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A SEMENTE ESCARLATE / Edith Pargeter
A SEMENTE ESCARLATE / Edith Pargeter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SEMENTE ESCARLATE

 

Parfois, Shrewsbury: Agosto de 1232

As espadas de torneio, de ponta boleada, entrechocaram-se, fragmentando a luz do sol em lúgubres farpas azuladas. O choque sacudiu-o do pulso até ao ombro, mas Harry conseguiu manter a posição e, polegada a polegada, afastou da cabeça a lâmina do adversário. Se o golpe tivesse atingido o alvo, no mínimo Harry teria abandonado o terreiro da liça atordoado, ainda que escapasse de ser retirado com a cabeça partida. O velho Nicholas Stury nunca era brando. Às vezes, Harry suspeitava que ele sentia prazer em magoar e encher de nódoas negras os jovens homens de armas que se submetiam às suas lições e não havia dúvida de que muitos deles o temiam.

Sob o impulso do ataque e da parada, os dois adversários giraram sobre si próprios, mudando de posição em dois passos rápidos. O círculo de rostos atentos dos espectadores acompanhou os movimentos de ambos, as vozes abafadas sussurraram previsões e comentários febris. Harry conhecia-os demasiado bem para acreditar no seu apoio. Eram bastante tolerantes com ele e, ao longo dos meses que passara na sua companhia, alguns haviam mesmo acabado por se tornar seus amigos mas, quando se tratava de um torneio, não podiam desejar a vitória deste prisioneiro galês, mesmo que o adversário fosse Stury, a quem detestavam profundamente. Apesar do mau feitio, o velho Nicholas era um homem de Parfois, era um deles, e podia contar com o seu apoio contra um estranho.

Nicholas Stury era grande adepto daquele ataque devastador à cabeça do adversário, talvez porque gostasse de ver o efeito aterrador que este produzia, antes de atingir o alvo ou de ser desesperadamente parado. Se lhe dessem tempo, tentaria outra vez mas Harry conhecia mais de uma maneira de lhe fazer frente. Desviou-se prudentemente para a direita, repeliu dois ou três golpes que não passavam de fintas, ensaiou por sua vez alguns não menos falsos e, então, o ataque repetiu-se, forte e fulminante, destinado a pô-lo sem sentidos, com uma pancada sobre o elmo de treino, acolchoado. Desta vez, porém, em vez de recuar e erguer a espada para afastar da cabeça a arma do adversário, Harry baixou-se, deu um salto lateral por baixo da lâmina e, ao passar pelo adversário, flanco direito com flanco direito, inverteu a posição da espada e desferiu um golpe nas costelas de Stury, com tal força que este emitiu um som rouco. Em seguida, para que não restassem dúvidas, enterrou a ponta romba da espada no sovaco descoberto do mestre de armas, a fim de mostrar que, num combate a sério, o teria facilmente ferido.

Os jovens saudaram ruidosamente o toque. Empoleirado no parapeito da janela do armeiro mais próxima, um dos pajens gritou:

- Tocou!

A alegria sincera daquele grito tocou o coração de Harry. Segundo parecia, contava com pelo menos um apoiante. Walter Langholme, o escudeiro do senhor de Parfois, repetiu o grito com autoridade e, quando Stury se preparou para prosseguir o combate, interpôs-se e encostou-lhe ao peito a ponta romba de uma lança de torneio.

- Basta. Talvace venceu, Nicholas. Reconhecei que haveis sido derrotado.

Admitir a derrota era um acto difícil para um mestre de armas experiente, em quaisquer circunstâncias; mais difícil ainda quando o aluno demasiado dotado era um cativo estrangeiro e, para mais, um adolescente de dezassete anos que, por capricho do seu senhor, se pavoneava pelo castelo e estava autorizado, por mercê especial, a participar nos torneios organizados pelos jovens da corte.

- Ele mal me tocou - protestou Stury, afastando a lança do peito largo, com uma mão tão dura como o grés sobre o qual assentava o castelo de Parfois. - Chamais àquilo um toque? Se o meu pé não houvesse escorregado, ele nunca haveria escapado ao meu golpe.

Harry afastou-se para a sombra do armeiro e deixou cair a espada sobre o rebordo de pedra que se estendia por baixo das janelas. Desapertou o elmo acolchoado, tão simples e destituído de ornamentos quanto os elmos cerimoniais de torneio eram elaborados e trabalhados, descobrindo o rosto afogueado. O pajem que se encontrava empoleirado na janela atirou-lhe um lenço e Harry limpou o suor do rosto e do pescoço, com satisfação. Em seguida, sem se voltar, desafiou Stury:

- Se pondes em causa este toque, concedei-me outro assalto. Para mim tanto faz: posso voltar a fazer a mesma coisa.

Não era sensato dizer tal coisa naquelas circunstâncias; a impertinência atiçou contra ele a lealdade dos presentes, mesmo das raras pessoas que lhe manifestavam maior simpatia, e provocou um coro agressivo de incitamento entre os partidários de Stury. Para falar verdade, Harry não estava de modo algum seguro de ser capaz de honrar a fanfarronada. Uma coisa era inverter a relação de forças - era apenas uma questão de paciência e cautela; outra bem diferente era repetir a façanha, pois Stury estava agora de sobreaviso e de cabeça quente, devido ao revés que sofrera, e não era homem para se deixar enganar. Todavia, era demasiado tarde para pensar duas vezes: só lhe restava enfrentar a situação. Harry pegou no cântaro que se encontrava sobre o rebordo de pedra e bebeu com avidez, enquanto os outros discutiam ruidosamente e Langholme batia com a lança no solo e gritava para restabelecer a ordem.

Então, vinda da sombra do arco que dava para o terreiro interior do castelo, uma voz forte e clara proclamou:

- Talvace foi o vencedor, não há qualquer dúvida. Alguém refuta essa vitória?

O clamor cessou de imediato. Como conseguira Isambard fazer-se ouvir no meio de tamanho burburinho era um mistério para Harry. Talvez as suas primeiras palavras houvessem sido mais pressentidas do que ouvidas, abrindo caminho até aos nervos tensos, como um daqueles sons irritantes que nos fazem rilhar os dentes. Fosse como fosse, a sua intervenção, embora breve, gerou o silêncio à sua volta e todos os que se encontravam diante do armeiro se puseram de pé, numa atitude respeitosa. Quando o seu senhor se aproximava, só tinham olhos para ele, fitando-o com uma ansiedade e uma atenção a que Harry se habituara havia muito.

Entre todos os que aqui estão, sou o único que não tem medo dele, pensou. Mas, logo em seguida, corrigiu aquela estimativa apressada: Langholme também já não o temia, embora em tempos isso houvesse por certo sido verdade. Cuida-lhe do corpo há tanto tempo que superou o medo; ambos devem ter chegado a um tal ponto de compreensão mútua que o receio desapareceu. Walter não aspira a ser armado cavaleiro e não deseja obter de Isambard mais do que aquilo que já tem; e lorde Isambard sabe que Langholme não é ambicioso e dá-lhe mais valor do que a qualquer um destes.

Harry observou a figura alta e esguia do senhor de Parfois, que, a passos lentos, se afastava da sombra do arco e se aproximava, rodeado pelo silêncio que provocara. Não se apressava por causa deles, tal como nunca se detivera nem se apressara perante reis. O calor de Agosto fizera-o desembaraçar-se do pelote e da cota e abrir a gola da camisa larga de linho, deixando a descoberto a garganta descarnada e erecta, na qual as veias sobressaíam, tensas como as cordas de um arco, sob a pele tisnada. Isambard adorava o Sol. Mandara abrir grandes janelas lanceoladas nas paredes da torre dos seus antepassados, para que o sol entrasse nos aposentos que escolhera, e tudo indicava que o Sol lhe retribuía a devoção como um bom amigo: ano após ano, o Verão tisnava-lhe a pele e reavivava a sua sombria beleza de outrora, libertando-o, ao mesmo tempo que ele se libertava dos brocados da Flandres, de uns bons quinze dos seus sessenta e oito anos. O Sol não podia voltar a escurecer os cabelos grisalhos, fortes e encaracolados como os de um adolescente, mas dourava e polia as maçãs do rosto e os maxilares, a rocha desgastada da testa, e expulsava do seu corpo a rigidez do Inverno; parecia pois natural vê-lo mover-se como um jovem gamo e brilhar como o Sol no zénite, em pleno Agosto.

- Um belo golpe - comentou. - Bem poderia haver-vos trespassado o coração. Parece que o ensinastes demasiado bem. Agora, ele conhece de cor todos os vossos movimentos.

- Ele nunca me haveria atingido, senhor, se o terreno fosse relvado. Mas não ponho em causa o toque.

Não podia fazê-lo, pensou Harry, descontente, porque Isambard o fitava olhos nos olhos e proclamava, num tom absoluto, aquilo que era a pura verdade. A obstinação de Harry contra todos os que o rodeavam tornou-se mais forte: no fundo, eram todos seus inimigos e diabos o levassem se se mostrasse disposto a pactuar com qualquer deles.

- Propus a Stury um novo combate, senhor, já que ele não está satisfeito. Não quero uma vitória que ele diz não haver passado de um golpe de sorte. Se eu conseguir repetir o feito, talvez possamos chegar a acordo.

Segurando o cântaro ora com uma mão ora com a outra, Harry despejou um pouco de água fria sobre os pulsos e deixou que o ar quente do meio da manhã os secasse. Sabia que aquilo era uma tolice mas, ao fim de sete meses, estava farto de se mostrar sensato e de suportar pacientemente as pressões do isolamento no meio de toda aquela gente. Se Stury fosse capaz de provar ser o melhor, que o fizesse. Ele não ia recuar perante o mestre de armas, a não ser pela força. Nem perante o próprio Isambard. Todos quantos viviam no castelo tinham medo dele, mas Harry não pertencia à casa de Isambard. Ia provar-lhes que ser um estranho e um prisioneiro lhe dava uma estatura superior à deles. Sem pestanejar, sustentou o olhar dos olhos escuros que o perscrutavam sem sorrir, do outro lado do círculo, e limpou as mãos lentamente, flectindo os dedos impacientes, prontos para voltar a empunhar a espada, apesar de os efeitos daquele forte impacto inicial ainda não terem passado por completo.

- Com a vossa permissão, senhor. Estou à disposição do mestre Stury.

Isambard, que tirara a espada de torneio da mão de Stury, agarrou o punho com a mão magra de dedos compridos, encostou a ponta romba da arma ao solo e apoiou nela o peso do corpo, experimentando-a.

- O comprimento não é o ideal para mim, mas serve. Se estás assim com tanta vontade de esgrimir, sempre podes proporcionar-me um pouco de exercício.

Portanto, Isambard não queria que o velho Nicholas fizesse figura de tolo, pensou Harry, sem surpresa e sem grande ressentimento. E eu vou apanhar uma sova de outra maneira. Bem, vamos levar as coisas mais longe, já que, pela primeira vez, ele condescende em oferecer-me uma justa. Harry firmou bem os pés vigorosos no solo e lançou a Isambard um olhar flamejante e hostil, num desafio claro que talvez houvesse escapado aos presentes, mas que por certo não escapara ao destinatário.

- Não há qualquer litígio entre vós e mim, senhor. Foi o mestre Stury quem pediu uma satisfação.

Deu-se conta do movimento e dos sorrisos de todos os jovens escudeiros de Parfois, encantados por o verem bater tão rapidamente em retirada. Um deles, próximo de Isambard, soltou uma gargalhada escarninha. Deixá-los divertir-se, pensou Harry, sem desviar os olhos. Contudo, Isambard não se movera nem sorrira: sopesava a pesada espada e observava Harry através dos raios de luz, sem manifestar a mínima impaciência. Sabia que ele ainda não dissera tudo.

- Mas se quiserdes pôr-me à prova com espadas não boleadas, senhor, ficarei encantado por vos proporcionar o melhor combate que puder.

Os presentes sustiveram a respiração, chocados por tamanha insolência, encolerizados contra Harry em nome da dignidade de Parfois; mas também maravilhados perante a sua ousadia e vagamente apiedados da sua loucura. Por seu turno, Harry sentiu o coração apertar-se ao ouvir as próprias palavras, mas continuou a ostentar uma expressão impenetrável. Apenas Isambard não deu indícios de ter ouvido mais do que uma observação normal, que qualquer dos presentes poderia ter feito. Nem por um instante, os dedos compridos, que seguravam o punho tosco da espada com uma delicadeza desenvolta, tremeram ou se crisparam; ergueu a cabeça, num movimento calmo e lento, e o longo olhar pensativo que fixou no rosto de Harry não patenteou qualquer emoção aos olhos de todos quantos o observavam atentamente, à espera de o ver esmagar ou matar o jovem atrevido, consoante o humor do momento.

Harry esperava uma recusa pura e simples e uma parte do seu espírito, sensível a um medo físico bem natural, havê-la-ia aceite de bom-grado. Mas os grandes olhos do senhor de Parfois, que ardiam serenamente nas órbitas cavadas, sorriam ligeiramente, não deixando transparecer cólera nem impaciência. Não que isso eliminasse o perigo de o haver enfrentado: Isambard não precisava de uma nem de outra para ser capaz de matar.

- Trazei duas espadas de combate, Walter.

A voz era calma. Ninguém ousou manifestar consternação. Sem uma palavra, Langholme afastou-se e, com passos pesados, dirigiu-se para a armaria.

- Não há pressa, Harry - disse Isambard, ao ver o jovem estender a mão para o elmo. - Descansa. Ainda mal tiveste tempo para recuperar o fôlego.

- Ides usar armadura, senhor? - perguntou Harry, pronto a detectar qualquer afronta e a mostrar-se ofendido.

- Não te preocupes. Vamos combater em perfeita igualdade. Aproximou-se da pilha de armaduras de couro e, com um

movimento casual do pé, foi-as afastando por serem demasiado pequenas, depois do que se dirigiu à armaria, atrás de Langholme. Quando Isambard deixou de poder ouvi-los, os presentes voltaram por fim a respirar e lançaram, em surdina, uma chuva de insultos e conselhos dirigidos a Harry: aqueles que nutriam por ele alguma simpatia amaldiçoavam-no por haver sido um tolo e desafiado a morte em vão e incitavam-no a recuar, mesmo que de forma abjecta, enquanto era tempo; aqueles que não nutriam qualquer simpatia por ele prenunciavam com satisfação um resultado acima de qualquer expectativa - no mínimo uma humilhante lição de esgrima, na pior das hipóteses uma mutilação. Nenhum deles pensava em morte. Tinham a certeza de que Isambard o queria vivo, uma vez que o deixara viver durante dois anos, quando poderia muito bem havê-lo liquidado; e não duvidavam igualmente de que, já que a morte não fazia parte dos planos de Isambard para o rapaz, este não poderia invocá-la. Isambard faria dele gato-sapato, dar-lhe-ia uma tareia para que se arrependesse da sua presunção, faria correr algum sangue ou marcá-lo-ia para o resto da vida, conforme lhe aprouvesse, e depois deixá-lo-ia em paz.

Harry fez-se de surdo, curvou os ombros para se proteger tanto dos insultos como dos conselhos e ficou teimosamente à espera, a massajar a mão dormente para recuperar a sensibilidade. Que sabiam eles das boas razões que o levavam a ter medo do que fizera? Nem sequer eram capazes de perceber o que se passara diante dos seus olhos. Só ele sabia até onde podia chegar aquele jogo perigoso e, em vez de recuar, sentia crescer em si o desejo de lançar nele. Também sentia medo, o medo de não estar à altura e o medo sensato de qualquer homem perante a morte. Mas Harry não queria reconhecer esses medos e, antes mesmo de Isambard voltar do amieiro, já os expulsara, deixando fluir apenas o ódio e o orgulho.

Empunhando a lança de torneio em posição transversal, Lang-holme empurrou os corpos que se agrupavam à volta do terreiro espezinhado, para arranjar espaço para os dois combatentes. Um e outro desferiam golpes longos. Apesar de ter mais cinco ou seis polegadas do que o pai, Harry era, ainda assim, mais baixo do que Isambard umas três ou quatro e tinha uma ossatura mais leve e delicada do que a deste último. Era preciso pelo menos dar-lhe espaço para recuar, se lorde Isambard decidisse infligir-lhe um castigo. Descontente, Langholme manobrou a lança sem grande delicadeza. Quem havia de dizer que ia acontecer uma coisa daquelas, num combate sem importância?

- Dai-nos espaço - ordenou Isambard que, pela viseira do elmo de treino, lançou em torno de si um olhar acerado, mais eficaz do que a lança de Walter. - Vós, Nicholas, tirai esta porcaria de debaixo dos nossos pés - acrescentou, empurrando com o pé as armaduras de couro.

Depois de estas terem sido levadas, voltou-se para Langholme:

- Vós sereis o árbitro do combate, Walter. Então, Harry? Estás pronto?

- Até ao primeiro toque, senhor? - perguntou Langholme, com alguma esperança, fitando o seu senhor antes de este fechar a viseira.

- Dar-me-ei por satisfeito com o que o Harry decidir - respondeu Isambard.

Os seus olhos brilhantes estavam velados por uma sombra e o tom natural da sua voz nada revelava.

- Até ao golpe decisivo - cortou Harry, tendo o cuidado de não dizer «até à morte».

Era um segredo entre ele e Isambard e nenhum dos dois queria revelá-lo diante de terceiros.

Agora, tudo dependia deles: só havia uma saída e apenas para um dos dois. Langholme baixou o cabo de uma lança, dando o sinal para o início do combate e ambos se aproximaram, num movimento duplo, flexível e cauteloso, que fazia lembrar o de um só homem diante de um espelho. O círculo de rostos atentos, o anel de olhos ávidos desapareceram como velas que se apagam, o murmúrio de vozes tensas que não ousavam falar alto esvaiu-se no silêncio; os dois ficaram sozinhos no mundo como, em certa medida, sempre haviam estado, defrontando-se de armas na mão, desde o dia do primeiro encontro: o jovem, reclamando um ajuste de contas pelo destino do seu pai; o homem, consciente das inúmeras dívidas que tinha por saldar.

Enquanto observava os movimentos do braço comprido que testava as suas defesas, Harry evocava mentalmente as razões do seu ódio e acalmava o coração, lutando contra os ímpetos de vingança. Fostes vós quem trouxe para aqui o meu pai e o seu irmão adoptivo, Adam Boteler. Fizestes dele vosso mestre canteiro para vos construir uma grande igreja. Não vos deu o que havíeis pedido? Não executou o que lhe fora mandado construir? Sabeis bem que não! Foi na igreja que vos encontrei pela primeira vez e bem vos vi olhar para a obra do meu pai. Sei que a considerais perfeita. Vós mesmo mo dissestes. Como foi então que ele vos traiu? Como vos ofendeu? Tirou-vos das mãos uma criança de nove anos, um príncipe galês que havíeis feito prisioneiro e que íeis executar, por ordem do rei João. E mandou o Adam levá-lo de volta ao seu pai adoptivo, o príncipe Llewelyn. Foi apenas isto! Privou o rei João do cadáver de Owen ap Ivor e poupou-vos vós ao cumprimento de uma tarefa ignóbil que vos repugnava mas que, não obstante, estáveis disposto a cumprir. Depois disso, o meu pai regressou e entregou-se nas vossas mãos porque havia jurado não partir antes de haver terminado a sua obra-prima. E terminou-a, acorrentado; depois, quando foi desmontada a última tábua dos andaimes, vós haveis ordenado que ele fosse conduzido diante da sua própria igreja, para aí sofrer uma morte de traidor, uma morte atroz. «Vou arrancar-te o coração do peito, vivo» dissestes. E assim haveria sido, se Madonna Benedetta, que havíeis trazido convosco de Paris, Madonna Benedetta, que vós amáveis, não houvesse em segredo cuidado de que lhe fosse dado um fim melhor, rápido e limpo, pela mão de John o Frecheiro, o arqueiro que a servia. Mas nem mesmo então fostes capaz de o deixar em paz! Nem a Madonna Benedetta, porque o amava e o poupara a uma morte terrível. Havei-la despido e atado o seu corpo vivo ao corpo morto do meu pai, haveis atirado ambos ao Severn, para que apodrecessem para todo o sempre nos braços um do outro. E assim haveria sido se John o Frecheiro não os houvesse encontrado e levado para terra, dando a uma a vida e ao outro um túmulo tranquilo, em Strata Marcella. Mas vós ainda não estáveis satisfeito. Haveis descoberto o rasto de Madonna Benedetta e o local onde nos havia escondido, a mim e à minha pobre mãe, ainda tão fraca de me haver dado à luz, e haveis-nos perseguido para lá da fronteira de Gwynedd, até um refúgio que não poderíeis haver previsto, até ao senhorio e à protecção paternal do príncipe Llewelyn.

Pensáveis que eu não voltaria? Cuidáveis que vos havíeis desembaraçado do último Talvace? Que a história iria acabar assim?

Mas Harry viera demasiado cedo, aos quinze anos apenas; escalara a ravina de grés e escondera-se na igreja, na esperança de entrar furtivamente em Parfois e satisfazer a sua sede de vingança. Mas fora na igreja que encontrara Isambard, fora aí que fizera tudo o que estava ao seu alcance para o matar, custasse o que custasse, mesmo que para tal tivesse de morrer. Harry lembrava-se da dura luta no trifório, do salto desesperado que dera na tentativa de arrastar o inimigo atrás de si, de uma altura de trinta pés, até às lajes de pedra.

Ainda sentia a mão descarnada que lhe apertara impiedosamente o pescoço, agarrando cota, camisa e carne, puxando-o para trás e atirando-o contra a parede, abaixo dos modilhões que o seu pai esculpira. Com uma cólera que lhe fez afluir o sangue ao rosto, recordou as três bofetadas brutais e deliberadas, desferidas pela mesma mão que agora empunhava a espada diante de si e testava as suas defesas. E ouviu a voz fria dizer: «Isto é por haveres desprezado a própria vida, grande tolo.» Depois, veio a cela por baixo da torre e o longo cativeiro, aquele imenso tormento que ainda não tivera fim.

Desde então, nunca mais se haviam defrontado; até àquele dia, Isambard nunca consentira em enfrentá-lo.

Todos os rancores acumulados ao longo daqueles anos concentraram-se na mão de Harry e propagaram-se ao metal da espada. Se desperdiçasse aquela oportunidade, não teria outra. O enorme peso do momento fez-lhe tremer e doer o braço por um instante, antes de mão, arma e braço se fundirem num relâmpago inteligente.

As espadas tocaram-se e deslizaram, silvando, giraram e bateram uma na outra à altura da cabeça, voltando depois a afastar-se, inofensivas. Quantas vezes Harry observara Isambard enquanto ele esgrimia e contemplara aquele rosto espantoso, mais grave e mais imóvel do que nunca, avaliando o esforço despendido como se fosse de outra pessoa e não o seu. Naquele momento, Harry entreviu os olhos que o fixavam através da grelha da viseira e viu-os sorrir. Conhecia este golpe, havia-o vísto centenas de vezes, admirara a sua subtileza, estudara-o atentamente, a fim de encontrar uma forma de o aparar. E, de pulso firme e olhar seguro, aparou-o. Nesse instante, os olhos negros e trocistas brilharam como ferro ao rubro. E continuavam a rir, quando Harry atacou a fundo e se voltou, acompanhando a estocada, mais rápido do que o eco do aço; a espada aflorou o ombro de Isambard no momento em que este recuava de um salto.

Por um instante, o círculo de rostos ressurgiu no vazio que os rodeava, soltou um suspiro tremente de espanto e admiração e voltou a desaparecer.

Harry engoliu o sangue que tinha na boca e sentiu uma náusea; a impaciência levara-o a morder a língua. Com isso, perdera a oportunidade de tirar partido daquele sucesso inesperado. Nunca pares para ver o resultado do golpe que desferiste: desfere outro de imediato, depois outro, antes de ele ter tempo para pensar no primeiro. Isambard é um velho, tem sessenta e oito anos, podes cansá-lo, deixá-lo esgotado, até a mão lhe falhar ou o pé lhe resvalar. Ele sabe que queres ir até ao fim e assentiu. Tu disseste: até ao golpe decisivo, mas ele ouviu a palavra que não pronunciaste e respondeu «dar-me-ei por satisfeito».

O braço comprido de Isambard lançou um ataque forte e rápido à cabeça de Harry. Este reagiu com algum atraso, mas aparou o golpe, embora a parte chata da lâmina lhe houvesse atingido o ombro. Os seus músculos contraíram-se sob o choque, mas conseguiu controlar a dor e deu um passo atrás, para recuperar o fôlego. Todavia, o pânico momentâneo transformou-se de imediato numa frieza de aço. Repeliu os violentos ataques que se seguiram com a firmeza de uma rocha; por nada deste mundo voltaria a recuar diante do seu inimigo. O seu olhar era tão arguto como o do velho senhor, o seu braço igualmente firme e podia sem dúvida contar com uma maior resistência física. Tudo o que lhe faltava era a longa experiência dos campos de batalha, o terrível talento que permite criar novos golpes a partir daqueles que se vão parando, a capacidade de invenção que permite sempre criar surpresa. Observar e estar preparado: não havia outra via. Evocar todos os ataques que vira Isambard desferir ao longo daqueles dois anos e, se este fraquejasse por um instante que fosse, ganhar-lhe o assalto, porque a oportunidade não se apresentaria uma segunda vez.

Contudo, Harry não se fiava sequer nessa oportunidade única e ainda bem, porque Isambard nem por um instante abrandou a concentração. Dava o melhor de si em tudo: mão, olhos, jogo de pés. E o mesmo olhar crítico que guiava a espada ria e aprovava a intensidade reflectida do adversário, que não pestanejava, cruzava imperturbavelmente ferro contra ferro, esperando com uma paciência feroz a mínima brecha nas suas defesas.

Os dois escorriam suor, os músculos dos seus braços gemiam sob o peso das espadas e do esforço, as coxas tensas crispavam-se e até as solas dos pés estavam doridas. Contudo, nenhum deles queria mostrar o mínimo sinal de fadiga. Os choques violentos das espadas repercutiam-se nos ombros e nos flancos, mas os olhos de ambos não se desviavam e os assaltos sucediam-se sem tréguas.

O círculo de rostos reaparecera no seu campo de visão, os murmúrios haviam-se tornado mais insistentes, quase receosos. Langholme agitava-se, inquieto, com os nervos à flor da pele, sem saber se devia intervir ou deixar correr. Harry tinha uma vaga consciência de tudo isto, mas não podia permitir-se desviar a atenção. Foi Isambard quem, sentindo a agitação nas suas costas, lançou um breve olhar para o lado, como que para avisar os espectadores que não interviessem naquilo que não compreendiam.

Harry deu-se conta do ínfimo movimento de cabeça do adversário, da desconcentração momentânea dos olhos que o fitavam. Avançou como uma fúria, com a espada em diagonal, mergulhando sob a lâmina da espada de Isambard, que reagiu habilmente, sobressaltada, para o desviar. Apesar da rapidez da sua reacção, o senhor de Parfois não tinha outra parada que não fosse recuar, uma e outra vez, face àquele assalto, até conseguir ter espaço de manobra para manter o jovem à distância. Seguro da sua vantagem, Harry manteve a pressão, empurrando o adversário, com o seu assalto, em direcção ao círculo de espectadores atónitos, que se afastaram para lhes dar espaço.

Então, de súbito, Isambard caiu por terra! Um grande passo atrás, junto ao muro, e a correia de um elmo que ali ficara rolou sob o seu pé, fazendo-o cair. Caiu sobre o joelho e a anca, na terra batida, a espada quase a saltar-lhe da mão, caiu com a agilidade inimitável de um gato, conseguindo firmar-se nas pernas, num movimento vivo. Mas, com o impulso que levava, Harry caiu sobre ele sem lhe dar tempo para se levantar e apontou-lhe a espada à garganta.

Ficaram estáticos por um instante e o mundo em volta deles parou, numa imobilidade e num silêncio que lhes permitiu ouvir o suor a escorrer-lhes da testa e a contracção dos músculos do braço do jovem, que corrigia a posição da espada, e do corpo do homem que, por terra, aguardava o golpe sem pestanejar.

As respirações sustidas dos presentes soltaram-se num clamor súbito e Langholme correu para os dois combatentes, seguido de perto por Nicholas Stury. Todavia, a sua intervenção não era necessária: o momento passara. Com as pernas a tremer, Harry dera meia volta e afastara-se para o extremo do terreiro da liça; com a ponta da espada assente na terra, esperava que o seu inimigo se levantasse. Ouviram-se gritos de protesto: não fora uma vantagem; se a correia não se encontrasse no chão, lorde Isambard não haveria caído. Uns dez braços estenderam-se para o ajudar a erguer-se. Como se ele precisasse de ajuda! Antes de haverem tido tempo para lhe tocar, já ele se levantara, recusando tal solicitude com impaciência e desprezo.

Sempre pronto a tentar cair nas boas graças do seu senhor, o jovem Thomas Blount gritou, na sua voz clara e provocadora:

- Seria melhor se o deixásseis entregue aos martelos e cinzéis, senhor. Ele luta como um canteiro.

Harry ouviu o reparo à distância, mas este não veio acrescentar nada à já longa lista dos seus ressentimentos contra Thomas. Quanto a Isambard, o mais provável era não ter ouvido nada. Com a espada entretanto recuperada a balançar na mão, olhava fixamente para o jovem que aguardava, de cabeça obstinadamente baixa, do outro lado do terreiro.

- Não houve vantagem - disse Langholme, com a voz ainda vibrante de uma emoção que caminhava já para as fronteiras da irrealidade.

Em breve, todos pensariam haver sonhado com a ponta da espada encostada à garganta do seu senhor, a mão de Harry crispada sobre o punho, os corpos tensos como cordas de arco. Em breve, estariam convencidos de que, devido ao impulso que levava, Harry não poderia ter parado a tempo, diante do adversário caído por terra.

- Eu não proclamei vantagem - atalhou Harry.

- Então, senhor, se vos dais por satisfeito... - começou Walter.

Walter Langholme queria acabar com aquilo: desde o início que o duelo lhe desagradava. De todos os presentes, talvez fosse o único a aperceber-se da torrente tumultuosa a correr por baixo da superfície aparentemente calma, que arrastava consigo os dois antagonistas, ligados tão fortemente pelo ódio como dois amantes estão ligados pelo amor.

- Dás-te por satisfeito, Harry? - perguntou Isambard, numa voz neutra, pois não queria influenciá-lo.

- Nenhum de nós levou a melhor até agora, senhor. Louco, és um louco, pensou Harry, furioso com o tremor que

lhe agitava o corpo, agora esgotado pela surpresa e pelo choque. Mal consegues segurar a espada. De que serve convidá-lo a matar-te? Todavia, cerrou os dentes e endireitou o corpo: não queria de modo algum recuar. Morte por morte era a dívida que tinha para com o seu inimigo e ninguém iria poder acusá-lo de não haver cumprido o seu dever.

- Como queiras - replicou Isambard, com a sombra de um sorriso a iluminar-lhe por um instante o olhar, ao detectar no tom obstinado de Harry o tremor que não era visível nas pernas retesadas. - Em guarda!

Harry fez o melhor que pôde. O corpo obedecia-lhe, embora com menos convicção do que desejaria, como seja não acreditasse no rancor dos seus intentos. Por três vezes, tarde e com ansiedade, afastou a lâmina que procurava atingi-lo, lutando simultaneamente contra a falta de firmeza da sua mão e contra a segurança da mão do adversário. Em seguida, recuperou o alento e voltou a replicar com maior vigor. Tudo o que acontecera não podia ser em vão. Não podia. O velho senhor estava cansado: já não levava os assaltos até ao fim, os seus movimentos eram mais lentos, evitava as aproximações excessivas.

Harry respirou fundo e avançou. Isambard recuou deliberada-mente um passo e, sentindo-se encorajado, o jovem seguiu-o: esquivou-se à lâmina que procurava o seu flanco esquerdo e lançou-se num assalto, com todo o seu peso. Isambard passou sob a lâmina e aproximou-se, prendeu o punho da espada de Harry com o seu e fê-lo desequilibrar-se, empurrando-o com a anca. A execução final da manobra foi feita sem pressas. Isambard recuou com toda a calma e, enquanto Harry tentava recuperar o equilíbrio, lançou um golpe bem calculado à espada do adversário, arrancando-lha da mão sem qualquer esforço inútil. A espada caiu no chão, a três jardas de distância, e a lâmina tilintou como a corda de um arco ao rebentar.

Pela segunda vez, ouviu-se um enorme suspiro concertado, a afastar a tensão acumulada. Desta vez, um suspiro de contentamento, pois o fim fora o que desejavam. O jovem Thomas Blount até se riu: uma gargalhada clara e sonora, ostensiva, tão estudada como a de uma rapariga. Um riso humilhante, que chegou aos ouvidos de Harry, no momento em que este se baixava penosamente para apanhar a espada. Contudo, quando ergueu o rosto, Harry apresentava uma expressão impenetrável: Thomas não teria o prazer de o ver perder a compostura.

Ainda de espada na mão, Isambard voltou-se e fitou Thomas:

- Ah, Thomas! Achaste a exibição assim tão má?

Apesar de o seu rosto apresentar uma expressão amável e sorridente, a voz e o gesto de Isambard estalaram como um chicote.

- Sendo assim, vem mostrar ao Harry quais foram os seus erros. Dá-lhe uma lição de esgrima. Agradar-me-ia muito ver-vos medir forças - acrescentou, segurando a própria espada pela lâmina e entregando-a a Thomas. - O Harry não se furtará a aprender com um mestre.

Por entre os ombros dos homens de armas, Harry viu o rosto de Thomas empalidecer de consternação. O pajem ainda tentou sorrir, mas o sorriso transformou-se num esgar, que contorceu lamentavelmente os traços harmoniosos do seu rosto e logo desapareceu, ao ver que Isambard não dava indícios de retirar a espada que lhe oferecera. Todas as cabeças se haviam voltado para ele e muitos dos homens de armas sorriam. Haveria sido bem melhor mostrar-se prudente com o riso; este é traiçoeiro e muda facilmente de campo.

- O Harry não está em condições de travar outro combate, senhor - protestou Thomas, apelando à pouca segurança que lhe restava. - Olhai para ele! Não seria justo.

- Cabe-lhe a ele decidir. Ainda te sentes com fôlego para mais um, Harry?

- De bom-grado, senhor! - replicou Harry, com uma expressão simultaneamente alegre e grave.

- Ouviste, coração ousado? Aproxima-te e mostra-me o que tencionas ensinar-lhe.

- Senhor, ele tem de obedecer às vossas ordens - disse Thomas, com um trejeito nervoso no rosto pálido e recuando diante da espada estendida. - Num tal combate, ele não perderá glória e eu não a ganharei. Não me pediríeis para enfrentar um homem cansado e ferido, senhor!

Os olhos denotavam ansiedade, mas a voz petulante deixava transparecer uma candura indignada. Thomas conseguia sempre arranjar maneira de se furtar airosamente a todas as situações que não lhe agradavam e, até então, o seu senhor nunca deixara de rir e de o deixar escapar-se. Porque haveria de ser diferente desta vez?

- Muito bem dito, meu nobre Thomas, modelo da cavalaria. Com efeito, não posso pedir-te que cometas um tal atentado à tua honra - respondeu Isambard, com um sorriso que nada tinha de ameno, ao mesmo tempo que passava a espada de uma mão para a outra. - Adiemos o combate para um momento mais adequado - acrescentou, enquanto o seu sorriso se transformava num trejeito diabólico. - Para amanhã, quando o Harry estiver tão fresco como tu e ambos houverem tanta glória a perder como a ganhar.

Por um instante, Isambard fitou nos olhos o seu pajem favorito, sublinhando a ameaça; em seguida, deu meia volta e, com um gesto imperioso, estendeu a espada a Walter Langholme.

- Amanhã, não deixes de me lembrar, Thomas - disse, antes de se afastar a grandes passadas, em direcção ao arco que dava para o terreiro interior.

O som seco e ameaçador da sua gargalhada, lançada por cima do ombro, chegou claramente até eles.

A partida de Isambard trouxera de novo o sangue às faces de Thomas, numa onda de alívio, mas aquela gargalhada transformou o alívio em consternação, fazendo-o corar violentamente. O suspiro colectivo de alívio resultante da libertação das tensões transformou-se ostensivamente numa vaga de risinhos irónicos e os sorrisos abertos dos homens de armas atingiram a dignidade ofendida de Thomas, como ácido derramado sobre uma ferida.

- Tem calma, rapaz - aconselhou Langholme, que segurava com resignação as duas espadas de combate. - Ele não vai obrigar-te a nada. Amanhã, não abras a boca, fica longe das vistas dele e lorde Isambard não vai importar-se de se esquecer do que disse. O mais provável é nunca haver sido sua intenção levar as coisas até ao fim.

Nunca as palavras de conforto foram mais humilhantes. A tremer de raiva e despeito, Thomas mordeu os lábios e lançou um olhar furioso aos companheiros sorridentes. Até então, o seu estatuto de favorito dera-lhe um certo ascendente sobre alguns deles. Iria perdê-lo sem luta? Para voltar a impor-se, antes que fosse demasiado tarde e o descrédito o manchasse para sempre, atacou.

- Ainda bem! Lorde Isambard pode rebaixar-se a lutar com obreiros e canteiros, se lhe aprouver, mas não pode pedir aos outros que façam o mesmo.

A voz de Thomas era aguda e vibrava de fúria. Chegou aos ouvidos indiferentes de Harry, que se voltou, momentaneamente hesitante, sem saber se devia ou não ofender-se. Teria Thomas Blount importância suficiente para um homem lhe dar a honra de brigar com ele? Por vezes, Harry suspeitava que era o desdém, e não a amizade, a origem da atitude de Isambard para com Thomas e da liberdade que lhe dava. E se Isambard era capaz de deixar passar em claro certas coisas, Harry também podia fazê-lo. Para quê desperdiçar em entes menores como Thomas a intensidade do ódio que pertencia apenas ao seu senhor? Assim sendo, voltou as costas a Thomas.

Ao ver afastar-se a túnica de burel, Thomas interpretou mal o motivo do afastamento e, imprudentemente, comentou:

- Os canteiros são uns reles talhadores de pedra. Uns míseros cortadores de pedra! Tal pai, tal filho!

Estas palavras fizeram Harry voltar para trás: sem pressas, mas de cabeça baixa, o que, nele, era muito mau sinal. Thomas não bateu em retirada. Langholme estava ali, tal como uns doze homens mais velhos: por certo não permitiriam que as coisas fossem demasiado longe.

- Falaste no meu pai - disse Harry, com urbanidade. - Mas não ouvi bem o que disseste. Queres fazer o favor de repetir?

A distância entre ambos era de três jardas e, à laia de advertência, Langholme avançara já um ombro e lançara um olhar ao mestre de armas, indicando-lhe que se preparasse para intervir, do outro lado. Thomas avaliou os riscos e resolveu aventurar-se.

- Chamei-lhe reles cortador de pedra. Como o filho. Thomas calculara mal o grau de protecção que poderia esperar

dos mais velhos. Langholme, atingido por uma cotovelada, recuou algumas jardas, a cambalear, pelo terreiro da liça, e Thomas Blount deu consigo estendido por terra, esmagado sob o peso de Harry. Os dois rolaram pelo solo, rosnando como cães de luta e, antes de Nicholas Stury e mais uns doze homens haverem conseguido deitar-lhes a mão para os separar, Isambard voltara atrás, de olhos faiscantes e sobrolho franzido, como uma nuvem de tempestade.

- Que vem a ser isto? Lançais as mãos ao pescoço um do outro, mal eu viro as costas? Estáveis com menos vontade de lutar, ainda há pouco. Será que os meus terreiros se vão transformar em terrenos de luta para crianças turbulentas? Quem foi que começou, Walter? Como aconteceu isto?

Langholme contou a história com honestidade e à sua voz juntou-se mais meia dúzia de outras, que descreveram o que se passara palavra por palavra.

- Então foi isso que aconteceu - resmungou Isambard. - Acredita em mim, Thomas; há homens que não gostam que digam mal dos pais, embora eu saiba que é bem pouca a estima que sentes pelo teu.

- Ainda que eu possa haver expressado demasiado livremente o que penso, senhor, não era motivo para ele me atacar de surpresa.

- Ele estava a olhar-me nos olhos quando o ataquei, senhor - contrapôs Harry, com desprezo. - Não sei onde está a surpresa.

- Poupai o fôlego, pois ides precisar dele. É mister que este assunto seja resolvido já e de uma vez por todas.

- Com as armas que ele quiser - lançou Harry, em tom insolente.

- Com as armas que eu quiser - corrigiu Isambard, com um olhar flamejante. - E eu quero um combate de mãos nuas. Não quero mortes nem feridas fatais, mas podeis servir-vos dos braços à vontade. Três quedas por terra e o assunto fica resolvido. Afastai-vos - ordenou Isambard aos presentes, com um gesto imperioso da mão. - Recuai e dai-lhes espaço. Coloca-os em posição, Walter.

Não havia apelo para aquela voz e para aquela expressão. Harry despiu a cota alegremente e, sorrindo, dirigiu-se para o seu lugar. Com as mãos a tremer, Thomas despojou-se dos seus brocados e em silêncio, com relutância, encaminhou-se para o seu. Era um ano mais velho do que o adversário e mais pesado, tinha uma altura e um alcance comparáveis, mas não era um lutador. Harry precisou apenas de dois minutos para o derrubar e pregar contra o chão pelos ombros, mesmo aos pés de Isambard.

Ao primeiro assalto, Harry esqueceu a fadiga e a dor. Ao segundo, esqueceu a cólera. Ao terceiro, lançou Thomas por terra quase docemente, como haveria feito num treino com um adversário bastante mais novo.

- Para um reles cortador de pedra, foi muito delicado - observou Isambard, num tom crítico. - Muito bem, Thomas. Tiveste aquilo que merecias. Isto põe termo à vossa querela. O assunto está encerrado.

Thomas ergueu-se lentamente e, também lentamente, coxeou até ao local onde deixara a cota. A dor não era grande e coxear era sobretudo uma forma de se confortar e justificar. Enquanto limpava a poeira do rosto, não olhou para ninguém e manteve os olhos baixos.

Alguns dos seus companheiros - uns movidos por uma fidelidade obstinada, outros por mera compaixão - rodearam-no e esforçaram-se generosamente por lhe fazer esquecer a derrota, debitando alguns lugares-comuns. Contudo, Thomas não disse uma palavra nem olhou para eles. Só ergueu os olhos uma vez: quando Isambard passou por ele sem um olhar e se afastou em direcção ao terreiro interior. Nesse momento, Thomas ergueu a cabeça desgrenhada e os seus olhos azuis lançaram um longo e semivelado olhar rancoroso à silhueta alta. Depois, voltou a fixar os olhos no chão. Contudo, Harry surpreendera aquele olhar, glacial e amargo como o Inverno, sob as compridas pestanas louras. O assunto não estava encerrado. Thomas Blount nunca iria perdoar a ninguém, e muito menos ao senhor de Parfois, a humilhação e a perda do seu estatuto.

 

ISAMBARD ENTROU NA SALA DE DESENHO AO PÔR-DO-SOL, à hora a que

a luz baixa iluminava toda a superfície da mesa de trabalho, ao pé da janela, e fazia brilhar os nós dos dedos das mãos de Harry, enquanto este trabalhava. A própria pedra apresentava uma tonalidade idêntica à da pele tisnada e bem esticada sobre os ossos, que acompanhava o ritmo dos movimentos das articulações. Mãos douradas e pedra dourada formavam um único foco de luz, como que fundidas numa vida única. Aprisionado na pedra, de asas arqueadas e pescoço estendido, um falcão tentava freneticamente escapar àquele cativeiro; as mãos pacientes trabalhavam com delicadeza na sua libertação. Isambard aproximou-se, mas Harry não lhe prestou atenção. A cadência dos golpes leves e ternos do macete sobre o cinzel não sofreu a mais ligeira alteração.

A pedra era um fragmento de um dos últimos blocos que havia restado, após a magnífica e terrível conclusão da igreja de Parfois e a morte estranha e atroz do seu criador. O jovem manuseava-a com amor e respeito, com uma paciência infinita e pouco habitual, porque a pedra endurecera com os anos e trabalhá-la exigia agora todo o seu talento, ainda não plenamente desenvolvido. Harry passou um dedo sobre os contornos da ave e soprou a leve poeira, que voou em mil partículas luminosas.

- Então, estás contente com a tua vitória? - perguntou isambard, junto ao seu ombro.

- Não, senhor.

Harry trocou o cinzel por outro mais fino e começou a trabalhar nas penas da asa do falcão.

- És difícil de contentar. Porque não? Fizeste o que era devido.

- Eu estava em vantagem. O Thomas é demasiado arrogante e acha que a luta não é um desporto digno de um cavalheiro. Mas eu poderia vencê-lo com qualquer arma que houvésseis escolhido.

Isambard riu-se, afastou algumas das ferramentas que se encontravam sobre a mesa e sentou-se.

- O que disseste é verdade, embora não seja prova de modéstia.

- Deveríeis haver-nos dado espadas de torneio. Ele orgulha-se da sua habilidade como esgrimista.

- E, mesmo assim, conseguirias derrotá-lo? É bem possível mas, nesse caso, ele haveria sofrido ainda mais, só para satisfazer a tua vaidade. Onde está a piedade pelo teu inimigo? - perguntou Isambard, sorrindo.

Harry franziu o sobrolho para a sua obra e afastou-se um pouco, para a observar com um olhar mais crítico. Depois, sem erguer a cabeça, disse abruptamente:

- Faríeis bem em ter cautela com ele.

- Ter cautela com ele? Com o Thomas?

- Se, até agora, não era nosso inimigo, passou a sê-lo - respondeu Harry, num tom sério. - Tanto vosso como meu.

- Ora aí está pelo menos uma coisa que temos em comum. Mesmo que seja a única.

Isambard pegara num cinzel fino e brincava distraidamente com ele, testando a ponta com o polegar, enquanto os seus olhos continuavam fixos, avaliadores, no rosto de Harry.

- Vamos ver se te percebo - disse abruptamente. - Tanto quanto sei, chegaste aqui faz dois anos, para vingar a morte do teu pai. E não foi culpa tua não haveres saldado a tua dívida no nosso primeiro encontro. Juro por Deus que fizeste tudo quanto estava ao teu alcance. Ao longo destes dois anos, estiveste à espera de uma nova oportunidade de aproveitares a força que agora já possuis. Será que estou certo? Será que fui realmente eu quem deu a morte a mestre Harry? Será que vieste mesmo procurar-me, de adaga em punho, à sua igreja? Será que senti prazer em te reter aqui, todos estes meses, atormentando-te com falsas esperanças de liberdade? Será que recorri a mil artimanhas para te arrancar o segredo do local do túmulo do teu pai?

Sem largar o martelo, subitamente silencioso, Harry disse:

- Para o desenterrardes. Como o chacal que sois.

Fora bem cruel a artimanha que Isambard usara então contra Harry: fazê-lo crer que, depois de todas as tentativas de persuasão haverem falhado, deixara escapar o segredo durante o sono e, depois, encarregando Thomas (com a sua enganadora cara de anjo e a sua simpatia hipócrita) de lhe prometer a fuga e de o levar para fora de Parfois, pela calada da noite. Na sua ansiedade desesperada, Harry caíra de cabeça na armadilha e, como um pássaro de volta ao ninho, levara-os até ao túmulo sem nome junto aos muros de Strata Marcella. Lembrava-se bem do rosto sorridente de Isambard, iluminado pelo luar, dos seus dedos seguindo os contornos da folha esculpida na pedra, da sua voz satisfeita, ordenando: «Levai-o. Já me disse o que eu queria saber.»

- Ah, bom! Começava a pensar que havias esquecido. Estou a ver que está tudo vivo na tua memória. Como no dia em que aconteceu... quando juraste matar-me por isso. Lembras-te?

- Lembro-me muito bem - respondeu o jovem, em tom sombrio.

Voltando as costas ao seu interlocutor, Harry retomou o trabalho e ouviu claramente a sua voz gritar: «Não há nome suficientemente vil, senhor, para aqueles que, como vós, se vingam até nos mortos.»

- E não mudaste de ideias?

As batidas do macete quebravam o silêncio a intervalos regulares.

- Então porque não me mataste quando a oportunidade se apresentou, como faria qualquer homem sensato?

Por um instante o ritmo abrandou mas depois, obstinadamente, foi retomado. Isambard insistiu:

- Cuidas que Deus me vai atirar aos teus pés, de joelhos, todos os dias? Foi ingratidão recusar a oferta que Ele te fez. Porque estou eu ainda vivo? Diz-me!

- Eu não podia aproveitar-me de um velho - respondeu cruelmente Harry.

- Não vale a pena tentares ofender-me. É muito difícil, quando quero saber alguma coisa. Eu sou velho. Sabes muito bem que podes dizê-lo cem vezes sem que isso faça de ti meu mestre de esgrima. Por enquanto ainda não! Porque estarei ainda aqui, a aborrecer-te? Hei-de descobrir.

- Foi por mero acaso que haveis caído - respondeu Harry, picado. - Não queria tirar-vos a vida nessas condições.

Isambard lançou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada.

- Finalmente, palavras dignas de um Talvace. Nisso, acredito. O teu pai nunca aceitaria favores, fossem de um homem ou de Deus e, nisso, és tão igual a ele como um carvalho é igual a outro. Todavia - prosseguiu Isambard, retomando subitamente um tom grave e seco - essa não é também a verdade toda. Se estivéssemos num campo de batalha, não haverias desferido um golpe contra o teu inimigo por a cilha da sela dele se haver partido?

- Não estávamos num campo de batalha - argumentou Harry.

A contragosto, afastou as mãos da pedra: a luz era já fraca e o tom dourado do pôr-do-sol transformara-se num ocre crepuscular. Poisou as ferramentas com todo o cuidado, como se temesse que um som demasiado agudo pudesse perturbar a superfície tranquila do seu universo quotidiano e despertar os demónios da incerteza. Por trás dele, o silêncio tornou-se mais intenso.

- Achas que não? - perguntou Isambard, em voz baixa. - Onde estamos nós desde o dia em que nos conhecemos, Harry? Quando me olhaste nos olhos e me convidaste para algo que era mais do que um jogo, julgas que eu não sabia que era um duelo até à morte? Deus sabe há quanto tempo esperavas por esse momento. Porque renunciaste a ele, quando se te apresentou?

O crepúsculo mergulhara na sombra o rosto de Isambard, transformando-o numa forma lúgubre sobre o fundo pálido da janela. A imobilidade do seu corpo, o tom abafado e pausado da sua voz indicaram a Harry que ele estava prestes a enunciar aquilo que viera ali dizer.

- Não precisavas de te refrear, por medo das consequências. Já dei as minhas ordens e obriguei de Guichet e Walter a jurar que as fariam respeitar. Se me matares num combate leal, não serás alvo de represálias. Haverás ganho honestamente a tua liberdade.

Com uma expressão determinada, Harry baixou as mangas arregaçadas e começou a arrumar as ferramentas.

- Deveríeis haver-me dito isso antes - comentou, em tom sombrio.

- Amanhã dou-te outra oportunidade.

O momento crucial passara e a voz de Isambard começava a voltar ao habitual tom trocista e corrosivo. Mais um minuto e voltaria a proferir as palavras como sempre, cada uma delas uma chicotada.

- Não queres recuperar a liberdade? A princesa de Aberffraw e David, teu irmão e teu príncipe, já se encontram em casa do bispo, em Shrewsbury. A cavalo, são apenas duas horas de caminho. Só o meu velho corpo se interpõe entre ti e os braços deles.

Harry aprendera a controlar o tremor das mãos e a manter uma expressão impenetrável, qualquer que fosse a provocação. Não seria por estes meios que Isambard lhe arrancaria qualquer reacção, embora sentisse o coração apertado, ao pensar que a princesa Joan e David se encontravam tão perto e ele não podia ir ter com eles ou sequer fazer-lhes chegar uma mensagem de amor e lealdade. Ah, se queria recuperar a liberdade! Durante o dia, conseguia cansar o corpo e controlar o espírito com alguma facilidade mas, de noite, na cama, a angústia do seu desejo de liberdade dilacerava-lhe as entranhas, ao ponto de o levar a morder o braço, para substituir aquela dor por uma outra, mais suportável.

Tinha dezassete anos e estava prisioneiro havia quase dois; a difícil trégua entre a Inglaterra e o País de Gales, a trégua de um ano que impedia Llewelyn de tentar fosse o que fosse para libertar o filho adoptivo, mantinha-se, apesar da longa lista de acusações de ambas as partes e das numerosas violações de território, tudo indicando que viria a ser prolongada por mais um ano. Naquele mesmo momento, os enviados do rei Henrique e do príncipe Llewelyn estavam a descarregar os respectivos animais de carga e a instalar-se em Shrewsbury, onde passariam em revista as suas causas, preparando-se para o encontro marcado para dali a três dias, no castelo de Shrewsbury. Desta vez, tratava-se apenas de chegar a acordo quanto à sessão do tribunal papal que, ainda naquele ano, se pronunciaria sobre as muitas alegações de violação de fronteiras. Mas claro que iam chegar a um entendimento e, no Inverno, quando o tribunal reunisse, também se mostrariam dispostos a concordar: o rei Henrique tinha outras coisas em mente, pelo que precisava que o País de Gales continuasse pacificado; e o príncipe de Aberffraw queria garantir plenamente a sucessão do filho, que não podia pôr em perigo com um acto de guerra prematuro. Sim, a trégua era para continuar e, com ela, o seu cativeiro. Isambard encarregava-se de o manter bem-informado; sabia o pouco que havia a esperar dos homens. Ora, Deus apresentara-lhe a garganta de Isambard, desprotegida, ao alcance da ponta da sua espada e Harry recusara a oferta. Porquê? Saberia ele próprio porquê? Por medo de ser enforcado? Harry forçou-se a rever o momento, a fim de apreender a verdade, mas não lhe parecia que as coisas pudessem haver sido diferentes mesmo se já soubesse o que Isambard acabara de lhe dizer. E Isambard, que não dizia nem fazia nada sem uma finalidade, acenava-lhe agora com algo mais sedutor do que a própria liberdade. Só este velho corpo se interpõe entre ti e os braços deles! Harry procurava perceber que desígnio se ocultaria por trás daquelas palavras. Havia sido tentado a faltar à palavra dada; estaria agora a ser tentado a cometer um assassínio?

- Podereis transmitir-lhes a minha estima e os meus respeitos, quando, amanhã, vos fordes juntar à corte do rei - disse, em voz firme. - Não poderia desejar um mensageiro mais escrupuloso.

- Basta uma palavra e poderás ser tu mesmo a dar-lhes a mensagem - insistiu Isambard. - Se me deres a tua palavra em como voltas comigo, poderás ir a Shrewsbury na minha comitiva.

- Não, senhor. Não vos darei a minha palavra, nem agora nem nunca. Quando a ocasião e os meios de escapar se apresentarem, partirei. Sem nenhuma promessa que me impeça de o fazer.

- Harry, Harry! Quando aprenderás a seguir a direcção do vento? Quantas vezes tentaste já fugir-me?

- Pelas minhas contas, cinco vezes. Mas haverá outras oportunidades.

- E, nessas cinco vezes, foste apanhado antes mesmo de chegares à ravina. Aliás, pelo menos de uma das vezes, foi uma sorte haveres sido puxado para terreno firme, com os ossos todos inteiros. Há quanto tempo já não te é dada uma oportunidade para pensar sequer numa tal aventura? Com dois arqueiros colados aos calcanhares, para onde quer que vás? Desiste, Harry: não é possível fugires de Parfois. Aproveita a possibilidade que te estou a oferecer de saíres a cavalo, pela porta principal.

- Não - respondeu Harry, obstinado.

E enrolou os pergaminhos, onde traçara os seus esboços. Aprendera a não desperdiçar energia a gritar; a recusa era tão absoluta como a morte e igualmente silenciosa.

Isambard suspirou, ostensivamente.

- Como queiras. Não posso dar-te aquilo que não queres aceitar. Mas lembra-te das minhas palavras. Da próxima vez, se conseguires de novo ter-me à tua mercê, depois do susto que me pregaste, desfere o golpe. Em Parfois, ninguém te cortará o pescoço por haveres cortado o meu. Alguns serão até capazes de te agradecer - acrescentou, descendo da bancada e sacudindo o pó de pedra da cota carmesim, com um gesto firme.

Isambard dirigia-se já para a porta quando se ouviu o som cavo e profundo de ferraduras apressadas sobre as tábuas da ponte. A profunda ravina de grés, que separava o rochedo onde se erguia o castelo de Parfois do planalto verdejante onde fora edificada a igreja, absorvia os sons e repercutia-os em ecos cavernosos por entre as paredes rochosas. Mal os cavaleiros chegaram ao empedrado por baixo do arco da porta da fortaleza, o ruído das ferraduras deixou de ser audível; os ecos, semelhantes a um trovão distante, foram esmorecendo e deixaram no ar uma ligeira vibração.

Isambard parara, de ouvido à escuta. Era raro chegarem a Parfois cavaleiros apressados, sobretudo de noite; naquele momento, com a corte a instalar-se solenemente em Shrewsbury, devia tratar-se apenas da visita de um dos senhores das Marcas que se dirigia ao encontro do rei. Harry não se mostrara menos atento do que Isambard: qualquer acontecimento inesperado poderia representar uma esperança.

O resfolegar de cavalos cansados no terreiro exterior, o estalar de arreios de couro, botas a bater sobre as pedras, palavras urgentes trocadas em voz baixa. O ouvido apurado de Isambard reconheceu de imediato a voz familiar.

- Walter! - exclamou, erguendo a cabeça, como um cervo que pressente estranhos.

Não podia ser. Porque haveria Langholme de voltar para trás, depois de haver partido para Shrewsbury ao princípio da tarde, a fim de preparar a casa da cidade sobre o Wyle para a chegada do seu senhor, arejar a roupa de cama e arear as travessas? E se, por qualquer razão desconhecida, houvesse sido forçado a regressar, porque viera a toda a brida e acompanhado por pelo menos um estranho? Isambard ouvira uma voz que não reconhecia como a de um dos seus homens: uma voz áspera e baixa, enrouquecida pela poeira do caminho e por uma enorme fadiga.

Em três passadas alongadas chegou à porta e deu de caras com os recém-chegados. Langholme sabia onde podia encontrar o seu senhor, àquela hora.

- Trago novas urgentes, senhor - anunciou, em voz entrecortada devido à pressa. - Deixei tudo encaminhado em Shrewsbury e voltei a correr para cá com o mensageiro.

O rosto do homem, que se mantivera ao lado de Langholme, estava cinzento de cansaço e os seus olhos eram febris. Isambard olhou bem para ele e reconheceu-o: era um cavaleiro menor da corte do conde de Kent, um homem de confiança. Por várias vezes, fora portador de mensagens entre os três castelos de de Burgh, em Gwent, e este posto avançado sobre o Severn, na fronteira com Gales. Mas, dessas outras vezes, envergara a libré verde e vermelha, as cores da casa do corregedor do reino. Agora, vinha envolto num manto anónimo.

Com os olhos flamejantes, Isambard agarrou no braço do homem e puxou-o para dentro.

- Entrai para aqui! Fecha a porta, Harry.

- Posso retirar-me, senhor? - perguntou Harry, aprestando-se a obedecer à ordem que lhe fora dada.

- Não, fica. Não vale a pena dar já o alarme. Agora falai, homem, e depressa. Sim, podeis falar diante do rapaz: ele conhece todos os meus piores segredos. Que vos trouxe ao Norte, com tamanha pressa? E vestido desse modo?

A ausência da libré falava por si.

- Hoje, senhor, ninguém enverga as cores do conde de Kent, se puder evitá-lo. É mais seguro! Ele caiu em desgraça e perdeu o cargo, senhor. Há seis dias, diante de todo o conselho, o rei desautorizou-o, acusou-o de actos monstruosos, afastou-o de si e retirou-lhe todos os poderes. Foi destituído para toda a vida. Stephen Segrave, que ajudou a derrubá-lo, é agora o corregedor do reino.

Portanto, havia acontecido. Hubert de Burgh, o grande conde, conselheiro do rei, caíra do pedestal, fora destituído e o chão tremia debaixo dos pés de muitos outros. Os seus rivais do Poitou haviam alcançado os seus fins. Peter des Roches, bispo de Winchester, segurara decerto o braço do rei Henrique, dando-lhe coragem para se voltar contra o seu mais fiel servidor. Apesar dos seus defeitos - e este cataclismo não fazia dele um santo nem um mártir - de Burgh fora indiscutivelmente o administrador mais capaz, mais devotado e honesto de Inglaterra, o homem que melhor compreendera aquilo que a Inglaterra era e devia ser. No passado, Isambard perdoara-lhe muita coisa por causa dessa qualidade, da visão que ele tinha de Inglaterra, que ultrapassava os limites do domínio feudal e aspirava a fazer dela uma nação, uma unidade indivisível, protegida por um mar invencível.

O chão sob os seus pés estaria também a estremecer levemente, sobre os alicerces de pedra de Parfois?

- Vim prevenir-vos, senhor - disse o mensageiro, cuspindo a poeira dos pulmões. - Tratai de vos precaverdes, pois todos quantos o apoiaram outrora correm hoje perigo. É preciso cautela!

- Assim farei - garantiu Isambard, e um sorriso de esguelha aflorou-lhe aos lábios, como um relâmpago súbito.

Por instantes, manteve a cabeça inclinada para trás e as sobrancelhas franzidas, a recordar melancolicamente aquela época dourada, que agora desaparecera, como um cometa, num eclipse perpétuo.

- Sentai-vos aqui e contai-me tudo - disse, dirigindo-se ao mensageiro. - Preciso de saber tudo. E tu, Harry, vai buscar vinho para ele.

- Trago-o eu mesmo? - perguntou Harry, inseguro.

- Pensas que quero aqui algum linguarudo como o Thomas, grande insensato? Despacha-te.

Por que motivo, perante palavras tão bruscas, se apressava ele a cumprir a ordem de Isambard? Atravessou o terreiro a correr, com o coração a bater com toda a força, de excitação e espanto, atraído a contragosto pelos assuntos conturbados de Inglaterra, que o seu espírito e a sua educação insistiam em considerar um país estrangeiro, mas para o qual o seu sangue o puxava irresistivelmente, numa aliança involuntária. E, porque se sentia curioso, voltou a correr, com um pouco menos de precipitação, trazendo o vinho e lamentando as palavras que perdera.

Os três homens voltaram a cabeça, quando ele entrou na sala de desenho e, satisfeitos ao verem quem era, retomaram a conversa. Porque haveria o facto de lhe provocar um estremecimento de prazer? Aqueles homens não eram seus amigos nem ele amigo deles. Porque haveria de sentir prazer por merecer a confiança dos seus inimigos? Serviu-lhes o vinho com uma espécie de deleite consciente nos gestos calmos e precisos, que não interromperam o fio da conversa.

-... senhorio por senhorio. Nas últimas semanas, por cada doação feita a des Rivaulx havia outra para o meu senhor. No começo do mês passado, encontraram-se todos no castelo do meu senhor, em Norfolk e, no priorado de Bromholm, o rei prometeu que tanto o meu senhor como os de Poitou conservariam todas as terras e cartas que lhes havia concedido. O compromisso foi selado com um juramento solene perante Deus, que vinculava também os herdeiros do rei.

- Isso é o que ele costuma fazer, quando tenciona renegar o juramento e o homem a quem este o liga - observou Isambard, sombriamente.

- Mas... o juramento foi feito a todos. Como poderia o conde desconfiar? Pensámos que o perigo passara e que a contenda estava resolvida. Mas mesmo que o conde houvesse previsto o que iria acontecer, como poderia impedi-lo? Que poderia fazer a não ser fugir, de mãos vazias? E lady Margaret e a filha? Alguma vez poderia libertá-las das mãos do rei? Ouvi o que se passou depois! Para os fins de Julho, estava marcada uma grande távola redonda e Londres estaria cheia de nobres. Que fez então o rei? Preparou uma ordenança a proibi-la e determinou que todos quantos nela tencionavam participar deviam, em vez disso, preparar-se para o escoltar a Shrewsbury, para o encontro com os Galeses. Foi tudo feito à pressa e emitidos os salvo-condutos para a princesa de Gales e respectiva comitiva, para esvaziar Londres e desviar os olhos de toda a gente dos outros intentos do rei, até tudo estar concluído.

- E não devem ter faltado bispos dispostos a colocar-se ao seu lado, a clamar que os torneios são um pecado e apoiando a ordenança - comentou Isambard, que passeava de um lado para o outro, em longas passadas nervosas. - Isso partiu da cabeça de Winchester, não da cabeça do rei.

- É verdade, senhor. O bispo pronunciou-se contra a távola redonda, antes de o rei haver agido.

- Depois de haver preparado o cenário, não foi assim? Há seis dias, dissestes vós, no conselho... Quem abriu as hostilidades contra o corregedor? Des Roches ou Rivaulx?

- Eu não estive presente, senhor, mas Gilbert Basset esteve e foi ele quem me contou. O bispo de Winchester permaneceu sempre sentado ao lado do rei, mas parece que a tempestade rebentou, num céu aparentemente sem nuvens, e foi o próprio rei quem a desencadeou. Voltou-se para o conde meu senhor, num ataque de raiva, como se estivesse desvairado, como quem acredita deveras naquilo que está a dizer...

- E acredita mesmo - interrompeu Isambard, imobilizado, a meio do seu vaivém frenético, por um súbito e violento ataque de riso. - É esse o seu segredo. Quando quer, o rei consegue entregar-se a uma cólera arrebatada e acreditar nela como se fosse o evangelho. Vi-o fazer isso para satisfazer os seus desígnios, por uma simples jóia que desejava possuir.

- ... e acusou-o de não sei quantos crimes e monstruosidades, exortando aqueles que quisessem confirmar esses crimes e enormidades ou apresentar queixas contra o meu senhor a falar livremente e sem medo. E não faltou quem falasse! Não apenas des Roches e Rivaulx, mas muitos outros. Porque não? O sinal havia sido dado e eles sabiam como agradar ao rei, para subir de escalão nas suas graças... espezinhando o conde. Naquele dia, ele foi uma espécie de degrau para muitos ambiciosos à procura de um cargo. Em seguida, o rei declarou-o solenemente destituído de todas as suas funções e nomeou Segrave para o cargo de corregedor do reino.

- Por Deus, homem! De Burgh não se defendeu?

- O rei não quis ouvi-lo. É certo que ele falou, jurou que era tão leal como qualquer outro ao seu rei e senhor e que nada fizera que fosse contrário ao seu dever e à sua consciência. Mas foi vaiado. Contaram-me que o rei foi quem mais gritou.

- O divino ataque de cólera estava no auge e o rei não receava nada. Des Roches deve haver gasto muita astúcia e persuasão para o levar a decidir-se mas, depois de as velas haverem sido enfunadas pelo vento, o rei é bem capaz de navegar sozinho. Já assisti a isso! E então? Foi mandado para a Torre? Mesmo no auge da exaltação, o rei não ousaria!

- Não, senhor, o conde continua em liberdade mas só Deus sabe por quanto tempo. O rei Henrique baniu-o da sua casa e ordenou-lhe que se mantivesse à sua disposição para responder às acusações. Mas nem assim o deixaram em paz. Passados dois dias, exigiram-lhe que prestasse contas de todas as receitas do reino e de todas as suas possessões oficiais, desde o reinado do defunto rei João. Fizeram da Inglaterra um poço sem fundo e queriam contas rigorosas!

- Havia uma carta de quitação do rei João, que isentava de Burgh de prestar essas contas. Eu sei disso!

- Foi o que o meu senhor argumentou mas o bispo de Winchester voltou a soprar ao ouvido do rei Henrique, dizendo que por morte do rei João essa carta é nula. Assim, elaboraram uma lista de acusações contra ele e convocaram-no para responder por elas, perante o Conselho, em Lambeth, a 14 de Setembro próximo. Depois de haver preparado a ruína do meu amo, o rei arrastou a corte para Shrewsbury, para longe do caminho dos homens do Poitou, até estes acabarem de fechar a armadilha em volta do meu senhor. De que lhe serviria defender-se, quando os seus juizes são aqueles que o acusam?

- Onde está ele agora? Foi-lhe dada liberdade de movimentos?

- Não, senhor. É vigiado dia e noite e não pode deslocar-se. Mas deixaram que se retirasse para o priorado de Merton, perto de Wimbledon, a fim de preparar a sua resposta às acusações e, enquanto lá estiver, está a salvo, pelo menos da violência. Lady Margaret encontra-se em Bury St Edmunds e, graças a Deus, até agora ninguém a incomodou. Espero que não se atrevam a fazer algo contra a irmã do rei dos Escoceses.

- Então, a situação é essa! Des Rivaulx detém o controlo das contas da casa real, com poderes ilimitados, e o tesouro está à mercê dos seus amigos. Se não nos mexermos, este país vai ficar a saque, digo-vos eu. Ainda não há muito tempo, contei o número de comarcas de que ele é xerife e cheguei à conclusão de que são vinte e uma. Vamos ver os grandes cargos de Estado serem atribuídos aos membros do conselho do rei e a pequena nobreza e os burgueses ficarem sem voz e sem direitos. Um dos sustentáculos da casa caiu, ao que parece, e ninguém levantou a mão para o segurar. Ninguém falou em defesa de de Burgh? Não houve um único homem capaz de denunciar essas mentiras?

- Nem um. Chester não estava lá, senão haveria falado alto e bom som. Odeia o conde, mas com um ódio honesto. E odeia ainda mais as conspirações e as injustiças. Dizem que está velho e doente. Não estava lá.

- Quais são afinal as acusações? - perguntou Isambard, parando abruptamente diante do extenuado mensageiro.

Harry observava a cena sustendo a respiração, estupefacto perante a calma, a quase exuberância de Isambard. Decerto só um demónio seria capaz de fazer um repasto da desordem e da aflição e de sorrir diante delas com tamanha serenidade. O choque provocado pelas notícias e o choque por ver a sua Inglaterra empurrada para fora da sua rota já haviam sido aceites e dominados. Fosse o que fosse que decidisse fazer agora para se proteger seria feito, não de forma exaltada e irreflectida mas de forma determinada e precisa. Pontualmente, Harry julgara que o senhor de Parfois amava de facto a Inglaterra. Todavia, naquele momento, reunia as suas forças em defesa própria e, sem escrúpulos, deixava-a à deriva, ao sabor de correntes perigosas.

- Preciso de conhecer todas as acusações para poder agir. Todas as acusações.

O cavaleiro de de Burgh - ninguém pronunciara o seu nome, talvez por esquecimento - ergueu as pálpebras inchadas e levou a mão à cabeça, num esforço para se recordar de todos os pormenores.

- Todos os membros da sua casa são vigiados. Eu parti durante a noite e juntei-me a um dos primeiros grupos que se dirigiam para Shrewsbury, onde havia amigos que me dariam guarida. Assim, pude avisar três ou quatro senhores que, como vós, podem ser acusados, por haverem partilhado a maneira de pensar do meu senhor. As acusações... agora já deve haver mais, porque eles hão andado a bater os arbustos para as fazer saltar como coelhos... acusam-no de haver escrito ao duque da Áustria, quando o rei havia em mente casar com a filha dele, a dissuadi-lo de tal aliança.

- Santo Deus! - exclamou Isambard, rindo entre dentes. - Devem pensar que a memória de todos nós é curta. A ideia do casamento caiu por si e o rei nunca se mostrou muito entusiasmado.

- Também o acusam de haver travado a acção do rei na campanha pela reconquista da Normandia.

- Ah, isso é diferente. Ambos interviemos e ainda bem para o rei que assim foi porque, senão, haveria perdido também o reino de Inglaterra. Prossegui!

- E de seduzir lady Margaret, quando ela estava à sua guarda, no tempo do rei João, por querer casar com ela para que os seus herdeiros fossem reis da Escócia.

- Céus, mesmo que isso fosse verdade, quem se podia queixar era Alexandre e não Henrique! Essa acusação não é credível, como eles muito bem sabem.

- Mas é mais uma a juntar à lista e tudo conta. Também há uma história sobre o meu senhor haver roubado uma pedra preciosa do tesouro real, uma pedra que torna quem a usar invencível e invulnerável às feridas, e havê-la mandado secretamente ao príncipe de Aberffraw.

- Ah, essa é engenhosa... só pode haver sido inventada por um soldado ressabiado. Um golpe de mestre, para arranjar uma desculpa para as proezas de Llewelyn e mais uma flecha contra Hubert.

- Há quem acredite nessa história, senhor. E também vão acreditar que o conde de Kent escreveu ao príncipe Llewelyn, perdoando a execução de William de Breos, depois de este haver sido apanhado com a princesa Joan.

À menção daquele acontecimento, distante no tempo e semi-cicatrizado na sua memória mas ainda doloroso ao mínimo toque, Harry estremeceu e corou. A reacção foi tão inesperada que receou que Isambard houvesse reparado nela. Mas este limitou-se a dizer, num tom sonhador:

- Não duvido que ele haja reconhecido o direito do príncipe de fazer justiça. Não conheço ninguém que lho haja negado. Mas acho muito estranho alguém haver reconhecido esse direito por escrito. É tudo?

- Há mais uma coisa, senhor: a acusação mais perigosa e mais difícil de refutar. Foi o bispo de Winchester quem primeiro a lançou. Segundo ele, o conde andou estes anos todos a cuidar do aconchego do seu próprio ninho, apropriando-se indevidamente do tesouro do reino.

- Qual dos que até agora lá esteve não o fez? - perguntou Isambard, com um trejeito irónico. - Não nego essa possibilidade, mesmo no caso de Hubert. Ninguém ignora o seu apetite por castelos. Mas, no conjunto, penso que roubou menos do que a maior parte e deu mais em troca. Pelo menos isso - acrescentou - não pode ser usado contra mim. Nunca lidei com fundos do tesouro, nem detive qualquer cargo que pudesse dar azo a pilhagens. Agora, já sei tudo. Pensar que não houve ninguém que erguesse a voz para o defender!

- Tudo aconteceu demasiado depressa e houve muitos que seguiram a corrente. Também houve muitos que aproveitaram para vingar velhos rancores, sem pensar que correm o risco de vir a alimentar ressentimentos ainda mais graves contra os de Poitou. Espero que alguns pensem melhor, com a cabeça mais fria, e venham a manifestar as suas dúvidas.

- Que o Céu vos oiça - replicou Isambard. -Agradeço-vos por me haverdes avisado, meu amigo. Amanhã, poderia dirigir-me para Shrewsbury sem fazer ideia do que me espera e ser apanhado desprevenido. - Voltando-se para Langholme, que observava ansiosamente a expressão sombria do seu senhor, acrescentou: - Cuidai de que ele seja bem tratado e bem alojado, Walter. E vós, meu amigo, podeis ficar ou partir, conforme desejardes, e escolher um cavalo nas minhas cavalariças. Estou em dívida para convosco. Quanto à ida a Shrewsbury, Walter, mudei de planos.

- Não ides, senhor? - perguntou Langholme, cheio de esperança.

- Vou sim, Walter. Com uma escolta dobrada e um esplendor três vezes maior. Mas, primeiro, tratai de alojar o nosso hóspede. Ele precisa de dormir. Depois, vinde ter comigo e veremos que providências é necessário tomar.

Langholme e o mensageiro saíram e o silêncio abateu-se sobre os dois que ficaram na sala de desenho. De súbito, ambos se aperceberam de que anoitecera enquanto as suas mentes se encontravam ocupadas em outras coisas. A noite ocultava os contornos da bancada, das mesas de desenho e dos blocos de pedra.

- Que ides fazer, senhor? - perguntou Harry, dividido entre a reserva e a curiosidade.

- Que vou fazer, Harry? Vou a Shrewsbury, servido como um príncipe, para servir o meu rei, como é meu dever. - Vinda do escuro, a voz ponderada acrescentou: - E hei-de falar com o rei. Quer ele queira quer não, Harry, quer ele queira quer não.

 

Antes da ceia, o rei Henrique concedeu audiências, nos grandes aposentos de hóspedes da abadia de Shrewsbury, sentado numa cadeira dourada, colocada sobre um estrado ornamentado com brocados e veludos dourados e vermelhos, contra um fundo de tapeçarias, descarregadas menos de duas horas antes da sua imponente bagagem. Estava de bom humor e desusadamente elegante, mesmo para uma pessoa como ele: usava jóias nas orelhas e nos dedos compridos e delicados. Depois de haverem aflorado com os lábios leais o seu anel de rubis, os nobres das Marcas rodeavam cautelosamente as saias das vestes sumptuosas do rei. No ar pairava ainda o eco de uma certa queda aparatosa e, sentindo no ambiente a poeira que esta levantara, os senhores sustinham a respiração. O rei dava-se conta da tensão e do temor que neles suscitava e o facto provocava-lhe uma saborosa excitação. Conseguira, era uma realidade e não apenas um desejo pungente, um anseio por satisfazer; eles eram a prova disso. Havia dado o primeiro passo, o mais difícil; o segundo e o terceiro seriam fáceis. Quem iria agora ousar tentar detê-lo?

Tinha vinte e cinco anos e estava livre de qualquer tutela. A embriaguez do poder espalhava-se-lhe pelo sangue como vinho e Henrique sentia-se invadido por um ódio triunfante contra todos aqueles velhos, com a sua experiência e segurança, com a sua determinação férrea em dificultar e contrariar todas as suas acções pessoais. Homens velhos, cansados, cautelosos, lentos na acção mas decididos a dar-lhe conselhos, a provocá-lo, a cercá-lo de proibições e avisos. Pensou no momento em que se libertara das correntes e o seu coração encheu-se de uma alegria colérica, ao recordar o espanto atarantado, deprimente e ridículo nos olhos envelhecidos do corregedor do reino. De Burgh não queria acreditar que o seu mundo estava desfeito, que o seu passarinho havia saído do ninho, que o seu tempo havia acabado. Uma época longa, áurea, que finalmente terminava num ribombar de trovão.

Graças a Deus, pensava o rei para consigo, saboreando a alegria da liberdade, e ao meu santo patrono, que vela por mim e pôs na minha boca as palavras da justiça. Bendito sejas, santo Eduardo, meu bom Confessor. Este ano, no vosso dia, haverá mais novos cavaleiros do que alguma vez houve e, na minha capela, os religiosos cantarão o «Christus vincit». Ficai a meu lado mais um pouco e mostrai-me como confundir os meus inimigos. Soprai o vento da cólera de Deus nos rostos daqueles que se erguem contra mim e afastai-os do meu caminho, arrastai-os para a destruição, como o conde de Kent. Para a ruína!

