal, e tinha um rosto ossudo, com olhos encovados e imóveis. Winkler olhou para ele insistentemente, durante alguns se­gundos, para obrigá-lo a desviar o olhar, mas não o conse­guiu. O cirurgião encolheu os ombros, aborrecido com o desplante do desconhecido, e afastou-se rapidamente — certo de que aquele olhar insistente continuava fixo nas suas costas.

O outro homem também não tardou a afastar-se, e, quando chegou ao Hotel Bela Vista, reuniu todos os seus amigos e disse-lhes:

O carniceiro encontra-se na vila! Vi-o com estes dois olhos!

 

                                                   Capítulo 14

Mark Hanlon conferenciava com Meinhardt Huber no pequeno gabinete do 121. Feldlazarett.

O médico estava muito zangado. O seu rosto, habitual­mente alegre, parecia coberto por uma nuvem negra, e a boca contraía-se-lhe numa expressão amarga.

Já lhe disse uma vez, meu caro amigo, que não devo qualquer lealdade a esta gente de Quellenberg afirmava Huber. Não sou daqui, e o meu mundo resume-se neste hospital. É por isso que não me importo de ser considerado um informante que trai os seus compatriotas destas terras. Se isso constituísse um roubo normal, e asseguro-lhe que não o é, teria tratado o caso como se fosse um assunto militar, ou teria até chamado Fischer. Mas o que se passa... é uma coisa vil e vergonhosa! Bem sabe as faltas que temos aqui no hospital... e como alguns homens despertam sob o meu bisturi por eu ser obrigado a racionar os anestésicos. Sabe também como tenho de preservar a sulfanilamida e a penici­lina para os casos extremos, e como os outros têm de com­bater a dor durante semanas e meses. Assim, não posso deixar de pensar que, quando nos roubam o pouco que temos, o gatuno é um verdadeiro assassino. Foi por isso que lhe pedi que viesse aqui. Compreende o que quero dizer?

Em parte respondeu Hanlon, pouco seguro de si —, mas ainda julgo que, na ausência de outras circunstân­cias, esse roubo recai sob a jurisdição de Fischer.

Fischer que vá para o diabo! explodiu Huber. Fischer também está metido nisto.

Se puder provar disse Hanlon, com um sorriso de satisfação —, terei o maior prazer em tratar-lhe da saúde.

Muito bem! Huber levantou-se e aproximou-se do comandante. As provas são as seguintes. Em primeiro lugar: os roubos já começaram há muito tempo.

Desde quando?

Notamos as primeiras faltas logo depois de São Nicolau.

E que foi que o impediu de agir nessa altura?

Huber encolheu os ombros.

Era a primeira vez que isso sucedia. Ainda não tí­nhamos certeza de que fosse roubo. As quantidades eram pequenas: um quarto de litro de éter, solução anti-séptica, uma dose mínima de sulfanilamida em pó. As faltas podiam ser justificadas por um descuido de registro. Depois disso, como também sabe, os medicamentos tornaram-se mais difí­ceis de obter. Graças a você conseguimos alguns para os casos piores. Mas as inexplicáveis faltas continuavam a re­gistrar-se, e todas semelhantes:- anestésicos, anti-sépticos, compressas e ataduras. Agora disse Huber, apontando um dedo ameaçador para Hanlon — deu-se o roubo do último e mais precioso de todos os medicamentos. Alguém roubou do frigorífico duas cápsulas de penicilina. Não tenho a menor dúvida, desta vez, de que se trata de um roubo.

Sabem quem é o gatuno?

Huber acenou com a cabeça num gesto afirmativo.

Sei, sim. Uma das criadas viu-o sair do dispensário a uma hora em que ele não devia estar lá.

Já o interrogou?

Ainda não. Gostaria que estivesse presente à sessão, meu bom amigo.

Hanlon franziu o sobrolho e abanou a cabeça.

Não devo fazer isso sem ter uma, boa razão. Para que quer meter-me no assunto?

Huber explicou-lhe então o que lhe ia na mente.

O nosso gatuno tem uma amante na vila. O marido dessa mulher é um dos nossos doentes, um pobre-diabo incurável, e ela vem visitá-lo, às vezes, e volta para casa com esse homem de quem lhe falei...

Como se chama ela?

Gretl Metzger. Dirige a tabacaria da vila.

Nada sei sobre essa mulher.

Não creio que seja uma pessoa muito em destaque — redargüiu Huber, sorrindo amargamente. A ligação, contudo, é muito significativa. E ainda a achará mais quando souber que Gretl Metzger era a antiga amante de Karl Adal­bert Fischer.

Pode provar isso? perguntou Hanlon brusca­mente.

Não seria difícil. Esta vila é muito pequena. Tudo se sabe... Pronto, já lhe apresentei o meu problema. O gatuno, a sua amante, Karl Fischer e uma mancheia de me­dicamentos... Que concluiu de tudo isso?

A minha primeira conclusão — disse Hanlon, bas­tante pensativo — é que Fischer está protegendo um assas­sino e que alguém está fazendo nesse assassino uma operação plástica no rosto. Não existem medicamentos à venda no mercado negro, e só dessa forma é que ele poderia arranjar tudo o que fosse necessário para a operação. Fischer serviu-se dessa mulher, dessa tal Metzger, para seduzir um dos seus empregados, Huber.

Acertou, meu amigo! — Huber voltou a sentar-se e sorriu, triunfante. — Então, quer encarregar-se do caso ou não?

Conte comigo.

Esplêndido — respondeu-lhe Huber. — E espero que me pague também essas informações.

Hanlon olhou-o, muito surpreso. O pedido fora bem explícito e não condizia com o caráter do amigo. Huber con­tinuava a sorrir, estudando com o olhar a expressão perplexa de Hanlon.

Vai substituir os medicamentos que nos roubaram, meu caro Hanlon, e aumentar os meus fornecimentos habi­tuais. Não estou lá muito orgulhoso desta denúncia. Dei-lhe a possibilidade de prender um dos meus compatriotas, mas, ao menos, quero receber qualquer coisa em troca... qual­quer coisa para os meus doentes.

Esteja descansado, arranjar-lhe-ei os medicamentos de que precisar — garantiu-lhe Hanlon gentilmente. — E não tem razão para se arrepender do que fez. Por que haveria de salvar um assassino quando vinte homens podem morrer de septicemia devido ao roubo praticado?

Não vejo qualquer razão para isso — disse Huber amargamente —, mas sou médico e não juiz.

Todos nós somos juízes — redargüiu Hanlon. — E eu, além de juiz, também terei de ser carrasco...

O preço da vitória — disse Huber.

A vitória, para mim, é apenas uma grande dor de cabeça.

E a filha do burgomestre.

Huber dissera estas palavras com um sorriso, mas para Hanlon elas tiveram o efeito de um murro traiçoeiro. O seu rosto tornou-se muito vermelho, e, saltando da cadeira como se uma mola o tivesse lançado subitamente, o comandante ficou de pé em frente de Huber. A ira que o dominava provocou-lhe uma série de imprecações veementes:

Seu canalha! Porco imundo! Confiei em você! Ten­tei ajudá-lo... e é assim que me retribui?! Maldito seja! Mande chamar esse gatuno e deixe-me interrogá-lo! Depois disso não conte mais comigo para ajudá-lo a manter o hospital!

O médico não se movera, ficando enterrado na cadeira a olhar tristemente para as mãos. Passaram-se alguns minutos sem que ele voltasse a levantar a cabeça. Quando o fez, Hanlon verificou que os seus olhos estavam úmidos e que o seu rosto parecia ter envelhecido. As palavras que lhe saíram da boca tinham um tom trágico de penitência:

O que eu disse é imperdoável... foi uma graça impertinente e maliciosa. Sinto-me muito humilhado pelo que aconteceu aqui, com a minha própria gente. Estou enver­gonhado por tê-lo denunciado... e por isso quis humilhá-lo, Hanlon. Acabei de destruir, de repente, uma amizade que me era preciosa. Desculpe-me... Deus sabe como estou arrependido!

Huber voltou a baixar a cabeça, mergulhando-a entre os braços e caindo pesadamente sobre a mesa. Hanlon con­tinuava de pé, em frente dele, dominando-o com um olhar frio e amargo. As suas palavras soaram como chicotadas sobre a cabeça curvada do médico:

Eu vim a Bad Quellenberg como amigo, Huber! Vim para construir e não para destruir. E que recebi eu em troca disso? Um assassínio, insultos, mentiras e intrigas! Estou farto! Cansado e farto!

Huber levantou lentamente a cabeça e olhou para o comandante, desanimado e triste:

É esse o mal, Hanlon. Estamos todos fartos e can­sados. Já nem sequer sabemos pensar direito. Eu, por mim, estou cansado de toda essa tragédia e miséria, cansado de não poder fazer nada para remediar este estado de coisas. Cansado de tratar de corpos que não têm a menor possibi­lidade de voltar a ser o que eram. Estou farto também de pregar uma esperança que sei ser uma mentira, de pedinchar drogas e instrumentos; enojado do que sou forçado a fazer sem essas drogas ou os instrumentos apropriados. Não posso obrigá-lo a esquecer as horríveis palavras que lhe disse, mas, por favor, acredite-me quando lhe afirmo que estou profun­damente arrependido.

Huber levantou-se e encarou Hanlon, estendendo-lhe a mão. O comandante hesitou durante um breve momento, mas depois apertou-a. Os dois homens ficaram olhando um para o outro, como crianças envergonhadas, até que um sorriso veio iluminar o rosto angustiado de Huber.

Ninguém acredita que ela seja sua amante. E a ver­dade é que estão ressentidos por isso. Têm medo de santos, e os solteirões são homens perigosos. Esta gente é muito primitiva. Gosta de saber que é governada por homens que sabem embriagar-se e que têm amantes. Esses homens, pen­sam eles, são mais fáceis de manejar, e também mais humanos.

—- Sou um romântico — disse Hanlon, sorrindo pela primeira vez desde que Huber lhe provocara a súbita ira. — Ainda continuo a querer a Lua. Preciso mais de amor do que de uma amante.

A Lua é fria, meu amigo — redargüiu Huber. — Uma mulher quente, só por si, já é um pouco de amor.

Os dois homens já haviam feito as pazes, e, depois desta resposta incisiva de Huber, voltaram ao assunto que mais os interessava: a investigação do roubo dos medicamentos e a descoberta do assassino.

Karl Adalbert Fischer estava sentado no seu escritório, por baixo do velho mapa com as bandeirinhas ainda pre­gadas melancolicamente nos pontos onde os exércitos ale­mães haviam perdido as últimas batalhas, e pensava no seu incerto futuro. A primavera invadira toda a região, mas Fischer ainda se encontrava mergulhado num triste inverno de ansiedade e desilusão.

O chefe de polícia sentia-se cansado. Bebera demasiado e recordava amargamente a noite anterior que passara com Gretl Metzger. Esta telefonara-lhe na véspera, dizendo que o seu amigo se recusara a roubar mais medicamentos, pois receava ser descoberto. Fischer fora visitá-la para consolá-la do estado de nervos em que o amante a deixara, e compreen­dera logo que Gretl confessaria o que havia acontecido, se por acaso viesse a ser interrogada.

Fischer não tinha agora a menor dúvida de que seria descoberto. Sabia muito bem o que teria de fazer. Teria de sorrir inocentemente, submeter-se a tudo e não responder a qualquer pergunta até que o levassem ao tribunal, onde, com sorte e a ajuda de um bom advogado, poderia tomar a atitude de um mártir, um homem forçado ao crime pela lealdade para com a sua família e o seu país. O caso talvez até viesse a ser interessante. A imprensa ocupar-se-ia dele, com toda a certeza, e o seu nome ainda viria a ser famoso!

As Forças de Ocupação encontravam-se num verdadei­ro dilema. Pregavam a democracia e o direito à justiça dos tribunais. A verdade, porém, era outra: praticavam, na rea­lidade, uma autocracia local e uma legalidade duvidosa nos processos de justiça.

O seu sobrinho preocupava-o muito mais. Já estava quase no final do tratamento e pouco lhe faltava para a li­berdade completa. Seria terrível se fosse descoberto quando a salvação se encontrava tão próxima. O tempo e as circuns­tâncias pareciam estar contra ele, mas Fischer tinha a certeza de que acharia uma solução para o problema.

O chefe de polícia bebeu um trago de Schnapps, acen­deu um cigarro e logo a seguir ouviu bater à porta. Esta abriu-se antes de Fischer ter tempo de se levantar, e o Padre Albertus entrou no pequeno escritório.

Fischer levantou-se logo, e o padre, sem dar tempo a que as palavras formais de saudação fossem pronunciadas, referiu-se imediatamente ao assunto que ali o levara:

Vi o seu sobrinho, esta tarde, Karl.

O quê?! exclamou Fischer, irritado e muito ad- mirádo. Eu disse a ele que não saísse de casa!

E não saiu, Karl. Encontrei-o por acaso. Saí para visitar vários fiéis e resolvi entrar na casa de Winkler.

Já começo a compreender... — disse Fischer, sol­tando um suspiro de alívio. Até me assustou, padre.

Fischer começara a sorrir, mas o rosto do velho padre continuava sério e preocupado.

Winkler nada mais pode fazer para ajudá-lo disse o Padre Albertus friamente. Vou levar o seu sobrinho para minha casa.

O quê?!

O Padre Albertus enfrentou-o com dignidade.

O rapaz já está quase curado do corpo, mas o seu espírito ainda continua doente e num estado de desespero indescritível. Winkler, sendo o que é, não pode ajudá-lo. Tenciono, pois, levar Johann para minha casa e cuidar do seu espírito torturado.

Fischer não podia acreditar nas palavras do padre. Olhava-o com uma expressão de espanto e quase estupidez, ao mesmo tempo em que procurava palavras adequadas para lhe responder.

Não compreendo como se atreve a...

Um padre atrever-se-ia a tudo para salvar uma alm.i em desespero — redargüiu o Padre Albertus com a simpli­cidade habitual. — O santuário da Igreja, além disso, é uma proteção muito mais segura do que aquela que você ou Win- kler podem proporcionar a Johann.

Fischer abanou a cabeça e sorriu amargamente.

O santuário já não existe. Estamos no século XX. A Igreja não tem as imunidades de antigamente.

Talvez Deus nos conceda o que o Estado nos recusa — disse o velho suavemente. — Vou levá-lo para casa, suce­da o que suceder! Irei buscá-lo esta noite, depois de escure­cer. Ficará comigo até estar completamente curado de corpo e alma.

E depois...?

Johann decidirá.

Fischer reclinou-se na cadeira e começou a rir desenfrea­damente. O Padre Albertus franziu o sobrolho e observou-o com estranheza.

Não quer me explicar onde está a graça desta situa­ção, Karl...?

Karl Adalbert Fischer parou de rir, pediu ao padre que se sentasse e, em seguida, contou-lhe tudo o que acontecera ao sobrinho.

O velho padre ouviu-o com toda a atenção, e, quando Fischer acabou de falar, olhou-o com uma admiração especial. As suas primeiras palavras foram muito significativas, e a sua voz profunda dominou a figura do chefe de polícia.

Ainda deve ter esperança, meu amigo.

Fischer encolheu os ombros e abanou a cabeça.

Não tenho a mínima esperança, acredite. Sei muito bem que serei preso, e ainda esta noite, se calhar.

Não era nesse aspecto que eu pensava disse o Padre Albertus com um sorriso enigmático nos lábios. Eu me referia ao fato de você ter feito, pela primeira vez em muitos anos, uma obra de caridade, sem o menor egoísmo e até com muito perigo para você. É essa a verdadeira espe­rança de que lhe falava há pouco...

Fischer sorriu ironicamente.

Julga, provavelmente, que acabará por me levar ao confessionário!

Eu gostaria era de levá-lo para o céu — redargüiu o Padre Albertus, sorrindo prazenteiramente —, o que seria bem mais fácil do que fazê-lo entrar na igreja!

O que interessa é salvar o rapaz — respondeu Fis­cher. — O resto não tem a menor importância.

Não, Karl. O mais importante é dar-lhe nova fé e também uma nova alma. O resto é que não interessa.

Os olhos experientes de Fischer revelaram uma admi­ração intensa pelo velho.

Vocês, padres, nunca aprendem nada, não é?

Depende da lição, Karl.

E que desejaria que eu aprendesse, padre? Sou um velho. Não aprendo coisas novas assim tão facilmente...!

A primeira lição do livro... uma lição muito, muito velha. — O Padre Albertus levantou-se, preparando-se para sair, mas, antes, fez uma pausa e disse suavemente:

Vanitas vanitatum... Vaidade das vaidades, Karl. Tudo é vaidade, exceto o amor a Deus e às suas criaturas.

Aquela afirmação fora muito oportuna, mas também muito amarga. Karl Adalbert Fischer ainda tentava apreender o seu significado completo quando o Capitão Johnson chegou com dois soldados a fim de lhe dar ordem de prisão.

Rudi Winkler regressava do seu passeio, após ter feito o circuito da vila e das avenidas marginais. Voltava pelo mesmo caminho, pensando em como seria agradável uma cerveja no Goldener Hirch e um banho bem quente quando chegasse a casa.

O cirurgião sentia-se cansado, mas também mais des­contraído e bem-disposto, e caminhava lentamente, deliciando-se com a fragrância dos pinheiros. A noite já descia sobre Bad Quellenberg. Os comerciantes começavam a fechar os estabelecimentos. Apesar disso, a avenida por onde Winkler avançava ainda acusava muito movimento.

Pequenos grupos passeavam pelos relvados que ladea­vam a avenida, e outros conversavam em voz baixa às portas das lojas já fechadas.

Rudi Winkler mal os vira, de começo, e só depois é que reparara no que aquilo tinha de insólito. Já era tarde, e o espetáculo de tantos homens na rua àquela hora não era lá muito natural. Além disso — não tardou também a notar —, aquela gente não era da vila. O seu aspecto era diferente: tinham estranhos rostos angulosos, olhos ameaçadores, gestos irados e bruscos. As vozes também eram estranhas e surdas e impregnadas de tons pouco familiares. Esses homens não caminhavam direitos e empertigados como faziam os habi­tantes da montanha, mas furtivamente, com os ombros cm vados e a cabeça descaída para a frente.

Winkler começou a sentir-se pouco à vontade, apressando-se e tomando o caminho de casa sem olhar para a esquerda nem para a direita.

Os outros homens reagiram instantaneamente à sua mudança de andar. Os que se encontravam às portas das lojas juntaram-se aos outros que já estavam na avenida, e todos eles começaram a caminhar na direção que Winkler tomara, conservando o mesmo andar e formando uma cortina entre ele e a segurança que as lojas poderiam oferecer.

Os que vinham atrás dele constituíam uma fileira cer­rada, cortando-lhe a retirada. Winkler não ousava olhar para trás, mas ouvia perfeitamente o barulho surdo dos passos que o perseguiam. Os homens começaram então a cantar ao compasso do ruído das suas botas:

— Carniceiro! Carniceiro! Carniceiro!

Rudi Winkler foi atacado por um pânico indescritível e começou a correr. Os outros também começaram a correr, mas sem procurar alcançá-lo, limitando-se a firmar uma bar­reira à sua volta. Continuavam a cantar, insistente e surda­mente, de forma a que o som martelasse os seus ouvidos num crescendo de terror.

Winkler corria agora mais depressa, subindo pela cal­çada que conduzia a um pequeno largo onde habitualmente havia um policial de serviço. Só então é que o aterrorizado cirurgião se lembrou de que, para alcançar esse largo, teria de passar pela pequena ponte sobre a tumultuosa catarata. A última curva da calçada revelou-lhe o que se passava na ponte.

Os parapeitos estavam ladeados por fileiras cerradas de espantalhos humanos, e a saída, do outro lado, bloqueada por outra fila dupla. A esperança desapareceu-lhe da alma, e Winkler parou de correr. Os seus perseguidores também pararam, e o desgraçado cirurgião ficou imóvel no meio de um círculo aterrorizador de homens — rostos esqueléticos, braços e pernas de espantalhos, olhos ferozes e cheios de ódio.

Os homens observaram Winkler em silêncio, durante alguns momentos, enquanto este olhava à sua volta à pro­cura de uma forma de escapar. Não havia fuga possível, e Winkler, percebendo-o, abriu a boca e soltou um grito de terror. Então, sem mostrarem nenhuma pressa, os homens começaram a fechar o círculo.

Ainda não haviam passado cinco minutos quando o corpo despedaçado e sangrento de Rudi Winkler foi erguido sobre as cabeças da multidão e lançado do parapeito para os rochedos que se viam por entre as águas que jorravam da catarata. Os espantalhos humanos observaram durante alguns segundos o corpo sendo atirado de encontro aos rochedos pela força da corrente e, em seguida, dirigiram-se calmamen­te para o Hotel Bela Vista.

