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A SEMENTE DO DIABO / Ira Levin
A SEMENTE DO DIABO / Ira Levin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SEMENTE DO DIABO

(O bebê de Rosemary)

 

Quando Rosemary e Guy resolveram alugar um apartamento no Bramford, não foram poucos os amigos que ten­taram dissuadi-los. A velha fachada vitoriana, com sua confusão de ‘estilos arquitetônicos onde até gárgulas havia, ocultava tragédias e mistérios que a crônica policial dos jornais já esquecera, mas que permaneciam vivos na memó­ria de muita gente. “É um edifício azarento. Fujam dele!” — recomenda­vam ao jovem casal.

     Mas Rosemary e Guy não davam importância a crendices. “Qual o edi­fício de apartamentos que não foi pal­co de uma ou outra tragédia?” — res­pondiam eles aos assustados e aos pes­simistas. Recém-casados, sadios, feli­zes, tinham diante de si a vida, o fu­turo. Por que pensar no passado, na morte?

     Além disso, com ou sem tragédia, o Bramford lhes oferecia a oportunidade de morar num apartamento amplo e de boa presença sem que precisassem pa­gar aluguel elevado. Guy era artista de teatro em começo de carreira, e as coisas não andavam muito bem para o seu lado, em matéria de dinheiro.

       Instalaram-se nele, cheios de proje­tos para o futuro. Rosemary, tendo abandonado o quarto-e-sala onde ha­viam morado até então, estava radian­te. Era um passo à frente, um degrau para cima! Os dias, as semanas se pas­saram. E o Bramford, apesar da ma­ledicência e das sombrias lendas, era para eles o paraíso.

       Pouco a pouco, no entanto, sem que se dessem conta, os dois começaram a ser envolvidos num estranho enredo, em malhas sinistras que, sob a aparên­cia da mais banal realidade, pouco a pouco levariam o jovem casal à mais aterrorizante experiência que um ser humano possa viver.

       O estranho enredo em breve se transformaria numa seqüência de tra­gédias, tão brutais quanto inexplicáveis.

       O que teria levado a bela e jovem vizinha, tão amável e sorridente na vés­pera, quando conversara com Rosema­ry, a suicidar-se de maneira tão horrí­vel? Que misterioso desígnio abria as portas do sucesso para a carreira de Guy, à custa da súbita cegueira do ator que ele teve de substituir? — Por que a violência daquela noite de amor, da qual Rosemary sairia ferida física e moralmente? — E o que dizer do mis­terioso colapso que torna mudo e pa­ralítico o maior amigo de Rosemary, precisamente o que mais se voltara con­tra a mudança deles para o Bramford?

     Rosemary acaba descobrindo tudo. Mas já era tarde demais. Terrivelmen­te tarde! Pobre borboleta, presa em teia sobrenatural, quanto mais se debatia mais enredada ficava...

     O leitor também se debaterá, tam­bém ficará preso, também suará trio como Rosemary. Mas a tragédia, bru­tal, chocante, insólita, não largará ne­nhum dos dois. Viverá com eles para sempre. Para sempre!...

 

 

Guy E Rosemary Woodhouse já tinham assinado o contrato de locação de um apartamento de cinco peças num prédio branco e quadrado na Primeira Avenida quando rece­beram telefonema de uma tal Sra. Cortez, notificando-os es­tar disponível, no Edifício Bramford, um de quatro cômodos. Embora o prédio fosse velho, escuro e de proporções elefan­tinas, os apartamentos do Bramford eram muito cobiçados em virtude de seu pé direito alto, lareiras imensas e do es­merado acabamento vitoriano. Guy e Rosemary estavam na lista de espera desde seu casamento, mas a demora fora tanta que tinham acabado por desistir.

Guy, sem desligar o telefone, transmitiu a notícia a Ro­semary que gemeu: — Ah! Esta não!

       — Sinto muito — respondeu Guy voltando ao telefone mas acabamos de assinar o contrato de outro apartamen­to. Rosemary interrompeu, puxando-o pelo braço. — Será que não podemos dar um jeito? Inventar uma desculpa qualquer?

—  Espere um minuto, Sra. Cortez. Guy encostou o fone ao peito, perguntando: — Que tipo de desculpa aceita­riam eles?

—  Sei lá. Talvez a verdade: que conseguimos o tão esperado apartamento no Bramford.

—  Ora, meu bem! Seja realista. Não iriam ligar o mí­nimo para isso.

—  Você bolará algo na hora, Guy. Vamos ao menos dar uma olhada. Diga logo que queremos vê-lo antes que ela desligue e passe para o candidato seguinte.

—  Ro, por favor, procure entender: já assinamos o con­trato e pagamos um depósito. Não vejo saída.

—  Pelo amor de Deus, olhe que ela vai desligar. Ge­mendo e fingindo grande aflição, Rosemary procurou agarrar o fone e levá-lo à boca de Guy que, rindo, deu-se por ven­cido. — Sra. Cortez, talvez consigamos nos livrar do con­trato anterior, pois não o assinamos em definitivo. Assumi­mos só um compromisso. Poderemos ver o apartamento?

A Sra. Cortez deu-lhes as instruções: deveriam ir ao Edifício Bramford entre onze e onze e meia, procurar pelo Sr. Micklas ou o Sr. Jerome e dizer-lhes que tinham sido enviados por ela para ver o apartamento 7 E. Deu seu número para que depois lhe telefonassem.

—  Viu? Quando você quer, sempre encontra uma saí­da. Mente com grande classe!

—  Precisamos pensar bem, Rosemary. O apartamento só tem quatro peças. Não vai dar para um quarto de crianças.

—  Prefiro mil vezes um apartamento pequeno no Bramford do que um andar inteiro naquela penitenciária branca.

—  Engraçado, ainda ontem você a adorava.

—  Adorava, não. Aceitava. Aquilo não poderia ser adorado nem pelo arquiteto que o projetou. Quando e se as crianças chegarem, faremos uma sala de jantar num canto do liuing.

—  Vamos ver, disse Guy, preparando-se para fazer a barba e examinando-se demoradamente no espelho com seus grandes olhos castanhos. — Jesus! Uma espinha!

—  Cuidado! Não esprema, disse Rosemary enfiando um vestido amarelo e sapatos da mesma cor enquanto Guy passava o barbeador elétrico no rosto.

Estavam no apartamento que tinha sido a residência de Guy em solteiro. Era uma sala-quarto decorada com carta­zes coloridos de Paris e Verona, tendo por mobiliário um sofá-cama e um armário. Completavam a peça um minús­culo banheiro e uma quitinete embutida.

Era terça-feira, dia três de agosto.

O   Sr. Middas era um-homenzinho ágil e elegante. O fato de lhe faltarem dedos em ambas as mãos não parecia constrangê-lo, pois estendeu uma com naturalidade.

—  Oh! O senhor é ator! exclamou enquanto tocava o botão do elevador com o dedo médio. — Os artistas adoram nosso prédio. Citou quatro ou cinco nomes de conhecidos atores que moravam no edifício. — Será que já tive o pra­zer de vê-lo em alguma peça?, perguntou.

—  Não sei, deixe-me ver. Representei não há muito tempo o Hamlet e recentemente fizemos juntos o filme O Vendedor de Ilusões, não é Liz?

—  Éle está brincando, explicou Rosemary apressada­mente. — Tomou parte em algumas peças de teatro e tem aparecido bastante na televisão como ator ou em filmes de propaganda.

—  Ah! Filmes de propaganda! Isso é que dá bom di­nheiro, não é?

—  Sem dúvida — disse Rosemary, enquanto Guy, com o ar mais sério do mundo, acrescentava: — Para não falar da grande realização artística que nos proporciona.

Rosemary, por sobre a cabeça do pequeno Sr. Middas, lançou-lhe um olhar de “chega-de-brincadeira”, ao que ele respondeu com uma expressão de total inocência seguida por uma cara de Drácula sedento de sangue.

O   elevador, em lambris de madeira e com grades de metal polido, era manejado por um preto bem uniformizado e sorridente. — Sétimo, disse o Sr. Micklas. Voltando-se para Rosemary e Guy, explicou: — este apartamento tem quatro cômodos, dois banheiros e cinco armários embutidos. Neste edifício, antigamente, só havia apartamentos de gran­des dimensões — os menores eram de nove peças — que foram subdivididos em grupos de quatro, cinco ou seis cô­modos. O 7 E era a parte dos fundos de um dos maiores, que tinha dez peças. A cozinha e o banheiro, enormes, como poderão constatar, eram do apartamento original. O que anteriormente era um quarto grande é hoje a sala de estar. Tem um bom dormitório e outro cômodo, formado pela jun­ção dos aposentos de empregados, que poderá servir como sala de jantar ou quarto de crianças. Têm filhos?

         — Ainda não. Mas pretendemos ter.

         — Seria ideal para um quarto de crianças pois tem ba­nheiro completo e um bom armário embutido. É um aparta­mento que parece ter sido feito sob medida para um jo­vem casal.

O   elevador parou e o ascensorista sorridente abriu as portas. O Sr. Micklas esperou que Rosemary e Guy pas­sassem e indicou-lhes o caminho ao longo de um corredor atapetado de verde e iluminado por luzes mortiças. À porta do apartamento 7 B, que era de madeira esculpida, um trabalhador, ocupado em colocar-lhe um olho mágico, mirou-os com indiferença e retornou ao serviço.

Com o Sr. Middas sempre mostrando o caminho, do­braram à esquerda, à direita e novamente à esquerda. Ro­semary e Guy, seguindo-o, não podiam deixar de notar vá­rios sinais de velhice e decadência. Aqui, um papel de pa­rede rasgado; ali, uma lâmpada queimada; acolá, um tapete remendado. Guy olhou para Rosemary e, naquela lingua­gem telepática que os casais usam, perguntou: “o-que-você­-está-achando?” Rosemary, pelo mesmo meio de comunica­ção, respondeu: “acho-lindo-maravilhoso”.

— A inquilina anterior — disse o Sr. Micklas sem fi­tá-los — faleceu há poucos dias. Vão encontrar o aparta­mento exatamente como ela o deixou. Seu filho disse-me que caso lhes interesse o aparelho de ar refrigerado, os ta­pêtes e algumas peças do mobiliário, ele os cederá por pre­ços bem acessíveis. — Chegaram a um novo corredor, este forrado com papel mais moderno e atraente.

—  Ela morreu aqui mesmo? — perguntou Rosemary. — Não que isso faça qualquer diferença...

—  Não, não. Faleceu num hospital. Passou várias se­manas em estado de coma e morreu sem voltar à consciên­cia. Tipo de morte boa. Gostaria, quando meu dia chegar, que me acontecesse o mesmo. Era uma senhora fabulosa, cheia de vida e disposição. Foi uma das primeiras mulheres a se formar em advocacia no Estado de Nova York.

Chegaram ao final do corredor. Ao lado de uma escada estava o apartamento 7 E. Sua porta era sem enfeites de ma­deira, mais simples e estreita que as anteriores. O Sr. Micklas tocou a campainha, que era encimada por um cartão de plás­tico preto com letras gravadas em branco: L. Gardênia, girou a chave na fechadura e, apesar da falta de dedos, moveu a maçaneta, abrindo a. porta com um floreio: — Entrem, por favor.

O   apartamento era dividido por um largo corredor que separava ao meio as quatro peças. A primeira porta, logo à direita de quem entrava, abria para a cozinha. Rosemary, ao vê-la, quase teve um acesso de riso, pois era tão grande quanto o apartamento em que viviam atualmente, se não fosse maior. Tinha um velho fogão de seis bocas e dois fornos, ge­ladeira imensa, pia monumental, um sem-número de armários embutidos e um teto altíssimo. Rosemary abstraiu mentalmen­te os móveis de ferro batido e fórmica da Sra. Gardênia e imaginou em seu lugar aquele cantinho para o café da manhã que havia recortado do último número de House Beatiful.

Em frente à cozinha, ficava o outro cômodo, que a Sra. Gardênia usava como um misto de escritório e jardim de in­verno. Centenas de vasinhos, com plantas secas ou já mortas estavam colocados em prateleiras de madeira tosca, ladeadas de tubos de luz fluorescente. Bem no centro da sala, desta­cava-se uma escrivaninha de tampa corrediça coberta de livros e papéis. Era uma bela peça de madeira antiga, patinada pelo tempo, solene, pesada. Rosemary afastou-se de Guy e do Sr. Micklas, que conversavam junto à porta, e aproximou-se, para examiná-la melhor. Era realmente um móvel de categoria, da­queles que só se encontram à venda em antiquários. Rosemary, estudando seus detalhes, perguntou-se se faria parte do mo­biliário que o “filho queria ceder por preços muito acessí­veis”. Sem querer, deu com os olhos numas frases escritas em papel cinza com caligrafia elegante e antiquada: “... é mais do que simples passatempo, como a princípio supus. Estou sendo envolvida e não desejo mais fazer parte” Com vago sentimento de culpa, sentindo-se indiscreta, perguntou ao Sr. Micklas: — Será que o filho da Sra. Gardênia quer vender este móvel?

—  Não sei. Poderei perguntar.

—  É lindo! — disse Guy, examinando-o.

—  Não é mesmo? — Rosemary afastou-se e passou a examinar a sala mais detalhadamente. Poderia transformá-la num quarto de crianças maravilhoso, pensou. Era um pouco escura, pois as janelas davam para um pátio interno, mas um papel de parede bem escolhido o tornaria mais claro e lumi­noso. O banheiro não era grande, mas seria mais do que su­ficiente para as crianças e o armário embutido (também cheio de plantas) era bastante amplo.

Dirigindo-se à porta, Guy perguntou: — Que plantas são estas?

       — Sei lá. Parecem-me ervas medicinais e temperos, disse Rosemary.

Voltando ao corredor, foram encontrar outro armário em­butido e, finalmente, a sala de estar. Duas janelas em forma de arco, ladeadas de bancos de madeira, uma lareira de már­more esculpido e belas estantes de nogueira escura compu­nham a peça.

—  Oh! Guy, que beleza! — disse Rosemary apertan­do-lhe a mão. O marido respondeu com um resmungo inde­finido. O Sr. Micklas, pressurosamente, disse: — A lareira funciona maravilhosamente bem.

Passaram em seguida para o quarto principal. Era um aposento simpático ainda que um pouco escuro, pois as jane­las davam para o mesmo pátio interno. O banheiro, tal como a cozinha, era imenso, com uma banheira antiquada, com enormes ferragens de metal polido.

—  É um apartamento divino! exclamou Rosemary, vol­tando à sala de estar. Deu uma piruêta com os braços abertos como se quisesse abraçar toda a peça. — Adorei tudo!

—  Se continuar a elogiá-lo assim, querida, o Sr. Micklas acabará reduzindo o aluguel...

—  Bem que gostaríamos de aumentá-lo, mas não pode­mos por causa do controle de preços — disse o sr. Micklas sorrindo. — Apartamentos com este charme e esta personali­dade são mais raros em Nova York do que dentes de gali­nha, O novo... — interrompeu-se, olhando para um armá­rio alto que ficava bem ao fundo do corredor. — Deve haver outro armário embutido atrás daquele móvel. Tem que haver. Vejamos, são cinco ao todo: dois no quarto maior, um no outro quarto e dois no corredor. Vamos dar uma olhada por aqui. Guy, bem mais alto do que o Sr. Micklas, ficou na ponta do pé e exclamou: — Tem razão. Estou vendo os ba­tentes da porta.

—  Ela deve ter mudado o móvel de lugar — disse Ro­semary. — O armário estava ali naquela parede. Pode-se ver ainda a marca no tapete.

—  Se o senhor puder me dar uma ajuda, descobrire­mos o mistério do armário-esconde-armário disse o Sr. Micklas.

Com um pouco de esforço, Guy e o Sr. Micklas consegui­ram recolocar o móvel na posição primitiva.

—  Puxa, deve ter sido esta mudança que levou a velha ao estado de coma — disse Guy.

—  Ela não seria capaz de fazê-la sozinha; tinha oitenta e nove anos — respondeu o sr. Micklas, que parecia levar a sério tudo que Guy dizia.

Rosemary ficou hesitante diante do armário recém-des­coberto.

Será que devemos abri-lo? Não seria melhor fazê-lo na presença do filho?

       O   Sr. Micklas esfregou as mãos e os poucos dedos que lhe restavam. — Estou devidamente autorizado a mostrar-lhes o apartamento. Dirigiu-se resolutamente ao armário e abriu a porta. Estava quase vazio. Num canto, um aspirador de pó, noutro umas três ou quatro tábuas de madeira e na pratelei­ra superior, cuidadosamente arrumadas, pilhas de toalhas de banho verdes e azuis.

—  Que coisa esquisita! exclamou Guy.

—  Talvez não tivesse necessidade dos cinco armários —disse o Sr. Micklas.

—  Mas não deixa de ser estranho o fato de deixar guar­dados em lugar fora de mão um aspirador e essas toalhas.

O   Sr. Micklas encolheu os ombros, dizendo: — Continua, pois sem solução nosso pequeno mistério. Pobre senhora! Talvez já estivesse ficando senil. Há algo mais que desejam ver, ou que queiram perguntar?

—  Sim, senhor — disse Rosemary. Gostaria de infor­mar-me a respeito da lavagem de roupas. Há máquinas de lavar no porão?

Agradecendo ao Sr. Micklas, que os acompanhou até a saída do prédio, Rosemary e Guy começaram a subir vagaro­samente a Sétima Avenida.

—  É mais barato que o outro — disse Rosemary, como se fosse uma pessoa inteiramente voltada para os aspectos práticos da vida.

—  Mas tem um quarto a menos, meu bem.

Rosemary caminhou em silêncio durante alguns momentos.

—  É melhor localizado que o outro.

—  Sem dúvida, respondeu Guy. — Posso ir a pé a quase todos os teatros.

Encorajada, Rosemary não mais se conteve:

—  Por favor. Guy decida-se. É um apartamento ma­ravilhoso. A pobre Sra. Gardênia não soube tirar partido do que ele tem a oferecer. Aquela sala de estar pode ser trans­formada na coisa mais gostosa e aconchegante do mundo. Por favor, Guy. Por favor, vamos ficar com ele.

—  Querida, não é a mim que você deve procurar con­vencer e sim aos sujeitos com quem assinamos o contrato.

Rosemary apertou-lhe o braço carinhosamente. — Tenho certeza de que você quebrará mais este galho. Até agora tem sido mestre no assunto.

Guy telefonou a Sra. Cortez de uma cabine pública. Ro­semary, através da porta de vidro, procurava adivinhar o que estava sendo dito.

—  Ela nos dará um prazo até as três da tarde. Se até lá não tiver recebido confirmação nossa, passará ao próxi­mo da lista.

Entraram no Russian Tea Room e pediram dois Bloody Marys e sanduíches de salada de galinha com pão preto.

—  Você poderia inventar que estou doente e que tenho que me internar já num hospital — disse Rosemary.

—  Isso não é motivo suficiente para uma quebra de con­trato, minha filha. Temos que pensar em algo mais plausível e acho que já sei o quê. Bolei a seguinte história: direi que fui convidado, em substituição a um colega que sofreu sério acidente, para fazer uma série de espetáculos no Vietnã. Se não puder aceitar, o programa se atrasará em pelo menos duas semanas, até que encontrem outro que saiba o papel. É evidente que não se pode fazer isto com os coitados dos ra­pazes que estão longe do lar para defender a democracia contra os comunistas, etc. e tal. Que acha?

—  Genial, Guy! Se não caírem nessa, paciência.

Guy ensaiou por duas ou três vêzes o que iria dizer e dirigiu-se ao telefone.

Rosemary bebericou o coquetel, fazendo figa com a mão esquerda escondida sob a mesa. Para não ficar muito desa­pontada, caso a resposta fosse negativa, revia mentalmente as vantagens do apartamento da Primeira Avenida: cozinha nova, com aparelhos elétricos ultramodernos, vista sobre o East River e ar condicionado central...

A garçonete trouxe os sanduíches.

Uma moça grávida passou perto da mesa. Rosemary olhou-a com uma pontinha de inveja. Devia estar no sétimo mês. Parecia alegre e bem disposta e conversava animada­mente com uma senhora carregada de embrulhos, provável­mente sua mãe.

Alguém acenou do outro lado da sala — era a moça ruiva que começara a trabalhar na CBS semanas antes de Rose­mary sair para casar-se. Respondeu-lhe ao aceno e a moça disse algo que Rosemary não conseguiu entender. A moça repetiu a frase, e o homem que a acompanhava, um sujeito magro e pálido, olhou para trás.

Guy voltou para a mesa, alto e bonitão, com um sorriso que gritava “SIM”.

—  Tudo legal! Engoliram a história: o contrato está anulado, o depósito será devolvido e a Sra. Cortez estará à nossa espera às duas horas.

—  Você é maravilhoso, Guy. Já falou com ela?

—  Já.

A moça ruiva levantou-se e chegou até eles, dizendo:

—  Vim só dar-lhes os parabéns, Rosemary. O casamen­to está fazendo bem a você. Está com uma cara ótima!

Rosemary, procurando se lembrar do nome da garôta, sorriu dizendo: — Obrigada. Estamos festejando. Acabamos de alugar um apartamento no Bramford.

—  No Brami Felizardos! Sou louca por aquele prédio. Se vocês alguma vez pensarem em transferir o contrato. não se esqueçam de mim. Adoro aquela fachada, cheia de mons­tros e gárgulas que parecem querer penetrar pelas janelas.


 

Hutch, surpreendentemente, tentou dissuadi-los de se mudarem para o Bramford sob a alegação de que era uma “zona perigosa”.

Quando Rosemary se mudara para Nova York, havia alugado um apartamento com três outras moças, uma da mesma cidade que ela, Omaha, e duas que tinham vindo de Atlanta, Hutch morava no apartamento vizinho. Ainda que não acei­tasse a condição de “pai substituto” que as moças desejavam (já tinha criado e casado duas filhas e não pretendia repe­tir a dose), era a pessoa com quem elas contavam para qual­quer emergência, como aquela noite em que um sujeito es­quisito foi visto rondando o prédio, ou quando Jean ficou en­gasgada com uma espinha de peixe. Chamava-se Edward Hutchins, era inglês, e tinha cinqüenta e quatro anos de idade. Ganhava a vida escrevendo, sob vários pseudônimos, livros de aventuras para jovens.

Teve por Rosemary um carinho todo especial, pois, sendo ela a caçula de uma família grande e extremamente religio­sa, viera para Nova York com total reprovação dos parentes (só um irmão, Brian, o que bebia, é que havia aprovado, di­zendo: — Vá, Rosie, faça o que tiver vontade — e lhe dera oitenta e cinco dólares como ajuda). Rosemary era dominada por terrível sentimento de culpa, achando-se um monstro de egoísmo em relação aos pais. Era com Hutch que se desaba­fava. ele procurava, entre copiosas xícaras de chá, ensinar-lhe uma nova escala de valores. Assuntos que Rosemary jamais se atrevera a abordar, quer na família, quer na Universidade Católica, eram por eles discutidos livremente. Fez com que Rosemary se matriculasse no curso de filosofia da Universidade de Nova York a fim de completar sua educação.

Depois de casada, pelo menos uma vez por mês Rose­mary e Guy jantavam com Hutch. Guy achava-o meio chato, mas sempre o tratara com a maior cordialidade, pois ele era primo de Terence Rattigan e Guy sabia que, no mundo do teatro, relações importantes valiam mais do que ouro.

Dias após terem visto o apartamento, jantaram juntos no Klube, um simpático restaurante alemão. A Sra. Cortez havia pedido três nomes para referências e, naturalmente, Hutch tinha sido um deles. Recebera e já respondera a carta da Sra. Cortez.

—  Tive vontade de dizer que vocês eram viciados em drogas ou coisa ainda pior — algo bem chocante para que não fossem aceitos como inquilinos.

—  Mas por quê?

—  Não sei se vocês sabem, mas o Bramford tinha pés­sima reputação no começo do século. Vendo pela sua expres­são que não sabiam de nada, continuou: — Ao lado de gente como Isadora Duncan e Theodore Dreiser, o edifício tinha moradores bem menos atraentes. Foi lá que as irmãs Trench fizeram suas estranhas experiências culinárias e onde Keith Kennedy realizava suas tremendas bacanais. Adrian Marca­to morava lá, bem como Pearl Ames.

—  Quem era Adrian Marcato?, perguntou Rosemary.

—  E quem eram as irmãs Trench?, disse Guy

—  As irmãs Trench eram senhoras da melhor socieda­de vitoriana que, de quando em vez, se davam ao canibalismo. Cozinharam e paparam várias criancinhas, inclusive uma so­brinha.

—  Que bom gosto! exclamou Guy.

Hutch virou-se para Rosemary: — Adrian Marcato pra­ticava a magia negra. Fez uma onda danada lá pelo ano de 1890, dizendo ter conseguido a materialização de Satã. Para prová-lo mostrava chumaços de pêlo e aparas de garras. Apa­rentemente o povo levou-o a sério; a sério o bastante para tentar linchá-lo na entrada do Bramford.

—  Você está brincando, disse Rosemary.

—  Estou falando com a maior seriedade. Alguns anos depois começou a época de Keith Kennedy e, lá por 1920, o prédio estava praticamente abandonado, com a fama de ser, no mínimo, um lugar onde coisas estranhas costumavam acontecer.

—  Eu sabia a respeito de Keith Kennedy e Pearl Ames, mas nunca soube que Adrian Marcato também morava lá, disse Guy.

—  E essas irmãs horrendas! exclamou Rosemary arre­piada.

—  Durante a Segunda Guerra, devido à crise habita­cional, o prédio foi remodelado, subdividido e voltou à moda na base do “velho edifício elegante” e ‘bem’ . Vocês são muito jovens, mas em meu tempo era chamado Sinistro Bramford e ninguém queria nada com ele.

O   garçom trouxe o primeiro prato e Rosemary olhou para Guy indagadoramente; ele franziu a testa e deu um olhar de “deixa-pra-lá. Não se impressione com o que ele conta”.

—  Através dos anos, o Bramford tem sido marcado por acontecimentos desagradáveis, continuou Hutch. — E nem todos no passado. Não faz muito um recém-nascido, embru­lhado em jornais, foi encontrado numa de suas lixeiras.

—  Bem, mas em todo prédio daquele tamanho devem suceder algumas tragédias de vez em quando, disse Rosemary.

—  Sem dúvida, mas de vez em quando. Acontece que no Bramford esse de vez em quando é muito mais freqüente do que em outros lugares. Há fatos menos espetaculares mas igualmente estranhos: o número de suicídios no Bramford é comparativamente muito maior do que em outros prédios do mesmo tamanho.

       —  Qual será o motivo, Hutch?, perguntou Guy. — Deve haver alguma explicação.

—  Não sei. É possível que a notoriedade de tipos como as irmãs Trench atraísse um Adrian Marcato; que a notorie­dade deste atraísse um Keith Kennedy, e assim por diante, transformando o Bramford num refúgio de psicopatas e tara­dos. Ou talvez a explicação seja outra: campos de ação mag­nética, correntes subterrâneas ou alguma causa sobrenatural tenham tornado maligno o lugar. O que posso dizer com se­gurança é o seguinte: o Bramford não é um caso isolado. Havia uma casa em Londres, em Praed Street, na qual, no espaço de sessenta anos, foram cometidos cinco assassinatos brutais. Não houve qualquer relação entre eles, quer quanto às vítimas, quer quanto aos criminosos. Nem mesmo se con­seguiu descobrir uma motivação aparente, como um tesouro escondido ou coisa semelhante. Uma casa comum, pequena e simples, foi o cenário, no curto espaço de sessenta anos, de cinco crimes violentos. Essa casa foi demolida e até hoje nada foi construído em seu lugar.

—  Mas deve haver casas abençoadas; casas onde resi­dam pessoas que se amem, tenham filhos e sejam felizes — disse Rosemary, comendo uma fatia de melão.

—  E casas em que jovens atores consigam alcançar o sucesso, continuou Guy.

—. Sem dúvida. Mas acontece que essas não fazem parte dos noticiários. Só as de má fama é que ficam marcadas. Sorriu para Rosemary e Guy: — Palavra que ficaria bem mais feliz se soubesse que vocês não iriam morar no Bramford.

—  Hutch, você parece estar seriamente empenhado em fazer com que mudemos de idéia, disse Rosemary.

—  Minha querida, tinha hoje um encontro com uma se­nhora encantadora; desmarquei-o para falar com vocês. Estou seriamente empenhado em fazer com que desistam.

Pelo amor de Deus, Hutch — começou Guy a dizer.

       —  Não estou esperando que vocês entrem no Bramford e lhes caia um piano na cabeça, que sejam devorados por sol­teironas ou transformados em estátuas de pedra. Estou con­tando fatos e dando estatísticas, e acho que devem ser levados em consideração por vocês, juntamente com as vantagens ma­teriais que o prédio possa oferecer. É inegável que coisas muito estranhas têm acontecido no Bramford. Se vocês estão apaixonados por edifícios vitorianos, procurem o Dakota ou o Osborne. Por que escolher deliberadamente uma área pe­rigosa?

—  O Dakota é um condomínio e o Osborne está sendo demolido, disse Rosemary.

—  Hutch, você não estará exagerando um pouco? Nestes últimos anos, além do caso do bebê, houve algum aconteci­mento estranho?

—  Um ascensorista morreu recentemente em circunstân­cias misteriosas. Passei hoje três horas na Biblioteca Muni­cipal consultando os anuários do Times e vendo microfilmes. Isto não é o suficiente?

Rosemary olhou para Guy, que cruzou os talheres e lim­pou a boca com o guardanapo. — Acho tudo isso uma boba­gem. Está certo, uma série de fatos desagradáveis tem acon­tecido no Bramford. O que não quer dizer que continuem a acontecer. Não vejo por que considerá-lo mais perigoso do que qualquer outro lugar. É como um jogo, você pode acertar cinco vêzes no mesmo número, o que não quer dizer que se se continuar jogando sempre no mesmo número sempre se acer­tara. É tudo uma coincidência, nada mais.

—  E se houvesse algo realmente maligno no prédio, ele já não teria sido demolido? Tal como a casa de Londres?

—  Acontece que a casa foi demolida pela família da última vítima, que era proprietária do prédio. O Bramford pertence à igreja que fica perto dele.

—  Está vendo? — disse Guy acendendo um cigarro. —Estamos sob a proteção divina.

—  Que tem falhado lamentavelmente, frisou Hutch.

O   garçom tirou os pratos.

—  Não sabia que o prédio era propriedade de uma igre­ja, disse Rosemary. — Guy interrompeu-a: — As igrejas são donas de quase tudo, querida.

Vocês não tentaram o Edifício Wyoming? — per­guntou Hutch. — Fica quase ao lado do Bramford.

       —  Tentamos todos os lugares possíveis e imagináveis, Hutch — explicou Rosemary. É impossível encontrar outra coisa além de prédios modernos, com salas quadradas abso­lutamente iguais umas às outras, e até com circuitos fechados de televisão!

—  E isso é tão ruim assim? — perguntou Hutch sorrindo.

—  Horrível, disseram Rosemary e Guy. — Já tínhamos arranjado um desse tipo e fizemos o diabo para nos livrar dele.

Hutch olhou-os demoradamente, encostou-se na cadeira e fez um gesto de desistência: — Muito bem, fiz o que pude. Desejo a vocês toda a felicidade do mundo e o uso e gozo do apartamento no Bramford. Darei de presente a vocês uma tranca da melhor qualidade e não abrirei mais o bico. Fui um chato. Perdoem-me.

Rosemary sorriu: — A porta já tem tranca, corrente de segurança e olho mágico.

—  Use os três. E não vá andando pelos corredores, con­versando com todos os vizinhos. Lembre-se de que estamos em Nova York.

Na segunda-feira, Rosemary e Guy assinaram o contra­to de locação do apartamento 7 E no Bramford. Deram à Sra. Cortez um cheque para cobrir o primeiro mês de aluguel e outro como fiança. Poderiam ocupá-lo logo no fim de agosto, quando estaria limpo e pintado de novo.

Nesse mesmo dia, receberam um telefonema dê Martin Gardênia, filho da Sra. Gardênia e combinaram encontrar-se com ele no dia seguinte para tratar da compra dos objetos de que ele desejava dispor. Chegando ao apartamento en­contraram um senhor simpático e amável. Disse logo o que desejava vender e deu os preços (realmente acessíveis). Ro­semary e Guy compraram dois aparelhos de ar condicionado, uma penteadeira antiga, o tapete da sala e o conjunto de ferros de lareira. Guy mal lhe dera um cheque quando Rose­mary, com uma régua de marceneiro nas mãos, começou a tomar medidas aqui e ali.

Como Guy esteve ocupado o resto da semana, termi­nando uma série de filmes de televisão, Rosemary não perdeu tempo, estudando um álbum de recortes de decoração, que co­meçara a guardar desde o ginásio; tendo resolvido qual o es­tilo que melhor se adaptaria ao apartamento, lançou-se numa orgia de compras. Acompanhada de Joan Jellico, uma de suas antigas companheiras, passou a percorrer casas de fazendas e lojas de móveis. Joan tinha apresentação de um decorador, o que foi um “abre-te Sésamo” para os atacadistas. Rosemary tomava notas de preços, pedia amostras e desenhava croquis, que mostrava a Guy apressadamente, entre uma saida e ou­tra. Cancelou todos os compromissos para se dedicar com exclusividade à arrumação da casa.

Na sexta-feira, à noite, tomaram posse oficial do aparta­mento. Parecia maior do que se lembravam, agora que estava sem os móveis. Ligaram o ar condicionado, admiraram o ta­pete da sala, a lareira e a penteadeira de Rosemary; admi­raram ainda a banheira, os trincos, as portas, o assoalho, o fogão, o refrigerador, as janelas e a vista. Fizeram um pi­quenique de sanduíches e cerveja no tapete da sala. Levanta­ram a planta das quatro peças, Guy tomando as medidas e Rosemary desenhando. Finalmente, desligaram a luz e ama­ram-se sobre o tapete, iluminados pela leve claridade que en­trava pelas janelas.

—  Cuidado, disse Guy depois. — Estou ouvindo o ruído das irmãs Trench mastigando. Rosemary deu-lhe um soco no peito.

Compraram um sofá, uma cama de casal enorme, uma mesa para a cozinha e duas cadeiras de desmontar.

Os pintores vieram na terça, rasparam, pintaram e reto­caram, quase conseguindo satisfazer Rosemary. O especia­lista em papel de parede veio logo a seguir, e no mesmo dia terminou os dois quartos.

Telefonaram para as lojas de móveis e casas de decora­ção e para a mãe de Guy em Montreal. Compraram um ar­mário, uma mesa de jantar, um conjunto de alta fidelidade, pratos e talheres. Tudo novo! Estavam cheios de dinheiro, pois Guy fizera um filme de publicidade para o Anacym, no qual ganhara dezoito mil dólares e que ainda estava rendendo um pouco.

Colocaram persianas e forraram com papel as pratelei­ras. Adoraram o novo tapete do quarto e o revestimento em plástico branco da entrada. Conseguiram um telefone mo­derno com três extensões, pagaram todas as contas e avisa­ram ao Correio a mudança de endereço.

       Na sexta-feira, dia 27 de agosto, mudaram-se. Joan e Dick Jellico mandaram de presente um vaso de plantas, o agente de Guy mandou um cinzeiro e de Hutch receberam o seguinte telegrama: O Bramjord perderá a má reputação e adquirirá uma aura de felicidade quando numa de suas portas estiver o cartão com o nome: R. e G. Woodhouse.


 

Rosemary sentiu-se realizada e feliz cuidando do arranjo e da decoração do apartamento. Descobriu um abajur em estilo vitoriano, perfeito para a sala, comprou e colocou cortinas, enfeitou as paredes da cozinha com panelas e caça­rolas de cobre. Chegou à conclusão de que aquelas tábuas em­pilhadas no canto do armário embutido que tinham desco­berto no corredor eram, na realidade, suas prateleiras. For­rou-as com papel plástico de xadrezinho e, quando Guy chegou, mostrou-lhe triunfante o armário já arrumado com as roupas de cama. Já localizara, perto do edifício, uma la­vanderia e um supermercado.

Guy andava bastante ocupado também. Retomara suas aulas de dicção antes do almoço e passava as tardes fazendo testes em estúdios. Durante o café da manhã, ao ler as colu­nas de teatro dos jornais, mostrava sempre um certo mau humor — a maioria de seus colegas fazia tournées pelos Es­tados — só ele se encontrava em Nova York, vivendo dos magros rendimentos de um filme de propaganda. Rosemary, porém, não se preocupava; estava certa de que dias melho­res não tardariam.

O   quarto das crianças, mobiliado com móveis do antigo apartamento, era, por enquanto, uma salinha de televisão. Cuidadosamente guardados ‘dentro do livro Picasso’s Picassos estavam uma amostra do papel de parede amarelo e branco e o recorte dum anuário do Saks com a fotografia de um ber­cinho e duma cômoda.

Rosemary escreveu ao irmão, Brian, participando a mu­dança e contando-lhe o quanto estava feliz. Não se deu ao trabalho de fazer o mesmo com o resto da família, pais e irmãos, pois ainda não a haviam perdoado pelo fato de: a)

— ter-se casado com um protestante; b) — ter-se casado só no civil; c) — ter uma sogra divorciada duas vezes e casada em terceiras núpcias com um judeu canadense.

Ficaram conhecendo a voz de Minnie Castevet antes mesmo de encontrar sua vizinha. Uma voz possante, com atroz sotaque do meio-oeste, atravessou as paredes de seu quarto: — Venha já para a cama, Roman. É quase meia­noite. E quando vier, traga-me um copo de refresco.

—  Ué! Não sabia que a televisão estava fazendo uma reprise de Ma e Pa Kettle,* disse Guy. Rosemary sorriu sem entender bem o que o marido queria dizer, pois, sendo nove anos mais moça que ele, ignorava por completo algumas das coisas que mencionava.

Conheceram os Goulds, casal simpático de meia-idade Cumprimentaram amavelmente os Kellogs, 7 G, Sr. Stein, 7 H que morava no 7 F, os Brunhs, e seu filho Walter, do 7 C. e os srs. Dubin e De Vore, do 7 B. (Rosemary identificava

 

*O  seriado de televisão Ma e Pa Kettle contava as aventuras de um velho casal de caipiras do meio-oeste. (N . T.)

 

logo os moradores pois lia,, com a curiosidade meio ingênua de moça do interior, o cartão que cada um tinha em sua porta.) Os Kapps, do 7 D, não deviam ter voltado ainda das férias de verão, pois seu apartamento estava sem movimento, e os Castevets, do 7 A, eram ouvidos (Roman, onde está a Terry?) mas não eram vistos. Deviam levar uma vida muito isolada e ter horários diferentes do comum das pessoas. Re­cebiam correspondência dos lugares mais estranhos e remo­tos: Hawick, Escócia: Langeac, França; Vitória, Brasil; Cess­nock, Austrália. Eram assinantes do Li[e e do Look. Rosema­ry examinava sem a menor cerimônia os envelopes da cor­respondência que, até ser recolhida pelos destinatários, fica­va colocada sobre o capacho.

Das irmãs Trench, de Adrian Marcato, Keith Kennedy, Pearl Ames ou seus equivalentes contemporâneos, nenhum sinal. Dubin e De Vore eram homossexuais; os outros vizi­nhos do sétimo andar eram gente como todo mundo.

Do apartamento contíguo que, Guy e Rosemary tinham concluído, devia ser a parte maior da divisão do grande apartamento original, vinha quase todas as noites o vozerio feminino no sotaque do meio-oeste: — É impossível ter cer­teza absoluta. Acho que não devemos explicar-lhe coisa alguma. Pelo menos é a minha opinião.

Num sábado à noite1 os Castevets deram uma reunião: umas poucas pessoas que falavam e cantavam. Quando fo­ram se deitar, Guy dormiu logo que caiu na cama, mas Ro­semary ficou acordada até depois das duas da madrugada, ouvindo uma cantoria estranha, acompanhada às vezes por flauta ou clarineta.

       Rosemary só se recordava das advertências de Hutch quando ia ao porão lavar roupa. O elevador ‘de serviço, por si só, já era assustador: pequeno, automático, barulhento e sujeito a paradas súbitas e inexplicáveis. O porão era imenso, escuro e sinistro, percorrido por correntes de ar de origem misteriosa e ruídos insólitos. Encostadas nas paredes embo­loradas, velhas geladeiras fora de uso pareciam grandes fan­tasmas brancos.

Foi aqui, pensou Rosemary, que encontraram uma crian­cinha morta, embrulhada num jornal. De quem teria sido o bebe? Como teria morrido? Quem o encontrara? Teria sido descoberto e punido o responsável? Rosemary pensou em ir à biblioteca para consultar os jornais da época, tal como Hutch fizera. Abandonou logo a idéia, porém, pois isso traria a tragédia para mais perto ainda, tornando-à real e palpável. Saber exatamente onde jazera o pequeno cadáver, passar na ida e na volta, pelo local... Não. Seria insuportável! O que os olhos não vêem, o coração não sente, pensou. E Hutch, com seus avisos bem intencionados, que fosse plantar batatas!

A lavanderia parecia feita sob medida para uma peni­tenciária. Tinha paredes de tijolos úmidos, lâmpadas prote­gidas por telas de arame e uma fila de tanques de pedra que se perdia na escuridão. Havia máquinas de lavar de uso pú­blico, que funcionavam com moedas, e outras, de proprieda­de particular, ficavam trancadas em cubículos de madeira. Na primeira vez que se dirigira à lavanderia, era um dia de se­mana, pela manhã, Rosemary encontrara várias pretas que conversavam alegremente enquanto lavavam ou passavam. Com sua chegada, estabeleceu-se um silêncio hostil. Por mais que procurasse passar desapercebida, tornar-se invisível, o si­lêncio perdurou, fazendo com que Rosemary se sentisse qual feitora de escravos. Por essa razão, preferia agora lavar sua roupa nos fins de semana à tarde.

Um dia, quando já moravam no Bramford há umas duas semanas, Rosemary estava sentada num banco da lavanderia, lendo uma revista e esperando o momento exato de colocar o alvejante na água de enxaguar, quando entrou uma moça mais ou menos de sua idade. Era morena, de feições delica­das, vestindo short preto, blusa amarela e sandálias pretas. Trazia nas mãos uma sacola de roupa. Rosemary olhou-a espantada. Era Anna Maria Alberghetti! Ao que sabia, a ar­tista não era moradora do prédio, mas poderia ser hóspede de algum inquilino e estar ajudando a dona da casa, pensou. A moça cumprimentou Rosemary com um leve aceno, ligou a máquina e começou a colocar dentro dela a roupa que trazia. Examinando-a mais detalhadamente, Rosemary percebeu que se enganara pois, apesar de extremamente parecida com Anna Maria Alberghetti, havia diferenças marcantes de expressão e postura. Deu-se conta de que estava examinando a moça com tal atenção que esta a olhava com ar de surpresa.

—  Desculpe-me — disse sem graça —, pensei que você fosse a Anna Maria Alberghetti.

A moça sorriu, meio ruborizada: — Não tem do que se desculpar. Acontece com freqüência. Desde menina, desde que Anna Maria apareceu em seu primeiro filme, todos me confundem com ela. Francamente, não sei por quê. Somos ambas morenas e de ascendência italiana. De resto, não vejo qualquer outra semelhança.

— Pois é impressionante.

— Deve ser mesmo, pois todo mundo acha. Talvez só eu não perceba.

—  Você a conhece?, perguntou Rosemary.

— Pessoalmente, não.

— Como se referiu a ela como Anna Maria pensei que...

— Não, não a conheço. Mas acho que de tanto falar nela, acabei me familiarizando e eliminando o sobrenome. Enxugou as mãos no short e se dirigiu a Rosemary, apresen­tando-se: — Meu nome é Terry Gionoffrio. Não me per­gunte como se escreve, pois nem eu mesma sei.

Rosemary riu-se e apertou-lhe a mão: — Chamo-me Ro­semary Woodhouse. Moramos aqui há pouco tempo. E você?

—- A bem dizer, nem moro aqui. Sou uma espécie de hóspede dos Castevets, do apartamento 7 A. Você os conhece?

— Não. Nem de vista, apesar de morarmos ao lado deles.

— Meu Deus! Vocês é que alugaram o apartamento da velhinha que morreu? Como era mesmo o nome dela?, per­guntou Terry.

—  Sra. Gardênia, respondeu Rosemary.

— Isso mesmo. Era amiga dos Castevets. Tinha mania de plantas. Cultivava-as no apartamento e ‘dava-as a Sra. Cas­tevet para serem usadas em chás ou temperos.

—  Ah! Então era isso! Precisava ver a quantidade de vasinhos que encontramos quando fomos ver o apartamento!

—  Pois é. Depois que ela morreu, a Sra. Castevet passou a plantá-las em sua casa. Fez até uma estufa-mirim na co­zinha.

Rosemary colocou o alvejante na água, ajudada por Terry que abriu a tampa da máquina.

—  E você, sabe com quem se parece?, perguntou Terry.

—  Não. Com quem?

—  É a cara de Piper Laurie.