Agora, pensava o rei, exultante, a minha casa ficará em ordem e nela serei eu o único senhor. Eu, e não de Burgh, com a sua gaiola sufocante de leis, costumes e direitos, nem estes velhos, enclausurados nos seus privilégios feudais, nem os meus turbulentos barões das Marcas. Eu como chefe e os oficiais da minha casa como instrumentos da ordem estável que nos rodeará. Oh, meu bom santo Eduardo, ficai comigo e eu mostrar-lhes-ei o que é a realeza.

Por instantes, o rei cerrou os olhos, abandonando-se ao êxtase daquela prece, cego à multidão colorida que enchia a sala de audiência. Quando voltou a abri-los, ainda a sorrir de prazer devido aos seus pensamentos, deparou com um rosto semelhante a uma máscara de morte, belo e assustador, que, como um pesadelo, avançava para ele, sorrindo, entre as fileiras de clérigos e cortesãos.

Em silêncio, Henrique invocou o seu indefectível patrono e o esplendor que se encaminhava na sua direcção e reavivava terríveis recordações esbateu-se um pouco à evocação do santo, materializando-se em seguida num pelote de cerimónia, reluzente de fios de ouro, sobre uma cota castanho dourada, envergados por um corpo humano real e não por uma imagem sonhada. Um corpo alto e magro, direito como um salgueiro, encimado por uma cabeça formidável que esboçava um sorriso frio, ao inclinar-se sobre a sua mão. Henrique estendera a mão num gesto de terror, mas transformou-o rapidamente num gesto majestoso e estendeu os dedos cobertos de jóias para receber o beijo do senhor de Parfois.

Um velho. Mais um velho. Não era fácil escapar-lhes: apareciam-lhe para onde quer que se virasse. Ralf Isambard, senhor de Mormesnil, Erington, Fleace e Parfois e de uns cinquenta outros senhorios e castelos espalhados por toda a Inglaterra. Que pretenderia ele com todo aquele aparato? Com que direito se apresentava com aquele passo arrogante e soberbo, com a morte a espreitar pelos seus olhos pretos, profundos, preocupados, insaciáveis e com um brilho vermelho? A testa alta, outrora lisa, deixava agora entrever o brilho polido do crânio sob a pele, as maçãs do rosto salientes, sobressaíam nas faces descarnadas, e o queixo de aço, barbeado à velha maneira normanda, destacava-se sob a pele tisnada. A cabeça da morte. Quem haveria contudo de pensar que a ossatura austera podia ser tão bela?

- Bem-vindo à nossa corte, lorde Isambard - cumprimentou o rei.

Os seus dedos encolheram-se ao contacto daqueles lábios secos, que mal lhe afloraram os anéis, como se houvessem sentido a sua repulsa e a aceitassem com indiferença. Com raiva, lembrou-se de que aquele era mais um dos velhos cujos conselhos aceitara demasiado docilmente durante muitos anos. Em todos os assuntos relacionados com as Marcas do País de Gales, a palavra de Isambard havia tido o valor de um acto régio. Ainda no último ano, defendera que a tutela dos domínios de de Breos fosse retirada a Richard da Cornualha e entregue a Hubert de Burgh. A recordação do facto deixou Henrique tenso: estava predisposto a detectar traição em todos os velhos. Todos, excepto talvez o bispo de Winchester, que o ajudara a libertar-se por fim das cadeias que os velhos lhe impunham.

- Estou sempre à disposição e ao serviço de Vossa Majestade - disse Isambard.

Dizendo isto, voltou a erguer-se, afastando-se da mão sensível e irresoluta, e observou o rosto pálido e gracioso do rei, um pouco melancólico quando em repouso, um pouco petulante quando falava. A barba castanha e curta fora cuidadosamente encaracolada como sempre, a cabeleira farta meticulosamente penteada e perfumada. Henrique era de estatura mediana e magro mas era forçoso admitir que podia passar por rei.

Era uma pena, contudo, que aquela pálpebra descaída conferisse uma expressão manhosa e vulgar a uma criatura de expressão tão transparente. Um jovem frívolo e tagarela, que passava da fúria ardente à frieza de gelo, incapaz de meios-termos, que tão depressa nos encostava a cabeça ao ombro como nos espetava a adaga nas costas. Não obstante, pairava ainda em volta dele uma espécie de inocência, como uma roupagem infantil já usada, que não ficava bem num homem adulto, mas desarmava traiçoeiramente quem se sentisse tentado a tratá-lo como um homem e a exigir dele uma atitude de homem.

- Espero que a viagem de Vossa Majestade haja sido agradável - disse Isambard, com afabilidade.

Os seus olhos, emboscados no fundo das órbitas cavadas como lobos momentaneamente pacíficos, passearam-se devagarinho pelos rostos dos cortesãos, detendo-se com mais vagar nos rostos daqueles que se encontravam mais perto do rei.

- E em boa companhia - acrescentou, em voz melosa. Deviam ter deixado des Rilvaux em Londres para vigiar de

perto a caçada em curso e impedir que a caça se escapasse do terreno. E Winchester era demasiado hábil para andar sempre atrás do rei. Mas Brian de Lisle estava presente, a fim de o representar e contribuir com o seu peso e a sua autoridade de velho vassalo fiel do rei João, entre os novos rostos jovens e ambiciosos. De Craucombe, intendente da casa real, adejava perto da cadeira de Henrique, Passelewe mantinha-se logo atrás, numa posição mais discreta: o escrivão do rei par excellence, a nova eminência parda dos assuntos do reino, ainda sem terras mas ansioso por as possuir, sem os pergaminhos de um bom nascimento mas já a rodear-se dos meios que assegurariam um título aos seus descendentes.

Os antigos baronatos estavam a ser desmembrados de mansinho, em proveito de homens como aquele. Se os barões não se erguessem para defender os seus direitos, o Grande Conselho da Terra seria deixado a apodrecer, inofensivamente, e ficaria à margem da corrente do governo, enquanto o caudal era desviado para fazer girar os moinhos desta clique que rodeava o rei, e todas as fontes de receitas do rei convergiam para as mãos deles. Des Ril-vaux já era o responsável pelo Tesouro e, também, pela bolsa comum da casa real e quem tinha essa bolsa tinha o poder. As coisas haviam sido muito bem feitas: nem um gesto contra de Burgh até tudo estar preparado e o rei pronto a agir e levado ao transe necessário para passar à acção.

Também ali se encontravam homens honestos, pares e contemporâneos de Isambard. E eram bastantes. O senhor de Parfois voltou-se para saudar três ou quatro conhecidos, virou-se de novo, varrendo a sala com o olhar, e fixou mais uma vez os olhos no rei.

- Mas onde está o conde de Kent? - perguntou, elevando a voz de modo a fazer-se ouvir mesmo no recanto mais distante da grande sala. - Não vi ninguém no terreiro com as suas cores.

O silêncio caiu como uma pedra, glacial e esmagador. As cabeças voltaram-se quase furtivamente e a vistosa assembleia susteve a respiração.

O rosto do rei empalideceu, de apreensão, de choque e de um assomo incipiente de raiva defensiva. Agarrou-se nervosamente aos braços da cadeira, olhou de lado para de Lisle, à espera de uma deixa, e forçou-se a fitar Isambard, furioso, consciente da necessidade desesperada de, por uma vez, se apoiar apenas em si próprio.

- Não posso acreditar que ignoreis os acontecimentos relacionados com o conde de Kent - respondeu.

- Chegaram-me aos ouvidos certos rumores, mas não lhes prestei atenção. A menos que oiça da boca de Vossa Majestade que haveis tratado desse modo o vosso mais devotado servidor, repugna-me acreditar no que ouvi. Não seria a primeira vez que o meu rei era caluniado por rumores. Deveria eu apressar-me a concluir que Vossa Majestade é injusto e ingrato, presa fácil para os ambiciosos que invejam a posição que o conde alcançou?

No rosto demasiado eloquente do rei, o rubor da mortificação substituiu a palidez da consternação. Henrique sentiu o vermelho da vergonha tingir-lhe as faces e, não podendo permitir-se ou admitir sentir vergonha, empenhou-se, a todo o custo, em transformá-la no rubro da cólera.

- Em boa verdade, fui vítima dos ambiciosos - respondeu, em voz fina e aguda. - E durante demasiado tempo. Mas isso acabou, apercebi-me do meu engano. O conde de Kent não foi vítima de nenhum erro nosso. Recebeu aquilo que merecia e nada mais. O que merecia, disse eu? Na verdade, beneficiou até de clemência: ainda está em liberdade e foi-lhe dado tempo para responder àqueles que o acusam.

- É então isso que Vossa Majestade há para me dizer? Devo pois admitir que é verdade aquilo que me contaram? Que o corregedor do reino foi destituído do cargo e acusado de não sei que traições?

- Assim é, lorde Isambard, e com toda a justiça. Com toda a justiça!

- E foi privado das honras que Vossa Majestade recentemente lhe concedera? Despojado dos castelos e feudos reais que com tanta generosidade lhe havíeis atribuído? Também isso é verdade? E do cargo vitalício que lhe atribuístes, há tão pouco tempo, sob juramento?

Isambard viu o rosto do rei empalidecer e, por um instante, perguntou a si mesmo se o medo supersticioso poderia criar raízes naquele solo fértil de autopersuasão. Por um instante, suavizou a dureza da sua voz, para lhe dar tempo a germinar.

- Sou vosso vassalo, Majestade, um vassalo tão leal como qualquer outro nesta terra, longe de mim querer ofender-vos. Mas, para o bem da vossa alma, não permitais a vós mesmo cometer ofensa. Estais a ser levado a cometer erros que o tempo voltará contra vós. Pensai melhor e desfazei o que foi feito, enquanto ainda é tempo.

Contudo, Isambard interpretara com demasiada generosidade aquilo que, afinal, era apenas o começo de uma terrível fúria. A palidez extrema, de brancura igual à de uma chama pura, varreu totalmente a cor do rosto do rei e até dos olhos, que ficaram cinzentos e vidrados. É melhor assim, pensou Isambard, entregando-se a uma satisfação perversa. Sou demasiado velho para mudar e não seria capaz de engolir tudo isto, se não estivesse no fio da navalha, à espera de cair.

- Estais a defendê-lo? -perguntou o rei, em voz entrecortada. - Um celerado que, durante tantos anos, roubou o nosso tesouro em proveito próprio? Que se atravessou no nosso caminho, quando queríamos reconquistar a nossa província da Normandia? Que serviu melhor o rei de França do que a mim? O conde de Kent vai responder por tudo isto. Pensar melhor, eu? Poderei pensar melhor na clemência que mostrei para com ele e exigir o pagamento total da sua dívida, e não apenas de metade. Ele fez coisas muito piores do que pilhar as minhas rendas. Prejudicou a minha reputação e o meu espírito, conseguindo ascendente sobre mim por meio de bruxarias. Bebi com ele, confiei nele... Duvidais de mim? Vereis confirmadas todas as acusações, vereis como todas serão provadas.

Ora ali estava o pretexto e a justificação da sua longa tolerância. Já que era preciso alguém para carregar o fardo da inconstância e da fraqueza do rei, mais valia fazer recair o seu peso sobre os ombros de um só homem. Bruxaria! Aquele homem simples e realista, que se fizera à sua própria custa, aquele coleccionador de castelos, aquele administrador incansável, devotado, ávido, generoso! Haveria mais acusações? Tudo indicava que haviam andado muito ocupados a desenterrar coisas que pudessem ser lançadas contra ele.

- Um assassino discreto, que usou veneno. Achais bem? Envenenou o velho William de Salisbúria e, também, Pembroke... e o nosso bom arcebispo...

O quê? Grant também? Em Itália? Eram voos cada vez mais descontrolados da imaginação e Henrique estava a lançar-se deliberadamente num frenesim do qual poderiam resultar imagens ainda mais fantásticas. De pé diante dele, Isambard observava sem emoção os tremores e sobressaltos daquele corpo jovem, que apenas as mãos crispadas sobre os braços da cadeira pareciam conter. O seu patrono, pensou Isambard, tinha as visões calmamente, com a simplicidade de uma criança. Este solta os demónios para as irem buscar contra a sua própria vontade.

- ... para já não falar da horrível impiedade que cometeu contra a Santa Igreja, na pessoa daqueles padres italianos, a quem nós quisemos conceder benefícios no nosso país. Porque foi ele, está provado, quem incitou William Wither, aquele blasfemo do York-shire, a cometer tais actos de violência. Foi ele quem, com tanta severidade e dureza, reprimiu os tumultos na nossa cidade de Londres e matou injustifícadamente, quando poderia haver mostrado piedade...

- E posto em perigo o vosso reino - replicou Isambard, secamente. - Em meu entender, Majestade, haveis motivos para vos sentirdes contente por de Burgh haver mostrado coragem para agir como agiu. Aliás, no que se refere a esse assunto, sempre soubestes de tudo quanto pode ser invocado contra ele. É um pouco tarde para o acusar.

- Nunca é tarde demais para fazer justiça. O braço da lei deve ser, e será, suficientemente longo para atravessar os tempos. Tratarei de que lhe sejam aplicadas as penas correspondentes aos seus crimes. Outros há, e repito, outros há, lorde Isambard, que fariam melhor em ver onde põem os pés e em ter tento na língua.

Os gentis-homens do séquito haviam-se aproximado ligeiramente de ambos, em silêncio, e observavam o rosto do rei como quem observa o espelho da própria conduta. Isambard fitou-os calmamente, sem pressas, e leu neles uma reserva que de Burgh não avaliara com o devido cuidado. A antipatia não era motivo suficiente para justificar aquelas bocas firmemente fechadas, para que delas não saísse uma palavra de defesa. O que emudecia nelas a compaixão era o facto de de Burgh ser um estranho. De Burgh não era, nem nunca fora, um deles. As terras daqueles homens pertenciam-lhes por direito e eles usavam-nas como quem usa uma peça de roupa. A nobreza do seu nascimento era inquestionável. O conde de Kent chegara ao meio deles sem terras, mas cheio de ambições, ascendendo à fortaleza até então inviolada daqueles homens, ansioso, peremptório, zeloso do protocolo. Era o primeiro e mais solitário dos homens novos. Sendo um deles, mas mais poderoso do que qualquer deles, nunca fora aceite. A nobreza nunca o invejara ou reconhecera, tampouco lhe estenderia a mão, agora que caíra em desgraça. De Burgh não lhes importava. E a mim?, pensou Isambard, admirado por se ver confrontado com a fortaleza inexpugnável do seu nascimento e do seu sangue. Será que me importa, santo Deus?

- Agradeço, Majestade, as vossas palavras de advertência, pois como tal as entendi. Todavia, permitis-me mais uma palavra? Há algo que gostaria de dizer a favor do conde de Kent, antes que tomeis a decisão final.

Isambard não esperou pela permissão do rei: mais valia considerar como concedido aquilo que podia ser negado. E, desta vez, não se dirigiu apenas ao rei. Ainda não chegara a meio da sua declaração e já Henrique saltara da cadeira, com o rosto tão violentamente congestionado que Isambard lançou um olhar frio e avaliador à guarda da espada de cerimónia e à mão elegante que dela se aproximava. Ranulf de Chester não se encontrava ali para, se necessário, proteger Isambard da espada de Henrique como, um dia, protegera o seu inimigo, de Burgh. A explosão de raiva por a armada com a qual Henrique pretendia invadir a Normandia - a mais cara das suas ambições - não se encontrar preparada apresentava-se, agora, como um vislumbre profético de um ódio profundo e formidável e não uma explosão infantil, como então se pensara.

Quem sabe?, pensou Isambard. Talvez eu ainda venha a morrer às mãos de um rei. Num gesto desdenhoso, afastou as pregas douradas do seu pelote, a fim de mostrar que não trazia à cintura nem sequer uma adaga ornamental.

- ... e peço-vos, Majestade, que penseis no que isto poderá parecer àqueles que, na Europa, têm os olhos postos em vós e no que poderão dizer de vós nos círculos reais. Julgais que podereis fazê-los acreditar que o conde de Kent vos foi desleal, quando conhecem as suas obras tão bem como vós e as compreendem melhor? Digo-vos que o conde de Kent vos garantiu o lugar, quando mais ninguém podia fazê-lo, e vos dedicou muitas vezes a própria vida. Deus é testemunha de que, se serviu a sua causa, serviu também a vossa e vos instalou solidamente no trono. Deveríeis agradecer-lhe por isso e lembrar-vos dele nas vossas orações. Ele é um homem e, portanto, falível. Mas creio que, de todos os homens, vós sois quem menos direito há de se queixar, pois ele não se poupou a esforços ao vosso serviço. Ponderai naquilo que os outros irão pensar. Estais a expor-vos a que digam que o rei de Inglaterra é ingrato e desumano, por tratar assim os seus amigos. A menos que digam - acrescentou Isambard, erguendo a voz para se fazer ouvir sobre o grito que viu formar-se na garganta do rei - mais caridosamente, que nem sequer sois capaz de perceber quem são os vossos amigos.

A mão do rei tremeu e crispou-se sobre a guarda da espada. O seu pé calçado de veludo bateu, impotente, no estrado oco e a voz que lhe saiu da garganta era rouca e distorcida pela fúria.

- Aconselhei-vos a não avivar demasiado bem a minha memória, lorde Isambard - disse o rei, sorvendo uma lufada de ar. - Também vós... também vós... estáveis na Normandia, quando fui impedido de fazer qualquer tentativa para recuperar um reino perdido. Eu imobilizado no campo e os meus homens a desperdiçar a coragem e a acção no jogo... que desonra! Lembro-me muito bem! Vós e de Burgh éreis unha com carne. Sempre fostes um dos homens dele. Acautelai-vos ou podereis vir a pagar o mesmo preço por isso.

- Desde a morte do vosso pai, Majestade, que não sou o homem de ninguém, a não ser de mim mesmo - replicou Isambard, em voz alta e clara. - Agi como considerei ser melhor, para vós e para Inglaterra, e se o meu julgamento coincidiu muitas vezes com o do conde de Kent, porque vos espantais por eu recordar agora os seus bons serviços? Ainda bem que fomos à Normandia para vos impedir de praticar um acto que haveria impelido o rei de França para o campo de batalha. Sem isso, poderíeis haver perdido lá o vosso reino de Inglaterra e provavelmente a própria vida. Cuidámos de que a vossa loucura não custasse mais do que o necessário. Sede grato por isso!

Foi então que se ouviu o grito: um grito feroz, inarticulado. De rosto contorcido num esgar, o rei deu um salto em frente e Passelewe, por trás da cadeira real, inclinou-se, pegou-lhe no braço e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Várias vozes ergueram-se num murmúrio agitado e alguns fidalgos mais velhos aproximaram-se do trono mas, com um gesto colérico da mão, o rei mandou-os afastar. Impávido, Isambard observava a cena com o habitual sorriso oblíquo.

- Lorde Isambard...

Henrique continuava a tremer, mas recuperara o controlo da voz. Sabia sempre até onde ir e quando parar os seus acessos de cólera.

- Acusais-vos a vós mesmo de traição, lorde Isambard, e não evidenciais o mínimo de vergonha. Estou a mostrar para convosco uma clemência que não pude mostrar para com o conde de Kent. Aceitai-a reconhecidamente e cuidai de não voltar a pôr à prova a minha tolerância, pois não voltarei a reter o braço da minha justiça. Não tolerarei possíveis traidores junto de mim - acrescentou, numa voz mais alta, aguda como a de uma mulher ferida. - Estais dispensado, lorde Isambard. Regressai ao vosso castelo de Parfois e deixai-vos lá estar, até eu vos chamar à minha presença. Pode ser que vos mande chamar, quando voltar a Shrewsbury para o tribunal papal. Até lá, reflecti nas palavras que me dirigistes e prezai o facto de ainda vos encontrardes em liberdade. Ide! - gritou Henrique, num transporte de raiva exaltada, como um homem invulnerável no mais sólido dos seus castelos. - Saí da minha vista! Voltai ao vosso ermitério!

- Como vos aprouver, Majestade!

Isambard fez uma vénia profunda e recuou até ao meio da sala, sem desviar os olhos. Os que o fitavam viram o sorriso oblíquo transformar-se num trejeito entre o desdém e o puro divertimento. As faces morenas não coraram; as maçãs do rosto salientes e as sombras abaixo delas pareciam talhadas em pedra. Quando se virou e se dirigiu para a porta, com movimentos deliberados, por entre as fileiras de fidalgos que se afastaram para o deixar passar, as saias do seu pelote esplendoroso ondularam à sua volta, num fulgor de bordados dourados. O senhor de Parfois não olhou para trás. Os seus cavaleiros, que o haviam aguardado sem uma palavra e sem um gesto, alinharam atrás dele e seguiram-no. No terreiro, os palafreneiros da sua escolta acorreram para os servir e os jovens escudeiros seguraram-lhes nos estribos, montando a seguir. Era uma escolta disciplinada, orgulhosa, esplendidamente equipada: uma escolta digna de um príncipe. Parecia a partida de um exército.

O rei ouviu-os afastarem-se e foi percorrido por um arrepio de ódio. Como ousavam? Como ousavam retirar-se, depois da sua repreensão, com a segurança e a disciplina de conquistadores? Como ousava aquele homem, aquele memento mori enfatuado, afastar todas as honras que os uniam com um gesto da sua mão ossuda, e deixar para trás o seu senhor, tão atormentado e denegrido?

Isambard montava descontraidamente, com as rédeas frouxas na mão, o sorriso ainda colado aos lábios. Estavam já fora da vista de Shrewsbury, cavalgando a passo pela berma coberta de erva da estrada romana, quando, de súbito, lançou a cabeça grisalha para trás e soltou uma gargalhada. Tudo aquilo por de Burgh!

- Pelas chagas de Cristo! - exclamou Isambard, erguendo os olhos para o céu crepuscular, suspenso sobre a sua cabeça como uma teia de aranha prateada. - Dir-se-ia que eu gostava daquele homem!

 

Parfois, Shrewsbury: Dezembro de 1232

Nesse ano, a neve apareceu cedo mas algo relutante, cobrindo as colinas próximas do Severn com um manto tão fino que deixava transparecer a erva adormecida, de um verde pálido e gelado. De pé sobre o terraço de chumbo da Torre do Rei, Harry, embrulhado na capa de feltro para se proteger do vento cortante, olhava para o vale longínquo, lá em baixo, do amontoado de telhados de Pool, a montante, até às paredes cinzentas de Strata Marcella, a jusante. O seu reduzido mundo não ia mais longe; a neve ensombrava a paisagem, parecia afastar dele as colinas e tudo quanto conseguia ver do País de Gales era a margem, brilhante e gelada, e a primeira linha escura das árvores, no início da encosta. Os braços menos profundos do rio estavam gelados e reflectiam um brilho fosco, sob a luz mortiça; só a corrente principal, ladeada de gelo, corria ainda, sombriamente, em direcção a Breidden, rolando as águas acastanhadas e escuras ao longo do sopé da Long Mountain, muito abaixo das torres de vigia de Parfois.

Harry olhou longamente para a margem galesa, que lhe parecia a paisagem de um sonho, sempre fora do seu alcance. Ao abrigo das paredes cinzentas daquela abadia, Harry abraçara a campa inviolada do pai, denunciando-a, e permitira assim, sem se dar conta, que esta fosse violada. Que haveria Isambard feito daqueles infelizes ossos sem descanso? Havê-los-ia despedaçado e atirado outra vez ao Severn, para consumar a sua vingança abortada? Harry atravessara o rio por aquele vau, perceptível sob a água castanha revolta, para cavalgar atrás do seu príncipe e do seu irmão adoptivo, quando Isambard alargara a comprida rédea da tentação e o libertara, para ir cumprir o seu dever na guerra do ano anterior. Regressara pelo mesmo vau, conforme prometera, quando a guerra acabara e a sua liberdade ficara de novo comprometida. Agora, na quietude gelada do Inverno, a terra desejada ficava cada vez mais longe, escondida pelas nuvens plúmbeas, e Harry quase não conseguia acreditar que alguma vez pudesse voltar a percorrer aquelas colinas, no Verão. Estavam separados por uma simples faixa de rio mas ele não podia atravessá-la. As aves que, à noite, regressavam dos campos galeses, onde se alimentavam, aos seus pousos nocturnos, nas terras mais quentes de Parfois, faziam a viagem sem dificuldade. Harry via-as ir e voltar e invejava as suas asas; lá bem no fundo, o nó doloroso, incessante, da saudade, ficava um pouco mais apertado.

Sem asas, não havia forma de descer daquele ninho, nem sequer até Inglaterra, nem mesmo até à clareira invisível lá em baixo, no meio dos bosques, onde Aelis continuava à espera de notícias dele, que nunca mais chegavam.

Devia muito a Aelis e ao pai. Quando fugira de Aber e viera rondar em torno de Parfois, procurando vingança, haviam-no recebido e alojado sem fazer perguntas, julgando-o fugido à Justiça ou a algum amo severo. Muitos fugitivos haviam já passado pelas suas mãos e não receavam os fora-da-lei. Aelis ajudara-o em tudo: dera-lhe de comer, remendara-lhe a roupa, mostrara-lhe os carreiros que subiam pelas escarpas por baixo do castelo. Quando soube que fora feito prisioneiro mandara uma mensagem para Castell Coch, para que a notícia chegasse a Llewelyn, em Aber. E enquanto fora tempo, enquanto estivera com ela, Harry nem sequer havia sido muito gentil para com ela! Agora, daquele ninho empoleirado lá no alto revia-se a si próprio, lá em baixo, infinitamente pequeno, ingrato e indigno. Mesmo quando fora liberto para poder tomar parte na guerra e dormira, naquela última noite, sob o tecto do pai dela, tratara-a como uma criança e contara-lhe apenas meia verdade, guardando a outra meia para o regresso. Mas o orgulho, a consciência ou o que quer que o impulsionava, haviam-lhe pregado uma partida no último momento e Aelis ficara sem receber conforto.

Ela nem sequer sabia, nem sequer suspeitava que ele estivesse tão perto! Julgava-o livre e certamente esquecido dela. Talvez já houvesse deixado de gostar dele, talvez já nem pensasse nele. O coração de Harry revoltou-se, furioso com a ideia, lutando contra a dor, mas o medo continuava a dominá-lo e não conseguia deixar de o sentir. Acaso merecia melhor sorte?

- Então, Harry, continuas a querer deixar-me? - perguntou Isambard, com uma suavidade compungida, por detrás dele.

Quando queria, Isambard movia-se com mais suavidade do que um gato; mas já não conseguia assustar Harry. Aquele jogo cruel fora jogado demasiadas vezes. Era aquela a sua posição favorita: debruçado sobre o seu prisioneiro, sussurrando-lhe ao ouvido como um demónio tentador.

- Será melhor adiares esse voo até o tempo se mostrar mais clemente. Não gostaria de ser obrigado a retirar-te do gelo do Severn.

- Porque não? - replicou Harry. - Atirastes o meu pai lá para dentro, porque não faríeis o mesmo comigo?

- Ainda não acabei contigo, Harry. Continuas a agradar-me. Por enquanto!

E devia ser verdade, porque poderia facilmente havê-lo morto naquele dia de Verão, em vez de o forçar simplesmente a largar a espada.

- Não deverias antes estar a olhar para Inglaterra? - perguntou Isambard, apoiando os cotovelos envoltos no manto sobre a pedra gasta pelo tempo, ao lado de Harry. - O príncipe David e sua mãe estão novamente em Shrewsbury. Daqui a dois dias a comissão papal reúne-se em Saínt Mary. Não gostavas de lá estar para ver?

- E vós, senhor? O rei Henrique está no priorado de Wenlock, segundo ouvi dizer. Não querereis vestir a vossa túnica de ouro e ir prestar-lhe homenagem?

- Boa resposta, Harry! - disse Isambard, numa gargalhada. - Não deixas ninguém sem resposta! Estou tão perto de voltar a cair nas boas graças do meu rei como tu de seres devolvido ao teu príncipe. Todavia, duvido que sofras mais do que eu com este afastamento.

- Até agora, senhor, até agora...

Harry lançou um olhar curioso por cima do ombro, observando o perfil aquilino que fitava tranquilamente o vale do rio, sem conseguir descortinar um estremecimento de pena ou de mal-estar naquelas linhas severas e delicadas. Seria verdade que não se importava? Que não sentia vergonha nem medo por haver caído em desgraça?

Parfois tremera sobre as suas fundações de rocha, quando Isambard regressara de Shrewsbury, a meio da noite, no seu esplendor de proscrito. Harry lembrava-se bem das correrias e dos sussurros, das especulações ansiosas, das tochas flamejantes. De Langholme, pálido e reduzido ao silêncio, ajudando o seu senhor a deitar-se. De como, no meio de tamanha agitação, Isambard, eficiente e calmo, parecendo não se dar conta da tempestade que semeara, se levantara, qual ídolo pagão dourado, retirara os anéis dos dedos com um bocejo e chamara à ordem com aspereza o primeiro criado desatento, para demonstrar que nada mudara. A sua mão continuara a ser tão pesada como antes, embora não mais. Ninguém pagou pela sua desgraça, nem ninguém se aproveitou dela: Isambard cuidou de que tal não acontecesse.

E, pouco a pouco, à medida que os dias foram diminuindo o espanto que os submergira, a história da audiência com o rei tornara-se conhecida, quando os cavaleiros que haviam escoltado Isambard abriram os seus corações perturbados aos que não haviam estado presentes. Determinada e deliberadamente, instigara a sua perda - por orgulho, por ira, pela sua cruzada de vingança contra a vida, que o levava a caminhar sempre à beira do abismo, desafiando a morte a levá-lo consigo. Ou talvez o houvesse feito a frio, com o intuito de assustar o rei Henrique - dizia-se que este se assustava com facilidade perante homens autoritários - e de o obrigar a mudar de atitude, abrandando a pressão sobre o conde de Kent.

Se assim fora, haveria Isambard errado o alvo tanto como parecia? Vendo bem, de Burgh estava em muito má situação: acossado, espoliado, sem conseguir obter refúgio, empurrado de um lado para o outro, roubado, feito prisioneiro e, por fim, fechado e guardado à vista, numa reclusão austera, em Devizes. Seria isto falhar? Ou, pelo contrário, seria um feito de Burgh estar ainda vivo? Dizia-se que, em tempos, as hordas de Londres haviam sido lançadas contra ele por ordem do rei e que apenas o velho Ranulf de Chester se opusera e obrigara Henrique a chamar a matilha. Cinco semanas depois, o velho Ranulf morria; contava-se que, no meio do seu infortúnio, de Burgh chorara e rezara com fervor pela alma do seu antigo inimigo. E se Isambard houvesse desempenhado o mesmo papel antes e se houvesse esquivado a uma morte mais discreta?

- Não deposites demasiadas esperanças na minha queda, Harry - aconselhou Isambard, com um sorriso irónico por cima do ombro esguio. - Não duvido que o rei gostasse de me atacar mas o mais que se atreve a fazer já está feito e, como vês, foi bastante pouco. Não sou nenhum de Burgh, para me deixar derrubar como uma árvore. Não possuo senhorios dados por ele, que me possa tirar de cada vez que é tomado por um ataque de mau génio. Não sou guardião de nenhum castelo real nem nunca cobicei nenhum. Ele não me pode desapossar de um furlong (1) de terra que seja. A minha linhagem é mais antiga do que a dele e tudo quanto possuo é meu por herança. Nunca exerci nem me candidatei a nenhum cargo, nem administrei os impostos do rei ou os dinheiros do reino, que é a principal arma que eles detêm contra o infeliz e amargurado Hubert. Eu sou inatacável. A única coisa de que o rei me pode privar é da sua presença e passo tão facilmente sem ela como ele ma nega.

- E quanto à vossa vida? - argumentou Harry.

- É muito mais provável tu vires a ser a causa da minha morte, Harry, do que o rei Henrique.

 

1 Presentemente, corresponde a cerca de 201 metros. A palavra arcaica furlang (furrow-long) significava «o comprimento de um sulco cavado num campo». (N. da T.)

 

- Confortais-me, senhor. Meditai nessa promessa e tomai cuidado convosco.

Harry hesitou por instantes, envolvendo-se mais nas pregas do tecido de lã, sem deixar transparecer se o fizera para se proteger do vento gelado ou para ocultar o rosto. A biqueira do seu sapato começou a bater, irrequieta, contra as pedras do meríao em que se apoiava.

- Há quem já ande a lamber os beiços - explodiu.

- Porque me coloquei em fase de eclipse temporário? Não duvido. Julgas que já houve alguém cuja queda em desgraça não haja dado conforto e prazer a outrem? Sou tão odiado como a maioria e muito mais do que alguns. Para mim, isso não é novidade.

Harry teria, de boa vontade, parado por ali, mas a sua língua tinha mais coisas para dizer. A muito custo, acabou por articular:

- Há pessoas, que vos são próximas, que andam muito pensativas desde o vosso regresso de Shrewsbury. A fidelidade de alguns membros da vossa casa não é lá muito segura. Mal estejam certos de que a vossa época acabou, sairão ao encontro dos novos senhores.

Sorridente, Isambard levantou os olhos da contemplação do rio cinzento de aço.

- Os novos senhores - repetiu, apreciando a frase.

O tom da sua voz, suave e absorto, mostrava claramente que havia entendido. Os que mais protestavam, indignados, a sua devoção, já haviam começado a lançar olhares especulativos, pelo canto do olho, à estrela em ascensão dos novos homens de des Rivaulx, esses competentes escreventes e funcionários da casa que haviam entrado em funções com o seu senhor. Um dos mais próximos, dizia-se, era William Isambard, o filho mais novo do velho, cujas roupas de criança haviam sido arranjadas para Harry, quando este ficara prisioneiro em Parfois. Havia muito tempo que Wiíliam esperava pela sua herança, mas o velho não dava mostras de querer morrer tão cedo, nem sequer de ficar senil. Na verdade, ainda nem tomara consciência de que envelhecera. O desagrado do rei podia ser útil: podia, inclusive, ser alimentado com novas achas, se começasse a esmorecer.

Será que Isambard nunca pensara nisso? Era impossível dizer: o seu controlo sobre o próprio rosto era tão absoluto que ninguém era capaz de lhe ler os pensamentos, a menos que ele quisesse deixá-los transparecer - e ele gostava de confundir e espantar as pessoas. Harry gostaria de ter ficado calado. Porque havia de o avisar? Que lhe importava que Isambard fosse traído?

- Quem são essas serpentes que acolho no meu seio, Harry? - perguntou a voz suave, persuasiva. - Diz-me os nomes e verás que, como qualquer outro homem, sou capaz de ser grato quando me dão razões para tal.

- Não! - exclamou Harry, afastando-se bruscamente do olhar demasiado perscrutador daqueles olhos sem ilusões. - Não sou vosso espião!

- Nem mesmo a troco da tua liberdade, meu rapaz? Diz os nomes deles e poderás meter a chave na fechadura e sair em liberdade. A princesa receber-te-á de braços abertos ainda esta noite, em Shrewsbury, e voltarás para casa a cavalo, ao lado de David. Que mais posso oferecer-te?

Oh, como eram doces, insuportavelmente doces, aquela voz e aquela promessa! E o olhar acariciador dos olhos profundos, tão próximos, sorrindo-lhe tão tentadoramente, tão ternamente. Graças a Deus, já lhe conhecia as manhas, já se dominava, sem sequer ficar abalado.

- Perdeis o vosso tempo, senhor. Sabeis que de mim não arrancareis qualquer nome.

Noutras alturas, Harry teria ficado furioso e insultado Isambard, como se atirasse pedras a um inimigo ameaçador. Subitamente, tomou consciência disto e sentiu-se orgulhoso por haver amadurecido. Havia pelo menos uma coisa que devia a Isambard: depois dele, seria inútil que outros, menos experientes, o tentassem.

- Recusas, Harry? Então ouve lá e verás se erro por muito. Isambard começou a nomeá-los, um por um, com perfeita

exactidão, até chegar a Thomas Blount, que não passou de uma simples adenda, uma nota trivial, já no fim.

- E de Guichet, evidentemente - disse, sem amargura.

Ao ver que o jovem, que até aí se mantivera impenetrável, se virava, de boca aberta, ao ouvir o nome do senescal de Parfois, Isambard riu-se.

- Não estava na tua lista? Então faltou-te o chefe. Levantou-se da pedra fria, espreguiçou-se e acrescentou:

- Já estou velho demais para aprender a ser cauteloso, Harry. É preciso jogar as cartas à medida que vão aparecendo na mesa. Nunca te convenças de que me iludo acerca do amor que os meus homens me devotam. Há muito que vivo com eles e conheço-os bastante bem.

- Vejo que não necessitais da minha ajuda - disse o jovem, magoado. - Nem em relação ao vosso senhor, nem aos vossos servos.

- O meu senhor? Ah, o rei Henrique! Para ser franco, Harry, embora eu seja seu vassalo, quer ele o creia ou não, Henrique não é senhor de ninguém, nem sequer de si mesmo. O pai, sim, era um homem, apesar de ser como era e de todos os seus defeitos. Este é um poço de ódios e preconceitos. Até usa as poucas virtudes que possui, a piedade e a caridade, como contrapartidas para regatear com Deus.

Harry virou a cabeça rapidamente, alarmado, à procura dos seus dois guardas, que deviam estar encostados nalgum recanto bem abrigado, ao cimo das escadas.

- Senhor, não faleis tão alto!

- Estão demasiado longe para ouvir, Harry. Porque haveriam de seguir-te até este lugar ventoso? Sabem que não vais saltar para a morte: tu és um partidário da vida.

- Ninguém dirá o mesmo de vós, senhor. Pensai bem. Não vos havereis já exposto o suficiente? - Harry reprimiu o espanto, ao notar a irritação ilógica que sentia. - Não deveríeis falar assim do rei em frente de ninguém.

- Nunca o faço - replicou Isambard, sorrindo, enquanto lhe pegava no braço e o voltava para o poço escuro das escadas, onde os arqueiros aguardavam. - Só na presença dos meus inimigos, Harry - acrescentou baixinho, ao ouvido deste. - Um homem está sempre a salvo junto dos seus inimigos honestos. Achas que não te conheço? Nunca me entregarias à justiça do rei, tal como nunca me pouparás à tua.

A magnífica assembleia reunida na igreja de Saint Mary, no sexto dia de Dezembro, dispersou quase ao cair da noite e todo o povo de Shrewsbury se acotovelou no adro para a ver partir.

Primeiro foram os legados do Papa, senhores graves e reverendos, embuçados até aos olhos nos mantos e capas, pois o seu sangue italiano suportava mal o frio e a humidade daquele clima inóspito. Os seus criados, de libré, eram mais vistosos do que os legados e desfilaram numa procissão pomposa, se se desse desconto aos seus passos cautelosos e incertos sobre as pedras geladas do adro. Seguiu-se o rei e o seu séquito: na rua apinhada, ecoaram os nomes ilustres, à medida que os cavalos iam passando. Ralf Neville, bispo de Chichester e chanceler de Inglaterra; Segrave, o novo corregedor do reino; de Lacy, conde de Lincoln e alcaide de Chester, desde a morte do velho Ranulf. O nobre alto, de rosto franco e sorriso austero era Richard, conde marechal, o novo conde de Pembroke, que havia mais de um ano acedera inesperadamente ao título. Era o segundo de cinco irmãos saudáveis e nunca pensara herdá-lo, mas o irmão mais velho morrera sem filhos e Richard, instalado havia muito nos seus domínios franceses, fora chamado a casa à pressa, para preencher o lugar. Ainda que fosse mais estrangeiro do que inglês, já corriam rumores na corte de que ele não morria de amores pelos oficiais do rei Henrique originários do Poitou e também acerca do seu respeito, muito inglês, pela ordem e pelos costumes do reino, que aqueles oficiais prometiam desmembrar.

Composta por barões, condes e funcionários, bispos e prelados, senhores de pendão e caldeira e simples cavaleiros, a nobre cavalgada desfilou até ao Wyle, rodeando o jovem rei Henrique, em toda a sua glória e dignidade - aspectos que este nunca descurava.

Shrewsbury não recebera muitas personagens ilustres desde os tempos do rei João, a quem, em troca de dinheiro e lealdade, a cidade extorquira tantos e tão úteis forais e privilégios. Os negócios floresciam na senda da Coroa; os burgueses do burgo gritavam aclamações com grande contentamento, batendo com os pés frios no solo gelado e remexido, assoprando fanfarras de vapor prateado para o ar cintilante. Mesmo quando foi a vez de os Galeses desfilarem, as gentes da assistência não fizeram ares irritados e esticaram os pescoços com a mesma curiosidade. Os Galeses haviam muitas vezes semeado o terror nas fronteiras e, desde que havia memória, já uma vez haviam saqueado e ocupado a cidade de Frankwell. Mas faria sentido olhá-los como inimigos, quando quase todas as famílias do burgo tinham parentes na margem ocidental do Severn? As fronteiras eram reconhecidas e zelosamente guardadas pelos reis mas a gente comum não podia fazer os seus negócios quotidianos sem as atravessar livremente, deixando com imparcialidade as suas pegadas dos dois lados e, uma vez por outra, descendentes acidentais.

Os Galeses vinham a pé, pois da residência citadina do abade, onde estavam alojados, até à capela real de Saint Mary era apenas uma curta caminhada. A princesa de Aberffraw, senhora de Snowdon, mulher de Llewelyn e filha do rei João, saiu do pátio de braço dado com o filho, afastando-se da sombra da torre atarracada de grés, e aproximou-se do portão alumiado pelos archotes, onde se deteve por momentos para apanhar a sua saia comprida e enrolá-la sobre o braço. Era uma mulher alta e grave, de movimentos enérgicos e rosto calmo. Caminhava com segurança, sem sorrir, imperturbável, e a sua expressão não permitia calcular se regressava para junto do marido, em Aber, com uma vitória ou uma derrota. Durante toda a sua vida, estivera exposta à luz dos archotes e aos olhares perscrutadores, sabendo moderar o seu próprio olhar naquele mundo de homens de Estado e príncipes, por amor de Llewelyn; sabia como refrear e proteger a razão e o coração. Todavia, pouco mais de um ano antes, como toda a gente sabia em Inglaterra e em Gales, estivera detida na prisão do marido por infidelidade e o seu amante, de Breos, fora enforcado nos pauis de Aber - um preço demasiado elevado para qualquer mulher, mesmo uma princesa.

Esticaram o pescoço para a ver passar e consideraram que não merecia tanto risco: tinha os cabelos grisalhos, sob a coroa de ouro, as faces pálidas e uns olhos tristes. Não voltaria a ter quarenta anos. E de Breos tão jovem, tão galante! Que haveria ele visto nela que eles não viam?

Joan suportou o fardo daqueles olhares, sem sentir a angústia que experimentara da primeira vez que voltara a enfrentar as luzes. Quando se ocupava dos assuntos de Llewelyn, passava a ser Lle-welyn: a sua voz assumia a autoridade da voz dele, escolhia as palavras que ele teria escolhido e até os gestos reproduziam o ardor e a magnificência dos gestos largos e generosos do príncipe. Não havendo razões para este mostrar timidez ou vergonha, ela não podia perder a compostura. Levantara-se diante dos legados, nos degraus da capela, e falara por mais de uma hora, em termos corajosos e ponderados, especificando, sem se alterar, as muitas violações das fronteiras, as repetidas quebras das condições da trégua, de que Llewelyn acusava os seus vizinhos ingleses. Voltara a sentar-se com a mesma expressão impassível para ouvir as contra-acusações e fora a primeira a insistir em concessões e novas demonstrações de boa-vontade de ambos os lados, oferecendo compensações sempre que estas fossem julgadas devidas pelo País de Gales, e reclamando-as com cortesia sempre que devidas pela Inglaterra. Algum dos homens presentes haveria feito melhor? Llewelyn estava presente no coração e no espírito de Joan, como uma águia das montanhas de Snowdon que, do seu ninho no espírito da princesa, olhasse através dos olhos dela.

David, seu filho e herdeiro confirmado de Llewelyn, caminhava à sua direita. Era alto e delgado como a mãe e tinha o mesmo ar grave, quase triste, mas também um sorriso súbito e radioso, raro e breve, que herdara do pai. A esquerda de Joan seguia um homem mais velho, que devia ser Ednyfed Fychan, homem de confiança e confidente de Llewelyn desde havia muitos anos. E o jovem robusto e moreno que vinha logo atrás deles, diziam os mais conhecedores de entre a multidão, era o irmão adoptivo do príncipe David, Owen ap Ivor ap Madoc, ele próprio um nobre senhor dos feudos de Arfon e Ardudwy.

Avançaram sobre as pedras geladas da rua com os guardas de honra à sua frente, a abrir caminho: chegaram e passaram, seguidos pelo seu séquito de nobres das tribos selvagens, morenos e possantes. Na curva do Wyle, a multidão de espectadores agitou-se numa convulsão da qual irrompeu uma figura delgada, envolta numa capa, que se atravessou no caminho. Um dos guardas estendeu a vara para a impedir de passar mas ela, rápida como um esquilo, rodeou-o e agarrou-se ao braço de Owen ap Ivor antes que alguém conseguisse interpor-se.

- Esperai, senhor! Senhor Owen!

Este olhou para baixo, sobressaltado, e viu um rosto oval e alegre, rosado devido ao frio e emoldurado pelo capuz castanho. Uns olhos azuis, orlados por longas pestanas infantis, fitavam-no com uma expressão implorativa.

- Senhor Owen, não vos lembrais de mim? Sou a Aelis!

O guarda agarrara-a por um braço e havê-la-ia afastado com um empurrão, se Owen não a segurasse pelo pulso e afastasse o homem, com uma mão tranquilizadora.

- Deixai-a, é inofensiva. Deixai-a falar.

Aquela agitação momentânea chegou aos ouvidos de Joan, que se voltou para ver o que se passava.

- O que é? Se essa criança nos quer pedir alguma coisa, que esta não lhe seja negada.

O dia correra bem para o País de Gales, era dever deles dar esmola a quem a pedisse. Voltou atrás, na sua passada comprida e impetuosa, e olhou com atenção para a cara da rapariga. Muito jovem, não mais de dezasseis anos, um corpo delgado, embrulhado e informe dentro da capa áspera que todos os camponeses usavam. Agora parecia assustada e tentava recuar, mas Owen segurou-a, passando-lhe um braço pelos ombros com receio de que ela se escapasse das suas mãos e desaparecesse na multidão.

- Senhora, é esta a jovem de quem vos falei, que uma vez nos mandou notícias de uma pessoa que perdemos.

Era hábito de Owen não referir nomes. Mas alguém teria ouvido falar de Harry Talvace, naquele burgo fronteiriço tão confiante?

- Posso convidá-la a vir a nossa casa? - perguntou, muito depressa, ao ver a chama de compreensão que iluminara o rosto de Joan.

- Sim, com certeza. Acompanha-nos até aos nossos alojamentos, minha filha, e obterás o que pedires, seja lá o que for.

A criaturinha era tão arisca como uma corça selvagem e have-la rugido se Owen não continuasse a segurá-la. Joan voltou-se e continuou o seu caminho em passo apressado, para os deixar sozinhos. A rapariga conhecia Owen e confiaria nele: se o seu anseio fosse suficientemente forte quereria concretizá-lo. Aquele rosto impetuoso e inocente comovera Joan: ardente de paixão e tão desesperadamente jovem... Ela acabaria por vir! Mesmo que Owen a soltasse, mesmo que se atemorizasse e se escondesse, como um veado na floresta, ainda assim viria ter com eles.

- Segue-nos até casa - disse rapidamente Owen, falando para a massa de cabelos cor de trigo que se escapava, em madeixas suaves, do capuz grosseiro. - Espero por ti no pátio, vai lá ter comigo.

Os grandes olhos da rapariga lançaram-lhe um olhar arisco e desconfiado, mas a boca esboçou um assentimento mudo. Em seguida afastou-se bruscamente dele e perdeu-se na turba. Quando olhou para trás, em direcção ao portão da casa abacial, Owen viu-a deslizar silenciosamente ao longo da parede, seguindo-os, discreta, rápida e tímida como uma gata da cidade, a caçar ao cair da noite. Quando entraram no pátio, Aelis vinha logo atrás dos pajens mais jovens e o seu passo era tão leve que ninguém a ouviu, ninguém a interpelou. O portão fechou-se atrás dela, o que a fez virar-se: parecia capaz de abrir caminho às unhadas se pudesse, num ataque de pânico, mas era demasiado tarde.

Owen correu para ela e agarrou-a pelos ombros, segurando-a com força ao sentir que ela queria soltar-se.

- Porquê, Aelis? Isto é uma tolice. Conheces-me, chamaste por mim. Vem comigo, diz-nos o que tens a dizer. Que fiz eu para te meter medo?

- Não sabia - disse ela, atabalhoadamente. - Nunca pensei que fôsseis um parente da senhora. Só queria dar-vos uma palavra a sós, nunca pretendi uma coisa destas.

Sob as suas mãos, Owen sentiu o corpo dela distender-se e acalmar-se, e a rapariga não opôs resistência quando começou a conduzi-la em direcção à casa.

- Tens medo da princesa? Não precisas ter medo: mesmo que não fosse a bondade em pessoa ela tem para contigo uma dívida de gratidão, como todos nós.

- Não tenho medo - replicou Aelis, indignada. Empurrou-o com decisão e caminhou à sua frente até ao salão.

Os archotes, já acesos nas cavidades das paredes, assobiavam e emanavam um cheiro a resina. Na lareira, os troncos a arder lançavam reflexos de luz e sombras coleantes sobre os lambrins acastanhados e sobre a princesa, enquanto esta despia o manto e aproximava os pés frios das brasas. Havia duas ou três camareiras em volta dela, a desatacar-lhe os sapatos e a dar-lhe o vestido de trazer por casa, mas, quando ouviu a lingueta da porta e viu a rapariga atemorizada, curiosa e envergonhada no umbral da porta, Joan mandou-as parar com um erguer da mão e dispensou-as.

- Senhora - anunciou Owen, mal a porta se fechou atrás das saias roçagantes - esta é Aelis, filha do Robert, que, no ano passado, quando o Harry desapareceu, nos mandou notícias a dizer que ele fora feito prisioneiro e levado para Parfois. Ela e o pai cuidaram dele durante algumas semanas, sem saber quem ele era, e foram muito bons para Harry. Se não fosse Aelis, não haveríamos sabido tão depressa o que lhe acontecera.

Aelis fez uma vénia e desviou os olhos, lançando olhadelas rápidas, sob as pestanas louras, primeiro em direcção a Joan e depois ao jovem príncipe, que saíra das sombras e estava de pé atrás da cadeira da mãe. Ambos estavam ricamente vestidos, ainda que com cores escuras: usavam jóias, veludos e brocados, pois vinham de uma cerimónia de Estado, na qual o fausto era uma arma temível na panóplia de cada facção. Aelis receava que Owen a houvesse feito parecer uma mendiga que vinha pedir a recompensa, e que a senhora tirasse do dedo um dos seus anéis para lhe pagar os serviços prestados. Não que Aelis não gostasse de pegar naquela pedra vermelha brilhante e de a enfiar no dedo mas nunca como quitação da parte de Harry Talvace que lhe pertencia.

Mas Joan disse apenas:

- Parece que contraímos uma profunda dívida para contigo, Aelis. E julgo que talvez consigamos pagá-la de algum modo, pois vinhas pedir-nos algo. Faz o teu pedido e, se estiver ao nosso alcance, ser-te-á dado o que pretendes.

- Eu só queria perguntar ao Senhor Owen se me podia dar notícias do Harry - respondeu Aelis, afastando para trás dos ombros as pregas da capa cor de ferrugem.

Notícias de Harry por notícias de Harry: era uma troca justa e digna.

- Quando ele saiu de Parfois - acrescentou a rapariga, agora com mais ardor e ansiedade - esteve na nossa casa, passou lá a noite e prometeu voltar quando pudesse. Desde então, nunca mais recebi notícias dele. Vim a Shrewsbury, pensando que ele pudesse vir no séquito de Vossa Senhoria e que conseguisse ao menos vê-lo, para ter a certeza de que está bem. Talvez mesmo falar com ele - continuou, corando de repente, irritada por haver mostrado o seu desejo e a sua saudade diante de todos. - Nem Harry me deve nada e nem eu quero pedir-lhe nada, só queria saber se está bem. Mas como não o vi e o senhor Owen passou tão perto, atrevi-me a chamá-lo só para pedir notícias.

Aelis viu a forma como se entreolhavam e interrogou-se sobre o que seria aquela sombra que passava nos olhos de todos deles. Reteve a respiração, com medo de que só houvesse más notícias: num ano e meio muita coisa podia acontecer! E ela sem saber se Harry estava vivo ou morto...

- E nessa altura não soubeste de nada? - perguntou Owen. - Ele esteve contigo e não te disse nada?

Joan viu o rosto jovem ficar gelado de aflição e os grandes olhos, mais azuis do que miosótis, dilatarem-se e escurecerem com um terror que ela compreendia muito bem. Podemos dominar o medo por nós próprios, pois chega um momento em que este deixa de fazer sentido, mas o medo por alguém a quem queremos mais do que a nós mesmos não tem cura - por mais corajoso que seja o espírito, por mais nobre que seja a alma.

- Harry está vivo - disse Joan, procurando palavras de conforto que fossem abrangentes e imediatas - e, se Deus quiser, de boa saúde. Se ainda não cumpriu a sua promessa é porque ainda não chegou o tempo, não porque tenha quebrado o juramento. Nunca o vi faltar à sua palavra, minha filha, e não creio que venha a fazê-lo.

Viu as faces da rapariga voltarem a ganhar cores e a luz sorridente da felicidade despontar-lhe nos olhos, aliviados, e receou o que ia continuar a dizer; mas fora ela quem começara a falar e não podia deixar que fosse Owen a dar as más notícias.

- Harry devia haver-te dito a verdade quanto à sua liberdade - prosseguiu. - Era apenas liberdade condicional, até ao fim da guerra. Ele prometera regressar ao cativeiro, logo que esta acabasse. Dera a sua palavra e manteve-a.

Aelis levantou a cabeça, olhando-a fixamente com uns grandes olhos que não conseguiam decidir-se entre a gratidão e o desgosto. A capa escorregou-lhe dos ombros sem que se apercebesse e ali ficou ela, de pé, delgada e imóvel, com o seu vestido de burel acinzentado, os cabelos despenteados pelo capuz pesado, a escaparem-se das tranças. As madeixas lisas tinham um brilho de ouro escuro, revestindo-a de um esplendor muito próprio.

- Voltou para Parfois! - disse Aelis, num murmúrio amargo, deixando escapar um profundo suspiro.

- Já há mais de um ano.

- Devia ter vindo ter comigo no regresso - acrescentou a rapariga debilmente, com desgosto. - Devia ter confiado em mim.

- Decerto que confia em ti, minha filha. Também não veio visitar-nos a Aber antes de regressar. No momento em que foi libertado e foi a correr ter contigo, julgo que lhe parecia dispor de todo o tempo do mundo. Só quando chegou o momento de cumprir com a sua palavra é que o Harry se deve haver dado conta de quão pesadas eram as condições a que se obrigara. Havia prometido voltar para o cativeiro assim que a paz fosse firmada. E manteve a sua promessa à letra, escrupulosamente. Ainda que tu estivesses apenas uma milha fora do seu percurso, o seu orgulho era demasiado e estava demasiado ferido para lhe permitir desviar-se e ir ter contigo. É assim que os homens nos tratam - disse Joan, com um sorriso oblíquo. - Se estivermos dispostas a viver com eles, é preciso aceitá-los como são.

A rapariga ficou silenciosa, estremecendo ligeiramente, inconsciente da eloquência dos seus olhos. De novo em Parfois, lamentavam-se, de novo prisioneiro - e eu que não ganhei nada ao fim deste ano de espera. Tão perto - e não senti nada... tão desgraçado - e cheguei a amaldiçoá-lo... Mas não se esqueceu, exultavam os olhos, se não veio foi porque não pôde.

- Senhora, que podemos fazer? - perguntou, implorativamente.

- Muito pouco, para além de esperar e ter esperança.

Aos dezasseis anos, não há nada mais difícil, aos dezasseis anos o tempo é tão pouco...

- Volta para Parfois - aconselhou Joan, com doçura - e vigia o melhor que puderes tudo o que por lá se passar. Se acontecer alguma coisa estranha, alguma coisa de que devêssemos ser informados, manda um recado ao castelão de Castell Coch, como já uma vez fizeste, e ele chegará até nós. É preciso que acredites que o Harry não faltou à promessa que te fez: há-de cumpri-la quando lhe for possível.

Joan observou a face radiosa, a boca vulnerável, os olhos cintilantes da rapariga, uma beleza ainda por despertar, e doeu-lhe o coração por causa da tirania do tempo - ela, que já deixara para trás a juventude, dispunha de todo o tempo, de sobra mesmo. Não, pensou, Harry não esqueceu!

- Esse sítio, essa tua courela ao pé do Severn, fica muito longe daqui. Como vieste até aqui?

- Vim a pé - respondeu Aelis, sorrindo.

De que outro modo julgavam eles que as pessoas pobres se deslocavam?

- Sozinha? - perguntou Owen. - Ou o teu pai também está aqui na cidade?

- Como poderíamos vir os dois e deixar a vaca e as galinhas? Não, vim sozinha. Não tenho medo - disse Aelis. - Os salteadores não dão atenção a pessoas como eu, não trago comigo nada que eles possam cobiçar.

- Mas não podes regressar sozinha. Owen, diz ao Madoc que prepare um cavalo e manda dois homens de confiança acompanhar Aelis a casa. E tu, David, pede à Margaret que lhe dê de cear antes da partida.

Os dois saíram obedientemente para cumprir estas incumbências e as duas mulheres, a sós na sala confortável, aquecida pela lareira e iluminada pelas tochas, olharam longa e discretamente uma para a outra, e permaneceram em silêncio durante algum tempo.

- Ama-lo assim tanto? - perguntou Joan por fim, de forma súbita e brusca, quebrando o silêncio.

- De Harry só quero o que ele me quiser dar de sua livre vontade - respondeu Aelis, com altivez.

- Acredito que sim. Mas não foi isso que te perguntei, Semiescondidos pelo cabelo louro escuro, os olhos azuis ergueram-se, desafiadores, para Joan.

- Sim, amo-o - respondeu Aelis.

Os legados partiram, a ilustre assembleia de nobres, bispos e príncipes começou a dispersar: a época áurea do Inverno de Shrewsbury terminara. Partiram com cordialidade e em boa ordem. O rei já aprovara e ratificara o acordo estabelecido pelo tribunal; afirmara insistentemente o desejo de paz de ambas as partes e criara uma comissão de arbitragem para dirimir todas as questões que pudessem surgir entre elas. Os dois lados haviam-se comprometido a aceitar as decisões desta comissão e concordado com os nomes propostos. Os legados haviam entregue solenemente os seus poderes a esta nova instância e partido para Londres, abençoando a continuação da paz.

Se não tivesse o espírito ocupado com outros assuntos, haveria Henrique sido tão maleável? Neste momento, o País de Gales estava praticamente invisível aos seus olhos: só via o que ele próprio e esta nova ordem das coisas podiam fazer por Inglaterra. Nunca reservara espaço para mais do que uma paixão de cada vez.

Assim, havendo tirado partido das preocupações do rei, e dado graças a Deus por tal, a representação galesa deixou a residência citadina do abade e tomou a estrada de Inverno para Aber.

Nesse dia, Harry estivera a trabalhar na sua bancada até tarde, recusando-se a sair dali para ir jantar, mesmo depois de já não haver luz suficiente. O salão devia estar cheio, as tochas proporcionariam uma luz demasiado reveladora e ele não queria aparecer ainda. Mesmo que conseguisse disfarçar o seu sofrimento aos olhos dos outros, não conseguia deixar de sofrer.

Haviam estado tão perto de si... mas era como se um mundo os separasse. Harry ficou sentado à bancada, enrolado sobre si mesmo, às escuras, acariciando desesperadamente o trabalho inacabado para preencher o espírito e ganhar coragem mas sem conseguir deixar de ver a princesa diante dos olhos. Agora, voltava a vê-la como a vira pela última vez, sentada na cadeira de Llewelyn, debruçada sobre as ordenanças de Llewelyn, tão diferente e tão quieta depois daquele ano perdido, grisalha e envelhecida, carecida de todas as pessoas que a amavam. Naquele momento, estava a afastar-se dele milha a milha, cavalgando ao lado de David e Owen, desmontando para passar a noite - talvez em Valle Crucis - e partindo de manhã para uma nova jornada, arrastando com ela as cordas retesadas do coração de Harry. Voltavam para casa, para junto da sua mãe, do príncipe que fora como um pai para ele, de Adam - que, com tanto amor e paciência, preenchera o lugar de mestre Harry desde que o filho deste viera ao mundo. E Harry era obrigado a ficar ali, a espernear, com o coração despedaçado, numa situação sem fim à vista, sem quaisquer sinais de que um dia pudesse ter fim. A paz era sagrada e a herança de David não podia ser posta em perigo. Para ali estava ele, Harry, o preço desta paz... Subitamente, rompeu em lágrimas de frustração, de desespero e solidão, mas logo esfregou a cara com a manga áspera, furioso, para apagar rapidamente aquela vergonha. Tinha de passar aqueles momentos na escuridão mesmo que ficasse sem jantar. Ainda não se sentia capaz de enfrentar os outros.

Então, enquanto Harry continuava agachado no meio das ferramentas, a acariciar a pedra inacabada em busca de algum conforto, soou um ribombar distante de cascos a atravessar a ponte, na esplanada da igreja, que o fez levantar a cabeça em alerta e lhe paralisou o sentimento de tristeza, captando imediatamente a sua atenção. Aquela hora, além dos guardas, não devia haver muita gente lá fora, no terreiro exterior. A curiosidade foi suficiente para o fazer deslizar da bancada e procurar, às apalpadelas, a saída da sala de desenho, para ver quem seriam aqueles cavaleiros. A corte ainda estava na abadia de Shrewsbury. Em Parfois, havia mais de uma orelha atenta e ansiosa a tentar perceber se Isambard voltara a cair nas boas graças do rei. Se isto fosse uma convocatória do rei, haveria quem se apressasse a voltar à sua postura anterior.

Meia dúzia de cavaleiros estava a desmontar no terreiro das cavalariças. À luz das tochas, só conseguiu vê-los fugazmente: silhuetas trémulas contra o brilho pálido do gelo sobre a neve fina. Homens bem agasalhados, bem montados, com vozes fortes e andar confiante: bem podiam vir da corte. Os palafreneiros acorreram para se ocuparem dos cavalos e dois ou três pajens apressaram-se a segurar-lhes nos estribos. O oficial da guarda mostrava-se extremamente respeitoso e atento para com o chefe do grupo, que desmontara e começara a bater com os pés gelados no chão. Harry aproximou-se, de ouvido alerta para os nomes, já que não havia esperança de identificar os rostos. Contudo, o rosto do desconhecido identificou-o.

O visitante era um homem alto e bem constituído, com uma barba farta e boas roupas. Apesar da barba, apesar de os lampejos de luz e sombra só o mostrarem por instantes, as parecenças eram suficientes para lhe poder atribuir um nome. Era mais encorpado e não possuía a mesma astúcia, o mesmo fulgor ou a mesma beleza, mas parecia-se muito com o pai.

Então, este era o William Isambard, cujas roupas Harry havia usado: o filho mais novo, o cortesão, o novo homem - o homem de des Rivaulx. Embora cuidasse de seguir a tendência ascendente, parecia que encontrara coragem suficiente para visitar o pai, que não podia ir ter com ele.

Subitamente, com um silvo de madeira resinosa, uma das tochas flamejou e, por um longo minuto, lançou um clarão sobre o rosto do visitante. Uns olhos ardentes, vivos e decididos, abarcaram Parfois numa olhadela, pesando, medindo e avaliando até os arreios e os poiais de montar no pátio. Sorria: com um sorriso daqueles que não se partilham com ninguém. Os breves passos que deu sobre as pedras do pátio mostravam toda a segurança de um proprietário.

De Guichet apareceu, apressado, vindo ao encontro de William ainda fora do arco que conduzia ao terreiro interior. Que faria ele fora do salão àquela hora? Ainda ninguém correra a levar a notícia, ninguém o chamara. O senescal devia permanecer ao lado do seu senhor.

Ao lado do seu senhor? Talvez agora estivesse. Aproximou-se diligentemente, manifestando uma surpresa efusiva, fazendo uma vénia, ainda que não demasiado obsequiosa, ao filho do seu amo, mas a sua voz, alta e clara na primeira saudação admirada, logo se transformou num murmúrio confidencial quando os dois ficaram perto um do outro. Isto não teria qualquer significado, não seria mais do que uma impressão, um frémito da sua imaginação, mas o facto ficou gravado a ácido no espírito de Harry, deixando uma marca indelével. Ainda não havia um compromisso, era cedo demais: apenas um reconhecimento ténue e prudente, para se assegurar de qual o lado para que pendia a balança. Esta não era, decerto, uma embaixada do rei: William vinha tratar de assuntos seus.

Inesperadamente, Harry lembrou-se de Isambard, sentado à mesa de honra no salão apinhado de gente, dos mais de mil cavaleiros, escudeiros, criados e homens de armas reunidos à sua volta, da luz implacável que lhes revelaria todas as emoções, todas as alterações do seu rosto. Isambard proclamava não se importar com o exílio, não era? Não alimentar grandes esperanças de voltar a cair nas boas graças do rei? Todos veriam, todos se aperceberiam de como se importava! Veriam reacender-se a esperança, se continuava secretamente a alimentar alguma, e veriam como esta se esfumava; mesmo que conseguisse passar incólume no teste, Isambard havia de imaginar um castigo para Harry, para devolver o golpe.

Começou a correr, com o coração a bater-lhe na garganta, quente e vingativo, e deslizou por baixo do arco imerso em sombras, à frente dos visitantes, chegando antes deles aos degraus do salão. A vozearia, o fumo e o calor submergiram-no. Escapuliu-se por entre os copeiros apressados, numa trajectória rápida em direcção à mesa de honra.

Podia perfeitamente ter dado a volta e murmurado a mensagem ao ouvido de Isambard, mas não era esse o seu intuito. Aproximou-se dos degraus do estrado e subiu-os com ousadia, tomando posição num dos extremos da mesa, de onde tinha uma panorâmica geral do salão e deixava Isambard exposto aos olhos de todos os presentes.

- Meu senhor!...

Fez um compasso de espera, até as vozes se calarem. Queria que todos o ouvissem: não apenas os cavaleiros, mas todos os presentes, até ao último criadito, postado ao fundo do salão.

- Senhor, chegaram mensageiros de Shrewsbury para falar convosco. Vêm da corte.

O tempo escasseava, não podia contar com mais de dois minutos antes de os visitantes entrarem e arruinarem o seu esquema, mas dois minutos seriam suficientes. A babel de vozes, que se calara para o ouvir, recomeçou, agora num tom mais baixo e mais cauteloso, interrogativa, excitada, esperando pela confirmação. O corpo estiraçado de Isambard não se retesou na cadeira, as mãos não apertaram os braços estofados; só os olhos se dilataram ligeiramente, enquanto erguia as sobrancelhas e olhava para Harry, com ar especulativo, por cima da mesa atafulhada - não como se não acreditasse nele, mas como se se perguntasse o motivo que estaria por trás daquele anúncio. Se ficara contente e aliviado, se sentira um breve e agradecido impulso de triunfo e de exaltação, escondera-o com grande mestria. Poder-se-ia dizer que estava a avaliar as possibilidades e esperava pelo desenrolar dos acontecimentos, com um interesse despido de ilusões e sem sinais de preocupação.

Não, Isambard não mordera o isco. Se Harry esperara alguma revelação, ela ali estava: relanceou um olhar em volta da mesa de honra e contou os rostos inexpressivos, fechados como janelas, contou os pares de olhos que brilharam por instantes de inquietação e consternação, para logo se tornarem impenetráveis, resguardando as emoções que lhes atravessavam o espírito. Rápida e cuidadosamente, estavam a reavaliar a situação e apresentavam uma face imperscrutável para disfarçar a agonia. Os vira-casacas estavam a ajeitar os casacos sobre os ombros, prontos para os virar na direcção em que o vento soprasse. Harry ficou mudo de espanto quando se apercebeu de que eram tantos.

- Então, convida-os a entrar. São bem-vindos - disse Isambard. A secura daquela voz fez corar o mensageiro.

- Ei-los, meu senhor.

Estava feito e não havia maneira de voltar atrás. Afastou-se Para o lado, para junto dos panejamentos do estrado, no momento em que de Guichet entrava pela porta principal, alegre e diligente como competia a um portador de boas novas, seguido de perto por William Isambard.

Todos os olhares se voltaram para eles, fixando-se no recém-chegado. Um enorme suspiro ecoou no ar e terminou no mais absoluto silêncio, à medida que William caminhava ao encontro do pai, se inclinava sobre a mão estendida e beijava a face emagrecida. Os dois rostos uniram-se por momentos: as parecenças e as violentas diferenças entre eles foram um choque para Harry. Tudo fora feito com tanta ternura, com tanta devoção filial... Harry ouviu o cumprimento afável, no meio do silêncio reinante.

- Meu querido pai e senhor, lamento ver-vos tão infeliz.

- É assim que me vês, William? - replicou Isambard, com o habitual sorriso retorcido. - Julguei que estava com um ar radiante. Pelo que vejo, tu estás de muito boa disposição. Agora que cá vieste, vais ficar algum tempo connosco?

- Ficaria se pudesse, mas o rei deixa Shrewsbury amanhã e tenho de regressar a tempo. Só me foi dada licença para me ausentar por umas horas.

- Podia dispensar-te metade da minha, que é uma licença ilimitada. Senta-te aqui ao pé de mim, enquanto podes, e conta-me as notícias que trazes.

Arranjou lugar para o filho à sua direita e os pajens acorreram a servir-lhe de comer e de beber. Por cima da mesa, Isambard lançou um olhar sardónico a Harry Talvace, mudo e quedo contra a parede.

- Vai para o teu lugar, Harry - ordenou, com suavidade. - Desempenhaste bem a tua missão. Eu próprio não haveria feito melhor.

Harry passaria muito bem sem aquele elogio, mas não podia dizer que não fora merecido. Com as pernas a tremer, afastou-se, sentindo os olhos de de Guichet a queimarem-lhe as costas. O se-nescal não se atrevia a perguntar ao seu amo de que missão se tratava, mas era rápido a raciocinar e a tirar conclusões. Talvez se interrogasse agora sobre de que lado estaria aquele ser solitário e se Isambard não estaria a esconder, sob a capa de uma pretensa intimidade, que o utilizava como espião, para rondar pelos terreiros do castelo. Harry sentiu as complicações da intriga colarem-se-lhe aos dedos e a sensação teve o sabor de uma afronta, como se houvesse sido fisicamente conspurcado por uma sujidade que não conseguia limpar. Já depois de se sentar na mesa inferior, ao lado dos jovens homens de armas de condição igual à sua, não conseguia deixar de ouvir as vozes que provinham do estrado. Parecia que Isambard estava apostado em manter a conversa num tom alto e claro, a fim de ser ouvido até ao fundo do salão, por centenas de testemunhas. Na presença deste nobre convidado inesperado, os jovens do séquito reduziam as suas conversas a sussurros, pelo que Harry não podia deixar de ouvir tudo.

- E como estava Sua Graça quando o deixaste? - perguntou calmamente Isambard, inclinando o copo de vinho para captar a cor de rubi à luz das velas que iluminavam a mesa. - Está satisfeito com esta trégua prolongada?

- Está muito satisfeito e de excelente humor. Vai passar o Natal a Worcester.

- Vais com ele, William?

- Terei essa honra. Como agora sou um oficial da sua casa...

- Pois é, não me havia esquecido. Mas faz-me o favor de tranquilizar a minha casa, homem: será que ele me mandou chamar de novo à corte?

- Infelizmente não, meu pai, ainda não. Dai-lhe tempo e ele há-de acalmar. Sua Graça ficou muito magoado com as vossas censuras, mas eu sei que vieram do vosso coração leal e se deveram à preocupação que sentis pelo rei. Sede paciente, ele há-de perdoar-vos. Estarei sempre ao lado do rei e cuidarei de que não sejais esquecido.

- Nunca duvidei disso - respondeu Isambard, com um sorriso diabólico. - Serás o meu defensor e falarás a meu favor, não é, meu filho? Sobre a honestidade das minhas intenções e a fidelidade inquestionável que dedico ao rei?

- Sabeis que sim, meu senhor. Com grande frequência.

- Com grande frequência! - repetiu Isambard devagar, rolando a língua como se elas tivessem um paladar mais forte e mais agradável do que o vinho. - Estou espantado, William, por Henrique te haver autorizado a passar sequer uma hora comigo, tu, que ele tanto preza. Vejamos, já és xerife de três comarcas... ou serão quatro? Não consigo lembrar-me.

- São quatro, senhor.

- E Sua Graça ainda te concedeu outro castelo pelos teus serviços, segundo ouvi dizer.

- Sim, senhor... Burhythe, no Suffolk. Ainda não o vi sequer. Quando a corte se mudar para o Sul, irei lá vê-lo.

- Palavra de honra, estou muito satisfeito por um de nós estar na curva ascendente. Nunca duvidei da tua energia nem da tua eficácia. Se continuares do meu lado, acabarei por conseguir recuperar a minha posição.

- Meu pai, fiz o melhor que pude e com todo o empenho, mas convém deixar amadurecer a situação. O rei está muito ressentido com de Burgh, como eu próprio muito bem compreendo. Aguardai com paciência, esperai e confiai em mim. Não vos decepcionarei.

- É uma grande generosidade da tua parte - disse Isambard - uma vez que não concordas comigo sobre a questão do conde de Kent.

Seria deliberada ou dever-se-ia ao hábito, aquela insistência em empregar o antigo título, agora retirado ao nome do estadista caído em desgraça?

- Pois não. Mas reconheço a honestidade dos vossos pontos de vista e sei que sois leal ao rei: isso basta-me.

- Como estava o conde de Kent quando saíste de Londres? Que notícias havia dele?

Duas vezes seguidas não era um acaso, era perversidade. Isambard manifestava o seu desprezo pela sentença e o seu respeito inalterado pela vítima, em público e de modo provocador.

William contou mais do que seria necessário, descrevendo toda a triste história com tão boa vontade que Harry não pôde deixar de sentir, naquela narrativa, uma ameaça e um aviso velados. Por que motivo havia William de elaborar sobre a maldade e a crueldade da demorada perseguição, que proclamava de forma gritante a falta de carácter do rei, mesmo quando o narrador apresentava desculpas para toda a perfídia deste? Nunca um homem fora perseguido com tanta impiedade como de Burgh. Até ao momento em que este devia ser presente ao conselho do rei, em Lambeth, fora reunido um tal rol de acusações contra ele e havia tanta gente sedenta do seu sangue que não era de admirar que de Burgh temesse pela vida.

Para cúmulo, haviam violado o direito de asilo e quando, num arroubo de santa indignação, os bispos os forçaram a devolver de Burgh à igreja, fizeram-lhe um cerco durante os quarenta dias do prazo necessário para o poderem declarar como fora-da-lei, negaram-lhe as visitas do seu confessor e proibiram os criados que lhe levavam a comida de falar com ele, destruíram solenemente o seu selo privado, tiraram-lhe o livro de orações e, ao cabo dos quarenta dias, triunfantes e ufanos da sua legitimidade, retiraram-lhe a comida e os criados, não lhe deixando outra opção senão render-se ou morrer de fome. Seria este comportamento digno de um rei ou, antes, de uma criança vingativa, roída pela inveja? Depois deste tratamento, a Torre de Londres devia haver-lhe parecido um doce eremitério.

Ainda assim, Henrique não o mandara matar. E porquê? Seria por Isambard, primeiro, e Ranulf de Chester, depois, haverem falado em nome de uma enorme e temível corrente de opinião, que não podia ser ignorada? Pelo menos, quando Hubert se apresentara perante a comissão de nobres e o corregedor do reino, em Cornhill, a acusação fora menos rigorosa do que seria de prever, tendo em conta os acontecimentos anteriores. Decerto já farto e enjoado de toda aquela luta pela sobrevivência, parecia que de Burgh se recusara com firmeza a submeter-se ao julgamento e a apresentar a sua defesa, tendo-se simplesmente colocado à mercê do rei, para que este fizesse o que entendesse. Conservara as terras que lhe pertenciam por herança ou por aquisição, mas perdera todas as que detinha em nome da coroa, tal como o título de conde; os quatro condes que compunham a comissão - Richard de Pembroke, Lacy de Lincoln, Richard da Coraualha e o conde de Surrey - mantinham-no sob a sua custódia protectora em Devizes. Detido, pensou Harry, observando o rosto de William Isambard enquanto este descrevia os pormenores atrozes daquela longa perseguição, ainda assim mais civilizada do que o rei desejaria, se houvesse conseguido levar a sua avante.

- Fico-te muito grato, meu filho - disse Isambard, estendendo as mangas de veludo sobre as tábuas da mesa - por te dares ao trabalho de me pôr a par de todos esses pormenores. Saberei interpretar o aviso. Sou um homem acomodado, William, estou a envelhecer.

O fulgor do seu secreto divertimento fazia-o parecer dez anos mais novo; ou então o vinho corria com maior abundância do que era habitual, na mesa de honra. Nunca, como naquele momento, o lobo vagueara com tanta liberdade e alegria nos olhos levemente sorridentes de Isambard.

- E é minha firme intenção continuar a envelhecer em sossego e em liberdade - acrescentou com alguma ênfase, presenteando o filho com um arremedo, muito pessoal, das manifestações de afeição e deferência que William lhe dedicara.

A primeira vista, não havia grandes parecenças entre os dois mas, no fim do demorado jantar, depois de os haver observado com atenção Harry já não estava muito certo de que o filho não saísse ao pai. A sua argúcia era diferente, mas também ele era arguto. A sua maneira, e tal como o velho sempre fizera, William ia directo ao que queria, com ousadia, passando por cima de quem se atravessasse no seu caminho, com a mesma falta de compaixão. Todavia, as suas ambições - terras, estatuto, dinheiro, poder - eram compreensíveis e, por conseguinte, previsíveis com alguma certeza. William nem sequer se importava que fossem conhecidas, desde que não pudessem ser travadas. Sabia por certo que o pai se estava a rir dele mas não se preocupava com isso, nem isso o desviaria do seu propósito. Por outro lado, quem adivinharia os desejos do velho lobo, quem conseguiria prever os meios tortuosos que utilizaria para conseguir os seus fins? Terras, estatuto, dinheiro e poder haviam caído nas suas mãos havia muito tempo. Estas questões não o atormentavam e não era por causa delas que atormentava os outros.

- Lamento de todo o coração - disse William, quando por fim se levantou da mesa - não poder proporcionar-vos outro conforto ou ficar convosco por mais tempo. Preciso de partir com o primeiro grupo, amanhã, para preparar tudo para a chegada do rei. Da próxima vez que vier visitar-vos espero ser portador de boas novas.