A polícia entrara em greve após a prisão de Karl Adal­bert Fischer, e os soldados de Mark Hanlon ainda não haviam sido destacados para patrulhar as ruas.

Eram sete horas da noite quando a notícia do assassínio de Rudi Winkler chegou ao quartel-general do Tenente-Coronel Mark Hanlon. O crime fora presenciado por uns dez quelembergueses, e alguns deles haviam telefonado à polícia, mas a autoridade não se encontrava de serviço, e nenhum estivera disposto a informar as Forças de Ocupação.

Miller, o médico americano, fora o primeiro a saber o que se passara. A notícia espalhara-se rapidamente pelas enfermarias do hospital, logo após o regresso dos assassinos, e uma enfermeira apressara-se a informar o diretor do que havia sucedido.

Miller agira rapidamente. Proibira que os pacientes saíssem do Hotel Bela Vista e chamara um destacamento de soldados para vigiar as entradas, dirigindo-se depois ao Hotel Sonnblick a fim de relatar o ocorrido.

Hanlon ouvira-o em silêncio, aprovando as medidas que ele tomara e interrogando-o sobre o caso:

O nome, antes de mais... tem a certeza de que era Winkler?

Não me restam quaisquer dúvidas — assegurou-lhe Miller. Interroguei várias testemunhas. Disseram-me que se tratava do "Carniceiro" Winkler. Parece que ele prestou serviço em dois campos de concentração: Dachau e Mauthausen. De resto, não lhe será difícil identificar o corpo quando ele for encontrado.

Duvido respondeu Hanlon, impressionado por aquela desagradável possibilidade. Pelo que me disse, o corpo deve estar feito em pedaços! Quantos dos seus doentes estão metidos no caso?

Para cima de cinqüenta.

Será possível descobrir entre eles um chefe qué te­nha sido o principal responsável?

Miller abanou a cabeça negativamente.

Não. E nem sequer seria muito conveniente apro­fundar o assunto.

Por quê?

O ato foi coletivo. O caso tomaria um aspecto dife­rente se houvesse um só responsável. Assim é mais fácil de resolver, de abafar.

Hanlon olhou para ele rapidamente, como se ficasse espantado com aquelas palavras.

Que razões o levam a pensar que eu queira abafá-lo?

— Não tem outro remédio — disse-lhe Miller. — Trata-se de uma espécie de justiça, ainda que brutal, e os nossos superiores não desejarão dar muita publicidade ao assunto.

Não vejo como seja possível esconder um assassínio desta natureza — redargüiu Hanlon abruptamente. — Não podemos ter julgamentos para uns e linchamentos para outros. Isso seria a negação de tudo o que pretendemos fazer aqui.

Concordo inteiramente com você — disse Miller com um sorriso amargo —, mas falei por experiência. Não é o primeiro caso do gênero que tenho visto. Tem havido outros, muito mais horrorosos do que este. Todos eles foram abafados rapidamente. O quartel-general fará o mesmo com o que se deu hoje.

Estamos numa área de jurisdição britânica — disse Hanlon. — Não creio que os meus superiores tomem essa atitude.

Não conte muito com isso. Trata-se de uma ques­tão de política das nações aliadas. Além disso, terá de pensar bem no aspecto prático da questão. Que faríamos nós a cin­qüenta refugiados dos campos de concentração? Um julga­mento e um castigo coletivo? Isso seria o mesmo que entre­gar um motivo de propaganda contra nós aos russos e à velha guarda nazista. O melhor será enterrar Winkler jun­tamente com o caso.

Terei de apresentar um relatório aos meus supe­riores — disse Hanlon, embaraçado e já pensando que Miller talvez tivesse razão — e pedir a Klagenfurt que me indique o que devo fazer. Enviarei alguém ao seu hospital para pro­ceder aos interrogatórios e organizar a lista dos culpados. Agradecer-lhe-ia que o auxiliasse no cumprimento do dever.

Com o maior prazer — respondeu Miller. — Não me julgue mal, Hanlon. Conheço muito bem a sua opinião e também a situação em que se encontra. Só lhe disse aquilo para lhe poupar aborrecimentos futuros.

Hanlon sorriu-lhe e teve um gesto que indicava não se importar muito com mais aquele problema.

Já tenho bastantes aborrecimentos. Acabei de pren­der Fischer, e a polícia está em greve. Este é mais um.

Quê?! Miller soltou uma gargalhada. De que o acusa?

De roubo e de esconder um assassino.

Conseguirá provas para condená-lo?

Talvez. Os meus homens estão interrogando-o. A morte de Winkler me ajudará bastante.

Por quê?

Ainda não sei ao certo. O Capitão Johnson foi fazer uma busca na casa de Winkler e interrogar a governanta. Se ela disser alguma coisa de importante, como espero, terei de acareá-la com Fischer para ver o resultado.

Miller levantou-se e estendeu-lhe a mão.

Desejo-lhe sorte, Flanlon, e também que Klagenfurt lhe facilite a vida.

Que Klagenfurt vá para o diabo!

Que todos os nossos problemas vão para o diabo é o que eu desejo. Quem me dera voltar já para casa!

O mesmo digo eu!

Aquelas palavras de Hanlon não representavam, porém, a expressão da verdade. A verdade era mesmo muito dife­rente. Ele não tinha casa para onde voltar e já estava dema­siado próximo do triunfo para querer ir embora.

Karl Adalbert Fischer estava sendo interrogado à luz e ao calor de lâmpadas muito potentes.

Encontrava-se sentado numa cadeira pouco confortável, num quarto situado nos porões do Hotel Sonnblick. Os in­quiridores eram três, e não o haviam deixado descansar um só minuto durante as últimas horas.

A técnica era bastante familiar a Fischer, e este contava com os seus anos de experiência para protegê-lo dos efeitos de tão estafante interrogatório. Sabia que se portara muito bem durante as duas primeiras horas e que conseguiria evitar todas as armadilhas com o desprezo de alguém que as conhe­cia de cor e salteado.

Depois dessas primeiras horas, lentas e pesadas, os efeitos do cansaço começaram a se fazer sentir. Fischer já trans­pirava abundantemente, tendo a boca muito seca, os olhos ardendo, devido à luz intensa, e uma terrível dor de cabeça. Era mesmo obrigado a fazer um grande esforço para não começar a gritar. Já tentara não ouvir as perguntas e fechar-se num estado quase hipnótico, mas as luzes eram tão fortes e as vozes insistiam tantas vezes na mesma pergunta, que desejava, no fundo, contar-lhes tudo e acabar com aquele martírio.

Depois, para grande surpresa sua, a inquirição terminou repentinamente. As luzes apagaram-se. Os interrogadores deram-lhe café e alguns sanduíches e, como se nada se tives­se passado, começaram a conversar animadamente com ele. Ofereceram-lhe então um cigarro e, enquanto Fischer fuma­va, discutiram de igual para igual alguns aspectos do caso que provocara o interrogatório.

A campainha do telefone interrompeu a discussão, e um dos homens foi atender à chamada. Fischer tentou ouvir a conversa, mas não conseguiu perceber mais do que as res­postas lacônicas do homem. O inquiridor pousou o telefone ao fim de poucos minutos e voltou-se para ele, sorrindo-lhe amigavelmente.

Tem muita sorte, Fischer. O Tenente-Coronel Hanlon telefonou-me e disse-me que o libertasse.

Fischer ficou literalmente boquiaberto ante aquelas palavras.

O quê? Não compreendo!

Vamos libertá-lo. As averiguações não deram resul­tado. Não temos quaisquer provas que nos permitam con­servá-lo aqui.

O corpo de Fischer foi invadido por uma imensa sen­sação de paz. Vencera! Nada lhes dissera! Sairia desta prisão ainda com mais prestígio e poder. O chefe de polícia, então, pediu-lhes Outro cigarro, e um dos homens deu-lhe um sem a menor hesitação. As suas mãos tremiam tanto quando quis acendê-lo que o inquiridor curvou-se cortesmente na sua fren­te e o acendeu. Deram-lhe também outra xícara de café e começaram a arrumar todos os papéis como se dessem por terminada uma tarefa que lhes fora muito desagradável.

Passaram-se mais alguns segundos e a porta abriu-se, agora para dar entrada a Mark Hanlon e à mulher que o acompanhava — a governanta de Rudi Winkler.

O Padre Albertus e Johann Wikivill estavam jantando na longa sala do andar superior da paróquia. Havia muitos anos que não era servido àquela mesa um jantar tão abun­dante: Rindsuppe, uma truta acabada de pescar e recfeada com cogumelos, galinha assada, Apfelstrudel e creme de leite batido. Os vinhos também eram excelentes: um Nussberger para as carnes e um Moscatel para acompanhar o doce; sem esquecer um charuto holandês com o café. O velho padre só conseguira obter os ingredientes para a refeição após conven­cer os donos das lojas da sua necessidade imperiosa, e entregara-os à sua indolente criada, confiando em que o seu talento de cozinheira não tivesse sido atrofiado durante todos aque­les anos de refeições ascéticas. Não escondera a identidade do seu convidado, mas recomendara à criada que não a mencionasse a quem quer que fosse, e pedira-lhe que prepa­rasse um jantar digno dos seus antigos talentos.

Quando Wikivill chegara, furtivo e receoso, o Padre Albertus obrigara-o a tomar banho, a mudar de roupa e a instalar-se no pequeno quarto cujas janelas se abriam sobre a vila e o vale. Quando o jantar foi servido, depois de a criada ter preparado a sua melhor refeição dos últimos anos, o convidado já estava muito calmo, e os dois homens janta­ram numa atmosfera despreocupada, à luz de velas, como se nada os incomodasse.

O Padre Albertus levara a conversa para assuntos de caráter geral, e Johann parecia ter predileção por aquele prazer esquecido, que era a discussão de temas impessoais e fúteis. As suas mãos já não tremiam e os olhos haviam recuperado algo da pureza de antigamente, embora conti­nuassem sombrios como os de um homem habituado a con­templar distâncias imensas, estéreis e despovoadas.

Só depois de saborear a última gota de vinho e de o café ser servido é que Johann falou de uma das dúvidas que mais o preocupavam:

Trouxe-me para sua casa, padre, e eu estou muito agradecido. O que eu gostaria de saber é o que espera fazer de mim.

Os olhos carinhosos do Padre Albertus brilharam no seu rosto transparente. A sua voz grave e profunda respon­deu a Johann com uma compreensão infinita:

Sei que alcançou — como sucede a todos os ho­mens, mais cedo ou mais tarde — o termo de um caminho. Sei que atrás de você só ficou destruição, e que à sua frente nada existe além de uma parede branca de indiferença. Isso é o começo do desespero.

Já é o desespero completo.

Não! — A voz do padre soara com leveza, mas firmemente. — O desespero é a perda da fé e da esperança.

Já perdi a esperança.

O meu desejo é devolver-lha.

Será isso possível?

Johann disse essas palavras como se o desafiasse, mas, embora fosse estranho, o velho padre não aceitou o desafio, limitando-se a dizer-lhe com simplicidade:

Se eu lhe prometesse isso, meu filho, estaria men­tindo. A esperança nasce da fé, e ao que parece, a fé aban­donou-o temporariamente. Não lhe posso dar fé, por ser uma dádiva do Todo-Poderoso. O mais que prometo é tentar fazer que a deseje, ajudá-lo a preparar-se para recuperá-la.

Eu desejaria ter fé — disse Johann Wikivill, sol­tando um suspiro amargo. — Preciso tanto de fé como preciso de amor e paixão, de um corpo inteiro e bem meu... como preciso de tudo aquilo que nunca poderei ter.

A fé é muito mais importante do que tudo, meu filho. A alma continua a viver mesmo depois de o corpo ser destruído.

Se a alma existisse...

Se existisse, e eu conseguisse convencê-lo disso, pensa que lhe seria mais fácil aceitar a tragédia e a desgraça do seu corpo?

Julgo que... sim.

Já temos um começo. — A chama luminosa no rosto do Padre Albertus pareceu adquirir nova intensidade. — Conversaremos. Meditaremos juntos. Rezaremos juntos, também.

Não posso rezar. Como poderei eu fazê-lo, se não tenho fé?

Rezará da mesma forma que uma vez um grande inglês rezou: "Deus, se é que existe um Deus, dai-me luz!"

Os olhos sombrios de Johann Wikivill baixaram-se, e a chama inquieta das velas projetou-lhe sombras grotescas no rosto, ainda envolto em ataduras.

Vai ser um processo muito longo, padre. Duvido que eu tenha a coragem suficiente para levá-lo a cabo.

— Lembre-se de que o resultado pode transformar todo o seu futuro. Já sabe que conta inteiramente comigo para ajudá-lo, a todo instante.

—- É muito possível que não possa fazê-lo. O coman­dante tem a minha cabeça a prêmio!

O comandante não o prenderá, a não ser que você deseje se entregar.

O Padre Albertus dissera essas palavras com tal convic­ção que o seu hóspede olhou-o surpreso.

Não pode prometer uma coisa dessas, padre.

Posso, sim. Prometo-lhe.

Não pode. O comandante tem atrás de si uma gran­de nação, quatro nações mesmo! Não poderá se opor a elas, Padre Albertus.

Eu, não, meu filho — disse o velho padre, mos­trando as mãos torturadas a Johann —, mas o Todo-Poderoso, que ergue do nada os mais humildes e pode humilhar os mais fortes.

As palavras do Padre Albertus foram interrompidas pela campainha do telefone, metálica e fria, e, enquanto ele atendia à chamada, o seu convidado tentou, tenso e preo­cupado, seguir a conversa, mas não conseguiu ouvir mais do que as respostas do padre.

... Não... ainda não sabia... que coisa horro­rosa!... Sim. Compreendo... Não. Seria mais conveniente fazê-lo amanhã... esteja descansado. Não faltarei... Está bem. Garanto-lhe... Auf Wiedersehen.

O Padre Albertus pousou o fone cuidadosamente e vol­tou-se para Johann Wikivill.

Era o Tenente-Coronel Hanlon, comandante das Forças de Ocupação. Winkler foi assassinado esta tarde. O seu tio está preso. Hanlon sabe que está aqui comigo, Johann.

Não...! — A exclamação aterrorizada foi seguida de um gesto brusco, e Johann levantou-se precipitadamente. — Tenho de ir embora... quero me esconder!

Não! — exclamou, por sua vez, a voz profunda do Padre Albertus. Este parecia ter ganho novas forças, o seu corpo frágil havia crescido, dominando a sala e a figu­ra tensa do seu hóspede. — Fiz-lhe uma promessa. Não estou habituado a quebrar as promessas que faço. Não será preso, meu filho. Tenha confiança em mim... em nome de Deus!

Não acredito em Deus.

Acredite em mim, então.

Os segundos passaram lenta e inexoravelmente. As chamas das velas bailavam e o silêncio vibrava, por efeito da tensão que se criara na sala. Depois, subitamente, o corpo de Johann descontraiu-se, e o rapaz voltou a sentar-se, descansando as mãos nervosas sobre a mesa. A boca abriu-se num estranho sorriso, suave, mas ligeiramente desesperado. E a sua voz, quando ele voltou a falar, não passou de um murmúrio:

— Acredito em você, Padre Albertus. Não sei porquê, mas confio inteiramente em você. Farei tudo o que me disser.

 

                                               Capítulo 15

Caramba, Mark! Endoideceu ou o quê?!

Johnson principiara assim uma série dé exclamações iradas, logo que Hanlon acabara de falar com o Padre Albertus. E explodira:

Meu Deus! Não o compreendo, Mark! Tem anda­do como louco, durante meses e meses, tentando descobrir o assassino. Mandou-me fazer mil buscas na vila e em todas as aldeias da região, e, agora que o encontrou, deixa-o em liberdade... passando a noite em casa de um velho padre decrépito! Que julga que ele vai fazer... confessar-se? Que vem cá entregar-se amanhã, de mãos estendidas, para lhe colocarmos as algemas? Deus Todo-Poderoso! Amanhã de manhã ele já estará longe, do outro lado da montanha! E como explicará então o sucedido a Klagenfurt?

Já acabou de falar, Johnny? perguntou Hanlon, olhando com cara de poucos amigos para o subordinado.

Acabei, sim... mas devo dizer-lhe que não sei qual será o resultado desta louca comédia, se continuar a tomar essa atitude. Bem sei que é católico. Sei também que existe alguma ligação entre você e o padre. Ótimo! Nada tenho a ver com isso. Mas este caso do assassino é, em parte, um assunto da minha responsabilidade. Queime-se, se quiser... mas não me queime a mim!

Já disse tudo o que tinha a dizer?

Já... e vá para o diabo!

Sente-se e ouça-me com atenção, Johnny.

Johnson hesitou durante um momento, mas, em segui­da, sentou-se em frente do seu superior. Hanlon serviu-se de um cigarro, acendeu-o e, depois, atirou a cigarreira para Johnson. Este apanhou-a no ar e colocou-a em cima da mesa sem abri-la. Hanlon fumou durante alguns segundos e só então é que começou a falar, seca e irritadamente.

Artigo primeiro: Johnny, eu é que sou o comandante, Tem de obedecer sempre às minhas ordens, e, se Klagenfurt não concordar com essas ordens, quem sofre as conseqüências sou eu! Compreendido?

Perfeitamente — respondeu Johnson.

Artigo segundo: deu-se um novo crime de morte esta tarde, Um crime que foi cometido por pessoas sob a nossa proteção: os refugiados dos campos de concentração. Não sei bem o que lhes devo fazer enquanto não receber instruções de Klagenfurt. Trata-se de um assunto político. Verdadeira dinamite! Isso nos leva ao artigo terceiro: se eu prendesse Johann Wikivill esta noite, o que não tenciono fazer, teria de julgá-lo imediatamente. Teria de condenar um homem e de perdoar os outros cinqüenta. Que aspecto tomaria uma decisão dessa natureza? Que diriam os austría­cos às nossas afirmações de justiça e democracia?

Não tinha pensado nisso tudo...

Artigo quarto: o fato de o Padre Albertus receber o homem sob a sua proteção significa que o caso não é tão simples como qualquer de nós dois pensava. Não quero fazer nada sem saber exatamente o que se passa.

Mas, quando isso suceder, o nosso homem já pode­rá ter desaparecido de vez!

Confio nas palavras do Padre Albertus.

Que razões tem para confiar tanto nele?

Já o conheço há muito tempo, Johnny. O Padre Albertus é um homem enorme, muito maior do que nós dois juntos, muito mais justo e sábio. É pdr isso que confio nele.

Johnson permaneceu silencioso durante algum tempo, considerando e pesando tudo o que Hanlon lhe dissera, e, quando voltou a falar, o seu tom de voz era já muito diferente:

O único artigo que tem alguma importância para mim é o segundo. Compreendo que nos encontramos me­tidos numa grande enrascada. É muito possível, pois, que a sua decisão haja sido acertada, embora eu ainda não esteja completamente convencido disso. De qualquer forma, peço- lhe mil desculpas pelas minhas palavras de há pouco.

— Está desculpado, Johnny. Não se fala mais nisso.

Que tenciona fazer com Fischer?

Conservá-lo preso até vermos o desfecho do pro­blema.

E se ele exigir um advogado?

Ainda não o fez, e creio que não virá a fazê-lo.

Johnson pegou na cigarreira e acendeu um cigarro, li cando a estudar o comandante por entre as espirais de fumaça, notando-lhe as rugas, os novos cabelos brancos e a cicatriz que lhe corria pela têmpora.

Nunca consigo compreendê-lo, Mark disse ele, ao fim de alguns segundos.

Por quê?

É demasiado sutil para mim. Nunca pensa em linha reta... Pensa em ziguezagues, ao sabor da maré, e nunca se esquece de levar em consideração todas as circunstâncias. Não restam dúvidas de que esse é o melhor processo numa situação como a que enfrentamos, mas, apesar disso, não consigo seguir-lhe o raciocínio. É isso que me preocupa.

Hanlon assentiu pensativamente, e começou a disser­tar sobre aquele tema.

Compreendo as suas dúvidas e hesitações, Johnny. Tenho a impressão de que os desentendimentos entre nós são causados por uma diferença de atitude perante o que se passa. Este trabalho, esta missão que nos confiaram, representa duas coisas inteiramente diferentes para nós. Para você, isto tudo não passa de uma operação militar sujeita a um certo número de regulamentos. Está bem... ninguém pode criticá-lo por pensar assim. Para mim, contudo, é um empreendimento humano, um problema humano... um pro­blema que afeta um grande número de pessoas. Não o cen­suro por se desligar desse aspecto da questão, mas não posso deixar de me entregar de corpo e alma a este problema. Não sei se estou certo ou errado, mas trata-se de um fato, e nada mais posso fazer do que partir desse fato. Compreende-me?

Muito bem, mas não me parece que tenha se en­tregado totalmente ao problema.