—  Não imagina como é engraçado que me diga isso, pois meu marido foi namorado dela!

—  No duro? Onde? Em Hollywood?

— Não, aqui mesmo.

— Seu marido é artista?

Rosemary concordou algo complacentemente.

— Não brinque! Como se chama?

—  Guy Woodhouse. Trabalhou em teatro nas peças Luther e Nobody Loves an Albatross, e atua também na televisão.

— É mesmo? Vejo televisão o dia inteiro. Vai ver que o conheço.

Escutaram um barulho de vidro quebrando, que ecoou estranhamente pelo velho porão.

—  Ui! exclamou Terry, toda arrepiada.

—  Detesto este lugar, disse Rosemary olhando ao redor com apreensão.

— Eu também. Foi bom estar com você ou morreria de medo.

—  Deve ter sido algum entregador que derrubou uma garrafa ou quebrou alguma vidraça.

—  Escute — disse Terry — por que não combinamos vir lavar roupa sempre juntas? Sua porta fica ao lado do ele­vador de serviço, não é? Eu poderia tocar a campainha na hora de descer. Mas a chamaria antes pelo telefone interno. Que acha?

—  Seria ótimo. Tenho horror a vir aqui sozinha.

Terry riu-se e continuou: — Tenho uma coisa que pode­rá funcionar para nós duas. É um amuleto que traz felicida­de. Abriu os botões da blusa e puxou uma corrente que tinha na ponta uma bolinha em delicada filigrana de prata.

—  Que coisa linda! exclamou Rosemary.

—  Não é mesmo? A Sra. Castevet me deu de presente ainda ontem. A bolinha é antiqüíssima. Tem mais de trezen­tos anos. A substância que está dentro foi cultivada por ela lá na estufa de casa. Diz que dá sorte.

Rosemary olhou o amuleto com mais atenção. A bolinha estava cheia de uma matéria esponjosa, com cheiro azedo e desagradável.

—  Sei que o cheiro é horrível, disse Terry sorrindo, mas se der sorte isso será o de menos...

— É lindo, disse Rosemary, Nunca vi coisa igual em minha vida.

—  Veio da Europa — disse Terry admirando o amuleto demoradamente. —- Você nem faz idéia de como os Castevets sejam maravilhosos! São pessoas de primeira qualidade. Apanharam-me na sarjeta — literalmente na sarjeta. quando desmaiei na Oitava Avenida — me trouxeram para cá, ado­tando-me como filha ou, melhor, como neta.

—  Você estava doente?

—  Seria uma forma delicada de se referir ao meu esta­do. O que eu estava era morrendo de fome, dopada até a alma e fazendo coisas que hoje me envergonho até de men­cionar. O Sr. e a Sra. Castevet conseguiram me reabilitar to­talmente. Curaram-me do vício da heroína, alimentaram-me, compraram roupas novas. Trataram-me como se fosse uma filha adorada. Enchem-me de vitaminas e comidas sadias e chamam um médico para me examinar regularmente. Acho que, por não terem tido filhos, estão me dando todo um afeto armazenado. Compreende?

Rosemary assentiu com a cabeça.

—  Logo no começo pensei que tivessem um macete qual­quer. Uma tara sexual da parte dele, dela ou dos dois. Mas que nada. São como verdadeiros avós. Vão me matricular num curso de comércio e mais tarde procurarei pagar-lhes pelo bem que me fizeram.

— Como é bom saber que ainda existe no mundo gente assim. Principalmente nesta época de apatia e medo de res­ponsabilidade.

— infelizmente pessoas como os Castevets são raras. Estaria morta se não fosse por eles. Ou, na melhor das hi­póteses, na cadeia.

—  Você não tem família?

— Tenho um irmão na Marinha. E dele não poderia esperar nem ao menos um “boa-noite”.

Rosemary transferiu a roupa lavada para o secador e esperou que Terry fizesse o mesmo. Conversaram sôbre vários assuntos. Tendo Rosemary contado alguns dos desempenhos de Guy na televisão, Terry identificou-o imediatamente: — Já sei quem é! Você é casada com ele? Que bacana! Fala­ram sobre o passado sinistro do Bramford (que Terry des­conhecia por completo) e sobre a visita que o Papa faria proximamente a Nova York. Terry era católica, como Rose­mary, mas, ainda que tivesse abandonado a religião, estava para conseguir lugar na grande missa campal que seria cele­brada no Yankee Stadium. Deixaram a roupa no secador e subiram juntas para o sétimo andar. Rosemary convidou-a para conhecer o apartamento, mas Terry declinou, dizendo:

— Vamos deixar para mais tarde. Os Castevets jantam às seis e não gosto de chegar atrasada. O melhor é fazermos o seguinte: assim que vocês acabarem de jantar, avise-me. Des­ceremos juntas para pegar a roupa e na volta conhecerei sua casa.

Guy já estava em casa, comendo salgadinhos e vendo um filme na televisão, quando chegou. — A julgar pelo tempo que demorou — disse —, não haverá roupas mais limpas do que as nossas em todo o mundo.

Rosemary contou-lhe sobre o encontro com Terry e sobre os Castevets e repetiu o que Teriy dissera a respeito dele. Guy fingiu não dar muita import8ncía, mas Rosemary percebeu que ficara lisonjeado. Andava muito deprimido ultimamente, pois achava que outro ator, Donald Baumgart, e não ele, iria ser o escolhido para um papel que ambos disputavam numa nova comédia. — Veja só! — comentara — Donald Baum­gart! Isso é nome que se tenha? Parecia ter-se esquecido de que seu próprio nome, antes de mudá-lo, era Sherman Peden...

Rosemary e Terry foram buscar a roupa às oito. Na volta, entraram para que Terry visse o apartamento e conhe­cesse Guy. Mostrou-se deslumbrada ao ver em carne e osso um artista de televisão. Guy, por sua vez, procurou corres­ponder mostrando uma amabilidade excessiva que se tradu­zia em elogios descabidos e num oferecer contínuo de cigarros, bebidas e comidas. Terry não conhecia o apartamento, pois os Castevets e a Sra. Gardênia haviam se desentendido um pouco antes dela ter vindo morar com eles. Logo depois a velha senhora entrara em coma e falecera.

Mostrou-se encantada: — Que lindo! É o apartamento mais bonito que conheço.

— Não, não diga isso — corrigiu Rosemary. Ainda não está arrumado. Quando estiver pronto, acho que ficará real­mente bem gostoso.

Quando se despediram, Guy estalou os dedos e apontou para Terry: — Já sei com quem você se parece. É a cara de Anna Maria Alberghetti!


 

No dia seguinte, em embalagem de luxo da loja Bon­niers, receberam um presente de Hutch: um bonito balde de gelo, em madeira clara, forrado de vidro vermelho. Rosema­ry telefonou para agradecer. Hutch tinha ido ver o apartamen­to logo depois de terminada a pintura, mas não voltara lá desde que eles se tinham mudado. Rosemary explicou que não o havia convidado ainda pois o sofá e as cadeiras que en­comendara não haviam chegado.

— Nem pense nisso, minha querida! Estou interessado em saber como vão vocês e se tudo está em ordem aí no Bram.

Rosemary contou-lhe tudo, sem omitir os detalhes mais engraçados: — E os vizinhos não me parecem anormais. A não ser normalmente anormais, como pederastas; temos dois no apartamento da frente. Ao lado, um casal simpático cha­mado Gould que cria gatos persas numa casa de campo na Pensilvânía. Vão nos dar um quando quisermos.

—   Gato persa solta pelo....

—  Há também um casal de velhos, que ainda não co­nhecemos, gente tão boa que apanhou uma moça na sarjeta, curou-a do vício da heroína e agora vai matriculá-la num Curso de Comércio.

— Está me parecendo que vocês se mudaram é para o Edifício Paraíso, disse Hutch. — Estou muito contente com essas boas novas.

— Mas o porão é meio sinistro. Fico com ódio de você cada vez que vou lá.

—  Ódio de mim, por quê?

—  Por causa de suas histórias.

—  Se você se refere às que escrevo, concordo plena­mente; se pensa no que lhes contei, deve ter tanto ódio de mim quanto do alarme de incêndio que avisa no caso de fogo, ou do Serviço Meteorológico quando prevê um furacão.

Rosemary, não querendo insistir, tranqüilizou-o: — Mas a coisa ficou melhor quando comecei a ir à lavanderia acom­panhada da tal moça.

—  Está bem, concordou Hutch. — A influência de sua saúde mental e física já se faz notar, e o Bram não é mais a antiga câmara dos horrores. Faça bom uso do balde de gelo e dê um abraço por mim no Guy.

Os Kapps, do apartamento 7 D, apareceram para uma visitinha. Eram um casal gordo e, bonachão e traziam consigo sua filha Lisa, de dois anos de idade.

—  Como é que você se chama?, perguntou a menina, sentada no carrinho. — Você comeu toda a sua comida? Já comeu o Capitão Crunch?

— Meu nome é Rosemary. Comi toda a comida, mas nunca ouvi falar no Capitão Crunch. Quem é ele?

Numa sexta-feira, dia 17 de setembro, Rosemary e Guy foram com mais dois casais amigos à pré-estréia de uma peça chamada Mrs. Dally e depois a uma festa que o fotógrafo Dee Bertillon oferecia em seu estúdio da Rua Quarenta e Oito. Guy e Bertillon iniciaram uma discussão a respeito das limitações que a Sociedade dos Atores impunha aos artistas estrangeiros. Guy era a favor e Bertillon contra. Como a dis­cussão se fosse tornando mais azeda, por mais que os amigos comuns procurassem minimizá-la com brincadeiras e piadas, Rosemary e Guy resolveram sair cedo, lá pela meia-noite.

Estando a temperatura fresca e agradável, foram voltan­do vagarosamente a pé para casa; ao se aproximarem da massa escura do Bramford, viram, na calçada, um grupo de vinte ou mais pessoas rodeando um carro estacionado. Duas viaturas de polícia, paradas em fila dupla, mantinham guarda, com suas luzes piscando sem cessar.

Rosemary e Guy apressaram o passo, com um mau pres­sentimento. Os carros que passavam diminuíam a marcha para observar; as janelas do Bramford se abriam e cabeças apare­ciam entre as gárgulas de pedra. O porteiro da noite, Toby, apareceu com um cobertor cinza, que um policial apressou-se em pegar.

O   teto do carro estacionado, um Volkswagen, estava in­teiramente amassado e seu pára-brisa transformado numa teia de vidro rachado.

—  Está morta, disse alguém. — Olhei para cima e vi aquêle vulto, como um águia gigantesca que não podia mais voar — comentou outro curioso.

Rosemary e Guy, nas pontas dos pés, procuravam ver o que acontecera. Um policial ordenou: — Afastem-se, por favor. O povo se separou um pouco. Na calçada, com um dos olhos ainda abertos e a outra metade da face transformada em massa sangrenta, jazia Terry. O cobertor que a cobria ia aos poucos se tingindo de rubro.

Rosemary virou as costas, com os olhos fechados, sua mão automaticamente fazendo o sinal-da-cruz. Cerrou a boca com fôrça, com medo de vomitar ali mesmo.

Guy respirou profundamente e exclamou: — Deus de misericórdia!

— Afastem-se, por favor, disse um guarda.

— Nós a conhecemos, disse Guy.

Outro policial de belos olhos azuis se aproximou per­guntando: — Qual era seu nome?

—  Terry

—  E o sobrenome?

—  Ro, qual era mesmo o sobrenome de Terry?

Rosemary abriu os olhos e respirou fundo. — Não sei bem, um sobrenome italiano complicado, começando com G. Ela até fazia piadas a .respeito dele. Dizia que nem mesmo sabia como se escrevia.

— Estava morando no mesmo andar que nós, no aparta­mento 7 A, com um casal chamado Castevet.

— Já sabemos disto, disse o policial de olhos azuis.

Um outro guarda aproximou-se, trazendo nas mãos uma folha de papel de carta amarelo. O Sr. Micklas vinha logo atrás, com a cara sombria e vestindo uma capa de chuva so­bre um pijama listado.

—  Aqui está o bilhete de despedida. É curto e incisivo. Colou-o na janela da sala com um esparadrapo, para que não voasse, disse o guarda que chegara ao outro, dando-lhe o papel.

—  Havia alguém no apartamento?

—  Negativo.

O    guarda de olhos azuis leu o que estava escrito na folha de papel e sacudiu a cabeça: — Theresa Gionoffrio, disse pronunciando o nome de maneira correta. Rosemary concordou.

—  Quem a visse na quarta-feira, tal como a vimos, seria incapaz de pensar que tivesse algum mau pensamento na ca­beça, disse Guy.

—  A julgar por isto, era só o que tinha, disse o guarda apontando para a nota, que dobrou e guardou dentro de uma caderneta.

— Os senhores a conhecem?, perguntou o Sr. Middas.

— Ligeiramente, respondeu Rosemary.

—  É verdade. Eram vizinhos.

Guy virou-se para Rosemary, dizendo: — Vamos, que­rida. Vamos para casa.

—  Tem alguma idéia de onde possam estar os Caste­vets? perguntou o guarda.

— Nenhuma, disse Guy. — Nem ao menos os conhe­cemos.

— Costumam estar em casa sempre nesta hora. Nossos quartos são pegados e geralmente ouvimos suas vozes.

Guy passou o braço pela cintura de Rosemary, dizendo: — Vamos, meu bem. Cumprimentaram com a cabeça o guarda e o Sr. Micklas e se dirigiram ao prédio.

—  Aí vêm eles, disse o Sr. Micklas. Rosemary e Guy pararam e se viraram para olhar. Vindo do centro da cidade, tal como eles tinham feito momentos atrás, aproximava-se um casal: a mulher alta, forte, de cabelos brancos, o homem igualmente alto, porém magro e trôpego.

—  São os Castevets? — perguntou Rosemary ao Sr. Micklas, que respondeu afirmativamente com um gesto de cabeça.

A Sra. Castevet, toda vestida de azul com complemen­tos brancos, amparava o marido pelo braço como se fosse uma enfermeira. Trazia pendurados no pescoço, por uma corren­tinha, óculos de aros cor-de-rosa. O Sr. Castevet era uma orgia de cores: paletó de lonita com listas coloridas em vários tons, calças vermelhas, gravata rosa e um chapéu cinza com uma fita rosa. Devia beirar os setenta e cinco anos; ela pa­recia um pouco mais moça. Aproximaram-se com uma expres­são entre alegre e curiosa. Quando o guarda se dirigiu a eles o sorriso diminuiu e finalmente desapareceu. A Sra. Castevet disse algo ao marido com expressão preocupada. Éle franziu a testa e abanou a cabeça. Tinha um rosto estranho, com lábios finos e rosados, como se pintados, faces encovadas e pálidas, olhos profundos, pequenos e brilhantes.

O  guarda perguntou: — Os senhores são os Castevets, moradores no sétimo andar?

—  Sim, disse o Sr. Castevet numa voz quase inaudível.

—  Havia uma moça, Theresa Gionoffrio, que morava com os senhores?

—  Há. Por quê? Algo errado? Algum acidente?

— Preparem-se para más notícias, disse o policial obser­vando-os com atenção por alguns momentos. — Ela está morta. Suicidou-se. Pulou pela janela.

O   casal olhou-se sem mudar de expressão, como se nada tivessem ouvido. A Sra. Castevet deu um passo para a frente, olhou o cobertor ensangüentado, endireitou-se e encarou o guarda: — Não é possível, disse ela naquele inconfundível sotaque do meio-oeste. — Deve haver algum engano. Não pode ser ela.

O  guarda, sem virar a cabeça, chamou: — Artie, deixe estas pessoas olharem o corpo, por favor.

A Sra. Castevet se dirigiu com passos firmes para o ca­dáver que jazia sob o cobertor.

O  Sr. Castevet permaneceu onde estava, dizendo: — Eu sabia que isto ia acontecer. Vinha notando que ela estava fi­cando cada vez mais deprimida. Avisei minha mulher, que não deu a menor importância. É uma otimista, e sempre se recusa a admitir que as coisas não sejam exatamente como espera.

— Isto não quer dizer que ela se tenha suicidado. Era uma pessoa feliz, sem tendência à autodestruição. Deve ter sido um acidente. Poderia estar limpando as vidraças e perder o equilíbrio. Estava sempre procurando nos fazer surpresas, limpando ou arrumando a casa, disse a Sra. Castevet indignada.

— Não iria limpar vidraças à meia-noite, disse o ma­rido.

— E por que não?

O  guarda abriu a caderneta e, tirando a folha de papel amarela, entregou-a ao casal.

A Sra. Castevet hesitou, abriu a nota e leu. O Sr. Cas­tevet inclinou-se para ver melhor, acompanhou a leitura, seus lábios rubros movendo-se como a soletrar as palavras.

— Esta letra é a dela? perguntou o guarda.

— Sem a menor dúvida, respondeu o Sr. Castevet.

O  policial estendeu a mão, recebendo de volta a nota, e disse: — Devolverei aos senhores assim que for examina­da pela Perícia.

A Sra. Castevet tirou os óculos, deixando-os pendura­dos no pescoço pela correntinha, e cobriu os olhos com as mãos. — Não posso acreditar. Nada me fará acreditar. Ela estava tão feliz. Todos os seus problemas tinham ficado no passado. O Sr. Castevet abraçou-a e sacudiu a cabeça como que penalizado.

—  Sabem se tinha algum parente? perguntou o guarda.

—  Nenhum. Não tinha ninguém a não ser nós.

— Não tinha um irmão? perguntou Rosemary.

A Sra. Castevet tornou a colocar os óculos e virou-se para ela. O Sr. Castevet fixou-a com os olhos brilhantes sob a aba do chapéu.

—  Tinha? perguntou o guarda.

— Foi o que me disse. Que tinha um irmão na Marinha, respondeu Rosemary.

— Isto para mim é novidade, disse a Sra. Castevet e o marido confirmou: — Para mim também.

O  policial dirigiu-se a Rosemary: — Sabe qual o seu posto ou onde estaria servindo?

—  Não, não sei. Virando-se para os Castevets con­tinuou: — Ela o mencionou de passagem, no dia em que nos conhecemos na lavanderia. Meu nome é Rosemary Woodhouse.

—  Moramos no 7 E. esclareceu Guy.

— Imagino como deva se sentir, Sra. Castevet. Ela pa­recia tão feliz, tão cheia de esperanças quanto ao futuro. Disse coisas maravilhosas a respeito da senhora e de seu ma­rido, do quanto tinham feito por ela e da gratidão que sentia pelos senhores.

— Obrigada, disse a Sra. Castevet.

— Agradecemos suas palavras. Aliviam um pouco nossa consciência, adicionou o Sr. Castevet.

— Não sabem nada a respeito desse irmão a não ser que estava na Marinha?, indagou o guarda.

—  É tudo que sei, respondeu Rosemary. — Acho que ela não gostava muito dele.

—  Deve ser fácil localizá-lo, disse o Sr. Castevet. — Com um sobrenome como Gionof frio...

Guy passou novamente o braço pelos ombros de Rose­mary e ambos se viraram em direção ao prédio. — Estou pe­nalizada e chocada, disse Rosemary aos Castevets; Guy adi­cionou: — É uma pena. Que desperdício...

A Sra. Castevet agradeceu e o marido disse em sua voz soturna uma frase cujas únicas palavras audíveis eram: — nestes seus últimos dias...

Subiram, afinal. No elevador, o ascensorista não parava de repetir: — Meu Deus, que coisa terrível! Passaram com medo pela porta do agora fatídico apartamento 7 A. Continuando a caminhar para seu próprio apartamento, encon­traram o Sr. Kellog que lhes perguntou o que estava aconte­cendo lá em baixo. Contaram-lhe.

Sentaram-se algum tempo na beirada da cama, conver­sando e imaginando o que teria levado Terry ao ato de ex­tremo desespero. Se ao menos os Castevets tivessem mostra­do a nota, poderiam ter uma noção mais segura das razões que ela invocara. E mesmo que soubessem o que nela estava escrito, nem assim teriam uma resposta, pois talvez nem a própria Terry a soubesse dar. Alguma coisa a tinha levado às drogas e alguma coisa a tinha chamado para a morte; o que seria essa coisa era tarde demais para descobrir.

—  Você se lembra do que Hutch disse? A respeito do grande número de suicídios neste prédio?

— Ora, Ro, tudo é bobagem. Êsse negócio de “zona perigosa”...

—  Hutch acredita piamente que ela existe.

—  Isso é problema dele.

— Imagino só o que irá dizer quando souber da nova tragédia.

— Não lhe conte nada. Certamente não irá saber pelos jornais, pois uma greve dos gráficos começou hoje e promete se estender por um mês ou mais.

Tiraram a roupa, tomaram um banho de chuveiro, ter­minaram uma partida de scrabble, amaram-se e fizeram urna ceia com os restos de comida que estavam na geladeira. Antes de dormir, lá pelas duas e meia, Guy lembrou-se de chamar a telefonista de recados, tendo a notícia de que fora contratado para fazer um filme de propaganda dos vinhos Cresta Blanca.

Guy dormiu imediatamente, mas Rosemary ficou acor­dada, vendo o rosto de Terry, esmagado e sanguinolento, com um olho aberto olhando para o céu. Depois de algum tempo, porém, ela se encontrou de volta ao colégio. A Irmã Agnes, furiosa, com os punhos cerrados, a expulsava como monitora da classe: — Não sei como você pretende ser líder de alguma coisa... Uma batida seca, vinda do quarto vizi­nho, acordou Rosemary. A Sra. Castevet dizia: — Não adian­ta contar o que Laura-Louise disse. Não estou interessada. Rosemary virou-se na cama e cobriu a cabeça com o lençol. Mas teve um pesadelo, no qual tudo lhe parecia confuso.

A Irmã Agnes estava furiosa. Como sempre acontecia nessas ocasiões, ficava com uma cara estranha, as narinas frementes e os olhinhos brilhando de maldade. Por culpa de Rosemary, todas as janelas do colégio tinham sido muradas e, por isso, não poderia mais entrar no concurso “As mais belas escolas”, patrocinado pelo jornal World-Herald, —Se você me desse mais atenção, não teríamos que fazê-lo, gritou a Irmã Agnes com forte sotaque do meio-oeste. — Já estaríamos prontos para participar do concurso. Agora vamos ter que fazer tudo de novo. Tio Míke, que era diretor do co­légio, tentou acalmá-la, mas a Irmã Agnes, continuando a fitar Rosemary com seus olhinhos maldosos, prosseguiu: —Eu lhe disse para calar o bico. Sabia que ela não iria aceitar. Depois do fato consumado, seria outra coisa. (Rosemary tinha dito à Irmã Verônica que as janelas do colégio estavam sendo muradas, e ela decidira retirá-lo da competição. Rose­mary acreditava que uma escola católica não poderia concor­rer se não fosse de maneira leal e correta.) — Temos que arranjar outra monitora. Outra qualquer. Jovem, sadia e que não seja virgem. Não precisa ser uma vagabunda viciada em tóxicos, apanhada na sarjeta. Mas qualquer uma, jovem e sadia, que não seja virgem. Rosemary virou-se na cama, pois nem o tio Mike parecia mais estar entendendo o que dizia a Irmã Agnes. Encontrou-se então entre os irmãos e as irmãs. Era um sábado à tarde. A turma toda ia tomar um lanche na drugstore e depois assistir uma sessão de cinema.

 

Na Segunda-feira seguinte, quando Rosemary esta­va guardando as latas de comestíveis que acabara de comprar na mercearia, a campainha tocou. O olho mágico mostrou a cara solene e circunspecta da Sra. Castevet, com um lenço azul e branco enrolado na cabeça para esconder os “bobs”.

Rosemary abriu a porta, dizendo: — Que prazer! Como vai a senhora?

A Sra. Castevet sorriu debilmente. — Mais ou menos. Posso entrar por um instante?

— E claro, entre, por favor. Rosemary tirou a corrente de segurança e abriu a porta. Um cheiro levemente azedo, um cheiro que lembrava o amuleto de Terry, emanava da Sra. Castevet. Vestia calças compridas muito justas, roupa que jamais deveria usar, pois punha em relêvo seus quadris ma­ciços, com ondas de gordura mal distribuída. As calças eram verde-limão, a blusa azul e uma chave de parafuso estava enfiada no bolso traseiro. Parando no corredor, entre a sale­ta e a cozinha, colocou os óculos, sempre pendurados na cor­rente, e sorriu para Rosemary. Seus olhos lembraram Rose­mary do pesadelo que tivera noites atrás — o tal pesadelo em que apareciam a Irmã Agnes e as janelas muradas do colé­gio. Rosemary sorriu também, perguntando-se o que a Sra. Castevet desejava.

— Vim para agradecer, disse a Sra. Castevet. — Agra­decer pelas coisas amáveis que nos disse, sabre o que Terry sentia a nosso respeito. Não podem fazer uma idéia do con­forto que tivemos, num momento de choque como aquêle, em saber que não tínhamos falhado e que não poderíamos ter qualquer parcela de responsabilidade no que acontecera. O recado que ela deixou era bastante claro; seu ato foi de livre e espontânea vontade. Ainda assim foi confortador escutar, de pessoas em que ela confiara, sua palavra quase derradeira.

—  Por favor, não há o que agradecer. Repetimos só o que ela nos disse, atalhou Rosemary.

—  Há pessoas que não se dariam o trabalho. Virariam as costas por preguiça ou inércia ou para não se envolverem em coisas desagradáveis. Quando se fica mais velho é que se percebe que atos de bondade se tornam cada vez mais raros e difíceis neste mundo em que vivemos. Por isso quero agra­decer, em meu nome e no de Roman. Roman é meu marido, sabe?

—  Não há o que agradecer. Fico contente por ter ajudado.

—  Ela foi cremada ontem de manhã, numa cerimônia simples. É o que teria desejado. Agora teremos que esquecer e continuar a vida. Não vai ser fácil. Como não tivemos filhos, ela tinha um papel todo especial em nossas vidas. Vocês têm filhos?

—  Não. Ainda não.

A Sra. Castevet olhou para a cozinha,, exclamando: — Que graça! Ficaram lindas estas panelas de cobre na parede. E está interessante o cantinho do café da manhã.

—  Foi copiado de um livro de decoração, disse Rosemary.

—  A pintura do apartamento de vocês está ótima. Foi o proprietário que pagou? Aposto que deram um dinheirinho extra aos pintores. A pintura lá de casa não chega aos pés desta.

—  Demos apenas uma gorjeta de cinco dólares a cada um, disse Rosemary.

— Só isso? A Sra. Castevet virou-se e olhou a saleta: —Que bom! Uma saleta de televisão!

— É só temporária, espero. Será futuramente o quarto das crianças.

—  Você está grávida? perguntou a sra. Castevet exami­nando-a com atenção.

—  Não. Espero ficar assim que tudo esteja arrumado.

—  Ótimo. Espero que tenham muitos filhos. Vocês são jovens e sadios.

— Queremos ter uns três. A senhora gostaria de ver o resto do apartamento?

—  Adoraria. Estou louca para ver o que você fez com ele. Vínhamos aqui freqüentemente, pois a inquilina anterior era boa amiga nossa.

—  É, eu sei. Terry me contou. Rosemary passou à frente da Sra. Castevet para indicar o caminho.

—  Ah! É mesmo? Parece que vocês duas bateram gran­des papos naquela lavanderia...

A Sra. Castevet mostrou-se encantada com a sala de estar: — Que diferença ! Parece tão maior e mais clara. E que poltrona linda!

—  Chegou há poucos dias, disse Rosemary.

—  Quanto é que você pagou por ela?

Meio desconcertada Rosemary respondeu: — Não tenho bem certeza. Acho que foi coisa de uns duzentos dólares.

—  Não leve a mal tanta pergunta, disse a Sra. Castevet batendo no nariz. — É por isto que tenho o nariz tão compri­do: de tanto xeretar.

Rosemary riu-se e disse: — Claro que não. Pergunte à vontade.

A Sra. Castevet inspecionou a sala, o quarto e o banheiro, perguntando quanto o filho da Sra. Gardênia tinha cobrado pelo tapete e pela penteadeira, onde tinham comprado os aba­jures, qual a idade de Rosemary e se a escova de dentes elé­trica era realmente melhor do que as comuns. Rosemary acabou se divertindo com a insaciável curiosidade da velha, com seu sotaque atroz e com suas perguntas indiscretas. Con­vidou-a à tomar um café.

Sentada na mesa da cozinha e examinando os preços im­pressos nas latarias, a Sra. Castevet perguntou: — E o que faz seu maridinho? Rosemary contou. — Eu sabia! exclamou:

— Disse ontem a Roman que um rapaz bonitão ‘daquele jeito devia ser artista de cinema. Há uns três ou quatro aqui no prédio, sabe? Em que filmes trabalhou?

—  Até o momento em nenhum. Tomou parte em duas peças: Luther e Nobody Loves an Albatross. Trabalha mais em rádio e televisão.

Tomaram o café acompanhado de bolo ali mesmo na cozinha, pois a Sra. Castevet assim insistiu. — Escute, Rosemary, estou com um belo pedaço de filé temperadinho e pronto para ir ao forno. Como Roman e eu agora estamos sós, metade será desperdiçado. Por que você e Guy não vêm jantar conosco hoje?

—  Não sei, acho que não vai dar jeito.

—  E por que não? Palavra, Rosemary, ficaríamos con­tentes se vocês viessem. Olhou para Rosemary com os olhos marejados de lágrimas. — Tivemos visitas ontem e ante­ontem. Será a primeira vez que estaremos sozinhos depois do que aconteceu.

Rosemary, penalizada disse: — Se a senhora está certa de que não vamos incomodá-la...

— Querida, se fosse me amolar, não os teria convidado. Pode acreditar, sou tão egoísta quanto meu nariz é comprido.

— Não foi isso que Terry me contou, disse Rosemary sorrindo.

—  Ora, Terry não sabia de quem estava falando.

—  Terei que combinar com Guy, mas acho que a senho­ra pode contar conosco.

A Sra. Castevet disse, feliz: — Ótimo! Combine tudo. Mas diga a ele que não aceitarei uma recusa. Quero, quando ele ficar famoso, dizer a todos que o conheci no começo da carreira.

Tomaram o café conversando sobre as dificuldades e os prazeres da carreira teatral, sobre a má qualidade dos novos shows de televisão e sobre a greve dos jornais.

Ao se despedir, a Sra. Castevet perguntou: — As seis e meia é muito cedo para vocês?

— Não, será perfeito.

       — Roman não gosta de jantar tarde. Tem má digestão e não consegue dormir direito se comer muito tarde. Sabe onde é nosso apartamento, não é? Às seis e meia em ponto no 7 A. Estaremos esperando vocês com ansiedade. Ao sair, viu os envelopes sobre o capacho e disse: — Olhe, querida chegou sua correspondência. Quase só anúncios. Bem, é melhor do que nada.

Guy chegou, de péssimo humor, lá pelas três horas. Sou­bera por seu agente que, tal como temia, o papel que tanto desejara na nova peça tinha sido ganho por Donald Baum­gart (que nome pouco teatral!). Rosemary beijou-o, fez com que se instalasse na poltrona nova e trouxe-lhe um sanduíche de queijo derretido e uma cerveja em lata. Lera a peça e não gostara, provavelmente nem chegaria à Broadway, e Donald Baumgart voltaria à obscuridade, disse a Guy, querendo con­solá-lo.

—  Mesmo que a peça seja um fracasso, o papel é exce­lente e será muito comentado pela crítica. Com um bom de­sempenho um ator está feito. Guy abriu o sanduíche, olhou o recheio com indiferença tornou a fechá-lo e começou a comer.

— A Sra. Castevet esteve aqui hoje de manhã. Veio para agradecer termos repetido o que Terry me havia dito a respeito deles. Acho que no fundo ela queria é ver o apar­tamento. É a pessoa mais xereta que conheci. Acredita que indagou o preço de tudo?

— Você está brincando.

—  E vai logo dizendo que é curiosa mesmo, o que faz com que a gente ache graça em vez de se chatear. Chegou a passar em revista até o armário de remédios.

— Assim, sem mais esta nem aquela?

— Assim mesmo. E sabe o que estava vestindo?

— Um saco de farinha de trigo com três interrogações.

—  Não, calças de toureiro!

—  Calças de toureiro?

—  Verde-limão, ainda por cima.

—  Meu Deus!

Rosemary ajoelhou-se no chão e começou a tomar a me­dida das janelas para fazer almofadas para os bancos que ficavam sob o parapeito. — Convidou-nos para jantar com eles hoje, disse olhando para Guy. — Respondi que teria que consultar você, mas que provavelmente iríamos.

—  Esta não, Ro. Como é que você foi aceitando assim?

—  Acho que se sentem sós. Por causa de Terry.

—  Querida, se começarmos uma amizade com um casal de velhos como esses, não vamos conseguir nos livrar deles. Ainda mais morando no mesmo andar e sendo ela introme­tida como você diz.

—  Eu lhe disse que podia contar conosco.

—  Pensei que tivesse dito que iria me consultar primeiro.

—  Disse, mas, coitada, pareceu-me tão feliz, tão certa de que você toparia, que não tive jeito de desapontá-la.

—  Hoje não é minha noite de escoteiro. Não estou com vontade de praticar a boa ação e ser bonzinho com Ma e Pa Kettie. Minha filha, sinto muito mas você vai pegar no tele­fone, ligar para ela e dizer que nada feito.

— Está bem, você é quem decide... disse Rosemary con­tinuando a tirar as medidas.

Guy terminou de comer e brincou: — Vai ficar zanga­dinha durante muito tempo?

—  Não estou zangada. Acho que você tem razão. Seus argumentos são todos válidos. Não estou zangada, não.

—  Que diabo! Vamos lá.

—  Não, não, para quê? Já fiz as compras e não me custará nada aprontar o jantar.

—  Está resolvido, vamos. Vou acabar tendo minha noite de escoteiro.

—  Está bem, mas só se você quiser de verdade. Pro­curaremos fazer com que entendam que isto não significa o começo de uma grande amizade. Confere?

—  Confere.

 

Alguns minutos antes das seis e meia, Rosemary e Guy saíram de seu apartamento e caminharam pelos corre­dores atapetados de verde em direção à porta dos Castevets. Quando Guy tocou a campainha, o elevador ao lado abriu-se, saindo dele a figura de Dubin ou de De Vore (nunca sabiam quem era quem), carregando um terno num saco de plástico, fornecido pela lavanderia. Sorriu para eles e disse, brincando:

— Vocês não estão batendo em porta errada? Rosemary e Guy riram enquanto Dubin (ou De Vore?) abria a porta do 7 B, avisando: — Sou eu.

A porta dos Castevets abriu-se e a velha senhora apare­ceu, toda penteada e pintada, vestida de verde com um aven­talzinho rosa. Recebeu-os com um sorriso, dizendo: — Che­garam na horinha. Roman está preparando os drinques. Guy, como estou satisfeita que tenha vindo! Não vejo a hora de contar aos meus amigos que o famoso Guy Woodhouse es­teve em minha casa no começo de sua carreira. Ora, já jantou nesta mesa, comeu neste prato. Aliás, nem vou lavá-lo; guar­darei como souvenir.

Guy e Rosemary se entreolharam. Os olhos dêle diziam: “sua-amiga-hein?” e os dela respondiam: “eu-não-disse?”

Entraram numa ampla sala, onde estava posta uma mesa retangular, coberta com toalha de linho bordado, pratos de­semparelhados e fileiras de talheres de prata cinzelada. A es­querda, via-se a sala de estar, no mínimo duas vezes maior do que a deles, mas mais ou menos com a mesma disposição: tinha uma grande janela côncava em lugar de duas pequenas e uma lareira imensa em mármore rosa esculpido. A sala era mobiliada de modo estranho: ao lado da -lareira havia um sofá, algumas cadeiras e uma mesa com abajur; ao lado oposto, uma confusão de arquivos de ferro, mesas de jogo empilha­das de jornais, estantes repletas de livros e uma máquina de escrever sobre uma mesinha de ferro. A frente da lareira abria-se um deserto de dez metros de área atapetada, tendo, bem ao centro, uma mesinha redonda com alguns números de Life e, Look e Scíentific American. O tapete parecia novo e tinha as marcas recentes do aspirador de pó.

A Sra. Castevet fez com que se sentassem no sofá; mi­nutos depois a figura do sr. Castevet apareceu, trazendo nas mãos uma bandeja com quatro copos transbordando um líqui­do rosado e transparente. Pisando com cuidado, sem tirar os olhos de sua carga e parecendo que a qualquer momento iria tropecar e derrubar tudo, disse: — Acho que enchi demais os copos. Por favor, não se levantem. Por favor. Geralmente trabalho com a precisão de um bartender, não é, Minnie?

—  Cuidado com o tapete, disse a Sra. Castevet.

—  Mas hoje, continuou ele, aproximando-se mais — fiz uma quantidade muito grande e, para não desperdiçar... Aqui estamos. Sãos e salvos. Sentem-se, por favor. Aceita um, Sra. Woodhouse?

Rosemary tirou um copo, agradeceu e sentou-se. A Sra. Castevet rapidamente deu-lhe um guardanapo de papel.

—  Sr. Woodhouse, aceita um Vodka Blush? Já tomou este coquetel?

—  Nunca, mas vou experimentar, disse Guy tomando um copo e sentando-se.

—  Você quer, Minnie?

— Tem uma cara ótima, disse Rosemary com um sor­riso meio forçado, enquanto disfarçadamente procurava enxu­gar a base do copo.

—  São muito apreciados na Austrália, disse o Sr. Caste­vet. Tomou o copo restante e ergueu-o na direção de Rose­mary e Guy: — A saúde de nossos convidados. Bem-vindos a nosso lar. Bebeu, fechando os olhos para saborear melhor e da bandeja inclinada caíram algumas gotas, molhando o tapete.

A Sra. Castevet engasgou ao ver o estrago e reclamou logo: — Olhe o tapete!

O  Sr. Castevet abriu os olhos e equilibrou a bandeja.

— Um tapete novo. Novinho em fôlha! Que sujeito de­sajeitado!

Os Vodka Blushes estavam realmente deliciosos.

— Vocês vieram da Austrália?, perguntou Rosemary depois do tapete ter sido enxuto, a bandeja guardada na co­zinha e os Castevets estarem finalmente instalados em ca­deiras de espaldar reto.

— Não, nasci aqui mesmo, em Nova York, respondeu o Sr. Castevet, mas já morei na Austrália. Aliás, já estive literalmente no mundo inteiro. Tomou mais um gole do Vodca Blush e continuou: — Em todos os continentes, em todos os países, em todas as grandes cidades. Pode dar um nome qual­quer e aposto como já estive lá. Vamos, diga um.

—  Fairbanks, Alaska, disse Guy.

— Conheço. Aliás conheço todo o Alaska: Fairbanks, Juneau, Anchorage, Nome, etc. Passei quatro meses lá, em 1938, e percorri todo o território. Conheço até as cidadezinhas que nem aparecem nos mapas.

— E vocês, de onde são? perguntou a Sra. Castevet.

— Sou de Omaha, respondeu Rosemary. — Guy é de Baltimore.

— São cidades ótimas.

— O senhor viaja a negócios? indagou Guy.

— Negócios e prazer. Tenho setenta e nove anos e ando percorrendo este nosso mundo desde os dez. E como já disse: pode indicar um nome que já estive lã.

— Qual o seu ramo de negócio?

—  Todos. Lã, açúcar, brinquedos, máquinas, seguros, petróleo...

Uma campainha tocou lá na cozinha. A Sra. Castevet levantou-se com o copo na mão, dizendo: — O filé está pronto. Não tomem os drinques correndo. Levem-nos para a mesa. Roman, não se esqueça de seu remédio.

    — Vai terminar a três de outubro —  disse o Sr. Castevet — bem na véspera do Papa chegar. Nenhum Papa visitaria uma cidade com os jornais em greve.

— Ouvi na TV que ele vai adiar a viagem e esperar até que a greve acabe, disse a sra. Castevet.

— É, gente de teatro é assim. Não vai entrar numa fria dessas fazendo uma viagem sem a cobertura da imprensa, disse Guy brincando.

O  casal Castevet riu gostosamente. Rosemary, meio con­trafeita, sorriu e começou a comer. O filé estava ressecado e sem gosto e vinha acompanhado de ervilhas e purê de bata­tas, cobertas por um molho pastoso.

Sempre rindo, o Sr. Castevet disse: — Acertou em cheio, Guy. Aquilo é mesmo um teatro.

— Um espetáculo completo, corrigiu Guy.

— As roupagens, o ritual, a música... Mas não é só na Igreja Católica. Todas as religiões são a mesma coisa. Um circo para distrair a plebe ignara, ‘disse o Sr. Castevet.

— Acho que Rosemary não está gostando da conversa, comentou a dona da casa.

— Fui criada na religião católica, mas hoje sou agnós­tica. Não fiquei aborrecida. Palavra.

—  E você, Guy, é ateu também? perguntou o Sr. Castevet.

— Creio que sim. Não vejo em que acreditar. Afinal, não há provas irrefutáveis quer da existência, quer da ine­xistência de Deus.

— É isso mesmo.

A Sra. Castevet, observando Rosemary com atenção, con­tinuou: — Notei que ficou meio constrangida quando rimos da piada de Guy a respeito do Papa.

—  Bem, é o Papa. Acho que fui condicionada a admi­rá-lo e a respeitá-lo, ainda que não o considere mais uma fi­gura sagrada.

—  Se você pensa assim, é mais uma razão para não respeitá-lo, pois ele anda por aí enganando todo mundo, di­zendo que é sagrado.

—  Argumentação perfeita, Sra. Castevet, disse Guy.

—  Quando penso no que gastam em roupas e jóias...

—  Um bom exemplo da hipocrisia que está por trás das religiões foi dado muito bem, a meu ver, naquela peça inglê­sa Luther. Pelo que Minnie me contou, você teve nela um papel importante, não é, Guy?, perguntou o Sr. Castevet.

—  Papel importante? Não, nada disso!

—  Você não era o substituto de Albert Finney?

—  Não, o substituto dele era o rapaz que fazia o papel de Weinand. Fiz apenas duas pontas nessa peça.

—  Engraçado, seria capaz de jurar que era você. Lem­bro-me de um gesto seu, um gesto tão perfeito que procurei descobrir no programa quem era você.

—  Que gesto?

—  Não me lembro bem, um movimento de braços.

—  Seria por acaso naquela hora em que Lutero tinha o acesso de epilepsia e eu procurava apoiá-lo? Uma coisa assim...

—  Exatamente. Tinha uma autenticidade tão grande em contraste com as atitudes estudadas dos outros atores, que cheguei a me perguntar por que você não desempenhava o papel principal.

—  Agradeço, mas não exageremos...

—  Palavra, achei o desempenho de Finney muito for­çado. Gostaria de saber o que você teria feito em seu lugar.

       — Somos dois a nos perguntarmos o mesmo. Guy lançou um olhar triunfante em direção a Rosemary, que sorria con­tente ao verificar que Guy estava satisfeito. Estava livre de possiveis recriminações sobre uma noite perdida com Ma e Pa Kettie.

—  Meu pai era produtor teatral, disse o Sr. Castevet. — Passei minha infância na companhia de atores da esta­tura de Mrs. Fiske, Forbes-Róbertson, Otis Skinner e Modjeska. É por isso que exijo de um ator um pouco mais do que talento. Você, Guy, tem uma qualidade indefinível, que aparece até mesmo quando faz um filme de publicidade. Essa qualidade irá levá-lo ao ponto mais alto de sua profissão, desde que você tenha a sorte de encontrar a chave de ouro que abre as portas do sucesso e da qual nenhum ator pode prescindir. Você está trabalhando em algum papel?

—  Estou tentando conseguir um ou dois.

—  Não posso acreditar que tenha dificuldade em con­segui-los.

—  Pois eu posso, disse Guy amargamente.

O   Sr. Castevet arregalou os olhos: — Está falan­do sério?

A sobremesa era um pudim de abóbora à moda do in­terior, um pouco melhor do que o prato principal, mas Ro­semary achou-o muito doce e meio enjoativo. Guy, estra­nhamente, elogiou muito e repetiu a dose. Devia estar representando, pensou Rosemary, que conhecia o marido, ou então retribuía os elogios.

Depois do jantar, Rosemary se ofereceu para ajudar a lavar a louça. A Sra. Castevet aceitou imediatamente e as duas mulheres tiraram a mesa quando Guy e o Sr. Castevet foram para a sala.

A cozinha era pequena e parecia ainda menor pelo es­paço tomado pela estufa-mirim, que Terry havia menciona­do. Ficava sobre uma grande mesa branca embaixo da ja­nela, sendo aquecida e iluminada por luzes potentes que se refletiam sobre as paredes de vidro. O espaço restante era ocupado pela pia. o fogão e a geladeira; armários de cozinha apareciam entre um utensílio e outro. Rosemary, ao lado da Sra. Castevet trabalhava esforçadamente, com a satisfação íntima de saber que sua cozinha era maior e melhor equipa­da. Disse: — Terry contou-me sobre sua estufa.

—  É um de meus hobbies. Você devia ter uma também.

