O bilhete dizia: ALGUÉM NESTA TURMA É BRUXO. Isto estava escrito em letras maiúsculas, com uma caneta esferográfica comum de tinta azul, e havia surgido entre dois dos cadernos de geografia que o sr. Crossley estava corrigindo. Qualquer pessoa poderia ter escrito aquilo. O sr. Crossley esfregou com tristeza o seu bigode ruivo e ficou a contemplar as cabeças curvadas da turma 2Y enquanto se perguntava o que deveria fazer.
Resolveu não levar o bilhete à diretora; era bem possível que se tratasse de uma simples brincadeira, e a srta. Cadwallader não tinha senso de humor, pelo menos que alguém pudesse perceber. A pessoa a quem o bilhete deveria ser apresentado era o vice-diretor, o sr. Wentworth. Mas a dificuldade disso era que o filho do sr. Wentworth estudava na 2Y, era o menininho, quase no fundo da sala, que parecia mais jovem do que os outros:
Brian Wentworth. Não. O sr. Crossley resolveu que iria pedir ao autor do bilhete que se identificasse; explicaria que aquela era uma acusação muito séria e deixaria que a consciência do culpado se manifestasse.
O sr. Crossley pigarreou antes de começar a falar, e alguns alunos da 2Y ergueram os olhos, esperançosos, mas o sr. Crossley a essa altura já havia mudado de idéia, pois era hora do diário, e a hora do diário só podia ser interrompida numa emergência grave. O Internato de Larwood era muito exigente quanto a essa regra.
O Internato de Larwood era muito exigente quanto a uma porção de coisas, pois tratava-se de um colégio interno mantido pelo governo para órfãos de bruxos e para crianças com outros problemas. Os diários serviam para ajudar as crianças com os seus problemas. Deveriam ser estritamente particulares. Todos os dias, durante meia hora, cada aluno tinha que confiar seus pensamentos secretos ao diário, e nada mais se fazia até que todos houvessem terminado. O sr. Crossley era um entusiástico admirador daquela idéia.
Mas a verdadeira razão por que o sr. Crossley mudou de intenção foi o pensamento apavorante de que o bilhete poderia ser verdadeiro: alguém na 2Y poderia facilmente ser um bruxo. Apenas a srta. Cadwallader sabia exatamente quem eram os órfãos de bruxos na 2Y, mas o sr. Crossley tinha as suas suspeitas de que fossem em grande número. Outras turmas haviam dado ao sr. Crossley sentimentos de orgulho e prazer em ser professor, porém a 2Y jamais tivera esse efeito. Apenas dois alunos lhe davam algum orgulho: Theresa Mullett e Simon Silverson. Ambos eram alunos modelos. As outras meninas ficavam muito para trás, sendo que as piores eram as tagarelas fúteis como Estelle Green, ou Nan Pilgrim, aquela menina corpulenta que definitivamente era muito estranha. Os meninos dividiam-se em grupos. Alguns tinham o bom senso de seguir o exemplo de Simon Silverson, mas o mesmo número de alunos rodeavam e bajulavam Dan Smith, o valentão da escola, e ainda outros admiravam Nirupam Singh, um menino indiano de estatura elevada. Ou eram solitários, como Brian Wentworth e aquele antipático do Charles Morgan.
Nessa altura o sr. Crossley olhou para Charles Morgan, e o menino retribuiu-lhe com um daqueles olhares vazios e hostis pelos quais ele era famoso. Charles usava óculos, o que ampliava o seu olhar agressivo, que ele fixou no sr. Crossley como um duplo raio laser. O sr. Crossley desviou os olhos o mais rápido possível e voltou à sua preocupação com o bilhete. Todos na 2Y desistiram de ter esperanças de que alguma coisa interessante fosse acontecer e voltaram a ocupar-se com seus diários.
Numa caligrafia arredondada e angelical, Theresa Mullett escrevia:
28 de outubro de 1981.
O sr. Crossley encontrou um bilhete em nossos cadernos de geografia. No princípio pensei que devia ser da srta. Hodge, porque todos nós sabemos que Teddy morre de amores por ela, mas ele parece tão preocupado que acho que deve ser de alguma menina boba como Estelle Green. Nan Pilgrim não conseguiu saltar por cima do cavalo-de-pau hoje de novo.
Ela pulou e ficou presa, entalada no meio. Todos nós achamos graça.
28.10.81. Eu gostaria de saber quem foi que colocou aquele bilhete nos cadernos de geografia, Simon Silverson escreveu, Ele caiu quando eu estava recolhendo os cadernos, então coloquei de volta. Se ele fosse encontrado caído no chão, todos nós poderíamos levar a culpa. Isto é estritamente não-oficial, é claro.
Nirupam Singh escreveu filosoficamente:
Não sei como alguém consegue escrever muita coisa no diário, já que todo o mundo sabe que a srta. Cadwallader lê todos eles durante as férias. Eu não escrevo os meus pensamentos secretos. Agora vou descrever o truque indiano com a corda que vi na Índia antes de papai vir morar na Inglaterra...
A duas carteiras de distância de Nirupam, Dan Smith passou bastante tempo mastigando a caneta, e finalmente escreveu:
Bom sei lá não é muito legal a gente ter que escrever nossos sentimentos secretos quer dizer tira toda a graça e a gente não sabe o que vai escrever. Quer dizer eles não são secretos dá pra entender?
Acho que hoje não tenho sentimentos secretos, Estelle Green escrevia, mas gostaria de saber o que está escrito no bilhete da srta. Hodge que o Teddy acabou de encontrar. Eu pensava que ela desprezava ele completamente.
No fundo da sala, Brian Wentworth escrevia, suspirando:
O meu problema é que eu adoro meios de transporte e as suas tabelas de horários. Durante a aula de geografia planejei uma viagem de ônibus inteirinha, de Londres até Bagdá, via Paris. Na próxima aula vou planejar a mesma viagem via Berlim.
Enquanto isso, Nan Pilgrim rabiscava:
Esta é uma mensagem para a pessoa que lê os nossos diários: você é a srta. Cadwallader, ou a srta. Cadwallader obriga o sr. Wentworth a ler?
Ela fixou os olhos naquilo que havia escrito, um pouco atônita com a sua própria ousadia. Esse tipo de coisa às vezes lhe acontecia. Ela pensou: de qualquer maneira, são centenas de diários e centenas de anotações cotidianas. As chances da srta. Cadwallader ler justamente a anotação de hoje são bem pequenas, principalmente se eu continuar e tornar a minha anotação bem monótona. Pôs-se a escrever:
Agora vou ser bem monótona. O verdadeiro nome de Teddy Crossley é Harold, mas ele passou a ser chamado de Teddy porque quando lança o seu olhar de apaixonado fica igualzinho ao Ursinho Teddy. Ele acha que todo o mundo deve ser correto, honrado e interessado em geografia. Sinto pena dele.
Mas quem conseguia fazer melhor um diário monótono era Charles Morgan. Sua anotação dizia:
Eu me levantei. Senti calor na hora do café da manhã. Não gosto de mingau. A segunda aula foi de carpintaria mas não demorou. Acho que agora teremos jogos.
Lendo isto, pode-se pensar que Charles é muito burro ou muito confuso, ou as duas coisas, já que qualquer pessoa na turma 2Y poderia confirmar que havia sido uma manhã gelada e eles comeram cereal no café da manhã. A segunda aula havia sido de educação física, durante a qual Nan Pilgrim havia divertido tanto Theresa Mullett quando não conseguiu saltar o cavalo-de-pau, e a aula seguinte seria de música, não de jogos. Mas Charles não estava escrevendo sobre aquele dia; na verdade, ele descrevia seus sentimentos secretos, mas fazia isso num código particular, para que ninguém mais soubesse.
Ele começava todas as anotações com Eu me levantei. Isto significava: odeio esta escola. Quando ele escreveu Eu não gosto de mingau, aquilo era mesmo verdade, mas mingau era o seu nome em código para Simon Silverson. Simon era “mingau” no café da manhã, “batata” no almoço e “pão” no lanche. Todas as outras pessoas que ele detestava tinham codinomes também. Dan Smith era “cereal”, “repolho” e “manteiga”. Theresa Mullett era “leite”.
Mas quando Charles escreveu senti calor, não estava falando a respeito da escola; ele queria dizer que se lembrara do bruxo sendo queimado na fogueira. Era uma coisa que, por mais que ele tentasse esquecer, voltava aos seus pensamentos todas as ocasiões em que ele não estava pensando em outra coisa qualquer.
Na época ele era tão novinho que ainda era transportado em um carrinho. Sua irmã mais velha, Bernadine, o empurrava, enquanto sua mãe carregava as sacolas de compras, e eles estavam atravessando uma rua de onde se via, lá mais embaixo, a Praça do Mercado. Havia lá uma enorme multidão, e uma espécie de luz tremeluzindo. Bernadine parou o carrinho bem no meio da rua para poder ver melhor. Ela e Charles mal tiveram tempo de ver de relance a fogueira começando a arder, mas viram muito bem que o bruxo era um homem grande e gordo. Então a mãe voltara correndo para ralhar com Bernadine, fazendo com que ela acabasse de atravessar a rua com o carrinho.
— Você não deve olhar para bruxos! — Explicou. — Só gente muito ruim faz isto!
De modo que Charles havia visto o bruxo por um instante apenas. Nunca falou sobre isso, mas nunca esqueceu. Sempre se espantava ao constatar que Bernadine dava a impressão de ter esquecido completamente o episódio. O que, na verdade, Charles estava dizendo no seu diário era que o bruxo lhe viera à cabeça durante o café da manhã, até Simon Silverson comer todas as torradas, fazendo com que ele tornasse a esquecer.
Quando escreveu A segunda aula foi de carpintaria, ele estava querendo dizer que passara a pensar na segunda bruxa — o que era uma coisa sobre a qual ele não pensava com tanta freqüência. Carpintaria era qualquer coisa de que gostasse. Eles só tinham aula de carpintaria uma vez por semana, e Charles escolhera esse nome para o seu código pelo motivo bastante razoável de que não era provável que ele fosse gostar de alguma coisa no Internato de Larwood com mais freqüência do que uma vez por semana. Charles havia gostado da segunda bruxa. Ela era bem jovem e bastante bonitinha, apesar da saia rasgada e dos cabelos desgrenhados. Chegara por cima do muro nos fundos do jardim e viera aos tropeços pelas pedras até o gramado, trazendo os sapatos elegantes em uma das mãos. Charles tinha então nove anos de idade e estava tomando conta do seu irmãozinho no gramado. Para a sorte da bruxa, seus pais não estavam em casa.
Charles sabia que ela era bruxa. Ela estava ofegante e obviamente assustada; ele conseguia ouvir os gritos e os apitos dos policiais nas casas atrás da dele. Além disso, que outra pessoa senão uma bruxa fugiria da polícia no meio da tarde usando uma saia justa? Mas ele quis ter certeza, e perguntou:
— Por que está fugindo pelo nosso jardim?
A bruxa, com expressão desesperada, pulava num pé só. Tinha uma bolha enorme no outro pé, e suas meias mostravam vários fios corridos.
— Porque sou bruxa — ela ofegou. — Por favor me ajude, garotinho!
— Por que não faz uma mágica para se livrar? — Charles perguntou.
— Porque não consigo quando estou tão assustada assim! — Ela arquejou. — Eu tentei, mas deu errado! Por favor, garotinho, se me deixar atravessar a sua casa para fugir e não contar uma palavra a ninguém, eu lhe darei sorte pelo resto da sua vida. Prometo.
Charles encarou-a naquela sua maneira que a maioria das pessoas achava vazia e hostil. E viu que ela estava falando a verdade. Viu, também, que ela compreendia aquele olhar como poucas pessoas pareciam compreender.
— Entre pela cozinha — ele concordou.
E levou a bruxa — que mancava por causa da bolha sob a meia desfiada — através da cozinha, descendo o corredor que levava à porta da frente.
— Obrigada, você é um amor — ela disse.
Sorriu para ele enquanto endireitava os cabelos no espelho do corredor e, depois de ter feito alguma coisa na saia, talvez alguma bruxaria para fazer com que parecesse não estar rasgada, ela inclinou-se e deu um beijo em Charles.
— Se eu escapar, vou lhe trazer sorte — disse.
Então tornou a calçar os sapatos elegantes e saiu pelo jardim da frente, fazendo um grande esforço para não mancar. No portão, ela acenou e sorriu para Charles.
Aquele era o final da parte de que Charles gostava. Foi por esse motivo que ele em seguida escreveu mas não demorou: ele jamais tornara a ver a bruxa, e jamais ficara sabendo do que acontecera a ela. Ordenou ao irmãozinho que nunca dissesse uma palavra sobre o episódio — e Graham obedeceu, pois sempre fazia tudo o que Charles mandasse — e então ficou esperando, atento, qualquer sinal da bruxa ou qualquer sinal de sorte. Isso jamais aconteceu.
Era quase impossível para Charles descobrir o que poderia ter acontecido à bruxa, porque novas leis haviam sido criadas depois que ele vira de relance o primeiro bruxo queimado na fogueira. Nunca mais houve execuções públicas. Em vez disso, as fogueiras eram acesas dentro das paredes das prisões, e o rádio simplesmente anunciava: “Duas bruxas foram queimadas esta manhã na Prisão Holloway”. Cada vez que Charles escutava esse tipo de anúncio, pensava que era a sua bruxa. Isso lhe provocava um sentimento obtuso e dolorido por dentro. Ele pensava no modo como ela o beijara e tinha quase certeza de que isso — ser beijado por uma bruxa — o faria ser errado também.
E desistiu de guardar a esperança de ter sorte. Aliás, a julgar pela quantidade de azar que já tivera, Charles acreditava que a bruxa fora agarrada logo depois. Além disso, a sensação pesada e dolorosa que o dominava quando o rádio anunciava uma execução fazia com que ele se recusasse a fazer qualquer coisa que seus pais lhe ordenassem. Como resposta, ele simplesmente lhes dava o seu olhar vazio e antipático. E cada vez que ele olhava para eles desse modo, sabia que isto era interpretado como má-criação. Eles não compreendiam o seu olhar da mesma maneira que a bruxa compreendera. E como Graham imitava tudo o que irmão mais velho fazia, os pais logo concluíram que Charles era uma criança-problema que estava estragando Graham. Então providenciaram para que ele fosse enviado para o Internato de Larwood, porque este ficava bem próximo.
Quando Charles escreveu jogos, ele queria dizer problemas. Como todos os outros alunos da 2Y, ele havia observado o sr. Crossley encontrar um bilhete. Não sabia o que estava escrito nele, mas quando ergueu os olhos e encontrou o olhar do sr. Crossley, percebeu logo que aquilo significava problemas iminentes.
O sr. Crossley ainda não havia conseguido decidir o que fazer a respeito do bilhete. Se o que ele dizia era verdade, aquilo significaria Inquisidores vindo à escola, e esse era um pensamento assustador. O sr. Crossley suspirou e guardou o bilhete no bolso.
— Muito bem, todos vocês guardem os seus diários e entrem em fila para a aula de música — ordenou.
Assim que a 2Y saiu para o corredor da escola, o sr. Crossley dirigiu-se apressado à sala dos professores, na esperança de encontrar alguém a quem pudesse consultar sobre o bilhete.
Teve a grande sorte de encontrar lá a srta. Hodge. Como Theresa Mullett e Estelle Green haviam observado, o sr. Crossley estava apaixonado pela srta. Hodge. Mas, como era natural, ele jamais demonstrara isso. Talvez a única pessoa na escola que dava a impressão de não saber era a própria srta. Hodge. Ela era uma mulher baixinha e muito arrumada, que usava saias e blusas cinzentas e tinha os cabelos ainda mais penteados e mais lisos do que os de Theresa Mullett. Ela estava ocupada arrumando livros em pilhas regulares sobre a mesa da sala dos professores e continuou fazendo isto durante todo o tempo em que o sr. Crossley lhe contava excitadamente sobre o bilhete. Ela olhou de relance para o pedaço de papel.
— Também não sei dizer quem o escreveu — declarou.
— Mas o que devo fazer com relação a isto? — O sr. Crossley perguntou em tom de súplica. — Mesmo se for verdade, é uma coisa tão cheia de raiva! E vamos supor que seja mesmo verdade; vamos supor que um deles seja... — Ele estava num estado lastimável. Queria muito atrair a atenção da srta. Hodge, mas sabia que palavras como “bruxo” não deveriam ser usadas diante de uma dama. — Não gosto de dizer essa palavra na sua frente.
— Eu fui educada para ter piedade dos bruxos — a srta. Hodge respondeu calmamente.
— Ah, eu também! Todos nós — o sr. Crossley apressou-se a responder. — Apenas fiquei me perguntando como deveria cuidar deste...
A srta. Hodge interrompeu-o enquanto fazia outra pilha de livros.
— Acho que é uma brincadeira boba — afirmou. — Ignore. Você não devia estar dando aula à turma 4X?
— É, sim, acho que sim — o sr. Crossley concordou em tom infeliz.
E foi forçado a sair sem que a srta. Hodge houvesse olhado para ele uma única vez.
A srta. Hodge ficou pensativa enquanto fazia outra pilha de livros, só interrompendo o trabalho depois de ter certeza de que o sr. Crossley já havia ido embora. Então alisou os cabelos já lisos e correu para o andar de cima, para procurar o sr. Wentworth.
Como vice-diretor, o sr. Wentworth tinha um escritório onde ele lutava com as tabelas de horários das aulas e vários outros problemas que a srta. Cadwallader lhe passava. Quando a srta. Hodge bateu na porta, ele estava enfrentando um problema particularmente feroz. Havia setenta pessoas na orquestra da escola; cinqüenta delas faziam parte também do coro, e dessas, vinte estavam na peça teatral da escola. Outros trinta meninos da orquestra participavam de variados times de futebol, e vinte das meninas jogavam no time de hóquei da escola. Pelo menos um terço jogava também basquete. O time de vôlei inteiro estava na peça teatral. Problema: como organizar ensaios e treinos sem pedir à maioria dos alunos que estivessem em três lugares ao mesmo tempo? Em desespero, o sr. Wentworth esfregou a calvície no alto da cabeça.
— Entre — disse.
Viu o rosto alegre, sorridente e ansioso da srta. Hodge. Mas seus pensamentos estavam bem longe dela.
— Tão maldoso por parte de alguém, e tão terrível, se for verdade! — Ele escutou a srta. Hodge dizer e, em seguida, continuar, em tom animado: — Mas acho que tenho um plano para descobrir quem escreveu o bilhete. Deve ter sido alguém da 2Y. Podemos juntar nossas cabeças e tentar resolver isto, senhor Wentworth?
Ela, convidativa, moveu a cabeça de lado.
O sr. Wentworth não tinha a mínima idéia do que ela estava falando. Coçou o lugar onde o cabelo estava caindo e encarou-a. Fosse o que fosse, aquilo mostrava todas as características de um plano que precisava ser aniquilado.
— As pessoas só mandam cartas anônimas para se sentirem importantes — ele declarou experimentalmente. — Não se pode levá-las a sério.
— Mas é um plano perfeito! — Protestou a srta. Hodge. — Se eu puder explicar...
O sr. Wentworth pensou: fosse qual fosse o plano dela, ainda não havia sido aniquilado.
— Não. Apenas diga-me as palavras exatas do tal bilhete — interrompeu-a.
A srta. Hodge instantaneamente ficou aniquilada e chocada.
— Mas é terrível! — A voz dela baixou para um sussurro teatral. — Ele afirma que alguém na 2Y é bruxo!
O sr. Wentworth deu-se conta de que o seu instinto estivera correto.
— Que foi que lhe disse? É o tipo de coisa que só se pode ignorar, senhorita Hodge — disse com veemência.
— Mas alguém no 2Y tem a mente muito doentia! — A srta. Hodge sussurrou.
O sr. Wentworth ficou pensando na 2Y, inclusive no seu próprio filho Brian.
— Todos eles têm — retrucou. — Ou vão mudar quando crescerem, ou vamos vê-los todos voando em vassouras na sexta série.
A srta. Hodge recuou; estava bastante chocada diante daquela linguagem grosseira. Mas no mesmo instante obrigou-se a rir, pois ocorrera-lhe que se tratava de uma piada.
— Não dê atenção — disse o sr. Wentworth. — Ignore-o, senhorita Hodge.
E voltou para o seu problema com um certo alívio.
A srta. Hodge retornou às suas pilhas de livros, não tão aniquilada quanto o sr. Wentworth imaginava que ela estivesse. O sr. Wentworth havia feito uma piada com ela! Aquilo nunca havia acontecido antes, de modo que ela estava fazendo progressos. Pois, um fato que não era conhecido por Theresa Mullett ou Estelle Green, a srta. Hodge pretendia casar-se com o sr. Wentworth. Ele era viúvo; a srta. Hodge tinha certeza de que, quando a srta. Cadwallader se aposentasse, o sr. Wentworth passaria a ser o diretor do Internato de Larwood. Aquilo se ajustava aos planos da srta. Hodge, que tinha o pai idoso com quem se preocupar. Para isso ela estava mais do que disposta a aturar a calvície e o olhar tenso e angustiado dele. A única desvantagem era que aturar o sr. Wentworth significava aturar Brian também. Uma ruguinha surgiu na testa lisa da srta. Hodge quando ela pensou em Brian Wentworth. Ora, ali estava um menino que merecia o modo como o resto da 2Y o tratava. Não tinha importância, ele poderia ser mandado para alguma outra escola bem distante.
Enquanto isso, na aula de música, o sr. Brubeck estava pedindo a Brian para cantar um solo. A 2Y havia vencido aos trancos a canção “Aqui estamos, como passarinhos na floresta”, que na voz deles soava como um lamento.
— Eu preferia estar na floresta — Estelle Green cochichou à sua amiga Karen Grigg.
Depois cantaram “O cucaburra está empoleirado na velha seringueira”, que soava como um canto fúnebre.
— O que é cucaburra? — Karen sussurrou a Estelle.
— Outro tipo de pássaro — Estelle cochichou de volta. — É australiano — acrescentou.
— Não, não, não! — Gritou o sr. Brubeck. — Brian é o único de vocês que quando canta não parece um frango com dor de garganta!
— O sr. Brubeck deve ter aves no cérebro — Estelle comentou com uma risadinha.
E Simon Silverson, que acreditava, com vigor e sinceridade, que ninguém, exceto ele próprio, era merecedor de elogios, lançou a Brian um penetrante olhar de zombaria.
Mas o sr. Brubeck era demasiado viciado em música para prestar atenção naquilo que o resto da 2Y pensava.
— “O cuco é um passarinho bonitinho” — anunciou. — Quero que Brian cante sozinho esta canção para vocês.
Estelle deu uma risadinha, por se tratar de mais um passarinho. Theresa também riu, porque achava engraçadíssima qualquer pessoa que se destacasse por qualquer motivo. Brian ficou de pé, com o livro de canções nas mãos. Nunca se sentia envergonhado. Em vez de cantar, porém, ele pôs-se a ler a letra da canção em tom de incredulidade.
— “O cuco é um passarinho, ele canta quando voa. Ele nos traz boas-novas, ele não nos mente à toa”. Professor, por que todas estas canções são sobre pássaros? — Ele perguntou inocentemente.
Charles achou aquilo uma iniciativa esperta por parte de Brian, depois do modo como Simon Silverson havia olhado para ele.
Mas isso de nada adiantou para Brian. Ele era impopular demais. A maioria das meninas disse o nome dele em tom chocado. Simon fez o mesmo em tom de zombaria.
— Silêncio! — Gritou o sr. Brubeck. — Brian, comece logo a cantar!
E tocou algumas notas no piano.
Brian ficou parado com o livro nas mãos, evidentemente perguntando-se o que fazer. Era óbvio que ele teria problemas com o sr. Brubeck se não cantasse, e que levaria uma surra depois, se cantasse. E enquanto Brian hesitava, o bruxo que havia na 2Y encarregou-se da situação: uma das compridas janelas do Salão Nobre abriu-se ruidosamente e deixou entrar um bando de pássaros. A maioria deles era de pássaros comuns — pardais, estorninhos, pombos, melros e tordos — volteando pelo Salão Nobre em grande número e deixando cair penas e excremento em pleno vôo. Mas entre as asas que batiam havia as de duas curiosas criaturas peludas, exibindo grandes papadas, que faziam sem cessar um som de gargalhadas; e a coisa vermelha e amarela que voava no meio de uma nuvem de pardais e gritava “cuco!” era, obviamente, uma arara.
Por sorte, o sr. Brubeck imaginou que havia sido simplesmente o vento que havia deixado os pássaros entrarem. Durante o resto da aula a ocupação foi expulsar os pássaros da sala. A essa altura, os que tinham papadas e soltavam gargalhadas haviam desaparecido; decerto o bruxo concluíra que tinha cometido um engano. Mas todos na 2Y tinham visto muito bem aquelas aves. Simon declarou em tom de importância:
— Se isto acontecer outra vez, nós todos devemos nos reunir e...
Diante disso, Nirupam Singh virou-se, sua altura a destacar-se entre as asas que batiam.
— Você tem alguma prova de que isto não é natural? — Perguntou.
Simon não tinha prova alguma, de modo que ficou quieto.
No final da aula, todos os pássaros já haviam sido colocados para fora da janela, exceto um: a arara, que procurou refugio no alto, sobre um trilho de cortina, onde ninguém conseguia alcançá-la, e ali ficou empoleirada, gritando “cuco!” O sr. Brubeck dispensou a 2Y e chamou o zelador para livrar-se dela. Charles retirou-se com o resto da turma, pensando que aquele devia ser o final dos jogos que ele havia predito no seu diário. Mas estava enganado: era apenas o princípio.
E quando o zelador — acompanhado de perto pelo seu cachorrinho branco — chegou, reclamando, para cuidar da arara, esta havia desaparecido.
O dia seguinte foi o dia em que a srta. Hodge tentou descobrir quem escreveu o bilhete. Foi também o pior dia que tanto Nan Pilgrim quanto Charles Morgan haviam passado no Internato de Larwood. Ele não começou ruim demais para Charles, mas Nan chegou atrasada ao café da manhã.
O cadarço do sapato dela tinha rebentado. Ela levou uma bronca do sr. Towers pelo atraso, e em seguida uma repreensão de um monitor. A essa altura, a única mesa com um lugar vazio estava com todos os outros lugares ocupados por meninos. Nan sentou-se ali, embaraçada. Os outros já haviam devorado todas as torradas exceto uma, e Simon Silverson pegou essa enquanto Nan se sentava.
— Que azar, hein, gorducha!
Nan viu Charles Morgan olhando para ela do final da mesa. No entender dele, tratava-se de um olhar de solidariedade; porém, como todos os olhares de Charles, aquele dava uma impressão vazia e hostil. Nan fingiu não vê-lo e fez o possível para comer os ovos mexidos, encharcados e pálidos sem as torradas.
Durante a aula ela descobriu que Theresa e suas amigas começavam uma nova moda. Aquilo era um mau sinal: elas sempre se sentiam muito satisfeitas consigo mesmas no início de uma moda — ainda que provavelmente esta última foi iniciada para que elas não precisassem pensar em bruxos ou pássaros. A nova moda era tricotar coisas branquinhas e peludas, que elas mantinham enroladas em toalhas para não se sujarem. A sala de aula encheu-se de murmúrios: “um tricô, duas malhas, pula um ponto...”.
Mas o dia começou a ficar ruim mesmo no meio da manhã, durante a aula de educação física. O Internato de Larwood tinha isso todos os dias, assim como os diários. A turma 2Y juntou-se à 2X e à 2Z, e os meninos correram para a quadra, enquanto as meninas iam juntas para o pavilhão de ginástica, onde as cordas de subir já estavam preparadas.
Theresa, Estelle e as outras soltaram gritinhos de alegria e puseram-se a subir pelas cordas com movimentos fáceis. Nan tentou perder-se de vista de encontro às barras de parede. Seu coração apertou-se: aquilo era ainda pior do que o cavalo de pau! Nan não conseguiria subir por uma corda. Ela nascera sem a musculatura apropriada, ou algo assim.
E, como aquele era um daqueles dias, a srta. Phillips avisou logo em seguida:
— Nan, você ainda não subiu. Theresa, Delia, Estelle, desçam e deixem Nan subir.
Theresa e as outras desceram de boa vontade, pois sabiam que estavam prestes a presenciar uma coisa engraçada.
Nan viu a expressão delas e rilhou os dentes. Prometeu a si mesma que dessa vez ela conseguiria: subiria até o teto, só para arrancar aquele sorriso do rosto de Theresa. No entanto, a distância até as cordas parecia ter um quilômetro. As pernas de Nan, dentro da larga saia-calça que era usada para a aula de educação física, eram vermelhas e gordas, e ela sentia que seus braços eram pudins rosados. Quando chegou até a corda, o nó na extremidade parecia flutuar no alto, acima da sua cabeça. E ela tinha que ficar de pé sobre aquele nó!
Agarrou a corda com suas mãos gordas e fracas, e deu um salto. Tudo o que aconteceu foi que o nó atingiu seu peito com força e ela bateu com os pés no chão pesadamente. Entre Theresa e suas amigas começaram a soar murmúrios divertidos. Aquilo era ridículo, pior do que nunca! Nan mal conseguia acreditar. Agora ela não conseguia sequer tirar os pés do chão. Tornou a agarrar a corda e saltou outra vez. E outra vez. E outra vez. Ela dava pulos sem parar, saltando como um Canguru molenga, e o nó batia em seu peito, e seus pés batiam no chão com força. Os murmúrios das outras meninas transformaram-se em risinhos e depois em risadas escancaradas. Até que por fim, quando Nan estava prestes a desistir, seus pés encontraram o nó e se seguraram ali. E ali ela ficou, de cabeça para baixo como um bicho-preguiça, sem fôlego, suando muito, pendurada pelos braços, que pareciam não poder mais movimentar-se. Aquilo era terrível. E ela ainda tinha que subir pela corda! Pensou em cair de costas e morrer.
A srta. Phillips estava ao lado dela.
— Vamos, Nan, fique de pé no nó.
De um modo ou de outro, sentindo que aquela era uma proeza sobre-humana, Nan conseguiu erguer o tronco e ficar ereta. E ali permaneceu, a corda movendo-se em pequenos círculos, enquanto a srta. Phillips, com o rosto na altura dos joelhos trêmulos de Nan, com bondade e paciência, explicava pela centésima vez como, exatamente, subir por uma corda.
Nan rilhou os dentes. Ia conseguir. Todas as outras conseguiam, então era uma coisa possível. Ela fechou os olhos para deixar de ver os rostos zombeteiros das outras meninas e fez o que a srta. Phillips lhe dissera: segurou a corda com força e cautela num ponto acima da sua cabeça e, com cuidado, ergueu um dos pés. Mantinha os olhos fechados. Com firmeza ela puxou o corpo com os braços e, decidida, ergueu o outro pé. Tornou a segurar a corda mais no alto. Puxou o corpo, com temerosa concentração. Sim, era isto! Enfim ela estava conseguindo! O segredo devia ser manter os olhos fechados. Ela agarrava-se e puxava. Podia sentir seu corpo elevando-se facilmente em direção ao teto, assim como as outras faziam.
Mas à sua volta as risadinhas cresceram até transformarem-se em gargalhadas, e as gargalhadas viraram gritos, numa perfeita tempestade de hilaridade. Confusa, Nan abriu os olhos. Em volta dela, na altura dos seus joelhos, ela viu os rostos vermelhos e sorridentes, com lágrimas nos olhos, e as pessoas dobrando-se de tanto rir. Até mesmo a srta. Phillips estava mordendo os lábios e fungando um pouco. E aquilo não era espantar: Nan olhou para baixo e viu seus tênis ainda descansando sobre o nó na extremidade da corda; depois de tanto esforço, ela ainda estava de pé sobre o nó!
Nan tentou rir também; tinha certeza de que aquilo havia sido muito hilariante. Mas era difícil achar graça. Seu único consolo foi que, depois daquilo, nenhuma outra menina conseguiu subir pelas cordas. Estavam fracas demais de tanto rir.
Os meninos, enquanto isso, estavam correndo em volta da quadra. Vestiam apenas os shorts de corrida azul-claros e pisavam na grama molhada de orvalho com seus tênis de travas que eram obrigatórios para a corrida: era contra o regulamento correr sem os tênis apropriados. Eles estavam divididos em pequenos grupos de pernas a correr. As pernas rápidas e musculosas do grupo que ia à frente pertenciam a Simon Silverson e seus amigos, e a Brian Wentworth. Brian era um bom corredor, apesar das pernas curtas, e, prudente, estava tentando ficar atrás de Simon, mas de vez em quando a euforia da corrida o dominava, e ele passava à frente. Então era empurrado e beliscado pelos amigos de Simon, pois todos sabiam que era direito dele ficar em primeiro lugar.
O grupo de pernas logo atrás eram mais pálidas e moviam-se sem entusiasmo. Elas pertenciam a Dan Smith e seus amigos. Todos eles poderiam correr pelo menos tão velozes quanto Simon Silverson, mas estavam economizando suas forças para coisas melhores. Então galopavam relaxados, conversando entre si. Neste dia eles davam gargalhadas a cada minuto.
Atrás dessas pernas esforçava-se um grupo de pernas sortidas: pernas vermelhas, pernas gordas, pernas de um branco brilhante, pernas sem músculos e as grandes pernas marrons de Nirupam Singh, que pareciam pesadas demais para que o resto do corpo magrela do menino as erguesse. Todos naquele grupo estavam muito ofegantes para conversar. Seus rostos mostravam expressões diversas de infelicidade.
O último par de pernas, bem atrás, pertencia a Charles Morgan. Nada havia de errado com as pernas dele, a não ser o fato de que os pés estavam calçados com os sapatos escolares comuns, que já estavam completamente encharcados. Charles sempre ficava em último lugar; ele próprio queria assim. Aquela era uma das poucas ocasiões do dia em que ele conseguia ficar sozinho e pensar. Havia descoberto que, enquanto estava pensando em outra coisa, conseguia manter seu trote lento durante horas. E pensar. As únicas interrupções que o preocupavam eram quando um outro grupo se aproximava em disparada por trás dele e durante alguns segundos ele se via embaralhado na corrida dos outros. Ou quando o sr. Towers, dentro do seu uniforme de corrida quentinho, vinha galopando ao lado de Charles, gritando-lhe incentivos disparatados.
Assim Charles seguia, trotando e pensando. Entregou-se inteiro ao sentimento de ódio ao Internato de Larwood; ele detestava a quadra sob seus pés, as trêmulas árvores de outono que pingavam água nele, as traves brancas dos gols e a fileira de pinheiros na frente do muro gradeado que mantinha todos do lado de dentro. Então, quando virava a esquina e avistava os prédios da escola, odiava-os ainda mais. Eram feitos de uma espécie de tijolo arroxeado. Charles achava que aquela era a cor que ficaria o rosto de uma pessoa sendo estrangulada. Pensou nos compridos corredores lá dentro, pintados de verde-taturana, os pesados aquecedores que nunca estavam quentes, as salas de aula marrons, os gelados dormitórios brancos e o cheiro da comida da escola, e quase atingiu um êxtase de ódio. Então olhou para o grupo de pernas que percorriam na sua frente o perímetro da quadra e sentiu por todas as pessoas da escola o ódio mais horrível de todos.
Diante disso, ele descobriu-se pensando no bruxo sendo queimado na fogueira. Aquele pensamento invadiu sua cabeça sem pedir permissão, como sempre fazia. Só que dessa vez parecia pior do que de costume. Charles constatou que estava recordando coisas que não havia percebido na ocasião: o formato exato das labaredas, saltando de pequenas para grandes, e o modo como o bruxo gordo inclinava-se para um lado, fugindo delas.
Ele via a face exata do homem, o nariz meio embolotado com uma verruga, o suor sobre o nariz e as chamas refletindo-se nos olhos e no suor do homem. Acima de tudo ele conseguia ver a expressão do bruxo. Era de total espanto. Até aquele momento em que Charles o viu, o homem gordo não havia acreditado que ia morrer. Certamente havia pensado que a sua bruxaria poderia salvá-lo, e agora dava-se conta de que não podia. E estava apavorado. Charles também estava apavorado. Ele continuou correndo, numa espécie de transe de horror.
Mas ali estava o chamativo uniforme de corrida do sr. Towers galopando ao lado dele.
— Charles, mas o que é isto? Está correndo com os seus sapatos do uniforme?
O bruxo gordo dissipou-se. Charles devia ficar feliz, mas não ficou. Seus pensamentos haviam sido interrompidos, e ele já não tinha privacidade.
— Eu perguntei por que não está usando seus tênis de corrida — disse o sr. Towers.
Charles diminuiu um pouco a velocidade enquanto pensava no que iria responder. O sr. Towers, trotava cheio de disposição, ao lado dele, esperando uma resposta. Como já não estava distraído com os seus pensamentos, Charles sentia as pernas doendo e o peito comprimido. Aquilo o deixou irritado. Estava ainda mais irritado por causa dos tênis: sabia que Dan Smith havia escondido os seus tênis de corrida, e era por isso que o outro grupo estava rindo. Charles os via virando o pescoço para trás enquanto corriam, para ver o que ele estava dizendo ao sr. Towers. Isso o irritou ainda mais. Charles não costumava ter esse tipo de problema, como Brian Wentworth tinha. Até então, o seu olhar antipático o havia mantido em segurança, embora solitário, mas ele previa que no futuro teria de pensar em usar algo mais do que apenas lançar um olhar hostil. E sentiu-se muito amargurado.
— Não consegui encontrar os meus tênis de corrida, professor.
— E procurou direito?
— Sim, senhor, em toda parte — Charles declarou com amargura.
Ele pensava: por que não conto que foram eles? Mas bem que sabia a resposta: durante o resto do semestre sua vida não valeria a pena ser vivida.
O sr. Towers, correndo e falando com a mesma facilidade de quando estava sentado, afirmou:
— Na minha experiência, quando um menino preguiçoso como você diz “em toda parte”, está querendo dizer “em lugar nenhum”. Vá se encontrar comigo no vestiário depois das aulas e procure aqueles tênis. Vai ficar lá até encontrá-los. Certo?
— Sim — Charles respondeu.
Com amargura ele ficou olhando o sr. Towers disparar para a frente, distanciando-se dele, e chegar ao lado do grupo à sua frente para implicar com Nirupam Singh.
Durante o intervalo, antes da aula seguinte, ele novamente procurou os tênis de corrida. Mas não tinha esperanças. Dan os escondera em algum lugar realmente difícil. Pelo menos, depois do intervalo, Dan Smith tinha outra coisa além de Charles com que se divertir. Nan Pilgrim logo descobriu o que era. Quando ela entrava na sala de aula, foi saudada por Nirupam.
— Olá! Você pode fazer o truque com a corda para mim?
Nan deu-lhe um olhar que era na maior parte espanto, e passou por ele sem responder. Pensava: como ele podia saber sobre as cordas? As meninas nunca conversavam com os meninos! Mas como ele podia saber?
No momento seguinte, porém, Simon Silverson aproximou-se de Nan, mal conseguindo parar de rir.
— Minha querida Dulcinea! Que nome encantador você tem! — Exclamou. — Ganhou este nome por causa da Arquibruxa?
E ele dobrou-se de tanto rir, assim como a maior parte das pessoas próximas.
— O nome dela na verdade é Dulcinea, você sabia? — Disse Nirupam para Charles.
Aquilo era verdade. Nan sentia que o seu rosto parecia um balão pegando fogo: ela tinha certeza de que nada poderia ser tão grande e tão quente. Dulcinea Wilkes havia sido a bruxa mais famosa de todos os tempos. Ninguém deveria saber que o nome de Nan era Dulcinea, e ela não conseguia imaginar como isso tinha se espalhado. Tentou seguir em frente até a sua carteira, mas cada pessoa por quem passava ria e chamava:
— Ei, Dulcinea!
Ela só conseguiu sentar-se quando o sr. Wentworth já estava dentro da sala.
Geralmente, a 2Y prestava atenção às aulas dele. Pois ele era conhecido como sendo absolutamente impiedoso. Além disso, tinha jeito para tornar interessantes os assuntos, o que fazia as suas aulas parecerem mais curtas do que as dos outros professores. Mas nesse dia ninguém conseguia concentrar-se no sr. Wentworth. Nan estava tentando não chorar.
Quando, um ano antes, as tias de Nan trouxeram a menina para o Internato de Larwood, mais gordinha e mais tímida do que ela era agora, a srta. Cadwallader prometeu que ninguém ficaria sabendo que o nome dela era Dulcinea. A srta. Cadwallader prometeu! Então, como alguém poderia ter descoberto? O resto da 2Y ficou dando risadas e trocando cochichos excitados. Poderia Nan Pilgrim ser bruxa? Imagine, alguém chamado Dulcinea! Era tão ruim quanto ter o nome de Guy Fawkes! Na metade da aula, Theresa Mullett teve um ataque de riso tão grande com a idéia do nome de Nan que foi obrigada a enterrar o rosto no seu trabalho de tricô.
O sr. Wentworth tirou-lhe o tricô; jogou a trouxinha branca sobre a sua escrivaninha e examinou-a com ar de dúvida.
— Que é que existe aqui de tão engraçado? — Perguntou. Ele desenrolou a toalha, provocando em Theresa um gritinho de horror, e ergueu uma coisinha peluda e cheia de buracos.
— O que é isto, exatamente? — Ele quis saber. Todos riram.
— É uma botinha de neném — Theresa respondeu com raiva.
— Para quem? — Insistiu o sr. Wentworth.
A turma tornou a rir. Mas as risadas foram curtas e constrangidas, pois todos sabiam que não deviam rir de Theresa.
O sr. Wentworth parecia ignorar o fato de que havia conseguido um milagre fazendo com que todos rissem de Theresa, em vez de ser o contrário. Ele fez com que as risadas fossem ainda mais curtas dizendo a Dan Smith para ir até o quadro-negro e desenhar dois triângulos que fossem iguais. A aula continuou. Theresa resmungava sem cessar:
— Não tem graça! Não tem a mínima graça!
Cada vez que ela dizia isto, suas amigas assentiam, solidárias, ao passo que o resto da turma ficava olhando para Nan e irrompendo em risadas abafadas.
No final da aula o sr. Wentworth fez alguns comentários desagradáveis a respeito de um castigo em massa se os alunos se comportassem daquela maneira outra vez. Então, quando ele se virava para sair, disse:
— Aliás, se Charles Morgan, Nan Pilgrim e Nirupam Singh ainda não consultaram o quadro de avisos, deveriam fazer isso agora mesmo. Vão ficar sabendo que foram escolhidos para almoçar na mesa principal.
Tanto Nan quanto Charles souberam então que aquele não era apenas um dia ruim — era o pior de todos os tempos. A srta. Cadwallader sentava-se à mesa principal, que ficava em cima de um tablado, com qualquer pessoa importante em visita à escola. Era seu costume escolher todos os dias três alunos da escola para sentar-se com ela. Isto era para que todos aprendessem a comportar-se à mesa, e para que a srta. Cadwallader ficasse conhecendo melhor os seus alunos. Essa ocasião era considerada, com razão, uma tortura horrível. Nem Nan, nem Charles haviam sido escolhidos antes. Mal conseguindo acreditar, eles foram verificar no quadro de avisos — e lá estava: Charles Morgan 2Y, Dulcinea Pilgrim 2Y, Nirupam Singh 2Y.
Nan fixou os olhos no seu nome escrito. Então tinha sido assim que os outros ficaram sabendo! A srta. Cadwallader esqueceu-se da promessa. Esqueceu quem era Nan e tudo o que prometera, e quando fora enfiar um alfinete no livro de registro — ou fosse como fosse que ela escolhia as pessoas para a mesa principal — ela apenas escrevera os nomes que o alfinete acertara.
Nirupam também estava olhando para o aviso. Ele já fora escolhido em outra ocasião, mas não se sentiu menos arrasado do que Charles ou Nan.
— Vocês têm que pentear os cabelos e limpar a blusa — disse.
— E é realmente verdade que teremos que comer com o mesmo tipo de talher que a srta. Cadwallader usar. Temos que observar o tempo todo para ver o que ela faz.
Nan ficou ali parada, deixando as outras pessoas que queriam consultar o quadro de avisos a empurrarem. Estava aterrorizada, pois de repente tinha a certeza de que ia comportar-se muito mal na mesa principal. Ia deixar cair comida no chão, ou gritar, ou talvez tirar toda a roupa e dançar em cima dos pratos. E estava desesperada, porque sabia que não conseguiria conter-se.
Ainda estava apavorada quando chegou à mesa principal com Charles e Nirupam. Todos eles haviam penteado os cabelos até a cabeça doer, e tentado limpar da frente das blusas a sujeira que, não se sabe como, sempre cai na frente das blusas, mas todos se sentiam imundos e pequenininhos ao lado das majestosas figuras à mesa. Havia alguns professores, o tesoureiro, um homem de aparência imponente chamado Lorde Fulano, e a srta. Cadwallader em pessoa, alta e magra.
A srta. Cadwallader sorriu para eles graciosamente e apontou para três cadeiras vagas ao seu lado esquerdo. Todos eles mergulharam para a cadeira mais afastada da srta. Cadwallader. Nan, para sua grande surpresa, venceu, e Charles ficou com a cadeira do meio, deixando Nirupam sentado ao lado da diretora.
— Ora, nós sabemos que assim não pode ser, não sabemos? — Protestou a srta. Cadwallader. — Sempre sentamos um cavalheiro a cada lado de uma dama, não é mesmo? Dulcinea deve sentar-se no meio e o cavalheiro que ainda não conheço vai sentar-se mais perto de mim. Clive Morgan, não é? Isto mesmo.
Contrafeitos, Charles e Nan trocaram de lugar. E, enquanto a srta. Cadwallader fazia a oração de graças, eles ficaram de pé, olhando por cima das cabeças do resto da escola, não muito abaixo, mas o suficiente para fazer uma grande diferença. Nan pensou, esperançosa, que talvez desmaiasse. Ainda sabia que ia se comportar mal, mas além disso sentia-se muito esquisita, e desmaiar era uma maneira bastante respeitável de se comportar mal.
No final da oração ela ainda estava consciente. Sentou-se ao mesmo tempo que as outras pessoas, entre o carrancudo Charles e Nirupam. Este havia ficado amarelo de terror. Para alívio deles, a srta. Cadwallader logo voltou-se para o homem importante e começou uma conversa simpática com ele. As senhoras da cozinha trouxeram uma bandeja cheia de pequenas terrinas e entregaram uma para cada pessoa.
Que era aquilo? Certamente não fazia parte de um almoço comum na escola. Eles olharam para suas terrinas com grande suspeita. Elas estavam cheias de uma coisa amarela que mal recobria pequenas coisas rosadas.
— Acho que deve ser camarão, como entrada — disse Nirupam. Nesse momento a srta. Cadwallader estendeu a mão num gesto gracioso. Os três viraram o pescoço para ver qual seria o talher que ela iria escolher para comer o que havia na terrina. A mão dela pegou um garfo; eles também pegaram um garfo. Nan enfiou com cuidado o seu garfo na terrina. E imediatamente começou a comportar-se mal.
— Acho que é mingau — disse em voz bem alta. — Será que camarão combina com mingau? — Colocou na boca uma das coisas rosadas. — Chicletes? Não, acho que são vermes em pedaços. Mingau de vermes.
— Cale a boca — sibilou Nirupam.
— Mas não é mingau! — Nan continuou. Ela escutava a própria voz dizendo aquilo, mas parecia não haver como impedir. — O teste da língua prova que o material amarelo tem um forte sabor de sovacos azedos, combinado com... sim, um leve toque de esgotos velhos. Ele vem do fundo de uma lata de lixo.
Charles olhava para ela com raiva. Estava com vontade de vomitar. Se ousasse, teria parado de comer naquele instante. Mas a srta. Cadwallader continuou a pegar os camarões — a não ser que fossem mesmo vermes em pedaços — com o seu garfo, e Charles não ousava fazer diferente. Ele se perguntava como iria colocar aquilo no seu diário: até aquele dia nunca odiara Nan Pilgrim, de modo que não tinha um nome em código para ela. Camarão? Será que poderia chamá-la de camarão? Ele forçou-se a engolir outro verme — isto é, camarão — e a sua vontade era de enfiar toda a terrina na cara de Nan.
— Uma lata de lixo amarela limpa — Nan anunciou. — Do tipo em que guardam os peixes mortos para a aula de Biologia.
— Na índia comemos camarões ao curry — Nirupam disse em voz alta.
Nan sabia que ele estava tentando fazer com que ela se calasse. Com um grande esforço, enfiando na boca várias garfadas de vermes — camarões — ao mesmo tempo, ela conseguiu forçar-se a parar de falar. Mal conseguiu forçar-se a engolir aquilo, mas pelo menos foi obrigada a ficar em silêncio. Com profundo fervor ela desejou que o prato seguinte fosse alguma coisa comum, que não lhe despertasse o impulso da descrição, e o mesmo desejavam Nirupam e Charles.
Infelizmente, porém, o que veio em seguida para a mesa em pratos cheios era uma das iguarias mais peculiares da cozinha da escola. Eles a produziam mais ou menos uma vez por mês, e seu nome oficial era caçarola quente. Dela faziam parte ervilhas e tomates em lata. Mais uma vez Charles e Nirupam viraram a cabeça na direção da srta. Cadwallader para ver o talher que ela escolheria para comer aquilo. A srta. Cadwallader pegou um garfo. Eles também pegaram os seus garfos, e então tornaram a virar-se para se certificarem de que a diretora não pegaria também uma faca facilitando as coisas para todos. Ela não pegou, e sim enfiou o garfo graciosamente sob uma pilha de ervilhas. Eles suspiraram e, sem perceberem, viraram a cabeça para Nan, numa espécie de expectativa horrorizada.
E não houve decepção. Enquanto Nan erguia a primeira fatia de tomate engordurado, o impulso de descrever tornou a dominá-la. Era como se ela estivesse possuída.
— Ora, o objetivo deste prato é utilizar as sobras de comida. Pegamos batatas velhas e deixamos de molho em água de lavagem de louça que tenha sido usada pelo menos duas vezes. A água precisa estar totalmente cheia de resíduos de comida. — Enquanto falava, ela pensava: é como receber o dom de falar em outras línguas, embora, no meu caso, seja o dom de falar bobagens. — Então pegamos uma lata velha e suja e esfregamos por dentro com meias que tenham sido usadas durante duas semanas. Enche-se esta lata com camadas alternadas de batatas com restos de comida e ração de gato misturada a qualquer outra coisa que se tenha em casa. Neste caso foram usados biscoitos rançosos e moscas mortas...
Charles pensava: o codinome para Nan poderia ser caçarola quente? Combinava com ela. Não, porque eles só tinham caçarola quente uma vez por mês — felizmente — e, naquele ritmo, ele precisaria odiar Nan quase todos os dias. Por que alguém não a impedia? A srta. Cadwallader não estava escutando aquilo?
Enfiando o garfo num tomate, Nan continuou:
— Agora, estas coisas são pequenas criaturas que foram mortas e habilmente descascadas. Percebam, ao prová-las, o sabor leve e doce do sangue delas...
Nirupam soltou um pequeno gemido e ficou mais amarelo do que nunca.
Aquele som fez Nan levantar os olhos; até então ela estivera de olhos fixos no local da mesa onde estava o seu prato, dentro de uma névoa de horror. Agora ela percebia que o sr. Wentworth estava sentado à sua frente, do outro lado da mesa. Ele conseguia escutá-la perfeitamente; ela via isso pela expressão do rosto dele e pensava: por que ele não me impede? Por que deixam que eu continue? Por que alguém não faz alguma coisa, como um raio me atingir, ou o castigo perpétuo? Por que não passo para debaixo da mesa e rastejo para fora daqui? E durante todo o tempo ela escutava sua própria voz dizendo:
— Estas aqui, na verdade, começaram a vida como ervilhas. Mas sofreram um processo longo e mortal. Passaram seis meses numa sarjeta, absorvendo fluidos e ricos sabores, que é a razão pela qual são chamadas de ervilhas em conserva. Então...
Nesse momento a srta. Cadwallader virou-se graciosamente para eles. Nan, para seu grande alívio, interrompeu-se no meio da frase.
— A essa altura vocês já estão nesta escola há bastante tempo para conhecer bem a cidade. Conhecem aquela linda casa antiga na Rua Direita?
Os três ficaram olhando para ela. Charles engoliu uma fatia de tomate.
— Linda casa antiga? — Ele ecoou.
— Chama-se “A Casa do Antigo Portão” — Continuou a srta. Cadwallader. — Costumava ser parte do portão na antiga muralha da cidade. Uma linda construção de tijolos antigos.
— Está falando daquela com uma torre no alto e janelas como as de uma igreja? — Charles perguntou, embora não conseguisse imaginar por que a srta. Cadwallader estava falando sobre isso e não sobre as ervilhas em conserva.
— Isto mesmo — respondeu a srta. Cadwallader. — E é uma pena. Ela vai ser demolida para dar lugar a um supermercado. Sabem que ela tem um telhado com duas cumeeiras, não sabem?
— Ah, tem mesmo? — Disse Charles.
— E uma varanda em ogiva — continuou a srta. Cadwallader. Pelo que parecia, Charles ficara encarregado da conversa.
Nirupam estava muito feliz por não precisar falar e Nan não ousava fazer mais do que gestos de assentimento com expressão inteligente, para não começar a descrever a comida outra vez. Enquanto a srta. Cadwallader falava, Charles era obrigado a responder ao mesmo tempo em que tentava comer os tomates — não, eles não eram ratos sem pele! — usando apenas o garfo, e começou a sentir que estava sendo submetido a um tipo refinado de tortura.