Por que diz isso?

Johnson sorriu, um pouco embaraçado e envergonhado.

Pense nos outros oficiais. Pense em Wilson, James, Hanneker ou em mim. Nós também estamos comprometi­dos, embora de outra forma. Esses três têm as suas namo­radas, sítios para onde podem levá-las, e uma vida um tanto ou quanto doméstica. Eu, particularmente, não me canso de procurar uma garota agradável. Você, porém, representa um papel de velho solteirão. Está metido nos problemas de Fischer, de Holzinger e do padre, e até a bela Traudl não consegue despertar-lhe qualquer desejo, por mais que ela tente. Eu teria imenso prazer em namorá-la... mas Traudl só tem olhos para você!

Hanlon encolheu os ombros, indiferente e impassível.

Não desista, Johnny...!

O rosto de Johnson revelou a surpresa que lhe causava aquela indiferença.

É isso que me surpreende, Mark. Está sempre per­feitamente calmo e impassível em face dos problemas, e, apesar disso, corre muito mais riscos do que eu ou do que qualquer dos outros rapazes.

Talvez seja essa a razão, Johnny disse Hanlon, com um sorriso irônico nos lábios. Talvez seja por esse fato que eu não quero ter uma aventura com uma mulher. Arriscar-me-ia muito mais do que qualquer de vocês, e ganharia menos com isso. Deixe-me só, agora! Quero deitar-me!

Johnson não fez o menor movimento para se levantar da cadeira, e ficou olhando para Mark Hanlon um sor­riso impudente iluminando-lhe o rosto.

Precisa se distrair, seu solteirão de uma figa! Pre­cisa descer à vila de vez em quando para ver as luzes e as garotas. Eu vou com uma pequena ao Café Zigeuner, daqui a pouco... Por que não telefona a Traudl para convidá-la a vir também? Far-lhe-á bem, Mark. A vida é para ser vivida, meu amigo!

Nem sempre!... — exclamou Mark Hanlon, mas, após um momento de hesitação, pegou no telefone e discou o número de Traudl.

O Café Zigeuner não era nem um café nem um retiro de boêmios. Era uma casa de madeira de dois andares, a cerca de um quilômetro da vila, debruçada sobre uma en­costa coberta de pinheiros e tendo uma linda vista sobre o vale. As suas varandas recebiam o calor do sol durante toda a tarde, e eram protegidas dos ventos noturnos pela barra­gem de pinheiros. O terraço que dava acesso à casa era cheio de árvores em flor, e o andar de baixo era muito agradável, sendo constituído por uma enorme cozinha, uma longa sala de jantar com uma lareira, onde a lenha de pinho crepitava todas as noites, e meia dúzia de quartos para hóspedes. O seu proprietário era um homem agradável, e a mulher uma camponesa com um grande talento para cozinhar. O casal tinha quatro filhos. A família vivia no andar de cima, reservando o de baixo para recreio das tropas da Ocupação e das suas convidadas.

Quando o proprietário propusera essa facilidade, muito conveniente para os ingleses, Hanlon não ficara muito en­cantado com a idéia, mas Johnson manifestara um grande entusiasmo, e o comandante não tivera outro remédio senão autorizar a sua existência. O local era sossegado, longe da vila. Se os rapazes se embriagassem, o que era inevitável, não criariam problemas à população de Quellenberg, pois, de qualquer forma, teriam um quilômetro para se recompor antes de alcançarem o centro da vila. O Café Zigeuner cons­tituía, na realidade, um excelente local para passar as horas de descanso. Os quartos eram confortáveis, havia boa pesca ali perto, os passeios pela montanha eram agradáveis.

Quando Hanlon recebeu mais pessoal, e o número de oficiais aumentou, Johnson propôs uma alteração muito con­veniente. O local seria reservado para os oficiais durante três dias da semana, e nos dias restantes estaria aberto a todos os soldados. Hanlon aprovara essa medida, e o pro­prietário adaptara rapidamente o seu serviço e os preços às exigências das diferentes graduações militares.

Esse arranjo era muito conveniente no que dizia res­peito ao ponto de vista oficial. Os homens divertiam-se à vontade, sem qualquer inibição, e as moças que os acom­panhassem podiam namorar sem que o fato se espalhasse por Bad Quellenberg. O vinho para os soldados saía da torneira de um enorme barril que se encontrava na cozinha, ao passo que o dos oficiais era servido em elegantes garrafas e custava o dobro do preço. As quatro alegres filhas do patrão tinham ordens para não contar a quem quer que fosse o que lá se passava, e também para manter intacta a sua virgindade, enquanto o pai amontoava os lucros que aquela idéia genial lhe proporcionava.

Já era bastante tarde quando Hanlon e Johnson che­garam com as duas garotas ao Café Zigeuner. Uns quatro ou cinco pares dançavam no meio da sala ao som da música de um tocador de cítara um rapaz louro trajando Lederhosen e uma vistosa camisa típica da região. Os dois oficiais cumprimentaram muito formalmente o proprietário e sentaram-se a uma mesa perto da lareira, e logo as quatro filhas do dono da casa se apressaram a acender as velas, a servir o vinho e a pôr a mesa para o jantar.

Os dois casais beberam, conversaram e comeram... fumaram, riram e, um pouco embaraçados, tornaram-se si­lenciosos, limitando-se a observar os outros a dançar, en­quanto a música continuava incessantemente e ia se perder entre as sombras das vigas do teto.

Os dois ingleses e as duas jovens austríacas não estavam muito à vontade. Sentiam-se nervosos e sem saber o que haviam de dizer uns aos outros. A conversa escondera os seus pensamentos, e o seu riso tinha um som metálico que soava falso, como se nenhum dos quatro estivesse segu­ro de si. A verdade é que queriam se divertir, mas ainda não estavam preparados para uma intimidade maior. Que­riam-se uns aos outros e, apesar disso, não ousavam pensar no que talvez viesse a acontecer. O vinho e a música ajuda­ram a desfazer aquela atmosfera inicial, e, enquanto observa­vam as chamas hipnóticas da lareira, foram se aproximando mais e também conversando em voz baixa e sorrindo à luz das velas — em vez de falarem em voz alta e de soltarem gargalhadas forçadas.

Aquela aproximação era particularmente agradável: o prelúdio de uma paixão que não tinha paixão em si... o começo de um amor em que não havia qualquer pensamento de amor.

Mark Hanlon pegou então na mão de Traudl e levou-a pára a pista de dança. O tocador de cítara mudou o ritmo para uma valsa lenta, que os lançou nos braços um do outro, numa entrega simbólica.

Mark e Traudl dançaram, então, face contra face, peito contra peito, ligados numa harmonia mútua de som e de movimento. Os seus lábios tocavam-se de vez em quando, separando-se de novo para murmurar palavras de satisfação e de carinho.

Os outros pares afastaram-se e foram sentar-se, para melhor observá-los, enquanto eles continuavam a dançar, não notando que se encontravam sós na pista nem sentindo mais nada além da música e do crescimento lento e gradual do desejo.

Em seguida, quase abruptamente, aquele momento de ternura acabou. A música parara. Todos aplaudiram o ele­gante par. Mark Hanlon e Traudl olharam à sua volta, muito surpresos, e voltaram para a mesa onde Johnson e a amiga os aguardavam.

A sala se aquecera demasiado, e a atmosfera estava carregada com a fumaça da lareira e dos cigarros, com o cheiro da comida e do vinho entornado. Johnson sugeriu um passeio no jardim, antes do regresso a Quellenberg. Os dois homens pagaram a conta e levaram as suas acompa­nhantes para baixo das frondosas árvores, onde o ar era mais puro e a fragrância das flores contrastava agradavel­mente com a atmosfera asfixiante da sala. Os dois casais separaram-se, então, e procuraram os recantos mais escondidos do jardim, mergulhando na sombra, sob os ramos floridos das árvores.

A lua iluminava profundamente o vale adormecido. Os picos pareciam feitos de prata — grandes muralhas espectrais dominando as fileiras intermináveis de pinheiros. O rio atra­vessava tortuosamente os campos, e o ruído das águas a correr era como um surdo contraponto à melancólica melo­dia da cítara.

Hanlon e Traudl estavam encostados a um muro, olhan­do para as estrelas que brilhavam no céu. O ar arrefecera, mas a fragrância das flores parecia aumentar de intensidade à medida que eles se iam aproximando mais um do outro e começavam a se beijar ternamente.

Depois do primeiro, longo beijo, esperado havia tanto tempo por ambos, Hanlon e Traudl afastaram-se ligeira­mente e olharam-se na calma da noite. As suas vozes, quan­do voltaram a falar, não passavam de suaves e delicados murmúrios:

Du bist so schõn, meine Liebe...

Und du, Schatz... so schôn...

Ambos estavam apaixonados, ambos se encontravam prontos para aquele momento tão rico de luz e de perfume, mas nenhum deles se sentia disposto a formular o primeiro desejo ou a consentir no primeiro abandono. A paixão era suficientemente forte e sincera, mas ambos, por motivos di­ferentes, faziam esforços desesperados para dominá-la. O freio que abrandava o desejo de Hanlon era o seu casamen­to e também a sua posição oficial. Traudl, porém, limitava-se a seguir a velha intuição de todas as mulheres: "Dêem-lhe tudo o que eles queiram, mas nunca antes de receberem uma promessa e um anel de noivado. Lembrem-se de que ainda não foram conquistadas. Os homens terão de pagar caro pela rendição".

E eram essas razões, tão diferentes uma da outra, que os obrigavam agora a retroceder, a afastar-se um pouco.

E que havemos nós de fazer agora? — perguntou Hanlon suavemente.

Hanlon desviara o olhar, voltando-se para o vale, e Traudl, que notara a expressão distante e já quase fria dos seus olhos, respondeu-lhe imediatamente:

Que gostaria de fazer, Mark?

— O meu desejo seria voltar dez anos atrás e começar outra vez.

Com sua mulher?

Não. Comigo próprio... com o mundo transfor­mado num jardim e com moças tão alegres como as suas flores.

Ainda está em tempo de recomeçar...

Talvez... um dia... sabe-se lá!

Eu saberei esperar, Mark.

Beije-me outra vez, Traudl.

Ach, mein Liebster[5].

Pouco depois a música deixou de ser ouvida, e a melodia cedeu lugar ao ruído dos automóveis que partiam e às des­pedidas sonoras dos casais que regressavam à vila. Hanlon e Traudl abandonaram lentamente o perfume das árvores em flor e dirigiram-se para Quellenberg, sob o brilho frio das estrelas.

Na manhã seguinte, às dez horas exatas, o Padre Albertus apresentou-se no quartel-general de Mark Hanlon. O comandante recebeu-o a sós e deu logo início à conversação.

Cometeu uma grande indiscrição, padre. Criou, tal­vez sem saber, uma situação política muito delicada. De­ve-me, pois, uma explicação!

Vim aqui para isso, tenente-coronel. — O Padre Albertus falara com um formalismo que não lhe era habitual.

Deixe-me, antes de mais, explicar-lhe a situação em que se encontra. Ontem mandei prender três pessoas: Gretl Metzger, um funcionário do Feldlazarett e Karl Fis­cher. Os dois primeiros são acusados de roubo, e Fischer de receber artigos roubados, de esconder um criminoso e de impedir o cumprimento da justiça. Uma dessas acusações também lhe poderia ser aplicada, padre.

O Padre Albertus assentiu pensativamente, sorrindo depois e respondendo com toda a suavidade de que a sua voz era capaz:

Compreendo perfeitamente o seu problema, tenen­te-coronel. Devo dizer-lhe, porém, que, por outro lado, exis­tem circunstâncias que ignora. Parece-me que deverá conhe­cê-las antes de... tomar qualquer decisão irreparável.

Não desconheço essas circunstâncias atenuantes padre — disse Mark Hanlon friamente. — Lembre-se de que Karl Fischer fez um depoimento muito completo.

Fischer contou-lhe tudo? O que aconteceu ao ra­paz? Tudo o que lhe fizeram?

Sim.

E considera essas circunstâncias apenas como ate­nuantes?

Considero que constituirão uma boa defesa no tribunal.

O rapaz não deve ser julgado, Mark!

Os olhos do Padre Albertus haviam se incendiado como se duas fúlgidas labaredas tivessem subitamente nascido do nada. A sua voz adquirira uma paixão e uma autoridade que haviam deixado Hanlon perplexo.

Pensou bem no que acaba de dizer, padre? O caso já foi reduzido a um processo legal. O mecanismo judiciário já se encontra em ação, e nem sei se, mesmo que o quisesse, me seria possível detê-lo agora.

Será capaz de me fazer um favor, Mark? Poderá responder-me a certas perguntas que lhe quero formular e, em seguida, ouvir o que tenho a dizer-lhe, antes de tomar uma decisão final? Será capaz de esquecer que é o conquis­tador e de recordar que foi, há tempos, um dos meus filhos prediletos? Por favor, Mark!

Hanlon levantou-se e aproximou-se da janela, olhando distraidamente para a encosta verde da montanha e para os últimos restos de neve nos picos mais altos. A sua voz, quando ele respondeu, sem encarar o padre, parecia distante e indiferente.

Nada lhe posso prometer, padre, mas ouvirei o que tem a dizer-me.

Obrigado, meu filho. — O padre fez uma pausa, como se pensasse na melhor maneira de abrir o diálogo, e, em seguida, formulou a primeira pergunta, num tom hu­milde e carinhoso: — Será ainda um católico autêntico, Mark?

Hanlon voltou-se bruscamente e encarou o padre.

Que tem isso a ver com este caso?

Tudo, Mark. Tenho de saber se é ainda um verda­deiro católico para ver como devo falar-lhe. De outra forma a nossa conversa seria absolutamente inútil.

Ainda sou católico, sim!

Não tem recebido os sacramentos...

Quero que fique sabendo uma coisa de uma vez para sempre, padre disse Hanlon, irritado e impaciente. O meu casamento foi muito infeliz. Esse casamento nada me trouxe de bom... nada me trouxe de melhor do que aquilo que tenho encontrado fora do casamento. Se deseja que eu lhe fale em termos de moralidade, a verdade é que estou vivendo em estado de pecado. Isso, contudo, não im­pede que eu seja um crente fervoroso. Creio em Deus e na Igreja. Bastar-lhe-á saber disso?

De momento, sim. Lamento muito que se encontre nesse estado, Mark. O meu maior desejo era que fosse feliz e estivesse em paz com a sua consciência. Mas isso ficará para a próxima vez. Acredita, então, em Deus? Acredita na alma, na salvação e na condenação?

Acredito.

Reconhece, também, que a salvação de uma alma humana é muito mais importante do que a sorte de nações ou de impérios?

Em princípio, sim. Na prática, uma depende muitas vezes da outra. Trata-se de um paradoxo e de um mistério, padre. Já devia sabê-lo.

Sei, sim. Não duvide de que o sei. O que me inte­ressa agora é apenas o princípio.

Acredito nesses princípios, mas não vejo que relação possam ter com este assassínio.

O velho padre permaneceu silencioso durante alguns segundos. Parecia querer ganhar forças. Parecia rezar, talvez a pedir palavras que convencessem o comandante. Em segui­da, curvou-se para a frente e começou a falar num tom de voz profundo e apaixonado:

Johann Wikivill cometeu o crime quando se en­contrava num estado temporário de inconsciência ou de lou­cura, compelido por um choque traumático e por um grande terror acumulado. Estou convencido de que está moral­mente inocente. Estou também convencido'de que está ago­ra completamente curado. O que mais interessa no momento é que Wikivill se encontra à beira do desespero. Perdeu a esperança e a fé no próprio momento em que lhe destruíram os órgãos da virilidade. Considera-se um motivo de pie­dade e de chacota, incapaz de dar ou receber qualquer es­pécie de amor devido a ser incapaz de sua expressão física. Sabe, com certeza, Mark, o que a ausência do amor pode fazer a um homem. Sei que acredita na vida espiritual, em­bora não consiga vivê-la, Mark. Johann Wikivill perdeu a fé. A vida nada significa para ele. Considera que a vida do espírito, a vida da alma, para além da do corpo, é um mito e uma fantasia. A única forma de lhe devolver a esperança seria dar-lhe uma fé nova. Wikivill poderia mesmo atingir, com a ajuda de Deus, uma grande santidade, aceitando a sua mutilação com paciência infinita, dedicando a sua vida a servir os outros. Eu gostaria de poder encaminhá-lo nessa direção. Sei que me será impossível conseguir isso se ele continuar no estado de terror em que se encontra. Desejaria conservá-lo comigo, falar-lhe, rezar com ele, cuidar dele com todo o meu amor e coragem. Nunca poderei fazê-lo... se o prender, Mark. Johann perder-se-ia, então, na noite negra da desilusão. Já compreende o que está em jogo, Mark? Não se trata da insignificante justiça simbólica de um tribunal militar, mas, sim, de uma alma humana... da sua salvação ou da sua danação. Entregue-me o rapaz, meu filho! Confie-me Johann Wikivill, em nome de Deus!

Mark Hanlon ficou muito impressionado com aquelas palavras. A eloqüência e a sinceridade do antigo mestre comoveram-no. O dilema em que se encontrava o impeliu a sentir uma certa piedade por Johann. Todos os seus im­pulsos lhe indicavam a clemência. Hanlon, contudo, sabia que os impulsos naturais não passavam de armadilhas trai­çoeiras que muitas vezes obrigavam um homem a tomar decisões erradas. Mark Hanlon encontrava-se numa posição oficial; tinha jurado administrar a política e a justiça que lhe eram ditadas pelos seus superiores. Qualquer erro po­deria comprometer a sua posição e até piorar a de Wikivill. A única forma seria encontrar um meio-termo, um ponto de encontro a meio do caminho.

Diga-me, Padre Albertus. Se eu consentir que Johann Wikivill fique em sua casa, e eu disse "se", estaria disposto a entregar-me o rapaz se mais tarde lhe exigisse? Talvez fosse possível resolver a situação se eu o confiasse à sua custódia por motivos de saúde.

O velho padre abanou a cabeça negativamente.

Não, Mark. Isso não chega. Não posso começar por mentir-lhe. Ele não tardaria a descobrir, e todo o meu trabalho seria destruído. A minha esperança é que ele venha um dia à sua presença, de livre vontade, e se ofereça para ser julgado, sujeitando-se ao resultado do julgamento devido à fé que adquiriu. Nada posso garantir, no entanto. Só ele é que poderá escolher entre a fuga e a rendição, entre a fé e o desespero. Não compreende, Mark?

Compreendo muito bem disse Hanlon pensati­vamente —, mas não sei bem o que posso fazer. Sou um homem sob a autoridade dos meus superiores. Qualquer decisão minha pode ser anulada de um dia para o outro. Se eu pudesse encontrar uma fórmula que Klagenfurt acei­tasse... Teria muito prazer em ajudá-lo, mas nada posso prometer. Nada. Preciso pensar bem no assunto.

E por enquanto...?

Wikivill ficará em sua casa.

Em que condições?

Um ligeiro sorriso iluminou o rosto preocupado de Hanlon. Às palavras que proferiu a seguir foram repassadas de uma resignação e de uma melancolia que não surpreen­deram grandemente o padre.

As condições serão ditadas pela sua consciência, Padre Albertus, que é bem mais delicada e justa do que a minha.

O Padre Albertus não retribuiu o sorriso do comandan­te. Limitou-se a levantar-se, a vestir a velha capa e a ma­nifestar a sua gratidão:

Muito obrigado, meu filho. Vejo que nos compreen­demos um ao outro. Já fez mais do que eu esperava, ainda que seja menos do que eu desejaria. Sei que estou diante de um homem justo e generoso. Vou rezar para que muito em breve faça as pazes consigo próprio.

Karl Adalbert Fischer ainda se encontrava nos porões do Hotel Sonnblick, deitado numa cama de campanha e olhando pensativamente para o teto. O quarto não passava de um compartimento de cimento nas fundações do edifício, com paredes nuas e cinzentas, uma porta e uma lâmpada no meio do teto. Os únicos móveis eram a cama, uma mesa, um banco e uma bacia. O compartimento não tinha janelas, e o único som que lhe chegava era o ruído surdo dos passos do guarda que estava de serviço no cor­redor. O isolamento de Fischer era tão completo como se houvesse sido levado para outro planeta.

A situação, porém, não o preocupava muito. Tinha conforto suficiente e não sentia frio nem fome. As acusa­ções proferidas contra ele eram apenas formais, difíceis de manter na atmosfera mais compreensiva de um tribunal civil. Perdera a sua posição, era verdade, mas mesmo isso era es­tranhamente reconfortante para um homem que vivera entre intrigas e a roupa suja da ilegalidade durante tantos anos.