—  Talvez um dla eu tenha uma horta. Quando for mo­rar num subúrbio, é claro. Caso Guy consiga trabalhar no cinema, pretendemos morar em Los Angeles numa casa. Con­tinuo, no fundo, uma moça do interior.

—  Você tem família numerosa?

—  Sim, tenho três irmãos e duas irmãs. Sou a caçula.

—  Suas irmãs são casadas?

—  São, sim.

—  Têm filhos? perguntou a Sra. Castevet enquanto en­saboava cuidadosamente a parte interior de um copo.

—  Uma tem dois e a outra, quatro. Pelo menos era essa a contagem até a última vez que falei com elas. Pode ter aumentado agora.

—  É um bom sinal para você, disse a Sra. Castevet ain­da ensaboando o copo (trabalhava com lentidão minuciosa). —      Se suas irmãs têm muitos filhos, você deverá ter também. Essas coisas são de família.

—  Acho que somos uma família bastante fértil, disse Rosemary, esperando com a toalha na mão, para enxugar o copo. — Meu irmão Eddie já tem oito e está só começan­do, pois tem vinte e seis anos.

—  Meu Deus! exclamou a Sra. Castevet enxaguando o copo e dando-o a Rosemary.

—  Acho que tenho já uns vinte sobrinhos. Não conhe­ço nem a metade.

—  Você não costuma visitar sua família com freqüência?

—  Não. Estão meio brigados comigo, com exceção de um de meus irmãos. Consideram-me a “ovelha negra...”

—  Por quê?

—  Por Guy não ser católico e por não termos casado na Igreja.

—  Que bobagem. Não sei como se podem, em nome de uma religião, fazer coisas assim. Bem, azar deles. Não deixe que isso a aborreça.

—  Isto é mais fácil dizer do que fazer. Já me aborreci muito. Mas, vamos trocar? A senhora não quer que eu lave, enquanto a senhora enxuga?

—  Não, minha filha. Está ótimo assim.

Rosemary olhou para a sala. Só conseguia ver a parte tomada pelos arquivos de aço e pelas mesas de jõgo; o Sr. Castevet e Guy estavam sentados no outro lado, con­versando. A fumaça azulada de seus cigarros pairava no ar.

—  Rosemary?

Rosemarv virou a cabeça. A Sra. Castevet lhe estendia, com a mão numa luva de borracha verde, um prato lavado e enxaguado.

Levaram quase uma hora para lavar e secar toda a louça. Rosemary estava certa de que faria o trabalho na metade do tempo. Quando saíram da cozinha, encontraram Guy e o Sr. Castevet no sofá, conversando animadamente. O velho. parecendo querer convencer Guy de alguma coisa, reforçava sua argumentação batendo com o indicador na palma da mão.

—  Roman, pare de amolar Guy com suas histórias so­bre Modjeska. Ele já deve estar com a paciência esgotada, disse a Sra. Castevet.

—  Pois acho-as interessantíssimas, Sra. Castevet, dis­cordou Guy.

—  Viu só, Minnie?

—  Por favor, vamos acabar com este negócio de senhor e senhora. Chamem-nos de Minnie e Roman, está bem?

—  Está bem, Minnie, respondeu Guy sorrindo.

Comentaram a respeito dos vizinhos, em especial Dubin e De Vore, falaram sobre o irmão de Terry que tinha sido encontrado num hospital de marinheiros em Saigon e, por estar o Sr. Castevet lendo o relatório Warren, também so­bre o assassinato de Kennedy. Rosemary, sentada numa das cadeiras de espaldar reto, sentia-se meio por fora, como se os Castevets fossem velhos amigos de Guy a quem acabasse de ser apresentada. — Você acha que houve um complô organizado?, perguntou-lhe o Sr. Castevet. Ela respondeu meio ressabiada, como se fosse urna estranha a quem o dono da casa, por gentileza, procurasse entrosar na conversa. Pe­diu licença e foi até o banheiro, onde encontrou toalhas de papel florido escritas Para Hóspedes e um livro, não muito engraçado, com o título Leituras para o Trono.

Saíram lá pelas dez e meia, despedindo-se e agradecen­do aos donos da casa e prometendo repetir em breve a visita, promessa completamente mentirosa, pelo menos da parte de Rosemary. Saíram e, logo que ultrapassaram o primeiro cor­redor, entreolharam-se e soltaram ao mesmo tempo um sus­piro exagerado de alívio.

—  Roman, pare de amolar Guy com essas histórias de Modjeska, disse Guy, imitando perfeitamente o sotaque e a expressão de Minnie.

Rosemary, mal contendo um acesso de riso, fez sinal de silêncio e entraram, como crianças, nas pontas dos pés e de mãos dadas, em seu apartamento. Fecharam a porta, pas­saram a corrente de segurança e a tranca e Guy fingiu estar pregando com diligência três tábuas de madeira pesada, arrastar um pesado móvel e levantar uma ponte levadiça ima­ginária. Enxugou a testa e, arfando com o esforço hercúleo, virou-se para Rosemary, que estava dobrada de tanto rir: — E aquêle filé?

—  Meu Deus! E o pudim! Como é que você conseguiu repetir? É preciso ter estômago.

—  Minha cara menina, esse foi um ato de coragem so­bre-humana e de total sacrifício. Pensei comigo mesmo: apos­to como nunca uma pessoa qualquer pediu a esta velha co­ruja para repetir um prato. Resolvi dar uma colher de chá. Você sabe que às vezes sinto acessos incontroláveis de cavalheirismo, disse Guy, fazendo gestos de grão-senhor.

—  Ela cultiva ervas e especiarias numa estufa na cozi­nha. Quando atingem determinado tamanho, arranca-as e joga pela janela.

—  Cuidado! As paredes têm ouvidos. E aqueles ta­lheres de prata, hein?

—  Não é engraçado? Pratos desparelhados e talheres divinos!

—  Vamos bancar os bonzinhos; talvez façam um tes­tamento deixando-os para nós.

—  Vamos ser mauzinhos e comprar os nossos. Você foi ao banheiro?

—  Não, por quê?

—  Adivinhe o que têm lá.

—  Já sei, um bidê.

—  Não. Um livro intitulado Leituras para o Trono!

       —  Mentira!

—  Sim, senhor! Um livro pendurado numa correntinha, bem ao lado do vaso.

Guy sorriu, sacudindo a cabeça. Começou a tirar as abotoaduras, dizendo: — As histórias que Roman contou eram um bocado interessantes; nunca tinha ouvido falar em Forbes-Robertson, mas parece ter sido um dos grandes ar­tistas da época. — Parecia ter dificuldades em retirar a abotoadura direita. — Vou voltar lá amanhã para ouvir mais coisas.

Rosemary perguntou incredulamente: — Você pretende ir novamente lá, amanhã?

—  Sim, Roman convidou-me. Estendeu o braço para Rosemary, dizendo: — Veja se consegue tirar esta.

Rosemary dirigiu-se a ele, procurando ajudá-lo e, meio desconcertada, falou: — Pensei que já tivéssemos combi­nado sair com Jiminy e Tiger.

—  Estava combinado no duro?, perguntou Guy sem en­cará-la. — Pensei que tinha ficado por confirmar.

—  Bem, não em definitivo.

Guy encolheu os ombros: — Vamos deixar para ou­tro dia.

Rosemary tirou a abotoadura, estendendo-a a Guy, que continuou: — Você não precisa ir. Se preferir, fique em casa.

—  Acho que é o que vou fazer, respondeu Rosemary sentando-se na cama.

—  Ele conheceu Henry Irvin também. Conheceu um bocado de gente importante.

Rosemary tirou as meias. — Por que será que tiraram os quadros da parede?

—  Que quadros?

—  Sei lá, mas havia quadros nas paredes da sala e do corredor que dá para o banheiro. Os pregos ainda estão nelas e as marcas são visíveis. Tentaram cobrir uma com outro quadro, porém não conseguiram, pois era menor que o anterior.

— Não reparei, disse Guy olhando para ela.

—. E por que teriam na sala todos aqueles móveis de escritório?

—  Isso ele me explicou. É que Roman publica uma re­vistinha para colecionadores de selos. É assinada por gente do mundo inteiro. Por isso é que recebeu tanta correspondên­cia de fora.

—  Está certo, mas por que na sala? Com um aparta­mento daquele tamanho, por que não usar um dos quartos?

Guy chegou perto de Rosemary e apertou-lhe o nariz carinhosamente, dizendo: — Você está mais xereta do que Minnie. Deu-lhe um beijinho na testa e entrou no banheiro.

Alguns minutos mais tarde Rosemary estava na cozi­nha fervendo água para fazer café quando sentiu uma dorzi­nha aguda que era o prenúncio de sua menstruação. Meio frustrada e desapontada, continuou a fazer o café.

Estava com vinte e quatro anos — queriam ter três fi­lhos, um cada dois anos — mas Guy ficava sempre adian­do, esperando o momento certo. Rosemary começava a pen­sar que o momento certo para ele só chegaria quando fosse maior que Marlon Brando e Richard Burton juntos. Será que não sabia o quanto era talentoso e simpático? Duvida­ria de sua capacidade? O plano dela era engravidar por “aci­dente” — as pílulas davam náuseas e os preservativos de borracha eram repugnantes. Guy brincava dizendo que, no fundo, ela continuava católica praticante e ficava de olho no calendário, evitando os dias perigosos, mesmo quando ela procurava enganá-lo, dizendo: — Hoje pode, meu bem. Te­nho certeza.

Mais uma vez ele vencera. Vencera essa batalha ingló­ria em que ambos, quase inconscientemente, estavam empe­nhados: — Diabo! exclamou derrubando a tampa do bule na pia. Guy, lã da sala, gritou: — Que é que há?

—  Dei uma batida com o cotovelo, respondeu.

Ao menos agora sabia por que estivera tão deprimida durante aquela noite.

Era sempre assim; se estivessem vivendo juntos sem es­tarem casados, provavelmente já teria engravidado umas vin­te vezes.

 

Na noite seguinte, logo depois do jantar, Guy foi até a casa dos Castevets. Rosemary arrumou a cozinha e ficou indecisa entre fazer as almofadinhas para os bancos da ja­nela ou se meter na cama com um bom livro, quando a cam­painha tocou. Era a Sra. Castevet, acompanhada de outra senhora de meia-idade, gorda, baixinha e sorridente que tra­zia, na lapela do vestido verde, um botão de propaganda elei­toral, Buckley para Prefeito.

—  Alô, querida, espero que não venhamos incomodá-la, disse Minnie quando Rosemary abriu a porta. — Vim apre­sentar a você minha amiga, Laura-Louise Burney, que mora no décimo andar. Laura-Louise, esta é Rosemary e esposa de Guy.

—  Muito prazer, Rosemary. Seja bem-vinda ao Bram.

—  Laura-Louise conheceu Guy agora, lá em casa, e fi­cou com vontade de conhecê-la também, por isso trouxe-a aqui. Guy disse que você não estava fazendo nada. Pode­mos entrar?

Em tom educado, mas irritada com a sem-cerimônia de Minnie, Rosemary convidou-as a entrar na sala.

—  Ah! Cadeiras novas. São lindas, disse a Sra. Castevet.

—  Chegaram hoje mesmo.

—  Você está se sentindo bem, querida? Parece meio cansada.

—  Não, estou bem. No primeiro dia da menstruação, fico sempre meio abatida.

—  Você devia é ir para a cama. Os meus primeiros dias eram tão desagradáveis que não podia comer, andar ou fazer qualquer movimento. Para matar a dor, tinha que to­mar um cálice de gim, embora eu e Dan, meu marido, fôsse­mos totalmente abstêmios, disse Laura-Louise.

—  As moças de hoje são feitas de matéria-prima me­lhor do que a nossa, Laura-Louise. Parecem ter mais resis­tência do que nós. Acho que é por causa das vitaminas e dos esportes que praticam.

As duas senhoras instalaram-se comodamente no sofá e abriram, para consternada surpresa de Rosemary, as bol­sas de costura que traziam, delas tirando um crochê (Laura­Louise) e meias para cerzir (Minnie). Pareciam ter vindo dispostas a passar a noite em bate-papo e trabalhos ma­nuais. Rosemary notou que as bolsas eram verdes e idênticas.

—  O que é aquilo? Capas para as poltronas?, pergun­tou a sra. Castevet.

—  Almofadas para o banco da janela, respondeu Rose­mary, dizendo consigo mesma: “Pronto, sua dúvida resolvi­da. Vai mesmo é costurar as almofadinhas.” Apanhou-as e juntou-se às duas senhoras no sofá.

—  Você fez mudanças radicais neste apartamento, Ro­semary, comentou Laura-Louise.

—  Antes que me esqueça, querida, deixe-me dar-lhe um presentinho. Meu e de Roman, para você. A Sra. Castevet tirou da bolsa um embrulho pequeno, que colocou na mão de Rosemary.

—  Presente para mim?

—  Um presentinho sem valor. É só para trazer-lhes boa sorte em sua nova vida.

—  Não precisava incomodar-se, disse Rosemary, abrin­do o embrulho. Dentro, enrolado em papel de sêda, estava o amuleto de Terry, preso na correntinha de prata. Seu cheiro desagradável fez com que Rosemary afastasse um pouco a cabeça.

—  É muito antigo. Tem mais de trezentos anos.

—  É lindo, disse Rosemary fingindo examinar a boli­nha de prata e se perguntando se deveria contar tê-lo visto em poder de Terry, mas a ocasião passou e achou melhor não mencionar novamente a tragédia.

—  Essa substância que está dentro da bolinha é chama­da raiz-de-tannis. É para dar sorte.

“Não para Terry”, pensou Rosemary, dizendo — É lin­do, mas não creio que deva aceitar um presente tão valioso.

—  Já é seu, querida. Ponho-o no pescoço, disse a Sra. Castevet sem tirar os olhos da meia que cerzia.

—  Você se acostumará logo com o cheiro, disse Laura-­Louise.

—  Bem, então muito obrigada, agradeceu Rosemary, colocando a correntinha no pescoço. O amuleto, um corpo estranho e frio, aninhou-se entre seus seios. “Vou tirar esta droga assim que saiam”, pensou Rosemary.

Laura-Louise continuou: — A correntinha foi inteira­mente feita a mão por um caro amigo nosso. É um dentista aposentado que se distrai fazendo jóias de ouro e prata. Você irá conhecê-lo qualquer dia destes em casa de Roman e Min­nie. Você conhecerá todos os amigos deles — nossos amigos...

Interrompeu-se, e Rosemary notou que ela estava cora­da e sem jeito, como se tivesse cometido uma gafe. Minnie continuava cerzindo sem parar. Rosemary sorriu para Laura-­Louise, que, mais aliviada, mudou de assunto.

—  Você mesma é quem faz suas roupas?, perguntou.

Não, já tentei várias vezes, mas não consigo acertar.

       A noite não foi tão tediosa quanto Rosemary temera. Minnie contou histórias divertidas de seus tempos de meni­na em Oklahoma, Laura-Louise ensinou-lhe alguns segredos de costura e falou longamente sobre Buckley, o candidato conservador para prefeito, explicando que, apesar da forte oposição, ainda teria chances de vencer.

Guy chegou às onze, parecendo preocupado e inquieto. Cumprimentou as senhoras e beijou Rosemary.

Já são onze horas! Como o tempo voa! Vamos, Lau­ra-Louise, disse a Sra. Castevet. As duas mulheres guarda­ram os trabalhos nas bolsas, despediram-se e saíram rapi­damente.

—  As histórias de hoje foram tão interessantes quanto as de ontem?, indagou Rosemary.

—  Muito. E você, como passou o tempo?

—  Trabalhando.

—  Estou vendo.

—  Ganhei um presente também, disse ela, mostrando a Guy o amuleto. — Era de Terry. Ela me mostrou naquele dia, dizendo que eles lhe haviam dado. A polícia deve ter devolvido depois.

       — Vai ver que ela nem o estava usando quando se matou.

—  Aposto que estava. Estava tão orgulhosa dele, coi­tada, como se fosse o primeiro presente que ganhava na vida. Rosemary tirou a correntinha do pescoço e ficou com o amu­leto na palma da mão.

—  Você não pretende usá-lo?

—  Não. Tem um cheiro horrível. Vem da substância que está dentro da bolinha. Chama-se raiz-de-tannis e é cultivada por Minnie na estufa.

Guy pegou o amuleto, cheirou-o e disse: — Não acho o odor tão desagradável assim.

Rosemary entrou no quarto, abriu a gaveta da pentea­deira e tirou uma caixa onde guardava bugigangas. — Adeus, tannis, disse olhando-se no espelho. Guardou o amuleto na caixinha, fechou-a e recolocou-a na gaveta.

Guy, observando da porta, disse: — Se você o aceitou, devia usá-lo.

Tarde da noite Rosemary acordou e deu com Guy, sen­tado na cama, fumando pensativo. Perguntou-lhe o que tinha

       — Nada, um pouco de insônia, respondeu.

Deviam ser as histórias que Roman contara a respeito dos artistas famosos, achou Rosemary. De uma forma um tanto masoquista, Guy devia estar comparando sua carreira com a de Henry Irving e Forbes-não-sei-quê, achando-se um fracassado.

Chegou-se mais junto dele, dizendo-lhe que não se preocupasse.

—  Com o quê? perguntou Guy.

—  Com nada.

—  Está bem, não me preocuparei mais.

—  Você é o maior, sabe? Estou falando sério. Tudo vai acabar bem. Já estou prevendo as aulas de karatê que vai ter que tomar para se ver livre dos fotógrafos.

Ele sorriu, iluminado pela brasa do cigarro.

—  E vai ser para já. Sua grande oportunidade. Aquela que está esperando há tantos anos...

—  Talvez. Durma, querida.

—  Tá bem. Cuidado com o cigarro.

— Não se preocupe.

—  Acorde-me se não conseguir dormir.

—  Durma.

—  Adoro você, Guy.

—  Adoro você, Ro.

Alguns dias mais tarde, Guy chegou ao apartamento com duas entradas para o espetáculo de sábado à noite dos The Fantastiks que lhe tinham sido dadas por Dominick, seu professor de dicção. Como Guy já tivesse visto o show na primeira versão e Rosemary estava louca para assisti-lo, suge­riu que ela fosse com Hutch; ele ficaria em casa estudando um novo papel.

Hutch, porém, já tinha assistido o espetáculo e Rose­mary acabou indo com Joan Jellico que, durante o jantar, confidenciou a Rosemary que ela e Dick iam se divorciar, pois nada mais tinham em comum a não ser o mesmo ende­reço. Rosemary sentiu-se aborrecida com a notícia, pois ultimamente Guy também andava preocupado e distante; havia algum problema que não conseguia resolver sozinho, mas que não trazia ao seu conhecimento. Teria a separação de Joan e Dick começado assim? Ficou com raiva de Joan, que pa­recia querer chamar a atenção sobre si, usando maquilagem exagerada e falando muito alto. Realmente não poderia ha­ver nada em comum entre ela, vulgar e fútil, e Dick, sério e introvertido. Não deviam sequer ter casado.

Quando Rosemary voltou para casa, encontrou Guy saindo do chuveiro. Parecia outro. Estava alegre, animado e até mesmo um tanto excitado. Rosemary alegrou-se. Fa­lou-lhe sobre o show, que tinha sido melhor do que esperara, contou do iminente divórcio de Joan e Dick e perguntou-lhe, finalmente, se estudara bem o novo papel.

—  Perfeito. — respondeu Guy — já sei de cor e salteado.

—  Que diabo esse cheiro de tannis! exclamou Rose­mary. Todo o quarto estava dominado por aquêle odor amargo e irritante. Penetrara até no banheiro. Rosemary pegou na cozinha um pedaço de papel de alumínio, colocou dentro o amuleto, embrulhou bem embrulhado e tornou a guardá-lo na caixa que ficava na gaveta.

—  Dentro de alguns dias deve diminuir, disse Guy.

—  É melhor que diminua mesmo, disse Rosemary dan­do bombadas no ar com o vapor de desodorizante — senão acabo jogando fora este maldito amuleto e dizendo a Minnie que perdi.

Amaram-se — Guy estava ardente e apaixonado — e mais tarde Rosemary passou a escutar, vindo do apartamento vizinho que parecia estar em festa, o mesmo canto, monóto­no e persistente, quase um coro religioso, seguido ou entre­meado pelo som agudo de uma flauta ou clarineta, que já escutara outra noite.

Guy manteve-se animado e alegre durante o domingo, fazendo prateleiras e subdivisões no armário do quarto de dormir e decidindo convidar todo o “cast” de Lutther para inaugurar o apartamento. Na segunda-feira, cancelou a aula com Dominick e ficou em casa pintando o interior do armá­rio e atendendo ansiosamente cada vez que o telefone tocava. Lá pelas três horas da tarde o telefone tocou e Rosemary, que estava na sala modificando a posição de uns quadros, ouviu-o dizer: — Oh, não! Pobre coitado! Que tragédia!

Rosemary correu até o quarto.

       — Meu Deus!, exclamou Guy, quase como numa oração. Estava sentado na cama, com o fone numa das mãos e segurando na outra uma lata de tinta. Sem olhar para Ro­semary, continuou: — Eles não têm idéia da causa? Que coisa terrível! Ouviu durante alguns momentos e respondeu: — Sim, estou interessado. Sim, já sei. É claro que detesto consegui-lo por esse motivo. Parou para escutar o que o outro dizia. — Bem, esse assunto vocês resolvam com o Allan, Allan Stone, meu agente. Estou certo de que não haverá qualquer dificuldade, Sr. Weiss, pelo menos não de nos­sa parte.

Finalmente! pensou Rosemary. A Grande Oportunida­de! Aquela que esperara durante toda a sua vida.

—  Muito obrigado, Sr. Weiss. E por favor avise-me se houver alguma modificação. Obrigado.

Desligou e fechou os olhos. Ficou imóvel, com a mão ainda sobre o telefone. Parecia um manequim, pálido e rígi­do; uma estátua num museu de Pop-Art. vestida com roupas reais, com um telefone de verdade numa das mãos e uma lata de tinta na outra.

—  Guy! exclamou Rosemary assustada.

Abriu os olhos e olhou-a.

—  Que é que houve?,

Guy piscou os olhos e pareceu ter voltado a realida­de. Disse: — Foi Donald Baumgart. Ficou cego. Acordou hoje e... e não pôde mais enxergar.

—  Não diga!

—  Tentou enforcar-se esta manhã. Está sob sedativos num sanatório de doenças mentais.

Entreolharam-se nervosamente.

—  Ofereceram-me o papel. Aceitei, é claro, ainda que fosse esta a última maneira pela qual desejaria obtê-lo. Le­vantou-se e colocando a lata de tinta na mesinha de cabeceira disse: — Escute, vou ter que sair e tomar um pouco de ar. Desculpe-me, mas quero ficar só. Preciso de algum tem­po para pensar e botar a cabeça no lugar.

—  Compreendo. Vá, querido.

Saiu como estava, deixando a porta se fechar suavemente às suas costas.

Rosemary voltou para a sala, pensando no pobre Do­nald Baumgart e no feliz Guy Woodhouse. Feliz ele, feliz ela, com o papel magnífico que iria chamar a atenção dos críticos mesmo que a peça fracassasse; que iria abrir caminho para outros papéis melhores, talvez mesmo para um chama­do de Hollywood; uma casa em Los Angeles com piscina, jardim e horta; três crianças, uma por ano. Coitado do Do­nald Baumgart, infeliz até no nome. Devia ser bom ator, melhor que Guy, pois fora o escolhido para o papel. Coitado, jogado num sanatório, sob a ação de sedativos para não se matar. Cego, cego como um morcego.

Ajoelhada no banco da janela, Rosemary ficou olhan­do a porta, esperando ver Guy sair. Quando começariam os ensaios? Ela viajaria com ele, é claro. Como ia ser diver­tido conhecer cidades como Boston, Filadélfia e Washington. Enquanto Guy estivesse ensaiando, iria passear e fazer com­pras; à noite, depois dos ensaios, a companhia se reuniria para conversar, tomar drinques e contar as últimas.

Rosemary esperou e esperou, mas não viu Guy sair. De­via ter usado a porta que dava para a outra rua.

Agora, quando deveria estar mais do que feliz e ani­mado, Guy se mostrava preocupado e tenso. Ficava imóvel horas a fio, parecendo só ter vivos em seu corpo as mãos, que levavam incessantemente cigarros à boca, e os olhos, bri­lhantes como brasas, que a seguiam pelo apartamento como se ela fosse um animal perigoso.

—  O que é que há com você?, perguntou Rosemary uma, dez, vinte vezes.

—  Nada. Você não vai à aula de escultura?

—  Já faz mais de dois meses que não vou.

—  Por que não vai hoje?

Resolveu ir. Chegou ao curso, montou o arcabouço e começou, com o pensamento longe dali, a cobri-lo de massa. O instrutor, que usava óculos e tinha o pomo-de-adão sa­liente perguntou-lhe por onde andara.

—  Em Zanzibar, respondeu Rosemary rudemente.

—  Zanzibar não existe mais, agora se chama Tanzânia.

Saiu e não voltou mais.

Uma tarde, para encher o tempo, foi dar uma olhada nas vitrines do Macy’s e do Gimbels. Quando voltou, quase não reconheceu sua própria casa: estava cheia de rosas. Até a cozinha estava cheia delas. Encontrou Guy saindo do quar­to com uma rosa na mão e um sorriso nos Lábios que implo­rava seu perdão. Parecia estar representando para ela o papel que tanto estudaram juntos, o de Chance Wayne na peça de Tennessee Williams Sweet Bird of Youth.

—  Tenho sido um cretino. E a causa, canalha que sou, é esperar que Baumgart não recupere a vista.

—  É natural. Compreendo seu dilema.

—  Escute, continuou ele dando-lhe a rosa — mesmo que este negócio falhe e que passe o resto da vida fazendo comerciais na TV, não vou fazer com que você pague o pato.

—  Você não tem feito isso.

—  Tenho sim. Sou tão egocêntrico, penso tanto em mim e na minha carreira que mal me sobra tempo para você. Vamos ter um filho, tá? Vamos ter três, um de cada vez, é claro.

Rosemary olhou-o perplexa.

—  Um filho, sabe? Um nené, fraldinhas, gu-gu, dá-dá.

—  Você está falando sério?

—  Claro. Já verifiquei até no calendário o dia certo. Segunda e terça-feira que vem estão marcados em vermelho.

—  Você está falando sério mesmo, Guy? perguntou Ro­semary com os olhos cheios de lágrimas.

—  Não, estou brincando. É claro que estou falando sério, sua boba. Não chore, Rosemary. Não chore, por favor.

—  Está bem, não vou chorar mais.

—  Puxa!, disse Guy. Eu fiquei biruta em matéria de rosas, não fiquei? Tem mais no nosso quarto...

 

Rosemary saiu e foi até o fim da Broadway para comprar filés de peixe-espada e em seguida atravessou a Lexington Avenue para procurar queijos. Não que fosse im­possível encontrar peixe ou queijos em seu bairro, mas por­que, naquela manhã gloriosa e radiante, desejava percorrer toda a cidade, caminhando a passos rápidos, chamando a atenção de todos com sua graça e beleza e impressionando os caixeiros com a precisão e o acerto de suas compras. Era segunda-feira, quatro de outubro, dia da visita do Papa à cidade. O interesse pelo acontecimento era contagiante e tornava as pessoas mais comunicativas e acessíveis. Rosemary pensou: “Como é bom estar feliz e encontrar toda uma ci­dade no mesmo estado de espírito”.

Acompanhou pela televisão, durante a tarde, todos os movimentos do Sumo Pontífice, levando o aparelho da sa­leta (em breve, quarto de crianças) e ligando-o na cozi­nha para que pudesse continuar assistindo mesmo durante os preparativos para o jantar. Ouviu o discurso feito por ele na ONU, em que dizia: ‘Guerra, nunca mais!” Suas pala­vras, pensou Rosemary, deveriam impressionar mesmo o mais descrente dos políticos, servindo, quem sabe, para aliviar a guerra do Vietnã.

As quatro e meia, quando se preparava para arrumar a mesa de jantar em frente à lareira, o telefone tocou.

—  Rosemary, como vai você?

—  Bem, e você? Era Margaret, sua irmã mais velha.

—  Tudo bem.

—  Você está telefonando de onde?

—  Daqui, de Omaha.

As duas irmãs nunca se tinham dado muito bem. Mar­garet, por ter freqüentemente que tomar conta dos irmãos menores, era uma moça autoritária e rabugenta. Receber um telefonema assim, sem mais nem menos, era coisa mais do que estranha, era até amedrontador.

—  Estão todos bem? perguntou Rosemary pensando consigo mesma “alguém morreu ou está gravemente doente. Quem será? Papai? Mamãe? Brian?”

—  Por aqui tudo bem.

—  Bem mesmo, Margaret?

—  Está sim, e você?

—  Estou ótima, já disse.

—  É estranho, Rosemary, passei todo o dia com a im­pressão de que alguma coisa tinha acontecido a você. Que estivesse doente ou sofrido um acidente...

—  Nada aconteceu. Estou muitíssimo bem.

—  Sabe, era um sentimento esquisito. Sentia que ha­via algo errado com você. Passei o dia inteiro tão impres­sionada que finalmente Gene achou melhor eu telefonar para saber.

—  Como vai ele?

—  Bem.

—  E as crianças?

—  Com as briguinhas e os tombos de sempre. Você sabe que estou esperando outro?

—  Não sabia. Que bom! Para quando? Rosemary pen­sou consigo mesma “em breve eu estarei também”.

—  Lá pelos fins de março. E seu marido, Rosemary?

—  Guy está bem. Conseguiu um papel importante numa peça que vai entrar logo em ensaios.

—  Escute, você viu o Papa? A cidade deve estar em polvorosa.

—  Se está! Estou assistindo pela televisão. Estão trans­mitindo em Omaha também?

—  Não. Só vão exibir os vídeo-tapes. Você não foi ver o Papa, Rosemary?

—  Não, não fui.

—  Que coisa! Francamente, Rosemary, você sabe que papai e mamãe iam tomar um avião para Nova York só para vê-lo? Não foram porque vão começar uma greve e papai é um dos organizadores. Alguns amigos nossos foram: os Do­novans e Dot e Sandy Wallingford. Você aí, vivendo nessa cidade, não teve sequer a curiosidade de ir?

—  A religião já não significa o mesmo para mim como quando estava em casa.

—  Bem, acho que isso era inevitável (Rosemary podia adivinhar as palavras não faladas que completariam a sen­tença: ,... “quando se casa com um protestante”).

—  Margaret, obrigada por ter telefonado, mas não se preocupe. Nunca estive melhor em toda a minha vida.

—  Está bem. Mas tome cuidado, estou sentindo ainda a mesma sensação estranha. Acho que de tanto tomar con­ta de vocês em pequenos...

—  Abraços para todos. E diga a Brian que responda minha carta.

—  Está certo. Mas Rosemary, por favor, cuidado! Não saia de casa hoje. Continuo com um pressentimento...

—  Hoje? Não pretendo botar mais os pés na rua, disse Rosemary olhando para a mesa de jantar.

—  Ótimo. Cuide-se, Rosemary.

—  Sem dúvida. Cuide-se você também, Margaret.

—  Então até logo.

—  Até logo.

Rosemary começou a arrumar a mesa, sentindo vaga nos­talgia de seu tempo de criança, saudades de Brian, Marga­ret, dos outros irmãos, de Omaha e de um passado que não voltaria mais.

Quando a mesa estava arrumada, tomou um longo ba­nho, perfumou-se, penteou os cabelos e fez uma maquila­gem caprichada. Vestiu um palazzo-pijama vermelho, pre­sente de Guy no Natal passado.

 

Guy chegou logo depois das seis. Beijou-a dizendo com admiração: — Você está tão gostosa que me dá vontade de mordê-la. Por falar nisso, vamos jantar logo? Acabo de des­cobrir que sou uma besta!

—  Que foi?

—  Esqueci de comprar pudim.

Tinha recomendado que ela não fizese sobremesa, pois traria da rua a sua favorita: pudim de abóbora da Horn e Hardart.

—  Fico com vontade de dar um soco na minha própria cara. Passei por duas filiais; não uma, duas e me esqueci.

—  Não tem importância. Temos frutas e queijos para sobremesa.

—  Não senhora. Tem que ser o pudim de abóbora de Horn e Hardart.

Entrou no banheiro para tomar um chuveiro rápido e mudar de roupa; Rosemary colocou no forno os champignons recheados e começou a fazer o molho para a salada.

Minutos depois Guy apareceu na porta da cozinha, abo­toando uma camisa azul. Estava com os olhos brilhantes e parecia meio excitado como da primeira vez em que tinham dormido juntos. Rosemary sentiu-se satisfeita em vê-lo assim...

—  Seu amigo, o Papa, atravancou todo o trânsito da cidade, disse.

—  Você o viu na televisão? Deram-lhe uma cobertura fantástica.

—  Dei uma olhada na casa de Allen. Os copos estão no congelador?

— Sim. Fez um discurso excelente na ONU. “Guerra nunca mais!” foi sua frase principal.

— Amém! Ôba! Estes drinques estão com uma cara ótima.

Tomaram os Gibbons e comeram os champignons re­cheados na sala. Guy colocou na lareira alguns pedaços de madeira, pedras de carvão e folhas de jornal. — Vamos mandar brasa, disse brincando e, com um fósforo, acendeu o papel que pegou fogo imediatamente. Uma fumaça ne­gra começou a se espalhar pela sala. — Jesus!, exclamou Guy, procurando conter as chamas — Cuidado, olhe a pin­tura, gritou Rosemary.

Guy conseguiu abrir a chaminé, ligou o exaustor do ar condicionado e a fumaça desapareceu.

— Ninguém, mas ninguém mesmo em Nova York está hoje com a lareira acesa, disse Guy.

Rosemary, ajoelhada no chão, olhando encantada para as chamas exclamou: — Não é lindo? Espero que este ano tenhamos o inverno mais frio do mundo.

Guy colocou na vitrola o disco de Ella Fitzgerald can­tando músicas de Cole Porter.

Estavam comendo os filés de peixe quando a campainha tocou. — Merda! exclamou Guy levantando-se para atender. Rosemary inclinou a cabeça para escutar melhor.

Ouviu a porta se abrir e a voz de Minnie dizendo: —Alô Guy, e em seguida outras palavras que não pode enten­der. Rosemary pensou: “Por favor, Guy, não a convide para entrar. Hoje não, por favor.”

Guy disse qualquer coisa e Minnie respondeu: “... a mais. Não vamos precisar”. Ouviu a voz de Guy e depois novamente a de Minnie. Rosemary soltou um suspiro de alívio: pelo visto ela não parecia querer entrar.

A porta foi fechada e trancada (Ótimo!). Guy reapare­ceu com um sorriso vitorioso e com as mãos escondidas nas costas. — Quem foi que, disse que não teremos algo espe­cial?, perguntou ele estendendo os braços. Tinha em cada mão uma tacinha de doce. -— Madame e Monsieur terron une zobremesã diuine! Colocou uma taça ao lado do copo de vinho de Rosemary e a outra ao lado do dele.

— Temos aqui uma mousse au chocolat ou, como diz Minnie em seu francês atroz1 chocolat mouse.* Tendo conhecido a arte culinária de Minnie, acho melhor você to­mar cuidado com esse mouse, que pode ser mouse mesmo.

Rosemary respondeu no mesmo tom: — Que bom! Era exatamente o que eu pretendia fazer para a sobremesa de hoje.

— Está vendo só? Um caso típico de percepção extra-sensorial, disse Guy, sentando-se e servindo mais vinho.

— Quando vi que era Minnie fiquei morrendo de medo que fosse se plantar aqui e estragar tudo.

— Não, só queria que experimentássemos o tal mousse. Diz que é uma de suas es-pe-ci-a-li-da-des.

— Até que está com boa cara.

— Não é mesmo?

As taças estavam cheias de uma espuma cremosa de chocolate. A de Guy estava enfeitada com amêndoas moí­das, a de Rosemary, com a metade de uma noz.

— Coitada. É boa pessoa. Não devíamos caçoar tan­to dela.

— Tem toda razão, querida.

*Camundongo ao chocolate, na brincadeira de Guy. — (N. do T.)

 

A mousse estava boa, mas tinha no fundo um gosto es­tranho, um gosto de giz, que recordava a Rosemary a es­cola e os quadros-negros. Guy experimentou e não sentiu o “gosto de giz”. Rosemary parou de comer depois de duas ou três colheradas.

— Você não quer mais, meu bem? Que bobagem. Não tem gosto esquisito nenhum, disse Guy.

Rosemary insistiu que sentia um gosto estranho.

— Vamos, coma. Coitada da velha coruja; deve ter pas­sado a tarde inteira trabalhando em sua especialidade. Coma.

— Mas não estou gostando, disse Rosemary.

— Está deliciosa.

— Então coma a minha e a sua.

Guy fechou a cara. — Está bem. Não coma. Já que você não usa o presente que ela lhe deu, não precisa tam­bém comer suas sobremesas.

Rosemary, meio confusa perguntou: — O que tem uma coisa a ver com a outra?

— São ambos exemplos de... falta de consideração, para dizer o mínimo. Dois minutos atrás você estava dizen­do que não deveríamos mais gozá-la. Esta é uma forma de fazê-lo: aceitar presentes e depois esnobá-los.

—  Bem, chega de fazer onda. Rosemary tomou uma co­lherada de doce e enfiou-a na boca.

—  Não estou fazendo onda. Se você realmente acha insuportável, não coma.

— Delicioso, disse Rosemary com a boca cheia e pre­parando outra colherada. Não tem gosto esquisito algum. Guy, vire os discos.

Guy levantou-se e dirigiu-se à vitrola. Rosemary do­brou o guardanapo no colo e jogou dentro dele o resto da mousse. Tornou a dobrá-lo e ruidosamente passou a colher pelo interior da taça vazia e fingiu engolir o resto. — Viu, papai? Comi tudinho. Quando é que vou ganhar o presente?

—  Vai ganhar já. Desculpe-me se estava meio sobre o chato.

—  Estava e muito.

—  Perdão?

— Está perdoado. Olhe, no fundo até gosto quando você mostra consideração pelas velhas. Significa que fará o mesmo comigo quando eu ficar velhinha.

Tomaram café e crême-de-menthe.

— Margaret me telefonou esta tarde.

— Margaret?

— Minha irmã. De Omaha!

— Alguma má notícia?

—  Não, — estava com mêdo que tivesse acontecido algu­ma coisa comigo. Disse que estava com um pressentimento.

— Do quê?

—  Sei lá. Disse para não sairmos hoje de casa.

—  Que chato! Já tinha feito uma reserva no Grange Room do Nedick’s.

—  É. Sinto muito, meu bem, mas acho que vai ter que cancelar.

—  Como é que você saiu tão equilibrada, vindo de uma família biruta como a sua?

A primeira sensação de tontura acometeu Rosemary quando, na cozinha, despejava na pia a mousse que escon­dera no guardanapo. Cambaleou apoiando-se na pia. pis­cou com força e franziu a testa. Guy, da saleta gritou: —Éle ainda não chegou. Jesus! Que multidão! Não é que o Papa conseguiu superlotar o Yankee Stadium!

— Já estou indo, respondeu Rosemary.

Sacudindo a cabeça para clareá-la, Rosemary juntou os guardanapos e a toalha de mesa e colocou-os na cesta de roupa suja. Tampou a pia, encheu-a de água quente, des­pejou uma boa quantidade de sabão e colocou a louça para que ficasse de molho até o dia seguinte.

A segunda onda de tontura atingiu-a quando estava pendurando o pano de prato. Foi mais demorada e intensa; toda a sala girou em torno dela e suas pernas cambalearam.

Quando passou, Rosemary pensou consigo mesma:

“Menina, veja o resultado de dois Gibbons, vários copos de vinho e um crême-de-menthe! Não é para menos.

Conseguiu chegar até a porta da saleta, sustentando-se no trinco ao sentir nova tontura.

—  O que é que você tem?, perguntou Guy ansiosa­mente levantando-se para ajudá-la.

—  Estou tontinha.

Éle desligou a televisão e chegou ao lado dela e segu­rou-a pela cintura.

—  Toda aquela bebida num estômago vazio, só podia dar nisso...

Ajudou-a a chegar até o quarto e quando suas pernas não a sustentavam mais, carregou-a no colo e deitou-a na cama. Sentou-se ao lado dela, segurando-lhe a mão e aca­riciando-lhe a testa. Rosemary fechou os olhos. A cama pa­recia uma jangada, flutuando suavemente ao sabor das ondas.

—  Gostoso, murmurou.

— Durma. É melhor você dormir.

— Mas temos que fazer um nenê.

—  Faremos amanhã. Tem tempo. Amanhã de manhã.

— Logo agora, que a festa ia começar...

— Vamos, durma. Será melhor para você.

— Está bem. Só um cochilinho, disse Rosemary. Fe­chou os olhos e se viu sentada, com um drinque na mão, no iate do Presidente Kennedy. Estava um dia ensolarado e fresco, perfeito para um passeio de barco. O presidente, rá­pida e eficientemente dava instruções a um tripulante negro.

Guy tirou-lhe a blusa do pijama. — Por que está fa­zendo isso? — perguntou.

—  Para que fique mais confortável.

— Estou bem.

— Durma, Ro.

Éle abriu o fecho éclair e habilmente tirou-lhe as calças. “Pensa que estou dormindo, mas não estou”. Vestia agora somente um biquíni vermelho, mas isso não tinha importân­cia pois todas as outras mulheres que estavam a bordo — Jackie Kennedy, Pat Lawford e Sarah Churchill — usavam biquínis também. O presidente estava com seu uniforme da Marinha. Tinha-se recuperado completamente do assassi­nato, e parecia melhor do que nunca. Hutch, em pé no cais, sobraçava vários mapas meteorológicos. — Hutch não vem conosco?, perguntou Rosemary ao presidente.

— Só católicos, respondeu ele sorrindo. Detesto esses preconceitos, mas você sabe que temos que respeitá-los.

—  Mas Sarah Churchill não é protestante? Rosemary virou-se para mostrá-la, mas viu que tinha desaparecido. Em lugar dela estava toda a sua família: papai, mamãe, os ir­mãos, as irmãs, cunhados, cunhadas e filhos. Margaret, Jean, Geraldine e Dodie estavam grávidas.

Guy estava tirando a aliança do dedo dela. Teve von­tade de perguntar por que, mas estava tão cansada...

Dormir — murmurou. E dormiu.

A Capela Sistina estava aberta pela primeira vez a vi­sitação pública e Rosemary, no novo elevador que percorria o teto em posição horizontal, mostrando os afrescos tal como Michelangelo os teria pintado, se extasiava. Que beleza! Viu a figura de Deus, estendendo seu dedo para Adão para dar-lhe a divina centelha, a parte inferior de unta prateleira parcialmente forrada com papel de xadrezinho, como se es­tivesse sendo levada através do armário de roupa .branca. — Cuidado, disse Guy. Outra pessoa aconselhou: — Abai­xem-na um pouco mais.

— Tufão, gritou Hutch no cais, apontando para os ma­pas. Um tufão que já matou cinqüenta e cinco pessoas em Londres está vindo para cá! Rosemary sabia que ele estava com a razão. Precisava avisar o presidente. O barco ia en­trar em zona perigosa. Mas o presidente desaparecera; to­dos tinham desaparecido. O tombadilho estava vazio, com exceção do tripulante negro que, inexoravelmente, mantinha o barco em seu curso. Rosemary se dirigiu a ele sentindo de pronto que ele a detestava, que odiava todos os brancos. — É melhor que a senhora vá lá para baixo, disse cortesmente, porém odiando-a por dentro, não querendo nem ao menos saber qual o aviso que ela trazia.

À parte de baixo era um salão de baile imenso, onde, num lado, uma igreja ardia intensamente e, no outro, um homem de barba negra a fitava com malevolência. Bem no centro havia uma cama. Dirigiu-se a ela e viu-se cercada por homens e mulheres, todos nus. Guy estava entre eles. Eram velhos; as mulheres, grotescas, tinham os seios caídos e murchos. Minnie e Laura-Louise estavam entre o grupo. assim como Roman, que usava uma mitra e longas vestes negras. Com uma vara preta, que molhava as vezes num pote de tinta vermelha, sustentado por um homem moreno de bigodes brancos, fazia desenhos sobre o corpo de Ro­semary. A ponta da vara se movimentava sem parar, na barriga, nas. nádegas e nas coxas, produzindo uma cóce­ga agradável. Toda aquela gente nua cantava sílabas estranhas num tom monótono e sem melodia — uma flauta ou clarineta os acompanhava. — Ela está acordada. Está olhando, murmurou Guy para Minnie. —- Está olhando mas não está vendo nem ouvindo. Não se ela comeu o mouse. É como se estivesse morta. Agora cante, ordenou Minnie.

Jackie Kennedy entrou no salão usando um maravilhoso vestido de cetim bordado com pérolas. Dirigiu-se a Rose­mary: — É pena que você não esteja se sentindo bem.

Rosemary explicou-lhe sobre a mordida de camundon­go, minimizando para que Jackie não se preocupasse.

—  No caso de ter convulsões, é melhor que amarrem suas pernas, disse Jackie.