Ele tomou consciência de que precisaria de um nome de ódio para a srta. Cadwallader também. Caçarola quente certamente serviria para ela, pois decerto uma coisa horrível assim não poderia acontecer a ele mais do que uma vez por mês. Mas isso significava que ele ainda não tinha um codinome para Nan.
A caçarola quente foi retirada. Charles não tinha comido muito. A srta. Cadwallader continuava a conversar com ele sobre as casas na cidade, depois sobre as mansões no campo, até a chegada da sobremesa. O pudim foi colocado branco, triste e rodeado de líquido, cheio de pequenos grãos brancos que pareciam cadáveres de formiga — ele estava ficando igual a Nan Pilgrim! Então ele se deu conta de que aquele era o nome ideal para Nan.
— Pudim de arroz! — Exclamou.
— É mesmo gostoso — disse a srta. Cadwallader, sorrindo.
— E tão nutritivo!
Então, para surpresa de todos, ela estendeu a mão e pegou um garfo. Charles ficou olhando. E esperando: certamente a srta. Cadwallader não ia comer o pudim de arroz com um garfo apenas? Mas ela ia, sim: enfiou o garfo no pudim e ergueu um pedaço, que pingava um leite branco e ralo.
Lentamente, Charles pegou um garfo também e virou-se para encontrar o rosto incrédulo de Nan e Nirupam. Aquilo simplesmente não era possível.
Nirupam baixou os olhos com infelicidade para o seu prato cheio e disse:
— Existe uma história em “As mil e uma noites” sobre uma mulher que comia arroz com um alfinete, grão por grão.
Charles lançou um olhar apavorado à srta. Cadwallader, mas ela estava de novo conversando com o lorde.
— Na verdade, ela era um fantasma — Nirupam continuou. — Durante todas as noites ela se fartava de comer cadáveres.
O olhar apavorado de Charles transferiu-se para Nan.
— Cale a boca, seu idiota! Vai fazer Nan começar de novo!
Mas a essa altura parecia que a possessão havia abandonado Nan. Ela foi capaz de cochichar, com a cabeça inclinada sobre o prato para que apenas os meninos ouvissem:
— O sr. Wentworth está usando a colher. Vejam.
— Acha que também podemos? — Nirupam perguntou.
— Eu vou fazer isto. Estou faminto — disse Charles.
De modo que todos os três usaram suas colheres. Quando a refeição enfim terminou, eles ficaram apavorados quando o sr. Wentworth os chamou com um gesto, mas era apenas Nan que ele estava chamando. Quando ela aproximou-se relutante, ele disse:
— Vá ao meu escritório às quatro horas.
Nan sentia que era só isso que lhe faltava. E o dia ainda estava pela metade!
Naquela mesma tarde, Nan entrou na sala de aula e deparou com uma vassoura rústica, feita com galhos secos, deitada em cima da sua carteira. Era uma vassoura velha e despencada, com apenas um mínimo de galhos, que o jardineiro da escola às vezes usava para varrer as alamedas. Alguém a trouxera do barracão de jardinagem e amarrara uma etiqueta no cabo: “O pônei de Dulcinea”. Nan reconheceu a caligrafia redonda e angelical de Theresa.
Entre risinhos abafados, ela olhou em volta, para o resto do grupo reunido. Theresa não teria pensado sozinha em roubar uma vassoura. Estelle? Não, pois nem Estelle, nem Karen Grigg estavam lá. Não: tinha sido Dan Smith, pela expressão do rosto dele. Ela então olhou para Simon Silverson e já não teve tanta certeza. Não poderiam ter sido os dois, porque eles nunca, jamais, faziam alguma coisa juntos.
Com seus modos mais suaves e um sorriso aberto, Simon perguntou-lhe:
— Por que não monta e dá um passeio, Dulcinea?
— Sim, faça isto. Monte, Dulcinea — Dan insistiu.
No momento seguinte todos estavam rindo e berrando para que ela montasse na vassoura. E Brian Wentworth, que estava sempre disposto a atormentar outras pessoas quando ele próprio não era a vítima, dava pulinhos no corredor entre as carteiras, gritando:
— Monte, Dulcinea, monte!
Devagar Nan pegou a vassoura. Ela era uma pessoa tranqüila e pacífica, que quase nunca perdia a paciência — talvez fosse esse o seu problema. Quando, porém, a perdia, não se podia saber o que ela faria. Enquanto pegava a vassoura, ela julgava que pretendia apenas colocá-la de pé contra a parede. Porém, quando suas mãos se fecharam em torno do cabo enodoado, ela perdeu o controle. Cheia de uma raiva intensa, ela virou-se para o grupo que zombava e assobiava. Ergueu a vassoura bem alto, acima da cabeça, e mostrou os dentes. Todos acharam aquilo mais engraçado do que nunca.
Nan pretendia enfiar a vassoura na cara sorridente de Simon Silverson. Pretendia quebrá-la na cabeça de Dan Smith. Porém, como Brian Wentworth estava dançando, berrando e fazendo caretas bem na sua frente, foi Brian quem ela atacou. Por sorte dele, ele viu a vassoura descendo e saltou para trás. Depois disso, ele foi forçado a recuar pelo corredor e em seguida para o espaço perto da porta, com os braços acima da cabeça, implorando piedade aos gritos, enquanto Nan o perseguia, brandindo a vassoura com se estivesse louca.
— Socorro! Segurem ela! — Brian gritava.
Ele retrocedeu para a porta justo quando a srta. Hodge vinha entrando, trazendo nos braços uma alta pilha de livros de inglês.
Brian recuou para perto dela e sentou-se aos seus pés sob uma chuva de livros.
— Ai! — Ele gritou.
— Que é que está acontecendo? — A srta. Hodge quis saber. O tumulto na sala foi interrompido como se tivesse sido desligado por um interruptor.
— Levante-se, Brian — disse Simon Silverson num tom bem comportado. — A culpa foi sua mesmo, por implicar com Nan Pilgrim.
— Ora, Nan! — Theresa exclamou; ela estava genuinamente chocada. — Tenha calma, tenha calma!
Ouvindo isto, Nan foi para cima de Theresa com a vassoura. Theresa só foi salva pela chegada oportuna de Estelle Green e Karen Grigg. As duas chegaram apressadas, com as cabeças baixas numa postura de culpa e os braços em volta de volumosas sacolas contendo novelos de lã.
— Desculpe-nos pelo atraso, senhorita Hodge — Estelle ofegou. — Tínhamos permissão para ir fazer compras.
A atenção de Nan foi atraída. A lã nas sacolas era branca e fofa, igualzinha à que Theresa usava. Nan perguntou-se, com sarcasmo, por que motivo todos tinham que imitar Theresa.
A srta. Hodge tirou a vassoura das mãos passivas de Nan e colocou-a atrás da porta.
— Sentem-se, todos vocês — ordenou.
Ela estava muito contrariada. Sua intenção era de entrar numa agradável e silenciosa sala de aula e eletrizar a 2Y com o seu plano. E ali estavam eles, já elétricos, e ainda por cima com uma vassoura de bruxa. Claro que não havia a menor oportunidade de pegar de surpresa o autor do bilhete ou até mesmo o próprio bruxo (ou bruxa). Ainda assim, ela não gostaria de deixar que um ótimo plano fosse desperdiçado.
— Achei que poderíamos fazer uma mudança hoje — revelou, quando todos estavam acomodados. — Parece que o nosso livro de poesia não está indo muito bem, não é?
Seu olhar entusiasmado percorreu a turma; a 2Y retribuiu-lhe o olhar cautelosamente. Alguns dos alunos achavam que qualquer coisa seria melhor do que lhes pedir para acharem bonitos aqueles poemas; outros sentiam que tudo dependia do que a srta. Hodge pretendia fazer no lugar da poesia. Do restante, Nan estava tentando não chorar, Brian estava lambendo um arranhão em seu braço e Charles estava com aquele seu olhar vazio e antipático. Charles gostava de poesia porque as frases eram curtas e ele podia entregar-se aos seus próprios pensamentos nos espaços em volta do texto.
— Hoje quero que vocês todos façam uma coisa — anunciou a srta. Hodge.
Todos se assustaram. Estelle levantou a mão.
— Por favor, senhorita Hodge. Não sei escrever poesia.
— Ah, não é isso que eu quero que façam — a srta. Hodge esclareceu, e todos relaxaram. — Quero que representem algumas pequenas peças de teatro para mim.
Todos tornaram a assustar-se. A srta. Hodge não prestou atenção a isto e explicou que ia chamá-los à frente aos pares, um menino e uma menina, e cada par ia representar a mesma cena curta.
— Assim, teremos quinze diferentes peças de teatro de bolso.
A essa altura, a maior parte da 2Y a encarava num desespero silencioso. A srta. Hodge sorria com carinho e se preparava para eletrizá-los. Achava que seu plano poderia dar certo, afinal.
— Agora, precisamos escolher um assunto para as nossas peças curtas. Precisa ser alguma coisa forte e impressionante, com possibilidades apaixonadas. Que tal representarmos um casal de namorados dizendo adeus?
Alguém resmungou, como a srta. Hodge sabia que aconteceria.
— Pois muito bem. Quem tem alguma sugestão? — Perguntou. Theresa levantou a mão, como também Dan Smith.
— Uma estrela da TV e um admirador — Theresa sugeriu.
— Um assassino e um policial obrigando o assassino a confessar — disse Dan. — Podemos usar tortura?
— Não podemos, não — disse a srta. Hodge, fazendo com que Dan perdesse o interesse. — Alguém mais?
Nirupam ergueu um braço comprido e magro.
— Um vendedor enganando uma senhora que quer comprar um carro.
A srta. Hodge, considerando que na realidade não esperava que alguém fizesse uma sugestão que contribuísse para denunciar a si próprio, fingiu que pensava.
— Bem, até agora a sugestão mais teatral foi a de Dan. Mas eu havia pensado em qualquer coisa realmente tensa, uma coisa que todos nós conhecemos muito bem.
— Nós todos conhecemos assassinato — Dan protestou.
— Sim — concordou a srta. Hodge, que observava cada aluno como um falcão. — Mas conhecemos ainda mais sobre roubar, digamos, ou mentir, ou bruxaria, ou...
Ela fingiu que tornava a se dar conta da vassoura, com ar de surpresa. Afinal, aquilo lhe seria útil.
— Já sei! Vamos supor que uma das pessoas na nossa pequena peça é suspeita de ser bruxa, e a outra é um Inquisidor. Que tal?
Nada. Nem uma única alma na 2Y teve qualquer reação, a não ser Dan.
— É a mesma coisa que a minha idéia — ele reclamou. — E sem tortura não tem graça.
Logo em seguida, a srta. Hodge fez de Dan o primeiro suspeito:
— Então você vai começar, Dan, com Theresa. O que você vai ser, Theresa, bruxa ou Inquisidora?
— Inquisidora, senhorita Hodge — Theresa prontamente escolheu.
— Não é justo! Não sei o que os bruxos fazem! — Dan protestou.
E não sabia mesmo, era evidente. E era também evidente que Theresa não tinha a menor idéia do que os Inquisidores faziam. Os dois ficaram parados, imóveis, junto ao quadro-negro. Dan olhava para o teto enquanto Theresa afirmava:
— Você é bruxo.
Diante disso, Dan declarou para o teto:
— Não sou, não.
E os dois continuaram dizendo a mesma coisa até a professora mandar que parassem. Com certa pena ela removeu Dan da primeira posição na lista de suspeitos para a última, e colocou Theresa na mesma posição. Então chamou o par seguinte.
Ninguém se comportou de maneira suspeita. A idéia da maioria dos alunos foi fazer a peça o mais rápido possível. Alguns discutiram um pouquinho, para causar um efeito teatral. Outros tentaram andar de um lado para o outro, para ficar mais dramático. E o primeiro prêmio de concisão certamente foi para Simon Silverson e Karen Grigg. Simon disse:
— Sei que você é bruxa, portanto não discuta.
E Karen replicou:
— Sou, sim. Eu confesso. Agora chega.
Quando chegou a vez de Nirupam, a lista de suspeitos da srta. Hodge só tinha últimos lugares e nenhum primeiro. Então Nirupam representou um Inquisidor aterrorizante. Seus olhos chispavam. Sua voz alternadamente rugia e baixava para um sussurro sinistro. Ele apontou, feroz, para o rosto de Estelle.
— Veja seus olhos maléficos! — Ele gritou, para em seguida sussurrar: — Eu vejo você, eu sinto você, eu conheço você. Você é uma bruxa!
Estelle ficou tão apavorada que representou com perfeição o papel de inocente aterrorizada.
Mas o desempenho de Brian Wentworth como bruxo foi mais realista até mesmo do que o de Nirupam. Brian chorou, contorceu-se, deu desculpas falsas e terminou ajoelhado aos pés de Delia Martin, pedindo misericórdia aos soluços e chorando lágrimas de verdade.
Todos ficaram atônitos, inclusive a srta. Hodge. Ela teria adorado colocar Brian em primeiro lugar na sua lista de suspeitos tanto de ser bruxo quando de ser o autor do bilhete. Mas seria muito prejudicial aos seus planos se ela fosse obrigada a procurar o sr. Wentworth e dizer que o culpado era Brian. Resolveu que não faria isso. Na representação de Brian não havia um sentimento genuíno, e o mesmo valia para a de Nirupam. Ambos eram apenas bons atores.
Então chegou a vez de Charles e Nan. Charles já havia previsto algum tempo antes que seu par seria Nan. Ele ficou muito contrariado, com a sensação de que estava sendo perseguido por ela. Mas não pretendia deixar que isso impedisse que a sua representação fosse um triunfo de comédia. Ele estava deprimido pela falta de criatividade que todos, exceto Nirupam, haviam demonstrado. Ninguém havia pensado em fazer um Inquisidor engraçado.
— Vou ser o Inquisidor — disse depressa.
Nan, porém, ainda estava perturbada pelo episódio da vassoura, e, achando que Charles estava implicando com ela, lançou-lhe um olhar raivoso. Charles, por princípio, jamais deixava que alguém olhasse para ele com raiva sem retribuir com aquele seu olhar vazio e cruel. De modo que os dois foram até a frente da sala apunhalando-se com o olhar. Lá, Charles deu um tapa na testa.
— Emergência! — Exclamou. — Não temos bruxos para as fogueiras de outono. Terei que encontrar uma pessoa comum em lugar de um bruxo. — E apontou para Nan. — Você serve. A partir de agora você é bruxa — declarou.
Nan não havia se dado conta de que a representação já tinha começado. Além disso, estava magoada e zangada demais para se importar.
— Ah, não sou, não — retrucou. — Por que você não pode ser o bruxo?
— Porque posso provar que você é bruxa — Charles insistiu, tentando ser fiel ao seu papel. — Como Inquisidor, posso provar qualquer coisa.
— Neste caso, nós dois vamos ser Inquisidores, e vou provar que você também é bruxo! — Disse Nan, ignorando raivosamente a boa representação dele. — Você tem os quatro olhos mais malignos que já vi. E os seus pés fedem.
Todos os olhos voltaram-se para os pés de Charles. Como ele havia sido obrigado a correr em volta da quadra calçado com os sapatos que estava usando agora, eles ainda estavam bastante molhados. E, com o calor da sala, realmente estavam exalando um cheiro leve, porém definido.
— Queijo — murmurou Simon Silverson.
Charles baixou os olhos para seus sapatos, com raiva. Nan lembrara-lhe que ele teria problemas por causa dos tênis de corrida desaparecidos. Além disso, ela havia atrapalhado a sua representação. Ele a odiava. Estava outra vez em êxtase de ódio.
— Vermes e mingau e ratos mortos! — Exclamou, e todos o encararam, perplexos. — Ervilhas em conserva de molho na sarjeta! — Ele continuou, fora de si de tanto ódio. — Batatas na água da limpeza. Não fico surpreso que o seu nome seja Dulcinea. Ele combina com você. Você é nojenta!
— E você também é! — Nan gritou de volta. — Aposto que foi você quem trouxe aqueles pássaros na aula de música, ontem!
Aquilo provocou expressões chocadas no resto da 2Y.
A srta. Hodge escutava, fascinada. Aquele sentimento era mesmo real. E o que foi mesmo que Charles dissera? Agora ficara claro o motivo pelo qual, de forma deprimente, o resto da 2Y amontoara-se no final de sua lista de suspeitos: Nan e Charles estavam no topo da lista, era óbvio. Eles sempre haviam sido os esquisitos da 2Y. Nan decerto escrevera o bilhete, e Charles devia ser o bruxo em questão. E agora ela queria só ver o sr. Wentworth zombar dos seus planos!
— Por favor, senhorita Hodge, o sino já tocou — disseram algumas vozes.
A porta abriu-se e o sr. Crossley entrou. Ao deparar com a srta. Hodge, algo que ele planejara fazer, seu rosto tornou-se vermelho escuro, fato que Estelle e Theresa acharam muito interessante.
— Estou interrompendo a sua aula, senhorita Hodge?
— De modo algum — ela respondeu. — Terminamos neste instante. Nan e Charles, voltem para os seus lugares.
E ela retirou-se da sala, fingindo não perceber que o sr. Crossley havia dado um salto com a finalidade de manter a porta aberta para ela passar.
A srta. Hodge seguiu, apressada, diretamente para o andar de cima, até o escritório do sr. Wentworth. Sabia que aquela notícia ia impressioná-lo muito. Mas, para sua contrariedade, o sr. Wentworth vinha descendo a escada com uma caixa de giz, muito atrasado para uma aula com a 3Z.
— Ah, senhor Wentworth, pode me dar um minuto? — Ofegou a srta. Hodge.
— Nem um segundo. Escreva-me um memorando, se for urgente — disse o sr. Wentworth, continuando a descer às pressas.
A srta. Hodge estendeu a mão para segurar o braço dele.
— Mas é preciso! O senhor sabe da 2Y e do meu plano a respeito do bilhete anônimo...
O sr. Wentworth girou o corpo, sempre preso pela mão dela, e ergueu os olhos para ela com ar de irritação.
— Que é que tem o bilhete anônimo?
— O meu plano funcionou! — Anunciou a srta. Hodge. — Foi Nan Pilgrim quem escreveu, eu tenho certeza. O senhor precisa falar com ela...
— Vou vê-la às quatro horas — o sr. Wentworth informou. — Se acha que preciso saber de alguma coisa, escreva-me um memorando, senhorita Hodge.
— Eileen — disse a srta. Hodge.
— Eileen quem? — Perguntou o sr. Wentworth, tentando desvencilhar o braço. — Está querendo dizer que duas meninas escreveram o tal bilhete?
— Meu nome é Eileen — disse a srta. Hodge sem soltá-lo.
— Senhorita Hodge, a essa altura a 3Z está quebrando as vidraças das janelas!
— Mas Charles Morgan também! — A srta. Hodge exclamou, sentindo que o braço dele escapava das suas mãos. — Senhor Wentworth, eu juro que o garoto recitou um feitiço! Vermes e pudim e batatas na sujeira, ele disse. Todo tipo de coisas horríveis.
O sr. Wentworth conseguiu libertar seu braço e partiu escada abaixo. Sua voz chegou de longe à srta. Hodge:
— Lesmas e caracóis e caudas de filhotes de cachorro. Anote tudo, senhorita Hodge.
— Droga! — Exclamou a professora. — Mas vou mesmo anotar tudo. Ele vai ter que me dar atenção!
Ela dirigiu-se imediatamente para a sala dos professores, onde passou o resto da aula compondo um relato da sua experiência, numa caligrafia quase tão redonda e angelical quanto a de Theresa.
Enquanto isso, na 2Y, o sr. Crossley fechava a porta atrás da srta. Hodge com um suspiro.
— Peguem os diários — disse.
Ele chegara a uma decisão a respeito do bilhete e não pretendia deixar que seus sentimentos para com a srta. Hodge interferissem no seu dever. Assim, antes que alguém pudesse começar a escrever no diário e ficasse impossível interromper, ele fez à 2Y um discurso longo e sério.
Disse-lhes que era muita maldade, desonestidade e falta de caridade escrever acusações anônimas. Pediu-lhes para pensar em como se sentiriam se alguém houvesse escrito um bilhete a respeito deles. Então revelou a eles que alguém na 2Y havia escrito um bilhete:
— Não vou contar a vocês o que havia nele; vou dizer apenas que ele acusava alguém de um crime muito grave. Quero que vocês todos pensem sobre isto enquanto fazem os seus diários e, depois que terminarem, quero que a pessoa responsável pelo bilhete escreva-me um outro, desta vez confessando quem é e porque escreveu aquilo. Apenas isto. Não vou castigar o culpado. Só quero que ele tome consciência da coisa grave que fez.
Tendo dito isto, o sr. Crossley acomodou-se para corrigir alguns deveres, sentindo que havia resolvido a questão de uma maneira muito diplomática. Os alunos da turma 2Y empunharam as canetas. Graças à srta. Hodge, todos eles achavam que sabiam muito bem o que o sr. Crossley queria dizer.
29 de outubro, Theresa escreveu. Há um bruxo na nossa sala. O sr. Crossley disse isto. Ele quer que o bruxo confesse. O sr. Wentworth confiscou o meu tricô hoje de manhã e ainda por cima fez piadinhas com isso. Eu só consegui pegar de volta na hora do almoço. Estelle Green começou a fazer tricô também. Que macaca de imitação é aquela garota! Nan Pilgrim não conseguiu subir pela corda hoje de manhã e o nome dela é Dulcinea. Isso nos fez rir bastante.
29.10.81. O sr. Crossley acabou de falar conosco com muita seriedade, Simon Silverson escreveu com muita seriedade, sobre uma pessoa culpada na nossa turma. Vou fazer o possível para que esta pessoa seja justiçada. Se não pegarmos quem é, podemos ser todos acusados. Isto é segredo, é claro, Nan Pilgrim é bruxa. Dan Smith escreveu. Este não é um pensamento secreto, porque o sr. Crossley acabou de nos contar. Eu também acho que ela é bruxa. Até o nome dela é o mesmo daquela bruxa famosa, mas não sei como se escreve. Espero que ela seja queimada onde a gente possa ver.
O sr. Crossley andou falando de acusações graves, Estelle escreveu. E a srta. Hodge andou fazendo nós todos acusarmos uns aos outros. Foi bastante assustador. Espero que nada disso seja verdade. O coitado do Teddy ficou todo vermelho quando ele viu a srta. Hodge, porém ela mais uma vez mostrou desprezo por ele.
Enquanto todos os outros escreviam o mesmo tipo de coisa, havia quatro pessoas na turma que estavam escrevendo algo muito diferente.
Nirupam escreveu:
Sem comentários hoje. Não vou nem sequer pensar na mesa principal.
Brian Wentworth, alheio a tudo, fez anotações sobre a maneira de ir de Timbuctu a Uttar Pradesh de ônibus, levando em consideração as obras nas estradas aos domingos.
Nan ficou bastante tempo pensando no que escreveria. Queria desesperadamente desabafar um pouco, mas no princípio não conseguia atinar como faria isso sem dizer alguma coisa pessoal. Por fim escreveu, com grande indignação:
Não sei se a 2Y é uma turma mediana ou não, mas é assim que ela é: são meninas e meninos divididos por uma linha invisível pelo meio da sala e as pessoas só atravessam essa linha quando os professores obrigam. As meninas são divididas em meninas de verdade (Theresa Mullett) e imitações (Estelle Green). E eu. Os meninos são divididos em meninos de verdade (Simon Silverson), brutos (Daniel Smith) e meninos irreais (Nirupam Singh). E Charles Morgan. E Brian Wentworth. 0 que faz da pessoa um menino ou uma menina de verdade é que ninguém ri dela. Se alguém for imitação ou irreal, as regras lhe dão o direito de existir contanto que essa pessoa faça o que os reais ou brutos dizem. O que faz a pessoa ser como eu ou Charles Morgan é que as regras permitem que todas as meninas sejam melhores do que eu e todos os meninos sejam melhores do que Charles Morgan. E têm permissão para atravessar a linha invisível para provar isto. Todos têm permissão de atravessar a linha invisível para implicar com Brian Wentworth.
Aqui Nan fez uma pausa. Até então ela vinha escrevendo quase que como se estivesse possuída, como acontecera durante o almoço. Agora precisou pensar em Brian Wentworth. O que era que colocava Brian abaixo até mesmo dela? Ela continuou a escrever:
Uma parte do problema de Brian é que o sr. Wentworth é pai dele, e ele á pequeno, emproado e irritante por causa disso. Outra parte é que Brian é realmente bom nas coisas, e é o primeiro na maioria das coisas, e é ele quem deveria ser um menino de verdade, não Simon. Mas SS tem tanta certeza de ser o menino de verdade que conseguiu convencer Brian também.
Nan achava que aquilo ainda não era a realidade, mas era o mais próximo que ela conseguia chegar. O resto da sua descrição da 2Y parecia-lhe magistral. Ela ficou tão contente com o que escrevera que quase esqueceu que era infeliz.
Charles escreveu: Eu me levantei, eu me levantei, EU ME LEVANTEI.
Aquilo parecia estar dizendo que ele havia pulado da cama de manhã, o que, lógico, não era o caso, mas ele havia odiado tanto aquele dia que precisava desabafar de alguma forma.
Os meus tênis de corrida foram enterrados no cereal. Eu senti muito calor correndo em volta da quadra e ainda por cima fiquei na mesa principal na hora do almoço. Não gosto de pudim de arroz. Tivemos jogos com a srta. Hodge e pudim de arroz e ainda faltam mais ou menos uns cem anos para o dia de hoje acabar.
E, no seu entender, aquilo de certa forma dizia tudo.
Quando a campainha tocou, o sr. Crossley apressou-se a arrebanhar os cadernos que estava corrigindo, para tentar chegar à sala dos professores antes que a srta. Hodge se retirasse de lá. Mas levou um susto: havia outro bilhete sob a pilha de cadernos. Estava escrito com as mesmas letras maiúsculas e a mesma esferográfica do primeiro bilhete. E dizia:
RÁ, RÁ, PENSOU QUE EU IA LHE CONTAR, NÃO PENSOU?
O sr. Crossley perguntou a si mesmo: e agora, o que é que eu faço?
No final das aulas houve a costumeira debandada para fora da sala. Theresa e suas amigas, Delia, Heather, Deborah, Julia e o resto, saíram em disparada para o recreio das meninas, no andar inferior; pretendiam colocar almofadas sobre os aquecedores lá existentes para que pudessem sentar-se sobre eles e tricotar. Estelle e Karen correram para fazer o mesmo nos aquecedores do corredor, que eram mais frios, e sentaram-se sobre eles para começar seus trabalhos de tricô.
Simon levou os seus amigos para o laboratório, onde eles aumentaram a sua coleção de bons pontos ajudando-o a arrumar o local. Dan Smith deixou que os amigos fossem jogar futebol sem ele, porque tinha algo a fazer no bosque: espionar os alunos mais adiantados, os veteranos, que iam para lá encontrar-se com suas namoradas veteranas. Charles foi com relutância para o vestiário, para mais uma vez procurar os seus tênis de corrida.
Nan Pilgrim, com igual relutância, foi para o escritório do sr. Wentworth.
Quando ela lá chegou, havia outra pessoa com ele. Nan ouvia as vozes e vislumbrava duas figuras enevoadas através do vidro ondulado da porta. Ela não se importou, quanto mais aquela conversa demorasse, melhor para ela. Ficou esperando no corredor durante quase vinte minutos, até que um monitor que passava perguntou-lhe o que estava fazendo ali.
— Esperando para falar com o sr. Wentworth — Nan explicou. Então, para provar ao monitor que estava falando a verdade, ela foi obrigada a bater na porta.
— Entre! — Berrou o sr. Wentworth.
O monitor, tranqüilizado, seguiu seu caminho pelo corredor. Nan estendeu a mão para abrir a porta, mas, antes que pudesse fazer isto, a porta foi aberta pelo próprio sr. Wentworth, e o sr. Crossley saiu, ruborizado e rindo humildemente.
— Ainda juro que não estava lá quando coloquei os livros sobre a mesa — disse.
— Ah, mas você sabe que não olhou direito, Harold — disse o sr. Wentworth. — O nosso brincalhão confiou que você não olharia. Esqueça, Harold. Ah, aí está você, Nan. Perdeu-se pelo caminho? Vamos, entre. O senhor Crossley está saindo.
O sr. Wentworth voltou para a sua escrivaninha e sentou-se. O sr. Crossley ficou parado por um instante, ainda ruborizado, e então saiu apressado, deixando a porta para Nan fechar. Enquanto fazia isso, ela percebeu que o sr. Wentworth tinha os olhos pregados em três pedaços de papel sobre a sua escrivaninha, como se achasse que eles poderiam mordê-lo. Ela viu que um deles tinha a caligrafia da srta. Hodge e que os outros dois eram pedaços de papel com letras maiúsculas azuis, mas estava preocupada demais com o seu futuro para pensar em pedaços de papel escritos.
— Explique o seu comportamento na mesa principal — pediu-lhe o sr. Wentworth.
Como na realidade não houvesse qualquer explicação que ocorresse a Nan, ela respondeu, num sussurro infeliz.
— Não consigo, professor.
E baixou os olhos para o assoalho de tacos de madeira.
— Não consegue? — Repetiu o sr. Wentworth. — Você estragou o almoço do Lorde Mulke sem qualquer motivo! Invente outra desculpa. Explique-se.
Muito infeliz, Nan colocou o pé exatamente sobre um dos tacos retangulares do assoalho.
— Não sei, não, senhor. Eu apenas falei aquelas coisas.
— Não sabe, apenas falou aquelas coisas — tornou a repetir o sr. Wentworth. — Quer dizer que quando percebeu, estava falando, sem saber que estava?
Aquilo foi dito com sarcasmo, Nan sabia. No entanto, parecia também ser a verdade. Com cuidado ela colocou o outro pé sobre o taco de madeira do assoalho que se inclinava em direção ao primeiro pé, e ficou de pé num equilíbrio instável, dedão com dedão, enquanto pensava numa explicação.
— Eu não sabia o que ia dizer em seguida.
— Por que não? — Quis saber o sr. Wentworth.
— Não sei, professor — Nan declarou. — Era como... como se eu estivesse possuída.
— Possuída! — Repetiu o sr. Wentworth num berro. Aquela era a maneira como ele berrava sempre que ia jogar giz em alguém. Nan retrocedeu para evitar o giz que veio em seguida, mas esqueceu-se de que seus pés estavam apontados para dentro e caiu sentada pesadamente no chão. Dali ela via o rosto surpreso do sr. Wentworth espiando por cima do tampo da escrivaninha.
— Que foi que causou isto? — Ele perguntou.
— Por favor não jogue giz em mim! — Nan pediu. Nesse momento houve uma batida na porta e Brian assomou a cabeça para dentro da sala.
— Já está desocupado, papai?
— Não — respondeu o sr. Wentworth.
Os dois olharam para Nan sentada no chão.
— Que é que ela está fazendo? — Brian perguntou.
— Ela diz que está possuída. Vá embora e volte dentro de dez minutos — disse o sr. Wentworth. — Levante-se, Nan.
Brian, obediente, fechou a porta e retirou-se. Nan pôs-se de pé com esforço. Foi quase tão difícil quanto subir pela corda. Ela perguntou-se como seria ser Brian e ter o pai como um dos professores, mas estava interessada principalmente no que o sr. Wentworth iria fazer com ela. Ele ostentava sua expressão mais atormentada e preocupada, e outra vez tinha os olhos fixos nos três papéis sobre a escrivaninha.
— Então acha que está possuída? — Perguntou.
— Ah, não. O que eu quis dizer foi que era como se eu estivesse possuída — disse Nan. — Antes de ter começado eu já sabia que ia fazer alguma coisa horrível, mas não sabia o que era até começar a descrever a comida. Então tentei parar e não consegui, não sei como.
— Você costuma ficar assim com muita freqüência? — O sr. Wentworth quis saber.
Nan estava quase respondendo que não em tom indignado quando se deu conta de que tinha atacado Brian com a vassoura de bruxo exatamente da mesma maneira, logo depois do almoço. E muitas e muitas vezes havia escrito coisas no diário impulsivamente. Ela tornou a colocar o pé sobre um taco do assoalho, mas retirou-o dali bem depressa. Em voz baixa e culpada, murmurou:
— De vez em quando. Acontece de vez em quando... Quando estou zangada com alguém... eu escrevo no meu diário o que estou pensando.
— E escreve bilhetes para os professores também? — Perguntou o sr. Wentworth.
— Claro que não. Qual seria o objetivo disso?
— Mas alguém na 2Y escreveu um bilhete para o sr. Crossley — continuou o sr. Wentworth. — Acusando alguém da turma de ser bruxo.
O tom sério e preocupado com o qual ele disse isto fez Nan, enfim compreender. Então era por isso que o sr. Crossley havia dito aquelas coisas e depois fora ver o sr. Wentworth. Eles julgavam que Nan havia escrito o bilhete.
— Que injustiça! — Ela explodiu. — Como é que podem pensar que eu escrevi o bilhete, e ao mesmo tempo me chamarem de bruxa! Só porque o meu nome é Dulcinea!
— Você poderia estar querendo desviar as suspeitas — o sr. Wentworth observou. — Se eu lhe fizesse uma pergunta direta...
— Eu não sou bruxa! E não escrevi aquele bilhete. Aposto que foi Theresa Mullett, ou então Simon Silverson. Aqueles dois são delatores natos! — Nan declarou. — Ou Daniel Smith — acrescentou.
— Ora, eu não teria escolhido Dan — comentou o professor. — Não tinha conhecimento de que ele sabia escrever.
O modo sarcástico como ele disse isso mostrou a Nan que ela não devia ter mencionado Theresa ou Simon: como todas as outras pessoas, o sr. Wentworth considerava-os a menina de verdade e o menino de verdade.
— Alguém me acusou — ela disse com amargura.
— Bom, vou aceitar a sua palavra de que não escreveu o bilhete — disse o sr. Wentworth. — E da próxima vez que sentir uma possessão chegando, respire fundo e conte até dez, senão poderá ter problemas sérios. Você tem um nome muito infeliz, entende? Terá que ser muito cuidadosa no futuro. Como foi que lhe deram o nome de Dulcinea? Foi por causa da Arquibruxa?
— Sim — Nan admitiu. — Sou descendente dela.
O sr. Wentworth assobiou.
— E você é órfã de bruxo também, não é? Eu não deixaria qualquer outra pessoa saber disso, se fosse você. Acontece que admiro Dulcinea Wilkes por tentar impedir que os bruxos fossem perseguidos, mas pouquíssimas pessoas pensam como eu. Fique de boca fechada, Nan. E jamais torne a descrever a comida na frente do Lorde Mulke. Agora vá.
Nan saiu atordoada do escritório e mergulhou escada abaixo. Seus olhos estavam tão nublados de indignação que ela mal conseguia enxergar aonde ia.
— Que é que ele pensa que eu sou? — Resmungava consigo mesma enquanto descia. — Eu preferia admitir que sou descendente de... de Atila ou... ou de Guy Fawkes. Ou de qualquer pessoa.
Foi mais ou menos nesse momento que o sr. Towers, que estivera de pé perto de Charles enquanto o menino procurava em vão por seus tênis de corrida no vestiário por fim abafou um longo bocejo e deixou Charles procurando sozinho.
— Traga os tênis à sala dos professores quando os encontrar — ordenou.
Charles sentou-se num banco, sozinho entre armários vermelhos e paredes verdes. Ele olhou com raiva para o piso cinzento sujo e os três pés de tênis velhos que sempre ficavam num canto. Olhou para as anônimas peças de vestuário que murchavam nos cabideiros. Sentiu o cheiro de suor e de meias velhas.
— Odeio tudo — declarou.
Havia procurado por toda parte. Dan Smith encontrara um esconderijo bastante inteligente para aquele par de tênis, portanto a única maneira de Charles poder encontrá-los era Dan lhe dizer onde estavam.
Charles rilhou os dentes e ficou de pé.
— Está certo, vou perguntar a ele — disse.
Como todo mundo, ele sabia que Dan estava no bosque, espionando os veteranos. Dan não fazia segredo disso; conseguira até que o tio lhe mandasse um par de binóculos para que pudesse ter uma visão mais de perto. E o bosque ficava logo depois da esquina do vestiário. Charles achou que poderia arriscar-se a ir até lá, mesmo se o sr. Towers voltasse de repente. O verdadeiro risco vinha dos estudantes veteranos que estivessem no bosque.
Havia uma linha invisível em volta do bosque, igualzinha à que Nan descrevera entre os meninos e as meninas na 2Y. Qualquer aluno mais novo que fosse encontrado no bosque poderia levar uma grande surra do estudante veterano que o encontrasse. Ainda assim, Charles encaminhou-se para lá, pensando: Dan também não era um aluno veterano, isso devia servir para alguma coisa.
O bosque era um emaranhado de arbustos com capim molhado de permeio. Os sapatos quase secos de Charles encharcaram-se outra vez antes que ele encontrasse Dan. Mas não demorou a encontrá-lo. Como era uma tarde fria e o capim estava muito molhado, só havia dois casais de estudantes veteranos, e eles estavam na parte mais freqüentada, de cada lado de uma enorme moita de louro. Charles soltou mentalmente uma exclamação de alegria; esgueirou-se até a moita de louro e enfiou o rosto por entre as folhas molhadas e brilhantes. Dan estava lá, no meio dos ramos secos.
— Dan! — Charles sussurrou.
Dan afastou o binóculo dos olhos com um gesto brusco e virou-se com violência. Quando viu o rosto de Charles inclinado para dentro da moita, com seu mais malévolo olhar de ódio, ele deu a impressão de estar quase aliviado.
— Suma! Magique-se para longe daqui!
— Que foi que você fez com os meus tênis de corrida? — Perguntou Charles.
— Fale baixo, está bem? — Dan cochichou.
Nervoso, ele espiou através das folhas para o casal mais próximo. Charles conseguia vê-los também. Eram um rapaz alto e magro e uma garota muito gorda, muito mais gorda do que Nan Pilgrim, e não davam a impressão de ter escutado alguma coisa. Charles via os dedos finos do rapaz enfiados na gordura da menina onde o braço dele a rodeava. E ficou pensando como alguém poderia gostar de agarrar, ou espionar, tanta gordura.
— Onde foi que escondeu os meus tênis de corrida? — Ele cochichou.
Mas Dan não se importava, contanto que os veteranos não tivessem ouvido.
— Esqueci — sussurrou.
Do lado de fora da moita, o rapaz magro encostou a cabeça na cabeça da garota gorda. Dan sorriu.
— Está vendo aquilo? Misturando as raças — declarou.
E tornou a levar o binóculo aos olhos. Charles falou um pouco mais alto:
— Diga-me onde colocou os meus tênis de corrida, senão vou gritar que você está aqui.
— Então vão saber que você também está, não vão? — Dan cochichou. — Já falei, magique-se para fora daqui.
— Só depois que você me contar — Charles teimou. Dan deu-lhe as costas.
— Você está me enchendo — declarou.
Charles viu que não tinha opção; seria obrigado a dar um berro e fazer os veteranos vasculharem a moita. Enquanto pensava se tinha coragem para isso, o segundo casal de estudantes veio depressa do outro lado da moita de louros.
— Ei! Alguns dos pequenos estão escondidos aí na moita. Sue ouviu os cochichos deles.
— Certo! — Disseram o rapaz magro e a garota gorda. E os quatro mergulharam sobre a moita.
Charles soltou um guincho de terror e saiu correndo. Ouvia galhos quebrando, folhas ciciando, resmungos e ameaças nada delicadas por parte das garotas. Ele torcia para que Dan tivesse sido agarrado, mas sabia que ele havia escapado, pois Charles estava em campo aberto; os veteranos o haviam visto e o estavam perseguindo. Ele saiu do bosque com todos os quatro em sua caça. Com um dedo sobre o nariz para segurar os óculos, ele correu para salvar sua vida e rodeou a esquina do prédio da escola.
Nada havia diante dele senão uma parede comprida e o espaço aberto, e a entrada da escola estava a quase cem metros de distância; assim, o único lugar possível que ficava mais perto era a porta aberta do vestiário dos meninos. Sem pensar, Charles atirou-se para dentro dela. E estacou de repente, dando-se conta de que havia sido idiota. Os passos dos estudantes veteranos ressoavam ao virarem a esquina do prédio, e a única saída do vestiário era a porta aberta por onde ele havia entrado. A primeira coisa em que Charles conseguiu pensar foi esconder-se atrás dessa porta e apertar-se contra a parede, torcendo para não ser visto. E ali ficou, imóvel e desesperado, aspirando meias velhas e mofo e tentando controlar a respiração ofegante, enquanto quatro pares de pés estacavam do lado de fora da porta.
— Ele está escondido aí dentro — disse a voz da garota gorda.
— Nós não podemos entrar. É masculino — disse a outra garota. — Vocês dois, entrem e tragam ele para fora.
Ouviram-se resmungos ofegantes dos dois rapazes, e dois pares de pés pesados atravessaram a porta. A julgar pelo som, o rapaz magro foi até o centro do vestiário. Sua voz ecoou no aposento.
— Para onde ele foi?
— Deve estar atrás da porta — disse o outro.
A porta foi puxada e Charles ficou petrificado ao ver o estudante que apareceu diante de si. Aquele era dos grandes; agigantava-se diante de Charles. Tinha até um princípio de bigode. Charles estremeceu de pavor.
Mas os olhos pequenos e zangados olharam através de Charles para o chão e a parede. E o rosto enorme fez uma careta de contrariedade.
— Não, aqui ele não está.
— Deve ter conseguido chegar até a porta da escola — disse o rapaz magro.
— Bruxozinho cheio de truques! — Comentou o outro.
E para total espanto de Charles, os dois saíram do vestiário. Houve algumas exclamações contrariadas da parte das duas garotas lá fora, e então os quatro aparentemente se retiraram.
Charles ficou parado onde estava, tremendo, durante algum tempo. Tinha certeza de que era um truque deles. Cinco minutos depois, no entanto, eles ainda não haviam retornado. Era algum tipo de milagre!
Charles cambaleou para o centro do vestiário, perguntando-se qual tipo de milagre era aquele que conseguia fazer um garoto enorme olhar direto através de uma pessoa. Agora que sabia que isso havia acontecido, Charles tinha certeza de que o rapazinho não fingiu — ele realmente não vira Charles parado ali.
— Então o que foi que fez isso acontecer? — Charles perguntou às roupas anônimas penduradas. — Magia?
Sua intenção havia sido fazer uma pergunta sarcástica, o tipo de coisa que a gente diz quando desiste de entender alguma coisa. Mas, por um motivo qualquer, não foi assim que soou. Logo que ele disse isso, uma suspeita enorme e terrível que vinha tomando corpo, quase despercebida, no fundo da mente de Charles, como uma dor de cabeça chegando, foi para a frente dos seus pensamentos, como uma dor de cabeça que já chegou. Charles começou a tremer outra vez.
— Não, não foi isso. Foi outra coisa qualquer! — Disse. Mas a suspeita, agora que estava ali, exigia ser expulsa agora e de forma definitiva.
— Está certo, eu vou provar — Charles decidiu. — Sei como. De qualquer maneira, odeio Dan Smith.
Ele marchou até o armário de Dan, abriu-o e ficou olhando para a bagunça de roupas e sapatos lá dentro. Ele já tinha revistado duas vezes aquele armário, aliás, havia revistado todos os armários duas vezes. Estava cansado de olhar para eles. Pegou os tênis de corrida de Dan, um em cada mão, e recuou com eles para o centro do vestiário.
— Agora vocês desapareçam — disse a eles. Juntou os dois, sola com sola, para deixar a coisa bem clara para eles. — Desapareçam — repetiu. — Abracadabra.
Como nada acontecesse, ele jogou os dois sapatos para o ar, para lhes dar outra chance.
— Vamos, depressa! — Disse.
Os dois sapatos desapareceram em pleno ar, antes de chegarem ao chão imundo.
Charles fixou os olhos no lugar onde os vira pela última vez.
— Eu não tive a intenção de fazer isto — afirmou, desesperançado. — Voltem!
Nada aconteceu; nenhum sapato apareceu.
— Ora, muito bem. Vai ver que eu tinha mesmo essa intenção — disse ele.
Então, com muita delicadeza, quase que com respeito, ele aproximou-se e fechou o armário de Dan. A suspeita desaparera. Mas a certeza que ficou no lugar dela, pairando sobre Charles, era tão pesada e tão horrenda que lhe dava vontade de agachar-se no chão: ele era bruxo! Seria caçado como a bruxa que ele ajudara, e queimado como o bruxo gordo. Ia doer. Seria horrível. Ele estava muito, muito assustado, tão assustado que era como se já estivesse morto, frio, pesado e quase incapaz de respirar.
Tentando controlar-se, ele retirou os óculos para limpá-los. Isto fez com que se desse conta de que estava, na verdade, agachado no chão em frente ao armário de Dan. Forçou-se a ficar de pé. O que deveria fazer? Não seria melhor resolver tudo logo, ir direto falar com a srta. Cadwallader e confessar tudo?
Aquilo parecia-lhe um terrível desperdício, mas Charles não conseguia pensar em outra coisa a fazer. Ele arrastou-se até a porta e saiu para a noite fria. Pensava: sempre soube que era mau, e agora isso está provado. A bruxa o beijara porque sabia que ele também era mau. Agora ele havia ficado tão mau que precisava ser destruído. Não daria trabalho aos Inquisidores, como certos bruxos faziam.
De qualquer maneira, a bruxaria dele devia estar chamando atenção; alguém já a percebera e escrevera aquele bilhete sobre isso. Nan Pilgrim o acusara de ter criado todos aqueles pássaros na aula de música, na véspera. Charles achava que havia feito aquilo sem saber que estava fazendo, do mesmo modo como se fizera invisível para os alunos veteranos, poucos minutos antes. Perguntou-se se seria um bruxo muito forte. Quanto mais malvado, mais forte? Talvez. Porém, fraco ou poderoso, o bruxo virava cinzas na fogueira. E ele estava bem a tempo de pegar as fogueiras do outono: o Dia dos Bruxos estava quase chegando. Quando enfim provassem pelos meios legais que ele era bruxo, já seria 5 de novembro, e então estaria tudo perdido.
Ele não sabia que era possível alguém sentir tanto medo e desesperança.
Raciocinando sem parar, dentro de uma névoa de horror, Charles dirigiu-se devagar para a sala da srta. Cadwallader. Postou-se do lado de fora da porta e ficou esperando, sem coragem nem sequer para bater. Passado algum tempo, a porta abriu-se. Ao ver o retângulo enevoado de luz brilhante, Charles tomou coragem.
— Então não conseguiu encontrar? — Perguntou o sr. Towers. Charles deu um pulo. Embora não conseguisse entender o que o sr. Towers estava fazendo ali, respondeu:
— Não, senhor.
— Não me surpreendo com isto, se você tiver retirado os óculos para procurar — o sr. Towers comentou.
Com as mãos trêmulas Charles prendeu os óculos atrás das orelhas. Eles estavam gelados. Na certa estava com eles na mão desde que os retirara para limpar. Agora, que conseguia enxergar, viu que estava parado do lado de fora da sala dos professores, e não da sala da srta. Cadwallader. Por que isso havia acontecido? De qualquer maneira, ele poderia muito bem confessar para o sr. Towers.
— Por favor, eu mereço ser castigado, professor. Eu...
— Vou lhe dar um zero em comportamento por causa disto. Não gosto de meninos que se humilham — o sr. Towers interrompeu-o em tom gélido. — Agora, ou você paga por um novo par de tênis de corrida, ou pode escrever quinhentas linhas todas as noites, até o final do semestre. Venha me procurar amanhã de manhã e me dizer o que decidiu fazer. Agora dê o fora daqui.
Ele bateu a porta da sala dos professores na cara de Charles, que ficou imóvel, olhando para ela. Era uma escolha desesperadora, aquela que o sr. Towers lhe dera. E ainda por cima um zero em comportamento! Mas, de um modo ou de outro, aquilo fez com que ele deixasse de lado o pavor. Sentiu que seu rosto ficava vermelho. Que tolo ele era! Ninguém sabia que era bruxo. O instinto lhe dissera isto, e dirigira os seus pés para a sala dos professores e não para a sala da srta. Cadwallader. Mas apenas a sorte o salvara de confessar tudo ao sr. Towers. Era melhor não ser mais tão burro assim. Enquanto ficasse de boca fechada e não fizesse mais mágicas, estaria em perfeita segurança. Quase sorriu enquanto se dirigia para o jantar.
Mas não conseguia parar de pensar naquilo. Aqueles pensamentos ficaram dando voltas em sua cabeça durante toda a refeição. Até que ponto ele era mau? Poderia fazer alguma coisa a respeito disso? Seria suficiente apenas não fazer mágicas? Poderia ir para algum lugar para ser desmagicado, como as roupas eram lavadas a seco? Se não, e se ele fosse descoberto, adiantaria alguma coisa fugir? Para onde os bruxos fugiam, depois de atravessarem correndo o quintal de alguém? Haveria algum meio garantido de ficar em segurança?
— Ora, que mágica! Deixei o meu livro na sala de recreio! — Exclamou alguém, bem ao lado dele.
À simples menção dessa palavra, Charles deu um pulo e ficou vibrando, como o gongo da escola quando batiam o martelo nele.
— É feio dizer palavrão — repreendeu o monitor.
Então Theresa Mullett, na ponta da mesa, falou em voz alta, de um modo que não era só zombaria:
— Nan, você não quer fazer alguma coisa interessante e miraculosa para nós vermos? Sabemos que você é capaz disso.
Charles tornou a saltar e a estremecer.
— Não consigo — Nan respondeu.
Mas Theresa, e Delia Martin também, continuaram insistindo.
— Nan, a mesa principal está cheia de lindas bananas. Não quer dizer um feitiço para trazer algumas para cá?
— Nan, estou com vontade de tomar sorvete. Faça aparecer um pouco para mim.
— Nan, é verdade que você adora o demônio?
Cada vez que elas diziam alguma coisa como essas, Charles saltava e tremia. Embora soubesse que era muito vantajoso para ele que todos pensassem que Nan Pilgrim era a bruxa, ele tinha vontade de gritar para que as meninas parassem com aquilo. E ficou muito aliviado quando, na metade do jantar, Nan ficou de pé num pulo e saiu às pressas do refeitório.
Nan foi direto para a biblioteca deserta. Pensava: muito bem, se todos têm tanta certeza de que eu sou culpada, posso pelo menos tirar alguma vantagem disso e fazer uma coisa que sempre senti vontade de fazer e nunca antes tive coragem: pegou a enciclopédia na estante e procurou “Dulcinea Wilkes”. De forma curiosa, o grosso volume abriu-se na página correta; parecia que muitas pessoas no Internato de Larwood tinham interesse na Arquibruxa. Se assim fosse, todos ficaram tão decepcionados quanto Nan, pois as leis contra a bruxaria eram tão severas que a maior parte das informações sobre a ancestral famosa de Nan estavam censuradas. O que havia era bem pouco:
WILKES, DULCINEA. 1760-1790. Notória bruxa, conhecida como a Arquibruxa. Nascida em Steeple Bumpstead, em Essex, ela mudou-se para Londres em 1781, onde logo tornou-se muito conhecida por causa dos seus vôos noturnos em volta da Catedral de St. Paul e das Casas do Parlamento, montada em uma vassoura. As vassouras feitas de galhos até hoje são chamadas, às vezes, de “Pôneis de Dulcinea”. Dulcinea desempenhou um papel de liderança na Revolta dos Bruxos em 1789. Foi presa e queimada, juntamente com os outros líderes. Dizem que enquanto ela ardia na fogueira, o chumbo no telhado da Catedral de St. Paul derreteu-se e escorreu domo abaixo. Ela continuou sendo queimada em imagem em todas as fogueiras tradicionais até 1845, quando a prática foi interrompida devido ao alto preço do chumbo.
Nan suspirou e recolocou a enciclopédia em seu lugar. Quando o sino tocou, ela foi devagar para a sala de aula, para fazer o dever que havia sido passado naquele dia, no Internato de Larwood, o dever que era passado para a aula seguinte era chamado de “dever de casa”, embora ninguém soubesse explicar o por quê. Todos os outros já estavam na sala quando Nan chegou. A sala estava cheia de ruídos feitos pelos cadernos com que os alunos estapeavam a cabeça de Brian Wentworth e com os guinchos de Brian. Mas todo ruído cessou quando Nan entrou, mostrando que o sr. Crossley havia entrado atrás dela.
— Charles Morgan, o senhor Wentworth quer falar com você — anunciou o sr. Crossley.
Charles, com um sobressalto, afastou da mente as labaredas imaginárias que giravam à sua volta. Levantou-se e saiu caminhando devagar, como um menino num sonho, ao longo dos corredores, passando pela porta de vaivém que levava à parte do edifício onde os professores que moravam na escola tinham os seus aposentos particulares. Ele só estivera na sala do professor Wentworth uma vez antes. Precisou arrancar sua mente das fogueiras e ler os nomes nas portas. Imaginava que o assunto seria o sumiço daqueles malditos tênis de corrida. Que Dan Smith se danasse e se magicasse!
Ele bateu na porta.
— Entre! — Disse o sr. Wentworth.
Estava sentado numa poltrona, fumando um cachimbo. A sala estava cheia de fumaça densa. Charles ficou surpreso ao verificar como a sala do sr. Wentworth era simples. A poltrona era muito velha e usada. Havia buracos nas solas dos chinelos do sr. Wentworth, e buracos no tapete em frente à lareira sobre o qual os chinelos descansavam. Mas o fogo a gás estalava alegremente na lareira e o aposento estava confortavelmente aquecido, comparado com o resto da escola.