O que mais o preocupava era o sobrinho. O rapaz en­contrava-se num estado terrível, tanto física como mental­mente. Quaisquer novas pressões poderiam causar-lhe a lou­cura permanente e completa. Naquele momento já devia es­tar preso, possivelmente nas mãos dos interrogadores, como sucedera com ele próprio. Johann deixara de ter quem pudesse ajudá-lo, visto que Karl Adalbert Fischer já não possuía o menor poder para ajudar quem quer que fosse.

Ou estaria enganado?

Um novo pensamento cruzou-lhe a mente, uma nova esperança tão frágil como os primeiros rebentos da pri­mavera. O pensamento amadureceu no seu espírito expe­riente, e, mais tarde, Karl Adalbert Fischer levantou-se e foi bater à porta, exigindo que o levassem imediatamente à presença do comandante.

Este recebeu-o com uma ironia cortês, oferecendo-lhe uma cadeira e uma xícara de café, e, a pedido do próprio Fischer, Hanlon disse a Johnson que os deixasse a sós.

Então, Fischer, diga-me o que o levou a pedir-me uma audiência começou o comandante ironicamente.

Quero negociar uma troca com você, meu amigo.

Não é possível. A recusa de Hanlon fora firme e seca. Já não tem crédito para fazer negociações, Fischer.

É verdade que o meu crédito está quase esgotado, mas ainda me resta algum. Fischer recostara-se na ca­deira, instalando-se mais confortavelmente e continuando a falar numa voz calma e também um pouco irônica. — Encontra-se numa situação difícil, tenente-coronel. Mais di­fícil do que antes, agora que Winkler morreu. Eu, ao con­trário, nada mais tenho a perder. Estamos empatados, não vê?

Que espécie de troca quer me propor?

Disse-me um dia, já há muito tempo, que gostaria de transformar esta vila num "exemplo de cooperação". Lembra-se? "Um exemplo para o resto da Áustria." Nunca conseguiu realizar essa ambição, meu caro tenente-coronel, por não ter sabido ou podido puxar os cordéis necessários. Já perdeu todo o contato com a população, e tudo o que tem agora são dois mártires, o meu sobrinho e eu, a provarem o seu insucesso. Esse insucesso será ainda mais visível quando formos julgados em tribunal.

Fischer calou-se durante alguns segundos, fazendo uma pausa para que Hanlon apreendesse bem o que ele estava insinuando. O comandante não fez qualquer comentário, e o antigo chefe de polícia retomou o fio da meada:

Não me importo com o que possa suceder-me. Sei muito bem o que vou dizer durante o julgamento. É mesmo possível que o resultado me seja favorável e que eu ganhe novo prestígio. O caso do meu sobrinho é, porém, muito diferente. Já sofreu bastante, pobre-diabo! Não quero que ele volte a ser crucificado. Sei que não tem outra coisa a fazer senão acusá-lo e levá-lo a julgamento. Sei também que um pedido seu de clemência o ajudaria muito. Nada mais lhe peço. Creio poder oferecer-lhe boa paga por isso.

O que me oferece, então, se eu pedir clemência ao tribunal?

As chaves desta vila. A história privada de cada um dos seus habitantes. Os conhecimentos que conservaram um incompetente como eu durante quinze anos no cargo de chefe de polícia. Julgo conhecê-lo bem e saber que aquilo de que mais precisa é... poder! Estou pronto a entregar-lhe esse poder, todo ele escrito num livro. Merece o preço, acre­dite-me. Levei quinze anos a escrevê-lo.

E onde se encontra esse livro?

Está escondido. Prometa-me que ajudará o meu so­brinho e eu lhe direi onde se encontra o livro. Fischer calou-se durante um momento e seus olhos brilharam mali­ciosamente. É tentador, não é?

O rosto de Hanlon permanecia impassível, os seus olhos pareciam velados, mas o cérebro fervia-lhe de excitação. Fischer voltara a cometer um erro, e esse erro talvez se transformasse no começo de uma vitória maior.

E se eu o atraiçoar depois de me entregar o livro?

Fischer abanou a cabeça e sorriu.

Conheço-o demasiado bem para não pensar numa coisa dessas. Acreditarei absolutamente na sua palavra.

Aceito a sua proposta disse Hanlon, fria e cal­mamente.

Mark Hanlon olhou para Fischer, e este compreendeu que o comandante lhe sorria estranhamente um sorriso que lhe causou um súbito pavor e lhe esfriou o anterior entusiasmo. Fischer percebeu, então, que dera a sua última estocada, que baixara o escudo e que estava à mercê da espada do invasor.

Hanlon levou cinco horas escrevendo o relatório que enviaria a Klagenfurt, acabando-o somente pelas sete horas da noite. O relatório era uma pequena obra-prima como exposição concisa dos acontecimentos e minuciosa avaliação das possibilidades políticas, e terminava com uma recomen­dação que ele esperava ser do agrado das autoridades ingle­sas, que sempre preferiam um compromisso viável a uma decisão dramática entre duas alternativas.

"... Encontramo-nos, pois, num grave dilema. Se pro­cedermos contra Johann Wikivill, teremos também forço­samente de proceder contra os assassinos de Winkler. Se citarmos um, e não os outros, o nosso crédito como admi­nistradores imparciais ficará destruído. Se levarmos ambos os casos a tribunal, encontrar-nos-emos em oposição às sim­patias de um grande número de núcleos muito poderosos. O tribunal pronunciaria, com toda a certeza, uma sentença bastante benévola, e não faltariam propagandistas que se aproveitariam do acontecimento para comentá-lo e criticá-lo tanto na imprensa ocidental como na russa. Nós, por nossa vez, poderíamos perder muito com esses casos, e nada ga­nhar por levá-los a julgamento. A minha recomendação é que ambos sejam abafados e resolvidos discretamente segun­do o critério do comandante local. Os pacientes dos campos de concentração encontram-se sob guarda, e Johann Wikivill está entregue a um velho padre daqui, homem discreto e com um passado notável na Resistência. Este padre aconselhar-se-á com os médicos locais sobre o tratamento a seguir com um caso mental tão difícil. Estou convencido de que Wikivill não voltará a causar qualquer comentário na imprensa, e, com o afastamento de Karl Fischer, um homem ineficiente e intrigante, já consegui remodelar a polícia e nomear um novo chefe muito mais cooperador, sem sofrer quaisquer censuras da parte do governo provisório austríaco. Espero que con­cordem com estas minhas recomendações e confirmem os meus poderes de decisão em ambos os casos."

Mark Hanlon assinou o seu nome, dobrou a carta, meteu-a num envelope e lacrou-a, pronto a mandá-la para Klagenfurt pelo primeiro correio.

Tivera um dia estafante. Agora Hanlon não pensava em nada mais senão no banho, num cigarro e num jantar com Traudl no Café Zigeuner.

O telefone interrompeu-lhe esses agradáveis pensa­mentos.

Hanlon, comandante da Ocupação disse ele, ao atender à inoportuna chamada.

Tenente-Coronel Hanlon? Fala Sepp Kunzli.

Sim. Muito boa tarde. Que deseja de mim?

Agradecer-lhe-ia muito que me ouvisse sem inter­rupções durante alguns minutos.

Diga o que deseja.

A minha sobrinha foi jantar com os Holzinger. Dormirá em casa deles esta noite. A minha governanta foi visitar a mãe. Estou absolutamente só...

Mark Hanlon franziu o sobrolho, mas nada disse. A voz fria de Kunzli continuou a falar.

Creio que sente um certo afeto pela minha sobri­nha, ou, pelo menos, deve-lhe alguma gratidão...

Sim, mas não compreendo...

Por favor, tenente-coronel, não interrompa. Confio, por conseguinte, em que seja muito gentil para com ela durante os próximos dias. Os seus investigadores trabalha­ram bem, tenente-coronel. Mais uma semana e terão desco­berto quase todos os bens expropriados que passaram pelas minhas mãos. Será então forçado a proceder contra mim, e tenciono evitar-lhe esse aborrecimento. Vou me suicidar dentro de poucos momentos.

Pelo amor de Deus, homem!

Não tente impedir-me, Hanlon. Os seus homens não teriam tempo de chegar aqui antes de eu estar morto. Deixo-lhe todos os meus papéis em ordem. Deixo também algum dinheiro a Anna, e peço-lhe que me acredite quando lhe afirmo que tudo o que deixo é legítimo e é parte da minha fortuna pessoal, que nunca foi afetada pelas minhas atividades ilegais. Gostaria de poder contar com você para que Anna receba essa herança sem qualquer dificuldade.

Pode confiar em mim. Mas ouça, Kunzli, não faça essa loucura. Não pode...

Pelo contrário, Hanlon, a minha morte é o ato mais são que terei cometido. Vou poupar aborrecimentos a muita gente, até a mim próprio. Ainda virá a agradecer- me. O seu pagamento poderá ser uma grande gentileza e carinho para com Anna. A voz de Kunzli calou-se durante uns escassos cinco segundos e, depois, voltou a ouvir-se com a mesma frieza e indiferença anterior.

Acabei de tomar uma cápsula de veneno. Espero estar morto dentro de três minutos.

Kunzli! Ouça-me! Por favor!...

Adeus, Hanlon!

O comandante percebeu que o telefone já não estava ligado e ficou então a olhá-lo estúpida e desesperadamente, até que se levantou e se dirigiu para o corredor, em busca do Capitão Johnson.

 

                                                           Capítulo 16

Sepp Kunzli foi enterrado no dia seguinte, no cemitério luterano. A urna foi levada por quatro camponeses, e as únicas pessoas presentes à cerimônia, além daqueles, eram Holzinger, Hanlon, a governanta de Kunzli e Anna.

A jovem começou a soluçar quando a urna desceu à terra, e Hanlon apertou-lhe a mão carinhosamente a fim de reconfortá-la. Quando a cerimônia terminou, o coman­dante levou Anna a dar um passeio pela avenida florida, onde os pássaros cantavam nas árvores e as crianças brinca­vam nos tapetes de relva dos jardins.

Anna estava muito calma, como se houvesse antecipa­do a tragédia e se tivesse preparado para ela muito antes.

O tio era um homem frio e muito infeliz, Mark. A sua vida continuava muito vazia. Talvez tenha sido melhor assim.

Hanlon sentia uma grande piedade por ela e uma grande admiração pela sua coragem, embora não encontrasse pala­vras para dizer o que lhe ia na alma.

Que vai fazer agora? Onde pensa viver?

Para onde poderia eu ir, Mark? Tenho a minha casa. Tenho o meu trabalho em Quellenberg.

Não ficará muito só?

Estou habituada à solidão. Se fosse para outro lugar, sei lá para onde, ainda me sentiria mais só. Aqui, pelo menos, tenho alguns amigos.

Sentiria imenso prazer em ajudá-la, se me permi­tisse, Anna.

Já me ajudou muito, Mark. Tudo teria sido muito pior, acredite-me, se não fosse a sua intervenção. Não fui obrigada a ocupar-me das formalidades, poupou-me muitas preocupações e aborrecimentos.

Nada. tem a agradecer-me: isso tudo não passou de rotina oficial.

E você, Mark, é um oficial muito eficiente, não é?

Depende — respondeu Hanlon, sorrindo ligeira­mente. — Tenho grandes dúvidas sobre isso!

Herr Holzinger diz que é, e Traudl também. Ela trabalha com você durante todo o dia, não é verdade? Deve saber o que diz!

O rosto de Anna estava voltado para o outro lado, e Hanlon não conseguiu perceber se essas palavras haviam sido ditadas pela inocência ou pelo ciúme. O comandante encolheu os ombros e mudou de assunto.

Se precisar de alguma coisa, a qualquer hora, seja de dia ou de noite, venha logo falar comigo.

Por favor, Mark... não falemos mais nisso. Venha cá... quero mostrar-lhe uma coisa.

Hanlon e Anna encontravam-se perto de um bosque, e a jovem conduziu-o à um pequeno recanto onde havia um banco de pedra e uma bacia de azulejo de que os pás­saros se serviam para se alimentar no inverno. Anna pediu a Hanlon que se sentasse no banco e, em seguida, reuniu as migalhas e os grãos que estavam espalhados pelo chão, ao mesmo tempo em que acenava aos pássaros que saltitavam nos galhos como se quisesse chamar a atenção deles.

Fique bem quieto — disse Anna. — De outra forma não virão!

Anna deu um passo atrás e começou a assobiar, imi­tando perfeitamente o melodioso trinado das avezinhas. Em poucos segundos, os pássaros desceram das árvores e come­çaram a esvoaçar em redor da moça. Ela estendeu as mãos, com as palmas viradas para cima, e as aves não tardaram a perder o medo e a pousar nos seus ombros e nos seus pulsos, bicando os grãos e as migalhas que ela lhes oferecia enquanto Mark Hanlon, admirado, observava a cena com verdadeiro prazer.

Anna despertava-lhe uma paixão maior do que Traudl. A sua inocência, porém, era uma barreira que ele não se atrevia a ultrapassar. Não lhe era possível dizer galanteios habituais, fazer a corte a uma moça tão inocente. Mark Hanlon estava convencido de que se sentia apaixonado e de que nunca amara tanto. A recordação daquele momento ficaria para sempre: uma jovem sonhadora, de rosto voltado para o sol, com as aves a esvoaçarem à volta das suas mãos e as asas formando uma auréola em redor da sua cabeça dourada!

Os pensamentos de Traudl sobre o mesmo assunto eram bastante mais prosaicos do que os de Hanlon, e ela não re­ceou manifestá-los logo após o regresso do comandante ao Hotel Sonnblick.

A pequena Fráulein Kunzli ficou bem instalada na vida. Tornou-se completamente independente. Possui uma boa casa e, com certeza, também um rico dote. O homem que casar com ela terá muita sorte.

Não creio que se case tão cedo — redargüiu Hanlon com irritação. O comandante estava cansado e sentia-se pou­co à vontade sob o olhar curioso de Traudl.

Por que não? Já está em idade de se casar. É bonita e tem o corpo muito desenvolvido. Não me diga que ainda não reparou...

Não sou muito observador.

Deve ser muito distraído disse Traudl suave­mente, ao mesmo tempo em que lhe passava a mão pelos cabelos. Anna está apaixonada por você... ou também vai me dizer que não sabe?

Tenho estado demasiado ocupado para reparar nes­sas coisas — redargüiu Hanlon, irritado e enfurecido com as insinuações de Traudl. Um motim, um assassínio, um suicídio e três prisões... tudo em dois dias! Como posso interessar-me pelos amores de uma jovem?

Isso não o impediu de se interessar por mim.

Você é diferente.

E como sou eu, Schatz?

As mãos de Traudl tocaram levemente nas faces de Hanlon. Seu perfume excitava-o, e, num súbito impulso, Hanlon abraçou-a e beijou-a quase no mesmo instante em que Johnson abria a porta e entrava no gabinete.

Johnson riu e soltou uma exclamação de alegria.

Que encantador! Este é o dia mais feliz dos últimos tempos. O comandante é humano, afinal de contas! Quando é que vocês se casam?

Hanlon corou, irritado e muito embaraçado, mas re­compôs-se depressa. Nada podia fazer para evitar os comen­tários de Johnson. O melhor seria corresponder à boa dispo­sição do oficial. Traudl empertigara-se, a cabeça erguida com orgulho e a mão pousada no ombro de Hanlon, num gesto de posse. Hanlon libertou-se dela e piscou o olho a Johnson.

Feche a porta, Johnny. Sirva as bebidas. Parece-me que estamos todos necessitados de um bom gole.

Johnson encheu os copos e os três começaram a beber, entreolhando-se um tanto envergonhados.

Ao amor! disse Johnson.

Prost! — redargüiu Mark Hanlon.

Traudl desejaria fazer um brinde muito especial, mas, como era uma mulher inteligente, preferiu guardá-lo para si. Foi Johnson quem salvou o dia com o despreocupado resumo de como ele via aquela aventura:

Estou muito contente por verificar que vocês che­garam a um acordo! Mark tem andado muito maldisposto e tem-se tornado mesmo insuportável. Só trabalho e nenhu­ma folga transformaram o tenente-coronel numa pessoa mui­to aborrecida!

Não quero que fale nisso a quem quer que seja, Johnny! respondeu Hanlon.

Johnson encolheu os ombros.

Quem sou eu para espalhar boatos, quando há tantos outros que podem fazê-lo? Não vejo, de resto, que mal possa haver nisso.

Temos de pensar na reputação de Traudl...

Na minha reputação! exclamou Traudl. Eu desejaria anunciar o fato a toda a montanha. E é isso mesmo que farei... aos gritos!

Não! disse Hanlon firmemente. — Lembre-se de que sou casado e de que nos encontramos numa situação política muito complicada. Quanto menos se falar de nós, melhor. Ouviu, Johnny? Já sabe que não podemos nos arris­car a ser criticados pela população ou pelos nossos superiores.

Muito bem, tenente-coronel.

O tom de voz de Johnson fora tão formal que os três começaram a rir, e isso pôs termo àquele momento de em­baraço.

Hanlon não tinha a menor intenção de se deixar levar a uma aventura amorosa em grande escala, e era uma sorte para ele que Traudl não quisesse ir além da rotina do na­moro sem uma proposta firme de casamento. Ela era tão apaixonada como Hanlon e tivera os seus encontros passa­geiros com jovens do Reichswehr, mas agora outras ambições a tomavam: queria um casamento que a levasse para fora daquela terra vencida, para a vida confortável do Ocidente. As barreiras que a impediam de triunfar eram várias: a mulher de Mark, a pouca vontade dele em se comprometer, a sua posição como comandante de Ocupação. Essas barrei­ras não eram intransponíveis, mas Traudl teria de agir com muito cuidado, não fosse Mark assustar-se e fugir-lhe de vez!

Mark Hanlon e Traudl Holzinger passaram a viver momentos muito agradáveis e íntimos na companhia um do outro, durante o trabalho, e as horas de lazer eram interrom­pidas por deliciosos momentos de paixão que os iam aproxi­mando mais e os levariam fatalmente ao último abandono. Os dois namorados submetiam-se às conspirações amigáveis de Johnson, aceitando-as sem discussão, quando tentava for­çá-los a aparecer juntos em público, e Hanlon, ante os ataques incessantes de Traudl e de Johnson, já começava a ceder.

Traudl e Hanlon, durante aqueles últimos dias, foram obrigados a trabalhar até muito tarde devido à imensa documentação acumulada com o caso Kunzli. Iam depois jantar e dançar no Café Zigeuner, e, em seguida, já tarde, passeavam de jipe pelas estradas tortuosas da montanha. Costumavam separar-se no portão da casa de Holzinger, e Hanlon ia então deitar-se para continuar a estudar o livro de Fischer, que continha todos os pecados de Bad Quellenberg.

O livro fascinava-o. A vida secreta da vila estendia-se à sua frente como se fosse o avesso, sujo e empoeirado, de um tapete tecido de mentiras, ilegalidades, adultérios, inces­tos e corrupções políticas. Todos os homens, mulheres e até crianças de Bad Quellenberg tinham uma página naquele estranho e terrível livro. Os seus êxitos públicos mistura­vam-se com as suas faltas e erros pessoais. Hanlon sentira, de início, uma certa vergonha ao ler aquelas informações tão confidenciais, mas não tardara a deixar-se fascinar pelo seu real interesse.

Aquilo, como Fischer dissera, era a essência do poder: conhecer os pecados de todos e o preço pelo qual eles po­diam ser comprados. O livro era um talismã, uma lâmpada de Aladim. Bastaria abrir uma página para que um dos vereadores lhe pagasse uma fortuna. A página seguinte faria com que a filha acorresse à sua cama. Só teria de apontar para esta ou aquela linha para que uma dúzia de seres huma­nos fizesse tudo o que ele desejasse, por mais degradante que isso fosse!

Holzinger também figurava no livro: um homem bom, mas fraco, procurando um traço de união entre a sua cons­ciência e o seu conforto, nunca tendo a certeza de haver sido enganado pela mulher ou de ser ou não um imbecil.

Fischer, porém, tinha a certeza. O antigo chefe de polícia dera ouvidos aos boatos que corriam pela vila e fora a Hamburgo buscar a confirmação de que Liesl vivera com um oficial inglês e esperava uma criança quando o marido regressara da guerra.

Traudl também tinha a sua página naquele livro acusa­dor. Os seus amantes nazistas estavam enumerados cuidado­samente: um tenente, um outro oficial de Viena, um piloto da Luftwaffe, que prometera casar-se com ela e que não voltara a aparecer. A geografia das paixões de Traudl era muito meticulosa: os abrigos da montanha, os quartos de hotel e todos os outros recantos do vale onde ela se entre­gara a este ou àquele homem haviam sido anotados com o mesmo cuidado com que Fischer indicara o número de vezes que ela se dera a esses homens.