Pareceu hesitar por momentos e baixou ligeiramente a voz quando prosseguiu, mas não tanto que impedisse os convivas sentados à mesa dos cavaleiros e alguns dos que estavam na mesa inferior de o ouvir.

- Se desejardes enviar uma mensagem, de bom-grado serei seu portador.

Ao ouvir isto, todos os sentidos de Harry se retesaram, numa resistência silenciosa, como se, ao enrijecer o corpo, pudesse gritar um alerta. Isambard, porém, levantou-se, esticou-se sem pressas, ao lado do filho - que ultrapassava em altura por duas ou três polegadas - deixou o convite como que rolar pela sua testa, semelhante a uma pedra gasta pela erosão, e sorriu.

- Ora essa, já que és tão gentil, podes transmitir ao rei as minhas respeitosas saudações e a minha lealdade.

Saíram juntos e a ironia desta partida foi quase superior às forças de Harry: com toda a ternura, William ofereceu ao pai o braço forte e atlético e, por pura malícia, o velho aceitou-o e apoiou-se pesadamente nele durante todo o percurso até ao terreiro interior e para além dele, enquanto atravessavam a passagem gelada que levava ao arco e ao pátio das cavalariças.

Nem que o matassem Harry saberia dizer por que motivo os seguira. Tanto lhe fazia que um deles destruísse o outro, ele queria era ver toda a família morta e enterrada, mas não conseguia deixar de os seguir, furioso consigo mesmo, mas sem deixar de os acompanhar, com os ouvidos alerta e o coração ansioso, até ver o grupo de Shrewsbury partir a cavalo. Viu William dobrar-se sobre a mão do velho e, em seguida, endireitar-se e inclinar-se sobre a face ema-ciada, depositando mais uma vez o beijo respeitoso de um filho afectuoso e fiel.

Uma punhalada de angústia profética pregou Harry contra a parede, fazendo-o torcer-se de agonia nas sombras que o protegiam. Enterrou as unhas na pedra, subitamente esmagado pela vergonha, como se tivesse visto e instigado uma traição terrível e obscura.

Fumo de tochas, murmúrios de vozes e alguém que chegara, todo ele afeição e lealdade, com um beijo e um desígnio.

Partiram. A ponte rangeu antes da sua passagem e ressoou como um trovão após esta: durante alguns minutos, ouviram-se os ecos gelados e ásperos das patas dos cavalos, vindos da esplanada da igreja, antes de a cavalgada ser engolida pelo silêncio, ao descer a rampa até ao posto avançado da guarda.

Endireitando-se com a graciosidade fluida de um gato, após aquela imitação do andar cuidadoso de um velho, Isambard afastou os seus acompanhantes e voltou para trás, sozinho, atravessando o arco escuro. Quase esmagou Harry contra a parede e, num gesto de boa-vontade, estendeu um braço, bem-humorado, para o impedir de cair.

- Então Harry, não achas que já fizeste o suficiente para uma só noite?

Não havia desagrado na sua voz, apenas um leve e longínquo eco de riso, embora não estivesse a rir. Segurou-o por momentos entre as mãos, observando-o de perto, sob a luz gelada das estrelas que os tornava, aos olhos um do outro, estranhamente prateados, mais transparentes do que à luz do dia.

- Não fiques assim tão envergonhado, rapaz - disse, dando-lhe uma palmada no ombro. - Por que motivo baixas a cabeça? Não foste tu que o educaste, fui eu.

Deu mais dois passos e deteve-se subitamente, olhando para trás. Voltara a ser ele próprio, os olhos cheios de demónios, a boca dura.

- Os desígnios de Deus são sempre justos - comentou. -Cada um tem os filhos que merece.

 

Aber, Strata Marcella: Agosto de 1233

Acima do último redil de pedra, acima dos flancos arruivados pela urze, onde a erva das colinas das terras altas amarelecia ao sol, milha após milha ondulante, havia um velho calvário em madeira sob um telheiro de tábuas e, ao lado deste, dois eremitérios: à esquerda, o do santo Clydog, feito de estacas, juncos e barro, parecido com uma colmeia, com uma entrada estreita virada a Leste; à direita, a cela de pedra da mulher santa de Aber, com uma cantaria trabalhada e uma janela em arco, virada a Sul. Em toda a volta, não se avistava mais nada senão a erva tenra e as ovelhas a pastar e, nas raras depressões, os arbustos baixos e emaranhados por cima dos trilhos dos coelhos. No silêncio daquele dia de Agosto, chegava até ali, a flutuar no ar calmo, o som do mar e o ruído longo e lento das ondas a rebentar nos pântanos salgados de Aber, lá muito em baixo, fora do alcance da vista. Por vezes, ao fim da tarde, podiam ouvir-se, débeis e longínquos, todos os sinos a repicar nos pequenos oratórios de Ynis Lanog dos santos, do outro lado do canal prateado. O santo Clydog e a mulher santa estavam sob a protecção directa do príncipe Llewelyn e podiam pedir-lhe tudo o que quisessem para viver confortavelmente; mas nunca pediam nada. O que lhes mandava todos os meses, pelo seu mensageiro, era mandado de sua livre vontade, antes mesmo de eles haverem sentido qualquer falta. Muitas coisas eram partilhadas com os pássaros, com os pequenos animais selvagens das colinas, com os raros viajantes que passavam ali, pelos trilhos das terras altas. O santo já quase se esquecera de que tinha um corpo e só se lembrava de o alimentar para o impedir de gritar com fome, pois isso perturbava as suas orações. A mulher, que em tempos fora alta, intrépida e forte como uma torre, tornara-se, nos últimos três anos, numa labareda, pura e dura como o aço, com o corpo consumido por dentro e por fora. Os olhos pareciam satisfeitos e calmos, sempre fixados num ponto um pouco mais além do que os outros conseguiam ver. Tinham a cor profunda e clara dos lírios roxos, que a luz forte do meio-dia transformava num cinzento lustroso. As gentes da região diziam que o santo Clydog via o futuro, mas ninguém sabia o que a Madonna Benedetta via, excepto que não era nada deste mundo. O resto do rosto dela, porém, não era feito para o repouso, para uma vida retirada e uma morte santa: tinha uma ossatura ampla e ousada, uma boca arqueada como uma flor, brilhante e determinada. Nos contos antigos, as rainhas tinham rostos assim e olhar para Benedetta trazia à memória os desgostos e os amores dessas rainhas, o que conferia uma nova estranheza e um novo significado ao nome que lhe atribuíam, pois o grande sofrimento e o grande amor são terríveis e sagrados.

Benedetta nunca falava do passado. Não havia necessidade, na solidão e no silêncio das colinas, e os pastores que lhe levavam leite e ovos à porta não eram curiosos. Já ali estava havia dezasseis anos e, para estes, podia lá haver estado desde sempre, como a urze de Moei Wnion ou os afloramentos rochosos por cima do ribeiro: não se interrogavam a seu respeito. Que lhes importava que tivesse vindo de Itália para França com um mercador parisiense que enriquecera com as Cruzadas, ou que tivesse vindo de França para Inglaterra na companhia, mais distinta, do senhor de Parfois, e de Inglaterra tivesse por fim chegado a Gales, fugindo desse amante temível? Para quê fazer perguntas, depois de a semente, transportada pelo vento, ter criado raízes e florido na quietude e na santidade, entre as ervas nativas da região?

Contudo, havia coisas a respeito dela que eram conhecidas. Na sua fuga, trouxera consigo uma dama, um criado e uma criança e obtivera para eles a poderosa protecção do príncipe Llewelyn. A dama casara com o mestre canteiro do príncipe, que era inglês e irmão adoptivo do seu primeiro marido, e, dizia-se, era também havia muito seu amigo e protector; o filho desta tivera dois pais, o artesão e o príncipe, e fora amado e estragado com mimos pelos príncipes seus irmãos adoptivos. Apesar de tudo, era um bom rapaz. Tinha sido um sarilho dos diabos quando o rapaz fugira da sua vida privilegiada, em Aber, para se lançar na busca tresloucada do assassino de seu pai. A sombra da sua perda ainda pairava sobre a corte e o seu resgate tardava.

Embora não houvesse feito votos, a mulher santa de Aber mantinha-se no seu lugar, imóvel como o cume da montanha, cumprindo o compromisso silencioso que firmara com Deus, sem um olhar de reprovação, sem soltar uma queixa, sem deixar espaço para anseios. Só nas raras vezes em que a mãe do rapaz ia visitá-la, trazendo-lhe de volta o seu antigo mundo, na voz fresca e vibrante e nos olhos brilhantes de desgosto, só então o sangue subia às faces de Benedetta, devido ao agitar de só Deus sabia que recordações.

Naquele momento, estava sentada sobre a erva que cobria uma depressão da colina, acima das cabanas, com Gilleis ao seu lado, a observar os homens que cortavam juncos frescos na curva do ribeiro, mais abaixo. Adam Boteler, mestre canteiro do príncipe, era alto, agradável à vista e louro; a esta distância, não era possível distinguir quais dos seus espessos caracóis eram louros e quais eram brancos. Cada vez que os seus olhos pousavam nele, a expressão de Gilleis suavizava-se e sorria secretamente, com ternura. Os segundos maridos têm o seu lugar próprio nos corações generosos, onde há espaço de sobra para eles sem que nunca os direitos do primeiro sejam infringidos. Em todo o caso, os dois homens haviam sido inseparáveis em vida e dormido lado a lado, muito antes de alguma vez terem posto os olhos em Gilleis Otley. Havia quem se perguntasse se Gilleis sabia sempre qual dos dois tinha nos braços ou até se fazia distinção entre eles.

- O Adam sente tantas saudades dele como eu - disse Gilleis. - Alguma vez poderíeis imaginar que quase desejo que haja guerra?

Nunca quis mal a nenhuma criatura, inglesa ou galesa, mas agora até tenho vergonha de sentir o sangue correr-me mais rápido nas veias quando se fala de desordens no Sul, e de o conde de Pembroke estar a reunir os descontentes em Gwent. De que outra maneira havemos de recuperar o Harry? O príncipe jurou ir buscá-lo pela força das armas mas, enquanto durar esta trégua, não pode fazê-lo.

- Mas como pode a guerra civil em Inglaterra ajudá-lo? - perguntou Benedetta, levantando os olhos do bordado que tinha no colo. - Ele não pode tomar o partido do conde ou do rei sem alguém atacar os seus territórios.

- Ah, mas os senhorios de Pembroke penetram de tal forma no País de Gales que dificilmente o rei poderá atacá-lo sem violar território galês. Se uma dessas escaramuças se transformasse num acto de guerra, haveria motivo suficiente para intervirmos. E não duvido que, mal tenha as mãos livres, o príncipe há-de cumprir a sua palavra! Ah, Benedetta, sinto-me tão mal por desejar isto... Há outras mulheres que têm filhos, que lhes são tão queridos como o meu me é para mim. Como posso desejar que sofram para eu ter o meu filho de volta?

- Deus me livre de alguma vez querer pregar paciência a um homem - disse Benedetta. - Pode ser que Deus haja outros meios para o trazer de volta.

- Outros meios? Ele não aceita um resgate, nunca o vai dar nem vender. «Como poderia eu fazer um preço para um Talvace?», diz ele. Phillip contou-nos que disse isto a sorrir. O meu filho está a ficar um homem - acrescentou Gilleis, chorosa - e há dois anos que não o vejo.

Havia perto de quatro anos que Benedetta não o via, mas não o disse. De que servia medir o amor em meses e em dias? Uma hora, uma noite podia conter tanto amor que, mesmo que o milagre nunca se repetisse até à hora da morte, a vida haveria ficado cheia até à borda.

- Ah, agora me lembro de que Harry não veio visitar-vos da última vez - desculpou-se Gilleis, estendendo uma mão-cheia de remorsos para tocar na manga de Benedetta. - Era sua intenção vir, mas resolveu cumprir a sua promessa tão à risca que não se permitiu qualquer indulgência. Aquele desgraçado orgulhoso! Meu pobre cordeirinho! «Fosse ele outra pessoa» disse-me, «mas a esse homem pagarei aquilo que devo até ao último quinhão, até ao último real.»

- Bem sei - disse Benedetta, muito calma. - O príncipe transmitiu-me o recado. Bem sei!

- «Não há preço, seja em dinheiro ou outro, que o príncipe possa pagar», disse Isambard a Rhys, quando este lhe foi levar a última mensagem do príncipe «e que eu esteja disposto a aceitar em troca de Harry Talvace. Não pedirei nenhum e não terei em conta nenhuma oferta, sejam terras, falcões ou homens.» E pensar como se diverte a brincar com ele! Ai, Benedetta, quando o Harry me contou da vez que ele foi à sua cela e lhe tirou a comida, a bebida e a luz, uma por uma, que mandou pô-lo na roda...

- Mas não chegou a usá-la - argumentou subitamente Benedetta, com ar estranho, levantando os olhos cinzentos límpidos para a extremidade da pastagem, onde os falcões descreviam grandes círculos preguiçosos.

- ... sempre a tentá-lo e a pô-lo à prova, para conseguir que ele dissesse onde estava enterrado o pai, até ter arranjado uma artimanha para o levar a revelar o sítio. E depois arrancou o meu amor do túmulo... Nem quero pensar que o homem que foi capaz de fazer semelhante coisa ao pai tem agora o filho nas mãos e não pode ser obrigado a devolvê-lo.

- Conta-me o que o Harry te disse sobre o seu cativeiro - pediu Benedetta de repente, cruzando as mãos sobre o seu trabalho. - Conta-me tudo. O príncipe transmitiu-me fielmente a mensagem, mas nunca me contou essas coisas. Estou ansiosa por todas as migalhas do Harry, dá-me de comer.

Gilleis aproximou-se e relatou a estranha e comprida história. O rapaz gravara a sua acesa desconfiança, o seu ódio arrebatado, no espírito da mãe e encontrara aí um terreno fértil. Esta descreveu todas as provas e tentações a que Harry fora submetido, todas as maldades, todos os vexames, mesmo aquela surpreendente libertação para lutar ao lado do príncipe durante a guerra, dois anos antes. Decerto desejara que Harry faltasse à sua palavra e nunca mais voltasse, pois seria a melhor forma de humilhar o rapaz, de levar a melhor sobre a sua família e o seu sangue, de destruir por fim, de uma só vez, o pai e o filho.

- Onde acabará isto? - lamentou-se Gilleis. - Se não consegue levá-lo a desonrar-se, que outras coisas será capaz de lhe fazer? Se Isambard não houvesse mandado aquela mensagem por Rhys eu até recearia pela vida de Harry, mas apesar da promessa de não lhe fazer qualquer mal como posso estar certa de que não o fará? Sei que nunca faltou à sua palavra, é quase a sua única virtude, mas há uma primeira vez para tudo...

- Mas é verdade que jurou? Jurou mantê-lo são e salvo?

- «Venham quando quiserem», disse ele, «venham buscá-lo se forem capazes. Até lá, mantê-lo-ei são e salvo.» Mas como podemos ter a certeza de que Isambard cumprirá este juramento?

- É demasiado tarde para mudar - disse Benedetta, voltando a pegar no trabalho.

As suas mãos eram firmes, mas os olhos estavam perdidos no horizonte, fixos numa luz que os deslumbrava e cegava.

Os homens regressavam do regato, John o Frecheiro transportando ao ombro os juncos cortados, Adam balançando as segadoras. Todos os anos, a modesta cela do santo Clydog era arranjada, mas ele não deixava que lhe construíssem um abrigo de pedra. Também ele estava velho demais para mudanças. Benedetta virou a cabeça e desceu o olhar ao longo da colina, até onde o santo estava sentado a acariciar o terço e imerso nos seus pensamentos insondáveis, parecendo quase um tufo de erva amarelecida sobre o cocuruto emaranhado de Moei Wnion. Parecia estar ali desde o início dos tempos e lá continuaria quando ela já ali não se encontrasse. Não fora o que ele dissera, naquela noite em que uma visão irrompera dentro dele e o forçara a soltar um grito que a fizera correr ao seu encontro?

O mensageiro de Llewelyn estava a selar de novo os cavalos, lá em baixo, ao pé da encruzilhada. Adam aproximou-se e deixou-se cair na erva ao lado das duas mulheres, queimado pelo sol, gentil e corado devido ao esforço.

- É melhor não demorarmos muito, rapariga. O Sol está a começar a baixar. Já acabaram essa conversa de mulheres?

Adam sabia qual fora o tema da conversa: era o que os preocupava a todos. Já estavam exauridos de tanta preocupação. Adam passou o braço pelos ombros da mulher a puxou-a para si; ela encostou-se a ele, satisfeita e agradecida, embora ele pudesse sentir a dor que lhe provocava a falta do rapaz, cujo lugar ele não podia preencher.

- Com que então conversa de mulheres? - brincou Benedetta. - Estávamos a discutir assuntos de Estado. Ouvi dizer que o conde marechal se retirou do conselho do rei, arrastando consigo muitos outros nobres, igualmente descontentes com o novo regime. É verdade que já se combate no Sul?

- Ora, depois da queda de de Burgh, e do modo como ele caiu, nenhum homem em Inglaterra acredita que a lei o possa proteger de uma sorte igual - replicou Adam. - Se aconteceu ao Kent, também pode acontecer ao Pembroke. Não se lhe pode levar a mal haver-se posto fora do alcance do rei. Desde que ele se tornou no arauto dos que não se atrevem a falar contra os do Poitou, o rei é bem capaz de estar a planear apanhá-lo e cobri-lo de acusações, tão afincadamente como fez com o outro. Os acusados poderiam agarrar-se ao costume e às leis feudais para se protegerem da justiça sumária, mas o costume e as leis andam a ser arredados dos tribunais. Se as Cartas já não significam nada, então um homem tem de defender os seus direitos o melhor que puder.

- Mas como é possível essa discórdia haver degenerado em violência? Parece-me que, se como disse a Gilleis, o rei mandou reunir a hoste em Gloucester, a fase das queixas está ultrapassada. Caminhamos a passos largos para a guerra. Que tenciona o rei fazer com o seu exército, a partir de Gloucester?

- Diz-se que quer levá-lo para a Irlanda e atacar Marshall através das suas terras de Leinster. Alguns disseram que o sobrinho do de Burgh, que está por lá, também haveria desertado, tomando o partido do tio, mas parece que Marshall e esse não morrem de amores um pelo outro: é provável que Richard de Burgh se mantenha fiel ao rei. Afinal, talvez Henrique possa dar que fazer ao seu exército mais perto de casa. Este incêndio nasceu de uma pequena faúlha, mas agora está bem aceso. E a questão não é de somenos importância, se quisermos que reste alguma coisa da lei. Havia um castelo que pertencia a Gilbert Basset, de Wycombe, e que o rei queria dar a um dos seus servidores: pois o Basset foi desapossado sem passar por nenhum tribunal. «Por ordem do rei» é lei suficiente, nos tempos que correm. Richard Marshall defendeu o Basset e, num abrir e fechar de olhos, vieram avisá-lo de que Henrique queria confiscar-lhe os bens e arruiná-lo, da próxima vez que ele se apresentasse no grande conselho. Por isso, Richard nunca mais apareceu. Até pode não ser verdade, mas o exemplo de de Burgh aí está, para mostrar como as coisas são feitas e mesmo um conde só tem uma vida para perder. Assim, ele fechou-se em Pembroke e convocou todos os seus aliados. Agora, o rei está metido em grandes trabalhos para manter vigias por todo o lado e pediu reféns aos barões das Marcas, como fez o pai. E como Basset já foi alcaide de Devizes e conhece bem demais o castelo, corre também o boato de que ele está a preparar-se para libertar Hubert de Burgh do cativeiro e levá-lo para junto dos aliados do conde marechal, em Gales. O rei já colocou os seus próprios guardas em Devizes e duvido que o desgraçado consiga gozar de algum repouso, mesmo que não o ponham a ferros. Uns dizem que o bispo de Winchester está a tentar convencer o rei a pôr Hubert à sua guarda, outros que está a insistir para que seja executado. Duvido que uma solução seja melhor do que a outra: foram ter com o bispo, da primeira vez que a turba começou a perseguir Hubert, a pedir ajuda, e ele repreendeu-os por lhe haverem interrompido as orações e fechou-lhes a porta na cara.

- Mas que acontecerá se o rei invadir as terras galesas do conde marechal? Que fará o príncipe?

Adam abanou a cabeça.

- Se conseguir, penso que de bom-grado resistirá à tentação. Este governo nunca o ameaçou e se a paz puder ser duradoira tanto melhor para ele. Mas se o rei a quebrar e o príncipe for obrigado a tomar partido, decerto apoiará o conde marechal.

- Então a questão do Harry pode ficar resolvida por si própria - comentou Benedetta - pois Isambard decerto alinhará com o rei. Sempre foi fiel ao rei, mesmo quando o coração e a razão estavam no campo oposto. João bem se esforçou por decepcioná-lo, mas Isambard manteve-se fiel até à morte dele e, se o filho de João apelar à sua fidelidade, ele irá, com o seu exército. Até já deve ir a caminho de Gloucester.

- Iria, se o rei o houvesse chamado - disse Adam, em voz lamentosa. - Mas da maneira como as coisas estão, aposto a minha cabeça em como a convocatória do rei não seria obedecida.

Viu a expressão de surpresa no rosto pálido e ardente e os olhos cinzentos abrirem-se de espanto.

- Não sabíeis que Isambard caiu em desgraça? O rei proibiu-o de se apresentar na sua presença e ordenou-lhe que se mantivesse em Parfois até ele considerar conveniente chamá-lo. Faz um ano por esta altura. Nunca ninguém se lembrou de vo-lo dizer?

Não era de admirar, ao fim e ao cabo. Só iam visitá-la duas ou três vezes por ano e havia muitos outros assuntos de conversa. Isambard já lhes causara desgostos suficientes no passado; o seu nome nunca teria voltado a ser mencionado se o jovem Harry não houvesse renovado aquela dor antiga, trazendo-o de novo à memória e para o primeiro plano das suas preocupações.

Benedetta levantou-se da erva, organizando os pensamentos como exércitos, por trás do olhar cinzento e profundo.

- Como foi que ele chegou a essa situação?

- Segundo ouvimos, foi logo a seguir à queda de de Burgh, quando o rei Henrique veio a Shrewsbury. Isambard foi até lá, com grande aparato, e disse ao rei, em audiência pública, que este fora desonesto e ingrato, que o conde de Kent era um leal servidor do rei e não merecia tal tratamento. Disse-lho na cara e não retirou uma palavra do que dissera, apesar da fúria de Henrique.

- Isso soa-me a verdade - observou Benedetta, analisando as suas próprias recordações. - Ele seria bem capaz de o fazer e, mais ainda, se ameaçado. Então caiu em desgraça e foi banido da corte?

- Até o rei decidir chamá-lo de volta. Há quem pense que nunca o fará. Quanto a mim - disse Adam, enquanto os três desciam a colina lado a lado, até onde os cavalos os esperavam - estou certo de que dificilmente o rei convocará Isambard para lutar contra o conde Richard, se achar que ele está do lado de de Burgh. Por causa da inimizade que ambos dedicam aos do Poitou, embora Deus saiba que essa é quase a única coisa que os une, os partidários de Pembroke e de Burgh são vistos como um todo. Não, Isambard vai continuar a dormir tranquilo em Parfois. O rei nem se atreve a intimá-lo a cumprir as suas obrigações, nem a avançar contra ele.

- E o Harry vai ficar por lá a apodrecer sob estreita vigilância - acrescentou Gilleis, com amargura.

Ouviu Benedetta reter a respiração, num assomo de dor, e virou-se para a abraçar, cheia de remorsos.

- Ai, é maldade da minha parte estar a queixar-me, quando vós o amais e sentis a sua falta tanto quanto eu. Os melhores anos da vida dele foram-nos roubados! Quem vai ajudá-lo a tornar-se um homenzinho? Quem ficará feliz com os seus progressos, quem lhe desculpará os erros, quem recompensará as suas boas acções?

- Deus - replicou Benedetta, olhando fixamente a palidez longínqua do céu - se não houver mais ninguém. E Deus pode mandar-lhe alguém, se quiser.

Benedetta não dormiu toda a noite: o morto veio até ao seu leito e deitou-se com ela. Abraçou-o e ele foi ao mesmo tempo pai e filho, duplamente querido. Acariciou-lhe a cabeça com a face, cobriu-o com o manto do seu cabelo ruivo, agora salpicado de prata pela poeira dos anos, e a tempestade que a agitava batalhou contra a calma que a rodeava durante as longas horas de escuridão, com palavras que não eram voz, antes silêncio. Meu querido, meu amor, meu pequenino, meu doce amigo. Será chegada a hora? Afinal, o mundo ainda precisará de mim? Esta criança precisará de mim? Deus precisará de mim? Haver-lhe-ei sido fiel durante todo o tempo que aqui estive isolada ou haverei faltado à palavra dada? Minha alma, meu amor, que devo fazer? Já uma vez ajoelhei diante de Isambard: beijei-lhe os pés, supliquei pela tua vida e recusou-ma. Eu não podia oferecer-lhe nada que valesse a tua vida, só me restava resgatar-te à força e assim fiz. E se agora estiver mais rica? Se lhe puder oferecer por esta criança um resgate que nem mesmo ele possa recusar? Se implorar mais uma vez e for ouvida? Irás dar-me a tua aprovação ou voltar-me as costas? Meu amor, meu querido, sinto-me perdida. Ilumina-me! Tu és a minha única luz.

Apenas uma vez na vida o tivera nos braços como agora - na noite antes de ele morrer. Fora bastante fácil convencer o velho capelão a recordar ao seu senhor que sempre havia sido hábito conceder aos condenados uma última vontade, antes da execução; perante o salão cheio de gente, Isambard prometera conceder tudo menos a liberdade. Benedetta ainda se lembrava da máscara aterradora com que Isambard ouvira a resposta trémula: «Senhor, ele pede... que Deus lhe perdoe!... ele pede que Madonna Benedetta passe a noite com ele.» Havia prometido e não podia voltar com a palavra atrás. A sorrir... a sorrir!... ela havia-se afastado dele, devagar, tendo o cuidado de o deixar perceber que se regozijava com a sua angústia e a sua impotência. «É pela vossa honra. Eu não sou nada, comparada com o valor sagrado da vossa palavra!»

Olhava-o nos olhos agora, por cima do sono do seu amado, mantendo-o à distância, sem sorrir. Alguma vez vos menti, antes desse dia? Disse-vos desde o princípio, quando me convidastes a acompanhar-vos a Parfois, que dera o meu amor a outro, para sempre, ainda que esse outro não me amasse ou desejasse, nem nunca fosse querer-me. Ainda assim me quisestes vós, ou aquilo que de mim restava, mesmo nessas condições. Vim convosco e cumpri o nosso acordo. «Até que ele ou a morte chamem por mim», disse-vos eu, «ou vós me mandeis embora.» Harry e a morte chamaram-me a uma única voz e então pensastes que havíeis entendido tudo. Tolo, bastava-vos haver ouvido as primeiras palavras que lhe disse quando ele me estendeu as mãos: «Ela está em segurança, está bem, manda-vos todo o seu amor.» Se nos houvesses visto, passámos a noite como bons amigos - a única noite em que tive o meu amor nos braços! Só lhe falei da Gilleis e da criança que iria nascer, prometi-lhe que não seria torturado, que a sua morte estava nas mãos de Deus e não nas vossas.

Então, como agora, Harry dormira enquanto ela contava as horas, amorosa, livre de pecado, até de manhã, quando o acordara com um beijo para que se preparasse para morrer. Que sabia Gilleis, Adam ou qualquer outra pessoa ao cimo da terra, sobre aquela inexprimível ligação? Só Deus sabia dela, só Deus podia apartar o tempo e devolver-lhe aquela hora, para lhe dar firmeza de ânimo enquanto buscava o seu caminho. Onde estaria agora aquele corpo ágil e delgado, as mãos intrépidas, o rosto moreno e obstinado? Arrancado do túmulo secreto, possivelmente atirado ao Severn pela segunda vez para completar a vingança, segundo a convicção amarga de Adam, mas ainda não perdido - talvez Deus quisesse devolver-lhe esta ínfima parte dele.

Mal a escuridão começou a diminuir, antes da alvorada, Benedetta levantou-se do leito, sem haver dormido, e subiu até ao cume da colina, onde o vento principiava a despertar, onde os gemidos do mar lhe chegavam aos ouvidos: as ondas da maré-alta pareciam grandes suspiros, provocados por um desgosto antigo que finalmente se houvesse aquietado ao cabo de muito sofrimento. Soltou os seus longos cabelos e, silenciosa, concentrada, excitada, à espera de um sinal, passou o resto da noite a andar de um lado para o outro, como um cão de caça a seguir um rasto sobre a erva descolorida. Ao amanhecer desceu da colina, aparentando uma calma tão perfeita como uma escultura acabada de talhar, de uma forma e de um primor impossíveis de ser alterados, tal a admiração suscitada pela sua absoluta integridade.

John o Frecheiro, forte, curvado e escuro como um carvalho, estava a enrolar a manta que usara para dormir, atravessado na soleira da porta dela. Benedetta passara por cima dele, durante a noite, e ele nem se mexera - e por isso estava aborrecido, consigo mesmo e com Benedetta. De que servia um guarda se ela conseguia evadir a sua vigilância com tanta facilidade?

- Então já aí estais? - resmungou, afastando-se da entrada para a deixar passar. - Que foi que vos deu para andardes por aí levantada de noite? Se precisáveis de alguma coisa, bastava pedir-me para eu vos fazer o recado. Afinal, para que sirvo eu?

- Para me confortares e me fazeres companhia, e muito mais do que isso. Precisava de ar e de sossego: que poderá haver nesta colina que me faça mal?

- Ainda por cima não calçastes os sapatos, para não apanhardes frio logo de madrugada - disse John, zangado.

Foi buscar os sapatos de couro com atacadores e obrigou-a a calçá-los, aquecendo-lhe os pés com as mãos calejadas antes de lhes ocultar a brancura.

- Quereis ficar doente e só me haver a mim por enfermeiro?

- Podia ficar pior entregue, John.

Havia muito tempo, John cuidara dela, com grande ternura e constância, arrancando-a quase contra vontade ao umbral da morte. Benedetta lembrava-se das mãos rudes que lhe seguraram na cabeça e lhe enxugaram as lágrimas provocadas por aquele segundo nascimento. Também recordava a caneca de leite ainda quente, acabado de mungir, e uma camponesa de cabelo louro escuro e olhos meigos; já morrera, segundo diziam, depois de haver gerado uma filha que era o seu vivo retrato. Benedetta sentiu aqueles tempos passados a rodeá-la, como se fossem amigos chegados, iguais a si mesmos, nunca esquecidos. Este novo dia que se abria diante dela reunia todos os dias da sua vida, tal como acontece no momento da morte, num coração em paz.

- Mas agora tenho uma missão para ti - disse, estendendo a mão e acariciando-lhe o cabelo grisalho e espesso, enquanto ele lhe atacava os sapatos. - Preciso de escrever e mandar uma carta. Depois de comeres qualquer coisa, podes ir levá-la?

- Até hoje, não me lembro de haverdes conseguido dizer tudo o que queríeis à Senhora Boteler quando ela cá vem - comentou John, tolerante. - Imagino que vos esquecestes de pedir aquelas linhas, com tantas outras coisas em que pensar. Eu vou lá levar a vossa carta, ide escrevê-la.

- Desta vez não é para a Gilleis, John. A cavalgada que te peço será mais longa. Deixa-me escrever primeiro e já conversamos.

Ele lançou-lhe um olhar demorado e penetrante, mas não fez mais perguntas. Nunca recusaria fazer nada que ela lhe pedisse, incluindo calar-se e afastar-se, se fosse esse o seu desejo. Deixou-a só com uma pena acabada de afiar, que ele tinha o cuidado de manter em bom estado, e uma folha nova de pergaminho tirada da arca. Ela pôs-se a escrever com determinação, ponderando as palavras e, quando terminou, depois de selar cuidadosamente o rolo, já ele estava à espera com leite, pão fresco e mel de urze. Num vale mais baixo, John tinha três colmeias num local resguardado e cuidava amorosamente dos enxames durante o Inverno, para que nunca faltasse mel a Benedetta.

- Quereis que sele já o cavalo? Vejo que já acabastes de escrever.

- Vais precisar de levar comida - disse ela, abordando o assunto com suavidade - e dinheiro para pagar a dormida, pelo caminho. Já te disse que é uma jornada demorada.

John ficou hirto, assaltado de dúvidas e temores.

- Onde quereis que vá?

- A Parfois, John, ter com lorde Isambard.

Estava dito. Benedetta viu as mãos nodosas fecharem-se em punhos sobre os flancos e as recordações antigas brilharem nos olhos inteligentes como labaredas. John não esquecera e não perdoara coisa alguma. Outros poderiam perdoar, ele nunca. Certa vez, a sua vida estivera ameaçada sem razão e ela salvara-o, mas não era essa cena que John via, viva e nítida depois de tantos anos, quando o nome de Isambard era mencionado. Via o Severn, a torrente forte e acastanhada abaixo da Long Mountain, e um homem morto atado a uma mulher viva, ambos nus, e arrastados pela corrente em direcção a Breidden, enovelados numa cascata de cabelos ruivos.

- Por acaso não querereis mandar-me fazer alguma coisa ao Inferno? - perguntou. - Há lá melhores companhias.

- Harry está em Parfois, John - disse ela, com suavidade. - Irás?

- Bem me parecia que era isso que havíeis em mente. Sabeis bem que irei onde me mandardes, mas a esse lugar não o farei de boa vontade - replicou ele, sombriamente. -Acho que não ganhareis nada com esse pedido. Esperai, deixai que o príncipe o vá buscar à ponta de espada. Prefiro não vos ver rebaixada, a suplicar, para serdes repelida.

- E se não for? Como posso recusar-me a tentar, John, se, apesar do que dizes, houver uma possibilidade de ele me devolver o rapaz?

- Já outros lho pediram. Já outros suplicaram, ofereceram resgates e sei lá que mais, e em troca só receberam desprezo. Porque haveis de sujeitar-vos ao mesmo?

- E porque não hei-de sujeitar-me ao mesmo? Quem sou eu para me julgar acima dos outros? Ah, John - exclamou Benedetta, num grito breve e súbito - dá-me o teu apoio, só estou a cumprir a minha obrigação.

- Eu vou - respondeu ele, resignado.

Pelo menos ela não teria de assistir ao triunfo de Ralf Isambard. Se só pudesse trazer de volta uma recusa, pelo menos pouparia a Benedetta a parte mais cruel.

- Deus bem sabe que preferia cortar-lhe o pescoço do que falar com ele, mas farei o que me pedis. E que Deus vos poupe ao sofrimento por eu haver cedido. Dai-me cá essa carta. Que devo fazer quando chegar a Parfois?

- Diz aos guardas do posto avançado que desejas ver lorde Isambard, para quem levas uma mensagem de Benedetta Foscari. E para provar que vais realmente da minha parte, leva-lhe isto - disse ela.

Benedetta tirou um anel do dedo mindinho da mão esquerda. Muitas vezes se havia perguntado porque conservava aquela opala solitária no seu aro de ouro. Era a única coisa que ele não lhe tirara quando a despira e mandara lançar ao rio, uma coisa tão pequena que nenhum dos dois se lembrara dela, caso contrário Benedetta decerto o haveria atirado aos pés de Isambard. Este dera-lhe aquele anel em Paris, antes de atravessarem o mar a caminho de Parfois, ele com o coração preso a ela, ela com o coração cheio de Harry Talvace.

- Isambard reconhecerá esse anel, sem sombra de dúvida - disse ela.

John recebeu-o na palma da mão, morena e calejada, e pegou-lhe cuidadosamente, como se tivesse medo de se queimar ou de o partir, ao apertá-lo.

- E se ele me mandar matar sem mais aquelas? - perguntou, com algum fundamento.

- Se te receber na qualidade de mensageiro, não te fará mal. Para o bem e para o mal, foi sempre escrupuloso. Se te deixar entrar, a tua vida será sagrada. Ele próprio mataria quem te tocasse ou te ofendesse.

- E depois de entrar?

- Dá-lhe a minha carta e traz-me a resposta, por palavras ou por escrito. Deus te acompanhe, John, e favoreça os meus intentos.

- Amen - resmungou John, sem muita fé.

Depois de ele ter tudo preparado, Benedetta seguiu-o e observou-o, enquanto amarrava as sacolas e a capa à sela. Sob o calvário de madeira, o santo Clydog nunca virou a cabeça idosa, mas Benedetta sentiu que ele já sabia o que se passava e daria a sua opinião quando julgasse oportuno.

- John!... - segurou-o pelo arreio do estribo, quando ele ia partir. - Estás zangado comigo?

Olhou-a lá de cima: por baixo da barba hirsuta ela viu-lhe o sorriso, trémulo de carinho por ela.

- Não te zangues comigo - pediu Benedetta, como uma criança. - Se não fosses tu, que seria de mim?

- Deus vos ajude! - exclamou John, emocionado. Afastou-lhe o capuz com uma mão e acariciou, desajeitado, a cabeleira farta. - Minha menina! - disse, afastando-se dela e, metendo as esporas ao cavalo, lançou-se pela colina abaixo.

Quando o prior de Strata Marcella regressou da Primeira Hora, algum tempo depois das sete da manhã, encontrou um dos auxiliares do irmão hospitaleiro à espera à porta da sua cela, com ar ansioso, para pedir uma audiência da parte de um hóspede importuno.

- Dormiu cá esta noite, padre, e não nos pediu nada. Mas, esta manhã, veio ter comigo e rogou-me que o recebêsseis, por causa de um assunto muito sério. Diz que é um caso de vida ou de morte.

- Que espécie de homem te pareceu? - perguntou o prior, franzindo a testa.

- Um criado, padre, um criado de confiança. Já cá pernoitou outras vezes. Serve aquela dama que trouxe o corpo do mestre Talvace para ser enterrado aqui. Chamam-lhe John o Frecheiro.

- Diz-lhe que entre - disse o prior.

Porque os assuntos da Madonna Benedetta, ainda que ela se esforçasse por se esconder dos olhos e da memória num refúgio das colinas do Norte de Gales, estavam relacionados com o importante principado de Llewelyn e interligados com o generoso patrocínio que este atribuía à ordem de Cister, nesta margem do Severn. O prior não podia dar-se ao luxo de não receber um enviado dela.

John o Frecheiro entrou na cela de pedra fria e ajoelhou-se, para beijar a mão do sacerdote. Os dedos finos deram-lhe a bênção.

- Meu filho, sei que queres pedir-me alguma coisa. Ouvir-te-ei. John levantou-se, direito, forte e moreno como o tronco de uma

árvore. Segurava a carta de Benedetta, com as duas mãos, mantendo o rolo de pergaminho bem seguro.

- Padre, preciso de vos contar esta história à minha maneira, pois necessito da vossa ajuda e deveis conhecer todos os pormenores. Há três dias, a minha ama escreveu esta carta, deu-me o seu anel como salvo-conduto e pediu-me que a levasse a Ralf Isambard, de Parfois, a entregasse nas mãos dele e lhe trouxesse a resposta. Como bem sabeis, padre, este homem mantém prisioneiro o jovem Harry Talvace, que é filho adoptivo do príncipe Llewelyn e muito querido da minha ama. Foi ela que o levou para fora de Inglaterra, são e salvo, mais a sua mãe, quando ele era apenas um recém-nascido. Sei disso porque fui eu que a acompanhei nessa jornada. Sirvo-a desde então e continuarei a servi-la até morrer. Que havia eu de pensar, padre, quando ela me mandou levar uma carta a Isambard?

O prior meditou por momentos na pergunta, aparentemente simples, sem se aperceber da sombra que obscurecia o rosto gasto pelo tempo que tinha à sua frente.

- Penso que a Madonna Benedetta quer interceder pela libertação do rapaz, por julgar ser capaz de comover um coração que, em tempos, dava todo o valor aos desejos dela. Acho que ela cuida poder convencê-lo, apesar de outros que ofereceram resgates haverem falhado.

- E achais sensata esta esperança, padre?

- Não parece provável, mas não é insensata. Não há nada a perder em tentar.

- Então, até aqui estou desculpado - disse John, sorumbático - pois também pensei assim. Por isso, peguei na carta e pus-me a caminho, sem maus pensamentos, mas sem esperar nada de bom.

Estava certo de que o pedido seria recusado, e de maneira cruel, pois o demónio que lhe empresta a esperteza, sempre lhe emprestou mais do que a necessária. Mas ainda havia uma réstia de esperança de ele se comover. Durante todos estes anos, Isambard não recebeu notícias dela e duvido que saiba com certeza se ela está viva ou morta. Ter outra vez na sua mão o anel dela, assim de repente, sem aviso... pensei que até uma pedra havia de se comover. Todavia, padre, precisamos lembrar-nos daquilo que ele fez a Madonna Benedetta. Acha que lhe daria o que ela quer, depois de a haver atirado viva ali para o Severn, com o mestre Harry nos braços, para ela apodrecer agarrada a um cadáver insepulto? Nunca! Se ele soubesse de qualquer coisa, que ela ainda quisesse, de qualquer coisa que ela estivesse disposta a implorar, seria uma alegria para ele servir-se dessa coisa para a ferir e humilhar. Porque haverei confiado nela? Porque haverei acreditado? Mas, até agora, ela nunca me mentiu: leva a carta, disse ela, e traz-me a resposta. Fui eu que peguei naquele escrito, sem lhe perguntar o que dizia.

- Era teu dever fazê-lo - disse o prior, severamente. - Continua a ser o teu dever.

- O meu dever como seu criado. Mas também sou um homem: antes do mais, sou um homem. Cumpro o meu dever para com ela o melhor que posso, como seu criado. Mas como homem, amo-a mais do que a minha vida ou o meu dever. Ela cobriu-me com o seu manto e salvou-me a vida... a vida do homem, não do criado! Devo deixá-la caminhar para a morte para ficar livre de culpas?

- Tu leste a carta! - exclamou o padre, levantando-se, indignado.

- Padre, se soubesse ler não precisava de vir ter convosco. Não preciso que me digais o que devo fazer - disse, dando um passo em direcção do sacerdote, segurando o pergaminho à sua frente. - Padre, sonhei com a Madonna Benedetta durante a noite. Eu estava na margem do Severn, que havia subido e corria escuro, forte e rápido, e as pranchas do ancoradouro rangiam e separavam-se devido à corrente. Já tive este sonho muitas noites, mas nunca foi tão claro. E, tal como naquele dia, lá vinha ela arrastada pela corrente, pálida e nua, com um homem nos braços e, como naquele dia entrei na água e puxei-os para a margem. Só que desta vez, o homem levantou-se quando o desatei e afastou-se de nós vivo e são: vi que era o jovem Talvace, o rapaz que ela quer libertar. Desta vez, ela estava nos meus braços, e eu soprei-lhe para dentro da boca, aqueci-a contra o peito, mas ela não se mexeu. Apertei-a contra o meu coração e estava morta, padre. Quando acordei percebi que Deus me mandara este sonho e que levava comigo a morte dela, selada com o seu próprio selo.

A voz rouca fora diminuindo cada vez mais, até se tornar num murmúrio áspero; as palavras saíam lentamente, tão carregadas de horror e de fé que não sobrava espaço para a paixão. Quando acabou, levantou a cabeça descaída e fitou o prior nos olhos, aproximando o pergaminho que segurava nas mãos como se fosse uma oferenda.

- Padre, lede-me isto. Preciso de saber o que ela quer fazer para poder saber o que hei-de fazer.

O padre recuou um passo para evitar o contacto.

- Não posso quebrar o selo da tua ama, homem. Como podes pedir-me tal coisa?

- Não há necessidade, já descolei o selo. Posso compô-lo outra vez. Só preciso de uma faca afiada e de uma vela.

- Abriste a carta? Como foste capaz de trair a tua ama? Que fizeste?

O prior sabia que estava a falar para o ar: mais valia pedir a uma árvore enraizada nas montanhas para se sentir culpada por crescer, urgente e laboriosamente, consoante era da sua natureza. E como podia ele pretender, face a um amor e a um pavor tão intensos, orientar este assunto de acordo com as regras da sociedade? Este homem iletrado possuía, naquele momento, o dom da eloquência: talvez fosse ele a ver a verdade com maior clareza.

- Fiz aquilo que devia. Nunca vos pediria para o fazerdes. Hei-de prestar contas a Deus pelos meus actos no dia do juízo final. Se Ele decidir condenar a minha alma, a minha boca não se abrirá, desde que a alma dela continue no seu corpo até Deus querer vir buscá-la e levá-la para Si. Achais que viria ter convosco com alguma coisa de que me envergonhasse, padre? Que importância tenho eu? Para que me serve a honra? A minha honra é manter a minha senhora longe de perigos e sofrimentos. Não possuo nem quero outra. O prior começou a estender o braço para pegar na carta mas hesitou e voltou a retirá-lo.

- Padre, lede-me esta carta. Podia haver pedido a um dos vossos noviços para o fazer, mas vim ter convosco porque preciso da bênção de Deus para a minha deslealdade, que para mim é lealdade. Não vos escondi nada nem quero o vosso perdão. Dizei-me apenas o que ela escreveu.

- Em nome de Deus - disse o prior, agarrando no pergaminho com firmeza e desenrolando-o.

O silêncio tornou-se longo e pesado, carregado pelo fardo insuportável dos olhos ansiosos, agonizantes, daquele homem. Por aquele silêncio percebeu tudo, excepto as palavras que Benedetta usara; conhecendo-a como a conhecia, até podia adivinhá-las. Entretanto, o prior começou a ler, numa voz baixa e calma:

«Ao mui nobre e poderoso Ralf Isambard, senhor de Mormesnil, Erington, Fleace e Parfois, digo:

«Senhor, haveis na vossa posse a pessoa de Harry Talvace, filho de Harry Talvace, de quem certamente vos recordais, mais ainda por haverdes a sua cópia fiel constantemente diante dos olhos. Eu sou possuidora do corpo e da vida de Benedetta Foscari, que em tempos bem conheceste. O corpo não é já um bem tão raro que se possa considerar valioso para vós. Quanto à vida, se lhe dais algum valor, como em tempos me deste motivos para crer, está ainda intacta e posso dispor dela como entender. Se quiserdes aceitar a troca do vosso prisioneiro por esse corpo, concluirei um trato convosco nestes termos. Não estabeleço condições para a troca, à excepção desta: quaisquer dívidas e queixas contra Harry Talvace serão consideradas saldadas para sempre e ele será libertado, havendo direito a um cavalo, roupa e todos os seus pertences. Se aceitardes, podereis dispor da minha pessoa e da minha vida como vos aprouver. Mandai-me a vossa resposta, sim ou não, e se for sim irei de imediato para Parfois.

«Na esperança e na expectativa de vos ver em breve cara a cara, poupo-me aos cumprimentos e acrescento apenas um voto: de que Vossa Senhoria possa viver o tempo suficiente e com a bondade de espírito suficiente para me abrir de novo as suas portas, depois de tantos anos.

«Entregue em mão pelo meu querido e fiel John o Frecheiro, neste décimo dia de Agosto de 1233.

Benedetta Foscari»

A toada manteve-se ininterrupta até ao fim, embora a voz baixa houvesse vacilado ao perceber o significado da frase «Quanto à vida...»; quando chegou ao ponto «querido e fiel...», John ergueu as mãos toscas, impotente, num gesto despropositado de dor e de saudade, e mergulhou os dedos na barba. Terminada a leitura fez-se silêncio por momentos e os ruídos do exterior começaram a ouvir-se debilmente: os cânticos da primeira missa, os balidos esparsos das ovelhas nas pastagens ao pé do rio, os trinados agudos dos pássaros.

- Eu não vos disse? - perguntou John, a custo, através do nó de angústia na garganta. - Ela vai dar a sua vida a alguém que a tratou como ele a tratou, vai voltar para ele para ser despida, humilhada e afogada outra vez, só para libertar o rapaz. Ai, minha ama, achais justo utilizar-me para isto? Achais justo?

- Deus há-de resolver tudo! - observou o prior num murmúrio perturbado, com o pergaminho a tremer-lhe nas mãos. - Tu não vais entregar esta carta, pois não? Esta troca não pode acontecer.

- Deus há-de resolver tudo, mas pela minha parte farei o que puder.

Estendeu a mão, firme como uma rocha agora que já conhecia a parte pior. Por instantes, o seu coração impelira-o a virar o cavalo e voltar para trás, furioso e horrorizado, para enfrentar Benedetta e censurar-lhe havê-lo usado daquela maneira; mas esse impulso passara. Havia outras formas de resolver o assunto, agora que sabia tudo.

- Dai-ma outra vez, padre. Haveis feito o vosso papel e agradeço-vos. O resto é comigo.

- Mas não vais entregá-la, pois não?

O prior observou-o, enquanto John enrolava cuidadosamente o pergaminho, manuseando com uma delicadeza amarga o selo quebrado que ainda havia de compor.

John não lhe deu resposta: limitou-se a esconder a carta no peito, sob a cota e a retirar-se com passos suaves e oblíquos em direcção à porta. Os seus olhos brilhavam com dureza, para lá da dor; John já não precisava de ninguém.

- Rezai por nós, padre - pediu, já à porta. - Rezai por nós todos, para conseguirmos sair ilesos de tudo isto.

 

Parfois: Agosto de 1233

Revigorado pela cavalgada e de bom-humor, Isambard descia do cume de Long Mountain, com os cabelos grisalhos descobertos, ao sol e ao vento, acompanhado por uma escolta de meia dúzia de jovens gentis-homens que cavalgava alegremente atrás dele. Ao fundo do carreiro ascendente que ia dar a Parfois, feliz e descontraído, sem pressa de regressar à cavalariça, o alazão começou a andar a passo e Isambard deixou que as rédeas pendessem sobre o pescoço do animal, para que este avançasse ao seu próprio ritmo. Cavalo e cavaleiro entendiam-se às mil maravilhas. Harry sentia-se sem dúvida irritado por ver o seu Barbarossa trotar tão alegremente, transportando o seu inimigo, mas conseguia dominar o desgosto e, por vezes, agradecer a Isambard pela excelente saúde do animal e pelos cuidados que este recebia. Desempenhava essa tarefa desagradável sem um sorriso e de cabeça erguida, mas com lisura e firmeza, como convinha ao homem em que se transformara, e fitando o seu captor nos olhos.

Os cavaleiros chegaram ao local onde o carreiro se tornava mais estreito e o arvoredo mais cerrado, ocultando o precipício rochoso, do lado esquerdo, e a encosta coberta de erva, do lado direito.

A primeira torre acabada do posto avançado da guarda surgiu diante deles e, também, os materiais de construção empilhados ao lado da rampa, ao longo de umas vinte jardas: pedra não talhada, tábuas, vigas, armações de andaimes, cordas, tapumes e a brancura estonteante da cal. A segunda das antigas torres já fora demolida e o entulho ainda estava por recolher. O espaço para os alicerces da nova torre, que iria substitui-la, encontrava-se demarcado com cordas brancas, do lado oposto da primeira, já construída. Fora preciso escavar até à rocha para abrir alicerces suficientemente sólidos para suportar todo aquele peso, mesmo junto à orla da encosta escarpada. Os reflexos da luz do meio da manhã dançavam e reflectiam-se sobre o grés esbranquiçado.

Isambard recordou-se de um outro espaço desobstruído, preparado para a construção. Ao lado da grande cicatriz aberta, os primeiros carregamentos de pedra da longínqua pedreira de Bryn, recém-chegados da viagem de barco pelo Severn: eram cinzentos, de um cinzento pálido com reflexos dourados, e continham todo aquele esplendor de beleza, todas aquelas formas de adoração e maravilha seladas e seguras dentro de si. A sua memória não evocava nunca a pedra talhada, já pronta; o seu pensamento ia sempre para as grandes folhas abertas da igreja de mestre Harry, reunidas em copas triunfantes e rígidas, que sustentavam a abóbada do céu e todo o mundo para além dele.

- Senhor! - chamou Thomas Blount, que se encontrava sempre ao seu lado. - A sentinela fez-vos sinal. Deve ser por mor de algum mensageiro; aquele cavalo não é nenhum dos nossos. Parece um cavalo de montanha.

Isambard expulsou da mente as imagens interiores que, desde a chegada de Harry, tão frequentemente o assaltavam e olhou para a torre, onde o guarda segurava as rédeas de um animal baixo e possante, de abundante pêlo castanho, comprido. O cavaleiro, que se preparava para desmontar, era também ele baixo e possante, dotado de uma barba hirsuta que começava a embranquecer e de fartos cabelos encaracolados, que tinham uma certa semelhança com a pelagem do cavalo. Os olhos, vivos e brilhantes, semicerrados por causa do sol, espreitavam-no por baixo das sobrancelhas grossas.

Uma imagem fugaz atravessou-lhe o espírito, mas não pelo tempo suficiente para o fazer lembrar-se do que teria aquele camponês robusto a ver consigo; todavia, o coração remetia-o sem apelo para o passado.

- Está aqui um homem, senhor - anunciou o guarda, aproximando-se respeitosamente - que diz trazer uma carta para vossa senhoria, de alguém que conhecestes bem no passado. Não quer dizer o nome e pretende entregar-vos a carta pessoalmente. Afirma trazer consigo uma prova que vos dará satisfação. Ides falar com ele?

Isambard fez avançar lentamente o alazão e, pensativo, fitou durante algum tempo o homem que o aguardava, sem falar nem fazer qualquer vénia. Os olhos semicerrados e impenetráveis sustentaram o seu olhar.

- Acaso te conheço?

- Não me cabe a mim dizer se sim ou não, senhor. Mas eu conheço-vos - respondeu John o Frecheiro.

A voz cumpriu o seu papel. Duas chamas rubras acenderam-se nos olhos de Isambard. Não era ainda um reconhecimento, mas apenas a sensação de que o tempo voltara para trás e mandara o passado bater-lhe à porta. Libertou o pé direito do estribo e, num acesso de zelo, Thomas saltou do cavalo para lhe segurar no outro estribo. Nos últimos tempos, mostrava-se ainda mais devotado nos seus serviços; estava sempre presente, sempre pronto, sempre por perto, tão por perto que quase não havia palavra que escapasse aos seus ouvidos atentos.

Com um franzir de sobrolho e sem desviar os olhos do rosto curtido do mensageiro, Isambard indicou-lhe que se afastasse.

- Não foste um dos meus homens, outrora?

- De corpo e alma, senhor. Pertencia-vos mais do que o cavalo que montais.

A resposta fez brotar um sorriso. Isambard acariciou o pescoço reluzente do alazão, mas os seus olhos continuaram a perscrutar o rosto carrancudo e o olhar opaco, em busca da imagem fugidia. Avançara um grande passo: o homem conhecia o cavalo de Harry Talvace e não receava proclamar esse conhecimento.

- Disseste ter contigo uma prova que eu reconhecerei. Deixa-me vê-la.

John meteu a mão por baixo da cota e tirou de lá um anel. O pequeno anel de ouro, tão pequeno que até Benedetta tivera de o usar no dedo mindinho, oscilou suavemente na mão rude e a opala captou a luz e absorveu-a, cintilando com um brilho melancólico, velado de azul.

Antes de reconhecer o anel, Isambard estendera a mão para lhe pegar e o súbito tremor que lhe percorreu os dedos e os imobilizou no ar provocaram uma reacção de espanto e de receio em todos quantos observavam a cena. Prontos a defender-se, os espectadores desviaram os olhos do anel para o rosto de Isambard, em busca de indícios de uma explosão de cólera. O senhor de Parfois era sempre imprevisível e, neste caso, não sabiam o que pensar. A sua imobilidade era tal que eles não faziam ideia do que dela poderia resultar. Sustiveram a respiração, remexendo-se, inquietos, na agonia da expectativa, mas Isambard não tinha mais consciência da presença deles do que da brisa que lhe agitava os cabelos. O seu rosto apresentava a rigidez da morte, contudo sem a serenidade que esta traz consigo: ainda era capaz de exprimir dor e raiva, amor e ódio, nas suas rugas profundas, e só Deus sabia o que se ocultava por detrás das pálpebras descidas.

- Reconheceis os vossos próprios presentes, senhor? - perguntou John o Frecheiro.

Sim, reconhecia, reconhecia ambos: o anel e o homem. Dezoito anos são muito tempo. O tempo faz um homem mais baixo, torna-lhe o andar menos seguro, enruga-lhe o rosto, embranquece-lhe os cabelos, mas não lhe rouba ao olhar o brilho que traduz a plenitude do seu ódio, nem ao coração a amargura que transpira nas suas palavras.

Isambard mergulhou num poço de recordações. Aquele era o homem que Benedetta salvara das presas do cão, em Paris, e tomara ao seu serviço; o mesmo que escapara com ela para o País de Gales, quando tudo acabara, que a ajudara a salvar Gilleis e o bebé e a entregá-los aos cuidados de Llewelyn. Fora ainda ele quem disparara a flecha que roubara a presa ao carrasco gascão. Era estranho o modo como as imagens voltavam à memória: as que menos importavam voltavam mais rapidamente e com maior nitidez, com todos os pormenores e todas as cores. Lembrava-se perfeitamente do gascão: um homem magro e elegante, que parecia um prelado bem-nascido e se vangloriava de ser capaz de esventrar um condenado e de o deixar com voz suficiente para se lamentar. As imagens dos próprios guardas que haviam vigiado mestre Harry durante o cativeiro encontravam-se perto da superfície da memória, prontas para emergir se fossem invocadas. Só a imagem de Benedetta permanecia remota e vaga. Isambard conhecia de cor todos os seus traços e, todavia, os olhos do espírito procuravam e sondavam em vão: ela recusava-se a materializar-se.

A mão, que se imobilizara a meio do gesto, pegou delicadamente no anel.

- Dou-me por satisfeito - disse Isambard, em voz baixa e amena.

- Então, concedei-me uma audiência privada, para eu vos entregar a carta da minha senhora.

- Podes seguir-me até à igreja.

Não até um dos terreiros. Ainda não. Aquela hora, Harry Talvace podia andar cá fora, a fazer exercício com os mais novos ou a trabalhar ao sol, diante da sala de desenho, com a sua pedra e as suas ferramentas. Fosse qual fosse o conteúdo da mensagem trazida por aquele intruso vindo do passado, seria uma loucura deixar que o rapaz o visse antes de tempo.

- Deixai-o acompanhar-nos - ordenou Isambard ao guarda, voltando-se para montar Barbarossa de novo.

O zeloso Thomas apressou-se a segurar-lhe o estribo, fitando-o com os seus olhos azuis e límpidos que tão bem sabiam fingir inocência, ainda que um pouco brilhantes demais, naquele momento, devido à curiosidade que a misteriosa dama do anel nele havia despertado. Mas de nada lhe serviram os olhares atentos, de esguelha, por baixo das pestanas compridas: o rosto do seu senhor manteve-se calmo e impenetrável. Ao agarrar o anel entre o polegar e o indicador, Isambard quebrara a tensão e afastara de si, com autoridade, os estilhaços do incidente. Contudo, Thomas viu-o guardar o anel no interior da cota e achou interessante a forma como o fez.

Subiram a rampa a trote moderado e, ao chegarem à esplanada da igreja, Isambard mandou embora os companheiros.

O Sol já ia alto e, sob a muralha ameada de Parfois, as sombras eram esguias e os telhados, que pareciam pretos quando havia nuvens, apresentavam agora uma brilhante cor de cobre. Quando Isambard abriu a portinhola da porta ocidental e entrou, à frente, dentro da igreja, os raios directos do sol entravam, quase na vertical, pela janela e derramavam jóias coloridas nas paredes; a grande embarcação invertida que era a nave central estava inundada de luz reflectida, que iluminava até a mais remota bossagem, ao fundo da viga mestra do telhado. O ar vibrava sob a luz, como o último eco, quase inaudível, de uma nota de música. A luminosidade e o espaço pareciam elevar os passos dos dois homens acima das lajes do chão, fazendo-os flutuar em direcção à abóbada.

- Dá-me a carta - ordenou Isambard.

Pegou no pergaminho e quebrou o selo sem hesitar e John voltou a respirar: o primeiro obstáculo fora superado. Observou o rosto grave de Isambard, até que a luz multicor por trás da cabeça imóvel se alterou sob a intensidade do seu olhar e o perfil anguloso que se recortava contra ela se tornou negro, por contraste.

Depois de ler algumas linhas, Isambard deu meia volta e dirigiu-se para o fundo da nave, com o pergaminho na mão. Ali chegado, parou, de costas voltadas, e leu a mensagem até ao fim, deixando-se depois ficar imóvel e silencioso durante bastante tempo. Não se ouvia qualquer som: apenas o tremor da luz vibrante que parecia entoar um cântico mudo. A certa altura, John ouviu estalar o pesado fecho de ferro da portinhola, como se esta houvesse sido tocada por uma mão ou um corpo se encontrasse encostado a ela. O som fora tão fraco que só lhe chegara aos ouvidos porque na igreja reinava um silêncio absoluto; John não lhe prestou atenção e esqueceu-o em seguida.

Mesmo que Isambard não conhecesse tão bem aquela caligrafia - larga, ousada e decidida como a de um homem - as frases contidas na mensagem haveriam bastado para despertar a imagem dela na sua memória. Atrás desta vieram muitas recordações insuportáveis. Nítido e ardente, o rosto de Benedetta surgiu diante dele: os olhos grandes e afastados, os traços altivos, a boca apaixonada e audaciosa, o longo manto de cabelo ruivo escuro. Dezoito anos! Como teria o tempo passado por ela?

Em longas passadas, firmes e tranquilas, Isambard regressou para junto de John. O seu rosto não exprimia triunfo, vergonha ou desgosto: nada. Apenas se notava uma ligeira contracção nos lábios e as janelas dos olhos encovados estavam bem fechadas.

- Diz à tua senhora que a proposta foi aceite. Diz-lhe: sim, vinde.

- É só essa a vossa resposta, senhor?

- Bastar-lhe-á. E, em troca da prova que me enviou, entrega-lhe isto.

Era o anel de rubi que usava no dedo, tão raramente retirado que Isambard teve dificuldade em fazê-lo passar pela articulação. Uma marca branca ficou visível sobre a pele tisnada.

- Ela reconhecê-lo-á - prosseguiu Isambard, olhando para a mão com um sorriso sombrio. - E não precisará de mais palavras.

- Já que aceitais as suas condições, senhor...

Isambard ergueu a cabeça com brusquidão; os seus olhos voltaram a apresentar um brilho perigoso.

- Sabes o que ela escreveu, não é verdade?

- A minha senhora confia em mim - respondeu John, em tom abrupto, revirando a faca na ferida.

- É provável. Tanto quanto me lembro, tem boas razões para tal. E então?

- Visto que aceitais as suas condições, atrevo-me a pedir-vos um favor que ela mesma não pediu. Sabeis que podeis confiar na sua palavra, do mesmo modo que ela confia na vossa. Se tencionais entregar-lhe o rapaz, entregai-o agora. Deixai-o regressar comigo e dai-lhe a alegria de o ver são e salvo, antes de se colocar nas vossas mãos, no lugar dele.

- Não - replicou Isambard, de imediato. - Não posso fazer isso.

- Sabeis bem que ela cumprirá o que prometeu.

- Bem sei. Mas o rapaz é outra questão. Cuidas que iria aceitar um tal acordo, entre mim e ela, sem ter uma palavra a dizer? Verias que ele haveria muito para dizer, alto e bom som - disse Isambard, secamente. - Eu conheço-o. Bastaria ver-te aqui e ouvir-me dizer: «Estás livre. Parte com ele.» Cuidas que o Harry não iria perceber quem comprara a sua liberdade? E pensas que se calaria, até saber em que condições?

John ficou de boca aberta, sem argumentos. O que Isambard dissera era verdade, ele próprio devia haver-se lembrado disso. Não era possível fazer Harry sair de Parfois, daquela maneira. Se isto falhasse, tudo haveria falhado e apenas lhe restaria deixar Benedetta entregar-se, ou mentir-lhe, abandonando Harry ao seu cativeiro. Se ao menos conseguisse entregar o rapaz a Llewelyn, poderia contar com o poder do príncipe para impedir Benedetta de cumprir a sua promessa. Claro que isso acarretaria inúmeras discussões e denúncias de má-fé. Mas que importava? Seria ele - e só ele - a ser acusado de faltar à palavra dada e de os trair a todos. O resto poderia ser resolvido através de um resgate, de uma arbitragem ou da mediação da comissão da trégua... por qualquer meio que não fosse entregar de novo o filho adoptivo. John previra todas as dificuldades, excepto a mais elementar: a recusa de Harry.

- É só um rapaz - argumentou teimosamente, apesar do que lhe dizia o coração. - Não é preciso dizer-lhe a verdade, mesmo que ele faça perguntas.

- És um tolo. Crês que consegues que ele atravesse a ponte, sem lhe dares uma resposta que o satisfaça? Ou que podes fazê-lo dar um passo que seja, depois de lhe responderes? Ele não sairia do mesmo sítio. Não, o Harry fica aqui até a tua senhora vir libertá-lo. Vai e transmite-lhe a minha resposta.

A audiência terminara; nenhum rei poderia ser mais explícito.

- Queres entrar em Parfois para te refrescares, e à tua montada, antes de voltares a partir? - perguntou Isambard. - Não podia convidar-te a entrar antes de o Harry se encontrar longe do nosso caminho mas, agora, já deve estar fora da vista.

- Faz muitos anos que comi a minha última refeição à vossa mesa, senhor. Não quero o vosso tecto sobre a minha cabeça nem o vosso pão na minha boca.

- Como queiras - disse Isambard, com um suspiro e um encolher de ombros. - Nesse caso, não te oferecerei nenhuma recompensa pelo teu trabalho, pois receio que ma atires à cara. Quanto aos meus agradecimentos, temo que nada signifiquem para ti e não valha a pena apresentá-los. Ainda assim, agradeço-te.

Estava feito. Não servia de nada continuar ali a perder tempo. John afastou-se para a penumbra do pórtico, deixando o senhor de Parfois na nave central da sua igreja - alto, imóvel e sombrio - sob a luz cintilante que cantava à sua volta, um carrilhão de cores trementes como as da água batida pelo sol ou a vibração de asas em pleno voo. A figura rodeada pela luz mais parecia uma figura de pedra. Como de pedra era o busto que a representava e que encimava a aduela da porta por onde saiu, para emergir no prado batido pelo sol do meio-dia. Das duas imagens, aquela que o mestre Harry esculpira era a mais eloquente. Mesmo ao cabo de dezoito anos de erosão, não era possível dizer se a dureza da pedra poderia rivalizar com a dureza do homem de carne e osso.

A cinquenta jardas de distância, no prado, com um braço sobre a sela do cavalo que pastava, Thomas Blount seguia os movimentos do animal; o seu rosto ameninado estava tão sereno e inexpressivo como o céu de Verão.

Aelis voou ao encontro de John assim que este passou pela pequena porta do cercado. Estivera a ordenhar a vaca, tinha a saia arregaçada até aos joelhos e os cabelos apanhados atrás para não a incomodarem.

- Havei-lo visto? Ele está bem?

A jovem agarrara as rédeas do cavalo e conduzia-o para o estábulo; era mais prudente não o deixar lá fora, na clareira, não fosse alguém ver o animal e reconhecê-lo. Os viajantes eram poucos por aqueles caminhos, mas Parfois ficava demasiado perto e podia ser um perigo.

Carrancudo, John abanou a cabeça.

- Nem de longe. Deixa-me entrar, rapariga. Preciso de falar com o teu pai. Não, voltei de mãos vazias. Ele não pode sair dos terreiros e não me autorizaram a entrar lá. Pelo menos até o haverem escondido em qualquer lado.

- Mas falastes acerca dele, não falastes? - insistiu Aelis, segurando-o pelo braço. - É verdade que ele está vivo, não é? Pelo menos isso é certo?

Seria mesmo certo? Podia alguém ter a certeza de uma coisa que não vira, ouvira ou tocara com os seus próprios sentidos? Mas preferiu tranquilizá-la:

- Está vivo. E, tanto quanto sei, está bem.

- Mas não pudestes libertá-lo - disse ela, num tom renitente e um pouco agressivo, apesar de não haver ficado verdadeiramente desapontada, visto que poucas esperanças alimentara.

- Não, minha filha. Vai ser preciso esperar mais um pouco. Que mais poderia dizer-lhe? Nem ele mesmo sabia o que havia

de fazer a seguir. A única certeza que tinha era que não ia voltar para Aber nem levar o anel e a mensagem a Benedetta, deixando que ela cumprisse o prometido. Acontecesse o que acontecesse, ela não voltaria a cair nas mãos de Isambard. Podia regressar e mentir-lhe, dizendo que a oferta fora rejeitada, mas isso seria impedir o resgate de Harry. Ademais, receava confrontá-la com uma mentira. Ela conhecia-o havia tanto tempo que lia nele como num livro aberto; havia de ver a falsidade a enrolar-se-lhe na garganta, como um corpo estranho, que o denunciaria mal fosse pronunciada. Ao ver a sua expressão de cão abandonado, podia mesmo adivinhar que ele a traíra, que violara a sua carta e fizera tudo para contrariar a sua vontade. Sem a confiança da sua senhora, a vida não era vida. Não podia voltar para junto dela de mãos vazias. Se houvesse outro meio, era preciso encontrá-lo. Se rezasse, iria Deus ouvir as preces de um homem caído nas malhas da traição e da deslealdade? Talvez ouvisse as preces da rapariga - talvez até falasse pela boca dela. Aelis, pelo menos, estava isenta de pecados.

- Mas o que aconteceu? - insistia ela. Os olhos azuis brilhavam no rosto decidido. - O que foi que vos disseram?

- Vamos ter com o teu pai, rapariga, e já te conto tudo. Recolheram o cavalo e foram para casa, onde já se encontrava

Robert. John contou-lhes a história toda.

- Não podes voltar para junto da tua senhora apenas com a palavra dele - disse Robert.

- Antes morrer. Só nós os três sabemos que ela quis comprar a liberdade do rapaz. Eu haveria dado meia volta e recusado entregar aquela carta, se não houvesse pensado que podia convencer Isambard a deixar partir o Harry, fazendo confiança na palavra dela. Quando soubesse disto, a minha senhora havia de querer pagar o preço prometido, mas eu contava com Llewelyn para a impedir de o fazer. Fui um grande tolo, ao pensar que tudo se poderia resolver assim. Isambard está certo: o Harry nunca deixaria que nenhum de nós carregasse o seu fardo. Mesmo que conseguisse enganá-lo e convencê-lo a voltar para Aber comigo, ele regressaria a Parfois mal soubesse a verdade. E duvido que o príncipe tentasse dissuadi-lo. O mais certo era beijá-lo e deixá-lo partir com a sua bênção. Portanto, voltamos ao ponto de partida. A única diferença - acrescentou, com amargura - é que eu faltei ao meu dever para com a minha senhora. E para nada! Para nada!

- Que vais fazer? - perguntou Robert, em voz baixa.

- Sei lá! Se ao menos Deus me indicasse um caminho! Tem de haver algum. E temos de o encontrar.

Aelis estava acocorada no chão, com o queixo entre as mãos e os olhos fixos no vazio. Em que pensaria? Talvez houvesse vendido dez vezes Madonna Benedetta, para libertar Harry do cativeiro. Talvez sentisse o desdém da maior parte das mulheres pelos absurdos da honra, que levavam os homens a dar a vida em nome de escrúpulos e forçavam um rapaz obstinado a regressar voluntariamente à prisão, em vez de gozar a liberdade e aceitar o descrédito por faltar à palavra dada. Mas ela amava esse rapaz, com os seus valores e as suas virtudes, talvez mesmo com os seus defeitos. Não, nunca seria capaz de o culpar. Aceitava o facto de ele haver cumprido o seu dever. O seu espírito vagueava por outros caminhos.

- Se o velho lorde morresse, acabavam-se as nossas preocupações - disse de súbito.

Aelis não teve consciência do que dissera. Para ela, o silêncio - que fazia lembrar a John o silêncio que se seguia ao trovão - não tinha qualquer significado terrível. Em tom melancólico, prosseguiu:

- Se ele morresse, ninguém mais pensaria em manter o Harry cativo. O vosso príncipe podia pagar o resgate, sem ser preciso regatear muito. É o velho quem o retém para o atormentar. Se fosse o filho a decidir, havíeis de ver que o deixava partir sem grandes problemas. O filho não conheceu o mestre Harry e não sabe nada do Harry. Que significa um Talvace para ele? Vendia-o de boa vontade, para evitar complicações.

Aelis ergueu a cabeça e fitou John, com olhos inocentes de qualquer intento malévolo, sem ver a distorção do entendimento reflectido nos olhos dele.

- Haveis dito que o rei não quer mais inimigos, pois já há os suficientes. E os novos favoritos do rei também não estão interessados em arranjar mais, quando tantos senhores pegaram em armas contra eles. O filho de lorde Isambard é um dos homens do rei. E há muito a perder, se os seus inimigos arranjarem aliados em Gales. Ele entregaria Harry ao príncipe Llewelyn, para lhe dar satisfação e manter a paz na fronteira.

É da boca das donzelas e das crianças que saem as verdades. John virou a cabeça para o lado, para ocultar o quase insuportável brilho de esperança que lhe queimava os olhos e inflamava a mente. Aelis estava certa; apontara o dedo para o único caminho a seguir e até onde este levava. Agora, William Isambard era um oficial do reino, unha com carne com des Rilvaux e um dos seus conselheiros mais próximos. Se os do Poitou caíssem em desgraça, ele também cairia e havia muito a perder: favores, poder e posição. Se herdasse Parfois, seria do seu interesse impedir que o príncipe de Aberffraw se juntasse aos aliados do conde marechal, reforçando assim as fileiras dos inimigos de des Rilvaux. Bastaria um pedido de Llewelyn e o seu filho adoptivo seria libertado são e salvo. Que importava se em troca de dinheiro ou como oferenda? William ficaria muito contente, ao descobrir que era detentor de um trunfo tão valioso e, se pedisse um resgate, seria um resgate simbólico. Faria tudo para conquistar a gratidão de Llewelyn e para o impedir de desencadear qualquer acção hostil.

Tanto quanto se sabia, pai e filho também não morriam de amores um pelo outro. William esperava havia demasiado tempo pela sua herança. Ficaria bastante contente, se o velho fosse afastado deste mundo.

- Tudo isso está muito certo, mas ninguém morre só por nós querermos - observou Robert. - Sem contar com Deus, há muita gente à espera da sua morte. Mas receio que seja preciso esperar que chegue a hora dele.

Seria preciso? Seria mesmo preciso esperar? Aquelas mãos haviam disparado a flecha que matara mestre Harry, antes que o carrasco lhe pudesse tocar. Nas aldeias, dizia-se que fora Deus que o levara e que a flecha partira de bem mais alto do que o cimo da torre da igreja. Não poderia Deus voltar a servir-se das mesmas mãos e da mesma destreza? Ia precisar de alguns dias para se preparar, para escolher o local e o momento. Robert e Aelis não podiam saber de nada. Que necessidade havia de os implicar naquilo? Se tudo corresse bem, o segredo ficava mais seguro na posse de uma pessoa do que de três; se as coisas corressem mal, era melhor que fosse apenas um a sofrer as consequências.

E pensar que, naquele mesmo dia, estivera sozinho com ele, na igreja, e não aproveitara a ocasião que se lhe apresentava: Isambard de costas voltadas, os escudeiros dispensados, o caminho livre para poder fugir! Todavia, a adaga que usava à cinta não atraíra a sua mão; esta mantivera-se inerte e John deixara escapar a oportunidade. Nunca mais voltaria a ser tão fácil levar a cabo a tarefa e escapar com vida. Mas que importava? Renunciaria de bom-grado à vida, se a sua morte servisse a Benedetta.

- Eu sei - disse Aelis com um suspiro. - É um pecado mortal pensar em tais coisas. Mas, de repente, dei-me conta de como tudo podia ser simples, se ele morresse.

John ficou à espera de qualquer novo sinal que lhe iluminasse o caminho, mas Deus deixara de falar pela boca de Aelis. O fardo assentava agora apenas sobre os seus ombros e John aceitou-o, pois sabia que tinha a força suficiente para o suportar. Era pecado mortal pensar em tais coisas, dissera ela: mais ainda pô-las em prática. Sentindo-se já liberto do peso da própria vida, libertou-se igualmente do peso da alma, não por desafio, mas com resignação e humildade. A paz de espírito de Benedetta valia bem a condenação eterna de um homem.

- Passas esta noite aqui? - perguntou Robert delicadamente, ao vê-lo perdido nas suas reflexões solitárias.

- Passo sim, Robert, muito obrigado. Mas amanhã tenho de partir.

Não disse para onde, não disse que seria para bem perto e Robert nada perguntou. Eram ambos da mesma opinião. Mais valia não saber.

Os preparativos de John demoraram três dias. Pediu emprestado um arco na armaria de Castell Coch, usando o nome de Owen ap ívor para o obter, embora o criado da mulher santa de Aber gozasse de crédito suficiente em todo o território sob o domínio do príncipe. Também se serviu dos alvos que ali havia, para desenferrujar os músculos dos braços envelhecidos e exercitar os olhos, pois pouco praticara nos últimos anos. Para justificar o empréstimo e o empenho posto nos treinos contou uma história de uma disputa e de uma aposta com um inglês fanfarrão de Shrewsbury, o que bastou para lhe darem tudo quanto pediu e ainda muitos e variados conselhos, para o ajudar a bater o inglês. John vivia havia tanto tempo daquele lado da fronteira que todos haviam esquecido onde ele nascera; o próprio John quase o esquecera também.

A destreza das mãos e a força dos ombros voltaram com facilidade. Os olhos nunca haviam perdido a acuidade nem a capacidade de calcular distâncias. Quando se sentiu satisfeito com a sua arma, voltou a atravessar o Severa pelo vau de Pool, escondeu o arco e as flechas num maciço de arbustos junto à escarpa da rampa de Parfois e pôs a montada a pastar, presa por uma corda, numa clareira perto do rio. Manteve-se afastado dos carreiros por onde Robert passava habitualmente e evitou os locais onde ele costumava montar as armadilhas. Uma vez ou duas, durante aqueles dois dias, avistou Robert esgueirando-se furtivamente entre as árvores e, de outra vez, viu Aelis, de madrugada, a retirar as linhas de pesca do rio. Naquele momento, já não sentia a falta deles; a sensação de solidão estava tão profundamente enraizada em si que o isolamento lhe parecia ser a sua condição natural e eterna; era como se não desejasse que o silêncio voltasse a ser quebrado. Também não voltou a treinar em Castell Coch e o terreno desbravado acima do moinho não o atraía. Para além do acto que tencionava praticar, tudo deixara de existir. Se sobrevivesse, seria o mesmo que regressar como estrangeiro a uma terra estranha, onde teria de reaprender tudo, incluindo a falar.