— Ah, Charles — saudou o sr. Wentworth, pousando o cachimbo num cinzeiro que parecia ser a primeira tentativa de Brian na arte da modelagem em cerâmica. — Hoje à tarde me disseram que você talvez seja bruxo.
Quando estava refugiado atrás da porta do vestiário, Charles pensou que aquilo fosse o maior que uma pessoa poderia sentir; agora descobria que não era bem assim, pois tinha a sensação de que cada palavra do sr. Wentworth o atingia como um golpe violento. Sentia como se estivesse derretendo e caindo para algum lugar muito, muito fundo. A princípio pensou que estava caindo em algum lugar tão assustadoramente profundo que a sua mente inteira tornara-se um grito único, longo e horrível. Então sentiu que se elevava de volta enquanto gritava.
O aposento modesto estava desfocado e oscilava, mas Charles poderia jurar que agora estava vendo-o do alto, de algum lugar perto do teto. Tinha a impressão de estar pairando ali, aos gritos, olhando para baixo, para o topo da sua própria cabeça e para o topo um pouco calvo da cabeça do sr. Wentworth, e para a fumaça que se desprendia, ondulante, do cachimbo no cinzeiro. E isto também o apavorou: ele com certeza se dividira era duas partes, e o sr. Wentworth não deixaria de perceber.
Para a sua surpresa, a parte de si mesmo que ficara de pé sobre o tapete gasto respondeu normalmente ao sr. Wentworth. Ele escutou a própria voz dizer, com a dose certa de espanto e inocência:
— Quem, eu? Não sou bruxo, não, senhor.
— Eu não disse que era, Charles — replicou o sr. Wentworth. — Eu disse apenas que alguém disse que você é. Pelo relato que me fizeram, você teve uma briga pública com Nan Pilgrim, durante a qual falou de vermes e ratos mortos, e várias outras coisas desagradáveis.
A parte de Charles que ficara de pé sobre o tapete respondeu, em tom de indignação:
— Ora, foi isto mesmo. Mas eu só estava repetindo algumas das coisas que ela mesma disse na hora do almoço. O senhor estava lá e escutou, não foi?
Enquanto isso, a parte de Charles que pairava perto do teto estava agradecendo às estrelas que protegiam os bruxos porque o sr. Wentworth, por acaso, sentara-se em frente a Nan Pilgrim na mesa principal.
— Escutei, sim — respondeu o sr. Wentworth. — Reconheci de imediato a sua referência. Mas o informante pensou que você estava recitando um feitiço.
— Mas eu não estava, não, senhor — protestou a parte de Charles no chão.
— Mas parecia que você estava — insistiu o sr. Wentworth. — Cautela nunca é demais, Charles, nestes tempos conturbados. Parece-me que é melhor que eu lhe explique a situação.
Ele pegou o cachimbo para ajudá-lo na explicação. Como costuma acontecer com os cachimbos, aquele a essa altura havia apagado. O sr. Wentworth acendeu fósforos e inalou, e acendeu mais fósforos e inalou. No que se refere a cachimbos, nem sempre onde há fumaça há fogo; o sr. Wentworth usou dez fósforos antes de conseguir acender o seu. Enquanto Charles observava, ocorreu-lhe que o sr. Wentworth não pensava que ele era bruxo. O sr. Wentworth tampouco dava a impressão de ter percebido a maneira estranha como ele se dividira em dois. Talvez a parte dele pairando perto do teto fosse imaginária, nascida simplesmente do pânico.
Enquanto Charles pensava essas coisas, descobriu que a parte dele que pairava perto do teto vinha, aos poucos, descendo para dentro da parte dele que estava parada no chão. Quando o sr. Wentworth arriscou-se a apagar novamente o cachimbo apertando a caixa de fósforos sobre ele, Charles era outra vez um só. Por dentro ainda estremecia de terror, é verdade, mas não estava se sentindo esquisito.
— Bem, Charles, você sabe que a bruxaria sempre foi ilegal. Mas acho que é correto dizer que as leis contra ela nunca foram tão estritas quanto são agora. Acho que você já ouviu falar da Revolta dos Bruxos em 1789, é claro, sob a liderança da Arquibruxa Dulcinea Wilkes?
Charles fez um gesto afirmativo com a cabeça. Todo o mundo sabia quem era Dulcinea. Era como perguntar se ele sabia quem era Guy Fawkes.
O sr. Wentworth continuou:
— Bem, aquela revolta foi, a seu modo, bastante respeitável. Os bruxos estavam protestando por serem perseguidos e queimados. Dulcinea dizia, com bastante razão, que eles não tinham culpa de terem nascido daquele jeito e que não queriam morrer por causa de uma coisa que não podiam evitar. Ela insistia em prometer que os bruxos usariam seus poderes apenas para o bem, se as pessoas parassem de queimá-los. Dulcinea não era a criatura horrorosa que todos dizem, sabia? Ela era jovem, bonita e inteligente. Mas tinha um temperamento horroroso. Quando as pessoas não quiseram concordar em parar de queimar os bruxos, ela perdeu a paciência e fez vários feitiços enormes e violentos. Aquilo foi um erro. Deixou as pessoas absolutamente apavoradas com a bruxaria, e, quando a revolta foi dominada, houve um monte de fogueiras e novas leis, muito mais severas. Mas você deve saber de tudo isto.
Charles tornou a concordar com um gesto. Exceto o fato de ter aprendido que Dulcinea era uma bruaca perversa, e ainda por cima burra, todo o mundo sabia do resto.
— Mas o que você talvez não saiba é que houve outra revolta, muito mais desagradável, pouco antes de você nascer — continuou o sr. Wentworth, apontando o cachimbo para Charles. — Ficou surpreso? Eu sabia que ficaria. Ela foi mantida em segredo, o máximo possível. Os bruxos que lideravam essa revolta eram todos pessoas desagradáveis, e seu objetivo era tomar o domínio do país. Os principais conspiradores eram funcionários públicos e generais do Exército, e o líder era um ministro do governo. Você pode imaginar como todos ficaram assustados e chocados com isto.
— Sim, senhor — disse Charles.
A essa altura ele quase tinha deixado de sentir medo. Encontrou-se tentando imaginar o primeiro-ministro bruxo. Era uma idéia interessante.
O sr. Wentworth levou o cachimbo à boca e soltou fumaça expressivamente.
— O ministro foi queimado na Praça Trafalgar — continuou. — E o Parlamento votou uma Lei Emergencial da Bruxaria, num esforço para acabar para sempre com os bruxos. Essa lei, Charles, ainda é válida hoje em dia. Ela dá enormes poderes aos Inquisidores. Eles podem prender uma pessoa pela simples suspeita de bruxaria. Mesmo se a pessoa tiver a sua idade, Charles.
— A minha idade? — O menino ecoou roucamente.
— Isto mesmo. Os bruxos continuam a nascer — disse o sr. Wentworth. — E descobriu-se que a família do ministro sabia que ele era bruxo desde que ele tinha onze anos de idade. Desde então muito se pesquisou sobre o assunto. Há uma centena de tipos diferentes de detectores de bruxos. Mas a maior parte da pesquisa foi para descobrir quando os poderes dos bruxos afloram, e parece que a maioria deles começam mais ou menos com a sua idade, Charles. De modo que, nos últimos tempos, os Inquisidores prestam especial atenção a todas as escolas. E uma escola como esta, onde pelo menos a metade dos alunos são órfãos de bruxos, vai atrair a atenção deles instantaneamente. Está entendendo?
— Não, senhor. Por que está me contando isto?
— Alguém pensou que você recitou um feitiço — explicou o sr. Wentworth. — Raciocine, garoto! Se eu não soubesse o que você estava dizendo, a essa altura você estaria preso. De modo que, de agora em diante, você vai ter que ser extra-especialmente cauteloso. Agora está entendendo?
— Sim, senhor — disse Charles, quase apavorado de novo.
— Então pode ir fazer o seu dever de casa — disse.
Charles fez meia-volta e atravessou o tapete puído, dirigindo-se para a porta, mas parou e virou-se quando o sr. Wentworth o chamou:
— E, Charles, vai ganhar um zero em comportamento para lembrar-se de ser cuidadoso — informou.
Charles abriu a porta. Dois zeros numa só noite! Quem tivesse três zeros em comportamento na mesma semana ia para a sala da srta. Cadwallader e tinha grandes problemas. Dois zeros! Ambos por coisas que não eram culpa sua! Enquanto fechava a porta, Charles voltou-se e dirigiu o seu olhar mais malvado diretamente para o sr. Wentworth. Estava fervilhando de raiva.
Seguiu pelo corredor até a porta de vaivém, ainda furioso. A porta abriu-se quando ele estava se aproximando da porta e, para sua surpresa, a srta. Hodge passou por ela. A srta. Hodge não morava na escola. Como Estelle logo descobrira e contara a todo mundo, ela morava na cidade com o pai idoso. E em geral não estava na escola à noite.
— Charles! Mas que coisa conveniente! — Exclamou ela. — Você estava com o sr. Wentworth?
Não ocorreu a Charles querer saber como a srta. Hodge sabia disso. Afinal de contas, em sua experiência, os professores sempre sabiam demais.
— Sim — respondeu apenas.
— Então pode me dizer quais são os aposentos dele? — Pediu a srta. Hodge.
Charles indicou com um gesto os alojamentos do sr. Wentworth e empurrou a porta de vaivém com o ombro. Tinha acabado de passar para o outro corredor quando a porta tornou a abrir-se e por ela passou de volta a srta. Hodge.
— Charles, tem certeza de que o sr. Wentworth está lá? Ele não respondeu quando bati.
— Ele estava sentado perto da lareira — Charles relatou.
— Então eu talvez tenha batido na porta errada — retrucou a srta. Hodge. — Será que você se importa de vir me mostrar?
Charles pensou: me importo, sim. Suspirou e tornou a passar pela porta de vaivém com a srta. Hodge. Esta parecia feliz por ter a companhia dele, e isso o deixou bastante surpreso.
A srta. Hodge estava pensando: é muita sorte ter encontrado Charles. Desde a tarde ela vinha raciocinando com cautela. E havia chegado à conclusão de que o seu próximo passo, o passo mais aconselhável no caminho para o seu casamento com o sr. Wentworth, seria ir até ele e impulsivamente retirar a sua acusação contra Charles. Era desagradável pensar em uma pessoa sendo queimada viva, mesmo tendo Charles o olhar mais maléfico que ela conhecia. Ela faria uma figura bastante generosa. E ali estava, com o próprio Charles, para provar que não queria mal ao menino.
Charles olhou para o nome do sr. Wentworth na porta e perguntou-se como a srta. Hodge poderia ter batido na porta errada.
— Ah, era a porta certa. O nome dele está aí — disse ela, quase ao mesmo tempo.
Ela bateu e tornou a bater, com visões douradas do seu romance com o sr. Wentworth crescendo enquanto, juntos, os dois tentavam proteger Charles das garras dos Inquisidores. Mas não houve resposta de dentro da sala, e ela voltou-se para Charles com expressão de perplexidade.
— Talvez ele tenha adormecido — disse o menino. — Estava bem quentinho lá dentro.
— E se nós abrirmos uma fresta da porta e dermos uma olhada? — A srta. Hodge sugeriu, um pouco perturbada.
— Faça a senhorita — disse Charles.
— Não, faça você — retrucou a srta. Hodge. — Eu me responsabilizo.
Charles suspirou e abriu a porta da sala do sr. Wentworth pela segunda vez naquela tarde. Uma rajada de ar frio e enfumaçado soprou no rosto deles. O aposento estava às escuras, a não ser pelo brilho suave do aquecedor a gás que esfriava na lareira. Até mesmo isso desapareceu quando a srta. Hodge acendeu autoritariamente a luz e ficou a abanar a fumaça para longe de si.
— Ora, ora — exclamou, olhando em volta. — Aquele homem precisa de uma mão feminina nesta sala. Tem certeza de que ele estava aqui, Charles?
— Neste instante — Charles confirmou teimosamente.
Porém ele começava a ser dominado pelo terror. Era quase como se o sr. Wentworth nunca houvesse existido. Ele foi para a frente da lareira e encostou a mão no aquecedor: estava bem quente. O cachimbo do sr. Wentworth ainda descansava no cinzeiro de cerâmica, e também estava quente, mas esfriava rápido em contato com o ar gelado que entrava pela janela aberta. Charles imaginou esperançosamente que o sr. Wentworth havia simplesmente sentido cansaço e ido para a cama. Na parede oposta, depois da janela de cortinas enfunadas pelo vento, havia uma porta que provavelmente levava ao quarto de dormir.
Mas a srta. Hodge avançou sem cerimônia e abriu aquela porta. Era um armário entupido de cadernos escolares.
— Ele não saiu por aqui — declarou ela. — Sabe se o quarto dele fica neste mesmo corredor?
— Deve ser — Charles respondeu.
Mas sabia que o sr. Wentworth não havia saído para o corredor. Ele não poderia ter saído daquela sala sem que Charles o visse enquanto se encaminhava para a porta de vaivém, ou que a srta. Hodge o visse quando passou por Charles indo na direção oposta. Só havia uma outra possibilidade: Charles havia olhado com muita raiva para o sr. Wentworth; com certeza lhe lançara o seu olhar mais maléfico. E aquele seu olhar fizera o sr. Wentworth desaparecer, do mesmo modo como os tênis de corrida de Dan haviam desaparecido. Era o que chamavam de “mau-olhado”.
— Acho que não adianta ficar esperando aqui — disse a srta. Hodge em tom descontente. — Ah, tudo bem. Posso falar com ele amanhã.
Charles ficou muito feliz em escapar dali. Ficou muito feliz era acompanhar a srta. Hodge até a porta onde ela havia deixado sua bicicleta. Durante o caminho ele conversou educadamente com ela; aquilo mantinha seus pensamentos longe do que ele havia feito. E achava que, se se esforçasse bastante na conversa e mostrasse muita simpatia, a srta. Hodge poderia não tomar consciência de que Charles fora a última pessoa a pôr os olhos no sr. Wentworth.
Os dois falaram sobre poesia, futebol, bicicletas, o cachorro do zelador e o jardim do sr. Hodge. O resultado foi que a srta. Hodge montou em sua bicicleta e partiu achando que Charles Morgan era um menino muito simpático, quando a pessoa o conhecia melhor. Isso tornava ainda mais agradável que ela tivesse resolvido retirar sua acusação contra ele. Disse a si mesma que uma professora devia sempre tentar conhecer seus alunos.
Charles soltou um grande suspiro de alívio e retomou o seu caminho sob o peso de uma nova culpa. Quando chegou à sala de aula, quase todos os outros haviam terminado o dever de casa e partiam em tropel para o ensaio do coro. Charles ficou sozinho na sala, além de Nan Pilgrim, que também parecia estar atrasada com o dever. Eles não conversaram entre si, como sempre, mas era duvidoso que algum dos dois houvesse avançado muito no trabalho. Nan pensava, com infelicidade, que se pelo menos fosse mesmo uma bruxa como Dulcinea Wilkes, não se importaria com o que os outros dissessem. Charles pensava no sr. Wentworth.
Primeiro os pássaros durante a aula de música, agora o sr. Wentworth! Ficar invisível para o veterano não contava, porque ninguém havia percebido. O que deixava Charles apavorado era que parecia que ele usava bruxaria sem querer, e isso chamava atenção. Se pelo menos conseguisse parar de fazer isso, então ainda poderia ter uma chance. A srta. Hodge poderia dar-lhe um álibi na história do sr. Wentworth, se ele continuasse sendo simpático com ela. Mas como é que uma pessoa se impede de fazer mágicas?
— Este dia está sendo horrível. Ainda bem que ele está quase no fim — Nan comentou, enquanto guardava as suas coisas, preparando-se para sair.
Charles encarou-a, perguntando-se como ela sabia. Então arrumou as suas coisas e saiu também. Tinha muito medo de que aquele dia ainda não houvesse terminado para ele, muito pelo contrário. Ouvira dizer que, em geral, os Inquisidores vinham buscar os bruxos à noite. Era assim que viriam buscá-lo, logo que alguém descobrisse que o sr. Wentworth estava desaparecido. Charles pensou no sr. Wentworth durante todo o tempo em que tomou banho. Na maioria das vezes, ele até que gostava do sr. Wentworth, e lamentava muito o que lhe havia acontecido. Talvez a maneira de impedir-se de fazer aquilo outra vez, com o sr. Crossley ou com qualquer outra pessoa, consistisse em pensar com intensidade na sensação de ser queimado vivo. Doeria muito.
“Ser queimado dói”, repetia para si mesmo enquanto se despia. “Ser queimado dói muito”. Ao se deitar na cama ele estava tremendo, e não apenas por causa do ar frio no dormitório comprido e austero.
À distância, algumas camas depois da dele, Brian estava de novo levando uma surra. Brian estava agachado sobre a cama com os braços acima da cabeça, enquanto Simon Silverson e seus amigos o golpeavam com travesseiros. Estavam rindo, mas batiam para valer.
— Exibido! Puxa-saco! Exibido! — Diziam.
Até então, Charles sempre ficara quase feliz por estar naquele dormitório e não, como Nirupam, no dormitório ao lado, onde Dan Smith reinava com os seus amigos da 2X e da 2Z. Agora ele pensava em sair dali, sorrateiro, e ir dormir na sala de recreio dos meninos menores. Os gritos de Brian — pois ele jamais conseguira apanhar em silêncio — não cessavam de intrometer-se nos pensamentos infelizes de Charles, lembrando-lhe o que ele havia feito ao pai dele. Aquilo ficou tão desagradável que Charles quase levantou-se da cama e foi bater em Brian também, só para aliviar os seus sentimentos. Mas a essa altura ele entendera o motivo para a surra de travesseiros: o sr. Brubeck havia pedido a Brian para cantar um solo no concerto da escola e Brian, de forma imprudente, concordara. Todos os outros sabiam que somente Simon tinha o direito de cantar os solos.
Aquilo significava que bater em Brian seria puxar o saco de Simon, e isso Charles não faria. Voltou a entregar-se aos seus pensamentos desesperados. Não havia um modo que ele pudesse imaginar para manter em segredo o desaparecimento do sr. Wentworth. Mas havia uma boa chance de que ninguém descobrisse que aquilo era obra de Charles. Portanto, se ele pelo menos conseguisse pensar numa maneira garantida de impedir-se de fazer mágicas sem querer... isso mesmo! Garantida! “Ser queimado dói muito”.
Charles levantou-se. Desenganchou os óculos da grade da cama, enganchou-os nas orelhas e foi para o meio da bagunça de travesseiros.
— Posso pegar a vela de emergência por cinco minutos? — Perguntou a Simon em voz bem alta.
Simon, óbvio, era o monitor do dormitório. Ele fez uma pausa no castigo de Brian e assumiu uma postura oficial.
— Para quê você quer a vela? Ela é só para emergências.
— Você vai ver para quê.
Simon hesitou, dividido entre a curiosidade e a sua inclinação costumeira de nunca dar coisa alguma a alguém.
— Primeiro você vai ter que me dizer para quê quer a vela. Não posso entregar a você sem um motivo.
— Não vou lhe contar. Só quero que me dê a vela — Charles insistiu.
Simon pensou um pouco. Sua experiência com Charles Morgan mostrara-lhe que, quando Charles dizia que não ia contar, nada conseguiria obrigá-lo: nem travesseiros, nem mesmo uma surra de verdade. Como Charles esperava, a sua curiosidade ficou ainda maior. Em tom de autoridade ele declarou:
— Se eu lhe der a vela estarei desobedecendo ao regulamento. Você me deve uma compensação por me arriscar a ter problemas, sabia?
Aquilo já era de se esperar.
— Que é que você quer? — Charles perguntou.
Simon deu-lhe um sorriso simpático, perguntando-se de que tamanho seria a necessidade de Charles.
— A sua mesada todas as semanas até o final do semestre; que tal? — Propôs.
— É demais — Charles respondeu.
Simon deu-lhe as costas e tornou a pegar o travesseiro.
— É pegar ou largar. É a minha última oferta — declarou.
— Aceito — Charles concordou, odiando Simon. Simon voltou-se para ele cheio de espanto. Havia imaginado que Charles iria protestar, ou então desistir de pegar a vela. Os amigos encararam Charles, com igual espanto. Aliás, a essa altura ninguém mais estava batendo em Brian, pois ali estava acontecendo algo muito estranho. Até mesmo Brian tinha os olhos pregados em Charles. Como alguém poderia querer tanto assim uma vela?
— Muito bem. Vou aceitar a sua oferta — disse Simon. — Mas lembre-se, você prometeu na frente de testemunhas. É melhor pagar direitinho.
— Vou pagar. Todas as semanas, quando o sr. Crossley nos der nosso dinheiro. Agora me dê a vela — disse Charles.
Simon, com demonstrações de eficiência, pegou o chaveiro no bolso do casaco e destrancou o armário na parede onde ficavam a caixa de primeiros socorros e a vela. Charles pensava: se acontecesse um milagre e os Inquisidores não viessem atrás dele, ele havia se colocado em grande confusão. Nenhum dinheiro até o Natal! Aquilo significava que ele não poderia comprar um novo par de tênis de corrida. Conseqüentemente, teria que escrever quinhentas linhas todos os dias para o sr. Towers. Mas no fundo não acreditava que estaria por ali para fazer aquilo durante muito tempo. Todos diziam que os Inquisidores descobriam os bruxos, não importava o que estes fizessem para esconder-se.
Simon colocou a vela nas mãos dele. Ela estava apagada, dentro de um castiçal de esmalte branco. Charles olhou para ele. Ergueu os olhos e viu Simon e os outros meninos, até mesmo Brian, sorrindo.
— Você se esqueceu de pedir fósforos — Simon observou. Charles olhou para ele. Olhou com raiva. Olhou com mais do que raiva: foi o olhar mais maléfico que ele já dirigira a alguém. Esperava que seu olhar fizesse Simon murchar no mesmo instante.
Tudo o que aconteceu foi que Simon deu um passo para trás, afastando-se dele. Mesmo assim, sua pose era de superioridade, como sempre.
— Mas vou lhe dar os fósforos de graça — disse. — Faz parte do serviço.
E jogou uma caixa de fósforos na direção de Charles.
Charles abaixou-se e pousou o castiçal no chão. Com todos os meninos a olhar para ele, riscou um fósforo e acendeu a vela. Ajoelhou-se ao lado dela. Pensava: “ser queimado dói, ser queimado dói muito”. Colocou o dedo dentro da pequena labareda amarela e manteve-o ali.
— Que diabos você está fazendo? — Ronald West quis saber. Charles não respondeu. Durante um segundo achou que a labareda não iria queimá-lo. Ele sentia apenas o dedo quente e molhado. Então, de repente, ficou bem quente e doeu muito. Como Charles imaginara, doía de uma maneira bem diferente de um corte ou uma topada com o dedão. Aquela era uma dor muito mais cruel, aguda e espalhada ao mesmo tempo, que fez as costas de Charles se arrepiarem por inteiro e irritou os nervos em toda a extensão do seu braço.
Ele pensou: imagine isto em todo o meu corpo! “Ser queimado dói”. E doía mesmo. Aquilo estava fazendo o suor aflorar abaixo dos seus olhos.
— Deve ser um desafio ou uma aposta — ele ouviu Simon dizer. — Qual das duas coisas? Conte, senão vou tornar a guardar a vela.
— Aposta — disse Charles, respondendo qualquer coisa. “Ser queimado dói”. Ser queimado dói. Ele pensava isso sem parar, preocupado era marcar essas palavras em seu cérebro, ou na parte dele, fosse qual fosse, que fazia mágicas. “Ser queimado dói” — Ah, como doía!
— Algumas pessoas fazem apostas imbecis — Simon comentou. Charles ignorou-o e tentou manter imóvel o seu dedo, que movia-se em espasmos, tentando saltar para fora da chama por vontade própria. O dedo agora estava vermelho, com uma faixa branca cortando o vermelho. Ele ouvia um barulho esquisito, uma espécie de fritura diminuta, como se a sua pele estivesse frigindo. Então, de repente, não conseguiu mais agüentar. Contra a sua vontade, puxou o dedo e apagou a chama com um sopro. Os meninos que o observaram soltaram juntos um suspiro, como se até então estivessem com a respiração presa.
Quando Charles lhe devolveu a vela, Simon declarou, em tom descontente:
— Imagino que você ganhou mais dinheiro com esta aposta do que o que ficou me devendo.
— Não ganhei, não — Charles apressou-se a afirmar, pois tinha medo de que Simon exigisse esse dinheiro também. Se não lhe pagasse, ele seria bem capaz de contar todo o episódio da vela ao sr. Crossley. — Não ganhei nada. A aposta era queimar o dedo até a ponta cair.
O professor de plantão apareceu à porta, berrando:
— Apaguem a luz! Chega de conversa!
Charles deitou-se em sua cama, onde pôs-se a chupar o dedo queimado, torcendo e rezando para que agora tivesse ensinado a si mesmo a não fazer mágicas sem querer. Sua língua palpava uma bolha enorme e polpuda que começava a crescer entre a unha e a articulação. A dor era maior do que nunca.
Na escuridão Simon declarou:
— Sempre soube que Charles Morgan é doido. Que coisa mais idiota de se fazer!
Ronald West respondeu:
— Os animais não raciocinam.
— Os animais são mais inteligentes — interveio Geoffrey Baines.
— Charles Morgan é uma forma de vida primitiva — Simon completou.
Os comentários desse tipo continuaram por um bom tempo. Era muito seguro conversar, por causa da barulheira que sempre havia no dormitório ao lado. Charles ficou esperando que eles parassem de falar. Sabia que não ia conseguir dormir. E não conseguiu mesmo.
Muito tempo depois que Simon e seus amigos silenciaram, muito tempo depois que dois monitores e o professor de plantão apareceram e mandaram os meninos do outro dormitório calarem a boca, Charles continuava deitado, rígido como um tronco de árvore, olhos fixos nas sombras.
Estava assustado, apavorado. Mas o pavor era agora um tipo de pavor melancólico e cotidiano que ele tinha certeza de que daí em diante iria sentir o tempo todo, para o resto da vida. Supondo que, por um milagre qualquer, nenhum Inquisidor viesse buscá-lo, então ele iria sofrer, a cada minuto de cada dia, durante anos e anos, de medo de que ele viesse. Sentiu a curiosidade de saber se era possível aprender a se acostumar com isso. Esperava que sim, porque naquele momento a sua vontade era de saltar da cama e confessar, só para acabar logo com tudo aquilo.
Se Charles de repente desse um pulo da cama e gritasse “Eu sou bruxo!”, o que Simon diria? Quem sabe pensaria que Charles estava maluco. Era estranho que Simon não tivesse desaparecido também. Enquanto chupava o dedo ferido, Charles tentava entender esse fato. Com certeza odiava Simon. No fundo não odiava o sr. Wentworth nem um pouco, ou apenas como se odeia qualquer professor que nos dê um zero que não merecemos. Talvez a bruxaria tivesse de ser um pouco racional para poder funcionar direito.
Então Charles pensou em seus outros problemas: dois zeros em comportamento no mesmo dia, nada de tênis de corrida, nenhum dinheiro, quinhentas linhas por dia. E nada disso por culpa sua! Aliás, também não era sua culpa ter nascido bruxo. Era tudo tão injusto! Gostaria de não ter que se sentir tão culpado por causa do sr. Wentworth, além de tudo. “Ser queimado dói”.
Desse ponto em diante, os pensamentos de Charles começaram a ficar menos encadeados. Mais tarde ele entendeu que certamente havia adormecido. Porém, era apenas um cochilo leve e assustado, no qual os pensamentos ficavam marchando dentro da sua cabeça como se ele fosse uma máquina com o interruptor enguiçado no LlGA. Mas não tinha certeza de haver dormido.
Na ocasião, parecia-lhe que ele se sentara na cama depois de raciocinar sobre as coisas de um modo bastante ordenado. Era tudo muito óbvio. Ele era bruxo; não ousava ser pego; portanto, seria obrigado a usar um pouco mais de magia para não ser descoberto. Em outras palavras: era melhor ir até um lugar com privacidade, como o banheiro no andar inferior, e trazer de volta em primeiro lugar o sr. Wentworth, e depois, os seus tênis de corrida.
Charles levantou-se. Lembrou-se de colocar os óculos e teve até mesmo a idéia de fazer uns montinhos com a roupa de cama, para dar a impressão de que ele ainda estava deitado ali. Conseguia enxergar bem o suficiente para fazer isso, à luz fraca que vinha do corredor. Por causa dela conseguiu passar, pé ante pé, pelos vultos adormecidos de todos os outros garotos. Esgueirou-se para o corredor, que em comparação lhe parecia claro como o dia.
Do dormitório vizinho vinha bastante barulho: ruídos de cochichos e alguns mais fortes, seguidos por risinhos logo abafados. Charles estacou. Parecia que lá dentro estavam fazendo uma daquelas festanças noturnas. Os ruídos mais fortes eram as tábuas do assoalho sendo erguidas para que eles pegassem a comida que escondiam sob elas. Era uma péssima hora para vagar por ali, pois, se o professor de plantão escutasse a barulheira, Charles seria apanhado também.
Mas o corredor permaneceu deserto. Depois de algum tempo Charles tomou coragem para continuar em frente. Seguiu pelo corredor e desceu pelo poço escuro da escada de concreto que havia no final dele. Estava frio, pois o sistema de aquecimento, que nunca era muito quente, havia sido desligado pelo resto da noite. O frio que subia através dos pés descalços de Charles e atravessava o seu pijama serviu para despertá-lo um pouco. Ele ficou imaginando se havia sido a dor no dedo que o despertara. O dedo latejava sem parar. Charles segurou-o contra a parede fria para acalmar a dor e, enquanto seus pés tateavam de um degrau gelado para outro, tentava planejar o que faria. Óbvio, o mais importante era trazer de volta o sr. Wentworth — se conseguisse. Entretanto, bem que ele precisava dos seus tênis de corrida.
— Vou praticar com os tênis de corrida — ele resmungou. — Se conseguir trazer os tênis de corrida, vou tentar trazer o Senhor Wentworth.
Saiu aos tropeços da escada e virou para a esquerda em direção aos banheiros. Eles ficavam onde o corredor desembocava em outro formando um T. Charles estava na metade do caminho quando o outro corredor encheu-se de uma claridade baça que se movia. Uma figura meio iluminada postava-se ali, balançando uma lanterna gigantesca. A luz em movimento iluminou a pequena criatura branca avançando em círculos logo atrás: o zelador e seu cachorro estavam a caminho de inspecionar os banheiros, para evitar atos de vandalismo.
Charles deu meia-volta e seguiu, pé ante pé, na direção oposta. De imediato o outro corredor encheu-se de latidos agudos, como se fosse uma trovoada em miniatura: o cachorrinho havia percebido a sua presença. Charles saiu correndo. Ouviu o zelador gritar atrás de si, enquanto se aproximava pelo corredor:
— Quem está aí?
Charles correu. Passou em disparada pelo final da escada, na esperança de que o zelador pensasse que ele havia tornado a subir, e foi em frente, braços estendidos na frente do corpo, até topar com a porta de vaivém. Abriu devagarinho uma fresta. Com cautela deslizou por ela para o outro lado, segurando a beirada da porta para que ela não se fechasse com ruído e o denunciasse. Então ficou parado, em grande expectativa.
Não adiantou: o zelador não caiu no truque. Uma nuvem de claridade cresceu na vidraça da porta. A sombra do corrimão da escada atravessou a vidraça e desapareceu, e a luz foi ficando mais forte à medida que o zelador avançava.
Charles soltou a porta e recomeçou a correr, percorrendo com passos pesados os corredores escuros até perder totalmente a noção de onde se encontrava. Mal conseguia respirar. Livrara-se do zelador, mas perdera o rumo. Então virou uma esquina e pestanejou à luz alaranjada de um poste distante entrando através de uma janela. Perto da janela havia a inconfundível porta da sala de recreio dos menores. Mesmo àquela luz fraca, ele reconhecia as marcas de chutes na parte inferior da porta e a vidraça no painel superior rachada quando Nirupam Singh tentou atingir Dan Smith e errou o golpe. Nesse momento, aquela porta lhe parecia o lar. Charles pensou: afinal, havia lugares piores do que aquele para se praticar magia. Abriu a porta e esgueirou-se para dentro.
A luz fraca, uma pessoa virou-se num salto para enfrentá-lo.
Charles pulou para trás, de encontro à porta. E soltou um guincho. A outra pessoa soltou um guincho também.
— Quem é você? — Ambos perguntaram ao mesmo tempo.
Então Charles encontrou o interruptor de luz; empurrou-o para baixo e logo para cima, num movimento rápido, deixando ambos aturdidos. O que ele viu fez com que se encostasse contra a porta, confuso, pestanejando na escuridão esverdeada. A outra pessoa era Brian Wentworth. Aquilo, por si só, já era bastante esquisito, porém mais esquisito ainda foi que, naquele ofuscante momento de claridade, Charles enxergou claramente que Brian estava chorando. Charles ficou atônito: Brian, como todos sabiam, nunca chorava. Ele berrava e gritava por piedade quando lhe batiam, mas nunca, jamais, se soube que ele houvesse chorado. Charles passou depressa do espanto ao horror, pois era evidente que seria preciso alguma coisa fora do comum para fazer Brian chorar, e essa coisa só podia ser Brian ter descoberto que seu pai havia desaparecido misteriosamente.
— Eu desci para fazer tudo ficar bem outra vez — Charles explicou, cheio de culpa.
— Que é que você pode fazer? — Perguntou na escuridão a voz de Brian, rouca e grossa de tanto chorar. — O único motivo por que você está melhor do que eu é que você olha para as pessoas com ódio e elas o deixam em paz. Eu queria ter um olhar agressivo como o seu. Então podia impedir que eles me pegassem e me batessem o tempo todo!
Ele recomeçou a chorar, com soluços fortes que o sacudiam. Charles ouvia o choro mover-se para o meio da sala de recreio, mas a princípio não conseguia ver Brian, por causa da escuridão esverdeada. No fundo não conseguia acreditar que Brian se importasse tanto de apanhar; aquilo acontecia com tanta freqüência que Brian já deveria estar completamente acostumado. A essa altura, Charles conseguia distinguir Brian agachado no centro do piso de concreto; foi até ele e agachou-se à sua frente.
— É só isso que há de ruim? — Perguntou, cauteloso.
— Só! Só isso! — Brian repetiu. — Que mais você quer que eles façam? Que arranquem meus braços e pernas, ou coisa assim? Às vezes eu queria que fizessem isso. Eu morreria e não teria que agüentar as surras a toda hora, todos os dias! Eu odeio esta escola!
— É mesmo — Charles concordou, com veemência. — Eu também.
Dizer aquilo deu-lhe um enorme prazer, mas não ajudava a levar o assunto para o desaparecimento do sr. Wentworth. Ele respirou fundo, para tomar coragem.
— E... Você viu o seu pai...?
Brian interrompeu-o, quase com um grito.
— É claro que falei com o bruxento do meu pai! Falo com ele quase todos os dias, e peço para ele me deixar sair deste lugar. Hoje à tarde fui falar com ele e fiz o mesmo pedido. Perguntei por que eu não podia estudar na Escola de Forest Road, como faz Stephen Towers, e sabe o que ele me respondeu? Disse que a Forest Road é uma escola particular, e ele não pode pagar as mensalidades. Não pode pagar! — Brian repetiu com amargura. — Eu lhe pergunto: por que ele não pode pagar, se o Senhor Towers pode? Ele deve receber o dobro do que o Senhor Towers recebe! Aposto que ele ganha quase tanto quanto a senhorita Cadwallader! E ainda diz que não pode pagar!
Charles ficou pensando sobre isso. Lembrava-se do tapete surrado e dos furos nos chinelos do sr. Wentworth. Aquilo lhe parecia um sinal de pobreza, mas imaginava que poderia ser pão-durismo. E isso trouxe de volta o seu sentimento de culpa: sem o sr. Wentworth, Brian seria obrigado a ficar para sempre no Internato de Larwood.
— Mas viu seu pai depois disso? — Quis saber.
— Não. Ele me disse para parar de ir me queixar com ele — Brian contou, e recomeçou a chorar.
Então Brian ainda não tinha descoberto. Charles sentiu um alívio enorme: ainda estava em tempo de trazer o sr. Wentworth de volta. Mas aquilo significava que eram realmente apenas as surras que estavam deixando Brian tão infeliz. Apesar da evidência, esse fato deixou Charles surpreso, pois Brian sempre lhe parecera tão atrevido e despreocupado...
Em meio aos soluços, Brian voltou a falar.
— Por qualquer coisa que eu faça eles me batem — contou. — Não tenho culpa de que o meu pai seja professor aqui! Não tenho culpa de saber fazer as coisas! Não pedi ao professor Brubeck para cantar um solo, ele apenas me deu. Mas é claro que o bruxento do Simon Silverson pensa que ele é quem deveria cantar o solo. E esta a coisa que eu mais detesto: o modo como todo o mundo faz o que Simon Silverson mandar! — Brian afirmou com veemência.
— Eu também odeio o Simon — Charles revelou. — Demais.
— Ah, o que a gente sente não é importante. A palavra dele é lei. É como aquele jogo, sabe, “o mestre mandou”. No jogo a gente tem que fazer tudo o que mandarem se antes disserem “o mestre mandou”. “Simon mandou”! E quem é ele, afinal? Um metidão...
— Um idiota que bajula os professores — Charles acrescentou.
— ...de cabelos louros e cara de santinho. Não esqueça o ar convencido — Brian completou.
— Quem poderia esquecer? — Charles perguntou. — Ele nos dá um pontapé no traseiro e depois faz cara de que a culpa é nossa.
Ele estava achando aquela conversa divertida. Mas parou de achar graça quando Brian disse:
— Obrigado por fazer pararem de me bater esta noite. O que foi que lhe deu a idéia de queimar o seu dedo daquele jeito? E que coisa do Simon Silverson, arrancar todo o seu dinheiro em troca de uma vela! — Brian hesitou um instante e então acrescentou: — Acho que devo pagar metade disso a você.
Charles mal conseguiu controlar-se para não aceitar; aquilo seria realmente cruel. Mas o que deveria fazer agora? Era evidente que Brian pensava que ele havia descido para consolá-lo. Talvez esperava que daí em diante Charles fosse seu amigo. Charles achava que merecia aquilo; era a recompensa por ter colocado mau-olhado no pai de um colega. Mas, deixando de lado o sr. Wentworth, deixando de lado o fato de que Brian era a escória das escórias na 2Y, deixando de lado até mesmo o fato de que Charles não gostava de Brian, ele sabia que já não poderia ser amigo de pessoa alguma. Afinal, ele era bruxo. Por sua culpa, qualquer pessoa que fosse sua amiga seria presa também.
— Você não precisa me pagar. Não me deve nada — declarou. Brian pareceu bastante aliviado.
— Então, por causa disto, vou lhe contar uma coisa — disse. — Já estou farto da escola. Se papai não quiser me levar para outro lugar, vou fugir daqui.
— Para onde? — Charles quis saber.
Ele próprio, algum tempo antes, já havia pensando em fugir, mas fora obrigado a desistir da idéia porque não havia para onde escapar.
— Não tenho a menor idéia. Apenas fujo — Brian admitiu.
— Não seja bobo — disse Charles, pois pelo menos uma coisa amigável ele podia dizer. — É preciso planejar tudo direitinho. Se apenas fugir, vão chamar os cães rastreadores e trazer você de volta, e aí, sim, é que será castigado.
— Mas vou enlouquecer se continuar aqui! — disse Brian em tom histérico. Então calou-se e assumiu uma expressão pensativa, batendo o queixo de frio. — Acho que descobri um jeito — afirmou.
A essa altura, os dois estavam tremendo, pois fazia muito frio na sala de recreio dos menores. Charles ficou tentando imaginar como poderia mandar Brian de volta para a cama sem que ele próprio fosse também. Não conseguiu atinar com um meio de fazer isso, e assim, os dois continuaram agachados, cara a cara, no centro do piso de concreto, até que ouviram um ruído súbito no outro lado da porta rachada. Ambos deram um pulo.
— O cachorro do zelador — Charles cochichou. Brian deu uma risadinha.
— Que animal idiota. É igualzinho ao tricô da Theresa Mullett.
Antes de conseguir conter-se, Charles soltou uma gargalhada.
— Parece mesmo! Parece mesmo!
— Cale a boca! O zelador está vindo aí! — Sussurrou Brian.
Realmente a vidraça rachada da porta mostrava a luz enevoada de uma lanterna. O cãozinho furioso começou a latir do outro lado da porta. Ele sabia que os dois estavam ali.
Brian e Charles puseram-se de pé num salto e atravessaram correndo a sala, saindo pela outra porta. Assim que essa porta fechou-se ruidosa atrás deles, a porta rachada abriu-se com igual ruído e na sala deserta ecoaram os latidos do cachorro. Sem uma palavra, Charles correu para um lado e Brian, para o outro. Charles nunca chegou a ficar sabendo para onde Brian havia escapado; enquanto corria, ele escutou a segunda porta abrir-se barulhentamente e o ruído leve de passos atrás de si. Charles segurou seus óculos e correu desesperadamente. Era como quando fugira dos estudantes veteranos no bosque. O que era que fazia com que todos o perseguissem? Ele teria cheiro de bruxo, ou alguma coisa assim? Charles encontrou uma porta para o exterior, mas estava trancada. Ele seguiu em frente. Ouvia atrás de si, à distância, o zelador gritando para que o cachorro voltasse. Aquilo fez o cãozinho hesitar. Charles, a essa altura bastante apavorado, fez um esforço na corrida e jogou-se através da porta seguinte.
Do lado de dentro daquela porta havia uma sensação de espaço grande e frio. Charles avançou alguns passos cautelosos e bateu com o pé numa fileira de cadeiras de aço, fazendo algum barulho. Ele ficou paralisado, esperando ser descoberto. A princípio mal conseguia escutar, por causa do sangue que pulsava em seus ouvidos. Então constatou que conseguia ouvir os latidos do cachorro, em algum lugar à distância. Ao que parecia, o animal perdera o seu rastro. Ao mesmo tempo, ele descobriu que conseguia distinguir os contornos de janelas imensas bem no alto, atrás das cadeiras. Ele estava no Salão Nobre da escola.
Ocorreu a Charles que ele não encontraria uma oportunidade melhor do que essa: era melhor fazer aparecer imediatamente os seus tênis de corrida. Não, melhor seria deixar os tênis para depois, pois o sr. Wentworth era muito mais urgente. Trazendo o sr. Wentworth, talvez, quando este aparecesse, Charles pudesse interceder por Brian.
Foi nesse ponto que Charles deu-se conta de que não ousava trazer o sr. Wentworth de volta. Se o sr. Wentworth não sabia quem havia provocado o seu sumiço, ficaria sabendo assim que surgisse de volta e deparasse com Charles.
— Bruxos em chamas! Por que não raciocinei? — Ele gemeu.
O cão soltou outro latido, não muito distante. Perseguido e indeciso, Charles avançou e trombou em outras cadeiras. Estava no meio de um perfeito labirinto de cadeiras! Ficou parado onde estava e tentou raciocinar.
Pensou: ainda poderia trazer os tênis de corrida. Podia dizer que, por causa da preocupação com os tênis, havia sofrido de sonambulismo, e então o zelador o encontrara. Vacilante, ele levantou os dois braços. O cão estava chegando mais perto.
— Sapatos — Charles apressou-se a dizer, e sua voz falhou por causa do medo, do frio e da falta de fôlego. — Sapatos. Venham a mim. Rapidinho. Abracadabra! Sapatos, eu estou chamando!
Os latidos do cão davam a impressão de estar quase perto da porta do Salão Nobre. Charles fez movimentos arrastados com as mãos e depois cruzou-as sobre o peito.
— Sapatos!
Uma coisa que, pelo som, poderia ser um sapato, caiu sobre a cadeira perto dele. Apesar do cachorro latindo, Charles sorriu de satisfação. O segundo sapato caiu no outro lado dele. Ele estendeu as mãos para encontrá-los, e mais um par de sapatos caíram sobre a sua cabeça. Vários outros tombaram perto dos seus pés. Agora ele escutava sapatos caindo por toda a sua volta; ao que parecia, ele estava no centro de uma chuva de calçados. E o cachorro, agora, arranhava a porta, sem parar de latir. Uma botina (a julgar pelo peso) atingiu o ombro de Charles quando ele virou-se e saiu tateando ao longo da fileira de cadeiras, tropeçando em chuteiras, tênis e botinas, que, em número cada vez maior, caíam em volta dele.
A essa altura o zelador estava quase à porta. Charles via através do vidro a claridade da lanterna avançando. Ela ajudou-o a encontrar o caminho. Pois ele sabia que já não havia chance de usar aquela besteira sobre o sonambulismo. Precisava dar o fora dali, e depressa. Escorregando, ele avançou entre as fileiras de cadeiras, em meio aos calçados que caíam, para a lateral do Salão Nobre, onde disparou para a porta por onde os professores costumavam entrar.
A escuridão era total no outro lado dessa porta. Charles supunha que estava na sala dos professores, mas não chegou a saber com certeza. Aos tropeços, com as mãos estendidas à frente do corpo, tão assustado que tinha a sensação de estar sonhando, ele tropeçou e caiu por cima de um tamborete. Quando foi se levantar, lembrou-se da sua segunda bruxa, aquela que viera atravessando o jardim. Enquanto derrubava uma pilha de livros, ele se deu conta de que devia ter pensado nela antes. Ela havia dito que era impossível fazer mágicas se a pessoa estivesse assustada. E tinha razão, pois alguma coisa havia dado muito errado lá no Salão Nobre. Ao mesmo tempo em que tentava desvencilhar-se de um capote, Charles pensava: é preciso estar calmo e controlado para ter certeza de fazer tudo certo. Ah, graças a Deus, ali está uma porta!
Charles mergulhou porta afora e encontrou-se não muito longe da escada principal. Subiu por ela em disparada. Durante a subida seu polegar encontrou a bolha gorda e dolorosa no outro dedo e esfregou-a. Que desperdício! Que total desperdício de dinheiro! Ao que parecia, queimar o dedo não lhe ensinara coisa alguma. E ali estava a linda luz esverdeada dos corredores do dormitório. Agora faltava pouco.
Charles não se lembrava de ter se deitado na cama. Seu último pensamento nítido foi perguntar-se se Brian teria voltado ou se havia aproveitado a ocasião para fugir. Quando, de manhã, o som do sino despertou-o, ele tinha uma espécie de sensação de que havia adormecido no chão do dormitório, perto dos pés da cama de Brian. Mas não, estava em sua própria cama. Seus óculos estavam enganchados na grade da cama. Ele começou a ter esperanças de ter sonhado tudo aquilo durante a noite. No entanto, muito antes que ele estivesse suficientemente acordado para sentar-se e bocejar, o aposento encheu-se de vozes indignadas.
— Não consigo encontrar os meus sapatos!
— Ora, que foi que aconteceu com os nossos sapatos?
— Meus chinelos também não estão aqui!
Enquanto Charles sentava-se com esforço, Simon perguntou:
— Você agora é ladrão de sapatos, Brian?
E deu na cabeça de Brian um tapa descuidado e bem-humorado, para mostrar que não acreditava que Brian fosse capaz de ser tão empreendedor. Brian estava ajoelhado sobre a cama, parecendo tão sonolento quanto Charles se sentia. Não deu resposta alguma a Simon e nem olhou para Charles.
No dormitório vizinho, os sapatos também haviam desaparecido. E ouvia-se a voz de um aluno veterano descendo o corredor a gritar:
— Ei, ei, vocês furtaram os nossos sapatos?
Todos estavam zangados e achavam que alguém havia feito uma brincadeira sem graça. Charles torcia apenas para que continuassem pensando assim. Todos foram forçados a esquecer os sapatos e andar por lá calçados apenas de meias. Os sapatos de Charles também haviam sumido, deixando-o feliz por ter sido tão eficiente, e ele estava vestindo um segundo par de meias quando um boato começou a espalhar-se pelo dormitório. Como acontece com os boatos, esse era bastante misterioso e ninguém sabia quem havia começado.
— Temos que ir para o Salão Nobre. Todos os sapatos estão lá.
Charles juntou-se ao tropel em direção ao Salão. No corredor do andar inferior, todas as meninas, também de meias, juntaram-se a eles. Todos os alunos do curso elementar foram para o pátio, para olhar através das janelas do Salão. Ali, a primeira reação das pessoas foi de espanto.
Uma escola com seiscentos alunos tem uma grande quantidade de sapatos. Seriam mil e duzentos, se cada pessoa tivesse apenas um par; no Internato de Larwood, porém, cada pessoa era obrigada a ter sapatos especiais para quase todas a coisas que faziam. Assim, era preciso acrescentar àquele número todos os tênis de ginástica, os tênis com travas para corrida, os tênis propriamente ditos, as sapatilhas, os sapatos de gala, as sandálias, as botas de hóquei, as botas de cano alto e as galochas. O número de calçados chegava a milhares.
Acrescentemos a todos eles os calçados pertencentes aos professores: os sapatos característicos da srta. Cadwallader, com saltos que pareciam carreteis de linha; os sapatos extra-largos da cozinheira; as botinas do jardineiro; os mocassins de camurça feitos a mão do sr. Crossley; os sapatos irlandeses, rústicos e pesados, do sr. Brubeck; os dezesseis pares de sapatos de salto agulha da governanta; botas de pele escarlate de alguém; e até mesmo um par de botas de montaria, para não mencionar muitos outros. O número chegava a ser formidável.
As cadeiras do Salão Nobre estavam enterradas sob uma monstruosa montanha de sapatos.
Em meio ao espanto generalizado, ouviu-se a voz de Theresa:
— Se alguém acha isto uma brincadeira engraçada, eu não acho graça. Minhas meias de dormir estão imundas!
Ela estava usando fofas meias de dormir por cima das meias do uniforme escolar.
Depois disso, houve um tumulto: as pessoas entravam pelas portas e pelas janelas, escorregavam na pilha de sapatos, remexiam-na em busca de sapatos que elas julgavam que lhes pertencia, ou, não conseguindo isso, apenas um par de sapatos que lhes servissem.
Até que uma voz berrou:
— Fora! Saiam, Todos Vocês! Deixem Todos os Sapatos Aí!
Era o sr. Wentworth. Charles ficou tão espantado que parou de mover-se e logo, devido à movimentação de todos dentro do Salão, encontrou-se bem perto da porta. Dali ele conseguia ver o sr. Wentworth caminhando ao redor da pilha de sapatos. Usava seu habitual terno surrado, mas tinha os pés inteiramente nus. Fora isso, nada havia nele de extraordinário. Depois dele vinham o sr. Crossley, usando meias de um amarelo brilhante, e o sr. Brubeck, que exibia no pé esquerdo um belo buraco no calcanhar da meia. Em seguida vinha o zelador. E atrás dele, como de costume, vinha o cachorro do zelador; era evidente a sua disposição de levantar a patinha e molhar a pilha de sapatos.
— Não sei quem fez isto! — Protestava o zelador. — Mas sei que durante metade da noite houve gente andando sorrateiramente pelo prédio. O cachorro quase pegou um, bem aqui, neste mesmo Salão.
— Você veio até aqui investigar? — Quis saber o sr. Wentworth.
— Porta fechada — respondeu o zelador. — Achei que estava trancada.
O sr. Wentworth deu-lhe as costas com desagrado.
— Alguém ficou muito ocupado aqui dentro, ontem à noite, e este aí nem ao menos vem olhar! — Declarou ao sr. Crossley.
— Pensei que estivesse trancada — repetiu o zelador.
— Ah, fique quieto! — Disse rispidamente o sr. Wentworth. — E faça o cachorro parar de fazer xixi naquele sapato. Ele pertence à srta Cadwallader.
Charles saiu de mansinho para o corredor, tentando manter com proporções normais o sorriso no rosto. Estava tudo bem com o sr. Wentworth! Decerto havia mesmo ido deitar-se, na véspera, enquanto a srta. Hodge pedia informações a Charles. Melhor ainda: todos pensavam que os sapatos haviam chegado ao Salão Nobre de maneira bem natural. Charles sentia vontade de cantar e de dançar.
Mas de repente, ali estava Dan Smith ao seu lado, o que deixou Charles menos eufórico.
— Ei, os veteranos pegaram você ontem, afinal?
— Não, eu fugi correndo — Charles respondeu em tom casual.
— Deve ter corrido muito! — Dan observou. Embora relutante, vindo de Dan aquilo era um elogio. — Sabe alguma coisa sobre a pessoa que fez isso com os sapatos? — Perguntou, indicando com a cabeça a direção do Salão Nobre.
Charles teria adorado dizer que havia sido ele, e contemplar o respeito crescer no rosto de Dan. Mas não era tão bobo assim.
— Não — declarou.
O sr. Wentworth surgiu à porta do Salão Nobre, e de um lado a outro do corredor apinhado ouviram-se sonoros psius.
— O café da manhã vai atrasar. Não se pode esperar que o pessoal da cozinha trabalhe sem sapatos. — Gritou o vice-diretor. Parecia muito aflito. — Todos vocês devem ir para as suas salas de aula e esperar lá. Enquanto isto, os professores e os alunos da sexta série vão ter o enorme trabalho de colocar todos os sapatos em fila no pátio principal. Quando vocês forem chamados, mas só quando forem chamados, entendem?, vão descer, turma por turma, e pegar os sapatos que forem de cada um. Podem ir. Os da sexta série fiquem aqui.