Aquela escandalosa crônica impressionou terrivelmente Mark Hanlon. Era verdade que Hanlon não amava Traudl, mas sentia uma grande amizade por ela e uma enorme fasci­nação pelo seu corpo sensual. A impressão que sofrera de­pressa se transformou numa vergonha indescritível. Quem era ele, afinal, para estar ali lendo as mais íntimas memórias de uma amiga?

Estranhava também ter lido toda aquela página sem sentir o menor ciúme, mas logo apreendeu o significado do fato. Não havia razão para ciúme. O passado de Traudl pertencia-lhe ainda mais do que o seu presente. Traudl, como todos os outros habitantes de Bad Quellenberg, estava em seu poder.

Fischer pagara caro pelo que poderia ter conseguido sem qualquer pagamento. Entregara-lhe as chaves da vila. Transformara Mark Hanlon no senhor de Quellenberg e de todos aqueles que lá viviam. Todos, não. Existiam alguns inocentes, e também outros que eram ignorantes e incapazes de pecar. Esses eram os mais simples, que nasciam, amavam, casavam, tinham filhos e, depois, morriam humildemente sem saber a grandeza que representavam. Esses encontravam- se para além da malícia — como o Padre Albertus, respeita­do por todos; como Anna, que ele amava e sabia não poder namorar.

Esses, os simples e inocentes, faziam com que Mark Hanlon se envergonhasse daquele seu desejo de poder e de autoridade. Foram eles, as suas imagens no espírito de Hanlon, que o obrigaram a fechar o livro e a encerrá-lo no cofre, de que só ele possuía a chave.

Uma noite, poucos dias após a morte de Sepp Kunzli, o comandante foi visitar Reinhardt Huber. Acabara de receber de Klagenfurt uma pequena encomenda de medicamen­tos e queria ter o prazer de entregá-los pessoalmente ao amigo.

O rosto de Huber iluminou-se com a alegria que o pre­sente lhe causara. O médico insistiu com Hanlon para que tomasse uma xícara de café e bebesse uma garrafa de Schnapps, e os dois homens conversaram, beberam e fuma­ram durante bem uma hora. Quando Hanlon saiu, já eram nove horas.

A rua estava deserta. Os quelembergueses já se encon­travam em casa jantando, e os refugiados não tinham ordem de sair desde a morte de Winkler. Os soldados ingleses bebiam nos Stüberls, passeavam com as namoradas nos bos­ques ou então dançavam alegremente no Café Zigeuner.

Subitamente, para lá de uma esquina da rua onde se encontrava, Hanlon ouviu um grito de mulher — um grito de terror e de pânico. O comandante começou a correr, rápida mas silenciosamente. A rua estreitava-se e virava, quase em ângulo reto, para a vila velha, onde as fachadas das lojas se ocultavam nas sombras das arcadas.

Foi só então que Hanlon os viu: uma mulher indefesa encostada a um pilar de pedra e um homem segurando-a com um braço à volta do seu pescoço, enquanto, com a outra mão, tentava rasgar-lhe o vestido. O homem ouviu os passos apressados de Hanlon e, soltando a moça, começou a correr na direção oposta. A mulher entretanto caíra no chão, e, quando Hanlon se aproximou para ajudá-la a levan­tar-se, verificou que se tratava de Anna Kunzli.

Anna perdera os sentidos, e Hanlon carregou-a e co­meçou a caminhar na direção da Casa da Aranha. Ela, po­rém, voltou a si quando ainda se encontrava nos seus braços e, trêmula e confusa, disse-lhe o nome do atacante e descre­veu-o da melhor forma que lhe foi possível. Quando chega­ram à casa de Anna, e depois de a governanta tomar conta dela e de deitá-la, Hanlon sentou-se à secretária que fora de Sepp Kunzli e telefonou a Johnson.

— Quero que me encontre um homem, Johnny. Chama-se Anton Kovacs e é um dos doentes do Bela Vista. Telefone a Miller para conseguir uma descrição completa dele. Dê uma busca em toda a vila, utilize todos os soldados e mesmo a polícia, se isso for necessário, mas encontre-me esse homem ainda esta noite.

E, depois de encontrá-lo, que deseja que eu lhe faça?

Prenda-o... e não tenha a mínima delicadeza com ele. Encerre-o nos porões.

De que o acusa?

De tentativa de violação.

Meu Deus! Quem é a moça?

Anna Kunzli.

Johnson soltou um assobio de surpresa.

Há alguma testemunha?

Eu.

Esteja descansado, Mark. O homem será encontrado ainda hoje. A que horas tenciona voltar para cá?

Não sei. Estou na casa de Kunzli, se precisar de mim para alguma coisa.

Muito bem, Mark... já ia me esquecendo... Traudl telefonou e queria...

Traudl que vá para o diabo. Ponha-se a caminho, Johnny!

Vou já!

Wiedersehen.

Mark Hanlon desligou o aparelho e ficou sentado com a cabeça mergulhada nas mãos e o olhar fixo na superfície polida da secretária. Estava irritado, cansado e desanimado. Já perdera quase todas as suas ilusões. Os cínicos é que pro­vavam ter razão. O seu idealismo cego era uma loucura e mesmo uma ficção. Fischer avisara-o de que os refugiados trariam consigo violência e ataques às mulheres da vila. Isso já acontecera. Huber tentara fazer-lhe ver que um homem não podia ser ao mesmo tempo um bom administrador e um amigo incondicional da população. A prova de que isso era verdade encontrava-se nas páginas do livro de Fischer. Como seria possível amar aqueles traiçoeiros e desleais ani­mais descritos no livro? Esses seres só poderiam ser domi­nados por meio da força e da esperteza. Queriam sobreviver de qualquer forma e a todo custo. Só pensavam em espezi­nhar os fracos, seduzir os fortes e aproveitar-se de tudo o que pudessem, e, se possível, sem pagar.

Johnson tivera também razão quando rira por ele ter se comprometido. Era verdade que Hanlon se envolvera na vida de Quellenberg, mas não muito. Era ainda verdade que procurava o poder, mas não estava, disposto a praticar as brutalidades necessárias. Queria amor, e, apesar disso, per­dera o seu tempo com um namoro quase juvenil. Hanlon não era um solteirão satisfeito nem um alegre folião. O que ele queria era o que havia de melhor em ambos esses mundos, e, afinal, ficara com o pior de cada um deles. O comandante continuava a lamentar a sua sorte, arrependido dos erros que a sua consciência o obrigava a cometer, quando a governanta veio informá-lo de que Anna desejava vê-lo.

Hanlon encontrou-a deitada na mesma cama em que ele dormira durante a doença. Anna estava pálida, com olheiras; as manchas negras já começavam a se notar na pele muito branca do pescoço. Hanlon sentou-se na cama e curvou-se para beijá-la levemente. Anna abraçou-o e começou a soluçar.

Mark! Mark! Foi você quem me salvou! Não apa­receram outras pessoas... Só você!

Mark Hanlon abraçou-a também, reconfortando-a com palavras carinhosas, até que ela se acalmou e parou de cho­rar. Depois, afastando-se um pouco, limpou-lhe as lágrimas e compôs-lhe as almofadas, para que ela pudesse encostar-se melhor.

Foi um pesadelo, Liebchen — disse-lhe Hanlon, de­pois de observá-la com amor e ternura durante alguns segun­dos. — Já passou. Não voltará a acontecer.

Anna abanou a cabeça.

Foi horrível, Mark! O homem parecia um animal. Sinto que nunca mais voltarei a ser a mesma.

Não mudou, Anna. É a mesma garota de sempre, bela e pura.

Acha que sou bela, Mark?

Muito, muito bela, Liebchen.

Beije-me, sim?

Hanlon curvou-se e beijou-a muito de leve nos lábios.

Assim não, Mark. Já não sou criança. Sou uma mu­lher. Quèro sentir-me como uma mulher. Amo-o tanto!

Eu também a amo, Anna.

Beije-me, então, mais.

Anna voltou a abraçá-lo. Os seus lábios encontraram-se, e ela obrigou-o a celebrar todos os doces rituais do amor, como se só as mãos dele pudessem torná-la de novo pura e só o seu corpo pudesse fazê-la despertar do pesadelo que a atacara.

O quarto já estava cheio de sol quando eles acordaram pela manhã. A governanta sorriu, feliz, ao servir-lhes o des­jejum no terraço, e, quando os dois amantes olharam à sua volta, o mundo parecia diferente e mais jovem, como se a primavera houvesse nascido pela segunda vez nas encostas verdes da montanha.

Traudl Holzinger, quando ouviu a notícia, fez troça de Hanlon.

Pelo amor de Deus, Mark! Pensava que você tivesse mais juízo. Essas virgens apaixonadas são todas iguais. São brancas como o leite, macias como a manteiga e tão inocen­tes que querem tudo. Querem todo o carinho do mundo e seis semanas mais tarde queixam-se de que estão grávidas. Os homens são tão estúpidos!

Não é assim, desta vez, Traudl.

Nunca é assim, Schatz, até elas começarem a exigir o casamento! Vai ver que tenho razão! Dou-lhe dois meses, e, depois disso, voltará para mim com uma indigestão de doçura!

É pena que pense assim, Traudl. Vou casar-me com ela.

Não casará... tenho certeza! — redargüiu Traudl, soltando uma gargalhada forçada.

Hanlon ficara impressionado com a coragem que ela mostrava ter e falou-lhe gravemente:

Johnny está apaixonado por você, sabia?

Traudl encolheu os ombros, num gesto triste e resig­nado.

Johnny ainda não passa de um rapaz, Mark. É pos­sível que eu venha a fazer dele um homem. Não se preocupe comigo, Mark.

Traudl curvou-se sobre Hanlon e beijou-o nos lábios, mordendo-o até fazer correr o sangue e até que ele a afas­tasse.

Isto é para você lembrar-se de mim. Estou conven­cida de que vai fazer um disparate, mas desejo-lhe muita sorte... Entretanto... — Traudl tornou-se muito séria suponho que já não precisará dos meus serviços.

Gostaria muito de conservá-la aqui... se estivesse disposta a isso disse Hanlon, pouco à vontade. O caso não é para tanto. Continuarei a precisar de uma secretária.

Não precisa apenas de uma secretária, Mark — dis­se-lhe Traudl, maliciosa e ironicamente. Necessita de al­guém que lhe ensine como é a vida, e eu devo ser a única pessoa capaz disso. Conte com os meus serviços!

E Traudl Holzinger continuou a trabalhar para o co­mandante: e foi uma secretária eficiente e uma observadora sardónica da loucura desse novo romance de amor.

A primeira resposta do quartel-general em Klagenfurt sobre os dois assassínios chegou-lhe no dia seguinte:

"O seu relatório foi recebido e encontra-se em estudo. Mantenha a posição atual, se for possível, até depois da Conferência de Viena do Alto Comando, ocasião em que lhe enviaremos as devidas instruções..."

O comandante sorriu amargamente perante aquelas pa­lavras equívocas. Ainda se encontrava no comando da situa­ção, mas, se cometesse um erro, os seus superiores nunca o perdoariam.

Mark Hanlon enviou uma cópia do telegrama a Miller e outra ao Padre Albertus, e, em seguida, cansado de tantas crises, dedicou-se à confortável rotina da administração da vila.

O comandante passava todo o seu tempo livre com Anna Kunzli, passeando pelos vales, pescando trutas no rio ou gozando o sol sobre a relva das encostas mais altas, onde as orquídeas cresciam entre os rochedos e muitas outras flo­res formavam o tapete mais vistoso de toda a região. Hanlon dormia freqüentemente com ela, na Casa da Aranha, e re­gressava ao quartel-general de manhãzinha, aquecido pelo calor do sol e pela doce satisfação que se faz sentir após o amor.

Mark Hanlon já conhecera uma mulher, aquela com quem casara. Dormira com muitas outras, numa perseguição inútil daquilo que a primeira lhe recusara. Sabia bem que o prazer era fácil de conseguir, ao passo que a satisfação era, ao contrário, muito difícil de alcançar.

Anna dava-lhe ambos, prazer e satisfação, e, também, uma nova juventude.

Uma harmonia completa ligava-os em tudo o que fa­ziam ou diziam: eram como a folha e o vento... a água e as pedras sobre as quais corre.

A paixão assaltava-os no mesmo momento, acalmavam-se ao mesmo tempo, beijavam-se e riam-se com a mesma vontade, tornando-se depois silenciosos como se todos os seus impulsos fossem comuns.

A juventude de Hanlon fora vivida num mosteiro. Es­ses dias passados haviam-lhe deixado na alma uma sensação de perda irreparável. O homem tem toda a vida para cole­cionar todos os ensinamentos e conhecimentos deste mundo, mas conta apenas com poucos anos para reunir recordações da sua primavera.

Anna Kunzli compensava essa perda, e, como agora tinha mais experiência, Hanlon sabia mostrar a sua gratidão — o que também contentava Anna.

Mas, contudo, à medida que as semanas passavam, um elemento de desagrado começou a mostrar-se na doçura da­quele idílio. Mark Hanlon e Anna haviam falado muito, de início, da possibilidade do divórcio e do seu eventual casa­mento, mas quanto mais falavam nesses, problemas mais difi­culdades surgiam a perturbá-los. Anna tinha uma consciência católica no que respeitava ao divórcio, e também receio das respectivas sanções morais. Hanlon sentia as mesmas dúvi­das, mas era mais velho e mais cínico, não permitindo que elas interferissem na sua vida. Anna preocupava-se de uma forma feminina, como não podia deixar de ser: pensava no destino dos filhos que viesse a ter, na segurança do casa­mento, no rompimento com a Igreja.

Essas dúvidas pouco representaram para ela, de início, visto que a paixão entre eles era demasiado forte e a segu­rança de que precisavam era obtida em cada momento que passavam juntos. A continuação, porém, trouxe consigo no­vos problemas, e Anna começou a despertar no meio da noite, sentido-se insegura e pedindo a Hanlon que a recon­fortasse e lhe desse esperança, garantias e mais carinho. Os dois amantes discutiam às vezes, mas essas zangas eram de pouca duração, e um beijo oportuno depressa as curava. As cicatrizes dessas discussões não desapareciam, contudo, e causavam uma acumulação de dúvidas, indecisões e lamentos surdos. Hanlon e Anna amavam-se, mas a segurança da posse era-lhes negada. A chama ardente do amor ameaçava perder a sua intensidade anterior. Traudl Holzinger percebia o que se passava e nada dizia...

Finalmente, uma noite, Anna encarou-o firmemente.

Mark... eu gostaria de ficar só durante alguns dias.

Se é isso o que quer...

Não se zangue comigo, Mark. Amo-o demais. Sabe bem que é verdade. Tudo o que eu desejo é que sejamos muito felizes, sempre, sempre! Mas tenho de estar só uns dias para ter certeza absoluta.

Nunca terá certeza — disse-lhe Hanlon, muito sério e compenetrado da gravidade da situação. — A vida não é assim. Nunca podemos, ter certeza dos nossos sentimentos. Nada é certo. Uma pessoa pode morrer, de repente, na rua.

Uma fábrica de gás pode explodir de um momento para outro e matar centenas de pessoas. Uma criança pode ficar paralítica sem o menor aviso. O mundo sofre o efeito das guerras, das inundações, da fome e do câncer. O amanhã é a palavra mais duvidosa. O melhor que temos a fazer é viver o dia de hoje. Devemos aproveitar o que temos e ficar gratos a Deus por nos ter dado alguma coisa.

Você saberia viver dessa forma, Mark?

Ninguém conseguiria inteiramente.

Não... É por isso que quero algum tempo para pensar, para decidir...

Decidir o quê?

Tenho de decidir se havemos ou não de continuar esta aventura. Se devemos viver o dia de hoje ou se será melhor que eu pense no futuro.

Faça o que quiser, minha querida. Eu não me zan­go tão facilmente. Quantos dias você quer para pensar bem?

Não sei. Como poderei saber? Espere até que eu lhe diga, sim, Mark?

Se você quer assim...

Quero, sim.

Mark Hanlon não voltou a falar. Levantou-se e vestiu- se. Anna não se movera, limitando-se a olhá-lo pensativa­mente.

Uma vez vestido, o comandante curvou-se sobre ela e beijou-a, saindo depois sem voltar a dizer palavra. Anna mergulhou o rosto no almofadão e começou a soluçar logo que ele fechou a porta atrás de si.

Mark Hanlon dirigiu-se lentamente para o Hotel Sonnblick, à luz pálida da lua. Post coitum omne aninial triste. O homem é o animal mais triste do mundo. O ato que lhe dá o maior prazer é também aquele que o aproxima mais da morte.

 

                                                             Capítulo 17

O Padre Albertus estava sentado numa poltrona por baixo de uma imagem de madeira de São Julião e observava as lágrimas que corriam pelo rosto de Anna Kunzli. Esta encontrava-se em frente dele, também sentada, e parecia muito emocionada. A voz compreensiva do velho padre ten­tava consolá-la, mas a tarefa era difícil e talvez mesmo im­possível:

Que quer você que eu lhe diga, Anna? Que o negro é branco, que o adultério é aconselhável, que a felicidade pode nascer de mentiras e injustiças?

Só quero que me ajude, padre. A juventude havia desaparecido da voz de Anna e ela falava como se esti­vesse esgotada pelo peso da experiência. Falou de adultério, de mentiras e de injustiças. São palavras que pouco repre­sentam para mim. Tudo o que sei é que amo Mark e que ele também me ama. O amor não é uma palavra tão feia como as que mencionou. É uma linda palavra, um belo sentimento. Como poderei eu fazê-lo compreender isso?

Compreendo perfeitamente, acredite-me, Anna.

Como é possível, se nunca amou, padre?

Julga que não? O Padre Albertus sorriu suave­mente. É verdade que não passo agora de um velho, mas já fui tão jovem quanto você e Mark. O fato de sermos padres não destrói a nossa qualidade de homens. Só a idade é que o faz. Pensa então que eu nunca senti desejo? Julga que ao pegar numa criança durante o batismo nunca desejei que fosse minha? Que julga você que ouço durante as confissões? Contos de fadas?

Não compreendo, então, o que o torna tão duro! exclamou Anna, desesperada.

Não sou duro, mas não posso alterar a verdade. Ouça, Anna... — O Padre Albertus curvou-se para ela e começou a gesticular com as mãos torturadas. Esta é a primeira vez na sua vida que você tem de enfrentar o verda­deiro significado da religião, a primeira vez que encontra as suas restrições e obrigações. Há quem pense na religião como sendo uma coisa gentil, uma fonte de consolação. Isso é verdade, mas só em parte. A outra parte é muito dura, uma pesada cruz sobre os nossos ombros.

Quem é responsável por essa dureza, por essa cruz?

Eu não, Anna, mas o Todo-Poderoso.

Não deve sentir piedade, então.

O rosto transparente do Padre Albertus pareceu perder algo da sua luminosidade. A cabeça branca curvou-se, como se ele fosse rezar.

Deus tem piedade, Anna. Tem amor, também. Foi ele quem criou os seus lábios para beijar e o seu corpo para o amor e para dar vida aos seus filhos.

E depois nega-me esse amor!

Um amor que não lhe pertence... que pertence à mulher de Mark.

Ela não quer nem Mark nem os seus filhos! Nunca os quis!

Foi Mark quem lhe disse isso?

Foi.

Como você sabe se. ele não lhe mentiu?

—- Não tem o direito de me dizer isso, padre. Eu co­nheço Mark. Nunca me mentiu sobre o que quer que fosse.

O Padre Albertus assentiu gravemente.

Não... não acredito que o tenha feito. Desculpe-me. Mark é um homem bom, mas muito infeliz. É muito difícil ser fiel a uma mulher de quem se vive separado durante anos. E é mais difícil ainda quando não existe o amor para preservar essa lealdade.

É isso que eu queria dizer, padre. Já não existe qualquer amor entre eles, e, por isso, também não existe injustiça. A vida seria terrivelmente longa para ele e para mim também. Que nos impede de sermos felizes enquanto pudermos ser?

Você é muito nova, Anna, e ainda poderia vir a ser feliz com outro homem... e com a consciência tranqüila.

Anna levantou a cabeça e fixou o olhar no rosto do Padre Albertus. Os seus olhos haviam se tornado muito frios e a boca tomara uma expressão firme e decidida.

Quero que compreenda uma coisa, padre. Decida eu o que decidir sobre este caso, só existe um homem que amo e que amarei sempre. Esse homem é Mark Hanlon!