Na primeira noite passada no bosque no sopé da montanha, dormiu por baixo dos arbustos, enrolado na capa. Depois disso, não voltou a dormir. Passou os dias a observar os arredores de Parfois e em busca do local com melhor visibilidade, de onde pudesse cobrir o posto avançado da guarda. Só escalando poderia subir até um ponto mais alto, mas não possuía a agilidade dos nativos do País de Gales nem cabeça para as alturas. Ademais, queria manter-se num sítio que lhe desse pelo menos uma possibilidade razoável de bater rapidamente em retirada, depois de a tarefa estar cumprida. Não sentia o menor desejo de perder a vida; se fosse necessário oferecê-la, ao menos que o fosse como uma coisa valiosa e apreciada como tal. Deus não poderia queixar-se de que a Sua criatura desperdiçara a dádiva que lhe fizera.

Isambard montava a cavalo duas vezes por dia, pelo menos enquanto o clima estival convidasse a fazê-lo. Umas vezes cavalgava com escolta, rodeado pelas cores vivas dos seus gentis-homens e dos seus falcoeiros, e caçava na charneca junto à antiga fortaleza de terra batida. Outras vezes montava quase sozinho, com Langholme atrás, a alguma distância; ocasionalmente vinham também dois jovens favoritos, autorizados a acompanhá-lo para fazer exercício, desde que não perturbassem o seu humor solitário. Uma das vezes em que Isambard saiu assim - erecto, soturno e sozinho - John encontrava-se em boa posição, mas retraiu-se porque a distância era demasiada para permitir um tiro certeiro. No terceiro dia, estaria no local escolhido e poderia disparar sem pressas, sem receio de falhar ou de provocar apenas um ferimento ligeiro.

O arvoredo era denso, na berma da rampa abaixo do posto avançado da guarda, do lado do vale, onde os alicerces da nova torre haviam sido profundamente escavados, através da turfa e da terra, até à rocha. As pilhas de pedra para a construção e o entulho que continuava à espera de ser levado dali formavam uma muralha irregular entre o caminho e a encosta. Nesse local, um homem podia saltar de uma das árvores e, correndo e saltando de arbusto em arbusto, descer a encosta íngreme até ao rio, enquanto os seus perseguidores precisariam de escalar a barreira de pedra para irem atrás dele e de abrir caminho por entre cordas, tábuas e tapumes.

A árvore mais alta proporcionava uma visibilidade desafogada do espaço delimitado pelas duas torres e do caminho para além delas, pelo qual os cavaleiros de Parfois eram forçados a passar. Estava-se no pino do Verão e a protecção da folhagem era suficiente para ocultar um exército. John escolheu um olmeiro que estendia os ramos sobre o caminho e sobre as pilhas de pedra cinzento-pálido. A forquilha do tronco oferecia espaço bastante para ali passar a noite com algum conforto e, aos primeiros raios da alvorada, passou para um dos ramos e postou-se numa posição firme, voltado para a rampa descendente.

O fim da tarde haver-lhe-ia dado melhores perspectivas de despistar os perseguidores nos bosques e junto ao rio; mas a cavalgada da manhã garantia-lhe a melhor luz para a sua tarefa. Na véspera, a comitiva havia parado durante algum tempo, a observar os pedreiros, enquanto Isambard conferenciava com o mestre-de-obras. Poderia haver sido então, se John estivesse bem posicionado mas, nessa altura, encontrava-se no chão, no meio de arbustos que obstruíam a visibilidade e cujo restolhar o haveria denunciado, antes de poder disparar. Desta vez, um momento como aquele não seria desperdiçado. Assim Deus lho oferecesse - John estava pronto para o aceitar.

A luz aumentava e refulgia. Primeiro, chegaram os aprendizes, depois os pedreiros; bocejando ao sol, a sentinela ficou a vê-los aparelhar e medir as pedras. Sentados na berma do caminho, dois ou três jornaleiros jovens talhavam pedra, salpicando as pálidas ervas de Agosto de lascas brilhantes de granito, finas como geada. Uma carroça subiu a encosta, a ranger, para descarregar uma carrada de pedras de cal viva, que formaram um monte branco acinzentado ao lado do caminho. Mestre Edmund saiu do castelo com o seu escrevente, quando o Sol já ia alto, e parou para assistir à colocação das primeiras pedras sobre a rocha desnudada. A actividade diária de Parfois desenrolava-se a bom ritmo e o homem escondido no olmeiro aguardava sem impaciência. Com um dia tão bonito, Isambard não deixaria de sair a cavalo.

Passava das oito horas quando apareceu, uma hora tardia para ele, mas, por fim, a cavalgada matinal começou a descer o caminho da plataforma da igreja e as cores vivas espalharam-se por entre as árvores, parecendo suspensas dos ramos como se fossem flores. O martelar suave das ferraduras fazia tremer o solo. Naquele dia, Isambard vinha muito bem escoltado por meia dúzia de cavaleiros, além dos escudeiros, pajens e homens de armas, segundos filhos de famílias de cavaleiros, jovens e ambiciosos, que se treinavam para uma vida dura, na qual apenas sobreviveriam os melhor preparados, pois os fracos seriam empurrados para o lado e espezinhados. Encaravam a dura aprendizagem com bastante despreocupação e alegria, aperfeiçoavam os seus talentos de cortesãos e a sua destreza com as armas, esperando que lhes fosse atribuído um pequeno feudo, em troca dos seus serviços.

Segundo parecia, ainda não haviam começado a desertar o seu senhor. A posição deste era considerada inatacável e os problemas actuais do rei haviam levado os indecisos a actuar com moderação e a ter em conta a possibilidade de Isambard recuperar o seu ascendente. Se de Burgh podia cair em desgraça de forma tão rápida e estrondosa, o mesmo podia acontecer a Winchester, quando o vento mudasse. Não havia maneira de prever como terminaria o presente confronto. Amanhã, Isambard podia estar de novo no topo; os do Poitou podiam levar a melhor e Winchester seria final e definitivamente empurrado para o lado dos vencidos. Contudo, de momento os oportunistas ávidos de cargos e de terras refreavam-se. Se alguma vez Isambard caísse sem remissão, os sinais surgiriam algum tempo antes. Os cavaleiros sem terras seriam os primeiros a partir, seguidos dos segundos filhos que queriam fazer carreira. Langholme podia muito bem ser o último. Por que haveria um homem de ser leal para com outro, insensível à amizade?

O homem escondido no olmeiro firmou cautelosamente o joelho contra o ramo no qual estava apoiado e passou a mão por cima do ombro para pegar numa flecha, sem desviar os olhos da cabeça altiva, que passeava com uma arrogância natural, sobre os ombros direitos, vestidos de negro, do senhor de Parfois. A luz do sol envolvia-o, tingindo de bronze e ouro as arestas salientes do seu rosto. Não parecia ter mais de cinquenta anos. O alazão que montava era o Barbarossa de Harry Talvace. Pela última vez, pensou John, movendo-se com cautela para não agitar a folhagem da árvore.

Suavemente, ajustou a flecha à corda do arco e, suavemente, esticou um pouco a corda e ficou à espera. A ponta da flecha penetrou docemente entre as folhas, avidamente apontada ao peito de Isambard, ao ponto onde a cota preta, aberta, deixava ver a camisa branca sobre o coração.

Não havia pressa. A cavalgada descia a passo dançante. Ainda dispunha de tempo para contar as cabeças dos acompanhantes mais jovens e ágeis, com quem seria preciso contar aquando da fuga, e para dar graças a Deus por haverem saído sem os cães. Com um movimento circular, certificou-se de que havia espaço suficiente para os movimentos do seu braço de tiro.

Aproximavam-se. Langholme vinha mesmo atrás do seu senhor, os jovens espalhados à esquerda e à direita, mas nenhum deles cavalgava ao seu lado. Isambard ia sempre sozinho, à cabeça das comitivas. As vozes alegres e as cores vivas das vestes dos membros da sua corte seguiram-no até à torre avançada da guarda. Ali chegados, Isambard parou para falar com mestre Edmund e depois percorreu a passo as novas fundações. Então, desmontou e entregou as rédeas de Barbarossa a Langholme. Ainda bem: assim, seria um alvo mais fácil, desde que os pedreiros não se aproximassem demasiado. Mas o medo que Isambard inspirava erguia à sua volta uma espécie de parede invisível, que os deixava para trás. Portanto, à excepção de mestre Edmund, Isambard estava sozinho.

Habituados às suas paragens e desconhecendo quanto tempo iria durar aquela, alguns dos cavaleiros da comitiva haviam desmontado também. Isso iria dificultar os movimentos daqueles que ainda se encontravam a cavalo, pelo menos por alguns instantes. Todavia, o grupo integrava alguns arqueiros. Era preciso agir depressa, enquanto as fileiras se aproximavam tranquilamente, antes de se reagruparem junto à torre. O alcance do tiro era curto e seguro, a luz perfeita. Se ao menos o velho mestre-de-obras se afastasse!

Naquele momento exacto, ardendo de impaciência e orgulho, mestre Edmund afastou-se do seu senhor, a fim de medir a passos a base da futura muralha exterior e de mostrar a espessura desta com uma pegada sua. Isambard ficou sozinho, de cabeça virada para acompanhar os movimentos do velhote, o peito descoberto voltado para o caminho, exposto à flecha que procurava a sua carne como se tivesse vida própria.

- Cristo me ajude! - murmurou John, por entre os lábios secos.

E, com toda a sua força, com toda a sua paixão e toda a sua destreza, disparou.

Foi a força do ódio que o traiu. No último instante, sob a pressão extrema do seu joelho, o ramo estalou e cedeu: fendendo o ar com um gemido, a flecha seguiu uma trajectória descendente e falhada. Lá em baixo, os homens ouviram a vibração, sentiram-na na carne e olharam para cima, espantados, antes mesmo de a flecha se cravar, zunindo e tremendo, na terra, aos pés de Isambard. A menos de seis polegadas dos sapatos bicudos, a flecha oscilava e palpitava com um silvo furioso. Por uma vez incapaz de reagir prontamente ao perigo, Isambard voltara-se e olhava à sua volta. O seu espírito devia andar bem longe daquele local e dos assuntos do dia-a-dia para se deixar ficar ali, petrificado, exposto, vulnerável a um segundo assalto.

A voz aguda de um adolescente gritou:

- Além! No olmeiro!

Langholme saltara para puxar o seu senhor pelo braço e o pôr a salvo. Por um momento, ficaram os dois indissoluvelmente unidos e, numa agonia, John manteve o arco retesado, à espera que se separassem. Os seus dedos apertavam a flecha, em busca da posição mais firme, tinha os pés bem assentes e os joelhos esticados, quando, lá de baixo, os arqueiros apontaram e dispararam. Os disparos foram quase simultâneos, mas John disparou um segundo tarde demais. Poderia haver trespassado os dois, enquanto estavam enlaçados e inseparáveis, mas Langholme nunca lhe fizera qualquer mal, ou aos seus.

Uma das flechas atingiu-o no peito, numa explosão de fogo, choque e dor, que o atirou para trás, fazendo estalar as folhas da árvore. O ar fustigou-lhe o rosto, impedindo-o de respirar e, ao cabo de um instante que lhe pareceu durar um ano, um acesso de dor, de terror e escuridão envolveu-lhe o corpo e o espírito, como um jacto de chamas.

Os outros viram-no cair e soltaram um grito, chocados pelo ruído atroz dos ossos que se esmagavam contra as pedras empilhadas. Dando uma volta sobre si durante a queda, John bateu contra a barreira de granito com um baque medonho e foi atirado como um boneco desarticulado para o monte de cal.

Isambard continuava imóvel e silencioso, de olhos muito abertos e sem expressão, olhando sem compreender. Contudo, rugindo como uma matilha, os homens que o rodeavam correram para o local onde o intruso caíra. Antes de Isambard ter conseguido arrancar-se ao torpor que o atingira, haviam caído sobre a sua vítima com pedras, paus, espadas - tudo quanto servisse para bater, mutilar, matar.

Isambard ouviu o grito horrível, inarticulado e, com um empurrão, libertou-se de Langholme. No seu olhar aturdido, reacendeu-se uma chama. Gritando bem alto, enraivecido, chicoteando com o pequeno chicote de montar aqueles que se lhe atravessavam no caminho, correu para o ferido.

- Deixai-o! Para trás! Deixai-o em paz!

Aqueles a quem a fúria assassina não impedia de ouvir e compreender afastaram-se, confusos, largaram as armas e colocaram-se fora do seu alcance. Servindo-se do chicote, Isambard meteu-se no meio deles, furioso, mandando-os afastar-se, como se fossem cães, até eles se desviarem e fugirem, acobardados, deixando-o aproximar-se do pobre ser alquebrado que se agitava e gemia sobre a cal fumegante.

A volta do ferido, o sangue fervilhava e o calor bateu no rosto de Isambard quando este se inclinou para ver. Por um momento, a máscara de bronze não se mexeu e os olhos mantiveram-se fixos e velados. A seus pés, o destroço humano, quase despedaçado, gemia lamentosamente e agitava-se em contorções espasmódicas. Intactos no rosto esfacelado, os dois olhos azuis-claros brilhavam de loucura e fitavam Isambard com um olhar insuportável; reconheceram-no e foram reconhecidos.

Os artífices da morte lenta não poderiam haver concebido coisa pior e, todavia, os olhos viviam, animados por uma consciência tenaz e ardente, que o deixaria acorrentado àquele pesadelo de dor durante horas intermináveis.

Isambard deitou a mão à adaga que trazia à cinta e lançou-se como um falcão sobre a garganta exposta e palpitante.

Um derradeiro espasmo de ódio agitou o moribundo, um derradeiro sobressalto de desafio fê-lo erguer-se um pouco. Escavando com as unhas ao lado do corpo mutilado, encheu as duas mãos de cal e atirou-a ao rosto que avançava para ele. Isambard ergueu o braço, mas era demasiado tarde. A cal acertou-lhe em cheio no rosto, entrando-lhe nos olhos, nas narinas e na boca. Às cegas, a arfar, caiu e rolou sobre o corpo em convulsões de John o Frecheiro. Ouviu passos, aproximaram-se a correr, sentiu mãos agarrarem-no mas, apesar da situação extrema em que se encontrava, a cuspir espuma fervilhante e devorado pela dor, Isambard gritou:

- Para trás! Deixai-nos sozinhos!

Aparentemente, a sua voz não perdera a autoridade. Cego, com a boca a arder, os olhos abrasados, Isambard arfava sobre o corpo do inimigo, sacudindo a cabeça para afastar a dor que o dilacerava. Apesar disso, obedeceram-lhe. Apavorados, os homens formaram um círculo à sua volta, mantendo uma certa distância, receosos de desrespeitar a sua proibição.

Próximo dos seus ouvidos, uma respiração árdua e rouca e um som animal, desesperado, horrível, fê-lo estremecer de terror, por pensar que poderia estar a sair da sua boca. Cerrou os dentes sobre o braseiro interior que o torturava e o som pungente continuou a fazer-se ouvir. Com a mão esquerda, tacteou na direcção do som e encontrou tecido, subiu ao longo de um ombro até ao peito dilacerado e encontrou sangue quente. Os músculos da garganta estavam tensos, a cabeça mutilada atirada para trás. Isambard pousou os dedos sobre a carne tremente e passou a lâmina da adaga entre eles, rápida e eficaz.

Um jacto de sangue molhou-lhe as mãos. O lamento terrível foi interrompido por um gorgolejo, seguido por um suspiro e depois pelo silêncio. O corpo mutilado parou de se agitar, estremeceu debilmente durante um minuto interminável, para logo se relaxar e, por fim, ficar inerte.

Isambard soltou a adaga e rolou para longe da sua presa, cobrindo o rosto com as mãos. Pôs-se de joelhos mas, à sua volta, o silêncio e a imobilidade mantiveram-se. Tinham medo de se aproximar antes de ele haver dado ordem e Isambard não podia descerrar os dentes, com medo de gritar de dor. Não via nada para além da cortina de lágrimas ardentes que lhe queimava os olhos e escorria, fervente, através das pálpebras cerradas, pelas cavidades da máscara dourada. Afastou uma das mãos dos olhos e, através da abertura da camisa, enterrou as unhas na carne rija do peito, a fim de provocar uma dor mais suportável e, por entre os dentes, articulou:

- Os meus olhos... água... Os meus olhos ardem...

Então, eles reagiram e ouviu-se um murmúrio horrorizado que mais parecia o zunido de um enxame de abelhas. Alguns correram, outros gritaram aos que se encontravam mais perto do castelo que corressem a chamar mestre Hilliard, o médico. Por entre aquela confusão de sons, Isambard não ouviu nenhum que lhe desse conforto e a sua mão cansada tacteou em volta, erguendo para a luz o rosto contorcido, os olhos fechados e molhados, os lábios inchados.

- Walter!...

- Estou aqui, senhor!

Langholme ajoelhara-se junto dele e amparava-o com os dois braços.

- Ajudai-me a levantar, Walter. Levai-me para casa... para longe da vista desta gente.

Os lábios queimados murmuravam desajeitadamente, mas as palavras eram claras. Agarrado ao braço sólido do seu escudeiro, apoiou um pé no chão e conseguiu erguer-se.

- Descansai aqui, senhor... deitai-vos à sombra e esperai até o mestre Hilliard chegar. Não podeis andar. Vamos trazer uma liteira.

Langholme estava tão emocionado e perturbado que os seus dentes batiam.

- Não, levai-me para o castelo. Não estou doente. Posso montar. Levai-me até ao Barbarossa e ajudai-me a subir para a sela. Não quero ficar aqui, à vista de todos...

A tremer de aflição, Langholme conduziu-o pelo braço as poucas jardas que os separavam do local onde o cavalo pastava tranquilamente, já calmo após a breve agitação. Isambard caminhava como se estivesse embriagado, agitando a cabeça em busca de um alívio impossível, da frescura da brisa que, afinal, transformava em fogo tudo o que tocava. Os dedos ossudos cravavam-se cada vez com mais força no braço de Langholme, até que este acabou por deixar escapar um queixume; os dedos abrandaram a pressão de imediato, apoiando-se na manga com leveza, mas a sua rigidez - que fazia lembrar a rigidez dos dedos de um morto - era notória.

- Magoei-vos, Walter. Perdoai-me.

- Não, não! - protestou Langholme, quase desejando voltar a sentir a pressão. - Aqui estão as rédeas, senhor.

Tacteando, a mão de Isambard encontrou as rédeas, agarrou-as com firmeza e esboçou uma carícia brusca no pescoço luzidio do animal.

- E aqui está o estribo. O vosso pé... assim.

Isambard içou-se para a sela, cerrou os joelhos e, pela primeira vez desde o acidente, respirou fundo.

- Dai-me um lenço, Walter. E ficai perto de mim.

De cabeça baixa, levou o lenço aos olhos, como uma mulher enlutada, e subiu a passo até meio da rampa. Ao seu lado, ansioso e atento, Langholme viu que os dentes do seu senhor mordiam com força o lenço dobrado e que o maxilar se destacava, pálido e rígido, sob a pele tisnada.

Chocados e mudos, os jovens da comitiva afastaram-se do caminho para os deixar passar e colocaram-se atrás deles com contenção e disciplina, falando apenas em sussurro. Falcoeiros, pajens, cavaleiros e palafreneiros seguiram-nos em filas ordeiras, atravessando a plataforma da igreja e a ponte-levadiça de Parfois. Escoltaram-no pelos terreiros até aos seus aposentos, na Torre da Rainha. O médico corria à frente da procissão, de Guichet acorreu apressado e solícito, a amparar o seu senhor, levando-o quase em braços para o ajudar a subir a escadaria de pedra.

A porta fechou-se, isolando-o da multidão. Agora, podiam murmurar, manifestar espanto ou gritar, conforme lhes aprouvesse, podiam mesmo exultar, se lhes aprouvesse: estava fora do alcance deles. Podia finalmente descobrir o rosto dilacerado e relaxar a pressão férrea que era obrigado a exercer sobre qualquer coisa ou qualquer pessoa, para se manter em silêncio. Podia gemer, praguejar e fazer o que lhe apetecesse: tudo, menos chorar. Se chorasse, as lágrimas salgadas far-lhe-iam arder o rosto, como pez a ferver.

Deixou que o deitassem na cama, que lavassem o sangue e a poeira com água e a cal com leite. Não conseguia comer, mas foi obrigado a engolir ovos crus, para aliviar o ardor da boca e da garganta. Fecharam as portadas, para o proteger da luz. Recostado em almofadas, entregou-se aos cuidados deles, aceitando docilmente as mãos do médico e obedecendo a todas as ordens. Todas as suas energias estavam concentradas em conter e habituar-se à dor, pois sabia que ia ter de viver com ela durante bastante tempo. Para além disso, apenas uma coisa requeria a sua atenção, mas podia esperar pelo menos uma hora, até acabarem o que tinham a fazer e o deixarem em paz.

O velho físico e de Guichet até falaram dele à sua cabeceira, como se Isambard estivesse a dormir ou morto, como se fosse uma criança ou um animal doente. Perante aquilo, os lábios inchados sorriram, mas apenas ligeiramente, para não aumentar a dor.

- Está gravemente queimado, mestre Hilliard? Vai ficar com marcas?

Que importância tinha? Aquela velha máscara tivera os seus dias e podia muito bem viver os últimos sem beleza.

- Serão poucas, penso eu, muito poucas. Ele é forte e não tem febre. Se seguir os meus conselhos e se se deixar ficar em repouso. Claro que os olhos...

Justiça lhe fosse feita, o médico hesitou e baixou um pouco a voz, antes de prosseguir:

- Os olhos são um problema mais sério. Ainda não se pode dizer nada. Resta-nos ter esperança.

Os olhos são um problema mais sério! Para um homem que usa o olhar como uma arma para impor a sua autoridade, os olhos são um problema muito mais sério.

Sob o tecido molhado que lhe cobria a boca, Isambard disse:

- Agora, retirai-vos. Quero descansar um pouco. Deixai-me ficar o Walter.

- O Walter vai ficar, senhor. Alguém tem de ficar convosco para manter esses panos humedecidos com leite. Banhai os olhos de lorde Isambard, mestre Langholme, e cuidai de que os tampões estejam sempre húmidos. Mandai chamar-me, se houver algum sinal de febre.

Saíram todos, excepto Langhome, que se manteve imóvel e silencioso ao lado da cama. A calma e a dor envolveram-no e Isambard deixou que se apoderassem de si, sem se queixar. O que estava feito, feito estava e nada poderia fazê-lo regressar às primeiras horas daquele dia e viver tudo de novo. Era preciso aproveitar o melhor possível o que restara.

- Walter!

- Estou aqui, senhor.

- Walter, quero confiar-vos uma tarefa, mais importante do que humedecer com leite os tampões dos meus olhos. O pobre diabo que está lá em baixo... que eu matei... trouxe-me uma carta faz alguns dias e dei-lhe a resposta que deveria levar. Mas parece que quis conquistar um trofeu mais aceitável do que aquele que lhe entreguei. O meu anel, o meu anel de rubi, está na posse dele. Ireis entregá-lo em seu lugar?

- Tudo o que me pedirdes, senhor - respondeu Langholme, com fervor.

- A uma dama de quem deveis lembrar-vos. Madonna Benedetta Foscari. Matei-a, mas ela recusou-se a morrer, Walter. Tornou-se galesa e penso que se encontra escondida, algures não muito longe do castelo de Llewelyn, em Aber. Infelizmente, não perguntei ao pobre infeliz onde ela vivia nem o que fazia, mas creio que a encontrareis, se perguntardes por ela nos arredores de Aber.

- Que deverei dizer-lhe, senhor, quando lhe entregar o anel?

- Dizei-lhe que eu disse: «Sim, vinde, a vossa oferta foi aceite.»

Aquelas palavras deram-lhe algum conforto. Chegara o momento de acabar com aquilo: não podia conservar indefinidamente aquela alegria emprestada.

- Apenas isso. Ela perceberá. E contai-lhe o que aconteceu com o seu servo. Dizei-lhe a verdade: Madonna Benedetta compreenderá. Conhecia-o melhor do que eu, e eu conhecia-o bem. Que repouse em paz!

- Ele tentou matar-vos - argumentou Langholme, em tom sombrio.

- E eu a ele, por duas vezes. Quem sabe se o mal que me infligiu não será uma parte da paga pelas minhas dívidas? Contai tudo a Madonna Benedetta.

Langholme hesitou, relutante em abandonar a cabeceira do seu senhor.

- Devo partir já?

- Agora, Walter. Agradeço que me mandeis um dos pajens, mas que fique do lado de fora da porta. Chamarei, se precisar dele.

Ouviu os passos renitentes dirigirem-se para a porta e, então, chamou-o:

- Walter... depois de recuperardes o meu anel... cuidai de que se ocupem do corpo. Dizei a de Guichet que quero que ele tenha um funeral decente.

Harry, que acabava de regressar da cavalariça, trouxera a sua obra para o exterior da sala de desenho, para trabalhar ao sol, quando ouviu a cavalgada: um grupo tão grande só podia ser o que saíra para caçar. Ergueu a cabeça para os ver passar, espantando por estarem de volta tão cedo. Mau-grado todos os seus defeitos, isambard não era caprichoso. Harry já só chegara a tempo de ver alguns dos jovens, que cavalgavam em boa ordem e inusitadamente reservados, sem que nada na sua atitude indicasse haver-se dado um acidente. Voltou ao trabalho, mas o pensamento de que Barbarossa fora privado do seu passeio impedia-o de se concentrar. Por isso, tristonho mas resignado, poisou o escopro e dirigiu-se mais uma vez à cavalariça, a fim de pelo menos o escovar e fazer-lhe festas ou, se possível, arranjar-lhe outro cavaleiro. Era certo que Barbarossa se entendia bem com Isambard e galopava alegremente com ele; mas qualquer outro podia passeá-lo. Durante o dia, devia haver coisas a fazer fora de Parfois e Walter daria ouvidos ao seu pedido.

Os estábulos estavam cheios de cavaleiros recém-regressados: uns mostravam-se pálidos e silenciosos, outros tagarelavam febrilmente, mas nenhum deles se encontrava no seu estado normal. Harry olhava de um grupo para outro, sem perceber nada.

- O que foi? Que aconteceu?

Três ou quatro jovens voltaram-se e começaram a falar ao mesmo tempo, dando versões tão diversas que Harry ficou muito abalado, mas não esclarecido.

- Como? Dispararam uma flecha contra lorde Isambard? De uma árvore? E está ferido?

Era a única explicação para o seu regresso: Isambard nunca voltaria para trás apenas por causa de uma flecha perdida. Ansioso, Harry olhou em torno, em busca de Barbarossa.

- E o cavalo dele? O meu cavalo!

Barbarossa encontrava-se ali, pateando o solo diante da baia, as rédeas seguras por um palafreneiro. Harry abraçou a cabeça brilhante e soltou um suspiro de alívio: nem um arranhão, nem uma mancha de suor. Fez um ar de estranheza.

- Ninguém ficou ferido? Lorde Isambard não foi atingido?

- Pela flecha, não. O homem que disparou contra ele foi abatido e ele acabou com o que restava do homem com as suas próprias mãos. Mas apanhou com uma mão-cheia de cal nos olhos. Quando o trouxemos para o castelo, chorava como uma viúva, num enterro. Depois, fecharam as portadas do quarto e chamaram o médico.

- Está muito mal? - perguntou Harry, inseguro.

- Ainda não se sabe. Pelo menos, mal suficiente para se manter quieto durante algum tempo.

- E dizeis que o homem que disparou contra ele está morto? Quem era?

Nenhum deles sabia. Na zona da fronteira, havia muitos homens desesperados que tinham razões de queixa suficientes para matar Isambard. Quem poderia dizer qual deles arriscara a vida de um modo tão insensato?

- Mas morto... morto é uma maneira de dizer! Se o houvesses visto! Alguns arqueiros lançaram-se sobre o homem, até que ele os afastou e cortou o pescoço do pobre diabo. Não queria que tocassem na sua presa!

- E foi levado para o leito?

Aquilo era uma coisa tão inconcebível que Harry se sentiu abalado. Isambard alguma vez se poupara ou fora descansar, a pretexto de estar doente ou fraco? Sem deixar de pensar naquele mistério, Harry escovou o cavalo e, com um estranho aperto no coração, foi ouvindo a confusão de sussurros, rumores e comentários que zuniam à sua volta.

Nessa noite, ao jantar, Isambard não apareceu no salão nem tão pouco de Guichet ou Langholme. Harry foi em busca de alguém que pudesse saber a verdade e estivesse disposto a contá-la. Walter encontrava-se ainda no quarto de Isambard. Harry sentou-se ao fundo das escadas e ficou à espera. Viu de Guichet e o médico descerem do quarto do doente e afastarem-se, atravessando o terreiro interior. Falavam em voz baixa e os seus rostos ostentavam expressões sombrias. Não lhes perguntou nada: não eram amigos seus. Pouco depois, ouviu passos nas escadas, olhou para cima e viu Langholme que se aproximava.

Levantou-se de um salto e interpelou-o:

- Walter! Como está ele? Ouvi contar o que aconteceu. Está muito mal?

- Bastante mal - respondeu Walter, sem rodeios. - Queimado e cheio de dores. Mas, apesar disso, continua senhor de si e continua, também, a ser o nosso senhor. Aliás, incumbiu-me de uma missão. Por isso, não me retenhas.

Langholme começou a afastar-se, mas Harry correu atrás dele e colocou-se ao seu lado, continuando a fazer perguntas.

- O homem que disparou contra ele... quem era, Walter? O Roger disse que, pelo arco e pelas roupas, devia ser galês. Era mesmo galês?

Ao ver a ansiedade nos olhos azuis-esverdeados de Harry, Langholme parou abruptamente. O jovem sentia e pensava que aquela morte tinha alguma coisa a ver consigo.

- Pode muito bem ser galês mas, na minha opinião, não tem nada a ver contigo. Era portador de uma mensagem de uma dama para lorde Isambard e deveria levar-lhe a resposta. Porém, por qualquer razão que só ele conhecia, decidiu ficar e atentar contra a vida do meu senhor. Havia rancores antigos. Nada a ver contigo - acrescentou, numa voz mais amena. - Vai talhar as tuas pedras, filho, e deixa correr. Ele está vivo e há-de sobreviver, ainda que, por enquanto, isso lhe seja penoso.

Harry insistiu, agarrando o braço que, sem brutalidade, tentava afastá-lo. Os ecos que lhe agitavam o coração eram demasiados: um galês, uma dama, velhos rancores.

- Que dama? - perguntou. - Vós sabeis, Walter, tendes de me dizer.

- Uma dama que deves conhecer muito bem, mas garanto-te que isto nada tem a ver contigo. É uma história antiga, de antes de haveres nascido.

- Que dama, Walter? Preciso de saber o nome dela.

- Madonna Benedetta, já que tanto queres saber.

A cor fugiu do rosto de Harry, que ficou tão branco como a cal da parede. Soltou a mão do braço de Langholme para apalpar o seu próprio rosto e olhou-o fixamente, os olhos verdes muito abertos, sem expressão.

- Madonna Benedetta - repetiu num murmúrio. - John o Frecheiro! Oh, meu Deus! John! E ele matou-o... cortou-lhe o pescoço.

Langholme virou-se e agarrou-o pelos braços com firmeza, obrigando-o a encará-lo. Não podia deixá-lo naquele estado. Se ficasse a saber tudo o que se passara, poderia avaliar melhor a situação e cair em si.

- É verdade que lorde Isambard o matou. Mas, por Deus, ouve o que te digo. Eu vi tudo. Lorde Isambard estava cego e queimado, com os olhos e a boca cheios de cal, mas tacteou em busca da garganta do homem e matou-o. Não te contaram? O homem havia caído de uma árvore, em cima das pilhas de pedras... seria de espantar que tivesse algum osso inteiro... e, ademais, os homens de armas haviam-se lançado sobre ele, com pedras, paus e tudo a quanto puderam deitar a mão. Se queres saber, penso que lorde Isambard os afastou à chicotada para tentar salvar o homem mas, quando conseguiu chegar junto dele, era demasiado tarde. Então, matou-o. Vi tudo e sou eu que to digo: foi mais um acto de compaixão para com um animal agonizante, que ele apreciava, do que a execução de um inimigo. Sabes a última coisa de que me encarregou? De ordenar a de Guichet que o mande enterrar condignamente. E é isso que vou fazer.

Langholme soltou os braços de Harry e foi às suas tarefas. A tremer de espanto, Harry refugiou-se no seu canto, na sala de desenho deserta, e ninguém mais o viu nessa tarde. Quando de lá saiu, foi direito à Torre da Rainha e, com humildade e um certo constrangimento, perguntou se lorde Isambard poderia fazer o favor de o receber.

Harry nunca vira o quarto de dormir de Isambard. Era uma divisão ampla e luxuosa, com as paredes cobertas de tapeçarias e enfeitadas com ramos de plantas estivais, que davam à atmosfera um bom odor a floresta, doce e quente. Pairava também no ar um leve cheiro a doença, acre e atemorizante, e, sob o lençol de linho, o homem deitado na cama estava tão imóvel que dava a impressão de haver sido preparado para o sono derradeiro. A cabeça magnífica fixava o tecto com uns olhos de linho, redondos e brancos, dos quais se escapava um ligeiro vapor. O pano que lhe cobria a boca fora retirado e os lábios deformados, inchados e vermelhos, estavam hermeticamente fechados. Harry olhou para o peito, grande e ossudo, que subia e descia, reparando na respiração irregular, cujo ritmo era quebrado pela dor.

Harry não sabia porque viera. Não tinha nada para dizer, o importante era estar ali mas, agora, parecia-lhe que só uma loucura incompreensível o poderia haver levado a pensar que vir até ali falaria por si. Fechou a porta atrás de si com suavidade, apesar de o homem deitado não estar a dormir, e, lentamente, arrastando os pés, aproximou-se do leito.

- És mesmo tu, Harry? - perguntou Isambard, tartamudeando por entre os lábios rígidos. - Eis uma honra que eu não esperava.

- Não viestes ver-me nem me mandastes chamar, senhor - respondeu Harry, na defensiva, desempenhando o seu papel de prisioneiro. - Por isso, vim ter convosco.

- Ah, pensaste que queria o meu relatório diário acerca do que fizeste?

Mesmo distorcida, a voz do senhor de Parfois conservava aquela doçura de mel, acariciante e insidiosa, que ele tão bem sabia usar; até os lábios inchados continuavam a ser capazes de esboçar o habitual semi-sorriso.

- Que tal correu o teu dia sem mim, Harry?

- O vosso, senhor, parece não haver sido muito bom - replicou Harry, ousadamente.

Não fora sua intenção manter aquele tom. Mas o hábito estava de tal modo enraizado que era difícil abandoná-lo e as palavras amargas brotavam-lhe dos lábios, mesmo contra vontade. Contudo, não tentou adoçá-las. Ficou a ver adensarem-se as sombras nas faces cavadas e o leve esgar da boca, que indiciava um sorriso.

- Mais uma razão para o dia correr bem ao meu melhor inimigo. Então, Isambard lembrou-se de que Harry conhecia o homem

de Benedetta desde que nascera e suficientemente de perto para lhe dedicar afeição.

- Mas correu ainda pior para outra pessoa - acrescentou, com uma ponta de remorso. - Para um amigo teu. Alguém te contou?

Da escuridão que o rodeava, a voz baixa e amarga respondeu:

- Sim.

Com os olhos da mente, Isambard via claramente o rosto preocupado e grave, um pouco obstinado até, os olhos solenes pousados na cabeça do seu inimigo prostrado. Não havia alegria naquele olhar, antes um ligeiro desconcerto por não sentir alegria. Harry era ainda suficientemente criança para tal, apesar de a criança estar já a ceder lugar ao homem.

- Disseram-te quem era? Bem, talvez não, porque nenhum deles sabia quem ele era. Era o homem da Benedetta, o arqueiro que lhe ofereci para a servir. Esqueci o nome dele...

- John o Frecheiro - esclareceu Harry, em voz muito baixa.

- Ah, sim. John.

Inspirou penosamente e ergueu-se um pouco sobre as almofadas.

- Vejo que estás ao corrente. - Como não obtivesse resposta, Isambard prosseguiu: - Também te contaram que o matei?

A voz prudente, as palavras laboriosamente articuladas atingiram-no no coração. Era como se, até então, a morte e a perda se encontrassem alojadas algures na fronteira da consciência de Harry, conhecidas, mas ainda não completamente assimiladas, e Isambard houvesse de súbito atingido o mais profundo do seu ser, para aí depositar essa afirmação. Harry abriu a boca para responder, mas não foi capaz: tinha os olhos cheios de lágrimas e fazia um enorme esforço para as conter.

- Por minha fé, filho, lamento - disse Isambard.

- Também eu, senhor.

Harry tinha dificuldade em respirar e mais ainda em falar; mas o pior era o receio de que o homem deitado no leito pudesse detectar as vibrações da luta que se travava dentro de si. O rosto de Isambard estava ligeiramente voltado sobre a almofada, os seus olhos tapados erguidos para o visitante, como que apelando a um outro tipo de visão. Apesar de privado de um dos sentidos, Isambard continuava a ler demasiado bem na alma dos outros para estes se sentirem tranquilos. Mesmo sem olhos, continuava a ver.

- Lamentas que ele não haja atingido o alvo?

A pergunta não obteve resposta. Os cantos da boca do jovem deviam estar um pouco descaídos, a sua expressão devia ser obstinada e rebarbativa, os olhos deviam estar fixos em qualquer coisa inofensiva e inanimada que não pudesse devolver-lhe o olhar: os tapetes de pele, a cadeira dourada, os antepassados normandos representados na tapeçaria, com os seus elmos cónicos e as suas cotas de malha compridas. Isambard sentia que o olhar verde o abandonara, mas não se afastara muito. Começava já a aprender como orientar-se pelos ligeiros movimentos de quem estava por perto; até o ligeiro roçar de uma manga possuía significado.

- Tenho sede, Harry. Há um cântaro em cima da arca. Dá-me de beber.

Harry assim fez: calma e eficientemente, como um pajem bem treinado, deitou leite numa taça, aproximou-se e soergueu Isambard com um dos braços, enquanto a outra mão lhe levava a taça à boca. Por um momento, o senhor de Parfois ficou apoiado no ombro do seu inimigo e sentiu contra a face as batidas impetuosas do coração

do jovem, que o odiava com franqueza e coragem, mas que honrava fielmente as suas obrigações.

- Obrigado, Harry, foste muito cuidadoso.

O braço que o soerguia voltou a colocá-lo cautelosamente sobre a almofada assim que Isambard deu sinal de ter acabado e afastou-se, sem manifestar qualquer sinal de alívio ou aversão. Os olhos - os olhos cujos tons marinhos inconstantes eram contrariados pela fixidez agressiva - haviam voltado a fitá-lo. Isambard sentiu-os avaliar, com temor e espanto, os pormenores da sua mutilação e os tampões de linho que lhe cobriam os olhos, como as moedas que se põem nos olhos dos mortos.

- É verdade - disse, pensativo. - Deveria haver sido eu a morrer, se cada um de nós recebesse aquilo que merece. A sorte dos maus é que, neste mundo, isso raramente acontece. Mas lamento que hajas perdido um amigo. De bom-grado o haveria poupado, se pudesse.

Iria o jovem debruçar-se sobre ele e perguntar aquilo que ansiava saber? Harry percorrera um longo caminho, desde o primeiro interrogatório, numa das masmorras sob a Torre da Guarda, durante o qual o jovem mantivera fechada a boca assustada e obstinada, resguardando-se atrás de uma muralha de silêncio. Mas não perdera a obstinação nem mudara muito. Afinal, o crescimento é mais uma questão de maturação do que de mudança e o que mais se altera é o grau de clareza com que vemos os outros. Foi preciso haver perdido os olhos para conseguir vê-lo como tanta clareza?, pensou Isambard. Não, ele não vai perguntar.

E Harry não perguntou. John o Frecheiro fora portador de uma mensagem de Benedetta e o senhor de Parfois dera-lhe uma resposta para ele transmitir. Mas John não a transmitira e agora estava morto. Era tudo quanto sabia. Não dispunha de maneira de saber se a mensagem tinha ou não a ver consigo, nem o que iria acontecer agora. De momento, o assunto fora posto de lado. Viera até ali com outro intuito. O problema era que, apesar de todos os seus esforços, não sabia dizer com exactidão qual era esse intuito, nem como levá-lo por diante. Sabia somente que o obrigara a ir até ali, quase contra vontade, e que não poderia aplicar as suas energias a mais nada, até haver satisfeito o que lhe era exigido.

- Lamento o vosso infortúnio, senhor - acabou por dizer, em voz baixa, tenaz e brusca. - Lamento muito o vosso sofrimento.

Dizer aquilo representou um enorme esforço, mas conseguiu dizê-lo. O grande suspiro que soltou representava bem a medida do alívio que o seu coração experimentava, por haver finalmente sido libertado do seu fardo.

Imóvel, Isambard esboçou um sorriso deformado na direcção das tábuas do tecto, onde a obscuridade começava a adensar-se. A sua mão magra e comprida, semiaberta sobre o lençol, ao lado do corpo, acolheu com muita cautela aquela dádiva inesperada, como se esta fosse um pássaro que houvesse ido ao seu encontro por vontade própria e que a honra proibia de encerrar numa gaiola, ou de reter por mais tempo do que aquele que ele decidisse permanecer na palma da sua mão. Mas também era preciso não se mover ou falar demasiado cedo, para não o espantar. Isambard ficou imóvel por tanto tempo que o jovem começou a sentir-se inquieto e aproximou-se, para ver se ele adormecera.

- Harry! - chamou por fim, baixinho, a voz vinda da cama.

- Senhor?

- Lava-me os olhos antes de te ires embora.

Harry foi buscar a pequena tigela de leite e infusão de ervas que se encontrava em cima da arca e, com gestos receosos, sustendo a respiração, retirou os tampões dos olhos de Isambard. A visão das pálpebras inchadas, vermelhas e em carne viva deixou-o sem respiração, acabrunhado pela destruição de algo onde indiscutivelmente houvera beleza. E também isso Isambard compreendeu.

- Ah, isto vai curar-se - disse, submetendo-se aos cuidados atentos do jovem.

Os dedos de Harry eram leves e tímidos e a sua respiração regular e contida aflorou a face de Isambard, quando se aproximou. No fim do tratamento, Isambard abriu os olhos pela primeira vez e olhou para o rosto de Harry.

Uma forma esbatida e pálida, com traços vagamente discerníveis e o brilho indefinido de uns olhos grandes. Nada mais que isso. Então, à guisa de advertência, a luz feriu-o e ele voltou a recostar-se e a fechar as pálpebras sobre a imagem fugaz do seu pássaro domesticado. Não havia dúvida de que não era uma pomba: antes um jovem gerifalte, aliás bastante selvagem. Não era de esperar que viesse ao seu encontro muitas vezes, nem que ficasse muito tempo junto de si. Mas se não cedesse à tentação de fechar a mão, talvez antes de levantar voo ele lhe deixasse duas ou três penas da sua plumagem de jovem falcão.

 

Parfois: Setembro de 1233

A febre abandonou-o na quarta noite e os seus sentidos despertaram, claros e frios, a mente como uma espada nova, mas o corpo tão fraco que, quando tentou erguer a mão, esta não lhe obedeceu. A luz de uma vela iluminava o quarto. Para Isambard, essa luz era apenas uma auréola pálida e difusa à volta de um ponto branco, a separar a escuridão da claridade; mas via-a. Algumas formas vagas, tão vagas como nuvens, permitiam-lhe identificar os cantos do quarto. Alguém dormia e ressonava, numa cadeira de madeira, junto à cama. Segundo parecia, a morte ainda não queria nada com ele. Regressava ao mundo sem lamentos, mas também sem ilusões. Dali em diante, este mundo não seria fácil para si.

Os seres humanos eram sombras que se moviam, os objectos eram sombras fixas. E, por vezes, umas e outras confundiam-se; dava-se também conta de que algumas sombras imóveis que se interpunham entre ele e a luz se moviam e dispersavam, mal dava mostras de ter consciência delas. Então, compreendeu que era do seu interesse conservar e privilegiar os sentidos que lhe restavam, pois ia precisar muito deles; com a satisfação de um jogador, deu graças a Deus por o seu ouvido ser naturalmente tão apurado como o de um gato selvagem, e poder ainda ser melhorado até ao nível da excelência agora que dele havia precisão. As tendências manifestadas pelas sombras móveis constituíam avisos bem claros: hesitações em obedecer a uma ordem, o silêncio que se adensava na sua presença, aquela atenção palpável e implacável de que sentia ser objecto. O mais ínfimo pormenor adquirira um significado profundo, todos os aspectos do comportamento humano podiam ser esclarecedores, se aproveitasse as oportunidades que se lhe deparavam.

Claro que as vozes continuavam a ser ponderadas, inquietas, alerta, obsequiosas; sabiam bem que não perdera a audição. Mas, no segundo dia depois de haver saído do delírio, começou a reparar que o pajem encarregado de o servir não era muito célere a obedecer às suas ordens. Quando lhe pedia água - pois continuava a ser presa de uma sede insaciável - o rapaz, seguro de que ele não lhe perguntaria o nome e de que o seu rosto não passava de uma sombra que podia pertencer a qualquer outro jovem da casa, demorava o seu tempo e servia-o com indiferença e desatenção. Consciente de que mal conseguia erguer uma mão, e muito menos castigar o rapaz como ele merecia, Isambard ia deixando passar. Mas gravou na memória a vozinha aguda, sabendo que seria capaz de a distinguir entre dezenas de outras que, até então, não lhe pareciam muito diferentes. Mais seis ou sete dias de convalescença e um pouco de paciência para esperar o momento certo, e a dívida seria paga, como exemplo para todos quantos pudessem ser tentados a cometer o mesmo erro.

Nessa tarde, deixaram entrar Harry. A cabeça que repousava na almofada soergueu-se ao som dos seus passos, o rosto voltou-se para o jovem, alerta como um cão de caça.

- Harry! - exclamou Isambard com satisfação.

Não estava a interrogar-se, mas a afirmar a sua intuição. Depois de ficarem sozinhos e de a porta se haver fechado, acrescentou:

- Ainda bem que vieste. Chega aqui e deixa-me apoiar no teu braço para sair desta cama. Já estou mais do que farto dela.

- Podeis matar-vos, senhor - respondeu Harry, espantado, estendendo o braço mais para o reter na cama do que para o ajudar a sair dela. - Há apenas dois dias que deixastes de ter febre.

- Ah! Então perguntaste por mim, enquanto estive inconsciente?

Harry pedira todos os dias para ser admitido no quarto do doente e, de todas as vezes, o seu pedido fora rejeitado; só naquele dia, depois de Isambard haver recuperado as faculdades e afirmado a sua vontade, parecera ser melhor política não dar a ideia de que estavam a submetê-lo a uma vigilância demasiado estreita. Se queria ver o rapaz, deixá-lo.

- Não podeis pôr-vos de pé - disse Harry, com firmeza, furtando-se a responder à pergunta. - Deveis ficar deitado uma semana ou mais, antes de voltardes a pôr os pés no chão.

- Não posso permitir-me esperar uma semana, Harry. Daqui a uma semana, vão dar-me autorização para me levantar e andar, com a bênção de mestre Hilliard, e haverá uns cem pares de olhos à espreita, para me verem fazer tristes figuras. Quero dar-lhes boas razões para pensarem duas vezes. És capaz de guardar um segredo?

O silêncio obstinado que lhe respondeu, fez Isambard soltar uma gargalhada.

- Sendo assim, quem melhor para servir os meus propósitos? - prosseguiu. - Dispensa-me um pouco da tua paciência e da tua teimosia... sei que dispões de mais do que as necessárias... e serei capaz de correr, antes de eles se aperceberem de que consigo andar.

Apoiando uma das mãos no colchão e a outra no braço de Harry, fez rodar as pernas para fora da cama. Harry sempre conhecera Isambard como um homem de corpo seco e músculos rijos, sobre uma ossatura magnífica; a febre consumira metade desses músculos e deixara-lhe cavidades azuladas no pescoço, nos ombros e no tronco. Mas o senhor de Parfois levara uma vida rigorosa, de atleta, e a estrutura da sua força, agilidade e graça não desaparecera: estava preparada e desejosa de ser posta à prova.

- Sempre fui senhor do meu corpo - declarou Isambard, vestindo o roupão, sentado na beira da cama. - Vamos ver se ainda sou capaz de o fazer cumprir as minhas ordens, antes de as fazer cumprir aos corpos dos outros.

O jovem recuou, indeciso, observando-o. Agora que o fogo nos seus olhos arrefecera e que as queimaduras à volta dos lábios haviam desinchado e secado em cicatrizes acastanhadas e lisas, Isambard não parecia muito mudado. Havia marcas idênticas na testa e nas maçãs-do-rosto mas, sobre o tom de bronze da sua pele, não eram chocantes. O seu antigo esplendor era apenas desfeado pelos olhos, ainda inflamados, vermelhos por fora e escuros por dentro, e pelas pálpebras inchadas e deformadas. Hesitante, o sorriso oblíquo aflorava à boca ligeiramente desfigurada. As mãos que tacteavam as roupas eram garras de falcão sem destreza, porque Isambard estava ainda muito fraco e movia-se com a deliberação calculada de quem conhece as suas próprias fragilidades.

Isambard percebera o motivo do silêncio persistente de Harry. Ergueu vivamente a cabeça, numa atitude de desafio.

- Estás com piedade de mim? - perguntou, numa voz em que transparecia a dureza do aço.

- Não, senhor. Conheceis alguma razão para eu haver piedade de vós?

- Conheço todas as razões pelas quais não deverias - respondeu Isambard, taciturno. - Se eu entrevir uma luzinha que seja de piedade nos teus olhos, juro por Deus que te chicoteio, sem querer saber se já és um homem ou não.

- Quando puderdes erguer um chicote - replicou Harry, num tom acerbo, para expulsar para longe de ambos a palavra «piedade». - Neste momento, ser-vos-ia difícil empunhar um. Quereis ou não o meu apoio?

Harry colocou o ombro e o braço à disposição de Isambard, mas recusou-lhos sem hesitar quando entendeu que o corpo debilitado estava à beira da exaustão. No primeiro dia, este fez apenas uma tentativa de se manter de pé e dar alguns passos hesitantes à volta do leito. Mas, dia após dia, Isambard sujeitou o seu corpo resignado a esforços cada vez mais intensos, até conseguir andar de um lado para o outro no quarto, como um tigre enjaulado. Na altura em que mestre Hilliard o autorizou cerimoniosamente a levantar-se da cama, estava preparado para os intimidar a todos com o seu vigor.

Esperavam um inválido titubeante, que se deixaria semi-conduzir, semitransportar para o sol e permitiria que o sentassem numa cadeira almofadada, onde ficaria, tão prisioneiro como na cama onde ardera em febre, à mercê das mãos que dele cuidavam. Isambard vestiu-se com esmero e elegância e saiu dos aposentos no seu antigo esplendor, pisando confiantemente o chão irregular de madeira e descendo as escadas sem se apoiar nem vacilar. Quando mestre Hilliard protestou que era uma loucura aventurar-se tão longe, Isambard riu-se-lhe na cara. Quem seria capaz de adivinhar que ele só via uma massa difusa e sombria, recortada contra um halo de luz? Pelo aspecto dos seus olhos, era impossível saber se via ou não; os seus movimentos levavam a pensar que sim. O jovem escudeiro que avançou para lhe oferecer o apoio do seu ombro parecia servir mais como decoração do que como amparo.

Para o acompanhar às cavalariças e ao canil, escolheu com todo o vagar o pajem indolente, designando-o com um sinal imperioso do indicador, entre uma dúzia dos seus companheiros. Quem poderia saber que o escolhera apenas pela voz, localizando uma sombra entre outras sombras, graças a um ouvido apurado? O rapaz ficou um pouco espantado e, em parte por bravata e em parte devido à certeza de que não poderia ser detectado, quando se dirigiam para o canil, colocou-se um passo atrás de Isambard e divertiu os companheiros com uma breve imitação do porte altaneiro e arrogante do seu senhor. Isambard ouviu o tremor infinitesimal de risos contidos atrás de si e, com satisfação, determinou a sua origem. Virou-se com a vivacidade de um galgo e, por pura sorte, agarrou o rapaz pelo braço, que este erguera para proteger a cabeça, embora o cabelo também houvesse servido. Atirou-o de joelhos com um empurrão, já a balir como um cordeiro assustado.

- Estás cheio de vontade de nos divertir, meu amigo - observou Isambard com um sorriso melancólico. - Pois bem: terás a oportunidade de o fazer. Vamos ver se também sabes cantar.

Ordenou que o pajem fosse chicoteado ali mesmo e deixou-se ficar, a fim de se certificar de que a ordem era cumprida.

Daí em diante, todos os pajens se mostraram consideravelmente mais diligentes e respeitosos. Foi necessária apenas mais uma demonstração para restabelecer a qualidade do silêncio que sempre o acompanhara nas suas deslocações pelos terreiros do castelo. Quando um dos mestres dos canis maltratou uma cadela de caça e se mostrou renitente em justificar os seus actos, Isambard aproveitou a ocasião para o derrubar com um murro que abriu a face do homem. Desferiu o golpe enquanto o homem titubeava, guiando-se pela voz para lhe atingir o rosto que quase não conseguia discernir, e o esforço que empenhou no golpe quase o fez cair por cima da sua vítima. Conseguiu, todavia, guardar para si o segredo do estratagema e só quando regressou sem contratempos aos seus aposentos e fechou a porta, reconheceu finalmente a dimensão da sua insuficiência. Estendeu-se na cama, contemplando as trevas que se adensavam e que nada tinham a ver com o fim daquele dia de Setembro.

Era muito bonito demonstrar publicamente a sua força, uma ou duas vezes, com uma grande dose de sorte, para provar que ainda era preciso contar com ele. Mas quanto tempo mais poderia ganhar por estes meios? Não ousava aparecer no salão, não podia comer com os outros, cavalgar ou voltar a manejar a espada: fazê-lo equivaleria a revelar que não conseguia ver mais do que luz e sombras. Todas as pequenas tarefas que o corpo leva a cabo diariamente, sem pensar - gestos simples como servir vinho ou selar uma carta - teriam de ser realizadas fora das vistas dos outros, por trás daquela porta fechada, até ser capaz de aperfeiçoar uma técnica intrincada que lhe permitisse desempenhá-las dissimulando a sua deficiência. E, por mais engenhosos que fossem os seus estratagemas, por mais que treinasse os ouvidos e os dedos no desempenho das tarefas que cabiam aos olhos, mais cedo ou mais tarde um pormenor qualquer acabaria por traí-lo. Iria chegar uma altura em que até luz e trevas seriam a mesma coisa. Havia sinais infalíveis de que assim seria.

Vou ser um velho cego, admitiu, face a face consigo mesmo naquela escuridão em que, recorrendo à memória, ainda era capaz de imaginar os contornos e as cores que os olhos não captavam. Um velho cego e desajeitado, que tacteia os alimentos e entorna o vinho. Darei ordens e eles dirão que sim, educadamente, durante algum tempo, mas não obedecerão, pois sabem que não poderei persegui-los. Dentro em breve, nem se darão ao trabalho de me responder ou de me prestar atenção. Hoje, consegui abalar-lhes as certezas: vão encolher as garras por alguns dias. Por quanto tempo? Uma semana? Duvido.

Não pelo tempo suficiente para Benedetta chegar a Parfois e voltar a partir, com o presente que reservara para ela. Até agora, Isambard recusara-se a enfrentar essa verdade mas não podia continuar a negá-la. Chegara a altura de limpar o terreno à sua volta, para não arrastar ninguém consigo na sua queda. Que protecção podia um cego dar a Benedetta e a Harry? Era preciso afastar todas as pessoas de quem eles pudessem servir-se para o influenciar e todas as pessoas contra quem pudessem utilizá-lo como arma. Neste último campo de batalha, não podia deixar nada que servisse para o inimigo se aproximar sem ser detectado. Quando Walter voltasse, confiar-lhe-ia uma nova tarefa, que o levasse para o mais longe possível, para o manter afastado do confronto que se aproximava. Harry tinha de partir e Benedetta não podia vir. Resolvido isto, postos a salvo os inocentes e pagas as dívidas, poderia dedicar-se a fortalecer a sua posição e apreciar a sua derradeira peleja.

- O que dizem eles de mim, agora? - perguntou, quando Harry foi vê-lo nessa noite.

- Dizem que o vosso amigo diabo vos emprestou um novo par de pernas e mais dois olhos - respondeu Harry, com uma admiração involuntária.

- Ah sim? Óptimo! Fico contente por não haver arriscado inutilmente a minha vida naquelas escadas. Mas receio que esse empréstimo seja de curta duração.

- O que eles não dizem mas que eu sei - acrescentou Harry intencionalmente - é que, ontem, de Guichet mandou um correio com uma carta ao acampamento do rei, em Usk.

O tom utilizado por Harry fora de tal modo equívoco que Isambard ficou imediatamente alerta e disfarçou a reacção que a notícia lhe provocara. Era preciso cuidado no modo de lidar com o rapaz. O seu olhar penetrante tornara-se já demasiado inquisitivo.

- Então também sabes disso? Como foi que te deixaram partilhar esse segredo?

Assentou as mãos abertas nos braços do cadeirão, a fim de tornar patente a sua tranquilidade. Afinal, pelo menos durante algum tempo, não era muito difícil enganar o mundo exterior, através de pequenas astúcias cuidadosamente planeadas. Mas, dia após dia, Harry ajudara-o a caminhar pelo quarto e tivera boas oportunidades de usar os olhos e a cabeça.

- Eu saí tarde da sala de desenho e fui à cavalariça, depois de escurecer, para passar um bocadinho com o Barbarossa antes de ir dormir. O jovem Clifford estava lá, a selar um cavalo, e deveis concordar que, àquela hora, isso era estranho. Uma das correias do selim quebrara-se e ele estava com pressa. Por isso, levou emprestada uma das minhas e prometeu devolvê-la quando regressasse de Usk. Como era pouco provável que fosse portador de uma mensagem para entregar ao conde de Pembroke, que está preso dentro do castelo, a mensagem devia ser para alguém da hoste do rei, que cerca o castelo. O Clifford saiu a correr, para ir buscar o despacho, e não pensou mais em mim. Fiquei à espera que voltasse e vi que de Guichet veio despedir-se dele, à porta da torre da guarda. Vi o Clifford guardar um pergaminho junto ao peito, por baixo da cota, antes de montar. No escuro - acrescentou Harry, sombriamente - não foi muito difícil aproximar-me. Agora, já conheço Parfois perfeitamente.

- Estás muito interessado nessa carta - observou Isambard, sorrindo. - Queres que te relate o seu conteúdo?

- Não é preciso. Eu mesmo posso fazê-lo. Talvez não palavra por palavra, mas com exactidão suficiente para se perceber. «Se desejais agir», diz a carta, «este pode ser o momento certo. O velho lobo que nos abstivemos de caçar foi ferido e já nada há a temer dele... como está cego...»

Harry interrompeu-se, ao ver os dedos esguios de Isambard crisparem-se sobre os braços do cadeirão e o seu rosto empalidecer.

- Cuidáveis que eu não sabia? - perguntou, em voz baixa e trémula. - Houve uma noite em que só não queimastes a mão numa das velas porque eu a afastei. Nem vos destes conta. Podeis enganar os outros, lá fora, conhecendo como conheceis todas as pedras dos terreiros, mas não os deixeis aproximar muito de vós. Aliás, que fareis quando recuperardes a saúde e deixardes de ter uma desculpa para manter junto a vós um pajem em quem vos apoiardes, que vos conte os degraus das escadas e vos demonstre, pelos seus próprios movimentos, em que altura deveis dar a volta?

- Por minha fé, filho! - respondeu Isambard, com um suspiro, já relaxado. - Faço a mim mesmo essa pergunta.

Tudo se ajustava para reforçar a sua decisão. Era tempo, e mais que tempo, de pôr a casa em ordem. Recostou-se no cadeirão dourado, ordenando com calma todas as suas faculdades, como um general previdente ordena as suas tropas antes de uma batalha difícil.

- É então verdade? - perguntou Harry, confuso. - Não vedes nada?

Apesar das suas certezas, quase esperou uma negativa peremptória, uma prova de que estava enganado.

- Distingo uma ligeira diferença entre o dia e a noite - respondeu Isambard.

Se dissesse toda a verdade, teria de acrescentar que, de dia para dia, essa diferença era cada vez menor. Afastou este pensamento com um gesto da mão e concentrou-se nas armas de que ainda dispunha. Cego ou não, precisava de tomar uma decisão e de lutar. Se de Guichet mandara uma mensagem a William na véspera, hoje deveria haver ficado com algumas dúvidas quanto à sensatez da iniciativa. Mas bastariam essas dúvidas para mandar regressar o mensageiro? Não era provável. Os dados estavam lançados e não havia remédio. Limitar-se-iam a observá-lo atentamente até a resposta chegar. De Guichet não corria grandes riscos, pois nunca se expusera publicamente. Quando o poder mudasse de mãos, seguiria a onda.

- Falaste em Usk - disse finalmente Isambard, franzindo o sobrolho, na expressão habitual de quando reflectia, como se o seu olhar arguto ainda pudesse servi-lo. - Pembroke instalou lá uma boa guarnição e armazenou provisões. Disseste que foi aí que o rei resolveu atacá-lo?

Até então, os dois lados haviam evitado lançar acções irrevogáveis: Henrique provavelmente por indecisão e incompetência; o conde marechal por lhe repugnar travar uma batalha em defesa de uma questão que considerava dever ser resolvida através de reformas. Não havia homem que menos ambicionasse tornar-se um rebelde, e chefe de rebeldes, mas as circunstâncias e o seu sentido pessoal do dever haviam-no arrastado para essa situação e não podia recuar.

- Por aquilo que ouvi dizer, o rei decidiu apoderar-se de Usk como demonstração de força, para obrigar o conde a pôr-se de joelhos. Antes de haver montado cerco ao castelo, denunciou as suas obrigações feudais para com o conde e todos os seus aliados. Por seu turno, Pembroke renunciou a prestar homenagem ao rei Henrique. Basset, Siward e os outros todos fizeram o mesmo.

- Por conseguinte, não se trata de castigar um vassalo rebelde nem de capturar um fora-da-lei - observou Isambard. - É uma guerra, aberta e digna, entre dois homens. O rei despojou-se da sua melhor arma, mas percebo que dificilmente poderia lançar a primeira acção, sem cortar esse laço. E Pembroke refreou-se, com grande paciência. Henrique ainda podia haver hesitado e mudado de rumo, mas nunca soubera ficar quieto e esperar.

- Mas não foi bem sucedido em Usk. Pelo menos é o que se diz. Hoje, também constou que ele pensara melhor e mandara enviados ao conde, a propor os termos de uma paz honrosa. Se o conde aceder à rendição formal de Usk, o rei promete devolver-lha dentro de quinze dias e dar-lhe um salvo-conduto para a reunião do próximo Conselho, na qual serão atentamente examinados todos os seus motivos de queixa e decididas reformas onde estas forem necessárias.

- Ah! Esse é o rei Henrique que eu conheço! - exclamou Isambard, com uma gargalhada curta e seca. - É capaz de prometer este mundo e o outro, para que Deus lhe permita salvar a face. Mas, quando sentir que a sua dignidade foi salva, é melhor o conde arranjar um bom advogado, para o obrigar a cumprir as suas promessas, e não afastar a mão da adaga durante a discussão. Sabes se Richard aceitou a palavra dele?

- Não conseguimos saber mais nada, senhor.

- Vai aceitar. Sendo como é, não pode fazer outra coisa. Pode duvidar da honestidade do rei, mas não pode deixar escapar a oportunidade. Henrique podia até encerrar o assunto sem descrédito e desarmar os seus inimigos, se cumprisse o prometido. Mas aposto a minha alma em como os quinze dias hão-de passar sem ele dizer uma palavra sobre a devolução do castelo a Pembroke. Quanto às reformas, nunca mais voltaremos a ouvir falar nelas. Quando se lhe dá a mão, por magnanimidade, ele conclui que quem o faz é um imbecil ou um cobarde e agarra o braço todo. Já levou algumas palmadas nas mãos, por causa disso, mas não aprende. Ora Richard não é tolo nem cobarde - acrescentou Isambard, pensativo. - Bem, então, é assim que as coisas estão, não é? Dentro de um mês, toda a zona das Marcas estará do lado do rei e o País de Gales não pode ficar de fora. Vão digladiar-se, para ver quem é o primeiro a atear a fogueira. E um castelo de fronteira não pode ser deixado em mãos suspeitas, quando as Marcas estão a arder.

Isambard sorriu. Era o seu antigo sorriso de lobo: cabeça erguida para farejar o fumo, orelhas espetadas para ouvir os sons da batalha. Todavia, guardou para si os seus pensamentos.

Em tempo de crise, um castelo de fronteira numa posição avançada como Parfois tinha de estar nas mãos de um castelão de confiança. Guerra era guerra e os direitos antigos estabelecidos tinham de ceder à necessidade. Em nome do rei, em nome de Inglaterra, em nome da cupidez de William, era preciso que Ralf Isambard, cego, à beira da senilidade e já comprometido pela defesa que fizera de Hubert de Burgh, o infortunado prisioneiro em Devizes, fosse plausivelmente despojado da sua autoridade e confiado à custódia protectora do filho - tudo isto sem a mínima objecção por parte do melhor e mais magnânimo dos monarcas. Cautelosamente, claro; os seus domínios eram muito dispersos e era necessária discrição, não fossem algumas das guarnições distantes sentir ser seu dever pôr em causa o afastamento do seu senhor. Podiam mesmo querer que ele fosse apresentado vivo, o que não seria bom para a reputação do rei, mesmo que este acedesse a esse pedido. Era preciso evitar o escândalo. Mas as exigências da guerra podem cobrir muitas irregularidades.

O rei prestar-se-ia a este tipo de manobra? Era uma pergunta difícil. Henrique seria cauteloso e não quereria ter conhecimento de procedimentos que, na verdade, podiam ser considerados criminosos. Cobriria os olhos com as duas mãos para não ver as irregularidades, mas era razoável deduzir que espreitaria por entre os dedos. Se o pior acontecesse, denunciaria as traições cometidas contra si e manifestaria uma cólera santa e honesta, a fim de provar que era a parte ofendida. Quem conseguiria descobrir até que grau aquela mente peculiar era capaz de se enganar a si mesma?

- Ainda aí estás, Harry?

O silêncio que reinava no quarto era tal que, por um momento, Isambard julgara encontrar-se sozinho.

- Estou aqui, senhor.

Era preciso começar pelo princípio. Deixemos Witliam falar ao ouvido de des Rilvaux e des Rilvaux ao ouvido do rei, para combinarem as coisas entre si, à sua maneira. O passo seguinte, ali em Parfois, era claro. Isambard culpava-se por não haver pensado nisso havia muito, no próprio dia da morte de John o Frecheiro. Nunca deveria haver mandado Walter com o anel, depois de esse caminho lhe haver sido vedado outrora com um sinal tão claro e ameaçador. Mas o coração recusara-se a reconhecer aquilo que, já nessa altura, a cabeça percebera muito bem: que não devia ter esperanças e nunca mais devia tentar voltar a ver Benedetta.

- Há muito tempo que desejas ir para casa, Harry.

O silêncio da desconfiança caiu entre ambos como uma cortina; mas os obstáculos não prejudicam os olhos atingidos pela cegueira. Isambard viu o rosto do jovem erguer-se e animar-se, viu os seus olhos a observá-lo avidamente, em busca de uma qualquer armadilha por trás daquelas palavras.

- E é isso que vais fazer - acrescentou, com determinação. - Esta noite, prepara-te para partires. Junta as tuas coisas... as ferramentas também, se quiseres, pelo menos aquelas que possas transportar facilmente... amanhã de manhã, tratarei de que te abram as portas.

Um cavalo, roupas e todos os seus haveres, escrevera Benedetta. Tudo quanto é dele e mais do que aquilo que trouxera.

- Partir? - perguntou Harry, num sussurro espantado, vindo do outro lado do quarto.

- Partir, sim, filho. Ouviste muito bem o que eu disse. E sabes que estou a falar a sério. Vai preparar as tuas coisas e não receies: desta vez, não se trata de nenhuma armadilha. Estás livre.

O silêncio pareceu não ter fim. Isambard sentiu o sobressalto e o impulso do jovem coração impetuoso em direcção à liberdade, ouviu por um instante os batimentos impacientes das asas semiabertas, até estas serem acalmadas, fechadas, silenciadas. A luta que agitava a carne e o espírito do jovem vibrou através do próprio corpo de Isambard, deixando-o comovido e espantado.

- Não vou! - declarou Harry, em voz forte e brutal.

Feliz e contente, para que precisava ele agora dos olhos? Para que precisava de mais anos de vida? Estes não lhe trariam nada melhor nem mais inesperado do que isto. Nunc dimittis, pensou, emudecido por um doce espanto e sorrindo para a escuridão. Permiti, Senhor, que este Vosso servo parta. Em paz? Duvido, admitiu, continuando a sorrir. Alguma vez conhecera a paz? Mas pelo menos distendido e satisfeito.

Portanto, também Harry sentira crescer a insegurança e receava-a, não por si mas por aquele homem, velho e cego, subitamente vulnerável entre os seus antigos amigos dos belos tempos, que lhe voltariam as costas mal o vento mudasse. Como seria possível um homem abandonar alguém, ainda que fosse um inimigo, numa situação como aquela? E como confessar isso a esse inimigo?

- Não vou - repetiu Harry, desafiando o silêncio.

Não era a sua voz mais atraente: era uma voz amarga, obstinada, irracionalmente furiosa, como a de uma criança que se vê arrastada para uma situação falsa por meios injustos e que descarrega todo o peso da sua má consciência e do seu desgosto sobre os mais velhos. Uma voz que, na infância, lhe devia haver valido alguns puxões de orelhas. Porém, agora era preciso manobrar com brandura o homem, não a criança. Aquela voz era um recuo e uma defesa. Por trás dela, era possível chegar ao homem, pois as palavras, como o coração indignado de onde estas haviam brotado, eram dele. Harry acabaria por escutar a voz da razão. Era escusado recear uma recusa definitiva. Seria demasiada condescendência retê-lo só por um instante, antes de o deixar ir?

- Vais sim, Harry. Não por eu to ordenar, mas porque é preciso que vás. Há razões de sobra.

Harry esperara e temera uma reacção de espanto, seguida de várias perguntas e, não fora as complicações causadas pela perplexidade e pela angústia, estaria preparado para ripostar num tom que poderia ser considerado insolente. De certo modo, ser entendido sem necessidade de palavras era ainda mais vexatório do que ser forçado a dar explicações. Ninguém gosta que leiam em si como num livro aberto. Todavia, sentiu-se aliviado por não precisar de justificar a sua mudança de atitude, depois de haver lutado com unhas e dentes pela liberdade que agora recusava.

- Não há escolha, Harry - disse Isambard, afavelmente. - Houve uma coisa que não te disse. Se te recusares a partir, Madonna Benedetta virá até Parfois, para se entregar no teu lugar. Se não estou seguro de poder continuar a assegurar-te protecção, como posso garantir a dela?

Ao ouvir aquelas palavras, Harry atravessou o aposento numa corrida ligeira, ajoelhou-se ao lado do braço do cadeirão e agarrou na mão comprida e esguia.

- Madonna Benedetta? Aqui? Mas como... que acordo é esse? E eu sem saber de nada! De nada! Era essa a mensagem que o John vos trouxe?

Harry tremia de cólera e de despeito.

- Como ousastes? Não havíeis esse direito... nenhum direito!...

- Ela tampouco, mas foi isso que fez. Ofereceu a sua pessoa em troca de ti e eu aceitei a oferta. O teu John, paz à sua alma, quis arrancar-te das minhas mãos de outra maneira, a fim de anular o acordo. Assim haveria acontecido, se ele fosse bem sucedido, mas não foi e teremos de viver com aquilo que temos. Depois da morte dele, mandei o Walter no seu lugar, para oferecer o meu anel e a minha promessa a Benedetta, sem imaginar que, pouco tempo depois, iria desejar reaver um e a outra. Penso que o Walter deve haver preferido evitar Aber e desperdiçado algum tempo à procura dela mas, neste momento, a sua missão já deve estar cumprida. Se tu não a detiveres no caminho, ela virá a Parfois pagar o teu resgate. E logo numa altura em que já não estou seguro da minha capacidade para a manter a salvo. - Fechando os dedos sobre a mão lisa e vigorosa do jovem, acrescentou: - É por isso que tens de ir, já que eu não posso. É preciso que a interceptes no caminho, lhe digas que tanto tu como ela estão livres de todas as dívidas e compromissos para comigo e que a leves para casa, sã e salva.

- Podíeis mandar outra pessoa - objectou Harry, abalado e a tremer.

- Não há ninguém, nem mesmo entre os mais velhos, que a conheceram outrora, que possa reconhecê-la agora com tanta segurança como tu. E mais ninguém pode apresentar-se diante dela como sendo o prémio que ela vinha resgatar. Quanto ao resto... olha para aqueles que me servem, Harry. Sem ser ao Walter, a quem mais poderia eu confiar uma tal missão? Não, não podes fugir ao teu dever; é preciso que vás.

Num gesto de impotência, Harry poisou a testa sobre a mão crispada no braço do cadeirão, enquanto o seu coração tentava precipitadamente, numa agonia, separar o que desejava fazer daquilo que devia fazer. Do seu esconderijo, uma voz abafada perguntou, com desespero:

- Mas como posso eu deixar-vos?

A dignidade e a reserva já não faziam sentido e Harry não sentia que houvesse comprometido ou perdido qualquer delas. Simples e cruas, as palavras haviam brotado da sua boca e sentia-se aliviado por as haver dito.

- Podes porque é mister que o faças. Se quiseres uma razão mais egoísta da minha parte, porque, salvo quanto ao privilégio da tua presença, me arranjarei melhor sem ti do que contigo. O Walter não vai tardar e poderei contar com dois ouvidos e uma língua honesta. Que mais poderias tu fazer, se ficasses aqui? A melhor ajuda que me podes dar é salvar Benedetta do perigo. Não receies por mim - acrescentou Isambard, espantado com a serenidade da própria voz. - Eu sou um velho guerreiro. Sou capaz de manter a minha posição no meu próprio terreno. Vai preparar as tuas coisas e, amanhã, depois do desjejum, vem ter comigo aqui. Eu próprio te porei a caminho.

Era necessário que assim fosse. Quem sabe se de Guichet não se lembraria de que era melhor reter o rapaz, que talvez pudesse depois ser usado como uma moeda de troca valiosa?

- Então, Harry, irás?

A testa macia assente sobre a sua mão moveu-se, o rosto atormentado ergueu-se lentamente para ele. Isambard adivinhou o olhar ansioso dos olhos verde-mar que o fitavam e soube que ganhara a partida. Harry partiria porque era mister que partisse. Não era preciso tentar confortá-lo. A vida em breve se encarregaria disso.

- Eu vou - disse Harry.

Chegaram juntos à porta do castelo, no momento em que os raios alongados e dourados do sol da alvorada começavam a incidir no terreiro exterior. Isambard ergueu a mão esquerda e os guardas, que haviam lançado um olhar desconfiado ao prisioneiro, recuaram obedientemente e deixaram-nos passar.

Avançaram sobre as tábuas da ponte; as ferraduras de Barba-rossa produziam um som cavo, que ecoava ao longo do precipício rochoso, lá em baixo. Diante deles, sobre a sua plataforma elevada coberta de erva, flanqueada por árvores que cresciam ao longo dos dois lados das escarpas, a igreja de Parfois erguia-se para o céu como uma lança dourada. A luz harmoniosa infiltrava-se em todos os desenhos esculpidos na pedra que enquadrava o pórtico e o grande vitral de Leste, e fazia vibrar as linhas puras da torre como se fossem as cordas de uma harpa.

Foi para aqui que ele avançou, naquele dia, pensou Isambard, mergulhado nas suas trevas. Ela segurava-lhe na mão e, de súbito, soltou os dedos e deixou-se ficar para trás. Disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e ele olhou para o alto. Vi claramente o rosto dele, ainda hoje o vejo, admirado e encantado com a sua obra. E depois tombou. Tombou aqui, precisamente aqui, e ela amparou-o nos braços e caiu ao chão com ele, apertou-o contra o coração enquanto ele morria. Levou tão pouco tempo a morrer, mal deu tempo para ela o beijar na boca. Quando o tirámos de cima dela, já nada podia atingi-lo. Despimo-lo junto ao rio. Nu e de pele tisnada, parecia um daqueles camponeses das margens do Severn, que aprendem a nadar ao mesmo tempo que aprendem a andar. Esguio, musculado, jovem. E morto.

- Passa-se alguma coisa, senhor? - perguntou Harry, olhando para o perfil de falcão, ao seu lado, surpreendido pelo aperto da mão delgada que se cerrara sobre o seu braço.

- Nada, Harry. Estava a lembrar-me do passado. Os velhos costumam fazer isso.

A sua voz continuava a assumir um tom sardónico, quando se referia a si mesmo como um velho. Apesar de todos os golpes que recebera, o seu corpo recusava-se a admitir que perdera a juventude. Entre os dois havia ainda uma morte e a profanação de uma sepultura. Talvez o assunto viesse a ser abordado e, apesar de não lhe agradar saldar essa conta no momento em que iam separar-se, Isambard não se esquivaria. Mas Harry caminhava ao seu lado em silêncio, alinhando as passadas ágeis de jovem pelas passadas calculadas e cautelosas do seu companheiro, desviando-o das pedras e obstáculos do caminho. Barbarossa aspirava o ar fresco da manhã e resfolgava de alegria.

Quando se aproximaram da torre, da cicatriz pálida dos alicerces, rodeada pelas muralhas nascentes, ouviram as vozes dos pedreiros, o arranhar das pás na argamassa, o som do martelo e do escopro contra a pedra. Encontrava-se ali muita gente: algumas pessoas da casa, além dos operários e dos guardas. De Guichet estava lá, a falar com mestre Edmund. Isambard distinguiu-lhe a voz entre as outras e sorriu. De Guichet esperava a chegada de um homem e não a partida de outro.

- Quando a encontrares, diz-lhe que todas as suas dívidas estão saldadas. Sabes qual é o caminho por onde virá?

- De Aber até aqui só há um caminho bom e directo, senhor.

- Óptimo! Então, posso deixá-la nas tuas mãos, em segurança. Já chegámos ao posto da guarda?

- Faltam umas cinquenta jardas, senhor.

- Leva-me para lá do posto, antes de montares, Harry. Quero levar-te além dos limites do meu senhorio. Que lês tu nas caras deles?

- Penso que ainda vos temem, senhor. Continuam o que estavam a fazer, mas estão a olhar para nós pelo canto do olho. Os guardas afastaram-se para vos dar passagem.