Relutantes, todos puseram a movimentar-se confusamente ao longo do corredor. Charles estava tão feliz consigo mesmo que arriscou um sorriso para Brian. Mas Brian tinha os olhos fixos na parede e não percebeu. E não se moveu, nem sequer gritou, quando Simon deu-lhe um tapa distraído na cabeça.
— Onde está Nan Pilgrim? Tornou-se invisível? — Simon perguntou, rindo.
Tentando ficar fora do caminho, Nan estava no corredor do andar de cima, perto dos banheiros das meninas. De lá ela tinha total visão do piso do pátio sendo forrado de sapatos, e as senhoras da cozinha, só de meias, andando na ponta dos pés entre as fileiras de calçados, procurando os seus sapatos de trabalho. Ela não estava achando graça naquilo. Delia Martin, amiga de Theresa, e Karen Grigg, amiga de Estelle, já tinham deixado bem claro que pensavam que aquilo era obra de Nan. O fato de que aquelas duas normalmente não se falavam, e tampouco falavam com Nan, parecia só piorar as coisas.
O café da manhã ficou pronto antes que a 2Y fosse chamada para recolher os seus sapatos. Theresa foi forçada a andar pelos corredores usando suas meias de dormir azuis. A essa altura elas estavam bem pretas nas solas, o que a deixava muito descontente. O café da manhã foi tão tarde que a formação no pátio foi cancelada. Em vez disso, a srta. Cadwallader postou-se diante da mesa principal, com o rosto tenso de desprazer e um dos pés molhado, e fez um pequeno discurso.
— Alguém fez uma brincadeira de extremo mau gosto com a escola — declarou. — As pessoas que fizeram isso sem dúvida acharam muito engraçado, mas devem ser capazes de, a essa altura, reconhecer a coisa estúpida e desonrosa que fizeram. Quero que elas se mostrem honradas agora. Quero que venham a mim e confessem. E quero que qualquer outra pessoa que saiba ou suspeite dos autores mostre-se também honrada e venha me contar o que sabe. Estarei na minha sala durante toda a manhã. Isto é tudo.
Quando todos se levantavam, Nirupam disse em voz bem alta:
— O que há de honrado em ser dedo-duro?
Dizendo isto, fosse de propósito ou sem querer, ele prestou um favor a Nan. Ninguém na 2Y queria ter a reputação de dedo-duro, portanto ninguém foi procurar a srta. Cadwallader. Em vez disso, foram todos para o pátio, onde uma chuvinha gelada caía agora, e puseram-se a percorrer as fileiras de calçados molhados, tentando encontrar os seus. Nan foi obrigada a ir também.
— Ora vejam! Aí vem a Arquibruxa Dulcinea — disse Simon.
— Por que você fez isto com os seus próprios sapatos também, Dulcinea? Achou que pareceria mais inocente, não foi?
E Theresa protestou:
— Francamente, Nan! Minhas meias de dormir estão estragadas. Não tem graça!
— Agora faça alguma coisa engraçada de verdade, Nan — Karen Grigg sugeriu.
— Andem depressa com isto! — Gritou o sr. Crossley, abrigado na varanda. Imediatamente todos ficaram muito ocupados verificando os sapatos. O único que nada fez foi Brian, que apenas ficou a vagar por ali, olhos fixos no espaço. No final, Nirupam encontrou os sapatos dele e entregou-os numa trouxa aos braços flácidos de Brian.
— Você está bem? — Nirupam perguntou-lhe.
— Quem? Eu? Ah, estou, sim — Brian afirmou.
— Tem certeza? Você está com um dos olhos meio de lado — Nirupam insistiu.
— É mesmo?
Brian pestanejou distraído e afastou-se.
Nirupam virou-se para Simon com expressão severa
— Acho que você bateu demais na cabeça dele — declarou. Simon riu, embora um tanto inquieto; Nirupam era bem maior do que ele.
— Bobagem! A cabeça dele é oca, não tem o que machucar — protestou.
— Bem, é melhor você tomar cuidado — Nirupam advertiu. E teria dito mais coisas, se não fosse interrompido pelos berros de Dan Smith.
— Vou pegar quem fez isto! — Gritava ele. Estava muito pálido e irritado depois do banquete de meia-noite na véspera, e tinha um aspecto bastante selvagem. — Vou me vingar, mesmo que seja um bruxento da sexta série. Alguém sumiu com os meus tênis de corrida! Já procurei por toda parte, e nada!
— Procure de novo, desta vez com cuidado — berrou o sr. Crossley da varanda.
Aquilo era de fato esquisito. Dan procurou por todas as fileiras, e o mesmo fez Charles, até que as meias de ambos ficaram encharcadas e os cabelos pingavam chuva, mas nem os tênis com travas de Dan, nem os de Charles, estavam ali. A essa altura, as turmas 1X, 1Z e 1Y também já haviam recebido permissão de irem recolher seus sapatos antes que ficassem molhados demais, de modo que tudo o que restava eram três pés soltos, as botas de montaria e um par de tênis verde-berrantes que, ao que parecia, ninguém desejava.
Dan fez tantas ameaças que Charles ficou aliviado por não ter ocorrido a ele que aquilo pudesse ter alguma coisa a ver com Charles Morgan.
Mas isso significava que logo em seguida Charles seria obrigado a procurar o sr. Towers e confessar que os seus tênis de corrida ainda não haviam aparecido. Parado do lado de fora da sala dos professores, pingando água de chuva no chão, ele se sentia farto. Depois de todo aquele trabalho!
— Procurei, sim, senhor — ele assegurou ao sr. Towers.
O sr. Towers olhou de relance para os cabelos encharcados de Charles, e seus óculos molhados de chuva.
— Qualquer pessoa pode ficar na chuva — afirmou. — Você vai pagar pelo par novo ou vai escrever as linhas?
— Vou escrever as linhas — Charles escolheu com raiva.
— Então ficará de castigo todas as tardes, até o Natal — o sr. Towers decretou. Parecia que aquela idéia lhe agradava. — Espere! — Ele entrou depressa na sala dos professores e tornou a sair, com um livro velho e grosso na mão. — Tome. Copie quinhentas linhas tiradas deste livro todas as noites — ordenou, entregando o livro a Charles. — Isto vai lhe mostrar como um aluno deve ser. Depois de ter copiado todo o livro, eu lhe darei a continuação.
Charles ficou parado na porta da sala dos professores, estudando o livro, que se chamava “O menino mais corajoso da escola” e cheirava a mofo. Dentro, as páginas eram amarronzadas e as letras, meio borradas. A primeira frase da história era:
“— Como vai ser divertido! — Exclamou Watts Júnior. — Vou passar metade da tarde correndo atrás de uma bola!”
Charles desviou o olhar do livro para contemplar a bolha no seu dedo, gorda, transparente e incômoda, e sentiu-se mal.
— Inferno bruxento! — Praguejou.
— Bom dia, Charles — disse a srta. Hodge, dirigindo-se, bela e inocente, para a sala dos professores. — Que belo livro antigo! Fico feliz ao ver você enfim entregue a uma leitura séria.
Ela ficou bastante desconcertada ao receber de volta um dos mais mortíferos olhares de ódio de Charles. Enquanto despia a capa de chuva, pensava: mas que menino de temperamento instável! E ficou também surpreendida ao encontrar a sala dos professores mergulhada em uma espécie de tumulto, com uma pilha de botas e sapatos no centro. De qualquer maneira, ali estava o sr. Wentworth, passando por ela com muita pressa, em direção a outro lugar qualquer. A srta. Hodge postou-se bem no caminho dele.
— Ah, Senhor Wentworth, quero lhe pedir desculpas por ter feito aquela acusação contra Charles.
Ela considerava aquilo uma atitude muito generosa da sua parte, depois do modo como Charles acabara de encará-la, e sorriu para o sr. Wentworth.
Para sua contrariedade, porém, o sr. Wentworth limitou-se a dizer:
— Muito bem.
E afastou-se com bastante rudeza. A srta. Hodge, porém, entendeu que ele tinha muitos problemas na cabeça quando o sr. Crossley, muito excitado, contou-lhe sobre os sapatos. Portanto ela não ficou magoada com o sr. Wentworth. Reuniu os seus livros, pois, por um motivo qualquer, todos os livros haviam se espalhado pelo chão, e partiu para dar à turma 2Y outra aula de inglês.
Chegando lá, ela encontrou Simon Silverson segurando no alto “O menino mais corajoso da escola”.
— Escutem só isto! — Ele dizia. — “Inchado de orgulho, Watts Júnior encarou nos olhos o seu único amigo verdadeiro. Ali estava um menino acima dos outros, são de corpo e de alma...”
Theresa e Delia riam, estrepitosas, com os rostos enterrados nos seus trabalhos de tricô. Charles desfechava olhares assassinos.
— Francamente, Simon! Isto não é digno de você — repreendeu a srta. Hodge.
Simon encarou-a com espanto; sabia que nunca fazia alguma coisa indigna. A srta. Hodge continuou:
— Mas, Charles, acho que a sua escolha de livro foi infeliz.
Pela segunda vez nessa manhã Charles lançou o seu olhar sobre ela. A srta. Hodge retraiu-se. Se ela não soubesse que Charles era no fundo um bom menino, aquele olhar dele poderia fazer com que ela pensasse seriamente em mau-olhado.
Nirupam ergueu o braço comprido.
— Vamos fazer teatro outra vez? — Perguntou, esperançoso.
— Não. Peguem seus livros de poesia — disse a srta. Hodge com veemência.
A aula e o resto da manhã arrastaram-se; Theresa terminou o segundo sapatinho e preparou os pontos para fazer um casaquinho. Estelle adiantou bastante a touca de bebê que ela estava tricotando. Brian desistiu de ficar olhando para a parede e pareceu ter sido tomado de uma violenta agitação: sempre que alguém olhava para ele, encontrava-o escrevendo sem parar em cadernos diferentes.
Charles ficou pensativo, um tanto surpreso com as coisas que lhe passavam pela mente. Já não tinha sequer um pouquinho de medo. Enfim parecia estar aceitando com muita calma o fato de ser bruxo. Ninguém havia percebido isso; todos pensavam que a bruxa era Nan Pilgrim, por causa do nome que tinha, e esse fato era muito útil a Charles. Mas a coisa mais estranha foi que ele parou de se perturbar com o bruxo que ele vira ser queimado na fogueira.
Tentou lembrar-se dele, a princípio com cautela, depois com ousadia, quando percebeu que isso não o perturbava. Então passou para a segunda bruxa, aquela que viera por cima do muro. Nenhum dos dois o perturbava agora. Pertenciam ao passado — haviam desaparecido. Era como ter uma dor de dente e ela parar de repente. Na paz que se seguiu, Charles percebeu que sua mente devia estar tentando dizer-lhe que ele se descobriria bruxo. E, agora que ele sabia, aquilo parou de incomodar.
Então, para ver se isso o deixava assustado, ele pensou nos Inquisidores. “Ser queimado dói”, ele pensou, e olhou para a bolha enorme. Ela lhe ensinara alguma coisa, afinal. E essa coisa era: não seja descoberto.
“Ótimo!” Charles pensou. E levou os pensamentos para o que haveria de fazer com Simon Silverson. Em seguida, com Dan Smith, mas Simon vinha em primeiro lugar. O que poderia fazer a Simon que valesse a mesada de quase todo o semestre? Era difícil. Precisava ser alguma coisa muito ruim, porém sem ligação com Charles. No princípio, ele ficou empacado. Queria que fosse alguma coisa artística, queria que Simon sofresse e queria que todos os outros ficassem sabendo, mas sem saberem que havia sido Charles o autor. O que, afinal, ele poderia fazer?
A última aula, antes do almoço, era a educação física cotidiana. Nesse dia era a vez de os meninos irem para o pavilhão de ginástica, onde também eles teriam que subir pelas cordas. Charles sentou-se perto das barras na parede e fingiu que amarrava o cadarço do seu tênis de ginástica. Ao contrário de Nan, ele conseguiria subir por uma corda se quisesse, mas não queria. Queria ficar sentado e pensar no que faria a Simon. Este, como sempre, foi um dos primeiros a chegar ao teto. Ele avistou Charles e gritou alguma coisa para baixo, e o resultado foi que alguém da turma 2Z aproximou-se de Charles e cutucou-o pelas costas.
— Simon disse para você deixar de ser preguiçoso.
— Simon disse isto, foi? — Charles respondeu.
Ele pôs-se de pé: acabava de ter uma inspiração. Havia sido uma coisa que Brian dissera na noite anterior: aquele jogo, “o mestre mandou”. E se não fosse só um jogo? E se tudo que Simon dissesse acontecesse de verdade? Na pior das hipóteses, seria muito divertido. E na melhor, as pessoas poderiam até pensar que Simon era bruxo.
Charles subiu por uma corda. Içou-se para cima devagar e com tranqüilidade, para que pudesse continuar pensando. Obviamente não tinha condições de parar perto de Simon para colocar o feitiço nele; alguém poderia perceber. Mas o instinto dizia a Charles que aquele não era o tipo de mágica que se pudesse fazer à distância; era forte e pessoal demais. O que ele precisava, para fazer tudo com segurança, era de alguma coisa que não fosse o próprio Simon, mas que pertencesse a Simon tão intimamente que qualquer bruxaria lançada nela funcionasse ao mesmo tempo em Simon. Em resumo, ele precisava de um pedaço de Simon que fosse destacável.
Quais eram as partes destacáveis de Simon? Os dentes, as unhas dos pés, as unhas das mãos, os cabelos? Ele não poderia chegar até Simon e puxar um fio dos cabelos dele. Ei, cabelos? Simon penteou os cabelos de manhã. Com sorte, algum fio poderia terá ficado preso no pente.
Charles desceu pela corda, contente e tão depressa que mais uma vez constatou que ser queimado dói. Precisou soprar nas mãos para esfriá-las. Depois do almoço seria a ocasião propícia; ele poderia esgueirar-se até o dormitório.
Depois do almoço mostrou-se uma ocasião importante para Nan também. Durante a refeição ela conseguira escapar de Karen Grigg e Delia Martin sentando-se a uma mesa de meninas muito mais velhas, que pareciam não ter reparado que Nan estava ali. Eram bem mais altas do que ela e falavam sobre seus próprios assuntos. A comida era quase tão ruim quanto a da véspera, mas Nan não sentiu o impulso de descrevê-la. Pelo contrário, sentia vontade de morrer.
Então ocorreu-lhe que, se qualquer aluno da 2Y fosse contar a um professor que ela era bruxa, ela estaria morta bem depressa depois disso. Rápido deu-se conta de que não tinha a menor vontade de morrer, e isso fez com que se sentisse melhor. Afinal, ninguém ainda fora procurar um professor.
Ela disse a si mesma que tudo aquilo era apenas a bobice de sempre. Quando chegasse o Natal, ninguém se lembraria mais. Ela precisaria apenas ficar fora do caminho até que tudo fosse esquecido.
Assim, depois do almoço Nan saiu de fininho para o andar superior a fim de mais uma vez esconder-se no corredor do lado de fora do banheiro das meninas. Mas Karen Grigg estivera a vigiá-la; ela e Theresa surgiram no corredor diante de Nan. Quando Nan deu meia-volta para retirar-se, encontrou Delia e as outras meninas vindo do outro extremo do corredor.
— Vamos entrar no banheiro — Theresa sugeriu. — Queremos lhe perguntar uma coisa, Nan.
Esta sabia que muito em breve sofreria uma tortura. Por um instante pensou em abrir caminho avançando sobre Theresa e Karen como um touro, mas elas deixariam para pegá-la à noite no dormitório; era melhor acabar logo com aquilo.
— Está bem — disse, e entrou no banheiro como se não se importasse.
Quase no mesmo instante, Charles deslizava furtivamente para dentro do dormitório dos meninos. As camas brancas, limpas e frias pareciam fileiras de icebergs desertos, cada uma com seu pequeno criado-mudo branco ao lado. Charles foi depressa até o de Simon. Estava trancado, pois Simon era um inveterado trancador de coisas; até mesmo o seu relógio possuía uma chavezinha para prendê-lo ao pulso.
Mas Charles não deixou que isso o perturbasse; estendeu a mão de forma majestosa na frente da porta trancada e disse:
— Pente. Abracadabra.
O pente de Simon saiu voando através da superfície branca da madeira como um peixe nadando para fora de uma poça de leite, e como um peixe dardejou para dentro da mão de Charles. Era um lindo pente. E, melhor ainda, havia três fios cacheados dos cabelos dourados de Simon agarrados aos dentes do pente. Charles puxou-os com cuidado, segurou-os entre dois dedos da mão esquerda e, cauteloso, correu dois dedos da outra mão ao longo deles. E mais uma vez. Fez isso várias vezes sem parar.
— “O mestre mandou”, Simon mandou — sussurrava para eles. — Simon mandou. O que Simon disser acontece.
Passado um minuto, depois de repetir isso o suficiente para ter a sensação de que o feitiço ia pegar, Charles enlaçou os três fios de novo no pente; não pretendia deixar qualquer prova contra si. Tinha acabado de fazer isso quando, atrás dele, ouviu-se a voz de Brian:
— Preciso de uma pequena ajuda sua, Charles.
Charles deu um pulo, como se Brian houvesse atirado nele.
Inclinou-se, apavorado, para esconder o pente que tinha na mão e, com uma pressa culpada, deu-lhe um empurrão na direção do armário. Para sua surpresa, o pente penetrou na madeira, não como um peixe, dessa vez, mais como um pente sendo empurrado através de uma porta, mas pelo menos entrou.
— Que é que você quer? — Charles perguntou a Brian em tom brusco.
— Me leve até a governanta na enfermaria — Brian pediu. Fazia parte do regulamento da escola que uma pessoa que se sentisse mal precisava encontrar outra pessoa que a conduzisse até a enfermaria. Essa regra existia porque antes disso a enfermaria vivia cheia de pessoas saudáveis tentando tirar uma tarde de folga. A idéia era de que não era possível enganar um amigo. Mas aquilo não funcionava muito bem: Estelle Green, por exemplo, fazia Karen levá-la à enfermaria pelo menos duas vezes por semana. Pelo que Charles conseguia ver, Brian tinha a mesma aparência rosada e petulante de sempre, sempre como Estelle.
— Você não está me parecendo doente — disse. Estava louco para encontrar Simon e verificar se o feitiço estava funcionando.
— E isto aqui, o que é? — Brian perguntou. Para surpresa de Charles, ele ficou pálido de repente. Fixou os olhos na parede, com um dos olhos apontando um pouco para dentro. — E isto. Não parece que fui hipnotizado? — Brian perguntou.
— Você parece que foi golpeado na cabeça. Peça a Nirupam para ir com você — Charles respondeu de forma rude.
— Ele cuidou de mim hoje de manhã — Brian revelou. — Quero o maior número possível de testemunhas. Ontem à noite ajudei você; agora você me ajuda.
— Você não me ajudou ontem à noite — Charles contestou.
— Ajudei, sim — Brian insistiu. — Você entrou e foi dormir no chão, bem no pé da minha cama. Eu levei você para a sua cama. Até enganchei os seus óculos na grade da cama para você.
E lançou a Charles um olhar significativo.
Charles retribuiu o olhar. Brian era tão magro e pequenino que era difícil acreditar que ele conseguiria levantar alguém para colocar na cama. Mas, fosse ou não fosse verdade, Charles entendeu que Brian o tinha em sua mãos; ele sabia que Charles se levantara da cama à noite. Além disso, o tinha pego com o pente de Simon na mão, minutos antes. Ele não sabia por que Brian queria ir para a enfermaria, mas aquilo não era problema seu.
— Está bem, vou levar você — concordou.
Dentro do banheiro, no outro lado do pátio, as meninas rodeavam Nan.
— Onde está Estelle? — Theresa quis saber.
— Lá fora, de vigia — Karen informou. — Foi o máximo que ela concordou em fazer.
— Que história é esta, afinal? — Nan perguntou agressiva.
— Queremos ver você fazer uma bruxaria de verdade — Theresa explicou. — Aqui, onde nós podemos ver. Nenhuma de nós já viu alguma bruxaria sendo feita. E sabemos que você consegue fazer. Vamos. Nenhuma de nós vai acusar você.
As outras meninas pediram em coro:
— Vamos, Nan. Ninguém vai contar.
O banheiro era bem amplo; havia seis banheiras enfileiradas. A medida que as meninas apertavam o semicírculo em volta de Nan, esta recuava para o espaço entre duas das banheiras. Aquilo era exatamente o que elas queriam. Delia disse:
— Agora.
Heather comandou:
— Pode pegar.
E Karen abaixou-se e puxou a velha vassoura do jardineiro de sob a banheira da esquerda. Julia e Deborah seguraram a vassoura e colocaram-na sobre as duas banheiras em frente a Nan, prendendo-a junto à parede. Nan olhou para a vassoura e depois para elas.
— Queremos que você monte nela e saia voando — Theresa explicou.
— Todo o mundo sabe que é isto que as bruxas fazem — Karen completou.
— Estamos pedindo a você com muita delicadeza — Theresa observou.
Nan pensou, com raiva, que aquilo era típico de Theresa. Ela não estava pedindo com delicadeza: seu sorriso era de zombaria. Mas se alguém perguntasse a Theresa mais tarde, ela afirmaria, com honesta inocência, que havia sido muito gentil.
— De qualquer maneira, nós podemos provar que você é bruxa, se não fizer o que pedimos — disse Theresa em tom bondoso.
— É, sim, todo o mundo sabe que as bruxas não se afogam — Delia completou. — Se elas são colocadas debaixo d’água, conseguem sobreviver.
Diante dessa deixa, Karen inclinou-se e colocou no lugar a tampa da banheira mais próxima. Heather abriu a torneira de água fria, só um pouquinho, para mostrar a Nan que elas não estavam brincando.
— Vocês sabem que não sou bruxa e não consigo voar neste cabo de vassoura — Nan afirmou. — Isto é só uma desculpa para vocês fazerem maldade!
— Maldade? — Repetiu Theresa. — Quem é que está fazendo maldade? Estamos lhe pedindo educadamente para voar nesta vassoura.
Atrás dela, a torneira deixava cair água dentro da banheira.
— Ou você pode trazer todos os sapatos para cá outra vez, se preferir. Para nós qualquer das duas coisas serve — disse Delia.
— Mas vai ter que fazer alguma coisa — Karen completou. — Senão, que tal afundar numa bela banheira de água fria usando todas as suas roupas?
Isso deixou Nan com tanta raiva que ela colocou uma perna por cima da vassoura, para poder passar para o outro lado e pegar Karen. Ao ver isto, Theresa deu um pulo e uma risadinha deliciada.
— Ah, ela vai montar!
As outras juntaram-se a ela:
— Ela vai montar! Voe, Nan!
Nan, com o rosto muito vermelho, montada na vassoura, explicou:
— Não vou voar. Não sei fazer isso. Vocês sabem que eu não sei. Eu sei que não sei. Olhem. Olhem para mim. Estou sentada sobre a vassoura.
Imprudente, ela apoiou o seu peso na vassoura. Aquilo era muito incômodo, e ela foi forçada a ficar ereta outra vez. Isso fez com que todas achassem muita graça. Mais enraivecida do que nunca, Nan gritou:
— Como é que eu posso voar numa vassoura? Não consigo nem subir por uma corda!
Elas sabiam disso. Estavam quase caindo de tanto rir quando Estelle irrompeu no banheiro aos gritos, excitadamente.
— Venham ver! Venham ver! Vejam o que Simon Silverson está fazendo!
Aquilo provocou uma corrida para a porta, para que as meninas fossem espiar pelas janelas do corredor. Nan ouviu gritos:
— Céus!
— Olhem só para aquilo!
Os gritos foram seguidos por outro estouro de boiada, quando todas desceram disparadas para o pátio. Só restou Nan, montada numa vassoura velha apoiada em duas banheiras.
— Ainda bem! — Foi a primeira coisa que ela disse. Estivera muito próxima das lágrimas. — Diabinhas estúpidas! — Disse em seguida. — Como se eu pudesse voar nesta coisa! Olhem só! — E pôs-se a sacudir a vassoura. — É uma vassoura velha, só isso!
Então ela percebeu a água que ainda caía na banheira atrás dela e, inclinando-se para trás e para o lado, fechou a torneira.
Foi aquele o momento que a velha vassoura escolheu para erguer-se de súbito em direção ao teto.
Nan soltou um guincho, pois de repente viu-se pendurada de cabeça para baixo sobre uma banheira de água fria. A vassoura estremeceu um pouco sob o seu peso, mas continuou a subir, balançando Nan bem acima da água. Nan dobrou as pernas com todas as suas forças em volta do cabo enodoado e conseguiu prender uma das mãos nos galhos secos que formavam a vassoura. A vassoura chegou ao teto e nivelou-se. Não sobrava espaço para Nan trepar para cima dela, mesmo se ela tivesse músculos para isto. O sangue latejava em sua testa, por causa da posição invertida, mas ela não ousava soltar-se.
— Pare com isto! — Ela gemia para a vassoura. — Por favor!
A vassoura não lhe deu atenção. Apenas saiu voando pelo banheiro, solene e aos esbarrões, com Nan pendurada, desesperada, de vez em quando vendo de relance as banheiras brancas distantes lá embaixo.
— Ainda bem que isto não aconteceu enquanto as outras estavam aqui! — Ela arquejou. — Devo parecer uma idiota completa — e começou a rir, pensando na figura ridícula que fazia. — Desça por favor — pediu à vassoura. — E se alguém mais entrar aqui?
Ao que parecia, a vassoura ficou perturbada com isso, pois teve um pequeno estremecimento e inclinou-se em direção ao piso. Assim que este ficou próximo o suficiente, Nan agarrou o cabo com ambas as mãos e tentou desvencilhar a perna. Isso foi um erro: a vassoura tornou a subir quase na vertical e ficou pairando a uma altura razoável para Nan não ter coragem de se jogar. Mas os seus braços estavam ficando cansados, e ela precisava fazer alguma coisa. Contorcendo-se e fazendo força, conseguiu erguer-se até estar mais ou menos deitada ao longo do cabo enodoado, olhando para baixo, para a fileira de banheiras. Prendeu os dois pés na vassoura e ali ficou, ofegante.
E agora, o que ela poderia fazer? Aquela vassoura parecia determinada a voar com ela, e passava-lhe uma sensação de tristeza. Algum dia, muito tempo antes, ela havia voado com uma bruxa, e agora sentia falta dela.
— Mas está tudo bem — Nan disse à vassoura. — Neste momento não tenho coragem de voar com você. Não está entendendo? É ilegal. E se eu prometesse que vou voar em você esta noite, você me colocaria no chão agora?
A vassoura teve uma espécie de hesitação.
— Eu prometo — Nan insistiu. — Escute, já sei. Você me leva voando pelo corredor do nosso dormitório. Vai ser um vôo curto, mas pelo menos você vai voar. Então pode se esconder no alto do armário, bem no fundo. Ninguém vai ver você lá em cima. E eu prometo que vou buscar você esta noite. Então, aceita?
Embora a vassoura não conseguisse falar, ela evidentemente queria dizer que sim, pois virou-se e saiu depressa pela porta do banheiro, numa manobra que deixou Nan enjoada. A vassoura disparou pelo corredor. Nan precisou fechar os olhos para não ver as paredes passarem depressa por ela. A vassoura fez uma curva fechada e entrou no dormitório. E ali parou com um solavanco tamanho que Nan quase caiu e ficou pendurada outra vez.
— Já vi que você vai ter que ser treinada — disse, ofegante. A vassoura empinou, indignada.
— Quer dizer, você vai ter que me treinar — Nan consertou em seguida. — Agora baixe, por favor. Tenho que desmontar.
A vassoura estremeceu, em dúvida.
— Eu prometi — Nan observou.
Diante disso, a vassoura obediente baixou para o solo, e Nan conseguiu descer, com as pernas muito trêmulas. Assim que ela ficou de pé, a vassoura caiu no chão, sem vida.
— Coitadinha! — Nan exclamou. — Já entendi: para movimentar-se precisa que a montem. Está bem. Vou levar você para o alto do armário.
Assim, ela perdeu a primeira manifestação do feitiço “Simon mandou”.
Charles também perdeu, e nenhum dos dois ficou sabendo como foi que Simon descobriu que tudo o que ele dizia acontecia. Charles deixou Brian com um termômetro na boca, olhando para a parede com seu olhar vesgo, e encaminhou-se, desanimado, de volta ao pátio, onde deparou com Simon rodeado por um grupo frenético. No princípio, Charles imaginou que o brilho nos pés de Simon era apenas o sol brilhando numa poça. Mas não, era um montinho de moedas de ouro. Os outros passavam a Simon moedas de um centavo, pedras e folhas secas.
Cada vez que pegava uma coisa, Simon dizia:
— Isto é uma moeda de ouro. Isto é outra moeda de ouro. — Quando aquilo ficou monótono ele passou a dizer: — Isto é uma moeda de ouro rara. Estas são moedas de oito libras. Isto é um dobrão...
Charles abriu caminho a cotoveladas até a frente do grupo e ficou observando, com total desagrado. Era lógico que Simon iria usar aquilo para o seu próprio benefício! As moedas tilintavam ao caírem sobre a pilha no chão; a essa altura, Simon estava milionário.
Com grande ruído de pés correndo, chegaram as meninas. Theresa, com a sacola do seu tricô pendurada no braço, abriu caminho aos empurrões até ficar ao lado de Charles. Estava tão atônita com o tamanho da pilha de ouro que atravessou a linha invisível e dirigiu-se a Simon.
— Como é que você está fazendo isto, Simon?
Simon riu. A essa altura ele parecia estar bêbado.
— Tenho o “toque de ouro”! — Ele exclamou. Em seguida aquilo virou verdade. — Exatamente como o rei daquela história. Veja.
E estendeu a mão para o tricô de Theresa, que, indignada, puxou a sacola para fora do alcance dele, ao mesmo tempo em que lhe dava um empurrão. O resultado foi que Simon tocou na mão dela.
A bolsa com o tricô caiu no chão. Theresa gritou, com a mão estendida, e tornou a gritar, porque sua mão estava pesada demais para ela agüentar. Então deixou cair a mão contra a saia,— uma mão de brilhante metal dourado, na extremidade de um braço humano normal.
Em meio ao silêncio chocado que se seguiu, Nirupam declarou:
— É melhor tomar bastante cuidado com o que você diz, Simon.
— Por que? — Simon quis saber.
— Porque tudo o que você diz vira verdade — Nirupam explicou.
Era evidente que Simon não havia percebido a extensão dos seus poderes.
— Quer dizer que não tenho o “toque de ouro”? — E, instantaneamente, ele deixou de tê-lo. — Vamos fazer um teste.
Ele inclinou-se e pegou o tricô de Theresa, que continuou sendo um trabalho de tricô dentro de uma sacola um pouco enlameada.
— Largue isto! — Theresa ordenou com voz fraca. — Vou contar para a srta. Cadwallader.
— Não vai, não — E isso se tornou verdadeiro também. Ele olhou para o tricô, pensativo. — Este tricô é, na verdade, dois cachorrinhos do zelador — anunciou.
A sacola começou a remexer-se nas mãos dele. Simon depressa deixou-a cair sobre a pilha de moedas de ouro. A sacola contorcia-se; latidos agudos vinham de dentro dela, e movimentos furiosos. Pela abertura saiu um pequenino cachorro-sapatinho, logo seguido por um segundo. Os dois saíram a correr com suas patas diminutas, descendo o monte de ouro e enfiando-se por entre as pernas das pessoas. Todos se apressavam a sair do caminho deles; todos viraram-se para observar os dois cachorrinhos brancos que corriam sem parar em direção ao outro lado do pátio. Theresa pôs-se a chorar.
— Aquele era o meu tricô, sua besta!
— E daí? — Simon respondeu, rindo.
Theresa ergueu a mão dourada usando a mão normal, e golpeou-o com ela. Foi uma coisa idiota, pois ela arriscava-se a quebrar o braço, mas certamente foi eficaz: aquilo quase fez Simon desmaiar. Ele caiu sentado sobre a sua pilha de ouro.
— Ai! Espero que tenha doído! — Disse Theresa.
E partiu para cima dele outra vez, com as duas mãos. Simon desviou-se para o lado.
— Você não tem uma mão dourada — disse ele.
De repente havia apenas ar onde antes ficava a pesada mão dourada de Theresa. O braço dela terminava num pulso rosado e arredondado. Theresa ficou olhando para o braço.
— Como é que vou tricotar? — Perguntou.
— O que eu quero dizer é que você tem duas mãos comuns — Simon enunciou cuidadoso.
Theresa olhou para suas duas mãos perfeitamente normais e explodiu numa gargalhada estranha, que soava artificial.
— Alguém mate o Simon por mim! Depressa! — Disse.
Ninguém se ofereceu para fazer isso, pois todos estavam perturbados demais. Delia, com carinho, pegou Theresa pelo braço e levou-a dali. A campainha do início das aulas soou enquanto elas se afastavam.
— Isto é muito divertido! — Simon declarou. — De agora em diante sou a favor da bruxaria.
Charles dirigiu-se desanimado para as aulas, perguntando-se como poderia cancelar aquele feitiço.
Simon chegou atrasado para a primeira aula. Estivera ocupado, certificando-se de que a sua pilha de ouro ficaria em segurança.
— Lamento muito, professor — disse ao sr. Crossley. E passou a lamentar mesmo: seu olhos encheram-se de lágrimas, de tanto sentimento.
— Tudo bem, Simon — disse o sr. Crossley com bondade, e todos se sentiram compelidos a olhar para Simon com profunda simpatia.
Charles pensava, amargurado, que era impossível levar a melhor quando se tratavam de pessoas como Simon. Qualquer outro estaria com sérios problemas a essa altura. E era exasperante o fato de que ninguém sequer sonhava em acusar Simon de bruxaria. Em vez disso, ficavam lançando olhares a Nan Pilgrim.
Nan sentia a mesma coisa em relação a Theresa, que chegou dez minutos depois de Simon, muito pálida e ainda fungando. Vinha amparada por Delia, e recebeu tanta solidariedade quanto Simon. Nan escutou Delia cochichar, indignada, a Karen:
— Apenas deu a ela uma aspirina e mandou embora! Eu acho que ela devia ter tido permissão para deitar-se, depois de tudo o que passou!
Nan pensou: e quanto a tudo o que eu passei? Não; Theresa, tanto quanto Simon, sempre tinha razão.
Nan ouvira o episódio inteiro, contado por Estelle. Estelle estava sempre disposta a conversar durante a aula, e estava particularmente disposta agora que Karen parecia ter se juntado às amigas de Theresa. Ela tricotava debaixo do tampo da carteira a sua touquinha de bebê e cochichava sem parar. E não era a única; o sr. Crossley insistia em pedir silêncio, mas os cochichos mal diminuíam um pouquinho. A carteira de Nan não paravam de chegar bilhetes. O primeiro a chegar era de Dan Smith, que havia escrito:
Me faz a mesma coisa que fez com Simon e vou ser seu amigo para sempre.
A maioria dos outros bilhetes dizia a mesma coisa, todos muito respeitosos. Mas um dos bilhetes era diferente, pois dizia:
Encontre-me nos fundos do prédio depois das aulas. Acho que você precisa de ajuda, e posso lhe dar uns conselhos.
Não estava assinado. Nan ficou curiosa; já havia visto antes aquela caligrafia, mas não sabia de quem era.
Ela imaginava que precisava mesmo de ajuda: agora era uma bruxa de verdade, pois ninguém, além de uma bruxa, conseguiria voar num cabo de vassoura. Assim, sabia que corria perigo e sabia que deveria estar aterrorizada, mas não estava; sentia-se feliz e poderosa, com uma felicidade e um poder que pareciam estar brotando de algum lugar muito profundo dentro de si. Ela rememorava sem cessar o modo como havia começado a rir quando a vassoura pusera-se a voar em círculos dentro do banheiro com ela dependurada no cabo, e o modo como ela parecia compreender por instinto aquilo que a vassoura queria. A experiência havia sido de arrepiar, mas ela se divertira bastante. Era como tomar posse de uma herança.
— É claro que Simon sempre diz que você é bruxa — Estelle cochichou.
Aquilo diminuiu um pouco a alegria de Nan. Havia outro bruxo na 2Y, disso ela não tinha dúvida; e aquele bruxo, por um louco motivo qualquer, havia feito com que tudo o que Simon dizia acontecesse. Decerto era um dos amigos dele. E era bem possível que Simon, enquanto estava sob o feitiço, tivesse dito que Nan era uma bruxa, e assim ela teria se tornado uma.
Nan recusava-se a acreditar nisso. Ela era mesmo bruxa; desejava ser. Vinha de uma longa linhagem de bruxas que se estendia até muito antes da própria Dulcinea Wilkes. Ela sentia que tinha o direito de ser bruxa.
Durante todo esse tempo, o sr. Crossley estava tentando dar uma aula de geografia à 2Y. Ele chegara a um ponto em que estava muito próximo de desistir e, em lugar de aula, dar a todos um castigo. Mas fez uma última tentativa. Percebia que a inquietação era centrada em Simon, com um subcentro ao redor de Nan, de modo que tentou utilizar esse fato fazendo perguntas a Simon.
— Ora, a geografia da Finlândia foi muito afetada pela última Era Glacial. Simon, o que é que acontece numa Era Glacial?
Simon esforçou-se para afastar da mente os sonhos de ouro e glória.
— Tudo fica muito frio — disse.
Uma rajada de ar frio varreu a sala, fazendo com que todos se pusessem a tremer.
— E vai ficando cada vez mais frio, eu acho — Simon acrescentou com imprudência.
O ar na sala logo tornou-se gelado. A respiração de toda a turma produzia nuvens de vapor. As janelas enevoaram-se e congelaram, quase que de imediato, formando desenhos gélidos. Na parte inferior dos radiadores começaram a crescer pingentes de gelo. A geada embranquecia as carteiras. Ouviu-se um coro de gemidos e queixos batendo, e Nirupam sibilou:
— Preste atenção, Simon!
— Quer dizer, tudo fica muito quente — Simon apressou-se a corrigir.
Antes que o sr. Crossley tivesse tempo de se perguntar por que estava tremendo, o frio foi substituído por um calor tropical. Os pingentes de gelo desprenderam-se dos radiadores com um ruído tilintante. Por um instante a sala ficou agradavelmente quente, até a água congelada começar a evaporar: isso produziu uma neblina espessa e vaporenta. As pessoas engasgavam na névoa. Algumas ficaram com o rosto vermelho; outras, com o rosto branco. E o suor pingava da testa de todos, aumentando a neblina.
O sr. Crossley levou a mão à testa, imaginando que estaria pegando uma gripe, pois de repente o aposento parecia escuro.
— Algumas teorias dizem, de fato, que uma Era Glacial começa com um calor extremo — disse, com hesitação.
— Mas eu digo que está tudo normal para esta época do ano — Simon acrescentou, tentando de alguma forma ajustar a temperatura.
E instantes depois o que ele disse tornou-se realidade: a sala de aula voltou ao seu estado normal, embora continuasse um pouco úmida. O sr. Crossley constatou que se sentia melhor.
— Pare de falar bobagens, Simon! — Ordenou, com raiva. Simon percebeu, com incredulidade, que talvez se metesse em problemas. Tentou diminuir o impacto da coisa toda ao seu costumeiro modo autoritário.
— Ora, professor, na realidade ninguém sabe coisa alguma sobre as Eras Glaciais, não é verdade?
— Isto é o que veremos — disse o sr. Crossley em tom sinistro. E, naturalmente, ninguém sabia mesmo. Quando pediu a Estelle para descrever uma Era Glacial, o sr. Crossley encontrou-se querendo saber porque estava fazendo perguntas sobre uma coisa que não existia. Não era de espantar que Estelle parecesse tão perplexa. Ele tornou a interpelar Simon.
— Isto é algum tipo de brincadeira? Que é que você está imaginando?
— Eu? Ah, não estou imaginando nada! — Simon declarou, na defensiva. E com resultados desastrosos.
Charles, observando a expressão de vazio total que crescia no rosto de Simon, considerou que aquilo era mais parecido com a realidade.
Theresa viu os olhos de Simon ficarem vidrados e seu queixo cair, e ela ficou de pé num salto, com um grito:
— Façam ele parar! Matem ele! Façam alguma coisa antes que ele diga mais uma palavra!
— Sente-se, Theresa — ordenou o sr. Crossley. Theresa continuou de pé.
— O senhor não acreditaria no que ele já fez! — Ela berrou. — E agora, olhe só para ele. Se ele disser uma única palavra neste estado...
O sr. Crossley olhou para Simon. O menino parecia estar imitando um débil mental. Afinal, qual era o problema com todo mundo?
— Acabe com esta cara, Simon. Você não é nem um pouco bobo — disse.
Simon estava agora num estado de vazio total. E, nesse estado, as pessoas tendem a repetir qualquer coisa que lhes seja dita.
— Nem um pouco bobo — ele disse, com a voz pastosa.
O vazio da sua expressão transformou em um ar de profunda astúcia. Charles achou que talvez isso fosse até bom; não havia dúvida de que Theresa tinha razão.
— Não fale com ele! — Ela gritou. — Não está entendendo? Acontece com qualquer coisa que ele diga! E... a culpa é dela! — Arrematou, virando-se e apontando para Nan.
Antes do almoço, Nan teria cedido diante do dedo que Theresa lhe apontava e de todos os olhares voltados para ela. Mas agora, que já havia voado numa vassoura, as coisas eram diferentes; ela conseguiu olhar com escárnio para Theresa.
— Que bobagem! — Disse apenas.
O sr. Crossley foi forçado a concordar que Nan estava acerta.
— Não seja ridícula, Theresa. Eu mandei que se sentasse — disse.
E deu vazão aos seus sentimentos dando tanto a Theresa quanto a Simon uma hora de castigo.
— Castigo! — Theresa exclamou, e sentou-se com violência. Estava ofendidíssima.
Simon, no entanto, soltou uma risadinha astuciosa.
— Acha que me pegou, não acha? — Perguntou.
— Acho, sim — afirmou o sr. Crossley. — E vai ser uma hora e meia.
Simon abriu a boca para dizer mais alguma coisa, porém nesse ponto Nirupam interveio, inclinando-se e cochichando para o outro:
— Você é muito esperto. As pessoas espertas ficam de boca fechada.
Simon assentiu lentamente, com imensa e estúpida sabedoria. E, para decepção de Charles, parecia que aceitara o conselho de Nirupam.
— Peguem os seus diários — disse o sr. Crossley em tom cansado, imaginando que teria pelo menos um momento de paz.
Os alunos abriram os seus diários na página do dia. Empunharam as canetas e, a essa altura, até mesmo aqueles que ainda não haviam se dado conta disso perceberam que havia pouquíssimas coisas que eles ousariam colocar no papel. Aquilo era muito frustrante: ali estavam, com novidades interessantes acontecendo de verdade e com eles para variar, tantas coisas a dizer, e quase nenhuma delas apropriada para os olhos da srta. Cadwallader.
Os alunos mastigavam a ponta da caneta, remexiam-se nos assentos, coçavam a cabeça e olhavam fixamente para o teto. Os mais dignos de pena eram aqueles que planejavam pedir a Nan para lhes dar o “toque de ouro”, ou a celebridade instantânea, ou alguma outra coisa boa. Se descrevessem qualquer um dos truques de magia que, acreditava-se, Nan havia feito, ela seria presa por bruxaria e eles teriam matado a galinha dos ovos de ouro.
Nan Pilgrim não é bruxa de verdade, escreveu Dan Smith, depois de muito pensar. Sentia uma pouco de dor de barriga depois do banquete da madrugada, e isso deixava lentos os seus pensamentos.
Nunca pensei mesmo que fosse ela, foi só uma gracinha do sr. Crossley. Houve uma brincadeira de mau gosto hoje de manhã, deve ter dado um trabalhão furtar daquele jeito os sapatos de todo o mundo e então alguém sumiu com o meu tênis de travas e isto me deixou furioso mesmo. O cachorro do zelador fez xixi...
Nesse ponto Dan parou, lembrando-se de que a diretora leria aquilo também. Achava que tinha se entusiasmado um pouco demais.
Hoje, mais uma vez, nada tenho a comentar, Nirupam escrevia com rapidez. Alguém está caminhando para o abismo. Não que eu o condene por hoje à tarde, mas o truque dos sapatos foi besteira.
Ele pousou a caneta e foi dormir. Passara metade da noite acordado, comendo bolinhos que estavam debaixo das tábuas do chão.
Minhas meias de dormir estão destruídas, queixou-se Theresa em sua caligrafia de anjo. O meu tricô está arrasado. Hoje foi um dia horrível. Não quero acusar ninguém e sei que Simon Silverson não está em seu juízo perfeito, mas alguém devia fazer alguma coisa. Teddy Crossley é incompetente e injusto e Estelle Green sempre pensa que sabe mais, mas não consegue que o seu tricô fique limpo. A governanta também foi injusta. Na enfermaria ela me mandou de volta com uma aspirina e deixou Brian Wentworth deitar-se, e eu estava realmente passando mal. Nunca mais vou falar com Nan Pilgrim.
No final, a maioria, embora não conseguisse atingir a eloqüência de Theresa, deu um jeito de escrever alguma coisa. Três pessoas, porém, ainda tinham os olhos fixos na folha de papel em branco; eram Simon, Charles e Nan.
Simon estava muito astucioso, muito esperto. E cheio de suspeitas acerca de tudo aquilo: de uma maneira ou de outra, estavam tentando desmascará-lo. A coisa mais segura e esperta a fazer era não deixar coisa alguma por escrito, disso ele tinha certeza. No entanto, não seria aconselhável deixar que todos tomassem conhecimento de até que ponto ele tinha se tornado esperto. Ficaria estranho. Ele precisava escrever, só uma coisinha. Assim, depois de meia hora de intenso pensar, ele escreveu: Cachorrinhos.
Isto lhe tomou dez minutos. Então ele relaxou, confiante de ter enganado todo o mundo.
Charles estava engasgado, isso porque não tinha um código para a maioria das coisas que tinham acontecido. Sabia que era preciso escrever alguma coisa; no entanto, quanto mais tentava pensar, mais difícil isso lhe parecia. Em certo ponto ele quase caiu no sono, como Nirupam.
Mas obrigou-se a pensar. Bom, para começar não poderia escrever eu me levantei, porque quase tinha gostado desse dia; tampouco poderia escrever não me levantei porque isso não faria sentido. Mas era melhor mencionar os sapatos, porque todos os outro fariam isso. E podia falar sobre Simon usando o codinome “batatas”. O sr. Crossley também deveria ser mencionado.
Estava quase na hora do sino quando Charles conseguiu organizar tudo isso. Escreveu às pressas:
Os nossos sapatos foram todos para os jogos. Quando eu estava pendurado na corda, lembrei-me que batatas têm cabelos. Estou tendo jogos com um livro ruim.
Quando o sr. Crossley mandou que fechassem os diários, Charles pensou em mais uma coisa e registrou-a:
Nunca mais vou ficar com calor.
Nan não escreveu coisa alguma. Estava sorrindo para a página em branco, livre da necessidade de descrever qualquer coisa. Quando a campainha tocou, ela anotou a data, só para constar: 30 de outubro. Depois fechou o diário.
No instante em que o sr. Crossley saiu da sala, Nan foi cercada. As pessoas clamavam:
— Recebeu o meu bilhete? Pode fazer que sempre que eu tocar numa moeda de um centavo ela vire ouro? Só as de um centavo.
— Pode fazer os meus cabelos crescerem como os de Theresa?
— Pode me dar três desejos toda vez que eu disser “botões”?
— Quero músculos fortes como Dan Smith.
— Consegue que a gente tenha sorvete na sobremesa?
— Preciso de sorte pelo resto da vida.
Nan olhou para onde Simon estava sentado, curvado sob o peso da sua astúcia e dardejando olhares sagazes e vazios a Nirupam, que estava atento a vigiá-lo. Se era Simon o responsável, não havia como saber quando ele diria alguma coisa para cancelar a bruxaria dela. Nan recusava-se a acreditar que havia sido Simon, mas era idiotice fazer promessas impensadas, fosse o que fosse que a transformara em bruxa.
— Agora não há tempo para fazer mágicas — declarou ao grupo alvoroçado. Quando esta resposta provocou uma rajada de gemidos e apelos, ela gritou: — Leva horas, vocês não entendem? Não é preciso somente entoar feitiços e cozinhar poções. É preciso sair e colher ervas estranhas, e entoar encantamentos ainda mais estranhos, ao amanhecer e na lua cheia, antes de poder sequer começar. E depois de fazer tudo isso, não é seguro que ele vai funcionar logo. Na maioria das vezes é preciso ficar voando ao redor da fumaça das ervas a noite inteira, dando voltas e mais voltas, entoando sons de uma doçura indescritível, antes que alguma coisa aconteça. Estão entendendo agora?
Um silêncio profundo acolheu aquela invencionice. Bastante incentivada, Nan acrescentou:
— Além disso, o que foi que vocês fizeram para merecer que eu tenha todo esse trabalho?
— Verdade, o que foi? — Perguntou o sr. Wentworth atrás dela. — Que é que está acontecendo aqui afinal?
Nan fez meia volta com ímpeto. O sr. Wentworth estava bem no meio da sala e era possível que escutara cada palavra. Todos em volta dela esgueiraram-se para as suas carteiras.
— É o meu texto para o espetáculo da escola, professor. Acha que está bom? — Ela perguntou.
— Tem possibilidades — opinou o sr. Wentworth. — Mas vai precisar de um pouco mais de ensaio para que fique bom o bastante. Peguem os livros de matemática, por favor.
Nan deixou-se cair no assento, fraca de alívio. Por um terrível instante ela chegara a pensar que sr. Wentworth poderia mandar prendê-la.
— Eu disse para pegarem os livros de matemática, Simon — disse o sr. Wentworth. — Por que está me dando este horroroso olhar ladino? Será que o meu pedido foi tão estranho assim?
Simon pensou sobre isso. Nirupam e várias outros, flexionaram as pernas sob as carteiras, prontos para cair sobre Simon e amordaçá-lo, se necessário fosse. Theresa mais uma vez pôs-se de pé num salto.
— Senhor Wentworth, se ele disser mais uma só palavra eu não fico mais aqui!
Infelizmente isso atraiu a atenção de Simon.
— Você fede — ele declarou a Theresa.
— Parece que ele falou — comentou o sr. Wentworth. — Levante-se e vá para o corredor, Theresa, com um zero de comportamento. Simon também ganha um, e para o resto de nós a aula vai começar.
Theresa, com o rosto mais vermelho que alguém ali já vira, correu para a porta. No entanto, não conseguia avançar mais depressa do que aquele cheiro nojento que exalava dela e enchia o aposento enquanto ela saía da sala.
— Pf! — Fez Dan Smith.
Alguém deu-lhe um chute, e todos olharam nervosos para o sr. Wentworth para ver se ele também estava sentindo aquele cheiro. Mas, como costuma acontecer com quem fuma cachimbo, o sr. Wentworth tinha o olfato mais fraco do que a média. Passaram-se cinco minutos — durante os quais ele escrevera numerosas coisas no quadro-negro e dissera muitas outras: nenhuma das quais a 2Y estava em condições de entender — antes que ele dissesse:
— Estelle, guarde este saco cinzento que você está tricotando e abra a janela, por favor. Há um cheiro bastante estranho, aqui. Alguém soltou uma bombinha de fedor?
Ninguém respondeu. Nirupam com muito jeito passou para Simon um bilhete que dizia: “Diga que não há cheiro ruim aqui”.
Simon soletrou o bilhete. Ficou a estudá-lo com cautela, e pôs a cabeça de lado. Sabia que ali, em algum lugar, havia um truque. Então, astuto, resolveu não dizer coisa alguma.
Por sorte, a janela aberta, embora deixasse a sala tão fria quanto a Era Glacial de Simon, aos poucos dispersou o fedor. Mas nada conseguiria dispersá-lo de Theresa, que ficou parada no corredor exalando um aroma de esgoto, arenque defumado e lata de lixo velha, até o final das aulas da tarde.
Quando a campainha tocou e o sr. Wentworth saiu apressado da sala, todos relaxaram com um gemido. Ninguém tinha idéia do que Simon iria dizer em seguida. Até mesmo Charles achara aquilo muito desgastante e viu-se obrigado a admitir que os resultados do seu feitiço foram surpreendentes.
Enquanto isso, Delia e Karen, com a maioria das meninas da turminha de Theresa, estavam decididas a recuperar a honra da amiga. Elas cercaram Simon.
— Tire aquele cheiro dela agora. Não tem graça — disse Delia. — Você passou a tarde inteira implicando com ela, Simon Silverson!
Simon estudou-as. Nirupam levantou-se tão depressa que derrubou a carteira, e tentou tampar com a mão a boca do menino. Mas chegou atrasado.
— Vocês todas garotas fedem — Simon decretou.
O resultado foi quase arrasador, assim como a algazarra que as meninas fizeram. As únicas que escaparam foram as poucas sortudas, como Nan, que já tinham saído da sala. Era óbvio que alguma coisa precisava ser feita, pois a maioria dos alunos estava fétida ou asfixiada. E Simon abria a boca devagar para dizer mais alguma coisa.
Nirupam desistiu de tentar levantar a carteira e agarrou Simon pelos ombros.
— Você pode acabar com este feitiço — disse-lhe. — Poderia ter acabado com ele logo no princípio, se tivesse um cérebro. Mas tinha que ser ambicioso...
Simon olhou para Nirupam com um lento desagrado nascente. Estava sendo acusado de burro. Logo ele! Abriu a boca para falar.
— Não fale! — Gritaram todos que estavam por perto. Simon percorreu o grupo com o olhar, perguntando-se qual seria o truque dessa vez. Nirupam sacudiu-o.