— É, talvez seja melhor. Pode ser que estivesse hi­drófobo. Notou com interesse que enfermeiros vestidos de branco amarravam suas pernas e braços nas quatro colunas da cama.

— Se a música a estiver incomodando, avise e farei com que parem imediatamente, ofereceu Jackie.

—  Não, por favor. Não modifiquem o programa por minha causa. Não me incomoda de maneira alguma.

Jackie sorriu com simpatia. — Procure dormir. Estarei esperando no tombadilho. Afastou-se, com o cetim de sua roupa sussurrando suavemente.

Rosemary dormiu um pouco. Sentiu quando Guy come­çou a acariciá-la. Uma carícia longa que começava em seus braços atados, descia sobre os seios, ventre e coxas e que terminava numa vibração voluptuosa entre as pernas. Repe­tiu a carícia mais e mais vezes, com suas mãos ardentes e suas unhas pontiagudas; quando ela estava preparada, mais-do-que-preparada, colocou um braço sob suas nádegas, le­vantou-a e penetrou com força dentro dela. Seu sexo estava imenso, dolorosa, gostosamente imenso. Deitou-se sobre ela, com o outro braço rodeando-lhe as costas e com seu peito poderoso esmagando o dela.

Estava usando uma espécie de armadura de couro ás­pero, pois era uma festa a fantasia. Brutal e ritmicamente ele a possuiu. Rosemary entreabriu os olhos e fitou olhos ardentes, amarelos e brilhantes como carvão em brasa, sen­tindo nos lábios um hálito úmido e fétido, um cheiro de enxofre e tannis. Ouviu grunhidos de gozo e a respiração ofe­gante dos espectadores.

—  Isto não é sonho, pensou ela, é real, está acontecen­do. Tentou protestar, mas qualquer coisa caiu-lhe sobre o rosto, sufocando-a com seu odor adocicado.

O   membro imenso continuou dentro de suas entranhas, o corpo coriáceo chocando-se contra o dela sem cessar, sem cessar, sem cessar.

O   Papa entrou no salão, carregando uma mala e tra­zendo um sobretudo no braço.

—  Jackie contou-me que você foi mordida por um ca­mundongo, disse.

—  É verdade. Foi por isso que não fui vê-lo, respon­deu ela com ar compungido, para que ele não suspeitasse que ela acabara de ter um orgasmo.

—  Não tem importância, minha filha. Não gostaríamos que pusesse sua saúde em perigo.

—  Estou perdoada, Pai?, perguntou.

—  Perdoada e absolvida. Estendeu a mão para que Ro­semary beijasse o anel. A pedra era uma bolinha de filigra­na de prata, dentro da qual. como se esperasse algo, a mi­núscula figura de Anna Maria Alberghetti.

Rosemary beijou o anel e o Papa saiu correndo para não perder o avião.


 

—  Ro, acorde, já passa das nove, disse Guy sacudin­do-a pelo ombro.

Ela afastou as mãos dele e virou-se para o outro lado. —          Cinco minutos mais, implorou, enfiando a cabeça no tra­vesseiro.

—  Levante-se, querida. Tenho que estar na casa de Do­mínick às 10, insistiu ele, puxando-lhe de leve os cabelos.

—  Coma fora.

—  De jeito nenhum. Deu-lhe uma palmadinha ca­rinhosa.

Lembrou-se de toda a noite passada: os sonhos, os drin­ques, a mousse de chocolate de Minnie, o Papa e aquele mo­mento terrível, entre a realidade e o pesadelo. Virou-se novamente na cama, levantou-se apoiada no cotovelo e olhou para Guy. Estava acendendo um cigarro, com cara de sono e meio barbado. Vestia pijama. Ela estava nua.

—  Que horas são? perguntou.

—  Nove e dez.

—  A que horas fui dormir?

— Lá pelas oito e meia, e você não dormiu, querida: capotou seria a melhor palavra. De agora em diante tomará coquetéis ou vinho e não coquetéis e vinho.

—  Tive sonhos horríveis! disse Rosemary esfregando a testa e fechando os olhos: sonhei com o Presidente Kennedy, o Papa, Minnie e Roman... Abriu os olhos e viu arranhões em seu seio: duas linhas vermelhas paralelas, que termina­vam no mamilo. As coxas ardiam: afastou as cobertas e viu mais arranhões, sete ou oito que riscavam toda a sua pele.

— Não precisa estrilar; já aparei as unhas, disse Guy mostrando as mãos.

Rosemary olhou-o sem compreender.

—  Eu não queria perder a Noite do Bebê, explicou.

—  Quer dizer que você... enquanto eu estava... de­sacordada...

Ele assentiu e sorriu sem jeito. — Foi meio divertido, algo na base da necrofilia.

Rosemary cobriu-se novamente com os lençóis, dizendo com raiva:

—  Sonhei que estavam me violentando. Não sei quem. Algo.., desumano, bestial.

—  Muito obrigado, pela parte que me toca, disse Guy.

—  Você estava lá assistindo tudo, assim como Minnie, Roman e outras pessoas... Era uma espécie de cerimônia religiosa.

—  Tentei acordá-la, mas você estava inteiramente apagada.

Ela virou-lhe as costas e começou a sair pelo outro lado da cama.

—  O que há com você? perguntou Guy.

—  Nada, disse sentada, sem olhar para ele. Mas pa­lavra que acho meio esquisito você fazer a coisa dessa ma­neira, estando eu inconsciente.

—  Não queria perder a Noite.

       — Poderia ter sido hoje, de manhã ou à noite. Ontem não era o único momento do mês. E mesmo que fôsse...

       — Só pensei em você; em fazer o que desejava, disse ele procurando acariciá-la.

       Ela se afastou com repulsa: — Deve ser um ato a dois e não um acordado e o outro dormindo. Bem, acho que es­tou sendo meia boba. Levantou-se e foi ao armário pegar um robe de chambre.

       — Desculpe-me por tê-la arranhado. Estava meio alto também.

       Fez o café da manhã e, depois que Guy saiu, lavou os pratos da noite anterior e arrumou toda a cozinha. Abriu as janelas da sala e do quarto — o cheiro acre de fumaça ain­da persistia no apartamento — limpou a casa, arrumou as camas e tomou um banho de chuveiro: um banho longo, pri­meiro quente depois frio. Permaneceu imóvel sob o jato de água, com a cabeça descoberta esperando lavar assim sua mente e raciocinar melhor.

       Teria sido a noite passada, como dissera Guy, a Noite do Bebê? Será que já estaria grávida, agora, neste momento? Por estranho que pudesse parecer, nem estava ligando. Sen­tia-se infeliz, fosse bobagem de sua parte ou não. Guy tinha feito uso dela sem seu conhecimento, tinha feito amor a um objeto (algo sobre o necrófilo) como se ela não fosse um ser de corpo e alma; pior ainda, tinha agido com tal prazer sel­vagem que deixara nela arranhões, dores e uma sensação de pesadelo — realidade tão vivida que quase podia ver em seu corpo os desenhos que Roman nele tinha feito com sua va­rinha de ponta vermelha. Ensaboou-se, esfregando a pele com vigor, quase com raiva. Na verdade, Guy tinha feito tudo aquilo com o melhor motivo do mundo: fazer um filho; na verdade, tinha bebido tanto quanto ela, mas Rosemary desejaria que nenhum motivo e nenhuma quantidade de ál­cool o levasse a possuí-la daquela maneira: um corpo sem alma, consciência ou feminilidade — o que quer que fosse que ele presumivelmente amasse em relação a ela mesma. Nes­te momento, rememorando as semanas e os meses passados sentia a presença inquietante de sinais até agora despercebi­dos, sinais de uma diminuição do amor de Guy por ela, de uma disparidade entre o que ele dizia e o que sentia. Era um ator; como poderia alguém julgar quando um ator era since­ro ou estava representando?

Para lavar tais pensamentos era necessário mais do que um chuveiro. Desligou a água e torceu os cabelos com as mãos. Enxugou-se e vestiu-se.

Ao sair de casa para fazer compras, tocou a campainha da casa dos Castevets para devolver as taças de mousse. — Você gostou, querida?, perguntou Minnie, — acho que botei creme demais.

—  Estava deliciosa. Vai ter que me dar à receita.

— Claro que sim. Você vai ao supermercado? Quer me fazer um favor? Seis ovos e uma lata de café; pagarei quando você voltar. Detesto sair para comprar só uma coisi­nha ou outra.

Havia um distanciamento agora entre ela e Guy, mas ele parecia não se aperceber disso. Os ensaios da peça iam começar a primeiro de novembro — Dont’ 1 Know You From Somewhere? era o título. Passava grande parte do tempo estudando seu papel, treinando o uso de muletas e do apa­relho ortopédico que ele exigia, e visitando a zona de Highbridge, no Bronx, local onde se passava a peça. Jan­tavam freqüentemente com amigos; quando ficavam em casa, caíam numa conversa artificial sobre móveis, programas de televisão e a greve dos jornais que estava para terminar. Foram à avant-premiêre de uma revista e à sessão especial de um novo filme; foram a festas e à inauguração da mostra de escultura dum amigo. Guy parecia não querer olhar para ela, estava sempre lendo um script, assistindo televisão ou conversando com outras pessoas. Ia cedo para a cama e já estava dormindo quando ela chegava. Uma noite foi até a casa dos Castevets para ouvir mais algumas das histórias de Roman sobre teatro, enquanto ela ficava no apartamento e via um filme na TV.

— Você não acha que precisamos conversar? pergun­tou-lhe Rosemary na manhã seguinte, durante o café.

— Conversar sobre o quê? Ela olhou para ele; parecia completamente ignorante do que se passava com eles.

— Sobre o que não temos dito.

— Que é que você quer dizer com isso?

— Que você não tem sequer olhado para mim.

— Que bobagem! Claro que tenho olhado para você!

— Não tem, não.

—  Querida, que é que há? Algo errado?

— Está bem. Não há nada. Esqueça.

— Não, não diga isso. Que é que há? O que está preocupando você?

— Nada.

— Meu bem, tenho andado realmente muito ocupado, estudando o papel e me acostumando com as muletas e com aquela droga toda. Você bem sabe Rosemary, o quanto isto é importante para nós. Só porque não passo o dia inteiro com o olho grudado em você não quer dizer que não a ame mais. Tenho que pensar em coisas práticas também.

Parecia estar representando o papel de cowboy, ingênuo e sincero, que fizera em Bus Stop.

— Está bem. Acho que estou sendo rabugenta.

— Você? Não conseguiria ser rabugenta mesmo que quisesse.

Debruçou-se sobre a mesa, beijou-a, e saiu.

Hutch tinha uma cabana perto de Brewster, onde pas­sava fins de semana ocasionais. Rosemary telefonou-lhe per­guntando se poderia usá-la durante três ou quatro dias, no máximo uma semana. Explicou: — Guy está estudando o novo papel e acho que será mais fácil para ele se eu me afas­tar um pouco.

       — É sua, disse Hutch. Rosemary foi até seu aparta­mento na Lexington Avenue para apanhar a chave.

       Passou primeiro numa delicatessen onde costumava com­prar quando morava ali perto e depois subiu até o aparta­mento de Hutch, que era pequeno, escuro, porém muito bem arrumado e limpo. Tinha um sofá que pertencera a Mada­me Pompadour e uma fotografia autografada de Winston Churchill. Hutch estava descalço, sentado entre duas mesi­nhas de jogo, cada uma com uma máquina de escrever e pi­lhas de papel. Seu costume era fazer dois livros ao mesmo tempo, passando de um para outro conforme a inspiração.

         — Estou louca para sair um pouco, disse Rosemary, sentada no sofá de Madame Pampadour. — Noutro dia che­guei à conclusão de que nunca estive tão sozinha em toda a minha vida — a não ser durante algumas horas, é claro. A idéia de passar três ou quatro dias isolada parece-me divina.

         — Quer uma oportunidade para sentar-se, pensar com calma e descobrir quem você é realmente, o que tem feito, e o que vai fazer, não é isso?

         — Exatamente.

         — Está certo, pode parar com esse sorriso forçado. Va­mos aos fatos: Guy bateu em você?

         — Não, não bateu em mim. Está com um papel difícil, o de um rapaz aleijado que finge estar ajustado. Tem que trabalhar com muletas e com um aparelho nas pernas e na­turalmente está preocupado e... bem, está muito preocupado.

         — Compreendo. Vamos mudar de assunto. O News deu uma relação completa de todas as tragédias ocorridas durante a greve dos jornais, um verdadeiro banho de san­gue. Por que não me contou que tinha havido outro suicí­dio lá no Paraíso onde mora?

         — Não contei? perguntou Rosemary.

         — Não, não contou.

         — Era uma pessoa que conhecíamos. A moça que co­mentei com você: a tal que tinha sido viciada em drogas e estava sendo reabilitada pelos Castevets, um casal que mora no mesmo andar que nós. Tenho certeza de que falei com você a respeito dela.

—      A moça que costumava ir a lavanderia com você?

         — Essa mesma.

— Parece que não a reabilitaram muito bem. Ela es­tava morando com eles?

         — Sim. Tornamo-nos amigos desde que essa tragédia aconteceu. Guy vai lá freqüentemente para escutar histórias de teatro. O pai do Sr. Castevet era produtor, lá pelo começo do século.

— Não pensei que Guy se pudesse interessar por um casal idoso. São idosos, não é?

— Ele deve ter setenta e nove anos, ela deve andar pelos setenta.

— Sobrenome esquisito. Como se escreve?

Rosemary soletrou-o.

— Nunca ouvi este nome antes. Devem ser franceses.

— O nome pode ser, mas eles não. Ele é nascido aqui mesmo na cidade e ela vem de um lugar chamado — acre­dite ou não — Busyhead, Oklahoma.

— Meu Deus! Que nome. Vou aproveitá-lo num de meus livros. Escute, como é que vai fazer para chegar até a cabana? Vai precisar de um carro, sabe?

— Vou alugar um.

— Leve o meu.

— Não, Hutch. Seria demais.

— Qual nada. Só o uso para ir daqui à esquina. Leve-o. Vai até me poupar trabalho.

Rosemary sorriu: — Está certo. Vou fazer o favor de levar seu carro.

Hutch deu-lhe as chaves do carro e da cabana, dese­nhou o mapa do caminho e fez uma lista de instruções a respeito da bomba d’água, do refrigerador e outras emer­gências possíveis. Calçou sapatos, vestiu um casaco e andou com ela até onde o carro, um velho Oldsmobile azul, estava estacionado. — Os documentos estão no porta-luvas. Fique o tempo que desejar. Não tenho planos para o uso imediato do carro ou da cabana.

— Estou certa de que não ficarei mais que uma semana. Guy talvez não queira que eu passe fora nem esse tempo.

Quando já estava sentada no carro, Hutch enfiou a ca­beça na janela dizendo: — Gostaria de dar-lhe meia dúzia de bons conselhos, mas vou tratar de minha vida, que não deve ser muito longa.

Rosemary beijou-o: — Muito obrigada. Por isto, por aquilo e por tudo mais.

Viajou na manhã de sábado, dia dezesseis de outubro e passou cinco dias na cabana. Durante os dois primeiros dias não pensou uma vez sequer em Guy — uma vingança propor­cional à maneira aliviada com que ele havia concordado com a viagem. Será que ela parecia precisar um bom repouso? Muito bem, ela teria um bom repouso, sem pensar nele. Deu passeios através de bosques maravilhosos, com árvores colo­ridas de amarelo e dourado, ia para a cama cedo e dormia até tarde, leu o último romance de Daphne du Maurier, e comeu com voracidade os alimentos que levara consigo. Sem pensar nele.

A partir do terceiro dia, porém, começou a pensar no marido. Era vaidoso, egocêntrico, superficial e mentiroso. Tinha se casado para ter uma claque, não uma companheira (a senhorita do interior de Omaha, que otária! “Conheço atores; já estou aqui há quase um ano”. Só tinha faltado andar atrás dele pelo palco levando na boca, como cão ames­trado, seu jornal favorito). Bem, ela lhe daria mais um ano para amadurecer, para se tornar um bom marido; caso isso não acontecesse, a solução seria o divórcio, aprovado pela Igreja ou não. Nesse meio tempo, pretendia voltar ao traba­lho e adquirir novamente aquele sentido de independência e auto-suficiência que tivera ao vir para Nova York. Seria forte, orgulhosa e estaria pronta para deixá-lo caso não cor­respondesse a seu ideal. As refeições glutônicas que consu­mia começaram a lhe fazer mal e naquele dia, sentindo-se meio enjoada, só conseguiu tomar a sopa e torradas. No quarto dia acordou com saudade do marido e chorou. O que estava fazendo ali, sozinha naquela cabana fria e miserável? Era tão terrível o que ele tinha feito? Ficara bêbado e dor­mira com ela sem pedir licença. Certo, mas seria motivo sufi­ciente para tal tempestade? Lá estava ele, com o papel mais importante de sua vida e ela — em vez de estar lá para ajudá-lo, assisti-lo e encorajá-lo — estava aqui no meio da­quele nada, comendo como uma leitoa e se sentindo com pena de si mesma. Claro que ele era vaidoso e egoísta; era um ar­tista, não era? (Laurence Olivier devia ser vaidoso e egoísta também.) Era tapeador e mentiroso, mas não foram esses defeitos que a tinham atraído? Essa irresponsabilidade, essa nonchalance tão diferentes de seu temperamento rígido e sério?

Tomou o carro e foi até Brewster para telefonar. A te­lefonista de recados (a simpática) respondeu: — Alô, meu bem, você já voltou do campo? Não? Guy saiu. Quando chegar pode ligar para você? Ah! Você telefonará novamente às cinco. Certo. Como é que está o tempo aí? Está se divertindo? Ótimo!

Tornou a telefonar às cinco, mas ele não tinha chegado. Jantou num restaurante e foi a um cinema. As nove ainda não tinha chegado, mas a telefonista de recados (a simpá­tica) tinha um dele para ela: deveria telefonar-lhe no dia seguinte, antes das oito da manhã ou depois das sete da noite.

No dia seguinte Rosemary chegou ao que parecia ser uma conclusão inteligente dos fatos. Os dois tinham culpa: ele por sua desconsideração e narcisismo e ela por não saber exprimir ou explicar sua insatisfação. Guy não poderia mudar sem saber o que ela desejaria ver mudado nele. Ela tinha que falar — não, eles tinham que conversar — pois ele também poderia estar sentindo uma insatisfação que ela ignorava. As coisas tinham que melhorar. Como tantas outras situações difíceis, esta tinha começado pelo silêncio, em lugar de uma conversa franca e honesta. Tornou a voltar a Brewster às seis, ligou e encontrou-o em casa.

—  Minha querida, como é que vai?

—  Bem, e você?

—  Tudo bem. Saudades suas.

Ela sorriu ao telefone. — Saudades tenho eu. Vou voltar amanhã.

— Ótimo, magnífico! Milhões de coisas têm acontecido por aqui. Os ensaios foram adiados até janeiro.

— Ë, por quê?

— Não conseguiram quem fizesse o papel da menina. É uma sorte para mim: vou fazer uma série para a televisão no próximo mês. Episódios curtos, meia hora cada um.

—  Vai mesmo?

—  Caiu do céu, Ro. E parece uma novela bastante boa. A cadeia ABC está gostando da idéia. Chama-se Greenwich Village; vai ser filmada lá mesmo e faço o papel de um es­critor de vanguarda. É praticamente o papel principal.

—  Que maravilha, Guy!

—  Allan vive dizendo que agora me “descobriram” de uma vez.

—  Já estava em tempo.

—  Olhe, vou ter que desligar. Tenho que fazer a barba, tomar banho e sair correndo pois vamos a um ensaio onde es­tará Stanley Kubrick. A que horas você vai chegar?

—  Lá pelo meio-dia, talvez um pouco mais cedo.

—  Estarei esperando. Um beijo.

—  Um beijo para você.

Telefonou para Hutch, que não estava em casa e deixou recado dizendo que devolveria o carro no dia seguinte.

Logo pela manhã limpou a cabana, fechou-a e voltou para a cidade. O tráfego na rodovia estava engarrafado por uma tripla colisão e só conseguiu chegar ao Bramford lá pela uma hora. Estacionou o carro em lugar proibido, pegou a maleta e correu para casa.

O   ascensorista disse que Guy devia estar em casa, mas não sabia ao certo, pois tinha largado o serviço entre onze e doze.

Parecia estar. O álbum No Strings estava tocando na vi­trola e Rosemary abriu a boca para chamá-lo quando Guy saiu do quarto, em direção à cozinha levando na mão uma xí­cara de café.

Beijaram-se longa e ardentemente.

—  Divertiu-se?, perguntou.

—  Horrível. Uma droga. Senti tanta saudade de você.

—  Está melhor?

—  Estou bem. Como foi com Stanley Kubrick?

—  Nem apareceu, judeu miserável.

Beijaram-se novamente.

Trouxe a maleta para o quarto e abriu-a na cama. Ele entrou com duas xícaras de café, deu-lhe uma e tomou a sua sentado no banquinho da penteadeira enquanto ela desfazia a mala. Contou-lhe sobre os bosques dourados e as noites si­lenciosas; ele falou sobre Greenwich Village, quem mais es­tava trabalhando na série, quais eram os produtores, diretores e autores.


       —  Você está bem mesmo? perguntou, enquanto ela fe­chava a mala.

— Não estou entendendo a pergunta.

—  Seu incômodo. Devia ter vindo na terça-feira.

—  É mesmo?

Ele sacudiu a cabeça, assentindo.

— Bem, um atraso de dois dias, disse, calma como se seu coração não estivesse em disparada. — Talvez seja por causa da mudança de clima ou de alimentação.

— Nunca se atrasou antes.

— Deve vir hoje. Ou amanhã.

—  Quer apostar?

—  Quero.

—  Cinqüenta pratas?

—  Feito.

—  Você vai perder, Ro.

—  Cale a boca. Você está me deixando nervosa. São só dois dias de atraso. Deve vir hoje mesmo.


 

A MENSTRUAÇÂO não veio naquela noite, nem nos dias seguintes. Rosemary passou a mover-se cautelosamente, an­dando pouco e não fazendo qualquer esforço que pudesse ex­pulsar o que possivelmente se tivesse alojado dentro dela.

Ter a tal conversa com Guy? Não, agora podia esperar. Tudo podia esperar.

Fazia as compras, arrumava a casa, cozinhava, respiran­do com cuidado. Laura-Louise procurou-a uma manhã, pe­dindo-lhe que votasse em Buckley. Disse que votaria, só para se ver livre dela.

—  Quero as cinqüenta pratas que apostei, disse Guy.

—  Cale a boca, respondeu ela, dando-lhe um tapinha no braço.

Marcou hora num obstetra e na quinta-feira, vinte e oito de outubro, foi a seu consultório. Seu nome era Dr. Hill. Fora-lhe recomendado por uma amiga. Elise Dustan, que tinha sido atendida por ele em duas gravidezes e conside­rava-o ótimo. Seu consultório ficava na Rua Setenta e Dois.

Era mais jovem do que Rosemary esperava — mais ou menos da idade de Guy — e parecia um pouco com o Dr. Kildare. Gostou dele. Interrogou-a minuciosamente e com interesse, examinou-a e enviou-a a um laboratório onde uma enfermeira tirou sangue para exames.

O   médico telefonou para Rosemary no dia seguinte: —Senhora Woodhouse? Aqui fala o Dr. Hill. Parabéns.

—  Verdade?

—  Verdade.

Ela sentou-se na cama sorrindo para o telefone. É ver­dade, é verdade, é verdade!

— Está me ouvindo?

— O que tenho que fazer agora?, perguntou.

—  Muito pouco. Gostaria de vê-la no próximo mês. Compre pílulas de Natalin e comece a tomar uma por dia. Preencha um formulário que vou enviar pelo correio. É para a maternidade; é melhor fazer a reserva o mais cedo possível.

— Para quando vai ser?

— Como sua última menstruação foi no dia vinte e um de setembro, deve ser lá para vinte e oito de junho.

—  Parece tão longe.

— E é. Ah! Mais uma coisa, senhora Woodhouse. O laboratório precisa de mais um pouco de seu sangue. A se­nhora poderia passar lá amanhã ou depois, para tirarem mais um pouco?

— Sim, claro. Mas por quê?

—  A enfermeira não recolheu a quantidade necessária.

—  Bem, mas estou grávida, não é?

—  Não tenha a menor dúvida. Preciso um exame mais completo — açúcar no sangue, fator RH, etc. — a enfermeira que era nova não tirou a quantidade que desse para todos. Não há com o que se preocupar. A senhora está grávida. Sob minha palavra.

—  Está bem, passarei lá amanhã.

— Lembra-se do endereço?

— Sim, tenho o cartão.

—  Vou pôr os formulários no correio, e desejo vê-la na última semana de novembro.

Marcaram hora para vinte e nove de novembro à uma da tarde e Rosemary desligou, sentindo que havia algo de errado. A enfermeira do laboratório parecia saber exatamen­te o que estava fazendo e a maneira do Dr. Hill quando se referiu a ela parecia pouco ética. Não se teriam enganado? Trocado os tubos de sangue? Haveria possibilidade de não estar grávida? Mas o Dr. Hill tinha praticamente dado sua palavra de médico.

Tentou não pensar no assunto. Claro que estava grávi­da; tinha que estar, com um atraso daqueles. Foi à cozinha, pegou o calendário e no quadrinho do dia seguinte escreveu:

Lab; no quadrado do dia vinte e nove de novembro: Dr. Hill — 1:00.

Quando Guy chegou, Rosemary, sem dizer palavra, co­locou-lhe uma moeda na mão. — Que é isto? perguntou sem compreender, mas num segundo deu-se conta do significado. — Que ótimo, querida! É maravilhoso, disse abraçando-a e beijando-a repetidas vezes.

—  Não é mesmo? perguntou ela.

—  Maravilhoso. Estou tão feliz!

—  Papai?

—  Mamãe?

—  Escute, Guy, falando sério, vamos começar vida nova, sim? Vamos ser mais francos e sinceros um com o outro. Ul­timamente temos andado muito distantes. Você só pensa na peça, na série para a televisão e nas novas perspectivas que estão aparecendo a cada momento — não quero dizer que esteja errado nem seria normal se agisse de maneira di­ferente. Foi por isso que me afastei durante alguns dias, Guy, para descobrir o que havia de errado entre nós dois. O que foi, também de minha parte, uma falta de sinceridade, quase uma fuga.

— Tem razão, disse Guy segurando-a pelos ombros e fitando-a bem a fundo — tem toda razão. Senti a mesma coisa, talvez com menos intensidade que você. Sou tão ego­cêntrico e vaidoso. Ro. Acho que é meu grande mal. São os ossos do ofício, creio. Mas sabe que a amo, Ro, sabe que adoro você. Vou procurar demonstrar melhor o que sinto. Serei tão sincero quanto...

—  É minha culpa também.

—  Bobagem. Conheço bem meus defeitos e meu egoísmo sem limites. Mas vou procurar mudar, Ro. Só peço um voto de confiança.

— Oh! Guy, meu querido, exclamou Rosemary tomada por uma onda de remorso e amor. Beijaram-se longa e apai­xonadamente.

—  Belo comportamento para futuros pais...

Rosemary sorriu, com os olhos úmidos de lágrimas.

— Escute, querida, sabe o que adoraria fazer?

—  O quê?

—  Contar a Minnie e Roman — levantou a mão para impedir seu protesto e continuou: — sei que quer manter o mais total e absoluto segredo, mas contei-lhes que estáva­mos tentando e ficaram tão satisfeitos... Além disso, queri­da, com pessoas daquela idade, se demorarmos a contar, talvez nem cheguem a saber.

— Conte-lhes, disse ela cheia de amor.

—  Voltarei já, disse. Beijou-a na ponta do nariz, virou-se e correu para a porta. Observando-o sair, Rosemary deu-se conta do quanto Minnie e Roman se haviam tornado impor­tantes para ele. Não era de surpreender: sua mãe era uma mulher ocupada e meio egoísta e nenhum de seus “pais” tinha sido muito paternal com ele. Os Castevets estavam preenchen­do uma lacuna que o próprio Guy ignorava existir nele. Sentiu-se grata e prometeu-se tratá-los melhor no futuro.

Foi até o banheiro, lavou o rosto, penteou-se e passou batom. — Você está grávida, disse olhando-se no espelho (mas o laboratório quer outro exame. Por quê?).

Ao sair do banheiro, os Castevets estavam chegando com Guy, Minnie com um vestido caseiro e Roman trazendo nas mãos uma garrafa de vinho. Sorriam e falavam ao mesmo tempo. — Esta é a melhor notícia que tenho tido nos últimos tempos. Pa-ra-béns! exclamou Minnie abraçando-a e beijan­do-a em ambas as faces.

—  Nossos melhores votos de felicidade, Rosemary, disse Roman beijando-a também. — Acho que estamos tão conten­tes quanto vocês. Não temos champanha, mas este Saint Julien, safra 1961. servirá como substituto.

Rosemary agradeceu.

—  Para quando está esperando, querida? perguntou Minnie.

—  Lá pelo dia vinte e oito de junho.

—  Esta espera vai ser tão emocionante...

—  Faremos todas as suas compras e ajudaremos no que for necessário, disse Roman.

—  Por favor, não se incomodem.

Guy e Roman foram buscar copos e abrir a garrafa de vinho na cozinha. Minnie segurou Rosemary pelo braço e ambas se dirigiram à sala.

—  Escute, querida, você já arranjou médico?

— Sim, já arranjei — e muito bom por sinal.

—  Um de nossos melhores amigos é o maior obstetra de Nova York. o doutor Abe Sapirstein. É judeu. Faz os partos de todas as senhoras da alta sociedade e faria o seu também, caso pedíssemos. Cobraria um preço camarada; você teria um médico excelente e economizaria o dinheiro que Guy faz tanta força para ganhar.

—  Abe Sapirstein? perguntou Roman entrando na sala. — É um dos melhores parteiros do país. Devem conhecê-lo, pelo menos de nome.

— Tenho a impressão que sim, disse Rosemary, que tinha visto o nome num artigo de jornal ou revista.

— Conheço sim, disse Guy. — Não apareceu faz algum tempo na televisão, no programa Open End?

—  Esse mesmo! É um médico de fama nacional, confir­mou Roman.

—  Ro, que acha?

— E o Dr. Hill? perguntou.

—  Deixe comigo. Direi a ele qualquer coisa plausível.

Rosemary pensou no Dr. Hill, tão jovem, tão Dr. Kildare, e no seu laboratório ineficiente que estava sendo causa de preocupações e aborrecimentos desnecessários.

—  Não vou deixar que um Dr. João-Ninguém Hill vá tratar de você. O melhor é o que vai ter e o melhor é o Dr. Sapirstein, disse Guy.

Agradecida Rosemary aceitou a decisão: — Está bem, caso me queira como cliente. Pode estar com todo o tempo tomado.

—  Aceitará você tão certo como dois e dois são quatro. Vou telefonar já para ele. Onde fica o telefone?

— Use o do quarto, disse Guy.

Minnie entrou no quarto e Roman encheu os copos de vinho dizendo: -— É um homem verdadeiramente brilhante. Com toda a sensibilidade atormentada de sua raça.

Deu um copo a Rosemary e outro a Guy pedindo que aguardassem Minnie para beberem juntos. Ficaram em pé, es­perando com os copos na mão. Guy insistiu para que Rose­mary se sentasse. mas ela recusou.

Minnie, lã do quarto disse: — Abe? É Minnie. Tudo bem. Escute, uma querida amiga nossa está grávida. Não é maravilhoso? Estou falando da casa deles. Disse-lhes que você se encarregaria do caso e nada daqueles preços que cobra das grã-finas — escutou durante alguns momentos e cha­mou: — Rosemary, você poderá ir ao consultório dele amanhã às onze horas?

—  Sim, claro que sim.

— Estará lá as onze, Abe. Obrigada. Um abraço para você também. Vamos esperar que sim.

— Pronto. Tudo arrumado. Vou dar seu endereço: fica na esquina de Park Avenue com a Rua Setenta e Nove. Es­creverei tudo antes de sairmos — disse Minnie voltando com ar triunfante.

       — Obrigado, Minnie, disse Guy e Rosemary adicionou:

— Não sei como agradecer a vocês.

Minnie pegou o copo que Roman estendia dizendo: — É fácil. Faça tudo que Abe mandar e terá um bebê forte e sadio. É este o agradecimento que desejamos.

— Vamos beber a saúde de um bebê forte e sadio, disse Roman levantando o copo. Bebêram ao mesmo tempo, como num ritual,

— Umm, que vinho delicioso,

— É, sim, e não está nada caro,

—  Quero só ver a cara de Laura-Louise quando eu lhe contar a novidade, disse Minnie.

— Por favor, não conte a ninguém. Ainda não. É tão cedo! pediu Rosemary,

—  Tem razão. Haverá tempo bastante mais tarde para espalhar as boas novas, disse Roman.

—  Querem uns biscoitinhos e queijo?, perguntou Rosemary

— Fique sentadinha, meu bem. Eu irei buscar tudo, disse Guy.

Naquela noite Rosemary sentiu-se excitada e feliz demais para poder dormir. Ficou deitada, com as mãos sabre a bar­riga, pensando no milagre do minúsculo óvulo que tinha sido fertilizado pela minúscula semente. Chamar-se-ia Andrew ou Susan. Se fosse menino seria definitivamente Andrew; se fosse menina, Susan ou outro nome que escolheria com Guy. Teria Andrew, ou Susan, o tamanhinho de uma cabeça de alfinete? Não, seria maior, pois ela já estava entrando no se­gundo mês. Deveria ter os contornos definidos do embrião. Tinha que arranjar um livro ou uma tabela para acompanhar, passo a passo, o crescimento. Precisava pedir o nome de um ao Dr. Sapirstein.

Escutou uma sirene de carro de bombeiro; Guy mexeu-se e resmungou no sono; ouviu, na parede vizinha, o ranger da cama de Minnie e Roman,

Havia tantos perigos contra os quais se resguardar: in­cêndios, quedas, automóveis, elevadores; perigos que jamais tinham parecido perigosos antes, mas que eram perigos agora, para ela e para Andrew, ou Susan, que agora estava viven­do (sim, vivendo!). Pretendia não fumar mais e perguntar ao Dr. Sapirstein a respeito de álcool.

Como seria bom se ainda pudesse orar! Tomar nova­mente um crucifixo e pedir a Deus que, em Sua infinita mi­sericórdia, a ajudasse na passagem dos oito meses que tinha pela frente. Por favor, nada de rubéola ou remédio como a Thalidomida. Oito meses, oito meses por favor, sem aciden­tes ou doenças e sim cheios de cálcio, sol e vitaminas.  


       Subitamente lembrou-se do amuleto e da bolinha de prata cheia de raiz-de-tannis e, fosse por crendice ou não, dese­jou-o — não, necessitou-o junto de seu corpo. Saiu da cama nas pontas dos pés, abriu a penteadeira e tirou-o da caixinha onde permanecia embrulhado em papel de alumínio. O cheiro de tannis tinha mudado: estava forte, mas não mais repelente. Colocou a correntinha em volta do pescoço.

Voltou para a cama, pé ante pé, com a bolinha fazendo cócegas entre seus seios. Deitou-se, cobriu-se e fechou os olhos, Respirando profundamente, com as mãos sobre o abdo­me como para proteger o precioso embrião e dormiu.

 

Rosemary sentia-se viva agora: estava criando algo, estava sendo alguém, estava realizada e completa. Continua­va executando as mesmas tarefas diárias: cozinhava, arru­mava, lavava e passava, fazia compras e ia à aula de escultura porém agora com a aura de serenidade nascida da certeza de que Andrew ou Susan (ou Melinda) estava cada dia maior dentro dela, um pouco mais definido e mais perto do momento maravilhoso da chegada.

       O Dr. Sapirstein era maravilhoso: alto, moreno, de ca­belos e bigodes brancos (já o conhecia de vista, mas não sabia de onde, talvez da televisão) e, a despeito de ter um consultório mobiliado com poltronas de Mies van der Robe e mesas de mármore, era um médico simples e à moda antiga. Dissera-lhe: — Por favor, não leia livro algum. Cada gra­videz é diferente da outra, e um livro que diga quais os sin­tomas que deve sentir no terceiro ou quarto mês, só servirá para preocupá-la. Nenhuma gravidez se passa como está des­crito num livro. E, acima de tudo, nada de conversinhas com suas amigas. Poderão ter tido gestações completamente diferentes, e acharão que as delas foram normais e que a sua não está sendo.

Perguntou-lhe a respeito das vitaminas que o Dr. Hill tinha receitado.

— Nada de pílulas. Minnie Castevet tem um herbário e um liquidificador. Vou pedir que lhe faça diariamente um suco de ervas e vitaminas que será mais potente e saudável do que qualquer remédio manufaturado. Outra coisa: não tenha receio de satisfazer seus desejos. A teoria moderna é a de que as mulheres inventam desejos, pois acham que é o que se espera delas. Não estou de acordo. Acho que se tiver de­sejo de comer pickles em plena madrugada, obrigue o coita­do de seu marido a levantar-se e ir buscá-los. Faça o que tiver vontade de fazer. Poderá se surpreender com as exigên­cias de seu organismo durante os próximos meses. Se tiver alguma dúvida, telefone-me a qualquer hora do dia ou da noite. Pergunte o que quiser, mas a mim e não à sua mãe ou à tia Maria. Estou aqui para isso.

Deveria voltar ao consultório uma vez por semana, o que já por si era uma atenção maior do que o Dr. Hill dava a suas clientes, e ele mesmo se encarregaria de reservar quarto no Doctors Hospital. sem que ela precisasse preencher for­mulários.

Estava tudo legal, certo, magnífico! Foi ao cabeleireiro e cortou o cabelo no estilo Vidal Sassoon, terminou o serviço dentário, votou para prefeito (em Lindsay) e foi assistir à filmagem do seriado de Guy em Greenwich Village. Entre uma cena e outra — Guy correndo pelas ruas com um carri­nho de hot-dogs roubado — Rosemary conversava com as crianças e sorria eu também — para as mulheres grávidas.

O sal mesmo em quantidade ínfima, tornava a comida insuportável. — Perfeitamente normal — disse o Dr. Sapir­stein durante a segunda consulta. — Quando seu organismo necessitar dele, essa condição desaparecerá. Por enquanto, nada de sal. Confie em suas aversões como deve confiar em seus desejos.

O  estranho é que não sentia desejos. Estava totalmente sem apetite. De manhã, contentava-se com um café preto e uma torrada; para o jantar, um bife mal passado e alguns le­gumes, eram o suficiente. Todas as manhãs, Minnie lhe trazia um suco que parecia um milkshake esverdeado, com gosto estranho e ácido.

       — Isto é feito de quê? — perguntou Rosemary.

— Cobras, lagartos e asas de barata, respondeu Minnie sorrindo.

— Está bem. Mas se quisermos uma menina?

— Querem mesmo?

— Não, estou brincando. Gostaremos do que vier. É claro que preferimos que o primeiro seja menino.

—  Então beba.

— Fora de piada, Minnie, de que é feito?

—  Ovo cru, gelatina, ervas...

—  Raiz-de-tannis?

— Entre outras coisas.

Minnie trazia o suco todos os dias no mesmo copo, um copo grande listado verde e branco e esperava até que Rose­mary bebesse antes de sair.

Um dia Rosemary encontrou-se no elevador com Phyllis Kapp, mãe da pequena Lisa. Da conversa partiu um convite para almoço no domingo seguinte. Guy vetou logo a idéia, sob a alegação de que provavelmente estaria filmando nesse dia e, mesmo que não estivesse, teria que ficar em casa estu­dando o papel. Estavam com uma vida social muito limitada. Tinham-se recusado a sair com Tiger e Jimmy Haenigsen e Guy tinha pedido a Rosemary que adiasse um jantar que ela pretendia oferecer a Hutch. O filme de televisão mantinha-o mais ocupado do que esperava.

       Rosemary estava inteiramente de acordo, pois começava a sentir dores abdominais de intensidade alarmante. Telefonou ao Dr. Sapirstein, que marcou hora para examiná-la. Depois do exame, disse que não havia motivo para preocupa­ções; a dor era normal e tinha como causa a expansão dos ossos da bacia. Deveria desaparecer em breves dias, garan­tiu, e recomendou-lhe que usasse aspirina para combatê-la.

     Rosemary exclamou aliviada: — Ainda bem! Pensei que fôsse uma gravidez tubária.

     — Gravidez tubária? — repetiu o Dr. Sapirstein olhan­do-a com incredulidade. Rosemary corou. — Recomendei ex­pressamente que não lesse livro algum, Rosemary.

     — Não resisti. Estava na livraria, bem na minha frente.

     — Só serviu para preocupá-la. Faça-me o favor de ir para casa e jogá-lo na lata do lixo.

     — Desculpe-me. Farei o que ordenar,

     — As dores devem parar nos próximos dias, — disse o dr. Sapirstein. — Gravidez tubária! Francamente...

     Mas as dores não terminaram. Bem ao contrário, tor­naram-se mais intensas. Era como se algo dentro dela esti­vesse sendo partido ao meio por um arco de ferro que se fosse apertando cada vez mais. Sentia dores durante horas a fio; em seguida, alguns momentos de relativo alivio, como se a dor estivesse se reorganizando para um novo ataque. A aspirina, da qual procurava não abusar, pouco adiantava. Quando con­seguia dormir, tinha sonhos atribulados, nos quais se via com­batendo aranhas imensas que a perseguiam no banheiro, ou procurando desesperadamente arrancar um arbusto plantado no centro da sala de estar. Quando acordava, exausta, era para enfrentar mais dores.

       — Isso às vezes acontece. Deve parar de uma hora para outra. Não andou me enganando a respeito de sua idade? Essas dores são freqüentes em mulheres mais velhas, que têm as articulações menos flexíveis, disse o Dr. Sapirstein.

       — Coitadinha — disse Minnie certa vez ao trazer-lhe o suco. — Mas não se preocupe; uma sobrinha e duas amigas minhas tiveram o mesmo problema, mas deram à luz com a maior facilidade tendo crianças fortes e sadias.

       — Obrigada pelo conforto, disse Rosemary.

       — Juro, Rosemary. Palavra de honra que é a pura verdade.

       Rosemary olhava-se no espelho e constatava aumentar dia a dia sua magreza e abatimento.              

       Sentia-se horrorosa. Guy, porém, discordava: — Que nada! Você está muito bem. O que está horroroso é seu corte de cabelo. Cortá-lo assim foi a maior bobagem que fez na vida.

A dor tornou-se sua mais fiel e constante companheira. Aceitou-a, vivendo com ela, comendo com ela e dormindo com ela. Quando se tornava realmente insuportável, tomava uma aspirina. Não tinha mais disposição para sair com Elise ou Joan, abandonou a aula de escultura, não ia sequer fazer compras. Ficava em casa, pedindo pelo telefone o que neces­sitava do armazém, costurava as roupinhas do nenê e iniciou a leitura de A Ascensão e a Queda do Império Romano. Às vezes Minnie ou Roman apareciam para conversar um pouco e perguntar se desejava alguma coisa. Laura-Louise também a visitava de vez em quando, levando um pratinho de doces. Não sabia que Rosemary estava grávida. Elogiou o novo corte de cabelo e declarou-se consternada ao saber que Rose­mary não estava se sentindo bem.

Quando o seriado para televisão ficou pronto, Guy passou a ficar em casa durante todo o tempo. Não estava mais tomando aulas de dicção com Dominick e parecia não se preocupar com a procura de novos papéis. Tinha contra­to para fazer dois filmes de propaganda — um para os cigarros Pall Mall e outro para a Texaco — e preferia aguardar os ensaios de Don’t 1 Know You From Somewhere?, agora definitivamente marcados para meados de janeiro. Ajudava na limpeza da casa, atendia ao telefone dando desculpas plau­síveis quando era para Rosemary e jogavam juntos partidas de scrabble* a um dólar o jogo.

Rosemary tinha planejado convidar amigos que não ti­vessem parentes na cidade para um jantar no Dia de Ação de Graças. Desistiu, devido às dores e à preocupação com o bem-estar de Andrew ou Melinda e acabaram passando a noite com Minnie e Roman.

 

*Jogo em que se usam pedrinhas com letras para formar palavras. O jogador que conseguir formar maior número de palavras com suas pedras ganha o jogo. — (N. do T.)

 

Uma certa tarde, em dezembro, quando Guy estava filmando o comercial da Pall Mall, Hutch telefonou: — Estou aqui ao lado, no City Center, comprando entradas para o es­petáculo de Marcel Marceau. Você e Guy gostariam de as­sisti-lo na sexta-feira?

— Acho que não. Tenho andado meio indisposta e Guy está muito ocupado fazendo dois filmes de propaganda — res­pondeu Rosemary.

— Que é que você tem?

— Nada de grave. Ando meio de maré baixa.

— Posso dar um pulinho para vê-la?

— Claro, com o maior prazer.

Enfiou correndo uma calça comprida e um suéter, pintou os lábios, começou a escovar os cabelos. A dor atacou-a in­tensamente — comprimindo-a no circulo de ferro — e depois retrocedeu, voltando ao normal. Rosemary respirou aliviada e continuou a se pentear.