Por conseguinte, ainda era o seu senhor, ainda inspirava receio. E eles ainda não tinham a certeza, a certeza total, quanto ao lado para o qual iria soprar o vento.

- Ainda bem. Já passámos?

- Sim, senhor.

- Então, é aqui que nos despedimos.

Pararam, estranhamente indecisos. Impaciente, ansioso por galopar, Barbarossa puxava pela rédea. Harry voltou-se, para o acalmar.

- Estão todos a olhar para nós. Alguns pararam de trabalhar. Penso que estão simplesmente surpreendidos.

- Deixa-os estar. Salta para a sela e galopa. Não percas tempo. Que Deus te acompanhe. E apresenta os meus respeitos a Madonna Benedetta.

Harry virou-se para montar, mas não foi capaz. Olhou por cima do ombro e voltou atrás, com o coração dividido.

- Não posso, senhor...

- Que fedelho mais arrogante - ralhou Isambard. - Pensas que ninguém pode passar sem ti? Vai-te embora. Não preciso de ti...

Com a sua figura ainda imponente, activa, cuidadosa e ricamente vestida, de rosto acabado de barbear, Isambard conseguira, até ao momento derradeiro da despedida, imprimir a todos os seus movimentos a segurança de alguém cuja visão se mantivera intacta. Mas, de súbito, vacilou, deu um passo repentino para diante e, no gesto impotente de um cego, ergueu uma mão hesitante para o prisioneiro que partia. E, esquecendo tudo menos que aquela mão procurava o seu rosto, Harry agarrou nela e guiou-a para a face. A outra mão juntou-se à primeira, sem ajuda, e segurou-lhe o rosto. A bela cabeça de perfil de falcão inclinou-se e os seus lábios duros e cobertos de cicatrizes, afloraram ligeiramente a face do rapaz.

Mudo e tremente, Harry aceitou aquele beijo de parente e, quando Isambard o soltou, avançou impulsivamente o rosto para o retribuir, com o ardor desajeitado de uma criança.

- Que Deus vos guarde, senhor.

Nada mais. Nem uma palavra. Explicar era impossível, justificar-se não era necessário e a compreensão encontrava-se algures dentro de si, no fundo do coração; quisesse ou não, tornara-se parte de si e não podia ser posta em dúvida. Colocou o pé no estribo e montou. Barbarossa escavou alegremente o solo e lançou-se num galope desenfreado em direcção ao vale; a deslocação do ar, avivada pela frescura matinal, fustigou a face de Harry, onde Isambard depositara um beijo.

Haviam partido. Estava terminado. Agora, podia fixar a mente naquilo que ainda faltava fazer. O medo -, pelo menos no sentido em que o concebia - passara. Ainda ia disputar um jogo de vida e de morte mas, agora, as paradas estavam sob o seu controlo e o jogo não tinha mais importância do que a que devia ter. Ficou à escuta, até o som das ferraduras sobre o chão coberto de erva se haver esbatido no vale. Então, voltou-se e deu um passo na direcção das torres da guarda avançada: de repente, sentiu-se só, sem luz e sem pontos de referência, num cenário uniforme e de pesadelo.

Tentou ouvir o som dos martelos, mas os martelos haviam parado; ficou à espera de ouvir vozes, mas estas haviam-se calado. Era preciso subir a encosta. Mas, ao tactear cautelosamente com a ponta do pé, não foi capaz de determinar em que direcção ficava a encosta. Perdera o seu guia e não tomara medidas para o substituir. Contudo, aquele silêncio ocultava algo mais do que a curiosidade disfarçada dos seus homens pelos seus movimentos e caprichos. A intensidade dos olhares deles pesava sobre Isambard. As palmas das suas mãos ficaram cobertas de suor. Que haveria feito? Um gesto revelador, irrevogável, que traíra a fragilidade da sua situação. Porque eles sabiam que se encontrava impotente. Sabiam que estava cego.

Subitamente, compreendeu. Estavam todos a olhar para ele no momento em que levantara a mão e tacteara em busca do rosto de Harry. Não fora isso e poderia manter a farsa, mesmo agora, chamar mestre Edmund, inventar um pretexto qualquer para o ter ao seu lado, de modo a poder servir-se dele durante a primeira etapa do trajecto de regresso, e depois levar consigo um dos homens dele. Mas era demasiado tarde; eles sabiam. Haviam acabado os fingimentos. Harry agarrara-lhe na mão, quando esta se desviara num gesto infeliz, e guiara-a para o rosto. Eu não disse que ele ainda havia de ser a causa da minha morte?, pensou.

Agora, podia escolher entre fazer o trajecto a tactear, perigosa e ridiculamente só, ou pedir ajuda, admitindo aquilo que eles já sabiam e a sua própria perda. Tinha consciência dos muitos espectadores que o observavam: nenhum comovido, muitos satisfeitos e nem um único que acorresse a ajudá-lo. Mesmo quando, num tom peremptório, exigiu um ombro sobre o qual se apoiar, apenas o silêncio e a imobilidade lhe responderam. Então, apercebeu-se da medida da sua solidão.

- Mestre Edmund! Onde está mestre Edmund? Um de vós que lhe diga que venha ter comigo! Mexei-vos!

Lentamente, contra vontade, mexeram-se. Apenas um homem, algures do lado dos alicerces da torre, deixou cair qualquer coisa que tinha na mão, que produziu um som de madeira contra a pedra da muralha nascente, e correu, num passo envergonhado, a segurar-lhe o braço. O contacto daquela mão revelou-lhe uma sensação desconhecida. Nunca, até então, havia suscitado compaixão. Era necessário um período de adaptação para a aceitar, mesmo naquela situação, mas Isambard conseguiu-o logo ao primeiro passo que deram juntos. O desconhecido conquistara o seu reconhecimento; só um ingrato lho haveria recusado.

- Por aqui, senhor.

A mão fê-lo voltar-se e guiou-o para a parte menos acidentada do caminho.

- Apoiai-vos em mim. Quereis voltar para os vossos aposentos?

Uma voz afável, de um homem ainda novo que, noutras circunstâncias, haveria receado dirigir a palavra ao senhor de Parfois. Os passos cuidadosos que acompanhavam as longas passadas de Isambard eram de um homem baixo e o braço em que se apoiava era magro. Os olhos da mente que haviam nascido dentro de si elaboraram um retrato, a partir deste contacto: o de um homem novo, de trinta e quatro ou trinta e cinco anos, de altura inferior à média, aspecto modesto e simpático e modos suaves. Não era pedreiro; faltava-lhe a musculatura e os seus dedos não possuíam a destreza de quem está habituado a manejar ferramentas. A manga tinha a textura áspera do burel, mas o pulso era macio.

- Meu amigo... - começou Isambard.

Novas situações requeriam um novo vocabulário; o senhor de Parfois saboreava as lições da velhice com intensidade igual àquela com que saboreara as da juventude.

- Penso que devia conhecer-te. Estás ao meu serviço há muito tempo?

- Perto de vinte anos, senhor. Tende cuidado aqui. Há muitas pedras.

- Trabalhas na torre, não é verdade? Como escrevente, não é?

- Sim, senhor. -

Se trabalhava como escrevente havia vinte anos nas obras de Parfois, devia ser apenas um rapaz quando mestre Harry Talvace tombara, ferido pela flecha de Deus e de John o Frecheiro. Ali, naquele mesmo local, onde o sol matinal iluminava a esplanada verdejante antes da ponte. Houvera um rapaz na sala de desenho, um rapaz que andava sempre colado aos calcanhares de mestre Harry, envolvendo-o num olhar de adoração; limpava-lhe os pergaminhos, bebia as suas palavras e os seus golpes de cinzel como um idólatra e chorara a sua morte com um desgosto imenso. A delicadeza apaixonada de mestre Harry havia-se transmitido, trémula e muda, à mão que guiava o carrasco de mestre Harry de volta ao seu refúgio.

- Agora já sei quem és - disse Isambard. - Chamas-te Simon, tanto quanto me lembro. Eras o escrevente dele.

- Era sim, senhor.

Como soubera Simon, sem pensar e sem fazer perguntas, quem era o «ele»? Respondeu prontamente, sem a menor surpresa perante a conclusão do seu senhor. O Harry está tão vivo para ele como para mim, pensou Isambard, espantado. E é igualmente intemporal.

- Chegámos à ponte, senhor. Levantai um pouco mais o pé. Mestre Edmund nada fizera para promover Simon. O velho

mestre sempre manifestara aversão por aqueles que, outrora, haviam sido próximos de Harry, pensou Isambard. E, enquanto atravessavam o terreiro exterior, ocorreu a Isambard reparar essa injustiça menor. Todavia, ao chegar diante da porta, a lucidez levou-o a concluir, com clareza, que os seus favores já não fariam nada por ninguém, a menos que fosse empurrá-lo para uma morte prematura.

Nos velhos tempos, Isambard costumava contemplar, do alto da cobertura de chumbo da torre, as colinas azuladas do centro do País de Gales, que se estendiam, em direcção a Oeste, para lá do vale largo e verde, entrelaçado de prata; Pool, a montante, e Strata Marcella, a jusante, defrontavam-se à luz do sol, pedra cinzenta contra pedra cinzenta. Agora, apesar da cegueira, um pouco da antiga sensação de liberdade apoderou-se dele. O vento soprava das altas turfeiras e dos brejos de garças das terras altas e trazia consigo o cheiro das urzes e das ervas murchas do Outono, cujas sementes haviam amadurecido e caído para a terra.

Algures, para além daquelas formas fluidas de nuvens e neblina que guardava na memória, Benedetta e Harry cavalgavam agora lado a lado, sem pressas, a caminho de casa. No regresso a Parfois, Walter não encontrara Harry, porque viera por Shrewsbury, para colher novas das manobras insidiosas do rei Henrique em Usk. Mas decerto que, por aquela altura, a mulher e o jovem estariam já perto de Aber. O coração de Isambard estava descansado quanto a eles.

Walter relatara fielmente aquilo que não compreendia:

«Entreguei-lhe o anel e penso que Madonna Benedetta ficou contente, até lhe haver contado o que acontecera ao seu servo. Ficou calada durante muito tempo, mas não chorou nem clamou. Disse que assumia a culpa pela morte dele, que deveria haver sido franca com ele. E também disse que haverá tempo para falarem nisso.»

Mais nada. O resto guardara para quando viesse e prometera pôr-se a caminho, logo que tomasse algumas providências quanto ao velho que morava perto da sua casa. Agora, nunca ouviria o que ela tencionava dizer-lhe. Poderia ter havido tempo para falarem de todas as coisas que se encontravam em suspenso entre ambos mas, agora, já não era possível. Pelo menos neste mundo.

Tanto melhor. Ela estava a salvo e havia recuperado o ser que lhe era tão querido. Quanto a ele, a casa do seu espírito estava arrumada e a fortaleza da sua solidão bem aprovisionada. Walter fora enviado para Fleace, a pretexto de preparar a chegada próxima do seu senhor; Simon, o escrevente, fora com ele, recomendado para entrar ao serviço do canteiro Humphrey Paunton, que trabalhava no novo salão do castelo. Mais um inocente afastado, posto a salvo dos golpes perdidos que podiam cair sem olhar onde. Nos dias que se seguiriam, Parfois não seria um local seguro para pessoas que se compadecem dos seus inimigos, quando estes ficam velhos e cegos, e os levam pela mão, evitando os caminhos mais perigosos.

O vento tornou-se mais frio e Isambard afastou-se da sua contemplação cega do País de Gales. Os degraus superiores da torre eram estreitos e estavam gastos. Em geral, era um dos pajens que o levava lá acima e depois ficava à espera de que ele o chamasse para descer. Mas, naquele fim de tarde de finais de Setembro, Isambard chamou, mas nenhum pajem acorreu.

Esperou e voltou a chamar, menos pacientemente. Apurou o ouvido, mas não escutou qualquer ruído de passos, qualquer voz que lhe respondesse. Mas havia outros sons, que subiam do terreiro, numa lenta espiral de esplendor. O ruído cerimonioso de ferraduras em procissão, um murmúrio de vozes excitadas e impacientes. Tudo ao longe, tudo no mundo lá de baixo. Um som filtrado por acres dourados de ar. Chegara uma companhia. Os jovens da casa continuavam a sair a cavalo e a caçar. Todos os dias, havia grande actividade de cavaleiros no terreiro exterior e junto às cavalariças. Mas estes sons eram diferentes, estranhos e alegres.

Esperou que lhe viessem contar o que se passava mas ninguém apareceu. Não ficou surpreendido nem despeitado, porque já não esperava nada. Passado um bocado, contente por o servo que devia acompanhá-lo haver desertado para correr a juntar-se aos outros no terreiro exterior, encontrou o caminho até à porta, tacteando ao longo dos merlões, e começou a descer sozinho. Degrau a degrau, com a devida atenção aos degraus gastos, demorou bastante tempo a descer os primeiros lanços, mas não tinha importância. Dispunha de muito tempo.

Entre as paredes espessas, estava isolado do mundo e os únicos sons que ouvia eram os produzidos pelo seu próprio corpo: os seus pés pisando cautelosamente os degraus de pedra, gastos, a respiração regular, as batidas cadenciadas do coração dentro do peito descarnado. Diante de cada seteira do poço da escada, uma corrente de ar fresco e doce acariciava-o e, em cada novo patamar estreito, a obscuridade parecia mais densa. Agora, já não distinguia formas nem sombras. A escuridão era total.

Ao chegar ao nível dos seus aposentos, estacou, de ouvido à escuta, a cabeça lançada para trás. Dentro da torre, não havia agitação nem vozes. Do exterior, chegava até ele um ruído abafado, no qual transparecia ainda uma certa nota de excitação. Em seguida, perto de si, sentiu mais do que ouviu os movimentos ritmados de uma respiração. Não a sua, cujo ritmo conhecia agora intimamente. Vinha de uma divisão próxima, cuja porta se encontrava aberta. Uma respiração pausada. A regularidade e calma daquela respiração indicavam que quem ali se encontrava tinha consciência da sua presença.

Isambard tacteou ao longo da parede e atravessou o espaço até à entrada do seu quarto. A porta que ele fechara ao sair, cerca de uma hora antes, estava semiaberta. Abriu-a por completo e entrou, sem se esconder e em passadas seguras, porque, ali, conhecia todos os nós e irregularidades das tábuas do chão. Com toda a calma, caminhou até ao centro do quarto e, lentamente, voltou o rosto imperioso, aquela lanterna apagada de ossatura magnífica, para a esquerda e para a direita, até se fixar na direcção onde sentira uma presença palpável. Então, imobilizou-se, seguro de si, com uma calma infinita, e sorriu ligeiramente.

Estava alguém sentado no seu cadeirão, num acto de usurpação que, pelo menos, assinalava o fim do fingimento. O seu sorriso acentuou-se. Sem pressas, ponderou sobre as identidades possíveis do usurpador. Uma respiração forte e confiante, a sensação de volume, de um corpo de boa estatura e robusto; mas pouco à-vontade sob o olhar cego, pois mexera-se ligeiramente sobre as almofadas, até que, num movimento que surpreendeu e fez rir Isambard, se pôs de pé. Então, Isambard pensou havê-lo reconhecido. Ocupar a cadeira do seu senhor e, em seguida, abandoná-la, coadunava-se perfeitamente com o seu carácter e era bastante revelador.

- De Guichet? - perguntou, desapontado e desdenhoso.

- Não - respondeu uma voz, vinda das trevas diante de si, uma voz suave, sorridente, controlada. - Não é de Guichet.

- Ah, és tu? - observou Isambard, com um longo suspiro de contentamento. - Meu bom e querido filho. Porque demoraste tanto? Há dez dias que estou à tua espera.

 

Aber: Outubro de 1233

O SANTO CLYDOG ACORDOU RENITENTEMENTE do seu longo sono e deparou com um céu encoberto por nuvens baixas e cinzentas sobre Moei Wnion, o gemido desolado e distante do mar, uma cabana vazia, uma lareira apagada, um coração desabitado e um jovem muito agitado, acocorado diante de si sobre a erva alta. O jovem segurava-lhe os joelhos com umas mãos grandes e tisnadas e fitava-o com uns olhos suplicantes que ele já vira em tempos, num outro rosto. Uma voz desesperada martelava insistentemente os seus sentidos relutantes, repetindo um nome, obstinada, suplicante, ameaçadora, sedutora, arrastando-o de volta para um mundo de que o santo já não queria saber. Tentou tapar os ouvidos e fechar o espírito, mas aquelas mãos agarravam-no cruelmente, enquanto a voz batia como o punho de uma adaga nas portas fechadas, recusando-se a deixá-lo em sossego.

- Onde está Madonna Benedetta? Ouvi! Ajudai-me! Preciso de a encontrar. Onde está Madonna Benedetta?

O velho abriu os olhos e, com uma dor infinita, regressou aos frágeis limites do seu corpo, aquela pequena gaiola onde, com o coração prestes a explodir, a grande ave esvoaçava fracamente, com as asas dobradas e o coração prestes a explodir. Então, lembrou-se daquele rosto: era o rapaz por causa de quem Benedetta partira.

- Foi-se embora - respondeu, encolhendo-se sob as mãos jovens que o apertavam, inconscientes da própria força.

- Eu tenho olhos, já percebi que ela se foi embora.

A manta áspera estava dobrada em cima da estreita enxerga de palha, a pedra da lareira estava fria, a janela em arco voltada para Sul estava fechada.

- Quando partiu? Porque foi que não me cruzei com ela no caminho?

Ajoelhado sobre as ervas, Harry prendia os joelhos idosos do santo entre as duas mãos e perscrutava-lhe o rosto, que não passava de uma mancha fluída e acinzentada, sob a barba que fazia lembrar uma sebe de cardos, iluminada por dois olhos azuis pálidos e distantes.

- Ajudai-me, meu bom santo! Preciso de a encontrar. Trago uma mensagem para ela.

- Foi para Parfois - disse o santo Clydog, numa voz subitamente clara e alerta. - Esteve aqui um escudeiro com uma resposta à mensagem que Benedetta havia enviado. Ela pediu um rapaz para cuidar de mim e, depois, seguiu viagem.

- Para Parfois? Mas eu venho de Parfois. Perguntei por ela em todas as quintas e hospedarias do caminho e ninguém sabia de nada. Não passou por aquela estrada. Pensei que ainda estivesse aqui.

Harry debruçou-se sobre o santo e agarrou-lhe nas mãos, pequenas e frágeis como borboletas, que este tinha pousadas no colo.

- Foi sozinha? Por certo que levou uma escolta de Aber! O príncipe nunca a deixaria...

Harry interrompeu-se a meio da pergunta. Melhor do que ninguém, Benedetta sabia o que o príncipe a deixaria ou não fazer. Vê-la abandonar o seu retiro voluntário seria o mesmo que ver o Sol inverter o seu curso do zénite para a aurora. Os seus mais ínfimos movimentos suscitariam uma torrente de perguntas.

- Ela nem sequer se aproximou de Aber - acrescentou em voz alta, amargurado, furioso com a sua própria estupidez. - Dizei-me depressa, bom santo, que caminho tomou ela? Quem a acompanhou?

Em Aber, nem sequer deveriam saber que Benedetta partira.

- Foi pela estrada da montanha, por Bangor - respondeu o santo Clydog, olhando por cima da cabeça do jovem, como se estivesse a vê-la caminhar pela encosta da montanha. - Pediu ao bispo Martin um rapaz para cuidar de mim e, para ela, um cavalo e um servo a cavalo para a acompanhar até Parfois. E não voltei a vê-la. Mas o rapaz veio ter comigo. Está lá em baixo, junto ao regato, a pescar. É um bom rapaz, embora jovem e estranho. Eu estava habituado ao John o Frecheiro - acrescentou, pensativo.

- Então, ela foi pela estrada que sai de Bangor?

O que queria dizer que, depois de Dolgynwal, seguiria pelo mesmo caminho por onde Harry passara a toda a brida. Se Benedetta houvesse partido um dia mais cedo ou ele um dia mais tarde, haver-se-iam por certo cruzado.

- Quando foi que ela saiu daqui? - perguntou Harry, puxando violentamente pela manga castanha. - Há quantos dias?

- Há três dias... ou seriam quatro? Estava a chover, quando ela partiu. Choveu durante dois dias e, depois, o Sol voltou. Isso foi ontem. Portanto, foi há quatro dias.

- E o rapaz... quando chegou ele?

- Ao cair da noite, um dia depois de ela me deixar. É um bom rapaz. Sossegado - acrescentou o santo Clydog, deixando inconscientemente cair ténues lágrimas de velho sobre a barba emaranhada. - Onde há mulheres, não há paz. Estão sempre a ir e vir. Eu sempre soube que ela não passaria aqui o resto da sua vida.

Harry ergueu-se sobre a relva como um pássaro prestes a levantar voo. Supondo que dormira uma noite em Bangor, antes de se pôr a caminho, Benedetta levava apenas três dias de avanço. Por certo que se encontraria agora para lá de Dolgynwal, enquanto ele corria para ali, seguro de que se cruzariam no caminho directo. Ainda podia alcançá-la. Virou-se para agarrar nas rédeas de Barbarossa mas, lembrando-se das boas-maneiras, voltou impulsivamente para trás a fim de se ajoelhar diante do santo e pedir a sua bênção.

- Rezai por mim, senhor! Para que eu a encontre a tempo! A mão enrugada tocou-lhe na cabeça e ali ficou por um momento, como uma folha seca enleada nos seus cabelos despenteados.

-A tempo para quem? - perguntou o santo Clydog, com tristeza. - Para Deus ou para ti?

Harry desceu a encosta escarpada ao longo do curso de água e a silhueta imponente do castelo do príncipe surgiu diante dos seus olhos, recortada contra as colinas, dominando a estreita faixa de rias e prados acima do nível do mar. A linha escura e extensa da muralha circundava o salão, os estábulos e as zonas residenciais, a cozinha, os canis e as cavalariças, a torre baixa dos aposentos reais sobre os subterrâneos espaçosos e a torre de menagem em madeira sobre o aterro elevado. Fora da muralha estendia-se a aldeia, encostada a esta para se proteger, e o ribeiro envolvia o castelo numa fita prateada, antes de se lançar no mar. O coração de Harry agitou-se-lhe no peito, sôfrego por se encontrar ali.

Poderia ter feito Barbarossa dar a volta e percorrido mais uma vez o caminho por onde viera. Mas ocorreu-lhe a tempo que iria precisar de ajuda e que mais homens em cavalos mais repousados tinham maiores hipóteses de sucesso. A primeira coisa a fazer, antes de voltar a pôr-se a caminho, era contar toda a história a Llewelyn. Não haveria a recear a necessidade de longas explicações, nem de interrupções por pura incompreensão. O seu pai adoptivo apreendia as situações com a mesma facilidade com que as árvores se inclinam para o Sol. Bastar-lhe-ia dizer aquilo de que precisava e as explicações ficariam para um momento mais oportuno.

Depois do moinho, a estrada alargava e era menos inclinada. Harry esporeou o cavalo e franqueou a poterna a trote moderado. O peso do desafio que o esperava dissipou-se perante os gritos de reconhecimento e alegria. À medida que ia passando, inclinava-se para apertar a mão a velhos amigos, gritando-lhes que estava com pressa. O escuro portal da alta muralha de madeira engoliu-o, devolvendo-o à luz do dia no terreiro, onde parou diante do salão.

Uma mulher que se encontrava perto do poço reconheceu-o, largou o cântaro e partiu a correr, para espalhar a nova. Acorreram muitos homens, homens com quem Harry praticara luta, subira às montanhas e brincara desde a infância, que o cercaram, fizeram apear do cavalo, crivaram de perguntas, tocaram, passando-o de uns para os outros com gritos de júbilo. Harry afastou-os, sufocado.

- O príncipe... primeiro preciso de falar com o príncipe. Preciso mesmo! Não me retenhais!

Algures no fundo do seu coração, uma criança turbulenta chorava de alegria e emoção e ansiava por ir ao encontro da mãe, não do príncipe. Mas iria ter de esperar.

Harry lançou-se numa corrida em direcção aos degraus do salão, mas as vozes e as mãos orientaram-no para os aposentos privados de Llewelyn, e muitos correram atrás dele para o acompanharem com as suas aclamações. Levado pela impaciência, Harry acabou por se distanciar deles e chegou à porta da torre do príncipe sozinho. Subiu as escadas em quatro passadas largas, como um cão de caça, abriu a porta pesada da sala de audiências privada, atirando-a contra a parede, e ficou face a face com Llewelyn.

Os três homens sentados à mesa - de cabeças juntas e expressões graves e concentradas - levantaram a cabeça ao mesmo tempo, espantados e preocupados. Um deles, um desconhecido, levou a mão à adaga com uma rapidez e uma destreza espantosas. Ednyfed Fychan pôs-se de pé, de sobrolho franzido, e abriu a boca para interpelar aquele intruso sem maneiras. Llewelyn, que se encontrava de costas para a porta, voltou a cabeça com um trejeito de desagrado e de impaciência; mas, numa fracção de segundo, o seu rosto iluminou-se e ele soltou um brado:

- Harry!

Violentamente empurrada para trás, a cadeira bateu contra a parede e Llewelyn correu para Harry, de braços abertos, para o apertar contra o peito.

Harry correu também, lançou-se aos pés do príncipe, agarrou-lhe na mão direita que beijou fervorosamente e, por um instante, encostou a cabeça aos joelhos de Llewelyn, antes de ser agarrado pelos braços e erguido do chão.

- És tu, Harry? És mesmo tu?

Os braços compridos estreitaram-no contra o peito largo, vestido de brocado. Harry sentiu as batidas fortes do coração do príncipe pulsarem no seu próprio corpo, abalando-o até à medula dos ossos.

Os lábios barbudos de Llewelyn beijaram-lhe a face e a testa, as suas mãos afastaram-no para poder devorá-lo com os olhos negros e penetrantes, que brilhavam de riso e de prazer. Uma palma forte ergueu-lhe o queixo, para poder ler-lhe no rosto.

- Levanta-te para te podermos ver, rapaz. Deixa-me olhar bem para ti. Bem, juraria que estás mais alto do que o Owen e quase a apanhar o David!

Voltando-se para o seu senescal, ordenou, de olhos brilhantes:

- Correi, Ednyfed, ide chamar a minha senhora e dizei-lhe que traga a dama Gilleis consigo... dizei-lhe que o Harry está aqui, são e salvo. Chamai também o David e o Owen... e o Adam Boteler, se conseguirdes encontrá-lo. Depressa!

Em seguida, dirigindo-se ao desconhecido, que se afastara cortesmente para um canto da câmara e que os observava com um sorriso grave e interrogativo, acrescentou:

- Perdoai-nos, mas não é todos os dias que se recupera um filho. Este é o meu filho adoptivo, Harry Talvace, que há muito se encontrava prisioneiro de Ralf Isambard, em Parfois. Há quase dois anos que não o víamos e nunca houve uma palavra ou um sinal de que poderíamos voltar a vê-lo entrar por aqui dentro, desta maneira... tão impetuoso como sempre. Saúda Alan Delahaye, meu filho. É o enviado do conde de Pembroke.

Harry fez uma vénia e apresentou as suas desculpas, ainda mais excitado e confuso pela menção do conde marechal. Que poderia Pembroke querer discutir com o príncipe de Aberffraw que não fossem questões da paz e da guerra?

- Peço-vos que me perdoeis por vos haver interrompido tão abruptamente, senhor. Não deveria haver-me permitido entrar aqui sem ser anunciado, mas há um assunto que não pode esperar. Posso falar, senhor? - perguntou, dirigindo-se ao príncipe.

- Podes e deves - respondeu Llewelyn. - Estou à espera de te ouvir. A que devemos o prazer de te ter de volta? Estás livre de vez? Fugiste?

- Seria o primeiro a fugir de Parfois - observou Delahaye, num tom seco.

- Não, não fugi.

Ao todo, tentara sete vezes e não era preciso nenhum inglês para lhe ensinar que Parfois era inexpugnável.

- Ele libertou-me, mas...

- O quê? Ainda há algum «mas»? Que foi que Isambard engendrou desta vez, para te magoar? Se as coisas continuarem assim, sou eu quem vai ajustar contas com ele.

- Não é o que supondes, senhor. Mas fui encarregado de uma missão que ainda não pude cumprir e, até lá, não estou livre. Madonna Benedetta... partiu do seu retiro e preciso de a encontrar.

- A Madonna Benedetta saiu do seu retiro? O que vem a ser isso? Uma missão? Ele encarregou-te de uma missão? - vociferou Llewelyn, caindo sobre aquela palavra como um falcão sobre a sua presa. - E junto dela!

Voltou para a sua cadeira e obrigou Harry a sentar-se num tamborete, aos seus pés, sem lhe soltar as mãos.

- Conta-me!

Harry respirou fundo e contou a história toda. As mãos grandes e poderosas do príncipe nunca soltaram as suas, não estremeceram nem se crisparam.

Contudo, antes de a história ter terminado chegaram aqueles que o príncipe mandara chamar, ansiosos por confirmar com os próprios olhos que Harry estava de volta, por lhe tocarem e por o abraçarem. Gilleis parecia vir a voar, com as saias puxadas para cima como uma rapariga endiabrada, e lançou-se sobre ele, numa torrente de lágrimas de alegria e incredulidade. Harry abraçou-a sem interromper a sua história e Llewelyn soltou-o, continuando a escutá-lo com toda a atenção. Gilleis ajoelhou-se ao lado do filho, beijou-lhe a boca entre duas palavras entarameladas e ficou abraçada a ele até ao fim da história. Em seguida, entraram Owen, radiante com a boa nova, e David, corado e de olhos brilhantes de alegria, depois apareceu Adam Boteler, que se inclinou e beijou docemente a testa do enteado. Por fim, chegou a princesa e o jovem, distraído, ia erguer-se para se ajoelhar aos seus pés, mas Joan levantou a mão, indicando-lhe que se deixasse estar onde estava, e ele beijou-lhe as pontas dos dedos entre as sílabas do nome de Benedetta.

- Cometi um erro. Agi demasiado depressa e sem pensar. Se houvesse cavalgado mais devagar, por certo que me haveria cruzado com ela no caminho. Como vedes, preciso de voltar para trás, não posso descansar enquanto não a encontrar e trouxer para casa. Oh, mãe, permiti que me ausente por mais uns dias...

Gilleis fê-lo calar, poisando-lhe a palma da mão sobre os lábios. A altura de Harry e a largura dos seus ombros, a penugem castanho-dourada do seu queixo e a sua voz grave, a expressão dos olhos, mesmo quando lhe sorria por entre as lágrimas, perturbado pelo acolhimento caloroso de que estava a ser alvo, haviam-lhe indicado que, se quisesse conservá-lo, teria de lhe dar liberdade plena e total. Os anos que perdera nunca poderiam ser substituídos. E mesmo aqueles que iria ganhar agora seriam, em breve, demasiado cedo, cedidos a outra mulher. Mas cada coisa a seu tempo. Harry estava livre, era senhor de si próprio e, para que tanto o coração dele como o seu encontrassem a paz, era preciso encontrar Benedetta.

- Cuidas que há alguma coisa que eu possa negar a Benedetta? Vai com a minha bênção. Eu própria iria, se conseguisse ser mais rápida do que tu.

- Deixa-me ir a mim, no teu lugar - ofereceu Owen, vendo o cansaço que se ocultava por trás do brilho ardente dos olhos de Harry. - Tu não descansaste. Já dormiste, depois de haveres saído de Parfois?

- Deixa-o ir - interveio Llewelyn, que conhecia bem os jovens. - Esta missão é dele e não tua. Vai com o David escolher seis homens valentes que conheçam a mulher santa e cuida de lhes arranjar boas montadas. É melhor mandar dois pelo caminho de Bangor Hal, para lhe seguirem a pista na estrada que tomou. E levas os outros quatro contigo, pelo caminho da montanha, para apanhar a estrada em Dolgynwal. Se conseguires saber que ela passou por ali, tanto melhor. Se não, segue em frente com dois homens e os outros que se juntem aos que vão por Bangor, até obterem a confirmação da sua passagem. Levareis uma ordenança minha, para obterdes os cavalos, os homens e a ajuda necessária, até à fronteira. Vai. Vai à cavalariça escolher um cavalo e podes pedir tudo o mais que quiseres ou precisares. Com a ajuda de Deus, não havemos de perder Benedetta.

- Um bom rapaz - disse Llewelyn, pensativo, olhando para a porta que acabara de se fechar. - Apesar dos seus defeitos, é um dos melhores rapazes que já conheci.

- Segundo parece, um dos melhores aliados do rei na vossa fronteira está a braços com problemas próprios mais do que suficientes - observou Delahaye. - Se decidirdes avançar para Sul, senhor, e aliviar o flanco das tropas do conde nada havereis a recear de Parfois.

- Parfois não me faz medo. Jurei perante Deus que, quando chegasse a altura, conquistaria e destruiria Parfois para vingar os Talvace.,. pai e filho. E não estou a ver nada que me liberte dessa jura. O filho está livre, mas o pai está morto e a sua sepultura foi violada. Ainda assim... cego! - disse Llewelyn, abanando a cabeça e franzindo o sobrolho. - Preferia que Isambard estivesse em plena posse das suas faculdades.

- Não precisais de o atacar, a menos que o desejeis - observou Delahaye. - Para nós basta que Isambard esteja fora de jogo; parece que o pobre diabo que ele matou tratou disso. O conde preferiria que imobilizásseis Brecon, deixando-lhe assim as mãos livres para limpar o vale do Usk. Todavia, se optardes por cumprir o vosso juramento, o facto de vos juntardes a nós dar-vos-á pelo menos essa oportunidade.

- Não acreditais que seja possível? - perguntou Llewelyn. Os seus olhos reflectiram um brilho dourado, como os de um falcão, e ergueu a cabeça com altivez, como se contemplasse com prazer antecipado a doce tentação de um feito quase impossível. Mas expulsou a tentação do espírito. Havia outras considerações a ter em conta. Se partisse para a guerra pela última vez - e seria por certo a última vez, pois os derradeiros anos da sua vida teriam de ser totalmente dedicados a consolidar o reino que forjara para o filho - teria de ser por razões mais sérias do que a satisfação de um desejo pessoal e pueril. Havia ainda coisas a conquistar e a acrescentar à herança de David: era necessário consolidar mais firmemente a sua posição como vizinho da Inglaterra e afirmar de forma incontestável o seu direito de nascimento. Os Ingleses possuíam um gosto notório e um grande apreço pelos precedentes e pelos princípios de direito e do costume; era por essa tradição que Pembroke lutava, fossem quais fossem os erros pessoais que haviam desencadeado aquela guerra inesperada. Por ela e por um modelo de integridade nas relações entre os homens e os governantes, tão solidamente estabelecido e respeitado que seria impossível um rei cata-vento desrespeitá-lo.

Para além de todas as outras razões de interesse, era esta a razão decisiva e irrefutável para aceitar a proposta de aliança de Pembroke: ao contrário do rei Henrique, Pembroke havia por si a razão. Para além da atribuição das culpas menores, como quem desferira o primeiro golpe ou quem sofrera o primeiro revés, olhando o conflito no seu conjunto, Pembroke estava dentro da razão.

- Deus dispõe, senhor - disse Delahaye, sorrindo. - Eu não diria que haja alguma fortaleza que não possa ser conquistada.

O pensamento de Llewelyn estava já tão longe da questão do carácter inexpugnável de Parfois que lhe foi necessário algum esforço e alguma reflexão para voltar a ela.

- Duvido que a questão alguma vez venha a pôr-se - disse, um pouco decepcionado. - Se Deus quiser, o Harry há-de trazer a Madonna Benedetta de volta sã e salva e, então, já não haverá nada que justifique atacar Parfois. Deus, que tudo ordena, terá de decidir o que fazer de mim e do meu juramento. Um arqueiro armado com uma mão-cheia de cal viva pode revelar-se tão eficaz como um anjo armado de uma espada flamejante. - Afastando resolutamente estes pensamentos perturbadores, Llewelyn acrescentou: - Estais seguro de que o aviso que o conde recebeu, quando ia a caminho do Sul, para o Conselho, e que o fez voltar a Gwent... é fundamentado? O rei havê-lo-á destituído? Havia-lhe dado garantias há tão pouco tempo que não podem haver sido já esquecidas.

- O rei também deu garantias a de Burgh, sob juramento prestado sobre a relíquia de Bromholm, menos de um mês antes de o derrubar como quem derruba uma árvore. E quem mandou o aviso disse a verdade sobre as intenções do rei quanto a Usk. O tempo estipulado já passou há muito e ele não fez sequer menção de devolver o castelo. E isto era algo que também havia garantido. Uma boa medida para o valor das suas promessas.

- Isso é certo. Mas, apesar de o rei não haver conseguido conquistá-lo - acrescentou Llewelyn com um sorriso radioso - Usk não é inexpugnável.

- Penso que foi por isso que Turbeville de lá saiu e o conde conseguiu recuperar aquilo que lhe pertencia. Cansou-se de esperar que Henrique cumprisse a palavra dada. Todavia, o descrédito do rei é tal - comentou Delahaye, raivosamente - que nenhum homem honrado pode deixar de pôr em dúvida a sua palavra. Talvez isso não seja verdade em todos os casos, mas ninguém ousaria correr o risco, com receio de que pudesse ser verdade. A que ponto chegou a coroa, para se poder dizer isto sobre ela!

Um homem não é necessariamente melhor advogado de uma causa por acreditar apaixonadamente nela. Mas a sua confiança ou a sua aliança estreita com Richard Marshall dotara Delahaye de uma convicção que, aos ouvidos de Llewelyn, suplantava a eloquência. Havia uma outra prova, que se podia comparar à primeira, e o contraste era notório. Se Pembroke lhe houvesse feito uma promessa, mesmo sem jurar sobre o crucifixo de Bromholm ou sobre qualquer outra relíquia, ele, Llewelyn, acreditaria sem hesitar no seu cumprimento. E se alguém o viesse advertir de que Pembroke se preparava para o trair, na sua própria corte, ele haver-se-ia rido e seguido o seu caminho sem hesitar. A prova da honestidade de qualquer homem é poder-se apostar a própria vida nela. Quem apostaria a vida na honestidade do rei Henrique?

Ainda estava a tempo de reconsiderar. Se se aliasse a eles, segui-los-ia até ao fim. Não haveria condições separadas, não haveria uma paz separada. Que aconteceria se todos os senhores das Marcas tomassem o partido do rei? Que aconteceria se Henrique mandasse vir cada vez mais mercenários estrangeiros, como o conde de Guisnes e os seus Flamengos? Des Rivaulx velara por que todas as fontes de receitas convergissem para as suas mãos e, enquanto detivesse o cargo, Henrique podia permitir-se comprar tropas no estrangeiro. Bem financiado, o rei faria tudo quanto estivesse ao seu alcance para impor o seu domínio, libertando-se do Conselho, do costume e da tradição. E, se levasse a melhor, trataria os seus inimigos sem piedade.

Era preciso pensar no fim do conflito antes de este começar. Não era a sua própria vida nem o seu próprio destino que estavam em jogo agora; era o reino de David, o sonho do País de Gales. Se se aliasse a eles agora, segui-los-ia até ao fim, venceria ou seria derrotado com eles. Seja! E agora, pensou, satisfeito com a sua decisão, concentremo-nos nos pormenores, para sermos nós os vencedores e não os vencidos.

- Vou precisar de algum tempo para colocar o meu exército no terreno - disse, calmamente. - Mas não de tanto como Henrique irá precisar para reunir os senhores das Marcas. No fim do mês, estarei preparado para cobrir o flanco do vosso senhor contra um ataque lançado a partir de Shropshire e Herefordshire, sem deixar as minhas terras desprotegidas.

Feliz, entusiasmado e pronto para a acção, Llewelyn assentou as mãos sobre a mesa e empurrou a cadeira para trás.

- Podeis dizer ao conde de Pembroke que a minha resposta é sim. Antes do fim de Outubro, anunciarei a minha aliança com ele e conduzirei Gwynedd para a guerra.

- Eu sabia que podíamos contar convosco, senhor - declarou Delahaye, inflamado como uma fogueira de tojo.

Restava apenas garantir que seriam bem sucedidos. De olhos brilhantes, Llewelyn pensou nas semanas seguintes, avaliando as hostes de Corbett, Lacy e FitzAlan, nas suas fronteiras. Todas menos as de Parfois. Se Harry estivesse certo - Harry era bastante esperto e não lhe havia faltado oportunidade de avaliar a situação - Parfois abrigava no seu seio as sementes de uma guerra interna. Se Ralf Isambard mantivesse a sua posição, Henrique nunca o chamaria para o seu serviço: não sabia avaliar os homens e não confiava nele. Mas se Ralf Isambard deixasse a sua autoridade escapar-lhe entre os dedos...

- Cego! - exclamou Llewelyn, chocado com a imagem inconcebível de uma escuridão total. - Deus sabe que nem nos piores momentos lhe desejei tal sorte!

A brisa fria do cair da tarde sobre os contrafortes de Moei Wnion trazia consigo o odor salgado e o lamento melancólico da maré vazante sobre as areias de Lavan. Do outro lado do estreito, todos os sinos dos oratórios de Ynys Lanog repicaram, num coro ténue e hesitante, que era uma vaga reminiscência de um sonho distante de sinos.

O santo Clydog estava junto à soleira da porta quando os ouviu e, por um momento, ficou ali parado, sem saber se lhe diziam que avançasse ou recuasse. O som possuía uma doçura semelhante à de uma promessa de felicidade, ainda que muito distante, mas também possuía uma tristeza semelhante à da derradeira convulsão de um desgosto não esquecido. O santo Clydog perscrutou a obscuridade, na qual palpitava a promessa de luz, mas os seus olhos eram ainda demasiado terrenos e não conseguia ver a claridade para além dela. Olhou por cima do ombro, para o antro crepuscular, mas a sua visão fora já perturbada por aquela imagem de luz irreal e as formas do mundo real escapavam-lhe.

Afinal, já não havia qualquer razão para continuar ali. As formas do mundo eram as formas do vazio e da perda. Não havia luz na cabana de pedra, nem ruído de passos na soleira da porta, nem vozes de madrugada. Não havia mais nada para dizer, mais nada para fazer, mais ninguém por quem esperar. Fora inútil haver esperado por Harry.

O mar lamentava-se, a noite caía, o frio, a solidão e o desgosto montavam guarda, silenciosamente, nas suas costas. E o anjo que vigiava o seu sono e o seu despertar fê-lo passar a soleira da porta, confortando-o ternamente, dizendo-lhe que a mulher o seguiria em breve. O santo Clydog não voltou a olhar para o local desolado onde ela vivera. Seguiu em frente, surdo às vozes que o incitavam a voltar, insensível às mãos que o seguravam, liberto de todas as preces, aliviado das ofertas, vigílias e visões. Franqueou a porta das trevas, cruzou o limiar do seu túmulo ainda por abrir e o tempo fechou-se atrás de si, tão suavemente que ninguém soube o momento exacto em que o trinco se fechou.

Uma hora mais tarde, ao chegar lá acima para o deitar, o rapaz que o servia encontrou apenas um monte de ossos de passarinho, caídos sobre a erva.

 

Parfois: Outubro a Novembro de 1233

ENCONTRARAM-LHE O RASTO EM DOLGYNWAL e seguiram-lho ao longo de uma boa parte do caminho, galopando a toda a brida e tirando todo o partido da ordenança de Llewelyn, para trocar de montadas sempre que as suas se mostravam cansadas e houvesse outros cavalos disponíveis. Em Meifod, Madonna Benedetta levava apenas algumas horas de avanço e Harry começou a acreditar que acabariam por alcançá-la. Porque ia ela tão depressa? Era-lhe difícil acreditar que uma mulher pudesse manter o avanço que levava, tendo ele cavalgado Gales fora de dia e de noite, sem dormir, a não ser por alguns breves instantes de repouso roubados aqui ou ali. O coração dizia-lhe que ela se apressava assim por sua causa e isso ainda o impelia a ir mais depressa.

De repente, em Strata Marcella, perderam-lhe o rasto. Seria possível que a houvessem ultrapassado, enquanto ela descansava numa quinta? Harry mandou dois dos seis homens voltar atrás, para procurarem por ela de um lado e do outro do caminho; ordenou a outros dois que seguissem em frente, directamente para o sopé da rampa que conduzia a Parfois, e observassem de perto todas as pessoas que se aproximassem do posto avançado da guarda. Ele próprio e os dois homens que restavam rumaram a Sul, em direcção a Castell Coch, para lá de Pool, não fosse dar-se o caso de ela haver escolhido atravessar o Severn pelo vau sul e não pelo vau norte. Furioso contra si mesmo, culpando-se pela pressa, pelo ardor e pela devoção de Madonna Benedetta e pelo seu próprio atraso, Harry chegou a Castell Coch ao cair da noite, oscilando sobre a sela. Sim, Madonna Benedetta passara por lá; não, já lá não estava. Não quisera dormir ali e voltara a partir um pouco antes do crepúsculo, ou seja, fazia uma hora.

Harry fez o cavalo dar meia volta e seguiu para o vau de Pool. O Severn ainda mal ultrapassava o seu nível habitual de Verão. Passaram para a outra margem e atravessaram os charcos prateados da zona alagadiça; mal o solo se tornou mais firme, Harry lançou-se novamente a galope, pelo caminho verdejante que subia do rio até aos contrafortes de Long Mountain, e depois pela rampa que ia dar a Parfois. Aí, um dos seus homens saltou do meio das árvores e fez-lhe sinal para parar.

A despeito de toda a sua pressa, haviam chegado tarde demais. Madonna Benedetta estivera sempre à frente deles e já entrara em Parfois.

- Meu querido e amado filho - suspirou Isambard. - Estás a desperdiçar o teu tempo e o meu. Não que esteja a queixar-me: disponho de todo o tempo e, em boa consciência, posso dispensar-te algumas horas de boa vontade. Mas, se esperas obter de mim aquilo que ambicionas, não vais consegui-lo por estes meios. Avisei-te, logo que chegaste, de que não te darei nada... aquilo que queres de mim, só o poderás obter pela força. Pedir não te serve de nada. Pensa bem, caríssimo: se assinasse e selasse a tua herança ficaria privado destes consolos diários, da tua doce companhia, da tua solicitude filial. Gosto de ouvir a tua voz, mesmo que o assunto seja sempre o mesmo. - Há mais de uma maneira de fazer perguntas, como ainda podereis vir a aperceber-vos, meu bem-amado pai. O vosso avô legou-nos uma bela panóplia de meios de persuasão, e eles ainda ali estão, debaixo da torre da guarda. Pode acontecer eu ver-me na necessidade de recorrer a eles.

- Não me parece. Se ousasses fazê-lo, já os haverias utilizado há muito. Não que houvesses ganho alguma coisa com isso, garanto-te eu. Não, penso que renunciaste a partir-me os ossos ou a flagelar-me a carne pela mesma razão que te impede de me atirar para um buraco, onde eu me transformaria num velho tonto e mal cheiroso, ou de me fazer passar fome até eu ouvir a voz da razão. É porque, a qualquer momento, podes ser obrigado a mostrar-me aos olhos do mundo, são, salvo e reconhecível. Se Paunton, d'Enville ou qualquer outro dos meus castelões não exigir ver-me, pode muito bem acontecer que essa exigência seja feita por um enviado do rei Henrique que por aqui passe. Em qualquer dos casos, ficarias numa posição embaraçosa, se não me mantivesses apresentável todos os dias, a toda a hora.

- Estais mal colocado para me ameaçardes com o rei Henrique - observou William, com um sorriso sardónico. - É bem sabido qual de nós goza dos seus favores. O rei autorizou-me a tomar Parfois e a colocar aqui uma guarnição para lutar contra os Galeses, com ou sem o vosso consentimento. Ainda pensais que ele mexeria um dedo por vós?

- Por mim não, William. Por mim não... mas por ele próprio, como hás-de ver. Ah, claro que Henrique não ficaria desagradado, se me maltratasses um pouco. Mas ficaria certamente embaraçado, se fosses obrigado a mostrar-me ao mundo numa padiola, por alguns dos meus ossos estarem fora do sítio. Ele comprometeu-se contigo, William, ao nomear-te seu castelão em Parfois, mas é melhor que não o comprometas muito, nem de forma demasiado irrevogável.

Isambard passou os dedos compridos sobre o queixo bem barbeado, bocejou, continuou a fitar a cadeira do filho e, com um sorriso exasperante, acrescentou:

- Envolve-o num assassínio quando ele, expressamente, só te autorizou a cometer um roubo e verás como o cordeiro se transforma em tigre, para se defender. Ainda não o conheces tão bem como eu, William. Se o comprometeres, ele perseguir-te-á até à morte.

- Isso poderá não ser necessário. Há muitas maneiras de justificar um ferimento. Uma queda... às vezes, os cegos aventuram-se demasiado e caem - replicou William, num tom pensativo e bem disposto.

Os ecos daquele quarto, pequeno e nu, no alto da torre, ainda não se haviam tornado familiares aos ouvidos de Isambard, acostumados aos vastos aposentos do andar de baixo que durante tantos anos ocupara. Era característico de William haver-se apropriado precisamente desses aposentos, entre tantos que poderia haver escolhido; mas não se tratava só de vaidade ou despeito. Daqueles aposentos, era possível controlar aquela escada isolada e o quarto bem guardado que ficava ao cimo delas. Ninguém tinha acesso a ele, sem autorização de William.

- E, quando caem, costumam deslocar os pulsos e os tornozelos, ou esborrachar alguns dedos? Não, tu não és nenhum imbecil. O rumor de um escândalo bastaria para o rei te tirar o tapete de debaixo dos pés e te deixar pagar o erro sozinho. Sabes disso. Ademais, não é o que desejas. Tu queres o título e o direito de o usar, de um modo tão claro que ninguém te possa apontar o dedo. O rei pode entregar-te o comando do meu castelo, em nome da segurança de Inglaterra, mas não te pode conceder o título. Enquanto for vivo, só eu to posso dar. Só eu! - repetiu Isambard, com enorme contentamento.

Em seguida, soltou uma gargalhada, ao ouvir o rugido da seda, quando William saltou da cadeira e começou a andar de um lado para o outro. O rosto cego acompanhou-lhe os movimentos.

- E não to darei - acrescentou Isambard.

- Tendes a certeza, meu bem-amado pai? Juro que acabareis por fazê-lo e ainda me agradecereis por isso. Ceder-me-eis os vossos direitos, em vida e em plena consciência, por um documento assinado e selado. Ofereci-vos boas condições: um retiro honroso em Erington, Mormesnil ou outro domínio à vossa escolha, uma casa com pessoal suficiente e tudo quanto pudésseis precisar. Mas retiro a oferta.

Os passos nervosos pararam abruptamente. Uma mão agarrou o pulso do velho e sacudiu-o com força. Isambard sentiu a sombra corpulenta do filho inclinar-se sobre si.

- Agora, ceder-me-eis os vossos bens, pertences, terras e homens, segundo as minhas novas condições, e vivereis o que vos resta viver da minha caridade. Hei-de ver a vossa assinatura e o vosso selo apostos ao documento, por mais tormentos que isso vos possa custar e por mais aborrecimentos que isso me possa trazer. Estais a ouvir?

Mas William sabia que não o faria. Ameaçar era fácil, mas havia uma boa dose de verdade nas palavras do velho. Henrique podia desejar que Isambard morresse mas, para sua própria protecção, voltar-se-ia contra quem o matasse; Henrique podia acariciar a ideia de infligir um sofrimento salutar ao homem que o admoestara diante da sua corte, mas seria o primeiro a soltar exclamações de horror perante o acto consumado e, se os factos viessem à luz do dia, soltaria os cães para dar caça a quem o consumara. De que outro modo poderia furtar-se à vergonha e ao perigo de se ver envolvido num assassinato? Henrique nunca fora de fiar quando as coisas corriam mal, e também não seria de fiar agora.

Isambard libertou-se da mão desagradável de William com uma torção violenta e limpou o pulso, para eliminar os vestígios daquele toque.

- Já ouvi as tuas fanfarronadas - disse, com desdém. -Vamos ver se és capaz de as pôr em prática. Aqui me tens. Obriga-me a fazer o que queres!

Havia quantos dias desafiava a mesma ameaça? As trevas em que vivia haviam-no feito perder a conta dos dias e os criados que o vestiam, lavavam e barbeavam escrupulosamente, que lhe davam de comer e de beber e lhe satisfaziam as necessidades haviam recebido ordens para não lhe fornecer nada que não fosse necessário. Uma notícia, uma mensagem do exterior, uma arma - que, aliás, nunca pedira pois sabia que não lha dariam. Alguma vez pedira favores a alguém? Podia muito bem subsistir tal como estava, sem amigos. Era melhor assim. Quaisquer que fossem as pressões, seriam exercidas apenas sobre si. Por isso, o impasse era total. Não podia impedir William de estabelecer a sua autoridade sobre Parfois e William não podia arrancar-lhe a concessão que daria a força do direito àquela expropriação ilegítima. Não assinara nada nem colocara o seu selo em documento algum. Na torre de menagem do seu espírito solitário, continuava a ser o senhor de Parfois.

Bateram à porta. Duas batidas leves, como era costume de de Guichet. Isambard foi o primeiro a ouvi-las e susteve a respiração para captar e decifrar os sons, que eram agora as únicas formas de comunicação do seu ser mergulhado nas trevas com o mundo exterior. Ninguém suspeitava de como o seu ouvido se tornara apurado, senão evitariam sequer sussurrar perto dele.

- O Blount diz que tem notícias para vós, senhor. Uma coisa importante...

- Agora não. Ele que espere.

- Senhor, diz respeito a...

A frase ficou em suspenso, a menos que o significado do silêncio a concluísse. Um olhar lançado na sua direcção, um arquear de sobrancelhas. Isambard agarrou com força os braços da cadeira, tenso como um arco. Diz-me respeito a mim; diz respeito à questão entre mim e o William. Porque poterna esquecida tentam eles entrar agora?

A porta fechou-se atrás de William e de Guichet. Isambard pôs-se de pé de um salto, como um gato, e atravessou o quarto, estendendo a mão esquerda para detectar e contornar a mesa, a palma da mão direita bem aberta diante de si para encontrar as almofadas da porta. Encostou o ouvido à madeira e ficou à escuta, mas eles haviam tomado a precaução de se afastar da sua prisão, e apenas conseguia ouvir o ligeiro movimento da sentinela, que deslocava o peso do corpo ora para um pé ora para outro, diante da porta. Com todos os sentidos alerta, tentou captar o menor ruído, uma mera palavra. O murmúrio não era muito distante, mas era demasiado baixo para possuir qualquer significado. Então, de súbito, a voz de William ergueu-se, colérica, acima dos sussurros:

- Idiota! Que sabes tu disso? Ainda mal havias nascido. Por mais que te esforces só o farás rir. Que mal poderás fazer-lhe que ele não haja já feito a si próprio?

Thomas. Sempre Thomas, o incansável Thomas, o ambicioso Thomas! Graças a Deus, a voz dele era aguda como a de uma rapariga, tornando-se esganiçada quando sentia medo ou indignação, e ouvia-se muito melhor do que a voz de baixo de de Guichet. Naquele momento, Thomas estava assustado e indignado, pipilava como um pássaro espavorido e eriçado.

- Eu estava lá, senhor. Vi muito bem a cara dele.

Uma voz de quem sente esperança, veemente, segura de si apesar das dúvidas que inspirava.

- Se aquilo era ódio...

A voz de Thomas foi abafada, alguém lhe ordenou que baixasse o tom. Mas, um instante mais tarde, voltou a gritar:

- Pelo menos, ponde isso à prova!

Um silêncio, uma imobilidade, que não era necessário tentar interpretar: ponde isso à prova... fosse o que fosse, porque não? Fosse o que fosse, eles não tinham mais nada.

Iam voltar. A sentinela colocou a mão na fechadura, fez rodar a chave pesada. Era aviso suficiente. Isambard tacteou o caminho de volta ao assento e, cautelosamente, afixou no rosto uma máscara inexpressiva, destinada a convencê-los a eles e a si próprio. Ninguém melhor do que ele sabia até que ponto as tensões do corpo nos podem trair.

Quando entraram, estava preparado. O ruído da tranca de madeira, o estalido surdo e denso da porta, os passos. Quantos? Isambard contou três maneiras de andar diferentes. O jovem Thomas ganhara a sua recompensa: fora autorizado a entrar, colado aos calcanhares do seu novo senhor, para regalar os olhos perante a impotência do seu antigo senhor. Já era um grande favor, mas se a sua armadilha - fosse ela qual fosse - desse resultado, não havia alternativa senão passarem a confiar nele; se não resultasse, então, podiam ameaçá-lo ou descartar-se dele. Seria melhor William não subestimar Thomas, pensou Isambard, com um sorriso um pouco amargo, recordando-se do aviso de Harry. Ao seu inimigo, santo Deus! Os doutores de todas as escolas encontrariam matéria de debate para uma vida inteira, se tentassem compreender como podia a substância do combate de um homem escapar-se-lhe de debaixo dos pés, levando-o a defender o seu inimigo contra o mundo inteiro; mas Harry deixara-se arrastar pelo seu coração confiante e fizera aquilo que este lhe aconselhara, e a sua sabedoria e simplicidade estavam para além do alcance dos filósofos. Isambard tacteou a face magra com a ponta dos dedos e apercebeu-se de como o seu sorriso era crispado. Pouco importava. Com as janelas dos olhos fechadas, as possibilidades de se trair eram menos numerosas e menos perigosas.

- Parece que perdemos o nosso tempo a discutir formas e meios - disse Wílliam, numa voz suave, calculada, sorridente.

Justiça lhe fosse feita, se duvidava da arma de que dispunha, não o deixava transparecer; movia-se com o à-vontade e a calma de um senhor.

- Chegou uma visita que vai alterar o vosso estado de espírito, sem qualquer esforço da minha parte. Uma visita para vós, meu querido pai. Lembrais-vos de a haver convidado? Uma certa dama que, em tempos, vos conheceu demasiado bem para sua própria segurança e que achou melhor refugiar-se em Gales. Ah, estou a ver que vos lembrais!

William não via nada, porque não havia nada para ver. Nem um músculo da máscara de bronze se moveu, até Isambard permitir que as suas sobrancelhas arrogantes se erguessem numa interrogação muda; nada mais.

- Não é teu hábito falares por enigmas, William. Vamos directos ao assunto, para eu te poder responder com conhecimento de causa. Não estou à espera de nenhuma visita e não convidei ninguém.

- Foi na igreja, senhor, eu ouvi tudo - interveio Thomas, impaciente. - Ele mandou-lhe uma mensagem, dizendo-lhe para ela se entregar, no lugar de Harry Talvace. E mandou-lhe o anel como penhor. Como o mensageiro foi morto, ele deve haver enviado outro.

Outro mensageiro! Então, eles não sabiam de nada e, graças a Deus, as informações de que dispunham não haviam sido dadas por Walter. O incansável Thomas, por trás do portal da igreja, com o ouvido colado à porta, armazenando todas as migalhas que, talvez, um dia pudessem servir para destruir o seu bem-amado senhor. Era essa a origem da informação, pensou Isambard, na esperança de que eles só dispusessem de informação. A armadilha era bastante grosseira, uma vez que bastava um olhar arguto para perceber o que significara para si ouvir o nome dela e ver o seu anel. «Eu estava lá, senhor. Vi bem a cara dele. Se aquilo era ódio...» E William, que algumas vezes se sentara à mesma mesa que Benedetta e lhe guardava rancor pelos presentes que o pai lhe oferecia, William que sabia como tudo terminara: «Idiota! Que sabes tu disso? Ainda mal havias nascido. Por mais que te esforces só o farás rir. Que mal poderás tu fazer-lhe que ele não haja já feito a si próprio?»

Isambard reconheceu a verdade do ataque, mas respirou melhor: quase de certeza que se tratava de um truque. Não ia precisar de ceder uma polegada. Não chegara nenhuma visita. Como seria possível? O Harry encontrara-a no caminho e levara-a a salvo para casa.

- Ela trouxe de volta o vosso penhor - anunciou William, numa voz doce como o mel.

Agarrando na mão do pai, abriu-a. Isambard sentiu uma coisa pequena e dura cair-lhe na palma da mão e, involuntariamente, os seus dedos fecharam-se sobre ela. O reconhecimento foi imediato e doloroso. As facetas do rubi morderam-lhe a mão como presas de um animal. Como era possível? Walter entregara o anel; como voltara ele até ali? Haveria alguma outra explicação, além daquela que se recusava a admitir? E se Benedetta se encontrava em Parfois, qual o melhor modo de manipular a relação ambivalente de amor e ódio de forma a convencê-los de que haviam errado os cálculos e o seu instrumento era ineficaz?

- Ah, isso! - disse, recuperando o controlo das mãos e fazendo girar o anel na palma da mão, antes de o colocar no dedo. - Havia-me esquecido. Agora, as pequenas vinganças já não importam muito. Quase não valia a pena vingar o meu agravo contra ela. Acabei por libertar o Harry, sem exigir resgate. Que mensagem mandou ela com o anel? Disse que me perdoa? Se a memória não me falha, sempre quis ser ela a ter a última palavra.

Riu-se. Não foi difícil: o silêncio deles parecia-lhe tão estúpido, os seus sobressaltos de dúvida tão palpáveis. O anel não passava pela articulação do dedo. Fê-lo rodar, com um gesto indiferente, voltou a tirá-lo e, suavemente, fê-lo rolar sobre a mesa.

- As minhas articulações estão velhas e inchadas. Afinal, sempre vais herdar qualquer coisa. Trouxe este anel de Acra, quando regressei da Cruzada... a pedra é boa. Fica com ele, se te servir.

Ou podes dá-lo como paga ao Thomas, se achares que a história dele vale isso. Quanto a mim, seria uma recompensa excessiva.

Assolados pela dúvida, os três perscrutaram-lhe longamente o rosto; o próprio Thomas estava abalado.

- Idiota - disse William, lançando um olhar carrancudo ao jovem pajem. - Eu não te disse que isto não ia abalá-lo?

- Ele está a mentir, senhor - defendeu-se Thomas.

A apreensão tornara ainda mais aguda a sua voz efeminada: não eram propriamente rubis o que poderia esperar, se a sua história se revelasse inútil.

- Eu vi a cara dele e ouvi a sua voz, na altura. Sei que ele estava inquieto por causa dela. Seja o que for que haja acontecido entre ambos, outrora, seja o que for que ela lhe haja feito ou ele a ela, ainda a traz no coração.

- Ainda podemos pôr isso à prova - disse de Guichet, em voz muito baixa.

Aquelas palavras destinavam-se apenas ao seu senhor, mas Isambard ouviu-as. O mais terrível era que, não lhe sendo destinadas, deviam ser verdadeiras. Era então verdade que Benedetta estava ali, nas mãos deles? Ou seria aquele sussurro destinado aos ouvidos de Isambard? Não, a subtileza de de Guichet não ia tão longe.

- É verdade - concedeu William, mais calmo. - É muito fácil pôr a vossa indiferença à prova, meu querido pai. Não podemos deixar marcas em vós, mas nada nos impede de as deixar nela. Que diríeis de irdes connosco às celas da torre da guarda, para convencermos a dama a implorar a vossa assinatura e o vosso selo? Assim, poderíamos descobrir até que ponto ela vos é indiferente.

- Julgava que já sabias - suspirou Isambard, bocejando. - Disseram-se muitas coisas curiosas a meu respeito, mas penso que nunca ninguém afirmou que era meu costume atirar os amigos ao Severn.

- Então, se a vossa disposição continua a ser a mesma, podemos passar todos uma ou duas horas bastante agradáveis. É certo que os vossos olhos já não vos permitem ver, mas cuidaremos de que oiçais bem. E - acrescentou William, ternamente – levaremos connosco o documento de cessão, para o caso de a emoção vos aconselhar a assinar de livre vontade, por caridade para com uma mulher que odiais.

William poria em prática a ameaça? Porque não, uma vez que desejava a todo o custo obter aquilo que queria? Ela estava à mercê de William e nada o impedia de se servir dela; aliás, por entre o rebuliço da guerra civil, quem viria alguma vez a questionar suficientemente os seus actos para o fazer pagar por eles? Talvez, naquele momento, William já soubesse que não precisava de ir muito longe.

Por um momento, Isambard manteve-se em silêncio, ponderando, a coberto de uma expressão calma e fechada, os caminhos que lhe restavam; e pareceu-lhe que as suas defesas exteriores haviam caído por terra, no momento em que Benedetta franqueara a porta do castelo. Poderia comprar-lhe mais do que uma segurança precária, renunciando ao título? Duvidava. Se descobrissem o valor de Benedetta como arma, nunca a deixariam partir, enquanto precisassem de manter o domínio sobre ele; e, enquanto ela estivesse nas mãos deles, poderiam obter de si tudo o que quisessem. Eles ainda não sabiam isso, mas sabia-o ele e tinha de levar em conta esse facto. Isambard sorriu. Se lhe fosse concedido um tempo de vida suplementar, talvez aprendesse a seguir a voz do coração tão impetuosamente como Harry, e, como este, sem a questionar ou contrariar.

Só havia duas coisas a fazer. Em primeiro lugar, certificar-se, sem margem para dúvidas, que Benedetta se encontrava em poder deles; em segundo lugar, dar o que fosse necessário para a proteger, se não conseguisse libertá-la. Entregar o seu feudo, em documento selado e assinado. Prometer-lhes a sua própria submissão e o seu bom comportamento, enquanto eles a tratassem bem e lhe dessem provas disso.

- Ainda não acredito que Madonna Benedetta esteja aqui - disse, em voz decidida. - Se assim é, trazei-a à minha presença.

- Ah, não! Isso não, meu querido pai. Respeito demasiado os vossos talentos para vos deixar falar com ela.

- Santo Deus, William. Cuidava que possuías controlo suficiente sobre mim. Que mal posso fazer, se falar com ela?

- Isso não sei e é esse o problema. Se me permitis, não vou correr o risco de vos ver trocar segredos debaixo do meu nariz. Perdoai-me a crueza mas, no estado em que vos encontrais, não vo-la posso mostrar de uma janela.

- Então, trá-la aqui para eu poder ouvir-te falar com ela e dar-me-ei por satisfeito.

- Porque não? - interveio de Guichet, após um instante de reflexão silenciosa. - Ela está lá em baixo, na sala grande. Levamo-lo até ao cimo das escadas e assim poderá ouvir-lhe a voz, sem ela desconfiar. Ide lá a baixo, ao encontro dela e deixai a porta aberta. Assim, ele terá a prova que deseja.

Chamaram os guardas para o agarrarem pelos braços, antes mesmo de ele se levantar da cadeira, pois ainda temiam a sua força e a sua argúcia. Isambard acompanhou-os docilmente, desceu com hesitação a escada de pedra em espiral, tacteando com os dedos dos pés em busca da parte mais larga dos degraus, apoiando-se nos guardas; mais valia mostrar-se mais impotente do que na realidade estava. Thomas ia à frente, num passo ligeiro, satisfeito consigo mesmo e já seguro da sua recompensa.

Obrigaram o prisioneiro a parar junto à balaustrada de pedra do lance inferior das escadas, diante da porta do que outrora fora o seu quarto e, com uma simpatia maquinal, um dos guardas guiou-lhe a mão hesitante para o corrimão. Isambard ouviu William descer os últimos degraus sem pressa, ouviu abrir-se a porta da sala grande. Mentalmente, reviu as tapeçarias desbotadas que absorviam e amorteciam a luz que entrava pelas frestas, as cadeiras trabalhadas, altas e pesadas, que mais pareciam espectros, nos cantos mais escuros. E Benedetta, no meio da sala, voltada para a porta, à espera do homem que não iria ver.

Naquele momento, viu-a claramente: uma figura alta e imponente, de movimentos amplos e generosos, de uma calma régia, que imprimia grandeza e valor a tudo quanto fazia, pensava ou dizia; uma mulher, uma torre, um mundo.

- Sede bem-vinda a Parfois, senhora - saudou William, numa voz que ecoava ligeiramente no vasto aposento, de tectos altos.

Ela disse: - Agradeço-vos.

Foi quanto bastou. Mesmo após uma tão longa ausência, a sua voz inconfundível não mudara, continuava clara.

- Vim por desejo do vosso pai. Não esperava encontrar-vos aqui. Ele ainda está muito doente?

- Não gravemente - respondeu William, por certo com um sorriso dissimulado nos olhos, se ela soubesse como interpretá-lo. - O seu correio não vos disse o que lhe aconteceu? O meu pai perdeu a visão.

- Disse-me que era de recear que isso acontecesse - disse Benedetta, em voz baixa. - Posso vê-lo?

- Lamento, mas por ora não. Ele ainda não está suficientemente bem para receber visitas e eu estou aqui, como castelão do rei, no seu lugar. Vou mandar preparar os vossos aposentos e, se fordes paciente e esperardes um pouco, por certo que ele irá ficar melhor.

Um momento de silêncio; não de indecisão, mas de reflexão. Depois, a voz clara observou calmamente:

- Todavia, a sua mensagem era bem lúcida, uma mensagem de alguém consciente dos seus actos. E isso foi no dia em que foi ferido.

- Sofre de febre desde então - replicou William, um pouco depressa demais. - Logo que esteja restabelecido, podereis vê-lo.

- Vindes agora da sua cabeceira? - perguntou Benedetta, num tom tão doce e tão seco, que a ironia era manifesta. - Fico satisfeita por ele poder contar com um filho tão devotado, que o aliviou do fardo dos seus deveres.

Benedetta estava desconfiada, não acreditava em William. Não se esquecera de nada, não perdera a sua sagacidade, continuava a ser capaz de ler num homem como num livro aberto e de o pôr a nu.

- Lorde Isambard fez um acordo comigo - disse ela. - Espero que o honreis em seu nome. Prometeu que, se eu viesse para Parfois para ocupar o seu lugar, libertaria Harry Talvace. Perguntai-lhe e ele confirmará. Perguntai-lhe e mandai o rapaz embora.

As mãos de Isambard crisparam-se sobre a pedra. Ela não sabia. Em qualquer ponto do caminho, Benedetta e Harry haviam passado um pelo outro sem se verem. Por que obra do acaso, não era capaz de adivinhar. E viera para libertar o jovem, acabando por encontrar o captor feito cativo. Que angústia não estaria ela a experimentar agora, pela criança recém-nascida que, tantos anos antes, levara nos braços até Shrewsbury, a fim de a colocar sob a protecção de Llewelyn! E William nada lhe diria! Iria guardar a nova arma em reserva, no arsenal das suas armas invisíveis, para usar mais tarde, se necessário.

- Por certo, poderemos discutir isso amanhã. Agora, deveis estar fatigada e mais um dia ou dois não fará diferença. Amanhã poderemos falar com o meu pai acerca do rapaz.

- O Harry está bem? - perguntou Benedetta, irritada e receosa.

- Está muito bem.

- Posso vê-lo?

- Mais tarde, depois de haverdes descansado.

Iria Benedetta contentar-se com aquela resposta, dormir descansada e repetir a mesma pergunta, dia após dia, obtendo apenas por resposta um «talvez», «mais tarde», «amanhã», até as evasivas resultarem na certeza de que algum mal acontecera a Harry? Podia pelo menos poupá-la, tranquilizando-lhe o espírito e o coração quanto à sorte do jovem. Isambard calculou os segundos e as palavras, o tempo que uma mão demoraria a deslocar-se do seu braço até à sua boca. Quantas palavras poderia conter a frase da sua derradeira comunicação com ela? Talvez estivesse a aumentar ligeiramente o perigo que Benedetta corria, mas aquilo que agora se perdesse poderia ser recuperado, quando ele entregasse o seu selo e se despojasse de tudo; e, entretanto, ela poderia dormir serenamente e dar graças a Deus por Harry se encontrar longe daquela guerra.

Isambard debruçou-se sobre a balaustrada e, de súbito, abriu os braços, fazendo desequilibrar os seus guardas. Então, em voz sonora, gritou para o poço das escadas:

- O Harry está a salvo. Eu mandei-o...

Apenas aquelas palavras e logo uma mão lhe tapou a boca. Sacudindo-a, conseguiu acrescentar:

- ... mandei-o ao encontro...

Foi tudo. Arrastaram-no para trás, pelos dois braços, um braço forte dentro de uma manga de tecido amordaçou-lhe a boca. De Guichet agarrou-o pelos cabelos, puxando-lhe a cabeça para trás. Benedetta gritou:

- Ralf!

Isambard ficou pelo menos a saber que ela o ouvira. Lá em baixo, soaram passos apressados, uma porta bateu. Em seguida, foi derrubado de costas sobre as lajes de pedra e eles lançaram-se sobre ele; com as forças que lhe restavam, riu-se, apesar de ter a boca tapada com uma prega do seu próprio pelote. Uma mão atingiu-o no rosto, num golpe tão patético e maldoso que só poderia haver partido de Thomas. Porque haveria Thomas de privar-se daquele pequeno prazer?

Levaram-no em peso pelas escadas acima, sem grandes delicadezas. Atiraram-no para cima da cadeira e, tremendo, amaldiçoando-o em voz baixa e rancorosa, fecharam a porta.

Isambard limpou um fio de sangue do canto dos lábios e endireitou o pelote. Mal havia recuperado o fôlego suficiente para voltar a falar e já William estava à porta e se precipitava sobre ele. A sua raiva era perceptível, embora conseguisse dominá-la. Numa voz baixa e sufocada pelo esforço de controlo, limitou-se a dizer:

- Pensais que o que fizestes foi sensato?

- Sensato não foi mas, pelo menos, foi honesto - concordou Isambard, continuando a limpar o lábio. -Agora, estou pronto para me dedicar à sensatez, se conseguires provar-me que vale a pena. Onde alojaste Benedetta?

- Onde não voltareis a ouvi-la - respondeu William, com a respiração pesada.

- Ah, mas vou precisar de a ouvir ou não obterás nada de mim. Prometo que não volto a falar-lhe nem a tentar chamar a sua atenção se, pela tua parte, me deres garantias de que está viva e de boa saúde e de que não foi molestada. Leva-me até onde eu a possa ouvir falar uma vez por semana e isso bastará.

- Pensais que podeis permitir-vos impor condições?

- Penso e posso. Se sou obrigado a ceder-te o meu título e tudo quanto possuo, preciso de obter em troca uma garantia tua e, também, que jures que agirás de acordo com ela.

Isambard ouviu o filho respirar fundo, satisfeito, já seguro do seu poder e do valor da sua refém.

- A minha palavra não basta? - perguntou William, com uma indignação hipócrita.

- Não, meu muito querido filho - respondeu Isambard, docemente. - Já que mo perguntas, não arriscaria a vida de um cão contra a tua palavra. É mister que me jures que não farás mal a Madonna Benedetta, que a tratarás como deve ser e que lhe darás alguma liberdade de movimentos... ah, não te preocupes, não estou a falar de uma liberdade que lhe permita vir ter comigo. Não te prometi já que não me aproximava dela?

Nem sequer ia pedir a libertação de Benedetta. Sabia que esta não seria nem poderia ser concedida; pelo menos enquanto a abdicação dos seus direitos não fosse pública e aceite, talvez mesmo não antes de ele estar manifesta, notória e respeitavelmente morto.

- Jura que satisfarás as minhas exigências em relação a Benedetta - disse Isambard com determinação - e poderás entrar na posse dos meus bens, quando quiseres. Assino o documento e entrego-te o meu selo.

Harry teria entrado em Parfois atrás de Madonna Benedetta, não fora uma dúvida surda que lhe queimava violentamente o coração, como se fosse uma ferida, e que o levou a esperar pela manhã. Se as coisas em Parfois estivessem como as havia deixado, nada o impedia de lá ir e de a trazer de volta consigo. Mas o desespero que o impelira a correr atrás dela como correra constituía, em si mesmo, um sinal de que não acreditava que as coisas em Parfois não houvessem mudado.

Passou a noite enrolado no manto, debaixo de uns arbustos, dormitando de vez em quando, por alguns minutos, voltando a acordar em sobressalto e a recriminar-se mais uma vez por cada instante perdido. Aos primeiros raios de luz da alvorada, levantou-se e trepou por entre os arbustos, para fazer o reconhecimento do posto avançado da guarda. Os homens que ali se encontravam eram desconhecidos; também nunca vira antes o oficial, apesar de haver vivido quase quatro anos da sua vida naquele castelo e aprendido a conhecer todos os homens da guarnição. Passou toda a manhã de vigia; era já mais de meio-dia quando viu um cortejo colorido, que descia alegremente por entre as árvores, e se abrigou por trás de vegetação mais densa para os ver passar.

Três falcoeiros - dois dos quais conhecidos e um desconhecido - cavaleiros, escudeiros e pajens, cujos rostos reconheceu; a corte de Parfois rodeava o seu novo senhor, numa postura bastante cerimoniosa. No centro de todo aquele esplendor vinha o homem que Harry já avistara à luz de uma tocha, a subir para a sela, no terreiro exterior, depois de haver dado um beijo de despedida ao pai, como qualquer filho afectuoso.

Imponente e confiante, como senhor e proprietário de pleno direito, voltando a cabeça para passear os olhos pelo seu domínio e sorrindo perante a excelência deste, William Isambard partiu para uma caçada, na crista de Long Mountain. Ao seu lado, atento e devotado, presenteando o seu senhor com sorrisos e conversa, vinha Thomas Blount. Thomas, que nunca dava ponto sem nó. Um e outro irradiavam glória.

Por conseguinte, não devia precipitar-se para Parfois, sob risco de, se os seus receios fossem fundados, se transformar em mais um refém, em mais uma espada apontada à garganta do velho. Isso não ajudaria Madonna Benedetta nem serviria para a libertar; apenas a privaria de um aliado que ainda podia vir a ser útil, se conservasse a liberdade de acção. Tentar salvar a própria consciência, através de um acto de heroísmo desprezível e vão, serviria apenas para agravar o perigo que corriam as pessoas que desejava proteger.

Haveria William destituído o pai da sua posição? Ou estaria a agir com prudência, contentando-se por enquanto com ser apenas o seu mandatário, agora que o velho senhor já não podia ocupar-se dos seus próprios assuntos? A atitude de William era a de um conquistador. Em qualquer dos casos, os oportunistas cortejá-lo-iam como seu senhor de facto. Haveria ele ousado ir ao ponto de depor tão depressa o pai? Antes de mais, Harry precisava de certezas. Não podia ser ele mesmo a entrar e sair de Parfois para ouvir os rumores, mas havia quem pudesse fazê-lo. Alguns homens das aldeias tinham parentes dentro do castelo. Harry não sabia quem eram nem como conquistar a sua confiança, mas conhecia quem soubesse.

Harry mandou os seus homens descansar e esperar por ele em Castell Coch e seguiu sozinho pelo carreiro junto ao rio, que tão bem conhecia. Ao avistar, ao longe, entre as árvores, o pequeno cercado verdejante, e quando um ligeiro odor a fumo da lareira lhe aflorou as narinas, Harry deteve-se em silêncio, no caminho. Aelis estava no pátio, a tirar as cinzas do lume, sob o forno de tijolo onde cozera o pão.