— Repita comigo — ordenou.
Quando o olhar ladino de Simon voltou-se para Nirupam, este disse, devagar e em voz alta:
— Nada do que eu disse esta tarde tornou-se verdade. Vamos, diga.
— Diga! — Gritaram todos.
O cérebro vagaroso de Simon não era à prova de tantos gritos. E cedeu.
— Nada do que eu disse esta tarde tornou-se verdade — disse, obediente.
O fedor cessou de imediato. Logo, todo o resto foi desfeito, porque Simon no mesmo instante tornou-se o Simon de sempre. Quase não tinha lembrança daquela tarde. Mas percebia que Nirupam estava tomando liberdades inéditas. Olhou com surpresa e desagrado para as mãos dele em seus ombros.
— Me larga! — Berrou. — Tire as mãos de mim!
O feitiço ainda estava funcionando, de modo que Nirupam foi forçado a soltar Simon e dar um passo para trás. Mas assim que fez isso tornou a avançar e mais uma vez segurou Simon pelos ombros. Encarou o rosto de Simon como se fosse um grande hipnotizador moreno.
— Agora diga: nada do que eu disser vai se tornar verdade no futuro.
Diante disso, Simon protestou. Tinha grandes planos para o futuro.
— Agora escute aqui! — Disse.
E claro, Nirupam pôs-se a escutar. Ficou olhando para Simon com tanta intensidade que este pestanejava enquanto prosseguia com o seu protesto.
— Vou tirar notas baixas em todas as provas que... eu... fi...zeeer!
Sua voz falhou, transformando-se numa espécie de uivo, à medida que ele tomava consciência do que dissera. Pois Simon adorava tirar boas notas nos testes. Colecionava notas altas com tanto fervor quanto colecionava menções honrosas. E o que acabara de dizer destruiria tudo isso.
— Enfim. Agora você vai ser obrigado a dizer. Nada do que eu disser...
— Ah, está bem. Nada do que eu disser vai se tornar verdadeiro no futuro — Simon repetiu em tom rabugento.
Com um suspiro de alívio, Nirupam soltou-o e voltou à sua carteira para levantá-la do chão. Todos suspiraram. Charles fez meia-volta com expressão triste. Bom, tinha sido agradável enquanto durou.
— Qual é o problema? — Nirupam perguntou, depois de colocar sua carteira de pé e dando-se conta da cara de tristeza de Charles.
— Nada — afirmou este. — É que... eu... eu estou de castigo. — Então, com um prazer enorme, ele voltou-se para Simon. — E você também — acrescentou.
Simon ficou escandalizado.
— Como assim? Eu nunca fiquei de castigo durante todo este tempo em que estou nesta escola!
Explicaram-lhe que aquilo não era verdade. De forma surpreendente, muitas pessoas mostraram-se dispostas a contar a Simon detalhes do modo como ele próprio fizera com que ficasse idiota e com isso ganhara do sr. Crossley uma hora e meia de castigo. Simon recebeu muito mal essa informação; saiu furioso, resmungando.
Charles fez menção de retirar-se atrás de Simon quando Nirupam pegou-o pelo braço.
— Sente-se no último banco, bem no meio. Há um estoque de revistinhas na prateleira embaixo da mesa — revelou.
— Obrigado — disse Charles.
Estava tão pouco habituado a demonstrações de amizade que disse isso com enorme surpresa e quase se esqueceu de levar consigo o horrível livro do sr. Towers. Encaminhou-se para o antigo laboratório, onde ficavam os alunos de castigo, e logo depois encontrou-se andando a passos lentos atrás de Theresa Mullett. Theresa, com aparência trágica de injustiçada, dirigia-se para o castigo, amparada por uma multidão de amigas, com a adição de Karen Grigg.
— É só por uma hora — Charles escutou Karen dizer como consolo.
— Uma hora inteira! — Theresa exclamou. — Nunca vou perdoar Teddy Crossley por isto! Espero que a srta. Hodge lhe dê um chute nos dentes!
Para não ficar atrás da procissão de Theresa durante todo o percurso, Charles desviou-se na metade do pátio e tomou o caminho que era chamado de “pelos fundos”. Era um espaço gramado que antes havia sido um segundo pátio. Mas os novos laboratórios e o auditório com a biblioteca haviam sido construídos naquele lugar, em posições desencontradas, de modo que esse pátio foi reduzido a um corredor em ziguezague gramado, onde, por um motivo qualquer, soprava sempre um vento penetrante.
Era um lugar aonde as pessoas só iam para ficarem fora do caminho. De modo que Charles não ficou muito surpreso ao avistar Nan Pilgrim vagando por ali. Preparou-se para lançar-lhe um dos seus olhares mortais quando passasse por ela, mas Nan conseguiu ser a primeira a dar um olhar hostil e virou a esquina da biblioteca.
Enquanto Charles seguia em frente sem nada dizer, Nan pensava: ainda bem que não foi Charles Morgan quem escreveu o bilhete. Não quero ajuda alguma da parte daquele ali.
Ela voltou a vagar ao vento forte, perguntando-se se precisaria mesmo da ajuda de alguém. No fundo ainda se sentia bruxa — forte e confiante. Era maravilhoso. Era como se o riso borbulhasse através de tudo o que ela pensava.
Nan não conseguia acreditar que aquilo fosse apenas obra de Simon. No entanto, ninguém melhor do que Nan sabia a rapidez com que a confiança interior poderia se esvair, principalmente sob a zombaria de alguém como Theresa.
Mas outra pessoa se aproximava: dessa vez era Brian. Ele, porém, esgueirou-se pelo outro lado da passagem, para alívio de Nan, que não acreditava que Brian conseguisse ajudar alguém. Aquele lugar estava muito popular naquela tarde: agora era Nirupam Singh quem chegava, vindo da direção oposta e parecendo muito satisfeito consigo mesmo.
— Tirei o feitiço de Simon Silverson — ele informou. — Fiz com que ele dissesse que nada do que disse foi verdade.
— Ótimo — disse Nan.
Ela rodeou outra vez a esquina da biblioteca. Aquilo significaria que ela então já não era mais bruxa? Nan cutucou com o pé as folhas e as embalagens de biscoitos vazias que o vento havia soprado para o canto; poderia testar seu poder transformando-as em outra coisa qualquer.
Mas Nirupam dobrara a esquina atrás dela.
— Não, espere — ele disse. — Fui eu quem lhe mandou aquele bilhete.
Nan achou aquilo muito embaraçoso. Fingiu que estava mais interessada nas folhas mortas.
— Não preciso de ajuda — disse de modo áspero.
Nirupam sorriu e recostou-se na parede da biblioteca como se estivesse a tomar sol. Nan deu-se conta de que ele tinha uma personalidade bastante forte. Embora o sol fosse fraco, de um amarelo claro, e o vento fizesse redemoinhos com as embalagens vazias, Nirupam transmitia uma tão forte impressão de que estava tomando sol que Nan quase chegou a sentir calor.
— Todo o mundo pensa que você é bruxa — ele disse.
— Bom, eu sou mesmo — Nan insistiu, pois queria ficar bem segura disso.
— Você não devia admitir isso — Nirupam observou. — Mas não faz diferença. O caso é que é apenas uma questão de tempo antes que alguém vá procurar a senhorita Cadwallader para acusar você.
— Tem certeza? Todos querem que eu faça coisas — Nan objetou.
— Theresa não quer. Além disso, você não vai conseguir agradar a todo o mundo. Não demora, alguém fica aborrecido. Sei disto porque o meu irmão tentava agradar a todos os criados. Então um deles achou que o meu irmão estava dando mais aos outros criados do que a ele, e contou à polícia. E meu irmão foi queimado nas ruas de Delhi.
— Sinto muito... Eu não sabia — Nan afirmou.
Ela voltou os olhos para Nirupam. O perfil dele era como o de um falcão bochechudo. E parecia desolado.
— Mamãe também foi queimada, por tentar salvar o meu irmão — Nirupam continuou. — Foi por isso que papai veio para este país, mas as coisas são iguais aqui. O que eu quero lhe dizer é o seguinte: ouvi falar de um serviço clandestino de resgate de bruxos, aqui na Inglaterra, que ajuda os bruxos acusados a escapar, se eles conseguirem chegar a uma das filiais antes que os Inquisidores apareçam. Não sei para onde eles mandam os bruxos, ou a quem perguntar, mas Estelle sabe. Se você for acusada, precisa pedir ajuda a Estelle.
— Estelle? — Nan repetiu.
Ela lembrou-se dos suaves olhos castanhos e dos cachos macios de Estelle, da irritante tagarelice de Estelle, e do costume ainda mais irritante de Estelle de imitar Theresa. Não conseguia imaginá-la ajudando alguém.
— Estelle até que é boazinha — Nirupam afirmou. — Venho aqui muitas vezes, para conversar com ela.
— Quer dizer, para a Estelle conversar com você — Nan corrigiu.
Nirupam deu um sorriso.
— Ela fala muito, mesmo — concordou. — Mas vai ajudar. Ela me disse que gosta de você. Fica triste por você não gostar dela.
Nan ficou boquiaberta. Estelle? Aquilo não era possível, pois ninguém gostava de Nan. Mas, agora ela se lembrava, Estelle recusara-se a ir ameaçá-la de afogamento no banheiro.
— Está certo, vou perguntar a ela. Obrigada. Mas tem certeza de que vou ser acusada?
Nirupam assentiu.
— O caso é o seguinte, entende? Existem pelo menos dois outros bruxos na 2Y...
— Dois? — Nan repetiu. — Quer dizer, sei que existe mais um. Isto é óbvio. Mas por que acha que são dois?
— Eu já lhe disse, tenho experiência com bruxos. Cada um tem o seu estilo próprio. É como a diferença entre a caligrafia das pessoas. E garanto que a pessoa que trouxe os pássaros na aula de música não foi a mesma que pôs o feitiço em Simon hoje. São duas maneiras bem diferentes de ver a vida. Mas essas duas pessoas devem saber que foram muito tolas em fazer alguma coisa, e as duas vão querer colocar a culpa em você. Pode muito bem ser uma delas quem vai acusar você. De modo que você precisa tomar muito cuidado. Vou fazer a minha parte e avisar se ficar sabendo de algum problema à vista. Nesse caso, você terá que pedir ajuda a Estelle. Está entendendo agora?
— Estou, sim, e muito obrigada — disse Nan.
Com pesar ela concluiu que não ousaria tentar transformar as folhas secas em outra coisa qualquer. E, apesar da sua promessa à vassoura velha, era melhor não tornar a voar nela. Estava bastante assustada, no entanto, ainda sentia a confiança borbulhando dentro de si, mesmo que no momento não houvesse motivo algum para ficar confiante. Ela disse a si mesma: tome cuidado! Você deve estar louca!
O antigo laboratório não era usado para muito coisa além de servir como local de castigo. No entanto, ainda persistia ali um leve ranço de ciência antiga, de gerações de experiências que não deram certo. Charles deslizou pelo assento cheio de farpas do banco dos fundos até chegar ao centro dele, e apoiou o livro horrível do sr. Towers contra o toco de um velho cano de gás. As revistinhas estavam lá, empilhadas na prateleira sob a mesa, exatamente abaixo de um lugar onde alguém passara horas de esforço entalhando “Cadwallader é uma mocréia” no assento. Todas os outros alunos de castigo estavam sentados mais para a frente da sala. Eram, em sua maior parte, da 1X ou da 1Z, e era provável que não soubessem das revistinhas.
Simon entrou. Charles lançou-lhe um olhar de médio-ódio para desencorajá-lo de ir para a sua mesa. Simon foi sentar-se, com ar de empáfia, bem no centro do banco, atrás da mesa do meio. Ótimo. Então entrou o sr. Wentworth, já não tão ótimo. O sr. Wentworth segurava uma xícara de café quente, que todos no aposento contemplaram com muda inveja. Charles ficou contrariado: tinha que ser esse professor!...
O sr. Wentworth colocou sua xícara com cuidado sobre a mesa e olhou em volta para ver quem estava de castigo. Pareceu surpreso ao ver Simon e nem um pouco surpreso ao ver Charles.
— Alguém precisa de papel para escrever as linhas? — Perguntou.
Charles precisava. Foi até a frente, como a maioria dos alunos da 1X, e recebeu algumas folhas de uma prova antiga de alguém. Só um dos lados da folha de papel havia sido utilizada, de modo que, para Charles, fazia sentido usar o outro lado para escrever as linhas do castigo. De qualquer maneira, não deixava de parecer um modo deliberado de mostrar aos alunos até que ponto eles estavam perdendo tempo inutilmente. Desperdiçando papel que ia para o lixo. E ao observar o sr. Wentworth distribuindo o papel, Charles notou que ele se encontrava no seu pior e mais aflito estado de espírito.
Enquanto deslizava de volta para o seu lugar no ultimo banco, Charles pensava: nada bom, nada bom. Pois, embora ele não tivesse pensado especificamente sobre isso, era óbvio que iria usar de bruxaria para copiar as quinhentas linhas daquele livro horroroso do sr. Towers. Qual era a vantagem de ser bruxo se não fosse utilizar a bruxaria? Mas ele teria que tomar muito cuidado, estando o sr. Wentworth com aquele humor.
A porta abriu-se, e Theresa fez a sua entrada com seu séquito de admiradoras. O sr. Wentworth olhou para elas.
— Entrem. Fico feliz por terem conseguido chegar, todas vocês. Sente-se, Delia. Escolha um lugar, Karen. Heather, Deborah, Julia, Theresa e as outras podem, sem dúvida, apertar-se no banco de Simon.
— Nós não estamos de castigo, professor — disse Delia.
— Viemos só para trazer Theresa — Deborah explicou.
— Por que? Ela não conhecia o caminho? — Perguntou o sr. Wentworth. — Bom, agora vocês todas estão de castigo...
— Mas, professor, nós só viemos...
— ...a não ser que saiam daqui neste segundo — prosseguiu o sr. Wentworth.
As amigas de Theresa desapareceram. Theresa olhou com raiva para Simon, que estava sentado no lugar que ela teria escolhido, e com cuidado optou por um lugar no final da mesa que ficava logo atrás da dele.
— A culpa é toda sua — sussurrou a Simon.
— Vá plantar batatas — Simon retrucou.
Ouvindo isto, Charles achou uma pena que Nirupam houvesse conseguido romper o feitiço do “Simon mandou”.
Então fez-se silêncio, o silêncio aflitivo e inquieto de pessoas que gostariam de estar em outro lugar. O sr. Wentworth abriu um livro e pegou sua xícara de café. Charles esperou até ficar aparente que o sr. Wentworth estava absorto em seu livro e então pegou a caneta esferográfica. Deslizou dois dedos ao longo dela várias vezes, assim como havia feito com os cabelos de Simon.
Escreva as linhas, disse em pensamento à caneta. Escreva quinhentas linhas tiradas deste livro. Escreva as linhas.
Então, para mostrar à caneta o que fazer, ele pôs-se a transcrever, com muita má-vontade, a primeira sentença:
“— Como vai ser divertido! — Exclamou Watts Júnior. — Vou passar metade da tarde correndo atrás de uma bola!”
Então, com muita cautela, soltou a caneta. Esta não apenas continuou de pé na posição em que estava quando ele a soltara, como também começou a escrever sem parar.
Charles posicionou o livro do sr. Towers de modo a esconder a caneta. Então, com um suspiro de satisfação, pegou uma das revistinhas e acomodou-se de forma tão confortável quanto o sr. Wentworth.
Cinco minutos depois, ele julgou que um raio o havia atingido.
A caneta caiu e rolou pelo chão. A revista foi arrancada das suas mãos. Sua orelha direita pôs-se a doer demais. Charles ergueu o olhar enevoado, pois seus óculos agora estavam pendurados na orelha esquerda, e deparou com o sr. Wentworth agigantando-se ao seu lado. A dor na orelha vinha do forte beliscão com que o sr. Wentworth a segurava.
— Levante-se — ordenou o mestre, puxando-o pela orelha.
Charles foi obrigado a levantar-se. O sr. Wentworth levou-o, daquele modo, pela orelha, com a cabeça dolorosamente de lado, até a frente da sala. Na metade do caminho até lá, os óculos de Charles desprenderam-se da sua outra orelha. Ele quase não teve ânimo para pegá-los, na verdade, só os salvou porque apanhou-os por reflexo. Tinha bastante certeza de que não precisaria mais deles por muito tempo.
Na frente das mesas, ele mal conseguia enxergar o suficiente para ver o sr. Wentworth, usando apenas uma das mãos, enfiar com força a revista na cesta de papéis.
— Que isto o ensine a não ler revistinhas durante o castigo! — Vociferou o professor. — Agora venha comigo.
E levou Charles, ainda preso pela orelha, na direção da porta. Ali, voltou-se e falou com os outros alunos na sala:
— Se alguém aqui se mexer enquanto eu não estiver de volta, ele ou ela ficará de castigo pelo dobro do tempo, todas as noites, até o Natal.
E com isto ele arrastou Charles para fora da sala.
Rebocou-o por certa distância pela passagem coberta que havia do lado de fora. Então soltou a orelha do menino, pegou-o pelos ombros e começou a sacudi-lo. Charles jamais havia sido sacudido daquele jeito; mordeu a língua e pensou que seu pescoço estivesse partido — pensou que todo ele estivesse se desfazendo.
Segurou a mão esquerda com a direita para tentar manter-se inteiro e sentiu os óculos partirem-se em dois pedaços. Adeus, óculos! Ele mal conseguia respirar quando, enfim, o sr. Wentworth o soltou.
— Eu avisei! — Disse este, furioso. — Chamei você até a minha sala e deliberadamente lhe expliquei tudo! Será que você é um perfeito idiota, garoto? Até que ponto precisa ficar assustado para tomar juízo? Será que precisa se ver na frente dos Inquisidores antes de endireitar?
— Eu... — Charles ofegou. — Eu... — Ele nunca tinha imaginado que o sr. Wentworth pudesse ficar tão zangado.
O professor continuou a falar, num tom sussurrado que era muito mais assustador do que os seus gritos.
— Três vezes! Três vezes hoje, que eu tenha tomado conhecimento, você usou de bruxaria. E só Deus sabe quantas vezes mais, que eu não fiquei sabendo. Está tentando se denunciar? Tem alguma idéia do risco que está correndo? Que tipo de fanfarrão você é? Todos os sapatos da escola hoje de manhã...
— Aquilo... aquilo foi um erro, professor — Charles arquejou. — Eu... eu estava tentando encontrar os meus tênis de corrida.
— Um motivo estúpido para desperdiçar bruxaria! — Retrucou o sr. Wentworth. — E não contente com uma demonstração pública como aquela, você vai e joga feitiços em Simon Silverson!
— Como foi que o senhor soube que fui eu?
— Bastou olhar para a sua cara, garoto. E, ainda por cima, você ficou sentado ali, deixando a coitada da Nan Pilgrim levar a culpa. Para mim, isto foi uma coisa muito egoísta e desprezível! E agora isto! Fazer a caneta escrever sozinha onde todo o mundo poderia ver! Você tem sorte, fique sabendo, garoto, muita sorte, de não estar na delegacia de polícia neste momento, esperando o Inquisidor. Você merece estar lá. Não merece? — E tornou a sacudir Charles. — Não merece?
— Sim, senhor — Charles concordou.
— E estará, se fizer mais uma única bruxaria — declarou o sr. Wentworth. —Vai esquecer tudo sobre magia, está entendendo? Esqueça a bruxaria. Tente ser normal, se é que você sabe o que isto significa. Porque eu lhe prometo que, se fizer isso de novo, aí sim terá problemas. Fui bem claro?
— Sim, senhor.
— Agora volte lá para dentro e escreva direito!
O sr. Wentworth empurrou Charles à sua frente com uma das mãos, e Charles sentiu que essa mão tremia de raiva. Por mais assustador que aquilo fosse, Charles ficou aliviado, pois mal conseguia ver alguma coisa sem os óculos. Quando o sr. Wentworth irrompeu com ele de volta no antigo laboratório, o aposento era apenas um enorme borrão indistinto. Ele sabia, no entanto, que todos estavam a observá-lo. Sentia-se no ar o pensamento deles: ainda bem que não foi comigo!
— Volte ao seu lugar — ordenou o sr. Wentworth com um empurrão forte.
Charles tateou seu caminho até o outro extremo do aposento através dos borrões coloridos que flutuavam. Aqueles quadrados brancos e desfocados deviam ser o livro e a folha de prova. Mas a caneta, ele se lembrava, havia caído no chão. Naquele estado, como poderia encontrá-la, ou ainda por cima escrever com ela?
— Por que está parado aí? — O sr. Wentworth latiu para ele. — Coloque os óculos e volte ao trabalho!
Charles deu um salto de pavor e mergulhou em direção ao seu banco, colocando os óculos. O mundo entrou em foco; ele viu a caneta caída perto dos seus pés e abaixou-se para pegá-la. Estava quase totalmente debaixo do banco quando lhe ocorreu: afinal, seus óculos não haviam se partido em dois pedaços? Ele ouvira o barulho quando aconteceu, e tinha quase certeza de que os dois pedaços se separaram.
Depressa ele ergueu a mão e apalpou os óculos, não fazia sentido retirá-los para examiná-los, porque então não conseguiria enxergar. Eles pareciam inteiros. Ou ele cometera um engano, ou o plástico havia trincado, mas não o metal por dentro. Muito aliviado, Charles sentou-se com a caneta na mão.
E ficou de olhos pregados no que ela havia escrito sozinha:
“— Vou Watts bola passar Júnior correndo metade divertido da tarde! Divertido Júnior eu metade da tarde Watts”... e assim por diante, ocupando duas páginas inteiras. Não havia adiantado. O sr. Towers com certeza perceberia. Charles suspirou e começou a escrever. Talvez devesse mesmo parar de fazer bruxaria: parecia que nada dava certo...
Logo, o resto da tarde prosseguiu com muita tranqüilidade. Durante o dever de casa, Charles ficou sentado passando o polegar sobre a bolha gorda em seu dedo, sem querer renunciar à bruxaria e sabendo que não ousava continuar. Sentia tal mistura de tristeza e terror que aquilo o deixava bastante confuso. Simon também estava estático. Brian Wentworth estava de volta, a escrever laboriosamente, com um dos olhos ainda um pouco voltado para o nariz, mas parecia que Simon havia perdido o impulso de bater em Brian por enquanto. E os amigos de Simon seguiam a sua liderança.
Nan também estava quieta, por causa do que Nirupam havia dito; no entanto, por mais que ela raciocinasse, não conseguia livrar-se daquela borbulhante confiança interior. O sentimento ainda a dominava no dormitório, naquela noite. E não se dissipou, apesar de Delia, Deborah, Heather e o resto das meninas, que começaram a implicar com ela, como de costume.
— Foi um pouco demais, aquele feitiço no Simon!
— Francamente, Nan, eu sei que lhe pedi, mas você devia pensar um pouco antes de agir.
— Veja o que ele fez com Theresa. E por causa disso ela perdeu o tricô.
E Nan, em vez de submeter-se ou pedir desculpas, como costumava fazer, perguntou:
— O que foi que colocou nas suas lindas cabecinhas que aquele feitiço foi meu?
— Porque sabemos que você é bruxa — disse Heather.
— É claro — Nan confirmou. — Mas o que foi que lhes deu a idéia de que eu sou a única? Pense um pouco, Heather, antes de abrir a sua linda boquinha cor-de-rosa e deixar as palavras jorrarem. Eu lhes disse, leva tempo para fazer um feitiço, eu lhes falei sobre colher, ervas, voar em círculos e cantar, não falei? E deixei de fora a parte de ter que pegar morcegos. Isto leva séculos, mesmo numa vassoura moderna e rápida, porque os morcegos são muito bons em desviar-se. E vocês estavam comigo no banheiro, e ficaram comigo durante o tempo todo desta última semana, e viram que eu não andei falando sozinha e fazendo feitiços. Então estão vendo? Não fui eu.
Ela percebia que as outras estavam convencidas, pela expressão de decepção de todas elas. Heather murmurou:
— E você disse que não conseguia voar naquela vassoura!
Nan silenciou-se e ficou muito satisfeita: pelo jeito, havia conseguido calar a boca de todas elas sem perder sua reputação de bruxa.
De todas, exceto Karen. Esta havia sido recém-admitida à turma de amigas de Theresa e isto a tornava muito zelosa.
— Bom, eu acho que você devia fazer um feitiço agora — declarou. — Theresa perdeu um par de sapatinhos que ela levou horas tricotando, e eu acho que o mínimo que você pode fazer é trazer o tricô de volta para ela.
— Não há problema nisso — Nan afirmou em tom casual. — Mas será que Theresa quer que eu tente?
Theresa terminou de abotoar o pijama e virou-se de costas para escovar os cabelos.
— Ela não vai tentar, Karen — declarou. — Eu ficaria envergonhada de ter meu tricô de volta dessa maneira!
— Apagar as luzes — disse um monitor à porta. — Estas coisas pertencem a alguma de vocês? O zelador encontrou na cestinha do cachorro.
E estendeu duas coisas cinzentas, fofas e cheias de buracos.
O olhar que todos lançaram a Nan, enquanto Theresa ia pegar de volta os seus sapatinhos de tricô, fez com que ela se perguntasse se havia sido prudente dizer aquelas coisas. Enquanto se deitava, ela pensava: nem sequer sabia se ainda era mesmo bruxa; de agora em diante ficaria de boca fechada. E aquela vassoura iria continuar no alto do armário. Nan não se importava de quebrar a sua promessa.
Bem no meio da noite Nan foi despertada por alguma coisa que a cutucava. Adormecida, ela rolou para o outro lado, e tornou a rolar, até cair da cama. Houve um rápido ruído ciciante; alguma coisa que ela entreviu mal e mal na penumbra mergulhou por cima dela e depois mergulhou por baixo dela. Nan despertou por completo e encontrou-se a dois metros do chão, dobrada por cima do cabo da vassoura, com a cabeça pendendo de um lado e os pés, do outro. O cabo cheio de nós machucava-a. Mesmo assim, Nan começou a rir, cheia de alegria: então era mesmo bruxa, afinal!
— Leve-me para o chão, sua grande trapaceira! — Cochichou. — Você estava só querendo que eu sentisse pena, fingindo que não conseguia voar sem que alguém a montasse, não estava? Coloque-me no chão e vá voar sozinha!
A resposta da vassoura foi erguer-se até o teto. Do alto, a cama de Nan parecia um retângulo pequeno e indistinto. Ela sabia que erraria o alvo se tentasse pular em cima dela.
— Sua mandona! Sei que eu prometi, mas isso foi antes...
A vassoura de forma sugestiva flutuou na direção da janela.
Nan ficou assustada. A janela estava aberta, porque Theresa acreditava que ar fresco era bom para a saúde. E Nan imaginou-se carregada pelo céu, dobrada por cima de um cabo de vassoura, usando apenas o seu pijama. E cedeu.
— Está bem, vou voar com você. Mas primeiro vai me deixar descer e pegar umas cobertas na cama. Não vou sair assim!
A vassoura fez um círculo e desceu para a cama de Nan. As pernas da menina escorregaram e ela aterrissou sobre a cama com um solavanco. A vassoura não confiava nem um pouco nela: ficou pairando acima dela enquanto Nan retirava da cama as cobertas cor-de-rosa, e assim que se embrulhou nelas, a vassoura desceu velozmente, carregou a menina e subiu para o teto de novo. Nan foi jogada para trás e quase terminou outra vez dobrada em duas por cima do cabo.
— Vá com calma! Espere até eu me ajeitar — sussurrou. A vassoura, embora impaciente, ficou imóvel enquanto Nan tentava equilibrar-se e fazer-se confortável. Não ousou demorar muito fazendo isso: todo aquele movimento e os cochichos estavam perturbando as outras meninas. Algumas delas viravam-se na cama e resmungavam com irritação. Nan tentou sentar-se sobre o cabo da vassoura e caiu para o lado. Emaranhou-se nas cobertas. No final, apenas caiu de bruços e ficou deitada ao longo do cabo como na primeira vez, dentro de uma trouxa de cobertas, com os pés enganchados nos galhos da vassoura.
Antes mesmo que ela conseguisse essa posição, a vassoura foi até a janela, empurrou-a para que se abrisse mais e disparou para o lado de fora. A noite estava um breu. E fria, com uma garoa caindo. Nan franziu o rosto por causa do frio e tentou acostumar-se com a altura. A vassoura voava com pequenos solavancos, não muito agradáveis para uma pessoa deitada com o rosto para baixo.
Para distrair sua atenção dessas coisas, Nan começou a falar.
— Que tal isto, para um sonho romântico que se torna realidade? Sempre pensei em mim voando numa vassoura, numa noite quente de verão, delineada contra uma lua enorme, e um ou dois rouxinóis cantando enlouquecidos. E olhe para nós!
Debaixo dela, a vassoura deu um solavanco que era obviamente um gesto de dar de ombros.
— É, acho que isto é o melhor que podemos fazer — Nan admitiu. — Mas não me sinto muito deslumbrante deste jeito, e estou ficando encharcada. Aposto que Dulcinea Wilkes ficava graciosa sentada na vassoura e com certeza de lado, com os longos cabelos flutuando. E, como era em Londres, ela talvez usasse um elegante vestido de seda com várias anáguas de renda aparecendo abaixo da barra da saia. Sabia que eu sou descendente de Dulcinea Wilkes?
A ondulação sob ela podia muito bem ser a maneira com que a vassoura assentia, mas podia também estar rindo daquele contraste.
Nan percebeu que agora conseguia enxergar no escuro. Olhou para baixo e ficou com medo: sentia a vassoura frágil demais para voar àquela altitude. Enquanto Nan falava, ela havia subido e desviado para um lado, de modo que as formas quadradas da escola encontravam-se muito abaixo e para trás. A extensão pálida da quadra de esportes estava logo abaixo, e depois dela Nan via toda a cidade, que enchia o vale à frente. Todas as casas estavam escuras, separadas pelos cordões alaranjados da luz dos postes. E, apesar do vento e da garoa, Nan conseguia enxergar longe, até a escuridão da Floresta de Larwood, no morro ao lado.
— Vamos voar acima da floresta — pediu.
A vassoura partiu para lá. Pestanejando por causa da garoa, Nan disse a si mesma, em tom firme, que, uma vez que se habituasse, a sensação seria muito boa. Um vôo secreto, silencioso — aquilo estava em seu sangue. Ela segurou com as duas mãos a extremidade do cabo da vassoura e tentou apontá-lo para a cidade, mas a vassoura tinha idéias próprias: ela queria percorrer o contorno da periferia da cidade. O resultado foi que voaram de lado, com alguma turbulência.
— Voe acima das casas — disse Nan.
A vassoura deu um estremeção que quase a derrubou: não.
— Imagino que alguém possa olhar para cima e nos ver — Nan concordou. — Está certo. Você venceu outra vez. Mandona!
E ocorreu-lhe que seus sonhos de voar de encontro a uma enorme lua cheia eram na realidade a mais completa bobagem romântica. Nenhum bruxo em seu juízo perfeito faria isso, por medo de que os Inquisidores o avistassem.
Assim, elas voaram por cima dos campos e atravessaram a estrada principal em meio a uma chuvarada. No princípio a chuva atingia o rosto de Nan em pingos separados, que saíam da neblina alaranjada formada pelas luzes dos postes; depois era apenas água na escuridão, quando chegaram à Floresta de Larwood, a água trouxe consigo um cheiro de folhas de outono e cogumelos. Mas mesmo uma mata escura não é totalmente negra à noite: Nan conseguia enxergar as árvores mais claras, que ainda tinham folhas amarelas, e via com clareza a névoa provocada pela chuva erguendo-se acima da vegetação. Uma parte daquela névoa parecia ser fumaça de verdade: Nan sentiu o distinto cheiro de fogo. Um fogo molhado, que fazia muita fumaça. De repente ela se sentiu intimidada.
— Escute, não pode ser uma fogueira, pode? Já é mais de meia-noite, e hoje é o Dia dos Bruxos, não é?
Parecia que aquela idéia perturbava a vassoura: ela estacou com um solavanco. Por um segundo, a parte superior do cabo inclinou-se para baixo, como se ela estivesse pensando em aterrissar, e Nan precisou agarrar-se com força para não escorregar de cabeça. Então a vassoura pôs-se a voar de marcha a ré, sacudindo a galharia em movimentos agitados, de modo que os pés de Nan iam de um lado para outro.
— Pare com isto! — pediu. — Vou vomitar a qualquer momento!
Ela sabia que às vezes, quando queimavam um bruxo, queimavam junto as vassouras que lhes pertenciam, de modo que não ficou surpresa quando a vassoura fez meia-volta, afastando-se do cheiro de fumaça, e começou a voar de volta na direção da escola, de um modo orgulhoso, como se desde o início a sua intenção fosse tomar aquele rumo.
— Você não me engana — Nan declarou. — Mas podemos voltar, se quiser. Estou ensopada de chuva.
A vassoura seguiu em frente, molhada, porém majestosa, voando bem alto acima das campinas e da estrada principal, até que o retângulo pálido da quadra de esportes apareceu mais uma vez abaixo delas. Nan estava pensando que dali a poucos instantes estaria na cama quando aparentemente uma nova idéia ocorreu à vassoura: ela mergulhou com enorme rapidez por cerca de quinze metros e aumentou a velocidade. Nan encontrou-se voando acima da quadra a uns seis metros de altura e escorregando para trás por causa da velocidade. Ela agarrou-se e gritou para a vassoura parar, mas nada do que ela disse fez diferença: a vassoura não diminuiu o ritmo de seu vôo.
— Ora, francamente! — Nan exclamou, ofegante. — Você é a coisa mais teimosa que já conheci! Pare!
A chuva chicoteava-lhe o rosto, mas ainda assim ela agora divisava alguma coisa à frente. Era alguma coisa escura em contraste com o gramado abaixo dela, e era bem grande — grande demais para uma vassoura, embora estivesse voando também, atravessando a quadra a flutuar com suavidade. A vassoura chispava em sua direção. Enquanto se aproximava, Nan percebeu que aquela coisa era plana por debaixo e tinha em cima o vulto de uma pessoa. E ficava cada vez maior. Nan concluiu que só podia ser um tapete pequeno com um homem sentado em cima dele. Ela puxou e sacudiu o cabo da vassoura, mas parecia que nada seria capaz de fazer a vassoura parar.
A vassoura emparelhou-se alegremente com o vulto escuro. Era mesmo um homem sobre um tapete pequeno. A vassoura fez um círculo em volta dele, sacudindo a parte traseira com tanta força que Nan mordeu a língua. A vassoura cutucava e dava pequenos empurrões no tapete, jogando Nan de um lado para outro. E o tapete parecia também deliciado ao encontrar a vassoura: ele se sacudia e ondulava de tal forma que o homem em cima dele rolava de um lado para o outro. Nan encolheu-se e agarrou-se à vassoura, torcendo para que ficasse parecendo um rolo de cobertas para quem quer que fosse aquele bruxo voando num tapete.
Mas o homem estava ficando irritado com as brincadeiras do tapete com a vassoura.
— Ainda não consegue controlar esta coisa? — Perguntou.
Nan encolheu-se ainda mais. De qualquer maneira, a mordida na língua tornava-lhe difícil falar, e ela quase ficou feliz com isso, pois reconhecia aquela voz: era a voz do sr. Wentworth.
— E eu lhe disse para nunca voar nesta coisa durante o período escolar, Brian — continuou o sr. Wentworth. Como Nan não respondesse, ele acrescentou: — Eu sei, eu sei. Mas este tapete infeliz insiste em sair todas as noites.
Nan estava achando que as coisas iam de mal a pior. O sr. Wentworth pensava que ela era Brian, de modo que Brian devia ser...
Com um esforço feroz ela conseguiu obrigar a vassoura a virar-se, afastando-se do tapete. E, com um esforço ainda mais feroz, conseguiu que ela continuasse voando para longe, na direção da escola. Chutando-a fortemente com seus pés descalços, obrigou-a a seguir sempre em frente. Depois que já haviam se distanciado um pouco do tapete, Nan arriscou-se a virar-se e sussurrar um pedido de desculpas.
A sua esperança era de que o sr. Wentworth continuasse pensando que ela era Brian. O sr. Wentworth gritou-lhe alguma coisa de longe enquanto a vassoura afastava-se voando pesadamente, mas Nan sequer tentou ouvir o que era. Apenas não queria saber, e ainda mal podia acreditar. Além disso, precisava de toda a sua atenção para conduzir a vassoura que estava bastante relutante: voava acima do campo de um modo melancólico e penoso, que fazia Nan se lembrar de Charles Morgan, mas pelo menos ela seguia em frente. Nan ficou feliz ao descobrir que, afinal, conseguia mesmo controlá-la, quando era necessário.
A vassoura dava a entender que erguer Nan até a janela do dormitório seria uma tarefa hercúlea: a menina quase acreditou que a vassoura gemia. Parte dessa dificuldade podia ser real; todas as cobertas cor-de-rosa de Nan estavam encharcadas e deviam pesar bastante. Nan, porém, lembrava-se da cena que a vassoura fizera à tarde, e decidiu não ter piedade; voltou a esporeá-la com os pés, até que a vassoura começou a erguer-se através da noite escura e chuvosa, voando ao longo da parede, até que, finalmente, estavam do lado de fora da janela entreaberta do dormitório. Nan ajudou a vassoura a abri-la mais, e logo depois aterrissava de bruços no chão. Foi enorme o alívio que ela sentiu.
Alguém cochichou:
— Coloquei cobertas secas na sua cama.
Nan quase desmaiou. Depois de uma pausa para recuperar-se, ela rolou de cima da vassoura e ajoelhou-se. Seu pijama pingava água. Uma figura pouco nítida, usando o pijama regulamentar da escola, estava parada diante dela, um pouco inclinada, de modo que Nan conseguia perceber que seus cabelos eram cacheados. Heather? Não, que bobagem a sua! Estelle.
— Estelle? — Ela cochichou.
— Psiu! — Fez Estelle. Venha me ajudar a colocar estas cobertas no armário da roupa de cama. Lá poderemos conversar.
— Mas a vassoura? — Nan sussurrou.
— Mande embora.
Nan achou que seria uma boa idéia, se a vassoura obedecesse. Desvencilhando-se das cobertas empapadas, pegou-a e levou-a até a janela.
— Vá para o barracão de jardinagem — ordenou, num cochicho autoritário.
Jogou a vassoura com força para fora; conhecendo o tipo de vassoura que era aquela, não teria ficado surpresa se a ela simplesmente caísse no chão lá embaixo. Com um pouco de espanto constatou que a vassoura obedeceu — ou, pelo menos, voou para dentro da noite chuvosa.
Estelle já estava puxando a pilha de cobertas em direção à porta. Pé ante pé, Nan foi ajudá-la. As duas arrastaram a trouxa pelo corredor e para dentro do fatídico banheiro. Ali, Estelle fechou a porta e acendeu a luz.
— Não vai haver problema, se falarmos baixo — afirmou. — Lamento muito, mas Theresa acordou quando eu estava arrumando a sua cama. Fui obrigada a dizer a ela que você tinha vomitado. Disse que você estava no banheiro, vomitando outra vez. Vai conseguir se lembrar, se amanhã ela lhe perguntar?
— Obrigada, foi muita bondade sua. Eu acordei você quando saí?
— Acordou, sim, mas isso decerto foi porque sou treinada nessas coisas — Estelle respondeu, enquanto abria as portas do grande armário. — Se dobrarmos estas cobertas e colocarmos bem no fundo, não serão encontradas por muitas semanas. Pode ser que até lá elas estejam secas, mas com o aquecimento desta escola não dá para confiar muito nisso.
Não foi um trabalho rápido; elas foram obrigadas a retirar as pilhas cor-de-rosa de roupa de cama arrumadas no armário, dobrar as cobertas cor-de-rosa molhadas, colocá-las no fundo da prateleira e então tornar a empilhar as enxutas na frente para escondê-las.
— Por que você disse que acordou porque é treinada? — Nan quis saber de Estelle enquanto trabalhavam.
— Eu convivia com pessoas que ajudavam os bruxos a fugir — Estelle explicou. — Mamãe pertencia a essa organização, e eu costumava ajudá-la. Quando ouvi você sair, isso me levou de volta ao passado, apesar de que em geral fossem as pessoas chegando que me acordavam. E eu sabia que você estaria molhada quando voltasse e ia precisar de ajuda. Mamãe me educou para pensar em tudo desse jeito. Costumávamos receber bruxos chegando em vassouras a qualquer hora da noite, coitados. A maioria deles chegavam molhados como você. E muito mais assustados, é claro. Use o seu queixo para manter a coberta presa, é a melhor maneira de conseguir dobrar.
— Por que sua mãe mandou você para esta escola? Você devia ser uma grande ajuda — Nan perguntou.
O rosto alegre de Estelle anuviou-se.
— Ela não me mandou para cá. Foram os Inquisidores. Eles fizeram uma grande campanha e desmantelaram todo o nosso ramo da organização. Mamãe foi presa. Agora está na prisão por dar ajuda aos bruxos. — Os suaves olhos castanhos de Estelle fixaram-se ansiosamente no rosto de Nan. — Mas, por favor, não conte aos outros. Eu não suportaria que alguém mais soubesse. Você é a única pessoa a quem já contei.
Na manhã seguinte, Brian Wentworth não se levantou. Simon jogou um travesseiro em cima dele, mas Brian continuou deitado, imóvel.
— Vamos acordar, vamos acordar, Brian! — Disse Simon. — Levante-se, senão vou arrancar as suas cobertas.
— Deixe o Brian em paz. Ele passou mal ontem — Charles interveio.
— Como quiser, Charles. Seu pedido é uma ordem para mim — Simon respondeu, e arrancou todas as cobertas da cama de Brian.
Só que Brian não estava na cama. Em seu lugar havia três travesseiros, bem colocados em fila de modo a parecerem o contorno de um corpo. Todos vieram espiar, agrupando-se ao redor da cama de Brian. Ronald West abaixou-se para olhar debaixo da cama — como se achasse que Brian poderia estar ali — e ergueu-se segurando um pedaço de papel.
— Pronto, isto deve ter caído no chão junto com as cobertas — disse. — Dêem uma olhada!
Simon arrancou-lhe o papel da mão. Todos os outros esticaram o pescoço e se empurraram, para tentar enxergar também. No papel, escrita em letras maiúsculas com uma caneta esferográfica azul, havia a seguinte mensagem: Ha Ha, Estou Com Brian Wentworth Em Meu Poder. Assinado, O Bruxo
A expressão quase tensa do rosto de Simon deu lugar a uma preocupação indignada. Ele percebera imediatamente que o desaparecimento de Brian nada tinha a ver com ele.
— Não vamos entrar em pânico. Alguém vá chamar o professor de plantão — ordenou.
Logo instalou-se a crise. As vozes se cruzavam, os boatos galopavam. Charles trouxe o sr. Crossley, pois todos os outros pareciam atônitos demais para raciocinar. Depois disso, o sr. Crossley e os monitores iam e viam, perguntando a todos quando haviam visto Brian pela última vez. Alunos dos outros dormitórios agrupavam-se perto das portas, trocando comentários em voz alta.
Todos se mostraram muito ansiosos para relatar alguma coisa, mas nada de útil surgiu. Muita gente havia percebido que na véspera Brian estava pálido e tinha um olho enviesado. Alguém informou que ele havia se sentido mal e ido procurar a enfermaria. Outras pessoas disseram que ele havia voltado depois e, ao que parecia, ficara muito ocupado escrevendo sem parar. Todos juraram que na noite anterior Brian foi para a cama como de costume.
Muito antes de o sr. Crossley ter conseguido saber estes detalhes, Charles já descia apressado a escada, pé ante pé. Ele se sentia mal, porque, até a noite anterior, imaginara que Brian estava tentando machucar-se a ponto de ser retirado da escola, mas agora sabia da verdade: Brian fugira, do mesmo modo como dissera que ia fazer. E havia aceitado o conselho que Charles lhe dera no meio da noite anterior e deixado uma pista falsa. No entanto, o que era que havia dado a Brian a idéia de culpar um bruxo? Poderiam ter sido os sapatos, e a visão de Charles resmungando em cima de alguns cabelos do pente de Simon? Charles tinha quase certeza de que havia sido isso.
Enquanto Charles abria caminho por entre os meninos no corredor, ele escutou as palavras “bruxa” e “Nan Pilgrim” vindo de todos os lados. Ótimo, enquanto continuassem culpando Nan. Mas isso duraria? Enquanto descia a escada, Charles deu uma olhada no dedo queimado. A bolha, uma almofada transparente e úmida, estava mais gorda do que nunca. “Ser queimado dói”.
Charles desceu o resto dos degraus a galope, enlouquecido. Também ele se lembrava de Brian escrevendo sem parar durante a hora do dever de casa. Brian havia enchido várias páginas e, se houvesse uma única palavra sobre Charles Morgan naquelas páginas, ele ia providenciar para que ninguém mais as visse. Percorreu os corredores à toda velocidade e jogou-se para dentro da sala de aula, quase sem fôlego.
A carteira de Brian estava aberta. Nirupam estava inclinado sobre ela e não pareceu nem um pouco surpreso ao ver Charles.
— Brian foi muito eloqüente. Venha ver — chamou.
Por trás do tampo erguido da carteira, Nirupam havia enfileirado seis cadernos, cada um deles aberto numa página dupla coberta de uma caligrafia feita às pressas em tinta azul.
Charles leu no primeiro caderno:
Socorro, socorro, socorro. O bruxo colocou mau-olhado em mim. Socorro. Estou sendo arrastado e não sei para onde. Socorro. Meu cérebro foi escravizado. Tenho sido forçado a atos inomináveis. Socorro. O mundo está ficando cinzento. O feitiço está agindo. Socorro....
E assim por diante, em duas páginas inteiras.
— Ele escreveu centenas de páginas! — Charles comentou.
— Sei disso — respondeu Nirupam, abrindo o caderno de francês de Brian. — Este aqui também está cheio.
— Ele cita algum nome? — Charles quis saber, tenso.
— Até agora não encontrei — Nirupam afirmou. Charles não ia confiar apenas na palavra de Nirupam; assim, pegou cada caderno e leu tudo o que estava escrito.
Socorro. Cânticos selvagens e cheiros pavorosos enchem os meus ouvidos. Socorro. Sinto que Estou Cedendo. A vontade do bruxo é forte. Sou obrigado a obedecer. Zumbidos cinzentos e palavras terríveis. Socorro. O meu espírito está sendo arrastado de Timbuctu a Uttar Pradesh. Quero dizer, para a total destruição. Socorro...
E assim seguia, em todos os seis cadernos. A grande quantidade de letras maiúsculas assegurava a Charles de que o próprio Brian havia escrito o bilhete encontrado em sua cama.
Depois disso, ele leu cada um do resto dos cadernos de Brian à medida que Nirupam terminava a leitura. Era tudo a mesma espécie de coisa. Para alívio de Charles, Brian não mencionava nomes. Mas ainda sobrava o diário dele, que estava no fundo da pilha.
— Se ele disse alguma coisa definida, foi aqui — Nirupam afirmou, pegando o diário.
Charles também estendeu a mão para o caderno. Se fosse necessário, ele iria usar a magia para forçar Nirupam a entregá-lo. Ou seria melhor apenas fazer todas as páginas ficarem em branco? Mas teria coragem de fazer alguma dessas duas coisas?
Sua mão hesitou.
Enquanto Charles hesitava, os dois escutaram a voz do sr. Crossley no corredor. Charles e Nirupam puseram-se, apressados, a enfiar os cadernos de volta na carteira de Brian e fechá-la. Depois correram para as suas próprias carteiras, sentaram-se, pegaram cadernos e fingiram estar muito atarefados terminando o dever de casa da véspera.
— Vocês deviam estar indo para o café da manhã agora, meninos — declarou o sr. Crossley assim que entrou na sala. — Vão andando.
Os dois foram obrigados a sair sem terem tido a chance de dar uma olhada no diário de Brian. Charles tentava entender por que Nirupam parecia tão frustrado, mas estava assustado demais com os seus próprios problemas para preocupar-se muito com os sentimentos de Nirupam.
No corredor do lado de fora do refeitório, o sr. Wentworth passou apressado por eles, parecendo ainda mais aflito do que de costume. Dentro do refeitório espalhara-se a notícia de que a polícia acabara de chegar.
— Esperem para ver — disse Simon com ar conhecedor. — O Inquisidor estará aqui antes da hora do jantar. Vocês vão ver.
Nirupam deslizou pelo banco e sentou-se ao lado de Nan.
— Brian escreveu em todos os cadernos dele sobre um bruxo que colocou um feitiço nele — cochichou para ela.
Nan não precisava daquilo para constatar o problema em que estava metida, pois por várias vezes Karen e Delia já haviam lhe perguntado o que ela havia feito a Brian. E Theresa acrescentara, sem olhar para Nan:
— Algumas pessoas não conseguem deixar os outros em paz, não é mesmo?
— Mas ele não mencionou nomes — Nirupam cochichou, também sem olhar para Nan.
Nan pensou, desesperada, que Brian não precisava mencionar nomes, pois todos os outros fariam isso por ele. E, como se isso não fosse o bastante, Estelle sabia que ela saíra na vassoura na noite anterior. Olhou em volta, procurando Estelle, mas esta aparentemente a evitava: estava sentada a outra mesa. Diante disso, Nan perdia por completo os últimos vestígios de sua confiança interior na bruxaria e, pela primeira vez na vida, ela não teve apetite para o café da manhã.
Charles não estava muito melhor: toda vez que ele tentava comer alguma coisa, a bolha no dedo atrapalhava.
No final da refeição, outra notícia se espalhou: a polícia mandara buscar cães farejadores.
Pouco tempo depois disso, a srta. Hodge chegou, e encontrou a escola em tumulto. Ela levou algum tempo para entender o que havia acontecido, pois o sr. Crossley não pôde ser encontrado em lugar algum. Quando a srta. Phillips por fim contou-lhe tudo, a srta. Hodge ficou deliciada. Brian Wentworth havia desaparecido! A srta. Hodge apressou-se a pensar que aquilo era muito triste e preocupante, naturalmente, mas dava-lhe uma desculpa real para tentar atrair a atenção do sr. Wentworth de novo.
O dia anterior tinha sido muito frustrante. Depois que o sr. Wentworth havia descartado o generoso pedido de desculpas da parte dela a respeito de Charles Morgan, ela não fora capaz de pensar em outra jogada com o objetivo de fazer com que ele se casasse com ela. Mas aquela novidade era ideal: ela poderia procurar o sr. Wentworth e mostrar-se muito solidária, poderia sensibilizar-se com a dor dele. A única dificuldade era que o sr. Wentworth, assim como o sr. Crossley, não podia ser encontrado. Ao que parecia, ambos estavam com a polícia no escritório da srta. Cadwallader.
Quando todos se dirigiram ao Salão Nobre para a formação, puderam ver uma caminhonete da polícia parada no pátio. Vários cães alsacianos de aspecto saudável desciam do veículo, com as línguas rosadas por cima dos grandes caninos brancos, o que lhes dava a aparência de que mal podiam esperar para sair e caçar alguma coisa.
Vários rostos empalideceram. Ouviram-se muitas risadinhas nervosas.
— Não tem importância se os cães não encontrarem coisa alguma — ouviram Simon explicar. — O Inquisidor apenas passará o detector de bruxos em cada aluno da turma, e dessa maneira encontrarão o bruxo.
Para alívio de Nan, Estelle veio abrindo caminho ao longo da fila e parou ao lado dela.
— Estelle! — Nan começou a falar impetuosa.
— Agora não — Estelle cochichou. — Vamos esperar a hora da aula de música.
Nem o sr. Wentworth, nem a srta. Cadwallader apareceram para a formação. O sr. Brubeck e o sr. Towers, que se sentaram nas cadeiras principais em lugar dos outros dois, não deram qualquer explicação para essa ausência, e nenhum dos dois mencionou Brian. Isso parecia tornar tudo muito mais grave. O sr. Towers escolheu o seu hino favorito — que era, para o sofrimento de Nan, “Aquele que quis ser valente”.
Esse hino sempre fazia Theresa olhar para Nan e dar uma risadinha, quando chegavam na parte que dizia: “...ser um peregrino”.
Nan precisou esperar que Theresa fizesse isso, antes de tomar coragem para falar com Estelle, e teve a impressão de que o risinho de Theresa foi um pouco mais cruel do que de costume.
Assim que todos começaram a cantar a segunda estrofe, Nan cochichou:
— Estelle, você não pensa que eu saí, ontem à noite, da maneira como saí, por causa de Brian, pensa? Juro que não foi isso.
— Sei que não foi — Estelle cochichou de volta. — De qualquer maneira, para quê alguém ia querer Brian?
— Mas todo o mundo pensa que eu fiz isso! Que é que vou fazer? — Nan cochichou de volta.
— A segunda aula é de educação física. Aí eu vou lhe explicar — Estelle respondeu.
Charles também estava cochichando com Nirupam sob o disfarce do hino:
— Que é que são esses detectores de bruxos? Eles funcionam mesmo?
— São máquinas dentro de caixas pretas — Nirupam esclareceu num sussurro, olhando para o seu livro de hinos. — E eles sempre encontram um bruxo quando usam a máquina.
Também o sr. Wentworth havia falado sobre detectores de bruxos. Charles ficou achando que, se os boatos fossem verdadeiros e o Inquisidor chegasse antes do almoço, esse dia traria o seu fim. Charles estava com ódio de Brian, aquele animal egoísta. Sim, era verdade que ele também havia sido egoísta, mas Brian era ainda pior. Agora só havia uma coisa a fazer: ele seria obrigado a escapar também. Mas aqueles cães farejadores tornavam a fuga quase que impossível.