Hutch, ao deparar com ela exclamou: — Meu Deus!

—  É um corte Vidal Sassoon. última moda.

—  O que há com você? Não com seus cabelos.

—  Estou assim tão horrorosa?, perguntou, estendeu a mão para tomar-lhe o casaco e o chapéu e procurando valen­temente manter um sorriso.

—  Está horrível. Perdeu no mínimo uns dez quilos e tem círculos em redor dos olhos que fariam inveja a um urso panda. Está fazendo uma dessas dietas Zen?

—  Não.

—  Então, o que é que há? Foi ao médico?

—  Acho melhor contar logo. Estou grávida. No terceiro mês.

Hutch olhou-a confuso e disse: — Ridículo! Mulheres grávidas engordam; não emagrecem. E ficam com a cara sadia, não como a sua.

—  Tenho uma pequena complicação — continuou Rose­mary, levando-o para a sala — articulações duras ou coisa semelhante, de maneira que sinto dores — ou melhor, uma dor — que não me deixa dormir. É uma dor contínua po­rém suportável. Deve passar logo.

—  Nunca Ouvi falar que uma moça na sua idade pudes­se ter problemas de articulações duras — disse Hutch.

—  Não é tão raro quanto pensa. São os ossos da bacia.

—  Bem, parabéns — disse Hutch olhando-a com ar de dúvida. — Você deve estar muito feliz.

—  Se estou! Ou melhor, se estamos!

—  Qual é seu médico?

—  Doutor Abraham Sapirstein. É...

—  Conheço. Fez os dois partos de Dons. — Dons era a filha mais velha de Hutch.

—  É um dos melhores da cidade, explicou Rosemary.

—  Quando é que você esteve em seu consultório?

—  Anteontem. Ele me disse exatamente o que repeti a você: que é uma coisa normal e que deverá passar logo. Na verdade tem dito o mesmo desde que a dor começou...

—  Quantos quilos já perdeu?

—  Só três. Parece...

—  Besteira! Perdeu muito mais do que isso.

—  Você está igualzinho à nossa balança do banheiro. Guy ficou com tanta raiva que acabou jogando-a pela janela. Não, só perdi três quilos, coisa perfeitamente normal em co­meço de gravidez. Mais tarde começarei a engordar.

—  Assim espero, sinceramente. Até parece que está sendo sugada por um vampiro. Já se examinou, para ver se não tem umas marquinhas pelo corpo? Rosemary sorriu. — Bem, disse Hutch sorrindo também, vamos esperar que o Dr. Sapirstein saiba o que está fazendo. Deve saber, a julgar pelos preços que cobra... Guy deve estar ganhando dinheiro a rodo.

—  Está indo bem. Mas não é nada disso. O médico está nos fazendo uma camaradagem, pois é amigo de nossos vi­zinhos, os Castevets. Recomendaram-lhe que não nos cobras­se o preço de gente bem.

—  Quer dizer que Dons e Axel são gente bem? Vão ficar encantados quando lhes contar.

A campainha tocou. Hutch ofereceu-se para ver quem era, mas Rosemary recusou. — Dói menos quando me movo — explicou, indo em direção à porta e perguntando-se se teria encomendado alguma coisa.

Era Roman. Parecia meio afobado. Rosemary cumpri­mentou-o dizendo: — Acabei de falar em você.

—  Falando bem, espero. Você precisa alguma coisa da rua? Minnie vai sair daqui a pouco e como nosso telefone interno não está funcionando, vim perguntar.

—  Nada, muito obrigada. Fiz todas as compras pelo te­lefone hoje de manhã.

Roman olhou para a sala e com um sorriso indagador perguntou se Guy já tinha chegado.

Rosemary disse que não, que só deveria voltar as seis, mas como Roman continuasse com o mesmo sorriso indagador olhando em direção à sala viu-se obrigada a explicar: — Estou com um amigo. Gostaria de conhecê-lo?

—  Gostaria muito. Caso não esteja me intrometendo...

—  Claro que não — disse Rosemary encaminhando-o para o living. Roman vestia paletó de xadrez preto e branco sobre camisa azul, tendo uma echarpe estampada no pescoço. Passou bem ao lado de Rosemary que reparou, pela primeira vez, que ele tinha as orelhas furadas — a esquerda pelo menos.

—  Quero apresentar-lhe Edward Hutchins, um grande amigo —. disse. Virando-se para Hutch, que se levantara sor­rindo, continuou: — este é Roman Castevet, o vizinho sobre quem lhe falava ainda há pouco. — Explicou a Roman: —Estava contando a Hutch que tinham sido você e Minnie que me encaminharam para o Dr. Sapirstein.

Os dois apertaram as mãos, cumprimentando-se. Hutch disse: — Uma de minhas filhas foi cliente do Dr. Sapirstein. Em dois partos.

— É um homem brilhante. Somos muito amigos apesar de só tê-lo conhecido no ano passado.

     — Sentem-se, por favor — disse Rosemary. Os dois homens sentaram-se, ficando Rosemary ao lado de Hutch.

—  Quer dizer que Rosemary já lhe deu as boas novas? — perguntou Roman.

—  Certamente.

—  Precisa agora descansai bastante e não se preocupar com coisa alguma.

—  Seria divino!, suspirou Rosemary.

—  Fiquei meio alarmado quando a vi, disse Hutch olhan­do-a, enquanto tirava do paletó um cachimbo e uma bolsa de tabaco.

—  Ficou? — perguntou Roman.

—  Mas agora, sabendo que está nas mãos do Dr. Sa­pirstein, sinto-me mais aliviado.

—  Perdeu só uns dois ou três quilos. Não é, Rosemary? disse Roman.

—  Isso mesmo.

—  É normal que isso aconteça no começo da gravidez. Depois vai começar a engordar, talvez até demais...

—  É de se esperar, disse Hutch, enchendo de fumo o cachimbo.

—  A Sra. Castevet — disse Rosemary — faz diariamen­te um suco especial para mim, com ovos crus, leite, gelatina e ervas frescas cultivadas por ela mesma.

—  Tudo de acordo com o que o médico mandou, disse Roman. Ele parece não confiar muito nas vitaminas feitas em laboratórios.

—  É mesmo?, perguntou Hutch guardando a bolsa. Sempre julguei que se poderia ter a maior confiança em me­dicamentos, desde que tivessem boa procedência, é claro. Ficou tirando umas baforadas pensativas do cachimbo. Ro­semary colocou um cinzeiro a seu lado.

—  O senhor em parte está certo. Acontece, porém, que muitas vezes os remédios ficam meses numa prateleira de far­mácia, perdendo assim muito de sua potência inicial — explicou Roman.

       — Realmente, nunca tinha pensado nisso, disse Hutch.

— O senhor tem tôda a razão.

—  Adoro pensar que estou me alimentando com produ­tos frescos e naturais — disse Rosemary. — Aposto que sé­culos e séculos atrás, quando nem se imaginava a existência de vitaminas, as gestantes instintivamente mastigavam raiz-de-­tannis.

—  Raiz-de-tannis? perguntou Hutch.

—  É uma das ervas que entram no suco. É uma erva, não é. Roman? Pode uma erva ser raiz?, perguntou Rosemary. Roman porém, olhando para Hutch, pareceu não escutar.

—  Tannis? Nunca ouvi esse nome. Tem certeza que não é anis?

—  Tannis, confirmou Roman.

—  Olhe, disse Rosemary tirando o amuleto de dentro do suéter, dizem que traz boa sorte também. Não se espante com o odor. É meio enjoativo. — Levou a bolinha de filigra­na de prata para mais junto de Hutch, que a cheirou e se afastou um pouco.

—  Enjoado é apelido. Tomou o amuleto entre os dedos observando-o. — Não me parece uma raiz. Tem mais jeito de musgo ou de fungo. Virou-se para Roman: — Não é conhe­cido por outro nome qualquer?

— Não que eu saiba.

—  Procurarei na enciclopédia e descobrirei tudo o que diz a respeito, disse Hutch. — O amuleto em si é lindo. Onde o arranjou?

Virando-se com um sorriso em direção de Roman, Ro­semary respondeu: — Foram os Castevets que me deram. Tornou a guardar o amuleto dentro da blusa.

— O senhor e sua mulher estão desempenhando verda­deiro papel de pais para Rosemary.

     — Gostamos muito dela e de Guy também, disse Roman. Levantou-se apoiando-se nos braços da poltrona. — Bem, com licença, devo retirar-me. Minha mulher está à minha espera.

—  Como não, disse Hutch levantando-se também. — Foi um prazer conhecê-lo.

— Estou certo de que nos veremos novamente, respon­deu Roman. — Não se incomode em acompanhar-me, Rose­mary, já conheço o caminho.

—  Não é incômodo algum, respondeu Rosemary seguin­do-o até a porta. Tinha as orelhas furadas. A da direita tam­bém. Em seu pescoço, como andorinhas em fuga distante, via-se um sem-número de pequenas cicatrizes. — Obrigada pela visita.

—  Não por isso. Gostei do seu amigo. Parece um homem extremamente inteligente.

—  E é — disse Rosemary abrindo a porta.

—  Tive o maior prazer em conhecê-lo. Até logo — acenou com a mão e dirigiu-se para o corredor.

—  Até logo — respondeu Rosemary fechando a porta.

Hutch estava ao lado da estante quando ela voltou à sala. — Que belo ambiente conseguiu ter aqui. Trabalhou bem!

—  Trabalhei direitinho até minha bacia começar a dar trabalho. Você viu que Roman tem as orelhas furadas? Só hoje é que reparei nisso.

—  Orelhas furadas e olhos perfurantes. O que fazia antes de se aposentar?

— Fazia de tudo e em todas as partes do mundo. Lite­ralmente em todas.

— Bobagem, ninguém esteve em todos os lugares do mundo. Posso perguntar, sem parecer indiscreto, por que veio até aqui?

— Para saber se eu precisava alguma coisa da rua. O telefone interno deles não está funcionando. São vizinhos fan­tásticos. Caso eu permitisse acho que até viriam ajudar na limpeza.

—  Que tal é ela?

Rosemary descreveu-a adicionando: — Guy gosta muito dêles. Acho que se tornaram para ele verdadeiros símbolos paternos.

—   E para você?

—  Não estou bem certa. Às vezes sinto-me tão grata, que poderia beijar-lhes os pés; outras vezes sinto-me meio es­magada por tanta atenção e carinho. Acho que sou meio in­grata. Lembra-se daquela falta de luz e força?

—   Como poderia esquecer? Fiquei preso num elevador.

—   Verdade?

—  Sim, senhora. Cinco horas de escuridão total num elevador, junto com três senhoras histéricas e um membro da John Birch Society,* todos eles certos de que a Bomba tinha caído.

—  Que coisa horrível!

—   Mas você estava dizendo...

—  Guy e eu estávamos em casa e mal às luzes se apa­garam, lá veio Minnie munida de velas — apontou para a la­reira. — Como é que se pode encontrar defeitos em vizinhos assim?

—  Realmente parece impossível, concordou Hutch, olhan­do para a mesma direção. — Foram estas as velas que trou­xeram?, perguntou, mostrando os dois castiçais que continham restos de velas negras.

—   São os restos. Minnie trouxe uma quantidade que daria para um mês inteiro. Por que é que você pergunta?

— Eram todas pretas?, perguntou outra vez.

— Sim. Por quê?

       — Simples curiosidade. Afastou-se da lareira, sorrindo. Não vai me oferecer nem um cafêzinho? E contar-me mais a respeito da sra. Castevet? Onde é que ela cultiva suas ervas? Em vasos na janela?

 

*Sociedade de extrema direita, reacionária e racista. — (N. do T.)

 

         Dez minutos mais tarde, quando estavam na cozinha to­mando café, a porta se abriu bruscamente e Guy entrou. — Que surprêsa!, exclamou dirigindo-se a Hutch com a mão es­tendida. — Como vai, Hutch? Que prazer em vê-lo! — Abra­çou Rosemary e beijou-a no rosto. — Como vai, querida? Não tinha sequer tirado o make-up: suas faces estavam pintadas de alaranjado e os olhos delineados de preto.

—  Você é quem nos surpreende, disse Rosemary. — Que aconteceu?

—  Pararam no meio para reescrever uma cena. Só vamos recomeçar amanhã cedo. Fiquem onde estão. Voltarei num minuto. Vou tirar o sobretudo. Virou-se e foi até o ar­mário da entrada.

— Quer café? perguntou Rosemary.

—  Claro!

Rosemary levantou-se, pegou uma xícara e encheu-a de café, fazendo o mesmo com a de Hutch e a sua. Hutch fuma­va seu cachimbo pensativamente.

Guy voltou com as mãos cheias de maços de Pall Mall. —       Olha a muamba! Quer um?

— Não, obrigado.

Guy abriu um maço, tirou um cigarro e colocou-o na boca piscando para Rosemary.

—  Já sei que devo dar-lhe parabéns, disse Hutch.

—  Rosemary já contou? perguntou Guy, acendendo o ci­garro. — Estou feliz, felicíssimo! Meio apavorado com o medo de ser um mau pai mas como Rosemary será a melhor mãe do mundo, uma coisa compensará a outra.

—  Para quando esperam o nenê?

Rosemary respondeu e contou a Guy que o Dr. Sapirstein tinha trazido ao mundo dois dos netos de Hutch.

— Conheci seu vizinho, o Sr. Castevet.

—  É mesmo? Parece meio chato, mas não é. Tem histó­rias interessantíssimas a respeito de Modjeska e Otis Skinner. É um velho amante do teatro.

—  Você já reparou que ele tem as orelhas furadas, meu bem? perguntou Rosemary.

—  Ta brincando.

—  Não estou não. Reparei bem.

Tomaram o café, conversando sobre a rápida ascensão de Guy e a respeito de uma viagem que Hutch pretendia fazer à Grécia e à Turquia.

—  Você precisa aparecer com mais freqüência, disse Guy quando Hutch se preparava para sair. — Como ando ocupa­díssimo e Rosemary está assim, quase não vemos ninguém.

—  Vamos marcar um jantar para a próxima semana, disse Hutch. Guy concordou e levantou-se para apanhar-lhe o sobretudo.

—  Não se esqueça de ver na enciclopédia o que é raiz-­de-tannis, lembrou Rosemary.

—  Não me esquecerei. E você diga ao Dr. Sapirstein que verifique a balança do consultório; estou convencido de que perdeu mais do que três quilos.

—  Não seja babo, brincou Rosemary. — Balanças de médicos nunca estão erradas.

Guy, mostrando um sobretudo, disse: — Como não é meu, é o seu.

—  Certo — disse Hutch vestindo-o. — Vocês já pen­saram em nomes? Ou ainda é muito cedo?

—  Andrew ou Douglas se for menino. Melinda ou Sarah, se for menina, respondeu Rosemary.

—  Sarah?, perguntou Guy. — Que aconteceu com Susan? Entregou o chapéu a Hutch.

Hutch beijou o rosto de Rosemary, dizendo: — Espero que suas dores passem.

—  Vão passar, não se preocupe.

—  Não há nada de anormal, apressou-se em dizer Guy.

Hutch enfiou as mãos no bolso do casaco. — Será que a irmãzinha desta está por aqui?, perguntou, mostrando uma luva de couro forrada de pele.

Rosemary e Guy a procuraram por toda parte, mas não a encontraram.

—  Está certo de que entrou com as duas?, perguntou Guy.

—  Não. Provavelmente deixei-a no City Center. Darei uma passadinha para ver se encontro. Vamos ver se marca­mos mesmo um jantar, está bem?

—  Sem dúvida, disse Guy. — Logo no começo da se­mana, acrescentou Rosemary.

Esperaram até que dobrasse o corredor antes de fecha­rem a porta.

—  Que boa surpresa — disse Guy. — Já estava aqui há muito tempo?

—  Não. Sabe o que me disse?

—  O quê?

—  Que estou horrível.

—  Bom amigo! Sempre com uma palavrinha amável. Pa­reçe um papa-defuntos profissional. Lembra-se de como fez o possível para nos dissuadir de mudarmos para cá?

—  Não é nenhum papa-defuntos profissional, ora essa!

—  Então é um amador de primeira categoria, querida.

Esperou até que ela lavasse a louça e depois saiu para comprar jornais.

Lá pelas onze horas, quando Rosemary já estava deitada lendo, e Guy na saleta assistia televisão, o telefone tocou. Guy atendeu e trouxe o aparelho para junto da cama, ligan­do-o na tomada. — É para você. Hutch quer falar-lhe pes­soalmente. Disse que estava na cama mas ele insistiu que a chamasse.

Rosemary tomou o fone e perguntou: — Hutch?

—  Alô, Rosemary. Diga-me querida, você sai de vez em quando ou só fica em casa?

— Bem, não tenho saído, mas posso sair. Por quê? Olhou para Guy que interrogativamente esperava.

— Precisamos conversar. Pode me encontrar amanhã as onze em frente ao Seagram Building?

— Claro. Mas o que é que há? Não pode me dizer?

—  Nada que seja terrivelmente importante. Não se preo­cupe. Conversaremos amanhã com calma. Podemos almoçar juntos.

—  Ótimo. Gostaria bastante.

—  Então fica combinado. Encontre-me amanhã às onze em frente ao Seagram.

— Certo. Encontrou sua luva?

—  Não. Não estava lá. Bem, já era tempo de comprar umas novas. Boa noite, Rosemary. Durma bem.

—  O mesmo para você.

Desligou.

—  O que é que Hutch queria?, indagou Guy.

—  Não sei. Quer que me encontre com êle amanhã. Diz que precisa falar comigo.

—  Não disse a respeito do quê?

— Nem uma palavra.

Guy sacudiu a cabeça sorrindo. — Acho que as histó­rias de aventuras que escreve estão começando a tomar conta dele. Onde é que vai encontrá-lo?

—  Em frente ao Seagram, às onze.

Guy desligou o telefone e levou-o para a saleta. Voltou em seguida dizendo: — Você é quem está grávida e eu é que tenho desejos. Vou sair para tomar um sorvete. Quer que lhe traga um?

—  Quero, sim.

—  De creme?

—  Ótimo.

—  Voltarei já.

Saiu e Rosemary encostou-se no travesseiro, com o livro esquecido no colo, pensando. O que quereria Hutch? Nada importante, tinha dito. Mas também não poderia ser uma coisa banal, pois não a convocaria daquela maneira. Seria algo a respeito de Joan ou de outra das antigas companheiras de apartamento?

Ao longe escutou a campainha dos Castevets tocar. Devia ser Guy, perguntando se desejariam sorvete ou um jornal. Era amável da parte dele.

A dor apertou dentro de suas entranhas.

 

Na manhã seguinte Rosemary telefonou para Minnie, pedindo-lhe que não trouxesse o suco às onze horas, pois iria sair e só estaria de volta depois do almoço.

—  Não há problema, querida, disse Minnie. — Você não precisa tomá-lo em hora marcada. Desde que o faça, o horário não interessa. Deve mesmo sair para dar uma volta. O tempo está ótimo para um passeio. Assim que voltar, ligue para mim e levarei sua bebidinha.

O   tempo estava realmente magnífico: ensolarado, frio e revigorante. Rosemary começou a andar lentamente, com um sorriso nos lábios, como se não estivesse carregando a dor dentro de si. Havia em todas as esquinas falsos Papais Noéis, sacudindo sininhos, angariando fundos para o Exército da Salvação. Todas as lojas mostravam vitrines com decoração natalícia; a Park Avenue era um correr interminável de ár­vores de Natal.

Chegou ao Seagram Building às quinze para as onze. Como estivesse adiantada, resolveu esperar Hutch sentada na mureta do jardim de entrada do edifício, tomando um pouco de sol e observando o vaivém incessante de pessoas, o movimento de carros e caminhões e o ruído freqüente de he­licópteros que pousavam e decolavam no heliporto do telha­do. O vestido que usava sob o casaco estava — finalmente! —           apertando-lhe a barriga; talvez passasse na Bloomingdale logo depois do almoço, para olhar os vestidos de gestante. No fundo, sentia-se satisfeita com o convite de Hutch (mas que desejaria ele?). pois vira-se obrigada a sair um pouco. A dor, mesmo constante e persistente não poderia servir de pretexto para mantê-la enfiada em casa. Decidiu combatê-la, lutar contra ela usando as armas do ar, do sol e de uma atividade contínua. Não pretendia mais deixar-se vencer, mergulhada na melancolia do Bramford, sob os cuidados bem intenciona­dos porém excessivos de Guy, Minnie e Roman. VoÏte, Dor! Não terei mais receio de ti! disse Rosemary a si mesma. A dor, porém, imune ao Poder da Vontade, continuou a ator­mentá-la.

Quando eram quase onze horas, levantou-se e dirigiu-se até a porta central do edifício, para esperar Hutch. O número de pessoas que entravam e saiam era impressionante; pro­curou concentrar-se nas que deixavam o prédio, pois Hutch deveria ter escolhido aquele ponto de encontro em razão de ter tido algum compromisso prévio no edifício. Pensou tê-lo visto, mas constatou ter-se enganado; pensou ter visto um rapaz com quem tivera um namoro antes de conhecer Guy, mas também estava errada. Continuou esperando, procurando vê-lo entre a multidão, sem ansiedade, pois sabia que se não o visse, ele viria à sua procura.

Esperou até onze e quinze mas Hutch não chegava. Re­solveu ir até o interior do prédio para consultar a lista de in­quilinos e procurar um nome que conhecesse como ligado ao de Hutch para indagar a razão do atraso, mas a lista era tão extensa, que desistiu.

Tornou a sair e sentou-se novamente sobre a mureta, observando o intenso tráfego humano, Hutch, apesar de sua proverbial pontualidade britânica, não aparecia.

Quando eram onze e quarenta e cinco, tornou a entrar no prédio e indagou onde encontraria um telefone. Encami­nharam-na para o subsolo onde encontrou uma sala de estar moderna e confortável, tendo ao fundo uma cabine telefôni­ca que estava no momento sendo usada por uma jovem negra. Quando se desocupou, Rosemary ligou para seu apartamento. A telefonista de recados atendeu e disse que a única mensa­gem até o momento era para Guy da parte de Rudy Horn; para Rosemary não havia nada. Como tivesse outra ficha de telefone sobrando, ligou para Hutch, pois talvez ele tivesse deixado algum recado com seu serviço telefônico. Foi aten­dida quase imediatamente por uma voz de mulher: — Alô?

—  É da casa de Edward Hutchins?, perguntou.

— Sim. Era uma voz de senhora de meia-idade. — Quem está falando, por favor?

—  Aqui fala Rosemary Woodhouse. Tinha um encon­tro marcado com o Sr. Hutchins para as onze, mas não apa­receu até agora e estou telefonando para saber se deixou al­gum recado para mim.

Houve um silêncio quase interminável. — Alô? pergun­tou Rosemary.

— Hutch já me falou a seu respeito, Rosemary. Quem está falando é Grace Cardiff. Sou amiga dele. Hutch ficou doente na noite passada, ou melhor, durante esta madrugada.

—  Doente?, perguntou Rosemary assustada.

—  Sim. Está em estado de coma. Os médicos ainda não conseguiram determinar a causa. Está no St. Vincent’s Hos­pital. Que coisa horrível! exclamou Rosemary. — Falei com ele ontem às dez e meia da noite e pareceu-me estar tão bem!

—  Conversamos ainda mais tarde do que essa hora, res­pondeu Grace Cardiff — e estava perfeitamente bem. No entanto a faxineira, quando foi trabalhar hoje, encontrou-o sobre o tapete do quarto.

—  Não sabem a causa?

—  Ainda não. Os médicos estão iniciando uma série de exames; devem descobrir logo o que há de errado. Quando descobrirem a causa poderão iniciar logo o tratamento. Por enquanto só nos resta aguardar.

— Que coisa impressionante. Éle nunca sofreu de nada. Não que eu saiba.

— Muito menos eu. Vou voltar agora para o hospital. Se quiser, dê-me seu telefone e ligarei assim que tivermos al­guma notícia.

—  Ficaria imensamente grata. Rosemary deu o número de seu aparelho e perguntou se haveria algo que pudesse fazer.

—  Por enquanto nada, respondeu Grace Cardiff. —Acabei de ligar para uma das filhas de Hutch. Foi só o que pude fazer até o momento. Teremos que esperar até que volte a si. Se houver qualquer modificação, telefonarei para você.

Rosemary saiu do Seagram Building, atravessou o jardim e desceu lentamente a escadaria. Andou pela Rua 53 até chegar a Park Avenue. Atravessou o parque, descendo em direção à Madison, perguntando-se se Hutch morreria ou vi­veria e se, caso ele morresse, iria encontrar em sua vida outra pessoa de quem pudesse depender e confiar tanto quanto no velho amigo. Perguntou-se ainda a respeito de Grace Cardiff, que tinha a voz de uma simpática cinqüentona de cabelos pra­teados. Estaria tendo um caso com Hutch? Esperava que sim. Talvez esse breve encontro com a morte — breve en­contro e não morte — pudesse levá-los a um casamento feliz e se tornasse no fim das contas~ uma bênção. Talvez...

Atravessou a Madison em direção à Rua 55. No meio ao quarteirão encontrou uma loja em que estava exposto um pe­queno presépio, com figurinhas em delicada porcelana da Virgem, de São José, do Menino Jesus, dos Reis Magos, de pastores e animais. Sorriu ao deparar com o quadro, com uma ternura e devoção que seu agnosticismo recente não conse­guira ainda dissipar. Refletida sobre o vidro da vitrine, como um véu, viu-se como estava na realidade: faces cadavéricas e olhos orlados de preto. Era a imagem que ontem assusta­ra Hutch e que agora a alarmava também.     

       — Mas isto é o que chamo de coincidência! — excla­mou uma voz a seu lado. Era Minnie, vestida de couro sin­tético branco, chapéu vermelho e com os óculos pendurados no pescoço. Caminhava em sua direção sorrindo e dizendo: — Falei comigo mesma: já que Rosemary vai sair hoje, vou aproveitar e fazer umas comprinhas de Natal. E não é que acabamos nos encontrando na rua? Até parece que combi­namos! Que é que há, querida? Parece tão triste e desanimada.

—  Acabei de ter más notícias. Um amigo muito querido está doente, internado num hospital.

— Não diga! Quem?

—  Seu nome é Edward Hutchins.

—  Não é aquele que Roman conheceu ontem em sua casa? Que coisa! Roman gostou tanto dele! Achou-o um homem inteligentíssimo. Que pena! O que tem ele?

Rosemary contou-lhe todo o drama.

—  Incrível! Espero que não lhe aconteça o mesmo que à pobre Lily Gardênia! E os médicos não sabem a causa? Bem, pelo menos estão sendo sinceros; geralmente ficam em­bromando a gente com um palavrório em latim. Se este país gastasse com a medicina o mesmo que gasta para botar um astronauta em órbita, estaríamos em melhor situação. Pelo menos é o que penso. Você está bem, Rosemary?

—  A dor está um pouco pior agora.

— Coitadinha. Sabe o que é melhor? Voltarmos já para casa. Que acha?

—  Mas você tem que terminar suas compras...

—  Bobagem. Ainda tenho duas semanas para isso. Tampe os ouvidos. Tirou da bolsa um apito, preso a uma cor­rentinha de ouro, e soltou um silvo ensurdecedor. Um táxi parou imediatamente. — Que tal a eficiência? E conseguimos um desses novinhos em fôlha.

Minutos depois, já em casa, Minnie trouxe o tal suco, frio e ácido, no costumeiro copo com listas verdes e brancas. Sorriu aprovativamente quando Rosemary devolveu-o vazio.

 

Rosemary vinha se alimentando de carne mal passa­da; agora, passara a comê-la quase crua, grelhando-a ràpida­mente de um lado e do outro.

As semanas das festas de fim de ano foram terríveis. As dores se tornavam cada vez mais fortes e continuas — fazen­do com que Rosemary chegasse a não poder se recordar de como tinha sido sua vida sem elas. Parou de reagir; deixou de mencioná-las ao Dr. Sapirstein e procurou enganar-se a si mesma quanto à sua existência. Até agora, a dor tinha esta­do dentro dela; agora ela é que estava dentro da dor; fazia parte do ar que a cercava, era seu universo. Exausta e entorpecida, passou a dormir e a comer mais, a comer carne cada vez mais crua.

Cumpria religiosamente suas obrigações: cozinhava, lim­pava, lavava e mandava cartões de Boas Festas a amigos e parentes — faltava-lhe coragem para telefonar — deu boni­ficações aos empregados do prédio e ao Sr. Micklas. Tentava ler os jornais e interessar-se pela sorte dos estudantes que se recusavam a prestar o serviço militar e pela ameaça de greve dos transportes, mas não conseguia; eram notícias que vinham de um mundo de fantasia. Seu mundo real era o da dor. Guy comprou lembranças para Minnie e Roman (tinham combina­do que nesse ano não se dariam presentes) e receberam do velho casal uma bonita decoração de Natal.

De vez em quando iam ao cinema; na maioria das vezes ficavam em casa ou iam até o apartamento de Minnie e Roman. Conheceram vários dos amigos deles: os casais Fountain, Gilmore e Wees, a senhora Sabatini, que vinha sempre acom­panhada de seu gato, e o Dr. Shando, dentista aposentado, responsável pela confecção do amuleto de Rosemary. Eram todos pessoas idosas, que tratavam Rosemary com carinho, preocupando-se com seu estado de saúde. Laura-Louise tam­bém aparecia com freqüência, bem como o Dr. Sapirstein. Roman era o perfeito anfitrião, procurando manter os convi­dados bem servidos e fazendo com que a conversa abordasse assuntos novos e interessantes. Na passagem do ano fez um brinde coletivo: — A 1966, o Ano Um!, o que deixou Rose­mary meio perplexa, embora os demais convidados pareces­sem compreender e apoiar o voto. Deveria ter algum signifi­cado literário ou político, que nada lhe dizia. Rosemary e Guy geralmente saíam cedo. Guy acompanhava-a até o apar­tamento e voltava para a reunião. Era tratado, principalmente pelas mulheres, com o maior calor. Davam-lhe total atenção e riam-se quando contava alguma piada ou fazia brincadeiras.

Durante todo êsse tempo Hutch permaneceu naquele es­tado de coma, misterioso e sem causa aparente. Grace Cardiff telefonava quase todas as semanas para dar notícias: — Ne­nhuma mudança. Nenhuma. Os médicos ainda nada desco­briram. Dizem que pode voltar a si a qualquer momento, ou piorar e não acordar mais.

Por duas vêzes Rosemary foi até o St. Vincent’s Hos­pital para se quedar, impotente, ao lado de Hutch; de olhos cerrados, ele mal parecia respirar. Na segunda visita, encon­trou sentada perto da janela a filha mais velha de Hutch, bordando algo qualquer. Rosemary a conhecera no ano passado na casa de seu pai; era uma mulher simpática, perto dos trinta anos, casada com um psicanalista sueco. Infelizmente para ela, era uma cópia feminina da cara de Hutch.

Dons não reconheceu Rosemary. Quando esta se deu a conhecer, pediu desculpas.

       — Não se desculpe, disse Rosemary. — Sei que estou horrível.

—  Não, não é isso. Está a mesma. Eu é que sou péssi­ma fisionomista. Às vezes esqueço até a cara de meus filhos!

Dons pôs de lado o trabalho, puxou uma cadeira para Rosemary e começaram a conversar. Falaram sobre o estado de Hutch enquanto uma enfermeira mudava a garrafa de soro que lhe estava sendo ministrado por via endovenosa.

Quando a enfermeira saiu, Rosemary disse: — Temos um obstetra em comum. — Passaram a falar sobre assuntos relativos à gravidez e sobre a eficiência do Dr. Sapirstein. Dons mostrou-se surpreendida com o número de vezes que Rosemary tinha que ir ao consultório. — Eu só ia uma vez por mês — disse. — A não ser mais para o fim, quando passei a ir de quinze em quinze dias. Só no último mês é que fui toda semana. Pensei que fosse sempre assim.

Rosemary ficou calada e Dons percebeu que tinha feito nova gafe. — Bem, acho que cada gravidez é diferente da outra, disse sorrindo como para se desculpar pela falta de tato.

—  Isto foi o que ele me disse — respondeu Rosemary

Naquela noite contou a Guy o que Dons dissera. — Há algo de errado comigo. E o médico percebeu logo no começo — falou preocupada.

—  Que bobagem! Se houvesse algo errado ele diria a você. Ou na pior das hipóteses diria a mim.

—  Não falou nada? Nada mesmo, Guy?

—  Nada. Palavra de honra, Ro.

—  Então por que tenho que ir ao consultório todas as semanas?

—  Sei lá. Talvez agora esteja adotando esse método. Ou talvez seja por um excesso de consideração, por sermos ambos amigos de Minnie e Roman.

—  Não creio que seja por isso.

—  Bem, não sei. Pode ser até que ache mais agradável examinar você do que a ela. Pergunte a ele.

Perguntou ao dr. Sapirstein dois dias mais tarde. — Ro­semary, Rosemary..., advertiu ele. — Já não disse que não conversasse a esse respeito com amigas? Não lhe avisei de que cada gravidez é um caso diferente?

—  Sim, mas...

—  E o tratamento para cada caso tem que ser diferente. Dons Allert já tinha tido dois filhos quando me procurou e ambos foram partos normais. Não era necessário dar-lhe a atenção que dou a uma primípara.

—  O senhor sempre examina semanalmente as mulheres que vão ter o primeiro filho?

—  Tento fazê-lo. Às vezes não é possível. Não há nada de errado com você. Convença-se disso, Rosemary. A dor vai parar a qualquer momento.

—  Estou comendo carne quase crua. Só ligeiramente aquecida.

—  Tem qualquer outra anormalidade?

—  Não. Já não é o suficiente?

—  Coma o que desejar e como desejar. Não lhe disse que teria desejos estranhos? Já tive clientes que comiam papel. Pare de se preocupar. Não tenho segredos para as minhas pacientes; isso tornaria a vida muito difícil. Estou di­zendo toda a verdade. Está bem?

Rosemary assentiu.

       Dê lembranças a Minnie e Roman. E um abraço para Guy.

       Começou a ler o segundo volume de A Ascensão e a Queda do Império Romano, e a tricotar uma echarpe para Guy usar durante os ensaios. A greve de transportes tinha começado, mas em nada afetava suas vidas, pois raramente saíam de casa. Durante a tarde, na hora do rush, ficavam na janela observando o movimento de pedestre9. — Andem, palhaços! dizia Guy. — Andem! Corram para casa.

Não muito tempo depois de ter mencionado ao Dr. Sa­pirstein estar se alimentando de carne quase crua, Rosemary encontrou-se as quatro da madrugada na cozinha, mastigan­do um coração de galinha inteiramente cru. Viu sua imagem refletida na torradeira e olhou para as mãos cobertas de sangue. Parou um momento, quase petrificada, depois jogou o resto do coração no lixo, abriu a torneira da pia para lavar as mãos. Com a água ainda correndo, debruçou-se e come­çou a vomitar.

Quando terminou, bebeu um pouco de água, lavou as mãos e o rosto, limpou e desinfetou o interior da pia. Fechou as torneiras, enxugou-se, ficou pensando durante alguns mo­mentos e dirigiu-se para uma gaveta tirando lápis e papel. Sentou-se e começou a escrever.

Guy entrou na cozinha, ainda de pijama, um pouco antes das sete. Encontrou-a sentada, copiando uma receita de um livro de cozinha. — Que diabo está você fazendo?, perguntou.

Rosemary olhou-o. — Planejando o menu. Para um jantar. Vamos dar uma festinha no dia vinte e dois de janeiro. Daqui a uma semana. — Procurou entre as várias folhas de papel que estavam sobre a mesa e tirou uma. — Vamos convidar Elise Dunstan e o marido, Joan e quem deseje trazer, Jimmy e Tiger, Allan e a namorada, Lou e Cláudia, os Chens, os Wendells, Dee Bertillon, caso você não se oponha, Mike e Pedro, Bob e Thea Goodman, os Kapps e Dons e Axel AI­lert, caso possam vir. É a filha de Hutch, sabe?

—  Sei, disse Guy.

—  Minnie e Roman não serão convidados. Nem Laura­-Louise, ou os Fountains, os Gilmores e os Wees. Nem mesmo o Dr. Sapirstein. É uma festa muito especial. Os convidados têm que ter menos de sessenta anos.

—  Que alívio! Por um momento pensei que fosse ficar de fora.

—  Não. Preciso de você. Vai ser o bartender.

—  Obrigado! Mas escute, Ro, você acha que é mesmo uma boa idéia?

—  Foi a melhor idéia que tive nos últimos tempos.

—  Não acha que deve consultar o Dr. Sapirstein pri­meiro?

—  Só pretendo dar uma festa. Não vou atravessar o Canal da Mancha a nado ou escalar o Anapurna.

Guy dirigiu-se até a pia e abriu a torneira para encher um copo. — Estarei ensaiando, como você sabe. Começamos dia dezessete.

—  Não precisa fazer nada. Só ficar em casa e usar o velho charme.

—  E cuidar do bar, lembrou Guy bebendo a água.

—  Não seja por isso. Contrataremos um garçom. Aquele que serve nas festas de Dick e Joan. Quando você ficar can­sado, botarei todos para fora.

Guy virou-se para olhá-la.

—  Quero ver gente moça. Não Minnie e Roman. Chega!

Guy desviou os olhos e perguntou: — E a dor?

—  Não sabe a novidade? Vai parar a qualquer momento. O Dr. Sapirstein me disse, retrucou com ironia.

O   convite foi aceito por todos, com exceção dos Allerts que não podiam sair por causa do estado de Hutch e dos Chens, que iam para Londres tirar retratos de Charlie Cha­plin. O garçom estava ocupado, mas indicou outro que estaria livre. Rosemary descobriu um traje de noite que ainda lhe servia, levou-o ao tintureiro, marcou hora no cabeleireiro, en­comendou gelo, bebidas e os ingredientes para um prato chi­leno de coisas-do-mar, chamado chupe.

Na quinta-feira antes do dia da festa, Rosemary estava na cozinha limpando lagostas e caranguejos, quando Minnie veio trazer o suco. — Preparando um pratinho, hein?, disse Minnie ao entrar. — O que é?

Rosemary, na porta da cozinha, com o copo listado na mão contou-lhe: — Vamos ter convidados para jantar no sá­bado. Vou limpar tudo, guardar no congelador e preparar o prato no dia.

—  Você se acha em condições de receber visitas?

—  Sim, estou bem. São velhos amigos a quem não vejo há muito tempo. Nem sabem que estou grávida.

—  Conte comigo. Posso ajudar a servir, se quiser.

—  Muitíssimo obrigada, mas não será necessário. Vai ser um jantar em pé, muito simples, para gente íntima.

—  Poderia ficar encarregada dos chapéus e casacos.

—  Não, Minnie. Muito agradecida, mas não é preciso. Você e Roman já fazem demais por mim.

—  Está bem. Avise-me se mudar de idéia. Tome seu suco.

—  Tomarei daqui a pouco. Deixe-me terminar o que estou fazendo. Depois levarei o copo para você.

—  Não pode demorar. Você sabe que com a passagem do tempo, perde a potência.

—  Pode deixar. Tomarei logo e levarei o copo para você.

—  Posso esperar. Não tenho nada o que fazer...

—  De jeito nenhum. Fico nervosa se tenho alguém me observando enquanto cozinho. Vou sair daqui a pouco e pas­sarei bem em frente à sua porta.

—  Vai sair?

—  Vou fazer compras. Suma daqui, Minnie. Vocês se preocupam demais comigo.

Minnie afastou-se dizendo: — Tome logo o suco. Olhe que as vitaminas perdem o valor.

Rosemary fechou a porta. Entrou na cozinha e ficou du­rante um minuto com o copo nas mãos. Dirigiu-se à pia e der­ramou pelo ralo todo o líquido verde-pálido.

Terminou o chupe cantarolando, sentindo-se satisfeita consigo mesma. Depois de tê-lo colocado no congelador, pre­parou um suco de leite, creme, ovo, açúcar e sherry. Bateu a mistura no liquidificador e olhou o resultado: parecia ótimo. Aguente a mão Dauid-ou-Amanda, pensou e experimentou o líquido. Estava delicioso. Tomou-o todo de uma só vez.

 

Lá pelas nove e meia, parecia que ninguém viria à festa. Guy colocou outra acha de lenha na lareira, avivou o fogo e limpou as mãos com um lenço; Rosemary entrou na sala e ficou em pé, usando sua dor, um penteado novo e longo ves­tido solto de veludo; o garçom, numa mesinha ao lado do quarto, ocupava-se com guardanapos, cascas de limão, copos e garrafas. Era um italiano de aparência próspera, chamado Renato, que dava a impressão de ser garçom só como passa­tempo e que a qualquer momento abandonaria a reunião caso ficasse mais chateado do que já parecia estar.

Chegaram então os Wendell — Ted e Carole; minutos depois, Elise Dunstan e seu marido Hugh, que mancava. Logo após veio Allan Stone, o agente de Guy, acompanhado de uma bela modelo negra com o nome de Rain Morgan e chegaram também Jimmy e Tiger, Lou e Cláudia Comfort e o irmão de Cláudia, Scott.

Guy recolheu os casacos e colocou-os sobre a cama; Re­nato preparou bebidas, parecendo menos entediado. Rosema­ry apresentou os que não se conheciam.

Bob, e Thea Goodman trouxeram outro casal, Peggy e Stan Keeler. — Claro que não me incomodo!, disse Rose­mary. — Quanto mais gente melhor! Os Kapps chegaram sem casacos, brincando: — Que viagem! Um ônibus, dois trens, e uma barca. Levamos cinco horas para chegar!

—  Posso dar uma olhadela?, perguntou Cláudia. — Se o resto for tão bonito como o que estou vendo, vou meter uma bala na cabeça.

Mike e Pedro trouxeram ramos de rosas vermelhas. Pedro beijou Rosemary no rosto, murmurando-lhe ao ouvido: — Faça com que seu marido a alimente melhor, meu bem. Está parecendo um bacalhau.

Rosemary apresentou: — Phillys, Bernard, Peggy, Stan, Thea, Bob, Lou, Scott, Carole...’

Levou as rosas para a cozinha. Elíse acompanhou-a, car­regando seu copo e um cigarro de mentira (estava tentando parar de fumar). — Que sorte vocês tiveram! É o apartamen­to mais bonito que conheço. Que cozinha!, disse com admira­ção, olhando para Rosemary. — E em seguida: — Você está bem, Rosie? Parece meio abatida.

—  Muito obrigada pelo “meio abatida”. Sei que estou horrível, mas vou melhorar. Estou grávida.

—  Não diga. Que ótimo! É para quando?

—  Lá por vinte e oito de junho. Entrarei no quinto mês na semana que vem.

—  Ótimo. Que tal achou o Dr. Hill? Não é uma graça?

—  Sim, é. Mas não sou cliente dele.

—  Não?

—  Tenho outro médico, um pouco mais velho, o Dr. Sapirstein.

—  Mas por quê? Não pode ser melhor que o Dr. Hill.

—  É um médico de primeira categoria. Além do mais é amigo de amigos nossos.

Guy apareceu na cozinha.

—  Parabéns, papai — disse Elise.

—  Obrigado. Não foi um trabalho difícil. Você quer que leve os salgadinhos, Ro?

—  Se quiser, será ótimo... Veja que rosas lindas Mike e Pedro trouxeram!

Guy apanhou da mesa uma bandeja de biscoitinhos e uma tigela com molho picante. — Quer trazer a outra? pediu a Elise.

—  Claro, disse ela, tomando o outro prato e saindo da cozinha.

—  Já vou já, gritou Rosemary

Dee Bertillon trouxe Portia Haynes, uma atriz, e Joan telefonou de outra festa dizendo que estava a caminho e que traria um convidado.

—  Guardando segredos, heín, sua esfinge!, esclamou Tiger, abraçando e beijando Rosemary.

—  Quem é que está grávida?, perguntou alguém. Ou­tra pessoa respondeu: — Rosemary!

Rosemary colocou um vaso de flores sobre a lareira (— Parabéns!, disse Russ Morgan, ouvi dizer que está grá­vida) e levou o resto para o quarto. Ao sair, recebeu das mãos de Renato um’ copo de uísque e soda. — Carrego no Scotch nas primeiras doses — explicou o garçom — para que todos se animem. Depois vou com calma.

Mike, aproveitando uma brecha, soletrou à distância: —Pa-ra-béns. Ela sorriu e agradeceu com um gesto.

—  As irmãs Trench moraram aqui, disse alguém e Ber­nard Kapp adicionou: — Adrian Marcato e Keith Kenne­dy também.

—  E Pearl Ames..., disse Phillys Kapp.

—  As irmãs Trent? Quem eram?, perguntou Jimmy.

—  Irmãs Trench. Comiam criancinhas.

—  Ela não está brincando. Quando diz- que comiam, quer dizer comiam mesmo criancinhas.

Rosemary fechou os olhos e prendeu a respiração, pois a dor apertara. Talvez por culpa da bebida. Pôs o copo de lado.

—  Está se sentindo bem?, perguntou Cláudia.

—  Sim, estou bem. Tive uma pequena cólica.