Ao vê-la, o coração encheu-se-lhe de uma imensa ternura, tão densa que se sentiu revigorado e exaltado por ter de a carregar, como um homem incumbido de transportar o mundo aos ombros. O cabelo louro escuro de Aelis caía-lhe sobre o ombro, preso numa trança grossa. Estava mais alta e a sua figura esguia, inclinada para a tarefa que executava em gestos amplos, suaves e ligeiramente cansados, era agora a figura de uma mulher, bela e intimidante. O seu rosto pensativo apresentava uma expressão misteriosamente triste. Com um misto de humildade e vaidade, juntou aquela tristeza ao rol das suas culpas. Alguma vez lhe dera alegria ou conforto? Desde o dia em que ela e o pai o haviam acolhido, só lhe causara preocupações, desgostos e trabalhos.

Harry desejava chamá-la mas, por qualquer razão que não era capaz de compreender, a ideia de perturbar a concentração delicada com que ela se dedicava à sua tarefa provocava-lhe medo e vergonha. Como se esperasse que Aelis se voltasse para ele à primeira palavra, como se ela devesse deixar o que estava a fazer e correr a ajudá-lo. Sabia que estava prestes a descarregar sobre ela todas as suas preocupações, toda a sua fadiga, para que o confortasse, quando deveria haver-lhe trazido um presente mais agradável, algo que lhe desse prazer e lhe iluminasse o rosto, em vez de querer as atenções dela. Apesar de demasiado orgulhoso ou demasiado egoísta para o fazer abertamente, vinha sempre pedir-lhe alguma coisa; e, todavia, o seu ser ansiava por dar em vez de pedir.

Aelis ouviu estalar um ramo sob a ferradura do cavalo, ergueu-se vivamente e voltou-se para a cancela, alerta, de cabeça erguida, os olhos bem abertos e fixos na abertura entre a vegetação onde o cavaleiro iria aparecer. O cavalo era de Meifod e ela não o reconheceu. Imóvel e atenta, esperou até poder ver melhor o cavaleiro. Por um momento, as folhas e as sombras ocultaram-no mas, de seguida, percebeu quem era. Por que movimento do seu corpo cansado sobre a sela, por que inclinação da sua cabeça, por que gesto ou postura, quem poderia saber? Harry continuava a ser apenas um vulto em cima de um cavalo malhado, a umas trinta jardas de distância, no carreiro estreito. Todavia, Aelis reconheceu-o.

Deixando cair a pá que conservara na mão, por breves instantes Aelis pareceu alongar-se e crescer, como que para se libertar das altas ervas do tempo que o haviam ocultado dela. Então, de súbito, o seu rosto iluminou-se de alegria, uma alegria silenciosa, mas tão intensa que Harry não quis acreditar ser ele a sua causa directa e tentou encontrar um motivo melhor: piedade fraterna pelo prisioneiro e contentamento por este haver sido libertado, felicidade altruísta pela sua boa sorte. Não, nem mesmo a sua mãe olhara para ele daquele modo ou ficara imobilizada por um tal arrebatamento de alegria, uma alegria que tinha de ser para ele, pois não podia ser por causa dele. Por que haveria alguém de sentir uma alegria tão pura por causa de Harry Talvace?

Sempre que atingia o auge da arrogância ou da aflição, os elogios perturbavam-no. Perante a exaltação que leu nos olhos que o contemplavam com deleite, o chão pareceu fugir-lhe de debaixo dos pés e todo o seu corpo estremeceu, num arroubo de humildade. Desceu desajeitadamente da sela, devido à pressa e ao cansaço, correu para ela e caiu-lhe aos pés como um pássaro ferido em pleno voo. Aelis lançara-se ao seu encontro, mas Harry deixou-se escorregar entre os seus braços, agarrou-lhe as mãos e encostou-as às faces, à testa, às pálpebras.

- Oh, Aelis! Aelis! - murmurou Harry, numa voz que não passava de um sopro quente sobre a palma da mão dela.

- És mesmo tu, Harry? Desta vez é verdade? Foste libertado?

Num acesso de ternura, soltou as mãos das dele para melhor lhe acariciar o rosto e, num gesto maternal de mãos que, não muito tempo antes, eram as de uma criança, afastou-lhe da testa uma madeixa de cabelo castanho.

- Ainda não. Não completamente. Havia uma coisa que me incumbiram de fazer e eu falhei. Agora, preciso de reparar o meu erro...

- Mas não precisas de voltar para lá, pois não? - perguntou Aelis, numa voz premente e assustada em que transparecia o ciúme, pegando-lhe no queixo e erguendo-lhe o rosto para o fitar nos olhos. - Não foste libertado só para ires para a guerra, como da outra vez, pois não? Ah, porque foi que mentiste nessa altura? Esperei, esperei, e nem uma palavra. Não serias capaz de me fazer isso outra vez, pois não? Se tivesses de voltar para Parfois, dizias-me?

- Dizia, sim, claro que te dizia. Mas, desta vez, é diferente. Foi-me concedida a liberdade, mas não estou livre.

Eram tantas as coisas que tinha para lhe contar que o sentido das palavras que Aelis pronunciara só lentamente lhe penetrou no espírito. Quando por fim as compreendeu, o choque de excitação e ardor foi brutal, levando-o a pôr-se de pé de um salto.

- Ir para a guerra, disseste tu? Então rebentou? Já estamos em guerra?

- Era o rumor que corria hoje em Castell Coch. O moleiro foi lá levar farinha e trouxe a notícia. Dizem que o teu príncipe tomou o partido do conde marechal e levou a sua hoste para Sul, para Builth. Achas que é verdade? Pode ser verdade?

- Pode - respondeu Harry, momentaneamente distraído, absorvido pelas incertezas do futuro.

Se o príncipe pegara em armas, o seu filho adoptivo tinha um exército atrás de si.

- Sim, pode ser verdade - acrescentou, estremecendo.

Só demasiado tarde reparou na tristeza serena, de mulher, visível nos olhos de Aelis que, sem se queixar, se preparava já para uma nova espera. A princesa avisara-a. Se quisermos conservá-los, é preciso aceitá-los como eles são.

- É melhor entrares e contares-me o que tens de fazer - disse ela, num tom determinado. - O meu pai foi a Forden, mas deve estar em casa daqui a uma hora ou duas, vai ficar contente por te ver inteiro e em liberdade. Podes passar aqui a noite, pelo menos? E se precisares de alguma coisa de nós, antes de partires...

- Ah, não! - exclamou Harry, subitamente abalado pelo peso da ternura, que quase lhe fazia explodir o coração. - Não vou deixar-te já! Ainda não! Preciso da tua ajuda para saber aquilo que preciso de saber mas, mais do que isso, preciso de ti, minha pomba, minha querida.

Tomou-lhe o rosto entre as mãos e voltou-o docemente para si. Presa naquele gesto, Aelis corou e estremeceu. Harry beijou-lhe a curva suave da face, da têmpora ao queixo, beijou-lhe as pálpebras fechadas, alisou com os lábios o arco dourado das suas sobrancelhas.

- Se voltar a partir, será por pouco tempo. Por mais longe que precise de ir, vou voltar. Amo-te... - murmurou, deixando a boca deslizar-lhe pela face, até à dela, que beijou como um homem esfomeado.

E, ao sentir o gosto salgado das lágrimas de Aelis, fechou os olhos para conter as suas.

Uma mão a tocar-lhe ao de leve no ombro arrancou Harry a um sonho de perseguições vãs. Acordou instantaneamente, como um cão de caça, os ouvidos atentos, as narinas frementes, sentindo o cheiro de um estranho. Antes de Aelis conseguir segurar-lhe no pulso, para o tranquilizar, já levara a mão ao punho da adaga e dobrara o joelho, pronto para se levantar.

- Calma. Não há perigo. Chegaram notícias para ti.

A chama de um coto de vela tremeluzia perto da lareira, lançando sombras flutuantes sobre as traves enegrecidas do tecto. Robert estava a pé e fechava cautelosamente a porta sobre a escuridão profunda da noite de Novembro. Enrolado em mantas, diante do fogo da lareira, abafado para durar toda a noite, encontrava-se um homem a tremer de frio, com um braço nu estendido para a caneca que Aelis lhe oferecia. Enquanto bebia, os seus dentes batiam contra o bordo da caneca. O cabelo e a barba lisos estavam folhados. Os trapos que despira haviam formado uma poça de água nas tábuas do chão. Por cima do bordo da caneca, os seus olhos alucinados fitavam Harry, hostis e amedrontados.

- Calma - aconselhou Robert, ao ver a reacção de ambos. - Estamos entre amigos.

- Quem é este? Que se passa?

- Ele é de Leighton. Veio rio abaixo, como outrora o teu pai, mas vivo. É um dos três que, ontem à noite, foram apanhados na coutada privada de Isambard. Conseguiu fugir, mas partiram-lhe um braço antes de se lançar à água. Ajuda-me a segurá-lo, enquanto volto a pôr-lhe o osso no lugar.

Harry ajoelhou-se e soergueu o corpo gelado do homem, apoiando-o contra si. Não era o primeiro ferido que Robert tratava nem o primeiro fugitivo a quem dava guarida, antes de o levar para a outra margem do Severn, durante a noite.

- Um dos couteiros bateu-me com o bastão, quando comecei a correr - disse o homem, por entre os dentes cerrados, para os impedir de bater. - Se não fosse isso, eu haveria conseguido atravessar o rio sem precisar de um barco. Mas, só com um braço, não podia nadar contra a corrente. A única coisa que pude fazer foi deixar-me levar pela corrente e arrastar-me até à margem, assim que fiquei longe das vistas deles.

- Vão persegui-lo - observou Harry, lançando um olhar alarmado a Robert.

- Não. Pensam que me afoguei. Fiquei escondido debaixo de uns arbustos, até eles se irem embora.

Lá fora, a noite estava gelada. O homem bem poderia haver morrido de frio, ao fugir para o rio.

- Pelo menos por um dia, vai ficar a salvo, aqui - disse Robert, cujas mãos grandes manejavam suavemente o braço do homem, tão tisnado e musculado como o seu. - Segura-o bem agora! E tu, Aelis, põe a ligadura aqui.

Aelis estivera a rasgar e a enrolar um pano de linho, junto à vela. Aproximou-se, ajoelhou-se ao lado de Harry, e colocou a ligadura no sítio indicado. O osso rangeu ligeiramente e o corpo ferido arqueou-se entre os braços de Harry, enquanto o homem voltava a cabeça e cravava os dentes numa prega da manta em que estava enrolado. Depois, voltou a distender-se e suportou o resto sem um estremecimento ou um queixume.

- Amanhã à noite, levamos-te para Gales - disse Robert, apertando-lhe firmemente a ligadura à volta do antebraço. - Este teve a sua conta dos senhores de Parfois, Harry. Diz-lhe que te conte o que sabe. Foram estranhos, e não homens de Shropshire, que o apanharam com a caça.

- Estranhos? - repetiu Harry, com brusquidão. Num relance, percebeu tudo. - Homens de William!

- Homens de William, que afirmavam ser os couteiros de Parfois. E prontos para o provar.

- Levaram-nos para Leighton - contou o caçador furtivo, rolando a cabeça fatigada contra o ombro de Harry. - A mulher do Wilfrid viu-nos chegar e teve a boa ideia de ir chamar o intendente. Ele veio e tentou defender-nos, dizendo que não era direito deles atirarem-nos para as masmorras de Parfois, pois não possuíam mandato do velho senhor. Que a coutada era dele e não do filho e que, sem verem uma ordem dele com o seu selo, não os deixariam levar-nos. «Mandaremos chamar o juiz», disse ele. «E quem quiser acusá-los deverá fazê-lo de acordo com a lei.» Toda a aldeia viu e ouviu o que se passava, eram uns quatro para cada um dos homens deles, por isso foram obrigados a pensar duas vezes. Afirmaram que lorde William era o castelão do rei em Parfois, mas o velho Harald, que Deus o abençoe, não quis saber disso; disse que só o senhor do feudo podia levar-nos sob custódia privada. Então, eles afirmaram que também haviam esse direito, porque lorde Ralf cedera o feudo ao filho. E Harald disse abertamente que só acreditaria nisso se lhe fosse apresentada a prova, com a assinatura e o selo do velho senhor. Até lá, disse, ficaríamos à sua guarda e só nos entregaria quando lhe fosse mostrado o devido mandato. Harald não podia fazer mais nada: quando eles nos apanharam, levávamos connosco os dois animais que havíamos caçado. Não podíamos negar. Só um homem corajoso iria tão longe como ele foi. Nos últimos tempos, havíamos sido deixados em paz nos bosques e abusámos da sorte. A verdade é que o velho Harald pensava que aquilo não passava de uma fanfarronada dos homens do filho de lorde Isambard, que estava a tirar partido da doença do pai. Por isso, não nos deixou ir e os outros foram-se embora, proferindo ameaças.

- Mas voltaram - interrompeu Harry, mudando de posição para colocar o ferido numa posição mais confortável.

Harry olhou para Aelis, que o observava com uma expressão inquieta e pesarosa: ela já sabia como aquilo iria terminar.

- A noite. E o senescal de Guichet vinha com eles. Trazia consigo um pergaminho, que quis que Harald lesse em voz alta, diante de toda a aldeia. Depois, levaram-nos. Ninguém podia fazer nada sem correr o risco de ser enforcado, e Deus sabe que não queríamos tal coisa. Então, pensei nas masmorras de Parfois, em como um homem pode apodrecer por lá e, quando íamos a passar pelo souto, fugi. Se não fosse o golpe que sofri, haveria atravessado o rio sem problemas.

- Então o vosso intendente obteve a prova que pedira? Ele sabe ler? Disseste que foi ele mesmo quem leu o pergaminho.

Para quê agarrar-se àquela ínfima parcela de dúvida, quando o seu coração sabia já o que acontecera e como? Eles haviam-se apercebido do valor de Madonna Benedetta e estavam a servir-se dela. De que outro modo poderiam haver arrancado tais concessões a Isambard? Se fosse a sua própria segurança que se encontrasse ameaçada, ele haver-se-ia rido na cara deles.

- Sabe ler, sim. E melhor que muitos escreventes. Se houvesse encontrado a menor justificação para tal, haveria mandado alguém chamar o juiz. Mas não havia nada. Leu em voz alta, como lhe haviam dito, com o de Guichet atrás dele e mostrou o selo e a assinatura para que todos os reconhecessem. Não é mentira. O velho lobo fez aquilo que nunca pensei que fizesse, doente ou não... dar todas as suas terras ao filho... de livre vontade, escreveu ele, de sua própria e livre vontade. Abdicou de tudo quanto possuía a favor de lorde William, assinou o documento pelo seu próprio punho e pôs-lhe o selo. Agora, está sentado num canto qualquer, ao calor, como um velho cão cego, à espera de morrer.

 

Brecon, Aber, Parfois: começos de Dezembro de 1233

HARRY PENSARA ENCONTRAR LLEWELYN EM Builth mas O príncipe partira já para Sul, para cercar o castelo e o burgo de Brecon e, assim, imobilizar dentro das muralhas a grande guarnição que o rei pretendia usar como reserva para as suas devastadas companhias. A fronteira encontrava-se em estado de alerta, embora de momento se mantivesse numa imobilidade surda e inquietante. Todavia, Basset e Siward haviam já avançado sobre Devizes para arrancar de Burgh da prisão e haviam-no passado para o outro lado do estuário do Severn, instalando o conde marechal a salvo no seu castelo de Striguil, enquanto o próprio conde Richard avançava por Gwent, como o fogo numa mata. Abergavenny, Newport e Monmouth haviam caído nas suas mãos e, numa madrugada glacial de Novembro, o conde atacara o acampamento do rei, obrigando-o a fugir de Grosmont. John de Víonmouth enfrentara sérias dificuldades para reorganizar as forças do rei e, naquele momento, mantinha-as prudentemente na retaguarda, enquanto o conde marechal consolidava as suas conquistas e reabastecia os seus castelos. Apesar de precoce, o Inverno não conseguira extinguir o fogo.

A camada de neve era delgada sobre Mynydd, semelhante a um véu de renda estendido sobre a cabeleira invernal e descolorida da montanha. As quedas de neve ainda não eram suficientemente fortes nem o vento suficientemente gélido para desviar Harry para os caminhos do vale. Seguiu pelo caminho do planalto tão depressa quanto pôde e, antes do crepúsculo, do alto dos penhascos acima de Usk, avistou o brilho das chamas e a cortina de fumo sobre o burgo de Brecon.

O fumo coroava os contornos escuros e denteados do castelo, que se desenhavam contra o brilho palpitante das chamas que devoravam o burgo, lá em baixo. Como um lenço de gaze a flutuar levemente ao sabor do vento, o fumo agarrava-se à torre compacta e às paredes sólidas da igreja do priorado. Harry seguiu com o olhar a linha extensa e elevada do telhado da igreja e ficou contente por este se encontrar intacto; todavia, sentiu-se envergonhado dessa alegria pela sobrevivência da pedra, ao ver as ruínas fumegantes das casas das pessoas. Tudo quanto a população de Breacon construíra depois da última destruição fora arrasado e os destroços enegrecidos jaziam junto às águas gélidas do rio. Era um cenário desolador, povoado apenas pelos mortos. Amontoados e encurralados nos terreiros do castelo, os sobreviventes juntavam a água e os alimentos que lhes restavam, à espera do socorro que os mercenários flamengos do rei Henrique não deixariam de lhes trazer de Gloucester. Dia após dia, mantiveram-se de vigia junto às muralhas, mas não avistaram qualquer sinal de estandartes ou de lanças reluzentes nas colinas cobertas de neve.

Naquele crepúsculo triste, os pequenos fogos esmoreciam e extinguiam-se, crepitando por vezes em súbitas chamas espasmódicas, quando as traves calcinadas tombavam sobre eles. Nas colinas sobranceiras à margem do Honddu, cercando de perto o castelo renitente, as linhas de contravalação e circunvalação (1) do campo de Llewelyn desenhavam-se a negro sobre a neve e as catapultas e trabucos,

 

1 Rede dupla de trincheiras e paliçadas construídas pelos sitiantes. As primeiras (linhas de contravalação) destinavam-se a proteger os sitiantes de ataques de eventuais reforços e a impedir as saídas dos sitiados; as segundas (linhas de circunvalação) destinavam-se a bloquear a fortificação alvo do cerco, impedindo as comunicações dos sitiados com o exterior. (N. da T.)

 

de silhuetas sinistras, continuavam a massacrar intermitentemente as muralhas danificadas. Era inútil aumentar a pressão do assalto, porque a ajuda não podia chegar aos sitiados e os campos circundantes haviam sido despojados de todas as provisões. Ademais, Llewelyn, tal como agora os sitiados, não acreditava no desejo do rei de os socorrer. Podia perfeitamente mantê-los imobilizados, sem perder homens seus, enquanto o conde Richard prosseguia a sua avançada pelos vales do Usk e do Wye, levando tudo diante de si.

Os cavaleiros vindos de Builth foram bruscamente detidos nos limites do acampamento, pois chegavam a galope, com as capas puxadas para o rosto e os capuzes descaídos sobre os olhos, para se protegerem da neve fina que caía. Harry desceu da sela, os membros rígidos de cansaço e pediu para ser recebido pelo príncipe. A sentinela reconheceu-o de imediato e saudou-o alegremente. Abrindo caminho por entre os muitos amigos que lhe davam as boas-vindas, seguiu pela ruela estreita - atulhada de provisões, armas, gado e cavalos - que circunscrevia o burgo sitiado e chegou à tenda de Llewelyn.

Da noite fria e escura, desembocou num espaço onde reinava um calor abafado e acre. Sentados no leito de campanha baixo e coberto de mantas, os seus dois irmãos adoptivos gritaram o seu nome e levantaram-se alegremente para o receber. Apesar de o acolhimento lhe haver confortado o coração, Harry afastou-os quase rudemente, lançou-se de joelhos aos pés de Llewelyn e beijou a mão que se estendera para o levantar.

- Sê bem-vindo, Harry, e dá-me um abraço! Muito nos fizeste esperar por notícias tuas!

Harry ergueu para ele um rosto marcado pelo cansaço da viagem. Sob as pálpebras inchadas e vermelhas devido à falta de sono, os olhos verdes fitavam o príncipe, aterrorizados. De súbito, sentia-se confrontado com a impossibilidade de exprimir aquilo que vivera sem compreender. Llewelyn reparou na sua expressão de desorientação, desespero e súplica e beijou-o afectuosamente.

- Como correu a tua missão?

A sensação de impotência, que se colara à língua de Harry como geada, derreteu, e as palavras saltaram-lhe da boca sem subterfúgios ou calculismos.

- Muito mal, senhor. Deixei que Madonna Benedetta se me escapasse entre os dedos. Fomos o mais depressa que pudemos, mas Madonna Benedetta conservou sempre o avanço que levava. Apesar de todos os esforços, ela está em Parfois.

Com desagrado, apercebeu-se de que aquelas palavras soavam como uma desculpa e não era seu desejo atenuar minimamente a culpa que sentia.

- A culpa é minha - acrescentou, rejeitando orgulhosamente a compaixão deles.

- A julgar pela velocidade com que saíste de Aber - observou David com simpatia - se Madonna Benedetta foi mais rápida do que tu, é porque cavalgou como uma noiva a caminho do casamento.

- É verdade que fui depressa - admitiu Harry, a tremer. - Pelo menos pensava que assim era. Perdemo-la, por não mais de uma hora, mas perdemo-la, e aquilo que eu fiz pode haver sido bem-inten-cionado, mas não foi o suficiente. E isto não é o pior. Eu poderia haver entrado em Parfois e perguntado por ela... ele deixava-me trazê-la de volta comigo... mas também era tarde demais para isso. Quando lá chegámos, os homens que se encontravam no posto avançado da guarda eram estranhos. Escondemo-nos e ficámos de vigia à porta e, de manhã, vimos William Isambard sair a cavalo, rodeado pelos seus falcoeiros e cavaleiros, como um príncipe. Todos aqueles que mais bajulavam o pai voltaram as suas atenções para o filho. Vimos tudo e calculámos o que acontecera, mas não podíamos ter a certeza. Portanto, esperei até dispor de provas, antes de vir contar-vos.

Harry quisera reparar, com a sua energia e devoção, aquilo que considerava ser culpa sua, quisera recuperar pelas suas próprias mãos aquilo que perdera. Levara os cavalos quase até ao esgotamento e ele próprio não descansara pelo caminho, pensou Llewelyn. Vai encarar como um inimigo qualquer um que tente confortá-lo.

- Enviámos homens às aldeias, mas ninguém aí sabia mais do que nós. Estavam também à espera de obter respostas. Pensei que podia ficar a saber alguma coisa através de um homem que a Aelis conhece e que entra e sai de Parfois, onde vai buscar o entulho da torre velha. Pedi-lhe que procurasse Langholme e lhe entregasse uma mensagem mas, na volta, ele disse que Langholme partira, que fora mandado para um lado qualquer, tratar de assuntos do seu senhor, e não voltara. O Walter nunca haveria deixado Isambard por vontade própria. E, se ele o mandou embora, sei muito bem porquê. Não queria nenhum de nós por perto, para não virmos a sofrer por sua causa. Se ele ainda mandasse em Parfois, haveria mandado Madonna Benedetta de volta a casa, com uma escolta para a acompanhar e proteger pelo caminho. O coração dizia-me que as coisas iam de mal a pior no castelo. Foi então que apareceu aquele homem, de noite. Era um caçador furtivo, apanhado em flagrante com dois companheiros, na coutada de Isambard. Depois disso, ficámos com a certeza.

Harry respirou fundo, antes de contar a história do caçador furtivo, que abreviou.

- Foi o próprio intendente quem leu o pergaminho em voz alta e reconheceu o selo e a assinatura. A ordenança do rei, nomeando William castelão, não lhe haveria bastado. Mas aquilo era um documento de abdicação assinado por Isambard. E a Madonna Benedetta foi o instrumento de que eles se serviram para o obter. Foi para protecção dela que ele cedeu o feudo ao filho e, enquanto a tiver em seu poder, William poderá obrigar o pai a fazer o que quiser.

- O que estás a dizer é muito estranho - observou Owen, franzindo o sobrolho, confuso. - Vais desculpar-me, Harry, mas a tua conversa mudou. Eu pensava que Isambard queria fazer mal a Madonna Benedetta. Todos nós assim pensávamos. As dívidas antigas nunca foram pagas. De tudo quanto sabemos acerca dele e de tudo o que nos contaste, ela só podia esperar dele uma nova humilhação e a morte. É certo que ele desistiu dos seus piores intentos, visto que te mandou ao encontro dela para a levares para um lugar seguro. Mas queres que acreditemos que ele se despojou de tudo para a proteger?

Harry ergueu os olhos verdes ansiosos para Llewelyn e respondeu apaixonadamente:

- Só Deus sabe, senhor, se era intenção dele fazer mal a Madonna Benedetta, quando aceitou a proposta dela e a sua vinda para Parfois. Mas eu sei que ele era capaz de morrer para impedir que ela sofresse às mãos de William. E, se William ainda não sabe isso, sabê-lo-á em breve e tirará partido da situação. Abdicar de tudo para a proteger... sim, posso jurar que Isambard o fez. E receio que ele próprio seja neste momento prisioneiro, por causa dela. Se os outros quiserem obter mais alguma coisa dele, vão voltar a servir-se dela para o pôr de joelhos.

- Se Isambard já abdicou de tudo quanto era seu, que mais poderão eles querer dele? - observou David, com toda a razão. - Que importância têm para nós as querelas dos Isambard? Parece-me que podíamos muito bem negociar directamente com esse novo senhor de Parfois e acordar com ele a libertação de Madonna Benedetta. Já não precisa dela. Porque haveria de querer mantê-la refém por mais tempo?

- Não! - protestou Harry.

Tinha a cabeça entre as mãos, porque a sentia tão pesada do calor e do fumo da braseira que mal conseguia mantê-la direita.

- Se lhe propusermos um resgate, William vai começar a interrogar-se sobre o que já saberemos sobre as suas manigâncias e o que mais poderá ela contar. Pensais que ele hesitaria em matar, se receasse que a sua traição viesse a lume?

- Estás a sonhar, Harry! - tranquilizou David, colocando-lhe um braço sobre os ombros e sacudindo-o, num gesto fraternal. - Mesmo que receie o que ela possa contar, William receará ainda mais matá-la, depois de o príncipe de Aberffraw a haver reclamado. Nunca ousaria tocar-lhe.

- A ela não! A ele! - Furioso, Harry afastou o braço afectuoso. - Quanto tempo pensais que ele viveria, se eles temessem que alguém fizesse demasiadas perguntas sobre ele? - perguntou, a tremer de cólera, desconforto e desespero. - Uma iniciativa nossa, um visitante enviado pelo rei, um velho amigo que por lá passe e peça para o ver, qualquer destas coisas pode ser a sua morte. Estou cheio de medo, cheio de medo de que isso possa acontecer em breve! Nos seus outros castelos, há pessoas que não acreditarão facilmente que Isambard haja cedido o feudo. Apesar da assinatura e do selo, essas pessoas vão querer que seja ele a dizê-lo pessoalmente e de livre vontade. Enquanto ele for vivo, William não terá paz. E basta um passo em falso num degrau... não é muito difícil matar um cego.

Os outros fitavam-no com os olhos dilatados de espanto, prontos a pronunciar dolorosas palavras de estranheza e dúvida. Amavam-no e não queriam magoá-lo mas que sabiam eles de Parfois? Que sabiam eles do longo, estranho e difícil companheirismo que se desenvolvera e afirmara nele, à sua própria revelia, e que o levara a voltar para trás e a confrontar, como se fosse a primeira vez, o seu velho inimigo? Como poderia esperar que eles compreendessem, se ele mesmo não compreendia? Harry seguira o que lhe ditava o coração e confiara em que este sabia o que estava a fazer. Que mais poderia fazer?

- O Harry está certo! - atalhou Llewelyn, erguendo a cabeça.

Os seus olhos haviam começado a brilhar, perante a perspectiva de acção. Estendeu a mão para o ombro de Harry, puxou-o para si e acrescentou:

- Ao primeiro gesto nosso para resgatar a refém, a vida de Isambard não duraria mais de uma hora. Mas nós podemos fazer melhor. William Isambard diz ser o guardião desta Marca em nome do rei, não é verdade? Vamos pôr à prova as suas qualidades de comando.

David e Owen lançaram-lhe olhares de consternação e incompreensão profundas, idênticos aos que haviam lançado a Harry ao ouvi-lo. O próprio Harry fitou o príncipe com espanto quase igual, ao qual se juntava porém uma centelha de esperança e de ardor que lhe aqueceu o coração.

- Vai procurar Madoc, Owen. Pede-lhe que venha ter comigo dentro de meia hora e que traga os seus capitães. Amanhã, vou mandá-lo embora de Brecon. Penso que esta guarnição já sofreu um cerco suficientemente longo. Vão ter muito trabalho para fazer aqui e isso afastá-los-á do caminho do conde Richard pelo menos durante umas semanas. Só há uma maneira, ou pelo menos eu só conheço uma maneira, de me aproximar de Parfois sem levantar suspeitas: em armas.

O príncipe voltou os olhos brilhantes para o filho, deparou com a sua expressão de surpresa e sorriu.

- Vai com ele, David. Deixai-nos a sós por algum tempo. David e Owen obedeceram sem discutir mas, também, sem

compreender. Aceitavam e aprovavam a decisão de Llewelyn mas o raciocínio por trás dela estava para além da sua compreensão.

- Não te preocupes com eles - aconselhou Llewelyn, depois de os dois jovens haverem saído. - Quando Deus entender que chegou a altura, ficarão a saber o que não disseste. Ainda são novos e procuram uma explicação e uma razão para tudo. Mas gostam demasiado de ti para discutir. Confia neles, sempre que precisares, e eles apoiar-te-ão.

- Eu sei, senhor - respondeu o jovem, tremendo.

Que poderia, contudo, dizer do príncipe, que vencera o fosso da incompreensão de um só salto e até o aliviara do fardo das interrogações e da angústia? Sentou-se no chão, ao lado da cadeira de Llewelyn, e, com um enorme suspiro de gratidão, apoiou a cabeça nos joelhos do príncipe, sem dizer palavra. Ao cabo de um momento, o corpo agitou-se-lhe suavemente em soluços silenciosos.

Llewelyn acariciou-lhe os cabelos castanhos e manteve a mão sobre a cabeça de Harry.

- Eu sei! Eu sei! Os teus esforços não bastaram, mas ninguém podia haver feito melhor. Nenhum homem consegue atravessar a vida sem falhar. Precisas de aprender a viver com os teus erros. Como fazem os príncipes. Como eu faço.

Harry ergueu a cabeça, num gesto de negação breve e violento. Llewelyn tranquilizou-o, segurando-lhe a cabeça com ternura entre as palmas das mãos e sorrindo com alguma amargura ao recordar as suas próprias memórias.

- Como ele faz - acrescentou Llewelyn, suavemente, comovendo-se ao ouvir o suspiro de alívio e apaziguamento que lhe respondeu. - Pensas que ele te acusaria por haveres falhado?

Nunca era preciso contar-lhe nada: Llewelyn possuía o dom especial de penetrar no coração das pessoas que amava. Naquele momento, sentia na própria mente os anseios e as angústias que agitavam o ser fechado daquele seu filho emudecido. Todavia, certa vez, essa clarividência do amor faltara-lhe, o que custara a todos eles um ano de desolação. Harry também se lembrava.

- Se a tua interpretação estiver correcta, ela está em segurança. Se ainda precisam dela como refém para obterem a aquiescência de Isambard, vão cuidar bem dela. E, mesmo que Madonna Benedetta já haja servido os fins deles, não há nada que possam lucrar se lhe fizerem mal, nem motivo para lhe desejarem mal. Quanto a Isambard... penso, Harry, que, se não aparecer ninguém a pôr em causa o título e o direito de William ou a imiscuir-se nos seus segredos, ele não vai apreciar a ideia de mandar já o pai deste mundo para o outro. Não precisas de te preocupar com o tal passo em falso nas escadas. Isso aconteceria demasiado depressa, logo após a abdicação, e levantaria dúvidas em muitos espíritos. O rei Henrique não pode estar rodeado de homens comprometidos e não daria um cargo nem seria tolerante para William, se começassem a ouvir-se murmúrios a seu respeito. Não, se puder, ele vai deixar passar algumas semanas ou mesmo alguns meses. Não nego que deseje a morte do pai. Tal como a ti, parece-me evidente. Mas com alguma discrição, por medo de chamar sobre si as atenções que pretende evitar. E não agora! Ainda não!

- Senhor! - exclamou Harry, agarrando-se a Llewelyn como quem se agarra a um rochedo, num mar agitado. - Vejo as coisas tão mudadas! Ele nunca me fez mal nem deixou que ninguém fizesse. Nem faltou à palavra dada.

Numa voz surpreendida, que soava abafada pelas pregas da capa do príncipe, Harry ia soltando pequenos pedaços da verdade, à medida que os ia descobrindo.

- Uma vez, bateu no de Guichet. Por minha causa. Quando eu estava prestes a desesperar, ele impedia-me. Quando eu estava abatido, dava-me ânimo. E todavia... e todavia, ele...

- E, todavia, arrancou o teu pai da sepultura - concluiu Llewelyn, pronunciando docemente aquilo que Harry não era capaz de dizer.

De súbito, o jovem começou a chorar desesperadamente. Aquilo era a única coisa que não mudara, a única coisa que ele não suportava.

- Filho, filho - murmurou Llewelyn, acalmando-o com carícias um tanto rudes, como faria a um cão de que gostasse muito. - Pensas que és o único que não entende? Estamos todos às escuras. Espera até Deus decidir clarear o céu. Tu podes, porque dispões de tempo.

- Sinto-me tão perdido, senhor! Não percebo nada!

- Espera a tua hora, Harry, espera a tua hora. Tens muito tempo à tua frente. Mas tempo é uma coisa com que William não poderá contar. Porque, antes de ele se dar conta, nós estaremos junto às suas muralhas e vai ter mais em que pensar do que na herança roubada. Não pediremos a libertação da nossa mulher santa. Não

vamos oferecer um preço; tu e eu, não vamos dar-lhes o menor sinal

de que sabemos o que se passa ou nos importamos com a sorte de lorde Isambard. Apresentar-nos-emos em armas e apoderar-nos-emos do castelo, dos prisioneiros e dos usurpadores. E será das tuas próprias mãos que Isambard receberá, primeiro a sua liberdade e depois tudo o que lhe pertence. Ficas contente assim?

. As graças de Deus são maravilhosas, insondáveis, apropriadas, pensou o príncipe, contemplando a cabeça do jovem, que repousava sobre os seus joelhos. Foi a isto que Ele reduziu a tua vingança, Harry, e a minha. Eu jurei conquistar e destruir Parfois por tua causa e, se Deus quiser, assim farei, mas não do modo como pensei quando fiz o juramento. E quantas promessas o teu coração não fez ao teu jovem pai de vingar a sua morte, matando Isambard? Sem nunca pensares na estranha emoção que se apossaria de ti, quando finalmente tiveste a vida dele nas mãos e lha devolveste de livre vontade, juntamente com um pedaço do teu coração, metamorfoseado num traidor. Traidor pelas regras deste mundo, mas eu penso que abrigas no peito um guia melhor do que qualquer outro que o mundo te pudesse dar. Não o ponho em questão. Deus sabe o que faz.

Harry não respondera, a menos que se considerasse resposta o suspiro profundo que soltara e o facto de haver soltado das mãos as pregas da capa de Llewelyn e de o seu corpo, encostado aos joelhos de Llewelyn, se haver tornado menos rígido. Justificado, tranquilizado, aceite, encorajado, Harry deixou de resistir e mergulhou num sono prodigioso, que o aguardava e lhe estendia os braços desde o dia em que saíra de Parfois. Estava plenamente confiante. Estava satisfeito.

Llewelyn inclinou-se e pegou no jovem ao colo, com a mesma brusquidão e afecto que, muito tempo antes, mostrara ao pegar na criança cansada de tanto brincar para a deitar na sua própria cama, seguro de que nem mesmo um trovão o acordaria.

- Como tu cresceste, rapaz! - observou, ao erguer Harry do chão, para o deitar no leito de campanha. - Nem sequer admitiste que ele te ultrapassasse em algumas polegadas?

Com um enorme suspiro de prazer, Harry estendeu-se na cama e enterrou o rosto nas mantas. O calor da voz distante chegou até ele e ele arrastou-o consigo, sorrindo, para o poço sem fundo do sono. Cobriu o rosto com um braço, para o proteger da claridade, estremeceu da cabeça aos pés e, depois, não se mexeu mais.

- Bem podes ficar quieto! - disse Llewelyn, tapando-o. - Nenhum dos meus filhos de sangue me deu tantos trabalhos como tu. Só Deus sabe, filho, se conseguiremos salvá-lo, como tu queres - acrescentou, observando a respiração suave e compassada de Harry, com um sorriso triste. - Mas juro por Deus que vamos tentar.

Llewelyn sentou-se ao lado da cama, reflectindo sobre o empreendimento tão confiantemente entregue nas suas mãos. O homem propõe e o homem executa; mas Deus faz abanar o chão sobre o qual o homem assenta os pés e leva-o a fazer coisas que nunca pensara fazer. O homem parte para destruir o seu inimigo e chega para o libertar. Então, que assim seja. Deus sabe o que faz.

Os aspectos práticos de tal cometimento não estavam em discussão: capitães e engenheiros diriam, a uma só voz, que o assalto a Parfois era impossível. Óptimo, está decidido, pensou Llewelyn, exaltado e inquieto, fitando o rosto calmo e confiante do jovem. Agora, vamos ver como levar a cabo a tarefa.

- Pois é! - disse Gilleis, dividida entre o riso e a irritação, dirigindo-se à princesa, por cima do ombro do filho. - Que vos havia eu dito? O príncipe devolve-me o meu filho por uma hora e depois leva também o meu marido. Que havemos de fazer com estes homens?

- Melhor dizendo - respondeu Joan, com um sorriso pesaroso - que vamos nós fazer sem eles? Passamos mais tempo sem eles do que com eles. Vós e eu, Gilleis, vamos preparar as nossas bagagens e vamos ao encontro deles a Castell Coch, pelo Natal. Se ficarmos aqui, é óbvio que passaremos o Natal sozinhas.

- Se não fosse por Benedetta, não vos emprestaria o Adam. Ele é um mestre canteiro e não um soldado. Mas por ela... se me pedísseis o sangue das minhas veias, que poderia eu fazer senão estender o braço para a faca? Oh, Harry, se ao menos pudesses lembrar-te daquela cavalgada que fizemos juntas até Shrewsbury, quando tu tinhas apenas duas ou três semanas. Ela vestida com as roupas de Robert e tu a dormir nos braços dela, como quem dorme numa cama. Confiavas tanto nela... e bem podias confiar. - Puxando-o contra o peito, Gilleis acrescentou: - Oh, Harry, tira-a de lá sã e salva!

Ter o filho junto de si, apesar de tão mudado e amadurecido, de tão menos dependente dela, rejuvenesceu Gilleis em vários anos: os seus olhos grandes e negros brilhavam e o seu rosto estava corado como o de uma rapariguinha. Harry sentiu-se mais velho do que ela e amou-a ainda mais por isso.

- Faremos o que estiver ao nosso alcance, mãe. O príncipe diz que, por algum tempo, Madonna Benedetta estará em segurança em Parfois. E está a avançar bastante depressa em seu socorro. A vanguarda partiu de madrugada, antes de eu acordar. Madoc e os seus homens devem estar agora a atravessar o Severn, a montante e a jusante de Parfois, e o príncipe e o seu exército já partiram de Brecon para se lhes juntar.

No seu espírito reapareceu a imagem do casco vazio, calcinado e fumegante do burgo, as muralhas destruídas do castelo, também a fumegar. Mais de metade das forças galesas deveriam estar já em marcha, antes de os sitiados se aperceberem que a longa provação por que haviam passado chegara ao fim e ousarem aventurar-se em prudentes explorações entre as cinzas do burgo. Pouco ou nada haveriam de encontrar ali, tal como pouco ou nada haveriam de encontrar nos campos das redondezas. De Brecon, não seria lançada qualquer perseguição, nenhuma surtida que ameaçasse a retaguarda. Os defensores teriam apenas forças suficientes para caçar o que comer, não podendo desperdiçá-las contra os seus inimigos.

- Faremos o que for humanamente possível - garantiu Harry. - E vamos precisar do Adam como engenheiro. Foi o príncipe quem pensou nisso e mandou-me aqui buscá-lo. Disse que o Adam conhece a pedra, conhece Parfois e sabe guerrear tão bem como qualquer outro homem. Se não conseguimos subir até eles, vamos fazê-los descer até nós, com castelo e tudo, foi o que disse o príncipe. Os homens que precisaram de pedra para construir edifícios derrubaram montanhas e transformaram em cavernas penhascos maiores do que Parfois. Porque não havemos nós de fazer outro tanto por Madonna Benedetta? Como vedes, mãe, não podeis recusar-nos o Adam. «Durante quatro anos», disse-me o príncipe, «tentaste arranjar uma maneira de escapar de Parfois. Se existir um ponto fraco no interior, hás-de encontrá-lo e, se existir um acesso a partir do exterior, o Adam indicar-nos-á o caminho. Pensai bem os dois, pelo caminho, e quando atravessardes o Severn trazei muitas ideias alinhavadas ou ponho-vos a trabalhar nas cozinhas do acampamento, pois não servis para mais nada.»

- E tem toda a razão - disse Gilleis afectuosamente, abraçando-o com o coração cheio de orgulho, dor e felicidade. - Claro que o Adam vai em socorro de Madonna Benedetta e da melhor boa vontade. Vai, filho, vai procurar o teu pai e conta-lhe tudo. Ele está nos redis.

Harry deu-lhe um beijo rápido e saiu, a correr como um galgo.

- Pai, irmão adoptivo - murmurou Gilleis, ternamente, vendo-o afastar-se. - Santo Deus! Hoje em dia, nem sei com qual deles estou a falar!

Atravessaram o Severn pelo vau de Pool, às primeiras horas de um dia gélido e escuro. Os primeiros nevões e os primeiros degelos haviam feito subir o nível das águas, que agora cobriam todos os charcos da zona alagadiça. Depois disso, a geada, que se tornava mais dura noite após noite e que, durante o dia e mesmo ao meio-dia, quase não fundia, havia transformado os charcos em placas de gelo. O curso principal do rio, ladeado nas duas margens por faixas de algumas jardas de gelo escuro e traiçoeiro, corria com violência, castanho e sombrio, arrastando pedaços de gelo quebrado, o que tornava arriscada a sua travessia. A meio da corrente, os cavalos perderam o pé e foram obrigados a nadar. Conduzi-los para a margem foi uma tarefa perigosa, porque, em todos os sítios onde o experimentaram, o gelo se quebrava sob o seu peso, deixando-os a debater-se contra superfícies denteadas, que formavam verdadeiras barreiras de facas à altura do peito dos animais. Harry desmontou com dificuldade sobre a superfície escura e procurou um sítio abrigado onde uma saliência de terra emergisse da corrente. Encontrou-o e, com toda a cautela, Adam e Harry conseguiram fazer avançar os animais extenuados sobre gelo sólido e, por fim, conduzi-los a resfolegar até à margem.

A tremer, Barbarossa deixou-se levar ao longo da língua de terra sólida e, encontrava-se praticamente a salvo sobre a erva alta e coberta de neve, quando, de repente, deu um salto para o lado, ao ver uma mancha de cor na água gelada. Harry teve sérias dificuldades em acalmá-lo e fazê-lo passar por aquilo, não lhe restando tempo para se interrogar ou olhar, até essa tarefa estar cumprida. Mas, quando foram ver o que espantara o animal, ficaram sem respiração, tão assustados como aquele.

Por baixo do gelo, brilhava um escudo com as cores vermelho e ouro de Isambard e um rosto fitava-os, de olhos esbugalhados, os longos cabelos grisalhos colados à cabeça partida. A pouca luz que havia àquela hora reflectia as cores e assinalava pequenos pontos brilhantes, sobre o ombro de uma cota de malha. Foi assim que descobriram o primeiro dos mortos de Parfois. Perscrutando então as proximidades com um olhar mais atento, detectaram os vestígios da breve batalha travada junto ao vau.

Um elmo aqui, uma espada quebrada ali, jazendo na margem do Severn. Arrastados para a margem, num ponto onde a corrente abrira uma cova funda, jaziam mais quatro corpos, todos ingleses. Se houvera mortos galeses, os galeses haviam-nos levado para os enterrar, enquanto os ingleses haviam abandonado os seus. Ao chegarem às ervas altas, Harry e Adam tropeçaram num arco, de corda esticada, semienterrado na neve. Flechas quebradas, um pedaço de tecido ensanguentado de um pelote branco, rígido como aço, cujas manchas haviam desbotado para um rosa pálido. Finalmente, na orla da floresta, no meio de um maciço de arbustos, depararam com um corpo forte e musculado, arqueado sobre uma espada quebrada, na posição em que ficara depois de se ter arrastado até ali, a rastejar, antes de morrer. Viraram-no para lhe ver o rosto e o corpo voltou-se todo, inteiriço, como se fosse um bloco, uma gárgula grotesca de pedra: a barba farta e a expressão severa pertenciam ao velho Nicholas Stury, o mestre de armas.

Harry contemplou-o longamente e, no seu coração, abriu-se um minúsculo vazio de consternação, que lhe doía como uma ferida. Todavia, a imagem que contemplava nada tinha de novo: já vira outros corpos, alguns de homens que ele próprio matara, e nunca pensara muito neles. Porque haveria de perturbá-lo a visão de um rosto que lhe era familiar, agora que se encontrava em território inglês? Porquê chorar por Stury, um homem de quem nunca gostara, por quem nem sequer sentira simpatia, um velho fanfarrão com mau feitio, que sentia prazer em castigar os discípulos mais tímidos, durante os exercícios, e não suportava ser vencido? Todavia, os dois haviam-se cruzado todos os dias, durante cerca de quatro anos, na rotina ordeira de Parfois, e, mesmo contra as respectivas vontades, haviam feito parte da vida um do outro. Um homem com quem, durante tanto tempo, se partilharam idas e vindas passa a ser um dos nossos, com as suas excentricidades e humores, e, queiramos ou não, é-nos mais próximo do que um estranho. Harry fez-lhe o sinal da cruz sobre a testa fria e afastou-se, deixando-o ali.

- Alguém teu conhecido? - perguntou Adam, já na sela, ao reparar no olhar fixo e sombrio de Harry.

- Sim - limitou-se a responder Harry.

- Ele foi bom para ti? - perguntou Adam, num palpite bem distante da realidade.

- Não. Nem para nenhuma outra pessoa, que eu haja dado por isso, Mas estava vivo e, à maneira dele, gostava tanto de viver como qualquer homem bondoso...

Com um encolher de ombros, Harry lançou o problema do velho Nicholas para trás das costas, montou e atravessou a faixa de pradaria, em direcção ao bosque. Era melhor habituar-se à ideia de que iriam encontrar outros mortos.

As nuvens eram tão baixas, espessas e escuras que, da margem inglesa, não se avistava a margem galesa, e a silhueta da Long Mountain era apenas uma massa púrpura escura de árvores, que se diluía na bruma. Porém, as suas narinas agora apuradas estremeciam com o odor forte que pairava sobre a floresta: Harry e Adam aperceberam-se de que pelo menos metade da obscuridade que cobria o mundo não era devida à bruma, mas ao fumo. O frio glacial podia impedir que os cadáveres cheirassem mal, mas nada podia contra o odor acre do fogo. Sob a neve fresca, os dois começaram a pisar mato queimado e, aqui e ali, as árvores eram apenas troncos enegrecidos com restos de ramos quebrados. Espinheiros, silvas e fetos haviam sido queimados em muitos sítios e os animais haviam fugido daquela desolação. Alguns pássaros já estavam de regresso, saltitando e debicando na neve: eram as primeiras criaturas a fugir de medo e as primeiras a arranjar coragem para voltar, os mais frágeis e mais resistentes filhos da floresta.

Harry e Adam passaram por uma quinta incendiada, onde os restos escurecidos das paredes da casa se destacavam sobre a neve. Encostado a ela, polvilhado de branco pela última queda de neve, jazia o camponês, com uma flecha galesa partida cravada nas costas. Aquilo era um presságio bastante claro do que iriam encontrar à chegada ao lugarejo abaixo de Leighton: um amontoado de esqueletos carbonizados de casas, estábulos vazios, dois ou três cães mortos e um infortunado aldeão que preferira ficar e defender as suas provisões de Inverno, do que fugir a sete pés. Os outros haviam procurado refúgio em Parfois, antes da passagem dos invasores, ou abalado para os confins da floresta, com os seus animais, para sobreviver como pudessem ou morrer de fome. Todos os grãos de trigo, todas as vacas e todas as galinhas haviam sido levados para engordar a manutenção militar do acampamento de Llewelyn. O primeiro posto avançado do exército galês fê-los parar e deu-lhes notícias do príncipe.

Este dispusera as máquinas de cerco e o grosso das suas tropas de modo a simular um ataque frontal pela encosta de Parfois e manter a guarnição na expectativa e no receio da queda do posto avançado da guarda, enquanto os homens das montanhas inspeccionavam o rochedo sobre o qual se erguia o castelo. As linhas de contravalação e circunvalação haviam sido instaladas em volta da única via de acesso e seria lá, na aldeia de cerco, que encontrariam o quartel-general do príncipe. A toda a volta de Parfois, estendiam-se linhas móveis de posições fortificadas galesas, que isolavam o castelo do mundo. Ninguém podia lá entrar, mas também ninguém podia de lá sair. Mesmo que dispusessem de vinte poternas por onde sair, como coelhos das suas tocas, os sitiados iriam sempre encontrar-se no meio do cordão de estrangulamento das tropas inimigas e teriam de combater para passar por ele.

- Não deixámos um porco, uma galinha ou uma mão-cheia de trigo para eles comerem - contou a sentinela, sorrindo. - Caímos sobre eles tão depressa que nem tiveram tempo para fornecer a despensa. Se não conseguirmos obrigá-los a sair de outra maneira, hão-de sair pela fome.

- E a população? Que foi feito deles? - perguntou Harry, olhando para as ruínas das casas.

- A maior parte deles fugiu. Alguns para o castelo, onde vão aumentar o número de bocas a alimentar, outros para os bosques. Fomos obrigados a matar os tolos que nos enfrentaram.

Que outra coisa seria de esperar? Era a guerra e fora ele quem a desencadeara. Uma guerra eficaz, uma guerra com uma finalidade mortal e já não um jogo de estratégia. Saltara de alegria, quando o príncipe propusera aquela ofensiva: vira nela um meio de cumprir as suas obrigações e aliviar a alma. Mas eram outros quem pagavam por ela. Assistira à rendição de Cardigan, vira Brecon a arder mas, aí, aceitara as coisas de ânimo leve, entrara no jogo, e só ocasionalmente o seu coração se sentira perturbado pela revelação da vida e da morte. Assistira a tudo como criança e como estranho. Agora, ali, era um homem, um vizinho, e todas as mortes o perturbavam.

Lançou um olhar desnorteado aos celeiros saqueados, aos estábulos pilhados. Adam contara-lhe, em tempos, que ele e o seu pai haviam ajudado os camponeses daquelas aldeias nas colheitas, quando muitos dos homens haviam sido recrutados à força para servir no exército do rei João. O seu pai defendera corajosamente os direitos daqueles mesmos camponeses, rendeiros livres e servos, contra o seu senhor, sofrera com as injustiças cometidas contra eles e imortalizara na pedra a afirmação da sua humanidade. Agora, vinha o filho despejar-lhes os celeiros, matar-lhes o gado e pregar o camponês à porta da sua própria casa, com aço. E não podia recuar. Ele, mais do que qualquer um, estava comprometido: tudo aquilo começara por sua causa.

- E as gentes que vivem na floresta? - perguntou, com o coração apertado de medo.

I Aelis estaria por certo a salvo. Por certo? Se David, que só a vira uma vez, se esquecesse, Owen cuidaria de que ela e o pai saíssem incólumes de tudo aquilo e levá-los-ia para um lugar seguro, como prometera. Todavia, não podia descartar-se das suas responsabilidades descarregando-as sobre Owen. Deveria haver previsto o que significariam a guerra e o cerco, as courelas destruídas, a floresta em chamas.

- Fugiram para buracos que só eles conhecem - respondeu a sentinela, encolhendo os ombros despreocupadamente. - Alguns dos que viviam na floresta preferiam viver em tocas de raposa do que procurar abrigo em Parfois. Outros talvez houvessem ido para lá, mas faltou-lhes a oportunidade. Atravessámos o rio antes de eles darem por isso. Apanhámos-lhes os animais, antes de poderem mudá-los de sítio. Se vivessem com tão pouco como nós, disporiam de mais tempo para fugir.

Harry fez Barbarossa dar meia volta e afastou-se, angustiado pelo medo. E quando, sem fazer perguntas, forçou o andamento para acompanhar o de Harry e lhe olhou para o rosto, Adam leu nele o desgosto e um enorme arrependimento.

- Eu devia haver-te avisado - disse Adam, quando abrandaram porque o caminho se tornara íngreme.

- Eu devia saber. De que outro modo se poderia cercar e conquistar Parfois? Oh, Adam - acrescentou. - Começo a aperceber-me de que nasci inglês.

- Agora, já não há nada a fazer, Harry - disse Adam, com tristeza. - Temos de ir em frente.

Já chegaste a esse ponto?, pensou para consigo. O Harry havia de te amar ainda mais por isso.

- Precisamos de libertar Benedetta - acrescentou, contendo-se a tempo de evitar referir o nome de Isambard.

- Não me esqueci. Fui eu quem começou isto e vou ter que o levar até ao fim.

Gostaria de falar de Aelis para aliviar o coração, mas não foi capaz, nem mesmo com Adam, que a conhecia, que dormira na casa de Robert e que comera pão amassado por ela. O medo secou-lhe a boca, impedindo-o de pronunciar o nome dela. Então, cravou as esporas no cavalo e partiu, colina acima, em direcção ao troar fortuito e abafado dos trabucos. Nos sítios onde precisavam de protecção, os galeses haviam deixado ficar as árvores e só o portentoso e ininterrupto duelo entre catapultas e balestras quebrara alguns ramos que juncavam de fragmentos o solo coberto de neve. Em menos de nada, Harry e Adam chegaram às linhas exteriores e viram-se rodeados por paliçadas que os conduziram à estreita aldeia de cerco, fervilhante de homens e animais. E lá estava Owen, saudando-os alegremente, de um alpendre encostado à muralha.

Harry saltou da sela ao seu encontro. Sem ouvir uma palavra do que Owen começara a dizer, perguntou brutalmente:

- Onde está a Aelis?

- Só Deus sabe, Harry! - respondeu Owen, com toda a honestidade, a alegria do reencontro já apagada do rosto. - E Deus sabe que lamento não haver uma melhor resposta para te dar. As coisas não correram como havíamos planeado e não a encontrei. Mandei alguns dos meus homens procurá-la...

- Devias ter tomado providências - gritou Harry, sacudindo-o furiosamente. - Tu prometeste! Ou achas que eu podia vir com a vanguarda e ir a Aber, ao mesmo tempo? Pensava que ias à procura dela, mal atravessasses o Severn. Pensava que a punhas a ela e ao pai a salvo em Castell Coch, antes de soltares os teus homens. Santo Deus! Que foi que os deixaste fazer?

- Mas eu também não vim com a vanguarda. Como podia prever o que se passou? As ordens deles eram esperar e cobrir o vau, até eu me juntar a eles mas, por mero acaso, esbarraram com uma companhia de soldados de Parfois, que perseguia um servo fugitivo, na margem galesa. Lutaram com eles e empurraram-nos para o lado de cá. O efeito de surpresa estava perdido, que mais poderia Madoc fazer senão avançar em força e lançar mãos à obra? Quando atravessei o vau, na manhã seguinte, a floresta estava em chamas e as aldeias em ruínas.

- E não tentaste encontrá-la - arquejou Harry. - Deixaste que a perseguissem como uma raposa, até à toca... não te preocupaste com ela...

Soltou Owen e, num gesto de angústia e descrença, juntou as mãos que ardiam de desejo de esmurrar a cara ansiosa de Owen. Este agarrou nos punhos cerrados, passou um braço nos ombros de Harry e puxou-o para si, para o acalmar.

- Deus é testemunha, Harry, de que me preocupei com ela e que fui procurá-la, logo que pude. Mas o mal já estava feito. A casa estava reduzida a cinzas e a vaca morta... Que querias tu? Os nossos homens tiveram de agir depressa e não havia nada que distinguisse a courela de Robert de qualquer outra.

A verdade daquelas palavras atingiu Harry, como uma facada. Na realidade, em que diferiam a sua amargura e a sua perda das de qualquer outro homem? A mulher do camponês morto, lá em baixo, havia tantas razões de estar triste como ele. Por cada morte, havia alguém que sofria a mesma cólera e a mesma dor que agora o revolviam.

- E eles haviam partido? Tentaste encontrá-los?

- Que espécie de homem pensas que eu sou, Hal? Por mais de dois dias, os meus homens procuraram-nos e a courela continua sob vigilância, para o caso de eles voltarem. Havia rastos e tentámos segui-los...

- Não foram para Parfois? Claro que não, eles sabiam...

- Não, foram para a floresta. Ambos, juro, Hal. Eu vi as pegadas. Mas havia caído neve nessa noite e perdemos-lhes a pista. Peço desculpa. Acalma-te. Dava uma mão para os trazer de volta sãos e salvos.

- De que serviria isso? - perguntou Harry, num tom cortante. Libertando-se de Owen com um gesto tenso, afastou-se de

ambos. O seu rosto estava tão cinzento como a neve espezinhada.

- Onde está o príncipe? Preciso de lhe pedir licença para partir. Preciso de ir ter com ela.

- Ter com ela? Onde, santo Deus? Por esta altura podem já estar em Shrewsbury.

Acreditaria realmente nisso? Harry não acreditava. Os galeses ocupavam os dois flancos de Long Mountain; quem ousaria tentar atravessar as suas linhas, depois do que já se passara?

- Onde está o príncipe? - repetiu Harry, num tom agressivo. Mal ouviu a resposta, rodou sobre os calcanhares e afastou-se.

- Espera. Eu vou contigo - gritou Owen, transtornado e aflito.

- Deixa-o - interveio Adam. - Julgas que não quero ir com ele? Mas ele não quer nenhum de nós.

- Não! - gritou Harry, voltando-se para os deter com um gesto furioso. -Não quero ninguém. Vou sozinho.

Não havia tempo para suavizar a recusa: eles que pensassem o que quisessem. Perseguida, despojada de tudo e cheia de medo, Aelis não apareceria a ninguém senão a ele, e mais facilmente ainda, se viesse de mãos vazias e sozinho. Harry fugiu de Adam e Owen e chegou à presença de Llewelyn tenso e sem fôlego. De joelho em terra, pronunciou apenas as palavras estritamente necessárias.

- Cumpri a missão que me confiastes, senhor. O Adam está aqui. E aqui haveis as cartas da minha senhora. Agora, senhor, dai-me permissão para ir em busca de Robert e Aelis, que me alojaram e ajudaram quando aqui estive sozinho. Eles fugiram para a floresta, para escapar aos nossos homens, e a casa deles foi queimada. Dispensai-me até eu os encontrar e lhes dar abrigo, como eles me deram a mim.

Harry ergueu a cabeça e fitou os brilhantes olhos de falcão que o fixavam sem espanto, compreensivos e perspicazes; não havia nada que não se pudesse dizer a um homem que era imune à surpresa.

- Não é um pedido feito de ânimo leve, senhor - acrescentou Harry, arrebatadamente grave. -Amo Aelis do fundo da minha alma e pretendo casar com ela.

A cerca fora deitada abaixo, a horta arrasada pela neve e a courela abandonada. Da pequena casa, restavam apenas as vigas encurvadas do telhado, queimadas e enegrecidas, alinhadas como dentes partidos. Os dois homens de Owen haviam quebrado o forno de argila de Aelis para fazer uma lareira, e alimentavam o fogo com o que restava das gaiolas das galinhas.

- Vigiámos dia e noite e nem sinal de vida - lamentaram-se. - Estamos aqui a perder tempo. Eles não vão voltar.

Harry era da mesma opinião: não voltariam, pelo menos enquanto aqueles dois ali estivessem.

- Deixai este local e ide ao encontro dos vossos companheiros - disse Harry.

- Não quero arriscar a pele, se Owen ap lvor ouvir falar em tal - objectou o mais velho dos dois, fítando-o com um ar carrancudo. - As ordens dele eram ficarmos aqui de vigia.

- Não vos preocupeis com isso. Ide e dizei-lhe que Talvace vos dispensou da vossa missão. Eu responderei por vós e Owen não vos acusará de nada. Apagai o fogo antes de partirdes e levai tudo convosco. Se estiver alguém à espreita, quero que perceba que a vigilância acabou.

Satisfeitos com aquela garantia, os dois homens não se fizeram rogar: apagaram o fogo no forno quebrado, pegaram nas provisões que lhes restavam e partiram alegremente em direcção ao acampamento. Harry ficou sozinho no local, agora desolado, onde Aelis vivera.

Naquele momento, era inútil chamá-la, pois ela não viria. Se Aelis estivesse viva e escondida num qualquer lugar daquela floresta violada, seria preciso persegui-la e apanhá-la como se apanha um animal selvagem. A princípio, pensou Harry angustiado, Robert e Aelis deveriam haver encarado sem receio a chegada dos galeses, calculando que fora ele quem os trouxera e que nada havia a temer. Mas depois, antes de terem tempo de perceber o que lhes estava a acontecer, os soldados haviam desembainhado as espadas, disparado flechas e lançado tochas contra o telhado. Talvez, antes de ceder ao medo, Aelis houvesse visto a vaca ser levada e as primeiras galinhas degoladas. Talvez Robert lhes houvesse gritado que os deixassem em paz e se houvesse atravessado no caminho dos soldados; talvez estivesse ferido quando, finalmente, fugira. E ela... Não, porque viriam eles de livre vontade ao nosso encontro, depois de tamanha traição? Nem mesmo ao meu encontro! Muito menos ao meu encontro, se ela não me amasse. Pobre Aelis! Sou eu a causa de tudo isto. Que Deus me perdoe e me ajude a reparar os meus erros.

Para onde haveriam fugido quando, por fim, o terror se apoderara deles? Não para o topo de Long Mountain, porque aí ficava Parfois e, então, estariam encurralados entre o diabo e o inferno. Aqueles dois fugitivos tinham tão bons motivos para se manterem longe de Parfois como para fugirem dos galeses. Tampouco haveriam seguido os carreiros habituais, situados nos terrenos planos abaixo do topo, porque aí os cavaleiros podiam circular facilmente e em breve seriam apanhados. Deviam ter ido na direcção do rio, onde ficariam longe dos dois exércitos, numa estreita faixa de terra que ninguém cobiçava. Ali, podiam pelo menos ter esperança de escapar à terrível contenda, mesmo que isso lhes custasse dias e noites de marcha. Ou podiam atravessar o vau em Buttington e procurar refúgio em Strata Marcella, onde os frades não interrogariam um necessitado, antes de o recolher.

A floresta densa ao longo do rio, onde não havia caminhos, não fora atingida pelo fogo. Harry prendeu Barbarossa, embrenhou-se no mato e, com uma paciência mesclada de receio, começou a busca ao longo da margem, em direcção a jusante. Por duas vezes, avistou corpos que jaziam entre emaranhados de ervas geladas, para onde a corrente os arrastara, emparedados pelo gelo, e, com o coração na boca, aproximou-se. Mas nenhum desses corpos era das pessoas que procurava; respirando fundo, seguiu em frente, tenazmente. Não voltaria sem ela.

O moinho não escapara aos galeses: fora saqueado e incendiado e o corpo do moleiro jazia no charco gelado da azenha. Porém, os soldados não haviam esperado até a destruição ser completa e um vento contrário havia poupado a cave e o telhado. Aquele era o primeiro abrigo que encontrava e Harry percorreu as ruínas febrilmente, mas estas não abrigavam qualquer ser vivo. Algumas jardas adiante, sobre o gelo escuro, encontrava-se o barco, imobilizado, encalhado e inútil.

Durante todo o dia, hora após hora, sem consciência da fome, da sede, do frio e do cansaço, Harry prosseguiu a busca: em direcção a jusante, para além de Buttington, até o coração lhe dizer que aquela esperança se esgotara e era preciso voltar para trás, procurar noutro lado. No entanto, ao dirigir-se para montante, manteve-se junto à margem do rio, como antes, confiando no seu raciocínio: mesmo confuso e em pânico, Robert saberia o que fazer e manter-se-ia à beira do rio, o único caminho onde podia esperar escapar à perseguição e evitar encontros fortuitos. Apesar de gelado de corpo e de espírito, Harry continuou obstinadamente a procurá-los. Quando a luz do dia quase desaparecera já e o crepúsculo pesado do Inverno começava a instalar-se, chegou mais uma vez às proximidades do moinho, a uma língua de terra onde a vegetação densa não fora atingida pelo fogo e onde podia movimentar-se sem ser visto.

Harry parou subitamente e ficou a olhar. Uma frágil silhueta escura saiu do barco e dirigiu-se para o moinho. Aelis, sempre tão direita, ágil e ousada, caminhava curvada sobre o gelo, coxeando, como uma criança doente ou um aleijado. Mas Harry reconheceu-a pela estocada instantânea de dor, que lhe atingiu o coração e lhe fez chegar as lágrimas aos olhos, e pela alegria por trás da angústia, que o levou a murmurar silenciosamente, entre os lábios trementes, palavras de agradecimento a Deus.

Ela estava viva e mexia-se. Por mais que lutasse, ele apanhá-la-ia e amansá-la-ia, segurá-la-ia com as mãos, impedindo-a de fugir, apertá-la-ia com força nos braços, para não deixar que se magoasse a estrebuchar de terror, até o seu contacto a enternecer e apaziguar, mesmo contra a vontade dela, até ela o ouvir e ficar quieta, demasiado cansada para continuar a ter medo, demasiado esgotada para continuar a lutar; até as suas palavras e as suas carícias atingirem a percepção dela e conseguirem alisar as penas eriçadas, até o coração e o corpo dela o reconhecerem e se voltarem para ele. Mesmo contra a vontade dela!

Com o maior cuidado, avançou por entre as árvores, perdeu-a de vista antes de ela chegar a terra, apressou o passo com uma angústia surda e voltou a avistá-la, quando ela subiu do gelo para a margem. Em pequenas passadas cautelosas, sempre com medo de ser traído pelo estalido de um rebento ou pelo movimento de um ramo, aproximou-se dela e chegou à cerca periclitante que rodeava o terreno à volta do moinho.

Porque não examinara aquele local com o mesmo cuidado com que examinara o moinho, quando se dirigira para jusante? Se o houvesse feito, não poderia deixar de notar os sinais de ocupação humana e haveria sabido que Aelis estava ali e se escondia dele, se escondia de todos os homens horríveis, que tanto mal lhe haviam feito. Agora, Aelis julgava-se sozinha, protegida pela noite que caía, e saíra do esconderijo para continuar o seu trabalho. A tremer e quase cego pelas lágrimas, Harry viu que Aelis trouxera uma picareta do moinho e estava a tentar fender o solo duro como pedra. Quanto tempo trabalhara ela já naquilo, para haver conseguido escavar aquela irrisória trincheira superficial, desenhada a preto sobre a neve?

Enrolara as mãos e os pés em pedaços de serapilheira e, sobre os ombros, por cima do vestido grosseiro, os farrapos de uma saca de farinha; devia ter fugido sem sequer pegar na capa. O cabelo comprido estava descuidadamente enrolado na nuca, para não lhe dificultar os movimentos. Não conseguia ver-lhe o rosto, em parte por causa da obscuridade, em parte por causa da sombra do cabelo. Harry saiu do seu esconderijo por trás dela, saltou por cima das estacas de madeira e aproximou-se como um gato.

Apesar de todas as cautelas, Aelis ouviu-o. Rápida e silenciosa, virou-se, deu um salto para trás e brandiu a picareta para lhe bater na cabeça. Os seus olhos, enormes no rosto torturado e magro, apresentavam um brilho selvagem, que tornava impossível dizer se ela o reconhecera ou se ainda possuía senso suficiente para se lembrar dele. O rosto rígido e sem expressão da rapariga parecia um pedaço arrancado ao gelo que cobria o rio, os seus olhos eram chamas azuis de medo e horror. Harry desviou-se da pancada, mas o cabo da picareta bateu-lhe no ombro, deixando-lhe o braço dormente. Os dedos de Harry só conseguiram agarrar a bainha da saca que servia de capa a Aelis e esta desviou-se violentamente, deixando-lhe a saca na mão. Em seguida, largou a arma e correu a toda a velocidade, como um veado ferido, para o abrigo das árvores.

Harry desatou imediatamente a correr atrás dela e nem mesmo o desespero poderia levar Aelis a correr mais do que ele. Alcançou-a junto à cerca e deitou-lhe a mão ao vestido, agarrando ao mesmo tempo uma mão-cheia de cabelo, o que a fez soltar um grito queixoso, que encontrou eco num soluço estrangulado da garganta de Harry. Mas ele não podia nem ia soltá-la. Aelis voltou-se e cravou-lhe os dentes no pulso, e os dois caíram sobre a neve. Ela caiu com a leveza quase imaterial de uma folha de árvore, tão franzina e delicada sob o seu corpo que Harry se sentiu inundado por uma torrente inconsolável de desgosto, horror e vergonha. Todavia, não tinha outra opção; continuou deitado por cima dela com todo o seu peso, pregando-a ao solo até ela ficar cansada, lutando com ela até conseguir dominá-la; apenas a cabeça da rapariga continuava a oscilar de um lado para o outro, para evitar o olhar dele, como se também aquele olhar tivesse o poder de magoar e matar.

Ao sentir que, debaixo de si, o corpo de Aelis se aquietava, Harry abrandou um pouco a pressão e, num ápice, ela libertou um braço e as suas unhas rasgaram arranhões profundos no rosto dele. Harry prendeu-lhe o pulso e voltou a assentar todo o seu peso sobre ela, não ousando correr risco igual. Encostou mesmo a cabeça à dela, face contra face, e assentou a testa na neve, para a manter quieta. Aelis suspirava e respirava em arquejos longos e trementes e o contacto com a fraqueza, a frieza e o ódio dela desencadeou em Harry uma convulsão de desejo e angústia, uma ânsia quase insustentável do seu corpo por ela.

- Aelis! Aelis!

Harry quase não tinha voz para lhe pronunciar o nome, mas repetiu-o uma vez e outra, num murmúrio, junto ao ouvido da rapariga. Nenhum tremor de conhecimento, nenhum afrouxamento, nenhum reconhecimento no corpo rígido por baixo dele. No entanto, Aelis estava consciente de uma coisa que ele não sabia: Harry chorava em grandes soluços, que entrecortavam as sílabas do nome dela. A curiosidade penetrou através da estreita fenda do seu espanto humano e a piedade que a seguiu de perto hesitou, intimidada. A intensidade da imobilidade de Aelis alterou-se. Quando Harry ousou erguer a cabeça e voltar a fitá-la, nos olhos grandes, fixos e dilatados pelo choque despontava uma pequena chama de dúvida e entendimento, que o encorajou a acreditar que a alma e a mente de Aelis ainda viviam dentro dela.

- Não me reconheces, Aelis? O Harry? Não lutes comigo, não fujas. Vim procurar-te para te levar comigo. Aelis, meu amor, minha querida, não tenhas medo de mim...

Ainda era demasiado cedo. Para ela, aquelas palavras não passavam de um som distante, não desagradável e, por uma vez, não era um som ameaçador. Seria preciso esperar muito tempo antes de Aelis voltar para ele mas, pelo menos, deitara a primeira olhadela por cima do ombro.

Por fim, sempre com muita precaução, tirou uma das mãos de cima dela, soltou a corrente que lhe prendia o manto e deixou-o cair sobre ela. Em seguida, deslocando cautelosamente o próprio peso, soergueu-a com um braço antes de Aelis se dar conta do que ele fazia, bloqueou-lhe os dois braços acima do cotovelo e enrolou o manto à volta dela, apertando-o bem para a impedir de se debater. Aelis assustou-se e, novamente assolada pelo pânico, tentou lutar, mas o esforço não durou muito. A sensação de calor penetrou no seu espírito e confundiu-a; pela primeira vez, Aelis sentiu que talvez as mãos que a envolviam e os braços que a mantinham prisioneira fossem gentis.

Harry conseguira por fim dominá-la, ela estava impotente. Pegou-lhe ao colo e levou-a para a cave do moinho. Encontrou os restos de um monte de palha, a um canto; sentou-se no chão com ela, arranjou um ninho para a acomodar, procurou tranquilizá-la com palavras doces, sem deixar de a segurar bem nos seus braços, com medo de que ela se libertasse e voltasse a fugir dele.

- Vim logo que pude, logo que soube. Agora, mais ninguém vai fazer-te mal. Tomarei conta de ti. Vou levar-te para um lugar seguro. Vou levar-te para o pé da minha mãe...

Disse-lhe o que lhe ia no coração, uma e outra vez; acariciou-a e amimou-a, uma e outra vez. A rigidez do corpo dela abrandou um pouco; a palidez gélida do seu rosto atenuou-se. Harry beijou-a na testa e ela estremeceu e ergueu para ele um olhar espantado e nostálgico, lembrando-se de outras carícias. Então, lenta e suavemente, Harry beijou-a nos olhos, nas faces, na garganta e, por fim, na boca. A boca dela despertou ao toque dos lábios dele, moveu-se e, com grande suspiro, comprimiu-se contra a dele.

Agora, o corpo de Harry estava mais tranquilo, tomado por uma onda de ternura e já não de paixão. Ia saber esperar a sua hora. Abraçou-a com força, até a exaustão e a surpresa a submergirem como uma onda do mar e Aelis adormecer nos seus braços. Depois disso, Harry esperou muito tempo, até ter a certeza de que ela não iria acordar, e então aconchegou-a na palha e saiu silenciosamente do abrigo. As dobradiças da porta estavam partidas, mas esta era pesada. Harry barricou-a, certo de que Aelis não seria capaz de a deslocar. Havia coisas que precisava fazer.

Primeiro, avançou prudentemente sobre o gelo, com a luz da lua que despontava a indicar-lhe onde se encontrava o barco. Sobre os bancos estava estendida uma velha lona, com uma das pontas levantada, como ela a deixara. E Harry descobriu aquilo que, no fundo, já sabia que iria encontrar: o corpo hirto de Robert jazia ali, onde morrera, com as feridas no peito e no braço coladas aos pensos que Aelis rasgara da própria camisa. A capa dela também lá estava, ternamente colocada sobre o corpo do pai. Seminua, naquele frio glacial, Aelis empreendera a árdua tarefa de cavar uma sepultura para o pai na terra gelada. Podia pelo menos poupá-la a isso. Robert tinha agora um filho; demasiado tarde para o ajudar em vida, mas pelo menos a tempo de o enterrar.

Harry ajoelhou-se sobre o gelo e rezou uma oração pela alma do defunto. Então, de repente, o fardo das suas responsabilidades e o peso da culpa esmagaram-no por um momento e os soluços sacudiram-no como o vento sacode uma faia. Mas foi um momento breve, que o deixou mais calmo e senhor de si. Ergueu-se, regressou à margem e, tão depressa quanto lhe foi possível, voltou ao lugar onde deixara Barbarossa. Levou o animal consigo até ao moinho e fê-lo entrar - impaciente, nervoso e indignado - no abrigo onde Aelis dormia. Os alforges continham pão, carne e vinho e o grande corpo do cavalo faria as vezes de fogueira, contra o frio da noite.

Aelis dormia na posição em que a deixara. Harry tocou-lhe, porque já não havia luz que lhe permitisse vê-la, e ela não se mexeu. Contudo, quando levantou um pouco o manto, se deitou ao lado dela e voltou a enrolá-lo bem à volta de ambos, Aelis espreguiçou-se e suspirou. E quando a tomou nos braços, puxando-a para si a fim de partilhar com ela o calor do próprio corpo, ela voltou-se para ele cònfiantemente e aninhou-se contra o seu peito.

Harry ficou acordado toda a noite, com Aelis nos braços. De manhã, ela abriu os olhos inchados, que o sono fizera recuperar o azul límpido e puro das flores do campo, e, num tom de incerteza e melancolia, como se houvesse sonhado com ele, exclamou:

- Harry!

- Estou aqui - respondeu ele, tenso mas vibrando de esperança. E depositou-lhe na face um beijo suave, tranquilizador, um

beijo igual ao que daria a uma criança.

De súbito, Aelis lançou-lhe os braços à volta do pescoço e puxou-o para si com toda a força. A barreira da solidão, que a impedira de chorar, fora quebrada e as lágrimas brotaram, numa torrente de desgosto que escorreu com gratidão sobre o peito de Harry.

Harry cuidou dela, alimentou-a, acendeu fogueiras para a aquecer, tomou-a nos braços durante a noite e, durante o dia, escavou a cova de Robert na terra gelada, como penitência. Ao fim da tarde do segundo dia, depois de haver construído uma espécie de trenó e nele haver transportado o corpo para terra, para o enterrar, Aelis levantou-se e foi ao seu encontro, de livre vontade. De rosto pálido, mas maravilhosamente calmo, ajudou-o a colocar o pai na sepultura. Rezou ao lado de Harry, e o seu desgosto era um desgosto humano e suportável, as lágrimas corriam-lhe suavemente pelo rosto, não devido a um horror inconcebível, mas devido a uma mágoa compreensível, que o tempo ajudaria a sarar.

Ao terceiro dia, abandonaram o moinho e atravessaram o vau em Pool. Agora, já não era difícil: a superfície do rio estava gelada entre as duas margens. Harry enrolou as ferraduras de Barbarossa em pedaços de pano e conduziu-o para a outra margem, sem perigo.

Chegaram às portas de Castell Coch perto do meio-dia. Um quarto de hora antes, haviam chegado outros viajantes e, no terreiro, reinava uma grande actividade de descarga das bagagens. Harry avistou o brasão de cores vivas de Gwynedd, contou o número de palafreneiros, escudeiros e camareiros e concluiu que a princesa cumprira a sua promessa e viera cedo para a fronteira, a fim de passar o Natal perto do seu senhor. O facto tirava-lhe um peso dos ombros e deixava-o contente, porque, assim, poderia confiar Aelis à mais segura de todas as guardas. Mas, ao mesmo tempo, despontara nele um novo e inesperado instinto, que o fazia sentir-se constrangido e preocupado, e o advertia de que não era assim tão simples comunicar à mãe que já era um homem e tinha uma noiva, sem previamente a haver advertido e sem haver pedido a sua permissão.