Quando chegaram à sala de aula, a carteira de Brian havia sido retirada. Charles olhou com terror para o espaço vazio, pensando: impressões digitais! Nirupam ficou amarelo.
— Eles levaram a carteira para os cães sentirem o cheiro dele — Dan Smith declarou, e em seguida acrescentou pensativo: — Eles são treinados para arrancar pedaços das pessoas, esses cães da polícia. Eu tinha vontade de saber se vão arrancar pedaços de Brian, ou só do bruxo.
Charles olhou para a bolha no dedo e tomou consciência de que ser queimado não era a única coisa que doía. Seu primeiro pensamento havia sido escapulir durante o intervalo antes da primeira aula, mas ele decidiu ficar para a aula seguinte, que era de educação física. Gostaria que não houvesse uma aula inteira antes disso.
Aquela aula pareceu durar quase um ano. E durante a maior parte do tempo policiais ficaram passando do outro lado da janela, trazendo cães na coleira. Iam de um lado para o outro; aonde quer que Brian tivesse ido, parecia que eles estavam achando difícil encontrar o seu rastro.
A essa altura as mãos de Nan tremiam tanto que ela mal conseguia segurar a caneta. Graças à noite anterior, ela sabia muito bem por que Brian não havia deixado rastro: era aquela vassoura trapaceira, que decerto havia levado Brian para bem longe antes de ir acordá-la. Nan tinha certeza disso, e poderia ter levado a polícia ao local exato onde Brian se encontrava. Não era uma fogueira qualquer, aquela cujo cheiro ela havia sentido na Floresta de Larwood na noite anterior: era o fogo aceso por Brian. A vassoura a levara diretamente acima do local, e então percebera o seu engano. Por isso ela ficara tão agitada e tentara voar de marcha a ré.
Nan estava tão furiosa com Brian por ele ter feito com que ela levasse a culpa, que tinha vontade de poder contar-lhes onde ele estava. No entanto, no momento em que fizesse isso ela provaria que era bruxa, e, além de tudo, ainda incriminaria o sr. Wentworth. Ah, Brian havia sido bastante cruel! Nan podia apenas torcer para que Estelle conseguisse pensar em algum tipo de socorro antes que alguém a acusasse, e ela começasse a acusar Brian e o sr. Wentworth.
Os cães na certa haviam encontrado algum tipo de rastro logo antes do final daquela aula, pois, quando as meninas rodearam o prédio da escola a caminho do vestiário feminino, a fim de prepararem-se para a aula de educação física, não havia um único policial ou cachorro à vista.
Quando a fila de meninas passou pelo pequeno bosque, Estelle pegou o braço de Nan e puxou-a em direção aos arbustos. Nan deixou-se levar. Ela não sabia se estava mais aliviada ou mais aterrorizada. Era um pouco cedo para encontrar estudantes veteranos no bosque, mas mesmo assim com certeza alguém perceberia.
— Temos que ir até a cidade — Estelle cochichou, enquanto abria caminho em meio aos arbustos molhados. — Para uma casa que fica ao lado do antigo portão na muralha.
— Por quê? — Nan perguntou, abrindo caminho atrás de Estelle.
Estelle olhou para trás e cochichou por cima do ombro:
— Porque a mulher que mora lá dirige a filial de Larwood da rota de fuga dos bruxos.
Elas saíram para o gramado ao lado da enorme moita de louro. Nan olhou para o rosto assustado de Estelle para o uniforme escolar dela. Depois olhou para o seu próprio corpo gorducho. Por mais diferentes que as duas fossem, era óbvio que ambas usavam o uniforme do Internato de Larwood.
— Mas se alguém nos vir na cidade, vai nos delatar para a senhorita Cadwallader.
Estelle cochichou:
— Eu tinha esperanças de que você pudesse transformar os nossos uniformes em roupas comuns.
Nan deu-se conta de que a única bruxaria que já realizara havia sido a de ter voado naquela vassoura; não tinha a menor idéia de como se transformava roupa. Mas Estelle confiava nela e a questão era muito urgente. Sentindo-se uma idiota completa, Nan estendeu as mãos trêmulas e disse a primeira coisa mais parecida com um feitiço que lhe veio à cabeça:
— Uni, duni, tê, sem uniformes eu e você!
Ao redor dela fez-se uma sensação de redemoinho. De repente Estelle estava no meio de uma tempestade de neve que parecia ser feita de pequenos retalhos: pedaços de pano azul-claros, depois azul-escuros. Os retalhos caíam como papel queimado, agarrando-se a Estelle e a Nan também. Segundos depois, ali estavam as duas, vestidas de bruxas, com longos vestidos pretos, chapéus pontudos e tudo.
Estelle tapou a boca com ambas as mãos, para conter o riso; Nan morria de rir.
— Isto não vai servir! Tente outra vez — Estelle pediu, rindo.
— Que é que você quer usar? — Nan perguntou. Os olhos de Estelle brilharam.
— Roupas de montaria — sussurrou ardentemente. — Com uma suéter vermelha, por favor.
Nan tornou a estender as mãos. Agora, que sabia que conseguiria fazer aquilo, sentia-se bastante confiante.
— Bem-me-quer, mal-me-quer, use a roupa que quiser.
A tempestade de retalhos recomeçou. No caso de Estelle, ela começou preta e foi ficando, aos poucos, marrom-escuro e vermelha. Em volta de Nan ela parecia estar ficando cor-de-rosa. Quando a tempestade passou, ali estava Estelle, muito elegante e bela numa suéter vermelha, calças e chapéu de equitação, apontando para Nan com um chicote e soltando risinhos que não conseguia controlar.
Nan baixou os olhos para a própria figura. Pelo que parecia, o traje que ela queria era o que ela imaginara Dulcinea Wilkes usando para voar em sua vassoura pelo céu de Londres: um vestido de baile de seda cor-de-rosa brilhante. A saia longa varria a grama molhada; o corpete apertado deixava os seus ombros expostos. O vestido tinha laços azuis na frente e renda nas mangas. Não era de espantar que Estelle estivesse rindo! Seda cor-de-rosa era um equívoco para uma pessoa gordinha como Nan. Ela pensou: por que cor-de-rosa? Talvez havia se inspirado nos lençóis do internato.
Nan tinha as mãos estendidas para tentar de novo quando ouviram Karen Grigg gritando, do lado de fora do bosque:
— Estelle! Estelle! Onde é que você está? A senhorita Phillips quer saber onde você se meteu!
Estelle e Nan viraram-se e puseram-se a correr. O traje de Estelle era ideal para saltar por cima das moitas; o de Nan não era. Ela arrastava-se e ofegava atrás de Estelle, e as folhas molhadas encharcavam os seus ombros nus. As mangas atrapalhavam o seu progresso; a saia rodada enrolava-se em suas pernas e prendia-se nas moitas. Bem na borda do bosque o vestido prendeu-se num galho e rasgou-se com um ruído tão forte que Estelle parou e fez meia-volta, horrorizada.
— Espere! — Nan ofegou. Agarrou a saia cor-de-rosa e rasgou todo o pedaço inferior; depois enrolou o pedaço rasgado como uma echarpe em volta dos ombros molhados. — Assim está melhor!
Depois disso ela conseguiu acompanhar Estelle com facilidade. As duas saíram, cautelosas, para a alameda de entrada da escola e dispararam até os portões de ferro, passando por ele. Do lado de fora, na rua, Nan pretendia parar e trocar o vestido cor-de-rosa por alguma outra coisa, mas havia um homem varrendo a calçada bem perto dos portões. Ele parou de varrer e ficou olhando para as duas.
Pouco mais à frente, vinham duas senhoras com sacolas de compras, que as encararam com mais curiosidade ainda. Nan baixou a cabeça, muito envergonhada, quando passaram pelas damas. Ela tinha tiras de seda cor-de-rosa rasgada penduradas e grudando-se às meias azul-claras com as quais, ao que parecia, ela havia substituído as meias soquetes do uniforme escolar. E ainda por cima ela constatava agora que havia trocado os sapatos do uniforme por sapatilhas de balé cor-de-rosa.
— Você pode ir me encontrar na aula de balé, depois que tiver a sua aula de equitação? — Disse, em voz alta e desesperada, dirigindo-se a Estelle.
— Pode ser. Mas tenho medo da sua professora de balé — Estelle respondeu, entrando no jogo corajosamente.
Elas passaram pelas senhoras, mas havia outras pessoas na rua. Quanto mais entravam na cidade, mais pessoas havia. Quando chegaram às lojas, Nan deu-se conta de que não teria uma oportunidade de trocar o vestido de baile cor-de-rosa.
— Você está muito bonitinha. Mesmo — Estelle declarou, para consolá-la.
— Não estou, não. É como um pesadelo — Nan retrucou.
— Nos meus pesadelos eu estou sem roupa — Estelle contou. Por fim chegaram ao estranho castelo de tijolos vermelhos que era a Casa do Antigo Portão. Estelle, de aparência pálida e nervosa, levou Nan degraus acima até a varanda, cujo telhado era pontiagudo. Nan puxou o grosso cordão da sineta que pendia ao lado da porta também pontiaguda. As duas ficaram paradas sob o arco, à espera, mais nervosas do que nunca.
Durante um longo tempo, elas ficaram com a impressão de que ninguém atenderia a porta. Então, depois de quase cinco minutos, a porta abriu-se, bem devagar e com muitos rangidos. Uma senhora bastante idosa apareceu, apoiada numa bengala, e olhou para elas com certa surpresa.
A essa altura, Estelle estava nervosa a ponto de gaguejar.
— Uma... Uma fuga em n-nome de D-dulcinea — disse.
— Ora, ora! — Exclamou a velha senhora. — Minhas queridas, eu sinto muito. Os Inquisidores desmantelaram a nossa organização há muitos anos. Se não fosse pela minha idade, eu agora estaria na prisão. Eles vêm investigar todas as semanas. Infelizmente não posso fazer coisa alguma.
As duas ficaram a encará-la, em total consternação. A velha senhora percebeu isso.
— Se é uma emergência de verdade, posso lhes dar um feitiço. É só isto que me ocorre. Vocês querem?
As duas assentiram, desesperadas.
— Então esperem um momento, enquanto escrevo o feitiço — disse a velha senhora.
Ela foi até uma mesa a um lado do saguão escuro e antigo, deixando a porta aberta. Abriu uma gaveta da mesa e remexeu, procurando papel, depois encontrou uma caneta. E voltou-se para elas.
— Sabem, minhas queridas, para não atrair atenção vocês deveriam parecer que estão recolhendo esmolas para caridade. Eu posso fingir que estou preenchendo um cheque para vocês. Será que alguma das duas consegue umas caixas de coleta?
— Eu consigo — disse Nan.
Ela quase perdera a voz, de tanto medo e desespero, e foi obrigada a tossir. Não ousava arriscar-se a recitar um feitiço, parada ali nos degraus da velha casa, na rua movimentada. Apenas fez um gesto trêmulo com a mão e torceu para ter acertado.
Logo em seguida sua mão ficou pesada: uma lata enorme pendia do seu braço, e outra pendia do braço de Estelle. Cada uma era grande como uma lata de tinta, e cada uma tinha uma enorme cruz vermelha pintada; as moedas dentro delas tilintavam bem alto, por causa do tremor das meninas.
— Assim está melhor — disse a velha senhora, que começou a escrever com muita lentidão.
As enormes latas de coleta de fato fizeram Nan e Estelle sentirem-se melhor enquanto esperavam; as pessoas que passavam não deixavam de olhar para elas com curiosidade, mas a maioria sorria ao ver as latas. E as duas ficaram paradas ali durante um bom tempo, pois a velha senhora, além de escrever devagar, várias vezes interrompeu-se para falar com elas.
— Alguma das duas conhece os Carvalhos de Portway? — Perguntou ela.
As meninas balançaram a cabeça em negativa.
— É uma pena. Vocês terão que ir até lá para dizer isto — continuou a velha senhora. — É um círculo de árvores no pasto logo abaixo da floresta. Então é melhor eu lhes desenhar um mapa. — E foi o que passou a fazer, com muito vagar, enquanto comentava: — Não sei por que eles são chamados de Carvalhos. Todas as árvores de lá, sem exceção, são faias. — Pouco mais tarde ela informou: — Agora vou escrever a maneira que vocês devem pronunciar.
As meninas ficaram ali paradas. Nan estava começando a desconfiar que a velha dama era na verdade uma aliada dos Inquisidores e as mantinha ali de propósito, quando esta enfim dobrou a folha de papel e veio de volta para a porta de entrada arrastando os pés.
— Aqui está, minhas queridas. Eu gostaria de poder fazer mais por vocês.
Nan pegou o papel. Estelle conseguiu produzir um brilhante sorriso artificial.
— Muitíssimo obrigada — disse. — Que é que este feitiço faz?
— Não tenho bem certeza — declarou a velha senhora. — Ele está na minha família há muitos anos, e vem passando de geração em geração para ser utilizado em uma emergência, mas ninguém ainda o usou. Dizem que é muito poderoso.
Como muitas pessoas idosas, a velha senhora falava um pouco alto demais. Nan e Estelle olharam ansiosamente por cima dos ombros para a rua, mas parecia que ninguém havia ouvido. Agradeceram com polidez e, quando a porta da frente foi fechada, desceram, temerosas, os degraus para a rua, abraçadas às latas de coleta de esmolas.
— Acho melhor usarmos o tal feitiço. Agora já não podemos voltar — disse Estelle.
Charles correu em volta da quadra de esportes em direção ao barracão de jardinagem. Torcia para que quem quer que o visse, julgasse que ele estava correndo por ordem do professor de educação física. Por esse motivo, ele havia trocado o uniforme pelo short azul-celeste de corrida, antes de sair de fininho para a quadra. Pretendia, quando tivesse tempo, transformar o short numa calça jeans, ou qualquer coisa assim. Mas naquele momento, o mais importante era colocar as mãos naquela asquerosa vassoura de galhos que, uns dias antes, os seus colegas haviam usado para implicar com Nan Pilgrim: se conseguisse encontrá-la antes que alguém percebesse a sua ausência, ele poderia escapar montado nela, e nenhum cão da terra conseguiria farejar o seu rastro.
Ele alcançou o barracão, que ficava no canto, atrás da horta, e rodeou-o, cauteloso até chegar à porta. No mesmo momento, Nirupam vinha à socapa naquela direção pelo lado oposto, também vestindo o short azul-celeste, e também ele estendeu o braço comprido em direção à porta. Os dois se encontraram cara a cara. Idéias de todo tipo para alguma coisa a ser dita passaram pela cabeça de Charles, desde explicar que ele estava apenas matando a aula de educação física até acusar Nirupam de ter seqüestrado Brian. Aconteceu que ele não disse qualquer dessas coisas. A essa altura Nirupam já segurava a maçaneta da porta.
— A vassoura é minha — disse Charles.
— Só se houver duas — respondeu Nirupam.
Com o rosto amarelo de medo, ele abriu a porta e entrou depressa no barracão. Charles embarafustou atrás dele.
Lá dentro não havia sequer uma única vassoura. Havia vasos, baldes, um cortador de grama velho, um cortador de grama novo, quatro ancinhos, duas pás, uma enxada e um esfregão velho apoiado em um dos baldes. E era tudo.
— Quem foi que pegou a vassoura? — Charles perguntou, apavorado.
— Acho que ninguém trouxe a vassoura de volta — Nirupam explicou.
— Ah, que se magique tudo! — Charles xingou. — Que é que vamos fazer?
— Usar outra coisa qualquer — Nirupam sugeriu. — Ou então andar. — Ele pegou a pá mais próxima e montou-a, dobrando e estendendo suas pernas compridas. — Voe — ele ordenou à pá. — Vamos, saia voando, sua porcaria magiquenta!
Charles percebeu que a idéia de Nirupam era correta: um bruxo certamente devia ser capaz de fazer qualquer coisa voar.
— Imagino que um ancinho voaria melhor — afirmou, e depressa agarrou o cabo do esfregão, tomando-o para si.
O esfregão era tão antigo que o pano na ponta estava grudado ao fundo do balde. Charles foi forçado a firmar o balde, pisando nele com um dos pés, e puxar, até conseguir soltá-lo. Grande parte do pano ficou dentro do balde. Como resultado, ele ficou com um cabo terminando numa trouxinha cinzenta. Charles agarrou-o, montou nele e pôs-se a pular.
— Voe! — Ordenou ao esfregão. — Depressa!
Nirupam soltou a pá e pegou a enxada. Os dois puseram-se a saltar desesperadamente dentro do barracão.
— Voe! Voe! — Ofegavam.
O esfregão velho, sujo e desanimado obedeceu: subiu um metro no ar e ondulou na direção da porta do barracão. Nirupam gemia de desespero quando a enxada, por sua vez, levantou vôo, com um salto e uma corrida, como se não desejasse ser deixada para trás. Nirupam com as compridas pernas balançando, passou disparado por Charles.
— Funciona! — Ele exclamou triunfe, e partiu, com outro salto de Canguru, na direção da horta.
Eles eram proibidos de entrar na horta, mas aquele parecia o meio mais secreto de escapulir da escola. Charles seguiu Nirupam através do portão e ao longo da alameda de cascalho, ambos tentando controlar as suas montarias. O esfregão rebolava e ondulava; era como uma pessoa muito, muito idosa manquejando frágil pelo ar. Já a enxada prosseguia aos saltos de Canguru ou em diagonal, arrastando a parte de metal pelo chão; era preciso que Nirupam estendesse as pernas para a frente e para o alto, para não deixar seu rastro no solo. Ele rolava os olhos de aflição. A todo momento ultrapassava Charles e depois ficava para trás. Quando chegaram ao muro nos fundos da horta, ambas as montarias estacaram: o esfregão ficou oscilando no ar e a enxada descansou a parte metálica no solo.
— Estas coisas não conseguem subir o suficiente para pular o muro — Charles declarou. — E agora?
Aquilo poderia ter sido o final da viagem deles, se o cachorro do zelador não andasse farejando dentro da horta; de repente ele sentiu o cheiro dos dois meninos e veio em disparada pela alameda comprida em direção a eles, latindo. Diante disso, a enxada e o esfregão levantaram vôo como gatos assustados. Passaram por cima do muro, com Charles e Nirupam agarrados de qualquer maneira, e saíram aos saltos pelos campos do outro lado. Dispararam na direção da estrada principal, o esfregão num vôo nivelado e a enxada aos saltos, passando a poucos centímetros do alto das cercas e desviando-se das árvores por um fio de cabelo. Não diminuíram a velocidade até terem colocado três cercas entre eles e o cão do zelador.
— Eles devem odiar aquele cachorro tanto quanto nós — disse Nirupam, ofegando. — Foi você quem fez o feitiço de o “mestre mandou”?
— Foi, sim — Charles admitiu. — Você fez os pássaros na aula de Música?
— Não — declarou Nirupam, para surpresa de Charles. — Só fiz uma única coisa, e foi secreta, mas não tenho coragem de ficar na escola se os Inquisidores vão trazer um detector de bruxos. Eles sempre pegam os bruxos com aquelas coisas.
— Que foi que você fez? — Charles quis saber.
— Lembra-se da noite em que todos os nossos sapatos foram parar no Salão Nobre? — Disse Nirupam. — Bom, nós tivemos um banquete naquela noite. Dan Smith me obrigou a levantar as tábuas do chão e tirar a comida. Ele diz que eu não tenho o direito de ser tão grande e tão fraco — Nirupam relatou, com ressentimento. — Eu estava com ódio dele por causa disso, quando levantei as tábuas e encontrei um par de tênis de corrida, com travas, escondidos lá dentro com a comida. Então transformei os tênis num bolo de chocolate. Sabia que Dan era tão guloso que ia querer comer todo o bolo sozinho. E ele comeu mesmo, não deu sequer um pedaço para ninguém. Você deve ter percebido que na manhã seguinte ele não estava nada bem.
Tanta coisa havia acontecido com Charles naquele dia que ele não conseguia lembrar-se de Dan. Ficou com pena e não revelou a Nirupam todos os problemas que este lhe causara.
— Eram os meus tênis — revelou em tom melancólico. E ficou muito impressionado com a idéia das travas de metal passando pelo estômago de Dan. — Ele deve ter um estômago de avestruz! — Comentou.
— As traves foram transformadas em cerejas — Nirupam contou. — As solas eram o creme. Os tênis em si eu transformei num bolo do tipo Floresta Negra.
Nesse momento, eles chegaram à estrada principal e viram o topo dos carros passando veloz do outro lado da cerca-viva.
— Temos que esperar uma pausa no trânsito — Charles comentou. — Pare! — Ordenou ao esfregão.
— Pare — Nirupam ordenou à enxada.
Nenhuma das ferramentas lhes deu ouvidos. Como Charles e Nirupam não ousavam colocar os pés no chão, temendo deixar um rastro para os cachorros, não tinham como frear, e foram carregados, impotentes, para o outro lado da cerca. Por sorte, a estrada ficava um pouco abaixo, e eles voavam a uma altura apenas suficiente para passarem acima dos carros em disparada. Nirupam erguia freneticamente as pernas compridas; Charles tentava não deixar as pernas penduradas. Buzinas soaram. Eles viam rostos a espiá-los, zangados ou achando graça.
Charles deu-se conta de repente de que eles deviam estar com uma aparência ridícula, ambos em seus shortinhos azuis: ele com os restos de esfregão sujo sacudindo-se às suas costas e Nirupam arremetendo pelo ar em saltos de coelho e com uma expressão de angústia no rosto.
As buzinas ainda soavam quando eles passaram por cima da cerca-viva no outro lado da estrada.
— Ah, socorro! — Ofegou Nirupam. — Vá para a floresta, depressa, antes que alguém chame a polícia!
A Floresta de Larwood ficava no alto de uma pequena encosta e, felizmente, o pânico dos meninos contagiou o esfregão e a enxada: ambos aumentaram a velocidade. As sacudidelas do esfregão quase derrubaram Charles. A enxada ajudava seu progresso enfiando a parte metálica no chão, de modo que Nirupam elevava-se no ar como uma pessoa num pula-pula, gritando a cada salto. Ainda se ouviam buzinas na estrada quando, Nirupam na frente e Charles atrás, os dois meninos alcançaram as árvores e enfiaram-se entre elas.
A essa altura, Nirupam estava tão à frente que Charles julgou tê-lo perdido, e pensou: tanto melhor, ficariam mais seguros separados. Mas o esfregão tinha outras idéias: depois de alguma hesitação, como se tivesse perdido o rastro, ele partiu outra vez, à toda. Charles quase trombava com as árvores que o esfregão rodeava, e atravessou uma folhagem cheia de espinhos. Enfim foi arrastado através de uma moita de urtiga.
Charles soltou um berro. Nirupam gritava também, logo à frente da moita de urtiga: a enxada o derrubara sobre um arbusto de framboesas e depois voara alegremente na direção de uma velha e desgastada vassoura que estava apoiada no outro lado das framboesas. Vendo isso, o esfregão jogou Charles no meio da urtiga e saiu saltitando coquetemente na direção da vassoura, igualzinho a uma vovó durante um passeio.
Charles e Nirupam levantaram-se, cheios de raiva. Ficaram à escuta, pelo que parecia, os motoristas na estrada haviam se cansado de tocar suas buzinas. Eles olharam em volta: atrás da enxada saltitante e do carinhoso esfregão havia uma fogueira muito bem feita. Atrás da fogueira, escondida por outros arbustos de framboesa, havia uma pequena barraca alaranjada. Brian Wentworth estava parado junto à barraca, olhando para eles com raiva.
— Pensei que havia conseguido que pelo menos um de vocês fosse preso — disse. — Desapareçam, por favor! Ou estão tentando fazer com que me peguem?
— Não estamos, não! — Disse Charles com irritação. — Nós só... Ei, escutem!
Em algum lugar encosta acima, na parte mais densa da floresta, um cachorro soltou um latido excitado e calou-se de repente. Os pássaros voavam para fora das árvores. E os ouvidos atentos de Charles conseguiam distinguir também um cicio forte, como se pés pesados marchassem pela relva.
— É a polícia! — Disse.
— Seus idiotas! Vocês trouxeram a polícia para me pegar! — Brian acusou, num sussurro que era quase um grito.
Ele agarrou a velha vassoura que estava entre o esfregão e a enxada e, com um salto que denotava muita prática, montou nela e saiu voando por cima das framboesas.
— Foi ele quem fez os pássaros na aula de música — Nirupam afirmou, e agarrou a enxada.
Charles agarrou o esfregão e ambos partiram atrás de Brian, balançando-se e saltando por cima das framboesas e por entre as árvores baixas. Charles mantinha a cabeça curvada para a frente, porque os galhos lhe puxavam os cabelos; ele achava que Nirupam devia ter razão: aqueles pássaros haviam aparecido prontamente, a tempo de salvar Brian de ser obrigado a cantar. E uma arara gritando “Cuco!” era uma coisa bem típica de Brian.
Os dois estavam alcançando Brian, não porque eles quisessem, mas porque o esfregão e a enxada estavam determinados a ficar perto da vassoura. Decerto haviam ficado juntos durante muitos anos no barracão de jardinagem e, Charles imaginou com irritação, acabaram por ficar profundamente apaixonados uns pelos outros. Nada que ele ou Nirupam pudessem fazer conseguiria que qualquer das duas ferramentas tomasse outra direção. E, à frente, Brian estava deslizando por entre as árvores, a poucos metros de distância.
Brian virou-se e olhou-os com raiva.
— Deixem-me em paz! Vocês atrapalharam a minha fuga e me fizeram perder a barraca. Vão embora!
— Foi o esfregão e a enxada — Charles explicou.
— A polícia está procurando por você, não por nós — Nirupam ofegou. — Que é que você esperava? Notaram a sua falta!
— Eu não esperava dois grandes idiotas galopando pela floresta e trazendo a polícia atrás de mim — Brian retrucou. — Por que não podiam ficar na escola?
— Se você não nos queria por perto, não devia ter escrito toda aquela bobajada sobre um bruxo ter colocado um feitiço em você — disse Charles. — Hoje um Inquisidor vai à escola por sua causa.
— Bom, você mesmo me aconselhou a fazer isso — Brian declarou.
Charles abriu a boca e tornou a fechá-la, incapaz de falar, tamanha era a sua indignação. Eles estavam quase chegando à borda da floresta; Charles enxergava as campinas verdes através de uma massa de folhas amarelas de aveleira, e tentou mais uma vez mudar a direção do esfregão; se saíssem da floresta seriam avistados muito depressa. Mas o esfregão obstinava-se em seguir a vassoura.
Enquanto forçavam a passagem por entre chibatadas dos ramos das aveleiras, Nirupam, ofegante, disse em tom severo:
— Devia ficar feliz por ter amigos com você, Brian.
Brian pôs-se a rir de forma histérica.
— Amigos? Eu não seria amigo de qualquer um de vocês dois, nem que me pagassem! Todos na 2Y riem de vocês!
Enquanto Brian dizia isto, ouviu-se um súbito clamor de latidos na floresta atrás deles. Uma voz gritou alguma coisa sobre uma barraca: era evidente que a polícia havia encontrado o acampamento de Brian. Brian e a vassoura aumentaram a velocidade e irromperam na campina além da floresta. Charles e Nirupam foram arrastados de qualquer maneira através dos ramos de aveleiras, porque o esfregão e a enxada insistiam em tentar alcançar Brian.
Arranhados e ofegantes, eles saíram para a campina, no lado da floresta que dava para a cidade. Brian estava um pouco à frente deles, num vôo baixo e veloz encosta abaixo, na direção de um aglomerado de árvores no meio da campina. O esfregão e a enxada lançaram-se atrás dele.
— Sei que Brian é antipático, mas eu sempre pensei que era por causa da situação dele antes disto — Nirupam comentou, aos saltos, enquanto a sua enxada descia pela campina como se fosse um Canguru.
Charles não teve condições de responder de imediato, porque não tinha certeza de que o caráter de uma pessoa podia ser separado da sua situação daquela maneira. Enquanto ele pensava num modo de dizer esse tipo de coisa montado num esfregão veloz e saltitante, firmando-se com uma das mãos e segurando os óculos com a outra, Brian alcançou o grupo de árvores e desapareceu no meio delas. Eles ouviram de novo a voz dele, aguda e irritada, ecoando para fora das árvores.
— Será que Brian está tentando atrair a polícia em cima de nós? — Nirupam perguntou, ofegante.
Ambos olharam para trás por cima do ombro, imaginando homens e cães irrompendo de dentro da floresta, mas não avistaram coisa alguma. No momento seguinte eles estavam atravessando os ramos baixos das faias, cobertos de folhas cor de cenoura. O esfregão e a enxada estacaram violentamente. Charles baixou as pernas ardidas de urtiga e ficou de pé num espaço ventoso, cercado por troncos de árvores da cor de estanho. E ficou de olhos pregados em Estelle Green, que parecia ter acabado de perder o seu cavalo. E em Nan Pilgrim, usando uma roupa de seda cor-de-rosa em farrapos, com a vassoura afetuosamente saltitando em círculos em volta dela.
Brian estava parado, furioso, ao lado das duas meninas.
— Olhem para isto! — Disse ele a Charles e Nirupam. — Este lugar está infestado de vocês! Por que não podem deixar uma pessoa fugir em paz?
— Será que um de vocês pode fazer o favor de calar a boca do Brian? — Pediu Estelle, com grande dignidade. — Estamos prontas para entoar um feitiço que vai nos salvar a todos.
— Estas árvores são chamadas de Carvalhos de Portway — Nan explicou.
E mordeu o lado interno da bochecha para não rir: Nirupam cavalgando uma enxada era uma das coisas mais engraçadas que ela já vira na vida. E o esfregão de Charles Morgan parecia um velho aposentado que Charles havia assassinado. Mas Nan tinha consciência de que ela própria e Estelle mostravam uma aparência tão ridícula quanto, e os meninos não haviam rido delas.
Brian ainda estava falando com irritação. Nirupam soltou a enxada, deixando-a livre para ir saltar alegremente em volta da vassoura, e colocou com firmeza a mão longa e marrom sobre a boca de Brian.
— Continuem — Disse.
— E andem depressa — Charles recomendou.
Nan e Estelle tornaram a debruçar-se sobre o pedaço de papel que se sacudia ao vento. A velha senhora havia escrito apenas uma palavra estranha três vezes no alto do papel. Abaixo disso, como ela explicara, havia escrito, em maiúsculas trêmulas, como pronunciar aquela palavra: Cres-TO-MAN-CI. Em seguida, ela escrevera: “Ir até os Carvalhos de Portway e dizer três vezes esta palavra.” O resto do papel estava ocupado por um mapa bastante mal feito.
Estelle e Nan pronunciaram juntas a palavra, por três vezes:
— Crestomanci, Crestomanci, Crestomanci.
— Só isto? — Nirupam quis saber, tirando a mão do rosto de Brian.
— Alguém enganou vocês! — Brian declarou. — Isto não é um feitiço!
De repente, parecia que uma forte rajada de vento atingia o aglomerado de árvores. Os galhos por toda a volta deles açoitavam o ar e estalavam, de modo que o cicio das folhas enchia o silêncio. As folhas secas alaranjadas que estavam no chão saltaram para o ar e começaram a girar em volta deles todos, em círculos e mais círculos, como se o interior do grupo de árvores fosse o centro de um redemoinho. Isso foi seguido de uma súbita imobilidade. As folhas continuaram onde estavam, no ar, cercando todas as crianças. Ninguém conseguia enxergar outra coisa além de folhas, e não se ouvia um único som em parte alguma. Então, bem devagar, o som recomeçou. Houve um cicio suave quando as folhas suspensas no ar caíram de volta no chão. No lugar onde elas estiveram havia um homem de pé.
Ele parecia bastante perplexo. Seu primeiro ato foi erguer as mãos e alisar os cabelos, uma coisa que ele não precisava fazer, pois o vento não havia despenteado sequer um fio. Eram cabelos lisos, pretos e brilhantes como piche novo. Depois de alisar a cabeleira, esse homem ajeitou os punhos brancos e engomados da camisa e a já impecável gravata cinza-pálida. Em seguida, puxou para baixo cuidadosamente o colete lilás e, com igual cuidado, varreu com as mãos uma poeira imaginária do seu belo terno cinzento. Durante todo o tempo em que fazia estas coisas, ele olhava de um para o outro dos cinco, com perplexidade cada vez maior. Suas sobrancelhas erguiam-se cada vez mais, a cada coisa que ele via.
Todos estavam muito constrangidos. Nirupam tentou esconder-se atrás de Charles quando o homem olhou para o seu short azul. Charles tentou deslizar para trás de Brian. Brian tentou tirar a lama dos joelhos dos jeans sem parecer que estava fazendo isso. O homem voltou os olhos para Nan. Eram olhos negros e brilhantes, que não pareciam tão perplexos quanto o resto do rosto do homem, e provocaram em Nan a sensação de que ela preferia estar sem roupa alguma do que mostrar-se com um vestido de baile cor-de-rosa esfarrapado. O homem então olhou para Estelle, como se Nan fosse uma visão desagradável demais. Nan também olhou para Estelle. Esta, enquanto ajeitava o boné de equitação na cabeça, olhava com adoração para o belo rosto do homem.
Nan pensou: só nos faltava mais esta! Evidentemente aquele era o tipo de homem pelo qual Estelle se apaixonaria à primeira vista. Assim, não apenas elas, de uma forma ou de outra, haviam convocado um desconhecido muitíssmo elegante, como também não estavam mais perto de serem salvas e, para coroar aquilo tudo, decerto dali em diante Estelle não teria o menor juízo.
— Quem diria! — O homem murmurou. Agora ele olhava para o esfregão, a enxada e a vassoura que formavam um grupinho como num encontro de velhos amigos.
— Acho que vocês definitivamente precisam ir embora — disse ao trio.
E os três desapareceram com um leve assobio. O homem voltou-se para Nan.
— Que é que nós estamos fazendo aqui? — Perguntou, num tom um tanto queixoso. — E onde é que nós estamos?
Um cão latiu escandaloso no alto do morro. Todos, exceto o desconhecido, tiveram um sobressalto.
— Creio que devemos ir agora, senhor — disse Nirupam com educação. — É um cachorro da polícia. Estavam procurando por Brian, mas acho que agora estão procurando por todos nós.
— Que é que imaginam que eles farão se os encontrarem? — O homem quis saber.
— Vão nos queimar na fogueira — Charles respondeu, e seu polegar alisou a enorme bolha no dedo.
— Nós todos somos bruxos, sabe? A não ser Estelle — Nan explicou.
— De modo que, se nos der licença... — Voltou a falar Nirupam.
— Mas que coisa mais primitiva! — Comentou o homem. — Acho que seria muito melhor se a polícia e seus cachorros simplesmente não enxergassem este grupo de árvores onde nós estamos, não é mesmo?
Ele olhou vagamente ao redor para ver o que os outros pensavam dessa idéia. Todos pareciam em dúvida, e Brian mostrava-se abertamente sarcástico. O homem dirigiu-se a ele:
— Eu lhe asseguro que, se vocês saírem deste bosque para o campo aberto e olharem, não enxergarão as árvores, como a polícia também não enxergará. Se a palavra de um mago não é suficiente para vocês, saiam e verifiquem por si mesmo.
— Qual mago? — Brian perguntou de forma grosseira. Mas, como era de se esperar, ninguém teve coragem de sair do aglomerado de árvores. Ficaram parados, com a pele das costas arrepiada, enquanto as vozes dos policiais aproximavam-se devagar. Por fim elas pareciam estar logo do lado de fora do pequeno bosque.
— Nada! — Eles ouviram um policial exclamar. — Todos vocês, voltem e se concentrem na floresta. Hills e MacIver, vocês dois desçam e verifiquem por que aqueles motoristas perto da cerca estão acenando. O resto de vocês levem os cães de volta para aquela barraca e recomecem de lá.
Depois disso, todas as vozes se distanciaram. O grupo no meio das árvores relaxou um pouco, e Nan chegou a ter um início de esperanças de que aquele desconhecido pudesse ser de alguma ajuda. Mas ele tornou a assumir uma expressão queixosa:
— Será que um de vocês pode me dizer onde é que estamos agora? — Ele pediu.
— Do lado de fora da Floresta de Larwood — disse Nan. — Em Hertfordshire.
— Inglaterra, Ilhas Britânicas, mundo, Sistema Solar, Via Láctea, Universo — Brian recitou em tom de zombaria.
— Ah, sim — disse o homem. — Mas qual deles?
Brian ficou a olhar para ele. O homem disse, em tom paciente:
— Será que por acaso você sabe qual mundo, galáxia, universo etc? Acontece que existem milhões deles, e, a não ser que eu saiba qual é este aqui, não vai ser muito fácil ajudar vocês.
Aquilo provocou em Charles uma sensação estranha. Ele pensou no espaço sideral e em monstros de olhos arregalados, e seu estômago deu uma cambalhota. Seus olhos examinaram, fascinados, o elegante paletó do homem, tentando descobrir se dentro dele haveria espaço para um par de braços extra: não havia; o homem era, obviamente, um ser humano.
— O senhor não vem mesmo de outro mundo, vem? — Ele perguntou.
— É exatamente de onde venho — o homem declarou. — Outro mundo cheio de gente igualzinha a vocês, existindo em paralelo a este. Há milhares deles. Então, qual é este aqui?
Pelo que a maioria deles sabia, o mundo era só o mundo. Todos ficaram em silêncio, exceto Estelle, que disse, com timidez:
— Existe um outro mundo, só um. É o mundo para onde as pessoas que ajudam a salvar os bruxos mandam todos eles, para que fiquem em segurança.
— Ah! — O homem voltou-se para Estelle, e a menina enrubesceu violentamente. — Fale-me desse mundo seguro.
Estelle sacudiu a cabeça.
— Não sei mais do que isto — sussurrou em tom triste.
— Então vamos chegar até ele de outra maneira. Você vai me contar todos os acontecimentos que os levaram a me trazer para cá... — O homem sugeriu.
— Então o seu nome é Crestomanci? — Estelle interrompeu, num sussurro cheio de admiração.
— É, em geral me chamam assim — ele respondeu. — Então foi você quem me invocou?
Estelle assentiu com um movimento da cabeça.
— Que belo feitiço! — Comentou Brian com sarcasmo. Era óbvio que o menino estava determinado a não ajudar de maneira alguma; ficou em silêncio, com expressão de desprezo, enquanto os outros explicavam os acontecimentos que os haviam levado a reunir-se ali.
Ninguém contou a Crestomanci as coisas completas, pois o olhar de desprezo de Brian fazia com que tudo desse a sensação de ser um monte de mentiras. Nan não mencionou o seu encontro com o sr. Wentworth no tapetinho; e sentiu-se bastante generosa ao silenciar sobre isso, levando-se em conta o modo como Brian estava se comportando. Ela também não mencionou a ocasião em que descrevera a comida, embora Charles mencionasse.
Entretanto, Charles não achou que fosse necessário falar sobre o feitiço de o “mestre mandou”. Foi Nirupam quem contou isso a Crestomanci, mas, por um motivo qualquer, esqueceu-se de dizer que Dan Smith havia comido os sapatos de Charles. E quando o último deles terminou de falar, Crestomanci olhou para Brian.
— Agora a sua narrativa, por favor — pediu com gentileza.
Era uma gentileza muito poderosa: todos haviam imaginado que Brian não iria dizer coisa alguma, mas ele disse, embora de má vontade. Primeiro, admitiu ter criado os pássaros na aula de música, depois afirmou que Charles o aconselhara à noite a fugir da escola e disfarçar o seu rastro culpando o bruxo. E, enquanto Charles ainda estava gaguejando de raiva diante disso, Brian teve a cara-de-pau de explicar que de qualquer maneira ele havia descoberto na manhã seguinte que Charles era bruxo e pedira a ele para levá-lo à enfermaria para que a governanta pudesse ver em primeira mão os efeitos do mau-olhado. Por fim, ainda mais contrafeito, ele confessou que havia escrito o bilhete anônimo para o sr. Crossley, e assim começado tudo. Então, como se só naquele momento tivesse pensado nisso, ele virou-se para Nan.
— E você ficava roubando a minha vassoura, não é?
— Ela não é sua. Pertence à escola — Nan retrucou.
Ao mesmo tempo, Charles dizia a Crestomanci em tom irritado:
— Não é verdade que eu tenha aconselhado o Brian a colocar a culpa no bruxo!
Crestomanci tinha o olhar perdido nas faias e parecia não escutar.
— A situação é bem complicada — ele comentou. — Acho que o melhor é irmos todos falar com a tal senhora que costumava dirigir o serviço de socorro aos bruxos.
Aquilo pareceu a todos uma excelente idéia. Era lógico que a velha senhora poderia ajudá-los se quisesse. Todos concordaram sem demora. Nirupam começou a dizer:
— Mas a polícia...
Crestomanci, porém, interrompeu-o dizendo:
— Invisíveis, é claro. — Ainda era óbvio que ele estava pensando em outra coisa. Virou-se para sair por entre as árvores e, no mesmo instante, num piscar de olhos, todos desapareceram de vista. Tudo o que se via era o círculo de faias com suas ciciantes folhas outonais.
— Venham comigo — disse a voz dele.
Seguiu-se cerca de um minuto de uma confusão indescritível. Começou com Nan achando que não tinha corpo e caminhando direto para uma árvore. Ela continuava sólida como sempre e, por um segundo, ficou muito atordoada com a trombada.
— Ah, me desculpe! — Disse à árvore.
Os outros conseguiram, de uma maneira ou de outra, abrir caminho sob os galhos baixos e sair para a campina. Ali, a primeira coisa que todos avistaram foi dois carros estacionados quase que dentro da cerca-viva lá embaixo; um bom número de ocupantes dos carros estavam agora debruçados por cima da cerca-viva para falar com dois policiais. Pelo modo como as pessoas ficavam apontando para a floresta, era óbvio que estavam descrevendo como haviam visto dois bruxos voarem por cima da estrada num esfregão e numa enxada.
Aquilo deixou todo mundo em pânico, e o bando partiu apressado para a cidade, na direção oposta. Assim que o fizeram, porém, perceberam que estavam dispersos e invisíveis, e pararam para esperar que os outros os alcançassem. Então ouviram alguém falando, à frente, a certa distância e correram para a direção da voz. Mas lógico não conseguiam saber onde estavam os companheiros. Logo ninguém sabia onde alguém estava ou o que fazer a respeito disso.
— Talvez vocês consigam ficar de mãos dadas — sugeriu a voz de Crestomanci, vinda do ar. — Não tenho a menor idéia de onde fica a Casa do Antigo Portão, entendem?
Felizmente todos conseguiram dar-se as mãos. Nan encontrou-se segurando a mão de Brian e a de Charles Morgan; ela jamais havia imaginado que chegaria o dia em que ficaria feliz por fazer isso. Estelle havia conseguido segurar uma das mãos de Crestomanci. Isso ficou óbvio quando eles começaram a andar em fila, descendo com rapidez a trilha que levava para a cidade, com a voz de Estelle soando à frente, respondendo às perguntas de Crestomanci.
Assim que ficou claro que ninguém poderia escutá-los, Crestomanci começou a fazer muitas perguntas. Perguntou quem era o primeiro-ministro e quais eram os países mais importantes, quais deles faziam parte da Comunidade Econômica Européia e quantas guerras mundiais aconteceram. Depois perguntou sobre fatos históricos. Não demorou para que todos passassem a lhe dar respostas, sentindo-se um pouco superiores, pois era realmente notável o número de coisas que, a julgar pelas aparências, Crestomanci desconhecia.
Ele já tinha ouvido falar de Hitler (embora tenha pedido a Brian para refrescar sua memória), mas tinha apenas uma noção muito vaga de Gandhi ou Einstein, e nunca ouvira falar em Walt Disney ou em reggae. Tampouco ouvira falar em Dulcinea Wilkes. Nan contou-lhe sobre Dulcinea e declarou, com grande orgulho, que era descendente da Arquibruxa.
De repente, com um medo súbito, ela caiu em si: por que estava contando aquilo? Não sabia se era seguro fazer esse tipo de revelações àquele homem! No entanto, assim que pensou essas coisas Nan começou a perceber o motivo pelo qual as revelara: era o modo como Crestomanci fazia aquelas perguntas. Lembrava a Nan a ocasião em que ela começou a ter irritações na pele e sua tia levou-a a um especialista muito importante. O especialista usava um terno muito bom, embora não fosse nem de longe tão bonito quanto o de Crestomanci, e fizera perguntas exatamente do mesmo modo, tentando chegar aos sintomas de Nan.
Ao lembrar-se desse especialista, Nan começou a sentir-se bem mais esperançosa. Se ela pensasse em Crestomanci, apesar da sua vaguidão e da sua elegância, como um tipo de especialista tentando resolver os problemas deles, então poderia acreditar que ele fosse capaz de ajudá-los. Decerto era um bruxo forte e experiente e talvez conseguisse fazer a velha senhora mandá-los a todos para algum lugar realmente seguro.
Quando a trilha os levou às ruas movimentadas da cidade, Crestomanci parou de fazer perguntas, mas Nan percebia com clareza que ele continuava procurando sintomas. Ele fez com que todos ficassem imóveis enquanto examinava um caminhão estacionado na frente do supermercado. Era só um caminhão comum, ostentando na frente um letreiro onde se lia “Leyland” e nas laterais, letreiros de propaganda de uma famosa marca de sopas enlatadas, mas Crestomanci murmurou uma exclamação como se estivesse atônito, antes de arrastá-los para espiar as vitrines do supermercado.
Então, levando-os de reboque, pôs-se a passar várias vezes diante de alguns carros estacionados. Aquela parte foi de fato assustadora: as vidraças dos carros, as calotas dos pneus e o vidro da vitrine do supermercado mostravam reflexos vagos e enevoados de todos os seis. Eles tinham certeza de que, a qualquer segundo, uma das pessoas que faziam compras iria perceber a presença deles.
Por fim Crestomanci deixou que Estelle o arrastasse rua acima, até pararem em frente a uma decadente loja de roupas onde, ao que parecia, ninguém jamais comprava coisa alguma.
— Há quanto tempo vocês têm moeda decimal? — Ele perguntou.
Enquanto eles lhe respondiam, o reflexo nublado na vitrine da loja de tecidos mostrava a sua figura alta inclinada para olhar alguns pacotes de meias femininas e uma camisola de náilon azul desbotado.
— De quê são feitas estas meias? — Ele perguntou.
— De náilon, é claro — Charles retrucou. Estava pensando se devia soltar a mão de Nan e ir embora dali correndo.
Estelle, sentindo algo bem parecido, puxou a mão de Crestomanci e levou-os todos bem depressa para a calçada em frente à Casa do Antigo Portão. Arrastou-os degraus acima e apressou-se a tocar a sineta antes que Crestomanci pudesse fazer mais perguntas.
— Não há necessidade de obrigá-la a vir atender — Crestomanci comentou.
Quando ele disse isso, a varanda dissolveu-se ao redor deles, e o bando encontrou-se numa sala de visitas antiquada, cheia de mesinhas cobertas com panos orlados de borlas e bibelôs em cima. A velha senhora estava estendendo a mão para a bengala e tentando erguer-se da cadeira, resmungando alguma coisa sobre “essas visitas que nunca se acabam”.
Crestomanci apareceu à vista, alto e elegante, e, de alguma forma, combinando muito bem com aquele aposento antiquado. Estelle, Nan, Charles, Nirupam e Brian também ficaram visíveis outra vez, e pareciam tão deslocados quanto seria possível alguém parecer. A velha senhora deixou-se cair outra vez sobre a cadeira e ficou a encará-los.
— Perdoe-me a intrusão, minha senhora — disse Crestomanci. A velha senhora olhou para ele com um sorriso.
— Mas que esplêndida surpresa! Há anos ninguém aparece desta maneira! — Exclamou. — Perdoe-me se não me levanto. É que os meus joelhos estão cheios de artrite, hoje em dia. Gostariam de tomar um chá?
— Não vamos incomodá-la, minha senhora. Viemos porque eu soube que a senhora é a guardiã de alguma espécie de passagem.
— Sou, sim — confirmou a velha senhora. Parecia hesitar. — Se vocês todos precisam usar a passagem, então precisam, mas vai levar horas. Fica lá embaixo no porão, entendem, escondida dos Inquisidores debaixo de sete toneladas de carvão.
— Eu lhe asseguro, minha senhora, que não viemos pedir-lhe para carregar carvão — Crestomanci respondeu.
Olhando para os punhos alvos da camisa de Crestomanci, Charles pensou que aquilo era evidente: seriam eles a ter esse trabalho.
— O que eu preciso realmente é saber com exatidão qual é o mundo que está do outro lado da passagem — Crestomanci explicou.
— Nunca fui até lá — disse a velha senhora, com expressão triste. — Mas sempre soube que é um mundo igual ao nosso, só que sem bruxaria.
— Muito obrigado. Imagino que... — Parecia que Crestomanci havia se distraído outra vez. — Que é que a senhora sabe de Dulcinea Wilkes? Havia muita bruxaria aqui antes da época dela?
— A Arquibruxa? Ora, é claro que sim! — Disse a velha senhora. — Havia bruxos por toda parte, muito antes de Dulcinea. Acho que foi Oliver Cromwell quem fez as primeiras leis contra a bruxaria, mas pode ter sido antes disso. Alguém me contou um dia que a Rainha Elizabeth I talvez fosse bruxa. Por causa da tempestade que destruiu a Armada espanhola, entende?
Nan observava Crestomanci assentir enquanto escutava isso, e percebeu que ele estava de novo a recolher sintomas. Ela suspirou e pensou se deveria oferecer-se para começar a retirar o carvão.
Crestomanci também deu um pequeno suspiro.
— É uma pena — disse. — Eu tinha esperanças de que a Arquibruxa fosse a chave dos problemas daqui. Talvez Oliver Cromwell?
— Infelizmente não sou historiadora — disse a velha senhora com firmeza. — E o senhor não vai encontrar muita gente que saiba muito mais do que eu. A história da bruxaria é proibida aqui. Todos os livros desse tipo foram queimados há muito tempo.
Charles, que estava tão impaciente quanto Nan, intrometeu-se:
— O senhor Wentworth conhece muita coisa da história da bruxaria, mas...
— É mesmo! — Nan interveio com ansiedade. — Se quer mesmo saber, pode convocar o senhor Wentworth para vir até aqui. Ele também é bruxo, de modo que não tem importância. — Nesse ponto ela se deu conta de que Brian lhe dirigia um olhar de ódio que quase se equiparava aos de Charles Morgan, e que o próprio Charles encarava-a com perplexidade. — É, sim — ela confirmou. — Você sabe que é, Brian. Ontem à noite eu me encontrei com ele voando no tapete da sala, e ele pensou que eu fosse você na vassoura.
Para Charles, aquilo explicava tudo: na noite em que o sr. Wentworth desaparecera, ele havia saído para voar. A janela estava escancarada e, agora que compreendia, Charles lembrava-se distintamente do espaço vazio em frente à lareira onde antes ficava o tapete. E explicava também aquela ocasião, no castigo, quando ele pensou que seus óculos estivessem quebrados. Eles estavam mesmo quebrados, e o sr. Wentworth os consertara por meio de bruxaria.
— Não sabe ficar de boca calada? — Brian disse furioso. Depois apontou para Crestomanci. — Como vamos ter certeza de que ele é confiável? Pelo que sabemos, ele pode ser até o Demônio que vocês invocaram!
— Ora, você me envaidece, Brian — Crestomanci comentou. A velha senhora pareceu chocada.
— Que coisa mais desagradável de se dizer! — Declarou a Brian. — Ninguém lhe disse que o Demônio, como quer que ele apareça, nunca é um perfeito cavalheiro? Bem diferente do senhor... hã... senhor...?
Ela olhou para Crestomanci com a testa franzida.
— Crestomanci, minha senhora — ele completou. — Isto me lembra... Eu gostaria de saber como foi que a senhora deu o meu nome a Nan e Estelle.
A velha senhora soltou uma risada.
— Era isso que o feitiço fazia? Eu não tinha idéia. Ele está na minha família desde o tempo da minha bisavó, com instruções estritas de ser usado somente numa emergência. E aquelas duas meninas, pobrezinhas, estavam com um problema tão grande... Mas eu me recuso a acreditar que possa ser tão velho assim, meu caro senhor.
Crestomanci sorriu.
— Não. Brian vai lamentar saber que o feitiço deve ter sido feito para chamar um dos meus predecessores. Agora, vamos? É evidente que precisamos ir até a sua escola e consultar o senhor Wentworth.
Todos o encararam — até mesmo a velha senhora. Então, quando tomaram consciência de que Crestomanci não iria permitir que descessem para a segurança do porão, todos irromperam em protestos. Brian, Charles e Nan disseram:
— Ah, não! Por favor!
A velha senhora disse:
— Não estará correndo um grande risco?
E no mesmo momento, Nirupam exclamou:
— Mas eu lhe disse que vai um Inquisidor à escola!
E Estelle acrescentou:
— Não podemos ficar todos aqui quietinhos enquanto o senhor vai conversar com o senhor Wentworth?
Crestomanci olhou de Estelle para Nirupam, para Nan e depois para Brian e Charles. Dava a impressão de estar atônito, e nem um pouco distraído. Parecia que o aposento ficava silencioso, sinistro e hostil.
— Mas o que é isto? — Disse ele, de maneira tão suave que todos estremeceram. — Será que eu entendi direito? Vocês cinco conseguem virar a sua escola de cabeça para baixo; criam o que eu acredito ser um grande problema para muitos professores e policiais; me trazem de longe, tirando-me de afazeres extremamente importantes, e de um modo que torna muito difícil a minha volta. E agora, todos vocês propõem apenas irem embora e deixarem para trás a confusão que criaram. É isto que vocês estão querendo dizer?