O Padre Albertus olhou para ela durante alguns segun­dos e teve a certeza moral de que ouvira a expressão da ver­dade. Anna Kunzli era, no sentido absoluto, uma dessas pessoas que vêem tudo muito claramente, que sabem escolher friamente e que nunca modificam as suas decisões, mesmo que elas as levem à ruína e à danação. Ela não era como outras que choravam lágrimas de arrependimento e que, de­pois, só sabiam falar no casamento. Anna viera visitá-lo de boa fé, a fim de que ele a auxiliasse a tomar uma decisão irrevogável. Se ele lhe falasse naquele difícil momento, os estragos na sua alma seriam irreparáveis. O Padre Albertus fechou os olhos e rezou, como já fizera com Wikivill, para que Deus lhe desse a sabedoria de que necessitava para ajudá-la. Depois, com a maior gentileza, voltou a falar:

Não posso consolá-la, minha filha. Só posso lhe di­zer a verdade e rezar para que tenha forças para aceitá-la. Se você e Mark continuarem juntos, é muito possível que venham a ser felizes. E digo "possível" por conhecer Mark muito melhor do que você e por saber que nenhuma mulher poderá satisfazê-lo completamente. Mark é uma daquelas pes­soas que nunca deixam de procurar o paraíso perdido. Conti­nuará à sua procura até morrer, e, então, se Deus for miseri­cordioso para com ele, poderá talvez vir a alcançá-lo. Repito, Anna: é possível que venham a ser felizes. Se isso sucedesse, o preço seria a sua fé, que é a única coisa que conta quando a paixão abranda e o corpo envelhece.

E se eu o abandonar?

Você será uma pessoa solitária durante todo o resto da sua vida.

E o filho dele?

O filho dele?

Estou grávida, padre — disse Anna Kunzli calma­mente.

O velho padre não lhe respondeu. Levantou-se e apro­ximou-se da janela, ficando imóvel, um longo momento, a observar os telhados das casas da vila. Quando por fim se voltou de novo para ela, Arina viu quê os olhos do Padre Albertus estavam úmidos. A voz não lhe escondia o cansaço nem a hesitação.

Desejaria, de todo o meu coração, poder dizer-lhe que fosse feliz com esse homem e que aceitasse os filhos que ele lhe desse. Gostaria também de lhe dizer que o ajudasse a refazer a sua vida. Sabe bem como eu gosto de ambos. Penso em vocês como se fossem o filho e a filha que nunca tive.

Veria nos seus filhos a continuação daquilo que a minha fé me recusou. Mas não posso, Anna. Bateram-me e tortura­ram-me, no campo de concentração, para que eu atraiçoasse a minha religião. A voz do Padre Albertus perdera toda a sua intensidade e não passava de um murmúrio. — Digo- lhe francamente, Anna: o que passei nesse campo não se compara com o que estou sofrendo neste momento.

Anna Kunzli ficara muito impressionada com a atitude e as palavras do velho padre, mas o olhar dela continuava a acusá-lo e a sua voz não perdera nada da sua frieza:

Disse que nos amava a ambos, padre. Mas, apesar disso, condena-nos a uma morte lenta e longa, solitária e sem amor.

Não à morte, minha filha... mas à vida.

Mostre-me alguém que possa sobreviver a essa vida.

Farei o que me pede — disse-lhe ele, suavemente. Esse alguém talvez possa ajudá-la melhor do que eu.

O Padre Albertus saiu da sala e, passados poucos mi­nutos, regressou acompanhado de Johann Wikivill.

Dois dias mais tarde, Mark Hanlon foi visitado pelo Padre Albertus, que lhe entregou uma carta de Anna Kunzli. A carta era muito simples:

 

"Meu querido Mark,

Já tomei a minha decisão. Não posso continuar com você. Sei que compreenderá por quê. Amá-lo-ei até morrer. Por favor, não me procure.

Anna".

 

Hanlon leu-a em absoluto silêncio; depois, com um ges­to desesperado, rasgou-a em pedaços e atirou-os todos no cesto dos papéis.

Muito obrigado, padre disse ele, em seguida, falando ao Padre Albertus com uma cortesia exagerada. Deseja mais alguma coisa de mim?

Só quero lhe dizer que tenho muita pena de vocês dois.

Se Anna puder sobreviver disse Hanlon ironi­camente —, não duvido que eu também possa fazê-lo. Tenho uma experiência muito mais vasta do que ela.

O velho padre pareceu não ouvir a ironia, e respondeu-lhe carinhosamente:

Pretende magoar-me, Mark, e, na realidade, só se atormenta a si próprio. Não fui eu quem lhe roubou Anna. Eu me limitei a indicar-lhe o que sucederia em qualquer dos caminhos que ela podia escolher. Foi ela quem escolheu este. Espero que acredite na verdade, Mark.

A expressão irônica desapareceu imediatamente do ros­to de Hanlon, que revelou uma grande dor e um coração despedaçado. Estendeu as mãos como se fizesse um apelo desesperado.

Por que ela foi vê-lo, então? Por que ela não dis­cutiu o problema comigo? Eu não teria tentado impedir a separação. Nunca permitiria que ela fosse infeliz comigo. Sei melhor do que ninguém o que isso representa. Não o perdôo por isso.

Anna teve medo de tornar a vê-lo, Mark. Sabia que talvez tivesse de magoá-lo, e não queria fazê-lo com um beijo. Além disso, ama-o demasiado para voltar a estar nos seus braços sem recear o futuro.

Isso prova apenas que ela não tem confiança em mim... que julga que eu não a compreenderia, e que não passo de um canalha que quis se divertir.

Canalha? Que idéia extraordinária, Mark!

Que sou eu, então?

Um homem em busca do amor — disse o velho padre, muito calmo e senhor de si —, e desejando-o tanto que poderá vir a perdê-lo para sempre.

Ou sujeitar-se a que lho roubem. — A voz de Han­lon tornara-se amarga e desiludida. — Sabe que a roubou de mim, não sabe, padre?

Não a roubei, Mark — redargüiu o Padre Albertus, agora já ligeiramente irritado. — A decisão foi dela. E digo-lhe, meu filho: nunca será feliz enquanto não souber tomar decisões tão acertadas, embora cruéis, como a que ela tomou.

Mark Hanlon deu um murro na secretária. Os olhos bri­lharam-lhe de raiva e a sua voz, agora quase histérica, gritou ao velho padre.

Quer sempre demasiado em troca de quase nada, Padre Albertus! Quer tudo e não dá coisa alguma! Eu entreguei-lhe Johann Wikivill... agora também tem Anna. Se calhar também vai querer a mim!

Sou caçador de almas, Mark. — Os seus olhos bondosos iluminaram-se de uma chama ardente. — Faço o que posso para salvá-las.

E que oferece àqueles que se rendem a você, padre?

Paz, meu filho.

Paz!... — Mark Hanlon repetiu a palavra num tom irônico de desprezo.

O tenente-coronel levantou-se e começou a andar pela sala, irado e desesperado, desabafando os ressentimentos e desilusões dos últimos anos.

Paz! Recordo-me muito bem de já me ter prometido paz no mosteiro. Nunca a encontrei. Tenho encontrado, sim, orgulho e ambição, ciúme e ausência de amor. Recomendou-me que saísse do mosteiro, que fosse viajar pelo mundo. Nunca encontrei paz em parte alguma! Vim para esta vila com amor e generosidade na alma, e já sabe como fui recebido! Amei uma mulher e não fui amado. Amava os meus filhos, mas o amor deles por mim foi envenenado pela mãe. Combati numa guerra a fim de encontrar a paz depois de ela terminada. Instalei-me nesta vila. Paz? Que idéia! Só encontrei crimes de morte, violações, suicídios e... a morte do amor! Promete-me paz, padre. Onde estará essa paz? Onde?

O padre permaneceu silencioso durante um longo mo­mento. Os seus olhos piedosos estavam fixos no rosto per­turbado do antigo discípulo.

A paz está em Deus, meu filho.

Já estou velho para isso, padre — disse Hanlon, numa voz cansada e desanimada. — Já é demasiado tarde, já não posso mais lutar.

Nunca é demasiado tarde, meu filho.

Não falemos mais no assunto — disse Hanlon, e a sua voz voltou a adquirir algo da sua "firmeza. O rosto transformou-se na máscara formal e oficial. — Temos um assunto importante a tratar...

Sim?

Disse-lhe há pouco que pedia demasiado e nada ofe­recia em troca. Agora, que já tem Anna, quero que me traga Johann Wikivill.

O Padre Albertus hesitou durante um momento, não podendo acreditar naquelas palavras, e, em seguida, levan­tou-se e despediu-se formalmente:

Esteja descansado. Direi a Johann que venha visitá-lo, tenente-coronel. Auf Wiedersehen.

Auf Wiedersehen, padre.

Traudl Holzinger veio pouco depois à presença de Hanlon com a correspondência que acabara de chegar de Klagenfurt. Cumprimentou-o e começou a abrir os envelopes e a dispor a correspondência em frente dele. O comandante tra­balhava distraidamente, assinando, rubricando e separando as cartas em pequenos montes, sem dizer palavra, até que ficou com apenas duas à sua frente.

A sua expressão transformou-se logo que começou a ler a primeira dessas cartas. Mark Hanlon leu-a atentamente duas vezes e depois desatou a rir, soltando tantas gargalha­das que as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Traudl não escondeu a surpresa que aquela crise de riso lhe causava, e, notando o seu interesse, Hanlon entregou-lhe a carta com um gesto brusco.

Tome! Só faltava isto! Leia-a! Leia o que está es­crito aí!

A carta não era muito longa. Vinha do Quartel-General das Forças de Ocupação em Klagenfurt e dizia:

"As suas recomendações sobre os recentes incidentes na área de Quellenberg foram aprovadas por este quartel-gene­ral, e, segundo um acordo estabelecido com as outras nações aliadas, será proclamada uma anistia, imediatamente após as próximas eleições austríacas, para certos prisioneiros políti­cos e militares. Sugerimos que se aproveite essa anistia para resolver tanto os casos dos refugiados como o de Johann Wikivill".

Não vejo que graça isso possa ter! — Traudl de­volveu a carta a Hanlon. — Era isso que você desejava, não era?

Aí é que está a graça, minha querida. Desejava, sim... mas agora já não desejo.

Da mesma forma que já não quer Anna Kunzli.

Mark Hanlon olhou rapidamente para Traudl e notou-lhe um brilho irônico nos olhos.

Quero-a... mas perdi-a.

E agora?

Hanlon pegou a última carta que ainda: estava sobre a secretária, em frente dele, e, ao mesmo tempo, olhou para Traudl com uma expressão sarcástica no rosto:

Trata-se do meu negro destino, bela Traudl. Não se preocupe. Eu saberei me governar... Deve pedir a Johnny que a leve para casa. Já é muito tarde.

Traudl ficou olhando para Hanlon durante alguns se­gundos, um pouco ressentida mas também com certa pena dele, e depois despediu-se e saiu da sala. O tenente-coronel abriu a última carta e começou a ler:

 

"Meu querido Mark,

Levei muito tempo, talvez demasiado, a decidir-me a escrever esta carta. Só peço a Deus que compreenda as mi­nhas razões e seja bondoso para comigo.

Os nossos filhos querem vê-lo. Ouviram dizer que as famílias dos militares em serviço nas zonas de ocupação po­dem visitá-los e, mais tarde, ir mesmo viver com eles. As crianças gostam muito de você e sentem a sua falta. Já come­çaram também a ressentir-se desta longa separação.

Eu também quero vê-lo. Por favor, Mark, acredite no que lhe digo. O meu maior desejo é vê-lo, e nada mais lhe peço do que isso. O nosso casamento falhou já há muito tem­po, mas só há pouco compreendi que fui eu quem o destruiu.

Você sabia que a culpa era minha e odiou-me por isso. O seu ódio era uma arma nas minhas mãos, tal como sucedia com as crianças. Agora já não quero armas. Já não tenho defesa possível. Fui egoísta, fria e cruel. Quero pedir-lhe des­culpa. Depois disso, se ainda me quiser, quero voltar a tentar. Quero dar-lhe um pouco do amor que lhe neguei, e, se for possível, construir algo sobre os destroços das nossas vidas.

É possível que não esteja disposto a perdoar-me, e, nesse caso, não o culparei. Sempre foi um homem muito gentil e sei que continuará a sê-lo, por amor das crianças. Se quer saber o que me fez mudar tanto, ouça, porque é muito simples:

Estou mais velha e agora compreendo melhor a vida. Tenho medo de um futuro sem amor. Isto é também uma espécie de egoísmo, mas desta vez sei confessá-lo honesta­mente. Também lhe digo, com toda a sinceridade, que, se voltarmos a nos juntar, seja qual for a base dessa aliança, a nossa vida nunca mais voltará a ser o que foi.

Peço-lhe que me escreva e me diga se podemos ir visi­tá-lo, e o que teremos de fazer para isso aqui na Inglaterra.

Um dia — e Deus queira que seja dentro em breve — gostaria de poder assinar:

Sua querida mulher, Lynn".

 

Mark Hanlon pousou então a carta na secretária e cobriu-a com as mãos, encostando-se na cadeira e fechando os olhos.

Esta era, na verdade, a suprema ironia. Este era o amor que ele tanto desejara, pelo qual chegara a chorar, e que, com tanta paciência, tentara manter durante longos e negros anos. Era também esse o amor cuja recusa o afastara de casa, o lançara nos braços de outras mulheres e na persegui­ção estéril do poder. Agora, ao cabo de longos anos, era-lhe oferecido, incondicional e humildemente... e ele já não o queria!

Esse amor não possuía, agora, o menor significado para ele: era um documento escrito numa língua desconhecida, uma partitura executada com uma dissonância deplorável. O mistério intrigara-o em tempos idos: causara-lhe paixão, carinho, os mil gestos do amante apaixonado, um sentimento de culpa pela sua própria incompetência. Agora já sabia que esse mistério não existia. Só recordava o corpo de uma mu­lher cujo preço era demasiado alto; um coração demasiado vazio; um espírito egoísta que subitamente ficara aterroriza­do ao entrever a dura realidade da solidão.

Os seus filhos? Sim. Esses eram a sua outra parte, a única promessa de continuidade. Eram também o suplemen­to, as notas, sem os quais a crônica da sua existência ficaria incompleta. Não eram, contudo, o texto completo da sua vida. Eram unicamente o terceiro aspecto da trindade hu­mana: homem, mulher e filhos. Haviam nascido do homem e da mulher, mas eram independentes de qualquer deles. As crianças não podiam suplantar nem proporcionar as relações íntimas do corpo e do espírito que são o começo, o meio e o fim do amor.

Era verdade que ainda existia um elo entre ele e Lynn: o elo legal. Isso, todavia, nada tinha a ver com o corpo ou o espírito. As relações íntimas entre eles tinham terminado havia já muito tempo. O seu corpo pertencia por afinidade, senão por lei, a Anna Kunzli. O seu espírito, sem a compa­nhia do espírito de Anna, nunca mais voltaria a ser o mesmo.

Que poderia ele, pois, tentar reconstruir numa situação como essa? Um lar para os seus filhos? Mas onde não existe harmonia também não existe lar. Afeto, respeito, confiança mútua? Impossível a não ser que ambos os corações se rendessem e cada um deles aceitasse o arrependimento do outro.

Mark Hanlon pegou à carta e voltou a lê-la, muito atenta e lentamente. A sua simplicidade sensibilizava-o, mas o peso da nova decisão que a sua mulher lhe impunha en­chia-o de amargor.

Hanlon era chamado a pronunciar uma sentença numa causa em que a sua própria felicidade e a sua própria paz estavam em jogo. Tinha tudo a perder, a balança da justiça pendia para o outro lado, mas, mesmo assim, a sua consciên­cia exigia-lhe que fosse justo e misericordioso.

Havia homens e Hanlon sabia-o — que não se preo­cupavam grandemente com essas responsabilidades. A jus­tiça diziam eles pouco valia em comparação com a necessidade fundamental de sobreviver. Se a justiça e a lei não estavam do seu lado, então pensavam ainda esses ho­mens tinham de enganá-las, de destruí-las, para poderem viver à vontade. O casamento era um contrato, mas, se o contrato nada lhes oferecia, então que o casamento fosse por água abaixo!

O pior era que esses homens obtinham sempre melho­res resultados do que homens como ele, que se agarravam ao enferrujado mecanismo da justiça, mesmo depois de ele se inutilizar e deixar de funcionar.

Mark Hanlon enfrentava, uma vez mais, o problema fundamental do seu caráter e da sua educação. Precisava de amor e de paz. Mas não era cruel a ponto de destruir o amor e a paz dos outros para alcançá-los para si.

Uma palavra, uma visita, uma carta, talvez lhe trou­xessem Anna de novo, apesar das recomendações do Padre Albertus, mas Hanlon não a queria dessa forma. A reconci­liação com Lynn dar-lhe-ia uma certa segurança e criaria um lar para os filhos. Sabia bem que ficaria vazio e solitário para sempre. Mas, apesar de tudo, não tinha coragem para recusar a oferta da mulher.

Mark Hanlon ficou imóvel durante muito tempo, pon­derando atentamente a situação. Passou-se um longo mo­mento antes que as suas mãos puxassem para junto de si a caneta e o papel. Decorreram, depois, mais alguns longos minutos antes que começasse a escrever. Entretanto, o te­nente-coronel concluiu uma longa carta, mas acabou por fazer seguir simplesmente isto:

 

"Venha só você, primeiro, e então falaremos. As crian­ças poderão vir mais tarde".

Hanlon acabara de assinar a sua pena de morte. Depois de dobrar a carta e colocá-la no envelope, vestiu o casacão e foi passear pelos pinhais que rodeavam Bad Quellenberg.

 

                                                             Capítulo 18

O Padre Albertus estava jantando em companhia de Johann Wikivill. Nenhum deles tinha apetite, limitando-se a beber lentamente o vinho, no meio do maior silêncio. A paz daquele momento era preciosa para ambos. O vinho era para eles como um viático, como uma preparação espiritual, tanto para a jornada do discípulo como para a vigília soli­tária do mestre.

O rosto de Wikivill estava sombrio, mas o do padre ainda conservava a habitual luminosidade, e os seus olhos mostravam-se cheios de compaixão. Esse momento era para ele imensamente estranho. O rapaz era um filho seu que ia se encontrar com outro filho que o abandonara muitos anos antes para percorrer os caminhos tortuosos da paixão e da ambição.

O Padre Álbertus não fazia a menor idéia do que se passaria durante esse encontro. Cada um desses seus dois filhos passara pela dura disciplina do Todo-Poderoso, mas cada um deles reagira diferentemente: um pela rebelião, o outro pela submissão lenta da sua vontade. Um alcançara a paz e o outro ainda estava atormentado. O Padre Albertus amava os dois. Sentia-se ligado aos dois pela mesma pater­nidade de espírito, embora fosse possível que eles se destruís­sem um ao outro sob o seu olhar paternal. O Padre Albertus sabia que nada mais podia fazer senão confiá-los à divina mi­sericórdia e aguardar com resignação o resultado final.

A sua voz profunda interrompeu o silêncio que reinava na sala.

Não pode demorar-se mais, meu filho.

Wikivill levantou a cabeça e o velho padre notou a calma dos seus olhos distantes e a expressão decidida do seu rosto.

Estou pronto.

Você não lamenta ter de ir à presença dele, não é?

Não. Nunca duvidei de que isso viesse a acontecer.

Não deve detestar esse homem.

Durante toda a minha vida só detestei a mim mesmo.

Não deve se detestar, agora.

Bem sei. Foi isso que me ensinou, padre: a viver em paz comigo mesmo.

Tem medo?

Tenho, sim.

O velho levantou-se e foi até a janela, olhando para o vale e para a montanha, e também para as primeiras estrelas que apareciam no veludo macio do céu. Depois, voltando-se lentamente — silhueta negra na escassa luz que entrava pela janela —, o Padre Albertus voltou a falar:

Quero explicar-lhe quem é Mark Hanlon. Nada terá a recear dele, se você o compreender bem. Se for vê-lo sem medo e lhe falar com delicadeza, talvez mesmo você possa ajudá-lo.

Ajudá-lo?! — Wikivill não escondeu a surpresa que aquelas palavras lhe causaram. — Hanlon tem a minha cabeça a prêmio. Eu vou entregá-la. Depois disso, nada mais terei a dar-lhe.

A voz profunda repreendeu-o firmemente:

-— Você é um homem que, como Lázaro, caminhou no vale das sombras da morte. Sofreu a perda da sua virilidade e a destruição da sua esperança. Conseguiu sobreviver e ga­nhou uma nova esperança. É rico, nesse aspecto. Tem novas forças, nova vitalidade, que poderá gastar com esse homem que caminha, como você já fez, no meio dos mortos, para o abismo da desolação. Mark Hanlon é um homem bom, por natureza, pois tem dentro dele um grande amor, e ninguém se perde completamente enquanto não expulsar de si esse amor e a sua vontade não lhe fechar as portas. As mulheres que ele amou foram-lhe roubadas, e é por isso que ele quer se vingar em você. Pensa que o detesta, mas asseguro-lhe que não sente qualquer satisfação nisso. Mark Hanlon des­preza esse impulso, embora se agarre desesperadamente a ele. O infeliz encontra-se vazio, perdido, solitário... e ape­sar disso o seu orgulho não o deixa confessar essas fraque­zas. Esse orgulho, contudo, não é inteiramente mau, visto que o impede de abusar de um homem indefeso. Não o combata. Não o despreze. Não lhe oponha o seu orgulho. Mark Hanlon é mais pobre do que julga, e você, apesar do que aconteceu, é muito mais rico do que ele. Lembre se disso, meu filho.