Gilleis, que saíra dos aposentos da princesa para orientar o transporte da bagagem pessoal de Joan, parou nos degraus da casa senhorial, ao avistar o cavalo alazão que se aproximava, carregando duas pessoas. Esqueceu-se do que viera fazer, esqueceu-se dos aborrecimentos da viagem e do alívio da chegada. Viu apenas aquele homem jovem, forte e galante, um estranho de olhar grave e resoluto, de queixo coberto por uma barba loura de três dias, que abraçava a rapariga que transportava diante de si como se esta fosse um cálice de ouro do qual receasse deixar cair uma gota de néctar. Gilleis ficou a vê-lo desmontar, afastando o braço da figura esguia com enorme doçura e relutância, e teve um repente de exasperação ao ver que, com o tempo que fazia, Harry vinha sem manto... uma exasperação que duplicou, quando se apercebeu de que, na verdade, ele trazia um manto, mas que era a rapariga quem o usava. Apesar da palidez, da magreza e da sua idade, a rapariga usava-o como se este fosse púrpura e, quando Harry lhe estendeu os braços para a ajudar a descer, inclinou-se para ele com uma adoração total e confiante, que mesmo os reis raramente inspiram. A despeito da dor que sentia, esta devoção provocou em Gilleis um impulso de ternura.

A hora que receava chegara demasiado cedo. Harry ainda não completara dezanove anos, estivera privada dele durante quatro anos e, agora, ia perdê-lo para aquela jovem de cabelos dourados, rosto esquivo e inocente e olhos azuis como flores silvestres numa seara por ceifar.

Harry poisou a rapariga no chão com toda a delicadeza, como se a terra pudesse magoá-la. Entregou as rédeas a um palafreneiro e voltou-se para a casa senhorial, com um braço sobre os ombros da companheira. Então, viu a mãe ali parada e compreendeu que ela estivera a observá-lo.

Gilleis apelou a toda a sua coragem e a todo o seu amor, e avançou para ele para o abraçar.

- Ainda bem que estais aqui, mãe - disse Harry. - Trago comigo uma pessoa que gostaria de confiar aos vossos cuidados, uma pessoa que foi boa para mim e ficou órfã por minha culpa. Esta é Aelis, filha de Robert, de quem já vos havia falado. Acabámos de enterrar o pai dela.

Aelis recuara um pouco, para não se intrometer no reencontro dos dois, e Harry voltou a passar-lhe o braço sobre os ombros e, com uma expressão grave no rosto corado, fê-la avançar de novo.

- É a minha noiva que trago para junto de vós, mãe. Acolhei-a e cuidai dela até eu voltar. Tirando vós e eu, não tem mais ninguém neste mundo.

Harry exprimira-se num tom prudente, orgulhoso e sereno mas, por um momento, Gilleis viu espreitar nos olhos dele a criança que já desaparecera, dividida entre o desafio e a súplica; depois, o homem voltou a enfrentá-la com o seu olhar altivo e imperioso. Deus abençoe este rapaz, pensou Gilleis, salva pelo riso irresistível que as atitudes solenes e ingénuas dos homens sempre lhe provocavam, será que pensa que eu ambicionava casá-lo com alguma princesa galesa que trouxesse um ou dois feudos como dote? Ou será que Deus lhe ensinou esta astúcia de se apresentar assim diante de mim, sabendo que eu só o entregaria de bom-grado a uma pobre criatura sem nada de seu? Se isto tinha de acontecer, que me resta fazer senão aceitar? É melhor entregá-lo de livre vontade do que vê-lo ser-me arrancado à força.

Olhou para a rapariga e viu-lhe as olheiras, a palidez das faces enregeladas, a pobreza do vestido. Tão jovem e tão só, sem nada de seu, sem família, quem poderia censurar a forma decidida como se agarrava ao mundo, à esperança, à promessa de felicidade?

- E a quem havias tu de a confiar senão a mim? - perguntou Gilleis vivamente.

Afastando Aelis de Harry, abraçou-a, beijou-a afectuosamente e acrescentou:

- Bem-vinda, minha filha. Deus sabe que lamento a perda que sofreste, mas estou contente com o que acabo de ganhar.

Que Deus inclua esta mentira na conta dos meus méritos e não na dos meus pecados, pensou. E me ajude a transformá-la em verdade.

- Saí do frio, vós dois, e vinde aquecer-vos à lareira, pois pareceis enregelados. Vinde ver a princesa e contar-lhe as novidades. Ela vai ficar contente.

Aliviado de um peso e ansioso por ir cumprir o seu dever, Harry recusou. Mas Gilleis teve direito a uma recompensa: Harry abraçou-a e beijou-a com a exuberância da alegria por os seus problemas haverem terminado e tudo estar a correr bem. É como todos os homens, pensou Gilleis: alegre e radioso, quando leva a sua avante. E riu-se, de si mesma e de Harry, tomada pela sua velha alegria de viver, ainda viva e pura. Que levara Harry a ter dúvidas? Que a levara a si a ter medo? Acaso o pai dele pedira autorização a alguém, quando a escolhera para sua mulher? E havia ela esquecido a sua própria audácia, quando, entre todos os homens, elegera Harry Talvace e apostara a vida em como o conquistaria, correndo o risco de perder tudo?

- Não posso ficar, mãe. Preciso de voltar, pois tenho trabalho à minha espera. Eu conheço Parfois por dentro e eles precisam de mim lá. Tomai conta de Aelis e eu ficarei contente. E amai-a, minha mãe - acrescentou num murmúrio suplicante, junto ao ouvido de Gilleis. - Porque eu amo-a do fundo do coração.

- Quem melhor poderia tomar conta dela do que uma mãe? - replicou Gilleis, abraçando-o ternamente. - Quem poderia amá-la mais? Vai, então, se é mister que vás, e não te preocupes connosco. Ficaremos muito bem juntas, a dizer mal de ti até tu voltares. Há muitas coisas que preciso de lhe ensinar a teu respeito! Vai, filho, põe-te a caminho, já que precisas de ir. Dá-lhe um beijo e deixa-a ao meu cuidado.

Harry beijou-a, pegou no manto e, satisfeito com o destino das suas mulheres, pôs-se a caminho, ao encontro dos homens entrincheirados à volta de Parfois, que procuravam uma falha, uma fenda no rochedo por onde o calor, o frio ou o ferro pudessem penetrar.

Gilleis e Aelis ficaram a vê-lo afastar-se, num silêncio breve e perigoso e, quando ele desapareceu da vista, olharam pela primeira vez uma para a outra, de um modo atento e inquisitivo.

- Obedecer-vos-ei e ser-vos-ei grata, senhora - disse Aelis, medindo aquela que poderia vir a revelar-se uma adversária de peso. - E aprenderei convosco a melhor forma de o servir. Mas desde já vos digo que não vou desistir dele.

Quem diria, à primeira vista, que o coração daquela rapariga abrigava tanta coragem? Gilleis estudou-a longa e pensativamente e, por trás da palidez provocada pelo frio, pelas privações e pela dor, detectou a determinação e a serenidade daquele rosto de traços puros, o brilho intenso dos olhos que sustentavam tão honestamente o seu olhar, reparou no modo como a boca em forma de botão de flor formava e terminava cada palavra, pronunciando-a com a clareza cortante de uma espada. Aelis sabia o que dissera e era isso mesmo que queria dizer. O desafio fora lançado e restava apenas aceitá-lo ou deixar correr: ela não mudaria. O aviso fora honesto, sem ressentimento nem malícia; mas, se tivesse de lutar por Harry, não daria tréguas.

- Porque penso - acrescentou Aelis, numa voz ponderada, os olhos azuis brilhantes e directos como duas espadas - que não sou aquela que escolheríeis para ele.

- Deus é testemunha, minha filha, que começo a pensar que és - respondeu Gilleis com um súbito sorriso resplandecente.

 

Parfois: Dezembro de 1233

De noite, no silêncio enganador da natureza estática e gelada, Parfois repousava, tão imóvel e imaculado como as estrelas do céu. Apesar da escassez das reservas de velas, havia bastante luz no salão; e apesar de terem de poupar nos alimentos, na cerveja e no vinho, para fazer face às necessidades de uma guarnição excessiva, não passavam muito mal. Na sua vigília nocturna, William Isambard passeava de um lado para o outro, no terraço da Torre da Rainha, observando a luz fraca das fogueiras distantes, no sopé da montanha, minúsculos elos de uma cadeia que o mantinha prisioneiro no interior das suas próprias defesas, deixando-lhe todavia aquela aparência de paz. A própria espera era difícil de suportar. Por três vezes, tentara reduzi-la, através de saídas em força de soldados bem armados, mas as baixas sofridas haviam-no ensinado a abster-se de procurar alívios tão gravosos. O posto avançado da guarda era defendido a todo o custo: a torre danificada fora reforçada com uma barreira tripla, erguida à pressa com as pedras destinadas à construção de mestre Edmund e era guardada por metade da guarnição. Se ocupasse a rampa de acesso, o inimigo poderia trazer as máquinas de guerra para o planalto da igreja e atacar o próprio castelo de perto. Mas, enquanto as primeiras defesas não cedessem, Parfois continuaria a ser inexpugnável e a sua conquista impossível. Dali do alto, William contemplava-o: intacto, em boa ordem, tranquilo, inviolado, inviolável.

Lá em baixo, quais coelhos, quais toupeiras, os galeses martelavam incansavelmente no rochedo sobre o qual se erguia a fortaleza, devorando pedaços de rocha, palmo a palmo. Que quereria aquilo dizer? Que esperavam conseguir fazer? Mais valia tentar vazar o rio com conchas de sopa.

Ficava furioso, quando o mestre canteiro insistia em lhe apresentar um relatório diário sobre a sua obsessão persistente e quando de Guichet o seguia até ali, à noite, e achava necessário referir-se também àquela actividade ridícula. Que lhe importava se os tolos dos galeses partissem os dentes a britar a terra? Toda a gente sabia que os galeses eram hábeis em escaladas, toda a gente reconhecia que eram capazes de escalar o rochedo e passar o barranco que separava a plataforma de Parfois da plataforma da igreja. E depois? Não podiam trazer para ali as máquinas de guerra e também não havia posições praticáveis, mesmo para os seus arqueiros. E, ainda que conseguissem chegar até à base das muralhas, não poderiam encostar as escadas. Deixá-los escavar!

- O mestre Edmund diz que continua a ouvi-los, senhor. Por baixo das torres de vigia e, com maior clareza ainda, por baixo da armaria e da sala de desenho. Ele jura que os galeses estão a escavar por baixo dos nossos pés.

- Deixá-los! Que benefícios podem tirar disso? A única abertura que poderia ser perigosa está selada com pedras e as portas cá dentro estão bem guardadas. Se o louco do meu pai não a houvesse usado para as suas artimanhas, nem isso haveríamos tido precisão de sacrificar. Eles nunca dariam com ela, do lado de fora, se o rapaz não a conhecesse já. E não há mais poternas.

- Pois não, senhor. Mas há fendas e grutas. E o príncipe de Aberffraw também dispõe de pedreiros, que sabem cortar a pedra tão bem como o mestre Edmund.

- E cuidais que eles são capazes de abrir um túnel para entrar em Parfois? Em quantos anos? Deixá-los escavar! Dai cabo deles sempre que puderdes e parai de me importunar.

No topo das torres de vigia, no caminho da ronda e, até, em todas as galerias da muralha daquele lado, haviam sido colocados arqueiros em permanência. De tempos a tempos, um homem dos clãs mais incauto aparecia a descoberto e pagava por isso mas, ultimamente, haviam aprendido a manter-se sob protecção e as saliências proporcionavam uma boa cobertura. Pelo menos uma vez, durante a noite, os galeses haviam-se aproximado em número superior ao habitual e haviam sido detectados; os sitiados haviam lançado óleo e depois tochas para o barranco, ateando um fogo que arrancara vários homens em chamas dos seus esconderijos, para serem alvejados com toda a facilidade pelos arqueiros postados nas muralhas. Mas eles aprendiam depressa. Agora, mantinham-se colados ao rochedo e saíam um a um, em silêncio. Talvez houvessem alargado os seus buracos o suficiente, para se manterem longe do alcance do fogo. Todavia, que importância tinha isso? Deixá-los andar às apalpadelas, no escuro, até ficarem tão cegos como o velho. Que mal podiam fazer lá em baixo?

- Como desejardes, senhor. Fazemos o que nos é possível. O rapaz, se bem estais recordado, senhor, também é pedreiro. Aprendeu com o mestre Edmund...

- Deixai isso, disse eu. Há mais alguma coisa para contar?

- Nada de novo, senhor. O velho senhor, vosso pai, voltou a pedir para passear um pouco, no terreiro interior, durante a manhã. Eu disse que vos perguntaria. Está a ficar doente por estar fechado há tanto tempo, depois da vida que levou. Bem podíeis deixá-lo apanhar um pouco de ar, de vez em quando - respondeu de Guichet.

O breve mas significativo olhar que lançou a William acrescentava «... se quereis que ele continue vivo.»

Esta observação provocou um sorriso de alívio. O facto de aquele demónio de arrogância haver sido obrigado a solicitar os seus favores representava o reconhecimento de que os papéis se haviam invertido.

- Meu pai pode sair, desde que seja vigiado de perto. Já ninguém se deve importar com ele. E não é preciso ninguém para o acompanhar. Se quer passear, que passeie sozinho, como puder.

Mas cuidai de que não saia do terreiro interior. A mulher está bem segura no terreiro exterior e não pode ir ter com ele. Ela costuma perguntar por ele?

- Não pergunta por ele nem pede nada.

Benedetta nunca pedia nada. Não parecia uma prisioneira; passava os seus dias em silêncio, mergulhada nos seus pensamentos, serena, totalmente insensível à tormenta que se desenrolava à sua volta. Por vezes, quase tinham medo dela. Os seus olhos afastados denotavam uma tranquilidade assustadora e uma profunda sabedoria acerca da loucura dos homens, à qual ela era imune. Se a morte viesse procurá-la, ela encará-la-ia com a mesma impassibilidade e acompanhá-la-ia prontamente. A mulher santa de Aber, a cortesã veneziana, a aventureira trazida para Parfois como trofeu de guerra das Cruzadas - vira e vivera tanto que o espanto não conseguia já atingi-la. Agora, já não tinha qualquer valia. A braços com aquela guerra, William ficaria contente por se ver livre dela, mas ela estava ali e não havia nada a fazer. Aliás, talvez pudesse ainda vir a ser útil: Benedetta era o único aguilhão capaz de forçar a mão ao velho, se este voltasse a tornar-se obstinado.

- Cuidai de que ele se mantenha afastado dela.

- Assim fará, senhor, porque foi o que prometeu.

- Cuidai disso, disse eu. Não confio nele nem nela. Com quem passa ela o tempo?

Com ninguém. Ou com toda a gente. Respondia prontamente quando falavam com ela e, todavia, não precisava da companhia de ninguém.

- Umas vezes com as mulheres, outras com os músicos. Ela toca e canta. Dizem que bem. E com aquele velhaco de Reichenau, que parece ter alguns conhecimentos... fala com ele acerca de livros.

Mais um hóspede sem o qual passariam muito bem, aquele monge desertor, com a sua língua afiada e os seus olhos manhosos, que viera de Sul, de Chester, com o seu bornal e as suas histórias, para vender ao velho um fragmento duvidoso da cruz de São Pedro. Nos seus tempos, Ralf Isambard tornara-se conhecido como coleccionador daquele género de relíquias e qualquer homem de boas falas conseguia obter dele alojamento, comida e uma recompensa generosa, mesmo que a mercadoria fosse suspeita. Directamente da Terra Santa, dizia ele, acabado de desembarcar e ainda pálido devido à acidentada travessia desde França, em pleno Inverno. Viera até Parfois e em Parfois continuaria, por força das circunstâncias, até os galeses baterem em retirada. E como ele se lamentava, alto e bom som, da sua má fortuna por vir cair num tal vespeiro, mal pusera de novo os pés em Inglaterra, ao fim de tantos anos.

- Nunca suportei essas mulheres letradas. São obra do diabo. Mas, a despeito de toda a sua fé de cruzado, o meu pai sempre mostrou gosto pelas obras do diabo.

De súbito, William voltou-se para as escadas da torre.

- O que é isto? Quem vem lá? Não vos ordenei que não os deixásseis incomodar-me a esta hora?

- Todos sabem dos vossos desejos, senhor. Ninguém ousaria... Alguém subia os degraus de pedra a toda a pressa e os seus passos provocavam um eco cavo.

- ... sem um forte motivo - acrescentou de Guichet, apressando-se a ir ao encontro do intruso.

Na estreita abertura das escadas, apareceu um camareiro, quase sem fôlego, que tropeçou ao chegar ao lintel e se apressou a fazer uma vénia humilde, diante de William.

- Perdoai, senhor! É demasiado urgente para poder esperar. O poço... o poço grande, aquele no terreiro exterior...

- Imbecil! Será preciso dizeres-me onde ficam os meus poços? Que se passa com o poço?

Dentro de muralhas, havia dois poços: um deles, o mais antigo e que, havia anos, era insuficiente para as necessidades do castelo, situado no centro do terreiro interior; o segundo, mais recente e com mais água, ficava no terreiro exterior, não muito longe das torres de vigia, e era sobretudo dele que a guarnição dependia.

- Está seco, senhor!

- Seco? Como pode estar seco, idiota? Alguma vez esteve seco?

Roxo de fúria, William agarrou o homem pelos ombros e virou-o, de forma a este ficar iluminado pelo luar.

- Estás bêbedo, para vires até aqui com tamanho disparate? Quem foi que te disse?

- Os moços de cozinha que foram lá buscar água contaram ao mordomo chefe, que me contou a mim, senhor. Mas não me fiei neles e fui eu mesmo ver. Infelizmente é verdade, senhor. Fizemos descer o balde cada vez mais e não encontrámos nada senão rocha. No fundo do poço, há apenas uma poça de água. Vinde comigo, senhor, e vereis por vós mesmo.

Mas William já o soltara, correra para as escadas e descia os degraus quase em voo, como um falcão que se lança sobre a presa.

No seu cómodo fechado e guardado, o cego ouviu o clamor que passava e voltou a cabeça, de ouvido à escuta, para apanhar as poucas palavras que deixassem escapar ao passar diante da sua porta. Era tão rápido a ouvir como a compreender. Por vezes, a sua capacidade de percepção causava medo aos homens que o guardavam. Bastou-lhe captar a palavra «poço» e o tom agitado das vozes deles para saber o que acontecera. Na escuridão em que vivia, dispunha de tempo para raciocinar e não precisava de correr para confirmar. Pensou nas pessoas da casa, mais de mil almas, com a água racionada a dedais, na resistência dos homens, limitada aos recursos do poço velho. Houvera grandes problemas, mesmo em Verões pacíficos, antes de haverem aberto o segundo poço.

Quem, de ânimo leve e com desprezo, troçara das laboriosas escavações dos galeses, chamando-lhes coelhos e toupeiras? Os frenéticos gritos de raiva de William, amaldiçoando-os, soavam agora bem alto. Que podiam os galeses fazer, não era? Pois bem: eles haviam-lhe mostrado o que eram capazes de fazer. Eram capazes de calcular a posição exacta do poço porque, entre eles, contavam-se homens que a conheciam, mais jarda menos jarda. Eram capazes de colocar os seus pacientes artesãos no barranco e de os pôr a trabalhar a coberto da saliência das torres de vigia, escavando a rocha, alargando com pés-de-cabra todas as fendas, todas as fissuras, que pudessem levá-los na direcção do poço, abrindo caminho a martelo até lá chegarem. E o primeiro fio de água dir-lhes-ia que haviam atingido a nascente. Depois, era fácil alargar a abertura e deixar escorrer a seiva vital de Parfois, numa série de fios prateados, sobre o rochedo, a caminho do regato e do rio, lá em baixo.

Quando amanhecesse, talvez os sitiados pudessem ver, das torres de vigia, o novo afluente do Severn correndo sobre a rocha, mais abaixo, longe do seu alcance e da sua sede. Por uma noite ou duas, até a pressão abrandar e restar apenas o débito regular da nascente, a corrente deveria ser suficientemente forte para não gelar.

- Bem pensado, Harry! - comentou Isambard, rindo no escuro. - De toupeira para toupeira, foi um trabalho bem feito.

Três dias depois de o poço haver sido esvaziado, o monge renegado de Reichenau, que fora obrigado a trabalhar, carregando tábuas para reparar as barricadas do posto avançado da guarda, caiu duas vezes sob o peso da carga, a queixar-se de dores e mal-estar. Foi forçado a levantar-se à ponta de lança, por haverem pensado que ele estava a fingir para escapar ao trabalho, porque fugia do trabalho como o diabo foge da água benta. Mas quando, por fim, o grupo atravessou a ponte para entrar em Parfois, o monge renegado encostou-se à beira do poço vazio, dobrado em dois com cãibras terríveis e, passado um bocado, endireitou-se e caiu para a frente, rígido como um toro, fez ressalto e rolou, também como um toro, de boca aberta e a escorrer saliva, sobre a neve.

Um pajem, suficientemente jovem e inocente para sentir piedade, correu para ele, mas um homem de armas puxou-o para trás por um braço.

- Deixa estar! Não lhe toques! Não sabemos qual é o mal dele. Outros que haviam hesitado recuaram apressadamente, ao

ouvir isto, olhando, pouco à vontade, para o homem caído, que se rebolava e gemia debilmente. O homem abriu os braços e os que se encontravam mais perto deram um salto para trás. Sobre a neve, ao lado da sua boca, via-se agora um fio de sangue.

Madonna Benedetta, que saía da torre da guarda, atravessou o terreiro com as suas passadas longas e decididas e ajoelhou-se ao lado do doente. Ninguém disse «deixa estar» nem tentou retê-la. Embora prisioneira, os seus actos só a ela diziam respeito.

- Paulinus!

O monge renegado usava o nome de um dos mais doces cantores do mundo antigo, embora Benedetta desconfiasse de que era o nome que ele escolhera para si e não o nome que os pais lhe haviam dado no baptismo. Na verdade, a despeito das suas velhacarias, Paulinus era ainda dotado de uma certa doçura sem graça e a sua voz tinha um toque de verdadeira frescura que, por vezes, até o surpreendia. Benedetta tocou-lhe no ombro e ele abriu os olhos. No círculo da antiga tonsura, o cabelo era mais grisalho e ralo, o cabelo irregular de um velho. O seu rosto apresentava as marcas da vida que levara; era verdade que fugira do convento e se tornara um vagus, mas o mundo fora bastante cruel com ele.

- Que se passa, Paulinus? Onde é que vos dói? Paulinus encostou a cabeça à manga dela, incapaz de falar.

- Ajudai-me - ordenou Benedetta, olhando com ar autoritário para os que os rodeavam. - É preciso levá-lo para a cama.

Eles fitaram-na com desconfiança e, em vez de avançarem, recuaram, em pequenos movimentos furtivos. Um deles disse:

- Não sabemos de que mal ele sofre. É melhor deixá-lo como está. Vós podeis ser a próxima, senhora.

E começaram a murmurar entre si.

Não se podia contar com eles e, se Paulinus ficasse ali, no gelo, de certeza que morria. Não havia tempo a perder em conjecturas nem discussões. Agarrando-o pelas axilas, ergueu-o energicamente e, baixando a cabeça, passou-lhe um braço à volta do pescoço e amparou-lhe o corpo.

- Conseguis levantar-vos? Apoiai-vos em mim e tentai. Não é muito longe e eu ajudo-vos. Não podeis ficar aqui.

Paulinus fez o melhor que pôde. Com dificuldade, ajoelhou-se e colocou um pé por baixo do corpo. O seu rosto estava escuro, como se, por baixo da pele, o sangue houvesse adquirido um tom púrpura. Gemeu e levou uma das mãos à garganta e ao peito, abrindo a túnica, como se não conseguisse respirar. Foi então que se viram claramente as manchas vermelhas sobre a sua pele. No peito e pelo pescoço acima, as manchas vermelho-vivo alastravam e inchavam e ele coçou-as e fez sangue.

A multidão recuou ainda mais, por entre uma balbúrdia de gritos e advertências. Até àquele momento, Benedetta não se apercebera de que eram tantos, a toda a volta, todos a olhar para ela; e outros acorriam, vindos de todos os lados; até o próprio de Guichet apareceu a correr, para ver o motivo de tamanha agitação. Estava a abrir caminho, em direcção a eles, quando alguém murmurou, pela primeira vez:

- Peste!

A palavra produziu o mesmo efeito que uma faísca sobre a palha. Num instante, propagou-se e foi repetida por todos os cantos, em gritos enlouquecidos. Já não era uma palavra, mas um rugido animal. De Guichet conseguiu chegar junto deles, vociferando, e recuou mais depressa do que viera, ao ver o corpo sarapintado e o rosto coberto de manchas. Então, foi agarrado por várias mãos, de pessoas que protestavam e imploravam.

- Peste! Ele trouxe a peste de além-mar. Deus haja piedade de nós, a peste está entre nós!

- Isto não é peste - gritou Benedetta, em tom categórico, continuando a amparar Paulinus, que oscilava ao seu lado. - Eu sei o que é a peste, já vi peste e não é isto. Deixai-me levá-lo para dentro e perguntai ao vosso próprio médico.

Estas palavras foram acolhidas com um grito de «não». Já era suficientemente mau o homem estar dentro de muralhas; não podia ser alojado no meio deles, como um homem são.

- E ela também não - guinchou uma das mulheres. - Ela pegou nele, tocou-lhe, está tão suja como ele. Deus nos ajude a todos, se a deixarmos andar à vontade entre nós.

- Ponde-os lá fora - começaram a gritar várias vozes, que o terror tornava quase inumanas. - Fora de Parfois! Não os queremos dentro de muralhas. Expulsai-os lá para fora!

- Isto não é peste - repetiu inutilmente Benedetta. - Se o expulsardes, a culpa da sua morte recairá sobre vós. Morrerá de frio e não da peste e Deus pedir-vos-á contas pela sua vida.

Os gritos abafaram a sua voz. Benedetta viu, à sua volta, uma dança fantástica de rostos aterrorizados, foi atingida por uma vaga de gritos agudos e excitados. A cabeça do doente rolou sobre o seu ombro. Ela manteve-o de pé, ao mesmo tempo que, com os seus olhos enormes e ardentes, afastava os inimigos assustados. Mas viu a morte aproximar-se de Paulinus e a sombra desta atingia-a também a ela. Voltou rapidamente a cabeça, em busca de um rosto, um só, que se mantivesse calmo e não houvesse perdido a humanidade, alguém que pudesse ser um aliado, a quem ela pudesse apelar. Contudo, o demónio do pânico, mais contagioso do que a peste, apoderara-se de todos aqueles rostos, transformando-os em máscaras grotescas e anónimas.

- É peste, senhor... - disse, por trás de si, a voz trémula e horrorizada de de Guichet - temos a peste entre nós.

Benedetta voltou-se e viu William Isambard. Por certo ouvira o burburinho e saíra, furioso, para perguntar o motivo, em voz portentosa e com bastante aparato; todavia, deparara com um clamor terrível, que não lhe permitira fazer-se ouvir. Quando começou a distribuir murros ao acaso, como era seu costume, os atingidos perceberam quem bramava nas suas costas e afastaram-se para lhe dar passagem. Foi assim que William Isambard desembocou bruscamente na primeira fila, cara a cara com Paulinus e ainda sem saber o que o esperava. Benedetta voltara-se a tempo de o ver recuar de um salto, tão violento que fez oscilar os que se encontravam mais perto. Viu-lhe o rosto, no momento da compreensão, empalidecer e imobilizar-se num esgar de asco, viu os olhos dele ficarem vidrados, quais lanternas vazias, até o medo tomar cor e voltar a iluminá-los.

Perante isto, Benedetta sorriu e William viu-a sorrir. Aquela mulher, que estreitava a pestilência com um braço e tinha a mão da morte poisada no seu ombro, aquela mulher ainda tinha a coragem de se rir dele. A cólera regressou para coabitar com o medo. Mas que importava? William não tinha qualquer poder, ia para onde era obrigado a ir, para onde as circunstâncias o empurravam. Ninguém podia esperar a sua ajuda.

- Como foi que isto aconteceu? Há quanto tempo está ele assim?

- Só Deus sabe, senhor! Talvez haja sido contaminado no navio. Foi só agora, quando ele caiu, que nós vimos...

As gentes agrupavam-se à volta do seu senhor e aqueles que tal ousavam agarravam-se às mangas dele, suplicantes.

- Salvai-nos, senhor! Mandai-os embora, antes de nos contaminarem a todos.

- Pelo amor de Deus, senhor!

- Olhai para ela! Agora, a marca dele também está nela e ninguém pode limpá-la. Mandai-os embora depressa... mandai a peste embora daqui ou estaremos perdidos como ela.

- Que devemos fazer com eles, senhor? - perguntou de Guichet, a tremer. - Se é na verdade peste...

A multidão clamou que era peste, que esta se espalharia por Parfois como fogo em palha seca, e transformaria o castelo num cemitério, para mais estando este cercado e sendo a comida e a água escassas. William gritou, a impor silêncio, e fez calar os balidos mais próximos a murro.

- Tende tento nessas línguas tolas! Cuidais que eu quero a pestilência na minha casa? Hei menos a perder do que vós? Seja peste ou não, não quero dar-lhe abrigo. Vamos pô-los daqui para fora num instante.

- Este homem vai morrer, se o deixardes ao frio - argumentou Benedetta. - Pelo amor de Deus, dai-lhe pelo menos um abrigo onde eu possa cuidar dele. Uma cabana fora das muralhas, onde não possamos contagiar-vos, qualquer coisa, desde que haja um tecto sobre a cabeça dele.

- Vai ter um tecto sobre a cabeça e bastante espaço - replicou William.

Os seus olhos frios e assustados, que se haviam enchido de ódio quando ela se rira, encontraram algum conforto, ao vê-la inclinar-se numa súplica, apesar de esta ser feita no tom de alguém que se julga com direitos.

- Levai-os e fechai-os na igreja, de Guichet. Trancai bem as portas. Todas as portas. E entaipai as janelas mais baixas.

- Sim, senhor.

- Se eles fugirem, pagareis com a vossa cabeça. Levai-os, pois, levai-os para fora do castelo, não importa como. Contais com homens suficientes para tal.

Aliviado, William recuou, sem desviar os olhos da mulher e do seu fardo arquejante. Benedetta viu-o estremecer, tomado pelo mesmo medo e pela mesma repulsa que transformara em monstros os homens de Parfois - homens que não eram piores do que os outros homens, quando não estavam mortalmente assustados. William enrolou bem o manto de pele à volta do corpo e colocou uma distância segura entre si e a fonte de contágio, mas ficou à espera de ver cumpridas as suas ordens. Não tinha apenas uma vida a perder, como qualquer outro homem: competia-lhe proteger e resguardar uma guarnição em guerra e tanto o seu castelo como o seu poder dependiam de ele ser capaz de os manter a salvo, não apenas da doença, mas também do pânico da doença. No fundo, Benedetta não o culpava muito; e, apesar de haver aberto a boca para formular nova súplica, acabou por não dizer nada. Os uivos da multidão não permitiriam que ele a ouvisse e, mesmo que a ouvisse, William não a atenderia.

- Erguei-vos, meu amigo, pelo bom-nome de todos os letrados - disse ao ouvido do monge renegado, ao mesmo tempo que colocava o ombro por baixo do ombro dele, para o amparar.

Os olhos de Paulinus rolaram e fitaram os dela: a mente arguta continuava a habitar o corpo debilitado. No rictus que lhe contorceu os lábios, Benedetta reconheceu um sorriso irónico, um sorriso igual a quase todos os sorrisos que o destino lhe arrancara durante a vida e muito apropriado para saudar a sua morte.

- Irei para onde fordes - prometeu Benedetta. - Até um sítio gelado parece mais quente, quando é partilhado.

Como era possível a crueldade indesejada do medo transformar-se tão rapidamente no fogo brutal do ódio? Os homens de armas haviam corrido em busca de lanças e, a despeito do terror, aproximavam-se quase com regozijo, brandindo o aço. Benedetta virou-se, interpondo o seu corpo entre eles e o doente, arreganhando os dentes para os que estavam mais perto, como um cão de guarda.

- Sereis homens? Afastai-vos! Se lhe tocardes, juro por Deus que soprarei a peste pelas vossas gargantas abaixo, nem que seja preciso trepar pelas vossas lanças para vos alcançar. Cravai as vossas lanças em mim e, com peste ou sem ela, havereis de pegar no meu cadáver com as vossas próprias mãos. Deixai-nos em paz e partiremos o mais depressa que pudermos. Se usardes as vossas armas, sereis obrigados a enterrar-nos.

Apesar da balbúrdia, eles ouviram-na e hesitaram. As lanças ficaram em suspenso, algumas a tocar-lhe no peito. Em vez de recuar, Benedetta avançou ligeiramente, tanto quanto lho permitia o peso que assentava sobre o seu ombro, e comprimiu o corpo contra as pontas das lanças, de olhos muito abertos e brilhantes fitos nos rostos dos guardas mais ansiosos. O aço recuou diante dela, sem lhe fazer um arranhão sequer. Se Paulinus estivesse sozinho, eles havê-lo-iam espetado, porque era a única maneira de o empurrar para fora de portas. E se morresse pelo caminho, haveriam de o trespassar com as lanças, atirando-as depois com o cadáver para o barranco, para propagar a peste entre os galeses. Mas com ela o caso era diferente. Com a ajuda dela, seria capaz de caminhar para o seu túmulo, poupando-os à necessidade de lhe tocar, mesmo à distância de uma lança. Não havia dúvidas de que Benedetta os obrigara a pensar duas vezes. Quem poderia saber? Afinal, a mulher podia ser santa, como afirmavam os galeses. A cólera de Deus podia desabar sobre eles por intermédio dela. Rodearam-na, com as lanças em riste, enquanto ela iniciava a melancólica jornada para fora de Parfois, mas, apesar dos gritos e ameaças, evitaram derramar sangue.

Ao lado de Benedetta, Paulinus arrastava os pés, a respiração arquejante e rouca. Caminhava o melhor que podia e, quando era obrigado a parar por alguns instantes, Benedetta rodeava-lhe o corpo com os braços e apoiava-o contra si, os olhos a flamejar avisos por cima do ombro, até ele estar preparado para se arrastar por mais algumas jardas, no caminho da morte. Foi uma jornada lenta, difícil e amarga, com os perseguidores colados aos calcanhares e o coro de vozes excitadas e cruéis a entrar-lhes pelos ouvidos. Todas as gentes de Parfois correram atrás deles, seguiram-nos pela ponte-levadiça, apinharam-se nos bordos do caminho estreito que conduzia à igreja. Até alguns homens dos postos da guarda dispostos a toda a volta do planalto abandonaram a vigilância e correram, arfando de excitação, para ver e fazer perguntas, juntando as suas vozes àquele burburinho ensurdecedor.

Assim os conduziram à porta ocidental e os forçaram a entrar, tão Benedetta voltou-se para os encarar e, com um olhar calmo e uma voz tranquila, disse:

- por caridade, dai-nos ao menos comida e água.

Água? Restava-lhes apenas um poço, insuficiente para manter vivas mil almas, porquê desperdiçar uma gota que fosse com duas já condenadas à morte? Comida? Quem sabia por quanto tempo mais iria o cerco durar? Não podiam dispensar nada.

Fecharam-lhe a porta na cara. A toda a volta da igreja de mestre Harry, os homens de Parfois afadigavam-se a entaipar as portas, indo buscar tábuas, pregos e martelos, a fim de isolar o interior da igreja do mundo exterior, selando o túmulo.

O jovem Thomas Blount voltou do enterramento e, a coberto dos merlões da muralha, aproximou os lábios do ouvido do seu senhor.

- Está feito, senhor - informou, em voz doce, satisfeita e orgulhosa da própria esperteza. - Estão tão bem fechados que nunca conseguirão sair.

- Ainda bem - respondeu William.

Sem desviar os olhos do vale do rio, onde reinava uma calma enganadora, ficou à espera do resto. O tom de voz de Thomas indicava que havia mais novidades.

- Todavia, senhor... - acrescentou Thomas, aproximando mais a cabeça loira, para sussurrar -... lá dentro, ficaram três e não dois.

Só então William voltou a cabeça por um instante, para lançar um olhar penetrante e gelado ao rosto resplandecente. Os arqueiros que patrulhavam a muralha não estavam muito longe. William olhou-os pensativamente e, quase sem mover os lábios, perguntou:

Quem é o terceiro?

- Quando o alarme foi dado, senhor, o velho cego estava a dar

o seu passeio. Os homens que vigiavam a porta esqueceram-se dele e correram atrás dos outros. Ele ouviu e seguiu-os. Vi-o colado à retaguarda da multidão. O velho percebeu quem havia as lanças apontadas contra si e para onde eram levados. Não voltei a vê-lo nem a pensar nele, até havermos rodeado a igreja. Eu fui o primeiro a chegar à porta Sul e vi o que mais ninguém viu.

Sorridente e seguro do efeito que ia produzir, Thomas Blount pronunciou docemente as palavras, junto ao ouvido impaciente que se inclinara para ele:

- Ele foi ao encontro dela. Eu vi-o entrar. Está fechado na igreja com os portadores da peste.

Houve um momento de silêncio, durante o qual o rosto barbudo de William manteve uma impassibilidade de pedra. Depois, por um instante, os seus olhos brilharam de interesse e satisfação. Em voz baixa, perguntou:

- Estás certo disso?

- Absolutamente certo, senhor.

- E mais ninguém reparou nele?

- Ninguém, senhor. Toda a gente estava de olhos postos naquilo que era preciso fazer.

Ninguém. Ninguém a não ser o sagaz Thomas Blount, que via tudo e sabia muito bem como fazer uso daquilo que via, para cair nas boas graças do seu senhor.

- Não contaste a mais ninguém?

- Não, senhor, juro que não.

- Não é preciso, rapaz, não é preciso. A tua palavra basta. Portanto, isto é um assunto só entre nós dois. E nós não vimos nada... pois não, Thomas?

- Absolutamente nada, senhor. Quando os guardas finalmente se atreverem a confessar que não sabem do prisioneiro, vou tremer tanto como eles.

- Assim é que é, Thomas! Não me esquecerei da tua dedicação.

- Sirvo-vos o melhor que posso, senhor.

- E não deixarás de obter a tua recompensa. Vem ter comigo à torre, esta noite, e dar-te-ei a prova da minha gratidão. Vem sozinho e cedo, antes de o de Guichet subir para me apresentar o

relatório. Não quero que ele fique ao corrente do nosso segredo.

- Confiai em mim, senhor! Mais vale dois que não viram nada do que três.

E o jovem afastou-se, contente por haver cumprido bem o seu dever e por haver conquistado a merecida gratidão do seu senhor.

Que mais poderia desejar do que continuar satisfeito consigo mesmo, até ao fim dos seus dias?

A MÃO QUE APONTAVA PARA AS FOGUEIRAS GALESAS, lá em baixo, no vale, a mesma mão que, apenas uns momentos antes, lhe oferecera um presente generoso, deslizou de repente pela beira de uma fresta entre os merlões, onde a capa do último nevão atingia uma altura considerável, abatendo-se depois como aço sobre o seu rosto, enchendo-lhe a boca e as narinas de neve gelada. O braço pousado amigavelmente sobre os seus ombros desceu, agarrou-o pelas coxas e levantou-o do chão. Thomas nem teve tempo para se segurar à pedra, quando foi içado sobre ela. Sufocado pelo frio, caiu sem soltar um grito. Durante a queda, as palavras de louvor e de afecto ainda ecoavam nos seus ouvidos.

William debruçou-se, perscrutando a escuridão, ligeiramente prateada pela luz das estrelas, antes de a Lua nascer. Compôs as mangas e ficou à escuta, à espera de ouvir o impacto, lá em baixo, mas este tardou a chegar e, quando veio, soou abafado e surdo. Era pouco provável que chegasse a quaisquer outros ouvidos. Com todo o vagar, William apagou os traços dos seus dedos sobre a neve, voltando a dar a forma primitiva à aresta da fresta, limada pelo vento. A Torre da Rainha erguia-se a pique sobre a falésia. Os galeses, acoitados lá no fundo, na orla de arbustos e árvores, eram os únicos que talvez viessem a tropeçar nos restos mortais de Thomas Blount e a interrogar-se sobre a forma como deixara este mundo. Era uma pena perder a fíbula: não precisava de haver sido tão generoso. Talvez dali a uma semana, houvesse um galês a usar uma fíbula de ouro a prender a sua capa esfarrapada.

É uma pena, mas não importa. Agora, não há ninguém que possa acusar-me de estar ao corrente do acto suicida do meu pai e nada haver feito. Estou inocente. O velho tolo obstinado recusou-se a aceitar uma morte limpa e inócua, apropriada à sua idade; foi uma escolha sua. E quem sou eu para me intrometer nos desejos do meu pai? Serei por acaso seu senescal, para ir interromper-lhe as orações? Ou seu confessor, para me interpor entre ele e a amante? Acaso dei alguma ordem relacionada com ele, que não fosse para lhe proporcionar mais liberdade? Estava lá, quando ele se escondeu na igreja? Toda a gente em Parfois sabe que não estava. Não vi nada e não sei de nada.

E já agora, Thomas, mais vale um do que dois.

Quando de Guíchet subiu para apresentar o seu relatório de todas as noites, William estava sozinho e andava de um lado para o outro no terraço da torre, como era seu hábito, mergulhado nos seus pensamentos.

Caminhando penosamente, Benedetta chegou ao portal Oeste, o corpo dorido por ter vindo a arrastar o peso do moribundo. Todavia, quando entrou e as mãos da nave central, erguidas em oração, formaram um arco sobre a sua cabeça, Benedetta endireitou as costas, como se uma força a impelisse a tal, abriu a boca e bebeu, até se saciar, o inesgotável esplendor do ar dentro daquele espaço.

Sob o altar-mor, o coro de crianças, esculpido na grande pedra frontal, enchia os pulmões jovens e fortes e erguia para a luz os belos rostos arrebatados e as bocas abertas, redondas como maçãs rosadas. Mais acima, as grandes janelas lanceoladas elevavam-se como flechas acabadas de disparar. A todo o comprimento da nave central, dos pilares esguios brotavam as folhas maravilhosas e vivas, em espirais e em cachos, as folhas da árvore sagrada, a árvore da esperança, a árvore da promessa, a árvore do amor. As vigas do telhado pareciam irromper da tensão trémula de energia das folhas e arquear-se para conter aquele espaço imenso, um espaço de beleza e oração; uniam-se na arquitrave e as bossagens luminosas que as ligavam pareciam notas de música, gritos de alegria, o som inaudível do calor de mãos enlaçadas.

Os martelos haviam cessado o seu coro de picapaus contra as portas exteriores, os coveiros haviam partido; agora, já chegavam até ela sons mais suaves, como o apelo ansioso dos pássaros, frio e , lamentoso, o fragmento de uma canção de bêbedo, vindo de um dos postos de guarda sobre a escarpa, os passos lentos e vacilantes de um homem, o deslizar hesitante do couro sobre a pedra.

Então, Benedetta ergueu a cabeça e prestou atenção, porque aquele som era próximo e estranho; vinha de algures à sua frente e não atrás. Paulinus não podia havê-la ultrapassado, sem ela dar por isso, e também não acreditava que, alguma vez, ele voltasse a andar com passos tão cadenciados e firmes. Mas não havia mais nenhum homem; não podia haver. Benedetta esperou e os passos recomeçaram, voltaram a parar, como a respiração que alguém retém, num compasso de espera idêntico ao dela própria.

Foi então que o viu. Viera da porta Sul e confundia-se de tal modo com uma das esguias hastes ascendentes da balaustrada que os olhos de Benedetta só deram por ele quando se mexeu. Alto, tão magro que parecia emaciado, sobriamente vestido em tons de castanho, ouro no cinto e ao peito, o corpo sem idade ainda erecto como um junco, a cabeça ainda bela, bem moldada, orgulhosa. Nem mesmo a idade conseguira estragar a forma daquela ossatura imortal, nem adulterar os contornos imaculados da massa de cabelo grisalho que cobria o crânio altivo. O rosto, descarnado e imóvel, interrogava às cegas o espaço, procurando localizá-la. Lia-se nele uma paciência terrível e admirável que, pela sua humildade e simplicidade, assentava de forma estranha naquelas feições arrogantes e esplêndidas. Exceptuando os olhos, mergulhados nas trevas, ele não mudara: apenas as chamas se haviam extinguido e transformado em carvão, sob a testa alta e tisnada.

- Senhor?

A abóbada absorveu a voz baixa em que Benedetta pronunciara a palavra e difundiu-a por todos os cantos, como se a pedra falasse.

Isambard voltou de imediato a cabeça na direcção onde ela se encontrava. Benedetta pôde então ver-lhe por completo o rosto: os olhos sem vida que se voltavam para ela, os lábios a abrirem-se num sorriso.

- Senhora!

Isambard largou o apoio da balaustrada e, com a cabeça ligeiramente lançada para trás e uma expressão concentrada, avançou para ela, mas parou a curta distância, de novo à espera, em sinal de cortesia, receando poder parecer querer impor os seus direitos sobre ela, ele que já só recebia do mundo aquilo que lhe era oferecido por caridade.

- Que fazeis aqui, senhor?

- Vim para escutar a vossa voz, senhora, e louvar a Deus.

E também para morrer, segundo creio.

Era a mesma voz, a antiga voz mas, por vontade própria, aquela voz abandonara o tom de comando, em favor dos argumentos da alma. Não por penitência: Benedetta já vira penitentes e Ralf Isambard não o era. Aceitava a velhice como uma experiência e uma riqueza, com a mesma paixão sincera com que vivera os feitos da juventude; e examinava com uma curiosidade total, sem recuar, tudo quanto era novo e estranho para si, mesmo a humilhação e a morte. Os penitentes retrocedem; ele ia em frente. E aquilo que ia deixando pelo caminho era perdido porque ele lhe passava adiante e não porque se arrependesse.

- Graças a Deus, não podeis mandar-me embora - comentou, sorrindo. - Tocai-me, respirai na minha direcção, contagiai-me.

- Porque haveis desprezado a vossa vida? - protestou Benedetta, em tom de acusação. - Não bastavam dois?

- Eu não desprezei a minha vida. Conservá-la-ei o melhor que puder, enquanto puder. Limitei-me a depô-la onde Deus poderá levá-la, se lhe aprouver. E, se Ele a poupar, retomá-la-ei com alegria e transportá-la-ei por mais uma milha ou duas. Não quereis aceitar a minha mão, Benedetta?

Ao ouvir o seu nome da boca dele, Benedetta sobressaltou-se, como se alguém havia muito ausente a houvesse chamado. Poisou a mão na dele, porque não podia deixá-la ali, estendida e vazia, e, quando os dedos compridos e magros dele se fecharam sobre os seus, a paz voltou a invadi-la.

Isambard escolhera morrer com ela; era algo que ela sabia. Embora cego, fizera aquela escolha de olhos bem abertos. Ninguém lhes traria comida nem água, ninguém lhes abriria as portas. Não era possível fazer Parfois render-se pela fome a tempo de eles se salvarem, e continuava a acreditar que o castelo não podia ser tomado de assalto. Tudo o que ela sabia, Isambard sabia ainda melhor, porque ele era Parfois, o sangue e a vida de Parfois, independentemente de quem lho houvesse arrebatado.

- Este é o único lugar suficientemente grande para eu poder estar de pé e que me proporciona ar suficiente para encher o corpo - disse Isambard. - Não me recrimineis por esta fuga, pois estive confinado durante demasiado tempo. Ademais, haveis um homem doente de quem cuidar e bem precisais de alguém como eu, que arrasta consigo os seus próprios flagelos e não receia quaisquer outros. Onde o deixastes?

- A entrada. Não consegui trazê-lo mais longe. Vim ver onde poderia instalá-lo.

- Dispomos de um mundo inteiro - respondeu Isambard, abarcando com o olhar vazio o seu último domínio. - Dispomos da casa dos arcanjos e das florestas do céu. De capelas suficientes para escolhermos um leito de morte para ele, um retiro para vós, com toda a privacidade de que necessitardes, e um local de encontro, o mais belo de Inglaterra. Graças a Deus que, nos meus tempos, fiz grandes dádivas, embora se por piedade ou por orgulho, só Ele poderá saber. Seja como for, poderemos beneficiar delas agora. Há um baú cheio de vestes sacerdotais, toalhas de altar e panos ricos. Vinde, tirai aquilo de que precisardes para o deitar e escolhei o sítio onde quereis instalá-lo. Eu transportarei o doente. É peste?

Soltando-lhe a mão, Isambard começou a caminhar à frente dela, com a segurança de um homem no seu reino, mas voltou-se para trás, com um sorriso obliquo, quando ela tardou a responder.

- Para Deus e para mim, tanto faz. Limitei-me a perguntar.

- Penso - respondeu finalmente Benedetta, seguindo-o - que ele trouxe consigo do Oriente uma febre intermitente e que o mal se agravou por haver ingerido comida estragada. Mas é quanto basta. Penso que vai morrer.

- Como todos nós, livres ou prisioneiros - replicou Isambard. - Quanto a isso, não podemos lamentar-nos. Mas, pelo menos, que morra tapado e quente. Vai fazer muito frio aqui, durante a noite.

Com a segurança de quem conhece cada pedaço gasto de cada pedra da sua igreja, conduziu-a até junto do grande baú trabalhado, onde estavam guardados os panos do altar. Ergueu a tampa e voltou para ela o rosto cego, permanentemente inquisitivo.

- Tirai o que quiserdes.

Benedetta não hesitou em encher os braços de panos.

- Paulinus está cheio de sede. Geme por água.

- Mas temos água - respondeu Isambard de imediato. - Há água nas pias de água benta e as paredes não a deixam gelar. Melhor ainda: há vinho na sacristia. É uma pena não haver comida. Se ele puder morrer menos penosamente bêbedo do que sóbrio, porque não, santo Deus? Penso que a misericórdia divina não vai culpá-lo, se disser o último acto de contrição numa voz mais pastosa. Vinde ver onde quereis deitá-lo e eu trago-o. Os olhos são a única coisa que me falta. Utilizai as minhas mãos como desejardes.

Benedetta assim fez. Lado a lado, os dois trataram, com uma simplicidade um pouco irreal, dos assuntos da vida e da morte. Juntos, fizeram um leito largo de tapeçarias, brocados e bordados, na pequena capela das missas encomendadas, do lado Sul do altar-mor, protegida das correntes de ar por paredes, onde a soma do calor dos três poderia pelo menos temperar o rigor do frio. Juntos, transportaram Paulinus de Reichenau, deitaram-no e envolveram-no em veludos, cujo toque nunca a sua pele gasta de aventureiro havia sentido. Juntos, foram buscar cálices e velas à sacristia e, preparando-se para a noite, levaram-nos para o seu refúgio, Isambard tentou desajeitadamente esfregar um pedaço de sílex contra um pedaço de ferro, mas Benedetta tirou-lhos das mãos e foi ela mesma quem soprou a faísca que acendeu a mecha e conseguiu obter uma pequena chama. Comoveu-a que isambard houvesse pensado em luz para eles, quando ele próprio já não precisava dela.

- Há um lamparinário de pedra, lá ao fundo, no coro, e outro na entrada Ocidental, mas duvido que haja mais óleo do que aquele que ainda contêm, pois costumam guardar o óleo lá fora. Posso trazer o mais pequeno aqui para o canto. Sempre dá calor, além de luz.

Isambard trouxe o lamparinário de pedra, arrastando-o atrás de si sobre um pedaço de veludo, por receio de riscar ou quebrar os ladrilhos de mestre Harry. O lamparinário tinha treze taças, entre as quais haviam sido cinzeladas folhas de videira.

- Obra dele, como tudo quanto há aqui - disse Isambard, passando suavemente as pontas dos dedos pelos contornos das folhas. - Tudo quanto possuímos agora é duplamente emprestado: primeiro por Deus, tal como as nossas vidas, e depois por ele.

Vamos acendê-lo? Emprestai-me os vossos olhos. Não sou muito de fiar com o fogo.

- Se isto é tudo com quanto podemos contar - disse Benedetta, com sentido prático - faríamos melhor em poupar para um momento pior. Vamos ficar aqui bastante tempo.

Isambard voltou ligeiramente a cabeça, como se estivesse a olhar para o doente, que tremia, deitado, de olhos muito abertos e em silêncio, envolto nos tecidos principescos. A sua respiração rouca e entrecortada e a sua carne escaldante eram suficientemente eloquentes mesmo para quem não via.

- Pode ser. Mas penso que o tempo dele é curto. Guardai-o, pois, para quando ele houver maior precisão.

Num movimento desprendido, mediu a altura do óleo nas taças redondas com a ponta do dedo, que depois limpou aos tecidos bordados a púrpura e ouro.

- Pouco podemos fazer por ele mas, pelo menos, podemos poupá-lo a morrer no escuro.

Ao sentir sobre si o olhar perspicaz e arrependido de Benedetta, acrescentou:

- A verdade é que eu não vou precisar de luz. O que são as trevas para mim? Coabito com elas e não as receio. Não hei medo de nada, Benedetta - disse ainda, em voz baixa e calma. - Excepto de ainda poder acordar noutro sítio qualquer, sem vós, e de concluir que isto foi apenas um sonho que sonhei no cativeiro.

- Não é um sonho - respondeu Benedetta, em voz branda e comovida. - Eu sei que estou aqui e vós sois um homem bem real, pois posso ver-vos e tocar-vos. Também creio que, para o bem e para o mal, não nos separaremos enquanto formos vivos.

- Ouvir-vos é um conforto para mim - disse Isambard. Onde estavam agora os anos que os haviam separado, de corpo,

alma e espírito, onde estavam as tensões e os terrores, os ressentimentos e as vinganças? Para onde haviam ido as recordações irrenunciáveis de ofensas e desgostos, o amor não retribuído, os agravos não ressarcidos? Os dois ocupavam-se tranquilamente dos arranjos do seu derradeiro lar e nos cuidados para com o seu último hóspede, sem sentir necessidade de falar do passado. O perdão fora mútuo, se é que era perdão olhar para trás sem sentir qualquer dor, sem fazer perguntas nem dar respostas, sem nada a expiar.

Benedetta e Isambard estavam para além de tais necessidades, sentiam-se apaziguados, depois de todos os ódios e todas as angústias haverem desaparecido. De todos os amores também? Só Deus sabia! O amor tem tantos rostos...

Paulinus de Reichenau passou dois dias e duas noites a arder em febre, enquanto a carne escaldante se evaporava dos seus ossos trementes; Benedetta e Isambard cuidaram dele, velaram-no sem interrupções e mantiveram-no bem agasalhado nas coberturas. Ao terceiro dia, a febre baixou perante a aproximação da morte e Paulinus abriu os olhos, maravilhado com o estranho paraíso que era a sua cela. Os esguios pilares de pedra da capela arqueavam-se sobre a sua cabeça, formando uma abóbada semelhante a uma estrela dupla. Estava envolto em veludos e sedas, púrpuras, dourados e azuis, tudo cores dignas de um rei. Ao seu lado, ardiam velas, em altos candelabros de ferro e, a um canto, no lamparinário de pedra luziam treze pequenas chamas, alimentadas pelas últimas gotas de óleo. O ligeiro odor do fumo fez-lhe tremer as narinas que, todavia, não sentiam o cheiro forte do próprio suor e da própria doença. De um lado, estava sentada a mulher, que segurava entre as dela uma das suas mãos. Do outro, um desconhecido, de rosto altivo e distante como o da morte, fitava-o com uns olhos velados e sem brilho, mas a sua atitude austera era calma, e não ameaçadora. Apesar disso, sentiu medo.

Murmurou um pedido e a mulher debruçou-se para o ouvir, porque a sua voz era apenas um fio, que o silêncio quase absorvia.

- Um padre... quero aliviar o meu fardo.

- Não há aqui nenhum padre - respondeu Benedetta. - Apenas Deus. Falai comigo e não temais. O ouvido de Deus é mais apurado do que o meu.

Paulinus apertava-lhe a mão com todas as suas forças e, todavia, Benedetta tinha a sensação de segurar apenas na pata de um pássaro morto. Já perto do silêncio final, Paulinus conseguiu falar numa voz que havia mais substância do que o seu corpo diminuído.

- Não fui um grande pecador... só um pecador perseverante... estudei muito para me aperfeiçoar.

Viu Benedetta sorrir e aquele sorriso tranquilizou-o. Por mais miserável que seja, qualquer homem deve ter vergonha de ter vergonha da obra do seu criador. Paulinus fez a sua confissão dúbia palavra após palavra, conforme as forças lho permitiam, e arrastou-a por muito tempo.

- Até aquele meu crucifixo... uma falsificação, embora uma boa falsificação... um trabalho meu. Para dizer a verdade, era um fragmento de um tonel de vinho que encontrei em Angers. Lorde Isambard... nunca haveria notado a diferença. Todos esses fidalgotes são uns tolos...

O homem que se encontrava ao seu lado lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada sonora, como qualquer estróina, ao ouvir uma história das que se contam nas tabernas, ou uma criança, encantada ao ver um cavaleiro pretensioso cair do cavalo, num dia em que o chão estivesse lamacento. Que haveria a recear, se a morte se ria daquela maneira? Atónito mas reconfortado, Paulinus tentou rir também e engasgou-se. Benedetta soergueu-o e ele morreu nos seus braços, apagando-se tão suavemente como uma vela que chegou ao fim.

- Foi-se - anunciou Benedetta.

Estava contente por haver sido assim: Paulinus não estava preparado para uma morte difícil.

Juntos, rezaram por Paulinus. Depois, usando como alavanca a ponta de um dos gigantescos candelabros de ferro, Isambard abriu o túmulo do coro onde, havia dois anos, repousava o velho padre Hubert e, juntos, depuseram o monge renegado e falsificador de relíquias ao lado do capelão de Parfois, sepultando-o ali.

- Duvido que o velho padre apreciasse a companhia - comentou Isambard, corado e quase sem fôlego depois de haver baixado a pedra. - Mas não lhe dar abrigo em sua casa não seria cristão. Que repouse em paz! Morrer a rir não é uma má morte.

Agora, tinham ficado sós.

- O que É isto? - perguntou Benedetta, que acordara a meio da noite, devido ao ruído surdo de rocha a deslizar e a cair.

- Nada que nos possa causar receio. São só as toupeiras galesas a roer as fundações de Parfois.

Isambard ajeitou melhor as coberturas à volta dela e afastou-lhe os cabelos do rosto magro e marcado pelo tempo.

- Se continuarem a roer assim, acabarão por deitar abaixo as muralhas. O peso das torres de vigia pode ser fatal. E é lá que o barranco é mais raso. Se a entrada fortificada cair, abre-se uma brecha na muralha e eles podem usá-la como escada e entrar por aí.

- E se as torres caírem em cima deles? - perguntou Benedetta, aterrorizada.

- Que vergonha, minha querida! Cuidais que Adam Boteler não sabe do seu ofício? Quantos anos passou ele a talhar pedra para mim, na pedreira de Byrn? Alguma vez ouvistes dizer que ele houvesse perdido um homem que fosse?

Com espanto e esforço, Benedetta concentrou-se nas tensões que agitavam o mundo exterior, onde continuava a haver recontros e contendas entre exércitos e príncipes.

- Serão capazes de acelerar as coisas desse modo? É possível conquistar Parfois dessa maneira?

- Totalmente impossível. Mas também era impossível abrir uma brecha no poço e secá-lo, mas eles conseguiram. Quem sabe se não desafiarão de novo as previsões?

A leve respiração que lhe aquecia a garganta era pausada e calma, o corpo dela permanecia tranquilo nos seus braços mas, receando que Benedetta voltasse a cair no suplício da esperança, Isambard acrescentou, doce e cautelosamente:

- Mas não chegarão a tempo de nos libertar, minha querida. Não podemos acreditar nisso.

- Eu estou bem - respondeu ela. - Não espero qualquer libertação.

Desejaria na verdade a libertação? Benedetta sondou o seu coração e não encontrou nele qualquer desejo, a não ser, talvez, o impossível anseio de voltar a ver o jovem Harry. No entanto, dia após dia, ela - os olhos - e Isambard - as mãos - haviam explorado todas as aberturas da sua prisão, tentando libertar-se, como criaturas empenhadas em viver, se isso fosse possível. Mas todas as portas estavam seladas e todas as janelas baixas entaipadas: não havia qualquer saída. Quando ainda tinham forças e a fome apertava mais, aquela pesquisa ajudara-os, nos piores momentos, a ocultar delicadamente um ao outro as dores provocadas pelos lobos que lhes roíam as entranhas. A matilha já se retirara, saciada, deixando atrás de si apenas uma dor surda e um langor que lhes dizia que os seus dias estavam a esgotar-se. Durante a noite, deitavam-se, estreitamente apertados nos braços um do outro, num abraço casto, enquanto se entregavam a um sono leve e povoado de sonhos.

- Perdoai-me por vos haver conduzido a isto - pediu Isambard. - Deus sabe que não me devíeis uma segunda morte.

- Eu vim por minha própria vontade - respondeu Benedetta. - Não há nada a perdoar. Fui eu quem vos pediu que voltásseis a abrir-me a vossa porta. Limitastes-vos a conceder-me o que vos pedi. Mais do que pedi! Nunca ousei supor que me aceitaríeis de novo na vossa cama.

A boca sardónica comprimida contra o cabelo dela tremeu por um instante, num riso breve e silencioso.

- Ah, Benedetta, Benedetta! Nunca ousei esperar que viésseis. Era minha intenção entregar-vos o Harry livremente. Havê-lo-ia levado ao vosso encontro, à porta do castelo, sem ele suspeitar. Não precisaríeis de passar a soleira da minha porta, a menos que vos aprouvesse, por vossa iniciativa, conceder-me essa honra.

- Acredito em vós. Seja como for, penso que haveria entrado. E pago o preço que oferecera por ele, quisésseis vós ou não.

- Porque sois como o rapaz e não queríeis ficar a dever-me nada? - perguntou Isambard com brusquidão. - Ou porque eu estava velho, ameaçado e cego e havíeis dó de mim?

- Dó de vós? Não. O meu juízo nunca esteve mal a esse ponto. Foi mais porque estava a ficar velha, seca e estéril, sem vós. E porque o coração me dizia que chegara a hora e que vos encontráveis na mesma encruzilhada que eu. Não conseguia tirar da cabeça que ainda havia qualquer coisa que teríamos de fazer juntos, antes de a história dos nossos dias chegar ao fim. Só não sabia que era morrer.

Mas morro de melhor grado convosco do que com qualquer outra pessoa - concluiu, dizendo o que lhe ia na alma, com a antiga generosidade, grandiosa e resoluta.

Benedetta sempre possuíra o dom de usar as palavras com majestade. Se houvesse um canteiro para as gravar na pedra, pensou Isambard, seriam estas as palavras que mandaria gravar no meu túmulo. Morro de melhor grado convosco do que com qualquer outra pessoa! Na vida, na morte, minha querida, minha bem-amada, no céu ou no inferno, antes convosco do que com qualquer outra pessoa!

- Benedetta!

- Senhor?

- Gostaria de vos dizer duas ou três palavras, agora, durante a noite, estando vós tão cega quanto eu. Ainda há uma coisa que me pesa na consciência.

- Estou a ouvir - respondeu Benedetta. - E estou cega.

- Nunca me perguntastes - disse Isambard, em voz baixa e neutra, junto ao ouvido dela - o que fiz com ele, depois de o haver retirado da sepultura.

Benedetta permaneceu imóvel e susteve a respiração por um instante. Súbita e suavemente, como se alguém houvesse afastado uma cortina que se interpusesse entre ela e a luz, a verdade surgiu diante de si. Fora assim que passara aquela noite distante, deitada, com Harry nos seus braços, enquanto a morte esperava pacientemente à porta. O tempo completara outro círculo incomensurável e restabelecera o equilíbrio perdido do amor.

- Eu sei o que fizestes com ele - respondeu, com simplicidade. - Ele está onde devia estar. Está aqui connosco, debaixo do altar.

Isambard deixou escapar um profundo suspiro e a pressão das suas mãos tornou-se mais suave. Não lhe perguntou como soubera. Naquela eloquência maravilhosa de silêncio e imobilidade, deixara de ser necessário. Cada inspiração trazia-lhes maior compreensão e tranquilidade, até que todas as perguntas desapareceram, como sombras tragadas pela luz.

- Abri o túmulo sozinho, com estas mãos - disse, ao cabo de um silêncio longo e perfeito. - Era o lugar que deveria ser meu mas cedi-lho, porque tinha mais direito a ele do que eu. Ergui a pedra com uma das alavancas de ferro que haviam sido dele e bem surpreendido fiquei ao ver quanta inteligência e arte são necessárias para tal, quando se faz o esforço sozinho. Levei-o nos meus braços, depositei-o no lugar que lhe cabia, dei-lhe uma mortalha de ouro e fechei o túmulo para que repousasse em paz.

Benedetta sentiu a paixão que tremia sob a imobilidade das mãos compridas de Isambard, como se, naquele momento, elas não abraçassem a sua carne frágil e branca, mas os ossos jovens, esguios e resistentes de Harry.

- Sei que era vosso desejo que, um dia, as mãos do amor o colocassem ali - disse Isambard, com amargo arrependimento. - Perdoai-me ao menos por isso.

- Não é necessário - replicou Benedetta. - Dou-me por satisfeita.

As pontas dos dedos dele percorreram-lhe docemente a face, detendo-se nos seus lábios.

- Vós sorris - observou, maravilhado.

- Preferíeis que chorasse? - perguntou ela. - Era bem capaz de chorar.

- Ah, não! Alguma vez vos vi chorar? Vós ristes, quando me destruístes e fostes ao encontro dele. Vós ristes, quando fostes arrastada para a morte por ele.

- Chorei quando me arrastaram de novo para a vida.

- Acredito. A vida sem ele não apresentava muitos atractivos. Só Deus sabe se eu vos invejava mais a vós por causa dele ou a ele por causa de vós. Depois de ele morrer, nunca mais senti prazer com a morte de ninguém. Nunca derramei sangue que não fosse o sangue dele, nunca enforquei nem mesmo o criminoso mais infame sem que a corda fosse apertada à volta do pescoço do Harry. Nunca estive prestes a desapossar um vassalo ou a chicotear um servo, sem o ouvir discutir comigo e sem que ele me sustivesse a mão. Se me esquecia do seu rosto, aqui, ele enfrentava-me constantemente e, se me esquecia do prazer que lhe dava o contacto com os outros homens, voltava a vê-lo nas pedras desta casa e não havia modo de lhe escapar. O Harry, que não era capaz de parar de cortar e esculpir mesmo depois de morto, contaminou-me o sangue. Quantas vezes o amaldiçoei por isso e lutei para me livrar dele! Em vão.

«E sabia que o havia destruído. Apesar de não sentir culpa, sabia que o havia roubado ao mundo e me mutilara a mim próprio. Em troca da vida que lhe tirara nada havia que pudesse oferecer, senão a minha. Se era uma dívida, queria pagá-la mas faltava-me a clarividência para julgar e a coragem para abandonar cobardemente aquilo que talvez não fosse devido, embora não retirasse dela a menor alegria. Mas, sempre que pude, ofereci-a, de modo a que Deus a tomasse, e nunca estendi a mão para a reter. Uma vez e outra, Ele recusou-a. É estranho, Benedetta, mas, de cada vez que a oferecia para ser levada, mais valor lhe dava e mais a queria. Depois de morto, o Harry ensinou-me a amar a vida e a aprendizagem foi dura. Quanto mais ela se me tornava cara, maior era a agonia quando a expunha, mas não podia recuar. Por isso, feitas as contas, talvez eu haja pago algumas das minhas dívidas.»

No silêncio momentâneo, a estrutura da igreja e a rocha por baixo dela foram abaladas por mais um desmoronamento lento e ressonante. Benedetta e Isambard sustiveram a respiração e ficaram à escuta, até tudo haver acabado.

Enquanto o tremor abrandava, os dedos dele percorreram-lhe o rosto e tocaram-lhe nas pálpebras bem fechadas, nas pestanas húmidas.

- Benedetta! Ah, minha querida, por mim não! Porquê?

- Continuai - disse ela, numa voz que mais parecia um sopro suave contra a palma da mão dele. - Haveis outras coisas para me dizer.

- A vós ou a Deus, embora Deus já saiba de tudo antes de eu falar. E agora vejo que há bem pouco de mim que não saibais.

Apesar disso, Isambard recomeçou a falar docemente, com grandes pausas, como se o afluxo das recordações oscilasse entre o deslumbramento e o esquecimento, arrastando-o para longe de tudo, mesmo dela.

- Depois, surgiu o jovem Harry. Apareceu de súbito, aqui, diante de mim, uma réplica perfeita do pai. Não podia deixá-lo partir. Precisava de descobrir se ele possuía o mesmo valor, se eu estava a viver aquela agonia em vão, se Deus estava a brincar comigo. Só lhe bati uma vez, quando ele tentou sacrificar a própria vida, para me tirar a minha... com quinze anos apenas, o mundo ao alcance da mão e ele a dar-lhe tão pouco valor! Mas penso que, no fundo, ficou até contente pelas palmadas que lhe dei, porque lhe doeram e o fizeram sentir bem vivo. Nunca mais precisei de o disciplinar desse modo mas, à minha maneira, fui duro para com ele. Por vezes, fui mais violento do que queria, mas Harry nunca se deixou vergar. Magoei-o, e ele a mim, o melhor que sabia, mas nunca consegui domesticá-lo. E, por fim, a roda deu a volta completa porque, tal como o pai, ele arriscou a vida e a liberdade para não abandonar uma criança ameaçada, que não lhe era nada. Mas desta vez... oh, Benedetta, imaginai bem... desta vez a criança era eu! Concedi-lhe a liberdade, pedi-lhe que se fosse embora. Mas ele não queria! Recusava-se a abandonar-me, por estar em cuidados por minha causa, por haver medo por mim, que estava cego e indefeso perante os meus inimigos.

A longa noite estava a acabar, o primeiro lampejo de forma e proporção desenhava-se e aumentava sobre as cabeças de ambos. Antes da visão, surgia a forma, a dilatação da paz, a marca da tranquilidade. Em breve, a altura da abóbada penetraria na sua consciência: Benedetta vê-la-ia, Isambard senti-la-ia através das mãos, do corpo e do sangue, lembrar-se-ia do que ela estava a ver e partilharia o seu deleite. Os pormenores viriam depois, quando a aurora voltasse a esculpi-los, como todos os dias acontecia.

- Agora que vivi um milagre, sei que estes acontecem doce e naturalmente neste mundo. Tornei-me parte do Harry contra minha vontade e o Harry tornou-se parte de mim contra sua vontade. Uma boa parte do que sabe fui eu quem lho ensinou. Fui eu quem fez parte do que ele é. Estou-lhe no sangue como o seu pai estava no meu e, se Deus quiser, para um destino feliz. Porque, Deus é minha testemunha, fiz dele herdeiro de tudo quanto de bom possuía para legar. - Sorrindo, o rosto denotando uma alegria tranquila, Isambard concluiu: - E Deus sabe quanto o apreciei e o amei.

Benedetta abriu os olhos ao meio-dia, quando a luz do sol lançava reflexos trémulos sobre a abóbada da nave principal. Nas bossagens, os anjos batiam as asas douradas e cantavam louvores a Deus.

Repousava sobre brocados e sedas já sujos, o seu rosto era apenas um véu de pele diáfana que deixava ver a ossatura saliente da face, os olhos grandes refulgiam, arrebatados, o corpo estava reduzido a um pequeno monte de ossos e o esqueleto brilhava através da pele. A luz celeste inclinava-se para ela, fremente como tule, resistente como a pedra. Não, mais duradoira do que isso, longa como a memória, resistente como o amor.

Porque a criação não residia na pedra, apesar de a pedra haver florido sob as mãos dele. Ainda que o invólucro que contém esta forma de esplendor se quebre, pensou Benedetta, maravilhada, o milagre continuará aqui para sempre porque, um dia, ele o concebeu e lhe deu vida. Tal como a alma sobrevive ao corpo, a sua obra sobreviverá à pedra. Os olhos que alguma vez a contemplarem passarão a encarar todas as coisas de um modo diferente, pois haverão ficado a conhecer a dimensão da plenitude. E aquilo que aprendemos vamos decerto transmitir a outros, e as revelações que recebemos vamos de algum modo comunicar a outros, num dar de mãos perpétuo. Se esta igreja for arrasada, nem por isso o Harry haverá deixado de mudar o mundo, numa medida ainda desconhecida.

Para o espírito audacioso de Benedetta, o mais maravilhoso de tudo era ver que a perfeição não é o fim da energia, que a paz não é o fim da ousadia. Uma e outra são o princípio, não da estagnação nem da fadiga, mas de um ardor inconcebível de paixão, que eleva a força ao máximo e estende os anseios do coração para além da derradeira fronteira do conhecimento. Nem uma nem outra conhecem limites, prolongam-se até ao infinito; o tempo não tem significado para elas, o agora é sempre, o aqui está em toda a parte. Não ir a lado nenhum, não fazer qualquer esforço, esperar: aqui, todas as coisas vêm ao nosso encontro, entram dentro de nós, formam uma unidade connosco.

O corpo de Benedetta estava gasto e enfraquecido, mas a sua mente continuava clara e calma como a água de um lago da montanha, reflectindo as mudanças vibrantes da luminosidade. Sonhava muitas vezes com água, desde que, a despeito do muito que pouparam, as pias de água benta haviam secado, restando-lhes apenas umas gotas de vinho para enganar a sede. Agora, só se mexia quando era necessário; dormia muito e sonhava muito. Conhecia a precariedade das suas forças e guardava-as para os esforços que era preciso fazer. O esforço de alisar e prender o grande volume dos seus cabelos extenuava-a, falar era o mesmo que levantar chumbo, as roupas que vestia pesavam tanto como o mundo. Refugiava-se na imobilidade e o seu espírito conservava a capacidade de se maravilhar. Espera, não vás a lado nenhum, aqui todas as coisas vêm ao teu encontro e formam um todo contigo.

Com os olhos ainda ofuscados pela luz celeste e deslumbrante, que parecia puxá-la para a abóbada, estendeu a mão frágil e procurou Isambard, ao seu lado. Nenhuma mão, rápida e atenta, veio ao encontro da sua. Então, olhou em volta e os contornos das coisas terrenas tremeram na claridade que a rodeava: o rendilhado dos ornamentos da capela, o lamparinário de pedra havia muito apagado, as cores quentes do leito, agora na sombra. Isambard não estava a seu lado. Havia quanto tempo? Benedetta perdera a noção do tempo; sabia apenas que se estava a meio do dia, mas de que dia, só Deus podia dizer.

Ficou à escuta e ouviu sons que fizeram vibrar uma corda interior e despertaram uma memória de solenidade e piedade. O arranhar do metal contra a pedra, uma respiração longa e profunda, que alternava com um silêncio profundo, um arquejar violento, que terminou num gemido de esforço e alívio. Uma pausa e, mais uma vez, o tactear e o arranhar por baixo da pedra e, desta vez, polegada a polegada, a pedra saiu do seu lugar e Benedetta ouviu o arrastar de pedra contra pedra. Então, compreendeu. Isambard deixara-a a dormir e fora abrir uma sepultura para ela.

Sozinho, não consegue, pensou Benedetta, consternada, agarrando-se a um dos pilares esguios da capela para se pôr de pé. Vai partir os ossos, rebentar o coração e morrer.

Agarrando-se e abraçando um pilar após outro, saiu da capela para o coro e, instintivamente, os seus olhos voltaram-se para o local do túmulo do velho padre Hubert, que abrigava também o inesperado hóspede de Reichenau. Onde, senão ali, poderia Isambard procurar um local de repouso eterno para ela? A pedra ainda mal assentara e podia ser encostada à madeira sólida do cadeiral sem grande risco de se partir. Mas o canto estava deserto e a pedra intocada. Mais adiante, do lado do altar, uma outra pedra estava a ser cuidadosamente erguida, polegada a polegada. Benedetta ouviu o arfar profundo que o esforço arrancava a um coração extenuado, as longas pausas durante as quais ele recuperava forças para mais um assalto. E tudo isto sem ver, usando os dedos como olhos, em movimentos dolorosos, pacientes e perigosos! Os olhos de Benedetta, que nunca chorava, encheram-se de lágrimas. Às cegas, dirigiu-se para o local onde ele se encontrava, segurando-se ao cadeiral e, ao chegar aos degraus do presbitério, as suas escassas lágrimas secaram, deixando-lhe novamente clara a visão, e avistou-o.

A fugaz luz do sol, fria e gelada como neve, atravessava as lancetas da janela oriental e entornava pedras preciosas sobre as lajes do chão. Entre aquela cascata de verdes, dourados e escarlates, Isambard caíra de bruços sobre as suas ferramentas improvisadas, inspirando penosamente. Quebrara dois candelabros pesados, ferira e rasgara os dedos até ao osso, que já furava a pele, mas levara a termo o que decidira fazer.

Sob o altar-mor, sob a grande pedra frontal ornada com o coro de crianças, a pedra central fora erguida e encostada às outras pedras e as estrelas e losangos de luz cintilante caíam como flores ' de Inverno sobre o túmulo de pedra de Harry Talvace.

Nas escadas, o corpo traiu-a e Benedetta caiu de joelhos; de joelhos, arrastou-se pelo espaço amplo até junto de Isambard. O latejar do sangue nos ouvidos impediu-o de a ouvir chegar. A arquejar, Isambard estava deitado de bruços, com a testa encostada à pedra; a sua mão aberta deixara cair uma gota de sangue sobre a beira da sepultura. Só ergueu a cabeça quando ela lhe tocou, voltando para ela a ruína brilhante e orgulhosa da sua beleza, a máscara esbatida e ambígua de demónio e de anjo, amarela como latão, os olhos sem vida, sob as pálpebras arrogantes e descarnadas, todo o esplendor petrificado da morte, que todavia, mesmo à beira do fim, continuava a irradiar vida e paixão.

- Ides mandar-me de novo partilhar o leito com ele? - perguntou Benedetta, aflorando-lhe a testa coberta de poeira com os dedos frágeis como hastes de flores fanadas.

- Para onde mais poderia ser? - replicou ele. - Onde poderia eu depor-vos para o repouso eterno? Se partirdes antes de mim, perdoai-me... perdoai-me!