— Não fui eu quem invocou o senhor — Brian declarou.
— Não foi de propósito. Não pedi para ser bruxo — Charles argumentou por sua vez.
Crestomanci olhou para ele com uma leve e glacial expressão de surpresa.
— Ah, não?
O modo como ele disse isso fez Charles perguntar-se por um instante se, de um modo qualquer, ele havia escolhido nascer bruxo.
— Então vocês acham que os seus problemas lhes dão o direito de trazer para esta senhora problemas muito maiores com os Inquisidores? É isto que vocês todos estão dizendo?
Ninguém disse coisa alguma. Crestomanci continuou:
— Acho melhor irmos embora agora, se vocês tornarem a se dar as mãos, por favor.
Sem palavras todos se deram as mãos. Crestomanci deu a mão para Brian, mas antes de dar a outra para Estelle ele pegou a mão cheia de nós e veias salientes da idosa senhora e beijou-a. A velha dama ficou encantada e piscou desconcertada para Nan por cima da cabeça lisa de Crestomanci. Nan não sentiu vontade de sorrir em resposta.
— Mostre o caminho, Estelle — Crestomanci pediu, endireitando-se e dando a mão para Estelle.
De repente todos ficaram invisíveis outra vez. E no mesmo instante encontraram-se no lado de fora, na rua.
Estelle partiu na direção do Internato de Larwood. Charles ficou pensando que, se fosse qualquer outra pessoa além dela a guiá-los, a pessoa poderia pensar em levar toda a fila para outro lugar, qualquer outro lugar que não fosse a escola, porque Crestomanci não saberia. Mas Estelle levou-os direto para lá, e os outros seguiram-na com relutância, deprimidos e nervosos demais para fazerem qualquer outra coisa. Brian foi o único que protestou; sempre que não havia gente por perto, ouvia-se a voz dele dizendo que aquilo não era justo. Ficava a repetir:
— Meninas, por que vocês tinham que trazer este sujeito?
Quando atravessaram os portões do Internato e puseram-se a subir a alameda, Brian desistiu de protestar. Estelle levou-os para a porta principal, a porta grandiosa que só era usada pelos pais ou visitantes como Lorde Mulke. Havia dois carros da polícia parados na alameda ao lado da porta, mas estavam vazios, e não havia pessoa alguma por perto.
Ali, com um movimento que jogou cascalho para os lados, Brian fez um decidido esforço para fugir. A julgar pelos sons, e pelo modo como Estelle veio tateando Nirupam e Nan, Crestomanci saiu atrás de Brian como um raio. Três batidas surdas e um chuveiro de pedrinhas, e Crestomanci reapareceu de repente, ao lado do veículo policial mais próximo. Parecia estar sozinho, mas seu braço direito estava dobrado rigidamente e sacudia-se um pouco, por causa dos solavancos com que o invisível Brian tentava desvencilhar-se.
— Aconselho a todos que fiquem bem perto de mim — ele disse, como se nada houvesse acontecido. — Só ficarão invisíveis enquanto estiverem a menos de dez metros de mim.
— Eu consigo me fazer ficar invisível. Também sou bruxo — disse a voz de Brian nas redondezas do cotovelo de Crestomanci.
— Talvez — Crestomanci concordou. — Mas acontece que eu não sou bruxo, sou mago. E, entre outras diferenças, um mago é dez vezes mais poderoso do que um bruxo. Quem está no final da fila? Charles? Charles, pode me fazer a gentileza de subir os degraus até a porta e tocar a campainha?
Charles adiantou-se, rebocando os outros atrás de si, e tocou a campainha. Ao que parecia, não havia outra coisa a fazer.
A porta foi aberta quase que de imediato pela secretária da escola. Crestomanci estava parado na soleira, aparentemente sozinho, com o terno cinzento em perfeito estado e nem um fio de cabelo fora do lugar, com um sorriso simpático para a secretária. Era difícil acreditar que ele tinha Brian preso numa das mãos e Estelle pendurada na outra, e mais três pessoas apertadas desconfortavelmente ao redor. Crestomanci fez uma leve mesura.
— Meu nome é Chant. Acho que estão me esperando — anunciou. — Sou o Inquisidor.
A secretária da escola desmanchou-se em amabilidades e uma simpatia esfuziante. Ainda bem — caso contrário ela poderia ter escutado, no ar em volta de Crestomanci, cinco respirações entrecortadas.
— Ah, faça o favor de entrar, senhor Inquisidor — disse ela de forma efusiva. — A senhorita Cadwallader está à sua espera. Lamento muito, mas parece-me que houve um engano a respeito do seu nome: disseram-nos que viria um senhor Littleton.
— Correto — disse Crestomanci em tom jovial. — Littleton é o Inquisidor Local. Acontece que o Escritório Central decidiu que o assunto era grave demais para ser tratado a nível local. Sou o Inquisidor Regional.
— Ah! — Exclamou a secretária, aparentemente bastante intimidada.
Ela fez com que Crestomanci entrasse e, caminhando à frente dele, atravessou o Salão Nobre. Crestomanci seguia atrás dela, lento e majestoso, numa velocidade que dava tempo suficiente para todos entrarem com ele no Salão e o acompanharem pé ante pé. A secretária escancarou a porta para o escritório da srta. Cadwallader.
— O senhor Chant, senhorita Cadwallader. O Inquisidor Regional.
Crestomanci entrou no escritório ainda mais devagar, empurrando Brian e puxando Estelle. Nan e Nirupam entraram depressa atrás deles, e Charles, que temia ser deixado de fora do círculo de invisibilidade, conseguiu passar apertando-se contra a ombreira da porta enquanto a secretária se retirava andando de costas em sinal de respeito.
Demonstrando um nervosismo bastante incomum, a srta. Cadwallader avançou e apertou a mão de Crestomanci. O bando invisível ouviu Brian cair para o lado quando Crestomanci largou a mão dele.
— Ah, bom dia, senhor Inquisidor!
— Bom dia, bom dia — Crestomanci respondeu. Parecia estar outra vez distraído. Olhou em volta, pensativo enquanto apertava a mão da srta. Cadwallader. — Um belo lugar, este, senhorita... hum... Cudwollander.
Era verdade. Talvez com a justificativa de que era necessário convencer os funcionários do governo e os pais dos alunos de que o Internato de Larwood era um colégio realmente bom, a srta. Cadwallader cercara-se de luxo. Seu tapete era como um gramado alto e vermelho; as cadeiras eram macias nuvens vermelhas. Viam-se estatuetas de mármore na prateleira acima da lareira e grandes molduras douradas em volta de uma centena de quadros. Havia um bar com uma pequena geladeira embutida, sobre ele uma cafeteira automática. O toca-discos e o toca-fitas da srta. Cadwallader ocupavam quase que uma parede inteira.
Charles olhou com nostalgia para o grande aparelho de televisão com uma boneca de crinolina no topo. Muitos anos pareciam ter passado desde que ele vira televisão pela última vez. Nan, por sua vez, contemplava a parede de livros novos e brilhantes. A maioria deles parecia ser de histórias de mistério. Ela teria adorado vê-los mais de perto, mas não tinha coragem de soltar a mão de Nirupam ou de Charles, temendo não conseguir encontrá-los de novo.
— Fico feliz com a sua aprovação, senhor Inquisidor — disse a srta. Cadwallader em tom alvoroçado. — O meu escritório está à sua inteira disposição, se desejar usá-lo para entrevistar as crianças. Suponho que o senhor terá necessidade de conversar com algumas das crianças da turma 2Y.
— Com todas as crianças da turma 2Y — Crestomanci corrigiu em tom grave. — E, talvez, com todos os professores delas, também.
Ouvindo isto, a srta. Cadwallader mostrou-se muito consternada. Crestomanci prosseguiu:
— Espero entrevistar todas as pessoas da escola, antes de me dar por satisfeito. Ficarei aqui pelo tempo que for necessário, semanas, se for preciso, para chegar ao fundo da questão.
A essa altura a srta. Cadwallader estava distintamente pálida e apertava as mãos, angustiada.
— Tem certeza de que é tão sério assim, senhor Inquisidor? Afinal, trata-se apenas de um menino da segunda série que desapareceu durante a noite. Por acaso, o pai dele é um dos nossos professores, e na verdade é por este motivo que estamos tão preocupados. Sei que disseram ao senhor que o menino deixou um grande número de bilhetes acusando um bruxo de tê-lo raptado, mas, depois disso, a polícia já telefonou para dizer que encontraram rastros dele numa barraca de acampamento na floresta. Não acha que o assunto todo poderia ser resolvido com facilidade e rapidez?
Crestomanci sacudiu a cabeça com gravidade.
— Também fui mantido a par dos fatos, senhorita... hã... Kidwelly. O menino ainda não apareceu, não é mesmo? Num caso como este, cautela nunca é demais. Acho que alguém na turma 2Y sabe mais sobre isto tudo do que a senhorita imagina.
Até esse momento, todos os que o escutavam sentiam-se cada vez mais aliviados: se a srta. Cadwallader soubesse que quatro outros alunos além de Brian também estavam desaparecidos, ela teria dito isso. Mas os sentimentos mudaram diante do que a srta. Cadwallader disse em seguida:
— O senhor precisa entrevistar uma menina chamada Theresa Mullett agora mesmo, senhor Inquisidor, e acho que vai constatar que o caso será esclarecido de imediato. Theresa é uma das nossas boas meninas. Durante um intervalo, ela veio me procurar e me disse que é quase certo que uma criança chamada Dulcinea Pilgrim é bruxa. Lamento ser obrigada a dizer isso, mas Dulcinea não é uma das nossas boas meninas, Inquisidor. Algumas das anotações do seu diário constituem críticas muito enfáticas. Ela questiona tudo e faz piadas com assuntos sérios. Se o senhor desejar, posso mandar buscar o diário de Dulcinea, e terá a oportunidade de verificar por si mesmo.
— Lerei todos os diários da turma 2Y, mais tarde — Crestomanci afirmou. — Mas isto é toda a evidência que possui, senhorita... hum... Collander? Não posso acusar uma menina de bruxa só por ouvir dizer e por causa de algumas piadas. Não é uma conduta profissional. A senhorita não tem outros suspeitos? Algum professor, por exemplo...
— Os professores daqui estão todos acima de qualquer suspeita, senhor Inquisidor. — A srta. Cadwallader disse isto em tom muito firme, embora sua voz estivesse um pouco estridente. — Mas a turma 2Y não está. É um fato triste, senhor Inquisidor, numa escola como esta, que algumas crianças nos cheguem como órfãs de bruxos, tendo um dos pais, ou mesmo ambos, morrido na fogueira. Há um número incomum dessas crianças na 2Y. Eu destacaria, para a sua atenção imediata, Nirupam Singh, que teve um irmão queimado na fogueira, além de Estelle Green, cuja mãe está na prisão por ter ajudado bruxos a escapar, e um garoto chamado Charles Morgan, que é quase tão indesejável quanto a menina Pilgrim.
— Ora, ora! Que situação perniciosa! Preciso começar a trabalhar imediatamente! — Crestomanci exclamou.
— Neste caso, vou deixá-lo trabalhar aqui no meu escritório, senhor Inquisidor — respondeu a srta. Cadwallader cheia de simpatia. Ela parecia ter se recobrado da aflição.
— Ah, não aceitaria incomodá-la, senhorita — respondeu Crestomanci com idêntica simpatia. — Será que o seu vice-diretor tem um escritório que eu possa usar?
Um alívio intenso permeou os modos aristocráticos da srta. Cadwallader.
— Claro, senhor Inquisidor. Que idéia excelente! Eu mesma vou levá-lo até o senhor Wentworth agora mesmo.
A srta. Cadwallader saiu depressa do escritório, quase que aliviada demais para ser aristocrática. Crestomanci localizou Brian facilmente, como se conseguisse enxergá-lo; pegou-o pelo braço e partiu atrás dela. Os outros quatro foram obrigados a correr pé ante pé, para manter-se juntos. Nenhum deles queria ver o sr. Wentworth; aliás, depois daquilo que a srta. Cadwallader acabara de dizer, a única coisa que todos eles desejavam era sair de fininho e escapulir de novo. Mas no instante em que se afastassem mais de dez metros de Crestomanci, eles surgiriam à vista, em traje de equitação, shortinhos azuis e vestido de baile cor-de-rosa, para serem flagrados pela srta. Cadwallader ou por qualquer outra pessoa por quem passassem. Aquilo era suficiente para mantê-los andando com rapidez e na ponta dos pés, ao longo dos corredores e escada acima.
A srta. Cadwallader bateu na vidraça da porta do vice-diretor.
— Entre! — Disse a voz do sr. Wentworth.
A srta. Cadwallader abriu a porta com força e fez um gesto para que Crestomanci entrasse. Crestomanci assentiu distraído e mais uma vez fez uma entrada lenta e imponente, com um leve ruído provocado por Brian, que resistia enquanto ele o puxava através da porta. Aquilo deu aos outros quatro tempo suficiente para entrarem sorrateiros, passando pela srta. Cadwallader.
— Agora vou deixá-lo com o senhor Wentworth, senhor Inquisidor — disse ela da porta.
Ouvindo isto, o sr. Wentworth ergueu os olhos das suas tabelas de horários. Quando viu Crestomanci, ele empalideceu e levantou-se devagar, com ar de total aflição. A srta. Cadwallader apresentou:
— Senhor Wentworth, este é o senhor Chant, que é o Inquisidor Regional. Venham ao meu escritório para um aperitivo antes do almoço, os dois, por favor.
Então, achando que já fizera o suficiente, ela fechou a porta e foi-se embora.
— Bom dia — disse Crestomanci de forma educada.
— B-bom dia — retribuiu o sr. Wentworth. Suas mãos tremiam a ponto de sacudir as tabelas. Ele engoliu em seco. — Eu... eu não tinha conhecimento de que existem Inquisidores Regionais. É um cargo novo?
— Ah, então não existem Inquisidores Regionais? — Crestomanci perguntou. — Que lástima! Achei que soava tão imponente...
Ele fez um gesto de assentimento e de repente todos se tornaram visíveis outra vez. Nan, Charles e Nirupam procuraram esconder-se atrás uns dos outros; Brian, quando apareceu, estava tentando, irritado, desvencilhar o braço da mão de Crestomanci, e Estelle estava ainda pendurada na outra mão do mago. Ela soltou-a depressa e retirou o seu boné de equitação. Mas era quase certo que o sr. Wentworth não prestou atenção em qualquer dessas coisas; o que ele fez foi retroceder até encostar-se à janela, onde ficou olhando de Crestomanci para Brian, agora mais do que aflito: o professor estava apavorado.
— Que é que está acontecendo? — Perguntou. — Brian, que é que você aprontou?
— Nada — respondeu o menino, com irritação. — Ele não é Inquisidor de nada. É um mago ou coisa assim. Não é culpa minha que ele esteja aqui.
— Que é que ele quer? Não tenho nada para lhe dar! — Exclamou o sr. Wentworth em tom desvairado.
— Meu caro senhor, por favor tente ficar calmo. Só quero ajudar — disse Crestomanci.
O sr. Wentworth pressionou as costas contra a janela.
— Não sei o que está querendo dizer! — Afirmou.
— Sabe, sim — Crestomanci contradisse em tom simpático. — Mas deixe-me explicar. Sou Crestomanci. Este é o título que acompanha o meu cargo, e o meu trabalho é controlar a bruxaria. O meu mundo é um pouco melhor localizado do que o de vocês, eu creio, porque lá a bruxaria não é ilegal. Aliás, esta manhã mesmo eu estava presidindo um encontro do Comitê de Walpurgis, no meio do trabalho de fazer os preparativos finais para as celebrações do Dia dos Bruxos, quando fui bruscamente convocado para cá por estes seus alunos...
— É por isso que o senhor está usando estas roupas lindas? — Quis saber Estelle com admiração.
Todos mostraram estranheza — exceto o próprio Crestomanci, que parecia achar aquela pergunta bastante razoável.
— Bem, para ser sincero, não — disse. — Gosto de estar bem vestido, porque é sempre possível que eu seja chamado para outro lugar, como vocês me chamaram. Mas devo admitir que várias vezes fui levado de roupão, apesar de todo o meu cuidado.
— Tornou a olhar para o sr. Wentworth, esperando que ele a essa altura já estivesse mais calmo. — Neste chamado, em especial, existem problemas reais — continuou. — O seu mundo está todo errado, de diversas maneiras. É por isso que a sua ajuda seria tão preciosa, meu amigo.
Infelizmente o sr. Wentworth não estava mais calmo, nem um pouco, e retrucou:
— Como ousa falar assim comigo? Isto é chantagem pura! Não vai obter qualquer ajuda de minha parte!
— Agora o senhor não está sendo razoável — Crestomanci ponderou. — A situação destas crianças é muito grave. A sua é igualmente grave. A situação do seu mundo é ainda mais complicada. Por favor, tente, se puder, esquecer que há anos vem sentindo medo, tanto por si quanto por Brian, e escute as perguntas que vou lhe fazer.
O sr. Wentworth, porém, parecia incapaz de ser razoável. Nan olhou para ele com tristeza; até esse momento, sempre pensava nele como uma pessoa firme, e estava decepcionada. Charles também: ele se lembrava do sr. Wentworth com a mão no seu ombro, empurrando-o de volta para o castigo. Na hora pensara que a mão dele estava tremendo de raiva, mas agora dava-se conta de que era de pavor.
— É um truque! O senhor está tentando me extrair uma confissão. E está usando Brian. O senhor é mesmo um Inquisidor!
No exato instante em que ele disse isto, ouviu-se uma batidinha na porta e a srta. Hodge entrou, esfuziante. Acabava de dar uma aula de inglês à 2Y — a última até a terça-feira seguinte, graças aos céus! Claro ela havia percebido que agora havia quatro alunos desaparecidos além de Brian. No princípio, imaginara que todos estavam sendo interrogados pelo Inquisidor, pois eram os suspeitos óbvios. Mas então alguém na sala dos professores comentou que o Inquisidor ainda não havia chegado, e a srta. Hodge percebeu de imediato que aquela era a desculpa de que ela precisava para ir procurar o sr. Wentworth e dedicar-se a consolá-lo do sumiço de Brian. Assim, ela bateu na porta e entrou bem depressa, para ter certeza de que dessa vez o sr. Wentworth não fugiria.
Por um instante, ela teve a impressão de que o escritório estava repleto de gente, e o pobre sr. Wentworth parecia muito preocupado, gritando com alguém que, pelo jeito, era o Inquisidor. Este lançou à srta. Hodge um olhar distraído e então fez um levíssimo aceno com a mão. Depois disso, aparentemente, só estavam na sala, além dela, o Inquisidor e o sr. Wentworth. Mas a srta. Hodge sabia muito bem o que havia visto, e ficou pensando sobre isso enquanto dizia o que vinha comunicar:
— Ah, senhor Wentworth, infelizmente, agora estão faltando mais quatro alunos da 2Y.
E todos os quatro estavam presentes naquela sala, ela sabia. E usando umas roupas muito estranhas. E Brian também estava entre eles. Aquilo confirmava tudo: o sr. Wentworth podia estar preocupado, mas não estava padecendo por causa de Brian. E isso significava que das duas, uma: ou ela precisava pensar em outra maneira de atrair a atenção dele ou faria uso da vantagem que sabia possuir. O homem que era supostamente um Inquisidor aproximou dela uma cadeira num gesto cortês: um bandido muito sutil.
A srta. Hodge ignorou a cadeira.
— Acho que estou interrompendo um conselho de bruxos — disse em tom histérico.
Com a voz um tanto rouca, o sr. Wentworth apresentou:
— Este é o Inquisidor Regional, senhorita Hodge.
A srta. Hodge soltou uma risada triunfante.
— Ora, senhor Wentworth! Tanto o senhor quanto eu sabemos que o cargo de Inquisidor Regional não existe! Este homem está incomodando o senhor? Se está, irei diretamente à senhorita Cadwallader. Acho que ela tem o direito de saber que o senhor tem o escritório cheio de bruxos.
Crestomanci deu um suspiro e saiu caminhando com ar casual em direção à mesa do sr. Wentworth, onde, com gestos também casuais, pegou uma das tabelas de horário. O sr. Wentworth acompanhava-o com os olhos como se Crestomanci o estivesse irritando muito, mas respondeu em tom de resignação:
— Não há o menor sentido em procurar a diretora, senhorita Hodge. Há anos que a senhorita. Cadwallader sabe que sou bruxo. E fica com a maior parte do meu salário para não contar isto a ninguém.
— Eu não sabia que o senhor...! — A srta. Hodge começou.
Ela não havia se dado conta de que o sr. Wentworth também era bruxo. Aquilo fazia uma grande diferença; ela deu um sorriso ainda mais triunfante do que o anterior.
— Neste caso, deixe-me propor-lhe uma aliança contra a senhorita Cadwallader, senhor Wentworth. O senhor se casa comigo e nós dois lutaremos contra ela.
— Eu, me casar com a senhorita? — O sr. Wentworth olhava para a srta. Hodge com horror evidente. — Ah, não. Não pode fazer isto. Eu não posso...
A voz de Brian soou no ar:
— Eu não quero que ela seja minha mãe!
Crestomanci ergueu os olhos da tabela de horários, deu de ombros e Brian apareceu na outra extremidade do escritório, parecendo tão apavorado quando o sr. Wentworth. A srta. Hodge tornou a sorrir.
— Então eu estava certa! — Proclamou.
Tentando apesar do nervosismo soar calmo e razoável, o sr. Wentworth disse:
— Senhorita Hodge, lamento decepcioná-la, mas não posso me casar com ninguém. A minha esposa ainda está viva. Ela foi presa por ser bruxa, mas conseguiu escapar pelo quintal dos fundos da casa de alguém e chegar até o serviço de resgate de bruxos. De modo que a senhorita há de compreender...
— Bom, é melhor fingir que ela foi queimada — declarou a srta. Hodge. Ela estava muito zangada, sentindo-se enganada. Marchou até a escrivaninha do sr. Wentworth e segurou o fone. — Concorde em se casar comigo, senão vou telefonar para a polícia e denunciá-lo. Agora.
— Não, por favor! — Pediu o sr. Wentworth.
— Estou falando sério — ela insistiu.
E tentou levantar o fone, mas este parecia estar preso. A srta. Hodge sacudiu-o irritada; ele tilintou várias vezes, mas parecia ser impossível erguê-lo. A srta. Hodge olhou em volta e deparou com Crestomanci observando-a com interesse.
— O senhor pare com isto! — Disse ela.
— Só depois que me disser uma coisa — Crestomanci respondeu. — A senhorita não me pareceu nem um pouco assustada ao se encontrar em uma sala cheia de bruxos. Por que não?
— Claro que não. De bruxos eu tenho é pena — retrucou a srta. Hodge. — E agora, se faz favor, me permita telefonar para a polícia para denunciar o senhor Wentworth. Há anos ele vem enganando todo o mundo!
— Mas, minha cara jovem, a senhorita também — disse Crestomanci. — O tipo de pessoa que se comportaria como a senhorita se comporta tem que ser bruxa também.
A srta. Hodge lançou-lhe um olhar arrogante.
— Nunca em minha vida usei um feitiço — declarou.
— Um pequeno exagero — Crestomanci retorquiu. — A senhorita usou um feitiço pequenininho, para ter certeza de que ninguém saberia que é bruxa.
Observando o medo e a consternação crescerem no semblante da professora, Charles perguntou-se por que não havia pensado em fazer a mesma coisa. Ele estava muito perturbado: não conseguia acostumar-se à idéia de que sua segunda bruxa era a mãe de Brian.
A srta. Hodge mais uma vez sacudiu o fone. Ele ainda estava preso.
— Muito bem. Não tenho medo de vocês — disse. — Podem estragar todos os telefones da escola, se quiserem, mas não vão impedir que eu saia contando para todos que encontrar sobre o senhor, e o senhor Wentworth, e Brian, e os outros quatro, a não ser que o senhor Wentworth, neste instante concorde em se casar comigo. Acho que vou começar com Harold Crossley.
Ela fez menção de virar-se para sair do escritório. Era evidente que cumpriria a sua ameaça.
Crestomanci suspirou e, com muito cuidado e precisão, pousou a ponta de um dedo sobre a tabela de horários que estava segurando, no centro de um dos retângulos, onde estava escrito “srta. Hodge 2Y”. E no mesmo instante a srta. Hodge já não estava no escritório: o telefone fez soar um toque curto e ela desapareceu. Logo depois, Nan, Estelle, Nirupam e Charles encontraram-se visíveis outra vez. Para eles, era óbvio que a srta. Hodge não estava apenas invisível em lugar deles; o aposento dava a sensação de estar vazio dela, e uma pequena rajada de vento que sacudiu os papéis na escrivaninha do sr. Wentworth parecia provar que ela havia partido.
— Imagine, ela ser bruxa! — Nirupam comentou. — Onde é que ela está?
Crestomanci examinou a tabela e afirmou:
— Hã... Na terça-feira que vem, eu acredito. Isto deve nos dar tempo para desenrolar esta situação infeliz. A não ser que tenhamos muita falta de sorte, é claro. — Voltou-se para o sr. Wentworth. — Talvez agora esteja preparado para nos ajudar a fazer isto, meu caro senhor?
Mas o sr. Wentworth afundou-se na cadeira atrás de sua escrivaninha e cobriu o rosto com as mãos.
— O senhor nunca me contou que mamãe escapou! — Brian falou com ele em tom de acusação. — E nunca disse uma palavra sobre a senhorita Cadwallader.
— E você nunca me contou que pretendia ir acampar na floresta — respondeu o sr. Wentworth com a voz fatigada. — Ai, ai, onde é que vou arranjar outra professora? Preciso dar um jeito de encontrar alguém para dar as aulas de hoje da senhorita Hodge.
Crestomanci sentou-se na cadeira que oferecera à srta. Hodge e declarou.
— Nunca consigo deixar de me espantar com o modo como as pessoas sempre conseguem se preocupar com as coisas erradas. Meu caro senhor, será que se dá conta de que o senhor, o seu filho e quatro dos seus alunos decerto vão queimar na fogueira, a não ser que façamos alguma coisa? E o senhor fica aí preocupado com horários!
O sr. Wentworth ergueu o rosto atormentado e olhou para atrás de Crestomanci.
— Como será que ela conseguiu? — Perguntou. — Como é que ela consegue manter essa situação? Como é que a senhorita Hodge tem a capacidade de ser professora e não usar bruxaria de espécie alguma? Eu uso o tempo todo. Se não for assim, como é que vou conseguir ter olhos nas costas?
— Um dos grandes mistérios da nossa era — concordou Crestomanci. — Agora, por favor, me escute. O senhor tem conhecimento, eu creio, de que existe pelo menos um outro mundo além deste. Parece que é costume de vocês mandar para lá os bruxos foragidos. Presumo que a sua esposa esteja lá. O que o senhor não deve ter conhecimento é de que estes são apenas dois numa infinidade de mundos, todos muitos diferentes uns dos outros. Eu mesmo venho de um desses mundos.
Para grande alívio de todos, o sr. Wentworth dignara-se a escutar.
— Está falando de mundos paralelos? — Perguntou. — Houve alguma especulação a respeito disso. Mundos virtuais, contrafactuais, e assim por diante. Está querendo dizer que eles são reais?
— Tão reais quanto o senhor — Crestomanci afirmou. Nirupam estava muito interessado naquilo; ele sentou-se no chão ao lado das calças elegantemente vincadas de Crestomanci e declarou:
— Eu acredito que eles são feitos dos grandes acontecimentos da História, sempre que há possibilidade de que as coisas sigam dois caminhos diferentes. É mais fácil compreender isto com uma batalha: os dois lados não podem vencer a batalha, de modo que cada batalha cria dois mundos possíveis, com cada lado vencendo em um dos mundos. Como a Batalha de Waterloo: no nosso mundo, Napoleão perdeu, mas naquele instante outro mundo separou-se do nosso, e nele Napoleão venceu a batalha.
— Exatamente — disse Crestomanci. — Acho esse mundo um tanto incômodo. Lá todos falam francês e fazem cara de desagrado por causa do meu sotaque. O único lugar em que eles falam inglês, lá, por mais estranho que pareça, é na Índia, onde eles são muito britânicos e comem bolo inglês depois do curry.
— Eu bem que ia gostar disto — Nirupam comentou.
O sr. Wentworth agora estava bastante atento. Sua expressão era de preocupação.
— Gosto não se discute — Crestomanci retrucou com um leve estremecimento. — Mas, como o senhor verá, o vencedor da Batalha de Waterloo fez uma grande diferença nesses dois mundos. E esta é a regra: uma mudança, por mais pequena que seja, sempre altera o novo mundo e quase o deixa irreconhecível. Exceto no caso deste mundo de vocês, onde nós todos nos encontramos agora.
Voltou-se para o sr. Wentworth.
— É nesta questão que preciso da sua ajuda. Existe alguma coisa muito errada aqui, neste mundo. O fato de que bruxos sejam tão comuns, e ilegais, deveria ter feito tanta diferença aqui quanto faz no meu próprio mundo, onde bruxos são igualmente comuns, mas legalizados. No entanto, não é assim. Estelle, talvez você possa nos contar sobre o mundo para onde o serviço de resgate manda os bruxos.
Do chão onde estava sentada com as pernas cruzadas, Estelle sorriu para ele com adoração.
— A velha senhora disse que era igualzinho a este aqui, só que sem bruxaria — informou.
— E o problema é este — Crestomanci explicou. — Conheço bastante aquele mundo, porque tenho um jovem pupilo que veio de lá. E desde que cheguei aqui venho constatando que os acontecimentos históricos daqui, os carros, os cartazes de propaganda, as mercadorias nas lojas, o dinheiro, tudo o que consegui verificar, são idênticos aos que existem no mundo do meu pupilo. E isto está errado: dois mundos jamais poderiam ser tão parecidos.
O sr. Wentworth agora prestava total atenção. Tinha no rosto uma expressão preocupada.
— Que é que o senhor acha que saiu errado? — perguntou. Nan via confirmada a sua suspeita: Crestomanci estava mesmo procurando sintomas!
Crestomanci olhou para cada um, distraído e hesitante, antes de dizer:
— Perdoem-me por dizer isto, mas o seu mundo não deveria existir. — Todos o encararam. — É verdade — ele acrescentou, como se pedisse desculpas. — Sempre me perguntei por que existe tão pouca bruxaria no mundo do meu pupilo, e agora vejo que ela está inteira neste mundo aqui. Alguma coisa, não sei o que foi, fez com que o seu mundo se separasse do dele, trazendo consigo toda a bruxaria. No entanto, em vez de separar-se totalmente, este mundo, de um modo qualquer, permaneceu parcialmente preso ao mundo original, de modo que ele é quase esse outro mundo. Acho que houve um acidente qualquer. Vocês não deveriam ter um mundo civilizado onde os bruxos são queimados. Como já disse, o mundo de vocês não deveria existir. Assim, como venho tentando lhe explicar todo este tempo, senhor Wentworth, preciso urgente de um resumo da história da bruxaria, para poder descobrir qual o tipo de acidente que aconteceu aqui. Elizabeth I era bruxa?
O sr. Wentworth balançou a cabeça.
— Ninguém sabe com certeza. Mas durante o seu reinado a bruxaria não parecia ser um grande problema. Nessa época ela era exercida quase que apenas por simples mulheres idosas nas aldeias. Não, a bruxaria moderna começou realmente depois da morte de Elizabeth I. Parece que houve um grande aumento por volta de 1606, quando surgiram as primeiras fogueiras oficiais para queimar bruxos. O primeiro Decreto de Bruxaria foi criado em 1612; Oliver Cromwell criou mais alguns. Já havia 34 Decretos de Bruxaria em 1706, o ano em que Dulcinea Wilkes...
Mas nesse momento Crestomanci ergueu a mão para interrompê-lo.
— Muito obrigado. Conheço a história da Arquibruxa. O senhor me contou tudo o que eu precisava saber: a atual situação da bruxaria começou repentinamente logo depois de 1600. Isto significa que o acidente que estamos procurando deve ter acontecido por volta desse ano. O senhor tem alguma idéia do que possa ter havido?
O sr. Wentworth tornou a sacudir a cabeça melancólico.
— Não tenho a mínima idéia — admitiu. — Mas... e se o senhor ficasse sabendo, o que poderia fazer a respeito disso?
— Uma ou duas coisas — Crestomanci respondeu. — Poderíamos separar este mundo do outro, o que eu não considero uma boa idéia, porque então vocês todos decerto seriam queimados...
Todos estremeceram, e Charles, sem se dar conta, passou várias vezes o polegar sobre a bolha em seu dedo. Crestomanci continuou:
— Ou podíamos colocar o seu mundo de volta no outro, que é onde ele deveria estar. Esta alternativa é muito melhor.
— Que é que aconteceria conosco, se o senhor fizesse isso? — Charles quis saber.
— Nada demais. Vocês apenas se fundiriam discretamente nas pessoas que vocês são no outro mundo — Crestomanci esclareceu.
Todos ficaram em silêncio por um momento, pensando nisso.
— Isto pode mesmo ser feito? — O sr. Wentworth perguntou, esperançoso.
— Bem... Pode, sim, contanto que possamos descobrir o que causou a separação — Crestomanci respondeu. — Vai ser preciso usar magia forte. Mas estamos perto do Dia dos Bruxos e deve haver muita magia solta, principalmente neste mundo, e nós poderemos utilizá-la. Sim. Tenho certeza de que pode ser feito, embora talvez não seja fácil.
— Então vamos fazer isto — decidiu o sr. Wentworth. Parecia que aquela decisão o restaurava, deixando-o em seu estado normal. Ele levantou-se e seus olhos percorreram severamente o traje de equitação, os shortinhos azul-claros e a calça jeans, e foram descansar, incrédulos, no esfarrapado vestido de baile cor-de-rosa.
— Se esta turminha pensa que pode aparecer na sala de aula assim... — Ele começou a dizer, mostrando-se outra vez um mestre-escola.
— Hã, deixe Brian de fora, acho melhor — Crestomanci apressou-se a dizer.
— ...durante o castigo vocês terão muito tempo para mudar de idéia — o sr. Wentworth continuou, completando a frase.
Nan, Estelle, Charles e Nirupam levantaram-se às pressas. E assim que ficaram de pé descobriram que estavam usando o uniforme escolar. Olharam em volta à procura de Brian, mas parecia que ele não estava lá.
— Estou invisível de novo! — Exclamou a voz dele, contrariada, saindo do ar.
Crestomanci estava sorrindo.
— Nada mal, meu amigo — disse ao sr. Wentworth.
O sr. Wentworth parecia ter ficado feliz, e, enquanto levava os quatro até a porta, sorriu de volta para Crestomanci com expressão bastante amigável.
— Por que Brian tem permissão para continuar invisível? — Estelle reclamou, enquanto marchava na direção da sala de aula, levada pelo sr. Wentworth.
— Porque ele dá a Crestomanci uma desculpa para permanecer aqui como Inquisidor — Nirupam cochichou. — Ele supostamente está tentando descobrir o que o bruxo fez com Brian.
— Mas não conte a Brian, senão ele vai estragar tudo. É assim que ele é — Charles cochichou, quando já estavam do lado de fora da porta da 2Y.
A verdade era que Charles não tinha tanta certeza de que ele próprio não estragaria tudo, se tivesse a oportunidade. Afinal, nada havia mudado e ele ainda continuava com os mesmos problemas de antes.
O sr. Wentworth abriu a porta e fez com que as quatro crianças entrassem na sala de aula, em meio a uma tempestade de olhares e cochichos.
— Infelizmente precisei seqüestrar estes quatro — ele declarou ao sr. Crossley, que estava dando aula ao resto da turma. — Estávamos arrumando o meu escritório para o Inquisidor usar.
Ao que parecia, o sr. Crossley acreditou naquilo sem questionar. Já a turma 2Y, a julgar pela cara dos alunos, sentiu que se tratava de um horrível anticlímax: os alunos imaginavam que todos os quatro haviam sido presos. Mas extraíram o máximo que puderam da situação.
— O Senhor Towers está procurando vocês dois — Simon, com expressão de menino bonzinho, cochichou para Nirupam e Charles.
E Theresa disse a Estelle:
— A senhorita Phillips quer falar com você.
Nan teve sorte: a srta. Phillips jamais se lembrava dela, se pudesse evitar.
Eles haviam chegado de volta tão tarde que só restava um curto tempo de aula antes da hora do almoço. Quando o sino tocou para o almoço, Charles e Nirupam mantiveram-se no meio dos grupinhos mais numerosos, pois nenhum dos dois desejava ser visto pelo sr. Towers. Mas Charles teve a sua costumeira falta de sorte: o sr. Towers estava de plantão na porta do refeitório. O menino ficou muito aliviado quando entrou discretamente sem que o sr. Towers demonstrasse qualquer interesse nele.
Nirupam cutucou Charles enquanto se sentavam, depois da oração de ação de graças. Crestomanci, com expressão simpática e distante, estava sentado ao lado da srta. Cadwallader na mesa principal. Todos entortavam o pescoço para olhar para ele, pois correra a notícia de que se tratava do Inquisidor Regional.
— Eu não gostaria de ter este sujeito como inimigo. Está na cara que este ar sonolento dele é só para disfarçar — Dan Smith comentou.
— Ele parece fracote. Eu não vou deixar que me assuste — disse Simon.
Também Charles entortava o pescoço para olhar. Ele entendia o que Simon estava querendo dizer, mas a essa altura tinha certeza de que o ar distraído de Crestomanci era tão enganoso quanto Dan suspeitava que fosse.
O sr. Wentworth também estava sentado à mesa principal. Charles tinha vontade de saber onde Brian estava, e como ele iria fazer para almoçar. Tornou a prestar atenção na sua mesa ao escutar Theresa dizer:
— Ele é tão bonito que me faz sentir toda derretida por dentro!
Para surpresa de todos, Estelle pôs-se de pé num salto e inclinou-se por sobre a mesa, olhando para Theresa com ódio.
— Theresa Mullett, você que ouse estar apaixonada pelo Inquisidor, e vai ver o que vai arranjar! Ele é meu. Eu o encontrei primeiro e eu é quem sou apaixonada por ele! Então, você que ouse!
Por um instante ninguém disse coisa alguma. Theresa estava espantada demais, até mesmo para rir. Todos estavam tão pouco acostumados a ver Estelle feroz que até mesmo o professor de plantão ficou sem saber o que dizer.
Durante o silêncio, tornou-se óbvio como era que Brian ia almoçar: Charles e Nirupam sentiram-se empurrados para o lado por um corpo invisível e ambos receberam cutucões de cotovelos invisíveis quando o corpo subiu para o banco e sentou-se entre os dois.
— Vocês vão ter que me deixar comer dos seus pratos — cochichou a voz de Brian. — Tomara que hoje não sirvam carne moída.
Felizmente Simon rompeu o silêncio bem na hora em que Brian falou. Num tom de zombaria de quem não estava ainda convencido, ele quis saber:
— E o que foi que fez vocês demorarem tanto para arrumar o escritório do Senhor Fracote Inquisidor?
Pela expressão que todos os rostos assumiam então, Nan deu-se conta de que ninguém havia acreditado sequer por um instante na desculpa dada pelo sr. Wentworth. Ela percebeu que a maioria deles suspeitava de alguma coisa parecida com a verdade, e pensou: Socorro! E inventou depressa:
— Bom, tivemos que colocar uma fiação elétrica bem complicada. Ele precisa de uma luz forte colocada para iluminar o rosto das pessoas. Isso ajuda a quebrar a resistência.
— Não seria para dar choques elétricos? — Dan perguntou, esperançoso.
— Uma parte da fiação pode ser que seja — Nan admitiu. — Havia uma grande quantidade de fios desencapados, e uma espécie de capacete com uns eletrodos saindo dele. Foi Charles quem colocou os fios naquilo. Ele é muito bom com eletricidade.
— E o quê mais? — Dan insistiu, fascinado. A essa altura, estava interessado demais para perceber que estava conversando com uma menina.
— As paredes foram todas forradas de preto — Nan inventou. — Estelle e eu fizemos isso.
Então o almoço foi servido. Era torta de batata. Aquilo foi bom para Brian, que não ousava usar garfo e faca, mas não tão bom para Charles e Nirupam. Os dois soltaram resmungos de indignação quando grandes pedaços de torta desapareceram de seus pratos: Brian tinha tirado uma boa fatia de cada um. Eles ficaram ainda mais contrariados quando pedacinhos de batata começaram a cair entre eles.
— Pare com este desperdício! — Nirupam falou, irritado.
— Não sabe onde fica a sua boca? — Charles sussurrou com raiva.
— Sei, sim, mas não sei onde as minhas mãos estão — Brian sussurrou de volta. — Experimentem, se vocês acham que são tão espertos!
Enquanto eles cochichavam, Nan estava sendo interrogada por um ansioso Dan e forçada a inventar cada vez mais equipamentos para o Inquisidor no escritório do sr. Wentworth.
— E, havia umas coisas com pequenos parafusos cromados — dizia ela. — Acho que você tem razão, deviam ser aqueles anéis que apertam o polegar. Mas alguns eram grandes, pareciam ser para um braço ou uma perna. Acho que eles não ficam só nos polegares.
Nirupam cutucou o corpo invisível de Brian com o cotovelo.
— Preste atenção! Se ele quiser falar com o Dan, tudo isto tem que estar lá — ele cochichou.
— Não sou idiota — retrucou a voz de Brian de boca cheia.
— É lógico havia um monte de outras coisas que tivemos que pendurar na parede. Algemas de todos os tamanhos — Nan continuou.
Ela agora estava inspirada, e sua criatividade dava a impressão de não ter limites. Parecia que não conseguia parar. Charles começou a duvidar que um escritório pequeno tivesse possibilidade de conter todas as coisas que ela estava descrevendo — ou até apenas a metade que Brian conseguiria recordar.
Felizmente, Estelle, que estava ocupada demais observando Crestomanci comer, provocou uma distração súbita ao anunciar:
— Vejam, vejam! A senhorita Cadwallader está usando só o garfo, e ele está usando a faca e o garfo! Ele não é corajoso?
Diante disso, Nirupam aproveitou a oportunidade para fazer com que Nan calasse a boca. Lançou-lhe um olhar sinistro e disse em voz bem alta:
— Você sabe que o Inquisidor decerto vai interrogar todos nós com muitos detalhes, depois que o almoço terminar.
Embora Nirupam pretendesse com isso apenas avisar Nan, o seu comentário provocou um silêncio preocupado. Um número surpreendente de pessoas dava a impressão de não estar com muita vontade de comer o pudim de caramelo que veio depois da torta de batata. Nirupam aproveitou também esta oportunidade: serviu-se de uma terceira e em seguida de uma quarta porção, e dividiu-as com Brian.
Logo depois do almoço, o sr. Wentworth veio organizar toda a turma 2Y em ordem alfabética pelos sobrenomes. O silêncio preocupado transformou-se em silêncio assustado. Pela expressão que se via no rosto dos outros alunos da escola, o medo era contagioso: até mesmo os veteranos pareciam assustados quando a 2Y foi levada dali. Seus alunos marcharam para o corredor do andar superior e ali formaram uma fila que chegava até a escada e descia a metade dos degraus, enquanto o vice-diretor ia até o seu escritório para comunicar a Crestomanci que todos estavam prontos. As crianças que estavam no início da fila conseguiam ver que o vidro ondulado da porta estava agora negro como a noite.
Aconteceu que Crestomanci queria vê-los em ordem alfabética inversa, de modo que todos tiveram que marchar para baixo e em círculo, tornando a subir depois, de modo que Heather Young e Ronald West ficaram na frente da fila, ficando Geoffrey Baines e Deborah Clifton em último lugar. Isso foi levado a cabo sem qualquer das reclamações e bagunças costumeiras. Até mesmo Charles, que tinha quase certeza de que estavam marchando apenas para dar a Crestomanci o tempo necessário para providenciar todas as invenções de Nan, encontrou-se quieto e nervoso, com o dedo esfregando a tal bolha. Heather e Ronald pareciam doentes de medo. Dan Smith — que ocupava o terceiro lugar, já que Brian estava desaparecido — perguntou a Nirupam num cochicho preocupado:
— Que é que ele vai fazer conosco?
Nirupam estava tão ignorante quanto Dan; sequer soubera que Crestomanci ia de fato interrogá-los. Tentou fazer uma expressão sinistra.
— Você vai ver — respondeu.
O rosto de Dan ficou branco como leite.
Crestomanci não se demorava o mesmo tempo com todos eles. Heather desapareceu dentro do escritório pelo que parecia um tempo interminável, e saiu tão assustada quanto havia entrado. Já Ronald só ficou lá dentro por um minuto, e saiu pela porta escurecida parecendo aliviado. Inclinou-se por cima de Dan e Nirupam para cochichar com Simon:
— Nenhum problema!
— Eu sabia que seria assim — Simon mentiu por orgulho.
— Quietos! — Berrou o sr. Wentworth. — O próximo: Daniel Smith.
Dan Smith foi outro que não demorou muito lá dentro, mas não saiu com expressão de quem não havia tido problemas; seu rosto parecia leite desnatado.
Nirupam ficou no escritório muito mais tempo do que Nan ou e Charles esperavam. Quando saiu, tinha o rosto preocupado e aflito. Depois dele entrou Simon, e houve outra espera interminável. Durante esse tempo, tocou o sino das aulas da tarde, que foi acompanhado pelo costumeiro rebuliço de passos apressados. O silêncio que se seguiu durou tanto tempo, até que Simon saísse, que não havia uma só alma na turma 2Y que não se sentisse um pária. Por fim Simon reapareceu. Tinha uma cor muito estranha. Não quis falar com qualquer dos amigos que quase abandonavam seus lugares na fila, tamanha era a vontade de saber o que havia acontecido. Ele apenas caminhou até a parede como um sonâmbulo e apoiou-se nela, ficando a olhar para o espaço.
Aquilo não ajudou a melhorar o estado de espírito dos alunos. Nan ficava imaginando o que Crestomanci estaria fazendo com eles lá dentro. Depois que as três meninas que vinham entre ela e Simon saíram com uma aparência tão ruim quanto a de Heather Young, Nan ficou tão assustada que mal conseguia fazer com que as pernas lhe obedecessem. Mas era a sua vez e ela tinha que ir; de um modo ou de outro conseguiu entrar no escritório.
No lado de dentro, ela estacou e ficou a olhar em volta. Crestomanci estivera de fato muito ocupado enquanto a 2Y marchava escada abaixo e voltava. O escritório do sr. Wentworth estava inteiramente forrado por cortinas pretas. Um tapete preto que Nan esquecera-se de inventar cobria o assoalho. Pendurados nas paredes e brilhando contra o fundo preto havia algemas, um laço de forca, grinaldas de correntes, vários tipos de açoites e uma chibata com nove tiras de couro. A um canto havia um grande latão com um rótulo onde se lia: Gasolina, Escr. Inq. Reg., Para Uso Apenas Em Tortura.
O próprio Crestomanci mal estava visível por trás de um abajur grande e de luz forte, que para Nan, trazia a lembrança desagradável da luz usada na mesa de cirurgia. A claridade caía sobre a escrivaninha do Sr. Wentworth, também ela forrada de pano preto, onde havia uma espécie de mostruário de joalheria exibindo reluzentes anéis de apertar os dedos e outros objetos desagradáveis. O capacete com fios elétricos estava ali, como também um ramalhete de fios desencapados que cuspiam faíscas azuis. Atrás desses objetos havia uma pilha de grossos livros pretos.
— Consegue ver alguma coisa que Brian tenha esquecido? — Perguntou o vulto pouco nítido de Crestomanci.
Nan começou a rir.
— Não mencionei um tapete, nem gasolina!
— Foi Brian quem sugeriu o tapete. E eu achei que aquele canto parecia um pouco nu — Crestomanci admitiu.
Nan apontou para a pilha de livros pretos.
— E estes, o que são? — quis saber.
— Tabelas de horários e livros de presença disfarçados — Crestomanci revelou. — Ah, já estou entendendo. Obviamente são Leis do Parlamento e Decretos de Bruxaria, manuais de tortura e o “Guia de Identificação de Bruxos” do jornal The Observer. Nenhum Inquisidor trabalharia sem eles.
Pela voz dele, Nan percebeu que ele estava rindo.
— Eu acuso o senhor de estar se divertindo enquanto todo o mundo lá fora está tremendo de medo.
— Confesso este delito — disse Crestomanci.
Ele aproximou-se, rodeando a mesa e a luz. Afastou o monte de fios com um gesto casual — e que, pelo que parecia, não lhe deu qualquer espécie de choque — e sentou-se sobre a escrivaninha forrada de preto, de modo que o seu rosto ficou na mesma altura do de Nan.
— Eu também acuso você de estar se divertindo — disse.
— Estou mesmo! — Nan admitiu, em tom de desafio. — Acho que pela primeira vez desde que vim para esta porcaria de colégio!
Crestomanci olhou para ela quase que com ansiedade.
— Você acha divertido ser bruxa? — Perguntou. Nan assentiu com um gesto vigoroso.
— E achou divertido inventar coisas e descrevê-las, como os anéis de apertar os dedos e as outras coisas? — Ele continuou.
Nan tornou a assentir.
— De que foi que gostou mais? — Crestomanci insistiu.
— Ah, de descobrir que sou bruxa — Nan declarou. — Isso fez com que eu me sentisse... bem... Cheia de confiança, eu acho.
— Descreva os atos de bruxaria que você já fez até agora — Crestomanci pediu.
— Eu...
Nan olhou para Crestomanci, que tinha um dos lados iluminado pela luz forte do abajur e o outro iluminado pelas centelhas dos fios, e ficou perplexa ao constatar que havia feito pouquíssimas coisas como bruxa. Feitas as contas, o que ela fizera mesmo fora voar numa vassoura e dar a ela e a Estelle o tipo errado de roupas e umas latas de coleta de esmolas bastante esquisitas.
— Ainda não tive muito tempo de fazer coisas — admitiu.
— Mas Charles Morgan teve mais ou menos o mesmo tempo, e, a julgar pelas coisas que todos andaram me contando, ele foi mesmo muito criativo — Crestomanci objetou. — Você não diria que, agora que é uma bruxa e ganhou autoconfiança, podia talvez preferir descrever coisas do que ser bruxa?
Nan pensou no assunto.
— Acho que sim — disse, ela mesma surpresa. — Se ao menos não tivéssemos que fazer isso no nosso diário!
— Ótimo! — Crestomanci exclamou. — Acho que posso lhe prometer uma oportunidade muito boa de descrever coisas, e nada tem a ver com diários. Eu lhe disse que seria preciso uma magia muito forte para colocar este mundo de volta dentro do mundo ao qual ele pertence. Quando eu descobrir a maneira de fazer isto, vou precisar do auxílio de todos, para poder reunir toda a magia que existe neste mundo e com ela fazer a mudança. Quando chegar a hora, posso contar com você para explicar tudo isto?
Nan assentiu. Sentia-se lisonjeada e responsável. Enquanto ela se sentia assim, Crestomanci acrescentou:
— Ainda bem que você prefere descrever coisas. Infelizmente vai deixar de ser bruxa quando houver a mudança.
Nan o encarou e viu que ele não estava brincando.
— Sei que você descende da Arquibruxa, mas o talento nem sempre é herdado da mesma forma. O seu parece ter a forma de inventar e descrever. O meu conselho é que fique só nisso, se puder. Agora me diga o nome de um personagem histórico.
Nan pestanejou diante daquela mudança de assunto.
— Hã... Cristóvão Colombo — disse, sentindo-se muito infeliz. Crestomanci tirou do bolso uma caderneta com capa de ouro e uma lapiseira de ouro.
— Importa-se de me explicar quem foi ele? — Ele pediu. Achando espantoso o fato de Crestomanci aparentemente não saber as coisas mais óbvias, Nan contou-lhe tudo sobre Cristóvão Colombo, com toda a paciência que conseguiu juntar, e Crestomanci escreveu tudo na sua caderneta de ouro.
— Admirável — murmurou, enquanto escrevia. — Claro e vívido.
O resultado foi que, quando Nan saiu do escritório, metade dela estava deliciada por Crestomanci achar que ela era tão boa em descrever as coisas, e a outra metade estava triste porque dali a não muito tempo ela deixaria de ser bruxa. Lance Osgood, amigo de Dan Smith, que seria o próximo a entrar, olhou com atenção para o rosto dela mas ficou sem saber o que esperar.
Lance não permaneceu muito tempo no escritório, e nem Theresa Mullett, que entrou depois dele. A essa altura, Estelle, que estava quase no final da fila, chegava ao topo da escada. Quando Theresa saiu, ela esticou o pescoço, procurando no rosto dela indícios de estar apaixonada, mas Theresa parecia contrariada e perplexa. Todos perceberam que o Inquisidor não havia tratado Theresa com o devido respeito. Delia estava cochichando com Heather sobre isso quando Charles entrou na sala do Inquisidor.
A essa altura Charles não tinha o menor receio, pois tinha certeza de que Crestomanci estava tratando cada pessoa como ela merecia. Sorriu ao ver o escritório todo forrado de preto, e empurrou os óculos para cima do nariz para erguer os olhos e examinar as coisas penduradas nas paredes.
Crestomanci era uma sombra vaga atrás do abajur e dos fios eletrificados.
— Você aprova? — Perguntou ao menino.
— Nada mal — Charles declarou. — Onde é que Brian está?