Guy estava falando com Tiger, Portia Haynes e Dee. — É muito cedo para se fazer uma previsão, dizia, pois começamos os ensaios apenas há seis dias. Mas está saindo melhor do que no texto.

—  Também, se saísse pior..., disse Tiger. — Por fa­lar nisso, que aconteceu com o rapaz que ia fazer seu papel? Continua cego?

—  Não sei, respondeu Guy.

—  É Donald Baumgart, não é? Aquele que vive com Zoe Piper, disse Portia.

—  Ah... É esse?, perguntou Tiger. — Não sabia que se tratava de pessoa que conheces.

—  Éle está escrevendo uma grande peça, explicou Portia. — Pelo menos os dois primeiros atos são magníficos. Uma peça realmente revoltada, amarga como eram as de Osborne antes de fazer sucesso.

—  Ainda está cego?, perguntou Rosemary.

—  Sim. Já perderam a esperança de curá-lo. O perío­do de reajustamento tem sido um inferno. Mas sua peça está saindo assim mesmo. Ele dita e Zoe escreve.

Joan chegou, acompanhada de um amigo cinqüentão. Chamou Rosemary para um lado, perguntando-lhe assusta­da: — Que há com você? Algo errado?

—  Não, nada de errado. Estou grávida, só isso — res­pondeu Rosemary.

Estava na cozinha com Tiger, preparando a salada, quando Joan e Elise entraram, fechando a porta atrás de si.

— Qual é mesmo o nome de seu médico?, pergun­tou Elise.

—  Dr. Sapirstein.

—  E ele se acha satisfeito com seu estado?

Rosemary respondeu que sim, com um movimento de cabeça.

—  Cláudia me disse que você teve uma cólica agora pouco.

—  Sinto uma dor, que deve passar logo. Não há nada de anormal nisso.

—  Que tipo de dor?, perguntou Tiger.

—  Uma ... uma dor. Uma dor bastante aguda às ve­zes. Parece que tenho os ossos da bacia um pouco duros e a dilatação se faz com dificuldade.

—  Rosie, tive essa dor por uma ou duas vezes. Era como uma cólica menstrual, apenas um pouco mais forte. Mas não durava o tempo todo, disse Elise.

—  Bem, cada mulher é diferente de outra, disse Ro­semary misturando o molho na salada com o auxilio de duas colheres; — cada gravidez apresenta sintomas distintos, o médico me explicou.

—  Não tão diferentes. Você está parecendo a Miss Campo de Concentração de 1966. Tem certeza de que seu médico é competente?

Rosemary começou a chorar desanimada e silenciosamente, ainda segurando as colheres na mão. As lágrimas cor­riam em seu rosto.

—  Meu Deus!, exclamou Joan olhando para Tiger, como para pedir auxílio. Tiger abraçou Rosemary, dizendo: — Oh, meu bem, não chore, minha querida.

—  Deixe que ela chore, disse Elise. — Precisa desaba­far. Está mais tensa que uma mola de relógio. Chorar vai lhe fazer bem.

Rosemary continuou chorando, e o preto da pintura dos olhos marcou suas faces. Elise fez com que ela se sentasse; Tiger tirou-lhe as colheres da mão e afastou para o lado a saladeira.

A porta começou a se abrir e Joan correu para impedir a entrada de quem quer que fosse. Era Guy. — Ei, dei­xem-me entrar, disse num tom zangado.

—  Desculpe, mas só é permitida a entrada de mulheres.

—  Quero falar com Rosemary.

—  Não pode agora. Ela está ocupada.

—  Escute, preciso lavar uns copos.

—  Use a pia do banheiro. Joan empurrou a porta, fe­chou-a e encostou-se nela para bloquear a entrada.

—  Que diabo! Abra essa porta, gritou Guy do lado de fora.

Rosemary continuou chorando, com a cabeça abaixada, ombros curvados, as mãos caídas ao colo. Elise curvou-se, limpou-lhe o rosto com a ponta de uma toalha; Tiger pro­curava ajeitar-lhe o cabelo e abraçava-a seguidamente.

—  Dói tanto, gemeu, olhando para as amigas — e te­nho tanto medo de perder a criança.

—  O que está fazendo o médico? Indicou-lhe algum re­médio, algum tratamento?

—  Nada, nada.

—  Quando é que começou?, perguntou Tiger.

Rosemary começou a soluçar.

       — Quando é que começou essa dor, Rosie? Insistiu Elise

—  Em novembro.

—  Em novembro!, Joan repetiu da porta. Em novem­bro? Quer dizer que esta sentindo dores desde novembro e seu médico nada fez até agora?

—  Diz que é assim mesmo, que as ‘dores devem passar.

—  Ele não chamou outro colega para examinar você?

Rosemary sacudiu a cabeça. — É muito bom médico. Muito conhecido. Apareceu até na televisão, no programa Open End.

—  Está me parecendo um sádico de primeira categoria, Rosemary, disse Tiger.

—  Uma dor como essa, e de tanta duração, é sinal de que algo está errado, disse Elise. Sinto muito se vou assus­tá-la, Rosie, mas acho que deve consultar outro médico. Pro­cure o Dr. Hill. Procure outro qualquer que não seja êsse...

— Esse louco, completou Tiger.

—  Não pode ser um bom médico deixando que você sofra dessa maneira.

—  Não vou fazer aborto nenhum, disse Rosemary.

Joan, da porta, sussurrou: — Ninguém está sugerindo que faça um aborto. Estamos só pedindo que consulte outro médico.

Rosemary tirou a toalha das mãos de Elise e disse: — Ele me avisou de que isto ia acontecer. Que minhas amigas iriam dizer que a gravidez delas tinha sido normal e que a minha não estava sendo.

—  O que quer dizer com isso?, perguntou Tiger. Rosemary olhou-a. — Disse-me para não contar às mi­nhas amigas o que sentia.

—  Pois queira fazer o favor de escutar bem o que es­tamos dizendo. De mais a mais, isso não é conselho que se dê a pessoa alguma.

—  Só queremos que você procure outro médico. Desde que isso traga paz de espírito à sua paciente, não vejo por­que o medico se possa opor.

—  E você vai fazer isso, intimou Joan. Segunda-feira de manhã.

—  Está certo. Vou sim.

—  Promete?, perguntou Elise.

Rosemary sacudiu a cabeça. — Prometo, sorriu para Elise, Tiger e Joan, — Obrigada a vocês todas. Já me sinto bem melhor.

—  Não parece; você está o fim, disse Tiger abrindo a bolsa. Vamos, dê um jeito na cara e nesse cabelo. Arru­me-se. Tirou da bolsa um equipamento de maquilagem em miniatura.

—  Sujei meu vestido!, exclamou Rosemary.

—  Um pano úmido consertará tudo. — disse Elise pegan­do a toalha e dirigindo-se para a pia.

—  As torradas! — gritou Rosemary.

—  Para dentro do forno ou para fora? — perguntou Joan.

—  Para dentro, disse Rosemary apontando com o pin­cel do delineador para duas fôrmas cobertas de papel-alumínio.

Tiger começou a misturar a salada enquanto Elise lim­pava o vestido de Rosemary. — Na próxima vez que tiver vontade de chorar, disse, faça o favorzinho de não usar veludo.

Guy entrou na cozinha olhando-as meio desconfiado.

—  Estávamos fofocando e trocando segredos de beleza. Deseja conhecer algum?, perguntou Tiger.

—  Você está bem?, perguntou ele a Rosemary.

—  Claro, ótima! respondeu sorrindo.

—  Derramou um pouco de molho de salada no vestido, disse Elise.

—  Será que o pessoal da cozinha não merece uma roda­da de drinques?, perguntou Joan.

O   chupe foi um sucesso, assim como a salada (Tiger murmurou para Rosemary: — Foram suas lágrimas que lhe deram esse toque genial).

Renato examinou o vinho, aprovou, abriu-o com um flo­reio e serviu com solenidade.

O   irmão de Cláudia, Scott, dizia na saleta: — Seu nome é Altizer e está atualmente, se não me engano, em Atlanta. Diz que a morte de Deus é um fato histórico e específico, acontecido agora, bem em nossa era. Que Deus está literal­mente morto. Os Kapps, Raín Morgan e Bob Goodman co­miam e ouviam com atenção.

Jimmy, numa das janelas da sala de estar, disse: Óba! Está começando a nevar.

Stan Keeler contou umas piadas sobre imigrantes polo­neses, meio cabeludas, e Rosemary riu gostosamente. — Cuidado com a bebida, disse Guy em seu ouvido. Ela mos­trou-lhe o copo ainda sorrindo. — É só gingerale!

O   cínqüentão de Joan estava sentado no chão, acari­ciando-lhe os pés, e falando sem parar. Elise conversava com Pedro, que respondia sem tirar os olhos de Mike, que falava com Allan no outro lado da sala. Cláudia começou a ler mãos.

Estavam com o estoque de Scotch meio baixo, mas o resto corria às mil maravilhas. Rosemary serviu café, esva­ziou cinzeiros e, ajudada por Tiger e Carole Wendell, la­vou uns copos.

Mais tarde sentou-se na janela com Hugh Dunstan, to­mando café e admirando os pesados flocos de neve que caíam sem cessar, como um exército em marcha. De vez em quan­do, um floco desgarrado caía sobre o vidro da janela, onde se derretia e sumia.

—  Todos os anos juro a mim mesmo que vou sair da cidade — disse Hugh — para me afastar do barulho, dos crimes e de tudo mais. E todo ano, quando neva ou começa um festival Humphrey Bogart, continuo aqui.

—  Foi esta a razão que me levou a desejar tanto este apartamento, disse-lhe Rosemary: ficar sentada na janela, vendo a neve cair, tendo a lareira acesa na sala.

Hugh olhou-a e disse brincando: — Aposto que você ainda lê Dickens.

—  Claro! Alguém pode deixar de ler Dickens?

Guy chegou junto a Rosemary dizendo: — Meu bem, Bob e Thea já vão embora.

Lá pelas duas horas todos os convidados já tinham saí­do, e Guy e Rosemary ficaram na sala, cercados de copos vazios, guardanapos usados e cinzeiros sujos. (Elise, ao sair tinha recomendado baixinho: — Segunda-feira. sem falta! Não se esqueça! Como se ela pudesse esquecer...)

—  Acho que agora só nos resta mudar de casa, disse Guy olhando a bagunça.

—  Guy?

—  Que é?

—  Segunda-feira de manhã irei ao Dr. Hill.

Ele nada disse; ficou olhando para ela, sem compreender.

—  Quero que me examine. O Dr. Sapirstein pode es­tar errado ou meio maluco, sei lá. Uma dor como a que sinto não pode ser normal.

—  Rosemary..., começou a dizer Guy.

—  E não vou mais tomar o suco de Minnie. Quero to­mar vitaminas em pílulas como todo mundo faz. Há três dias que já não tomo; faço com que o deixe aqui e despejo na pia.

—  Você...

—  Tenho feito um suco à minha moda.

Guy, com as feições transtornadas, apontou para a co­zinha e gritou: — Era isso que aquelas víboras estavam fa­zendo lá? Destilando o veneno do dia, para que você mu­dasse de médico?

—  São minhas amigas. Não as chame de víboras.

—  São umas cadelas estúpidas, que deviam se incomo­dar com a merda da vida delas.

—  Tudo o que fizeram foi recomendar-me que consul­tasse outro médico.

—  Você está nas mãos do melhor médico de Nova York, Rosemary. Sabe quem é o Dr. Hill? É um João-Nin­guém Hill, eis o que ele é.

—  Estou cansada de ouvir lorotas sobre o Dr. Sapirstein, mas tenho desde novembro esta dor dentro de mim, e tudo o que ele diz é que deve parar a qualquer momento.

—  Você não vai mudar de médico coisíssima nenhuma! Teríamos que pagar os dois. Está fora de questão.

—  Não vou mudar. Vou só deixar que o Dr. Hill me examine e dê sua opinião.

—  Não vou permitir. Não seria justo com Sapirstein.

—  Não é justo para Sapirstein? O que está dizendo? E o que será justo para mim?

—  Quer a opinião de outro médico? Muito bem. Diga isso ao Dr. Sapirstein e deixe que lhe indique um. Tenha pelo menos essa pequena consideração com um dos melhores especialistas do país.

—  Quero o Dr. Hill. Se não quiser pagar, eu... — parou de falar, e ficou inteiramente imóvel, como que parali­sada. Uma lágrima correu pelas faces em direção à boca.

—  Ro? perguntou Guy aflito.

A dor desaparecera. Sumira como uma campainha dis­parada que de repente deixasse de tocar. Como algo que su­misse e se fosse para sempre, para nunca mais voltar, gra­ças ao bom Deus. Acabara! Tudo seria bom agora, assim que pudesse recobrar a respiração.

—  Ro?, tornou a repetir Guy, dirigindo-se a ela.

—  A dor. Parou. A dor parou!

—  Parou?

—  Neste minuto. Conseguiu sorrir. — Parou. Sem mais nem menos. Fechou os olhos e respirou profundamen­te, respirou como não conseguira desde novembro. Há sé­culos e séculos...

Quando abriu os olhos viu Guy examinando-a com an­siedade, parecendo preocupado.

—  O que é que você botava no suco?

Sentiu o coração parar. Tinha matado a criança. Com o sherry. Ou um ovo estragado. Ou com a combinação dos dois. A dor tinha parado, o nenê estava morto. A dor era o nenê e ela o matara com a sua arrogância.

 

       O que até agora tinha sido um inferno, transforma­ra-se em céu azul. Com o fim da dor veio o sono, um sono tranqüilo, longo e repousante; com o sono veio o apetite, uma fome por carne devidamente cozida, não majs crua como antes, por ovos, verduras, leite, frutas e doces. Em poucos dias Rosemary perdeu o aspecto cadavérico; em poucas se­manas passou a ter a aparência que toda mulher grávida deve ter: viçosa, sadia, triunfante, mais bonita do que nunca.

Tomava até a última gota o suco trazido por Minnie, lembrando-se daquele momento em que pensou ter morto a criança. O suco vinha agora acompanhado de um bolo bran­co e farelento, com consistência semelhante à de marzipã. Comia-o também, apreciando seu gosto de bala e com a satisfação íntima de se sentir a futura-mamãe mais conscien­ciosa do mundo.

O   Dr. Sapirstein poderia ter feito uma cara de superio­ridade ao saber que a dor acabara. Felizmente nada disse, a não ser: — Já não era sem tempo. — Colocou o estetos­cópio sôbre a barriga de Rosemary, agora bem proeminente e escutou. Para um médico que tinha acompanhado milha­res de gestações, mostrou uma excitação inesperada ao sen­tir os movimentos da criança. Parecia um jovem estudante de medicina que escutasse, pela primeira vez, as batidas do coração de um feto. Talvez fosse essa a diferença que dis­tinguisse um grande médico de um médico comum. Rose­mary comprou vestidos maternais; um duas-peças preto, um tailleur bege e um vestido vermelho com bolas brancas. Duas semanas depois de sua festa, foram a uma, dada por Lou e Cláudia Comfort. — Não posso acreditar em tamanha mu­dança em tão pouco tempo!, exclamou Cláudia, segurando-lhe as mãos. — Está cem vezes melhor. Cem, não. Mil vezes melhor!

A velha Sra. Gould, vizinha de andar, ao encontrá-la, confidenciou: — Sabes, estávamos realmente preocupados com você. Andava tão magra e abatida... Agora está ou­tra. Arthur comentou sobre sua mudança ainda ontem.

—  Sinto-me realmente muito bem agora, disse Rose­mary. — Algumas gestações começam bem e acabam mal, e outras são ao contrário. Fico contente por ter passado pelo pior em primeiro lugar.

Passara a sentir agora pequenas dores que tinham sido sufocadas pela grande dor: seios doloridos e compressão nas costas, mas esses pequenos desconfortos eram mencionados, no livro que o Dr. Sapirstein fizera com que jogasse fora, como coisa perfeitamente normal. Sentia que eram normais, e isso aumentava — em lugar de diminuir — sua sensação de bem-estar. O sal ainda lhe causava repugnância, mas, afinal de contas, que importância maior tinha o sal?

A peça de Guy, que mudara de diretor duas vezes. e três de título, estreou em Filadélfia em meados de fevereiro. Como o Dr. Sapirstein tivesse proibido que Rosemary via­jasse durante toda a tournée, foi até lá para assistir a es­tréia, viajando com Jimmy e Tiger, Minnie e Roman, no ve­lho Packard de Jimmy. O passeio não foi muito agradável, pois Rosemary e o casal mais jovem tinham visto o ensaio final da peça em Nova York e alimentavam sérias dúvidas quanto às chances dela se tornar um sucesso. Esperavam, na melhor das hipóteses, que ao menos o papel de Guy re­cebesse atenção e uma crítica favorável, esperança essa man­tida por Roman que citava atores que iniciaram carreiras brilhantes em peças de pouca ou nenhuma importância.

Apesar dos cenários, do guarda-roupa e dos efeitos de luz, a peça continuava prolixa e tediosa. A festa que teve após a estréia, mais parecia um velório, dividida em peque­nos grupos de gente silenciosa e triste. Só a mãe de Guy, que tinha vindo de avião de Montreal, insistia em dizer que a peça era soberba e que Guy estava magnífico. Vivaz, loura e pequenina, procurava transmitir ao grupo seu entusiasmo. Minnie e Roman sorriam serenamente; Tiger, Jimmy e Ro­semary se preocupavam em silêncio. Rosemary concordava intimamente com a opinião de sua sogra a respeito de Guy, mas como achara seu desempenho excelente em Luther e em Nobody Loves an Albatross, e nenhum dos dois fora dis­tinguido pela crítica, não se considerava um juiz imparcial.

Duas críticas chegaram nos jornais da madrugada, am­bas arrasando a peça e pródigas em elogios ao desempenho de Guy; um dos jornais dedicava-lhe dois parágrafos intei­ros. Uma terceira critica, num dos matutinos, tinha como cabeçalho: Desempenho Brilhante Salva Nova Comédia Dramática e se referia a Guy como um ator virtualmente desconhecido mas de imenso talento, que irá certamente atin­gir o estrelato.

A volta foi bem mais alegre do que a ida.

Rosemary, durante a ausência de Guy, andou bastante ocupada. Tinha que encomendar (finalmente!) o papel de parede amarelo e branco, assim como o bercinho, a cômoda e a banheira para o bebê. Tinha que escrever as cartas há tanto adiadas, contando as novidades à família; comprar rou­pinhas de criança e mais alguns vestidos para si mesma: ti­nha que tomar decisões diversas, como escolher o estilo dos cartões de participação de nascimento, decidir sobre o que seria melhor para o bebê, alimentá-lo no seio ou com mama­deira, pensar finalmente sobre o nome, o bendito nome! An­drew, Douglas ou David; Amanda, Jenny ou Hope

Tinha ainda que fazer todas as manhãs uma série de exercícios, pois iria tentar o parto-sem-dor. Fazia questão absoluta que o parto fosse normal, e o Dr. Sapirstein concordava inteiramente com ela. Dar-lhe-ia anestesia só nos últimos momentos e caso pedisse. Deitada no chão, levantava as pernas e contava até dez; fazia exercícios respiratórios e imaginava o momento triunfante em que, com auxílio de seus músculos iria ver saindo de seu corpo, lentamente, a tão es­perada criança.

Passou algumas noites com Minnie e Roman, outra com os Kapps e ainda outra visitando Elise e Hugh Dunstan. Elise perguntou-lhe: — Você ainda não arranjou enfermeira? Já devia ter contratado alguma; devem estar todas empregadas a esta altura.

No dia seguinte ligou para o Dr. Sapirstein, a fim de se informar a respeito de enfermeiras, mas ele lhe disse que não se preocupasse com isso, pois já tinha contratado uma, efi­cientíssima, uma certa Miss Fitzpatrick, que ficaria em sua companhia o tempo que desejasse. — Pensei ter falado tudo isso com você, mas parece que me esqueci.

Guy telefonava dia sim, dia não, logo após o espetá­culo. Contou a Rosemary as mudanças que estavam sendo feitas na peça e sobre a crítica excelente que ele recebera do Variety; ela falou-lhe sobre Miss Fitzpatrick, sobre o papel de parede e sobre uns sapatinhos horríveis que Laura-Louise estava tricotando para o nenê.

A peça terminou depois de quinze apresentações e Guy voltou por dois dias a Nova York, pois fora chamado pela Warner Brothers para fazer um teste em seus estúdios na Califórnia. Voltou finalmente para casa com importante pa­pel assegurado numa de duas peças a estrear na próxima temporada, e o contrato para treze filmes para a televisão, na série Greenwich Village. A Warner lhe havia feito uma proposta, mas Allan, seu agente, não a aceitara.

O   bebê chutava como um demônio. Rosemary aconse­lhou-o a parar com aquilo ou ela o chutaria também.

O   marido de Margaret telefonou para participar o nas­cimento de mais um sobrinho, que chegara com quatro quilos e se chamaria Kevin Michael. Logo depois, recebeu pelo correio uma participação engraçadinha demais: um garoti­nho cor-de-rosa, de megafone em punho, anunciando seu nome, data de nascimento, peso e altura. (— Esqueceram de botar o tipo de sangue, comentou Guy.) Rosemary de­cidiu que o cartão comunicando o nascimento do dela seria simples, tendo só o nome deles e o nome da criança e a data. O nome já estava decidido também: seria Andrew John ou Jennifer Susan. Definitivamente. Alimentação no seio e não em mamadeira. Definitivamente.

Tiraram a televisão da saleta e colocaram-na na sala, deram os móveis a amigos que podiam aproveitá-los. O pa­pel de parede chegou e foi colocado. Ficou perfeito. O ber­ço, a cômoda e a banheirinha chegaram e Rosemary colo­cou-os aqui, depois ali. Dentro das gavetas da cômoda Rosemary guardou os xales, as fraldas e camisinhas tão pe­quenas que só em segurá-las Rosemary não podia deixar de sorrir com ternura.

— Andrew John Woodhouse, pare! Você ainda tem dois meses pela frente.

Festejaram o segundo aniversário de casamento e os trinta e três anos de Guy; deram um jantar sentado para os Dunstans, os Chens e Jimmy e Tiger; viram Morgan e foram à pré-estréia de Mame.

Rosemary aumentava de tamanho a cada dia, seus seios pousavam sobre a barriga, esticada, quase sem umbigo, como a pele de um tambor, onde a movimentação se tornava mais forte e constante. Fazia os exercícios pela manhã e à noite, levantando as pernas, e ajoelhando-se para respirar, a res­piração ofegante de um cachorrinho cansado.

Nos fins de maio, ao entrar no nono mês, arrumou uma maleta com as coisas que iria precisar no hospital: camiso­las, soutiens especiais, um peignoir de cetim acolchoado, etc., e deixou-a pronta perto da porta do quarto.

 

No dia três de junho. Hutch faleceu no St. Vincent’s Hospital. Axel Allert, seu genro, telefonou a Rosemary no sábado de manhã para lhe dar a notícia. Haveria uma ceri­mônia funerária na terça-feira, no Ethical Culture Center, adicionou.

Rosemary chorou, parcialmente por Hutch estar morto e parcialmente por tê-lo quase esquecido durante os últimos meses. Sentia uma espécie de remorso, por achar que a falta de lembrança pudesse ter apressado sua morte. Grace Car­diff tinha telefonado algumas vezes e Rosemary ligara uma vez, para Dons; não tinha ido visitar Hutch, porém. Seria inútil fazê-lo enquanto ele estivesse em estado de coma. Ten­do recuperado sua própria saúde, sentia uma espécie de aver­são por doentes, como se ela e a criança pudessem sofrer algum contágio.

Guy, ao receber a notícia, ficou pálido, deprimido e não disse palavra durante várias horas. Rosemary surpreendeu-se com a profundidade de sua reação.

Foi sozinha à cerimônia fúnebre, pois Guy estava fil­mando e Joan encontrava-se doente. Realizou-se num belo e sóbrio auditório com painéis de madeira, sendo assistida por umas cinqüenta pessoas. Foi curta e tocante. Axel Allert falou algumas palavras, seguido por outro homem, que pa­recia ser um velho amigo de Hutch. Ao terminar a cerimônia Rosemary foi até onde estava reunida a família, para apre­sentar suas condolências. Uma senhora tocou-lhe o braço, dizendo: — Desculpe-me, você é Rosemary, não é? Era uma senhora distinta e bem vestida, beirando os cinqüenta anos. de cabelos grisalhos e pele moça. — Sou Grace Cardiff, disse.

Rosemary apertou-lhe a mão, cumprimentou-a e agra­deceu-lhe os telefonemas.

—  Ia enviar-lhe isto pelo correio, disse Grace mostran­do um embrulho de papel pardo do tamanho de um livro, — quando imaginei que poderia encontrá-la hoje. — Deu o pacote a Rosemary, que viu escrito seu nome como desti­natária e o de Grace Cardiff como remetente.

—  O que é?, perguntou.

— Um livro. Hutch insistiu muito para que o entre­gássemos a você.

Rosemary não entendeu.

— Voltou a si durante alguns minutos, pouco antes do fim. Eu não estava lá, mas recomendou a uma enfermeira que me pedisse para entregar a você um livro que estava só­bre a escrivaninha. Presumo que o estava lendo quando so­freu o ataque. Insistiu muito com a enfermeira; fez com que jurasse cumprir o que pedira: que eu lhe entregasse o livro e lhe dissesse que o nome era um anagrama.

— O nome do livro?

—  Possivelmente. Estava delirante, de modo que não podemos ter certeza. Parecia estar lutando para sair da coma e acabou vencido pelo esforço. Logo que voltou a si, pensou que estava no dia seguinte, no dia em que tinha marcado encontro com você para as onze horas.

—  De fato, tínhamos um encontro marcado.

—  Pareceu então dar-se conta do que lhe acontecera, e começou a insistir com a enfermeira para que eu entregas­se este livro a você. Repetiu várias vezes e depois morreu. — Grace Cardiff falava como se estivesse mantendo uma conversa social. — um livro inglês, sobre feitiçaria. Rosemary, olhando para o livro com estranheza, disse: — Não posso imaginar por que gostaria que me chegasse às mãos.

—  Era o que queria, e seu desejo foi cumprido. Lembre-se de que o nome é um anagrama. Querido Hutch! Fa­zia com que tudo em sua vida parecesse fazer parte de um livro de aventuras para garotos.

Saíram juntos do auditório e caminharam pela rua.

—  Vou em direção norte. Quer aproveitar a condução?, perguntou Grace Cardiff.

—  Muito obrigada, mas vou em sentido oposto.

Chegaram à esquina, que estava cheia de pessoas que também haviam deixado o auditório e esperavam táxis. Quando um se aproximou, dois senhores que o tinham cha­mado ofereceram-no a Rosemary. Quis recusá-lo, mas Grace Cardiff disse: — Lembre-se de seu estado e aceite logo. Para quando espera o nenê?

—  Lá pelo fim de junho, respondeu Rosemary, agrade­cendo aos senhores e a Grace Cardiff. Entrou com alguma dificuldade no carro, que era pequeno.

—  Boa sorte, disse Grace Cardiff fechando a porta.

—  Obrigada, e muito obrigada pelo livro também, res­pondeu Rosemary. Virando-se para o chofer, indicou: — Para o Edifício Bramford, por favor —. Sorriu e acenou pela janela, quando o táxi se afastou.

 

Rosemary pensou em desembrulhar o livro ali mesmo no táxi, mas como era um carro novinho, cheio de acessórios extras e cartões pedindo que os passageiros respeitassem a limpeza, achou melhor fazê-lo em casa. Lá chegando, tratou primeiro de mudar de roupa, tirando o vestido, a cinta e os sapatos e colocando chinelos e um peignoir amplo e con­fortável.

A campainha da frente tocou e Rosemary, ainda com o embrulho fechado nas mãos, foi atender. Era Minnie, que trazia o suco e o pedaço de bolo. — Ouvi você chegar, disse. Pelo que parece, não foi uma cerimônia muito longa.

—  Foi curta e comovente, disse Rosemary, segurando o copo. — O genro de Hutch disse algumas palavras e em seguida falou um velho amigo dele, que exaltou suas qua­lidades e fez considerações sobre como seria sentida sua au­sência. Foi só isso.

—  É assim que devem ser feitas essas cerimônias, de maneira sóbria e discreta. Pelo que vejo já recebeu a cor­respondência.

—  Não, isto me foi entregue lá mesmo, em mãos, disse Rosemary, não querendo entrar em detalhes a respeito da volta de Hutch à consciência e do recado que lhe mandara.

—  Deixe-me segurá-lo para você enquanto alimenta o “nenê”.

— Obrigada, disse Rosemary, entregando-lhe o pacote.

— É um livro?, perguntou Minnie, examinando-o.

— Sim, a pessoa que me entregou ia enviá-lo pelo cor­reio, mas achando que me encontraria na cerimônia trou­xe-o consigo.

Minnie leu o endereço da remetente. — Conheço esse edifício. Os Gilmores moravam lá antes de se mudarem.

— É mesmo?

— Já estive lá várias vezes. Que nome bonito, Grace. É uma de suas amigas?

— Sim, confirmou Rosemary. Era mais fácil do que contar a história toda e, de mais a mais, Minnie não tinha nada com isso.

Acabou de tomar o suco e comer o bolo e apanhou no­vamente o embrulho, agradecendo.

— Escute, disse Minnie. — Roman vai até o tintu­reiro. Quer que leve ou apanhe alguma coisa para você?

—  Não, obrigada. Veremos vocês mais tarde?

— Claro! Por que não vai tirar uma soneca?

— Boa idéia. Até logo.

Depois que Minnie saiu, fechou a porta, passou a cor­rente de segurança e foi até a cozinha. Com uma faca afia­da, cortou o barbante e abriu o embrulho. O livro tinha por título All of Them Witches, e seu autor era J. R. Hanslet. Era um livro de capa preta, bastante antigo, com o dourado da encadernação e dos títulos quase apagado. No frontis­pício lia-se a assinatura de Hutch e a data: Torquay, 1934. Um pequeno rótulo azul, no verso da capa, indicava a li­vraria onde fora adquirido.

Rosemary levou o livro para a sala, folheando-o a esmo. Havia algumas fotografias de pessoas da era vitoriana, sérias e respeitáveis: várias passagens estavam sublinhadas e, nas margens, viu algumas anotações escritas com a letra de Hutch. Uma das frases sublinhadas com força era a que se referia “ao fungo que denominam de Fungo do Diabo”.

Sentou-se ao lado da janela da sala e procurou o ín­dice. O primeiro nome que lhe chamou a atenção foi o de Adrian Marcato; a ele era dedicado todo o quarto capítulo. Os outros tratavam de gente que presumivelmente se dedi­cava a bruxarias: Gilles de Rais, Jane Wenham, Aleister Crowley e Thomas Weir. Os capítulos finais se intitulavam Prática de Bruxarias e Satanismo e Bruxarias.

Procurando o quarto capítulo, Rosemary começou a ler as vinte e poucas páginas de que se compunha: Adrian Marcato tinha nascido em Glasgow em 1846, tinha sido trazido ainda criança para Nova York (sublinhado) e morrera na ilha de Corfu, em 1922. Narrava o tumulto que ele provo­cara em 1896, quando afirmara ter conseguido a materiali­zação de Satã e o ataque que sofrera na entrada do Bram­ford (na rua, e não dentro do edifício, como dissera Hutch). Contava ainda incidentes similares ocorridos em Estocolmo, em 1898 e Paris, em 1899. Havia ainda uma fotografia de corpo inteiro de Adrian Marcato, cujo traço mais marcante eram os olhos cheios de força hipnótica. O rosto, ainda que escondido por uma barba negra, lembrava Rosemary o de uma pessoa conhecida. Ao lado dessa fotografia havia outra, mais informal, em que Marcato aparecia num café de Paris, ladeado por sua esposa, Hessia e seu filho, Steven (subli­nhado).

Seria para ela conhecer detalhes da vida de Adrian Marcato que Hutch fizera tanta questão de que recebesse o livro? Mas por quê? Já não os pusera de sobreaviso e não reco­nhecera, depois, que seus temores eram infundados? Folheou o livro novamente, detendo-se nas passagens sublinhadas: “O fator mais importante é que, quer acreditemos ou não, eles crêem”. Algumas páginas mais adiante encontrou: a crença universal que têm no poder do sangue fresco”. E ainda: “cercado de velas que, é desnecessário dizer, são sem­pre negras”.

Aquelas velas pretas que Minnie tinha trazido na noite da falta de energia elétrica tinham chamado de tal maneira a atenção de Hutch, que passara a se interessar e fazer in­dagações sabre o casal. Será que desconfiava de que Roman e Minnie fossem como dizia o livro, bruxos? Minnie com suas ervas e seu amuleto de tannis? Roman com seu olhar perfu­rante? Mas que bobagem! Bruxarias não existiam mais. Ou existiriam?

Lembrou-se então do resto do recado de Hutch: “o nome é um anagrama”. Tentou várias combinações com o nome do livro. Era difícil pois as letras eram tantas que davam a maior confusão. Precisaria de lápis e papel, ou melhor, do jogo de scrabble.

Foi buscar a caixa do jogo, tomou a sentar-se ao lado da janela e tirou pedrinhas com as letras que formavam o ti­tulo do livro, O bebê já vai nascer jogando scrabble, disse Rosemary. — Fique quietinho aí dentro.

Tentou várias combinações primeiro com o nome do li­vro. Como nenhuma fazia sentido, tirou novas peças, agora para formar o nome do autor.

O   nenê deu um pontapé vigoroso.

Tentou fazer um anagrama com o nome do autor, só conseguindo de J. R. Hanslet formar Jan Shrelt ou 1. H. Snartle.

Coitado de Hutch! Devia estar bem ruinzinho...

Tomou novamente a caixa do scrabble e guardou as pedrinhas. Pegou o livro, que continuava a seu lado e abri­ra-se a esmo. Abrira-se na página que mostrava a foto de Adrian Marcato e sua família. Talvez Hutch tivesse força­do a encadernação, quando sublinhou o nome Steven.

O  nenê estava agora inteiramente imóvel.

Rosemary tirou da caixa do jogo as letras que formavam o nome Steven Marcato. Arrumou-as na ordem e depois, sem hesitação, mudou a posição das pedrinhas e olhou o re­sultado: Roman Castevet.

Fez nova transposição: Steven Marcato.

A partir daí, novamente Roman Castevet.

O  nenê moveu-se ligeiramente.

 

Leu atentamente o capítulo sobre Adrian Marcato e em seguida o que tratava da Prática de Bruxarias. Foi até a cozinha, serviu-se de salada de atum, tomate e alface e co­meu vagarosamente, meditando sobre o que lera.

Estava começando o capítulo sobre Satanismo e Bru­xarias quando escutou a chave girar na fechadura e a porta bater contra a corrente de segurança. Era Guy.

— Por que passou a corrente?, perguntou quando Ro­semary abriu a porta.

Rosemary não respondeu. Fechou a porta e tornou a prender a corrente de segurança.

— Que é que há com você? perguntou Guy, que trazia nas mãos um ramo de flores e uma caixa de bombons.

— Contarei lã dentro, respondeu tomando as flores e a caixa.

—  Está sentindo alguma coisa?

— Sim, respondeu entrando na cozinha.

— Como foi a cerimônia fúnebre?

— Bem. Foi curta e comovente.

— Comprei aquela camisa que vimos anunciada no The New Yorker. Imagine que On a Clear Day e Skyscra­per já vão terminar sua breve carreira teatral!

Rosemary colocou as flores num vaso azul e levou-o para a sala; Guy entrou para mostrar-lhe a camisa nova.

— Sabe quem Roman é, na realidade?, perguntou de­pois de admirar a camisa.

Guy olhou-a intrigado. — Ué! Que quer dizer? Roman é Roman.

—  É o filho de Adrian Marcato. O tal que afirmava ter conseguido a materialização do Diabo e que quase foi linchado na porta deste prédio. Roman é, na realidade, seu filho, Steve. O nome Roman Castevet é anagrama de Ste­ven Marcato.

—  Quem foi que disse isso a você?

— Foi Hutch. Contou a Guy sobre o livro e repetiu a mensagem final de Hutch. Mostrou-lhe o livro, que Guy examinou cuidadosamente, pondo de lado a camisa, olhando o índice, as ilustrações e lendo as passagens sublinhadas.

—  Êste é um retrato dele aos treze anos. Repare bem nos olhos.

— Pode se tratar de uma simples coincidência.

— E outra coincidência que esteja morando aqui? No mesmo prédio em que Steven Marcato foi criado? Rosemary sacudiu a cabeça. — Até as idades combinam. Steven Marcato nasceu em agosto de 1886 e teria portanto setenta e nove anos. Essa é a idade de Roman. É muita coincidência.

— Talvez você tenha razão. Pode ser que seja Steven Marcato. Coitado! Não é para menos que tenha mudado de nome. Com um pai desses...

Rosemary olhou para Guy com segundo sentido. — Quer dizer que não acredita que seja como foi o pai?

—  O que quer dizer com isso? Que Roman seja um feiticeiro? Um adorador de Satã?

—  Sim.

— Ora, Ro! Francamente! Que besteira! Quer dizer que chegou a pensar a sério... Interrompeu-se rindo e devol­veu-lhe o livro. — Com efeito, Ro!

— É uma religião para eles. Uma religião que vem de tempos imemoriais e que tem sido abafada.

—  Ta certo. Mas hoje! Em nossos dias?

— Seu pai foi um mártir dessa religião. Ou pelo me­nos é o que deve parecer a Roman. Sabe onde Adrian Marcato morreu? Num estábulo em Corfu. Nem sei onde fica. Não era aceito pelos hotéis. Literalmente, não era aceito em lugar algum. Por isso morreu num estábulo. E Roman estava com ele. Pode imaginar como deve ter-se sentido em relação ao pai e ao resto do mundo? Acha que abandonaria a religião deles depois disso tudo?

— Querida, estamos em 1966.

— Este livro foi publicado em 1933. Nessa época ha­via grupos de adoradores do Diabo na Europa, na Austrá­lia, na América do Sul e aqui mesmo, aqui nos Estados Uni­dos. Acha que todos desapareceram num prazo de trinta anos? Têm um grupo aqui mesmo, do qual fazem parte Minnie e Roman, Laura-Louise, os Gilmores os Fountains, e os Wees. O que é que você acha que são essas festas em que cantam ao som de flautas? São os sabbaths ou esbats, te­nham o nome que tiverem.

— Vamos com calma, querida. Conclusões assim pre­cipitadas...

— Leia, Guy. Leia o que fazem, disse ela dando-lhe o livro aberto na página desejada. — Usam sangue em seus rituais, pois o sangue tem o poder e o sangue mais poderoso é o de uma criança, uma criança não batizada. E não usam só o sangue, usam a carne também.

—  Pelo amor de Deus, Rosemary!

— Por que têm sido tão solícitos conosco?

— Porque são pessoas amáveis. Que acha que sejam, maníacos?

— Sim, maníacos que pensam ter um poder sobrenatu­ral. Que agem como se realmente o tivessem — são manía­cos e doentes mentais.

— Querida, por favor...

— Aquelas velas que Minnie nos trouxe são as que usam na missa negra. Foi isso que levou Hutch a descon­fiar. E lembre-se de que a sala de estar do apartamento deles é completamente vazia no centro. É para que tenham espaço para seus rituais malditos.

—  Querida, vamos analisar: são pessoas idosas, que têm um círculo de amigos também idosos. Reúnem-se para con­versar e o Dr. Shand toca ocarina. Você pode sair agora e comprar, em qualquer loja do bairro, quantas velas pretas desejar, assim como velas vermelhas, verdes ou azuis. A sala deles tem um espaço vazio no meio porque Minnie não tem a menor idéia sobre arrumação de casa. O pai de Ro­man era doido. Está certo. Isso não quer dizer que Roman seja também.

— Não vão mais botar os pés aqui em casa. Nenhum deles. E não vão chegar nem a vinte metros do nenê.

— Pense, Rosemary. O fato de Roman ter mudado de nome já por si só demonstra não ser como era o pai. Caso fosse, teria orgulho disso.

— Mas acontece que não trocou de nome. Mudou sim­plesmente a ordem das letras. Dessa maneira conseguiu to­tal liberdade de ação. Não quero saber mais dessa gente aqui. Logo que a criança nascer, vamos desistir deste apar­tamento e mudar para outro. Não aceito discussões. Hutch é quem estava com a razão quando nos disse para não vir para este prédio maldito.

Rosemary terminou de falar e dirigiu-se para a janela, segurando o livro nas mãos trêmulas.

Guy observou-a durante alguns momentos em silêncio. Depois disse: — E o Dr. Sapirstein? Também faz parte do grupo?

Ela virou-se para êle.

— Afinal de contas — continuou Guy — existem tam­bém médicos malucos. A ambição maior de Abe deve ser a de fazer visitas domiciliares montado numa vassoura.

Rosemary tornou a olhar pela janela dizendo: — Não creio que seja. É muito inteligente para isso e além do mais...

— Além do mais é judeu, interrompeu Guy. Ainda bem que um ficou de fora em sua campanha no melhor estilo Mac Carthy. Agora percebo o que quer dizer caça às bruxas...

— Não estou dizendo que sejam bruxos. Sei que não têm poder verdadeiro. Mas há pessoas que acreditam neles, tal como minha família crê em Deus e toma a hóstia como se fosse Seu corpo. Minnie e Roman acreditam na religião deles. Não só acreditam como a praticam. Tenho certeza do que digo. Não vou me arriscar nem arriscar a segurança de meu filho.

— Não vamos sair deste apartamento, disse Guy.

— Vamos, sim senhor.

— Falaremos sobre o assunto quando chegar a hora.

— Roman mentiu a você. O pai dele jamais teve coisa alguma a ver com o teatro. Aquelas histórias eram todas mentira.

— Digamos que sim. Aceito que seja um mentiroso. Quem não é?

Rosemary sentou-se e recomeçou a ler o capítulo final do livro, o que tratava de Satanismo e Bruxarias.

Guy aproximou-se e disse: — Acho que já chega de leituras deste tipo.

— Quero ler só o capítulo final.

— Hoje não, querida. Está nervosa e exçitada. Po­derá fazer mal a você e à criança. Estendeu a mão para tirar-lhe o livro.

— Não estou nervosa.

       —  Está tremendo. Está tremendo sem parar. Vamos, dê-me o livro. Terminará amanhã.

— Guy, eu...

— Não. Estou falando sério. Dê-me o livro.

— Está bem. Estendeu-lhe o livro que de colocou bem alto na estante, sôbre os dois volumes do relatório Kinsey.

— Deixe para amanhã. Por hoje chega de emoções. Já as teve de sobra com a cerimônia fúnebre e esta droga toda.


 

O   Dr. sapirstein mostrou-se estupefato: — Fantás­tico! disse. — Incrível! Como é mesmo o nome? Machado?

— Marcato, respondeu Rosemary.

— Fantástico e incrível, repetiu o Dr. Sapirstein. Não tinha a menor idéia de quem fosse o pai de Roman. Disse-me uma vez que era importador de café. Lembro-me até que me deu uma explicação sobre tipos de grão e processos da moagem de café.

—  Pois disse a Guy que seu pai tinha sido produtor teatral...

O  Dr. Sapirstein sacudiu a cabeça. — Coitado, não é para menos que esconda a verdade. Como não é para menos que você se sinta preocupada ao descobri-la. Sei perfeitamente bem que Roman jamais pensou em seguir a crença do pai, mas compreendo que se sinta preocupada por tê-los como vizinhos.

— O senhor tem certeza do que diz? Acha que Minnie e Roman não fazem parte de algum grupo de... de magia negra? Faço força para não acreditar que possam fazer, mas quando se trata da segurança do nenê, fico meio transtornada.

— Claro! Qualquer mulher em sua situação se senti­ria assim.

— Não há nenhum perigo de que Minnie tenha posto alguma substância estranha no suco ou no bolo?

O  Dr. Sapirstein deu uma risada. — Desculpe-me, Ro­semary. Não estou rindo de você, mas da simples idéia de que aquela velhinha bondosa possa ter pretendido, alguma vez em sua vida, prejudicar você ou a criança. Pode estar certa de que não há perigo algum. Caso tivesse feito alguma coisa prejudicial, eu perceberia os seus efeitos sobre você ou a criança.

— Está bem. Mas não vou mais aceitar nada que te­nha sido feito por ela.

— E nem precisa fazê-lo. Vou receitar umas pílulas que substituirão perfeitamente os preparados de Minnie. Há males que vêm para bem. Sua descoberta vai acabar resol­vendo o problema que eles tinham.

— Problema?

— Sim, querem viajar e precisam fazê-lo o mais cedo possível. Muito cá entre nós, vou contar-lhe um segrêdo: Roman está muito doente. Terá, quando muito, uns dois meses de vida. Como não ignora esse fato, deseja passar o tempo que lhe resta revendo as cidades de que mais gosta. Estavam meio sem jeito, achando que você se zangaria caso a abandonassem nas vésperas da criança nascer. Ainda ontem discutimos o assunto; queriam saber como receberia a notí­cia. Coitados, não desejavam que se aborrecesse ao saber o motivo real da viagem!