Isambard deitou a cabeça no colo dela, rodeou-lhe o corpo com os braços esqueléticos e ficou imóvel. Benedetta envolveu com as mãos a coroa grisalha dos seus cabelos e olhou para dentro da sepultura, por cima do ombro dele. Não era muito funda. A pedra estava perfeitamente seca e o fulgor do tecido dourado permanecia quase inalterado. Sob a mortalha brilhante viam-se os contornos dos ossos delgados; a cabeça, visível sob o véu principesco, mostrava o rosto de um homem adormecido. Benedetta lembrou-se da masmorra de Parfois e da cabeça amada, de cabelos escuros, que repousara contra o seu peito durante toda a noite.

Agarrou a cabeça de Isambard entre as mãos cansadas, ergueu-lhe o rosto e beijou-o na testa.

- Outrora, quisestes o coração dele - disse. - Estendei a mão e tomai-o. Agora, ele não vo-lo recusará.

 

Parfois: Dezembro de 1233 a Janeiro de 1234

Durante três dias o fogo devorou as profundezas da rocha sob Parfois. Do caminho da ronda, entre as torres de vigia, os sitiados ouviam, no silêncio da noite, o estalejar contínuo e abafado dos ramos e arbustos a arder, o silvo e o sopro do vento, à medida que as chamas consumiam o ar. Durante o dia, embora estes sons longínquos se perdessem na agitação quotidiana da vida debaixo de cerco, havia outros sinais que lhes recordavam o prodígio. Logo na primeira manhã, antes mesmo de a aurora ter qualquer reflexo de cor a anunciá-la, uma das sentinelas correra, aos gritos, a avisar o seu oficial de que saía fumo do poço vazio, que debaixo de Parfois havia um inferno a arder e era chegado o Dia do Juízo. Irromperam pelos aposentos de William Isambard com esta história e este insultou-os, chamando-lhes idiotas, mas correu a ver o que se passava. A chaminé de Adam fumegava em direcção ao céu cor de chumbo, cuspindo ar quente numa coluna negra, e os estalidos do fogo vindos do interior da rocha eram aterrorizadores, como uma ameaça do Demónio. Durante a noite, um brilho ténue pairava sobre a abertura, redobrando a inquietação de todos. Por mais que explicasse e tentasse fazê-los compreender, William não conseguia convencer a guarnição de que tudo aquilo eram fenómenos naturais e, quando se fechou no quarto, a sós com os seus pensamentos, tampouco ele próprio estava muito convencido.

O vento agreste e moderado que se infiltrava pela ravina favorecia Llewelyn, mantendo o fogo a arder e o calor intenso por mais tempo do que Adam ousara esperar. Na segunda noite, Parfois foi abalado por súbitos e retumbantes desmoronamentos no coração da rocha. Só então as gentes de Parfois se aperceberam do que estava a acontecer à fortaleza. A terra tremia sob os seus pés. Atemorizados, continuaram as suas tarefas sobre aquele chão periclitante, tentando evitar que o peso dos próprios corpos assentasse completamente nele, baixando a voz com receio de que um grito fizesse desmoronar as muralhas. O fumo rolava ao longo do barranco e não lhes permitia ver o vale. O regato gelado voltara a correr, mas mudava de curso a cada dia, à medida que os desabamentos de terra se estabilizavam, e todas as noites o gelo aprisionava no silêncio mais uns pés de água, enquanto o fogo abrandava e a rocha ia arrefecendo.

Na quarta noite, a geada recuperou os seus direitos e agarrou-se com ferocidade aos locais já devastados pelo fogo. Era o vigésimo segundo dia de Dezembro e a pior noite daquele inverno. Já quase de manhã, toda a gente em Parfois saltou da cama, aterrada, ao ouvir o rugido da rocha e da alvenaria que ruíam ao mesmo tempo, quando a falésia sob a entrada fortificada se fendeu como que atingida por um raio e a torre ocidental, cujos alicerces foram subitamente arrancados, se abriu de alto a baixo e se abateu quarenta pés mais abaixo, sobre o barranco. A torre oriental ficou de pé, com a ponte-levadiça pendendo, como que embriagada, de uma só corrente; mas as muralhas abateram e começaram a abrir grandes fendas em ziguezague e, quando o vento afastou o pó da derrocada, ficaram à vista por baixo delas grandes blocos de rocha em equilíbrio precário, prontos a desabar a um simples toque.

William arrastou os sobreviventes para fora e, à força de pancada e impropérios, conseguiu pôr a guarnição a trabalhar na construção de uma nova ponte, reforçou o posto avançado da guarda e colocou junto à brecha todas as criaturas disponíveis capazes de empunhar uma arma, numa expectativa febril, temendo que Llewelyn lançasse um ataque enquanto reinava a confusão. Ainda que se sentisse tentado, Adam não era parvo e Llewelyn tinha a sensatez suficiente para se deixar guiar, num domínio que para ele era novidade. A rocha ainda não arrefecera: haveria novos desmoronamentos antes do fim do dia e estaria a desafiar a morte, se mandasse os seus homens escalar aquela massa instável e vacilante, antes de a deixar assentar pelo menos um dia. Deste modo, William teve um dia de tréguas e tempo para meditar sobre o carácter inexpugnável de Par fois.

No alto da sua torre, roeu as unhas até ao sabugo, sentindo aquela massa altaneira ainda a vibrar sob os seus pés. Era tempo de admitir a dúvida que, até então, nunca fora real: a muralha sofrera uma brecha, o poço fora furado e a sua guarnição encontrava-se em estado de choque. William enfrentava um amanhã tão sombrio como o vale gelado, lá em baixo. Se Parfois se aguentasse, ainda poderia enfrentar a situação, conservar o título e esfregá-lo nas barbas do desconfiado Humphrey Paunton - qual haveria sido o seu erro, que haveria levado o velho idiota de Fleace a eriçar-se todo e a exigir garantias? - descobrir o terceiro cadáver na igreja que abrigava a peste com protestos convincentes de inocência e desgosto, enterrá-lo diante de todos com grande pompa e continuar a ter a bênção do rei, e a sombra protectora do rei a justificar os seus actos. Depois do encargo que Henrique lhe confiara, com as fronteiras de Inglaterra para defender a todo o custo, esta falha não seria posta em causa. Como poderia ele, William, adivinhar onde haveria o velho tonto ido esconder-se, quando fugira durante o alarme? Como haveria podido ir procurá-lo, fora das muralhas de Parfois, se estava preso dentro delas, cercado por um forte cordão galês? Supusera que o pai caíra das rochas, na sua cegueira, e chorara a sua morte - havia-se dado ao trabalho de criar uma boa imagem de ansiedade filial. Como poderia imaginar que Isambard se escondera na igreja? Ninguém podia acusá-lo, William tomara as medidas necessárias. Se Parfois se aguentasse, se William continuasse a ser útil ao rei e acautelasse o seu castelo, tudo poderia compor-se.

Mas ali estava ele, súbita e duramente confrontado com a realidade de que Parfois não era inexpugnável.

E depois? Que aconteceria se Llewelyn conquistasse Parfois e abrisse a igreja selada? Quando encontrasse o corpo de Ralph Isambard, faria um tal alarido que nenhuma eloquência conseguiria abafar o primeiro grito de parricídio. A bela alegação que William elaborara e sabia na ponta da língua seria desmistificada logo à partida e a sua causa estaria perdida antes mesmo de ser defendida. O velho sabia bem do que estava a falar, quando dissera que, ao primeiro rumor de escândalo, Henrique retiraria a sua protecção e deixaria o seu servidor pagar as custas sozinho. Não haveria futuro para um homem acusado de parricídio pelo príncipe de Aberffraw. Ainda lhe parecia ouvir a voz do pai, irritantemente confiante e divertida, dizer: «Se o comprometeres, há-de perseguir-te até à morte.»

Dentro de si, uma resolução começou a fortalecer-se: os corpos que se encontravam dentro da igreja não podiam ser encontrados, pelo menos sob uma forma identificável. Poderia mandar tirar os selos das portas e enterrá-los em segredo? Não, a guarnição ir-se-ia abaixo, se o terror renovado da peste viesse juntar-se aos que já eram obrigados a suportar.

Contudo, já que os galeses haviam utilizado o fogo porque não poderia aproveitar-se disso e atribuir-lhes as culpas? Dentro da igreja, havia madeiramentos suficientes; com aquele frio, arderiam tão vivamente como a fornalha subterrânea de Llewelyn. Mesmo ao lado, estava guardado o óleo para as lamparinas e os lampari-nários. O vento soprava de Oeste e era bastante forte. Dois ou três homens, escolhidos por não serem muito espertos, podiam fazer o trabalho, a partir das janelas do lado ocidental, sem entrar na igreja, e julgando estar a expurgar os últimos vestígios da peste. Depois, Llewelyn poderia fazer o que entendesse com os ossos carbonizados e irreconhecíveis.

Antes da alvorada, na véspera de Natal, os homens de Llewelyn, já levantados, armados e prontos para o ataque, ergueram os olhos para a fortaleza mutilada de Parfois e viram uma nova e alta língua de fogo a elevar-se com o vento, desenrolando-se como um comprido estandarte, orlado de fumo. Ficaram estáticos, a observar; Llewelyn saiu à pressa da tenda, ao ouvir o alarido, e Harry, semi-armado, correu a agarrar-se ao braço de Adam, com um grito de fúria e desespero:

- A igreja! Deitaram fogo à igreja, Adam!

Como uma tocha ou um farol, a altiva torre de mestre Harry destacava-se naquela aurora enevoada, carregada de uma luz irada. Das suas janelas mais altas, emergiam flâmulas de chamas ondulantes, que eram arrastadas para Oeste pela brisa e se assemelhavam a longos cabelos ruivos.

Nessa véspera de Natal, os galeses tomaram Parfois.

O ataque em três frentes havia sido planeado com precisão, mas foi levado a cabo algumas horas antes da hora prevista, com grande pressa. Llewelyn, com aproximadamente um terço do total das suas tropas, lançou por fim o ataque frontal havia muito aguardado; sem qualquer bombardeamento prévio pelas máquinas de guerra, as fileiras dos seus cavaleiros lançaram-se sobre a torre e as barricadas do posto avançado da guarda. A coberto da escuridão, David e as suas companhias haviam trepado pela boca da ravina e os seus melhores arqueiros haviam procurado nichos na rocha de onde pudessem controlar a brecha aberta na muralha e alvejar qualquer defensor que se expusesse. Para os atacantes, o principal perigo era a insegurança do terreno, a massa oscilante que podia, com toda a facilidade, rolar sob os seus pés se alguém atirasse um pedregulho lá do alto. Os restantes homens de David abrigaram-se como puderam, prontos a lançar uma segunda vaga de assalto assim que os seus camaradas da frente Oeste completassem a escalada. Estes, que constituíam o principal corpo de ataque, mantiveram a sua posição até o alarido na rampa haver feito acorrer reforços, que se amontoaram na ponte improvisada para repelir as cargas repetidas e arrasadoras de Llewelyn, e o clamor entre as árvores se haver transformado na música selvática e constante do auge da batalha. Então, Owen mandou-os avançar e eles saíram dos abrigos e lançaram-se, como um enxame, para o barranco cheio de rochas amontoadas.

Harry foi o primeiro a atingir as orlas traiçoeiras da derrocada e, sem hesitar, começou a trepar pelo monte oscilante de rochas, seguindo pela encosta íngreme em direcção à brecha na muralha. Lá no alto, os defensores não se atreviam a aproximar-se do bordo do desmoronamento com medo da falta de solidez; das posições recuadas que ocupavam a sua pontaria não era muito precisa. Para Harry, era mais perigosa aquela escada de pedra vacilante por onde trepava do que os ataques do inimigo. Por duas vezes, assentou o pé numa pedra que cedeu e o fez cair e, de outra vez, provocou um deslizamento, que começou a arrastá-lo e o haveria feito cair, espatifando os ossos nas pedras caídas mais abaixo, não fora alguém, que o seguia de perto, havê-lo puxado para o lado e agarrado com unhas e dentes, até o pó assentar e a superfície vacilante estabilizar.

- Calma, rapaz, calma! - aconselhou a voz de Adam, ao seu ouvido. - É melhor cuidares de manter vivo o filho do teu pai. A igreja pode esperar.

Com o resquício de consciência que podia dispensar naquele momento, Harry perguntou a si mesmo o que faria Adam ali colado a si, tão oportuno, Adam que era artífice e não soldado, e que não tinha nada que se lançar no ataque à muralha com os homens de armas. Contudo, não teve tempo para mais do que uma olhadela e uma palavra rápida, antes de se levantar e recomeçar a trepar como um esquilo.

Se os homens de de Guichet, postados lá no alto, no terreiro, não receassem aventurar-se perto da beira, poderiam, embora com algumas baixas, haver enfrentado muito mais homens do que os que Owen lançara contra eles, pois bastava-lhes fazer rolar as primeiras pedras para varrer os galeses, como se fossem seixos arrastados pela corrente. Mas estavam desalentados e abalados: a terra firme do terreiro exterior estava rasgada por fendas que, a cada choque, alargavam a olhos vistos e bastava-lhes pôr o pé naquela superfície gretada para a sentir tremer. Só quando Harry e os seus companheiros da vanguarda já estavam a tentar encontrar pontos de apoio para os pés e as mãos, para galgar a borda instável, os defensores conseguiram ultrapassar um terror para enfrentar outro, mais premente: os mais ousados avançaram para golpear as mãos e as cabeças desprotegidas, que se içavam sobre a borda e entravam no seu campo de visão, e para soltar os blocos de pedra e alvenaria ainda em equilíbrio, na orla do desmoronamento.

Demasiado tarde. Lá de baixo, os arqueiros, que haviam estado à espera deles com uma contenção febril, dispararam contra todos os alvos possíveis e foi um corpo a rolar, não uma pedra, que desencadeou o primeiro desabamento. Harry não conseguiu apoiar-se e escorregou uma ou duas jardas, ferindo o rosto; lançou-se de novo para cima e viu um dos blocos aparelhados da torre da guarda a oscilar por cima de si e, de relance, viu o próprio de Guichet, inclinado, apoiando-se sobre o ombro, a tentar empurrá-lo. Por momentos ficaram a olhar um para o outro, olhos nos olhos, através da grelha das viseiras fechadas, e a Morte hesitou entre um e outro. Mas um dos arqueiros de David disparou, sem pressa, de um nicho na parede oposta da ravina e de Guichet caiu e ficou abraçado ao seu projéctil, com uma das mãos pendentes, inerte. Devido à pressão do seu pulso, levantou-se uma pequena nuvem de poeira, que deslizou inofensivamente, como um sopro de vento. A pedra oscilou suavemente e permaneceu no lugar.

Ao cabo daquele instante de puro terror, Harry respirou de alívio e escapuliu-se para o lado, para deixar caminho aberto ao obstáculo, ao mesmo tempo que gritava avisos aos que se encontravam mais abaixo. Nem todos haviam tido tanta sorte como ele: ouviu, à sua direita, o tropel de rochas a cair e rezou pelos homens de David.

Já completara a subida, já galgara a borda num remoinho de poeira. Naquela manha clara, esta espalhara-se por todo o lado, como um nevoeiro cerrado de fumo, de pó e de fedor a queimado. O fogo fendera a rocha e a geada estava a pulverizá-la. O sabor do grés agarrara-se à sua garganta, quando atravessou a correr as poucas jardas de solo fissurado que o separavam das fileiras de Parfois. Colados aos seus calcanhares, assim que desembainhou a espada, os homens de Gwynedd acorreram para lhe proteger os flancos e reforçar o ataque, conduzindo-o para lá do terreno perigoso e mantendo à retaguarda um espaço por onde os companheiros pudessem ir subindo sem perigo.

Quando o solo firme fosse conquistado, Parfois estava conquistado. Foi apenas uma questão de continuar em frente, de lutar até a resistência ser vencida e de não recuar um passo diante das surtidas desesperadas que procuravam empurrá-los por cima da borda.

Atrás vieram os homens de David, com mais calma e maior cuidado, pois já não teriam de enfrentar o perigo mais imediato. No barranco, os arqueiros abandonaram as suas posições, atravessando a ravina e procurando abrigo do lado de dentro, de onde podiam varrer o planalto da igreja ou, pelo menos, acertar em qualquer um que fosse suficientemente tolo para se expor perto da borda. Os defensores postados no topo das muralhas e das torres tinham a tarefa dificultada pela batalha campal no terreiro abaixo deles, onde amigos e inimigos se misturavam de modo inextrincável e as setas poderiam ferir uns ou outros, sem distinção. Antes do meio-dia, o combate travava-se corpo a corpo. Escudo contra escudo, peito contra peito, os galeses abriram caminho através da brecha, como círculos provocados por uma pedra atirada a um lago. Esvaziaram o terreiro exterior e podiam levar o seu tempo a esvaziar as torres. O arco que desembocava no terreiro interior esteve teimosamente bloqueado durante algum tempo, até que os invasores conseguiram abrir caminho para a torre da guarda e, espalhando-se rapidamente ao longo da muralha, encarregaram os seus arqueiros de varrer o terreno de todos os ângulos. Arrombaram a porta do castelo e conseguiram entrar.

Seguros do seu controlo, separaram-se: Owen seguiu em frente para limpar o terreiro interior, enquanto David mandava metade das suas tropas voltar atrás, atravessar a ponte e atacar a retaguarda das forças que ainda opunham resistência ao avanço de Llewelyn. A batalha já se deslocara do meio das árvores para o terreno aberto do planalto e bastou o alerta da aproximação de David para lhe pôr fim. Do que restava das forças de Parfois, uma parte dispersou e fugiu e outra depôs as armas e rendeu-se ao primeiro adversário que parou o tempo suficiente para aceitar a rendição. O castelo estava perdido e nenhum heroísmo de última hora poderia recuperá-lo.

Harry foi um dos primeiros a passar pelo arco e a entrar no terreiro interior e, palmo a palmo, dirigiu-se para a Torre da Rainha. Empurrados para os braços dos inimigos, lutaram pelo terreiro fora numa amálgama confusa, num corpo a corpo tão próximo que tiveram de pôr de lado as espadas e de utilizar os braços como se fossem lutadores. Os brasões de Parfois, as cores dos cavaleiros e o tom pardo das vestes dos homens de armas dançavam diante dos olhos encandeados de Harry. Afastou violentamente um ombro revestido de malha metálica que se atirara contra o seu peito e fez espaço para manobrar a espada; o homem que afastara avistou o brilho do aço e girou instintivamente, de cabeça baixa, para evitar a estocada. A sua viseira e uma comprida tira do gorjal de malha metálica haviam sido arrancadas e o seu rosto estava manchado de sangue. Harry encontrou-se cara a cara com William Isambard.

Encararam-se, enraivecidos como cães, e atiraram-se um ao outro como cães. Harry deixou de ver a confusão à sua volta, a sua visão concentrada naquele combate singular. Estavam os dois sós neste mundo, em torno deles não havia ninguém, apenas objectos que limitavam e obstruíam o terreno de luta, frustrando o maior alcance do homem e dificultando a velocidade e a ligeireza arrebatadas do jovem.

William Isambard era um espadachim temível, para quem o combate não era uma brincadeira, mas um jogo mortal; porque se permitira aquele momento de fraqueza e deixara que a lâmina oscilante passasse tão perto da sua anca? O físico do adversário, os seus movimentos longos, o equilíbrio dos golpes que o mantinham à distância, tudo lhe despertava nos sentidos uma sensação de familiaridade que era quase uma dor física. Harry conhecia aquela esquiva rápida, a estocada fulminante que se lhe seguia inesperadamente, e o mergulho instantâneo sob a parada semiconseguida. Mas também conhecia as respostas. Ambos haviam aprendido com o mesmo mestre, agora ia saber-se qual dos dois fora o aluno mais dotado e aplicado.

Aquela estocada inicial, que lhe provocara um instante de hesitação em memória do pai, havia valido ao filho o primeiro sangue. A manga da sua cota de malha deixara a descoberto o pulso estendido e, agora, a luva estava cheia de sangue, o punho da espada escorregadio. Por instantes, alguns rostos destacaram-se entre a multidão, corpos aproximaram-se e estorvaram-no, movimentos de luta dificultaram-lhe os movimentos do braço que empunhava a espada. Harry afastou-os a todos e concentrou-se no adversário, com um olhar fixo e feroz e uma pontaria rápida e elaborada.

Quando sentiu a confusão da batalha afastar-se, nas suas costas, recuou um passo, como se estivesse cansado ou intimidado. O adversário acompanhou-o de perto, com um olhar ardente, animado por este sinal. Harry lançou um ataque experimental ao flanco esquerdo de William, mas este afastou o ferro e girou subitamente com todo o seu peso.

Harry deu um salto e passou por baixo da espada, cruzou punho com punho para manter a lâmina afastada do rosto e lançou o homem e a espada para a frente, ao mesmo tempo, por cima da anca bem apoiada. Não havia tempo, não havia espaço para o golpe bem medido com que, certa vez, Isambard o desarmara. Em vez disso, o jovem atirou-se com todas as suas forças sobre o adversário cambaleante, fê-lo cair por entre os pés dos combatentes e esmagou sob o seu corpo o braço que não largara a arma. Harry havia largado a espada para libertar as mãos e, antes que William conseguisse empurrá-lo, empunhara a adaga e encostara a ponta ao pescoço do adversário, abaixo da orelha, onde a cota de malha fora arrancada.

- Onde estão eles? - arquejou, furiosamente. - Que lhes haveis feito? Onde está a Madonna Benedetta?

Sentiu um joelho agitar-se debaixo de si, tentando atingi-lo no ventre, mas o peso da cota de William dificultou-lhe o movimento. Harry carregou no aço até sentir a carne encolher-se sob o contacto.

- Onde está ela? E o vosso pai? Falai ou morrereis! Se lhes fizestes mal...

William cuspiu as palavras por entre os dentes:

- Procura-os!

Silvou e gemeu ao sentir a ponta da adaga enterrar-se, mas esta

não se desviou e os olhos verdes, tão próximos, nunca vacilaram.

- Por Deus, hei-de descobrir! Haveis de confessar! Onde?

- Na igreja!

As palavras foram arrancadas, num gemido mordaz, aos lábios contorcidos num esgar de raiva e ódio. Que loucura haver admitido qualquer conhecimento! Porquê dizer a verdade? Lia-se a morte na voz e nos olhos do rapaz, estava decidido a matar ou a saber - e a carne anseia por viver.

- A igreja! - exclamou Harry, soerguendo-se num sobressalto horrorizado, vendo de novo as chamas diante dos olhos.

Largou a garganta desprotegida, tirou o peso de cima do braço ainda capaz e traiçoeiro, esqueceu tudo menos o horror que o dominava. Pôs-se em pé de um salto, afastando-se do seu prisioneiro sem um palavra, sem se lembrar da sua existência, tentando abrir caminho por entre a multidão e correr para o invólucro resplandecente da igreja de seu pai.

Uma mão estendida agarrou-lhe no tornozelo e fê-lo tombar pesadamente, tirando-lhe o fôlego. Instintivamente, rolou sobre a adaga para a manter fora de alcance com o próprio corpo até conseguir libertar o braço. Em vez de soltar a adaga, permitiu que as mãos vingativas lhe agarrassem o pescoço e meio-cego, meio-sufo-cado, tacteou com os dedos encurvados o pescoço de William e atingiu-o sob o ângulo do maxilar, enterrando profundamente a lâmina. Agora, em consciência, não queria matar ou sequer ferir alguém, apenas libertar-se de forma definitiva e ir procurar os seus.

O sangue jorrou-lhe sobre a mão e o braço, o corpo que o abraçava agitou-se e contorceu-se numa imensa convulsão, as mãos que lhe agarravam a garganta abrandaram a pressão e descaíram, inofensivas, ficando a estremecer no chão. Ainda a arquejar, com os olhos turvos, Harry libertou-se e conseguiu furar por entre a multidão, lançando-se a correr, desesperadamente, passando por baixo do arco para o terreiro exterior. Uns braços detiveram-no e agarraram-no: por momentos lutou para se libertar, até que reconheceu a voz de Adam e ergueu para ele uns olhos enormes e frenéticos.

- A igreja! Eles estão na igreja!

- Eles quem? -perguntou Adam, apanhando a pergunta no ar,

- Benedetta... e Isambard... obriguei-o a contar-me... Agora corriam os dois juntos, Harry chorando sem se dar conta

- e mesmo que se houvesse apercebido disso não se importaria. As forças de Llewelyn estavam a atravessar a ponte para entrar em Parfois, a pouco e pouco e com grande cuidado, para não obrigar as traves de madeira a suportar grandes esforços. Harry atravessou-a a correr, lançado, nas barbas dos cavaleiros cheios de precauções, e prendeu as rédeas de Llewelyn.

- Meu senhor, ele matou-os... a igreja... estavam na igreja... Não conseguia falar por causa da garganta ferida e foi Adam

quem gritou a notícia de modo a que todos compreendessem. Llewelyn saltou da sela e começou a gritar ordens, ainda antes de Adam acabar de falar; com espadas, machados e todas as ferramentas a que conseguiram deitar mão, apressaram-se a deitar abaixo as barricadas que selavam as portas da igreja.

O incêndio extinguira-se enquanto lutavam, pois o vento mudara e empurrara as chamas em direcção a Oeste. Os vitrais da nave central estavam quebrados, as canaletas de chumbo pareciam riscar a pedra, o fumo enegrecia-a; lá dentro, o que restava das vigas ainda ardia. Quando abriram a porta e tentaram entrar, o calor empurrou-os para trás, mas conseguiram ver o céu a olhá-los, onde uma parte da abóbada abatera. A torre era uma casca vazia, sem janelas, sem telhado. O incêndio devia haver atingido o coro antes de o seu ímpeto diminuir, quando o vento mudara. Quando deram a volta aos despojos fumegantes para o lado Leste, viram que os vidros das grandes lancetas da janela do altar se encontravam intactos, a pedra quase não estava mascarrada e a pequena porta que dava para a sacristia inteira e sem qualquer marca.

- Abram aqui - ordenou Llewelyn.

Harry foi o primeiro a enterrar um cinzel na madeira para fazer saltar os pregos compridos. Sujo de cinza, de pó e de sangue, arrancou o último obstáculo e deparou com uma porta trancada e sem chave: foi buscar um machado e atacou-a até rebentar a tranca e ser atirado para dentro da sacristia.

O tecto do presbitério estava enegrecido e o ar ainda vibrava com o calor, mas não era insuportável. Tiraram os elmos e entraram, calados e temerosos. Frágeis nuvens de fumo enrolavam-se na abóbada e o cheiro a queimado que descia do coro envolveu-os. No coro, os contornos do cadeiral carbonizado ainda eram sublinhados por algumas brasas ardentes, depois do calor que o destruíra. Mas o chão lajeado do presbitério deixara-os passar incólumes sobre as suas pedras e o altar, com o seu coro angélico, mantinha-se belo e imaculado. Por baixo dele, um rectângulo de escuridão aberto no chão chamou-lhes a atenção. Espantados e assustados, aproximaram-se e olharam, a medo, para dentro do túmulo aberto.

No fundo da cavidade de pedra Benedetta jazia sobre veludo. O cabelo comprido rodeava-lhe a cabeça como uma auréola de fogo extinto e o corpo estava coberto com uma toalha de altar, bordada a ouro. As mãos, finas e tranquilas, assentavam sobre flores coloridas e o rosto era um molde de pele cor de marfim, bem esticada sobre o desenho puro dos ossos bem modelados. Alguém havia fechado cuidadosamente as grandes pálpebras arqueadas e composto, com amor e reverência, o corpo emaciado. A ela, reconheceram-na: todos os que ali se encontravam a reconheceram, apesar de ser agora uma sombra da mulher que recordavam.

Mas de quem seria a forma dourada que jazia ao seu lado, que fora levantada e deslocada para deixar espaço para ela? Homem ou mulher? Tão delgada, não mais alta do que ela - e ela não era alta - e morta havia muito tempo já, pois o tecido dourado deixava perceber a forma frágil dos ossos que cobria. Enterrado com grandes honras, como um príncipe ou um cardeal, mas com objectos humildes e estranhos a seus pés - um macete de pedreiro, um cinzel, um escopro fino, as ferramentas vulgares da sua arte.

E atravessado sobre o brilho destes dois, inesperado e terrível como um anjo caído, uma forma alongada e escura mergulhara de cabeça entre eles: tinha a testa apoiada na curva de um braço dourado, as mangas largas estendidas, como asas, sobre os defuntos ilustres, e os braços compridos abraçavam-nos, unindo os três vultos. Nos dedos emaciados, que mesmo na morte os agarravam com paixão intensa, os anéis pendiam, lassos, entre os nós dos dedos inchados. Demasiado fraco para voltar a sair do túmulo depois de terminar a sua obra, ali caíra e ali morrera. As mãos ainda agonizavam, enclavinhadas, sobre os dois corpos que enterrara mas, sobre o coração despedaçado no sudário dourado, a cabeça repousava tão suavemente como se dormisse.

O fogo, a geada, o Verão e o Inverno nunca mais poderiam perturbar aqueles três seres ou criar animosidade entre eles.

O rapaz permaneceu mudo e quedo aos pés da sepultura, de olhos baixos, fitando, aturdido e apavorado, a dimensão da sua perda e a magnitude do que ganhara. Ficou quieto durante tanto tempo que os outros começaram a temer por ele, mas ninguém ousou tocar-lhe. Sob a capa de pó, suor e lágrimas, a sua palidez extrema só era comparável à extrema calma que o invadira. Quando levantou o olhar, procurou os olhos graves e cheios de comiseração do príncipe, que se inclinavam para ele de uma distância cortês.

- Tens aqui parentes chegados - disse Llewelyn, com doçura. - Mais chegados a ti do que a qualquer outra pessoa.

- Sim - respondeu Harry, num sussurro.

Estaria o príncipe a falar de um só ou de dois? Ou de todos eles? Sempre conseguira compreender os meandros dos corações dos filhos, mesmo quando estes se sentiam perdidos.

- E a ti que compete dizer o que queres que se faça aqui. Nós faremos aquilo que entenderes ser melhor.

A cabeça de Harry ergueu-se de súbito, para devorar o rosto do príncipe com os olhos verdes angustiados. Abriu a boca para responder e começou a tremer.

- Com todo o respeito, senhor... há alguém em Castell Coch que tem mais direitos do que eu. Gostaria que ela visse o que nós vimos - disse, em voz baixa.

- É bem lembrado e uma prova de devoção filial- disse Llewelyn. - Adam, corre a Castell Coch e pede à dama Gilleis o favor de vir ter connosco. Diz-lhe que, pela graça de Deus, encontrámos o corpo de mestre Harry.

Gilleis chegou ainda de dia, pálida e silenciosa, acompanhada por Adam.

Abaixo de Parfois ainda perdurava o caos da batalha, com os cadáveres caídos por todo o lado, mas o príncipe já se encontrava nos aposentos sumptuosos de William Isambard e este jazia na capela, num cavalete em frente ao altar, lavado e limpo do sangue que Harry fizera correr, com as moedas dos mortos sobre os olhos. Sem um olhar, Gilleis passou pela torre destroçada do posto avançado da guarda e foi abrindo caminho por entre os destroços de arreios e despojos humanos que enchiam a rampa, sem sequer os ver. Os seus olhos estavam virados para dentro, para o passado. Na vida ou na morte, nunca recordara o rosto de Harry tão nitidamente como agora. Como marés contraditórias, os velhos ódios e amores assaltaram-na de novo, dolorosamente.

No planalto, Llewelyn aguardava e o jovem Harry veio segurar-lhe no estribo e ajudá-la a desmontar. Os olhos verde-mar e o abraço reservado foram como punhaladas no coração de Gilleis: desde que assumira aquela expressão séria e grave, de homem feito, não havia lugar para dúvidas - era bem o filho de seu pai, de corpo e alma. Harry beijou-lhe a mão, depois a face, deu-lhe o braço e conduziu-a para o esqueleto da igreja de Parfois. Adam deixou-se ficar para trás, para lhes permitir entrarem sozinhos.

Ao chegarem ao pé do túmulo, Harry soltou o braço da mãe e ficou ao seu lado. Gilleis olhou para a cavidade de pedra e susteve a respiração com força, como que a sufocar um grito; em seguida, ficou em silêncio, pálida e imóvel, por longos minutos, com os olhos fixos nas duas formas brilhantes e nos braços abertos que os cobriam, como uma cruz.

Viu a luz das tochas vibrar sobre o sudário dourado, como se os ossos queridos que escondia houvessem estremecido por um instante, perante a evocação da vida, e quisessem levantar-se para ir ao seu encontro. Viu o braço delgado e escuro a envolver o corpo do marido, e a mão - a mesma mão que o envolvera no sudário principesco - a agarrar-lhe o braço com os dedos finos, num gesto ciumento e terno. Toda a agonia, todo o ódio e todo o amor, as ofensas e as vinganças haviam acabado por se concentrar docemente naquele pequeno espaço.

Gilleis ergueu por fim o olhar e viu, do outro lado do túmulo aberto, o rosto do filho, pálido de emoção, a observá-la. Estava muito mais próximo da plenitude da sua herança do que no dia anterior e queria alguma coisa dela, mas dominava-se para não deixar transparecer esse desejo nos olhos, receando que, por amor dele, ela consentisse em algo que não desejava. Oh, Harry, pensou, diz-me o que hei-de fazer! Mas ele não o faria. Isto era um assunto que teria de resolver sozinha.

Contudo, a dor pungente que gritava por trás do seu rosto calmo calou-se, envergonhada, quando olhou para o filho. A verdadeira marca de Harry, o único legado que lhe deixara era a dádiva. Bastava-lhe dá-lo de livre vontade e nunca o perderia ou sentiria a sua falta. E seria ela tão pobre que não pudesse dispensar um canto do túmulo de Harry àqueles dois, que tanto necessitavam de repouso?

Teria de continuar a haver expulsões, divisões e sepulturas violadas?

- Tapai-os! - disse Gilleis.

De imediato viu surgir no rosto do filho um clarão de alegria, nos olhos um impulso apaixonado de gratidão.

- Tapai-os e que repousem em paz.

No último momento, quando os homens da retaguarda já batiam com os pés gelados na neve, ao cimo da rampa, e David chamava por ele, da ponte, com impaciência, Harry tirou o pé do estribo e voltou à sala de desenho.

Por essa altura, metade do chão do terreiro exterior estava retalhado por fendas e todos os dias havia pequenos pedaços insignificantes de grés que deslizavam suavemente para a ravina. Era tempo de partir. Um novo pedaço da muralha desabara durante a noite e, quando chegasse a Primavera, Parfois estaria entregue aos corvos.

Era mais que tempo de partir e eles eram os últimos a sair. As senhoras haviam iniciado o regresso a Aber no quarto dia a seguir ao Natal, com Adam a acompanhá-las, e a caravana com as bagagens e o saque de Parfois arrastava-se sobre a neve, atrás delas, por meia milha. Harry cavalgara com elas até ao vau para as ajudar a atravessar em segurança e, antes da partida, beijara Aelis diante de todos, para selar os seus direitos. Para dizer a verdade, sentia agora por ela uma admiração ciumenta: assumira perigosamente a sua feminilidade, desde que passara a usar o cabelo preso sob o toucado e os vestidos da mãe de Harry. As duas estavam muito ligadas e partilhavam uma certa cumplicidade: costumavam trocar olhares e sorrir por sua causa, quando julgavam que ele não estava a vê-las - ou, o que era ainda mais assustador, quando sabiam muito bem que estava a observá-las. Teria que ter muito cuidado com elas, pois poderiam aliar-se para lhe controlar a vida.

Dois dias após a partida da princesa e do seu séquito, a guarnição, desarmada, saíra de Parfois com as vestes que trazia no corpo, os seus pertences pessoais e uma pequena provisão de alimentos. Para além de todos os apetrechos militares, também os melhores cavalos, falcões e cães de caça haviam ficado para os vencedores, mas os membros da guarnição sentiram-se felizes por lhes ser permitido partir com vida e em liberdade, depois de haverem jurado não voltar a pegar em armas contra Llewelyn. Alguns rumaram a Fleace, levando cartas corteses do príncipe de Aberffraw para Humphrey Paunton, pelas quais lhe dava conhecimento da forma como o seu senhor morrera e fora enterrado, de modo a que, em devido tempo, a notícia chegasse na íntegra aos ouvidos do rei Henrique. Outros dirigiram-se a Erington, na fronteira do Herefordshire. Os muitos e dispersos domínios de Isambard pertenciam agora ao filho mais velho, Gilles, que estava na Normandia - se o rei entendesse conceder-lhe o título mas, depois dos trabalhos que Richard Marshall lhe dera, era pouco provável que Henrique quisesse atribuir uma posição tão poderosa, em Inglaterra, a outro potentado normando, vassalo do rei de França. Deixá-los disputar esses domínios como lhes aprouvesse: Ralph Isambard continuaria a descansar tranquilamente.

Assim terminava uma grande linhagem e fora ele, Harry Talvace, quem cortara o último ramo dessa árvore formidável. Após a partida da guarnição, as pompas mundanas pareciam vãs e efémeras naquele Parfois despovoado.

Depois dos vencidos, os vencedores. Partiram na véspera de Ano Novo, o príncipe e todos os seus capitães, dirigindo-se a toda a pressa para Breídden, em pé de guerra, e deixando David encarregue de se juntar a eles com a retaguarda. Toda a fronteira estava à mercê de Llewelyn, pois, no dia a seguir ao Natal, o conde marechal derrotara estrondosamente John de Monmouth numa batalha campal, perto da cidade à qual este fora buscar o nome, e não havia agora soldados do rei entre os inimigos deste e os seus intranquilos súbditos das Marcas.

- Deixemos o Herefordshire para o rapaz - disse Llewelyn, quando recebeu os despachos. - Bem o mereceu. Iremos para Norte e Leste e conquistaremos o coração do Shropshire. Dezanove anos depois de Benedetta ter vindo ter comigo a galope, às portas de Shrewsbury, Harry, e te haver entregue a mim, para mal dos meus pecados, está a apetecer-me ir bater-lhes à porta de novo, mesmo que isso me venha a custar uma penitência igual.

Com estas palavras, Llewelyn partira, despreocupada mas decididamente, para a sua razia. Deus ajudasse os aldeãos do sopé de Breidden e os burgueses preocupados de Shrewsbury, pois a guerra implicava morte. A guerra matara Parfois. Mesmo que Gilles aparecesse e tentasse reconstruir a fortaleza arrasada, nunca poderia ter êxito. A rocha estava estilhaçada e o coração silenciado. O homem que havia sido o espírito de Parfois morrera, morrera e fora enterrado sob o altar da sua igreja, com a sua amada e o amor da sua amada, com os seus feitos tenebrosos e os seus actos notáveis. Deus haveria de acertar essas contas, mais ninguém tinha esse direito. O seu arqui-inimigo mandara dizer missas pela sua alma, o seu prisioneiro mais implacável rezara ardentemente pela paz da sua alma.

As últimas companhias já estavam a partir, os homens dos clãs sob as ordens de David, impacientes e ferozes, queriam ir atrás das suas presas e o próprio David não lhes ficava atrás: tinha uma fronteira para consolidar e se agora forçasse esse reconhecimento pelo terror, mais fácil lhe seria depois manter o controlo. Os derradeiros ruídos de cascos haviam deixado de ecoar na ponte e foram abafados pela neve do planalto. Só Harry Talvace ficara para trás, o último a deixar o terreno inseguro do seu cativeiro de quatro anos.

O silêncio rodeou-o como uma capa espessa, isolando-o do mundo. A luz crua da manhã de Janeiro, trespassada por raios de sol avermelhados que emergiam, oblíquos, por entre as nuvens, bordava de escarlate os merlões da muralha. A porta da torre da guarda e os portais da armaria, dos estábulos e das cavalariças estavam abertos para os interiores vazios. Não se via ninguém em movimento, não se ouvia uma voz, onde antes se ouviam tantas, nem sequer um cão ficara para trás para recordar o mundo dos vivos. Restava apenas ele, Harry Talvace, a atravessar com cuidado o chão rendilhado, retendo a respiração com receio daquele silêncio, empurrando a porta da sala de desenho que se abriu para um chão desigual e rachado, permanecendo na soleira do compartimento abandonado olhando em volta, para as compridas mesas de desenho onde mestre Harry havia elaborado os seus projectos ambiciosos, para a bancada onde ele depositara os cinzéis e os escopros e esboçara na pedra as suas ideias. Haviam desfigurado a sua obra pelo fogo, mas nunca conseguiriam destruí-la.

Harry ficou parado, a olhar, sentindo a sala cheia de ecos, rápidos e pungentes, que lhe feriam o coração: «Não me posso comparar a ele! Não confias em ti mesmo o suficiente para seres nada menos do que o melhor? Quantos se lhe podem comparar?» E, naquele momento em especial, ecos tão significativos, tão comoventes: «Os desígnios de Deus são sempre justos. Cada um tem os filhos que merece.» Porque havia sido tantas vezes incapaz de ouvir ou perceber as coisas que lhe diziam?

As lembranças desenharam, contra a janela, os contornos dos ombros erectos e descarnados, a cabeça altiva, o sorriso sombrio e oblíquo e reavivaram a voz, na sua antiga suavidade atormentadora. Ali, pela primeira vez, havia recebido as ferramentas de seu pai e os fragmentos de pedra que ele deixara para trás, aquando da sua morte intempestiva. Ali, havia sido ensinado a trabalhar duramente, sem se sentir compelido pela provocação, e até essa lição aprendera por fim. Se o trabalho que fizera não podia comparar-se, nunca poderia comparar-se, à obra do pai, não teria suficiente confiança em si próprio para ser nada menos do que o melhor? Ver-se-ia que sim, que sabia trabalhar com humildade e fidelidade onde esta era merecida.

Olhando agora para trás, com espanto, para aqueles quatro anos, não sentia que houvesse sido infeliz, o que era bastante estranho, depois de tanto sofrimento. Mais estranho ainda era olhar calmamente para a sua ansiedade, os seus planos, a sua luta pela liberdade e ser incapaz de sentir que havia sido um prisioneiro.

Atravessou a sala em silêncio, até à bancada a que lhe fora permitido chamar sua e aí, num canto, encostado à parede, encontrou um esboço de pedra que mestre Harry havia feito para a última cabeça que colocara no trifório da igreja de Parfois. Harry julgara ser um último auto-retrato, mas Isambard é que tinha razão: «Isto não é a assinatura na conclusão da obra, é uma profecia no seu início. Não te reconheces?»

Não se reconhecera, mas acreditara nele. Mesmo então, mesmo nessa altura, com vontade ou contra vontade, confiara em Isambard: sabia e estava a dizer-lhe a verdade. Ainda agora, Harry não se reconhecia: aquela cabeça intimidava-o, desnorteava-o e excitava-o, com a sua promessa e a sua clareza, mas continuava a acreditar. Ainda havia caminho a percorrer, mas já assentara os pés no caminho que o levaria àquela identidade e, na devida altura, lá chegaria.

Estranhamente deslumbrante, pensara então, ao acariciar os esboços daquela cabeça tão jovem estranhamente deslumbrante, é uma grande responsabilidade. Mais uma vez, rodeou-a com as mãos e a mesma mescla apaixonada de orgulho e humildade voltaram a inundar-lhe o coração.

Pegou num grande pedaço de pano com que mestre Edmund costumava embrulhar os seus pergaminhos e embrulhou apressadamente a cabeça, seguro de que David já estaria a ficar impaciente e iria mandar alguém buscá-lo. O embrulho era pequeno mas pesado, iam achá-lo louco por sobrecarregar Barbarossa com mais vinte libras quando tinham pela frente uma dura cavalgada. Pouco importava, não a deixaria ali.

Lançou um último olhar apressado àquela sala, sabendo que poderia não voltar a vê-la, e saiu com o seu precioso troféu debaixo do braço, fechando a porta atrás de si. Lá estava Owen, a desmontar mesmo ao lado de Barbarossa e a atirar as rédeas sobre o pescoço do cavalo.

- Que diabo, Harry, que te deu para ainda andares a vaguear por aqui? O que querias? O David partiu sem nós.

- Havemos de o apanhar - disse Harry, guardando à pressa o embrulho malfeito na sacola da sela, o que fez Barbarossa agitar-se, indignado, ao sentir aquele volume pesado e informe. - Lembrei-me de uma coisa que prefiro não deixar aqui.

- Então mexe-te, homem, e vamos atrás deles. É melhor sairmos daqui - disse Owen, varrendo com os olhos as rochas periclitantes que se inclinavam para a ravina. - Quando vier o degelo, metade desta falésia vai desmoronar-se e nessa altura, prefiro estar longe de Parfois.

Harry montou e dirigiu o cavalo para as traves estreitas da ponte, já liberto da necessidade de olhar para trás. O passado estava resolvido, o futuro oscilava dentro da sacola da sela. Assim que passaram a ponte e se lançaram, a trote, pelo planalto, em direcção às árvores, Owen colocou-se ao lado de Harry e inclinou-se, curioso, para tocar no embrulho.

- O que levas aí, Harry?

Bateu com a mão na sacola e admirou-se com o peso, deu-lhe um murro e praguejou, por ter magoado o punho.

- Céus, que peso é esse que levas no pobre animal? Uma pedra? Que vais fazer com esse trambolho? Há pedra em todo o lado, tens mesmo que carregar essa contigo pelas Marcas?

- É um esboço do meu pai - disse Harry, apaziguador, contando apenas meia verdade. - Pensei que talvez seja capaz de o copiar, um destes dias.

 

Parfois: Julho de 1233

Seis meses mais tarde, Harry percorreria uma vez mais o mesmo caminho.

Voltavam atrás sobre os próprios passos, no regresso da grande reunião de Myddle, onde fora assinada a paz triunfal que coroava os feitos de Llewelyn e sancionava a obra de toda a sua vida. A guerra de Richard Marshall fora perdida e ganha, e a sua vida breve, admirável e tempestuosa - estranha para um homem que apenas desejara ordem e justiça - terminara na hora da sua vitória. Um prelado, mais eminente e melhor do que Winchester, afastara Winchester do poder; uma ordem, mais sólida do que aquela que mesmo o eficiente des Rilvaux era capaz de impor, tornara dispensáveis os serviços distintos de des Rilvaux. De um modo geral, a Inglaterra afirmara a sua vontade severa e sensata; e Gales vira confirmadas todas as suas conquistas, gozava de paz no interior das suas fronteiras e de respeito fora delas. Não era de espantar que David regressasse a Aber, com o seu séquito, na melhor das disposições. Passaram por Knockin. Entre Parfois e Shrewsbury, haviam incendiado, morto e pilhado mas em parte alguma com maior ferocidade do que ali, à volta do fosso daquele castelo mártir. Isso acontecera em Janeiro; agora, em Julho, metade dos campos estava por cultivar, devido à falta de homens para fazer esse trabalho, e as mulheres labutavam penosamente, até depois do anoitecer, para arranjar alguma comida para os filhos. Ao cruzar o olhar com os das viúvas de Knockin, Harry não se sentia orgulhoso. Talvez houvesse aprendido da maneira mais dura, mas a lição ficara bem gravada; agora, sabia o que queria fazer da sua vida.

Um capítulo inteiro de uma crónica fora escrito nas Marcas, desde a campanha de Janeiro. Esta correra tão bem, haviam-se estabelecido tão solidamente como senhores das fronteiras, que o conde Richard sentira que a sua posição no País de Gales estava segura e partira para a Irlanda, a fim de recuperar os castelos que os homens do rei lhe haviam roubado em Leinster. Entregara o comando de Striguil a Hubert de Burgh, Basset e Siward e fizera-se ao mar rumo a Leinster, em começos de Fevereiro. Nesse mesmo mês, Edmund de Abingdon, tesoureiro de Salisbúria, vira confirmada pelo rei a sua eleição para o arcebispado de Cantuária e assistira ao Grande Conselho.

Que pensaria Henrique do seu novo arcebispo? Confirmara-o no cargo de bom-grado ou de mau-grado, relutantemente, por falta de coragem para resistir? Porque antes mesmo de ser nomeado, Edmund de Abingdon iniciara as suas funções, colocando-se à cabeça dos bispos na exigência de demissão dos odiados ministros de Henrique e do retorno ao estado de direito e à Carta. Henrique exaltara-se, protestara e tentara ganhar tempo; mas eles haviam levado a sua por diante e enviado de imediato para a fronteira os bispos de Lichfield e Rochester, com a missão de apresentar a Llewelyn um plano de conciliação e paz. Não haviam encontrado dificuldades: Llewelyn estava disposto a ouvi-los, uma vez que tudo indicava que o ponto para ele essencial iria ser concedido. Após as necessárias idas e vindas relacionadas com os termos, em fins de Março fora acordada uma trégua e marcada, para o segundo dia de Maio, uma reunião em que seria estabelecido um tratado permanente.

A coberto de tamanho sucesso táctico, fortalecido por esta manifesta tolerância e boa vontade por parte de um príncipe que poderia muito bem haver explorado a vantagem que detinha e imposto condições mais extremas, o arcebispo Edmund chegara ao conselho de Abril com todos os bispos da província da Cantuária a apoiá-lo, à excepção do lobo solitário Winchester, que tinham intenção de demitir. Henrique já não podia proteger os seus favoritos sem que isso envolvesse riscos para si próprio e, por outro lado, também nunca se comprometera ao ponto de não poder voltar atrás. Corria o rumor de que, após o conselho de Fevereiro, levara consigo para um retiro monástico Winchester, des Rilvaux e Segrave, o que, a avaliar pela forma como tratara de Burgh, constituía um indício seguro de que estes nada podiam esperar de bom, logo que os seus próprios interesses o aconselhassem a abandoná-los. Fosse como fosse, quando os bispos o pressionaram, Henrique anunciara a demissão dos seus ministros, prometera reformas e o retorno à Carta: tudo quanto lhe fora exigido. Ainda sem saber, na altura, pois ninguém em Inglaterra o sabia, que o seu inimigo se encontrava já no leito de morte.

Porque o conde Richard se deixara persuadir a ter um encontro com os homens do rei, nos prados de Kildare, no primeiro de Abril, e - ninguém sabia como nem pela mão de quem - fora atacado à espada e ferido mortalmente. Traição, diziam alguns, uma traição que envolvia as mais altas figuras do reino. Outros atribuíam o ataque a uma exaltação de ânimos, quando a discussão se tornara mais acesa, porque Richard queria recuperar os seus castelos e havia quem não quisesse ser desapossado daquilo de que se apoderara. Fosse como fosse, Richard Marshall fora transportado de Curragh para uma cama da qual não mais se levantou e, duas semanas depois, estava morto. Aquele homem de carácter nobre, que nunca quisera entrar em guerra contra o seu rei, morria, depois de ter ao alcance da mão a vitória, as reformas e os seus senhorios.

A notícia caiu como um raio em Inglaterra, abalando profundamente toda a gente, incluindo o próprio rei Henrique. Teria ele encorajado secretamente o assassinato do conde? Ou teriam des Roches e os seus companheiros mais próximos agido por conta própria, lançando sobre o rei a suspeita injusta de cumplicidade? Fosse qual fosse a verdade, Henrique procurou ilibar-se com a maior celeridade, voltando-se como um tigre contra os seus ministros.

Até então, parecera possível que estes fossem autorizados a retirar-se honrosamente; todavia, haviam sido obrigados, durante algum tempo, a experimentar o destino que haviam reservado a de Burgh, sendo perseguidos por toda a parte, denunciados e proscritos, até os bispos que haviam sido responsáveis pela sua queda se interporem entre eles e o monarca, arrebatado de rectidão, e lhes estenderem a mão para os ajudar a reerguer-se. Foram criadas comissões para ouvir as queixas apresentadas contra eles, os investigadores esmiuçaram os mais ínfimos pormenores da sua conduta enquanto detinham os cargos e verificaram todos os pennies que lhes haviam passado pelas mãos. De Burgh estava vingado.

Contudo, o conde marechal estava morto. Quando soubera da notícia, Llewelyn decidira não participar na reunião de Maio. O homem que deveria ser o negociador, por parte da confederação inglesa, morrera; até todos os seus partidários haverem obtido termos de paz satisfatórios, Llewelyn não aceitaria nenhuns. E a protecção que estendera sobre eles, com este acto, revelara-se efectiva ao ponto de apressar uma conciliação geral. Em Maio, Gílbert, o novo conde marechal, passara salvo-condutos para ele próprio e para os irmãos, para de Burgh, Basset e Siward e para todos os outros confederados, a fim de que todos pudessem deslocar-se a Gloucester, participar no conselho, sob a protecção do arcebispo, e pedir a graça do rei. Invalidada a sua proscrição, obtidos o perdão e a devolução das suas terras e havendo eles próprios sido reconduzidos nos favores reais, alguns deles até nos cargos, tinham bons motivos para estarem gratos a um aliado tão temível e leal como o príncipe de Aberffraw.

- Se ele pudesse ver como tudo acabou, rir-se-ia até às lágrimas - disse Harry, de repente, concluindo em voz alta um fluxo de pensamentos que o ocupara, em silêncio.

- Ele? - perguntou David, distraído, lançando um olhar inquiridor ao jovem irmão adoptivo. Contudo, ao concluir rapidamente quem devia ser o «ele», prosseguiu: - Estás a falar do facto de de Burgh haver sido readmitido no conselho e de Winchester e des Rivaulx haverem apanhado pela mesma medida com que o haviam atacado? E de o príncipe meu pai haver voado em socorro do seu mais antigo inimigo, sem deixar de cumprir o juramento de conquistar e destruir Parfois... sim, suponho que qualquer homem encontraria bons motivos para se rir de tudo isto, se houvesse coragem para tanto. Sempre ouvi dizer que ele era um homem de de Burgh.

- Era um homem de coragem - respondeu Harry, veementemente. - E não era homem de ninguém, era senhor de si mesmo.

- O mais engraçado - comentou Owen - é que, se vier a reclamar os seus senhorios em Inglaterra, o tal Isambard francês de quem falas terá de passar sem o castelo de Parfois. Segundo os termos do acordo, não poderá reconstruí-lo.

Era verdade: Parfois recebera deles um golpe mortal. O acordo que Llewelyn assinara em Myddle, na presença do arcebispo, baseava-se na situação existente à data em que começara a guerra do conde Richard. Cada uma das partes conservava o que se encontrava na sua posse nessa altura, ainda que recentemente conquistado; Builth e Cardigan continuavam a ser propriedade dos príncipes de Gwynedd, o que representava um ganho considerável. Mas não podiam ser construídos novos castelos, nem reconstruídos os que se encontrassem em ruínas. Adeus, Parfois! E talvez fosse apropriado que Parfois não sobrevivesse a Ralf Isambard.

A trégua fora assinada por dois anos apenas; a partir daí, poderia ser renovada por consentimento mútuo, ano após ano. Mas quem ousaria agora tentar arrancar Builth e Cardigan das garras do leão? Llewelyn mostrara a Inglaterra, de uma vez por todas, quem mandava ao longo das Marcas, enquanto ele fosse vivo, e fizera tudo quanto estava ao seu alcance para garantir que, depois da sua morte, David fosse encarado com o mesmo temor e o mesmo respeito. A sombra do castelo de Myddle, entre as tendas coloridas espalhadas pelos prados de Verão, haviam assistido à apoteose de Gwynedd e, sem dúvida alguma, à verdadeira concepção de um principado de Gales. Faltava apenas que este nascesse em segurança e essa era uma tarefa dos estadistas, não dos soldados.

- Senhor...

Harry aclarou a garganta, preparando-se para fazer a declaração que tinha em mente desde a partida de Myddle. Corou e hesitou, perante o tom formal daquele preâmbulo, quando se encontravam os três sozinhos, longe dos ouvidos dos outros.

- Senhor! - troçou David, alegre e gentilmente. Alegravam-no o Verão, o bom tempo, o triunfo alcançado, até mesmo o vestuário de cerimónia, mas sobretudo o prazer de cavalgar sem o incómodo da armadura metálica. Não estava com disposição para atitudes graves, mas assumia de bom-grado uma atitude gentil.

- Agora que estamos em paz - disse Harry, sem abandonar o tom solene - e que, se Deus quiser, continuaremos a estar em paz nos próximos anos, desejava falar convosco acerca do meu futuro. A vossa herança está consolidada. Se alguma vez necessitardes de me chamar, sabeis bem que eu acorrerei do melhor grado. Mas, enquanto não necessitardes de mim, peço-vos que me deixeis abandonar a vossa companhia e dedicar-me ao meu ofício.

Não era capaz de exprimir claramente aquilo que mais o perturbava, o mal-estar que sentia perante o preço da vitória: as aldeias incendiadas, os cadáveres espalhados pelo chão, o gado abatido, os campos que deveriam estar dourados e estavam por cultivar, a terra improdutiva que deveria estar a dar frutos. Inglês por nascimento e criado como galês, o seu coração e o seu espírito combatiam dos dois lados. Como poderia derramar sangue galês ou sangue inglês, sem se sentir sangrar? Todavia, não se tratava apenas disso. A negação da vida, a frustração da esterilidade, tudo isso era contrário aos seus instintos mais profundos. Harry não tinha vocação para massacrar; era contra a sua natureza.

- O teu ofício? - perguntou David, a rir e atónito. - Tantas vezes vi o Adam tentar obrigar-te a pegar nas ferramentas, quando eras miúdo, em Aber, e tu fugires mal ele voltava as costas, para participares numa justa. E até tinhas bastante jeito! Que foi que te deu, assim de repente?

- Não foi de repente. Foi há muito tempo e, desde então, trabalhei com o mestre canteiro de Isambard, em Parfois. Também vi a obra do meu pai e isso foi o bastante para me dar vontade de seguir os passos dele. Não podia pedir-vos para partir enquanto traváveis uma guerra, mas agora sei o que quero. A carreira das armas é gloriosa, mas não é uma carreira que me satisfaça - disse Harry, com firmeza. - Eu sou canteiro, como o meu pai, e é isso que quero ser. Se mo permitirdes, evidentemente.

- Como por certo sabes, terás sempre a minha permissão para fazeres o que queres, Hal. E o Adam vai ficar contente por te ver amansado. Mas é uma pena - acrescentou David, desconsolado. - Portaste-te muito bem em Parfois. Devias haver ouvido os elogios que o príncipe te fez, quando não estavas por perto. Já lhe disseste o que tencionavas fazer?

- Já sim, senhor, antes de partirmos. Disse-me para falar convosco. Também me disse que devia fazer tudo o que pudesse para satisfazer o meu coração e que, desde que me empenhasse em dar o meu melhor, poderia contar com a sua bênção. Mas vós sois o meu príncipe e meu irmão e desejaria obter a vossa.

- Como poderia eu recusar-ta? - replicou David, calorosamente. - Faz o que o coração te ditar e não te preocupes. Ser um bom espadachim é sempre útil, mesmo que o espadachim seja também canteiro.

- Ouvi então mais um pedido meu - disse Harry, empalidecendo um pouco, tal era a intensidade do seu desejo. - Posso continuar para Sul, na encruzilhada, e ir a Parfois? Não vou demorar-me, prometo, só quero voltar a ver Parfois mais uma vez. Antes de chegardes a Oswestry, estarei de novo convosco.

Owen abriu a boca para se oferecer para o acompanhar, mas voltou a fechá-la, sem haver formulado a oferta. Sabia quando Harry desejava ficar sozinho. Assim, separaram-se na encruzilhada de Knockin: Harry seguiu para Sul, em direcção a Breidden; os irmãos seguiram para Norte, em direcção a Oswestry, acompanhados pelo seu séquito. O canteiro partiu sozinho, como era devido. Havia muito que Adam dissera haver chegado a altura de ele assumir a sua condição.

Aqueles eram os campos que os galeses haviam arrasado, a caminho de Shrewsbury e, para onde quer que olhasse, a destruição lá estava a desafiá-lo. Nas aldeias, os sobreviventes haviam regressado às ruínas das suas casas, haviam até erguido cabanas de ramos para se abrigarem durante o Verão ameno; e estavam a trabalhar duramente na construção de abrigos mais sólidos, para o Inverno. Tanta destruição, tanto sofrimento, tanto desperdício: tudo afrontas à paixão de afirmação que sentia dentro de si, ao seu anseio pela vida, pela alegria, pela criação e pela realização. Prouvera a Deus que não houvesse mais campanhas como aquela! Que aqueles homens e mulheres conservassem aquelas casas e reclamassem aqueles campos abandonados! Que tivessem outros filhos e fizessem a terra voltar a dar frutos! A tenacidade com que haviam reatado os fios da vida era em si mesma um reconforto. Os seres humanos não se deixam abater assim tão facilmente.

Harry atravessou o rio em Buttington: um rio de Verão, agora verde devido aos limos, branco devido aos ranúnculos que flutuavam à superfície, sorridente e sonolento. Depois, seguiu pela margem, pelo carreiro do moinho, passou pelo casebre arruinado e as recordações revolveram-se na sua memória, numa momentânea contorção de dor. Cavalgou junto ao sopé do rochedo de Parfois e, de repente, o caminho desapareceu. Pedaços de rocha e de alvenaria bloqueavam-lhe a passagem. Então, seguiu pelo bosque, junto à água, contornando laboriosamente o obstáculo: a disposição do terreno impedia-lhe de ver mais além. Só ao alcançar as colinas verdejantes abaixo do carreiro que conduzia à rampa conseguiu avistar o ondeado das ameias da muralha e da torre, recortando-se contra o céu, e a luz que se filtrava pela ravina que separava o castelo da igreja.

O seu coração revoltou-se e gritou, dividido entre o desgosto e a exaltação, tão repentina e violenta fora a visão do carácter efémero do poder e da glória deste mundo. O dominador das Marcas havia caído. Nenhuma lança de luz atravessava as sombras da ravina; o degelo súbito e a neve pulverizada de Fevereiro haviam feito desabar a rocha profanada, por baixo da muralha, até o solo fragmentado deixar de conseguir sustentar o enorme peso que suportava e, jarda a jarda, pedra a pedra, o pano da muralha cedera, deslizara e desmoronara-se, tombando pela ravina, enchendo o vão por baixo da ponte e espalhando gradualmente pedaços de rocha e entulho pelas orlas da falésia. A ponte deslizara como o resto e detivera-se, inofensiva e inútil, alguns pés abaixo do seu nível normal. Agora, qualquer pessoa podia subir a rampa e entrar em Parfois, sem necessidade de pontes. Entrar no que restava de Parfois!

Contudo, a destruição podia não ficar por ali porque, entre o que restava das construções e os alicerces sobrecarregados por baixo destas, a rocha ainda não estabilizara. O equilíbrio e a tensão que sustentavam o conjunto haviam sido

perturbados e a desintegração não podia ser sustida. Os anos e as intempéries iriam erodir pedra após pedra, as sementes instalar-se-iam entre os degraus periclitantes e as rachas do chão, delas nasceriam arbustos que fariam explodir as paredes. Jovens carvalhos cresceriam e lançariam raízes nos vastos aposentos de Isambard, os corvos fariam ninho no esqueleto denteado da Torre do Rei. Dentro de cinquenta anos, Parfois não passaria de um nome ligado a um local desolado, a um lugar aplanado onde, antes, existira um rochedo imponente e uma grande casa.

A torre da guarda caíra e, ao morrer, lançara a sua enorme cabeça sobre o barranco e enterrara profundamente a testa na superfície coberta de erva do planalto. A sala de desenho ruíra, juntamente com todas as construções pegadas ao lado Sul do pano da muralha. Os choques sucessivos haviam inclusivamente feito esboroar as bermas do planalto e algumas árvores arrancadas jaziam entre o entulho, lá em baixo. Do local onde se encontrava, a densa folhagem de Verão das árvores que ainda restavam impedia Harry de ver a torre da igreja. Assustado, receoso, com o silêncio e a desolação a gelarem-lhe o coração, fez Barbarossa dar a volta e começou a subir o carreiro.

Na curva apertada onde começava a rampa, Harry reparou - e, por instantes, não conseguiu persuadir o seu cérebro atónito daquilo que acabara de ver - nos sulcos profundos que rodas de carroças haviam aberto na erva. Porque andariam por ali carroças, quando já não havia homens esfaimados para alimentar e abastecer? Alguém que viera buscar madeira? Não, não havia sinais de que houvesse sido levada madeira; em geral, viam-se lascas e serradura, no sítio onde a madeira estivera. Lenha para a lareira? Em pleno Verão? Não, ninguém seria tão expedito e previdente, naquelas aldeias enlutadas, onde todos os sobreviventes em condições de trabalhar eram forçados a labutar incansavelmente para fazer face às necessidades do dia-a-dia. Todavia, as marcas das rodas sobre a erva continuavam pelo caminho acima. Não eram recentes: nalguns pontos, haviam esmagado a erva e sulcado a terra, até à rocha. Carroças que transportavam cargas pesadas. Harry podia agora deduzir o que eram essas cargas. Não haviam sido apenas o vento, as intempéries, a neve e o degelo a contribuir para a derrocada de Parfois.

A torre solitária do posto avançado da guarda, derrubada durante o cerco, jazia entre escombros de argamassa, sobre a erva alta que havia crescido dos lados do caminho. As raras pilhas dispersas de pedra eram demasiado poucas para poderem ser os restos de uma fortificação imponente como aquela. Os contornos da torre nova estavam cobertos por silvas e tojos. As pedras talhadas das barricadas, preparadas para a nova construção, haviam desaparecido todas.

Harry chegou ao topo da rampa, onde o arvoredo era menos denso, e deteve-se, sustendo a respiração para não soltar um grito. Ao cair, a torre da guarda projectara para longe o seu topo pesado. A esguia torre da igreja recebera o impacto na base e tombara para Oeste, sobre a abóbada da nave central, esmagando-a. A haste dourada, o caule da árvore sagrada, estava quebrado. Todo aquele esplendor delicado, aquela construção de subtil beleza, estriada de tensões vibrantes de luz e sombra, recuando, andar a andar, em proporções encantadoras, que arrastavam consigo os olhos e o coração - tudo se perdera, tudo ficara desfigurado para sempre, sem possibilidade de recuperação. A grande abóbada caíra com a torre, e o vitral Oeste, com os seus ornatos de cordas de harpa nas quais a luz tocava tantas melopeias, erguia-se solitário sobre um caos de pedras fracturadas.

Harry desmontou com uma pressa febril, como se, por um momento, as suas mãos houvessem sonhado que a recuperação era possível. Escalou os belos arcos estáticos da nave central, tocando-os e acariciando-os, à beira das lágrimas, mas a consternação que lhe dilacerava o coração era como um poço escuro, demasiado fundo e medonho para lágrimas. Lançou-se, de joelhos, junto ao túmulo de mestre Harry, por cima do qual a abóbada do presbitério ainda permanecia intacta e as nove imagens de Owen, quando criança, continuavam a inclinar as suas cabeças seráficas sobre os saltérios e instrumentos, cantando e tocando para glória de Deus.

Mas para quê? Para quê, se aquilo era tudo o que restava? A prece que iniciara morreu-lhe na garganta, quase o sufocando.

Seria preciso tão pouco tempo, afinal, para que castelos e igrejas tombassem em ruínas, depois de os homens os haverem abandonado? Quantas obras-primas do seu pai não haveriam já sido levadas pelas carroças? Se houvesse aberto os olhos, haveria visto sinais evidentes do que acontecera. Ao roubarem ininterruptamente as pedras do castelo e da igreja, os homens estavam a contribuir para a ruína de ambos. Todas as aldeias num raio de dez milhas deviam estar a participar naquele desmantelamento discreto. Tudo quanto os habitantes dessas aldeias possuíam havia sido perdido durante a campanha do último Inverno: queimado, arrasado, chacinado. Ali, ao alcance da mão e pronta para ser carregada, havia uma vasta reserva de pedra já talhada, com a qual podiam construir novas casas, novos redis, novos pátios, novas vacarias, novos celeiros - tudo quanto precisavam. Depois de haverem usado o que caíra por terra, derrubariam o resto. Sem nenhum Isambard em Parfois, quem poderia impedi-los? A demolição iria demorar algum tempo mas, dentro de dez ou vinte anos, tudo estaria arrasado. Tudo dilapidado, tudo perdido, toda a obra do seu pai apagada da memória, como se nunca houvesse existido. Não seria, afinal, a criação mais duradoira do que a destruição? Seria este o destino não apenas dos destruidores mas também dos criadores? Para quê então o esforço, para quê a paixão?

Com uma expressão rígida e dura, sombria como o Inverno sob o sol suave e luminoso, Harry aproximou-se de Barbarossa. Montou, voltou as costas à igreja de Parfois e cavalgou rampa abaixo, sem olhar para trás. O facto de os homens a destruírem altera o valor de uma obra? Será esta menos válida, se não for reconhecida ou se for pervertida? Não restaria nada dela? Nem um eco, no fim de uma música tão bela?

Não sentia qualquer desejo de seguir pelo mesmo caminho e voltar a ver aquela desolação, lá no alto, recortada contra o céu. Assim, seguiu em direcção a Leighton, para atravessar o rio no vau de Pool, e apanhar a estrada do Norte, em direcção a Oswestry, ao encontro dos irmãos.

Agora que os seus olhos estavam preparados para os ver, detectou aqui e ali pedaços roubados à ossatura de Parfois. Ao atravessar a aldeia, viu-os, sólidos e incongruentes, inseridos nas paredes de novas casas que estavam a ser construídas. Quando o sol batia nela, acordando o dourado suave que dormia no cinzento claro e quente, a pedra de mestre Harry, vinda da pedreira de Bryn, era inconfundível. Descortinou esse brilho, aqui e ali, e a ferida no seu coração reabria-se a cada descoberta. Contudo, ao chegar ao extremo da aldeia, um súbito sobressalto de surpresa e deslumbramento fê-lo parar e ficar a olhar, sentindo o seu desespero abalado pela primeira vez.

O ferreiro de Leighton decorara os postes do pátio da sua quintarola com dois pequenos capitéis: os dois pilares, toscamente construídos, mas não desproporcionados, eram coroados por dois grupos gémeos de folhas radiantes e vivas, que haviam sustentado a abóbada da capela das missas encomendadas de Isambard. Seria, afinal, uma profanação assim tão grande? Se não houvesse visto neles qualquer coisa que lhe tocara o coração, o ferreiro haver-se-ia dado ao trabalho de os transportar por uma distância tão grande e de os colocar ali, onde apenas serviam para seu deleite?

Pensativo, Harry seguiu lentamente o seu caminho, interrogando-se por igual sobre o que lhe ia na alma e sobre os actos dos aldeãos. Mais adiante, numa pequena quinta, a parede do estábulo era encimada pelas pedras lavradas das cornijas da torre; e, na entrada, o muro era rematado pelo segmento de uma coluna. Desperdício? Dessacralização? Perda? Aquilo que Parfois perdera fora encontrado por alguém mais humilde.

Ainda desconfiado e contra vontade, o coração de Harry reanimou-se. Ainda magoado no seu amor, guardava-lhes ressentimento por se haverem apoderado de pedaços isolados daquilo que deveria ser um todo e propriedade de todos os homens; e culpava-os pela desintegração a que se haviam associado, ainda que inconscientemente e pressionados pela necessidade. As pobres pedras furtadas brilhavam ao sol, douradas como espigas de trigo caídas. Harry seguiu em direcção à margem do rio, ainda a debater-se com as suas dúvidas, apesar de a criança dentro de si arder de desejo de ser consolada.

Os maciços de salgueiros, que começavam a ficar vermelhos, resplandeciam ao longo da margem do rio, a jusante do vau. Ali perto, havia uma cabana em ruínas, onde um cesteiro praticava o seu ofício; varas brancas, já sem casca, estavam empilhadas sobre as ervas e, ao lado destas, pregada ao chão, encontrava-se a armação de uma canoa, metade da qual já coberta por varas. Pela abertura sem porta da cabana, perpendicular ao rio, Harry divisou pilhas de varas e cinco ou seis nassas compridas e esguias para a pesca de eirós, ainda por estrear; mas o som que lhe despertara a atenção era estranho, numa oficina como aquela.

Era um som diligente, absorto e satisfeito, a batida continuada de metal contra pedra. Para que precisariam de um martelo, numa cabana de cesteiros? Orgulhavam-se de conseguir prender com juncos tudo o que fosse preciso prender. Por pura curiosidade e porque aquele martelar diligente lhe despertava memórias muito queridas, Harry desmontou de Barbarossa e dirigiu-se silenciosamente para a cabana.

Um rapaz magro e de aspecto rude, com não mais de onze ou doze anos, debruçava-se concentradamente sobre qualquer coisa que empoleirara num tosco bloco de madeira, sob a luz do vão da janela. A cabeleira farta inclinava-se amorosamente sobre o seu trabalho, sem se importar com a canoa abandonada.

Assim que o pé de Harry fez estalar os juncos, o rapaz soltou um guincho de medo e virou-se, com um braço levantado para proteger a cabeça. Uma das suas mãos segurava um seixo achatado e pesado e a outra um prego comprido, de ferro.

- Calma, calma! - disse Harry, apaziguador. - Não sou o diabo nem o teu amo e não te quero fazer mal.

Sob a massa de cabelo escuro, um rosto moreno e esquálido fitou-o, com desconfiança. Esta criança estava habituada a levar pancada, esperava golpes que podiam vir de qualquer lado, mas os seus olhos vivos deixavam transparecer mais do que medo: denotavam uma coragem desesperada e firme. Manteve o corpo miúdo entre Harry e o que quer que fosse que guardava ali, no seu refúgio, tal como continuou a empunhar os estranhos objectos que, claramente, não desejava utilizar como armas.

- Que tens aí? - perguntou Harry, alertado e curioso.

- É meu.

O rapaz estendeu os braços, na defensiva, com uma chama a acender-se nos olhos escuros.

- Fui eu que a trouxe para aqui. Não roubei. Se os outros as podem tirar, eu também posso.

Harry pegou-lhe num ombro e afastou-o com delicadeza. Ao sentir a sua mão, o rosto do rapaz pareceu distender-se, numa ousadia alegre, e ficou de pé, tranquilo, já sem tentar esconder o seu tesouro- Aqueles de quem habitualmente precisava de se defender não lidavam com ele daquela maneira. Não gostara de ser observado e interrompido, mas não tinha nada a temer e, se se mostrasse despreocupado, o intruso partiria mais depressa.

Um bloco da pedra amarelada de mestre Harry - com aqueles bracitos, como conseguira o rapaz trazê-lo até ali? - estava colocado sobre um tronco de madeira. Os outros haviam-se dedicado às pedras talhadas, mas esta criança trouxera uma por talhar. O seixo e o prego faziam as vezes de macete e de formão. Quem lhe haveria ensinado quais as ferramentas necessárias ou como começar a dar forma a este material pouco maleável? Aquelas mãos pequenas e sujas haviam aproveitado ao máximo os instrumentos toscos, haviam-nos empunhado com convicção e ardor. Sobre a pilha de juncos, onde decerto os escondia dos mais velhos e dos inimigos naturais, equilibrava-se um fragmento quebrado de um dos modilhões da nave lateral Sul: um ramo encurvado, o rosto velhaco de um camponês, o focinho de um cão de caça, parado, a apontar a presa.

Havia começado a copiá-la, com crueza e vivacidade; mas depois, ao chegar à inclinação da face cautelosa do caçador furtivo, a mão ambiciosa do escultor sentira um desejo próprio e a sua imaginação desabrochara. O homem agachado ainda parecia irromper de entre os arbustos, o cão saltava. Toscos e desastrados, mas vivos, saíam dos seus refúgios para correr atrás da presa e, ainda que desenhados nos traços inseguros de uma criança, havia neles júbilo e manha. Com uma pedra e um prego, Deus do céu! E sabendo que, provavelmente, ninguém da sua família, ninguém à sua volta deixaria de lhe dar um sopapo e atirar aquela porcaria ao rio, se fosse apanhado em flagrante. Mas o rapaz encontrara algo de que não estava disposto a desistir facilmente. O rosto ardente falava por si, o seu olhar intenso e a sua mão hábil eram eloquentes. Descobrira um abismo de fogo dentro de si e não deixaria que o apagassem.

- Quem te ensinou a fazer isto? - perguntou Harry.

- Ninguém. Fui tentando. Olhei para o outro e tentei.

- Já havias visto coisas destas?

- Como estas, não! Já lá estivestes? Há lá caras! Parecem vivas, como a da minha mãe. Nunca vi outras assim. Não consegui tirá-las, mas encontrei esta na erva, junto da muralha, e escondi-a. Achais que pode haver árvores, animais e pessoas dentro da pedra?

- Pode haver tudo dentro da pedra - disse Harry. - Todas as criaturas de Deus. Quem, melhor do que tu, sabe disso? Fizestes nascer dela dois seres que nunca antes haviam vivido.

- Eu queria era fazer coisas destas - disse o rapaz. - Ainda hei-de fazer mais e melhores - acrescentou, e o seu rosto tão jovem tornou-se duro como a pedra.

- Se tiveres força de vontade suficiente, hás-de fazê-las. Criaturas tão vivas como a tua mãe e igrejas como aquela.

«E, se Deus quiser», pensou Harry, bebendo profundamente de uma fonte de revelação, de gratidão e alegria, «será bem capaz de as fazer, tem a chama a brilhar dentro dele, um olhar puro e a mão ousada.»

- Que Deus te ajude no teu trabalho - disse ao rapaz, e saiu para a luz do dia com o coração mais leve.

O rapaz ficou a vê-lo montar e afastar-se, de olhos ardentes vagamente agradecidos, mas sempre com um ar distante e independente. Se houvesse trazido consigo algumas ferramentas, Harry dar-lhas-ia de boa vontade, mas vestia as suas melhores roupas e não tinha nada para dar - embora, na verdade, esta alma singular e obstinada não quisesse nada dele, nem sequer um estímulo. Chegaria aonde pretendia e nada o deteria ou o faria desviar do seu caminho. Era como uma tocha, acesa por uma fagulha daquele foco de incêndio agora tão espalhado, um rebento verde da semente escarlate do sangue, da vida e da paixão de mestre Harry, essa semente indestrutível que fora semeada por toda a região.

Este era apenas o primeiro fruto da colheita.

Harry apertou com os joelhos os flancos luzidios de Barbarossa e lançou-se em frente, pelos baixios do vau. A meio da corrente, redes flutuantes de ranúncuios agitavam-se e oscilavam à sua passagem, as minúsculas flores brancas estremeciam nos seus caules delicados. O sol que lhe batia no rosto aqueceu-o até ao fundo do coração; e, no seu íntimo, sentiu os mortos agitarem-se, todos os mortos de cuja semente ele era o fruto vivo.

Este pensamento não o afligiu. Pelo contrário: o seu espírito elevou-se, acompanhando-o, truculento e animoso. Em Aber, estavam à sua espera Aelis e as ferramentas do ofício que escolhera, um bom ofício, que fora o de seu pai e valia tanto como outro qualquer.

Plácida e verdejante, a margem galesa do rio aguardava-o, convidativa. Atrás de si, o pequeno sino persistente retomara o seu toque indómito.

 

                                                                                            Edith Pargeter  

 

                      

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