— Estou aqui — respondeu a voz de Brian. Dois pares de algemas ergueram-se da parede preta e tilintaram. — Quanto tempo isto vai continuar? Já estou com um tédio magiquento, e o senhor só chegou até a letra M.
— Por que está com ele aqui? — Charles perguntou a Crestomanci. Mantinha o dedo segurando os óculos no lugar para poder lançar a Brian o seu mais forte olhar de ódio.
— Tenho minhas razões — Crestomanci respondeu baixinho. Embora ele não tivesse alterado o tom de voz, Charles sentiu como se uma coisa muito fria e um tanto mortal estivesse rastejando pelas suas costas. Crestomanci continuou, no mesmo tom:
— Quero conversar com você sobre o seu feitiço de “o mestre mandou”.
O frio espalhou-se da espinha de Charles pelo resto dele, e acomodou-se em seu estômago. Ele começava a se dar conta de que aquela entrevista seria muito diferente da brincadeira que ele havia imaginado.
— O que é que tem? — Resmungou.
Num tom tranqüilo, espantado e mais letalmente baixo do que nunca, Crestomanci declarou:
— Não consigo entender como foi que você se esqueceu de mencionar esse feitiço. Como foi que ele lhe fugiu da memória?
Era como estar enfiado no gelo. Charles tentou livrar-se blefando:
— Não havia necessidade de lhe contar. Foi só um feitiço sem importância e Simon mereceu! De qualquer maneira, Nirupam retirou tudo!
— Peço desculpas. Não havia me dado conta de que você tinha uma justificativa — Crestomanci declarou.
Um sarcasmo assim já era difícil de suportar, e ficava ainda pior quando se sabia que alguém como Brian estava escutando tudo. Charles conseguiu lançar outro olhar de ódio, mas achou difícil dirigi-lo a Crestomanci, escondido atrás da luz, de modo que virou-se e dirigiu-o a Brian, ou, melhor dizendo, às algemas onde Brian devia estar.
— Não foi tão importante assim — afirmou.
Crestomanci parecia mais perplexo do que nunca.
— Não foi importante? Meu caro garoto, o que é tão pouco importante num feitiço que poderia fazer em pedaços o planeta? Você deve saber melhor do que eu, naturalmente, mas a minha impressão é de que Simon poderia com facilidade ter dito por acaso alguma coisa bem tola, como, por exemplo, “dois e dois são cinco”. Se ele tivesse feito isso, tudo o que se relaciona a números teria se desmantelado no mesmo instante. E como tudo o que existe pode ser contado, todas as coisas teriam se desmanchado: a terra, o sol no céu, as células nos corpos, qualquer coisa em que você possa pensar. Sem dúvida a sua mente está acima dessas bobagens, mas não consigo deixar de considerar isso muito importante.
Charles olhou com raiva para as algemas, para disfarçar a sensação horrível que aquelas palavras lhe deram. E Brian escutando tudo!
— Eu não tinha pensado... Como poderia pensar? De qualquer maneira, Simon merecia algum castigo.
Enquanto falava, ele se alegrava porque ninguém sabia que ele pretendia fazer alguma maldade com Dan logo em seguida.
— Simon merecia? — Crestomanci repetiu, em tom de dúvida. — Simon decerto tem uma alta opinião de si mesmo, mas... Brian, conte para nós. Você tem um ego pelo menos tão grande quanto o de Simon. Você ou Simon merecem ter tanto poder em suas mãos?
— Não — respondeu relutante a voz de Brian. — Não para destruir o planeta.
Charles estava gelado de horror diante do que quase havia feito. Mas não pretendia admitir isso.
— Nirupam retirou o feitiço antes que Simon fizesse alguma coisa — afirmou.
— Parece que Brian está aprendendo, mesmo que você não esteja, Charles — disse Crestomanci. — Reconheço que, como a magia é proibida aqui, ninguém jamais lhe ensinou como usá-la ou o que você pode fazer com ela. Mas você poderia ter raciocinado. E continua sem raciocinar. Nirupam não retirou o feitiço de Simon, e sim apenas virou-o do avesso. Agora, nada do que o pobrezinho diz acontece. Tive que lhe dar a ordem de ficar de boca fechada.
— Pobrezinho? Não é possível que o senhor tenha pena dele!
— Pois eu tenho — disse a voz de Brian. — E se na hora não estivesse na enfermaria, eu mesmo teria tentado retirar o feitiço dele. E ainda ia fazer melhor do que Nirupam!
Crestomanci interveio:
— Nisto, Charles, você está tendo um excelente exemplo do motivo, deixando de fora o certo e o errado, por que fazer mal aos outros é uma coisa tão tola. Agora todos estão com pena do Simon. E não era bem isto que você queria, não é mesmo?
— Não — Charles admitiu.
Baixou os olhos para o sombrio tapete preto e decidiu, com pena, repensar seus planos quanto a Dan Smith. Dessa vez daria certo.
— Obrigue Charles a retirar o feitiço do Simon — Brian sugeriu.
— Duvido que ele conseguisse — Crestomanci objetou. — É uma coisa muito poderosa. Charles deve ter poderes de um nível bem alto na escala da magia, para ter conseguido que esse feitiço tivesse algum efeito.
Charles manteve o rosto voltado para o tapete, na esperança de esconder o enorme sorriso presunçoso que ele sentia espalhar-se pelo seu rosto.
— Será necessário que haja um certo número de circunstâncias especiais para retirar esse feitiço de Simon — Crestomanci continuou. — Para começar, é preciso que Charles queira retirar o feitiço, e ele não quer. Você quer, Charles?
— Não — respondeu este.
A idéia de Simon sendo obrigado a calar a boca para o resto da vida dava-lhe tanto prazer que ele não se deu ao trabalho de escutar todos os nomes com que Brian começou a xingá-lo. Esticou o dedo sob o foco da luz do abajur e ficou admirando o modo como a luz forte e as fagulhas nos fios faziam desenhos na almofada amarela que era a bolha. E pensou: a maldade estava tatuada nele.
Crestomanci esperou que Brian esgotasse o seu estoque de nomes para xingar Charles, e disse então:
— Lamento muito que você tenha esse sentimento, Charles. Nós todos vamos precisar da sua ajuda quando tentarmos colocar este mundo de volta no seu lugar. Não quer pensar melhor?
— Não, depois que o senhor me atacou daquele jeito na frente de Brian — Charles declarou. E voltou a admirar a sua bolha.
Crestomanci soltou um suspiro antes de voltar a falar:
— Você e Brian são igualmente ruins. As pessoas aqui no Internato de Larwood estão sempre se transformando em bruxos, segundo me contou o senhor Wentworth, mas ele diz que não teve dificuldade em impedir que alguma delas se denunciasse, até que chegou a vez de Charles e de Brian. Brian estava tão ansioso para ser notado que não se importava de ir para a fogueira...
— Ei! — Brian protestou, indignado.
Charles suspeitava de que Crestomanci estava agora tentando ser justo atacando Brian também. Era um pouco tarde para isso e ele não iria ajudar.
— ...de modo que ele vai ter que colaborar, ou ficará invisível para o resto da vida — Crestomanci continuou. Ignorando as manifestações de desagrado e indignação de Brian, ele voltou-se para Charles. — Você, Charles, parece ter se cercado de uma muralha, odiando tudo, até que a sua bruxaria apareceu e derrubou os muros. Agora, ou você será obrigado a se emparedar outra vez, senão irá para a fogueira... ou terá de nos ajudar. Já que o seu talento para a bruxaria é tão forte, parece certo que, no seu verdadeiro mundo, você terá um talento igualmente forte para outra coisa qualquer, e isso seria mais fácil para você. Então, qual é a sua escolha?
Perder a sua magia? Charles empurrou os óculos com um dedo e através da forte luz olhou com ódio para Crestomanci. Achava que não odiava Simon ou Dan tanto quanto odiava Crestomanci.
— Vou continuar sendo bruxo, e pronto!
O vulto de Crestomanci deu de ombros atrás da luz.
— Feiticeiro é a palavra que se costuma aplicar à pessoa que faz confusões como você faz. Muito bem. Agora cite um personagem histórico, por favor.
— Jack, o Estripador — Charles rosnou.
A caderneta de ouro reluziu à luz do abajur.
— Muito obrigado. Mande entrar a próxima — disse Crestomanci.
Enquanto Charles dava meia-volta e se encaminhava para a porta a passos lentos, Brian gritava-lhe palavrões. Crestomanci disse-lhe com toda a calma:
— Brian, eu lhe disse que ia tirar a sua voz, e vou fazer isto se você falar com mais alguém.
Charles ficou com raiva; aquilo era típico de Crestomanci. Abriu a porta com violência, perguntando-se que coisas teria coragem de fazer a Nan e a Estelle por terem convocado Crestomanci, e encontrou-se cara a cara com Delia Martin. Devia estar com uma expressão bastante assustadora, pois Delia ficou branca. E chegou até mesmo a dirigir a palavra a ele.
— Como é que ele é? — Quis saber.
— Magiquentamente horrível! — Charles anunciou em voz bem alta, torcendo para que Crestomanci escutasse.
O resto dos alunos da 2Y entrou e saiu do escritório arrastando os pés. Alguns saíram pálidos, alguns saíram aliviados. Estelle saiu com os olhos úmidos e um largo sorriso.
— Francamente! Certas pessoas... — Declarou Theresa.
Estelle lançou um olhar de total desprezo e foi até Nan. Colocou ambas as mãos em volta de uma orelha dela e cochichou lacrimosa:
— Ele diz que no lugar para onde eu vou, mamãe não estará na prisão!
— Ah, que bom! — Nan exclamou, e pensou, com súbito entusiasmo: então a sua mãe ainda estaria viva!
O próprio Crestomanci saiu do escritório com Geoffrey Baines, que era o último, e trocou um olhar significativo com o sr. Wentworth. Nan percebia que ele ainda não havia descoberto a maneira de mudar o mundo, e que ambos estavam preocupados.
— Certo. Façam fila para voltarmos para a sala de aula! — Gritou o sr. Wentworth.
Ele estava parecendo tão preocupado, e fez com que descessem a escada tão depressa, que Nan entendeu que a sorte de Crestomanci estava falhando. Talvez o verdadeiro Inquisidor já tivesse chegado. O sino para o final da primeira aula tocou enquanto a 2Y marchava pelos corredores, o que aumentou a sensação de urgência. Outras turmas passaram apressadas por eles, lançando-lhes olhares de curiosidade e pena.
Os amigos de Simon insistiam em tentar conversar com ele enquanto andavam. Simon sacudia a cabeça como louco e apontava para a boca.
— Ele sabe quem é o bruxo, mas seus lábios estão selados — Ronald West interpretou sabiamente.
Isso fez com que Delia e Karen saíssem da fila para caminhar ao lado de Simon.
— Diga-nos quem é o bruxo, Simon. Não vamos contar a ninguém — elas cochicharam.
Quanto mais Simon sacudia a cabeça, mais elas perguntavam.
— Silêncio! — Gritou o sr. Wentworth.
Todos entraram na sala de aula, onde já estava o sr. Crossley, que pretendia tomar conta da turma enquanto os alunos escreviam em seus diários.
— É melhor tratar esta aula como período livre, Harold — disse-lhe o sr. Wentworth.
O sr. Crossley assentiu, muito feliz, e dirigiu-se à sala dos professores, torcendo para encontrar lá a srta. Hodge.
— Coitado do Teddy — Estelle cochichou a Nan. — Ele não sabe que ela só vai aparecer na próxima terça-feira. Se bem que eu acho que de qualquer maneira ela não quer nada com ele...
Crestomanci entrou na sala, parecendo calmo e distraído. Pela sua expressão, ninguém poderia adivinhar que o seu tempo estava se esgotando e que era bem provável que ele estivesse tão aflito quanto o sr. Wentworth. Ele pigarreou para pedir atenção e conseguiu um silêncio instantâneo, completo e atento, que despertou certa inveja no sr. Wentworth.
— É um problema infeliz — Crestomanci começou. — Temos um bruxo entre nós. E esse bruxo lançou um feitiço sobre Simon Silverson...
Ouviu-se um cicio produzido pelo movimento dos alunos virando-se para olhar para Simon. Charles parecia furioso, e Simon parecia quase feliz outra vez: estava no centro das atenções, que era o seu lugar.
— Agora, por grande infelicidade, alguém fez um esforço de boa fé, porém equivocado, para romper o feitiço, e acabou virando-o ao contrário — Crestomanci continuou. Nirupam parecia estar passando mal. — Não podemos culpar essa pessoa, mas o resultado foi muito infeliz. O feitiço era forte demais, e agora, tudo o que Simon diz não apenas não acontece, mas nunca aconteceu. Tive que avisar Simon para não abrir a boca até chegarmos ao fundo desta questão.
Enquanto dizia isto, Crestomanci voltou os olhos, de maneira vaga e distraída, na direção de Charles. Este lançou-lhe em resposta o seu olhar mais odiento. Se Crestomanci pensava que agindo daquela maneira conseguiria que ele retirasse o feitiço, estava muito enganado. O que Charles não percebeu foi que em seguida os olhos de Crestomanci passaram para Nan. Ninguém mais percebeu, porque três pessoas haviam levantado a mão: Delia, Karen e Theresa. Delia falou pelas três:
— Senhor Inquisidor, nós já lhe dissemos quem é a bruxa. É Nan Pilgrim.
A carteira de Estelle desabou com um estrondo, os livros, o diário, as folhas de papel e o tricô espalharam-se em todas as direções. Estelle ficou de pé no meio deles, vermelha de raiva.
— Não é Nan Pilgrim! — Gritou. — Nan nunca fez mal a alguém na vida! São vocês quem fazem mal, espalhando boatos o tempo todo: você, Theresa e Karen. E eu tenho vergonha de já ter sido amiga de Karen!
Nan escondeu entre as mãos o rosto afogueado. Estelle era um pouquinho leal demais para seu conforto.
— Levante esta carteira, Estelle — ordenou o sr. Wentworth. Simon esqueceu-se e abriu a boca para fazer um comentário zombeteiro; como se fosse por acaso, os olhos de Crestomanci pousaram nele. Simon fechou a boca ruidosamente e arregalou os olhos.
E este foi o único indício de que Crestomanci havia percebido a interrupção.
— Se todos prestarem atenção... — Começou a dizer, e de imediato todos fizeram isso. — Muito obrigado. Antes de identificarmos o bruxo, quero que todos vocês citem o nome de um segundo personagem histórico. Você na frente, pode começar, hum... Theresa... hum... Fish.
Todos já haviam citado uma figura histórica; todos estavam convencidos de que o Inquisidor reconheceria o bruxo pelo nome que citassem dessa vez. Era óbvia a necessidade de não citar qualquer personagem mau. Assim, Theresa, embora ofendida pelo modo como o Inquisidor errara o seu nome, pensou com grande cuidado. E, como em geral acontece, sua mente encheu-se com todos os vilões da História. E ela ficou ali, perplexa, lembrando-se do Conde Drácula, de Judas Iscariotes, Nero e Torquemada, e incapaz de pensar em alguém que fosse do bem.
— Vamos, hum... Tatiana — Crestomanci pediu.
— Theresa — Theresa corrigiu, e então, por uma inspiração, completou; — Santa Theresa.
Crestomanci anotou o nome em sua caderneta de ouro e apontou para Delia.
— São Jorge — disse esta.
— Ele não existiu em mundo nenhum — Crestomanci objetou. — Tente outro nome.
Delia vasculhou na memória e por fim pensou em Lady Godiva. O dedo em riste de Crestomanci foi apontando para cada aluno, causando a todos o mesmo problema. Os vilões enchiam a mente de todos: Átila, Ricardo III, Lucrécia Bórgia, Joseph Stalin — e quando eles conseguiam atinar com alguém um pouco menos malvado, parecia que eram sempre pessoas como Sócrates ou Galileu, que haviam sido assassinados.
A maioria dos alunos também não queria mencionar estes, embora Nirupam, sabendo que Crestomanci não era um Inquisidor de verdade, arriscou-se a mencionar Charles I, que havia sido mais ou menos mal. Na maioria das vezes, quando um nome era citado Crestomanci virava-se para o sr. Wentworth e este lhe dizia quem era. A maior parte da 2Y não conseguiu descobrir por que o Inquisidor precisava fazer aquilo, a não ser que fosse para provar que o sr. Wentworth tinha uma grande cultura. Mas Nan imaginava: ele estava recolhendo sintomas. Por que? Alguém na História devia ser muito importante, ela achava.
Charles observou o dedo de Crestomanci apontar na sua direção e pensou: ele não vai me pegar com isto!
— São Francisco — disse.
Crestomanci limitou-se a apontar o dedo para Dan Smith. Dan não sabia o que dizer.
— Por favor, senhor, professor, estou com dor de barriga e não consigo pensar.
O dedo continuou apontado para ele.
— Ah... hum... Dick Turpin — disse Dan por fim. Aquilo produziu um espanto geral na 2Y e um quase-gemido de decepção quando o dedo de Crestomanci tornou a mover-se, atravessando um corredor entre as carteiras e apontando para Estelle.
Estelle havia levantado a sua carteira e a maioria dos livros, mas o novelo da sua lã de tricotar havia rolado sob várias carteiras, desenrolando-se. De modo que ela estava de joelhos, a enrolar o novelo — mais cinzento do que nunca — e não percebeu. Nan inclinou-se e cutucou-a. Estelle deu um pulo.
— É a minha vez, agora? Desculpe. Guy Fawkes. Alguém já falou em Guy Fawkes?
E voltou a enrolar o novelo.
— Um momento — pediu Crestomanci, e parecia que um silêncio cheio de curiosidade crescia na sala. — Pode me falar sobre Guy Fawkes?
Estelle tornou a erguer os olhos. Todos a observaram, perguntando-se se seria ela a bruxa, mas a menina só estava pensando na sua lã.
— Guy Fawkes? — Repetiu. — Ele foi queimado numa fogueira por ter explodido as duas Casas do Parlamento.
— Explodido o Parlamento? — Crestomanci repetiu por sua vez. Simon abriu a boca para dizer que Estelle tinha razão, mas tornou a fechá-la. Estelle assentiu com um gesto. Vários alunos disseram:
— Sim, senhor. Foi isto mesmo!
Crestomanci olhou para o sr. Wentworth, que disse:
— Em 1605, Guy Fawkes entrou escondido no porão das Casas do Parlamento com alguns barris de pólvora, para explodir o Governo e o Rei. Mas parece que ele cometeu um erro; a pólvora explodiu durante a noite e destruiu ambos os prédios sem que ninguém fosse morto. Guy Fawkes saiu ileso, mas foi preso quase que em seguida.
Aquilo soava como todas as outras vezes que o diretor havia narrado a Crestomanci um trecho da História, mas, de um modo qualquer, dessa vez era diferente. Os olhos de Crestomanci tinham um brilho especial, muito forte e negro, e ele olhou diretamente para Nan enquanto comentava:
— Um erro, é? Isto não me surpreende. Esse tal de Fawkes nunca conseguiu fazer alguma coisa direito.
E apontou para Nan.
— Ricardo Coração de Leão — disse ela, pensando: ele já sabe! Guy Fawkes é o motivo por que o nosso mundo ficou diferente. Mas como? Ele vai querer que eu descreva e eu não sei por que...
Ela pensou e pensou, enquanto Crestomanci recolhia personagens históricos, agora desnecessários, do resto da turma. 5 de novembro de 1605. Tudo o que Nan conseguia recordar era alguma coisa que sua mãe dissera um dia, havia muito tempo, antes que os Inquisidores a levassem presa.
Sua mãe dissera que 5 de novembro era o último dia da Semana dos Bruxos. A Semana dos Bruxos começava no Dia dos Bruxos, e aquele dia era o Dia dos Bruxos. Será que isso ajudava? Devia ajudar, embora Nan não conseguisse entender como. Mas sabia que tinha razão, e que Crestomanci havia mesmo encontrado a resposta, por causa da expressão tranqüila e feliz que ele mostrava, parado ao lado do sr. Wentworth.
— Agora vamos revelar o bruxo — ele anunciou.
Estava novamente com ar distraído. Bem devagar ele retirou uma caixinha dourada de um bolso e, se estava olhando para alguém agora, esse alguém era Charles. Nan achou ótimo, pois ele estava dando a ela tempo para raciocinar. Charles, por sua vez, pensava: certo, pode me acusar, mas mesmo assim não vou ajudar.
Crestomanci estendeu a caixa de ouro para que todos pudessem vê-la.
— Este é o detector de bruxos mais moderno que existe. Olhem para ele com atenção.
Charles fez isso, com uma certeza quase que total de que o detector de bruxos era apenas uma cigarreira de ouro.
— Quando eu soltar esta máquina, ela vai mover-se por si só através do ar e vai apontar para todos, um de cada vez, exceto Simon. Quando ela apontar para um bruxo, está programada para produzir um ruído. Quero que o bruxo para o qual ela apontar levante-se e venha ficar ao meu lado.
A turma 2Y, tensa e excitada, ficou de olhos pregados na caixa de ouro. Alguns engoliam em seco, pois a caixa saltara na mão de Crestomanci. Crestomanci soltou-a e ela permaneceu flutuando no ar, oscilando um pouco. Charles ficou furioso, pois estava entendendo tudo: Brian! Brian, invisível, ia carregar a caixa pelo ar. Aquilo foi a gota d’água: se Crestomanci pensava que poderia convencer Charles deixando todo o divertimento para Brian, ele estava redondamente enganado.
A caixa que oscilava ficou em posição vertical. Charles viu que uma fresta minúscula abriu-se por um segundo na borda superior, quando Brian deu uma rápida olhadela para ver se era mesmo uma cigarreira. Era: Charles viu de relance cigarros brancos dentro dela.
— Pode ir — Crestomanci disse ao objeto.
A caixa de ouro fechou-se com um estalido forte, fazendo com que todos se sobressaltassem, e depois aproximou-se com rapidez da primeira carteira. Parou na altura da cabeça de Ronald West e soltou um assobio agudo. Todos tornaram a se sobressaltar, inclusive Ronald e a caixa de ouro.
— Venha até aqui — Crestomanci ordenou.
Ronald, parecendo atônito, saiu da carteira e foi aos tropeços na direção de Crestomanci.
— Eu nunca...! — Protestou.
— Você é, sim, e sabe disso — Crestomanci afirmou. E ordenou à caixa de ouro: — Continue.
Com certa hesitação a caixa aproximou-se de Geoffrey Baines. E tornou a assobiar. Crestomanci chamou-o com um gesto e Geoffrey aproximou-se, pálido, mas sem protestar.
— Como foi que ela soube? — perguntou em tom desanimado.
— Tecnologia moderna — Respondeu Crestomanci.
Dessa vez a caixa de ouro partiu sem que Crestomanci ordenasse. Ela assobiava, movia-se, tornava a assobiar. Aluno após aluno levantava-se com ar infeliz e ia para a frente da sala. Charles achou que se tratava de um truque sujo; Crestomanci estava apenas tentando deixá-lo descontrolado. A caixa estava agora ao lado de Lance Osgood. Todos imaginavam que ela iria assobiar, e ficaram esperando. A caixa permaneceu ao lado de Lance, até Lance ficar com os olhos vesgos de tanto olhar para ela. Mas nada aconteceu.
— Continue. Ele não é bruxo — disse Crestomanci.
A caixa moveu-se para Dan Smith. Ali, ela soltou o assobio mais longo e mais alto de todos. Dan ficou branco.
— Eu disfarcei muito bem! — Ele protestou.
— Para cá — Crestomanci limitou-se a dizer. Dan levantou-se devagar.
— Não é justo! Estou com dor de barriga.
— Sem dúvida é bem merecida — Crestomanci comentou. — Pelo assobio, você usou bruxaria há pouco tempo. Que foi que fez?
— Só escondi um par de tênis de corrida — Dan resmungou. Ele não olhou para Charles enquanto descia o corredor entre as carteiras. Charles também não olhou para Dan. Ele estava começando a entender que Crestomanci não estava fingindo que as pessoas eram bruxas.
A essa altura, a frente da sala estava apinhada de gente. Em seguida a caixa foi até Nirupam, que já estava à espera dela. A caixa assobiou ainda mais alto para ele do que para Dan. No momento em que ela fez isso, Nirupam levantou-se e foi depressa, com passos longos, para a frente da sala, para que Crestomanci não lhe perguntasse qual bruxaria ele fizera. Então a caixa chegou a Charles e o assobio foi ensurdecedor.
— Está bem, está bem! — Charles resmungou.
Também ele foi devagar para a frente da sala. Então Crestomanci estava sendo justo, mas era óbvio que ainda estava tentando dar uma lição a Charles desvalorizando a sua bruxaria. Charles olhou em volta, para as outras pessoas paradas na frente da sala. Ele sabia que a sua magia era a mais poderosa da turma. E queria conservá-la.
Ainda havia mil coisas que ele poderia fazer com ela. Não desejava fundir-se a outro mundo, mesmo que lá os bruxos não fossem queimados. Charles contemplou a sua bolha; quanto a ser queimado, ele havia descoberto que até gostava de sentir medo, depois que se acostumara a isso. Fazia a vida ficar interessante.
Enquanto isso, a caixa de ouro seguira Charles pelo corredor e apontara para Delia. Fez-se silêncio; Delia nem sequer tentou esconder o seu sorriso de superioridade. Mas esse sorriso apagou-se do seu rosto quando a caixa moveu-se para Theresa e soltou um assobio curto e claro.
Theresa levantou-se, perguntando, escandalizada:
— Quem, eu?
— Uma bruxa fraquinha, de terceira categoria, só isso — disse Crestomanci em tom de consolo.
Aquilo não consolou Theresa, nem um pouquinho. Pelo contrário: ela achava que, já que era bruxa, deveria pelo menos ser uma bruxa de primeira categoria. De qualquer maneira aquilo era uma vergonha. Theresa ficou ainda mais zangada foi quando a caixa moveu-se para Karen e não assobiou. Mas ficou igualmente furiosa quando a caixa continuou seu caminho e assobiou para Heather, Deborah e todas as outras amigas suas. Theresa ficou ali parada com uma horrível confusão de sentimentos.
Então a caixa assobiou para Estelle também. Theresa levantou a cabeça com raiva, mas Estelle pôs-se de pé com um sorriso.
— Ah, que bom! Sou bruxa!
E foi dançando para a frente da sala, com um sorriso que lhe tomava o rosto inteiro.
— Certas pessoas... — Theresa comentou em tom pouco convincente.
Estelle não se importou. Ela riu quando a caixa assobiou bem alto para Nan e Nan veio pensativa juntar-se aos outros.
— Acho que a maioria das pessoas no mundo são bruxas — Estelle cochichou-lhe.
Nan assentiu; sabia que aquilo era verdadeiro. Tinha certeza de que aquilo combinava com todas as outras coisas que Crestomanci havia descoberto, mas ainda não conseguia pensar numa explicação para isso.
Sobraram quatro pessoas espalhadas pela sala. Todas as quatro, até mesmo Simon, ostentavam uma expressão irritada e ofendida.
— Não é justo! — Karen protestou.
— Pelo menos nós não vamos para a fogueira — Delia comentou.
Crestomanci fez um gesto chamando a caixa, que veio pelo corredor e colocou-se na mão dele. Crestomanci tornou a guardá-la no bolso enquanto olhava em volta para o grupo de bruxos. Ignorou Charles; havia desistido dele. Olhou para Nan e depois para o sr. Wentworth, que estava pressionado de encontro à porta pelo grande número de pessoas.
— Bem, Wentworth, isto parece bastante promissor, não é mesmo? — Crestomanci comentou, dirigindo-se ao professor. — Temos aqui uma boa quantidade de bruxaria que poderemos utilizar. Sugiro que façamos a coisa agora. Se Nan estiver preparada para explicar a todos...
Nan estava tudo, menos preparada. Ia dizer isso quando a porta da sala de aula foi aberta com violência e o sr. Wentworth foi empurrado para o lado. E a srta. Cadwallader postou-se no lugar dele, rígida, ereta e tensa de raiva.
— Que é que vocês todos estão fazendo, 2Y? — perguntou. — De volta aos seus lugares com a maior rapidez!
O sr. Wentworth encontrava-se atrás da porta, pálido e trêmulo. Todos olharam hesitantes para Crestomanci. Ele ficou distraído outra vez. Então todos tomaram a atitude prudente e voltaram depressa para as suas carteiras. Enquanto faziam isso, três outras pessoas entraram na sala atrás da srta. Cadwallader.
A srta. Cadwallader enfrentou Crestomanci com expressão de raiva e triunfo.
— Senhor Chant, o senhor é um impostor — ela declarou. — Aqui está o verdadeiro Inquisidor. O Inquisidor Littleton.
Ela deu um passo para o lado e fechou a porta, para que todos pudessem ver o Inquisidor.
O Inquisidor Littleton era um homem baixo que usava um terno de finas listras azuis. Tinha, a cada lado, um homenzarrão envergando a farda negra da Inquisição. Cada um desses homens enormes tinha um coldre, um cassetete e um chicote enrolado no cinto. Ao vê-los, o dedo queimado de Charles dobrou-se e escondeu-se dentro da mão fechada como um segredo culposo.
— Se fizer um só gesto, ordenarei que atirem no senhor! — O Inquisidor Littleton declarou a Crestomanci.
Sua voz era ríspida; seus olhos pequenos e úmidos, no rosto miúdo e banal, coberto de brilhantes veias vermelhas, encaravam Crestomanci com raiva. Seu terno azul não lhe caía muito bem, como se algum tempo depois que ele fora comprado o Inquisidor Littleton houvesse encolhido e endurecido, assumindo uma forma nova, densa de poder.
— Boa tarde, Inquisidor — Crestomanci cumprimentou educadamente. — Eu estava mais ou menos esperando o senhor. — Olhou para Simon por cima do ombro. — Faça um gesto afirmativo, se eu estiver correto — disse. — Você disse que um Inquisidor estaria aqui antes do almoço?
Simon, com expressão perturbada, fez um gesto de assentimento, e o Inquisidor Littleton apertou os olhinhos úmidos.
— Então foi bruxaria que fez o meu carro enguiçar? — Perguntou. — Eu sabia!
O Inquisidor segurou nas mãos uma caixa preta que ele trazia a tiracolo, apontou-a para Crestomanci e girou um botão. Todos viram o violento espasmo dos mostradores no topo da caixa.
— Foi o que pensei. Ele é bruxo — o Inquisidor Littleton anunciou, e apontou com o queixo para o sr. Wentworth. — Agora me tragam aquele ali.
Um dos homenzarrões estendeu uma mão enorme e arrastou o sr. Wentworth de perto da porta facilmente, como se ele fosse um espantalho recheado de palha. A srta. Cadwallader parecia sentir vontade de protestar contra isso, mas desistiu, sabendo que seria inútil. O Inquisidor apontou sua caixa preta para o sr. Wentworth.
Antes que ele pudesse girar o botão, a caixa preta foi arrancada das suas mãos. Arrastando atrás de si a tira quebrada, ela correu do Inquisidor para Crestomanci.
— Acho que isto foi um erro, Brian — Crestomanci afirmou. Ambos os homens enormes empunharam suas pistolas. O Inquisidor Littleton recuou e apontou para Crestomanci. Tinha o rosto vermelho e cheio de uma estranha mistura de ódio, horror e prazer.
— Olhem para isto! Ele tem um demônio para servi-lo! — Gritou. — Ah, agora peguei você!
Crestomanci parecia quase irritado. Disse:
— Meu bom homem, de fato, esta é uma dedução muito ignorante. Só um mago inferior se rebaixaria a usar um demônio.
— Eu não sou um demônio! Sou Brian Wentworth! — Gritou a voz estridente de Brian.
Delia gritou. O homem enorme que não estava segurando o sr. Wentworth parecia ter perdido a coragem; cheio de medo no olhar, ele segurou a pistola nas duas mãos e apontou-a para a caixa preta.
— Jogue-a! — Crestomanci ordenou.
Brian obedeceu. A caixa preta voou na direção da janela. O homenzarrão, confuso, manteve-a na mira da sua pistola e atirou. Houve um tremendo estrondo, e dessa vez algumas pessoas gritaram. A caixa preta explodiu numa confusão de fios e placas de metal, e metade da janela ficou destruída. Uma rajada de chuva entrou por ela.
— Seu imbecil! — Gritou o Inquisidor Littleton. — Era o meu detector de bruxos mais moderno, último modelo! — Olhou com raiva para Crestomanci. — Está certo. Basta desta comédia nojenta. Agarre-o para mim.
O homem enorme tornou a guardar a pistola no coldre e marchou na direção de Crestomanci. Nirupam depressa estendeu um braço comprido.
— Por favor. Só um momento. Tenho a impressão de que a senhorita Cadwallader também pode ser bruxa.
Imediatamente todos olharam para a srta. Cadwallader, que disse:
— Como é que ousa, criança?
Mas estava tão pálida quanto o sr. Wentworth.
E Nan percebeu que aquele era o momento de intervir. Não tinha certeza de como faria isso, mas de qualquer maneira ficou de pé num movimento rápido, com tanta pressa que quase derrubou sua carteira, como Estelle havia feito. Todos olharam para ela. Nan sentia-se péssima. Por um longo, longo momento ela continuou parada ali, sem um fiapo de autoconfiança para ajudá-la. Mas sabia que não poderia apenas tornar a sentar-se. E começou a falar.
— Só um momento — disse. — Antes que façam outra coisa, preciso lhes falar de Guy Fawkes. Ele é o motivo pelo qual quase todos neste mundo são bruxos, sabiam? A principal coisa sobre ele é que Fawkes era aquele tipo de homem que nunca conseguia fazer alguma coisa direito. Tinha boa intenção, mas era um fracassado...
— Façam esta garota calar a boca! — Ordenou o Inquisidor Littleton com sua voz ríspida e autoritária.
Nan olhou para ele, nervosa, e depois para os dois homenzarrões. Nenhum deles se moveu. Na verdade, ela agora percebia que todos pareciam estar pregados e paralisados onde estavam quando ela se levantara. Nan olhou para Crestomanci; ele estava olhando, distraído, para o vazio e dava a impressão de não estar fazendo coisa alguma, mas Nan de repente teve certeza de que Crestomanci, de um modo qualquer, estava segurando tudo no mesmo lugar para lhe dar a oportunidade de falar. Aquilo fez com que ela se sentisse muito melhor.
Enquanto olhava em volta, ela havia continuado a falar, explicando sobre a Conspiração da Pólvora e o erro que os conspiradores cometeram ao escolher Guy Fawkes para efetuar a explosão. Agora, ao que parecia, ela ia começar a explicar sobre os outros mundos.
— Há um número incrível de Guy Fawkes num número incrível de mundos — ela escutou-se dizer. — E ele fracassou em todos eles. Algumas pessoas são assim mesmo. Há milhões de outros mundos, sabiam? As grandes diferenças são criadas nos grandes acontecimentos da História, como quando uma batalha é ganha ou perdida. Ambas as coisas não podem acontecer num único mundo, de modo que um mundo novo se separa e daí em diante fica diferente. Mas existem muitos tipos de coisas menores que também podem correr de duas maneiras opostas e que não fazem um mundo se dividir. Na certa todos vocês já tiveram aqueles tipos de sonhos que são como a vida real, mas onde muitas coisas não são as mesmas, e parece que neles a pessoa conhece o futuro. Bom, isto é porque esses outros mundos onde duas coisas podem acontecer nasceram do nosso mundo como um arco-íris, e de certa forma fluem para dentro um do outro...
Nan encontrou-se admirando essa sua descrição. Ela agora estava inspirada e poderia falar durante horas. Mas não havia muito sentido nisso, a não ser que ela conseguisse convencer o resto da 2Y a fazer alguma coisa. Todos se limitavam a encará-la com atenção.
— Ora, o nosso mundo, na verdade, devia ser apenas uma faixa do arco-íris de outro mundo — continuou. — Mas não é. E vou lhes contar por que, de modo que todos nós juntos possamos fazer alguma coisa a respeito disso. Eu lhes disse que Guy Fawkes era um fracassado. Bom, o problema era que ele sabia, e por causa disso ficava muito nervoso, porque queria fazer pelo menos uma coisa certa e explodir as duas Casas do Parlamento. Ficava passando na mente todas as coisas que poderiam sair errado: ele poderia ser traído, ou a pólvora poderia estar úmida, ou a sua vela apagaria, ou o seu pavio não acenderia. Ele pensou em todas as possibilidades, todas as coisas que fazem os arco-íris de mundos não tão diferentes entre si. E no meio da noite ele ficou tão nervoso que foi acender o pavio, só para se certificar de que ele acenderia. Guy Fawkes não estava raciocinando que 5 de novembro, o dia em que ele estava fazendo isso, era o último dia da Semana dos Bruxos, quando existe tanta magia solta no mundo que todo tipo de coisas esquisitas acontecem...
— Alguém quer silenciar esta menina? — Gritou o Inquisidor Littleton.
Seu grito fez Charles dar um pulo. Durante todo esse tempo ele estava ocupado tentando entender o que estava sentindo. Tinha a impressão de estar de novo dividido em dois, porém dentro de si mesmo, onde não aparecia. Metade dele estava simplesmente apavorada; era como se ela houvesse sido enterrada viva, num desespero gritante e encarcerado. A outra metade estava danada da vida, com ódio de Crestomanci, da srta. Cadwallader, da 2Y, do Inquisidor Littleton — de tudo.
Agora, quando o Inquisidor Littleton falou de repente com sua voz alta e estridente, Charles ergueu os olhos para ele. Era um homenzinho de rosto estúpido, num terno azul que não lhe servia, e gostava de prender bruxos.
Charles encontrou-se outra vez relembrando o seu primeiro bruxo: o homem gordo que parecia tão espantado por estar amarrado numa fogueira. E de repente ele compreendeu: o espanto do bruxo era pelo fato de que uma pessoa tão banal, tão estúpida como o Inquisidor Littleton, tivesse o poder de mandar queimá-lo numa fogueira. E aquilo era totalmente errado.
— Ora, vamos, todos vocês! — disse Nan. — Não estão entendendo? Quando Guy Fawkes acendeu aquele pavio, isso criou uma nova gama de possibilidades de arco-íris. No nosso mundo correto, o mundo ao qual deveríamos pertencer, o pavio devia apagar-se logo em seguida, e o Parlamento ficaria inteiramente seguro. Mas, uma vez que o pavio foi aceso, o vigia noturno poderia ter sentido o cheiro dele, ou Guy Fawkes poderia tê-lo apagado com água, ou poderia acontecer a coisa que fez de nós todos o que somos: Guy Fawkes poderia ter pisado no pavio para apagá-lo, porém deixando uma pequena fagulha, que continuou queimando em direção aos barris de pólvora...
— Eu mandei que calassem a boca desta menina! — Insistiu o Inquisidor Littleton.
Charles estava outra vez inteiro. Olhou do Inquisidor para Crestomanci, que nesse momento não tinha aparência tão elegante. Seu terno estava amarrotado, como se ele tivesse caído dentro da roupa, e o rosto estava pálido e encovado. Charles via a transpiração em sua testa. E entendeu que Crestomanci estava fazendo um esforço desmedido para, de alguma forma, segurar o mundo inteiro na imobilidade, para dar tempo a Nan de convencer a 2Y a reunir a magia de todos para mudá-lo.
Mas os alunos da 2Y continuavam sentados como bonecos. Havia sido por essa razão que o Inquisidor Littleton recomeçara a falar. Decerto ele era uma dessas pessoas que é muito difícil manter em silêncio, e Crestomanci havia precisado liberá-lo para poder ter forças e segurar todo o resto.
— Quer calar a boca, garota! — Insistiu o Inquisidor Littleton. Nan continuou:
— E Bum! O Parlamento explodiu, mas sem ninguém dentro. Não foi muito importante, porque nem mesmo Guy Fawkes morreu. Mas lembrem-se, era a Semana dos Bruxos. Aquilo tornou a explosão muito pior do que deveria ter sido. Nela, toda esta faixa de arco-íris onde estamos agora, e toda a magia das redondezas, foi explodida para fora do resto do mundo, como uma espécie de lasca comprida e colorida. Mas não se soltou inteiramente; ainda estava presa ao resto do arco-íris pelas duas pontas. E é assim que está até hoje. E nós poderíamos colocar tudo no lugar, se pelo menos conseguíssemos fazer com que a explosão jamais tivesse acontecido. E como hoje é Dia dos Bruxos, e há ainda mais magia do que o normal...
Charles viu que Crestomanci estava começando a tremer. Ele parecia exausto. Naquele ritmo, Crestomanci não teria força suficiente para colocar a lasca do mundo deles no lugar apropriado. Charles ficou de pé num salto. Queria pedir desculpas, pois era óbvio que uma pessoa com poderes como os de Crestomanci conseguiria com facilidade apenas ir embora no momento em que o Inquisidor Littleton chegou, mas em vez disso ele havia escolhido ficar e ajudá-los. Mas o pedido de desculpas teria que esperar; Charles sabia que precisava fazer alguma coisa — e, graças a Nan, ele sabia o que era.
— Sente-se, menino! — ordenou o Inquisidor Littleton. Charles não lhe deu atenção; lançou-se para o outro lado do corredor entre as carteiras e agarrou Simon Silverson pela lapela do paletó.
— Simon, diga o que Guy Fawkes fez. Depressa!
Simon olhou para Charles sem compreender. Sacudiu a cabeça e apontou para a própria boca.
— Vamos, fale, seu idiota! — Charles insistiu, pondo-se a sacudir o colega.
Simon manteve a boca fechada; estava com medo de dizer qualquer coisa. Era como um pesadelo.
— Diga o que Guy Fawkes fez! — Charles gritou com ele. Então desistiu de sacudir Simon e jogou bruxaria sobre ele para obrigá-lo a dizer. E Simon apenas sacudia a cabeça. Nirupam entendeu o sentido daquilo.
— Diga, Simon! — Pediu.
E isso fez com que o resto da 2Y compreendesse o que Charles estava tentando fazer.
Todos ficaram de pé sobre seus assentos e puseram-se a gritar com Simon:
— Diga Logo, Simon!
O sr. Wentworth pôs-se a gritar também. E a voz de Brian juntou-se ao coro. A magia atacava Simon por todos os lados, e até mesmo Karen e Delia gritavam com ele. Nan juntou-se à gritaria. Ela estava borbulhando de orgulho e alegria. Havia conseguido aquilo somente descrevendo o que acontecera. Era tão gostoso quanto a bruxaria.
— Diga Logo, Simon! — Gritavam todos. Simon abriu a boca.
— Eu... ah, me deixem em paz!
Ele estava aterrorizado com o que poderia acontecer, mas, uma vez tendo começado a falar, toda aquela magia que o atacava foi demais para ele.
— Ele... ele... Guy Fawkes explodiu as Casas do Parlamento.
Imediatamente tudo começou a ondular.
Era como se o mundo houvesse se transformado numa vasta cortina que caía em pregas, com cada prega ondulando para dentro e para fora. Também as carteiras, as janelas, as paredes e as pessoas mostravam-se pregueadas e as ondulações as atravessavam, a tal ponto que todos sentiram que estavam sendo feitos em pedaços. Mas as ondulações eram tão fortes e abruptas que a cada instante todos conseguiam enxergar até o fundo das pregas.
As partes externas das pregas, juntas, formavam a sala de aula que todos ali conheciam, com o Inquisidor e seus homens enormes na mesma prega que a srta. Cadwallader, e Crestomanci em outra prega ao lado deles; as partes internas das pregas formavam um outro lugar.
Charles tomou consciência de que, se pretendia pedir desculpas a Crestomanci, era melhor que fizesse isso logo. Virou-se para começar, mas as pregas já haviam ficado planas com as parte de dentro viradas para fora, e nada era mais a mesma coisa.
— Sinto muito, senhor professor — disse um dos meninos. Por mais incrível que pareça, o seu tom de voz era de quem falava com sinceridade.
O sr. Crossley teve um sobressalto e perguntou-se se teria adormecido. Parecia ter sido vítima daquele tipo de estremecimento que faz a pessoa dizer: “Alguém andou por cima da minha sepultura”. Ergueu os olhos dos cadernos que estava corrigindo.
O zelador estava na sala de aula. Qual era mesmo o nome dele? Ele tinha uma voz estridente e um monte de opiniões idiotas. Littleton, era isso. Ao que parecia, Littleton estava recolhendo cacos de vidro. O sr. Crossley ficou perplexo, pois não se lembrava de uma vidraça ter se estilhaçado. Quando, porém, ele virou-se para as janelas, viu que uma delas havia sido substituída pouco tempo antes, com muita massa e várias impressões digitais.
— Pronto, senhor Crossley. Está tudo limpo — disse o sr. Littleton.
— Obrigado, Littleton — respondeu o sr. Crossley em tom frio.
Se permitisse que Littleton começasse a falar, ele permaneceria ali e tentaria dar aula à turma. O sr. Crossley observou o zelador recolher suas coisas e recuar porta afora. Ainda bem!
— Obrigado, Charles — disse alguém.
O sr. Crossley virou-se num impulso e deparou com um total desconhecido na sala de aula. Aquele homem era alto, tinha aparência cansada, e parecia, pelos seus trajes, estar a caminho de um casamento. O sr. Crossley deduziu que devia ser um membro do Conselho da escola e fez menção de ficar de pé educadamente.
— Ah, por favor, não se levante. Estou de saída — disse Crestomanci, e dirigiu-se para a porta. Antes que saísse por ela, ele olhou para a turma 2Y e declarou: — Se algum de vocês precisar de mim outra vez, um recado para a Casa do Antigo Portão com certeza me alcançará.
A porta fechou-se atrás dele e o sr. Crossley voltou a dedicar-se às suas correções. Então parou; havia um bilhete no alto do caderno do topo da pilha. Ele sabia que aquele bilhete não estava ali antes. Havia sido escrito com uma caneta esferográfica azul comum, em letras de imprensa maiúsculas, e dava ao sr. Crossley uma estranhíssima sensação de já ter passado pela mesma situação antes.
Por que seria? Ele na certa havia cochilado e sonhado. Sim: agora que o sr. Crossley pensava sobre isso, ele tivera mesmo um sonho muito estranho. Havia sonhado que ensinava num horrível colégio interno chamado Internato de Larwood. Com o olhar pensativo ele contemplou, agradecido, as cabeças inclinadas e atarefadas dos alunos da 2Y.
Aquela era, como ele sabia muito bem, a Escola Integrada Carvalhos de Portway, e todo o mundo ia para casa todas as tardes. Graças aos céus! O sr. Crossley detestava a idéia de ensinar num colégio interno: a pessoa nunca saía do ambiente de trabalho!
Ficou imaginando quem teria escrito o bilhete. E então, enquanto seus olhos percorriam a sala de aula, ele teve uma sensação momentânea de choque. Muitos rostos não haviam figurado no seu sonho. Ele lembrava-se de um grupinho de meninas muito chatas: Theresa Mullett, Delia Martin, Heather de tal, Karen qualquer coisa. Nenhuma delas estava lá. Nem Daniel Smith.
Ah, mas... O sr. Crossley agora se lembrava: Dan Smith deveria estar ali. Ele se encontrava no hospital: dois dias antes, o burro do garoto havia engolido um punhado de travas de metal, dessas que se encontram na sola dos tênis de corrida, por causa de uma aposta. No princípio ninguém havia acreditado que ele fizera mesmo isso. Mas quando o sr. Wentworth, o diretor, colocara Dan em seu carro e o levara para ser radiografado, lá estava ele, com a barriga cheia de pedacinhos de metal. Como alguns meninos eram idiotas!
E ali estava outra coisa esquisita no sonho do sr. Crossley: ele havia sonhado que a srta. Cadwallader era a diretora da escola, no lugar do sr. Wentworth! Loucura completa. O sr. Crossley sabia que a srta. Cadwallader era a dama que dirigia a Escola Feminina da Casa do Portão, onde Eileen Hodge era professora. Pensando bem, decerto era por isso que ele havia sonhado com Theresa Mullett e suas amigas: vira o rosto delas a observá-lo na fila de meninas empertigadas que caminhavam atrás de Eileen Hodge.
E agora o sr. Crossley lembrava-se de mais uma coisa, que quase o fez esquecer o seu sonho e o bilhete misterioso: Eileen Hodge enfim concordara em sair com ele. Ele iria buscá-la na terça-feira, porque ela ia viajar no feriado. Finalmente ele estava conseguindo alguma coisa!
Mas mesmo esse prazer era perpassado pelo sonho e pelo bilhete, que ficavam a azucrinar o sr. Crossley. Por que deveria preocupar-se com quem havia escrito o bilhete? Ele olhou para Brian Wentworth, sentado ao lado do seu grande amigo Simon Silverson. Os dois estavam rindo de alguma coisa. O bilhete era, decerto, uma das brincadeiras de Brian. Mas podia muito bem ser algum plano maquiavélico orquestrado por Charles Morgan e Nirupam Singh. O sr. Crossley olhou para esses dois.
Charles retribuiu o olhar do sr. Crossley por cima dos óculos e acima da folha de papel na qual ele deveria estar escrevendo. O que sabia o sr. Crossley? O trabalho de Charles não passara do título: “Poema do Dia dos Bruxos”. O de Nirupam também não. No chão entre eles havia um par de tênis de corrida e, enchendo-os de admiração, um nome marcado nos calçados: “Daniel Smith”. Ambos sabiam que Dan não possuía tênis de corrida. No entanto, Smith não era lá um nome incomum, porém... Ambos estavam às voltas com estranhas lembranças duplicadas.
Charles estranhava particularmente a sensação de alívio e de paz que experimentava. Sentia-se tranqüilo por dentro. Sentia-se também bastante faminto. Uma parte da sua lembrança dizia-lhe que isso se devia ao fato de Brian Wentworth ter comido, quando estava invisível, a metade do seu almoço; a outra parte sugeria que era porque o clube de xadrez ocupara a maior parte da hora do jantar. E ali estava uma coisa estranha: até esse momento Charles tinha a intenção de ser um grande mestre do xadrez, e agora essas lembranças duplas fizeram com que ele mudasse de idéia.
Alguém — cujo nome ele não conseguia recordar nesse momento — lhe sugerira que ele teria um talento muito grande para alguma coisa, e não era para o xadrez, Charles agora tinha certeza disso. Talvez ele se tornasse um inventor. De qualquer maneira, a metade da sua memória que continha o clube de xadrez, e que parecia ser a metade importante, sugeria que ele corresse para chegar em casa mais cedo e comesse o resto do cereal antes que sua irmã Bernadine devorasse tudo.
— Guy Fawkes — Nirupam murmurou.
Charles não sabia se Nirupam estava se referindo a bruxaria ou à idéia de Dan Smith para o feriado: confeccionar um boneco de Guy Fawkes para a tradicional malhação. Eles pretendiam recolher dinheiro para o boneco usando Nirupam como modelo. Nirupam, na velha cadeira de rodas dos Morgan, fazia um belo boneco, magro e flácido. Agora os dois se perguntavam se teriam coragem de fazer isso sozinhos, sem Dan para incentivá-los.
— Por que você tinha que apostar com Dan que ele não conseguiria comer as travazinhas? — Charles cochichou para Nirupam.
— Porque não imaginava que ele fosse fazer isso! — Nirupam respondeu em tom irritado. Ele tivera grandes problemas com o sr. Wentworth por causa daquela aposta. — Será que vamos conseguir que Estelle e Nan me empurrem?
— Elas são meninas — Charles objetou.
Mas ficou estudando essa idéia enquanto sublinhava “Poema do Dia dos Bruxos” em tinta vermelha, desenhando gotas de sangue. Aquelas duas até que podiam muito bem fazer isso. Enquanto pintava a última gota de sangue, ele percebeu uma bolha num dos dedos. A essa altura ela chegara ao estágio de plana, branca e vazia. Charles com capricho pintou-a de vermelho-vivo; não tinha certeza de que queria esquecer as coisas tão depressa.
O sr. Crossley ainda estava estudando o bilhete. Podia ser outro produto da imaginação de Nan Pilgrim. Nan, como sempre, desde que chegara à escola, tendo vindo de Essex no início do período letivo, estava sentada ao lado de Estelle Green. Eram unha e carne, aquelas duas. Uma boa coisa, porque Estelle costumava ser bem solitária antes da chegada de Nan.
Nan olhou de relance para o sr. Crossley e tornou a baixar os olhos para a sua caneta correndo sobre o papel. Fascinada, ela leu:
“E, nesta faixa do arco-íris, Guy Fawkes pisou no pavio para apagá-lo, mas uma diminuta fagulha permaneceu acesa. A fagulha foi queimando o pavio até atingir os barris de pólvora. Bum!”
— Estelle! Olhe só para isto!
Estelle inclinou se para a frente, leu e arregalou os olhos
— Sabe o que eu acho? — Cochichou — quando você crescer e virar escritora, e escrever livros, vai pensar que está inventando os livros, mas na verdade eles serão verídicos em algum lugar. — Ela suspirou. — O meu poema vai ser sobre um grande mago.
De repente o sr. Crossley perguntou-se por que estava preocupado com o bilhete. Era só uma brincadeira, afinal de contas. Ele pigarreou, e todos ergueram os olhos esperançosos. O professor anunciou:
— Parece que alguém me mandou um bilhete de Dia dos Bruxos.
E leu o bilhete em voz alta:
“Alguém Nesta Turma é Bruxo.”
A turma 2Y considerou isso uma notícia esplêndida. Muitas mãos se levantaram em toda a sala, como um canteiro de brotos de feijão.
— Sou eu, senhor Crossley!
— Senhor Crossley, eu sou o bruxo!
— Eu posso ser o bruxo, senhor Crossley?
— Eu, senhor Crossley, eu, eu, eu!
Diana Wynne Jones
O melhor da literatura para todos os gostos e idades