— Sinto muito que Roman esteja doente, disse Ro­semary.

— Mas bastante aliviada por saber que irão viajar, não é?, perguntou o médico sorrindo. — É uma reação inteira­mente normal. Vamos fazer o seguinte, Rosemary: direi a eles que sondei você quanto à viagem e que estou certo de que não ficará aborrecida. Pretendem partir no domingo. Você, por seu lado, fará de conta não ter descoberto a ver­dadeira identidade de Roman. Seria um pecado causar-lhe tristeza e infelicidade, por uma questão de três ou quatro dias mais.

Rosemary ficou calada durante alguns instantes. Em se­guida perguntou: — Está certo de que pretendem partir no domingo?

— Pelo menos sei que desejam fazê-lo.

— Está bem. Tudo continuará como antes. Mas só até domingo.

— Perfeito! Mandarei preparar suas pílulas para ama­nhã. Quando Minnie for levar o bolo e o suco, dê um jeito, jogue tudo fora e tome as pílulas.

— Maravilhoso! Assim, ficarei bem mais feliz, disse Ro­semary.

— E conservar você feliz é o que interessa. Principal­mente quando está chegando ao fim da gravidez.

— Caso o nenê seja menino, talvez lhe dê o nome de Abraham Sapirstein Woodhouse...

— Pobre! Que Deus o livre disso!

Voltando para casa, contou a Guy o que soubera.

— Coitado de Roman! Não sabia que tinha tão pouco tempo de vida. Mas, por sua causa, não posso deixar de ficar satisfeito em ter notícias dessa viagem. Só assim você se sentirá mais aliviada.

— Sem a menor dúvida. Já me sinto outra só em sa­ber que vão partir.

O  dr. Sapirstein, aparentemente, não perdeu tempo em relatar aos Castevets a suposta conversa que tivera com Ro­semary, pois — naquela mesma noite — o casal apareceu para anunciar que iriam à Europa. — Partiremos no do­mingo, às dez da manhã, disse Roman. — Voaremos dire­tamente para Paris, onde passaremos uma semana, em se­guida iremos a Zurique, Veneza e, finalmente, iremos à mais bela cidade do mundo, Dubrovnik, na Iugoslávia.

— Estou morrendo de inveja, disse Guy.

— Acho que nossa novidade não é total surpresa para você, não é, querida?, perguntou Roman a Rosemary, com um brilho malicioso em seus profundos olhos negros.

— De fato não é, pois o Dr. Sapirstein disse-me que pretendiam fazer uma viagem, respondeu Rosemary.

— Preferiríamos esperar até que o bebê nascesse, mas..., disse Minnie.

— Seria uma bobagem, interrompeu Rosemary, pois o verão vem aí, com força total.

— Mandaremos milhões de fotografias, prometeu Guy.

— Quando Roman fica com desejo de viajar, continuou Minnie — não há força que o segure em casa.

— É verdade. Depois de passar toda minha vida via­jando, acho impossível ficar mais do que um ano no mesmo lugar. E já faz quatorze meses que voltamos do Japão e das Filipinas, disse Roman.

Passou então a fazer uma descrição da beleza e do en­canto de Dubrovnik de Veneza e da Ilha de Skye. Rose­mary, calada, observava, perguntando-se quem seria Roman na realidade: um velho amável e falastrão ou o filho demente de um pai demente?

No dia seguinte, Minnie não criou qualquer dificulda­de em deixar o suco e o bolo para que Rosemary tomasse mais tarde; estava de saída, com uma lista enorme de coisas a fazer. Rosemary ofereceu-se para ajudá-la, pegando umas roupas que estavam no tintureiro e passando na farmácia para comprar pasta de dentes e Dramanine. Sentiu-se ligei­ramente ridícula ao jogar os preparados de Minnie fora e tomar, em seu lugar, as pílulas que o Dr. Sapirstein enviara.

Na manhã de sábado, Minnie perguntou-lhe: — Você sabe, não é, quem era o pai de Roman?

Rosemary. surpreendida, assentiu.

— Percebi logo, pois senti que esfriara conosco, disse Minnie. — Não precisa se desculpar, pois não foi a pri­meira vez que isso aconteceu nem será a última. Nem ao menos posso condená-la. Seria capaz de matar aquele ve­lho doido caso já não estivesse morto. Tem sido uma mal­dição na vida de Roman. É por isso que ele gosta tanto de viajar; quer sempre mudar de lugar antes que descubram quem realmente é. Por favor, não deixe que ele perceba que você sabe, sim? Gosta tanto de Guy e de você, que isso cor­tar-lhe-ia o coração. Quero que tenha uma viagem inteira­mente feliz e tranqüila, pois poderá ser a última. Você quer os alimentos que sobraram em nossa geladeira? Mande Guy lá em casa com um caixote e lhe darei tudo que está lá.

No sábado a noite, Laura-Louise deu uma festinha de despedida em seu apartamento, pequeno, escuro e cheiran­do a tannis, lá no décimo segundo andar. Apareceram os Wees, os Gilmores, a Sra. Sabatini. como sempre acompa­nhada de seu gato, Flash, e o Dr. Shand (como é que Guy sabia que tocava ocarina? E que era ocarina e não flauta, ou clarineta? Teria que perguntar-lhe). Roman descreveu a todos o itinerário que pretendia seguir, surpreendendo a Sra. Sabatini, que achava inacreditável o fato de não pre­tenderem passar por Roma e Florença. Laura-Louise ofe­receu biscoitinhos feitos por ela e um ponche ligeiramente alcoólico. A conversa encaminhou-se para a luta pelos di­reitos civis e para um furacão que recentemente assolara uma região no sul. Rosemary, observando e ouvindo esse grupo de pessoas, tão semelhantes a seus tios e tias em Omaha, achava difícil continuar acreditando que seriam na realida­de um grupo de adoradores do Diabo. O pequeno Sr. Wees ouvia atentamente o que Guy dizia sobre Martin Luther King; como poderia aquele velhinho frágil, mesmo em so­nhos, se imaginar um poderoso feiticeiro? E aquelas velhas simplórias, Laura-Louise, Minnie e Helen Wees; como acei­tar a imagem delas dançando nuas numa orgia demoníaca? (No entanto, ela própria, Rosemary, não as tinha visto assim? Não, aquilo tinha sido um sonho; um pesadelo que ti­vera há muito tempo atrás.)

Os Fountains telefonaram para se despedir de Minnie e Roman, assim como o Dr. Sapirstein e algumas outras pes­soas que Rosemary não conhecia. Laura-Louise deu-lhes um presente para o qual todos tinham contribuído: um rádio transistor numa luxuosa capa de couro de porco. Roman aceitou o presente e agradeceu com um pequeno discurso comovente. Sabe que vai morrer —pensou Rosemary, sentindo­se, sinceramente, com pena do velho.

Na manhã seguinte, apesar do protesto dos Castevets, Guy insistiu em ajudá-los; pôs o despertador para as oito e quando o relógio tocou, vestiu-se ràpidamente e foi para o apartamento deles. Rosemary acompanhou-o mas havia muito pouco a fazer. A bagagem era pequena: duas malas e uma chapeleira. Minnie carregava a máquina de retratos e Roman levava o rádio novo. Ao trancar a porta do apar­tamento, dando duas voltas com a chave, disse sorrindo: —Aquele que necessita mais de uma mala para viajar é um tu­rista e não um viajante.

Na calçada, enquanto o porteiro procurava um táxi, Roman fez uma revisão nas passagens, passaportes, cheques de viagem e no dinheiro francês que levava consigo. Minnie abraçou Rosemary, dizendo: — Onde quer que estejamos, nosso pensamento estará com você, minha querida, até que esteja, feliz e esbelta, com seu querido bebê no colo.

— Obrigada, disse Rosemary, beijando-a. — Obriga­da por tudo.

— Faça com que Guy nos envie milhões de fotografias, ouviu?, recomendou Minnie, beijando-a também.

— Claro, claro, disse Rosemary.

Minnie virou-se para Guy e Roman pegou a mão de Rosemary. — Não vou desejar-lhes felicidades, porque não será necessário. Sei que terão uma vida muito e muito feliz.

Ela o beijou. — Boa viagem e voltem logo.

— Talvez — respondeu ele sorrindo. — Ou talvez fi­que por lá, em Dubrovnik, em Pescara ou Maiorca. Vere­mos, veremos...

— Voltem logo, repetiu Rosemary com uma sincerida­de que a surpreendeu e beijou-o novamente.

O táxi chegou. O porteiro e Guy colocaram a bagagem ao lado do chofer. Minnie entrou, transpirando dentro do vestido de lã branca e Roman sentou-se a seu lado. — Ao aeroporto Kennedy, disse ao chofer. Ao edifício da TWA.

Beijaram-se e abraçaram-se mais uma vez pela janela aberta do carro e Rosemary e Guy ficaram na calçada ace­nando para o táxi que se afastava.

Rosemary sentiu-se menos feliz do que esperava.

Naquela tarde, Rosemary procurou o livro All of Them Witches para reler e talvez achá-lo ridículo ou até mesmo cômico. Não o encontrou. Não estava na estante nem em outro lugar qualquer. Perguntou a Guy se o teria visto e de respondeu que o jogara no lixo na quinta-feira.

—  Desculpe-me, querida, disse, mas não queria mais que você lesse essa droga que só serviu para amedrontá-la.

Rosemary sentiu-se surpresa e aborrecida. — Guy, Hutch deu-me esse livro. Deixou-o .para mim.

— Nem pensei nisso. Só não queria ver você aborreci­da. Desculpe-me.

— Isso não é coisa que se faça.

— Já pedi que me perdoe. Nem pensei em Hutch. Pen­sei só em você.

— Mesmo que não tivesse sido dado por Hutch, você não teria o direito de jogar fora algo que me pertence. E se quiser ler um livro quero ler esse livro, e está acabado.

— Desculpe, já disse.

Sentiu-se aborrecida durante todo o dia. E esquecera-se de perguntar-lhé algo, uma coisa importante...

Lembrou-se do que era quando voltavam do La Scala, restaurante onde tinham ido jantar. — Como é que você sabe que o Dr. Shand toca ocarina?

Éle pareceu não compreender.

— Naquele dia, no dia em que li o livro e falamos so­bre as festinhas de Minnie e Roman, você disse que o Dr. Shand tocava ocarina. Como é que sabe?

— Ah! Éle me disse. Um dia quando comentei que escutávamos, através da parede, a música de uma flauta, dis­se-me que não era flauta e sim uma ocarina, tocada por ele. Como é que achou que iria saber?

— Não sei. Por isso é que estou perguntando.

       Rosemary não conseguia dormir. Acordada, de olhos abertos, pensava. O nenê estava sossegado; devia estar dormindo. Só ela continuava acordada, inquieta e preocupada, sem saber bem com quê.

Com a criança, é claro, e com o parto sem dor. Tinha deixado de fazer a ginástica nesses últimos dias. Recome­çaria amanhã sem falta. Na realidade, hoje já era amanhã, dia treze. Duas semanas de espera... Provavelmente todas as mulheres se sentiam assim, nervosas e irritadas no fim da gravidez. Também, ter que dormir só de costas, não era fácil. Assim que tudo estiver terminado, pensou, vou dormir durante vinte e quatro horas, de bruços e com a cara enfiada no travesseiro.

Escutou sons que pareciam vir do apartamento de Min­nie e Roman; concluiu que deveriam vir do apartamento de cima ou do de baixo. O ar condicionado estava ligado e aba­fava qualquer barulho. O casal já devia ter chegado a Paris a essa hora. Sorte deles... Dentro de algum tempo Guy, ela e as três crianças, iriam fazer uma viagem assim...

O  nenê acordou e começou a se mexer.


 

Rosemary preparou-se para a chegada iminente da criança. Comprou fraldas, alfinetes, cotonettes, óleo e talco de nenê. Arrumou novamente as roupinhas na cômoda e contratou os serviços de uma firma especializada para a la­vagem de fraldas. Mandou fazer os cartões de participação — deixando em branco o espaço destinado ao nome e à data de nascimento — e endereçou e selou todos os envelopes. Leu um livro intitulado Summerhill, que apresentava argumentos irrespondíveis em favor de uma educação livre e to­lerante, discutindo-os depois, em almoço no Sardi, com Elise e Jean.

Começou a sentir contrações: um dia uma, no seguinte também, no outro nenhuma, no seguinte duas...

Recebeu um cartão de Paris, mostrando o Arco do Triunfo, no verso do qual estava escrito, na caligrafia clara de Minnie: Estamos pensando sempre em vocês. Tempe­ratura e comida maravilhosas! O vôo foi excelente! Cari­nhos, Minnie”.

Sua barriga baixou. O nené estava pronto para vir ao mundo.

No dia vinte e quatro de junho, uma sexta-feira, Ro­semary estava comprando mais envelopes no balcão de pa­pelaria do Tiffany, quando se encontrou com Dominick Pozzo, o antigo professor de dicção de Guy. Era baixo, mo­reno e meio corcunda. Saudou Rosemary com voz rouca e áspera. estendendo-lhe a mão e cumprimentando-a pela bela aparência e pelo sucesso, cada vez mais crescente, de Guy. Rosemary contou-lhe sobre a oferta que Guy recebera da Warner. Dominick mostrou-se muito satisfeito. Recomen­dou-lhe que fizesse Guy procurá-lo para novas aulas que seriam agora mais necessárias do que nunca. Rosemary pro­meteu-lhe que o faria. Dominick despediu-se e já se enca­minhava para o elevador quando Rosemary o chamou. -~ Foi bom tê-lo encontrado, pois nunca tive oportunidade de agradecer as entradas que nos deu para The Fantastiks. Adorei. Creio que vá continuar em cartaz durante muito tempo, como aquela de Agatha Christie que está em Lon­dres há tantos anos.

— Entradas para The Fantastiks? perguntou Dominick.

— Sim, deu-as a Guy. Já faz tempo; no outono. Como Guy já tinha visto a peça, fui com uma amiga.

— Jamais dei a Guy entrada alguma para The Fan­tastiks.

       Deu, sim. Foi, deixe-me pensar, em fins de setembro.

       — Minha querida, jamais dei a qualquer pessoa entra­das para essa peça, pela simples razão de não ter tido en­trada alguma para dar. Está enganada.

— Estou certa de que Guy me disse que foi você quem lhe deu.

— Então foi ele que se enganou. Diga-lhe que me telefone. Sem falta!

— Pode deixar, não me esquecerei.

Estranho, pensou Rosemary, enquanto esperava para atravessar a Quinta Avenida. Guy tinha dito que Dominick lhe dera as entradas. Estava certa disso. Lembrava-se até que pensara enviar-lhe um cartão de agradecimento. Não, não podia estar tão enganada.

SIGA, disse o sinal luminoso e Rosemary atravessou a rua.

Mas Guy também não poderia ter-se enganado. Afinal de contas, não era sempre que ganhava entradas para teatro. Teria, deliberadamente, contado uma mentira? Talvez as ti­vesse encontrado na rua. Não, não iria expô-la a uma cena desagradável no teatro.

Caminhou vagarosamente, carregando o peso da crian­ça e sentindo nas costas a dorzinha provocada pela disten­são dos músculos abdominais. O dia estava quente e opres­sivo. Dirigiu-se para a rua Cinqüenta e Sete, andando com lentidão.

Teria Guy desejado afastá-la de casa naquela noite? As entradas teriam sido compradas por ele para que ficasse li­vre dela para estudar seu papel com mais sossego? Teria, só por causa disso, inventado uma história tão complicada? Mais de uma vez tinha pedido a Rosemary que o deixasse só e ela tinha atendido sem criar problemas. Quando estu­dava novo papel, até pedia que ficasse em casa para ajudá-lo.

Seria por causa de alguma, mulher? Teria recebido a visita de uma admiradora, para a qual duas horas não fos­sem suficientes e de cujo perfume estivesse se livrando no banho de chuveiro, que tomava quando ela regressou? Não, o cheiro que impregnava o quarto naquela noite era de tan­nis. Tal era seu odor, que fora obrigada a embrulhar o amu­leto em papel de alumínio. De mais a mais, Guy, naquela noite estava ardente e amoroso... Logo após terem tido re­lações sexuais, caíra em sono profundo, ao passo que ela ficara acordada, escutando a flauta e os cânticos que vinham do apartamento vizinho. Flauta, não. A ocarina tocada pelo Dr. Shand.

Será que Guy sabia o que e quem tocava? Por ter es­tado lá? Num sabbath?

Parou de andar e ficou olhando para as vitrines de Henri Bendel. Não queria mais pensar em bruxarias, em adoradores do Diabo, em sangue de recém-nascido e na pos­sibilidade de Guy ter assistido à cerimônia. Por que tinha esbarrado com aquele cretino do Dominick? Não devia nem ter saído de casa. Estava tão quente e desagradável!

Viu na vitrine um vestido lindo cor de morango; pa­recia um modelo de Rudi Gernreich. Quando voltasse ao peso normal, iria indagar o preço. E ver também aquelas calças St. Tropez amarelo-limão e as blusas de malha sanfonada.

Mas não adiantava ficar sonhando com o futuro. Tinha agora que voltar para casa, continuar caminhando, pensan­do e levando, dentro da barriga, a criança que se mexia sem parar.

O  livro que Guy havia jogado fora descrevia com mi­núcias as cerimônias de iniciação, nas quais o noviço pres­tava juramento, era “batizado” ungido e marcado com o “es­tigma do Diabo”. Seria possível que Guy tivesse entrado para a seita? Que tomara um banho para tirar o cheiro de unção de tannis? Que trouxesse no corpo a marca secreta dos iniciados?

Lembrava-se bem de ter visto um band-aid no ombro de Guy. O curativo, aliás, ficara no mesmo lugar durante longo tempo. Na noite da estréia da peça em Filadélfia, tinha-lhe perguntado se se machucara, ao que respondera:

—   Não, é só uma espinha. (Mas espinhas não demoravam tanto tempo a secar!) Ainda estaria lá, no ombro de Guy, a mesma espinha?

Não poderia dizer; Guy, ultimamente, não dormia mais nu. Usava sempre pijamas, mesmo nas noites de verão. Quando fora a última vez que o vira despido? Nem se lem­brava pois já fazia tanto tempo...

Atravessou distraída a Sexta Avenida; um carro buzi­nou furiosamente, e ouviu um homem exclamar: — Cuida­do, madame!

Mas qual a razão que o teria levado a isso? Era Guy e não um velho doido que procurasse desesperadamente uma razão, um interesse mesmo doentio para justificar uma exis­tência estéril. Guy tinha sua carreira, uma carreira em verti­ginosa ascensão! De que lhe serviriam bruxedos e bruxarias, gente como os Gilmores, os Fountains, os Wees e Minnie e Roman? Que teriam para lhe oferecer:

A resposta lhe ocorreu antes mesmo de formular a ques­tão. Mas era uma resposta terrível!

A cegueira de Donald Baumgart.

Caso acreditasse...

Mas não queria, não podia acreditar.

Porém o fato irrefutável era que Donald Baumgart tinha ficado cego um ou dois dias depois daquele domingo. E Guy não saíra de casa, permanecendo grudado ao telefone, como se estivesse esperando uma notícia importante.

A cegueira de Donald Baumgart!

Que tinha sido o ponto de partida: a peça, os aplausos da crítica, a nova peça, o convite para o cinema. Talvez até o papel em Greenwich Village fosse de Donald Baumgart caso não tivesse ficado súbita e inexplicavelmente cego, al­guns dias depois de ter Guy se juntado (talvez) a uma seita (talvez) de adoradores do Diabo (talvez).

Sabiam fazer feitiços para cegar ou ensurdecer o ini­migo. O livro de Hutch lhe revelara que: a união de toda a malignidade de um grupo poderia cegar, ensurdecer, para­lisar e até matar a vítima desejada.

Paralisar e até matar?

— Hutch?, perguntou-se em voz alta, parando em fren­te ao Carnegie Hall e assustando uma meninazinha que se agarrou à saia da mãe.

Tinha lido o livro naquela noite, telefonara para com­binar o encontro com ela para o dia seguinte. Para pô-la a par de que Roman era Steven Marcato. E Guy, depois de ter escutado a conversa, saíra para — para comprar sorvete? — e passara pela casa dos Castevets. Teriam convocado, sem perda de tempo, uma reunião? Para lançar um feitiço? Mas como imaginariam o que Hutch pretendia revelar? Ela própria não tinha a menor idéia do que fosse...

Mas vamos supor, pensou Rosemary, que raiz-de-tannis não fosse o nome verdadeiro da coisa. Hutch ficara intriga­do com o nome, e prometera investigar. Vamos supor que se tratasse das palavras sublinhadas no livro: a substância que chamam de Fungo do Diabo. Roman ouvira Hutch dizer que iria estudar o assunto e, já de prevenção, tomara posse de um objeto pessoal de Hutch, da luva que não conseguira encontrar. Sim, pois para fazer o feitiço tinham necessi­dade de uma coisa que fosse de uso da vítima! E quando Guy lhes contou sobre o encontro marcado entre Hutch e Rosemary, puseram-se imediatamente a trabalhar.

Não. Roman não poderia ter-se apoderado da luva de Hutch. Nem chegara perto do armário. Rosemary o tinha acompanhado na entrada e na saída do apartamento.

Guy é que havia apanhado a luva. Tinha voltado para casa correndo — com a cara toda pintada — dirigira-se quase diretamente para o armário. Roman devia ter-lhe telefonado dizendo: — esse amigo de Rosemary, Hutch, está descon­fiado. Corra para casa e consiga um objeto de uso pessoal dele. Só para ficarmos preparados para qualquer eventua­lidade. E Guy tinha obedecido. Para que Donald Baumgart permanecesse cego.

Esperando o sinal luminoso para atravessar a rua Cin­qüenta e Cinco, prendeu a bolsa em baixo do braço, tirou a corrente e o amuleto do pescoço e jogou-os num ralo de esgoto.

Vai-te tannis! Vai-te, Fungo do Diabo!

Estava tão apavorada que tinha vontade de chorar, ali mesmo, na rua.

Pois sabia agora o que Guy prometera como pagamento do sucesso.

Prometera a criança. Para que a sacrificassem em seus rituais diabólicos.

Antes de Donald Baumgart ter ficado cego, Guy nunca demonstrara a menor vontade de ter um filho. E mesmo de­pois que ela engravidara, ele se mostrava distante e desin­teressado; não gostava de sentir os movimentos da criança, não se referia a ela, não fazia planos de futuro. Era como se o filho não fosse .......

Guy sabia muito bem o que pretendiam fazer com a criança, assim que a entregasse a eles.

Chegando ao apartamento, que estava fresco e tran­qüilo, tentou convencer-se de que estava enlouquecendo. Você vai ter um filho daqui a quatro dias, sua Idiota. Tal­vez até antes. Por isso está tensa e nervosa, imaginando-se vítima de um trama sinistra. E baseada em quê, sua Idiota? Em meras coincidências. Não existem bruxas. Não existem feitiços. Hutch morreu de morte natural, ainda que os mé­dicos não conseguissem diagnosticar seu mal. O mesmo ocorre com a cegueira de Donald Baumgart. E responda-me agora, sua Idiota, como teria Guy conseguido um objeto de uso pessoal de Donald Baumgart? Viu como suas suspeitas são infundadas?

Mas por que teria Guy mentido a respeito das entradas?

Rosemary despiu-se e entrou no chuveiro. Deixou a água correr quase fria, e ficou imóvel, com a cabeça virada para cima, como para lavar os pensamentos.

A mentira podia ter uma explicação simples. Quem sabe se não ficaria no Downey’s bebendo com os colegas, um dos quais lhe dera as entradas? Isso mesmo. E inventara ter sido Dominick para que ela não se zangasse por ter passado a tarde na moleza.

Mas por que não ficava mais despido na frente dela?

De qualquer maneira, sentia-se feliz por ter jogado fora aquele desgraçado amuleto. Já devia ter-se livrado dele há muito tempo. Aliás, não devia sequer ter aceitado o presente de Minnie. Que delícia não sentir mais aquele cheiro repe­lente! Esfregou todo o corpo com água-de-colônia.

Quem sabe se Guy tinha alguma alergia? Uma urticária ou eczema? E como fosse extremamente vaidoso1 não deseja­ria escondê-la até mesmo dela?

Viu? É elementar, sua Idiota!

Mas por que teria jogado fora o livro? E por que passa­va tanto tempo na companhia de Minnie e Roman? E por que esperara, colado ao telefone, a notícia da cegueira de Do­nald Baumgart? E por que tinha voltado para casa correndo, sem tirar o make-up, logo depois da saída de Roman?

Rosemary vestiu-se e escovou os cabelos, prendendo-os com uma fita. Foi até a cozinha e tomou dois copos de leite.

Não sabia a resposta para nenhuma das indagações.

Entrou no quarto do nenê e forrou com plástico o peda­ço de parede em que ficaria encostada a banheirinha, para que o nenê, quando brincasse no banho, não molhasse o papel de parede.

Não sabia as respostas.

Não sabia se estava ficando louca ou se estava vendo a realidade tal como era. Não sabia se as bruxas tinham apenas sede de poder ou se tinham de fato poderes sobrenaturais. Não sabia se Guy era seu marido carinhoso ou feroz inimi­go. Dela e da criança.

Eram quase quatro horas. Dentro em pouco Guy che­garia.

Telefonou para a Sociedade dos Atores e pediu o tele­fone de Donald Baumgart.

Ligou para o número e foi atendida logo que a campainha tocou, por uma voz impaciente: — Pronto!

— É Donald Baumgart?

—Sim.

— Aqui quem fala é Rosemary Woodhouse, a mulher de Guy.

— Oh!

— Desejava...

— Meu Deus! disse ele. É a própria madame felicidade que está falando! Ouvi dizer que está instalada principesca­mente no Bramford, tomando vinhos raros em taças de cristal, servidas por lacaios uniformizados!

— Desejava saber como estava. Se melhorou.

— Deus a abençoe, Rosemary Woodhouse, mulher de Guy. Estou ótimo. Esplendidamente bem. Tenho melhorado muito. Hoje só quebrei seis copos, caí da escada e passei, com minha bengalinha branca, na frente de dois carros de incên­dio em disparada. Cada dia que passa é um dia de melhora.

— Guy e eu sentimos muito que a razão do sucesso dêle tenha partido de sua desgraça.

Donald Baumgart ficou calado por momentos, depois disse: —. Que diabo! O mundo é assim. Para um estar por cima, outro tem que estar por baixo. Guy teria feito carreira de qualquer modo. Para dizer a verdade, depois que fizemos a segunda leitura da peça, estava certo de que ele ganharia o papel. Teve excelente desempenho.

— Pois Guy estava certo de que seria você o vencedor. E estava com a razão.

— Durante muito pouco tempo, infelizmente.

— Senti não ter acompanhado Guy nó dia em que o vi­sitou. Convidou-me, mas não pude ir.

— No dia em que me visitou? Deve se referir ao dia em que nos encontramos para tomar uns drinques.

— Sim, é isso mesmo.

— Foi bom não ter ido. Não permitem a entrada de mu­lheres lá nó bar — ou melhor, não depois das quatro horas. E foi depois das quatro que nos encontramos. Gostei muito do que Guy fez. Mostrou grande classe. Em seu lugar, creio que não faria o mesmo.

— O vencido convidando o vencedor para um drinque, não é? disse Rosemary.

— Nenhum de nós poderia imaginar que em menos de uma semana...

— É verdade. O encontro foi dias antes de você ter...

— Ter ficado cego. Sim, foi mesmo. Deve ter sido na quarta ou na quinta — e logo no domingo seguinte aconte­ceu a desgraça. Escute, Guy não botou alguma coisa naquele drinque, botou?

— Não, nem pense nisso, respondeu Rosemary com voz trêmula. — Por outro lado, Guy se esqueceu de devolver a você o que lhe emprestou.

— Devolver o quê?

— Não se recorda?

— Não. Ah! minha gravata?

— Sim, é isso mesmo.

— Mas nada tem a me devolver. Fizemos uma troca. Fiquei com a dele e ele ficou com a minha. Caso queira a sua de volta, é só pedir. Hoje em dia não me interessa a gravata que estou usando, nem mesmo se estou usando gravata.

— Acho que entendi mal o que Guy disse. Pensei que tivesse pedido emprestada sua gravata. Bem, só queria saber como estava. Se estava melhorando.

— Muito obrigado, mas infelizmente meu caso parece não ter esperança. Agradecido pelo telefonema.

Rosemary desligou.

Já eram quatro e dez.

Vestiu-se rapidamente. Apanhou o dinheiro de emergên­cia que Guy tinha guardado na gaveta de camisas. Guardou-o na bolsa assim como o caderninho de endereços e o vidro de pílulas. Sentiu uma contração, a segunda do dia. Pegou a ma­leta que estava pronta ao lado da porta do quarto e saiu de casa.

A meio caminho do elevador, virou-se e voltou atrás.

Tomou o elevador de serviço, junto com dois entre­gadores.

Pegou um táxi na rua Cinqüenta e Cinco.

A enfermeira do Dr. Sapirstein, Srta. Lark, olhou para a maleta que Rosemary carregava e perguntou sorrindo: — Não vai me dizer que está em trabalho de parto!

— Não, ainda não. Mas preciso, com urgência, falar com o doutor.

A enfermeira olhou para o relógio e disse: — Vai ter que sair às cinco e ainda tem que examinar a sra. Byron — mostrou com o olhar uma senhora que lia sentada numa pol­trona — mas estou certa de que irá recebê-la. Assim que o doutor se desocupe, avisarei que a senhora está aqui.

— Obrigada, disse Rosemary.

Colocou a maleta ao lado de uma cadeira e sentou-se. Transpirava copiosamente. Abriu a bolsa, tirou um lenço de papel e enxugou o rosto e as mãos. Seu coração batia com força.

— Como é que está o calor lá fora? perguntou a srta. Lark.

— Terrível — respondeu Rosemary —, insuportável!

A enfermeira suspirou.

Do consultório saiu uma senhora, que Rosemary já co­nhecia de vista, que estava no quinto ou sexto mês. Cumpri­mentaram-se. A srta. Lark saiu da sala.

— Já está quase chegando ao fim, não é?, perguntou a senhora a Rosemary.

— Deve ser lá pela têrça-feira, respondeu.

— Felicidades. Teve sorte em não pegar o fim do verão.

A enfermeira voltou à sala e chamou: — Sra. Byron. —Virou-se para Rosemary: — O doutor vai atendê-la logo de­pois desta senhora.

— Obrigada, agradeceu Rosemary.

A Sra. Byron entrou no consultório e fechou a porta. A outra senhora marcou, junto à mesa da enfermeira, a data da próxima consulta e saiu, novamente desejando felicidades a Rosemary.

A srta. Lark escrevia. Rosemary pegou numa mesinha um número do Time que tinha escrito em negro sobre fundo vermelho: Is God Dead? Abriu a revista e procurou a parte de teatro. Havia uma reportagem sobre Barbara Streisand. Tentou ler.

— Está muito cheirosa hoje — disse a enfermeira —, que perfume é esse?

— É Detchtema, respondeu Rosemary.

— É bem mais agradável do que o anterior, se me per­mite dizê-lo.

— Aquilo não era perfume. Era o cheiro que vinha de um amuleto que usava. Joguei-o fora hoje.

— Ótimo, Espero que o doutor siga seu exemplo.

— O doutor Sapirstein? perguntou Rosemary.

— Sim. Deve ter um amuleto como o seu. Pelo menos tem o mesmo odor. Não é sempre que o usa. Quando o faz, porém, pode-se perceber a dois metros de distância. Nunca reparou?

— Não.

— Talvez não tenha estado aqui nos dias em que usava o amuleto. Ou, quem sabe, talvez a senhora se tenha acostu­mado de tal maneira com o cheiro, que não o percebia em outras pessoas.         O que é? Alguma substância química?

Rosemary levantou-se, recolocou o Time na mesa e pegou a maleta. — Meu marido está esperando lá fora — disse. Vou sair um minutinho para falar com ele. Voltarei logo.

— Pode deixar a mala aqui.

Rosemary saiu, levando-a consigo.

 

Rosemary caminhou pela Park Aventue em direção à rua Oitenta e Um, à procura de uma cabine telefônica. Quando a encontrou, ligou para o Dr. Hill. Fazia um calor terrível dentro do cubículo de vidro.

O   serviço telefônico atendeu. Rosemary deu seu nome e o número onde se encontrava. — Por favor, peça ao doutor que ligue para cá imediatamente. Trata-se de assunto urgen­te e estou falando de um telefone público.

—  Pois não, respondeu a telefonista e desligou.

Rosemary fingiu continuar telefonando, embora com a mão mantivesse desligado o aparelho. Com o fone no ouvido fazia com se estivesse falando, para dar a impressão de que estava ocupado a quem quisesse usá-lo. A criança se mexia e dava pontapés violentos. Rosemary transpirava abundantemente dentro do recinto fechado. “Pelo amor de Deus, Dr. Hill telejone! Rápido! Salve-me!”

Éles todos. Todos eles. Faziam parte da seita. Guy, o Dr. Sapirstein, Minnie e Roman. Eram todos adoradores de Satã. Tinham feito uso dela, feito com que engravidasse para tomar-lhe a criança. — Não tenha medo And ou Jenny. Eu matarei todos eles se encostarem o dedo em você

O   telefone tocou. Atendeu.

— Pronto!

—  É a senhora Woodhouse? Era a telefonista de recados.

—  Sim. Preciso falar com o Dr. Hill imediatamente.

—  Será que não me enganei no nome? É Rosemary Woodhouse?

—  Sim, sim!

—  A senhora é cliente do Dr. Hill?

Rosemary explicou sobre a consulta que fizera ao Dr. Hill logo no comêço da gravidez. E continuou: — Mas pre­ciso falar com ele. É da maior urgência. Peça que ligue para mim imediatamente.

—  Pois não, respondeu a telefonista.

Rosemary desligou e fingiu ainda estar telefonando. En­xugou o rosto com a mão. “Pelo amor de Deus, Dr. Hill”. Abriu ligeiramente a porta da cabine, para respirar, e tornou a fechá-la depressa ao ver uma senhora que se aproximava. Estava, aparentemente, mantendo uma longa conversa. O bebê movia-se sem cessar. Parecia ter dado uma viravolta com­pleta. Rosemary estava molhada de suor.

Tinha sido um erro usar um telefone tão perto do con­sultório do Dr. Sapirstein. Deveria ter ido em direção à Ma­dison ou à Lexington. Continuou fingindo falar e ouvir. “Neste momento, agora mesmo, o Dr. Sapirstein pode estar à minha procura”, pensou. “Não deveria ter entrado nesta ca­bine. Deveria ter tomado um táxi e ido para bem longe”. Virou-se de costas para que não pudessem ver seu rosto. A senhora que esperava, cansada da demora, tinha desistido.

Guy deveria estar chegando em casa. Daria por falta da maleta e ligaria para o médico, pensando que ela já estivesse na maternidade. Em seguida, sairiam todos à sua procura. Todos eles, os Wees, os...

— Alô?, atendeu antes que o telefone acabasse de com­pletar o primeiro sinal.

—  Sra. Woodhouse?

Era o Dr. Híll — O Salvador — O Galante — O Audaz Dr. Kildare Hill!

— Dr. Hill? Muito obrigada por ter telefonado.

—  Pensei que a senhora estivesse na Califórnia.

—  Não, Dr. Híll. Tenho que confessar uma coisa: mudei de médico. Procurei outro a conselho de amigos. Mas ele não presta. Deu-me coisas estranhas para beber e comer. Devo dar à luz na terça, dia vinte e oito, lembra-se? Quero que o senhor faça meu parto. Pagarei o preço normal, como se o senhor tivesse me atendido durante toda a gravidez.

—  Mas, Sra. Woodhouse...

—  Por favor, preciso falar com o senhor — interrom­peu Rosemary antes que ele recusasse. — Deixe-me expli­car pessoalmente o que está acontecendo. Não posso continuar aqui, aqui de onde estou falando, pois eles me descobririam. Meu marido, o médico e as pessoas que o indicaram, fizeram uma trama contra mim. Um plano sinistro. Parece loucura e o senhor deve estar pensando que estou fora de mim, mas não é verdade. Juro por todos os santos. O senhor acredita que posso estar sendo vitima de uma conspiração não acredita?

—  Pode ser.

—  Pois estou. Eu e a criança. Preciso falar com o senhor. E não vou pedir-lhe que faça algo errado ou contra a ética. Só quero que me interne num hospital e faça meu parto.

—  Venha ao consultório amanhã, às...

—  Amanhã, não! Tem que ser agora, já! Vão começar a me procurar.

— Não estou no consultório. Estou em casa. Passei a noite em claro e...

—  Pelo amor de Deus, doutor. Pelo amor do que tem de mais sagrado na sua vida!

O   médico ficou calado.

—  Irei até sua casa e explicarei tudo. Não posso conti­nuar aqui.

—  Está bem. Esperarei a senhora em meu consultório às oito horas. Certo?

—  Ótimo! Agradecida. E, Dr. Hill, se meu marido tele­fonar perguntando por mim...

—  Não atenderei. Vou dormir um pouco. Estarei à sua espera às oito.

— Por favor peça a seu serviço telefônico que se meu marido ligar perguntando se estive à sua procura, que digam que não.

—  Está bem.

—  Obrigada, Dr. Hill.

—  Oito em ponto.

—  Estarei Lá. Obrigada.

Viu um homem encostado na porta da cabine. Parecia o Dr. Sapirstein. Mas não era.

Rosemary caminhou por Lexington em direção à rua Oitenta e Seis. Entrou no primeiro cinema que encontrou. Dirigiu-se ao banheiro e depois sentou-se na platéia, sentin­do-se segura e reconfortada e começou a assistir um musical em tecnicolor. Depois de algum tempo levantou-se, levando a maleta, e procurou um telefone. Pediu uma ligação interur­bana para o irmão. Brian. O telefone dele não respondia. Tornou a voltar para a sala de exibição e sentou-se noutro lugar. O nenê estava quieto.

As vinte para as oito, saiu do cinema e tomou um táxi, dando o endereço do médico. Não devia haver perigo. Esta­riam vigiando a casa de amigos. Não pensariam nunca que pudesse estar no consultório do Dr. Hill (desde que ele ti­vesse feito o que prometera). Ainda assim pediu ao chofer para esperar até que entrasse no prédio.

Não havia ninguém que lhe impedisse a entrada. O pró­prio médico abriu-lhe a porta. Recebeu-a amavelmente, apesar da relutância que demonstrara ao telefone. Usava bigodes agora, mas ,ainda se parecia com o Dr. Kildare. Vestia roupa esporte.

Passaram para a sala de consultas, que era um terço do tamanho da do Dr. Sapirstein e Rosemary começou a contar sua história. Procurou fazê-lo de maneira calma e sem de­monstrar emoção, pois sabia que a qualquer sinal de histeria não acreditaria nela, julgando-a louca. Contou-lhe sobre Adrian Marcato, Minnie e Roman; sobre o longo período de dores e dos preparados de Minnie; sobre Hutch e o livro; sobre a mentira de Guy a respeito das entradas de teatro; sobre as velas negras e o episódio da gravata e cegueira de Donald Baumgart. Tentou manter uma seqüência lógica, porém não conseguiu. Chegou ao fim contando sobre a ocarina do Dr. Shand, o fato de Guy ter jogado fora o livro e, final­mente, a revelação inconsciente da srta. Lark.

—  Talvez a cegueira e o estado de coma tenham sido puras coincidências — concluiu — ou talvez eles tenham real­mente algum poder maligno. Não sei nem quero saber. Sei que desejam a criança. Estou certa disto e é tudo o que me in­teressa.

—  Incrível! disse o Dr. Hill. — Mas parece que a se­nhora tem razão, tendo em vista o interesse que demonstra­ram, desde o começo, pela sua gravidez.

Rosemary fechou os olhos, sentindo que poderia até chorar. Ele acreditava! Não julgava que estivesse louca. Abriu os olhos, procurando aparentar calma e tranqüilidade. O Dr. Hill escrevia. Será que era adorado assim por todas as suas clientes? Rosemary sentiu as palmas das mãos molhadas; en­xugou-as no vestido.,

—  O nome do médico é Shand, não é?

—  Não, o Dr. Shand faz parte do grupo. O nome do médico é Dr. Sapirstein.

—  Abraham Sapirsteín?

—  Sim. O senhor o conhece?, perguntou, inquieta.

—  Já o vi algumas vezes, disse o Dr. Hill, voltando a escrever.

—  Ninguém acreditaria que um médico como ele..., disse Rosemary

—  Realmente é difícil de acreditar. Mas, nunca se sabe... A senhora gostaria de internar-se no hospital Mount Sinai ainda hoje?

— Nada me satisfaria mais. É possível?

—  Vou ter que quebrar muitos galhos e usar alguns pis­tolões, mas acho que conseguirei. Abriu a porta da sala de exames, acendeu a luz, felá entrar e continuou: — Descanse um pouco. Vou ver o que posso fazer e voltarei logo.

Rosemary entrou na sala, movendo-se com dificuldade e implorando: — Por mim pode aceitar o que tiverem. Até um quarto de depósito.

—  Creio que conseguiremos coisa melhor, disse o Dr. Hill, enquanto ligava o aparelho de ar refrigerado.

—  Devo tirar a roupa?

—  Não, ainda não. Vou ter que dar uma série de tele­fonemas que devem demorar no mínimo uma meia hora. Deite-se e relaxe os músculos. O Dr. Hill saiu e fechou a porta.

Rosemary dirigiu-se ao sofá que ficava no fundo da sala e sentou-se pesadamente.

“Deus abençoe o Dr. Hill”, pensou.

Tirou os sapatos e deitou-se. O aparelho de ar refrige­rado lançava sobre ela uma corrente de ar fresco. O nenê mexeu-se vagarosamente, como se também a sentisse.

“Está tudo bem agora, Andy-ou-Jenny. Vamos para uma caminha macia no Mount Sinai e...”

Lembrou-se do dinheiro. Sentou-se, abriu a bolsa e contou o que tirara da gaveta de Guy: tinha quase duzentos dólares. Devia ser o suficiente para o depósito. Caso precisasse mais, telegrafaria a Brian ou pediria a Elise e Hugh. Ou Joan. Ou Grace Cardiff. Felizmente, não lhe faltavam amigos.

Tornou a guardar o dinheiro na bolsa e tirou o vidro de pílulas. Tornou a se deitar. Daria as pílulas ao Dr. Hill, para que as analisasse. Não poderiam conter coisa alguma que prejudicasse a criança. Claro que não. Precisariam de um nenê forte e sadio, para usá-lo em seus rituais malditos.

Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.

Monstros!

E Guy?

Inacreditável, inacreditável!

Sentiu uma contração violenta, a mais forte que sentira. Respirou ofegante até que passasse.

Era a terceira do dia.

Tinha que contar ao Dr. Hill.

Estava morando, numa casa moderna em Los Angeles, com Brian e Dodie. Andy estava começando a falar (ainda que tivesse só quatro meses) quando o Dr. Hill abriu a porta e ela voltou a se encontrar na sala de exames, deitada no sofá, sentindo o ar fresco que vinha da refrigeração. Abriu os olhos, protegendo-os com as mãos e disse sorrindo: — Acho que dei um cochilo.

O Dr. Hill escancarou a porta e se afastou. Guy e o Dr. Sapirstein entraram.

Rosemary sentou-se tirando a mão dos olhos.

Atravessaram a sala e vieram para junto dela. O rosto de Guy estava fechado e inexpressivo. Não olhava para ela; olhava só para as paredes. O Dr. Sapirstein disse: — Venha conosco, Rosemary. Não faça cenas nem crie dificuldades, pois caso diga mais alguma coisa sobre feitiços e ou feiticei­ras, serei obrigado a interná-la num sanatório de doenças mentais. Será bem pior para o nenê. Não vai querer que isso aconteça, não é? Ponha os sapatos e vamos.

—  Só queremos que vá para casa, disse Guy olhando-a pela primeira vez. — Não vamos lhe fazer mal algum.

— Nem a você nem à criança, completou o Dr. Sapirstein. — Calce seus sapatos. Pegou o vidro de pílulas, examinou-o e guardou-o no bolso.

Rosemary colocou as sandálias e pegou a bolsa.

Saíram. Guy e o Dr. Sapirstein seguravam-lhe os braços, um de cada lado.

O   Dr. Hill entregou a maleta a Guy

—  Ela agora está bem, disse o Dr. Sapirstein. — Vamos levá-la para casa, para que descanse.

— Em noventa por cento dos casos, é só disso que pre­cisam.

Rosemary olhou-o sem falar.

— Muito obrigado, doutor, disse Sapirstein e Guy acres­centou: — Sinto que tenha sido incomodado...

—  Ao contrário, disse o Dr. Hill. — Foi um prazer ajudá-los. Abriu a porta para que saíssem.

Tinham um carro esperando, dirigido pelo Sr. Gilmore. Rosemary sentou-se no banco de trás,, entre Guy e o dr. Sa­pirstein.

Ninguém disse uma palavra.

Foram diretamente para o Bramford.