Que poderei dizer-lhe?

O que o seu coração lhe indicar.

Continuo a ter medo.

Se não o tivesse, meu filho, o que você irá fazer não teria o menor mérito. O sacrifício só existe em face do risco.

Mas eu vou arriscar a única coisa que me resta: a minha liberdade. — A voz de Wikivill aumentara de inten­sidade, como se ele fizesse um apelo veemente. — Não com­preende, padre? Tenho medo das paredes que poderão me prender, das pedras que me cercarão. Matei para fugir à prisão. Agora terei de me entregar por minha livre vontade. Tenho medo de perder a coragem a meio caminho.

Essas paredes já não existem, meu filho. — O Pa­dre Albertus aproximou-se dele. — Quando você aceitou a prisão do seu corpo inválido, e se resignou, nesse momento você alcançou a liberdade completa. Não existem paredes que possam prendê-lo. Nenhuma barreira poderá separá-lo da alegria total. Acredite nisso em nome de Deus.

Acredito em Deus — disse Johann Wikivill suave­mente. — Que ele venha em auxílio da minha descrença!

Wikivill curvou-se e mergulhou a cabeça nas mãos, en­quanto o velho padre rezava e pedia a Deus que lhe desse forças naquele momento crítico. Passados poucos segundos, ergueu a cabeça. Os seus olhos estavam de novo calmos, todo o seu rosto aparentava uma paz completa. Então, levantou- se e ajoelhou-se aos pés do Padre Albertus.

Abençoe-me, padre.

O Padre Albertus ergueu as suas mãos torturadas no gesto ritual da bênção:

Vade, mi fili... Vá, meu filho! Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, vá em paz.

Mark Hanlon estava sentado, um frio intenso entrando-lhe por todo o corpo, naquele pequeno banco de pedra onde Anna costumava dar de comer às avezinhas — e pen­sava na sua situação.

O problema era bem claro. Já não lhe restava nada na vida. Perdera tudo o que amara. Tudo o que construíra se desmoronara na areia que rodeava as fundações. As suas es­peranças eram chamas de loucura, suas realizações não pas­savam de poeira no deserto do passado. O futuro era um vazio total. Não podia voltar atrás e nada o impulsionava para a frente. A progressão da vida fora suspensa, e ele havia sido tomado pela síncope: mergulhara num estado de desi­lusão em que o tempo e o movimento já não existiam.

Sentia-se incapaz de pensar coerentemente. Tudo o que lhe restava era uma série de imagens, um vasto caleidoscó­pio de pessoas e de locais — fantásticos, irreais e mesmo aterrorizadores: Willis deitado na estrada, a cicatriz no rosto do homem que o matara, a expressão de Anna nos momen­tos mais apaixonados, as mãos torturadas do Padre Albertus, os olhos frios e indiferentes de Sepp Kunzli, os segredos obscenos do livro de Fischer, Traudl nos seus braços e o movimento do seu corpo contra o dela, a fraqueza de Holzinger e a força das duas mulheres da família dele.

As imagens giravam velozmente, cada vez mais depres­sa, até que Mark Hanlon levou as mãos à cabeça e soltou um grito de terror. O corpo doía-lhe como se alguém o ti­vesse chicoteado. Seu rosto tornara-se muito pálido, e os dentes tremiam-lhe com o frio. Tinha o corpo tão gelado como a alma.

O comandante levantou-se e começou a andar pela ave­nida em direção à vila. As árvores estavam imóveis na calma do ar. O ruído da água a correr no rio incomodava-o como se fosse uma voz de pesadelo, e, quando Hanlon ergueu os olhos para o céu, viu apenas as estrelas brilhando como se troçassem dele.

A vila, quando ele a alcançou, pareceu-lhe diferente. As paredes das casas eram precipícios; suas janelas amarelas, cavernas habitadas por monstros que riam dele silenciosa­mente. Os vidros das vitrines das lojas refletiam a sua fi­gura curvada e davam-lhe o aspecto de um anão disforme.

Os arcos e as colunas da rua escondiam espectros e as máscaras dos Krampus pareciam espreitá-lo de esconderijos secretos. O grito de terror de Anna, ao ser atacada pelo vio­lador, fazia-se ouvir de novo, desta Vez na confusão da sua memória. Mark Hanlon, então, começou a andar mais de­pressa, até quase perder o fôlego e ter o corpo coberto de suor.

O guarda, à entrada do Hotel Sonnblick, olhou para o seu rosto torturado e estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a subir os degraus, mas Hanlon deu-lhe um empurrão e correu para o elevador, batendo as portas e apertando logo o botão, num último e desesperado esforço para alcançar o refúgio do seu quarto.

A náusea e o terror só começaram a passar depois de ele tomar duas ou três bebidas e de fumar lentamente um cigarro, como reação suprema à loucura passageira que o assaltara.

Foi então, quando já começava a recuperar todos os sentidos, que o telefone o fez estremecer com o seu som estridente e importuno.

O comandante estendeu a mão instintivamente e pe­gou-o. As palavras familiares que pronunciou foram ditadas mais pelo hábito do que pela vontade:

Fala Hanlon.

A voz de Jennings respondeu-lhe.

Está aqui um homem que quer vê-lo, comandante. Chama-se Johann Wikivill e diz que foi convocado.

Peça-lhe que venha ter comigo... sozinho.

Muito bem, comandante.

Hanlon desligou o telefone e sentou-se à secretária. A comédia ainda não terminara. Faltava o epílogo — amargo e duro.

Passaram-se alguns minutos, e depois Johann Wikivill entrou no gabinete e anunciou-se formalmente:

Sou Johann Wikivill. Creio que deseja falar comigo, tenente-coronel.

— Há muito tempo que desejo fazê-lo — respondeu Hanlon. — Diga-me... que razões o levaram a matar Willis?

Matei-o porque me detestava a mim mesmo.

Foi isso mesmo, com certeza! — A voz de Hanlon aumentou de intensidade. — Esplêndido! É sempre isso que sucede, não é verdade? Agora já sei o que sentiu, homem! Estou me sentindo assim neste mesmo momento! Diga-me... o que vê em mim? Que opinião formou de mim?

Julgo que se parece comigo — disse Johann, uma grande piedade imprimindo-lhe um tom muito especial à voz. — Parece cansado, doente...

Hanlon olhou para ele, rápida e bruscamente:

Já me esquecia! Você é médico. Lembro-me ago­ra... Que remédio me receita?

Só existe um que pode curar.

Qual é?

A esperança — disse Johann Wikivill, suavemente.

Hanlon sorriu.

Foi o Padre Albertus quem lhe ensinou isso, não foi? Eu sei... ele também me ensinou o mesmo. Mas existe uma dificuldade, uma grande dificuldade. Sabe qual é? Para ter esperança é necessário ter algo que se deseje: um fim, um futuro. Que espera, você, Wikivill?

Voltar a ser livre. Voltar à medicina. Empregar a minha paciência e talento em algum pobre-diabo como eu fui.

Ninguém lhe agradecerá — disse Hanlon ironica­mente. — Nunca nos agradecem aquilo que fazemos.

Eu é que estou pagando uma dívida; não quero, portanto, agradecimentos.

Tem uma dívida para comigo — redargüiu Hanlon, um sorriso amargo invadindo-lhe o rosto. — Dente por dente...

Estou aqui para pagá-la — disse-lhe Wikivill cal­mamente.

Não pode fazê-lo! — exclamou o comandante, ao mesmo tempo que pegava a carta que recebera de Klagenfurt e lhe entregava. — Leia isto!

Wikivill deu um passo em frente e pegou a carta. Leu-a cuidadosamente e depois devolveu-a a Hanlon. Os seus olhos revelavam bem a alegria que sentia, os seus lábios abriram-se num sorriso agradecido.

Parece-me que tenho agora duas dívidas para com o senhor, tenente-coronel.

Hanlon fez um gesto brusco de despedida.

Nada me deve. Saia daqui para fora!

Wikivill não se moveu, ficando a olhar para Hanlon como se procurasse palavras para manifestar a sua gratidão.

Eu cuidarei de Anna pelo senhor, tenente-coronel. Quando chegar o momento, e ainda falta algum tempo, eu próprio a auxiliarei no parto. Não quero que se preocupe com a criança, eu me encarregarei dela. Tanto Anna como a criança ficarão aos meus cuidados. Prometo-lhe.

Hanlon estremeceu, como se houvesse recebido uma pancada violentíssima. A sua voz fez-se ouvir, rouca e dis­tante:

A que se refere você? Repita-me o que acabou de dizer!

Desculpe-me — disse Wikivill, grave e seriamente. — Pensava que já soubesse: Anna Kunzli está, grávida de um filho seu.

Meu Deus! Não é possível! — A exclamação de Hanlon ecoava como um grito de desespero, como se toda a dor daqueles anos o assaltasse no mesmo terrível momento.

O tenente-coronel mergulhou a cabeça entre as mãos e começou a soluçar.

Johann Wikivill despiu o casacão e aproximou-se dele. Afagou-lhe carinhosamente a cabeça e depois murmurou-lhe palavras de conforto — como se eles fossem irmãos unidos por uma tragédia comum.

Devia ir vê-la — disse Wikivill firmemente. — O que ela lhe disse já não tem a menor importância. Vá visitá-la. Conte-lhe o que se passa com a sua mulher. Diga-lhe que a ama e o que pretende fazer por ela e pela criança. Dessa forma, não lhe ficarão ressentimentos, amarguras...

Os dois homens estavam sentados na mesma sala em que uma vez Hanlon planejara a captura do assassino. Agora bebiam e fumavam juntos, como se fossem dois velhos ami­gos. Hanlon ainda se encontrava sob a emoção que o choque lhe causara, mas a presença calma e gentil daquele homem ajudara-o a recuperar a tranqüilidade.

Não fora essa rendição que ele planejara, mas, se ela não lhe oferecia qualquer triunfo, a verdade é que também não lhe provocava qualquer arrependimento. Não passavam de dois homens, agora, conscientes de feitos mútuos e de dívidas comuns. A vergonha não se intrometia na amizade que começava a formar-se. A vergonha da vitória fora afas­tada pela dignidade da derrota. A sombra do machado do vencedor fora substituída pela sombra da cruz comum.

Hanlon curvou-se para a frente e formulou uma per­gunta difícil:

Estou preocupado por causa da criança. Que virá a acontecer-lhe? Não tem nome, não tem pai... Como poderá Anna viver aqui e...

Wikivill interrompeu-o com um gesto decidido:

Esquece-se de como é a nossa gente. Os austríacos, especialmente os da montanha, respeitam a vida... venha ela de onde vier... A criança será bem recebida e será amada. Além disso, não se esqueça, existirão muitas outras crianças como a sua nesta nossa terra, onde os homens mor­reram e as mulheres estão muito sós. Nós ficaremos muito gratos, todos nós, por esta nova promessa do futuro. Vai ver. As mulheres far-lhe-ão roupas, os lenhadores dar-lhe-ão brinquedos, as velas e as flores não lhe faltarão no batis­mo... como se se tratasse da vinda de Jesus à terra. Prometo-lhe que Anna será bem tratada e que o parto ficará só a meu cargo e de mais ninguém.

Hanlon sentia-se maravilhado com a simplicidade e a bondade de Johann.

Queria vê-lo morto, e agora...

Agora... devia jantar e, em seguida, dormir... para amanhã ir visitar Anna.

Gostaria de vê-la ainda esta noite.

Já é tarde — respondeu-lhe Wikivill. Passou um dia bastante desagradável. E a noite pode ser traiçoeira para duas pessoas que se amam.

Hanlon assentiu, esgotado e desanimado:

Bem sei... tem razão, está claro. Esperarei até ama­nhã. Mas não vá embora acrescentou Hanlon precipita­damente. Fique e jante comigo. Tenho medo de estar só.

Trata-se de uma reação natural disse Wikivill, num tom de voz profissional e grave. O espírito e o corpo têm uma certa capacidade de fadiga, e, quando a ultrapassa­mos, rejeitam tudo violentamente.

É isso mesmo o que me aterroriza. Isso é apenas o começo. Tenho o meu trabalho e ainda uma dúzia de pro­blemas pessoais para resolver. Estou tão cansado... que nem sei se poderei enfrentá-los.

Wikivill curvou-se para a frente e voltou a encher os copos, falando gravemente:

É mais forte do que pensa, sabe? Todos nós somos mais fortes do que julgamos. O que nos falta, às vezes, é um amigo em quem nos apoiarmos. Eu teria imenso prazer, acredite, se me permitisse que o ajudasse.

Hanlon sorriu-lhe.

Para pagar uma dívida?

Uma dívida, mas não ao senhor.

A quem, então?

Ao Padre Albertus disse Wikivill, levantando o copo. Prost!

Mark Hanlon estremeceu e protestou firmemente con­tra aquele brinde.

Não o acompanharei, meu amigo. Desculpe-me, mas não posso fazê-lo.

Johann Wikivill levou o copo à boca e despejou-o de um trago.

 

                                                               Capítulo 19

Mark Hanlon encontrou Anna à sua espera no jardim da Casa da Aranha: a jovem parecia uma flor colorida, com sua saia e sua blusa regionais. Anna correu para ele, à sua chegada, e o comandante ficou comovido com a expressão de alegria que lhe inundou o rosto e com as lágrimas, tam­bém de alegria, que lhe vieram aos olhos.

Os dois amantes abraçaram-se e beijaram-se, sentando-se depois num banco de pedra, debaixo da densa folhagem de uma árvore enorme. Mark Hanlon e Anna olharam-se durante longos minutos, de mãos dadas, silenciosos con­tentes com esse primeiro encontro, após os dias cruéis de separação.

O que mais impressionava Hanlon era a extraordinária inocência que a aureolava. Certas mulheres perdiam toda a frescura do rosto quando eram dominadas pela paixão. Ou­tras perdiam o bom humor e a força de vontade quando estavam grávidas. Anna, porém, continuava calma, senhora de si e imensamente natural. A nova vida que tinha dentro dela parecia dar-lhe mais força em vez de enfraquecê-la.

Mark Hanlon começou a falar, e Anna ouviu-o com a maior atenção e gravidade, encorajando-o quando ele hesi­tava e acalmando-o quando ele mostrava a ira e o ressenti­mento que lhe iam na alma. A sua gentileza era um bálsamo para ele. A sua coragem envergonhava-o, e, quando acabou de falar, Anna Kunzli puxou-o para junto de si e obrigou-o a encostar a cabeça ao seu seio, para que ele pudesse sentir as palpitações do seu coração e o agradável perfume do seu corpo.

Não se preocupe mais, meu querido disse ela, na sua voz profunda, que parecia chegar-lhe de uma grande distância. Descanse. Já me disse tudo. Não existem men­tiras entre nós. Não existem culpas nem ressentimentos. Quando o nosso filho nascer, e eu sei que será um filho, ensiná-lo-ei a orgulhar-se do pai. Quando crescer, e já estiver em idade de viajar, dir-lhe-ei que vá visitá-lo e você também se orgulhará dele.

Hanlon sentiu os olhos se umedecerem e não ousou olhar para o rosto de Anna. Ela continuara a falar carinhosa­mente, e Hanlon, com a cabeça ainda escondida no seu peito, não perdia uma única das suas palavras.

Espero que me escreva de vez em quando, depois do seu regresso à Inglaterra; eu também lhe escreverei con­tando tudo sobre o nosso filho. É mesmo possível que, um dia, se decida a vir visitar-nos, mas não quero que venha muitas vezes nem que fique muito tempo. Não creio que tivesse coragem para tê-lo junto de mim durante um longo período sem amá-lo.

Hanlon endireitou-se e olhou para Anna. O seu rosto adquirira uma expressão de desespero e desilusão:

Como você pode estar tão calma? Não tem medo do futuro?

Os olhos de Anna enevoaram-se, a voz tornou-se ligei­ramente hesitante, mas as palavras não denotavam a mínima dúvida ou hesitação:

Sim, Mark, tenho medo. Sei que despertarei no meio da noite chamando por você. Verei as outras mulheres com os seus maridos e sentirei muito a sua falta. Mas saberei resistir a esse pesadelo, justamente por amá-lo e por saber que esta é a melhor solução para nós dois.

Quem me dera poder pensar como você, Anna!

Anna tocou-lhe levemente no rosto:

Também pensa assim, Mark; do contrário não teria escrito à sua mulher para que venha ao seu encontro.

Foi um sacrifício enorme... senti que era minha obrigação fazê-lo, e isso despedaçou-me o coração!

Depressa se curará, meu querido, e, um dia, ambos despertaremos deste estado em que nos encontramos para descobrir que temos de novo paz na nossa alma. — Anna levantara-se e estendera a mão a Hanlon, talvez para escon­der a emoção que sentia. — Venha passear pelo jardim, Mark, como fazíamos antigamente.

O sol estava muito quente, e o ar, cheio da fragrância dos pinheiros e do trinado dos pássaros. A lenta harmonia do verão apoderara-se deles, invadindo-lhes a alma e o corpo e impedindo-os de falar durante aquele delicioso momento de sossego. Depois, Mark Hanlon interrompeu o silêncio com um murmúrio que era um verdadeiro lamento:

Tenho medo, Anna...

De quê?

De ver minha mulher. Há tanto tempo que não a vejo... Nem sequer posso me lembrar de como ela era antes de nos zangarmos. Já não nos conhecemos... O único elo que nos liga são as crianças. Nem sei por onde começar...

Terá de começar por lhe dar o carinho que ela lhe pedirá — disse Anna suavemente. — Lembre-se de que ela sentirá exatamente o mesmo que você. Não faz a menor idéia de como você a receberá. Desejará o seu amor, mas não saberá como pedi-lo. Terá de ser muito gentil para com ela, meu querido.

Que devo dizer-lhe... sobre nós?

A verdade, Mark. Mas não o faça brutalmente, não lhe diga tudo de uma vez. Dê-lhe tempo para ela se preparar. Tempo para ela ser generosa. Dê-lhe tempo, e ela aceitará a verdade, nem que seja para mostrar que ainda o ama.

Julga, então, que ela ainda me tem algum amor?

Não sei, Mark. — A voz de Anna revelou pela pri­meira vez um certo constrangimento. — Não me faça mais perguntas como essa, nem me diga nada quando vier â sabê-lo!

Desculpe-me, Anna.

Não precisa me pedir desculpa, Mark — conti­nuou Anna, sorrindo-lhe suavemente. — Só quero que se lembre de que ainda sou uma mulher... ciumenta do homem a quem amo.

Eu também a amo, Anna.

Assim penso, Mark. O nosso rapaz será filho do amor e, por isso mesmo, há de ser um rapaz feliz. Mas... — Anna hesitou durante um momento — se você e sua mulher viverem em paz, como espero que suceda, vocês aca­barão por sentir um certo amor um pelo outro. Não um amor como o nosso, está claro, mas uma espécie de amor. E eu... prefiro não pensar nisso.

E se Lynn quiser vê-la?

Diga-lhe que venha visitar-me, mas não a acom­panhe.

Farei o que deseja.

Mark?

Sim, Anna.

Quero pedir-lhe um favor.

Já sabe que não lhe recusarei nada.

Anna hesitou, não sabendo bem como formular o pedido, mas, em seguida, olhou para ele e disse-lhe num tom de voz muito simples:

Mark, gostaria muito que fizesse as pazes com o Padre Albertus.

Hanlon olhou-a, admirado e pouco contente com aquele desejo de Anna:

Por quê?

O padre já está velho. Sofreu muito e ama-nos a ambos.

Não julgue que ele é o único a sofrer ou a amar.

Hanlon falara num tom de voz seco e ríspido. — Nunca o tratei mal, e tenho-lhe feito toda a espécie de concessões desde que vim para cá.

E não teve qualquer razão para se arrepender disso, não é? Não se arrependeu do que fez a Johann Wikivill?

Não, mas foi por causa dele que eu a perdi — disse Hanlon friamente. — Você foi a maior vitória do Padre Albertus.

Anna abanou a cabeça:

Isso não é verdade. O. Padre Albertus limitou-se a indicar-me aquilo em que ambos acreditamos. Sofreu demais por agir assim. Não vê, Mark? Nós sofremos muito com isto, mas ele também sofre. Asseguro-lhe! Nós somos para ele como filhos, você principalmente. Agradeceria muito a você se cedesse um pouco, nem que fosse só por mim e... pelo nosso filho. Lembre-se de que teremos de continuar a viver aqui. Teremos de depender do Padre Albertus para muitas coisas, e ele se sentiria muito feliz se pudesse voltar a contar com a sua amizade.

Anna Kunzli falara com tanta convicção e tão razoavel­mente que Mark Hanlon se sentiu emocionado e resolveu fazer-lhe a vontade.

Está bem, Liebchen — disse-lhe ele, finalmente.

Farei o que me pede. Voltarei a ser amigo dele.

Foi só então que Anna perdeu o domínio de si própria e, num estado de nervos terrível, começou a soluçar como se tivesse o coração despedaçado, enquanto Mark Hanlon a acariciava e consolava com palavras em que não acreditava e com esperanças que já não eram mais do que ilusões mortas.

Muito mais tarde, quando ela se acalmou e quando ambos se sentiam já esgotados, encaminharam-se para o por­tão e deram o último beijo de despedida.

Mark Hanlon, muito sério e triste, dirigiu-se para a vila.

Os dez dias que se seguiram foram para Hanlon um verdadeiro martírio. O comandante sentia um peso imenso sobre os ombros e uma pressão asfixiante em volta do cora­ção. Deixara de ter qualquer espécie de desejos. Trabalhava de manhã à noite e não conseguia dormir mais do que umas poucas horas por noite. O seu corpo funcionava como uma máquina que protestasse violentamente contra o esforço que se lhe exigia. Uma parte do seu espírito trabalhava com exatidão e clareza, mas a outra — aquela que sentia e vi­brava — mergulhara num estado cataléptico, a meio cami­nho entre o horror de viver e a misericórdia de morrer.

Mark Hanlon continuava a tratar os oficiais com a mes­ma cortesia de sempre, mas tornara-se mais frio e quase desumano — o que os levava a ficar pouco à vontade na sua presença. O comandante também era muito frio e severo para com Traudl, e, apesar da velha amizade que os ligava, ela não conseguia compreender aquela sua apatia e frieza. Quando Holzinger ou Miller, ou ainda qualquer outro fun­cionário, vinham visitá-lo, para tratar de qualquer assunto oficial, Hanlon despachava o assunto tão depressa que todos eles se despediam com a impressão de que o tinham ofen­dido, mas sem perceberem como.

Nenhum dos seus amigos conseguia quebrar aquela re­serva gelada. As freqüentes tentativas de Johnson de nada serviam. Os convites de Huber ficavam sem resposta, e o Padre Albertus já desistira de visitá-lo. O comandante vivia nupi vácuo estéril, sozinho, bastando-se a si próprio — de­sesperadamente receoso, mas sem saber bem de quê.

Não dera um passo para se reconciliar com o Padre Albertus, apesar da promessa que Anna Kunzli o obrigara a fazer. O ressentimento morrera nele no próprio momento em que a esperança também morrera, mas Hanlon já nem sequer tinha forças pafa um mero ato de submissão. A pouca energia que lhe restava teria de ser cuidadosamente guardada para o dia em que sua mulher chegasse.

Lynn ainda não lhe respondera, e, à medida que os dias passavam, Hanlon sentia que ia perdendo a coragem e que o receio aumentava na mesma proporção. As dúvidas nunca cessavam de atormentá-lo: Como deveria recebê-la? Deveria beijá-la? Conseguiria sorrir-lhe ao vê-la? Perceberia ela a repulsa que ele teria ao tocar-lhe? Como lhe diria o que se passava com Anna? Como poderia dominar a sua ira se ela se mostrasse ciumenta? Teria ele amor suficiente na sua alma para dividir igualmente pelos filhos do seu matrimônio e pelo filho que lhe daria Anna? Como seria possível fazer calar os rumores que correriam pela vila quando os quelembergueses o vissem passar de braço dado com Lynn e se recordassem da jovem grávida que vivia na Casa da Aranha?

Mark Hanlon não encontrava uma resposta satisfatória para qualquer dessas dúvidas, embora pensasse constante­mente em todas.

Esses problemas, juntamente com o trabalho diário, que se tornava gradualmente mais intenso, esgotavam os seus nervos cansados, e o resultado foi começar a fumar e a beber muito mais. A sua aparência chocava todos aqueles que o conheciam e que recordavam ainda o seu aspecto saudável e forte de pouco tempo antes.

A carta de Lynn chegou-lhe às mãos no décimo pri­meiro dia, è Mark Hanlon tremia, sob a pressão dos nervos, quando abriu o envelope e começou a ler:

 

"Meu querido Mark,

Fiquei muito sensibilizada com a sua carta, e não sei como lhe agradecer tudo o que me diz nela. Não consigo encontrar palavras para lhe explicar o que sinto e não sei mesmo se poderei fazê-lo quando o vir. Julgo que ficarei muito embaraçada de começo, e peço-lhe que tenha muita paciência comigo. As crianças estão muito contentes, como é natural, embora se queixem por não poderem ir já comigo.

As autoridades militares fizeram tudo o que era neces­sário para que eu parta de avião para Munique na próxima segunda-feira. A chegada é às três e trinta da tarde. Poderá ir esperar-me? Nada mais lhe posso dizer por agora. Estou demasiado excitada e receosa de confiar tanto no futuro. O resto que tenho para lhe dizer terá de esperar até eu poder fazê-lo de viva voz.

Sua mulher que o ama, Lynn".

Mark Hanlon pousou a carta na secretária e ficou olhando para ela durante um longo momento, enquanto Traudl o examinava, com uma grande curiosidade, da sua secretária no outro lado da sala.

Traudl sentia-se tentada a ir até junto dele, para abraçá-lo com a antiga franqueza e amizade, mas a terrível angústia estampada no rosto de Hanlon impediu-a de fazê-lo. Traudl viu-o acender um cigarro com as mãos trêmulas e depois dirigir-se para a janela que dava para a vila, onde ficou a meditar e a sofrer durante muito tempo.

Mande um recado a Johann Wikivill — disse ele, sem se voltar e falando num tom demasiado cansado. — Peça-lhe que venha me ver o mais depressa possível.

Traudl escreveu algumas palavras num livro de apon­tamentos, e, em seguida, não podendo resistir mais ao im­pulso, levantou-se e aproximou-se dele.

Mark! Parece-me que está doente! Que se passa? Não quer me dizer?

Hanlon voltou-se para ela — e seus olhos frios e a voz gelada fizeram com que ela estremecesse.

Não estou doente, Traudl. Muito obrigado pela sua atenção. Não se preocupe. Minha mulher vem visitar-me... O fato devia alegrar-me, não é verdade?

Pobre Mark! — exclamou Traudl suavemente. — Meu pobre Mark!

Mark lembrou-se mais tarde de que fora aquele o único momento em que vira Traudl chorar.

Mark Hanlon e Johann Wikivill partiram para o aero­porto de Munique na segunda-feira seguinte, de manhã. O percurso obrigava-os a atravessar os perigosos caminhos da montanha que conduziam aos vales da região de Salzburgo e, depois, a voltar e á subir através das colinas da Baviera em direção a Munique.

Hanlon dirigia veloz e perigosamente, não abrandando nas curvas e derrapando no saibro que cobria alguns trechos da tortuosa estrada. Johann Wikivill não parecia muito preo­cupado com o perigo que os aguardava após cada curva, e limitava-se a acender os cigarros que Hanlon ia fumando e a contar-lhe as lendas e histórias da região que atravessavam. Johann adquirira a paz completa, e nada parecia preocupá-lo: o contentamento calmo de um homem que já vira a morte demasiado perto para receá-la e que já vivera também dema­siado para ser desapontado pela vida.

Hanlon recordou a velha frase bíblica: "A força ema­nava de todo o seu ser". O comandante, apesar do seu si­lêncio, estava muito agradecido a Wikivill, e, à medida que a estrada se desenrolava à sua frente, ia se entregando mais ao prazer da velocidade e à virtude contagiosa do homem que ele em tempos perseguira.

O céu estava muito cinzento e carregado, ameaçando chuva e trovoada, quando os dois homens pararam em Salzburgo para almoçar e encher o tanque do carro. Já chovia, de fato, ao alcançarem as colinas da Baviera; mas, uma vez em Munique, o tempo se tornara melhor, sombrio e um tanto sinistro, depois do verão alpino.

O aeroporto era como uma instalação militar. Um sol­dado americano, mal-encarado, verificou os documentos e indicou-lhes um estacionamento, onde se viam dezenas de jipes e de carros, de comando com os seus motoristas mas­cando chicletes enquanto esperavam. As pistas estavam co­bertas de aviões civis e militares. Todos eles pareciam de origem americana, e a sala de espera constituía uma imensa babel de sotaques que iam desde o do Maine até ao de Nova Orleans.

A cena era, para Hanlon, após o seu isolamento em Bad Quellenberg, uma brusca recordação da guerra e da paz incerta que reinava nas cidades da Europa. Os dois homens asseguraram-se da hora exata da chegada do avião e, verifi­cando que ele estava atrasado vinte minutos, dirigiram-se ao bar para beber café e conhaque.

Mark Hanlon, agora que o período de espera já quase terminara, começava a acalmar-se e a voltar ao seu estado normal. A presença de todos aqueles uniformes e o clamor das vozes tranqüilizavam-no e davam-lhe um sentido de co­munidade e de camaradagem. Esses homens também se en­contravam longe das suas casas. A guerra despedaçara amores e corações de muitos deles. Eram seus irmãos no sofrimento, tal como sucedia com Johann Wikivill. Mark Hanlon sabia agora que não era um caso à parte ou singular. Era, sim, uma unidade na família humana, necessitado, como todos os outros, de piedade e de amor, de sabedoria e de força.

O tenente-coronel olhou subitamente para a expressão calma e séria de Wikivill e falou-lhe com o primeiro sorriso que lhe viera aos lábios nas últimas semanas:

Não se preocupe mais, meu amigo. Já me sinto absolutamente preparado para receber minha mulher.

Wikivill assentiu com um gesto de cabeça e sorriu-lhe:

Não se lembra de eu lhe dizer que era mais forte do que pensava?

Hanlon encolheu os ombros e voltou à sua bebida. Era verdade que sentia um pouco da força que ainda lhe restava e que ela seria suficiente para o momento da chegada de Lynn.

Pouco a pouco, começaram a distinguir-se alguns diá­logos no meio daquela confusão de vozes. Um cabo do Brooklyn falava de uma namorada de Viena; um major dis­cutia a política dos quatro grandes; um oficial da unrra verificava um fornecimento de medicamentos com uma mu­lher trajando o uniforme da Cruz Vermelha; um capitão fran­cês dizia galanteios à Fraulein que estava atrás do balcão.

Hanlon ouvia todas aquelas conversas grato pela distra­ção proporcionada, enquanto olhava ansiosamente para o relógio elétrico colocado por cima dos horários. Subitamente, ao olhar uma vez mais, notou que já passava bastante tempo da nova hora de chegada, e indicou o fato a Wikivill. Este limitou-se a sorrir e a abanar a cabeça.

O mau tempo dificulta sempre os vôos entre Frank­furt e Munique. O avião deve estar atrasado. Penso que não tardarão a anunciar mais este atraso.

Quanto mais depressa o fizerem, melhor! — excla­mou Hanlon irritadamente: — Não me preparei para uma espera tão longa.

Tome mais um copo.

Está bem — respondeu Hanlon, bebendo de um trago a bebida que Wikivill lhe oferecera. — A coragem do álcool... Devo dizer que nunca acreditei nela!

É uma coragem muito especial — redargüiu Wiki­vill, rindo e preparando-se para voltar a encher-lhe o copo. Antes, porém, de ter tempo para fazê-lo e de que Hanlon lhe pudesse responder, uma voz inexpressiva fez-se ouvir so­noramente por toda a sala de espera:

Atenção, por favor! Atenção! Todos aqueles que aguardam os passageiros do vôo 123, de Londres a Frankfurt e a Munique, façam o favor de se apresentar imediatamente no escritório do chefe de Tráfego!

A pequena multidão calou-se no mesmo instante, entreolhando-se incertamente enquanto a voz repetia a infor­mação. Algumas pessoas, com Hanlon e Wikivill à frente, dirigiram-se apressadamente para uma porta de vidro ao fun­do da sala.

Poucos minutos depois, no meio de um silêncio total, recebiam a notícia de que o avião de Londres se despedaçara no solo a oitenta quilômetros de Frankfurt e de que não havia um único sobrevivente.

Johann Wikivill já havia guiado durante quase metade tio caminho para Bad Quellenberg quando Hanlon compreen­deu inteiramente o que acabara de lhe acontecer.

 

                                                       Capítulo 20

Era um sábado. O calor daquela tarde de verão era asfixiante.

O Padre Albertus encontrava-se sentado, muito enco­lhido e cansado, num compartimento pouco maior do que uma sepultura. Tudo o que ele via à sua frente era uma velha cortina de veludo, cujo tom purpúreo já estava desbotado pela ação dos anos e pela respiração humana. As paredes de cada um dos lados eram de madeira de pinho, escurecidas pela idade, tendo cada uma delas uma rótula coberta por uma pequena portinhola. Por detrás dele, quase a tocar-lhe as costas, encontrava-se a fria e cinzenta parede de pedra da igreja.

O Padre Albertus vinha ali todas as semanas, asfixiado pelo calor do verão ou gelado pelo frio do inverno, para ouvir os seus fiéis falarem dos pecados que haviam cometido. Todas as semanas, fizesse frio ou calor, sucediam-se os rostos sombrios que se chegavam àquelas rótulas, e os seus murmú­rios e arrependimentos enchiam os ouvidos do velho padre.

Vozes de crianças contavam-lhe os primeiros erros da infância. Rapazes ainda jovens falavam-lhe, bastante enver­gonhados, de cenas apaixonadas debaixo dos pinheiros da montanha. Aqueles que eram casados falavam das suas bri­gas familiares, dos seus ódios e dos ocasionais adultérios. O Padre Albertus era o único padre católico de Bad Quellenberg, e todos os fiéis vinham confessar-se com ele: per­dulários e avaros, homens orgulhosos e moças humildes, os inteligentes e os tolos, os egoístas e os desgraçados. Todos vinham receber a absolvição e a penitência ditadas pelo Padre Albertus.

Não faltavam momentos em que aquele minúsculo compartimento parecia crescer e iluminar-se brilhantemen­te, quando o Padre Albertus se sentia pequeno em face da presença manifesta de Deus entre as criaturas. Outras vezes, porém, as paredes pareciam comprimi-lo, como as da sua cela em Mauthausen, e então ele sentia-se abatido pelo peso da tragédia e da desgraça sobre os seus ombros cansados.

O Padre Albertus era um sacerdote, tal como o Senhor o fora. E, tal como o Senhor, tinha de se sacrificar pelos seus fiéis. Quando estes não se arrependiam, verdadeira e completamente, o Padre Albertus pensava que falhara na sua missão, e, quando não aceitavam a penitência, o velho padre sofria terrivelmente. Era este o significado do sacerdócio: a crucificação por toda a vida, para dar a outrem a misericór­dia divina, de que ele era o ministro e o intérprete.

Por vezes, como agora sucedia, a repetição e a conti­nuidade da inconsciência humana quase o levavam ao deses­pero. A soma dos pecados não diminuía nunca, apesar de dois mil anos de redenção e de dezenas de milhares de peca­dos e de absolvições. A paciência de Deus parecia não ter limites.

Às vezes, quando o Padre Albertus aguardava que um novo penitente se lhe apresentasse naquele cubículo onde mal podia respirar, pensava que os seus anos de sacrifício haviam sido vividos em vão. Quando esse pensamento o assaltava, o que sucedia muito raramente, o Padre Albertus rezava contra a tentação murmurando as palavras do Cristo moribundo: "Eloi, Eloi, lamma sabachtani...""Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"

Já haviam passado muitos anos desde que o bispo o ungira e lhe dera como filhos todos os homens da Terra. Os seus filhos, contudo, nunca cessavam de abandoná-lo para seguir estranhos deuses, e, mesmo depois de ele lhes perdoar, voltavam a proceder da mesma forma, nada mais lhe restan­do do que rezar e aguardar o seu arrependimento.

A idade já lhe pesava como uma grande cruz, e o Padre Albertus pedia freqüentemente ao Senhor que o libertasse dela. Mas essa graça lhe era negada, e, por isso, o Padre Albertus via-se obrigado a vir todas as semanas a essa sepul­tura e a aguardar o seu próximo penitente.

O velho padre ouviu o ruído característico de mais um penitente e abriu a rótula, baixando o olhar e aguardando. Foi então que ouviu a voz de Mark Hanlon, suave mas firme, a murmurar as palavras habituais:

Abençoe-me, padre, por eu ter pecado.

O coração do velho começou a palpitar com mais in­tensidade. Conseguindo, no entanto, disfarçar a emoção que

o invadia, levantou as suas mãos torturadas na bênção que Hanlon lhe rogara.

Benedico te, mi fili... Quando é que te confes­saste pela última vez?

Há muito tempo, padre. Cinco anos, talvez seis...

Isso, só por si, é um grande pecado. Deves saber que é pecado um homem recusar a graça que lhe é oferecida diariamente.

Sei, sim, padre.

Fala-me dos teus pecados, meu filho.

Mark Hanlon começou a contar o que fora a sua vida durante aqueles últimos anos e como se haviam reconstituído as relações, tão complexas, entre o velho mestre e o discí­pulo que o abandonara tantos anos antes: a irmandade da Fé, a paternidade do Espírito, o pecador e o juiz, o padre e o penitente, o amigo de César e o discípulo do Crucificado.

O momento trazia a ambos a sua própria dor e também a sua consolação. As faltas do discípulo eram igualmente as faltas do mestre. A penitência de um era a humilhação para o outro. As mãos que podiam conferir o perdão tremiam de agradecimento pela restauração do afeto humano.

O Padre Albertus, quando Hanlon se calou, perguntou-lhe suavemente:

terminaste, meu filho? Nada mais tens a di­zer-me?

Nada mais.

Já é suficiente.

Os dedos torturados ergueram-se, e Mark Hanlon bai­xou a cabeça a fim de receber a absolvição:

Deinde ego te absolvo... Absolvo-te dos teus pe­cados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Muito obrigado, padre.

A tua penitência será recitar os mistérios do rosário.

Será esse o meu único castigo? É fácil de cumprir... — A voz de Mark Hanlon soara com aquela sua antiga iro­nia, e o Padre Albertus olhou para ele através da rótula e falou-lhe firmemente.

O perdão é sempre fácil de conceder, meu filho. O mais difícil é ter a coragem de pedi-lo.

Existe uma coisa ainda mais difícil — disse Mark Hanlon friamente. — Viver com as lembranças do passado.

A velha e profunda voz repreendeu-o com severidade:

Isso faz parte da tua penitência. Precisarás de mui- ta coragem e de muita fé para poderes cumpri-la. Não podes te atrever a desprezar a tua pessoa, pois isso seria desprezar a grandeza de Deus e o bem que existe em ti. Deves te arrepender do teu passado, mas não deves ficar com ressen­timento dele. O ressentimento seria veneno para a felicidade daqueles que te rodeiam. Terás de aceitar o passado humildemente, tal como terás de aceitar o que o futuro te oferece. Deves estar agradecido a Deus por, através de um acidente, ter resolvido um dilema que tu nunca terias conseguido re­solver sem o auxílio divino. Recorda o passado, reza pelos mortos, porque os mortos ainda pertencem a ti e tu a eles, através da comunhão dos santos. Compreendes o que quero dizer?

Compreendo, padre.

Vai em paz, então, meu filho.

Mark Hanlon levantou-se e saiu do confessionário. O Padre Albertus ficou rezando silenciosamente durante muito tempo após a sua partida. Aguardava outro penitente, e, como mais ninguém lhe aparecesse, levantou-se e saiu do asfixiante cubículo.

A igreja estava deserta. Só se via Mark Hanlon, que rezava de joelhos e de olhos postos no altar-mor. O Padre Albertus ajoelhou-se ao lado dele, e, numa voz profunda e muito clara, começou á entoar o cântico da Mãe de Deus.

Magnificai anima mea Dominum...

Quia deposuit potentes... — respondeu o Tenente-Coronel Mark Hanlon.

Os dois homens, mestre e discípulo, vencido e vence­dor, acabaram de recitar o hino e saíram juntos da igreja. Atravessaram a floresta de cruzes de madeira do cemitério, passaram pelo Cristo crucificado e dirigiram-se à Casa da Aranha, onde Anna Kunzli os aguardava a ambos.

 

[1] “Mãezinha." (N. do T.)

[2] "Lindas rosas, senhor burgomestre." (N. do T.)

[3] "Fantástico." (N. do T.)

[4] "Boa viagem." (N. do T.)

[5] "Ah, meu querido." (N. do T.) 

 

                                                                  Morris West

 

 

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