O   ascensorista sorriu ao vê-los entrar. Era Diego. Sorria porque gostava dela, mais do que dos outros inquilinos. Seu sorriso, lembrando-a de sua individualidade, acordou-a, re­viveu-a.

Rosemary abriu a bolsa disfarçadamente e segurou o chaveiro com os dedos. A seguir, deixou cair tudo que tinha dentro, com exceção das chaves. Moedas, batom, caixa de pó-de-arroz, todo o dinheiro de Guy espalharam-se pelo chão. Permaneceu parada, imóvel, estupidificada.

Guy e o Dr. Sapirstein abaixaram-se para recolher o que caíra. Continuou imóvel. Diego saiu do elevador para aju­dá-los. Rosemary, foi se afastando até chegar ao lado do as­censor. Entrou nele, rapidamente, e fechou as grades.

Diego correu gritando: — Cuidado, Sra. Woodhouse!

Mas era tarde. Rosemary empurrou a alavanca de con­trole e o elevador começou a subir aos solavancos.

“Desculpe. Diego”, pensou.

Telefonaria a Brian. Ou para Joan, Elise ou Grace Car­diff. Para qualquer pessoa amiga.

O elevador, dirigido por ela, subiu até o nono andar, voltou ao sexto e depois conseguiu pará-lo no sétimo.

Rosemary atravessou correndo os corredores. Sentiu nova e violenta contração.

Olhou para o elevador de serviço. Estava subindo. Eram Guy e o Dr. Sapirstein procurando interceptá-la.

“Ë claro que numa hora destas a chave não vai funcio­nar”, pensou.

Conseguiu porém abrir a porta, ao mesmo tempo que o elevador de serviço chegava, e trancá-la quando Guy enfia­va sua chave na fechadura. A tranca se abriu com uma volta da chave de Guy, mas Rosemary já passara a corrente de segurança.

— Abra, Ro, disse Guy pela frincha entre a porta e a corrente de segurança.

— Vá para o inferno, respondeu.

—  Não vamos lhe fazer mal algum, querida.

— Você prometeu-lhes o nenê. Vá embora.

— Não prometi coisa nenhuma. Nem sei o que quer dizer com isso. Prometi a quem?

— Rosemary, disse o Dr. Sapirstein,

—  Você também. Vá! Vá para o inferno!

— Parece ter imaginado existir uma trama contra você.

—  Sumam daqui!, gritou, e empurrou a porta com força, conseguindo fechá-la.

Continuou fechada. Afastou-se de costas, sem tirar os olhos da porta e entrou no quarto.

Eram nove e meia.

Não se. lembrava do número de Brian e o caderninho de endereços devia estar agora no bolso de Guy. Chamou In­terurbano e pediu a telefonista de informações. Quando con­seguiu o número e completou a ligação, o aparelho continuava sem resposta. A telefonista indagou: — Deseja que tente de novo dentro de uns vinte minutos?

— Por favor. Ou melhor, tente daqui a cinco minutos.

Tentou lembrar-se do telefone de Elise e Hugh. Não conseguiu. Chamou novamente Informações, que pareceu levar um século para atender. Conseguiu o número e ligou. O ser­viço telefônico de recados atendeu dizendo que o casal tinha ido passar o fim de semana fora da cidade.

— Por favor, preciso falar com eles urgentemente. Sabe onde estão?

— É a secretária do Sr. Dunstan?

— Não, é uma amiga. Preciso falar com eles.

—  Estão em Fire Island. Posso dar-lhe o telefone.

— Por favor.

Repetiu o número e estava prestes a discar quando es­cutou ruidos no corredor e a seguir na porta do quarto. Levantou-se.

Guy e o Sr. Fountain entraram. — Querida, tenha calma. Não vamos lhe fazer mal, disse Guy. Atrás dele vinha o Dr. Sapirstein com uma seringa de injeção preparada. A seguir vinham o Dr. Shand, a Sra. Fountain e a Sra. Gilmore. — Somos seus amigos, disse a sra. Fountain. — Não tenha medo, disse a Sra. Gilmore.

—  É só um calmante, Rosemary. Para fazer com que possa dormir e descansar.

Rosemary estava entre a cama e a parede. Sabia-se por demais pesada para tentar fugir.

Vieram, em grupo, em direção dela. — Você sabe que não faria nada contra você, Ro. Ela agarrou o fone e tentou bater na cabeça de Guy. Ele segurou seu braço, o Sr. Foun­tain segurou o outro e o telefone caiu no chão. — Socorro! Socorro!, gritou, mas alguém enfiou alguma coisa, um lenço, talvez, em sua boca.

Arrastaram-na de perto da cama para que o Dr. Sapirs­tem pudesse aplicar a injeção. Sentiu uma contração intensa. Prendeu a respiração. Em seguida soltou-a e começou a res­pirar como um cachorrinho ofegante. Sentiu uma mão hábil e ligeira apalpar-lhe a barriga e o Dr. Sapirstein disse: —Um momento! Um momento! Esta mulher está em trabalho de parto.

Rosemary, ainda ofegante, interrogou com os olhos o Dr. Sapirstein. Ele confirmou com a cabeça e em seguida tomou seu braço, que o Sr. Fountain ainda segurava, e aplicou a injeção.

Rosemary aceitou-a sem qualquer reação, amedrontada e estupefata.

O   médico retirou a seringa e passou um algodão no local.

Rosemary viu que as mulheres tiravam a colcha e apron­tavam a cama.

“Vai ser aqui?”

“Aqui?”

“Não, aqui não. Tem que ser num hospital. Numa sala de parto, com tudo limpo e esterilizado”.

Contiveram-na com força enquanto se debatia. — Tudo vai correr bem, querida — dizia Guy — juro por Deus. Juro que tudo vai correr bem, Ro. Calma. Não faça força. Dou minha palavra de honra que tudo sairá bem.

Sentiu nova contração,

Deitaram-na na cama e o Dr. Sapirstein deu-lhe outra injeção.

A Sra. Gilmore enxugava sua testa.

O  telefone tocou.

— Pode cancelar a chamada, telefonista, disse Guy.

Sentiu nova contração, agora fraca e distante, como se o corpo não mais lhe pertencesse.

Quanto tempo e energia perdidos! Toda aquela ginásti­ca... Isto não era parto normal; não estava ajudando, não estava vendo.

“Perdão, Andy..ou-Jenny. Sinto muito, meu amor adorado”.

 

O  teto.

E a dor entre suas pernas.

E Guy. Sentado ao lado da cama, com um olhar ansio­so, um sorriso meio incerto.

— Alô, disse.

— Alô, respondeu.

A dor era terrível.

Foi então que se lembrou. Estava terminado. Estava tudo terminado. A criança nascera.

— Correu tudo bem?

—  Sim, tudo bem.

— O que é?

— Um menino.

— Verdade? Um menino?

Guy confirmou.

— Está bem?

— Sim.

Sentiu seus olhos se fecharem e abriu-os com esforço.

— Você ligou para o Tífany?

— Sim — respondeu ele.

Fechou os olhos e dormiu.

Mais tarde, lembrou-se de outros detalhes. Laura-Louise estava sentada ao lado da cama, lendo o Reader’s Digest com uma lente de aumento.

—  Onde está ele?, perguntou.

Laura-Louise deu um pulo. — Que medo, querida! As­sustou-me acordando assim dessa maneira. Puxa! Fechou os olhos e respirou fundo.

— O nenê. Onde está?

— Espere um minutinho, disse Laura-Louise, marcando a página com o cabo da lente. — Vou chamar Guy e o Dr. Abe. Estão ali, na cozinha.

— Onde está a criança? tornou a perguntar, mas Laura­-Louise saiu sem responder.

Tentou levantar-se, mas não conseguiu; estava sem forças. Sentia aquela dor entre as pernas, como se estivesse sendo picada por pontas de canivete. Deitou-se e esperou, relem­brando, relembrando.

Era noite. Nove e dez, mostrava o relógio.

Guy e o Dr. Sapirstein entraram, O médico tinha uma expressão grave e resoluta.

— Onde está o bebê?, perguntou.

Guy ajoelhou-se ao lado da cama, tomou-lhe a mão e disse:

— Querida...

— Onde está?

— Querida... Quis continuar, mas não conseguiu. Olhou para o médico, como para pedir auxilio.

O  doutor continuava a olhar para ela. Tinha uma raspa de coco presa no bigode. — Houve complicações, Rosemary. Mas nada que possa afetá-la no futuro.

— Está...

— Está morto — disse.

Rosemary olhou-o fixamente.

Ele acenou com a cabeça.

Virou-se para Guy.

Guy repetiu o gesto.

— Estava em má posição. Num hospital, teríamos re­cursos, mas não houve tempo para transportá-la. Qualquer coisa que tentássemos aqui representaria perigo para você. — disse o Dr. Sapirstein.

— Teremos outros, querida. Assim que você ficar boa. Prometo.

— Sem dúvida. Podem planejar outro para logo, disse o Dr. Sapirstein. Dentro de alguns meses. Posso garantir que o fato não se repetirá. É um caso raro, um entre mil. A crian­ça era normal e perfeita.

Guy apertou sua mão e sorriu, encorajando-a: — Vamos ter outro. Logo.

Olhou para os dois: para Guy e para o Dr. Sapirstein com a raspa de coco presa no bigode.

       — Estão mentindo. Não acredito. Os dois estão men­tindo.

— Querida..., começou a dizer Guy.

— Não morreu. Vocês o roubaram. Estão mentindo. Bruxos malditos! Estão mentindo, mentindo, mentindo...

Guy segurou-a pelos ombros enquanto o Dr. Sapirstein lhe aplicava outra injeção.

Tomou uma sopa acompanhada de torradas amanteiga­das. Guy, sentado na cama, mordiscava uma torrada. — Você ficou louca. Doidinha da silva. Isso acontece, as vezes, nas últimas semanas, no dizer de Abe. Tem até um nome cientí­fico. Prepartum não-sei-o-quê. É uma espécie de histeria. Foi o que teve, querida, uma de lascar.

Ficou calada. Tomou uma colher de sopa.

— Escute, vá lá que pense que Roman e Minnie fossem bruxos, mas que razões teria para achar que Abe e eu fazía­mos parte da seita?

Continuou calada.

— Acho que minha pergunta é meio imbecil. A tal his­teria prepartum não deve precisar razões. Pegou outra torra­da e começou a comer.

— Por que é que trocou de gravata com Donald Baum­gart?

— Troquei por... Bem, o que tem isso a ver com a história?

— Precisava alguma coisa dele, um objeto de uso pessoal para que pudessem fazer o feitiço e cegá-lo.

— Pelo amor de Deus, querida, sabe o que está dizendo?

— Sei, e você sabe também.

— Macacos me lambam! Trocamos porque eu não gos­tava da minha e sim da dele e vice-versa. Não lhe contei porque, depois, achei que era um negócio meio aveadado e fiquei com vergonha.

— Onde é que arranjou as entradas para The Fantas­tiks?

— O quê?

— Disse-me que fora Dominick que as dera a você. É mentira.

— Então isso me torna um bruxo? Foram-me dadas por uma moça com quem tomei uns drinques no estúdio, e de cujo nome nem me lembro mais. E Abe. o que fêz? Amarrou os sapatos de maneira errada?

— Usa raiz-de-tannis. Coisa de feiticeiros. A recepcio­nista me contou que sentia o cheiro.

— Talvez tivesse um amuleto igual ao seu. Dado também por Minnie. Será que só eles podem usar? Não me parece muito plausível.

Rosemary ficou calada.

— Rosemary, ponha isto na cabeça: você teve uma his­teria gravídica. Agora yai descansar e ficar boa. Inclinou-se e pegou sua mão. — Sei que o que aconteceu é a pior coisa que pode suceder a uma mulher, mas de agora em diante nossa vida vai ser um mar de rosas. A Warner está quase chegando ao ponto que desejo e a Universal está interessada também. Vou esperar mais umas criticas favoráveis e então vamos sumir desta cidade e arranjar a casa mais linda de Beverly Hills, com piscina, jardim, horta, tudo o que puder imaginar ou desejar. Filhos também, quantos quiser. Você ouviu o que Abe disse. Bem, deixe-me ir ficar mais famoso. Beijou-lhe a mão e levantou-se para sair.

— Deixe-me ver seu ombro.

Virou-se e voltou em direção dela.

— Deixe-me ver seu ombro, repetiu.

— Está brincando?

— Não, deixe-me ver. O ombro esquerdo.

— Muito bem, querida, olhe à vontade.

Desabotoou a camisa esporte, que era de malha azul, e tirou-a pela cabeça. Trazia embaixo uma camiseta de malha.

— Prefiro sempre fazer meu número de strip-tease com música, mas vá lá, como é a seu pedido... Chegou bem junto dela e tirou a camiseta. Mostrou-lhe o ombro esquerdo. Não tinha nenhuma marca a não ser a pequena cicatriz de uma espinha. Mostrou-lhe o outro ombro, o peito e as costas.

— O resto só mostro com luz azul — disse.

— Está bem.

Guy sorriu. — A questão agora é a seguinte: ponho minha camisa ou saio assim mesmo1 e dou a Laura-Louise a maior emoção de sua vida?

Estava com os seios tão cheios de leite que se fazia ne­cessário aliviá-los. O Dr. Sapirstein ensinou-lhe como usar uma bombinha de sucção; de três em três horas, Helen Wees ou Laura-Louise traziam o equipamento, acompanhado de um copinho de pirex para recolher o leite. Tirava de cada seio uma quantidade considerável de um fluido branco-esverdea­do, que cheirava levemente a raiz-de-tannis. A cada repeti­ção do processo, mais se tomava patente à irreversibilidade da perda. Quando terminava, caía sobre o travesseiro exausta e agoniada, incapaz até de chorar.

Recebeu a visita de Joan, Elise e Tiger. Falou com Brian pelo telefone durante vinte minutos. Chegaram flores — rosas, cravos e um vaso de azáleas — de Allan, Mike e Pedro e Lou e Claudia. Guy comprou-lhe uma televisão nova, com controle remoto e colocou-a ao lado da cama. Rosemary via desinteressadamente alguns programas, comia e tomava as pílulas que o médico receitara.

Minnie e Roman escreveram uma carta de condolências. Estavam em Dubrovnik.

Os pontos, gradualmente, deixaram de doer.

Numa manhã, depois de duas ou três semanas, pare­ceu-lhe ouvir um choro de criança. Desligou a televisão e escutou. Havia ao longe um choramingar fraco, mas cons­tante. Haveria? Desligou o ar refrigerado.

Glorence Gilmore entrou com a bombinha e o pirex.

— Está escutando um choro de criança?, perguntou Rosemary.

As duas pararam para ouvir.

Sim, havia. Havia uma criança chorando!

— Não, não estou escutando nada, disse Glorence. —Volte para a cama. Você ainda não deve se levantar. Desli­gou o ar condicionado? Não faça isso. Está um calor terrível, um calor de matar.

Ouviu o choro novamente, durante a tarde, e seus seios, misteriosamente, como resposta, começaram a se encher de leite.

— Há gente nova no prédio, disse Guy sem motivo. — Lá no oitavo andar.

— Um bebê?

— Sim. Como é que você sabe?

Rosemary encarou-o durante alguns momentos. — Ouvi o choro — disse.

Ouviu-o no dia seguinte, e no outro também.

Não ligou mais a televisão; ficava com um livro na mão, fingindo estar lendo, mas com os ouvidos atentos.

       Não era no oitavo andar coisa nenhuma! Era ali mesmo, no sétimo.

       Reparou que quase sempre lhe traziam a bomba e o co­pinho logo que o choro começava; e o choro cessava depois que o leite era levado para fora.

— O que você faz do leite? perguntou um dia a Laura-­Louise.

— Jogo fora, é claro — disse Laura-Louise saindo. Nessa mesma tarde, ao dar o copo cheio de leite a Laura­-Louise, disse: — Um momento. — E fez como se fosse jogar dentro dele uma colherinha suja de café.

— Não faça isso, disse Laura-Louise afastando o copo e segurando a colher.

— E por que não? Não vai jogar fora?

— Bem, é... é nojento, disse Laura-Louise.


 

A CRIANÇA estava viva!

Estava no apartamento de Minnie e Roman.

Mantinham-na lá, alimentando-a com seu leite e, graças a Deus, cuidando bem dela. Sim, pois lembrava-se de que o livro de Hutch dizia que uma das datas de maior importância para eles, era o dia primeiro de agosto, quando celebravam a festa que chamavam de Lemmas ou Leamas. Ou talvez es­perassem pela volta de Minnie e Roman, para que partici­passem também do ritual.

Mas ainda estava viva.

Rosemary deixou de tomar as pílulas. Escondia-as na palma da mão e fingia engolir. Depois, disfarçadamente, en­fiava-as entre o colchão e o estrado de molas da cama,

Dia a dia sentia-se mais forte e bem disposta.

“Espere. And. Logo estarei com você”.

Tinha aprendido uma boa lição com o dr. Hill. Desta vez não procuraria qualquer auxílio, não apelaria para ninguém. Não acreditariam nela. Nem a policia, nem Joan, nem os Dunstans ou Grace Cardiff. Nem mesmo Brian. Guy era um ator excelente e o Dr. Sapirstein médico de ótima reputação; os dois conseguiriam convencer, até seu irmão, de que estaria sofrendo de uma perturbação pós-parto. Desta vez tinha que contar só consigo mesma. Iria procurá-los e tiraria deles o nenê, armada de coragem e da mais afiada faca de sua cozinha.

Levava uma enorme vantagem inicial. Pois sabia — e eles não esperavam que ela soubesse — haver uma passagem entre os dois apartamentos. A porta estava trancada naquela noite — estava tão certa do fato como de que sua mão era sua mão e não um pássaro ou um gato — e assim mesmo tinham conseguido penetrar no apartamento sem forçar a porta. Portanto, tinha que existir outra entrada.

Só poderia ser pelo armário de roupa branca, aquele que tinha sido barricado pela falecida Sra. Gardênia, que provavelmente teria morrido em virtude do mesmo feitiço que lan­çaram sobre Hutch. O armário fora colocado naquele local para separar os dois apartamentos e, caso a Sra. Gardênia ti­vesse feito parte da seita, como tudo indicava, não seria na­tural que procurassem utilizá-lo, descolando a madeira do fundo, como passagem secreta para que os vizinhos não to­massem conhecimento das constantes idas e vindas?

A solução estava no armário.

Num pesadelo, quase esquecido, lembrava-se ter sido levada através dele. Mas não tinha sido pesadelo; tinha sido um sinal dos céus, um aviso divino para ser recordado numa hora de premência.

“Deus que estais no céu, perdoai-me por ter duvidado de Vossa existência. Perdoai Vossa pecadora e ajudai-a nesta provação. Jesus, Jesus bem amado, salvai meu filho inocente”.

A resposta eram as pílulas. Rosemary enfiou o braço em baixo do colchão e tirou-as, uma por uma. Contou. Tinha oito tabletezinhos brancos, sulcados ao meio por uma linha divisória. O que quer que contivessem, tinham sido o sufi­ciente para mantê-la dócil e apática; oito seriam mais do que suficientes para colocar sua acompanhante fora de combate. Juntou as pílulas, embrulhou-as e colocou-as bem no fundo da caixa de lenços de papel.

Continuou a mostrar-se dócil e fraca1 alimentando-se obedientemente, lendo revistas e tirando seu leite.

Leah Fountain estava com ela quando o momento tão esperado se apresentou. Entrou logo depois de Helen Wees ter saído levando o leite, dizendo: — Tenho deixado que as outras lhe façam companhia, Rosemary. Mas hoje chegou a minha vez. Pelo que vejo, tem milhões de coisas para se distrair. Há algum programa bom hoje na televisão?

Estavam sozinhas no apartamento. Guy tinha saído para discutir uns contratos com seu agente. Allan.

Começaram a ver a apresentação de um velho filme de Ginger Rogers e Fred Astaire. Num intervalo, Leah foi até a cozinha e trouxe consigo duas xícaras de café. — Estou com um pouco de fome, disse Rosemary. Será que você podia me fazer um sanduíche de queijo?

— Claro, querida, disse Leah colocando o café na me­sinha de cabeceira. — Como prefere: com alface ou maionese?

Leah saiu novamente e Rosemary tirou as pílulas escon­didas na caixa. Contou-as. Eram agora onze. Colocou-as na xícara de Leah, mexeu o café com sua colherinha e enxu­gou-a com um lenço de papel. Apanhou sua xícara, porém estava tão trêmula, que tornou a colocá-la na mesa.

Bebia porém calmamente o café quando Leah voltou tra­zendo o sanduíche. — Obrigado, Leah. Está com uma cara apetitosa. O café está meio amargo. Creio que ficou muito forte.

— Quer que faça outro?

— Não, não é preciso.

Leah sentou-se na beirada da cama e experimentou.. Fez uma careta. — Puxa!, está amargo mesmo.

— Mas dá para beber.

Continuaram a ver o filme. No terceiro intervalo, a ca­beça de Leah caiu sobre o peito. Levantou-a estremunhada e colocou a xícara, quase vazia, sobre a mesinha. Rosemary continuou a comer o sanduíche, vendo Fred Astaire e Ginger Rogers dançando animadamente num cenário irreal.

Durante a parte seguinte do filme, Leah adormeceu.

— Leah? chamou Rosemary.

Recebeu como resposta um ronco suave. Leah dormia, com a cabeça encostada ao peito e as mãos estendidas no colo. Sua peruca cinza-azulada tinha saído do lugar, mos­trando a cabeça coberta de escassos cabelos brancos.

Rosemary levantou-se, calçou chinelos e vestiu o peig­noir de cetim acolchoado que comprara para usar na mater­nidade. Saiu silenciosamente do quarto, encostou a porta e foi até a porta de entrada, que trancou, e passou a corrente de segurança.

Foi à cozinha e apanhou uma faca — a mais nova, longa e afiada que encontrou. Segurando-a junto ao corpo, deixou a cozinha e se encaminhou para o armário do corredor.

Ao abri-lo, viu que estava certa. As prateleiras estavam aparentemente arrumadas, porém notou que as toalhas de banho estavam no lugar dos cobertores e vice-versa.

Colocou a faca no chão e esvaziou todo o armário. Tirou as prateleiras que, séculos atrás, cobrira com tanto carinho de plástico de xadrezinho.

O fundo do armário era um painel de madeira branca cercado por moldura pintada na mesma cor. Colocando-3e em posição melhor, Rosemary percebeu que na junção da moldura e do painel havia uma greta tênue, porém visível. Em­purrou o painel ora de um lado, ora de outro, até que, cedendo a uma pressão maior, abriu-se como uma porta. Encontrou-se em total escuridão, no interior de outro armário. Iluminado unicamente pelo ponto de luz que entrava pelo buraco da fechadura. Inclinando-se para espiar pelo pequeno orifício, Rosemary viu a cinco metros, mais ou menos o móvel-vitrine onde Minnie e Roman guardavam recordações de viagem.

Empurrou a porta. Abriu-se.

Fechou-a, atravessou novamente os dois armários e apa­nhou a faca. Tornou a voltar, olhou outra vez pelo buraco da fechadura e abriu devagar a porta.

A seguir escancarou-a e entrou decididamente com a faca na altura dos ombros e a ponta virada para a frente.

O vestíbulo encontrava-se vazio; escutou, porém vozes distantes, que vinham da sala de estar. A porta do quarto de Minnie e Roman, iluminado pelo abajur, estava aberta. Não havia berço, não havia nenê,

Caminhou silenciosamente pelo vestíbulo, abrindo as portas que encontrava. Uma estava trancada; a outra dava para um armário de roupa branca.

Sobre a vitrine, onde anteriormente havia só um espaço vazio, estava pendurado um quadro mostrando uma igreja em chamas. Era uma pintura hedionda, parecendo um retrato da Catedral de St. Patrick, sendo destruída por labaredas rubras.

Já o tinha visto. Onde?

No pesadelo. Naquele em que se sentira carregada atra­vés do armário. Guy e outra pessoa tinham dito: — Abaixem. Assim ela não passa. Tinha sido levada para um salão de baile onde ardia uma igreja. Onde aquela igreja ardia.

Mas como?

Teria sido, na realidade, carregada através dos armá­rios e visto a pintura?

“Procurar Andy. Procurar Andy. Procurar Andy”.

Sempre com a faca na mão, continuou a busca. Encon­trou outras portas fechadas. E viu outro quadro, mostrando homens e mulheres nus, dançando em círculo. Avançando sempre, encontrou-se no hall de entrada, ao lado do arco que dava para a sala de estar. As vozes estavam audíveis: — O avião deve estar atrasado, disse o Sr. Fountain.

No pesadelo, Jackie Kennedy conversara com ela e depois saíra deixando-a no centro de um círculo de homens e mu­lheres nus que cantavam em roda. Teria sido tudo real? Roman, todo vestido em paramentos negros, teria desenhado sinais com uma varinha em seu corpo? O Dr. Sapirstein se­gurava um pote de tinta vermelha. Tinta vermelha? Ou sangue?

— Que diabo, Hayato, pare de me amolar! ouviu Minnie dizer.

Minnie? Já teria voltado da Europa? Roman também? Mas ainda ontem recebera um cartão deles, vindo de Du­brovnik, dizendo que iam ficar lá por mais algum tempo!

Teriam viajado mesmo?

Rosemary encontrava-se sob o arco que separava a en­trada da sala de estar. Via as estantes, os arquivos e as me­sinhas carregadas de jornais e envelopes. O grupo estava reunido na outra extremidade da sala, rindo e conversando em voz baixa. Ouvia o barulho de cubos de gelo batendo nos copos.

Segurou a faca com mais firmeza e entrou. Parou es­tarrecida.

Num lado da sala sob uma das janelas em forma de arco, estava um berço preto. Era preto; todo preto, forrado em tafetá negro, enfeitado com babados e coberto por um véu de organza negra. No suporte do cortinado, pendurado numa fita negra, girava um ornamento de prata.

Estaria morto? Mas ao tempo que formulava tal pensa­mento, viu que se enganara, pois os babados moveram-se suavemente.

Estava ali. Naquele monstruoso antro de pervertidos.

Reparou, estarrecida, que o que julgara ser um orna­mento era, na realidade, um crucifixo pendurado de cabeça para baixo.

A idéia de ter seu filho inerme no meio de tal sacrilégio e perversão, encheu Rosemary de horror. Sentiu-se possuída do desejo de nada fazer, de chorar, de entregar-se, de se render a um Mal tão abominável. Resistiu, porém, com todas as forças. Fechou os olhos para não chorar, rezou fervorosa-mente e aglutinou todo seu ódio e desejo de destruição. Ódio de todos; de Minnie e Roman, Guy, Dr. Sapirstein — todos que tinham conspirado para roubar-lhe o filho e usá-lo para fins infames. Enxugou as mãos na roupa, jogou o cabelo para trás e deu um passo à frente para que a vissem e soubessem o que pretendia fazer.

Estranhamente, não a viram! Continuaram falando, rindo e bebendo como se estivessem numa festinha familiar, como se ela fosse invisível, como se estivesse na cama dormindo. Todos eles: Minnie, Roman, Guy, Fountain, os Wees, Laura­Louise e um japonês de óculos, com cara de sábio, estavam sentados sob um retrato de corpo inteiro de Adrian Marcato. Só ele a via. Só ele a fitava com olhar feroz, fixo e poderoso. Mas não passava de um quadro...

Foi então que Roman a viu. Colocou o copo sobre a mesa e tocou o braço de Minnie. Ficaram os dois em silên­cio absoluto, o que fez com que os outros se virassem para ver o que acontecia. Guy fez menção de levantar-se, mas sen­tou-se outra vez. Laura-Louise pôs as mãos na boca e come­çou a gemer. Helen Wees conseguiu dizer: — Volte para a cama, Rosemary, Você não devia ter-se levantado. Bancaria a calma, ou estava tentando usar psicologia?

— Está é a mãe?, perguntou o japonês, e quando Roman assentiu, murmurou: — Chii... examinando Rosemary com interesse. — Ela matou Leah, disse o Dr. Fountain, levantando-se. Matou minha Leah. Matou? Onde está? Que fez com ela? Rosemary olhou-os um por um e depois olhou para Guy que desviou o rosto, embaraçado.

Levantou a faca. — Sim, matei-a. Com esta faca. Depois limpei seu sangue e vou usá-la de novo em quem tentar chegar perto de mim. Conte-lhes como é afiada, Guy.

Guy ficou calado. O Sr. Fountain sentou-se pesadamente com a mão sobre o coração. Laura-Louise soltou um guincho.

Sem tirar os olhos do grupo, Rosemary dirigiu-se ao bercinho.

— Rosemary, disse Roman.

— Cale a boca.

— Antes de olhar, precisa saber...

— Cale a boca. Não ouço o que diz. Você está em Dubrovnik.

— Deixe que vá, disse Minnie.

Continuando a vigiá-los. Rosemary foi até o berço, que estava virado para eles. Com a mão que estava livre, tomou a alça e inclinou-o suavemente, em sua direção. O tafetá sus­surrou e as rodas negras rangeram.

Dormia. Dormia qual anjinho, rosado e inocente. Em­brulhado em manta negra, com as mãozinhas cobertas por luvas negras, Andy dormia. Tinha um cabelo abundante, ruivo e sedoso. “Andy! Andy, meu adorado”. Debruçou-se sobre ele, com a faca esquecida na mão; a criança mexeu-se e abriu os olhos. Tinha os olhos amarelos, inteiramente ama­relos, sem íris ou córnea, com pupilas que eram um traço negro vertical.

Rosemary fitou-o estarrecida.

A criança olhou-a com seus olhos amarelos e depois fixou o crucifixo que balançava suavemente.

Rosemary virou-se para o grupo que a espreitava e gritou: — O que fizeram com seus olhos?

Olharam todos para Roman que respondeu: — ele tem os olhos de Seu Pai.

Rosemary encarou-o com raiva, e em seguida olhou para Guy — que tinha o rosto escondido nas mãos. — Que estão dizendo? Os olhos de Guy são castanhos, são normais. O que fizeram com a criança, seus perversos? Avançou em di­reção deles, pronta a matá-los, um por um.

— Satã é Seu Pai; não é filho de Guy. Satã é Seu Pai, que veio do Inferno e plantou sua semente numa mortal. Para se vingar das iniqüidades impostas pelos adoradores de Deus sobre Seus fiéis servidores.

— Salve, Satã!, exclamou o sr. Wees.

— Satã é Seu Pai e Seu nome é Adrian, gritou Roman com voz forte e orgulhosa, assumindo uma postura erecta e arrogante. — ele derrotará os poderosos e destruirá seus templos. Redimirá os desprezados e exercerá vingança em nome dos torturados e perseguidos.

— Salve, Adrian! exclamaram em coro. — Salve, Adrian! e — Salve, Satã! — Salve, Adrian! — Salve, Satã!

Rosemary balançou a cabeça: Não, NÃO, NÃO!

— Escolheu você, disse Minnie. — Escolheu você em todo o mundo. Entre todas as mulheres você foi a escolhida. Enviou-os a este prédio, para este apartamento. Fez com que aquela imbecil da Terry ficasse amedrontada e fizesse a bes­teira que fez. Dispôs tudo de maneira que as coisas tinham que ser dispostas, porque Ële desejava que você fosse a mãe de Seu único Filho.

— Seu poder é onipotente, entoou Roman.

— Salve Satã, disse Helen Wees.

— Seu poder é onipresente e eterno.

— Salve Satã, disse o japonês.

Laura-Louise tirou a mão da boca. Guy olhou para Ro­semary com o rosto ainda semi-encoberto pelos dedos.

       — Não, gemeu Rosemary segurando a faca molemente. Não. Não é possível. Não. Não!

— Olhe Seus pés, disse Minnie. — E Suas mãos.

— E Sua cauda, disse Laura-Louise.

— E Seus chifres, continuou, Minnie.

— Oh, Deus! suspirou Rosemary.

— Deus está morto!, ditou Roman.

Rosemary virou-se para o berço, deixou cair a faca e tornou a voltar-se para o grupo. — Meu Deus! exclamou co­brindo o rosto. Levantou os braços para o céu gritando: —Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

— Deus está MORTO!, retumbou Roman. — Deus está morto e Satã vive! É o Ano Um, o Ano Primeiro de nosso Senhor. É o Ano Um, Deus acabou. É o Ano Um, o reinado de Adrian começou.

— Salve, Satã! gritaram. — Salve, Adrian! — Salve Satã! — Salve, Adrian!

Rosemary foi-se afastando, gemendo: — Não! — Foi-se afastando até ficar entre as mesas de jogo. Encontrou uma cadeira e sentou-se pesadamente. — Não, murmurou mais uma vez, olhando para o grupo.

O Sr. Fountain saiu apressadamente da sala. Guy e o Sr. Wees foram atrás dele.

Minnie, abaixando-se com dificuldade, apanhou a faca que estava aos pés de Rosemary e levou-a para a cozinha.

Laura-Louise aproximou-se do bercinho e começou a balançá-lo possessivamente, murmurou palavras acalentado­ras. O tafetá sussurrou e as rodas rangeram.

Rosemary continuou imóvel, balbuciando, — Não, não, não...

O pesadelo. O pesadelo tinha sido real. Aqueles olhos amarelos que fitavam os seus... — Oh, Deus! gemeu.

Roman chegou a seu lado dizendo: — Clare está fazen­do fita, fingindo sentir profundamente a morte de Leah. Não é verdade. Nem está ligando. Ninguém gostava dela; era avarenta, material e emocionalmente. Por que não nos ajuda, Rosemary, sendo uma verdadeira mãe para Adrian? Daremos um jeito para que não pague por tê-la matado. Ninguém ficará sabendo de nada. Você nem precisa juntar-se a nós, fazer parte do grupo; basta que seja a mãe de seu filho. Abai­xou a voz e adicionou: — Laura-Louise e Minnie estão muito velhas para exercer o papel.

Rosemary encarou-o.

— Pense bem, Rosemary, disse Roman endireitando-se.

— Não matei Leah, respondeu.

— Não?

— Só lhe dei uma boa quantidade de pílulas. Está dor­mindo.

— Ah!

A campainha da porta da frente tocou.

—  Com licença. Vou ver quem é. Pense bem, Rosemary.

—  Meu Deus!

— Pare com esse negócio de meu Deus. Pare já ou ma­taremos você a despeito de ser a fornecedora de leite, orde­nou Laura-Louise balançando o berço.

—  Cale a boca você, disse Helen Wees, aproximando-se de Rosemary e dando-lhe um lenço molhado em água. — Ro­semary é Sua mãe. Lembre-se disto e mostre mais respeito.

Laura-Louise resmungou algo inaudível.

Rosemary limpou o rosto com o lenço úmido. Olhou em direção ao japonês, que sorriu e fez uma mesura. Mostrou uma máquina de retratos na qual colocava um filme virgem e apontou em direção do berço sempre sorrindo e fazendo mesuras. Rosemary desviou os olhos e chorou.

Roman entrou acompanhado de um homem moreno e bonitão, todo vestido de branco. Trazia enorme caixa embru­lhada em papel de presente, estampado com ursinhos e bolas, que produzia sons musicais ao ser sacudida. O grupo inteiro foi cumprimentá-lo. “Estávamos preocupados”, diziam e “prazer”, “aeroporto”, “ocasião destas” e “Stavropoulos”. Laura-Louise apanhou o embrulho e trouxe-o para junto do berço, mostrando-o à criança. A seguir colocou-o junto dos demais presentes, alguns embrulhados com papel semelhante e outros envoltos em preto e atados com fitas negras.

—  Exatamente na meia-noite do dia vinte e cinco de junho. Exatamente meio século do que-sabe. Não é perfeito?, perguntou Roman.

— Por que se mostram tão surpresos? perguntou o re­cém-chegado com os braços estendidos. — Edmond Lautrea­mont, trezentos anos atrás, já não tinha previsto o evento para vinte e cinco de junho?

—  Sem dúvida, concordou Roman sorrindo. — Mas há de convir que suas previsões poucas vezes têm se provado acuradas. Sorriram todos ao mesmo tempo. — Venha, meu amigo, venha vê-lo.Venha ver a Criança.

Dirigiram-se ao berço, que Laura-Louise guardava pos­sessivamente, e olharam. Depois de alguns instantes de con­templação, o recém-chegado ajoelhou-se no chão.

Guy e o Sr. Wees voltaram à sala, esperando na porta até que o outro se levantasse. Guy dirigiu-se a Rosemary: — Leah está bem. Abe vai cuidar dela. Ficou ao lado de Rose­mary olhando-a e sem saber o que fazer das mãos. — Pro­meteram-me que não fariam mal a você. E na realidade não fizeram. É só fazer de conta que teve um filho que nasceu morto. Vão nos proporcionar tantas vantagens em troca disto, Ro...

Rosemary olhou-o dos pés à cabeça. Colocou o lenço no colo e cuspiu com toda força em seu rosto.

Guy se afastou, com as faces em fogo, procurando limpar a frente do paletó. Roman chamou-o para apresentar-lhe o recém-chegado, Argyron Stravropoulos.

— O senhor deve estar orgulhoso, disse Stravropoulos, apertando efusivamente a mão de Guy. — E a mãe, onde se encontra? Deve também...

Roman cortou-lhe a palavra e cochichou ao seu ouvido.

— Tome isto, disse Minnie, chegando ao lado de Ro­semary com uma xícara fumegante. — Tome, vai se sentir melhor.

— O que é isto? Chá de raiz-de-tannis?

— Não senhora? É chá Lipton com limão e açúcar. Puro e simples. Beba sem medo. Minnie colocou a xícara ao lado de Rosemary.

A única solução seria matar a criança. Era óbvio. Es­perar que se distraíssem, arrancá-la do berço, jogá-la pela janela e saltar em seguida. “Mãe e filho pulam para a morte no Bramford”.

Salvar o mundo de Deus sabe o quê. De Satã sabe o quê...

Uma cauda! Chifres!

Rosemary queria gritar, morrer.

Era o que devia fazer: jogá-lo pela janela e atirar-se depois.

O  grupo conversava agora com a maior naturalidade. Parecia estar numa festinha familiar. O japonês tirava foto­grafias de Guy e Stravropoulos conversando e de Laura­-Louise segurando o nenê.

Rosemary virou a cabeça para não ver.

Aqueles olhos! Como os de um animal, de um tigre! Não de um ser humano!

Bem, ele não era propriamente um ser humano. Era, era — uma espécie de mestiço.

Mas como era lindo e perfeito antes de abrir os olhos. Tinha o queixinho igual ao de Brian, uma boquinha que pa­recia botão de rosa e aquêle cabelo sedoso e ruivo... Gos­taria de vê-lo mais uma vez, desde que não abrisse os terrí­veis olhos amarelos.

Rosemary experimentou o chá. Era chá mesmo.

Não, não se sentia com força de matá-lo. Afinal de contas, fosse quem fosse o pai. era seu filho. Pensando me­lhor, o que devia fazer era levá-lo a alguém que pudesse re­solver o problema. Um padre, talvez. Tinha que ser solucio­nado pela Igreja, um conselho de cardeais ou até mesmo o Papa. Não seria ela, a estúpida Rosemary Reilly, de Omaha, quem poderia tomar a decisão final.

Matá-lo, seria pagar um erro com outro.

Tomou mais alguns goles de chá.

O nenê começou a choramingar, pois Laura-Louise esta­va balançando o bercinho com muita força. A idiota, é claro, balançou-o ainda com mais violência.

Rosemary agüentou o quanto pôde. A seguir levantou-se e foi para junto do berço.

— Saia daqui, gritou Laura-Louise. — Roman, não deixe que se aproxime dele.

— Você está embalando com muita força.

— Afaste-se e volte para seu lugar. Roman, mande que ela saia de perto.

— Está chorando porque você o está balançando muito forte, disse Rosemary.

— Não tem nada a ver com isto, respondeu Laura-Louise.

— Deixe que Rosemary o embale, ordenou Roman.

Laura-Louise olhou-o atônita.

— Vã, sente-se junto aos outros. Deixe que Rosemary o embale.

— Mas ela pode...

— Vá, Laura-Louise.

Laura-Louise, amuada, obedeceu.

— Embale-o, disse Roman a Rosemary. ele próprio co­meçou a balançar o bercinho, suavemente de um lado para o outro.

— Você — você está tentando despertar em mim o ins­tinto maternal, disse Rosemary.

— Não é sua mãe? Vamos, acalente-o até que pare de chorar.

Rosemary permitiu que sua mão fosse colocada na alça do berço. Durante alguns momentos balançaram-no juntos e depois Roman retirou-se, deixando que ela continuasse a movê-lo sozinha, leve e suavemente. Olhou para o nenê, viu os olhos amarelos e desviou a vista. — Ë preciso botar um pouco de óleo nas rodas. O barulho que fazem deve in­comodá-lo.

— Tem razão, disse Roman. — Está vendo? Já parou de chorar. Sabe quem você é.

— Não seja idiota, respondeu Rosemary. Olhou para o bebê que a fitava. Até que seus olhos não eram feios. Agora que já se acostumara, podia julgar melhor. Eram quase bo­nitos. — Como são suas mãos? perguntou a Roman.

— Lindas! Tem garras, mas são garrinhas pequeninas e transparentes. Usa luvas só para que não se arranhe e não por ter mãos feias.

— Não parece estar se sentindo bem.

O Dr. Sapirstein entrou de repente na sala, e parou atô­nito, dizendo: — Que noite cheia de surpresas!

— Saia de perto, gritou Rosemary — ou cuspirei em seu rosto.

—  Vá Abe, disse Roman e o médico se afastou balan­çando a cabeça.

— Não é com você, Rosemary disse ao bebê. — Não é com você que estou zangada. Não tem culpa de nada. Estou com raiva deles que me enganaram, que mentiram para mim. Não faça essa carinha brava, fique bonzinho.

— Ele sabe, disse Roman.

— Então por que está assim? Coitadinho. Olhe para ele.

— Espere um minuto. Tenho que cuidar de meus convi­dados. Voltarei logo, disse Roman afastando-se e deixan­do-a só.

— Palavra de honra que não vou fazer mal a você. In­clinou-se sobre o berço e desamarrou a fita que fechava o ca­saquinho da criança. — Laura-Louise é uma boba. Amarrou muito apertado. Vou dar um jeito. Espere só para ver. Sabe que tem um queixinho lindo? Tem os olhos meio engraçados, mas seu rosto é bonitinho, sabe?

Atou novamente a fita.

Coitadinho.

Não podia ser totalmente mau. Mesmo que fosse uma parte de Satã, tinha a outra metade, a dela para contraba­lançar. Talvez, com jeito, com habilidade, trabalhando contra a influência deles, conseguisse que a sua metade, humana, decente e boa, predominasse.

— Sabe que tem um quartinho só seu?, perguntou, afo­fando a manta que também o apertava. — Tem um papel de parede branco e amarelo e um bercinho lindo, todo branquinho. Não tem nada desse preto feio e sujo. Vou levar você na hora da próxima mamada. Se quiser saber quem sou, sou a pessoa que tem mandado o leitinho que anda tomando. Vai ver que pensou que vinha em garrafas, não é? Pois não vem, seu bobinho. Vem da sua mãe, que sou eu. Isso mesmo, seu carinha-feia! Nem parece contente em saber.

O silêncio reinante fez com que Rosemary olhasse em volta. Estavam todos em torno dela, em atitude de respeito e veneração.

Sentiu-se corar e ajeitou novamente a manta ao redor do nenê.

— Salve, Rosemary! exclamou Helen Wees.

Repetiram todos: — Salve, Rosemary! — Salve, Rose­mary! disseram Minnie, Stravropoulos e Sapirstein. — Salve, Rosemary! exclamou Guy. Laura-Louise moveu os lábios, mas nada disse.

—  Salve, Rosemary, mãe de Adrian! completou Roman.

— Seu nome é Andrew. Andrew John Woodhouse, disse Rosemary.

— Não, seu nome é Adrian Steven, respondeu Roman.

— Escute, Roman..., disse Guy; Stavropoulos, toman­do Roman pelo braço, perguntou: — O nome é tão importante?

— Sim. É, sim, respondeu Roman. — Seu nome é Adrian Steven.

— Compreendo que deseje que se chame assim, disse Rosemary, — mas sinto muito não ser possível. Seu nome é Andrew John. É meu filho e não seu, de modo que nem vou perder tempo em discutir o assunto. Nem este, nem a respeito de suas roupinhas. Não vou permitir que ande sempre de preto.

Roman abriu a boca, mas Minnie cortou-lhe a palavra. —Salve, Andrew! exclamou em voz alta, olhando para Roman.

E os outros repetiram: .— Salve, Andrew! — Salve, Ro­semary, mãe de Andrew! — Salve, Satã!

Rosemary acariciou a face da criança. — Não estava gostando do nome, não é? Já se viu: Adrian Steven! Quer parar de fazer essa carinha zangada? Ainda não sabe sorrir? Não sabe? Vamos, olhinho-engraçado, sorria para a mamãe. Balançou o ornamento de prata que enfeitava o berço pe­dindo: — Vamos, Andy. Uma risadinha. Uma risadinha só para mamãe ver.

O  japonês, de máquina em punho, agachou-se e tirou uma série de instantâneos.

 

                                                                                 Ira Levin  

 

                      

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